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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO Ludimilla Carvalho Wanderlei EXPERIMENTALISMOS E RUÍDOS NA FOTOGRAFIA CONTEMPORÂNEA Recife 2020

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Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E … · 2020. 12. 4. · Marina Feldhues, Philipe Fassarella, Alexandre Maciel, Mari Reis, Rafa Queiroz, Rafa Andrade (e Suzana,

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE ARTES E COMUNICACcedilAtildeO

DEPARTAMENTO DE COMUNICACcedilAtildeO SOCIAL

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM COMUNICACcedilAtildeO

Ludimilla Carvalho Wanderlei

EXPERIMENTALISMOS E RUIacuteDOS NA FOTOGRAFIA CONTEMPORAcircNEA

Recife

2020

Ludimilla Carvalho Wanderlei

EXPERIMENTALISMOS E RUIacuteDOS NA FOTOGRAFIA CONTEMPORAcircNEA

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeoem Comunicaccedilatildeo da Universidade Federal dePernambuco como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo dotiacutetulo de doutora em Comunicaccedilatildeo

Aacuterea de concentraccedilatildeo Comunicaccedilatildeo

Orientadora Professora Doutora Nina Velasco eCruz

Recife

2020

Catalogaccedilatildeo na fonteBibliotecaacuteria Jeacutessica Pereira de Oliveira CRB-42223

UFPE (CAC 2020-157)30223 CDD (22 ed)

W245e Wanderlei Ludimilla CarvalhoExperimentalismos e ruiacutedos na fotografia contemporacircnea Ludimilla

Carvalho Wanderlei ndash Recife 2020269f il

Orientadora Nina Velasco e CruzTese (Doutorado) ndash Universidade Federal de Pernambuco Centro de

Artes e Comunicaccedilatildeo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Comunicaccedilatildeo2020

Inclui referecircncias

1 Fotografia 2 Fotografia experimental 3 Ruiacutedo 4 Erro5 Hibridismo I Cruz Nina Velasco e (Orientadora) II Tiacutetulo

Ludimilla Carvalho Wanderlei

EXPERIMENTALISMOS E RUIacuteDOS NA FOTOGRAFIA CONTEMPORAcircNEA

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeoem Comunicaccedilatildeo da Universidade Federal dePernambuco como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo dotiacutetulo de doutora em Comunicaccedilatildeo

Aprovada em 30072020

BANCA EXAMINADORA

______________________________________

Professora Doutora Nina Velasco e Cruz (Orientadora)Universidade Federal de Pernambuco

__________________________________________

Professora Doutora Acircngela Freire Prysthon (Examinadora interna)Universidade Federal de Pernambuco

___________________________________________

Professor Doutor Rodrigo Octaacutevio DrsquoAzevedo Carreiro (Examinador interno)Universidade Federal de Pernambuco

____________________________________________

Professor Doutor Cesar Augusto Baio Santos (Examinador externo)Universidade Estadual de Campinas

___________________________________________

Professora Doutora Cristina Maria da Silva Pinto Ferreira Fonseca (Examinadora externa)Universidade do Porto

Agraves conexotildees aos curtos-circuitos e aos descaminhos da vida Em quaisquer tempos e

lugares

AGRADECIMENTOS

Acho sempre difiacutecil essa coisa dos agradecimentos mas se eacute para fazecirc-los ei-los

obrigada a todos e todas que (consciente ou inconscientemente) incentivaram ajudaram

acolheram criticaram escolhas ideias e percursos deste trabalho que para nascer tem que

tambeacutem morrer todo dia um pouquinho Aos meus amigos e amigas que extrapolam a

convivecircncia nas salas de aula e que trago comigo na cabeccedila e no coraccedilatildeo em laccedilos

verdadeiramente construiacutedos entre risadas cervejas conversas sobre poliacutetica muacutesica cinema

fotografia e logicamente os dissabores da vida Yara Medeiros Olga Wanderley Thais Faria

Marina Feldhues Philipe Fassarella Alexandre Maciel Mari Reis Rafa Queiroz Rafa Andrade

(e Suzana e Andreacuteia) Pedro Severien Carol Almeida

Aos queridos Zeacute Claudinha e Robertinha da secretaria do PPGCOM que literalmente

nos salvam com boa vontade e simpatia flexibilizando os limites impostos pela burocracia tiacutepica

da universidade puacuteblica Aos professores e professoras com os quais tive momentos frutiacuteferos e

insights valiosos (embora em alguns casos nem sequer tenha externado isso) Acircngela Prysthon

Joseacute Afonso Jeder Janotti Thiago Soares Rodrigo Carreiro Isaltina Gomes A Cesar Baio e

Rodrigo Carreiro pela oacutetima qualificaccedilatildeo

Um salve especial agrave minha orientadora Nina Velasco e Cruz de quem fui aluna em trecircs

ocasiotildees anteriores e que com paciecircncia leveza e confianccedila esteve junto comigo nesse

processo avaliando com o rigor necessaacuterio e sem ferir a autonomia que se espera de quem se

ldquometerdquo nessa coisa chamada doutorado e com quem durante todas as trocas para

encaminhamentos da pesquisa tive abertura e senti-me confortaacutevel para falar natildeo apenas da

conduccedilatildeo da tese mas de coisas da vida

Aos fotoacutegrafos e fotoacutegrafas que entrevistei por sua generosidade e partilha

Ao Arquivo Vileacutem Flusser Satildeo Paulo pelo acesso a seus textos

Agrave Facepe e agrave Capes agecircncias das quais obtive bolsa respectivamente para os periacuteodos

regular e estaacutegio-sanduiacuteche do doutorado

Agrave Cristina Ferreira que com toda disponibilidade simpatia e carinho me acompanhou

nos nove meses do doutorado-sanduiacuteche na Universidade do Porto Nunca esquecerei as trocas e

laccedilos criados Obrigada tambeacutem a Eliza Steacutefani Daniel Jordana Joilson Felipe Roberto Clara

Eduardo a pequena Janaiacutena Jeacutessica Carol e Thalles que conheci no Porto

Aos meus amigos e amigas de vida Fernando Naia Anabele Joaninha Quequel Eacutethel

Cauecirc Line Nice Igor Mila Ruthinha Ju Patrick Maacutercio Andrade Ale Senna Raquel do

Monte Esquecidxs por culpa da minha memoacuteria sintam-se abraccediladxs

Obrigada sempre a mainha e Camila meus amores minha vidas meus carmas meus

piolhos

E obrigada a Rafael Pires meu companheiro de aventuras a fotografia e o acaso nos

aproximaram o frio nos castigou a muacutesica nunca nos abandonou e o afeto nos manteve unidos

Um cheirinho

ldquoNessa manhatilde de louco o olho do morto reflete o fogordquo (MACALEacute1970)

RESUMO

Esta tese investiga as manifestaccedilotildees do ruiacutedo na fotografia contemporacircnea como

potecircncia de imagens hiacutebridas experimentais e processuais Partindo de um olhar sobre a

produccedilatildeo fotograacutefica recente que articula o despojamento e a agilidade de produccedilatildeo distribuiccedilatildeo

e acesso da imagem via computador a paradigmas formais (tais como a verossimilhanccedila o

mimetismo e a representaccedilatildeo) compreendemos que a vertente da fotografia experimental propotildee

uma agenda esteacutetica alternativa na medida em que natildeo se limita a essa retoacuterica de

correspondecircncia estrita com o referente A partir das obras de artistas brasileiros e estrangeiros

atestamos que os experimentalismos realizados com miacutedias analoacutegicas e digitais indicam a

valorizaccedilatildeo do ruiacutedo no campo da imagem atraveacutes da presenccedila de elementos como borrotildees

tremulaccedilotildees inscriccedilotildees do tempo muacuteltiplas exposiccedilotildees granulaccedilotildees pixel aparente exploraccedilatildeo

de efeitos cromaacuteticos texturas e estrutura das imagens distorccedilotildees entre outros A pluralidade de

manifestaccedilotildees do ruiacutedo ocorre por meio de estrateacutegias centradas na intervenccedilatildeo deliberada sobre

quaisquer miacutedias utilizadas para criar imagens tangenciando questotildees como o entrecruzamento

de territoacuterios da fotografia do cinema da pintura do viacutedeo das artes graacuteficas e o ambiente dos

softwares o desenvolvimento de poeacuteticas originais (geralmente contraacuterias aos usos industriais

das tecnologias) processos de criaccedilatildeo da ordem das apropriaccedilotildees dos hibridismos da

remixagem e a reprogramaccedilatildeo de softwares e hardwares para fins artiacutesticos Na pesquisa

refletimos ainda sobre a importacircncia do acaso como elemento partiacutecipe das metodologias

artiacutesticas o caraacuteter processual das imagens nas quais o ruiacutedo emerge a materialidade como vetor

de sentido nas obras analisadas o olhar dirigido agraves teacutecnicas claacutessicas da imagem fotoquiacutemica e agraves

miacutedias ldquoobsoletasrdquo (sob uma abordagem arqueoloacutegica da miacutedia) e por fim sobre as recentes

abordagens da teoria da fotografia que datildeo conta das proposiccedilotildees formais conceituais e

filosoacuteficas com agraves quais podemos associar a emergecircncia do ruiacutedo nas imagens

Palavras-chave Fotografia Fotografia experimental Ruiacutedo Erro Hibridismo

ABSTRACT

This thesis investigates the manifestations of noise in contemporary photography as a

power of hybrid experimental and processual images Starting from a look at recent

photographic production which articulates the stripping and agility of production distribution

and access of the image via computer to formal paradigms (such as verisimilitude mimesis and

representation) we understand that the experimental photography aspect proposes an alternative

aesthetic agenda insofar as it is not limited to this rhetoric of strict correspondence with the

referent From the works of Brazilian and foreign artists we attest that the experimentalisms

made with analog and digital media indicate the valorization of noise in the field of image

through the presence of elements such as blurs tremulations inscriptions of time multiple

exposures granulations apparent pixel exploration of chromatic effects textures and structure of

images distortions among others The plurality of noise manifestations occurs through strategies

focused on deliberate intervention on any media used to create images tangentiating issues such

as the intersection of territories of photography cinema painting video graphic arts the

software environment the development of original poetics (generally contrary to the industrial

uses of technologies) processes of creation such as appropriations hybrids remixing

resignification of old techniques of photography and the reprogramming of software and

hardware for artistic purposes In the research we also reflected on the importance of chance as a

partisan element of artistic methodologies the processual character of the images in which noise

emerges the materiality as a vector of meaning in the works analyzed the gaze directed to the

classical techniques of the photochemical image and to the ldquoobsoleterdquo media (under an

archaeological approach of the media) and finally on the recent approaches to the theory of

photography that account for the formal conceptual and philosophical propositions with which

we can associate the emergence of noise in images

Keywords Photography Experimental photography Noise Error Hybridism

SUMAacuteRIO

1 PARTIDAS OU UMA INTRODUCcedilAtildeO 13

2 INTELIGEcircNCIAS NUMEacuteRICAS 20

21 BREVE CONTEXTO SOCIAL E EMERGEcircNCIA DA CULTURA DIGITAL 20

22 RASTROS PEGADAS DA CULTURA DO NUMEacuteRICO 25

23 PARADIGMA NUMEacuteRICO ESPECIFICIDADES 26

24 SOBRE A IMAGEM 29

241 Virtualidade x materialidade 29

242 Ordem da representaccedilatildeo x ordem da simulaccedilatildeo 55

3 ANALOacuteGICO X DIGITAL INTERROGACcedilOtildeES EM DIRECcedilAtildeO Agrave

FOTOGRAFIA 61

31 RECONSIDERANDO ALGUMAS DISPARIDADES 61

32 ANALOacuteGICO + DIGITAL E A ZONA CINZA DE NEGOCIACcedilOtildeES

CONTINUIDADES ATRAVESSAMENTOS 66

321 Digital (re)visitando tradiccedilotildees visuais 66

322 Tatildeo longe tatildeo perto comparaccedilotildees 91

323 Arqueologia da miacutedia e investigaccedilotildees do medium 95

4 RUIacuteDO ERRO E IMAGEM 103

41 FOTOGRAFIA Eacute RUIacuteDO PARA ALEacuteM DE ESPECIFICIDADES

TECNOLOacuteGICAS 103

42 DISPUTAS ONTOLOacuteGICAS 109

43 COM OLHOS DE VIDRO DE CORES BERRANTES BALANCcedilAM

EDIFIacuteCIOS DE QUARENTA ANDARES 113

44 POR SERES TAtildeO INVENTIVO E PARECERES CONTIacuteNUO TEMPO

EacuteS UM DOS DEUSES MAIS LINDOS 121

45 EU SOU APENAS UM INCOcircMODO 134

46 CONTROLE EFICIEcircNCIA E DISPOSITIVOS 156

47 ERRO OU RUIacuteDO 158

48 A TECNOIMAGEM Eacute FEITA DE PONTOS GRAtildeOS E PIXELS 162

49 A TUA PRESENCcedilA Eacute BRANCA VERDE VERMELHA AZUL E AMARELA 169

410 QUANDO DAGUERRE ENCONTRA O PHOTOSHOP 173

5 FALHAS BUGS E DESCONTINUIDADES SISTEcircMICAS 183

51 COMPUTADORES FAZEM ARTE ARTISTAS FAZEM DINHEIRO 183

52 O BOM O MAU E O FEIO 207

53 AS FLUTUACcedilOtildeES DE UM CONCEITO 209

6 O QUE SUGEREM AS LIGACcedilOtildeES ENTRE RUIacuteDO E IMAGEM 226

61 O PAPEL CRIATIVO DO ACASO 226

611 O imprevisiacutevel instala-se por conta do uso desprogramado

das tecnologias 229

612 Caraacuteter processual 230

62 MATERIALIDADE 232

63 OLHAR RETROSPECTIVO A PROCESSOS CLAacuteSSICOS DA

FOTOGRAFIA 238

631 Arqueologia da miacutedia 240

64 E A TEORIA DA FOTOGRAFIA 246

7 CHEGADAS OU CONCLUSOtildeES 251

REFEREcircNCIAS 254

13

1 PARTIDAS OU UMA INTRODUCcedilAtildeO

A escrita desta tese as discussotildees que ela suscitou dentro ou fora da universidade as

leituras necessaacuterias para seu desenvolvimento fazem parte de um processo muito diverso para

mim Agrave medida que a pesquisa caminhava ideias foram repensadas outras simplesmente

abandonadas e o resultado final logicamente reflete essa trajetoacuteria de idas e vindas Acho que

para entender os caminhos (agraves vezes descaminhos) do doutorado eacute preciso resgatar as etapas

desse percurso e aqui acho que tenho a justa licenccedila para adotar um estilo mais pessoal de escrita

(sob risco de destoar um pouco do restante do trabalho) No mestrado aprendi que as introduccedilotildees

servem natildeo soacute para falar do que vem a seguir de como a investigaccedilatildeo foi conduzida e estaacute

estruturada mas tambeacutem sobre aquilo que nos direcionou para certos temas como alguns

assuntos nos provocam ajudando a desvendar o nascimento de uma pesquisa (seus problemas

hipoacuteteses etc)

A fotografia sempre me interessou como objeto de estudo Num percurso lacunar entre

graduaccedilatildeo e especializaccedilatildeo cheguei ao mestrado e ainda durante esse momento tomei contato

com algumas leituras que versavam a respeito de memoacuteria tecnologias afetos intimidade e de

maneira geral discutiam nossas relaccedilotildees com artefatos culturais variados entre eles as imagens

fotograacuteficas cinematograacuteficas a muacutesica Entre esses objetos sempre me interessaram mais as

ldquocoisasrdquo possuidoras mesmo de uma dimensatildeo fiacutesica Aquelas que podemos manusear que se

desgastam acumulam marcas do tempo poeira ou traccedilos de uso Agradeccedilo agrave Joseacute Van Dijck

(2007) e seu belo livro sobre as memoacuterias mediadas na era digital

Naquele momento jaacute tinha decidido continuar estudando questotildees relativas agrave imagem e

percebi que para me dedicar a uma pesquisa de quatro anos o tema natildeo teria apenas que ser

interessante mas me mobilizar num sentido talvez pessoal e comecei a pensar de que maneira

era possiacutevel articular questotildees da esteacutetica das tecnologias da imagem e um movimento (que

vinha observando sem pretensatildeo investigativa nenhuma e que na eacutepoca parecia marginal e

saudosista) ligado ao uso do filme fotograacutefico em plena ldquoera digitalrdquo A ldquodescobertardquo aconteceu

pura e simplesmente porque eu ndash que como diz um amigo ldquojaacute nasci velhardquo ndash sigo produzindo

fotografias em negativo e tambeacutem porque os algoritmos trabalham muito bem com base nas

14

miacutenimas informaccedilotildees fornecidas quando posto na internet algumas das minhas imagens Assim

descobri o Analogue Sunrise um tumblr de compartilhamento de fotografias analoacutegicas onde

aparentemente ningueacutem se conhece e todos estatildeo ali para ldquocelebrarrdquo a foto em negativo O

aspecto de fisicalidade da fotografia sempre significou um componente de certo vieacutes afetivo da

imagem assentado numa relativa estabilidade que o suporte proporciona Tambeacutem em niacutevel

pessoal enxergo um tipo de maacutegica no fato de que somente apoacutes a revelaccedilatildeo do negativo eacute que

conhecemos de fato as imagens Assim a fotografia produzida com teacutecnicas analoacutegicas figurava

como objeto de pesquisa inicial nesses contornos ainda meio fraacutegeis do ponto de vista do rigor

teoacuterico

Ainda de forma incipiente a investigaccedilatildeo parecia encaminhar-se para o lado da

nostalgia e inclinada a compreender uma atitude desviante daqueles que escolhiam o analoacutegico

em detrimento do digital Isso levou a um problema o que justificaria essa escolha para aleacutem de

uma certa verve cool que reveste o projeto do Analogue Sunrise Esse questionamento tambeacutem

se fazia presente na curiosidade que despertava em mim o Impossible Project (retomada da

produccedilatildeo de cacircmeras e insumos para a Polaroid em 2008) de revival da fotografia instantacircnea

Os usuaacuterios do Analogue Sunrise pareciam valorizar a granulaccedilatildeo das peliacuteculas o

desfocado as fotos ldquotremidasrdquo como se tais caracteriacutesticas indicassem o apreccedilo por uma esteacutetica

ldquodos defeitosrdquo que se afastava de certa frieza e perfeiccedilatildeo que o universo da imagem digital

supostamente representava Novamente essas questotildees partiam de uma observaccedilatildeo

despretensiosa sem muita base teoacuterica (da qual eu em niacutevel pessoal compartilhava)

Senti a necessidade de revisitar uma literatura que desse conta das preocupaccedilotildees em

torno da imagem digital como ela articulava mudanccedilas de haacutebitos modos de distribuiccedilatildeo

consumo e estrateacutegias criativas da fotografia na tentativa de encontrar nesses textos respostas

que explicassem uma ldquonegaccedilatildeordquo dessa tecnologia e assim uma interdiccedilatildeo tambeacutem de sua esteacutetica

ldquoperfeitardquo Notei que era necessaacuterio compreender primeiro esse contexto da imagem digital para

entender sua loacutegica e talvez defender uma posiccedilatildeo de recusa deliberada traduzida na escolha

pelo analoacutegico Comecei a buscar as referecircncias que espelhavam as principais questotildees surgidas e

aprofundadas quando o paradigma digital ganha corpo a partir dos anos 1980 Agrave medida que lia

Manovich (19952001) Couchot (2003) Parente (1993) Machado (1993) Soulages (20072010)

Fatorelli (2006) Valle (2012) Lister (1995) Baio (2016) entre tantas outras referecircncias fui

15

percebendo que a questatildeo central natildeo era de apenas fazer uma distinccedilatildeo epistemoloacutegica e teacutecnica

entre tecnologias fotoquiacutemicas e digitais capaz de explicar preferecircncias formais Quando

observamos as primeiras reflexotildees sobre a emergecircncia da cibercultura e os impactos desta no

campo da imagem os debates estatildeo mais centrados em questotildees tais como compartilhamento

vigilacircncia manipulaccedilatildeo de arquivos naturalizada autoria coletiva criaccedilatildeo de artefatos hiacutebridos

tentando mapear distinccedilotildees entre uma epistemologia herdada do pensamento moderno (imagem

analoacutegica) e um paradigma da imagem ligado ao surgimento do computador de uma

racionalidade matemaacutetica Nesse esforccedilo de reflexatildeo velhos debates ligados agrave (suposta) funccedilatildeo

indicial da fotografia foram revisitados ou ldquorecicladosrdquo

Essa discussatildeo que articula problemaacuteticas da cibercultura e paradigmas claacutessicos da

imagem faz com que as teorias oscilem entre o entusiasmo com as possibilidades criativas do

digital e anaacutelises que detectam justamente essas ambiguidades comportadas pelo campo da

imagem fazendo natildeo apenas conviverem mas se associarem as diferentes tecnologias e nesse

sentido faccedilo nos capiacutetulos ldquoInteligecircncias numeacutericasrdquo e ldquoAnaloacutegico x digital interrogaccedilotildees em

direccedilatildeo agrave fotografiardquo da tese diversas consideraccedilotildees a respeito desse cenaacuterio que jaacute natildeo eacute mais

novo mas precisava de certa maneira de alguma demarcaccedilatildeo para situar as discussotildees que se

seguem Aleacutem de delinear questotildees importantes que caracterizam o paradigma digital e que satildeo

evocados nos debates sobre a fotografia (como a manipulaccedilatildeo a imaterialidade o virtual a

simulaccedilatildeo automaccedilatildeo dos dispositivos entre outras) esses dois capiacutetulos trazem uma seacuterie de

observaccedilotildees que relativizam as diferenccedilas tatildeo demarcadas entre analoacutegico e digital

aproximando-se de temas como remediaccedilatildeo (BOLTER amp GRUSIN 2000) materialidade do

software (MANOVICH 2013) a compreensatildeo da imagem como espaccedilo de experiecircncias

(enfatizando assim seu caraacuteter de artifiacutecio) o que por sua vez alinha-se agraves teses sobre os

hidridismos as contaminaccedilotildees (FATORELLI 2013) entre meios e ao decliacutenio das teorizaccedilotildees

preocupadas em singularizar os territoacuterios da imagem (fotografia cinema viacutedeo)

O esforccedilo de revisitar essas teses eacute feito no intuito de associar os debates que permeiam

o campo da imagem na emergecircncia da cibercultura para estabelecer algumas questotildees

importantes que serviratildeo de base para as abordagens posteriores centradas na temaacutetica do ruiacutedo

Considero que para articular esses dois campos (imagem e ruiacutedo) era interessante primeiro situar

algumas reflexotildees que mobilizaram intensamente os pensadores voltados agrave fotografia ao cinema

16

ao viacutedeo Ateacute porque apesar de emergir como tema no campo da arte jaacute no iniacutecio do seacuteculo XX

o ruiacutedo eacute um assunto bastante associado ao universo da computaccedilatildeo (conforme veremos adiante)

O conjunto dessas reflexotildees abriu margem para pensar a exploraccedilatildeo das proacuteprias miacutedias

como estrateacutegia de criaccedilatildeo direcionando o foco de anaacutelise agraves experiecircncias situadas em zonas

limiacutetrofes das tecnologias e das linguagens fazendo emergir dessas investigaccedilotildees esteacuteticas

inusuais hiacutebridas e nascidas de usos pouco convencionais dos dispositivos Aqui comeccedilava a

ganhar corpo o tema principal deste trabalho o reconhecimento e a valorizaccedilatildeo de formas

surgidas pelo uso combinado ou exclusivo das mais diversas tecnologias da imagem empregadas

contrariamente aos seus respectivos ldquoprogramasrdquo (FLUSSER 2011 2008) industriais que por

sua vez enfatizam o potencial criativo que alguns artistas enxergam no ruiacutedo do medium Em

uacuteltima instacircncia o ruiacutedo como um conceito operador de esteacuteticas singulares experimentais

Pensei que a partir dessas associaccedilotildees seria possiacutevel entender a tendecircncia cada vez mais

heterogecircnea da imagem contemporacircnea e o interesse por aspectos formais antes considerados

sob a rubrica dos ldquodefeitosrdquo (tais como borrotildees tremidos riscos granulaccedilatildeo pixelizaccedilatildeo

vestiacutegios dos materiais utilizados ou do gesto interventivo doda artista fantasmagorias

anamorfoses e outras inscriccedilotildees de temporalidades complexas marcas do desgaste) Essa

orientaccedilatildeo por sua vez tornava problemaacutetica a insistecircncia (inicial) em vincular a pesquisa

exclusivamente ao universo das miacutedias analoacutegicas visto que o tema do ruiacutedo possui uma estreita

relaccedilatildeo com o contexto de industrializaccedilatildeo e crescimento da importacircncia dos meios de

comunicaccedilatildeo no iniacutecio do seacuteculo XX e com a cibercultura em especial em que noccedilotildees de

controle eficiecircncia e precisatildeo expressam justamente a ideia de constranger reduzir a

manifestaccedilatildeo erraacutetica irregular e imprevisiacutevel do ruiacutedo Aleacutem disso a fotografia vernacular que

me ocupava no iniacutecio da investigaccedilatildeo natildeo parecia diretamente relacionada aos

experimentalismos com as teacutecnicas associados agrave temaacutetica do ruiacutedo Foi preciso olhar para o

campo da arte que se tornou referecircncia principal do corpus

Decidi entrevistar artistas que ajudaram a perceber que o problema central enfrentado

em minha tese era na verdade o interesse por uma esteacutetica emergente dos procedimentos

realizados com a imagem (no qual a presenccedila das miacutedias analoacutegicas era uma caracteriacutestica mas

natildeo um traccedilo definidor exclusivo) Natildeo era o uso da fotografia analoacutegica que explicava uma

esteacutetica processual e cheia de ldquodefeitosrdquo mas esse uso representava uma das estrateacutegias que

17

fazem parte de um contexto maior que permite afirmarmos essa esteacutetica (ou esteacuteticas) As

conversas com sete artistas (mulheres e homens) realizadas nos anos de 2017 2018 e 2019

confirmaram o interesse pelos desvios nos usos das tecnologias apontando a pertinecircncia de tratar

essas questotildees em articulaccedilatildeo com os temas do ldquoruiacutedordquo (HAINGE 20072013 KRAPP 2011

NUNES 2011 BALLARD 2011 MENKMAN 2010 FELINTO 2013) ldquoerrordquo (CHEacuteROUX

2009 PIPER-WRIGHT 2018) ldquoimprevistordquo ldquoacasordquo e acidente (ENTLER 2000) Em todas as

entrevistas a filosofia de Vileacutem Flusser (1920-1991) surgiu como referecircncia de pensamento que

norteava os projetos artiacutesticos embora no recorte final do corpus alguns artistas tenham sido

retirados para dar lugar a outros que descobri ao longo da investigaccedilatildeo

Aleacutem do pensador tcheco tambeacutem faccedilo referecircncias pontuais aos escritos de Gilles

Deleuze individualmente (199920052012) a seus trabalhos em parceria com Feacutelix Guattari

(1995199720112012) Walter Benjamin (19361994) entre outros nomes da filosofia

Durante o processo de qualificaccedilatildeo sugeriu-se que o trabalho deveria concentrar-se nas

relaccedilotildees entre ruiacutedo e imagem Nesse sentido foi indicado que esse tema atravessasse a

totalidade dos capiacutetulos sendo tratado desde o iniacutecio do texto Hoje com o trabalho finalizado

pode-se dizer que o ldquocoraccedilatildeordquo da tese estaacute nas diversas estrateacutegias de emergecircncia do ruiacutedo em

diaacutelogo com a filosofia a esteacutetica e as teorias da fotografia Mas com a necessidade de

reestruturar o que jaacute estava produzido optei por incluir a partir dos primeiros capiacutetulos breves

observaccedilotildees que enquanto se referiam a obras especificamente trouxessem algumas das

caracteriacutesticas ou ideias tais como imprevisibilidade inteligecircncia maquiacutenica interferecircncia nos

sistemas perturbaccedilatildeo remixagem entre outras Desse modo busquei aos poucos introduzir

algumas questotildees relevantes (em articulaccedilatildeo com os debates sobre o cenaacuterio da imagem

contemporacircnea) para trabalhar especificamente o conceito de ruiacutedo juntamente agrave anaacutelise das

obras Minha ideia era que este tema pudesse ser discutido em suas possiacuteveis articulaccedilotildees com

referecircncias do campo da filosofia esteacutetica e da teoria da fotografia por meio da anaacutelise do

corpus de obras artiacutesticas selecionado que eacute o foco dos capiacutetulos ldquoRuiacutedo erro e imagemrdquo e

ldquoFalhas bugs e descontinuidades sistecircmicasrdquo

Neles procedo entatildeo agrave conceituaccedilatildeo sobre o ruiacutedo resgatando suas caracteriacutesticas

essenciais dialogando em alguns momentos com as ideias dosdas proacutepriosas artistas (com base

nas entrevistas e outros materiais de referecircncia) em conexatildeo com as reflexotildees de Baio (2015)

18

Fatorelli e Carvalho (2015) Costa (2015) Fatorelli (201320172017a) Bellour (1997) Parente

(2015) Menkman (2010) Fontcuberta (20102016) Piper-Wright (2018) Zylinska (20172017a)

Steyerl (2009) Lenot (2017) entre outros nomes passando por experiecircncias com as

temporalidades a ressignificaccedilatildeo criacutetica de tecnologias histoacutericas como daguerreoacutetipo cacircmara

escura fotografia estenopeica goma bicromatada pelo tracircnsito entre foto cinema viacutedeo e

pintura os diaacutelogos entre as vertentes fixa e moacutevel da imagem experiecircncias multimiacutedia ateacute a

apreciaccedilatildeo do ruiacutedo em suas manifestaccedilotildees nos domiacutenios da imagem digital em obras que

exploram softwares formatos de arquivos revisitam meios ldquoobsoletosrdquo e se apropriam de

material de terceiros (instituiccedilotildees ou particulares) em afinidade com temas como vigilacircncia

hackeamento sabotagem e remix

As anaacutelises dos trabalhos fotograacuteficos de Luiz Alberto Guimaratildees Dirceu Maueacutes Cris

Bierrenbach Rosacircngela Rennoacute Caacutessio Vasconcellos Joseacute Luiacutes Neto Sabato Visconti Rosa

Menkman Joanna Zylinska Jason Shulman Claire Strand Thomas Ruff e Eacuteder Oliveira

convocam-nos a repensar diversos paradigmas da imagem bem como os alargamentos das

possibilidades esteacuteticas atraveacutes da investigaccedilatildeo das tecnologias Por forccedila do debate em torno da

pluralidade de recursos e miacutedias empregados nos trabalhos e tambeacutem com base em toda revisatildeo

de bibliografia feita nos primeiros capiacutetulos optei por referir-me principalmente agraves obras

utilizando a terminologia da ldquoimagemrdquo que me parece gozar de maior abrangecircncia sobre os

fenocircmenos discutidos em comparaccedilatildeo com o uso do termo ldquofotografiardquo Eacute por isso que este

uacuteltimo eacute mais frequente nos capiacutetulos iniciais (que abordam a ldquotransiccedilatildeordquo analoacutegico-digital de

um ponto de vista mais teacutecnico) e paulatinamento sai de cena para dar lugar agrave categoria da

imagem que julgo ser mais coerente para tratar das experiecircncias realizadas no tracircnsito entre

tecnologias

Se o ruiacutedo acaba por ser o centro de meu debate as anaacutelises realizadas conduziram

tambeacutem a questotildees abordadas em campos como a arqueologia da miacutedia (ZIELINSKI 2006

BISHOP et al 2016 PARIKKA 20122017) as materialidades da comunicaccedilatildeo (FELINTO

2001 GUMBRECHT 2010) e o papel do acaso (ENTLER 2000) que embora rapidamente

citadas nas seccedilotildees anteriores trato de forma mais detalhada no uacuteltimo capiacutetulo Ao discutir as

visualidades surgidas da investigaccedilatildeo teacutecnica e conceitual voltada ao proacuteprio medium em

metodologias originais evoco novamente as ideias de ldquoaparelhordquo ldquojogordquo ldquoprogramardquo do

vocabulaacuterio flusseriano estabelecendo tambeacutem uma noccedilatildeo de criaccedilatildeo artiacutestica baseada na

19

colaboraccedilatildeo entre seres humanos e dispositivos (esta relaccedilatildeo que entendi ser mais da ordem das

acoplagens que das hierarquias ou dos conflitos)

Recolocar essas questotildees me pareceu pertinente na medida em que finalizo este trabalho

situando as abordagens da teoria da fotografia que guardam uma estreita relaccedilatildeo com essas

consideraccedilotildees de Flusser a saber os trabalhos de Lenot (20172017a) Poivert (20022015)

Fontcuberta (2010) Junior (2002) e mais uma vez Zylinska (2017a) Ou seja se partir do

contexto de emergecircncia da cultura digital abordando os debates surgidos no meio fotograacutefico as

contaminaccedilotildees entre as miacutedias e as experimentaccedilotildees artiacutesticas compreendo ser vaacutelido fechar

esse movimento apontando onde no espaccedilo das teorias da fotografia encontramos reflexotildees que

dialogam com as mesmas questotildees que se batem os pesquisadores dedicados ao espinhoso tema

do ruiacutedo

Compreendo nessa altura do debate proposto que o tema das expressotildees do ruiacutedo eacute

bastante vasto constituindo um territoacuterio feacutertil de anaacutelises que nem de longe tenho a pretensatildeo de

esgotar nesta tese Mesmo que a intenccedilatildeo aqui seja trazer a questatildeo para o universo da imagem

contemporacircnea natildeo me desviei de exemplos referecircncias e ideias de outras artes (notadamente a

muacutesica) valendo-me natildeo soacute do caraacuteter interdisciplinar que a aacuterea da comunicaccedilatildeo permite mas

tambeacutem em conformidade com o proacuteprio conceito de ruiacutedo que eacute tomado como traccedilo material

encontrado em quaisquer campos expressivos

Na maneira como essa empreitada foi conduzida fica evidente que perdeu forccedila o

questionamento inicial que deu iniacutecio a esse percurso (um certo afeto anacrocircnico pela foto

analoacutegica) que acabou por revelar questotildees outras relativas agrave filosofia agrave histoacuteria da miacutedia ao

potencial subversivo da criacutetica aos dispositivos ao decliacutenio de valores como o belo a mimesis e a

verossimilhanccedila agrave relativizaccedilatildeo do ser humano como sensibilidade hegemocircnica da criaccedilatildeo

artiacutestica e agraves tecnologias da imagem e sua presenccedila inescapaacutevel em nossas rotinas

Espero ter sido feliz na maioria das escolhas e que a leitura do trabalho seja guiada por

essas raacutepidas explicaccedilotildees dos caminhos e descaminhos de meu pensamento

20

2 INTELIGEcircNCIAS NUMEacuteRICAS

21 BREVE CONTEXTO SOCIAL E EMERGEcircNCIA DA CULTURA DIGITAL

A cultura digital ndash tendo no computador o marco fundamental ndash vai sendo desenhada a

partir de forccedilas industriais de mudanccedilas nas formas de comunicaccedilatildeo entre sujeitos governos e

empresas e se articula com uma visatildeo de mundo que enseja a conexatildeo a troca e o

compartilhamento de praacuteticas saberes e afetos Sua loacutegica inclui tambeacutem uma noccedilatildeo de

eficiecircncia precisatildeo e regularidade no desempenho da tecnologia obtida a partir do

desenvolvimento de mecanismos diversos de controle e reduccedilatildeo de erros (NUNES 2011)

questotildees essenciais para as discussotildees propostas nesta tese A partir de apontamentos que

remontam a um contexto cada vez mais contaminado de informaccedilotildees que se perdem no

ciberespaccedilo eacute que devemos pensar tambeacutem os movimentos que atingem o campo da imagem na

contemporaneidade

Como esse assunto jaacute foi tratado por autores variados optamos por escolher uma

abordagem que embora natildeo seja capaz de alcanccedilar todas as ramificaccedilotildees possiacuteveis do tema

propotildee uma compreensatildeo das tecnologias informaacuteticas e seus impactos num entrelaccedilamento com

estrateacutegias de produccedilatildeo e distribuiccedilatildeo do conhecimento anteriores Desse modo aleacutem de

reprisarmos alguns pontos importantes que tipificam a cultura legada pelos sistemas

computadorizados podemos identificar melhor o contexto que autoriza tambeacutem os debates sobre

novas formas da imagem Ao mesmo tempo a escolha desse recorte espelha uma compreensatildeo de

alguns autores evocados ao longo do texto de que as tecnologias sejam compreendidas sob uma

perspectiva relacional em que as miacutedias ao sucederem umas agraves outras compartilham certas

funccedilotildees e estrateacutegias podem resgatar esteacuteticas e ainda agregam ferramentas especiacuteficas

responsaacuteveis pela emergecircncia de artefatos culturais novos Quer dizer as tecnologias mais

recentes podem ao mesmo tempo conservar atributos de suas antecessoras e carregar potecircncias

que espelham suas proacuteprias identidades Nesse entendimento assinalamos a aproximaccedilatildeo de

nosso debate com teoacutericos da histoacuteria da miacutedia e da arqueologia da miacutedia como Siegfried

Zielinski (2006) Jussi Parikka (2012) e Lev Manovich (20012013) e de pesquisadores que

21

seguem debatendo os tensionamentos envolvidos nas relaccedilotildees entre arte tecnologia e ciecircncia

como Erick Felinto Antonio Fatorelli Cesar Baio Katia Maciel Joanna Zylinska pensando suas

contribuiccedilotildees para o campo da imagem

Se pensarmos na trajetoacuteria das tecnologias da inteligecircncia podemos afirmar que uma

modalidade nova incorpora as demais poreacutem isso natildeo eacute tudo Segundo Manovich (2013) o

computador eacute uma metamiacutedia porque aleacutem de trazer funccedilotildees e criar necessidades particulares

retoma tambeacutem estrateacutegias criativas de outras miacutedias tornando seus produtos uacutenicos Tomando o

hipertexto como exemplo o autor indica

() o software cultural transformou as miacutedias em metamiacutedias ndash um sistema tecnoloacutegicoe semioacutetico fundamental que inclui teacutecnicas e esteacuteticas dos meios (anteriores) como seuselementos ndash mas penso que o hipertexto eacute bem diferente da tradiccedilatildeo literaacuteria moderna1(MANOVICH 2013 p81)

Isso porque o hipertexto ultrapassa a ideia de algo cuja estrutura e conteuacutedo satildeo

estritamente ldquotextuaisrdquo seu conceito estende-se a imagens sons viacutedeos ecoando um princiacutepio

original de desenvolvimento da informaacutetica no qual o computador eacute uma maacutequina de articulaccedilatildeo

entre ldquoum amplo espectro de miacutedias existentes e miacutedias ainda natildeo inventadasrdquo (KAY amp

GOLDBERG apud MANOVICH 2013) Devemos considerar que os apontamentos do

pesquisador russo fazem parte da corrente dos estudos de software que investiga a posiccedilatildeo

central do software na cultura contemporacircnea em sua utilizaccedilatildeo como plataforma que autoriza

tanto a manipulaccedilatildeo de vaacuterios meios ldquoremediandordquo2 miacutedias fiacutesicas quanto criando artefatos com

auxiacutelio de propriedades intriacutensecas ao computador e nesse sentido haacute duas caracteriacutesticas

importantes do software que implicam todas as suas accedilotildees a simulaccedilatildeo e o hibridismo

1 Traduccedilatildeo livre de ldquocultural software turned media into metamediamdasha fundamentally new semiotic andtechnological system which includes most previous media techniques and aesthetics as its elementsmdashI also think thathypertext is actually quite different from modernist literary traditionrdquo

2 Remediaccedilatildeo eacute a propriedade de uma miacutedia ser representada em outra O termo eacute dos pesquisadores Jay Bolter eRichard Grusin (2000) para os quais a especificidade da miacutedia digital eacute remediar a TV a fotografia o filme e apintura pois que em muitas tarefas executadas pelo computador as estrateacutegias de interaccedilatildeo acesso armazenamentoe processamento de informaccedilatildeo fazem referecircncia aos processos tiacutepicos de miacutedias fiacutesicas (interface de editores detexto que imitam a superfiacutecie do papel aplicaccedilotildees para desenhar organizaccedilatildeo de arquivos em pastas ediccedilatildeo de some imagem remetendo a ferramentasobjetos) Manovich (2103) faz referecircncia a este trabalho ao desenvolver oraciociacutenio a respeito do computador como uma metamiacutedia embora amplie a discussatildeo enfatizando as propriedadesadicionais que o software traz aos produtos desenvolvidos sobretudo no que diz respeito ao caraacuteter hiacutebrido demuitos deles

22

Voltaremos a elas mais detalhadamente nas discussotildees em torno da imagem contemporacircnea e

sobretudo nas esteacuteticas criadas em projetos artiacutesticos desenvolvidos com dispositivos digitais

Pierre Leacutevy (1993) por sua vez reflete sobre a propriedade de mutabilidade dos

produtos da cultura digital a ideia de que conteuacutedos e elementos tratados por sistemas

informaacuteticos estatildeo sujeitos agrave alteraccedilatildeo sempre que a necessidade e a subjetividade ordenem

Pensemos num texto que apoacutes elaborado nunca estaacute finalizado de fato podendo ser

ressignificado ou refeito por distintos autores ampliando sua rede de significados atraveacutes de

comentaacuterios compartilhamentos ou reescrita como ocorre no tratamento das informaccedilotildees no

Wikipeacutedia Da mesma forma se comportam as imagens alteradas desgarradas do espaccedilo e funccedilatildeo

originaacuterios para ativarem novos sentidos a exemplo do que ocorre na praacutetica dos memes e gifs

utilizados em redes sociais incorporados a peccedilas artiacutesticas ou emails Assim o princiacutepio da

metamorfose sugere um aspecto de abertura de estiacutemulo agrave investigaccedilatildeo uma disposiccedilatildeo para a

mudanccedila Tende para a eterna possibilidade da redefiniccedilatildeo de paracircmetros formas estilos

significados

O estudo de Leacutevy embora datado dos anos 1990 sugere algumas das principais

caracteriacutesticas do modelo informaacutetico que regem a produccedilatildeo de conhecimento a criaccedilatildeo artiacutestica

as relaccedilotildees sociais Entre elas podemos destacar a instantaneidade das tarefas a simulaccedilatildeo a

capacidade multimiacutedia uma atitude exploratoacuteria a relaccedilatildeo com o espaccedilo rizomaacutetico da internet a

natildeo-linearidade de processos e conteuacutedos a relaccedilatildeo com a informaccedilatildeo mediada por interfaces a

abertura dos dados agrave manipulaccedilatildeo e a imaterialidade destes Os apontamentos do autor permitem

compreender natildeo apenas o ambiente em que surgem os dispositivos informaacuteticos mas tambeacutem

uma cultura que enfatiza experiecircncias de autoria coletiva guiadas pela troca e pelo espiacuterito

colaborativo numa ideia de que o conhecimento a produccedilatildeo simboacutelica e as informaccedilotildees sobre a

proacutepria tecnologia devem ser livres e acessiacuteveis a qualquer pessoa (BAIO 2015 p20) Daiacute temos

questotildees como a relativizaccedilatildeo das hierarquias o cruzamento de referecircncias o poder fazerdesfazer

na base das operaccedilotildees cotidianas o remix as identidades fluidas o espaccedilo e tempo em relaccedilatildeo

descontiacutenua a interaccedilatildeo definida pela velocidade permeando um modelo epistemoloacutegico que

contraria os essencialismos as verdades acabadas as formas de pensamento estanques resultante

de um acuacutemulo de esforccedilos de aacutereas como a matemaacutetica a informaacutetica e a ciberneacutetica

23

Se vivemos numa ldquosociedade do softwarerdquo (MANOVICH 2013) Andreacute Lemos (2009)

lembra que a cultura digital eacute a cultura produzida e mediada pelo computador celular pelas

redes afetando nossas formas de agir politicamente produzir arte acessar e distribuir material e

acrescenta que a ideia de cibercultura natildeo eacute uma proposiccedilatildeo de futuro mas de um presente jaacute

naturalizado em nosso cotidiano O pesquisador brasileiro diz ainda que a cibercultura nasce natildeo

com a informaacutetica de 1940 mas com a microinformaacutetica quando cada pessoa pode ter no

computador um instrumento de produccedilatildeo de informaccedilatildeo (que estimula a criaccedilatildeo coletiva e a

colaboraccedilatildeo) inaugurando a possibilidade de distribuir conteuacutedo em formatos diversos a

qualquer ponto do mundo conectado agrave internet Manovich (2013) ao fazer um resgate de nomes

importantes da ciecircncia da computaccedilatildeo demonstra que o paradigma numeacuterico3 consolida-se no

momento em que os computadores deixam de ser ferramentas de uso militar e industrial para se

tornarem dispositivos para criaccedilatildeo e troca de conteuacutedo a niacutevel dos usuaacuterios comuns e

profissionais de aacutereas variadas (em especial nos campos da comunicaccedilatildeo em rede e do

entretenimento) Ou seja os dois pensadores estatildeo unidos na proposiccedilatildeo de que a cibercultura

representa a apropriaccedilatildeo social dos dispositivos informaacuteticos Lemos conclui

Eu sempre digo que essa tecnologia eacute muito mais um fenocircmeno social do quenecessariamente um fenocircmeno teacutecnico porque ela foi fruto de uma atitude que euchamei num texto de uma atitude ciberpunk contra a grande informaacutetica que vai dandoseus frutos ateacute hoje Obviamente que isso vai perdendo forccedila ganhando novoscontornos mas efetivamente ela continua ainda influenciando na maneira como a gentepensa a cultura digital (LEMOS 2009 p139)

Esse contexto social mais amplo eacute assinalado por um conjunto de pensadores bastante

diverso por causa das aacutereas de conhecimento agraves quais estatildeo relacionados entre os quais

destacamos Santaella (2007) Castells (2002) Jenkins (2009) Bauman (2001) Deleuze e

3 Numeacuterico eacute o termo consagrado na teoria francesa para tratar dos processos relacionados agrave tecnologia informaacuteticacomo referecircncia agrave linguagem baseada em nuacutemeros utilizada pelos computadores Aqui o termo segue o uso feito porEdmond Couchot Franccedilois Soulages Poreacutem utilizaremos ainda termos como digital virtual sinteacutetica ou poacutes-fotografia que se referem agrave mesma condiccedilatildeo tecnoloacutegica (principalmente ao tratar da imagem) em acordo com anomenclatura empregada por teoacutericos como Lev Manovich Joan Fontcuberta Philippe Dubois Antonio Fatorellientre outros fazendo as devidas ressalvas e explicaccedilotildees adicionais quando necessaacuterio ao tratar especificamente daaplicaccedilatildeo desses termos agrave fotografia

24

Guattari (1995 2011 2012)4 Parente (2009) Krapp (2011) entre outros ao perceberem

mudanccedilas nos modos de sentir relacionar expressar e comunicar das sociedades em relaccedilatildeo cada

vez mais estreita com tecnologias automatizadas (principalmente a partir da segunda metade do

seacuteculo XX) Nosso intuito aqui natildeo eacute refazer o caminho desses autores mas apenas lembrar

alguns pontos importantes de suas reflexotildees aproveitando-as num esforccedilo introdutoacuterio de

brevemente demarcar o ambiente epistemoloacutegico no qual se configuram as formas de

comunicaccedilatildeo e expressatildeo ligadas ao computador

Essas breves observaccedilotildees a respeito da cultura digital tambeacutem satildeo aqui lanccediladas para

iniciar um debate mais especiacutefico em torno da imagem e do que acontece com ela por forccedila das

mudanccedilas tecnoloacutegicas Revisitaremos alguns pontos de discussatildeo que permearam a emergecircncia

da imagem digital e as posteriores comparaccedilotildees entre esta e a imagem analoacutegica apontando

particularidades modos de acionamento e aproximaccedilotildees Aqui de certa forma estamos assumindo

o risco de fazer esse paralelo em bases fortemente tecnoloacutegicas sujeitos agrave acusaccedilatildeo de

determinismo da maacutequina Tal questatildeo mostra-se central porque desencadeia caracteriacutesticas que

vatildeo diferenciar tais sistemas (linha de raciociacutenio que marcou sobretudo as primeiras reflexotildees

teoacutericas sobre as tecnologias digitais da imagem) Se eacute nosso intuito reivindicar um espaccedilo de

debate em torno da imagem em obras que por vezes enfatizam sua materialidade a exploraccedilatildeo de

elementos como a luz a superfiacutecie dos suportes a elasticidade do tempo investindo na

experimentaccedilatildeo com miacutedias analoacutegicas isso parece fazer sentido na medida em que a imagem

digital torna-se um padratildeo industrial e comeccedila a referir modelos representativos supostamente

associados a noccedilotildees qualitativas da imagem fotoquiacutemica Ao longo do texto ficaraacute perceptiacutevel

tambeacutem que passado o momento de celebraccedilatildeo da novidade e apontamento das especificidades do

digital as discussotildees a respeito da imagem digital trilham novos caminhos que incluem o impacto

dos algoritmos dos softwares das visualidades preacute-formatadas por filtros as operaccedilotildees de

hibridizaccedilatildeo e a emulaccedilatildeo de esteacuteticas cujos efeitos estatildeo bastante proacuteximos das tecnologias

analoacutegicas fazendo tambeacutem com que estas uacuteltimas sejam redescobertas retomadas ou reavaliadas

em diferentes metodologias Nesse processo detectamos algumas permanecircncias de modelos

4 Aqui nos restringimos a citar apenas alguns volumes do Mil Platocircs que contecircm o desenvolvimento em torno dosconceitos de devir rizoma e do tema do menor visto que satildeo evocados por outros autores ou mesmo pela proacutepriaautora (no conjunto da tese) Mas ressaltamos que o nuacutecleo da filosofia de Deleuze e Guattari dirige-se a objetosvariados (a linguagem a pintura a proacutepria filosofia o cinema) para desvendar a percepccedilatildeo de uma sociedadeheterogecircnea e em constante mudanccedila o que os coloca em alinhamento com os demais autores citados

25

esteacuteticos no uso da miacutedia digital e mais recentemente uma feacutertil exploraccedilatildeo artiacutestica do potencial

anaacuterquico e dissonante dos erros de sistemas computadorizados

Nas mais diversas estrateacutegias criativas com miacutedias fotoquiacutemicas e digitais observamos o

desejo de investigar os dispositivos e teacutecnicas na criaccedilatildeo de obras proacuteximas da tese do ruiacutedo

(HAINGE 2013) Ou seja temos um cenaacuterio bastante diversificado do qual tentaremos indicar

algumas tendecircncias

Assim nosso percurso vai abarcar primeiro algumas questotildees relativas a cibercultura ndash

tais como a simulaccedilatildeo a imaterialidade a alteraccedilatildeo de conteuacutedo ndash tendo em vista que no campo

da imagem a compreensatildeo de uma loacutegica informaacutetica sedimentou as primeiras reflexotildees teoacutericas

sobre os impactos esteacuteticos do paradigma numeacuterico e comparaccedilotildees com as imagens que lhes

precederam (em especial a fotografia analoacutegica) ateacute chegar a consideraccedilotildees mais recentes que

recolocam o lugar da materialidade as misturas de materiais e esteacuteticas promovidas por artistas

que demonstram uma postura ativa para explorar as tecnologias contrariamente a seus

funcionamentos padronizados e como as ideias de ldquoerrordquo e ldquoruiacutedordquo articulam-se com esse debate

de uma imagem experimental focada na exploraccedilatildeo das tecnologias

22 RASTROS PEGADAS DA CULTURA DO NUMEacuteRICO

A predominacircncia da numerizaccedilatildeo atual tem suas raiacutezes numa crescente automatizaccedilatildeo

das tarefas cotidianas ndash que por sua vez estende-se aos processos criativos artiacutesticos ndash ocorrida

no seacuteculo XIX da qual a fotografia eacute o exemplo inaugural evidente (COUCHOT 2003) Eacute com

ela que se daacute um rompimento crucial no seio da criaccedilatildeo e se instaura uma relaccedilatildeo entre seres

humanos e maacutequinas na busca de mobilizar significados sensaccedilotildees apontar caminhos para as

artes em geral A tarefa dos artistas a partir daiacute eacute brincar com essa relaccedilatildeo extraindo das

tecnologias aquilo que melhor expresse a sua vontade de comunicar uma ideia um sentimento

um questionamento Em meio ao desenvolvimento de praacuteticas da fotografia do cinema da

televisatildeo do viacutedeo e de pesquisas sobre o processamento o tratamento e a transmissatildeo

automaacutetica de informaccedilotildees sejam tais esforccedilos voltados para a induacutestria ou para o

entretenimento eacute que vai se desenvolvendo paulatinamente o conjunto de saberes que datildeo origem

ao campo da informaacutetica

26

Para Manovich (2001) que analisou as miacutedias baseadas em computador natildeo somente em

seus reflexos no campo artiacutestico mas tambeacutem em seu uso domeacutestico haacute uma vizinhanccedila entre

meios analoacutegicos e digitais O que se denominou ldquonovas miacutediasrdquo entre o fim dos anos 1990 e

comeccedilo dos 2000 eacute resultado da uniatildeo entre miacutedias tradicionais de imagem som e texto e o

desenvolvimento da computaccedilatildeo as trajetoacuterias de campos como o cinema e a fotografia se

desenvolvem em paralelo agraves de maacutequinas criadas para caacutelculos e operaccedilotildees automatizadas que

satildeo as ldquoavoacutesrdquo do computador domeacutestico isso ainda no seacuteculo XIX5 Todas podem ser entendidas

como dispositivos para registrar armazenar e distribuir informaccedilotildees em vaacuterios formatos

(MANOVICH 2001 p20) Para ambos os pesquisadores a cultura digital eacute resultado de

processos de automatizaccedilatildeo diversos ocorridos em anos anteriores

Enquanto Couchot mapeia no acircmbito artiacutestico as propostas e convenccedilotildees que aos poucos

vatildeo desenhando o surgimento das tecnologias do computador e seu emprego nas praacuteticas

artiacutesticas pontuando uma seacuterie de rupturas teacutecnicas e filosoacuteficas mas tambeacutem reconfiguraccedilotildees

conceituais e esteacuteticas Manovich demonstra de um ponto de vista bastante praacutetico que diversas

ferramentas simbologias e accedilotildees ligadas ao uso do computador satildeo herdadas de outras praacuteticas

culturais ndash as miacutedias cinematograacutefica fotograacutefica e impressa ndash e que ao mesmo tempo em que o

paradigma digital oferece um novo espaccedilo criativo por suas potencialidades especiacuteficas ele

promove uma negociaccedilatildeo com as formas culturais anteriores

23 PARADIGMA NUMEacuteRICO ESPECIFICIDADES

Computadores satildeo produto da informaacutetica ciecircncia da loacutegica e da matemaacutetica Os

dispositivos que antecedem os computadores na tarefa de realizar operaccedilotildees complexas satildeo as

calculadoras usadas primeiro em acircmbito militar e depois na induacutestria Jaacute os computadores com o

surgimento da internet tornam-se objetos corriqueiros para o uso domeacutestico Um traccedilo forte da

cultura digital eacute substituir procedimentos realizados com materiais por funccedilotildees descritas numa

determinada linguagem sem existecircncia fiacutesica

5 O autor daacute exemplos de estudos e aparatos criados para realizaccedilatildeo de caacutelculos no seacuteculo XIX aproximando taisexemplos dos objetivos que norteiam o desenvolvimento da informaacutetica e por consequecircncia a invenccedilatildeo doscomputadores Cf Manovich 2001 p18-26

27

O matemaacutetico von Neumann teve entatildeo a ideia de registrar na memoacuteria da calculadora oproacuteprio programa assim como outros dados a tratar na forma de instruccedilotildees codificadasNuacutemeros e letras substituiacuteam conexotildees e os cabos siacutembolos abstratos constituindo uma

espeacutecie de linguagem ndash o programa (software) ndash que substituiacuteam mateacuterias fiacutesicas equinquilhariasrsquo (hardware) Assim nasceu o computador moderno e com ele ainformaacutetica que podemos considerar globalmente como ciecircncia das linguagens deprogramaccedilatildeo (COUCHOT 2003 p98)

Quer dizer qualquer tarefa executada por um sistema de computador segue orientaccedilotildees

para interpretar dados que tecircm uma natureza comum Nesse sentido quando nos referimos ao

paradigma digital natildeo haacute diferenccedila entre a ldquosubstacircnciardquo da informaccedilatildeo Tanto faz se o output seraacute

uma imagem um texto um som porque as informaccedilotildees satildeo interpretadas em linguagem

matemaacutetica Isso significa que uma imagem um texto ou uma muacutesica sejam ldquocriados por

computador ou convertidos de miacutedias originalmente analoacutegicas eles se tornam um coacutedigo digital

representaccedilotildees numeacutericasrdquo (MANOVICH 2001 p27) A perspectiva eacute compartilhada por Peter

Krapp (2011 p16) ldquocomputadores natildeo precisam distinguir entre um poema um retrato um

arquivo de viacutedeo () sons imagens e textos desaparecem igualmente em estados binaacuterios e satildeo

apenas simulados na tela6rdquo

Tal caracteriacutestica faz com que associar articular miacutedias de natureza diferente seja algo

natildeo apenas mais faacutecil mas que integra a proacutepria loacutegica da cultura digital Natildeo que isso natildeo tenha

sido feito antes do surgimento das tecnologias informaacuteticas Eacute que as operaccedilotildees de criar reverter

accedilotildees modificar coisas em resumo a manipulaccedilatildeo de dados constitui traccedilo marcante dessa

cultura bem como uma tocircnica da sociedade que a faz surgir Nesse sentido o termo ldquonovas

miacutediasrdquo eacute praticamente redundante se as miacutedias digitais satildeo conjuntos de operaccedilotildees de software

em constante desenvolvimento toda miacutedia produzida assim eacute sempre nova (MANOVICH 2013

p156) podendo ser modificada sempre que atualizaccedilotildees surgirem

Levando essas questotildees ao campo do visual a esteacutetica digital eacute caracterizada pela

hibridizaccedilatildeo (SOULAGES 2010) viabilizada por essa capacidade de juntar coisas diferentes

tratando-as sob um mesmo coacutedigo Assim o digital possui uma caracteriacutestica multimiacutedia que

permite transitar as artes e iconografias de todos os tempos sintetizadas pela virtualidade dos

6 Traduccedilatildeo livre de ldquocomputers have no need to distinguish between a poema portrait a video file () sounds imagesand texts all disappear into binary states and are only simulated on screenrdquo

28

aparelhos tecnoloacutegicos que ao mesmo tempo em que conservam reinventam restauram e

misturam (PLAZA 1993 p86) Manovich (2013) utiliza o termo ldquodeep remixabilityrdquo para

referir-se a um niacutevel profundo de integraccedilatildeo de miacutedias diferentes operado pelo computador bem

como agrave capacidade do software de reproduzir caracteriacutesticas especiacuteficas dessas miacutedias7 O mesmo

autor discute essa questatildeo caracterizando as miacutedias computadorizadas por sua variabilidade ndash

condiccedilatildeo de serem abertas agrave modificaccedilatildeo E acrescenta

(hellip) todas as maacutequinas para sintetizar miacutedias eletrocircnicas gravaccedilatildeo transmissatildeo erecepccedilatildeo incluem controles para modificaccedilatildeo do sinal Como resultado um sinaleletrocircnico natildeo tem uma identidade singular ndash um estado particular qualitativamentediferente de todos os outros estados possiacuteveis (hellip) Ao contraacuterio de um objeto materialo sinal eletrocircnico eacute essencialmente mutaacutevel (MANOVICH 2001 p132-133)

Essa compreensatildeo pode ser estendida agraves miacutedias digitais que por sua estrutura permitem

que alteraccedilotildees de toda sorte sejam praticadas com mais facilidade constituindo-se de elementos

unidos mas que conservam sua independecircncia enquanto partes isoladas Os pixels estatildeo para

imagens assim como caracteres estatildeo para textos pois que podem ser localizados e alterados em

sua matriz de valores numeacutericos tornando a imagem uma metamorfose que se atualiza (quando a

vemos) mas que tambeacutem poderia ser algo diferente conforme o potencial de caacutelculo do

computador (SANTAELLA apud VALLE 2012 p123) Quer dizer a partir de um mesmo

elemento no paradigma digital podemos criar coisas diferentes Uma mesma imagem pode se

apresentar visualmente diversa ldquo() podemos mudar seu contraste e cor desfocaacute-la ou tornaacute-la

mais niacutetida transformaacute-la em uma forma em 3D usar seus valores para controlar o som e assim

por dianterdquo (MANOVICH 2001 p133) Soulages (2007 p83) indica que o digital estaacute aberto a

uma exploraccedilatildeo praacutetica e esteacutetica bem maior e que se distingue por uma nova forma de fazer

distribuir e comunicar

A automaccedilatildeo dos processos tambeacutem marca de maneira importante a cultura digital jaacute que

torna miacutenimo o tempo decorrido entre o comando de uma accedilatildeo e seu resultado poreacutem ela natildeo eacute

inaugurada pelas miacutedias digitais mas potencializada por elas Num exemplo simples a condiccedilatildeo

7 O mesmo autor fala sobre uma ldquoesteacutetica do remixrdquo que seria a base conceitual de muitas obras contemporacircneas quese estruturam a partir de elementos de diversos meios (e assim diferentes em seus estilos texturas visuais modos derepresentaccedilatildeo) e tambeacutem de uma ldquoesteacutetica visual hiacutebridardquo acionada na interrelaccedilatildeo entre diversos coacutedigos visuaisCf Manovich 2013 p243-277

29

de acessar a imagem assim que produzida eacute essencial para cacircmeras dos mais diversos gadgets jaacute

que muitas vezes o fazer dessas imagens estaacute orientado para seu compartilhamento Nas cacircmeras

DSLR8 a tela de LCD permite conferir a foto apoacutes sua produccedilatildeo

No que se refere agrave imagem em especial eacute necessaacuterio compreender os mecanismos dos

dispositivos que operam mediante a superficialidade (FLUSSER 2008) pois estamos nos

relacionando com imagens que satildeo conjuntos de dados binaacuterios Satildeo informaccedilotildees que se

organizam em algo que possamos reconhecer como uma imagem mas do ponto de vista de sua

ldquosubstacircnciardquo esses dados satildeo os mesmos de qualquer sistema informaacutetico

24 SOBRE A IMAGEM

241 Virtualidade x materialidade

As imagens digitais filhas do computador satildeo formadas por pixels unidades virtuais

Algumas das reflexotildees a esse respeito enfatizaram bastante a quebra de uma ligaccedilatildeo entre objeto

imagem e sujeito tomando a imagem digital como essencialmente imaterial Ou ainda como ldquoum

acontecimentordquo sujeito ao movimento de aparecer e desaparecer nas telas dependente de um

suporte material (PLAZA 1993)

Presentes em celulares tablets notebooks e cacircmeras atraveacutes de telas por onde noacutes as

acessamos repassamos modificamos Essas imagens satildeo dependentes de um aparato visualizador

que integra a estrutura do sistema ldquoacoplada ao computador a tela eacute a principal forma de acesso

agrave informaccedilatildeo imagens estaacuteticas ou moacuteveis ()rdquo (MANOVICH 2001 p94) Soulages (2007

p86) diz que passamos do mundo real para o mundo da tela jaacute que vemos a imagem no proacuteprio

aparelho o que reforccedila a concepccedilatildeo da fotografia natildeo como imagem da realidade mas como

imagem da imagem

Para esses teoacutericos a necessidade de uma interface de visualizaccedilatildeo pocircs em xeque uma

diferenccedila importante entre os paradigmas analoacutegico e digital a passagem de uma imagem dotada

de materialidade a outra que sequer teria existecircncia fiacutesica A despeito de hoje jaacute estarmos

acostumados com essa condiccedilatildeo essa mudanccedila tem implicaccedilotildees natildeo soacute teacutecnicas mas simboacutelicas

8 Sigla em inglecircs para Digital Single Lens Reflex cacircmeras reflex digitais de objetiva fixa

30

No paradigma digital a imagem existe menos sob a rubrica da durabilidade de um suporte e

sobrevive na fugacidade de uma memoacuteria (PARENTE1993 p27) Eacute efecircmera

As imagens analoacutegicas submetem-se a um procedimento evidente de etapas materiais ndash

revelar ampliar copiar ndash com resultado em um suporte que se tem em matildeos Entre o

ldquoirreversiacutevelrdquo da captura e o ldquoinacabaacutevelrdquo (SOULAGES 2010) da reproduccedilatildeo estamos nos

domiacutenios da quiacutemica e da fiacutesica de uma imagem que adquire um corpo Algo para colar rasgar

cortar queimar ou simplesmente guardar Haacutebitos nem tatildeo corriqueiros assim Valle (2012 p41)

considera uma das grandes diferenccedilas entre os sistemas analoacutegico e digital a passagem de uma

matriz fotograacutefica que era um objeto (o negativo) para outra que eacute formada por coacutedigos inscritos

num dispositivo de memoacuteria o que aumenta a escala do ldquoinacabaacutevelrdquo

Paul Virillo (1993 p129) entende que as imagens virtuais e fotoquiacutemicas se distanciam

tambeacutem num aspecto temporal porque a objetivaccedilatildeo da imagem natildeo se coloca em termos de um

ldquosuporte-superfiacutecierdquo mas sim na relaccedilatildeo que estabelecemos com a imagem num tempo de

exposiccedilatildeo em que podemos vecirc-la e depois jaacute natildeo podemos mais Satildeo imagens mais dadas agrave

circulaccedilatildeo fluidas e impalpaacuteveis Ele acrescenta ainda que enquanto as imagens da fotografia e

do cinema tradicionais demarcam a presenccedila de um tempo diferido um passado inscrito nas

placas e peliacuteculas as imagens digitais tecircm um estatuto acidental que se transfere de um agora

(presente) figurando como presenccedila em detrimento de um representar de um recuperar (Idem

p132) Van Dijck (2007) enxerga na imagem digital uma funccedilatildeo comunicativa um tipo de recado

visual instantacircneo capaz de ldquotocarrdquo algueacutem criando uma conexatildeo importando menos o que

exatamente a fotografia mostra (ZYLINSKA online 2017)

Saiacutemos do material para o virtual da foto em postal aacutelbum porta-retrato da coacutepia em

papel que enfeita a parede da sala de casa abandonamos as coisas guardadas como lembranccedilas

recordaccedilotildees de momentos importantes ritos de passagem Numa trajetoacuteria ainda meio confusa e

pontuada de perdas de arquivos esquecimento e dificuldades em lidar com uma quantidade cada

vez maior de dados saiacutemos da conservaccedilatildeo rumo ao compartilhamento Para Batchen (2002

p177) a digitalizaccedilatildeo aponta uma condiccedilatildeo da fotografia que deixa de ser uma mateacuteria inerte

impressatildeo bidimensional da realidade em si De uma exibiccedilatildeo instaacutevel cuja permanecircncia eacute

fragilizada pela loacutegica gerenciadora do sistema que eacute ao mesmo tempo produtor e consumidor

dessa imagem Para Soulages (2007 p96) eacute uma loacutegica de distribuiccedilatildeo em rede que implica uma

31

circulaccedilatildeo rizomaacutetica que natildeo corresponde a uma contemplaccedilatildeo solitaacuteria A partir de uma

abordagem mais social Fontcuberta (2016 p38) ressalta que o mais importante natildeo eacute que a

imagem tenha-se tornado imaterial mas sua transmissatildeo e circulaccedilatildeo vertiginosas adaptadas agraves

condiccedilotildees de nossas vidas online

No digital dispomos de imagens fotograacuteficas escaneadas ou de siacutentese (VALLE 2012)

feitas a partir da interpretaccedilatildeo de dados que nem se pode ver Na verdade interagimos com eles

atraveacutes de comandos que resultam em accedilotildees num aparato bem mais complexo que as cacircmeras

analoacutegicas Assim como outros dispositivos criados pela numerizaccedilatildeo as cacircmeras digitais satildeo

computadores que recebem um sinal interpretam organizam os dados e geram uma imagem

Tudo no mesmo aparelho Operaccedilotildees que nos levam aos domiacutenios da matemaacutetica e da

informaacutetica onde a interaccedilatildeo com superfiacutecies (telas) a velocidade dos resultados e o grau

crescente de automatizaccedilatildeo escondem ainda mais os processos internos Se a cacircmera analoacutegica jaacute

eacute ldquocaixa pretardquo fundadora de uma relaccedilatildeo entre sujeito e aparelho (FLUSSER 2011) na era

digital permanece a necessidade de compreender o que acontece no sistema para sair de um uso

meramente instrumental da tecnologia9

Se pensada para aleacutem de um objeto singularizado (como um artefato em si) a imagem

digital existe num sistema que inclui o proacuteprio dispositivo Seja este um tablet um smartphone

ou uma cacircmera que se parece com um modelo DSL convencional a imagem existe mediada pelo

equipamento o que afasta a afirmaccedilatildeo de que ela seria completamente imaterial Mesmos os

dados que a formam precisam ser processados por algum sistema que possui sim uma estrutura

fiacutesica especiacutefica Isso nos permite considerar modos outros de existecircncia das imagens

contemporacircneas na modalidade de evento algo processual que se constroacutei na relaccedilatildeo com o

sujeito espectador (em detrimento de um objeto concreto finalizado e supostamente inerte)

Maciel (2009) aponta essa situaccedilatildeo recente colocada pelas tecnologias digitais que potildee o

puacuteblico em interaccedilatildeo com o maquinaacuterio produtor de imagens em obras de formatos variados que

incluem instalaccedilotildees multimiacutedia trabalhos em cinema expandido videoarte hibridizaccedilotildees entre

cinema fotografia e performance no intuito de tornar a imagem uma abertura

fundamentalmente participativa Ela insiste que o caraacuteter experimental sempre esteve presente no

9 Conforme Joanna Zylinska (2017a p186) a ideia de caixa preta aplica-se agraves tecnologias fotograacuteficas analoacutegicas edigitais Essa percepccedilatildeo eacute compartilhada por Piper-Wright (2018)

32

campo da imagem em movimento (MACIEL 2009 p13) e mesmo a influecircncia muacutetua entre

cinema fotografia literatura e pintura natildeo sendo exatamente nova de fato algumas condiccedilotildees de

realizaccedilatildeo de obras atuais satildeo dependentes dos sistemas informaacuteticos de geraccedilatildeo montagem

transmissatildeo compartilhamento e da accedilatildeo dos algoritmos aplicados agrave imagem

Um trabalho interessante que dialoga com essas ideias eacute o filme interativo The

Wilderness Downtown10 (figuras 1-6) realizado por Chris Milk11 para a muacutesica We used to wait

da banda canadense Arcade Fire A letra fala de haacutebitos nada corriqueiros para os indiviacuteduos

nascidos no seacuteculo XXI como escrever agrave matildeo e enviarreceber cartas Um tanto melancoacutelica a

canccedilatildeo confronta as lembranccedilas de uma eacutepoca em que a comunicaccedilatildeo demandava um tempo

entre o envio de uma mensagem escrita e sua resposta e a realidade de uma eacutepoca em que o

tempo aparentemente passa mais raacutepido Na primeira estrofe ouvimos

Eu costumava escrever

Eu costumava escrever cartas

Eu costumava assinar meu nome

Eu costumava dormir agrave noite

Antes das luzes piscantes

Se enraizarem fundo no meu ceacuterebro

Mas quando nos conhecemos

Quando nos conhecemos

Os tempos jaacute eram outros ()12

Com base no tom nostaacutelgico da letra a produccedilatildeo estrutura-se a partir de quatro elementos

principais imagens capturadas a partir do Google Street View e Google Maps13 live footage de

10 A experiecircncia do filme pode ser feita no site httpwwwthewildernessdowntowncom Acesso em 16072019

11 Chris Milk tem em seu curriacuteculo aleacutem de videoclipes filmes publicitaacuterios e trabalhos artiacutesticos Cf MEacuteDOLA AS L CALDAS C H S Regimes de interaccedilatildeo no videoclipe a experiecircncia interativa de The Wilderness DowntownGalaxia (Satildeo Paulo Online) n 30 p35-47 dez 2015 Disponiacutevel em httpwwwscielobrpdfgaln301982-2553-gal-30-0035pdf Acesso em 200819

12 Traduccedilatildeo livre para We used to wait (Arcade Fire 2010) Composiccedilatildeo de Edwin Butler William Butler RegineChassagne Richard Parry Tim Kingsbury e Jeremy Gara

13 O projeto Wilderness Downtown foi desenvolvido em parceria com o Google Data Arts

33

um ator que aparece correndo em diferentes ambientes efeitos graacuteficos14 que remetem a artefatos

desse passado recente evocado atraveacutes de miacutedias fiacutesicas como bilhetes e cartotildees-postais e o

proacuteprio software que processa os materiais anteriores

The Wilderness Downtown encontra-se disponiacutevel num site desenvolvido especificamente

para a uma experiecircncia audiovisual online e ao acessar a home (figura 1) o espectador eacute

convidado a inserir o nome da cidade onde passou sua infacircncia Os dados satildeo coletados e geram

as imagens capturadas com a ajuda do Google utilizadas numa narrativa apresentada a partir de

muacuteltiplas janelas que vistas simultaneamente sugerem uma montagem paralela bastante

particular

Figura 1 - Home do projeto The Wilderness Downtown15

Fonte Reproduccedilatildeo site

14 Manovich (2013) define como motion graphics os efeitos utilizados em cinema e televisatildeo de menus dinacircmicoscaracteres artes e cartelas (bastante utilizadas em telejornalismo e documentaacuterios) graacuteficos para conteuacutedo dedispositivos moacuteveis e sequecircncias que possuem o recurso do movimento e satildeo sempre parte de um conjunto maisamplo (um filme completo um programa de televisatildeo)

15 httpwwwthewildernessdowntowncom

34

Figura 2 - Cenas iniciais de The Wilderness Downtown

Figura 2a - Cenas iniciais de The Wilderness Downtown

Fonte Reproduccedilatildeo site

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Figura 3 - Montagem com live footage e fotografias capturadas com auxiacutelio do Google Street View e Google

Maps

Figura 3a - Montagem com live footage e fotografias capturadas com auxiacutelio do Google Street View e

Google Maps

Fonte Reproduccedilatildeo site

O efeito de intimidade criado a partir da identificaccedilatildeo de lugares informados pelo usuaacuterio

eacute curioso (eacute possiacutevel reconhecer ruas e pontos comerciais) Combinado agraves cenas do ator que corre

pela cidade o filme deixa uma estranha sensaccedilatildeo de que nunca se alcanccedila o lugar ao qual temos

36

certeza de ter pertencido um dia mas ao mesmo tempo a experiecircncia proposta eacute baseada nessa

identificaccedilatildeo pessoal (figuras 2-3) Aqui a obra natildeo determina completa e previamente as

condiccedilotildees de acesso elas satildeo ativadas na instacircncia de participaccedilatildeo o que significa que o

espectador eacute que encontra um lugar para si na imagem sem o qual ela natildeo ganha sentido

(PARENTE 2009 p175) Jaacute passado o tempo em que se viveu naqueles espaccedilos eles agora

servem de mote para narrativas outras elaboradas a partir da potecircncia maquiacutenica do computador

Segundo Aaron Koblin da equipe do Google a intenccedilatildeo era criar um videoclipe especificamente

para web numa dinacircmica capaz de incluir a histoacuteria para cada usuaacuterio individualmente A

resposta foi atraveacutes das fotografias armazenadas no banco de dados do Google

Podemos usar informaccedilotildees de bancos de dados ter janelas movendo-se na tela algo quenatildeo estaria limitado aos formatos de saiacuteda em 43 ou 169 Entatildeo fizemos o viacutedeo serintegrado a cada pessoa em particular com base no endereccedilo onde a pessoa cresceu Eusamos material do Google Maps e Street View como um tecido nas memoacuterias pessoaisda experiecircncia Eacute possiacutevel ter uma noccedilatildeo dessa histoacuteria pessoal na medida em que vocecircinterage com o viacutedeo escrevendo uma carta ou fazendo um desenho Vocecirc contribui como sistema ao vivo enquanto interage com o viacutedeo () Muitas pessoas participaramincluindo seus cartotildees postais e desenhos Literalmente algumas pessoas choram ao vermemoacuterias de suas vidas pessoais sendo tecidas junto com a histoacuteria (KOBLIN 2011)16

Em dado momento efeitos graacuteficos inserem uma revoada de paacutessaros sobre um fundo de

imagens gravadas previamente (figura 4 e 4a) Os paacutessaros ndash que reagem ao movimento do

mouse do computador ndash em seguida ldquoentramrdquo nas imagens coletadas do Google correspondentes

agrave cidade informada criando uma precaacuteria linearidade entre as accedilotildees

16 Depoimento para o viacutedeo The Wilderness Downtown behind the scenes Disponiacutevel emhttpswwwyoutubecomwatchv=EKg2HJ_qvKA Acesso em 210819

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Figura 4 - Paacutessaros invadindo a paisagem

Figura 4a - Paacutessaros invadindo a paisagem

Fonte Reproduccedilatildeo site

Em seguida uma janela invade a tela principal (aleacutem das demais jaacute abertas) solicitando

que se ldquoescreva um postal para o seu eu mais jovemrdquo na tentativa de forjar um diaacutelogo entre o

ldquoeu virtualrdquo do presente e um suposto eu localizado no passado (figura 5 e 5a) A tela emula a

textura de um papel e permite a escrita por meio da digitaccedilatildeo ou utilizando o mouse Enquanto se

ldquoescreverdquo o recado trecircs pequenas telas se adicionam agraves demais mostrando uma engrenagem que

natildeo sabemos exatamente a que tipo de maquinaacuterio pertence mas que se movimenta

freneticamente agrave medida que clicamos com o mouse no espaccedilo do cartatildeo postal como se a

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velocidade das peccedilas da maacutequina acelerasse o envio do texto receacutem escrito A revoada de

paacutessaros que apareceu no comeccedilo junta-se ao cartatildeo postal arrastando a mensagem ali contida

para os lugares que voltam a ser o foco de nossa atenccedilatildeo principal

Figura 5 - Janelas do postal em The Wilderness Downtown

Figura 5a - Janelas do postal em The Wilderness Downtown

Fonte Reproduccedilatildeo site

O filme propotildee uma experiecircncia participativa cuja viabilidade estaacute estreitamente

relacionada agraves tecnologias digitais ao acesso a banco de dados conectados em rede aos recursos

de softwares que permitem gerar processar e transmitir conteuacutedos inserir elementos graacuteficos

transiccedilotildees etc mas evoca tambeacutem miacutedias de comunicaccedilatildeo do ldquopassadordquo (como o cartatildeo-postal e

39

sua modalidade escrita) Articulando as imagens apresentadas e a memoacuteria afetiva do espectador

acionando de maneira conjunta imagens fixas e em movimento num jogo que atravessa as

linguagens do videoclipe e da fotografia utilizando recursos que lembram ainda a interaccedilatildeo

tiacutepica dos games de estrateacutegia em que cada accedilatildeo eacute o ponto de entrada que desencadeia um

resultado especiacutefico

Segundo Meacutedola e Caldas (2015 p38) os trabalhos de Chris Milk satildeo inovadores e

experimentais na medida em que o realizador faz um investimento na interatividade buscando

desenvolver o formato videoclipe no ciberespaccedilo o que constitui para os pesquisadores um

avanccedilo em relaccedilatildeo aos recursos de linguagem utilizados nas miacutedias analoacutegicas A abordagem

desenvolvida por esses autores compreende as tecnologias de produccedilatildeo e fruiccedilatildeo do videoclipe

numa linha evolutiva em que os recursos informaacuteticos ocupariam o estaacutegio mais avanccedilado Aqui

numa anaacutelise diferente natildeo buscaremos comparar qualitativamente os recursos disponiacuteveis nas

diferentes miacutedias para a criaccedilatildeo artiacutestica mas sim compreender a singularidade da produccedilatildeo de

Chris Milk exatamente por colocar lado a lado efeitos de sentido evocados a partir de elementos

pertencentes a miacutedias antigas e recentes aproveitando a capacidade multimiacutedia do computador

para criar uma relaccedilatildeo de complementaridade de ludicidade entre essas miacutedias (e natildeo de

superaccedilatildeo)

De volta ao viacutedeo se mais agrave frente a letra da muacutesica diz ldquoagora nossas vidas estatildeo

mudando raacutepido espero que reste algo purordquo o romantismo associado agraves antigas formas de

relacionamento e comunicaccedilatildeo mostra-se apenas um ideal considerando que aqui tudo se mistura

e os efeitos de subjetivaccedilatildeo satildeo embaralhados natildeo havendo espaccedilo para falarmos em pureza nem

dos formatos nem das miacutedias nem tatildeo pouco das emoccedilotildees produzidas pela experiecircncia com tais

artefatos

40

Figura 6 - Sequecircncia de imagens - A maacutequina assume definitivamente o comando da experiecircncia e a

natureza invade todos os espaccedilos

41

Fonte Reproduccedilatildeo site

Agrave medida que a muacutesica avanccedila e com ela a conclusatildeo do clipe as imagens comeccedilam a se

sobrepor (sendo ainda exibidas em diversas janelas simultaneamente) e num ritmo acelerado as

accedilotildees se conectam por meio de um efeito que faz nascerem aacutervores em todos os ambientes

mostrados O personagem que finalmente para de correr gira em torno de si mesmo como se

tentasse se localizar Seu movimento conecta-se por sua vez com movimentos aplicados agraves

imagens dos lugares num efeito que promove o encontro entre o olhar dele (do personagem) e o

da cacircmera A natureza selvagem do tiacutetulo irrompe descontrolada nos espaccedilos urbanos por forccedila

42

do proacuteprio sistema na narrativa construiacuteda a partir das informaccedilotildees pertencentes agrave subjetividade

de quem laacute no iniacutecio inseriu o nome de sua cidade As aacutervores se juntam ao homem que (de

novo) corre agora num espaccedilo de topologia asseacuteptica e desconhecida para depois se desfazerem

junto com ele em manchas pretas sobre um fundo branco (figura 6) Note-se que essa natureza eacute

artificial de aacutervores negras e sintetizadas no computador A vegetaccedilatildeo se espalha como um viacuterus

encobrindo a paisagem da cidade que se escolheu recordar

Ao mesmo tempo que propotildee uma experiecircncia de co-criaccedilatildeo (sendo o input do usuaacuterio a

instacircncia de participaccedilatildeo que daacute iniacutecio agrave narrativa) essa obra tambeacutem estaacute agrave mercecirc dos

movimentos decisoacuterios do proacuteprio dispositivo No final somos informados da possibilidade de

reproduzir novamente o filme compartilhaacute-lo e ainda de enviar o postal escrito Nessa uacuteltima

opccedilatildeo o postal pode ter 3 destinos 1) servir de elemento compositivo dos cenaacuterios nas turnecircs da

banda Arcade Fire17 2) chegar a outro usuaacuterio que participou do The Wilderness Downtown 3)

cair na Wilderness Machine (figura 7) uma maacutequina criada pelo diretor onde a mensagem eacute

impressa e enviada de volta agrave pessoa que escreveu como uma semente para ser plantada

(MEacuteDOLA amp CALDAS 2015 p43) Ao decidir enviar o postal perde-se o controle do seu

destino

17 Nos shows do Arcade Fire durante a execuccedilatildeo da muacutesica We used to wait satildeo projetadas num telatildeo no fundo dopalco vaacuterias imagens com detalhes de cartotildees postais e cartas conforme vemos emhttpswwwyoutubecomwatchv=2Im6avxhIRM Acesso em 200819

43

Figura 7 - The Wilderness Machine (Chris Milk 2010)18

FonteReproduccedilatildeo site

Como eacute sabido o envio de qualquer informaccedilatildeo e a identificaccedilatildeo do remetente e do

destinataacuterio satildeo questotildees basilares para o campo da comunicaccedilatildeo independente da miacutedia

utilizada Do postal ao email dos chats em aplicativos de mensagens instantacircneas a incerteza de

para onde vai a mensagem envolve problemas de seguranccedila e privacidade gerando equiacutevocos

ansiedade por vezes situaccedilotildees vexatoacuterias ou de ordem legal A produccedilatildeo de Chris Milk

desconsidera essas questotildees quando deixa em aberto o destino final do cartatildeo postal redigido e

constitui-se como experiecircncia hiacutebrida tecida por meio de estruturas e elementos que remetem

tanto a meios fiacutesicos quanto virtuais

Caso o destino do postal seja a Wilderness Machine o sistema informa

18 No site de Chris Milk eacute possiacutevel ver a maacutequina e seu funcionamento Ver httpmilkcowilderness-machineAcesso em 200819

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Seu postal foi feito atraveacutes de um sinal analoacutegico vocecirc Agora seu postal eacute virtual AWilderness Machine o faraacute analoacutegico de novo Procure por ele nas turnecircs da banda Setiver sorte para encontrar o postal de outra pessoa plante-o Uma aacutervore cresceraacute19

Eacute aiacute que o dispositivo assume dando continuidade agrave experiecircncia iniciada no site jaacute que

Wilderness Machine eacute um equipamento desenvolvido para recriar fisicamente os postais

redigidos virtualmente O fato de ela tornar palpaacutevel o recado escrito durante a interaccedilatildeo online

vem confirmar nossa leitura a respeito de como a produccedilatildeo de Milk destaca-se pela modulaccedilatildeo

entre mecanismos analoacutegicos e informaacuteticos Conforme indica o site do diretor

The Wilderness Machine eacute uma extensatildeo fiacutesica da obra online The WildernessDowntown A maacutequina gera cartotildees postais dos textos escritos agrave matildeo por espectadoresdo filme interativo Cada postal eacute um recado pessoal do usuaacuterio para si mesmo quandojovem A maacutequina utiliza um braccedilo de succcedilatildeo para transferir um cartatildeo postal em brancopara um poacutedio de metal onde uma caneta mecacircnica eacute programada para reproduzir ostraccedilos da caneta original () Cada postal conteacutem um coacutedigo uacutenico que permite orecipiente aleatoacuterio retornar ao website e escrever de volta ao emissor original um postaldigital Um tipo de versatildeo modernizada do conceito da mensagem na garrafa Os postaissatildeo impressos em papel com sementes compostaacuteveis que quando plantados viramaacutervores tentando recriar o fim da obra digital no mundo real () The WildernessMachine estaacute agora programada para twittar um postal por dia20 (MILK online 2010)

Eacute bastante curiosa a integraccedilatildeo de experiecircncias no site onde o videoclipe eacute criado a

transformaccedilatildeo das mensagens em postais pela maacutequina e a distribuiccedilatildeo aleatoacuteria delas nos shows

da banda ou outros locais onde o equipamento venha a ser exposto e por fim via Twitter Na

elaboraccedilatildeo de cada uma dessas etapas que compotildeem a experiecircncia a participaccedilatildeo do usuaacuterio e os

19 Traduccedilatildeo livre de ldquoYour postcard was made by an analog signal you Currently your postcard is digital TheWilderness Machine makes it analog again Look for it on tour with the band If yoursquore lucky enough to getsomeonersquos postcard form it plant it A tree will grow out of itrdquo20Traduccedilatildeo livre de ldquoThe Wilderness Machine is the physical extension of the online piece The WildernessDowntown The machine generates postcards from the handwritten notes created by viewers of the interactive filmEach postcard is a person writing to their younger selves The machine uses a suction arm to transfer a blankpostcard to a metal podium where a mechanical pen is programmed to reproduce the original pen strokes Then aclaw arm tosses the postcard out of a slot in its Plexiglas casing Each postcard contains a unique code that allowsthe random recipient to return to the website and write a digital postcard back to the original sender Sort of amodernized version of the message in a bottle concept The postcards are printed on compostable seeded paperwhich when planted will grow into birch trees attempting to recreate the end of the digital piece in the real world The machine has appeared at Arcade Fire concerts the Wired Magazine pop-up space in NYC and the 2011Sundance Film Festivalrsquos New Frontier exhibit The Wilderness Machine is now programmed to tweet one postcardper dayrdquo

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processos governados pelo software pelo dispositivo da Wilderness Machine se imbricam e se

complementam e o percurso da narrativa e da mensagem sujeitam-se a um movimento aleatoacuterio

que acusa a presenccedila de certo niacutevel de descontrole pois natildeo se sabe que destino a maacutequina daraacute

ao postal redigido Na verdade a participaccedilatildeo em The Wilderness Downtown sugere aceitar que

natildeo sabemos como os dados inseridos seratildeo utilizados pelo computador como vatildeo se comportar

em termos da construccedilatildeo de uma estrutura de significados Isso porque eacute caracteriacutestico das

narrativas criadas com e para as tecnologias digitais uma condiccedilatildeo de abertura que as torna um

campo de possibilidades orientado por um programa em uma situaccedilatildeo em que temos de um lado

um sujeito interagindo atraveacutes de dados inseridos numa determinada plataforma e de outro um

sistema que desenvolve situaccedilotildees narrativas a partir de um diaacutelogo com o primeiro (MACHADO

2009 p71) A relaccedilatildeo estabelecida nessa situaccedilatildeo eacute de jogabilidade que ora solicita a

participaccedilatildeo ora conduz a histoacuteria sob autonomia do programa

A possibilidade de evocar meios fiacutesicos utilizando-os como base de experiecircncias

dependentes de uma inteligecircncia numeacuterica eacute reconhecida como atributo tiacutepico do software nas

dimensotildees da simulaccedilatildeo e da hibridizaccedilatildeo (MANOVICH 2013) como paradigmas que

atravessam todas as referecircncias utilizadas em The Wilderness Downtown As imagens do Google

Street View satildeo fotografias que adquirem movimento ndash ldquohiacutebrido de fotografia e interfaces de

navegaccedilatildeo espacial21rdquo (MANOVICH 2013 p185) ndash efeitos criados no computador misturam-se

a live footage cartotildees-postais satildeo recriados como mensagens virtuais num formato novo e a

montagem (parte da linguagem cinematograacutefica cujo proacuteprio nome remonta ao trabalho manual

de colar partes da peliacutecula) eacute lembrada na estrutura de multitelas e elementos graacuteficos associados

durante toda a duraccedilatildeo do filme A todo tempo vemos a troca entre miacutedias fiacutesicas e o sistema do

computador que as recria revisita ou modifica sem contudo permanecerem idecircnticas aos

originais A imagem fotograacutefica reveste-se de atributos novos ndash num ldquoefeito de cruzamentordquo

(MANOVICH 2013 p272) no qual teacutecnicas de miacutedias particulares satildeo aplicadas a outras num

processo de assimilaccedilotildees ndash sendo capturada da perspectiva do dispositivo (sem remeter

necessariamente ao olhar de um sujeito)

21 Para Fontcuberta (2016) os registros do Google Street View satildeo processados para causar uma ilusatildeo oacutetica decontinuidade bastante realista na qual o usuaacuterio experimenta a simulaccedilatildeo de um entorno real atraveacutes de um modelointerativo em 3D Para mais ver Fontcuberta Joan Por um manifesto postfotograacutefico In La furia de las imaacutegensBarcelona Galaxia Gutenberg 2016 p35-52

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Tais questotildees nos levam a considerar uma presenccedila material do ambiente digital atribuiacuteda

agrave maneira de funcionamento do computador Se miacutedias fiacutesicas mecacircnicas e eletrocircnicas satildeo

ldquohardwarerdquo cujas inscriccedilotildees em materiais distintos (papel peliacutecula madeira fita magneacutetica) satildeo

responsaacuteveis pelo aspecto visual pelo ldquolookrdquo atribuiacutedo a cada tecnologia o software ao simular

as teacutecnicas desses meios acaba reproduzindo-as acumulando tambeacutem um certo repertoacuterio

Assim isso nos permite falar metaforicamente de uma materialidade do software

O software contemporacircneo conteacutem seus proacuteprios ldquomateriaisrdquo estruturas de dadosutilizados para representar imagens estaacuteticas e em movimentos formas 3D volumes eespaccedilos textos composiccedilotildees sonoras designs impressos paacuteginas da web e outrosldquocultural datardquo Essas estruturas natildeo correspondem a materiais fiacutesicos numa escala realEm vez disso um conjunto de materiais reais eacute codificado numa estrutura uacutenica ndash porexemplo imagens em diferentes materiais como papel tela filme fotograacutefico evideotape se tornam uma estrutura uacutenica de informaccedilotildees Essa junccedilatildeo de materiaisfiacutesicos em uma soacute estrutura de dados eacute umas das condiccedilotildees que permite a hibridizaccedilatildeode tecnologias22 (MANOVICH 2013 p204)

Esse intercacircmbio nos leva de volta agrave contenda a respeito de uma suposta cisatildeo entre

tecnologias analoacutegicas e digitais separadas por suas respectivas ldquomaterialidaderdquo e

ldquoimaterialidaderdquo e pode ser uma saiacuteda para encerrar esse debate Em outro momento de reflexatildeo

Manovich (2013) propotildee que encaremos separadamente o artefato material e as tecnologias

empregadas para produzi-lo (por exemplo fotografias e negativos de filme seriam materiais

enquanto cacircmeras projetores moviolas seriam as tecnologias) Ele diz que quando se trata do

software os materiais transformam-se nas estruturas de dados e as ferramentas fiacutesicas mecacircnicas

e eletrocircnicas (a tecnologia ou o aparato) satildeo transformados nas ferramentas do software que

operam sobre as estruturas de dados Eacute como se os aparatos com sistemas informatizados

ldquoaprendessemrdquo as teacutecnicas de meios analoacutegicos para introduzi-las agrave sua proacutepria maneira nos

projetos desenvolvidos no ambiente virtual fazendo desses referenciais e das ferramentas que os

22 Traduccedilatildeo livre de ldquoContemporary media software contains its own ldquomaterialsrdquo data structures used to representstill and moving images 3D forms volumes and spaces texts sound compositions print designs web pages andother ldquocultural datardquo These data structures do not correspond to physical materials in a 11 fashion Instead anumber of physical materials are mapped onto a single structuremdashfor instance different imaging materials such aspapercanvas photographic film and videotape become a single data structure (ie a bitmapped image) This manyto one mapping from physical materials to data structures is one of the conditions which enables hybridization ofmedia techniquesrdquo

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conduzem partes igualmente importantes de um mesmo espaccedilo criativo integrado Assim as

miacutedias digitais tecircm uma natureza dual que implica na mesma medida simulaccedilatildeo e criaccedilatildeo

O que o autor denomina ldquoestrutura de dadosrdquo satildeo os formatos de arquivos que utilizamos

no computador ndash HTML XML MP3 MOV JPEG TIFF RAW ndash enquanto as ldquoferramentasrdquo ou

ldquocomandosrdquo satildeo os algoritmos com os quais se trabalham esses formatos Estes uacuteltimos satildeo parte

dessa materialidade porque eles determinam a esteacutetica digital aleacutem do fato de que o formato de

um arquivo possui um registro uma ldquoinscriccedilatildeordquo gozando tambeacutem de certa estabilidade em

comparaccedilatildeo a outros tipos de dados que circulam num sistema computadorizado (MANOVICH

2013 p215-216) A estabilidade viabiliza alteraccedilotildees responsaacuteveis por diferentes esteacuteticas ndash

aplicaccedilatildeo de filtros montagem distorccedilatildeo entre outras ndash o que eacute especialmente importante

quando pensamos no universo das imagens digitais

De volta agraves teorizaccedilotildees a respeito da imagem haacute teoacutericos que tentam compreendecirc-la para

aleacutem de uma singularidade movimento que tambeacutem integra preocupaccedilotildees mais recentes sobre o

tema A polonesa Joanna Zylinska (online 2017) acredita que a imagem no ambiente digital natildeo

deve ser tomada como objeto uacutenico mas como um fluxo de dados que natildeo existe sozinha

necessitando de uma infraestrutura tecnoloacutegica que inclui telas celulares cabos impressoras Eacute

um entendimento mais abrangente da imagem que ultrapassa a noccedilatildeo de artefato individual

considerando de forma mais ampla todo o aparato necessaacuterio para sua emergecircncia (fazendo

retornar a criacutetica a uma inerente imaterialidade do digital) e compreendendo que tal estrutura eacute

parte tambeacutem das esteacuteticas das imagens digitais

Tambeacutem podemos questionar a ideia de que na fotografia analoacutegica a materialidade da

coacutepia eacute sinocircnimo de um certo estaacutegio de finalizaccedilatildeo ou ldquomateacuteria inerterdquo (BATCHEN 2002) Na

medida em que satildeo cada vez mais recorrentes os empregos de imagens fiacutesicas deslocadas de seus

contextos originais alteradas e reutilizadas em obras variadas haacute todo um universo de produccedilotildees

em fotomontagem ou de trabalhos recentes de recuperaccedilatildeo de arquivos ou ainda imagens

privadas para uso artiacutestico contrariando a ideia de que imagens fotoquiacutemicas encerram seu ciclo

semioacutetico apoacutes o clique (ou depois de reveladas e copiadas) Natildeo eacute a materialidade das imagens

que as faz menos manipulaacuteveis ou impotildee a elas restriccedilotildees de ordem simboacutelica Essa questatildeo

parece mais ligada a uma ideia de automatismo que compreende sobretudo a fotografia como

resultado de um processo que acaba na imagem que como artefato natildeo deve ser manipulado

48

Ao que parece a proacutepria natureza cada vez mais diversa das obras produzidas nos ajuda

a repensar alguns conceitos associados agraves miacutedias analoacutegicas e digitais cuja tendecircncia era de

distanciaacute-las Segundo Manovich (2013) o relevante natildeo eacute se os produtos da cultura digital satildeo

imateriais (em oposiccedilatildeo agraves miacutedias do seacuteculo XX) mas que eles possuem uma identidade

diferente porque a centralidade do software faz com que a experiecircncia do usuaacuterio seja

determinada parte pelo conteuacutedo parte pelo modo de interaccedilatildeo com esse conteuacutedo e a natureza

dessa interaccedilatildeo eacute colaborativa e aberta agrave intervenccedilatildeo ldquo() enquanto as miacutedias antigas ()

tambeacutem permitiam um acesso aleatoacuterio as interfaces da miacutedia dirigida por softwares

proporcionam muitas formas adicionais de navegar a miacutedia e selecionar o quecirc e como acessarrdquo

(MANOVICH 2013 p38) Entatildeo para aleacutem de pensar no binocircmio materialidadeimaterialidade

podemos atentar para a caracteriacutestica de ldquocoacutedigo abertordquo da imagem digital pois ela eacute parte de

um ambiente que pressupotildee experiecircncias com elementos que estatildeo sempre se modificando e

nesse sentido o exemplo do filme The Wilderness Downtown ilustra bem esse ponto

A respeito de uma fugacidade versus permanecircncia atributos que pertenceriam

respectivamente agraves imagens digitais e analoacutegicas tambeacutem percebemos que eacute uma noccedilatildeo

questionaacutevel jaacute que o desgaste e a deterioraccedilatildeo satildeo problemas dos quais nenhuma tecnologia estaacute

livre e suas implicaccedilotildees vecircm sendo consideradas e utilizadas a serviccedilo de uma intenccedilatildeo esteacutetica

Os vestiacutegios da accedilatildeo do tempo sobre os materiais se inscrevem de formas variadas nos

equipamentos e seus produtos sejam essas marcas mais ou menos perceptiacuteveis Se tomada como

realidade em si mesma (e natildeo como duplo de uma realidade precedente) podemos dizer que as

imagens de maneira geral pertencem ao domiacutenio de um possiacutevel marcado pela instabilidade

Portanto atribuir uma suposta permanecircncia ou menor fugacidade agrave existecircncia de um suporte

parece equivocado23 Talvez os usos mais comuns que fazemos das imagens no nosso cotidiano

sejam mais efecircmeros do que antes ndash postar compartilhar comentar como accedilotildees caracteriacutesticas da

circulaccedilatildeo da imagem na internet ndash e natildeo exatamente essa seja a natureza da imagem digital

A questatildeo do tempo na imagem analoacutegica percebido como algo condensado no objeto eacute

igualmente sujeita a revisotildees compreender a fotografia como miacutedia capaz de congelar o tempo

23 Eacute interessante assinalar que se podemos fazer uma criacutetica agrave relaccedilatildeo entre permanecircncia da imagem e suafisicalidade isso natildeo nos impede de identificar em vaacuterias das obras que compotildeem o nosso corpus de anaacutelise avalorizaccedilatildeo de aspectos visuais alcanccedilados pelas experimentaccedilotildees com a materialidade dos suportes utilizados ndash umaquestatildeo relevante que vem sendo retomada na perspectiva da materialidade das comunicaccedilotildees

49

resulta de uma percepccedilatildeo que decorre da noccedilatildeo de instantacircneo enquanto haacute diversas imagens

onde eacute possiacutevel perceber o escoamento do tempo o traccedilo de temporalidades que transitam entre

fixidez e mobilidade os estudos de Marey e as experiecircncias do fotodinamismo satildeo exemplos jaacute

claacutessicos e largamente evocados24

Dessa maneira assinalamos que algumas das questotildees levantadas quando do advento do

paradigma digitial refletem o momento teoacuterico inicial do debate sobre as mudanccedilas no campo da

imagem Nos anos mais recentes percebemos a emergecircncia de outras preocupaccedilotildees em torno da

relaccedilatildeo entre sistemas informaacuteticos e imagem Entre elas destacam-se as questotildees de vigilacircncia e

controle de informaccedilotildees coletadas em acircmbito institucional ou corporativo as relaccedilotildees entre

memoacuteria e esquecimento na produccedilatildeo e armazenamento de imagens por dispositivos inteligentes

a simulaccedilatildeo e o hibridismo a disponibilidade de esteacuteticas preacute-formatadas ndash pois na era da

fotografia de smartphone ldquoo modelo da cacircmera ou o Instagram e seus filtrosrdquo impotildeem

determinados padrotildees conforme Zylinska (online 2017) A pesquisadora tambeacutem chama atenccedilatildeo

para um conjunto de imagens geradas por sistemas autocircnomos (independente da accedilatildeo humana)

como microfotografia cacircmeras de controle de traacutefego cacircmeras instaladas no telescoacutepio Hubble

Google Street View drones aparelhos de raio-x (ZYLINSKA 2017a) como parte do que

denomina ldquofotografia natildeo-humanardquo Mas ao contraacuterio do que o termo sugere agrave primeira vista

essa perspectiva natildeo aposta numa visatildeo negativa dos aparatos criadores de imagem mas parte do

princiacutepio de que a fotografia eacute em si mesma criadora de universos e natildeo se restringe agrave

necessidade de reproduzir o mundo concreto Por outro lado a fotografia natildeo-humana reconhece

a dimensatildeo fortemente maquiacutenica no uso que as pessoas fazem da fotografia quando se limitam a

reproduzir paracircmetros prescritos no equipamento e seus coacutedigos visuais ou seja haacute um

componente inumano evolvido no uso da tecnologia que se mostra alienado dos processos e

modelos inscritos e perpetuados no proacuteprio aparato25

24 Eacutetienne-Jules Marey eacute um dos representantes da cronofotografia Seus estudos sobre o movimento dos corposbaseavam-se em conseguir registrar as diversas fases do movimento num mesmo suporte ampliando a noccedilatildeo deinstante fotograacutefico O fotodinamismo cujos expoentes mais conhecidos satildeo os irmatildeos Arturo e Anton Bragagliaregistra a trajetoacuteria do movimento (em vez de aglutinar uma seacuterie de instantacircneos que decompotildeem o movimento) demodo que suas experiecircncias apresentam borrotildees e distorccedilotildees das formas (enquanto que na cronofotografia as formasdos corpos satildeo preservadas)

25 Em seu livro dedicado ao tema (2017a) a autora explica que a abordagem natildeo-humana da fotografia natildeo consistena exclusatildeo do elemento humano mas no deslocamento do ser humano como ponto de vista privilegiado e tema dapraacutetica fotograacutefica dando-se maior ecircnfase ao papel do dispositivo como instacircncia criativa Cf Zylinska JoannaNonhuman Photography Cambridge MIT Press 2017

50

O conceito de fotografia natildeo-humana possui uma influecircncia direta da compreensatildeo

flusseriana das tecnologias que entende o papel desprogramador do sujeito em relaccedilatildeo ao aparato

como fundamental para o surgimento de novas propostas esteacuteticas Nesse sentido sua abordagem

aproxima-se ainda das anaacutelises de Almeida amp Baio (2019) que discutem as apropriaccedilotildees criacuteticas

de conteuacutedo imageacutetico do banco de dados de grandes empresas em projetos atuais que unem as

esferas da arte e do ativismo

Esses trecircs pesquisadores falam sobre as implicaccedilotildees poliacuteticas de termos nossas

informaccedilotildees pessoais coletadas e utilizadas por empresas governos e serviccedilos sem que

tenhamos controle desse uso Para Zylinska com base numa ideia pouco definida de

compartilhamento empresas acumulam grande quantidade de informaccedilatildeo dos usuaacuterios o que

constitui um problema

() essas empresas penetram em diferentes niacuteveis de nossa existecircncia diaacuteria Ficoincomodada com o acesso e a criaccedilatildeo de bancos de dados massivos de nossas vidas como aspecto inquisitoacuterio do que eacute e do que natildeo eacute uma boa vida (Facebook Google e tantasoutras empresas fazem isso) Acho que essa questatildeo da acumulaccedilatildeo de ldquocapitalinformacionalrdquo eacute muito importante porque nela residem as ambiccedilotildees de dominaccedilatildeo decertas empresas que se escondem em um discurso ldquoinocenterdquo sobre comunidades decompartilhamento (ZYLINSKA online 2017)

Por outro lado Almeida Baio e Zylinska indicam igualmente que o campo da arte vem

problematizando essas questotildees fazendo uso exatamente do material produzido sob tais

condiccedilotildees especiacuteficas da sociedade informaacutetica subvertendo entatildeo os propoacutesitos corporativos

originais

Figura 8 - Park Road London (Joanna Zylinska 2011)

51

Fonte Reproduccedilatildeo site26

A polonesa que aleacutem de pesquisadora eacute artista utiliza suas proacuteprias obras para discutir

essas questotildees Com imagens retiradas do Google Street View ela produziu uma seacuterie fotograacutefica

intitulada Park Road London (figuras 8 e 9) e um viacutedeo homocircnimo (2011) sobre lugares que se

chamam Park Road um dos nomes mais comuns para ruas no Reino Unido Assim ela vai

criando uma paisagem composta de imagens roubadas de um sistema de localizaccedilatildeo geograacutefica

que se converte em dispositivo de vigilacircncia contiacutenuo apropriando-se dos corpos de transeuntes

desavisados Versatildeo maquiacutenica de um olhar onipresente o Google Street View oferece uma

percepccedilatildeo diferida em segunda matildeo passeando pelas ruas captando tudo que ocorre nas

margens traacutefego de veiacuteculos caminhar de pessoas e accedilotildees imprevistas tiradas do cotidiano e

congeladas para sempre acessiacuteveis a qualquer internauta (FONTCUBERTA 2016 p44)

Agrave medida que se apropria de informaccedilotildees de uma estrutura corporativa onipresente no

cotidiano das cidades contemporacircneas e submete-as aos propoacutesitos criacuteticos da arte a artista faz

pensar sobre como nossas identidades gestos e accedilotildees diaacuterios satildeo despidos de qualquer

singularidade no momento em que a imagem nos captura nas Park Roads da vida O flagrante

tiacutepico das cacircmeras de vigilacircncia que se aprende a ignorar transforma-se aqui em material baacutesico

para cenas que articulam o apagamento da identidade nas imagens contemporacircneas (ao serem

fotografadas pelas cacircmeras do Google todas essas pessoas transformam-se em dados brutos num

26 Disponiacutevel em httpwwwjoannazylinskanetpark-road-london Acesso em 190919

52

sistema) ldquoO ser humano eacute uma perturbaccedilatildeo no fluxo de dados do Google Street Viewrdquo

(ZYLINSKA 2017a p27) Aleacutem disso eacute preocupante o fato de que mesmo a experiecircncia

totalmente banal de transitar na rua natildeo escapa agrave mediaccedilatildeo dos aparelhos Essas pessoas satildeo a

forma representada desses dados construiacuteda a partir da linguagem do computador Lev Manovich

(2013) reflete sobre uma continuidade entre ldquomiacutediaconteuacutedordquo e

ldquodadosinformaccedilotildeesconhecimentordquo geralmente vistas como categorias distintas Para ele

quando se trata de dispositivos computadorizados determinados artefatos transitam de uma

categoria a outra

Um longa-metragem eacute um bom exemplo da primeira categoria (miacutediaconteuacutedo) e umaplanilha de Excel da segunda ndash mas entre esses exemplos bem separados haacute vaacuteriosoutros que pertencem a ambas as categorias Por exemplo se faccedilo uma visualizaccedilatildeo deinformaccedilotildees dos dados numa planilha essa visualizaccedilatildeo agora se encaixa nas duascategorias Ainda satildeo ldquodadosrdquo mas dados representados numa nova maneira que permitechegar a insights e ao ldquoconhecimentordquo Tambeacutem se torna uma peccedila de miacutedia visual queagrada aos nossos sentidos da mesma forma que fotografias e pinturas27 (MANOVICH2013 p30)

Tomando como base esse raciociacutenio um trabalho como Park Road London brinca

exatamente com a possibilidade de a imagem ser uma modalidade de informaccedilatildeo ou ldquodadosrdquo

(num sentido mais cru de sua morfologia de pixels e coacutedigos do sistema que a produz) quanto

ldquomiacutediaconteuacutedordquo pois que adquire uma forma determinada uma plaacutestica especiacutefica

Numa taacutetica de inversatildeo o proacuteprio sistema de vigilacircncia eacute usado para fazer a criacutetica

dessa mediaccedilatildeo constante dos dispositivos em nosso dia a dia O efeito esfumado aplicado aos

rostos das pessoas guarda certa ironia parece proteger a identidade das pessoas observadas mas

as nivela diante do sistema sujeitando-as agrave condiccedilatildeo de meros corpos que passam Do ponto de

vista formal o efeito eacute resultado da simulaccedilatildeo ldquocom a softwarizaccedilatildeo possibilidades impliacutecitas e

maneiras diferentes de usar ferramentas fiacutesicas satildeo trazidas agrave tona lsquoTeacutecnicas artiacutesticasrsquo e lsquomeios

27 Traduccedilatildeo livre de ldquoA feature film is a good example of the first category and an Excel spreadsheet represents thesecond categorymdashbut between such clear-cut examples there are numerous other cases which are both Forexample if I make an information visualization of the data in the spreadsheet this visualization now fits equally intoboth categories It is still ldquodatardquo but data represented in a new way which allows us to arrive at insights andldquoknowledgerdquo It also becomes a piece of visual media which appeals to our senses in the same way as photographsand paintings dordquo

53

de expressatildeorsquo tornam-se expliacutecitosrdquo (MANOVICH 2013 p221) O mesmo pode ser dito sobre o

aspecto ldquogranuladordquo (peliacutecula) de toda a seacuterie

Park Road London potildee em questatildeo a ideia central da artista de que a fotografia cria

mundos e circunstacircncias proacuteprias que extrapolam a vontade de reconhecimento de um real

precedente o que nos faz compreender que ao serem capturadas pelo sistema de cacircmeras a

noccedilatildeo de identidade jaacute natildeo eacute mais adequada para os personagens que habitam essas imagens Eles

satildeo sinais de um sistema de dados transmitido em forma de imagens Podemos considerar os

transeuntes de Park Road London fantasmagorias desse sistema28 O trabalho busca ainda

provocar uma reflexatildeo sobre como nossas vidas satildeo escrutinadas por grandes empresas e como a

imagem hoje se integra quase que automaticamente nesse processo

() Este aspecto mais amplo da miacutedia social da qual a fotografia faz parte meincomoda profundamente Existe tambeacutem a questatildeo da vigilacircncia da invasatildeo diaacuteria danossa existecircncia e a ingenuidade de parte dos usuaacuterios que abrem matildeo de informaccedilotildeessobre sua vida sem saber para quem e com qual propoacutesito Aleacutem disso os proacuteprioshumanos viraram ldquonoacutesrdquo nessa rede de troca de dados rapidamente se transformando emmercadoria A fotografia natildeo-humana portanto tambeacutem pode ser entendida como dadoe por este motivo pode ser vista como uma forma de transaccedilatildeo que exclui os usuaacuteriosque se oferecem voluntariamente ou involuntariamente como parte dessa economiaconsolidada em poucas e gigantescas corporaccedilotildees (ZYLINSKA Idem)

Ao mesmo tempo a abordagem da foto natildeo-humana que embasa os trabalhos de

Zylinksa sugere como os enquadramentos e modos de captura dos dispositivos autocircnomos satildeo

naturalizados por noacutes como observadores dessas imagens configurando talvez um regime visual

que ecoa em fotografias vernaculares ou viacutedeos amadores como referecircncia a um ldquoestilo cacircmera

de vigilacircnciardquo Tal estilo converte um certo voyeurismo em modelo de observaccedilatildeo sob a frieza

do equipamento e formalmente identifica-se na aceitaccedilatildeo de imagens de baixa resoluccedilatildeo

28 Resultado semelhante pode ser observado no viacutedeo da instalaccedilatildeo Pasajeros Peregrinos Pilotos (2008) de ThomasKoumlner em que vaacuterios monitores distribuiacutedos numa estaccedilatildeo de metrocirc da cidade de Santiago (Chile) mostram o vai evem dos passageiros Agrave medida que o viacutedeo avanccedila as pessoas vatildeo se multiplicando num efeito que torna quaseimpossiacutevel distinguir entre corpos e sombras fazendo da situaccedilatildeo transitoacuteria de quem passa pela estaccedilatildeo avisualidade que remete agrave fantasmagoria A tomada da imagem eacute fixa lembrando a posiccedilatildeo de uma cacircmera devigilacircncia Disponiacutevel em httpthomaskonercom201404pasajeros-peregrinos-pilotos Acesso em 191119

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Figura 9 - Park RoadLondon (Joanna Zylinska 2011)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Na economia dos sistemas informaacuteticos o banco de dados figura como local simboacutelico

que permite criar experiecircncias sensiacuteveis fora de sua loacutegica corporativa (ALMEIDA amp BAIO

Ibidem) pois que ganha significado quando os dados satildeo processados sujeitos a relaccedilotildees com

outros elementos ou como eacute aqui o caso adaptados aos propoacutesitos de artistas como Zylinska e

tantos outros29 Esses trabalhos tambeacutem representam um impulso criacutetico de apropriaccedilatildeo de

conteuacutedos que remete a uma atitude hacker fundamentando sua forccedila poeacutetica numa estrateacutegia de

contrabando de informaccedilotildees que submetidas a propoacutesitos esteacuteticos adquirem tambeacutem uma

dimensatildeo poliacutetica levando-nos a refletir sobre o nosso lugar nessa miriacuteade de sistemas

maacutequinas corpos (e logicamente imagens)

29O trabalho e a perspectiva teoacuterica de Zylinska satildeo bastante interessantes porque para ela a fotografia sempre foiparceira de outras imagens e seu interesse eacute discutir a dimensatildeo teacutecnica da imagem atraveacutes de implicaccedilotildees sociaispoliacuteticas e esteacuteticas Para uma melhor compreensatildeo das abordagens da artista sugerimos ler o texto-manifestoPhilosophy as photography disponiacutevel em httpwwwjoannazylinskanetartists-statement Acesso em 190919

55

Nesse sentido percebemos que certos haacutebitos e relaccedilotildees estabelecidos com as imagens

modificaram-se sensivelmente por forccedila das mudanccedilas tecnoloacutegicas mas processos realizados

com dispositivos digitais e analoacutegicos estatildeo sempre sujeitos a desvios (re)invenccedilotildees recuos e

procedimentos alternativos dos quais o campo da arte natildeo cansa de oferecer exemplos conforme

veremos ao longo deste trabalho

242 Ordem da representaccedilatildeo x ordem da simulaccedilatildeo

Outras questotildees foram levantadas para distinguir as imagens analoacutegicas e digitais entre

elas a ideia de que as primeiras alinham-se agrave ideia de representaccedilatildeo enquanto as imagens

numeacutericas apresentariam uma tendecircncia maior agrave simulaccedilatildeo Ao falar sobre os coacutedigos por traacutes das

interfaces dos artefatos digitais Manovich (2001 p112) compara as tradiccedilotildees da representaccedilatildeo e

da simulaccedilatildeo A primeira supotildee a organizaccedilatildeo de uma cena num espaccedilo demarcado fiacutesico

especiacutefico geralmente estaacutetico A representaccedilatildeo recorre a vaacuterias convenccedilotildees e sua mateacuteria se

reporta ao mundo fiacutesico mas sem se confundir com ele Jaacute a simulaccedilatildeo quer ficar mais proacutexima

do mundo material repetindo suas escalas e dimensotildees ateacute confundir-se com ele

Para o teoacuterico russo o modo da representaccedilatildeo predominou nas culturas da pintura

fotografia cinema em detrimento do modo da simulaccedilatildeo30 Contudo essa tendecircncia de

continuidade do espaccedilo fiacutesico no virtual faria parte apenas do momento inicial da tradiccedilatildeo da

simulaccedilatildeo e a emergecircncia das miacutedias digitais traz outras questotildees A realidade virtual por

exemplo relacionada a noccedilotildees como a interatividade entre sujeito e maacutequina os movimentos e

reaccedilotildees do usuaacuterio tecircm efeitos no que ocorre no ambiente do dispositivo onde se propotildee uma

imersatildeo Nesse ponto se instaura uma diferenccedila importante em vez da inclinaccedilatildeo para uma falsa

continuidade do ambiente fiacutesico acentua-se agora a separaccedilatildeo entre espaccedilo real e virtual e a

ldquorealidade fiacutesica eacute ignorada dispensada abandonadardquo (MANOVICH 2001 p113)

O ordenamento da simulaccedilatildeo eacute tambeacutem resultado de convenccedilotildees culturais Quando essas

referecircncias satildeo ldquofiltradasrdquo e ldquotraduzidasrdquo nas ferramentas disponiacuteveis e na maneira delas

30 Manovich apresenta indiacutecios dessa loacutegica em formas de entretenimento do seacuteculo XIX como o panorama queseria uma forma cultural intermediaacuteria entre representaccedilatildeo e simulaccedilatildeo Museus de cera escultura em escalahumana e dioramas nos museus de histoacuteria natural seriam exemplos da loacutegica da simulaccedilatildeo tambeacutem no mesmoperiacuteodo Cf Manovich 2001 p113

56

operarem nos sistemas informaacuteticos a tendecircncia agrave abstraccedilatildeo ganha espaccedilo Satildeo as regras internas

do sistema que definem os paracircmetros de sentido vaacutelidos no universo digital Segundo Manovich

(2001 p117) a evoluccedilatildeo dos softwares em direccedilatildeo a uma abstraccedilatildeo crescente eacute compatiacutevel com

a automatizaccedilatildeo de tarefas que governa o proacuteprio desenvolvimento da cultura digital O mesmo

autor explica que basicamente as operaccedilotildees dos computadores satildeo inicialmente conceitos quer

dizer estatildeo primeiro no niacutevel abstrato para soacute depois se materializarem na tela onde aparecem

como resultados de comandos dados pelo usuaacuterio

Quando entendemos que a abstraccedilatildeo eacute uma loacutegica influenciada pela caracteriacutestica da

automaccedilatildeo eacute possiacutevel apontar uma tendecircncia do paradigma digital que influencia sobremaneira

as discussotildees no acircmbito da arte e por consequecircncia da imagem a criaccedilatildeo a partir de conteuacutedos

preacute-formatados A criaccedilatildeo que parte de elementos dados e natildeo ldquodo zerordquo tambeacutem se vincula a

uma visatildeo do artista que haacute muito natildeo coincide com a ideia individualista de gecircnio isolado mas

estaacute de acordo com um universo artiacutestico que se consolida atraveacutes da relaccedilatildeo estreita com as

maacutequinas

Esse novo tipo de autoria () se encaixa perfeitamente com a loacutegica do avanccedilo industriale das sociedades poacutes-industriais onde quase toda praacutetica envolve a escolha em algummenu cataacutelogo ou base de dados Na verdade como percebi as novas miacutedias satildeo amelhor expressatildeo disponiacutevel da loacutegica da identidade nessas sociedades ndash valoresselecionados de menus preacute-definidos (MANOVICH 2001 p128)

Se a norma da linguagem informaacutetica eacute lidar com coisas e operaccedilotildees jaacute determinadas

pela maacutequina o exerciacutecio da criatividade vai em direccedilatildeo agrave modificaccedilatildeo do que estaacute posto como

modelo estabelecendo um tipo de autoria baseada nas accedilotildees de escolher e selecionar entre um

conjunto de possibilidades efetivando como tendecircncias dessa autoria estrateacutegias como a

mixagem a customizaccedilatildeo a releitura a composiccedilatildeo31 Eacute um modelo criativo que preconiza as

conexotildees e reinterpretaccedilotildees produzidas ao longo de zonas de contato moacuteveis por agenciamentos

e bricolagens realizados por uma multiplicidade de atores (LEacuteVY 1993 p107) ou como diz

31 Deve-se salientar que do mesmo jeito que outras caracteriacutesticas das miacutedias digitais essas tendecircncias natildeo surgemcom a emergecircncia do computador mas satildeo basilares da loacutegica que rege seu funcionamento No universo das artesreleituras e apropriaccedilotildees de elementos prontos natildeo satildeo novidades e jaacute se verificavam por exemplo nas praacuteticas daPop Art da fotomontagem Fatorelli (2017) faz observaccedilotildees relevantes sobre estrateacutegias de apropriaccedilotildees e releiturascomo algo que marca os procedimentos da fotografia contemporacircnea

57

Parente (2009) o digital baseia-se na vontade de ldquodesterritorializarrdquo as formas de relacionamento

das pessoas nos processos de criaccedilatildeo

De acordo com Ritchin (2008) a natildeo linearidade e a quebra de hierarquias no ambiente

multimiacutedia o constante recriar a partir de elementos preacute-concebidos (imagens sons textos) aleacutem

de promover o desenvolvimento coletivo de conteuacutedos permite que os lugares antes

marcadamente separados para amadores e profissionais sejam relativizados As fronteiras entre

essas duas instacircncias tornam-se sutis menos definidas Fontcuberta (2016 p32) acrescenta a esse

debate a democratizaccedilatildeo promovida pelo digital na medida em que no espaccedilo da imagem ldquopela

primeira vez somos todos produtores e consumidoresrdquo dada a profusatildeo de aparelhos Um ponto

de vista interessante eacute desenvolvido por Zylinska (2017a p179) nesse sentido quando a autora

afirma que se a cultura da imagem digital sugere um incremento na produccedilatildeo e circulaccedilatildeo de

fotografias esse movimento tem raiacutezes ainda no seio da imagem fotoquiacutemica no momento em

que a Kodak populariza a praacutetica fotograacutefica atraveacutes de cacircmeras baratas A fotografia digital

estabelece uma continuidade com praacuteticas iniciadas nas miacutedias analoacutegicas soacute que eacute mais raacutepida

menos permanente e mais excessiva Tais questotildees satildeo importantes do ponto de vista dos usos da

fotografia bem como sintomaacuteticas de um modelo criativo que ganha forccedila com as miacutedias digitais

baseado no intercacircmbio de referecircncia e informaccedilotildees e em uma certa horizontalidade de

participaccedilatildeo de quem manipula os conteuacutedos para produzir significado

Nas comparaccedilotildees entre representaccedilatildeo e simulaccedilatildeo foram enfatizadas questotildees como a

imaterialidade a fugacidade a abstraccedilatildeo em relaccedilatildeo ao real que caracterizam as imagens

digitais Hoje alguns autores jaacute adotam posiccedilotildees menos ortodoxas a respeito do digital A

abordagem das materialidades da comunicaccedilatildeo que inclui pensadores de eacutepocas diversas como

Benjamin Simondon Derrida e Gumbrecht (FELINTO 2001) pode contribuir para repensar

afirmaccedilotildees sobre o digital e sua imaterialidade Na medida em que propotildee uma valorizaccedilatildeo das

tecnologias dos objetos e das articulaccedilotildees entre sujeitos e miacutedias as materialidades da

comunicaccedilatildeo emergem como lugar de anaacutelise dos meios em sua funccedilatildeo significativa Ou seja o

sentido das coisas dos artefatos culturais natildeo eacute dado a priori nem apreendido exclusivamente por

um intelecto elevado mas por nossa relaccedilatildeo com a forma das coisas E esta abordagem natildeo

exclui os artefatos da cultura digital do rol de seus objetos de anaacutelise Conforme afirma Felinto

(2001 p14) ldquoa teoria das materialidades tem buscado utilizar os mais recentes desenvolvimentos

da ciberneacutetica e da teoria dos sistemas para conjugar diferentes estruturas em uma perspectiva

58

autenticamente conceptualrdquo32 O mesmo autor reivindicando a presenccedila do corpo como oposiccedilatildeo

aos discursos sobre a cibercultura sempre a negar o valor dessa fisicalidade diz que mesmo

aquilo que inicialmente afirma-se imaterial pode ganhar corpo () e que essa ideia alcanccedila o

universo da tecnocultura (FELINTO 2004) Para ele a proacutepria palavra ldquocorpordquo jaacute possui uma

semacircntica de materialidade Manovich (2013) aleacutem de apontar a evidente necessidade de

hardwares na cibercultura tambeacutem reconhece enquanto materialidade do computador e seus

produtos os formatos de arquivos pois que estes gozam de uma identidade (como jaacute indicamos)

Mesmo a simulaccedilatildeo apontada como marca do paradigma digital que a princiacutepio sugere um

afastamento em relaccedilatildeo ao real retira do mundo concreto as referecircncias para elaborar objetos

criar ambientes reproduzir movimentos recursos amplamente utilizados no cinema e na

publicidade por exemplo Se com o auxiacutelio de um software eacute possiacutevel recriar no computador uma

cadeira exatamente igual agrave cadeira na qual estou sentada escrevendo esse texto eacute porque as

referecircncias para que ela seja modelizada no computador satildeo tomadas de uma cadeira concreta

que possui volume massa textura enfim dimensotildees especiacuteficas e definidas utilizadas como

paracircmetro

Reconhecemos que tais questotildees contribuem para pensar que o ambiente informaacutetico

natildeo eacute mesmo totalmente desprovido de materialidade Tatildeo pouco se pode dizer que haacute um grau

menor de abstraccedilatildeo quando se trata de sistemas analoacutegicos (comparativamente aos digitais) O

que nos parece eacute que frente agraves especificidades dos aparelhos digitais e as novas condiccedilotildees de

interaccedilatildeo que noacutes (enquanto espectadores e criadores de conteuacutedo) experimentamos no contexto

da cibercultura muitos pensadores tendem a atribuir a essas especificidades a responsabilidade

majoritaacuteria pelas noccedilotildees de simulaccedilatildeo e graus variados de abstraccedilatildeo de algumas obras quando na

verdade tais questotildees jaacute se colocavam para artistas que entendem (ou entendiam) as miacutedias da

imagem como essencialmente permeaacuteveis e destinadas a produzirem simbologias fantasmagorias

(em detrimento de reproduccedilotildees do cotidiano) Ou seja a ecircnfase nas propriedades de simulaccedilatildeo

na imaterialidade na fluidez eacute teoacuterica enquanto que na praacutetica haacute diversos exemplos indicando a

anterioridade dessas questotildees no campo da imagem reduzindo assim uma distacircncia a priori entre

miacutedias analoacutegicas e digitais

32 Nas discussotildees a respeito de nosso corpus e nas explanaccedilotildees a respeito do ruiacutedo como pontos importantes destatese retomaremos a perspectiva das materialidades da comunicaccedilatildeo como instrumento de anaacutelise

59

No campo da filosofia temos em Flusser (2008) boas rotas de fuga agraves divisotildees

excessivamente demarcadas entre as tecnologias pois ele considera que a partir do momento em

que as informaccedilotildees ndash e para ele informar significa dar forma33 ndash satildeo produzidas por aparelhos

estamos sempre operando com abstraccedilotildees Mesmo que uma imagem seja semelhante ao que

esteve em frente ao dispositivo ela resulta de transcodificaccedilotildees de sinais recebidos e

interpretados de acordo com os paracircmetros do dispositivo o que termina por colocar num mesmo

niacutevel imagens digitais e analoacutegicas Os ldquoaparelhosrdquo ndash os dispositivos produtores de imagem para

Flusser ndash tecircm a peculiaridade de serem desenvolvidos com base em conhecimentos cientiacuteficos e

tais conhecimentos estatildeo simbolicamente informando as imagens criadas Quando diz que ldquoa

fotografia eacute consequecircncia da recodagem de textos da oacutetica e da quiacutemicardquo (FLUSSER

Nascimento da imagem nova34) o filoacutesofo estaacute dizendo que se observarmos com atenccedilatildeo

encontraremos nas fotografias o pensamento cientiacutefico sobre a oacutetica e a quiacutemica de uma eacutepoca o

que tambeacutem se reflete em determinada reflexatildeo criacutetica e esteacutetica sobre a fotografia

Essas observaccedilotildees mostram que algumas reflexotildees que remontam agrave emergecircncia do

paradigma digital ressaltaram questotildees apresentadas naquele momento como novidades e

porque natildeo superaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves tecnologias analoacutegicas Com o passar dos anos os

pesquisadores do campo da imagem voltaram-se para outros temas e alguns posicionamentos e

afirmaccedilotildees podem ser revisados no sentido de que do ponto de vista esteacutetico (que eacute o nosso

interesse central) haacute tanto negociaccedilotildees quanto formas diferentes de produzir disseminar e pensar

a imagem e experiecircncias variadas que talvez nos impeccedilam de separar tatildeo duramente analoacutegico e

digital Podemos indicar diferenccedilas sem com isso estabelecer uma relaccedilatildeo evolutiva entre os

meios ou reforccedilar ideias de que haacute tecnologias melhores quanto mais recentes forem Como se o

progresso teacutecnico inexoraacutevel fosse algo natural (ZIELINSKI 2006)

A seguir analisaremos alguns exemplos que demonstram esse campo de negociaccedilotildees

entre os sistemas analoacutegico e digital relativizando uma dicotomia entre eles pois que considerar

os empreacutestimos de elementos de cada um deles em alguns trabalhos artiacutesticos e mesmo a

resistecircncia de certos paradigmas agraves mudanccedilas tecnoloacutegicas satildeo questotildees centrais em nossa

33 FLUSSER Vileacutem O mundo codificado por uma filosofia do design e da comunicaccedilatildeo Satildeo Paulo Ubu Editora2017

34 Disponiacutevel em httpwwwarquivovilemflusserspcombrvilemflusserpage_id=1577 Acesso em 08042020

60

discussatildeo e apontam que o campo de produccedilatildeo das imagens contemporacircneas eacute cada vez mais

norteado pelo diaacutelogo entre tecnologias formatos e esteacuteticas

61

3 ANALOacuteGICO X DIGITAL INTERROGACcedilOtildeES EM DIRECcedilAtildeO Agrave FOTOGRAFIA

ldquoAntes de existir computador existia tevecircAntes de existir tevecirc existia luz eleacutetrica

Antes de existir luz eleacutetrica existia bicicletaAntes de existir bicicleta existia enciclopeacutediaAntes de existir enciclopeacutedia existia alfabeto

Antes de existir alfabeto existia a vozAntes de existir a voz existia o silecircnciordquo - O silecircncio Arnaldo Antunes

31 RECONSIDERANDO ALGUMAS DISPARIDADES

Jaacute indicamos que as tecnologias do computador datildeo ecircnfase a uma seacuterie de

procedimentos governados pelas informaccedilotildees do proacuteprio sistema e apontamos a dicotomia que

alguns teoacutericos estabeleceram por exemplo em relaccedilatildeo agraves ordens da ldquorepresentaccedilatildeordquo e da

ldquosimulaccedilatildeordquo Essa comparaccedilatildeo daacute a entender que haacute uma distacircncia teacutecnica significativa (aleacutem de

epistemoloacutegica) na origem de cada uma dessas ordens com implicaccedilotildees conceituais e esteacuteticas

E ainda que existe uma correspondecircncia entre as imagens preacute-informaacuteticas com esse regime da

representaccedilatildeo enquanto que a partir das imagens eletrocircnicas e na direccedilatildeo das imagens digitais a

simulaccedilatildeo ganha corpo e consolida-se

Embora seja inegaacutevel a natureza teacutecnica diversa do paradigma digital conforme tais

indicaccedilotildees apostar numa ruptura profunda entre as ordens da representaccedilatildeo e da simulaccedilatildeo eacute algo

que podemos questionar Quando falamos da fotografia a questatildeo se complica jaacute que ateacute o

estaacutegio da captura as operaccedilotildees necessaacuterias satildeo as mesmas seja a cacircmera analoacutegica ou digital A

partir do registro eacute que as mudanccedilas seriam mais significativas porque a imagem oacutetica da cena

capturada eacute projetada sobre o fundo da cacircmera escura o dispositivo interpreta as informaccedilotildees

recebidas que satildeo entatildeo decompostas em pixels (COUCHOT 2003 p162)

62

Ainda nas comparaccedilotildees entre analoacutegico e digital haacute menccedilatildeo por exemplo agrave digitalizaccedilatildeo

como estrateacutegia que sepulta a dicotomia entre original e coacutepia

() coacutepia e original passam a natildeo fazer mais sentido na fotografia digital Nesta tudo eacutecoacutepia (hellip) Na fotografia analoacutegica a reproduccedilatildeo de uma imagem acarretava um saltoentre ldquogeraccedilotildeesrdquo da imagem com distinccedilotildees mesmo que imperceptiacuteveis entre original ecoacutepia a coacutepia e a coacutepia da coacutepia No digital as coacutepias satildeo sempre idecircnticas(QUEIROGA 2015 110-111)

De nosso ponto de vista essa questatildeo natildeo faz sentido se consideramos as noccedilotildees de

original e coacutepia tomando a fotografia como imagem teacutecnica (FLUSSER 2011) como fruto do

cruzamento entre subjetividade e uma maacutequina qualquer fotografia jaacute natildeo poderia ser tratada

como ldquooriginalrdquo apenas porque foi a primeira de uma seacuterie de outras idecircnticas Antes de Flusser

Walter Benjamin (1936 1994) jaacute indicava que uma pretensa originalidade se perde no momento

em que a arte se faz por instrumentos que ensejam a reprodutibilidade tornando sua existecircncia

independente da operaccedilatildeo exclusiva da matildeo humana De fato podemos dizer que a fotografia

digital (assim como a digitalizaccedilatildeo de imagens de outra natureza) estimula uma atitude de

recriaccedilatildeo reelaboraccedilatildeo de alteraccedilatildeo que visa produzir imagens novas dada a maior facilidade

com que isso eacute feito nos aparatos computadorizados Se para copiar uma foto analoacutegica

dependiacuteamos de laboratoacuterio revelaccedilatildeo e ampliaccedilotildees num processo mais demorado que

demandava um conhecimento razoaacutevel de suas etapas no digital mesmo um leigo consegue sem

maiores problemas copiar uma imagem

De fato natildeo haacute formas de reproduccedilatildeo melhores ou piores em termos de fidelidade ou

autenticidade a partir de que haacute mediaccedilatildeo de um aparato acreditar na capacidade de replicar

algo atraveacutes da imagem de maneira fiel eacute um ideal para natildeo dizer um paradoxo Pensemos menos

em termos de originalidade e reprodutibilidade e notemos que a imagem fotograacutefica carrega

certas tradiccedilotildees Por exemplo expectativas de correspondecircncia entre tempo e espaccedilo retratados

para uma situaccedilatildeo dada De modo que natildeo apenas a forccedila de uma novidade tecnoloacutegica conduz

necessariamente a alteraccedilotildees esteacuteticas formais A imagem digital pode ser diversa menos na sua

mensagem e mais na maneira como eacute feita (PLAZA 1993 p73) Se o digital reconstroacutei o real as

leis que governam a maneira de construir e exibir esse real praticadas nas formas visuais

anteriores continuam operando de certa forma ldquoadaptadasrdquo ldquotraduzidasrdquo nas leis do paradigma

63

digital A capacidade de reconstruir esse real vem de uma referecircncia a ele jaacute consagrada em

outras formas visuais da fotografia do cinema da pintura

Eacute compreensiacutevel que os primeiros exerciacutecios de pensar essas mudanccedilas se mostrassem

entusiastas apostando na conformaccedilatildeo de um discurso da ruptura e da novidade mas passado

esse momento a produccedilatildeo de imagens tem mostrado que para aleacutem da recusa de qualquer

referecircncia ao real haacute diferentes maneiras de exercitar uma relaccedilatildeo criacutetica oniacuterica ou irocircnica com

ele sem contudo descartaacute-lo totalmente O que parece problemaacutetico em alguns dos argumentos e

definiccedilotildees pioneiros sobre as tecnologias digitais eacute tentar compreender as mudanccedilas a partir de

um horizonte fortemente teacutecnico da produccedilatildeo circulaccedilatildeo e consumo de imagens sem atentar para

o peso que representam as tradiccedilotildees visuais e ideologias das quais a fotografia tem dificuldade

de se apartar seja na teoria nas praacuteticas artiacutesticas jornaliacutesticas vernaculares etc

Isso significa que quando abordamos o digital de maneira geral apontamos suas

caracteriacutesticas e como elas satildeo incorporadas no desenvolvimento de toda uma imageacutetica

especiacutefica mas ao direcionarmos esse conjunto de informaccedilotildees para o campo das praacuteticas

fotograacuteficas talvez seja preciso refinar um pouco a discussatildeo Por exemplo Lister (1995 p15)

sugere que a simulaccedilatildeo de imagens fotoquiacutemicas pelo digital a digitalizaccedilatildeo de fotografias

analoacutegicas e imagens de siacutentese sejam vistas como coisas distintas e que estas uacuteltimas devem

ainda se diferenciar da realidade virtual Ele acrescenta que a simulaccedilatildeo e a digitalizaccedilatildeo eacute que

possuem maiores implicaccedilotildees para a fotorreportagem o jornalismo o documental As

possibilidades oferecidas pelos softwares alteram nosso entendimento sobre as miacutedias por causa

das operaccedilotildees de criaccedilatildeo ediccedilatildeo interaccedilatildeo compartilhamento (MANOVICH 2013 p122) o

que justifica certa desconfianccedila ou descreacutedito em relaccedilatildeo agraves imagens digitais Essas questotildees

permitem-nos compreender porque alguns debates em torno da fotografia digital preocupam-se

com os limites eacuteticos da manipulaccedilatildeo com as fronteiras que podem ser ultrapassadas no trabalhar

da imagem artiacutestica e da informativa e como esses espaccedilos estatildeo mais ou menos abertos agraves

potecircncias de heterogeneidade descontinuidade do digital Quer dizer no que tange agrave fotografia

haacute certa ecircnfase em tirar proveito do paradigma digital a partir da manipulaccedilatildeo da justaposiccedilatildeo

da elaboraccedilatildeo de universos ficcionais ndash sem que se desfaccedilam totalmente os liames com as formas

institucionalizadas na tradiccedilatildeo fotograacutefica anterior A questatildeo central eacute de que maneira isso

ocorre nesses diferentes campos de produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo da imagem fotograacutefica

64

Esse argumento nos daacute a pista de que para aleacutem dos imperativos teacutecnicos a heranccedila

cultural e simboacutelica de uma visualidade fotograacutefica parece estar sempre tangenciando as

experiecircncias com a imagem mesmo sob um horizonte de ferramentas que aparentemente

permitiriam solapaacute-la de maneiras diversas O hibridismo visual eacute mais evidente no campo do

viacutedeo experimental e independente em obras produzidas para circuitos de festivais web e

dispositivos moacuteveis que utilizam vaacuterias camadas de imagens abstratas geradas em tempo real em

2D animaccedilatildeo e menos frequente em obras comerciais (MANOVICH 2013 p258) Ou seja a

potecircncia de questionar essa heranccedila realista apresentou-se com mais evidecircncia no campo da arte

e conforme observamos passado o momento em que a noccedilatildeo de uma ruptura total com modelos

ldquorealistasrdquo haacute uma tendecircncia de jogar com esse modelo com suas expectativas de representaccedilatildeo

da realidade ao mesmo tempo em que natildeo se nega a natureza artificial da imagem Aqui jaacute

indicamos que o conceito de remediaccedilatildeo (BOLTER amp GRUSIN 2000) eacute instrumental para

entendermos que em alguns casos a imagem digital natildeo se aparta totalmente em seus aspectos

formais da analoacutegica investindo nas caracteriacutesticas esteacuteticas desta uacuteltima como efeito de um

hibridismo e jaacute apontamos casos em que a partir da compreensatildeo do lado discursivo da imagem

digital alguns artistas encontram a condiccedilatildeo especial que os permite explorar narratividades

discutir situaccedilotildees de vigilacircncia a fluidez dos dados Temos vertentes distintas com propoacutesitos

diferentes nos usos dados agrave imagem digital porque parte do DNA da fotografia digital deve-se a

seu lugar de nascimento dentro de uma cacircmera digital e outra parte eacute resultado do paradigma

atual da computaccedilatildeo em rede (MANOVICH 2013 p62-63) Ou seja o mesmo sistema onde se

integra a imagem tanto pode dar vazatildeo a processos de simulaccedilatildeo quanto criar novos paradigmas

visuais jaacute que ambas as possibilidades advecircm de um mesmo software fazendo parte de um

contiacutenuo

Soulages (2007 p80) tentando mapear os reais ganhos do digital interroga se este

determina algumas mudanccedilas na fotografia ou uma mudanccedila da fotografia35 O jogo de palavras

feito pelo autor demonstra a preocupaccedilatildeo em identificar natildeo apenas novidades de procedimento e

usos que aparecem na imagem em sentido restrito mas como uma epistemologia loacutegico-

matemaacutetica eacute capaz de operar modificaccedilotildees no acircmbito geral da fotografia traduzindo-se em obras

que conceitual e plasticamente se apresentem diversas que nos faccedilam repensar as relaccedilotildees que a

35 Grifo do autor

65

imagem fotograacutefica vem problematizando ao longo de sua histoacuteria a partir de novos moldes ou

chaves discursivas relacionados a um contexto social recente que se delineia de meados de 1970

em diante e hoje jaacute apresenta feiccedilotildees mais claras (nas tecnologias criadas nas formas de

circulaccedilatildeo de informaccedilotildees nos haacutebitos) Na medida em que separa ldquoa imagemrdquo da ldquofotografiardquo

Soulages indica que a ecircnfase na investigaccedilatildeo dos atributos teacutecnicos pode fazer sombra agrave potecircncia

esteacutetica

No horizonte do debate em torno da cultura digital alguns pesquisadores como Felinto

(2013) Nunes (2011) e Hainge (2013) Krapp (20112018) entre outros tecircm atentado para o

interesse pelos temas do erro e do ruiacutedo como abordagens que relacionam as especificidades das

tecnologias inteligentes e como elas se traduzem esteticamente Na mesma linha de raciociacutenio

Menkman (2010) e Krapp (2011) evocam o termo ldquofalhardquo (ou no original em inglecircs glitch) Para

noacutes eacute fundamental associar esse movimento agrave emergecircncia de certa tendecircncia em obras

contemporacircneas que buscam alternativas (ou questionamentos) ao ldquomodelo realistardquo na medida

em que as consideramos exemplares das modificaccedilotildees poeacuteticas agraves quais Soulages (Idem) referiu-

se quer dizer o interesse pelo erro e pelo ruiacutedo no acircmbito da cibercultura tem indicado o

aproveitamento de suas manifestaccedilotildees como uma poeacutetica Fontcuberta (2010) e Nunes (2011)

utilizam respectivamente as expressotildees ldquopoeacutetica dos errosrdquo e ldquopoeacutetica do ruiacutedordquo para falar do

interesse que recentemente alguns artistas tecircm demonstrado por marcas visuais antes

consideradas indesejaacuteveis na imagem fazendo uso seja do computador seja de teacutecnicas claacutessicas

da fotografia (como pinhole ou cacircmara escura) seja de equipamentos artesanais criados de forma

independente ou ainda de estruturas que juntam dispositivos eletrocircnicos computadorizados e

analoacutegicos A questatildeo central aqui para noacutes eacute como essas diferentes estrateacutegias criativas tecircm

impactado o campo da imagem atraveacutes da valorizaccedilatildeo de uma esteacutetica onde o ruiacutedo e o erro

tornam-se natildeo apenas evidentes mas ocupam uma centralidade nas experiecircncias dos e das

artistas podendo ser entendidos como parte de uma tendecircncia de criacutetica a um modelo da imagem

ldquolimpardquo e sem interferecircncias Essa questatildeo seraacute melhor explorada mais agrave frente pois se

percebemos que o tema do ruiacutedo eacute capaz de chamar nossa atenccedilatildeo para esteacuteticas alternativas ao

modelo ldquorealistardquo da imagem percebemos tambeacutem que as caracteriacutesticas desse modelo ainda se

fazem presentes em algumas praacuteticas fotograacuteficas

Em suma podemos afirmar que enquanto o paradigma digital suscita no campo da

imagem uma seacuterie de discussotildees em torno das possibilidades criativas diferentes ndash dentre as quais

66

se pode incluir o ruiacutedo (em formas diversas) como elemento esteacutetico ndash haacute ainda usos bastante

convencionais que natildeo apenas desmentem as teses fundamentadas numa total renovaccedilatildeo esteacutetica

como confirmam noccedilotildees anteriormente relacionadas agraves miacutedias analoacutegicas (como por exemplo a

relaccedilatildeo estreita com o referente) Observar esses movimentos paralelos e simultacircneos bem como

o natildeo desaparecimento por completo das teacutecnicas da imagem fotoquiacutemica (e em alguns casos

seus entrelaccedilamentos com as miacutedias digitais) demonstra duas coisas a primeira eacute que para

identificar movimentos esteacuteticos e tendecircncias que venham a renovar o campo da imagem natildeo

podemos olhar exclusivamente para a emergecircncia de novos dispositivos e em segundo lugar

entender que se o surgimento de novas tecnologias pode ser tomado como ponto de partida para

experiecircncias com uma nova linguagem essas miacutedias vatildeo tambeacutem relacionar-se com toda uma

tradiccedilatildeo artiacutestica ontoloacutegica e filosoacutefica O resultado disso vem sendo detectado por uma seacuterie de

pesquisadores36 que nos uacuteltimos anos estatildeo reafirmando a natureza plural e hiacutebrida da imagem

cada vez mais orientada para uma abertura em trabalhos de caraacuteter multimiacutedia que enfatizam

uma certa verve processual (em detrimento da ldquoobrardquo como objeto artiacutestico finalizado) e menos

preocupados com limites das especificidades dos meios (contenda bastante presente nos debates

que costumavam separar pintura fotografia cinema etc)

32 ANALOacuteGICO + DIGITAL E A ZONA CINZA DE NEGOCIACcedilOtildeES CONTINUIDADES

ATRAVESSAMENTOS

321 Digital (re)visitando tradiccedilotildees visuais

Discutindo alguns trabalhos de artistas da transiccedilatildeo analoacutegico-digital Antonio Fatorelli

(2006) buscou identificar alguns usos das potencialidades do computador Ele analisa exemplos

desse caraacuteter inovador em imagens de registradas em negativo poreacutem modificadas no

computador que de acordo com o pesquisador ldquoquerem fazer ver aleacutem do visiacutevel acrescentar

realidade agraves realidades jaacute construiacutedasrdquo (FATORELLI 2006 p21) Entre as fotografias analisadas

estaacute Revenge of the gold fish da norte-americana Sandy Skoglund (figura 10)37 Uma cena

produzida em estuacutedio que embora alinhada com uma funccedilatildeo testemunhal denuncia sua condiccedilatildeo

36 A exemplo de Fatorelli (20132017) Baio (2015) Katia Maciel (2009) entre outros

37 Disponiacutevel em httpsakronartmuseumorgcollectionObj1713sid=1ampx=970472 Acesso em 200718

67

artificial seu caraacuteter construiacutedo apelando a uma atmosfera oniacuterica (FATORELLI 2006 p30)

Os exemplos reunidos no texto de Fatorelli acionam estrateacutegias de ficcionalizaccedilatildeo ironia

apropriaccedilatildeo sem apartar-se totalmente do referente

Figura 10 - Revenge of the gold fish (Sandy Skoglund1981)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

A exemplo do movimento que o autor executa em seu texto eacute interessante para nosso

debate pensar como os processos de computador partem do real para transformaacute-lo numa espeacutecie

de ldquomundo perfeitordquo uma certa visualidade aprimorada em termos teacutecnicos Por sua

caracteriacutestica de maleabilidade a imagem digital eacute em diversas ocasiotildees alterada em busca dessa

perfeiccedilatildeo seja na direccedilatildeo da melhoria das cores da iluminaccedilatildeo do retoque para realce ou

retiradainclusatildeo de elementos Eacute curioso como essa vontade de aperfeiccediloamento repete um

paradoxo que jaacute se via na fotografia analoacutegica um ideal de perfeiccedilatildeo atribuiacutedo ao real na

imagem Um esforccedilo de composiccedilatildeo na direccedilatildeo de uma imagem sem falhas quando de fato o

real eacute irregular muacuteltiplo confuso imperfeito Eacute algo dinacircmico um aberto impossiacutevel de ser

copiado (PARENTE 1993 p30) Os recursos de que vai dispor o digital por forccedila da informaacutetica

68

seratildeo utilizados na composiccedilatildeo de algo que estaacute para aleacutem do real mas que se finca justamente

em ultrapassaacute-lo no ldquoniacutevel de perfeiccedilatildeordquo conseguido pelo analoacutegico

Conforme jaacute indicado depois que um material eacute digitalizado ele se transforma em

informaccedilatildeo numeacuterica e pode ser trabalhado no computador Assim o digital modifica as outras

miacutedias que quando numerizadas perdem suas caracteriacutesticas originais A partir da hibridizaccedilatildeo

com teacutecnicas anteriores (ateacute o ponto de natildeo ser possiacutevel distinguir entre o que eacute novo ou antigo)

o digital consegue simular em aparecircncia os modos visuais tradicionais

Essas duas questotildees ndash hibridizaccedilatildeo de elementos distintos e simulaccedilatildeo de miacutedias

anteriores ndash satildeo enfatizadas tambeacutem por Manovich (2001) quando explica que as miacutedias digitais

possuem algumas estrateacutegias como a seleccedilatildeo a composiccedilatildeo e a teleaccedilatildeo Ao falar da segunda ele

propotildee que quando o computador mescla elementos analoacutegicos e puramente numeacutericos muitas

vezes as identidades de cada elemento tendem a ser minimizadas ou apagadas para que

esteticamente se tenha a sensaccedilatildeo de uma fusatildeo completa e coerente desses elementos

Referindo-se particularmente ao cinema e ao emprego do que chama de ldquocomposiccedilatildeo digitalrdquo

propotildee que boa parte dos filmes utilize o recurso para criar sequecircncias que simulam uma

filmagem tradicional unindo material captado e cenaacuterio personagens ou objetos sintetizados em

computador para que pareccedilam terem estado todos simultaneamente no mesmo espaccedilo fiacutesico

gravado pela cacircmera criando assim um ldquoefeito de realidaderdquo (MANOVICH 2001 p137)

Um ponto interessante das anaacutelises acima vaacutelido para a fotografia eacute que nos casos em

que ocorre essa suavizaccedilatildeo das manipulaccedilotildees o paradigma digital apresenta uma tendecircncia de

ldquoefeito de realidaderdquo Um efeito que na verdade corresponde aos paracircmetros naturalizados nas

miacutedias visuais anteriores cujas formas de mostrar a realidade seguem certos padrotildees cromaacuteticos

e de iluminaccedilatildeo enquadramento proporccedilatildeo textura Por extensatildeo o digital referencia o

analoacutegico

Se hoje considerarmos toda miacutedia digital criada por consumidores e profissionais ndash fotodigital viacutedeo feito com cacircmeras baratas e celulares conteuacutedo de blogs e jornais onlineilustraccedilotildees criadas com Photoshop filmes editados em Avid etc ndash em termos deaparecircncia a miacutedia digital frequentemente parece exatamente igual agrave miacutedia preacute-computador (MANOVICH 2013 p59)

69

Indo aleacutem nesse debate para o ponto que nos interessa diretamente nesse processo de

revisitar a imagem analoacutegica a fotografia digital o faz adotando como modelo um tipo de

fotografia que supotildee uma correspondecircncia entre espaccedilo-tempo da captura uma clareza em

detrimento da penumbra (favorece o detalhamento) e principalmente a ideia do registro direto

(sem alteraccedilotildees) Ou seja incorpora normas esteacuteticas e premissas associadas agrave fotografia de base

fotoquiacutemica de determinado tipo Mistura questotildees formais e conceituais fundamentais de um

momento histoacuterico que lhe eacute estranho

Se pensamos no campo do fotojornalismo a transiccedilatildeo analoacutegico-digital trouxe ganhos

inegaacuteveis de velocidade de produccedilatildeo e circulaccedilatildeo da imagem mas reposicionou o debate sobre

manipulaccedilatildeo que sempre assombrou a fotografia jaacute que a praacutetica natildeo eacute nova Mas do ponto de

vista esteacutetico o fotojornalismo manteve-se bem tradicional em suas praacuteticas De maneira geral

continua repudiando intervenccedilotildees na imagem por motivos eacuteticos

Em 2013 o fotoacutegrafo sueco Paul Hansen teve sua foto Gaza Burial (figura 11) ndash

vencedora do World Press Photo 2012 ndash analisada sob suspeita de falsificaccedilatildeo A imagem mostra

um funeral de duas crianccedilas viacutetimas da guerra entre o exeacutercito israelense e o Hamas na cidade de

Gaza Agrave eacutepoca uma especialista indicou que se tratava de uma composiccedilatildeo com partes de outras

trecircs fotos aleacutem de ter sido clareada Hansen negou as modificaccedilotildees e a equipe da premiaccedilatildeo

afirmou que o fotoacutegrafo jaacute havia explicado o processo de ediccedilatildeo da imagem visto que o WPP

autoriza retoques mas natildeo alteraccedilatildeo de conteuacutedo38 No final concluiu-se que natildeo houve fraude

mas ldquopoacutes-produccedilatildeo com tonsrdquo

38 Fotoacutegrafo vencedor de precircmio de fotojornalismo enfrenta acusaccedilotildees de manipulaccedilatildeo de imagem Disponiacutevel emhttpsnoticiasr7cominternacionalfotografo-vencedor-de-premio-de-fotojornalismo-enfrenta-acusacoes-de-manipulacao-de-imagem-15052013 Acesso em 290718

70

Figura 11 - Gaza Burial (Paul Hansen 2012)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Em 2015 o mesmo precircmio foi retirado de um fotoacutegrafo italiano que havia produzido uma

seacuterie sobre a cidade de Charleroi (Beacutelgica) enfatizando a decadecircncia econocircmica do lugar Das

fotos que compotildeem a seacuterie ldquoCidade negrardquo uma foi tomada em Molenbeek (subuacuterbio de

Bruxelas) e natildeo em Charleroi A situaccedilatildeo de algueacutem que perdeu o precircmio era ineacutedita na

competiccedilatildeo e um de seus representantes ponderou a necessidade de avaliar o significado da

imprensa graacutefica do fotojornalismo e do fotodocumental em suas dimensotildees eacuteticas e

profissionais39 O cerne do debate gerado pelo primeiro caso estaacute na negaccedilatildeo da intervenccedilatildeo

numa imagem que tem como premissa reportar fatos ndash sustentando uma concepccedilatildeo da fotografia

essencialmente como ldquoespelho do realrdquo (DUBOIS 2012) ndash e tomada no momento do

acontecimento e ainda na possibilidade da intervenccedilatildeo acontecer que as mudanccedilas natildeo alterem

39 FERRER Isabel World Press Photo revoga um primeiro precircmio devido a fraude Disponiacutevel emhttpsbrasilelpaiscombrasil20150305cultura1425546065_452789html Acesso em 290718

71

o sentido da imagem (o que ela nos diz objetivamente) Jaacute no segundo exemplo a imagem fora

produzida num lugar diferente do informado40

Eacute interessante refletir sobre como o cenaacuterio de produccedilatildeo da fotografia eacute afetado pelos

dispositivos informaacuteticos para questionarmos se realmente as mudanccedilas alcanccedilam o plano

conceitual de maneira a se evidenciarem tambeacutem visualmente Ou em que esferas da produccedilatildeo

visual isso ocorre Ao que parece o fotojornalismo natildeo mudou a maneira de relatar os

acontecimentos e segue privilegiando imagens que atestam uma correspondecircncia com o que se

passou frente ao dispositivo Cabe aqui destacar que quando ocorrem manipulaccedilotildees

() tanto as que atuam no fato em si quanto as acontecidas no momento da revelaccedilatildeodigital estatildeo ligadas a uma busca pela ldquoimagem perfeitardquo possivelmente influenciadapor outros campos como a televisatildeo o cinema ou a publicidade Convive-se cada vezmais com imagens bem produzidas esteticamente bem trabalhadas com boasresoluccedilotildees de luz Elas estatildeo nos anuacutencios das revistas nos outdoors nos livros nainternet Eacute possiacutevel por exemplo perceber que ateacute mesmo utilizaccedilotildees mais ldquocaseirasrdquocomo os perfis nas redes sociais ou apresentaccedilotildees escolares jaacute acompanham apreocupaccedilatildeo por um resultado visual mais acurado (QUEIROGA 2015 p114)

Percebe-se que as caracteriacutesticas do paradigma digital satildeo acionadas para alcanccedilar uma

esteacutetica de equiliacutebrio de tonalidade de luz de plena identificaccedilatildeo das formas que se persegue

atraveacutes das ferramentas de manipulaccedilatildeo oferecidas pelo computador Martins (2013) chama de

ldquoimagens polidasrdquo aquelas modificadas pelo retoque pelo aumento da nitidez cuja plaacutestica estaacute

bem proacutexima ao que aponta Queiroga (Ibidem) Piper-Wright (2018 p8) ressalta que o advento

da fotografia digital nos reconduz a uma era em que a ideia de uma ldquoverdaderdquo na imagem atinge

um patamar elevado associado a certa transparecircncia do meio que conseguiria apagar a

interferecircncia da subjetividade no registro a fim de produzir ldquoimagens melhoresrdquo Para ela a

loacutegica da fotografia digital eacute que a qualidade da imagem estaacute diretamente relacionada com o

incremento do automatismo e da velocidade e com a reduccedilatildeo do grau de intervenccedilatildeo do usuaacuterio

Ela faz uma reflexatildeo bastante interessante do ponto de vista do papel da induacutestria na esteacutetica

preconizada pelos dispositivos digitais

40 Por ocasiatildeo de visita agrave exposiccedilatildeo com os vencedores do World Press Photo 2019 a autora desta tese constatou queentre os valores declarados da competiccedilatildeo estatildeo ldquojusticcedilardquo e ldquoverdaderdquo o que indica que as manipulaccedilotildees de imagenspermanecem como um problema eacutetico para esse tipo de premiaccedilatildeo

72

O desenvolvimento tecnoloacutegico na fotografia digital desde o iniacutecio dos anos 2000quando o consumo de cacircmeras digitais se torna largamente acessiacutevel tem levado nossashabilidades na produccedilatildeo imageacutetica a tal ponto que o direcionamento destas a resoluccedilotildeescada vez mais altas (megapixels) constitui um exemplo notaacutevel Embora o imediatismoe a natureza baseada na tela da fotografia digital sejam as principais mudanccedilasobservaacuteveis nas praacuteticas fotograacuteficas na era digital tambeacutem eacute verdade que esses avanccedilostecnoloacutegicos removeram muitos dos aspectos incocircmodos e defeituosos da fotografiainerentes tanto agrave cacircmera quanto ao ser humano41 (PIPER-WRIGHT 2018 p8)

O conjunto dessas questotildees indica uma tendecircncia de associar esse tipo de imagem

perfeita agrave qualidade da proacutepria miacutedia utilizada toacutepico relevante para a induacutestria das tecnologias

da imagem Para aleacutem do que se verifica no campo do fotojornalismo encontramos evidecircncias da

relaccedilatildeo qualidadeimagem perfeita por exemplo na campanha em favor da transiccedilatildeo do sinal de

TV analoacutegico para digital no Brasil42 (e a contenda sobre se a escolha mais adequada era pelo

modelo japonecircs ou norte-americano de TV digital43) e consequentemente uma certa euforia no

emprego de cacircmeras digitais no iniacutecio desse processo como esforccedilo para elevar o padratildeo de

qualidade dos programas A ldquoperfeiccedilatildeordquo da imagem estaacute na reproduccedilatildeo de texturas volume na

intensidade de cores e luminosidade sua nitidez elevada Ainda se sustenta como argumento

mercadoloacutegico a ideia de que a imagem digital agrave medida que aumenta sua resoluccedilatildeo torna-se

mais e mais realista Curiosamente essa maacutexima contraria afirmaccedilotildees anteriores de que o digital

natildeo tem relaccedilatildeo com o real Tanto possui que atinge o lugar o hiper-real Quando exploramos

uma suposta dicotomia entre o digital e o real (como propunham alguns teoacutericos) parece que

caiacutemos num paradoxo que nos leva a questotildees que retornam ao acircmbito da imagem independente

41 Traduccedilatildeo livre de ldquoThe technological developments in digital photography since the early 2000s when consumerdigital cameras became widely available has progressed our image-making skills and outputs in unprecedentedways with the drive toward increased resolutions (megapixels) being a case in point While the immediacy andscreen-based nature of digital photography is the main observable change to photographic practices in the digitalera it is also the case that these thecnological advances have removed many of the awkward and faulty aspects ofphotography inherent in both camera and humanrdquo

42 Um exemplo disso satildeo as estrateacutegias utilizadas pela TV Globo para promover a digitalizaccedilatildeo Aleacutem das inserccedilotildeesdurante a programaccedilatildeo e informaccedilotildees repassadas nos seus mais diversos programas produziram-se viacutedeos cominstruccedilotildees baacutesicas sobre os equipamentos necessaacuterios para recepccedilatildeo do sinal enfatizando a qualidade do sinal(embora natildeo se explique com base em quecirc a qualidade aumentaria) Ver por exemplo o viacutedeo promocionaldisponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=v_iIq4jQQ_8 Acesso em 28052019

43 O sinal analoacutegico de TV comeccedilou a ser desligado em 2018 de acordo com as capacidades teacutecnicas das emissorasnos diferentes estados e cidades brasileiros ficando disponiacutevel apenas o sinal digital A utilizaccedilatildeo de tecnologiasdigitais na produccedilatildeo televisiva jaacute se observava no comeccedilo dos anos 2000 (filmadoras ilhas de ediccedilatildeo natildeo linearcomputaccedilatildeo graacutefica etc) Note-se que esse movimento eacute acompanhado exatamente de um forte incremento nainduacutestria de equipamentos de TV que utiliza como principal argumento de venda a relaccedilatildeo entre ldquoqualidade daimagemrdquo ou ldquoefeito de realidaderdquo aprimorado e os paracircmetros HD FULL HD (correspondentes ao nuacutemero de pixelspor polegada)

73

da tecnologia Uma questatildeo relativa a modelos esteacuteticos perpetuados em algumas instacircncias

midiaacuteticas ndash a televisatildeo o cinema o fotojornalismo ndash que servem tambeacutem aos propoacutesitos da

induacutestria da imagem

Figura 12 - Trechos do viacutedeo promocional de lanccedilamento de Star Wars em HD

74

Fonte Reproduccedilatildeo internet44

Ao refletir de maneira criacutetica sobre o afatilde de um constante aperfeiccediloamento dos

resultados Krapp (2011 p57) comenta que natildeo podemos pensar linearmente a histoacuteria dos

meios e que ideias sobre tecnologias baseadas num progresso satildeo complicadas a partir de uma

dimensatildeo esteacutetica mas por outro lado de fato uma noccedilatildeo de ldquocruezardquo ou pureza dos dados nas

miacutedias digitais corresponde a expectativas crescentes em relaccedilatildeo ao aumento da resoluccedilatildeo da

imagem no campo audiovisual O cinema tambeacutem experimentou certo entusiasmo em torno da

digitalizaccedilatildeo como marco de uma imagem aperfeiccediloada que traria ao puacuteblico uma experiecircncia

diferenciada Em 2015 os filmes da seacuterie Star Wars (que ateacute aquele momento contabilizavam

seis produccedilotildees) foram relanccedilados em formato digital (HD) conforme sinaliza o viacutedeo

promocional (figura 12) Apesar do conteuacutedo extra (como cenas excluiacutedas do original) enquanto

produto cinematograacutefico tratava-se exatamente dos mesmos filmes A conversatildeo para a

tecnologia digital eacute um dado teacutecnico com seus recursos timidamente empregados para oferecer

um produto velho com nova roupagem

Em filmes como Star Wars - Episoacutedio I - A ameaccedila fantasma (1999) criaram-se efeitos

no computador (cenaacuterios personagens) que foram adicionados agraves cenas gravadas constituindo

um produto que corresponde agrave conceituaccedilatildeo de hiacutebrido de Manovich (2013) Aprofundando essa

44 Disponiacutevel em httpsyoutubeXuNhZ8K4iow Acesso em 28052019

75

questatildeo o pesquisador explica que nem sempre o hibridismo se expressa como uma esteacutetica

atraveacutes de um estilo colagem onde a justaposiccedilatildeo de elementos diferentes eacute evidente

(MANOVICH 2013 p257) ou seja que nem todos os hiacutebridos nos permitem identificar a

presenccedila de elementos de miacutedias distintas O que ocorre em Star Wars eacute a uniatildeo de camadas de

material filmado elementos animados em 2D e 3D e efeitos graacuteficos que se misturam dando a

impressatildeo de um todo estilisticamente coerente (MANOVICH 2013 p259) Tal tendecircncia eacute

particularmente interessante tanto nos exemplos cinematograacuteficos quanto no campo do

fotojornalismo (conforme indicamos) nos quais predomina uma esteacutetica de suavidade nas

diversas estrateacutegias de manipulaccedilatildeo da imagem

Esses breves exemplos mostram que no acircmbito da imagem haacute questotildees que

supostamente pertencem aos paradigmas analoacutegico e digital entrando em choque Se por um

lado tais imagens diferem muito pouco esteticamente da fotografia e do cinema convencionais

pelos motivos apontados que vecircm de uma referecircncia visual anterior ndash imagens fotoquiacutemicas ndash ateacute

quando haacute retoques o esforccedilo dos profissionais eacute para que natildeo sejam evidenciados A partir de

imperativos eacuteticos recusam-se os artifiacutecios a natildeo ser quando usados para um aperfeiccediloamento

que tende a um velho e conhecido padratildeo Assim imagens atuais se assemelham agraves imagens

antigas Ou literalmente imitam-nas reproduzem-nas Em contrapartida satildeo artefatos digitais que

tecircm como caracteriacutestica a potecircncia de alteraccedilatildeo facilitada mas os artifiacutecios satildeo aceitos com

ressalvas porque as ideias em torno do que significa por exemplo uma imagem fotograacutefica

informativa parecem mais fortes do que a capacidade de compreender aceitar e tirar partido de

uma ordem visual que oferece novos arranjos significaccedilotildees e opccedilotildees formais45 Afinal

intervenccedilotildees e mesmo a ficcionalizaccedilatildeo natildeo satildeo novidades no campo da imagem

Nos campos do fotojornalismo e do documentarismo o contrato entre imagem e

realidade decorrente da funccedilatildeo de evidecircncia que a fotografia assumiu desde seus primeiros usos

acaba por impor limites agraves intervenccedilotildees Poreacutem o que nos chama mais a atenccedilatildeo eacute a ideia

45 O site de notiacutecias The Intercept Brasil utiliza a fotografia como parte de seu conteuacutedo informativo de maneirabastante criativa aplicando movimento em imagens originalmente estaacuteticas alterando cores utilizando o recurso dafotomontagem entre outras estrateacutegias que tornam a imagem dinacircmica atraveacutes exatamente das ferramentasoferecidas pelo paradigma numeacuterico Ver por exemplo as reportagens ldquoEmprestou seu wifi a um amigo criacutetico doDoria Cuidado ele processou ateacute o dentista de quem falou mal delerdquo (Disponiacutevel emhttpstheinterceptcom20181004doria-processo-facebook) e ldquoComo a eleiccedilatildeo de Ronaldo Caiado do DEMcoloca em risco a Chapada dos Veadeirosrdquo (Disponiacutevel em httpstheinterceptcom20180923ronaldo-caiado-chapada) ambas acessadas em 011118

76

impliacutecita de que em caso de manipulaccedilotildees estas sejam tatildeo refinadas a ponto de que seja difiacutecil

identificaacute-las reafirmando por um lado a imagem enquanto duplo do referente ao mesmo tempo

em que se nega a condiccedilatildeo de artifiacutecio que caracteriza em uacuteltima instacircncia o fotograacutefico

A fotografia digital caracteriza-se entatildeo por uma ldquoloacutegica paradoxalrdquo de um lado tem

procedimentos bastante diferentes dos que satildeo a base da imagem fotoquiacutemica e por outro reforccedila

antigos modos de representaccedilatildeo visual (MANOVICH 1995 p2) Enquanto se expandiam e se

consolidavam ndash devemos aqui ter em conta que o texto de Manovich sobre o assunto data do

comeccedilo dos anos 1990 ndash as tecnologias digitais eram postas em comparaccedilatildeo com as imagens

anteriores e tambeacutem contribuiacuteram para reconfigurar suas funccedilotildees Como exemplo Manovich cita

o cinema que atravessava um processo de tendecircncia ao desaparecimentos da peliacutecula provocando

tambeacutem uma fetichizaccedilatildeo do ldquofilm lookrdquo da sua aparecircncia granulada desfocada (que remete ao

estilo proacuteprio da imagem de base fotoquiacutemica) em contraste com a imagem sintetizada em

computador ldquomuito limpa muito perfeitardquo (Idem p5)

Dessa forma a imagem de siacutentese parece ldquoreal demaisrdquo e sua referecircncia criativa

permanece sendo a imagem fotograacutefica tradicional (MANOVICH 1995 p13) Conforme vimos

o cinema comercial tambeacutem investe na mesma loacutegica empregando formas criadas digitalmente

que quando combinadas a cenas gravadas e agrave atuaccedilatildeo do elenco mal podemos distinguir o que

foi filmado em set do material elaborado em computador Para que a narrativa se torne criacutevel eacute

necessaacuterio que todo o conjunto artificial esteja respaldado numa ideia de realidade

correspondente agraves tecnologias de imagem anteriores

O uso de filtros nas imagens fotograacuteficas digitais constitui uma outra vertente que potildee

lado a lado referecircncias visuais analoacutegicas e a estrutura das miacutedias digitais imitando a granulaccedilatildeo

efeitos de solarizaccedilatildeo e ateacute o negativo preto e branco46 Hoje essas praacuteticas jaacute estatildeo naturalizadas

entre os usuaacuterios de smartphones e aplicativos fotograacuteficos mesmo que estes sequer tenham

conhecido e praticado a fotografia analoacutegica num estranho revisitar de estilos e modos de

tecnologias antigas

46 Uma imagem digital fotograacutefica em preto e branco jaacute eacute resultado de uma alteraccedilatildeo Conforme explica Valle (2012p45) os sensores de cacircmeras digitais possuem filtros que captam a informaccedilatildeo luminosa em azul verde e vermelhoe uma imagem em preto e branco eacute obtida quando se descartam as informaccedilotildees de cor Ou seja um equipamentodigital natildeo registra diretamente uma foto em preto e branco

77

Um caso bastante interessante eacute o projeto desenvolvido pelo coletivo Basetrack (figuras

13 14 e 15) O grupo formou-se em 2010 por iniciativa do fotoacutegrafo Balazs Gardi e conta ainda

com mais quatro integrantes Teru Kuwayama Rita Leistner Omar Mullick e Tivadar

Domaniczky Gardi eacute fotojornalista e acompanha desde 2001 o desdobramento da guerra no

Afeganistatildeo Apoacutes 2003 Gardi comeccedilou a ter dificuldades para comercializar seu material junto

agraves agecircncias e veiacuteculos de miacutedia tradicional porque o tema do Afeganistatildeo comeccedilava a sumir da

pauta da imprensa ndash que se focava na guerra do Iraque O Basetrack acompanhou durante seis

meses um batalhatildeo com mil fuzileiros norte-americanos divulgando as imagens na internet (em

site proacuteprio e em redes sociais como Facebook e Twitter) Por meio dessa estrutura parentes e

amigos dos fuzileiros tinham uma fonte de informaccedilatildeo um canal de comunicaccedilatildeo para

acompanhar a rotina do batalhatildeo

As imagens produzidas pelo Basetrack foram feitas com Iphones47 visando o

barateamento da produccedilatildeo Aleacutem de fotos o equipamento podia gravar tambeacutem viacutedeos e aacuteudios

aleacutem de ser resistente agraves intempeacuteries do lugar Fora isso o Iphone oferecia a possibilidade de

aplicar agraves imagens filtros que remetem agrave esteacutetica de antigas Polaroids (o aplicativo utilizado foi o

Hipstamatic) com tonalidades esverdeadas e um efeito que lembra granulaccedilatildeo

Uso cacircmeras com filme preto e branco cacircmeras de plaacutestico chinesas e o iPhone eacute apenasuma versatildeo digital destas cacircmeras de brinquedo Tira fotos muito boas e com qualidadeOs softwares de poacutes-produccedilatildeo satildeo aplicativos baratos como o que usamos Hipstamaticque custou 2 doacutelares O iPhone eacute a minha cacircmera profissional mais barata soacute custou 800doacutelares e eacute uma ferramenta que tem basicamente tudo que um jornalista precisa hoje(GARDI online 2012)

Pelo exposto a escolha do equipamento se deu por motivos de ordem praacutetica Mas sobre

o uso dos filtros ou seja qual a intencionalidade desse artifiacutecio os fotoacutegrafos natildeo falam Poreacutem

ao discutir sobre o tipo de imagem publicado Kuwayama afirma

Evito expectativas ou noccedilotildees preconcebidas mas na eacutepoca em que lanccedilamos o projeto acontra-insurgecircncia (ou ldquoCOINrdquo na sua abreviaccedilatildeo militar) fora introduzida como novaestrateacutegia no Afeganistatildeo Um dos objetivos do Basetrack era mostrar ao puacuteblico o queessa contrainsurgecircncia realmente significava e com o que se parecia na praacutetica Emuacuteltima anaacutelise o projeto natildeo era sobre fotografia era sobre a abertura de linhas de

47 Smartphone fabricado pela Apple desde 2007

78

comunicaccedilatildeo Fotografias natildeo eram o produto eles eram a taacutetica48 (KUWAYAMAonline 2014)

Ao dizer que a fotografia eacute mais um meio e menos uma mensagem o fotoacutegrafo reduz a

importacircncia das escolhas temaacuteticas e esteacuteticas em detrimento da funccedilatildeo desempenhada pela

imagem no projeto conectar os fuzileiros suas famiacutelias e amigos Ou seja enfatiza o propoacutesito

interativo da iniciativa Na mesma entrevista ele diz que as fotografias eram eficazes porque as

pessoas estavam em busca de qualquer evidecircncia de que seus conhecidos estavam vivos e

interessavam-se por qualquer percepccedilatildeo de suas rotinas no Afeganistatildeo Por esse motivo

principalmente os retratos eram alvo de muita atenccedilatildeo

O resultado eacute uma estranha combinaccedilatildeo da visualidade de uma imagem fotoquiacutemica

produzida pelo caacutelculo informaacutetico num esforccedilo de hibridizaccedilatildeo que natildeo esconde a mesticcedilagem

de referecircncias No tocante ao conteuacutedo o Basetrack tanto se aproxima de uma fotografia de

guerra convencional quanto obteacutem um registro despojado da rotina na zona de conflito mais

proacuteximo da fotografia vernacular ndash a exemplo do conjunto de imagens que mostram as tatuagens

dos soldados norte-americanos (figura 13) um estilo tiacutepico da fotografia com intenccedilotildees de

compartilhamento A concepccedilatildeo e o planejamento do projeto ancoram-se na praacutetica de uma

fotografia de guerra que se articula com a oferta visual agregada ao Iphone e a uma cultura

visual mais geral na qual as tendecircncias de assimilaccedilotildees esteacuteticas jaacute se tornaram corriqueiras

Satildeo incontaacuteveis neste sentido os aplicativos atual coqueluche do mundo digital que sevoltam para a fotografia e o mais interessante transcodificando para os efeitosprogramados as respostas visuais que correspondem exatamente ao tipo de imagementregue pela Polaroid e congecircneres O que eacute sob o ponto de vista dos filtros e ajustes oInstagram senatildeo vaacuterios estilos de texturas cores e acabamentos que eram comuns agravePolaroid ndash memoacuteria plaacutestica Mais que isso agregaccedilatildeo de valor simboacutelico (SILVAJUNIOR online 2017)

48 Traduccedilatildeo livre de ldquoI avoid expectations or preconceived notions but at the time we launched the projectcounterinsurgency (or ldquoCOINrdquo its military abbreviation) had been introduced as the new strategy in AfghanistanOne of the goals of Basetrack was to show the public what that counterinsurgency actually meant and looked like inpractice Ultimately it wasnrsquot about photography it was about opening lines of communication Photographs werenrsquotthe product they were the tacticrdquo

79

Figura 13 - Tattoed US Marines First Battalion Eighth Marine Regiment Helmand Province

Afghanistan (Projeto Basetrack 2010)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

80

Figura 14 - Notes on a whiteboard at the command center on Halloween night at Combat Outpost 7171 In

Helmand Province Afghanistan on October 31 2010 (Projeto Basetrack 2010)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Eacute interessante que os efeitos aplicados pelo Basetrack podem atualmente figurar como

um artifiacutecio esteacutetico mas pensadas agrave luz de sua eacutepoca essas marcas visuais da Polaroid eram

tidas como defeitos Poreacutem hoje deslocadas de seu contexto e jaacute dissociadas da ideia de uma

fotografia de amadores e de pouco rigor teacutecnico o ldquoefeito Polaroidrdquo reveste-se de uma aura de

despojamento como bem observou Silva Junior (Idem) Uma certa informalidade esteacutetica

evocada para combinar com a simplicidade de imagens que funcionam como breves

comunicaccedilotildees entre usuaacuterios de internet quebrando um pouco da seriedade da narrativa visual

jornaliacutestica

Como aqui o que assistimos eacute a aplicaccedilatildeo desse ldquoestilo coolrdquo a imagens que ficam entre

o fotojornalismo e a foto vernacular elas podem ser caracterizadas de hiacutebridos originados na

interlocuccedilatildeo entre as propriedades do software e referecircncias de meios anteriores ldquotraduzidasrdquo

em suas ferramentas

81

Uma vez que computadores satildeo um ambiente para miacutedias simuladas e novas eacute logicoque eles comecem a criar hiacutebridos () Traduzidas para o software teacutecnicas de miacutediasfiacutesicas mecacircnicas e eletrocircnicas atuam como espeacutecies que possuem uma ecologia comumndash nesse caso um ambiente compartilhado e uma vez lanccediladas nesse ambiente comeccedilama interagir mudar e construir hiacutebridos49 (MANOVICH 2013 p163-164)

Nas fotografias do Basetrack a esteacutetica Polaroid eacute revisitada atraveacutes dos filtros mas o

resultado possui certa estranheza vinda exatamente desse aspecto ldquopolidordquo da imagem criada

por aparelhos digitais (aparentemente livres de ruiacutedo) que a Polaroid resultante de um processo

fotoquiacutemico normalmente natildeo tem Quer dizer embora se busque uma conexatildeo com o visual da

Polaroid a natureza emulada da imagem final natildeo eacute dissimulada pelo contraacuterio noacutes percebemos

esse caraacuteter de imitaccedilatildeo

Como na emulaccedilatildeo uma parte de um sistema imita e substitui parte de outro sistema ecomo o ecircmulo natildeo pode se manter totalmente isolado das caracteriacutesticas da base dosistema emulador acontece algo como um contaacutegio de um pelo outro () Eacute justamenteesse corpo a corpo das materialidades dos aparatos que retira o sistema emulador de suacondiccedilatildeo de transparecircncia e o revela como parte do sistema emulado Dessa maneiraentatildeo da emulaccedilatildeo resulta () um corpo impuro uma imagem engendrada entre oemulador e o emulado (BAIO 2016 p 54)

Baio (2016) explica ainda que a emulaccedilatildeo conserva sempre algo da ordem da

incompletude da imprecisatildeo e da falha e eacute nesse sentido que comparativamente notamos

diferenccedilas entre a produccedilatildeo do Basetrack e Polaroids antigas50 A partir desse blend de

referecircncias visuais as fotografias de guerra do Afeganistatildeo caracterizam-se justamente como esse

ldquocorpo impurordquo que fica num lugar intermediaacuterio entre o digital e o analoacutegico formatando algo

que tenta unir esses dois universos sem contudo definir-se por um ou outro em maior grau Na

condiccedilatildeo de artefatos criados por meio da estrutura de um software que reproduz efeitos texturas

e tonalidades de uma miacutedia analoacutegica a presenccedila dessas referecircncias de miacutedias preacute-digitais natildeo se

faz em seu estado puro ou original (MANOVICH 2013 p326) Assim natildeo se trata de uma

simples incorporaccedilatildeo de caracteriacutesticas da Polaroid mas de uma recriaccedilatildeo de determinado modo

visual sob os paracircmetros de um sistema totalmente diferente Essas imagens apresentam a

49 Traduccedilatildeo livre de ldquoOnce computers became a comfortable home for a large number of simulated and new mediait is only logical to expect that they would start creating hybrids () Translated into software media techniquesstart acting like species within a common ecologymdashin this case a shared software environment Once ldquoreleasedrdquointo this environment they start interacting mutating and making hybridsrdquo50 Peter Krapp (2011) discute o processo de emulaccedilatildeo em games recentes produzidos para consoles como NintendoWii que recuperam o design de jogos dos anos 1980 em 2D como recurso que termina por estetizar a falha nosambientes da cultura digital atraveacutes de uma esteacutetica retrocirc (nos recursos graacuteficos e sonoros)

82

estranha condiccedilatildeo de lembrarem fotografias da Polaroid mas diferem delas conformando um

hiacutebrido uma espeacutecie de Polaroid digital

Figura 15 - Afghan detainee at Patrol Base Talibjan Helmand Province Afghanistan (Projeto Basetrack

2010)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

De volta agraves ideias de Manovich a respeito da imagem digital o autor lembra que

independente do que signifique esta ainda representa a fotografia remetendo a certas ideias do

que deve ser uma fotografia o que devemos esperar dela

() enquanto a imagem digital promete substituir completamente as teacutecnicas defilmagem ao mesmo tempo encontra novas funccedilotildees e valores para o aparatocinematograacutefico para os filmes claacutessicos e a esteacutetica fotograacutefica Esse eacute o primeiroparadoxo da imagem digital () o que a imagem digital preserva e propaga satildeo oscoacutedigos culturais do filme e da fotografia (MANOVICH 1995 p5)

Quer dizer se na base mesmo do sistema haacute uma diferenccedila inegaacutevel entre fotografia

digital e analoacutegica a novidade que representa a primeira em termos teacutecnicos se articula com uma

83

expectativa de produtores consumidores e espectadores da imagem fotograacutefica que (embora natildeo

exclusivamente) corresponda agraves noccedilotildees de um momento temporal singularizado de um

alinhamento entre objeto e imagem de que retoques e alteraccedilotildees (se ocorrerem) sejam

praticamente imperceptiacuteveis que haja alguma organizaccedilatildeo compositiva na tomada da cena cujos

paracircmetros dominantes sejam o da perspectiva geomeacutetrica e ainda que seja possiacutevel o

reconhecimento do referente na imagem Para Aumont (apud BAIO 2015 p47) quando

relacionamos a imagem aos seus modos de produccedilatildeo e consumo assumimos que a teacutecnica

influencia a forma como compreendemos essas imagens de modo que esse entendimento eacute

atravessado por certas ideias dominantes ligadas agrave tecnologia utilizada Essas caracteriacutesticas satildeo

sintomaacuteticas de certa tradiccedilatildeo na fotografia (MANOVICH 1995 p12) que eacute uma entre vaacuterias e

sempre conviveu com movimentos e praacuteticas que lhe contrariavam E a imagem digital ainda

convive com tais questotildees

Considerando que as premissas da imagem informativa suas relaccedilotildees com a necessidade

de reportar fatos acabam por constranger alteraccedilotildees expliacutecitas e de verossimilhanccedila reduzida51

acreditamos ser necessaacuterio levar o debate sobre as vizinhanccedilas entre analoacutegico e digital para o

espaccedilo artiacutestico Nesse sentido Antonio Fatorelli (2017) aponta que haacute uma negociaccedilatildeo entre

analoacutegico e digital minando pretensotildees renovadoras atribuiacutedas ao advento do numeacuterico

(hellip) ao simular o dispositivo analoacutegico de registro a cacircmera digital passa a incorporaras singularidades da codificaccedilatildeo perspectivista e os princiacutepios materiais e imateriaistradicionalmente vinculados agrave cultura visual analoacutegica Uma decorrecircncia decisiva desseprocesso de emulaccedilatildeo refere-se agrave particularidade de que ao perpetuar a dependecircncia dossinais de luz no momento do registro da imagem realizada na presenccedila do mundo fiacutesicoa fotografia digital incorpora as fabulaccedilotildees relacionadas ao modo de inscriccedilatildeo indicial(hellip) Do mesmo modo que as imagens de fatura analoacutegica tambeacutem as fotografias digitaisencontram-se contaminadas para usar uma figura cara ao modo de impressatildeo indicial enesse sentido balizadas pela loacutegica do traccedilo (hellip) (FATORELLI 2017 p66)

Aqui o autor indica como problema central o registro da imagem que ainda se vincula

ao que estaacute em frente agrave cacircmera Isso funda uma noccedilatildeo de correspondecircncia entre

imagemreferente e mesmo quando os fotoacutegrafos promovem intervenccedilotildees na imagem fazem-no

tentando respeitar convenccedilotildees de verossimilhanccedila mimetismo figuraccedilatildeo Enquanto se mantiver

atado ao imperativo do traccedilo indicial jogando com a transformaccedilatildeo de uma imagem anterior o

51 Fred Ritchin (2008) discute alguns exemplos de recriaccedilotildees de imagens a partir do computador e observa que noacircmbito do jornalismo e da documentaccedilatildeo eacute necessaacuterio estabelecer alguns padrotildees e limites que natildeo comprometam ainformaccedilatildeo e a confianccedila na imagem digital

84

digital natildeo instaura uma nova imagem podendo ser colocado ao lado do modo analoacutegico

(FATORELLI 2017 p67) Ou pelo menos natildeo parece o fazer de maneira radical como esteve

no desejo associado a seu surgimento Essa questatildeo pode ser observada em muitas das fotos

compartilhadas em redes sociais e tambeacutem na esfera da imagem artiacutestica

O fotoacutegrafo Andreas Gursky realiza montagens que parecem imagens tomadas num uacutenico

clique Ele eacute lembrado por seu entusiasmo em relaccedilatildeo agrave tecnologia pela manipulaccedilatildeo que realiza

no material produzindo imagens que propotildeem alargar o vieacutes realista da fotografia graccedilas ao

aparato digital O alematildeo trabalha com fotografias em grande escala de paisagens ou cenas que

discutem o consumo a economia e seus efeitos na atualidade ndash a exemplo de Amazon (figura

17) Eacute importante lembrar que ele estaacute ligado agrave tradiccedilatildeo artiacutestica da Escola de Dusseldorf onde

sob orientaccedilatildeo de Bernd e Hilla Becher vaacuterios profissionais consolidaram a ldquoesteacutetica

inexpressivardquo52 (COTTON 2013) Nesse sentido seu trabalho apresenta caracteriacutesticas

documentais valendo-se da tecnologia digital para potencializar um olhar ampliado e objetivo

sobre os temas abordados

Hoje em dia uma foto sua tem em geral dois metros de altura e cinco metros de larguraSeus trabalhos constituem objetos que se impotildeem imagens que nos fazem parar o queestamos fazendo (hellip) As fotografias se valem de tecnologias tanto novas comotradicionais (por exemplo ele usou cacircmeras de formato grande para obter o maacuteximo declaridade e depois recorreu agrave manipulaccedilatildeo digital para refinar a imagem) com umafluidez que ateacute entatildeo tinha sido exclusiva da fotografia comercial em publicidade(COTTON 2013 p83)

A dimensatildeo das imagens ndash levando o observador a tomar distacircncia para perceber a cena

em sua totalidade ndash eacute um elemento importante de significado o que natildeo impede quem queira de

se ater ao grande conjunto de detalhes das fotos (por conta da alta resoluccedilatildeo)53 E foi para atingir

uma grande escala que recorreu ao computador Em imagens como Love parade (figura 16)

juntou digitalmente fotos capturadas em separado Satildeo composiccedilotildees de situaccedilotildees que nunca

52 Para detalhes sobre a fotografia inexpressiva alematilde bem como sobre a influecircncia de movimentos como a NovaObjetividade e os trabalhos documentais de August Sander para seu desenvolvimento ver Cotton 2013 p81-113

53 Cf Manatakis Lexi The photographer who offers a Godrsquos-eye view on our world Revista Dazed Disponiacutevel emhttpwwwdazeddigitalcomart-photographyarticle389651photographer-andreas-gursky-gods-eye-view-on-earth-hayward-gallery Acesso em 140718

85

ocorreram da maneira como satildeo exibidas Realidades que existem especificamente enquanto

imagem Como toda fotografia

Figura 16 - Love parade (Andreas Gursky 2001)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Figura 17 - Amazon (Andreas Gursky 2016)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

O trabalho de Gursky apresentado aqui embora possiacutevel pela operaccedilatildeo de ldquocolagemrdquo de

mais de uma imagem via computador utiliza como elementos constituintes fotografias

86

registradas de maneira convencional e promove a junccedilatildeo das partes de forma cuidadosamente

sofisticada sutil que natildeo deixa ver as emendas Love parade mais parece uma fotografia aeacuterea

feita com uma super cacircmera capaz de manter os mais iacutenfimos detalhes da cena

Tais operaccedilotildees de montagem feitas pelo computador se reportam a uma esteacutetica marcada

pela suavidade e pela continuidade nas quais as fronteiras entre elementos distintos satildeo

apagadas em vez de enfatizadas (MANOVICH 2001 p142) como pode ser visto tambeacutem na

fotografia A sudden gust of wind (after Hokusai) (1993) de Jeff Wall (figura 18) Nela estaacute

retratada uma situaccedilatildeo pouco provaacutevel poreacutem plausiacutevel A montagem eacute inspirada numa pintura

japonesa e mostra algumas pessoas surpreendidas por uma ventania Os personagens satildeo atores

fotografados previamente os papeacuteis que voam foram replicados vaacuterias vezes para aumentar a

sensaccedilatildeo de desordem A sutileza dessas ldquoemendasrdquo eacute marcante Uma perfeita ilusatildeo Para

Fontcuberta (2010 p100) Jeff Wall e outros artistas da era digital valorizam o computador como

instrumento produtor de sentido poreacutem as manipulaccedilotildees que promovem satildeo dissimuladas

correspondendo agrave loacutegica testemunhal da qual em vaacuterias situaccedilotildees a fotografia se vecirc dependente

Como diz Ritchin (2008 p17) ldquo(hellip) uma fotografia pode ser considerada um menu a ser

tocado ou clicado ou simulado (embora a cena representada talvez nunca tenha ocorrido e

possivelmente natildeo ocorreu mesmo) ou seus zeros e uns podem ser transformados em qualquer

outra coisardquo O mesmo autor compreende o que acontece na fotografia como sintomaacutetico de uma

sociedade que busca cada vez mais a excelecircncia e o aperfeiccediloamento de habilidades alterando os

proacuteprios coacutedigos Quer dizer atraveacutes de mudanccedilas na base informativa das coisas mas que na

aparecircncia satildeo imperceptiacuteveis O conjunto da imagem corresponde a paracircmetros de uma cena

tomada espontaneamente como um instantacircneo de um fotoacutegrafo atento o suficiente para capturar

o momento exato em que o vento carrega os papeis diante de quatro personagens surpresos

O que parece eacute que a loacutegica do numeacuterico e sua natureza criativa e calculada vatildeo nos dar

essa realidade fotograacutefica numa plaacutestica proacutepria que possui algo de hiper-real ndash jaacute que o hiper-

real eacute mais proacuteximo da fotografia convencional (MANOVICH 2013 p260) ndash pois eacute resultado de

uma visatildeo aperfeiccediloada ndash maquiacutenica automatizada Poreacutem o diferencial trazido pelo sistema

digital por vezes eacute utilizado jogando apenas com essa plaacutestica ldquomuito limpardquo ldquomuito realrdquo sem

questionamento a respeito de dimensotildees que envolvem a fotografia como o tempo e as formas

87

experimentando com seus limites para que de fato novas visualidades se apresentem O digital

nem sempre sugere maneiras de repensar a fotografia para aleacutem de um esquema visual que

revisita o ldquorecorte do mundordquo As imagens satildeo mesmo bastante ambiacuteguas Enquanto se valem da

articulaccedilatildeo cuidadosa de elementos constituindo-se como verdadeiras montagens (sem agrave primeira

vista denunciarem-se como tal) elas conceitualmente potildeem em debate a natureza intriacutenseca da

imagem em geral que eacute tratar-se de uma elaboraccedilatildeo de uma construccedilatildeo uma ldquosegunda realidaderdquo

(PARENTE1993) E desse modo devem habitar a esfera do possiacutevel Por outro lado

plasticamente elas natildeo diferem tanto de imagens anteriores realizadas sob o pensamento de que a

fotografia estaacute sob a regra do instantacircneo carrega um vieacutes testemunhal evocando em uacuteltimo caso

o registro que pode sempre ser revisitado de algo que esteve diante de algueacutem com uma cacircmera

Ou com vimos a respeito do uso de filtros que recuperam esteacuteticas analoacutegicas a fotografia

digital atua na chave da remediaccedilatildeo criando situaccedilotildees em que as imagens trazem formas visuais

anteriores retrabalhadas pelo dispositivo e deixam expliacutecita a sua natureza emulada

Figura 18 - A Sudden Gust of Wind (after Hokusai) (Jeff Wall 1993)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Num estudo sobre as imagens digitais Cesar Baio (2015) faz uma retomada do

pensamento teoacuterico sobre o termo ldquodispositivordquo mostrando que as tradiccedilotildees e modelos de

pensamento contaminam as teacutecnicas para aleacutem do atributo de ineditismo que o surgimento de

88

uma nova tecnologia parece carregar54 A partir de apontamentos de vaacuterios autores percebe-se

que os dispositivos podem transmitir atraveacutes de seus aspectos teacutecnicos formas de entender o

mundo e modelos esteacuteticos reforccedilados eou enfraquecidos na praacutetica artiacutestica o que se relaciona

com a ambiguidade encontrada nos trabalhos de Wall e Gursky Ou que a imagem digital tida natildeo

como unidade mas como a estrutura de software que lhe daacute corpo pode servir agrave criaccedilatildeo de

formas especiacuteficas que decorrem do cruzamento de referenciais esteacuteticos alheios ao ambiente

digital (como no caso dos filtros e aplicativos)

Haacute dois aspectos levantados nesse debate (que o autor faz a respeito do cinema mas que

utilizamos aqui em favor da fotografia) a noccedilatildeo de que o dispositivo presta-se ao registro do

mundo e o mascaramento da presenccedila e articulaccedilotildees que ocorrem no seu interior (transparecircncia

da maacutequina) ambos aspectos naturalizados pelo espectador Esses elementos aparecem

relacionados nas obras citadas haacute pouco que empregam a tecnologia digital a serviccedilo de marcos

ideoloacutegicos da imagem indicial ldquotraccedilo do realrdquo (DUBOIS 2012) Montam cenas que se alinham

ao modelo realista que decorre do registro direto do mundo e valem-se da transparecircncia (os

processos no dispositivo natildeo satildeo detectaacuteveis) Reafirmam assim as ldquoheranccedilas ontoloacutegicas e

epistemoloacutegicasrdquo (BAIO 2015 p48) dominantes nos seacuteculos XIX e XX

Na seara dos que empregam o digital ainda ligados agrave epistemologia da imagem

fotoquiacutemica Valle (2012) realizou um levantamento bastante interessante sobre o comportamento

dos ldquofotoacutegrafos migrantesrdquo aqueles que entram no mundo da fotografia digital utilizando-a numa

correspondecircncia com padrotildees teacutecnicos comuns no paradigma analoacutegico Atraveacutes de entrevistas

ela demonstra por exemplo as frequentes comparaccedilotildees entre pixels e gratildeos entre o negativo e o

CCD entre o padratildeo ISO e a resoluccedilatildeo das cacircmeras digitais que atestam a incompreensatildeo da

natureza distinta dos sistemas e assim impedem os usuaacuterios de renovarem a linguagem visual

Outro ponto interessante indicado na pesquisa eacute que toda uma gramaacutetica utilizada por softwares e

comandos do universo da imagem digital ndash a exemplo do Photoshop e Lightroom ndash remete a

processos analoacutegicos como pintar clarear borrar desfocar associados a paracircmetros oacuteticos

materiais e quiacutemicos Esse conjunto de ferramentas utilizado no tratamento das fotografias

54 No mesmo livro o autor faz uma interessante distinccedilatildeo entre dois usos do termo ldquonovordquo o primeiro marca umaoposiccedilatildeo a algo velho que se torna ultrapassado e o segundo eacute a compreensatildeo do novo como maneiras originais ediferentes de utilizar algo jaacute conhecido ou seja reinventar reposicionar o velho em novas articulaccedilotildees estrateacutegiasEssa uacuteltima compreensatildeo estaacute bastante proacutexima de nossa maneira de rediscutir os aparecimentos e sobrevivecircnciasdas miacutedias analoacutegicas da imagem

89

estabelece ldquo(hellip) um padratildeo de ordem impedindo o desenvolvimento de novas linguagens e

induzindo o fotoacutegrafo a uma produccedilatildeo condicionada distante da exploraccedilatildeo de novas

possibilidades do numeacutericordquo (VALLE 2012 p60) A pesquisadora atesta que natildeo raro os

fotoacutegrafos usavam os mesmos recursos repetindo certas modalidades esteacuteticas

() a distacircncia entre o programador e o fotoacutegrafo usuaacuterio do programa eacute enormeEnquanto a diferenccedila entre os programas feitos para usuaacuterios descomprometidos (natildeo-fotoacutegrafos) e para fotoacutegrafos (que se pretendem criadores) satildeo miacutenimas E mais adiferenccedila de habilidades exigidas para explorar programas entre os natildeo-fotoacutegrafos e osfotoacutegrafos tambeacutem eacute miacutenima (hellip) Os artistas desbravadores de novas linguagensfotograacuteficas se igualam a usuaacuterios quaisquer quando estatildeo diante do Photoshop e doLightroom por exemplo Usam os mesmos filtros e presets Apertam os mesmos bototildeesProduzem os velhos e repetidos efeitos e imagens padronizadas (VALLE 2012 p97)

Baio (2016) nota que uma estrateacutegia adotada pela induacutestria para mascarar as

disparidades entre os sistemas analoacutegico e digital eacute o fato de as cacircmeras digitais emularem

fisicamente as analoacutegicas na medida em que a formaccedilatildeo e entrega da imagem satildeo desconhecidas

estando invisiacuteveis aos nossos olhos eacute compreensiacutevel os usuaacuterios acreditarem que praticamente

natildeo haacute diferenccedilas significativas na passagem de um modo de registro para o outro Quando o

dispositivo ecoa em sua proacutepria estrutura a tecnologia que promete superar curiosamente o

usuaacuterio repete o modo de usar tiacutepico do equipamento ldquoobsoletordquo acionando comportamentos e

esteacuteticas padronizados

Em decorrecircncia dos pontos abordados percebemos que haacute certa continuidade de aspectos

esteacuteticos na passagem do analoacutegico para o digital Que as distinccedilotildees de natureza entre os sistemas

natildeo fundam necessariamente e sempre uma renovaccedilatildeo de modos visuais fazendo com que

interroguemos o que permanece e o que se modifica para aleacutem do imperativo tecnoloacutegico na

imagem

Lister (1995 p20-21) faz uma criacutetica ao pensamento sobre certo impacto revolucionaacuterio

do digital e afirma que natildeo haacute uma ruptura clara entre este e a antiga fotografia analoacutegica porque

mesmo que se tenham novas estruturas produtoras usos e ferramentas isso tem que ser

negociado junto a ideologias e convenccedilotildees de uma cultura fotograacutefica Para noacutes esse arcabouccedilo

cultural a que o autor se refere eacute um conjunto de ideias que vai paulatinamente sendo posto e

confirmado desde o surgimento da miacutedia fotograacutefica atraveacutes de uma esteacutetica que procura

90

sublinhar certas especificidades Marcas formais das quais vaacuterios artistas natildeo se apartam

contribuindo na elaboraccedilatildeo da proacutepria histoacuteria do campo e para o destaque mais pronunciado de

alguns movimentos e estilos bem como de artistas que correspondem atraveacutes de suas obras a

esses paracircmetros de visualidade

Ao mesmo tempo em que reconhecemos mudanccedilas nos paracircmetros de circulaccedilatildeo e

transmissatildeo uma disposiccedilatildeo facilitada agraves reconfiguraccedilotildees e hibridismos mediante conexotildees com

fontes escritas sonoras e tambeacutem visuais proporcionando novos meios de interaccedilatildeo55 agrave

onipresenccedila da imagem em espaccedilos que diluem as fronteiras entre privado e puacuteblico uma

tendecircncia maior agrave intencionalidade comunicativa dessa imagem disponiacutevel em ambientes virtuais

(em detrimento de seu papel como artefato constitutivo de uma memoacuteria) devemos notar que haacute

interrogaccedilotildees no campo da fotografia que permanecem vaacutelidas e talvez por isso algumas

continuidades satildeo observadas Para Soulages (online 2017) ao lado de capacidades tiacutepicas do

digital e novos usos dessa modalidade de imagem dentre as quais ele destaca a fluidez da

circulaccedilatildeo haacute pessoas que fazem com a miacutedia digital o mesmo tipo de imagem que realizavam

com dispositivos analoacutegicos56 Aleacutem disso as preocupaccedilotildees que cercam o fotograacutefico satildeo ldquosuas

relaccedilotildees com o real o sujeito o fotografaacutevel o espaccedilo o tempordquo e elas permanecem vaacutelidas na

cultura digital tanto quanto para a imagem fotoquiacutemica

O que interessa de fato eacute como essas problemaacuteticas satildeo articuladas trabalhadas agrave luz de

tecnologias especiacuteficas e suas ferramentas como num sentido processual depois de obtido ldquoum

negativordquo ou uma ldquomatriz digitalrdquo (SOULAGES online 2017) a imagem pode ser algo diferente

de um mero registro colocar-se aleacutem de uma proposta unicamente testemunhal Ser explorada

para gerar significados ideias sensaccedilotildees diversas

55 Ritchin (2008) indica alguns exemplos de projetos desenvolvidos na internet com material fotojornaliacutestico quepromoviam uma interlocuccedilatildeo entre internautas e profissionais incluindo material multimiacutedia Ver em especialRitchin op cit p 96-139

56 Fontcuberta (2010) acredita que entre os usuaacuterios comuns a diferenccedila de uso entre dispositivos fotograacuteficosanaloacutegicos e digitais eacute praticamente igual ficando a cargo dos artistas as experiecircncias mais interessantes derenovaccedilatildeo da imagem

91

322 Tatildeo longe tatildeo perto comparaccedilotildees

Kevin Robins (1995 p38) indica aproximaccedilotildees entre analoacutegico e digital explicando que

a relaccedilatildeo entre fotografia e pensamento cartesiano (racionalista) percebe a mudanccedila tecnoloacutegica

numa linha evolutiva com anseios de aperfeiccediloamento e sofisticaccedilatildeo da imagem que se traduzem

num ideal de liberar o medium de ldquoimpurezasrdquo e que uma noccedilatildeo de ldquorevoluccedilatildeo digitalrdquo leva esse

projeto cartesiano a um estaacutegio elevado A fotografia quiacutemica e a digital compartilham a

preocupaccedilatildeo com um tipo de imagem um padratildeo que seraacute melhor alcanccedilado com a emergecircncia

de novas ferramentas tecnoloacutegicas Esse pensamento cria uma hierarquia entre velho e novo

fazendo deste uacuteltimo uma cura para as incapacidades do primeiro O digital teria a capacidade de

ultrapassar o analoacutegico ser de alguma forma superior a ele na tarefa de produzir imagens

O problema eacute que estabelecer essa dicotomia impede-nos de perceber que se troca uma

tecnologia por outra sem que se modifiquem algumas concepccedilotildees em torno da imagem Quando

natildeo se observa cuidadosamente se (e como) o contato com dispositivos que engendram uma

maneira diferente de lidar com o mundo traduzem essa relaccedilatildeo para a forma de conceber

imagens interferindo no que pensamos sentimos compreendemos a respeito delas e o que

fazemos com elas Agrave medida que o paradigma digital entra em cena apenas para aperfeiccediloar

ideias jaacute assentadas na fotografia de base quiacutemica como podemos celebrar seu poder inovador

revolucionaacuterio Mais adiante o pesquisador britacircnico observa

() significativas natildeo satildeo as novas tecnologias e imagens em si mesmas mas oreordenamento do campo visual em geral e a reavaliaccedilatildeo das culturas da imagem etradiccedilotildees que elas evocam Eacute notaacutevel que boa parte da discussatildeo mais interessante sobrea imagem agora se refere natildeo aos futuros digitais mas na verdade ao que pareciam ateacuterecentemente miacutedias antigas e esquecidas (o panorama a camera obscura oestereoscoacutepio) de nossa posiccedilatildeo vantajosa poacutes-fotograacutefica tais miacutedias de repenteadquiriram novos significados e a reavaliaccedilatildeo delas eacute agora importante para entender osignificado da cultura digital Nesse contexto parece produtivo pensar natildeo em termosde descontinuidades e disjunccedilotildees mas sim com base em continuidades atraveacutes degeraccedilotildees de imagens e atraveacutes de formas visuais (ROBINS 1995 p45)

Aqui Robins convoca a repensar a convivecircncia entre imagens fotoquiacutemicas e digitais na

tentativa de identificar o que realmente estas uacuteltimas apresentam Podemos tomar sua proposta

num sentido mais abrangente pois ele jaacute apostava que a imagem contemporacircnea num sentido

mais geral se distingue pela diversidade de modos praacuteticas ferramentas e indagar que caminhos

92

os tensionamentos de tradiccedilotildees no campo visual jaacute ocorriam nas miacutedias analoacutegicas E como eles

vecircm sendo mantidos vivos de que maneira e por quais motivaccedilotildees satildeo mantidos sobretudo nas

praacuteticas artiacutesticas Eacute possiacutevel identificarmos nas estrateacutegias da arte contemporacircnea um marco

comum que encerre o debate divisionista entre analoacutegico e digital Ateacute que ponto a tipologia do

medium eacute a questatildeo relevante para artistas interessados na experimentaccedilatildeo com as tecnologias

Onde podemos encontrar um marco conceitual que funcione como denominador esteacutetico na

promoccedilatildeo de uma imagem experimental que se vale de tecnologias diversas da imagem De que

maneiras a produccedilatildeo contemporacircnea manteacutem ativa uma reflexatildeo que contraria esses paradigmas

claacutessicos da imagem ultrapassando a divisatildeo analoacutegicodigital em favor de esteacuteticas que natildeo

obedeccedilam apenas ao marco indexical

Parente (1993) tambeacutem faz uma ressalva ao fato de a imagem de siacutentese ser vista como

uma oposiccedilatildeo radical ao regime da representaccedilatildeo No que denomina ldquoamneacutesia da histoacuteria da arterdquo

(Ibidem p21) ele lembra que movimentos de confrontaccedilatildeo a modelos dominantes sempre foram

observados no campo artiacutestico O cinema experimental a videoarte a pintura impressionista o

pontilhismo as obras de Godard Tarkovsky Resnais satildeo exemplos de alternativas ao modelo da

representaccedilatildeo57 E haacute aiacute um problema quando a transiccedilatildeo para o digital assume o papel de

condensar uma trajetoacuteria de afirmaccedilatildeo de tradiccedilotildees formais hegemocircnicas em vez de promover

verdadeiras rupturas nos modos de pensar e realizar imagens utilizando para isso seus proacuteprios

modos esteacuteticos conceituais e teacutecnicos ldquoou o virtual eacute uma imagem-acontecimento uma

imagem-devir ou eacute apenas uma determinaccedilatildeo teacutecnica sem interesse Ou melhor uma

determinaccedilatildeo teacutecnica interessada na reproduccedilatildeo social das representaccedilotildees dominantesrdquo

(PARENTE 1993 p22) Em texto datado de 2009 Parente convoca-nos a pensar que o virtual

natildeo se opotildee a um suposto real entregue pelas tecnologias fotoquiacutemicas mas que ele se torna

interessante para o campo da imagem quando figura como ponto de interrogaccedilatildeo das ideias de

verdade ligadas aos modelos representativos que de fato satildeo puras ficccedilotildees58 Num outro

57 Andreacute Parente faz referecircncia ao raciociacutenio de Deleuze (2005 2018) sobre o cinema da ldquoimagem-movimentordquobaseada na loacutegica de accedilatildeo-reaccedilatildeo (estabelecida pela forccedila da montagem da mobilidade da cacircmera da contiguidadeentre tempo-espaccedilo) e produccedilotildees da ldquoimagem-tempordquo que indicam o enfraquecimento dessa loacutegica abrindo-se atempos heterogecircneos e sobrepostos na narrativa (o sonho o devaneio) caracteriacutesticas das obras de ResnaisAntonioni entre outros Na transiccedilatildeo da imagem-movimento para a imagem-tempo haacute uma ruptura com a narrativaclaacutessica do cinema ou seja do modelo da representaccedilatildeo

58 Cf Parente Andreacute A forma cinema variaccedilotildees e rupturas In Maciel Katia Transcinemas Rio de JaneiroContracapa Livraria 2009 p 23-47

93

momento de reflexatildeo questiona uma afirmaccedilatildeo bastante comum nos debates a respeito da

imagem digital

Porque muita gente diz o seguinte quando eu produzo uma imagem de siacutentese que eacutefruto de uma simulaccedilatildeo computacional essa imagem de siacutentese natildeo diz mais respeito auma realidade preexistente No entanto ela tem a ver ainda com o processo derepresentaccedilatildeo ao contraacuterio do que se pensa Por quecirc Porque se eu testo um protoacutetipovirtual eu natildeo faccedilo mais um protoacutetipo de carro que eacute fiacutesico eu faccedilo ele virtualmente etesto ele num computador Mas se ele vai funcionar depois eacute porque justamente esseprotoacutetipo virtual representava uma seacuterie de fenocircmenos fiacutesicos (PARENTE 2009 p169)

As observaccedilotildees desses teoacutericos estatildeo alinhadas com nosso objetivo de deslocar um

pouco o debate sobre analoacutegicodigital feito em bases notadamente teacutecnicas para reposicionaacute-lo

em direccedilatildeo agraves proposiccedilotildees esteacuteticas Ou seja tentar perceber em que medida a emergecircncia de

novas bases tecnoloacutegicas serve para chacoalhar modelos de visualidade resvalando em

procedimentos e experiecircncias singulares no campo da imagem Ao mesmo tempo apontamos

uma convivecircncia entre essas obras (que satildeo objeto de nosso interesse) e trabalhos que ainda se

relacionam com padrotildees de visualidade que eram ateacute o surgimento das novas miacutedias atribuiacutedos

quase que unicamente agraves miacutedias analoacutegicas

Apontamentos de outros pesquisadores tambeacutem estabelecem alguns pontos de

interrogaccedilatildeo nessa direccedilatildeo Rogeacuterio Luz (1993) indica que natildeo haacute uma diferenccedila radical entre

analoacutegico e digital pois pensando no modelo da perspectiva centralizada ele jaacute propotildee uma

interpretaccedilatildeo do mundo que cria imagens sob um paracircmetro cientiacutefico (geomeacutetrico) Qualquer

imagem regida pela perspectiva renascentista jaacute eacute uma virtualizaccedilatildeo bidimensionada agrave luz de uma

convenccedilatildeo e aiacute imagens digitais e analoacutegicas satildeo igualmente criaccedilotildees orientadas por modelos

cientiacuteficos o que difere eacute o modelo imposto em cada eacutepoca e como a imagem incorpora seu

discurso

Reafirmo que as novas imagens satildeo um sintoma entre muitos de um determinadoestado de cultura em que a prevalecircncia da imagem resultado de sua importacircnciacognitiva em especial na arte e na ciecircncia revela uma tradiccedilatildeo problemaacutetica marcanteem nossa civilizaccedilatildeo desde o Renascimento Natildeo eacute o mundo real mas a maneira deinventar o mundo possiacutevel que aqui interessa e natildeo apenas uma perspectiva esteacuteticamas tambeacutem eacutetica e poliacutetica (LUZ 1993 p54)

94

Para o autor as mudanccedilas tecnoloacutegicas embora saudadas como ferramentas para liberar a

imagem do real continuam fazendo referecircncia a ele sob o ditame de um modelo cientiacutefico de

organizaccedilatildeo de direcionamento do olhar e como isso pode impedir a oxigenaccedilatildeo dos modos de

criar Essa compreensatildeo entra em acordo com as anaacutelises de Weissberg (1993) para quem toda

eacutepoca possui simulacros e maneiras de interpretar e a simulaccedilatildeo quando faz o real parecer aquilo

que natildeo eacute jaacute trabalha com a ilusatildeo de profundidade causada pela perspectiva geomeacutetrica

remontando ao que fazia a pintura trompe-loeil Zylinska (2017a p15-17) acompanha-os na

percepccedilatildeo de que a proacutepria visatildeo eacute um processo historicamente construiacutedo jaacute que eacute mediado por

dispositivos que sugerem um incremento dessa capacidade (o que conforma uma artificialidade

inerente tambeacutem agrave produccedilatildeo de imagens) e satildeo elaborados com base em relaccedilotildees cientiacuteficas entre

maacutequinas e corpos Ritchin (2008) assim como outros teoacutericos jaacute apresentados aqui elenca

caracteriacutesticas que a fotografia digital tem como pontos fortes entre elas natildeo-linearidade natildeo-

sincronicidade abstraccedilatildeo possibilidade de autoria muacuteltipla e a reconfiguraccedilatildeo de tempos

diferentes mas olhando para experiecircncias realizadas ao longo da Histoacuteria da fotografia tais

questotildees jaacute se colocavam para os artistas sendo trabalhadas como ponto de origem de um

pensamento sobre os limites e expansotildees do meio fotograacutefico O mesmo autor reconhece que se

por um lado a publicidade e a moda estiveram mais abertas agraves possibilidades trazidas pela

imagem digital nas artes e na documentaccedilatildeo a investigaccedilatildeo da tecnologia fez-se mais tiacutemida

Acrescente-se que segundo ele a ldquohiperfotografiardquo (digital) aleacutem de mais facilmente criada

veiculada e refeita provoca modos temporais mais elaacutesticos antagocircnicos ao ldquomomento decisivordquo

pinccedilado de um contiacutenuo agrave imagem estaacutetica que conforma um objeto palpaacutevel e que carece de

instantaneidade ndash que corresponde ao analoacutegico (RITCHIN 2008 p142)

O julgamento do autor para estabelecer uma distinccedilatildeo que valoriza o novo em

detrimento do antigo leva em consideraccedilatildeo principalmente os efeitos de distribuiccedilatildeo decorrentes

da maneira de se produzir a imagem sem contudo entender que ideias de congelamento do

tempo da imagem uacutenica e restrita ao paradigma do clique sem modificaccedilotildees do material

capturado natildeo satildeo marcos exclusivos da tecnologia analoacutegica mas de um tipo de interpretaccedilatildeo

da fotografia Natildeo foi o surgimento do digital que oportunizou o intercacircmbio entre fotografia e

outras artes ou a exploraccedilatildeo de regimes temporais que oscilam entre estaacutetico e moacutevel mas para

Ritchin (2008 p180-182) a fotografia convencional possui uma temporalidade contiacutenua pouca

abertura para a ambiguidade ndash estaria de certa forma presa agrave ideia de retratar uma verdade ndash e

95

frente ao digital restaria para ela o reconhecimento de ter servido agrave documentaccedilatildeo histoacuterica e

possuir uma singularidade comparaacutevel agrave da pintura

Ao lado do entusiasmo em relaccedilatildeo ao potencial de interatividade e autoria compartilhada

de produccedilatildeo Ritchin acredita que num ambiente multimiacutedia a fotografia beneficia-se do uso mais

democraacutetico traduzido na oferta de conteuacutedo mais igualitaacuteria plural e qualitativa do ponto de

vista informativo Nos seus argumentos haacute uma crenccedila na forccedila poliacutetica que a imagem fotograacutefica

pode adquirir nessa conjuntura de digitalizaccedilatildeo mas de uma perspectiva esteacutetica esse debate eacute

pouco explorado

As contribuiccedilotildees desses autores levam a crer que colocar em debate os sistemas

analoacutegico e digital eacute um exerciacutecio de compreender e pontuar caracteriacutesticas diferenciadoras e

paralelamente manter uma atenccedilatildeo a questotildees onde se verificam continuidades Em outras

palavras as mudanccedilas teacutecnicas e epistemoloacutegicas que acompanham a passagem do analoacutegico

para o digital nem sempre significam o abandono de convenccedilotildees assentadas em nossa cultura

visual embora apareccedilam trabalhadas pelos artistas a partir de chaves discursivas do paradigma

digital

323 Arqueologia da miacutedia e investigaccedilotildees do medium

Satildeo importantes para a anaacutelise proposta nesta tese a busca de caminhos teoacutericos que na

aacuterea da comunicaccedilatildeo contribuam para relativizar essa hierarquia entre meios analoacutegicos e as

ldquonovas miacutediasrdquo Ao mesmo tempo em que diversos dos artistas que integram nosso corpus

seguem trabalhando com miacutedias analoacutegicas e digitais num interessante cruzamento que beneficia

o campo da esteacutetica interessam-nos perspectivas capazes de apaziguar o debate que prioriza

certos dispositivos em detrimento de outros Assim destacamos o papel da abordagem

arqueoloacutegica da miacutedia As ideias de autores como Jussi Parikka (2012) e Siegfried Zielinski

(2006) a respeito de uma continuidade entre tecnologias demonstram natildeo apenas uma criacutetica agrave

supervalorizaccedilatildeo do progresso teacutecnico mas propotildeem observar como miacutedias antigas e novas se

assemelham em seus propoacutesitos mesmo que separadas no tempo Se Leacutevy (Ibidem) por

exemplo utilizou o hipertexto para falar de como formas de comunicaccedilatildeo antigas podem se

condensar num dos principais elementos da cibercultura para Zielinski (2006 p49) a internet

96

tambeacutem eacute local de convivecircncia das miacutedias anteriores que permanecem em uso natildeo sendo

completamente abandonas por forccedila da informaacutetica

A partir da recusa de apontar tendecircncias dominantes meios hegemocircnicos ou mais

eficientes a abordagem arqueoloacutegica da miacutedia sugere compreender a tecnologia num sentido

natildeo-evolucionista adotando entatildeo uma compreensatildeo relacional dos meios de uma constante

hibridizaccedilatildeo entre velho e novo (GANSING 2016) Atraveacutes do resgate histoacuterico de vaacuterias

experiecircncias desenvolvidas em eacutepocas distintas (seacuteculos XVII XVIII XIX) Zielinski (Ibidem)

demonstra que autocircmatos instrumentos musicais de estrutura extremamente sofisticada coacutedigos

desenvolvidos para ocultar informaccedilotildees dispositivos de produccedilatildeo de imagens e fantasmagorias

entre outras invenccedilotildees possuiacuteam as mesmas funccedilotildees das tecnologias audiovisuais e informaacuteticas

atuais registrar o mundo concreto dar forma ao invisiacutevel compor e reproduzir sons criptografar

dados fazer caacutelculos enviar e receber informaccedilotildees comunicar agrave distacircncia etc

Aleacutem desses nomes diretamente ligados ao campo da arqueologia da miacutedia consideramos

a notaacutevel contribuiccedilatildeo de pesquisadores como Lev Manovich e seus estudos de software (2013)

atraveacutes de sua reflexatildeo a respeito do computador como dispositivo capaz de reposicionar

caracteriacutesticas de miacutedias fiacutesicas ao mesmo tempo em que agrega atributos tiacutepicos dos sistemas

informaacuteticos Essa questatildeo que perpassa toda a discussatildeo proposta pelo estudioso russo tem

grande relevacircncia no debate em que nos inserimos no tocante aos movimentos esteacuteticos ligados agrave

imagem A noccedilatildeo desse caraacuteter dual do computadorsoftware incorpora o pensamento

arqueoloacutegico da miacutedia ao afirmar uma ligaccedilatildeo por exemplo entre miacutedias fiacutesicas ndash pintura o

cinema a fotografia a escrita ndash e os processos realizados pelo software que nos ajuda a

compreender natildeo apenas a relaccedilatildeo entre coacutedigos visuais realistas e os usos dos dispositivos

digitais mas tambeacutem a apropriaccedilatildeo de diversos estilos e marcas desses meios analoacutegicos por

softwares dedicados agrave manipulaccedilatildeo da imagem na contemporaneidade

Tambeacutem a jaacute citada proposta em torno da ldquofotografia natildeo-humanardquo desvia-se de uma

ecircnfase na tipologia da miacutedia para focar-se nas formas de apropriaccedilatildeo dos diversos dispositivos e

materiais que se constituem em imagens pensando a fotografia como uma praacutetica vital A partir

de uma compreensatildeo bioloacutegica e geoloacutegica da fotografia ela estabelece que o universo de suas

imagens eacute povoado de artefatos nos quais a luz se registra inscrevendo-se em suportes os mais

variados ldquoO reconhecimento do papel formativo da luz atraveacutes de diferentes periacuteodos (em

97

foacutesseis impressotildees fotogramas frames de negativos e imagens digitais) tambeacutem nos ajuda a

levar o debate para aleacutem do binarismo analoacutegico-digitalrdquo (ZYLINSKA 2017a p7) Assinale-se

que esta abordagem eacute bastante interessante pois na medida em que enxerga certa autonomia dos

dispositivos de imagem abre caminho para a consideraccedilatildeo de esteacuteticas natildeo-convencionais

acionadas pela experimentaccedilatildeo com a proacutepria miacutedia

A perspectiva da arqueologia da miacutedia tambeacutem ecoa uma vontade de olhar para o

passado das teacutecnicas ou melhor dizendo para as teacutecnicas do passado em busca de novos

caminhos criativos ldquoNatildeo procuremos o velho no novo mas encontremos algo novo no velhordquo

(ZIELINSKI 2006 p19) Essa atitude eacute sintomaacutetica dosdas artistas incluiacutedos em nosso corpus

que se voltam para redescobrir teacutecnicas antigas da imagem (como pinhole camera obscura

daguerreoacutetipo panorama diapositivo) sem traccedilos de saudosismo mas em busca de experiecircncias

que possam reinventar coacutedigos e metodologias ou mesmo para o uso de dispositivos de imagem

analoacutegicos ou eletrocircnicos em conjunto com o computador Acreditamos que encarar o universo

da imagem contemporacircnea atraveacutes de uma perspectiva arqueoloacutegica da miacutedia permite-nos

considerar igualmente feacutertil todo um conjunto de obras que aproveita tecnologias antigas e novas

da imagem para indicar como estas satildeo apropriadas em favor do vieacutes ldquoexperimentalrdquo (LENOT

2017) do fotograacutefico Nesse sentido alguns estudiosos e estudiosas partindo de uma visatildeo mais

horizontal das miacutedias convocam a reconsiderar dicotomias tatildeo marcadas entre analoacutegico e

digital Cruz e Oliveira (2009) indicam a importacircncia demasiada atribuiacuteda aos aspectos teacutecnicos

na teorizaccedilatildeo sobre a fotografia digital fazendo com que as diferenccedilas encobrissem as

continuidades ao mesmo tempo em que as teses de indexicabilidade permaneciam bastante

associadas ao paradigma analoacutegico As autoras acrescentam que por forccedila do digital abrem-se

novas possibilidades de compreensatildeo da imagem e ao mesmo tempo se pode repensar a miacutedia

analoacutegica

Fatorelli (2017) faz observaccedilotildees que nos orientam a pensar em uma pluralidade esteacutetica

mais alinhada com aberturas da proacutepria fotografia independente da miacutedia empregada Para ele a

imagem fotograacutefica tem uma dupla condiccedilatildeo que a faz por vezes aproximar-se do referente e

outras vezes apartar-se dele e partindo de experimentos variados no acircmbito do proacuteprio

dispositivo acaba por gerar uma realidade proacutepria centrada em processos teacutecnicos Podemos aqui

enumerar rapidamente alguns nomes que utilizando exclusivamente ou natildeo materiais

fotograacuteficos acabaram desenvolvendo trabalhos que nos ajudam a pensar essa condiccedilatildeo maleaacutevel

98

da imagem que vai do figurativo ao abstrato Paolo Gioli Andy Warhol Marey Jacques-Henri

Lartigue Geraldo de Barros Esses artistas buscaram investigar os limites e vizinhanccedilas entre

fotografia e outros modos visuais brincando com as formas o tempo as luzes os materiais

Construiacuteda em torno de uma funccedilatildeo ldquoapresentativardquo em detrimento de uma funccedilatildeo

ldquorepresentativardquo a fotografia se vale de praacuteticas como a apropriaccedilatildeo de outras imagens a criaccedilatildeo

de cenaacuterios especiacuteficos para serem registrados pela cacircmera a tomada de empreacutestimo de modos de

outras artes como cinema pintura performance teatro e literatura (FATORELLI 2017)

tendecircncias que ganharam corpo e hoje seguem como marcas significativas da produccedilatildeo

contemporacircnea Esse espaccedilo eacute coabitado pelas miacutedias analoacutegicas e digitais com propostas de uso

exclusivo mas tambeacutem de cruzamentos

Tambeacutem Zylinska (2017a) quando propotildee uma definiccedilatildeo de fotografia como processo de

registro da luz por meio de diversos aparatos (cacircmeras scanners sateacutelites e corpos vivos)

afirmando que esse processo eacute de ldquotraduccedilatildeordquo e natildeo de ldquotranscriccedilatildeordquo apaga a necessidade de uma

diferenciaccedilatildeo entre sistemas analoacutegicos e digitais e propotildee ainda que a imagem fotograacutefica seja

aceita como algo novo uma realidade especiacutefica e natildeo uma reacuteplica do mundo concreto Todas

essas observaccedilotildees ajudam-nos a lanccedilar um olhar sobre trabalhos recentes com ecircnfase nas

experiecircncias com os meios e na articulaccedilatildeo entre eles

Andreas Muumlller-Pohle eacute um artista alematildeo cujo trabalho desenvolve uma pesquisa criacutetica

em torno deste vieacutes ldquorepresentativordquo da imagem discutindo a arraigada ideia de que aquela

guarda correspondecircncia de semelhanccedila com o mundo material Ele reconhece que ainda muito da

produccedilatildeo em digital natildeo passa de ldquosimulaccedilotildees e kitschificaccedilotildees de imagens analoacutegicasrdquo

(MUumlLLER-POHLE 1996) e problematiza o status realista tanto em projetos de base analoacutegica

quanto digital o que estaacute de acordo com as afirmaccedilotildees a respeito de uma abertura ao muacuteltiplo ser

inerente ao fotograacutefico

Em Digital Scores (after Niceacutephore Nieacutepce) de 1995ndash1998 (figuras 19 e 20) ele

digitaliza a claacutessica View from the window (Joseph Niceacutephore Nieacutepce 1826) A informaccedilatildeo

contida na paisagem retratada atraveacutes de um meacutetodo fiacutesico-quiacutemico daacute origem a um montante de

sete milhotildees de bytes que traduzida em dados binaacuterios eacute distribuiacuteda em oito partes O que vemos

eacute literalmente a informaccedilatildeo que a imagem carrega num diaacutelogo irocircnico que potildee lado a lado o

siacutembolo pioneiro dos esforccedilos do pensamento cientiacutefico para fixar visualmente o mundo ndash o

99

palpaacutevel o acabado o material ndash e sua total desmaterializaccedilatildeo num conjunto disforme abstrato

sem nenhuma relaccedilatildeo esteacutetica como aquilo que o originou O computador atua como ferramenta

que expotildee a estrutura mesma dos coacutedigos com os quais opera59 A obra Digital scores eacute

informaccedilatildeo pura e demonstra uma disposiccedilatildeo do artista em conceituar o proacuteprio meio a imagem

de Niegravepce eacute o ponto de partida para uma reflexatildeo sobre a fotografia em geral e os resultados satildeo

decisotildees esteacuteticas da maacutequina (BATCHEN 2002 p177)

No projeto Cyclograms (1991-1994) (figuras 21 e 21a) a ideia baacutesica tambeacutem parte de

imagens previamente selecionadas para criar algo diferente Vaacuterias fotos satildeo picotadas e os

pedaccedilos jogados num recipiente que conteacutem revelador fotograacutefico O interior do recipiente eacute

revestido com papel fotograacutefico Agrave medida que tudo se mistura os pedaccedilos de imagens vatildeo

manchando o papel criando fotogramas Novas imagens surgem por meio da destruiccedilatildeo das

anteriores Meacutetodo e materiais analoacutegicos satildeo empregados num processo de reciclagem onde o

resultado final eacute uma surpresa e o substrato original desgarrou-se de seus contextos intenccedilotildees e

usos Esse rearranjo eacute alheio agrave centralidade de um dispositivo de registro pois a presenccedila da

cacircmera ficou laacute atraacutes (nas fotos retalhadas) sendo relativizada em relaccedilatildeo aos demais materiais

empregados (o revelador o papel) Haacute ainda uma liberdade envolvida no processo de obtenccedilatildeo

das imagens que se assenta num certo niacutevel de descontrole ldquoEm muitas das obras de Muumlller-

Pohle o acaso assume uma funccedilatildeo importante no vir-a-representar pictoacuterico que termina em

indeterminaccedilatildeo isto eacute quando a imagem testemunha pictorialmente uma reaccedilatildeo de maneira

imprevisiacutevel60rdquo (VON AMELUNXEN 1999 traduccedilatildeo nossa)

59 Muumlller-Pohle tem outro trabalho que resulta da interface analoacutegicodigital a instalaccedilatildeo Analog-Digital Mirror(2004) na qual a imagem capturada por uma cacircmera de viacutedeo perde a forma e transforma-se em nuacutemeros e letras deacordo com o movimento de quem interage com o sistema Disponiacutevel em httpmuellerpohlenetprojectsanalog-digital-mirror Acesso em 19092018

60 Traduccedilatildeo livre de ldquoIn many of Muumlller-Pohlersquos works chance assumes an important function in the pictorialcoming-to-be that ends in indeterminateness that is when the image pictorially testifies to a reaction in anunforeseeable mannerrdquo

100

Figuras 19 e 20 - Digital scores I e Digital scores IV (Andreas Muumlller-Pohle 1995-98)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

A obra do alematildeo exemplifica uma forma de pensar a fotografia como artefato que pode

se reinventar contrariando modelos ou regras de procedimentos ligados agrave proacutepria tecnologia que

por sua vez contribuem para revisitar sob diversas metodologias paradigmas sempre caros agrave

imagem conforme nos lembrou Soulages (online 2017)

Junto a ele podemos colocar todo um grupo de artistas que em vez de contentarem-se em

reafirmar o debate em torno do mimetismo da veia testemunhal da imagem preferem

experimentar com equipamentos e conceitos produzindo uma esteacutetica implicada pelos rearranjos

do proacuteprio dispositivo Haacute um despojamento na elaboraccedilatildeo da imagem ligado a um fazer dotado

de curiosidade mais interessado em deixar que os materiais se misturem sem controle riacutegido e

seu valor reside tambeacutem no elemento surpresa

101

Figuras 21 e 21a - Cyclograms 521994 (Andreas Muumlller-Pohle1994)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

O que parece seguro apontar eacute que no campo da imagem miacutedias analoacutegicas eletrocircnicas e

digitais compartilham um espaccedilo de convivecircncia e utilizaccedilatildeo em diferentes praacuteticas que vatildeo do

acircmbito artiacutestico ao vernacular com empreacutestimos e (re)posicionamentos que acontecem sobretudo

pela maleabilidade proacutepria da fotografia Ao mesmo tempo esforccedilos de repensar alguns

paradigmas baacutesicos da fotografia ndash sua condiccedilatildeo de imagem uacutenica fixa e mimeacutetica entre outras

questotildees ndash natildeo satildeo exclusivos das miacutedias digitais nem tatildeo pouco satildeo catalisados apenas quando

elas surgem Eles jaacute se verificavam entre alguns pioneiros da fotografia61 portanto num momento

em que o digital sequer sonhava aparecer e satildeo revisitados por artistas que na atualidade

trabalham tambeacutem com a miacutedia analoacutegica De maneira mais generalizante parece que o espaccedilo

da fotografia contemporacircnea eacute afetado pela convivecircncia entre formatos com tendecircncias tanto de

hibridizaccedilatildeo de contaminaccedilotildees de empreacutestimos e reposicionamento de paradigmas e esteacuteticas

61 Fatorelli (2006) faz referecircncia ao movimento pictorialista ao flou das fotografias de Julia Margaret Cameron edos movimentos da vanguarda europeia da deacutecada de 1920 como exemplos de confrontaccedilatildeo de uma fotografialdquopurista e diretardquo um debate que se aprofunda em outros textos do autor

102

quanto de fetichizaccedilatildeo de esteacuteticas antigas e da ressignificaccedilatildeo de tecnologias vistas como

obsoletas e de teacutecnicas claacutessicas da imagem num movimento que vai das alianccedilas aos

afastamentos com a mesma fluidez

Contudo parece que o reconhecimento de uma atitude mais criacutetica ao medium como algo

capaz de influenciar a busca por novas esteacuteticas aleacutem da representaccedilatildeo eacute algo que se torna mais

presente no debate acadecircmico e artiacutestico a partir exatamente do entendimento paralelo de que 1)

a fotografia eacute plural mas sua histoacuteria tem zonas de sombra por vezes negligentemente

exploradas principalmente no diaacutelogo com outras artes da imagem 2) a tocircnica de abertura do

fotograacutefico eacute uma caracteriacutestica que jaacute vinha sendo demonstrada passando a ser aceita com mais

evidecircncia porque a discussatildeo a respeito do que caracteriza a fotografia retorna agrave medida que vai

se instituindo o paradigma digital e se procura desvendar o que muda e o que permanece das

teses claacutessicas que conformam a teoria do meio

103

4 RUIacuteDO ERRO E IMAGEM

ldquoE aquilo que nesse momento se revelaraacute aos povosSurpreenderaacute a todos natildeo por ser exoacuteticoMas pelo fato de poder ter sempre estado ocultoQuando teraacute sido o oacutebviordquo - Um iacutendio Caetano Veloso

41 FOTOGRAFIA Eacute RUIacuteDO PARA ALEacuteM DE ESPECIFICIDADES TECNOLOacuteGICAS

O exerciacutecio de revisitar ideias e paradigmas que marcam a histoacuteria da imagem em busca

de pontos cruciais para alguns teoacutericos no momento de emergecircncia da cultura numeacuterica tem um

sentido praacutetico que sustenta nossa criacutetica a um discurso de ruptura servindo para reconhecer

juntamente a alguns pesquisadores aqui citados que haacute em grande medida uma continuidade de

processos e formas visuais conectando as tecnologias fotoquiacutemicas e digitais Reconhecido esse

caraacuteter (em diversas praacuteticas de hibridismo apropriaccedilotildees emulaccedilotildees remixagens) que orienta o

pensamento sobre a imagem na direccedilatildeo das continuidades dos atravessamentos e das

contaminaccedilotildees pode-se tambeacutem evocar uma revalorizaccedilatildeo de praacuteticas claacutessicas da imagem

contribuindo para a um movimento de afirmaccedilatildeo de toda uma esteacutetica marcada pela emergecircncia

do erro do ruiacutedo do acaso do imprevisiacutevel como elementos criativos Um emprego criacutetico e natildeo

convencional de teacutecnicas da imagem fotoquiacutemica e do computador na realizaccedilatildeo de obras que

centram sua potecircncia em desconstruir noccedilotildees associadas agrave ldquoforma fotografiardquo (FATORELLI

2013) ao ldquophotographic standardrdquo (ZYLINSKA 2017a) com seus paracircmetros de

enquadramento riacutegidos iluminaccedilatildeo correta com equiliacutebrio de luz e sombras e nitidez marcada

Traccedilos alinhados ao vieacutes mimeacutetico da imagem com raiacutezes na construccedilatildeo perspectivista da

realidade

Eacute interessante notar que o foco recente nas noccedilotildees de erro e ruiacutedo emerge junto agraves

consideraccedilotildees sobre o paradigma digital e a partir dos estudos de vaacuterios pesquisadores

104

(HAINGE 2013 NUNES 2011 FELINTO 2013 KRAPP 2018) comeccedila a ser considerado

questatildeo essencial para criaccedilatildeo artiacutestica neste ambiente Mas aqui embora reconhecendo essa

valorizaccedilatildeo como questatildeo fortemente ligada agrave cultura dos artefatos informaacuteticos queremos

afirmar as noccedilotildees de erro e ruiacutedo tomadas como potecircncias esteacuteticas tambeacutem nos trabalhos

realizados a partir de miacutedias fotoquiacutemicas Ou seja se incialmente houve uma preocupaccedilatildeo em

diferenciar obras realizadas com equipamentos analoacutegicos e digitais buscando traccedilos de uma

certa esteacutetica diferencial ndash tratada como hiper-realista apontada como desvinculada do mundo

concreto ou ainda como pertencente ao acircmbito da pura simulaccedilatildeo de uma inteligecircncia maquiacutenica

ndash hoje vemos o reposicionamento do debate sobre as materialidades (enfoque trazido pelo campo

das materialidades da comunicaccedilatildeo) e a partir disso podemos entender como a percepccedilatildeo do

ruiacutedo eacute na verdade a inscriccedilatildeo o traccedilo da materialidade que compotildee as miacutedias sejam elas digitais

ou analoacutegicas Para noacutes eacute especialmente relevante o fato de que o tema do ruiacutedo como resultado

de experiecircncias diversas com tecnologias da imagem vem horizontalizar possiacuteveis separaccedilotildees

entre as miacutedias analoacutegicas e digitais pois parece convergir nas praacuteticas artiacutesticas que aparecem

em nosso trabalho Na medida em que manifestam o desejo de extrair das teacutecnicas materiais e

equipamentos resultados pouco convencionais assistimos ao emprego de miacutedias ldquoobsoletasrdquo em

meio agrave cultura digital e tambeacutem agrave exploraccedilatildeo conjunta de tecnologias digitais e analoacutegicas em

obras de esteacuteticas hiacutebridas e de vieacutes fortemente experimental por vezes satildeo difiacuteceis de rotular

Hainge (2013 p211) ndash um dos autores principais na abordagem aqui proposta sobre as

relaccedilotildees entre ruiacutedo e imagem ndash lembra que as teorias de indexicabilidade consideraram a

fotografia essencialmente um produto de suas tecnologias desconsiderando singularidades e a

multiplicidade das praacuteticas inscritas na historiografia do meio e propotildee discutir uma ontologia da

fotografia apostando em sua ldquonatureza expressivardquo ldquopolimorfardquo sem necessitar da separaccedilatildeo

entre analoacutegico e digital Para ele jaacute natildeo fazem mais sentido as distinccedilotildees desse tipo Ao detalhar

sua proposta e como atentar para o ruiacutedo na fotografia afirma

Concebida dessa maneira natildeo haacute porque estabelecer uma relaccedilatildeo necessariamenteindexical entre realidade externa e imagem fotograacutefica dessa realidade nem uma divisatildeoontoloacutegica entre fotografia analoacutegica e digital () O ruiacutedo eacute expresso em todafotografia se este for tomado como expressatildeo especiacutefica da operaccedilatildeo geral pela qual a

105

imagem se torna uma distribuiccedilatildeo de zonas diferenciais Mas nem todas as fotografiastrazem esse aspecto expressivo da imagem num mesmo grau62 (HAINGE 2013 p234)

Eacute importante delimitar que para o autor o ruiacutedo expotildee uma relaccedilatildeo diferencial tanto do

ponto de vista da feitura da imagem (seus arranjos apropriaccedilotildees de elementos diversos

manipulaccedilotildees recriaccedilotildees hibridismos etc) quanto da percepccedilatildeo desses procedimentos jaacute que a

imagem na qual o ruiacutedo eacute notado tem a capacidade de bagunccedilar modelos perceptivos

estabelecidos Eacute por isso que quando nos reportamos aos trabalhos de Wall e Grusky buscamos

contrastaacute-los com as experiecircncias de Muumlller-Pohle na medida em que estas uacuteltimas nos parecem

atingir esse lugar das imagens com niacutevel de ruiacutedo mais evidente Ou melhor onde o artista parece

compreender o ruiacutedo como princiacutepio originaacuterio de uma esteacutetica e que isso decorre de uma

aproximaccedilatildeo extrema da mateacuteria formadora da imagem Enquanto as fotografias de Wall e

Gursky principalmente resultam de vaacuterias manipulaccedilotildees elas continuam filiadas a um modelo

visual que prioriza o conteuacutedo e uma ldquoesteacutetica da transparecircncia supostamente livre de ruiacutedordquo

(HAINGE 2013) ao passo que Muumlller-Pohle constroacutei a obra em torno da proacutepria informaccedilatildeo que

forma eacute a substacircncia da imagem Hainge tambeacutem entende que a analogia direta entre imagem e

referente esconde o processo e o ruiacutedo na sua anaacutelise eacute essencialmente um fenocircmeno processual

ou seja que se revela em meio agraves experiecircncias com a miacutedia que o produz

Especificamente no capiacutetulo que dedica agrave fotografia Hainge sugere que seu estudo seja

feito a partir do tema do ruiacutedo atentando para este como marca dos processos envolvidos na

elaboraccedilatildeo da imagem e sem preocupaccedilotildees com a correspondecircncia entre referente e imagem que

tanto interessou alguns pensadores claacutessicos da fotografia Se o ruiacutedo eacute o ponto de partida da

investigaccedilatildeo a respeito da imagem fotograacutefica a tecnologia utilizada bem como a divisatildeo entre

analoacutegico e digital tornam-se menos importantes pois a imagem comeccedila a ser observada como

lugar de exploraccedilatildeo de artifiacutecios que caminham na direccedilatildeo da abstraccedilatildeo em detrimento da

verossimilhanccedila A imagem seria um espaccedilo de reflexatildeo sobre o mundo seus sujeitos e a proacutepria

tecnologia com cada uma dessas instacircncias tomadas conjuntamente A partir do momento em

62 Traduccedilatildeo livre de ldquoConceived of this way there is no reason to posit a necessarily indexical relation between anexternal reality and the photographic image of that reality nor an ontological divide between silver-gelatin anddigital photography (hellip) Noise of course is expressed in every photography if noise is taken to be the expressionspecific to the operation by which the image comes to be as a distribution of differential zones But not everyphotography makes us attend to this expressive aspect of the image to the same degreerdquo

106

que recusa as distinccedilotildees analiacuteticas baseadas no tipo de tecnologia empregado Hainge aproxima-

se de Flusser (20112008) para quem o universo das imagens goza de uma autonomia e

singularidade natildeo associadas agrave reproduccedilatildeo fidedigna do mundo possibilitando olhar para a

fotografia a partir de seus processos

O que acho importante sobre esses insights eacute que permitem uma reflexatildeo sobre afotografia como modo particular de produccedilatildeo da imagem que eacute capaz de ultrapassar adivisatildeo entre fotografia baseada em filme e digital de uma maneira que natildeo podeocorrer se nos fixamos nos aspectos fotoquiacutemicos da foto tradicional ou natranscodificaccedilatildeo que ganha espaccedilo com a digitalizaccedilatildeo da imagem Na verdade o queFlusser nos indica acredito eacute que a fotografia longe de ser uma manifestaccedilatildeo do real eacutemeramente a arte da composiccedilatildeo da imagem do arranjo de cores ou tons em um espaccedilobidimensional Como tal a fotografia estaacute sempre preocupada com seu proacuteprio statusenquanto uma miacutedia visual mesmo quando tenta ser um documento e apaga a si mesmanum esforccedilo para falar sobre o mundo de uma maneira transparente63 (HAINGE 2013p 213)

O autor segue argumentando que a fotografia eacute uma miacutedia essencialmente ruidosa que

relaciona (em favor da expressividade) a subjetividade humana e a objetividade tecnoloacutegica e

que nem a subjetividade humana nem a objetividade da maacutequina satildeo puras a primeira eacute

contaminada pelos princiacutepios da tecnologia e a segunda eacute semi-autocircnoma dobrando-se

frequentemente agraves interferecircncias humanas no seu funcionamento (HAINGE 2013 p226) O

cerne dessas afirmaccedilotildees nos conecta de novo a Flusser que pensa os viacutenculos entre ldquoaparelhosrdquo e

seres humanos na linha de um intercacircmbio positivo embora cheio de descontinuidades Para o

filoacutesofo tcheco eacute nessa simbiose que estaacute a chave da criaccedilatildeo mais libertaacuteria frente aos

ldquoprogramasrdquo jaacute instituiacutedos nos aparelhos pois ele enxerga um espaccedilo de negociaccedilatildeo por meio da

63 Traduccedilatildeo livre de ldquoWhat I think is important about these insights is that they enable a reflection on photographyas a particular way of producing the image that is able to bridge the divide between film-based and digitalphotography in a way that cannot be done if one fixates on the photochemical aspects of traditional photography oron the flipside the transcoding that takes place in the digitization of the image Indeed what Flusserrsquos pointsindicate to us I feel is that photography far from being a manifestation of the real is merely the art of imagecomposition of arranging colours or tones in two-dimensional space As such photography is always concernedwith its own status and being as a visual medium even when tries to be a document and struggles to efface itself inorder to tell us something transparent about the worldrdquo

107

ideia de ldquojogordquo Satildeo as estrateacutegias adotadas pelos fotoacutegrafos experimentais64 na condiccedilatildeo de

jogadores que vatildeo nos revelar entatildeo o coeficiente de ruiacutedo das imagens

Influenciada tambeacutem pela visatildeo flusseriana da ligaccedilatildeo entre seres humanos e os

dispositivos Zylinska (2017a) propotildee uma filosofia poacutes-humana da imagem fotograacutefica na qual

ressalta a importacircncia de todo um universo imageacutetico forjado pelo desempenho autocircnomo de

maacutequinas criadoras de imagem Drones aparelhos de raio-x cacircmeras do Google Earth e Google

Street View a microfotografia o scanner o QR code ou mesmo acoplagens desenvolvidas para

captura sem a perspectiva ocular humana65 fazem parte desse universo de equipamentos

responsaacuteveis por caracterizar a fotografia-natildeo humana A partir do que propotildee Flusser sobre o

automatismo e programa dos aparelhos Zylinska afirma ainda que na verdade toda fotografia

possui uma dimensatildeo natildeo-humana que em sua opiniatildeo tem der ser explorada para contrapor-se agrave

noccedilatildeo de imagem como mera reproduccedilatildeo do real ldquo() essa abordagem eacute um desafio agrave orientaccedilatildeo

tiacutepica da teoria fotograacutefica para a indexicabilidade a representaccedilatildeo e a preservaccedilatildeo de traccedilos da

memoacuteria Ela tambeacutem chama atenccedilatildeo para os esforccedilos natildeo-representacionais da criaccedilatildeo

fotograacutefica66rdquo (ZYLINSKA 2017a p4)

Ora se nosso foco se volta para a emergecircncia do ruiacutedo na imagem contemporacircnea fica

difiacutecil manter um debate que ainda aposte em especificidades conectadas a um pensamento que

entende as imagens a partir de diferenccedilas nitidamente demarcadas entre as tecnologias Claro que

podemos apontar ruiacutedos que satildeo inscriccedilotildees das caracteriacutesticas de determinados meios mas pensar

neles em termos de exclusividades como se fosse possiacutevel identificaacute-los somente em obras

realizadas por meios analoacutegicos ou digitais natildeo eacute o caso

64 Utilizamos aqui a expressatildeo ldquofotoacutegrafos experimentaisrdquo no sentido senso comum de artistas que promovemexperiecircncias diversas com as tecnologias da imagem contudo assinalamos que o proacuteprio Flusser (2011) utiliza essestermos no mesmo sentido empregado aqui para falar dos indiviacuteduos capazes de confrontar o ldquoprogramardquo doldquoaparelhordquo

65 A autora daacute interessantes exemplos de projetos nesse sentido destacando a criaccedilatildeo de pombo-cacircmera (1908)CfZylinska2017 p16-17 Podemos acrescentar a este exemplo o documentaacuterio Leviathan (Lucien Castaing-Tayloramp Verena Paravel2012) que propotildee a imersatildeo no ambiente de uma embarcaccedilatildeo de pesca o filme tem diversasimagens capturadas por cacircmeras deixadas no chatildeo do conveacutes mergulhadas na aacutegua ou posicionadas para registrar omovimento sobre as ondas do mar para referir respectivamente o ponto de vista de peixes aves do navio O trailerdo filme estaacute disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=ADiDMEnDmTQ Acesso em 041119

66 Traduccedilatildeo livre de ldquoThrough this framework it challenges the typical orientation of photography theory towardindexicality representation and the preservation of memory traces It also shifts attention to the non-representational acts of photographic creationrdquo

108

Parece importante no escopo de nossa pesquisa compreender que muitos dos artistas aqui

citados estatildeo interessados em teacutecnicas analoacutegicas da imagem tanto pela afinidade que possuem

em manipular insumos materiais e equipamentos como pela possibilidade de recolocar um

interesse pela questatildeo da materialidade em seus trabalhos Aleacutem de imprimirem a esse uso de

tecnologias ldquoobsoletasrdquo um olhar bastante conectado aos modos de operar e sentir de uma

sociedade que se comunica trabalha e se expressa em rede Natildeo se verifica uma atitude

saudosista ou romantizada frente aos dispositivos mas o emprego criativo que os submete aos

usos mais diversos e em vaacuterios casos as obras demandam ferramentas e estrateacutegias trazidas pela

cultura digital

Desse modo o tom geral eacute das alianccedilas entre esteacuteticas maacutequinas sistemas visotildees de

mundo que atuam na criaccedilatildeo artiacutestica no campo da imagem de uma maneira agraves vezes anaacuterquica e

desapegada de preocupaccedilotildees com a especificidade do medium utilizado Ao mesmo tempo esse

olhar tardio para modos de fazer da imagem jaacute datados pode constituir uma estrateacutegia criacutetica aos

automatismos embutidos nas praacuteticas da imagem como lembra Fontcuberta (2010)

A recuperaccedilatildeo de meios e de uma esteacutetica jaacute ldquosuperadardquo se legitima com um novo usocriacutetico que ironiza precisamente os objetivos programaacuteticos que guiaram esses meios eessa esteacutetica O que antes era um acidente agora eacute um efeito voluntaacuterio Os defeitos setransformarem em signos intencionais faz parte de uma evoluccedilatildeo da consciecircncia Trata-se sem duacutevida da saiacuteda para um processo de esgotamento e saturaccedilatildeo paulatina(FONTCUBERTA 2010 p71)

Esse eacute o intuito mais especiacutefico desta tese demonstrar que haacute uma tendecircncia no campo da

imagem apontando para a reflexatildeo sobre paradigmas claacutessicos a partir da exploraccedilatildeo das

tecnologias de investigaccedilotildees artiacutesticas dirigidas aos proacuteprios meios e que podemos compreendecirc-

las esteticamente a partir dos conceitos de ldquoruiacutedordquo e ldquoerrordquo Essas concepccedilotildees tomadas num

sentido de pluralidade formal atingem igualmente as obras realizadas no tracircnsito entre

dispositivos analoacutegicos eletrocircnicos e digitais desterritorializam os lugares do cinema da

fotografia do viacutedeo da pintura e em alguns casos contribuem para (re)afirmar o lugar da

materialidade no campo da comunicaccedilatildeo Ao que parece a tocircnica da imagem contemporacircnea estaacute

nas constantes operaccedilotildees de negociaccedilatildeo de articulaccedilatildeo de materiais e dispositivos da

109

investigaccedilatildeo do medium guiada pelo acesso e criaccedilatildeo compartilhados e dessa maneira a miacutedia

analoacutegica natildeo resulta sepultada Ela eacute revisitada articula-se com o computador ou mesmo

sozinha enquanto artefato fiacutesico estaacute inserida em estrateacutegias artiacutesticas caracteriacutesticas de uma

sociedade que se relaciona por meio do intercacircmbio das trocas culturais do fluxo informativo

em rede

Para tanto o mapeamento busca identificar as recusas agraves ldquoteses essencialistasrdquo

(FATORELLI 2003) exemplificada pelo trabalhos de diversos artistas onde se destacam a

compreensatildeo da imagem como artifiacutecio a ser trabalhado numa via processual de etapas com

especial reconfiguraccedilatildeo da materialidade (em contraposiccedilatildeo agrave uma noccedilatildeo automatizante) uma

atitude que incorpora acidentes e resultados imprevistos como instacircncias criativas a recuperaccedilatildeo

de teacutecnicas antigas como o pinhole a cacircmara escura o daguerreoacutetipo bem como experiecircncias

alternativas e natildeo industriais com quiacutemicos laboratoriais a exploraccedilatildeo de temporalidades atraveacutes

de longa exposiccedilatildeo e de tempos elaacutesticos a desconstruccedilatildeo de formas (do referente) em direccedilatildeo agrave

abstraccedilatildeo por meio de negativos e pixels o aproveitamento dos erros do sistemas informaacutetico

para a construccedilatildeo de obras artiacutesticas a criaccedilatildeo de sistemas hiacutebridos que potildeem em jogo diferentes

aparatos numa investigaccedilatildeo dirigida agrave proacutepria miacutedia a elaboraccedilatildeo de esteacuteticas e formas

desconectadas de uma necessidade representativa

42 DISPUTAS ONTOLOacuteGICAS

Um dos temas centrais que atravessa os debates propostos nesta tese eacute o conceito de

ruiacutedo analisado aqui principalmente atraveacutes das contribuiccedilotildees de Hainge (2013) que buscou

identificar alguns traccedilos definidores do ruiacutedo em obras pertencentes a diferentes campos

artiacutesticos O tema do ruiacutedo vem recebendo atenccedilatildeo de outros pesquisadores aos quais nos

reportamos ao longo de nossas anaacutelises poreacutem a ecircnfase maior no estudo de Hainge deve-se ao

fato de que este propotildee uma abordagem ampla do assunto discutindo-o a partir de objetos

variados como a muacutesica o cinema a literatura e a fotografia e articulando esses objetos com

questotildees da filosofia da teoria da comunicaccedilatildeo da esteacutetica da linguagem cinematograacutefica da

ontologia fotograacutefica O pesquisador australiano compreende o ruiacutedo como conceito e tambeacutem

como um fenocircmeno observado em qualquer dinacircmica onde se ateste um movimento diferencial

afastado de normatizaccedilotildees hegemocircnicas Assim seu pensamento funcionaraacute aqui como conjunto

110

de ideias centrais o que natildeo impede que os textos nos quais o tema do ruiacutedo aparece associado a

termos como ldquofalhardquo e ldquoerrordquo (NUNES 2011 KRAPP 20112018 FELINTO 2015

BALLARD 2011 MENKMAN 2010 PIPER-WRIGHT 2018 ABRAAtildeO FILHO 2018) e

cujas abordagens estatildeo mais especificamente relacionadas ao universo da cultura digital sejam

evocados para auxiliar a reflexatildeo tendo em vista que essas terminologias partilham um sentido

comum ndash de desvio instabilidade desorganizaccedilatildeo ruptura de paradigmas ndash ligado a processos

que executam um movimento de afastamento de padronizaccedilotildees

Ressalte-se que todos esses autores e autoras investigam como o ruiacutedo o erro e a falha

tornam-se elementos de partida para a criaccedilatildeo artiacutestica em detrimento de uma reaccedilatildeo que

primeiro nega para depois (tentar) excluir sua presenccedila Esse entendimento do ruiacutedo como lugar

produtivo na perspectiva da arte constitui questatildeo relevante em nossa pesquisa Como veremos

ao longo do texto a partir das obras apresentadas o experimento com as tecnologias da imagem

as mais diversas faz emergir formas variadas de ruiacutedo

Hainge (2013) localiza algumas das primeiras tentativas de abordagem do tema do ruiacutedo

no seacuteculo XX associadas aos trabalhos de artistas e movimentos no acircmbito da muacutesica67

articuladas por sua vez agrave ideia de incorporaccedilatildeo na criaccedilatildeo musical de ldquoatonalidade dissonacircncia

explosotildees tossidos arranhados retorno sonoro distorccedilatildeo falhasrdquo (HAINGE 2013 p2) O

assunto ainda eacute bastante associado ao universo musical Nesse sentido poderiacuteamos acrescentar ao

conjunto de elementos ligados ao ruiacutedo aleacutem de sons gerados pela tecnologia utilizada os

barulhos gerados no proacuteprio ambiente onde se executa a performance musical (base por

exemplo da peccedila 4rsquo33rdquo de John Cage)

Ballard (2011 p61) eacute um pouco mais especiacutefica quando indica que as preocupaccedilotildees a

respeito dos problemas entre informaccedilatildeo e ruiacutedo remontam ao final da 2ordf Guerra Mundial

quando matemaacuteticos engenheiros e fiacutesicos tentavam desenvolver sistemas de controle e

comunicaccedilatildeo perfeitos Embora natildeo consideremos necessaacuterio procurar um marco inicial para as

reflexotildees a respeito do tema (outros pesquisadores jaacute o fizeram) parece seguro apontar que o

aprimoramento das tecnologias de informaccedilatildeo e de sistemas inteligentes no seacuteculo XX trouxe o

67 Especialmente Luigi Russolo John Cage e a musique concregravete Sobre esses artistas ver os capiacutetulos The (not so)noisy elephants in the room e On Noise and Music em HAINGE Greg Noise matters Towards an ontology ofnoise London Bloomsbury 2013

111

ruiacutedo como ldquoproblemardquo para muitas esferas cientiacuteficas fazendo deste periacuteodo histoacuterico um

momento de especial interesse no assunto

Essas breves observaccedilotildees jaacute sugerem duas questotildees a serem consideradas para o debate

A primeira eacute que inclusive para os artistas citados ndash e devemos ter em conta que essa ideia torna-

se dominante e senso comum ndash o ruiacutedo eacute compreendido numa oposiccedilatildeo agrave muacutesica como entidades

separadas ruiacutedo natildeo eacute muacutesica e assim eles natildeo se misturam A essa premissa o estudo de

Hainge opotildee-se fortemente Para ele embora o caraacuteter desagregador e transgressivo seja inerente

ao ruiacutedo enquanto marca conceitual este natildeo pode ser tomado como uma intromissatildeo externa

uma sonoridade totalmente estranha O ruiacutedo integra a estrutura expressiva do meio onde se

manifesta e natildeo se distingue pela capacidade de surgir e desaparecer pois estaacute sempre presente

O problema eacute que ele nem sempre eacute notado (constituindo assim um problema de percepccedilatildeo) Se

pensarmos nas obras de artistas como Sonic Youth68 Bjoumlrk69 Kraftwerk70 Metaacute Metaacute71 ou Oval72

ndash somente para citar alguns e essa lista pode aumentar e modificar-se toda vez que esta tese seja

lida por algueacutem diferente ndash que se utilizam largamente de objetos ldquonatildeo-musicaisrdquo e de sons

originados pelo uso natildeo programado de instrumentos convencionais ou materiais como

microfones e amplificadores eacute possiacutevel determinar onde termina a muacutesica e onde entra o ruiacutedo

Esses artistas apropriam-se de sonoridades variadas e geradas atraveacutes de diversos recursos em

composiccedilotildees onde o ruiacutedo flui como parte de uma massa sonora completa uma energia que

atravessa um sistema ou um corpo poreacutem sem ser estranho a ele Peter Krapp (2018)73 comenta

que o glitch o feedback e o click satildeo elementos importantes do aproveitamento de resultados

gerados pelo imprevisiacutevel no ambiente sonoro demarcando seu apelo esteacutetico embora afirme (ao

68Grupo de rock alternativo norte-americano que iniciou suas atividades na deacutecada de 1980 permanecendo ativo ateacutemeados de 2011 Com influecircncias de John Cage Velvet Undergound Patti Smith entre outros sua muacutesica eacutereferecircncia para artistas da deacutecada seguinte com destaque para os tambeacutem norte-americanos do Nirvana69Cantora compositora produtora instrumentista e atriz islandesa que antes de seguir carreira solo integrou a bandaSugar Cubes ativa entre os anos 1980-1990 Seu trabalho incorpora elementos de jazz muacutesica eletrocircnica trip-hopentre outros gecircneros70 Kraftwerk eacute uma banda alematilde de muacutesica eletrocircnica que surgiu nos anos 1970 conhecida pela sonoridade criada apartir de sintetizadores computadores e equipamentos desenvolvidos pelos proacuteprios integrantes do grupo Natildeo rarosuas muacutesicas falam da vida urbana e da tecnologia71 Metaacute Metaacute eacute um grupo brasileiro formado em Satildeo Paulo cujas muacutesicas articulam instrumentos como guitarrabateria metais e percussatildeo Em atividade desde 2008 seu trabalho pode ser colocado junto ao de uma safra deartistas recentes como Passo Torto e os trabalhos solo de Rodrigo Campos e Kiko Dinucci (integrante do MetaacuteMetaacute) Esses uacuteltimos por sua vez satildeo influenciados por nomes como Tom Zeacute Arrigo Barnabeacute e Itamar Assumpccedilatildeona maneira de compreender a criaccedilatildeo musical como algo a ser reinventado por meio dos materiais etc72 Grupo alematildeo de muacutesica eletrocircnica experimental considerado um dos expoentes da glitch music73 Luersen Eduardo Harry Maschke Guilherme Malo Erro e ruiacutedo na tecnocultura contemporacircnea - Entrevista comPeter Krapp Galaxia n 39 set-dez 2018 p 15-22

112

contraacuterio de Hainge) que o progresso teacutecnico seja capaz de banir o ruiacutedo que eacute nesses casos

reintroduzido pela intencionalidade dos artistas

Ao tratar da oposiccedilatildeo entre muacutesica e ruiacutedo Hainge lembra o manifesto de Luigi Russolo

(Art of noise1913)74 compositor italiano ligado ao Futurismo que investe numa tentativa de

falar sobre o tema do ruiacutedo e acaba por afirmar essa mesma divisatildeo O problema do manifesto

seria que como parte da proposta esteacutetica futurista ele distinguia claramente som e ruiacutedo o que

significava tambeacutem uma tentativa de contenccedilatildeo do ruiacutedo75 A mesma criacutetica eacute feita pelo autor agrave

proposta de John Cage (na peccedila 4rsquo33rdquo jaacute citada) que embora estimulando uma atitude mais

participativa da audiecircncia como elemento de construccedilatildeo da proacutepria obra reproduz a ideia de que

o ruiacutedo necessita ser ldquoconvertidordquo em algo mais palataacutevel (ou melhor dizendo audiacutevel) para

entatildeo ser integrado ao trabalho musical

Tais exemplos revelam um ponto que se deve ter em mente na questatildeo do ruiacutedo

perceber que sua conotaccedilatildeo negativa nasce dessa leitura de sua presenccedila como algo estranho ao

sistema que ele tende a desagregar Ainda no acircmbito musical tido como sonoridade erraacutetica agraves

vezes desagradaacutevel e criadora de desconforto o ruiacutedo provoca uma necessidade de expurgo Esse

movimento de negaccedilatildeo acaba permeando natildeo soacute algumas leituras na aacuterea da muacutesica mas tambeacutem

no cinema e na fotografia como demonstra Hainge (Ibidem) ao longo de seu livro afirmando

sempre que a exclusatildeo do ruiacutedo eacute na verdade impossiacutevel

Em nossas anaacutelises seguiremos o entendimento de Hainge (2013) considerando o ruiacutedo

natildeo como externalidade intrusiva mas como parte constitutiva dos processos envolvidos na

relaccedilatildeo artistasaparatos sobretudo nas apariccedilotildees do ruiacutedo relativas agraves materialidades

empregadas Interessam-nos os experimentos agenciamentos perversotildees realizados nos mais

diversos insumos e equipamentos que venham a expor o ruiacutedo na imagem Entendemos que ao

submeter as tecnologias a experiecircncias que muitas vezes contrariam suas funccedilotildees originais

muitos artistas estatildeo deixando entrever em seus trabalhos um interesse genuiacuteno pelo caraacuteter

74 Sobre o manifesto ver Art of noises em httpswwwunknownnufuturismnoiseshtml Acesso em 160419

75 Russolo criou instrumentos que imitavam sons diversos (sirenes e carros acelerando por exemplo) que para elerepresentavam os ruiacutedos da vida urbana no seacuteculo XX Os ldquointonarumorirdquo ou ldquoentoarruiacutedosrdquo Cf Abraatildeo FilhoClaudio Luiz Cecim O avesso da comunicaccedilatildeo Esteacutetica e poliacutetica do ruiacutedo na cultura digital (tese dedoutorado) Programa de Estudos Poacutes-Graduados em Comunicaccedilatildeo e Semioacutetica Pontiacutefica Universidade Catoacutelica deSatildeo Paulo 2018 p45-50

113

dissonante que a imagem pode assumir Ao pressionarem os materiais de que dispotildeem abrem

margem para que o ruiacutedo possa revelar-se atraveacutes de elementos como borrotildees tremulaccedilotildees

vazamentos de luz sobreposiccedilotildees de imagens granulaccedilotildees alteraccedilotildees cromaacuteticas resultantes de

manipulaccedilotildees riscos e outros tipos de intervenccedilotildees fiacutesicas na superfiacutecie da imagem

superexposiccedilatildeo anamorfoses e distorccedilotildees variadas que atestam a inscriccedilatildeo do tempo manchas

desfoque pixelizaccedilatildeo e demais efeitos causados pelo uso poeacutetico de erros nos sistemas de

computador (softwares) como modalidades esteacuteticas Aqui entendemos que os ruiacutedos satildeo as

diferentes maneiras de inscriccedilatildeo das tecnologias rastros dos processos realizados para obtenccedilatildeo

de imagens no acircmbito da investigaccedilatildeo artiacutestica

43 ldquoCOM OLHOS DE VIDRO DE CORES BERRANTES BALANCcedilAM EDIFIacuteCIOS DE

QUARENTA ANDARESrdquo

O artista carioca Luiz Alberto Guimaratildees possui seacuteries fotograacuteficas que problematizam a

perspectiva geomeacutetrica (herdada do Renascimento e tantas vezes citada como marco formal

apropriado no modelo da cacircmera fotograacutefica) produzindo imagens com alto grau de ruiacutedo

Influenciado pelos escritos de Vileacutem Flusser ele trabalha a partir de uma revisatildeo da cacircmara

escura desconstruindo seu modelo monocular a partir do uso de equipamentos com vaacuterias

entradas de luz Na seacuterie Paisagens cacofocircnicas (2015) (figuras 22 e 22a) traccedila um olhar caoacutetico

sobre a ocupaccedilatildeo do espaccedilo urbano sugerindo um excesso um certo sufoco desse espaccedilo a partir

das diversas imagens geradas pelos muacuteltiplos furos da cacircmera As imagens satildeo demasiado

confusas e mostram-se como recusa da noccedilatildeo de paisagem ligada agrave construccedilatildeo perspectiva do

espaccedilo

Entatildeo quando eu comecei esse meu trabalho a minha pegada era meio flusseriana muitona questatildeo da relaccedilatildeo do aparelho o quanto que o aparelho eacute preacute-formatado pra vocecirc() a grande formataccedilatildeo do aparelho fotograacutefico eacute a questatildeo da representaccedilatildeo De quemaneira ele pega a realidade e representa planarmente () que eacute extremamente antiga eacuterenascentista () A representaccedilatildeo ficou presa demais a esse modo ficou muitoformatada A fotografia aceitou passivamente essa funccedilatildeo enquanto que a pintura vocecircteve todos os movimentos o Cubismo e outras formas de representar () Muito do queeu tento fazer com a fotografia () eacute uma perspectiva () mas natildeo tem as regras quetanto atraiu o pessoal no final do seacuteculo 19 Eacute justamente ver que tem outro jeito76(GUIMARAtildeES 2017)

76 Entrevista concedida agrave autora desta tese em 2017

114

Figuras 22 e 22a - Paisagens cacofocircnicas (Luiz Alberto Guimaratildees 2015)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

No trabalho do artista carioca a ldquodesprogramaccedilatildeo do aparelhordquo na abordagem de

Flusser (2011) natildeo se daacute apenas em niacutevel conceitual no sentido de que busca subverter a

perspectiva convencional atraveacutes da junccedilatildeo numa mesma imagem de vaacuterios pontos de vista mas

tambeacutem no niacutevel da proacutepria estrutura da cacircmera jaacute que Guimaratildees constroacutei boa parte de seus

equipamentos Neste caso o fotoacutegrafo utilizou uma cacircmera com vaacuterios orifiacutecios que projetam as

115

diferentes imagens no papel fotograacutefico gerando distorccedilotildees zonas de sombra profunda em

contraste com aacutereas praticamente superexpostas marcas visuais da inscriccedilatildeo da luz na superfiacutecie

fotossensiacutevel Fruto da interaccedilatildeo entre luz e agentes fotoquiacutemicos a superexposiccedilatildeo eacute um tipo de

intensificaccedilatildeo do medium fotograacutefico que conteacutem grande niacutevel de ruiacutedo (HAINGE 2013 p183)

se o ruiacutedo eacute considerado a marca visiacutevel deixada pelas tecnologias em seus produtos aqui vemos

surgir uma cidade em suas muacuteltiplas facetas devido agrave maneira como se relacionam agraves diversas

entradas de luz do equipamento e a superfiacutecie onde se registram esses traccedilos A esteacutetica resultante

da perversatildeo do formato baacutesico da cacircmara escura produz edifiacutecios que se projetam em direccedilatildeo ao

espectador como num movimento crescente assumindo formas estranhas dado o caraacuteter

nitidamente artificial da composiccedilatildeo

O mundo que emerge das Paisagens Cacofocircnicas funciona como uma criacutetica tanto agrave

ocupaccedilatildeo capitalista predatoacuteria das cidades brasileiras quanto agrave forma tradicional de captura

dessa paisagem pela fotografia Em vez de uma abordagem realista aqui vemos uma verdadeira

construccedilatildeo paisagiacutestica voltada para o caraacuteter perverso da presenccedila humana No texto que

acompanha o trabalho em seu site Luiz Alberto Guimaratildees apropria-se de uma reflexatildeo do

cineasta alematildeo Win Wenders que sublinha exatamente essas questotildees

Assim como o mundo de imagens que nos circunda eacute cada vez mais cacofocircnicodesarmocircnico ruidoso proteiforme e pretencioso as cidades se tornaram por sua vezmais e mais complexas discordes ruidosas confusas e massacrantes Imagens e cidadesvatildeo bem juntas (WIM WENDERS apud GUIMARAtildeES online 2015)

Aqui tambeacutem se recusa qualquer tom idiacutelico ou bucoacutelico que formatos como o cartatildeo

postal ajudaram a consagrar no acircmbito da fotografia voltada para a paisagem o que constitui um

confronto a paradigmas da imagem assinalando mais uma vez a presenccedila do ruiacutedo no tocante a

um procedimento distante das padronizaccedilotildees de um estilo bastante difundido de imagem

Recusando-se a se apropriar da cacircmara escura no seu modelo convencional o artista recusou

tambeacutem determinada tipologia imageacutetica

Tenho desde entatildeo procurado atuar no limite do que Flusser denomina de jogo contra oaparelho comeccedilo por destruiacute-lo para entatildeo reconstruiacute-lo segundo novos programaselaborados pelo proacuteprio fotoacutegrafo Dessa forma creio que para quem quer ldquoinventarcategorias e continuar fotografandordquo a soluccedilatildeo pode estar nas maacutequinas artesanais comas quais venho trabalhando (e com certeza me divertindo) onde o que estaacute sobretudo empauta eacute o tempo de exposiccedilatildeo e a geometria da representaccedilatildeo (GUIMARAtildeES 2014p5)

Conforme assinala Baio (2015) alguns artistas desenvolvem seus trabalhos inventando

seus proacuteprios algoritmos sistemas e modelos maquiacutenicos e conceituais o que configura

116

exatamente uma abordagem flusseriana das miacutedias que orienta a estrateacutegia adotada pelo fotoacutegrafo

carioca Ele se preocupa em elaborar dispositivos especiacuteficos para cada trabalho de acordo com a

esteacutetica e o conceito perseguidos Ainda no que se refere ao gecircnero paisagem Guimaratildees

demonstra especial atenccedilatildeo agrave caracteriacutestica construiacuteda da representaccedilatildeo dos espaccedilos algo que

acabou por naturalizar-se de certa maneira nas praacuteticas da imagem Aqui natildeo haacute uma visatildeo

monocular que possamos atribuir ao fotoacutegrafo como entidade articuladora da tomada do espaccedilo

na verdade para o artista eacute inclusive necessaacuterio percebermos que essa forma de abordagem natildeo

passa de uma construccedilatildeo mental

() o que a Anne Cauquelin77 () tenta mostrar eacute que se num momento a perspectivaclaacutessica foi revolucionaacuteria () que ateacute aquele momento natildeo existia a ideia de paisagemExistia a natureza mas a ideia dessa representaccedilatildeo da paisagem que a gente tem hojemuito forte () (GUIMARAtildeES 2017)

A priori a cacircmara escura utilizada como modelo base para elaborar vaacuterios dos

equipamentos empregados por Guimaratildees tem como caracteriacutesticas baacutesicas a ausecircncia de um

sistema de lentes focagem controles de velocidade e abertura do obturador Eacute literalmente um

dispositivo cego e de certa forma descontrolado e imprevisiacutevel por excelecircncia (embora sujeito a

leis fiacutesicas que regem o comportamento da luz em seu interior e agrave geometria de sua estrutura)

Sua exploraccedilatildeo criacutetica atesta uma verdadeira investigaccedilatildeo de possibilidades outras ainda natildeo

reveladas do ponto de vista plaacutestico Para aleacutem do paradigma monocular essa teacutecnica claacutessica

ainda guarda ldquoimagens abandonadasrdquo que se formam nas vaacuterias direccedilotildees da cacircmara escura uma

totalidade que inunda a cacircmera com porccedilotildees formadas nas suas paredes laterais piso e teto

(GUIMARAtildeES 2014 p16) Imagens cuja descoberta eacute possibilitada pela inquietude do artista

que parece aleacutem de exercitar uma criacutetica ao fetichismo do desenvolvimento tecnoloacutegico

aprofundar resultados obtidos atraveacutes de procedimentos tidos como superados desgastados ou

interditos aos novos usos

Mas natildeo eacute apenas em seu iteresse pela uniatildeo entre fotografia e artesania que Guimaratildees

reflete sobre a programaccedilatildeo dos aparelhos tatildeo discutida por Flusser Para ele esse problema

atinge quaisquer dispositvos de imagem pois em sua visatildeo o dispositivo seja analoacutegico ou

digital ldquotem um preacute-programa que eacute o mais forte de todos Eu sempre brinco dizendo que tem um

77 Refere-se ao livro A invenccedilatildeo da paisagem de Anne Cauquelin publicado em 2007

117

pecado original ali que eacute te dar uma visatildeo que por mais que vocecirc tente tente estaacute amarrado

nelardquo (GUIMARAtildeES 2017)

Na seacuterie Os dois mundos de Alice (2015) (figuras 23 e 24) utilizam-se de

equipamentos digitais para construir cenaacuterios fantaacutesticos como forma de criticar a segregaccedilatildeo

entre pobres e ricos nas praias do Rio de Janeiro A partir de um incocircmodo causado pela situaccedilatildeo

aleacutem da observaccedilatildeo paralela de que a praia sobrevive hoje como principal forma de lazer ainda

gratuito da populaccedilatildeo de baixa renda o fotoacutegrafo realizou uma seacuterie de registros dos banhistas

Para mostrar este ambiente como uma espeacutecie de refuacutegio manipulou as cores de forma a produzir

tonalidades extremamente artificiais meio aberrantes ateacute criando um cenaacuterio onde mulheres

homens crianccedilas podem desfrutar do mar do sol como num pequeno paraiacuteso O estranhamento

visual eacute forte natildeo somente pela artificialidade das cores mas tambeacutem porque embora a atmosfera

criada estabeleccedila uma criacutetica por meio de uma celebraccedilatildeo da relaccedilatildeo entre os sujeitos e o espaccedilo

a composiccedilatildeo escolhida foge agrave regra da centralidade

Natildeo satildeo aquelas praias de Itaquatiara que vatildeo aquelas mulheres lindas aqueles carasldquosaradotildeesrdquo () Eu fui nas praias que eu vejo ainda como uacuteltimo espaccedilo de liberdadetalvez onde as pessoas () natildeo tomaram dos pobres Entatildeo eu fui laacute e fotografei eles nassituaccedilotildees normais deles alguns fazendo piqueniques outros com a famiacutelia Evitando aomaacuteximo frontalizar a maior parte dessas fotos eu pego as pessoas de costas ateacute pra natildeoidentificar () E aiacute fiz esse efeito de criar um mundo meio estranho tambeacutem como sefossem pessoas que estatildeo ali mas o mundo natildeo as aceita muito natildeo Estatildeo ali tambeacutemprestes a perder esse espaccedilo Aiacute eu dei esse efeito no restante criei uma camada que eusolarizei em volta (GUIMARAtildeES 2017)

Figura 23 - Os dois mundos de Alice (Luiz Alberto Guimaratildees 2015)

118

Figura 24 - Os dois mundos de Alice (Luiz Alberto Guimaratildees 2015)

Fonte Reproduccedilatildeo site artista

Um outro aspecto curioso desse trabalho que dialoga diretamente com a questatildeo do

ruiacutedo criado a partir da manipulaccedilatildeo da miacutedia eacute o ldquoefeito colagemrdquo aplicado aos corpos dos

banhistas Se satildeo corpos na iminecircncia da expulsatildeo do espaccedilo que (ainda) lhes pertence

119

formalmente isso eacute demonstrado atraveacutes da localizaccedilatildeo predominante desses corpos nas bordas

da imagem Como uma espeacutecie de ruiacutedo na estrutura social essas pessoas habitam um mundo

construiacutedo para elas atraveacutes tambeacutem de estrateacutegias de negaccedilatildeo de certa normatividade esteacutetica da

fotografia negaccedilatildeo de ocuparem uma posiccedilatildeo central negaccedilatildeo de padrotildees de beleza negaccedilatildeo de

uma suavidade das cores num estilo naturalista negaccedilatildeo do equiliacutebrio entre as proporccedilotildees e

escalas de seus corpos em relaccedilatildeo aos elementos da paisagem (nuvens faixa de areia ondas) A

composiccedilatildeo desse conjunto de imagens eacute bastante carregada As silhuetas demarcadas pelo

ldquoefeito colagemrdquo reforccedilam ainda mais a noccedilatildeo de pessoas que podem facilmente serem retiradas

daquele contexto Na relaccedilatildeo visual estabelecida entre as pessoas e o fundo (cenaacuterio da praia) haacute

um forte caraacuteter disjuntivo perturbando a composiccedilatildeo que remete agraves praacuteticas da fotomontagem

Mas ao mesmo tempo mostrar que eles estatildeo ldquocoladosrdquo ali eles natildeo estatildeo integrados Eacutecomo se vocecirc tivesse o mundo e botasse () eles estatildeo ali por um favor de algueacutem quedeixou eles ficarem aderentes ali mas daqui a pouco natildeo vatildeo estar mais Aiacute as pessoasestatildeo aiacute mas estatildeo demarcadas () Depois uma leitura que se pode dar a esse trabalholsquoah vocecirc quis ironizar essas pessoas esses corpos feiosrsquo Natildeo justamente o contraacuterio() Aqui em Niteroacutei a segregaccedilatildeo nas praias eacute fantaacutestica Vocecirc tem as praias dos ricos eas praias dos pobres Isso eacute niacutetido natildeo deixam misturar E as pessoas acabam aceitandoisso (GUIMARAtildeES 2017)

Em sua investigaccedilatildeo de visualidades singulares natildeo alinhadas ao modelo perspectivista

geomeacutetrico Luiz Alberto Guimaratildees realizou tambeacutem imagens que prescindem da proacutepria

cacircmera fotograacutefica como aparato modelo a exemplo da seacuterie de autorretratos que fez com um

scanner de mesa como parte de um processo terapecircutico entre os anos de 2006 e 200878 Suas

proposiccedilotildees estatildeo alinhadas com as noccedilotildees de que o universo das ldquoimagens teacutecnicasrdquo (FLUSSER

2011) eacute vasto extrapolando o campo da fotografia e de seus dispositivos convencionais Ressalte-

se que as ideias desenvolvidas por Flusser em seus escritos (2011 2008) sugerem que a imagem

fotograacutefica eacute um campo aberto agrave investigaccedilatildeo livre de amarras ou regramentos impostos seja pela

tecnologia ou por concepccedilotildees de sua ontologia Sobre as imagens teacutecnicas afirma

Elas satildeo dificilmente decifraacuteveis pela razatildeo curiosa de que aparentemente natildeonecessitam ser decifradas Aparentemente o significado das imagens teacutecnicas seimprime de forma automaacutetica sobre suas superfiacutecies como se fossem impressotildees digitaisonde o significado (o dedo) eacute a causa e a imagem (o impresso) eacute o efeito (FLUSSER2011 p24)

78 Disponiacutevel em httpsissuucomlamguimaraesdocsvarreduras Acesso em 17122019 O scanner tem sidoutilizado como maacutequina de imagem em projetos de outros fotoacutegrafos a exemplo do tambeacutem brasileiro GuilhermeMaranhatildeo que realizou o projeto Meu Corpo (2004) Disponiacutevel emhttpsissuucomitauculturaldocspossibilidades_da_fotografia169 Acesso em 29022020

120

Quando diz que ldquoaparentementerdquo o significado de uma imagem estaacute dado o filoacutesofo

lembra-nos que uma imagem natildeo se restringe a uma tentativa de coacutepia do que se passou frente agrave

cacircmera Assim caem por terra as teses centradas na indicialidade que fazem da fotografia um

produto da captura objetiva de um referente Aqui se nega toda uma fortuna criacutetica e expectativas

de senso comum assentadas no desejo de reconhecer o mundo concreto na imagem Um conjunto

de proposiccedilotildees que entende a fotografia pela linha ontoloacutegica da analogia A imagem natildeo eacute rastro

de um real mas o resultado do jogo entre ser humano e aparato constituindo algo que existe

enquanto fenocircmeno autocircnomo O efeito de um gesto no qual algo em frente agrave cacircmera eacute um

pretexto para criar que visa menos explicar o mundo do que lhe dar sentido (BAIO 2015 p93-

100) Fatorelli (2017 p56) diz que a fotografia apresenta uma dupla articulaccedilatildeo oscila entre a

aproximaccedilatildeo e o afastamento do referente e instituindo-se a partir de procedimentos teacutecnicos

torna-se independente de condiccedilotildees precedentes e anteriores agrave sua criaccedilatildeo instaurando assim a

sua proacutepria realidade

Vejamos o que Flusser diz sobre como desvendar as imagens teacutecnicas

Natildeo eacute analisando a casa mostrada na fotografia mas analisando a cacircmera fotograacutefica e aintenccedilatildeo do fotoacutegrafo que a decifraremos (hellip) Natildeo adianta perguntar se a casafotografada estaacute ldquorealmenterdquo laacute fora ou se eacute falsa Natildeo adianta perguntar se a batalhamostrada na TV se passou ldquorealmenterdquo ou se foi encenada () As cenas mostradasdevem ser analisadas em funccedilatildeo do programa a partir do qual foram projetadas Ora istoexige criteacuterios novos natildeo mais do tipo ldquoverdadeiro ou falsordquo ou do tipo ldquobelo ou feiordquomas do tipo ldquoinformativo ou redundanterdquo (FLUSSER 2008 p68-69)

Quando evoca a necessidade de entender a ldquocacircmerardquo o filoacutesofo natildeo se refere agrave

compreensatildeo dos paracircmetros estritamente teacutecnicos do equipamento Na verdade Flusser nos

convoca a observar os paradigmas cientiacuteficos econocircmicos poliacuteticos ideoloacutegicos e esteacuteticos que

permitem o surgimento de uma tecnologia como a fotografia e sua condiccedilatildeo de dispostivo

intermediaacuterio entre sujeito e mundo concreto O conjunto dessas questotildees forma o ldquoprogramardquo do

ldquoaparelhordquo fotograacutefico outros dois conceitos fundamentais no pensamento flusseriano Entender

o ldquoprogramardquo nada mais eacute que compreender os paradigmas envolvidos na estrutura da tecnologia

A questatildeo eacute perceber o que estaacute nesse niacutevel abstrato para entender o que significam as imagens e

de que maneira esses paradigmas satildeo rediscutidos na produccedilatildeo dos artistas Tais conclusotildees a

respeito da imagem por meio da obra de Flusser marcam o perfil das obras incluiacutedas em nosso

121

corpus Tambeacutem devemos considerar as questotildees levantadas por Flusser a respeito do aparelho

fotograacutefico aplicaacuteveis aos demais aparatos imageacuteticos com os quais os artistas trabalham

sobretudo se consideramos o atual cenaacuterio de contaminaccedilatildeo entre as miacutedias

Podemos dizer que osas artistas cujas obras satildeo aqui apresentadas posicionam-se contra

o modelo da imagem que investe prioritariamente na condiccedilatildeo indicial representativa realista

Consequentemente estatildeo todos engajados na produccedilatildeo de imagens elaboradas (negando os

automatismos) desenvolvendo processos especiacuteficos que discutem paradigmas importantes do

meio fotograacutefico Nos trabalhos do artista carioca haacute a proposiccedilatildeo de um debate sobre a

perspectiva monocular da cacircmera e a busca de alternativas a esse modelo de construccedilatildeo do

espaccedilo fiacutesico atraveacutes da criaccedilatildeo de maacutequinas artesanais ou seja atraveacutes de um investimento na

proacutepria estrutura do dispositivo Haacute tambeacutem aqueles artistas que de posse das miacutedias digitais

articulam essa mesma criacutetica inflitrando-se nos sistemas criadores de imagem a partir de falhas

ou do uso natildeo padronizado de softwares formatos de arquivos e dispositivos produzindo assim

novas esteacuteticas

Ainda eacute importante lembrar que Flusser (2011) considera a fotografia a imagem teacutecnica

inaugural pois ao contraacuterio das imagens tradicionais dependentes da matildeo humana para

existirem as fotografias satildeo produtos de ldquoaparelhosrdquo que por sua vez satildeo maacutequinas de tipo

especial desenvolvidas mediante conhecimentos cientiacuteficos Os aparelhos tecircm depositados em

sua maneira de funcionar em sua estrutura saberes complexos de ordem econocircmica ideoloacutegica

filosoacutefica poliacutetica Uma das grandes contribuiccedilotildees de Flusser eacute demonstrar como esses saberes

determinam os caminhos da praacutetica fotograacutefica No texto ldquoNascimento da imagem novardquo (op cit)

o autor afirma que a fotografia resulta de conhecimentos oacuteticos e quiacutemicos e explica que para

decifrar o ldquomundo codificadordquo ao nosso redor eacute preciso buscar os conceitos com base nos quais

ocorre essa codificaccedilatildeo

44 ldquoPOR SERES TAtildeO INVENTIVO E PARECERES CONTIacuteNUO TEMPO EacuteS UM DOSDEUSES MAIS LINDOSrdquo

Por meio da ligaccedilatildeo que Flusser estabelece entre conhecimento cientiacutefico e ldquoaparelhordquo eacute

possiacutevel compreender toda uma cadeia de entendimentos presentes na historiografia da

122

fotografia e identificar determinado modelo epistemoloacutegico estabelecido no que Antonio

Fatorelli (2013) denomina ldquoforma fotografiardquo para entendermos como osas artistas presentes em

nossa pesquisa tensionam esse modelo e suas modalidades esteacuteticas Dessa forma satildeo

instrumentais ainda as noccedilotildees de ldquojogadorrdquo e ldquofuncionaacuteriordquo no tocante agrave atitude de cada artista

frente ao aparelho Pois a postura luacutedica que caracteriza o jogador em termos flusserianos

expressa a recusa aos limites e regras das tecnologias e por conseguinte das esteacuteticas

produzidas por tais regras quando utilizadas de maneira acriacutetica Eacute se infiltrando nas brechas do

aparelho que o artista consegue driblar seu ldquoprogramardquo Nesse esforccedilo de subverter coacutedigos e

normas de utilizaccedilatildeo eacute que identificamos a emergecircncia do ruiacutedo No caso dos trabalhos de Luiz

Alberto Guimaratildees o ruiacutedo opera em niacutevel conceitual e formal atraveacutes das muacuteltiplas exposiccedilotildees

do aspecto francamente construiacutedo da imagem com tendecircncias agrave ficcionalizaccedilatildeo e como veremos

a seguir da exploraccedilatildeo de um tempo dilatado (em detrimento do instante)

Figura 25 - Sequecircncia de fotografias da seacuterie Retratos do Indiziacutevel (Luiz Alberto Guimaratildees 2008)

123

124

125

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Na seacuterie Retratos do Indiziacutevel (2008) ndash sequecircncia de fotos da figura 25 ndash foi utilizada

uma cacircmera construiacuteda pelo fotoacutegrafo que permitia fazer longas exposiccedilotildees (figura 26) Durante

um periacuteodo de depressatildeo Luiz Alberto fotografava-se diariamente em diferentes posiccedilotildees

gesticulando interagindo com objetos ou elementos do ambiente Enquanto tentava compreender

o que se passava em seu universo interior a cacircmera foi sua companheira no registro de seus

estados psicoloacutegicos Ao longo das centenas de autorretratos (depois reunidos num fotolivro79)

sua figura aparece e desaparece funde-se agrave textura das paredes ao mobiliaacuterio passando de um

estado de concretude ao fantasmagoacuterico Por vezes numa mesma fotografia habitam as diferentes

fases de seus movimentos inscritos no decurso do tempo de captura distendido Haacute momentos em

que Luiz perde a cabeccedila usa maacutescaras forja identidades outras em imagens que sugerem

79 Disponiacutevel em httpsissuucomlamguimaraesdocsretratos_do_indiz__vel Acesso em 13012020

126

instabilidade mostrando ldquoaquilo que se passava comigo que eu natildeo conseguia compreender e

muito menos expressar com palavrasrdquo (GUIMARAtildeES online)

Fiquei quatro anos praticamente trancado dentro de casa sem conseguir sair () Depoiseu vou me dar conta dessa coisa que eu tenho de me expor agraves maacutequinas que era umtratamento uma psicanaacutelise de mim mesmo neacute () e aiacute fiz essa maacutequina que eacute umamaacutequina tradicional do ponto de vista da representaccedilatildeo espacial tem o furo e o papelMas como o tempo dela de exposiccedilatildeo eacute grande ela me permitiu fazer uma coisa que ateacuteo Fatorelli tambeacutem fala natildeo eacute bem movimento mas eacute vocecirc colocar natildeo eacute o instantacircneomais () (lsquoVocecirc tem o instante dilatadorsquo) Dilatadiacutessimo e eu fazia muita performance() E o fato de eu ficar ali me expondo 6 8 minutos eacute muito tempo e acaba sendo umtratamento (GUIMARAtildeES 2017)

Conforme lembrou o fotoacutegrafo o pesquisador Antonio Fatorelli (2017a) indica que as

imagens contemporacircneas se notabilizam pela proposiccedilatildeo de ldquotempos sobrepostos bifurcados

multivetoriaisrdquo natildeo restritos ao instantacircneo Aqui essa condiccedilatildeo se daacute por meio do longo tempo

da feitura da imagem fazendo o instante estender-se Eacute como se atraveacutes da dissoluccedilatildeo do

apagamento dos detalhes das formas do corpo do fotoacutegrafo pudeacutessemos ser tocados pela

extensatildeo desse tempo Natildeo raro encontramos obras em que o tracircnsito entre a total fixidez e o

indiacutecio do movimento aparecem conjugados como nesses autorretratos Se pensarmos que nos

equipamentos fotograacuteficos convencionais os tempos da velocidade do obturador satildeo marcados

em fraccedilotildees de segundo exposiccedilotildees como as feitas por Guimaratildees cuja duraccedilatildeo gira em torno dos

8 minutos satildeo da ordem de uma verdadeira eternidade produzindo formas tambeacutem inusuais

Segundo Parikka (et al 2016) as tecnologias as mais variadas propotildeem sempre temporalidades

alternativas o que coloca um trabalho baseado na longa exposiccedilatildeo como exemplo de uma

temporalidade que eacute mais da ordem do possiacutevel Essas questotildees aparecem conceitual e

plasticamente em Retratos do indiziacutevel para aleacutem da normatividade do tempo condensado

isolado (fragmento temporal) vemos uma distensatildeo do tempo de captura A duraccedilatildeo em

detrimento do instante Se as imagens mentais do devaneio do sonho da memoacuteria satildeo estranhos

a um ordenamento linear natildeo obedecendo a uma estrutura loacutegica nesses autorretratos parece que

a imagem que registra o encontro o embaralhamento de vaacuterios estados psiacutequicos tambeacutem se

apresenta nesses termos estando impregnada de certa confusatildeo atraveacutes da distorccedilatildeo dos

contornos de um acuacutemulo das accedilotildees que se desenvolvem ao longo dessa duraccedilatildeo A

representaccedilatildeo desse tempo psiacutequico eacute tambeacutem impregnada de incertezas formais de corpos

fugidios de fisionomias que se desfazem quase se desintegrando Aqui os borrotildees e os fantasmas

127

satildeo indiacutecios dos movimentos executados pelo fotoacutegrafo mas esse movimento eacute instaacutevel

oscilando entre a presenccedila e a desapariccedilatildeo (FATORELLI 2013 p40)

Se lembrarmos que essas imagens satildeo produzidas em papel fotograacutefico (exigindo um

tempo realmente mais lento de exposiccedilatildeo se comparado agrave peliacutecula) fica patente que os momentos

vatildeo mesmo se depositando na superfiacutecie fotosenssiacutevel Ana Angeacutelica Costa (2015 p7) indica

que os trabalhos desenvolvidos com cacircmeras artesanais satildeo determinados pelas caracteriacutesticas do

ambiente retratado e pela superfiacutecie onde a luz se projeta o que amplia as possibilidades de

imagens (na medida em que cada dispositivo eacute uacutenico) Ainda segundo a autora as teacutecnicas em

que o modelo da cacircmara escura eacute desnudado e podemos compreender seu funcionamento baacutesico

ajudam a desmistificar o proacuteprio fazer fotograacutefico enfatizando o que acontece durante a

exposiccedilatildeo da superfiacutecie fotossensiacutevel agrave luz Essas teacutecnicas deixam transparecer o percurso de

construccedilatildeo da imagem chamando atenccedilatildeo para o processo que ocorre no interior do dispositivo

Bem se o que vemos eacute o registro mesmo desse processo considerando as fotografias obtidas

pelas cacircmeras artesanais aqui citadas (com suas muacuteltiplas imagens projetadas diversos traccedilos de

luz texturas aparentes dos papeis utilizados) percebemos que somos direcionados para as

materialidades formadoras da imagem a luz o papel o tempo a natureza fugidia da imagem

Eacute interessante tambeacutem notar que diferentes equipamentos satildeo criados a partir do

princiacutepio da cacircmara escura gerando diferentes resultados Isso porque o modelo da cacircmara escura

eacute evocado natildeo em sua forma original e claacutessica (engendrando a produccedilatildeo da imagem autocircnoma

sem a interferecircncia humana supostamente gozando de maior precisatildeo) mas sofre variados tipos

de intervenccedilotildees adaptaccedilotildees e acoplagens Estas por sua vez correspondem agrave concepccedilatildeo

experimental da fotografia (LENOT 2017) alinhada aos preceitos da filosofia flusseriana no que

se refere ao jogar contra o aparelho Se conforme diz Ana Angeacutelica Costa (Ibidem) as

especificidades de cada equipamento contribuem para a variabilidade das imagens essa premissa

eacute adotada na metodologia de trabalho do fotoacutegrafo carioca que explica

Vocecirc olha uma imagem pinhole vocecirc reconhece isso foi feito com uma pinhole E aiacute agravesvezes quando eu comeccedilo a mostrar meu trabalho lsquoah mas o seu eacute deiferentersquo Pois eacuteporque natildeo eacute o fato de ser um buraquinho a questatildeo eacute a esteacutetica e como eu vou usar equais as possibilidades que eu vou descobrindo em cada maacutequina E eu te mostro vaacuteriostrabalhos feitos com cada maacutequina e vocecirc vecirc que satildeo completamente distintos Cada umte daacute uma possibilidade uma expressatildeo diferente e diferente da maacutequina convencionalEntatildeo eacute isso que eu busco neacute seja colocando o negativopapel natildeo na posiccedilatildeo frontalmuacuteltiplas exposiccedilotildees () (GUIMARAtildeES 2017)

128

Figura 26 - Cacircmera utilizada na seacuterie Retratos do Indiziacutevel

Fonte Cortesia do artista

O escultor e fotoacutegrafo Jason Shulman levou a questatildeo da manipulaccedilatildeo do tempo

registrada na imagem a um niacutevel ainda mais radical No trabalho Photographs of films (2017)

ele realizou imagens em longuiacutessima exposiccedilatildeo Na verdade sua cacircmera capturou todos os

frames de vaacuterios filmes numa soacute fotografia exposta ao longo do tempo decorrido de cada

produccedilatildeo Mais uma vez estamos diante da captura de uma duraccedilatildeo As fotografias de filmes

resultam num conjunto de borrotildees Cada imagem condensa a narrativa ao mesmo tempo que a

dissolve corrompendo a regularidade de uma montagem linear num confuso emaranhado de

formas praticamente irreconheciacuteveis O que se vecirc neste trabalho eacute uma ldquopresenccedila virtual do

movimento no domiacutenio da imagem fixardquo (FATORELLI 2013 p23) uma sobreposiccedilatildeo de

instacircncias da imagem moacutevel (riscos traccedilos sombras fantasmagorias de objetos e corpos

pertencentes agrave narrativa fiacutelmica) no modo de registro fotograacutefico notadamente estaacutetico A

experiecircncia cria imagens que se localizam a meio caminho do cinema e da fotografia e nessa

configuraccedilatildeo eacute que se encontra seu componente de ruiacutedo

A quebra do paradigma da ilusatildeo do tempo linear presente nessas imagens junta-se a

outras experiecircncias da historiografia da imagem que tambeacutem extrapolaram a noccedilatildeo do

129

instantacircneo como a cronofotografia de Marey e Muybridge a fotomontagem as sequecircncias o

fotodinamismo dos irmatildeos Bragaglia ou ainda os longuiacutessimos tempos de captura presentes nos

trabalhos de Michael Wesely Cada uma a seu modo elas contribuem para repensarmos a

inscriccedilatildeo do tempo na imagem rompendo com as expectativas perceptivas sobre a fotografia e

sobre o cinema

Atraveacutes de um retardar da narrativa que de modo natildeo convencional condensa-a

totalmente numa uacutenica imagem Shulman faz-nos lembrar de pinturas onde todas as accedilotildees estatildeo

representadas no mesmo plano de significado (a exemplo de O combate entre o Carnaval e

Quaresma ou Caminho para o calvaacuterio produzidos respectivamente em 1559 e 1564 por

Pieter Brueguel) o que tambeacutem quebra uma hierarquia de tempos uma organizaccedilatildeo espacial

concernente ao enredo de cada filme

() em cada uma dessas imagens cada filme vira uma matriz abstrata de cores variaacuteveise formas vagas Ficamos com uma imagem mais atmosfeacuterica da sensaccedilatildeo do filme emdetrimento de seu conteuacutedo agrave medida que as cores se espalham e desfocam entrefotogramas e lentamente recompotildeem o filme em algo totalmente pictoacuterico80(JAECKLE online 2018)

Haacute mais um aspecto que avizinha essa obra das imagens pictoacutericas o fato de o artista as

ter apresentado como peccedilas uacutenicas (expostas como quadros) o que implica tambeacutem uma forma

de relaccedilatildeo perceptiva mais demorada realizada num tempo mais longo que o comumente

dedicado aos filmes

Conforme o autor um detalhe interessante do processo adotado eacute responsaacutevel pela

esteacutetica das imagens elas satildeo fotografias da reproduccedilatildeo dos filmes em monitores digitais (e natildeo

de projetados em salas de cinema81) Segundo o artista ldquoos filmes foram fotografados de

monitores praticamente livres de pixelsrdquo (SHULMAN online 2018) monitores 5K o que lhe

permitiu capturar uma diversidade de tons que aparecem ao longo de cada filme Caso tivesse

fotografado a projeccedilatildeo teria captado uma grande aacuterea iluminada de forma mais homogecircnea Quer

80 Traduccedilatildeo livre de ldquoin each of these images each motion picture becomes an abstract hue of shifting colours andvague shapes Wersquore left with a more atmospheric picture of the filmrsquos feeling rather than its content as colours bleedand blur between frames and slowly recompose the film as something altogether more painterly in tone andcharacterrdquo81 Como ocorre por exemplo nos trabalhos de Hiroshi Sugimoto que fotografou com cacircmeras analoacutegicas a projeccedilatildeoem salas de cinema Para detalhes ver Fatorelli 2013 p103-127

130

dizer para o autor haacute especificidades tecnoloacutegicas que satildeo diretamente responsaacuteveis pela

maneira como cada imagem se constroacutei sendo uacutenica em sua multiplicidade de frames

Figura 27 - O maacutegico de Oz 1939 Victor Flaming (Jason Shulman 2018)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Figura 28 - 2001 Uma odisseacuteia no espaccedilo 1968 Stanley Kubrick (Jason Shulman 2018)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

131

Figura 29 - Stalker 1979 Andrei Tarkovski (Jason Shulman 2018)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Eacute curioso notar ainda que em filmes onde a narrativa eacute mais lenta e os planos tecircm maior

duraccedilatildeo algumas formas satildeo ainda perceptiacuteveis (como 2001 Uma odisseacuteia no espaccedilo e Stalker

figuras 28 e 29 respectivamente) e naqueles em que o estilo da montagem eacute mais aacutegil com mais

planos e cortes predomina o aspecto difuso na imagem (O maacutegico de Oz figura 27) Ou seja as

produccedilotildees em que o estilo da narrativa aproxima-se da fotografia (planos fixos e longos) as

formas apresentadas satildeo precariamente conservadas Nesses casos surgem entatildeo verdadeiras

fantasmagorias pois o que a cacircmera registra eacute o escorrer do tempo narrativo nas mutaccedilotildees que

provoca no conjunto do filme Os frames de cada produccedilatildeo apresentados assim de modo

embaralhado criam uma imagem heterogecircnea uma desordem uma confusatildeo de temporalidades

que debilita os anseios da representaccedilatildeo figurativa

Uma das fotografias chamou a atenccedilatildeo de Shulman exatamente porque esse efeito

figurativo chegou a insinuar-se (sem contudo firmar-se) a imagem de O evangelho segundo Satildeo

Mateus filme de Pier Paolo Pasolini de 1972 (figura 30) A fisionomia de Cristo torna-se

perceptiacutevel mas continua uma imagem fugaz pois que ela natildeo constitui completamente o todo

narrativo do filme Conforme o artista isso ocorre pelo estilo cinematograacutefico de Pasolini que

frequentemente situava atores e atrizes no centro do quadro ldquoum rosto grande ocupando a tela o

132

olhar direcionado ao espectadorrdquo (SHULMAN Ibidem) Pela regularidade dessa escolha de

composiccedilatildeo a imagem do personagem vai como que se acumulando em diversos planos a ponto

de delinear-se fragilmente na fotografia

Figura 30 - O evangelho segundo Satildeo Mateus 1972 Pier Paolo Pasolini (Jason Shulman 2018)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Para o artista a esteacutetica conserva as formas exibidas em cada filme embora desfazendo

seus contornos numa ldquotraduccedilatildeo pictoacuterica uacutenica de cada frame individual que foi vistordquo

(SHULMAN Ibidem) Aleacutem disso Shulman entende que cada imagem final eacute tambeacutem

construiacuteda atraveacutes do olhar do espectador Ela pertence a um domiacutenio que ultrapassa o mero

registro Ele preferiu trabalhar com filmes que jaacute possuem um lugar no imaginaacuterio do puacuteblico

pertencentes a cinematografias de vaacuterios paiacuteses exatamente para ver como seria a recepccedilatildeo a

esse processo que torna o filme inteiro uma grande mancha cromaacutetica Ele explica que eacute curioso

como as pessoas insistem em reconhecer cenas sem no entanto estarem de fato diante destas

cenas ndash pois nesse grau de desintegraccedilatildeo da imagem natildeo cabe mais falarmos de uma divisatildeo

convencional da imagem cinematograacutefica (frames planos cenas sequecircncias)

Nas imagens mais difusas notei que as pessoas tendem a ver as coisas que querem vernelas especialmente se for um filme familiar () Encontram formas e cenas quecombinam com a sua memoacuteria do filme Veja a fotografia de O maacutegico de Oz Agraves vezesalgueacutem me diraacute que pode ver a forma do Homem de Lata Mas a pessoa natildeo vecirc o

133

Homem de Lata Eles conseguiram esforccedilar-se para ver o Homem de Lata eles queremver o Homem de Lata ()82 (SHULMAN Idem)

A partir das observaccedilotildees postas o trabalho de Shulman faz um interessante tracircnsito entre

foto cinema e pintura Agrave medida que a sucessatildeo de planos do filme eacute organizada num soacute quadro

exibida individualmente as imagens aproximam-se da pintura pois os tempos e espaccedilos de cada

narrativa satildeo condensados numa peccedila uacutenica O processo contudo eacute registrado atraveacutes da miacutedia

fotograacutefica que registra cada plano de maneira imprecisa conservando os vestiacutegios da

singularidade de cada um desses fragmentos sem no entanto perder a noccedilatildeo de conjunto da

totalidade do filme O resultado deste trabalho eacute uma modalidade visual elaborada nos liames

entre as possibilidades da tecnologia e nossas proacuteprias experiecircncias seja com a cinematografia

seja com os dispositivos que lhes datildeo vida

Tambeacutem eacute notaacutevel que um processo desse tipo enseja que o resultado final eacute

desconhecido e o artista incorpora esse imprevisto como parte da metodologia ldquoEstou em busca

de algo que natildeo sei explicar Eacute apenas subjetivo e gosto deste sentimento de expectativa

imprevisiacutevelrdquo (SHULMAN Ibidem)

O caraacuteter de abertura a descontinuidade e a surpresa satildeo elementos caracterizadores das

manifestaccedilotildees expressivas do ruiacutedo e haacute outros pormenores deste trabalho que se conectam com

a questatildeo do ruiacutedo como os resultados gerados das proacuteprias condiccedilotildees esteacuteticas jaacute contidas nos

filmes entrando em articulaccedilatildeo com as propriedades da fotografia as expressotildees visuais geradas

pelo emprego de tecnologias de maneira cruzada e inovadora e os tensionamentos dos

paradigmas formais da fotografia do cinema e da pintura que se vecircem revisitados e

reprogramados Antonio Fatorelli reconhece que no cenaacuterio da arte contemporacircnea esses trecircs

campos da imagem satildeo acionados de forma simultacircnea e natildeo mais evocados em razatildeo de suas

especificidades

Encontramo-nos cada vez mais na condiccedilatildeo de criadores multimiacutedia envolvidos naproduccedilatildeo de imagens de diversos formatos Se ainda podemos falar de fotografia decinema e de pintura (e essa eacute a nossa aposta) trata-se de uma fotografia de um cinema e

82 Traduccedilatildeo livre de ldquoIn the fuzzier ones Irsquove noticed that people tend to see the things in them that they want to seeespecially if itrsquos a familiar film Itrsquos apophenia They find shapes and scenes that tally with their recollection of thefilm Take the photograph of The Wizard of Oz Sometimes someone will tell me that they can make out the shape ofthe Tin Man But they donrsquot see the Tin Man Theyve managed to make themselves see the Tin Man they want to seethe Tin Manrdquo

134

de uma pintura marcados pelas intensas experimentaccedilotildees observadas nas uacuteltimas trecircsdeacutecadas ndash expandidos reconfigurados significativamente modificados atravessados porvetores temporais singulares investidos de potecircncias anteriormente inimaginaacuteveisAlteraccedilotildees de tal modo consideraacuteveis no acircmbito das formas expressivas e daslinguagens a ponto de questionar a manutenccedilatildeo das formulaccedilotildees teoacutericas historicamenteconsagradas marcadas pela especificidade das miacutedias e pela especializaccedilatildeo das praacuteticasartiacutesticas (FATORELLI 2017a p124-125)

A pluralidade de resultados e consequentemente de esteacuteticas vistas ateacute aqui conecta-se

com uma questatildeo importante a respeito do ruiacutedo o fato de ele natildeo ter uma forma definida Como

surge atraveacutes das mais variadas experiecircncias promovidas seja com equipamentos ou insumos

cada artista desenvolve teacutecnicas proacuteprias e utiliza recursos especiacuteficos que resultam tambeacutem em

obras bastante singulares Sua inscriccedilatildeo nas obras pode indicar a elasticidade do tempo a

intrusatildeo de vaacuterias fontes de luz expor a trama compositiva da imagem enfatizar a textura dos

materiais empregados entre outros efeitos de modo que natildeo encontramos um tipo de ruiacutedo mas

diversas formas de sua manifestaccedilatildeo

O ruiacutedo tambeacutem pode surgir em meio agraves falhas ao desvio de funcionamento ou ao uso

natildeo preacute-formatado de sistemas geradores de imagens dos mais diversos tipos Muitas vezes o

ruiacutedo funciona como uma perturbaccedilatildeo que chama atenccedilatildeo para o processo de elaboraccedilatildeo da

imagem ou como diz Ballard (2011 p66) ldquoatraveacutes das vaacuterias modalidades utilizadas a

aparecircncia do ruiacutedo natildeo se daacute atraveacutes de uma formaccedilatildeo mas por meio do erro do acidente e da

surpresardquo Quer dizer notamos mais a sua presenccedila e menos sua identificaccedilatildeo como um conjunto

de formas delimitadas Tal questatildeo eacute relevante no sentido de que se conecta com a diversidade do

corpus selecionado nesta tese Se o ruiacutedo natildeo encontra uma esteacutetica uacutenica os procedimentos

adotados nas imagens onde podemos observaacute-lo tambeacutem apresentam variabilidade

45 ldquoEU SOU APENAS UM INCOcircMODOrdquo

Assim como a abordagem utilizada por Luiz Alberto Guimaratildees outro artista brasileiro

especialmente dedicado ao trabalho com dispositivos artesanais que ele mesmo chama de

ldquoprecaacuteriosrdquo (MAUEacuteS 2012) eacute o paraense Dirceu Maueacutes Apoacutes uma trajetoacuteria como

fotojornalista iniciada nos anos 1990 desde 2004 dedica-se aos trabalhos artiacutesticos que

atravessam os territoacuterios da fotografia do cinema do viacutedeo da instalaccedilatildeo tambeacutem abordando

entre outros temas a problemaacutetica da paisagem Segundo Maueacutes seu interesse pelos

135

equipamentos alternativos desenvolvidos com materiais simples como caixas de papelatildeo vem de

uma inquietaccedilatildeo em discutir tanto a esteacutetica quanto a ideia senso comum de que a tecnologia e a

qualidade da imagem dependem de equipamentos sofisticados

A questatildeo do ruiacutedo dentro da fotografia vem junto com esse uso do analoacutegico () deuma tecnologia mais simples E como sempre me incomodou o discurso comercial ()da imagem perfeita de colocar o dispositivo o equipamento na frente do fotoacutegrafo ()como se isso fosse garantir uma certa narrativa do trabalho Vocecirc garantir uma qualidadeesteacutetica () O meu interesse em usar pinhole a construccedilatildeo de cacircmera (e aiacute vem o ruiacutedojunto) acaba fazendo parte de um conjunto que se contrapotildee a esse discruso hegemocircnico() que se construiu sobre a fotografia um discruso mais teleoloacutegico () Comecei a meinteressar por certo confronto com esse discurso E no final o ruiacutedo acaba vindo juntocom o processo construindo a cacircmera Eu tinha lido Flusser e tinha adorado E pra mimera meio que tu entrar na ldquocaixa pretardquo e poder fazer o que tu quisesse apesar de que elate daacute umas limitaccedilotildees (MAUEacuteS 2017)83

Para Maueacutes a desconstruccedilatildeo do dispositivo convencional atraveacutes do emprego de

processos antigos da imagem como a fotografia estenopeica e a cacircmara obscura trazem uma

possibilidade de criacutetica agraves normatizaccedilotildees contidas no proacuteprio dispositivo (conforme atestou

Flusser sobre o ldquoprogramardquo) e reafirmadas por criacuteticos instituiccedilotildees pela induacutestria por alguns

teoacutericos e outros artistas Tambeacutem eacute uma forma de questionar as percepccedilotildees que ligam as

inovaccedilotildees no campo da imagem ao aprimoramento das tecnologias Para ele fabricar seus

proacuteprios equipamentos eacute uma das premissas libertadoras do ruiacutedo em suas obras

Construir sua proacutepria cacircmera significa estar livre das amarras de um modelo que lhe eacuteimposto pela induacutestria Significa poder experimentar uma enorme gama de novaspossibilidades que o processo permite a partir de um projeto muito pessoal deconstruccedilatildeo da cacircmera e das caracteriacutesticas que satildeo escolhidas para essa cacircmera(MAUEacuteS 2012 p10)

Agrave medida que foi experimentando com suas cacircmeras e outros dispositivos Maueacutes

acabou por discutir natildeo somente paradigmas centrais para a fotografia (como os limites do

instantacircneo da verossimilhanccedila e do automatismo das maacutequinas) mas aproximou-se de questotildees

mais fortemente relacionadas aos domiacutenios do cinema e do viacutedeo como a presenccedila do

movimento a montagem e o lugar do espectador Em um trabalho desenvolvido com uma

cacircmera de fenda (onde a abertura por onde entra a luz eacute vertical) uma estrutura bastante simples

foi criada para capturar o trajeto percorrido pelo fotoacutegrafo durante um passeio de bicicleta Uma

83 Entrevista concedida a autora em novembro de 2017

136

toy camera (meacutedio formato carregada com filme 120mm) foi presa ao guidatildeo de uma bicicleta

(figura 31)

Figura 31 - Adaptaccedilatildeo da toy camera e seu ajuste na bicicleta

Fonte Reproduccedilatildeo de Maueacutes (2015)

Figura 32 - Panoracircmica da seacuterie Extremo Horizonte realizada com cacircmera de fenda acoplada agrave bicicleta

(Dirceu Maueacutes 2014)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Figura 33 - Panoracircmica da seacuterie Extremo Horizonte realizada com cacircmera de fenda acoplada agrave bicicleta

(Dirceu Maueacutes 2012)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

137

A imagem tomada continuamente foi realizada com a bicicleta em movimento Em vez

de fotogramas individuais com vaacuterias imagens obteve-se uma uacutenica imagem que apesar de

adquirir certa continuidade espacial apresenta em toda a sua extensatildeo porccedilotildees verticais

resultantes do pequeno trecho do negativo esquadrinhado pela luz Isso permite ldquoum registro que

ganha em acuidade mas estaacute mais suscetiacutevel a efeitos de movimento na composiccedilatildeo da imagemrdquo

(MAUEacuteS 2012 p27) Na verdade nos primeiros testes com o formato panorama em fotografia

pinhole a intenccedilatildeo era manter a conexatildeo espacial entre os fotogramas mas essa ideia foi

abandonada em seguida

O artista desenvolveu tambeacutem um mecanismo para fazer avanccedilar o negativo durante o

registro Haacute nessa situaccedilatildeo uma combinaccedilatildeo de movimento bastante estranha aos processos

fotograacuteficos comuns peliacutecula e cacircmera movem-se simultaneamente durante todo o processo de

inscriccedilatildeo da imagem84 Desse modo temos a vista de uma paisagem cheia de arrastos borrotildees

corpos e objetos distorcidos (figuras 32 e 33) De acordo com Maueacutes (2012) as cacircmeras de fenda

eram utilizadas para fotografar corridas de cavalos Posicionando o equipamento ao lado da linha

de chegada movia-se o filme enquanto a maacutequina ficava parada No seu projeto esse princiacutepio

de funcionamento da cacircmera de fenda eacute invertido e natildeo vemos um movimento congelado mas

com paradas e continuidades numa mesma tomada Aliaacutes a partir de experiecircncias anteriores o

artista percebeu que as interrupccedilotildees no arrasto do negativo produziam efeitos interessantes

() em panoracircmicas muito longas meu braccedilo natildeo conseguia fazer um giro contiacutenuo Eranecessaacuterio soltar a chave no ponto que natildeo era possiacutevel continuar torcendo o braccedilo eretomar o movimento novamente Cada parada no movimento de giro do filmeprovocava uma superexposiccedilatildeo de uma pequena aacuterea dentro da imagem panoracircmicaressaltando assim ao acaso algumas partes da imagem uma pessoa que passava objetosna rua Haacute uma certa intermitecircncia de campos que atraem o olhar para essas pequenasaacutereas Temos como que um jogo de frames superpostos mas natildeo satildeo exatamente framespois a imagem tem uma certa continuidade A cidade eacute desvelada num contiacutenuo efragmentado movimento longitudinal (MAUEacuteS 2012 p27-28)

Os movimentos efetuados por esse construto de homem-cacircmera-bicicleta se transferem

para a imagem final criando um resultado que ocupa um lugar intermediaacuterio entre o imoacutevel e a

84 Processo semelhante eacute adotado pelo italiano Paolo Gioli que tambeacutem trabalha bastante com equipamentosartesanais Um exemplo satildeo as fotografias realizadas atraveacutes da teacutecnica de photo finish onde arrastos na imagemindicam o movimento da cacircmera durante a captura como ocorre em Figure Dissoluti (1974-78) (disponiacutevel emhttpwwwpaologioliitfoto6aphppage=fotoampsez=1ampid=6 Acesso em 13012020) e na seacuterie Crosswise Natures(2016) Cf Wanderlei L Na margem da histoacuteria fotografia analoacutegica artistas e as imagens erradas RevistaSignificaccedilatildeo v 46 n 52 p293-308 jul-dez 2019

138

mobilidade algo que habita o territoacuterio das ldquoentre-imagensrdquo (BELLOUR 1997) numa reflexatildeo

que nos ajuda a reconsiderar as fronteiras entre as artes (foto e cinema) e compreender o papel do

ruiacutedo como elemento pelo qual vaacuterios artistas vecircm expandindo o campo das visualidades Aliaacutes

Maueacutes (2015 p14) afirma que quanto mais explora os equipamentos a fim de alcanccedilar essas

imperfeiccedilotildees de grande valor plaacutestico mais extrapola o acircmbito do fotograacutefico indo na direccedilatildeo de

outras artes E de fato eacute o que se verifica nas diversas obras que realizou com auxiacutelio das

pinhole associando o movimento ao registro da paisagem No lugar do emprego desses

dispositivos voltado para a precisatildeo do olhar a irregularidade das condiccedilotildees de captura eacute que se

faz presente com ecircnfase na valorizaccedilatildeo das inscriccedilotildees do movimento Cada fotografia promove

uma junccedilatildeo de fragmentos do espaccedilo percorrido O processo lembra a reconstruccedilatildeo de um visiacutevel

realizada atraveacutes da montagem cinematograacutefica Natildeo agrave toa o artista faz referecircncia ao frame como

unidade narrativa miacutenima do cinema

As investigaccedilotildees sobre a paisagem levaram o artista a pensar a ligaccedilatildeo entre imagens

fixas e moacuteveis a partir do formato panorama que para ele eacute fotografia e cinema ao mesmo

tempo (MAUEacuteS 2012 p30) Se o panorama consiste no esquadrinhamento de uma paisagem

que se apresenta de maneira plana ao olhar do espectador (ver tamanho meacutedio das imagens nas

figuras 32 e 33) da mesma forma ocorre o procedimento nas imagens que compotildeem a seacuterie

Extremo Horizonte Mas em lugar de uma ilusatildeo de harmonia entre cada elemento do espaccedilo

(lembremos que os panoramas uma espeacutecie de preacute-cinema valorizavam um estilo realista de

representaccedilatildeo) haacute um estudo do ambiente que tende a apagar os pormenores Ou melhor

distorcecirc-los embaralhaacute-los Assim natildeo haacute coincidecircncia entre o visiacutevel e o resultado dessas

fotografias panoracircmicas conformando uma visatildeo nada convencional Aleacutem disso a inscriccedilatildeo da

paisagem numa continuidade temporal apresenta uma acumulaccedilatildeo de instantes todos contidos

numa mesma imagem mais uma vez lembrando o processo da montagem de um filme

139

Figura 34 - Montagem de peccedilas da seacuterie Extremo Horizonte

Fonte Reproduccedilatildeo internet85

A questatildeo eacute que se o panorama eacute cinema e foto e as fotografias panoracircmicas de

Extremo Horizonte (figuras 34 35 e 36) possuem tambeacutem a dupla natureza do cinema e da

fotografia tampouco elas pertencem completamente a apenas um destes campos Nesse sentido o

artista faz aproximaccedilotildees entre os processos da pinhole e do panorama

() o tempo usado na pinhole tambeacutem eacute uma duraccedilatildeo ele inscreve a imagem lentamentesobre o negativo E as caracteriacutesticas da fotografia pinhole potencializam o conceito dopanorama A soma de vistas sobre o proacuteprio negativo emendadas sem precisatildeo ou atomada da foto em sistema de varredura girando a cacircmera sobre seu proacuteprio eixo aomesmo tempo em que o filme tambeacutem eacute girado dentro da cacircmera () (MAUEacuteS 2012p24)

As interferecircncias do corpo e do espaccedilo durante a realizaccedilatildeo da imagem demonstram a

afirmaccedilatildeo de um corpo estranho (homem+maacutequina+bicicleta) como gecircnese de uma esteacutetica

85 Reproduccedilatildeo do site da Galeria Karla Osorio Disponiacutevel em httpkarlaosoriocomolhares-dispositivos-paisagem Acesso em 14012020

140

especiacutefica negando tambeacutem a ideia de um aparato divorciado do sujeito (funcionando automaacutetica

e independentemente) Maueacutes (2015) considera que a experiecircncia desse corpo desvenda a cidade

de maneira ldquoerraacuteticardquo em busca de um certo ldquoestranhamentordquo localizaacutevel entre a velocidade e a

lentidatildeo materializado atraveacutes das irregularidades da proacutepria esteacutetica Algo entre o familiar e o

desconhecido Assim do ponto de vista formal esse trabalho apresenta um afastamento

significativo de uma relaccedilatildeo de analogia purista entre o mundo concreto e sua imagem (tantas

vezes vinculada agrave funccedilatildeo da fotografia) Natildeo haacute intenccedilatildeo de correspondecircncia entre imagem e o

perceptiacutevel mas a sugestatildeo de uma alteridade proacutepria ao olhar do dispositivo formada em grande

medida por essa presenccedila corporal-maquiacutenica como explica o autor

Muitos ruiacutedos satildeo incorporados no processo Ruiacutedos que satildeo produzidos pelacombinaccedilatildeo de erros e acidentes que agora jaacute mais que intencionais provocados poruma despreocupaccedilatildeo cada vez maior com qualquer estabilidade que a imagem possa terImagem que se transforma quase que em pintura Onde sua textura eacute dada por um certogestual por uma accedilatildeo Comeccedilo a usar a cacircmera como um instrumento mais livre ondemeu movimento determina que resultado vou ter (MAUEacuteS 2012 p29)

Se o que vemos nos parece incomum eacute porque essa obra faz um investimento no registro

da experiecircncia de uma estrutura alternativa de captura da imagem explorando aspectos luacutedicos

de um processo que se abre para reconsiderar o valor de um certo imprevisiacutevel O fotoacutegrafo

brinca com o niacutevel de imprecisatildeo dos resultados oferecidos pelo equipamento numa investigaccedilatildeo

conceitual que potildee em xeque ideologias esteacuteticas e tecnoloacutegicas da fotografia

As reflexotildees sobre a fotografia enquanto linguagem no campo da arte a partir dasexperimentaccedilotildees com fotografia pinhole construccedilotildees de cacircmeras artesanais e produccedilatildeode imagens utilizando aparelhos precaacuterios despertaram em mim o interesse pelasimperfeiccedilotildees dessas imagens seus ldquoerrosrdquo ruiacutedos imprevistos e acasos Tal poeacuteticabaseada na incerteza de imagens produzidas com a utilizaccedilatildeo de aparelhos precaacuterios(cacircmeras artesanais toy cameras cacircmeras de celular) em tempos de deslumbre poraparelhos tecnoloacutegicos sofisticados eacute uma poeacutetica de subversatildeo dos meios (MAUEacuteS2012 p13)

A contenda de subversatildeo dos meios para Maueacutes (assim como para Luiz Alberto

Guimaratildees e outrosas artistas presentes aqui) estaacute afinada com o pensamento flusseriano sobre

as possibilidades de um ldquofotoacutegrafo experimentalrdquo (2011) atuar numa margem de negociaccedilatildeo

relativa ao ldquoprogramardquo do ldquoaparelhordquo A relaccedilatildeo sujeito-aparelho eacute de uma acoplagem de um

funcionamento conjunto mas o aparelho opera na medida da intenccedilatildeo humana enquanto que ao

sujeito resta extrair do aparelho aquilo que este tem capacidade de lhe oferecer (FLUSSER 2017

141

p38) Ou seja encontrar um espaccedilo de liberdade (relativa) onde seja possiacutevel surpreender-se

testar novas abordagens criar modos de uso especiacuteficos Conscientes de que essa atuaccedilatildeo

enfrenta limites osas artistas manipulam as estruturas dos dispositivos a fim de manipular

tambeacutem paradigmas do campo da imagem e acabam jogando em diversos niacuteveis com a ideia do

ruiacutedo

O trabalho com cacircmeras pinhole eacute para o artista paraense a chave que abre a porta

desse lugar de ldquoincertezasrdquo na imagem onde se verifica exatamente a ocorrecircncia do ruiacutedo pois

haacute uma imprecisatildeo como carcateriacutestica inerente a essas cacircmeras que permite ao usuaacuterio atuar na

fronteira entre os paracircmetros teacutecnicos e a intuiccedilatildeo Nunca se sabe por completo como a imagem

iraacute comportar-se

Na fotografia pinhole apesar de todo controle racional que se faz necessaacuterio ter sobre oprocesso eacute a intuiccedilatildeo que opera sobre esse racional O modo de fazer eacute muito intuitivoAs cacircmeras pinhole natildeo tecircm visor () Eacute necessaacuterio ativar um terceiro olho na palma dasmatildeos que posicionam a cacircmera A passagem do filme eacute feita sem exatidatildeo O fotoacutegrafo eacuteresponsaacutevel por controlar tudo usando sua intuiccedilatildeo e o resultado sempre oferecesurpresas (MAUES 2015 p19)

Haacute uma especificidade teacutecnica importante das cacircmeras pinhole responsaacutevel pela esteacutetica

de todos esses trabalhos o fato de natildeo possuir lentes faz com que todos os planos da imagem

possuam o mesmo grau de definiccedilatildeo mas natildeo uma definiccedilatildeo acentuada como eacute possiacutevel obter

por exemplo quando temos uma cacircmera industrial que dispotildee de um anel para focagem Assim

haacute um ruiacutedo decorrente da proacutepria teacutecnica que eacute um efeito levemente desfocado encontrado nos

contornos dos elementos presentes na imagem uma ldquotextura mais acentuadardquo (MAUEacuteS 2015

p23) E aqui se quebra uma regra de ouro de um fazer fotograacutefico normatizado que eacute a busca

pela definiccedilatildeo ou na totalidade da imagem ou em algum ponto tomado como principal atraveacutes

do foco Poreacutem eacute possiacutevel melhorar essa definiccedilatildeo atraveacutes do tamanho do orifiacutecio de entrada da

luz quanto menor ele for e mais perfeito mais definiccedilatildeo teremos considerando ainda uma relaccedilatildeo

entre as proporccedilotildees do diacircmetro do furo e as dimensotildees da cacircmera Isso faria a pinhole funcionar

de maneira muito parecida com uma maacutequina convencional

A exemplo do que vemos em Paisagens cacofocircnicas haacute um relativo niacutevel de definiccedilatildeo

pois o que estaacute em jogo eacute a negaccedilatildeo da perspectiva monocular atraveacutes das muacuteltiplas exposiccedilotildees

Jaacute em Retratos do indiziacutevel como a problemaacutetica abordada inclui uma temporalidade estendida

(o que significa lidar com a presenccedila do movimento) a questatildeo da definiccedilatildeo jaacute estaacute mais

142

relativizada principalmente nos efeitos de repeticcedilatildeo e transparecircncia do corpo do artista que

algumas das fotos apresentam (figura 25) Nas panoracircmicas de Dirceu Maueacutes a captura feita

numa situaccedilatildeo de movimento do equipamento e do proacuteprio negativo eleva sobremaneira a

potecircncia de indefiniccedilatildeo geral da imagem em alguns casos transitamos de um desfocado para

verdadeiros borrotildees num intenso desmanchar das formas o que representa uma perturbaccedilatildeo da

figuraccedilatildeo Esse resultado potildee a fotografia em diaacutelogo com a pintura Se concordarmos com

Bellour (1997) para quem o desfoque e o tremido satildeo dimensotildees do proacuteprio instantacircneo

fotograacutefico ou seja desdobramentos contidos neste poreacutem nem sempre visiacuteveis eacute possiacutevel

analisaacute-los ainda como manifestaccedilotildees que aleacutem de mexerem com a forma apontam outras

vertentes do tempo perfazendo modalidades do ruiacutedo que emergem do tensionamento do

instantacircneo

Figura 35 - Panoracircmica da seacuterie Extremo horizonte (Dirceu Maueacutes 2012)

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

Figura 36 - Panoracircmicas da seacuterie Extremo horizonte (Dirceu Maueacutes 2013)

Fonte Reproduccedilatildeo de Maueacutes (2015)

143

Ao discutir a retomada de processos claacutessicos da imagem fotoquiacutemica na atualidade

Fatorelli e Carvalho (2015) atestam que ao contraacuterio de um ingecircnuo tributo a seus usos

tradicionais a fotografia contemporacircnea baseia-se em muitos casos em seus proacuteprios recursos

teacutecnicos afirmando ao mesmo tempo uma independecircncia com relaccedilatildeo a quaisquer condiccedilotildees

precedentes agrave imagem sem contudo abandonar totalmente o laccedilo com o referente Essa tocircnica

encontramos nas obras de Guimaratildees e Maueacutes em seus diferentes modos operativos da pinhole

ambos procedendo a experiecircncias que colocam a imagem num verdadeiro ldquoterritoacuterio

intermediaacuterio de inuacutemeras nuances e gradaccedilotildees situado entre a abstraccedilatildeo metafoacuterica e a

reproduccedilatildeo literalrdquo (FATORELLI amp CARVALHO 2015 p51)

Conforme adiantamos o diaacutelogo entre formas de expressatildeo centradas na imagem

engloba experiecircncias com teacutecnicas fotograacuteficas e recursos oriundos do cinema e tambeacutem do

viacutedeo Se em Extremo horizonte haacute um flerte com o movimento cinematograacutefico a partir de

esteacuteticas que expressam o movimento do proacuteprio equipamento o resultado permanece ainda

circunscrito ao domiacutenio da fotografia como imagem-objeto em trabalhos como Feito poeira ao

vento (2006)86 as pinhole satildeo utilizadas para a montagem de um viacutedeo que mostra uma

conhecida feira paraense A imagem transita da imobilidade da pinhole em direccedilatildeo ao viacutedeo em

velocidades variaacuteveis entre a lentidatildeo e a rapidez Elas adquirem um ldquoefeito cinemardquo (PARENTE

2015) que nos deixa perceber se tratarem de fotografias animadas O proacuteprio Maueacutes (2012)

refere-se a essa proposiccedilatildeo como um ldquocinema mancordquo porque notamos lacunas temporais

interrupccedilotildees com cortes bem marcados chamando a atenccedilatildeo para a quebra da ilusatildeo de um

movimento contiacutenuo uma sensiacutevel mudanccedila de luz atestando os diferentes momentos do dia

capturados por vaacuterias cacircmeras (30 pinholes efetuando um giro de 360 graus produzindo mais de

900 imagens) os corpos de feirantes e transeuntes os veiacuteculos aparecendo e desaparecendo Eacute

um viacutedeo no qual o processo de elaboraccedilatildeo eacute sentido na proacutepria maneira de apresentaccedilatildeo ao

espectador Segundo Parente (2015 p77-78) embora a realizaccedilatildeo desse trabalho demande um

planejamento bastante sofisticado (construccedilatildeo das cacircmeras posicionamento coordenaccedilatildeo da

captura etc) apoacutes a organizaccedilatildeo dessa estrutura toda eacute o acaso que domina a cena como parte de

um processo notadamente artesanal natildeo interessando a imagem perfeita mas sim os seus ruiacutedos e

imprevistos suas interrupccedilotildees o fade expliacutecito86 Disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=7iqFdY5vD8c Acesso em 20012020

144

Figura 37 - Vista da videoinstalaccedilatildeo Em um lugar qualquer - Outeiro em 2011

Fonte Reproduccedilatildeo de Maueacutes (2012)

Aqui jaacute observamos um movimento de mudanccedila do estatuto da imagem na direccedilatildeo de

sua desmaterializaccedilatildeo atraveacutes do formato viacutedeo procedimento que se intensifica nas instalaccedilotildees

como Em um lugar qualquer Outeiro (2009) (figura 37) na qual as fotografias satildeo empregadas

como projeccedilotildees montadas de forma a criar uma nova organizaccedilatildeo espacial do lugar retratado

uma praia vista atraveacutes dos registros de cacircmeras montadas sobre uma base hexagonal Mais uma

vez a construccedilatildeo da obra ativa a estrutura da imagem moacutevel sendo ao mesmo tempo fotografia

O mecanismo da instalaccedilatildeo impressiona

170 cacircmeras pinhole construiacutedas a partir de pequenas caixas de foacutesforos foram divididasentre seis fotoacutegrafos posicionados no interior de uma base hexagonal Cada fotoacutegrafotomava uma sequecircncia de fotografias na direccedilatildeo do horizonte apoiando as cacircmeras emcada um dos lados do hexaacutegono Cada sequecircncia era animada e assim tiacutenhamos seisviacutedeos que juntos lado a lado formando uma vista panoracircmica em 360 graus da praia(MAUEacuteS 2015 p43)

Tais trabalhos mostram constantemente uma vontade de repensar os lugares atribuiacutedos agraves

diversas modalidades da imagem uma tocircnica bastante forte na arte contemporacircnea Nessas zonas

de aproximaccedilatildeo entre foto viacutedeo e cinema encontram-se uma seacuterie de ruiacutedos surgidos de

experiecircncias que aleacutem de proporem novas sensibilidades tambeacutem servem para repensar

criticamente os usos convencionais das tecnologias

Figura 38 - Quimigramas da seacuterie (In)certa paisagem imaginaacuterio de luz e prata (Dirceu Maueacutes 2017)

145

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Figura 39 - Quimigramas da seacuterie (In)certa paisagem imaginaacuterio de luz e prata (Dirceu Maueacutes 2017)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Na interface entre processos fotograacuteficos desenho e pintura o artista paraense

desenvolveu um trabalho chamado (In)certa paisagem imaginaacuterio de luz e prata (2017)

146

(figuras 38 39 e 40) atraveacutes da teacutecnica do quimigrama87 Este procedimento consiste em deixar o

papel fotograacutefico sofrer livremente a accedilatildeo dos quiacutemicos fotograacuteficos revelador ldquostoprdquo (banho de

parada) e fixador A imagem forma-se a depender da quantidade intensidade e ordem das

substacircncias aplicadas e tambeacutem de acordo com a regularidade dos movimentos que o fotoacutegrafo

executa para que os quiacutemicos deslizem sobre a superfiacutecie do papel Assim como em outras obras

haacute um interessante jogo entre o domiacutenio da teacutecnica e a impossibilidade de controlar totalmente o

resultado Numa mesma imagem o estilo das manchas que ficam no papel varia entre tonalidades

mais profundas e outras mais transluacutecidas As manchas entatildeo podem assemelhar-se a pinceladas

ou agrave tinta que escorre quando se faz uma aquarela

() Eu fiz em Berlim os quimigramas O material eacute fotograacutefico Natildeo chega a serfotografia () eacute papel mas ele taacute mais para desenho e pintura Na verdade eu uso umpapel fotograacutefico velado e uso revelador e fixador como agentes de escrita de pinturade desenho Entatildeo natildeo parte de uma imagem Natildeo eacute uma imagem fotograacutefica nessesentido de um recorte de uma realidade Tem uma representaccedilatildeo mas mais ligada agravepintura ao desenho do que agrave fotografia uma coisa mais indicial Parte do zero Natildeo temimagem nenhuma Eacute como se tivesse trabalhando com nanquim sei laacute mas com ummaterial que tem um tempo de reaccedilatildeo () Ele escorre o tempo de accedilatildeo do quiacutemico nopapel ( ) eacute um tempo um pouco parecido com a gravura em metal Essa coisa da accedilatildeodo quiacutemico no suporte que vai revelando as coisas (MAUEacuteS 2017)

87 Poivert (2009) assinala a produccedilatildeo de imagens com essa teacutecnica em 1956 no trabalho do artista belga PierreCorrier

147

Figura 40 - Quimigramas da seacuterie (In)certa paisagem imaginaacuterio de luz e prata (Dirceu Maueacutes 2017)

Fonte Cortesia do artista

Aqui a ideia de paisagem imaginada sonhada e portanto construiacuteda (e por isso mesmo

incerta) guarda relaccedilatildeo tanto com a maneira como a imagem se forma aos poucos sem muito

controle nem precisatildeo e tambeacutem com o fato de que literalmente quem olha eacute que monta um

ambiente a partir de sua proacutepria imaginaccedilatildeo tambeacutem com base em referecircncias de pinturas

anteriores (que jaacute satildeo elas proacuteprias fabulaccedilotildees sobre um espaccedilo) Quer dizer estamos diante de

paisagens que nascem de outras paisagens Dividido pela linha do horizonte eacute possiacutevel sugerir

que estamos diante de um lago margeado por plantas cujos galhos apontam em direccedilatildeo ao ceacuteu

(figura 38) Podemos ver na aacutegua o reflexo desse ceacuteu de nuvens carregadas etc Ou seja eacute

preciso buscar as formas de um espaccedilo representado onde de fato soacute haacute as marcas dos quiacutemicos

Essa questatildeo nos leva a refletir sobre uma tocircnica que eacute geral nas obras sobre a paisagem

apresentadas aqui o caraacuteter elaborado construiacutedo e convencionado da paisagem como uma

externalidade que se oferece ao olhar sob determinadas regras sendo que muitas vezes nos

esquecemos desses ordenamentos e naturalizamos essa construccedilatildeo (como uma espeacutecie de

148

transferecircncia do mundo real agrave imagem) Uma condiccedilatildeo jaacute ressaltada tanto por Maueacutes quanto por

Guimaratildees em suas preocupaccedilotildees na abordagem do espaccedilo atraveacutes da imagem

Outro ponto relevante eacute que o lugar do fotograacutefico eacute reduzido a seus materiais baacutesicos

(papel e substacircncias quiacutemicas) sem a participaccedilatildeo da cacircmera O aparato desenvolvido pelo artista

eacute simples e potente no sentido de mais uma vez chamar nossa atenccedilatildeo para os automatismos no

uso das tecnologias Fotografia pintura desenho sem cacircmeras industrializadas lentes

fotocircmetro sem pinceacuteis sem telas tintas sem cavalete sem laacutepis etc Desse modo tambeacutem o

referente como condiccedilatildeo precedente agrave imagem se vecirc expulso do processo Esse trabalho

questiona a proacutepria noccedilatildeo de paisagem como duplo de um real contenda que tanto assombra a

fotografia Uma seacuterie de questotildees apontando para os ruiacutedos criados com base na exploraccedilatildeo das

materialidades disponiacuteveis

A teacutecnica dos quimigramas eacute utilizada tambeacutem nas investigaccedilotildees do fotoacutegrafo Joseacute Luiacutes

Neto na seacuterie Classic 111 (figuras 41 e 41a) No entanto o resultado alcanccedilado eacute diferente Se o

artista paraense quer sugerir paisagens desenhar mundos o artista portuguecircs deixa a interaccedilatildeo

entre os materiais construir as formas sem se preocupar tanto com o gecircnero a que elas vatildeo

pertencer Seus quimigramas satildeo intencionalmente abstraccedilotildees

O quimigrama eacute algo que tu natildeo controlas agrave partida Implica sempre que tu sigas o quevai acontecendo ao papel fotograacutefico agrave medida que a imagem vai aparecendo dentro dosquiacutemicos Daiacute o importante desse lado fiacutesico das tuas matildeos com a folha Tu podesmarcar na folha os teus gestos Os quimigramas acabam por ser esse lado maisexperimental soacute com a luz papel fotograacutefico e quiacutemicos (NETO 2014)88

Conforme se apreende do exposto a teacutecnica eacute empregada para explorar os resultados

esteacuteticos da interferecircncia do fotoacutegrafo no processo que decorre da accedilatildeo das substacircncias aleacutem das

marcas que a proacutepria adiccedilatildeo dessas substacircncias jaacute provoca A valorizaccedilatildeo do gestual em cima da

coacutepia final como quem preenche uma tela cria uma ponte entre o fotograacutefico e o pictoacuterico no

que este uacuteltimo tem de singularidade de originalidade de artesania Assinale-se tambeacutem que o

artista desordena as etapas de revelaccedilatildeo-parada-fixaccedilatildeo pois ele tanto pode mergulhar o papel

primeiro no ldquostoprdquo depois no fixador no revelador ou em outra ordem qualquer inclusive

passando mais de uma vez por cada um dos quiacutemicos O quimigrama eacute uma forma de criar

88 Depoimento ao programa Entre Imagens da rede de televisatildeo RTP Disponiacutevel emhttpswwwyoutubecomwatchv=r8SQHL_Krfc Acesso em 18012020

149

imagens prescindindo de um dos elementos mais caros agrave fotografia (a luz) Esse jogo com a luz

demonstra uma vontade de levar a imagem ao limite do visiacutevel contrariando as regras habituaus

da boa fotografia questionando assim o dispositivo fotograacutefico (LENOT 2017a p45)

A teacutecnica por fim constitui uma verdadeira perversatildeo do processamento quiacutemico

utilizado na fotografia industrial e por isso mesmo traz agrave tona sempre imagens novas e

imprevisiacuteveis embora de certa forma jaacute contidas no ldquoprogramardquo do aparelho fotograacutefico

Figuras 41 e 41a - Quimigramas da seacuterie Classic 111 (Joseacute Luiacutes Neto 2006)

150

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

A partir do momento em que se abandona a preocupaccedilatildeo de referir o inteligiacutevel na

imagem abre-se o espaccedilo para uma investigaccedilatildeo voltada para o medium que busca a pura

expressatildeo da mateacuteria E na verdade essa premissa caracteriza em larga medida toda a obra desse

artista Ao observarmos seus demais trabalhos entendemos que seu interesse estaacute nas

possibilidades escondidas (ainda natildeo desvendadas ou valorizadas) nos princiacutepios que envolvem a

fotografia como a luz o tempo as caracteriacutesticas dos equipamentos o jogo entre figuraccedilatildeo e

abstraccedilatildeo Uma pesquisa devotada agraves zonas pouco ou mal exploradas do aparelho (FLUSSER

2011)

Outros trabalhos baseados na apropriaccedilatildeo de imagens constroem-se atraveacutes de uma

metodologia bastante livre o artista usa fotografias adquiridas de maneiras variadas (encontradas

nas ruas doadas por outras pessoas jaacute que ele mesmo raramente compra fotografias antigas) O

uacutenico ponto em comum eacute que todas estatildeo relacionadas agrave cidade de Lisboa (onde vive atualmente

Joseacute Luiacutes Neto) Ou seja os trabalhos constroem-se agrave medida que os materiais vatildeo se

apresentando sem que necessariamente se proceda a uma busca deliberada orientada e

planejada O material da seacuterie July 1984 (figuras 42 42a e 42b) foi encontrado abandonado

numa casa As fotos estavam coladas umas agraves outras Cada uma delas exibe vestiacutegios

provavelmente de reaccedilotildees ocorridas no material sob a accedilatildeo do tempo da umidade dos proacuteprios

quiacutemicos e do papel (jaacute que esse material natildeo estava armazenado em condiccedilotildees ideais) Essa

151

combinaccedilatildeo de fatores criou interessantes efeitos cromaacuteticos em manchas distribuiacutedas na

superfiacutecie de cada foto A escolha de preservar essas caracteriacutesticas indica certo despojamento

que atribui um valor plaacutestico aos vestiacutegios da proacutepria deterioraccedilatildeo dos materiais Assim uma

esteacutetica de precariedade se faz presente nesse trabalho Na fase de impressatildeo para o livro

Caderno de imagens (onde encontramos a seacuterie) o fotoacutegrafo percebeu detalhes que natildeo

estavam (aparentes) nas fotos elementos revelados por causa da impressatildeo ldquoNa imagem

transferida haacute pormenores que () natildeo aparecem no original Quando tu olhas pra esta imagem

haacute uma crianccedila que aponta para o chatildeo e tu vais perceber que o mosaico eacute o negativo ()rdquo

(NETO 2014)

Figura 42 42a 42b - Imagens de July 1984 (Joseacute Luiacutes Neto2012)

152

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

No procedimento de vaacuterias etapas de desgaste da imagem vemos personagens e espaccedilos

praticamente sumirem encobertos pelas manchas como que invocando um processo de

deterioraccedilatildeo (que ocorre em qualquer material) e tambeacutem nos dizendo que a imagem eacute tambeacutem

uma impermanecircncia localizandp-se ainda na fronteira no limiar entre a figuraccedilatildeo e o abstrato

As pessoas deixam de ser a temaacutetica para simplesmente dar lugar agraves manchas que vatildeo se

espalhando pela superfiacutecie da imagem fazendo-se presente em toda a sua extensatildeo ateacute se

tornarem elas mesmas o assunto da seacuterie

Esse princiacutepio que coloca em evidecircncia a articulaccedilatildeo entre materiais gerando uma

esteacutetica calcada nos vestiacutegios dos materiais empregados eacute intensificado na outra seacuterie que

compotildee o livro de artista Caderno de Imagens que se chama High Speed Press Plate (2006)

(figura 43) O fotoacutegrafo utiliza negativos de vidro digitaliza-os e depois faz impressotildees em papel

(CAMACHO online 2007) Partindo de matrizes jaacute processadas com formas jaacute desfeitas o que

sobram satildeo novamente manchas Na passagem de negativo para digital ateacute a finalizaccedilatildeo com

impressatildeo em papel cada um desses suportes deixa na imagem vestiacutegios que funcionam como

camadas acumuladas criando uma esteacutetica hiacutebrida O tiacutetulo da seacuterie eacute irocircnico considerando que

153

o processo de realizaccedilatildeo de negativos em vidro tem vaacuterias etapas de produccedilatildeo Por exemplo nas

wet plates ou coloacutedio uacutemido89 (um tipo de processo que utiliza em negativos de vidro) a

sensibilizaccedilatildeo das placas necessita entre 1 minuto e meio e 3 minutos de imersatildeo na substacircncia

fotossensiacutevel O tempo de exposiccedilatildeo pode variar de alguns segundos a 2 minutos90 Mas com essa

etapa jaacute vencida (pois Neto utiliza imagens jaacute prontas) esse tempo mais lento do coloacutedio eacute

submetido ao extremo automatismo da digitalizaccedilatildeo para em seguida encontrar de novo relativa

permanecircncia no formato de saiacuteda em papel

Figura 43 - High Speed Press Plate 1 (Joseacute Luiacutes Neto 2006)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Os trabalhos de Joseacute Luiacutes Neto satildeo de fato comentaacuterios interrogaccedilotildees sobre o meio

fotograacutefico seus gecircneros estatutos sociais e conceitos seus limites e expansotildees teacutecnicos e as

metodologias que ele cria evocam uma simplicidade no fazer que nos leva a pensar a respeito dos

princiacutepios mais baacutesicos da imagem tais como o referente as temporalidades a inscriccedilatildeo por

meio da luz

89 Wet plates ou placas uacutemidas satildeo as fotografias que utilizam o coloacutedio uacutemido como ligante para o suporte daimagem (de vidro) Satildeo tambeacutem chamadas de ambroacutetipos90 Gold Jens The Ambrotype Wet Collodion Positives on Glass Treatment Challenges on Complex Nineteenth-Century Photographic Objects Dissertaccedilatildeo de mestrado Universidade de Oslo - Departamento de ArqueologiaConservaccedilatildeo e Histoacuteria - Faculdade de Humanidades 2018 p26-28

154

Eu acho que a fotografia eacute um meio fantaacutestico no sentido de que natildeo haacute propriamentelimites Os meus trabalhos soacute podem ser feitos em fotografia Eacute o meio de que eu maisgosto mas tambeacutem aquele que eu mais domino E eu natildeo sei fazer outra coisa Eacute o meioque vai de encontro agraves minhas preocupaccedilotildees agraves minhas ideias agrave minha imaginaccedilatildeo Eacute alinguagem ideal para eu poder construir os meus trabalhos autorais () No meutrabalho nunca dei prioridade a formatos exceto que tenho uma grande admiraccedilatildeo pelolado da barra da tira (NETO 2014)

As barras ou tiras satildeo o elemento baacutesico de estruturaccedilatildeo de um trabalho bastante

peculiar Na verdade um retrato Agrave semelhanccedila do que faz Maueacutes com as panoracircmicas o artista

portuguecircs criou um mecanismo para movimentar o filme dentro da cacircmera enquanto capturava a

imagem de um muacutesico Um motor foi acoplado agrave maacutequina que garante o avanccedilo do negativo a

uma velocidade constante (RODRIGUES 2017)91 enquanto o retratado olhava a lente por um

tempo aproximado de 3 minutos A imagem eacute um compoacutesito de linhas verticais coloridas

resultante de um registro feito por varredura o que torna qualquer tentativa de identificar uma

fisionomia inviaacutevel Um retrato que nasce da dissoluccedilatildeo da forma (Chromatic Fantasy 2002)

Figura 44 - Detalhe de Chromatic Fantasy (Joseacute Luiacutes Neto 2002)

Fonte Reproduccedilatildeo site Projecto MAP92

91 Jaacute citamos aqui o trabalho de Paolo Gioli como partidaacuterio da mesma metodologia de avanccedilo do negativo paracaptura por varredura Nesse sentido nota-se uma grande semelhanccedila entre as obras Natildeo 1 de Joseacute Luiacutes Neto(httpwwwjoseluisnetopten01-01-00html) e a seacuterie Crosswise natures de Gioli(httpwwwrevistasuspbrsignificacaoarticleview148839154304) Acesso em 1002202092 Disponiacutevel em httpwwwprojectomapcom Acesso em 10022020

155

Figura 45 - Vista da instalaccedilatildeo Chromatic phantasy (Joseacute Luiacutes Neto 2002)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Em Chromatic phantasy (2002) (figuras 44 e 45) e outras obras semelhantes como

Continuum (2005)93 Brgycm (1993)94 haacute ainda uma proposta de reflexatildeo sobre a gecircnese da

exposiccedilatildeo fotograacutefica ou seja que configuraccedilotildees (supostamente) podem surgir quando

repensamos a maneira de expor a superfiacutecie fotossensiacutevel segundo certas condiccedilotildees de

iluminaccedilatildeo tempo de captura etc Que possibilidades podemos encontrar se criamos nossos

paracircmetros especiacuteficos jogando com as expectativas sobre o funcionamento ldquoadequadordquo do

equipamento

De maneira geral os trabalhos de Joseacute Luiacutes Neto demonstram uma inclinaccedilatildeo agrave

abstraccedilatildeo que nasce de uma intenccedilatildeo exploratoacuteria dos recursos das maacutequinas e dos insumos e

resultam numa esteacutetica bastante minimalista Eles tambeacutem nos permitem ver de perto a estrutura

compositiva do negativo as texturas das coacutepias os vestiacutegios dos quiacutemicos ou seja potildeem a nu a

mateacuteria da imagem Todas essas questotildees e a maneira como satildeo exploradas levam-nos de volta ao

tema do ruiacutedo no territoacuterio da imagem pela conexatildeo com a expressatildeo da mateacuteria dando-se de

forma erraacutetica e por vezes imprevisiacutevel e isso nos mais diferentes recursos empregados pelos

artistas de nosso corpus

93 Disponiacutevel em httpwwwjoseluisnetopten01-07-00html Acesso em 0804202094 Disponiacutevel em http2132391972268800listObrasjspid_obra=927 Acesso em 08042020

156

46 CONTROLE EFICIEcircNCIA E DISPOSITIVOS

Conforme adiantamos brevemente o estudo de Hainge (2013) aposta numa

compreensatildeo ampla do ruiacutedo natildeo restringindo a compreensatildeo do tema ao campo das artes muito

menos ao acircmbito sonoro O ruiacutedo estaria em tudo

Sugeri que o ruiacutedo eacute o artefato de uma ontologia expressiva assinalando o movimentonecessaacuterio que subsiste em todo ser seja num niacutevel subatocircmico existencial filosoacuteficoquacircntico ou individual O ruiacutedo entatildeo eacute aquilo que desmorona o mundo de uma fixidezilusoacuteria agrave qual nos agarramos numa tentativa de manter as coisas no lugar separarelementos uns dos outros e elevarmo-nos acima do ldquomundo natural95 (HAINGE 2013p68)

A concepccedilatildeo do ruiacutedo como algo positivo ldquoexpressivordquo demonstra o interesse nos

processos de fluxo produccedilatildeo de diferenccedila ruptura de paradigmas e especialmente nas

articulaccedilotildees entre seres humanos e tecnologias questotildees cruciais para a discussatildeo proposta nesta

tese Mas o autor natildeo estaacute sozinho nessa interpretaccedilatildeo

Mark Nunes (2011) ndash organizador de uma seacuterie de textos relacionados ao papel do erro e

do ruiacutedo nas praacuteticas culturais ndash lembra que esses temas se conectam com a resposta inerente a

uma ideologia do controle da precisatildeo e da maacutexima eficiecircncia caracterizadoras da sociedade

atual Sua abordagem parte de uma concepccedilatildeo de ruiacutedo ligada agrave ciberneacutetica preocupada com a

emergecircncia do erro no acircmbito dos sistemas informaacuteticos da cultura digital dos procedimentos e

estrateacutegias utilizados no universo de uma sociedade conectada em rede Por isso mesmo enfatiza

que vivemos sob uma ldquoideologia do controle informaacuteticordquo uma loacutegica que demanda uma

performance livre de falhas e na qual o erro demonstra exatamente a fuga desse padratildeo pois

funciona como

() Uma estrateacutegia potencial de desorientaccedilatildeo e evoca uma loacutegica de controle para criaruma abertura agrave variaccedilatildeo ao jogo e a resultados natildeo intencionais O erro como domiacutenioerrante sugere maneiras pelas quais o defeito a falha e a maacute comunicaccedilatildeoproporcionam aberturas criativas e linhas de voo que permitem uma reconceituaccedilatildeo do

95 Traduccedilatildeo livre de ldquoI have suggested in the introduction that noise is the artefact of an expressive ontologysignaling the necessary movement that subsists in all being whether this be at a subatomic existentialphilosophical quantum or individual level Noise then is that which unmoors the world from the illusory fixity towhich we tie down in an attempt to keep it in place to separate its elements out of each other and elevate ourselvesabove the lsquonatural worldrsquordquo

157

que pode (ou natildeo) ser realizado nas praacuteticas sociais e culturais existentes96 (NUNES2011 p3-4)

O pesquisador exalta a capacidade de o ruiacutedo abrir novos caminhos expressivos

contribuindo para alterar modelos esteacuteticos ligados por exemplo a ideais como beleza

equiliacutebrio pureza ou mesmo organizaccedilatildeo que simbolicamente estatildeo incorporados como valores

para o campo da arte e sintomaacuteticos de certos movimentos artiacutesticos97 Apropriar-se do caraacuteter

desagregador do ruiacutedo para sugerir a emergecircncia de esteacuteticas ldquosujasrdquo ldquocaoacuteticasrdquo ldquoindefinidasrdquo

ldquoexperimentaisrdquo (e sua legitimaccedilatildeo) representa uma proposiccedilatildeo que encontra paridade tambeacutem

nas correntes filosoacuteficas que refletem sobre o papel central da tecnologia nas relaccedilotildees humanas

A aposta no ruiacutedo como catalisador de esteacuteticas complexas fluidas e abertas estaacute intimamente

relacionada ao pensamento de nomes como Gilles Deleuze Feacutelix Guattari Vileacutem Flusser (jaacute

citado) cujos apontamentos diagnosticaram o ambiente da comunicaccedilatildeo em rede dos circuitos

informaacuteticos de uma certa acessibilidade ampliada agrave informaccedilatildeo como caracterizadores das

sociedades contemporacircneas sem perder de vista a potecircncia de reescritura subversatildeo e sabotagem

escondidas nessas mesmas tecnologias e como isso poderia efetivar-se atraveacutes de uma relaccedilatildeo

natildeo-hieraacuterquica entre seres humanos e dispositivos Um aproveitamento das teacutecnicas feito na

base da desconstruccedilatildeo de ordenamentos em favor da criatividade de pensar atraveacutes da arte um

espaccedilo de questionamento de paracircmetros formais de modelos societaacuterios e tambeacutem dos

pressupostos filosoacuteficos que servem de referecircncia a todas essas normatizaccedilotildees

96 Traduccedilatildeo livre de ldquo() a potential for a strategy of misdirection one that invokes a logic of control to create anopening for variance play and unintended outcomes Error as errant heading suggests ways in which failureglitch and miscommunication provide creative openings and lines of flight that allow for a reconceptualization ofwhat can (or cannot) be realized within existing social and cultural practicesrdquo97 Desde o advento do fotograacutefico houve natildeo apenas uma disputa pelo protagonismo da invenccedilatildeo da fotografia(embora natildeo se possa atribuir a um uacutenico personagem esse papel) mas tambeacutem relaccedilotildees desiguais de prestiacutegio ouvalorizaccedilatildeo (e mesmo viabilidade comercial) entre tecnologias de acordo com as esteacuteticas dessas teacutecnicas estaremem maior ou menor grau sintonizadas com a agenda epistemoloacutegica da Modernidade bem como associadas agravesfuncionalidades adquiridas pela fotografia no seacuteculo XIX Por exemplo a daguerreotipia como uma imagem melhordefinida uacutenica e sua importacircncia na consolidaccedilatildeo do gecircnero retrato explicam em parte porque o nome de LouisJacques Mandeacute Daguerre (1787-1851) eacute quase sempre mais citado do que os de seus contemporacircneos HippolyteBayard (1801-1887) ou William Henry Fox-Talbot (1800-1877) que desenvolveram respectivamente as impressotildeesem papel (positivo direto) e as photogenic drawings Essas teacutecnicas possuem nitidez e permanecircncia bem menores secomparadas ao daguerreoacutetipo e por isso mesmo mais distantes da precisatildeo associada agrave racionalidade cientiacuteficadaquela eacutepoca Essa agenda modernista seraacute determinante para caracterizar aquilo que Fatorelli (2006) considerauma fotografia ldquopura e diretardquo cuja influecircncia podemos identificar por exemplo nas premissas do grupo f64 domovimento da Nova Objetividade e no fotodocumentarismo da primeira metade do seacuteculo XX ou ainda na straightphotography

158

47 ERRO OU RUIacuteDO

Nunes (Ibidem) faz uma pequena genealogia do termo ldquoerrordquo mapeando suas

conotaccedilotildees nos seacuteculos XVI XVII e XVIII todas elas negativas e relacionadas a movimentos de

desvio Bem se tais periacuteodos histoacutericos satildeo influenciados pela batalha filosoacutefica entre mente e

corpo na qual o intelecto humano assume uma posiccedilatildeo dominante o erro e o ruiacutedo natildeo poderiam

ser vistos com bons olhos ldquoNo Iluminismo argumenta Deleuze o ldquoerrordquo funciona como um

conceito delimitador para categorizar qualquer imagem de pensamento que natildeo se coordene com

a imagem ortodoxa do pensamento como um reconhecimento da verdaderdquo (NUNES 2011

p9)98

O autor sugere uma discussatildeo em torno de uma ldquopoeacutetica do ruiacutedordquo abrangendo o

conjunto de procedimentos e obras que se valem do ruiacutedo como efeito revelador de visualidades

estranhas diferenciais e capazes de mexer com expectativas e paradigmas da esfera artiacutestica

Como se a ldquopoeacutetica do ruiacutedordquo99 assinalasse um esforccedilo de tensionamento dos paracircmetros

esteacuteticos introduzindo como valor aquilo que antes fora negligenciado Para tanto seria

necessaacuterio dirigir nossa atenccedilatildeo agraves estrateacutegias de combinaccedilatildeo dos meios e de que forma as

tecnologias podem voltar-se contra si mesmas

Figura 46 - New York City (Lee Friedlander1966)

98 Traduccedilatildeo livre deldquoWithin the Enlightenment Deleuze argues ldquoerrorrdquo functions as a delimiting concept tocategorize any image of thought that does not coordinate with the orthodox image of thought as a ldquorecognitionrdquo oftruthrdquo99 Para um melhor entendimento sobre como se desenvolve a ideia de poeacutetica do ruiacutedo ver Nunes 2011 p3-23

159

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Especificamente no campo do fotograacutefico Cheacuteroux (2009) defende o erro como ponto

de partida para diversos artistas desenvolverem suas obras levando a proacutepria miacutedia fotograacutefica a

seus limites Sua concepccedilatildeo do erro estaacute relacionada exatamente a paracircmetros de qualidade

instituiacutedos pela induacutestria fotograacutefica e que foram largamente disseminados em manuais e

consolidados no imaginaacuterio dos usuaacuterios Para o autor agrave medida que os erros comeccedilam a ser

incorporados por artistas eles passam a habitar o universo das inovaccedilotildees fotograacuteficas

abandonando uma conotaccedilatildeo explicitamente negativa Por exemplo ele cita a presenccedila da sombra

de quem opera a cacircmera na imagem como um dos erros mais comuns entre amadores que no

entanto tornou-se um recurso para inscriccedilatildeo de autoria (uma afirmaccedilatildeo da presenccedila de um sujeito

ativo no processo fotograacutefico) sobretudo no contexto das vanguardas artiacutesticas europeias

empregado por Moholy-Nagy por exemplo e que encontramos tambeacutem na fotografia de Lee

Friedlander (figura 46)

O que antes era apenas um defeito tornou-se uma estrateacutegia para contrariar a suposta

objetividade fotograacutefica (associada a certa frieza do dispositivo) mas tambeacutem uma manifestaccedilatildeo

da proacutepria teacutecnica Aleacutem disso se a luz conteacutem a sombra (BAXANDALL 1977) que surge por

um esforccedilo de intencionalidade ela pode ser considerada um ruiacutedo (algo contido poreacutem nem

sempre manifesto) o que nos leva a enxergar uma aproximaccedilatildeo entre os termos ldquoruiacutedordquo e ldquoerrordquo

de uma perspectiva teoacuterica da fotografia (aleacutem da proposta de Nunes no acircmbito da ciberneacutetica)

Embora o erro esteja associado agrave ideia de falha de mal funcionamento de um sistema e

o ruiacutedo seja essencialmente parte de qualquer corpo estrutura enfim universo expressivo (o que

aparentemente faria do primeiro um ldquodefeitordquo e do segundo um ldquoefeitordquo) esses dois conceitos

natildeo estatildeo assim tatildeo distantes porque a ocorrecircncia do erro eacute uma presenccedila ldquovirtualrdquo que se

ldquoatualizardquo (DELEUZE 1999)100 sob determinadas condiccedilotildees e logicamente sua configuraccedilatildeo

100 Ao contraacuterio de uma relaccedilatildeo negativa o pensamento deleuziano considera o par virtualautal a partir de umarelaccedilatildeo de potecircncia contida de algo em vias de se expressar (natildeo como externalidade) mas como parte constituinteda proacutepria coisa Entendemos que o erro como parte integrante de quaisquer sistemas pode ou natildeo se materializarprovocar impactos nesses sistemas e mesmo que natildeo o faccedila conserva-se como presenccedila Eacute a partir desta ideia que sefaz a associaccedilatildeo entre o erro e o ruiacutedo e as noccedilotildees de virutalautal em Deleuze Craia (2009) faz uma anaacutelise dovirtual em interlocuccedilatildeo com temas importantes do pensamento deleuziano (como as questotildees da diferenccedila e daontologia) recuperando a influecircncia do pensamento de Henri Bergson nesse sentido Deleuze (1999) em seu livrodedicado agrave filosofia bergsoniana discorre sobre as relaccedilotildees entre virtual e atual

160

depende das caracteriacutesticas intriacutensecas a um dado sistema mediante intervenccedilatildeo de algo (ou

algueacutem)

De volta agrave fotografia na abordagem de Cheacuteroux (Ibidem) a utilizaccedilatildeo de todo um

ldquorepertoacuterio de errosrdquo ndash que inclui desfoque tremulaccedilotildees descentralizaccedilatildeo de motivos

deformaccedilotildees sobreposiccedilotildees reflexos mal uso do flash efeito lsquoolhos vermelhosrsquo saturaccedilatildeo das

cores ndash de modo criativo delimita certa divisatildeo entre o universo das praacuteticas vernacular e

artiacutestica

Toda fotografia eacute julgada de maneira diferente segundo o lugar no qual se exibe aimagem segundo as matildeos nas quais se encontra e sobretudo de acordo com os olhos dequem a contempla A apreciaccedilatildeo (sobre os erros) varia por exemplo segundo a filiaccedilatildeodo autor ndash e por extensatildeo daquele que observa ndash a uma das seguintes categorias artistasamadores ou profissionais101 (CHEacuteROUX 2009 p47)

Concordamos que esta divisatildeo entre amadores e artistas eacute relevante na medida em que a

identificaccedilatildeo do erro na fotografia transfere-se de uma conotaccedilatildeo meramente negativa para referir

um valor esteacutetico poreacutem atualmente haacute um entendimento partilhado entre essas duas categorias

sobre a noccedilatildeo de erro como um elemento surpresa acolhido com simpatia quando passa a figurar

na imagem De algum modo a natureza plural que caracteriza a imagem contemporacircnea jaacute

permite que mesmos erros ldquoclaacutessicosrdquo como os apontados pelo autor sejam considerados parte

de uma certa zona de indeterminaccedilatildeo do dispositivo que mesmo os amadores jaacute natildeo se recusam a

aceitar exatamente porque no escopo da arte jaacute se encontram reconhecidos e incorporados

Fontcuberta (online 2010)102 identifica que nos uacuteltimos anos os resultados mais

interessantes em criaccedilatildeo fotograacutefica emergem dos usos vernaculares da imagem natildeo associados agrave

ideia de qualidade o que para ele enseja uma renovaccedilatildeo visual Aprofundando-se nesse debate

Piper-Wright (2018) estuda as diversas motivaccedilotildees de ordem subjetiva e suas relaccedilotildees com o

pensamento teoacuterico-filosoacutefico sobre a miacutedia fotograacutefica que explicam a presenccedila e valorizaccedilatildeo do

erro fora do circuito artiacutestico ou seja entre usuaacuterios comuns Para tanto vem desenvolvendo um

projeto chamado In Pursuit of Error103 no qual recebe imagens enviadas por amadores Imagens

101 Traduccedilatildeo livre de ldquoToda fotografia es juzgada de manera diferente seguacuten el lugar en el cual se muestra laimagen seguacuten las manos en las que se encuentra y sobre todo de los ojos que la miran La apreciacioacuten variacuteaporejemplo seguacuten la pertenencia del autor - y por extensioacuten del que la observa - a una de las siguientes categoriacuteasartistas aficionados o profesionalesrdquo102 Disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=LCByiio0adQ Acesso em 10022020103 Imagens e tambeacutem com a produccedilatildeo teoacuterica da autora sobre o tema do erro na fotografia contemporacircnea estatildeo nosite do projeto httpsinpursuitoferrorcouk Acesso em 30012020

161

que ldquoderam erradordquo Para ela a fotografia significa um agenciamento complexo entre as

intenccedilotildees humanas e o funcionamento do equipamento e nessa interrelaccedilatildeo haacute um espaccedilo de

abertura invadido de certa maneira pelas circunstacircncias espaccedilo-temporais do ato fotograacutefico

Nesse espaccedilo eacute que o erro digamos assim toma corpo

O erro abre um espaccedilo paradoxal entre a maacutequina e o humano e apresenta esse espaccedilocomo lacuna uma aporia nas convenccedilotildees da praacutetica fotograacutefica tecnoacutelogica eculturalmente Essa aporia eacute uma zona rica em imaginaccedilatildeo surpresa e desconhecimentoque tem sido explorada em si mesma por artistas ao longo dos anos104 (PIPER-WRIGHT Ibidem p1)

Comparando imagens e relatos de usuaacuterios a autora percebe que seja o erro causado por

mal funcionamento do equipamento ou accedilotildees natildeo planejadas pelos usuaacuterios externas ao medium

para eles a causa eacute menos importante do que o resultado e a tendecircncia dominante eacute as imagens

natildeo serem descartadas Ela distingue dois tipos de erro os acidentais e os resultantes da

manipulaccedilatildeo do equipamento Os primeiros seriam causados por uma subjetividade maquiacutenica

atuando sem o controle nem conhecimento preciso do usuaacuterio do que se passa internamente no

dispositivo Jaacute os outros vecircm agrave tona com a intenccedilatildeo de subversatildeo do ldquoprogramardquo da cacircmera

(FLUSSER 2011) Se tanto artistas quanto amadores satildeo capazes de enxergar o caraacuteter

diferencial do erro como elemento criativo o que distingue essas duas categorias de praticantes

da fotografia seria no caso dos primeiros o fato de o erro emergir (curiosamente) em meio a

processos de domiacutenio bastante razoaacutevel da tecnologia e de constante tensionamento do

dispositivo como parte integrante de procedimentos deliberados O que natildeo se verificaria em

relaccedilatildeo aos fotoacutegrafos amadores

O erro deliberado usa a cacircmera contra ela mesma pertubando os paracircmetros para que seproduza o erro na imagem Enquanto haacute determinadas accedilotildees que podem ser previstastambeacutem haacute situaccedilotildees em que o conhecimento de determinado resultado eacute parcial Eu seique reduzindo a velocidade do obturador obtenho um borratildeo mas natildeo posso prever oresultado da imagem apenas com base nessa intervenccedilatildeo A situaccedilatildeo que estaacute sendofotografada bem como a luz e o tempo contribuem com elementos adicionais eimprevisiacuteveis para o resultado105 (PIPER-WRIGHT Ibidem p5)

104 Traduccedilatildeo livre de ldquoThe photographic error opens up a paradoxical space between machine anda human andpresents this space as a gap an aporia in the conventions of photogrpahic practice both technologically andculturally This aporia is a rich space of wonder surprise and not-knowing which in itself has been explored byartists for many yearsrdquo105 Traduccedilatildeo livre de ldquoThe deliberate error uses the camera against itself disrupting the settings in order to producean error image While there are certain actions which can be predicted it is also the case that knowledge of aproposed outcome can only be partial I might know that reducing the shutter speed will produce blur but I cannotpredict what the resulting image will look like based on that intervention alone The situation been photographed aswell as light and time will all contribute additional unforseen elements to the resulting photographrdquo

162

Estas reflexotildees sobre uma zona de fricccedilatildeo entre o controle e a imprevisibilidade

envolvendo a noccedilatildeo de erro ressoam as concepccedilotildees dos artistas incluiacutedos nesta tese sobre a

interaccedilatildeo destes com as tecnologias da imagem mesmo que o estudo de Piper-Wrtight em

questatildeo seja dirigido a fotoacutegrafos amadores Para noacutes seja nas fotografias de amadores ou no

campo da arte o erro expotildee o caraacuteter processual da fotografia (PIPER-WRIGHT Ibidem) algo

percebido igualmente por amadores e artistas pois que todos reconhecem esse espaccedilo de

liberdade presente na nossa relaccedilatildeo com as miacutedias sendo capazes de entender a manifestaccedilatildeo

desse caraacuteter processual como um valor esteacutetico

Para aleacutem dos debates sobre apropriaccedilotildees de amadores ou artistas interessa-nos aqui a

variabilidade de abordagens que exprimem a concepccedilatildeo esteacutetica do erro do ruiacutedo e da falha nas

obras contemporacircneas que pertencem ao universo das tecnoimagens (FLUSSER 2008) em

especial na relevacircncia que estas vecircm adquirindo nos anos recentes como verdadeiras

problematizaccedilotildees de paradigmas centrais para o campo da fotografia Nesse sentido o estudo de

Cheacuteroux oferece outras contribuiccedilotildees que se alinham aos trabalhos presentes em nosso corpus

Em muitos dos exemplos trazidos em seu livro ele ressalta o potencial dos artistas para

criar imagens que brincam com as noccedilotildees de verossimilhanccedila e o mimetismo Segundo o autor o

erro tambeacutem se relaciona com a alteraccedilatildeo da funccedilatildeo mimeacutetica da fotografia (CHEacuteROUX 2009

p188) ndash tema largamente explorado pelos movimentos da vanguarda artiacutestica europeia de

meados de 1920 nas aproximaccedilotildees com o medium fotograacutefico106 ndash originando trabalhos em que

muitas vezes nem eacute mais possiacutevel reconhecer os traccedilos caracteriacutesticos dos objetos ou mesmo de

um rosto Estes podem desfazer-se em linhas pontos pixels deixando agrave mostra os elementos

miacutenimos formadores da imagem que passam a ocupar o centro de nossa atenccedilatildeo (em detrimento

da funccedilatildeo de reconhecimento das formas)

48 ldquoA TECNOIMAGEM Eacute FEITA DE PONTOS GRAtildeOS E PIXELSrdquo

As imagens que compotildeem o trabalho 22474 (2000) de Joseacute Luiacutes Neto figuras 48 e 49

satildeo um bom exemplo dessa perturbaccedilatildeo da mimeses Cada uma das imagens satildeo recortes rostos

isolados de originais produzidos em negativo de vidro de autoria do fotojornalista Joshua

Benoliel (1873-1932) As imagens das quais Joseacute Luiacutes Neto se apropria fazem parte do acervo do

106 A influecircncia desses movimentos eacute sempre lembrada por autores (FATORELLI 2013 BAIO2015 JUNIOR2002)que discutem a abertura os hidridismos e uma atitude questionadora frente aos meios e modelos esteacuteticos e acabamfuncionando como um legado para as geraccedilotildees de artistas posteriores

163

Arquivo Municipal de Lisboa Elas satildeo registros de uma norma (abolida logo apoacutes a tomada

destas imagens) adotada na penitenciaacuteria da capital portuguesa que determinava o uso de capuz

pelos detentos As fotos de Benoliel (figura 47) satildeo tomadas como ponto de partida de uma

investigaccedilatildeo dirigida ao proacuteprio suporte

Figura 47 - 22474 de Joshua Benoliel

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

Se na imagem de Benoliel os sujeitos jaacute estavam reduzidos sob a violecircncia de um capuz

(ali a morte de qualquer singularidade de identidade jaacute se anunciava) o movimento que nos

conduz ao gratildeo da foto aprofunda essa ideia atingindo um verdadeiro esvaziamento pois os

rostos vatildeo se desfazendo em pontos O nuacutemero ldquo22474rdquo faz referecircncia agrave numeraccedilatildeo da imagem

que consta nos registros de arquivamento Toma-se a impessoalidade dos nuacutemeros para transmitir

a frieza do ato de despersonalizar os indiviacuteduos que desaparecem primeiro sob os capuzes que a

todos igualam para depois sumirem novamente na miriacuteade de gratildeos de um segundo negativo

Sim jaacute que os negativos de Benoliel foram refotografados em negativo de celuloacuteide apoacutes a

seleccedilatildeo cuidadosa das aacutereas onde se encontram os rostos As coacutepias finais satildeo ampliaccedilotildees em

tamanho 41 x 31 cm Em comparaccedilatildeo com os originais que medem 9 x 12 cm a escala altera-se

significativamente

164

Joseacute Luiacutes Neto retirou os detentos da cadeia e construiu uma galeria de perturbadoras

cabeccedilas de aspecto fantasmagoacuterico Essa obra faz-nos lembrar as relaccedilotildees entre o fotograacutefico e a

vigilacircncia institucional na dimensatildeo do arquivo uma das funccedilotildees mais importantes que a

fotografia assume desde seu advento O retrato foi o gecircnero obrigatoacuterio na consolidaccedilatildeo de um

amplo regime de controle social que envolveu instituiccedilotildees como manicocircmios hospitais cadeias

delegacias reformatoacuterios para jovens delinquentes e o sistema juriacutedico Ao revisitar essas

questotildees resgatando os negativos de Benoliel Joseacute Luiacutes Neto atualiza o debate sobre identidades

apagadas suprimidas da ldquohistoacuteria oficialrdquo confinadas ao subterracircneo das poliacuteticas de

encarceramento para dar-lhes sobrevida atraveacutes de um olhar renovado sobre o negativo O

substrato poliacutetico das fotografias originais eacute de certa maneira minimizado em favor de uma

investigaccedilatildeo de cunho mais formalista Atraveacutes do movimento radical de aproximaccedilatildeo da

materialidade chegamos ao ponto em que nosso olhar encontra o gratildeo da imagem Aqui podemos

considerar a exploraccedilatildeo esteacutetica do gratildeo como uma modalidade de ruiacutedo que perturba a ideia de

mimetismo jaacute que mexe diretamente com as expectativas de reconhecimento de um referente

qualquer expondo os intervalos entre os gratildeos as diferenccedilas de intensidade nos tons de preto e

branco da imagem Por meio da granulaccedilatildeo assistimos agrave intensificaccedilatildeo da miacutedia fotograacutefica em

sua mateacuteria constituinte uma intensificaccedilatildeo da proacutepria tecnologia (HAINGE 2013) Fernando

Feio que analisou o trabalho por ocasiatildeo da exibiccedilatildeo ao puacuteblico comenta

Ele desloca seu olhar da foto para o proacuteprio negativo a fim de recuperar da maneiramais fiel possiacutevel o material puramente fotograacutefico () A sua expressatildeo continuacentrada na fotografia que aqui natildeo tem nenhuma realidade externa da qual se originaro que eacute fotografado no presente trabalho eacute o gratildeo fotograacutefico na verdade uma impressatildeodireta da realidade Se existe realidade aqui ela pertence ao domiacutenio fotograacutefico e a elaretornaremos (devemos) () Esta eacute portanto uma seacuterie nascida do espanto que vem doolhar atraveacutes da superfiacutecie de um negativo apreciando a disposiccedilatildeo do gratildeo e doaparecimento de uma forma numa dobra da (ir)regularidade do plano (e quem tentouolhar as imagens dessa forma conhece bem o espanto e a maravilha de olhar para ummundo familiar com valores luminosos invertidos onde a luz eacute sempre sombra e asombra torna-se luz) (FEIO online)

165

Figura 48 - 22474 (Joseacute Luiacutes Neto 2000)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

A estrateacutegia de apropriaccedilatildeo praacutetica jaacute disseminada entre diversos artistas

contemporacircneos aqui se articula com a pesquisa mais ampla sobre as possibilidades escondidas

no substrato da imagem fotograacutefica que constitui um traccedilo comum das obras de Joseacute Luiacutes Neto

Nesse sentido esta seacuterie pode tambeacutem ser interpretada como uma homenagem agrave miacutedia

fotograacutefica a busca de um elemento pessoal que pode ser desvendado no olhar de um outro

O trabalho de apropriaccedilatildeo permite-me trabalhar com imagens de outros autores () queme desafiam a encontrar o meu olhar a minha maneira de ver de encontrar pequenosfragmentos de imagem que me permite depois isolar esses fragmentos na procuraexatamente da minha maneira de ver (NETO 2014)

A investigaccedilatildeo da seacuterie 22474 tem continuidade na fotografia imediatamente posterior

de Benoliel que mostra os presos com os rostos descobertos Submetida ao mesmo meacutetodo a

166

imagem identificada pelo nuacutemero seguinte 22475 fragmentada refotografada e ampliada torna-

se ainda mais sintomaacutetica da operaccedilatildeo de apagamento das identidades pois agora vemos de fato

os rostos perderem-se na granulaccedilatildeo107 do negativo O processo ecoa o comportamento obcecado

do personagem principal de Blow up (Michelangelo Antonioni 1966) que no intuito de

desvendar um assassinato amplia exaustivamente uma fotografia na qual apenas ele enxerga

haver um corpo Em ambos os casos estaacute impliacutecita a ideia de que a imagem natildeo passa de uma

ficccedilatildeo construiacuteda atraveacutes de liames muito fraacutegeis com o real

Figura 49 - Imagens da seacuterie 22745 (Joseacute Luis Neto2003)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Utilizando como base o mesmo procedimento de aproximar-se da miacutedia o brasileiro

Caacutessio Vasconcellos elaborou uma seacuterie chamada Rostos (1990) Submetendo ao congelamento a

imagem fugidia do viacutedeo Vasconcellos fotografa em Polaroid rostos de atores e atrizes de

107 Outro trabalho bastante interessante que promove uma espeacutecie de ldquoelogio do gratildeordquo eacute The Enlargement de UgoMulas no qual foram feitas imagens do ceacuteu ampliadas ateacute o ponto de o gratildeo do negativo ficar aparente Em seguidasatildeo escolhidos detalhes das mesmas imagens para nova ampliaccedilatildeo O ceacuteu entatildeo desaparece e ficamos somente comos gratildeos Para mais detalhes sobre os trabalhos de Ugo Mulas ver Lenot 2017a p27-33 As imagens estatildeodisponiacuteveis em httpwwwugomulasorgindexcgiaction=viewampidramo=1090233762amplang=eng Acesso em04052020

167

produccedilotildees cinematograacuteficas Atravessando diferentes meios partindo do movimento e chegando

ao estaacutetico atraveacutes de uma verdadeira desaceleraccedilatildeo das imagens o que resta eacute uma espeacutecie de

apariccedilatildeo do fotograacutefico aprisionado na imagem moacutevel Nesses enquadramentos que se

aproximam do close up as fotografias ganham um aspecto desfocado As fisionomias adquirem

cores artificiais (ressaltadas pela esteacutetica da Polaroid) flutuando sobre um fundo negro Rostos

sem qualquer ligaccedilatildeo com um corpo que de tatildeo proacuteximos ao nosso olhar perdem os contornos A

estrateacutegia de isolar planos dos filmes escolhidos natildeo consegue nos apartar totalmente do cinema

pois nos faz lembrar do close que assim como a cacircmera lenta assinala uma ldquoconfiguraccedilatildeo pouco

previsiacutevelrdquo (FATORELLI 2013 p44) da imagem operada pelo retardamento de seu movimento

Dubois (2004) Fatorelli (2013) e Bellour (1997) entre outros jaacute atentaram para a

natureza irregular intermediaacuteria e por isso mesmo bastante criativa do viacutedeo Como zona de

passagem entre o cinema a fotografia e as miacutedias digitais o viacutedeo eacute compreendido na seacuterie do

fotoacutegrafo paulistano exatamente como esse ambiente graacutevido das dimensotildees muacuteltiplas da

imagem que ele explora atraveacutes da articulaccedilatildeo com a cacircmera instantacircnea da Polaroid De certo

modo podemos dizer que o presente da imagem eletrocircnica encontra-se restituiacutedo quando ganha

vida na fotografia instantacircnea materializando-se no espaccedilo da Polaroid Rostos perdidos em

meio agrave continuidade narrativa adquirem relevacircncia quando retirados do fluxo da montagem pelo

gesto da captura promovia pelo dispositivo fotograacutefico Ocorre aqui algo parecido com o Bellour

(Ibidem) chama de ldquotomada fotograacutefica do filmerdquo que eacute uma parada da imagem moacutevel que a

torna proacutexima do fotograacutefico

Na seacuterie Rostos (1990) conforme as figuras de nuacutemero 50 50a e 50b transitam

diferentes miacutedias e estatutos da imagem e as fisionomias satildeo submetidas a um processo que

ressalta a dissoluccedilatildeo da forma atraveacutes do desfocado e da ecircnfase na cor Um investimento na

abordagem da imagem como artifiacutecio

168

Figuras 50 50a e 50b - Rostos (Caacutessio Vasconcellos 1990)

169

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

49 ldquoA TUA PRESENCcedilA Eacute BRANCA VERDE VERMELHA AZUL E AMARELArdquo

As experiecircncias com os efeitos das cores na imagem tambeacutem estatildeo presentes em outros

trabalhos de nosso corpus podendo sua exploraccedilatildeo ser entendida como mais uma forma de

potencializar o ruiacutedo contido nos materiais empregados na produccedilatildeo das obras As imagens de

Febre (2002) (figura 51) de Cris Bierrenbach surgiram quase que de uma brincadeira na qual se

aplicou uma substacircncia a uma coacutepia fotograacutefica que aos poucos foi modificando completamente

a imagem A fotoacutegrafa natildeo sabia de antematildeo qual seria o resultado e comeccedilou o processo apenas

pela vontade de experimentar Ela simplesmente se deparou com um retrato antigo comeccedilou a

manipulaacute-lo e percebeu que o rosto comeccedilava a se desfazer adquirindo uma tonalidade

vermelha A dissoluccedilatildeo da fisionomia intensificava-se cada vez mais A digitalizaccedilatildeo num

scanner desregulado ampliou o efeito das cores e a artista achou entatildeo que o trabalho

representava perfeitamente sensaccedilotildees tiacutepicas das mulheres em periacuteodos menstruais

() Quando eu vi aquilo saturado eu falei Uau Foi completamente sem querer () Euia mexer tentar fazer alguma coisa mas eu nem precisei porque quando veio aquelacoisa saturada no vermelho () aquilo falava comigo Quando eu vi aquele negoacutecio

170

desmontando desfazendo Foi tudo meio casual mas quando eu vi aquilo era pra mimtanto a representaccedilatildeo de estados de espiacuterito de raiva de tensatildeo de sangue de dor deuma coisa menstrual () Eu tinha muita coacutelica de menstruaccedilatildeo eu precisava tomar anti-inflamatoacuterio pra passar dor entatildeo era assim ldquoeu falei nossa eu acho que eu fico assimalguns diasrdquo Eacute essa transformaccedilatildeo parece que eacute uma coisa que toma por dentro sei laacute() Tinha uma outra parecida e eu peguei a outra e comecei a fazer de outro jeito ()(BIERRENBACH 2018)

Com base na destruiccedilatildeo de um rosto aqui se constroacutei uma personagem estranha que

surge completamente da interaccedilatildeo de substacircncias aplicadas a uma imagem jaacute processada e

posteriormente submetida agrave leitura do digitalizador Em cada uma dessas etapas os traccedilos das

miacutedias vatildeo se acrescentando para compor a imagem final Eacute particularmente interessante a

questatildeo de uma leitura ldquodesviadardquo feita pelo scanner resultar na saturaccedilatildeo incomum do vermelho

e como essa fuga de um padratildeo cromaacutetico foi justamente o que interessou agrave fotoacutegrafa Atraveacutes

das vaacuterias fases de manipulaccedilatildeo da imagem essas cores foram sendo liberadas pouco a pouco

Confrontando diretamente a representaccedilatildeo mais claacutessica da identidade (o retrato) e promovendo

a destruiccedilatildeo de seus traccedilos fisionocircmicos a artista alcanccedilou uma representaccedilatildeo que cria uma

identificaccedilatildeo com qualquer mulher poreacutem natildeo no niacutevel descritivo mas simboacutelico

Figura 51 - Febre (Cris Bierrenbach 2002)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Artifiacutecios que trazem agrave tona cores estranhas ao processo fotograacutefico tradicional tambeacutem

satildeo parte essencial da seacuterie Noturnos (1998-2004) de Caacutessio Vasconcellos (figuras 52 e 53)

171

desenvolvida em cidades do Brasil Franccedila e Estados Unidos O intuito era fotografar com uma

cacircmera Polaroid apenas ambientes noturnos (alguns ateacute pontos turiacutesticos) Poreacutem aleacutem dos

enquadramentos fechados que tornam irreconheciacuteveis alguns desses locais foi utilizada uma luz

adicional (lanterna ou holofote com filtro colorido) que alterou as tonalidades originais dos

objetos frente agrave cacircmera

Figura 52 - Aeroporto de Congonhas 4 (Caacutessio Vasconcellos 2002)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

O despojamento de um equipamento como a Polaroid cuja instantaneidade eacute marca

registrada do elemento surpresa do fotograacutefico combina-se nesse projeto com o fato de

Vasconcellos ter realizado as imagens agrave medida que ia (re)descobrindo o espaccedilo urbano

(primeiramente da cidade Satildeo Paulo) sem muita rigidez de planejamento A ideia inicial era

apenas lanccedilar um olhar sobre as facetas escondidas de sua cidade natal As andanccedilas por lugares

que normalmente estatildeo submersos no vai-e-vem dos transeuntes e o esquadrinhamento de um

olhar atento agraves particularidades das formas das linhas de edifiacutecios muros das silhuetas

desenhadas pela penumbra na superfiacutecie dos objetos constroacutei uma paisagem cheia de vida que

nasce dos cantos esquecidos exatamente pela forccedila das cores Vasconcellos arma uma estrateacutegia

teacutecnica que permite fazer surgir das sombras noturnas uma profusatildeo de cores Na verdade

podemos dizer que a luz adicional depositada sobre formas de diferentes tonalidades exprime o

excesso de cada cor ou seja faz emergir uma potecircncia escondida de cada azul amarelo verde

vermelho O resultado eacute de um aspecto fantaacutestico

172

Como uma marca registrada procuro a singularidade o limite entre o real e oimaginaacuterio Nessas fotos particularmente busquei formas de retratar uma visatildeo pessoale distinta Tentei resgatar o que estaacute invisiacutevel ou o que natildeo eacute tatildeo expliacutecito Encontrar nafotografia a beleza escondida no comum no caos no feio () (VASCONCELLOS2002 p6)

O caoacutetico a feiura e o estranhamento que surgem do cotidiano ou melhor que se

esconde sob a pele da normalidade satildeo simbolismos bastante associados ao tema do ruiacutedo

(HAINGE 2013) Na seacuterie Norturnos esse ruiacutedo eacute o desconhecido que nasce das formas

construiacutedas atraveacutes de enquadramentos inclinados de paisagens sem linha do horizonte

entrecortadas por placas muros que se sobrepotildeem de maneira confusa agraves vezes enganando o

nosso olhar que por sua vez encontra dificuldade em reconhecer aquilo que fita E surge tambeacutem

da exploraccedilatildeo dos efeitos da luz e da interpretaccedilatildeo ldquoerradardquo do sistema da Polaroid que nos daacute

tonalidades novas A apropriaccedilatildeo poeacutetica da Polaroid inscreve-se numa tradiccedilatildeo que de certo

modo ironiza e critica a sofisticaccedilatildeo dos dispositivos de imagem representada por artistas como

Andy Warhol (1928-1987) Paolo Gioli (1942- ) William Eggleston (1939- ) sendo este uacuteltimo

fortemente interessado na questatildeo da cor assim como Vasconcellos

Desde o iniacutecio usei o mesmo tipo de cacircmera uma antiga maacutequina Polaroid SX-70 dadeacutecada de 70 um claacutessico da fotografia no seu estilo Meu trabalho pessoal eacutebasicamente em preto e branco Cor somente em Polaroid que confere agraves fotos umresultado peculiar em resoluccedilatildeo e textura justamente o que me fascina(VASCONCELLOS 2002 p6)

Nos dias de hoje o formato vem sendo revisitado em projetos comerciais como o

Impossible Project108 que reveste seu negoacutecio com uma aura de saudosismo perfeitamente

adaptaacutevel ao estilo cool ao qual a esteacutetica Polaroid foi sendo associada ao longo do tempo

(justamente pela investida dos artistas) Mas na proposta do fotoacutegrafo paulistano o dispositivo

natildeo eacute empregado nessa atitude saudosista nem tatildeo pouco purista Ela eacute desprogramada pela

intromissatildeo da luz adicional no processo (um elemento necessaacuterio jaacute que todo o trabalho eacute

noturno) o que contribui para um forte aspecto de artificialidade dessas imagens As originais em

Polaroid ainda foram escaneadas e impressas em jato de tinta ou seja acrescenta-se ainda mais

uma ldquocamadardquo de processamento da imagem O autor quis inventar uma cidade surreal onde o

108 No site do Impossible Project toda a estrateacutegia de venda dos produtos (cacircmeras e filmes) converge para uma ideiade autenticidade ligada ao formato Polaroid como padratildeo da fotografia instantacircnea Mas sem perder de vista ocenaacuterio de convergecircncia dos meios entre os produtos oferecidos jaacute haacute um equipamento que recebe imagens digitais eimprime-as em formato Polaroid (o Polaroid Lab) Conferir httpseupolaroidoriginalscom Acesso em07022020

173

burburinho e a agitaccedilatildeo estatildeo nas entrelinhas impliacutecitos numa espeacutecie de tensatildeo inaudita Tais

condiccedilotildees de um misteacuterio escondido sob a aparecircncia da calmaria jaacute satildeo lugar-comum no

imaginaacuterio sobre a noite na literatura no cinema e ecoa a presenccedila de um ruiacutedo contido

subentendido no conhecido no comum

Figura 53- Avenida Paulista 7 (Caacutessio Vasconcellos 2001)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

410 ldquoQUANDO DAGUERRE ENCONTRA O PHOTOSHOPrdquo

Entre as estrateacutegias que tornam sensiacutevel a presenccedila do ruiacutedo na imagem contemporacircnea

estatildeo as reapropriaccedilotildees de teacutecnicas histoacutericas da fotografia Tomadas de forma mais maleaacutevel

atraveacutes de metodologias adaptadas reinventadas pelos e pelas artistas (distantes de uma noccedilatildeo

purista e nostaacutelgica com a historiografia do meio) Nesse sentido as obras de Cris Bierrenbach

satildeo exemplares

Natural da cidade de Satildeo Paulo apaixonou-se pela fotografia na eacutepoca em que estudava

cinema e acabou depois trabalhando para o jornal Folha de Satildeo Paulo Um de seus primeiros

174

trabalhos ldquoque foge da fotografia direta109rdquo (BIERRENBACH online 2017) eacute resultado jaacute do

interesse pelas experimentaccedilotildees com as teacutecnicas da imagem Em Dois homens no centro (1992)

(figura 54) primeiro o negativo utilizado foi impresso pelo lado contraacuterio e em seguida foi feita

uma sobreimpressatildeo com uma teacutecnica diferente

Figura 54 - Dois homens no centro (Cris Bierrenbach 1992)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

As imagens acima foram realizadas em negativo 35mm mas a paulista eacute conhecida pelo

uso em diversas obras de teacutecnicas como goma bicromatada cianotipia papel salgado e

daguerreotipia Para ela o interesse em revisitar esses processos antigos estaacute tambeacutem no fato de

que o erro vem junto com o fazer

Eacute o que eu mais gosto da praacutetica desses processos do seacuteculo 19 porque eles datildeo tantoerrado E que no erro muitas ideias aparecem () Eu falo isso quando eu dou aulaspalestras () vocecirc tem que errar tem que jogar com a imagem () As pessoas queremmuito ter controle de tudo Bota uma ideia na cabeccedila e vai fazer uma coisa que nuncafez e vai ter um trabalho pronto e natildeo eacute assim110 (BIERRENBACH 2018)

Nas primeiras tentativas de realizar projetos usando o daguerreoacutetipo os erros

transformam-se em oportunidades Foi o que aconteceu com a obra Vitral (figura 55) Pensando

109 1ordm Ciclo de fotografia - Cidade Ivertida Disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=MUp098qZLDYAcesso em 05022020110 Entrevista concedida agrave autora desta tese

175

que os vitrais contam histoacuterias (como os das igrejas com passagens da via Crucis por exemplo)

Bierrenbach fotografou meninos e meninas de rua e juntou suas imagens com as de outros

colegas do fotojornalismo As fotografias das crianccedilas foram impressas em espelhos baratos

numa referecircncia direta agrave superfiacutecie espelhada dos daguerreoacutetipos que ainda natildeo tinha conseguido

produzir Ou seja na tentativa de ldquofazerrdquo um daguerreoacutetipo ela descobriu uma esteacutetica uacutenica

fruto da impressatildeo num outro material refletor (o espelho)

Figura 55 - Detalhe da instalaccedilatildeo Vitrais (Cris Bierrenbach 1996)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista111

O caraacuteter do imprevisiacutevel nesse caso levou agrave descoberta de uma alternativa ao

daguerreoacutetipo Aceitando essa imprevisibilidade como parte inerente ao trabalho Cris

Bierrenbach utiliza as teacutecnicas claacutessicas introduzindo modificaccedilotildees nos processos Tambeacutem jaacute

desenvolveu obras a partir de slide e papel fotograacutefico mas com base numa ideia de hibridismo

111 Sugerimos visualizar o trabalho na versatildeo integral Disponiacutevel em httpscrisbierrenbachcompessoalvitralAcesso em 05022020

176

entre as tecnologias que permite por exemplo criar peccedilas uacutenicas mas que passaram em algum

momento de sua produccedilatildeo pelo scanner ou que foram originalmente tomadas com o celular ldquoEu

fotografo com tudo Celular cacircmera digital 35 fullframe () Aleacutem das analoacutegicas Eu uso

qualquer negoacutecio Porque tambeacutem o que me interessa eacute fazer o cruzamento do analoacutegico com o

digitalrdquo (BIERRENBACH 2018)

O desprendimento em relaccedilatildeo ao equipamento escolhido e a proposta de articular

diferentes miacutedias ficam evidentes em obras como O encontro (2011) (figura 56) uma sequecircncia

que tem como ponto de partida uma imagem realizada em negativo digitalizada e finalizada em

formato daguerreoacutetipo O procedimento eacute o seguinte as fotos digitalizadas satildeo fundidas com

auxiacutelio do Photoshop e em seguida transmitidas para o daguerreoacutetipo O percurso inicia no seacuteculo

XX passa pelo seacuteculo XXI e retrocede ao seacuteculo XIX A limpeza do tratamento digital da

imagem eacute contrabalanccedilada pela saiacuteda em daguerreoacutetipo que apresenta algumas falhas na borda

das imagens A teacutecnica do daguerreoacutetipo tambeacutem natildeo eacute reproduzida agrave risca exatamente como se

fazia antigamente Ela eacute adaptada aos propoacutesitos da obra gerando uma esteacutetica que se afasta do

padratildeo claacutessico

O daguerreoacutetipo eacute a uacutenica fotografia que natildeo tem emulsatildeo () Eu parto de uma chapaprateada super polida Ela eacute um espelho Um espelho perfeito quanto mais espelhomelhor Aiacute eu coloco essa placa numa caixa com vapor de iodo entatildeo o vapor naverdade () nada encosta na placa O vapor vai deixar ela fotossensiacutevel () O processoque eu faccedilo natildeo tem outro vapor () eu faccedilo um vapor soacute e depois eu revelo na luz Eacutedifiacutecil de explicar () Nem tem muito que explicar porque natildeo se sabe direito o queacontece () Vocecirc fixa e coloca um filtro vermelho e volta pra luz Aiacute a imagem eacuterevelada (BIERRENBACH 2018)

Bierrenbach introduz uma artimanha no processo tradicional Pela teacutecnica claacutessica um

daguerreoacutetipo utiliza uma chapa de cobre sensibilizada com vapor de iodo que apoacutes exposta

conserva uma imagem latente que eacute por sua vez revelada com vapor de mercuacuterio Este uacuteltimo

passo eacute que a fotoacutegrafa dispensa optando por revelar sua imagem direto com a accedilatildeo da luz num

procedimento especiacutefico envolto ateacute num certo misteacuterio Essa intervenccedilatildeo nas ldquoregras do jogordquo eacute

um traccedilo distintivo dosdas artistas que utilizam a fotografia numa abordagem experimental

(LENOT 2017) A maneira com que se apropriam das tecnologias eacute geralmente muito particular

pois submetem os materiais a diversas adaptaccedilotildees em vez de utilizaacute-los conforme os paracircmetros

industriais tambeacutem com forma de criacutetica ao uso alienado das miacutedias Para Juacutenior (2006) a

177

fotografia expandida (que se distingue pelos hibridismos) associa-se tambeacutem a esse olhar

retrospectivo para teacutecnicas antigas perifeacutericas eou esquecidas que satildeo contudo retomadas a

partir de um vieacutes criacutetico Elas satildeo resgatadas para nos fazer refletir tanto sobre o niacutevel de

automaccedilatildeo com que produzimos imagens quanto para demonstrar que haacute modalidades do visiacutevel

ainda por revelar nessas tecnologias As praacuteticas de Cris Bierrenbach podem assim ser colocadas

ao lado dos procedimentos de Dirceu Maueacutes e Luiz Alberto Guimaratildees (no sentido das

apropriaccedilotildees das teacutecnicas claacutessicas da imagem fotograacutefica) guardadas as devidas singularidades

nas temaacuteticas a formas de abordagem

Figura 56 - O encontro (Cris Bierrenbach 2011)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

De volta a O encontro buscou-se a criaccedilatildeo de um personagem hiacutebrido algo indefinido

entre masculino e feminino (pela fusatildeo das duas cabeccedilas) O modelo de um retrato antropoloacutegico

178

(tomada de perfil) eacute utilizado para refletir sobre a natureza permeaacutevel e fluida das relaccedilotildees

afetivas e do gecircnero

() eu fotografei um amigo meu que eacute careca tambeacutem Entatildeo eu tratei dois personagensum pouco quase sem gecircnero () Claro que daacute pra ver que eacute um homem e uma mulhermas o assunto da careca eacute pra ter essas duas pessoas um pouco mais iguais possiacuteveis Prafazer um comentaacuterio (que eu faccedilo em outros trabalhos) sobre as relaccedilotildees afetivas Sobreo que eacute encontro afetivo que na minha opiniatildeo eacute um pouco um jogo uma soma mastambeacutem uma dissoluccedilatildeo () Tem vaacuterias maneiras de a gente ver mas tambeacutem temvaacuterios tipos de relaccedilotildees afetivas neacute Tem as que acontecem e permanecem tem as queacontecem e acabam ()112 (BIERRENBACH 2019)

Esse entrelugar do gecircnero tambeacutem simboliza o ruiacutedo no sentido de que da interlocuccedilatildeo

entre as figuras masculina e feminina cria-se um terceiro ser que natildeo tem gecircnero definido mas

que surge desse movimento de fusatildeo de mistura Uma entidade singular que ocupa um espaccedilo

existente em alternativa agraves modalidades socialmente demarcadas de masculino e feminino A

escolha pelo formato ldquoretrato antropoloacutegicordquo tambeacutem evoca essa dimensatildeo de perturbaccedilatildeo de um

padratildeo como modelo associado agraves funccedilotildees de identificaccedilatildeo de demarcaccedilatildeo de uma persona

social e de certa pretensatildeo cientiacutefica aqui o estilo eacute ressignificado para implodir a noccedilatildeo de

gecircnero atrelada ao sexo bioloacutegico Um efeito expresso natildeo apenas pela operaccedilatildeo de fusatildeo das

cabeccedilas (confundindo as identidades preacutevias) mas tambeacutem pela semelhanccedila estabelecida entre os

personagens ambos carecas Aleacutem disso o formato sequencial das imagens forja um movimento

que aproxima o trabalho do cinema ao estilo das obras de Duane Michaels (BIERRENBACH

2019)

A sequecircncia fotograacutefica conforme analisa Fatorelli (2013) em relaccedilatildeo a algumas obras

de Andy Warhol sugere mais uma possibilidade de desdobramento do instante fotograacutefico No

caso do artista norte-americano citado por Fatorelli eacute a repeticcedilatildeo de uma mesma imagem que de

certa maneira faz o instantacircneo animar-se a ponto de quase alcanccedilar o movimento De forma

parecida notamos essa inclinaccedilatildeo para a mobilidade da imagem fixa na estrutura de O encontro

a sequecircncia de imagens sugere claramente uma ideia de montagem de sucessatildeo de

temposmomentos que combina com a dinacircmica das relaccedilotildees afetivas Note-se que em conjunto

as imagens demandam o olhar por um tempo mais demorado prolongado em confronto com a

apreensatildeo da imagem uacutenica A respeito de trabalhos de Andy Warhol fundados nesse princiacutepio

Fatorelli (2013 p67) comenta que mudam o ldquomodo de percepccedilatildeo da obra e os modos de

participaccedilatildeo do espectadorrdquo exatamente porque a estrateacutegia da repeticcedilatildeo acusa uma modalidade

112 Entrevista concedida agrave autora desta tese em 2019

179

que se constroacutei a partir da imagem uacutenica mas estaacute aleacutem dela desdobra-se expande-se

ultrapassa-a Efeito semelhante ocorre na obra de Bierrenbach

O jogo entre fixidez e mobilidade tambeacutem originado na exploraccedilatildeo do instante

fotograacutefico eacute a base de um outro trabalho realizado em goma bicromatada As mulheres de Lot

(figura 57) A goma bicromatada eacute um processo de impressatildeo por contato inventado em 1849

sendo bastante apreciada pelos pictorialistas da virada do seacuteculo XX e caracterizada

esteticamente pela semelhanccedila com desenhos produzidos com carvatildeo ou pastel (ANTONINI et

al2015) A utilizaccedilatildeo da luz inclui a teacutecnica no rol dos processos fotograacuteficos mas suas

caracteriacutesticas visuais acabam por aproximaacute-la do escopo do desenho como se fosse uma

ldquoembaixatriz fotograacutefica das artes plaacutesticasrdquo (JAMES 2015 p488) Como as etapas de

construccedilatildeo da imagem exigem a aplicaccedilatildeo de pigmentos com pincel a metodologia da goma

bicromatada assenta-se num gesto pictoacuterico e dessa maneira carrega as marcas dessa presenccedila

fiacutesica doda artista As imagens tecircm a textura aparente do suporte utilizado (o mais comum eacute o

papel) e os contornos natildeo se afiguram rigidamente definidos

Figura 57 - As mulheres de Lot (Cris Bierrenbach 1993)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

180

Como o processo eacute adaptaacutevel e apresenta resultados variados Bierrenbach cogitou

utilizar a goma bicromatada em superfiacutecies tatildeo diversas quanto tecido madeira ou ateacute na

alvenaria de uma parede questionando assim os limites das impressotildees fotograacuteficas em papel

Para este trabalho escolheu a lixa Lot eacute um personagem biacuteblico ligado agrave narrativa da cidade de

Sodoma Ele recebe um aviso de Deus a cidade seraacute destruiacuteda mas a Lot eacute permitido fugir antes

que isso aconteccedila contanto que saia com sua famiacutelia sem olhar para traacutes O problema eacute que sua

mulher no uacuteltimo instante vira-se para fazer exatamente o que fora proibido A mulher

transforma-se entatildeo numa estaacutetua de sal

Isso era uma coisa muito forte natildeo soacute a cidade ser destruiacuteda mas a mulher ela daacute aquelaolhadinha e fica ali que nem uma estaacutetua () Eacute o seu uacuteltimo instante e aiacute eu escolhifazer a impressatildeo com goma bicromatada pelo mesmo motivo que eu fiz as linhas nopapel manteiga113 eu imprimo na lixa pra dar esse aspecto aacutespero que remete um poucoa areia sal deserto uma coisa aacutespera dura Hoje na verdade apesar de serem muitasmulheres eacute como se fosse uma soacute ou como se fossem todas Eu natildeo queria umarepresentaccedilatildeo fiel de emoccedilatildeo delas () eacute diferente mas eacute igual Natildeo queria a fidelidadefotograacutefica e a lixa mais a goma bicromatada me davam natildeo soacute essa textura mastambeacutem esse erro o que eu queria (BIERRENBACH 2019)

Para tematizar natildeo somente a desgraccedila da mulher que por seu ato transforma-se numa

estaacutetua a fotoacutegrafa convidou diversas mulheres para representar esse momento derradeiro Todas

unidas diferentes entre si associam-se num movimento semelhante de repeticcedilatildeo do gesto que ao

mesmo tempo as eterniza na imagem e permanece sinocircnimo de sua morte Cada fotografia eacute o

uacuteltimo instante de cada mulher mas esse instante se estende em todas as outras mulheres Eacute um

instante expandido que extrapola o tempo congelado ldquoEacute uma coisa um pouco jornaliacutestica do

retrato um pouco cinematograacutefica da faculdade do tempo e da representaccedilatildeo () esse uacuteltimo

segundo absoluto que tem a ver com a fotografiardquo (BIERRENBACH online 2017) Tons

terrosos e a textura da lixa a que se refere a artista tambeacutem ajudam a perturbar a nitidez da

imagem criando um efeito de aridez que remete ao deserto por onde se daacute a fuga de Lot e seus

parentes Recriada agraves centenas a mulher de Lot adquire cores diferentes fisionomias muacuteltiplas

costuradas uma ao lado da outra numa verdadeira montagem de foto(gramas) Aliaacutes vaacuterios

trabalhos de Bierrenbach concentram parte de sua forccedila expressiva na delicada metodologia

artesanal que envolve as tecnologias escolhidas o que tem uma relaccedilatildeo direta com o tempo longo

de elaboraccedilatildeo

113 Refere-se agrave seacuterie The lines of my life onde o suporte da imagem eacute papel manteiga Disponiacutevel emhttpscrisbierrenbachcompessoalfotothe-lines-of-my-life Acesso em 07022020

181

O sentido de movimento eacute levado a outros limites no viacutedeo VaacutecuoMoccedilambique (figura

58)114 Nele as fotografias tomadas em negativo 35mm satildeo utilizadas para falar sobre a passagem

do tempo sobre casas abandonadas A ideia de que o tempo desgasta a arquitetura ateacute o

desaparecimento desta eacute sugerida por meio de vaacuterias manipulaccedilotildees que fazem as casas sumirem

a cada alternacircncia de plano O tempo destroacutei as formas que se transformam em linhas coloridas

As habitaccedilotildees foram encontradas durante uma viagem em que os percursos eram feitos de carro

Pra mim no iniacutecio era como se fossem monumentos do que tinha sido essa grandehistoacuteria de Moccedilambique mas natildeo eacute isso Elas satildeo uma coisa de passagem de tempo Eaiacute eu fiz esse trabalho recriando essa minha suposta viagem e eu peguei cada imagem edescontruiacute ela digitalmente descontruiacutea uma e descontruiacutea outra e juntava essadesconstruccedilatildeo e criei essa ideia de movimento (BIERRENBACH online 2017)

Figura 58 - Trechos do viacutedeo VaacutecuoMoccedilambique (Cris Bierrenbach2009)

Fonte Reproduccedilatildeo Youtube

114 Disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=zb2z7xOk3coampt=109s Acesso em 08042020

182

Segundo Bellour (1997) o tracircnsito entre estaacutetico e moacutevel implica geralmente a mutaccedilatildeo

plaacutestica das configuraccedilotildees da imagem que eacute exatamente o que acontece nesse viacutedeo Formato

intermediaacuterio entre cinema e fotografia o viacutedeo desempenha esse papel de maleabilidade de

experiecircncias de fluidez viabilizado pelas teacutecnicas do computador (questatildeo essencial para a

videoarte) Essas mutaccedilotildees levam a imagem para um lugar aleacutem da analogia da reproduccedilatildeo do

visiacutevel Mas o viacutedeo arrasta a imagem a outros territoacuterios sem deixar de fazer referecircncia agrave

modalidades anteriores pois ldquonatildeo pode ser apreendido sem referecircncia ao que altera ndash o cinema

assim como outras artes (artes plaacutesticas muacutesica) em suma tudo de onde ele proveacutem e para onde

volta sem cessarrdquo (BELLOUR 1997 p14) Aiacute encontramos no viacutedeo uma natureza ruidosa (ao

mesmo tempo relacional e diletante) natildeo soacute neste trabalho mas de outros que potildeem em discussatildeo

a interlocuccedilatildeo entre foto e cinema A situaccedilatildeo intermeacutedia a que se refere o pesquisador francecircs eacute

confirmada pelo fato de que esta obra pode ser exibida tanto em formato viacutedeo quanto em seacuterie

de slides fotograacuteficos (BIERRENBACH 2014) Sua versatilidade em fazer interagir o

movimento e o congelamento permite que as condiccedilotildees de acessibilidade agrave obra sejam tambeacutem

mutaacuteveis

183

5 FALHAS BUGS E DESCONTINUIDADES SISTEcircMICAS

No iniacutecio havia apenas o ruiacutedo E entatildeo o artista passou do gratildeo deceluloacuteide para a distorccedilatildeo magneacutetica e o escaneamento de linhas de tubosde raios catoacutedicos Ele vagou por planos de monitores queimados apagoupixels mortos e agora faz performances baseadas na destruiccedilatildeo de telas deLCD - Manifesto de estudos em glitch Rosa Menkman

51ldquoCOMPUTADORES FAZEM ARTE ARTISTAS FAZEM DINHEIROrdquo

Ao longo da discussatildeo aqui feita sobre o ruiacutedo alguns autores jaacute citados evocam

tambeacutem termos como ldquoerrordquo e ldquofalhardquo que possuem uma vinculaccedilatildeo mais direta ao universo dos

sistemas informaacuteticos e relacionam-se igualmente como movimentos de diferenciaccedilatildeo

deslocamentos O brasileiro Erick Felinto (2013) eacute um pesquisador interessado em como a

questatildeo do ruiacutedo pode ser observada nos campos da comunicaccedilatildeo e das artes mas tambeacutem

assinala a influecircncia da cultura digital no interesse recente pelo tema e reflete

Mas por que motivo entatildeo dever-se-ia valorizar o ruiacutedo Ora o ruiacutedo eacute aquilo queescapa ao controle que perturba a ordem que questiona o sistema Paradoxalmente eleeacute aquilo que obstaculariza o funcionamento do sistema mas que ao mesmo tempotambeacutem o torna possiacutevel De fato a ordem se constitui atraveacutes de sua oposiccedilatildeo agravedesordem O erro o ruiacutedo satildeo responsaacuteveis por aquele aspecto de imprevisibilidade semo qual natildeo poderia existir diferenccedila e portanto a dimensatildeo produtiva do sistema Umsistema eacute produtivo ao estabelecer diferenccedila em relaccedilatildeo ao seu exterior Fosse eleinteiramente fechado sem brechas autocontido suas possibilidades produtivas seriamextremamente limitadas Eacute por essa razatildeo que a intrigante arqueologia dos viacuterus decomputador empreendida por Jussi Parikka natildeo os analisa unicamente como merasperturbaccedilotildees ou ruiacutedos dos sistemas informaacuteticos No complexo mundo tecnocultural emque vivemos os acidentes e viacuterus possuem uma dimensatildeo produtiva Acidentes natildeo satildeocomo numa concepccedilatildeo aristoteacutelica externos em relaccedilatildeo aos dispositivos teacutecnicos queafetam mas sim constitutivos desses mesmos aparatos115 (FELINTO 2013 p58)

Natildeo agrave toa em algum momento de suas anaacutelises praticamente todos esses autores e

autoras aos quais estamos nos reportando ao longo de nosso texto fazem referecircncia agrave teoria da

comunicaccedilatildeo e sua relaccedilatildeo com o tema do ruiacutedo segundo Shannon e Weaver o ruiacutedo atrapalha a

leitura de uma mensagem comprometendo a sua transmissatildeo e a percepccedilatildeo do destinataacuterio

115 Grifos do autor

184

() Eacute infelizmente caracteriacutestico que certas coisas satildeo adicionadas ao sinal coisas natildeointencionadas pela fonte de informaccedilatildeo Essas adiccedilotildees indesejadas podem ser distorccedilotildeessonoras (num telefone por exemplo) ou estaacuteticas (raacutedio) distorccedilotildees nas formas esombras da imagem (televisatildeo) erros na transmissatildeo (teleacutegrafo ou fac-siacutemile) etc Todasessas mudanccedilas no sinal transmitido satildeo ruiacutedos116 (SHANNON amp WEAVER apudHAINGE 2013 p3)

Ora essa teoria dos anos 1940-50 chama atenccedilatildeo para a presenccedila ldquoindesejaacutevelrdquo do ruiacutedo

mas admite que ele natildeo impede a transmissatildeo da mensagem Eacute como se agrave medida que enfatizam

um problema os teoacutericos acabassem reconhecendo a impossibilidade de um sistema funcionar

sem o ruiacutedo No veneno estaria o antiacutedoto117

Aleacutem de reconhecer a impossibilidade de a informaccedilatildeo se ver livre do ruiacutedo a teoria de

Shannon e Weaver entende o ruiacutedo como processos materiais que reorganizam o sistema atraveacutes

de distraccedilotildees e rupturas (BALLARD 2011 p68) questatildeo importante se estamos aqui

interessados nas obras em que o ruiacutedo desafia padrotildees da imagem ligados agrave indexicabilidade agrave

imagem uacutenica e sem interferecircncias

Tais consideraccedilotildees nos conduzem agrave outra caracteriacutestica do ruiacutedo sua natureza relacional

Se natildeo pode ser extirpado do sistema espaccedilo ou contexto que lhe daacute origem o ruiacutedo seraacute

reconhecido ou identificado em comparaccedilatildeo ao que ele natildeo eacute Emerge misturado ao que se opotildee

natildeo podendo existir de forma independente isolada

A artista e professora Xtine Burrough (2011 p81) indica que assumimos o ruiacutedo como

algo contido num espaccedilo de erro mas essa presenccedila eacute ignorada nas praacuteticas cotidianas o que

torna a percepccedilatildeo do ruiacutedo um fator bastante subjetivo Em seguida ela aponta o poder de

desconexatildeo que o ruiacutedo traz mas ressalta que se pensarmos por exemplo na estrutura de uma

narrativa ele constitui uma parte vital desta tanto quanto os diaacutelogos os cenaacuterios e as accedilotildees

Erick Felinto (2013 p56) cita o termo imbroglio utilizado por Bruno Latour (2005) para tratar

dessa questatildeo da inseparabilidade entre ruiacutedo e o sistema que o produz num emprego bastante

116 Traduccedilatildeo livre de ldquo() it is unfortunately characteristic that certain things are added to the signal which werenot intended by the information source These unwanted additions may be distortions of sound (in telephony forexample) or static (in radio) or distortions in shape or shading of picture (television) or errors in transmission(telegraphy or facsimile) etc All these changes in the transmitted signal are called noiserdquo Grifo dos autores117 Ward (2011) lembra que Shannon e Weaver natildeo eram teoacutericos do campo da comunicaccedilatildeo mas pesquisadores quedesenvolveram um modelo de comunicaccedilatildeo a serviccedilo de uma empresa de telefones daiacute sua ecircnfase na eficiecircnciateacutecnica do sinal a preocupaccedilatildeo com os ruiacutedos presentes no canal por onde passa a mensagem etc A abordagemdeles sobre a informaccedilatildeo como elemento mensuraacutevel foi apropriada pelos estudiosos da comunicaccedilatildeo e dashumanidades mas atualmente o modelo jaacute se mostra bastante defasado como referecircncia para as comunicaccedilotildeeshumanas

185

frutiacutefero da ideia de confusatildeo e indefiniccedilatildeo que ronda o assunto Esses argumentos apontam que a

anaacutelise do ruiacutedo (e do erro) sugere um espaccedilo de possibilidades onde se podem identificar

manifestaccedilotildees imprevistas do funcionamento de um sistema equipamento ou teacutecnica mas sem

que necessariamente essa manifestaccedilatildeo surja como um movimento de isolamento uma

singularidade que se aparta do todo Nesse sentido aproxima-se de noccedilotildees como virtualidade

devir desterritorializaccedilatildeo (DELEUZE amp GUATTARI 1997) e do debate em torno das relaccedilotildees

em detrimento das essecircncias (PARENTE apud FELINTO 2013 p57-58)

As observaccedilotildees desses autores sugerem uma interaccedilatildeo positiva entre indiviacuteduos

(materialidade) e tecnologias e estruturas do mundo (tambeacutem materiais) natildeo reservando ao

elemento humano um status diferenciado ou seja natildeo criando uma hierarquia entre

componentes Por entender que a expressividade surge de uma atuaccedilatildeo conjunta de entidades

diversas com tendecircncia mais proacutexima da simbiose que das particularidades das separaccedilotildees

Hainge (2013) aproxima-se tambeacutem da filosofia flusseriana interessada no modo como os

indiviacuteduos confrontam-se com os aparelhos118 A anaacutelise sobre o ruiacutedo pede uma visatildeo sistecircmica

e relacional da expressividade (palavra que natildeo se resume ao campo da arte e seus artefatos)

Vejamos essa afirmaccedilatildeo de seu estudo que demarca bem o territoacuterio onde se situa o ruiacutedo

() O que eu quero sugerir aqui entatildeo eacute que natildeo eacute preciso haver uma divisatildeo entre asoperaccedilotildees do ruiacutedo como um conceito filosoacutefico e suas manifestaccedilotildees na expressatildeo quenatildeo eacute necessaacuterio separar o ontoloacutegico do fenomenoloacutegico Eu quero sugerir que o ruiacutedo eacutemais do que apenas um conceito uma figura de pura potencialidade que eacute produzido naatualizaccedilatildeo da expressatildeo embora nunca abandone o exterior a partir do qual a expressatildeoeacute delineada e assim lembramo-nos dela Grosseiramente o ruiacutedo natildeo eacute apenas daordem de um futuro (agrave-venir) mas onipresente O ruiacutedo atravessa tanto o real como ovirtual os domiacutenios do conceito e da mateacuteria a multiplicidade e a singularidade eacute osubproduto do evento que ocorre nos devires situados atraveacutes desses polos a proacutepriapreacute-condiccedilatildeo para a expressividade que nasce apenas como uma consequecircncia natildeointencional ainda que inexoraacutevel da proacutepria expressatildeo119 (HAINGE 2013 p22-23)

118 Felinto (2013) tambeacutem se refere a Flusser e Nunes (2011) por sua vez utiliza a palavra ldquojogordquo na suaargumentaccedilatildeo (embora natildeo como referecircncia direta ao filoacutesofo tcheco) o que mostra como o entendimento dessesautores a respeito do tema do ruiacutedo converge numa direccedilatildeo comum119 Traduccedilatildeo livre de ldquo(hellip) what I want to suggest here then is that there need not be a split between the operationsof noise as a philosophical concept and its manifestations in expression that it is not necessary to separate out theontological from the phonomenological I want to suggest that noise is more than just a concept a figure of purepotentiality that it is produced in the actualisation of expression whilst never leaving behind the outside from whichexpression is drawn and thus reminding us of it To put crudely noise is not only of the future (agrave venir) butomnipresent Noise straddles both the actual and the virtual the realms of concept and matter multiplicity andsingularity it is the by-product of the event taking place in the becomings situated across these poles the veryprecondition for expressivity that is born only as an unintended yet inexorable consequence of expression itselfrdquo

186

Levando essa premissa agraves teorizaccedilotildees sobre a imagem contemporacircnea uma ontologia

relacional segue uma linha de raciociacutenio bastante conectada agraves teses sobre a funccedilatildeo

ldquoapresentativardquo da imagem (FATORELLI 2017) e admite que as imagens se apartem de uma

correspondecircncia figurativa que englobem regimes temporais muacuteltiplos que articulem diferentes

teacutecnicas recursos expressivos e metodologias de criaccedilatildeo e inclusive prescindam de uma

racionalidade posto que o ruiacutedo natildeo possui um sentido em si (HAINGE 2013 p95) Ele estaacute

mais inclinado agrave expressatildeo que ao significado digamos assim Eacute o fato de ldquoser multimiacutedia estar

em diferentes formas e meios incorporado em diferentes sentidos sensaccedilotildees respostas ()

sendo um permanente entre-lugar ()rdquo (HAINGE 2013 p13) Essa condiccedilatildeo de maior abertura

agrave expressividade num exerciacutecio de desafia as rotulagens de significado das obras eacute sentida como

chave discursiva nos trabalhos citados aqui As experiecircncias realizadas podem dissolver as

formas as temporalidades e os espaccedilos colocando a imagem nos limites do visiacutevel o que indica

uma disposiccedilatildeo de levar o debate sobre a sua potecircncia a um niacutevel mais conceitual por vezes

sensorial ou ateacute psiacutequico e sem duacutevida fazer-nos repensar nossa maneira de apreender o mundo

atraveacutes das tecnologias Aliaacutes melhor dizendo a proposta comum entre esses trabalhos eacute sugerir-

nos a possibilidade de ver outras realidades outros universos imageacuteticos natildeo necessariamente

verossiacutemeis Mundos invertidos desfocados interiores Paisagens multiplicadas distorcidas

efecircmeras Formas e identidades descentradas diluiacutedas multiformes As tecnologias estando

constantemente sujeitas agraves reprogramaccedilotildees

Podemos dizer que a inclinaccedilatildeo agrave descoberta de visualidades singulares conduz a

investigaccedilotildees que atualizam virtualidades jaacute presentes nos meios pois

Haacute regiotildees na imaginaccedilatildeo do aparelho que satildeo relativamente bem exploradas Em taisregiotildees eacute sempre possiacutevel fazer novas fotografias poreacutem embora novas satildeoredundantes Outras regiotildees satildeo quase inexploradas O fotoacutegrafo nelas navega regiotildeesnunca dantes navegadas para produzir imagens jamais vistas Imagens ldquoinformativasrdquoO fotoacutegrafo caccedila a fim de descobrir visotildees ateacute entatildeo jamais percebidas E quer descobri-las no interior do aparelho (FLUSSER 2011 p47)

Um terceiro ponto relevante eacute que os esforccedilos de conceituaccedilatildeo do termo ldquoruiacutedordquo

apresentam uma instabilidade Sobretudo quando se tenta singularizar o ruiacutedo as interpretaccedilotildees

divergem bastante a depender de aspectos temporais geograacuteficos culturais acarretando leituras

por vezes impregnadas de subjetividade Quer dizer teoricamente a questatildeo do ruiacutedo demonstra

187

uma natureza mutaacutevel sendo redefinida de tempos em tempos apresentando portanto certa

flutuaccedilatildeo conceitual diacrocircnica

Assim Hainge (2013) prefere elencar os pontos-chave que emergem de vaacuterias

problematizaccedilotildees acerca do ruiacutedo a fim de perceber de maneira mais geral as questotildees com as

quais o tema costuma ser identificado Perda de estabilidade e equiliacutebrio descontrole falha

feiura entropia ruptura de fronteiras confusatildeo dos sentidos desordem natildeo hierarquizaccedilatildeo de

elementos ou corpos entre outros termos mas tudo isso interpretado como movimentos que

ocorrem por forccedila de agenciamentos internos Veja o que nos diz o autor a respeito de filmes de

terror (especificamente o longa Poltergeist120 analisado em seu livro) nos quais geralmente

alguma perturbaccedilatildeo encontra-se na origem da narrativa

() O que eacute particularmente interessante a respeito de Poltergeist eacute que a batalha entrebem e mal ou entre conhecido e desconhecido (que para o terror e na vida muitas vezesequivale agrave mesma coisa) o desconhecido (o que figura como ruiacutedo) eacute algo que estaacutecontido subtendido no conhecido no comum O outro no qual o horror reside natildeo eacute umaabsoluta alteridade um monstro de um lugar distante um alieniacutegena ou fugitivo loucoComo mostra a sequecircncia de abertura do filme o outro ou esse desconhecido queguarda o terror estaacute sempre presente mas se revela somente quando olhamos perto obastante121 (HAINGE 2013 p90)

Isso significa que entender o ruiacutedo eacute tambeacutem reconhecer que esse termo envolve um

problema de percepccedilatildeo a depender de para onde se foca nossa atenccedilatildeo o ruiacutedo em quaisquer

miacutedias corre o risco de passar desapercebido Se as tecnologias da era da informaccedilatildeo tecircm a

capacidade de corromper as mensagens que deviam ser transmitidas de maneira confiaacutevel haacute um

encobrimento do agente desagregador sob a aparecircncia de miacutedias transparentes e discretas

(HAINGE 2013 p91) Nesta tese essa premissa conduz agrave argumentaccedilatildeo a respeito de imagens

limpas (MANOVICH 1995) que remetem na verdade a certas modalidades esteacuteticas e natildeo agraves

diferenccedilas apontadas em alguns debates sobre a digitalizaccedilatildeo no campo da imagem que segrega

120 Poltergeist (Tobe Hooper 1982) eacute uma das referecircncias citadas por Hainge em seu livro mas a ideia do terrorcomo algo que surge do cotidiano como um problema latente embora natildeo notado (o ruiacutedo como forccediladesestabilizadora oculta) eacute ainda utilizada com frequecircncia no gecircnero a exemplo de produccedilotildees recentes comoSuspiria ndash A danccedila do medo (remake de Luca Guadagnino de 2018 para o original de Dario Argento de 1977) ouCorra e Noacutes (ambos de Jordan Peele lanccedilados respectivamente em 2017 e 2019)

121 Traduccedilatildeo livre de ldquo() what is particularly interesting about Poltergeist is that in this struggle between goodand evil or the same thing ndash the unknown (figured as noise) is seen always to subtend the known The Other in whomhorror resides this is to say is not an absolute alterity a monster from a faraway place an alien or an escapedmadman rather as the filmrsquos opening sequence analysed above shows us the Other or the unknown from whichhorror issues is always present but revealed only when we look closely enoughrdquo

188

as miacutedias analoacutegicas e digitais Se pensarmos que ruiacutedos estatildeo sempre presentes (o que falha eacute

nossa capacidade de percebecirc-los) vamos compreender que todas as miacutedias os possuem

Mas haacute outros fatores que acarretam uma ldquocegueirardquo em relaccedilatildeo ao tema do ruiacutedo

quando consideramos os artefatos da cultura digital Nunes (Ibidem) aponta certa ideologia que

na busca por uma maacutexima performance da tecnologia encara o erro como elemento a ser contido

Mas devido agrave impossibilidade desse controle absoluto ldquoo erro assinala vaacutelvulas de escape dos

confins previsiacuteveis do controle informaacutetico uma abertura uma virtualidade uma poiesisrdquo

(NUNES 2011 p3) Segundo Peter Krapp (2011) se existe caos acidente e acaso em todos os

sistemas dispositivos e rotinas de operaccedilatildeo estes precisam ser rigidamente controlados sob pena

de denunciarem seus defeitos

Com mecanismos especiacuteficos de correccedilatildeo e reduccedilatildeo das falhas (como os antiviacuterus) ou

de aumento do desempenho a cibercultura daacute a falsa impressatildeo de uma eficiecircncia perfeita

Hainge reflete sobre essa percepccedilatildeo errocircnea no que tange agraves miacutedias musicais

Em meados de 1980 poderiacuteamos ser tentados a pensar que com o advento da tecnologiadigital e a introduccedilatildeo do compact disc essa retoacuterica de perfeiccedilatildeo e limpeza rapidamentese tornaria supeacuterflua porque esse formato prometia um niacutevel de fidelidade aparentementeinsuperaacutevel Poreacutem esse natildeo foi o caso122 (HAINGE 2007 p28)

Essa reflexatildeo traz agrave tona a contenda de negaccedilatildeo do erro e do ruiacutedo podendo ser

estendida a quaisquer artefatos digitais Quer dizer a retoacuterica (de fidelidade perfeiccedilatildeo

eficiecircncia) resiste sendo reivindicada sempre que viaacutevel e podendo ser ampliada ao campo da

imagem como jaacute apontamos em relaccedilatildeo ao cinema e os debates sobre formatos de exibiccedilatildeo

relanccedilamentos de tiacutetulos em formatos mais ldquoavanccediladosrdquo etc e com ela ressurgem tambeacutem as

estrateacutegias de supressatildeo do ruiacutedo Krapp (2011 p125) chega a considerar que ldquoa era do

apagamento do ruiacutedo instaura-se de fato com o advento das tecnologias digitaisrdquo embora

saibamos que noccedilotildees como perfeiccedilatildeo transparecircncia fidelidade entre outros termos tambeacutem

assombraram o contexto de emergecircncia de tecnologias anteriores

Hainge (2013 p120-121) por sua vez conclui que na cultura digital os produtos natildeo

apresentam um coeficiente de ruiacutedo menor na verdade para ele na era digital pode haver ateacute

122 Traduccedilatildeo livre de ldquoIn the mid-1980s one may well have been tempted to think that with the advent of digitaltechnology and the introduction of the compact disc such rhetoric of perfectibility and cleanliness would quicklybecome superfluous because this new format promised an apparently unsurpassable level of fidelity Such howeverhas patently not been the caserdquo

189

mais ruiacutedo O que ocorre eacute uma mudanccedila na natureza dos ruiacutedos daquilo que no ambiente

informaacutetico manifesta-se como tal O que nos interessa aqui eacute identificar no contexto da arte as

estrateacutegias que procuram exatamente uma abordagem criacutetica dessa retoacuterica de controle e

precisatildeo Seja pelo vieacutes da sabotagem do hackeamento ou do desvio de propoacutesitos e

funcionamento dos softwares e formatos das miacutedias o nosso interesse eacute a produccedilatildeo de imagens

surgidas exatamente do tensionamento dos mecanismos que existem para mitigar o erro e assim

o ruiacutedo

A produccedilatildeo da diferenccedila nascendo de um sistema repleto de mecanismos que trabalham

para eliminar esse movimento desviante assinala uma contradiccedilatildeo que pode ser estendida ao

pensamento sobre quaisquer tecnologias relacionadas agrave ideia de reproduccedilatildeo Mesmo que pareccedilam

fechadas transparentes todas as miacutedias de representaccedilatildeo quando analisadas em detalhe abrem-se

a um paradoxo interno que significa entender a falha como parte necessaacuteria de sua ontologia

(HAINGE 2007 p26-27)

As questotildees levantadas por esses autores que se ocuparam mais recentemente do tema

do ruiacutedo eou erro datildeo conta de alguns aspectos cruciais tomados como premissas da arte

contemporacircnea que retira dos sistemas informaacuteticos o substrato de seus trabalhos Algunsmas

dessesas artistas estatildeo reunidos sob a rubrica da glitch art e discutem o potencial da falha e do

ruiacutedo entendendo que estes satildeo inerentes ao proacuteprio funcionamento dos dispositivos Sua

abordagem choca-se diretamente com ideias de que as tecnologias do computador satildeo tatildeo

eficientes que supostamente estariam livres de apresentar defeitos paradas bugs

A proposta da glitch art natildeo surge apenas de uma atitude de recusa ao funcionamento

convencional de equipamentos e artefatos que podem ser apropriados para o campo da arte Natildeo

parece ter afinidade com uma atitude iconoclasta em relaccedilatildeo agraves tecnologias Ela tem o objetivo

poliacutetico de estimular uma reflexatildeo sobre o proacuteprio discurso evolucionista voltado agraves tecnologias

utilizando a falha desses dispositivos para criar novas formas artiacutesticas Tanto que pode revisitar

materiais e equipamentos considerados obsoletos ou ateacute descartados Enquanto promove a

exploraccedilatildeo de situaccedilotildees limiacutetrofes do funcionamento das miacutedias a glitch art acaba por ser

tambeacutem uma vertente na qual o ruiacutedo figura como modalidade das imagens O glitch choca-se

190

com ldquoa aparente ideia de uma tecnologia digital infaliacutevel atraveacutes de um ato esteacutetico positivo que

enxerga beleza onde parece soacute existir horrorrdquo123 (HAINGE 2007 p32)

As obras que se enquadram na abordagem da glitch art podem explorar efeitos gerados

pelo mau funcionamento dos computadores e perifeacutericos desenvolver-se mediante o uso

corrompido (intencional) de softwares arquivos e maacutequinas ou seja seu emprego natildeo-

padronizado fora das normas industriais originalmente prescritas Abraatildeo Filho (2018) que

desenvolveu amplo estudo sobre a glitch art traccedila um paralelo entre as proposiccedilotildees desses

artistas e a ideia de ldquoprofanaccedilatildeo do dispositivordquo de Giorgio Agamben (2007) ressaltando uma

apropriaccedilatildeo poliacutetica dos meios expressivos Do ponto de vista da recusa agraves normatizaccedilotildees

inscritas na tecnologia este conceito estaacute proacuteximo das ideias de Flusser (2011) que evocamos ao

longo de nosso texto sobretudo nas reflexotildees a respeito da postura do ldquojogadorrdquo frente ao

ldquoprogramardquo do ldquoaparelhordquo Ou seja em ambos os filoacutesofos identificamos o estiacutemulo agraves

apropriaccedilotildees natildeo convencionais dos dispositivos o que no campo artiacutestico eacute operado sob

diferentes metodologias questatildeo que nos interessa sobremaneira

A holandesa Rosa Menkman artista curadora e teoacuterica escreveu um manifesto que

condensa algumas das premissas do glitch entre elas o questionamento de modelos e praacuteticas a

impossibilidade de erradicaccedilatildeo do ruiacutedo (sendo ele base da criaccedilatildeo artiacutestica) a criacutetica da

obsolescecircncia programada a instabilidade e a renovaccedilatildeo como princiacutepios da arte a criacutetica da

perfeiccedilatildeo e do automatismo no uso das miacutedias Seus textos e obras atestam uma constante

investigaccedilatildeo das possibilidades esteacuteticas do erro e logicamente muitos trechos de seu manifesto

apresentam grande afinidade com as reflexotildees sobre o ruiacutedo

De qualquer forma que definamos o ruiacutedo qualquer definiccedilatildeo negativa teraacute umaconsequecircncia positiva pois ajuda a redefinir o seu oposto (o mundo do sentido a normaregulaccedilatildeo o ldquobemrdquo a beleza entre outros) Logo o ruiacutedo existe como paradoxoenquanto ele eacute frequentemente definido de maneira negativa tambeacutem apresenta umaqualidade gerativa e positiva () Os vazios gerados por uma ruptura natildeo existem apenascomo falta de sentido eles apresentam forccedilas que empurram o espectador para fora dodiscurso tradicional sobre a tecnologia consequentemente expandindo-o Atraveacutes dessesvazios artistas e espectadores podem entender a ideologia por traacutes do coacutedigo e da vozcomo uma criacutetica agrave miacutedia digital Esse entendimento pode servir de fonte a novos

123 Traduccedilatildeo livre de ldquothe apparently infallible sheen of digital technology through a positivistic aesthetic act thatfinds beauty in apparent horrorrdquo

191

padrotildees antipadrotildees ou novas possibilidades que estatildeo situadas em uma fronteira oucamada especiacutefica da linguagem (MENKMAN 2010 p16-17)124

Menkman atribui ao ruiacutedo um papel transgressor como elemento integrante das

tecnologias atraveacutes de sua exploraccedilatildeo confrontamos certos limites envolvidos no uso que

fazemos das miacutedias Quer dizer faz parte da abordagem artiacutestica do glitch a desconstruccedilatildeo da

ideia de fechamento de inacessibilidade das tecnologias (tanto que alguns artistas apresentam

suas obras junto a breves explicaccedilotildees sobre a teacutecnica utilizada numa atitude quase pedagoacutegica

tambeacutem ligada ao espiacuterito colaborativo da proacutepria cultura digital) Eacute como se esses artistas

tivessem como premissa a vontade de reafirmar que a ldquocaixa pretardquo (FLUSSER 2011) da

cibertecnologia pode (e deve) ter seus coacutedigos quebrados Eacute patente ainda em seu discurso a

reivindicaccedilatildeo de um espaccedilo de valorizaccedilatildeo das formas visuais que emergem de uma ecircnfase no

processo de feitura das obras (mais do que no conteuacutedo) Assim os processos da glitch art criam

novas esteacuteticas ampliando o repertoacuterio das formas e dos usos

Em Vernacular file of formats (figuras 59 e 60) Menkman submete arquivos a

diferentes formatos de compressatildeo de dados (JPEG TIFF PNG) e depois insere em cada um

deles o mesmo erro Como a taxa de compressatildeo de dados em cada imagem eacute diferente os efeitos

que o erro provoca tambeacutem o satildeo Desse modo ela permite que ldquoa linguagem de compressatildeo de

outra forma invisiacutevel se apresente na superfiacutecie da imagemrdquo (MENKMAN online 2010)

colocando em pauta questionamentos sobre a qualidade da imagem a suposta ldquopurezardquo do

arquivo RAW o gesto de manipulaccedilatildeo do artista a sabotagem dos padrotildees de compressatildeo e suas

finalidades a maleabilidade da imagem como elemento de uma cultura produzida distribuiacuteda e

consumida via computador e na internet O processo eacute repetido ainda com formatos de imagem

moacutevel (AVI MOV WMV DV) e modifica de tal forma as cores os contornos enfim as

caracteriacutesticas visuais do original que o processo eacute que passa a funcionar como tema da obra

124 O texto original escrito por Menkman data de 2010 A versatildeo citada aqui eacute uma traduccedilatildeo para o portuguecircspublicada em 2017 Disponiacutevel em httpsissuucomrosamenkmandocsmanifesto_de_estudos_em_glitch__rosAcesso em 16022020

192

Figura 59 - Vernacular of file formats - Photoshop RAW (Rosa Menkman2009-2010)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Figura 60 - Vernacular of file formats - WMV (Rosa Menkman 2009-2010)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Quando esse processo entra em funcionamento ele nos deixa antever os ruiacutedos de cada

miacutedia e formato em particular Essa abordagem estaacute intimamente ligada a um modo de encarar a

193

imagem pelo vieacutes do artifiacutecio e da manipulaccedilatildeo ou seja vecirc-la como campo de exploraccedilatildeo nas

suas dimensotildees teacutecnica e conceitual (em detrimento de uma preocupaccedilatildeo em referir uma

realidade dada a priori)

O brasileiro Sabato Visconti que utiliza a alcunha de glitch photographer tambeacutem

modifica arquivos e softwares segundo procedimentos que desestruturam intensamente as formas

Na cobertura que fez da Hartford Fashion Week (figuras 61 e 61a) alterou as fotografias usando

a teacutecnica de databending (quando um arquivo eacute manipulado num software diferente daquele

recomendado para o seu formato) Ele explica

() Essa seacuterie foi feita usando a nova versatildeo do Paint o Paint 3D que deixa transformarimagens em objetos 3D eu separei a imagem em camadas diferentes e exportei noformato fbx Aiacute eu fiz um databend no arquivo fbx e voltei para o Paint 3d paraexportar como imagem (VISCONTI 2019)125

Figura 61 - Hartford Fashion Week 2016 (Sabato Visconti 2016)

Fonte Reproduccedilatildeo site artista

Figura 61a - Hartford Fashion Week 2016 (Sabato Visconti 2016)

125 Entrevista concedida agrave autora em 2019

194

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

O formato fbx eacute um padratildeo para dados em 3D e foi apropriado para gerar fotografias

imagens bidimensionais Estas comeccedilam entatildeo a apresentar aberraccedilotildees exibindo linhas cores e

traccedilos estranhos aos modos de apresentaccedilatildeo correspondentes aos formatos de imagem

padronizados (JPEG TIFF etc) O niacutevel de mimesis tambeacutem decai sensivelmente Conforme a

interpretaccedilatildeo desviada do algoritmo a imagem sofre uma mutaccedilatildeo dissolvendo-se em linhas e

com intervalos espaccedilos negros A releitura do arquivo num software trocado apresenta uma seacuterie

de erros que se traduzem visualmente em formas imprevistas Qualquer glamour ou finalidade

comercial relativos ao contexto de um desfile de moda perdem-se completamente sob o

funcionamento de uma inteligecircncia maquiacutenica desprogramada corrompida pelo artista

Por sinal Sabato Visconti faz um tracircnsito bastante interessante entre meio artiacutestico e

comercial com sua fotografia jaacute que seus projetos estruturam-se paralelamente agrave atividade como

195

freelancer (tendo publicado em veiacuteculos como as revistas Time e Vogue e o jornal The New York

Times) Atraveacutes de suas obras encontra uma maneira de repensar natildeo soacute os ditames tecnoloacutegicos

mas a capacidade de sabotagem de padrotildees de um ponto de vista geopoliacutetico perifeacuterico Tendo

saiacutedo de Satildeo Paulo para os Estados Unidos ainda crianccedila e deparando-se com situaccedilotildees adversas

pela condiccedilatildeo de imigrante compreende seu trabalho tambeacutem como espaccedilo que reverbera essa

experiecircncia pessoal em afinidade com a conotaccedilatildeo poliacutetica da glitch art ldquo() Eu passei mais de

16 anos nos EUA sem documento de imigraccedilatildeo acho que essa experiecircncia tambeacutem me afetou

Vivendo em sistemas desenhados para falhar O glitch eacute um processo e eacutetica bem ldquopunkrdquo

comparada agrave produccedilatildeo comercialrdquo (VISCONTI 2019)

Em seu site na internet delimita algumas das preocupaccedilotildees que norteiam seu trabalho

Num breve conjunto de apontamentos intitulado Glitch Photography as a Practice in the Age of

Postphotography (2017) indica por exemplo que o aparato fotograacutefico ultrapassa a dimensatildeo

instrumental da cacircmera no contexto societaacuterio telemaacutetico pois engloba o desenvolvimento de

sistemas de vigilacircncia que capturam informaccedilotildees pessoais visuais e espaciais e seu

funcionamento independente da participaccedilatildeo humana o barateamento de cacircmeras e celulares

toda uma ecologia da imagem formatada atraveacutes das redes sociais e a internet como plataforma

de acesso e modelo de fruiccedilatildeo interativo dos mais diversos conteuacutedos imageacuteticos e ainda a

cultura de hibridizaccedilatildeo caracteriacutestica de muitos desses conteuacutedos Essas satildeo questotildees jaacute

apontadas por teoacutericos da fotografia (FONTCUBERTA 2016 ZYLINSKA 2017) dedicados a

pensar a imagem em suas articulaccedilotildees com o desenvolvimento mais recente da tecnologia e a

cultura da internet Poreacutem atraveacutes do texto de Visconti eacute interessante atentar para o sentido

poliacutetico que assume o artista partidaacuterio do glitch quando interveacutem no funcionamento dessa

estrutura que envolve indiviacuteduos o capitalismo informaacutetico mecanismos de controle baseados na

tecnologia e a economia das imagens Ou seja como a arte nos seus exerciacutecios poeacuteticos eacute capaz

de chamar atenccedilatildeo para aspectos negativos do proacuteprio sistema midiaacutetico que lhe daacute sustentaccedilatildeo

Aproveitando entatildeo as suas falhas as suas brechas para colocar esse sistema contra ele mesmo

A glitch photography considera este aparelho expansivo com todas as suas facetas natildeomencionadas e transversais bem como a forma como encarnamos o aparelho ereificamos as suas exigecircncias como locais de manipulaccedilatildeo perturbaccedilatildeo e perversatildeo ouseja como locais de falhas A glitch photography eacute por um lado a praacutetica que interpolao glitch na criaccedilatildeo da fotografia e por outro a praacutetica de capturar as manifestaccedilotildees

196

visuais de uma falha dentro do aparelho muito parecida com a forma como se capturaum momento espontacircneo ou um gesto fugaz126 (VISCONTI online 2017)

Figura 62 - wen your surveillance drone glitches out during a protest da seacuterie Wen yr surveillance drone (SabatoVisconti)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Essa estrateacutegia encontramos na seacuterie Wen yr surveillance drone (figuras 62 e 63)

construiacuteda com imagens de drones do FBI (Federal Bureau of Investigation) O trabalho eacute um

comentaacuterio sobre como sistemas de vigilacircncia interpretam a informaccedilatildeo visual recebida e as

possibilidades de reverter tais leituras atraveacutes da captura desse material pela arte Sabato Visconti

transformou as imagens originais em gifs formato em que ldquoo olhar panoacuteptico do drone eacute

capturado como de um espectador que testemunha o trecho de uma performancerdquo (VISCONTI

online) Esse trabalho debate a proacutepria tecnologia digital num sentido poliacutetico associado agrave

origem de sistemas computadorizados que foram desenvolvidos para fins militares Como

lembra Krapp (2011 pxvii) ldquonatildeo haacute tecnologia digital que natildeo levante questotildees sobre sigilo em

126 Traduccedilatildeo livre de ldquoGlitch photography considers this expansive apparatus with all its unmentioned facets andtransversals as well as the way we embody the apparatus and reify its demands as sites for manipulationdisruption and perversion in other words as sites for glitching Glitch photography is a beast with two backs Onthe one hand it is a practice that interpolates glitch into the creation of photography On the other hand it can alsobe the practice of capturing the visual manifestations of a glitch within the apparatus much like the way onecaptures a candid moment or a fleeting gesturerdquo

197

relaccedilatildeo a exigecircncias muitas vezes irreconciliaacuteveis de privacidade seguranccedila confianccedila liberdade

de expressatildeo e direitos humanosrdquo127

Quando o movimento contiacutenuo da imagem original eacute alterado para o curto movimento

de repeticcedilatildeo do gif como se sofresse um bloqueio notamos a falha do sistema de vigilacircncia e ao

mesmo tempo seu potencial de controle eacute esvaziado tornando-se incapaz de revelar qualquer ato

ou comportamento (supostamente) perigosos ou suspeitos

Figura 63 - b_01 da seacuterie Wen yr surveillance (Sabato Visconti)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista128

O gif como elemento da linguagem da internet surge a partir da apropriaccedilatildeo e estaacute

associado a uma expressatildeo irocircnica que de fato perverte as intenccedilotildees de controle do drone A

seacuterie completa tem 9 gifs desenvolvidos a partir de poucas imagens o que amplia o efeito de

repeticcedilatildeo e descontinuidade das accedilotildees registradas Em uma das cenas vemos pessoas reunidas em

ciacuterculo assistindo a um grupo que faz uma apresentaccedilatildeo de patins Em outra uma multidatildeo que

127 Traduccedilatildeo livre derdquothere is no digital technology that does not raise questions about secrecy in relation to oftenirreconcilable demands of privacy security trust freedom of speech and human rightsrdquo128 Seacuterie completa disponiacutevel em httpwwwsabatoboxcomwen-yr-surveillance-drone Acesso em 19022020

198

se concentra no cruzamento de duas ruas (originalmente essas imagens satildeo registros de protestos

ocorridos em Baltimore-Estados Unidos apoacutes a prisatildeo e morte do jovem negro Freddie Gray129)

O uso de dispositivos autocircnomos para capturar imagens sugere aleacutem de uma visatildeo total

(um olhar mais abrangente e eficiente que o humano) uma hierarquia desse olhar sob aquilo que

observa (ZYLINSKA 2017a p13) O fotoacutegrafo interfere nessa hierarquia ao capturar as imagens

e alteraacute-las transformando-as em ldquocenas de uma performancerdquo Com isso provoca o colapso da

funccedilatildeo de vigilacircncia natildeo apenas pela conversatildeo para o formato gif mas porque a legibilidade das

cenas eacute comprometida pelas falhas Corrompida a imagem impede a identificaccedilatildeo precisa dos

indiviacuteduos exibindo apenas erros O drone vira uma maacutequina com defeito produzindo a mesma

cena tecnologia imprestaacutevel para vigiar e punir

Esses breves exemplos indicam que os propoacutesitos da glitch art e as consideraccedilotildees sobre

o papel do ruiacutedo apresentam afinidade quando temos como horizonte o cenaacuterio da imagem

contemporacircnea Baseada numa atitude realmente experimental estilo do it yourself (DIY)

direcionada aos dispositivos a glitch art explora de maneira criativa as falhas e os erros para

criar esteacuteticas proacuteprias Eacute tambeacutem uma vertente artiacutestica que opera na iminecircncia de reciclagens

recombinaccedilotildees dos novos arranjos poeacuteticos tendo em vista que utiliza quaisquer conteuacutedos

manipulaacuteveis via software Encarando mais livremente inclusive aquilo que se consideram as

ldquomateacuterias-primasrdquo de suas obras os artistas do glitch utilizam natildeo apenas formatos e recursos do

computador incorporam elementos do design graacutefico da linguagem de programaccedilatildeo imagens de

sistemas autocircnomos (circuitos fechados drones sistemas de vigilacircncia) cenas de filmes

caracteres130 que uma vez disponibilizados no computador ou online podem ser livremente

utilizados Ou seja no que se refere ao campo da imagem satildeo obras que colocam em praacutetica o

conceito de hibridizaccedilatildeo (MANOVICH 2013) e valem-se da fluidez e da descontinuidade da

proacutepria cultura digital para fazer interagir a fotografia o cinema o viacutedeo atraveacutes de formatos

como o gif e os memes por exemplo

129 Freddie Gray foi detido em 2015 acusado pela poliacutecia de portar ilegalmente uma faca Conduzido algemado esem cinto de seguranccedila na viatura entrou em coma e faleceu na semana seguinte Os seis policiais envolvidos noepisoacutedio de sua prisatildeo foram absolvidos na justiccedila que considerou impossiacutevel relacionar a morte do jovem agrave condutados policiais alegando que as evidecircncias para uma condenaccedilatildeo eram insuficientes130 Nesse sentido ver o interessante trabalho desenvolvido pela artista Biarritzzz (httpswwwbiarritzzzcom)Acesso em 08042020

199

Partindo de uma atitude radical esses trabalhos vinculam-se a uma seacuterie de modalidades

visuais que poderiam ateacute ser negligenciadas enquanto conteuacutedo artiacutestico por sua inclinaccedilatildeo ao

feio ao disforme a uma certa precariedade da imagem Na verdade o glitch carrega em sua

proacutepria gecircnese esse sentido de transgressatildeo da forma de modo que como tendecircncia esteacutetica

ligada ao universo das imagens digitais estaacute muito proacuteximo da noccedilatildeo de ruiacutedo interessando-nos

como lugar de observaccedilatildeo de sua compreensatildeo poeacutetica no uso das miacutedias do computador As

obras da glitch art satildeo exerciacutecios que levam a uma ldquoruiacutena do sentidordquo o que natildeo significa uma

atitude iconoclasta que visa a destruiccedilatildeo dos sistemas digitais nem de suas formas

caracteriacutesticas mas a partir da ruiacutena investir na revelaccedilatildeo de novas formas e sentidos (ABRAAtildeO

FILHO 2018 p22)

Para os artistas da glitch art estaacute subentendido que todas as tecnologias da era da

informaccedilatildeo carregam em si mesmas o potencial de autosabotagem de corromper as mensagens

que deveriam transmitir com seguranccedila

() Devemos ir aleacutem e sugerir que imagens ou sons gerados por computador exibem deacordo com a definiccedilatildeo aqui proposta um coeficinete extremamente elevado de ruiacutedona medida em que natildeo buscam num objeto externo as condiccedilotildees para formar uma tramaexpressiva eles produzem sua expressatildeo puramente de dentro de suas proacutepriastecnologias e especificidades materiais (HAINGE 2013 p122)

Dessa maneira soacute podemos esperar que nas estrateacutegias de tensionamento da linguagem

informaacutetica dos formatos de arquivos e dos programas de computador essas obras apresentem

configuraccedilotildees esteacuteticas estranhas pois que satildeo geradas de elementos provindos de uma

inteligecircncia maquiacutenica com seus proacuteprios coacutedigos e formas Tal compreensatildeo aproxima nosso

debate da questatildeo da materialidade pensada no acircmbito do computador As contribuiccedilotildees de

Manovich (2013) e Zylinska (2017a) satildeo auxiliares para traccedilarmos um diaacutelogo entre a exploraccedilatildeo

da materialidade na cultura da imagem digital (como expressatildeo do ruiacutedo) natildeo sendo essa questatildeo

uma qualidade exclusiva das miacutedias analoacutegicas (imagens-objeto) Segundo a pesquisadora

polonesa (2017a p172) identificar a materialidade com o analoacutegico e a imaterialidade com o

digital eacute uma compreensatildeo que ldquoignora a presenccedila fiacutesica das telas dos componentes da cacircmera

ou do celular que satildeo parte do sistema de produccedilatildeo da imagem bem como os cabos de rede

atraveacutes dos quais ela eacute transferidardquo131

131 Traduccedilatildeo livre de ldquoThis (mis)percepction is only possible if one ignores the materiality of the screen on whichone views digital images the materials that make up the camera or cell phone which are part of its system ofproduction the network cables that participate in its transfer etcrdquo

200

Por outro lado alguns dos artistas aqui elencados sublinham a materialidade como um

dos pontos importantes da escolha em trabalhar com tecnologias fotoquiacutemicas Cris Bierrenbach

(2018) por exemplo ressalta que quando trabalha com tecnologias digitais ou analoacutegicas haacute

sempre um niacutevel de imprevisto envolvido no procedimento mas enquanto no computador as

accedilotildees podem ser revertidas nos processos artesanais da imagem eacute necessaacuterio destruir coisas para

atingir o resultado final que eacute um resultado original ldquoPra vocecirc repetir aquilo exatamente eacute muito

difiacutecil pra natildeo dizer praticamente impossiacutevel Entatildeo tem essa particularidade dessa unicidade

que cada uma tem que eu acho bem encantador Cada uma (imagem) eacute uma mesmordquo

(BIERRENBACH 2018) Luiz Alberto Guimaratildees defende o uso de cacircmeras artesanais porque

estas lhe permitem criar imagens sofisticadas e complexas que conservam uma ldquoaurardquo ndash

reportando-se a Walter Benjamin (1935-36) ndash por meio de instrumentos uacutenicos (GUIMARAtildeES

2014 p22) que os programas de computador conseguem apenas imitar Como vimos Dirceu

Maueacutes tambeacutem tece uma criacutetica agrave ideia de que aparelhos sofisticados e caros satildeo mais adequados

agrave produccedilatildeo de imagens elaboradas retoacuterica que o trabalho com as pinholes (que tambeacutem resulta

em peccedilas uacutenicas) desmente Embora os dois fotoacutegrafos natildeo explicitem uma preocupaccedilatildeo com a

materialidade de suas obras todo o trabalho de elaboraccedilatildeo em seus projetos o tempo dedicado

bem como a busca de esteacuteticas decorrentes da interaccedilatildeo entre os suportes empregados (negativo

papel fotograacutefico quiacutemicos slide etc) apontam que essa dimensatildeo palpaacutevel devido agrave

fisicalidade de cada um dos trabalhos constitui parte importante para a apreensatildeo sensiacutevel dos

mesmos Natildeo raro na exposiccedilatildeo de suas obras eacute comum que esses artistas apresentem tambeacutem

dispositivos estruturas utilizadas nos processos (figura 64) ndash natildeo apenas as imagens

201

Figura 64 - Cacircmeras pinhole como parte da exposiccedilatildeo Somewhere ndash Alexanderplatz (Dirceu Maueacutes2009)

Fonte Reproduccedilatildeo de Maueacutes (2015)

De toda forma como aqui nos interessam as visualidades que atestam a presenccedila do

ruiacutedo e a partir do momento em que o reconhecemos como expressatildeo mais crua e evidente da

trama material das imagens a divisatildeo entre miacutedias analoacutegicas e digitais torna-se sem sentido ateacute

porque conforme ficou patente atraveacutes dos exemplos da glitch art a inscriccedilatildeo da materialidade

nas imagens digitais eacute detectada nas distorccedilotildees de corpos e objetos na alteraccedilatildeo das cores com a

intenccedilatildeo de apontar a artificialidade da imagem na valorizaccedilatildeo do pixel do rastro do movimento

nos gifs na apariccedilatildeo de estruturas geomeacutetricas que fogem agrave figuraccedilatildeo tradicional Cada uma

dessas modalidades de expressatildeo vai de encontro ao ldquoprograma dos aparelhosrdquo e no que se refere

especificamente a esse campo da imagem digital identificamos que o programa se inscreve

atraveacutes da ldquoprogramaccedilatildeo do software nos coacutedigos relativos agrave reproduccedilatildeo das cores dispositivo

para reduccedilatildeo do ruiacutedo suavizaccedilatildeo das bordas da imagem preenchimento de pixels defeituososrdquo

(AGUERA amp ARCAS apud ZYLINSKA 2017a p214) Ou seja quando os artistas comeccedilam a

negar tais regras criando suas proacuteprias sensibilidades esteacuteticas contribuem para fortalecer uma

iconografia baseada no valor generativo do erro132 e plaacutestico do ruiacutedo

132 Zylinska (2017a) considera o pixel aparente e a animaccedilatildeo do gif indicativos do erro no ambiente do computador

202

Alguns trabalhos recentes utilizam o pixel para criar obras que sugerem atraveacutes de

diferentes abordagens e estrateacutegias aproximaccedilotildees entre as instacircncias moacutevel e fixa da imagem

embaralhando os espaccedilos e gecircneros da pintura e da fotografia Por exemplo o projeto iEarth

(2013) de Joanna Zylinska (figura 65) discute de forma irocircnica a ideia de que o gecircnero paisagem

constitui um olhar direcionado a um ambiente um recorte de um espaccedilo fiacutesico dado e livre de

mediaccedilotildees Em vez de reafirmar essa noccedilatildeo iEarth assume explicitamente que a paisagem natildeo

passa de uma construccedilatildeo de um artifiacutecio tecnoloacutegico fortemente influenciado pelas imagens

pertencentes a esse gecircnero que conformam nosso repertoacuterio iconograacutefico interferindo tambeacutem

na nossa maneira de olhar para o mundo Nesse trabalho o kit de um diorama para crianccedilas foi

usado para produccedilatildeo de quatro imagens fotografadas e processadas digitalmente para a criaccedilatildeo

de gifs Zylinska (2014) ressalta o aspecto fabricado dessas paisagens que natildeo remetem a

qualquer espaccedilo concreto e ao mesmo tempo estatildeo muito proacuteximas de representaccedilotildees midiaacuteticas

de espaccedilos reais (produzidas por exemplo pelo Google Earth) ldquoEsta perspectiva particular tem

uma dupla funccedilatildeo tanto desnaturaliza o familiar como cria uma ilusatildeo de imediatez

proximidade e domiacutenio visualrdquo (Idem)

Figura 65 - IEarth (Joanna Zylinska 2014)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista133

133 Sugerimos visualizar o trabalho diretamente na internet Disponiacutevel em httpwwwjoannazylinskanetiearthAcesso em 25022020

203

Profundamente ambiacuteguas e situadas entre o real e o artificial essas imagens promovem

atraveacutes do pixel e do gif uma afirmaccedilatildeo da tecnologia que natildeo eacute um intermediaacuterio entre o olhar e

o espaccedilo fiacutesico A tecnologia eacute o proacuteprio meio de existecircncia da paisagem Eacute ela que a constitui

A tecnologia eacute aqui mobilizada em vaacuterios niacuteveis ndash na elaboraccedilatildeo do diorama nacaptaccedilatildeo da imagem na pixelizaccedilatildeo das proacuteprias fotografias e em uacuteltima instacircncia naanimaccedilatildeo gif Pixelizaccedilatildeo e animaccedilatildeo natildeo satildeo apenas artifiacutecios visuais ou conceituais Oseu uso eacute uma tentativa de desestabilizar a relaccedilatildeo entre natureza e artefato entre oreal e o virtual134 (ZYLINSKA online 2014)

A paisagem eacute de fato elaborada segundo diversas camadas de imagens originaacuterias de

diferentes aparatos Cada um deles relacionado a um momento histoacuterico da representaccedilatildeo de

espaccedilos concretos o diorama uma forma de entretenimento moderna que criava uma ilusatildeo de

realismo e expressava um desejo de visatildeo total a fotografia imagem teacutecnica evocada no sentido

de um duplo do referente (mas sempre uma alteridade em relaccedilatildeo a este) e por fim o

computador metamiacutedia processadora de todas essas referecircncias anteriores que acrescenta

tambeacutem sua linguagem visual atraveacutes do pixel e da finalizaccedilatildeo em formato gif Nesse processo

cumulativo a paisagem fixa incorpora um movimento poreacutem um movimento tambeacutem

explicitamente artificial provocado (repetitivo em loop) Um movimento que natildeo almeja a ilusatildeo

de continuidade espaccedilo-temporal

Aleacutem disso estamos falando de um movimento atribuiacutedo a um espaccedilo fiacutesico (uma aacuterea

verde recriada por meio de um diorama infantil) o que intensifica o efeito de artificialidade Se o

diorama onde tudo comeccedila jaacute pressupotildee a interaccedilatildeo de um observador dotado de mobilidade

(CRARY 2012) na recriaccedilatildeo de um espaccedilo miniaturizado um cenaacuterio mesmo Zylisnka

reconecta essas noccedilotildees de mobilidade do olhar humano atraveacutes do gif um formato que articula

imagem estaacutetica e movimento Ela tambeacutem sugere um regime visual possibilitado pela

flexibilidade das imagens numeacutericas que embora jaacute tenha ultrapassado os limites do modelo

oacutetico linear (fixo) continua ainda se relacionando com este por meio de toda uma heranccedila visual

da pintura do cinema da fotografia e dos aparelhos oacuteticos como o estereoscoacutepio o panorama e

o proacuteprio diorama aqui revisitado

134 Traduccedilatildeo livre de ldquoTechnology is mobilised here on a number of levels ndash in the crafting of the diorama in thetaking of the image in the pixellation of the photographs themselves and then in the last instance in the gifanimation Pixellation and animation are not just visual or conceptual gimmicks Their use is an attempt todestabilise the relationship between lsquonaturersquo and lsquoartefactrsquo between lsquothe realrsquo and lsquothe virtualrsquordquo

204

Outro trabalho que curiosamente tambeacutem tematiza a paisagem aproximando-se do

formato cartatildeo postal jaacute que remete mais diretamente agrave fotografia eacute a seacuterie Jpegs (2007) de

Thomas Ruff (figuras 66 e 66a) Ela tambeacutem intensifica a presenccedila da miacutedia fotograacutefica expondo

a estrutura dos pixels O JPEG eacute um dos formatos de compressatildeo de imagem mais utilizados na

fotografia digital A compressatildeo significa perda de informaccedilatildeo Pois bem Ruff utiliza imagens

retiradas da internet e expressa atraveacutes de um olhar muito proacuteximo da estrutura dos pixels a

ideia de que a imagem digital eacute um conjunto de pequenos quadrados Ruff percebeu que o

software de compressatildeo para o formato JPEG dava agraves fotografias um efeito impressionista e

passou a explorar essa questatildeo

Descobri que quando se amplia bastante essas imagens 25m ou 18m cria-se um efeitoagradaacutevel quando vocecirc olha a uma distacircncia de 10 a 15 metros acha que estaacute vendouma fotografia precisa mas se chegar perto uns 5 metros reconhece a imagem pelo queela eacute Aiacute se chegar bem perto jaacute natildeo reconhece absolutamente nada vocecirc estaacute apenasdiante de milhares de pixels (RUFF 2009)135

Ou seja o que o artista alematildeo faz eacute simplesmente criar condiccedilotildees para desfazer a ilusatildeo

de uma estrutura dotada de extrema organizaccedilatildeo da imagem mostrando-nos um pouco do que eacute

constituiacuteda uma fotografia digital expondo seus intervalos e lacunas Segundo Hainge (2013

p221-222) os trabalhos de Ruff satildeo exemplares do aspecto ruidoso da miacutedia fotograacutefica que se

apresenta atraveacutes da manipulaccedilatildeo de cores formas da estrutura dos pixels e distribui-se por toda

a sua obra que versa sobre a arquitetura composicional da imagem e do frame sobre a

distribuiccedilatildeo da luz e da cor e como todas essas caracteriacutesticas da imagem satildeo manipulaacuteveis

David Campany (2008) aponta que este trabalho defende uma ldquoarte do pixelrdquo chamando

a nossa atenccedilatildeo para a forma tiacutepica da imagem em circulaccedilatildeo na internet (ldquoforma de grelha

maquiacutenica e repetitivardquo)

Todas as imagens que aparecem hoje na internet eou impressas em livros e revistas satildeodigitalizadas Quase todas as imagens satildeo digitais mesmo que tenham origem emformas natildeo digitais ou preacute-digitais Dado este fato eacute surpreendente como poucosabordam o fato de estas imagens existirem como massas de informaccedilatildeo eletrocircnica quetomam forma visual como pixels Ruff fez muito para introduzir na arte fotograacutefica o quepoderiacuteamos chamar de arte do pixel permitindo-nos contemplar a niacutevel esteacutetico efilosoacutefico a condiccedilatildeo baacutesica da imagem eletrocircnica Claro que ele faz isso natildeo nosmostrando as imagens em telas mas atraveacutes de impressotildees fotograacuteficas em larga escala

135 Benedictus Leo Thomas Ruff best shot Disponiacutevel emhttpswwwtheguardiancomartanddesign2009jun11my-best-shot-thomas-ruff Acesso em 24022020

205

levando-as muito aleacutem de sua resoluccedilatildeo fotorrealista Esta pode ser a primeira vez quealgumas destas imagens assumem uma forma material136 (CAMPANY online 2008)

O autor ainda estabelece uma comparaccedilatildeo entre a acircnfase dada ao pixel em Jpegs e a

ldquoesteacutetica do gratildeordquo cuja conotaccedilatildeo de autenticidade marcou obras William Klein e Nan Goldin

entre outros e embora diferencie o gratildeo do pixel referindo-se a este uacuteltimo como elemento de

uma frieza tecnoloacutegica as afirmaccedilotildees de Campany articulam a valorizaccedilatildeo do pixel como rastros

da materialidade da miacutedia quando comenta o efeito visual acarretado pela ampliaccedilatildeo em larga

escala de imagens que supostamente deveriam ser visualizadas em arquivos de tamanho reduzido

(dada sua baixa resoluccedilatildeo) Ruff na verdade subverte a loacutegica de apresentaccedilatildeo de uma imagem

em formato JPEG deixando-nos ver os pequenos quadrados as zonas onde a forma se desfaz em

partes esfumadas Ele quebra a aparecircncia de regularidade e organizaccedilatildeo da estrutura em pixels

quando altera a escala de sua exibiccedilatildeo original

136 Traduccedilatildeo livre de ldquoAll images that appear on the internet andor printed in books and magazines today aredigitised Nearly all images are digital even if they originated in non-digital or pre-digital forms Given this fact it issurprising how few of them ever wish to address the fact that they exist as masses of electronic information that takevisual form as pixels Ruff has done a great deal to introduce into photographic art what we might call an lsquoart of thepixelrsquo allowing us to contemplate at an aesthetic and philosophical level the basic condition of the electronic imageOf course he does this not by showing us the images on screens but by making large scale photographic printsblowing them up far beyond their photorealist resolution This might be the first time some of these images have evertaken a material formrdquo

206

Figuras 66 e 66a - Imagens da seacuterie Jpegs (Thomas Ruff 2007)

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

Seja na valorizaccedilatildeo do gratildeo do negativo (como nos trabalhos de Joseacute Luiacutes Neto) ou em

todos esses artistas interessados no pixel como elemento irradiador de uma esteacutetica

207

desconcertante no que diz respeito agrave definiccedilatildeo das formas concretizam-se as ideias de Flusser

(2008 p25) a respeito das imagens teacutecnicas como virtualidades guardadas nos aparelhos e

ativadas ou reveladas mediante a exploraccedilatildeo criativa daqueles No mesmo estudo o filoacutesofo

explica que a imagem teacutecnica eacute um ldquoacidente programadordquo pois emerge como possibilidade jaacute

contida no ldquoprogramardquo o que entra em conformidade com as teses sobre o ruiacutedo ser uma

internalidade de cada tecnologia Para noacutes a identificaccedilatildeo do ruiacutedo nessas obras eacute possiacutevel

atraveacutes de um equiliacutebrio entre esse niacutevel de programaccedilatildeo (caracteriacutestica inescapaacutevel dos

aparelhos) e um certo espaccedilo de negociaccedilatildeo acionado atraveacutes de diferentes estrateacutegias pelos

artistas o que para Flusser diz respeito agrave postura do ldquojogadorrdquo diante da miacutedia

Eacute interessante tambeacutem salientar que no conjunto de suas ideias o pensador tcheco

entende a eclosatildeo do novo ou de uma ldquoimagem informativardquo numa relaccedilatildeo diferencial de uma

tradiccedilatildeo visual homogeneizante padronizada que se manteacutem restrita agravequilo que o programa

epistemoloacutegico do meio prefigura Ele diz que determinadas imagens propotildeem siacutembolos novos

quando se colocam contra um fundo ldquoredundanterdquo do coacutedigo estabelecido e estimula um papel

ativo de quem utiliza as tecnologias para desligar-se dessa tradiccedilatildeo de mesmice (atraveacutes de

propostas sempre renovadas inusitadas)

52 O BOM O MAU E O FEIO

No intuito de chamar nossa atenccedilatildeo para a diversidade de imagens criadas quando se

concebe o aparelho fotograacutefico (e aqui natildeo falamos apenas no sentido estritamente teacutecnico)

como dispositivo sujeito a reescrituras a filosofia flusseriana alinha-se a reflexotildees bastante

recentes do campo da imagem que pensando no ambiente das miacutedias computadorizadas

reconhece um valor esteacutetico justamente nas visualidades consideradas irregulares feias erraacuteticas

incomuns difiacuteceis de classificar e de identificar

A artista pensadora e professora Hito Steyerl em seu texto onde defende as ldquoimagens

pobresrdquo (2009) usa termos como baixa qualidade erracircncia reproduccedilatildeo remix download coacutepia

compartilhamento reediccedilatildeo ou seja todo um vocabulaacuterio que diz respeito agraves diversas estrateacutegias

de manipulaccedilatildeo que estatildeo na ordem do dia para osas artistas analisados aqui Embora se refiram

especificamente ao contexto da imagem digital suas palavras podem servir muito bem para dar

conta da variabilidade de resultados encontrados neste pequeno grupo de obras que tecircm no ruiacutedo

um ponto em comum Aliaacutes pensamos que no universo da imagem contemporacircnea o constante

208

cruzamento das miacutedias as operaccedilotildees de apropriaccedilatildeo de referecircncias as mais diacutespares conferem agraves

obras incluiacutedas nesta tese grande afinidade com o pensamento sobre a imagem pobre (mesmo

agravequelas natildeo elaboradas exclusivamente mediante o uso de miacutedias computadorizadas)

Sem intenccedilatildeo de utilizar o texto de Steyerl promovendo um esvaziamento de seu

evidente conteuacutedo poliacutetico e de gecircnero acreditamos ser frutiacutefero pensar os contornos esteacuteticos

que sua noccedilatildeo de ldquoimagens pobresrdquo carrega pois que remonta ao cinema independente e como os

circuitos alternativos de acesso e distribuiccedilatildeo (anteriores e jaacute com o apoio da internet) e agraves

estrateacutegias de apropriaccedilatildeo (exemplificadas aqui nos trabalhos de Thomas Ruff Sabato Visconti

Caacutessio Vasconcellos Rosacircngela Rennoacute) para falar sobre uma imageacutetica caracterizada pela fuga

de padrotildees esteacuteticos na qual o lugar mais alto de uma suposta hierarquia de valores associa-se agrave

resoluccedilatildeo agrave definiccedilatildeo agrave precisatildeo ao mesmo tempo em que questiona noccedilotildees de autoria e

originalidade Se percebemos que todos esses elementos articulam-se no debate proposto aqui

por que natildeo entender que o investimento no ruiacutedo daacute sua contribuiccedilatildeo para alargar o universo das

ldquoimagens pobresrdquo no sentido de politicamente reivindicar um espaccedilo de celebraccedilatildeo agraves esteacuteticas

contraacuterias agrave agenda natildeo intervencionista industrial comercial purista da imagem fotograacutefica

Obviamente uma imagem de alta resoluccedilatildeo parece mais brilhante e impressionantemais mimeacutetica e maacutegica mais assustadora e sedutora do que uma pobre Eacute mais ricadigamos assim () A resoluccedilatildeo foi fetichizada como se sua ausecircncia significasse acastraccedilatildeo do autor (masculino) O culto da bitola fiacutelmica dominou ateacute a produccedilatildeo decinema independente A imagem rica estabeleceu seu proacuteprio padratildeo de hierarquias comas novas tecnologias oferecendo cada vez mais possibilidades para degradaacute-lacriativamente137 (STEYERL 2009 p3)

Eacute bastante interessante como Steyerl toma elementos formais ndash foco resoluccedilatildeo

definiccedilatildeo nitidez ndash que aparecem ao longo de sua argumentaccedilatildeo num sentido poliacutetico que

distingue o valor das imagens a partir de sua aparecircncia Essa percepccedilatildeo vem a calhar se

pensarmos que muitas das imagens consagradas na Histoacuteria da Arte possuem as caracteriacutesticas

elencadas no texto O contraacuterio o conjunto das imagens pobres reuacutene aquelas sujeitas agrave

circulaccedilatildeo na internet baixadas copiadas coladas editadas desgastadas na proacutepria mateacuteria que

as compotildee Essa desvalorizaccedilatildeo estaacute subentendida em diversos roacutetulos utilizados para classificar

trabalhos os mais heterogecircneos Basta lembrar por exemplo a conotaccedilatildeo da palavra

137Traduccedilatildeo livre de ldquoObviously a high-resolution image looks more brilliant and impressive more mimetic andmagic more scary and seductive than a poor one It is more rich so to speakconservative in their very structureResolution was fetishized as if its lack amounted to castration of the author The cult of film gauge dominated evenindependent film production The rich image established its own set of hierarchies with new technologies offeringmore and more possibilities to creatively degrade itrdquo

209

ldquoexperimentalrdquo como algo inacabado ou que carece de planejamento o que pode resultar em

interpretaccedilotildees equivocadas sobre o cinema e a fotografia experimentais

Ao nos falar sobre a presenccedila de imagens manipuladas descontruiacutedas e reconstruiacutedas

que participam de uma economia visual orientada pela velocidade e pelas ambiguidades e fluxos

o texto de Steyerl funciona tambeacutem como um gesto em favor das experiecircncias de reescrita

poeacutetica das formas limiacutetrofes surgidas atraveacutes do desgaste das recombinaccedilotildees dos usos

desviados como tambeacutem preconiza Flusser ldquoO novo eacute um ruiacutedo () ele me perturba ele eacute

repulsivo Eu o odeio A criatividade comeccedila com o feio () O novo se torna informativordquo

(FLUSSER apud FELINTO 2013 p63) Aqui vemos a atualidade do pensamento de Flusser

que testemunhava os primeiros anos da internet e dos contornos de uma sociedade telemaacutetica

(2011) como ele mesmo se referia agrave nossa condiccedilatildeo de seres sob permanente conectividade Mas

suas palavras podem ser entendidas no sentido mais geral de sua ideia filosoacutefica do ldquojogordquo como

caminho para produzir imagem informativa

53 AS FLUTUACcedilOtildeES DE UM CONCEITO

A emergecircncia do ldquonovordquo no sentido de ldquoinformaccedilatildeordquo flusseriana leva-nos a retornar ao

ruiacutedo em uma de suas caracteriacutesticas que mais dificultam (e agraves vezes opotildeem) teorizaccedilotildees o que

distingue o ruiacutedo muda de tempos em tempos Agraves vezes em sua proacutepria eacutepoca ruiacutedos natildeo satildeo

reconhecidos como tal sendo necessaacuteria a emergecircncia de um paradigma diferente para que isso

ocorra Ou seja a relaccedilatildeo entre materialidade miacutedia e esteacutetica e seus ruiacutedos eacute temporal e pode

depender de um gap para se estabelecer Retrospectivamente em face de uma nova norma

representativa o ruiacutedo pode tornar-se perceptiacutevel (ou atentarmos para ele) e quando uma nova

tecnologia toma o lugar da anterior superando-a isso ocorreraacute porque seu (aparente) sucesso vem

da forccedila em apagar o ruiacutedo do meio num grau maior do que era possiacutevel antes (HAINGE 2013

p118)138 Essa condiccedilatildeo leva a uma relaccedilatildeo com o ruiacutedo que pode ser paradoxal se confiamos no

138 Traduccedilatildeo livre de ldquo() when a new representational norm has come into being that this noise becomesperceptible or rather that it is consciously attended to Indeed if a new technology is able to take hold (hellip) andsupplant its predecessor this (hellip) will be because of its (apparent) success in effacing such medial noise to a higherdegree than was previously possiblerdquo

210

discurso de progressiva melhoria ligado ao surgimento de novas tecnologias e equipamentos139

Se por um lado haacute uma loacutegica de recusa ao ruiacutedo guiando a induacutestria da imagem verificada por

exemplo no tratamento preacutevio aplicado por meio de funccedilotildees do tipo ldquoreduccedilatildeo de olhos

vermelhosrdquo os controles de ISO (reduzindo efeitos que lembram a granulaccedilatildeo do negativo) e

iluminaccedilatildeo preacute-formatados o uso de filtros que realccedilam tons e cores evitando um efeito de

esmaecimento bastante comum apoacutes uma revelaccedilatildeo mal sucedida foco automaacutetico e todas essas

ldquovantagensrdquo no processamento automatizado da imagem indicam a negaccedilatildeo de ruiacutedos associados

a um paradigma visual anterior como promessa para elevar a qualidade da imagem participando

como argumento fundamental da cadeia da induacutestria em contrapartida haacute experiecircncias de

reintroduccedilatildeo daquilo antes rotulado como defeito Um processo de reaproveitamento de

elementos que normalmente seriam descartados

Essa questatildeo importante num horizonte de hibridizaccedilotildees fica tambeacutem evidente quando

Hainge (2013) cita artistas contemporacircneos que utilizam softwares capazes de ldquodegradarrdquo o som

produzido digitalmente com ruiacutedos remetendo agraves ldquofissurasrdquo do vinil ou seja artificialmente

agregar um elemento de outra tecnologia um ruiacutedo assim entendido como diverso da loacutegica do

sistema digital Um ruiacutedo simulado adicionado via poacutes-produccedilatildeo Esta associaccedilatildeo entre

componentes de uma tecnologia diversa e obras realizadas em ambiente digital cria uma

disjunccedilatildeo radical de forma e conteuacutedo e parece tentar dar aos produtos digitais certa

autenticidade (HAINGE 2013 p119) Eacute o que acontece com os procedimentos de aplicaccedilatildeo de

filtros que remetem a caracteriacutesticas de imagens analoacutegicas como no caso do trabalho do

coletivo Basetrack que jaacute analisamos cuja referecircncia visual ldquoadicionadardquo via software eacute a

Polaroid

Embora praacuteticas desse tipo contrariem a ontologia do ruiacutedo que o entende como

manifestaccedilatildeo interna ao sistema ou tecnologia considerados eacute interessante perceber como esses

empreacutestimos ocorrem num ambiente mais amplo de atravessamento das miacutedias no meio artiacutestico

contemporacircneo O artista visual Eacuteder Oliveira natural de BeacutelemPA apropria-se do pixel como

elemento ruidoso que responde a propoacutesitos midiaacuteticos e sociais de estigmatizaccedilatildeo de um

139 Conter (2017) faz interessante anaacutelise sobre essa questatildeo abordando por exemplo o uso de termos como hi-fipelo mercado de equipamentos de reproduccedilatildeo sonora e suas implicaccedilotildees no sentido de endossar um movimento dainduacutestria guiado pela substituiccedilatildeo de produtos oferecidos como promessas de melhor qualidade na medida em queseriam capazes de restituir ao som caracteriacutesticas experimentadas na ocasiatildeo da performance e ao mesmo tempoeliminar falhas ou resiacuteduos ldquonatildeo musicaisrdquo (mesmo que tal fidelidade seja um ideal e tatildeo pouco o ruiacutedo seja passiacutevelde eliminaccedilatildeo)

211

determinado segmento social Interessado em delinear um perfil do ldquohomem amazocircnicordquo atraveacutes

dos retratos de pessoas marginalizadas pela violecircncia cria pinturas a partir de fotografias

veiculadas na imprensa policial

Na seacuterie Pixels (figuras 67 e 67a) o pixel que constitui o elemento formador das

imagens digitais eacute enfatizado como que esgarccedilado quando alccedilado ao centro da pintura sugerindo

o apagamento da identidade atraveacutes do natildeo reconhecimento dos traccedilos faciais a naturalizaccedilatildeo da

violecircncia associada a indiviacuteduos dos quais pouco importa saber quem satildeo (poreacutem notadamente

pessoas majoritariamente pobres e negras) uma ideia de informaccedilatildeo corrompida e inuacutetil

vinculada agrave degradaccedilatildeo desses mesmos indiviacuteduos no conjunto da sociedade por sua associaccedilatildeo

com atos criminosos

Figuras 67 e 67a - Pinturas (oacuteleo sobre tela) da seacuterie Pixels (Eacuteder Oliveira 2018)

212

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

A descaracterizaccedilatildeo da identidade atraveacutes da pixelizaccedilatildeo coloca em debate o fato

tambeacutem de que essas pessoas ao transformarem-se em imagens perdem totalmente qualquer

controle sobre os discursos criados sobre elas Essa questatildeo ganha mais potecircncia quando a

estrateacutegia eacute articulada pela escolha do gecircnero retrato notadamente utilizado com funccedilotildees de

valorizaccedilatildeo do indiviacuteduo num esforccedilo de celebraccedilatildeo da singularidade Eacuteder Oliveira perverte

essa ideia por meio da aproximaccedilatildeo da imagem ateacute que ela exponha sua materialidade forjada e a

identidade da pessoa desintegre-se Ao mesmo tempo que podemos enxergar os traccedilos da

informaccedilatildeo de uma imagem de computador ela jaacute encena uma passagem para a modalidade de

informaccedilatildeo pictoacuterica mas continuam ainda perceptiacuteveis marcas de ambas as modalidades e

temos uma obra estranhamente indefinida entre fotografia e pintura

Esse mesmo aspecto de mesticcedilagem entre pintura e foto eacute encontrado no projeto The

Discrete Channel with Noise mdash an experiment into visual communication and misinformation

de Clare Strand (figuras 68 a 71) Partindo de fotografias de seu acervo pessoal a artista constroacutei

pinturas que no entanto se distanciam de aspectos de apresentaccedilatildeo de telas convencionais O

conceito do projeto estaacute relacionado aos imprevistos e erros ligados agrave transmissatildeo da informaccedilatildeo

e agrave reinterpretaccedilatildeo de coacutedigos em sistemas diferentes tocando diretamente a questatildeo do ruiacutedo

Durante uma residecircncia artiacutestica na Franccedila Strand (que reside na Inglaterra) utilizou o livro

Electronic Television (1936) de George H Eckhardt para seu projeto da seguinte maneira a

publicaccedilatildeo sugeria a possibilidade de transmitir imagens atraveacutes de um teleacutegrafo marcando toda

a imagem com linhas verticais e horizontais formando assim uma grade em sua superfiacutecie Cada

213

quadrado formado por essas linhas receberia um nuacutemero correspondente a um esquema de cores

numa escala de cinza Ou seja criaria um coacutedigo para reproduccedilatildeo de uma imagem que migraria

de um meio a outro

Atuando como receptora da informaccedilatildeo a fotoacutegrafa pediu ao seu marido (otransmissor) para escolher dez imagens do seu arquivo pessoal Usando a metodologiade Eckhardt as imagens foram transmitidas da Inglaterra para a Franccedila onde Strandpintou-as em uma versatildeo em grande escala da mesma grade O resultado satildeo 10 imagensanaloacutegicas que expressam os inevitaacuteveis erros de comunicaccedilatildeo ocorridos durante oprocesso levantando questotildees sobre as consequecircncias da maacute interpretaccedilatildeo no mundodigital (WARNER online 2020)

As imagens finais satildeo em grande escala em relaccedilatildeo agraves fotografias originais e pouco se

assemelham a estas uacuteltimas predominando o aspecto quadriculado retiliacuteneo e padronizado dos

grafismos de sistemas eletrocircnicos e computadorizados Satildeo expostas em papel (e natildeo em telas)

grampeadas em suportes e exibidas em conjunto com as fotos originais e outros materiais

utilizados no projeto como pinceacuteis e tintas

Figura 68 - The Discrete Channel with Noise Coded Paint Pots 4 - 7

Fonte Reproduccedilatildeo site do Centre Photographique DrsquoIle-de-France

214

Na verdade elas datildeo corpo ao proacuteprio processo ldquoO processo eacute tatildeo importante quanto os

quadros e as fotografias daiacute a exposiccedilatildeo dos potes e pinceacuteisrdquo (STRAND apud WARNER online

2020)

Figura 69 - Fotografia original submetida ao meacutetodo de Eckhardt

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

Figura 70 - Algorithmic Painting Destination 4 (Clare Strand 2017 ndash 2018)

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

215

Figura 71 - Vista da montagem da exposiccedilatildeo The Discrete Channel with Noise Algorithmic Painting Destination

3 - 8 2018

Fonte Reproduccedilatildeo site do Centre Photographique DrsquoIle-de-France

Nesse projeto a dimensatildeo processual eacute reforccedilada enquanto se assume como esteacutetica os

descaminhos da transmissatildeo-recepccedilatildeo de informaccedilatildeo entre tecnologias distintas embora voltadas

igualmente para a imagem Os exemplos apresentados ateacute aqui indicam ainda como o ruiacutedo pode

operar apagando fronteiras entre passado presente e futuro confundindo temporalidades e

modos esteacuteticos atraveacutes de estrateacutegias derivadas de assimilaccedilotildees mixagens empreacutestimos

gerando produtos hiacutebridos como observado em relaccedilatildeo agraves tecnologias da imagem que passam a

operar na ordem da trocas Na conclusatildeo de seu estudo Hainge (2013) reforccedila a natureza mutaacutevel

do ruiacutedo identificado de maneira diferente quando comparamos campos de expressatildeo distintos

ou ateacute dentro de uma mesma linguagem artiacutestica como verificamos haacute pouco a respeito da

fotografia Segundo ele eacute impossiacutevel definir precisamente o que eacute o ruiacutedo pois suas coordenadas

natildeo satildeo fixas e suas caracteriacutesticas dependem dos arranjos expressivos feitos o que exige uma

interrogaccedilatildeo contiacutenua a seu respeito (HAINGE 2013 p273)

Eacute crucial termos isso em mente porque em nosso corpus as diferentes abordagens

realizadas pelos artistas exploram diversas vertentes esteacuteticas e recursos plaacutesticos que trazem agrave

tona uma multiplicidade de ruiacutedos Estes podem estar relacionados a expectativas modelos e

usos comuns e largamente aceitos para o campo da imagem em termos de gecircnero fotograacutefico

relaccedilotildees espaccedilo-temporais entre outras questotildees bastante caras ao fazer e pensar a imagem

216

Ao discutir o universo dos filmes de David Lynch como exemplo de um cinema

profundamente ruidoso140 e seus recursos narrativos e esteacuteticos Hainge (2013) diz que uma

intensificaccedilatildeo do medium eleva o niacutevel de ruiacutedo o que ocorre nas diversas obras arroladas nesta

tese atraveacutes da exploraccedilatildeo limiacutetrofe de aspectos variados como granulaccedilatildeo manchas borrotildees

muacuteltiplas exposiccedilotildees traccedilos do arrasto da peliacutecula dentro do equipamento interrupccedilotildees causadas

pelo acionamento e pausar da cacircmera cortes bruscos e aparentes nos materiais que se tornam

visiacuteveis na superfiacutecie da imagem etc O excesso de inscriccedilatildeo da tecnologia impede o

discernimento entre forma e conteuacutedo fundo e figura (HAINGE 2103 p183) implicando um

voltar-se para a proacutepria miacutedia como lugar de investigaccedilatildeo o que indica que os trabalhos presentes

em nosso corpus possuem uma dimensatildeo processual marcante

Acrescente-se ainda aos resultados esteacuteticos que expotildeem os ruiacutedos na imagem os

contrastes entre aacutereas muito proacuteximas da lente (e seu aspecto borrado) e fundo cortes bruscos e

expliacutecitos na junccedilatildeo de elementos diacutespares dentro um mesmo quadro que mistura ambientes

temporalidades (HAINGE 2013 p198) texturas materiais provindos de diferentes signos

associados agrave imagem para favorecer natildeo uma intenccedilatildeo narrativa mas uma provocaccedilatildeo formal

caoacutetica

Na seacuterie Nuptias (2017) Rosacircngela Rennoacute (figuras 72 a 76) discute o paradoxo entre

um rito social altamente valorizado e cercado de idealizaccedilotildees ndash o matrimocircnio ndash e seu desgaste

sua ruiacutena jaacute que em muitos casos o casamento natildeo resiste ao tempo Satildeo imagens realizadas em

teacutecnica mista utilizando-se fotografias antigas e carte de visite Imagens recuperadas de

contextos de felicidade utilizadas para falar sobre as amarguras do casamento Isso eacute feito

aplicando-se agraves imagens objetos pedaccedilos de tecidos madeira desgastada ilustraccedilotildees recortadas

de enciclopeacutedias trechos de mangaacutes reproduccedilotildees de pinturas famosas entre outros materiais A

artista escreve pinta cola sobre as fotos Junta os noivos de uma cerimocircnia e personagens

totalmente estranhos agrave situaccedilatildeo (retirados de outras fotos) que pelos trajes e poses notamos natildeo

140 Para Hainge (2013) seja do ponto de vista filosoacutefico ou esteacutetico os filmes do cineasta satildeo cheios de perturbaccedilotildeesde identidades e categorias fixas formas delimitadas chegando a diluir o significado tendo em vista que os enredossolicitam que nos desapeguemos de ideias preacute-concebidas de narrativa uso do som gecircneros de noccedilotildees que separamo que eacute real devaneio ou loucura As estranhezas que se verificam nas imagens de Lynch estatildeo alinhadas com asestranhezas das narrativas O capiacutetulo de seu livro dedicado agrave produccedilatildeo do diretor norte-americano trataespecificamente de Eraserhead (1977) e Impeacuterio dos Sonhos (Inland Empire 2006)

217

pertencerem agrave situaccedilatildeo de festa alguma Vai e volta no tempo casando uma recatada mocinha com

o vilatildeo Darth Vader do filme Guerra nas Estrelas141

Figura 72 - Sem tiacutetulo (Lea loves Darth) da seacuterie Nuptias (Rosacircngela Rennoacute 2017)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Visualmente todo o conjunto formado por 150 fotopinturas142 sugere um excesso de

lugares expectativas desejos personagens referecircncias encontrando-se numa verdadeira

confusatildeo Um excesso de materialidade para o qual Rosacircngela Rennoacute oferece soluccedilotildees visuais

que lidam com o abandono e o esquecimento A obra problematiza a um soacute tempo modelos de

relacionamento sexualidade estereoacutetipos femininos a verdadeira induacutestria que envolve a

realizaccedilatildeo de um casamento e fala logicamente da proacutepria fotografia de casamento como um

141 Guerra nas Estrelas (Star Wars) eacute a franquia de filmes de ficccedilatildeo cientiacutefica criada pelo norte-americano GeorgeLucas Os primeiros filmes (Guerra nas Estrelas O impeacuterio Contra-Ataca O retorno de Jedi) foram lanccediladosnas deacutecadas de 1970-80 A partir dos anos 2000 outros nove episoacutedios jaacute foram lanccedilados entre eles O Ataque dosClones A vinganccedila dos Sith O despertar da forccedila e o mais recente Solo Uma Histoacuteria Star Wars (RonHoward 2018)142 ldquoFotopinturardquo eacute o termo utilizado pela artista na descriccedilatildeo da obra que consta em seu site Poreacutem lembremos quea teacutecnica de fotopintura pressupotildee a recriaccedilatildeo de uma imagem fotograacutefica a partir de teacutecnicas pictoacutericas (cominclusatildeo de elementos ausentes da imagem fotograacutefica original) De fato a seacuterie de Rennoacute junta fotografiasdescartadas e materiais diversos (papel madeira borracha tinta tela) alguns deles pertencentes ao universo dosmateriais pictoacutericos mas natildeo reconstroacutei as imagens fotograacuteficas repetindo os limites de enquadramento pose everossimilhanccedila como geralmente ocorre numa fotopintura tradicional Nesse sentido mais tradicional do termo haacuteapenas uma imagem entre as disponibilizadas no site que utiliza uma fotopintura como base a imagem Semtiacutetulopavatildeo (2017) Disponiacutevel em httpwwwrosangelarennocombrobrasview703 Acesso em 280419

218

artefato cheio de complexidades enquanto guarda certa aura de preciosidade pode ser tanto

viacutetima da abundante produccedilatildeo de imagens digitais quanto do descarte poacutes-separaccedilatildeo do

esmorecer das cores e dos afetos em aacutelbuns velhos da poeira e do passar dos anos que faz muitas

dessas fotografias irem parar em lugares onde o desapego se mede pelo preccedilo baixo e onde

Rennoacute foi buscaacute-las para compor sua seacuterie Ela explica

Me parece que a sociedade sofre cada vez mais com uma ansiedade generalizadaprovocada pelos ldquoexcessosrdquo Excesso de tudo de comunicaccedilatildeo de acessibilidade deconsumo de contraste entre pobreza e riqueza entre desejo e realizaccedilatildeo esse excessoempurra a satisfaccedilatildeo e consequentemente a felicidade para muito longe sempre muitoaleacutem do nosso alcance As cerimocircnias dos tradicionais matrimocircnios parecem ser tanto otermocircmetro desse sentimento quanto a proacutepria febre Entretanto e entre tantasfrustraccedilotildees casamentos se tornam imperfeitos por muito pouco Me interesso pelodocumento daquilo que foi sacramentado e depois desfeito quer seja pelo tempo ou peloproacuteprio ser humano Casamentos hoje natildeo parecem valer muita coisa apesar do aindaalto valor simboacutelico da cerimocircnia e do altiacutessimo preccedilo que se paga para realizaacute-las Eacuteimpressionante a quantidade de fotos de casamento que satildeo encontradas nos mercadosde pulgas soacute natildeo superada pela quantidade de fotos que satildeo realizadas hojedigitalmente nas inumeraacuteveis cerimocircnias cujo ideal de pompa e circunstacircncia varia emconformidade com o poder de compra das diferentes classes sociais143 (RENNOacute online2017)

Eacute muito interessante como nessa obra a questatildeo do ruiacutedo opera em vaacuterios niacuteveis o

simboacutelico tratando o casamento sob a perspectiva das relaccedilotildees amorosas confusas imperfeitas

deterioradas e ateacute improvaacuteveis do estilo das composiccedilotildees totalmente disjuntivo apelando aos

processos utilizados em fotomontagem e abrindo agrave imagem para diversos efeitos de choques

cromaacuteticos rasgos buracos riscos recortes e contornos bruscos o das temporalidades jaacute que a

artista daacute saltos no tempo trabalhando com imagens de eacutepocas variadas que adicionadas umas agraves

outras criam um tempo sem marcos de passado presente ou futuro investindo na dissoluccedilatildeo

dessas fronteiras e por fim o niacutevel das reflexotildees a respeito dos ldquosintomasrdquo das sociedades

contemporacircneas em processos como incomunicabilidade excesso de informaccedilatildeo fugacidade

alteridade medo quebra de paradigmas questotildees frequentemente evocadas ao longo do estudo

de Hainge (2013) e que reforccedilam a compreensatildeo de que o ruiacutedo estaacute em tudo (sentido

fenomenoloacutegico e ontoloacutegico) natildeo respeita aprisionamentos cronoloacutegicos bagunccedilando os

paradigmas os limites as preacute-definiccedilotildees

143 RENNOacute Rosacircngela Nuptias (2017) Disponiacutevel em httpwwwrosangelarennocombrobrassobre70 Acessoem 260419

219

A ecircnfase na ideia de que o casamento eacute felicidade e frustraccedilatildeo ao mesmo tempo

sentimentos misturados sem que nenhum deles sobreponha-se ao outro faz com que retornemos

ao tema do ruiacutedo Se pensamos que essa relaccedilatildeo entre contraacuterios eacute inescapaacutevel e responsaacutevel pelo

excesso de desejo e expectativas a que se refere a artista o ruiacutedo estaacute na impossibilidade de

equacionar esses extremos posto que satildeo vivenciados conjuntamente na relaccedilatildeo (da qual o

casamento eacute o rito social partilhado e registrado) embora as tentativas de controle sejam tatildeo

frequentes quanto inuacuteteis A seacuterie Nuptias proporciona uma leitura amarga e irocircnica do

casamento como instituiccedilatildeo social e atinge esse efeito sujeitando as imagens a procedimentos

que pervertem suas formas sentidos e usos originaacuterios

Figura 73 - Sem tiacutetulo (aacutelbuns) da seacuterie Nuptias (Rosacircngela Rennoacute 2017)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Rennoacute estaacute entre as artistas brasileiras contemporacircneas mais interessantes no uso de

materiais recuperados (fotografias aacutelbuns peliacuteculas) e equipamentos antigos ligados agrave histoacuteria

das tecnologias de imagem Vaacuterios de seus trabalhos problematizam binocircmios como fugacidade e

perenidade fixidez e mobilidade imaterialidade e fisicalidade ciclos de vida e morte real e

fabulaccedilatildeo tempo e memoacuteria sempre relacionados agrave imagem nos quais ela emprega cacircmeras

projetores e negativos remetendo agraves formas de entretenimento claacutessicas da imagem (tais como

lanterna maacutegica diorama cinema de atraccedilotildees fantasmagorias estereoscopia) Contudo nessas

obras em vez de sustentar o princiacutepio de ocultamento dos dispositivos trabalhando na chave

220

discursiva da ilusatildeo ndash como ocorre por exemplo no cinema convencional onde aparentemente a

imagem nos atinge sem recursos intermediaacuterios sem toda uma estrutura tecnoloacutegica que de fato

lhe daacute ldquocorpordquo ndash Rennoacute busca desnudar os mecanismos de funcionamento deixando o puacuteblico

ver as superfiacutecies os aparelhos as peliacuteculas as cacircmeras e os restos de materiais tornando a

presenccedila dessas estruturas um componente importante que enfatiza o artifiacutecio envolvido nos

procedimentos relativos agrave imagem Seu trabalho tira partido de uma verve colecionista e vai

tomando forma com base no rearranjo dos objetos coletados que sofrem intervenccedilotildees e satildeo

muitas vezes empregados em circuitos de fruiccedilatildeo totalmente apartados dos originais dobrando-se

a intencionalidades estranhas para as quais foram criadas Nesse sentido eacute bastante produtivo o

cruzamento entre imagens ligadas ao uso domeacutestico e afetivo (fotografia de famiacutelia viacutedeos

caseiros) e um estatuto mais coletivo adquirido quando satildeo utilizadas para discutir funccedilotildees de

arquivamento acumulaccedilatildeo valor histoacuterico simboacutelico ou poliacutetico memoacuteria esquecimento Todas

essas questotildees sempre rondaram de maneira especial os debates sobre a fotografia e satildeo

recolocadas pela criacutetica cada vez que a tecnologia apresenta alguma novidade Na obra de

Rosacircngela Rennoacute esses temas satildeo constantes que movem a busca pela reinterpretaccedilatildeo de uma

seacuterie de materiais abandonados condenados ao esquecimento

Figura 74 - Sem tiacutetulo (barata) seacuterie Nuptias (Rosacircngela Rennoacute 2017)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

221

Figura 75 - Sem tiacutetulo (davi tupi) da seacuterie Nuptias (Rosacircngela Rennoacute 2017)

FonteReproduccedilatildeo site da artista

Figura 76 - Sem tiacutetulo (Guernica) da seacuterie Nuptias (Rosacircngela Rennoacute 2017)

222

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Tais praacuteticas estatildeo em conformidade com estrateacutegias da arte contemporacircnea alinhadas agraves

teses flusserianas de desmonte do ldquoprogramardquo do ldquoaparelhordquo podendo incluir intervenccedilotildees no

modo de funcionamento convencional das miacutedias experiecircncias com as materialidades e o uso de

miacutedias obsoletas ou resgate de projetos abandonados (BAIO 2015 p21) Reintroduzir certos

artefatos ligados ao universo das tecnoimagens criando novos usos e modos de apresentaccedilatildeo e

estimulando assim modos novos de sensibilidade eacute tambeacutem uma maneira de reprogramar os

dispositivos

No projeto Imagem de sobrevivecircncia (figuras 77 78 e 78a) tambeacutem desenvolvido a

partir de imagens coletadas em feiras e mercados de pulgas a artista utiliza o slide (ou

diapositivo) Hoje praticamente esquecido (seja pela indisponibilidade de projetores ou da

descontinuidade da produccedilatildeo das proacuteprias imagens) o slide desempenhava uma funccedilatildeo de

fotografia de famiacutelia poreacutem na modalidade da imagem projetada Em seu site ao explicar um

pouco sobre o trabalho Rennoacute lembra que os diapositivos foram populares entre os anos 1950-

80 e simbolizavam o ato de contemplar entre parentes e amigos cenas cotidianas e momentos de

lazer Ao contraacuterio do aacutelbum de fotografias o contato com os diapositivos mostra-se mais

dinacircmico por causa de um deslumbramento que noacutes seres humanos temos pelas imagens

projetadas (RENNOacute online 2015) Soacute que neste trabalho em vez de dar ecircnfase agrave contemplaccedilatildeo

de momentos singularizados em cada diapositivo individualmente a artista projeta as imagens ao

mesmo tempo

Cada lsquoesculturaestantersquo abriga e expotildee 4 projetores do tipo Kodak Carousel queprojetam as imagens em transparecircncia de forma simultacircnea e sobreposta O resultado eacuteuma projeccedilatildeo muacuteltipla muito paacutelida que ao longo do tempo se modificaconstantemente sem jamais se repetir ateacute que a luz dos projetores a consumamtotalmente para que sejam substituiacutedas por outras mais frescas (RENNOacute online2015)

223

Figura 77 - Vista da montagem da obra Imagem de sobrevivecircncia (Rosacircngela Rennoacute 2015)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Desrespeitando o princiacutepio da imagem uacutenica e fixa os diapositivos satildeo submetidos a

uma montagem que sugere o excesso onde o caraacuteter de singularidade de cada um se desvanece e

nesse sentido o trabalho chama atenccedilatildeo para o aspecto da materialidade do suporte ldquoslides satildeo

feitos e colecionados agraves duacutezias agraves centenas e aos milharesrdquo (Idem) Essa materialidade abundante

eacute lembrada pela maneira como as imagens satildeo apresentadas (sobrepostas)

A estrateacutegia de exibi-los todos ao mesmo tempo tambeacutem provoca um embaralhamento

que entrecruza vaacuterios tempos e espaccedilos Note-se que os diapositivos selecionados foram

adquiridos em locais distintos provenientes de coleccedilotildees variadas ou seja natildeo necessariamente

possuem um tema comum ordenamento ou afinidade cronoloacutegica o que Rennoacute simboliza

exatamente pelo arranjo escolhido para sua apresentaccedilatildeo um arranjo desordenado As

associaccedilotildees entre eles satildeo aleatoacuterias Os personagens e cenaacuterios dessas imagens vecircm assombrar o

olhar do espectador como verdadeiros espectros evocados seja pela fugacidade da projeccedilatildeo seja

pelo fato de que pertencem a um tempo passado fragilmente lembrado apenas enquanto

permanece acesa a luz de cada equipamento

Ao mesmo tempo eacute como se a artista tentasse montar um pequeno e caoacutetico

documentaacuterio sobre pessoas que tinham nas coleccedilotildees de slides o diaacuterio visual de suas rotinas

224

num esforccedilo para dar sobrevida a cenas que originalmente eram produzidas para uma audiecircncia

reduzida (familiar) Rosacircngela Rennoacute se destaca pela elaboraccedilatildeo de obras em que confere

ldquodinamismo agrave imagem fixardquo (FATORELLI 2013 p24) e neste projeto em questatildeo ela articula

de maneira muito particular os dispositivos do cinema e da fotografia (reprogramando suas

ontologias claacutessicas) chamando nossa atenccedilatildeo para a estranheza do proacuteprio formato diapositivo

uma imagem fixa concebida para projeccedilatildeo Imagem fixa que adquiria um falso movimento a

partir da sucessatildeo de unidades na velocidade regular do projetor Se em seu modo de usar

corriqueiro a ideia de uma narrativa jaacute se anunciava como uma impossibilidade ao propor a

sobreposiccedilatildeo de vaacuterias destas unidades diante do espectador da obra Rennoacute provoca uma falha

no desejo de interligar as cenas visiacuteveis

Figuras 78 e 78a - Projeccedilotildees de Imagem de sobrevivecircncia (Rosacircngela Rennoacute2015)

225

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Quem observa tais cenas natildeo tem qualquer relaccedilatildeo de intimidade com o aquilo que eacute

exibido donde se perverte tambeacutem a natureza afetiva e particular original deste material

Deslocado de seu tempo num resgate em plena eacutepoca dos meios digitais o diapositivo aponta

para o ruiacutedo no sentido de que afasta-se de padrotildees utilitaacuterios e vigentes da induacutestria da imagem

atual Aleacutem disso ndash e este eacute tambeacutem um aspecto relevante da obra ndash como imagem que enfrenta

um processo de deterioramento no seu proacuteprio uso o slide caminha na direccedilatildeo de uma esteacutetica de

desgaste da precariedade do apagamento numa constante mutaccedilatildeo de suas caracteriacutesticas

fiacutesicas e consequentemente esteacuteticas

226

6 O QUE SUGEREM AS LIGACcedilOtildeES ENTRE RUIacuteDO E IMAGEM

Ao longo deste estudo certos temas emergiram das anaacutelises das obras alguns dos quais

representam tendecircncias observadas nas obras analisadas a influecircncia do acaso como elemento

que contribiu para a formaccedilatildeo de esteacuteticas singulares o valor da materialidade como base da

expressatildeo do ruiacutedo a reapropriaccedilatildeo criacutetica de tecnologias ldquoobsoletasrdquo ou ldquoabandonadasrdquo da

imagem em sua articulaccedilatildeo com uma abordagem arqueoloacutegica da miacutedia e por fim os

movimentos da teoria da imagem que podem nos ajudar a compreender esse universo de

imagens

Tais questotildees perpassam todo o trabalho e satildeo aqui evocadas com o objetivo de oferecer

uma espeacutecie de comentaacuterio final sobre os projetos artiacutesticos que trouxemos A reflexatildeo pode se

somar aos estudos recentes sobre a arte contemporacircnea e suas tendecircncias que discutem o tracircnsito

entre miacutedias a condiccedilatildeo plural da imagem o tensionamento do paradigma indicial o resgate de

teacutecnicas claacutessicas da imagem e a recente valorizaccedilatildeo formal das obras nascidas da exploraccedilatildeo do

erro da falha ou do ruiacutedo

61 O PAPEL CRIATIVO DO ACASO

ldquoMas deixo o destino deixo ao acaso

Quem sabe eu te encontrordquo - Lua e Estrela Caetano Veloso

Associado agrave sua ubiquidade nas mateacuterias sistemas e meios o ruiacutedo possui uma

dimensatildeo que escapa ao controle humano (HAINGE 2013 p94) conservando na sua

manifestaccedilatildeo algo de imprevisiacutevel que podemos associar agrave ordem do acaso Esse componente eacute

parte importante da elaboraccedilatildeo de vaacuterias obras analisadas aqui desempenhando papel

fundamental na proacutepria concepccedilatildeo da imagem e de suas configuraccedilotildees formais Um entendimento

do ruiacutedo que valoriza certa rebeldia como marca saudaacutevel e desejada da tecnologia

227

Esse imprevisiacutevel ndash um agenciamento surgido quando as proacuteprias tecnologias satildeo postas

em funcionamento pelos artistas na combinaccedilatildeo de materiais e ferramentas inusitados ou mesmo

na associaccedilatildeo entre teacutecnicas diversas ndash origina trabalhos bastante diacutespares ligados agrave vertente

ldquoexperimentalrdquo (LENOT 2017a) ldquoexpandidardquo (JUNIOR 2002) natildeo-representacional e ldquonatildeo-

humanardquo (ZYLINSKA 2017a) da fotografia A despeito da especificidade dessas terminologias

todas sugerem a abordagem da fotografia a partir de um caraacuteter processual em obras nas quais a

esteacutetica surge como decorrecircncia de um intenso processo de experiecircncias realizadas nas diferentes

etapas de produccedilatildeo da imagem Se entendemos que a imagem eacute essencialmente um processo

(sujeito a acidentes de toda sorte) a relaccedilatildeo com essa dimensatildeo do imprevisto adquire conotaccedilatildeo

positiva Isso fica evidente nas entrevistas que realizamos para esta tese nas quais termos como

ldquoacasordquo ldquodesconhecidordquo ldquoriscordquo (ou mesmo ldquoerrordquo e ldquoruiacutedordquo) foram citados para afirmar o

papel positivo da imprevisibilidade Ao mesmo tempo osas artistas natildeo atribuem a si mesmosas

o controle riacutegido dos processos criativos embora a maioria possua um consideraacutevel domiacutenio

sobre as teacutecnicas e materiais utilizados Na verdade quanto maior o niacutevel de intimidade com as

tecnologias mais as metodologias satildeo encaradas como abertas adaptaacuteveis maleaacuteveis e podem

ser reinventadas desdobradas Na trajetoacuteria dessas reinvenccedilotildees os acidentes acrescentam

camadas de significaccedilatildeo aos trabalhos

Maueacutes falando dos procedimentos relativos agrave teacutecnica do quimigrama indica

Brincando com esse processo eu descobri uma textura que dava uma ilusatildeo de ceacuteu Ohorizonte te remete agrave paisagem Algumas dessas imagens parecem fotografia por contado material Aiacute tem essa ilusatildeo de que o material te faz pensar numa paisagemfotograacutefica de um lugar que existe mas natildeo existe Eacute a ilusatildeo do processo Um ceacuteu umhorizonte e a mancha tambeacutem neacute Aquilo ali comeccedila a derramar () surge da accedilatildeodos dois juntos (revelador + fixador) que eacute totalmente imprevisiacutevel Porque depende daluz natildeo precisa de laboratoacuterio () de estar numa luz mais forte mais fraca Essasreaccedilotildees vatildeo sendo mais raacutepidas mais lentas e as cores vatildeo surgindo de formaimprevisiacutevel (MAUEacuteS 2017)

Luiz Alberto Guimaratildees avalia que a configuraccedilatildeo padratildeo das maacutequinas fotograacuteficas o

ldquoprogramardquo reduz a intervenccedilatildeo do acaso

Quando eu digo que a gente sabe o que vai sair a gente tem uma vaga ideia Ainda maisquando vocecirc tem muacuteltiplas exposiccedilotildees aquilo vai se superpor vocecirc natildeo tem a menorideia Quando eu digo saber () eacute tudo que vocecirc faz eacute mirar saber que quando vocecirc taacutebotando a maacutequina ali vocecirc natildeo vai pegar o chatildeo vocecirc vai pegar o alto do preacutedio ()Mesmo essas fotos que eu procurava fazer uma fusatildeo com o fundo vocecirc nunca sabeMuitas eu repetia e agraves vezes ficava transparente demais ou agraves vezes ficava pouco ()

228

Porque tambeacutem quando a gente mostra o trabalho pronto jaacute taacute editado apurado () masa maacutegica eacute muito isso o resultado eacute sempre a imprevisiblidade (que o aparelhoconvencional trabalha sempre no sentido oposto neacute) Para tirar toda a chance de natildeosair o que vocecirc queria Tanto que agraves vezes se vai fazer foto comum de gente aiacute lsquopuxaalgueacutem piscou cortoursquo porque natildeo podia sair aquilo () Na fotografia vocecirc tem essecampo do acaso que eacute bem grande mas que o projeto da cacircmera tenta limar neacute Eacutefantaacutestico (GUIMARAtildeES 2017)

Para Cris Bierrenbach aceitar que durante a realizaccedilatildeo de um trabalho nem tudo estaacute

previsto eacute parte da metodologia Sobre a seacuterie Febre de 2002 (ver figura 51) comenta ldquoO

trabalho acontece () Natildeo era uma foto qualquer era um rosto Eu tava num movimento de

destruir um rosto destruir uma representaccedilatildeo de identidade () Na cabeccedila tem um

direcionamento mas vai acontecendordquo (BIERRENBACH 2019)

Entler (2000) afirma que ao contraacuterio de vislumbrar na arte somente a expressatildeo

individual centralizada na figura de um sujeito criador podemos entender o acaso como

elemento participativo das obras Os artistas que fazem isso estatildeo interessados no que o autor

denomina ldquopoeacuteticas do acasordquo Segundo ele a poeacutetica estaacute ligada aos procedimentos aos modos

de fazer agraves funccedilotildees da arte Ele se refere ainda ao direcionamento adotado a partir do uso

intencional de uma determinada teacutecnica tecnologia ou mesmo esse direcionamento tomado com

referecircncia a um estilo ou movimento artiacutestico ldquoEacute a poeacutetica que determina as normas de uma

produccedilatildeo artiacutestica suas particularidades operativasrdquo (ENTLER 2000 p48)

Eacute interessante que ao lado de um conhecimento soacutelido das tecnologias empregadas

osas artistas natildeo intencionam a produccedilatildeo de obras que espelhem esse domiacutenio da teacutecnica eles

acolhem prontamente os acidentes e resultados inesperados surgidos no manuseio dessas

teacutecnicas Essa atitude demonstra que haacute uma espeacutecie de deslocamento da importacircncia doda

artista como responsaacutevel exclusivo pela concepccedilatildeo da obra em direccedilatildeo a uma colaboraccedilatildeo que

acontece na interaccedilatildeo dos elementos que compotildeem a proacutepria obra Ou melhor dizendo da

aceitaccedilatildeo de uma funccedilatildeo expressiva originada no medium Estamos diante de uma metodologia

caracterizada pela negociaccedilatildeo entre controle e imprevisto

O acaso natildeo se submete agrave habilidade e reciprocamente a habilidade eacute exatamente aarma que se pode ter contra o acaso para garantir o alcance de um objetivo qualquerTem-se aqui um sentido negativo que hoje estaacute contido na ideia de acidente e diante dosenso comum arte estaacute para criaccedilatildeo como acaso estaacute para a destruiccedilatildeo (ENTLER 2000p9)

229

Se o autor fala em destruiccedilatildeo e descontrole nos processos onde o acaso exerce funccedilatildeo

criativa Bierrenbach chega agrave mesma questatildeo e fala sobre a relaccedilatildeo entre miacutedias analoacutegicas e o

encontro com o acaso

No analoacutegico sempre tem um caraacuteter assim do imprevisiacutevel mais forte (lsquoQue vocecirc natildeoconsegue controlar totalmente o resultado neacutersquo) Exatamente Vocecirc natildeo consegue prevernatildeo consegue controlar natildeo tem como voltar atraacutes Eacute claro que eu consigo errar e testarmuitas coisas () fazer uma ldquogororobardquo aqui uma maluquice qualquer no computadorMas eu sempre consigo voltar e eu sempre ldquotocircrdquo com um peacute numa certeza da natildeodestruiccedilatildeo que no analoacutegico natildeo Vocecirc efetivamente tem que destruir coisas pra chegaragravequela imagem () Quando vocecirc transformou ela ela foi destruiacuteda (BIERRENBACH2018)

Entler considera ainda que oa artista traz para o primeiro plano do ato criativo o

processo sem no entanto ter uma consciecircncia definida sobre o resultado buscado O acaso

conteacutem a resposta de uma investigaccedilatildeo de iniacutecio demarcado mas de final incerto A ideia de

aproveitar algo que natildeo se sabia exatamente como seria eacute o princiacutepio norteador de vaacuterias obras

elencadas aqui que investigam por exemplo as inscriccedilotildees do tempo mediante longas exposiccedilotildees

ou o uso da teacutecnica de databending na glitch art a troca das ordens de quiacutemicos no procedimento

do quimigrama o emprego de cacircmeras pinhole (sem lente anel de foco) entre tantas estrateacutegias

desenvolvidas

611 O imprevisiacutevel instala-se por conta do uso desprogramado das tecnologias

A imprevisibilidade que essas obras carregam se torna parte integrante delas exatamente

pelo uso desviado as recodificaccedilotildees os ajustes e reinvenccedilotildees dos meios Utilizando as

tecnologias de maneira alternativa aos padrotildees industriais natildeo se pode prever completamente a

configuraccedilatildeo final dos trabalhos Essa margem de indeterminaccedilatildeo constitui entatildeo uma

caracteriacutestica relevante desses projetos artiacutesticos Entler comenta a relaccedilatildeo entre acaso e modos

de fazer originais

Parece oacutebvio que quando determinamos uma meta a maneira mais segura de atingi-la eacuteter o maacuteximo de controle sobre o processo Se me proponho a fazer um bolo devo saberexatamente a quantidade de cada ingrediente a forma de misturaacute-los o tempo e atemperatura de cozimento e para evitar equiacutevocos recorremos a uma receita Masquando a meta natildeo estaacute previamente configurada de maneira tatildeo riacutegida quando nossoalvo se move quando tentamos nos antecipar a um problema potencial o acaso se tornaum criteacuterio que merece nossa atenccedilatildeo Para a arte assim como para qualquer gecircnese oacaso encontra sua utilidade como uma das mais ricas fontes de diversidade e de

230

renovaccedilatildeo que conhecemos Natildeo haacute criaccedilatildeo verdadeira sem desvio (ENTLER 2000p39)

Nos trabalhos de nosso corpus os resultados expressam as escolhas adotadas em cada

processo por cada artista em particular Assim as obras constituem tambeacutem um exerciacutecio formal

e criacutetico dos usos corriqueiros das tecnologias e um tensionamento poliacutetico-esteacutetico para criar

visualidades erraacuteticas plurais e descontiacutenuas considernando sobretudo a dimensatildeo poeacutetica dos

erros falhas e ruiacutedos Bierrenbach estimula a refletir natildeo sobre a tipologia das miacutedias mas sobre

maneiras alternativas de utilizaacute-las

Num certo sentido chega a ser poliacutetico Ludimilla (lsquoSim eacute uma postura poliacutetica de comocolocar a maacutequinavocecirc criar sua proacutepria linguagemrsquo) Num certo sentido ateacutedesacreditar a maacutequina neacute Tirar esse poder da cacircmera As pessoas falam que cacircmeravocecirc tem Natildeo importa que cacircmera eu tenho Importa o que vocecirc pensa importa o quevocecirc vai fazer com aquilo Pode ter ateacute um xereta Vocecirc nem sabe o que eacute um xeretaneacute Uma cacircmera muito de crianccedila da deacutecada de 70 que as crianccedilas apertavam () (lsquoAhuma cacircmera fininharsquo) Eacute de plaacutestico Entatildeo eacute poliacutetico nesse sentido vocecirc desacreditaaquilo vocecirc diz natildeo agravequela imagem correta que as pessoas dizem que eacute a correta queaquilo eacute a foto certa Porque a cacircmera saiu da faacutebrica com essa programaccedilatildeo ()(BIERRENBACH 2018)

612 Caraacuteter processual

Em meio agraves estrateacutegias de desprogramaccedilatildeo podemos dizer que essas obras satildeo marcadas

por um caraacuteter processual em que suas configuraccedilotildees plaacutesticas carregam os traccedilos das

metodologias adotadas Aqui o termo ldquoprocessualrdquo eacute empregado de um ponto de vista teacutecnico e

metodoloacutegico pois os trabalhos apresentam vestiacutegios de seus materiais Pixels luzes gratildeos

pinceladas frames Os gestos dosdas artistas na construccedilatildeo dessas obras tais como borrotildees

arrastos sombras deformaccedilotildees sobreposiccedilotildees riscos manchas e quaisquer intervenccedilotildees

praticadas nos objetos artiacutesticos Note-se que novamente alcanccedilamos a questatildeo do ruiacutedo como

fenocircmeno (manifesto) e conceito (princiacutepio criativo)

Como quem vecirc input e output natildeo necessariamente vecirc o processo (FLUSSER 2011)

outra maneira de indicar suas etapas eacute por exemplo revelar os elementos compositivos das

obras incluindo em sua estrutura de apresentaccedilatildeo os equipamentos (desnudando modos

operativos e mecanismos de funcionamento) como Rosacircngela Rennoacute e Maueacutes quando

apresentam suas cacircmeras e dispositivos de imagem ou exibir os materiais (como Claire Strand

que expotildee junto agraves pinturas derivadas de fotografias tubos de tinta pinceacuteis e fotos originais) ou

231

no projeto para The Wilderness Downtown (ver figuras 1 a 6) em que a maacutequina que fabrica os

postais gerados digitalmente a Wilderness Machine (figura 7) eacute exibida em funcionamento

Essas estrateacutegias nos lembram que cada miacutedia possui singularidades e codificaccedilotildees (perceptivas

poliacuteticas e esteacuteticas) que orientam nossas interpretaccedilotildees e satildeo postas em jogo na estrutura dessas

obras muitas vezes com propoacutesito criacutetico

Ou seja estamos aqui defendendo que seja relevante para o corpus escolhido o fato de

o acaso desempenhar um papel preponderante na elaboraccedilatildeo de esteacuteticas imprevistas natildeo-

convencionais acrescentando complexidade e ambiguidade a muitas delas E que a relaccedilatildeo entre

acaso e criaccedilatildeo ajude a repensar as concepccedilotildees sobre a imagem somando-se agraves reflexotildees de

outros autores e autoras sobre os limites e expansotildees desse campo ndash como encontramos por

exemplo nas conceituaccedilatildeo da ldquoimagem pobrerdquo (Steyerl) do erro (Cheacuteroux) da glitch art

(Menkman) da ldquopoeacutetica dos errosrdquo (Fontcuberta) e da ldquofotografia natildeo-humanardquo (Zylinska)

Nossa contribuiccedilatildeo eacute que passemos a incluir o acaso como elemento integrante dos aspectos que

constituem a pluralidade das esteacuteticas hiacutebridas experimentais etc valorizadas pela combinaccedilatildeo

entre a imprevisibilidade e o domiacutenio das teacutecnicas

O acaso opera de maneiras variadas nas obras e procedimentos de cada artista Por

exemplo de maneira geral a obra de Rosacircngela Rennoacute eacute marcada por um desejo de redescobrir

materiais e equipamentos antigos arquivos ou objetos cotidianos com especial atenccedilatildeo ao

repertoacuterio de miacutedias visuais dos seacuteculos XIX e XX Uma disposiccedilatildeo arqueoloacutegica voltada a essas

tecnologias eacute manifestada em seus trabalhos sem que haja uma verve saudosista neste meacutetodo

Em Imagem de sobrevivecircncia (2015) (ver figuras 77 78 e 78a) a projeccedilatildeo simultacircnea de slides

sem relaccedilatildeo temaacutetica ou cronoloacutegica preacutevia tira proveito do acaso na medida em que a imagem

final eacute interaccedilatildeo entre vaacuterias unidades sem no entanto resultar de uma simples operaccedilatildeo de

adiccedilatildeo Aleacutem disso e conforme afirma a proacutepria artista144 essa projeccedilatildeo estaacute sempre sendo

alterada nunca se repetindo Numa espeacutecie de praacutetica de bricolagem (que se repete em vaacuterios

outros trabalhos citados ou natildeo em nossa tese) ela articula conjuntamente suportes estruturas e

tecnologias sem que se possa ser antevisto rigidamente o resultado final

A disposiccedilatildeo de incorporar arranjos trazidos pelos materiais ou pelo comportamento de

estruturas originais operando como princiacutepio metodoloacutegico baseado no acaso tambeacutem se faz

presente nas obras de Joseacute Luiacutes Neto (os quimigramas o trabalho com fotografias

144 Ver httpwwwrosangelarennocombrobrassobre62 Acesso em 06062020

232

ldquoencontradasrdquo) Dirceu Maueacutes (nos tempos imprecisos das pinholes ou mesmo nas instalaccedilotildees

com imagens fugidias natildeo fixadas em suportes que dependem do olhar do puacuteblico para adquirir

vida na interface entre viacutedeo foto e cinema145) Cris Bierrenbach (no aproveitamento de espelhos

como daguerreoacutetipos ldquomal-sucedidosrdquo na imagem revelada pelo desgaste de coacutepias) na glitch

art de Sabato Visconti e Rosa Menkman que desarranjam arquivos e softwares quando Caacutessio

Vasconcellos fotografa frames de produccedilotildees do cinema singularizando-os atraveacutes de uma fixidez

que lhes era estranha Ou ainda num procedimento similar nas fotografias de Jason Shulman

tambeacutem de filmes

62 MATERIALIDADE

Em nossas reflexotildees mencionamos tambeacutem a questatildeo da materialidade como

preocupaccedilatildeo de alguns artistas Sua importacircncia pode estar tanto na formataccedilatildeo de uma obra cuja

fisicalidade eacute evidente em suas dimensotildees formas cores texturas etc ou ser tambeacutem

interpretada como marcas visuais deixadas pelas miacutedias nos seus produtos Em meio a diversos

debates (questionaacuteveis como jaacute visto) sobre a impermanecircncia ou a imaterialidade das imagens

digitais evocamos a materialidade das obras como aspecto relevante para a arte contemporacircnea

Uma das correntes de pensamento que se volta para o assunto eacute o campo da

materialidades da comunicaccedilatildeo que tem como referecircncia principal o trabalho de Hans Ulrich

Gumbrecht (2010) e que propotildee recolocar no centro da anaacutelise das ciecircncias humanas e nas artes

a importacircncia da dimensatildeo material dos artefatos culturais Segundo Gumbrecht as Humanidades

conferiam demasiada importacircncia agrave interpretaccedilatildeo ao sentido ao logos numa supervalorizaccedilatildeo do

conhecimento fruto do intelecto em detrimento da experiecircncia e do saber adquiridos pelos

sentidos ou seja uma percepccedilatildeo haacuteptica Entatildeo seria tarefa de uma nova proposta

epistemoloacutegica posicionar lado a lado a relaccedilatildeo entre sentido e dimensatildeo material das ldquocoisas do

mundordquo investigando como o sentido eacute evocado tambeacutem pela ldquopresenccedilardquo fiacutesica dos objetos146

No entanto Gumbrecht natildeo propotildee um afastamento ou descarte da noccedilatildeo de sentido ou uma

145 A exemplo da obra Tambores de Luz - Estaccedilatildeo Cf MAUES Dirceu Tambores de Luz - Estaccedilatildeo (Campinas)Resgate - Revista Interdisciplinar de Cultura Campinas v26 n2 [36] p161-167 juldez 2018

146 Logo no comeccedilo de seu livro Gumbrecht define rapidamente que ldquocoisas do mundordquo satildeo todos os objetosdisponiacuteveis em ldquopresenccedilardquo um conceito que se refere a algo tangiacutevel acessiacutevel ao ser humano pelas matildeos e que nosafeta na superfiacutecie do corpo A ldquopresenccedilardquo indica uma noccedilatildeo espacial donde a ldquoproduccedilatildeo de presenccedilardquo eacute qualquerprocesso acontecimento ou evento onde se verifica o impacto de objetos sobre seres humanos Cf Gumbrecht2010 p13

233

reduccedilatildeo de sua importacircncia ele sugere uma forma alternativa de pensar a cultura (sobretudo a

arte) voltada agrave presenccedila das coisas na nossa relaccedilatildeo com o mundo atravessada por essa

fisicalidade dos materiais Natildeo se trata de ldquo() uma simples substituiccedilatildeo do sentido pela

presenccedila Em uacuteltima anaacutelise () uma relaccedilatildeo com as coisas do mundo que possa oscilar entre

efeitos de presenccedila e efeitos de sentidordquo (GUMBRECHT 2010 p15) Em seguida o autor

completa

() Natildeo existe nada de intrinsecamente errado com a produccedilatildeo de sentido aidentificaccedilatildeo de sentido e o paradigma metafisico O que nossas modestas rebeliotildeesacadecircmicas tentavam problematizar era mais do que tudo uma configuraccedilatildeoinstitucional no acircmbito da qual o domiacutenio absoluto das questotildees relacionadas com osentido havia levado haacute muito tempo ao abandono de todos os outros tipos defenocircmenos e questotildees Como uma consequecircncia dessa situaccedilatildeo nos viacuteamosconfrontados com a ausecircncia de conceitos que nos teriam permitido lidar com o quechamaacutevamos de materialidades de comunicaccedilatildeo (GUMBRECHT 2010 p37)

Desse modo as materialidades da comunicaccedilatildeo pensam a cultura atraveacutes de uma

abordagem natildeo hermenecircutica natildeo metafiacutesica e natildeo cartesiana A partir dos conceitos aristoteacutelicos

de ldquoformardquo e ldquosubstacircnciardquo Gumbrecht (2010 p37) propotildee uma questatildeo baacutesica como as miacutedias e

as materialidades podem ter impacto no sentido que carregam A contenda relaciona-se

diretamente com as discussotildees sobre tecnologias da imagem resgatadas modificadas sabotadas

enfim tensionadas em seus aspectos fiacutesicos como estrateacutegia para incrementar o significado das

obras Por que determinado artista sai da materialidade fotograacutefica e finaliza a obra no formato

pictoacuterico como faz Clare Strand em The Discrete Channel with Noise (ver figuras 68 a 71) por

exemplo Nesse trajeto estatildeo envolvidas noccedilotildees de memoacuteria afetividade singularidade temporal

associadas agrave fotografia convencional e ainda questotildees formais ligadas agrave captura (luz

composiccedilatildeo inscriccedilatildeo temporal traccedilo indicial etc) que satildeo relativizadas quando a imagem eacute

toda marcada como se fosse ser transmitida via teleacutegrafo Assistimos a uma transformaccedilatildeo natildeo soacute

fiacutesica mas formal que remete ao pixel da imagem digital que por sua vez eacute traduzido na

linguagem pictoacuterica Cada uma dessas materialidades responde a epistemologias distintas que

carregam tambeacutem expectativas de percepccedilatildeo diferentes que aparecem todas cruzadas de modo a

bagunccedilar misturar esses territoacuterios separados Como maneira de reafirmar essas condiccedilotildees

ressignificadas dos materiais empregados Clare Strand expotildee essas ldquopinturas fotograacuteficasrdquo como

quadros (natildeo em telas mas em papel) sem que elas deixem de remeter agrave esteacutetica pixelizada do

computador nem tatildeo pouco agraves fotos originais Ela tambeacutem cria um ambiente que encoraja a

relaccedilatildeo do puacuteblico com essa nova configuraccedilatildeo pictoacuterica das imagens expondo os potes da tinta

234

utilizada os pinceacuteis mas tambeacutem as fotos originais (marcadas conforme a metodologia utilizada

para a suposta transmissatildeo) e outros objetos que sugerem que sob a interferecircncia do ruiacutedo as

mateacuterias adquirem novas formas147

A seacuterie Nuptias (2017) de Rosacircngela Rennoacute (figuras 72 73 74 75 76 e 79) tambeacutem

possui um forte sentido material jaacute que as fotografias utilizadas estatildeo jaacute desgastadas pelo tempo

(e tambeacutem por terem sido coletadas em mercados de pulgas) sendo ainda submetidas a processos

de colagem recebendo riscos e anotaccedilotildees tinta ou objetos de materiais como papel madeira

borracha Cada um desses elementos sofre a accedilatildeo do tempo de maneira diversa possui uma

fragilidade sendo suscetiacutevel agrave luz umidade poeira e temperatura especiacuteficas e todos esses

aspectos contribuem para sugerir uma ideia de ruiacutena de fracasso e certo absurdo que rondam o

universo das relaccedilotildees afetivas e especialmente o casamento Em Experiecircncia de cinema

(2004)148 a mesma artista brinca com a materialidade da imagem dando-lhe uma fraacutegil sobrevida

atraveacutes da projeccedilatildeo numa cortina de fumaccedila O procedimento lembra-nos tambeacutem que a imagem

guarda sempre um componente de ilusatildeo ao qual natildeo podemos aceder totalmente e que neste

caso podemos tocar apenas atraveacutes do aparato que a faz surgir A experiecircncia do cinema eacute

truncada pois as imagens utilizadas satildeo fotografias de grandes temas (tratados frequentemente no

cinema) como ldquofamiliacuteardquo ldquoguerrardquo e ldquoamorrdquo e entre a exibiccedilatildeo das fotos haacute paradas do

dispositivo criando-se lacunas que impedem uma estruturaccedilatildeo narrativa

147 Para ver a montagem da exposiccedilatildeo The Discrete Channel with Noise ver httpsvimeocom294026015 Acessoem 11062020148 Disponiacutevel em httpwwwrosangelarennocombrobrasexibir241 Acesso em 11062020

235

Figura 79 - Vista da montagem da seacuterie Nuptias (2017) de Rosacircngela Rennoacute

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

A mesma disposiccedilatildeo de concentrar a materialidade atraveacutes dos aparelhos e objetos

escolhidos na montagem das obras (e na sua elaboraccedilatildeo) identificamos nos trabalhos de Dirceu

Maueacutes Joseacute Luiacutes Neto Caacutessio Vasconcellos Luiz Alberto Guimaratildees Cris Bierrenbach Cada

um agrave sua maneira escolheu teacutecnicas equipamentos e materiais que contribuem para simbolizar os

temas e conceitos presentes nas obras e que possuem tambeacutem um significado dentro da proacutepria

histoacuteria das tecnologias da imagem Natildeo eacute agrave toa que vaacuterios desses artistas gostam de trabalhar

com miacutedias analoacutegicas reformatadas manualmente ou como diz Guimaratildees (2014) que satildeo da

ordem de uma ldquoartesaniardquo As cacircmeras que ele utiliza satildeo todas diferentes em formato e isso

confere agraves imagens criadas com elas diferentes resultados no questionamento da perspectiva

geomeacutetrica que caracteriza seu trabalho A materialidade especiacutefica de cada dispositivo carrega

significados distintos sobre o tensionamento do paradigma monocular da fotografia

() as maacutequinas fotograacuteficas que construo e utilizo surgem quase sempre a partir de umaideia preacutevia de um projeto que pretendo realizar (ocorre tambeacutem o oposto agraves vezesreutilizo uma das maacutequinas jaacute construiacutedas em um novo projeto que surge a partir dasintaxe que aquela maacutequina propicia) (GUIMARAtildeES 2014 p29)

As fotografias panoracircmicas de Dirceu Maueacutes transmitem a sensaccedilatildeo de mobilidade

exatamente pelos borrotildees produzidos na captura realizada durante o movimento O aspecto da

236

imagem toda cortada por linhas verticais resulta da abertura em fenda da cacircmera usada e da

mesma maneira essas imagens transmitem o processo de integraccedilatildeo dos materiais utilizados O

que vemos nelas satildeo modos muito particulares de o movimento se pronunciar na superfiacutecie da

imagem

Essas obras permitem interpretar a imagem natildeo apenas atraveacutes de sua condiccedilatildeo oacutetica

mas apelam ao nosso corpo em diferentes modos de tatilidade Segundo Gumbrecht (2010 p39)

toda forma de comunicaccedilatildeo ldquotocardquo atraveacutes de seus elementos materiais nossos corpos mas o faz

de maneiras variadas e especiacuteficas de modo que se em alguns projetos a dimensatildeo material eacute

mais pronunciada na forma de imagem-objeto em outras as estruturas formadoras da imagem

representam seu lado fiacutesico Mesmo nos trabalhos em glitch art o componente material natildeo estaacute

ausente ndash ateacute porque jaacute falamos sobre como a materialidade eacute entendida no acircmbito das novas

miacutedias a partir dos estudos de software

As diferenccedilas no tratamento ou na expressatildeo da materialidade devem-se a variaccedilotildees

entre ldquoefeitos de sentidordquo e ldquoefeitos de presenccedilardquo De acordo com Gumbrecht a relaccedilatildeo entre

intensidade material e forccedila do sentido se daacute de maneira desigual nos objetos artiacutesticos numa

ldquotensatildeordquo numa ldquooscilaccedilatildeordquo (sem nunca se separarem) Os efeitos de presenccedila tambeacutem satildeo

efecircmeros e condicionados pela interpretaccedilatildeo preacutevia que normalmente tentamos dar agraves obras Mas

natildeo pensemos que a importacircncia do sentido e da presenccedila atingem um equiliacutebrio

A relaccedilatildeo entre efeitos de presenccedila e efeitos de sentido tambeacutem natildeo eacute uma relaccedilatildeo decomplementaridade na qual uma funccedilatildeo atribuiacuteda a cada uma das partes em relaccedilatildeo agraveoutra daria agrave co-presenccedila das duas a estabilidade de um padratildeo estrutural Ao contraacuteriopodemos dizer que a tensatildeooscilaccedilatildeo entre efeitos de presenccedila e efeitos de sentido dotao objeto de experiecircncia esteacutetica de um componente provocador de instabilidade edesassossego (GUMBRECHT 2010 p137)

Quando afirma essa tensatildeo entre sentido e materialidade nos objetos artiacutesticos o autor

resolve a diferenccedila que notamos nos trabalhos citados a respeito de um espaccedilo mais pronunciado

que se confere aos materiais na forma das miacutedias escolhidas Em alguns a dimensatildeo material

estaacute mais explicitamente articulada que em outros mas todos tecircm na materialidade um aspecto

que contribui significativamente para as sensibilidades propostas por seus autores e autoras

Mesmo quando os aspectos materiais relacionados agrave escolha da miacutedia (ou das miacutedias) a forma de

apresentaccedilatildeo e as configuraccedilotildees fiacutesicas (dimensatildeo cor volume textura etc) natildeo satildeo

mencionados como vetores de significado tais caracteriacutesticas satildeo responsaacuteveis pela maneira

237

como percebemos os trabalhos Eacute nessa presenccedila fiacutesica que podemos nos relacionar com tais

obras

Um bom exemplo dessa tensatildeo estaacute colocado na experiecircncia do filme interativo The

Wilderness Downtown de Chris Milk A participaccedilatildeo do usuaacuterio depende de informaccedilotildees

pessoais retiradas de experiecircncias concretas de suas memoacuterias que satildeo entatildeo utilizadas na

construccedilatildeo do filme Mesmo numa narrativa virtual haacute natildeo soacute uma plataforma fiacutesica (hardware

redes) mas a obra ganha continuidade na maacutequina que imprime os postais gerados no filme a

Wilderness Machine Nessas duas etapas os ldquoefeitos de sentidordquo e ldquoefeitos de presenccedilardquo estatildeo

separados no tempo e espaccedilo mas estatildeo ambos presentes

Para alguns projetos artiacutesticos que incluiacutemos neste trabalho a condiccedilatildeo material das

obras associadas agraves tecnologias escolhidas eacute mais proeminente como para Cris Bierrenbach que

considera bastante importante a materialidade em seus trabalhos jaacute que essa questatildeo para ela estaacute

ligada agrave proacutepria singularidade de cada obra Seus processos de elaboraccedilatildeo satildeo lentos e o

resultado final adquire essa importacircncia porque a configuraccedilatildeo definitiva expressa tambeacutem esse

tempo de ldquomaturaccedilatildeordquo

Agora eu tou pensando em pessoas que eu conheccedilo que trabalham assim vocecirc percebeque as pessoas tecircm uma relaccedilatildeo () satildeo relaccedilotildees individuais com cada trabalho () enatildeo eacute com cada trabalho eacute com cada coacutepia com cada objeto criado Cada um eacute uacutenicotem uma feiccedilatildeo muito proacutexima pessoal mesmo Num eacute uma coisa tipo lsquovai eumando aqui pelo Wetransfer e o sujeito laacute imprime tudo pra mimrsquo () As imagensdigitais natildeo satildeo materiais () se perde um certo preciosismo Pra mim eacute bemimportante Eu sei que isso natildeo tem valor comercial () mas pra mim tem () Eacute umacoisa que eu natildeo consigo explicar Eacute quase afetivo () Quase natildeo eacute afetivo Eu tenhofotos que foram feitas digitalmente que eu vendi muito melhor que satildeo maisvalorizadas Mas eu agraves vezes olho fotos que estatildeo do meu lado e que natildeo satildeo tatildeosignificantes (num sentido de valor de mercado) e eu tenho um afeto por elas que eacutedifiacutecil de explicar (BIERRENBACH 2018)

As palavras da artista ecoam um sentimento que Gumbrecht (2010 p135) sublinha

como traccedilo da experiecircncia esteacutetica que escapa agrave ordenaccedilatildeo racional quando provoca ldquoEm vez de

termos de pensar sempre e sem parar no que mais pode haver agraves vezes parecemos ligados num

niacutevel da nossa existecircncia que pura e simplesmente quer as coisas do mundo perto da nossa

pelerdquo

Haacute uma beleza nas afirmaccedilotildees de Gumbrecht a respeito do jogo entre componente

material e o sentido das obras artiacutesticas e para noacutes as preocupaccedilotildees do autor aproximam-se de

muitas das questotildees presentes nos estudos sobre o ruiacutedo Enquanto Gumbrecht fala de

materialidade sentida em termos de ldquointensidaderdquo evoca a ldquopresenccedilardquo como algo espacial e as

238

propriedades fiacutesicas das coisas que despertam nossos sentidos natildeo podemos deixar de lembrar do

potencial anaacuterquico desestabilizador de ruptura e de presenccedila (nem sempre manifesta poreacutem

inerente) que caracteriza o ruiacutedo

Ao longo de seu texto Gumbrecht comenta sobre aspectos da materialidade literaacuteria

musical (e de outras artes) num percurso bastante proacuteximo ao empreendido por Hainge (2013)

para falar sobre o ruiacutedo o que indica que as anaacutelises destes dois autores estatildeo afinadas sobre a

preocupaccedilatildeo com a expressividade e o fato de que em muitos casos a arte trabalha essa

expressividade atraveacutes de condiccedilotildees materiais que natildeo podem ser constrangidas por uma

racionalidade que as explique Disso podemos concluir que a materialidade trabalhada sob a

chave conceitual do ruiacutedo daacute origem a uma expressividade ou a formas de expressatildeo melhor

dizendo que se instituem por si mesmas como significantes

63 OLHAR RETROSPECTIVO A PROCESSOS CLAacuteSSICOS DA FOTOGRAFIA

Vaacuterios dos trabalhos que trouxemos em nosso corpus empregam tecnologias antigas da

imagem Os trabalhos aqui analisados que se valem da cacircmara escura da imagem estenopeica da

goma bicromatada do daguerreoacutetipo e por extensatildeo de tecnologias jaacute mais recentes mas pouco

utilizadas (ateacute pela descontinuidade de sua fabricaccedilatildeo como o slide) satildeo empregados de forma

criacutetica Os procedimentos satildeo reinventados a cacircmera escura tem sua geometria problematizada

referindo muacuteltiplas perspectivas ou passsa a referir tempos alargados e varrer ambientes no

decorrer de uma duraccedilatildeo (ampliando o instante de tal modo que percebemos as diversas accedilotildees

ocorridas no espaccedilo) ou ainda empregada para produzir imagens fugidias existentes apenas sob

a convergecircncia da arquitetura do dispositivo quando se encontra com o olhar do observador A

daguerreotipia a goma bicromatada o cianoacutetipo o papel salgado satildeo utilizados por Cris

Bierrenbach na exploraccedilatildeo de suas propriedades materiais e plaacutesticas e em desencontro com os

propoacutesitos originais O slide eacute apropriado para sugerir a acumulaccedilatildeo de visotildees atraveacutes do

processo de colagem (em Cris Bierrenbach149) ou a saturaccedilatildeo do olhar contemporacircneo cansado

da enxurrada de imagens em circulaccedilatildeo (em Rosacircngela Rennoacute) levando o formato para aleacutem da

remissatildeo afetiva iacutentima e familiar ao qual ficou associado

Tais usos alternativos das tecnologias nos remetem agraves praacuteticas artiacutesticas que levam o

campo da imagem a constantes reinvenccedilotildees Fontcuberta (2010) fala sobre a ideia de

149 httpscrisbierrenbachcompessoalfotocolagenscolagem Acesso em 05052020

239

contrariedade aos usos corriqueiros de teacutecnicas ressaltando que essa questatildeo desafia paradigmas

como a funccedilatildeo representativa da imagem

Em geral essa teoria do erro e do defeito de trabalhar ldquocontrardquo os materiais e suasregras que regeu muitos acircmbitos da vanguarda mais que aperfeiccediloar um coacutedigo derepresentaccedilatildeo o que normalmente fazia era questionaacute-lo Os dadaiacutestas comeccedilaram abrincar com o acaso e o acidental seguiram-se os tachistas e os expressionistas abstratoscom a teacutecnica do dripping em seguida a ciberneacutetica introduziu a noccedilatildeo de ldquoruiacutedordquo quefoi rapidamente aproveitada por muitos artistas No acircmbito da fotografia temos a escolagenerativa desenvolvida em Bielefeld a partir de 1967 os quimigramas de PierreCordier mostram o conflito entre controle e imprevisibilidade da mesma forma que osluminogramas de Karl Martin Holzhaumluser ou as Pinhole Structures (estruturasestenopeicas) de Gottfried Jaumlger O meacutetodo natildeo se apoiava em uma preacute-visualizaccedilatildeo queantecipasse os resultados mas no trial and error em um processo de experimentaccedilotildeessucessivas alterando as circunstacircncias no momento para selecionar finalmente osresultados valiosos (FONTCUBERTA 2010 p73)

As reflexotildees do autor sobre metodologias experimentais da imagem podem ser colocados

ao lado das de Fatorelli e Carvalho (2015) e ainda Junior (2002) que reconhecem entre as

praacuteticas plurais de uso do meio fotograacutefico esse olhar tardio voltado aos dispositivos Arlindo

Machado (1997) refletindo sobre a programaccedilatildeo dos aparelhos na obra de Flusser lembra que o

campo da arte sempe nos daacute provas de que as maneiras de apropriaccedilatildeo das tecnologias satildeo

constantemente atualizadas o que esse retorno agraves praticas analoacutegicas vem atestar Numa revisatildeo

criacutetica do pensamento de Flusser Machado comenta

Ora que haacute limites de manipulabilidade em toda maacutequina ou processo teacutecnico eacute algo deque soacute podemos fazer uma constataccedilatildeo teoacuterica pois na praacutetica esses limites estatildeo emcontiacutenua expansatildeo Que aparelhos suportes ou processos teacutecnicos poderiacuteamos dizer quejaacute tiveram esgotadas as suas possibilidades () Sempre existiratildeo potencialidadesdormentes e ignoradas que o artista inquieto acabaraacute por descobrir ou ateacute mesmo porinventar ampliando portanto o universo das possibilidades conhecidas de determinadomeio (MACHADO 1997)

No rastro da filosofia flusseriana podemos dizer que haacute diferentes graus e modalidades

de ldquojogordquo contra o ldquoaparelhordquo que fazem aparecer o ruiacutedo e nesse espaccedilo se incluem as

remodelagens e reprogramaccedilotildees dos aparelhos analoacutegicos As interlocuccedilotildees com materiais e

praacuteticas da pintura A proximidade com a linguagem do cinema exercitada por meio de recursos

fotoquiacutemicos Ou um certo devir cinema manifesto na utilizaccedilatildeo contraacuteria aos paracircmetros de

fabricaccedilatildeo de suportes e equipamentos fotograacuteficos

Tambeacutem verificamos como modos de desprogramar os aparelhos de imagem o uso

combinado de meios antigos e recentes Por exemplo as fotografias realizadas com pinholes por

Dirceu Maueacutes buscam uma ressignificaccedilatildeo do formato panorama como modalidade visual de

investigaccedilatildeo da paisagem Ao considerar o panorama um formato marginal um espeacutecie de preacute-

240

cinema Maueacutes valoriza justamente o movimento na imagem (atributo do cinematograacutefico)

atraveacutes do registro com as pinholes em movimento traccedilando assim uma linha de continuidade

entre fotografia estenopeica panorama e cinema

Bierrenbach quando utiliza a fotografia para montar um viacutedeo passa da imagem fixa agrave

imagem moacutevel explorando o contato entre essas duas instacircncias atraveacutes da montagem de

fotografias que registram o aparecer e o desaparecer de casas atraveacutes dos vestiacutegios do

movimento do equipamento Caacutessio Vasconcellos faz o trajeto inverso congelando a imagem que

era moacutevel na passagem entre viacutedeo e Polaroid Interrompendo um fluxo que nos faz lembrar que

em sua forma mais baacutesica o cinema eacute um fluxo de unidades de imagens fixas cuja velocidade de

exibiccedilatildeo cria a ilusatildeo do movimento

As obras da glitch art criadas atraveacutes de computadores levam essa continuidade a um

patamar ainda maior jaacute que transferidas para dentro do computador referecircncias diversas satildeo

trabalhadas atraveacutes de misturas e rearranjos os mais variados a ponto de agraves vezes natildeo ser

possiacutevel determinar singularidades entre os conteuacutedos Fotografia viacutedeo graacuteficos tudo se

mistura Ou Shulman que quando registra um filme inteiro ao longo de sua duraccedilatildeo tambeacutem

aproxima foto e cinema

631 Arqueologia da miacutedia

Essas estrateacutegias criativas reforccedilam a ideia de continuidade entre as tecnologias da

imagem (e natildeo de ruputra) Tal compreensatildeo estaacute presente na abordagem arqueoloacutegica da miacutedia

que olha para as miacutedias atuais procurando nelas traccedilos de miacutedias anteriores numa visada que

relativiza as noccedilotildees de velho e novo ateacute porque compreende as tecnologias a partir de uma

perspectiva relacional (natildeo sucessiva progressiva como se um meio superasse o anterior em

eficiecircncia qualidade etc) A arqueologia da miacutedia busca observar a cultura digital localizando

nela seus viacutenculos com a fotografia o cinema a televisatildeo o viacutedeo a propaganda a escrita

Enquanto as ldquonovas miacutediasrdquo alteram nossas rotinas as velhas miacutedias nunca nos abandonam

realmente pois reaparecem satildeo remediadas econtrando novos usos contextos e adaptaccedilotildees

(PARIKKA 2012 p3)

Se olharmos as obras agraves quais nos reportamos perceberemos como satildeo instrumentais as

proposiccedilotildees deste campo de pensamento sobre os meios de comunicaccedilatildeo e suas tecnologias

porque identificamos nas estrateacutegias artiacutesticas uma troca constante de referecircncias e elementos de

241

meios distintos muitas vezes separados cronologicamente Acoplagens entre computadores

softwares e hardwares sistemas de projeccedilatildeo imagens digitais scanners filtros adicionados por

meio de apps em diaacutelogo com formatos como a Polaroid o negativo 35mm a pintura o

daguerreoacutetipo o dispositivo cinematograacutefico o panorama o viacutedeo

Sabato Visconti que lanccedila matildeo de ldquoequipamentos obsoletos para fazer arterdquo

(VISCONTI 2019) utiliza como referecircncia para algumas obras videogames dos anos 1990150

dissolvendo formas alterando os movimentos dos personagens (aplicando efeito de loop)

inserindo defeitos nos graacuteficos falhas nos elementos que compotildeem o cenaacuterio dos jogos

intervindo nessa esteacutetica de um grafismo primitivo (cujas formas retiliacuteneas quadradas e os

movimentos bruscos dos games em 2D contrastam radicalmente com o volume das formas a

reproduccedilatildeo de sons o uso do recurso ldquocacircmera subjetivardquo que conferem realismo e efeito imersivo

aos games atuais em 3D) O processo consiste em corromper a memoacuteria ROM do jogo (memoacuteria

com dados armazenados para leitura) Dirigindo um gesto artiacutestico a um dos produtos mais

caracteriacutesticos da induacutestria do entretenimento Visconti ultrapassa a fronteira do jogador

convencional limitado pelos comandos que o sistema original lhe deixa executar e passa a

ocupar o lugar de reprogramador transformando os games em espaccedilos de pura contemplaccedilatildeo do

olhar forjando narrativas nas quais natildeo existe um objetivo final a ser alcanccedilado mas onde a

fraacutegil organizaccedilatildeo dos quadros sugere uma aproximaccedilatildeo com a montagem cinematograacutefica As

formas de games antigos vecircm habitar a linguagem informaacutetica convertendo-se em objetos

esteacuteticos Uma ldquomiacutedia-zumbirdquo (PARIKKA 2012) que ressucita via computador

150 Ver por exemplo No country for Donkey Kong (httpswwwsabatoboxcomrom-corruption-no-country-for-dk) eGlitching Sonic the Hedgehog 3 (httpswwwsabatoboxcomsonic-the-hedgehog-3-rom-corruption) Acesso em05052020

242

Figura 80 - Trechos de No country for Donkey Kong (Sabato Visconti)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

A arqueologia da miacutedia adota uma visatildeo histoacuterica dos meios e permite-nos verificar

conexotildees entre formas visuais antigas e recentes Ainda tomando como exemplo os trabalhos de

Sabato Visconti com videogames tratam-se de obras natildeo produzidas para os circuitos

convencionais de exibiccedilatildeo audiovisual como festivais salas de cinema ou afins mas que

estabelecem uma ligaccedilatildeo formal com o cinema A maneira como No country for Donkey Kong

(figura 80) estrutura-se ndash trechos que lembram frames com mudanccedilas de cenaacuterio sugerindo uma

narrativa fragmentada (ou a ausecircncia de uma linearidade) movimentos forjados e repetitivos dos

personagens ndash permiti-nos estabelecer uma identidade entre a linguagem da miacutedia digital e

movimentos cinematograacuteficos alternativos agrave narrativa claacutessica Como nos lembra Parikka (2012)

Lev Manovich (2001) situa o advento das ldquonovas miacutediasrdquo exatamente como herdeiras de

caracteriacutesticas de meios anteriores conferindo especial atenccedilatildeo ao cinema sovieacutetico dos anos

1920 em suas anaacutelises Essa cinematografia eacute marcada por aspectos formais como a natildeo-

linearidade a relaccedilatildeo natildeo-diegeacutetica entre som e imagem (filmes mudos com trilha sonora de

acompanhamento) uma montagem assentada no choque visual entre planos natildeo sequenciais que

criam metaacuteforas visuais a partir de conteuacutedos natildeo diretamente relacionaacuteveis151 Se olharmos para

as peccedilas de Visconti encontramos uma tendecircncia a certa dispersatildeo perceptiva que pode ser vista

como desdobramentos da natildeo-linearidade o excesso de informaccedilotildees visuais (tambeacutem presente no

estilo da montagem sovieacutetica) e o movimento repetitivo do gif como caracteriacutesticas tributaacuterias

natildeo apenas do cinema russo mas ateacute do cinema de atraccedilotildees (que tambeacutem se distinguia pelo

151 Como por exemplo a imagem de um pavatildeo associada a de um poliacutetico em Outubro (Serguei Eisenstein1927)

243

caraacuteter manipulado espetacular) e ainda com o cinema de animaccedilatildeo As trucagens a

manipulaccedilatildeo de conteuacutedos a praacutetica do remix (acumulando referecircncias de domiacutenios variados) a

tendecircncia dispersiva a fragmentaccedilatildeo da informaccedilatildeo satildeo marcas da cultura informaacutetica que

podem ser interpretadas na arte de Visconti como reminiscecircncias tardias dessas cinematografias

ao mesmo tempo que conservam ligaccedilotildees com o viacutedeo quando ao dissover o conteuacutedo das

imagens forccedila-nos a olhar para seus elementos formadores (num exerciacutecio de metalinguagem)

Num recuo ainda mais amplo em busca de formas visuais preacute-cinematograacuteficas brinquedos

oacuteticos como o fenascitoscoacutepio taumatroacutepio e praxinoscoacutepio ldquocareciam de narratividade linear e

suas estruturas em loop de gestos simples performavam um eterno retorno do mesmordquo (DULAC

amp GAUDREAULT apud PARIKKA 2012 p28) exatamente a sensaccedilatildeo causada pelo trabalho

de Visconti com os videogames

No country for Donkey Kong eacute uma simbiose de cinema e jogo (cujo tiacutetulo lembra No

country for Old Men de Ethan e Joel Cohen) que estabelece pontos de contato formais e

discursivos entre as vaacuterias miacutedias agraves quais a obra remete Mas promove essa mistura de forma

irocircnica esvaziando a proporccedilatildeo interativa do jogo em troca de uma disposiccedilatildeo contemplativa

(pois os personagens natildeo obedecem aos comandos de um jogador existindo numa pseudo-

narrativa sem plot sem enredo) gerando perturbaccedilotildees em sua configuraccedilatildeo esteacutetica para apontar

a presenccedila virtual do defeito nas maacutequinas

As demais obras presentes em nosso corpus tambeacutem estatildeo inseridas nessa dinacircmica do

diaacutelogo entre tecnologias seja pela retomada criacutetica de processos claacutessicos da imagem seja

emulando aspectos formais de meios fiacutesicos ou eletrocircnicos e artefatos digitais seja promovendo a

articulaccedilatildeo entre ambientes virtuais espectador e materiais sensiacuteveis (transitando entre cinema

performance pintura fotografia viacutedeo) seja ironizando padrotildees gecircneros e formas consagradas

da imagem atraveacutes do deslocamento de suas funccedilotildees primeiras Assim podemos concluir que em

boa parte dos trabalhos analisados as tecnologiais empregadas relacionam-se pelas trocas pelos

empreacutestimos em processos de contaacutegio de hibridizaccedilatildeo

Concordamos com a ideia de que haacute um impulso arqueoloacutegico na arte contemporacircnea

(PARIKKA 2017) jaacute que em diversos trabalhos observamos a recontextualizaccedilatildeo de tecnologias

da imagem a reinserccedilatildeo de problemaacuteticas ligadas a seus usos e uma saudaacutevel articulaccedilatildeo entre

miacutedias computadorizadas e analoacutegicas As obras relacionam-se com essa ideia de olhar para o

passado e satildeo marcadas pela convivecircncia de diversas temporalidades Embora a arqueologia da

244

miacuteda como vertente da histoacuteria da miacutedia se proponha a estudar os meios de comunicaccedilatildeo seus

enfoques satildeo tatildeo abrangentes e suas temaacuteticas tatildeo variadas que consideramos vaacutelido utilizar a

abordagem arqueoloacutegica da miacutedia para pensar todas essas experiecircncias que se voltam para formas

da imagem antigas inclusive porque muitos desses trabalhos levantam questotildees atuais ou seja

satildeo expressotildees de questionamentos (de ordem esteacutetica poliacutetica industrial cientiacutefica de gecircnero)

e sensibilidades atuais (em diversas vezes tangenciados pela relaccedilatildeo do ser humano com as

miacutedias digitais a redes sociais a vigilacircncia do capitalismo informaacutetico a atitude hacker e os

processos de remix a produccedilatildeo de imagens descartaacuteveis etc) Os trabalhos de Joanna Zylinska

Rosa Menkman Rosacircngela Rennoacute Sabato Visconti Dirceu Maueacutes e Thomas Ruff ecoam mais

diretamente essas questotildees

Consideramos que as proposiccedilotildees da arqueologia da miacuteda podem ser exploradas com

mais atenccedilatildeo no campo da imagem esforccedilo que conseguimos apenas esboccedilar nesta tese

Sobretudo na abordagem da media art na investigaccedilatildeo das potecircncias artiacutesticas surgidas da

exploraccedilatildeo das falhas dos sistemas de computador A partir de um breve olhar sobre os trabalhos

de Menkman Zylinska e Visconti principalmente entendemos que esse pode ser um vieacutes para o

desenvolvimento de pesquisas futuras Se o impulso inicial deste trabalho foi dado pela

observaccedilatildeo sobre a permanecircncia das miacutedias analoacutegicas ao depararmo-nos com a sua remediaccedilatildeo

em obras desenvolvidas por meio das inteligecircncias informaacuteticas acreditamos serem relevantes

investigaccedilotildees posteriores que se dediquem a essas poeacuteticas de ldquoreciclagemrdquo de referecircncias tatildeo

frequentens na arte contemporacircnea

Outro tema de interesse deste campo e que tambeacutem daacute margem a novos debates eacute o

arquivo Seja no resgate de uma produccedilatildeo vernacular esquecida ou na apropriaccedilatildeo de imagens de

banco de dados de instituiccedilotildees e grandes corporaccedilotildees da comunicaccedilatildeo em rede como o Google o

arquivo eacute tomado como lugar de investimento criacutetico para discutir o fato de que na cultura visual

atual agrave medida que nos tornamos imagem acabamos por transforma-nos em dados e

posterioremente em arquivo Ao contraacuterio de uma ideia de algo datado uma espeacutecie de artefato

intocaacutevel protegido pela marca do tempo e pela funccedilatildeo historiograacutefica os arquivos satildeo

interpretados pelos artistas como coisas vivas pertencentes a um fluxo de imagens que se produz

constantemente inseridos numa histoacuteria do olhar cujas bases se inauguram junto com o advento

das imagens teacutecnicas no seacuteculo XIX Para a arqueologia da miacutedia o arquivo eacute rearticulado na

cultura digital menos como lugar de histoacuteria memoacuteria e poder e mais como uma rede dinacircmica e

245

temporal um ambiente governado pelo software e uma plataforma social de memoacuteria

(PARIKKA 2012 p15) agrave espera de intervenccedilotildees ideias contempladas por exemplo nas obras

de Zylinska Visconti e mesmo nas apropriaccedilotildees feitas por Eacuteder Oliveira de material

fotojornaliacutestico tratado ao estilo da imagem numeacuterica em suas pinturas

Tambeacutem as produccedilotildees de Rennoacute utilizam largamente os arquivos muitas vezes de forma

irocircnica deslocando-os de suas funccedilotildees originais e discutindo a presenccedila das tecnologias da

imagem em nosso cotidiano Eacute importante lembrar mesmo que o enfoque arqueoloacutegico da miacutedia

decirc maior atenccedilatildeo ao potencial flexiacutevel do arquivo devemos considerar que as relaccedilotildees de poder

e de memoacuteria natildeo se encontram totalmente ausentes nesses trabalhos O processo que ocorre e

que a arqueologia da miacutedia nos ajuda a compreender como tocircnica da media art eacute que os arquivos

de imagens (ou as imagens esquecidas em arquivos de instituiccedilotildees ou abadonadas em espaccedilos

privados) acedem ao status de mateacuteria artiacutestica sujeitando-se agraves transformaccedilotildees do processo

criativo participando de um fluxo informativo que eacute tiacutepico da cultura digital

Haacute ainda dois outros temas de interesse da arqueologia da miacutedia que se ligam a questotildees

discutidas em nosso trabalho e que tambeacutem estimulam pesquisas futuras O primeiro eacute a

investigaccedilatildeo de histoacuterias abadonadas negligenciadas pela induacutestria dos meios de comunicaccedilatildeo

Conforme Parikka (2012 p39) eacute importante buscar as ldquovozes esquecidas da histoacuteria da miacutedia

para encontrar tambeacutem suas perversotildeesrdquo porque estas narrativas paralelas natildeo se afinam com a

ideia de um progresso dos meios frequentemente evocado pela induacutestria De fato os teoacutericos

visam principalmente as miacutedias que natildeo tiveram sucesso comercial os projetos abandonados ou

que nem chegaram a ser lanccedilados Poreacutem entendemos que essas narrativas desviantes estatildeo

representadas tambeacutem quando metodologias e teacutecnicas antigas satildeo revisitadas de forma natildeo-

saudosista ou seja quando satildeo submetidas agrave transformaccedilotildees em seus princiacutepios funccedilotildees e

esteacuteticas Saindo de um lugar perifeacuterico (como exemplares de esforccedilos mal-sucedidos ou

insuficientes) essas teacutecnicas vecircm reaparecendo sob interesses particulares de artistas Mesmo

fora do acircmbito artiacutestico teacutecnicas como pinhole antotipia goma bicromatada entre outras satildeo

exatamente denominadas ldquoalternativasrdquo ldquoexperimentaisrdquo152 no escopo de algumas iniciativas

pedagoacutegicas por causa desse interesse renovado por uma certa artesania da imagem aberta a

experiecircncias natildeo-convencionais e que tenta se desapegar de regras industriais de produccedilatildeo da

imagem

152 Como eacute o caso dos livros de James (op cit) e de Antonini et al (2015)

246

A segunda temaacutetica eacute a do ruiacutedo jaacute que os usos desviados os projetos e teacutecnicas

rejeitados trazem exatamente o ruiacutedo como conceito para formas de expressatildeo bastante diversas

Se a arqueologia da miacutedia se interessa pelas ldquoanomaliasrdquo e pelo ldquoanti-mainstreamrdquo nada mais

justo que acolha o ruiacutedo como tema de suas investigaccedilotildees Lembremos que o tema possui longa

tradiccedilatildeo de significados negativos e que temos explorado a compreensatildeo de seu valor poeacutetico O

ruiacutedo eacute parte integrante dos meios e dos processos e ao entender isso a arqueologia da miacutedia se

ocupa tambeacutem do mapeamento das consideraccedilotildees sobre o assunto ao longo do pensamento a

respeito da cultura midiaacutetica recuperando debates sobre o conceito na muacutesica na teoria

matemaacutetica da comunicaccedilatildeo nas pesquisas que vatildeo desembocar na ciberneacutetica

Jussi Parikka que tem sido nosso guia principal chega a muitas das conclusotildees jaacute

apontadas nos trabalhos de Nunes (2011) e Hainge (2013) e igualmente indica que a histoacuteria das

miacutedias lida com o tema do ruiacutedo de maneira problemaacutetica atraveacutes de mecanismos de controle

enfatizando seu caraacuteter de instabilidade e por fim assinalando que se ldquoeacute impossiacutevel se livrar dos

efeitos do ruiacutedo haacute maneiras de mapeaacute-lo constrangecirc-lo e examinaacute-lordquo (PARIKKA 2012

p101)

64 E A TEORIA DA FOTOGRAFIA

Natildeo poderiacuteamos finalizar este trabalho sem fazer algumas consideraccedilotildees que

relacionem os demais temas desta pesquisa e as teorias da imagem sobretudo porque falamos

exaustivamente no diaacutelgo entre tecnologias nos primeiros capiacutetulos Se naquele momento

assinalamos que o centro das discussotildees em torno da fotografia eram suas especificidades e o

debate ontoloacutegico como sintoma de determinada fase da reflexatildeo teoacuterica em seguida o

pensamento se alarga para falar da imagem (sem tratar as questotildees dentro do territoacuterio exclusivo

do fotograacutefico) Dubois (2017 p40) assinala que a partir dos anos 2000 a noccedilatildeo de ldquofotograacuteficordquo

bem como a de ldquoimagemrdquo satildeo evocadas em textos e obras dedicadas menos a pensar a identidade

do meio voltando-se mais para as questotildees da esteacutetica debatida atraveacutes dos variados modos de

acionamento da teacutecnica ldquoenfatizando seus usos especiacuteficos em campos relativamente

determinados ou mais especializados (as artes plaacutesticas ou a arte contemporacircnea os visual studies

e a cultura da internet o campo poliacutetico ou social os usos vernaculares ndash populares amadores

etc)rdquo

247

Em seu texto Dubois referencia principalmente autores franceses mas logicamente a

tendecircncia natildeo estaacute restrita aos ciacuterculos de pensamento francoacutefonos Ao longo de nosso texto

dialogamos com alguns destes nomes e pode-se dizer que possuem em comum o olhar dirigido

agraves praacuteticas hiacutebridas notadamente em conceitos como ldquoimagem apresentativardquo (FATORELLI

2017) ldquofoto expandidardquo (JUNIOR 2002) ldquonon-human photographyrdquo (ZYLINSKA 2017a)

Jaacute como desdobramento desse pensamento encontramos as tentativas de definir os

contornos de uma imagem ldquoexperimentalrdquo caracterizada pelo sentido praacutetico da manipualccedilatildeo dos

materiais de propriedade fotograacutefica mas tomada como conceito (ou uma modalidade) de um

fazer que busca atraveacutes dessa manipulaccedilatildeo expandir os horizontes da esteacutetica Basicamente esse eacute

o vieacutes de Poivert (2010) e Lenot (2017 2017a) ndash cuja influecircncia dos escritos de Vileacutem Flusser

converge em maior grau com as anaacutelises que empreendemos em nosso texto O primeiro localiza

uma tradiccedilatildeo experimental que se desenha entre os anos 1970-1980 (e que eacute tibutaacuteria das

experiecircncias realizadas com a imagem no contexto das vanguardas artiacutesticas de 1920) apontando

como traccedilos definidores o caraacuteter multidisciplinar (diaacutelogo entre as vaacuterias artes) a criacutetica ao

proacuteprio meio e suas normatizaccedilotildees (impulso luacutedico investigativo) e a tendecircncia de revisitar a

historiografia das teacutecnicas e a experiecircncia do ver Tais caracteriacutesticas estatildeo associadas a uma

teorizaccedilatildeo mais ampla sobre a imagem contemporacircnea onde a tendecircncia experimental estaacute

inserida e que considera a fotografia como um dos elementos constitutivos das obras artiacutesticas

Ou seja ao pensarmos o ldquoexperimentalrdquo como vertente da imagem contemporacircnea devemos

tambeacutem ter em mente que essa tendecircncia compreende a fotografia associada a outras miacutedias (jaacute

que muitas vezes eacute convocada referindo o cinema o panorama o viacutedeo etc)153 Todas essas

questotildees estatildeo contempladas nas obras apresentadas ateacute aqui em diferentes estrateacutegias poeacuteticas

Assim o ldquoexperimentalrdquo incorpora tambeacutem uma criacutetica ao discurso de constante

aperfeiccediloamento da tecnologia e identificamos essa mesma reflexatildeo nas obras de Rosacircngela

Rennoacute Joanna Zylinska Joseacute Luiacutes Neto Sabato Visconti Luiz Alberto Guimaratildees comenta

A induacutestria desde o seacuteculo XIX tem buscado ldquomelhorarrdquo a tecnologia dos aparelhosfotograacuteficos centrando seus esforccedilos na obtenccedilatildeo de imagens cada vez mais instantacircnease realistas Pois qual eacute o objetivo das atuais cacircmeras com sensibilidade que chega aatingir ISO 25600 senatildeo capturar o ldquoinstantacircneo tambeacutem no escurordquo Por que natildeo sefabricam cacircmeras com ISO baixo que permitam longas exposiccedilotildees mesmo em situaccedilotildeesde alta luminosidade () A subversatildeo desses conceitos estaacute de algum modo presenteem minha trajetoacuteria (GUIMARAtildeES 2014 p4)

153 Em texto dedicado agrave uma histoacuteria da fotografia contemporacircnea Poivert (2015) indica precisamente que apoacutes1970 a fotografia apresenta-se associada agrave proacutepria noccedilatildeo de arte contemporacircnea natildeo podendo mais ser pensadacomo categoria artiacutestica autocircnoma

248

Cris Bierrenbach toca a mesma questatildeo relacionando-a com o interesse pelas teacutecnicas claacutessicas

() Essa conexatildeo que eacute o que eu comecei a fugir no analoacutegico eacute uma coisa que eacuteimposta por uma induacutestria Existe uma induacutestria que produz as cacircmeras regula ascacircmeras porque ningueacutem estudou fotografia e taacute todo mundo fotografando pra fazerfotos boas neacute Vamos dizer corretas na luz foco porque o equipamento faz isso Eacute ainduacutestria que diz isso eacute o correto O resto eacute desvio Aiacute vem as pessoas que criam osfiltros que satildeo as miacutemicas do que era a fotografia anterior Eacute muito difiacutecil encontraruma pessoa que esteja nesse mundo digital e que realmente esteja entendendo etentando buscar o que eacute realmente especiacutefico desse ambiente (BIERRENBACH 2018)

Poivert (2010 p40) identifica uma visatildeo criativa que ldquose traduz por uma liberdade dos

artistas no que diz respeito agrave teacutecnica normativa o experimental eacute uma figura invertida do

progresso estabelecendo assim uma relaccedilatildeo particular com a histoacuteriardquo mencionando exatamente

os problemas citados por Guimaratildees e Bierrenbach O pesquisador indica ainda que os artistas

podem trabalhar diretamente a mateacuteria a metamorfose dos espaccedilos renovar as praacuteticas de

montagem (POIVERT 2015) fazendo-nos concluir que o termo ldquoexperimentalrdquo designa um

conjunto de iniciativas variadas

Das praacuteticas ditas pobres agraves sofisticaccedilotildees extremas dos processos digitais encontramosnessa fotografia experimental a vontade de romper com as praacuteticas normativas e instituirum jogo com o visiacutevel como propulsor da criatividade A serviccedilo de uma poeacutetica porvezes criacutetica por vezes oniacuterica a fotografia experimental desafia o uso da imagemsonha com uma relaccedilatildeo com o real construiacuteda sobre a subjetividade arruiacutena toda umatradiccedilatildeo de uma imagem definida pela sua continuidade descritiva (POIVERT 2015p140)

As conclusotildees do autor ecoam nos escritos de Lenot (2017a p16) que advoga a favor de

uma conceituaccedilatildeo especificamente dedicada agraves imagens que satildeo ldquoinuacuteteis do ponto de vista da

representaccedilatildeordquo em que os artistas se ocupam do ldquoobjeto fotograacutefico em sirdquo de sua

ldquomaterialidaderdquo Eacute interessante que em sua pesquisa Lenot lamenta ter-se concentrado na

produccedilatildeo de europeus e norte-americanos sem conseguir alcanccedilar artistas japoneses (um grupo

ao qual podemos acrescentar os artistas latino-americanos) Segundo ele quando surgem as

miacutedias digitais a miacutedia analoacutegica perde sua (suposta) funccedilatildeo de reporta-se ao referente o que

leva os artistas a questionarem seus pressupostos mimeacuteticos Isso permite que ele identifique toda

uma produccedilatildeo orientada para o questionamento do ldquoaparelhordquo nas dimensotildees teacutecnica

epistemoloacutegica e esteacutetica (sob influecircncia da filosofia flusseriana) A abordagem de Lenot eacute mais

voltada para a identificaccedilatildeo do experimental como tendecircncia que se expressa no campo da

imagem fotoquiacutemica

249

Aqui nosso objetivo foi utilizar sua reflexatildeo para incluir tambeacutem os trabalhos realizados

com miacutedias digitais abrangendo todo o conjunto de obras que tenham como traccedilo definidor a

investigaccedilatildeo das propriedades dos dispositivos negligenciadas pelos paradigmas do instantacircneo

da representaccedilatildeo etc Aleacutem disso compreendemos que o aporte teoacuterico sobre a tendecircncia

experimental pode ser estendido agraves obras de natureza informaacutetica tambeacutem porque os escritos de

Flusser (2011) natildeo parecem se referir agrave figura do ldquofotograacutefo experimentalrdquo como ligada

exclusivamente ao universo da imagem analoacutegica Lembremos que o trabalho mais significativo

do pensador tcheco nesse sentido ndash o livro ldquoFilosofia da Caixa Pretardquo ndash foi escrito em (1983154)

um momento em que o paradigma informaacutetico jaacute era uma realidade A necessidade de

desenvolver competecircncias para manipular e reprogramar softwares e hardwares (alterando

funccedilotildees e desempenhos) pode tornar um pouco mais tortuoso o caminho dos artistas que

pretendem abrir a ldquocaixa pretardquo da imagem digital mas natildeo impossiacutevel

Tambeacutem podemos considerar que a fotografia eacute apenas um objeto servindo de pretexto

para Flusser discutir nossas relaccedilotildees com os aparelhos midiaacuteticos como diagnoacutestico de um

momento histoacuterico no qual a imagem eacute o paradigma dominante de conhecimento (em detrimento

do texto) inaugurando tambeacutem uma seacuterie de problemaacuteticas vinculadas agrave nossa dificuldade de

enxergar os modelos de pensamento que a informam Na ldquopoacutes-histoacuteriardquo (FLUSSER 2011) a

narrativa linear causal e progressiva da histoacuteria eacute substituiacuteda pela forma de narrar descontiacutenua

fragmentada e caoacutetica Filmes cinematograacuteficos programas de televisatildeo slides satildeo citados por

Flusser (2017) como exemplos desses modos narrativos poacutes-histoacutericos aos quais podemos

acrescentrar memes gifs videoclipes a videoarte os filmes interativos as instalaccedilotildees artiacutesticas

etc Num texto posteiror (2008) que amplia as discussotildees de ldquoFilosofia da caixa pretardquo o teoacuterico

refere-se agraves tecnoimagens como formadas por ldquopontos gratildeos e pixelsrdquo contribuindo

decisivamente para as reflexotildees sobre a ldquocultura dos media ou cultura de redesrdquo (MENEZES

2010)

Se as proposiccedilotildees da filosofia de Flusser foram exploradas ao longo de nosso estudo

especialmente nas ideias de uma relaccedilatildeo de acoplagem entre os sujeitos e as tecnologias

devemos fazer aqui menccedilatildeo tambeacutem ao pensamento de Gilbert Simondon (2017) em suas

preocupaccedilotildees com os viacutenculos entre objetos teacutecnicos e seres humanos ou seja como mais um

aporte filosoacutefico que daacute conta de uma associaccedilatildeo entre noacutes seres humanos e os dispositivos

154 Publicaccedilatildeo original em alematildeo de 1983 cuja traduccedilatildeo no Brasil feita pelo proacuteprio Flusser data de 1985 CfMenezes 2010 p23

250

Infelizmente natildeo conseguimos alcanccedilar suas reflexotildees a ponto de que fossem incluiacutedas na tese

Ao passo que Simondon parece tambeacutem investir num entendimento de natildeo oposiccedilatildeo entre seres e

objetos teacutecnicos consideramos que explorar suas ideias eacute tarefa para investigaccedilotildees que ampliem

este trabalho

No percurso investigativo sobre as possibilidades dos meios a imagem depara-se com a

questatildeo do ruiacutedo passando a referir como caracteriacutestica do modo experimental prenhe de falhas

e erros uma ldquoesteacutetica dos usos improacutepriosrdquo formada ldquode sobras e margensrdquo (POIVERT 2017

p13) Para noacutes apontar a atenccedilatildeo dada em pesquisas recentes a esses temas (ainda concentradas

sob a terminologia da fotografia) eacute uma maneira de articular a emergecircncia do problema do ruiacutedo

no campo da imagem em suas ramificaccedilotildees possiacuteveis com a materialidade o experimentalismo

o acaso e a abordagem arqueoloacutegica da miacutedia sem perder de vista os proacuteprios movimentos do

pensamento teoacuterico do campo da imagem que foram nosso ponto de partida

251

7 CHEGADAS OU CONCLUSOtildeES

Este trabalho surgiu da tentativa de entender a valorizaccedilatildeo de marcas visuais como o

desfoque o borratildeo o tremido entre outras no acircmbito da produccedilatildeo fotograacutefica contemporacircnea Se

incialmente consideraacutevamos que essas praacuteticas estavam restritas ao uso de tecnologias

analoacutegicas empregadas como recusa agrave limpeza agrave regularidade da imagem digital percebemos

que o valor de uma esteacutetica com tais elementos deve-se ao interesse por esteacuteticas alternativas ao

modelo representativo da imagem fotograacutefica (questatildeo que ultrapassa a tipologia da miacutedia

utilizada)

Iniciamos fazendo uma revisatildeo de temas relevantes para os debates sobre o paradigma

digital posto que este trouxe para a centralidade da produccedilatildeo de imagens questotildees como a

abertura agrave manipulaccedilatildeo a interloculaccedilatildeo entre modos da imagem analoacutegica em dispositivos

computadorizados como por exemplo na praacutetica vernacular do uso de filtros de apps em

telefones celulares e consequentemente a elaboraccedilatildeo de produtos multimiacutedia Ao olhar para as

teorias da fotografia e a produccedilatildeo de imagens recente notamos que alguns dos trabalhos mais

interessantes apostam exatamente no diaacutelogo entre miacutedias atestando que o hibridismo eacute uma

tendecircncia forte das obras contemporacircneas Estes trabalhos convivem lado a lado com outros que

atraveacutes de uma esteacutetica de limpeza ndash atada a certo ideal de perfeiccedilatildeo ndash reintroduz teses caras agrave

teoria da fotografia tais como a relaccedilatildeo com o mimetismo a pespectiva geomeacutetrica e o

instantacircneo temporal

Tais observaccedilotildees nos levaram a concluir que ao contraacuterio de uma separaccedilatildeo radical entre

analoacutegico e digital haacute espaccedilo na produccedilatildeo atual para uma saudaacutevel negociaccedilatildeo entre essas

linguagens meios hardwares e softwares que eacute responsaacutevel pela composiccedilatildeo de todo um cenaacuterio

de imagens experimentais investigadas em nosso corpus Dessa forma conduzimos nossa

discussatildeo a partir de uma perspectiva relacional entre as miacutedias buscando as continuidades em

vez de ressaltar as oposiccedilotildees

Notamos tambeacutem que as obras conceituadas de experimentais podem ter suas esteacuteticas

relacionadas ao conceito de ruiacutedo na medida em que satildeo construiacutedas atraveacutes de movimentos de

diferenciaccedilatildeo dessa esteacutetica limpa e perfeita Desse modo propusemos como debate central da

252

tese as relaccedilotildees entre ruiacutedo e imagem e as variadas manifestaccedilotildees do ruiacutedo em trabalhos

fotograacuteficos resultantes de estrateacutegias criativas assentadas na desprogramaccedilatildeo das tecnologias

Descortinamos um conjunto de obras nas quais o ruiacutedo aparece como resultado de

intervenccedilotildees em equipamentos alteraccedilotildees das etapas de processos de obtenccedilatildeo da imagem

elaboraccedilatildeo de dispositivos originais (natildeo-industriais) uso de arquivos e softwares corrompidos

em suas funccedilotildees industriais combinaccedilatildeo de materiais fotograacuteficos cinematograacuteficos

videograacuteficos e pictoacutericos Ou seja toda sorte de metodologias adotadas por artistas que partem

de uma recusa ao uso acriacutetico das miacutedias provocando uma reflexatildeo sobre os limites das teacutecnicas

ao mesmo tempo em que nos fazem experimentar novas sensibilidades por meio das obras

A interlocuccedilatildeo entre ruiacutedo e imagem no campo da fotografia revelou caracteriacutesticas

importantes desses trabalhos Por exemplo como fenocircmeno que indica instabilidade

desagragaccedilatildeo de padrotildees e a convivecircncia de temporalidades haacute uma consideraacutevel variabilidade

de estilos abordagens e esteacuteticas O repertoacuterio iniciado aqui segue aberto a ampliaccedilotildees jaacute que

quando falamos em ruiacutedo na fotografia estamos considerando que o fotograacutefico possui uma

natureza polimorfa que exige constante investigaccedilatildeo sobre as possibilidades de configuraccedilatildeo do

ruiacutedo

Haacute obras que assentadas no tensionamento da proacutepria tecnologia revelam o ruiacutedo como

expressatildeo genuiacutena da experimentaccedilatildeo com maacutequinas quiacutemicos suportes arquivos softwares

gadgets afirmando-se como pura expressatildeo sem necessariamente buscar o viacutenculo com

significados uniacutevocos e de faacutecil rotulagem Assim denominamos essas imagens de processuais

porque muitas vezes elas carregam as marcas de seus processos de elaboraccedilatildeo e se uma das

caracteriacutesticas do ruiacutedo eacute ser traccedilo do medium onde se manifesta as imagens processuais trazem

em suas esteacuteticas as inscriccedilotildees dos ruiacutedos que suas tecnologias satildeo capazes de produzir

O ruiacutedo como traccedilo do medium indica tambeacutem a expressatildeo da materialidade das

tecnologias outra questatildeo importante em nosso detabe Em entrevistas realizadas para esta

pesquisa na proacutepria estrutura e na plaacutestica das obras entendemos que a dimensatildeo material das

imagens eacute um elemento importante da construccedilatildeo do sentido esteja essa materialidade

representada na dimensatildeo fiacutesica de uma imagem-objeto ou na tipologia de formatos de arquivos

manipulados via computador Em ambos os casos a exploraccedilatildeo da mateacuteria da imagem fotograacutefica

chama nossa atenccedilatildeo agrave presenccedila do ruiacutedo

As investigaccedilotildees dirigidas aos meios indicam ainda que haacute sempre expansotildees a serem

253

realizadas novos modos de uso e ressignificaccedilotildees possiacuteveis Isso mostra que nenhuma

tecnologia encontra-se esgotada do ponto de vista de suas potecircncias criativas Tanto pelas

intervenccedilotildees e reprogramaccedilotildees empreendidas pelos e pelas artistas na praacutetica quanto pelas

contribuiccedilotildees do campo da arqueologia da miacutedia afirmamos que a fotografia experimental revela

o interesse em lanccedilar um olhar renovado a quaisquer dispositivos Esse interesse por sua vez traz

como subtexto uma criacutetica agrave retoacuterica de evoluccedilatildeo da tecnologia (contida em noccedilotildees como

melhoria do desempenho aumento de qualidade e eficiecircncia incremento da fidelidade das

imagens ao real)

A emergecircncia do ruiacutedo mostrou tambeacutem a importacircncia de considerar a presenccedila do

acaso nas praacuteticas artiacutesticas Em muitas obras o acaso eacute responsaacutevel por certo grau de

imprevisibilidade que eacute bem-vindo no processo Percebemos que osas artistas compreendem que

para aleacutem de um domiacutenio sobre os meios e teacutecnicas o imprevisiacutevel colabora com o resultado

final de seus trabalhos (em vez de representar um empecilho) sendo aceito como elemento

positivo Tal compreensatildeo sobre o acaso explica por exemplo o fato de que os erros e falhas

ocorridos no funcionamento de sistemas computadorizados satildeo a base de algumas das obras

analisadas em nosso texto ou mesmo a questatildeo de que em alguns casos deixa-se os materiais

interagirem entre si para o desenvolvimento do trabalho Se o acaso eacute uma intervenccedilatildeo positiva

novas esteacuteticas surgem exatamente da exploraccedilatildeo dos desvios que o acaso traz agrave tona

O debate proposto nesta tese reforccedila que o universo da fotografia contemporacircnea eacute

plural em suas praacuteticas intencionalidades e esteacuteticas e que na convivecircncia entre miacutedias

analoacutegicas e digitais o campo da arte destaca-se por trazer agrave tona questotildees importantes que

provocam reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre seres humanos e tecnologias as praacuteticas artiacutesticas

experimentais e suas potecircncias de criacutetica a teses caras agrave teoria da fotografia e o interesse pelo

tema do ruiacutedo a partir de uma compreensatildeo de seu caraacuteter produtivo Acreditamos ainda que as

aproximaccedilotildees entre o tema do ruiacutedo e a fotografia juntam-se a outras perspectivas teoacutericas que

apontam o vieacutes de artifiacutecio de construccedilatildeo da imagem fotograacutefica em contraposiccedilatildeo ao

automatismo que por vezes eacute associado agraves imagens teacutecnicas

254

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LEVIATHAN DireccedilatildeoLucien Castaing-Taylor e Veacutereacutena Paravel Cinema Guild 2012

NO country for old men Direccedilatildeo Joel e Ethan Cohen Miramax Films 2007

NOacuteS Direccedilatildeo Jordan Peele Universal Pictures 2019

O EVANGELHO Segundo Satildeo Mateus Direccedilatildeo Pier Paolo Pasolini 1964

O MAacuteGICO de Oz Direccedilatildeo Victor Fleming MGM 1939

OUTUBRO Direccedilatildeo Sergei Eisenstein Sovkino 1927

POLTERGEIST - O Fenocircmeno Direccedilatildeo Tobe Hooper MGM 1982

STALKER Direccedilatildeo Andrei Tarkovsky Mosfilm 1979

SOLO Uma histoacuteria Star Wars Direccedilatildeo Ron Howard Walt Disney Studios Motion Pictures2018

STAR Wars - Guerra nas Estrelas Direccedilatildeo George Lucas 20th Century Fox 1977

STAR Wars - Episoacutedio II - O Ataque dos Clones Direccedilatildeo George Lucas 20th Century

269

Fox2002

STAR Wars - Episoacutedio VII - O despertar da forccedila Direccedilatildeo J J Abrams Walt Disney StudiosMotion Pictures 2015

STAR Wars - Episoacutedio V - O Impeacuterio Contra Ataca Direccedilatildeo Irvin Kershner 20th CenturyFox1980

STAR Wars - Episiacutedo VI - O retorno de Jedi Direccedilatildeo Richard Marquand 20th CenturyFox1983

STAR Wars - Episoacutedio III - A vinganccedila dos Sith Direccedilatildeo George Lucas 20th Century Fox2005

SUSPIRIA Direccedilatildeo Dario Argento 1977

SUSPIRIA - A danccedila do medo Direccedilatildeo Luca Guadagnino Playarte Pictures 2018

2001 UMA Odisseacuteia no espaccedilo Direccedilatildeo Stanley Kubrik MGM 1968

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E … · 2020. 12. 4. · Marina Feldhues, Philipe Fassarella, Alexandre Maciel, Mari Reis, Rafa Queiroz, Rafa Andrade (e Suzana,

Ludimilla Carvalho Wanderlei

EXPERIMENTALISMOS E RUIacuteDOS NA FOTOGRAFIA CONTEMPORAcircNEA

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeoem Comunicaccedilatildeo da Universidade Federal dePernambuco como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo dotiacutetulo de doutora em Comunicaccedilatildeo

Aacuterea de concentraccedilatildeo Comunicaccedilatildeo

Orientadora Professora Doutora Nina Velasco eCruz

Recife

2020

Catalogaccedilatildeo na fonteBibliotecaacuteria Jeacutessica Pereira de Oliveira CRB-42223

UFPE (CAC 2020-157)30223 CDD (22 ed)

W245e Wanderlei Ludimilla CarvalhoExperimentalismos e ruiacutedos na fotografia contemporacircnea Ludimilla

Carvalho Wanderlei ndash Recife 2020269f il

Orientadora Nina Velasco e CruzTese (Doutorado) ndash Universidade Federal de Pernambuco Centro de

Artes e Comunicaccedilatildeo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Comunicaccedilatildeo2020

Inclui referecircncias

1 Fotografia 2 Fotografia experimental 3 Ruiacutedo 4 Erro5 Hibridismo I Cruz Nina Velasco e (Orientadora) II Tiacutetulo

Ludimilla Carvalho Wanderlei

EXPERIMENTALISMOS E RUIacuteDOS NA FOTOGRAFIA CONTEMPORAcircNEA

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeoem Comunicaccedilatildeo da Universidade Federal dePernambuco como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo dotiacutetulo de doutora em Comunicaccedilatildeo

Aprovada em 30072020

BANCA EXAMINADORA

______________________________________

Professora Doutora Nina Velasco e Cruz (Orientadora)Universidade Federal de Pernambuco

__________________________________________

Professora Doutora Acircngela Freire Prysthon (Examinadora interna)Universidade Federal de Pernambuco

___________________________________________

Professor Doutor Rodrigo Octaacutevio DrsquoAzevedo Carreiro (Examinador interno)Universidade Federal de Pernambuco

____________________________________________

Professor Doutor Cesar Augusto Baio Santos (Examinador externo)Universidade Estadual de Campinas

___________________________________________

Professora Doutora Cristina Maria da Silva Pinto Ferreira Fonseca (Examinadora externa)Universidade do Porto

Agraves conexotildees aos curtos-circuitos e aos descaminhos da vida Em quaisquer tempos e

lugares

AGRADECIMENTOS

Acho sempre difiacutecil essa coisa dos agradecimentos mas se eacute para fazecirc-los ei-los

obrigada a todos e todas que (consciente ou inconscientemente) incentivaram ajudaram

acolheram criticaram escolhas ideias e percursos deste trabalho que para nascer tem que

tambeacutem morrer todo dia um pouquinho Aos meus amigos e amigas que extrapolam a

convivecircncia nas salas de aula e que trago comigo na cabeccedila e no coraccedilatildeo em laccedilos

verdadeiramente construiacutedos entre risadas cervejas conversas sobre poliacutetica muacutesica cinema

fotografia e logicamente os dissabores da vida Yara Medeiros Olga Wanderley Thais Faria

Marina Feldhues Philipe Fassarella Alexandre Maciel Mari Reis Rafa Queiroz Rafa Andrade

(e Suzana e Andreacuteia) Pedro Severien Carol Almeida

Aos queridos Zeacute Claudinha e Robertinha da secretaria do PPGCOM que literalmente

nos salvam com boa vontade e simpatia flexibilizando os limites impostos pela burocracia tiacutepica

da universidade puacuteblica Aos professores e professoras com os quais tive momentos frutiacuteferos e

insights valiosos (embora em alguns casos nem sequer tenha externado isso) Acircngela Prysthon

Joseacute Afonso Jeder Janotti Thiago Soares Rodrigo Carreiro Isaltina Gomes A Cesar Baio e

Rodrigo Carreiro pela oacutetima qualificaccedilatildeo

Um salve especial agrave minha orientadora Nina Velasco e Cruz de quem fui aluna em trecircs

ocasiotildees anteriores e que com paciecircncia leveza e confianccedila esteve junto comigo nesse

processo avaliando com o rigor necessaacuterio e sem ferir a autonomia que se espera de quem se

ldquometerdquo nessa coisa chamada doutorado e com quem durante todas as trocas para

encaminhamentos da pesquisa tive abertura e senti-me confortaacutevel para falar natildeo apenas da

conduccedilatildeo da tese mas de coisas da vida

Aos fotoacutegrafos e fotoacutegrafas que entrevistei por sua generosidade e partilha

Ao Arquivo Vileacutem Flusser Satildeo Paulo pelo acesso a seus textos

Agrave Facepe e agrave Capes agecircncias das quais obtive bolsa respectivamente para os periacuteodos

regular e estaacutegio-sanduiacuteche do doutorado

Agrave Cristina Ferreira que com toda disponibilidade simpatia e carinho me acompanhou

nos nove meses do doutorado-sanduiacuteche na Universidade do Porto Nunca esquecerei as trocas e

laccedilos criados Obrigada tambeacutem a Eliza Steacutefani Daniel Jordana Joilson Felipe Roberto Clara

Eduardo a pequena Janaiacutena Jeacutessica Carol e Thalles que conheci no Porto

Aos meus amigos e amigas de vida Fernando Naia Anabele Joaninha Quequel Eacutethel

Cauecirc Line Nice Igor Mila Ruthinha Ju Patrick Maacutercio Andrade Ale Senna Raquel do

Monte Esquecidxs por culpa da minha memoacuteria sintam-se abraccediladxs

Obrigada sempre a mainha e Camila meus amores minha vidas meus carmas meus

piolhos

E obrigada a Rafael Pires meu companheiro de aventuras a fotografia e o acaso nos

aproximaram o frio nos castigou a muacutesica nunca nos abandonou e o afeto nos manteve unidos

Um cheirinho

ldquoNessa manhatilde de louco o olho do morto reflete o fogordquo (MACALEacute1970)

RESUMO

Esta tese investiga as manifestaccedilotildees do ruiacutedo na fotografia contemporacircnea como

potecircncia de imagens hiacutebridas experimentais e processuais Partindo de um olhar sobre a

produccedilatildeo fotograacutefica recente que articula o despojamento e a agilidade de produccedilatildeo distribuiccedilatildeo

e acesso da imagem via computador a paradigmas formais (tais como a verossimilhanccedila o

mimetismo e a representaccedilatildeo) compreendemos que a vertente da fotografia experimental propotildee

uma agenda esteacutetica alternativa na medida em que natildeo se limita a essa retoacuterica de

correspondecircncia estrita com o referente A partir das obras de artistas brasileiros e estrangeiros

atestamos que os experimentalismos realizados com miacutedias analoacutegicas e digitais indicam a

valorizaccedilatildeo do ruiacutedo no campo da imagem atraveacutes da presenccedila de elementos como borrotildees

tremulaccedilotildees inscriccedilotildees do tempo muacuteltiplas exposiccedilotildees granulaccedilotildees pixel aparente exploraccedilatildeo

de efeitos cromaacuteticos texturas e estrutura das imagens distorccedilotildees entre outros A pluralidade de

manifestaccedilotildees do ruiacutedo ocorre por meio de estrateacutegias centradas na intervenccedilatildeo deliberada sobre

quaisquer miacutedias utilizadas para criar imagens tangenciando questotildees como o entrecruzamento

de territoacuterios da fotografia do cinema da pintura do viacutedeo das artes graacuteficas e o ambiente dos

softwares o desenvolvimento de poeacuteticas originais (geralmente contraacuterias aos usos industriais

das tecnologias) processos de criaccedilatildeo da ordem das apropriaccedilotildees dos hibridismos da

remixagem e a reprogramaccedilatildeo de softwares e hardwares para fins artiacutesticos Na pesquisa

refletimos ainda sobre a importacircncia do acaso como elemento partiacutecipe das metodologias

artiacutesticas o caraacuteter processual das imagens nas quais o ruiacutedo emerge a materialidade como vetor

de sentido nas obras analisadas o olhar dirigido agraves teacutecnicas claacutessicas da imagem fotoquiacutemica e agraves

miacutedias ldquoobsoletasrdquo (sob uma abordagem arqueoloacutegica da miacutedia) e por fim sobre as recentes

abordagens da teoria da fotografia que datildeo conta das proposiccedilotildees formais conceituais e

filosoacuteficas com agraves quais podemos associar a emergecircncia do ruiacutedo nas imagens

Palavras-chave Fotografia Fotografia experimental Ruiacutedo Erro Hibridismo

ABSTRACT

This thesis investigates the manifestations of noise in contemporary photography as a

power of hybrid experimental and processual images Starting from a look at recent

photographic production which articulates the stripping and agility of production distribution

and access of the image via computer to formal paradigms (such as verisimilitude mimesis and

representation) we understand that the experimental photography aspect proposes an alternative

aesthetic agenda insofar as it is not limited to this rhetoric of strict correspondence with the

referent From the works of Brazilian and foreign artists we attest that the experimentalisms

made with analog and digital media indicate the valorization of noise in the field of image

through the presence of elements such as blurs tremulations inscriptions of time multiple

exposures granulations apparent pixel exploration of chromatic effects textures and structure of

images distortions among others The plurality of noise manifestations occurs through strategies

focused on deliberate intervention on any media used to create images tangentiating issues such

as the intersection of territories of photography cinema painting video graphic arts the

software environment the development of original poetics (generally contrary to the industrial

uses of technologies) processes of creation such as appropriations hybrids remixing

resignification of old techniques of photography and the reprogramming of software and

hardware for artistic purposes In the research we also reflected on the importance of chance as a

partisan element of artistic methodologies the processual character of the images in which noise

emerges the materiality as a vector of meaning in the works analyzed the gaze directed to the

classical techniques of the photochemical image and to the ldquoobsoleterdquo media (under an

archaeological approach of the media) and finally on the recent approaches to the theory of

photography that account for the formal conceptual and philosophical propositions with which

we can associate the emergence of noise in images

Keywords Photography Experimental photography Noise Error Hybridism

SUMAacuteRIO

1 PARTIDAS OU UMA INTRODUCcedilAtildeO 13

2 INTELIGEcircNCIAS NUMEacuteRICAS 20

21 BREVE CONTEXTO SOCIAL E EMERGEcircNCIA DA CULTURA DIGITAL 20

22 RASTROS PEGADAS DA CULTURA DO NUMEacuteRICO 25

23 PARADIGMA NUMEacuteRICO ESPECIFICIDADES 26

24 SOBRE A IMAGEM 29

241 Virtualidade x materialidade 29

242 Ordem da representaccedilatildeo x ordem da simulaccedilatildeo 55

3 ANALOacuteGICO X DIGITAL INTERROGACcedilOtildeES EM DIRECcedilAtildeO Agrave

FOTOGRAFIA 61

31 RECONSIDERANDO ALGUMAS DISPARIDADES 61

32 ANALOacuteGICO + DIGITAL E A ZONA CINZA DE NEGOCIACcedilOtildeES

CONTINUIDADES ATRAVESSAMENTOS 66

321 Digital (re)visitando tradiccedilotildees visuais 66

322 Tatildeo longe tatildeo perto comparaccedilotildees 91

323 Arqueologia da miacutedia e investigaccedilotildees do medium 95

4 RUIacuteDO ERRO E IMAGEM 103

41 FOTOGRAFIA Eacute RUIacuteDO PARA ALEacuteM DE ESPECIFICIDADES

TECNOLOacuteGICAS 103

42 DISPUTAS ONTOLOacuteGICAS 109

43 COM OLHOS DE VIDRO DE CORES BERRANTES BALANCcedilAM

EDIFIacuteCIOS DE QUARENTA ANDARES 113

44 POR SERES TAtildeO INVENTIVO E PARECERES CONTIacuteNUO TEMPO

EacuteS UM DOS DEUSES MAIS LINDOS 121

45 EU SOU APENAS UM INCOcircMODO 134

46 CONTROLE EFICIEcircNCIA E DISPOSITIVOS 156

47 ERRO OU RUIacuteDO 158

48 A TECNOIMAGEM Eacute FEITA DE PONTOS GRAtildeOS E PIXELS 162

49 A TUA PRESENCcedilA Eacute BRANCA VERDE VERMELHA AZUL E AMARELA 169

410 QUANDO DAGUERRE ENCONTRA O PHOTOSHOP 173

5 FALHAS BUGS E DESCONTINUIDADES SISTEcircMICAS 183

51 COMPUTADORES FAZEM ARTE ARTISTAS FAZEM DINHEIRO 183

52 O BOM O MAU E O FEIO 207

53 AS FLUTUACcedilOtildeES DE UM CONCEITO 209

6 O QUE SUGEREM AS LIGACcedilOtildeES ENTRE RUIacuteDO E IMAGEM 226

61 O PAPEL CRIATIVO DO ACASO 226

611 O imprevisiacutevel instala-se por conta do uso desprogramado

das tecnologias 229

612 Caraacuteter processual 230

62 MATERIALIDADE 232

63 OLHAR RETROSPECTIVO A PROCESSOS CLAacuteSSICOS DA

FOTOGRAFIA 238

631 Arqueologia da miacutedia 240

64 E A TEORIA DA FOTOGRAFIA 246

7 CHEGADAS OU CONCLUSOtildeES 251

REFEREcircNCIAS 254

13

1 PARTIDAS OU UMA INTRODUCcedilAtildeO

A escrita desta tese as discussotildees que ela suscitou dentro ou fora da universidade as

leituras necessaacuterias para seu desenvolvimento fazem parte de um processo muito diverso para

mim Agrave medida que a pesquisa caminhava ideias foram repensadas outras simplesmente

abandonadas e o resultado final logicamente reflete essa trajetoacuteria de idas e vindas Acho que

para entender os caminhos (agraves vezes descaminhos) do doutorado eacute preciso resgatar as etapas

desse percurso e aqui acho que tenho a justa licenccedila para adotar um estilo mais pessoal de escrita

(sob risco de destoar um pouco do restante do trabalho) No mestrado aprendi que as introduccedilotildees

servem natildeo soacute para falar do que vem a seguir de como a investigaccedilatildeo foi conduzida e estaacute

estruturada mas tambeacutem sobre aquilo que nos direcionou para certos temas como alguns

assuntos nos provocam ajudando a desvendar o nascimento de uma pesquisa (seus problemas

hipoacuteteses etc)

A fotografia sempre me interessou como objeto de estudo Num percurso lacunar entre

graduaccedilatildeo e especializaccedilatildeo cheguei ao mestrado e ainda durante esse momento tomei contato

com algumas leituras que versavam a respeito de memoacuteria tecnologias afetos intimidade e de

maneira geral discutiam nossas relaccedilotildees com artefatos culturais variados entre eles as imagens

fotograacuteficas cinematograacuteficas a muacutesica Entre esses objetos sempre me interessaram mais as

ldquocoisasrdquo possuidoras mesmo de uma dimensatildeo fiacutesica Aquelas que podemos manusear que se

desgastam acumulam marcas do tempo poeira ou traccedilos de uso Agradeccedilo agrave Joseacute Van Dijck

(2007) e seu belo livro sobre as memoacuterias mediadas na era digital

Naquele momento jaacute tinha decidido continuar estudando questotildees relativas agrave imagem e

percebi que para me dedicar a uma pesquisa de quatro anos o tema natildeo teria apenas que ser

interessante mas me mobilizar num sentido talvez pessoal e comecei a pensar de que maneira

era possiacutevel articular questotildees da esteacutetica das tecnologias da imagem e um movimento (que

vinha observando sem pretensatildeo investigativa nenhuma e que na eacutepoca parecia marginal e

saudosista) ligado ao uso do filme fotograacutefico em plena ldquoera digitalrdquo A ldquodescobertardquo aconteceu

pura e simplesmente porque eu ndash que como diz um amigo ldquojaacute nasci velhardquo ndash sigo produzindo

fotografias em negativo e tambeacutem porque os algoritmos trabalham muito bem com base nas

14

miacutenimas informaccedilotildees fornecidas quando posto na internet algumas das minhas imagens Assim

descobri o Analogue Sunrise um tumblr de compartilhamento de fotografias analoacutegicas onde

aparentemente ningueacutem se conhece e todos estatildeo ali para ldquocelebrarrdquo a foto em negativo O

aspecto de fisicalidade da fotografia sempre significou um componente de certo vieacutes afetivo da

imagem assentado numa relativa estabilidade que o suporte proporciona Tambeacutem em niacutevel

pessoal enxergo um tipo de maacutegica no fato de que somente apoacutes a revelaccedilatildeo do negativo eacute que

conhecemos de fato as imagens Assim a fotografia produzida com teacutecnicas analoacutegicas figurava

como objeto de pesquisa inicial nesses contornos ainda meio fraacutegeis do ponto de vista do rigor

teoacuterico

Ainda de forma incipiente a investigaccedilatildeo parecia encaminhar-se para o lado da

nostalgia e inclinada a compreender uma atitude desviante daqueles que escolhiam o analoacutegico

em detrimento do digital Isso levou a um problema o que justificaria essa escolha para aleacutem de

uma certa verve cool que reveste o projeto do Analogue Sunrise Esse questionamento tambeacutem

se fazia presente na curiosidade que despertava em mim o Impossible Project (retomada da

produccedilatildeo de cacircmeras e insumos para a Polaroid em 2008) de revival da fotografia instantacircnea

Os usuaacuterios do Analogue Sunrise pareciam valorizar a granulaccedilatildeo das peliacuteculas o

desfocado as fotos ldquotremidasrdquo como se tais caracteriacutesticas indicassem o apreccedilo por uma esteacutetica

ldquodos defeitosrdquo que se afastava de certa frieza e perfeiccedilatildeo que o universo da imagem digital

supostamente representava Novamente essas questotildees partiam de uma observaccedilatildeo

despretensiosa sem muita base teoacuterica (da qual eu em niacutevel pessoal compartilhava)

Senti a necessidade de revisitar uma literatura que desse conta das preocupaccedilotildees em

torno da imagem digital como ela articulava mudanccedilas de haacutebitos modos de distribuiccedilatildeo

consumo e estrateacutegias criativas da fotografia na tentativa de encontrar nesses textos respostas

que explicassem uma ldquonegaccedilatildeordquo dessa tecnologia e assim uma interdiccedilatildeo tambeacutem de sua esteacutetica

ldquoperfeitardquo Notei que era necessaacuterio compreender primeiro esse contexto da imagem digital para

entender sua loacutegica e talvez defender uma posiccedilatildeo de recusa deliberada traduzida na escolha

pelo analoacutegico Comecei a buscar as referecircncias que espelhavam as principais questotildees surgidas e

aprofundadas quando o paradigma digital ganha corpo a partir dos anos 1980 Agrave medida que lia

Manovich (19952001) Couchot (2003) Parente (1993) Machado (1993) Soulages (20072010)

Fatorelli (2006) Valle (2012) Lister (1995) Baio (2016) entre tantas outras referecircncias fui

15

percebendo que a questatildeo central natildeo era de apenas fazer uma distinccedilatildeo epistemoloacutegica e teacutecnica

entre tecnologias fotoquiacutemicas e digitais capaz de explicar preferecircncias formais Quando

observamos as primeiras reflexotildees sobre a emergecircncia da cibercultura e os impactos desta no

campo da imagem os debates estatildeo mais centrados em questotildees tais como compartilhamento

vigilacircncia manipulaccedilatildeo de arquivos naturalizada autoria coletiva criaccedilatildeo de artefatos hiacutebridos

tentando mapear distinccedilotildees entre uma epistemologia herdada do pensamento moderno (imagem

analoacutegica) e um paradigma da imagem ligado ao surgimento do computador de uma

racionalidade matemaacutetica Nesse esforccedilo de reflexatildeo velhos debates ligados agrave (suposta) funccedilatildeo

indicial da fotografia foram revisitados ou ldquorecicladosrdquo

Essa discussatildeo que articula problemaacuteticas da cibercultura e paradigmas claacutessicos da

imagem faz com que as teorias oscilem entre o entusiasmo com as possibilidades criativas do

digital e anaacutelises que detectam justamente essas ambiguidades comportadas pelo campo da

imagem fazendo natildeo apenas conviverem mas se associarem as diferentes tecnologias e nesse

sentido faccedilo nos capiacutetulos ldquoInteligecircncias numeacutericasrdquo e ldquoAnaloacutegico x digital interrogaccedilotildees em

direccedilatildeo agrave fotografiardquo da tese diversas consideraccedilotildees a respeito desse cenaacuterio que jaacute natildeo eacute mais

novo mas precisava de certa maneira de alguma demarcaccedilatildeo para situar as discussotildees que se

seguem Aleacutem de delinear questotildees importantes que caracterizam o paradigma digital e que satildeo

evocados nos debates sobre a fotografia (como a manipulaccedilatildeo a imaterialidade o virtual a

simulaccedilatildeo automaccedilatildeo dos dispositivos entre outras) esses dois capiacutetulos trazem uma seacuterie de

observaccedilotildees que relativizam as diferenccedilas tatildeo demarcadas entre analoacutegico e digital

aproximando-se de temas como remediaccedilatildeo (BOLTER amp GRUSIN 2000) materialidade do

software (MANOVICH 2013) a compreensatildeo da imagem como espaccedilo de experiecircncias

(enfatizando assim seu caraacuteter de artifiacutecio) o que por sua vez alinha-se agraves teses sobre os

hidridismos as contaminaccedilotildees (FATORELLI 2013) entre meios e ao decliacutenio das teorizaccedilotildees

preocupadas em singularizar os territoacuterios da imagem (fotografia cinema viacutedeo)

O esforccedilo de revisitar essas teses eacute feito no intuito de associar os debates que permeiam

o campo da imagem na emergecircncia da cibercultura para estabelecer algumas questotildees

importantes que serviratildeo de base para as abordagens posteriores centradas na temaacutetica do ruiacutedo

Considero que para articular esses dois campos (imagem e ruiacutedo) era interessante primeiro situar

algumas reflexotildees que mobilizaram intensamente os pensadores voltados agrave fotografia ao cinema

16

ao viacutedeo Ateacute porque apesar de emergir como tema no campo da arte jaacute no iniacutecio do seacuteculo XX

o ruiacutedo eacute um assunto bastante associado ao universo da computaccedilatildeo (conforme veremos adiante)

O conjunto dessas reflexotildees abriu margem para pensar a exploraccedilatildeo das proacuteprias miacutedias

como estrateacutegia de criaccedilatildeo direcionando o foco de anaacutelise agraves experiecircncias situadas em zonas

limiacutetrofes das tecnologias e das linguagens fazendo emergir dessas investigaccedilotildees esteacuteticas

inusuais hiacutebridas e nascidas de usos pouco convencionais dos dispositivos Aqui comeccedilava a

ganhar corpo o tema principal deste trabalho o reconhecimento e a valorizaccedilatildeo de formas

surgidas pelo uso combinado ou exclusivo das mais diversas tecnologias da imagem empregadas

contrariamente aos seus respectivos ldquoprogramasrdquo (FLUSSER 2011 2008) industriais que por

sua vez enfatizam o potencial criativo que alguns artistas enxergam no ruiacutedo do medium Em

uacuteltima instacircncia o ruiacutedo como um conceito operador de esteacuteticas singulares experimentais

Pensei que a partir dessas associaccedilotildees seria possiacutevel entender a tendecircncia cada vez mais

heterogecircnea da imagem contemporacircnea e o interesse por aspectos formais antes considerados

sob a rubrica dos ldquodefeitosrdquo (tais como borrotildees tremidos riscos granulaccedilatildeo pixelizaccedilatildeo

vestiacutegios dos materiais utilizados ou do gesto interventivo doda artista fantasmagorias

anamorfoses e outras inscriccedilotildees de temporalidades complexas marcas do desgaste) Essa

orientaccedilatildeo por sua vez tornava problemaacutetica a insistecircncia (inicial) em vincular a pesquisa

exclusivamente ao universo das miacutedias analoacutegicas visto que o tema do ruiacutedo possui uma estreita

relaccedilatildeo com o contexto de industrializaccedilatildeo e crescimento da importacircncia dos meios de

comunicaccedilatildeo no iniacutecio do seacuteculo XX e com a cibercultura em especial em que noccedilotildees de

controle eficiecircncia e precisatildeo expressam justamente a ideia de constranger reduzir a

manifestaccedilatildeo erraacutetica irregular e imprevisiacutevel do ruiacutedo Aleacutem disso a fotografia vernacular que

me ocupava no iniacutecio da investigaccedilatildeo natildeo parecia diretamente relacionada aos

experimentalismos com as teacutecnicas associados agrave temaacutetica do ruiacutedo Foi preciso olhar para o

campo da arte que se tornou referecircncia principal do corpus

Decidi entrevistar artistas que ajudaram a perceber que o problema central enfrentado

em minha tese era na verdade o interesse por uma esteacutetica emergente dos procedimentos

realizados com a imagem (no qual a presenccedila das miacutedias analoacutegicas era uma caracteriacutestica mas

natildeo um traccedilo definidor exclusivo) Natildeo era o uso da fotografia analoacutegica que explicava uma

esteacutetica processual e cheia de ldquodefeitosrdquo mas esse uso representava uma das estrateacutegias que

17

fazem parte de um contexto maior que permite afirmarmos essa esteacutetica (ou esteacuteticas) As

conversas com sete artistas (mulheres e homens) realizadas nos anos de 2017 2018 e 2019

confirmaram o interesse pelos desvios nos usos das tecnologias apontando a pertinecircncia de tratar

essas questotildees em articulaccedilatildeo com os temas do ldquoruiacutedordquo (HAINGE 20072013 KRAPP 2011

NUNES 2011 BALLARD 2011 MENKMAN 2010 FELINTO 2013) ldquoerrordquo (CHEacuteROUX

2009 PIPER-WRIGHT 2018) ldquoimprevistordquo ldquoacasordquo e acidente (ENTLER 2000) Em todas as

entrevistas a filosofia de Vileacutem Flusser (1920-1991) surgiu como referecircncia de pensamento que

norteava os projetos artiacutesticos embora no recorte final do corpus alguns artistas tenham sido

retirados para dar lugar a outros que descobri ao longo da investigaccedilatildeo

Aleacutem do pensador tcheco tambeacutem faccedilo referecircncias pontuais aos escritos de Gilles

Deleuze individualmente (199920052012) a seus trabalhos em parceria com Feacutelix Guattari

(1995199720112012) Walter Benjamin (19361994) entre outros nomes da filosofia

Durante o processo de qualificaccedilatildeo sugeriu-se que o trabalho deveria concentrar-se nas

relaccedilotildees entre ruiacutedo e imagem Nesse sentido foi indicado que esse tema atravessasse a

totalidade dos capiacutetulos sendo tratado desde o iniacutecio do texto Hoje com o trabalho finalizado

pode-se dizer que o ldquocoraccedilatildeordquo da tese estaacute nas diversas estrateacutegias de emergecircncia do ruiacutedo em

diaacutelogo com a filosofia a esteacutetica e as teorias da fotografia Mas com a necessidade de

reestruturar o que jaacute estava produzido optei por incluir a partir dos primeiros capiacutetulos breves

observaccedilotildees que enquanto se referiam a obras especificamente trouxessem algumas das

caracteriacutesticas ou ideias tais como imprevisibilidade inteligecircncia maquiacutenica interferecircncia nos

sistemas perturbaccedilatildeo remixagem entre outras Desse modo busquei aos poucos introduzir

algumas questotildees relevantes (em articulaccedilatildeo com os debates sobre o cenaacuterio da imagem

contemporacircnea) para trabalhar especificamente o conceito de ruiacutedo juntamente agrave anaacutelise das

obras Minha ideia era que este tema pudesse ser discutido em suas possiacuteveis articulaccedilotildees com

referecircncias do campo da filosofia esteacutetica e da teoria da fotografia por meio da anaacutelise do

corpus de obras artiacutesticas selecionado que eacute o foco dos capiacutetulos ldquoRuiacutedo erro e imagemrdquo e

ldquoFalhas bugs e descontinuidades sistecircmicasrdquo

Neles procedo entatildeo agrave conceituaccedilatildeo sobre o ruiacutedo resgatando suas caracteriacutesticas

essenciais dialogando em alguns momentos com as ideias dosdas proacutepriosas artistas (com base

nas entrevistas e outros materiais de referecircncia) em conexatildeo com as reflexotildees de Baio (2015)

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Fatorelli e Carvalho (2015) Costa (2015) Fatorelli (201320172017a) Bellour (1997) Parente

(2015) Menkman (2010) Fontcuberta (20102016) Piper-Wright (2018) Zylinska (20172017a)

Steyerl (2009) Lenot (2017) entre outros nomes passando por experiecircncias com as

temporalidades a ressignificaccedilatildeo criacutetica de tecnologias histoacutericas como daguerreoacutetipo cacircmara

escura fotografia estenopeica goma bicromatada pelo tracircnsito entre foto cinema viacutedeo e

pintura os diaacutelogos entre as vertentes fixa e moacutevel da imagem experiecircncias multimiacutedia ateacute a

apreciaccedilatildeo do ruiacutedo em suas manifestaccedilotildees nos domiacutenios da imagem digital em obras que

exploram softwares formatos de arquivos revisitam meios ldquoobsoletosrdquo e se apropriam de

material de terceiros (instituiccedilotildees ou particulares) em afinidade com temas como vigilacircncia

hackeamento sabotagem e remix

As anaacutelises dos trabalhos fotograacuteficos de Luiz Alberto Guimaratildees Dirceu Maueacutes Cris

Bierrenbach Rosacircngela Rennoacute Caacutessio Vasconcellos Joseacute Luiacutes Neto Sabato Visconti Rosa

Menkman Joanna Zylinska Jason Shulman Claire Strand Thomas Ruff e Eacuteder Oliveira

convocam-nos a repensar diversos paradigmas da imagem bem como os alargamentos das

possibilidades esteacuteticas atraveacutes da investigaccedilatildeo das tecnologias Por forccedila do debate em torno da

pluralidade de recursos e miacutedias empregados nos trabalhos e tambeacutem com base em toda revisatildeo

de bibliografia feita nos primeiros capiacutetulos optei por referir-me principalmente agraves obras

utilizando a terminologia da ldquoimagemrdquo que me parece gozar de maior abrangecircncia sobre os

fenocircmenos discutidos em comparaccedilatildeo com o uso do termo ldquofotografiardquo Eacute por isso que este

uacuteltimo eacute mais frequente nos capiacutetulos iniciais (que abordam a ldquotransiccedilatildeordquo analoacutegico-digital de

um ponto de vista mais teacutecnico) e paulatinamento sai de cena para dar lugar agrave categoria da

imagem que julgo ser mais coerente para tratar das experiecircncias realizadas no tracircnsito entre

tecnologias

Se o ruiacutedo acaba por ser o centro de meu debate as anaacutelises realizadas conduziram

tambeacutem a questotildees abordadas em campos como a arqueologia da miacutedia (ZIELINSKI 2006

BISHOP et al 2016 PARIKKA 20122017) as materialidades da comunicaccedilatildeo (FELINTO

2001 GUMBRECHT 2010) e o papel do acaso (ENTLER 2000) que embora rapidamente

citadas nas seccedilotildees anteriores trato de forma mais detalhada no uacuteltimo capiacutetulo Ao discutir as

visualidades surgidas da investigaccedilatildeo teacutecnica e conceitual voltada ao proacuteprio medium em

metodologias originais evoco novamente as ideias de ldquoaparelhordquo ldquojogordquo ldquoprogramardquo do

vocabulaacuterio flusseriano estabelecendo tambeacutem uma noccedilatildeo de criaccedilatildeo artiacutestica baseada na

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colaboraccedilatildeo entre seres humanos e dispositivos (esta relaccedilatildeo que entendi ser mais da ordem das

acoplagens que das hierarquias ou dos conflitos)

Recolocar essas questotildees me pareceu pertinente na medida em que finalizo este trabalho

situando as abordagens da teoria da fotografia que guardam uma estreita relaccedilatildeo com essas

consideraccedilotildees de Flusser a saber os trabalhos de Lenot (20172017a) Poivert (20022015)

Fontcuberta (2010) Junior (2002) e mais uma vez Zylinska (2017a) Ou seja se partir do

contexto de emergecircncia da cultura digital abordando os debates surgidos no meio fotograacutefico as

contaminaccedilotildees entre as miacutedias e as experimentaccedilotildees artiacutesticas compreendo ser vaacutelido fechar

esse movimento apontando onde no espaccedilo das teorias da fotografia encontramos reflexotildees que

dialogam com as mesmas questotildees que se batem os pesquisadores dedicados ao espinhoso tema

do ruiacutedo

Compreendo nessa altura do debate proposto que o tema das expressotildees do ruiacutedo eacute

bastante vasto constituindo um territoacuterio feacutertil de anaacutelises que nem de longe tenho a pretensatildeo de

esgotar nesta tese Mesmo que a intenccedilatildeo aqui seja trazer a questatildeo para o universo da imagem

contemporacircnea natildeo me desviei de exemplos referecircncias e ideias de outras artes (notadamente a

muacutesica) valendo-me natildeo soacute do caraacuteter interdisciplinar que a aacuterea da comunicaccedilatildeo permite mas

tambeacutem em conformidade com o proacuteprio conceito de ruiacutedo que eacute tomado como traccedilo material

encontrado em quaisquer campos expressivos

Na maneira como essa empreitada foi conduzida fica evidente que perdeu forccedila o

questionamento inicial que deu iniacutecio a esse percurso (um certo afeto anacrocircnico pela foto

analoacutegica) que acabou por revelar questotildees outras relativas agrave filosofia agrave histoacuteria da miacutedia ao

potencial subversivo da criacutetica aos dispositivos ao decliacutenio de valores como o belo a mimesis e a

verossimilhanccedila agrave relativizaccedilatildeo do ser humano como sensibilidade hegemocircnica da criaccedilatildeo

artiacutestica e agraves tecnologias da imagem e sua presenccedila inescapaacutevel em nossas rotinas

Espero ter sido feliz na maioria das escolhas e que a leitura do trabalho seja guiada por

essas raacutepidas explicaccedilotildees dos caminhos e descaminhos de meu pensamento

20

2 INTELIGEcircNCIAS NUMEacuteRICAS

21 BREVE CONTEXTO SOCIAL E EMERGEcircNCIA DA CULTURA DIGITAL

A cultura digital ndash tendo no computador o marco fundamental ndash vai sendo desenhada a

partir de forccedilas industriais de mudanccedilas nas formas de comunicaccedilatildeo entre sujeitos governos e

empresas e se articula com uma visatildeo de mundo que enseja a conexatildeo a troca e o

compartilhamento de praacuteticas saberes e afetos Sua loacutegica inclui tambeacutem uma noccedilatildeo de

eficiecircncia precisatildeo e regularidade no desempenho da tecnologia obtida a partir do

desenvolvimento de mecanismos diversos de controle e reduccedilatildeo de erros (NUNES 2011)

questotildees essenciais para as discussotildees propostas nesta tese A partir de apontamentos que

remontam a um contexto cada vez mais contaminado de informaccedilotildees que se perdem no

ciberespaccedilo eacute que devemos pensar tambeacutem os movimentos que atingem o campo da imagem na

contemporaneidade

Como esse assunto jaacute foi tratado por autores variados optamos por escolher uma

abordagem que embora natildeo seja capaz de alcanccedilar todas as ramificaccedilotildees possiacuteveis do tema

propotildee uma compreensatildeo das tecnologias informaacuteticas e seus impactos num entrelaccedilamento com

estrateacutegias de produccedilatildeo e distribuiccedilatildeo do conhecimento anteriores Desse modo aleacutem de

reprisarmos alguns pontos importantes que tipificam a cultura legada pelos sistemas

computadorizados podemos identificar melhor o contexto que autoriza tambeacutem os debates sobre

novas formas da imagem Ao mesmo tempo a escolha desse recorte espelha uma compreensatildeo de

alguns autores evocados ao longo do texto de que as tecnologias sejam compreendidas sob uma

perspectiva relacional em que as miacutedias ao sucederem umas agraves outras compartilham certas

funccedilotildees e estrateacutegias podem resgatar esteacuteticas e ainda agregam ferramentas especiacuteficas

responsaacuteveis pela emergecircncia de artefatos culturais novos Quer dizer as tecnologias mais

recentes podem ao mesmo tempo conservar atributos de suas antecessoras e carregar potecircncias

que espelham suas proacuteprias identidades Nesse entendimento assinalamos a aproximaccedilatildeo de

nosso debate com teoacutericos da histoacuteria da miacutedia e da arqueologia da miacutedia como Siegfried

Zielinski (2006) Jussi Parikka (2012) e Lev Manovich (20012013) e de pesquisadores que

21

seguem debatendo os tensionamentos envolvidos nas relaccedilotildees entre arte tecnologia e ciecircncia

como Erick Felinto Antonio Fatorelli Cesar Baio Katia Maciel Joanna Zylinska pensando suas

contribuiccedilotildees para o campo da imagem

Se pensarmos na trajetoacuteria das tecnologias da inteligecircncia podemos afirmar que uma

modalidade nova incorpora as demais poreacutem isso natildeo eacute tudo Segundo Manovich (2013) o

computador eacute uma metamiacutedia porque aleacutem de trazer funccedilotildees e criar necessidades particulares

retoma tambeacutem estrateacutegias criativas de outras miacutedias tornando seus produtos uacutenicos Tomando o

hipertexto como exemplo o autor indica

() o software cultural transformou as miacutedias em metamiacutedias ndash um sistema tecnoloacutegicoe semioacutetico fundamental que inclui teacutecnicas e esteacuteticas dos meios (anteriores) como seuselementos ndash mas penso que o hipertexto eacute bem diferente da tradiccedilatildeo literaacuteria moderna1(MANOVICH 2013 p81)

Isso porque o hipertexto ultrapassa a ideia de algo cuja estrutura e conteuacutedo satildeo

estritamente ldquotextuaisrdquo seu conceito estende-se a imagens sons viacutedeos ecoando um princiacutepio

original de desenvolvimento da informaacutetica no qual o computador eacute uma maacutequina de articulaccedilatildeo

entre ldquoum amplo espectro de miacutedias existentes e miacutedias ainda natildeo inventadasrdquo (KAY amp

GOLDBERG apud MANOVICH 2013) Devemos considerar que os apontamentos do

pesquisador russo fazem parte da corrente dos estudos de software que investiga a posiccedilatildeo

central do software na cultura contemporacircnea em sua utilizaccedilatildeo como plataforma que autoriza

tanto a manipulaccedilatildeo de vaacuterios meios ldquoremediandordquo2 miacutedias fiacutesicas quanto criando artefatos com

auxiacutelio de propriedades intriacutensecas ao computador e nesse sentido haacute duas caracteriacutesticas

importantes do software que implicam todas as suas accedilotildees a simulaccedilatildeo e o hibridismo

1 Traduccedilatildeo livre de ldquocultural software turned media into metamediamdasha fundamentally new semiotic andtechnological system which includes most previous media techniques and aesthetics as its elementsmdashI also think thathypertext is actually quite different from modernist literary traditionrdquo

2 Remediaccedilatildeo eacute a propriedade de uma miacutedia ser representada em outra O termo eacute dos pesquisadores Jay Bolter eRichard Grusin (2000) para os quais a especificidade da miacutedia digital eacute remediar a TV a fotografia o filme e apintura pois que em muitas tarefas executadas pelo computador as estrateacutegias de interaccedilatildeo acesso armazenamentoe processamento de informaccedilatildeo fazem referecircncia aos processos tiacutepicos de miacutedias fiacutesicas (interface de editores detexto que imitam a superfiacutecie do papel aplicaccedilotildees para desenhar organizaccedilatildeo de arquivos em pastas ediccedilatildeo de some imagem remetendo a ferramentasobjetos) Manovich (2103) faz referecircncia a este trabalho ao desenvolver oraciociacutenio a respeito do computador como uma metamiacutedia embora amplie a discussatildeo enfatizando as propriedadesadicionais que o software traz aos produtos desenvolvidos sobretudo no que diz respeito ao caraacuteter hiacutebrido demuitos deles

22

Voltaremos a elas mais detalhadamente nas discussotildees em torno da imagem contemporacircnea e

sobretudo nas esteacuteticas criadas em projetos artiacutesticos desenvolvidos com dispositivos digitais

Pierre Leacutevy (1993) por sua vez reflete sobre a propriedade de mutabilidade dos

produtos da cultura digital a ideia de que conteuacutedos e elementos tratados por sistemas

informaacuteticos estatildeo sujeitos agrave alteraccedilatildeo sempre que a necessidade e a subjetividade ordenem

Pensemos num texto que apoacutes elaborado nunca estaacute finalizado de fato podendo ser

ressignificado ou refeito por distintos autores ampliando sua rede de significados atraveacutes de

comentaacuterios compartilhamentos ou reescrita como ocorre no tratamento das informaccedilotildees no

Wikipeacutedia Da mesma forma se comportam as imagens alteradas desgarradas do espaccedilo e funccedilatildeo

originaacuterios para ativarem novos sentidos a exemplo do que ocorre na praacutetica dos memes e gifs

utilizados em redes sociais incorporados a peccedilas artiacutesticas ou emails Assim o princiacutepio da

metamorfose sugere um aspecto de abertura de estiacutemulo agrave investigaccedilatildeo uma disposiccedilatildeo para a

mudanccedila Tende para a eterna possibilidade da redefiniccedilatildeo de paracircmetros formas estilos

significados

O estudo de Leacutevy embora datado dos anos 1990 sugere algumas das principais

caracteriacutesticas do modelo informaacutetico que regem a produccedilatildeo de conhecimento a criaccedilatildeo artiacutestica

as relaccedilotildees sociais Entre elas podemos destacar a instantaneidade das tarefas a simulaccedilatildeo a

capacidade multimiacutedia uma atitude exploratoacuteria a relaccedilatildeo com o espaccedilo rizomaacutetico da internet a

natildeo-linearidade de processos e conteuacutedos a relaccedilatildeo com a informaccedilatildeo mediada por interfaces a

abertura dos dados agrave manipulaccedilatildeo e a imaterialidade destes Os apontamentos do autor permitem

compreender natildeo apenas o ambiente em que surgem os dispositivos informaacuteticos mas tambeacutem

uma cultura que enfatiza experiecircncias de autoria coletiva guiadas pela troca e pelo espiacuterito

colaborativo numa ideia de que o conhecimento a produccedilatildeo simboacutelica e as informaccedilotildees sobre a

proacutepria tecnologia devem ser livres e acessiacuteveis a qualquer pessoa (BAIO 2015 p20) Daiacute temos

questotildees como a relativizaccedilatildeo das hierarquias o cruzamento de referecircncias o poder fazerdesfazer

na base das operaccedilotildees cotidianas o remix as identidades fluidas o espaccedilo e tempo em relaccedilatildeo

descontiacutenua a interaccedilatildeo definida pela velocidade permeando um modelo epistemoloacutegico que

contraria os essencialismos as verdades acabadas as formas de pensamento estanques resultante

de um acuacutemulo de esforccedilos de aacutereas como a matemaacutetica a informaacutetica e a ciberneacutetica

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Se vivemos numa ldquosociedade do softwarerdquo (MANOVICH 2013) Andreacute Lemos (2009)

lembra que a cultura digital eacute a cultura produzida e mediada pelo computador celular pelas

redes afetando nossas formas de agir politicamente produzir arte acessar e distribuir material e

acrescenta que a ideia de cibercultura natildeo eacute uma proposiccedilatildeo de futuro mas de um presente jaacute

naturalizado em nosso cotidiano O pesquisador brasileiro diz ainda que a cibercultura nasce natildeo

com a informaacutetica de 1940 mas com a microinformaacutetica quando cada pessoa pode ter no

computador um instrumento de produccedilatildeo de informaccedilatildeo (que estimula a criaccedilatildeo coletiva e a

colaboraccedilatildeo) inaugurando a possibilidade de distribuir conteuacutedo em formatos diversos a

qualquer ponto do mundo conectado agrave internet Manovich (2013) ao fazer um resgate de nomes

importantes da ciecircncia da computaccedilatildeo demonstra que o paradigma numeacuterico3 consolida-se no

momento em que os computadores deixam de ser ferramentas de uso militar e industrial para se

tornarem dispositivos para criaccedilatildeo e troca de conteuacutedo a niacutevel dos usuaacuterios comuns e

profissionais de aacutereas variadas (em especial nos campos da comunicaccedilatildeo em rede e do

entretenimento) Ou seja os dois pensadores estatildeo unidos na proposiccedilatildeo de que a cibercultura

representa a apropriaccedilatildeo social dos dispositivos informaacuteticos Lemos conclui

Eu sempre digo que essa tecnologia eacute muito mais um fenocircmeno social do quenecessariamente um fenocircmeno teacutecnico porque ela foi fruto de uma atitude que euchamei num texto de uma atitude ciberpunk contra a grande informaacutetica que vai dandoseus frutos ateacute hoje Obviamente que isso vai perdendo forccedila ganhando novoscontornos mas efetivamente ela continua ainda influenciando na maneira como a gentepensa a cultura digital (LEMOS 2009 p139)

Esse contexto social mais amplo eacute assinalado por um conjunto de pensadores bastante

diverso por causa das aacutereas de conhecimento agraves quais estatildeo relacionados entre os quais

destacamos Santaella (2007) Castells (2002) Jenkins (2009) Bauman (2001) Deleuze e

3 Numeacuterico eacute o termo consagrado na teoria francesa para tratar dos processos relacionados agrave tecnologia informaacuteticacomo referecircncia agrave linguagem baseada em nuacutemeros utilizada pelos computadores Aqui o termo segue o uso feito porEdmond Couchot Franccedilois Soulages Poreacutem utilizaremos ainda termos como digital virtual sinteacutetica ou poacutes-fotografia que se referem agrave mesma condiccedilatildeo tecnoloacutegica (principalmente ao tratar da imagem) em acordo com anomenclatura empregada por teoacutericos como Lev Manovich Joan Fontcuberta Philippe Dubois Antonio Fatorellientre outros fazendo as devidas ressalvas e explicaccedilotildees adicionais quando necessaacuterio ao tratar especificamente daaplicaccedilatildeo desses termos agrave fotografia

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Guattari (1995 2011 2012)4 Parente (2009) Krapp (2011) entre outros ao perceberem

mudanccedilas nos modos de sentir relacionar expressar e comunicar das sociedades em relaccedilatildeo cada

vez mais estreita com tecnologias automatizadas (principalmente a partir da segunda metade do

seacuteculo XX) Nosso intuito aqui natildeo eacute refazer o caminho desses autores mas apenas lembrar

alguns pontos importantes de suas reflexotildees aproveitando-as num esforccedilo introdutoacuterio de

brevemente demarcar o ambiente epistemoloacutegico no qual se configuram as formas de

comunicaccedilatildeo e expressatildeo ligadas ao computador

Essas breves observaccedilotildees a respeito da cultura digital tambeacutem satildeo aqui lanccediladas para

iniciar um debate mais especiacutefico em torno da imagem e do que acontece com ela por forccedila das

mudanccedilas tecnoloacutegicas Revisitaremos alguns pontos de discussatildeo que permearam a emergecircncia

da imagem digital e as posteriores comparaccedilotildees entre esta e a imagem analoacutegica apontando

particularidades modos de acionamento e aproximaccedilotildees Aqui de certa forma estamos assumindo

o risco de fazer esse paralelo em bases fortemente tecnoloacutegicas sujeitos agrave acusaccedilatildeo de

determinismo da maacutequina Tal questatildeo mostra-se central porque desencadeia caracteriacutesticas que

vatildeo diferenciar tais sistemas (linha de raciociacutenio que marcou sobretudo as primeiras reflexotildees

teoacutericas sobre as tecnologias digitais da imagem) Se eacute nosso intuito reivindicar um espaccedilo de

debate em torno da imagem em obras que por vezes enfatizam sua materialidade a exploraccedilatildeo de

elementos como a luz a superfiacutecie dos suportes a elasticidade do tempo investindo na

experimentaccedilatildeo com miacutedias analoacutegicas isso parece fazer sentido na medida em que a imagem

digital torna-se um padratildeo industrial e comeccedila a referir modelos representativos supostamente

associados a noccedilotildees qualitativas da imagem fotoquiacutemica Ao longo do texto ficaraacute perceptiacutevel

tambeacutem que passado o momento de celebraccedilatildeo da novidade e apontamento das especificidades do

digital as discussotildees a respeito da imagem digital trilham novos caminhos que incluem o impacto

dos algoritmos dos softwares das visualidades preacute-formatadas por filtros as operaccedilotildees de

hibridizaccedilatildeo e a emulaccedilatildeo de esteacuteticas cujos efeitos estatildeo bastante proacuteximos das tecnologias

analoacutegicas fazendo tambeacutem com que estas uacuteltimas sejam redescobertas retomadas ou reavaliadas

em diferentes metodologias Nesse processo detectamos algumas permanecircncias de modelos

4 Aqui nos restringimos a citar apenas alguns volumes do Mil Platocircs que contecircm o desenvolvimento em torno dosconceitos de devir rizoma e do tema do menor visto que satildeo evocados por outros autores ou mesmo pela proacutepriaautora (no conjunto da tese) Mas ressaltamos que o nuacutecleo da filosofia de Deleuze e Guattari dirige-se a objetosvariados (a linguagem a pintura a proacutepria filosofia o cinema) para desvendar a percepccedilatildeo de uma sociedadeheterogecircnea e em constante mudanccedila o que os coloca em alinhamento com os demais autores citados

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esteacuteticos no uso da miacutedia digital e mais recentemente uma feacutertil exploraccedilatildeo artiacutestica do potencial

anaacuterquico e dissonante dos erros de sistemas computadorizados

Nas mais diversas estrateacutegias criativas com miacutedias fotoquiacutemicas e digitais observamos o

desejo de investigar os dispositivos e teacutecnicas na criaccedilatildeo de obras proacuteximas da tese do ruiacutedo

(HAINGE 2013) Ou seja temos um cenaacuterio bastante diversificado do qual tentaremos indicar

algumas tendecircncias

Assim nosso percurso vai abarcar primeiro algumas questotildees relativas a cibercultura ndash

tais como a simulaccedilatildeo a imaterialidade a alteraccedilatildeo de conteuacutedo ndash tendo em vista que no campo

da imagem a compreensatildeo de uma loacutegica informaacutetica sedimentou as primeiras reflexotildees teoacutericas

sobre os impactos esteacuteticos do paradigma numeacuterico e comparaccedilotildees com as imagens que lhes

precederam (em especial a fotografia analoacutegica) ateacute chegar a consideraccedilotildees mais recentes que

recolocam o lugar da materialidade as misturas de materiais e esteacuteticas promovidas por artistas

que demonstram uma postura ativa para explorar as tecnologias contrariamente a seus

funcionamentos padronizados e como as ideias de ldquoerrordquo e ldquoruiacutedordquo articulam-se com esse debate

de uma imagem experimental focada na exploraccedilatildeo das tecnologias

22 RASTROS PEGADAS DA CULTURA DO NUMEacuteRICO

A predominacircncia da numerizaccedilatildeo atual tem suas raiacutezes numa crescente automatizaccedilatildeo

das tarefas cotidianas ndash que por sua vez estende-se aos processos criativos artiacutesticos ndash ocorrida

no seacuteculo XIX da qual a fotografia eacute o exemplo inaugural evidente (COUCHOT 2003) Eacute com

ela que se daacute um rompimento crucial no seio da criaccedilatildeo e se instaura uma relaccedilatildeo entre seres

humanos e maacutequinas na busca de mobilizar significados sensaccedilotildees apontar caminhos para as

artes em geral A tarefa dos artistas a partir daiacute eacute brincar com essa relaccedilatildeo extraindo das

tecnologias aquilo que melhor expresse a sua vontade de comunicar uma ideia um sentimento

um questionamento Em meio ao desenvolvimento de praacuteticas da fotografia do cinema da

televisatildeo do viacutedeo e de pesquisas sobre o processamento o tratamento e a transmissatildeo

automaacutetica de informaccedilotildees sejam tais esforccedilos voltados para a induacutestria ou para o

entretenimento eacute que vai se desenvolvendo paulatinamente o conjunto de saberes que datildeo origem

ao campo da informaacutetica

26

Para Manovich (2001) que analisou as miacutedias baseadas em computador natildeo somente em

seus reflexos no campo artiacutestico mas tambeacutem em seu uso domeacutestico haacute uma vizinhanccedila entre

meios analoacutegicos e digitais O que se denominou ldquonovas miacutediasrdquo entre o fim dos anos 1990 e

comeccedilo dos 2000 eacute resultado da uniatildeo entre miacutedias tradicionais de imagem som e texto e o

desenvolvimento da computaccedilatildeo as trajetoacuterias de campos como o cinema e a fotografia se

desenvolvem em paralelo agraves de maacutequinas criadas para caacutelculos e operaccedilotildees automatizadas que

satildeo as ldquoavoacutesrdquo do computador domeacutestico isso ainda no seacuteculo XIX5 Todas podem ser entendidas

como dispositivos para registrar armazenar e distribuir informaccedilotildees em vaacuterios formatos

(MANOVICH 2001 p20) Para ambos os pesquisadores a cultura digital eacute resultado de

processos de automatizaccedilatildeo diversos ocorridos em anos anteriores

Enquanto Couchot mapeia no acircmbito artiacutestico as propostas e convenccedilotildees que aos poucos

vatildeo desenhando o surgimento das tecnologias do computador e seu emprego nas praacuteticas

artiacutesticas pontuando uma seacuterie de rupturas teacutecnicas e filosoacuteficas mas tambeacutem reconfiguraccedilotildees

conceituais e esteacuteticas Manovich demonstra de um ponto de vista bastante praacutetico que diversas

ferramentas simbologias e accedilotildees ligadas ao uso do computador satildeo herdadas de outras praacuteticas

culturais ndash as miacutedias cinematograacutefica fotograacutefica e impressa ndash e que ao mesmo tempo em que o

paradigma digital oferece um novo espaccedilo criativo por suas potencialidades especiacuteficas ele

promove uma negociaccedilatildeo com as formas culturais anteriores

23 PARADIGMA NUMEacuteRICO ESPECIFICIDADES

Computadores satildeo produto da informaacutetica ciecircncia da loacutegica e da matemaacutetica Os

dispositivos que antecedem os computadores na tarefa de realizar operaccedilotildees complexas satildeo as

calculadoras usadas primeiro em acircmbito militar e depois na induacutestria Jaacute os computadores com o

surgimento da internet tornam-se objetos corriqueiros para o uso domeacutestico Um traccedilo forte da

cultura digital eacute substituir procedimentos realizados com materiais por funccedilotildees descritas numa

determinada linguagem sem existecircncia fiacutesica

5 O autor daacute exemplos de estudos e aparatos criados para realizaccedilatildeo de caacutelculos no seacuteculo XIX aproximando taisexemplos dos objetivos que norteiam o desenvolvimento da informaacutetica e por consequecircncia a invenccedilatildeo doscomputadores Cf Manovich 2001 p18-26

27

O matemaacutetico von Neumann teve entatildeo a ideia de registrar na memoacuteria da calculadora oproacuteprio programa assim como outros dados a tratar na forma de instruccedilotildees codificadasNuacutemeros e letras substituiacuteam conexotildees e os cabos siacutembolos abstratos constituindo uma

espeacutecie de linguagem ndash o programa (software) ndash que substituiacuteam mateacuterias fiacutesicas equinquilhariasrsquo (hardware) Assim nasceu o computador moderno e com ele ainformaacutetica que podemos considerar globalmente como ciecircncia das linguagens deprogramaccedilatildeo (COUCHOT 2003 p98)

Quer dizer qualquer tarefa executada por um sistema de computador segue orientaccedilotildees

para interpretar dados que tecircm uma natureza comum Nesse sentido quando nos referimos ao

paradigma digital natildeo haacute diferenccedila entre a ldquosubstacircnciardquo da informaccedilatildeo Tanto faz se o output seraacute

uma imagem um texto um som porque as informaccedilotildees satildeo interpretadas em linguagem

matemaacutetica Isso significa que uma imagem um texto ou uma muacutesica sejam ldquocriados por

computador ou convertidos de miacutedias originalmente analoacutegicas eles se tornam um coacutedigo digital

representaccedilotildees numeacutericasrdquo (MANOVICH 2001 p27) A perspectiva eacute compartilhada por Peter

Krapp (2011 p16) ldquocomputadores natildeo precisam distinguir entre um poema um retrato um

arquivo de viacutedeo () sons imagens e textos desaparecem igualmente em estados binaacuterios e satildeo

apenas simulados na tela6rdquo

Tal caracteriacutestica faz com que associar articular miacutedias de natureza diferente seja algo

natildeo apenas mais faacutecil mas que integra a proacutepria loacutegica da cultura digital Natildeo que isso natildeo tenha

sido feito antes do surgimento das tecnologias informaacuteticas Eacute que as operaccedilotildees de criar reverter

accedilotildees modificar coisas em resumo a manipulaccedilatildeo de dados constitui traccedilo marcante dessa

cultura bem como uma tocircnica da sociedade que a faz surgir Nesse sentido o termo ldquonovas

miacutediasrdquo eacute praticamente redundante se as miacutedias digitais satildeo conjuntos de operaccedilotildees de software

em constante desenvolvimento toda miacutedia produzida assim eacute sempre nova (MANOVICH 2013

p156) podendo ser modificada sempre que atualizaccedilotildees surgirem

Levando essas questotildees ao campo do visual a esteacutetica digital eacute caracterizada pela

hibridizaccedilatildeo (SOULAGES 2010) viabilizada por essa capacidade de juntar coisas diferentes

tratando-as sob um mesmo coacutedigo Assim o digital possui uma caracteriacutestica multimiacutedia que

permite transitar as artes e iconografias de todos os tempos sintetizadas pela virtualidade dos

6 Traduccedilatildeo livre de ldquocomputers have no need to distinguish between a poema portrait a video file () sounds imagesand texts all disappear into binary states and are only simulated on screenrdquo

28

aparelhos tecnoloacutegicos que ao mesmo tempo em que conservam reinventam restauram e

misturam (PLAZA 1993 p86) Manovich (2013) utiliza o termo ldquodeep remixabilityrdquo para

referir-se a um niacutevel profundo de integraccedilatildeo de miacutedias diferentes operado pelo computador bem

como agrave capacidade do software de reproduzir caracteriacutesticas especiacuteficas dessas miacutedias7 O mesmo

autor discute essa questatildeo caracterizando as miacutedias computadorizadas por sua variabilidade ndash

condiccedilatildeo de serem abertas agrave modificaccedilatildeo E acrescenta

(hellip) todas as maacutequinas para sintetizar miacutedias eletrocircnicas gravaccedilatildeo transmissatildeo erecepccedilatildeo incluem controles para modificaccedilatildeo do sinal Como resultado um sinaleletrocircnico natildeo tem uma identidade singular ndash um estado particular qualitativamentediferente de todos os outros estados possiacuteveis (hellip) Ao contraacuterio de um objeto materialo sinal eletrocircnico eacute essencialmente mutaacutevel (MANOVICH 2001 p132-133)

Essa compreensatildeo pode ser estendida agraves miacutedias digitais que por sua estrutura permitem

que alteraccedilotildees de toda sorte sejam praticadas com mais facilidade constituindo-se de elementos

unidos mas que conservam sua independecircncia enquanto partes isoladas Os pixels estatildeo para

imagens assim como caracteres estatildeo para textos pois que podem ser localizados e alterados em

sua matriz de valores numeacutericos tornando a imagem uma metamorfose que se atualiza (quando a

vemos) mas que tambeacutem poderia ser algo diferente conforme o potencial de caacutelculo do

computador (SANTAELLA apud VALLE 2012 p123) Quer dizer a partir de um mesmo

elemento no paradigma digital podemos criar coisas diferentes Uma mesma imagem pode se

apresentar visualmente diversa ldquo() podemos mudar seu contraste e cor desfocaacute-la ou tornaacute-la

mais niacutetida transformaacute-la em uma forma em 3D usar seus valores para controlar o som e assim

por dianterdquo (MANOVICH 2001 p133) Soulages (2007 p83) indica que o digital estaacute aberto a

uma exploraccedilatildeo praacutetica e esteacutetica bem maior e que se distingue por uma nova forma de fazer

distribuir e comunicar

A automaccedilatildeo dos processos tambeacutem marca de maneira importante a cultura digital jaacute que

torna miacutenimo o tempo decorrido entre o comando de uma accedilatildeo e seu resultado poreacutem ela natildeo eacute

inaugurada pelas miacutedias digitais mas potencializada por elas Num exemplo simples a condiccedilatildeo

7 O mesmo autor fala sobre uma ldquoesteacutetica do remixrdquo que seria a base conceitual de muitas obras contemporacircneas quese estruturam a partir de elementos de diversos meios (e assim diferentes em seus estilos texturas visuais modos derepresentaccedilatildeo) e tambeacutem de uma ldquoesteacutetica visual hiacutebridardquo acionada na interrelaccedilatildeo entre diversos coacutedigos visuaisCf Manovich 2013 p243-277

29

de acessar a imagem assim que produzida eacute essencial para cacircmeras dos mais diversos gadgets jaacute

que muitas vezes o fazer dessas imagens estaacute orientado para seu compartilhamento Nas cacircmeras

DSLR8 a tela de LCD permite conferir a foto apoacutes sua produccedilatildeo

No que se refere agrave imagem em especial eacute necessaacuterio compreender os mecanismos dos

dispositivos que operam mediante a superficialidade (FLUSSER 2008) pois estamos nos

relacionando com imagens que satildeo conjuntos de dados binaacuterios Satildeo informaccedilotildees que se

organizam em algo que possamos reconhecer como uma imagem mas do ponto de vista de sua

ldquosubstacircnciardquo esses dados satildeo os mesmos de qualquer sistema informaacutetico

24 SOBRE A IMAGEM

241 Virtualidade x materialidade

As imagens digitais filhas do computador satildeo formadas por pixels unidades virtuais

Algumas das reflexotildees a esse respeito enfatizaram bastante a quebra de uma ligaccedilatildeo entre objeto

imagem e sujeito tomando a imagem digital como essencialmente imaterial Ou ainda como ldquoum

acontecimentordquo sujeito ao movimento de aparecer e desaparecer nas telas dependente de um

suporte material (PLAZA 1993)

Presentes em celulares tablets notebooks e cacircmeras atraveacutes de telas por onde noacutes as

acessamos repassamos modificamos Essas imagens satildeo dependentes de um aparato visualizador

que integra a estrutura do sistema ldquoacoplada ao computador a tela eacute a principal forma de acesso

agrave informaccedilatildeo imagens estaacuteticas ou moacuteveis ()rdquo (MANOVICH 2001 p94) Soulages (2007

p86) diz que passamos do mundo real para o mundo da tela jaacute que vemos a imagem no proacuteprio

aparelho o que reforccedila a concepccedilatildeo da fotografia natildeo como imagem da realidade mas como

imagem da imagem

Para esses teoacutericos a necessidade de uma interface de visualizaccedilatildeo pocircs em xeque uma

diferenccedila importante entre os paradigmas analoacutegico e digital a passagem de uma imagem dotada

de materialidade a outra que sequer teria existecircncia fiacutesica A despeito de hoje jaacute estarmos

acostumados com essa condiccedilatildeo essa mudanccedila tem implicaccedilotildees natildeo soacute teacutecnicas mas simboacutelicas

8 Sigla em inglecircs para Digital Single Lens Reflex cacircmeras reflex digitais de objetiva fixa

30

No paradigma digital a imagem existe menos sob a rubrica da durabilidade de um suporte e

sobrevive na fugacidade de uma memoacuteria (PARENTE1993 p27) Eacute efecircmera

As imagens analoacutegicas submetem-se a um procedimento evidente de etapas materiais ndash

revelar ampliar copiar ndash com resultado em um suporte que se tem em matildeos Entre o

ldquoirreversiacutevelrdquo da captura e o ldquoinacabaacutevelrdquo (SOULAGES 2010) da reproduccedilatildeo estamos nos

domiacutenios da quiacutemica e da fiacutesica de uma imagem que adquire um corpo Algo para colar rasgar

cortar queimar ou simplesmente guardar Haacutebitos nem tatildeo corriqueiros assim Valle (2012 p41)

considera uma das grandes diferenccedilas entre os sistemas analoacutegico e digital a passagem de uma

matriz fotograacutefica que era um objeto (o negativo) para outra que eacute formada por coacutedigos inscritos

num dispositivo de memoacuteria o que aumenta a escala do ldquoinacabaacutevelrdquo

Paul Virillo (1993 p129) entende que as imagens virtuais e fotoquiacutemicas se distanciam

tambeacutem num aspecto temporal porque a objetivaccedilatildeo da imagem natildeo se coloca em termos de um

ldquosuporte-superfiacutecierdquo mas sim na relaccedilatildeo que estabelecemos com a imagem num tempo de

exposiccedilatildeo em que podemos vecirc-la e depois jaacute natildeo podemos mais Satildeo imagens mais dadas agrave

circulaccedilatildeo fluidas e impalpaacuteveis Ele acrescenta ainda que enquanto as imagens da fotografia e

do cinema tradicionais demarcam a presenccedila de um tempo diferido um passado inscrito nas

placas e peliacuteculas as imagens digitais tecircm um estatuto acidental que se transfere de um agora

(presente) figurando como presenccedila em detrimento de um representar de um recuperar (Idem

p132) Van Dijck (2007) enxerga na imagem digital uma funccedilatildeo comunicativa um tipo de recado

visual instantacircneo capaz de ldquotocarrdquo algueacutem criando uma conexatildeo importando menos o que

exatamente a fotografia mostra (ZYLINSKA online 2017)

Saiacutemos do material para o virtual da foto em postal aacutelbum porta-retrato da coacutepia em

papel que enfeita a parede da sala de casa abandonamos as coisas guardadas como lembranccedilas

recordaccedilotildees de momentos importantes ritos de passagem Numa trajetoacuteria ainda meio confusa e

pontuada de perdas de arquivos esquecimento e dificuldades em lidar com uma quantidade cada

vez maior de dados saiacutemos da conservaccedilatildeo rumo ao compartilhamento Para Batchen (2002

p177) a digitalizaccedilatildeo aponta uma condiccedilatildeo da fotografia que deixa de ser uma mateacuteria inerte

impressatildeo bidimensional da realidade em si De uma exibiccedilatildeo instaacutevel cuja permanecircncia eacute

fragilizada pela loacutegica gerenciadora do sistema que eacute ao mesmo tempo produtor e consumidor

dessa imagem Para Soulages (2007 p96) eacute uma loacutegica de distribuiccedilatildeo em rede que implica uma

31

circulaccedilatildeo rizomaacutetica que natildeo corresponde a uma contemplaccedilatildeo solitaacuteria A partir de uma

abordagem mais social Fontcuberta (2016 p38) ressalta que o mais importante natildeo eacute que a

imagem tenha-se tornado imaterial mas sua transmissatildeo e circulaccedilatildeo vertiginosas adaptadas agraves

condiccedilotildees de nossas vidas online

No digital dispomos de imagens fotograacuteficas escaneadas ou de siacutentese (VALLE 2012)

feitas a partir da interpretaccedilatildeo de dados que nem se pode ver Na verdade interagimos com eles

atraveacutes de comandos que resultam em accedilotildees num aparato bem mais complexo que as cacircmeras

analoacutegicas Assim como outros dispositivos criados pela numerizaccedilatildeo as cacircmeras digitais satildeo

computadores que recebem um sinal interpretam organizam os dados e geram uma imagem

Tudo no mesmo aparelho Operaccedilotildees que nos levam aos domiacutenios da matemaacutetica e da

informaacutetica onde a interaccedilatildeo com superfiacutecies (telas) a velocidade dos resultados e o grau

crescente de automatizaccedilatildeo escondem ainda mais os processos internos Se a cacircmera analoacutegica jaacute

eacute ldquocaixa pretardquo fundadora de uma relaccedilatildeo entre sujeito e aparelho (FLUSSER 2011) na era

digital permanece a necessidade de compreender o que acontece no sistema para sair de um uso

meramente instrumental da tecnologia9

Se pensada para aleacutem de um objeto singularizado (como um artefato em si) a imagem

digital existe num sistema que inclui o proacuteprio dispositivo Seja este um tablet um smartphone

ou uma cacircmera que se parece com um modelo DSL convencional a imagem existe mediada pelo

equipamento o que afasta a afirmaccedilatildeo de que ela seria completamente imaterial Mesmos os

dados que a formam precisam ser processados por algum sistema que possui sim uma estrutura

fiacutesica especiacutefica Isso nos permite considerar modos outros de existecircncia das imagens

contemporacircneas na modalidade de evento algo processual que se constroacutei na relaccedilatildeo com o

sujeito espectador (em detrimento de um objeto concreto finalizado e supostamente inerte)

Maciel (2009) aponta essa situaccedilatildeo recente colocada pelas tecnologias digitais que potildee o

puacuteblico em interaccedilatildeo com o maquinaacuterio produtor de imagens em obras de formatos variados que

incluem instalaccedilotildees multimiacutedia trabalhos em cinema expandido videoarte hibridizaccedilotildees entre

cinema fotografia e performance no intuito de tornar a imagem uma abertura

fundamentalmente participativa Ela insiste que o caraacuteter experimental sempre esteve presente no

9 Conforme Joanna Zylinska (2017a p186) a ideia de caixa preta aplica-se agraves tecnologias fotograacuteficas analoacutegicas edigitais Essa percepccedilatildeo eacute compartilhada por Piper-Wright (2018)

32

campo da imagem em movimento (MACIEL 2009 p13) e mesmo a influecircncia muacutetua entre

cinema fotografia literatura e pintura natildeo sendo exatamente nova de fato algumas condiccedilotildees de

realizaccedilatildeo de obras atuais satildeo dependentes dos sistemas informaacuteticos de geraccedilatildeo montagem

transmissatildeo compartilhamento e da accedilatildeo dos algoritmos aplicados agrave imagem

Um trabalho interessante que dialoga com essas ideias eacute o filme interativo The

Wilderness Downtown10 (figuras 1-6) realizado por Chris Milk11 para a muacutesica We used to wait

da banda canadense Arcade Fire A letra fala de haacutebitos nada corriqueiros para os indiviacuteduos

nascidos no seacuteculo XXI como escrever agrave matildeo e enviarreceber cartas Um tanto melancoacutelica a

canccedilatildeo confronta as lembranccedilas de uma eacutepoca em que a comunicaccedilatildeo demandava um tempo

entre o envio de uma mensagem escrita e sua resposta e a realidade de uma eacutepoca em que o

tempo aparentemente passa mais raacutepido Na primeira estrofe ouvimos

Eu costumava escrever

Eu costumava escrever cartas

Eu costumava assinar meu nome

Eu costumava dormir agrave noite

Antes das luzes piscantes

Se enraizarem fundo no meu ceacuterebro

Mas quando nos conhecemos

Quando nos conhecemos

Os tempos jaacute eram outros ()12

Com base no tom nostaacutelgico da letra a produccedilatildeo estrutura-se a partir de quatro elementos

principais imagens capturadas a partir do Google Street View e Google Maps13 live footage de

10 A experiecircncia do filme pode ser feita no site httpwwwthewildernessdowntowncom Acesso em 16072019

11 Chris Milk tem em seu curriacuteculo aleacutem de videoclipes filmes publicitaacuterios e trabalhos artiacutesticos Cf MEacuteDOLA AS L CALDAS C H S Regimes de interaccedilatildeo no videoclipe a experiecircncia interativa de The Wilderness DowntownGalaxia (Satildeo Paulo Online) n 30 p35-47 dez 2015 Disponiacutevel em httpwwwscielobrpdfgaln301982-2553-gal-30-0035pdf Acesso em 200819

12 Traduccedilatildeo livre para We used to wait (Arcade Fire 2010) Composiccedilatildeo de Edwin Butler William Butler RegineChassagne Richard Parry Tim Kingsbury e Jeremy Gara

13 O projeto Wilderness Downtown foi desenvolvido em parceria com o Google Data Arts

33

um ator que aparece correndo em diferentes ambientes efeitos graacuteficos14 que remetem a artefatos

desse passado recente evocado atraveacutes de miacutedias fiacutesicas como bilhetes e cartotildees-postais e o

proacuteprio software que processa os materiais anteriores

The Wilderness Downtown encontra-se disponiacutevel num site desenvolvido especificamente

para a uma experiecircncia audiovisual online e ao acessar a home (figura 1) o espectador eacute

convidado a inserir o nome da cidade onde passou sua infacircncia Os dados satildeo coletados e geram

as imagens capturadas com a ajuda do Google utilizadas numa narrativa apresentada a partir de

muacuteltiplas janelas que vistas simultaneamente sugerem uma montagem paralela bastante

particular

Figura 1 - Home do projeto The Wilderness Downtown15

Fonte Reproduccedilatildeo site

14 Manovich (2013) define como motion graphics os efeitos utilizados em cinema e televisatildeo de menus dinacircmicoscaracteres artes e cartelas (bastante utilizadas em telejornalismo e documentaacuterios) graacuteficos para conteuacutedo dedispositivos moacuteveis e sequecircncias que possuem o recurso do movimento e satildeo sempre parte de um conjunto maisamplo (um filme completo um programa de televisatildeo)

15 httpwwwthewildernessdowntowncom

34

Figura 2 - Cenas iniciais de The Wilderness Downtown

Figura 2a - Cenas iniciais de The Wilderness Downtown

Fonte Reproduccedilatildeo site

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Figura 3 - Montagem com live footage e fotografias capturadas com auxiacutelio do Google Street View e Google

Maps

Figura 3a - Montagem com live footage e fotografias capturadas com auxiacutelio do Google Street View e

Google Maps

Fonte Reproduccedilatildeo site

O efeito de intimidade criado a partir da identificaccedilatildeo de lugares informados pelo usuaacuterio

eacute curioso (eacute possiacutevel reconhecer ruas e pontos comerciais) Combinado agraves cenas do ator que corre

pela cidade o filme deixa uma estranha sensaccedilatildeo de que nunca se alcanccedila o lugar ao qual temos

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certeza de ter pertencido um dia mas ao mesmo tempo a experiecircncia proposta eacute baseada nessa

identificaccedilatildeo pessoal (figuras 2-3) Aqui a obra natildeo determina completa e previamente as

condiccedilotildees de acesso elas satildeo ativadas na instacircncia de participaccedilatildeo o que significa que o

espectador eacute que encontra um lugar para si na imagem sem o qual ela natildeo ganha sentido

(PARENTE 2009 p175) Jaacute passado o tempo em que se viveu naqueles espaccedilos eles agora

servem de mote para narrativas outras elaboradas a partir da potecircncia maquiacutenica do computador

Segundo Aaron Koblin da equipe do Google a intenccedilatildeo era criar um videoclipe especificamente

para web numa dinacircmica capaz de incluir a histoacuteria para cada usuaacuterio individualmente A

resposta foi atraveacutes das fotografias armazenadas no banco de dados do Google

Podemos usar informaccedilotildees de bancos de dados ter janelas movendo-se na tela algo quenatildeo estaria limitado aos formatos de saiacuteda em 43 ou 169 Entatildeo fizemos o viacutedeo serintegrado a cada pessoa em particular com base no endereccedilo onde a pessoa cresceu Eusamos material do Google Maps e Street View como um tecido nas memoacuterias pessoaisda experiecircncia Eacute possiacutevel ter uma noccedilatildeo dessa histoacuteria pessoal na medida em que vocecircinterage com o viacutedeo escrevendo uma carta ou fazendo um desenho Vocecirc contribui como sistema ao vivo enquanto interage com o viacutedeo () Muitas pessoas participaramincluindo seus cartotildees postais e desenhos Literalmente algumas pessoas choram ao vermemoacuterias de suas vidas pessoais sendo tecidas junto com a histoacuteria (KOBLIN 2011)16

Em dado momento efeitos graacuteficos inserem uma revoada de paacutessaros sobre um fundo de

imagens gravadas previamente (figura 4 e 4a) Os paacutessaros ndash que reagem ao movimento do

mouse do computador ndash em seguida ldquoentramrdquo nas imagens coletadas do Google correspondentes

agrave cidade informada criando uma precaacuteria linearidade entre as accedilotildees

16 Depoimento para o viacutedeo The Wilderness Downtown behind the scenes Disponiacutevel emhttpswwwyoutubecomwatchv=EKg2HJ_qvKA Acesso em 210819

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Figura 4 - Paacutessaros invadindo a paisagem

Figura 4a - Paacutessaros invadindo a paisagem

Fonte Reproduccedilatildeo site

Em seguida uma janela invade a tela principal (aleacutem das demais jaacute abertas) solicitando

que se ldquoescreva um postal para o seu eu mais jovemrdquo na tentativa de forjar um diaacutelogo entre o

ldquoeu virtualrdquo do presente e um suposto eu localizado no passado (figura 5 e 5a) A tela emula a

textura de um papel e permite a escrita por meio da digitaccedilatildeo ou utilizando o mouse Enquanto se

ldquoescreverdquo o recado trecircs pequenas telas se adicionam agraves demais mostrando uma engrenagem que

natildeo sabemos exatamente a que tipo de maquinaacuterio pertence mas que se movimenta

freneticamente agrave medida que clicamos com o mouse no espaccedilo do cartatildeo postal como se a

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velocidade das peccedilas da maacutequina acelerasse o envio do texto receacutem escrito A revoada de

paacutessaros que apareceu no comeccedilo junta-se ao cartatildeo postal arrastando a mensagem ali contida

para os lugares que voltam a ser o foco de nossa atenccedilatildeo principal

Figura 5 - Janelas do postal em The Wilderness Downtown

Figura 5a - Janelas do postal em The Wilderness Downtown

Fonte Reproduccedilatildeo site

O filme propotildee uma experiecircncia participativa cuja viabilidade estaacute estreitamente

relacionada agraves tecnologias digitais ao acesso a banco de dados conectados em rede aos recursos

de softwares que permitem gerar processar e transmitir conteuacutedos inserir elementos graacuteficos

transiccedilotildees etc mas evoca tambeacutem miacutedias de comunicaccedilatildeo do ldquopassadordquo (como o cartatildeo-postal e

39

sua modalidade escrita) Articulando as imagens apresentadas e a memoacuteria afetiva do espectador

acionando de maneira conjunta imagens fixas e em movimento num jogo que atravessa as

linguagens do videoclipe e da fotografia utilizando recursos que lembram ainda a interaccedilatildeo

tiacutepica dos games de estrateacutegia em que cada accedilatildeo eacute o ponto de entrada que desencadeia um

resultado especiacutefico

Segundo Meacutedola e Caldas (2015 p38) os trabalhos de Chris Milk satildeo inovadores e

experimentais na medida em que o realizador faz um investimento na interatividade buscando

desenvolver o formato videoclipe no ciberespaccedilo o que constitui para os pesquisadores um

avanccedilo em relaccedilatildeo aos recursos de linguagem utilizados nas miacutedias analoacutegicas A abordagem

desenvolvida por esses autores compreende as tecnologias de produccedilatildeo e fruiccedilatildeo do videoclipe

numa linha evolutiva em que os recursos informaacuteticos ocupariam o estaacutegio mais avanccedilado Aqui

numa anaacutelise diferente natildeo buscaremos comparar qualitativamente os recursos disponiacuteveis nas

diferentes miacutedias para a criaccedilatildeo artiacutestica mas sim compreender a singularidade da produccedilatildeo de

Chris Milk exatamente por colocar lado a lado efeitos de sentido evocados a partir de elementos

pertencentes a miacutedias antigas e recentes aproveitando a capacidade multimiacutedia do computador

para criar uma relaccedilatildeo de complementaridade de ludicidade entre essas miacutedias (e natildeo de

superaccedilatildeo)

De volta ao viacutedeo se mais agrave frente a letra da muacutesica diz ldquoagora nossas vidas estatildeo

mudando raacutepido espero que reste algo purordquo o romantismo associado agraves antigas formas de

relacionamento e comunicaccedilatildeo mostra-se apenas um ideal considerando que aqui tudo se mistura

e os efeitos de subjetivaccedilatildeo satildeo embaralhados natildeo havendo espaccedilo para falarmos em pureza nem

dos formatos nem das miacutedias nem tatildeo pouco das emoccedilotildees produzidas pela experiecircncia com tais

artefatos

40

Figura 6 - Sequecircncia de imagens - A maacutequina assume definitivamente o comando da experiecircncia e a

natureza invade todos os espaccedilos

41

Fonte Reproduccedilatildeo site

Agrave medida que a muacutesica avanccedila e com ela a conclusatildeo do clipe as imagens comeccedilam a se

sobrepor (sendo ainda exibidas em diversas janelas simultaneamente) e num ritmo acelerado as

accedilotildees se conectam por meio de um efeito que faz nascerem aacutervores em todos os ambientes

mostrados O personagem que finalmente para de correr gira em torno de si mesmo como se

tentasse se localizar Seu movimento conecta-se por sua vez com movimentos aplicados agraves

imagens dos lugares num efeito que promove o encontro entre o olhar dele (do personagem) e o

da cacircmera A natureza selvagem do tiacutetulo irrompe descontrolada nos espaccedilos urbanos por forccedila

42

do proacuteprio sistema na narrativa construiacuteda a partir das informaccedilotildees pertencentes agrave subjetividade

de quem laacute no iniacutecio inseriu o nome de sua cidade As aacutervores se juntam ao homem que (de

novo) corre agora num espaccedilo de topologia asseacuteptica e desconhecida para depois se desfazerem

junto com ele em manchas pretas sobre um fundo branco (figura 6) Note-se que essa natureza eacute

artificial de aacutervores negras e sintetizadas no computador A vegetaccedilatildeo se espalha como um viacuterus

encobrindo a paisagem da cidade que se escolheu recordar

Ao mesmo tempo que propotildee uma experiecircncia de co-criaccedilatildeo (sendo o input do usuaacuterio a

instacircncia de participaccedilatildeo que daacute iniacutecio agrave narrativa) essa obra tambeacutem estaacute agrave mercecirc dos

movimentos decisoacuterios do proacuteprio dispositivo No final somos informados da possibilidade de

reproduzir novamente o filme compartilhaacute-lo e ainda de enviar o postal escrito Nessa uacuteltima

opccedilatildeo o postal pode ter 3 destinos 1) servir de elemento compositivo dos cenaacuterios nas turnecircs da

banda Arcade Fire17 2) chegar a outro usuaacuterio que participou do The Wilderness Downtown 3)

cair na Wilderness Machine (figura 7) uma maacutequina criada pelo diretor onde a mensagem eacute

impressa e enviada de volta agrave pessoa que escreveu como uma semente para ser plantada

(MEacuteDOLA amp CALDAS 2015 p43) Ao decidir enviar o postal perde-se o controle do seu

destino

17 Nos shows do Arcade Fire durante a execuccedilatildeo da muacutesica We used to wait satildeo projetadas num telatildeo no fundo dopalco vaacuterias imagens com detalhes de cartotildees postais e cartas conforme vemos emhttpswwwyoutubecomwatchv=2Im6avxhIRM Acesso em 200819

43

Figura 7 - The Wilderness Machine (Chris Milk 2010)18

FonteReproduccedilatildeo site

Como eacute sabido o envio de qualquer informaccedilatildeo e a identificaccedilatildeo do remetente e do

destinataacuterio satildeo questotildees basilares para o campo da comunicaccedilatildeo independente da miacutedia

utilizada Do postal ao email dos chats em aplicativos de mensagens instantacircneas a incerteza de

para onde vai a mensagem envolve problemas de seguranccedila e privacidade gerando equiacutevocos

ansiedade por vezes situaccedilotildees vexatoacuterias ou de ordem legal A produccedilatildeo de Chris Milk

desconsidera essas questotildees quando deixa em aberto o destino final do cartatildeo postal redigido e

constitui-se como experiecircncia hiacutebrida tecida por meio de estruturas e elementos que remetem

tanto a meios fiacutesicos quanto virtuais

Caso o destino do postal seja a Wilderness Machine o sistema informa

18 No site de Chris Milk eacute possiacutevel ver a maacutequina e seu funcionamento Ver httpmilkcowilderness-machineAcesso em 200819

44

Seu postal foi feito atraveacutes de um sinal analoacutegico vocecirc Agora seu postal eacute virtual AWilderness Machine o faraacute analoacutegico de novo Procure por ele nas turnecircs da banda Setiver sorte para encontrar o postal de outra pessoa plante-o Uma aacutervore cresceraacute19

Eacute aiacute que o dispositivo assume dando continuidade agrave experiecircncia iniciada no site jaacute que

Wilderness Machine eacute um equipamento desenvolvido para recriar fisicamente os postais

redigidos virtualmente O fato de ela tornar palpaacutevel o recado escrito durante a interaccedilatildeo online

vem confirmar nossa leitura a respeito de como a produccedilatildeo de Milk destaca-se pela modulaccedilatildeo

entre mecanismos analoacutegicos e informaacuteticos Conforme indica o site do diretor

The Wilderness Machine eacute uma extensatildeo fiacutesica da obra online The WildernessDowntown A maacutequina gera cartotildees postais dos textos escritos agrave matildeo por espectadoresdo filme interativo Cada postal eacute um recado pessoal do usuaacuterio para si mesmo quandojovem A maacutequina utiliza um braccedilo de succcedilatildeo para transferir um cartatildeo postal em brancopara um poacutedio de metal onde uma caneta mecacircnica eacute programada para reproduzir ostraccedilos da caneta original () Cada postal conteacutem um coacutedigo uacutenico que permite orecipiente aleatoacuterio retornar ao website e escrever de volta ao emissor original um postaldigital Um tipo de versatildeo modernizada do conceito da mensagem na garrafa Os postaissatildeo impressos em papel com sementes compostaacuteveis que quando plantados viramaacutervores tentando recriar o fim da obra digital no mundo real () The WildernessMachine estaacute agora programada para twittar um postal por dia20 (MILK online 2010)

Eacute bastante curiosa a integraccedilatildeo de experiecircncias no site onde o videoclipe eacute criado a

transformaccedilatildeo das mensagens em postais pela maacutequina e a distribuiccedilatildeo aleatoacuteria delas nos shows

da banda ou outros locais onde o equipamento venha a ser exposto e por fim via Twitter Na

elaboraccedilatildeo de cada uma dessas etapas que compotildeem a experiecircncia a participaccedilatildeo do usuaacuterio e os

19 Traduccedilatildeo livre de ldquoYour postcard was made by an analog signal you Currently your postcard is digital TheWilderness Machine makes it analog again Look for it on tour with the band If yoursquore lucky enough to getsomeonersquos postcard form it plant it A tree will grow out of itrdquo20Traduccedilatildeo livre de ldquoThe Wilderness Machine is the physical extension of the online piece The WildernessDowntown The machine generates postcards from the handwritten notes created by viewers of the interactive filmEach postcard is a person writing to their younger selves The machine uses a suction arm to transfer a blankpostcard to a metal podium where a mechanical pen is programmed to reproduce the original pen strokes Then aclaw arm tosses the postcard out of a slot in its Plexiglas casing Each postcard contains a unique code that allowsthe random recipient to return to the website and write a digital postcard back to the original sender Sort of amodernized version of the message in a bottle concept The postcards are printed on compostable seeded paperwhich when planted will grow into birch trees attempting to recreate the end of the digital piece in the real world The machine has appeared at Arcade Fire concerts the Wired Magazine pop-up space in NYC and the 2011Sundance Film Festivalrsquos New Frontier exhibit The Wilderness Machine is now programmed to tweet one postcardper dayrdquo

45

processos governados pelo software pelo dispositivo da Wilderness Machine se imbricam e se

complementam e o percurso da narrativa e da mensagem sujeitam-se a um movimento aleatoacuterio

que acusa a presenccedila de certo niacutevel de descontrole pois natildeo se sabe que destino a maacutequina daraacute

ao postal redigido Na verdade a participaccedilatildeo em The Wilderness Downtown sugere aceitar que

natildeo sabemos como os dados inseridos seratildeo utilizados pelo computador como vatildeo se comportar

em termos da construccedilatildeo de uma estrutura de significados Isso porque eacute caracteriacutestico das

narrativas criadas com e para as tecnologias digitais uma condiccedilatildeo de abertura que as torna um

campo de possibilidades orientado por um programa em uma situaccedilatildeo em que temos de um lado

um sujeito interagindo atraveacutes de dados inseridos numa determinada plataforma e de outro um

sistema que desenvolve situaccedilotildees narrativas a partir de um diaacutelogo com o primeiro (MACHADO

2009 p71) A relaccedilatildeo estabelecida nessa situaccedilatildeo eacute de jogabilidade que ora solicita a

participaccedilatildeo ora conduz a histoacuteria sob autonomia do programa

A possibilidade de evocar meios fiacutesicos utilizando-os como base de experiecircncias

dependentes de uma inteligecircncia numeacuterica eacute reconhecida como atributo tiacutepico do software nas

dimensotildees da simulaccedilatildeo e da hibridizaccedilatildeo (MANOVICH 2013) como paradigmas que

atravessam todas as referecircncias utilizadas em The Wilderness Downtown As imagens do Google

Street View satildeo fotografias que adquirem movimento ndash ldquohiacutebrido de fotografia e interfaces de

navegaccedilatildeo espacial21rdquo (MANOVICH 2013 p185) ndash efeitos criados no computador misturam-se

a live footage cartotildees-postais satildeo recriados como mensagens virtuais num formato novo e a

montagem (parte da linguagem cinematograacutefica cujo proacuteprio nome remonta ao trabalho manual

de colar partes da peliacutecula) eacute lembrada na estrutura de multitelas e elementos graacuteficos associados

durante toda a duraccedilatildeo do filme A todo tempo vemos a troca entre miacutedias fiacutesicas e o sistema do

computador que as recria revisita ou modifica sem contudo permanecerem idecircnticas aos

originais A imagem fotograacutefica reveste-se de atributos novos ndash num ldquoefeito de cruzamentordquo

(MANOVICH 2013 p272) no qual teacutecnicas de miacutedias particulares satildeo aplicadas a outras num

processo de assimilaccedilotildees ndash sendo capturada da perspectiva do dispositivo (sem remeter

necessariamente ao olhar de um sujeito)

21 Para Fontcuberta (2016) os registros do Google Street View satildeo processados para causar uma ilusatildeo oacutetica decontinuidade bastante realista na qual o usuaacuterio experimenta a simulaccedilatildeo de um entorno real atraveacutes de um modelointerativo em 3D Para mais ver Fontcuberta Joan Por um manifesto postfotograacutefico In La furia de las imaacutegensBarcelona Galaxia Gutenberg 2016 p35-52

46

Tais questotildees nos levam a considerar uma presenccedila material do ambiente digital atribuiacuteda

agrave maneira de funcionamento do computador Se miacutedias fiacutesicas mecacircnicas e eletrocircnicas satildeo

ldquohardwarerdquo cujas inscriccedilotildees em materiais distintos (papel peliacutecula madeira fita magneacutetica) satildeo

responsaacuteveis pelo aspecto visual pelo ldquolookrdquo atribuiacutedo a cada tecnologia o software ao simular

as teacutecnicas desses meios acaba reproduzindo-as acumulando tambeacutem um certo repertoacuterio

Assim isso nos permite falar metaforicamente de uma materialidade do software

O software contemporacircneo conteacutem seus proacuteprios ldquomateriaisrdquo estruturas de dadosutilizados para representar imagens estaacuteticas e em movimentos formas 3D volumes eespaccedilos textos composiccedilotildees sonoras designs impressos paacuteginas da web e outrosldquocultural datardquo Essas estruturas natildeo correspondem a materiais fiacutesicos numa escala realEm vez disso um conjunto de materiais reais eacute codificado numa estrutura uacutenica ndash porexemplo imagens em diferentes materiais como papel tela filme fotograacutefico evideotape se tornam uma estrutura uacutenica de informaccedilotildees Essa junccedilatildeo de materiaisfiacutesicos em uma soacute estrutura de dados eacute umas das condiccedilotildees que permite a hibridizaccedilatildeode tecnologias22 (MANOVICH 2013 p204)

Esse intercacircmbio nos leva de volta agrave contenda a respeito de uma suposta cisatildeo entre

tecnologias analoacutegicas e digitais separadas por suas respectivas ldquomaterialidaderdquo e

ldquoimaterialidaderdquo e pode ser uma saiacuteda para encerrar esse debate Em outro momento de reflexatildeo

Manovich (2013) propotildee que encaremos separadamente o artefato material e as tecnologias

empregadas para produzi-lo (por exemplo fotografias e negativos de filme seriam materiais

enquanto cacircmeras projetores moviolas seriam as tecnologias) Ele diz que quando se trata do

software os materiais transformam-se nas estruturas de dados e as ferramentas fiacutesicas mecacircnicas

e eletrocircnicas (a tecnologia ou o aparato) satildeo transformados nas ferramentas do software que

operam sobre as estruturas de dados Eacute como se os aparatos com sistemas informatizados

ldquoaprendessemrdquo as teacutecnicas de meios analoacutegicos para introduzi-las agrave sua proacutepria maneira nos

projetos desenvolvidos no ambiente virtual fazendo desses referenciais e das ferramentas que os

22 Traduccedilatildeo livre de ldquoContemporary media software contains its own ldquomaterialsrdquo data structures used to representstill and moving images 3D forms volumes and spaces texts sound compositions print designs web pages andother ldquocultural datardquo These data structures do not correspond to physical materials in a 11 fashion Instead anumber of physical materials are mapped onto a single structuremdashfor instance different imaging materials such aspapercanvas photographic film and videotape become a single data structure (ie a bitmapped image) This manyto one mapping from physical materials to data structures is one of the conditions which enables hybridization ofmedia techniquesrdquo

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conduzem partes igualmente importantes de um mesmo espaccedilo criativo integrado Assim as

miacutedias digitais tecircm uma natureza dual que implica na mesma medida simulaccedilatildeo e criaccedilatildeo

O que o autor denomina ldquoestrutura de dadosrdquo satildeo os formatos de arquivos que utilizamos

no computador ndash HTML XML MP3 MOV JPEG TIFF RAW ndash enquanto as ldquoferramentasrdquo ou

ldquocomandosrdquo satildeo os algoritmos com os quais se trabalham esses formatos Estes uacuteltimos satildeo parte

dessa materialidade porque eles determinam a esteacutetica digital aleacutem do fato de que o formato de

um arquivo possui um registro uma ldquoinscriccedilatildeordquo gozando tambeacutem de certa estabilidade em

comparaccedilatildeo a outros tipos de dados que circulam num sistema computadorizado (MANOVICH

2013 p215-216) A estabilidade viabiliza alteraccedilotildees responsaacuteveis por diferentes esteacuteticas ndash

aplicaccedilatildeo de filtros montagem distorccedilatildeo entre outras ndash o que eacute especialmente importante

quando pensamos no universo das imagens digitais

De volta agraves teorizaccedilotildees a respeito da imagem haacute teoacutericos que tentam compreendecirc-la para

aleacutem de uma singularidade movimento que tambeacutem integra preocupaccedilotildees mais recentes sobre o

tema A polonesa Joanna Zylinska (online 2017) acredita que a imagem no ambiente digital natildeo

deve ser tomada como objeto uacutenico mas como um fluxo de dados que natildeo existe sozinha

necessitando de uma infraestrutura tecnoloacutegica que inclui telas celulares cabos impressoras Eacute

um entendimento mais abrangente da imagem que ultrapassa a noccedilatildeo de artefato individual

considerando de forma mais ampla todo o aparato necessaacuterio para sua emergecircncia (fazendo

retornar a criacutetica a uma inerente imaterialidade do digital) e compreendendo que tal estrutura eacute

parte tambeacutem das esteacuteticas das imagens digitais

Tambeacutem podemos questionar a ideia de que na fotografia analoacutegica a materialidade da

coacutepia eacute sinocircnimo de um certo estaacutegio de finalizaccedilatildeo ou ldquomateacuteria inerterdquo (BATCHEN 2002) Na

medida em que satildeo cada vez mais recorrentes os empregos de imagens fiacutesicas deslocadas de seus

contextos originais alteradas e reutilizadas em obras variadas haacute todo um universo de produccedilotildees

em fotomontagem ou de trabalhos recentes de recuperaccedilatildeo de arquivos ou ainda imagens

privadas para uso artiacutestico contrariando a ideia de que imagens fotoquiacutemicas encerram seu ciclo

semioacutetico apoacutes o clique (ou depois de reveladas e copiadas) Natildeo eacute a materialidade das imagens

que as faz menos manipulaacuteveis ou impotildee a elas restriccedilotildees de ordem simboacutelica Essa questatildeo

parece mais ligada a uma ideia de automatismo que compreende sobretudo a fotografia como

resultado de um processo que acaba na imagem que como artefato natildeo deve ser manipulado

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Ao que parece a proacutepria natureza cada vez mais diversa das obras produzidas nos ajuda

a repensar alguns conceitos associados agraves miacutedias analoacutegicas e digitais cuja tendecircncia era de

distanciaacute-las Segundo Manovich (2013) o relevante natildeo eacute se os produtos da cultura digital satildeo

imateriais (em oposiccedilatildeo agraves miacutedias do seacuteculo XX) mas que eles possuem uma identidade

diferente porque a centralidade do software faz com que a experiecircncia do usuaacuterio seja

determinada parte pelo conteuacutedo parte pelo modo de interaccedilatildeo com esse conteuacutedo e a natureza

dessa interaccedilatildeo eacute colaborativa e aberta agrave intervenccedilatildeo ldquo() enquanto as miacutedias antigas ()

tambeacutem permitiam um acesso aleatoacuterio as interfaces da miacutedia dirigida por softwares

proporcionam muitas formas adicionais de navegar a miacutedia e selecionar o quecirc e como acessarrdquo

(MANOVICH 2013 p38) Entatildeo para aleacutem de pensar no binocircmio materialidadeimaterialidade

podemos atentar para a caracteriacutestica de ldquocoacutedigo abertordquo da imagem digital pois ela eacute parte de

um ambiente que pressupotildee experiecircncias com elementos que estatildeo sempre se modificando e

nesse sentido o exemplo do filme The Wilderness Downtown ilustra bem esse ponto

A respeito de uma fugacidade versus permanecircncia atributos que pertenceriam

respectivamente agraves imagens digitais e analoacutegicas tambeacutem percebemos que eacute uma noccedilatildeo

questionaacutevel jaacute que o desgaste e a deterioraccedilatildeo satildeo problemas dos quais nenhuma tecnologia estaacute

livre e suas implicaccedilotildees vecircm sendo consideradas e utilizadas a serviccedilo de uma intenccedilatildeo esteacutetica

Os vestiacutegios da accedilatildeo do tempo sobre os materiais se inscrevem de formas variadas nos

equipamentos e seus produtos sejam essas marcas mais ou menos perceptiacuteveis Se tomada como

realidade em si mesma (e natildeo como duplo de uma realidade precedente) podemos dizer que as

imagens de maneira geral pertencem ao domiacutenio de um possiacutevel marcado pela instabilidade

Portanto atribuir uma suposta permanecircncia ou menor fugacidade agrave existecircncia de um suporte

parece equivocado23 Talvez os usos mais comuns que fazemos das imagens no nosso cotidiano

sejam mais efecircmeros do que antes ndash postar compartilhar comentar como accedilotildees caracteriacutesticas da

circulaccedilatildeo da imagem na internet ndash e natildeo exatamente essa seja a natureza da imagem digital

A questatildeo do tempo na imagem analoacutegica percebido como algo condensado no objeto eacute

igualmente sujeita a revisotildees compreender a fotografia como miacutedia capaz de congelar o tempo

23 Eacute interessante assinalar que se podemos fazer uma criacutetica agrave relaccedilatildeo entre permanecircncia da imagem e suafisicalidade isso natildeo nos impede de identificar em vaacuterias das obras que compotildeem o nosso corpus de anaacutelise avalorizaccedilatildeo de aspectos visuais alcanccedilados pelas experimentaccedilotildees com a materialidade dos suportes utilizados ndash umaquestatildeo relevante que vem sendo retomada na perspectiva da materialidade das comunicaccedilotildees

49

resulta de uma percepccedilatildeo que decorre da noccedilatildeo de instantacircneo enquanto haacute diversas imagens

onde eacute possiacutevel perceber o escoamento do tempo o traccedilo de temporalidades que transitam entre

fixidez e mobilidade os estudos de Marey e as experiecircncias do fotodinamismo satildeo exemplos jaacute

claacutessicos e largamente evocados24

Dessa maneira assinalamos que algumas das questotildees levantadas quando do advento do

paradigma digitial refletem o momento teoacuterico inicial do debate sobre as mudanccedilas no campo da

imagem Nos anos mais recentes percebemos a emergecircncia de outras preocupaccedilotildees em torno da

relaccedilatildeo entre sistemas informaacuteticos e imagem Entre elas destacam-se as questotildees de vigilacircncia e

controle de informaccedilotildees coletadas em acircmbito institucional ou corporativo as relaccedilotildees entre

memoacuteria e esquecimento na produccedilatildeo e armazenamento de imagens por dispositivos inteligentes

a simulaccedilatildeo e o hibridismo a disponibilidade de esteacuteticas preacute-formatadas ndash pois na era da

fotografia de smartphone ldquoo modelo da cacircmera ou o Instagram e seus filtrosrdquo impotildeem

determinados padrotildees conforme Zylinska (online 2017) A pesquisadora tambeacutem chama atenccedilatildeo

para um conjunto de imagens geradas por sistemas autocircnomos (independente da accedilatildeo humana)

como microfotografia cacircmeras de controle de traacutefego cacircmeras instaladas no telescoacutepio Hubble

Google Street View drones aparelhos de raio-x (ZYLINSKA 2017a) como parte do que

denomina ldquofotografia natildeo-humanardquo Mas ao contraacuterio do que o termo sugere agrave primeira vista

essa perspectiva natildeo aposta numa visatildeo negativa dos aparatos criadores de imagem mas parte do

princiacutepio de que a fotografia eacute em si mesma criadora de universos e natildeo se restringe agrave

necessidade de reproduzir o mundo concreto Por outro lado a fotografia natildeo-humana reconhece

a dimensatildeo fortemente maquiacutenica no uso que as pessoas fazem da fotografia quando se limitam a

reproduzir paracircmetros prescritos no equipamento e seus coacutedigos visuais ou seja haacute um

componente inumano evolvido no uso da tecnologia que se mostra alienado dos processos e

modelos inscritos e perpetuados no proacuteprio aparato25

24 Eacutetienne-Jules Marey eacute um dos representantes da cronofotografia Seus estudos sobre o movimento dos corposbaseavam-se em conseguir registrar as diversas fases do movimento num mesmo suporte ampliando a noccedilatildeo deinstante fotograacutefico O fotodinamismo cujos expoentes mais conhecidos satildeo os irmatildeos Arturo e Anton Bragagliaregistra a trajetoacuteria do movimento (em vez de aglutinar uma seacuterie de instantacircneos que decompotildeem o movimento) demodo que suas experiecircncias apresentam borrotildees e distorccedilotildees das formas (enquanto que na cronofotografia as formasdos corpos satildeo preservadas)

25 Em seu livro dedicado ao tema (2017a) a autora explica que a abordagem natildeo-humana da fotografia natildeo consistena exclusatildeo do elemento humano mas no deslocamento do ser humano como ponto de vista privilegiado e tema dapraacutetica fotograacutefica dando-se maior ecircnfase ao papel do dispositivo como instacircncia criativa Cf Zylinska JoannaNonhuman Photography Cambridge MIT Press 2017

50

O conceito de fotografia natildeo-humana possui uma influecircncia direta da compreensatildeo

flusseriana das tecnologias que entende o papel desprogramador do sujeito em relaccedilatildeo ao aparato

como fundamental para o surgimento de novas propostas esteacuteticas Nesse sentido sua abordagem

aproxima-se ainda das anaacutelises de Almeida amp Baio (2019) que discutem as apropriaccedilotildees criacuteticas

de conteuacutedo imageacutetico do banco de dados de grandes empresas em projetos atuais que unem as

esferas da arte e do ativismo

Esses trecircs pesquisadores falam sobre as implicaccedilotildees poliacuteticas de termos nossas

informaccedilotildees pessoais coletadas e utilizadas por empresas governos e serviccedilos sem que

tenhamos controle desse uso Para Zylinska com base numa ideia pouco definida de

compartilhamento empresas acumulam grande quantidade de informaccedilatildeo dos usuaacuterios o que

constitui um problema

() essas empresas penetram em diferentes niacuteveis de nossa existecircncia diaacuteria Ficoincomodada com o acesso e a criaccedilatildeo de bancos de dados massivos de nossas vidas como aspecto inquisitoacuterio do que eacute e do que natildeo eacute uma boa vida (Facebook Google e tantasoutras empresas fazem isso) Acho que essa questatildeo da acumulaccedilatildeo de ldquocapitalinformacionalrdquo eacute muito importante porque nela residem as ambiccedilotildees de dominaccedilatildeo decertas empresas que se escondem em um discurso ldquoinocenterdquo sobre comunidades decompartilhamento (ZYLINSKA online 2017)

Por outro lado Almeida Baio e Zylinska indicam igualmente que o campo da arte vem

problematizando essas questotildees fazendo uso exatamente do material produzido sob tais

condiccedilotildees especiacuteficas da sociedade informaacutetica subvertendo entatildeo os propoacutesitos corporativos

originais

Figura 8 - Park Road London (Joanna Zylinska 2011)

51

Fonte Reproduccedilatildeo site26

A polonesa que aleacutem de pesquisadora eacute artista utiliza suas proacuteprias obras para discutir

essas questotildees Com imagens retiradas do Google Street View ela produziu uma seacuterie fotograacutefica

intitulada Park Road London (figuras 8 e 9) e um viacutedeo homocircnimo (2011) sobre lugares que se

chamam Park Road um dos nomes mais comuns para ruas no Reino Unido Assim ela vai

criando uma paisagem composta de imagens roubadas de um sistema de localizaccedilatildeo geograacutefica

que se converte em dispositivo de vigilacircncia contiacutenuo apropriando-se dos corpos de transeuntes

desavisados Versatildeo maquiacutenica de um olhar onipresente o Google Street View oferece uma

percepccedilatildeo diferida em segunda matildeo passeando pelas ruas captando tudo que ocorre nas

margens traacutefego de veiacuteculos caminhar de pessoas e accedilotildees imprevistas tiradas do cotidiano e

congeladas para sempre acessiacuteveis a qualquer internauta (FONTCUBERTA 2016 p44)

Agrave medida que se apropria de informaccedilotildees de uma estrutura corporativa onipresente no

cotidiano das cidades contemporacircneas e submete-as aos propoacutesitos criacuteticos da arte a artista faz

pensar sobre como nossas identidades gestos e accedilotildees diaacuterios satildeo despidos de qualquer

singularidade no momento em que a imagem nos captura nas Park Roads da vida O flagrante

tiacutepico das cacircmeras de vigilacircncia que se aprende a ignorar transforma-se aqui em material baacutesico

para cenas que articulam o apagamento da identidade nas imagens contemporacircneas (ao serem

fotografadas pelas cacircmeras do Google todas essas pessoas transformam-se em dados brutos num

26 Disponiacutevel em httpwwwjoannazylinskanetpark-road-london Acesso em 190919

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sistema) ldquoO ser humano eacute uma perturbaccedilatildeo no fluxo de dados do Google Street Viewrdquo

(ZYLINSKA 2017a p27) Aleacutem disso eacute preocupante o fato de que mesmo a experiecircncia

totalmente banal de transitar na rua natildeo escapa agrave mediaccedilatildeo dos aparelhos Essas pessoas satildeo a

forma representada desses dados construiacuteda a partir da linguagem do computador Lev Manovich

(2013) reflete sobre uma continuidade entre ldquomiacutediaconteuacutedordquo e

ldquodadosinformaccedilotildeesconhecimentordquo geralmente vistas como categorias distintas Para ele

quando se trata de dispositivos computadorizados determinados artefatos transitam de uma

categoria a outra

Um longa-metragem eacute um bom exemplo da primeira categoria (miacutediaconteuacutedo) e umaplanilha de Excel da segunda ndash mas entre esses exemplos bem separados haacute vaacuteriosoutros que pertencem a ambas as categorias Por exemplo se faccedilo uma visualizaccedilatildeo deinformaccedilotildees dos dados numa planilha essa visualizaccedilatildeo agora se encaixa nas duascategorias Ainda satildeo ldquodadosrdquo mas dados representados numa nova maneira que permitechegar a insights e ao ldquoconhecimentordquo Tambeacutem se torna uma peccedila de miacutedia visual queagrada aos nossos sentidos da mesma forma que fotografias e pinturas27 (MANOVICH2013 p30)

Tomando como base esse raciociacutenio um trabalho como Park Road London brinca

exatamente com a possibilidade de a imagem ser uma modalidade de informaccedilatildeo ou ldquodadosrdquo

(num sentido mais cru de sua morfologia de pixels e coacutedigos do sistema que a produz) quanto

ldquomiacutediaconteuacutedordquo pois que adquire uma forma determinada uma plaacutestica especiacutefica

Numa taacutetica de inversatildeo o proacuteprio sistema de vigilacircncia eacute usado para fazer a criacutetica

dessa mediaccedilatildeo constante dos dispositivos em nosso dia a dia O efeito esfumado aplicado aos

rostos das pessoas guarda certa ironia parece proteger a identidade das pessoas observadas mas

as nivela diante do sistema sujeitando-as agrave condiccedilatildeo de meros corpos que passam Do ponto de

vista formal o efeito eacute resultado da simulaccedilatildeo ldquocom a softwarizaccedilatildeo possibilidades impliacutecitas e

maneiras diferentes de usar ferramentas fiacutesicas satildeo trazidas agrave tona lsquoTeacutecnicas artiacutesticasrsquo e lsquomeios

27 Traduccedilatildeo livre de ldquoA feature film is a good example of the first category and an Excel spreadsheet represents thesecond categorymdashbut between such clear-cut examples there are numerous other cases which are both Forexample if I make an information visualization of the data in the spreadsheet this visualization now fits equally intoboth categories It is still ldquodatardquo but data represented in a new way which allows us to arrive at insights andldquoknowledgerdquo It also becomes a piece of visual media which appeals to our senses in the same way as photographsand paintings dordquo

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de expressatildeorsquo tornam-se expliacutecitosrdquo (MANOVICH 2013 p221) O mesmo pode ser dito sobre o

aspecto ldquogranuladordquo (peliacutecula) de toda a seacuterie

Park Road London potildee em questatildeo a ideia central da artista de que a fotografia cria

mundos e circunstacircncias proacuteprias que extrapolam a vontade de reconhecimento de um real

precedente o que nos faz compreender que ao serem capturadas pelo sistema de cacircmeras a

noccedilatildeo de identidade jaacute natildeo eacute mais adequada para os personagens que habitam essas imagens Eles

satildeo sinais de um sistema de dados transmitido em forma de imagens Podemos considerar os

transeuntes de Park Road London fantasmagorias desse sistema28 O trabalho busca ainda

provocar uma reflexatildeo sobre como nossas vidas satildeo escrutinadas por grandes empresas e como a

imagem hoje se integra quase que automaticamente nesse processo

() Este aspecto mais amplo da miacutedia social da qual a fotografia faz parte meincomoda profundamente Existe tambeacutem a questatildeo da vigilacircncia da invasatildeo diaacuteria danossa existecircncia e a ingenuidade de parte dos usuaacuterios que abrem matildeo de informaccedilotildeessobre sua vida sem saber para quem e com qual propoacutesito Aleacutem disso os proacuteprioshumanos viraram ldquonoacutesrdquo nessa rede de troca de dados rapidamente se transformando emmercadoria A fotografia natildeo-humana portanto tambeacutem pode ser entendida como dadoe por este motivo pode ser vista como uma forma de transaccedilatildeo que exclui os usuaacuteriosque se oferecem voluntariamente ou involuntariamente como parte dessa economiaconsolidada em poucas e gigantescas corporaccedilotildees (ZYLINSKA Idem)

Ao mesmo tempo a abordagem da foto natildeo-humana que embasa os trabalhos de

Zylinksa sugere como os enquadramentos e modos de captura dos dispositivos autocircnomos satildeo

naturalizados por noacutes como observadores dessas imagens configurando talvez um regime visual

que ecoa em fotografias vernaculares ou viacutedeos amadores como referecircncia a um ldquoestilo cacircmera

de vigilacircnciardquo Tal estilo converte um certo voyeurismo em modelo de observaccedilatildeo sob a frieza

do equipamento e formalmente identifica-se na aceitaccedilatildeo de imagens de baixa resoluccedilatildeo

28 Resultado semelhante pode ser observado no viacutedeo da instalaccedilatildeo Pasajeros Peregrinos Pilotos (2008) de ThomasKoumlner em que vaacuterios monitores distribuiacutedos numa estaccedilatildeo de metrocirc da cidade de Santiago (Chile) mostram o vai evem dos passageiros Agrave medida que o viacutedeo avanccedila as pessoas vatildeo se multiplicando num efeito que torna quaseimpossiacutevel distinguir entre corpos e sombras fazendo da situaccedilatildeo transitoacuteria de quem passa pela estaccedilatildeo avisualidade que remete agrave fantasmagoria A tomada da imagem eacute fixa lembrando a posiccedilatildeo de uma cacircmera devigilacircncia Disponiacutevel em httpthomaskonercom201404pasajeros-peregrinos-pilotos Acesso em 191119

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Figura 9 - Park RoadLondon (Joanna Zylinska 2011)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Na economia dos sistemas informaacuteticos o banco de dados figura como local simboacutelico

que permite criar experiecircncias sensiacuteveis fora de sua loacutegica corporativa (ALMEIDA amp BAIO

Ibidem) pois que ganha significado quando os dados satildeo processados sujeitos a relaccedilotildees com

outros elementos ou como eacute aqui o caso adaptados aos propoacutesitos de artistas como Zylinska e

tantos outros29 Esses trabalhos tambeacutem representam um impulso criacutetico de apropriaccedilatildeo de

conteuacutedos que remete a uma atitude hacker fundamentando sua forccedila poeacutetica numa estrateacutegia de

contrabando de informaccedilotildees que submetidas a propoacutesitos esteacuteticos adquirem tambeacutem uma

dimensatildeo poliacutetica levando-nos a refletir sobre o nosso lugar nessa miriacuteade de sistemas

maacutequinas corpos (e logicamente imagens)

29O trabalho e a perspectiva teoacuterica de Zylinska satildeo bastante interessantes porque para ela a fotografia sempre foiparceira de outras imagens e seu interesse eacute discutir a dimensatildeo teacutecnica da imagem atraveacutes de implicaccedilotildees sociaispoliacuteticas e esteacuteticas Para uma melhor compreensatildeo das abordagens da artista sugerimos ler o texto-manifestoPhilosophy as photography disponiacutevel em httpwwwjoannazylinskanetartists-statement Acesso em 190919

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Nesse sentido percebemos que certos haacutebitos e relaccedilotildees estabelecidos com as imagens

modificaram-se sensivelmente por forccedila das mudanccedilas tecnoloacutegicas mas processos realizados

com dispositivos digitais e analoacutegicos estatildeo sempre sujeitos a desvios (re)invenccedilotildees recuos e

procedimentos alternativos dos quais o campo da arte natildeo cansa de oferecer exemplos conforme

veremos ao longo deste trabalho

242 Ordem da representaccedilatildeo x ordem da simulaccedilatildeo

Outras questotildees foram levantadas para distinguir as imagens analoacutegicas e digitais entre

elas a ideia de que as primeiras alinham-se agrave ideia de representaccedilatildeo enquanto as imagens

numeacutericas apresentariam uma tendecircncia maior agrave simulaccedilatildeo Ao falar sobre os coacutedigos por traacutes das

interfaces dos artefatos digitais Manovich (2001 p112) compara as tradiccedilotildees da representaccedilatildeo e

da simulaccedilatildeo A primeira supotildee a organizaccedilatildeo de uma cena num espaccedilo demarcado fiacutesico

especiacutefico geralmente estaacutetico A representaccedilatildeo recorre a vaacuterias convenccedilotildees e sua mateacuteria se

reporta ao mundo fiacutesico mas sem se confundir com ele Jaacute a simulaccedilatildeo quer ficar mais proacutexima

do mundo material repetindo suas escalas e dimensotildees ateacute confundir-se com ele

Para o teoacuterico russo o modo da representaccedilatildeo predominou nas culturas da pintura

fotografia cinema em detrimento do modo da simulaccedilatildeo30 Contudo essa tendecircncia de

continuidade do espaccedilo fiacutesico no virtual faria parte apenas do momento inicial da tradiccedilatildeo da

simulaccedilatildeo e a emergecircncia das miacutedias digitais traz outras questotildees A realidade virtual por

exemplo relacionada a noccedilotildees como a interatividade entre sujeito e maacutequina os movimentos e

reaccedilotildees do usuaacuterio tecircm efeitos no que ocorre no ambiente do dispositivo onde se propotildee uma

imersatildeo Nesse ponto se instaura uma diferenccedila importante em vez da inclinaccedilatildeo para uma falsa

continuidade do ambiente fiacutesico acentua-se agora a separaccedilatildeo entre espaccedilo real e virtual e a

ldquorealidade fiacutesica eacute ignorada dispensada abandonadardquo (MANOVICH 2001 p113)

O ordenamento da simulaccedilatildeo eacute tambeacutem resultado de convenccedilotildees culturais Quando essas

referecircncias satildeo ldquofiltradasrdquo e ldquotraduzidasrdquo nas ferramentas disponiacuteveis e na maneira delas

30 Manovich apresenta indiacutecios dessa loacutegica em formas de entretenimento do seacuteculo XIX como o panorama queseria uma forma cultural intermediaacuteria entre representaccedilatildeo e simulaccedilatildeo Museus de cera escultura em escalahumana e dioramas nos museus de histoacuteria natural seriam exemplos da loacutegica da simulaccedilatildeo tambeacutem no mesmoperiacuteodo Cf Manovich 2001 p113

56

operarem nos sistemas informaacuteticos a tendecircncia agrave abstraccedilatildeo ganha espaccedilo Satildeo as regras internas

do sistema que definem os paracircmetros de sentido vaacutelidos no universo digital Segundo Manovich

(2001 p117) a evoluccedilatildeo dos softwares em direccedilatildeo a uma abstraccedilatildeo crescente eacute compatiacutevel com

a automatizaccedilatildeo de tarefas que governa o proacuteprio desenvolvimento da cultura digital O mesmo

autor explica que basicamente as operaccedilotildees dos computadores satildeo inicialmente conceitos quer

dizer estatildeo primeiro no niacutevel abstrato para soacute depois se materializarem na tela onde aparecem

como resultados de comandos dados pelo usuaacuterio

Quando entendemos que a abstraccedilatildeo eacute uma loacutegica influenciada pela caracteriacutestica da

automaccedilatildeo eacute possiacutevel apontar uma tendecircncia do paradigma digital que influencia sobremaneira

as discussotildees no acircmbito da arte e por consequecircncia da imagem a criaccedilatildeo a partir de conteuacutedos

preacute-formatados A criaccedilatildeo que parte de elementos dados e natildeo ldquodo zerordquo tambeacutem se vincula a

uma visatildeo do artista que haacute muito natildeo coincide com a ideia individualista de gecircnio isolado mas

estaacute de acordo com um universo artiacutestico que se consolida atraveacutes da relaccedilatildeo estreita com as

maacutequinas

Esse novo tipo de autoria () se encaixa perfeitamente com a loacutegica do avanccedilo industriale das sociedades poacutes-industriais onde quase toda praacutetica envolve a escolha em algummenu cataacutelogo ou base de dados Na verdade como percebi as novas miacutedias satildeo amelhor expressatildeo disponiacutevel da loacutegica da identidade nessas sociedades ndash valoresselecionados de menus preacute-definidos (MANOVICH 2001 p128)

Se a norma da linguagem informaacutetica eacute lidar com coisas e operaccedilotildees jaacute determinadas

pela maacutequina o exerciacutecio da criatividade vai em direccedilatildeo agrave modificaccedilatildeo do que estaacute posto como

modelo estabelecendo um tipo de autoria baseada nas accedilotildees de escolher e selecionar entre um

conjunto de possibilidades efetivando como tendecircncias dessa autoria estrateacutegias como a

mixagem a customizaccedilatildeo a releitura a composiccedilatildeo31 Eacute um modelo criativo que preconiza as

conexotildees e reinterpretaccedilotildees produzidas ao longo de zonas de contato moacuteveis por agenciamentos

e bricolagens realizados por uma multiplicidade de atores (LEacuteVY 1993 p107) ou como diz

31 Deve-se salientar que do mesmo jeito que outras caracteriacutesticas das miacutedias digitais essas tendecircncias natildeo surgemcom a emergecircncia do computador mas satildeo basilares da loacutegica que rege seu funcionamento No universo das artesreleituras e apropriaccedilotildees de elementos prontos natildeo satildeo novidades e jaacute se verificavam por exemplo nas praacuteticas daPop Art da fotomontagem Fatorelli (2017) faz observaccedilotildees relevantes sobre estrateacutegias de apropriaccedilotildees e releiturascomo algo que marca os procedimentos da fotografia contemporacircnea

57

Parente (2009) o digital baseia-se na vontade de ldquodesterritorializarrdquo as formas de relacionamento

das pessoas nos processos de criaccedilatildeo

De acordo com Ritchin (2008) a natildeo linearidade e a quebra de hierarquias no ambiente

multimiacutedia o constante recriar a partir de elementos preacute-concebidos (imagens sons textos) aleacutem

de promover o desenvolvimento coletivo de conteuacutedos permite que os lugares antes

marcadamente separados para amadores e profissionais sejam relativizados As fronteiras entre

essas duas instacircncias tornam-se sutis menos definidas Fontcuberta (2016 p32) acrescenta a esse

debate a democratizaccedilatildeo promovida pelo digital na medida em que no espaccedilo da imagem ldquopela

primeira vez somos todos produtores e consumidoresrdquo dada a profusatildeo de aparelhos Um ponto

de vista interessante eacute desenvolvido por Zylinska (2017a p179) nesse sentido quando a autora

afirma que se a cultura da imagem digital sugere um incremento na produccedilatildeo e circulaccedilatildeo de

fotografias esse movimento tem raiacutezes ainda no seio da imagem fotoquiacutemica no momento em

que a Kodak populariza a praacutetica fotograacutefica atraveacutes de cacircmeras baratas A fotografia digital

estabelece uma continuidade com praacuteticas iniciadas nas miacutedias analoacutegicas soacute que eacute mais raacutepida

menos permanente e mais excessiva Tais questotildees satildeo importantes do ponto de vista dos usos da

fotografia bem como sintomaacuteticas de um modelo criativo que ganha forccedila com as miacutedias digitais

baseado no intercacircmbio de referecircncia e informaccedilotildees e em uma certa horizontalidade de

participaccedilatildeo de quem manipula os conteuacutedos para produzir significado

Nas comparaccedilotildees entre representaccedilatildeo e simulaccedilatildeo foram enfatizadas questotildees como a

imaterialidade a fugacidade a abstraccedilatildeo em relaccedilatildeo ao real que caracterizam as imagens

digitais Hoje alguns autores jaacute adotam posiccedilotildees menos ortodoxas a respeito do digital A

abordagem das materialidades da comunicaccedilatildeo que inclui pensadores de eacutepocas diversas como

Benjamin Simondon Derrida e Gumbrecht (FELINTO 2001) pode contribuir para repensar

afirmaccedilotildees sobre o digital e sua imaterialidade Na medida em que propotildee uma valorizaccedilatildeo das

tecnologias dos objetos e das articulaccedilotildees entre sujeitos e miacutedias as materialidades da

comunicaccedilatildeo emergem como lugar de anaacutelise dos meios em sua funccedilatildeo significativa Ou seja o

sentido das coisas dos artefatos culturais natildeo eacute dado a priori nem apreendido exclusivamente por

um intelecto elevado mas por nossa relaccedilatildeo com a forma das coisas E esta abordagem natildeo

exclui os artefatos da cultura digital do rol de seus objetos de anaacutelise Conforme afirma Felinto

(2001 p14) ldquoa teoria das materialidades tem buscado utilizar os mais recentes desenvolvimentos

da ciberneacutetica e da teoria dos sistemas para conjugar diferentes estruturas em uma perspectiva

58

autenticamente conceptualrdquo32 O mesmo autor reivindicando a presenccedila do corpo como oposiccedilatildeo

aos discursos sobre a cibercultura sempre a negar o valor dessa fisicalidade diz que mesmo

aquilo que inicialmente afirma-se imaterial pode ganhar corpo () e que essa ideia alcanccedila o

universo da tecnocultura (FELINTO 2004) Para ele a proacutepria palavra ldquocorpordquo jaacute possui uma

semacircntica de materialidade Manovich (2013) aleacutem de apontar a evidente necessidade de

hardwares na cibercultura tambeacutem reconhece enquanto materialidade do computador e seus

produtos os formatos de arquivos pois que estes gozam de uma identidade (como jaacute indicamos)

Mesmo a simulaccedilatildeo apontada como marca do paradigma digital que a princiacutepio sugere um

afastamento em relaccedilatildeo ao real retira do mundo concreto as referecircncias para elaborar objetos

criar ambientes reproduzir movimentos recursos amplamente utilizados no cinema e na

publicidade por exemplo Se com o auxiacutelio de um software eacute possiacutevel recriar no computador uma

cadeira exatamente igual agrave cadeira na qual estou sentada escrevendo esse texto eacute porque as

referecircncias para que ela seja modelizada no computador satildeo tomadas de uma cadeira concreta

que possui volume massa textura enfim dimensotildees especiacuteficas e definidas utilizadas como

paracircmetro

Reconhecemos que tais questotildees contribuem para pensar que o ambiente informaacutetico

natildeo eacute mesmo totalmente desprovido de materialidade Tatildeo pouco se pode dizer que haacute um grau

menor de abstraccedilatildeo quando se trata de sistemas analoacutegicos (comparativamente aos digitais) O

que nos parece eacute que frente agraves especificidades dos aparelhos digitais e as novas condiccedilotildees de

interaccedilatildeo que noacutes (enquanto espectadores e criadores de conteuacutedo) experimentamos no contexto

da cibercultura muitos pensadores tendem a atribuir a essas especificidades a responsabilidade

majoritaacuteria pelas noccedilotildees de simulaccedilatildeo e graus variados de abstraccedilatildeo de algumas obras quando na

verdade tais questotildees jaacute se colocavam para artistas que entendem (ou entendiam) as miacutedias da

imagem como essencialmente permeaacuteveis e destinadas a produzirem simbologias fantasmagorias

(em detrimento de reproduccedilotildees do cotidiano) Ou seja a ecircnfase nas propriedades de simulaccedilatildeo

na imaterialidade na fluidez eacute teoacuterica enquanto que na praacutetica haacute diversos exemplos indicando a

anterioridade dessas questotildees no campo da imagem reduzindo assim uma distacircncia a priori entre

miacutedias analoacutegicas e digitais

32 Nas discussotildees a respeito de nosso corpus e nas explanaccedilotildees a respeito do ruiacutedo como pontos importantes destatese retomaremos a perspectiva das materialidades da comunicaccedilatildeo como instrumento de anaacutelise

59

No campo da filosofia temos em Flusser (2008) boas rotas de fuga agraves divisotildees

excessivamente demarcadas entre as tecnologias pois ele considera que a partir do momento em

que as informaccedilotildees ndash e para ele informar significa dar forma33 ndash satildeo produzidas por aparelhos

estamos sempre operando com abstraccedilotildees Mesmo que uma imagem seja semelhante ao que

esteve em frente ao dispositivo ela resulta de transcodificaccedilotildees de sinais recebidos e

interpretados de acordo com os paracircmetros do dispositivo o que termina por colocar num mesmo

niacutevel imagens digitais e analoacutegicas Os ldquoaparelhosrdquo ndash os dispositivos produtores de imagem para

Flusser ndash tecircm a peculiaridade de serem desenvolvidos com base em conhecimentos cientiacuteficos e

tais conhecimentos estatildeo simbolicamente informando as imagens criadas Quando diz que ldquoa

fotografia eacute consequecircncia da recodagem de textos da oacutetica e da quiacutemicardquo (FLUSSER

Nascimento da imagem nova34) o filoacutesofo estaacute dizendo que se observarmos com atenccedilatildeo

encontraremos nas fotografias o pensamento cientiacutefico sobre a oacutetica e a quiacutemica de uma eacutepoca o

que tambeacutem se reflete em determinada reflexatildeo criacutetica e esteacutetica sobre a fotografia

Essas observaccedilotildees mostram que algumas reflexotildees que remontam agrave emergecircncia do

paradigma digital ressaltaram questotildees apresentadas naquele momento como novidades e

porque natildeo superaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves tecnologias analoacutegicas Com o passar dos anos os

pesquisadores do campo da imagem voltaram-se para outros temas e alguns posicionamentos e

afirmaccedilotildees podem ser revisados no sentido de que do ponto de vista esteacutetico (que eacute o nosso

interesse central) haacute tanto negociaccedilotildees quanto formas diferentes de produzir disseminar e pensar

a imagem e experiecircncias variadas que talvez nos impeccedilam de separar tatildeo duramente analoacutegico e

digital Podemos indicar diferenccedilas sem com isso estabelecer uma relaccedilatildeo evolutiva entre os

meios ou reforccedilar ideias de que haacute tecnologias melhores quanto mais recentes forem Como se o

progresso teacutecnico inexoraacutevel fosse algo natural (ZIELINSKI 2006)

A seguir analisaremos alguns exemplos que demonstram esse campo de negociaccedilotildees

entre os sistemas analoacutegico e digital relativizando uma dicotomia entre eles pois que considerar

os empreacutestimos de elementos de cada um deles em alguns trabalhos artiacutesticos e mesmo a

resistecircncia de certos paradigmas agraves mudanccedilas tecnoloacutegicas satildeo questotildees centrais em nossa

33 FLUSSER Vileacutem O mundo codificado por uma filosofia do design e da comunicaccedilatildeo Satildeo Paulo Ubu Editora2017

34 Disponiacutevel em httpwwwarquivovilemflusserspcombrvilemflusserpage_id=1577 Acesso em 08042020

60

discussatildeo e apontam que o campo de produccedilatildeo das imagens contemporacircneas eacute cada vez mais

norteado pelo diaacutelogo entre tecnologias formatos e esteacuteticas

61

3 ANALOacuteGICO X DIGITAL INTERROGACcedilOtildeES EM DIRECcedilAtildeO Agrave FOTOGRAFIA

ldquoAntes de existir computador existia tevecircAntes de existir tevecirc existia luz eleacutetrica

Antes de existir luz eleacutetrica existia bicicletaAntes de existir bicicleta existia enciclopeacutediaAntes de existir enciclopeacutedia existia alfabeto

Antes de existir alfabeto existia a vozAntes de existir a voz existia o silecircnciordquo - O silecircncio Arnaldo Antunes

31 RECONSIDERANDO ALGUMAS DISPARIDADES

Jaacute indicamos que as tecnologias do computador datildeo ecircnfase a uma seacuterie de

procedimentos governados pelas informaccedilotildees do proacuteprio sistema e apontamos a dicotomia que

alguns teoacutericos estabeleceram por exemplo em relaccedilatildeo agraves ordens da ldquorepresentaccedilatildeordquo e da

ldquosimulaccedilatildeordquo Essa comparaccedilatildeo daacute a entender que haacute uma distacircncia teacutecnica significativa (aleacutem de

epistemoloacutegica) na origem de cada uma dessas ordens com implicaccedilotildees conceituais e esteacuteticas

E ainda que existe uma correspondecircncia entre as imagens preacute-informaacuteticas com esse regime da

representaccedilatildeo enquanto que a partir das imagens eletrocircnicas e na direccedilatildeo das imagens digitais a

simulaccedilatildeo ganha corpo e consolida-se

Embora seja inegaacutevel a natureza teacutecnica diversa do paradigma digital conforme tais

indicaccedilotildees apostar numa ruptura profunda entre as ordens da representaccedilatildeo e da simulaccedilatildeo eacute algo

que podemos questionar Quando falamos da fotografia a questatildeo se complica jaacute que ateacute o

estaacutegio da captura as operaccedilotildees necessaacuterias satildeo as mesmas seja a cacircmera analoacutegica ou digital A

partir do registro eacute que as mudanccedilas seriam mais significativas porque a imagem oacutetica da cena

capturada eacute projetada sobre o fundo da cacircmera escura o dispositivo interpreta as informaccedilotildees

recebidas que satildeo entatildeo decompostas em pixels (COUCHOT 2003 p162)

62

Ainda nas comparaccedilotildees entre analoacutegico e digital haacute menccedilatildeo por exemplo agrave digitalizaccedilatildeo

como estrateacutegia que sepulta a dicotomia entre original e coacutepia

() coacutepia e original passam a natildeo fazer mais sentido na fotografia digital Nesta tudo eacutecoacutepia (hellip) Na fotografia analoacutegica a reproduccedilatildeo de uma imagem acarretava um saltoentre ldquogeraccedilotildeesrdquo da imagem com distinccedilotildees mesmo que imperceptiacuteveis entre original ecoacutepia a coacutepia e a coacutepia da coacutepia No digital as coacutepias satildeo sempre idecircnticas(QUEIROGA 2015 110-111)

De nosso ponto de vista essa questatildeo natildeo faz sentido se consideramos as noccedilotildees de

original e coacutepia tomando a fotografia como imagem teacutecnica (FLUSSER 2011) como fruto do

cruzamento entre subjetividade e uma maacutequina qualquer fotografia jaacute natildeo poderia ser tratada

como ldquooriginalrdquo apenas porque foi a primeira de uma seacuterie de outras idecircnticas Antes de Flusser

Walter Benjamin (1936 1994) jaacute indicava que uma pretensa originalidade se perde no momento

em que a arte se faz por instrumentos que ensejam a reprodutibilidade tornando sua existecircncia

independente da operaccedilatildeo exclusiva da matildeo humana De fato podemos dizer que a fotografia

digital (assim como a digitalizaccedilatildeo de imagens de outra natureza) estimula uma atitude de

recriaccedilatildeo reelaboraccedilatildeo de alteraccedilatildeo que visa produzir imagens novas dada a maior facilidade

com que isso eacute feito nos aparatos computadorizados Se para copiar uma foto analoacutegica

dependiacuteamos de laboratoacuterio revelaccedilatildeo e ampliaccedilotildees num processo mais demorado que

demandava um conhecimento razoaacutevel de suas etapas no digital mesmo um leigo consegue sem

maiores problemas copiar uma imagem

De fato natildeo haacute formas de reproduccedilatildeo melhores ou piores em termos de fidelidade ou

autenticidade a partir de que haacute mediaccedilatildeo de um aparato acreditar na capacidade de replicar

algo atraveacutes da imagem de maneira fiel eacute um ideal para natildeo dizer um paradoxo Pensemos menos

em termos de originalidade e reprodutibilidade e notemos que a imagem fotograacutefica carrega

certas tradiccedilotildees Por exemplo expectativas de correspondecircncia entre tempo e espaccedilo retratados

para uma situaccedilatildeo dada De modo que natildeo apenas a forccedila de uma novidade tecnoloacutegica conduz

necessariamente a alteraccedilotildees esteacuteticas formais A imagem digital pode ser diversa menos na sua

mensagem e mais na maneira como eacute feita (PLAZA 1993 p73) Se o digital reconstroacutei o real as

leis que governam a maneira de construir e exibir esse real praticadas nas formas visuais

anteriores continuam operando de certa forma ldquoadaptadasrdquo ldquotraduzidasrdquo nas leis do paradigma

63

digital A capacidade de reconstruir esse real vem de uma referecircncia a ele jaacute consagrada em

outras formas visuais da fotografia do cinema da pintura

Eacute compreensiacutevel que os primeiros exerciacutecios de pensar essas mudanccedilas se mostrassem

entusiastas apostando na conformaccedilatildeo de um discurso da ruptura e da novidade mas passado

esse momento a produccedilatildeo de imagens tem mostrado que para aleacutem da recusa de qualquer

referecircncia ao real haacute diferentes maneiras de exercitar uma relaccedilatildeo criacutetica oniacuterica ou irocircnica com

ele sem contudo descartaacute-lo totalmente O que parece problemaacutetico em alguns dos argumentos e

definiccedilotildees pioneiros sobre as tecnologias digitais eacute tentar compreender as mudanccedilas a partir de

um horizonte fortemente teacutecnico da produccedilatildeo circulaccedilatildeo e consumo de imagens sem atentar para

o peso que representam as tradiccedilotildees visuais e ideologias das quais a fotografia tem dificuldade

de se apartar seja na teoria nas praacuteticas artiacutesticas jornaliacutesticas vernaculares etc

Isso significa que quando abordamos o digital de maneira geral apontamos suas

caracteriacutesticas e como elas satildeo incorporadas no desenvolvimento de toda uma imageacutetica

especiacutefica mas ao direcionarmos esse conjunto de informaccedilotildees para o campo das praacuteticas

fotograacuteficas talvez seja preciso refinar um pouco a discussatildeo Por exemplo Lister (1995 p15)

sugere que a simulaccedilatildeo de imagens fotoquiacutemicas pelo digital a digitalizaccedilatildeo de fotografias

analoacutegicas e imagens de siacutentese sejam vistas como coisas distintas e que estas uacuteltimas devem

ainda se diferenciar da realidade virtual Ele acrescenta que a simulaccedilatildeo e a digitalizaccedilatildeo eacute que

possuem maiores implicaccedilotildees para a fotorreportagem o jornalismo o documental As

possibilidades oferecidas pelos softwares alteram nosso entendimento sobre as miacutedias por causa

das operaccedilotildees de criaccedilatildeo ediccedilatildeo interaccedilatildeo compartilhamento (MANOVICH 2013 p122) o

que justifica certa desconfianccedila ou descreacutedito em relaccedilatildeo agraves imagens digitais Essas questotildees

permitem-nos compreender porque alguns debates em torno da fotografia digital preocupam-se

com os limites eacuteticos da manipulaccedilatildeo com as fronteiras que podem ser ultrapassadas no trabalhar

da imagem artiacutestica e da informativa e como esses espaccedilos estatildeo mais ou menos abertos agraves

potecircncias de heterogeneidade descontinuidade do digital Quer dizer no que tange agrave fotografia

haacute certa ecircnfase em tirar proveito do paradigma digital a partir da manipulaccedilatildeo da justaposiccedilatildeo

da elaboraccedilatildeo de universos ficcionais ndash sem que se desfaccedilam totalmente os liames com as formas

institucionalizadas na tradiccedilatildeo fotograacutefica anterior A questatildeo central eacute de que maneira isso

ocorre nesses diferentes campos de produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo da imagem fotograacutefica

64

Esse argumento nos daacute a pista de que para aleacutem dos imperativos teacutecnicos a heranccedila

cultural e simboacutelica de uma visualidade fotograacutefica parece estar sempre tangenciando as

experiecircncias com a imagem mesmo sob um horizonte de ferramentas que aparentemente

permitiriam solapaacute-la de maneiras diversas O hibridismo visual eacute mais evidente no campo do

viacutedeo experimental e independente em obras produzidas para circuitos de festivais web e

dispositivos moacuteveis que utilizam vaacuterias camadas de imagens abstratas geradas em tempo real em

2D animaccedilatildeo e menos frequente em obras comerciais (MANOVICH 2013 p258) Ou seja a

potecircncia de questionar essa heranccedila realista apresentou-se com mais evidecircncia no campo da arte

e conforme observamos passado o momento em que a noccedilatildeo de uma ruptura total com modelos

ldquorealistasrdquo haacute uma tendecircncia de jogar com esse modelo com suas expectativas de representaccedilatildeo

da realidade ao mesmo tempo em que natildeo se nega a natureza artificial da imagem Aqui jaacute

indicamos que o conceito de remediaccedilatildeo (BOLTER amp GRUSIN 2000) eacute instrumental para

entendermos que em alguns casos a imagem digital natildeo se aparta totalmente em seus aspectos

formais da analoacutegica investindo nas caracteriacutesticas esteacuteticas desta uacuteltima como efeito de um

hibridismo e jaacute apontamos casos em que a partir da compreensatildeo do lado discursivo da imagem

digital alguns artistas encontram a condiccedilatildeo especial que os permite explorar narratividades

discutir situaccedilotildees de vigilacircncia a fluidez dos dados Temos vertentes distintas com propoacutesitos

diferentes nos usos dados agrave imagem digital porque parte do DNA da fotografia digital deve-se a

seu lugar de nascimento dentro de uma cacircmera digital e outra parte eacute resultado do paradigma

atual da computaccedilatildeo em rede (MANOVICH 2013 p62-63) Ou seja o mesmo sistema onde se

integra a imagem tanto pode dar vazatildeo a processos de simulaccedilatildeo quanto criar novos paradigmas

visuais jaacute que ambas as possibilidades advecircm de um mesmo software fazendo parte de um

contiacutenuo

Soulages (2007 p80) tentando mapear os reais ganhos do digital interroga se este

determina algumas mudanccedilas na fotografia ou uma mudanccedila da fotografia35 O jogo de palavras

feito pelo autor demonstra a preocupaccedilatildeo em identificar natildeo apenas novidades de procedimento e

usos que aparecem na imagem em sentido restrito mas como uma epistemologia loacutegico-

matemaacutetica eacute capaz de operar modificaccedilotildees no acircmbito geral da fotografia traduzindo-se em obras

que conceitual e plasticamente se apresentem diversas que nos faccedilam repensar as relaccedilotildees que a

35 Grifo do autor

65

imagem fotograacutefica vem problematizando ao longo de sua histoacuteria a partir de novos moldes ou

chaves discursivas relacionados a um contexto social recente que se delineia de meados de 1970

em diante e hoje jaacute apresenta feiccedilotildees mais claras (nas tecnologias criadas nas formas de

circulaccedilatildeo de informaccedilotildees nos haacutebitos) Na medida em que separa ldquoa imagemrdquo da ldquofotografiardquo

Soulages indica que a ecircnfase na investigaccedilatildeo dos atributos teacutecnicos pode fazer sombra agrave potecircncia

esteacutetica

No horizonte do debate em torno da cultura digital alguns pesquisadores como Felinto

(2013) Nunes (2011) e Hainge (2013) Krapp (20112018) entre outros tecircm atentado para o

interesse pelos temas do erro e do ruiacutedo como abordagens que relacionam as especificidades das

tecnologias inteligentes e como elas se traduzem esteticamente Na mesma linha de raciociacutenio

Menkman (2010) e Krapp (2011) evocam o termo ldquofalhardquo (ou no original em inglecircs glitch) Para

noacutes eacute fundamental associar esse movimento agrave emergecircncia de certa tendecircncia em obras

contemporacircneas que buscam alternativas (ou questionamentos) ao ldquomodelo realistardquo na medida

em que as consideramos exemplares das modificaccedilotildees poeacuteticas agraves quais Soulages (Idem) referiu-

se quer dizer o interesse pelo erro e pelo ruiacutedo no acircmbito da cibercultura tem indicado o

aproveitamento de suas manifestaccedilotildees como uma poeacutetica Fontcuberta (2010) e Nunes (2011)

utilizam respectivamente as expressotildees ldquopoeacutetica dos errosrdquo e ldquopoeacutetica do ruiacutedordquo para falar do

interesse que recentemente alguns artistas tecircm demonstrado por marcas visuais antes

consideradas indesejaacuteveis na imagem fazendo uso seja do computador seja de teacutecnicas claacutessicas

da fotografia (como pinhole ou cacircmara escura) seja de equipamentos artesanais criados de forma

independente ou ainda de estruturas que juntam dispositivos eletrocircnicos computadorizados e

analoacutegicos A questatildeo central aqui para noacutes eacute como essas diferentes estrateacutegias criativas tecircm

impactado o campo da imagem atraveacutes da valorizaccedilatildeo de uma esteacutetica onde o ruiacutedo e o erro

tornam-se natildeo apenas evidentes mas ocupam uma centralidade nas experiecircncias dos e das

artistas podendo ser entendidos como parte de uma tendecircncia de criacutetica a um modelo da imagem

ldquolimpardquo e sem interferecircncias Essa questatildeo seraacute melhor explorada mais agrave frente pois se

percebemos que o tema do ruiacutedo eacute capaz de chamar nossa atenccedilatildeo para esteacuteticas alternativas ao

modelo ldquorealistardquo da imagem percebemos tambeacutem que as caracteriacutesticas desse modelo ainda se

fazem presentes em algumas praacuteticas fotograacuteficas

Em suma podemos afirmar que enquanto o paradigma digital suscita no campo da

imagem uma seacuterie de discussotildees em torno das possibilidades criativas diferentes ndash dentre as quais

66

se pode incluir o ruiacutedo (em formas diversas) como elemento esteacutetico ndash haacute ainda usos bastante

convencionais que natildeo apenas desmentem as teses fundamentadas numa total renovaccedilatildeo esteacutetica

como confirmam noccedilotildees anteriormente relacionadas agraves miacutedias analoacutegicas (como por exemplo a

relaccedilatildeo estreita com o referente) Observar esses movimentos paralelos e simultacircneos bem como

o natildeo desaparecimento por completo das teacutecnicas da imagem fotoquiacutemica (e em alguns casos

seus entrelaccedilamentos com as miacutedias digitais) demonstra duas coisas a primeira eacute que para

identificar movimentos esteacuteticos e tendecircncias que venham a renovar o campo da imagem natildeo

podemos olhar exclusivamente para a emergecircncia de novos dispositivos e em segundo lugar

entender que se o surgimento de novas tecnologias pode ser tomado como ponto de partida para

experiecircncias com uma nova linguagem essas miacutedias vatildeo tambeacutem relacionar-se com toda uma

tradiccedilatildeo artiacutestica ontoloacutegica e filosoacutefica O resultado disso vem sendo detectado por uma seacuterie de

pesquisadores36 que nos uacuteltimos anos estatildeo reafirmando a natureza plural e hiacutebrida da imagem

cada vez mais orientada para uma abertura em trabalhos de caraacuteter multimiacutedia que enfatizam

uma certa verve processual (em detrimento da ldquoobrardquo como objeto artiacutestico finalizado) e menos

preocupados com limites das especificidades dos meios (contenda bastante presente nos debates

que costumavam separar pintura fotografia cinema etc)

32 ANALOacuteGICO + DIGITAL E A ZONA CINZA DE NEGOCIACcedilOtildeES CONTINUIDADES

ATRAVESSAMENTOS

321 Digital (re)visitando tradiccedilotildees visuais

Discutindo alguns trabalhos de artistas da transiccedilatildeo analoacutegico-digital Antonio Fatorelli

(2006) buscou identificar alguns usos das potencialidades do computador Ele analisa exemplos

desse caraacuteter inovador em imagens de registradas em negativo poreacutem modificadas no

computador que de acordo com o pesquisador ldquoquerem fazer ver aleacutem do visiacutevel acrescentar

realidade agraves realidades jaacute construiacutedasrdquo (FATORELLI 2006 p21) Entre as fotografias analisadas

estaacute Revenge of the gold fish da norte-americana Sandy Skoglund (figura 10)37 Uma cena

produzida em estuacutedio que embora alinhada com uma funccedilatildeo testemunhal denuncia sua condiccedilatildeo

36 A exemplo de Fatorelli (20132017) Baio (2015) Katia Maciel (2009) entre outros

37 Disponiacutevel em httpsakronartmuseumorgcollectionObj1713sid=1ampx=970472 Acesso em 200718

67

artificial seu caraacuteter construiacutedo apelando a uma atmosfera oniacuterica (FATORELLI 2006 p30)

Os exemplos reunidos no texto de Fatorelli acionam estrateacutegias de ficcionalizaccedilatildeo ironia

apropriaccedilatildeo sem apartar-se totalmente do referente

Figura 10 - Revenge of the gold fish (Sandy Skoglund1981)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

A exemplo do movimento que o autor executa em seu texto eacute interessante para nosso

debate pensar como os processos de computador partem do real para transformaacute-lo numa espeacutecie

de ldquomundo perfeitordquo uma certa visualidade aprimorada em termos teacutecnicos Por sua

caracteriacutestica de maleabilidade a imagem digital eacute em diversas ocasiotildees alterada em busca dessa

perfeiccedilatildeo seja na direccedilatildeo da melhoria das cores da iluminaccedilatildeo do retoque para realce ou

retiradainclusatildeo de elementos Eacute curioso como essa vontade de aperfeiccediloamento repete um

paradoxo que jaacute se via na fotografia analoacutegica um ideal de perfeiccedilatildeo atribuiacutedo ao real na

imagem Um esforccedilo de composiccedilatildeo na direccedilatildeo de uma imagem sem falhas quando de fato o

real eacute irregular muacuteltiplo confuso imperfeito Eacute algo dinacircmico um aberto impossiacutevel de ser

copiado (PARENTE 1993 p30) Os recursos de que vai dispor o digital por forccedila da informaacutetica

68

seratildeo utilizados na composiccedilatildeo de algo que estaacute para aleacutem do real mas que se finca justamente

em ultrapassaacute-lo no ldquoniacutevel de perfeiccedilatildeordquo conseguido pelo analoacutegico

Conforme jaacute indicado depois que um material eacute digitalizado ele se transforma em

informaccedilatildeo numeacuterica e pode ser trabalhado no computador Assim o digital modifica as outras

miacutedias que quando numerizadas perdem suas caracteriacutesticas originais A partir da hibridizaccedilatildeo

com teacutecnicas anteriores (ateacute o ponto de natildeo ser possiacutevel distinguir entre o que eacute novo ou antigo)

o digital consegue simular em aparecircncia os modos visuais tradicionais

Essas duas questotildees ndash hibridizaccedilatildeo de elementos distintos e simulaccedilatildeo de miacutedias

anteriores ndash satildeo enfatizadas tambeacutem por Manovich (2001) quando explica que as miacutedias digitais

possuem algumas estrateacutegias como a seleccedilatildeo a composiccedilatildeo e a teleaccedilatildeo Ao falar da segunda ele

propotildee que quando o computador mescla elementos analoacutegicos e puramente numeacutericos muitas

vezes as identidades de cada elemento tendem a ser minimizadas ou apagadas para que

esteticamente se tenha a sensaccedilatildeo de uma fusatildeo completa e coerente desses elementos

Referindo-se particularmente ao cinema e ao emprego do que chama de ldquocomposiccedilatildeo digitalrdquo

propotildee que boa parte dos filmes utilize o recurso para criar sequecircncias que simulam uma

filmagem tradicional unindo material captado e cenaacuterio personagens ou objetos sintetizados em

computador para que pareccedilam terem estado todos simultaneamente no mesmo espaccedilo fiacutesico

gravado pela cacircmera criando assim um ldquoefeito de realidaderdquo (MANOVICH 2001 p137)

Um ponto interessante das anaacutelises acima vaacutelido para a fotografia eacute que nos casos em

que ocorre essa suavizaccedilatildeo das manipulaccedilotildees o paradigma digital apresenta uma tendecircncia de

ldquoefeito de realidaderdquo Um efeito que na verdade corresponde aos paracircmetros naturalizados nas

miacutedias visuais anteriores cujas formas de mostrar a realidade seguem certos padrotildees cromaacuteticos

e de iluminaccedilatildeo enquadramento proporccedilatildeo textura Por extensatildeo o digital referencia o

analoacutegico

Se hoje considerarmos toda miacutedia digital criada por consumidores e profissionais ndash fotodigital viacutedeo feito com cacircmeras baratas e celulares conteuacutedo de blogs e jornais onlineilustraccedilotildees criadas com Photoshop filmes editados em Avid etc ndash em termos deaparecircncia a miacutedia digital frequentemente parece exatamente igual agrave miacutedia preacute-computador (MANOVICH 2013 p59)

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Indo aleacutem nesse debate para o ponto que nos interessa diretamente nesse processo de

revisitar a imagem analoacutegica a fotografia digital o faz adotando como modelo um tipo de

fotografia que supotildee uma correspondecircncia entre espaccedilo-tempo da captura uma clareza em

detrimento da penumbra (favorece o detalhamento) e principalmente a ideia do registro direto

(sem alteraccedilotildees) Ou seja incorpora normas esteacuteticas e premissas associadas agrave fotografia de base

fotoquiacutemica de determinado tipo Mistura questotildees formais e conceituais fundamentais de um

momento histoacuterico que lhe eacute estranho

Se pensamos no campo do fotojornalismo a transiccedilatildeo analoacutegico-digital trouxe ganhos

inegaacuteveis de velocidade de produccedilatildeo e circulaccedilatildeo da imagem mas reposicionou o debate sobre

manipulaccedilatildeo que sempre assombrou a fotografia jaacute que a praacutetica natildeo eacute nova Mas do ponto de

vista esteacutetico o fotojornalismo manteve-se bem tradicional em suas praacuteticas De maneira geral

continua repudiando intervenccedilotildees na imagem por motivos eacuteticos

Em 2013 o fotoacutegrafo sueco Paul Hansen teve sua foto Gaza Burial (figura 11) ndash

vencedora do World Press Photo 2012 ndash analisada sob suspeita de falsificaccedilatildeo A imagem mostra

um funeral de duas crianccedilas viacutetimas da guerra entre o exeacutercito israelense e o Hamas na cidade de

Gaza Agrave eacutepoca uma especialista indicou que se tratava de uma composiccedilatildeo com partes de outras

trecircs fotos aleacutem de ter sido clareada Hansen negou as modificaccedilotildees e a equipe da premiaccedilatildeo

afirmou que o fotoacutegrafo jaacute havia explicado o processo de ediccedilatildeo da imagem visto que o WPP

autoriza retoques mas natildeo alteraccedilatildeo de conteuacutedo38 No final concluiu-se que natildeo houve fraude

mas ldquopoacutes-produccedilatildeo com tonsrdquo

38 Fotoacutegrafo vencedor de precircmio de fotojornalismo enfrenta acusaccedilotildees de manipulaccedilatildeo de imagem Disponiacutevel emhttpsnoticiasr7cominternacionalfotografo-vencedor-de-premio-de-fotojornalismo-enfrenta-acusacoes-de-manipulacao-de-imagem-15052013 Acesso em 290718

70

Figura 11 - Gaza Burial (Paul Hansen 2012)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Em 2015 o mesmo precircmio foi retirado de um fotoacutegrafo italiano que havia produzido uma

seacuterie sobre a cidade de Charleroi (Beacutelgica) enfatizando a decadecircncia econocircmica do lugar Das

fotos que compotildeem a seacuterie ldquoCidade negrardquo uma foi tomada em Molenbeek (subuacuterbio de

Bruxelas) e natildeo em Charleroi A situaccedilatildeo de algueacutem que perdeu o precircmio era ineacutedita na

competiccedilatildeo e um de seus representantes ponderou a necessidade de avaliar o significado da

imprensa graacutefica do fotojornalismo e do fotodocumental em suas dimensotildees eacuteticas e

profissionais39 O cerne do debate gerado pelo primeiro caso estaacute na negaccedilatildeo da intervenccedilatildeo

numa imagem que tem como premissa reportar fatos ndash sustentando uma concepccedilatildeo da fotografia

essencialmente como ldquoespelho do realrdquo (DUBOIS 2012) ndash e tomada no momento do

acontecimento e ainda na possibilidade da intervenccedilatildeo acontecer que as mudanccedilas natildeo alterem

39 FERRER Isabel World Press Photo revoga um primeiro precircmio devido a fraude Disponiacutevel emhttpsbrasilelpaiscombrasil20150305cultura1425546065_452789html Acesso em 290718

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o sentido da imagem (o que ela nos diz objetivamente) Jaacute no segundo exemplo a imagem fora

produzida num lugar diferente do informado40

Eacute interessante refletir sobre como o cenaacuterio de produccedilatildeo da fotografia eacute afetado pelos

dispositivos informaacuteticos para questionarmos se realmente as mudanccedilas alcanccedilam o plano

conceitual de maneira a se evidenciarem tambeacutem visualmente Ou em que esferas da produccedilatildeo

visual isso ocorre Ao que parece o fotojornalismo natildeo mudou a maneira de relatar os

acontecimentos e segue privilegiando imagens que atestam uma correspondecircncia com o que se

passou frente ao dispositivo Cabe aqui destacar que quando ocorrem manipulaccedilotildees

() tanto as que atuam no fato em si quanto as acontecidas no momento da revelaccedilatildeodigital estatildeo ligadas a uma busca pela ldquoimagem perfeitardquo possivelmente influenciadapor outros campos como a televisatildeo o cinema ou a publicidade Convive-se cada vezmais com imagens bem produzidas esteticamente bem trabalhadas com boasresoluccedilotildees de luz Elas estatildeo nos anuacutencios das revistas nos outdoors nos livros nainternet Eacute possiacutevel por exemplo perceber que ateacute mesmo utilizaccedilotildees mais ldquocaseirasrdquocomo os perfis nas redes sociais ou apresentaccedilotildees escolares jaacute acompanham apreocupaccedilatildeo por um resultado visual mais acurado (QUEIROGA 2015 p114)

Percebe-se que as caracteriacutesticas do paradigma digital satildeo acionadas para alcanccedilar uma

esteacutetica de equiliacutebrio de tonalidade de luz de plena identificaccedilatildeo das formas que se persegue

atraveacutes das ferramentas de manipulaccedilatildeo oferecidas pelo computador Martins (2013) chama de

ldquoimagens polidasrdquo aquelas modificadas pelo retoque pelo aumento da nitidez cuja plaacutestica estaacute

bem proacutexima ao que aponta Queiroga (Ibidem) Piper-Wright (2018 p8) ressalta que o advento

da fotografia digital nos reconduz a uma era em que a ideia de uma ldquoverdaderdquo na imagem atinge

um patamar elevado associado a certa transparecircncia do meio que conseguiria apagar a

interferecircncia da subjetividade no registro a fim de produzir ldquoimagens melhoresrdquo Para ela a

loacutegica da fotografia digital eacute que a qualidade da imagem estaacute diretamente relacionada com o

incremento do automatismo e da velocidade e com a reduccedilatildeo do grau de intervenccedilatildeo do usuaacuterio

Ela faz uma reflexatildeo bastante interessante do ponto de vista do papel da induacutestria na esteacutetica

preconizada pelos dispositivos digitais

40 Por ocasiatildeo de visita agrave exposiccedilatildeo com os vencedores do World Press Photo 2019 a autora desta tese constatou queentre os valores declarados da competiccedilatildeo estatildeo ldquojusticcedilardquo e ldquoverdaderdquo o que indica que as manipulaccedilotildees de imagenspermanecem como um problema eacutetico para esse tipo de premiaccedilatildeo

72

O desenvolvimento tecnoloacutegico na fotografia digital desde o iniacutecio dos anos 2000quando o consumo de cacircmeras digitais se torna largamente acessiacutevel tem levado nossashabilidades na produccedilatildeo imageacutetica a tal ponto que o direcionamento destas a resoluccedilotildeescada vez mais altas (megapixels) constitui um exemplo notaacutevel Embora o imediatismoe a natureza baseada na tela da fotografia digital sejam as principais mudanccedilasobservaacuteveis nas praacuteticas fotograacuteficas na era digital tambeacutem eacute verdade que esses avanccedilostecnoloacutegicos removeram muitos dos aspectos incocircmodos e defeituosos da fotografiainerentes tanto agrave cacircmera quanto ao ser humano41 (PIPER-WRIGHT 2018 p8)

O conjunto dessas questotildees indica uma tendecircncia de associar esse tipo de imagem

perfeita agrave qualidade da proacutepria miacutedia utilizada toacutepico relevante para a induacutestria das tecnologias

da imagem Para aleacutem do que se verifica no campo do fotojornalismo encontramos evidecircncias da

relaccedilatildeo qualidadeimagem perfeita por exemplo na campanha em favor da transiccedilatildeo do sinal de

TV analoacutegico para digital no Brasil42 (e a contenda sobre se a escolha mais adequada era pelo

modelo japonecircs ou norte-americano de TV digital43) e consequentemente uma certa euforia no

emprego de cacircmeras digitais no iniacutecio desse processo como esforccedilo para elevar o padratildeo de

qualidade dos programas A ldquoperfeiccedilatildeordquo da imagem estaacute na reproduccedilatildeo de texturas volume na

intensidade de cores e luminosidade sua nitidez elevada Ainda se sustenta como argumento

mercadoloacutegico a ideia de que a imagem digital agrave medida que aumenta sua resoluccedilatildeo torna-se

mais e mais realista Curiosamente essa maacutexima contraria afirmaccedilotildees anteriores de que o digital

natildeo tem relaccedilatildeo com o real Tanto possui que atinge o lugar o hiper-real Quando exploramos

uma suposta dicotomia entre o digital e o real (como propunham alguns teoacutericos) parece que

caiacutemos num paradoxo que nos leva a questotildees que retornam ao acircmbito da imagem independente

41 Traduccedilatildeo livre de ldquoThe technological developments in digital photography since the early 2000s when consumerdigital cameras became widely available has progressed our image-making skills and outputs in unprecedentedways with the drive toward increased resolutions (megapixels) being a case in point While the immediacy andscreen-based nature of digital photography is the main observable change to photographic practices in the digitalera it is also the case that these thecnological advances have removed many of the awkward and faulty aspects ofphotography inherent in both camera and humanrdquo

42 Um exemplo disso satildeo as estrateacutegias utilizadas pela TV Globo para promover a digitalizaccedilatildeo Aleacutem das inserccedilotildeesdurante a programaccedilatildeo e informaccedilotildees repassadas nos seus mais diversos programas produziram-se viacutedeos cominstruccedilotildees baacutesicas sobre os equipamentos necessaacuterios para recepccedilatildeo do sinal enfatizando a qualidade do sinal(embora natildeo se explique com base em quecirc a qualidade aumentaria) Ver por exemplo o viacutedeo promocionaldisponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=v_iIq4jQQ_8 Acesso em 28052019

43 O sinal analoacutegico de TV comeccedilou a ser desligado em 2018 de acordo com as capacidades teacutecnicas das emissorasnos diferentes estados e cidades brasileiros ficando disponiacutevel apenas o sinal digital A utilizaccedilatildeo de tecnologiasdigitais na produccedilatildeo televisiva jaacute se observava no comeccedilo dos anos 2000 (filmadoras ilhas de ediccedilatildeo natildeo linearcomputaccedilatildeo graacutefica etc) Note-se que esse movimento eacute acompanhado exatamente de um forte incremento nainduacutestria de equipamentos de TV que utiliza como principal argumento de venda a relaccedilatildeo entre ldquoqualidade daimagemrdquo ou ldquoefeito de realidaderdquo aprimorado e os paracircmetros HD FULL HD (correspondentes ao nuacutemero de pixelspor polegada)

73

da tecnologia Uma questatildeo relativa a modelos esteacuteticos perpetuados em algumas instacircncias

midiaacuteticas ndash a televisatildeo o cinema o fotojornalismo ndash que servem tambeacutem aos propoacutesitos da

induacutestria da imagem

Figura 12 - Trechos do viacutedeo promocional de lanccedilamento de Star Wars em HD

74

Fonte Reproduccedilatildeo internet44

Ao refletir de maneira criacutetica sobre o afatilde de um constante aperfeiccediloamento dos

resultados Krapp (2011 p57) comenta que natildeo podemos pensar linearmente a histoacuteria dos

meios e que ideias sobre tecnologias baseadas num progresso satildeo complicadas a partir de uma

dimensatildeo esteacutetica mas por outro lado de fato uma noccedilatildeo de ldquocruezardquo ou pureza dos dados nas

miacutedias digitais corresponde a expectativas crescentes em relaccedilatildeo ao aumento da resoluccedilatildeo da

imagem no campo audiovisual O cinema tambeacutem experimentou certo entusiasmo em torno da

digitalizaccedilatildeo como marco de uma imagem aperfeiccediloada que traria ao puacuteblico uma experiecircncia

diferenciada Em 2015 os filmes da seacuterie Star Wars (que ateacute aquele momento contabilizavam

seis produccedilotildees) foram relanccedilados em formato digital (HD) conforme sinaliza o viacutedeo

promocional (figura 12) Apesar do conteuacutedo extra (como cenas excluiacutedas do original) enquanto

produto cinematograacutefico tratava-se exatamente dos mesmos filmes A conversatildeo para a

tecnologia digital eacute um dado teacutecnico com seus recursos timidamente empregados para oferecer

um produto velho com nova roupagem

Em filmes como Star Wars - Episoacutedio I - A ameaccedila fantasma (1999) criaram-se efeitos

no computador (cenaacuterios personagens) que foram adicionados agraves cenas gravadas constituindo

um produto que corresponde agrave conceituaccedilatildeo de hiacutebrido de Manovich (2013) Aprofundando essa

44 Disponiacutevel em httpsyoutubeXuNhZ8K4iow Acesso em 28052019

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questatildeo o pesquisador explica que nem sempre o hibridismo se expressa como uma esteacutetica

atraveacutes de um estilo colagem onde a justaposiccedilatildeo de elementos diferentes eacute evidente

(MANOVICH 2013 p257) ou seja que nem todos os hiacutebridos nos permitem identificar a

presenccedila de elementos de miacutedias distintas O que ocorre em Star Wars eacute a uniatildeo de camadas de

material filmado elementos animados em 2D e 3D e efeitos graacuteficos que se misturam dando a

impressatildeo de um todo estilisticamente coerente (MANOVICH 2013 p259) Tal tendecircncia eacute

particularmente interessante tanto nos exemplos cinematograacuteficos quanto no campo do

fotojornalismo (conforme indicamos) nos quais predomina uma esteacutetica de suavidade nas

diversas estrateacutegias de manipulaccedilatildeo da imagem

Esses breves exemplos mostram que no acircmbito da imagem haacute questotildees que

supostamente pertencem aos paradigmas analoacutegico e digital entrando em choque Se por um

lado tais imagens diferem muito pouco esteticamente da fotografia e do cinema convencionais

pelos motivos apontados que vecircm de uma referecircncia visual anterior ndash imagens fotoquiacutemicas ndash ateacute

quando haacute retoques o esforccedilo dos profissionais eacute para que natildeo sejam evidenciados A partir de

imperativos eacuteticos recusam-se os artifiacutecios a natildeo ser quando usados para um aperfeiccediloamento

que tende a um velho e conhecido padratildeo Assim imagens atuais se assemelham agraves imagens

antigas Ou literalmente imitam-nas reproduzem-nas Em contrapartida satildeo artefatos digitais que

tecircm como caracteriacutestica a potecircncia de alteraccedilatildeo facilitada mas os artifiacutecios satildeo aceitos com

ressalvas porque as ideias em torno do que significa por exemplo uma imagem fotograacutefica

informativa parecem mais fortes do que a capacidade de compreender aceitar e tirar partido de

uma ordem visual que oferece novos arranjos significaccedilotildees e opccedilotildees formais45 Afinal

intervenccedilotildees e mesmo a ficcionalizaccedilatildeo natildeo satildeo novidades no campo da imagem

Nos campos do fotojornalismo e do documentarismo o contrato entre imagem e

realidade decorrente da funccedilatildeo de evidecircncia que a fotografia assumiu desde seus primeiros usos

acaba por impor limites agraves intervenccedilotildees Poreacutem o que nos chama mais a atenccedilatildeo eacute a ideia

45 O site de notiacutecias The Intercept Brasil utiliza a fotografia como parte de seu conteuacutedo informativo de maneirabastante criativa aplicando movimento em imagens originalmente estaacuteticas alterando cores utilizando o recurso dafotomontagem entre outras estrateacutegias que tornam a imagem dinacircmica atraveacutes exatamente das ferramentasoferecidas pelo paradigma numeacuterico Ver por exemplo as reportagens ldquoEmprestou seu wifi a um amigo criacutetico doDoria Cuidado ele processou ateacute o dentista de quem falou mal delerdquo (Disponiacutevel emhttpstheinterceptcom20181004doria-processo-facebook) e ldquoComo a eleiccedilatildeo de Ronaldo Caiado do DEMcoloca em risco a Chapada dos Veadeirosrdquo (Disponiacutevel em httpstheinterceptcom20180923ronaldo-caiado-chapada) ambas acessadas em 011118

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impliacutecita de que em caso de manipulaccedilotildees estas sejam tatildeo refinadas a ponto de que seja difiacutecil

identificaacute-las reafirmando por um lado a imagem enquanto duplo do referente ao mesmo tempo

em que se nega a condiccedilatildeo de artifiacutecio que caracteriza em uacuteltima instacircncia o fotograacutefico

A fotografia digital caracteriza-se entatildeo por uma ldquoloacutegica paradoxalrdquo de um lado tem

procedimentos bastante diferentes dos que satildeo a base da imagem fotoquiacutemica e por outro reforccedila

antigos modos de representaccedilatildeo visual (MANOVICH 1995 p2) Enquanto se expandiam e se

consolidavam ndash devemos aqui ter em conta que o texto de Manovich sobre o assunto data do

comeccedilo dos anos 1990 ndash as tecnologias digitais eram postas em comparaccedilatildeo com as imagens

anteriores e tambeacutem contribuiacuteram para reconfigurar suas funccedilotildees Como exemplo Manovich cita

o cinema que atravessava um processo de tendecircncia ao desaparecimentos da peliacutecula provocando

tambeacutem uma fetichizaccedilatildeo do ldquofilm lookrdquo da sua aparecircncia granulada desfocada (que remete ao

estilo proacuteprio da imagem de base fotoquiacutemica) em contraste com a imagem sintetizada em

computador ldquomuito limpa muito perfeitardquo (Idem p5)

Dessa forma a imagem de siacutentese parece ldquoreal demaisrdquo e sua referecircncia criativa

permanece sendo a imagem fotograacutefica tradicional (MANOVICH 1995 p13) Conforme vimos

o cinema comercial tambeacutem investe na mesma loacutegica empregando formas criadas digitalmente

que quando combinadas a cenas gravadas e agrave atuaccedilatildeo do elenco mal podemos distinguir o que

foi filmado em set do material elaborado em computador Para que a narrativa se torne criacutevel eacute

necessaacuterio que todo o conjunto artificial esteja respaldado numa ideia de realidade

correspondente agraves tecnologias de imagem anteriores

O uso de filtros nas imagens fotograacuteficas digitais constitui uma outra vertente que potildee

lado a lado referecircncias visuais analoacutegicas e a estrutura das miacutedias digitais imitando a granulaccedilatildeo

efeitos de solarizaccedilatildeo e ateacute o negativo preto e branco46 Hoje essas praacuteticas jaacute estatildeo naturalizadas

entre os usuaacuterios de smartphones e aplicativos fotograacuteficos mesmo que estes sequer tenham

conhecido e praticado a fotografia analoacutegica num estranho revisitar de estilos e modos de

tecnologias antigas

46 Uma imagem digital fotograacutefica em preto e branco jaacute eacute resultado de uma alteraccedilatildeo Conforme explica Valle (2012p45) os sensores de cacircmeras digitais possuem filtros que captam a informaccedilatildeo luminosa em azul verde e vermelhoe uma imagem em preto e branco eacute obtida quando se descartam as informaccedilotildees de cor Ou seja um equipamentodigital natildeo registra diretamente uma foto em preto e branco

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Um caso bastante interessante eacute o projeto desenvolvido pelo coletivo Basetrack (figuras

13 14 e 15) O grupo formou-se em 2010 por iniciativa do fotoacutegrafo Balazs Gardi e conta ainda

com mais quatro integrantes Teru Kuwayama Rita Leistner Omar Mullick e Tivadar

Domaniczky Gardi eacute fotojornalista e acompanha desde 2001 o desdobramento da guerra no

Afeganistatildeo Apoacutes 2003 Gardi comeccedilou a ter dificuldades para comercializar seu material junto

agraves agecircncias e veiacuteculos de miacutedia tradicional porque o tema do Afeganistatildeo comeccedilava a sumir da

pauta da imprensa ndash que se focava na guerra do Iraque O Basetrack acompanhou durante seis

meses um batalhatildeo com mil fuzileiros norte-americanos divulgando as imagens na internet (em

site proacuteprio e em redes sociais como Facebook e Twitter) Por meio dessa estrutura parentes e

amigos dos fuzileiros tinham uma fonte de informaccedilatildeo um canal de comunicaccedilatildeo para

acompanhar a rotina do batalhatildeo

As imagens produzidas pelo Basetrack foram feitas com Iphones47 visando o

barateamento da produccedilatildeo Aleacutem de fotos o equipamento podia gravar tambeacutem viacutedeos e aacuteudios

aleacutem de ser resistente agraves intempeacuteries do lugar Fora isso o Iphone oferecia a possibilidade de

aplicar agraves imagens filtros que remetem agrave esteacutetica de antigas Polaroids (o aplicativo utilizado foi o

Hipstamatic) com tonalidades esverdeadas e um efeito que lembra granulaccedilatildeo

Uso cacircmeras com filme preto e branco cacircmeras de plaacutestico chinesas e o iPhone eacute apenasuma versatildeo digital destas cacircmeras de brinquedo Tira fotos muito boas e com qualidadeOs softwares de poacutes-produccedilatildeo satildeo aplicativos baratos como o que usamos Hipstamaticque custou 2 doacutelares O iPhone eacute a minha cacircmera profissional mais barata soacute custou 800doacutelares e eacute uma ferramenta que tem basicamente tudo que um jornalista precisa hoje(GARDI online 2012)

Pelo exposto a escolha do equipamento se deu por motivos de ordem praacutetica Mas sobre

o uso dos filtros ou seja qual a intencionalidade desse artifiacutecio os fotoacutegrafos natildeo falam Poreacutem

ao discutir sobre o tipo de imagem publicado Kuwayama afirma

Evito expectativas ou noccedilotildees preconcebidas mas na eacutepoca em que lanccedilamos o projeto acontra-insurgecircncia (ou ldquoCOINrdquo na sua abreviaccedilatildeo militar) fora introduzida como novaestrateacutegia no Afeganistatildeo Um dos objetivos do Basetrack era mostrar ao puacuteblico o queessa contrainsurgecircncia realmente significava e com o que se parecia na praacutetica Emuacuteltima anaacutelise o projeto natildeo era sobre fotografia era sobre a abertura de linhas de

47 Smartphone fabricado pela Apple desde 2007

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comunicaccedilatildeo Fotografias natildeo eram o produto eles eram a taacutetica48 (KUWAYAMAonline 2014)

Ao dizer que a fotografia eacute mais um meio e menos uma mensagem o fotoacutegrafo reduz a

importacircncia das escolhas temaacuteticas e esteacuteticas em detrimento da funccedilatildeo desempenhada pela

imagem no projeto conectar os fuzileiros suas famiacutelias e amigos Ou seja enfatiza o propoacutesito

interativo da iniciativa Na mesma entrevista ele diz que as fotografias eram eficazes porque as

pessoas estavam em busca de qualquer evidecircncia de que seus conhecidos estavam vivos e

interessavam-se por qualquer percepccedilatildeo de suas rotinas no Afeganistatildeo Por esse motivo

principalmente os retratos eram alvo de muita atenccedilatildeo

O resultado eacute uma estranha combinaccedilatildeo da visualidade de uma imagem fotoquiacutemica

produzida pelo caacutelculo informaacutetico num esforccedilo de hibridizaccedilatildeo que natildeo esconde a mesticcedilagem

de referecircncias No tocante ao conteuacutedo o Basetrack tanto se aproxima de uma fotografia de

guerra convencional quanto obteacutem um registro despojado da rotina na zona de conflito mais

proacuteximo da fotografia vernacular ndash a exemplo do conjunto de imagens que mostram as tatuagens

dos soldados norte-americanos (figura 13) um estilo tiacutepico da fotografia com intenccedilotildees de

compartilhamento A concepccedilatildeo e o planejamento do projeto ancoram-se na praacutetica de uma

fotografia de guerra que se articula com a oferta visual agregada ao Iphone e a uma cultura

visual mais geral na qual as tendecircncias de assimilaccedilotildees esteacuteticas jaacute se tornaram corriqueiras

Satildeo incontaacuteveis neste sentido os aplicativos atual coqueluche do mundo digital que sevoltam para a fotografia e o mais interessante transcodificando para os efeitosprogramados as respostas visuais que correspondem exatamente ao tipo de imagementregue pela Polaroid e congecircneres O que eacute sob o ponto de vista dos filtros e ajustes oInstagram senatildeo vaacuterios estilos de texturas cores e acabamentos que eram comuns agravePolaroid ndash memoacuteria plaacutestica Mais que isso agregaccedilatildeo de valor simboacutelico (SILVAJUNIOR online 2017)

48 Traduccedilatildeo livre de ldquoI avoid expectations or preconceived notions but at the time we launched the projectcounterinsurgency (or ldquoCOINrdquo its military abbreviation) had been introduced as the new strategy in AfghanistanOne of the goals of Basetrack was to show the public what that counterinsurgency actually meant and looked like inpractice Ultimately it wasnrsquot about photography it was about opening lines of communication Photographs werenrsquotthe product they were the tacticrdquo

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Figura 13 - Tattoed US Marines First Battalion Eighth Marine Regiment Helmand Province

Afghanistan (Projeto Basetrack 2010)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

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Figura 14 - Notes on a whiteboard at the command center on Halloween night at Combat Outpost 7171 In

Helmand Province Afghanistan on October 31 2010 (Projeto Basetrack 2010)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Eacute interessante que os efeitos aplicados pelo Basetrack podem atualmente figurar como

um artifiacutecio esteacutetico mas pensadas agrave luz de sua eacutepoca essas marcas visuais da Polaroid eram

tidas como defeitos Poreacutem hoje deslocadas de seu contexto e jaacute dissociadas da ideia de uma

fotografia de amadores e de pouco rigor teacutecnico o ldquoefeito Polaroidrdquo reveste-se de uma aura de

despojamento como bem observou Silva Junior (Idem) Uma certa informalidade esteacutetica

evocada para combinar com a simplicidade de imagens que funcionam como breves

comunicaccedilotildees entre usuaacuterios de internet quebrando um pouco da seriedade da narrativa visual

jornaliacutestica

Como aqui o que assistimos eacute a aplicaccedilatildeo desse ldquoestilo coolrdquo a imagens que ficam entre

o fotojornalismo e a foto vernacular elas podem ser caracterizadas de hiacutebridos originados na

interlocuccedilatildeo entre as propriedades do software e referecircncias de meios anteriores ldquotraduzidasrdquo

em suas ferramentas

81

Uma vez que computadores satildeo um ambiente para miacutedias simuladas e novas eacute logicoque eles comecem a criar hiacutebridos () Traduzidas para o software teacutecnicas de miacutediasfiacutesicas mecacircnicas e eletrocircnicas atuam como espeacutecies que possuem uma ecologia comumndash nesse caso um ambiente compartilhado e uma vez lanccediladas nesse ambiente comeccedilama interagir mudar e construir hiacutebridos49 (MANOVICH 2013 p163-164)

Nas fotografias do Basetrack a esteacutetica Polaroid eacute revisitada atraveacutes dos filtros mas o

resultado possui certa estranheza vinda exatamente desse aspecto ldquopolidordquo da imagem criada

por aparelhos digitais (aparentemente livres de ruiacutedo) que a Polaroid resultante de um processo

fotoquiacutemico normalmente natildeo tem Quer dizer embora se busque uma conexatildeo com o visual da

Polaroid a natureza emulada da imagem final natildeo eacute dissimulada pelo contraacuterio noacutes percebemos

esse caraacuteter de imitaccedilatildeo

Como na emulaccedilatildeo uma parte de um sistema imita e substitui parte de outro sistema ecomo o ecircmulo natildeo pode se manter totalmente isolado das caracteriacutesticas da base dosistema emulador acontece algo como um contaacutegio de um pelo outro () Eacute justamenteesse corpo a corpo das materialidades dos aparatos que retira o sistema emulador de suacondiccedilatildeo de transparecircncia e o revela como parte do sistema emulado Dessa maneiraentatildeo da emulaccedilatildeo resulta () um corpo impuro uma imagem engendrada entre oemulador e o emulado (BAIO 2016 p 54)

Baio (2016) explica ainda que a emulaccedilatildeo conserva sempre algo da ordem da

incompletude da imprecisatildeo e da falha e eacute nesse sentido que comparativamente notamos

diferenccedilas entre a produccedilatildeo do Basetrack e Polaroids antigas50 A partir desse blend de

referecircncias visuais as fotografias de guerra do Afeganistatildeo caracterizam-se justamente como esse

ldquocorpo impurordquo que fica num lugar intermediaacuterio entre o digital e o analoacutegico formatando algo

que tenta unir esses dois universos sem contudo definir-se por um ou outro em maior grau Na

condiccedilatildeo de artefatos criados por meio da estrutura de um software que reproduz efeitos texturas

e tonalidades de uma miacutedia analoacutegica a presenccedila dessas referecircncias de miacutedias preacute-digitais natildeo se

faz em seu estado puro ou original (MANOVICH 2013 p326) Assim natildeo se trata de uma

simples incorporaccedilatildeo de caracteriacutesticas da Polaroid mas de uma recriaccedilatildeo de determinado modo

visual sob os paracircmetros de um sistema totalmente diferente Essas imagens apresentam a

49 Traduccedilatildeo livre de ldquoOnce computers became a comfortable home for a large number of simulated and new mediait is only logical to expect that they would start creating hybrids () Translated into software media techniquesstart acting like species within a common ecologymdashin this case a shared software environment Once ldquoreleasedrdquointo this environment they start interacting mutating and making hybridsrdquo50 Peter Krapp (2011) discute o processo de emulaccedilatildeo em games recentes produzidos para consoles como NintendoWii que recuperam o design de jogos dos anos 1980 em 2D como recurso que termina por estetizar a falha nosambientes da cultura digital atraveacutes de uma esteacutetica retrocirc (nos recursos graacuteficos e sonoros)

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estranha condiccedilatildeo de lembrarem fotografias da Polaroid mas diferem delas conformando um

hiacutebrido uma espeacutecie de Polaroid digital

Figura 15 - Afghan detainee at Patrol Base Talibjan Helmand Province Afghanistan (Projeto Basetrack

2010)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

De volta agraves ideias de Manovich a respeito da imagem digital o autor lembra que

independente do que signifique esta ainda representa a fotografia remetendo a certas ideias do

que deve ser uma fotografia o que devemos esperar dela

() enquanto a imagem digital promete substituir completamente as teacutecnicas defilmagem ao mesmo tempo encontra novas funccedilotildees e valores para o aparatocinematograacutefico para os filmes claacutessicos e a esteacutetica fotograacutefica Esse eacute o primeiroparadoxo da imagem digital () o que a imagem digital preserva e propaga satildeo oscoacutedigos culturais do filme e da fotografia (MANOVICH 1995 p5)

Quer dizer se na base mesmo do sistema haacute uma diferenccedila inegaacutevel entre fotografia

digital e analoacutegica a novidade que representa a primeira em termos teacutecnicos se articula com uma

83

expectativa de produtores consumidores e espectadores da imagem fotograacutefica que (embora natildeo

exclusivamente) corresponda agraves noccedilotildees de um momento temporal singularizado de um

alinhamento entre objeto e imagem de que retoques e alteraccedilotildees (se ocorrerem) sejam

praticamente imperceptiacuteveis que haja alguma organizaccedilatildeo compositiva na tomada da cena cujos

paracircmetros dominantes sejam o da perspectiva geomeacutetrica e ainda que seja possiacutevel o

reconhecimento do referente na imagem Para Aumont (apud BAIO 2015 p47) quando

relacionamos a imagem aos seus modos de produccedilatildeo e consumo assumimos que a teacutecnica

influencia a forma como compreendemos essas imagens de modo que esse entendimento eacute

atravessado por certas ideias dominantes ligadas agrave tecnologia utilizada Essas caracteriacutesticas satildeo

sintomaacuteticas de certa tradiccedilatildeo na fotografia (MANOVICH 1995 p12) que eacute uma entre vaacuterias e

sempre conviveu com movimentos e praacuteticas que lhe contrariavam E a imagem digital ainda

convive com tais questotildees

Considerando que as premissas da imagem informativa suas relaccedilotildees com a necessidade

de reportar fatos acabam por constranger alteraccedilotildees expliacutecitas e de verossimilhanccedila reduzida51

acreditamos ser necessaacuterio levar o debate sobre as vizinhanccedilas entre analoacutegico e digital para o

espaccedilo artiacutestico Nesse sentido Antonio Fatorelli (2017) aponta que haacute uma negociaccedilatildeo entre

analoacutegico e digital minando pretensotildees renovadoras atribuiacutedas ao advento do numeacuterico

(hellip) ao simular o dispositivo analoacutegico de registro a cacircmera digital passa a incorporaras singularidades da codificaccedilatildeo perspectivista e os princiacutepios materiais e imateriaistradicionalmente vinculados agrave cultura visual analoacutegica Uma decorrecircncia decisiva desseprocesso de emulaccedilatildeo refere-se agrave particularidade de que ao perpetuar a dependecircncia dossinais de luz no momento do registro da imagem realizada na presenccedila do mundo fiacutesicoa fotografia digital incorpora as fabulaccedilotildees relacionadas ao modo de inscriccedilatildeo indicial(hellip) Do mesmo modo que as imagens de fatura analoacutegica tambeacutem as fotografias digitaisencontram-se contaminadas para usar uma figura cara ao modo de impressatildeo indicial enesse sentido balizadas pela loacutegica do traccedilo (hellip) (FATORELLI 2017 p66)

Aqui o autor indica como problema central o registro da imagem que ainda se vincula

ao que estaacute em frente agrave cacircmera Isso funda uma noccedilatildeo de correspondecircncia entre

imagemreferente e mesmo quando os fotoacutegrafos promovem intervenccedilotildees na imagem fazem-no

tentando respeitar convenccedilotildees de verossimilhanccedila mimetismo figuraccedilatildeo Enquanto se mantiver

atado ao imperativo do traccedilo indicial jogando com a transformaccedilatildeo de uma imagem anterior o

51 Fred Ritchin (2008) discute alguns exemplos de recriaccedilotildees de imagens a partir do computador e observa que noacircmbito do jornalismo e da documentaccedilatildeo eacute necessaacuterio estabelecer alguns padrotildees e limites que natildeo comprometam ainformaccedilatildeo e a confianccedila na imagem digital

84

digital natildeo instaura uma nova imagem podendo ser colocado ao lado do modo analoacutegico

(FATORELLI 2017 p67) Ou pelo menos natildeo parece o fazer de maneira radical como esteve

no desejo associado a seu surgimento Essa questatildeo pode ser observada em muitas das fotos

compartilhadas em redes sociais e tambeacutem na esfera da imagem artiacutestica

O fotoacutegrafo Andreas Gursky realiza montagens que parecem imagens tomadas num uacutenico

clique Ele eacute lembrado por seu entusiasmo em relaccedilatildeo agrave tecnologia pela manipulaccedilatildeo que realiza

no material produzindo imagens que propotildeem alargar o vieacutes realista da fotografia graccedilas ao

aparato digital O alematildeo trabalha com fotografias em grande escala de paisagens ou cenas que

discutem o consumo a economia e seus efeitos na atualidade ndash a exemplo de Amazon (figura

17) Eacute importante lembrar que ele estaacute ligado agrave tradiccedilatildeo artiacutestica da Escola de Dusseldorf onde

sob orientaccedilatildeo de Bernd e Hilla Becher vaacuterios profissionais consolidaram a ldquoesteacutetica

inexpressivardquo52 (COTTON 2013) Nesse sentido seu trabalho apresenta caracteriacutesticas

documentais valendo-se da tecnologia digital para potencializar um olhar ampliado e objetivo

sobre os temas abordados

Hoje em dia uma foto sua tem em geral dois metros de altura e cinco metros de larguraSeus trabalhos constituem objetos que se impotildeem imagens que nos fazem parar o queestamos fazendo (hellip) As fotografias se valem de tecnologias tanto novas comotradicionais (por exemplo ele usou cacircmeras de formato grande para obter o maacuteximo declaridade e depois recorreu agrave manipulaccedilatildeo digital para refinar a imagem) com umafluidez que ateacute entatildeo tinha sido exclusiva da fotografia comercial em publicidade(COTTON 2013 p83)

A dimensatildeo das imagens ndash levando o observador a tomar distacircncia para perceber a cena

em sua totalidade ndash eacute um elemento importante de significado o que natildeo impede quem queira de

se ater ao grande conjunto de detalhes das fotos (por conta da alta resoluccedilatildeo)53 E foi para atingir

uma grande escala que recorreu ao computador Em imagens como Love parade (figura 16)

juntou digitalmente fotos capturadas em separado Satildeo composiccedilotildees de situaccedilotildees que nunca

52 Para detalhes sobre a fotografia inexpressiva alematilde bem como sobre a influecircncia de movimentos como a NovaObjetividade e os trabalhos documentais de August Sander para seu desenvolvimento ver Cotton 2013 p81-113

53 Cf Manatakis Lexi The photographer who offers a Godrsquos-eye view on our world Revista Dazed Disponiacutevel emhttpwwwdazeddigitalcomart-photographyarticle389651photographer-andreas-gursky-gods-eye-view-on-earth-hayward-gallery Acesso em 140718

85

ocorreram da maneira como satildeo exibidas Realidades que existem especificamente enquanto

imagem Como toda fotografia

Figura 16 - Love parade (Andreas Gursky 2001)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Figura 17 - Amazon (Andreas Gursky 2016)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

O trabalho de Gursky apresentado aqui embora possiacutevel pela operaccedilatildeo de ldquocolagemrdquo de

mais de uma imagem via computador utiliza como elementos constituintes fotografias

86

registradas de maneira convencional e promove a junccedilatildeo das partes de forma cuidadosamente

sofisticada sutil que natildeo deixa ver as emendas Love parade mais parece uma fotografia aeacuterea

feita com uma super cacircmera capaz de manter os mais iacutenfimos detalhes da cena

Tais operaccedilotildees de montagem feitas pelo computador se reportam a uma esteacutetica marcada

pela suavidade e pela continuidade nas quais as fronteiras entre elementos distintos satildeo

apagadas em vez de enfatizadas (MANOVICH 2001 p142) como pode ser visto tambeacutem na

fotografia A sudden gust of wind (after Hokusai) (1993) de Jeff Wall (figura 18) Nela estaacute

retratada uma situaccedilatildeo pouco provaacutevel poreacutem plausiacutevel A montagem eacute inspirada numa pintura

japonesa e mostra algumas pessoas surpreendidas por uma ventania Os personagens satildeo atores

fotografados previamente os papeacuteis que voam foram replicados vaacuterias vezes para aumentar a

sensaccedilatildeo de desordem A sutileza dessas ldquoemendasrdquo eacute marcante Uma perfeita ilusatildeo Para

Fontcuberta (2010 p100) Jeff Wall e outros artistas da era digital valorizam o computador como

instrumento produtor de sentido poreacutem as manipulaccedilotildees que promovem satildeo dissimuladas

correspondendo agrave loacutegica testemunhal da qual em vaacuterias situaccedilotildees a fotografia se vecirc dependente

Como diz Ritchin (2008 p17) ldquo(hellip) uma fotografia pode ser considerada um menu a ser

tocado ou clicado ou simulado (embora a cena representada talvez nunca tenha ocorrido e

possivelmente natildeo ocorreu mesmo) ou seus zeros e uns podem ser transformados em qualquer

outra coisardquo O mesmo autor compreende o que acontece na fotografia como sintomaacutetico de uma

sociedade que busca cada vez mais a excelecircncia e o aperfeiccediloamento de habilidades alterando os

proacuteprios coacutedigos Quer dizer atraveacutes de mudanccedilas na base informativa das coisas mas que na

aparecircncia satildeo imperceptiacuteveis O conjunto da imagem corresponde a paracircmetros de uma cena

tomada espontaneamente como um instantacircneo de um fotoacutegrafo atento o suficiente para capturar

o momento exato em que o vento carrega os papeis diante de quatro personagens surpresos

O que parece eacute que a loacutegica do numeacuterico e sua natureza criativa e calculada vatildeo nos dar

essa realidade fotograacutefica numa plaacutestica proacutepria que possui algo de hiper-real ndash jaacute que o hiper-

real eacute mais proacuteximo da fotografia convencional (MANOVICH 2013 p260) ndash pois eacute resultado de

uma visatildeo aperfeiccediloada ndash maquiacutenica automatizada Poreacutem o diferencial trazido pelo sistema

digital por vezes eacute utilizado jogando apenas com essa plaacutestica ldquomuito limpardquo ldquomuito realrdquo sem

questionamento a respeito de dimensotildees que envolvem a fotografia como o tempo e as formas

87

experimentando com seus limites para que de fato novas visualidades se apresentem O digital

nem sempre sugere maneiras de repensar a fotografia para aleacutem de um esquema visual que

revisita o ldquorecorte do mundordquo As imagens satildeo mesmo bastante ambiacuteguas Enquanto se valem da

articulaccedilatildeo cuidadosa de elementos constituindo-se como verdadeiras montagens (sem agrave primeira

vista denunciarem-se como tal) elas conceitualmente potildeem em debate a natureza intriacutenseca da

imagem em geral que eacute tratar-se de uma elaboraccedilatildeo de uma construccedilatildeo uma ldquosegunda realidaderdquo

(PARENTE1993) E desse modo devem habitar a esfera do possiacutevel Por outro lado

plasticamente elas natildeo diferem tanto de imagens anteriores realizadas sob o pensamento de que a

fotografia estaacute sob a regra do instantacircneo carrega um vieacutes testemunhal evocando em uacuteltimo caso

o registro que pode sempre ser revisitado de algo que esteve diante de algueacutem com uma cacircmera

Ou com vimos a respeito do uso de filtros que recuperam esteacuteticas analoacutegicas a fotografia

digital atua na chave da remediaccedilatildeo criando situaccedilotildees em que as imagens trazem formas visuais

anteriores retrabalhadas pelo dispositivo e deixam expliacutecita a sua natureza emulada

Figura 18 - A Sudden Gust of Wind (after Hokusai) (Jeff Wall 1993)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Num estudo sobre as imagens digitais Cesar Baio (2015) faz uma retomada do

pensamento teoacuterico sobre o termo ldquodispositivordquo mostrando que as tradiccedilotildees e modelos de

pensamento contaminam as teacutecnicas para aleacutem do atributo de ineditismo que o surgimento de

88

uma nova tecnologia parece carregar54 A partir de apontamentos de vaacuterios autores percebe-se

que os dispositivos podem transmitir atraveacutes de seus aspectos teacutecnicos formas de entender o

mundo e modelos esteacuteticos reforccedilados eou enfraquecidos na praacutetica artiacutestica o que se relaciona

com a ambiguidade encontrada nos trabalhos de Wall e Gursky Ou que a imagem digital tida natildeo

como unidade mas como a estrutura de software que lhe daacute corpo pode servir agrave criaccedilatildeo de

formas especiacuteficas que decorrem do cruzamento de referenciais esteacuteticos alheios ao ambiente

digital (como no caso dos filtros e aplicativos)

Haacute dois aspectos levantados nesse debate (que o autor faz a respeito do cinema mas que

utilizamos aqui em favor da fotografia) a noccedilatildeo de que o dispositivo presta-se ao registro do

mundo e o mascaramento da presenccedila e articulaccedilotildees que ocorrem no seu interior (transparecircncia

da maacutequina) ambos aspectos naturalizados pelo espectador Esses elementos aparecem

relacionados nas obras citadas haacute pouco que empregam a tecnologia digital a serviccedilo de marcos

ideoloacutegicos da imagem indicial ldquotraccedilo do realrdquo (DUBOIS 2012) Montam cenas que se alinham

ao modelo realista que decorre do registro direto do mundo e valem-se da transparecircncia (os

processos no dispositivo natildeo satildeo detectaacuteveis) Reafirmam assim as ldquoheranccedilas ontoloacutegicas e

epistemoloacutegicasrdquo (BAIO 2015 p48) dominantes nos seacuteculos XIX e XX

Na seara dos que empregam o digital ainda ligados agrave epistemologia da imagem

fotoquiacutemica Valle (2012) realizou um levantamento bastante interessante sobre o comportamento

dos ldquofotoacutegrafos migrantesrdquo aqueles que entram no mundo da fotografia digital utilizando-a numa

correspondecircncia com padrotildees teacutecnicos comuns no paradigma analoacutegico Atraveacutes de entrevistas

ela demonstra por exemplo as frequentes comparaccedilotildees entre pixels e gratildeos entre o negativo e o

CCD entre o padratildeo ISO e a resoluccedilatildeo das cacircmeras digitais que atestam a incompreensatildeo da

natureza distinta dos sistemas e assim impedem os usuaacuterios de renovarem a linguagem visual

Outro ponto interessante indicado na pesquisa eacute que toda uma gramaacutetica utilizada por softwares e

comandos do universo da imagem digital ndash a exemplo do Photoshop e Lightroom ndash remete a

processos analoacutegicos como pintar clarear borrar desfocar associados a paracircmetros oacuteticos

materiais e quiacutemicos Esse conjunto de ferramentas utilizado no tratamento das fotografias

54 No mesmo livro o autor faz uma interessante distinccedilatildeo entre dois usos do termo ldquonovordquo o primeiro marca umaoposiccedilatildeo a algo velho que se torna ultrapassado e o segundo eacute a compreensatildeo do novo como maneiras originais ediferentes de utilizar algo jaacute conhecido ou seja reinventar reposicionar o velho em novas articulaccedilotildees estrateacutegiasEssa uacuteltima compreensatildeo estaacute bastante proacutexima de nossa maneira de rediscutir os aparecimentos e sobrevivecircnciasdas miacutedias analoacutegicas da imagem

89

estabelece ldquo(hellip) um padratildeo de ordem impedindo o desenvolvimento de novas linguagens e

induzindo o fotoacutegrafo a uma produccedilatildeo condicionada distante da exploraccedilatildeo de novas

possibilidades do numeacutericordquo (VALLE 2012 p60) A pesquisadora atesta que natildeo raro os

fotoacutegrafos usavam os mesmos recursos repetindo certas modalidades esteacuteticas

() a distacircncia entre o programador e o fotoacutegrafo usuaacuterio do programa eacute enormeEnquanto a diferenccedila entre os programas feitos para usuaacuterios descomprometidos (natildeo-fotoacutegrafos) e para fotoacutegrafos (que se pretendem criadores) satildeo miacutenimas E mais adiferenccedila de habilidades exigidas para explorar programas entre os natildeo-fotoacutegrafos e osfotoacutegrafos tambeacutem eacute miacutenima (hellip) Os artistas desbravadores de novas linguagensfotograacuteficas se igualam a usuaacuterios quaisquer quando estatildeo diante do Photoshop e doLightroom por exemplo Usam os mesmos filtros e presets Apertam os mesmos bototildeesProduzem os velhos e repetidos efeitos e imagens padronizadas (VALLE 2012 p97)

Baio (2016) nota que uma estrateacutegia adotada pela induacutestria para mascarar as

disparidades entre os sistemas analoacutegico e digital eacute o fato de as cacircmeras digitais emularem

fisicamente as analoacutegicas na medida em que a formaccedilatildeo e entrega da imagem satildeo desconhecidas

estando invisiacuteveis aos nossos olhos eacute compreensiacutevel os usuaacuterios acreditarem que praticamente

natildeo haacute diferenccedilas significativas na passagem de um modo de registro para o outro Quando o

dispositivo ecoa em sua proacutepria estrutura a tecnologia que promete superar curiosamente o

usuaacuterio repete o modo de usar tiacutepico do equipamento ldquoobsoletordquo acionando comportamentos e

esteacuteticas padronizados

Em decorrecircncia dos pontos abordados percebemos que haacute certa continuidade de aspectos

esteacuteticos na passagem do analoacutegico para o digital Que as distinccedilotildees de natureza entre os sistemas

natildeo fundam necessariamente e sempre uma renovaccedilatildeo de modos visuais fazendo com que

interroguemos o que permanece e o que se modifica para aleacutem do imperativo tecnoloacutegico na

imagem

Lister (1995 p20-21) faz uma criacutetica ao pensamento sobre certo impacto revolucionaacuterio

do digital e afirma que natildeo haacute uma ruptura clara entre este e a antiga fotografia analoacutegica porque

mesmo que se tenham novas estruturas produtoras usos e ferramentas isso tem que ser

negociado junto a ideologias e convenccedilotildees de uma cultura fotograacutefica Para noacutes esse arcabouccedilo

cultural a que o autor se refere eacute um conjunto de ideias que vai paulatinamente sendo posto e

confirmado desde o surgimento da miacutedia fotograacutefica atraveacutes de uma esteacutetica que procura

90

sublinhar certas especificidades Marcas formais das quais vaacuterios artistas natildeo se apartam

contribuindo na elaboraccedilatildeo da proacutepria histoacuteria do campo e para o destaque mais pronunciado de

alguns movimentos e estilos bem como de artistas que correspondem atraveacutes de suas obras a

esses paracircmetros de visualidade

Ao mesmo tempo em que reconhecemos mudanccedilas nos paracircmetros de circulaccedilatildeo e

transmissatildeo uma disposiccedilatildeo facilitada agraves reconfiguraccedilotildees e hibridismos mediante conexotildees com

fontes escritas sonoras e tambeacutem visuais proporcionando novos meios de interaccedilatildeo55 agrave

onipresenccedila da imagem em espaccedilos que diluem as fronteiras entre privado e puacuteblico uma

tendecircncia maior agrave intencionalidade comunicativa dessa imagem disponiacutevel em ambientes virtuais

(em detrimento de seu papel como artefato constitutivo de uma memoacuteria) devemos notar que haacute

interrogaccedilotildees no campo da fotografia que permanecem vaacutelidas e talvez por isso algumas

continuidades satildeo observadas Para Soulages (online 2017) ao lado de capacidades tiacutepicas do

digital e novos usos dessa modalidade de imagem dentre as quais ele destaca a fluidez da

circulaccedilatildeo haacute pessoas que fazem com a miacutedia digital o mesmo tipo de imagem que realizavam

com dispositivos analoacutegicos56 Aleacutem disso as preocupaccedilotildees que cercam o fotograacutefico satildeo ldquosuas

relaccedilotildees com o real o sujeito o fotografaacutevel o espaccedilo o tempordquo e elas permanecem vaacutelidas na

cultura digital tanto quanto para a imagem fotoquiacutemica

O que interessa de fato eacute como essas problemaacuteticas satildeo articuladas trabalhadas agrave luz de

tecnologias especiacuteficas e suas ferramentas como num sentido processual depois de obtido ldquoum

negativordquo ou uma ldquomatriz digitalrdquo (SOULAGES online 2017) a imagem pode ser algo diferente

de um mero registro colocar-se aleacutem de uma proposta unicamente testemunhal Ser explorada

para gerar significados ideias sensaccedilotildees diversas

55 Ritchin (2008) indica alguns exemplos de projetos desenvolvidos na internet com material fotojornaliacutestico quepromoviam uma interlocuccedilatildeo entre internautas e profissionais incluindo material multimiacutedia Ver em especialRitchin op cit p 96-139

56 Fontcuberta (2010) acredita que entre os usuaacuterios comuns a diferenccedila de uso entre dispositivos fotograacuteficosanaloacutegicos e digitais eacute praticamente igual ficando a cargo dos artistas as experiecircncias mais interessantes derenovaccedilatildeo da imagem

91

322 Tatildeo longe tatildeo perto comparaccedilotildees

Kevin Robins (1995 p38) indica aproximaccedilotildees entre analoacutegico e digital explicando que

a relaccedilatildeo entre fotografia e pensamento cartesiano (racionalista) percebe a mudanccedila tecnoloacutegica

numa linha evolutiva com anseios de aperfeiccediloamento e sofisticaccedilatildeo da imagem que se traduzem

num ideal de liberar o medium de ldquoimpurezasrdquo e que uma noccedilatildeo de ldquorevoluccedilatildeo digitalrdquo leva esse

projeto cartesiano a um estaacutegio elevado A fotografia quiacutemica e a digital compartilham a

preocupaccedilatildeo com um tipo de imagem um padratildeo que seraacute melhor alcanccedilado com a emergecircncia

de novas ferramentas tecnoloacutegicas Esse pensamento cria uma hierarquia entre velho e novo

fazendo deste uacuteltimo uma cura para as incapacidades do primeiro O digital teria a capacidade de

ultrapassar o analoacutegico ser de alguma forma superior a ele na tarefa de produzir imagens

O problema eacute que estabelecer essa dicotomia impede-nos de perceber que se troca uma

tecnologia por outra sem que se modifiquem algumas concepccedilotildees em torno da imagem Quando

natildeo se observa cuidadosamente se (e como) o contato com dispositivos que engendram uma

maneira diferente de lidar com o mundo traduzem essa relaccedilatildeo para a forma de conceber

imagens interferindo no que pensamos sentimos compreendemos a respeito delas e o que

fazemos com elas Agrave medida que o paradigma digital entra em cena apenas para aperfeiccediloar

ideias jaacute assentadas na fotografia de base quiacutemica como podemos celebrar seu poder inovador

revolucionaacuterio Mais adiante o pesquisador britacircnico observa

() significativas natildeo satildeo as novas tecnologias e imagens em si mesmas mas oreordenamento do campo visual em geral e a reavaliaccedilatildeo das culturas da imagem etradiccedilotildees que elas evocam Eacute notaacutevel que boa parte da discussatildeo mais interessante sobrea imagem agora se refere natildeo aos futuros digitais mas na verdade ao que pareciam ateacuterecentemente miacutedias antigas e esquecidas (o panorama a camera obscura oestereoscoacutepio) de nossa posiccedilatildeo vantajosa poacutes-fotograacutefica tais miacutedias de repenteadquiriram novos significados e a reavaliaccedilatildeo delas eacute agora importante para entender osignificado da cultura digital Nesse contexto parece produtivo pensar natildeo em termosde descontinuidades e disjunccedilotildees mas sim com base em continuidades atraveacutes degeraccedilotildees de imagens e atraveacutes de formas visuais (ROBINS 1995 p45)

Aqui Robins convoca a repensar a convivecircncia entre imagens fotoquiacutemicas e digitais na

tentativa de identificar o que realmente estas uacuteltimas apresentam Podemos tomar sua proposta

num sentido mais abrangente pois ele jaacute apostava que a imagem contemporacircnea num sentido

mais geral se distingue pela diversidade de modos praacuteticas ferramentas e indagar que caminhos

92

os tensionamentos de tradiccedilotildees no campo visual jaacute ocorriam nas miacutedias analoacutegicas E como eles

vecircm sendo mantidos vivos de que maneira e por quais motivaccedilotildees satildeo mantidos sobretudo nas

praacuteticas artiacutesticas Eacute possiacutevel identificarmos nas estrateacutegias da arte contemporacircnea um marco

comum que encerre o debate divisionista entre analoacutegico e digital Ateacute que ponto a tipologia do

medium eacute a questatildeo relevante para artistas interessados na experimentaccedilatildeo com as tecnologias

Onde podemos encontrar um marco conceitual que funcione como denominador esteacutetico na

promoccedilatildeo de uma imagem experimental que se vale de tecnologias diversas da imagem De que

maneiras a produccedilatildeo contemporacircnea manteacutem ativa uma reflexatildeo que contraria esses paradigmas

claacutessicos da imagem ultrapassando a divisatildeo analoacutegicodigital em favor de esteacuteticas que natildeo

obedeccedilam apenas ao marco indexical

Parente (1993) tambeacutem faz uma ressalva ao fato de a imagem de siacutentese ser vista como

uma oposiccedilatildeo radical ao regime da representaccedilatildeo No que denomina ldquoamneacutesia da histoacuteria da arterdquo

(Ibidem p21) ele lembra que movimentos de confrontaccedilatildeo a modelos dominantes sempre foram

observados no campo artiacutestico O cinema experimental a videoarte a pintura impressionista o

pontilhismo as obras de Godard Tarkovsky Resnais satildeo exemplos de alternativas ao modelo da

representaccedilatildeo57 E haacute aiacute um problema quando a transiccedilatildeo para o digital assume o papel de

condensar uma trajetoacuteria de afirmaccedilatildeo de tradiccedilotildees formais hegemocircnicas em vez de promover

verdadeiras rupturas nos modos de pensar e realizar imagens utilizando para isso seus proacuteprios

modos esteacuteticos conceituais e teacutecnicos ldquoou o virtual eacute uma imagem-acontecimento uma

imagem-devir ou eacute apenas uma determinaccedilatildeo teacutecnica sem interesse Ou melhor uma

determinaccedilatildeo teacutecnica interessada na reproduccedilatildeo social das representaccedilotildees dominantesrdquo

(PARENTE 1993 p22) Em texto datado de 2009 Parente convoca-nos a pensar que o virtual

natildeo se opotildee a um suposto real entregue pelas tecnologias fotoquiacutemicas mas que ele se torna

interessante para o campo da imagem quando figura como ponto de interrogaccedilatildeo das ideias de

verdade ligadas aos modelos representativos que de fato satildeo puras ficccedilotildees58 Num outro

57 Andreacute Parente faz referecircncia ao raciociacutenio de Deleuze (2005 2018) sobre o cinema da ldquoimagem-movimentordquobaseada na loacutegica de accedilatildeo-reaccedilatildeo (estabelecida pela forccedila da montagem da mobilidade da cacircmera da contiguidadeentre tempo-espaccedilo) e produccedilotildees da ldquoimagem-tempordquo que indicam o enfraquecimento dessa loacutegica abrindo-se atempos heterogecircneos e sobrepostos na narrativa (o sonho o devaneio) caracteriacutesticas das obras de ResnaisAntonioni entre outros Na transiccedilatildeo da imagem-movimento para a imagem-tempo haacute uma ruptura com a narrativaclaacutessica do cinema ou seja do modelo da representaccedilatildeo

58 Cf Parente Andreacute A forma cinema variaccedilotildees e rupturas In Maciel Katia Transcinemas Rio de JaneiroContracapa Livraria 2009 p 23-47

93

momento de reflexatildeo questiona uma afirmaccedilatildeo bastante comum nos debates a respeito da

imagem digital

Porque muita gente diz o seguinte quando eu produzo uma imagem de siacutentese que eacutefruto de uma simulaccedilatildeo computacional essa imagem de siacutentese natildeo diz mais respeito auma realidade preexistente No entanto ela tem a ver ainda com o processo derepresentaccedilatildeo ao contraacuterio do que se pensa Por quecirc Porque se eu testo um protoacutetipovirtual eu natildeo faccedilo mais um protoacutetipo de carro que eacute fiacutesico eu faccedilo ele virtualmente etesto ele num computador Mas se ele vai funcionar depois eacute porque justamente esseprotoacutetipo virtual representava uma seacuterie de fenocircmenos fiacutesicos (PARENTE 2009 p169)

As observaccedilotildees desses teoacutericos estatildeo alinhadas com nosso objetivo de deslocar um

pouco o debate sobre analoacutegicodigital feito em bases notadamente teacutecnicas para reposicionaacute-lo

em direccedilatildeo agraves proposiccedilotildees esteacuteticas Ou seja tentar perceber em que medida a emergecircncia de

novas bases tecnoloacutegicas serve para chacoalhar modelos de visualidade resvalando em

procedimentos e experiecircncias singulares no campo da imagem Ao mesmo tempo apontamos

uma convivecircncia entre essas obras (que satildeo objeto de nosso interesse) e trabalhos que ainda se

relacionam com padrotildees de visualidade que eram ateacute o surgimento das novas miacutedias atribuiacutedos

quase que unicamente agraves miacutedias analoacutegicas

Apontamentos de outros pesquisadores tambeacutem estabelecem alguns pontos de

interrogaccedilatildeo nessa direccedilatildeo Rogeacuterio Luz (1993) indica que natildeo haacute uma diferenccedila radical entre

analoacutegico e digital pois pensando no modelo da perspectiva centralizada ele jaacute propotildee uma

interpretaccedilatildeo do mundo que cria imagens sob um paracircmetro cientiacutefico (geomeacutetrico) Qualquer

imagem regida pela perspectiva renascentista jaacute eacute uma virtualizaccedilatildeo bidimensionada agrave luz de uma

convenccedilatildeo e aiacute imagens digitais e analoacutegicas satildeo igualmente criaccedilotildees orientadas por modelos

cientiacuteficos o que difere eacute o modelo imposto em cada eacutepoca e como a imagem incorpora seu

discurso

Reafirmo que as novas imagens satildeo um sintoma entre muitos de um determinadoestado de cultura em que a prevalecircncia da imagem resultado de sua importacircnciacognitiva em especial na arte e na ciecircncia revela uma tradiccedilatildeo problemaacutetica marcanteem nossa civilizaccedilatildeo desde o Renascimento Natildeo eacute o mundo real mas a maneira deinventar o mundo possiacutevel que aqui interessa e natildeo apenas uma perspectiva esteacuteticamas tambeacutem eacutetica e poliacutetica (LUZ 1993 p54)

94

Para o autor as mudanccedilas tecnoloacutegicas embora saudadas como ferramentas para liberar a

imagem do real continuam fazendo referecircncia a ele sob o ditame de um modelo cientiacutefico de

organizaccedilatildeo de direcionamento do olhar e como isso pode impedir a oxigenaccedilatildeo dos modos de

criar Essa compreensatildeo entra em acordo com as anaacutelises de Weissberg (1993) para quem toda

eacutepoca possui simulacros e maneiras de interpretar e a simulaccedilatildeo quando faz o real parecer aquilo

que natildeo eacute jaacute trabalha com a ilusatildeo de profundidade causada pela perspectiva geomeacutetrica

remontando ao que fazia a pintura trompe-loeil Zylinska (2017a p15-17) acompanha-os na

percepccedilatildeo de que a proacutepria visatildeo eacute um processo historicamente construiacutedo jaacute que eacute mediado por

dispositivos que sugerem um incremento dessa capacidade (o que conforma uma artificialidade

inerente tambeacutem agrave produccedilatildeo de imagens) e satildeo elaborados com base em relaccedilotildees cientiacuteficas entre

maacutequinas e corpos Ritchin (2008) assim como outros teoacutericos jaacute apresentados aqui elenca

caracteriacutesticas que a fotografia digital tem como pontos fortes entre elas natildeo-linearidade natildeo-

sincronicidade abstraccedilatildeo possibilidade de autoria muacuteltipla e a reconfiguraccedilatildeo de tempos

diferentes mas olhando para experiecircncias realizadas ao longo da Histoacuteria da fotografia tais

questotildees jaacute se colocavam para os artistas sendo trabalhadas como ponto de origem de um

pensamento sobre os limites e expansotildees do meio fotograacutefico O mesmo autor reconhece que se

por um lado a publicidade e a moda estiveram mais abertas agraves possibilidades trazidas pela

imagem digital nas artes e na documentaccedilatildeo a investigaccedilatildeo da tecnologia fez-se mais tiacutemida

Acrescente-se que segundo ele a ldquohiperfotografiardquo (digital) aleacutem de mais facilmente criada

veiculada e refeita provoca modos temporais mais elaacutesticos antagocircnicos ao ldquomomento decisivordquo

pinccedilado de um contiacutenuo agrave imagem estaacutetica que conforma um objeto palpaacutevel e que carece de

instantaneidade ndash que corresponde ao analoacutegico (RITCHIN 2008 p142)

O julgamento do autor para estabelecer uma distinccedilatildeo que valoriza o novo em

detrimento do antigo leva em consideraccedilatildeo principalmente os efeitos de distribuiccedilatildeo decorrentes

da maneira de se produzir a imagem sem contudo entender que ideias de congelamento do

tempo da imagem uacutenica e restrita ao paradigma do clique sem modificaccedilotildees do material

capturado natildeo satildeo marcos exclusivos da tecnologia analoacutegica mas de um tipo de interpretaccedilatildeo

da fotografia Natildeo foi o surgimento do digital que oportunizou o intercacircmbio entre fotografia e

outras artes ou a exploraccedilatildeo de regimes temporais que oscilam entre estaacutetico e moacutevel mas para

Ritchin (2008 p180-182) a fotografia convencional possui uma temporalidade contiacutenua pouca

abertura para a ambiguidade ndash estaria de certa forma presa agrave ideia de retratar uma verdade ndash e

95

frente ao digital restaria para ela o reconhecimento de ter servido agrave documentaccedilatildeo histoacuterica e

possuir uma singularidade comparaacutevel agrave da pintura

Ao lado do entusiasmo em relaccedilatildeo ao potencial de interatividade e autoria compartilhada

de produccedilatildeo Ritchin acredita que num ambiente multimiacutedia a fotografia beneficia-se do uso mais

democraacutetico traduzido na oferta de conteuacutedo mais igualitaacuteria plural e qualitativa do ponto de

vista informativo Nos seus argumentos haacute uma crenccedila na forccedila poliacutetica que a imagem fotograacutefica

pode adquirir nessa conjuntura de digitalizaccedilatildeo mas de uma perspectiva esteacutetica esse debate eacute

pouco explorado

As contribuiccedilotildees desses autores levam a crer que colocar em debate os sistemas

analoacutegico e digital eacute um exerciacutecio de compreender e pontuar caracteriacutesticas diferenciadoras e

paralelamente manter uma atenccedilatildeo a questotildees onde se verificam continuidades Em outras

palavras as mudanccedilas teacutecnicas e epistemoloacutegicas que acompanham a passagem do analoacutegico

para o digital nem sempre significam o abandono de convenccedilotildees assentadas em nossa cultura

visual embora apareccedilam trabalhadas pelos artistas a partir de chaves discursivas do paradigma

digital

323 Arqueologia da miacutedia e investigaccedilotildees do medium

Satildeo importantes para a anaacutelise proposta nesta tese a busca de caminhos teoacutericos que na

aacuterea da comunicaccedilatildeo contribuam para relativizar essa hierarquia entre meios analoacutegicos e as

ldquonovas miacutediasrdquo Ao mesmo tempo em que diversos dos artistas que integram nosso corpus

seguem trabalhando com miacutedias analoacutegicas e digitais num interessante cruzamento que beneficia

o campo da esteacutetica interessam-nos perspectivas capazes de apaziguar o debate que prioriza

certos dispositivos em detrimento de outros Assim destacamos o papel da abordagem

arqueoloacutegica da miacutedia As ideias de autores como Jussi Parikka (2012) e Siegfried Zielinski

(2006) a respeito de uma continuidade entre tecnologias demonstram natildeo apenas uma criacutetica agrave

supervalorizaccedilatildeo do progresso teacutecnico mas propotildeem observar como miacutedias antigas e novas se

assemelham em seus propoacutesitos mesmo que separadas no tempo Se Leacutevy (Ibidem) por

exemplo utilizou o hipertexto para falar de como formas de comunicaccedilatildeo antigas podem se

condensar num dos principais elementos da cibercultura para Zielinski (2006 p49) a internet

96

tambeacutem eacute local de convivecircncia das miacutedias anteriores que permanecem em uso natildeo sendo

completamente abandonas por forccedila da informaacutetica

A partir da recusa de apontar tendecircncias dominantes meios hegemocircnicos ou mais

eficientes a abordagem arqueoloacutegica da miacutedia sugere compreender a tecnologia num sentido

natildeo-evolucionista adotando entatildeo uma compreensatildeo relacional dos meios de uma constante

hibridizaccedilatildeo entre velho e novo (GANSING 2016) Atraveacutes do resgate histoacuterico de vaacuterias

experiecircncias desenvolvidas em eacutepocas distintas (seacuteculos XVII XVIII XIX) Zielinski (Ibidem)

demonstra que autocircmatos instrumentos musicais de estrutura extremamente sofisticada coacutedigos

desenvolvidos para ocultar informaccedilotildees dispositivos de produccedilatildeo de imagens e fantasmagorias

entre outras invenccedilotildees possuiacuteam as mesmas funccedilotildees das tecnologias audiovisuais e informaacuteticas

atuais registrar o mundo concreto dar forma ao invisiacutevel compor e reproduzir sons criptografar

dados fazer caacutelculos enviar e receber informaccedilotildees comunicar agrave distacircncia etc

Aleacutem desses nomes diretamente ligados ao campo da arqueologia da miacutedia consideramos

a notaacutevel contribuiccedilatildeo de pesquisadores como Lev Manovich e seus estudos de software (2013)

atraveacutes de sua reflexatildeo a respeito do computador como dispositivo capaz de reposicionar

caracteriacutesticas de miacutedias fiacutesicas ao mesmo tempo em que agrega atributos tiacutepicos dos sistemas

informaacuteticos Essa questatildeo que perpassa toda a discussatildeo proposta pelo estudioso russo tem

grande relevacircncia no debate em que nos inserimos no tocante aos movimentos esteacuteticos ligados agrave

imagem A noccedilatildeo desse caraacuteter dual do computadorsoftware incorpora o pensamento

arqueoloacutegico da miacutedia ao afirmar uma ligaccedilatildeo por exemplo entre miacutedias fiacutesicas ndash pintura o

cinema a fotografia a escrita ndash e os processos realizados pelo software que nos ajuda a

compreender natildeo apenas a relaccedilatildeo entre coacutedigos visuais realistas e os usos dos dispositivos

digitais mas tambeacutem a apropriaccedilatildeo de diversos estilos e marcas desses meios analoacutegicos por

softwares dedicados agrave manipulaccedilatildeo da imagem na contemporaneidade

Tambeacutem a jaacute citada proposta em torno da ldquofotografia natildeo-humanardquo desvia-se de uma

ecircnfase na tipologia da miacutedia para focar-se nas formas de apropriaccedilatildeo dos diversos dispositivos e

materiais que se constituem em imagens pensando a fotografia como uma praacutetica vital A partir

de uma compreensatildeo bioloacutegica e geoloacutegica da fotografia ela estabelece que o universo de suas

imagens eacute povoado de artefatos nos quais a luz se registra inscrevendo-se em suportes os mais

variados ldquoO reconhecimento do papel formativo da luz atraveacutes de diferentes periacuteodos (em

97

foacutesseis impressotildees fotogramas frames de negativos e imagens digitais) tambeacutem nos ajuda a

levar o debate para aleacutem do binarismo analoacutegico-digitalrdquo (ZYLINSKA 2017a p7) Assinale-se

que esta abordagem eacute bastante interessante pois na medida em que enxerga certa autonomia dos

dispositivos de imagem abre caminho para a consideraccedilatildeo de esteacuteticas natildeo-convencionais

acionadas pela experimentaccedilatildeo com a proacutepria miacutedia

A perspectiva da arqueologia da miacutedia tambeacutem ecoa uma vontade de olhar para o

passado das teacutecnicas ou melhor dizendo para as teacutecnicas do passado em busca de novos

caminhos criativos ldquoNatildeo procuremos o velho no novo mas encontremos algo novo no velhordquo

(ZIELINSKI 2006 p19) Essa atitude eacute sintomaacutetica dosdas artistas incluiacutedos em nosso corpus

que se voltam para redescobrir teacutecnicas antigas da imagem (como pinhole camera obscura

daguerreoacutetipo panorama diapositivo) sem traccedilos de saudosismo mas em busca de experiecircncias

que possam reinventar coacutedigos e metodologias ou mesmo para o uso de dispositivos de imagem

analoacutegicos ou eletrocircnicos em conjunto com o computador Acreditamos que encarar o universo

da imagem contemporacircnea atraveacutes de uma perspectiva arqueoloacutegica da miacutedia permite-nos

considerar igualmente feacutertil todo um conjunto de obras que aproveita tecnologias antigas e novas

da imagem para indicar como estas satildeo apropriadas em favor do vieacutes ldquoexperimentalrdquo (LENOT

2017) do fotograacutefico Nesse sentido alguns estudiosos e estudiosas partindo de uma visatildeo mais

horizontal das miacutedias convocam a reconsiderar dicotomias tatildeo marcadas entre analoacutegico e

digital Cruz e Oliveira (2009) indicam a importacircncia demasiada atribuiacuteda aos aspectos teacutecnicos

na teorizaccedilatildeo sobre a fotografia digital fazendo com que as diferenccedilas encobrissem as

continuidades ao mesmo tempo em que as teses de indexicabilidade permaneciam bastante

associadas ao paradigma analoacutegico As autoras acrescentam que por forccedila do digital abrem-se

novas possibilidades de compreensatildeo da imagem e ao mesmo tempo se pode repensar a miacutedia

analoacutegica

Fatorelli (2017) faz observaccedilotildees que nos orientam a pensar em uma pluralidade esteacutetica

mais alinhada com aberturas da proacutepria fotografia independente da miacutedia empregada Para ele a

imagem fotograacutefica tem uma dupla condiccedilatildeo que a faz por vezes aproximar-se do referente e

outras vezes apartar-se dele e partindo de experimentos variados no acircmbito do proacuteprio

dispositivo acaba por gerar uma realidade proacutepria centrada em processos teacutecnicos Podemos aqui

enumerar rapidamente alguns nomes que utilizando exclusivamente ou natildeo materiais

fotograacuteficos acabaram desenvolvendo trabalhos que nos ajudam a pensar essa condiccedilatildeo maleaacutevel

98

da imagem que vai do figurativo ao abstrato Paolo Gioli Andy Warhol Marey Jacques-Henri

Lartigue Geraldo de Barros Esses artistas buscaram investigar os limites e vizinhanccedilas entre

fotografia e outros modos visuais brincando com as formas o tempo as luzes os materiais

Construiacuteda em torno de uma funccedilatildeo ldquoapresentativardquo em detrimento de uma funccedilatildeo

ldquorepresentativardquo a fotografia se vale de praacuteticas como a apropriaccedilatildeo de outras imagens a criaccedilatildeo

de cenaacuterios especiacuteficos para serem registrados pela cacircmera a tomada de empreacutestimo de modos de

outras artes como cinema pintura performance teatro e literatura (FATORELLI 2017)

tendecircncias que ganharam corpo e hoje seguem como marcas significativas da produccedilatildeo

contemporacircnea Esse espaccedilo eacute coabitado pelas miacutedias analoacutegicas e digitais com propostas de uso

exclusivo mas tambeacutem de cruzamentos

Tambeacutem Zylinska (2017a) quando propotildee uma definiccedilatildeo de fotografia como processo de

registro da luz por meio de diversos aparatos (cacircmeras scanners sateacutelites e corpos vivos)

afirmando que esse processo eacute de ldquotraduccedilatildeordquo e natildeo de ldquotranscriccedilatildeordquo apaga a necessidade de uma

diferenciaccedilatildeo entre sistemas analoacutegicos e digitais e propotildee ainda que a imagem fotograacutefica seja

aceita como algo novo uma realidade especiacutefica e natildeo uma reacuteplica do mundo concreto Todas

essas observaccedilotildees ajudam-nos a lanccedilar um olhar sobre trabalhos recentes com ecircnfase nas

experiecircncias com os meios e na articulaccedilatildeo entre eles

Andreas Muumlller-Pohle eacute um artista alematildeo cujo trabalho desenvolve uma pesquisa criacutetica

em torno deste vieacutes ldquorepresentativordquo da imagem discutindo a arraigada ideia de que aquela

guarda correspondecircncia de semelhanccedila com o mundo material Ele reconhece que ainda muito da

produccedilatildeo em digital natildeo passa de ldquosimulaccedilotildees e kitschificaccedilotildees de imagens analoacutegicasrdquo

(MUumlLLER-POHLE 1996) e problematiza o status realista tanto em projetos de base analoacutegica

quanto digital o que estaacute de acordo com as afirmaccedilotildees a respeito de uma abertura ao muacuteltiplo ser

inerente ao fotograacutefico

Em Digital Scores (after Niceacutephore Nieacutepce) de 1995ndash1998 (figuras 19 e 20) ele

digitaliza a claacutessica View from the window (Joseph Niceacutephore Nieacutepce 1826) A informaccedilatildeo

contida na paisagem retratada atraveacutes de um meacutetodo fiacutesico-quiacutemico daacute origem a um montante de

sete milhotildees de bytes que traduzida em dados binaacuterios eacute distribuiacuteda em oito partes O que vemos

eacute literalmente a informaccedilatildeo que a imagem carrega num diaacutelogo irocircnico que potildee lado a lado o

siacutembolo pioneiro dos esforccedilos do pensamento cientiacutefico para fixar visualmente o mundo ndash o

99

palpaacutevel o acabado o material ndash e sua total desmaterializaccedilatildeo num conjunto disforme abstrato

sem nenhuma relaccedilatildeo esteacutetica como aquilo que o originou O computador atua como ferramenta

que expotildee a estrutura mesma dos coacutedigos com os quais opera59 A obra Digital scores eacute

informaccedilatildeo pura e demonstra uma disposiccedilatildeo do artista em conceituar o proacuteprio meio a imagem

de Niegravepce eacute o ponto de partida para uma reflexatildeo sobre a fotografia em geral e os resultados satildeo

decisotildees esteacuteticas da maacutequina (BATCHEN 2002 p177)

No projeto Cyclograms (1991-1994) (figuras 21 e 21a) a ideia baacutesica tambeacutem parte de

imagens previamente selecionadas para criar algo diferente Vaacuterias fotos satildeo picotadas e os

pedaccedilos jogados num recipiente que conteacutem revelador fotograacutefico O interior do recipiente eacute

revestido com papel fotograacutefico Agrave medida que tudo se mistura os pedaccedilos de imagens vatildeo

manchando o papel criando fotogramas Novas imagens surgem por meio da destruiccedilatildeo das

anteriores Meacutetodo e materiais analoacutegicos satildeo empregados num processo de reciclagem onde o

resultado final eacute uma surpresa e o substrato original desgarrou-se de seus contextos intenccedilotildees e

usos Esse rearranjo eacute alheio agrave centralidade de um dispositivo de registro pois a presenccedila da

cacircmera ficou laacute atraacutes (nas fotos retalhadas) sendo relativizada em relaccedilatildeo aos demais materiais

empregados (o revelador o papel) Haacute ainda uma liberdade envolvida no processo de obtenccedilatildeo

das imagens que se assenta num certo niacutevel de descontrole ldquoEm muitas das obras de Muumlller-

Pohle o acaso assume uma funccedilatildeo importante no vir-a-representar pictoacuterico que termina em

indeterminaccedilatildeo isto eacute quando a imagem testemunha pictorialmente uma reaccedilatildeo de maneira

imprevisiacutevel60rdquo (VON AMELUNXEN 1999 traduccedilatildeo nossa)

59 Muumlller-Pohle tem outro trabalho que resulta da interface analoacutegicodigital a instalaccedilatildeo Analog-Digital Mirror(2004) na qual a imagem capturada por uma cacircmera de viacutedeo perde a forma e transforma-se em nuacutemeros e letras deacordo com o movimento de quem interage com o sistema Disponiacutevel em httpmuellerpohlenetprojectsanalog-digital-mirror Acesso em 19092018

60 Traduccedilatildeo livre de ldquoIn many of Muumlller-Pohlersquos works chance assumes an important function in the pictorialcoming-to-be that ends in indeterminateness that is when the image pictorially testifies to a reaction in anunforeseeable mannerrdquo

100

Figuras 19 e 20 - Digital scores I e Digital scores IV (Andreas Muumlller-Pohle 1995-98)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

A obra do alematildeo exemplifica uma forma de pensar a fotografia como artefato que pode

se reinventar contrariando modelos ou regras de procedimentos ligados agrave proacutepria tecnologia que

por sua vez contribuem para revisitar sob diversas metodologias paradigmas sempre caros agrave

imagem conforme nos lembrou Soulages (online 2017)

Junto a ele podemos colocar todo um grupo de artistas que em vez de contentarem-se em

reafirmar o debate em torno do mimetismo da veia testemunhal da imagem preferem

experimentar com equipamentos e conceitos produzindo uma esteacutetica implicada pelos rearranjos

do proacuteprio dispositivo Haacute um despojamento na elaboraccedilatildeo da imagem ligado a um fazer dotado

de curiosidade mais interessado em deixar que os materiais se misturem sem controle riacutegido e

seu valor reside tambeacutem no elemento surpresa

101

Figuras 21 e 21a - Cyclograms 521994 (Andreas Muumlller-Pohle1994)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

O que parece seguro apontar eacute que no campo da imagem miacutedias analoacutegicas eletrocircnicas e

digitais compartilham um espaccedilo de convivecircncia e utilizaccedilatildeo em diferentes praacuteticas que vatildeo do

acircmbito artiacutestico ao vernacular com empreacutestimos e (re)posicionamentos que acontecem sobretudo

pela maleabilidade proacutepria da fotografia Ao mesmo tempo esforccedilos de repensar alguns

paradigmas baacutesicos da fotografia ndash sua condiccedilatildeo de imagem uacutenica fixa e mimeacutetica entre outras

questotildees ndash natildeo satildeo exclusivos das miacutedias digitais nem tatildeo pouco satildeo catalisados apenas quando

elas surgem Eles jaacute se verificavam entre alguns pioneiros da fotografia61 portanto num momento

em que o digital sequer sonhava aparecer e satildeo revisitados por artistas que na atualidade

trabalham tambeacutem com a miacutedia analoacutegica De maneira mais generalizante parece que o espaccedilo

da fotografia contemporacircnea eacute afetado pela convivecircncia entre formatos com tendecircncias tanto de

hibridizaccedilatildeo de contaminaccedilotildees de empreacutestimos e reposicionamento de paradigmas e esteacuteticas

61 Fatorelli (2006) faz referecircncia ao movimento pictorialista ao flou das fotografias de Julia Margaret Cameron edos movimentos da vanguarda europeia da deacutecada de 1920 como exemplos de confrontaccedilatildeo de uma fotografialdquopurista e diretardquo um debate que se aprofunda em outros textos do autor

102

quanto de fetichizaccedilatildeo de esteacuteticas antigas e da ressignificaccedilatildeo de tecnologias vistas como

obsoletas e de teacutecnicas claacutessicas da imagem num movimento que vai das alianccedilas aos

afastamentos com a mesma fluidez

Contudo parece que o reconhecimento de uma atitude mais criacutetica ao medium como algo

capaz de influenciar a busca por novas esteacuteticas aleacutem da representaccedilatildeo eacute algo que se torna mais

presente no debate acadecircmico e artiacutestico a partir exatamente do entendimento paralelo de que 1)

a fotografia eacute plural mas sua histoacuteria tem zonas de sombra por vezes negligentemente

exploradas principalmente no diaacutelogo com outras artes da imagem 2) a tocircnica de abertura do

fotograacutefico eacute uma caracteriacutestica que jaacute vinha sendo demonstrada passando a ser aceita com mais

evidecircncia porque a discussatildeo a respeito do que caracteriza a fotografia retorna agrave medida que vai

se instituindo o paradigma digital e se procura desvendar o que muda e o que permanece das

teses claacutessicas que conformam a teoria do meio

103

4 RUIacuteDO ERRO E IMAGEM

ldquoE aquilo que nesse momento se revelaraacute aos povosSurpreenderaacute a todos natildeo por ser exoacuteticoMas pelo fato de poder ter sempre estado ocultoQuando teraacute sido o oacutebviordquo - Um iacutendio Caetano Veloso

41 FOTOGRAFIA Eacute RUIacuteDO PARA ALEacuteM DE ESPECIFICIDADES TECNOLOacuteGICAS

O exerciacutecio de revisitar ideias e paradigmas que marcam a histoacuteria da imagem em busca

de pontos cruciais para alguns teoacutericos no momento de emergecircncia da cultura numeacuterica tem um

sentido praacutetico que sustenta nossa criacutetica a um discurso de ruptura servindo para reconhecer

juntamente a alguns pesquisadores aqui citados que haacute em grande medida uma continuidade de

processos e formas visuais conectando as tecnologias fotoquiacutemicas e digitais Reconhecido esse

caraacuteter (em diversas praacuteticas de hibridismo apropriaccedilotildees emulaccedilotildees remixagens) que orienta o

pensamento sobre a imagem na direccedilatildeo das continuidades dos atravessamentos e das

contaminaccedilotildees pode-se tambeacutem evocar uma revalorizaccedilatildeo de praacuteticas claacutessicas da imagem

contribuindo para a um movimento de afirmaccedilatildeo de toda uma esteacutetica marcada pela emergecircncia

do erro do ruiacutedo do acaso do imprevisiacutevel como elementos criativos Um emprego criacutetico e natildeo

convencional de teacutecnicas da imagem fotoquiacutemica e do computador na realizaccedilatildeo de obras que

centram sua potecircncia em desconstruir noccedilotildees associadas agrave ldquoforma fotografiardquo (FATORELLI

2013) ao ldquophotographic standardrdquo (ZYLINSKA 2017a) com seus paracircmetros de

enquadramento riacutegidos iluminaccedilatildeo correta com equiliacutebrio de luz e sombras e nitidez marcada

Traccedilos alinhados ao vieacutes mimeacutetico da imagem com raiacutezes na construccedilatildeo perspectivista da

realidade

Eacute interessante notar que o foco recente nas noccedilotildees de erro e ruiacutedo emerge junto agraves

consideraccedilotildees sobre o paradigma digital e a partir dos estudos de vaacuterios pesquisadores

104

(HAINGE 2013 NUNES 2011 FELINTO 2013 KRAPP 2018) comeccedila a ser considerado

questatildeo essencial para criaccedilatildeo artiacutestica neste ambiente Mas aqui embora reconhecendo essa

valorizaccedilatildeo como questatildeo fortemente ligada agrave cultura dos artefatos informaacuteticos queremos

afirmar as noccedilotildees de erro e ruiacutedo tomadas como potecircncias esteacuteticas tambeacutem nos trabalhos

realizados a partir de miacutedias fotoquiacutemicas Ou seja se incialmente houve uma preocupaccedilatildeo em

diferenciar obras realizadas com equipamentos analoacutegicos e digitais buscando traccedilos de uma

certa esteacutetica diferencial ndash tratada como hiper-realista apontada como desvinculada do mundo

concreto ou ainda como pertencente ao acircmbito da pura simulaccedilatildeo de uma inteligecircncia maquiacutenica

ndash hoje vemos o reposicionamento do debate sobre as materialidades (enfoque trazido pelo campo

das materialidades da comunicaccedilatildeo) e a partir disso podemos entender como a percepccedilatildeo do

ruiacutedo eacute na verdade a inscriccedilatildeo o traccedilo da materialidade que compotildee as miacutedias sejam elas digitais

ou analoacutegicas Para noacutes eacute especialmente relevante o fato de que o tema do ruiacutedo como resultado

de experiecircncias diversas com tecnologias da imagem vem horizontalizar possiacuteveis separaccedilotildees

entre as miacutedias analoacutegicas e digitais pois parece convergir nas praacuteticas artiacutesticas que aparecem

em nosso trabalho Na medida em que manifestam o desejo de extrair das teacutecnicas materiais e

equipamentos resultados pouco convencionais assistimos ao emprego de miacutedias ldquoobsoletasrdquo em

meio agrave cultura digital e tambeacutem agrave exploraccedilatildeo conjunta de tecnologias digitais e analoacutegicas em

obras de esteacuteticas hiacutebridas e de vieacutes fortemente experimental por vezes satildeo difiacuteceis de rotular

Hainge (2013 p211) ndash um dos autores principais na abordagem aqui proposta sobre as

relaccedilotildees entre ruiacutedo e imagem ndash lembra que as teorias de indexicabilidade consideraram a

fotografia essencialmente um produto de suas tecnologias desconsiderando singularidades e a

multiplicidade das praacuteticas inscritas na historiografia do meio e propotildee discutir uma ontologia da

fotografia apostando em sua ldquonatureza expressivardquo ldquopolimorfardquo sem necessitar da separaccedilatildeo

entre analoacutegico e digital Para ele jaacute natildeo fazem mais sentido as distinccedilotildees desse tipo Ao detalhar

sua proposta e como atentar para o ruiacutedo na fotografia afirma

Concebida dessa maneira natildeo haacute porque estabelecer uma relaccedilatildeo necessariamenteindexical entre realidade externa e imagem fotograacutefica dessa realidade nem uma divisatildeoontoloacutegica entre fotografia analoacutegica e digital () O ruiacutedo eacute expresso em todafotografia se este for tomado como expressatildeo especiacutefica da operaccedilatildeo geral pela qual a

105

imagem se torna uma distribuiccedilatildeo de zonas diferenciais Mas nem todas as fotografiastrazem esse aspecto expressivo da imagem num mesmo grau62 (HAINGE 2013 p234)

Eacute importante delimitar que para o autor o ruiacutedo expotildee uma relaccedilatildeo diferencial tanto do

ponto de vista da feitura da imagem (seus arranjos apropriaccedilotildees de elementos diversos

manipulaccedilotildees recriaccedilotildees hibridismos etc) quanto da percepccedilatildeo desses procedimentos jaacute que a

imagem na qual o ruiacutedo eacute notado tem a capacidade de bagunccedilar modelos perceptivos

estabelecidos Eacute por isso que quando nos reportamos aos trabalhos de Wall e Grusky buscamos

contrastaacute-los com as experiecircncias de Muumlller-Pohle na medida em que estas uacuteltimas nos parecem

atingir esse lugar das imagens com niacutevel de ruiacutedo mais evidente Ou melhor onde o artista parece

compreender o ruiacutedo como princiacutepio originaacuterio de uma esteacutetica e que isso decorre de uma

aproximaccedilatildeo extrema da mateacuteria formadora da imagem Enquanto as fotografias de Wall e

Gursky principalmente resultam de vaacuterias manipulaccedilotildees elas continuam filiadas a um modelo

visual que prioriza o conteuacutedo e uma ldquoesteacutetica da transparecircncia supostamente livre de ruiacutedordquo

(HAINGE 2013) ao passo que Muumlller-Pohle constroacutei a obra em torno da proacutepria informaccedilatildeo que

forma eacute a substacircncia da imagem Hainge tambeacutem entende que a analogia direta entre imagem e

referente esconde o processo e o ruiacutedo na sua anaacutelise eacute essencialmente um fenocircmeno processual

ou seja que se revela em meio agraves experiecircncias com a miacutedia que o produz

Especificamente no capiacutetulo que dedica agrave fotografia Hainge sugere que seu estudo seja

feito a partir do tema do ruiacutedo atentando para este como marca dos processos envolvidos na

elaboraccedilatildeo da imagem e sem preocupaccedilotildees com a correspondecircncia entre referente e imagem que

tanto interessou alguns pensadores claacutessicos da fotografia Se o ruiacutedo eacute o ponto de partida da

investigaccedilatildeo a respeito da imagem fotograacutefica a tecnologia utilizada bem como a divisatildeo entre

analoacutegico e digital tornam-se menos importantes pois a imagem comeccedila a ser observada como

lugar de exploraccedilatildeo de artifiacutecios que caminham na direccedilatildeo da abstraccedilatildeo em detrimento da

verossimilhanccedila A imagem seria um espaccedilo de reflexatildeo sobre o mundo seus sujeitos e a proacutepria

tecnologia com cada uma dessas instacircncias tomadas conjuntamente A partir do momento em

62 Traduccedilatildeo livre de ldquoConceived of this way there is no reason to posit a necessarily indexical relation between anexternal reality and the photographic image of that reality nor an ontological divide between silver-gelatin anddigital photography (hellip) Noise of course is expressed in every photography if noise is taken to be the expressionspecific to the operation by which the image comes to be as a distribution of differential zones But not everyphotography makes us attend to this expressive aspect of the image to the same degreerdquo

106

que recusa as distinccedilotildees analiacuteticas baseadas no tipo de tecnologia empregado Hainge aproxima-

se de Flusser (20112008) para quem o universo das imagens goza de uma autonomia e

singularidade natildeo associadas agrave reproduccedilatildeo fidedigna do mundo possibilitando olhar para a

fotografia a partir de seus processos

O que acho importante sobre esses insights eacute que permitem uma reflexatildeo sobre afotografia como modo particular de produccedilatildeo da imagem que eacute capaz de ultrapassar adivisatildeo entre fotografia baseada em filme e digital de uma maneira que natildeo podeocorrer se nos fixamos nos aspectos fotoquiacutemicos da foto tradicional ou natranscodificaccedilatildeo que ganha espaccedilo com a digitalizaccedilatildeo da imagem Na verdade o queFlusser nos indica acredito eacute que a fotografia longe de ser uma manifestaccedilatildeo do real eacutemeramente a arte da composiccedilatildeo da imagem do arranjo de cores ou tons em um espaccedilobidimensional Como tal a fotografia estaacute sempre preocupada com seu proacuteprio statusenquanto uma miacutedia visual mesmo quando tenta ser um documento e apaga a si mesmanum esforccedilo para falar sobre o mundo de uma maneira transparente63 (HAINGE 2013p 213)

O autor segue argumentando que a fotografia eacute uma miacutedia essencialmente ruidosa que

relaciona (em favor da expressividade) a subjetividade humana e a objetividade tecnoloacutegica e

que nem a subjetividade humana nem a objetividade da maacutequina satildeo puras a primeira eacute

contaminada pelos princiacutepios da tecnologia e a segunda eacute semi-autocircnoma dobrando-se

frequentemente agraves interferecircncias humanas no seu funcionamento (HAINGE 2013 p226) O

cerne dessas afirmaccedilotildees nos conecta de novo a Flusser que pensa os viacutenculos entre ldquoaparelhosrdquo e

seres humanos na linha de um intercacircmbio positivo embora cheio de descontinuidades Para o

filoacutesofo tcheco eacute nessa simbiose que estaacute a chave da criaccedilatildeo mais libertaacuteria frente aos

ldquoprogramasrdquo jaacute instituiacutedos nos aparelhos pois ele enxerga um espaccedilo de negociaccedilatildeo por meio da

63 Traduccedilatildeo livre de ldquoWhat I think is important about these insights is that they enable a reflection on photographyas a particular way of producing the image that is able to bridge the divide between film-based and digitalphotography in a way that cannot be done if one fixates on the photochemical aspects of traditional photography oron the flipside the transcoding that takes place in the digitization of the image Indeed what Flusserrsquos pointsindicate to us I feel is that photography far from being a manifestation of the real is merely the art of imagecomposition of arranging colours or tones in two-dimensional space As such photography is always concernedwith its own status and being as a visual medium even when tries to be a document and struggles to efface itself inorder to tell us something transparent about the worldrdquo

107

ideia de ldquojogordquo Satildeo as estrateacutegias adotadas pelos fotoacutegrafos experimentais64 na condiccedilatildeo de

jogadores que vatildeo nos revelar entatildeo o coeficiente de ruiacutedo das imagens

Influenciada tambeacutem pela visatildeo flusseriana da ligaccedilatildeo entre seres humanos e os

dispositivos Zylinska (2017a) propotildee uma filosofia poacutes-humana da imagem fotograacutefica na qual

ressalta a importacircncia de todo um universo imageacutetico forjado pelo desempenho autocircnomo de

maacutequinas criadoras de imagem Drones aparelhos de raio-x cacircmeras do Google Earth e Google

Street View a microfotografia o scanner o QR code ou mesmo acoplagens desenvolvidas para

captura sem a perspectiva ocular humana65 fazem parte desse universo de equipamentos

responsaacuteveis por caracterizar a fotografia-natildeo humana A partir do que propotildee Flusser sobre o

automatismo e programa dos aparelhos Zylinska afirma ainda que na verdade toda fotografia

possui uma dimensatildeo natildeo-humana que em sua opiniatildeo tem der ser explorada para contrapor-se agrave

noccedilatildeo de imagem como mera reproduccedilatildeo do real ldquo() essa abordagem eacute um desafio agrave orientaccedilatildeo

tiacutepica da teoria fotograacutefica para a indexicabilidade a representaccedilatildeo e a preservaccedilatildeo de traccedilos da

memoacuteria Ela tambeacutem chama atenccedilatildeo para os esforccedilos natildeo-representacionais da criaccedilatildeo

fotograacutefica66rdquo (ZYLINSKA 2017a p4)

Ora se nosso foco se volta para a emergecircncia do ruiacutedo na imagem contemporacircnea fica

difiacutecil manter um debate que ainda aposte em especificidades conectadas a um pensamento que

entende as imagens a partir de diferenccedilas nitidamente demarcadas entre as tecnologias Claro que

podemos apontar ruiacutedos que satildeo inscriccedilotildees das caracteriacutesticas de determinados meios mas pensar

neles em termos de exclusividades como se fosse possiacutevel identificaacute-los somente em obras

realizadas por meios analoacutegicos ou digitais natildeo eacute o caso

64 Utilizamos aqui a expressatildeo ldquofotoacutegrafos experimentaisrdquo no sentido senso comum de artistas que promovemexperiecircncias diversas com as tecnologias da imagem contudo assinalamos que o proacuteprio Flusser (2011) utiliza essestermos no mesmo sentido empregado aqui para falar dos indiviacuteduos capazes de confrontar o ldquoprogramardquo doldquoaparelhordquo

65 A autora daacute interessantes exemplos de projetos nesse sentido destacando a criaccedilatildeo de pombo-cacircmera (1908)CfZylinska2017 p16-17 Podemos acrescentar a este exemplo o documentaacuterio Leviathan (Lucien Castaing-Tayloramp Verena Paravel2012) que propotildee a imersatildeo no ambiente de uma embarcaccedilatildeo de pesca o filme tem diversasimagens capturadas por cacircmeras deixadas no chatildeo do conveacutes mergulhadas na aacutegua ou posicionadas para registrar omovimento sobre as ondas do mar para referir respectivamente o ponto de vista de peixes aves do navio O trailerdo filme estaacute disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=ADiDMEnDmTQ Acesso em 041119

66 Traduccedilatildeo livre de ldquoThrough this framework it challenges the typical orientation of photography theory towardindexicality representation and the preservation of memory traces It also shifts attention to the non-representational acts of photographic creationrdquo

108

Parece importante no escopo de nossa pesquisa compreender que muitos dos artistas aqui

citados estatildeo interessados em teacutecnicas analoacutegicas da imagem tanto pela afinidade que possuem

em manipular insumos materiais e equipamentos como pela possibilidade de recolocar um

interesse pela questatildeo da materialidade em seus trabalhos Aleacutem de imprimirem a esse uso de

tecnologias ldquoobsoletasrdquo um olhar bastante conectado aos modos de operar e sentir de uma

sociedade que se comunica trabalha e se expressa em rede Natildeo se verifica uma atitude

saudosista ou romantizada frente aos dispositivos mas o emprego criativo que os submete aos

usos mais diversos e em vaacuterios casos as obras demandam ferramentas e estrateacutegias trazidas pela

cultura digital

Desse modo o tom geral eacute das alianccedilas entre esteacuteticas maacutequinas sistemas visotildees de

mundo que atuam na criaccedilatildeo artiacutestica no campo da imagem de uma maneira agraves vezes anaacuterquica e

desapegada de preocupaccedilotildees com a especificidade do medium utilizado Ao mesmo tempo esse

olhar tardio para modos de fazer da imagem jaacute datados pode constituir uma estrateacutegia criacutetica aos

automatismos embutidos nas praacuteticas da imagem como lembra Fontcuberta (2010)

A recuperaccedilatildeo de meios e de uma esteacutetica jaacute ldquosuperadardquo se legitima com um novo usocriacutetico que ironiza precisamente os objetivos programaacuteticos que guiaram esses meios eessa esteacutetica O que antes era um acidente agora eacute um efeito voluntaacuterio Os defeitos setransformarem em signos intencionais faz parte de uma evoluccedilatildeo da consciecircncia Trata-se sem duacutevida da saiacuteda para um processo de esgotamento e saturaccedilatildeo paulatina(FONTCUBERTA 2010 p71)

Esse eacute o intuito mais especiacutefico desta tese demonstrar que haacute uma tendecircncia no campo da

imagem apontando para a reflexatildeo sobre paradigmas claacutessicos a partir da exploraccedilatildeo das

tecnologias de investigaccedilotildees artiacutesticas dirigidas aos proacuteprios meios e que podemos compreendecirc-

las esteticamente a partir dos conceitos de ldquoruiacutedordquo e ldquoerrordquo Essas concepccedilotildees tomadas num

sentido de pluralidade formal atingem igualmente as obras realizadas no tracircnsito entre

dispositivos analoacutegicos eletrocircnicos e digitais desterritorializam os lugares do cinema da

fotografia do viacutedeo da pintura e em alguns casos contribuem para (re)afirmar o lugar da

materialidade no campo da comunicaccedilatildeo Ao que parece a tocircnica da imagem contemporacircnea estaacute

nas constantes operaccedilotildees de negociaccedilatildeo de articulaccedilatildeo de materiais e dispositivos da

109

investigaccedilatildeo do medium guiada pelo acesso e criaccedilatildeo compartilhados e dessa maneira a miacutedia

analoacutegica natildeo resulta sepultada Ela eacute revisitada articula-se com o computador ou mesmo

sozinha enquanto artefato fiacutesico estaacute inserida em estrateacutegias artiacutesticas caracteriacutesticas de uma

sociedade que se relaciona por meio do intercacircmbio das trocas culturais do fluxo informativo

em rede

Para tanto o mapeamento busca identificar as recusas agraves ldquoteses essencialistasrdquo

(FATORELLI 2003) exemplificada pelo trabalhos de diversos artistas onde se destacam a

compreensatildeo da imagem como artifiacutecio a ser trabalhado numa via processual de etapas com

especial reconfiguraccedilatildeo da materialidade (em contraposiccedilatildeo agrave uma noccedilatildeo automatizante) uma

atitude que incorpora acidentes e resultados imprevistos como instacircncias criativas a recuperaccedilatildeo

de teacutecnicas antigas como o pinhole a cacircmara escura o daguerreoacutetipo bem como experiecircncias

alternativas e natildeo industriais com quiacutemicos laboratoriais a exploraccedilatildeo de temporalidades atraveacutes

de longa exposiccedilatildeo e de tempos elaacutesticos a desconstruccedilatildeo de formas (do referente) em direccedilatildeo agrave

abstraccedilatildeo por meio de negativos e pixels o aproveitamento dos erros do sistemas informaacutetico

para a construccedilatildeo de obras artiacutesticas a criaccedilatildeo de sistemas hiacutebridos que potildeem em jogo diferentes

aparatos numa investigaccedilatildeo dirigida agrave proacutepria miacutedia a elaboraccedilatildeo de esteacuteticas e formas

desconectadas de uma necessidade representativa

42 DISPUTAS ONTOLOacuteGICAS

Um dos temas centrais que atravessa os debates propostos nesta tese eacute o conceito de

ruiacutedo analisado aqui principalmente atraveacutes das contribuiccedilotildees de Hainge (2013) que buscou

identificar alguns traccedilos definidores do ruiacutedo em obras pertencentes a diferentes campos

artiacutesticos O tema do ruiacutedo vem recebendo atenccedilatildeo de outros pesquisadores aos quais nos

reportamos ao longo de nossas anaacutelises poreacutem a ecircnfase maior no estudo de Hainge deve-se ao

fato de que este propotildee uma abordagem ampla do assunto discutindo-o a partir de objetos

variados como a muacutesica o cinema a literatura e a fotografia e articulando esses objetos com

questotildees da filosofia da teoria da comunicaccedilatildeo da esteacutetica da linguagem cinematograacutefica da

ontologia fotograacutefica O pesquisador australiano compreende o ruiacutedo como conceito e tambeacutem

como um fenocircmeno observado em qualquer dinacircmica onde se ateste um movimento diferencial

afastado de normatizaccedilotildees hegemocircnicas Assim seu pensamento funcionaraacute aqui como conjunto

110

de ideias centrais o que natildeo impede que os textos nos quais o tema do ruiacutedo aparece associado a

termos como ldquofalhardquo e ldquoerrordquo (NUNES 2011 KRAPP 20112018 FELINTO 2015

BALLARD 2011 MENKMAN 2010 PIPER-WRIGHT 2018 ABRAAtildeO FILHO 2018) e

cujas abordagens estatildeo mais especificamente relacionadas ao universo da cultura digital sejam

evocados para auxiliar a reflexatildeo tendo em vista que essas terminologias partilham um sentido

comum ndash de desvio instabilidade desorganizaccedilatildeo ruptura de paradigmas ndash ligado a processos

que executam um movimento de afastamento de padronizaccedilotildees

Ressalte-se que todos esses autores e autoras investigam como o ruiacutedo o erro e a falha

tornam-se elementos de partida para a criaccedilatildeo artiacutestica em detrimento de uma reaccedilatildeo que

primeiro nega para depois (tentar) excluir sua presenccedila Esse entendimento do ruiacutedo como lugar

produtivo na perspectiva da arte constitui questatildeo relevante em nossa pesquisa Como veremos

ao longo do texto a partir das obras apresentadas o experimento com as tecnologias da imagem

as mais diversas faz emergir formas variadas de ruiacutedo

Hainge (2013) localiza algumas das primeiras tentativas de abordagem do tema do ruiacutedo

no seacuteculo XX associadas aos trabalhos de artistas e movimentos no acircmbito da muacutesica67

articuladas por sua vez agrave ideia de incorporaccedilatildeo na criaccedilatildeo musical de ldquoatonalidade dissonacircncia

explosotildees tossidos arranhados retorno sonoro distorccedilatildeo falhasrdquo (HAINGE 2013 p2) O

assunto ainda eacute bastante associado ao universo musical Nesse sentido poderiacuteamos acrescentar ao

conjunto de elementos ligados ao ruiacutedo aleacutem de sons gerados pela tecnologia utilizada os

barulhos gerados no proacuteprio ambiente onde se executa a performance musical (base por

exemplo da peccedila 4rsquo33rdquo de John Cage)

Ballard (2011 p61) eacute um pouco mais especiacutefica quando indica que as preocupaccedilotildees a

respeito dos problemas entre informaccedilatildeo e ruiacutedo remontam ao final da 2ordf Guerra Mundial

quando matemaacuteticos engenheiros e fiacutesicos tentavam desenvolver sistemas de controle e

comunicaccedilatildeo perfeitos Embora natildeo consideremos necessaacuterio procurar um marco inicial para as

reflexotildees a respeito do tema (outros pesquisadores jaacute o fizeram) parece seguro apontar que o

aprimoramento das tecnologias de informaccedilatildeo e de sistemas inteligentes no seacuteculo XX trouxe o

67 Especialmente Luigi Russolo John Cage e a musique concregravete Sobre esses artistas ver os capiacutetulos The (not so)noisy elephants in the room e On Noise and Music em HAINGE Greg Noise matters Towards an ontology ofnoise London Bloomsbury 2013

111

ruiacutedo como ldquoproblemardquo para muitas esferas cientiacuteficas fazendo deste periacuteodo histoacuterico um

momento de especial interesse no assunto

Essas breves observaccedilotildees jaacute sugerem duas questotildees a serem consideradas para o debate

A primeira eacute que inclusive para os artistas citados ndash e devemos ter em conta que essa ideia torna-

se dominante e senso comum ndash o ruiacutedo eacute compreendido numa oposiccedilatildeo agrave muacutesica como entidades

separadas ruiacutedo natildeo eacute muacutesica e assim eles natildeo se misturam A essa premissa o estudo de

Hainge opotildee-se fortemente Para ele embora o caraacuteter desagregador e transgressivo seja inerente

ao ruiacutedo enquanto marca conceitual este natildeo pode ser tomado como uma intromissatildeo externa

uma sonoridade totalmente estranha O ruiacutedo integra a estrutura expressiva do meio onde se

manifesta e natildeo se distingue pela capacidade de surgir e desaparecer pois estaacute sempre presente

O problema eacute que ele nem sempre eacute notado (constituindo assim um problema de percepccedilatildeo) Se

pensarmos nas obras de artistas como Sonic Youth68 Bjoumlrk69 Kraftwerk70 Metaacute Metaacute71 ou Oval72

ndash somente para citar alguns e essa lista pode aumentar e modificar-se toda vez que esta tese seja

lida por algueacutem diferente ndash que se utilizam largamente de objetos ldquonatildeo-musicaisrdquo e de sons

originados pelo uso natildeo programado de instrumentos convencionais ou materiais como

microfones e amplificadores eacute possiacutevel determinar onde termina a muacutesica e onde entra o ruiacutedo

Esses artistas apropriam-se de sonoridades variadas e geradas atraveacutes de diversos recursos em

composiccedilotildees onde o ruiacutedo flui como parte de uma massa sonora completa uma energia que

atravessa um sistema ou um corpo poreacutem sem ser estranho a ele Peter Krapp (2018)73 comenta

que o glitch o feedback e o click satildeo elementos importantes do aproveitamento de resultados

gerados pelo imprevisiacutevel no ambiente sonoro demarcando seu apelo esteacutetico embora afirme (ao

68Grupo de rock alternativo norte-americano que iniciou suas atividades na deacutecada de 1980 permanecendo ativo ateacutemeados de 2011 Com influecircncias de John Cage Velvet Undergound Patti Smith entre outros sua muacutesica eacutereferecircncia para artistas da deacutecada seguinte com destaque para os tambeacutem norte-americanos do Nirvana69Cantora compositora produtora instrumentista e atriz islandesa que antes de seguir carreira solo integrou a bandaSugar Cubes ativa entre os anos 1980-1990 Seu trabalho incorpora elementos de jazz muacutesica eletrocircnica trip-hopentre outros gecircneros70 Kraftwerk eacute uma banda alematilde de muacutesica eletrocircnica que surgiu nos anos 1970 conhecida pela sonoridade criada apartir de sintetizadores computadores e equipamentos desenvolvidos pelos proacuteprios integrantes do grupo Natildeo rarosuas muacutesicas falam da vida urbana e da tecnologia71 Metaacute Metaacute eacute um grupo brasileiro formado em Satildeo Paulo cujas muacutesicas articulam instrumentos como guitarrabateria metais e percussatildeo Em atividade desde 2008 seu trabalho pode ser colocado junto ao de uma safra deartistas recentes como Passo Torto e os trabalhos solo de Rodrigo Campos e Kiko Dinucci (integrante do MetaacuteMetaacute) Esses uacuteltimos por sua vez satildeo influenciados por nomes como Tom Zeacute Arrigo Barnabeacute e Itamar Assumpccedilatildeona maneira de compreender a criaccedilatildeo musical como algo a ser reinventado por meio dos materiais etc72 Grupo alematildeo de muacutesica eletrocircnica experimental considerado um dos expoentes da glitch music73 Luersen Eduardo Harry Maschke Guilherme Malo Erro e ruiacutedo na tecnocultura contemporacircnea - Entrevista comPeter Krapp Galaxia n 39 set-dez 2018 p 15-22

112

contraacuterio de Hainge) que o progresso teacutecnico seja capaz de banir o ruiacutedo que eacute nesses casos

reintroduzido pela intencionalidade dos artistas

Ao tratar da oposiccedilatildeo entre muacutesica e ruiacutedo Hainge lembra o manifesto de Luigi Russolo

(Art of noise1913)74 compositor italiano ligado ao Futurismo que investe numa tentativa de

falar sobre o tema do ruiacutedo e acaba por afirmar essa mesma divisatildeo O problema do manifesto

seria que como parte da proposta esteacutetica futurista ele distinguia claramente som e ruiacutedo o que

significava tambeacutem uma tentativa de contenccedilatildeo do ruiacutedo75 A mesma criacutetica eacute feita pelo autor agrave

proposta de John Cage (na peccedila 4rsquo33rdquo jaacute citada) que embora estimulando uma atitude mais

participativa da audiecircncia como elemento de construccedilatildeo da proacutepria obra reproduz a ideia de que

o ruiacutedo necessita ser ldquoconvertidordquo em algo mais palataacutevel (ou melhor dizendo audiacutevel) para

entatildeo ser integrado ao trabalho musical

Tais exemplos revelam um ponto que se deve ter em mente na questatildeo do ruiacutedo

perceber que sua conotaccedilatildeo negativa nasce dessa leitura de sua presenccedila como algo estranho ao

sistema que ele tende a desagregar Ainda no acircmbito musical tido como sonoridade erraacutetica agraves

vezes desagradaacutevel e criadora de desconforto o ruiacutedo provoca uma necessidade de expurgo Esse

movimento de negaccedilatildeo acaba permeando natildeo soacute algumas leituras na aacuterea da muacutesica mas tambeacutem

no cinema e na fotografia como demonstra Hainge (Ibidem) ao longo de seu livro afirmando

sempre que a exclusatildeo do ruiacutedo eacute na verdade impossiacutevel

Em nossas anaacutelises seguiremos o entendimento de Hainge (2013) considerando o ruiacutedo

natildeo como externalidade intrusiva mas como parte constitutiva dos processos envolvidos na

relaccedilatildeo artistasaparatos sobretudo nas apariccedilotildees do ruiacutedo relativas agraves materialidades

empregadas Interessam-nos os experimentos agenciamentos perversotildees realizados nos mais

diversos insumos e equipamentos que venham a expor o ruiacutedo na imagem Entendemos que ao

submeter as tecnologias a experiecircncias que muitas vezes contrariam suas funccedilotildees originais

muitos artistas estatildeo deixando entrever em seus trabalhos um interesse genuiacuteno pelo caraacuteter

74 Sobre o manifesto ver Art of noises em httpswwwunknownnufuturismnoiseshtml Acesso em 160419

75 Russolo criou instrumentos que imitavam sons diversos (sirenes e carros acelerando por exemplo) que para elerepresentavam os ruiacutedos da vida urbana no seacuteculo XX Os ldquointonarumorirdquo ou ldquoentoarruiacutedosrdquo Cf Abraatildeo FilhoClaudio Luiz Cecim O avesso da comunicaccedilatildeo Esteacutetica e poliacutetica do ruiacutedo na cultura digital (tese dedoutorado) Programa de Estudos Poacutes-Graduados em Comunicaccedilatildeo e Semioacutetica Pontiacutefica Universidade Catoacutelica deSatildeo Paulo 2018 p45-50

113

dissonante que a imagem pode assumir Ao pressionarem os materiais de que dispotildeem abrem

margem para que o ruiacutedo possa revelar-se atraveacutes de elementos como borrotildees tremulaccedilotildees

vazamentos de luz sobreposiccedilotildees de imagens granulaccedilotildees alteraccedilotildees cromaacuteticas resultantes de

manipulaccedilotildees riscos e outros tipos de intervenccedilotildees fiacutesicas na superfiacutecie da imagem

superexposiccedilatildeo anamorfoses e distorccedilotildees variadas que atestam a inscriccedilatildeo do tempo manchas

desfoque pixelizaccedilatildeo e demais efeitos causados pelo uso poeacutetico de erros nos sistemas de

computador (softwares) como modalidades esteacuteticas Aqui entendemos que os ruiacutedos satildeo as

diferentes maneiras de inscriccedilatildeo das tecnologias rastros dos processos realizados para obtenccedilatildeo

de imagens no acircmbito da investigaccedilatildeo artiacutestica

43 ldquoCOM OLHOS DE VIDRO DE CORES BERRANTES BALANCcedilAM EDIFIacuteCIOS DE

QUARENTA ANDARESrdquo

O artista carioca Luiz Alberto Guimaratildees possui seacuteries fotograacuteficas que problematizam a

perspectiva geomeacutetrica (herdada do Renascimento e tantas vezes citada como marco formal

apropriado no modelo da cacircmera fotograacutefica) produzindo imagens com alto grau de ruiacutedo

Influenciado pelos escritos de Vileacutem Flusser ele trabalha a partir de uma revisatildeo da cacircmara

escura desconstruindo seu modelo monocular a partir do uso de equipamentos com vaacuterias

entradas de luz Na seacuterie Paisagens cacofocircnicas (2015) (figuras 22 e 22a) traccedila um olhar caoacutetico

sobre a ocupaccedilatildeo do espaccedilo urbano sugerindo um excesso um certo sufoco desse espaccedilo a partir

das diversas imagens geradas pelos muacuteltiplos furos da cacircmera As imagens satildeo demasiado

confusas e mostram-se como recusa da noccedilatildeo de paisagem ligada agrave construccedilatildeo perspectiva do

espaccedilo

Entatildeo quando eu comecei esse meu trabalho a minha pegada era meio flusseriana muitona questatildeo da relaccedilatildeo do aparelho o quanto que o aparelho eacute preacute-formatado pra vocecirc() a grande formataccedilatildeo do aparelho fotograacutefico eacute a questatildeo da representaccedilatildeo De quemaneira ele pega a realidade e representa planarmente () que eacute extremamente antiga eacuterenascentista () A representaccedilatildeo ficou presa demais a esse modo ficou muitoformatada A fotografia aceitou passivamente essa funccedilatildeo enquanto que a pintura vocecircteve todos os movimentos o Cubismo e outras formas de representar () Muito do queeu tento fazer com a fotografia () eacute uma perspectiva () mas natildeo tem as regras quetanto atraiu o pessoal no final do seacuteculo 19 Eacute justamente ver que tem outro jeito76(GUIMARAtildeES 2017)

76 Entrevista concedida agrave autora desta tese em 2017

114

Figuras 22 e 22a - Paisagens cacofocircnicas (Luiz Alberto Guimaratildees 2015)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

No trabalho do artista carioca a ldquodesprogramaccedilatildeo do aparelhordquo na abordagem de

Flusser (2011) natildeo se daacute apenas em niacutevel conceitual no sentido de que busca subverter a

perspectiva convencional atraveacutes da junccedilatildeo numa mesma imagem de vaacuterios pontos de vista mas

tambeacutem no niacutevel da proacutepria estrutura da cacircmera jaacute que Guimaratildees constroacutei boa parte de seus

equipamentos Neste caso o fotoacutegrafo utilizou uma cacircmera com vaacuterios orifiacutecios que projetam as

115

diferentes imagens no papel fotograacutefico gerando distorccedilotildees zonas de sombra profunda em

contraste com aacutereas praticamente superexpostas marcas visuais da inscriccedilatildeo da luz na superfiacutecie

fotossensiacutevel Fruto da interaccedilatildeo entre luz e agentes fotoquiacutemicos a superexposiccedilatildeo eacute um tipo de

intensificaccedilatildeo do medium fotograacutefico que conteacutem grande niacutevel de ruiacutedo (HAINGE 2013 p183)

se o ruiacutedo eacute considerado a marca visiacutevel deixada pelas tecnologias em seus produtos aqui vemos

surgir uma cidade em suas muacuteltiplas facetas devido agrave maneira como se relacionam agraves diversas

entradas de luz do equipamento e a superfiacutecie onde se registram esses traccedilos A esteacutetica resultante

da perversatildeo do formato baacutesico da cacircmara escura produz edifiacutecios que se projetam em direccedilatildeo ao

espectador como num movimento crescente assumindo formas estranhas dado o caraacuteter

nitidamente artificial da composiccedilatildeo

O mundo que emerge das Paisagens Cacofocircnicas funciona como uma criacutetica tanto agrave

ocupaccedilatildeo capitalista predatoacuteria das cidades brasileiras quanto agrave forma tradicional de captura

dessa paisagem pela fotografia Em vez de uma abordagem realista aqui vemos uma verdadeira

construccedilatildeo paisagiacutestica voltada para o caraacuteter perverso da presenccedila humana No texto que

acompanha o trabalho em seu site Luiz Alberto Guimaratildees apropria-se de uma reflexatildeo do

cineasta alematildeo Win Wenders que sublinha exatamente essas questotildees

Assim como o mundo de imagens que nos circunda eacute cada vez mais cacofocircnicodesarmocircnico ruidoso proteiforme e pretencioso as cidades se tornaram por sua vezmais e mais complexas discordes ruidosas confusas e massacrantes Imagens e cidadesvatildeo bem juntas (WIM WENDERS apud GUIMARAtildeES online 2015)

Aqui tambeacutem se recusa qualquer tom idiacutelico ou bucoacutelico que formatos como o cartatildeo

postal ajudaram a consagrar no acircmbito da fotografia voltada para a paisagem o que constitui um

confronto a paradigmas da imagem assinalando mais uma vez a presenccedila do ruiacutedo no tocante a

um procedimento distante das padronizaccedilotildees de um estilo bastante difundido de imagem

Recusando-se a se apropriar da cacircmara escura no seu modelo convencional o artista recusou

tambeacutem determinada tipologia imageacutetica

Tenho desde entatildeo procurado atuar no limite do que Flusser denomina de jogo contra oaparelho comeccedilo por destruiacute-lo para entatildeo reconstruiacute-lo segundo novos programaselaborados pelo proacuteprio fotoacutegrafo Dessa forma creio que para quem quer ldquoinventarcategorias e continuar fotografandordquo a soluccedilatildeo pode estar nas maacutequinas artesanais comas quais venho trabalhando (e com certeza me divertindo) onde o que estaacute sobretudo empauta eacute o tempo de exposiccedilatildeo e a geometria da representaccedilatildeo (GUIMARAtildeES 2014p5)

Conforme assinala Baio (2015) alguns artistas desenvolvem seus trabalhos inventando

seus proacuteprios algoritmos sistemas e modelos maquiacutenicos e conceituais o que configura

116

exatamente uma abordagem flusseriana das miacutedias que orienta a estrateacutegia adotada pelo fotoacutegrafo

carioca Ele se preocupa em elaborar dispositivos especiacuteficos para cada trabalho de acordo com a

esteacutetica e o conceito perseguidos Ainda no que se refere ao gecircnero paisagem Guimaratildees

demonstra especial atenccedilatildeo agrave caracteriacutestica construiacuteda da representaccedilatildeo dos espaccedilos algo que

acabou por naturalizar-se de certa maneira nas praacuteticas da imagem Aqui natildeo haacute uma visatildeo

monocular que possamos atribuir ao fotoacutegrafo como entidade articuladora da tomada do espaccedilo

na verdade para o artista eacute inclusive necessaacuterio percebermos que essa forma de abordagem natildeo

passa de uma construccedilatildeo mental

() o que a Anne Cauquelin77 () tenta mostrar eacute que se num momento a perspectivaclaacutessica foi revolucionaacuteria () que ateacute aquele momento natildeo existia a ideia de paisagemExistia a natureza mas a ideia dessa representaccedilatildeo da paisagem que a gente tem hojemuito forte () (GUIMARAtildeES 2017)

A priori a cacircmara escura utilizada como modelo base para elaborar vaacuterios dos

equipamentos empregados por Guimaratildees tem como caracteriacutesticas baacutesicas a ausecircncia de um

sistema de lentes focagem controles de velocidade e abertura do obturador Eacute literalmente um

dispositivo cego e de certa forma descontrolado e imprevisiacutevel por excelecircncia (embora sujeito a

leis fiacutesicas que regem o comportamento da luz em seu interior e agrave geometria de sua estrutura)

Sua exploraccedilatildeo criacutetica atesta uma verdadeira investigaccedilatildeo de possibilidades outras ainda natildeo

reveladas do ponto de vista plaacutestico Para aleacutem do paradigma monocular essa teacutecnica claacutessica

ainda guarda ldquoimagens abandonadasrdquo que se formam nas vaacuterias direccedilotildees da cacircmara escura uma

totalidade que inunda a cacircmera com porccedilotildees formadas nas suas paredes laterais piso e teto

(GUIMARAtildeES 2014 p16) Imagens cuja descoberta eacute possibilitada pela inquietude do artista

que parece aleacutem de exercitar uma criacutetica ao fetichismo do desenvolvimento tecnoloacutegico

aprofundar resultados obtidos atraveacutes de procedimentos tidos como superados desgastados ou

interditos aos novos usos

Mas natildeo eacute apenas em seu iteresse pela uniatildeo entre fotografia e artesania que Guimaratildees

reflete sobre a programaccedilatildeo dos aparelhos tatildeo discutida por Flusser Para ele esse problema

atinge quaisquer dispositvos de imagem pois em sua visatildeo o dispositivo seja analoacutegico ou

digital ldquotem um preacute-programa que eacute o mais forte de todos Eu sempre brinco dizendo que tem um

77 Refere-se ao livro A invenccedilatildeo da paisagem de Anne Cauquelin publicado em 2007

117

pecado original ali que eacute te dar uma visatildeo que por mais que vocecirc tente tente estaacute amarrado

nelardquo (GUIMARAtildeES 2017)

Na seacuterie Os dois mundos de Alice (2015) (figuras 23 e 24) utilizam-se de

equipamentos digitais para construir cenaacuterios fantaacutesticos como forma de criticar a segregaccedilatildeo

entre pobres e ricos nas praias do Rio de Janeiro A partir de um incocircmodo causado pela situaccedilatildeo

aleacutem da observaccedilatildeo paralela de que a praia sobrevive hoje como principal forma de lazer ainda

gratuito da populaccedilatildeo de baixa renda o fotoacutegrafo realizou uma seacuterie de registros dos banhistas

Para mostrar este ambiente como uma espeacutecie de refuacutegio manipulou as cores de forma a produzir

tonalidades extremamente artificiais meio aberrantes ateacute criando um cenaacuterio onde mulheres

homens crianccedilas podem desfrutar do mar do sol como num pequeno paraiacuteso O estranhamento

visual eacute forte natildeo somente pela artificialidade das cores mas tambeacutem porque embora a atmosfera

criada estabeleccedila uma criacutetica por meio de uma celebraccedilatildeo da relaccedilatildeo entre os sujeitos e o espaccedilo

a composiccedilatildeo escolhida foge agrave regra da centralidade

Natildeo satildeo aquelas praias de Itaquatiara que vatildeo aquelas mulheres lindas aqueles carasldquosaradotildeesrdquo () Eu fui nas praias que eu vejo ainda como uacuteltimo espaccedilo de liberdadetalvez onde as pessoas () natildeo tomaram dos pobres Entatildeo eu fui laacute e fotografei eles nassituaccedilotildees normais deles alguns fazendo piqueniques outros com a famiacutelia Evitando aomaacuteximo frontalizar a maior parte dessas fotos eu pego as pessoas de costas ateacute pra natildeoidentificar () E aiacute fiz esse efeito de criar um mundo meio estranho tambeacutem como sefossem pessoas que estatildeo ali mas o mundo natildeo as aceita muito natildeo Estatildeo ali tambeacutemprestes a perder esse espaccedilo Aiacute eu dei esse efeito no restante criei uma camada que eusolarizei em volta (GUIMARAtildeES 2017)

Figura 23 - Os dois mundos de Alice (Luiz Alberto Guimaratildees 2015)

118

Figura 24 - Os dois mundos de Alice (Luiz Alberto Guimaratildees 2015)

Fonte Reproduccedilatildeo site artista

Um outro aspecto curioso desse trabalho que dialoga diretamente com a questatildeo do

ruiacutedo criado a partir da manipulaccedilatildeo da miacutedia eacute o ldquoefeito colagemrdquo aplicado aos corpos dos

banhistas Se satildeo corpos na iminecircncia da expulsatildeo do espaccedilo que (ainda) lhes pertence

119

formalmente isso eacute demonstrado atraveacutes da localizaccedilatildeo predominante desses corpos nas bordas

da imagem Como uma espeacutecie de ruiacutedo na estrutura social essas pessoas habitam um mundo

construiacutedo para elas atraveacutes tambeacutem de estrateacutegias de negaccedilatildeo de certa normatividade esteacutetica da

fotografia negaccedilatildeo de ocuparem uma posiccedilatildeo central negaccedilatildeo de padrotildees de beleza negaccedilatildeo de

uma suavidade das cores num estilo naturalista negaccedilatildeo do equiliacutebrio entre as proporccedilotildees e

escalas de seus corpos em relaccedilatildeo aos elementos da paisagem (nuvens faixa de areia ondas) A

composiccedilatildeo desse conjunto de imagens eacute bastante carregada As silhuetas demarcadas pelo

ldquoefeito colagemrdquo reforccedilam ainda mais a noccedilatildeo de pessoas que podem facilmente serem retiradas

daquele contexto Na relaccedilatildeo visual estabelecida entre as pessoas e o fundo (cenaacuterio da praia) haacute

um forte caraacuteter disjuntivo perturbando a composiccedilatildeo que remete agraves praacuteticas da fotomontagem

Mas ao mesmo tempo mostrar que eles estatildeo ldquocoladosrdquo ali eles natildeo estatildeo integrados Eacutecomo se vocecirc tivesse o mundo e botasse () eles estatildeo ali por um favor de algueacutem quedeixou eles ficarem aderentes ali mas daqui a pouco natildeo vatildeo estar mais Aiacute as pessoasestatildeo aiacute mas estatildeo demarcadas () Depois uma leitura que se pode dar a esse trabalholsquoah vocecirc quis ironizar essas pessoas esses corpos feiosrsquo Natildeo justamente o contraacuterio() Aqui em Niteroacutei a segregaccedilatildeo nas praias eacute fantaacutestica Vocecirc tem as praias dos ricos eas praias dos pobres Isso eacute niacutetido natildeo deixam misturar E as pessoas acabam aceitandoisso (GUIMARAtildeES 2017)

Em sua investigaccedilatildeo de visualidades singulares natildeo alinhadas ao modelo perspectivista

geomeacutetrico Luiz Alberto Guimaratildees realizou tambeacutem imagens que prescindem da proacutepria

cacircmera fotograacutefica como aparato modelo a exemplo da seacuterie de autorretratos que fez com um

scanner de mesa como parte de um processo terapecircutico entre os anos de 2006 e 200878 Suas

proposiccedilotildees estatildeo alinhadas com as noccedilotildees de que o universo das ldquoimagens teacutecnicasrdquo (FLUSSER

2011) eacute vasto extrapolando o campo da fotografia e de seus dispositivos convencionais Ressalte-

se que as ideias desenvolvidas por Flusser em seus escritos (2011 2008) sugerem que a imagem

fotograacutefica eacute um campo aberto agrave investigaccedilatildeo livre de amarras ou regramentos impostos seja pela

tecnologia ou por concepccedilotildees de sua ontologia Sobre as imagens teacutecnicas afirma

Elas satildeo dificilmente decifraacuteveis pela razatildeo curiosa de que aparentemente natildeonecessitam ser decifradas Aparentemente o significado das imagens teacutecnicas seimprime de forma automaacutetica sobre suas superfiacutecies como se fossem impressotildees digitaisonde o significado (o dedo) eacute a causa e a imagem (o impresso) eacute o efeito (FLUSSER2011 p24)

78 Disponiacutevel em httpsissuucomlamguimaraesdocsvarreduras Acesso em 17122019 O scanner tem sidoutilizado como maacutequina de imagem em projetos de outros fotoacutegrafos a exemplo do tambeacutem brasileiro GuilhermeMaranhatildeo que realizou o projeto Meu Corpo (2004) Disponiacutevel emhttpsissuucomitauculturaldocspossibilidades_da_fotografia169 Acesso em 29022020

120

Quando diz que ldquoaparentementerdquo o significado de uma imagem estaacute dado o filoacutesofo

lembra-nos que uma imagem natildeo se restringe a uma tentativa de coacutepia do que se passou frente agrave

cacircmera Assim caem por terra as teses centradas na indicialidade que fazem da fotografia um

produto da captura objetiva de um referente Aqui se nega toda uma fortuna criacutetica e expectativas

de senso comum assentadas no desejo de reconhecer o mundo concreto na imagem Um conjunto

de proposiccedilotildees que entende a fotografia pela linha ontoloacutegica da analogia A imagem natildeo eacute rastro

de um real mas o resultado do jogo entre ser humano e aparato constituindo algo que existe

enquanto fenocircmeno autocircnomo O efeito de um gesto no qual algo em frente agrave cacircmera eacute um

pretexto para criar que visa menos explicar o mundo do que lhe dar sentido (BAIO 2015 p93-

100) Fatorelli (2017 p56) diz que a fotografia apresenta uma dupla articulaccedilatildeo oscila entre a

aproximaccedilatildeo e o afastamento do referente e instituindo-se a partir de procedimentos teacutecnicos

torna-se independente de condiccedilotildees precedentes e anteriores agrave sua criaccedilatildeo instaurando assim a

sua proacutepria realidade

Vejamos o que Flusser diz sobre como desvendar as imagens teacutecnicas

Natildeo eacute analisando a casa mostrada na fotografia mas analisando a cacircmera fotograacutefica e aintenccedilatildeo do fotoacutegrafo que a decifraremos (hellip) Natildeo adianta perguntar se a casafotografada estaacute ldquorealmenterdquo laacute fora ou se eacute falsa Natildeo adianta perguntar se a batalhamostrada na TV se passou ldquorealmenterdquo ou se foi encenada () As cenas mostradasdevem ser analisadas em funccedilatildeo do programa a partir do qual foram projetadas Ora istoexige criteacuterios novos natildeo mais do tipo ldquoverdadeiro ou falsordquo ou do tipo ldquobelo ou feiordquomas do tipo ldquoinformativo ou redundanterdquo (FLUSSER 2008 p68-69)

Quando evoca a necessidade de entender a ldquocacircmerardquo o filoacutesofo natildeo se refere agrave

compreensatildeo dos paracircmetros estritamente teacutecnicos do equipamento Na verdade Flusser nos

convoca a observar os paradigmas cientiacuteficos econocircmicos poliacuteticos ideoloacutegicos e esteacuteticos que

permitem o surgimento de uma tecnologia como a fotografia e sua condiccedilatildeo de dispostivo

intermediaacuterio entre sujeito e mundo concreto O conjunto dessas questotildees forma o ldquoprogramardquo do

ldquoaparelhordquo fotograacutefico outros dois conceitos fundamentais no pensamento flusseriano Entender

o ldquoprogramardquo nada mais eacute que compreender os paradigmas envolvidos na estrutura da tecnologia

A questatildeo eacute perceber o que estaacute nesse niacutevel abstrato para entender o que significam as imagens e

de que maneira esses paradigmas satildeo rediscutidos na produccedilatildeo dos artistas Tais conclusotildees a

respeito da imagem por meio da obra de Flusser marcam o perfil das obras incluiacutedas em nosso

121

corpus Tambeacutem devemos considerar as questotildees levantadas por Flusser a respeito do aparelho

fotograacutefico aplicaacuteveis aos demais aparatos imageacuteticos com os quais os artistas trabalham

sobretudo se consideramos o atual cenaacuterio de contaminaccedilatildeo entre as miacutedias

Podemos dizer que osas artistas cujas obras satildeo aqui apresentadas posicionam-se contra

o modelo da imagem que investe prioritariamente na condiccedilatildeo indicial representativa realista

Consequentemente estatildeo todos engajados na produccedilatildeo de imagens elaboradas (negando os

automatismos) desenvolvendo processos especiacuteficos que discutem paradigmas importantes do

meio fotograacutefico Nos trabalhos do artista carioca haacute a proposiccedilatildeo de um debate sobre a

perspectiva monocular da cacircmera e a busca de alternativas a esse modelo de construccedilatildeo do

espaccedilo fiacutesico atraveacutes da criaccedilatildeo de maacutequinas artesanais ou seja atraveacutes de um investimento na

proacutepria estrutura do dispositivo Haacute tambeacutem aqueles artistas que de posse das miacutedias digitais

articulam essa mesma criacutetica inflitrando-se nos sistemas criadores de imagem a partir de falhas

ou do uso natildeo padronizado de softwares formatos de arquivos e dispositivos produzindo assim

novas esteacuteticas

Ainda eacute importante lembrar que Flusser (2011) considera a fotografia a imagem teacutecnica

inaugural pois ao contraacuterio das imagens tradicionais dependentes da matildeo humana para

existirem as fotografias satildeo produtos de ldquoaparelhosrdquo que por sua vez satildeo maacutequinas de tipo

especial desenvolvidas mediante conhecimentos cientiacuteficos Os aparelhos tecircm depositados em

sua maneira de funcionar em sua estrutura saberes complexos de ordem econocircmica ideoloacutegica

filosoacutefica poliacutetica Uma das grandes contribuiccedilotildees de Flusser eacute demonstrar como esses saberes

determinam os caminhos da praacutetica fotograacutefica No texto ldquoNascimento da imagem novardquo (op cit)

o autor afirma que a fotografia resulta de conhecimentos oacuteticos e quiacutemicos e explica que para

decifrar o ldquomundo codificadordquo ao nosso redor eacute preciso buscar os conceitos com base nos quais

ocorre essa codificaccedilatildeo

44 ldquoPOR SERES TAtildeO INVENTIVO E PARECERES CONTIacuteNUO TEMPO EacuteS UM DOSDEUSES MAIS LINDOSrdquo

Por meio da ligaccedilatildeo que Flusser estabelece entre conhecimento cientiacutefico e ldquoaparelhordquo eacute

possiacutevel compreender toda uma cadeia de entendimentos presentes na historiografia da

122

fotografia e identificar determinado modelo epistemoloacutegico estabelecido no que Antonio

Fatorelli (2013) denomina ldquoforma fotografiardquo para entendermos como osas artistas presentes em

nossa pesquisa tensionam esse modelo e suas modalidades esteacuteticas Dessa forma satildeo

instrumentais ainda as noccedilotildees de ldquojogadorrdquo e ldquofuncionaacuteriordquo no tocante agrave atitude de cada artista

frente ao aparelho Pois a postura luacutedica que caracteriza o jogador em termos flusserianos

expressa a recusa aos limites e regras das tecnologias e por conseguinte das esteacuteticas

produzidas por tais regras quando utilizadas de maneira acriacutetica Eacute se infiltrando nas brechas do

aparelho que o artista consegue driblar seu ldquoprogramardquo Nesse esforccedilo de subverter coacutedigos e

normas de utilizaccedilatildeo eacute que identificamos a emergecircncia do ruiacutedo No caso dos trabalhos de Luiz

Alberto Guimaratildees o ruiacutedo opera em niacutevel conceitual e formal atraveacutes das muacuteltiplas exposiccedilotildees

do aspecto francamente construiacutedo da imagem com tendecircncias agrave ficcionalizaccedilatildeo e como veremos

a seguir da exploraccedilatildeo de um tempo dilatado (em detrimento do instante)

Figura 25 - Sequecircncia de fotografias da seacuterie Retratos do Indiziacutevel (Luiz Alberto Guimaratildees 2008)

123

124

125

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Na seacuterie Retratos do Indiziacutevel (2008) ndash sequecircncia de fotos da figura 25 ndash foi utilizada

uma cacircmera construiacuteda pelo fotoacutegrafo que permitia fazer longas exposiccedilotildees (figura 26) Durante

um periacuteodo de depressatildeo Luiz Alberto fotografava-se diariamente em diferentes posiccedilotildees

gesticulando interagindo com objetos ou elementos do ambiente Enquanto tentava compreender

o que se passava em seu universo interior a cacircmera foi sua companheira no registro de seus

estados psicoloacutegicos Ao longo das centenas de autorretratos (depois reunidos num fotolivro79)

sua figura aparece e desaparece funde-se agrave textura das paredes ao mobiliaacuterio passando de um

estado de concretude ao fantasmagoacuterico Por vezes numa mesma fotografia habitam as diferentes

fases de seus movimentos inscritos no decurso do tempo de captura distendido Haacute momentos em

que Luiz perde a cabeccedila usa maacutescaras forja identidades outras em imagens que sugerem

79 Disponiacutevel em httpsissuucomlamguimaraesdocsretratos_do_indiz__vel Acesso em 13012020

126

instabilidade mostrando ldquoaquilo que se passava comigo que eu natildeo conseguia compreender e

muito menos expressar com palavrasrdquo (GUIMARAtildeES online)

Fiquei quatro anos praticamente trancado dentro de casa sem conseguir sair () Depoiseu vou me dar conta dessa coisa que eu tenho de me expor agraves maacutequinas que era umtratamento uma psicanaacutelise de mim mesmo neacute () e aiacute fiz essa maacutequina que eacute umamaacutequina tradicional do ponto de vista da representaccedilatildeo espacial tem o furo e o papelMas como o tempo dela de exposiccedilatildeo eacute grande ela me permitiu fazer uma coisa que ateacuteo Fatorelli tambeacutem fala natildeo eacute bem movimento mas eacute vocecirc colocar natildeo eacute o instantacircneomais () (lsquoVocecirc tem o instante dilatadorsquo) Dilatadiacutessimo e eu fazia muita performance() E o fato de eu ficar ali me expondo 6 8 minutos eacute muito tempo e acaba sendo umtratamento (GUIMARAtildeES 2017)

Conforme lembrou o fotoacutegrafo o pesquisador Antonio Fatorelli (2017a) indica que as

imagens contemporacircneas se notabilizam pela proposiccedilatildeo de ldquotempos sobrepostos bifurcados

multivetoriaisrdquo natildeo restritos ao instantacircneo Aqui essa condiccedilatildeo se daacute por meio do longo tempo

da feitura da imagem fazendo o instante estender-se Eacute como se atraveacutes da dissoluccedilatildeo do

apagamento dos detalhes das formas do corpo do fotoacutegrafo pudeacutessemos ser tocados pela

extensatildeo desse tempo Natildeo raro encontramos obras em que o tracircnsito entre a total fixidez e o

indiacutecio do movimento aparecem conjugados como nesses autorretratos Se pensarmos que nos

equipamentos fotograacuteficos convencionais os tempos da velocidade do obturador satildeo marcados

em fraccedilotildees de segundo exposiccedilotildees como as feitas por Guimaratildees cuja duraccedilatildeo gira em torno dos

8 minutos satildeo da ordem de uma verdadeira eternidade produzindo formas tambeacutem inusuais

Segundo Parikka (et al 2016) as tecnologias as mais variadas propotildeem sempre temporalidades

alternativas o que coloca um trabalho baseado na longa exposiccedilatildeo como exemplo de uma

temporalidade que eacute mais da ordem do possiacutevel Essas questotildees aparecem conceitual e

plasticamente em Retratos do indiziacutevel para aleacutem da normatividade do tempo condensado

isolado (fragmento temporal) vemos uma distensatildeo do tempo de captura A duraccedilatildeo em

detrimento do instante Se as imagens mentais do devaneio do sonho da memoacuteria satildeo estranhos

a um ordenamento linear natildeo obedecendo a uma estrutura loacutegica nesses autorretratos parece que

a imagem que registra o encontro o embaralhamento de vaacuterios estados psiacutequicos tambeacutem se

apresenta nesses termos estando impregnada de certa confusatildeo atraveacutes da distorccedilatildeo dos

contornos de um acuacutemulo das accedilotildees que se desenvolvem ao longo dessa duraccedilatildeo A

representaccedilatildeo desse tempo psiacutequico eacute tambeacutem impregnada de incertezas formais de corpos

fugidios de fisionomias que se desfazem quase se desintegrando Aqui os borrotildees e os fantasmas

127

satildeo indiacutecios dos movimentos executados pelo fotoacutegrafo mas esse movimento eacute instaacutevel

oscilando entre a presenccedila e a desapariccedilatildeo (FATORELLI 2013 p40)

Se lembrarmos que essas imagens satildeo produzidas em papel fotograacutefico (exigindo um

tempo realmente mais lento de exposiccedilatildeo se comparado agrave peliacutecula) fica patente que os momentos

vatildeo mesmo se depositando na superfiacutecie fotosenssiacutevel Ana Angeacutelica Costa (2015 p7) indica

que os trabalhos desenvolvidos com cacircmeras artesanais satildeo determinados pelas caracteriacutesticas do

ambiente retratado e pela superfiacutecie onde a luz se projeta o que amplia as possibilidades de

imagens (na medida em que cada dispositivo eacute uacutenico) Ainda segundo a autora as teacutecnicas em

que o modelo da cacircmara escura eacute desnudado e podemos compreender seu funcionamento baacutesico

ajudam a desmistificar o proacuteprio fazer fotograacutefico enfatizando o que acontece durante a

exposiccedilatildeo da superfiacutecie fotossensiacutevel agrave luz Essas teacutecnicas deixam transparecer o percurso de

construccedilatildeo da imagem chamando atenccedilatildeo para o processo que ocorre no interior do dispositivo

Bem se o que vemos eacute o registro mesmo desse processo considerando as fotografias obtidas

pelas cacircmeras artesanais aqui citadas (com suas muacuteltiplas imagens projetadas diversos traccedilos de

luz texturas aparentes dos papeis utilizados) percebemos que somos direcionados para as

materialidades formadoras da imagem a luz o papel o tempo a natureza fugidia da imagem

Eacute interessante tambeacutem notar que diferentes equipamentos satildeo criados a partir do

princiacutepio da cacircmara escura gerando diferentes resultados Isso porque o modelo da cacircmara escura

eacute evocado natildeo em sua forma original e claacutessica (engendrando a produccedilatildeo da imagem autocircnoma

sem a interferecircncia humana supostamente gozando de maior precisatildeo) mas sofre variados tipos

de intervenccedilotildees adaptaccedilotildees e acoplagens Estas por sua vez correspondem agrave concepccedilatildeo

experimental da fotografia (LENOT 2017) alinhada aos preceitos da filosofia flusseriana no que

se refere ao jogar contra o aparelho Se conforme diz Ana Angeacutelica Costa (Ibidem) as

especificidades de cada equipamento contribuem para a variabilidade das imagens essa premissa

eacute adotada na metodologia de trabalho do fotoacutegrafo carioca que explica

Vocecirc olha uma imagem pinhole vocecirc reconhece isso foi feito com uma pinhole E aiacute agravesvezes quando eu comeccedilo a mostrar meu trabalho lsquoah mas o seu eacute deiferentersquo Pois eacuteporque natildeo eacute o fato de ser um buraquinho a questatildeo eacute a esteacutetica e como eu vou usar equais as possibilidades que eu vou descobrindo em cada maacutequina E eu te mostro vaacuteriostrabalhos feitos com cada maacutequina e vocecirc vecirc que satildeo completamente distintos Cada umte daacute uma possibilidade uma expressatildeo diferente e diferente da maacutequina convencionalEntatildeo eacute isso que eu busco neacute seja colocando o negativopapel natildeo na posiccedilatildeo frontalmuacuteltiplas exposiccedilotildees () (GUIMARAtildeES 2017)

128

Figura 26 - Cacircmera utilizada na seacuterie Retratos do Indiziacutevel

Fonte Cortesia do artista

O escultor e fotoacutegrafo Jason Shulman levou a questatildeo da manipulaccedilatildeo do tempo

registrada na imagem a um niacutevel ainda mais radical No trabalho Photographs of films (2017)

ele realizou imagens em longuiacutessima exposiccedilatildeo Na verdade sua cacircmera capturou todos os

frames de vaacuterios filmes numa soacute fotografia exposta ao longo do tempo decorrido de cada

produccedilatildeo Mais uma vez estamos diante da captura de uma duraccedilatildeo As fotografias de filmes

resultam num conjunto de borrotildees Cada imagem condensa a narrativa ao mesmo tempo que a

dissolve corrompendo a regularidade de uma montagem linear num confuso emaranhado de

formas praticamente irreconheciacuteveis O que se vecirc neste trabalho eacute uma ldquopresenccedila virtual do

movimento no domiacutenio da imagem fixardquo (FATORELLI 2013 p23) uma sobreposiccedilatildeo de

instacircncias da imagem moacutevel (riscos traccedilos sombras fantasmagorias de objetos e corpos

pertencentes agrave narrativa fiacutelmica) no modo de registro fotograacutefico notadamente estaacutetico A

experiecircncia cria imagens que se localizam a meio caminho do cinema e da fotografia e nessa

configuraccedilatildeo eacute que se encontra seu componente de ruiacutedo

A quebra do paradigma da ilusatildeo do tempo linear presente nessas imagens junta-se a

outras experiecircncias da historiografia da imagem que tambeacutem extrapolaram a noccedilatildeo do

129

instantacircneo como a cronofotografia de Marey e Muybridge a fotomontagem as sequecircncias o

fotodinamismo dos irmatildeos Bragaglia ou ainda os longuiacutessimos tempos de captura presentes nos

trabalhos de Michael Wesely Cada uma a seu modo elas contribuem para repensarmos a

inscriccedilatildeo do tempo na imagem rompendo com as expectativas perceptivas sobre a fotografia e

sobre o cinema

Atraveacutes de um retardar da narrativa que de modo natildeo convencional condensa-a

totalmente numa uacutenica imagem Shulman faz-nos lembrar de pinturas onde todas as accedilotildees estatildeo

representadas no mesmo plano de significado (a exemplo de O combate entre o Carnaval e

Quaresma ou Caminho para o calvaacuterio produzidos respectivamente em 1559 e 1564 por

Pieter Brueguel) o que tambeacutem quebra uma hierarquia de tempos uma organizaccedilatildeo espacial

concernente ao enredo de cada filme

() em cada uma dessas imagens cada filme vira uma matriz abstrata de cores variaacuteveise formas vagas Ficamos com uma imagem mais atmosfeacuterica da sensaccedilatildeo do filme emdetrimento de seu conteuacutedo agrave medida que as cores se espalham e desfocam entrefotogramas e lentamente recompotildeem o filme em algo totalmente pictoacuterico80(JAECKLE online 2018)

Haacute mais um aspecto que avizinha essa obra das imagens pictoacutericas o fato de o artista as

ter apresentado como peccedilas uacutenicas (expostas como quadros) o que implica tambeacutem uma forma

de relaccedilatildeo perceptiva mais demorada realizada num tempo mais longo que o comumente

dedicado aos filmes

Conforme o autor um detalhe interessante do processo adotado eacute responsaacutevel pela

esteacutetica das imagens elas satildeo fotografias da reproduccedilatildeo dos filmes em monitores digitais (e natildeo

de projetados em salas de cinema81) Segundo o artista ldquoos filmes foram fotografados de

monitores praticamente livres de pixelsrdquo (SHULMAN online 2018) monitores 5K o que lhe

permitiu capturar uma diversidade de tons que aparecem ao longo de cada filme Caso tivesse

fotografado a projeccedilatildeo teria captado uma grande aacuterea iluminada de forma mais homogecircnea Quer

80 Traduccedilatildeo livre de ldquoin each of these images each motion picture becomes an abstract hue of shifting colours andvague shapes Wersquore left with a more atmospheric picture of the filmrsquos feeling rather than its content as colours bleedand blur between frames and slowly recompose the film as something altogether more painterly in tone andcharacterrdquo81 Como ocorre por exemplo nos trabalhos de Hiroshi Sugimoto que fotografou com cacircmeras analoacutegicas a projeccedilatildeoem salas de cinema Para detalhes ver Fatorelli 2013 p103-127

130

dizer para o autor haacute especificidades tecnoloacutegicas que satildeo diretamente responsaacuteveis pela

maneira como cada imagem se constroacutei sendo uacutenica em sua multiplicidade de frames

Figura 27 - O maacutegico de Oz 1939 Victor Flaming (Jason Shulman 2018)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Figura 28 - 2001 Uma odisseacuteia no espaccedilo 1968 Stanley Kubrick (Jason Shulman 2018)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

131

Figura 29 - Stalker 1979 Andrei Tarkovski (Jason Shulman 2018)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Eacute curioso notar ainda que em filmes onde a narrativa eacute mais lenta e os planos tecircm maior

duraccedilatildeo algumas formas satildeo ainda perceptiacuteveis (como 2001 Uma odisseacuteia no espaccedilo e Stalker

figuras 28 e 29 respectivamente) e naqueles em que o estilo da montagem eacute mais aacutegil com mais

planos e cortes predomina o aspecto difuso na imagem (O maacutegico de Oz figura 27) Ou seja as

produccedilotildees em que o estilo da narrativa aproxima-se da fotografia (planos fixos e longos) as

formas apresentadas satildeo precariamente conservadas Nesses casos surgem entatildeo verdadeiras

fantasmagorias pois o que a cacircmera registra eacute o escorrer do tempo narrativo nas mutaccedilotildees que

provoca no conjunto do filme Os frames de cada produccedilatildeo apresentados assim de modo

embaralhado criam uma imagem heterogecircnea uma desordem uma confusatildeo de temporalidades

que debilita os anseios da representaccedilatildeo figurativa

Uma das fotografias chamou a atenccedilatildeo de Shulman exatamente porque esse efeito

figurativo chegou a insinuar-se (sem contudo firmar-se) a imagem de O evangelho segundo Satildeo

Mateus filme de Pier Paolo Pasolini de 1972 (figura 30) A fisionomia de Cristo torna-se

perceptiacutevel mas continua uma imagem fugaz pois que ela natildeo constitui completamente o todo

narrativo do filme Conforme o artista isso ocorre pelo estilo cinematograacutefico de Pasolini que

frequentemente situava atores e atrizes no centro do quadro ldquoum rosto grande ocupando a tela o

132

olhar direcionado ao espectadorrdquo (SHULMAN Ibidem) Pela regularidade dessa escolha de

composiccedilatildeo a imagem do personagem vai como que se acumulando em diversos planos a ponto

de delinear-se fragilmente na fotografia

Figura 30 - O evangelho segundo Satildeo Mateus 1972 Pier Paolo Pasolini (Jason Shulman 2018)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Para o artista a esteacutetica conserva as formas exibidas em cada filme embora desfazendo

seus contornos numa ldquotraduccedilatildeo pictoacuterica uacutenica de cada frame individual que foi vistordquo

(SHULMAN Ibidem) Aleacutem disso Shulman entende que cada imagem final eacute tambeacutem

construiacuteda atraveacutes do olhar do espectador Ela pertence a um domiacutenio que ultrapassa o mero

registro Ele preferiu trabalhar com filmes que jaacute possuem um lugar no imaginaacuterio do puacuteblico

pertencentes a cinematografias de vaacuterios paiacuteses exatamente para ver como seria a recepccedilatildeo a

esse processo que torna o filme inteiro uma grande mancha cromaacutetica Ele explica que eacute curioso

como as pessoas insistem em reconhecer cenas sem no entanto estarem de fato diante destas

cenas ndash pois nesse grau de desintegraccedilatildeo da imagem natildeo cabe mais falarmos de uma divisatildeo

convencional da imagem cinematograacutefica (frames planos cenas sequecircncias)

Nas imagens mais difusas notei que as pessoas tendem a ver as coisas que querem vernelas especialmente se for um filme familiar () Encontram formas e cenas quecombinam com a sua memoacuteria do filme Veja a fotografia de O maacutegico de Oz Agraves vezesalgueacutem me diraacute que pode ver a forma do Homem de Lata Mas a pessoa natildeo vecirc o

133

Homem de Lata Eles conseguiram esforccedilar-se para ver o Homem de Lata eles queremver o Homem de Lata ()82 (SHULMAN Idem)

A partir das observaccedilotildees postas o trabalho de Shulman faz um interessante tracircnsito entre

foto cinema e pintura Agrave medida que a sucessatildeo de planos do filme eacute organizada num soacute quadro

exibida individualmente as imagens aproximam-se da pintura pois os tempos e espaccedilos de cada

narrativa satildeo condensados numa peccedila uacutenica O processo contudo eacute registrado atraveacutes da miacutedia

fotograacutefica que registra cada plano de maneira imprecisa conservando os vestiacutegios da

singularidade de cada um desses fragmentos sem no entanto perder a noccedilatildeo de conjunto da

totalidade do filme O resultado deste trabalho eacute uma modalidade visual elaborada nos liames

entre as possibilidades da tecnologia e nossas proacuteprias experiecircncias seja com a cinematografia

seja com os dispositivos que lhes datildeo vida

Tambeacutem eacute notaacutevel que um processo desse tipo enseja que o resultado final eacute

desconhecido e o artista incorpora esse imprevisto como parte da metodologia ldquoEstou em busca

de algo que natildeo sei explicar Eacute apenas subjetivo e gosto deste sentimento de expectativa

imprevisiacutevelrdquo (SHULMAN Ibidem)

O caraacuteter de abertura a descontinuidade e a surpresa satildeo elementos caracterizadores das

manifestaccedilotildees expressivas do ruiacutedo e haacute outros pormenores deste trabalho que se conectam com

a questatildeo do ruiacutedo como os resultados gerados das proacuteprias condiccedilotildees esteacuteticas jaacute contidas nos

filmes entrando em articulaccedilatildeo com as propriedades da fotografia as expressotildees visuais geradas

pelo emprego de tecnologias de maneira cruzada e inovadora e os tensionamentos dos

paradigmas formais da fotografia do cinema e da pintura que se vecircem revisitados e

reprogramados Antonio Fatorelli reconhece que no cenaacuterio da arte contemporacircnea esses trecircs

campos da imagem satildeo acionados de forma simultacircnea e natildeo mais evocados em razatildeo de suas

especificidades

Encontramo-nos cada vez mais na condiccedilatildeo de criadores multimiacutedia envolvidos naproduccedilatildeo de imagens de diversos formatos Se ainda podemos falar de fotografia decinema e de pintura (e essa eacute a nossa aposta) trata-se de uma fotografia de um cinema e

82 Traduccedilatildeo livre de ldquoIn the fuzzier ones Irsquove noticed that people tend to see the things in them that they want to seeespecially if itrsquos a familiar film Itrsquos apophenia They find shapes and scenes that tally with their recollection of thefilm Take the photograph of The Wizard of Oz Sometimes someone will tell me that they can make out the shape ofthe Tin Man But they donrsquot see the Tin Man Theyve managed to make themselves see the Tin Man they want to seethe Tin Manrdquo

134

de uma pintura marcados pelas intensas experimentaccedilotildees observadas nas uacuteltimas trecircsdeacutecadas ndash expandidos reconfigurados significativamente modificados atravessados porvetores temporais singulares investidos de potecircncias anteriormente inimaginaacuteveisAlteraccedilotildees de tal modo consideraacuteveis no acircmbito das formas expressivas e daslinguagens a ponto de questionar a manutenccedilatildeo das formulaccedilotildees teoacutericas historicamenteconsagradas marcadas pela especificidade das miacutedias e pela especializaccedilatildeo das praacuteticasartiacutesticas (FATORELLI 2017a p124-125)

A pluralidade de resultados e consequentemente de esteacuteticas vistas ateacute aqui conecta-se

com uma questatildeo importante a respeito do ruiacutedo o fato de ele natildeo ter uma forma definida Como

surge atraveacutes das mais variadas experiecircncias promovidas seja com equipamentos ou insumos

cada artista desenvolve teacutecnicas proacuteprias e utiliza recursos especiacuteficos que resultam tambeacutem em

obras bastante singulares Sua inscriccedilatildeo nas obras pode indicar a elasticidade do tempo a

intrusatildeo de vaacuterias fontes de luz expor a trama compositiva da imagem enfatizar a textura dos

materiais empregados entre outros efeitos de modo que natildeo encontramos um tipo de ruiacutedo mas

diversas formas de sua manifestaccedilatildeo

O ruiacutedo tambeacutem pode surgir em meio agraves falhas ao desvio de funcionamento ou ao uso

natildeo preacute-formatado de sistemas geradores de imagens dos mais diversos tipos Muitas vezes o

ruiacutedo funciona como uma perturbaccedilatildeo que chama atenccedilatildeo para o processo de elaboraccedilatildeo da

imagem ou como diz Ballard (2011 p66) ldquoatraveacutes das vaacuterias modalidades utilizadas a

aparecircncia do ruiacutedo natildeo se daacute atraveacutes de uma formaccedilatildeo mas por meio do erro do acidente e da

surpresardquo Quer dizer notamos mais a sua presenccedila e menos sua identificaccedilatildeo como um conjunto

de formas delimitadas Tal questatildeo eacute relevante no sentido de que se conecta com a diversidade do

corpus selecionado nesta tese Se o ruiacutedo natildeo encontra uma esteacutetica uacutenica os procedimentos

adotados nas imagens onde podemos observaacute-lo tambeacutem apresentam variabilidade

45 ldquoEU SOU APENAS UM INCOcircMODOrdquo

Assim como a abordagem utilizada por Luiz Alberto Guimaratildees outro artista brasileiro

especialmente dedicado ao trabalho com dispositivos artesanais que ele mesmo chama de

ldquoprecaacuteriosrdquo (MAUEacuteS 2012) eacute o paraense Dirceu Maueacutes Apoacutes uma trajetoacuteria como

fotojornalista iniciada nos anos 1990 desde 2004 dedica-se aos trabalhos artiacutesticos que

atravessam os territoacuterios da fotografia do cinema do viacutedeo da instalaccedilatildeo tambeacutem abordando

entre outros temas a problemaacutetica da paisagem Segundo Maueacutes seu interesse pelos

135

equipamentos alternativos desenvolvidos com materiais simples como caixas de papelatildeo vem de

uma inquietaccedilatildeo em discutir tanto a esteacutetica quanto a ideia senso comum de que a tecnologia e a

qualidade da imagem dependem de equipamentos sofisticados

A questatildeo do ruiacutedo dentro da fotografia vem junto com esse uso do analoacutegico () deuma tecnologia mais simples E como sempre me incomodou o discurso comercial ()da imagem perfeita de colocar o dispositivo o equipamento na frente do fotoacutegrafo ()como se isso fosse garantir uma certa narrativa do trabalho Vocecirc garantir uma qualidadeesteacutetica () O meu interesse em usar pinhole a construccedilatildeo de cacircmera (e aiacute vem o ruiacutedojunto) acaba fazendo parte de um conjunto que se contrapotildee a esse discruso hegemocircnico() que se construiu sobre a fotografia um discruso mais teleoloacutegico () Comecei a meinteressar por certo confronto com esse discurso E no final o ruiacutedo acaba vindo juntocom o processo construindo a cacircmera Eu tinha lido Flusser e tinha adorado E pra mimera meio que tu entrar na ldquocaixa pretardquo e poder fazer o que tu quisesse apesar de que elate daacute umas limitaccedilotildees (MAUEacuteS 2017)83

Para Maueacutes a desconstruccedilatildeo do dispositivo convencional atraveacutes do emprego de

processos antigos da imagem como a fotografia estenopeica e a cacircmara obscura trazem uma

possibilidade de criacutetica agraves normatizaccedilotildees contidas no proacuteprio dispositivo (conforme atestou

Flusser sobre o ldquoprogramardquo) e reafirmadas por criacuteticos instituiccedilotildees pela induacutestria por alguns

teoacutericos e outros artistas Tambeacutem eacute uma forma de questionar as percepccedilotildees que ligam as

inovaccedilotildees no campo da imagem ao aprimoramento das tecnologias Para ele fabricar seus

proacuteprios equipamentos eacute uma das premissas libertadoras do ruiacutedo em suas obras

Construir sua proacutepria cacircmera significa estar livre das amarras de um modelo que lhe eacuteimposto pela induacutestria Significa poder experimentar uma enorme gama de novaspossibilidades que o processo permite a partir de um projeto muito pessoal deconstruccedilatildeo da cacircmera e das caracteriacutesticas que satildeo escolhidas para essa cacircmera(MAUEacuteS 2012 p10)

Agrave medida que foi experimentando com suas cacircmeras e outros dispositivos Maueacutes

acabou por discutir natildeo somente paradigmas centrais para a fotografia (como os limites do

instantacircneo da verossimilhanccedila e do automatismo das maacutequinas) mas aproximou-se de questotildees

mais fortemente relacionadas aos domiacutenios do cinema e do viacutedeo como a presenccedila do

movimento a montagem e o lugar do espectador Em um trabalho desenvolvido com uma

cacircmera de fenda (onde a abertura por onde entra a luz eacute vertical) uma estrutura bastante simples

foi criada para capturar o trajeto percorrido pelo fotoacutegrafo durante um passeio de bicicleta Uma

83 Entrevista concedida a autora em novembro de 2017

136

toy camera (meacutedio formato carregada com filme 120mm) foi presa ao guidatildeo de uma bicicleta

(figura 31)

Figura 31 - Adaptaccedilatildeo da toy camera e seu ajuste na bicicleta

Fonte Reproduccedilatildeo de Maueacutes (2015)

Figura 32 - Panoracircmica da seacuterie Extremo Horizonte realizada com cacircmera de fenda acoplada agrave bicicleta

(Dirceu Maueacutes 2014)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Figura 33 - Panoracircmica da seacuterie Extremo Horizonte realizada com cacircmera de fenda acoplada agrave bicicleta

(Dirceu Maueacutes 2012)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

137

A imagem tomada continuamente foi realizada com a bicicleta em movimento Em vez

de fotogramas individuais com vaacuterias imagens obteve-se uma uacutenica imagem que apesar de

adquirir certa continuidade espacial apresenta em toda a sua extensatildeo porccedilotildees verticais

resultantes do pequeno trecho do negativo esquadrinhado pela luz Isso permite ldquoum registro que

ganha em acuidade mas estaacute mais suscetiacutevel a efeitos de movimento na composiccedilatildeo da imagemrdquo

(MAUEacuteS 2012 p27) Na verdade nos primeiros testes com o formato panorama em fotografia

pinhole a intenccedilatildeo era manter a conexatildeo espacial entre os fotogramas mas essa ideia foi

abandonada em seguida

O artista desenvolveu tambeacutem um mecanismo para fazer avanccedilar o negativo durante o

registro Haacute nessa situaccedilatildeo uma combinaccedilatildeo de movimento bastante estranha aos processos

fotograacuteficos comuns peliacutecula e cacircmera movem-se simultaneamente durante todo o processo de

inscriccedilatildeo da imagem84 Desse modo temos a vista de uma paisagem cheia de arrastos borrotildees

corpos e objetos distorcidos (figuras 32 e 33) De acordo com Maueacutes (2012) as cacircmeras de fenda

eram utilizadas para fotografar corridas de cavalos Posicionando o equipamento ao lado da linha

de chegada movia-se o filme enquanto a maacutequina ficava parada No seu projeto esse princiacutepio

de funcionamento da cacircmera de fenda eacute invertido e natildeo vemos um movimento congelado mas

com paradas e continuidades numa mesma tomada Aliaacutes a partir de experiecircncias anteriores o

artista percebeu que as interrupccedilotildees no arrasto do negativo produziam efeitos interessantes

() em panoracircmicas muito longas meu braccedilo natildeo conseguia fazer um giro contiacutenuo Eranecessaacuterio soltar a chave no ponto que natildeo era possiacutevel continuar torcendo o braccedilo eretomar o movimento novamente Cada parada no movimento de giro do filmeprovocava uma superexposiccedilatildeo de uma pequena aacuterea dentro da imagem panoracircmicaressaltando assim ao acaso algumas partes da imagem uma pessoa que passava objetosna rua Haacute uma certa intermitecircncia de campos que atraem o olhar para essas pequenasaacutereas Temos como que um jogo de frames superpostos mas natildeo satildeo exatamente framespois a imagem tem uma certa continuidade A cidade eacute desvelada num contiacutenuo efragmentado movimento longitudinal (MAUEacuteS 2012 p27-28)

Os movimentos efetuados por esse construto de homem-cacircmera-bicicleta se transferem

para a imagem final criando um resultado que ocupa um lugar intermediaacuterio entre o imoacutevel e a

84 Processo semelhante eacute adotado pelo italiano Paolo Gioli que tambeacutem trabalha bastante com equipamentosartesanais Um exemplo satildeo as fotografias realizadas atraveacutes da teacutecnica de photo finish onde arrastos na imagemindicam o movimento da cacircmera durante a captura como ocorre em Figure Dissoluti (1974-78) (disponiacutevel emhttpwwwpaologioliitfoto6aphppage=fotoampsez=1ampid=6 Acesso em 13012020) e na seacuterie Crosswise Natures(2016) Cf Wanderlei L Na margem da histoacuteria fotografia analoacutegica artistas e as imagens erradas RevistaSignificaccedilatildeo v 46 n 52 p293-308 jul-dez 2019

138

mobilidade algo que habita o territoacuterio das ldquoentre-imagensrdquo (BELLOUR 1997) numa reflexatildeo

que nos ajuda a reconsiderar as fronteiras entre as artes (foto e cinema) e compreender o papel do

ruiacutedo como elemento pelo qual vaacuterios artistas vecircm expandindo o campo das visualidades Aliaacutes

Maueacutes (2015 p14) afirma que quanto mais explora os equipamentos a fim de alcanccedilar essas

imperfeiccedilotildees de grande valor plaacutestico mais extrapola o acircmbito do fotograacutefico indo na direccedilatildeo de

outras artes E de fato eacute o que se verifica nas diversas obras que realizou com auxiacutelio das

pinhole associando o movimento ao registro da paisagem No lugar do emprego desses

dispositivos voltado para a precisatildeo do olhar a irregularidade das condiccedilotildees de captura eacute que se

faz presente com ecircnfase na valorizaccedilatildeo das inscriccedilotildees do movimento Cada fotografia promove

uma junccedilatildeo de fragmentos do espaccedilo percorrido O processo lembra a reconstruccedilatildeo de um visiacutevel

realizada atraveacutes da montagem cinematograacutefica Natildeo agrave toa o artista faz referecircncia ao frame como

unidade narrativa miacutenima do cinema

As investigaccedilotildees sobre a paisagem levaram o artista a pensar a ligaccedilatildeo entre imagens

fixas e moacuteveis a partir do formato panorama que para ele eacute fotografia e cinema ao mesmo

tempo (MAUEacuteS 2012 p30) Se o panorama consiste no esquadrinhamento de uma paisagem

que se apresenta de maneira plana ao olhar do espectador (ver tamanho meacutedio das imagens nas

figuras 32 e 33) da mesma forma ocorre o procedimento nas imagens que compotildeem a seacuterie

Extremo Horizonte Mas em lugar de uma ilusatildeo de harmonia entre cada elemento do espaccedilo

(lembremos que os panoramas uma espeacutecie de preacute-cinema valorizavam um estilo realista de

representaccedilatildeo) haacute um estudo do ambiente que tende a apagar os pormenores Ou melhor

distorcecirc-los embaralhaacute-los Assim natildeo haacute coincidecircncia entre o visiacutevel e o resultado dessas

fotografias panoracircmicas conformando uma visatildeo nada convencional Aleacutem disso a inscriccedilatildeo da

paisagem numa continuidade temporal apresenta uma acumulaccedilatildeo de instantes todos contidos

numa mesma imagem mais uma vez lembrando o processo da montagem de um filme

139

Figura 34 - Montagem de peccedilas da seacuterie Extremo Horizonte

Fonte Reproduccedilatildeo internet85

A questatildeo eacute que se o panorama eacute cinema e foto e as fotografias panoracircmicas de

Extremo Horizonte (figuras 34 35 e 36) possuem tambeacutem a dupla natureza do cinema e da

fotografia tampouco elas pertencem completamente a apenas um destes campos Nesse sentido o

artista faz aproximaccedilotildees entre os processos da pinhole e do panorama

() o tempo usado na pinhole tambeacutem eacute uma duraccedilatildeo ele inscreve a imagem lentamentesobre o negativo E as caracteriacutesticas da fotografia pinhole potencializam o conceito dopanorama A soma de vistas sobre o proacuteprio negativo emendadas sem precisatildeo ou atomada da foto em sistema de varredura girando a cacircmera sobre seu proacuteprio eixo aomesmo tempo em que o filme tambeacutem eacute girado dentro da cacircmera () (MAUEacuteS 2012p24)

As interferecircncias do corpo e do espaccedilo durante a realizaccedilatildeo da imagem demonstram a

afirmaccedilatildeo de um corpo estranho (homem+maacutequina+bicicleta) como gecircnese de uma esteacutetica

85 Reproduccedilatildeo do site da Galeria Karla Osorio Disponiacutevel em httpkarlaosoriocomolhares-dispositivos-paisagem Acesso em 14012020

140

especiacutefica negando tambeacutem a ideia de um aparato divorciado do sujeito (funcionando automaacutetica

e independentemente) Maueacutes (2015) considera que a experiecircncia desse corpo desvenda a cidade

de maneira ldquoerraacuteticardquo em busca de um certo ldquoestranhamentordquo localizaacutevel entre a velocidade e a

lentidatildeo materializado atraveacutes das irregularidades da proacutepria esteacutetica Algo entre o familiar e o

desconhecido Assim do ponto de vista formal esse trabalho apresenta um afastamento

significativo de uma relaccedilatildeo de analogia purista entre o mundo concreto e sua imagem (tantas

vezes vinculada agrave funccedilatildeo da fotografia) Natildeo haacute intenccedilatildeo de correspondecircncia entre imagem e o

perceptiacutevel mas a sugestatildeo de uma alteridade proacutepria ao olhar do dispositivo formada em grande

medida por essa presenccedila corporal-maquiacutenica como explica o autor

Muitos ruiacutedos satildeo incorporados no processo Ruiacutedos que satildeo produzidos pelacombinaccedilatildeo de erros e acidentes que agora jaacute mais que intencionais provocados poruma despreocupaccedilatildeo cada vez maior com qualquer estabilidade que a imagem possa terImagem que se transforma quase que em pintura Onde sua textura eacute dada por um certogestual por uma accedilatildeo Comeccedilo a usar a cacircmera como um instrumento mais livre ondemeu movimento determina que resultado vou ter (MAUEacuteS 2012 p29)

Se o que vemos nos parece incomum eacute porque essa obra faz um investimento no registro

da experiecircncia de uma estrutura alternativa de captura da imagem explorando aspectos luacutedicos

de um processo que se abre para reconsiderar o valor de um certo imprevisiacutevel O fotoacutegrafo

brinca com o niacutevel de imprecisatildeo dos resultados oferecidos pelo equipamento numa investigaccedilatildeo

conceitual que potildee em xeque ideologias esteacuteticas e tecnoloacutegicas da fotografia

As reflexotildees sobre a fotografia enquanto linguagem no campo da arte a partir dasexperimentaccedilotildees com fotografia pinhole construccedilotildees de cacircmeras artesanais e produccedilatildeode imagens utilizando aparelhos precaacuterios despertaram em mim o interesse pelasimperfeiccedilotildees dessas imagens seus ldquoerrosrdquo ruiacutedos imprevistos e acasos Tal poeacuteticabaseada na incerteza de imagens produzidas com a utilizaccedilatildeo de aparelhos precaacuterios(cacircmeras artesanais toy cameras cacircmeras de celular) em tempos de deslumbre poraparelhos tecnoloacutegicos sofisticados eacute uma poeacutetica de subversatildeo dos meios (MAUEacuteS2012 p13)

A contenda de subversatildeo dos meios para Maueacutes (assim como para Luiz Alberto

Guimaratildees e outrosas artistas presentes aqui) estaacute afinada com o pensamento flusseriano sobre

as possibilidades de um ldquofotoacutegrafo experimentalrdquo (2011) atuar numa margem de negociaccedilatildeo

relativa ao ldquoprogramardquo do ldquoaparelhordquo A relaccedilatildeo sujeito-aparelho eacute de uma acoplagem de um

funcionamento conjunto mas o aparelho opera na medida da intenccedilatildeo humana enquanto que ao

sujeito resta extrair do aparelho aquilo que este tem capacidade de lhe oferecer (FLUSSER 2017

141

p38) Ou seja encontrar um espaccedilo de liberdade (relativa) onde seja possiacutevel surpreender-se

testar novas abordagens criar modos de uso especiacuteficos Conscientes de que essa atuaccedilatildeo

enfrenta limites osas artistas manipulam as estruturas dos dispositivos a fim de manipular

tambeacutem paradigmas do campo da imagem e acabam jogando em diversos niacuteveis com a ideia do

ruiacutedo

O trabalho com cacircmeras pinhole eacute para o artista paraense a chave que abre a porta

desse lugar de ldquoincertezasrdquo na imagem onde se verifica exatamente a ocorrecircncia do ruiacutedo pois

haacute uma imprecisatildeo como carcateriacutestica inerente a essas cacircmeras que permite ao usuaacuterio atuar na

fronteira entre os paracircmetros teacutecnicos e a intuiccedilatildeo Nunca se sabe por completo como a imagem

iraacute comportar-se

Na fotografia pinhole apesar de todo controle racional que se faz necessaacuterio ter sobre oprocesso eacute a intuiccedilatildeo que opera sobre esse racional O modo de fazer eacute muito intuitivoAs cacircmeras pinhole natildeo tecircm visor () Eacute necessaacuterio ativar um terceiro olho na palma dasmatildeos que posicionam a cacircmera A passagem do filme eacute feita sem exatidatildeo O fotoacutegrafo eacuteresponsaacutevel por controlar tudo usando sua intuiccedilatildeo e o resultado sempre oferecesurpresas (MAUES 2015 p19)

Haacute uma especificidade teacutecnica importante das cacircmeras pinhole responsaacutevel pela esteacutetica

de todos esses trabalhos o fato de natildeo possuir lentes faz com que todos os planos da imagem

possuam o mesmo grau de definiccedilatildeo mas natildeo uma definiccedilatildeo acentuada como eacute possiacutevel obter

por exemplo quando temos uma cacircmera industrial que dispotildee de um anel para focagem Assim

haacute um ruiacutedo decorrente da proacutepria teacutecnica que eacute um efeito levemente desfocado encontrado nos

contornos dos elementos presentes na imagem uma ldquotextura mais acentuadardquo (MAUEacuteS 2015

p23) E aqui se quebra uma regra de ouro de um fazer fotograacutefico normatizado que eacute a busca

pela definiccedilatildeo ou na totalidade da imagem ou em algum ponto tomado como principal atraveacutes

do foco Poreacutem eacute possiacutevel melhorar essa definiccedilatildeo atraveacutes do tamanho do orifiacutecio de entrada da

luz quanto menor ele for e mais perfeito mais definiccedilatildeo teremos considerando ainda uma relaccedilatildeo

entre as proporccedilotildees do diacircmetro do furo e as dimensotildees da cacircmera Isso faria a pinhole funcionar

de maneira muito parecida com uma maacutequina convencional

A exemplo do que vemos em Paisagens cacofocircnicas haacute um relativo niacutevel de definiccedilatildeo

pois o que estaacute em jogo eacute a negaccedilatildeo da perspectiva monocular atraveacutes das muacuteltiplas exposiccedilotildees

Jaacute em Retratos do indiziacutevel como a problemaacutetica abordada inclui uma temporalidade estendida

(o que significa lidar com a presenccedila do movimento) a questatildeo da definiccedilatildeo jaacute estaacute mais

142

relativizada principalmente nos efeitos de repeticcedilatildeo e transparecircncia do corpo do artista que

algumas das fotos apresentam (figura 25) Nas panoracircmicas de Dirceu Maueacutes a captura feita

numa situaccedilatildeo de movimento do equipamento e do proacuteprio negativo eleva sobremaneira a

potecircncia de indefiniccedilatildeo geral da imagem em alguns casos transitamos de um desfocado para

verdadeiros borrotildees num intenso desmanchar das formas o que representa uma perturbaccedilatildeo da

figuraccedilatildeo Esse resultado potildee a fotografia em diaacutelogo com a pintura Se concordarmos com

Bellour (1997) para quem o desfoque e o tremido satildeo dimensotildees do proacuteprio instantacircneo

fotograacutefico ou seja desdobramentos contidos neste poreacutem nem sempre visiacuteveis eacute possiacutevel

analisaacute-los ainda como manifestaccedilotildees que aleacutem de mexerem com a forma apontam outras

vertentes do tempo perfazendo modalidades do ruiacutedo que emergem do tensionamento do

instantacircneo

Figura 35 - Panoracircmica da seacuterie Extremo horizonte (Dirceu Maueacutes 2012)

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

Figura 36 - Panoracircmicas da seacuterie Extremo horizonte (Dirceu Maueacutes 2013)

Fonte Reproduccedilatildeo de Maueacutes (2015)

143

Ao discutir a retomada de processos claacutessicos da imagem fotoquiacutemica na atualidade

Fatorelli e Carvalho (2015) atestam que ao contraacuterio de um ingecircnuo tributo a seus usos

tradicionais a fotografia contemporacircnea baseia-se em muitos casos em seus proacuteprios recursos

teacutecnicos afirmando ao mesmo tempo uma independecircncia com relaccedilatildeo a quaisquer condiccedilotildees

precedentes agrave imagem sem contudo abandonar totalmente o laccedilo com o referente Essa tocircnica

encontramos nas obras de Guimaratildees e Maueacutes em seus diferentes modos operativos da pinhole

ambos procedendo a experiecircncias que colocam a imagem num verdadeiro ldquoterritoacuterio

intermediaacuterio de inuacutemeras nuances e gradaccedilotildees situado entre a abstraccedilatildeo metafoacuterica e a

reproduccedilatildeo literalrdquo (FATORELLI amp CARVALHO 2015 p51)

Conforme adiantamos o diaacutelogo entre formas de expressatildeo centradas na imagem

engloba experiecircncias com teacutecnicas fotograacuteficas e recursos oriundos do cinema e tambeacutem do

viacutedeo Se em Extremo horizonte haacute um flerte com o movimento cinematograacutefico a partir de

esteacuteticas que expressam o movimento do proacuteprio equipamento o resultado permanece ainda

circunscrito ao domiacutenio da fotografia como imagem-objeto em trabalhos como Feito poeira ao

vento (2006)86 as pinhole satildeo utilizadas para a montagem de um viacutedeo que mostra uma

conhecida feira paraense A imagem transita da imobilidade da pinhole em direccedilatildeo ao viacutedeo em

velocidades variaacuteveis entre a lentidatildeo e a rapidez Elas adquirem um ldquoefeito cinemardquo (PARENTE

2015) que nos deixa perceber se tratarem de fotografias animadas O proacuteprio Maueacutes (2012)

refere-se a essa proposiccedilatildeo como um ldquocinema mancordquo porque notamos lacunas temporais

interrupccedilotildees com cortes bem marcados chamando a atenccedilatildeo para a quebra da ilusatildeo de um

movimento contiacutenuo uma sensiacutevel mudanccedila de luz atestando os diferentes momentos do dia

capturados por vaacuterias cacircmeras (30 pinholes efetuando um giro de 360 graus produzindo mais de

900 imagens) os corpos de feirantes e transeuntes os veiacuteculos aparecendo e desaparecendo Eacute

um viacutedeo no qual o processo de elaboraccedilatildeo eacute sentido na proacutepria maneira de apresentaccedilatildeo ao

espectador Segundo Parente (2015 p77-78) embora a realizaccedilatildeo desse trabalho demande um

planejamento bastante sofisticado (construccedilatildeo das cacircmeras posicionamento coordenaccedilatildeo da

captura etc) apoacutes a organizaccedilatildeo dessa estrutura toda eacute o acaso que domina a cena como parte de

um processo notadamente artesanal natildeo interessando a imagem perfeita mas sim os seus ruiacutedos e

imprevistos suas interrupccedilotildees o fade expliacutecito86 Disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=7iqFdY5vD8c Acesso em 20012020

144

Figura 37 - Vista da videoinstalaccedilatildeo Em um lugar qualquer - Outeiro em 2011

Fonte Reproduccedilatildeo de Maueacutes (2012)

Aqui jaacute observamos um movimento de mudanccedila do estatuto da imagem na direccedilatildeo de

sua desmaterializaccedilatildeo atraveacutes do formato viacutedeo procedimento que se intensifica nas instalaccedilotildees

como Em um lugar qualquer Outeiro (2009) (figura 37) na qual as fotografias satildeo empregadas

como projeccedilotildees montadas de forma a criar uma nova organizaccedilatildeo espacial do lugar retratado

uma praia vista atraveacutes dos registros de cacircmeras montadas sobre uma base hexagonal Mais uma

vez a construccedilatildeo da obra ativa a estrutura da imagem moacutevel sendo ao mesmo tempo fotografia

O mecanismo da instalaccedilatildeo impressiona

170 cacircmeras pinhole construiacutedas a partir de pequenas caixas de foacutesforos foram divididasentre seis fotoacutegrafos posicionados no interior de uma base hexagonal Cada fotoacutegrafotomava uma sequecircncia de fotografias na direccedilatildeo do horizonte apoiando as cacircmeras emcada um dos lados do hexaacutegono Cada sequecircncia era animada e assim tiacutenhamos seisviacutedeos que juntos lado a lado formando uma vista panoracircmica em 360 graus da praia(MAUEacuteS 2015 p43)

Tais trabalhos mostram constantemente uma vontade de repensar os lugares atribuiacutedos agraves

diversas modalidades da imagem uma tocircnica bastante forte na arte contemporacircnea Nessas zonas

de aproximaccedilatildeo entre foto viacutedeo e cinema encontram-se uma seacuterie de ruiacutedos surgidos de

experiecircncias que aleacutem de proporem novas sensibilidades tambeacutem servem para repensar

criticamente os usos convencionais das tecnologias

Figura 38 - Quimigramas da seacuterie (In)certa paisagem imaginaacuterio de luz e prata (Dirceu Maueacutes 2017)

145

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Figura 39 - Quimigramas da seacuterie (In)certa paisagem imaginaacuterio de luz e prata (Dirceu Maueacutes 2017)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Na interface entre processos fotograacuteficos desenho e pintura o artista paraense

desenvolveu um trabalho chamado (In)certa paisagem imaginaacuterio de luz e prata (2017)

146

(figuras 38 39 e 40) atraveacutes da teacutecnica do quimigrama87 Este procedimento consiste em deixar o

papel fotograacutefico sofrer livremente a accedilatildeo dos quiacutemicos fotograacuteficos revelador ldquostoprdquo (banho de

parada) e fixador A imagem forma-se a depender da quantidade intensidade e ordem das

substacircncias aplicadas e tambeacutem de acordo com a regularidade dos movimentos que o fotoacutegrafo

executa para que os quiacutemicos deslizem sobre a superfiacutecie do papel Assim como em outras obras

haacute um interessante jogo entre o domiacutenio da teacutecnica e a impossibilidade de controlar totalmente o

resultado Numa mesma imagem o estilo das manchas que ficam no papel varia entre tonalidades

mais profundas e outras mais transluacutecidas As manchas entatildeo podem assemelhar-se a pinceladas

ou agrave tinta que escorre quando se faz uma aquarela

() Eu fiz em Berlim os quimigramas O material eacute fotograacutefico Natildeo chega a serfotografia () eacute papel mas ele taacute mais para desenho e pintura Na verdade eu uso umpapel fotograacutefico velado e uso revelador e fixador como agentes de escrita de pinturade desenho Entatildeo natildeo parte de uma imagem Natildeo eacute uma imagem fotograacutefica nessesentido de um recorte de uma realidade Tem uma representaccedilatildeo mas mais ligada agravepintura ao desenho do que agrave fotografia uma coisa mais indicial Parte do zero Natildeo temimagem nenhuma Eacute como se tivesse trabalhando com nanquim sei laacute mas com ummaterial que tem um tempo de reaccedilatildeo () Ele escorre o tempo de accedilatildeo do quiacutemico nopapel ( ) eacute um tempo um pouco parecido com a gravura em metal Essa coisa da accedilatildeodo quiacutemico no suporte que vai revelando as coisas (MAUEacuteS 2017)

87 Poivert (2009) assinala a produccedilatildeo de imagens com essa teacutecnica em 1956 no trabalho do artista belga PierreCorrier

147

Figura 40 - Quimigramas da seacuterie (In)certa paisagem imaginaacuterio de luz e prata (Dirceu Maueacutes 2017)

Fonte Cortesia do artista

Aqui a ideia de paisagem imaginada sonhada e portanto construiacuteda (e por isso mesmo

incerta) guarda relaccedilatildeo tanto com a maneira como a imagem se forma aos poucos sem muito

controle nem precisatildeo e tambeacutem com o fato de que literalmente quem olha eacute que monta um

ambiente a partir de sua proacutepria imaginaccedilatildeo tambeacutem com base em referecircncias de pinturas

anteriores (que jaacute satildeo elas proacuteprias fabulaccedilotildees sobre um espaccedilo) Quer dizer estamos diante de

paisagens que nascem de outras paisagens Dividido pela linha do horizonte eacute possiacutevel sugerir

que estamos diante de um lago margeado por plantas cujos galhos apontam em direccedilatildeo ao ceacuteu

(figura 38) Podemos ver na aacutegua o reflexo desse ceacuteu de nuvens carregadas etc Ou seja eacute

preciso buscar as formas de um espaccedilo representado onde de fato soacute haacute as marcas dos quiacutemicos

Essa questatildeo nos leva a refletir sobre uma tocircnica que eacute geral nas obras sobre a paisagem

apresentadas aqui o caraacuteter elaborado construiacutedo e convencionado da paisagem como uma

externalidade que se oferece ao olhar sob determinadas regras sendo que muitas vezes nos

esquecemos desses ordenamentos e naturalizamos essa construccedilatildeo (como uma espeacutecie de

148

transferecircncia do mundo real agrave imagem) Uma condiccedilatildeo jaacute ressaltada tanto por Maueacutes quanto por

Guimaratildees em suas preocupaccedilotildees na abordagem do espaccedilo atraveacutes da imagem

Outro ponto relevante eacute que o lugar do fotograacutefico eacute reduzido a seus materiais baacutesicos

(papel e substacircncias quiacutemicas) sem a participaccedilatildeo da cacircmera O aparato desenvolvido pelo artista

eacute simples e potente no sentido de mais uma vez chamar nossa atenccedilatildeo para os automatismos no

uso das tecnologias Fotografia pintura desenho sem cacircmeras industrializadas lentes

fotocircmetro sem pinceacuteis sem telas tintas sem cavalete sem laacutepis etc Desse modo tambeacutem o

referente como condiccedilatildeo precedente agrave imagem se vecirc expulso do processo Esse trabalho

questiona a proacutepria noccedilatildeo de paisagem como duplo de um real contenda que tanto assombra a

fotografia Uma seacuterie de questotildees apontando para os ruiacutedos criados com base na exploraccedilatildeo das

materialidades disponiacuteveis

A teacutecnica dos quimigramas eacute utilizada tambeacutem nas investigaccedilotildees do fotoacutegrafo Joseacute Luiacutes

Neto na seacuterie Classic 111 (figuras 41 e 41a) No entanto o resultado alcanccedilado eacute diferente Se o

artista paraense quer sugerir paisagens desenhar mundos o artista portuguecircs deixa a interaccedilatildeo

entre os materiais construir as formas sem se preocupar tanto com o gecircnero a que elas vatildeo

pertencer Seus quimigramas satildeo intencionalmente abstraccedilotildees

O quimigrama eacute algo que tu natildeo controlas agrave partida Implica sempre que tu sigas o quevai acontecendo ao papel fotograacutefico agrave medida que a imagem vai aparecendo dentro dosquiacutemicos Daiacute o importante desse lado fiacutesico das tuas matildeos com a folha Tu podesmarcar na folha os teus gestos Os quimigramas acabam por ser esse lado maisexperimental soacute com a luz papel fotograacutefico e quiacutemicos (NETO 2014)88

Conforme se apreende do exposto a teacutecnica eacute empregada para explorar os resultados

esteacuteticos da interferecircncia do fotoacutegrafo no processo que decorre da accedilatildeo das substacircncias aleacutem das

marcas que a proacutepria adiccedilatildeo dessas substacircncias jaacute provoca A valorizaccedilatildeo do gestual em cima da

coacutepia final como quem preenche uma tela cria uma ponte entre o fotograacutefico e o pictoacuterico no

que este uacuteltimo tem de singularidade de originalidade de artesania Assinale-se tambeacutem que o

artista desordena as etapas de revelaccedilatildeo-parada-fixaccedilatildeo pois ele tanto pode mergulhar o papel

primeiro no ldquostoprdquo depois no fixador no revelador ou em outra ordem qualquer inclusive

passando mais de uma vez por cada um dos quiacutemicos O quimigrama eacute uma forma de criar

88 Depoimento ao programa Entre Imagens da rede de televisatildeo RTP Disponiacutevel emhttpswwwyoutubecomwatchv=r8SQHL_Krfc Acesso em 18012020

149

imagens prescindindo de um dos elementos mais caros agrave fotografia (a luz) Esse jogo com a luz

demonstra uma vontade de levar a imagem ao limite do visiacutevel contrariando as regras habituaus

da boa fotografia questionando assim o dispositivo fotograacutefico (LENOT 2017a p45)

A teacutecnica por fim constitui uma verdadeira perversatildeo do processamento quiacutemico

utilizado na fotografia industrial e por isso mesmo traz agrave tona sempre imagens novas e

imprevisiacuteveis embora de certa forma jaacute contidas no ldquoprogramardquo do aparelho fotograacutefico

Figuras 41 e 41a - Quimigramas da seacuterie Classic 111 (Joseacute Luiacutes Neto 2006)

150

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

A partir do momento em que se abandona a preocupaccedilatildeo de referir o inteligiacutevel na

imagem abre-se o espaccedilo para uma investigaccedilatildeo voltada para o medium que busca a pura

expressatildeo da mateacuteria E na verdade essa premissa caracteriza em larga medida toda a obra desse

artista Ao observarmos seus demais trabalhos entendemos que seu interesse estaacute nas

possibilidades escondidas (ainda natildeo desvendadas ou valorizadas) nos princiacutepios que envolvem a

fotografia como a luz o tempo as caracteriacutesticas dos equipamentos o jogo entre figuraccedilatildeo e

abstraccedilatildeo Uma pesquisa devotada agraves zonas pouco ou mal exploradas do aparelho (FLUSSER

2011)

Outros trabalhos baseados na apropriaccedilatildeo de imagens constroem-se atraveacutes de uma

metodologia bastante livre o artista usa fotografias adquiridas de maneiras variadas (encontradas

nas ruas doadas por outras pessoas jaacute que ele mesmo raramente compra fotografias antigas) O

uacutenico ponto em comum eacute que todas estatildeo relacionadas agrave cidade de Lisboa (onde vive atualmente

Joseacute Luiacutes Neto) Ou seja os trabalhos constroem-se agrave medida que os materiais vatildeo se

apresentando sem que necessariamente se proceda a uma busca deliberada orientada e

planejada O material da seacuterie July 1984 (figuras 42 42a e 42b) foi encontrado abandonado

numa casa As fotos estavam coladas umas agraves outras Cada uma delas exibe vestiacutegios

provavelmente de reaccedilotildees ocorridas no material sob a accedilatildeo do tempo da umidade dos proacuteprios

quiacutemicos e do papel (jaacute que esse material natildeo estava armazenado em condiccedilotildees ideais) Essa

151

combinaccedilatildeo de fatores criou interessantes efeitos cromaacuteticos em manchas distribuiacutedas na

superfiacutecie de cada foto A escolha de preservar essas caracteriacutesticas indica certo despojamento

que atribui um valor plaacutestico aos vestiacutegios da proacutepria deterioraccedilatildeo dos materiais Assim uma

esteacutetica de precariedade se faz presente nesse trabalho Na fase de impressatildeo para o livro

Caderno de imagens (onde encontramos a seacuterie) o fotoacutegrafo percebeu detalhes que natildeo

estavam (aparentes) nas fotos elementos revelados por causa da impressatildeo ldquoNa imagem

transferida haacute pormenores que () natildeo aparecem no original Quando tu olhas pra esta imagem

haacute uma crianccedila que aponta para o chatildeo e tu vais perceber que o mosaico eacute o negativo ()rdquo

(NETO 2014)

Figura 42 42a 42b - Imagens de July 1984 (Joseacute Luiacutes Neto2012)

152

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

No procedimento de vaacuterias etapas de desgaste da imagem vemos personagens e espaccedilos

praticamente sumirem encobertos pelas manchas como que invocando um processo de

deterioraccedilatildeo (que ocorre em qualquer material) e tambeacutem nos dizendo que a imagem eacute tambeacutem

uma impermanecircncia localizandp-se ainda na fronteira no limiar entre a figuraccedilatildeo e o abstrato

As pessoas deixam de ser a temaacutetica para simplesmente dar lugar agraves manchas que vatildeo se

espalhando pela superfiacutecie da imagem fazendo-se presente em toda a sua extensatildeo ateacute se

tornarem elas mesmas o assunto da seacuterie

Esse princiacutepio que coloca em evidecircncia a articulaccedilatildeo entre materiais gerando uma

esteacutetica calcada nos vestiacutegios dos materiais empregados eacute intensificado na outra seacuterie que

compotildee o livro de artista Caderno de Imagens que se chama High Speed Press Plate (2006)

(figura 43) O fotoacutegrafo utiliza negativos de vidro digitaliza-os e depois faz impressotildees em papel

(CAMACHO online 2007) Partindo de matrizes jaacute processadas com formas jaacute desfeitas o que

sobram satildeo novamente manchas Na passagem de negativo para digital ateacute a finalizaccedilatildeo com

impressatildeo em papel cada um desses suportes deixa na imagem vestiacutegios que funcionam como

camadas acumuladas criando uma esteacutetica hiacutebrida O tiacutetulo da seacuterie eacute irocircnico considerando que

153

o processo de realizaccedilatildeo de negativos em vidro tem vaacuterias etapas de produccedilatildeo Por exemplo nas

wet plates ou coloacutedio uacutemido89 (um tipo de processo que utiliza em negativos de vidro) a

sensibilizaccedilatildeo das placas necessita entre 1 minuto e meio e 3 minutos de imersatildeo na substacircncia

fotossensiacutevel O tempo de exposiccedilatildeo pode variar de alguns segundos a 2 minutos90 Mas com essa

etapa jaacute vencida (pois Neto utiliza imagens jaacute prontas) esse tempo mais lento do coloacutedio eacute

submetido ao extremo automatismo da digitalizaccedilatildeo para em seguida encontrar de novo relativa

permanecircncia no formato de saiacuteda em papel

Figura 43 - High Speed Press Plate 1 (Joseacute Luiacutes Neto 2006)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Os trabalhos de Joseacute Luiacutes Neto satildeo de fato comentaacuterios interrogaccedilotildees sobre o meio

fotograacutefico seus gecircneros estatutos sociais e conceitos seus limites e expansotildees teacutecnicos e as

metodologias que ele cria evocam uma simplicidade no fazer que nos leva a pensar a respeito dos

princiacutepios mais baacutesicos da imagem tais como o referente as temporalidades a inscriccedilatildeo por

meio da luz

89 Wet plates ou placas uacutemidas satildeo as fotografias que utilizam o coloacutedio uacutemido como ligante para o suporte daimagem (de vidro) Satildeo tambeacutem chamadas de ambroacutetipos90 Gold Jens The Ambrotype Wet Collodion Positives on Glass Treatment Challenges on Complex Nineteenth-Century Photographic Objects Dissertaccedilatildeo de mestrado Universidade de Oslo - Departamento de ArqueologiaConservaccedilatildeo e Histoacuteria - Faculdade de Humanidades 2018 p26-28

154

Eu acho que a fotografia eacute um meio fantaacutestico no sentido de que natildeo haacute propriamentelimites Os meus trabalhos soacute podem ser feitos em fotografia Eacute o meio de que eu maisgosto mas tambeacutem aquele que eu mais domino E eu natildeo sei fazer outra coisa Eacute o meioque vai de encontro agraves minhas preocupaccedilotildees agraves minhas ideias agrave minha imaginaccedilatildeo Eacute alinguagem ideal para eu poder construir os meus trabalhos autorais () No meutrabalho nunca dei prioridade a formatos exceto que tenho uma grande admiraccedilatildeo pelolado da barra da tira (NETO 2014)

As barras ou tiras satildeo o elemento baacutesico de estruturaccedilatildeo de um trabalho bastante

peculiar Na verdade um retrato Agrave semelhanccedila do que faz Maueacutes com as panoracircmicas o artista

portuguecircs criou um mecanismo para movimentar o filme dentro da cacircmera enquanto capturava a

imagem de um muacutesico Um motor foi acoplado agrave maacutequina que garante o avanccedilo do negativo a

uma velocidade constante (RODRIGUES 2017)91 enquanto o retratado olhava a lente por um

tempo aproximado de 3 minutos A imagem eacute um compoacutesito de linhas verticais coloridas

resultante de um registro feito por varredura o que torna qualquer tentativa de identificar uma

fisionomia inviaacutevel Um retrato que nasce da dissoluccedilatildeo da forma (Chromatic Fantasy 2002)

Figura 44 - Detalhe de Chromatic Fantasy (Joseacute Luiacutes Neto 2002)

Fonte Reproduccedilatildeo site Projecto MAP92

91 Jaacute citamos aqui o trabalho de Paolo Gioli como partidaacuterio da mesma metodologia de avanccedilo do negativo paracaptura por varredura Nesse sentido nota-se uma grande semelhanccedila entre as obras Natildeo 1 de Joseacute Luiacutes Neto(httpwwwjoseluisnetopten01-01-00html) e a seacuterie Crosswise natures de Gioli(httpwwwrevistasuspbrsignificacaoarticleview148839154304) Acesso em 1002202092 Disponiacutevel em httpwwwprojectomapcom Acesso em 10022020

155

Figura 45 - Vista da instalaccedilatildeo Chromatic phantasy (Joseacute Luiacutes Neto 2002)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Em Chromatic phantasy (2002) (figuras 44 e 45) e outras obras semelhantes como

Continuum (2005)93 Brgycm (1993)94 haacute ainda uma proposta de reflexatildeo sobre a gecircnese da

exposiccedilatildeo fotograacutefica ou seja que configuraccedilotildees (supostamente) podem surgir quando

repensamos a maneira de expor a superfiacutecie fotossensiacutevel segundo certas condiccedilotildees de

iluminaccedilatildeo tempo de captura etc Que possibilidades podemos encontrar se criamos nossos

paracircmetros especiacuteficos jogando com as expectativas sobre o funcionamento ldquoadequadordquo do

equipamento

De maneira geral os trabalhos de Joseacute Luiacutes Neto demonstram uma inclinaccedilatildeo agrave

abstraccedilatildeo que nasce de uma intenccedilatildeo exploratoacuteria dos recursos das maacutequinas e dos insumos e

resultam numa esteacutetica bastante minimalista Eles tambeacutem nos permitem ver de perto a estrutura

compositiva do negativo as texturas das coacutepias os vestiacutegios dos quiacutemicos ou seja potildeem a nu a

mateacuteria da imagem Todas essas questotildees e a maneira como satildeo exploradas levam-nos de volta ao

tema do ruiacutedo no territoacuterio da imagem pela conexatildeo com a expressatildeo da mateacuteria dando-se de

forma erraacutetica e por vezes imprevisiacutevel e isso nos mais diferentes recursos empregados pelos

artistas de nosso corpus

93 Disponiacutevel em httpwwwjoseluisnetopten01-07-00html Acesso em 0804202094 Disponiacutevel em http2132391972268800listObrasjspid_obra=927 Acesso em 08042020

156

46 CONTROLE EFICIEcircNCIA E DISPOSITIVOS

Conforme adiantamos brevemente o estudo de Hainge (2013) aposta numa

compreensatildeo ampla do ruiacutedo natildeo restringindo a compreensatildeo do tema ao campo das artes muito

menos ao acircmbito sonoro O ruiacutedo estaria em tudo

Sugeri que o ruiacutedo eacute o artefato de uma ontologia expressiva assinalando o movimentonecessaacuterio que subsiste em todo ser seja num niacutevel subatocircmico existencial filosoacuteficoquacircntico ou individual O ruiacutedo entatildeo eacute aquilo que desmorona o mundo de uma fixidezilusoacuteria agrave qual nos agarramos numa tentativa de manter as coisas no lugar separarelementos uns dos outros e elevarmo-nos acima do ldquomundo natural95 (HAINGE 2013p68)

A concepccedilatildeo do ruiacutedo como algo positivo ldquoexpressivordquo demonstra o interesse nos

processos de fluxo produccedilatildeo de diferenccedila ruptura de paradigmas e especialmente nas

articulaccedilotildees entre seres humanos e tecnologias questotildees cruciais para a discussatildeo proposta nesta

tese Mas o autor natildeo estaacute sozinho nessa interpretaccedilatildeo

Mark Nunes (2011) ndash organizador de uma seacuterie de textos relacionados ao papel do erro e

do ruiacutedo nas praacuteticas culturais ndash lembra que esses temas se conectam com a resposta inerente a

uma ideologia do controle da precisatildeo e da maacutexima eficiecircncia caracterizadoras da sociedade

atual Sua abordagem parte de uma concepccedilatildeo de ruiacutedo ligada agrave ciberneacutetica preocupada com a

emergecircncia do erro no acircmbito dos sistemas informaacuteticos da cultura digital dos procedimentos e

estrateacutegias utilizados no universo de uma sociedade conectada em rede Por isso mesmo enfatiza

que vivemos sob uma ldquoideologia do controle informaacuteticordquo uma loacutegica que demanda uma

performance livre de falhas e na qual o erro demonstra exatamente a fuga desse padratildeo pois

funciona como

() Uma estrateacutegia potencial de desorientaccedilatildeo e evoca uma loacutegica de controle para criaruma abertura agrave variaccedilatildeo ao jogo e a resultados natildeo intencionais O erro como domiacutenioerrante sugere maneiras pelas quais o defeito a falha e a maacute comunicaccedilatildeoproporcionam aberturas criativas e linhas de voo que permitem uma reconceituaccedilatildeo do

95 Traduccedilatildeo livre de ldquoI have suggested in the introduction that noise is the artefact of an expressive ontologysignaling the necessary movement that subsists in all being whether this be at a subatomic existentialphilosophical quantum or individual level Noise then is that which unmoors the world from the illusory fixity towhich we tie down in an attempt to keep it in place to separate its elements out of each other and elevate ourselvesabove the lsquonatural worldrsquordquo

157

que pode (ou natildeo) ser realizado nas praacuteticas sociais e culturais existentes96 (NUNES2011 p3-4)

O pesquisador exalta a capacidade de o ruiacutedo abrir novos caminhos expressivos

contribuindo para alterar modelos esteacuteticos ligados por exemplo a ideais como beleza

equiliacutebrio pureza ou mesmo organizaccedilatildeo que simbolicamente estatildeo incorporados como valores

para o campo da arte e sintomaacuteticos de certos movimentos artiacutesticos97 Apropriar-se do caraacuteter

desagregador do ruiacutedo para sugerir a emergecircncia de esteacuteticas ldquosujasrdquo ldquocaoacuteticasrdquo ldquoindefinidasrdquo

ldquoexperimentaisrdquo (e sua legitimaccedilatildeo) representa uma proposiccedilatildeo que encontra paridade tambeacutem

nas correntes filosoacuteficas que refletem sobre o papel central da tecnologia nas relaccedilotildees humanas

A aposta no ruiacutedo como catalisador de esteacuteticas complexas fluidas e abertas estaacute intimamente

relacionada ao pensamento de nomes como Gilles Deleuze Feacutelix Guattari Vileacutem Flusser (jaacute

citado) cujos apontamentos diagnosticaram o ambiente da comunicaccedilatildeo em rede dos circuitos

informaacuteticos de uma certa acessibilidade ampliada agrave informaccedilatildeo como caracterizadores das

sociedades contemporacircneas sem perder de vista a potecircncia de reescritura subversatildeo e sabotagem

escondidas nessas mesmas tecnologias e como isso poderia efetivar-se atraveacutes de uma relaccedilatildeo

natildeo-hieraacuterquica entre seres humanos e dispositivos Um aproveitamento das teacutecnicas feito na

base da desconstruccedilatildeo de ordenamentos em favor da criatividade de pensar atraveacutes da arte um

espaccedilo de questionamento de paracircmetros formais de modelos societaacuterios e tambeacutem dos

pressupostos filosoacuteficos que servem de referecircncia a todas essas normatizaccedilotildees

96 Traduccedilatildeo livre de ldquo() a potential for a strategy of misdirection one that invokes a logic of control to create anopening for variance play and unintended outcomes Error as errant heading suggests ways in which failureglitch and miscommunication provide creative openings and lines of flight that allow for a reconceptualization ofwhat can (or cannot) be realized within existing social and cultural practicesrdquo97 Desde o advento do fotograacutefico houve natildeo apenas uma disputa pelo protagonismo da invenccedilatildeo da fotografia(embora natildeo se possa atribuir a um uacutenico personagem esse papel) mas tambeacutem relaccedilotildees desiguais de prestiacutegio ouvalorizaccedilatildeo (e mesmo viabilidade comercial) entre tecnologias de acordo com as esteacuteticas dessas teacutecnicas estaremem maior ou menor grau sintonizadas com a agenda epistemoloacutegica da Modernidade bem como associadas agravesfuncionalidades adquiridas pela fotografia no seacuteculo XIX Por exemplo a daguerreotipia como uma imagem melhordefinida uacutenica e sua importacircncia na consolidaccedilatildeo do gecircnero retrato explicam em parte porque o nome de LouisJacques Mandeacute Daguerre (1787-1851) eacute quase sempre mais citado do que os de seus contemporacircneos HippolyteBayard (1801-1887) ou William Henry Fox-Talbot (1800-1877) que desenvolveram respectivamente as impressotildeesem papel (positivo direto) e as photogenic drawings Essas teacutecnicas possuem nitidez e permanecircncia bem menores secomparadas ao daguerreoacutetipo e por isso mesmo mais distantes da precisatildeo associada agrave racionalidade cientiacuteficadaquela eacutepoca Essa agenda modernista seraacute determinante para caracterizar aquilo que Fatorelli (2006) considerauma fotografia ldquopura e diretardquo cuja influecircncia podemos identificar por exemplo nas premissas do grupo f64 domovimento da Nova Objetividade e no fotodocumentarismo da primeira metade do seacuteculo XX ou ainda na straightphotography

158

47 ERRO OU RUIacuteDO

Nunes (Ibidem) faz uma pequena genealogia do termo ldquoerrordquo mapeando suas

conotaccedilotildees nos seacuteculos XVI XVII e XVIII todas elas negativas e relacionadas a movimentos de

desvio Bem se tais periacuteodos histoacutericos satildeo influenciados pela batalha filosoacutefica entre mente e

corpo na qual o intelecto humano assume uma posiccedilatildeo dominante o erro e o ruiacutedo natildeo poderiam

ser vistos com bons olhos ldquoNo Iluminismo argumenta Deleuze o ldquoerrordquo funciona como um

conceito delimitador para categorizar qualquer imagem de pensamento que natildeo se coordene com

a imagem ortodoxa do pensamento como um reconhecimento da verdaderdquo (NUNES 2011

p9)98

O autor sugere uma discussatildeo em torno de uma ldquopoeacutetica do ruiacutedordquo abrangendo o

conjunto de procedimentos e obras que se valem do ruiacutedo como efeito revelador de visualidades

estranhas diferenciais e capazes de mexer com expectativas e paradigmas da esfera artiacutestica

Como se a ldquopoeacutetica do ruiacutedordquo99 assinalasse um esforccedilo de tensionamento dos paracircmetros

esteacuteticos introduzindo como valor aquilo que antes fora negligenciado Para tanto seria

necessaacuterio dirigir nossa atenccedilatildeo agraves estrateacutegias de combinaccedilatildeo dos meios e de que forma as

tecnologias podem voltar-se contra si mesmas

Figura 46 - New York City (Lee Friedlander1966)

98 Traduccedilatildeo livre deldquoWithin the Enlightenment Deleuze argues ldquoerrorrdquo functions as a delimiting concept tocategorize any image of thought that does not coordinate with the orthodox image of thought as a ldquorecognitionrdquo oftruthrdquo99 Para um melhor entendimento sobre como se desenvolve a ideia de poeacutetica do ruiacutedo ver Nunes 2011 p3-23

159

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Especificamente no campo do fotograacutefico Cheacuteroux (2009) defende o erro como ponto

de partida para diversos artistas desenvolverem suas obras levando a proacutepria miacutedia fotograacutefica a

seus limites Sua concepccedilatildeo do erro estaacute relacionada exatamente a paracircmetros de qualidade

instituiacutedos pela induacutestria fotograacutefica e que foram largamente disseminados em manuais e

consolidados no imaginaacuterio dos usuaacuterios Para o autor agrave medida que os erros comeccedilam a ser

incorporados por artistas eles passam a habitar o universo das inovaccedilotildees fotograacuteficas

abandonando uma conotaccedilatildeo explicitamente negativa Por exemplo ele cita a presenccedila da sombra

de quem opera a cacircmera na imagem como um dos erros mais comuns entre amadores que no

entanto tornou-se um recurso para inscriccedilatildeo de autoria (uma afirmaccedilatildeo da presenccedila de um sujeito

ativo no processo fotograacutefico) sobretudo no contexto das vanguardas artiacutesticas europeias

empregado por Moholy-Nagy por exemplo e que encontramos tambeacutem na fotografia de Lee

Friedlander (figura 46)

O que antes era apenas um defeito tornou-se uma estrateacutegia para contrariar a suposta

objetividade fotograacutefica (associada a certa frieza do dispositivo) mas tambeacutem uma manifestaccedilatildeo

da proacutepria teacutecnica Aleacutem disso se a luz conteacutem a sombra (BAXANDALL 1977) que surge por

um esforccedilo de intencionalidade ela pode ser considerada um ruiacutedo (algo contido poreacutem nem

sempre manifesto) o que nos leva a enxergar uma aproximaccedilatildeo entre os termos ldquoruiacutedordquo e ldquoerrordquo

de uma perspectiva teoacuterica da fotografia (aleacutem da proposta de Nunes no acircmbito da ciberneacutetica)

Embora o erro esteja associado agrave ideia de falha de mal funcionamento de um sistema e

o ruiacutedo seja essencialmente parte de qualquer corpo estrutura enfim universo expressivo (o que

aparentemente faria do primeiro um ldquodefeitordquo e do segundo um ldquoefeitordquo) esses dois conceitos

natildeo estatildeo assim tatildeo distantes porque a ocorrecircncia do erro eacute uma presenccedila ldquovirtualrdquo que se

ldquoatualizardquo (DELEUZE 1999)100 sob determinadas condiccedilotildees e logicamente sua configuraccedilatildeo

100 Ao contraacuterio de uma relaccedilatildeo negativa o pensamento deleuziano considera o par virtualautal a partir de umarelaccedilatildeo de potecircncia contida de algo em vias de se expressar (natildeo como externalidade) mas como parte constituinteda proacutepria coisa Entendemos que o erro como parte integrante de quaisquer sistemas pode ou natildeo se materializarprovocar impactos nesses sistemas e mesmo que natildeo o faccedila conserva-se como presenccedila Eacute a partir desta ideia que sefaz a associaccedilatildeo entre o erro e o ruiacutedo e as noccedilotildees de virutalautal em Deleuze Craia (2009) faz uma anaacutelise dovirtual em interlocuccedilatildeo com temas importantes do pensamento deleuziano (como as questotildees da diferenccedila e daontologia) recuperando a influecircncia do pensamento de Henri Bergson nesse sentido Deleuze (1999) em seu livrodedicado agrave filosofia bergsoniana discorre sobre as relaccedilotildees entre virtual e atual

160

depende das caracteriacutesticas intriacutensecas a um dado sistema mediante intervenccedilatildeo de algo (ou

algueacutem)

De volta agrave fotografia na abordagem de Cheacuteroux (Ibidem) a utilizaccedilatildeo de todo um

ldquorepertoacuterio de errosrdquo ndash que inclui desfoque tremulaccedilotildees descentralizaccedilatildeo de motivos

deformaccedilotildees sobreposiccedilotildees reflexos mal uso do flash efeito lsquoolhos vermelhosrsquo saturaccedilatildeo das

cores ndash de modo criativo delimita certa divisatildeo entre o universo das praacuteticas vernacular e

artiacutestica

Toda fotografia eacute julgada de maneira diferente segundo o lugar no qual se exibe aimagem segundo as matildeos nas quais se encontra e sobretudo de acordo com os olhos dequem a contempla A apreciaccedilatildeo (sobre os erros) varia por exemplo segundo a filiaccedilatildeodo autor ndash e por extensatildeo daquele que observa ndash a uma das seguintes categorias artistasamadores ou profissionais101 (CHEacuteROUX 2009 p47)

Concordamos que esta divisatildeo entre amadores e artistas eacute relevante na medida em que a

identificaccedilatildeo do erro na fotografia transfere-se de uma conotaccedilatildeo meramente negativa para referir

um valor esteacutetico poreacutem atualmente haacute um entendimento partilhado entre essas duas categorias

sobre a noccedilatildeo de erro como um elemento surpresa acolhido com simpatia quando passa a figurar

na imagem De algum modo a natureza plural que caracteriza a imagem contemporacircnea jaacute

permite que mesmos erros ldquoclaacutessicosrdquo como os apontados pelo autor sejam considerados parte

de uma certa zona de indeterminaccedilatildeo do dispositivo que mesmo os amadores jaacute natildeo se recusam a

aceitar exatamente porque no escopo da arte jaacute se encontram reconhecidos e incorporados

Fontcuberta (online 2010)102 identifica que nos uacuteltimos anos os resultados mais

interessantes em criaccedilatildeo fotograacutefica emergem dos usos vernaculares da imagem natildeo associados agrave

ideia de qualidade o que para ele enseja uma renovaccedilatildeo visual Aprofundando-se nesse debate

Piper-Wright (2018) estuda as diversas motivaccedilotildees de ordem subjetiva e suas relaccedilotildees com o

pensamento teoacuterico-filosoacutefico sobre a miacutedia fotograacutefica que explicam a presenccedila e valorizaccedilatildeo do

erro fora do circuito artiacutestico ou seja entre usuaacuterios comuns Para tanto vem desenvolvendo um

projeto chamado In Pursuit of Error103 no qual recebe imagens enviadas por amadores Imagens

101 Traduccedilatildeo livre de ldquoToda fotografia es juzgada de manera diferente seguacuten el lugar en el cual se muestra laimagen seguacuten las manos en las que se encuentra y sobre todo de los ojos que la miran La apreciacioacuten variacuteaporejemplo seguacuten la pertenencia del autor - y por extensioacuten del que la observa - a una de las siguientes categoriacuteasartistas aficionados o profesionalesrdquo102 Disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=LCByiio0adQ Acesso em 10022020103 Imagens e tambeacutem com a produccedilatildeo teoacuterica da autora sobre o tema do erro na fotografia contemporacircnea estatildeo nosite do projeto httpsinpursuitoferrorcouk Acesso em 30012020

161

que ldquoderam erradordquo Para ela a fotografia significa um agenciamento complexo entre as

intenccedilotildees humanas e o funcionamento do equipamento e nessa interrelaccedilatildeo haacute um espaccedilo de

abertura invadido de certa maneira pelas circunstacircncias espaccedilo-temporais do ato fotograacutefico

Nesse espaccedilo eacute que o erro digamos assim toma corpo

O erro abre um espaccedilo paradoxal entre a maacutequina e o humano e apresenta esse espaccedilocomo lacuna uma aporia nas convenccedilotildees da praacutetica fotograacutefica tecnoacutelogica eculturalmente Essa aporia eacute uma zona rica em imaginaccedilatildeo surpresa e desconhecimentoque tem sido explorada em si mesma por artistas ao longo dos anos104 (PIPER-WRIGHT Ibidem p1)

Comparando imagens e relatos de usuaacuterios a autora percebe que seja o erro causado por

mal funcionamento do equipamento ou accedilotildees natildeo planejadas pelos usuaacuterios externas ao medium

para eles a causa eacute menos importante do que o resultado e a tendecircncia dominante eacute as imagens

natildeo serem descartadas Ela distingue dois tipos de erro os acidentais e os resultantes da

manipulaccedilatildeo do equipamento Os primeiros seriam causados por uma subjetividade maquiacutenica

atuando sem o controle nem conhecimento preciso do usuaacuterio do que se passa internamente no

dispositivo Jaacute os outros vecircm agrave tona com a intenccedilatildeo de subversatildeo do ldquoprogramardquo da cacircmera

(FLUSSER 2011) Se tanto artistas quanto amadores satildeo capazes de enxergar o caraacuteter

diferencial do erro como elemento criativo o que distingue essas duas categorias de praticantes

da fotografia seria no caso dos primeiros o fato de o erro emergir (curiosamente) em meio a

processos de domiacutenio bastante razoaacutevel da tecnologia e de constante tensionamento do

dispositivo como parte integrante de procedimentos deliberados O que natildeo se verificaria em

relaccedilatildeo aos fotoacutegrafos amadores

O erro deliberado usa a cacircmera contra ela mesma pertubando os paracircmetros para que seproduza o erro na imagem Enquanto haacute determinadas accedilotildees que podem ser previstastambeacutem haacute situaccedilotildees em que o conhecimento de determinado resultado eacute parcial Eu seique reduzindo a velocidade do obturador obtenho um borratildeo mas natildeo posso prever oresultado da imagem apenas com base nessa intervenccedilatildeo A situaccedilatildeo que estaacute sendofotografada bem como a luz e o tempo contribuem com elementos adicionais eimprevisiacuteveis para o resultado105 (PIPER-WRIGHT Ibidem p5)

104 Traduccedilatildeo livre de ldquoThe photographic error opens up a paradoxical space between machine anda human andpresents this space as a gap an aporia in the conventions of photogrpahic practice both technologically andculturally This aporia is a rich space of wonder surprise and not-knowing which in itself has been explored byartists for many yearsrdquo105 Traduccedilatildeo livre de ldquoThe deliberate error uses the camera against itself disrupting the settings in order to producean error image While there are certain actions which can be predicted it is also the case that knowledge of aproposed outcome can only be partial I might know that reducing the shutter speed will produce blur but I cannotpredict what the resulting image will look like based on that intervention alone The situation been photographed aswell as light and time will all contribute additional unforseen elements to the resulting photographrdquo

162

Estas reflexotildees sobre uma zona de fricccedilatildeo entre o controle e a imprevisibilidade

envolvendo a noccedilatildeo de erro ressoam as concepccedilotildees dos artistas incluiacutedos nesta tese sobre a

interaccedilatildeo destes com as tecnologias da imagem mesmo que o estudo de Piper-Wrtight em

questatildeo seja dirigido a fotoacutegrafos amadores Para noacutes seja nas fotografias de amadores ou no

campo da arte o erro expotildee o caraacuteter processual da fotografia (PIPER-WRIGHT Ibidem) algo

percebido igualmente por amadores e artistas pois que todos reconhecem esse espaccedilo de

liberdade presente na nossa relaccedilatildeo com as miacutedias sendo capazes de entender a manifestaccedilatildeo

desse caraacuteter processual como um valor esteacutetico

Para aleacutem dos debates sobre apropriaccedilotildees de amadores ou artistas interessa-nos aqui a

variabilidade de abordagens que exprimem a concepccedilatildeo esteacutetica do erro do ruiacutedo e da falha nas

obras contemporacircneas que pertencem ao universo das tecnoimagens (FLUSSER 2008) em

especial na relevacircncia que estas vecircm adquirindo nos anos recentes como verdadeiras

problematizaccedilotildees de paradigmas centrais para o campo da fotografia Nesse sentido o estudo de

Cheacuteroux oferece outras contribuiccedilotildees que se alinham aos trabalhos presentes em nosso corpus

Em muitos dos exemplos trazidos em seu livro ele ressalta o potencial dos artistas para

criar imagens que brincam com as noccedilotildees de verossimilhanccedila e o mimetismo Segundo o autor o

erro tambeacutem se relaciona com a alteraccedilatildeo da funccedilatildeo mimeacutetica da fotografia (CHEacuteROUX 2009

p188) ndash tema largamente explorado pelos movimentos da vanguarda artiacutestica europeia de

meados de 1920 nas aproximaccedilotildees com o medium fotograacutefico106 ndash originando trabalhos em que

muitas vezes nem eacute mais possiacutevel reconhecer os traccedilos caracteriacutesticos dos objetos ou mesmo de

um rosto Estes podem desfazer-se em linhas pontos pixels deixando agrave mostra os elementos

miacutenimos formadores da imagem que passam a ocupar o centro de nossa atenccedilatildeo (em detrimento

da funccedilatildeo de reconhecimento das formas)

48 ldquoA TECNOIMAGEM Eacute FEITA DE PONTOS GRAtildeOS E PIXELSrdquo

As imagens que compotildeem o trabalho 22474 (2000) de Joseacute Luiacutes Neto figuras 48 e 49

satildeo um bom exemplo dessa perturbaccedilatildeo da mimeses Cada uma das imagens satildeo recortes rostos

isolados de originais produzidos em negativo de vidro de autoria do fotojornalista Joshua

Benoliel (1873-1932) As imagens das quais Joseacute Luiacutes Neto se apropria fazem parte do acervo do

106 A influecircncia desses movimentos eacute sempre lembrada por autores (FATORELLI 2013 BAIO2015 JUNIOR2002)que discutem a abertura os hidridismos e uma atitude questionadora frente aos meios e modelos esteacuteticos e acabamfuncionando como um legado para as geraccedilotildees de artistas posteriores

163

Arquivo Municipal de Lisboa Elas satildeo registros de uma norma (abolida logo apoacutes a tomada

destas imagens) adotada na penitenciaacuteria da capital portuguesa que determinava o uso de capuz

pelos detentos As fotos de Benoliel (figura 47) satildeo tomadas como ponto de partida de uma

investigaccedilatildeo dirigida ao proacuteprio suporte

Figura 47 - 22474 de Joshua Benoliel

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

Se na imagem de Benoliel os sujeitos jaacute estavam reduzidos sob a violecircncia de um capuz

(ali a morte de qualquer singularidade de identidade jaacute se anunciava) o movimento que nos

conduz ao gratildeo da foto aprofunda essa ideia atingindo um verdadeiro esvaziamento pois os

rostos vatildeo se desfazendo em pontos O nuacutemero ldquo22474rdquo faz referecircncia agrave numeraccedilatildeo da imagem

que consta nos registros de arquivamento Toma-se a impessoalidade dos nuacutemeros para transmitir

a frieza do ato de despersonalizar os indiviacuteduos que desaparecem primeiro sob os capuzes que a

todos igualam para depois sumirem novamente na miriacuteade de gratildeos de um segundo negativo

Sim jaacute que os negativos de Benoliel foram refotografados em negativo de celuloacuteide apoacutes a

seleccedilatildeo cuidadosa das aacutereas onde se encontram os rostos As coacutepias finais satildeo ampliaccedilotildees em

tamanho 41 x 31 cm Em comparaccedilatildeo com os originais que medem 9 x 12 cm a escala altera-se

significativamente

164

Joseacute Luiacutes Neto retirou os detentos da cadeia e construiu uma galeria de perturbadoras

cabeccedilas de aspecto fantasmagoacuterico Essa obra faz-nos lembrar as relaccedilotildees entre o fotograacutefico e a

vigilacircncia institucional na dimensatildeo do arquivo uma das funccedilotildees mais importantes que a

fotografia assume desde seu advento O retrato foi o gecircnero obrigatoacuterio na consolidaccedilatildeo de um

amplo regime de controle social que envolveu instituiccedilotildees como manicocircmios hospitais cadeias

delegacias reformatoacuterios para jovens delinquentes e o sistema juriacutedico Ao revisitar essas

questotildees resgatando os negativos de Benoliel Joseacute Luiacutes Neto atualiza o debate sobre identidades

apagadas suprimidas da ldquohistoacuteria oficialrdquo confinadas ao subterracircneo das poliacuteticas de

encarceramento para dar-lhes sobrevida atraveacutes de um olhar renovado sobre o negativo O

substrato poliacutetico das fotografias originais eacute de certa maneira minimizado em favor de uma

investigaccedilatildeo de cunho mais formalista Atraveacutes do movimento radical de aproximaccedilatildeo da

materialidade chegamos ao ponto em que nosso olhar encontra o gratildeo da imagem Aqui podemos

considerar a exploraccedilatildeo esteacutetica do gratildeo como uma modalidade de ruiacutedo que perturba a ideia de

mimetismo jaacute que mexe diretamente com as expectativas de reconhecimento de um referente

qualquer expondo os intervalos entre os gratildeos as diferenccedilas de intensidade nos tons de preto e

branco da imagem Por meio da granulaccedilatildeo assistimos agrave intensificaccedilatildeo da miacutedia fotograacutefica em

sua mateacuteria constituinte uma intensificaccedilatildeo da proacutepria tecnologia (HAINGE 2013) Fernando

Feio que analisou o trabalho por ocasiatildeo da exibiccedilatildeo ao puacuteblico comenta

Ele desloca seu olhar da foto para o proacuteprio negativo a fim de recuperar da maneiramais fiel possiacutevel o material puramente fotograacutefico () A sua expressatildeo continuacentrada na fotografia que aqui natildeo tem nenhuma realidade externa da qual se originaro que eacute fotografado no presente trabalho eacute o gratildeo fotograacutefico na verdade uma impressatildeodireta da realidade Se existe realidade aqui ela pertence ao domiacutenio fotograacutefico e a elaretornaremos (devemos) () Esta eacute portanto uma seacuterie nascida do espanto que vem doolhar atraveacutes da superfiacutecie de um negativo apreciando a disposiccedilatildeo do gratildeo e doaparecimento de uma forma numa dobra da (ir)regularidade do plano (e quem tentouolhar as imagens dessa forma conhece bem o espanto e a maravilha de olhar para ummundo familiar com valores luminosos invertidos onde a luz eacute sempre sombra e asombra torna-se luz) (FEIO online)

165

Figura 48 - 22474 (Joseacute Luiacutes Neto 2000)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

A estrateacutegia de apropriaccedilatildeo praacutetica jaacute disseminada entre diversos artistas

contemporacircneos aqui se articula com a pesquisa mais ampla sobre as possibilidades escondidas

no substrato da imagem fotograacutefica que constitui um traccedilo comum das obras de Joseacute Luiacutes Neto

Nesse sentido esta seacuterie pode tambeacutem ser interpretada como uma homenagem agrave miacutedia

fotograacutefica a busca de um elemento pessoal que pode ser desvendado no olhar de um outro

O trabalho de apropriaccedilatildeo permite-me trabalhar com imagens de outros autores () queme desafiam a encontrar o meu olhar a minha maneira de ver de encontrar pequenosfragmentos de imagem que me permite depois isolar esses fragmentos na procuraexatamente da minha maneira de ver (NETO 2014)

A investigaccedilatildeo da seacuterie 22474 tem continuidade na fotografia imediatamente posterior

de Benoliel que mostra os presos com os rostos descobertos Submetida ao mesmo meacutetodo a

166

imagem identificada pelo nuacutemero seguinte 22475 fragmentada refotografada e ampliada torna-

se ainda mais sintomaacutetica da operaccedilatildeo de apagamento das identidades pois agora vemos de fato

os rostos perderem-se na granulaccedilatildeo107 do negativo O processo ecoa o comportamento obcecado

do personagem principal de Blow up (Michelangelo Antonioni 1966) que no intuito de

desvendar um assassinato amplia exaustivamente uma fotografia na qual apenas ele enxerga

haver um corpo Em ambos os casos estaacute impliacutecita a ideia de que a imagem natildeo passa de uma

ficccedilatildeo construiacuteda atraveacutes de liames muito fraacutegeis com o real

Figura 49 - Imagens da seacuterie 22745 (Joseacute Luis Neto2003)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Utilizando como base o mesmo procedimento de aproximar-se da miacutedia o brasileiro

Caacutessio Vasconcellos elaborou uma seacuterie chamada Rostos (1990) Submetendo ao congelamento a

imagem fugidia do viacutedeo Vasconcellos fotografa em Polaroid rostos de atores e atrizes de

107 Outro trabalho bastante interessante que promove uma espeacutecie de ldquoelogio do gratildeordquo eacute The Enlargement de UgoMulas no qual foram feitas imagens do ceacuteu ampliadas ateacute o ponto de o gratildeo do negativo ficar aparente Em seguidasatildeo escolhidos detalhes das mesmas imagens para nova ampliaccedilatildeo O ceacuteu entatildeo desaparece e ficamos somente comos gratildeos Para mais detalhes sobre os trabalhos de Ugo Mulas ver Lenot 2017a p27-33 As imagens estatildeodisponiacuteveis em httpwwwugomulasorgindexcgiaction=viewampidramo=1090233762amplang=eng Acesso em04052020

167

produccedilotildees cinematograacuteficas Atravessando diferentes meios partindo do movimento e chegando

ao estaacutetico atraveacutes de uma verdadeira desaceleraccedilatildeo das imagens o que resta eacute uma espeacutecie de

apariccedilatildeo do fotograacutefico aprisionado na imagem moacutevel Nesses enquadramentos que se

aproximam do close up as fotografias ganham um aspecto desfocado As fisionomias adquirem

cores artificiais (ressaltadas pela esteacutetica da Polaroid) flutuando sobre um fundo negro Rostos

sem qualquer ligaccedilatildeo com um corpo que de tatildeo proacuteximos ao nosso olhar perdem os contornos A

estrateacutegia de isolar planos dos filmes escolhidos natildeo consegue nos apartar totalmente do cinema

pois nos faz lembrar do close que assim como a cacircmera lenta assinala uma ldquoconfiguraccedilatildeo pouco

previsiacutevelrdquo (FATORELLI 2013 p44) da imagem operada pelo retardamento de seu movimento

Dubois (2004) Fatorelli (2013) e Bellour (1997) entre outros jaacute atentaram para a

natureza irregular intermediaacuteria e por isso mesmo bastante criativa do viacutedeo Como zona de

passagem entre o cinema a fotografia e as miacutedias digitais o viacutedeo eacute compreendido na seacuterie do

fotoacutegrafo paulistano exatamente como esse ambiente graacutevido das dimensotildees muacuteltiplas da

imagem que ele explora atraveacutes da articulaccedilatildeo com a cacircmera instantacircnea da Polaroid De certo

modo podemos dizer que o presente da imagem eletrocircnica encontra-se restituiacutedo quando ganha

vida na fotografia instantacircnea materializando-se no espaccedilo da Polaroid Rostos perdidos em

meio agrave continuidade narrativa adquirem relevacircncia quando retirados do fluxo da montagem pelo

gesto da captura promovia pelo dispositivo fotograacutefico Ocorre aqui algo parecido com o Bellour

(Ibidem) chama de ldquotomada fotograacutefica do filmerdquo que eacute uma parada da imagem moacutevel que a

torna proacutexima do fotograacutefico

Na seacuterie Rostos (1990) conforme as figuras de nuacutemero 50 50a e 50b transitam

diferentes miacutedias e estatutos da imagem e as fisionomias satildeo submetidas a um processo que

ressalta a dissoluccedilatildeo da forma atraveacutes do desfocado e da ecircnfase na cor Um investimento na

abordagem da imagem como artifiacutecio

168

Figuras 50 50a e 50b - Rostos (Caacutessio Vasconcellos 1990)

169

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

49 ldquoA TUA PRESENCcedilA Eacute BRANCA VERDE VERMELHA AZUL E AMARELArdquo

As experiecircncias com os efeitos das cores na imagem tambeacutem estatildeo presentes em outros

trabalhos de nosso corpus podendo sua exploraccedilatildeo ser entendida como mais uma forma de

potencializar o ruiacutedo contido nos materiais empregados na produccedilatildeo das obras As imagens de

Febre (2002) (figura 51) de Cris Bierrenbach surgiram quase que de uma brincadeira na qual se

aplicou uma substacircncia a uma coacutepia fotograacutefica que aos poucos foi modificando completamente

a imagem A fotoacutegrafa natildeo sabia de antematildeo qual seria o resultado e comeccedilou o processo apenas

pela vontade de experimentar Ela simplesmente se deparou com um retrato antigo comeccedilou a

manipulaacute-lo e percebeu que o rosto comeccedilava a se desfazer adquirindo uma tonalidade

vermelha A dissoluccedilatildeo da fisionomia intensificava-se cada vez mais A digitalizaccedilatildeo num

scanner desregulado ampliou o efeito das cores e a artista achou entatildeo que o trabalho

representava perfeitamente sensaccedilotildees tiacutepicas das mulheres em periacuteodos menstruais

() Quando eu vi aquilo saturado eu falei Uau Foi completamente sem querer () Euia mexer tentar fazer alguma coisa mas eu nem precisei porque quando veio aquelacoisa saturada no vermelho () aquilo falava comigo Quando eu vi aquele negoacutecio

170

desmontando desfazendo Foi tudo meio casual mas quando eu vi aquilo era pra mimtanto a representaccedilatildeo de estados de espiacuterito de raiva de tensatildeo de sangue de dor deuma coisa menstrual () Eu tinha muita coacutelica de menstruaccedilatildeo eu precisava tomar anti-inflamatoacuterio pra passar dor entatildeo era assim ldquoeu falei nossa eu acho que eu fico assimalguns diasrdquo Eacute essa transformaccedilatildeo parece que eacute uma coisa que toma por dentro sei laacute() Tinha uma outra parecida e eu peguei a outra e comecei a fazer de outro jeito ()(BIERRENBACH 2018)

Com base na destruiccedilatildeo de um rosto aqui se constroacutei uma personagem estranha que

surge completamente da interaccedilatildeo de substacircncias aplicadas a uma imagem jaacute processada e

posteriormente submetida agrave leitura do digitalizador Em cada uma dessas etapas os traccedilos das

miacutedias vatildeo se acrescentando para compor a imagem final Eacute particularmente interessante a

questatildeo de uma leitura ldquodesviadardquo feita pelo scanner resultar na saturaccedilatildeo incomum do vermelho

e como essa fuga de um padratildeo cromaacutetico foi justamente o que interessou agrave fotoacutegrafa Atraveacutes

das vaacuterias fases de manipulaccedilatildeo da imagem essas cores foram sendo liberadas pouco a pouco

Confrontando diretamente a representaccedilatildeo mais claacutessica da identidade (o retrato) e promovendo

a destruiccedilatildeo de seus traccedilos fisionocircmicos a artista alcanccedilou uma representaccedilatildeo que cria uma

identificaccedilatildeo com qualquer mulher poreacutem natildeo no niacutevel descritivo mas simboacutelico

Figura 51 - Febre (Cris Bierrenbach 2002)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Artifiacutecios que trazem agrave tona cores estranhas ao processo fotograacutefico tradicional tambeacutem

satildeo parte essencial da seacuterie Noturnos (1998-2004) de Caacutessio Vasconcellos (figuras 52 e 53)

171

desenvolvida em cidades do Brasil Franccedila e Estados Unidos O intuito era fotografar com uma

cacircmera Polaroid apenas ambientes noturnos (alguns ateacute pontos turiacutesticos) Poreacutem aleacutem dos

enquadramentos fechados que tornam irreconheciacuteveis alguns desses locais foi utilizada uma luz

adicional (lanterna ou holofote com filtro colorido) que alterou as tonalidades originais dos

objetos frente agrave cacircmera

Figura 52 - Aeroporto de Congonhas 4 (Caacutessio Vasconcellos 2002)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

O despojamento de um equipamento como a Polaroid cuja instantaneidade eacute marca

registrada do elemento surpresa do fotograacutefico combina-se nesse projeto com o fato de

Vasconcellos ter realizado as imagens agrave medida que ia (re)descobrindo o espaccedilo urbano

(primeiramente da cidade Satildeo Paulo) sem muita rigidez de planejamento A ideia inicial era

apenas lanccedilar um olhar sobre as facetas escondidas de sua cidade natal As andanccedilas por lugares

que normalmente estatildeo submersos no vai-e-vem dos transeuntes e o esquadrinhamento de um

olhar atento agraves particularidades das formas das linhas de edifiacutecios muros das silhuetas

desenhadas pela penumbra na superfiacutecie dos objetos constroacutei uma paisagem cheia de vida que

nasce dos cantos esquecidos exatamente pela forccedila das cores Vasconcellos arma uma estrateacutegia

teacutecnica que permite fazer surgir das sombras noturnas uma profusatildeo de cores Na verdade

podemos dizer que a luz adicional depositada sobre formas de diferentes tonalidades exprime o

excesso de cada cor ou seja faz emergir uma potecircncia escondida de cada azul amarelo verde

vermelho O resultado eacute de um aspecto fantaacutestico

172

Como uma marca registrada procuro a singularidade o limite entre o real e oimaginaacuterio Nessas fotos particularmente busquei formas de retratar uma visatildeo pessoale distinta Tentei resgatar o que estaacute invisiacutevel ou o que natildeo eacute tatildeo expliacutecito Encontrar nafotografia a beleza escondida no comum no caos no feio () (VASCONCELLOS2002 p6)

O caoacutetico a feiura e o estranhamento que surgem do cotidiano ou melhor que se

esconde sob a pele da normalidade satildeo simbolismos bastante associados ao tema do ruiacutedo

(HAINGE 2013) Na seacuterie Norturnos esse ruiacutedo eacute o desconhecido que nasce das formas

construiacutedas atraveacutes de enquadramentos inclinados de paisagens sem linha do horizonte

entrecortadas por placas muros que se sobrepotildeem de maneira confusa agraves vezes enganando o

nosso olhar que por sua vez encontra dificuldade em reconhecer aquilo que fita E surge tambeacutem

da exploraccedilatildeo dos efeitos da luz e da interpretaccedilatildeo ldquoerradardquo do sistema da Polaroid que nos daacute

tonalidades novas A apropriaccedilatildeo poeacutetica da Polaroid inscreve-se numa tradiccedilatildeo que de certo

modo ironiza e critica a sofisticaccedilatildeo dos dispositivos de imagem representada por artistas como

Andy Warhol (1928-1987) Paolo Gioli (1942- ) William Eggleston (1939- ) sendo este uacuteltimo

fortemente interessado na questatildeo da cor assim como Vasconcellos

Desde o iniacutecio usei o mesmo tipo de cacircmera uma antiga maacutequina Polaroid SX-70 dadeacutecada de 70 um claacutessico da fotografia no seu estilo Meu trabalho pessoal eacutebasicamente em preto e branco Cor somente em Polaroid que confere agraves fotos umresultado peculiar em resoluccedilatildeo e textura justamente o que me fascina(VASCONCELLOS 2002 p6)

Nos dias de hoje o formato vem sendo revisitado em projetos comerciais como o

Impossible Project108 que reveste seu negoacutecio com uma aura de saudosismo perfeitamente

adaptaacutevel ao estilo cool ao qual a esteacutetica Polaroid foi sendo associada ao longo do tempo

(justamente pela investida dos artistas) Mas na proposta do fotoacutegrafo paulistano o dispositivo

natildeo eacute empregado nessa atitude saudosista nem tatildeo pouco purista Ela eacute desprogramada pela

intromissatildeo da luz adicional no processo (um elemento necessaacuterio jaacute que todo o trabalho eacute

noturno) o que contribui para um forte aspecto de artificialidade dessas imagens As originais em

Polaroid ainda foram escaneadas e impressas em jato de tinta ou seja acrescenta-se ainda mais

uma ldquocamadardquo de processamento da imagem O autor quis inventar uma cidade surreal onde o

108 No site do Impossible Project toda a estrateacutegia de venda dos produtos (cacircmeras e filmes) converge para uma ideiade autenticidade ligada ao formato Polaroid como padratildeo da fotografia instantacircnea Mas sem perder de vista ocenaacuterio de convergecircncia dos meios entre os produtos oferecidos jaacute haacute um equipamento que recebe imagens digitais eimprime-as em formato Polaroid (o Polaroid Lab) Conferir httpseupolaroidoriginalscom Acesso em07022020

173

burburinho e a agitaccedilatildeo estatildeo nas entrelinhas impliacutecitos numa espeacutecie de tensatildeo inaudita Tais

condiccedilotildees de um misteacuterio escondido sob a aparecircncia da calmaria jaacute satildeo lugar-comum no

imaginaacuterio sobre a noite na literatura no cinema e ecoa a presenccedila de um ruiacutedo contido

subentendido no conhecido no comum

Figura 53- Avenida Paulista 7 (Caacutessio Vasconcellos 2001)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

410 ldquoQUANDO DAGUERRE ENCONTRA O PHOTOSHOPrdquo

Entre as estrateacutegias que tornam sensiacutevel a presenccedila do ruiacutedo na imagem contemporacircnea

estatildeo as reapropriaccedilotildees de teacutecnicas histoacutericas da fotografia Tomadas de forma mais maleaacutevel

atraveacutes de metodologias adaptadas reinventadas pelos e pelas artistas (distantes de uma noccedilatildeo

purista e nostaacutelgica com a historiografia do meio) Nesse sentido as obras de Cris Bierrenbach

satildeo exemplares

Natural da cidade de Satildeo Paulo apaixonou-se pela fotografia na eacutepoca em que estudava

cinema e acabou depois trabalhando para o jornal Folha de Satildeo Paulo Um de seus primeiros

174

trabalhos ldquoque foge da fotografia direta109rdquo (BIERRENBACH online 2017) eacute resultado jaacute do

interesse pelas experimentaccedilotildees com as teacutecnicas da imagem Em Dois homens no centro (1992)

(figura 54) primeiro o negativo utilizado foi impresso pelo lado contraacuterio e em seguida foi feita

uma sobreimpressatildeo com uma teacutecnica diferente

Figura 54 - Dois homens no centro (Cris Bierrenbach 1992)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

As imagens acima foram realizadas em negativo 35mm mas a paulista eacute conhecida pelo

uso em diversas obras de teacutecnicas como goma bicromatada cianotipia papel salgado e

daguerreotipia Para ela o interesse em revisitar esses processos antigos estaacute tambeacutem no fato de

que o erro vem junto com o fazer

Eacute o que eu mais gosto da praacutetica desses processos do seacuteculo 19 porque eles datildeo tantoerrado E que no erro muitas ideias aparecem () Eu falo isso quando eu dou aulaspalestras () vocecirc tem que errar tem que jogar com a imagem () As pessoas queremmuito ter controle de tudo Bota uma ideia na cabeccedila e vai fazer uma coisa que nuncafez e vai ter um trabalho pronto e natildeo eacute assim110 (BIERRENBACH 2018)

Nas primeiras tentativas de realizar projetos usando o daguerreoacutetipo os erros

transformam-se em oportunidades Foi o que aconteceu com a obra Vitral (figura 55) Pensando

109 1ordm Ciclo de fotografia - Cidade Ivertida Disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=MUp098qZLDYAcesso em 05022020110 Entrevista concedida agrave autora desta tese

175

que os vitrais contam histoacuterias (como os das igrejas com passagens da via Crucis por exemplo)

Bierrenbach fotografou meninos e meninas de rua e juntou suas imagens com as de outros

colegas do fotojornalismo As fotografias das crianccedilas foram impressas em espelhos baratos

numa referecircncia direta agrave superfiacutecie espelhada dos daguerreoacutetipos que ainda natildeo tinha conseguido

produzir Ou seja na tentativa de ldquofazerrdquo um daguerreoacutetipo ela descobriu uma esteacutetica uacutenica

fruto da impressatildeo num outro material refletor (o espelho)

Figura 55 - Detalhe da instalaccedilatildeo Vitrais (Cris Bierrenbach 1996)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista111

O caraacuteter do imprevisiacutevel nesse caso levou agrave descoberta de uma alternativa ao

daguerreoacutetipo Aceitando essa imprevisibilidade como parte inerente ao trabalho Cris

Bierrenbach utiliza as teacutecnicas claacutessicas introduzindo modificaccedilotildees nos processos Tambeacutem jaacute

desenvolveu obras a partir de slide e papel fotograacutefico mas com base numa ideia de hibridismo

111 Sugerimos visualizar o trabalho na versatildeo integral Disponiacutevel em httpscrisbierrenbachcompessoalvitralAcesso em 05022020

176

entre as tecnologias que permite por exemplo criar peccedilas uacutenicas mas que passaram em algum

momento de sua produccedilatildeo pelo scanner ou que foram originalmente tomadas com o celular ldquoEu

fotografo com tudo Celular cacircmera digital 35 fullframe () Aleacutem das analoacutegicas Eu uso

qualquer negoacutecio Porque tambeacutem o que me interessa eacute fazer o cruzamento do analoacutegico com o

digitalrdquo (BIERRENBACH 2018)

O desprendimento em relaccedilatildeo ao equipamento escolhido e a proposta de articular

diferentes miacutedias ficam evidentes em obras como O encontro (2011) (figura 56) uma sequecircncia

que tem como ponto de partida uma imagem realizada em negativo digitalizada e finalizada em

formato daguerreoacutetipo O procedimento eacute o seguinte as fotos digitalizadas satildeo fundidas com

auxiacutelio do Photoshop e em seguida transmitidas para o daguerreoacutetipo O percurso inicia no seacuteculo

XX passa pelo seacuteculo XXI e retrocede ao seacuteculo XIX A limpeza do tratamento digital da

imagem eacute contrabalanccedilada pela saiacuteda em daguerreoacutetipo que apresenta algumas falhas na borda

das imagens A teacutecnica do daguerreoacutetipo tambeacutem natildeo eacute reproduzida agrave risca exatamente como se

fazia antigamente Ela eacute adaptada aos propoacutesitos da obra gerando uma esteacutetica que se afasta do

padratildeo claacutessico

O daguerreoacutetipo eacute a uacutenica fotografia que natildeo tem emulsatildeo () Eu parto de uma chapaprateada super polida Ela eacute um espelho Um espelho perfeito quanto mais espelhomelhor Aiacute eu coloco essa placa numa caixa com vapor de iodo entatildeo o vapor naverdade () nada encosta na placa O vapor vai deixar ela fotossensiacutevel () O processoque eu faccedilo natildeo tem outro vapor () eu faccedilo um vapor soacute e depois eu revelo na luz Eacutedifiacutecil de explicar () Nem tem muito que explicar porque natildeo se sabe direito o queacontece () Vocecirc fixa e coloca um filtro vermelho e volta pra luz Aiacute a imagem eacuterevelada (BIERRENBACH 2018)

Bierrenbach introduz uma artimanha no processo tradicional Pela teacutecnica claacutessica um

daguerreoacutetipo utiliza uma chapa de cobre sensibilizada com vapor de iodo que apoacutes exposta

conserva uma imagem latente que eacute por sua vez revelada com vapor de mercuacuterio Este uacuteltimo

passo eacute que a fotoacutegrafa dispensa optando por revelar sua imagem direto com a accedilatildeo da luz num

procedimento especiacutefico envolto ateacute num certo misteacuterio Essa intervenccedilatildeo nas ldquoregras do jogordquo eacute

um traccedilo distintivo dosdas artistas que utilizam a fotografia numa abordagem experimental

(LENOT 2017) A maneira com que se apropriam das tecnologias eacute geralmente muito particular

pois submetem os materiais a diversas adaptaccedilotildees em vez de utilizaacute-los conforme os paracircmetros

industriais tambeacutem com forma de criacutetica ao uso alienado das miacutedias Para Juacutenior (2006) a

177

fotografia expandida (que se distingue pelos hibridismos) associa-se tambeacutem a esse olhar

retrospectivo para teacutecnicas antigas perifeacutericas eou esquecidas que satildeo contudo retomadas a

partir de um vieacutes criacutetico Elas satildeo resgatadas para nos fazer refletir tanto sobre o niacutevel de

automaccedilatildeo com que produzimos imagens quanto para demonstrar que haacute modalidades do visiacutevel

ainda por revelar nessas tecnologias As praacuteticas de Cris Bierrenbach podem assim ser colocadas

ao lado dos procedimentos de Dirceu Maueacutes e Luiz Alberto Guimaratildees (no sentido das

apropriaccedilotildees das teacutecnicas claacutessicas da imagem fotograacutefica) guardadas as devidas singularidades

nas temaacuteticas a formas de abordagem

Figura 56 - O encontro (Cris Bierrenbach 2011)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

De volta a O encontro buscou-se a criaccedilatildeo de um personagem hiacutebrido algo indefinido

entre masculino e feminino (pela fusatildeo das duas cabeccedilas) O modelo de um retrato antropoloacutegico

178

(tomada de perfil) eacute utilizado para refletir sobre a natureza permeaacutevel e fluida das relaccedilotildees

afetivas e do gecircnero

() eu fotografei um amigo meu que eacute careca tambeacutem Entatildeo eu tratei dois personagensum pouco quase sem gecircnero () Claro que daacute pra ver que eacute um homem e uma mulhermas o assunto da careca eacute pra ter essas duas pessoas um pouco mais iguais possiacuteveis Prafazer um comentaacuterio (que eu faccedilo em outros trabalhos) sobre as relaccedilotildees afetivas Sobreo que eacute encontro afetivo que na minha opiniatildeo eacute um pouco um jogo uma soma mastambeacutem uma dissoluccedilatildeo () Tem vaacuterias maneiras de a gente ver mas tambeacutem temvaacuterios tipos de relaccedilotildees afetivas neacute Tem as que acontecem e permanecem tem as queacontecem e acabam ()112 (BIERRENBACH 2019)

Esse entrelugar do gecircnero tambeacutem simboliza o ruiacutedo no sentido de que da interlocuccedilatildeo

entre as figuras masculina e feminina cria-se um terceiro ser que natildeo tem gecircnero definido mas

que surge desse movimento de fusatildeo de mistura Uma entidade singular que ocupa um espaccedilo

existente em alternativa agraves modalidades socialmente demarcadas de masculino e feminino A

escolha pelo formato ldquoretrato antropoloacutegicordquo tambeacutem evoca essa dimensatildeo de perturbaccedilatildeo de um

padratildeo como modelo associado agraves funccedilotildees de identificaccedilatildeo de demarcaccedilatildeo de uma persona

social e de certa pretensatildeo cientiacutefica aqui o estilo eacute ressignificado para implodir a noccedilatildeo de

gecircnero atrelada ao sexo bioloacutegico Um efeito expresso natildeo apenas pela operaccedilatildeo de fusatildeo das

cabeccedilas (confundindo as identidades preacutevias) mas tambeacutem pela semelhanccedila estabelecida entre os

personagens ambos carecas Aleacutem disso o formato sequencial das imagens forja um movimento

que aproxima o trabalho do cinema ao estilo das obras de Duane Michaels (BIERRENBACH

2019)

A sequecircncia fotograacutefica conforme analisa Fatorelli (2013) em relaccedilatildeo a algumas obras

de Andy Warhol sugere mais uma possibilidade de desdobramento do instante fotograacutefico No

caso do artista norte-americano citado por Fatorelli eacute a repeticcedilatildeo de uma mesma imagem que de

certa maneira faz o instantacircneo animar-se a ponto de quase alcanccedilar o movimento De forma

parecida notamos essa inclinaccedilatildeo para a mobilidade da imagem fixa na estrutura de O encontro

a sequecircncia de imagens sugere claramente uma ideia de montagem de sucessatildeo de

temposmomentos que combina com a dinacircmica das relaccedilotildees afetivas Note-se que em conjunto

as imagens demandam o olhar por um tempo mais demorado prolongado em confronto com a

apreensatildeo da imagem uacutenica A respeito de trabalhos de Andy Warhol fundados nesse princiacutepio

Fatorelli (2013 p67) comenta que mudam o ldquomodo de percepccedilatildeo da obra e os modos de

participaccedilatildeo do espectadorrdquo exatamente porque a estrateacutegia da repeticcedilatildeo acusa uma modalidade

112 Entrevista concedida agrave autora desta tese em 2019

179

que se constroacutei a partir da imagem uacutenica mas estaacute aleacutem dela desdobra-se expande-se

ultrapassa-a Efeito semelhante ocorre na obra de Bierrenbach

O jogo entre fixidez e mobilidade tambeacutem originado na exploraccedilatildeo do instante

fotograacutefico eacute a base de um outro trabalho realizado em goma bicromatada As mulheres de Lot

(figura 57) A goma bicromatada eacute um processo de impressatildeo por contato inventado em 1849

sendo bastante apreciada pelos pictorialistas da virada do seacuteculo XX e caracterizada

esteticamente pela semelhanccedila com desenhos produzidos com carvatildeo ou pastel (ANTONINI et

al2015) A utilizaccedilatildeo da luz inclui a teacutecnica no rol dos processos fotograacuteficos mas suas

caracteriacutesticas visuais acabam por aproximaacute-la do escopo do desenho como se fosse uma

ldquoembaixatriz fotograacutefica das artes plaacutesticasrdquo (JAMES 2015 p488) Como as etapas de

construccedilatildeo da imagem exigem a aplicaccedilatildeo de pigmentos com pincel a metodologia da goma

bicromatada assenta-se num gesto pictoacuterico e dessa maneira carrega as marcas dessa presenccedila

fiacutesica doda artista As imagens tecircm a textura aparente do suporte utilizado (o mais comum eacute o

papel) e os contornos natildeo se afiguram rigidamente definidos

Figura 57 - As mulheres de Lot (Cris Bierrenbach 1993)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

180

Como o processo eacute adaptaacutevel e apresenta resultados variados Bierrenbach cogitou

utilizar a goma bicromatada em superfiacutecies tatildeo diversas quanto tecido madeira ou ateacute na

alvenaria de uma parede questionando assim os limites das impressotildees fotograacuteficas em papel

Para este trabalho escolheu a lixa Lot eacute um personagem biacuteblico ligado agrave narrativa da cidade de

Sodoma Ele recebe um aviso de Deus a cidade seraacute destruiacuteda mas a Lot eacute permitido fugir antes

que isso aconteccedila contanto que saia com sua famiacutelia sem olhar para traacutes O problema eacute que sua

mulher no uacuteltimo instante vira-se para fazer exatamente o que fora proibido A mulher

transforma-se entatildeo numa estaacutetua de sal

Isso era uma coisa muito forte natildeo soacute a cidade ser destruiacuteda mas a mulher ela daacute aquelaolhadinha e fica ali que nem uma estaacutetua () Eacute o seu uacuteltimo instante e aiacute eu escolhifazer a impressatildeo com goma bicromatada pelo mesmo motivo que eu fiz as linhas nopapel manteiga113 eu imprimo na lixa pra dar esse aspecto aacutespero que remete um poucoa areia sal deserto uma coisa aacutespera dura Hoje na verdade apesar de serem muitasmulheres eacute como se fosse uma soacute ou como se fossem todas Eu natildeo queria umarepresentaccedilatildeo fiel de emoccedilatildeo delas () eacute diferente mas eacute igual Natildeo queria a fidelidadefotograacutefica e a lixa mais a goma bicromatada me davam natildeo soacute essa textura mastambeacutem esse erro o que eu queria (BIERRENBACH 2019)

Para tematizar natildeo somente a desgraccedila da mulher que por seu ato transforma-se numa

estaacutetua a fotoacutegrafa convidou diversas mulheres para representar esse momento derradeiro Todas

unidas diferentes entre si associam-se num movimento semelhante de repeticcedilatildeo do gesto que ao

mesmo tempo as eterniza na imagem e permanece sinocircnimo de sua morte Cada fotografia eacute o

uacuteltimo instante de cada mulher mas esse instante se estende em todas as outras mulheres Eacute um

instante expandido que extrapola o tempo congelado ldquoEacute uma coisa um pouco jornaliacutestica do

retrato um pouco cinematograacutefica da faculdade do tempo e da representaccedilatildeo () esse uacuteltimo

segundo absoluto que tem a ver com a fotografiardquo (BIERRENBACH online 2017) Tons

terrosos e a textura da lixa a que se refere a artista tambeacutem ajudam a perturbar a nitidez da

imagem criando um efeito de aridez que remete ao deserto por onde se daacute a fuga de Lot e seus

parentes Recriada agraves centenas a mulher de Lot adquire cores diferentes fisionomias muacuteltiplas

costuradas uma ao lado da outra numa verdadeira montagem de foto(gramas) Aliaacutes vaacuterios

trabalhos de Bierrenbach concentram parte de sua forccedila expressiva na delicada metodologia

artesanal que envolve as tecnologias escolhidas o que tem uma relaccedilatildeo direta com o tempo longo

de elaboraccedilatildeo

113 Refere-se agrave seacuterie The lines of my life onde o suporte da imagem eacute papel manteiga Disponiacutevel emhttpscrisbierrenbachcompessoalfotothe-lines-of-my-life Acesso em 07022020

181

O sentido de movimento eacute levado a outros limites no viacutedeo VaacutecuoMoccedilambique (figura

58)114 Nele as fotografias tomadas em negativo 35mm satildeo utilizadas para falar sobre a passagem

do tempo sobre casas abandonadas A ideia de que o tempo desgasta a arquitetura ateacute o

desaparecimento desta eacute sugerida por meio de vaacuterias manipulaccedilotildees que fazem as casas sumirem

a cada alternacircncia de plano O tempo destroacutei as formas que se transformam em linhas coloridas

As habitaccedilotildees foram encontradas durante uma viagem em que os percursos eram feitos de carro

Pra mim no iniacutecio era como se fossem monumentos do que tinha sido essa grandehistoacuteria de Moccedilambique mas natildeo eacute isso Elas satildeo uma coisa de passagem de tempo Eaiacute eu fiz esse trabalho recriando essa minha suposta viagem e eu peguei cada imagem edescontruiacute ela digitalmente descontruiacutea uma e descontruiacutea outra e juntava essadesconstruccedilatildeo e criei essa ideia de movimento (BIERRENBACH online 2017)

Figura 58 - Trechos do viacutedeo VaacutecuoMoccedilambique (Cris Bierrenbach2009)

Fonte Reproduccedilatildeo Youtube

114 Disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=zb2z7xOk3coampt=109s Acesso em 08042020

182

Segundo Bellour (1997) o tracircnsito entre estaacutetico e moacutevel implica geralmente a mutaccedilatildeo

plaacutestica das configuraccedilotildees da imagem que eacute exatamente o que acontece nesse viacutedeo Formato

intermediaacuterio entre cinema e fotografia o viacutedeo desempenha esse papel de maleabilidade de

experiecircncias de fluidez viabilizado pelas teacutecnicas do computador (questatildeo essencial para a

videoarte) Essas mutaccedilotildees levam a imagem para um lugar aleacutem da analogia da reproduccedilatildeo do

visiacutevel Mas o viacutedeo arrasta a imagem a outros territoacuterios sem deixar de fazer referecircncia agrave

modalidades anteriores pois ldquonatildeo pode ser apreendido sem referecircncia ao que altera ndash o cinema

assim como outras artes (artes plaacutesticas muacutesica) em suma tudo de onde ele proveacutem e para onde

volta sem cessarrdquo (BELLOUR 1997 p14) Aiacute encontramos no viacutedeo uma natureza ruidosa (ao

mesmo tempo relacional e diletante) natildeo soacute neste trabalho mas de outros que potildeem em discussatildeo

a interlocuccedilatildeo entre foto e cinema A situaccedilatildeo intermeacutedia a que se refere o pesquisador francecircs eacute

confirmada pelo fato de que esta obra pode ser exibida tanto em formato viacutedeo quanto em seacuterie

de slides fotograacuteficos (BIERRENBACH 2014) Sua versatilidade em fazer interagir o

movimento e o congelamento permite que as condiccedilotildees de acessibilidade agrave obra sejam tambeacutem

mutaacuteveis

183

5 FALHAS BUGS E DESCONTINUIDADES SISTEcircMICAS

No iniacutecio havia apenas o ruiacutedo E entatildeo o artista passou do gratildeo deceluloacuteide para a distorccedilatildeo magneacutetica e o escaneamento de linhas de tubosde raios catoacutedicos Ele vagou por planos de monitores queimados apagoupixels mortos e agora faz performances baseadas na destruiccedilatildeo de telas deLCD - Manifesto de estudos em glitch Rosa Menkman

51ldquoCOMPUTADORES FAZEM ARTE ARTISTAS FAZEM DINHEIROrdquo

Ao longo da discussatildeo aqui feita sobre o ruiacutedo alguns autores jaacute citados evocam

tambeacutem termos como ldquoerrordquo e ldquofalhardquo que possuem uma vinculaccedilatildeo mais direta ao universo dos

sistemas informaacuteticos e relacionam-se igualmente como movimentos de diferenciaccedilatildeo

deslocamentos O brasileiro Erick Felinto (2013) eacute um pesquisador interessado em como a

questatildeo do ruiacutedo pode ser observada nos campos da comunicaccedilatildeo e das artes mas tambeacutem

assinala a influecircncia da cultura digital no interesse recente pelo tema e reflete

Mas por que motivo entatildeo dever-se-ia valorizar o ruiacutedo Ora o ruiacutedo eacute aquilo queescapa ao controle que perturba a ordem que questiona o sistema Paradoxalmente eleeacute aquilo que obstaculariza o funcionamento do sistema mas que ao mesmo tempotambeacutem o torna possiacutevel De fato a ordem se constitui atraveacutes de sua oposiccedilatildeo agravedesordem O erro o ruiacutedo satildeo responsaacuteveis por aquele aspecto de imprevisibilidade semo qual natildeo poderia existir diferenccedila e portanto a dimensatildeo produtiva do sistema Umsistema eacute produtivo ao estabelecer diferenccedila em relaccedilatildeo ao seu exterior Fosse eleinteiramente fechado sem brechas autocontido suas possibilidades produtivas seriamextremamente limitadas Eacute por essa razatildeo que a intrigante arqueologia dos viacuterus decomputador empreendida por Jussi Parikka natildeo os analisa unicamente como merasperturbaccedilotildees ou ruiacutedos dos sistemas informaacuteticos No complexo mundo tecnocultural emque vivemos os acidentes e viacuterus possuem uma dimensatildeo produtiva Acidentes natildeo satildeocomo numa concepccedilatildeo aristoteacutelica externos em relaccedilatildeo aos dispositivos teacutecnicos queafetam mas sim constitutivos desses mesmos aparatos115 (FELINTO 2013 p58)

Natildeo agrave toa em algum momento de suas anaacutelises praticamente todos esses autores e

autoras aos quais estamos nos reportando ao longo de nosso texto fazem referecircncia agrave teoria da

comunicaccedilatildeo e sua relaccedilatildeo com o tema do ruiacutedo segundo Shannon e Weaver o ruiacutedo atrapalha a

leitura de uma mensagem comprometendo a sua transmissatildeo e a percepccedilatildeo do destinataacuterio

115 Grifos do autor

184

() Eacute infelizmente caracteriacutestico que certas coisas satildeo adicionadas ao sinal coisas natildeointencionadas pela fonte de informaccedilatildeo Essas adiccedilotildees indesejadas podem ser distorccedilotildeessonoras (num telefone por exemplo) ou estaacuteticas (raacutedio) distorccedilotildees nas formas esombras da imagem (televisatildeo) erros na transmissatildeo (teleacutegrafo ou fac-siacutemile) etc Todasessas mudanccedilas no sinal transmitido satildeo ruiacutedos116 (SHANNON amp WEAVER apudHAINGE 2013 p3)

Ora essa teoria dos anos 1940-50 chama atenccedilatildeo para a presenccedila ldquoindesejaacutevelrdquo do ruiacutedo

mas admite que ele natildeo impede a transmissatildeo da mensagem Eacute como se agrave medida que enfatizam

um problema os teoacutericos acabassem reconhecendo a impossibilidade de um sistema funcionar

sem o ruiacutedo No veneno estaria o antiacutedoto117

Aleacutem de reconhecer a impossibilidade de a informaccedilatildeo se ver livre do ruiacutedo a teoria de

Shannon e Weaver entende o ruiacutedo como processos materiais que reorganizam o sistema atraveacutes

de distraccedilotildees e rupturas (BALLARD 2011 p68) questatildeo importante se estamos aqui

interessados nas obras em que o ruiacutedo desafia padrotildees da imagem ligados agrave indexicabilidade agrave

imagem uacutenica e sem interferecircncias

Tais consideraccedilotildees nos conduzem agrave outra caracteriacutestica do ruiacutedo sua natureza relacional

Se natildeo pode ser extirpado do sistema espaccedilo ou contexto que lhe daacute origem o ruiacutedo seraacute

reconhecido ou identificado em comparaccedilatildeo ao que ele natildeo eacute Emerge misturado ao que se opotildee

natildeo podendo existir de forma independente isolada

A artista e professora Xtine Burrough (2011 p81) indica que assumimos o ruiacutedo como

algo contido num espaccedilo de erro mas essa presenccedila eacute ignorada nas praacuteticas cotidianas o que

torna a percepccedilatildeo do ruiacutedo um fator bastante subjetivo Em seguida ela aponta o poder de

desconexatildeo que o ruiacutedo traz mas ressalta que se pensarmos por exemplo na estrutura de uma

narrativa ele constitui uma parte vital desta tanto quanto os diaacutelogos os cenaacuterios e as accedilotildees

Erick Felinto (2013 p56) cita o termo imbroglio utilizado por Bruno Latour (2005) para tratar

dessa questatildeo da inseparabilidade entre ruiacutedo e o sistema que o produz num emprego bastante

116 Traduccedilatildeo livre de ldquo() it is unfortunately characteristic that certain things are added to the signal which werenot intended by the information source These unwanted additions may be distortions of sound (in telephony forexample) or static (in radio) or distortions in shape or shading of picture (television) or errors in transmission(telegraphy or facsimile) etc All these changes in the transmitted signal are called noiserdquo Grifo dos autores117 Ward (2011) lembra que Shannon e Weaver natildeo eram teoacutericos do campo da comunicaccedilatildeo mas pesquisadores quedesenvolveram um modelo de comunicaccedilatildeo a serviccedilo de uma empresa de telefones daiacute sua ecircnfase na eficiecircnciateacutecnica do sinal a preocupaccedilatildeo com os ruiacutedos presentes no canal por onde passa a mensagem etc A abordagemdeles sobre a informaccedilatildeo como elemento mensuraacutevel foi apropriada pelos estudiosos da comunicaccedilatildeo e dashumanidades mas atualmente o modelo jaacute se mostra bastante defasado como referecircncia para as comunicaccedilotildeeshumanas

185

frutiacutefero da ideia de confusatildeo e indefiniccedilatildeo que ronda o assunto Esses argumentos apontam que a

anaacutelise do ruiacutedo (e do erro) sugere um espaccedilo de possibilidades onde se podem identificar

manifestaccedilotildees imprevistas do funcionamento de um sistema equipamento ou teacutecnica mas sem

que necessariamente essa manifestaccedilatildeo surja como um movimento de isolamento uma

singularidade que se aparta do todo Nesse sentido aproxima-se de noccedilotildees como virtualidade

devir desterritorializaccedilatildeo (DELEUZE amp GUATTARI 1997) e do debate em torno das relaccedilotildees

em detrimento das essecircncias (PARENTE apud FELINTO 2013 p57-58)

As observaccedilotildees desses autores sugerem uma interaccedilatildeo positiva entre indiviacuteduos

(materialidade) e tecnologias e estruturas do mundo (tambeacutem materiais) natildeo reservando ao

elemento humano um status diferenciado ou seja natildeo criando uma hierarquia entre

componentes Por entender que a expressividade surge de uma atuaccedilatildeo conjunta de entidades

diversas com tendecircncia mais proacutexima da simbiose que das particularidades das separaccedilotildees

Hainge (2013) aproxima-se tambeacutem da filosofia flusseriana interessada no modo como os

indiviacuteduos confrontam-se com os aparelhos118 A anaacutelise sobre o ruiacutedo pede uma visatildeo sistecircmica

e relacional da expressividade (palavra que natildeo se resume ao campo da arte e seus artefatos)

Vejamos essa afirmaccedilatildeo de seu estudo que demarca bem o territoacuterio onde se situa o ruiacutedo

() O que eu quero sugerir aqui entatildeo eacute que natildeo eacute preciso haver uma divisatildeo entre asoperaccedilotildees do ruiacutedo como um conceito filosoacutefico e suas manifestaccedilotildees na expressatildeo quenatildeo eacute necessaacuterio separar o ontoloacutegico do fenomenoloacutegico Eu quero sugerir que o ruiacutedo eacutemais do que apenas um conceito uma figura de pura potencialidade que eacute produzido naatualizaccedilatildeo da expressatildeo embora nunca abandone o exterior a partir do qual a expressatildeoeacute delineada e assim lembramo-nos dela Grosseiramente o ruiacutedo natildeo eacute apenas daordem de um futuro (agrave-venir) mas onipresente O ruiacutedo atravessa tanto o real como ovirtual os domiacutenios do conceito e da mateacuteria a multiplicidade e a singularidade eacute osubproduto do evento que ocorre nos devires situados atraveacutes desses polos a proacutepriapreacute-condiccedilatildeo para a expressividade que nasce apenas como uma consequecircncia natildeointencional ainda que inexoraacutevel da proacutepria expressatildeo119 (HAINGE 2013 p22-23)

118 Felinto (2013) tambeacutem se refere a Flusser e Nunes (2011) por sua vez utiliza a palavra ldquojogordquo na suaargumentaccedilatildeo (embora natildeo como referecircncia direta ao filoacutesofo tcheco) o que mostra como o entendimento dessesautores a respeito do tema do ruiacutedo converge numa direccedilatildeo comum119 Traduccedilatildeo livre de ldquo(hellip) what I want to suggest here then is that there need not be a split between the operationsof noise as a philosophical concept and its manifestations in expression that it is not necessary to separate out theontological from the phonomenological I want to suggest that noise is more than just a concept a figure of purepotentiality that it is produced in the actualisation of expression whilst never leaving behind the outside from whichexpression is drawn and thus reminding us of it To put crudely noise is not only of the future (agrave venir) butomnipresent Noise straddles both the actual and the virtual the realms of concept and matter multiplicity andsingularity it is the by-product of the event taking place in the becomings situated across these poles the veryprecondition for expressivity that is born only as an unintended yet inexorable consequence of expression itselfrdquo

186

Levando essa premissa agraves teorizaccedilotildees sobre a imagem contemporacircnea uma ontologia

relacional segue uma linha de raciociacutenio bastante conectada agraves teses sobre a funccedilatildeo

ldquoapresentativardquo da imagem (FATORELLI 2017) e admite que as imagens se apartem de uma

correspondecircncia figurativa que englobem regimes temporais muacuteltiplos que articulem diferentes

teacutecnicas recursos expressivos e metodologias de criaccedilatildeo e inclusive prescindam de uma

racionalidade posto que o ruiacutedo natildeo possui um sentido em si (HAINGE 2013 p95) Ele estaacute

mais inclinado agrave expressatildeo que ao significado digamos assim Eacute o fato de ldquoser multimiacutedia estar

em diferentes formas e meios incorporado em diferentes sentidos sensaccedilotildees respostas ()

sendo um permanente entre-lugar ()rdquo (HAINGE 2013 p13) Essa condiccedilatildeo de maior abertura

agrave expressividade num exerciacutecio de desafia as rotulagens de significado das obras eacute sentida como

chave discursiva nos trabalhos citados aqui As experiecircncias realizadas podem dissolver as

formas as temporalidades e os espaccedilos colocando a imagem nos limites do visiacutevel o que indica

uma disposiccedilatildeo de levar o debate sobre a sua potecircncia a um niacutevel mais conceitual por vezes

sensorial ou ateacute psiacutequico e sem duacutevida fazer-nos repensar nossa maneira de apreender o mundo

atraveacutes das tecnologias Aliaacutes melhor dizendo a proposta comum entre esses trabalhos eacute sugerir-

nos a possibilidade de ver outras realidades outros universos imageacuteticos natildeo necessariamente

verossiacutemeis Mundos invertidos desfocados interiores Paisagens multiplicadas distorcidas

efecircmeras Formas e identidades descentradas diluiacutedas multiformes As tecnologias estando

constantemente sujeitas agraves reprogramaccedilotildees

Podemos dizer que a inclinaccedilatildeo agrave descoberta de visualidades singulares conduz a

investigaccedilotildees que atualizam virtualidades jaacute presentes nos meios pois

Haacute regiotildees na imaginaccedilatildeo do aparelho que satildeo relativamente bem exploradas Em taisregiotildees eacute sempre possiacutevel fazer novas fotografias poreacutem embora novas satildeoredundantes Outras regiotildees satildeo quase inexploradas O fotoacutegrafo nelas navega regiotildeesnunca dantes navegadas para produzir imagens jamais vistas Imagens ldquoinformativasrdquoO fotoacutegrafo caccedila a fim de descobrir visotildees ateacute entatildeo jamais percebidas E quer descobri-las no interior do aparelho (FLUSSER 2011 p47)

Um terceiro ponto relevante eacute que os esforccedilos de conceituaccedilatildeo do termo ldquoruiacutedordquo

apresentam uma instabilidade Sobretudo quando se tenta singularizar o ruiacutedo as interpretaccedilotildees

divergem bastante a depender de aspectos temporais geograacuteficos culturais acarretando leituras

por vezes impregnadas de subjetividade Quer dizer teoricamente a questatildeo do ruiacutedo demonstra

187

uma natureza mutaacutevel sendo redefinida de tempos em tempos apresentando portanto certa

flutuaccedilatildeo conceitual diacrocircnica

Assim Hainge (2013) prefere elencar os pontos-chave que emergem de vaacuterias

problematizaccedilotildees acerca do ruiacutedo a fim de perceber de maneira mais geral as questotildees com as

quais o tema costuma ser identificado Perda de estabilidade e equiliacutebrio descontrole falha

feiura entropia ruptura de fronteiras confusatildeo dos sentidos desordem natildeo hierarquizaccedilatildeo de

elementos ou corpos entre outros termos mas tudo isso interpretado como movimentos que

ocorrem por forccedila de agenciamentos internos Veja o que nos diz o autor a respeito de filmes de

terror (especificamente o longa Poltergeist120 analisado em seu livro) nos quais geralmente

alguma perturbaccedilatildeo encontra-se na origem da narrativa

() O que eacute particularmente interessante a respeito de Poltergeist eacute que a batalha entrebem e mal ou entre conhecido e desconhecido (que para o terror e na vida muitas vezesequivale agrave mesma coisa) o desconhecido (o que figura como ruiacutedo) eacute algo que estaacutecontido subtendido no conhecido no comum O outro no qual o horror reside natildeo eacute umaabsoluta alteridade um monstro de um lugar distante um alieniacutegena ou fugitivo loucoComo mostra a sequecircncia de abertura do filme o outro ou esse desconhecido queguarda o terror estaacute sempre presente mas se revela somente quando olhamos perto obastante121 (HAINGE 2013 p90)

Isso significa que entender o ruiacutedo eacute tambeacutem reconhecer que esse termo envolve um

problema de percepccedilatildeo a depender de para onde se foca nossa atenccedilatildeo o ruiacutedo em quaisquer

miacutedias corre o risco de passar desapercebido Se as tecnologias da era da informaccedilatildeo tecircm a

capacidade de corromper as mensagens que deviam ser transmitidas de maneira confiaacutevel haacute um

encobrimento do agente desagregador sob a aparecircncia de miacutedias transparentes e discretas

(HAINGE 2013 p91) Nesta tese essa premissa conduz agrave argumentaccedilatildeo a respeito de imagens

limpas (MANOVICH 1995) que remetem na verdade a certas modalidades esteacuteticas e natildeo agraves

diferenccedilas apontadas em alguns debates sobre a digitalizaccedilatildeo no campo da imagem que segrega

120 Poltergeist (Tobe Hooper 1982) eacute uma das referecircncias citadas por Hainge em seu livro mas a ideia do terrorcomo algo que surge do cotidiano como um problema latente embora natildeo notado (o ruiacutedo como forccediladesestabilizadora oculta) eacute ainda utilizada com frequecircncia no gecircnero a exemplo de produccedilotildees recentes comoSuspiria ndash A danccedila do medo (remake de Luca Guadagnino de 2018 para o original de Dario Argento de 1977) ouCorra e Noacutes (ambos de Jordan Peele lanccedilados respectivamente em 2017 e 2019)

121 Traduccedilatildeo livre de ldquo() what is particularly interesting about Poltergeist is that in this struggle between goodand evil or the same thing ndash the unknown (figured as noise) is seen always to subtend the known The Other in whomhorror resides this is to say is not an absolute alterity a monster from a faraway place an alien or an escapedmadman rather as the filmrsquos opening sequence analysed above shows us the Other or the unknown from whichhorror issues is always present but revealed only when we look closely enoughrdquo

188

as miacutedias analoacutegicas e digitais Se pensarmos que ruiacutedos estatildeo sempre presentes (o que falha eacute

nossa capacidade de percebecirc-los) vamos compreender que todas as miacutedias os possuem

Mas haacute outros fatores que acarretam uma ldquocegueirardquo em relaccedilatildeo ao tema do ruiacutedo

quando consideramos os artefatos da cultura digital Nunes (Ibidem) aponta certa ideologia que

na busca por uma maacutexima performance da tecnologia encara o erro como elemento a ser contido

Mas devido agrave impossibilidade desse controle absoluto ldquoo erro assinala vaacutelvulas de escape dos

confins previsiacuteveis do controle informaacutetico uma abertura uma virtualidade uma poiesisrdquo

(NUNES 2011 p3) Segundo Peter Krapp (2011) se existe caos acidente e acaso em todos os

sistemas dispositivos e rotinas de operaccedilatildeo estes precisam ser rigidamente controlados sob pena

de denunciarem seus defeitos

Com mecanismos especiacuteficos de correccedilatildeo e reduccedilatildeo das falhas (como os antiviacuterus) ou

de aumento do desempenho a cibercultura daacute a falsa impressatildeo de uma eficiecircncia perfeita

Hainge reflete sobre essa percepccedilatildeo errocircnea no que tange agraves miacutedias musicais

Em meados de 1980 poderiacuteamos ser tentados a pensar que com o advento da tecnologiadigital e a introduccedilatildeo do compact disc essa retoacuterica de perfeiccedilatildeo e limpeza rapidamentese tornaria supeacuterflua porque esse formato prometia um niacutevel de fidelidade aparentementeinsuperaacutevel Poreacutem esse natildeo foi o caso122 (HAINGE 2007 p28)

Essa reflexatildeo traz agrave tona a contenda de negaccedilatildeo do erro e do ruiacutedo podendo ser

estendida a quaisquer artefatos digitais Quer dizer a retoacuterica (de fidelidade perfeiccedilatildeo

eficiecircncia) resiste sendo reivindicada sempre que viaacutevel e podendo ser ampliada ao campo da

imagem como jaacute apontamos em relaccedilatildeo ao cinema e os debates sobre formatos de exibiccedilatildeo

relanccedilamentos de tiacutetulos em formatos mais ldquoavanccediladosrdquo etc e com ela ressurgem tambeacutem as

estrateacutegias de supressatildeo do ruiacutedo Krapp (2011 p125) chega a considerar que ldquoa era do

apagamento do ruiacutedo instaura-se de fato com o advento das tecnologias digitaisrdquo embora

saibamos que noccedilotildees como perfeiccedilatildeo transparecircncia fidelidade entre outros termos tambeacutem

assombraram o contexto de emergecircncia de tecnologias anteriores

Hainge (2013 p120-121) por sua vez conclui que na cultura digital os produtos natildeo

apresentam um coeficiente de ruiacutedo menor na verdade para ele na era digital pode haver ateacute

122 Traduccedilatildeo livre de ldquoIn the mid-1980s one may well have been tempted to think that with the advent of digitaltechnology and the introduction of the compact disc such rhetoric of perfectibility and cleanliness would quicklybecome superfluous because this new format promised an apparently unsurpassable level of fidelity Such howeverhas patently not been the caserdquo

189

mais ruiacutedo O que ocorre eacute uma mudanccedila na natureza dos ruiacutedos daquilo que no ambiente

informaacutetico manifesta-se como tal O que nos interessa aqui eacute identificar no contexto da arte as

estrateacutegias que procuram exatamente uma abordagem criacutetica dessa retoacuterica de controle e

precisatildeo Seja pelo vieacutes da sabotagem do hackeamento ou do desvio de propoacutesitos e

funcionamento dos softwares e formatos das miacutedias o nosso interesse eacute a produccedilatildeo de imagens

surgidas exatamente do tensionamento dos mecanismos que existem para mitigar o erro e assim

o ruiacutedo

A produccedilatildeo da diferenccedila nascendo de um sistema repleto de mecanismos que trabalham

para eliminar esse movimento desviante assinala uma contradiccedilatildeo que pode ser estendida ao

pensamento sobre quaisquer tecnologias relacionadas agrave ideia de reproduccedilatildeo Mesmo que pareccedilam

fechadas transparentes todas as miacutedias de representaccedilatildeo quando analisadas em detalhe abrem-se

a um paradoxo interno que significa entender a falha como parte necessaacuteria de sua ontologia

(HAINGE 2007 p26-27)

As questotildees levantadas por esses autores que se ocuparam mais recentemente do tema

do ruiacutedo eou erro datildeo conta de alguns aspectos cruciais tomados como premissas da arte

contemporacircnea que retira dos sistemas informaacuteticos o substrato de seus trabalhos Algunsmas

dessesas artistas estatildeo reunidos sob a rubrica da glitch art e discutem o potencial da falha e do

ruiacutedo entendendo que estes satildeo inerentes ao proacuteprio funcionamento dos dispositivos Sua

abordagem choca-se diretamente com ideias de que as tecnologias do computador satildeo tatildeo

eficientes que supostamente estariam livres de apresentar defeitos paradas bugs

A proposta da glitch art natildeo surge apenas de uma atitude de recusa ao funcionamento

convencional de equipamentos e artefatos que podem ser apropriados para o campo da arte Natildeo

parece ter afinidade com uma atitude iconoclasta em relaccedilatildeo agraves tecnologias Ela tem o objetivo

poliacutetico de estimular uma reflexatildeo sobre o proacuteprio discurso evolucionista voltado agraves tecnologias

utilizando a falha desses dispositivos para criar novas formas artiacutesticas Tanto que pode revisitar

materiais e equipamentos considerados obsoletos ou ateacute descartados Enquanto promove a

exploraccedilatildeo de situaccedilotildees limiacutetrofes do funcionamento das miacutedias a glitch art acaba por ser

tambeacutem uma vertente na qual o ruiacutedo figura como modalidade das imagens O glitch choca-se

190

com ldquoa aparente ideia de uma tecnologia digital infaliacutevel atraveacutes de um ato esteacutetico positivo que

enxerga beleza onde parece soacute existir horrorrdquo123 (HAINGE 2007 p32)

As obras que se enquadram na abordagem da glitch art podem explorar efeitos gerados

pelo mau funcionamento dos computadores e perifeacutericos desenvolver-se mediante o uso

corrompido (intencional) de softwares arquivos e maacutequinas ou seja seu emprego natildeo-

padronizado fora das normas industriais originalmente prescritas Abraatildeo Filho (2018) que

desenvolveu amplo estudo sobre a glitch art traccedila um paralelo entre as proposiccedilotildees desses

artistas e a ideia de ldquoprofanaccedilatildeo do dispositivordquo de Giorgio Agamben (2007) ressaltando uma

apropriaccedilatildeo poliacutetica dos meios expressivos Do ponto de vista da recusa agraves normatizaccedilotildees

inscritas na tecnologia este conceito estaacute proacuteximo das ideias de Flusser (2011) que evocamos ao

longo de nosso texto sobretudo nas reflexotildees a respeito da postura do ldquojogadorrdquo frente ao

ldquoprogramardquo do ldquoaparelhordquo Ou seja em ambos os filoacutesofos identificamos o estiacutemulo agraves

apropriaccedilotildees natildeo convencionais dos dispositivos o que no campo artiacutestico eacute operado sob

diferentes metodologias questatildeo que nos interessa sobremaneira

A holandesa Rosa Menkman artista curadora e teoacuterica escreveu um manifesto que

condensa algumas das premissas do glitch entre elas o questionamento de modelos e praacuteticas a

impossibilidade de erradicaccedilatildeo do ruiacutedo (sendo ele base da criaccedilatildeo artiacutestica) a criacutetica da

obsolescecircncia programada a instabilidade e a renovaccedilatildeo como princiacutepios da arte a criacutetica da

perfeiccedilatildeo e do automatismo no uso das miacutedias Seus textos e obras atestam uma constante

investigaccedilatildeo das possibilidades esteacuteticas do erro e logicamente muitos trechos de seu manifesto

apresentam grande afinidade com as reflexotildees sobre o ruiacutedo

De qualquer forma que definamos o ruiacutedo qualquer definiccedilatildeo negativa teraacute umaconsequecircncia positiva pois ajuda a redefinir o seu oposto (o mundo do sentido a normaregulaccedilatildeo o ldquobemrdquo a beleza entre outros) Logo o ruiacutedo existe como paradoxoenquanto ele eacute frequentemente definido de maneira negativa tambeacutem apresenta umaqualidade gerativa e positiva () Os vazios gerados por uma ruptura natildeo existem apenascomo falta de sentido eles apresentam forccedilas que empurram o espectador para fora dodiscurso tradicional sobre a tecnologia consequentemente expandindo-o Atraveacutes dessesvazios artistas e espectadores podem entender a ideologia por traacutes do coacutedigo e da vozcomo uma criacutetica agrave miacutedia digital Esse entendimento pode servir de fonte a novos

123 Traduccedilatildeo livre de ldquothe apparently infallible sheen of digital technology through a positivistic aesthetic act thatfinds beauty in apparent horrorrdquo

191

padrotildees antipadrotildees ou novas possibilidades que estatildeo situadas em uma fronteira oucamada especiacutefica da linguagem (MENKMAN 2010 p16-17)124

Menkman atribui ao ruiacutedo um papel transgressor como elemento integrante das

tecnologias atraveacutes de sua exploraccedilatildeo confrontamos certos limites envolvidos no uso que

fazemos das miacutedias Quer dizer faz parte da abordagem artiacutestica do glitch a desconstruccedilatildeo da

ideia de fechamento de inacessibilidade das tecnologias (tanto que alguns artistas apresentam

suas obras junto a breves explicaccedilotildees sobre a teacutecnica utilizada numa atitude quase pedagoacutegica

tambeacutem ligada ao espiacuterito colaborativo da proacutepria cultura digital) Eacute como se esses artistas

tivessem como premissa a vontade de reafirmar que a ldquocaixa pretardquo (FLUSSER 2011) da

cibertecnologia pode (e deve) ter seus coacutedigos quebrados Eacute patente ainda em seu discurso a

reivindicaccedilatildeo de um espaccedilo de valorizaccedilatildeo das formas visuais que emergem de uma ecircnfase no

processo de feitura das obras (mais do que no conteuacutedo) Assim os processos da glitch art criam

novas esteacuteticas ampliando o repertoacuterio das formas e dos usos

Em Vernacular file of formats (figuras 59 e 60) Menkman submete arquivos a

diferentes formatos de compressatildeo de dados (JPEG TIFF PNG) e depois insere em cada um

deles o mesmo erro Como a taxa de compressatildeo de dados em cada imagem eacute diferente os efeitos

que o erro provoca tambeacutem o satildeo Desse modo ela permite que ldquoa linguagem de compressatildeo de

outra forma invisiacutevel se apresente na superfiacutecie da imagemrdquo (MENKMAN online 2010)

colocando em pauta questionamentos sobre a qualidade da imagem a suposta ldquopurezardquo do

arquivo RAW o gesto de manipulaccedilatildeo do artista a sabotagem dos padrotildees de compressatildeo e suas

finalidades a maleabilidade da imagem como elemento de uma cultura produzida distribuiacuteda e

consumida via computador e na internet O processo eacute repetido ainda com formatos de imagem

moacutevel (AVI MOV WMV DV) e modifica de tal forma as cores os contornos enfim as

caracteriacutesticas visuais do original que o processo eacute que passa a funcionar como tema da obra

124 O texto original escrito por Menkman data de 2010 A versatildeo citada aqui eacute uma traduccedilatildeo para o portuguecircspublicada em 2017 Disponiacutevel em httpsissuucomrosamenkmandocsmanifesto_de_estudos_em_glitch__rosAcesso em 16022020

192

Figura 59 - Vernacular of file formats - Photoshop RAW (Rosa Menkman2009-2010)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Figura 60 - Vernacular of file formats - WMV (Rosa Menkman 2009-2010)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Quando esse processo entra em funcionamento ele nos deixa antever os ruiacutedos de cada

miacutedia e formato em particular Essa abordagem estaacute intimamente ligada a um modo de encarar a

193

imagem pelo vieacutes do artifiacutecio e da manipulaccedilatildeo ou seja vecirc-la como campo de exploraccedilatildeo nas

suas dimensotildees teacutecnica e conceitual (em detrimento de uma preocupaccedilatildeo em referir uma

realidade dada a priori)

O brasileiro Sabato Visconti que utiliza a alcunha de glitch photographer tambeacutem

modifica arquivos e softwares segundo procedimentos que desestruturam intensamente as formas

Na cobertura que fez da Hartford Fashion Week (figuras 61 e 61a) alterou as fotografias usando

a teacutecnica de databending (quando um arquivo eacute manipulado num software diferente daquele

recomendado para o seu formato) Ele explica

() Essa seacuterie foi feita usando a nova versatildeo do Paint o Paint 3D que deixa transformarimagens em objetos 3D eu separei a imagem em camadas diferentes e exportei noformato fbx Aiacute eu fiz um databend no arquivo fbx e voltei para o Paint 3d paraexportar como imagem (VISCONTI 2019)125

Figura 61 - Hartford Fashion Week 2016 (Sabato Visconti 2016)

Fonte Reproduccedilatildeo site artista

Figura 61a - Hartford Fashion Week 2016 (Sabato Visconti 2016)

125 Entrevista concedida agrave autora em 2019

194

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

O formato fbx eacute um padratildeo para dados em 3D e foi apropriado para gerar fotografias

imagens bidimensionais Estas comeccedilam entatildeo a apresentar aberraccedilotildees exibindo linhas cores e

traccedilos estranhos aos modos de apresentaccedilatildeo correspondentes aos formatos de imagem

padronizados (JPEG TIFF etc) O niacutevel de mimesis tambeacutem decai sensivelmente Conforme a

interpretaccedilatildeo desviada do algoritmo a imagem sofre uma mutaccedilatildeo dissolvendo-se em linhas e

com intervalos espaccedilos negros A releitura do arquivo num software trocado apresenta uma seacuterie

de erros que se traduzem visualmente em formas imprevistas Qualquer glamour ou finalidade

comercial relativos ao contexto de um desfile de moda perdem-se completamente sob o

funcionamento de uma inteligecircncia maquiacutenica desprogramada corrompida pelo artista

Por sinal Sabato Visconti faz um tracircnsito bastante interessante entre meio artiacutestico e

comercial com sua fotografia jaacute que seus projetos estruturam-se paralelamente agrave atividade como

195

freelancer (tendo publicado em veiacuteculos como as revistas Time e Vogue e o jornal The New York

Times) Atraveacutes de suas obras encontra uma maneira de repensar natildeo soacute os ditames tecnoloacutegicos

mas a capacidade de sabotagem de padrotildees de um ponto de vista geopoliacutetico perifeacuterico Tendo

saiacutedo de Satildeo Paulo para os Estados Unidos ainda crianccedila e deparando-se com situaccedilotildees adversas

pela condiccedilatildeo de imigrante compreende seu trabalho tambeacutem como espaccedilo que reverbera essa

experiecircncia pessoal em afinidade com a conotaccedilatildeo poliacutetica da glitch art ldquo() Eu passei mais de

16 anos nos EUA sem documento de imigraccedilatildeo acho que essa experiecircncia tambeacutem me afetou

Vivendo em sistemas desenhados para falhar O glitch eacute um processo e eacutetica bem ldquopunkrdquo

comparada agrave produccedilatildeo comercialrdquo (VISCONTI 2019)

Em seu site na internet delimita algumas das preocupaccedilotildees que norteiam seu trabalho

Num breve conjunto de apontamentos intitulado Glitch Photography as a Practice in the Age of

Postphotography (2017) indica por exemplo que o aparato fotograacutefico ultrapassa a dimensatildeo

instrumental da cacircmera no contexto societaacuterio telemaacutetico pois engloba o desenvolvimento de

sistemas de vigilacircncia que capturam informaccedilotildees pessoais visuais e espaciais e seu

funcionamento independente da participaccedilatildeo humana o barateamento de cacircmeras e celulares

toda uma ecologia da imagem formatada atraveacutes das redes sociais e a internet como plataforma

de acesso e modelo de fruiccedilatildeo interativo dos mais diversos conteuacutedos imageacuteticos e ainda a

cultura de hibridizaccedilatildeo caracteriacutestica de muitos desses conteuacutedos Essas satildeo questotildees jaacute

apontadas por teoacutericos da fotografia (FONTCUBERTA 2016 ZYLINSKA 2017) dedicados a

pensar a imagem em suas articulaccedilotildees com o desenvolvimento mais recente da tecnologia e a

cultura da internet Poreacutem atraveacutes do texto de Visconti eacute interessante atentar para o sentido

poliacutetico que assume o artista partidaacuterio do glitch quando interveacutem no funcionamento dessa

estrutura que envolve indiviacuteduos o capitalismo informaacutetico mecanismos de controle baseados na

tecnologia e a economia das imagens Ou seja como a arte nos seus exerciacutecios poeacuteticos eacute capaz

de chamar atenccedilatildeo para aspectos negativos do proacuteprio sistema midiaacutetico que lhe daacute sustentaccedilatildeo

Aproveitando entatildeo as suas falhas as suas brechas para colocar esse sistema contra ele mesmo

A glitch photography considera este aparelho expansivo com todas as suas facetas natildeomencionadas e transversais bem como a forma como encarnamos o aparelho ereificamos as suas exigecircncias como locais de manipulaccedilatildeo perturbaccedilatildeo e perversatildeo ouseja como locais de falhas A glitch photography eacute por um lado a praacutetica que interpolao glitch na criaccedilatildeo da fotografia e por outro a praacutetica de capturar as manifestaccedilotildees

196

visuais de uma falha dentro do aparelho muito parecida com a forma como se capturaum momento espontacircneo ou um gesto fugaz126 (VISCONTI online 2017)

Figura 62 - wen your surveillance drone glitches out during a protest da seacuterie Wen yr surveillance drone (SabatoVisconti)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Essa estrateacutegia encontramos na seacuterie Wen yr surveillance drone (figuras 62 e 63)

construiacuteda com imagens de drones do FBI (Federal Bureau of Investigation) O trabalho eacute um

comentaacuterio sobre como sistemas de vigilacircncia interpretam a informaccedilatildeo visual recebida e as

possibilidades de reverter tais leituras atraveacutes da captura desse material pela arte Sabato Visconti

transformou as imagens originais em gifs formato em que ldquoo olhar panoacuteptico do drone eacute

capturado como de um espectador que testemunha o trecho de uma performancerdquo (VISCONTI

online) Esse trabalho debate a proacutepria tecnologia digital num sentido poliacutetico associado agrave

origem de sistemas computadorizados que foram desenvolvidos para fins militares Como

lembra Krapp (2011 pxvii) ldquonatildeo haacute tecnologia digital que natildeo levante questotildees sobre sigilo em

126 Traduccedilatildeo livre de ldquoGlitch photography considers this expansive apparatus with all its unmentioned facets andtransversals as well as the way we embody the apparatus and reify its demands as sites for manipulationdisruption and perversion in other words as sites for glitching Glitch photography is a beast with two backs Onthe one hand it is a practice that interpolates glitch into the creation of photography On the other hand it can alsobe the practice of capturing the visual manifestations of a glitch within the apparatus much like the way onecaptures a candid moment or a fleeting gesturerdquo

197

relaccedilatildeo a exigecircncias muitas vezes irreconciliaacuteveis de privacidade seguranccedila confianccedila liberdade

de expressatildeo e direitos humanosrdquo127

Quando o movimento contiacutenuo da imagem original eacute alterado para o curto movimento

de repeticcedilatildeo do gif como se sofresse um bloqueio notamos a falha do sistema de vigilacircncia e ao

mesmo tempo seu potencial de controle eacute esvaziado tornando-se incapaz de revelar qualquer ato

ou comportamento (supostamente) perigosos ou suspeitos

Figura 63 - b_01 da seacuterie Wen yr surveillance (Sabato Visconti)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista128

O gif como elemento da linguagem da internet surge a partir da apropriaccedilatildeo e estaacute

associado a uma expressatildeo irocircnica que de fato perverte as intenccedilotildees de controle do drone A

seacuterie completa tem 9 gifs desenvolvidos a partir de poucas imagens o que amplia o efeito de

repeticcedilatildeo e descontinuidade das accedilotildees registradas Em uma das cenas vemos pessoas reunidas em

ciacuterculo assistindo a um grupo que faz uma apresentaccedilatildeo de patins Em outra uma multidatildeo que

127 Traduccedilatildeo livre derdquothere is no digital technology that does not raise questions about secrecy in relation to oftenirreconcilable demands of privacy security trust freedom of speech and human rightsrdquo128 Seacuterie completa disponiacutevel em httpwwwsabatoboxcomwen-yr-surveillance-drone Acesso em 19022020

198

se concentra no cruzamento de duas ruas (originalmente essas imagens satildeo registros de protestos

ocorridos em Baltimore-Estados Unidos apoacutes a prisatildeo e morte do jovem negro Freddie Gray129)

O uso de dispositivos autocircnomos para capturar imagens sugere aleacutem de uma visatildeo total

(um olhar mais abrangente e eficiente que o humano) uma hierarquia desse olhar sob aquilo que

observa (ZYLINSKA 2017a p13) O fotoacutegrafo interfere nessa hierarquia ao capturar as imagens

e alteraacute-las transformando-as em ldquocenas de uma performancerdquo Com isso provoca o colapso da

funccedilatildeo de vigilacircncia natildeo apenas pela conversatildeo para o formato gif mas porque a legibilidade das

cenas eacute comprometida pelas falhas Corrompida a imagem impede a identificaccedilatildeo precisa dos

indiviacuteduos exibindo apenas erros O drone vira uma maacutequina com defeito produzindo a mesma

cena tecnologia imprestaacutevel para vigiar e punir

Esses breves exemplos indicam que os propoacutesitos da glitch art e as consideraccedilotildees sobre

o papel do ruiacutedo apresentam afinidade quando temos como horizonte o cenaacuterio da imagem

contemporacircnea Baseada numa atitude realmente experimental estilo do it yourself (DIY)

direcionada aos dispositivos a glitch art explora de maneira criativa as falhas e os erros para

criar esteacuteticas proacuteprias Eacute tambeacutem uma vertente artiacutestica que opera na iminecircncia de reciclagens

recombinaccedilotildees dos novos arranjos poeacuteticos tendo em vista que utiliza quaisquer conteuacutedos

manipulaacuteveis via software Encarando mais livremente inclusive aquilo que se consideram as

ldquomateacuterias-primasrdquo de suas obras os artistas do glitch utilizam natildeo apenas formatos e recursos do

computador incorporam elementos do design graacutefico da linguagem de programaccedilatildeo imagens de

sistemas autocircnomos (circuitos fechados drones sistemas de vigilacircncia) cenas de filmes

caracteres130 que uma vez disponibilizados no computador ou online podem ser livremente

utilizados Ou seja no que se refere ao campo da imagem satildeo obras que colocam em praacutetica o

conceito de hibridizaccedilatildeo (MANOVICH 2013) e valem-se da fluidez e da descontinuidade da

proacutepria cultura digital para fazer interagir a fotografia o cinema o viacutedeo atraveacutes de formatos

como o gif e os memes por exemplo

129 Freddie Gray foi detido em 2015 acusado pela poliacutecia de portar ilegalmente uma faca Conduzido algemado esem cinto de seguranccedila na viatura entrou em coma e faleceu na semana seguinte Os seis policiais envolvidos noepisoacutedio de sua prisatildeo foram absolvidos na justiccedila que considerou impossiacutevel relacionar a morte do jovem agrave condutados policiais alegando que as evidecircncias para uma condenaccedilatildeo eram insuficientes130 Nesse sentido ver o interessante trabalho desenvolvido pela artista Biarritzzz (httpswwwbiarritzzzcom)Acesso em 08042020

199

Partindo de uma atitude radical esses trabalhos vinculam-se a uma seacuterie de modalidades

visuais que poderiam ateacute ser negligenciadas enquanto conteuacutedo artiacutestico por sua inclinaccedilatildeo ao

feio ao disforme a uma certa precariedade da imagem Na verdade o glitch carrega em sua

proacutepria gecircnese esse sentido de transgressatildeo da forma de modo que como tendecircncia esteacutetica

ligada ao universo das imagens digitais estaacute muito proacuteximo da noccedilatildeo de ruiacutedo interessando-nos

como lugar de observaccedilatildeo de sua compreensatildeo poeacutetica no uso das miacutedias do computador As

obras da glitch art satildeo exerciacutecios que levam a uma ldquoruiacutena do sentidordquo o que natildeo significa uma

atitude iconoclasta que visa a destruiccedilatildeo dos sistemas digitais nem de suas formas

caracteriacutesticas mas a partir da ruiacutena investir na revelaccedilatildeo de novas formas e sentidos (ABRAAtildeO

FILHO 2018 p22)

Para os artistas da glitch art estaacute subentendido que todas as tecnologias da era da

informaccedilatildeo carregam em si mesmas o potencial de autosabotagem de corromper as mensagens

que deveriam transmitir com seguranccedila

() Devemos ir aleacutem e sugerir que imagens ou sons gerados por computador exibem deacordo com a definiccedilatildeo aqui proposta um coeficinete extremamente elevado de ruiacutedona medida em que natildeo buscam num objeto externo as condiccedilotildees para formar uma tramaexpressiva eles produzem sua expressatildeo puramente de dentro de suas proacutepriastecnologias e especificidades materiais (HAINGE 2013 p122)

Dessa maneira soacute podemos esperar que nas estrateacutegias de tensionamento da linguagem

informaacutetica dos formatos de arquivos e dos programas de computador essas obras apresentem

configuraccedilotildees esteacuteticas estranhas pois que satildeo geradas de elementos provindos de uma

inteligecircncia maquiacutenica com seus proacuteprios coacutedigos e formas Tal compreensatildeo aproxima nosso

debate da questatildeo da materialidade pensada no acircmbito do computador As contribuiccedilotildees de

Manovich (2013) e Zylinska (2017a) satildeo auxiliares para traccedilarmos um diaacutelogo entre a exploraccedilatildeo

da materialidade na cultura da imagem digital (como expressatildeo do ruiacutedo) natildeo sendo essa questatildeo

uma qualidade exclusiva das miacutedias analoacutegicas (imagens-objeto) Segundo a pesquisadora

polonesa (2017a p172) identificar a materialidade com o analoacutegico e a imaterialidade com o

digital eacute uma compreensatildeo que ldquoignora a presenccedila fiacutesica das telas dos componentes da cacircmera

ou do celular que satildeo parte do sistema de produccedilatildeo da imagem bem como os cabos de rede

atraveacutes dos quais ela eacute transferidardquo131

131 Traduccedilatildeo livre de ldquoThis (mis)percepction is only possible if one ignores the materiality of the screen on whichone views digital images the materials that make up the camera or cell phone which are part of its system ofproduction the network cables that participate in its transfer etcrdquo

200

Por outro lado alguns dos artistas aqui elencados sublinham a materialidade como um

dos pontos importantes da escolha em trabalhar com tecnologias fotoquiacutemicas Cris Bierrenbach

(2018) por exemplo ressalta que quando trabalha com tecnologias digitais ou analoacutegicas haacute

sempre um niacutevel de imprevisto envolvido no procedimento mas enquanto no computador as

accedilotildees podem ser revertidas nos processos artesanais da imagem eacute necessaacuterio destruir coisas para

atingir o resultado final que eacute um resultado original ldquoPra vocecirc repetir aquilo exatamente eacute muito

difiacutecil pra natildeo dizer praticamente impossiacutevel Entatildeo tem essa particularidade dessa unicidade

que cada uma tem que eu acho bem encantador Cada uma (imagem) eacute uma mesmordquo

(BIERRENBACH 2018) Luiz Alberto Guimaratildees defende o uso de cacircmeras artesanais porque

estas lhe permitem criar imagens sofisticadas e complexas que conservam uma ldquoaurardquo ndash

reportando-se a Walter Benjamin (1935-36) ndash por meio de instrumentos uacutenicos (GUIMARAtildeES

2014 p22) que os programas de computador conseguem apenas imitar Como vimos Dirceu

Maueacutes tambeacutem tece uma criacutetica agrave ideia de que aparelhos sofisticados e caros satildeo mais adequados

agrave produccedilatildeo de imagens elaboradas retoacuterica que o trabalho com as pinholes (que tambeacutem resulta

em peccedilas uacutenicas) desmente Embora os dois fotoacutegrafos natildeo explicitem uma preocupaccedilatildeo com a

materialidade de suas obras todo o trabalho de elaboraccedilatildeo em seus projetos o tempo dedicado

bem como a busca de esteacuteticas decorrentes da interaccedilatildeo entre os suportes empregados (negativo

papel fotograacutefico quiacutemicos slide etc) apontam que essa dimensatildeo palpaacutevel devido agrave

fisicalidade de cada um dos trabalhos constitui parte importante para a apreensatildeo sensiacutevel dos

mesmos Natildeo raro na exposiccedilatildeo de suas obras eacute comum que esses artistas apresentem tambeacutem

dispositivos estruturas utilizadas nos processos (figura 64) ndash natildeo apenas as imagens

201

Figura 64 - Cacircmeras pinhole como parte da exposiccedilatildeo Somewhere ndash Alexanderplatz (Dirceu Maueacutes2009)

Fonte Reproduccedilatildeo de Maueacutes (2015)

De toda forma como aqui nos interessam as visualidades que atestam a presenccedila do

ruiacutedo e a partir do momento em que o reconhecemos como expressatildeo mais crua e evidente da

trama material das imagens a divisatildeo entre miacutedias analoacutegicas e digitais torna-se sem sentido ateacute

porque conforme ficou patente atraveacutes dos exemplos da glitch art a inscriccedilatildeo da materialidade

nas imagens digitais eacute detectada nas distorccedilotildees de corpos e objetos na alteraccedilatildeo das cores com a

intenccedilatildeo de apontar a artificialidade da imagem na valorizaccedilatildeo do pixel do rastro do movimento

nos gifs na apariccedilatildeo de estruturas geomeacutetricas que fogem agrave figuraccedilatildeo tradicional Cada uma

dessas modalidades de expressatildeo vai de encontro ao ldquoprograma dos aparelhosrdquo e no que se refere

especificamente a esse campo da imagem digital identificamos que o programa se inscreve

atraveacutes da ldquoprogramaccedilatildeo do software nos coacutedigos relativos agrave reproduccedilatildeo das cores dispositivo

para reduccedilatildeo do ruiacutedo suavizaccedilatildeo das bordas da imagem preenchimento de pixels defeituososrdquo

(AGUERA amp ARCAS apud ZYLINSKA 2017a p214) Ou seja quando os artistas comeccedilam a

negar tais regras criando suas proacuteprias sensibilidades esteacuteticas contribuem para fortalecer uma

iconografia baseada no valor generativo do erro132 e plaacutestico do ruiacutedo

132 Zylinska (2017a) considera o pixel aparente e a animaccedilatildeo do gif indicativos do erro no ambiente do computador

202

Alguns trabalhos recentes utilizam o pixel para criar obras que sugerem atraveacutes de

diferentes abordagens e estrateacutegias aproximaccedilotildees entre as instacircncias moacutevel e fixa da imagem

embaralhando os espaccedilos e gecircneros da pintura e da fotografia Por exemplo o projeto iEarth

(2013) de Joanna Zylinska (figura 65) discute de forma irocircnica a ideia de que o gecircnero paisagem

constitui um olhar direcionado a um ambiente um recorte de um espaccedilo fiacutesico dado e livre de

mediaccedilotildees Em vez de reafirmar essa noccedilatildeo iEarth assume explicitamente que a paisagem natildeo

passa de uma construccedilatildeo de um artifiacutecio tecnoloacutegico fortemente influenciado pelas imagens

pertencentes a esse gecircnero que conformam nosso repertoacuterio iconograacutefico interferindo tambeacutem

na nossa maneira de olhar para o mundo Nesse trabalho o kit de um diorama para crianccedilas foi

usado para produccedilatildeo de quatro imagens fotografadas e processadas digitalmente para a criaccedilatildeo

de gifs Zylinska (2014) ressalta o aspecto fabricado dessas paisagens que natildeo remetem a

qualquer espaccedilo concreto e ao mesmo tempo estatildeo muito proacuteximas de representaccedilotildees midiaacuteticas

de espaccedilos reais (produzidas por exemplo pelo Google Earth) ldquoEsta perspectiva particular tem

uma dupla funccedilatildeo tanto desnaturaliza o familiar como cria uma ilusatildeo de imediatez

proximidade e domiacutenio visualrdquo (Idem)

Figura 65 - IEarth (Joanna Zylinska 2014)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista133

133 Sugerimos visualizar o trabalho diretamente na internet Disponiacutevel em httpwwwjoannazylinskanetiearthAcesso em 25022020

203

Profundamente ambiacuteguas e situadas entre o real e o artificial essas imagens promovem

atraveacutes do pixel e do gif uma afirmaccedilatildeo da tecnologia que natildeo eacute um intermediaacuterio entre o olhar e

o espaccedilo fiacutesico A tecnologia eacute o proacuteprio meio de existecircncia da paisagem Eacute ela que a constitui

A tecnologia eacute aqui mobilizada em vaacuterios niacuteveis ndash na elaboraccedilatildeo do diorama nacaptaccedilatildeo da imagem na pixelizaccedilatildeo das proacuteprias fotografias e em uacuteltima instacircncia naanimaccedilatildeo gif Pixelizaccedilatildeo e animaccedilatildeo natildeo satildeo apenas artifiacutecios visuais ou conceituais Oseu uso eacute uma tentativa de desestabilizar a relaccedilatildeo entre natureza e artefato entre oreal e o virtual134 (ZYLINSKA online 2014)

A paisagem eacute de fato elaborada segundo diversas camadas de imagens originaacuterias de

diferentes aparatos Cada um deles relacionado a um momento histoacuterico da representaccedilatildeo de

espaccedilos concretos o diorama uma forma de entretenimento moderna que criava uma ilusatildeo de

realismo e expressava um desejo de visatildeo total a fotografia imagem teacutecnica evocada no sentido

de um duplo do referente (mas sempre uma alteridade em relaccedilatildeo a este) e por fim o

computador metamiacutedia processadora de todas essas referecircncias anteriores que acrescenta

tambeacutem sua linguagem visual atraveacutes do pixel e da finalizaccedilatildeo em formato gif Nesse processo

cumulativo a paisagem fixa incorpora um movimento poreacutem um movimento tambeacutem

explicitamente artificial provocado (repetitivo em loop) Um movimento que natildeo almeja a ilusatildeo

de continuidade espaccedilo-temporal

Aleacutem disso estamos falando de um movimento atribuiacutedo a um espaccedilo fiacutesico (uma aacuterea

verde recriada por meio de um diorama infantil) o que intensifica o efeito de artificialidade Se o

diorama onde tudo comeccedila jaacute pressupotildee a interaccedilatildeo de um observador dotado de mobilidade

(CRARY 2012) na recriaccedilatildeo de um espaccedilo miniaturizado um cenaacuterio mesmo Zylisnka

reconecta essas noccedilotildees de mobilidade do olhar humano atraveacutes do gif um formato que articula

imagem estaacutetica e movimento Ela tambeacutem sugere um regime visual possibilitado pela

flexibilidade das imagens numeacutericas que embora jaacute tenha ultrapassado os limites do modelo

oacutetico linear (fixo) continua ainda se relacionando com este por meio de toda uma heranccedila visual

da pintura do cinema da fotografia e dos aparelhos oacuteticos como o estereoscoacutepio o panorama e

o proacuteprio diorama aqui revisitado

134 Traduccedilatildeo livre de ldquoTechnology is mobilised here on a number of levels ndash in the crafting of the diorama in thetaking of the image in the pixellation of the photographs themselves and then in the last instance in the gifanimation Pixellation and animation are not just visual or conceptual gimmicks Their use is an attempt todestabilise the relationship between lsquonaturersquo and lsquoartefactrsquo between lsquothe realrsquo and lsquothe virtualrsquordquo

204

Outro trabalho que curiosamente tambeacutem tematiza a paisagem aproximando-se do

formato cartatildeo postal jaacute que remete mais diretamente agrave fotografia eacute a seacuterie Jpegs (2007) de

Thomas Ruff (figuras 66 e 66a) Ela tambeacutem intensifica a presenccedila da miacutedia fotograacutefica expondo

a estrutura dos pixels O JPEG eacute um dos formatos de compressatildeo de imagem mais utilizados na

fotografia digital A compressatildeo significa perda de informaccedilatildeo Pois bem Ruff utiliza imagens

retiradas da internet e expressa atraveacutes de um olhar muito proacuteximo da estrutura dos pixels a

ideia de que a imagem digital eacute um conjunto de pequenos quadrados Ruff percebeu que o

software de compressatildeo para o formato JPEG dava agraves fotografias um efeito impressionista e

passou a explorar essa questatildeo

Descobri que quando se amplia bastante essas imagens 25m ou 18m cria-se um efeitoagradaacutevel quando vocecirc olha a uma distacircncia de 10 a 15 metros acha que estaacute vendouma fotografia precisa mas se chegar perto uns 5 metros reconhece a imagem pelo queela eacute Aiacute se chegar bem perto jaacute natildeo reconhece absolutamente nada vocecirc estaacute apenasdiante de milhares de pixels (RUFF 2009)135

Ou seja o que o artista alematildeo faz eacute simplesmente criar condiccedilotildees para desfazer a ilusatildeo

de uma estrutura dotada de extrema organizaccedilatildeo da imagem mostrando-nos um pouco do que eacute

constituiacuteda uma fotografia digital expondo seus intervalos e lacunas Segundo Hainge (2013

p221-222) os trabalhos de Ruff satildeo exemplares do aspecto ruidoso da miacutedia fotograacutefica que se

apresenta atraveacutes da manipulaccedilatildeo de cores formas da estrutura dos pixels e distribui-se por toda

a sua obra que versa sobre a arquitetura composicional da imagem e do frame sobre a

distribuiccedilatildeo da luz e da cor e como todas essas caracteriacutesticas da imagem satildeo manipulaacuteveis

David Campany (2008) aponta que este trabalho defende uma ldquoarte do pixelrdquo chamando

a nossa atenccedilatildeo para a forma tiacutepica da imagem em circulaccedilatildeo na internet (ldquoforma de grelha

maquiacutenica e repetitivardquo)

Todas as imagens que aparecem hoje na internet eou impressas em livros e revistas satildeodigitalizadas Quase todas as imagens satildeo digitais mesmo que tenham origem emformas natildeo digitais ou preacute-digitais Dado este fato eacute surpreendente como poucosabordam o fato de estas imagens existirem como massas de informaccedilatildeo eletrocircnica quetomam forma visual como pixels Ruff fez muito para introduzir na arte fotograacutefica o quepoderiacuteamos chamar de arte do pixel permitindo-nos contemplar a niacutevel esteacutetico efilosoacutefico a condiccedilatildeo baacutesica da imagem eletrocircnica Claro que ele faz isso natildeo nosmostrando as imagens em telas mas atraveacutes de impressotildees fotograacuteficas em larga escala

135 Benedictus Leo Thomas Ruff best shot Disponiacutevel emhttpswwwtheguardiancomartanddesign2009jun11my-best-shot-thomas-ruff Acesso em 24022020

205

levando-as muito aleacutem de sua resoluccedilatildeo fotorrealista Esta pode ser a primeira vez quealgumas destas imagens assumem uma forma material136 (CAMPANY online 2008)

O autor ainda estabelece uma comparaccedilatildeo entre a acircnfase dada ao pixel em Jpegs e a

ldquoesteacutetica do gratildeordquo cuja conotaccedilatildeo de autenticidade marcou obras William Klein e Nan Goldin

entre outros e embora diferencie o gratildeo do pixel referindo-se a este uacuteltimo como elemento de

uma frieza tecnoloacutegica as afirmaccedilotildees de Campany articulam a valorizaccedilatildeo do pixel como rastros

da materialidade da miacutedia quando comenta o efeito visual acarretado pela ampliaccedilatildeo em larga

escala de imagens que supostamente deveriam ser visualizadas em arquivos de tamanho reduzido

(dada sua baixa resoluccedilatildeo) Ruff na verdade subverte a loacutegica de apresentaccedilatildeo de uma imagem

em formato JPEG deixando-nos ver os pequenos quadrados as zonas onde a forma se desfaz em

partes esfumadas Ele quebra a aparecircncia de regularidade e organizaccedilatildeo da estrutura em pixels

quando altera a escala de sua exibiccedilatildeo original

136 Traduccedilatildeo livre de ldquoAll images that appear on the internet andor printed in books and magazines today aredigitised Nearly all images are digital even if they originated in non-digital or pre-digital forms Given this fact it issurprising how few of them ever wish to address the fact that they exist as masses of electronic information that takevisual form as pixels Ruff has done a great deal to introduce into photographic art what we might call an lsquoart of thepixelrsquo allowing us to contemplate at an aesthetic and philosophical level the basic condition of the electronic imageOf course he does this not by showing us the images on screens but by making large scale photographic printsblowing them up far beyond their photorealist resolution This might be the first time some of these images have evertaken a material formrdquo

206

Figuras 66 e 66a - Imagens da seacuterie Jpegs (Thomas Ruff 2007)

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

Seja na valorizaccedilatildeo do gratildeo do negativo (como nos trabalhos de Joseacute Luiacutes Neto) ou em

todos esses artistas interessados no pixel como elemento irradiador de uma esteacutetica

207

desconcertante no que diz respeito agrave definiccedilatildeo das formas concretizam-se as ideias de Flusser

(2008 p25) a respeito das imagens teacutecnicas como virtualidades guardadas nos aparelhos e

ativadas ou reveladas mediante a exploraccedilatildeo criativa daqueles No mesmo estudo o filoacutesofo

explica que a imagem teacutecnica eacute um ldquoacidente programadordquo pois emerge como possibilidade jaacute

contida no ldquoprogramardquo o que entra em conformidade com as teses sobre o ruiacutedo ser uma

internalidade de cada tecnologia Para noacutes a identificaccedilatildeo do ruiacutedo nessas obras eacute possiacutevel

atraveacutes de um equiliacutebrio entre esse niacutevel de programaccedilatildeo (caracteriacutestica inescapaacutevel dos

aparelhos) e um certo espaccedilo de negociaccedilatildeo acionado atraveacutes de diferentes estrateacutegias pelos

artistas o que para Flusser diz respeito agrave postura do ldquojogadorrdquo diante da miacutedia

Eacute interessante tambeacutem salientar que no conjunto de suas ideias o pensador tcheco

entende a eclosatildeo do novo ou de uma ldquoimagem informativardquo numa relaccedilatildeo diferencial de uma

tradiccedilatildeo visual homogeneizante padronizada que se manteacutem restrita agravequilo que o programa

epistemoloacutegico do meio prefigura Ele diz que determinadas imagens propotildeem siacutembolos novos

quando se colocam contra um fundo ldquoredundanterdquo do coacutedigo estabelecido e estimula um papel

ativo de quem utiliza as tecnologias para desligar-se dessa tradiccedilatildeo de mesmice (atraveacutes de

propostas sempre renovadas inusitadas)

52 O BOM O MAU E O FEIO

No intuito de chamar nossa atenccedilatildeo para a diversidade de imagens criadas quando se

concebe o aparelho fotograacutefico (e aqui natildeo falamos apenas no sentido estritamente teacutecnico)

como dispositivo sujeito a reescrituras a filosofia flusseriana alinha-se a reflexotildees bastante

recentes do campo da imagem que pensando no ambiente das miacutedias computadorizadas

reconhece um valor esteacutetico justamente nas visualidades consideradas irregulares feias erraacuteticas

incomuns difiacuteceis de classificar e de identificar

A artista pensadora e professora Hito Steyerl em seu texto onde defende as ldquoimagens

pobresrdquo (2009) usa termos como baixa qualidade erracircncia reproduccedilatildeo remix download coacutepia

compartilhamento reediccedilatildeo ou seja todo um vocabulaacuterio que diz respeito agraves diversas estrateacutegias

de manipulaccedilatildeo que estatildeo na ordem do dia para osas artistas analisados aqui Embora se refiram

especificamente ao contexto da imagem digital suas palavras podem servir muito bem para dar

conta da variabilidade de resultados encontrados neste pequeno grupo de obras que tecircm no ruiacutedo

um ponto em comum Aliaacutes pensamos que no universo da imagem contemporacircnea o constante

208

cruzamento das miacutedias as operaccedilotildees de apropriaccedilatildeo de referecircncias as mais diacutespares conferem agraves

obras incluiacutedas nesta tese grande afinidade com o pensamento sobre a imagem pobre (mesmo

agravequelas natildeo elaboradas exclusivamente mediante o uso de miacutedias computadorizadas)

Sem intenccedilatildeo de utilizar o texto de Steyerl promovendo um esvaziamento de seu

evidente conteuacutedo poliacutetico e de gecircnero acreditamos ser frutiacutefero pensar os contornos esteacuteticos

que sua noccedilatildeo de ldquoimagens pobresrdquo carrega pois que remonta ao cinema independente e como os

circuitos alternativos de acesso e distribuiccedilatildeo (anteriores e jaacute com o apoio da internet) e agraves

estrateacutegias de apropriaccedilatildeo (exemplificadas aqui nos trabalhos de Thomas Ruff Sabato Visconti

Caacutessio Vasconcellos Rosacircngela Rennoacute) para falar sobre uma imageacutetica caracterizada pela fuga

de padrotildees esteacuteticos na qual o lugar mais alto de uma suposta hierarquia de valores associa-se agrave

resoluccedilatildeo agrave definiccedilatildeo agrave precisatildeo ao mesmo tempo em que questiona noccedilotildees de autoria e

originalidade Se percebemos que todos esses elementos articulam-se no debate proposto aqui

por que natildeo entender que o investimento no ruiacutedo daacute sua contribuiccedilatildeo para alargar o universo das

ldquoimagens pobresrdquo no sentido de politicamente reivindicar um espaccedilo de celebraccedilatildeo agraves esteacuteticas

contraacuterias agrave agenda natildeo intervencionista industrial comercial purista da imagem fotograacutefica

Obviamente uma imagem de alta resoluccedilatildeo parece mais brilhante e impressionantemais mimeacutetica e maacutegica mais assustadora e sedutora do que uma pobre Eacute mais ricadigamos assim () A resoluccedilatildeo foi fetichizada como se sua ausecircncia significasse acastraccedilatildeo do autor (masculino) O culto da bitola fiacutelmica dominou ateacute a produccedilatildeo decinema independente A imagem rica estabeleceu seu proacuteprio padratildeo de hierarquias comas novas tecnologias oferecendo cada vez mais possibilidades para degradaacute-lacriativamente137 (STEYERL 2009 p3)

Eacute bastante interessante como Steyerl toma elementos formais ndash foco resoluccedilatildeo

definiccedilatildeo nitidez ndash que aparecem ao longo de sua argumentaccedilatildeo num sentido poliacutetico que

distingue o valor das imagens a partir de sua aparecircncia Essa percepccedilatildeo vem a calhar se

pensarmos que muitas das imagens consagradas na Histoacuteria da Arte possuem as caracteriacutesticas

elencadas no texto O contraacuterio o conjunto das imagens pobres reuacutene aquelas sujeitas agrave

circulaccedilatildeo na internet baixadas copiadas coladas editadas desgastadas na proacutepria mateacuteria que

as compotildee Essa desvalorizaccedilatildeo estaacute subentendida em diversos roacutetulos utilizados para classificar

trabalhos os mais heterogecircneos Basta lembrar por exemplo a conotaccedilatildeo da palavra

137Traduccedilatildeo livre de ldquoObviously a high-resolution image looks more brilliant and impressive more mimetic andmagic more scary and seductive than a poor one It is more rich so to speakconservative in their very structureResolution was fetishized as if its lack amounted to castration of the author The cult of film gauge dominated evenindependent film production The rich image established its own set of hierarchies with new technologies offeringmore and more possibilities to creatively degrade itrdquo

209

ldquoexperimentalrdquo como algo inacabado ou que carece de planejamento o que pode resultar em

interpretaccedilotildees equivocadas sobre o cinema e a fotografia experimentais

Ao nos falar sobre a presenccedila de imagens manipuladas descontruiacutedas e reconstruiacutedas

que participam de uma economia visual orientada pela velocidade e pelas ambiguidades e fluxos

o texto de Steyerl funciona tambeacutem como um gesto em favor das experiecircncias de reescrita

poeacutetica das formas limiacutetrofes surgidas atraveacutes do desgaste das recombinaccedilotildees dos usos

desviados como tambeacutem preconiza Flusser ldquoO novo eacute um ruiacutedo () ele me perturba ele eacute

repulsivo Eu o odeio A criatividade comeccedila com o feio () O novo se torna informativordquo

(FLUSSER apud FELINTO 2013 p63) Aqui vemos a atualidade do pensamento de Flusser

que testemunhava os primeiros anos da internet e dos contornos de uma sociedade telemaacutetica

(2011) como ele mesmo se referia agrave nossa condiccedilatildeo de seres sob permanente conectividade Mas

suas palavras podem ser entendidas no sentido mais geral de sua ideia filosoacutefica do ldquojogordquo como

caminho para produzir imagem informativa

53 AS FLUTUACcedilOtildeES DE UM CONCEITO

A emergecircncia do ldquonovordquo no sentido de ldquoinformaccedilatildeordquo flusseriana leva-nos a retornar ao

ruiacutedo em uma de suas caracteriacutesticas que mais dificultam (e agraves vezes opotildeem) teorizaccedilotildees o que

distingue o ruiacutedo muda de tempos em tempos Agraves vezes em sua proacutepria eacutepoca ruiacutedos natildeo satildeo

reconhecidos como tal sendo necessaacuteria a emergecircncia de um paradigma diferente para que isso

ocorra Ou seja a relaccedilatildeo entre materialidade miacutedia e esteacutetica e seus ruiacutedos eacute temporal e pode

depender de um gap para se estabelecer Retrospectivamente em face de uma nova norma

representativa o ruiacutedo pode tornar-se perceptiacutevel (ou atentarmos para ele) e quando uma nova

tecnologia toma o lugar da anterior superando-a isso ocorreraacute porque seu (aparente) sucesso vem

da forccedila em apagar o ruiacutedo do meio num grau maior do que era possiacutevel antes (HAINGE 2013

p118)138 Essa condiccedilatildeo leva a uma relaccedilatildeo com o ruiacutedo que pode ser paradoxal se confiamos no

138 Traduccedilatildeo livre de ldquo() when a new representational norm has come into being that this noise becomesperceptible or rather that it is consciously attended to Indeed if a new technology is able to take hold (hellip) andsupplant its predecessor this (hellip) will be because of its (apparent) success in effacing such medial noise to a higherdegree than was previously possiblerdquo

210

discurso de progressiva melhoria ligado ao surgimento de novas tecnologias e equipamentos139

Se por um lado haacute uma loacutegica de recusa ao ruiacutedo guiando a induacutestria da imagem verificada por

exemplo no tratamento preacutevio aplicado por meio de funccedilotildees do tipo ldquoreduccedilatildeo de olhos

vermelhosrdquo os controles de ISO (reduzindo efeitos que lembram a granulaccedilatildeo do negativo) e

iluminaccedilatildeo preacute-formatados o uso de filtros que realccedilam tons e cores evitando um efeito de

esmaecimento bastante comum apoacutes uma revelaccedilatildeo mal sucedida foco automaacutetico e todas essas

ldquovantagensrdquo no processamento automatizado da imagem indicam a negaccedilatildeo de ruiacutedos associados

a um paradigma visual anterior como promessa para elevar a qualidade da imagem participando

como argumento fundamental da cadeia da induacutestria em contrapartida haacute experiecircncias de

reintroduccedilatildeo daquilo antes rotulado como defeito Um processo de reaproveitamento de

elementos que normalmente seriam descartados

Essa questatildeo importante num horizonte de hibridizaccedilotildees fica tambeacutem evidente quando

Hainge (2013) cita artistas contemporacircneos que utilizam softwares capazes de ldquodegradarrdquo o som

produzido digitalmente com ruiacutedos remetendo agraves ldquofissurasrdquo do vinil ou seja artificialmente

agregar um elemento de outra tecnologia um ruiacutedo assim entendido como diverso da loacutegica do

sistema digital Um ruiacutedo simulado adicionado via poacutes-produccedilatildeo Esta associaccedilatildeo entre

componentes de uma tecnologia diversa e obras realizadas em ambiente digital cria uma

disjunccedilatildeo radical de forma e conteuacutedo e parece tentar dar aos produtos digitais certa

autenticidade (HAINGE 2013 p119) Eacute o que acontece com os procedimentos de aplicaccedilatildeo de

filtros que remetem a caracteriacutesticas de imagens analoacutegicas como no caso do trabalho do

coletivo Basetrack que jaacute analisamos cuja referecircncia visual ldquoadicionadardquo via software eacute a

Polaroid

Embora praacuteticas desse tipo contrariem a ontologia do ruiacutedo que o entende como

manifestaccedilatildeo interna ao sistema ou tecnologia considerados eacute interessante perceber como esses

empreacutestimos ocorrem num ambiente mais amplo de atravessamento das miacutedias no meio artiacutestico

contemporacircneo O artista visual Eacuteder Oliveira natural de BeacutelemPA apropria-se do pixel como

elemento ruidoso que responde a propoacutesitos midiaacuteticos e sociais de estigmatizaccedilatildeo de um

139 Conter (2017) faz interessante anaacutelise sobre essa questatildeo abordando por exemplo o uso de termos como hi-fipelo mercado de equipamentos de reproduccedilatildeo sonora e suas implicaccedilotildees no sentido de endossar um movimento dainduacutestria guiado pela substituiccedilatildeo de produtos oferecidos como promessas de melhor qualidade na medida em queseriam capazes de restituir ao som caracteriacutesticas experimentadas na ocasiatildeo da performance e ao mesmo tempoeliminar falhas ou resiacuteduos ldquonatildeo musicaisrdquo (mesmo que tal fidelidade seja um ideal e tatildeo pouco o ruiacutedo seja passiacutevelde eliminaccedilatildeo)

211

determinado segmento social Interessado em delinear um perfil do ldquohomem amazocircnicordquo atraveacutes

dos retratos de pessoas marginalizadas pela violecircncia cria pinturas a partir de fotografias

veiculadas na imprensa policial

Na seacuterie Pixels (figuras 67 e 67a) o pixel que constitui o elemento formador das

imagens digitais eacute enfatizado como que esgarccedilado quando alccedilado ao centro da pintura sugerindo

o apagamento da identidade atraveacutes do natildeo reconhecimento dos traccedilos faciais a naturalizaccedilatildeo da

violecircncia associada a indiviacuteduos dos quais pouco importa saber quem satildeo (poreacutem notadamente

pessoas majoritariamente pobres e negras) uma ideia de informaccedilatildeo corrompida e inuacutetil

vinculada agrave degradaccedilatildeo desses mesmos indiviacuteduos no conjunto da sociedade por sua associaccedilatildeo

com atos criminosos

Figuras 67 e 67a - Pinturas (oacuteleo sobre tela) da seacuterie Pixels (Eacuteder Oliveira 2018)

212

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

A descaracterizaccedilatildeo da identidade atraveacutes da pixelizaccedilatildeo coloca em debate o fato

tambeacutem de que essas pessoas ao transformarem-se em imagens perdem totalmente qualquer

controle sobre os discursos criados sobre elas Essa questatildeo ganha mais potecircncia quando a

estrateacutegia eacute articulada pela escolha do gecircnero retrato notadamente utilizado com funccedilotildees de

valorizaccedilatildeo do indiviacuteduo num esforccedilo de celebraccedilatildeo da singularidade Eacuteder Oliveira perverte

essa ideia por meio da aproximaccedilatildeo da imagem ateacute que ela exponha sua materialidade forjada e a

identidade da pessoa desintegre-se Ao mesmo tempo que podemos enxergar os traccedilos da

informaccedilatildeo de uma imagem de computador ela jaacute encena uma passagem para a modalidade de

informaccedilatildeo pictoacuterica mas continuam ainda perceptiacuteveis marcas de ambas as modalidades e

temos uma obra estranhamente indefinida entre fotografia e pintura

Esse mesmo aspecto de mesticcedilagem entre pintura e foto eacute encontrado no projeto The

Discrete Channel with Noise mdash an experiment into visual communication and misinformation

de Clare Strand (figuras 68 a 71) Partindo de fotografias de seu acervo pessoal a artista constroacutei

pinturas que no entanto se distanciam de aspectos de apresentaccedilatildeo de telas convencionais O

conceito do projeto estaacute relacionado aos imprevistos e erros ligados agrave transmissatildeo da informaccedilatildeo

e agrave reinterpretaccedilatildeo de coacutedigos em sistemas diferentes tocando diretamente a questatildeo do ruiacutedo

Durante uma residecircncia artiacutestica na Franccedila Strand (que reside na Inglaterra) utilizou o livro

Electronic Television (1936) de George H Eckhardt para seu projeto da seguinte maneira a

publicaccedilatildeo sugeria a possibilidade de transmitir imagens atraveacutes de um teleacutegrafo marcando toda

a imagem com linhas verticais e horizontais formando assim uma grade em sua superfiacutecie Cada

213

quadrado formado por essas linhas receberia um nuacutemero correspondente a um esquema de cores

numa escala de cinza Ou seja criaria um coacutedigo para reproduccedilatildeo de uma imagem que migraria

de um meio a outro

Atuando como receptora da informaccedilatildeo a fotoacutegrafa pediu ao seu marido (otransmissor) para escolher dez imagens do seu arquivo pessoal Usando a metodologiade Eckhardt as imagens foram transmitidas da Inglaterra para a Franccedila onde Strandpintou-as em uma versatildeo em grande escala da mesma grade O resultado satildeo 10 imagensanaloacutegicas que expressam os inevitaacuteveis erros de comunicaccedilatildeo ocorridos durante oprocesso levantando questotildees sobre as consequecircncias da maacute interpretaccedilatildeo no mundodigital (WARNER online 2020)

As imagens finais satildeo em grande escala em relaccedilatildeo agraves fotografias originais e pouco se

assemelham a estas uacuteltimas predominando o aspecto quadriculado retiliacuteneo e padronizado dos

grafismos de sistemas eletrocircnicos e computadorizados Satildeo expostas em papel (e natildeo em telas)

grampeadas em suportes e exibidas em conjunto com as fotos originais e outros materiais

utilizados no projeto como pinceacuteis e tintas

Figura 68 - The Discrete Channel with Noise Coded Paint Pots 4 - 7

Fonte Reproduccedilatildeo site do Centre Photographique DrsquoIle-de-France

214

Na verdade elas datildeo corpo ao proacuteprio processo ldquoO processo eacute tatildeo importante quanto os

quadros e as fotografias daiacute a exposiccedilatildeo dos potes e pinceacuteisrdquo (STRAND apud WARNER online

2020)

Figura 69 - Fotografia original submetida ao meacutetodo de Eckhardt

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

Figura 70 - Algorithmic Painting Destination 4 (Clare Strand 2017 ndash 2018)

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

215

Figura 71 - Vista da montagem da exposiccedilatildeo The Discrete Channel with Noise Algorithmic Painting Destination

3 - 8 2018

Fonte Reproduccedilatildeo site do Centre Photographique DrsquoIle-de-France

Nesse projeto a dimensatildeo processual eacute reforccedilada enquanto se assume como esteacutetica os

descaminhos da transmissatildeo-recepccedilatildeo de informaccedilatildeo entre tecnologias distintas embora voltadas

igualmente para a imagem Os exemplos apresentados ateacute aqui indicam ainda como o ruiacutedo pode

operar apagando fronteiras entre passado presente e futuro confundindo temporalidades e

modos esteacuteticos atraveacutes de estrateacutegias derivadas de assimilaccedilotildees mixagens empreacutestimos

gerando produtos hiacutebridos como observado em relaccedilatildeo agraves tecnologias da imagem que passam a

operar na ordem da trocas Na conclusatildeo de seu estudo Hainge (2013) reforccedila a natureza mutaacutevel

do ruiacutedo identificado de maneira diferente quando comparamos campos de expressatildeo distintos

ou ateacute dentro de uma mesma linguagem artiacutestica como verificamos haacute pouco a respeito da

fotografia Segundo ele eacute impossiacutevel definir precisamente o que eacute o ruiacutedo pois suas coordenadas

natildeo satildeo fixas e suas caracteriacutesticas dependem dos arranjos expressivos feitos o que exige uma

interrogaccedilatildeo contiacutenua a seu respeito (HAINGE 2013 p273)

Eacute crucial termos isso em mente porque em nosso corpus as diferentes abordagens

realizadas pelos artistas exploram diversas vertentes esteacuteticas e recursos plaacutesticos que trazem agrave

tona uma multiplicidade de ruiacutedos Estes podem estar relacionados a expectativas modelos e

usos comuns e largamente aceitos para o campo da imagem em termos de gecircnero fotograacutefico

relaccedilotildees espaccedilo-temporais entre outras questotildees bastante caras ao fazer e pensar a imagem

216

Ao discutir o universo dos filmes de David Lynch como exemplo de um cinema

profundamente ruidoso140 e seus recursos narrativos e esteacuteticos Hainge (2013) diz que uma

intensificaccedilatildeo do medium eleva o niacutevel de ruiacutedo o que ocorre nas diversas obras arroladas nesta

tese atraveacutes da exploraccedilatildeo limiacutetrofe de aspectos variados como granulaccedilatildeo manchas borrotildees

muacuteltiplas exposiccedilotildees traccedilos do arrasto da peliacutecula dentro do equipamento interrupccedilotildees causadas

pelo acionamento e pausar da cacircmera cortes bruscos e aparentes nos materiais que se tornam

visiacuteveis na superfiacutecie da imagem etc O excesso de inscriccedilatildeo da tecnologia impede o

discernimento entre forma e conteuacutedo fundo e figura (HAINGE 2103 p183) implicando um

voltar-se para a proacutepria miacutedia como lugar de investigaccedilatildeo o que indica que os trabalhos presentes

em nosso corpus possuem uma dimensatildeo processual marcante

Acrescente-se ainda aos resultados esteacuteticos que expotildeem os ruiacutedos na imagem os

contrastes entre aacutereas muito proacuteximas da lente (e seu aspecto borrado) e fundo cortes bruscos e

expliacutecitos na junccedilatildeo de elementos diacutespares dentro um mesmo quadro que mistura ambientes

temporalidades (HAINGE 2013 p198) texturas materiais provindos de diferentes signos

associados agrave imagem para favorecer natildeo uma intenccedilatildeo narrativa mas uma provocaccedilatildeo formal

caoacutetica

Na seacuterie Nuptias (2017) Rosacircngela Rennoacute (figuras 72 a 76) discute o paradoxo entre

um rito social altamente valorizado e cercado de idealizaccedilotildees ndash o matrimocircnio ndash e seu desgaste

sua ruiacutena jaacute que em muitos casos o casamento natildeo resiste ao tempo Satildeo imagens realizadas em

teacutecnica mista utilizando-se fotografias antigas e carte de visite Imagens recuperadas de

contextos de felicidade utilizadas para falar sobre as amarguras do casamento Isso eacute feito

aplicando-se agraves imagens objetos pedaccedilos de tecidos madeira desgastada ilustraccedilotildees recortadas

de enciclopeacutedias trechos de mangaacutes reproduccedilotildees de pinturas famosas entre outros materiais A

artista escreve pinta cola sobre as fotos Junta os noivos de uma cerimocircnia e personagens

totalmente estranhos agrave situaccedilatildeo (retirados de outras fotos) que pelos trajes e poses notamos natildeo

140 Para Hainge (2013) seja do ponto de vista filosoacutefico ou esteacutetico os filmes do cineasta satildeo cheios de perturbaccedilotildeesde identidades e categorias fixas formas delimitadas chegando a diluir o significado tendo em vista que os enredossolicitam que nos desapeguemos de ideias preacute-concebidas de narrativa uso do som gecircneros de noccedilotildees que separamo que eacute real devaneio ou loucura As estranhezas que se verificam nas imagens de Lynch estatildeo alinhadas com asestranhezas das narrativas O capiacutetulo de seu livro dedicado agrave produccedilatildeo do diretor norte-americano trataespecificamente de Eraserhead (1977) e Impeacuterio dos Sonhos (Inland Empire 2006)

217

pertencerem agrave situaccedilatildeo de festa alguma Vai e volta no tempo casando uma recatada mocinha com

o vilatildeo Darth Vader do filme Guerra nas Estrelas141

Figura 72 - Sem tiacutetulo (Lea loves Darth) da seacuterie Nuptias (Rosacircngela Rennoacute 2017)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Visualmente todo o conjunto formado por 150 fotopinturas142 sugere um excesso de

lugares expectativas desejos personagens referecircncias encontrando-se numa verdadeira

confusatildeo Um excesso de materialidade para o qual Rosacircngela Rennoacute oferece soluccedilotildees visuais

que lidam com o abandono e o esquecimento A obra problematiza a um soacute tempo modelos de

relacionamento sexualidade estereoacutetipos femininos a verdadeira induacutestria que envolve a

realizaccedilatildeo de um casamento e fala logicamente da proacutepria fotografia de casamento como um

141 Guerra nas Estrelas (Star Wars) eacute a franquia de filmes de ficccedilatildeo cientiacutefica criada pelo norte-americano GeorgeLucas Os primeiros filmes (Guerra nas Estrelas O impeacuterio Contra-Ataca O retorno de Jedi) foram lanccediladosnas deacutecadas de 1970-80 A partir dos anos 2000 outros nove episoacutedios jaacute foram lanccedilados entre eles O Ataque dosClones A vinganccedila dos Sith O despertar da forccedila e o mais recente Solo Uma Histoacuteria Star Wars (RonHoward 2018)142 ldquoFotopinturardquo eacute o termo utilizado pela artista na descriccedilatildeo da obra que consta em seu site Poreacutem lembremos quea teacutecnica de fotopintura pressupotildee a recriaccedilatildeo de uma imagem fotograacutefica a partir de teacutecnicas pictoacutericas (cominclusatildeo de elementos ausentes da imagem fotograacutefica original) De fato a seacuterie de Rennoacute junta fotografiasdescartadas e materiais diversos (papel madeira borracha tinta tela) alguns deles pertencentes ao universo dosmateriais pictoacutericos mas natildeo reconstroacutei as imagens fotograacuteficas repetindo os limites de enquadramento pose everossimilhanccedila como geralmente ocorre numa fotopintura tradicional Nesse sentido mais tradicional do termo haacuteapenas uma imagem entre as disponibilizadas no site que utiliza uma fotopintura como base a imagem Semtiacutetulopavatildeo (2017) Disponiacutevel em httpwwwrosangelarennocombrobrasview703 Acesso em 280419

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artefato cheio de complexidades enquanto guarda certa aura de preciosidade pode ser tanto

viacutetima da abundante produccedilatildeo de imagens digitais quanto do descarte poacutes-separaccedilatildeo do

esmorecer das cores e dos afetos em aacutelbuns velhos da poeira e do passar dos anos que faz muitas

dessas fotografias irem parar em lugares onde o desapego se mede pelo preccedilo baixo e onde

Rennoacute foi buscaacute-las para compor sua seacuterie Ela explica

Me parece que a sociedade sofre cada vez mais com uma ansiedade generalizadaprovocada pelos ldquoexcessosrdquo Excesso de tudo de comunicaccedilatildeo de acessibilidade deconsumo de contraste entre pobreza e riqueza entre desejo e realizaccedilatildeo esse excessoempurra a satisfaccedilatildeo e consequentemente a felicidade para muito longe sempre muitoaleacutem do nosso alcance As cerimocircnias dos tradicionais matrimocircnios parecem ser tanto otermocircmetro desse sentimento quanto a proacutepria febre Entretanto e entre tantasfrustraccedilotildees casamentos se tornam imperfeitos por muito pouco Me interesso pelodocumento daquilo que foi sacramentado e depois desfeito quer seja pelo tempo ou peloproacuteprio ser humano Casamentos hoje natildeo parecem valer muita coisa apesar do aindaalto valor simboacutelico da cerimocircnia e do altiacutessimo preccedilo que se paga para realizaacute-las Eacuteimpressionante a quantidade de fotos de casamento que satildeo encontradas nos mercadosde pulgas soacute natildeo superada pela quantidade de fotos que satildeo realizadas hojedigitalmente nas inumeraacuteveis cerimocircnias cujo ideal de pompa e circunstacircncia varia emconformidade com o poder de compra das diferentes classes sociais143 (RENNOacute online2017)

Eacute muito interessante como nessa obra a questatildeo do ruiacutedo opera em vaacuterios niacuteveis o

simboacutelico tratando o casamento sob a perspectiva das relaccedilotildees amorosas confusas imperfeitas

deterioradas e ateacute improvaacuteveis do estilo das composiccedilotildees totalmente disjuntivo apelando aos

processos utilizados em fotomontagem e abrindo agrave imagem para diversos efeitos de choques

cromaacuteticos rasgos buracos riscos recortes e contornos bruscos o das temporalidades jaacute que a

artista daacute saltos no tempo trabalhando com imagens de eacutepocas variadas que adicionadas umas agraves

outras criam um tempo sem marcos de passado presente ou futuro investindo na dissoluccedilatildeo

dessas fronteiras e por fim o niacutevel das reflexotildees a respeito dos ldquosintomasrdquo das sociedades

contemporacircneas em processos como incomunicabilidade excesso de informaccedilatildeo fugacidade

alteridade medo quebra de paradigmas questotildees frequentemente evocadas ao longo do estudo

de Hainge (2013) e que reforccedilam a compreensatildeo de que o ruiacutedo estaacute em tudo (sentido

fenomenoloacutegico e ontoloacutegico) natildeo respeita aprisionamentos cronoloacutegicos bagunccedilando os

paradigmas os limites as preacute-definiccedilotildees

143 RENNOacute Rosacircngela Nuptias (2017) Disponiacutevel em httpwwwrosangelarennocombrobrassobre70 Acessoem 260419

219

A ecircnfase na ideia de que o casamento eacute felicidade e frustraccedilatildeo ao mesmo tempo

sentimentos misturados sem que nenhum deles sobreponha-se ao outro faz com que retornemos

ao tema do ruiacutedo Se pensamos que essa relaccedilatildeo entre contraacuterios eacute inescapaacutevel e responsaacutevel pelo

excesso de desejo e expectativas a que se refere a artista o ruiacutedo estaacute na impossibilidade de

equacionar esses extremos posto que satildeo vivenciados conjuntamente na relaccedilatildeo (da qual o

casamento eacute o rito social partilhado e registrado) embora as tentativas de controle sejam tatildeo

frequentes quanto inuacuteteis A seacuterie Nuptias proporciona uma leitura amarga e irocircnica do

casamento como instituiccedilatildeo social e atinge esse efeito sujeitando as imagens a procedimentos

que pervertem suas formas sentidos e usos originaacuterios

Figura 73 - Sem tiacutetulo (aacutelbuns) da seacuterie Nuptias (Rosacircngela Rennoacute 2017)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Rennoacute estaacute entre as artistas brasileiras contemporacircneas mais interessantes no uso de

materiais recuperados (fotografias aacutelbuns peliacuteculas) e equipamentos antigos ligados agrave histoacuteria

das tecnologias de imagem Vaacuterios de seus trabalhos problematizam binocircmios como fugacidade e

perenidade fixidez e mobilidade imaterialidade e fisicalidade ciclos de vida e morte real e

fabulaccedilatildeo tempo e memoacuteria sempre relacionados agrave imagem nos quais ela emprega cacircmeras

projetores e negativos remetendo agraves formas de entretenimento claacutessicas da imagem (tais como

lanterna maacutegica diorama cinema de atraccedilotildees fantasmagorias estereoscopia) Contudo nessas

obras em vez de sustentar o princiacutepio de ocultamento dos dispositivos trabalhando na chave

220

discursiva da ilusatildeo ndash como ocorre por exemplo no cinema convencional onde aparentemente a

imagem nos atinge sem recursos intermediaacuterios sem toda uma estrutura tecnoloacutegica que de fato

lhe daacute ldquocorpordquo ndash Rennoacute busca desnudar os mecanismos de funcionamento deixando o puacuteblico

ver as superfiacutecies os aparelhos as peliacuteculas as cacircmeras e os restos de materiais tornando a

presenccedila dessas estruturas um componente importante que enfatiza o artifiacutecio envolvido nos

procedimentos relativos agrave imagem Seu trabalho tira partido de uma verve colecionista e vai

tomando forma com base no rearranjo dos objetos coletados que sofrem intervenccedilotildees e satildeo

muitas vezes empregados em circuitos de fruiccedilatildeo totalmente apartados dos originais dobrando-se

a intencionalidades estranhas para as quais foram criadas Nesse sentido eacute bastante produtivo o

cruzamento entre imagens ligadas ao uso domeacutestico e afetivo (fotografia de famiacutelia viacutedeos

caseiros) e um estatuto mais coletivo adquirido quando satildeo utilizadas para discutir funccedilotildees de

arquivamento acumulaccedilatildeo valor histoacuterico simboacutelico ou poliacutetico memoacuteria esquecimento Todas

essas questotildees sempre rondaram de maneira especial os debates sobre a fotografia e satildeo

recolocadas pela criacutetica cada vez que a tecnologia apresenta alguma novidade Na obra de

Rosacircngela Rennoacute esses temas satildeo constantes que movem a busca pela reinterpretaccedilatildeo de uma

seacuterie de materiais abandonados condenados ao esquecimento

Figura 74 - Sem tiacutetulo (barata) seacuterie Nuptias (Rosacircngela Rennoacute 2017)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

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Figura 75 - Sem tiacutetulo (davi tupi) da seacuterie Nuptias (Rosacircngela Rennoacute 2017)

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Figura 76 - Sem tiacutetulo (Guernica) da seacuterie Nuptias (Rosacircngela Rennoacute 2017)

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Tais praacuteticas estatildeo em conformidade com estrateacutegias da arte contemporacircnea alinhadas agraves

teses flusserianas de desmonte do ldquoprogramardquo do ldquoaparelhordquo podendo incluir intervenccedilotildees no

modo de funcionamento convencional das miacutedias experiecircncias com as materialidades e o uso de

miacutedias obsoletas ou resgate de projetos abandonados (BAIO 2015 p21) Reintroduzir certos

artefatos ligados ao universo das tecnoimagens criando novos usos e modos de apresentaccedilatildeo e

estimulando assim modos novos de sensibilidade eacute tambeacutem uma maneira de reprogramar os

dispositivos

No projeto Imagem de sobrevivecircncia (figuras 77 78 e 78a) tambeacutem desenvolvido a

partir de imagens coletadas em feiras e mercados de pulgas a artista utiliza o slide (ou

diapositivo) Hoje praticamente esquecido (seja pela indisponibilidade de projetores ou da

descontinuidade da produccedilatildeo das proacuteprias imagens) o slide desempenhava uma funccedilatildeo de

fotografia de famiacutelia poreacutem na modalidade da imagem projetada Em seu site ao explicar um

pouco sobre o trabalho Rennoacute lembra que os diapositivos foram populares entre os anos 1950-

80 e simbolizavam o ato de contemplar entre parentes e amigos cenas cotidianas e momentos de

lazer Ao contraacuterio do aacutelbum de fotografias o contato com os diapositivos mostra-se mais

dinacircmico por causa de um deslumbramento que noacutes seres humanos temos pelas imagens

projetadas (RENNOacute online 2015) Soacute que neste trabalho em vez de dar ecircnfase agrave contemplaccedilatildeo

de momentos singularizados em cada diapositivo individualmente a artista projeta as imagens ao

mesmo tempo

Cada lsquoesculturaestantersquo abriga e expotildee 4 projetores do tipo Kodak Carousel queprojetam as imagens em transparecircncia de forma simultacircnea e sobreposta O resultado eacuteuma projeccedilatildeo muacuteltipla muito paacutelida que ao longo do tempo se modificaconstantemente sem jamais se repetir ateacute que a luz dos projetores a consumamtotalmente para que sejam substituiacutedas por outras mais frescas (RENNOacute online2015)

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Figura 77 - Vista da montagem da obra Imagem de sobrevivecircncia (Rosacircngela Rennoacute 2015)

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Desrespeitando o princiacutepio da imagem uacutenica e fixa os diapositivos satildeo submetidos a

uma montagem que sugere o excesso onde o caraacuteter de singularidade de cada um se desvanece e

nesse sentido o trabalho chama atenccedilatildeo para o aspecto da materialidade do suporte ldquoslides satildeo

feitos e colecionados agraves duacutezias agraves centenas e aos milharesrdquo (Idem) Essa materialidade abundante

eacute lembrada pela maneira como as imagens satildeo apresentadas (sobrepostas)

A estrateacutegia de exibi-los todos ao mesmo tempo tambeacutem provoca um embaralhamento

que entrecruza vaacuterios tempos e espaccedilos Note-se que os diapositivos selecionados foram

adquiridos em locais distintos provenientes de coleccedilotildees variadas ou seja natildeo necessariamente

possuem um tema comum ordenamento ou afinidade cronoloacutegica o que Rennoacute simboliza

exatamente pelo arranjo escolhido para sua apresentaccedilatildeo um arranjo desordenado As

associaccedilotildees entre eles satildeo aleatoacuterias Os personagens e cenaacuterios dessas imagens vecircm assombrar o

olhar do espectador como verdadeiros espectros evocados seja pela fugacidade da projeccedilatildeo seja

pelo fato de que pertencem a um tempo passado fragilmente lembrado apenas enquanto

permanece acesa a luz de cada equipamento

Ao mesmo tempo eacute como se a artista tentasse montar um pequeno e caoacutetico

documentaacuterio sobre pessoas que tinham nas coleccedilotildees de slides o diaacuterio visual de suas rotinas

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num esforccedilo para dar sobrevida a cenas que originalmente eram produzidas para uma audiecircncia

reduzida (familiar) Rosacircngela Rennoacute se destaca pela elaboraccedilatildeo de obras em que confere

ldquodinamismo agrave imagem fixardquo (FATORELLI 2013 p24) e neste projeto em questatildeo ela articula

de maneira muito particular os dispositivos do cinema e da fotografia (reprogramando suas

ontologias claacutessicas) chamando nossa atenccedilatildeo para a estranheza do proacuteprio formato diapositivo

uma imagem fixa concebida para projeccedilatildeo Imagem fixa que adquiria um falso movimento a

partir da sucessatildeo de unidades na velocidade regular do projetor Se em seu modo de usar

corriqueiro a ideia de uma narrativa jaacute se anunciava como uma impossibilidade ao propor a

sobreposiccedilatildeo de vaacuterias destas unidades diante do espectador da obra Rennoacute provoca uma falha

no desejo de interligar as cenas visiacuteveis

Figuras 78 e 78a - Projeccedilotildees de Imagem de sobrevivecircncia (Rosacircngela Rennoacute2015)

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Quem observa tais cenas natildeo tem qualquer relaccedilatildeo de intimidade com o aquilo que eacute

exibido donde se perverte tambeacutem a natureza afetiva e particular original deste material

Deslocado de seu tempo num resgate em plena eacutepoca dos meios digitais o diapositivo aponta

para o ruiacutedo no sentido de que afasta-se de padrotildees utilitaacuterios e vigentes da induacutestria da imagem

atual Aleacutem disso ndash e este eacute tambeacutem um aspecto relevante da obra ndash como imagem que enfrenta

um processo de deterioramento no seu proacuteprio uso o slide caminha na direccedilatildeo de uma esteacutetica de

desgaste da precariedade do apagamento numa constante mutaccedilatildeo de suas caracteriacutesticas

fiacutesicas e consequentemente esteacuteticas

226

6 O QUE SUGEREM AS LIGACcedilOtildeES ENTRE RUIacuteDO E IMAGEM

Ao longo deste estudo certos temas emergiram das anaacutelises das obras alguns dos quais

representam tendecircncias observadas nas obras analisadas a influecircncia do acaso como elemento

que contribiu para a formaccedilatildeo de esteacuteticas singulares o valor da materialidade como base da

expressatildeo do ruiacutedo a reapropriaccedilatildeo criacutetica de tecnologias ldquoobsoletasrdquo ou ldquoabandonadasrdquo da

imagem em sua articulaccedilatildeo com uma abordagem arqueoloacutegica da miacutedia e por fim os

movimentos da teoria da imagem que podem nos ajudar a compreender esse universo de

imagens

Tais questotildees perpassam todo o trabalho e satildeo aqui evocadas com o objetivo de oferecer

uma espeacutecie de comentaacuterio final sobre os projetos artiacutesticos que trouxemos A reflexatildeo pode se

somar aos estudos recentes sobre a arte contemporacircnea e suas tendecircncias que discutem o tracircnsito

entre miacutedias a condiccedilatildeo plural da imagem o tensionamento do paradigma indicial o resgate de

teacutecnicas claacutessicas da imagem e a recente valorizaccedilatildeo formal das obras nascidas da exploraccedilatildeo do

erro da falha ou do ruiacutedo

61 O PAPEL CRIATIVO DO ACASO

ldquoMas deixo o destino deixo ao acaso

Quem sabe eu te encontrordquo - Lua e Estrela Caetano Veloso

Associado agrave sua ubiquidade nas mateacuterias sistemas e meios o ruiacutedo possui uma

dimensatildeo que escapa ao controle humano (HAINGE 2013 p94) conservando na sua

manifestaccedilatildeo algo de imprevisiacutevel que podemos associar agrave ordem do acaso Esse componente eacute

parte importante da elaboraccedilatildeo de vaacuterias obras analisadas aqui desempenhando papel

fundamental na proacutepria concepccedilatildeo da imagem e de suas configuraccedilotildees formais Um entendimento

do ruiacutedo que valoriza certa rebeldia como marca saudaacutevel e desejada da tecnologia

227

Esse imprevisiacutevel ndash um agenciamento surgido quando as proacuteprias tecnologias satildeo postas

em funcionamento pelos artistas na combinaccedilatildeo de materiais e ferramentas inusitados ou mesmo

na associaccedilatildeo entre teacutecnicas diversas ndash origina trabalhos bastante diacutespares ligados agrave vertente

ldquoexperimentalrdquo (LENOT 2017a) ldquoexpandidardquo (JUNIOR 2002) natildeo-representacional e ldquonatildeo-

humanardquo (ZYLINSKA 2017a) da fotografia A despeito da especificidade dessas terminologias

todas sugerem a abordagem da fotografia a partir de um caraacuteter processual em obras nas quais a

esteacutetica surge como decorrecircncia de um intenso processo de experiecircncias realizadas nas diferentes

etapas de produccedilatildeo da imagem Se entendemos que a imagem eacute essencialmente um processo

(sujeito a acidentes de toda sorte) a relaccedilatildeo com essa dimensatildeo do imprevisto adquire conotaccedilatildeo

positiva Isso fica evidente nas entrevistas que realizamos para esta tese nas quais termos como

ldquoacasordquo ldquodesconhecidordquo ldquoriscordquo (ou mesmo ldquoerrordquo e ldquoruiacutedordquo) foram citados para afirmar o

papel positivo da imprevisibilidade Ao mesmo tempo osas artistas natildeo atribuem a si mesmosas

o controle riacutegido dos processos criativos embora a maioria possua um consideraacutevel domiacutenio

sobre as teacutecnicas e materiais utilizados Na verdade quanto maior o niacutevel de intimidade com as

tecnologias mais as metodologias satildeo encaradas como abertas adaptaacuteveis maleaacuteveis e podem

ser reinventadas desdobradas Na trajetoacuteria dessas reinvenccedilotildees os acidentes acrescentam

camadas de significaccedilatildeo aos trabalhos

Maueacutes falando dos procedimentos relativos agrave teacutecnica do quimigrama indica

Brincando com esse processo eu descobri uma textura que dava uma ilusatildeo de ceacuteu Ohorizonte te remete agrave paisagem Algumas dessas imagens parecem fotografia por contado material Aiacute tem essa ilusatildeo de que o material te faz pensar numa paisagemfotograacutefica de um lugar que existe mas natildeo existe Eacute a ilusatildeo do processo Um ceacuteu umhorizonte e a mancha tambeacutem neacute Aquilo ali comeccedila a derramar () surge da accedilatildeodos dois juntos (revelador + fixador) que eacute totalmente imprevisiacutevel Porque depende daluz natildeo precisa de laboratoacuterio () de estar numa luz mais forte mais fraca Essasreaccedilotildees vatildeo sendo mais raacutepidas mais lentas e as cores vatildeo surgindo de formaimprevisiacutevel (MAUEacuteS 2017)

Luiz Alberto Guimaratildees avalia que a configuraccedilatildeo padratildeo das maacutequinas fotograacuteficas o

ldquoprogramardquo reduz a intervenccedilatildeo do acaso

Quando eu digo que a gente sabe o que vai sair a gente tem uma vaga ideia Ainda maisquando vocecirc tem muacuteltiplas exposiccedilotildees aquilo vai se superpor vocecirc natildeo tem a menorideia Quando eu digo saber () eacute tudo que vocecirc faz eacute mirar saber que quando vocecirc taacutebotando a maacutequina ali vocecirc natildeo vai pegar o chatildeo vocecirc vai pegar o alto do preacutedio ()Mesmo essas fotos que eu procurava fazer uma fusatildeo com o fundo vocecirc nunca sabeMuitas eu repetia e agraves vezes ficava transparente demais ou agraves vezes ficava pouco ()

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Porque tambeacutem quando a gente mostra o trabalho pronto jaacute taacute editado apurado () masa maacutegica eacute muito isso o resultado eacute sempre a imprevisiblidade (que o aparelhoconvencional trabalha sempre no sentido oposto neacute) Para tirar toda a chance de natildeosair o que vocecirc queria Tanto que agraves vezes se vai fazer foto comum de gente aiacute lsquopuxaalgueacutem piscou cortoursquo porque natildeo podia sair aquilo () Na fotografia vocecirc tem essecampo do acaso que eacute bem grande mas que o projeto da cacircmera tenta limar neacute Eacutefantaacutestico (GUIMARAtildeES 2017)

Para Cris Bierrenbach aceitar que durante a realizaccedilatildeo de um trabalho nem tudo estaacute

previsto eacute parte da metodologia Sobre a seacuterie Febre de 2002 (ver figura 51) comenta ldquoO

trabalho acontece () Natildeo era uma foto qualquer era um rosto Eu tava num movimento de

destruir um rosto destruir uma representaccedilatildeo de identidade () Na cabeccedila tem um

direcionamento mas vai acontecendordquo (BIERRENBACH 2019)

Entler (2000) afirma que ao contraacuterio de vislumbrar na arte somente a expressatildeo

individual centralizada na figura de um sujeito criador podemos entender o acaso como

elemento participativo das obras Os artistas que fazem isso estatildeo interessados no que o autor

denomina ldquopoeacuteticas do acasordquo Segundo ele a poeacutetica estaacute ligada aos procedimentos aos modos

de fazer agraves funccedilotildees da arte Ele se refere ainda ao direcionamento adotado a partir do uso

intencional de uma determinada teacutecnica tecnologia ou mesmo esse direcionamento tomado com

referecircncia a um estilo ou movimento artiacutestico ldquoEacute a poeacutetica que determina as normas de uma

produccedilatildeo artiacutestica suas particularidades operativasrdquo (ENTLER 2000 p48)

Eacute interessante que ao lado de um conhecimento soacutelido das tecnologias empregadas

osas artistas natildeo intencionam a produccedilatildeo de obras que espelhem esse domiacutenio da teacutecnica eles

acolhem prontamente os acidentes e resultados inesperados surgidos no manuseio dessas

teacutecnicas Essa atitude demonstra que haacute uma espeacutecie de deslocamento da importacircncia doda

artista como responsaacutevel exclusivo pela concepccedilatildeo da obra em direccedilatildeo a uma colaboraccedilatildeo que

acontece na interaccedilatildeo dos elementos que compotildeem a proacutepria obra Ou melhor dizendo da

aceitaccedilatildeo de uma funccedilatildeo expressiva originada no medium Estamos diante de uma metodologia

caracterizada pela negociaccedilatildeo entre controle e imprevisto

O acaso natildeo se submete agrave habilidade e reciprocamente a habilidade eacute exatamente aarma que se pode ter contra o acaso para garantir o alcance de um objetivo qualquerTem-se aqui um sentido negativo que hoje estaacute contido na ideia de acidente e diante dosenso comum arte estaacute para criaccedilatildeo como acaso estaacute para a destruiccedilatildeo (ENTLER 2000p9)

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Se o autor fala em destruiccedilatildeo e descontrole nos processos onde o acaso exerce funccedilatildeo

criativa Bierrenbach chega agrave mesma questatildeo e fala sobre a relaccedilatildeo entre miacutedias analoacutegicas e o

encontro com o acaso

No analoacutegico sempre tem um caraacuteter assim do imprevisiacutevel mais forte (lsquoQue vocecirc natildeoconsegue controlar totalmente o resultado neacutersquo) Exatamente Vocecirc natildeo consegue prevernatildeo consegue controlar natildeo tem como voltar atraacutes Eacute claro que eu consigo errar e testarmuitas coisas () fazer uma ldquogororobardquo aqui uma maluquice qualquer no computadorMas eu sempre consigo voltar e eu sempre ldquotocircrdquo com um peacute numa certeza da natildeodestruiccedilatildeo que no analoacutegico natildeo Vocecirc efetivamente tem que destruir coisas pra chegaragravequela imagem () Quando vocecirc transformou ela ela foi destruiacuteda (BIERRENBACH2018)

Entler considera ainda que oa artista traz para o primeiro plano do ato criativo o

processo sem no entanto ter uma consciecircncia definida sobre o resultado buscado O acaso

conteacutem a resposta de uma investigaccedilatildeo de iniacutecio demarcado mas de final incerto A ideia de

aproveitar algo que natildeo se sabia exatamente como seria eacute o princiacutepio norteador de vaacuterias obras

elencadas aqui que investigam por exemplo as inscriccedilotildees do tempo mediante longas exposiccedilotildees

ou o uso da teacutecnica de databending na glitch art a troca das ordens de quiacutemicos no procedimento

do quimigrama o emprego de cacircmeras pinhole (sem lente anel de foco) entre tantas estrateacutegias

desenvolvidas

611 O imprevisiacutevel instala-se por conta do uso desprogramado das tecnologias

A imprevisibilidade que essas obras carregam se torna parte integrante delas exatamente

pelo uso desviado as recodificaccedilotildees os ajustes e reinvenccedilotildees dos meios Utilizando as

tecnologias de maneira alternativa aos padrotildees industriais natildeo se pode prever completamente a

configuraccedilatildeo final dos trabalhos Essa margem de indeterminaccedilatildeo constitui entatildeo uma

caracteriacutestica relevante desses projetos artiacutesticos Entler comenta a relaccedilatildeo entre acaso e modos

de fazer originais

Parece oacutebvio que quando determinamos uma meta a maneira mais segura de atingi-la eacuteter o maacuteximo de controle sobre o processo Se me proponho a fazer um bolo devo saberexatamente a quantidade de cada ingrediente a forma de misturaacute-los o tempo e atemperatura de cozimento e para evitar equiacutevocos recorremos a uma receita Masquando a meta natildeo estaacute previamente configurada de maneira tatildeo riacutegida quando nossoalvo se move quando tentamos nos antecipar a um problema potencial o acaso se tornaum criteacuterio que merece nossa atenccedilatildeo Para a arte assim como para qualquer gecircnese oacaso encontra sua utilidade como uma das mais ricas fontes de diversidade e de

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renovaccedilatildeo que conhecemos Natildeo haacute criaccedilatildeo verdadeira sem desvio (ENTLER 2000p39)

Nos trabalhos de nosso corpus os resultados expressam as escolhas adotadas em cada

processo por cada artista em particular Assim as obras constituem tambeacutem um exerciacutecio formal

e criacutetico dos usos corriqueiros das tecnologias e um tensionamento poliacutetico-esteacutetico para criar

visualidades erraacuteticas plurais e descontiacutenuas considernando sobretudo a dimensatildeo poeacutetica dos

erros falhas e ruiacutedos Bierrenbach estimula a refletir natildeo sobre a tipologia das miacutedias mas sobre

maneiras alternativas de utilizaacute-las

Num certo sentido chega a ser poliacutetico Ludimilla (lsquoSim eacute uma postura poliacutetica de comocolocar a maacutequinavocecirc criar sua proacutepria linguagemrsquo) Num certo sentido ateacutedesacreditar a maacutequina neacute Tirar esse poder da cacircmera As pessoas falam que cacircmeravocecirc tem Natildeo importa que cacircmera eu tenho Importa o que vocecirc pensa importa o quevocecirc vai fazer com aquilo Pode ter ateacute um xereta Vocecirc nem sabe o que eacute um xeretaneacute Uma cacircmera muito de crianccedila da deacutecada de 70 que as crianccedilas apertavam () (lsquoAhuma cacircmera fininharsquo) Eacute de plaacutestico Entatildeo eacute poliacutetico nesse sentido vocecirc desacreditaaquilo vocecirc diz natildeo agravequela imagem correta que as pessoas dizem que eacute a correta queaquilo eacute a foto certa Porque a cacircmera saiu da faacutebrica com essa programaccedilatildeo ()(BIERRENBACH 2018)

612 Caraacuteter processual

Em meio agraves estrateacutegias de desprogramaccedilatildeo podemos dizer que essas obras satildeo marcadas

por um caraacuteter processual em que suas configuraccedilotildees plaacutesticas carregam os traccedilos das

metodologias adotadas Aqui o termo ldquoprocessualrdquo eacute empregado de um ponto de vista teacutecnico e

metodoloacutegico pois os trabalhos apresentam vestiacutegios de seus materiais Pixels luzes gratildeos

pinceladas frames Os gestos dosdas artistas na construccedilatildeo dessas obras tais como borrotildees

arrastos sombras deformaccedilotildees sobreposiccedilotildees riscos manchas e quaisquer intervenccedilotildees

praticadas nos objetos artiacutesticos Note-se que novamente alcanccedilamos a questatildeo do ruiacutedo como

fenocircmeno (manifesto) e conceito (princiacutepio criativo)

Como quem vecirc input e output natildeo necessariamente vecirc o processo (FLUSSER 2011)

outra maneira de indicar suas etapas eacute por exemplo revelar os elementos compositivos das

obras incluindo em sua estrutura de apresentaccedilatildeo os equipamentos (desnudando modos

operativos e mecanismos de funcionamento) como Rosacircngela Rennoacute e Maueacutes quando

apresentam suas cacircmeras e dispositivos de imagem ou exibir os materiais (como Claire Strand

que expotildee junto agraves pinturas derivadas de fotografias tubos de tinta pinceacuteis e fotos originais) ou

231

no projeto para The Wilderness Downtown (ver figuras 1 a 6) em que a maacutequina que fabrica os

postais gerados digitalmente a Wilderness Machine (figura 7) eacute exibida em funcionamento

Essas estrateacutegias nos lembram que cada miacutedia possui singularidades e codificaccedilotildees (perceptivas

poliacuteticas e esteacuteticas) que orientam nossas interpretaccedilotildees e satildeo postas em jogo na estrutura dessas

obras muitas vezes com propoacutesito criacutetico

Ou seja estamos aqui defendendo que seja relevante para o corpus escolhido o fato de

o acaso desempenhar um papel preponderante na elaboraccedilatildeo de esteacuteticas imprevistas natildeo-

convencionais acrescentando complexidade e ambiguidade a muitas delas E que a relaccedilatildeo entre

acaso e criaccedilatildeo ajude a repensar as concepccedilotildees sobre a imagem somando-se agraves reflexotildees de

outros autores e autoras sobre os limites e expansotildees desse campo ndash como encontramos por

exemplo nas conceituaccedilatildeo da ldquoimagem pobrerdquo (Steyerl) do erro (Cheacuteroux) da glitch art

(Menkman) da ldquopoeacutetica dos errosrdquo (Fontcuberta) e da ldquofotografia natildeo-humanardquo (Zylinska)

Nossa contribuiccedilatildeo eacute que passemos a incluir o acaso como elemento integrante dos aspectos que

constituem a pluralidade das esteacuteticas hiacutebridas experimentais etc valorizadas pela combinaccedilatildeo

entre a imprevisibilidade e o domiacutenio das teacutecnicas

O acaso opera de maneiras variadas nas obras e procedimentos de cada artista Por

exemplo de maneira geral a obra de Rosacircngela Rennoacute eacute marcada por um desejo de redescobrir

materiais e equipamentos antigos arquivos ou objetos cotidianos com especial atenccedilatildeo ao

repertoacuterio de miacutedias visuais dos seacuteculos XIX e XX Uma disposiccedilatildeo arqueoloacutegica voltada a essas

tecnologias eacute manifestada em seus trabalhos sem que haja uma verve saudosista neste meacutetodo

Em Imagem de sobrevivecircncia (2015) (ver figuras 77 78 e 78a) a projeccedilatildeo simultacircnea de slides

sem relaccedilatildeo temaacutetica ou cronoloacutegica preacutevia tira proveito do acaso na medida em que a imagem

final eacute interaccedilatildeo entre vaacuterias unidades sem no entanto resultar de uma simples operaccedilatildeo de

adiccedilatildeo Aleacutem disso e conforme afirma a proacutepria artista144 essa projeccedilatildeo estaacute sempre sendo

alterada nunca se repetindo Numa espeacutecie de praacutetica de bricolagem (que se repete em vaacuterios

outros trabalhos citados ou natildeo em nossa tese) ela articula conjuntamente suportes estruturas e

tecnologias sem que se possa ser antevisto rigidamente o resultado final

A disposiccedilatildeo de incorporar arranjos trazidos pelos materiais ou pelo comportamento de

estruturas originais operando como princiacutepio metodoloacutegico baseado no acaso tambeacutem se faz

presente nas obras de Joseacute Luiacutes Neto (os quimigramas o trabalho com fotografias

144 Ver httpwwwrosangelarennocombrobrassobre62 Acesso em 06062020

232

ldquoencontradasrdquo) Dirceu Maueacutes (nos tempos imprecisos das pinholes ou mesmo nas instalaccedilotildees

com imagens fugidias natildeo fixadas em suportes que dependem do olhar do puacuteblico para adquirir

vida na interface entre viacutedeo foto e cinema145) Cris Bierrenbach (no aproveitamento de espelhos

como daguerreoacutetipos ldquomal-sucedidosrdquo na imagem revelada pelo desgaste de coacutepias) na glitch

art de Sabato Visconti e Rosa Menkman que desarranjam arquivos e softwares quando Caacutessio

Vasconcellos fotografa frames de produccedilotildees do cinema singularizando-os atraveacutes de uma fixidez

que lhes era estranha Ou ainda num procedimento similar nas fotografias de Jason Shulman

tambeacutem de filmes

62 MATERIALIDADE

Em nossas reflexotildees mencionamos tambeacutem a questatildeo da materialidade como

preocupaccedilatildeo de alguns artistas Sua importacircncia pode estar tanto na formataccedilatildeo de uma obra cuja

fisicalidade eacute evidente em suas dimensotildees formas cores texturas etc ou ser tambeacutem

interpretada como marcas visuais deixadas pelas miacutedias nos seus produtos Em meio a diversos

debates (questionaacuteveis como jaacute visto) sobre a impermanecircncia ou a imaterialidade das imagens

digitais evocamos a materialidade das obras como aspecto relevante para a arte contemporacircnea

Uma das correntes de pensamento que se volta para o assunto eacute o campo da

materialidades da comunicaccedilatildeo que tem como referecircncia principal o trabalho de Hans Ulrich

Gumbrecht (2010) e que propotildee recolocar no centro da anaacutelise das ciecircncias humanas e nas artes

a importacircncia da dimensatildeo material dos artefatos culturais Segundo Gumbrecht as Humanidades

conferiam demasiada importacircncia agrave interpretaccedilatildeo ao sentido ao logos numa supervalorizaccedilatildeo do

conhecimento fruto do intelecto em detrimento da experiecircncia e do saber adquiridos pelos

sentidos ou seja uma percepccedilatildeo haacuteptica Entatildeo seria tarefa de uma nova proposta

epistemoloacutegica posicionar lado a lado a relaccedilatildeo entre sentido e dimensatildeo material das ldquocoisas do

mundordquo investigando como o sentido eacute evocado tambeacutem pela ldquopresenccedilardquo fiacutesica dos objetos146

No entanto Gumbrecht natildeo propotildee um afastamento ou descarte da noccedilatildeo de sentido ou uma

145 A exemplo da obra Tambores de Luz - Estaccedilatildeo Cf MAUES Dirceu Tambores de Luz - Estaccedilatildeo (Campinas)Resgate - Revista Interdisciplinar de Cultura Campinas v26 n2 [36] p161-167 juldez 2018

146 Logo no comeccedilo de seu livro Gumbrecht define rapidamente que ldquocoisas do mundordquo satildeo todos os objetosdisponiacuteveis em ldquopresenccedilardquo um conceito que se refere a algo tangiacutevel acessiacutevel ao ser humano pelas matildeos e que nosafeta na superfiacutecie do corpo A ldquopresenccedilardquo indica uma noccedilatildeo espacial donde a ldquoproduccedilatildeo de presenccedilardquo eacute qualquerprocesso acontecimento ou evento onde se verifica o impacto de objetos sobre seres humanos Cf Gumbrecht2010 p13

233

reduccedilatildeo de sua importacircncia ele sugere uma forma alternativa de pensar a cultura (sobretudo a

arte) voltada agrave presenccedila das coisas na nossa relaccedilatildeo com o mundo atravessada por essa

fisicalidade dos materiais Natildeo se trata de ldquo() uma simples substituiccedilatildeo do sentido pela

presenccedila Em uacuteltima anaacutelise () uma relaccedilatildeo com as coisas do mundo que possa oscilar entre

efeitos de presenccedila e efeitos de sentidordquo (GUMBRECHT 2010 p15) Em seguida o autor

completa

() Natildeo existe nada de intrinsecamente errado com a produccedilatildeo de sentido aidentificaccedilatildeo de sentido e o paradigma metafisico O que nossas modestas rebeliotildeesacadecircmicas tentavam problematizar era mais do que tudo uma configuraccedilatildeoinstitucional no acircmbito da qual o domiacutenio absoluto das questotildees relacionadas com osentido havia levado haacute muito tempo ao abandono de todos os outros tipos defenocircmenos e questotildees Como uma consequecircncia dessa situaccedilatildeo nos viacuteamosconfrontados com a ausecircncia de conceitos que nos teriam permitido lidar com o quechamaacutevamos de materialidades de comunicaccedilatildeo (GUMBRECHT 2010 p37)

Desse modo as materialidades da comunicaccedilatildeo pensam a cultura atraveacutes de uma

abordagem natildeo hermenecircutica natildeo metafiacutesica e natildeo cartesiana A partir dos conceitos aristoteacutelicos

de ldquoformardquo e ldquosubstacircnciardquo Gumbrecht (2010 p37) propotildee uma questatildeo baacutesica como as miacutedias e

as materialidades podem ter impacto no sentido que carregam A contenda relaciona-se

diretamente com as discussotildees sobre tecnologias da imagem resgatadas modificadas sabotadas

enfim tensionadas em seus aspectos fiacutesicos como estrateacutegia para incrementar o significado das

obras Por que determinado artista sai da materialidade fotograacutefica e finaliza a obra no formato

pictoacuterico como faz Clare Strand em The Discrete Channel with Noise (ver figuras 68 a 71) por

exemplo Nesse trajeto estatildeo envolvidas noccedilotildees de memoacuteria afetividade singularidade temporal

associadas agrave fotografia convencional e ainda questotildees formais ligadas agrave captura (luz

composiccedilatildeo inscriccedilatildeo temporal traccedilo indicial etc) que satildeo relativizadas quando a imagem eacute

toda marcada como se fosse ser transmitida via teleacutegrafo Assistimos a uma transformaccedilatildeo natildeo soacute

fiacutesica mas formal que remete ao pixel da imagem digital que por sua vez eacute traduzido na

linguagem pictoacuterica Cada uma dessas materialidades responde a epistemologias distintas que

carregam tambeacutem expectativas de percepccedilatildeo diferentes que aparecem todas cruzadas de modo a

bagunccedilar misturar esses territoacuterios separados Como maneira de reafirmar essas condiccedilotildees

ressignificadas dos materiais empregados Clare Strand expotildee essas ldquopinturas fotograacuteficasrdquo como

quadros (natildeo em telas mas em papel) sem que elas deixem de remeter agrave esteacutetica pixelizada do

computador nem tatildeo pouco agraves fotos originais Ela tambeacutem cria um ambiente que encoraja a

relaccedilatildeo do puacuteblico com essa nova configuraccedilatildeo pictoacuterica das imagens expondo os potes da tinta

234

utilizada os pinceacuteis mas tambeacutem as fotos originais (marcadas conforme a metodologia utilizada

para a suposta transmissatildeo) e outros objetos que sugerem que sob a interferecircncia do ruiacutedo as

mateacuterias adquirem novas formas147

A seacuterie Nuptias (2017) de Rosacircngela Rennoacute (figuras 72 73 74 75 76 e 79) tambeacutem

possui um forte sentido material jaacute que as fotografias utilizadas estatildeo jaacute desgastadas pelo tempo

(e tambeacutem por terem sido coletadas em mercados de pulgas) sendo ainda submetidas a processos

de colagem recebendo riscos e anotaccedilotildees tinta ou objetos de materiais como papel madeira

borracha Cada um desses elementos sofre a accedilatildeo do tempo de maneira diversa possui uma

fragilidade sendo suscetiacutevel agrave luz umidade poeira e temperatura especiacuteficas e todos esses

aspectos contribuem para sugerir uma ideia de ruiacutena de fracasso e certo absurdo que rondam o

universo das relaccedilotildees afetivas e especialmente o casamento Em Experiecircncia de cinema

(2004)148 a mesma artista brinca com a materialidade da imagem dando-lhe uma fraacutegil sobrevida

atraveacutes da projeccedilatildeo numa cortina de fumaccedila O procedimento lembra-nos tambeacutem que a imagem

guarda sempre um componente de ilusatildeo ao qual natildeo podemos aceder totalmente e que neste

caso podemos tocar apenas atraveacutes do aparato que a faz surgir A experiecircncia do cinema eacute

truncada pois as imagens utilizadas satildeo fotografias de grandes temas (tratados frequentemente no

cinema) como ldquofamiliacuteardquo ldquoguerrardquo e ldquoamorrdquo e entre a exibiccedilatildeo das fotos haacute paradas do

dispositivo criando-se lacunas que impedem uma estruturaccedilatildeo narrativa

147 Para ver a montagem da exposiccedilatildeo The Discrete Channel with Noise ver httpsvimeocom294026015 Acessoem 11062020148 Disponiacutevel em httpwwwrosangelarennocombrobrasexibir241 Acesso em 11062020

235

Figura 79 - Vista da montagem da seacuterie Nuptias (2017) de Rosacircngela Rennoacute

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

A mesma disposiccedilatildeo de concentrar a materialidade atraveacutes dos aparelhos e objetos

escolhidos na montagem das obras (e na sua elaboraccedilatildeo) identificamos nos trabalhos de Dirceu

Maueacutes Joseacute Luiacutes Neto Caacutessio Vasconcellos Luiz Alberto Guimaratildees Cris Bierrenbach Cada

um agrave sua maneira escolheu teacutecnicas equipamentos e materiais que contribuem para simbolizar os

temas e conceitos presentes nas obras e que possuem tambeacutem um significado dentro da proacutepria

histoacuteria das tecnologias da imagem Natildeo eacute agrave toa que vaacuterios desses artistas gostam de trabalhar

com miacutedias analoacutegicas reformatadas manualmente ou como diz Guimaratildees (2014) que satildeo da

ordem de uma ldquoartesaniardquo As cacircmeras que ele utiliza satildeo todas diferentes em formato e isso

confere agraves imagens criadas com elas diferentes resultados no questionamento da perspectiva

geomeacutetrica que caracteriza seu trabalho A materialidade especiacutefica de cada dispositivo carrega

significados distintos sobre o tensionamento do paradigma monocular da fotografia

() as maacutequinas fotograacuteficas que construo e utilizo surgem quase sempre a partir de umaideia preacutevia de um projeto que pretendo realizar (ocorre tambeacutem o oposto agraves vezesreutilizo uma das maacutequinas jaacute construiacutedas em um novo projeto que surge a partir dasintaxe que aquela maacutequina propicia) (GUIMARAtildeES 2014 p29)

As fotografias panoracircmicas de Dirceu Maueacutes transmitem a sensaccedilatildeo de mobilidade

exatamente pelos borrotildees produzidos na captura realizada durante o movimento O aspecto da

236

imagem toda cortada por linhas verticais resulta da abertura em fenda da cacircmera usada e da

mesma maneira essas imagens transmitem o processo de integraccedilatildeo dos materiais utilizados O

que vemos nelas satildeo modos muito particulares de o movimento se pronunciar na superfiacutecie da

imagem

Essas obras permitem interpretar a imagem natildeo apenas atraveacutes de sua condiccedilatildeo oacutetica

mas apelam ao nosso corpo em diferentes modos de tatilidade Segundo Gumbrecht (2010 p39)

toda forma de comunicaccedilatildeo ldquotocardquo atraveacutes de seus elementos materiais nossos corpos mas o faz

de maneiras variadas e especiacuteficas de modo que se em alguns projetos a dimensatildeo material eacute

mais pronunciada na forma de imagem-objeto em outras as estruturas formadoras da imagem

representam seu lado fiacutesico Mesmo nos trabalhos em glitch art o componente material natildeo estaacute

ausente ndash ateacute porque jaacute falamos sobre como a materialidade eacute entendida no acircmbito das novas

miacutedias a partir dos estudos de software

As diferenccedilas no tratamento ou na expressatildeo da materialidade devem-se a variaccedilotildees

entre ldquoefeitos de sentidordquo e ldquoefeitos de presenccedilardquo De acordo com Gumbrecht a relaccedilatildeo entre

intensidade material e forccedila do sentido se daacute de maneira desigual nos objetos artiacutesticos numa

ldquotensatildeordquo numa ldquooscilaccedilatildeordquo (sem nunca se separarem) Os efeitos de presenccedila tambeacutem satildeo

efecircmeros e condicionados pela interpretaccedilatildeo preacutevia que normalmente tentamos dar agraves obras Mas

natildeo pensemos que a importacircncia do sentido e da presenccedila atingem um equiliacutebrio

A relaccedilatildeo entre efeitos de presenccedila e efeitos de sentido tambeacutem natildeo eacute uma relaccedilatildeo decomplementaridade na qual uma funccedilatildeo atribuiacuteda a cada uma das partes em relaccedilatildeo agraveoutra daria agrave co-presenccedila das duas a estabilidade de um padratildeo estrutural Ao contraacuteriopodemos dizer que a tensatildeooscilaccedilatildeo entre efeitos de presenccedila e efeitos de sentido dotao objeto de experiecircncia esteacutetica de um componente provocador de instabilidade edesassossego (GUMBRECHT 2010 p137)

Quando afirma essa tensatildeo entre sentido e materialidade nos objetos artiacutesticos o autor

resolve a diferenccedila que notamos nos trabalhos citados a respeito de um espaccedilo mais pronunciado

que se confere aos materiais na forma das miacutedias escolhidas Em alguns a dimensatildeo material

estaacute mais explicitamente articulada que em outros mas todos tecircm na materialidade um aspecto

que contribui significativamente para as sensibilidades propostas por seus autores e autoras

Mesmo quando os aspectos materiais relacionados agrave escolha da miacutedia (ou das miacutedias) a forma de

apresentaccedilatildeo e as configuraccedilotildees fiacutesicas (dimensatildeo cor volume textura etc) natildeo satildeo

mencionados como vetores de significado tais caracteriacutesticas satildeo responsaacuteveis pela maneira

237

como percebemos os trabalhos Eacute nessa presenccedila fiacutesica que podemos nos relacionar com tais

obras

Um bom exemplo dessa tensatildeo estaacute colocado na experiecircncia do filme interativo The

Wilderness Downtown de Chris Milk A participaccedilatildeo do usuaacuterio depende de informaccedilotildees

pessoais retiradas de experiecircncias concretas de suas memoacuterias que satildeo entatildeo utilizadas na

construccedilatildeo do filme Mesmo numa narrativa virtual haacute natildeo soacute uma plataforma fiacutesica (hardware

redes) mas a obra ganha continuidade na maacutequina que imprime os postais gerados no filme a

Wilderness Machine Nessas duas etapas os ldquoefeitos de sentidordquo e ldquoefeitos de presenccedilardquo estatildeo

separados no tempo e espaccedilo mas estatildeo ambos presentes

Para alguns projetos artiacutesticos que incluiacutemos neste trabalho a condiccedilatildeo material das

obras associadas agraves tecnologias escolhidas eacute mais proeminente como para Cris Bierrenbach que

considera bastante importante a materialidade em seus trabalhos jaacute que essa questatildeo para ela estaacute

ligada agrave proacutepria singularidade de cada obra Seus processos de elaboraccedilatildeo satildeo lentos e o

resultado final adquire essa importacircncia porque a configuraccedilatildeo definitiva expressa tambeacutem esse

tempo de ldquomaturaccedilatildeordquo

Agora eu tou pensando em pessoas que eu conheccedilo que trabalham assim vocecirc percebeque as pessoas tecircm uma relaccedilatildeo () satildeo relaccedilotildees individuais com cada trabalho () enatildeo eacute com cada trabalho eacute com cada coacutepia com cada objeto criado Cada um eacute uacutenicotem uma feiccedilatildeo muito proacutexima pessoal mesmo Num eacute uma coisa tipo lsquovai eumando aqui pelo Wetransfer e o sujeito laacute imprime tudo pra mimrsquo () As imagensdigitais natildeo satildeo materiais () se perde um certo preciosismo Pra mim eacute bemimportante Eu sei que isso natildeo tem valor comercial () mas pra mim tem () Eacute umacoisa que eu natildeo consigo explicar Eacute quase afetivo () Quase natildeo eacute afetivo Eu tenhofotos que foram feitas digitalmente que eu vendi muito melhor que satildeo maisvalorizadas Mas eu agraves vezes olho fotos que estatildeo do meu lado e que natildeo satildeo tatildeosignificantes (num sentido de valor de mercado) e eu tenho um afeto por elas que eacutedifiacutecil de explicar (BIERRENBACH 2018)

As palavras da artista ecoam um sentimento que Gumbrecht (2010 p135) sublinha

como traccedilo da experiecircncia esteacutetica que escapa agrave ordenaccedilatildeo racional quando provoca ldquoEm vez de

termos de pensar sempre e sem parar no que mais pode haver agraves vezes parecemos ligados num

niacutevel da nossa existecircncia que pura e simplesmente quer as coisas do mundo perto da nossa

pelerdquo

Haacute uma beleza nas afirmaccedilotildees de Gumbrecht a respeito do jogo entre componente

material e o sentido das obras artiacutesticas e para noacutes as preocupaccedilotildees do autor aproximam-se de

muitas das questotildees presentes nos estudos sobre o ruiacutedo Enquanto Gumbrecht fala de

materialidade sentida em termos de ldquointensidaderdquo evoca a ldquopresenccedilardquo como algo espacial e as

238

propriedades fiacutesicas das coisas que despertam nossos sentidos natildeo podemos deixar de lembrar do

potencial anaacuterquico desestabilizador de ruptura e de presenccedila (nem sempre manifesta poreacutem

inerente) que caracteriza o ruiacutedo

Ao longo de seu texto Gumbrecht comenta sobre aspectos da materialidade literaacuteria

musical (e de outras artes) num percurso bastante proacuteximo ao empreendido por Hainge (2013)

para falar sobre o ruiacutedo o que indica que as anaacutelises destes dois autores estatildeo afinadas sobre a

preocupaccedilatildeo com a expressividade e o fato de que em muitos casos a arte trabalha essa

expressividade atraveacutes de condiccedilotildees materiais que natildeo podem ser constrangidas por uma

racionalidade que as explique Disso podemos concluir que a materialidade trabalhada sob a

chave conceitual do ruiacutedo daacute origem a uma expressividade ou a formas de expressatildeo melhor

dizendo que se instituem por si mesmas como significantes

63 OLHAR RETROSPECTIVO A PROCESSOS CLAacuteSSICOS DA FOTOGRAFIA

Vaacuterios dos trabalhos que trouxemos em nosso corpus empregam tecnologias antigas da

imagem Os trabalhos aqui analisados que se valem da cacircmara escura da imagem estenopeica da

goma bicromatada do daguerreoacutetipo e por extensatildeo de tecnologias jaacute mais recentes mas pouco

utilizadas (ateacute pela descontinuidade de sua fabricaccedilatildeo como o slide) satildeo empregados de forma

criacutetica Os procedimentos satildeo reinventados a cacircmera escura tem sua geometria problematizada

referindo muacuteltiplas perspectivas ou passsa a referir tempos alargados e varrer ambientes no

decorrer de uma duraccedilatildeo (ampliando o instante de tal modo que percebemos as diversas accedilotildees

ocorridas no espaccedilo) ou ainda empregada para produzir imagens fugidias existentes apenas sob

a convergecircncia da arquitetura do dispositivo quando se encontra com o olhar do observador A

daguerreotipia a goma bicromatada o cianoacutetipo o papel salgado satildeo utilizados por Cris

Bierrenbach na exploraccedilatildeo de suas propriedades materiais e plaacutesticas e em desencontro com os

propoacutesitos originais O slide eacute apropriado para sugerir a acumulaccedilatildeo de visotildees atraveacutes do

processo de colagem (em Cris Bierrenbach149) ou a saturaccedilatildeo do olhar contemporacircneo cansado

da enxurrada de imagens em circulaccedilatildeo (em Rosacircngela Rennoacute) levando o formato para aleacutem da

remissatildeo afetiva iacutentima e familiar ao qual ficou associado

Tais usos alternativos das tecnologias nos remetem agraves praacuteticas artiacutesticas que levam o

campo da imagem a constantes reinvenccedilotildees Fontcuberta (2010) fala sobre a ideia de

149 httpscrisbierrenbachcompessoalfotocolagenscolagem Acesso em 05052020

239

contrariedade aos usos corriqueiros de teacutecnicas ressaltando que essa questatildeo desafia paradigmas

como a funccedilatildeo representativa da imagem

Em geral essa teoria do erro e do defeito de trabalhar ldquocontrardquo os materiais e suasregras que regeu muitos acircmbitos da vanguarda mais que aperfeiccediloar um coacutedigo derepresentaccedilatildeo o que normalmente fazia era questionaacute-lo Os dadaiacutestas comeccedilaram abrincar com o acaso e o acidental seguiram-se os tachistas e os expressionistas abstratoscom a teacutecnica do dripping em seguida a ciberneacutetica introduziu a noccedilatildeo de ldquoruiacutedordquo quefoi rapidamente aproveitada por muitos artistas No acircmbito da fotografia temos a escolagenerativa desenvolvida em Bielefeld a partir de 1967 os quimigramas de PierreCordier mostram o conflito entre controle e imprevisibilidade da mesma forma que osluminogramas de Karl Martin Holzhaumluser ou as Pinhole Structures (estruturasestenopeicas) de Gottfried Jaumlger O meacutetodo natildeo se apoiava em uma preacute-visualizaccedilatildeo queantecipasse os resultados mas no trial and error em um processo de experimentaccedilotildeessucessivas alterando as circunstacircncias no momento para selecionar finalmente osresultados valiosos (FONTCUBERTA 2010 p73)

As reflexotildees do autor sobre metodologias experimentais da imagem podem ser colocados

ao lado das de Fatorelli e Carvalho (2015) e ainda Junior (2002) que reconhecem entre as

praacuteticas plurais de uso do meio fotograacutefico esse olhar tardio voltado aos dispositivos Arlindo

Machado (1997) refletindo sobre a programaccedilatildeo dos aparelhos na obra de Flusser lembra que o

campo da arte sempe nos daacute provas de que as maneiras de apropriaccedilatildeo das tecnologias satildeo

constantemente atualizadas o que esse retorno agraves praticas analoacutegicas vem atestar Numa revisatildeo

criacutetica do pensamento de Flusser Machado comenta

Ora que haacute limites de manipulabilidade em toda maacutequina ou processo teacutecnico eacute algo deque soacute podemos fazer uma constataccedilatildeo teoacuterica pois na praacutetica esses limites estatildeo emcontiacutenua expansatildeo Que aparelhos suportes ou processos teacutecnicos poderiacuteamos dizer quejaacute tiveram esgotadas as suas possibilidades () Sempre existiratildeo potencialidadesdormentes e ignoradas que o artista inquieto acabaraacute por descobrir ou ateacute mesmo porinventar ampliando portanto o universo das possibilidades conhecidas de determinadomeio (MACHADO 1997)

No rastro da filosofia flusseriana podemos dizer que haacute diferentes graus e modalidades

de ldquojogordquo contra o ldquoaparelhordquo que fazem aparecer o ruiacutedo e nesse espaccedilo se incluem as

remodelagens e reprogramaccedilotildees dos aparelhos analoacutegicos As interlocuccedilotildees com materiais e

praacuteticas da pintura A proximidade com a linguagem do cinema exercitada por meio de recursos

fotoquiacutemicos Ou um certo devir cinema manifesto na utilizaccedilatildeo contraacuteria aos paracircmetros de

fabricaccedilatildeo de suportes e equipamentos fotograacuteficos

Tambeacutem verificamos como modos de desprogramar os aparelhos de imagem o uso

combinado de meios antigos e recentes Por exemplo as fotografias realizadas com pinholes por

Dirceu Maueacutes buscam uma ressignificaccedilatildeo do formato panorama como modalidade visual de

investigaccedilatildeo da paisagem Ao considerar o panorama um formato marginal um espeacutecie de preacute-

240

cinema Maueacutes valoriza justamente o movimento na imagem (atributo do cinematograacutefico)

atraveacutes do registro com as pinholes em movimento traccedilando assim uma linha de continuidade

entre fotografia estenopeica panorama e cinema

Bierrenbach quando utiliza a fotografia para montar um viacutedeo passa da imagem fixa agrave

imagem moacutevel explorando o contato entre essas duas instacircncias atraveacutes da montagem de

fotografias que registram o aparecer e o desaparecer de casas atraveacutes dos vestiacutegios do

movimento do equipamento Caacutessio Vasconcellos faz o trajeto inverso congelando a imagem que

era moacutevel na passagem entre viacutedeo e Polaroid Interrompendo um fluxo que nos faz lembrar que

em sua forma mais baacutesica o cinema eacute um fluxo de unidades de imagens fixas cuja velocidade de

exibiccedilatildeo cria a ilusatildeo do movimento

As obras da glitch art criadas atraveacutes de computadores levam essa continuidade a um

patamar ainda maior jaacute que transferidas para dentro do computador referecircncias diversas satildeo

trabalhadas atraveacutes de misturas e rearranjos os mais variados a ponto de agraves vezes natildeo ser

possiacutevel determinar singularidades entre os conteuacutedos Fotografia viacutedeo graacuteficos tudo se

mistura Ou Shulman que quando registra um filme inteiro ao longo de sua duraccedilatildeo tambeacutem

aproxima foto e cinema

631 Arqueologia da miacutedia

Essas estrateacutegias criativas reforccedilam a ideia de continuidade entre as tecnologias da

imagem (e natildeo de ruputra) Tal compreensatildeo estaacute presente na abordagem arqueoloacutegica da miacutedia

que olha para as miacutedias atuais procurando nelas traccedilos de miacutedias anteriores numa visada que

relativiza as noccedilotildees de velho e novo ateacute porque compreende as tecnologias a partir de uma

perspectiva relacional (natildeo sucessiva progressiva como se um meio superasse o anterior em

eficiecircncia qualidade etc) A arqueologia da miacutedia busca observar a cultura digital localizando

nela seus viacutenculos com a fotografia o cinema a televisatildeo o viacutedeo a propaganda a escrita

Enquanto as ldquonovas miacutediasrdquo alteram nossas rotinas as velhas miacutedias nunca nos abandonam

realmente pois reaparecem satildeo remediadas econtrando novos usos contextos e adaptaccedilotildees

(PARIKKA 2012 p3)

Se olharmos as obras agraves quais nos reportamos perceberemos como satildeo instrumentais as

proposiccedilotildees deste campo de pensamento sobre os meios de comunicaccedilatildeo e suas tecnologias

porque identificamos nas estrateacutegias artiacutesticas uma troca constante de referecircncias e elementos de

241

meios distintos muitas vezes separados cronologicamente Acoplagens entre computadores

softwares e hardwares sistemas de projeccedilatildeo imagens digitais scanners filtros adicionados por

meio de apps em diaacutelogo com formatos como a Polaroid o negativo 35mm a pintura o

daguerreoacutetipo o dispositivo cinematograacutefico o panorama o viacutedeo

Sabato Visconti que lanccedila matildeo de ldquoequipamentos obsoletos para fazer arterdquo

(VISCONTI 2019) utiliza como referecircncia para algumas obras videogames dos anos 1990150

dissolvendo formas alterando os movimentos dos personagens (aplicando efeito de loop)

inserindo defeitos nos graacuteficos falhas nos elementos que compotildeem o cenaacuterio dos jogos

intervindo nessa esteacutetica de um grafismo primitivo (cujas formas retiliacuteneas quadradas e os

movimentos bruscos dos games em 2D contrastam radicalmente com o volume das formas a

reproduccedilatildeo de sons o uso do recurso ldquocacircmera subjetivardquo que conferem realismo e efeito imersivo

aos games atuais em 3D) O processo consiste em corromper a memoacuteria ROM do jogo (memoacuteria

com dados armazenados para leitura) Dirigindo um gesto artiacutestico a um dos produtos mais

caracteriacutesticos da induacutestria do entretenimento Visconti ultrapassa a fronteira do jogador

convencional limitado pelos comandos que o sistema original lhe deixa executar e passa a

ocupar o lugar de reprogramador transformando os games em espaccedilos de pura contemplaccedilatildeo do

olhar forjando narrativas nas quais natildeo existe um objetivo final a ser alcanccedilado mas onde a

fraacutegil organizaccedilatildeo dos quadros sugere uma aproximaccedilatildeo com a montagem cinematograacutefica As

formas de games antigos vecircm habitar a linguagem informaacutetica convertendo-se em objetos

esteacuteticos Uma ldquomiacutedia-zumbirdquo (PARIKKA 2012) que ressucita via computador

150 Ver por exemplo No country for Donkey Kong (httpswwwsabatoboxcomrom-corruption-no-country-for-dk) eGlitching Sonic the Hedgehog 3 (httpswwwsabatoboxcomsonic-the-hedgehog-3-rom-corruption) Acesso em05052020

242

Figura 80 - Trechos de No country for Donkey Kong (Sabato Visconti)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

A arqueologia da miacutedia adota uma visatildeo histoacuterica dos meios e permite-nos verificar

conexotildees entre formas visuais antigas e recentes Ainda tomando como exemplo os trabalhos de

Sabato Visconti com videogames tratam-se de obras natildeo produzidas para os circuitos

convencionais de exibiccedilatildeo audiovisual como festivais salas de cinema ou afins mas que

estabelecem uma ligaccedilatildeo formal com o cinema A maneira como No country for Donkey Kong

(figura 80) estrutura-se ndash trechos que lembram frames com mudanccedilas de cenaacuterio sugerindo uma

narrativa fragmentada (ou a ausecircncia de uma linearidade) movimentos forjados e repetitivos dos

personagens ndash permiti-nos estabelecer uma identidade entre a linguagem da miacutedia digital e

movimentos cinematograacuteficos alternativos agrave narrativa claacutessica Como nos lembra Parikka (2012)

Lev Manovich (2001) situa o advento das ldquonovas miacutediasrdquo exatamente como herdeiras de

caracteriacutesticas de meios anteriores conferindo especial atenccedilatildeo ao cinema sovieacutetico dos anos

1920 em suas anaacutelises Essa cinematografia eacute marcada por aspectos formais como a natildeo-

linearidade a relaccedilatildeo natildeo-diegeacutetica entre som e imagem (filmes mudos com trilha sonora de

acompanhamento) uma montagem assentada no choque visual entre planos natildeo sequenciais que

criam metaacuteforas visuais a partir de conteuacutedos natildeo diretamente relacionaacuteveis151 Se olharmos para

as peccedilas de Visconti encontramos uma tendecircncia a certa dispersatildeo perceptiva que pode ser vista

como desdobramentos da natildeo-linearidade o excesso de informaccedilotildees visuais (tambeacutem presente no

estilo da montagem sovieacutetica) e o movimento repetitivo do gif como caracteriacutesticas tributaacuterias

natildeo apenas do cinema russo mas ateacute do cinema de atraccedilotildees (que tambeacutem se distinguia pelo

151 Como por exemplo a imagem de um pavatildeo associada a de um poliacutetico em Outubro (Serguei Eisenstein1927)

243

caraacuteter manipulado espetacular) e ainda com o cinema de animaccedilatildeo As trucagens a

manipulaccedilatildeo de conteuacutedos a praacutetica do remix (acumulando referecircncias de domiacutenios variados) a

tendecircncia dispersiva a fragmentaccedilatildeo da informaccedilatildeo satildeo marcas da cultura informaacutetica que

podem ser interpretadas na arte de Visconti como reminiscecircncias tardias dessas cinematografias

ao mesmo tempo que conservam ligaccedilotildees com o viacutedeo quando ao dissover o conteuacutedo das

imagens forccedila-nos a olhar para seus elementos formadores (num exerciacutecio de metalinguagem)

Num recuo ainda mais amplo em busca de formas visuais preacute-cinematograacuteficas brinquedos

oacuteticos como o fenascitoscoacutepio taumatroacutepio e praxinoscoacutepio ldquocareciam de narratividade linear e

suas estruturas em loop de gestos simples performavam um eterno retorno do mesmordquo (DULAC

amp GAUDREAULT apud PARIKKA 2012 p28) exatamente a sensaccedilatildeo causada pelo trabalho

de Visconti com os videogames

No country for Donkey Kong eacute uma simbiose de cinema e jogo (cujo tiacutetulo lembra No

country for Old Men de Ethan e Joel Cohen) que estabelece pontos de contato formais e

discursivos entre as vaacuterias miacutedias agraves quais a obra remete Mas promove essa mistura de forma

irocircnica esvaziando a proporccedilatildeo interativa do jogo em troca de uma disposiccedilatildeo contemplativa

(pois os personagens natildeo obedecem aos comandos de um jogador existindo numa pseudo-

narrativa sem plot sem enredo) gerando perturbaccedilotildees em sua configuraccedilatildeo esteacutetica para apontar

a presenccedila virtual do defeito nas maacutequinas

As demais obras presentes em nosso corpus tambeacutem estatildeo inseridas nessa dinacircmica do

diaacutelogo entre tecnologias seja pela retomada criacutetica de processos claacutessicos da imagem seja

emulando aspectos formais de meios fiacutesicos ou eletrocircnicos e artefatos digitais seja promovendo a

articulaccedilatildeo entre ambientes virtuais espectador e materiais sensiacuteveis (transitando entre cinema

performance pintura fotografia viacutedeo) seja ironizando padrotildees gecircneros e formas consagradas

da imagem atraveacutes do deslocamento de suas funccedilotildees primeiras Assim podemos concluir que em

boa parte dos trabalhos analisados as tecnologiais empregadas relacionam-se pelas trocas pelos

empreacutestimos em processos de contaacutegio de hibridizaccedilatildeo

Concordamos com a ideia de que haacute um impulso arqueoloacutegico na arte contemporacircnea

(PARIKKA 2017) jaacute que em diversos trabalhos observamos a recontextualizaccedilatildeo de tecnologias

da imagem a reinserccedilatildeo de problemaacuteticas ligadas a seus usos e uma saudaacutevel articulaccedilatildeo entre

miacutedias computadorizadas e analoacutegicas As obras relacionam-se com essa ideia de olhar para o

passado e satildeo marcadas pela convivecircncia de diversas temporalidades Embora a arqueologia da

244

miacuteda como vertente da histoacuteria da miacutedia se proponha a estudar os meios de comunicaccedilatildeo seus

enfoques satildeo tatildeo abrangentes e suas temaacuteticas tatildeo variadas que consideramos vaacutelido utilizar a

abordagem arqueoloacutegica da miacutedia para pensar todas essas experiecircncias que se voltam para formas

da imagem antigas inclusive porque muitos desses trabalhos levantam questotildees atuais ou seja

satildeo expressotildees de questionamentos (de ordem esteacutetica poliacutetica industrial cientiacutefica de gecircnero)

e sensibilidades atuais (em diversas vezes tangenciados pela relaccedilatildeo do ser humano com as

miacutedias digitais a redes sociais a vigilacircncia do capitalismo informaacutetico a atitude hacker e os

processos de remix a produccedilatildeo de imagens descartaacuteveis etc) Os trabalhos de Joanna Zylinska

Rosa Menkman Rosacircngela Rennoacute Sabato Visconti Dirceu Maueacutes e Thomas Ruff ecoam mais

diretamente essas questotildees

Consideramos que as proposiccedilotildees da arqueologia da miacuteda podem ser exploradas com

mais atenccedilatildeo no campo da imagem esforccedilo que conseguimos apenas esboccedilar nesta tese

Sobretudo na abordagem da media art na investigaccedilatildeo das potecircncias artiacutesticas surgidas da

exploraccedilatildeo das falhas dos sistemas de computador A partir de um breve olhar sobre os trabalhos

de Menkman Zylinska e Visconti principalmente entendemos que esse pode ser um vieacutes para o

desenvolvimento de pesquisas futuras Se o impulso inicial deste trabalho foi dado pela

observaccedilatildeo sobre a permanecircncia das miacutedias analoacutegicas ao depararmo-nos com a sua remediaccedilatildeo

em obras desenvolvidas por meio das inteligecircncias informaacuteticas acreditamos serem relevantes

investigaccedilotildees posteriores que se dediquem a essas poeacuteticas de ldquoreciclagemrdquo de referecircncias tatildeo

frequentens na arte contemporacircnea

Outro tema de interesse deste campo e que tambeacutem daacute margem a novos debates eacute o

arquivo Seja no resgate de uma produccedilatildeo vernacular esquecida ou na apropriaccedilatildeo de imagens de

banco de dados de instituiccedilotildees e grandes corporaccedilotildees da comunicaccedilatildeo em rede como o Google o

arquivo eacute tomado como lugar de investimento criacutetico para discutir o fato de que na cultura visual

atual agrave medida que nos tornamos imagem acabamos por transforma-nos em dados e

posterioremente em arquivo Ao contraacuterio de uma ideia de algo datado uma espeacutecie de artefato

intocaacutevel protegido pela marca do tempo e pela funccedilatildeo historiograacutefica os arquivos satildeo

interpretados pelos artistas como coisas vivas pertencentes a um fluxo de imagens que se produz

constantemente inseridos numa histoacuteria do olhar cujas bases se inauguram junto com o advento

das imagens teacutecnicas no seacuteculo XIX Para a arqueologia da miacutedia o arquivo eacute rearticulado na

cultura digital menos como lugar de histoacuteria memoacuteria e poder e mais como uma rede dinacircmica e

245

temporal um ambiente governado pelo software e uma plataforma social de memoacuteria

(PARIKKA 2012 p15) agrave espera de intervenccedilotildees ideias contempladas por exemplo nas obras

de Zylinska Visconti e mesmo nas apropriaccedilotildees feitas por Eacuteder Oliveira de material

fotojornaliacutestico tratado ao estilo da imagem numeacuterica em suas pinturas

Tambeacutem as produccedilotildees de Rennoacute utilizam largamente os arquivos muitas vezes de forma

irocircnica deslocando-os de suas funccedilotildees originais e discutindo a presenccedila das tecnologias da

imagem em nosso cotidiano Eacute importante lembrar mesmo que o enfoque arqueoloacutegico da miacutedia

decirc maior atenccedilatildeo ao potencial flexiacutevel do arquivo devemos considerar que as relaccedilotildees de poder

e de memoacuteria natildeo se encontram totalmente ausentes nesses trabalhos O processo que ocorre e

que a arqueologia da miacutedia nos ajuda a compreender como tocircnica da media art eacute que os arquivos

de imagens (ou as imagens esquecidas em arquivos de instituiccedilotildees ou abadonadas em espaccedilos

privados) acedem ao status de mateacuteria artiacutestica sujeitando-se agraves transformaccedilotildees do processo

criativo participando de um fluxo informativo que eacute tiacutepico da cultura digital

Haacute ainda dois outros temas de interesse da arqueologia da miacutedia que se ligam a questotildees

discutidas em nosso trabalho e que tambeacutem estimulam pesquisas futuras O primeiro eacute a

investigaccedilatildeo de histoacuterias abadonadas negligenciadas pela induacutestria dos meios de comunicaccedilatildeo

Conforme Parikka (2012 p39) eacute importante buscar as ldquovozes esquecidas da histoacuteria da miacutedia

para encontrar tambeacutem suas perversotildeesrdquo porque estas narrativas paralelas natildeo se afinam com a

ideia de um progresso dos meios frequentemente evocado pela induacutestria De fato os teoacutericos

visam principalmente as miacutedias que natildeo tiveram sucesso comercial os projetos abandonados ou

que nem chegaram a ser lanccedilados Poreacutem entendemos que essas narrativas desviantes estatildeo

representadas tambeacutem quando metodologias e teacutecnicas antigas satildeo revisitadas de forma natildeo-

saudosista ou seja quando satildeo submetidas agrave transformaccedilotildees em seus princiacutepios funccedilotildees e

esteacuteticas Saindo de um lugar perifeacuterico (como exemplares de esforccedilos mal-sucedidos ou

insuficientes) essas teacutecnicas vecircm reaparecendo sob interesses particulares de artistas Mesmo

fora do acircmbito artiacutestico teacutecnicas como pinhole antotipia goma bicromatada entre outras satildeo

exatamente denominadas ldquoalternativasrdquo ldquoexperimentaisrdquo152 no escopo de algumas iniciativas

pedagoacutegicas por causa desse interesse renovado por uma certa artesania da imagem aberta a

experiecircncias natildeo-convencionais e que tenta se desapegar de regras industriais de produccedilatildeo da

imagem

152 Como eacute o caso dos livros de James (op cit) e de Antonini et al (2015)

246

A segunda temaacutetica eacute a do ruiacutedo jaacute que os usos desviados os projetos e teacutecnicas

rejeitados trazem exatamente o ruiacutedo como conceito para formas de expressatildeo bastante diversas

Se a arqueologia da miacutedia se interessa pelas ldquoanomaliasrdquo e pelo ldquoanti-mainstreamrdquo nada mais

justo que acolha o ruiacutedo como tema de suas investigaccedilotildees Lembremos que o tema possui longa

tradiccedilatildeo de significados negativos e que temos explorado a compreensatildeo de seu valor poeacutetico O

ruiacutedo eacute parte integrante dos meios e dos processos e ao entender isso a arqueologia da miacutedia se

ocupa tambeacutem do mapeamento das consideraccedilotildees sobre o assunto ao longo do pensamento a

respeito da cultura midiaacutetica recuperando debates sobre o conceito na muacutesica na teoria

matemaacutetica da comunicaccedilatildeo nas pesquisas que vatildeo desembocar na ciberneacutetica

Jussi Parikka que tem sido nosso guia principal chega a muitas das conclusotildees jaacute

apontadas nos trabalhos de Nunes (2011) e Hainge (2013) e igualmente indica que a histoacuteria das

miacutedias lida com o tema do ruiacutedo de maneira problemaacutetica atraveacutes de mecanismos de controle

enfatizando seu caraacuteter de instabilidade e por fim assinalando que se ldquoeacute impossiacutevel se livrar dos

efeitos do ruiacutedo haacute maneiras de mapeaacute-lo constrangecirc-lo e examinaacute-lordquo (PARIKKA 2012

p101)

64 E A TEORIA DA FOTOGRAFIA

Natildeo poderiacuteamos finalizar este trabalho sem fazer algumas consideraccedilotildees que

relacionem os demais temas desta pesquisa e as teorias da imagem sobretudo porque falamos

exaustivamente no diaacutelgo entre tecnologias nos primeiros capiacutetulos Se naquele momento

assinalamos que o centro das discussotildees em torno da fotografia eram suas especificidades e o

debate ontoloacutegico como sintoma de determinada fase da reflexatildeo teoacuterica em seguida o

pensamento se alarga para falar da imagem (sem tratar as questotildees dentro do territoacuterio exclusivo

do fotograacutefico) Dubois (2017 p40) assinala que a partir dos anos 2000 a noccedilatildeo de ldquofotograacuteficordquo

bem como a de ldquoimagemrdquo satildeo evocadas em textos e obras dedicadas menos a pensar a identidade

do meio voltando-se mais para as questotildees da esteacutetica debatida atraveacutes dos variados modos de

acionamento da teacutecnica ldquoenfatizando seus usos especiacuteficos em campos relativamente

determinados ou mais especializados (as artes plaacutesticas ou a arte contemporacircnea os visual studies

e a cultura da internet o campo poliacutetico ou social os usos vernaculares ndash populares amadores

etc)rdquo

247

Em seu texto Dubois referencia principalmente autores franceses mas logicamente a

tendecircncia natildeo estaacute restrita aos ciacuterculos de pensamento francoacutefonos Ao longo de nosso texto

dialogamos com alguns destes nomes e pode-se dizer que possuem em comum o olhar dirigido

agraves praacuteticas hiacutebridas notadamente em conceitos como ldquoimagem apresentativardquo (FATORELLI

2017) ldquofoto expandidardquo (JUNIOR 2002) ldquonon-human photographyrdquo (ZYLINSKA 2017a)

Jaacute como desdobramento desse pensamento encontramos as tentativas de definir os

contornos de uma imagem ldquoexperimentalrdquo caracterizada pelo sentido praacutetico da manipualccedilatildeo dos

materiais de propriedade fotograacutefica mas tomada como conceito (ou uma modalidade) de um

fazer que busca atraveacutes dessa manipulaccedilatildeo expandir os horizontes da esteacutetica Basicamente esse eacute

o vieacutes de Poivert (2010) e Lenot (2017 2017a) ndash cuja influecircncia dos escritos de Vileacutem Flusser

converge em maior grau com as anaacutelises que empreendemos em nosso texto O primeiro localiza

uma tradiccedilatildeo experimental que se desenha entre os anos 1970-1980 (e que eacute tibutaacuteria das

experiecircncias realizadas com a imagem no contexto das vanguardas artiacutesticas de 1920) apontando

como traccedilos definidores o caraacuteter multidisciplinar (diaacutelogo entre as vaacuterias artes) a criacutetica ao

proacuteprio meio e suas normatizaccedilotildees (impulso luacutedico investigativo) e a tendecircncia de revisitar a

historiografia das teacutecnicas e a experiecircncia do ver Tais caracteriacutesticas estatildeo associadas a uma

teorizaccedilatildeo mais ampla sobre a imagem contemporacircnea onde a tendecircncia experimental estaacute

inserida e que considera a fotografia como um dos elementos constitutivos das obras artiacutesticas

Ou seja ao pensarmos o ldquoexperimentalrdquo como vertente da imagem contemporacircnea devemos

tambeacutem ter em mente que essa tendecircncia compreende a fotografia associada a outras miacutedias (jaacute

que muitas vezes eacute convocada referindo o cinema o panorama o viacutedeo etc)153 Todas essas

questotildees estatildeo contempladas nas obras apresentadas ateacute aqui em diferentes estrateacutegias poeacuteticas

Assim o ldquoexperimentalrdquo incorpora tambeacutem uma criacutetica ao discurso de constante

aperfeiccediloamento da tecnologia e identificamos essa mesma reflexatildeo nas obras de Rosacircngela

Rennoacute Joanna Zylinska Joseacute Luiacutes Neto Sabato Visconti Luiz Alberto Guimaratildees comenta

A induacutestria desde o seacuteculo XIX tem buscado ldquomelhorarrdquo a tecnologia dos aparelhosfotograacuteficos centrando seus esforccedilos na obtenccedilatildeo de imagens cada vez mais instantacircnease realistas Pois qual eacute o objetivo das atuais cacircmeras com sensibilidade que chega aatingir ISO 25600 senatildeo capturar o ldquoinstantacircneo tambeacutem no escurordquo Por que natildeo sefabricam cacircmeras com ISO baixo que permitam longas exposiccedilotildees mesmo em situaccedilotildeesde alta luminosidade () A subversatildeo desses conceitos estaacute de algum modo presenteem minha trajetoacuteria (GUIMARAtildeES 2014 p4)

153 Em texto dedicado agrave uma histoacuteria da fotografia contemporacircnea Poivert (2015) indica precisamente que apoacutes1970 a fotografia apresenta-se associada agrave proacutepria noccedilatildeo de arte contemporacircnea natildeo podendo mais ser pensadacomo categoria artiacutestica autocircnoma

248

Cris Bierrenbach toca a mesma questatildeo relacionando-a com o interesse pelas teacutecnicas claacutessicas

() Essa conexatildeo que eacute o que eu comecei a fugir no analoacutegico eacute uma coisa que eacuteimposta por uma induacutestria Existe uma induacutestria que produz as cacircmeras regula ascacircmeras porque ningueacutem estudou fotografia e taacute todo mundo fotografando pra fazerfotos boas neacute Vamos dizer corretas na luz foco porque o equipamento faz isso Eacute ainduacutestria que diz isso eacute o correto O resto eacute desvio Aiacute vem as pessoas que criam osfiltros que satildeo as miacutemicas do que era a fotografia anterior Eacute muito difiacutecil encontraruma pessoa que esteja nesse mundo digital e que realmente esteja entendendo etentando buscar o que eacute realmente especiacutefico desse ambiente (BIERRENBACH 2018)

Poivert (2010 p40) identifica uma visatildeo criativa que ldquose traduz por uma liberdade dos

artistas no que diz respeito agrave teacutecnica normativa o experimental eacute uma figura invertida do

progresso estabelecendo assim uma relaccedilatildeo particular com a histoacuteriardquo mencionando exatamente

os problemas citados por Guimaratildees e Bierrenbach O pesquisador indica ainda que os artistas

podem trabalhar diretamente a mateacuteria a metamorfose dos espaccedilos renovar as praacuteticas de

montagem (POIVERT 2015) fazendo-nos concluir que o termo ldquoexperimentalrdquo designa um

conjunto de iniciativas variadas

Das praacuteticas ditas pobres agraves sofisticaccedilotildees extremas dos processos digitais encontramosnessa fotografia experimental a vontade de romper com as praacuteticas normativas e instituirum jogo com o visiacutevel como propulsor da criatividade A serviccedilo de uma poeacutetica porvezes criacutetica por vezes oniacuterica a fotografia experimental desafia o uso da imagemsonha com uma relaccedilatildeo com o real construiacuteda sobre a subjetividade arruiacutena toda umatradiccedilatildeo de uma imagem definida pela sua continuidade descritiva (POIVERT 2015p140)

As conclusotildees do autor ecoam nos escritos de Lenot (2017a p16) que advoga a favor de

uma conceituaccedilatildeo especificamente dedicada agraves imagens que satildeo ldquoinuacuteteis do ponto de vista da

representaccedilatildeordquo em que os artistas se ocupam do ldquoobjeto fotograacutefico em sirdquo de sua

ldquomaterialidaderdquo Eacute interessante que em sua pesquisa Lenot lamenta ter-se concentrado na

produccedilatildeo de europeus e norte-americanos sem conseguir alcanccedilar artistas japoneses (um grupo

ao qual podemos acrescentar os artistas latino-americanos) Segundo ele quando surgem as

miacutedias digitais a miacutedia analoacutegica perde sua (suposta) funccedilatildeo de reporta-se ao referente o que

leva os artistas a questionarem seus pressupostos mimeacuteticos Isso permite que ele identifique toda

uma produccedilatildeo orientada para o questionamento do ldquoaparelhordquo nas dimensotildees teacutecnica

epistemoloacutegica e esteacutetica (sob influecircncia da filosofia flusseriana) A abordagem de Lenot eacute mais

voltada para a identificaccedilatildeo do experimental como tendecircncia que se expressa no campo da

imagem fotoquiacutemica

249

Aqui nosso objetivo foi utilizar sua reflexatildeo para incluir tambeacutem os trabalhos realizados

com miacutedias digitais abrangendo todo o conjunto de obras que tenham como traccedilo definidor a

investigaccedilatildeo das propriedades dos dispositivos negligenciadas pelos paradigmas do instantacircneo

da representaccedilatildeo etc Aleacutem disso compreendemos que o aporte teoacuterico sobre a tendecircncia

experimental pode ser estendido agraves obras de natureza informaacutetica tambeacutem porque os escritos de

Flusser (2011) natildeo parecem se referir agrave figura do ldquofotograacutefo experimentalrdquo como ligada

exclusivamente ao universo da imagem analoacutegica Lembremos que o trabalho mais significativo

do pensador tcheco nesse sentido ndash o livro ldquoFilosofia da Caixa Pretardquo ndash foi escrito em (1983154)

um momento em que o paradigma informaacutetico jaacute era uma realidade A necessidade de

desenvolver competecircncias para manipular e reprogramar softwares e hardwares (alterando

funccedilotildees e desempenhos) pode tornar um pouco mais tortuoso o caminho dos artistas que

pretendem abrir a ldquocaixa pretardquo da imagem digital mas natildeo impossiacutevel

Tambeacutem podemos considerar que a fotografia eacute apenas um objeto servindo de pretexto

para Flusser discutir nossas relaccedilotildees com os aparelhos midiaacuteticos como diagnoacutestico de um

momento histoacuterico no qual a imagem eacute o paradigma dominante de conhecimento (em detrimento

do texto) inaugurando tambeacutem uma seacuterie de problemaacuteticas vinculadas agrave nossa dificuldade de

enxergar os modelos de pensamento que a informam Na ldquopoacutes-histoacuteriardquo (FLUSSER 2011) a

narrativa linear causal e progressiva da histoacuteria eacute substituiacuteda pela forma de narrar descontiacutenua

fragmentada e caoacutetica Filmes cinematograacuteficos programas de televisatildeo slides satildeo citados por

Flusser (2017) como exemplos desses modos narrativos poacutes-histoacutericos aos quais podemos

acrescentrar memes gifs videoclipes a videoarte os filmes interativos as instalaccedilotildees artiacutesticas

etc Num texto posteiror (2008) que amplia as discussotildees de ldquoFilosofia da caixa pretardquo o teoacuterico

refere-se agraves tecnoimagens como formadas por ldquopontos gratildeos e pixelsrdquo contribuindo

decisivamente para as reflexotildees sobre a ldquocultura dos media ou cultura de redesrdquo (MENEZES

2010)

Se as proposiccedilotildees da filosofia de Flusser foram exploradas ao longo de nosso estudo

especialmente nas ideias de uma relaccedilatildeo de acoplagem entre os sujeitos e as tecnologias

devemos fazer aqui menccedilatildeo tambeacutem ao pensamento de Gilbert Simondon (2017) em suas

preocupaccedilotildees com os viacutenculos entre objetos teacutecnicos e seres humanos ou seja como mais um

aporte filosoacutefico que daacute conta de uma associaccedilatildeo entre noacutes seres humanos e os dispositivos

154 Publicaccedilatildeo original em alematildeo de 1983 cuja traduccedilatildeo no Brasil feita pelo proacuteprio Flusser data de 1985 CfMenezes 2010 p23

250

Infelizmente natildeo conseguimos alcanccedilar suas reflexotildees a ponto de que fossem incluiacutedas na tese

Ao passo que Simondon parece tambeacutem investir num entendimento de natildeo oposiccedilatildeo entre seres e

objetos teacutecnicos consideramos que explorar suas ideias eacute tarefa para investigaccedilotildees que ampliem

este trabalho

No percurso investigativo sobre as possibilidades dos meios a imagem depara-se com a

questatildeo do ruiacutedo passando a referir como caracteriacutestica do modo experimental prenhe de falhas

e erros uma ldquoesteacutetica dos usos improacutepriosrdquo formada ldquode sobras e margensrdquo (POIVERT 2017

p13) Para noacutes apontar a atenccedilatildeo dada em pesquisas recentes a esses temas (ainda concentradas

sob a terminologia da fotografia) eacute uma maneira de articular a emergecircncia do problema do ruiacutedo

no campo da imagem em suas ramificaccedilotildees possiacuteveis com a materialidade o experimentalismo

o acaso e a abordagem arqueoloacutegica da miacutedia sem perder de vista os proacuteprios movimentos do

pensamento teoacuterico do campo da imagem que foram nosso ponto de partida

251

7 CHEGADAS OU CONCLUSOtildeES

Este trabalho surgiu da tentativa de entender a valorizaccedilatildeo de marcas visuais como o

desfoque o borratildeo o tremido entre outras no acircmbito da produccedilatildeo fotograacutefica contemporacircnea Se

incialmente consideraacutevamos que essas praacuteticas estavam restritas ao uso de tecnologias

analoacutegicas empregadas como recusa agrave limpeza agrave regularidade da imagem digital percebemos

que o valor de uma esteacutetica com tais elementos deve-se ao interesse por esteacuteticas alternativas ao

modelo representativo da imagem fotograacutefica (questatildeo que ultrapassa a tipologia da miacutedia

utilizada)

Iniciamos fazendo uma revisatildeo de temas relevantes para os debates sobre o paradigma

digital posto que este trouxe para a centralidade da produccedilatildeo de imagens questotildees como a

abertura agrave manipulaccedilatildeo a interloculaccedilatildeo entre modos da imagem analoacutegica em dispositivos

computadorizados como por exemplo na praacutetica vernacular do uso de filtros de apps em

telefones celulares e consequentemente a elaboraccedilatildeo de produtos multimiacutedia Ao olhar para as

teorias da fotografia e a produccedilatildeo de imagens recente notamos que alguns dos trabalhos mais

interessantes apostam exatamente no diaacutelogo entre miacutedias atestando que o hibridismo eacute uma

tendecircncia forte das obras contemporacircneas Estes trabalhos convivem lado a lado com outros que

atraveacutes de uma esteacutetica de limpeza ndash atada a certo ideal de perfeiccedilatildeo ndash reintroduz teses caras agrave

teoria da fotografia tais como a relaccedilatildeo com o mimetismo a pespectiva geomeacutetrica e o

instantacircneo temporal

Tais observaccedilotildees nos levaram a concluir que ao contraacuterio de uma separaccedilatildeo radical entre

analoacutegico e digital haacute espaccedilo na produccedilatildeo atual para uma saudaacutevel negociaccedilatildeo entre essas

linguagens meios hardwares e softwares que eacute responsaacutevel pela composiccedilatildeo de todo um cenaacuterio

de imagens experimentais investigadas em nosso corpus Dessa forma conduzimos nossa

discussatildeo a partir de uma perspectiva relacional entre as miacutedias buscando as continuidades em

vez de ressaltar as oposiccedilotildees

Notamos tambeacutem que as obras conceituadas de experimentais podem ter suas esteacuteticas

relacionadas ao conceito de ruiacutedo na medida em que satildeo construiacutedas atraveacutes de movimentos de

diferenciaccedilatildeo dessa esteacutetica limpa e perfeita Desse modo propusemos como debate central da

252

tese as relaccedilotildees entre ruiacutedo e imagem e as variadas manifestaccedilotildees do ruiacutedo em trabalhos

fotograacuteficos resultantes de estrateacutegias criativas assentadas na desprogramaccedilatildeo das tecnologias

Descortinamos um conjunto de obras nas quais o ruiacutedo aparece como resultado de

intervenccedilotildees em equipamentos alteraccedilotildees das etapas de processos de obtenccedilatildeo da imagem

elaboraccedilatildeo de dispositivos originais (natildeo-industriais) uso de arquivos e softwares corrompidos

em suas funccedilotildees industriais combinaccedilatildeo de materiais fotograacuteficos cinematograacuteficos

videograacuteficos e pictoacutericos Ou seja toda sorte de metodologias adotadas por artistas que partem

de uma recusa ao uso acriacutetico das miacutedias provocando uma reflexatildeo sobre os limites das teacutecnicas

ao mesmo tempo em que nos fazem experimentar novas sensibilidades por meio das obras

A interlocuccedilatildeo entre ruiacutedo e imagem no campo da fotografia revelou caracteriacutesticas

importantes desses trabalhos Por exemplo como fenocircmeno que indica instabilidade

desagragaccedilatildeo de padrotildees e a convivecircncia de temporalidades haacute uma consideraacutevel variabilidade

de estilos abordagens e esteacuteticas O repertoacuterio iniciado aqui segue aberto a ampliaccedilotildees jaacute que

quando falamos em ruiacutedo na fotografia estamos considerando que o fotograacutefico possui uma

natureza polimorfa que exige constante investigaccedilatildeo sobre as possibilidades de configuraccedilatildeo do

ruiacutedo

Haacute obras que assentadas no tensionamento da proacutepria tecnologia revelam o ruiacutedo como

expressatildeo genuiacutena da experimentaccedilatildeo com maacutequinas quiacutemicos suportes arquivos softwares

gadgets afirmando-se como pura expressatildeo sem necessariamente buscar o viacutenculo com

significados uniacutevocos e de faacutecil rotulagem Assim denominamos essas imagens de processuais

porque muitas vezes elas carregam as marcas de seus processos de elaboraccedilatildeo e se uma das

caracteriacutesticas do ruiacutedo eacute ser traccedilo do medium onde se manifesta as imagens processuais trazem

em suas esteacuteticas as inscriccedilotildees dos ruiacutedos que suas tecnologias satildeo capazes de produzir

O ruiacutedo como traccedilo do medium indica tambeacutem a expressatildeo da materialidade das

tecnologias outra questatildeo importante em nosso detabe Em entrevistas realizadas para esta

pesquisa na proacutepria estrutura e na plaacutestica das obras entendemos que a dimensatildeo material das

imagens eacute um elemento importante da construccedilatildeo do sentido esteja essa materialidade

representada na dimensatildeo fiacutesica de uma imagem-objeto ou na tipologia de formatos de arquivos

manipulados via computador Em ambos os casos a exploraccedilatildeo da mateacuteria da imagem fotograacutefica

chama nossa atenccedilatildeo agrave presenccedila do ruiacutedo

As investigaccedilotildees dirigidas aos meios indicam ainda que haacute sempre expansotildees a serem

253

realizadas novos modos de uso e ressignificaccedilotildees possiacuteveis Isso mostra que nenhuma

tecnologia encontra-se esgotada do ponto de vista de suas potecircncias criativas Tanto pelas

intervenccedilotildees e reprogramaccedilotildees empreendidas pelos e pelas artistas na praacutetica quanto pelas

contribuiccedilotildees do campo da arqueologia da miacutedia afirmamos que a fotografia experimental revela

o interesse em lanccedilar um olhar renovado a quaisquer dispositivos Esse interesse por sua vez traz

como subtexto uma criacutetica agrave retoacuterica de evoluccedilatildeo da tecnologia (contida em noccedilotildees como

melhoria do desempenho aumento de qualidade e eficiecircncia incremento da fidelidade das

imagens ao real)

A emergecircncia do ruiacutedo mostrou tambeacutem a importacircncia de considerar a presenccedila do

acaso nas praacuteticas artiacutesticas Em muitas obras o acaso eacute responsaacutevel por certo grau de

imprevisibilidade que eacute bem-vindo no processo Percebemos que osas artistas compreendem que

para aleacutem de um domiacutenio sobre os meios e teacutecnicas o imprevisiacutevel colabora com o resultado

final de seus trabalhos (em vez de representar um empecilho) sendo aceito como elemento

positivo Tal compreensatildeo sobre o acaso explica por exemplo o fato de que os erros e falhas

ocorridos no funcionamento de sistemas computadorizados satildeo a base de algumas das obras

analisadas em nosso texto ou mesmo a questatildeo de que em alguns casos deixa-se os materiais

interagirem entre si para o desenvolvimento do trabalho Se o acaso eacute uma intervenccedilatildeo positiva

novas esteacuteticas surgem exatamente da exploraccedilatildeo dos desvios que o acaso traz agrave tona

O debate proposto nesta tese reforccedila que o universo da fotografia contemporacircnea eacute

plural em suas praacuteticas intencionalidades e esteacuteticas e que na convivecircncia entre miacutedias

analoacutegicas e digitais o campo da arte destaca-se por trazer agrave tona questotildees importantes que

provocam reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre seres humanos e tecnologias as praacuteticas artiacutesticas

experimentais e suas potecircncias de criacutetica a teses caras agrave teoria da fotografia e o interesse pelo

tema do ruiacutedo a partir de uma compreensatildeo de seu caraacuteter produtivo Acreditamos ainda que as

aproximaccedilotildees entre o tema do ruiacutedo e a fotografia juntam-se a outras perspectivas teoacutericas que

apontam o vieacutes de artifiacutecio de construccedilatildeo da imagem fotograacutefica em contraposiccedilatildeo ao

automatismo que por vezes eacute associado agraves imagens teacutecnicas

254

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LEVIATHAN DireccedilatildeoLucien Castaing-Taylor e Veacutereacutena Paravel Cinema Guild 2012

NO country for old men Direccedilatildeo Joel e Ethan Cohen Miramax Films 2007

NOacuteS Direccedilatildeo Jordan Peele Universal Pictures 2019

O EVANGELHO Segundo Satildeo Mateus Direccedilatildeo Pier Paolo Pasolini 1964

O MAacuteGICO de Oz Direccedilatildeo Victor Fleming MGM 1939

OUTUBRO Direccedilatildeo Sergei Eisenstein Sovkino 1927

POLTERGEIST - O Fenocircmeno Direccedilatildeo Tobe Hooper MGM 1982

STALKER Direccedilatildeo Andrei Tarkovsky Mosfilm 1979

SOLO Uma histoacuteria Star Wars Direccedilatildeo Ron Howard Walt Disney Studios Motion Pictures2018

STAR Wars - Guerra nas Estrelas Direccedilatildeo George Lucas 20th Century Fox 1977

STAR Wars - Episoacutedio II - O Ataque dos Clones Direccedilatildeo George Lucas 20th Century

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Fox2002

STAR Wars - Episoacutedio VII - O despertar da forccedila Direccedilatildeo J J Abrams Walt Disney StudiosMotion Pictures 2015

STAR Wars - Episoacutedio V - O Impeacuterio Contra Ataca Direccedilatildeo Irvin Kershner 20th CenturyFox1980

STAR Wars - Episiacutedo VI - O retorno de Jedi Direccedilatildeo Richard Marquand 20th CenturyFox1983

STAR Wars - Episoacutedio III - A vinganccedila dos Sith Direccedilatildeo George Lucas 20th Century Fox2005

SUSPIRIA Direccedilatildeo Dario Argento 1977

SUSPIRIA - A danccedila do medo Direccedilatildeo Luca Guadagnino Playarte Pictures 2018

2001 UMA Odisseacuteia no espaccedilo Direccedilatildeo Stanley Kubrik MGM 1968

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E … · 2020. 12. 4. · Marina Feldhues, Philipe Fassarella, Alexandre Maciel, Mari Reis, Rafa Queiroz, Rafa Andrade (e Suzana,

Catalogaccedilatildeo na fonteBibliotecaacuteria Jeacutessica Pereira de Oliveira CRB-42223

UFPE (CAC 2020-157)30223 CDD (22 ed)

W245e Wanderlei Ludimilla CarvalhoExperimentalismos e ruiacutedos na fotografia contemporacircnea Ludimilla

Carvalho Wanderlei ndash Recife 2020269f il

Orientadora Nina Velasco e CruzTese (Doutorado) ndash Universidade Federal de Pernambuco Centro de

Artes e Comunicaccedilatildeo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Comunicaccedilatildeo2020

Inclui referecircncias

1 Fotografia 2 Fotografia experimental 3 Ruiacutedo 4 Erro5 Hibridismo I Cruz Nina Velasco e (Orientadora) II Tiacutetulo

Ludimilla Carvalho Wanderlei

EXPERIMENTALISMOS E RUIacuteDOS NA FOTOGRAFIA CONTEMPORAcircNEA

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeoem Comunicaccedilatildeo da Universidade Federal dePernambuco como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo dotiacutetulo de doutora em Comunicaccedilatildeo

Aprovada em 30072020

BANCA EXAMINADORA

______________________________________

Professora Doutora Nina Velasco e Cruz (Orientadora)Universidade Federal de Pernambuco

__________________________________________

Professora Doutora Acircngela Freire Prysthon (Examinadora interna)Universidade Federal de Pernambuco

___________________________________________

Professor Doutor Rodrigo Octaacutevio DrsquoAzevedo Carreiro (Examinador interno)Universidade Federal de Pernambuco

____________________________________________

Professor Doutor Cesar Augusto Baio Santos (Examinador externo)Universidade Estadual de Campinas

___________________________________________

Professora Doutora Cristina Maria da Silva Pinto Ferreira Fonseca (Examinadora externa)Universidade do Porto

Agraves conexotildees aos curtos-circuitos e aos descaminhos da vida Em quaisquer tempos e

lugares

AGRADECIMENTOS

Acho sempre difiacutecil essa coisa dos agradecimentos mas se eacute para fazecirc-los ei-los

obrigada a todos e todas que (consciente ou inconscientemente) incentivaram ajudaram

acolheram criticaram escolhas ideias e percursos deste trabalho que para nascer tem que

tambeacutem morrer todo dia um pouquinho Aos meus amigos e amigas que extrapolam a

convivecircncia nas salas de aula e que trago comigo na cabeccedila e no coraccedilatildeo em laccedilos

verdadeiramente construiacutedos entre risadas cervejas conversas sobre poliacutetica muacutesica cinema

fotografia e logicamente os dissabores da vida Yara Medeiros Olga Wanderley Thais Faria

Marina Feldhues Philipe Fassarella Alexandre Maciel Mari Reis Rafa Queiroz Rafa Andrade

(e Suzana e Andreacuteia) Pedro Severien Carol Almeida

Aos queridos Zeacute Claudinha e Robertinha da secretaria do PPGCOM que literalmente

nos salvam com boa vontade e simpatia flexibilizando os limites impostos pela burocracia tiacutepica

da universidade puacuteblica Aos professores e professoras com os quais tive momentos frutiacuteferos e

insights valiosos (embora em alguns casos nem sequer tenha externado isso) Acircngela Prysthon

Joseacute Afonso Jeder Janotti Thiago Soares Rodrigo Carreiro Isaltina Gomes A Cesar Baio e

Rodrigo Carreiro pela oacutetima qualificaccedilatildeo

Um salve especial agrave minha orientadora Nina Velasco e Cruz de quem fui aluna em trecircs

ocasiotildees anteriores e que com paciecircncia leveza e confianccedila esteve junto comigo nesse

processo avaliando com o rigor necessaacuterio e sem ferir a autonomia que se espera de quem se

ldquometerdquo nessa coisa chamada doutorado e com quem durante todas as trocas para

encaminhamentos da pesquisa tive abertura e senti-me confortaacutevel para falar natildeo apenas da

conduccedilatildeo da tese mas de coisas da vida

Aos fotoacutegrafos e fotoacutegrafas que entrevistei por sua generosidade e partilha

Ao Arquivo Vileacutem Flusser Satildeo Paulo pelo acesso a seus textos

Agrave Facepe e agrave Capes agecircncias das quais obtive bolsa respectivamente para os periacuteodos

regular e estaacutegio-sanduiacuteche do doutorado

Agrave Cristina Ferreira que com toda disponibilidade simpatia e carinho me acompanhou

nos nove meses do doutorado-sanduiacuteche na Universidade do Porto Nunca esquecerei as trocas e

laccedilos criados Obrigada tambeacutem a Eliza Steacutefani Daniel Jordana Joilson Felipe Roberto Clara

Eduardo a pequena Janaiacutena Jeacutessica Carol e Thalles que conheci no Porto

Aos meus amigos e amigas de vida Fernando Naia Anabele Joaninha Quequel Eacutethel

Cauecirc Line Nice Igor Mila Ruthinha Ju Patrick Maacutercio Andrade Ale Senna Raquel do

Monte Esquecidxs por culpa da minha memoacuteria sintam-se abraccediladxs

Obrigada sempre a mainha e Camila meus amores minha vidas meus carmas meus

piolhos

E obrigada a Rafael Pires meu companheiro de aventuras a fotografia e o acaso nos

aproximaram o frio nos castigou a muacutesica nunca nos abandonou e o afeto nos manteve unidos

Um cheirinho

ldquoNessa manhatilde de louco o olho do morto reflete o fogordquo (MACALEacute1970)

RESUMO

Esta tese investiga as manifestaccedilotildees do ruiacutedo na fotografia contemporacircnea como

potecircncia de imagens hiacutebridas experimentais e processuais Partindo de um olhar sobre a

produccedilatildeo fotograacutefica recente que articula o despojamento e a agilidade de produccedilatildeo distribuiccedilatildeo

e acesso da imagem via computador a paradigmas formais (tais como a verossimilhanccedila o

mimetismo e a representaccedilatildeo) compreendemos que a vertente da fotografia experimental propotildee

uma agenda esteacutetica alternativa na medida em que natildeo se limita a essa retoacuterica de

correspondecircncia estrita com o referente A partir das obras de artistas brasileiros e estrangeiros

atestamos que os experimentalismos realizados com miacutedias analoacutegicas e digitais indicam a

valorizaccedilatildeo do ruiacutedo no campo da imagem atraveacutes da presenccedila de elementos como borrotildees

tremulaccedilotildees inscriccedilotildees do tempo muacuteltiplas exposiccedilotildees granulaccedilotildees pixel aparente exploraccedilatildeo

de efeitos cromaacuteticos texturas e estrutura das imagens distorccedilotildees entre outros A pluralidade de

manifestaccedilotildees do ruiacutedo ocorre por meio de estrateacutegias centradas na intervenccedilatildeo deliberada sobre

quaisquer miacutedias utilizadas para criar imagens tangenciando questotildees como o entrecruzamento

de territoacuterios da fotografia do cinema da pintura do viacutedeo das artes graacuteficas e o ambiente dos

softwares o desenvolvimento de poeacuteticas originais (geralmente contraacuterias aos usos industriais

das tecnologias) processos de criaccedilatildeo da ordem das apropriaccedilotildees dos hibridismos da

remixagem e a reprogramaccedilatildeo de softwares e hardwares para fins artiacutesticos Na pesquisa

refletimos ainda sobre a importacircncia do acaso como elemento partiacutecipe das metodologias

artiacutesticas o caraacuteter processual das imagens nas quais o ruiacutedo emerge a materialidade como vetor

de sentido nas obras analisadas o olhar dirigido agraves teacutecnicas claacutessicas da imagem fotoquiacutemica e agraves

miacutedias ldquoobsoletasrdquo (sob uma abordagem arqueoloacutegica da miacutedia) e por fim sobre as recentes

abordagens da teoria da fotografia que datildeo conta das proposiccedilotildees formais conceituais e

filosoacuteficas com agraves quais podemos associar a emergecircncia do ruiacutedo nas imagens

Palavras-chave Fotografia Fotografia experimental Ruiacutedo Erro Hibridismo

ABSTRACT

This thesis investigates the manifestations of noise in contemporary photography as a

power of hybrid experimental and processual images Starting from a look at recent

photographic production which articulates the stripping and agility of production distribution

and access of the image via computer to formal paradigms (such as verisimilitude mimesis and

representation) we understand that the experimental photography aspect proposes an alternative

aesthetic agenda insofar as it is not limited to this rhetoric of strict correspondence with the

referent From the works of Brazilian and foreign artists we attest that the experimentalisms

made with analog and digital media indicate the valorization of noise in the field of image

through the presence of elements such as blurs tremulations inscriptions of time multiple

exposures granulations apparent pixel exploration of chromatic effects textures and structure of

images distortions among others The plurality of noise manifestations occurs through strategies

focused on deliberate intervention on any media used to create images tangentiating issues such

as the intersection of territories of photography cinema painting video graphic arts the

software environment the development of original poetics (generally contrary to the industrial

uses of technologies) processes of creation such as appropriations hybrids remixing

resignification of old techniques of photography and the reprogramming of software and

hardware for artistic purposes In the research we also reflected on the importance of chance as a

partisan element of artistic methodologies the processual character of the images in which noise

emerges the materiality as a vector of meaning in the works analyzed the gaze directed to the

classical techniques of the photochemical image and to the ldquoobsoleterdquo media (under an

archaeological approach of the media) and finally on the recent approaches to the theory of

photography that account for the formal conceptual and philosophical propositions with which

we can associate the emergence of noise in images

Keywords Photography Experimental photography Noise Error Hybridism

SUMAacuteRIO

1 PARTIDAS OU UMA INTRODUCcedilAtildeO 13

2 INTELIGEcircNCIAS NUMEacuteRICAS 20

21 BREVE CONTEXTO SOCIAL E EMERGEcircNCIA DA CULTURA DIGITAL 20

22 RASTROS PEGADAS DA CULTURA DO NUMEacuteRICO 25

23 PARADIGMA NUMEacuteRICO ESPECIFICIDADES 26

24 SOBRE A IMAGEM 29

241 Virtualidade x materialidade 29

242 Ordem da representaccedilatildeo x ordem da simulaccedilatildeo 55

3 ANALOacuteGICO X DIGITAL INTERROGACcedilOtildeES EM DIRECcedilAtildeO Agrave

FOTOGRAFIA 61

31 RECONSIDERANDO ALGUMAS DISPARIDADES 61

32 ANALOacuteGICO + DIGITAL E A ZONA CINZA DE NEGOCIACcedilOtildeES

CONTINUIDADES ATRAVESSAMENTOS 66

321 Digital (re)visitando tradiccedilotildees visuais 66

322 Tatildeo longe tatildeo perto comparaccedilotildees 91

323 Arqueologia da miacutedia e investigaccedilotildees do medium 95

4 RUIacuteDO ERRO E IMAGEM 103

41 FOTOGRAFIA Eacute RUIacuteDO PARA ALEacuteM DE ESPECIFICIDADES

TECNOLOacuteGICAS 103

42 DISPUTAS ONTOLOacuteGICAS 109

43 COM OLHOS DE VIDRO DE CORES BERRANTES BALANCcedilAM

EDIFIacuteCIOS DE QUARENTA ANDARES 113

44 POR SERES TAtildeO INVENTIVO E PARECERES CONTIacuteNUO TEMPO

EacuteS UM DOS DEUSES MAIS LINDOS 121

45 EU SOU APENAS UM INCOcircMODO 134

46 CONTROLE EFICIEcircNCIA E DISPOSITIVOS 156

47 ERRO OU RUIacuteDO 158

48 A TECNOIMAGEM Eacute FEITA DE PONTOS GRAtildeOS E PIXELS 162

49 A TUA PRESENCcedilA Eacute BRANCA VERDE VERMELHA AZUL E AMARELA 169

410 QUANDO DAGUERRE ENCONTRA O PHOTOSHOP 173

5 FALHAS BUGS E DESCONTINUIDADES SISTEcircMICAS 183

51 COMPUTADORES FAZEM ARTE ARTISTAS FAZEM DINHEIRO 183

52 O BOM O MAU E O FEIO 207

53 AS FLUTUACcedilOtildeES DE UM CONCEITO 209

6 O QUE SUGEREM AS LIGACcedilOtildeES ENTRE RUIacuteDO E IMAGEM 226

61 O PAPEL CRIATIVO DO ACASO 226

611 O imprevisiacutevel instala-se por conta do uso desprogramado

das tecnologias 229

612 Caraacuteter processual 230

62 MATERIALIDADE 232

63 OLHAR RETROSPECTIVO A PROCESSOS CLAacuteSSICOS DA

FOTOGRAFIA 238

631 Arqueologia da miacutedia 240

64 E A TEORIA DA FOTOGRAFIA 246

7 CHEGADAS OU CONCLUSOtildeES 251

REFEREcircNCIAS 254

13

1 PARTIDAS OU UMA INTRODUCcedilAtildeO

A escrita desta tese as discussotildees que ela suscitou dentro ou fora da universidade as

leituras necessaacuterias para seu desenvolvimento fazem parte de um processo muito diverso para

mim Agrave medida que a pesquisa caminhava ideias foram repensadas outras simplesmente

abandonadas e o resultado final logicamente reflete essa trajetoacuteria de idas e vindas Acho que

para entender os caminhos (agraves vezes descaminhos) do doutorado eacute preciso resgatar as etapas

desse percurso e aqui acho que tenho a justa licenccedila para adotar um estilo mais pessoal de escrita

(sob risco de destoar um pouco do restante do trabalho) No mestrado aprendi que as introduccedilotildees

servem natildeo soacute para falar do que vem a seguir de como a investigaccedilatildeo foi conduzida e estaacute

estruturada mas tambeacutem sobre aquilo que nos direcionou para certos temas como alguns

assuntos nos provocam ajudando a desvendar o nascimento de uma pesquisa (seus problemas

hipoacuteteses etc)

A fotografia sempre me interessou como objeto de estudo Num percurso lacunar entre

graduaccedilatildeo e especializaccedilatildeo cheguei ao mestrado e ainda durante esse momento tomei contato

com algumas leituras que versavam a respeito de memoacuteria tecnologias afetos intimidade e de

maneira geral discutiam nossas relaccedilotildees com artefatos culturais variados entre eles as imagens

fotograacuteficas cinematograacuteficas a muacutesica Entre esses objetos sempre me interessaram mais as

ldquocoisasrdquo possuidoras mesmo de uma dimensatildeo fiacutesica Aquelas que podemos manusear que se

desgastam acumulam marcas do tempo poeira ou traccedilos de uso Agradeccedilo agrave Joseacute Van Dijck

(2007) e seu belo livro sobre as memoacuterias mediadas na era digital

Naquele momento jaacute tinha decidido continuar estudando questotildees relativas agrave imagem e

percebi que para me dedicar a uma pesquisa de quatro anos o tema natildeo teria apenas que ser

interessante mas me mobilizar num sentido talvez pessoal e comecei a pensar de que maneira

era possiacutevel articular questotildees da esteacutetica das tecnologias da imagem e um movimento (que

vinha observando sem pretensatildeo investigativa nenhuma e que na eacutepoca parecia marginal e

saudosista) ligado ao uso do filme fotograacutefico em plena ldquoera digitalrdquo A ldquodescobertardquo aconteceu

pura e simplesmente porque eu ndash que como diz um amigo ldquojaacute nasci velhardquo ndash sigo produzindo

fotografias em negativo e tambeacutem porque os algoritmos trabalham muito bem com base nas

14

miacutenimas informaccedilotildees fornecidas quando posto na internet algumas das minhas imagens Assim

descobri o Analogue Sunrise um tumblr de compartilhamento de fotografias analoacutegicas onde

aparentemente ningueacutem se conhece e todos estatildeo ali para ldquocelebrarrdquo a foto em negativo O

aspecto de fisicalidade da fotografia sempre significou um componente de certo vieacutes afetivo da

imagem assentado numa relativa estabilidade que o suporte proporciona Tambeacutem em niacutevel

pessoal enxergo um tipo de maacutegica no fato de que somente apoacutes a revelaccedilatildeo do negativo eacute que

conhecemos de fato as imagens Assim a fotografia produzida com teacutecnicas analoacutegicas figurava

como objeto de pesquisa inicial nesses contornos ainda meio fraacutegeis do ponto de vista do rigor

teoacuterico

Ainda de forma incipiente a investigaccedilatildeo parecia encaminhar-se para o lado da

nostalgia e inclinada a compreender uma atitude desviante daqueles que escolhiam o analoacutegico

em detrimento do digital Isso levou a um problema o que justificaria essa escolha para aleacutem de

uma certa verve cool que reveste o projeto do Analogue Sunrise Esse questionamento tambeacutem

se fazia presente na curiosidade que despertava em mim o Impossible Project (retomada da

produccedilatildeo de cacircmeras e insumos para a Polaroid em 2008) de revival da fotografia instantacircnea

Os usuaacuterios do Analogue Sunrise pareciam valorizar a granulaccedilatildeo das peliacuteculas o

desfocado as fotos ldquotremidasrdquo como se tais caracteriacutesticas indicassem o apreccedilo por uma esteacutetica

ldquodos defeitosrdquo que se afastava de certa frieza e perfeiccedilatildeo que o universo da imagem digital

supostamente representava Novamente essas questotildees partiam de uma observaccedilatildeo

despretensiosa sem muita base teoacuterica (da qual eu em niacutevel pessoal compartilhava)

Senti a necessidade de revisitar uma literatura que desse conta das preocupaccedilotildees em

torno da imagem digital como ela articulava mudanccedilas de haacutebitos modos de distribuiccedilatildeo

consumo e estrateacutegias criativas da fotografia na tentativa de encontrar nesses textos respostas

que explicassem uma ldquonegaccedilatildeordquo dessa tecnologia e assim uma interdiccedilatildeo tambeacutem de sua esteacutetica

ldquoperfeitardquo Notei que era necessaacuterio compreender primeiro esse contexto da imagem digital para

entender sua loacutegica e talvez defender uma posiccedilatildeo de recusa deliberada traduzida na escolha

pelo analoacutegico Comecei a buscar as referecircncias que espelhavam as principais questotildees surgidas e

aprofundadas quando o paradigma digital ganha corpo a partir dos anos 1980 Agrave medida que lia

Manovich (19952001) Couchot (2003) Parente (1993) Machado (1993) Soulages (20072010)

Fatorelli (2006) Valle (2012) Lister (1995) Baio (2016) entre tantas outras referecircncias fui

15

percebendo que a questatildeo central natildeo era de apenas fazer uma distinccedilatildeo epistemoloacutegica e teacutecnica

entre tecnologias fotoquiacutemicas e digitais capaz de explicar preferecircncias formais Quando

observamos as primeiras reflexotildees sobre a emergecircncia da cibercultura e os impactos desta no

campo da imagem os debates estatildeo mais centrados em questotildees tais como compartilhamento

vigilacircncia manipulaccedilatildeo de arquivos naturalizada autoria coletiva criaccedilatildeo de artefatos hiacutebridos

tentando mapear distinccedilotildees entre uma epistemologia herdada do pensamento moderno (imagem

analoacutegica) e um paradigma da imagem ligado ao surgimento do computador de uma

racionalidade matemaacutetica Nesse esforccedilo de reflexatildeo velhos debates ligados agrave (suposta) funccedilatildeo

indicial da fotografia foram revisitados ou ldquorecicladosrdquo

Essa discussatildeo que articula problemaacuteticas da cibercultura e paradigmas claacutessicos da

imagem faz com que as teorias oscilem entre o entusiasmo com as possibilidades criativas do

digital e anaacutelises que detectam justamente essas ambiguidades comportadas pelo campo da

imagem fazendo natildeo apenas conviverem mas se associarem as diferentes tecnologias e nesse

sentido faccedilo nos capiacutetulos ldquoInteligecircncias numeacutericasrdquo e ldquoAnaloacutegico x digital interrogaccedilotildees em

direccedilatildeo agrave fotografiardquo da tese diversas consideraccedilotildees a respeito desse cenaacuterio que jaacute natildeo eacute mais

novo mas precisava de certa maneira de alguma demarcaccedilatildeo para situar as discussotildees que se

seguem Aleacutem de delinear questotildees importantes que caracterizam o paradigma digital e que satildeo

evocados nos debates sobre a fotografia (como a manipulaccedilatildeo a imaterialidade o virtual a

simulaccedilatildeo automaccedilatildeo dos dispositivos entre outras) esses dois capiacutetulos trazem uma seacuterie de

observaccedilotildees que relativizam as diferenccedilas tatildeo demarcadas entre analoacutegico e digital

aproximando-se de temas como remediaccedilatildeo (BOLTER amp GRUSIN 2000) materialidade do

software (MANOVICH 2013) a compreensatildeo da imagem como espaccedilo de experiecircncias

(enfatizando assim seu caraacuteter de artifiacutecio) o que por sua vez alinha-se agraves teses sobre os

hidridismos as contaminaccedilotildees (FATORELLI 2013) entre meios e ao decliacutenio das teorizaccedilotildees

preocupadas em singularizar os territoacuterios da imagem (fotografia cinema viacutedeo)

O esforccedilo de revisitar essas teses eacute feito no intuito de associar os debates que permeiam

o campo da imagem na emergecircncia da cibercultura para estabelecer algumas questotildees

importantes que serviratildeo de base para as abordagens posteriores centradas na temaacutetica do ruiacutedo

Considero que para articular esses dois campos (imagem e ruiacutedo) era interessante primeiro situar

algumas reflexotildees que mobilizaram intensamente os pensadores voltados agrave fotografia ao cinema

16

ao viacutedeo Ateacute porque apesar de emergir como tema no campo da arte jaacute no iniacutecio do seacuteculo XX

o ruiacutedo eacute um assunto bastante associado ao universo da computaccedilatildeo (conforme veremos adiante)

O conjunto dessas reflexotildees abriu margem para pensar a exploraccedilatildeo das proacuteprias miacutedias

como estrateacutegia de criaccedilatildeo direcionando o foco de anaacutelise agraves experiecircncias situadas em zonas

limiacutetrofes das tecnologias e das linguagens fazendo emergir dessas investigaccedilotildees esteacuteticas

inusuais hiacutebridas e nascidas de usos pouco convencionais dos dispositivos Aqui comeccedilava a

ganhar corpo o tema principal deste trabalho o reconhecimento e a valorizaccedilatildeo de formas

surgidas pelo uso combinado ou exclusivo das mais diversas tecnologias da imagem empregadas

contrariamente aos seus respectivos ldquoprogramasrdquo (FLUSSER 2011 2008) industriais que por

sua vez enfatizam o potencial criativo que alguns artistas enxergam no ruiacutedo do medium Em

uacuteltima instacircncia o ruiacutedo como um conceito operador de esteacuteticas singulares experimentais

Pensei que a partir dessas associaccedilotildees seria possiacutevel entender a tendecircncia cada vez mais

heterogecircnea da imagem contemporacircnea e o interesse por aspectos formais antes considerados

sob a rubrica dos ldquodefeitosrdquo (tais como borrotildees tremidos riscos granulaccedilatildeo pixelizaccedilatildeo

vestiacutegios dos materiais utilizados ou do gesto interventivo doda artista fantasmagorias

anamorfoses e outras inscriccedilotildees de temporalidades complexas marcas do desgaste) Essa

orientaccedilatildeo por sua vez tornava problemaacutetica a insistecircncia (inicial) em vincular a pesquisa

exclusivamente ao universo das miacutedias analoacutegicas visto que o tema do ruiacutedo possui uma estreita

relaccedilatildeo com o contexto de industrializaccedilatildeo e crescimento da importacircncia dos meios de

comunicaccedilatildeo no iniacutecio do seacuteculo XX e com a cibercultura em especial em que noccedilotildees de

controle eficiecircncia e precisatildeo expressam justamente a ideia de constranger reduzir a

manifestaccedilatildeo erraacutetica irregular e imprevisiacutevel do ruiacutedo Aleacutem disso a fotografia vernacular que

me ocupava no iniacutecio da investigaccedilatildeo natildeo parecia diretamente relacionada aos

experimentalismos com as teacutecnicas associados agrave temaacutetica do ruiacutedo Foi preciso olhar para o

campo da arte que se tornou referecircncia principal do corpus

Decidi entrevistar artistas que ajudaram a perceber que o problema central enfrentado

em minha tese era na verdade o interesse por uma esteacutetica emergente dos procedimentos

realizados com a imagem (no qual a presenccedila das miacutedias analoacutegicas era uma caracteriacutestica mas

natildeo um traccedilo definidor exclusivo) Natildeo era o uso da fotografia analoacutegica que explicava uma

esteacutetica processual e cheia de ldquodefeitosrdquo mas esse uso representava uma das estrateacutegias que

17

fazem parte de um contexto maior que permite afirmarmos essa esteacutetica (ou esteacuteticas) As

conversas com sete artistas (mulheres e homens) realizadas nos anos de 2017 2018 e 2019

confirmaram o interesse pelos desvios nos usos das tecnologias apontando a pertinecircncia de tratar

essas questotildees em articulaccedilatildeo com os temas do ldquoruiacutedordquo (HAINGE 20072013 KRAPP 2011

NUNES 2011 BALLARD 2011 MENKMAN 2010 FELINTO 2013) ldquoerrordquo (CHEacuteROUX

2009 PIPER-WRIGHT 2018) ldquoimprevistordquo ldquoacasordquo e acidente (ENTLER 2000) Em todas as

entrevistas a filosofia de Vileacutem Flusser (1920-1991) surgiu como referecircncia de pensamento que

norteava os projetos artiacutesticos embora no recorte final do corpus alguns artistas tenham sido

retirados para dar lugar a outros que descobri ao longo da investigaccedilatildeo

Aleacutem do pensador tcheco tambeacutem faccedilo referecircncias pontuais aos escritos de Gilles

Deleuze individualmente (199920052012) a seus trabalhos em parceria com Feacutelix Guattari

(1995199720112012) Walter Benjamin (19361994) entre outros nomes da filosofia

Durante o processo de qualificaccedilatildeo sugeriu-se que o trabalho deveria concentrar-se nas

relaccedilotildees entre ruiacutedo e imagem Nesse sentido foi indicado que esse tema atravessasse a

totalidade dos capiacutetulos sendo tratado desde o iniacutecio do texto Hoje com o trabalho finalizado

pode-se dizer que o ldquocoraccedilatildeordquo da tese estaacute nas diversas estrateacutegias de emergecircncia do ruiacutedo em

diaacutelogo com a filosofia a esteacutetica e as teorias da fotografia Mas com a necessidade de

reestruturar o que jaacute estava produzido optei por incluir a partir dos primeiros capiacutetulos breves

observaccedilotildees que enquanto se referiam a obras especificamente trouxessem algumas das

caracteriacutesticas ou ideias tais como imprevisibilidade inteligecircncia maquiacutenica interferecircncia nos

sistemas perturbaccedilatildeo remixagem entre outras Desse modo busquei aos poucos introduzir

algumas questotildees relevantes (em articulaccedilatildeo com os debates sobre o cenaacuterio da imagem

contemporacircnea) para trabalhar especificamente o conceito de ruiacutedo juntamente agrave anaacutelise das

obras Minha ideia era que este tema pudesse ser discutido em suas possiacuteveis articulaccedilotildees com

referecircncias do campo da filosofia esteacutetica e da teoria da fotografia por meio da anaacutelise do

corpus de obras artiacutesticas selecionado que eacute o foco dos capiacutetulos ldquoRuiacutedo erro e imagemrdquo e

ldquoFalhas bugs e descontinuidades sistecircmicasrdquo

Neles procedo entatildeo agrave conceituaccedilatildeo sobre o ruiacutedo resgatando suas caracteriacutesticas

essenciais dialogando em alguns momentos com as ideias dosdas proacutepriosas artistas (com base

nas entrevistas e outros materiais de referecircncia) em conexatildeo com as reflexotildees de Baio (2015)

18

Fatorelli e Carvalho (2015) Costa (2015) Fatorelli (201320172017a) Bellour (1997) Parente

(2015) Menkman (2010) Fontcuberta (20102016) Piper-Wright (2018) Zylinska (20172017a)

Steyerl (2009) Lenot (2017) entre outros nomes passando por experiecircncias com as

temporalidades a ressignificaccedilatildeo criacutetica de tecnologias histoacutericas como daguerreoacutetipo cacircmara

escura fotografia estenopeica goma bicromatada pelo tracircnsito entre foto cinema viacutedeo e

pintura os diaacutelogos entre as vertentes fixa e moacutevel da imagem experiecircncias multimiacutedia ateacute a

apreciaccedilatildeo do ruiacutedo em suas manifestaccedilotildees nos domiacutenios da imagem digital em obras que

exploram softwares formatos de arquivos revisitam meios ldquoobsoletosrdquo e se apropriam de

material de terceiros (instituiccedilotildees ou particulares) em afinidade com temas como vigilacircncia

hackeamento sabotagem e remix

As anaacutelises dos trabalhos fotograacuteficos de Luiz Alberto Guimaratildees Dirceu Maueacutes Cris

Bierrenbach Rosacircngela Rennoacute Caacutessio Vasconcellos Joseacute Luiacutes Neto Sabato Visconti Rosa

Menkman Joanna Zylinska Jason Shulman Claire Strand Thomas Ruff e Eacuteder Oliveira

convocam-nos a repensar diversos paradigmas da imagem bem como os alargamentos das

possibilidades esteacuteticas atraveacutes da investigaccedilatildeo das tecnologias Por forccedila do debate em torno da

pluralidade de recursos e miacutedias empregados nos trabalhos e tambeacutem com base em toda revisatildeo

de bibliografia feita nos primeiros capiacutetulos optei por referir-me principalmente agraves obras

utilizando a terminologia da ldquoimagemrdquo que me parece gozar de maior abrangecircncia sobre os

fenocircmenos discutidos em comparaccedilatildeo com o uso do termo ldquofotografiardquo Eacute por isso que este

uacuteltimo eacute mais frequente nos capiacutetulos iniciais (que abordam a ldquotransiccedilatildeordquo analoacutegico-digital de

um ponto de vista mais teacutecnico) e paulatinamento sai de cena para dar lugar agrave categoria da

imagem que julgo ser mais coerente para tratar das experiecircncias realizadas no tracircnsito entre

tecnologias

Se o ruiacutedo acaba por ser o centro de meu debate as anaacutelises realizadas conduziram

tambeacutem a questotildees abordadas em campos como a arqueologia da miacutedia (ZIELINSKI 2006

BISHOP et al 2016 PARIKKA 20122017) as materialidades da comunicaccedilatildeo (FELINTO

2001 GUMBRECHT 2010) e o papel do acaso (ENTLER 2000) que embora rapidamente

citadas nas seccedilotildees anteriores trato de forma mais detalhada no uacuteltimo capiacutetulo Ao discutir as

visualidades surgidas da investigaccedilatildeo teacutecnica e conceitual voltada ao proacuteprio medium em

metodologias originais evoco novamente as ideias de ldquoaparelhordquo ldquojogordquo ldquoprogramardquo do

vocabulaacuterio flusseriano estabelecendo tambeacutem uma noccedilatildeo de criaccedilatildeo artiacutestica baseada na

19

colaboraccedilatildeo entre seres humanos e dispositivos (esta relaccedilatildeo que entendi ser mais da ordem das

acoplagens que das hierarquias ou dos conflitos)

Recolocar essas questotildees me pareceu pertinente na medida em que finalizo este trabalho

situando as abordagens da teoria da fotografia que guardam uma estreita relaccedilatildeo com essas

consideraccedilotildees de Flusser a saber os trabalhos de Lenot (20172017a) Poivert (20022015)

Fontcuberta (2010) Junior (2002) e mais uma vez Zylinska (2017a) Ou seja se partir do

contexto de emergecircncia da cultura digital abordando os debates surgidos no meio fotograacutefico as

contaminaccedilotildees entre as miacutedias e as experimentaccedilotildees artiacutesticas compreendo ser vaacutelido fechar

esse movimento apontando onde no espaccedilo das teorias da fotografia encontramos reflexotildees que

dialogam com as mesmas questotildees que se batem os pesquisadores dedicados ao espinhoso tema

do ruiacutedo

Compreendo nessa altura do debate proposto que o tema das expressotildees do ruiacutedo eacute

bastante vasto constituindo um territoacuterio feacutertil de anaacutelises que nem de longe tenho a pretensatildeo de

esgotar nesta tese Mesmo que a intenccedilatildeo aqui seja trazer a questatildeo para o universo da imagem

contemporacircnea natildeo me desviei de exemplos referecircncias e ideias de outras artes (notadamente a

muacutesica) valendo-me natildeo soacute do caraacuteter interdisciplinar que a aacuterea da comunicaccedilatildeo permite mas

tambeacutem em conformidade com o proacuteprio conceito de ruiacutedo que eacute tomado como traccedilo material

encontrado em quaisquer campos expressivos

Na maneira como essa empreitada foi conduzida fica evidente que perdeu forccedila o

questionamento inicial que deu iniacutecio a esse percurso (um certo afeto anacrocircnico pela foto

analoacutegica) que acabou por revelar questotildees outras relativas agrave filosofia agrave histoacuteria da miacutedia ao

potencial subversivo da criacutetica aos dispositivos ao decliacutenio de valores como o belo a mimesis e a

verossimilhanccedila agrave relativizaccedilatildeo do ser humano como sensibilidade hegemocircnica da criaccedilatildeo

artiacutestica e agraves tecnologias da imagem e sua presenccedila inescapaacutevel em nossas rotinas

Espero ter sido feliz na maioria das escolhas e que a leitura do trabalho seja guiada por

essas raacutepidas explicaccedilotildees dos caminhos e descaminhos de meu pensamento

20

2 INTELIGEcircNCIAS NUMEacuteRICAS

21 BREVE CONTEXTO SOCIAL E EMERGEcircNCIA DA CULTURA DIGITAL

A cultura digital ndash tendo no computador o marco fundamental ndash vai sendo desenhada a

partir de forccedilas industriais de mudanccedilas nas formas de comunicaccedilatildeo entre sujeitos governos e

empresas e se articula com uma visatildeo de mundo que enseja a conexatildeo a troca e o

compartilhamento de praacuteticas saberes e afetos Sua loacutegica inclui tambeacutem uma noccedilatildeo de

eficiecircncia precisatildeo e regularidade no desempenho da tecnologia obtida a partir do

desenvolvimento de mecanismos diversos de controle e reduccedilatildeo de erros (NUNES 2011)

questotildees essenciais para as discussotildees propostas nesta tese A partir de apontamentos que

remontam a um contexto cada vez mais contaminado de informaccedilotildees que se perdem no

ciberespaccedilo eacute que devemos pensar tambeacutem os movimentos que atingem o campo da imagem na

contemporaneidade

Como esse assunto jaacute foi tratado por autores variados optamos por escolher uma

abordagem que embora natildeo seja capaz de alcanccedilar todas as ramificaccedilotildees possiacuteveis do tema

propotildee uma compreensatildeo das tecnologias informaacuteticas e seus impactos num entrelaccedilamento com

estrateacutegias de produccedilatildeo e distribuiccedilatildeo do conhecimento anteriores Desse modo aleacutem de

reprisarmos alguns pontos importantes que tipificam a cultura legada pelos sistemas

computadorizados podemos identificar melhor o contexto que autoriza tambeacutem os debates sobre

novas formas da imagem Ao mesmo tempo a escolha desse recorte espelha uma compreensatildeo de

alguns autores evocados ao longo do texto de que as tecnologias sejam compreendidas sob uma

perspectiva relacional em que as miacutedias ao sucederem umas agraves outras compartilham certas

funccedilotildees e estrateacutegias podem resgatar esteacuteticas e ainda agregam ferramentas especiacuteficas

responsaacuteveis pela emergecircncia de artefatos culturais novos Quer dizer as tecnologias mais

recentes podem ao mesmo tempo conservar atributos de suas antecessoras e carregar potecircncias

que espelham suas proacuteprias identidades Nesse entendimento assinalamos a aproximaccedilatildeo de

nosso debate com teoacutericos da histoacuteria da miacutedia e da arqueologia da miacutedia como Siegfried

Zielinski (2006) Jussi Parikka (2012) e Lev Manovich (20012013) e de pesquisadores que

21

seguem debatendo os tensionamentos envolvidos nas relaccedilotildees entre arte tecnologia e ciecircncia

como Erick Felinto Antonio Fatorelli Cesar Baio Katia Maciel Joanna Zylinska pensando suas

contribuiccedilotildees para o campo da imagem

Se pensarmos na trajetoacuteria das tecnologias da inteligecircncia podemos afirmar que uma

modalidade nova incorpora as demais poreacutem isso natildeo eacute tudo Segundo Manovich (2013) o

computador eacute uma metamiacutedia porque aleacutem de trazer funccedilotildees e criar necessidades particulares

retoma tambeacutem estrateacutegias criativas de outras miacutedias tornando seus produtos uacutenicos Tomando o

hipertexto como exemplo o autor indica

() o software cultural transformou as miacutedias em metamiacutedias ndash um sistema tecnoloacutegicoe semioacutetico fundamental que inclui teacutecnicas e esteacuteticas dos meios (anteriores) como seuselementos ndash mas penso que o hipertexto eacute bem diferente da tradiccedilatildeo literaacuteria moderna1(MANOVICH 2013 p81)

Isso porque o hipertexto ultrapassa a ideia de algo cuja estrutura e conteuacutedo satildeo

estritamente ldquotextuaisrdquo seu conceito estende-se a imagens sons viacutedeos ecoando um princiacutepio

original de desenvolvimento da informaacutetica no qual o computador eacute uma maacutequina de articulaccedilatildeo

entre ldquoum amplo espectro de miacutedias existentes e miacutedias ainda natildeo inventadasrdquo (KAY amp

GOLDBERG apud MANOVICH 2013) Devemos considerar que os apontamentos do

pesquisador russo fazem parte da corrente dos estudos de software que investiga a posiccedilatildeo

central do software na cultura contemporacircnea em sua utilizaccedilatildeo como plataforma que autoriza

tanto a manipulaccedilatildeo de vaacuterios meios ldquoremediandordquo2 miacutedias fiacutesicas quanto criando artefatos com

auxiacutelio de propriedades intriacutensecas ao computador e nesse sentido haacute duas caracteriacutesticas

importantes do software que implicam todas as suas accedilotildees a simulaccedilatildeo e o hibridismo

1 Traduccedilatildeo livre de ldquocultural software turned media into metamediamdasha fundamentally new semiotic andtechnological system which includes most previous media techniques and aesthetics as its elementsmdashI also think thathypertext is actually quite different from modernist literary traditionrdquo

2 Remediaccedilatildeo eacute a propriedade de uma miacutedia ser representada em outra O termo eacute dos pesquisadores Jay Bolter eRichard Grusin (2000) para os quais a especificidade da miacutedia digital eacute remediar a TV a fotografia o filme e apintura pois que em muitas tarefas executadas pelo computador as estrateacutegias de interaccedilatildeo acesso armazenamentoe processamento de informaccedilatildeo fazem referecircncia aos processos tiacutepicos de miacutedias fiacutesicas (interface de editores detexto que imitam a superfiacutecie do papel aplicaccedilotildees para desenhar organizaccedilatildeo de arquivos em pastas ediccedilatildeo de some imagem remetendo a ferramentasobjetos) Manovich (2103) faz referecircncia a este trabalho ao desenvolver oraciociacutenio a respeito do computador como uma metamiacutedia embora amplie a discussatildeo enfatizando as propriedadesadicionais que o software traz aos produtos desenvolvidos sobretudo no que diz respeito ao caraacuteter hiacutebrido demuitos deles

22

Voltaremos a elas mais detalhadamente nas discussotildees em torno da imagem contemporacircnea e

sobretudo nas esteacuteticas criadas em projetos artiacutesticos desenvolvidos com dispositivos digitais

Pierre Leacutevy (1993) por sua vez reflete sobre a propriedade de mutabilidade dos

produtos da cultura digital a ideia de que conteuacutedos e elementos tratados por sistemas

informaacuteticos estatildeo sujeitos agrave alteraccedilatildeo sempre que a necessidade e a subjetividade ordenem

Pensemos num texto que apoacutes elaborado nunca estaacute finalizado de fato podendo ser

ressignificado ou refeito por distintos autores ampliando sua rede de significados atraveacutes de

comentaacuterios compartilhamentos ou reescrita como ocorre no tratamento das informaccedilotildees no

Wikipeacutedia Da mesma forma se comportam as imagens alteradas desgarradas do espaccedilo e funccedilatildeo

originaacuterios para ativarem novos sentidos a exemplo do que ocorre na praacutetica dos memes e gifs

utilizados em redes sociais incorporados a peccedilas artiacutesticas ou emails Assim o princiacutepio da

metamorfose sugere um aspecto de abertura de estiacutemulo agrave investigaccedilatildeo uma disposiccedilatildeo para a

mudanccedila Tende para a eterna possibilidade da redefiniccedilatildeo de paracircmetros formas estilos

significados

O estudo de Leacutevy embora datado dos anos 1990 sugere algumas das principais

caracteriacutesticas do modelo informaacutetico que regem a produccedilatildeo de conhecimento a criaccedilatildeo artiacutestica

as relaccedilotildees sociais Entre elas podemos destacar a instantaneidade das tarefas a simulaccedilatildeo a

capacidade multimiacutedia uma atitude exploratoacuteria a relaccedilatildeo com o espaccedilo rizomaacutetico da internet a

natildeo-linearidade de processos e conteuacutedos a relaccedilatildeo com a informaccedilatildeo mediada por interfaces a

abertura dos dados agrave manipulaccedilatildeo e a imaterialidade destes Os apontamentos do autor permitem

compreender natildeo apenas o ambiente em que surgem os dispositivos informaacuteticos mas tambeacutem

uma cultura que enfatiza experiecircncias de autoria coletiva guiadas pela troca e pelo espiacuterito

colaborativo numa ideia de que o conhecimento a produccedilatildeo simboacutelica e as informaccedilotildees sobre a

proacutepria tecnologia devem ser livres e acessiacuteveis a qualquer pessoa (BAIO 2015 p20) Daiacute temos

questotildees como a relativizaccedilatildeo das hierarquias o cruzamento de referecircncias o poder fazerdesfazer

na base das operaccedilotildees cotidianas o remix as identidades fluidas o espaccedilo e tempo em relaccedilatildeo

descontiacutenua a interaccedilatildeo definida pela velocidade permeando um modelo epistemoloacutegico que

contraria os essencialismos as verdades acabadas as formas de pensamento estanques resultante

de um acuacutemulo de esforccedilos de aacutereas como a matemaacutetica a informaacutetica e a ciberneacutetica

23

Se vivemos numa ldquosociedade do softwarerdquo (MANOVICH 2013) Andreacute Lemos (2009)

lembra que a cultura digital eacute a cultura produzida e mediada pelo computador celular pelas

redes afetando nossas formas de agir politicamente produzir arte acessar e distribuir material e

acrescenta que a ideia de cibercultura natildeo eacute uma proposiccedilatildeo de futuro mas de um presente jaacute

naturalizado em nosso cotidiano O pesquisador brasileiro diz ainda que a cibercultura nasce natildeo

com a informaacutetica de 1940 mas com a microinformaacutetica quando cada pessoa pode ter no

computador um instrumento de produccedilatildeo de informaccedilatildeo (que estimula a criaccedilatildeo coletiva e a

colaboraccedilatildeo) inaugurando a possibilidade de distribuir conteuacutedo em formatos diversos a

qualquer ponto do mundo conectado agrave internet Manovich (2013) ao fazer um resgate de nomes

importantes da ciecircncia da computaccedilatildeo demonstra que o paradigma numeacuterico3 consolida-se no

momento em que os computadores deixam de ser ferramentas de uso militar e industrial para se

tornarem dispositivos para criaccedilatildeo e troca de conteuacutedo a niacutevel dos usuaacuterios comuns e

profissionais de aacutereas variadas (em especial nos campos da comunicaccedilatildeo em rede e do

entretenimento) Ou seja os dois pensadores estatildeo unidos na proposiccedilatildeo de que a cibercultura

representa a apropriaccedilatildeo social dos dispositivos informaacuteticos Lemos conclui

Eu sempre digo que essa tecnologia eacute muito mais um fenocircmeno social do quenecessariamente um fenocircmeno teacutecnico porque ela foi fruto de uma atitude que euchamei num texto de uma atitude ciberpunk contra a grande informaacutetica que vai dandoseus frutos ateacute hoje Obviamente que isso vai perdendo forccedila ganhando novoscontornos mas efetivamente ela continua ainda influenciando na maneira como a gentepensa a cultura digital (LEMOS 2009 p139)

Esse contexto social mais amplo eacute assinalado por um conjunto de pensadores bastante

diverso por causa das aacutereas de conhecimento agraves quais estatildeo relacionados entre os quais

destacamos Santaella (2007) Castells (2002) Jenkins (2009) Bauman (2001) Deleuze e

3 Numeacuterico eacute o termo consagrado na teoria francesa para tratar dos processos relacionados agrave tecnologia informaacuteticacomo referecircncia agrave linguagem baseada em nuacutemeros utilizada pelos computadores Aqui o termo segue o uso feito porEdmond Couchot Franccedilois Soulages Poreacutem utilizaremos ainda termos como digital virtual sinteacutetica ou poacutes-fotografia que se referem agrave mesma condiccedilatildeo tecnoloacutegica (principalmente ao tratar da imagem) em acordo com anomenclatura empregada por teoacutericos como Lev Manovich Joan Fontcuberta Philippe Dubois Antonio Fatorellientre outros fazendo as devidas ressalvas e explicaccedilotildees adicionais quando necessaacuterio ao tratar especificamente daaplicaccedilatildeo desses termos agrave fotografia

24

Guattari (1995 2011 2012)4 Parente (2009) Krapp (2011) entre outros ao perceberem

mudanccedilas nos modos de sentir relacionar expressar e comunicar das sociedades em relaccedilatildeo cada

vez mais estreita com tecnologias automatizadas (principalmente a partir da segunda metade do

seacuteculo XX) Nosso intuito aqui natildeo eacute refazer o caminho desses autores mas apenas lembrar

alguns pontos importantes de suas reflexotildees aproveitando-as num esforccedilo introdutoacuterio de

brevemente demarcar o ambiente epistemoloacutegico no qual se configuram as formas de

comunicaccedilatildeo e expressatildeo ligadas ao computador

Essas breves observaccedilotildees a respeito da cultura digital tambeacutem satildeo aqui lanccediladas para

iniciar um debate mais especiacutefico em torno da imagem e do que acontece com ela por forccedila das

mudanccedilas tecnoloacutegicas Revisitaremos alguns pontos de discussatildeo que permearam a emergecircncia

da imagem digital e as posteriores comparaccedilotildees entre esta e a imagem analoacutegica apontando

particularidades modos de acionamento e aproximaccedilotildees Aqui de certa forma estamos assumindo

o risco de fazer esse paralelo em bases fortemente tecnoloacutegicas sujeitos agrave acusaccedilatildeo de

determinismo da maacutequina Tal questatildeo mostra-se central porque desencadeia caracteriacutesticas que

vatildeo diferenciar tais sistemas (linha de raciociacutenio que marcou sobretudo as primeiras reflexotildees

teoacutericas sobre as tecnologias digitais da imagem) Se eacute nosso intuito reivindicar um espaccedilo de

debate em torno da imagem em obras que por vezes enfatizam sua materialidade a exploraccedilatildeo de

elementos como a luz a superfiacutecie dos suportes a elasticidade do tempo investindo na

experimentaccedilatildeo com miacutedias analoacutegicas isso parece fazer sentido na medida em que a imagem

digital torna-se um padratildeo industrial e comeccedila a referir modelos representativos supostamente

associados a noccedilotildees qualitativas da imagem fotoquiacutemica Ao longo do texto ficaraacute perceptiacutevel

tambeacutem que passado o momento de celebraccedilatildeo da novidade e apontamento das especificidades do

digital as discussotildees a respeito da imagem digital trilham novos caminhos que incluem o impacto

dos algoritmos dos softwares das visualidades preacute-formatadas por filtros as operaccedilotildees de

hibridizaccedilatildeo e a emulaccedilatildeo de esteacuteticas cujos efeitos estatildeo bastante proacuteximos das tecnologias

analoacutegicas fazendo tambeacutem com que estas uacuteltimas sejam redescobertas retomadas ou reavaliadas

em diferentes metodologias Nesse processo detectamos algumas permanecircncias de modelos

4 Aqui nos restringimos a citar apenas alguns volumes do Mil Platocircs que contecircm o desenvolvimento em torno dosconceitos de devir rizoma e do tema do menor visto que satildeo evocados por outros autores ou mesmo pela proacutepriaautora (no conjunto da tese) Mas ressaltamos que o nuacutecleo da filosofia de Deleuze e Guattari dirige-se a objetosvariados (a linguagem a pintura a proacutepria filosofia o cinema) para desvendar a percepccedilatildeo de uma sociedadeheterogecircnea e em constante mudanccedila o que os coloca em alinhamento com os demais autores citados

25

esteacuteticos no uso da miacutedia digital e mais recentemente uma feacutertil exploraccedilatildeo artiacutestica do potencial

anaacuterquico e dissonante dos erros de sistemas computadorizados

Nas mais diversas estrateacutegias criativas com miacutedias fotoquiacutemicas e digitais observamos o

desejo de investigar os dispositivos e teacutecnicas na criaccedilatildeo de obras proacuteximas da tese do ruiacutedo

(HAINGE 2013) Ou seja temos um cenaacuterio bastante diversificado do qual tentaremos indicar

algumas tendecircncias

Assim nosso percurso vai abarcar primeiro algumas questotildees relativas a cibercultura ndash

tais como a simulaccedilatildeo a imaterialidade a alteraccedilatildeo de conteuacutedo ndash tendo em vista que no campo

da imagem a compreensatildeo de uma loacutegica informaacutetica sedimentou as primeiras reflexotildees teoacutericas

sobre os impactos esteacuteticos do paradigma numeacuterico e comparaccedilotildees com as imagens que lhes

precederam (em especial a fotografia analoacutegica) ateacute chegar a consideraccedilotildees mais recentes que

recolocam o lugar da materialidade as misturas de materiais e esteacuteticas promovidas por artistas

que demonstram uma postura ativa para explorar as tecnologias contrariamente a seus

funcionamentos padronizados e como as ideias de ldquoerrordquo e ldquoruiacutedordquo articulam-se com esse debate

de uma imagem experimental focada na exploraccedilatildeo das tecnologias

22 RASTROS PEGADAS DA CULTURA DO NUMEacuteRICO

A predominacircncia da numerizaccedilatildeo atual tem suas raiacutezes numa crescente automatizaccedilatildeo

das tarefas cotidianas ndash que por sua vez estende-se aos processos criativos artiacutesticos ndash ocorrida

no seacuteculo XIX da qual a fotografia eacute o exemplo inaugural evidente (COUCHOT 2003) Eacute com

ela que se daacute um rompimento crucial no seio da criaccedilatildeo e se instaura uma relaccedilatildeo entre seres

humanos e maacutequinas na busca de mobilizar significados sensaccedilotildees apontar caminhos para as

artes em geral A tarefa dos artistas a partir daiacute eacute brincar com essa relaccedilatildeo extraindo das

tecnologias aquilo que melhor expresse a sua vontade de comunicar uma ideia um sentimento

um questionamento Em meio ao desenvolvimento de praacuteticas da fotografia do cinema da

televisatildeo do viacutedeo e de pesquisas sobre o processamento o tratamento e a transmissatildeo

automaacutetica de informaccedilotildees sejam tais esforccedilos voltados para a induacutestria ou para o

entretenimento eacute que vai se desenvolvendo paulatinamente o conjunto de saberes que datildeo origem

ao campo da informaacutetica

26

Para Manovich (2001) que analisou as miacutedias baseadas em computador natildeo somente em

seus reflexos no campo artiacutestico mas tambeacutem em seu uso domeacutestico haacute uma vizinhanccedila entre

meios analoacutegicos e digitais O que se denominou ldquonovas miacutediasrdquo entre o fim dos anos 1990 e

comeccedilo dos 2000 eacute resultado da uniatildeo entre miacutedias tradicionais de imagem som e texto e o

desenvolvimento da computaccedilatildeo as trajetoacuterias de campos como o cinema e a fotografia se

desenvolvem em paralelo agraves de maacutequinas criadas para caacutelculos e operaccedilotildees automatizadas que

satildeo as ldquoavoacutesrdquo do computador domeacutestico isso ainda no seacuteculo XIX5 Todas podem ser entendidas

como dispositivos para registrar armazenar e distribuir informaccedilotildees em vaacuterios formatos

(MANOVICH 2001 p20) Para ambos os pesquisadores a cultura digital eacute resultado de

processos de automatizaccedilatildeo diversos ocorridos em anos anteriores

Enquanto Couchot mapeia no acircmbito artiacutestico as propostas e convenccedilotildees que aos poucos

vatildeo desenhando o surgimento das tecnologias do computador e seu emprego nas praacuteticas

artiacutesticas pontuando uma seacuterie de rupturas teacutecnicas e filosoacuteficas mas tambeacutem reconfiguraccedilotildees

conceituais e esteacuteticas Manovich demonstra de um ponto de vista bastante praacutetico que diversas

ferramentas simbologias e accedilotildees ligadas ao uso do computador satildeo herdadas de outras praacuteticas

culturais ndash as miacutedias cinematograacutefica fotograacutefica e impressa ndash e que ao mesmo tempo em que o

paradigma digital oferece um novo espaccedilo criativo por suas potencialidades especiacuteficas ele

promove uma negociaccedilatildeo com as formas culturais anteriores

23 PARADIGMA NUMEacuteRICO ESPECIFICIDADES

Computadores satildeo produto da informaacutetica ciecircncia da loacutegica e da matemaacutetica Os

dispositivos que antecedem os computadores na tarefa de realizar operaccedilotildees complexas satildeo as

calculadoras usadas primeiro em acircmbito militar e depois na induacutestria Jaacute os computadores com o

surgimento da internet tornam-se objetos corriqueiros para o uso domeacutestico Um traccedilo forte da

cultura digital eacute substituir procedimentos realizados com materiais por funccedilotildees descritas numa

determinada linguagem sem existecircncia fiacutesica

5 O autor daacute exemplos de estudos e aparatos criados para realizaccedilatildeo de caacutelculos no seacuteculo XIX aproximando taisexemplos dos objetivos que norteiam o desenvolvimento da informaacutetica e por consequecircncia a invenccedilatildeo doscomputadores Cf Manovich 2001 p18-26

27

O matemaacutetico von Neumann teve entatildeo a ideia de registrar na memoacuteria da calculadora oproacuteprio programa assim como outros dados a tratar na forma de instruccedilotildees codificadasNuacutemeros e letras substituiacuteam conexotildees e os cabos siacutembolos abstratos constituindo uma

espeacutecie de linguagem ndash o programa (software) ndash que substituiacuteam mateacuterias fiacutesicas equinquilhariasrsquo (hardware) Assim nasceu o computador moderno e com ele ainformaacutetica que podemos considerar globalmente como ciecircncia das linguagens deprogramaccedilatildeo (COUCHOT 2003 p98)

Quer dizer qualquer tarefa executada por um sistema de computador segue orientaccedilotildees

para interpretar dados que tecircm uma natureza comum Nesse sentido quando nos referimos ao

paradigma digital natildeo haacute diferenccedila entre a ldquosubstacircnciardquo da informaccedilatildeo Tanto faz se o output seraacute

uma imagem um texto um som porque as informaccedilotildees satildeo interpretadas em linguagem

matemaacutetica Isso significa que uma imagem um texto ou uma muacutesica sejam ldquocriados por

computador ou convertidos de miacutedias originalmente analoacutegicas eles se tornam um coacutedigo digital

representaccedilotildees numeacutericasrdquo (MANOVICH 2001 p27) A perspectiva eacute compartilhada por Peter

Krapp (2011 p16) ldquocomputadores natildeo precisam distinguir entre um poema um retrato um

arquivo de viacutedeo () sons imagens e textos desaparecem igualmente em estados binaacuterios e satildeo

apenas simulados na tela6rdquo

Tal caracteriacutestica faz com que associar articular miacutedias de natureza diferente seja algo

natildeo apenas mais faacutecil mas que integra a proacutepria loacutegica da cultura digital Natildeo que isso natildeo tenha

sido feito antes do surgimento das tecnologias informaacuteticas Eacute que as operaccedilotildees de criar reverter

accedilotildees modificar coisas em resumo a manipulaccedilatildeo de dados constitui traccedilo marcante dessa

cultura bem como uma tocircnica da sociedade que a faz surgir Nesse sentido o termo ldquonovas

miacutediasrdquo eacute praticamente redundante se as miacutedias digitais satildeo conjuntos de operaccedilotildees de software

em constante desenvolvimento toda miacutedia produzida assim eacute sempre nova (MANOVICH 2013

p156) podendo ser modificada sempre que atualizaccedilotildees surgirem

Levando essas questotildees ao campo do visual a esteacutetica digital eacute caracterizada pela

hibridizaccedilatildeo (SOULAGES 2010) viabilizada por essa capacidade de juntar coisas diferentes

tratando-as sob um mesmo coacutedigo Assim o digital possui uma caracteriacutestica multimiacutedia que

permite transitar as artes e iconografias de todos os tempos sintetizadas pela virtualidade dos

6 Traduccedilatildeo livre de ldquocomputers have no need to distinguish between a poema portrait a video file () sounds imagesand texts all disappear into binary states and are only simulated on screenrdquo

28

aparelhos tecnoloacutegicos que ao mesmo tempo em que conservam reinventam restauram e

misturam (PLAZA 1993 p86) Manovich (2013) utiliza o termo ldquodeep remixabilityrdquo para

referir-se a um niacutevel profundo de integraccedilatildeo de miacutedias diferentes operado pelo computador bem

como agrave capacidade do software de reproduzir caracteriacutesticas especiacuteficas dessas miacutedias7 O mesmo

autor discute essa questatildeo caracterizando as miacutedias computadorizadas por sua variabilidade ndash

condiccedilatildeo de serem abertas agrave modificaccedilatildeo E acrescenta

(hellip) todas as maacutequinas para sintetizar miacutedias eletrocircnicas gravaccedilatildeo transmissatildeo erecepccedilatildeo incluem controles para modificaccedilatildeo do sinal Como resultado um sinaleletrocircnico natildeo tem uma identidade singular ndash um estado particular qualitativamentediferente de todos os outros estados possiacuteveis (hellip) Ao contraacuterio de um objeto materialo sinal eletrocircnico eacute essencialmente mutaacutevel (MANOVICH 2001 p132-133)

Essa compreensatildeo pode ser estendida agraves miacutedias digitais que por sua estrutura permitem

que alteraccedilotildees de toda sorte sejam praticadas com mais facilidade constituindo-se de elementos

unidos mas que conservam sua independecircncia enquanto partes isoladas Os pixels estatildeo para

imagens assim como caracteres estatildeo para textos pois que podem ser localizados e alterados em

sua matriz de valores numeacutericos tornando a imagem uma metamorfose que se atualiza (quando a

vemos) mas que tambeacutem poderia ser algo diferente conforme o potencial de caacutelculo do

computador (SANTAELLA apud VALLE 2012 p123) Quer dizer a partir de um mesmo

elemento no paradigma digital podemos criar coisas diferentes Uma mesma imagem pode se

apresentar visualmente diversa ldquo() podemos mudar seu contraste e cor desfocaacute-la ou tornaacute-la

mais niacutetida transformaacute-la em uma forma em 3D usar seus valores para controlar o som e assim

por dianterdquo (MANOVICH 2001 p133) Soulages (2007 p83) indica que o digital estaacute aberto a

uma exploraccedilatildeo praacutetica e esteacutetica bem maior e que se distingue por uma nova forma de fazer

distribuir e comunicar

A automaccedilatildeo dos processos tambeacutem marca de maneira importante a cultura digital jaacute que

torna miacutenimo o tempo decorrido entre o comando de uma accedilatildeo e seu resultado poreacutem ela natildeo eacute

inaugurada pelas miacutedias digitais mas potencializada por elas Num exemplo simples a condiccedilatildeo

7 O mesmo autor fala sobre uma ldquoesteacutetica do remixrdquo que seria a base conceitual de muitas obras contemporacircneas quese estruturam a partir de elementos de diversos meios (e assim diferentes em seus estilos texturas visuais modos derepresentaccedilatildeo) e tambeacutem de uma ldquoesteacutetica visual hiacutebridardquo acionada na interrelaccedilatildeo entre diversos coacutedigos visuaisCf Manovich 2013 p243-277

29

de acessar a imagem assim que produzida eacute essencial para cacircmeras dos mais diversos gadgets jaacute

que muitas vezes o fazer dessas imagens estaacute orientado para seu compartilhamento Nas cacircmeras

DSLR8 a tela de LCD permite conferir a foto apoacutes sua produccedilatildeo

No que se refere agrave imagem em especial eacute necessaacuterio compreender os mecanismos dos

dispositivos que operam mediante a superficialidade (FLUSSER 2008) pois estamos nos

relacionando com imagens que satildeo conjuntos de dados binaacuterios Satildeo informaccedilotildees que se

organizam em algo que possamos reconhecer como uma imagem mas do ponto de vista de sua

ldquosubstacircnciardquo esses dados satildeo os mesmos de qualquer sistema informaacutetico

24 SOBRE A IMAGEM

241 Virtualidade x materialidade

As imagens digitais filhas do computador satildeo formadas por pixels unidades virtuais

Algumas das reflexotildees a esse respeito enfatizaram bastante a quebra de uma ligaccedilatildeo entre objeto

imagem e sujeito tomando a imagem digital como essencialmente imaterial Ou ainda como ldquoum

acontecimentordquo sujeito ao movimento de aparecer e desaparecer nas telas dependente de um

suporte material (PLAZA 1993)

Presentes em celulares tablets notebooks e cacircmeras atraveacutes de telas por onde noacutes as

acessamos repassamos modificamos Essas imagens satildeo dependentes de um aparato visualizador

que integra a estrutura do sistema ldquoacoplada ao computador a tela eacute a principal forma de acesso

agrave informaccedilatildeo imagens estaacuteticas ou moacuteveis ()rdquo (MANOVICH 2001 p94) Soulages (2007

p86) diz que passamos do mundo real para o mundo da tela jaacute que vemos a imagem no proacuteprio

aparelho o que reforccedila a concepccedilatildeo da fotografia natildeo como imagem da realidade mas como

imagem da imagem

Para esses teoacutericos a necessidade de uma interface de visualizaccedilatildeo pocircs em xeque uma

diferenccedila importante entre os paradigmas analoacutegico e digital a passagem de uma imagem dotada

de materialidade a outra que sequer teria existecircncia fiacutesica A despeito de hoje jaacute estarmos

acostumados com essa condiccedilatildeo essa mudanccedila tem implicaccedilotildees natildeo soacute teacutecnicas mas simboacutelicas

8 Sigla em inglecircs para Digital Single Lens Reflex cacircmeras reflex digitais de objetiva fixa

30

No paradigma digital a imagem existe menos sob a rubrica da durabilidade de um suporte e

sobrevive na fugacidade de uma memoacuteria (PARENTE1993 p27) Eacute efecircmera

As imagens analoacutegicas submetem-se a um procedimento evidente de etapas materiais ndash

revelar ampliar copiar ndash com resultado em um suporte que se tem em matildeos Entre o

ldquoirreversiacutevelrdquo da captura e o ldquoinacabaacutevelrdquo (SOULAGES 2010) da reproduccedilatildeo estamos nos

domiacutenios da quiacutemica e da fiacutesica de uma imagem que adquire um corpo Algo para colar rasgar

cortar queimar ou simplesmente guardar Haacutebitos nem tatildeo corriqueiros assim Valle (2012 p41)

considera uma das grandes diferenccedilas entre os sistemas analoacutegico e digital a passagem de uma

matriz fotograacutefica que era um objeto (o negativo) para outra que eacute formada por coacutedigos inscritos

num dispositivo de memoacuteria o que aumenta a escala do ldquoinacabaacutevelrdquo

Paul Virillo (1993 p129) entende que as imagens virtuais e fotoquiacutemicas se distanciam

tambeacutem num aspecto temporal porque a objetivaccedilatildeo da imagem natildeo se coloca em termos de um

ldquosuporte-superfiacutecierdquo mas sim na relaccedilatildeo que estabelecemos com a imagem num tempo de

exposiccedilatildeo em que podemos vecirc-la e depois jaacute natildeo podemos mais Satildeo imagens mais dadas agrave

circulaccedilatildeo fluidas e impalpaacuteveis Ele acrescenta ainda que enquanto as imagens da fotografia e

do cinema tradicionais demarcam a presenccedila de um tempo diferido um passado inscrito nas

placas e peliacuteculas as imagens digitais tecircm um estatuto acidental que se transfere de um agora

(presente) figurando como presenccedila em detrimento de um representar de um recuperar (Idem

p132) Van Dijck (2007) enxerga na imagem digital uma funccedilatildeo comunicativa um tipo de recado

visual instantacircneo capaz de ldquotocarrdquo algueacutem criando uma conexatildeo importando menos o que

exatamente a fotografia mostra (ZYLINSKA online 2017)

Saiacutemos do material para o virtual da foto em postal aacutelbum porta-retrato da coacutepia em

papel que enfeita a parede da sala de casa abandonamos as coisas guardadas como lembranccedilas

recordaccedilotildees de momentos importantes ritos de passagem Numa trajetoacuteria ainda meio confusa e

pontuada de perdas de arquivos esquecimento e dificuldades em lidar com uma quantidade cada

vez maior de dados saiacutemos da conservaccedilatildeo rumo ao compartilhamento Para Batchen (2002

p177) a digitalizaccedilatildeo aponta uma condiccedilatildeo da fotografia que deixa de ser uma mateacuteria inerte

impressatildeo bidimensional da realidade em si De uma exibiccedilatildeo instaacutevel cuja permanecircncia eacute

fragilizada pela loacutegica gerenciadora do sistema que eacute ao mesmo tempo produtor e consumidor

dessa imagem Para Soulages (2007 p96) eacute uma loacutegica de distribuiccedilatildeo em rede que implica uma

31

circulaccedilatildeo rizomaacutetica que natildeo corresponde a uma contemplaccedilatildeo solitaacuteria A partir de uma

abordagem mais social Fontcuberta (2016 p38) ressalta que o mais importante natildeo eacute que a

imagem tenha-se tornado imaterial mas sua transmissatildeo e circulaccedilatildeo vertiginosas adaptadas agraves

condiccedilotildees de nossas vidas online

No digital dispomos de imagens fotograacuteficas escaneadas ou de siacutentese (VALLE 2012)

feitas a partir da interpretaccedilatildeo de dados que nem se pode ver Na verdade interagimos com eles

atraveacutes de comandos que resultam em accedilotildees num aparato bem mais complexo que as cacircmeras

analoacutegicas Assim como outros dispositivos criados pela numerizaccedilatildeo as cacircmeras digitais satildeo

computadores que recebem um sinal interpretam organizam os dados e geram uma imagem

Tudo no mesmo aparelho Operaccedilotildees que nos levam aos domiacutenios da matemaacutetica e da

informaacutetica onde a interaccedilatildeo com superfiacutecies (telas) a velocidade dos resultados e o grau

crescente de automatizaccedilatildeo escondem ainda mais os processos internos Se a cacircmera analoacutegica jaacute

eacute ldquocaixa pretardquo fundadora de uma relaccedilatildeo entre sujeito e aparelho (FLUSSER 2011) na era

digital permanece a necessidade de compreender o que acontece no sistema para sair de um uso

meramente instrumental da tecnologia9

Se pensada para aleacutem de um objeto singularizado (como um artefato em si) a imagem

digital existe num sistema que inclui o proacuteprio dispositivo Seja este um tablet um smartphone

ou uma cacircmera que se parece com um modelo DSL convencional a imagem existe mediada pelo

equipamento o que afasta a afirmaccedilatildeo de que ela seria completamente imaterial Mesmos os

dados que a formam precisam ser processados por algum sistema que possui sim uma estrutura

fiacutesica especiacutefica Isso nos permite considerar modos outros de existecircncia das imagens

contemporacircneas na modalidade de evento algo processual que se constroacutei na relaccedilatildeo com o

sujeito espectador (em detrimento de um objeto concreto finalizado e supostamente inerte)

Maciel (2009) aponta essa situaccedilatildeo recente colocada pelas tecnologias digitais que potildee o

puacuteblico em interaccedilatildeo com o maquinaacuterio produtor de imagens em obras de formatos variados que

incluem instalaccedilotildees multimiacutedia trabalhos em cinema expandido videoarte hibridizaccedilotildees entre

cinema fotografia e performance no intuito de tornar a imagem uma abertura

fundamentalmente participativa Ela insiste que o caraacuteter experimental sempre esteve presente no

9 Conforme Joanna Zylinska (2017a p186) a ideia de caixa preta aplica-se agraves tecnologias fotograacuteficas analoacutegicas edigitais Essa percepccedilatildeo eacute compartilhada por Piper-Wright (2018)

32

campo da imagem em movimento (MACIEL 2009 p13) e mesmo a influecircncia muacutetua entre

cinema fotografia literatura e pintura natildeo sendo exatamente nova de fato algumas condiccedilotildees de

realizaccedilatildeo de obras atuais satildeo dependentes dos sistemas informaacuteticos de geraccedilatildeo montagem

transmissatildeo compartilhamento e da accedilatildeo dos algoritmos aplicados agrave imagem

Um trabalho interessante que dialoga com essas ideias eacute o filme interativo The

Wilderness Downtown10 (figuras 1-6) realizado por Chris Milk11 para a muacutesica We used to wait

da banda canadense Arcade Fire A letra fala de haacutebitos nada corriqueiros para os indiviacuteduos

nascidos no seacuteculo XXI como escrever agrave matildeo e enviarreceber cartas Um tanto melancoacutelica a

canccedilatildeo confronta as lembranccedilas de uma eacutepoca em que a comunicaccedilatildeo demandava um tempo

entre o envio de uma mensagem escrita e sua resposta e a realidade de uma eacutepoca em que o

tempo aparentemente passa mais raacutepido Na primeira estrofe ouvimos

Eu costumava escrever

Eu costumava escrever cartas

Eu costumava assinar meu nome

Eu costumava dormir agrave noite

Antes das luzes piscantes

Se enraizarem fundo no meu ceacuterebro

Mas quando nos conhecemos

Quando nos conhecemos

Os tempos jaacute eram outros ()12

Com base no tom nostaacutelgico da letra a produccedilatildeo estrutura-se a partir de quatro elementos

principais imagens capturadas a partir do Google Street View e Google Maps13 live footage de

10 A experiecircncia do filme pode ser feita no site httpwwwthewildernessdowntowncom Acesso em 16072019

11 Chris Milk tem em seu curriacuteculo aleacutem de videoclipes filmes publicitaacuterios e trabalhos artiacutesticos Cf MEacuteDOLA AS L CALDAS C H S Regimes de interaccedilatildeo no videoclipe a experiecircncia interativa de The Wilderness DowntownGalaxia (Satildeo Paulo Online) n 30 p35-47 dez 2015 Disponiacutevel em httpwwwscielobrpdfgaln301982-2553-gal-30-0035pdf Acesso em 200819

12 Traduccedilatildeo livre para We used to wait (Arcade Fire 2010) Composiccedilatildeo de Edwin Butler William Butler RegineChassagne Richard Parry Tim Kingsbury e Jeremy Gara

13 O projeto Wilderness Downtown foi desenvolvido em parceria com o Google Data Arts

33

um ator que aparece correndo em diferentes ambientes efeitos graacuteficos14 que remetem a artefatos

desse passado recente evocado atraveacutes de miacutedias fiacutesicas como bilhetes e cartotildees-postais e o

proacuteprio software que processa os materiais anteriores

The Wilderness Downtown encontra-se disponiacutevel num site desenvolvido especificamente

para a uma experiecircncia audiovisual online e ao acessar a home (figura 1) o espectador eacute

convidado a inserir o nome da cidade onde passou sua infacircncia Os dados satildeo coletados e geram

as imagens capturadas com a ajuda do Google utilizadas numa narrativa apresentada a partir de

muacuteltiplas janelas que vistas simultaneamente sugerem uma montagem paralela bastante

particular

Figura 1 - Home do projeto The Wilderness Downtown15

Fonte Reproduccedilatildeo site

14 Manovich (2013) define como motion graphics os efeitos utilizados em cinema e televisatildeo de menus dinacircmicoscaracteres artes e cartelas (bastante utilizadas em telejornalismo e documentaacuterios) graacuteficos para conteuacutedo dedispositivos moacuteveis e sequecircncias que possuem o recurso do movimento e satildeo sempre parte de um conjunto maisamplo (um filme completo um programa de televisatildeo)

15 httpwwwthewildernessdowntowncom

34

Figura 2 - Cenas iniciais de The Wilderness Downtown

Figura 2a - Cenas iniciais de The Wilderness Downtown

Fonte Reproduccedilatildeo site

35

Figura 3 - Montagem com live footage e fotografias capturadas com auxiacutelio do Google Street View e Google

Maps

Figura 3a - Montagem com live footage e fotografias capturadas com auxiacutelio do Google Street View e

Google Maps

Fonte Reproduccedilatildeo site

O efeito de intimidade criado a partir da identificaccedilatildeo de lugares informados pelo usuaacuterio

eacute curioso (eacute possiacutevel reconhecer ruas e pontos comerciais) Combinado agraves cenas do ator que corre

pela cidade o filme deixa uma estranha sensaccedilatildeo de que nunca se alcanccedila o lugar ao qual temos

36

certeza de ter pertencido um dia mas ao mesmo tempo a experiecircncia proposta eacute baseada nessa

identificaccedilatildeo pessoal (figuras 2-3) Aqui a obra natildeo determina completa e previamente as

condiccedilotildees de acesso elas satildeo ativadas na instacircncia de participaccedilatildeo o que significa que o

espectador eacute que encontra um lugar para si na imagem sem o qual ela natildeo ganha sentido

(PARENTE 2009 p175) Jaacute passado o tempo em que se viveu naqueles espaccedilos eles agora

servem de mote para narrativas outras elaboradas a partir da potecircncia maquiacutenica do computador

Segundo Aaron Koblin da equipe do Google a intenccedilatildeo era criar um videoclipe especificamente

para web numa dinacircmica capaz de incluir a histoacuteria para cada usuaacuterio individualmente A

resposta foi atraveacutes das fotografias armazenadas no banco de dados do Google

Podemos usar informaccedilotildees de bancos de dados ter janelas movendo-se na tela algo quenatildeo estaria limitado aos formatos de saiacuteda em 43 ou 169 Entatildeo fizemos o viacutedeo serintegrado a cada pessoa em particular com base no endereccedilo onde a pessoa cresceu Eusamos material do Google Maps e Street View como um tecido nas memoacuterias pessoaisda experiecircncia Eacute possiacutevel ter uma noccedilatildeo dessa histoacuteria pessoal na medida em que vocecircinterage com o viacutedeo escrevendo uma carta ou fazendo um desenho Vocecirc contribui como sistema ao vivo enquanto interage com o viacutedeo () Muitas pessoas participaramincluindo seus cartotildees postais e desenhos Literalmente algumas pessoas choram ao vermemoacuterias de suas vidas pessoais sendo tecidas junto com a histoacuteria (KOBLIN 2011)16

Em dado momento efeitos graacuteficos inserem uma revoada de paacutessaros sobre um fundo de

imagens gravadas previamente (figura 4 e 4a) Os paacutessaros ndash que reagem ao movimento do

mouse do computador ndash em seguida ldquoentramrdquo nas imagens coletadas do Google correspondentes

agrave cidade informada criando uma precaacuteria linearidade entre as accedilotildees

16 Depoimento para o viacutedeo The Wilderness Downtown behind the scenes Disponiacutevel emhttpswwwyoutubecomwatchv=EKg2HJ_qvKA Acesso em 210819

37

Figura 4 - Paacutessaros invadindo a paisagem

Figura 4a - Paacutessaros invadindo a paisagem

Fonte Reproduccedilatildeo site

Em seguida uma janela invade a tela principal (aleacutem das demais jaacute abertas) solicitando

que se ldquoescreva um postal para o seu eu mais jovemrdquo na tentativa de forjar um diaacutelogo entre o

ldquoeu virtualrdquo do presente e um suposto eu localizado no passado (figura 5 e 5a) A tela emula a

textura de um papel e permite a escrita por meio da digitaccedilatildeo ou utilizando o mouse Enquanto se

ldquoescreverdquo o recado trecircs pequenas telas se adicionam agraves demais mostrando uma engrenagem que

natildeo sabemos exatamente a que tipo de maquinaacuterio pertence mas que se movimenta

freneticamente agrave medida que clicamos com o mouse no espaccedilo do cartatildeo postal como se a

38

velocidade das peccedilas da maacutequina acelerasse o envio do texto receacutem escrito A revoada de

paacutessaros que apareceu no comeccedilo junta-se ao cartatildeo postal arrastando a mensagem ali contida

para os lugares que voltam a ser o foco de nossa atenccedilatildeo principal

Figura 5 - Janelas do postal em The Wilderness Downtown

Figura 5a - Janelas do postal em The Wilderness Downtown

Fonte Reproduccedilatildeo site

O filme propotildee uma experiecircncia participativa cuja viabilidade estaacute estreitamente

relacionada agraves tecnologias digitais ao acesso a banco de dados conectados em rede aos recursos

de softwares que permitem gerar processar e transmitir conteuacutedos inserir elementos graacuteficos

transiccedilotildees etc mas evoca tambeacutem miacutedias de comunicaccedilatildeo do ldquopassadordquo (como o cartatildeo-postal e

39

sua modalidade escrita) Articulando as imagens apresentadas e a memoacuteria afetiva do espectador

acionando de maneira conjunta imagens fixas e em movimento num jogo que atravessa as

linguagens do videoclipe e da fotografia utilizando recursos que lembram ainda a interaccedilatildeo

tiacutepica dos games de estrateacutegia em que cada accedilatildeo eacute o ponto de entrada que desencadeia um

resultado especiacutefico

Segundo Meacutedola e Caldas (2015 p38) os trabalhos de Chris Milk satildeo inovadores e

experimentais na medida em que o realizador faz um investimento na interatividade buscando

desenvolver o formato videoclipe no ciberespaccedilo o que constitui para os pesquisadores um

avanccedilo em relaccedilatildeo aos recursos de linguagem utilizados nas miacutedias analoacutegicas A abordagem

desenvolvida por esses autores compreende as tecnologias de produccedilatildeo e fruiccedilatildeo do videoclipe

numa linha evolutiva em que os recursos informaacuteticos ocupariam o estaacutegio mais avanccedilado Aqui

numa anaacutelise diferente natildeo buscaremos comparar qualitativamente os recursos disponiacuteveis nas

diferentes miacutedias para a criaccedilatildeo artiacutestica mas sim compreender a singularidade da produccedilatildeo de

Chris Milk exatamente por colocar lado a lado efeitos de sentido evocados a partir de elementos

pertencentes a miacutedias antigas e recentes aproveitando a capacidade multimiacutedia do computador

para criar uma relaccedilatildeo de complementaridade de ludicidade entre essas miacutedias (e natildeo de

superaccedilatildeo)

De volta ao viacutedeo se mais agrave frente a letra da muacutesica diz ldquoagora nossas vidas estatildeo

mudando raacutepido espero que reste algo purordquo o romantismo associado agraves antigas formas de

relacionamento e comunicaccedilatildeo mostra-se apenas um ideal considerando que aqui tudo se mistura

e os efeitos de subjetivaccedilatildeo satildeo embaralhados natildeo havendo espaccedilo para falarmos em pureza nem

dos formatos nem das miacutedias nem tatildeo pouco das emoccedilotildees produzidas pela experiecircncia com tais

artefatos

40

Figura 6 - Sequecircncia de imagens - A maacutequina assume definitivamente o comando da experiecircncia e a

natureza invade todos os espaccedilos

41

Fonte Reproduccedilatildeo site

Agrave medida que a muacutesica avanccedila e com ela a conclusatildeo do clipe as imagens comeccedilam a se

sobrepor (sendo ainda exibidas em diversas janelas simultaneamente) e num ritmo acelerado as

accedilotildees se conectam por meio de um efeito que faz nascerem aacutervores em todos os ambientes

mostrados O personagem que finalmente para de correr gira em torno de si mesmo como se

tentasse se localizar Seu movimento conecta-se por sua vez com movimentos aplicados agraves

imagens dos lugares num efeito que promove o encontro entre o olhar dele (do personagem) e o

da cacircmera A natureza selvagem do tiacutetulo irrompe descontrolada nos espaccedilos urbanos por forccedila

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do proacuteprio sistema na narrativa construiacuteda a partir das informaccedilotildees pertencentes agrave subjetividade

de quem laacute no iniacutecio inseriu o nome de sua cidade As aacutervores se juntam ao homem que (de

novo) corre agora num espaccedilo de topologia asseacuteptica e desconhecida para depois se desfazerem

junto com ele em manchas pretas sobre um fundo branco (figura 6) Note-se que essa natureza eacute

artificial de aacutervores negras e sintetizadas no computador A vegetaccedilatildeo se espalha como um viacuterus

encobrindo a paisagem da cidade que se escolheu recordar

Ao mesmo tempo que propotildee uma experiecircncia de co-criaccedilatildeo (sendo o input do usuaacuterio a

instacircncia de participaccedilatildeo que daacute iniacutecio agrave narrativa) essa obra tambeacutem estaacute agrave mercecirc dos

movimentos decisoacuterios do proacuteprio dispositivo No final somos informados da possibilidade de

reproduzir novamente o filme compartilhaacute-lo e ainda de enviar o postal escrito Nessa uacuteltima

opccedilatildeo o postal pode ter 3 destinos 1) servir de elemento compositivo dos cenaacuterios nas turnecircs da

banda Arcade Fire17 2) chegar a outro usuaacuterio que participou do The Wilderness Downtown 3)

cair na Wilderness Machine (figura 7) uma maacutequina criada pelo diretor onde a mensagem eacute

impressa e enviada de volta agrave pessoa que escreveu como uma semente para ser plantada

(MEacuteDOLA amp CALDAS 2015 p43) Ao decidir enviar o postal perde-se o controle do seu

destino

17 Nos shows do Arcade Fire durante a execuccedilatildeo da muacutesica We used to wait satildeo projetadas num telatildeo no fundo dopalco vaacuterias imagens com detalhes de cartotildees postais e cartas conforme vemos emhttpswwwyoutubecomwatchv=2Im6avxhIRM Acesso em 200819

43

Figura 7 - The Wilderness Machine (Chris Milk 2010)18

FonteReproduccedilatildeo site

Como eacute sabido o envio de qualquer informaccedilatildeo e a identificaccedilatildeo do remetente e do

destinataacuterio satildeo questotildees basilares para o campo da comunicaccedilatildeo independente da miacutedia

utilizada Do postal ao email dos chats em aplicativos de mensagens instantacircneas a incerteza de

para onde vai a mensagem envolve problemas de seguranccedila e privacidade gerando equiacutevocos

ansiedade por vezes situaccedilotildees vexatoacuterias ou de ordem legal A produccedilatildeo de Chris Milk

desconsidera essas questotildees quando deixa em aberto o destino final do cartatildeo postal redigido e

constitui-se como experiecircncia hiacutebrida tecida por meio de estruturas e elementos que remetem

tanto a meios fiacutesicos quanto virtuais

Caso o destino do postal seja a Wilderness Machine o sistema informa

18 No site de Chris Milk eacute possiacutevel ver a maacutequina e seu funcionamento Ver httpmilkcowilderness-machineAcesso em 200819

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Seu postal foi feito atraveacutes de um sinal analoacutegico vocecirc Agora seu postal eacute virtual AWilderness Machine o faraacute analoacutegico de novo Procure por ele nas turnecircs da banda Setiver sorte para encontrar o postal de outra pessoa plante-o Uma aacutervore cresceraacute19

Eacute aiacute que o dispositivo assume dando continuidade agrave experiecircncia iniciada no site jaacute que

Wilderness Machine eacute um equipamento desenvolvido para recriar fisicamente os postais

redigidos virtualmente O fato de ela tornar palpaacutevel o recado escrito durante a interaccedilatildeo online

vem confirmar nossa leitura a respeito de como a produccedilatildeo de Milk destaca-se pela modulaccedilatildeo

entre mecanismos analoacutegicos e informaacuteticos Conforme indica o site do diretor

The Wilderness Machine eacute uma extensatildeo fiacutesica da obra online The WildernessDowntown A maacutequina gera cartotildees postais dos textos escritos agrave matildeo por espectadoresdo filme interativo Cada postal eacute um recado pessoal do usuaacuterio para si mesmo quandojovem A maacutequina utiliza um braccedilo de succcedilatildeo para transferir um cartatildeo postal em brancopara um poacutedio de metal onde uma caneta mecacircnica eacute programada para reproduzir ostraccedilos da caneta original () Cada postal conteacutem um coacutedigo uacutenico que permite orecipiente aleatoacuterio retornar ao website e escrever de volta ao emissor original um postaldigital Um tipo de versatildeo modernizada do conceito da mensagem na garrafa Os postaissatildeo impressos em papel com sementes compostaacuteveis que quando plantados viramaacutervores tentando recriar o fim da obra digital no mundo real () The WildernessMachine estaacute agora programada para twittar um postal por dia20 (MILK online 2010)

Eacute bastante curiosa a integraccedilatildeo de experiecircncias no site onde o videoclipe eacute criado a

transformaccedilatildeo das mensagens em postais pela maacutequina e a distribuiccedilatildeo aleatoacuteria delas nos shows

da banda ou outros locais onde o equipamento venha a ser exposto e por fim via Twitter Na

elaboraccedilatildeo de cada uma dessas etapas que compotildeem a experiecircncia a participaccedilatildeo do usuaacuterio e os

19 Traduccedilatildeo livre de ldquoYour postcard was made by an analog signal you Currently your postcard is digital TheWilderness Machine makes it analog again Look for it on tour with the band If yoursquore lucky enough to getsomeonersquos postcard form it plant it A tree will grow out of itrdquo20Traduccedilatildeo livre de ldquoThe Wilderness Machine is the physical extension of the online piece The WildernessDowntown The machine generates postcards from the handwritten notes created by viewers of the interactive filmEach postcard is a person writing to their younger selves The machine uses a suction arm to transfer a blankpostcard to a metal podium where a mechanical pen is programmed to reproduce the original pen strokes Then aclaw arm tosses the postcard out of a slot in its Plexiglas casing Each postcard contains a unique code that allowsthe random recipient to return to the website and write a digital postcard back to the original sender Sort of amodernized version of the message in a bottle concept The postcards are printed on compostable seeded paperwhich when planted will grow into birch trees attempting to recreate the end of the digital piece in the real world The machine has appeared at Arcade Fire concerts the Wired Magazine pop-up space in NYC and the 2011Sundance Film Festivalrsquos New Frontier exhibit The Wilderness Machine is now programmed to tweet one postcardper dayrdquo

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processos governados pelo software pelo dispositivo da Wilderness Machine se imbricam e se

complementam e o percurso da narrativa e da mensagem sujeitam-se a um movimento aleatoacuterio

que acusa a presenccedila de certo niacutevel de descontrole pois natildeo se sabe que destino a maacutequina daraacute

ao postal redigido Na verdade a participaccedilatildeo em The Wilderness Downtown sugere aceitar que

natildeo sabemos como os dados inseridos seratildeo utilizados pelo computador como vatildeo se comportar

em termos da construccedilatildeo de uma estrutura de significados Isso porque eacute caracteriacutestico das

narrativas criadas com e para as tecnologias digitais uma condiccedilatildeo de abertura que as torna um

campo de possibilidades orientado por um programa em uma situaccedilatildeo em que temos de um lado

um sujeito interagindo atraveacutes de dados inseridos numa determinada plataforma e de outro um

sistema que desenvolve situaccedilotildees narrativas a partir de um diaacutelogo com o primeiro (MACHADO

2009 p71) A relaccedilatildeo estabelecida nessa situaccedilatildeo eacute de jogabilidade que ora solicita a

participaccedilatildeo ora conduz a histoacuteria sob autonomia do programa

A possibilidade de evocar meios fiacutesicos utilizando-os como base de experiecircncias

dependentes de uma inteligecircncia numeacuterica eacute reconhecida como atributo tiacutepico do software nas

dimensotildees da simulaccedilatildeo e da hibridizaccedilatildeo (MANOVICH 2013) como paradigmas que

atravessam todas as referecircncias utilizadas em The Wilderness Downtown As imagens do Google

Street View satildeo fotografias que adquirem movimento ndash ldquohiacutebrido de fotografia e interfaces de

navegaccedilatildeo espacial21rdquo (MANOVICH 2013 p185) ndash efeitos criados no computador misturam-se

a live footage cartotildees-postais satildeo recriados como mensagens virtuais num formato novo e a

montagem (parte da linguagem cinematograacutefica cujo proacuteprio nome remonta ao trabalho manual

de colar partes da peliacutecula) eacute lembrada na estrutura de multitelas e elementos graacuteficos associados

durante toda a duraccedilatildeo do filme A todo tempo vemos a troca entre miacutedias fiacutesicas e o sistema do

computador que as recria revisita ou modifica sem contudo permanecerem idecircnticas aos

originais A imagem fotograacutefica reveste-se de atributos novos ndash num ldquoefeito de cruzamentordquo

(MANOVICH 2013 p272) no qual teacutecnicas de miacutedias particulares satildeo aplicadas a outras num

processo de assimilaccedilotildees ndash sendo capturada da perspectiva do dispositivo (sem remeter

necessariamente ao olhar de um sujeito)

21 Para Fontcuberta (2016) os registros do Google Street View satildeo processados para causar uma ilusatildeo oacutetica decontinuidade bastante realista na qual o usuaacuterio experimenta a simulaccedilatildeo de um entorno real atraveacutes de um modelointerativo em 3D Para mais ver Fontcuberta Joan Por um manifesto postfotograacutefico In La furia de las imaacutegensBarcelona Galaxia Gutenberg 2016 p35-52

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Tais questotildees nos levam a considerar uma presenccedila material do ambiente digital atribuiacuteda

agrave maneira de funcionamento do computador Se miacutedias fiacutesicas mecacircnicas e eletrocircnicas satildeo

ldquohardwarerdquo cujas inscriccedilotildees em materiais distintos (papel peliacutecula madeira fita magneacutetica) satildeo

responsaacuteveis pelo aspecto visual pelo ldquolookrdquo atribuiacutedo a cada tecnologia o software ao simular

as teacutecnicas desses meios acaba reproduzindo-as acumulando tambeacutem um certo repertoacuterio

Assim isso nos permite falar metaforicamente de uma materialidade do software

O software contemporacircneo conteacutem seus proacuteprios ldquomateriaisrdquo estruturas de dadosutilizados para representar imagens estaacuteticas e em movimentos formas 3D volumes eespaccedilos textos composiccedilotildees sonoras designs impressos paacuteginas da web e outrosldquocultural datardquo Essas estruturas natildeo correspondem a materiais fiacutesicos numa escala realEm vez disso um conjunto de materiais reais eacute codificado numa estrutura uacutenica ndash porexemplo imagens em diferentes materiais como papel tela filme fotograacutefico evideotape se tornam uma estrutura uacutenica de informaccedilotildees Essa junccedilatildeo de materiaisfiacutesicos em uma soacute estrutura de dados eacute umas das condiccedilotildees que permite a hibridizaccedilatildeode tecnologias22 (MANOVICH 2013 p204)

Esse intercacircmbio nos leva de volta agrave contenda a respeito de uma suposta cisatildeo entre

tecnologias analoacutegicas e digitais separadas por suas respectivas ldquomaterialidaderdquo e

ldquoimaterialidaderdquo e pode ser uma saiacuteda para encerrar esse debate Em outro momento de reflexatildeo

Manovich (2013) propotildee que encaremos separadamente o artefato material e as tecnologias

empregadas para produzi-lo (por exemplo fotografias e negativos de filme seriam materiais

enquanto cacircmeras projetores moviolas seriam as tecnologias) Ele diz que quando se trata do

software os materiais transformam-se nas estruturas de dados e as ferramentas fiacutesicas mecacircnicas

e eletrocircnicas (a tecnologia ou o aparato) satildeo transformados nas ferramentas do software que

operam sobre as estruturas de dados Eacute como se os aparatos com sistemas informatizados

ldquoaprendessemrdquo as teacutecnicas de meios analoacutegicos para introduzi-las agrave sua proacutepria maneira nos

projetos desenvolvidos no ambiente virtual fazendo desses referenciais e das ferramentas que os

22 Traduccedilatildeo livre de ldquoContemporary media software contains its own ldquomaterialsrdquo data structures used to representstill and moving images 3D forms volumes and spaces texts sound compositions print designs web pages andother ldquocultural datardquo These data structures do not correspond to physical materials in a 11 fashion Instead anumber of physical materials are mapped onto a single structuremdashfor instance different imaging materials such aspapercanvas photographic film and videotape become a single data structure (ie a bitmapped image) This manyto one mapping from physical materials to data structures is one of the conditions which enables hybridization ofmedia techniquesrdquo

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conduzem partes igualmente importantes de um mesmo espaccedilo criativo integrado Assim as

miacutedias digitais tecircm uma natureza dual que implica na mesma medida simulaccedilatildeo e criaccedilatildeo

O que o autor denomina ldquoestrutura de dadosrdquo satildeo os formatos de arquivos que utilizamos

no computador ndash HTML XML MP3 MOV JPEG TIFF RAW ndash enquanto as ldquoferramentasrdquo ou

ldquocomandosrdquo satildeo os algoritmos com os quais se trabalham esses formatos Estes uacuteltimos satildeo parte

dessa materialidade porque eles determinam a esteacutetica digital aleacutem do fato de que o formato de

um arquivo possui um registro uma ldquoinscriccedilatildeordquo gozando tambeacutem de certa estabilidade em

comparaccedilatildeo a outros tipos de dados que circulam num sistema computadorizado (MANOVICH

2013 p215-216) A estabilidade viabiliza alteraccedilotildees responsaacuteveis por diferentes esteacuteticas ndash

aplicaccedilatildeo de filtros montagem distorccedilatildeo entre outras ndash o que eacute especialmente importante

quando pensamos no universo das imagens digitais

De volta agraves teorizaccedilotildees a respeito da imagem haacute teoacutericos que tentam compreendecirc-la para

aleacutem de uma singularidade movimento que tambeacutem integra preocupaccedilotildees mais recentes sobre o

tema A polonesa Joanna Zylinska (online 2017) acredita que a imagem no ambiente digital natildeo

deve ser tomada como objeto uacutenico mas como um fluxo de dados que natildeo existe sozinha

necessitando de uma infraestrutura tecnoloacutegica que inclui telas celulares cabos impressoras Eacute

um entendimento mais abrangente da imagem que ultrapassa a noccedilatildeo de artefato individual

considerando de forma mais ampla todo o aparato necessaacuterio para sua emergecircncia (fazendo

retornar a criacutetica a uma inerente imaterialidade do digital) e compreendendo que tal estrutura eacute

parte tambeacutem das esteacuteticas das imagens digitais

Tambeacutem podemos questionar a ideia de que na fotografia analoacutegica a materialidade da

coacutepia eacute sinocircnimo de um certo estaacutegio de finalizaccedilatildeo ou ldquomateacuteria inerterdquo (BATCHEN 2002) Na

medida em que satildeo cada vez mais recorrentes os empregos de imagens fiacutesicas deslocadas de seus

contextos originais alteradas e reutilizadas em obras variadas haacute todo um universo de produccedilotildees

em fotomontagem ou de trabalhos recentes de recuperaccedilatildeo de arquivos ou ainda imagens

privadas para uso artiacutestico contrariando a ideia de que imagens fotoquiacutemicas encerram seu ciclo

semioacutetico apoacutes o clique (ou depois de reveladas e copiadas) Natildeo eacute a materialidade das imagens

que as faz menos manipulaacuteveis ou impotildee a elas restriccedilotildees de ordem simboacutelica Essa questatildeo

parece mais ligada a uma ideia de automatismo que compreende sobretudo a fotografia como

resultado de um processo que acaba na imagem que como artefato natildeo deve ser manipulado

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Ao que parece a proacutepria natureza cada vez mais diversa das obras produzidas nos ajuda

a repensar alguns conceitos associados agraves miacutedias analoacutegicas e digitais cuja tendecircncia era de

distanciaacute-las Segundo Manovich (2013) o relevante natildeo eacute se os produtos da cultura digital satildeo

imateriais (em oposiccedilatildeo agraves miacutedias do seacuteculo XX) mas que eles possuem uma identidade

diferente porque a centralidade do software faz com que a experiecircncia do usuaacuterio seja

determinada parte pelo conteuacutedo parte pelo modo de interaccedilatildeo com esse conteuacutedo e a natureza

dessa interaccedilatildeo eacute colaborativa e aberta agrave intervenccedilatildeo ldquo() enquanto as miacutedias antigas ()

tambeacutem permitiam um acesso aleatoacuterio as interfaces da miacutedia dirigida por softwares

proporcionam muitas formas adicionais de navegar a miacutedia e selecionar o quecirc e como acessarrdquo

(MANOVICH 2013 p38) Entatildeo para aleacutem de pensar no binocircmio materialidadeimaterialidade

podemos atentar para a caracteriacutestica de ldquocoacutedigo abertordquo da imagem digital pois ela eacute parte de

um ambiente que pressupotildee experiecircncias com elementos que estatildeo sempre se modificando e

nesse sentido o exemplo do filme The Wilderness Downtown ilustra bem esse ponto

A respeito de uma fugacidade versus permanecircncia atributos que pertenceriam

respectivamente agraves imagens digitais e analoacutegicas tambeacutem percebemos que eacute uma noccedilatildeo

questionaacutevel jaacute que o desgaste e a deterioraccedilatildeo satildeo problemas dos quais nenhuma tecnologia estaacute

livre e suas implicaccedilotildees vecircm sendo consideradas e utilizadas a serviccedilo de uma intenccedilatildeo esteacutetica

Os vestiacutegios da accedilatildeo do tempo sobre os materiais se inscrevem de formas variadas nos

equipamentos e seus produtos sejam essas marcas mais ou menos perceptiacuteveis Se tomada como

realidade em si mesma (e natildeo como duplo de uma realidade precedente) podemos dizer que as

imagens de maneira geral pertencem ao domiacutenio de um possiacutevel marcado pela instabilidade

Portanto atribuir uma suposta permanecircncia ou menor fugacidade agrave existecircncia de um suporte

parece equivocado23 Talvez os usos mais comuns que fazemos das imagens no nosso cotidiano

sejam mais efecircmeros do que antes ndash postar compartilhar comentar como accedilotildees caracteriacutesticas da

circulaccedilatildeo da imagem na internet ndash e natildeo exatamente essa seja a natureza da imagem digital

A questatildeo do tempo na imagem analoacutegica percebido como algo condensado no objeto eacute

igualmente sujeita a revisotildees compreender a fotografia como miacutedia capaz de congelar o tempo

23 Eacute interessante assinalar que se podemos fazer uma criacutetica agrave relaccedilatildeo entre permanecircncia da imagem e suafisicalidade isso natildeo nos impede de identificar em vaacuterias das obras que compotildeem o nosso corpus de anaacutelise avalorizaccedilatildeo de aspectos visuais alcanccedilados pelas experimentaccedilotildees com a materialidade dos suportes utilizados ndash umaquestatildeo relevante que vem sendo retomada na perspectiva da materialidade das comunicaccedilotildees

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resulta de uma percepccedilatildeo que decorre da noccedilatildeo de instantacircneo enquanto haacute diversas imagens

onde eacute possiacutevel perceber o escoamento do tempo o traccedilo de temporalidades que transitam entre

fixidez e mobilidade os estudos de Marey e as experiecircncias do fotodinamismo satildeo exemplos jaacute

claacutessicos e largamente evocados24

Dessa maneira assinalamos que algumas das questotildees levantadas quando do advento do

paradigma digitial refletem o momento teoacuterico inicial do debate sobre as mudanccedilas no campo da

imagem Nos anos mais recentes percebemos a emergecircncia de outras preocupaccedilotildees em torno da

relaccedilatildeo entre sistemas informaacuteticos e imagem Entre elas destacam-se as questotildees de vigilacircncia e

controle de informaccedilotildees coletadas em acircmbito institucional ou corporativo as relaccedilotildees entre

memoacuteria e esquecimento na produccedilatildeo e armazenamento de imagens por dispositivos inteligentes

a simulaccedilatildeo e o hibridismo a disponibilidade de esteacuteticas preacute-formatadas ndash pois na era da

fotografia de smartphone ldquoo modelo da cacircmera ou o Instagram e seus filtrosrdquo impotildeem

determinados padrotildees conforme Zylinska (online 2017) A pesquisadora tambeacutem chama atenccedilatildeo

para um conjunto de imagens geradas por sistemas autocircnomos (independente da accedilatildeo humana)

como microfotografia cacircmeras de controle de traacutefego cacircmeras instaladas no telescoacutepio Hubble

Google Street View drones aparelhos de raio-x (ZYLINSKA 2017a) como parte do que

denomina ldquofotografia natildeo-humanardquo Mas ao contraacuterio do que o termo sugere agrave primeira vista

essa perspectiva natildeo aposta numa visatildeo negativa dos aparatos criadores de imagem mas parte do

princiacutepio de que a fotografia eacute em si mesma criadora de universos e natildeo se restringe agrave

necessidade de reproduzir o mundo concreto Por outro lado a fotografia natildeo-humana reconhece

a dimensatildeo fortemente maquiacutenica no uso que as pessoas fazem da fotografia quando se limitam a

reproduzir paracircmetros prescritos no equipamento e seus coacutedigos visuais ou seja haacute um

componente inumano evolvido no uso da tecnologia que se mostra alienado dos processos e

modelos inscritos e perpetuados no proacuteprio aparato25

24 Eacutetienne-Jules Marey eacute um dos representantes da cronofotografia Seus estudos sobre o movimento dos corposbaseavam-se em conseguir registrar as diversas fases do movimento num mesmo suporte ampliando a noccedilatildeo deinstante fotograacutefico O fotodinamismo cujos expoentes mais conhecidos satildeo os irmatildeos Arturo e Anton Bragagliaregistra a trajetoacuteria do movimento (em vez de aglutinar uma seacuterie de instantacircneos que decompotildeem o movimento) demodo que suas experiecircncias apresentam borrotildees e distorccedilotildees das formas (enquanto que na cronofotografia as formasdos corpos satildeo preservadas)

25 Em seu livro dedicado ao tema (2017a) a autora explica que a abordagem natildeo-humana da fotografia natildeo consistena exclusatildeo do elemento humano mas no deslocamento do ser humano como ponto de vista privilegiado e tema dapraacutetica fotograacutefica dando-se maior ecircnfase ao papel do dispositivo como instacircncia criativa Cf Zylinska JoannaNonhuman Photography Cambridge MIT Press 2017

50

O conceito de fotografia natildeo-humana possui uma influecircncia direta da compreensatildeo

flusseriana das tecnologias que entende o papel desprogramador do sujeito em relaccedilatildeo ao aparato

como fundamental para o surgimento de novas propostas esteacuteticas Nesse sentido sua abordagem

aproxima-se ainda das anaacutelises de Almeida amp Baio (2019) que discutem as apropriaccedilotildees criacuteticas

de conteuacutedo imageacutetico do banco de dados de grandes empresas em projetos atuais que unem as

esferas da arte e do ativismo

Esses trecircs pesquisadores falam sobre as implicaccedilotildees poliacuteticas de termos nossas

informaccedilotildees pessoais coletadas e utilizadas por empresas governos e serviccedilos sem que

tenhamos controle desse uso Para Zylinska com base numa ideia pouco definida de

compartilhamento empresas acumulam grande quantidade de informaccedilatildeo dos usuaacuterios o que

constitui um problema

() essas empresas penetram em diferentes niacuteveis de nossa existecircncia diaacuteria Ficoincomodada com o acesso e a criaccedilatildeo de bancos de dados massivos de nossas vidas como aspecto inquisitoacuterio do que eacute e do que natildeo eacute uma boa vida (Facebook Google e tantasoutras empresas fazem isso) Acho que essa questatildeo da acumulaccedilatildeo de ldquocapitalinformacionalrdquo eacute muito importante porque nela residem as ambiccedilotildees de dominaccedilatildeo decertas empresas que se escondem em um discurso ldquoinocenterdquo sobre comunidades decompartilhamento (ZYLINSKA online 2017)

Por outro lado Almeida Baio e Zylinska indicam igualmente que o campo da arte vem

problematizando essas questotildees fazendo uso exatamente do material produzido sob tais

condiccedilotildees especiacuteficas da sociedade informaacutetica subvertendo entatildeo os propoacutesitos corporativos

originais

Figura 8 - Park Road London (Joanna Zylinska 2011)

51

Fonte Reproduccedilatildeo site26

A polonesa que aleacutem de pesquisadora eacute artista utiliza suas proacuteprias obras para discutir

essas questotildees Com imagens retiradas do Google Street View ela produziu uma seacuterie fotograacutefica

intitulada Park Road London (figuras 8 e 9) e um viacutedeo homocircnimo (2011) sobre lugares que se

chamam Park Road um dos nomes mais comuns para ruas no Reino Unido Assim ela vai

criando uma paisagem composta de imagens roubadas de um sistema de localizaccedilatildeo geograacutefica

que se converte em dispositivo de vigilacircncia contiacutenuo apropriando-se dos corpos de transeuntes

desavisados Versatildeo maquiacutenica de um olhar onipresente o Google Street View oferece uma

percepccedilatildeo diferida em segunda matildeo passeando pelas ruas captando tudo que ocorre nas

margens traacutefego de veiacuteculos caminhar de pessoas e accedilotildees imprevistas tiradas do cotidiano e

congeladas para sempre acessiacuteveis a qualquer internauta (FONTCUBERTA 2016 p44)

Agrave medida que se apropria de informaccedilotildees de uma estrutura corporativa onipresente no

cotidiano das cidades contemporacircneas e submete-as aos propoacutesitos criacuteticos da arte a artista faz

pensar sobre como nossas identidades gestos e accedilotildees diaacuterios satildeo despidos de qualquer

singularidade no momento em que a imagem nos captura nas Park Roads da vida O flagrante

tiacutepico das cacircmeras de vigilacircncia que se aprende a ignorar transforma-se aqui em material baacutesico

para cenas que articulam o apagamento da identidade nas imagens contemporacircneas (ao serem

fotografadas pelas cacircmeras do Google todas essas pessoas transformam-se em dados brutos num

26 Disponiacutevel em httpwwwjoannazylinskanetpark-road-london Acesso em 190919

52

sistema) ldquoO ser humano eacute uma perturbaccedilatildeo no fluxo de dados do Google Street Viewrdquo

(ZYLINSKA 2017a p27) Aleacutem disso eacute preocupante o fato de que mesmo a experiecircncia

totalmente banal de transitar na rua natildeo escapa agrave mediaccedilatildeo dos aparelhos Essas pessoas satildeo a

forma representada desses dados construiacuteda a partir da linguagem do computador Lev Manovich

(2013) reflete sobre uma continuidade entre ldquomiacutediaconteuacutedordquo e

ldquodadosinformaccedilotildeesconhecimentordquo geralmente vistas como categorias distintas Para ele

quando se trata de dispositivos computadorizados determinados artefatos transitam de uma

categoria a outra

Um longa-metragem eacute um bom exemplo da primeira categoria (miacutediaconteuacutedo) e umaplanilha de Excel da segunda ndash mas entre esses exemplos bem separados haacute vaacuteriosoutros que pertencem a ambas as categorias Por exemplo se faccedilo uma visualizaccedilatildeo deinformaccedilotildees dos dados numa planilha essa visualizaccedilatildeo agora se encaixa nas duascategorias Ainda satildeo ldquodadosrdquo mas dados representados numa nova maneira que permitechegar a insights e ao ldquoconhecimentordquo Tambeacutem se torna uma peccedila de miacutedia visual queagrada aos nossos sentidos da mesma forma que fotografias e pinturas27 (MANOVICH2013 p30)

Tomando como base esse raciociacutenio um trabalho como Park Road London brinca

exatamente com a possibilidade de a imagem ser uma modalidade de informaccedilatildeo ou ldquodadosrdquo

(num sentido mais cru de sua morfologia de pixels e coacutedigos do sistema que a produz) quanto

ldquomiacutediaconteuacutedordquo pois que adquire uma forma determinada uma plaacutestica especiacutefica

Numa taacutetica de inversatildeo o proacuteprio sistema de vigilacircncia eacute usado para fazer a criacutetica

dessa mediaccedilatildeo constante dos dispositivos em nosso dia a dia O efeito esfumado aplicado aos

rostos das pessoas guarda certa ironia parece proteger a identidade das pessoas observadas mas

as nivela diante do sistema sujeitando-as agrave condiccedilatildeo de meros corpos que passam Do ponto de

vista formal o efeito eacute resultado da simulaccedilatildeo ldquocom a softwarizaccedilatildeo possibilidades impliacutecitas e

maneiras diferentes de usar ferramentas fiacutesicas satildeo trazidas agrave tona lsquoTeacutecnicas artiacutesticasrsquo e lsquomeios

27 Traduccedilatildeo livre de ldquoA feature film is a good example of the first category and an Excel spreadsheet represents thesecond categorymdashbut between such clear-cut examples there are numerous other cases which are both Forexample if I make an information visualization of the data in the spreadsheet this visualization now fits equally intoboth categories It is still ldquodatardquo but data represented in a new way which allows us to arrive at insights andldquoknowledgerdquo It also becomes a piece of visual media which appeals to our senses in the same way as photographsand paintings dordquo

53

de expressatildeorsquo tornam-se expliacutecitosrdquo (MANOVICH 2013 p221) O mesmo pode ser dito sobre o

aspecto ldquogranuladordquo (peliacutecula) de toda a seacuterie

Park Road London potildee em questatildeo a ideia central da artista de que a fotografia cria

mundos e circunstacircncias proacuteprias que extrapolam a vontade de reconhecimento de um real

precedente o que nos faz compreender que ao serem capturadas pelo sistema de cacircmeras a

noccedilatildeo de identidade jaacute natildeo eacute mais adequada para os personagens que habitam essas imagens Eles

satildeo sinais de um sistema de dados transmitido em forma de imagens Podemos considerar os

transeuntes de Park Road London fantasmagorias desse sistema28 O trabalho busca ainda

provocar uma reflexatildeo sobre como nossas vidas satildeo escrutinadas por grandes empresas e como a

imagem hoje se integra quase que automaticamente nesse processo

() Este aspecto mais amplo da miacutedia social da qual a fotografia faz parte meincomoda profundamente Existe tambeacutem a questatildeo da vigilacircncia da invasatildeo diaacuteria danossa existecircncia e a ingenuidade de parte dos usuaacuterios que abrem matildeo de informaccedilotildeessobre sua vida sem saber para quem e com qual propoacutesito Aleacutem disso os proacuteprioshumanos viraram ldquonoacutesrdquo nessa rede de troca de dados rapidamente se transformando emmercadoria A fotografia natildeo-humana portanto tambeacutem pode ser entendida como dadoe por este motivo pode ser vista como uma forma de transaccedilatildeo que exclui os usuaacuteriosque se oferecem voluntariamente ou involuntariamente como parte dessa economiaconsolidada em poucas e gigantescas corporaccedilotildees (ZYLINSKA Idem)

Ao mesmo tempo a abordagem da foto natildeo-humana que embasa os trabalhos de

Zylinksa sugere como os enquadramentos e modos de captura dos dispositivos autocircnomos satildeo

naturalizados por noacutes como observadores dessas imagens configurando talvez um regime visual

que ecoa em fotografias vernaculares ou viacutedeos amadores como referecircncia a um ldquoestilo cacircmera

de vigilacircnciardquo Tal estilo converte um certo voyeurismo em modelo de observaccedilatildeo sob a frieza

do equipamento e formalmente identifica-se na aceitaccedilatildeo de imagens de baixa resoluccedilatildeo

28 Resultado semelhante pode ser observado no viacutedeo da instalaccedilatildeo Pasajeros Peregrinos Pilotos (2008) de ThomasKoumlner em que vaacuterios monitores distribuiacutedos numa estaccedilatildeo de metrocirc da cidade de Santiago (Chile) mostram o vai evem dos passageiros Agrave medida que o viacutedeo avanccedila as pessoas vatildeo se multiplicando num efeito que torna quaseimpossiacutevel distinguir entre corpos e sombras fazendo da situaccedilatildeo transitoacuteria de quem passa pela estaccedilatildeo avisualidade que remete agrave fantasmagoria A tomada da imagem eacute fixa lembrando a posiccedilatildeo de uma cacircmera devigilacircncia Disponiacutevel em httpthomaskonercom201404pasajeros-peregrinos-pilotos Acesso em 191119

54

Figura 9 - Park RoadLondon (Joanna Zylinska 2011)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Na economia dos sistemas informaacuteticos o banco de dados figura como local simboacutelico

que permite criar experiecircncias sensiacuteveis fora de sua loacutegica corporativa (ALMEIDA amp BAIO

Ibidem) pois que ganha significado quando os dados satildeo processados sujeitos a relaccedilotildees com

outros elementos ou como eacute aqui o caso adaptados aos propoacutesitos de artistas como Zylinska e

tantos outros29 Esses trabalhos tambeacutem representam um impulso criacutetico de apropriaccedilatildeo de

conteuacutedos que remete a uma atitude hacker fundamentando sua forccedila poeacutetica numa estrateacutegia de

contrabando de informaccedilotildees que submetidas a propoacutesitos esteacuteticos adquirem tambeacutem uma

dimensatildeo poliacutetica levando-nos a refletir sobre o nosso lugar nessa miriacuteade de sistemas

maacutequinas corpos (e logicamente imagens)

29O trabalho e a perspectiva teoacuterica de Zylinska satildeo bastante interessantes porque para ela a fotografia sempre foiparceira de outras imagens e seu interesse eacute discutir a dimensatildeo teacutecnica da imagem atraveacutes de implicaccedilotildees sociaispoliacuteticas e esteacuteticas Para uma melhor compreensatildeo das abordagens da artista sugerimos ler o texto-manifestoPhilosophy as photography disponiacutevel em httpwwwjoannazylinskanetartists-statement Acesso em 190919

55

Nesse sentido percebemos que certos haacutebitos e relaccedilotildees estabelecidos com as imagens

modificaram-se sensivelmente por forccedila das mudanccedilas tecnoloacutegicas mas processos realizados

com dispositivos digitais e analoacutegicos estatildeo sempre sujeitos a desvios (re)invenccedilotildees recuos e

procedimentos alternativos dos quais o campo da arte natildeo cansa de oferecer exemplos conforme

veremos ao longo deste trabalho

242 Ordem da representaccedilatildeo x ordem da simulaccedilatildeo

Outras questotildees foram levantadas para distinguir as imagens analoacutegicas e digitais entre

elas a ideia de que as primeiras alinham-se agrave ideia de representaccedilatildeo enquanto as imagens

numeacutericas apresentariam uma tendecircncia maior agrave simulaccedilatildeo Ao falar sobre os coacutedigos por traacutes das

interfaces dos artefatos digitais Manovich (2001 p112) compara as tradiccedilotildees da representaccedilatildeo e

da simulaccedilatildeo A primeira supotildee a organizaccedilatildeo de uma cena num espaccedilo demarcado fiacutesico

especiacutefico geralmente estaacutetico A representaccedilatildeo recorre a vaacuterias convenccedilotildees e sua mateacuteria se

reporta ao mundo fiacutesico mas sem se confundir com ele Jaacute a simulaccedilatildeo quer ficar mais proacutexima

do mundo material repetindo suas escalas e dimensotildees ateacute confundir-se com ele

Para o teoacuterico russo o modo da representaccedilatildeo predominou nas culturas da pintura

fotografia cinema em detrimento do modo da simulaccedilatildeo30 Contudo essa tendecircncia de

continuidade do espaccedilo fiacutesico no virtual faria parte apenas do momento inicial da tradiccedilatildeo da

simulaccedilatildeo e a emergecircncia das miacutedias digitais traz outras questotildees A realidade virtual por

exemplo relacionada a noccedilotildees como a interatividade entre sujeito e maacutequina os movimentos e

reaccedilotildees do usuaacuterio tecircm efeitos no que ocorre no ambiente do dispositivo onde se propotildee uma

imersatildeo Nesse ponto se instaura uma diferenccedila importante em vez da inclinaccedilatildeo para uma falsa

continuidade do ambiente fiacutesico acentua-se agora a separaccedilatildeo entre espaccedilo real e virtual e a

ldquorealidade fiacutesica eacute ignorada dispensada abandonadardquo (MANOVICH 2001 p113)

O ordenamento da simulaccedilatildeo eacute tambeacutem resultado de convenccedilotildees culturais Quando essas

referecircncias satildeo ldquofiltradasrdquo e ldquotraduzidasrdquo nas ferramentas disponiacuteveis e na maneira delas

30 Manovich apresenta indiacutecios dessa loacutegica em formas de entretenimento do seacuteculo XIX como o panorama queseria uma forma cultural intermediaacuteria entre representaccedilatildeo e simulaccedilatildeo Museus de cera escultura em escalahumana e dioramas nos museus de histoacuteria natural seriam exemplos da loacutegica da simulaccedilatildeo tambeacutem no mesmoperiacuteodo Cf Manovich 2001 p113

56

operarem nos sistemas informaacuteticos a tendecircncia agrave abstraccedilatildeo ganha espaccedilo Satildeo as regras internas

do sistema que definem os paracircmetros de sentido vaacutelidos no universo digital Segundo Manovich

(2001 p117) a evoluccedilatildeo dos softwares em direccedilatildeo a uma abstraccedilatildeo crescente eacute compatiacutevel com

a automatizaccedilatildeo de tarefas que governa o proacuteprio desenvolvimento da cultura digital O mesmo

autor explica que basicamente as operaccedilotildees dos computadores satildeo inicialmente conceitos quer

dizer estatildeo primeiro no niacutevel abstrato para soacute depois se materializarem na tela onde aparecem

como resultados de comandos dados pelo usuaacuterio

Quando entendemos que a abstraccedilatildeo eacute uma loacutegica influenciada pela caracteriacutestica da

automaccedilatildeo eacute possiacutevel apontar uma tendecircncia do paradigma digital que influencia sobremaneira

as discussotildees no acircmbito da arte e por consequecircncia da imagem a criaccedilatildeo a partir de conteuacutedos

preacute-formatados A criaccedilatildeo que parte de elementos dados e natildeo ldquodo zerordquo tambeacutem se vincula a

uma visatildeo do artista que haacute muito natildeo coincide com a ideia individualista de gecircnio isolado mas

estaacute de acordo com um universo artiacutestico que se consolida atraveacutes da relaccedilatildeo estreita com as

maacutequinas

Esse novo tipo de autoria () se encaixa perfeitamente com a loacutegica do avanccedilo industriale das sociedades poacutes-industriais onde quase toda praacutetica envolve a escolha em algummenu cataacutelogo ou base de dados Na verdade como percebi as novas miacutedias satildeo amelhor expressatildeo disponiacutevel da loacutegica da identidade nessas sociedades ndash valoresselecionados de menus preacute-definidos (MANOVICH 2001 p128)

Se a norma da linguagem informaacutetica eacute lidar com coisas e operaccedilotildees jaacute determinadas

pela maacutequina o exerciacutecio da criatividade vai em direccedilatildeo agrave modificaccedilatildeo do que estaacute posto como

modelo estabelecendo um tipo de autoria baseada nas accedilotildees de escolher e selecionar entre um

conjunto de possibilidades efetivando como tendecircncias dessa autoria estrateacutegias como a

mixagem a customizaccedilatildeo a releitura a composiccedilatildeo31 Eacute um modelo criativo que preconiza as

conexotildees e reinterpretaccedilotildees produzidas ao longo de zonas de contato moacuteveis por agenciamentos

e bricolagens realizados por uma multiplicidade de atores (LEacuteVY 1993 p107) ou como diz

31 Deve-se salientar que do mesmo jeito que outras caracteriacutesticas das miacutedias digitais essas tendecircncias natildeo surgemcom a emergecircncia do computador mas satildeo basilares da loacutegica que rege seu funcionamento No universo das artesreleituras e apropriaccedilotildees de elementos prontos natildeo satildeo novidades e jaacute se verificavam por exemplo nas praacuteticas daPop Art da fotomontagem Fatorelli (2017) faz observaccedilotildees relevantes sobre estrateacutegias de apropriaccedilotildees e releiturascomo algo que marca os procedimentos da fotografia contemporacircnea

57

Parente (2009) o digital baseia-se na vontade de ldquodesterritorializarrdquo as formas de relacionamento

das pessoas nos processos de criaccedilatildeo

De acordo com Ritchin (2008) a natildeo linearidade e a quebra de hierarquias no ambiente

multimiacutedia o constante recriar a partir de elementos preacute-concebidos (imagens sons textos) aleacutem

de promover o desenvolvimento coletivo de conteuacutedos permite que os lugares antes

marcadamente separados para amadores e profissionais sejam relativizados As fronteiras entre

essas duas instacircncias tornam-se sutis menos definidas Fontcuberta (2016 p32) acrescenta a esse

debate a democratizaccedilatildeo promovida pelo digital na medida em que no espaccedilo da imagem ldquopela

primeira vez somos todos produtores e consumidoresrdquo dada a profusatildeo de aparelhos Um ponto

de vista interessante eacute desenvolvido por Zylinska (2017a p179) nesse sentido quando a autora

afirma que se a cultura da imagem digital sugere um incremento na produccedilatildeo e circulaccedilatildeo de

fotografias esse movimento tem raiacutezes ainda no seio da imagem fotoquiacutemica no momento em

que a Kodak populariza a praacutetica fotograacutefica atraveacutes de cacircmeras baratas A fotografia digital

estabelece uma continuidade com praacuteticas iniciadas nas miacutedias analoacutegicas soacute que eacute mais raacutepida

menos permanente e mais excessiva Tais questotildees satildeo importantes do ponto de vista dos usos da

fotografia bem como sintomaacuteticas de um modelo criativo que ganha forccedila com as miacutedias digitais

baseado no intercacircmbio de referecircncia e informaccedilotildees e em uma certa horizontalidade de

participaccedilatildeo de quem manipula os conteuacutedos para produzir significado

Nas comparaccedilotildees entre representaccedilatildeo e simulaccedilatildeo foram enfatizadas questotildees como a

imaterialidade a fugacidade a abstraccedilatildeo em relaccedilatildeo ao real que caracterizam as imagens

digitais Hoje alguns autores jaacute adotam posiccedilotildees menos ortodoxas a respeito do digital A

abordagem das materialidades da comunicaccedilatildeo que inclui pensadores de eacutepocas diversas como

Benjamin Simondon Derrida e Gumbrecht (FELINTO 2001) pode contribuir para repensar

afirmaccedilotildees sobre o digital e sua imaterialidade Na medida em que propotildee uma valorizaccedilatildeo das

tecnologias dos objetos e das articulaccedilotildees entre sujeitos e miacutedias as materialidades da

comunicaccedilatildeo emergem como lugar de anaacutelise dos meios em sua funccedilatildeo significativa Ou seja o

sentido das coisas dos artefatos culturais natildeo eacute dado a priori nem apreendido exclusivamente por

um intelecto elevado mas por nossa relaccedilatildeo com a forma das coisas E esta abordagem natildeo

exclui os artefatos da cultura digital do rol de seus objetos de anaacutelise Conforme afirma Felinto

(2001 p14) ldquoa teoria das materialidades tem buscado utilizar os mais recentes desenvolvimentos

da ciberneacutetica e da teoria dos sistemas para conjugar diferentes estruturas em uma perspectiva

58

autenticamente conceptualrdquo32 O mesmo autor reivindicando a presenccedila do corpo como oposiccedilatildeo

aos discursos sobre a cibercultura sempre a negar o valor dessa fisicalidade diz que mesmo

aquilo que inicialmente afirma-se imaterial pode ganhar corpo () e que essa ideia alcanccedila o

universo da tecnocultura (FELINTO 2004) Para ele a proacutepria palavra ldquocorpordquo jaacute possui uma

semacircntica de materialidade Manovich (2013) aleacutem de apontar a evidente necessidade de

hardwares na cibercultura tambeacutem reconhece enquanto materialidade do computador e seus

produtos os formatos de arquivos pois que estes gozam de uma identidade (como jaacute indicamos)

Mesmo a simulaccedilatildeo apontada como marca do paradigma digital que a princiacutepio sugere um

afastamento em relaccedilatildeo ao real retira do mundo concreto as referecircncias para elaborar objetos

criar ambientes reproduzir movimentos recursos amplamente utilizados no cinema e na

publicidade por exemplo Se com o auxiacutelio de um software eacute possiacutevel recriar no computador uma

cadeira exatamente igual agrave cadeira na qual estou sentada escrevendo esse texto eacute porque as

referecircncias para que ela seja modelizada no computador satildeo tomadas de uma cadeira concreta

que possui volume massa textura enfim dimensotildees especiacuteficas e definidas utilizadas como

paracircmetro

Reconhecemos que tais questotildees contribuem para pensar que o ambiente informaacutetico

natildeo eacute mesmo totalmente desprovido de materialidade Tatildeo pouco se pode dizer que haacute um grau

menor de abstraccedilatildeo quando se trata de sistemas analoacutegicos (comparativamente aos digitais) O

que nos parece eacute que frente agraves especificidades dos aparelhos digitais e as novas condiccedilotildees de

interaccedilatildeo que noacutes (enquanto espectadores e criadores de conteuacutedo) experimentamos no contexto

da cibercultura muitos pensadores tendem a atribuir a essas especificidades a responsabilidade

majoritaacuteria pelas noccedilotildees de simulaccedilatildeo e graus variados de abstraccedilatildeo de algumas obras quando na

verdade tais questotildees jaacute se colocavam para artistas que entendem (ou entendiam) as miacutedias da

imagem como essencialmente permeaacuteveis e destinadas a produzirem simbologias fantasmagorias

(em detrimento de reproduccedilotildees do cotidiano) Ou seja a ecircnfase nas propriedades de simulaccedilatildeo

na imaterialidade na fluidez eacute teoacuterica enquanto que na praacutetica haacute diversos exemplos indicando a

anterioridade dessas questotildees no campo da imagem reduzindo assim uma distacircncia a priori entre

miacutedias analoacutegicas e digitais

32 Nas discussotildees a respeito de nosso corpus e nas explanaccedilotildees a respeito do ruiacutedo como pontos importantes destatese retomaremos a perspectiva das materialidades da comunicaccedilatildeo como instrumento de anaacutelise

59

No campo da filosofia temos em Flusser (2008) boas rotas de fuga agraves divisotildees

excessivamente demarcadas entre as tecnologias pois ele considera que a partir do momento em

que as informaccedilotildees ndash e para ele informar significa dar forma33 ndash satildeo produzidas por aparelhos

estamos sempre operando com abstraccedilotildees Mesmo que uma imagem seja semelhante ao que

esteve em frente ao dispositivo ela resulta de transcodificaccedilotildees de sinais recebidos e

interpretados de acordo com os paracircmetros do dispositivo o que termina por colocar num mesmo

niacutevel imagens digitais e analoacutegicas Os ldquoaparelhosrdquo ndash os dispositivos produtores de imagem para

Flusser ndash tecircm a peculiaridade de serem desenvolvidos com base em conhecimentos cientiacuteficos e

tais conhecimentos estatildeo simbolicamente informando as imagens criadas Quando diz que ldquoa

fotografia eacute consequecircncia da recodagem de textos da oacutetica e da quiacutemicardquo (FLUSSER

Nascimento da imagem nova34) o filoacutesofo estaacute dizendo que se observarmos com atenccedilatildeo

encontraremos nas fotografias o pensamento cientiacutefico sobre a oacutetica e a quiacutemica de uma eacutepoca o

que tambeacutem se reflete em determinada reflexatildeo criacutetica e esteacutetica sobre a fotografia

Essas observaccedilotildees mostram que algumas reflexotildees que remontam agrave emergecircncia do

paradigma digital ressaltaram questotildees apresentadas naquele momento como novidades e

porque natildeo superaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves tecnologias analoacutegicas Com o passar dos anos os

pesquisadores do campo da imagem voltaram-se para outros temas e alguns posicionamentos e

afirmaccedilotildees podem ser revisados no sentido de que do ponto de vista esteacutetico (que eacute o nosso

interesse central) haacute tanto negociaccedilotildees quanto formas diferentes de produzir disseminar e pensar

a imagem e experiecircncias variadas que talvez nos impeccedilam de separar tatildeo duramente analoacutegico e

digital Podemos indicar diferenccedilas sem com isso estabelecer uma relaccedilatildeo evolutiva entre os

meios ou reforccedilar ideias de que haacute tecnologias melhores quanto mais recentes forem Como se o

progresso teacutecnico inexoraacutevel fosse algo natural (ZIELINSKI 2006)

A seguir analisaremos alguns exemplos que demonstram esse campo de negociaccedilotildees

entre os sistemas analoacutegico e digital relativizando uma dicotomia entre eles pois que considerar

os empreacutestimos de elementos de cada um deles em alguns trabalhos artiacutesticos e mesmo a

resistecircncia de certos paradigmas agraves mudanccedilas tecnoloacutegicas satildeo questotildees centrais em nossa

33 FLUSSER Vileacutem O mundo codificado por uma filosofia do design e da comunicaccedilatildeo Satildeo Paulo Ubu Editora2017

34 Disponiacutevel em httpwwwarquivovilemflusserspcombrvilemflusserpage_id=1577 Acesso em 08042020

60

discussatildeo e apontam que o campo de produccedilatildeo das imagens contemporacircneas eacute cada vez mais

norteado pelo diaacutelogo entre tecnologias formatos e esteacuteticas

61

3 ANALOacuteGICO X DIGITAL INTERROGACcedilOtildeES EM DIRECcedilAtildeO Agrave FOTOGRAFIA

ldquoAntes de existir computador existia tevecircAntes de existir tevecirc existia luz eleacutetrica

Antes de existir luz eleacutetrica existia bicicletaAntes de existir bicicleta existia enciclopeacutediaAntes de existir enciclopeacutedia existia alfabeto

Antes de existir alfabeto existia a vozAntes de existir a voz existia o silecircnciordquo - O silecircncio Arnaldo Antunes

31 RECONSIDERANDO ALGUMAS DISPARIDADES

Jaacute indicamos que as tecnologias do computador datildeo ecircnfase a uma seacuterie de

procedimentos governados pelas informaccedilotildees do proacuteprio sistema e apontamos a dicotomia que

alguns teoacutericos estabeleceram por exemplo em relaccedilatildeo agraves ordens da ldquorepresentaccedilatildeordquo e da

ldquosimulaccedilatildeordquo Essa comparaccedilatildeo daacute a entender que haacute uma distacircncia teacutecnica significativa (aleacutem de

epistemoloacutegica) na origem de cada uma dessas ordens com implicaccedilotildees conceituais e esteacuteticas

E ainda que existe uma correspondecircncia entre as imagens preacute-informaacuteticas com esse regime da

representaccedilatildeo enquanto que a partir das imagens eletrocircnicas e na direccedilatildeo das imagens digitais a

simulaccedilatildeo ganha corpo e consolida-se

Embora seja inegaacutevel a natureza teacutecnica diversa do paradigma digital conforme tais

indicaccedilotildees apostar numa ruptura profunda entre as ordens da representaccedilatildeo e da simulaccedilatildeo eacute algo

que podemos questionar Quando falamos da fotografia a questatildeo se complica jaacute que ateacute o

estaacutegio da captura as operaccedilotildees necessaacuterias satildeo as mesmas seja a cacircmera analoacutegica ou digital A

partir do registro eacute que as mudanccedilas seriam mais significativas porque a imagem oacutetica da cena

capturada eacute projetada sobre o fundo da cacircmera escura o dispositivo interpreta as informaccedilotildees

recebidas que satildeo entatildeo decompostas em pixels (COUCHOT 2003 p162)

62

Ainda nas comparaccedilotildees entre analoacutegico e digital haacute menccedilatildeo por exemplo agrave digitalizaccedilatildeo

como estrateacutegia que sepulta a dicotomia entre original e coacutepia

() coacutepia e original passam a natildeo fazer mais sentido na fotografia digital Nesta tudo eacutecoacutepia (hellip) Na fotografia analoacutegica a reproduccedilatildeo de uma imagem acarretava um saltoentre ldquogeraccedilotildeesrdquo da imagem com distinccedilotildees mesmo que imperceptiacuteveis entre original ecoacutepia a coacutepia e a coacutepia da coacutepia No digital as coacutepias satildeo sempre idecircnticas(QUEIROGA 2015 110-111)

De nosso ponto de vista essa questatildeo natildeo faz sentido se consideramos as noccedilotildees de

original e coacutepia tomando a fotografia como imagem teacutecnica (FLUSSER 2011) como fruto do

cruzamento entre subjetividade e uma maacutequina qualquer fotografia jaacute natildeo poderia ser tratada

como ldquooriginalrdquo apenas porque foi a primeira de uma seacuterie de outras idecircnticas Antes de Flusser

Walter Benjamin (1936 1994) jaacute indicava que uma pretensa originalidade se perde no momento

em que a arte se faz por instrumentos que ensejam a reprodutibilidade tornando sua existecircncia

independente da operaccedilatildeo exclusiva da matildeo humana De fato podemos dizer que a fotografia

digital (assim como a digitalizaccedilatildeo de imagens de outra natureza) estimula uma atitude de

recriaccedilatildeo reelaboraccedilatildeo de alteraccedilatildeo que visa produzir imagens novas dada a maior facilidade

com que isso eacute feito nos aparatos computadorizados Se para copiar uma foto analoacutegica

dependiacuteamos de laboratoacuterio revelaccedilatildeo e ampliaccedilotildees num processo mais demorado que

demandava um conhecimento razoaacutevel de suas etapas no digital mesmo um leigo consegue sem

maiores problemas copiar uma imagem

De fato natildeo haacute formas de reproduccedilatildeo melhores ou piores em termos de fidelidade ou

autenticidade a partir de que haacute mediaccedilatildeo de um aparato acreditar na capacidade de replicar

algo atraveacutes da imagem de maneira fiel eacute um ideal para natildeo dizer um paradoxo Pensemos menos

em termos de originalidade e reprodutibilidade e notemos que a imagem fotograacutefica carrega

certas tradiccedilotildees Por exemplo expectativas de correspondecircncia entre tempo e espaccedilo retratados

para uma situaccedilatildeo dada De modo que natildeo apenas a forccedila de uma novidade tecnoloacutegica conduz

necessariamente a alteraccedilotildees esteacuteticas formais A imagem digital pode ser diversa menos na sua

mensagem e mais na maneira como eacute feita (PLAZA 1993 p73) Se o digital reconstroacutei o real as

leis que governam a maneira de construir e exibir esse real praticadas nas formas visuais

anteriores continuam operando de certa forma ldquoadaptadasrdquo ldquotraduzidasrdquo nas leis do paradigma

63

digital A capacidade de reconstruir esse real vem de uma referecircncia a ele jaacute consagrada em

outras formas visuais da fotografia do cinema da pintura

Eacute compreensiacutevel que os primeiros exerciacutecios de pensar essas mudanccedilas se mostrassem

entusiastas apostando na conformaccedilatildeo de um discurso da ruptura e da novidade mas passado

esse momento a produccedilatildeo de imagens tem mostrado que para aleacutem da recusa de qualquer

referecircncia ao real haacute diferentes maneiras de exercitar uma relaccedilatildeo criacutetica oniacuterica ou irocircnica com

ele sem contudo descartaacute-lo totalmente O que parece problemaacutetico em alguns dos argumentos e

definiccedilotildees pioneiros sobre as tecnologias digitais eacute tentar compreender as mudanccedilas a partir de

um horizonte fortemente teacutecnico da produccedilatildeo circulaccedilatildeo e consumo de imagens sem atentar para

o peso que representam as tradiccedilotildees visuais e ideologias das quais a fotografia tem dificuldade

de se apartar seja na teoria nas praacuteticas artiacutesticas jornaliacutesticas vernaculares etc

Isso significa que quando abordamos o digital de maneira geral apontamos suas

caracteriacutesticas e como elas satildeo incorporadas no desenvolvimento de toda uma imageacutetica

especiacutefica mas ao direcionarmos esse conjunto de informaccedilotildees para o campo das praacuteticas

fotograacuteficas talvez seja preciso refinar um pouco a discussatildeo Por exemplo Lister (1995 p15)

sugere que a simulaccedilatildeo de imagens fotoquiacutemicas pelo digital a digitalizaccedilatildeo de fotografias

analoacutegicas e imagens de siacutentese sejam vistas como coisas distintas e que estas uacuteltimas devem

ainda se diferenciar da realidade virtual Ele acrescenta que a simulaccedilatildeo e a digitalizaccedilatildeo eacute que

possuem maiores implicaccedilotildees para a fotorreportagem o jornalismo o documental As

possibilidades oferecidas pelos softwares alteram nosso entendimento sobre as miacutedias por causa

das operaccedilotildees de criaccedilatildeo ediccedilatildeo interaccedilatildeo compartilhamento (MANOVICH 2013 p122) o

que justifica certa desconfianccedila ou descreacutedito em relaccedilatildeo agraves imagens digitais Essas questotildees

permitem-nos compreender porque alguns debates em torno da fotografia digital preocupam-se

com os limites eacuteticos da manipulaccedilatildeo com as fronteiras que podem ser ultrapassadas no trabalhar

da imagem artiacutestica e da informativa e como esses espaccedilos estatildeo mais ou menos abertos agraves

potecircncias de heterogeneidade descontinuidade do digital Quer dizer no que tange agrave fotografia

haacute certa ecircnfase em tirar proveito do paradigma digital a partir da manipulaccedilatildeo da justaposiccedilatildeo

da elaboraccedilatildeo de universos ficcionais ndash sem que se desfaccedilam totalmente os liames com as formas

institucionalizadas na tradiccedilatildeo fotograacutefica anterior A questatildeo central eacute de que maneira isso

ocorre nesses diferentes campos de produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo da imagem fotograacutefica

64

Esse argumento nos daacute a pista de que para aleacutem dos imperativos teacutecnicos a heranccedila

cultural e simboacutelica de uma visualidade fotograacutefica parece estar sempre tangenciando as

experiecircncias com a imagem mesmo sob um horizonte de ferramentas que aparentemente

permitiriam solapaacute-la de maneiras diversas O hibridismo visual eacute mais evidente no campo do

viacutedeo experimental e independente em obras produzidas para circuitos de festivais web e

dispositivos moacuteveis que utilizam vaacuterias camadas de imagens abstratas geradas em tempo real em

2D animaccedilatildeo e menos frequente em obras comerciais (MANOVICH 2013 p258) Ou seja a

potecircncia de questionar essa heranccedila realista apresentou-se com mais evidecircncia no campo da arte

e conforme observamos passado o momento em que a noccedilatildeo de uma ruptura total com modelos

ldquorealistasrdquo haacute uma tendecircncia de jogar com esse modelo com suas expectativas de representaccedilatildeo

da realidade ao mesmo tempo em que natildeo se nega a natureza artificial da imagem Aqui jaacute

indicamos que o conceito de remediaccedilatildeo (BOLTER amp GRUSIN 2000) eacute instrumental para

entendermos que em alguns casos a imagem digital natildeo se aparta totalmente em seus aspectos

formais da analoacutegica investindo nas caracteriacutesticas esteacuteticas desta uacuteltima como efeito de um

hibridismo e jaacute apontamos casos em que a partir da compreensatildeo do lado discursivo da imagem

digital alguns artistas encontram a condiccedilatildeo especial que os permite explorar narratividades

discutir situaccedilotildees de vigilacircncia a fluidez dos dados Temos vertentes distintas com propoacutesitos

diferentes nos usos dados agrave imagem digital porque parte do DNA da fotografia digital deve-se a

seu lugar de nascimento dentro de uma cacircmera digital e outra parte eacute resultado do paradigma

atual da computaccedilatildeo em rede (MANOVICH 2013 p62-63) Ou seja o mesmo sistema onde se

integra a imagem tanto pode dar vazatildeo a processos de simulaccedilatildeo quanto criar novos paradigmas

visuais jaacute que ambas as possibilidades advecircm de um mesmo software fazendo parte de um

contiacutenuo

Soulages (2007 p80) tentando mapear os reais ganhos do digital interroga se este

determina algumas mudanccedilas na fotografia ou uma mudanccedila da fotografia35 O jogo de palavras

feito pelo autor demonstra a preocupaccedilatildeo em identificar natildeo apenas novidades de procedimento e

usos que aparecem na imagem em sentido restrito mas como uma epistemologia loacutegico-

matemaacutetica eacute capaz de operar modificaccedilotildees no acircmbito geral da fotografia traduzindo-se em obras

que conceitual e plasticamente se apresentem diversas que nos faccedilam repensar as relaccedilotildees que a

35 Grifo do autor

65

imagem fotograacutefica vem problematizando ao longo de sua histoacuteria a partir de novos moldes ou

chaves discursivas relacionados a um contexto social recente que se delineia de meados de 1970

em diante e hoje jaacute apresenta feiccedilotildees mais claras (nas tecnologias criadas nas formas de

circulaccedilatildeo de informaccedilotildees nos haacutebitos) Na medida em que separa ldquoa imagemrdquo da ldquofotografiardquo

Soulages indica que a ecircnfase na investigaccedilatildeo dos atributos teacutecnicos pode fazer sombra agrave potecircncia

esteacutetica

No horizonte do debate em torno da cultura digital alguns pesquisadores como Felinto

(2013) Nunes (2011) e Hainge (2013) Krapp (20112018) entre outros tecircm atentado para o

interesse pelos temas do erro e do ruiacutedo como abordagens que relacionam as especificidades das

tecnologias inteligentes e como elas se traduzem esteticamente Na mesma linha de raciociacutenio

Menkman (2010) e Krapp (2011) evocam o termo ldquofalhardquo (ou no original em inglecircs glitch) Para

noacutes eacute fundamental associar esse movimento agrave emergecircncia de certa tendecircncia em obras

contemporacircneas que buscam alternativas (ou questionamentos) ao ldquomodelo realistardquo na medida

em que as consideramos exemplares das modificaccedilotildees poeacuteticas agraves quais Soulages (Idem) referiu-

se quer dizer o interesse pelo erro e pelo ruiacutedo no acircmbito da cibercultura tem indicado o

aproveitamento de suas manifestaccedilotildees como uma poeacutetica Fontcuberta (2010) e Nunes (2011)

utilizam respectivamente as expressotildees ldquopoeacutetica dos errosrdquo e ldquopoeacutetica do ruiacutedordquo para falar do

interesse que recentemente alguns artistas tecircm demonstrado por marcas visuais antes

consideradas indesejaacuteveis na imagem fazendo uso seja do computador seja de teacutecnicas claacutessicas

da fotografia (como pinhole ou cacircmara escura) seja de equipamentos artesanais criados de forma

independente ou ainda de estruturas que juntam dispositivos eletrocircnicos computadorizados e

analoacutegicos A questatildeo central aqui para noacutes eacute como essas diferentes estrateacutegias criativas tecircm

impactado o campo da imagem atraveacutes da valorizaccedilatildeo de uma esteacutetica onde o ruiacutedo e o erro

tornam-se natildeo apenas evidentes mas ocupam uma centralidade nas experiecircncias dos e das

artistas podendo ser entendidos como parte de uma tendecircncia de criacutetica a um modelo da imagem

ldquolimpardquo e sem interferecircncias Essa questatildeo seraacute melhor explorada mais agrave frente pois se

percebemos que o tema do ruiacutedo eacute capaz de chamar nossa atenccedilatildeo para esteacuteticas alternativas ao

modelo ldquorealistardquo da imagem percebemos tambeacutem que as caracteriacutesticas desse modelo ainda se

fazem presentes em algumas praacuteticas fotograacuteficas

Em suma podemos afirmar que enquanto o paradigma digital suscita no campo da

imagem uma seacuterie de discussotildees em torno das possibilidades criativas diferentes ndash dentre as quais

66

se pode incluir o ruiacutedo (em formas diversas) como elemento esteacutetico ndash haacute ainda usos bastante

convencionais que natildeo apenas desmentem as teses fundamentadas numa total renovaccedilatildeo esteacutetica

como confirmam noccedilotildees anteriormente relacionadas agraves miacutedias analoacutegicas (como por exemplo a

relaccedilatildeo estreita com o referente) Observar esses movimentos paralelos e simultacircneos bem como

o natildeo desaparecimento por completo das teacutecnicas da imagem fotoquiacutemica (e em alguns casos

seus entrelaccedilamentos com as miacutedias digitais) demonstra duas coisas a primeira eacute que para

identificar movimentos esteacuteticos e tendecircncias que venham a renovar o campo da imagem natildeo

podemos olhar exclusivamente para a emergecircncia de novos dispositivos e em segundo lugar

entender que se o surgimento de novas tecnologias pode ser tomado como ponto de partida para

experiecircncias com uma nova linguagem essas miacutedias vatildeo tambeacutem relacionar-se com toda uma

tradiccedilatildeo artiacutestica ontoloacutegica e filosoacutefica O resultado disso vem sendo detectado por uma seacuterie de

pesquisadores36 que nos uacuteltimos anos estatildeo reafirmando a natureza plural e hiacutebrida da imagem

cada vez mais orientada para uma abertura em trabalhos de caraacuteter multimiacutedia que enfatizam

uma certa verve processual (em detrimento da ldquoobrardquo como objeto artiacutestico finalizado) e menos

preocupados com limites das especificidades dos meios (contenda bastante presente nos debates

que costumavam separar pintura fotografia cinema etc)

32 ANALOacuteGICO + DIGITAL E A ZONA CINZA DE NEGOCIACcedilOtildeES CONTINUIDADES

ATRAVESSAMENTOS

321 Digital (re)visitando tradiccedilotildees visuais

Discutindo alguns trabalhos de artistas da transiccedilatildeo analoacutegico-digital Antonio Fatorelli

(2006) buscou identificar alguns usos das potencialidades do computador Ele analisa exemplos

desse caraacuteter inovador em imagens de registradas em negativo poreacutem modificadas no

computador que de acordo com o pesquisador ldquoquerem fazer ver aleacutem do visiacutevel acrescentar

realidade agraves realidades jaacute construiacutedasrdquo (FATORELLI 2006 p21) Entre as fotografias analisadas

estaacute Revenge of the gold fish da norte-americana Sandy Skoglund (figura 10)37 Uma cena

produzida em estuacutedio que embora alinhada com uma funccedilatildeo testemunhal denuncia sua condiccedilatildeo

36 A exemplo de Fatorelli (20132017) Baio (2015) Katia Maciel (2009) entre outros

37 Disponiacutevel em httpsakronartmuseumorgcollectionObj1713sid=1ampx=970472 Acesso em 200718

67

artificial seu caraacuteter construiacutedo apelando a uma atmosfera oniacuterica (FATORELLI 2006 p30)

Os exemplos reunidos no texto de Fatorelli acionam estrateacutegias de ficcionalizaccedilatildeo ironia

apropriaccedilatildeo sem apartar-se totalmente do referente

Figura 10 - Revenge of the gold fish (Sandy Skoglund1981)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

A exemplo do movimento que o autor executa em seu texto eacute interessante para nosso

debate pensar como os processos de computador partem do real para transformaacute-lo numa espeacutecie

de ldquomundo perfeitordquo uma certa visualidade aprimorada em termos teacutecnicos Por sua

caracteriacutestica de maleabilidade a imagem digital eacute em diversas ocasiotildees alterada em busca dessa

perfeiccedilatildeo seja na direccedilatildeo da melhoria das cores da iluminaccedilatildeo do retoque para realce ou

retiradainclusatildeo de elementos Eacute curioso como essa vontade de aperfeiccediloamento repete um

paradoxo que jaacute se via na fotografia analoacutegica um ideal de perfeiccedilatildeo atribuiacutedo ao real na

imagem Um esforccedilo de composiccedilatildeo na direccedilatildeo de uma imagem sem falhas quando de fato o

real eacute irregular muacuteltiplo confuso imperfeito Eacute algo dinacircmico um aberto impossiacutevel de ser

copiado (PARENTE 1993 p30) Os recursos de que vai dispor o digital por forccedila da informaacutetica

68

seratildeo utilizados na composiccedilatildeo de algo que estaacute para aleacutem do real mas que se finca justamente

em ultrapassaacute-lo no ldquoniacutevel de perfeiccedilatildeordquo conseguido pelo analoacutegico

Conforme jaacute indicado depois que um material eacute digitalizado ele se transforma em

informaccedilatildeo numeacuterica e pode ser trabalhado no computador Assim o digital modifica as outras

miacutedias que quando numerizadas perdem suas caracteriacutesticas originais A partir da hibridizaccedilatildeo

com teacutecnicas anteriores (ateacute o ponto de natildeo ser possiacutevel distinguir entre o que eacute novo ou antigo)

o digital consegue simular em aparecircncia os modos visuais tradicionais

Essas duas questotildees ndash hibridizaccedilatildeo de elementos distintos e simulaccedilatildeo de miacutedias

anteriores ndash satildeo enfatizadas tambeacutem por Manovich (2001) quando explica que as miacutedias digitais

possuem algumas estrateacutegias como a seleccedilatildeo a composiccedilatildeo e a teleaccedilatildeo Ao falar da segunda ele

propotildee que quando o computador mescla elementos analoacutegicos e puramente numeacutericos muitas

vezes as identidades de cada elemento tendem a ser minimizadas ou apagadas para que

esteticamente se tenha a sensaccedilatildeo de uma fusatildeo completa e coerente desses elementos

Referindo-se particularmente ao cinema e ao emprego do que chama de ldquocomposiccedilatildeo digitalrdquo

propotildee que boa parte dos filmes utilize o recurso para criar sequecircncias que simulam uma

filmagem tradicional unindo material captado e cenaacuterio personagens ou objetos sintetizados em

computador para que pareccedilam terem estado todos simultaneamente no mesmo espaccedilo fiacutesico

gravado pela cacircmera criando assim um ldquoefeito de realidaderdquo (MANOVICH 2001 p137)

Um ponto interessante das anaacutelises acima vaacutelido para a fotografia eacute que nos casos em

que ocorre essa suavizaccedilatildeo das manipulaccedilotildees o paradigma digital apresenta uma tendecircncia de

ldquoefeito de realidaderdquo Um efeito que na verdade corresponde aos paracircmetros naturalizados nas

miacutedias visuais anteriores cujas formas de mostrar a realidade seguem certos padrotildees cromaacuteticos

e de iluminaccedilatildeo enquadramento proporccedilatildeo textura Por extensatildeo o digital referencia o

analoacutegico

Se hoje considerarmos toda miacutedia digital criada por consumidores e profissionais ndash fotodigital viacutedeo feito com cacircmeras baratas e celulares conteuacutedo de blogs e jornais onlineilustraccedilotildees criadas com Photoshop filmes editados em Avid etc ndash em termos deaparecircncia a miacutedia digital frequentemente parece exatamente igual agrave miacutedia preacute-computador (MANOVICH 2013 p59)

69

Indo aleacutem nesse debate para o ponto que nos interessa diretamente nesse processo de

revisitar a imagem analoacutegica a fotografia digital o faz adotando como modelo um tipo de

fotografia que supotildee uma correspondecircncia entre espaccedilo-tempo da captura uma clareza em

detrimento da penumbra (favorece o detalhamento) e principalmente a ideia do registro direto

(sem alteraccedilotildees) Ou seja incorpora normas esteacuteticas e premissas associadas agrave fotografia de base

fotoquiacutemica de determinado tipo Mistura questotildees formais e conceituais fundamentais de um

momento histoacuterico que lhe eacute estranho

Se pensamos no campo do fotojornalismo a transiccedilatildeo analoacutegico-digital trouxe ganhos

inegaacuteveis de velocidade de produccedilatildeo e circulaccedilatildeo da imagem mas reposicionou o debate sobre

manipulaccedilatildeo que sempre assombrou a fotografia jaacute que a praacutetica natildeo eacute nova Mas do ponto de

vista esteacutetico o fotojornalismo manteve-se bem tradicional em suas praacuteticas De maneira geral

continua repudiando intervenccedilotildees na imagem por motivos eacuteticos

Em 2013 o fotoacutegrafo sueco Paul Hansen teve sua foto Gaza Burial (figura 11) ndash

vencedora do World Press Photo 2012 ndash analisada sob suspeita de falsificaccedilatildeo A imagem mostra

um funeral de duas crianccedilas viacutetimas da guerra entre o exeacutercito israelense e o Hamas na cidade de

Gaza Agrave eacutepoca uma especialista indicou que se tratava de uma composiccedilatildeo com partes de outras

trecircs fotos aleacutem de ter sido clareada Hansen negou as modificaccedilotildees e a equipe da premiaccedilatildeo

afirmou que o fotoacutegrafo jaacute havia explicado o processo de ediccedilatildeo da imagem visto que o WPP

autoriza retoques mas natildeo alteraccedilatildeo de conteuacutedo38 No final concluiu-se que natildeo houve fraude

mas ldquopoacutes-produccedilatildeo com tonsrdquo

38 Fotoacutegrafo vencedor de precircmio de fotojornalismo enfrenta acusaccedilotildees de manipulaccedilatildeo de imagem Disponiacutevel emhttpsnoticiasr7cominternacionalfotografo-vencedor-de-premio-de-fotojornalismo-enfrenta-acusacoes-de-manipulacao-de-imagem-15052013 Acesso em 290718

70

Figura 11 - Gaza Burial (Paul Hansen 2012)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Em 2015 o mesmo precircmio foi retirado de um fotoacutegrafo italiano que havia produzido uma

seacuterie sobre a cidade de Charleroi (Beacutelgica) enfatizando a decadecircncia econocircmica do lugar Das

fotos que compotildeem a seacuterie ldquoCidade negrardquo uma foi tomada em Molenbeek (subuacuterbio de

Bruxelas) e natildeo em Charleroi A situaccedilatildeo de algueacutem que perdeu o precircmio era ineacutedita na

competiccedilatildeo e um de seus representantes ponderou a necessidade de avaliar o significado da

imprensa graacutefica do fotojornalismo e do fotodocumental em suas dimensotildees eacuteticas e

profissionais39 O cerne do debate gerado pelo primeiro caso estaacute na negaccedilatildeo da intervenccedilatildeo

numa imagem que tem como premissa reportar fatos ndash sustentando uma concepccedilatildeo da fotografia

essencialmente como ldquoespelho do realrdquo (DUBOIS 2012) ndash e tomada no momento do

acontecimento e ainda na possibilidade da intervenccedilatildeo acontecer que as mudanccedilas natildeo alterem

39 FERRER Isabel World Press Photo revoga um primeiro precircmio devido a fraude Disponiacutevel emhttpsbrasilelpaiscombrasil20150305cultura1425546065_452789html Acesso em 290718

71

o sentido da imagem (o que ela nos diz objetivamente) Jaacute no segundo exemplo a imagem fora

produzida num lugar diferente do informado40

Eacute interessante refletir sobre como o cenaacuterio de produccedilatildeo da fotografia eacute afetado pelos

dispositivos informaacuteticos para questionarmos se realmente as mudanccedilas alcanccedilam o plano

conceitual de maneira a se evidenciarem tambeacutem visualmente Ou em que esferas da produccedilatildeo

visual isso ocorre Ao que parece o fotojornalismo natildeo mudou a maneira de relatar os

acontecimentos e segue privilegiando imagens que atestam uma correspondecircncia com o que se

passou frente ao dispositivo Cabe aqui destacar que quando ocorrem manipulaccedilotildees

() tanto as que atuam no fato em si quanto as acontecidas no momento da revelaccedilatildeodigital estatildeo ligadas a uma busca pela ldquoimagem perfeitardquo possivelmente influenciadapor outros campos como a televisatildeo o cinema ou a publicidade Convive-se cada vezmais com imagens bem produzidas esteticamente bem trabalhadas com boasresoluccedilotildees de luz Elas estatildeo nos anuacutencios das revistas nos outdoors nos livros nainternet Eacute possiacutevel por exemplo perceber que ateacute mesmo utilizaccedilotildees mais ldquocaseirasrdquocomo os perfis nas redes sociais ou apresentaccedilotildees escolares jaacute acompanham apreocupaccedilatildeo por um resultado visual mais acurado (QUEIROGA 2015 p114)

Percebe-se que as caracteriacutesticas do paradigma digital satildeo acionadas para alcanccedilar uma

esteacutetica de equiliacutebrio de tonalidade de luz de plena identificaccedilatildeo das formas que se persegue

atraveacutes das ferramentas de manipulaccedilatildeo oferecidas pelo computador Martins (2013) chama de

ldquoimagens polidasrdquo aquelas modificadas pelo retoque pelo aumento da nitidez cuja plaacutestica estaacute

bem proacutexima ao que aponta Queiroga (Ibidem) Piper-Wright (2018 p8) ressalta que o advento

da fotografia digital nos reconduz a uma era em que a ideia de uma ldquoverdaderdquo na imagem atinge

um patamar elevado associado a certa transparecircncia do meio que conseguiria apagar a

interferecircncia da subjetividade no registro a fim de produzir ldquoimagens melhoresrdquo Para ela a

loacutegica da fotografia digital eacute que a qualidade da imagem estaacute diretamente relacionada com o

incremento do automatismo e da velocidade e com a reduccedilatildeo do grau de intervenccedilatildeo do usuaacuterio

Ela faz uma reflexatildeo bastante interessante do ponto de vista do papel da induacutestria na esteacutetica

preconizada pelos dispositivos digitais

40 Por ocasiatildeo de visita agrave exposiccedilatildeo com os vencedores do World Press Photo 2019 a autora desta tese constatou queentre os valores declarados da competiccedilatildeo estatildeo ldquojusticcedilardquo e ldquoverdaderdquo o que indica que as manipulaccedilotildees de imagenspermanecem como um problema eacutetico para esse tipo de premiaccedilatildeo

72

O desenvolvimento tecnoloacutegico na fotografia digital desde o iniacutecio dos anos 2000quando o consumo de cacircmeras digitais se torna largamente acessiacutevel tem levado nossashabilidades na produccedilatildeo imageacutetica a tal ponto que o direcionamento destas a resoluccedilotildeescada vez mais altas (megapixels) constitui um exemplo notaacutevel Embora o imediatismoe a natureza baseada na tela da fotografia digital sejam as principais mudanccedilasobservaacuteveis nas praacuteticas fotograacuteficas na era digital tambeacutem eacute verdade que esses avanccedilostecnoloacutegicos removeram muitos dos aspectos incocircmodos e defeituosos da fotografiainerentes tanto agrave cacircmera quanto ao ser humano41 (PIPER-WRIGHT 2018 p8)

O conjunto dessas questotildees indica uma tendecircncia de associar esse tipo de imagem

perfeita agrave qualidade da proacutepria miacutedia utilizada toacutepico relevante para a induacutestria das tecnologias

da imagem Para aleacutem do que se verifica no campo do fotojornalismo encontramos evidecircncias da

relaccedilatildeo qualidadeimagem perfeita por exemplo na campanha em favor da transiccedilatildeo do sinal de

TV analoacutegico para digital no Brasil42 (e a contenda sobre se a escolha mais adequada era pelo

modelo japonecircs ou norte-americano de TV digital43) e consequentemente uma certa euforia no

emprego de cacircmeras digitais no iniacutecio desse processo como esforccedilo para elevar o padratildeo de

qualidade dos programas A ldquoperfeiccedilatildeordquo da imagem estaacute na reproduccedilatildeo de texturas volume na

intensidade de cores e luminosidade sua nitidez elevada Ainda se sustenta como argumento

mercadoloacutegico a ideia de que a imagem digital agrave medida que aumenta sua resoluccedilatildeo torna-se

mais e mais realista Curiosamente essa maacutexima contraria afirmaccedilotildees anteriores de que o digital

natildeo tem relaccedilatildeo com o real Tanto possui que atinge o lugar o hiper-real Quando exploramos

uma suposta dicotomia entre o digital e o real (como propunham alguns teoacutericos) parece que

caiacutemos num paradoxo que nos leva a questotildees que retornam ao acircmbito da imagem independente

41 Traduccedilatildeo livre de ldquoThe technological developments in digital photography since the early 2000s when consumerdigital cameras became widely available has progressed our image-making skills and outputs in unprecedentedways with the drive toward increased resolutions (megapixels) being a case in point While the immediacy andscreen-based nature of digital photography is the main observable change to photographic practices in the digitalera it is also the case that these thecnological advances have removed many of the awkward and faulty aspects ofphotography inherent in both camera and humanrdquo

42 Um exemplo disso satildeo as estrateacutegias utilizadas pela TV Globo para promover a digitalizaccedilatildeo Aleacutem das inserccedilotildeesdurante a programaccedilatildeo e informaccedilotildees repassadas nos seus mais diversos programas produziram-se viacutedeos cominstruccedilotildees baacutesicas sobre os equipamentos necessaacuterios para recepccedilatildeo do sinal enfatizando a qualidade do sinal(embora natildeo se explique com base em quecirc a qualidade aumentaria) Ver por exemplo o viacutedeo promocionaldisponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=v_iIq4jQQ_8 Acesso em 28052019

43 O sinal analoacutegico de TV comeccedilou a ser desligado em 2018 de acordo com as capacidades teacutecnicas das emissorasnos diferentes estados e cidades brasileiros ficando disponiacutevel apenas o sinal digital A utilizaccedilatildeo de tecnologiasdigitais na produccedilatildeo televisiva jaacute se observava no comeccedilo dos anos 2000 (filmadoras ilhas de ediccedilatildeo natildeo linearcomputaccedilatildeo graacutefica etc) Note-se que esse movimento eacute acompanhado exatamente de um forte incremento nainduacutestria de equipamentos de TV que utiliza como principal argumento de venda a relaccedilatildeo entre ldquoqualidade daimagemrdquo ou ldquoefeito de realidaderdquo aprimorado e os paracircmetros HD FULL HD (correspondentes ao nuacutemero de pixelspor polegada)

73

da tecnologia Uma questatildeo relativa a modelos esteacuteticos perpetuados em algumas instacircncias

midiaacuteticas ndash a televisatildeo o cinema o fotojornalismo ndash que servem tambeacutem aos propoacutesitos da

induacutestria da imagem

Figura 12 - Trechos do viacutedeo promocional de lanccedilamento de Star Wars em HD

74

Fonte Reproduccedilatildeo internet44

Ao refletir de maneira criacutetica sobre o afatilde de um constante aperfeiccediloamento dos

resultados Krapp (2011 p57) comenta que natildeo podemos pensar linearmente a histoacuteria dos

meios e que ideias sobre tecnologias baseadas num progresso satildeo complicadas a partir de uma

dimensatildeo esteacutetica mas por outro lado de fato uma noccedilatildeo de ldquocruezardquo ou pureza dos dados nas

miacutedias digitais corresponde a expectativas crescentes em relaccedilatildeo ao aumento da resoluccedilatildeo da

imagem no campo audiovisual O cinema tambeacutem experimentou certo entusiasmo em torno da

digitalizaccedilatildeo como marco de uma imagem aperfeiccediloada que traria ao puacuteblico uma experiecircncia

diferenciada Em 2015 os filmes da seacuterie Star Wars (que ateacute aquele momento contabilizavam

seis produccedilotildees) foram relanccedilados em formato digital (HD) conforme sinaliza o viacutedeo

promocional (figura 12) Apesar do conteuacutedo extra (como cenas excluiacutedas do original) enquanto

produto cinematograacutefico tratava-se exatamente dos mesmos filmes A conversatildeo para a

tecnologia digital eacute um dado teacutecnico com seus recursos timidamente empregados para oferecer

um produto velho com nova roupagem

Em filmes como Star Wars - Episoacutedio I - A ameaccedila fantasma (1999) criaram-se efeitos

no computador (cenaacuterios personagens) que foram adicionados agraves cenas gravadas constituindo

um produto que corresponde agrave conceituaccedilatildeo de hiacutebrido de Manovich (2013) Aprofundando essa

44 Disponiacutevel em httpsyoutubeXuNhZ8K4iow Acesso em 28052019

75

questatildeo o pesquisador explica que nem sempre o hibridismo se expressa como uma esteacutetica

atraveacutes de um estilo colagem onde a justaposiccedilatildeo de elementos diferentes eacute evidente

(MANOVICH 2013 p257) ou seja que nem todos os hiacutebridos nos permitem identificar a

presenccedila de elementos de miacutedias distintas O que ocorre em Star Wars eacute a uniatildeo de camadas de

material filmado elementos animados em 2D e 3D e efeitos graacuteficos que se misturam dando a

impressatildeo de um todo estilisticamente coerente (MANOVICH 2013 p259) Tal tendecircncia eacute

particularmente interessante tanto nos exemplos cinematograacuteficos quanto no campo do

fotojornalismo (conforme indicamos) nos quais predomina uma esteacutetica de suavidade nas

diversas estrateacutegias de manipulaccedilatildeo da imagem

Esses breves exemplos mostram que no acircmbito da imagem haacute questotildees que

supostamente pertencem aos paradigmas analoacutegico e digital entrando em choque Se por um

lado tais imagens diferem muito pouco esteticamente da fotografia e do cinema convencionais

pelos motivos apontados que vecircm de uma referecircncia visual anterior ndash imagens fotoquiacutemicas ndash ateacute

quando haacute retoques o esforccedilo dos profissionais eacute para que natildeo sejam evidenciados A partir de

imperativos eacuteticos recusam-se os artifiacutecios a natildeo ser quando usados para um aperfeiccediloamento

que tende a um velho e conhecido padratildeo Assim imagens atuais se assemelham agraves imagens

antigas Ou literalmente imitam-nas reproduzem-nas Em contrapartida satildeo artefatos digitais que

tecircm como caracteriacutestica a potecircncia de alteraccedilatildeo facilitada mas os artifiacutecios satildeo aceitos com

ressalvas porque as ideias em torno do que significa por exemplo uma imagem fotograacutefica

informativa parecem mais fortes do que a capacidade de compreender aceitar e tirar partido de

uma ordem visual que oferece novos arranjos significaccedilotildees e opccedilotildees formais45 Afinal

intervenccedilotildees e mesmo a ficcionalizaccedilatildeo natildeo satildeo novidades no campo da imagem

Nos campos do fotojornalismo e do documentarismo o contrato entre imagem e

realidade decorrente da funccedilatildeo de evidecircncia que a fotografia assumiu desde seus primeiros usos

acaba por impor limites agraves intervenccedilotildees Poreacutem o que nos chama mais a atenccedilatildeo eacute a ideia

45 O site de notiacutecias The Intercept Brasil utiliza a fotografia como parte de seu conteuacutedo informativo de maneirabastante criativa aplicando movimento em imagens originalmente estaacuteticas alterando cores utilizando o recurso dafotomontagem entre outras estrateacutegias que tornam a imagem dinacircmica atraveacutes exatamente das ferramentasoferecidas pelo paradigma numeacuterico Ver por exemplo as reportagens ldquoEmprestou seu wifi a um amigo criacutetico doDoria Cuidado ele processou ateacute o dentista de quem falou mal delerdquo (Disponiacutevel emhttpstheinterceptcom20181004doria-processo-facebook) e ldquoComo a eleiccedilatildeo de Ronaldo Caiado do DEMcoloca em risco a Chapada dos Veadeirosrdquo (Disponiacutevel em httpstheinterceptcom20180923ronaldo-caiado-chapada) ambas acessadas em 011118

76

impliacutecita de que em caso de manipulaccedilotildees estas sejam tatildeo refinadas a ponto de que seja difiacutecil

identificaacute-las reafirmando por um lado a imagem enquanto duplo do referente ao mesmo tempo

em que se nega a condiccedilatildeo de artifiacutecio que caracteriza em uacuteltima instacircncia o fotograacutefico

A fotografia digital caracteriza-se entatildeo por uma ldquoloacutegica paradoxalrdquo de um lado tem

procedimentos bastante diferentes dos que satildeo a base da imagem fotoquiacutemica e por outro reforccedila

antigos modos de representaccedilatildeo visual (MANOVICH 1995 p2) Enquanto se expandiam e se

consolidavam ndash devemos aqui ter em conta que o texto de Manovich sobre o assunto data do

comeccedilo dos anos 1990 ndash as tecnologias digitais eram postas em comparaccedilatildeo com as imagens

anteriores e tambeacutem contribuiacuteram para reconfigurar suas funccedilotildees Como exemplo Manovich cita

o cinema que atravessava um processo de tendecircncia ao desaparecimentos da peliacutecula provocando

tambeacutem uma fetichizaccedilatildeo do ldquofilm lookrdquo da sua aparecircncia granulada desfocada (que remete ao

estilo proacuteprio da imagem de base fotoquiacutemica) em contraste com a imagem sintetizada em

computador ldquomuito limpa muito perfeitardquo (Idem p5)

Dessa forma a imagem de siacutentese parece ldquoreal demaisrdquo e sua referecircncia criativa

permanece sendo a imagem fotograacutefica tradicional (MANOVICH 1995 p13) Conforme vimos

o cinema comercial tambeacutem investe na mesma loacutegica empregando formas criadas digitalmente

que quando combinadas a cenas gravadas e agrave atuaccedilatildeo do elenco mal podemos distinguir o que

foi filmado em set do material elaborado em computador Para que a narrativa se torne criacutevel eacute

necessaacuterio que todo o conjunto artificial esteja respaldado numa ideia de realidade

correspondente agraves tecnologias de imagem anteriores

O uso de filtros nas imagens fotograacuteficas digitais constitui uma outra vertente que potildee

lado a lado referecircncias visuais analoacutegicas e a estrutura das miacutedias digitais imitando a granulaccedilatildeo

efeitos de solarizaccedilatildeo e ateacute o negativo preto e branco46 Hoje essas praacuteticas jaacute estatildeo naturalizadas

entre os usuaacuterios de smartphones e aplicativos fotograacuteficos mesmo que estes sequer tenham

conhecido e praticado a fotografia analoacutegica num estranho revisitar de estilos e modos de

tecnologias antigas

46 Uma imagem digital fotograacutefica em preto e branco jaacute eacute resultado de uma alteraccedilatildeo Conforme explica Valle (2012p45) os sensores de cacircmeras digitais possuem filtros que captam a informaccedilatildeo luminosa em azul verde e vermelhoe uma imagem em preto e branco eacute obtida quando se descartam as informaccedilotildees de cor Ou seja um equipamentodigital natildeo registra diretamente uma foto em preto e branco

77

Um caso bastante interessante eacute o projeto desenvolvido pelo coletivo Basetrack (figuras

13 14 e 15) O grupo formou-se em 2010 por iniciativa do fotoacutegrafo Balazs Gardi e conta ainda

com mais quatro integrantes Teru Kuwayama Rita Leistner Omar Mullick e Tivadar

Domaniczky Gardi eacute fotojornalista e acompanha desde 2001 o desdobramento da guerra no

Afeganistatildeo Apoacutes 2003 Gardi comeccedilou a ter dificuldades para comercializar seu material junto

agraves agecircncias e veiacuteculos de miacutedia tradicional porque o tema do Afeganistatildeo comeccedilava a sumir da

pauta da imprensa ndash que se focava na guerra do Iraque O Basetrack acompanhou durante seis

meses um batalhatildeo com mil fuzileiros norte-americanos divulgando as imagens na internet (em

site proacuteprio e em redes sociais como Facebook e Twitter) Por meio dessa estrutura parentes e

amigos dos fuzileiros tinham uma fonte de informaccedilatildeo um canal de comunicaccedilatildeo para

acompanhar a rotina do batalhatildeo

As imagens produzidas pelo Basetrack foram feitas com Iphones47 visando o

barateamento da produccedilatildeo Aleacutem de fotos o equipamento podia gravar tambeacutem viacutedeos e aacuteudios

aleacutem de ser resistente agraves intempeacuteries do lugar Fora isso o Iphone oferecia a possibilidade de

aplicar agraves imagens filtros que remetem agrave esteacutetica de antigas Polaroids (o aplicativo utilizado foi o

Hipstamatic) com tonalidades esverdeadas e um efeito que lembra granulaccedilatildeo

Uso cacircmeras com filme preto e branco cacircmeras de plaacutestico chinesas e o iPhone eacute apenasuma versatildeo digital destas cacircmeras de brinquedo Tira fotos muito boas e com qualidadeOs softwares de poacutes-produccedilatildeo satildeo aplicativos baratos como o que usamos Hipstamaticque custou 2 doacutelares O iPhone eacute a minha cacircmera profissional mais barata soacute custou 800doacutelares e eacute uma ferramenta que tem basicamente tudo que um jornalista precisa hoje(GARDI online 2012)

Pelo exposto a escolha do equipamento se deu por motivos de ordem praacutetica Mas sobre

o uso dos filtros ou seja qual a intencionalidade desse artifiacutecio os fotoacutegrafos natildeo falam Poreacutem

ao discutir sobre o tipo de imagem publicado Kuwayama afirma

Evito expectativas ou noccedilotildees preconcebidas mas na eacutepoca em que lanccedilamos o projeto acontra-insurgecircncia (ou ldquoCOINrdquo na sua abreviaccedilatildeo militar) fora introduzida como novaestrateacutegia no Afeganistatildeo Um dos objetivos do Basetrack era mostrar ao puacuteblico o queessa contrainsurgecircncia realmente significava e com o que se parecia na praacutetica Emuacuteltima anaacutelise o projeto natildeo era sobre fotografia era sobre a abertura de linhas de

47 Smartphone fabricado pela Apple desde 2007

78

comunicaccedilatildeo Fotografias natildeo eram o produto eles eram a taacutetica48 (KUWAYAMAonline 2014)

Ao dizer que a fotografia eacute mais um meio e menos uma mensagem o fotoacutegrafo reduz a

importacircncia das escolhas temaacuteticas e esteacuteticas em detrimento da funccedilatildeo desempenhada pela

imagem no projeto conectar os fuzileiros suas famiacutelias e amigos Ou seja enfatiza o propoacutesito

interativo da iniciativa Na mesma entrevista ele diz que as fotografias eram eficazes porque as

pessoas estavam em busca de qualquer evidecircncia de que seus conhecidos estavam vivos e

interessavam-se por qualquer percepccedilatildeo de suas rotinas no Afeganistatildeo Por esse motivo

principalmente os retratos eram alvo de muita atenccedilatildeo

O resultado eacute uma estranha combinaccedilatildeo da visualidade de uma imagem fotoquiacutemica

produzida pelo caacutelculo informaacutetico num esforccedilo de hibridizaccedilatildeo que natildeo esconde a mesticcedilagem

de referecircncias No tocante ao conteuacutedo o Basetrack tanto se aproxima de uma fotografia de

guerra convencional quanto obteacutem um registro despojado da rotina na zona de conflito mais

proacuteximo da fotografia vernacular ndash a exemplo do conjunto de imagens que mostram as tatuagens

dos soldados norte-americanos (figura 13) um estilo tiacutepico da fotografia com intenccedilotildees de

compartilhamento A concepccedilatildeo e o planejamento do projeto ancoram-se na praacutetica de uma

fotografia de guerra que se articula com a oferta visual agregada ao Iphone e a uma cultura

visual mais geral na qual as tendecircncias de assimilaccedilotildees esteacuteticas jaacute se tornaram corriqueiras

Satildeo incontaacuteveis neste sentido os aplicativos atual coqueluche do mundo digital que sevoltam para a fotografia e o mais interessante transcodificando para os efeitosprogramados as respostas visuais que correspondem exatamente ao tipo de imagementregue pela Polaroid e congecircneres O que eacute sob o ponto de vista dos filtros e ajustes oInstagram senatildeo vaacuterios estilos de texturas cores e acabamentos que eram comuns agravePolaroid ndash memoacuteria plaacutestica Mais que isso agregaccedilatildeo de valor simboacutelico (SILVAJUNIOR online 2017)

48 Traduccedilatildeo livre de ldquoI avoid expectations or preconceived notions but at the time we launched the projectcounterinsurgency (or ldquoCOINrdquo its military abbreviation) had been introduced as the new strategy in AfghanistanOne of the goals of Basetrack was to show the public what that counterinsurgency actually meant and looked like inpractice Ultimately it wasnrsquot about photography it was about opening lines of communication Photographs werenrsquotthe product they were the tacticrdquo

79

Figura 13 - Tattoed US Marines First Battalion Eighth Marine Regiment Helmand Province

Afghanistan (Projeto Basetrack 2010)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

80

Figura 14 - Notes on a whiteboard at the command center on Halloween night at Combat Outpost 7171 In

Helmand Province Afghanistan on October 31 2010 (Projeto Basetrack 2010)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Eacute interessante que os efeitos aplicados pelo Basetrack podem atualmente figurar como

um artifiacutecio esteacutetico mas pensadas agrave luz de sua eacutepoca essas marcas visuais da Polaroid eram

tidas como defeitos Poreacutem hoje deslocadas de seu contexto e jaacute dissociadas da ideia de uma

fotografia de amadores e de pouco rigor teacutecnico o ldquoefeito Polaroidrdquo reveste-se de uma aura de

despojamento como bem observou Silva Junior (Idem) Uma certa informalidade esteacutetica

evocada para combinar com a simplicidade de imagens que funcionam como breves

comunicaccedilotildees entre usuaacuterios de internet quebrando um pouco da seriedade da narrativa visual

jornaliacutestica

Como aqui o que assistimos eacute a aplicaccedilatildeo desse ldquoestilo coolrdquo a imagens que ficam entre

o fotojornalismo e a foto vernacular elas podem ser caracterizadas de hiacutebridos originados na

interlocuccedilatildeo entre as propriedades do software e referecircncias de meios anteriores ldquotraduzidasrdquo

em suas ferramentas

81

Uma vez que computadores satildeo um ambiente para miacutedias simuladas e novas eacute logicoque eles comecem a criar hiacutebridos () Traduzidas para o software teacutecnicas de miacutediasfiacutesicas mecacircnicas e eletrocircnicas atuam como espeacutecies que possuem uma ecologia comumndash nesse caso um ambiente compartilhado e uma vez lanccediladas nesse ambiente comeccedilama interagir mudar e construir hiacutebridos49 (MANOVICH 2013 p163-164)

Nas fotografias do Basetrack a esteacutetica Polaroid eacute revisitada atraveacutes dos filtros mas o

resultado possui certa estranheza vinda exatamente desse aspecto ldquopolidordquo da imagem criada

por aparelhos digitais (aparentemente livres de ruiacutedo) que a Polaroid resultante de um processo

fotoquiacutemico normalmente natildeo tem Quer dizer embora se busque uma conexatildeo com o visual da

Polaroid a natureza emulada da imagem final natildeo eacute dissimulada pelo contraacuterio noacutes percebemos

esse caraacuteter de imitaccedilatildeo

Como na emulaccedilatildeo uma parte de um sistema imita e substitui parte de outro sistema ecomo o ecircmulo natildeo pode se manter totalmente isolado das caracteriacutesticas da base dosistema emulador acontece algo como um contaacutegio de um pelo outro () Eacute justamenteesse corpo a corpo das materialidades dos aparatos que retira o sistema emulador de suacondiccedilatildeo de transparecircncia e o revela como parte do sistema emulado Dessa maneiraentatildeo da emulaccedilatildeo resulta () um corpo impuro uma imagem engendrada entre oemulador e o emulado (BAIO 2016 p 54)

Baio (2016) explica ainda que a emulaccedilatildeo conserva sempre algo da ordem da

incompletude da imprecisatildeo e da falha e eacute nesse sentido que comparativamente notamos

diferenccedilas entre a produccedilatildeo do Basetrack e Polaroids antigas50 A partir desse blend de

referecircncias visuais as fotografias de guerra do Afeganistatildeo caracterizam-se justamente como esse

ldquocorpo impurordquo que fica num lugar intermediaacuterio entre o digital e o analoacutegico formatando algo

que tenta unir esses dois universos sem contudo definir-se por um ou outro em maior grau Na

condiccedilatildeo de artefatos criados por meio da estrutura de um software que reproduz efeitos texturas

e tonalidades de uma miacutedia analoacutegica a presenccedila dessas referecircncias de miacutedias preacute-digitais natildeo se

faz em seu estado puro ou original (MANOVICH 2013 p326) Assim natildeo se trata de uma

simples incorporaccedilatildeo de caracteriacutesticas da Polaroid mas de uma recriaccedilatildeo de determinado modo

visual sob os paracircmetros de um sistema totalmente diferente Essas imagens apresentam a

49 Traduccedilatildeo livre de ldquoOnce computers became a comfortable home for a large number of simulated and new mediait is only logical to expect that they would start creating hybrids () Translated into software media techniquesstart acting like species within a common ecologymdashin this case a shared software environment Once ldquoreleasedrdquointo this environment they start interacting mutating and making hybridsrdquo50 Peter Krapp (2011) discute o processo de emulaccedilatildeo em games recentes produzidos para consoles como NintendoWii que recuperam o design de jogos dos anos 1980 em 2D como recurso que termina por estetizar a falha nosambientes da cultura digital atraveacutes de uma esteacutetica retrocirc (nos recursos graacuteficos e sonoros)

82

estranha condiccedilatildeo de lembrarem fotografias da Polaroid mas diferem delas conformando um

hiacutebrido uma espeacutecie de Polaroid digital

Figura 15 - Afghan detainee at Patrol Base Talibjan Helmand Province Afghanistan (Projeto Basetrack

2010)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

De volta agraves ideias de Manovich a respeito da imagem digital o autor lembra que

independente do que signifique esta ainda representa a fotografia remetendo a certas ideias do

que deve ser uma fotografia o que devemos esperar dela

() enquanto a imagem digital promete substituir completamente as teacutecnicas defilmagem ao mesmo tempo encontra novas funccedilotildees e valores para o aparatocinematograacutefico para os filmes claacutessicos e a esteacutetica fotograacutefica Esse eacute o primeiroparadoxo da imagem digital () o que a imagem digital preserva e propaga satildeo oscoacutedigos culturais do filme e da fotografia (MANOVICH 1995 p5)

Quer dizer se na base mesmo do sistema haacute uma diferenccedila inegaacutevel entre fotografia

digital e analoacutegica a novidade que representa a primeira em termos teacutecnicos se articula com uma

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expectativa de produtores consumidores e espectadores da imagem fotograacutefica que (embora natildeo

exclusivamente) corresponda agraves noccedilotildees de um momento temporal singularizado de um

alinhamento entre objeto e imagem de que retoques e alteraccedilotildees (se ocorrerem) sejam

praticamente imperceptiacuteveis que haja alguma organizaccedilatildeo compositiva na tomada da cena cujos

paracircmetros dominantes sejam o da perspectiva geomeacutetrica e ainda que seja possiacutevel o

reconhecimento do referente na imagem Para Aumont (apud BAIO 2015 p47) quando

relacionamos a imagem aos seus modos de produccedilatildeo e consumo assumimos que a teacutecnica

influencia a forma como compreendemos essas imagens de modo que esse entendimento eacute

atravessado por certas ideias dominantes ligadas agrave tecnologia utilizada Essas caracteriacutesticas satildeo

sintomaacuteticas de certa tradiccedilatildeo na fotografia (MANOVICH 1995 p12) que eacute uma entre vaacuterias e

sempre conviveu com movimentos e praacuteticas que lhe contrariavam E a imagem digital ainda

convive com tais questotildees

Considerando que as premissas da imagem informativa suas relaccedilotildees com a necessidade

de reportar fatos acabam por constranger alteraccedilotildees expliacutecitas e de verossimilhanccedila reduzida51

acreditamos ser necessaacuterio levar o debate sobre as vizinhanccedilas entre analoacutegico e digital para o

espaccedilo artiacutestico Nesse sentido Antonio Fatorelli (2017) aponta que haacute uma negociaccedilatildeo entre

analoacutegico e digital minando pretensotildees renovadoras atribuiacutedas ao advento do numeacuterico

(hellip) ao simular o dispositivo analoacutegico de registro a cacircmera digital passa a incorporaras singularidades da codificaccedilatildeo perspectivista e os princiacutepios materiais e imateriaistradicionalmente vinculados agrave cultura visual analoacutegica Uma decorrecircncia decisiva desseprocesso de emulaccedilatildeo refere-se agrave particularidade de que ao perpetuar a dependecircncia dossinais de luz no momento do registro da imagem realizada na presenccedila do mundo fiacutesicoa fotografia digital incorpora as fabulaccedilotildees relacionadas ao modo de inscriccedilatildeo indicial(hellip) Do mesmo modo que as imagens de fatura analoacutegica tambeacutem as fotografias digitaisencontram-se contaminadas para usar uma figura cara ao modo de impressatildeo indicial enesse sentido balizadas pela loacutegica do traccedilo (hellip) (FATORELLI 2017 p66)

Aqui o autor indica como problema central o registro da imagem que ainda se vincula

ao que estaacute em frente agrave cacircmera Isso funda uma noccedilatildeo de correspondecircncia entre

imagemreferente e mesmo quando os fotoacutegrafos promovem intervenccedilotildees na imagem fazem-no

tentando respeitar convenccedilotildees de verossimilhanccedila mimetismo figuraccedilatildeo Enquanto se mantiver

atado ao imperativo do traccedilo indicial jogando com a transformaccedilatildeo de uma imagem anterior o

51 Fred Ritchin (2008) discute alguns exemplos de recriaccedilotildees de imagens a partir do computador e observa que noacircmbito do jornalismo e da documentaccedilatildeo eacute necessaacuterio estabelecer alguns padrotildees e limites que natildeo comprometam ainformaccedilatildeo e a confianccedila na imagem digital

84

digital natildeo instaura uma nova imagem podendo ser colocado ao lado do modo analoacutegico

(FATORELLI 2017 p67) Ou pelo menos natildeo parece o fazer de maneira radical como esteve

no desejo associado a seu surgimento Essa questatildeo pode ser observada em muitas das fotos

compartilhadas em redes sociais e tambeacutem na esfera da imagem artiacutestica

O fotoacutegrafo Andreas Gursky realiza montagens que parecem imagens tomadas num uacutenico

clique Ele eacute lembrado por seu entusiasmo em relaccedilatildeo agrave tecnologia pela manipulaccedilatildeo que realiza

no material produzindo imagens que propotildeem alargar o vieacutes realista da fotografia graccedilas ao

aparato digital O alematildeo trabalha com fotografias em grande escala de paisagens ou cenas que

discutem o consumo a economia e seus efeitos na atualidade ndash a exemplo de Amazon (figura

17) Eacute importante lembrar que ele estaacute ligado agrave tradiccedilatildeo artiacutestica da Escola de Dusseldorf onde

sob orientaccedilatildeo de Bernd e Hilla Becher vaacuterios profissionais consolidaram a ldquoesteacutetica

inexpressivardquo52 (COTTON 2013) Nesse sentido seu trabalho apresenta caracteriacutesticas

documentais valendo-se da tecnologia digital para potencializar um olhar ampliado e objetivo

sobre os temas abordados

Hoje em dia uma foto sua tem em geral dois metros de altura e cinco metros de larguraSeus trabalhos constituem objetos que se impotildeem imagens que nos fazem parar o queestamos fazendo (hellip) As fotografias se valem de tecnologias tanto novas comotradicionais (por exemplo ele usou cacircmeras de formato grande para obter o maacuteximo declaridade e depois recorreu agrave manipulaccedilatildeo digital para refinar a imagem) com umafluidez que ateacute entatildeo tinha sido exclusiva da fotografia comercial em publicidade(COTTON 2013 p83)

A dimensatildeo das imagens ndash levando o observador a tomar distacircncia para perceber a cena

em sua totalidade ndash eacute um elemento importante de significado o que natildeo impede quem queira de

se ater ao grande conjunto de detalhes das fotos (por conta da alta resoluccedilatildeo)53 E foi para atingir

uma grande escala que recorreu ao computador Em imagens como Love parade (figura 16)

juntou digitalmente fotos capturadas em separado Satildeo composiccedilotildees de situaccedilotildees que nunca

52 Para detalhes sobre a fotografia inexpressiva alematilde bem como sobre a influecircncia de movimentos como a NovaObjetividade e os trabalhos documentais de August Sander para seu desenvolvimento ver Cotton 2013 p81-113

53 Cf Manatakis Lexi The photographer who offers a Godrsquos-eye view on our world Revista Dazed Disponiacutevel emhttpwwwdazeddigitalcomart-photographyarticle389651photographer-andreas-gursky-gods-eye-view-on-earth-hayward-gallery Acesso em 140718

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ocorreram da maneira como satildeo exibidas Realidades que existem especificamente enquanto

imagem Como toda fotografia

Figura 16 - Love parade (Andreas Gursky 2001)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Figura 17 - Amazon (Andreas Gursky 2016)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

O trabalho de Gursky apresentado aqui embora possiacutevel pela operaccedilatildeo de ldquocolagemrdquo de

mais de uma imagem via computador utiliza como elementos constituintes fotografias

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registradas de maneira convencional e promove a junccedilatildeo das partes de forma cuidadosamente

sofisticada sutil que natildeo deixa ver as emendas Love parade mais parece uma fotografia aeacuterea

feita com uma super cacircmera capaz de manter os mais iacutenfimos detalhes da cena

Tais operaccedilotildees de montagem feitas pelo computador se reportam a uma esteacutetica marcada

pela suavidade e pela continuidade nas quais as fronteiras entre elementos distintos satildeo

apagadas em vez de enfatizadas (MANOVICH 2001 p142) como pode ser visto tambeacutem na

fotografia A sudden gust of wind (after Hokusai) (1993) de Jeff Wall (figura 18) Nela estaacute

retratada uma situaccedilatildeo pouco provaacutevel poreacutem plausiacutevel A montagem eacute inspirada numa pintura

japonesa e mostra algumas pessoas surpreendidas por uma ventania Os personagens satildeo atores

fotografados previamente os papeacuteis que voam foram replicados vaacuterias vezes para aumentar a

sensaccedilatildeo de desordem A sutileza dessas ldquoemendasrdquo eacute marcante Uma perfeita ilusatildeo Para

Fontcuberta (2010 p100) Jeff Wall e outros artistas da era digital valorizam o computador como

instrumento produtor de sentido poreacutem as manipulaccedilotildees que promovem satildeo dissimuladas

correspondendo agrave loacutegica testemunhal da qual em vaacuterias situaccedilotildees a fotografia se vecirc dependente

Como diz Ritchin (2008 p17) ldquo(hellip) uma fotografia pode ser considerada um menu a ser

tocado ou clicado ou simulado (embora a cena representada talvez nunca tenha ocorrido e

possivelmente natildeo ocorreu mesmo) ou seus zeros e uns podem ser transformados em qualquer

outra coisardquo O mesmo autor compreende o que acontece na fotografia como sintomaacutetico de uma

sociedade que busca cada vez mais a excelecircncia e o aperfeiccediloamento de habilidades alterando os

proacuteprios coacutedigos Quer dizer atraveacutes de mudanccedilas na base informativa das coisas mas que na

aparecircncia satildeo imperceptiacuteveis O conjunto da imagem corresponde a paracircmetros de uma cena

tomada espontaneamente como um instantacircneo de um fotoacutegrafo atento o suficiente para capturar

o momento exato em que o vento carrega os papeis diante de quatro personagens surpresos

O que parece eacute que a loacutegica do numeacuterico e sua natureza criativa e calculada vatildeo nos dar

essa realidade fotograacutefica numa plaacutestica proacutepria que possui algo de hiper-real ndash jaacute que o hiper-

real eacute mais proacuteximo da fotografia convencional (MANOVICH 2013 p260) ndash pois eacute resultado de

uma visatildeo aperfeiccediloada ndash maquiacutenica automatizada Poreacutem o diferencial trazido pelo sistema

digital por vezes eacute utilizado jogando apenas com essa plaacutestica ldquomuito limpardquo ldquomuito realrdquo sem

questionamento a respeito de dimensotildees que envolvem a fotografia como o tempo e as formas

87

experimentando com seus limites para que de fato novas visualidades se apresentem O digital

nem sempre sugere maneiras de repensar a fotografia para aleacutem de um esquema visual que

revisita o ldquorecorte do mundordquo As imagens satildeo mesmo bastante ambiacuteguas Enquanto se valem da

articulaccedilatildeo cuidadosa de elementos constituindo-se como verdadeiras montagens (sem agrave primeira

vista denunciarem-se como tal) elas conceitualmente potildeem em debate a natureza intriacutenseca da

imagem em geral que eacute tratar-se de uma elaboraccedilatildeo de uma construccedilatildeo uma ldquosegunda realidaderdquo

(PARENTE1993) E desse modo devem habitar a esfera do possiacutevel Por outro lado

plasticamente elas natildeo diferem tanto de imagens anteriores realizadas sob o pensamento de que a

fotografia estaacute sob a regra do instantacircneo carrega um vieacutes testemunhal evocando em uacuteltimo caso

o registro que pode sempre ser revisitado de algo que esteve diante de algueacutem com uma cacircmera

Ou com vimos a respeito do uso de filtros que recuperam esteacuteticas analoacutegicas a fotografia

digital atua na chave da remediaccedilatildeo criando situaccedilotildees em que as imagens trazem formas visuais

anteriores retrabalhadas pelo dispositivo e deixam expliacutecita a sua natureza emulada

Figura 18 - A Sudden Gust of Wind (after Hokusai) (Jeff Wall 1993)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Num estudo sobre as imagens digitais Cesar Baio (2015) faz uma retomada do

pensamento teoacuterico sobre o termo ldquodispositivordquo mostrando que as tradiccedilotildees e modelos de

pensamento contaminam as teacutecnicas para aleacutem do atributo de ineditismo que o surgimento de

88

uma nova tecnologia parece carregar54 A partir de apontamentos de vaacuterios autores percebe-se

que os dispositivos podem transmitir atraveacutes de seus aspectos teacutecnicos formas de entender o

mundo e modelos esteacuteticos reforccedilados eou enfraquecidos na praacutetica artiacutestica o que se relaciona

com a ambiguidade encontrada nos trabalhos de Wall e Gursky Ou que a imagem digital tida natildeo

como unidade mas como a estrutura de software que lhe daacute corpo pode servir agrave criaccedilatildeo de

formas especiacuteficas que decorrem do cruzamento de referenciais esteacuteticos alheios ao ambiente

digital (como no caso dos filtros e aplicativos)

Haacute dois aspectos levantados nesse debate (que o autor faz a respeito do cinema mas que

utilizamos aqui em favor da fotografia) a noccedilatildeo de que o dispositivo presta-se ao registro do

mundo e o mascaramento da presenccedila e articulaccedilotildees que ocorrem no seu interior (transparecircncia

da maacutequina) ambos aspectos naturalizados pelo espectador Esses elementos aparecem

relacionados nas obras citadas haacute pouco que empregam a tecnologia digital a serviccedilo de marcos

ideoloacutegicos da imagem indicial ldquotraccedilo do realrdquo (DUBOIS 2012) Montam cenas que se alinham

ao modelo realista que decorre do registro direto do mundo e valem-se da transparecircncia (os

processos no dispositivo natildeo satildeo detectaacuteveis) Reafirmam assim as ldquoheranccedilas ontoloacutegicas e

epistemoloacutegicasrdquo (BAIO 2015 p48) dominantes nos seacuteculos XIX e XX

Na seara dos que empregam o digital ainda ligados agrave epistemologia da imagem

fotoquiacutemica Valle (2012) realizou um levantamento bastante interessante sobre o comportamento

dos ldquofotoacutegrafos migrantesrdquo aqueles que entram no mundo da fotografia digital utilizando-a numa

correspondecircncia com padrotildees teacutecnicos comuns no paradigma analoacutegico Atraveacutes de entrevistas

ela demonstra por exemplo as frequentes comparaccedilotildees entre pixels e gratildeos entre o negativo e o

CCD entre o padratildeo ISO e a resoluccedilatildeo das cacircmeras digitais que atestam a incompreensatildeo da

natureza distinta dos sistemas e assim impedem os usuaacuterios de renovarem a linguagem visual

Outro ponto interessante indicado na pesquisa eacute que toda uma gramaacutetica utilizada por softwares e

comandos do universo da imagem digital ndash a exemplo do Photoshop e Lightroom ndash remete a

processos analoacutegicos como pintar clarear borrar desfocar associados a paracircmetros oacuteticos

materiais e quiacutemicos Esse conjunto de ferramentas utilizado no tratamento das fotografias

54 No mesmo livro o autor faz uma interessante distinccedilatildeo entre dois usos do termo ldquonovordquo o primeiro marca umaoposiccedilatildeo a algo velho que se torna ultrapassado e o segundo eacute a compreensatildeo do novo como maneiras originais ediferentes de utilizar algo jaacute conhecido ou seja reinventar reposicionar o velho em novas articulaccedilotildees estrateacutegiasEssa uacuteltima compreensatildeo estaacute bastante proacutexima de nossa maneira de rediscutir os aparecimentos e sobrevivecircnciasdas miacutedias analoacutegicas da imagem

89

estabelece ldquo(hellip) um padratildeo de ordem impedindo o desenvolvimento de novas linguagens e

induzindo o fotoacutegrafo a uma produccedilatildeo condicionada distante da exploraccedilatildeo de novas

possibilidades do numeacutericordquo (VALLE 2012 p60) A pesquisadora atesta que natildeo raro os

fotoacutegrafos usavam os mesmos recursos repetindo certas modalidades esteacuteticas

() a distacircncia entre o programador e o fotoacutegrafo usuaacuterio do programa eacute enormeEnquanto a diferenccedila entre os programas feitos para usuaacuterios descomprometidos (natildeo-fotoacutegrafos) e para fotoacutegrafos (que se pretendem criadores) satildeo miacutenimas E mais adiferenccedila de habilidades exigidas para explorar programas entre os natildeo-fotoacutegrafos e osfotoacutegrafos tambeacutem eacute miacutenima (hellip) Os artistas desbravadores de novas linguagensfotograacuteficas se igualam a usuaacuterios quaisquer quando estatildeo diante do Photoshop e doLightroom por exemplo Usam os mesmos filtros e presets Apertam os mesmos bototildeesProduzem os velhos e repetidos efeitos e imagens padronizadas (VALLE 2012 p97)

Baio (2016) nota que uma estrateacutegia adotada pela induacutestria para mascarar as

disparidades entre os sistemas analoacutegico e digital eacute o fato de as cacircmeras digitais emularem

fisicamente as analoacutegicas na medida em que a formaccedilatildeo e entrega da imagem satildeo desconhecidas

estando invisiacuteveis aos nossos olhos eacute compreensiacutevel os usuaacuterios acreditarem que praticamente

natildeo haacute diferenccedilas significativas na passagem de um modo de registro para o outro Quando o

dispositivo ecoa em sua proacutepria estrutura a tecnologia que promete superar curiosamente o

usuaacuterio repete o modo de usar tiacutepico do equipamento ldquoobsoletordquo acionando comportamentos e

esteacuteticas padronizados

Em decorrecircncia dos pontos abordados percebemos que haacute certa continuidade de aspectos

esteacuteticos na passagem do analoacutegico para o digital Que as distinccedilotildees de natureza entre os sistemas

natildeo fundam necessariamente e sempre uma renovaccedilatildeo de modos visuais fazendo com que

interroguemos o que permanece e o que se modifica para aleacutem do imperativo tecnoloacutegico na

imagem

Lister (1995 p20-21) faz uma criacutetica ao pensamento sobre certo impacto revolucionaacuterio

do digital e afirma que natildeo haacute uma ruptura clara entre este e a antiga fotografia analoacutegica porque

mesmo que se tenham novas estruturas produtoras usos e ferramentas isso tem que ser

negociado junto a ideologias e convenccedilotildees de uma cultura fotograacutefica Para noacutes esse arcabouccedilo

cultural a que o autor se refere eacute um conjunto de ideias que vai paulatinamente sendo posto e

confirmado desde o surgimento da miacutedia fotograacutefica atraveacutes de uma esteacutetica que procura

90

sublinhar certas especificidades Marcas formais das quais vaacuterios artistas natildeo se apartam

contribuindo na elaboraccedilatildeo da proacutepria histoacuteria do campo e para o destaque mais pronunciado de

alguns movimentos e estilos bem como de artistas que correspondem atraveacutes de suas obras a

esses paracircmetros de visualidade

Ao mesmo tempo em que reconhecemos mudanccedilas nos paracircmetros de circulaccedilatildeo e

transmissatildeo uma disposiccedilatildeo facilitada agraves reconfiguraccedilotildees e hibridismos mediante conexotildees com

fontes escritas sonoras e tambeacutem visuais proporcionando novos meios de interaccedilatildeo55 agrave

onipresenccedila da imagem em espaccedilos que diluem as fronteiras entre privado e puacuteblico uma

tendecircncia maior agrave intencionalidade comunicativa dessa imagem disponiacutevel em ambientes virtuais

(em detrimento de seu papel como artefato constitutivo de uma memoacuteria) devemos notar que haacute

interrogaccedilotildees no campo da fotografia que permanecem vaacutelidas e talvez por isso algumas

continuidades satildeo observadas Para Soulages (online 2017) ao lado de capacidades tiacutepicas do

digital e novos usos dessa modalidade de imagem dentre as quais ele destaca a fluidez da

circulaccedilatildeo haacute pessoas que fazem com a miacutedia digital o mesmo tipo de imagem que realizavam

com dispositivos analoacutegicos56 Aleacutem disso as preocupaccedilotildees que cercam o fotograacutefico satildeo ldquosuas

relaccedilotildees com o real o sujeito o fotografaacutevel o espaccedilo o tempordquo e elas permanecem vaacutelidas na

cultura digital tanto quanto para a imagem fotoquiacutemica

O que interessa de fato eacute como essas problemaacuteticas satildeo articuladas trabalhadas agrave luz de

tecnologias especiacuteficas e suas ferramentas como num sentido processual depois de obtido ldquoum

negativordquo ou uma ldquomatriz digitalrdquo (SOULAGES online 2017) a imagem pode ser algo diferente

de um mero registro colocar-se aleacutem de uma proposta unicamente testemunhal Ser explorada

para gerar significados ideias sensaccedilotildees diversas

55 Ritchin (2008) indica alguns exemplos de projetos desenvolvidos na internet com material fotojornaliacutestico quepromoviam uma interlocuccedilatildeo entre internautas e profissionais incluindo material multimiacutedia Ver em especialRitchin op cit p 96-139

56 Fontcuberta (2010) acredita que entre os usuaacuterios comuns a diferenccedila de uso entre dispositivos fotograacuteficosanaloacutegicos e digitais eacute praticamente igual ficando a cargo dos artistas as experiecircncias mais interessantes derenovaccedilatildeo da imagem

91

322 Tatildeo longe tatildeo perto comparaccedilotildees

Kevin Robins (1995 p38) indica aproximaccedilotildees entre analoacutegico e digital explicando que

a relaccedilatildeo entre fotografia e pensamento cartesiano (racionalista) percebe a mudanccedila tecnoloacutegica

numa linha evolutiva com anseios de aperfeiccediloamento e sofisticaccedilatildeo da imagem que se traduzem

num ideal de liberar o medium de ldquoimpurezasrdquo e que uma noccedilatildeo de ldquorevoluccedilatildeo digitalrdquo leva esse

projeto cartesiano a um estaacutegio elevado A fotografia quiacutemica e a digital compartilham a

preocupaccedilatildeo com um tipo de imagem um padratildeo que seraacute melhor alcanccedilado com a emergecircncia

de novas ferramentas tecnoloacutegicas Esse pensamento cria uma hierarquia entre velho e novo

fazendo deste uacuteltimo uma cura para as incapacidades do primeiro O digital teria a capacidade de

ultrapassar o analoacutegico ser de alguma forma superior a ele na tarefa de produzir imagens

O problema eacute que estabelecer essa dicotomia impede-nos de perceber que se troca uma

tecnologia por outra sem que se modifiquem algumas concepccedilotildees em torno da imagem Quando

natildeo se observa cuidadosamente se (e como) o contato com dispositivos que engendram uma

maneira diferente de lidar com o mundo traduzem essa relaccedilatildeo para a forma de conceber

imagens interferindo no que pensamos sentimos compreendemos a respeito delas e o que

fazemos com elas Agrave medida que o paradigma digital entra em cena apenas para aperfeiccediloar

ideias jaacute assentadas na fotografia de base quiacutemica como podemos celebrar seu poder inovador

revolucionaacuterio Mais adiante o pesquisador britacircnico observa

() significativas natildeo satildeo as novas tecnologias e imagens em si mesmas mas oreordenamento do campo visual em geral e a reavaliaccedilatildeo das culturas da imagem etradiccedilotildees que elas evocam Eacute notaacutevel que boa parte da discussatildeo mais interessante sobrea imagem agora se refere natildeo aos futuros digitais mas na verdade ao que pareciam ateacuterecentemente miacutedias antigas e esquecidas (o panorama a camera obscura oestereoscoacutepio) de nossa posiccedilatildeo vantajosa poacutes-fotograacutefica tais miacutedias de repenteadquiriram novos significados e a reavaliaccedilatildeo delas eacute agora importante para entender osignificado da cultura digital Nesse contexto parece produtivo pensar natildeo em termosde descontinuidades e disjunccedilotildees mas sim com base em continuidades atraveacutes degeraccedilotildees de imagens e atraveacutes de formas visuais (ROBINS 1995 p45)

Aqui Robins convoca a repensar a convivecircncia entre imagens fotoquiacutemicas e digitais na

tentativa de identificar o que realmente estas uacuteltimas apresentam Podemos tomar sua proposta

num sentido mais abrangente pois ele jaacute apostava que a imagem contemporacircnea num sentido

mais geral se distingue pela diversidade de modos praacuteticas ferramentas e indagar que caminhos

92

os tensionamentos de tradiccedilotildees no campo visual jaacute ocorriam nas miacutedias analoacutegicas E como eles

vecircm sendo mantidos vivos de que maneira e por quais motivaccedilotildees satildeo mantidos sobretudo nas

praacuteticas artiacutesticas Eacute possiacutevel identificarmos nas estrateacutegias da arte contemporacircnea um marco

comum que encerre o debate divisionista entre analoacutegico e digital Ateacute que ponto a tipologia do

medium eacute a questatildeo relevante para artistas interessados na experimentaccedilatildeo com as tecnologias

Onde podemos encontrar um marco conceitual que funcione como denominador esteacutetico na

promoccedilatildeo de uma imagem experimental que se vale de tecnologias diversas da imagem De que

maneiras a produccedilatildeo contemporacircnea manteacutem ativa uma reflexatildeo que contraria esses paradigmas

claacutessicos da imagem ultrapassando a divisatildeo analoacutegicodigital em favor de esteacuteticas que natildeo

obedeccedilam apenas ao marco indexical

Parente (1993) tambeacutem faz uma ressalva ao fato de a imagem de siacutentese ser vista como

uma oposiccedilatildeo radical ao regime da representaccedilatildeo No que denomina ldquoamneacutesia da histoacuteria da arterdquo

(Ibidem p21) ele lembra que movimentos de confrontaccedilatildeo a modelos dominantes sempre foram

observados no campo artiacutestico O cinema experimental a videoarte a pintura impressionista o

pontilhismo as obras de Godard Tarkovsky Resnais satildeo exemplos de alternativas ao modelo da

representaccedilatildeo57 E haacute aiacute um problema quando a transiccedilatildeo para o digital assume o papel de

condensar uma trajetoacuteria de afirmaccedilatildeo de tradiccedilotildees formais hegemocircnicas em vez de promover

verdadeiras rupturas nos modos de pensar e realizar imagens utilizando para isso seus proacuteprios

modos esteacuteticos conceituais e teacutecnicos ldquoou o virtual eacute uma imagem-acontecimento uma

imagem-devir ou eacute apenas uma determinaccedilatildeo teacutecnica sem interesse Ou melhor uma

determinaccedilatildeo teacutecnica interessada na reproduccedilatildeo social das representaccedilotildees dominantesrdquo

(PARENTE 1993 p22) Em texto datado de 2009 Parente convoca-nos a pensar que o virtual

natildeo se opotildee a um suposto real entregue pelas tecnologias fotoquiacutemicas mas que ele se torna

interessante para o campo da imagem quando figura como ponto de interrogaccedilatildeo das ideias de

verdade ligadas aos modelos representativos que de fato satildeo puras ficccedilotildees58 Num outro

57 Andreacute Parente faz referecircncia ao raciociacutenio de Deleuze (2005 2018) sobre o cinema da ldquoimagem-movimentordquobaseada na loacutegica de accedilatildeo-reaccedilatildeo (estabelecida pela forccedila da montagem da mobilidade da cacircmera da contiguidadeentre tempo-espaccedilo) e produccedilotildees da ldquoimagem-tempordquo que indicam o enfraquecimento dessa loacutegica abrindo-se atempos heterogecircneos e sobrepostos na narrativa (o sonho o devaneio) caracteriacutesticas das obras de ResnaisAntonioni entre outros Na transiccedilatildeo da imagem-movimento para a imagem-tempo haacute uma ruptura com a narrativaclaacutessica do cinema ou seja do modelo da representaccedilatildeo

58 Cf Parente Andreacute A forma cinema variaccedilotildees e rupturas In Maciel Katia Transcinemas Rio de JaneiroContracapa Livraria 2009 p 23-47

93

momento de reflexatildeo questiona uma afirmaccedilatildeo bastante comum nos debates a respeito da

imagem digital

Porque muita gente diz o seguinte quando eu produzo uma imagem de siacutentese que eacutefruto de uma simulaccedilatildeo computacional essa imagem de siacutentese natildeo diz mais respeito auma realidade preexistente No entanto ela tem a ver ainda com o processo derepresentaccedilatildeo ao contraacuterio do que se pensa Por quecirc Porque se eu testo um protoacutetipovirtual eu natildeo faccedilo mais um protoacutetipo de carro que eacute fiacutesico eu faccedilo ele virtualmente etesto ele num computador Mas se ele vai funcionar depois eacute porque justamente esseprotoacutetipo virtual representava uma seacuterie de fenocircmenos fiacutesicos (PARENTE 2009 p169)

As observaccedilotildees desses teoacutericos estatildeo alinhadas com nosso objetivo de deslocar um

pouco o debate sobre analoacutegicodigital feito em bases notadamente teacutecnicas para reposicionaacute-lo

em direccedilatildeo agraves proposiccedilotildees esteacuteticas Ou seja tentar perceber em que medida a emergecircncia de

novas bases tecnoloacutegicas serve para chacoalhar modelos de visualidade resvalando em

procedimentos e experiecircncias singulares no campo da imagem Ao mesmo tempo apontamos

uma convivecircncia entre essas obras (que satildeo objeto de nosso interesse) e trabalhos que ainda se

relacionam com padrotildees de visualidade que eram ateacute o surgimento das novas miacutedias atribuiacutedos

quase que unicamente agraves miacutedias analoacutegicas

Apontamentos de outros pesquisadores tambeacutem estabelecem alguns pontos de

interrogaccedilatildeo nessa direccedilatildeo Rogeacuterio Luz (1993) indica que natildeo haacute uma diferenccedila radical entre

analoacutegico e digital pois pensando no modelo da perspectiva centralizada ele jaacute propotildee uma

interpretaccedilatildeo do mundo que cria imagens sob um paracircmetro cientiacutefico (geomeacutetrico) Qualquer

imagem regida pela perspectiva renascentista jaacute eacute uma virtualizaccedilatildeo bidimensionada agrave luz de uma

convenccedilatildeo e aiacute imagens digitais e analoacutegicas satildeo igualmente criaccedilotildees orientadas por modelos

cientiacuteficos o que difere eacute o modelo imposto em cada eacutepoca e como a imagem incorpora seu

discurso

Reafirmo que as novas imagens satildeo um sintoma entre muitos de um determinadoestado de cultura em que a prevalecircncia da imagem resultado de sua importacircnciacognitiva em especial na arte e na ciecircncia revela uma tradiccedilatildeo problemaacutetica marcanteem nossa civilizaccedilatildeo desde o Renascimento Natildeo eacute o mundo real mas a maneira deinventar o mundo possiacutevel que aqui interessa e natildeo apenas uma perspectiva esteacuteticamas tambeacutem eacutetica e poliacutetica (LUZ 1993 p54)

94

Para o autor as mudanccedilas tecnoloacutegicas embora saudadas como ferramentas para liberar a

imagem do real continuam fazendo referecircncia a ele sob o ditame de um modelo cientiacutefico de

organizaccedilatildeo de direcionamento do olhar e como isso pode impedir a oxigenaccedilatildeo dos modos de

criar Essa compreensatildeo entra em acordo com as anaacutelises de Weissberg (1993) para quem toda

eacutepoca possui simulacros e maneiras de interpretar e a simulaccedilatildeo quando faz o real parecer aquilo

que natildeo eacute jaacute trabalha com a ilusatildeo de profundidade causada pela perspectiva geomeacutetrica

remontando ao que fazia a pintura trompe-loeil Zylinska (2017a p15-17) acompanha-os na

percepccedilatildeo de que a proacutepria visatildeo eacute um processo historicamente construiacutedo jaacute que eacute mediado por

dispositivos que sugerem um incremento dessa capacidade (o que conforma uma artificialidade

inerente tambeacutem agrave produccedilatildeo de imagens) e satildeo elaborados com base em relaccedilotildees cientiacuteficas entre

maacutequinas e corpos Ritchin (2008) assim como outros teoacutericos jaacute apresentados aqui elenca

caracteriacutesticas que a fotografia digital tem como pontos fortes entre elas natildeo-linearidade natildeo-

sincronicidade abstraccedilatildeo possibilidade de autoria muacuteltipla e a reconfiguraccedilatildeo de tempos

diferentes mas olhando para experiecircncias realizadas ao longo da Histoacuteria da fotografia tais

questotildees jaacute se colocavam para os artistas sendo trabalhadas como ponto de origem de um

pensamento sobre os limites e expansotildees do meio fotograacutefico O mesmo autor reconhece que se

por um lado a publicidade e a moda estiveram mais abertas agraves possibilidades trazidas pela

imagem digital nas artes e na documentaccedilatildeo a investigaccedilatildeo da tecnologia fez-se mais tiacutemida

Acrescente-se que segundo ele a ldquohiperfotografiardquo (digital) aleacutem de mais facilmente criada

veiculada e refeita provoca modos temporais mais elaacutesticos antagocircnicos ao ldquomomento decisivordquo

pinccedilado de um contiacutenuo agrave imagem estaacutetica que conforma um objeto palpaacutevel e que carece de

instantaneidade ndash que corresponde ao analoacutegico (RITCHIN 2008 p142)

O julgamento do autor para estabelecer uma distinccedilatildeo que valoriza o novo em

detrimento do antigo leva em consideraccedilatildeo principalmente os efeitos de distribuiccedilatildeo decorrentes

da maneira de se produzir a imagem sem contudo entender que ideias de congelamento do

tempo da imagem uacutenica e restrita ao paradigma do clique sem modificaccedilotildees do material

capturado natildeo satildeo marcos exclusivos da tecnologia analoacutegica mas de um tipo de interpretaccedilatildeo

da fotografia Natildeo foi o surgimento do digital que oportunizou o intercacircmbio entre fotografia e

outras artes ou a exploraccedilatildeo de regimes temporais que oscilam entre estaacutetico e moacutevel mas para

Ritchin (2008 p180-182) a fotografia convencional possui uma temporalidade contiacutenua pouca

abertura para a ambiguidade ndash estaria de certa forma presa agrave ideia de retratar uma verdade ndash e

95

frente ao digital restaria para ela o reconhecimento de ter servido agrave documentaccedilatildeo histoacuterica e

possuir uma singularidade comparaacutevel agrave da pintura

Ao lado do entusiasmo em relaccedilatildeo ao potencial de interatividade e autoria compartilhada

de produccedilatildeo Ritchin acredita que num ambiente multimiacutedia a fotografia beneficia-se do uso mais

democraacutetico traduzido na oferta de conteuacutedo mais igualitaacuteria plural e qualitativa do ponto de

vista informativo Nos seus argumentos haacute uma crenccedila na forccedila poliacutetica que a imagem fotograacutefica

pode adquirir nessa conjuntura de digitalizaccedilatildeo mas de uma perspectiva esteacutetica esse debate eacute

pouco explorado

As contribuiccedilotildees desses autores levam a crer que colocar em debate os sistemas

analoacutegico e digital eacute um exerciacutecio de compreender e pontuar caracteriacutesticas diferenciadoras e

paralelamente manter uma atenccedilatildeo a questotildees onde se verificam continuidades Em outras

palavras as mudanccedilas teacutecnicas e epistemoloacutegicas que acompanham a passagem do analoacutegico

para o digital nem sempre significam o abandono de convenccedilotildees assentadas em nossa cultura

visual embora apareccedilam trabalhadas pelos artistas a partir de chaves discursivas do paradigma

digital

323 Arqueologia da miacutedia e investigaccedilotildees do medium

Satildeo importantes para a anaacutelise proposta nesta tese a busca de caminhos teoacutericos que na

aacuterea da comunicaccedilatildeo contribuam para relativizar essa hierarquia entre meios analoacutegicos e as

ldquonovas miacutediasrdquo Ao mesmo tempo em que diversos dos artistas que integram nosso corpus

seguem trabalhando com miacutedias analoacutegicas e digitais num interessante cruzamento que beneficia

o campo da esteacutetica interessam-nos perspectivas capazes de apaziguar o debate que prioriza

certos dispositivos em detrimento de outros Assim destacamos o papel da abordagem

arqueoloacutegica da miacutedia As ideias de autores como Jussi Parikka (2012) e Siegfried Zielinski

(2006) a respeito de uma continuidade entre tecnologias demonstram natildeo apenas uma criacutetica agrave

supervalorizaccedilatildeo do progresso teacutecnico mas propotildeem observar como miacutedias antigas e novas se

assemelham em seus propoacutesitos mesmo que separadas no tempo Se Leacutevy (Ibidem) por

exemplo utilizou o hipertexto para falar de como formas de comunicaccedilatildeo antigas podem se

condensar num dos principais elementos da cibercultura para Zielinski (2006 p49) a internet

96

tambeacutem eacute local de convivecircncia das miacutedias anteriores que permanecem em uso natildeo sendo

completamente abandonas por forccedila da informaacutetica

A partir da recusa de apontar tendecircncias dominantes meios hegemocircnicos ou mais

eficientes a abordagem arqueoloacutegica da miacutedia sugere compreender a tecnologia num sentido

natildeo-evolucionista adotando entatildeo uma compreensatildeo relacional dos meios de uma constante

hibridizaccedilatildeo entre velho e novo (GANSING 2016) Atraveacutes do resgate histoacuterico de vaacuterias

experiecircncias desenvolvidas em eacutepocas distintas (seacuteculos XVII XVIII XIX) Zielinski (Ibidem)

demonstra que autocircmatos instrumentos musicais de estrutura extremamente sofisticada coacutedigos

desenvolvidos para ocultar informaccedilotildees dispositivos de produccedilatildeo de imagens e fantasmagorias

entre outras invenccedilotildees possuiacuteam as mesmas funccedilotildees das tecnologias audiovisuais e informaacuteticas

atuais registrar o mundo concreto dar forma ao invisiacutevel compor e reproduzir sons criptografar

dados fazer caacutelculos enviar e receber informaccedilotildees comunicar agrave distacircncia etc

Aleacutem desses nomes diretamente ligados ao campo da arqueologia da miacutedia consideramos

a notaacutevel contribuiccedilatildeo de pesquisadores como Lev Manovich e seus estudos de software (2013)

atraveacutes de sua reflexatildeo a respeito do computador como dispositivo capaz de reposicionar

caracteriacutesticas de miacutedias fiacutesicas ao mesmo tempo em que agrega atributos tiacutepicos dos sistemas

informaacuteticos Essa questatildeo que perpassa toda a discussatildeo proposta pelo estudioso russo tem

grande relevacircncia no debate em que nos inserimos no tocante aos movimentos esteacuteticos ligados agrave

imagem A noccedilatildeo desse caraacuteter dual do computadorsoftware incorpora o pensamento

arqueoloacutegico da miacutedia ao afirmar uma ligaccedilatildeo por exemplo entre miacutedias fiacutesicas ndash pintura o

cinema a fotografia a escrita ndash e os processos realizados pelo software que nos ajuda a

compreender natildeo apenas a relaccedilatildeo entre coacutedigos visuais realistas e os usos dos dispositivos

digitais mas tambeacutem a apropriaccedilatildeo de diversos estilos e marcas desses meios analoacutegicos por

softwares dedicados agrave manipulaccedilatildeo da imagem na contemporaneidade

Tambeacutem a jaacute citada proposta em torno da ldquofotografia natildeo-humanardquo desvia-se de uma

ecircnfase na tipologia da miacutedia para focar-se nas formas de apropriaccedilatildeo dos diversos dispositivos e

materiais que se constituem em imagens pensando a fotografia como uma praacutetica vital A partir

de uma compreensatildeo bioloacutegica e geoloacutegica da fotografia ela estabelece que o universo de suas

imagens eacute povoado de artefatos nos quais a luz se registra inscrevendo-se em suportes os mais

variados ldquoO reconhecimento do papel formativo da luz atraveacutes de diferentes periacuteodos (em

97

foacutesseis impressotildees fotogramas frames de negativos e imagens digitais) tambeacutem nos ajuda a

levar o debate para aleacutem do binarismo analoacutegico-digitalrdquo (ZYLINSKA 2017a p7) Assinale-se

que esta abordagem eacute bastante interessante pois na medida em que enxerga certa autonomia dos

dispositivos de imagem abre caminho para a consideraccedilatildeo de esteacuteticas natildeo-convencionais

acionadas pela experimentaccedilatildeo com a proacutepria miacutedia

A perspectiva da arqueologia da miacutedia tambeacutem ecoa uma vontade de olhar para o

passado das teacutecnicas ou melhor dizendo para as teacutecnicas do passado em busca de novos

caminhos criativos ldquoNatildeo procuremos o velho no novo mas encontremos algo novo no velhordquo

(ZIELINSKI 2006 p19) Essa atitude eacute sintomaacutetica dosdas artistas incluiacutedos em nosso corpus

que se voltam para redescobrir teacutecnicas antigas da imagem (como pinhole camera obscura

daguerreoacutetipo panorama diapositivo) sem traccedilos de saudosismo mas em busca de experiecircncias

que possam reinventar coacutedigos e metodologias ou mesmo para o uso de dispositivos de imagem

analoacutegicos ou eletrocircnicos em conjunto com o computador Acreditamos que encarar o universo

da imagem contemporacircnea atraveacutes de uma perspectiva arqueoloacutegica da miacutedia permite-nos

considerar igualmente feacutertil todo um conjunto de obras que aproveita tecnologias antigas e novas

da imagem para indicar como estas satildeo apropriadas em favor do vieacutes ldquoexperimentalrdquo (LENOT

2017) do fotograacutefico Nesse sentido alguns estudiosos e estudiosas partindo de uma visatildeo mais

horizontal das miacutedias convocam a reconsiderar dicotomias tatildeo marcadas entre analoacutegico e

digital Cruz e Oliveira (2009) indicam a importacircncia demasiada atribuiacuteda aos aspectos teacutecnicos

na teorizaccedilatildeo sobre a fotografia digital fazendo com que as diferenccedilas encobrissem as

continuidades ao mesmo tempo em que as teses de indexicabilidade permaneciam bastante

associadas ao paradigma analoacutegico As autoras acrescentam que por forccedila do digital abrem-se

novas possibilidades de compreensatildeo da imagem e ao mesmo tempo se pode repensar a miacutedia

analoacutegica

Fatorelli (2017) faz observaccedilotildees que nos orientam a pensar em uma pluralidade esteacutetica

mais alinhada com aberturas da proacutepria fotografia independente da miacutedia empregada Para ele a

imagem fotograacutefica tem uma dupla condiccedilatildeo que a faz por vezes aproximar-se do referente e

outras vezes apartar-se dele e partindo de experimentos variados no acircmbito do proacuteprio

dispositivo acaba por gerar uma realidade proacutepria centrada em processos teacutecnicos Podemos aqui

enumerar rapidamente alguns nomes que utilizando exclusivamente ou natildeo materiais

fotograacuteficos acabaram desenvolvendo trabalhos que nos ajudam a pensar essa condiccedilatildeo maleaacutevel

98

da imagem que vai do figurativo ao abstrato Paolo Gioli Andy Warhol Marey Jacques-Henri

Lartigue Geraldo de Barros Esses artistas buscaram investigar os limites e vizinhanccedilas entre

fotografia e outros modos visuais brincando com as formas o tempo as luzes os materiais

Construiacuteda em torno de uma funccedilatildeo ldquoapresentativardquo em detrimento de uma funccedilatildeo

ldquorepresentativardquo a fotografia se vale de praacuteticas como a apropriaccedilatildeo de outras imagens a criaccedilatildeo

de cenaacuterios especiacuteficos para serem registrados pela cacircmera a tomada de empreacutestimo de modos de

outras artes como cinema pintura performance teatro e literatura (FATORELLI 2017)

tendecircncias que ganharam corpo e hoje seguem como marcas significativas da produccedilatildeo

contemporacircnea Esse espaccedilo eacute coabitado pelas miacutedias analoacutegicas e digitais com propostas de uso

exclusivo mas tambeacutem de cruzamentos

Tambeacutem Zylinska (2017a) quando propotildee uma definiccedilatildeo de fotografia como processo de

registro da luz por meio de diversos aparatos (cacircmeras scanners sateacutelites e corpos vivos)

afirmando que esse processo eacute de ldquotraduccedilatildeordquo e natildeo de ldquotranscriccedilatildeordquo apaga a necessidade de uma

diferenciaccedilatildeo entre sistemas analoacutegicos e digitais e propotildee ainda que a imagem fotograacutefica seja

aceita como algo novo uma realidade especiacutefica e natildeo uma reacuteplica do mundo concreto Todas

essas observaccedilotildees ajudam-nos a lanccedilar um olhar sobre trabalhos recentes com ecircnfase nas

experiecircncias com os meios e na articulaccedilatildeo entre eles

Andreas Muumlller-Pohle eacute um artista alematildeo cujo trabalho desenvolve uma pesquisa criacutetica

em torno deste vieacutes ldquorepresentativordquo da imagem discutindo a arraigada ideia de que aquela

guarda correspondecircncia de semelhanccedila com o mundo material Ele reconhece que ainda muito da

produccedilatildeo em digital natildeo passa de ldquosimulaccedilotildees e kitschificaccedilotildees de imagens analoacutegicasrdquo

(MUumlLLER-POHLE 1996) e problematiza o status realista tanto em projetos de base analoacutegica

quanto digital o que estaacute de acordo com as afirmaccedilotildees a respeito de uma abertura ao muacuteltiplo ser

inerente ao fotograacutefico

Em Digital Scores (after Niceacutephore Nieacutepce) de 1995ndash1998 (figuras 19 e 20) ele

digitaliza a claacutessica View from the window (Joseph Niceacutephore Nieacutepce 1826) A informaccedilatildeo

contida na paisagem retratada atraveacutes de um meacutetodo fiacutesico-quiacutemico daacute origem a um montante de

sete milhotildees de bytes que traduzida em dados binaacuterios eacute distribuiacuteda em oito partes O que vemos

eacute literalmente a informaccedilatildeo que a imagem carrega num diaacutelogo irocircnico que potildee lado a lado o

siacutembolo pioneiro dos esforccedilos do pensamento cientiacutefico para fixar visualmente o mundo ndash o

99

palpaacutevel o acabado o material ndash e sua total desmaterializaccedilatildeo num conjunto disforme abstrato

sem nenhuma relaccedilatildeo esteacutetica como aquilo que o originou O computador atua como ferramenta

que expotildee a estrutura mesma dos coacutedigos com os quais opera59 A obra Digital scores eacute

informaccedilatildeo pura e demonstra uma disposiccedilatildeo do artista em conceituar o proacuteprio meio a imagem

de Niegravepce eacute o ponto de partida para uma reflexatildeo sobre a fotografia em geral e os resultados satildeo

decisotildees esteacuteticas da maacutequina (BATCHEN 2002 p177)

No projeto Cyclograms (1991-1994) (figuras 21 e 21a) a ideia baacutesica tambeacutem parte de

imagens previamente selecionadas para criar algo diferente Vaacuterias fotos satildeo picotadas e os

pedaccedilos jogados num recipiente que conteacutem revelador fotograacutefico O interior do recipiente eacute

revestido com papel fotograacutefico Agrave medida que tudo se mistura os pedaccedilos de imagens vatildeo

manchando o papel criando fotogramas Novas imagens surgem por meio da destruiccedilatildeo das

anteriores Meacutetodo e materiais analoacutegicos satildeo empregados num processo de reciclagem onde o

resultado final eacute uma surpresa e o substrato original desgarrou-se de seus contextos intenccedilotildees e

usos Esse rearranjo eacute alheio agrave centralidade de um dispositivo de registro pois a presenccedila da

cacircmera ficou laacute atraacutes (nas fotos retalhadas) sendo relativizada em relaccedilatildeo aos demais materiais

empregados (o revelador o papel) Haacute ainda uma liberdade envolvida no processo de obtenccedilatildeo

das imagens que se assenta num certo niacutevel de descontrole ldquoEm muitas das obras de Muumlller-

Pohle o acaso assume uma funccedilatildeo importante no vir-a-representar pictoacuterico que termina em

indeterminaccedilatildeo isto eacute quando a imagem testemunha pictorialmente uma reaccedilatildeo de maneira

imprevisiacutevel60rdquo (VON AMELUNXEN 1999 traduccedilatildeo nossa)

59 Muumlller-Pohle tem outro trabalho que resulta da interface analoacutegicodigital a instalaccedilatildeo Analog-Digital Mirror(2004) na qual a imagem capturada por uma cacircmera de viacutedeo perde a forma e transforma-se em nuacutemeros e letras deacordo com o movimento de quem interage com o sistema Disponiacutevel em httpmuellerpohlenetprojectsanalog-digital-mirror Acesso em 19092018

60 Traduccedilatildeo livre de ldquoIn many of Muumlller-Pohlersquos works chance assumes an important function in the pictorialcoming-to-be that ends in indeterminateness that is when the image pictorially testifies to a reaction in anunforeseeable mannerrdquo

100

Figuras 19 e 20 - Digital scores I e Digital scores IV (Andreas Muumlller-Pohle 1995-98)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

A obra do alematildeo exemplifica uma forma de pensar a fotografia como artefato que pode

se reinventar contrariando modelos ou regras de procedimentos ligados agrave proacutepria tecnologia que

por sua vez contribuem para revisitar sob diversas metodologias paradigmas sempre caros agrave

imagem conforme nos lembrou Soulages (online 2017)

Junto a ele podemos colocar todo um grupo de artistas que em vez de contentarem-se em

reafirmar o debate em torno do mimetismo da veia testemunhal da imagem preferem

experimentar com equipamentos e conceitos produzindo uma esteacutetica implicada pelos rearranjos

do proacuteprio dispositivo Haacute um despojamento na elaboraccedilatildeo da imagem ligado a um fazer dotado

de curiosidade mais interessado em deixar que os materiais se misturem sem controle riacutegido e

seu valor reside tambeacutem no elemento surpresa

101

Figuras 21 e 21a - Cyclograms 521994 (Andreas Muumlller-Pohle1994)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

O que parece seguro apontar eacute que no campo da imagem miacutedias analoacutegicas eletrocircnicas e

digitais compartilham um espaccedilo de convivecircncia e utilizaccedilatildeo em diferentes praacuteticas que vatildeo do

acircmbito artiacutestico ao vernacular com empreacutestimos e (re)posicionamentos que acontecem sobretudo

pela maleabilidade proacutepria da fotografia Ao mesmo tempo esforccedilos de repensar alguns

paradigmas baacutesicos da fotografia ndash sua condiccedilatildeo de imagem uacutenica fixa e mimeacutetica entre outras

questotildees ndash natildeo satildeo exclusivos das miacutedias digitais nem tatildeo pouco satildeo catalisados apenas quando

elas surgem Eles jaacute se verificavam entre alguns pioneiros da fotografia61 portanto num momento

em que o digital sequer sonhava aparecer e satildeo revisitados por artistas que na atualidade

trabalham tambeacutem com a miacutedia analoacutegica De maneira mais generalizante parece que o espaccedilo

da fotografia contemporacircnea eacute afetado pela convivecircncia entre formatos com tendecircncias tanto de

hibridizaccedilatildeo de contaminaccedilotildees de empreacutestimos e reposicionamento de paradigmas e esteacuteticas

61 Fatorelli (2006) faz referecircncia ao movimento pictorialista ao flou das fotografias de Julia Margaret Cameron edos movimentos da vanguarda europeia da deacutecada de 1920 como exemplos de confrontaccedilatildeo de uma fotografialdquopurista e diretardquo um debate que se aprofunda em outros textos do autor

102

quanto de fetichizaccedilatildeo de esteacuteticas antigas e da ressignificaccedilatildeo de tecnologias vistas como

obsoletas e de teacutecnicas claacutessicas da imagem num movimento que vai das alianccedilas aos

afastamentos com a mesma fluidez

Contudo parece que o reconhecimento de uma atitude mais criacutetica ao medium como algo

capaz de influenciar a busca por novas esteacuteticas aleacutem da representaccedilatildeo eacute algo que se torna mais

presente no debate acadecircmico e artiacutestico a partir exatamente do entendimento paralelo de que 1)

a fotografia eacute plural mas sua histoacuteria tem zonas de sombra por vezes negligentemente

exploradas principalmente no diaacutelogo com outras artes da imagem 2) a tocircnica de abertura do

fotograacutefico eacute uma caracteriacutestica que jaacute vinha sendo demonstrada passando a ser aceita com mais

evidecircncia porque a discussatildeo a respeito do que caracteriza a fotografia retorna agrave medida que vai

se instituindo o paradigma digital e se procura desvendar o que muda e o que permanece das

teses claacutessicas que conformam a teoria do meio

103

4 RUIacuteDO ERRO E IMAGEM

ldquoE aquilo que nesse momento se revelaraacute aos povosSurpreenderaacute a todos natildeo por ser exoacuteticoMas pelo fato de poder ter sempre estado ocultoQuando teraacute sido o oacutebviordquo - Um iacutendio Caetano Veloso

41 FOTOGRAFIA Eacute RUIacuteDO PARA ALEacuteM DE ESPECIFICIDADES TECNOLOacuteGICAS

O exerciacutecio de revisitar ideias e paradigmas que marcam a histoacuteria da imagem em busca

de pontos cruciais para alguns teoacutericos no momento de emergecircncia da cultura numeacuterica tem um

sentido praacutetico que sustenta nossa criacutetica a um discurso de ruptura servindo para reconhecer

juntamente a alguns pesquisadores aqui citados que haacute em grande medida uma continuidade de

processos e formas visuais conectando as tecnologias fotoquiacutemicas e digitais Reconhecido esse

caraacuteter (em diversas praacuteticas de hibridismo apropriaccedilotildees emulaccedilotildees remixagens) que orienta o

pensamento sobre a imagem na direccedilatildeo das continuidades dos atravessamentos e das

contaminaccedilotildees pode-se tambeacutem evocar uma revalorizaccedilatildeo de praacuteticas claacutessicas da imagem

contribuindo para a um movimento de afirmaccedilatildeo de toda uma esteacutetica marcada pela emergecircncia

do erro do ruiacutedo do acaso do imprevisiacutevel como elementos criativos Um emprego criacutetico e natildeo

convencional de teacutecnicas da imagem fotoquiacutemica e do computador na realizaccedilatildeo de obras que

centram sua potecircncia em desconstruir noccedilotildees associadas agrave ldquoforma fotografiardquo (FATORELLI

2013) ao ldquophotographic standardrdquo (ZYLINSKA 2017a) com seus paracircmetros de

enquadramento riacutegidos iluminaccedilatildeo correta com equiliacutebrio de luz e sombras e nitidez marcada

Traccedilos alinhados ao vieacutes mimeacutetico da imagem com raiacutezes na construccedilatildeo perspectivista da

realidade

Eacute interessante notar que o foco recente nas noccedilotildees de erro e ruiacutedo emerge junto agraves

consideraccedilotildees sobre o paradigma digital e a partir dos estudos de vaacuterios pesquisadores

104

(HAINGE 2013 NUNES 2011 FELINTO 2013 KRAPP 2018) comeccedila a ser considerado

questatildeo essencial para criaccedilatildeo artiacutestica neste ambiente Mas aqui embora reconhecendo essa

valorizaccedilatildeo como questatildeo fortemente ligada agrave cultura dos artefatos informaacuteticos queremos

afirmar as noccedilotildees de erro e ruiacutedo tomadas como potecircncias esteacuteticas tambeacutem nos trabalhos

realizados a partir de miacutedias fotoquiacutemicas Ou seja se incialmente houve uma preocupaccedilatildeo em

diferenciar obras realizadas com equipamentos analoacutegicos e digitais buscando traccedilos de uma

certa esteacutetica diferencial ndash tratada como hiper-realista apontada como desvinculada do mundo

concreto ou ainda como pertencente ao acircmbito da pura simulaccedilatildeo de uma inteligecircncia maquiacutenica

ndash hoje vemos o reposicionamento do debate sobre as materialidades (enfoque trazido pelo campo

das materialidades da comunicaccedilatildeo) e a partir disso podemos entender como a percepccedilatildeo do

ruiacutedo eacute na verdade a inscriccedilatildeo o traccedilo da materialidade que compotildee as miacutedias sejam elas digitais

ou analoacutegicas Para noacutes eacute especialmente relevante o fato de que o tema do ruiacutedo como resultado

de experiecircncias diversas com tecnologias da imagem vem horizontalizar possiacuteveis separaccedilotildees

entre as miacutedias analoacutegicas e digitais pois parece convergir nas praacuteticas artiacutesticas que aparecem

em nosso trabalho Na medida em que manifestam o desejo de extrair das teacutecnicas materiais e

equipamentos resultados pouco convencionais assistimos ao emprego de miacutedias ldquoobsoletasrdquo em

meio agrave cultura digital e tambeacutem agrave exploraccedilatildeo conjunta de tecnologias digitais e analoacutegicas em

obras de esteacuteticas hiacutebridas e de vieacutes fortemente experimental por vezes satildeo difiacuteceis de rotular

Hainge (2013 p211) ndash um dos autores principais na abordagem aqui proposta sobre as

relaccedilotildees entre ruiacutedo e imagem ndash lembra que as teorias de indexicabilidade consideraram a

fotografia essencialmente um produto de suas tecnologias desconsiderando singularidades e a

multiplicidade das praacuteticas inscritas na historiografia do meio e propotildee discutir uma ontologia da

fotografia apostando em sua ldquonatureza expressivardquo ldquopolimorfardquo sem necessitar da separaccedilatildeo

entre analoacutegico e digital Para ele jaacute natildeo fazem mais sentido as distinccedilotildees desse tipo Ao detalhar

sua proposta e como atentar para o ruiacutedo na fotografia afirma

Concebida dessa maneira natildeo haacute porque estabelecer uma relaccedilatildeo necessariamenteindexical entre realidade externa e imagem fotograacutefica dessa realidade nem uma divisatildeoontoloacutegica entre fotografia analoacutegica e digital () O ruiacutedo eacute expresso em todafotografia se este for tomado como expressatildeo especiacutefica da operaccedilatildeo geral pela qual a

105

imagem se torna uma distribuiccedilatildeo de zonas diferenciais Mas nem todas as fotografiastrazem esse aspecto expressivo da imagem num mesmo grau62 (HAINGE 2013 p234)

Eacute importante delimitar que para o autor o ruiacutedo expotildee uma relaccedilatildeo diferencial tanto do

ponto de vista da feitura da imagem (seus arranjos apropriaccedilotildees de elementos diversos

manipulaccedilotildees recriaccedilotildees hibridismos etc) quanto da percepccedilatildeo desses procedimentos jaacute que a

imagem na qual o ruiacutedo eacute notado tem a capacidade de bagunccedilar modelos perceptivos

estabelecidos Eacute por isso que quando nos reportamos aos trabalhos de Wall e Grusky buscamos

contrastaacute-los com as experiecircncias de Muumlller-Pohle na medida em que estas uacuteltimas nos parecem

atingir esse lugar das imagens com niacutevel de ruiacutedo mais evidente Ou melhor onde o artista parece

compreender o ruiacutedo como princiacutepio originaacuterio de uma esteacutetica e que isso decorre de uma

aproximaccedilatildeo extrema da mateacuteria formadora da imagem Enquanto as fotografias de Wall e

Gursky principalmente resultam de vaacuterias manipulaccedilotildees elas continuam filiadas a um modelo

visual que prioriza o conteuacutedo e uma ldquoesteacutetica da transparecircncia supostamente livre de ruiacutedordquo

(HAINGE 2013) ao passo que Muumlller-Pohle constroacutei a obra em torno da proacutepria informaccedilatildeo que

forma eacute a substacircncia da imagem Hainge tambeacutem entende que a analogia direta entre imagem e

referente esconde o processo e o ruiacutedo na sua anaacutelise eacute essencialmente um fenocircmeno processual

ou seja que se revela em meio agraves experiecircncias com a miacutedia que o produz

Especificamente no capiacutetulo que dedica agrave fotografia Hainge sugere que seu estudo seja

feito a partir do tema do ruiacutedo atentando para este como marca dos processos envolvidos na

elaboraccedilatildeo da imagem e sem preocupaccedilotildees com a correspondecircncia entre referente e imagem que

tanto interessou alguns pensadores claacutessicos da fotografia Se o ruiacutedo eacute o ponto de partida da

investigaccedilatildeo a respeito da imagem fotograacutefica a tecnologia utilizada bem como a divisatildeo entre

analoacutegico e digital tornam-se menos importantes pois a imagem comeccedila a ser observada como

lugar de exploraccedilatildeo de artifiacutecios que caminham na direccedilatildeo da abstraccedilatildeo em detrimento da

verossimilhanccedila A imagem seria um espaccedilo de reflexatildeo sobre o mundo seus sujeitos e a proacutepria

tecnologia com cada uma dessas instacircncias tomadas conjuntamente A partir do momento em

62 Traduccedilatildeo livre de ldquoConceived of this way there is no reason to posit a necessarily indexical relation between anexternal reality and the photographic image of that reality nor an ontological divide between silver-gelatin anddigital photography (hellip) Noise of course is expressed in every photography if noise is taken to be the expressionspecific to the operation by which the image comes to be as a distribution of differential zones But not everyphotography makes us attend to this expressive aspect of the image to the same degreerdquo

106

que recusa as distinccedilotildees analiacuteticas baseadas no tipo de tecnologia empregado Hainge aproxima-

se de Flusser (20112008) para quem o universo das imagens goza de uma autonomia e

singularidade natildeo associadas agrave reproduccedilatildeo fidedigna do mundo possibilitando olhar para a

fotografia a partir de seus processos

O que acho importante sobre esses insights eacute que permitem uma reflexatildeo sobre afotografia como modo particular de produccedilatildeo da imagem que eacute capaz de ultrapassar adivisatildeo entre fotografia baseada em filme e digital de uma maneira que natildeo podeocorrer se nos fixamos nos aspectos fotoquiacutemicos da foto tradicional ou natranscodificaccedilatildeo que ganha espaccedilo com a digitalizaccedilatildeo da imagem Na verdade o queFlusser nos indica acredito eacute que a fotografia longe de ser uma manifestaccedilatildeo do real eacutemeramente a arte da composiccedilatildeo da imagem do arranjo de cores ou tons em um espaccedilobidimensional Como tal a fotografia estaacute sempre preocupada com seu proacuteprio statusenquanto uma miacutedia visual mesmo quando tenta ser um documento e apaga a si mesmanum esforccedilo para falar sobre o mundo de uma maneira transparente63 (HAINGE 2013p 213)

O autor segue argumentando que a fotografia eacute uma miacutedia essencialmente ruidosa que

relaciona (em favor da expressividade) a subjetividade humana e a objetividade tecnoloacutegica e

que nem a subjetividade humana nem a objetividade da maacutequina satildeo puras a primeira eacute

contaminada pelos princiacutepios da tecnologia e a segunda eacute semi-autocircnoma dobrando-se

frequentemente agraves interferecircncias humanas no seu funcionamento (HAINGE 2013 p226) O

cerne dessas afirmaccedilotildees nos conecta de novo a Flusser que pensa os viacutenculos entre ldquoaparelhosrdquo e

seres humanos na linha de um intercacircmbio positivo embora cheio de descontinuidades Para o

filoacutesofo tcheco eacute nessa simbiose que estaacute a chave da criaccedilatildeo mais libertaacuteria frente aos

ldquoprogramasrdquo jaacute instituiacutedos nos aparelhos pois ele enxerga um espaccedilo de negociaccedilatildeo por meio da

63 Traduccedilatildeo livre de ldquoWhat I think is important about these insights is that they enable a reflection on photographyas a particular way of producing the image that is able to bridge the divide between film-based and digitalphotography in a way that cannot be done if one fixates on the photochemical aspects of traditional photography oron the flipside the transcoding that takes place in the digitization of the image Indeed what Flusserrsquos pointsindicate to us I feel is that photography far from being a manifestation of the real is merely the art of imagecomposition of arranging colours or tones in two-dimensional space As such photography is always concernedwith its own status and being as a visual medium even when tries to be a document and struggles to efface itself inorder to tell us something transparent about the worldrdquo

107

ideia de ldquojogordquo Satildeo as estrateacutegias adotadas pelos fotoacutegrafos experimentais64 na condiccedilatildeo de

jogadores que vatildeo nos revelar entatildeo o coeficiente de ruiacutedo das imagens

Influenciada tambeacutem pela visatildeo flusseriana da ligaccedilatildeo entre seres humanos e os

dispositivos Zylinska (2017a) propotildee uma filosofia poacutes-humana da imagem fotograacutefica na qual

ressalta a importacircncia de todo um universo imageacutetico forjado pelo desempenho autocircnomo de

maacutequinas criadoras de imagem Drones aparelhos de raio-x cacircmeras do Google Earth e Google

Street View a microfotografia o scanner o QR code ou mesmo acoplagens desenvolvidas para

captura sem a perspectiva ocular humana65 fazem parte desse universo de equipamentos

responsaacuteveis por caracterizar a fotografia-natildeo humana A partir do que propotildee Flusser sobre o

automatismo e programa dos aparelhos Zylinska afirma ainda que na verdade toda fotografia

possui uma dimensatildeo natildeo-humana que em sua opiniatildeo tem der ser explorada para contrapor-se agrave

noccedilatildeo de imagem como mera reproduccedilatildeo do real ldquo() essa abordagem eacute um desafio agrave orientaccedilatildeo

tiacutepica da teoria fotograacutefica para a indexicabilidade a representaccedilatildeo e a preservaccedilatildeo de traccedilos da

memoacuteria Ela tambeacutem chama atenccedilatildeo para os esforccedilos natildeo-representacionais da criaccedilatildeo

fotograacutefica66rdquo (ZYLINSKA 2017a p4)

Ora se nosso foco se volta para a emergecircncia do ruiacutedo na imagem contemporacircnea fica

difiacutecil manter um debate que ainda aposte em especificidades conectadas a um pensamento que

entende as imagens a partir de diferenccedilas nitidamente demarcadas entre as tecnologias Claro que

podemos apontar ruiacutedos que satildeo inscriccedilotildees das caracteriacutesticas de determinados meios mas pensar

neles em termos de exclusividades como se fosse possiacutevel identificaacute-los somente em obras

realizadas por meios analoacutegicos ou digitais natildeo eacute o caso

64 Utilizamos aqui a expressatildeo ldquofotoacutegrafos experimentaisrdquo no sentido senso comum de artistas que promovemexperiecircncias diversas com as tecnologias da imagem contudo assinalamos que o proacuteprio Flusser (2011) utiliza essestermos no mesmo sentido empregado aqui para falar dos indiviacuteduos capazes de confrontar o ldquoprogramardquo doldquoaparelhordquo

65 A autora daacute interessantes exemplos de projetos nesse sentido destacando a criaccedilatildeo de pombo-cacircmera (1908)CfZylinska2017 p16-17 Podemos acrescentar a este exemplo o documentaacuterio Leviathan (Lucien Castaing-Tayloramp Verena Paravel2012) que propotildee a imersatildeo no ambiente de uma embarcaccedilatildeo de pesca o filme tem diversasimagens capturadas por cacircmeras deixadas no chatildeo do conveacutes mergulhadas na aacutegua ou posicionadas para registrar omovimento sobre as ondas do mar para referir respectivamente o ponto de vista de peixes aves do navio O trailerdo filme estaacute disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=ADiDMEnDmTQ Acesso em 041119

66 Traduccedilatildeo livre de ldquoThrough this framework it challenges the typical orientation of photography theory towardindexicality representation and the preservation of memory traces It also shifts attention to the non-representational acts of photographic creationrdquo

108

Parece importante no escopo de nossa pesquisa compreender que muitos dos artistas aqui

citados estatildeo interessados em teacutecnicas analoacutegicas da imagem tanto pela afinidade que possuem

em manipular insumos materiais e equipamentos como pela possibilidade de recolocar um

interesse pela questatildeo da materialidade em seus trabalhos Aleacutem de imprimirem a esse uso de

tecnologias ldquoobsoletasrdquo um olhar bastante conectado aos modos de operar e sentir de uma

sociedade que se comunica trabalha e se expressa em rede Natildeo se verifica uma atitude

saudosista ou romantizada frente aos dispositivos mas o emprego criativo que os submete aos

usos mais diversos e em vaacuterios casos as obras demandam ferramentas e estrateacutegias trazidas pela

cultura digital

Desse modo o tom geral eacute das alianccedilas entre esteacuteticas maacutequinas sistemas visotildees de

mundo que atuam na criaccedilatildeo artiacutestica no campo da imagem de uma maneira agraves vezes anaacuterquica e

desapegada de preocupaccedilotildees com a especificidade do medium utilizado Ao mesmo tempo esse

olhar tardio para modos de fazer da imagem jaacute datados pode constituir uma estrateacutegia criacutetica aos

automatismos embutidos nas praacuteticas da imagem como lembra Fontcuberta (2010)

A recuperaccedilatildeo de meios e de uma esteacutetica jaacute ldquosuperadardquo se legitima com um novo usocriacutetico que ironiza precisamente os objetivos programaacuteticos que guiaram esses meios eessa esteacutetica O que antes era um acidente agora eacute um efeito voluntaacuterio Os defeitos setransformarem em signos intencionais faz parte de uma evoluccedilatildeo da consciecircncia Trata-se sem duacutevida da saiacuteda para um processo de esgotamento e saturaccedilatildeo paulatina(FONTCUBERTA 2010 p71)

Esse eacute o intuito mais especiacutefico desta tese demonstrar que haacute uma tendecircncia no campo da

imagem apontando para a reflexatildeo sobre paradigmas claacutessicos a partir da exploraccedilatildeo das

tecnologias de investigaccedilotildees artiacutesticas dirigidas aos proacuteprios meios e que podemos compreendecirc-

las esteticamente a partir dos conceitos de ldquoruiacutedordquo e ldquoerrordquo Essas concepccedilotildees tomadas num

sentido de pluralidade formal atingem igualmente as obras realizadas no tracircnsito entre

dispositivos analoacutegicos eletrocircnicos e digitais desterritorializam os lugares do cinema da

fotografia do viacutedeo da pintura e em alguns casos contribuem para (re)afirmar o lugar da

materialidade no campo da comunicaccedilatildeo Ao que parece a tocircnica da imagem contemporacircnea estaacute

nas constantes operaccedilotildees de negociaccedilatildeo de articulaccedilatildeo de materiais e dispositivos da

109

investigaccedilatildeo do medium guiada pelo acesso e criaccedilatildeo compartilhados e dessa maneira a miacutedia

analoacutegica natildeo resulta sepultada Ela eacute revisitada articula-se com o computador ou mesmo

sozinha enquanto artefato fiacutesico estaacute inserida em estrateacutegias artiacutesticas caracteriacutesticas de uma

sociedade que se relaciona por meio do intercacircmbio das trocas culturais do fluxo informativo

em rede

Para tanto o mapeamento busca identificar as recusas agraves ldquoteses essencialistasrdquo

(FATORELLI 2003) exemplificada pelo trabalhos de diversos artistas onde se destacam a

compreensatildeo da imagem como artifiacutecio a ser trabalhado numa via processual de etapas com

especial reconfiguraccedilatildeo da materialidade (em contraposiccedilatildeo agrave uma noccedilatildeo automatizante) uma

atitude que incorpora acidentes e resultados imprevistos como instacircncias criativas a recuperaccedilatildeo

de teacutecnicas antigas como o pinhole a cacircmara escura o daguerreoacutetipo bem como experiecircncias

alternativas e natildeo industriais com quiacutemicos laboratoriais a exploraccedilatildeo de temporalidades atraveacutes

de longa exposiccedilatildeo e de tempos elaacutesticos a desconstruccedilatildeo de formas (do referente) em direccedilatildeo agrave

abstraccedilatildeo por meio de negativos e pixels o aproveitamento dos erros do sistemas informaacutetico

para a construccedilatildeo de obras artiacutesticas a criaccedilatildeo de sistemas hiacutebridos que potildeem em jogo diferentes

aparatos numa investigaccedilatildeo dirigida agrave proacutepria miacutedia a elaboraccedilatildeo de esteacuteticas e formas

desconectadas de uma necessidade representativa

42 DISPUTAS ONTOLOacuteGICAS

Um dos temas centrais que atravessa os debates propostos nesta tese eacute o conceito de

ruiacutedo analisado aqui principalmente atraveacutes das contribuiccedilotildees de Hainge (2013) que buscou

identificar alguns traccedilos definidores do ruiacutedo em obras pertencentes a diferentes campos

artiacutesticos O tema do ruiacutedo vem recebendo atenccedilatildeo de outros pesquisadores aos quais nos

reportamos ao longo de nossas anaacutelises poreacutem a ecircnfase maior no estudo de Hainge deve-se ao

fato de que este propotildee uma abordagem ampla do assunto discutindo-o a partir de objetos

variados como a muacutesica o cinema a literatura e a fotografia e articulando esses objetos com

questotildees da filosofia da teoria da comunicaccedilatildeo da esteacutetica da linguagem cinematograacutefica da

ontologia fotograacutefica O pesquisador australiano compreende o ruiacutedo como conceito e tambeacutem

como um fenocircmeno observado em qualquer dinacircmica onde se ateste um movimento diferencial

afastado de normatizaccedilotildees hegemocircnicas Assim seu pensamento funcionaraacute aqui como conjunto

110

de ideias centrais o que natildeo impede que os textos nos quais o tema do ruiacutedo aparece associado a

termos como ldquofalhardquo e ldquoerrordquo (NUNES 2011 KRAPP 20112018 FELINTO 2015

BALLARD 2011 MENKMAN 2010 PIPER-WRIGHT 2018 ABRAAtildeO FILHO 2018) e

cujas abordagens estatildeo mais especificamente relacionadas ao universo da cultura digital sejam

evocados para auxiliar a reflexatildeo tendo em vista que essas terminologias partilham um sentido

comum ndash de desvio instabilidade desorganizaccedilatildeo ruptura de paradigmas ndash ligado a processos

que executam um movimento de afastamento de padronizaccedilotildees

Ressalte-se que todos esses autores e autoras investigam como o ruiacutedo o erro e a falha

tornam-se elementos de partida para a criaccedilatildeo artiacutestica em detrimento de uma reaccedilatildeo que

primeiro nega para depois (tentar) excluir sua presenccedila Esse entendimento do ruiacutedo como lugar

produtivo na perspectiva da arte constitui questatildeo relevante em nossa pesquisa Como veremos

ao longo do texto a partir das obras apresentadas o experimento com as tecnologias da imagem

as mais diversas faz emergir formas variadas de ruiacutedo

Hainge (2013) localiza algumas das primeiras tentativas de abordagem do tema do ruiacutedo

no seacuteculo XX associadas aos trabalhos de artistas e movimentos no acircmbito da muacutesica67

articuladas por sua vez agrave ideia de incorporaccedilatildeo na criaccedilatildeo musical de ldquoatonalidade dissonacircncia

explosotildees tossidos arranhados retorno sonoro distorccedilatildeo falhasrdquo (HAINGE 2013 p2) O

assunto ainda eacute bastante associado ao universo musical Nesse sentido poderiacuteamos acrescentar ao

conjunto de elementos ligados ao ruiacutedo aleacutem de sons gerados pela tecnologia utilizada os

barulhos gerados no proacuteprio ambiente onde se executa a performance musical (base por

exemplo da peccedila 4rsquo33rdquo de John Cage)

Ballard (2011 p61) eacute um pouco mais especiacutefica quando indica que as preocupaccedilotildees a

respeito dos problemas entre informaccedilatildeo e ruiacutedo remontam ao final da 2ordf Guerra Mundial

quando matemaacuteticos engenheiros e fiacutesicos tentavam desenvolver sistemas de controle e

comunicaccedilatildeo perfeitos Embora natildeo consideremos necessaacuterio procurar um marco inicial para as

reflexotildees a respeito do tema (outros pesquisadores jaacute o fizeram) parece seguro apontar que o

aprimoramento das tecnologias de informaccedilatildeo e de sistemas inteligentes no seacuteculo XX trouxe o

67 Especialmente Luigi Russolo John Cage e a musique concregravete Sobre esses artistas ver os capiacutetulos The (not so)noisy elephants in the room e On Noise and Music em HAINGE Greg Noise matters Towards an ontology ofnoise London Bloomsbury 2013

111

ruiacutedo como ldquoproblemardquo para muitas esferas cientiacuteficas fazendo deste periacuteodo histoacuterico um

momento de especial interesse no assunto

Essas breves observaccedilotildees jaacute sugerem duas questotildees a serem consideradas para o debate

A primeira eacute que inclusive para os artistas citados ndash e devemos ter em conta que essa ideia torna-

se dominante e senso comum ndash o ruiacutedo eacute compreendido numa oposiccedilatildeo agrave muacutesica como entidades

separadas ruiacutedo natildeo eacute muacutesica e assim eles natildeo se misturam A essa premissa o estudo de

Hainge opotildee-se fortemente Para ele embora o caraacuteter desagregador e transgressivo seja inerente

ao ruiacutedo enquanto marca conceitual este natildeo pode ser tomado como uma intromissatildeo externa

uma sonoridade totalmente estranha O ruiacutedo integra a estrutura expressiva do meio onde se

manifesta e natildeo se distingue pela capacidade de surgir e desaparecer pois estaacute sempre presente

O problema eacute que ele nem sempre eacute notado (constituindo assim um problema de percepccedilatildeo) Se

pensarmos nas obras de artistas como Sonic Youth68 Bjoumlrk69 Kraftwerk70 Metaacute Metaacute71 ou Oval72

ndash somente para citar alguns e essa lista pode aumentar e modificar-se toda vez que esta tese seja

lida por algueacutem diferente ndash que se utilizam largamente de objetos ldquonatildeo-musicaisrdquo e de sons

originados pelo uso natildeo programado de instrumentos convencionais ou materiais como

microfones e amplificadores eacute possiacutevel determinar onde termina a muacutesica e onde entra o ruiacutedo

Esses artistas apropriam-se de sonoridades variadas e geradas atraveacutes de diversos recursos em

composiccedilotildees onde o ruiacutedo flui como parte de uma massa sonora completa uma energia que

atravessa um sistema ou um corpo poreacutem sem ser estranho a ele Peter Krapp (2018)73 comenta

que o glitch o feedback e o click satildeo elementos importantes do aproveitamento de resultados

gerados pelo imprevisiacutevel no ambiente sonoro demarcando seu apelo esteacutetico embora afirme (ao

68Grupo de rock alternativo norte-americano que iniciou suas atividades na deacutecada de 1980 permanecendo ativo ateacutemeados de 2011 Com influecircncias de John Cage Velvet Undergound Patti Smith entre outros sua muacutesica eacutereferecircncia para artistas da deacutecada seguinte com destaque para os tambeacutem norte-americanos do Nirvana69Cantora compositora produtora instrumentista e atriz islandesa que antes de seguir carreira solo integrou a bandaSugar Cubes ativa entre os anos 1980-1990 Seu trabalho incorpora elementos de jazz muacutesica eletrocircnica trip-hopentre outros gecircneros70 Kraftwerk eacute uma banda alematilde de muacutesica eletrocircnica que surgiu nos anos 1970 conhecida pela sonoridade criada apartir de sintetizadores computadores e equipamentos desenvolvidos pelos proacuteprios integrantes do grupo Natildeo rarosuas muacutesicas falam da vida urbana e da tecnologia71 Metaacute Metaacute eacute um grupo brasileiro formado em Satildeo Paulo cujas muacutesicas articulam instrumentos como guitarrabateria metais e percussatildeo Em atividade desde 2008 seu trabalho pode ser colocado junto ao de uma safra deartistas recentes como Passo Torto e os trabalhos solo de Rodrigo Campos e Kiko Dinucci (integrante do MetaacuteMetaacute) Esses uacuteltimos por sua vez satildeo influenciados por nomes como Tom Zeacute Arrigo Barnabeacute e Itamar Assumpccedilatildeona maneira de compreender a criaccedilatildeo musical como algo a ser reinventado por meio dos materiais etc72 Grupo alematildeo de muacutesica eletrocircnica experimental considerado um dos expoentes da glitch music73 Luersen Eduardo Harry Maschke Guilherme Malo Erro e ruiacutedo na tecnocultura contemporacircnea - Entrevista comPeter Krapp Galaxia n 39 set-dez 2018 p 15-22

112

contraacuterio de Hainge) que o progresso teacutecnico seja capaz de banir o ruiacutedo que eacute nesses casos

reintroduzido pela intencionalidade dos artistas

Ao tratar da oposiccedilatildeo entre muacutesica e ruiacutedo Hainge lembra o manifesto de Luigi Russolo

(Art of noise1913)74 compositor italiano ligado ao Futurismo que investe numa tentativa de

falar sobre o tema do ruiacutedo e acaba por afirmar essa mesma divisatildeo O problema do manifesto

seria que como parte da proposta esteacutetica futurista ele distinguia claramente som e ruiacutedo o que

significava tambeacutem uma tentativa de contenccedilatildeo do ruiacutedo75 A mesma criacutetica eacute feita pelo autor agrave

proposta de John Cage (na peccedila 4rsquo33rdquo jaacute citada) que embora estimulando uma atitude mais

participativa da audiecircncia como elemento de construccedilatildeo da proacutepria obra reproduz a ideia de que

o ruiacutedo necessita ser ldquoconvertidordquo em algo mais palataacutevel (ou melhor dizendo audiacutevel) para

entatildeo ser integrado ao trabalho musical

Tais exemplos revelam um ponto que se deve ter em mente na questatildeo do ruiacutedo

perceber que sua conotaccedilatildeo negativa nasce dessa leitura de sua presenccedila como algo estranho ao

sistema que ele tende a desagregar Ainda no acircmbito musical tido como sonoridade erraacutetica agraves

vezes desagradaacutevel e criadora de desconforto o ruiacutedo provoca uma necessidade de expurgo Esse

movimento de negaccedilatildeo acaba permeando natildeo soacute algumas leituras na aacuterea da muacutesica mas tambeacutem

no cinema e na fotografia como demonstra Hainge (Ibidem) ao longo de seu livro afirmando

sempre que a exclusatildeo do ruiacutedo eacute na verdade impossiacutevel

Em nossas anaacutelises seguiremos o entendimento de Hainge (2013) considerando o ruiacutedo

natildeo como externalidade intrusiva mas como parte constitutiva dos processos envolvidos na

relaccedilatildeo artistasaparatos sobretudo nas apariccedilotildees do ruiacutedo relativas agraves materialidades

empregadas Interessam-nos os experimentos agenciamentos perversotildees realizados nos mais

diversos insumos e equipamentos que venham a expor o ruiacutedo na imagem Entendemos que ao

submeter as tecnologias a experiecircncias que muitas vezes contrariam suas funccedilotildees originais

muitos artistas estatildeo deixando entrever em seus trabalhos um interesse genuiacuteno pelo caraacuteter

74 Sobre o manifesto ver Art of noises em httpswwwunknownnufuturismnoiseshtml Acesso em 160419

75 Russolo criou instrumentos que imitavam sons diversos (sirenes e carros acelerando por exemplo) que para elerepresentavam os ruiacutedos da vida urbana no seacuteculo XX Os ldquointonarumorirdquo ou ldquoentoarruiacutedosrdquo Cf Abraatildeo FilhoClaudio Luiz Cecim O avesso da comunicaccedilatildeo Esteacutetica e poliacutetica do ruiacutedo na cultura digital (tese dedoutorado) Programa de Estudos Poacutes-Graduados em Comunicaccedilatildeo e Semioacutetica Pontiacutefica Universidade Catoacutelica deSatildeo Paulo 2018 p45-50

113

dissonante que a imagem pode assumir Ao pressionarem os materiais de que dispotildeem abrem

margem para que o ruiacutedo possa revelar-se atraveacutes de elementos como borrotildees tremulaccedilotildees

vazamentos de luz sobreposiccedilotildees de imagens granulaccedilotildees alteraccedilotildees cromaacuteticas resultantes de

manipulaccedilotildees riscos e outros tipos de intervenccedilotildees fiacutesicas na superfiacutecie da imagem

superexposiccedilatildeo anamorfoses e distorccedilotildees variadas que atestam a inscriccedilatildeo do tempo manchas

desfoque pixelizaccedilatildeo e demais efeitos causados pelo uso poeacutetico de erros nos sistemas de

computador (softwares) como modalidades esteacuteticas Aqui entendemos que os ruiacutedos satildeo as

diferentes maneiras de inscriccedilatildeo das tecnologias rastros dos processos realizados para obtenccedilatildeo

de imagens no acircmbito da investigaccedilatildeo artiacutestica

43 ldquoCOM OLHOS DE VIDRO DE CORES BERRANTES BALANCcedilAM EDIFIacuteCIOS DE

QUARENTA ANDARESrdquo

O artista carioca Luiz Alberto Guimaratildees possui seacuteries fotograacuteficas que problematizam a

perspectiva geomeacutetrica (herdada do Renascimento e tantas vezes citada como marco formal

apropriado no modelo da cacircmera fotograacutefica) produzindo imagens com alto grau de ruiacutedo

Influenciado pelos escritos de Vileacutem Flusser ele trabalha a partir de uma revisatildeo da cacircmara

escura desconstruindo seu modelo monocular a partir do uso de equipamentos com vaacuterias

entradas de luz Na seacuterie Paisagens cacofocircnicas (2015) (figuras 22 e 22a) traccedila um olhar caoacutetico

sobre a ocupaccedilatildeo do espaccedilo urbano sugerindo um excesso um certo sufoco desse espaccedilo a partir

das diversas imagens geradas pelos muacuteltiplos furos da cacircmera As imagens satildeo demasiado

confusas e mostram-se como recusa da noccedilatildeo de paisagem ligada agrave construccedilatildeo perspectiva do

espaccedilo

Entatildeo quando eu comecei esse meu trabalho a minha pegada era meio flusseriana muitona questatildeo da relaccedilatildeo do aparelho o quanto que o aparelho eacute preacute-formatado pra vocecirc() a grande formataccedilatildeo do aparelho fotograacutefico eacute a questatildeo da representaccedilatildeo De quemaneira ele pega a realidade e representa planarmente () que eacute extremamente antiga eacuterenascentista () A representaccedilatildeo ficou presa demais a esse modo ficou muitoformatada A fotografia aceitou passivamente essa funccedilatildeo enquanto que a pintura vocecircteve todos os movimentos o Cubismo e outras formas de representar () Muito do queeu tento fazer com a fotografia () eacute uma perspectiva () mas natildeo tem as regras quetanto atraiu o pessoal no final do seacuteculo 19 Eacute justamente ver que tem outro jeito76(GUIMARAtildeES 2017)

76 Entrevista concedida agrave autora desta tese em 2017

114

Figuras 22 e 22a - Paisagens cacofocircnicas (Luiz Alberto Guimaratildees 2015)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

No trabalho do artista carioca a ldquodesprogramaccedilatildeo do aparelhordquo na abordagem de

Flusser (2011) natildeo se daacute apenas em niacutevel conceitual no sentido de que busca subverter a

perspectiva convencional atraveacutes da junccedilatildeo numa mesma imagem de vaacuterios pontos de vista mas

tambeacutem no niacutevel da proacutepria estrutura da cacircmera jaacute que Guimaratildees constroacutei boa parte de seus

equipamentos Neste caso o fotoacutegrafo utilizou uma cacircmera com vaacuterios orifiacutecios que projetam as

115

diferentes imagens no papel fotograacutefico gerando distorccedilotildees zonas de sombra profunda em

contraste com aacutereas praticamente superexpostas marcas visuais da inscriccedilatildeo da luz na superfiacutecie

fotossensiacutevel Fruto da interaccedilatildeo entre luz e agentes fotoquiacutemicos a superexposiccedilatildeo eacute um tipo de

intensificaccedilatildeo do medium fotograacutefico que conteacutem grande niacutevel de ruiacutedo (HAINGE 2013 p183)

se o ruiacutedo eacute considerado a marca visiacutevel deixada pelas tecnologias em seus produtos aqui vemos

surgir uma cidade em suas muacuteltiplas facetas devido agrave maneira como se relacionam agraves diversas

entradas de luz do equipamento e a superfiacutecie onde se registram esses traccedilos A esteacutetica resultante

da perversatildeo do formato baacutesico da cacircmara escura produz edifiacutecios que se projetam em direccedilatildeo ao

espectador como num movimento crescente assumindo formas estranhas dado o caraacuteter

nitidamente artificial da composiccedilatildeo

O mundo que emerge das Paisagens Cacofocircnicas funciona como uma criacutetica tanto agrave

ocupaccedilatildeo capitalista predatoacuteria das cidades brasileiras quanto agrave forma tradicional de captura

dessa paisagem pela fotografia Em vez de uma abordagem realista aqui vemos uma verdadeira

construccedilatildeo paisagiacutestica voltada para o caraacuteter perverso da presenccedila humana No texto que

acompanha o trabalho em seu site Luiz Alberto Guimaratildees apropria-se de uma reflexatildeo do

cineasta alematildeo Win Wenders que sublinha exatamente essas questotildees

Assim como o mundo de imagens que nos circunda eacute cada vez mais cacofocircnicodesarmocircnico ruidoso proteiforme e pretencioso as cidades se tornaram por sua vezmais e mais complexas discordes ruidosas confusas e massacrantes Imagens e cidadesvatildeo bem juntas (WIM WENDERS apud GUIMARAtildeES online 2015)

Aqui tambeacutem se recusa qualquer tom idiacutelico ou bucoacutelico que formatos como o cartatildeo

postal ajudaram a consagrar no acircmbito da fotografia voltada para a paisagem o que constitui um

confronto a paradigmas da imagem assinalando mais uma vez a presenccedila do ruiacutedo no tocante a

um procedimento distante das padronizaccedilotildees de um estilo bastante difundido de imagem

Recusando-se a se apropriar da cacircmara escura no seu modelo convencional o artista recusou

tambeacutem determinada tipologia imageacutetica

Tenho desde entatildeo procurado atuar no limite do que Flusser denomina de jogo contra oaparelho comeccedilo por destruiacute-lo para entatildeo reconstruiacute-lo segundo novos programaselaborados pelo proacuteprio fotoacutegrafo Dessa forma creio que para quem quer ldquoinventarcategorias e continuar fotografandordquo a soluccedilatildeo pode estar nas maacutequinas artesanais comas quais venho trabalhando (e com certeza me divertindo) onde o que estaacute sobretudo empauta eacute o tempo de exposiccedilatildeo e a geometria da representaccedilatildeo (GUIMARAtildeES 2014p5)

Conforme assinala Baio (2015) alguns artistas desenvolvem seus trabalhos inventando

seus proacuteprios algoritmos sistemas e modelos maquiacutenicos e conceituais o que configura

116

exatamente uma abordagem flusseriana das miacutedias que orienta a estrateacutegia adotada pelo fotoacutegrafo

carioca Ele se preocupa em elaborar dispositivos especiacuteficos para cada trabalho de acordo com a

esteacutetica e o conceito perseguidos Ainda no que se refere ao gecircnero paisagem Guimaratildees

demonstra especial atenccedilatildeo agrave caracteriacutestica construiacuteda da representaccedilatildeo dos espaccedilos algo que

acabou por naturalizar-se de certa maneira nas praacuteticas da imagem Aqui natildeo haacute uma visatildeo

monocular que possamos atribuir ao fotoacutegrafo como entidade articuladora da tomada do espaccedilo

na verdade para o artista eacute inclusive necessaacuterio percebermos que essa forma de abordagem natildeo

passa de uma construccedilatildeo mental

() o que a Anne Cauquelin77 () tenta mostrar eacute que se num momento a perspectivaclaacutessica foi revolucionaacuteria () que ateacute aquele momento natildeo existia a ideia de paisagemExistia a natureza mas a ideia dessa representaccedilatildeo da paisagem que a gente tem hojemuito forte () (GUIMARAtildeES 2017)

A priori a cacircmara escura utilizada como modelo base para elaborar vaacuterios dos

equipamentos empregados por Guimaratildees tem como caracteriacutesticas baacutesicas a ausecircncia de um

sistema de lentes focagem controles de velocidade e abertura do obturador Eacute literalmente um

dispositivo cego e de certa forma descontrolado e imprevisiacutevel por excelecircncia (embora sujeito a

leis fiacutesicas que regem o comportamento da luz em seu interior e agrave geometria de sua estrutura)

Sua exploraccedilatildeo criacutetica atesta uma verdadeira investigaccedilatildeo de possibilidades outras ainda natildeo

reveladas do ponto de vista plaacutestico Para aleacutem do paradigma monocular essa teacutecnica claacutessica

ainda guarda ldquoimagens abandonadasrdquo que se formam nas vaacuterias direccedilotildees da cacircmara escura uma

totalidade que inunda a cacircmera com porccedilotildees formadas nas suas paredes laterais piso e teto

(GUIMARAtildeES 2014 p16) Imagens cuja descoberta eacute possibilitada pela inquietude do artista

que parece aleacutem de exercitar uma criacutetica ao fetichismo do desenvolvimento tecnoloacutegico

aprofundar resultados obtidos atraveacutes de procedimentos tidos como superados desgastados ou

interditos aos novos usos

Mas natildeo eacute apenas em seu iteresse pela uniatildeo entre fotografia e artesania que Guimaratildees

reflete sobre a programaccedilatildeo dos aparelhos tatildeo discutida por Flusser Para ele esse problema

atinge quaisquer dispositvos de imagem pois em sua visatildeo o dispositivo seja analoacutegico ou

digital ldquotem um preacute-programa que eacute o mais forte de todos Eu sempre brinco dizendo que tem um

77 Refere-se ao livro A invenccedilatildeo da paisagem de Anne Cauquelin publicado em 2007

117

pecado original ali que eacute te dar uma visatildeo que por mais que vocecirc tente tente estaacute amarrado

nelardquo (GUIMARAtildeES 2017)

Na seacuterie Os dois mundos de Alice (2015) (figuras 23 e 24) utilizam-se de

equipamentos digitais para construir cenaacuterios fantaacutesticos como forma de criticar a segregaccedilatildeo

entre pobres e ricos nas praias do Rio de Janeiro A partir de um incocircmodo causado pela situaccedilatildeo

aleacutem da observaccedilatildeo paralela de que a praia sobrevive hoje como principal forma de lazer ainda

gratuito da populaccedilatildeo de baixa renda o fotoacutegrafo realizou uma seacuterie de registros dos banhistas

Para mostrar este ambiente como uma espeacutecie de refuacutegio manipulou as cores de forma a produzir

tonalidades extremamente artificiais meio aberrantes ateacute criando um cenaacuterio onde mulheres

homens crianccedilas podem desfrutar do mar do sol como num pequeno paraiacuteso O estranhamento

visual eacute forte natildeo somente pela artificialidade das cores mas tambeacutem porque embora a atmosfera

criada estabeleccedila uma criacutetica por meio de uma celebraccedilatildeo da relaccedilatildeo entre os sujeitos e o espaccedilo

a composiccedilatildeo escolhida foge agrave regra da centralidade

Natildeo satildeo aquelas praias de Itaquatiara que vatildeo aquelas mulheres lindas aqueles carasldquosaradotildeesrdquo () Eu fui nas praias que eu vejo ainda como uacuteltimo espaccedilo de liberdadetalvez onde as pessoas () natildeo tomaram dos pobres Entatildeo eu fui laacute e fotografei eles nassituaccedilotildees normais deles alguns fazendo piqueniques outros com a famiacutelia Evitando aomaacuteximo frontalizar a maior parte dessas fotos eu pego as pessoas de costas ateacute pra natildeoidentificar () E aiacute fiz esse efeito de criar um mundo meio estranho tambeacutem como sefossem pessoas que estatildeo ali mas o mundo natildeo as aceita muito natildeo Estatildeo ali tambeacutemprestes a perder esse espaccedilo Aiacute eu dei esse efeito no restante criei uma camada que eusolarizei em volta (GUIMARAtildeES 2017)

Figura 23 - Os dois mundos de Alice (Luiz Alberto Guimaratildees 2015)

118

Figura 24 - Os dois mundos de Alice (Luiz Alberto Guimaratildees 2015)

Fonte Reproduccedilatildeo site artista

Um outro aspecto curioso desse trabalho que dialoga diretamente com a questatildeo do

ruiacutedo criado a partir da manipulaccedilatildeo da miacutedia eacute o ldquoefeito colagemrdquo aplicado aos corpos dos

banhistas Se satildeo corpos na iminecircncia da expulsatildeo do espaccedilo que (ainda) lhes pertence

119

formalmente isso eacute demonstrado atraveacutes da localizaccedilatildeo predominante desses corpos nas bordas

da imagem Como uma espeacutecie de ruiacutedo na estrutura social essas pessoas habitam um mundo

construiacutedo para elas atraveacutes tambeacutem de estrateacutegias de negaccedilatildeo de certa normatividade esteacutetica da

fotografia negaccedilatildeo de ocuparem uma posiccedilatildeo central negaccedilatildeo de padrotildees de beleza negaccedilatildeo de

uma suavidade das cores num estilo naturalista negaccedilatildeo do equiliacutebrio entre as proporccedilotildees e

escalas de seus corpos em relaccedilatildeo aos elementos da paisagem (nuvens faixa de areia ondas) A

composiccedilatildeo desse conjunto de imagens eacute bastante carregada As silhuetas demarcadas pelo

ldquoefeito colagemrdquo reforccedilam ainda mais a noccedilatildeo de pessoas que podem facilmente serem retiradas

daquele contexto Na relaccedilatildeo visual estabelecida entre as pessoas e o fundo (cenaacuterio da praia) haacute

um forte caraacuteter disjuntivo perturbando a composiccedilatildeo que remete agraves praacuteticas da fotomontagem

Mas ao mesmo tempo mostrar que eles estatildeo ldquocoladosrdquo ali eles natildeo estatildeo integrados Eacutecomo se vocecirc tivesse o mundo e botasse () eles estatildeo ali por um favor de algueacutem quedeixou eles ficarem aderentes ali mas daqui a pouco natildeo vatildeo estar mais Aiacute as pessoasestatildeo aiacute mas estatildeo demarcadas () Depois uma leitura que se pode dar a esse trabalholsquoah vocecirc quis ironizar essas pessoas esses corpos feiosrsquo Natildeo justamente o contraacuterio() Aqui em Niteroacutei a segregaccedilatildeo nas praias eacute fantaacutestica Vocecirc tem as praias dos ricos eas praias dos pobres Isso eacute niacutetido natildeo deixam misturar E as pessoas acabam aceitandoisso (GUIMARAtildeES 2017)

Em sua investigaccedilatildeo de visualidades singulares natildeo alinhadas ao modelo perspectivista

geomeacutetrico Luiz Alberto Guimaratildees realizou tambeacutem imagens que prescindem da proacutepria

cacircmera fotograacutefica como aparato modelo a exemplo da seacuterie de autorretratos que fez com um

scanner de mesa como parte de um processo terapecircutico entre os anos de 2006 e 200878 Suas

proposiccedilotildees estatildeo alinhadas com as noccedilotildees de que o universo das ldquoimagens teacutecnicasrdquo (FLUSSER

2011) eacute vasto extrapolando o campo da fotografia e de seus dispositivos convencionais Ressalte-

se que as ideias desenvolvidas por Flusser em seus escritos (2011 2008) sugerem que a imagem

fotograacutefica eacute um campo aberto agrave investigaccedilatildeo livre de amarras ou regramentos impostos seja pela

tecnologia ou por concepccedilotildees de sua ontologia Sobre as imagens teacutecnicas afirma

Elas satildeo dificilmente decifraacuteveis pela razatildeo curiosa de que aparentemente natildeonecessitam ser decifradas Aparentemente o significado das imagens teacutecnicas seimprime de forma automaacutetica sobre suas superfiacutecies como se fossem impressotildees digitaisonde o significado (o dedo) eacute a causa e a imagem (o impresso) eacute o efeito (FLUSSER2011 p24)

78 Disponiacutevel em httpsissuucomlamguimaraesdocsvarreduras Acesso em 17122019 O scanner tem sidoutilizado como maacutequina de imagem em projetos de outros fotoacutegrafos a exemplo do tambeacutem brasileiro GuilhermeMaranhatildeo que realizou o projeto Meu Corpo (2004) Disponiacutevel emhttpsissuucomitauculturaldocspossibilidades_da_fotografia169 Acesso em 29022020

120

Quando diz que ldquoaparentementerdquo o significado de uma imagem estaacute dado o filoacutesofo

lembra-nos que uma imagem natildeo se restringe a uma tentativa de coacutepia do que se passou frente agrave

cacircmera Assim caem por terra as teses centradas na indicialidade que fazem da fotografia um

produto da captura objetiva de um referente Aqui se nega toda uma fortuna criacutetica e expectativas

de senso comum assentadas no desejo de reconhecer o mundo concreto na imagem Um conjunto

de proposiccedilotildees que entende a fotografia pela linha ontoloacutegica da analogia A imagem natildeo eacute rastro

de um real mas o resultado do jogo entre ser humano e aparato constituindo algo que existe

enquanto fenocircmeno autocircnomo O efeito de um gesto no qual algo em frente agrave cacircmera eacute um

pretexto para criar que visa menos explicar o mundo do que lhe dar sentido (BAIO 2015 p93-

100) Fatorelli (2017 p56) diz que a fotografia apresenta uma dupla articulaccedilatildeo oscila entre a

aproximaccedilatildeo e o afastamento do referente e instituindo-se a partir de procedimentos teacutecnicos

torna-se independente de condiccedilotildees precedentes e anteriores agrave sua criaccedilatildeo instaurando assim a

sua proacutepria realidade

Vejamos o que Flusser diz sobre como desvendar as imagens teacutecnicas

Natildeo eacute analisando a casa mostrada na fotografia mas analisando a cacircmera fotograacutefica e aintenccedilatildeo do fotoacutegrafo que a decifraremos (hellip) Natildeo adianta perguntar se a casafotografada estaacute ldquorealmenterdquo laacute fora ou se eacute falsa Natildeo adianta perguntar se a batalhamostrada na TV se passou ldquorealmenterdquo ou se foi encenada () As cenas mostradasdevem ser analisadas em funccedilatildeo do programa a partir do qual foram projetadas Ora istoexige criteacuterios novos natildeo mais do tipo ldquoverdadeiro ou falsordquo ou do tipo ldquobelo ou feiordquomas do tipo ldquoinformativo ou redundanterdquo (FLUSSER 2008 p68-69)

Quando evoca a necessidade de entender a ldquocacircmerardquo o filoacutesofo natildeo se refere agrave

compreensatildeo dos paracircmetros estritamente teacutecnicos do equipamento Na verdade Flusser nos

convoca a observar os paradigmas cientiacuteficos econocircmicos poliacuteticos ideoloacutegicos e esteacuteticos que

permitem o surgimento de uma tecnologia como a fotografia e sua condiccedilatildeo de dispostivo

intermediaacuterio entre sujeito e mundo concreto O conjunto dessas questotildees forma o ldquoprogramardquo do

ldquoaparelhordquo fotograacutefico outros dois conceitos fundamentais no pensamento flusseriano Entender

o ldquoprogramardquo nada mais eacute que compreender os paradigmas envolvidos na estrutura da tecnologia

A questatildeo eacute perceber o que estaacute nesse niacutevel abstrato para entender o que significam as imagens e

de que maneira esses paradigmas satildeo rediscutidos na produccedilatildeo dos artistas Tais conclusotildees a

respeito da imagem por meio da obra de Flusser marcam o perfil das obras incluiacutedas em nosso

121

corpus Tambeacutem devemos considerar as questotildees levantadas por Flusser a respeito do aparelho

fotograacutefico aplicaacuteveis aos demais aparatos imageacuteticos com os quais os artistas trabalham

sobretudo se consideramos o atual cenaacuterio de contaminaccedilatildeo entre as miacutedias

Podemos dizer que osas artistas cujas obras satildeo aqui apresentadas posicionam-se contra

o modelo da imagem que investe prioritariamente na condiccedilatildeo indicial representativa realista

Consequentemente estatildeo todos engajados na produccedilatildeo de imagens elaboradas (negando os

automatismos) desenvolvendo processos especiacuteficos que discutem paradigmas importantes do

meio fotograacutefico Nos trabalhos do artista carioca haacute a proposiccedilatildeo de um debate sobre a

perspectiva monocular da cacircmera e a busca de alternativas a esse modelo de construccedilatildeo do

espaccedilo fiacutesico atraveacutes da criaccedilatildeo de maacutequinas artesanais ou seja atraveacutes de um investimento na

proacutepria estrutura do dispositivo Haacute tambeacutem aqueles artistas que de posse das miacutedias digitais

articulam essa mesma criacutetica inflitrando-se nos sistemas criadores de imagem a partir de falhas

ou do uso natildeo padronizado de softwares formatos de arquivos e dispositivos produzindo assim

novas esteacuteticas

Ainda eacute importante lembrar que Flusser (2011) considera a fotografia a imagem teacutecnica

inaugural pois ao contraacuterio das imagens tradicionais dependentes da matildeo humana para

existirem as fotografias satildeo produtos de ldquoaparelhosrdquo que por sua vez satildeo maacutequinas de tipo

especial desenvolvidas mediante conhecimentos cientiacuteficos Os aparelhos tecircm depositados em

sua maneira de funcionar em sua estrutura saberes complexos de ordem econocircmica ideoloacutegica

filosoacutefica poliacutetica Uma das grandes contribuiccedilotildees de Flusser eacute demonstrar como esses saberes

determinam os caminhos da praacutetica fotograacutefica No texto ldquoNascimento da imagem novardquo (op cit)

o autor afirma que a fotografia resulta de conhecimentos oacuteticos e quiacutemicos e explica que para

decifrar o ldquomundo codificadordquo ao nosso redor eacute preciso buscar os conceitos com base nos quais

ocorre essa codificaccedilatildeo

44 ldquoPOR SERES TAtildeO INVENTIVO E PARECERES CONTIacuteNUO TEMPO EacuteS UM DOSDEUSES MAIS LINDOSrdquo

Por meio da ligaccedilatildeo que Flusser estabelece entre conhecimento cientiacutefico e ldquoaparelhordquo eacute

possiacutevel compreender toda uma cadeia de entendimentos presentes na historiografia da

122

fotografia e identificar determinado modelo epistemoloacutegico estabelecido no que Antonio

Fatorelli (2013) denomina ldquoforma fotografiardquo para entendermos como osas artistas presentes em

nossa pesquisa tensionam esse modelo e suas modalidades esteacuteticas Dessa forma satildeo

instrumentais ainda as noccedilotildees de ldquojogadorrdquo e ldquofuncionaacuteriordquo no tocante agrave atitude de cada artista

frente ao aparelho Pois a postura luacutedica que caracteriza o jogador em termos flusserianos

expressa a recusa aos limites e regras das tecnologias e por conseguinte das esteacuteticas

produzidas por tais regras quando utilizadas de maneira acriacutetica Eacute se infiltrando nas brechas do

aparelho que o artista consegue driblar seu ldquoprogramardquo Nesse esforccedilo de subverter coacutedigos e

normas de utilizaccedilatildeo eacute que identificamos a emergecircncia do ruiacutedo No caso dos trabalhos de Luiz

Alberto Guimaratildees o ruiacutedo opera em niacutevel conceitual e formal atraveacutes das muacuteltiplas exposiccedilotildees

do aspecto francamente construiacutedo da imagem com tendecircncias agrave ficcionalizaccedilatildeo e como veremos

a seguir da exploraccedilatildeo de um tempo dilatado (em detrimento do instante)

Figura 25 - Sequecircncia de fotografias da seacuterie Retratos do Indiziacutevel (Luiz Alberto Guimaratildees 2008)

123

124

125

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Na seacuterie Retratos do Indiziacutevel (2008) ndash sequecircncia de fotos da figura 25 ndash foi utilizada

uma cacircmera construiacuteda pelo fotoacutegrafo que permitia fazer longas exposiccedilotildees (figura 26) Durante

um periacuteodo de depressatildeo Luiz Alberto fotografava-se diariamente em diferentes posiccedilotildees

gesticulando interagindo com objetos ou elementos do ambiente Enquanto tentava compreender

o que se passava em seu universo interior a cacircmera foi sua companheira no registro de seus

estados psicoloacutegicos Ao longo das centenas de autorretratos (depois reunidos num fotolivro79)

sua figura aparece e desaparece funde-se agrave textura das paredes ao mobiliaacuterio passando de um

estado de concretude ao fantasmagoacuterico Por vezes numa mesma fotografia habitam as diferentes

fases de seus movimentos inscritos no decurso do tempo de captura distendido Haacute momentos em

que Luiz perde a cabeccedila usa maacutescaras forja identidades outras em imagens que sugerem

79 Disponiacutevel em httpsissuucomlamguimaraesdocsretratos_do_indiz__vel Acesso em 13012020

126

instabilidade mostrando ldquoaquilo que se passava comigo que eu natildeo conseguia compreender e

muito menos expressar com palavrasrdquo (GUIMARAtildeES online)

Fiquei quatro anos praticamente trancado dentro de casa sem conseguir sair () Depoiseu vou me dar conta dessa coisa que eu tenho de me expor agraves maacutequinas que era umtratamento uma psicanaacutelise de mim mesmo neacute () e aiacute fiz essa maacutequina que eacute umamaacutequina tradicional do ponto de vista da representaccedilatildeo espacial tem o furo e o papelMas como o tempo dela de exposiccedilatildeo eacute grande ela me permitiu fazer uma coisa que ateacuteo Fatorelli tambeacutem fala natildeo eacute bem movimento mas eacute vocecirc colocar natildeo eacute o instantacircneomais () (lsquoVocecirc tem o instante dilatadorsquo) Dilatadiacutessimo e eu fazia muita performance() E o fato de eu ficar ali me expondo 6 8 minutos eacute muito tempo e acaba sendo umtratamento (GUIMARAtildeES 2017)

Conforme lembrou o fotoacutegrafo o pesquisador Antonio Fatorelli (2017a) indica que as

imagens contemporacircneas se notabilizam pela proposiccedilatildeo de ldquotempos sobrepostos bifurcados

multivetoriaisrdquo natildeo restritos ao instantacircneo Aqui essa condiccedilatildeo se daacute por meio do longo tempo

da feitura da imagem fazendo o instante estender-se Eacute como se atraveacutes da dissoluccedilatildeo do

apagamento dos detalhes das formas do corpo do fotoacutegrafo pudeacutessemos ser tocados pela

extensatildeo desse tempo Natildeo raro encontramos obras em que o tracircnsito entre a total fixidez e o

indiacutecio do movimento aparecem conjugados como nesses autorretratos Se pensarmos que nos

equipamentos fotograacuteficos convencionais os tempos da velocidade do obturador satildeo marcados

em fraccedilotildees de segundo exposiccedilotildees como as feitas por Guimaratildees cuja duraccedilatildeo gira em torno dos

8 minutos satildeo da ordem de uma verdadeira eternidade produzindo formas tambeacutem inusuais

Segundo Parikka (et al 2016) as tecnologias as mais variadas propotildeem sempre temporalidades

alternativas o que coloca um trabalho baseado na longa exposiccedilatildeo como exemplo de uma

temporalidade que eacute mais da ordem do possiacutevel Essas questotildees aparecem conceitual e

plasticamente em Retratos do indiziacutevel para aleacutem da normatividade do tempo condensado

isolado (fragmento temporal) vemos uma distensatildeo do tempo de captura A duraccedilatildeo em

detrimento do instante Se as imagens mentais do devaneio do sonho da memoacuteria satildeo estranhos

a um ordenamento linear natildeo obedecendo a uma estrutura loacutegica nesses autorretratos parece que

a imagem que registra o encontro o embaralhamento de vaacuterios estados psiacutequicos tambeacutem se

apresenta nesses termos estando impregnada de certa confusatildeo atraveacutes da distorccedilatildeo dos

contornos de um acuacutemulo das accedilotildees que se desenvolvem ao longo dessa duraccedilatildeo A

representaccedilatildeo desse tempo psiacutequico eacute tambeacutem impregnada de incertezas formais de corpos

fugidios de fisionomias que se desfazem quase se desintegrando Aqui os borrotildees e os fantasmas

127

satildeo indiacutecios dos movimentos executados pelo fotoacutegrafo mas esse movimento eacute instaacutevel

oscilando entre a presenccedila e a desapariccedilatildeo (FATORELLI 2013 p40)

Se lembrarmos que essas imagens satildeo produzidas em papel fotograacutefico (exigindo um

tempo realmente mais lento de exposiccedilatildeo se comparado agrave peliacutecula) fica patente que os momentos

vatildeo mesmo se depositando na superfiacutecie fotosenssiacutevel Ana Angeacutelica Costa (2015 p7) indica

que os trabalhos desenvolvidos com cacircmeras artesanais satildeo determinados pelas caracteriacutesticas do

ambiente retratado e pela superfiacutecie onde a luz se projeta o que amplia as possibilidades de

imagens (na medida em que cada dispositivo eacute uacutenico) Ainda segundo a autora as teacutecnicas em

que o modelo da cacircmara escura eacute desnudado e podemos compreender seu funcionamento baacutesico

ajudam a desmistificar o proacuteprio fazer fotograacutefico enfatizando o que acontece durante a

exposiccedilatildeo da superfiacutecie fotossensiacutevel agrave luz Essas teacutecnicas deixam transparecer o percurso de

construccedilatildeo da imagem chamando atenccedilatildeo para o processo que ocorre no interior do dispositivo

Bem se o que vemos eacute o registro mesmo desse processo considerando as fotografias obtidas

pelas cacircmeras artesanais aqui citadas (com suas muacuteltiplas imagens projetadas diversos traccedilos de

luz texturas aparentes dos papeis utilizados) percebemos que somos direcionados para as

materialidades formadoras da imagem a luz o papel o tempo a natureza fugidia da imagem

Eacute interessante tambeacutem notar que diferentes equipamentos satildeo criados a partir do

princiacutepio da cacircmara escura gerando diferentes resultados Isso porque o modelo da cacircmara escura

eacute evocado natildeo em sua forma original e claacutessica (engendrando a produccedilatildeo da imagem autocircnoma

sem a interferecircncia humana supostamente gozando de maior precisatildeo) mas sofre variados tipos

de intervenccedilotildees adaptaccedilotildees e acoplagens Estas por sua vez correspondem agrave concepccedilatildeo

experimental da fotografia (LENOT 2017) alinhada aos preceitos da filosofia flusseriana no que

se refere ao jogar contra o aparelho Se conforme diz Ana Angeacutelica Costa (Ibidem) as

especificidades de cada equipamento contribuem para a variabilidade das imagens essa premissa

eacute adotada na metodologia de trabalho do fotoacutegrafo carioca que explica

Vocecirc olha uma imagem pinhole vocecirc reconhece isso foi feito com uma pinhole E aiacute agravesvezes quando eu comeccedilo a mostrar meu trabalho lsquoah mas o seu eacute deiferentersquo Pois eacuteporque natildeo eacute o fato de ser um buraquinho a questatildeo eacute a esteacutetica e como eu vou usar equais as possibilidades que eu vou descobrindo em cada maacutequina E eu te mostro vaacuteriostrabalhos feitos com cada maacutequina e vocecirc vecirc que satildeo completamente distintos Cada umte daacute uma possibilidade uma expressatildeo diferente e diferente da maacutequina convencionalEntatildeo eacute isso que eu busco neacute seja colocando o negativopapel natildeo na posiccedilatildeo frontalmuacuteltiplas exposiccedilotildees () (GUIMARAtildeES 2017)

128

Figura 26 - Cacircmera utilizada na seacuterie Retratos do Indiziacutevel

Fonte Cortesia do artista

O escultor e fotoacutegrafo Jason Shulman levou a questatildeo da manipulaccedilatildeo do tempo

registrada na imagem a um niacutevel ainda mais radical No trabalho Photographs of films (2017)

ele realizou imagens em longuiacutessima exposiccedilatildeo Na verdade sua cacircmera capturou todos os

frames de vaacuterios filmes numa soacute fotografia exposta ao longo do tempo decorrido de cada

produccedilatildeo Mais uma vez estamos diante da captura de uma duraccedilatildeo As fotografias de filmes

resultam num conjunto de borrotildees Cada imagem condensa a narrativa ao mesmo tempo que a

dissolve corrompendo a regularidade de uma montagem linear num confuso emaranhado de

formas praticamente irreconheciacuteveis O que se vecirc neste trabalho eacute uma ldquopresenccedila virtual do

movimento no domiacutenio da imagem fixardquo (FATORELLI 2013 p23) uma sobreposiccedilatildeo de

instacircncias da imagem moacutevel (riscos traccedilos sombras fantasmagorias de objetos e corpos

pertencentes agrave narrativa fiacutelmica) no modo de registro fotograacutefico notadamente estaacutetico A

experiecircncia cria imagens que se localizam a meio caminho do cinema e da fotografia e nessa

configuraccedilatildeo eacute que se encontra seu componente de ruiacutedo

A quebra do paradigma da ilusatildeo do tempo linear presente nessas imagens junta-se a

outras experiecircncias da historiografia da imagem que tambeacutem extrapolaram a noccedilatildeo do

129

instantacircneo como a cronofotografia de Marey e Muybridge a fotomontagem as sequecircncias o

fotodinamismo dos irmatildeos Bragaglia ou ainda os longuiacutessimos tempos de captura presentes nos

trabalhos de Michael Wesely Cada uma a seu modo elas contribuem para repensarmos a

inscriccedilatildeo do tempo na imagem rompendo com as expectativas perceptivas sobre a fotografia e

sobre o cinema

Atraveacutes de um retardar da narrativa que de modo natildeo convencional condensa-a

totalmente numa uacutenica imagem Shulman faz-nos lembrar de pinturas onde todas as accedilotildees estatildeo

representadas no mesmo plano de significado (a exemplo de O combate entre o Carnaval e

Quaresma ou Caminho para o calvaacuterio produzidos respectivamente em 1559 e 1564 por

Pieter Brueguel) o que tambeacutem quebra uma hierarquia de tempos uma organizaccedilatildeo espacial

concernente ao enredo de cada filme

() em cada uma dessas imagens cada filme vira uma matriz abstrata de cores variaacuteveise formas vagas Ficamos com uma imagem mais atmosfeacuterica da sensaccedilatildeo do filme emdetrimento de seu conteuacutedo agrave medida que as cores se espalham e desfocam entrefotogramas e lentamente recompotildeem o filme em algo totalmente pictoacuterico80(JAECKLE online 2018)

Haacute mais um aspecto que avizinha essa obra das imagens pictoacutericas o fato de o artista as

ter apresentado como peccedilas uacutenicas (expostas como quadros) o que implica tambeacutem uma forma

de relaccedilatildeo perceptiva mais demorada realizada num tempo mais longo que o comumente

dedicado aos filmes

Conforme o autor um detalhe interessante do processo adotado eacute responsaacutevel pela

esteacutetica das imagens elas satildeo fotografias da reproduccedilatildeo dos filmes em monitores digitais (e natildeo

de projetados em salas de cinema81) Segundo o artista ldquoos filmes foram fotografados de

monitores praticamente livres de pixelsrdquo (SHULMAN online 2018) monitores 5K o que lhe

permitiu capturar uma diversidade de tons que aparecem ao longo de cada filme Caso tivesse

fotografado a projeccedilatildeo teria captado uma grande aacuterea iluminada de forma mais homogecircnea Quer

80 Traduccedilatildeo livre de ldquoin each of these images each motion picture becomes an abstract hue of shifting colours andvague shapes Wersquore left with a more atmospheric picture of the filmrsquos feeling rather than its content as colours bleedand blur between frames and slowly recompose the film as something altogether more painterly in tone andcharacterrdquo81 Como ocorre por exemplo nos trabalhos de Hiroshi Sugimoto que fotografou com cacircmeras analoacutegicas a projeccedilatildeoem salas de cinema Para detalhes ver Fatorelli 2013 p103-127

130

dizer para o autor haacute especificidades tecnoloacutegicas que satildeo diretamente responsaacuteveis pela

maneira como cada imagem se constroacutei sendo uacutenica em sua multiplicidade de frames

Figura 27 - O maacutegico de Oz 1939 Victor Flaming (Jason Shulman 2018)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Figura 28 - 2001 Uma odisseacuteia no espaccedilo 1968 Stanley Kubrick (Jason Shulman 2018)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

131

Figura 29 - Stalker 1979 Andrei Tarkovski (Jason Shulman 2018)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Eacute curioso notar ainda que em filmes onde a narrativa eacute mais lenta e os planos tecircm maior

duraccedilatildeo algumas formas satildeo ainda perceptiacuteveis (como 2001 Uma odisseacuteia no espaccedilo e Stalker

figuras 28 e 29 respectivamente) e naqueles em que o estilo da montagem eacute mais aacutegil com mais

planos e cortes predomina o aspecto difuso na imagem (O maacutegico de Oz figura 27) Ou seja as

produccedilotildees em que o estilo da narrativa aproxima-se da fotografia (planos fixos e longos) as

formas apresentadas satildeo precariamente conservadas Nesses casos surgem entatildeo verdadeiras

fantasmagorias pois o que a cacircmera registra eacute o escorrer do tempo narrativo nas mutaccedilotildees que

provoca no conjunto do filme Os frames de cada produccedilatildeo apresentados assim de modo

embaralhado criam uma imagem heterogecircnea uma desordem uma confusatildeo de temporalidades

que debilita os anseios da representaccedilatildeo figurativa

Uma das fotografias chamou a atenccedilatildeo de Shulman exatamente porque esse efeito

figurativo chegou a insinuar-se (sem contudo firmar-se) a imagem de O evangelho segundo Satildeo

Mateus filme de Pier Paolo Pasolini de 1972 (figura 30) A fisionomia de Cristo torna-se

perceptiacutevel mas continua uma imagem fugaz pois que ela natildeo constitui completamente o todo

narrativo do filme Conforme o artista isso ocorre pelo estilo cinematograacutefico de Pasolini que

frequentemente situava atores e atrizes no centro do quadro ldquoum rosto grande ocupando a tela o

132

olhar direcionado ao espectadorrdquo (SHULMAN Ibidem) Pela regularidade dessa escolha de

composiccedilatildeo a imagem do personagem vai como que se acumulando em diversos planos a ponto

de delinear-se fragilmente na fotografia

Figura 30 - O evangelho segundo Satildeo Mateus 1972 Pier Paolo Pasolini (Jason Shulman 2018)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Para o artista a esteacutetica conserva as formas exibidas em cada filme embora desfazendo

seus contornos numa ldquotraduccedilatildeo pictoacuterica uacutenica de cada frame individual que foi vistordquo

(SHULMAN Ibidem) Aleacutem disso Shulman entende que cada imagem final eacute tambeacutem

construiacuteda atraveacutes do olhar do espectador Ela pertence a um domiacutenio que ultrapassa o mero

registro Ele preferiu trabalhar com filmes que jaacute possuem um lugar no imaginaacuterio do puacuteblico

pertencentes a cinematografias de vaacuterios paiacuteses exatamente para ver como seria a recepccedilatildeo a

esse processo que torna o filme inteiro uma grande mancha cromaacutetica Ele explica que eacute curioso

como as pessoas insistem em reconhecer cenas sem no entanto estarem de fato diante destas

cenas ndash pois nesse grau de desintegraccedilatildeo da imagem natildeo cabe mais falarmos de uma divisatildeo

convencional da imagem cinematograacutefica (frames planos cenas sequecircncias)

Nas imagens mais difusas notei que as pessoas tendem a ver as coisas que querem vernelas especialmente se for um filme familiar () Encontram formas e cenas quecombinam com a sua memoacuteria do filme Veja a fotografia de O maacutegico de Oz Agraves vezesalgueacutem me diraacute que pode ver a forma do Homem de Lata Mas a pessoa natildeo vecirc o

133

Homem de Lata Eles conseguiram esforccedilar-se para ver o Homem de Lata eles queremver o Homem de Lata ()82 (SHULMAN Idem)

A partir das observaccedilotildees postas o trabalho de Shulman faz um interessante tracircnsito entre

foto cinema e pintura Agrave medida que a sucessatildeo de planos do filme eacute organizada num soacute quadro

exibida individualmente as imagens aproximam-se da pintura pois os tempos e espaccedilos de cada

narrativa satildeo condensados numa peccedila uacutenica O processo contudo eacute registrado atraveacutes da miacutedia

fotograacutefica que registra cada plano de maneira imprecisa conservando os vestiacutegios da

singularidade de cada um desses fragmentos sem no entanto perder a noccedilatildeo de conjunto da

totalidade do filme O resultado deste trabalho eacute uma modalidade visual elaborada nos liames

entre as possibilidades da tecnologia e nossas proacuteprias experiecircncias seja com a cinematografia

seja com os dispositivos que lhes datildeo vida

Tambeacutem eacute notaacutevel que um processo desse tipo enseja que o resultado final eacute

desconhecido e o artista incorpora esse imprevisto como parte da metodologia ldquoEstou em busca

de algo que natildeo sei explicar Eacute apenas subjetivo e gosto deste sentimento de expectativa

imprevisiacutevelrdquo (SHULMAN Ibidem)

O caraacuteter de abertura a descontinuidade e a surpresa satildeo elementos caracterizadores das

manifestaccedilotildees expressivas do ruiacutedo e haacute outros pormenores deste trabalho que se conectam com

a questatildeo do ruiacutedo como os resultados gerados das proacuteprias condiccedilotildees esteacuteticas jaacute contidas nos

filmes entrando em articulaccedilatildeo com as propriedades da fotografia as expressotildees visuais geradas

pelo emprego de tecnologias de maneira cruzada e inovadora e os tensionamentos dos

paradigmas formais da fotografia do cinema e da pintura que se vecircem revisitados e

reprogramados Antonio Fatorelli reconhece que no cenaacuterio da arte contemporacircnea esses trecircs

campos da imagem satildeo acionados de forma simultacircnea e natildeo mais evocados em razatildeo de suas

especificidades

Encontramo-nos cada vez mais na condiccedilatildeo de criadores multimiacutedia envolvidos naproduccedilatildeo de imagens de diversos formatos Se ainda podemos falar de fotografia decinema e de pintura (e essa eacute a nossa aposta) trata-se de uma fotografia de um cinema e

82 Traduccedilatildeo livre de ldquoIn the fuzzier ones Irsquove noticed that people tend to see the things in them that they want to seeespecially if itrsquos a familiar film Itrsquos apophenia They find shapes and scenes that tally with their recollection of thefilm Take the photograph of The Wizard of Oz Sometimes someone will tell me that they can make out the shape ofthe Tin Man But they donrsquot see the Tin Man Theyve managed to make themselves see the Tin Man they want to seethe Tin Manrdquo

134

de uma pintura marcados pelas intensas experimentaccedilotildees observadas nas uacuteltimas trecircsdeacutecadas ndash expandidos reconfigurados significativamente modificados atravessados porvetores temporais singulares investidos de potecircncias anteriormente inimaginaacuteveisAlteraccedilotildees de tal modo consideraacuteveis no acircmbito das formas expressivas e daslinguagens a ponto de questionar a manutenccedilatildeo das formulaccedilotildees teoacutericas historicamenteconsagradas marcadas pela especificidade das miacutedias e pela especializaccedilatildeo das praacuteticasartiacutesticas (FATORELLI 2017a p124-125)

A pluralidade de resultados e consequentemente de esteacuteticas vistas ateacute aqui conecta-se

com uma questatildeo importante a respeito do ruiacutedo o fato de ele natildeo ter uma forma definida Como

surge atraveacutes das mais variadas experiecircncias promovidas seja com equipamentos ou insumos

cada artista desenvolve teacutecnicas proacuteprias e utiliza recursos especiacuteficos que resultam tambeacutem em

obras bastante singulares Sua inscriccedilatildeo nas obras pode indicar a elasticidade do tempo a

intrusatildeo de vaacuterias fontes de luz expor a trama compositiva da imagem enfatizar a textura dos

materiais empregados entre outros efeitos de modo que natildeo encontramos um tipo de ruiacutedo mas

diversas formas de sua manifestaccedilatildeo

O ruiacutedo tambeacutem pode surgir em meio agraves falhas ao desvio de funcionamento ou ao uso

natildeo preacute-formatado de sistemas geradores de imagens dos mais diversos tipos Muitas vezes o

ruiacutedo funciona como uma perturbaccedilatildeo que chama atenccedilatildeo para o processo de elaboraccedilatildeo da

imagem ou como diz Ballard (2011 p66) ldquoatraveacutes das vaacuterias modalidades utilizadas a

aparecircncia do ruiacutedo natildeo se daacute atraveacutes de uma formaccedilatildeo mas por meio do erro do acidente e da

surpresardquo Quer dizer notamos mais a sua presenccedila e menos sua identificaccedilatildeo como um conjunto

de formas delimitadas Tal questatildeo eacute relevante no sentido de que se conecta com a diversidade do

corpus selecionado nesta tese Se o ruiacutedo natildeo encontra uma esteacutetica uacutenica os procedimentos

adotados nas imagens onde podemos observaacute-lo tambeacutem apresentam variabilidade

45 ldquoEU SOU APENAS UM INCOcircMODOrdquo

Assim como a abordagem utilizada por Luiz Alberto Guimaratildees outro artista brasileiro

especialmente dedicado ao trabalho com dispositivos artesanais que ele mesmo chama de

ldquoprecaacuteriosrdquo (MAUEacuteS 2012) eacute o paraense Dirceu Maueacutes Apoacutes uma trajetoacuteria como

fotojornalista iniciada nos anos 1990 desde 2004 dedica-se aos trabalhos artiacutesticos que

atravessam os territoacuterios da fotografia do cinema do viacutedeo da instalaccedilatildeo tambeacutem abordando

entre outros temas a problemaacutetica da paisagem Segundo Maueacutes seu interesse pelos

135

equipamentos alternativos desenvolvidos com materiais simples como caixas de papelatildeo vem de

uma inquietaccedilatildeo em discutir tanto a esteacutetica quanto a ideia senso comum de que a tecnologia e a

qualidade da imagem dependem de equipamentos sofisticados

A questatildeo do ruiacutedo dentro da fotografia vem junto com esse uso do analoacutegico () deuma tecnologia mais simples E como sempre me incomodou o discurso comercial ()da imagem perfeita de colocar o dispositivo o equipamento na frente do fotoacutegrafo ()como se isso fosse garantir uma certa narrativa do trabalho Vocecirc garantir uma qualidadeesteacutetica () O meu interesse em usar pinhole a construccedilatildeo de cacircmera (e aiacute vem o ruiacutedojunto) acaba fazendo parte de um conjunto que se contrapotildee a esse discruso hegemocircnico() que se construiu sobre a fotografia um discruso mais teleoloacutegico () Comecei a meinteressar por certo confronto com esse discurso E no final o ruiacutedo acaba vindo juntocom o processo construindo a cacircmera Eu tinha lido Flusser e tinha adorado E pra mimera meio que tu entrar na ldquocaixa pretardquo e poder fazer o que tu quisesse apesar de que elate daacute umas limitaccedilotildees (MAUEacuteS 2017)83

Para Maueacutes a desconstruccedilatildeo do dispositivo convencional atraveacutes do emprego de

processos antigos da imagem como a fotografia estenopeica e a cacircmara obscura trazem uma

possibilidade de criacutetica agraves normatizaccedilotildees contidas no proacuteprio dispositivo (conforme atestou

Flusser sobre o ldquoprogramardquo) e reafirmadas por criacuteticos instituiccedilotildees pela induacutestria por alguns

teoacutericos e outros artistas Tambeacutem eacute uma forma de questionar as percepccedilotildees que ligam as

inovaccedilotildees no campo da imagem ao aprimoramento das tecnologias Para ele fabricar seus

proacuteprios equipamentos eacute uma das premissas libertadoras do ruiacutedo em suas obras

Construir sua proacutepria cacircmera significa estar livre das amarras de um modelo que lhe eacuteimposto pela induacutestria Significa poder experimentar uma enorme gama de novaspossibilidades que o processo permite a partir de um projeto muito pessoal deconstruccedilatildeo da cacircmera e das caracteriacutesticas que satildeo escolhidas para essa cacircmera(MAUEacuteS 2012 p10)

Agrave medida que foi experimentando com suas cacircmeras e outros dispositivos Maueacutes

acabou por discutir natildeo somente paradigmas centrais para a fotografia (como os limites do

instantacircneo da verossimilhanccedila e do automatismo das maacutequinas) mas aproximou-se de questotildees

mais fortemente relacionadas aos domiacutenios do cinema e do viacutedeo como a presenccedila do

movimento a montagem e o lugar do espectador Em um trabalho desenvolvido com uma

cacircmera de fenda (onde a abertura por onde entra a luz eacute vertical) uma estrutura bastante simples

foi criada para capturar o trajeto percorrido pelo fotoacutegrafo durante um passeio de bicicleta Uma

83 Entrevista concedida a autora em novembro de 2017

136

toy camera (meacutedio formato carregada com filme 120mm) foi presa ao guidatildeo de uma bicicleta

(figura 31)

Figura 31 - Adaptaccedilatildeo da toy camera e seu ajuste na bicicleta

Fonte Reproduccedilatildeo de Maueacutes (2015)

Figura 32 - Panoracircmica da seacuterie Extremo Horizonte realizada com cacircmera de fenda acoplada agrave bicicleta

(Dirceu Maueacutes 2014)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Figura 33 - Panoracircmica da seacuterie Extremo Horizonte realizada com cacircmera de fenda acoplada agrave bicicleta

(Dirceu Maueacutes 2012)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

137

A imagem tomada continuamente foi realizada com a bicicleta em movimento Em vez

de fotogramas individuais com vaacuterias imagens obteve-se uma uacutenica imagem que apesar de

adquirir certa continuidade espacial apresenta em toda a sua extensatildeo porccedilotildees verticais

resultantes do pequeno trecho do negativo esquadrinhado pela luz Isso permite ldquoum registro que

ganha em acuidade mas estaacute mais suscetiacutevel a efeitos de movimento na composiccedilatildeo da imagemrdquo

(MAUEacuteS 2012 p27) Na verdade nos primeiros testes com o formato panorama em fotografia

pinhole a intenccedilatildeo era manter a conexatildeo espacial entre os fotogramas mas essa ideia foi

abandonada em seguida

O artista desenvolveu tambeacutem um mecanismo para fazer avanccedilar o negativo durante o

registro Haacute nessa situaccedilatildeo uma combinaccedilatildeo de movimento bastante estranha aos processos

fotograacuteficos comuns peliacutecula e cacircmera movem-se simultaneamente durante todo o processo de

inscriccedilatildeo da imagem84 Desse modo temos a vista de uma paisagem cheia de arrastos borrotildees

corpos e objetos distorcidos (figuras 32 e 33) De acordo com Maueacutes (2012) as cacircmeras de fenda

eram utilizadas para fotografar corridas de cavalos Posicionando o equipamento ao lado da linha

de chegada movia-se o filme enquanto a maacutequina ficava parada No seu projeto esse princiacutepio

de funcionamento da cacircmera de fenda eacute invertido e natildeo vemos um movimento congelado mas

com paradas e continuidades numa mesma tomada Aliaacutes a partir de experiecircncias anteriores o

artista percebeu que as interrupccedilotildees no arrasto do negativo produziam efeitos interessantes

() em panoracircmicas muito longas meu braccedilo natildeo conseguia fazer um giro contiacutenuo Eranecessaacuterio soltar a chave no ponto que natildeo era possiacutevel continuar torcendo o braccedilo eretomar o movimento novamente Cada parada no movimento de giro do filmeprovocava uma superexposiccedilatildeo de uma pequena aacuterea dentro da imagem panoracircmicaressaltando assim ao acaso algumas partes da imagem uma pessoa que passava objetosna rua Haacute uma certa intermitecircncia de campos que atraem o olhar para essas pequenasaacutereas Temos como que um jogo de frames superpostos mas natildeo satildeo exatamente framespois a imagem tem uma certa continuidade A cidade eacute desvelada num contiacutenuo efragmentado movimento longitudinal (MAUEacuteS 2012 p27-28)

Os movimentos efetuados por esse construto de homem-cacircmera-bicicleta se transferem

para a imagem final criando um resultado que ocupa um lugar intermediaacuterio entre o imoacutevel e a

84 Processo semelhante eacute adotado pelo italiano Paolo Gioli que tambeacutem trabalha bastante com equipamentosartesanais Um exemplo satildeo as fotografias realizadas atraveacutes da teacutecnica de photo finish onde arrastos na imagemindicam o movimento da cacircmera durante a captura como ocorre em Figure Dissoluti (1974-78) (disponiacutevel emhttpwwwpaologioliitfoto6aphppage=fotoampsez=1ampid=6 Acesso em 13012020) e na seacuterie Crosswise Natures(2016) Cf Wanderlei L Na margem da histoacuteria fotografia analoacutegica artistas e as imagens erradas RevistaSignificaccedilatildeo v 46 n 52 p293-308 jul-dez 2019

138

mobilidade algo que habita o territoacuterio das ldquoentre-imagensrdquo (BELLOUR 1997) numa reflexatildeo

que nos ajuda a reconsiderar as fronteiras entre as artes (foto e cinema) e compreender o papel do

ruiacutedo como elemento pelo qual vaacuterios artistas vecircm expandindo o campo das visualidades Aliaacutes

Maueacutes (2015 p14) afirma que quanto mais explora os equipamentos a fim de alcanccedilar essas

imperfeiccedilotildees de grande valor plaacutestico mais extrapola o acircmbito do fotograacutefico indo na direccedilatildeo de

outras artes E de fato eacute o que se verifica nas diversas obras que realizou com auxiacutelio das

pinhole associando o movimento ao registro da paisagem No lugar do emprego desses

dispositivos voltado para a precisatildeo do olhar a irregularidade das condiccedilotildees de captura eacute que se

faz presente com ecircnfase na valorizaccedilatildeo das inscriccedilotildees do movimento Cada fotografia promove

uma junccedilatildeo de fragmentos do espaccedilo percorrido O processo lembra a reconstruccedilatildeo de um visiacutevel

realizada atraveacutes da montagem cinematograacutefica Natildeo agrave toa o artista faz referecircncia ao frame como

unidade narrativa miacutenima do cinema

As investigaccedilotildees sobre a paisagem levaram o artista a pensar a ligaccedilatildeo entre imagens

fixas e moacuteveis a partir do formato panorama que para ele eacute fotografia e cinema ao mesmo

tempo (MAUEacuteS 2012 p30) Se o panorama consiste no esquadrinhamento de uma paisagem

que se apresenta de maneira plana ao olhar do espectador (ver tamanho meacutedio das imagens nas

figuras 32 e 33) da mesma forma ocorre o procedimento nas imagens que compotildeem a seacuterie

Extremo Horizonte Mas em lugar de uma ilusatildeo de harmonia entre cada elemento do espaccedilo

(lembremos que os panoramas uma espeacutecie de preacute-cinema valorizavam um estilo realista de

representaccedilatildeo) haacute um estudo do ambiente que tende a apagar os pormenores Ou melhor

distorcecirc-los embaralhaacute-los Assim natildeo haacute coincidecircncia entre o visiacutevel e o resultado dessas

fotografias panoracircmicas conformando uma visatildeo nada convencional Aleacutem disso a inscriccedilatildeo da

paisagem numa continuidade temporal apresenta uma acumulaccedilatildeo de instantes todos contidos

numa mesma imagem mais uma vez lembrando o processo da montagem de um filme

139

Figura 34 - Montagem de peccedilas da seacuterie Extremo Horizonte

Fonte Reproduccedilatildeo internet85

A questatildeo eacute que se o panorama eacute cinema e foto e as fotografias panoracircmicas de

Extremo Horizonte (figuras 34 35 e 36) possuem tambeacutem a dupla natureza do cinema e da

fotografia tampouco elas pertencem completamente a apenas um destes campos Nesse sentido o

artista faz aproximaccedilotildees entre os processos da pinhole e do panorama

() o tempo usado na pinhole tambeacutem eacute uma duraccedilatildeo ele inscreve a imagem lentamentesobre o negativo E as caracteriacutesticas da fotografia pinhole potencializam o conceito dopanorama A soma de vistas sobre o proacuteprio negativo emendadas sem precisatildeo ou atomada da foto em sistema de varredura girando a cacircmera sobre seu proacuteprio eixo aomesmo tempo em que o filme tambeacutem eacute girado dentro da cacircmera () (MAUEacuteS 2012p24)

As interferecircncias do corpo e do espaccedilo durante a realizaccedilatildeo da imagem demonstram a

afirmaccedilatildeo de um corpo estranho (homem+maacutequina+bicicleta) como gecircnese de uma esteacutetica

85 Reproduccedilatildeo do site da Galeria Karla Osorio Disponiacutevel em httpkarlaosoriocomolhares-dispositivos-paisagem Acesso em 14012020

140

especiacutefica negando tambeacutem a ideia de um aparato divorciado do sujeito (funcionando automaacutetica

e independentemente) Maueacutes (2015) considera que a experiecircncia desse corpo desvenda a cidade

de maneira ldquoerraacuteticardquo em busca de um certo ldquoestranhamentordquo localizaacutevel entre a velocidade e a

lentidatildeo materializado atraveacutes das irregularidades da proacutepria esteacutetica Algo entre o familiar e o

desconhecido Assim do ponto de vista formal esse trabalho apresenta um afastamento

significativo de uma relaccedilatildeo de analogia purista entre o mundo concreto e sua imagem (tantas

vezes vinculada agrave funccedilatildeo da fotografia) Natildeo haacute intenccedilatildeo de correspondecircncia entre imagem e o

perceptiacutevel mas a sugestatildeo de uma alteridade proacutepria ao olhar do dispositivo formada em grande

medida por essa presenccedila corporal-maquiacutenica como explica o autor

Muitos ruiacutedos satildeo incorporados no processo Ruiacutedos que satildeo produzidos pelacombinaccedilatildeo de erros e acidentes que agora jaacute mais que intencionais provocados poruma despreocupaccedilatildeo cada vez maior com qualquer estabilidade que a imagem possa terImagem que se transforma quase que em pintura Onde sua textura eacute dada por um certogestual por uma accedilatildeo Comeccedilo a usar a cacircmera como um instrumento mais livre ondemeu movimento determina que resultado vou ter (MAUEacuteS 2012 p29)

Se o que vemos nos parece incomum eacute porque essa obra faz um investimento no registro

da experiecircncia de uma estrutura alternativa de captura da imagem explorando aspectos luacutedicos

de um processo que se abre para reconsiderar o valor de um certo imprevisiacutevel O fotoacutegrafo

brinca com o niacutevel de imprecisatildeo dos resultados oferecidos pelo equipamento numa investigaccedilatildeo

conceitual que potildee em xeque ideologias esteacuteticas e tecnoloacutegicas da fotografia

As reflexotildees sobre a fotografia enquanto linguagem no campo da arte a partir dasexperimentaccedilotildees com fotografia pinhole construccedilotildees de cacircmeras artesanais e produccedilatildeode imagens utilizando aparelhos precaacuterios despertaram em mim o interesse pelasimperfeiccedilotildees dessas imagens seus ldquoerrosrdquo ruiacutedos imprevistos e acasos Tal poeacuteticabaseada na incerteza de imagens produzidas com a utilizaccedilatildeo de aparelhos precaacuterios(cacircmeras artesanais toy cameras cacircmeras de celular) em tempos de deslumbre poraparelhos tecnoloacutegicos sofisticados eacute uma poeacutetica de subversatildeo dos meios (MAUEacuteS2012 p13)

A contenda de subversatildeo dos meios para Maueacutes (assim como para Luiz Alberto

Guimaratildees e outrosas artistas presentes aqui) estaacute afinada com o pensamento flusseriano sobre

as possibilidades de um ldquofotoacutegrafo experimentalrdquo (2011) atuar numa margem de negociaccedilatildeo

relativa ao ldquoprogramardquo do ldquoaparelhordquo A relaccedilatildeo sujeito-aparelho eacute de uma acoplagem de um

funcionamento conjunto mas o aparelho opera na medida da intenccedilatildeo humana enquanto que ao

sujeito resta extrair do aparelho aquilo que este tem capacidade de lhe oferecer (FLUSSER 2017

141

p38) Ou seja encontrar um espaccedilo de liberdade (relativa) onde seja possiacutevel surpreender-se

testar novas abordagens criar modos de uso especiacuteficos Conscientes de que essa atuaccedilatildeo

enfrenta limites osas artistas manipulam as estruturas dos dispositivos a fim de manipular

tambeacutem paradigmas do campo da imagem e acabam jogando em diversos niacuteveis com a ideia do

ruiacutedo

O trabalho com cacircmeras pinhole eacute para o artista paraense a chave que abre a porta

desse lugar de ldquoincertezasrdquo na imagem onde se verifica exatamente a ocorrecircncia do ruiacutedo pois

haacute uma imprecisatildeo como carcateriacutestica inerente a essas cacircmeras que permite ao usuaacuterio atuar na

fronteira entre os paracircmetros teacutecnicos e a intuiccedilatildeo Nunca se sabe por completo como a imagem

iraacute comportar-se

Na fotografia pinhole apesar de todo controle racional que se faz necessaacuterio ter sobre oprocesso eacute a intuiccedilatildeo que opera sobre esse racional O modo de fazer eacute muito intuitivoAs cacircmeras pinhole natildeo tecircm visor () Eacute necessaacuterio ativar um terceiro olho na palma dasmatildeos que posicionam a cacircmera A passagem do filme eacute feita sem exatidatildeo O fotoacutegrafo eacuteresponsaacutevel por controlar tudo usando sua intuiccedilatildeo e o resultado sempre oferecesurpresas (MAUES 2015 p19)

Haacute uma especificidade teacutecnica importante das cacircmeras pinhole responsaacutevel pela esteacutetica

de todos esses trabalhos o fato de natildeo possuir lentes faz com que todos os planos da imagem

possuam o mesmo grau de definiccedilatildeo mas natildeo uma definiccedilatildeo acentuada como eacute possiacutevel obter

por exemplo quando temos uma cacircmera industrial que dispotildee de um anel para focagem Assim

haacute um ruiacutedo decorrente da proacutepria teacutecnica que eacute um efeito levemente desfocado encontrado nos

contornos dos elementos presentes na imagem uma ldquotextura mais acentuadardquo (MAUEacuteS 2015

p23) E aqui se quebra uma regra de ouro de um fazer fotograacutefico normatizado que eacute a busca

pela definiccedilatildeo ou na totalidade da imagem ou em algum ponto tomado como principal atraveacutes

do foco Poreacutem eacute possiacutevel melhorar essa definiccedilatildeo atraveacutes do tamanho do orifiacutecio de entrada da

luz quanto menor ele for e mais perfeito mais definiccedilatildeo teremos considerando ainda uma relaccedilatildeo

entre as proporccedilotildees do diacircmetro do furo e as dimensotildees da cacircmera Isso faria a pinhole funcionar

de maneira muito parecida com uma maacutequina convencional

A exemplo do que vemos em Paisagens cacofocircnicas haacute um relativo niacutevel de definiccedilatildeo

pois o que estaacute em jogo eacute a negaccedilatildeo da perspectiva monocular atraveacutes das muacuteltiplas exposiccedilotildees

Jaacute em Retratos do indiziacutevel como a problemaacutetica abordada inclui uma temporalidade estendida

(o que significa lidar com a presenccedila do movimento) a questatildeo da definiccedilatildeo jaacute estaacute mais

142

relativizada principalmente nos efeitos de repeticcedilatildeo e transparecircncia do corpo do artista que

algumas das fotos apresentam (figura 25) Nas panoracircmicas de Dirceu Maueacutes a captura feita

numa situaccedilatildeo de movimento do equipamento e do proacuteprio negativo eleva sobremaneira a

potecircncia de indefiniccedilatildeo geral da imagem em alguns casos transitamos de um desfocado para

verdadeiros borrotildees num intenso desmanchar das formas o que representa uma perturbaccedilatildeo da

figuraccedilatildeo Esse resultado potildee a fotografia em diaacutelogo com a pintura Se concordarmos com

Bellour (1997) para quem o desfoque e o tremido satildeo dimensotildees do proacuteprio instantacircneo

fotograacutefico ou seja desdobramentos contidos neste poreacutem nem sempre visiacuteveis eacute possiacutevel

analisaacute-los ainda como manifestaccedilotildees que aleacutem de mexerem com a forma apontam outras

vertentes do tempo perfazendo modalidades do ruiacutedo que emergem do tensionamento do

instantacircneo

Figura 35 - Panoracircmica da seacuterie Extremo horizonte (Dirceu Maueacutes 2012)

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

Figura 36 - Panoracircmicas da seacuterie Extremo horizonte (Dirceu Maueacutes 2013)

Fonte Reproduccedilatildeo de Maueacutes (2015)

143

Ao discutir a retomada de processos claacutessicos da imagem fotoquiacutemica na atualidade

Fatorelli e Carvalho (2015) atestam que ao contraacuterio de um ingecircnuo tributo a seus usos

tradicionais a fotografia contemporacircnea baseia-se em muitos casos em seus proacuteprios recursos

teacutecnicos afirmando ao mesmo tempo uma independecircncia com relaccedilatildeo a quaisquer condiccedilotildees

precedentes agrave imagem sem contudo abandonar totalmente o laccedilo com o referente Essa tocircnica

encontramos nas obras de Guimaratildees e Maueacutes em seus diferentes modos operativos da pinhole

ambos procedendo a experiecircncias que colocam a imagem num verdadeiro ldquoterritoacuterio

intermediaacuterio de inuacutemeras nuances e gradaccedilotildees situado entre a abstraccedilatildeo metafoacuterica e a

reproduccedilatildeo literalrdquo (FATORELLI amp CARVALHO 2015 p51)

Conforme adiantamos o diaacutelogo entre formas de expressatildeo centradas na imagem

engloba experiecircncias com teacutecnicas fotograacuteficas e recursos oriundos do cinema e tambeacutem do

viacutedeo Se em Extremo horizonte haacute um flerte com o movimento cinematograacutefico a partir de

esteacuteticas que expressam o movimento do proacuteprio equipamento o resultado permanece ainda

circunscrito ao domiacutenio da fotografia como imagem-objeto em trabalhos como Feito poeira ao

vento (2006)86 as pinhole satildeo utilizadas para a montagem de um viacutedeo que mostra uma

conhecida feira paraense A imagem transita da imobilidade da pinhole em direccedilatildeo ao viacutedeo em

velocidades variaacuteveis entre a lentidatildeo e a rapidez Elas adquirem um ldquoefeito cinemardquo (PARENTE

2015) que nos deixa perceber se tratarem de fotografias animadas O proacuteprio Maueacutes (2012)

refere-se a essa proposiccedilatildeo como um ldquocinema mancordquo porque notamos lacunas temporais

interrupccedilotildees com cortes bem marcados chamando a atenccedilatildeo para a quebra da ilusatildeo de um

movimento contiacutenuo uma sensiacutevel mudanccedila de luz atestando os diferentes momentos do dia

capturados por vaacuterias cacircmeras (30 pinholes efetuando um giro de 360 graus produzindo mais de

900 imagens) os corpos de feirantes e transeuntes os veiacuteculos aparecendo e desaparecendo Eacute

um viacutedeo no qual o processo de elaboraccedilatildeo eacute sentido na proacutepria maneira de apresentaccedilatildeo ao

espectador Segundo Parente (2015 p77-78) embora a realizaccedilatildeo desse trabalho demande um

planejamento bastante sofisticado (construccedilatildeo das cacircmeras posicionamento coordenaccedilatildeo da

captura etc) apoacutes a organizaccedilatildeo dessa estrutura toda eacute o acaso que domina a cena como parte de

um processo notadamente artesanal natildeo interessando a imagem perfeita mas sim os seus ruiacutedos e

imprevistos suas interrupccedilotildees o fade expliacutecito86 Disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=7iqFdY5vD8c Acesso em 20012020

144

Figura 37 - Vista da videoinstalaccedilatildeo Em um lugar qualquer - Outeiro em 2011

Fonte Reproduccedilatildeo de Maueacutes (2012)

Aqui jaacute observamos um movimento de mudanccedila do estatuto da imagem na direccedilatildeo de

sua desmaterializaccedilatildeo atraveacutes do formato viacutedeo procedimento que se intensifica nas instalaccedilotildees

como Em um lugar qualquer Outeiro (2009) (figura 37) na qual as fotografias satildeo empregadas

como projeccedilotildees montadas de forma a criar uma nova organizaccedilatildeo espacial do lugar retratado

uma praia vista atraveacutes dos registros de cacircmeras montadas sobre uma base hexagonal Mais uma

vez a construccedilatildeo da obra ativa a estrutura da imagem moacutevel sendo ao mesmo tempo fotografia

O mecanismo da instalaccedilatildeo impressiona

170 cacircmeras pinhole construiacutedas a partir de pequenas caixas de foacutesforos foram divididasentre seis fotoacutegrafos posicionados no interior de uma base hexagonal Cada fotoacutegrafotomava uma sequecircncia de fotografias na direccedilatildeo do horizonte apoiando as cacircmeras emcada um dos lados do hexaacutegono Cada sequecircncia era animada e assim tiacutenhamos seisviacutedeos que juntos lado a lado formando uma vista panoracircmica em 360 graus da praia(MAUEacuteS 2015 p43)

Tais trabalhos mostram constantemente uma vontade de repensar os lugares atribuiacutedos agraves

diversas modalidades da imagem uma tocircnica bastante forte na arte contemporacircnea Nessas zonas

de aproximaccedilatildeo entre foto viacutedeo e cinema encontram-se uma seacuterie de ruiacutedos surgidos de

experiecircncias que aleacutem de proporem novas sensibilidades tambeacutem servem para repensar

criticamente os usos convencionais das tecnologias

Figura 38 - Quimigramas da seacuterie (In)certa paisagem imaginaacuterio de luz e prata (Dirceu Maueacutes 2017)

145

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Figura 39 - Quimigramas da seacuterie (In)certa paisagem imaginaacuterio de luz e prata (Dirceu Maueacutes 2017)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Na interface entre processos fotograacuteficos desenho e pintura o artista paraense

desenvolveu um trabalho chamado (In)certa paisagem imaginaacuterio de luz e prata (2017)

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(figuras 38 39 e 40) atraveacutes da teacutecnica do quimigrama87 Este procedimento consiste em deixar o

papel fotograacutefico sofrer livremente a accedilatildeo dos quiacutemicos fotograacuteficos revelador ldquostoprdquo (banho de

parada) e fixador A imagem forma-se a depender da quantidade intensidade e ordem das

substacircncias aplicadas e tambeacutem de acordo com a regularidade dos movimentos que o fotoacutegrafo

executa para que os quiacutemicos deslizem sobre a superfiacutecie do papel Assim como em outras obras

haacute um interessante jogo entre o domiacutenio da teacutecnica e a impossibilidade de controlar totalmente o

resultado Numa mesma imagem o estilo das manchas que ficam no papel varia entre tonalidades

mais profundas e outras mais transluacutecidas As manchas entatildeo podem assemelhar-se a pinceladas

ou agrave tinta que escorre quando se faz uma aquarela

() Eu fiz em Berlim os quimigramas O material eacute fotograacutefico Natildeo chega a serfotografia () eacute papel mas ele taacute mais para desenho e pintura Na verdade eu uso umpapel fotograacutefico velado e uso revelador e fixador como agentes de escrita de pinturade desenho Entatildeo natildeo parte de uma imagem Natildeo eacute uma imagem fotograacutefica nessesentido de um recorte de uma realidade Tem uma representaccedilatildeo mas mais ligada agravepintura ao desenho do que agrave fotografia uma coisa mais indicial Parte do zero Natildeo temimagem nenhuma Eacute como se tivesse trabalhando com nanquim sei laacute mas com ummaterial que tem um tempo de reaccedilatildeo () Ele escorre o tempo de accedilatildeo do quiacutemico nopapel ( ) eacute um tempo um pouco parecido com a gravura em metal Essa coisa da accedilatildeodo quiacutemico no suporte que vai revelando as coisas (MAUEacuteS 2017)

87 Poivert (2009) assinala a produccedilatildeo de imagens com essa teacutecnica em 1956 no trabalho do artista belga PierreCorrier

147

Figura 40 - Quimigramas da seacuterie (In)certa paisagem imaginaacuterio de luz e prata (Dirceu Maueacutes 2017)

Fonte Cortesia do artista

Aqui a ideia de paisagem imaginada sonhada e portanto construiacuteda (e por isso mesmo

incerta) guarda relaccedilatildeo tanto com a maneira como a imagem se forma aos poucos sem muito

controle nem precisatildeo e tambeacutem com o fato de que literalmente quem olha eacute que monta um

ambiente a partir de sua proacutepria imaginaccedilatildeo tambeacutem com base em referecircncias de pinturas

anteriores (que jaacute satildeo elas proacuteprias fabulaccedilotildees sobre um espaccedilo) Quer dizer estamos diante de

paisagens que nascem de outras paisagens Dividido pela linha do horizonte eacute possiacutevel sugerir

que estamos diante de um lago margeado por plantas cujos galhos apontam em direccedilatildeo ao ceacuteu

(figura 38) Podemos ver na aacutegua o reflexo desse ceacuteu de nuvens carregadas etc Ou seja eacute

preciso buscar as formas de um espaccedilo representado onde de fato soacute haacute as marcas dos quiacutemicos

Essa questatildeo nos leva a refletir sobre uma tocircnica que eacute geral nas obras sobre a paisagem

apresentadas aqui o caraacuteter elaborado construiacutedo e convencionado da paisagem como uma

externalidade que se oferece ao olhar sob determinadas regras sendo que muitas vezes nos

esquecemos desses ordenamentos e naturalizamos essa construccedilatildeo (como uma espeacutecie de

148

transferecircncia do mundo real agrave imagem) Uma condiccedilatildeo jaacute ressaltada tanto por Maueacutes quanto por

Guimaratildees em suas preocupaccedilotildees na abordagem do espaccedilo atraveacutes da imagem

Outro ponto relevante eacute que o lugar do fotograacutefico eacute reduzido a seus materiais baacutesicos

(papel e substacircncias quiacutemicas) sem a participaccedilatildeo da cacircmera O aparato desenvolvido pelo artista

eacute simples e potente no sentido de mais uma vez chamar nossa atenccedilatildeo para os automatismos no

uso das tecnologias Fotografia pintura desenho sem cacircmeras industrializadas lentes

fotocircmetro sem pinceacuteis sem telas tintas sem cavalete sem laacutepis etc Desse modo tambeacutem o

referente como condiccedilatildeo precedente agrave imagem se vecirc expulso do processo Esse trabalho

questiona a proacutepria noccedilatildeo de paisagem como duplo de um real contenda que tanto assombra a

fotografia Uma seacuterie de questotildees apontando para os ruiacutedos criados com base na exploraccedilatildeo das

materialidades disponiacuteveis

A teacutecnica dos quimigramas eacute utilizada tambeacutem nas investigaccedilotildees do fotoacutegrafo Joseacute Luiacutes

Neto na seacuterie Classic 111 (figuras 41 e 41a) No entanto o resultado alcanccedilado eacute diferente Se o

artista paraense quer sugerir paisagens desenhar mundos o artista portuguecircs deixa a interaccedilatildeo

entre os materiais construir as formas sem se preocupar tanto com o gecircnero a que elas vatildeo

pertencer Seus quimigramas satildeo intencionalmente abstraccedilotildees

O quimigrama eacute algo que tu natildeo controlas agrave partida Implica sempre que tu sigas o quevai acontecendo ao papel fotograacutefico agrave medida que a imagem vai aparecendo dentro dosquiacutemicos Daiacute o importante desse lado fiacutesico das tuas matildeos com a folha Tu podesmarcar na folha os teus gestos Os quimigramas acabam por ser esse lado maisexperimental soacute com a luz papel fotograacutefico e quiacutemicos (NETO 2014)88

Conforme se apreende do exposto a teacutecnica eacute empregada para explorar os resultados

esteacuteticos da interferecircncia do fotoacutegrafo no processo que decorre da accedilatildeo das substacircncias aleacutem das

marcas que a proacutepria adiccedilatildeo dessas substacircncias jaacute provoca A valorizaccedilatildeo do gestual em cima da

coacutepia final como quem preenche uma tela cria uma ponte entre o fotograacutefico e o pictoacuterico no

que este uacuteltimo tem de singularidade de originalidade de artesania Assinale-se tambeacutem que o

artista desordena as etapas de revelaccedilatildeo-parada-fixaccedilatildeo pois ele tanto pode mergulhar o papel

primeiro no ldquostoprdquo depois no fixador no revelador ou em outra ordem qualquer inclusive

passando mais de uma vez por cada um dos quiacutemicos O quimigrama eacute uma forma de criar

88 Depoimento ao programa Entre Imagens da rede de televisatildeo RTP Disponiacutevel emhttpswwwyoutubecomwatchv=r8SQHL_Krfc Acesso em 18012020

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imagens prescindindo de um dos elementos mais caros agrave fotografia (a luz) Esse jogo com a luz

demonstra uma vontade de levar a imagem ao limite do visiacutevel contrariando as regras habituaus

da boa fotografia questionando assim o dispositivo fotograacutefico (LENOT 2017a p45)

A teacutecnica por fim constitui uma verdadeira perversatildeo do processamento quiacutemico

utilizado na fotografia industrial e por isso mesmo traz agrave tona sempre imagens novas e

imprevisiacuteveis embora de certa forma jaacute contidas no ldquoprogramardquo do aparelho fotograacutefico

Figuras 41 e 41a - Quimigramas da seacuterie Classic 111 (Joseacute Luiacutes Neto 2006)

150

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

A partir do momento em que se abandona a preocupaccedilatildeo de referir o inteligiacutevel na

imagem abre-se o espaccedilo para uma investigaccedilatildeo voltada para o medium que busca a pura

expressatildeo da mateacuteria E na verdade essa premissa caracteriza em larga medida toda a obra desse

artista Ao observarmos seus demais trabalhos entendemos que seu interesse estaacute nas

possibilidades escondidas (ainda natildeo desvendadas ou valorizadas) nos princiacutepios que envolvem a

fotografia como a luz o tempo as caracteriacutesticas dos equipamentos o jogo entre figuraccedilatildeo e

abstraccedilatildeo Uma pesquisa devotada agraves zonas pouco ou mal exploradas do aparelho (FLUSSER

2011)

Outros trabalhos baseados na apropriaccedilatildeo de imagens constroem-se atraveacutes de uma

metodologia bastante livre o artista usa fotografias adquiridas de maneiras variadas (encontradas

nas ruas doadas por outras pessoas jaacute que ele mesmo raramente compra fotografias antigas) O

uacutenico ponto em comum eacute que todas estatildeo relacionadas agrave cidade de Lisboa (onde vive atualmente

Joseacute Luiacutes Neto) Ou seja os trabalhos constroem-se agrave medida que os materiais vatildeo se

apresentando sem que necessariamente se proceda a uma busca deliberada orientada e

planejada O material da seacuterie July 1984 (figuras 42 42a e 42b) foi encontrado abandonado

numa casa As fotos estavam coladas umas agraves outras Cada uma delas exibe vestiacutegios

provavelmente de reaccedilotildees ocorridas no material sob a accedilatildeo do tempo da umidade dos proacuteprios

quiacutemicos e do papel (jaacute que esse material natildeo estava armazenado em condiccedilotildees ideais) Essa

151

combinaccedilatildeo de fatores criou interessantes efeitos cromaacuteticos em manchas distribuiacutedas na

superfiacutecie de cada foto A escolha de preservar essas caracteriacutesticas indica certo despojamento

que atribui um valor plaacutestico aos vestiacutegios da proacutepria deterioraccedilatildeo dos materiais Assim uma

esteacutetica de precariedade se faz presente nesse trabalho Na fase de impressatildeo para o livro

Caderno de imagens (onde encontramos a seacuterie) o fotoacutegrafo percebeu detalhes que natildeo

estavam (aparentes) nas fotos elementos revelados por causa da impressatildeo ldquoNa imagem

transferida haacute pormenores que () natildeo aparecem no original Quando tu olhas pra esta imagem

haacute uma crianccedila que aponta para o chatildeo e tu vais perceber que o mosaico eacute o negativo ()rdquo

(NETO 2014)

Figura 42 42a 42b - Imagens de July 1984 (Joseacute Luiacutes Neto2012)

152

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

No procedimento de vaacuterias etapas de desgaste da imagem vemos personagens e espaccedilos

praticamente sumirem encobertos pelas manchas como que invocando um processo de

deterioraccedilatildeo (que ocorre em qualquer material) e tambeacutem nos dizendo que a imagem eacute tambeacutem

uma impermanecircncia localizandp-se ainda na fronteira no limiar entre a figuraccedilatildeo e o abstrato

As pessoas deixam de ser a temaacutetica para simplesmente dar lugar agraves manchas que vatildeo se

espalhando pela superfiacutecie da imagem fazendo-se presente em toda a sua extensatildeo ateacute se

tornarem elas mesmas o assunto da seacuterie

Esse princiacutepio que coloca em evidecircncia a articulaccedilatildeo entre materiais gerando uma

esteacutetica calcada nos vestiacutegios dos materiais empregados eacute intensificado na outra seacuterie que

compotildee o livro de artista Caderno de Imagens que se chama High Speed Press Plate (2006)

(figura 43) O fotoacutegrafo utiliza negativos de vidro digitaliza-os e depois faz impressotildees em papel

(CAMACHO online 2007) Partindo de matrizes jaacute processadas com formas jaacute desfeitas o que

sobram satildeo novamente manchas Na passagem de negativo para digital ateacute a finalizaccedilatildeo com

impressatildeo em papel cada um desses suportes deixa na imagem vestiacutegios que funcionam como

camadas acumuladas criando uma esteacutetica hiacutebrida O tiacutetulo da seacuterie eacute irocircnico considerando que

153

o processo de realizaccedilatildeo de negativos em vidro tem vaacuterias etapas de produccedilatildeo Por exemplo nas

wet plates ou coloacutedio uacutemido89 (um tipo de processo que utiliza em negativos de vidro) a

sensibilizaccedilatildeo das placas necessita entre 1 minuto e meio e 3 minutos de imersatildeo na substacircncia

fotossensiacutevel O tempo de exposiccedilatildeo pode variar de alguns segundos a 2 minutos90 Mas com essa

etapa jaacute vencida (pois Neto utiliza imagens jaacute prontas) esse tempo mais lento do coloacutedio eacute

submetido ao extremo automatismo da digitalizaccedilatildeo para em seguida encontrar de novo relativa

permanecircncia no formato de saiacuteda em papel

Figura 43 - High Speed Press Plate 1 (Joseacute Luiacutes Neto 2006)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Os trabalhos de Joseacute Luiacutes Neto satildeo de fato comentaacuterios interrogaccedilotildees sobre o meio

fotograacutefico seus gecircneros estatutos sociais e conceitos seus limites e expansotildees teacutecnicos e as

metodologias que ele cria evocam uma simplicidade no fazer que nos leva a pensar a respeito dos

princiacutepios mais baacutesicos da imagem tais como o referente as temporalidades a inscriccedilatildeo por

meio da luz

89 Wet plates ou placas uacutemidas satildeo as fotografias que utilizam o coloacutedio uacutemido como ligante para o suporte daimagem (de vidro) Satildeo tambeacutem chamadas de ambroacutetipos90 Gold Jens The Ambrotype Wet Collodion Positives on Glass Treatment Challenges on Complex Nineteenth-Century Photographic Objects Dissertaccedilatildeo de mestrado Universidade de Oslo - Departamento de ArqueologiaConservaccedilatildeo e Histoacuteria - Faculdade de Humanidades 2018 p26-28

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Eu acho que a fotografia eacute um meio fantaacutestico no sentido de que natildeo haacute propriamentelimites Os meus trabalhos soacute podem ser feitos em fotografia Eacute o meio de que eu maisgosto mas tambeacutem aquele que eu mais domino E eu natildeo sei fazer outra coisa Eacute o meioque vai de encontro agraves minhas preocupaccedilotildees agraves minhas ideias agrave minha imaginaccedilatildeo Eacute alinguagem ideal para eu poder construir os meus trabalhos autorais () No meutrabalho nunca dei prioridade a formatos exceto que tenho uma grande admiraccedilatildeo pelolado da barra da tira (NETO 2014)

As barras ou tiras satildeo o elemento baacutesico de estruturaccedilatildeo de um trabalho bastante

peculiar Na verdade um retrato Agrave semelhanccedila do que faz Maueacutes com as panoracircmicas o artista

portuguecircs criou um mecanismo para movimentar o filme dentro da cacircmera enquanto capturava a

imagem de um muacutesico Um motor foi acoplado agrave maacutequina que garante o avanccedilo do negativo a

uma velocidade constante (RODRIGUES 2017)91 enquanto o retratado olhava a lente por um

tempo aproximado de 3 minutos A imagem eacute um compoacutesito de linhas verticais coloridas

resultante de um registro feito por varredura o que torna qualquer tentativa de identificar uma

fisionomia inviaacutevel Um retrato que nasce da dissoluccedilatildeo da forma (Chromatic Fantasy 2002)

Figura 44 - Detalhe de Chromatic Fantasy (Joseacute Luiacutes Neto 2002)

Fonte Reproduccedilatildeo site Projecto MAP92

91 Jaacute citamos aqui o trabalho de Paolo Gioli como partidaacuterio da mesma metodologia de avanccedilo do negativo paracaptura por varredura Nesse sentido nota-se uma grande semelhanccedila entre as obras Natildeo 1 de Joseacute Luiacutes Neto(httpwwwjoseluisnetopten01-01-00html) e a seacuterie Crosswise natures de Gioli(httpwwwrevistasuspbrsignificacaoarticleview148839154304) Acesso em 1002202092 Disponiacutevel em httpwwwprojectomapcom Acesso em 10022020

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Figura 45 - Vista da instalaccedilatildeo Chromatic phantasy (Joseacute Luiacutes Neto 2002)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Em Chromatic phantasy (2002) (figuras 44 e 45) e outras obras semelhantes como

Continuum (2005)93 Brgycm (1993)94 haacute ainda uma proposta de reflexatildeo sobre a gecircnese da

exposiccedilatildeo fotograacutefica ou seja que configuraccedilotildees (supostamente) podem surgir quando

repensamos a maneira de expor a superfiacutecie fotossensiacutevel segundo certas condiccedilotildees de

iluminaccedilatildeo tempo de captura etc Que possibilidades podemos encontrar se criamos nossos

paracircmetros especiacuteficos jogando com as expectativas sobre o funcionamento ldquoadequadordquo do

equipamento

De maneira geral os trabalhos de Joseacute Luiacutes Neto demonstram uma inclinaccedilatildeo agrave

abstraccedilatildeo que nasce de uma intenccedilatildeo exploratoacuteria dos recursos das maacutequinas e dos insumos e

resultam numa esteacutetica bastante minimalista Eles tambeacutem nos permitem ver de perto a estrutura

compositiva do negativo as texturas das coacutepias os vestiacutegios dos quiacutemicos ou seja potildeem a nu a

mateacuteria da imagem Todas essas questotildees e a maneira como satildeo exploradas levam-nos de volta ao

tema do ruiacutedo no territoacuterio da imagem pela conexatildeo com a expressatildeo da mateacuteria dando-se de

forma erraacutetica e por vezes imprevisiacutevel e isso nos mais diferentes recursos empregados pelos

artistas de nosso corpus

93 Disponiacutevel em httpwwwjoseluisnetopten01-07-00html Acesso em 0804202094 Disponiacutevel em http2132391972268800listObrasjspid_obra=927 Acesso em 08042020

156

46 CONTROLE EFICIEcircNCIA E DISPOSITIVOS

Conforme adiantamos brevemente o estudo de Hainge (2013) aposta numa

compreensatildeo ampla do ruiacutedo natildeo restringindo a compreensatildeo do tema ao campo das artes muito

menos ao acircmbito sonoro O ruiacutedo estaria em tudo

Sugeri que o ruiacutedo eacute o artefato de uma ontologia expressiva assinalando o movimentonecessaacuterio que subsiste em todo ser seja num niacutevel subatocircmico existencial filosoacuteficoquacircntico ou individual O ruiacutedo entatildeo eacute aquilo que desmorona o mundo de uma fixidezilusoacuteria agrave qual nos agarramos numa tentativa de manter as coisas no lugar separarelementos uns dos outros e elevarmo-nos acima do ldquomundo natural95 (HAINGE 2013p68)

A concepccedilatildeo do ruiacutedo como algo positivo ldquoexpressivordquo demonstra o interesse nos

processos de fluxo produccedilatildeo de diferenccedila ruptura de paradigmas e especialmente nas

articulaccedilotildees entre seres humanos e tecnologias questotildees cruciais para a discussatildeo proposta nesta

tese Mas o autor natildeo estaacute sozinho nessa interpretaccedilatildeo

Mark Nunes (2011) ndash organizador de uma seacuterie de textos relacionados ao papel do erro e

do ruiacutedo nas praacuteticas culturais ndash lembra que esses temas se conectam com a resposta inerente a

uma ideologia do controle da precisatildeo e da maacutexima eficiecircncia caracterizadoras da sociedade

atual Sua abordagem parte de uma concepccedilatildeo de ruiacutedo ligada agrave ciberneacutetica preocupada com a

emergecircncia do erro no acircmbito dos sistemas informaacuteticos da cultura digital dos procedimentos e

estrateacutegias utilizados no universo de uma sociedade conectada em rede Por isso mesmo enfatiza

que vivemos sob uma ldquoideologia do controle informaacuteticordquo uma loacutegica que demanda uma

performance livre de falhas e na qual o erro demonstra exatamente a fuga desse padratildeo pois

funciona como

() Uma estrateacutegia potencial de desorientaccedilatildeo e evoca uma loacutegica de controle para criaruma abertura agrave variaccedilatildeo ao jogo e a resultados natildeo intencionais O erro como domiacutenioerrante sugere maneiras pelas quais o defeito a falha e a maacute comunicaccedilatildeoproporcionam aberturas criativas e linhas de voo que permitem uma reconceituaccedilatildeo do

95 Traduccedilatildeo livre de ldquoI have suggested in the introduction that noise is the artefact of an expressive ontologysignaling the necessary movement that subsists in all being whether this be at a subatomic existentialphilosophical quantum or individual level Noise then is that which unmoors the world from the illusory fixity towhich we tie down in an attempt to keep it in place to separate its elements out of each other and elevate ourselvesabove the lsquonatural worldrsquordquo

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que pode (ou natildeo) ser realizado nas praacuteticas sociais e culturais existentes96 (NUNES2011 p3-4)

O pesquisador exalta a capacidade de o ruiacutedo abrir novos caminhos expressivos

contribuindo para alterar modelos esteacuteticos ligados por exemplo a ideais como beleza

equiliacutebrio pureza ou mesmo organizaccedilatildeo que simbolicamente estatildeo incorporados como valores

para o campo da arte e sintomaacuteticos de certos movimentos artiacutesticos97 Apropriar-se do caraacuteter

desagregador do ruiacutedo para sugerir a emergecircncia de esteacuteticas ldquosujasrdquo ldquocaoacuteticasrdquo ldquoindefinidasrdquo

ldquoexperimentaisrdquo (e sua legitimaccedilatildeo) representa uma proposiccedilatildeo que encontra paridade tambeacutem

nas correntes filosoacuteficas que refletem sobre o papel central da tecnologia nas relaccedilotildees humanas

A aposta no ruiacutedo como catalisador de esteacuteticas complexas fluidas e abertas estaacute intimamente

relacionada ao pensamento de nomes como Gilles Deleuze Feacutelix Guattari Vileacutem Flusser (jaacute

citado) cujos apontamentos diagnosticaram o ambiente da comunicaccedilatildeo em rede dos circuitos

informaacuteticos de uma certa acessibilidade ampliada agrave informaccedilatildeo como caracterizadores das

sociedades contemporacircneas sem perder de vista a potecircncia de reescritura subversatildeo e sabotagem

escondidas nessas mesmas tecnologias e como isso poderia efetivar-se atraveacutes de uma relaccedilatildeo

natildeo-hieraacuterquica entre seres humanos e dispositivos Um aproveitamento das teacutecnicas feito na

base da desconstruccedilatildeo de ordenamentos em favor da criatividade de pensar atraveacutes da arte um

espaccedilo de questionamento de paracircmetros formais de modelos societaacuterios e tambeacutem dos

pressupostos filosoacuteficos que servem de referecircncia a todas essas normatizaccedilotildees

96 Traduccedilatildeo livre de ldquo() a potential for a strategy of misdirection one that invokes a logic of control to create anopening for variance play and unintended outcomes Error as errant heading suggests ways in which failureglitch and miscommunication provide creative openings and lines of flight that allow for a reconceptualization ofwhat can (or cannot) be realized within existing social and cultural practicesrdquo97 Desde o advento do fotograacutefico houve natildeo apenas uma disputa pelo protagonismo da invenccedilatildeo da fotografia(embora natildeo se possa atribuir a um uacutenico personagem esse papel) mas tambeacutem relaccedilotildees desiguais de prestiacutegio ouvalorizaccedilatildeo (e mesmo viabilidade comercial) entre tecnologias de acordo com as esteacuteticas dessas teacutecnicas estaremem maior ou menor grau sintonizadas com a agenda epistemoloacutegica da Modernidade bem como associadas agravesfuncionalidades adquiridas pela fotografia no seacuteculo XIX Por exemplo a daguerreotipia como uma imagem melhordefinida uacutenica e sua importacircncia na consolidaccedilatildeo do gecircnero retrato explicam em parte porque o nome de LouisJacques Mandeacute Daguerre (1787-1851) eacute quase sempre mais citado do que os de seus contemporacircneos HippolyteBayard (1801-1887) ou William Henry Fox-Talbot (1800-1877) que desenvolveram respectivamente as impressotildeesem papel (positivo direto) e as photogenic drawings Essas teacutecnicas possuem nitidez e permanecircncia bem menores secomparadas ao daguerreoacutetipo e por isso mesmo mais distantes da precisatildeo associada agrave racionalidade cientiacuteficadaquela eacutepoca Essa agenda modernista seraacute determinante para caracterizar aquilo que Fatorelli (2006) considerauma fotografia ldquopura e diretardquo cuja influecircncia podemos identificar por exemplo nas premissas do grupo f64 domovimento da Nova Objetividade e no fotodocumentarismo da primeira metade do seacuteculo XX ou ainda na straightphotography

158

47 ERRO OU RUIacuteDO

Nunes (Ibidem) faz uma pequena genealogia do termo ldquoerrordquo mapeando suas

conotaccedilotildees nos seacuteculos XVI XVII e XVIII todas elas negativas e relacionadas a movimentos de

desvio Bem se tais periacuteodos histoacutericos satildeo influenciados pela batalha filosoacutefica entre mente e

corpo na qual o intelecto humano assume uma posiccedilatildeo dominante o erro e o ruiacutedo natildeo poderiam

ser vistos com bons olhos ldquoNo Iluminismo argumenta Deleuze o ldquoerrordquo funciona como um

conceito delimitador para categorizar qualquer imagem de pensamento que natildeo se coordene com

a imagem ortodoxa do pensamento como um reconhecimento da verdaderdquo (NUNES 2011

p9)98

O autor sugere uma discussatildeo em torno de uma ldquopoeacutetica do ruiacutedordquo abrangendo o

conjunto de procedimentos e obras que se valem do ruiacutedo como efeito revelador de visualidades

estranhas diferenciais e capazes de mexer com expectativas e paradigmas da esfera artiacutestica

Como se a ldquopoeacutetica do ruiacutedordquo99 assinalasse um esforccedilo de tensionamento dos paracircmetros

esteacuteticos introduzindo como valor aquilo que antes fora negligenciado Para tanto seria

necessaacuterio dirigir nossa atenccedilatildeo agraves estrateacutegias de combinaccedilatildeo dos meios e de que forma as

tecnologias podem voltar-se contra si mesmas

Figura 46 - New York City (Lee Friedlander1966)

98 Traduccedilatildeo livre deldquoWithin the Enlightenment Deleuze argues ldquoerrorrdquo functions as a delimiting concept tocategorize any image of thought that does not coordinate with the orthodox image of thought as a ldquorecognitionrdquo oftruthrdquo99 Para um melhor entendimento sobre como se desenvolve a ideia de poeacutetica do ruiacutedo ver Nunes 2011 p3-23

159

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Especificamente no campo do fotograacutefico Cheacuteroux (2009) defende o erro como ponto

de partida para diversos artistas desenvolverem suas obras levando a proacutepria miacutedia fotograacutefica a

seus limites Sua concepccedilatildeo do erro estaacute relacionada exatamente a paracircmetros de qualidade

instituiacutedos pela induacutestria fotograacutefica e que foram largamente disseminados em manuais e

consolidados no imaginaacuterio dos usuaacuterios Para o autor agrave medida que os erros comeccedilam a ser

incorporados por artistas eles passam a habitar o universo das inovaccedilotildees fotograacuteficas

abandonando uma conotaccedilatildeo explicitamente negativa Por exemplo ele cita a presenccedila da sombra

de quem opera a cacircmera na imagem como um dos erros mais comuns entre amadores que no

entanto tornou-se um recurso para inscriccedilatildeo de autoria (uma afirmaccedilatildeo da presenccedila de um sujeito

ativo no processo fotograacutefico) sobretudo no contexto das vanguardas artiacutesticas europeias

empregado por Moholy-Nagy por exemplo e que encontramos tambeacutem na fotografia de Lee

Friedlander (figura 46)

O que antes era apenas um defeito tornou-se uma estrateacutegia para contrariar a suposta

objetividade fotograacutefica (associada a certa frieza do dispositivo) mas tambeacutem uma manifestaccedilatildeo

da proacutepria teacutecnica Aleacutem disso se a luz conteacutem a sombra (BAXANDALL 1977) que surge por

um esforccedilo de intencionalidade ela pode ser considerada um ruiacutedo (algo contido poreacutem nem

sempre manifesto) o que nos leva a enxergar uma aproximaccedilatildeo entre os termos ldquoruiacutedordquo e ldquoerrordquo

de uma perspectiva teoacuterica da fotografia (aleacutem da proposta de Nunes no acircmbito da ciberneacutetica)

Embora o erro esteja associado agrave ideia de falha de mal funcionamento de um sistema e

o ruiacutedo seja essencialmente parte de qualquer corpo estrutura enfim universo expressivo (o que

aparentemente faria do primeiro um ldquodefeitordquo e do segundo um ldquoefeitordquo) esses dois conceitos

natildeo estatildeo assim tatildeo distantes porque a ocorrecircncia do erro eacute uma presenccedila ldquovirtualrdquo que se

ldquoatualizardquo (DELEUZE 1999)100 sob determinadas condiccedilotildees e logicamente sua configuraccedilatildeo

100 Ao contraacuterio de uma relaccedilatildeo negativa o pensamento deleuziano considera o par virtualautal a partir de umarelaccedilatildeo de potecircncia contida de algo em vias de se expressar (natildeo como externalidade) mas como parte constituinteda proacutepria coisa Entendemos que o erro como parte integrante de quaisquer sistemas pode ou natildeo se materializarprovocar impactos nesses sistemas e mesmo que natildeo o faccedila conserva-se como presenccedila Eacute a partir desta ideia que sefaz a associaccedilatildeo entre o erro e o ruiacutedo e as noccedilotildees de virutalautal em Deleuze Craia (2009) faz uma anaacutelise dovirtual em interlocuccedilatildeo com temas importantes do pensamento deleuziano (como as questotildees da diferenccedila e daontologia) recuperando a influecircncia do pensamento de Henri Bergson nesse sentido Deleuze (1999) em seu livrodedicado agrave filosofia bergsoniana discorre sobre as relaccedilotildees entre virtual e atual

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depende das caracteriacutesticas intriacutensecas a um dado sistema mediante intervenccedilatildeo de algo (ou

algueacutem)

De volta agrave fotografia na abordagem de Cheacuteroux (Ibidem) a utilizaccedilatildeo de todo um

ldquorepertoacuterio de errosrdquo ndash que inclui desfoque tremulaccedilotildees descentralizaccedilatildeo de motivos

deformaccedilotildees sobreposiccedilotildees reflexos mal uso do flash efeito lsquoolhos vermelhosrsquo saturaccedilatildeo das

cores ndash de modo criativo delimita certa divisatildeo entre o universo das praacuteticas vernacular e

artiacutestica

Toda fotografia eacute julgada de maneira diferente segundo o lugar no qual se exibe aimagem segundo as matildeos nas quais se encontra e sobretudo de acordo com os olhos dequem a contempla A apreciaccedilatildeo (sobre os erros) varia por exemplo segundo a filiaccedilatildeodo autor ndash e por extensatildeo daquele que observa ndash a uma das seguintes categorias artistasamadores ou profissionais101 (CHEacuteROUX 2009 p47)

Concordamos que esta divisatildeo entre amadores e artistas eacute relevante na medida em que a

identificaccedilatildeo do erro na fotografia transfere-se de uma conotaccedilatildeo meramente negativa para referir

um valor esteacutetico poreacutem atualmente haacute um entendimento partilhado entre essas duas categorias

sobre a noccedilatildeo de erro como um elemento surpresa acolhido com simpatia quando passa a figurar

na imagem De algum modo a natureza plural que caracteriza a imagem contemporacircnea jaacute

permite que mesmos erros ldquoclaacutessicosrdquo como os apontados pelo autor sejam considerados parte

de uma certa zona de indeterminaccedilatildeo do dispositivo que mesmo os amadores jaacute natildeo se recusam a

aceitar exatamente porque no escopo da arte jaacute se encontram reconhecidos e incorporados

Fontcuberta (online 2010)102 identifica que nos uacuteltimos anos os resultados mais

interessantes em criaccedilatildeo fotograacutefica emergem dos usos vernaculares da imagem natildeo associados agrave

ideia de qualidade o que para ele enseja uma renovaccedilatildeo visual Aprofundando-se nesse debate

Piper-Wright (2018) estuda as diversas motivaccedilotildees de ordem subjetiva e suas relaccedilotildees com o

pensamento teoacuterico-filosoacutefico sobre a miacutedia fotograacutefica que explicam a presenccedila e valorizaccedilatildeo do

erro fora do circuito artiacutestico ou seja entre usuaacuterios comuns Para tanto vem desenvolvendo um

projeto chamado In Pursuit of Error103 no qual recebe imagens enviadas por amadores Imagens

101 Traduccedilatildeo livre de ldquoToda fotografia es juzgada de manera diferente seguacuten el lugar en el cual se muestra laimagen seguacuten las manos en las que se encuentra y sobre todo de los ojos que la miran La apreciacioacuten variacuteaporejemplo seguacuten la pertenencia del autor - y por extensioacuten del que la observa - a una de las siguientes categoriacuteasartistas aficionados o profesionalesrdquo102 Disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=LCByiio0adQ Acesso em 10022020103 Imagens e tambeacutem com a produccedilatildeo teoacuterica da autora sobre o tema do erro na fotografia contemporacircnea estatildeo nosite do projeto httpsinpursuitoferrorcouk Acesso em 30012020

161

que ldquoderam erradordquo Para ela a fotografia significa um agenciamento complexo entre as

intenccedilotildees humanas e o funcionamento do equipamento e nessa interrelaccedilatildeo haacute um espaccedilo de

abertura invadido de certa maneira pelas circunstacircncias espaccedilo-temporais do ato fotograacutefico

Nesse espaccedilo eacute que o erro digamos assim toma corpo

O erro abre um espaccedilo paradoxal entre a maacutequina e o humano e apresenta esse espaccedilocomo lacuna uma aporia nas convenccedilotildees da praacutetica fotograacutefica tecnoacutelogica eculturalmente Essa aporia eacute uma zona rica em imaginaccedilatildeo surpresa e desconhecimentoque tem sido explorada em si mesma por artistas ao longo dos anos104 (PIPER-WRIGHT Ibidem p1)

Comparando imagens e relatos de usuaacuterios a autora percebe que seja o erro causado por

mal funcionamento do equipamento ou accedilotildees natildeo planejadas pelos usuaacuterios externas ao medium

para eles a causa eacute menos importante do que o resultado e a tendecircncia dominante eacute as imagens

natildeo serem descartadas Ela distingue dois tipos de erro os acidentais e os resultantes da

manipulaccedilatildeo do equipamento Os primeiros seriam causados por uma subjetividade maquiacutenica

atuando sem o controle nem conhecimento preciso do usuaacuterio do que se passa internamente no

dispositivo Jaacute os outros vecircm agrave tona com a intenccedilatildeo de subversatildeo do ldquoprogramardquo da cacircmera

(FLUSSER 2011) Se tanto artistas quanto amadores satildeo capazes de enxergar o caraacuteter

diferencial do erro como elemento criativo o que distingue essas duas categorias de praticantes

da fotografia seria no caso dos primeiros o fato de o erro emergir (curiosamente) em meio a

processos de domiacutenio bastante razoaacutevel da tecnologia e de constante tensionamento do

dispositivo como parte integrante de procedimentos deliberados O que natildeo se verificaria em

relaccedilatildeo aos fotoacutegrafos amadores

O erro deliberado usa a cacircmera contra ela mesma pertubando os paracircmetros para que seproduza o erro na imagem Enquanto haacute determinadas accedilotildees que podem ser previstastambeacutem haacute situaccedilotildees em que o conhecimento de determinado resultado eacute parcial Eu seique reduzindo a velocidade do obturador obtenho um borratildeo mas natildeo posso prever oresultado da imagem apenas com base nessa intervenccedilatildeo A situaccedilatildeo que estaacute sendofotografada bem como a luz e o tempo contribuem com elementos adicionais eimprevisiacuteveis para o resultado105 (PIPER-WRIGHT Ibidem p5)

104 Traduccedilatildeo livre de ldquoThe photographic error opens up a paradoxical space between machine anda human andpresents this space as a gap an aporia in the conventions of photogrpahic practice both technologically andculturally This aporia is a rich space of wonder surprise and not-knowing which in itself has been explored byartists for many yearsrdquo105 Traduccedilatildeo livre de ldquoThe deliberate error uses the camera against itself disrupting the settings in order to producean error image While there are certain actions which can be predicted it is also the case that knowledge of aproposed outcome can only be partial I might know that reducing the shutter speed will produce blur but I cannotpredict what the resulting image will look like based on that intervention alone The situation been photographed aswell as light and time will all contribute additional unforseen elements to the resulting photographrdquo

162

Estas reflexotildees sobre uma zona de fricccedilatildeo entre o controle e a imprevisibilidade

envolvendo a noccedilatildeo de erro ressoam as concepccedilotildees dos artistas incluiacutedos nesta tese sobre a

interaccedilatildeo destes com as tecnologias da imagem mesmo que o estudo de Piper-Wrtight em

questatildeo seja dirigido a fotoacutegrafos amadores Para noacutes seja nas fotografias de amadores ou no

campo da arte o erro expotildee o caraacuteter processual da fotografia (PIPER-WRIGHT Ibidem) algo

percebido igualmente por amadores e artistas pois que todos reconhecem esse espaccedilo de

liberdade presente na nossa relaccedilatildeo com as miacutedias sendo capazes de entender a manifestaccedilatildeo

desse caraacuteter processual como um valor esteacutetico

Para aleacutem dos debates sobre apropriaccedilotildees de amadores ou artistas interessa-nos aqui a

variabilidade de abordagens que exprimem a concepccedilatildeo esteacutetica do erro do ruiacutedo e da falha nas

obras contemporacircneas que pertencem ao universo das tecnoimagens (FLUSSER 2008) em

especial na relevacircncia que estas vecircm adquirindo nos anos recentes como verdadeiras

problematizaccedilotildees de paradigmas centrais para o campo da fotografia Nesse sentido o estudo de

Cheacuteroux oferece outras contribuiccedilotildees que se alinham aos trabalhos presentes em nosso corpus

Em muitos dos exemplos trazidos em seu livro ele ressalta o potencial dos artistas para

criar imagens que brincam com as noccedilotildees de verossimilhanccedila e o mimetismo Segundo o autor o

erro tambeacutem se relaciona com a alteraccedilatildeo da funccedilatildeo mimeacutetica da fotografia (CHEacuteROUX 2009

p188) ndash tema largamente explorado pelos movimentos da vanguarda artiacutestica europeia de

meados de 1920 nas aproximaccedilotildees com o medium fotograacutefico106 ndash originando trabalhos em que

muitas vezes nem eacute mais possiacutevel reconhecer os traccedilos caracteriacutesticos dos objetos ou mesmo de

um rosto Estes podem desfazer-se em linhas pontos pixels deixando agrave mostra os elementos

miacutenimos formadores da imagem que passam a ocupar o centro de nossa atenccedilatildeo (em detrimento

da funccedilatildeo de reconhecimento das formas)

48 ldquoA TECNOIMAGEM Eacute FEITA DE PONTOS GRAtildeOS E PIXELSrdquo

As imagens que compotildeem o trabalho 22474 (2000) de Joseacute Luiacutes Neto figuras 48 e 49

satildeo um bom exemplo dessa perturbaccedilatildeo da mimeses Cada uma das imagens satildeo recortes rostos

isolados de originais produzidos em negativo de vidro de autoria do fotojornalista Joshua

Benoliel (1873-1932) As imagens das quais Joseacute Luiacutes Neto se apropria fazem parte do acervo do

106 A influecircncia desses movimentos eacute sempre lembrada por autores (FATORELLI 2013 BAIO2015 JUNIOR2002)que discutem a abertura os hidridismos e uma atitude questionadora frente aos meios e modelos esteacuteticos e acabamfuncionando como um legado para as geraccedilotildees de artistas posteriores

163

Arquivo Municipal de Lisboa Elas satildeo registros de uma norma (abolida logo apoacutes a tomada

destas imagens) adotada na penitenciaacuteria da capital portuguesa que determinava o uso de capuz

pelos detentos As fotos de Benoliel (figura 47) satildeo tomadas como ponto de partida de uma

investigaccedilatildeo dirigida ao proacuteprio suporte

Figura 47 - 22474 de Joshua Benoliel

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

Se na imagem de Benoliel os sujeitos jaacute estavam reduzidos sob a violecircncia de um capuz

(ali a morte de qualquer singularidade de identidade jaacute se anunciava) o movimento que nos

conduz ao gratildeo da foto aprofunda essa ideia atingindo um verdadeiro esvaziamento pois os

rostos vatildeo se desfazendo em pontos O nuacutemero ldquo22474rdquo faz referecircncia agrave numeraccedilatildeo da imagem

que consta nos registros de arquivamento Toma-se a impessoalidade dos nuacutemeros para transmitir

a frieza do ato de despersonalizar os indiviacuteduos que desaparecem primeiro sob os capuzes que a

todos igualam para depois sumirem novamente na miriacuteade de gratildeos de um segundo negativo

Sim jaacute que os negativos de Benoliel foram refotografados em negativo de celuloacuteide apoacutes a

seleccedilatildeo cuidadosa das aacutereas onde se encontram os rostos As coacutepias finais satildeo ampliaccedilotildees em

tamanho 41 x 31 cm Em comparaccedilatildeo com os originais que medem 9 x 12 cm a escala altera-se

significativamente

164

Joseacute Luiacutes Neto retirou os detentos da cadeia e construiu uma galeria de perturbadoras

cabeccedilas de aspecto fantasmagoacuterico Essa obra faz-nos lembrar as relaccedilotildees entre o fotograacutefico e a

vigilacircncia institucional na dimensatildeo do arquivo uma das funccedilotildees mais importantes que a

fotografia assume desde seu advento O retrato foi o gecircnero obrigatoacuterio na consolidaccedilatildeo de um

amplo regime de controle social que envolveu instituiccedilotildees como manicocircmios hospitais cadeias

delegacias reformatoacuterios para jovens delinquentes e o sistema juriacutedico Ao revisitar essas

questotildees resgatando os negativos de Benoliel Joseacute Luiacutes Neto atualiza o debate sobre identidades

apagadas suprimidas da ldquohistoacuteria oficialrdquo confinadas ao subterracircneo das poliacuteticas de

encarceramento para dar-lhes sobrevida atraveacutes de um olhar renovado sobre o negativo O

substrato poliacutetico das fotografias originais eacute de certa maneira minimizado em favor de uma

investigaccedilatildeo de cunho mais formalista Atraveacutes do movimento radical de aproximaccedilatildeo da

materialidade chegamos ao ponto em que nosso olhar encontra o gratildeo da imagem Aqui podemos

considerar a exploraccedilatildeo esteacutetica do gratildeo como uma modalidade de ruiacutedo que perturba a ideia de

mimetismo jaacute que mexe diretamente com as expectativas de reconhecimento de um referente

qualquer expondo os intervalos entre os gratildeos as diferenccedilas de intensidade nos tons de preto e

branco da imagem Por meio da granulaccedilatildeo assistimos agrave intensificaccedilatildeo da miacutedia fotograacutefica em

sua mateacuteria constituinte uma intensificaccedilatildeo da proacutepria tecnologia (HAINGE 2013) Fernando

Feio que analisou o trabalho por ocasiatildeo da exibiccedilatildeo ao puacuteblico comenta

Ele desloca seu olhar da foto para o proacuteprio negativo a fim de recuperar da maneiramais fiel possiacutevel o material puramente fotograacutefico () A sua expressatildeo continuacentrada na fotografia que aqui natildeo tem nenhuma realidade externa da qual se originaro que eacute fotografado no presente trabalho eacute o gratildeo fotograacutefico na verdade uma impressatildeodireta da realidade Se existe realidade aqui ela pertence ao domiacutenio fotograacutefico e a elaretornaremos (devemos) () Esta eacute portanto uma seacuterie nascida do espanto que vem doolhar atraveacutes da superfiacutecie de um negativo apreciando a disposiccedilatildeo do gratildeo e doaparecimento de uma forma numa dobra da (ir)regularidade do plano (e quem tentouolhar as imagens dessa forma conhece bem o espanto e a maravilha de olhar para ummundo familiar com valores luminosos invertidos onde a luz eacute sempre sombra e asombra torna-se luz) (FEIO online)

165

Figura 48 - 22474 (Joseacute Luiacutes Neto 2000)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

A estrateacutegia de apropriaccedilatildeo praacutetica jaacute disseminada entre diversos artistas

contemporacircneos aqui se articula com a pesquisa mais ampla sobre as possibilidades escondidas

no substrato da imagem fotograacutefica que constitui um traccedilo comum das obras de Joseacute Luiacutes Neto

Nesse sentido esta seacuterie pode tambeacutem ser interpretada como uma homenagem agrave miacutedia

fotograacutefica a busca de um elemento pessoal que pode ser desvendado no olhar de um outro

O trabalho de apropriaccedilatildeo permite-me trabalhar com imagens de outros autores () queme desafiam a encontrar o meu olhar a minha maneira de ver de encontrar pequenosfragmentos de imagem que me permite depois isolar esses fragmentos na procuraexatamente da minha maneira de ver (NETO 2014)

A investigaccedilatildeo da seacuterie 22474 tem continuidade na fotografia imediatamente posterior

de Benoliel que mostra os presos com os rostos descobertos Submetida ao mesmo meacutetodo a

166

imagem identificada pelo nuacutemero seguinte 22475 fragmentada refotografada e ampliada torna-

se ainda mais sintomaacutetica da operaccedilatildeo de apagamento das identidades pois agora vemos de fato

os rostos perderem-se na granulaccedilatildeo107 do negativo O processo ecoa o comportamento obcecado

do personagem principal de Blow up (Michelangelo Antonioni 1966) que no intuito de

desvendar um assassinato amplia exaustivamente uma fotografia na qual apenas ele enxerga

haver um corpo Em ambos os casos estaacute impliacutecita a ideia de que a imagem natildeo passa de uma

ficccedilatildeo construiacuteda atraveacutes de liames muito fraacutegeis com o real

Figura 49 - Imagens da seacuterie 22745 (Joseacute Luis Neto2003)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Utilizando como base o mesmo procedimento de aproximar-se da miacutedia o brasileiro

Caacutessio Vasconcellos elaborou uma seacuterie chamada Rostos (1990) Submetendo ao congelamento a

imagem fugidia do viacutedeo Vasconcellos fotografa em Polaroid rostos de atores e atrizes de

107 Outro trabalho bastante interessante que promove uma espeacutecie de ldquoelogio do gratildeordquo eacute The Enlargement de UgoMulas no qual foram feitas imagens do ceacuteu ampliadas ateacute o ponto de o gratildeo do negativo ficar aparente Em seguidasatildeo escolhidos detalhes das mesmas imagens para nova ampliaccedilatildeo O ceacuteu entatildeo desaparece e ficamos somente comos gratildeos Para mais detalhes sobre os trabalhos de Ugo Mulas ver Lenot 2017a p27-33 As imagens estatildeodisponiacuteveis em httpwwwugomulasorgindexcgiaction=viewampidramo=1090233762amplang=eng Acesso em04052020

167

produccedilotildees cinematograacuteficas Atravessando diferentes meios partindo do movimento e chegando

ao estaacutetico atraveacutes de uma verdadeira desaceleraccedilatildeo das imagens o que resta eacute uma espeacutecie de

apariccedilatildeo do fotograacutefico aprisionado na imagem moacutevel Nesses enquadramentos que se

aproximam do close up as fotografias ganham um aspecto desfocado As fisionomias adquirem

cores artificiais (ressaltadas pela esteacutetica da Polaroid) flutuando sobre um fundo negro Rostos

sem qualquer ligaccedilatildeo com um corpo que de tatildeo proacuteximos ao nosso olhar perdem os contornos A

estrateacutegia de isolar planos dos filmes escolhidos natildeo consegue nos apartar totalmente do cinema

pois nos faz lembrar do close que assim como a cacircmera lenta assinala uma ldquoconfiguraccedilatildeo pouco

previsiacutevelrdquo (FATORELLI 2013 p44) da imagem operada pelo retardamento de seu movimento

Dubois (2004) Fatorelli (2013) e Bellour (1997) entre outros jaacute atentaram para a

natureza irregular intermediaacuteria e por isso mesmo bastante criativa do viacutedeo Como zona de

passagem entre o cinema a fotografia e as miacutedias digitais o viacutedeo eacute compreendido na seacuterie do

fotoacutegrafo paulistano exatamente como esse ambiente graacutevido das dimensotildees muacuteltiplas da

imagem que ele explora atraveacutes da articulaccedilatildeo com a cacircmera instantacircnea da Polaroid De certo

modo podemos dizer que o presente da imagem eletrocircnica encontra-se restituiacutedo quando ganha

vida na fotografia instantacircnea materializando-se no espaccedilo da Polaroid Rostos perdidos em

meio agrave continuidade narrativa adquirem relevacircncia quando retirados do fluxo da montagem pelo

gesto da captura promovia pelo dispositivo fotograacutefico Ocorre aqui algo parecido com o Bellour

(Ibidem) chama de ldquotomada fotograacutefica do filmerdquo que eacute uma parada da imagem moacutevel que a

torna proacutexima do fotograacutefico

Na seacuterie Rostos (1990) conforme as figuras de nuacutemero 50 50a e 50b transitam

diferentes miacutedias e estatutos da imagem e as fisionomias satildeo submetidas a um processo que

ressalta a dissoluccedilatildeo da forma atraveacutes do desfocado e da ecircnfase na cor Um investimento na

abordagem da imagem como artifiacutecio

168

Figuras 50 50a e 50b - Rostos (Caacutessio Vasconcellos 1990)

169

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

49 ldquoA TUA PRESENCcedilA Eacute BRANCA VERDE VERMELHA AZUL E AMARELArdquo

As experiecircncias com os efeitos das cores na imagem tambeacutem estatildeo presentes em outros

trabalhos de nosso corpus podendo sua exploraccedilatildeo ser entendida como mais uma forma de

potencializar o ruiacutedo contido nos materiais empregados na produccedilatildeo das obras As imagens de

Febre (2002) (figura 51) de Cris Bierrenbach surgiram quase que de uma brincadeira na qual se

aplicou uma substacircncia a uma coacutepia fotograacutefica que aos poucos foi modificando completamente

a imagem A fotoacutegrafa natildeo sabia de antematildeo qual seria o resultado e comeccedilou o processo apenas

pela vontade de experimentar Ela simplesmente se deparou com um retrato antigo comeccedilou a

manipulaacute-lo e percebeu que o rosto comeccedilava a se desfazer adquirindo uma tonalidade

vermelha A dissoluccedilatildeo da fisionomia intensificava-se cada vez mais A digitalizaccedilatildeo num

scanner desregulado ampliou o efeito das cores e a artista achou entatildeo que o trabalho

representava perfeitamente sensaccedilotildees tiacutepicas das mulheres em periacuteodos menstruais

() Quando eu vi aquilo saturado eu falei Uau Foi completamente sem querer () Euia mexer tentar fazer alguma coisa mas eu nem precisei porque quando veio aquelacoisa saturada no vermelho () aquilo falava comigo Quando eu vi aquele negoacutecio

170

desmontando desfazendo Foi tudo meio casual mas quando eu vi aquilo era pra mimtanto a representaccedilatildeo de estados de espiacuterito de raiva de tensatildeo de sangue de dor deuma coisa menstrual () Eu tinha muita coacutelica de menstruaccedilatildeo eu precisava tomar anti-inflamatoacuterio pra passar dor entatildeo era assim ldquoeu falei nossa eu acho que eu fico assimalguns diasrdquo Eacute essa transformaccedilatildeo parece que eacute uma coisa que toma por dentro sei laacute() Tinha uma outra parecida e eu peguei a outra e comecei a fazer de outro jeito ()(BIERRENBACH 2018)

Com base na destruiccedilatildeo de um rosto aqui se constroacutei uma personagem estranha que

surge completamente da interaccedilatildeo de substacircncias aplicadas a uma imagem jaacute processada e

posteriormente submetida agrave leitura do digitalizador Em cada uma dessas etapas os traccedilos das

miacutedias vatildeo se acrescentando para compor a imagem final Eacute particularmente interessante a

questatildeo de uma leitura ldquodesviadardquo feita pelo scanner resultar na saturaccedilatildeo incomum do vermelho

e como essa fuga de um padratildeo cromaacutetico foi justamente o que interessou agrave fotoacutegrafa Atraveacutes

das vaacuterias fases de manipulaccedilatildeo da imagem essas cores foram sendo liberadas pouco a pouco

Confrontando diretamente a representaccedilatildeo mais claacutessica da identidade (o retrato) e promovendo

a destruiccedilatildeo de seus traccedilos fisionocircmicos a artista alcanccedilou uma representaccedilatildeo que cria uma

identificaccedilatildeo com qualquer mulher poreacutem natildeo no niacutevel descritivo mas simboacutelico

Figura 51 - Febre (Cris Bierrenbach 2002)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Artifiacutecios que trazem agrave tona cores estranhas ao processo fotograacutefico tradicional tambeacutem

satildeo parte essencial da seacuterie Noturnos (1998-2004) de Caacutessio Vasconcellos (figuras 52 e 53)

171

desenvolvida em cidades do Brasil Franccedila e Estados Unidos O intuito era fotografar com uma

cacircmera Polaroid apenas ambientes noturnos (alguns ateacute pontos turiacutesticos) Poreacutem aleacutem dos

enquadramentos fechados que tornam irreconheciacuteveis alguns desses locais foi utilizada uma luz

adicional (lanterna ou holofote com filtro colorido) que alterou as tonalidades originais dos

objetos frente agrave cacircmera

Figura 52 - Aeroporto de Congonhas 4 (Caacutessio Vasconcellos 2002)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

O despojamento de um equipamento como a Polaroid cuja instantaneidade eacute marca

registrada do elemento surpresa do fotograacutefico combina-se nesse projeto com o fato de

Vasconcellos ter realizado as imagens agrave medida que ia (re)descobrindo o espaccedilo urbano

(primeiramente da cidade Satildeo Paulo) sem muita rigidez de planejamento A ideia inicial era

apenas lanccedilar um olhar sobre as facetas escondidas de sua cidade natal As andanccedilas por lugares

que normalmente estatildeo submersos no vai-e-vem dos transeuntes e o esquadrinhamento de um

olhar atento agraves particularidades das formas das linhas de edifiacutecios muros das silhuetas

desenhadas pela penumbra na superfiacutecie dos objetos constroacutei uma paisagem cheia de vida que

nasce dos cantos esquecidos exatamente pela forccedila das cores Vasconcellos arma uma estrateacutegia

teacutecnica que permite fazer surgir das sombras noturnas uma profusatildeo de cores Na verdade

podemos dizer que a luz adicional depositada sobre formas de diferentes tonalidades exprime o

excesso de cada cor ou seja faz emergir uma potecircncia escondida de cada azul amarelo verde

vermelho O resultado eacute de um aspecto fantaacutestico

172

Como uma marca registrada procuro a singularidade o limite entre o real e oimaginaacuterio Nessas fotos particularmente busquei formas de retratar uma visatildeo pessoale distinta Tentei resgatar o que estaacute invisiacutevel ou o que natildeo eacute tatildeo expliacutecito Encontrar nafotografia a beleza escondida no comum no caos no feio () (VASCONCELLOS2002 p6)

O caoacutetico a feiura e o estranhamento que surgem do cotidiano ou melhor que se

esconde sob a pele da normalidade satildeo simbolismos bastante associados ao tema do ruiacutedo

(HAINGE 2013) Na seacuterie Norturnos esse ruiacutedo eacute o desconhecido que nasce das formas

construiacutedas atraveacutes de enquadramentos inclinados de paisagens sem linha do horizonte

entrecortadas por placas muros que se sobrepotildeem de maneira confusa agraves vezes enganando o

nosso olhar que por sua vez encontra dificuldade em reconhecer aquilo que fita E surge tambeacutem

da exploraccedilatildeo dos efeitos da luz e da interpretaccedilatildeo ldquoerradardquo do sistema da Polaroid que nos daacute

tonalidades novas A apropriaccedilatildeo poeacutetica da Polaroid inscreve-se numa tradiccedilatildeo que de certo

modo ironiza e critica a sofisticaccedilatildeo dos dispositivos de imagem representada por artistas como

Andy Warhol (1928-1987) Paolo Gioli (1942- ) William Eggleston (1939- ) sendo este uacuteltimo

fortemente interessado na questatildeo da cor assim como Vasconcellos

Desde o iniacutecio usei o mesmo tipo de cacircmera uma antiga maacutequina Polaroid SX-70 dadeacutecada de 70 um claacutessico da fotografia no seu estilo Meu trabalho pessoal eacutebasicamente em preto e branco Cor somente em Polaroid que confere agraves fotos umresultado peculiar em resoluccedilatildeo e textura justamente o que me fascina(VASCONCELLOS 2002 p6)

Nos dias de hoje o formato vem sendo revisitado em projetos comerciais como o

Impossible Project108 que reveste seu negoacutecio com uma aura de saudosismo perfeitamente

adaptaacutevel ao estilo cool ao qual a esteacutetica Polaroid foi sendo associada ao longo do tempo

(justamente pela investida dos artistas) Mas na proposta do fotoacutegrafo paulistano o dispositivo

natildeo eacute empregado nessa atitude saudosista nem tatildeo pouco purista Ela eacute desprogramada pela

intromissatildeo da luz adicional no processo (um elemento necessaacuterio jaacute que todo o trabalho eacute

noturno) o que contribui para um forte aspecto de artificialidade dessas imagens As originais em

Polaroid ainda foram escaneadas e impressas em jato de tinta ou seja acrescenta-se ainda mais

uma ldquocamadardquo de processamento da imagem O autor quis inventar uma cidade surreal onde o

108 No site do Impossible Project toda a estrateacutegia de venda dos produtos (cacircmeras e filmes) converge para uma ideiade autenticidade ligada ao formato Polaroid como padratildeo da fotografia instantacircnea Mas sem perder de vista ocenaacuterio de convergecircncia dos meios entre os produtos oferecidos jaacute haacute um equipamento que recebe imagens digitais eimprime-as em formato Polaroid (o Polaroid Lab) Conferir httpseupolaroidoriginalscom Acesso em07022020

173

burburinho e a agitaccedilatildeo estatildeo nas entrelinhas impliacutecitos numa espeacutecie de tensatildeo inaudita Tais

condiccedilotildees de um misteacuterio escondido sob a aparecircncia da calmaria jaacute satildeo lugar-comum no

imaginaacuterio sobre a noite na literatura no cinema e ecoa a presenccedila de um ruiacutedo contido

subentendido no conhecido no comum

Figura 53- Avenida Paulista 7 (Caacutessio Vasconcellos 2001)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

410 ldquoQUANDO DAGUERRE ENCONTRA O PHOTOSHOPrdquo

Entre as estrateacutegias que tornam sensiacutevel a presenccedila do ruiacutedo na imagem contemporacircnea

estatildeo as reapropriaccedilotildees de teacutecnicas histoacutericas da fotografia Tomadas de forma mais maleaacutevel

atraveacutes de metodologias adaptadas reinventadas pelos e pelas artistas (distantes de uma noccedilatildeo

purista e nostaacutelgica com a historiografia do meio) Nesse sentido as obras de Cris Bierrenbach

satildeo exemplares

Natural da cidade de Satildeo Paulo apaixonou-se pela fotografia na eacutepoca em que estudava

cinema e acabou depois trabalhando para o jornal Folha de Satildeo Paulo Um de seus primeiros

174

trabalhos ldquoque foge da fotografia direta109rdquo (BIERRENBACH online 2017) eacute resultado jaacute do

interesse pelas experimentaccedilotildees com as teacutecnicas da imagem Em Dois homens no centro (1992)

(figura 54) primeiro o negativo utilizado foi impresso pelo lado contraacuterio e em seguida foi feita

uma sobreimpressatildeo com uma teacutecnica diferente

Figura 54 - Dois homens no centro (Cris Bierrenbach 1992)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

As imagens acima foram realizadas em negativo 35mm mas a paulista eacute conhecida pelo

uso em diversas obras de teacutecnicas como goma bicromatada cianotipia papel salgado e

daguerreotipia Para ela o interesse em revisitar esses processos antigos estaacute tambeacutem no fato de

que o erro vem junto com o fazer

Eacute o que eu mais gosto da praacutetica desses processos do seacuteculo 19 porque eles datildeo tantoerrado E que no erro muitas ideias aparecem () Eu falo isso quando eu dou aulaspalestras () vocecirc tem que errar tem que jogar com a imagem () As pessoas queremmuito ter controle de tudo Bota uma ideia na cabeccedila e vai fazer uma coisa que nuncafez e vai ter um trabalho pronto e natildeo eacute assim110 (BIERRENBACH 2018)

Nas primeiras tentativas de realizar projetos usando o daguerreoacutetipo os erros

transformam-se em oportunidades Foi o que aconteceu com a obra Vitral (figura 55) Pensando

109 1ordm Ciclo de fotografia - Cidade Ivertida Disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=MUp098qZLDYAcesso em 05022020110 Entrevista concedida agrave autora desta tese

175

que os vitrais contam histoacuterias (como os das igrejas com passagens da via Crucis por exemplo)

Bierrenbach fotografou meninos e meninas de rua e juntou suas imagens com as de outros

colegas do fotojornalismo As fotografias das crianccedilas foram impressas em espelhos baratos

numa referecircncia direta agrave superfiacutecie espelhada dos daguerreoacutetipos que ainda natildeo tinha conseguido

produzir Ou seja na tentativa de ldquofazerrdquo um daguerreoacutetipo ela descobriu uma esteacutetica uacutenica

fruto da impressatildeo num outro material refletor (o espelho)

Figura 55 - Detalhe da instalaccedilatildeo Vitrais (Cris Bierrenbach 1996)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista111

O caraacuteter do imprevisiacutevel nesse caso levou agrave descoberta de uma alternativa ao

daguerreoacutetipo Aceitando essa imprevisibilidade como parte inerente ao trabalho Cris

Bierrenbach utiliza as teacutecnicas claacutessicas introduzindo modificaccedilotildees nos processos Tambeacutem jaacute

desenvolveu obras a partir de slide e papel fotograacutefico mas com base numa ideia de hibridismo

111 Sugerimos visualizar o trabalho na versatildeo integral Disponiacutevel em httpscrisbierrenbachcompessoalvitralAcesso em 05022020

176

entre as tecnologias que permite por exemplo criar peccedilas uacutenicas mas que passaram em algum

momento de sua produccedilatildeo pelo scanner ou que foram originalmente tomadas com o celular ldquoEu

fotografo com tudo Celular cacircmera digital 35 fullframe () Aleacutem das analoacutegicas Eu uso

qualquer negoacutecio Porque tambeacutem o que me interessa eacute fazer o cruzamento do analoacutegico com o

digitalrdquo (BIERRENBACH 2018)

O desprendimento em relaccedilatildeo ao equipamento escolhido e a proposta de articular

diferentes miacutedias ficam evidentes em obras como O encontro (2011) (figura 56) uma sequecircncia

que tem como ponto de partida uma imagem realizada em negativo digitalizada e finalizada em

formato daguerreoacutetipo O procedimento eacute o seguinte as fotos digitalizadas satildeo fundidas com

auxiacutelio do Photoshop e em seguida transmitidas para o daguerreoacutetipo O percurso inicia no seacuteculo

XX passa pelo seacuteculo XXI e retrocede ao seacuteculo XIX A limpeza do tratamento digital da

imagem eacute contrabalanccedilada pela saiacuteda em daguerreoacutetipo que apresenta algumas falhas na borda

das imagens A teacutecnica do daguerreoacutetipo tambeacutem natildeo eacute reproduzida agrave risca exatamente como se

fazia antigamente Ela eacute adaptada aos propoacutesitos da obra gerando uma esteacutetica que se afasta do

padratildeo claacutessico

O daguerreoacutetipo eacute a uacutenica fotografia que natildeo tem emulsatildeo () Eu parto de uma chapaprateada super polida Ela eacute um espelho Um espelho perfeito quanto mais espelhomelhor Aiacute eu coloco essa placa numa caixa com vapor de iodo entatildeo o vapor naverdade () nada encosta na placa O vapor vai deixar ela fotossensiacutevel () O processoque eu faccedilo natildeo tem outro vapor () eu faccedilo um vapor soacute e depois eu revelo na luz Eacutedifiacutecil de explicar () Nem tem muito que explicar porque natildeo se sabe direito o queacontece () Vocecirc fixa e coloca um filtro vermelho e volta pra luz Aiacute a imagem eacuterevelada (BIERRENBACH 2018)

Bierrenbach introduz uma artimanha no processo tradicional Pela teacutecnica claacutessica um

daguerreoacutetipo utiliza uma chapa de cobre sensibilizada com vapor de iodo que apoacutes exposta

conserva uma imagem latente que eacute por sua vez revelada com vapor de mercuacuterio Este uacuteltimo

passo eacute que a fotoacutegrafa dispensa optando por revelar sua imagem direto com a accedilatildeo da luz num

procedimento especiacutefico envolto ateacute num certo misteacuterio Essa intervenccedilatildeo nas ldquoregras do jogordquo eacute

um traccedilo distintivo dosdas artistas que utilizam a fotografia numa abordagem experimental

(LENOT 2017) A maneira com que se apropriam das tecnologias eacute geralmente muito particular

pois submetem os materiais a diversas adaptaccedilotildees em vez de utilizaacute-los conforme os paracircmetros

industriais tambeacutem com forma de criacutetica ao uso alienado das miacutedias Para Juacutenior (2006) a

177

fotografia expandida (que se distingue pelos hibridismos) associa-se tambeacutem a esse olhar

retrospectivo para teacutecnicas antigas perifeacutericas eou esquecidas que satildeo contudo retomadas a

partir de um vieacutes criacutetico Elas satildeo resgatadas para nos fazer refletir tanto sobre o niacutevel de

automaccedilatildeo com que produzimos imagens quanto para demonstrar que haacute modalidades do visiacutevel

ainda por revelar nessas tecnologias As praacuteticas de Cris Bierrenbach podem assim ser colocadas

ao lado dos procedimentos de Dirceu Maueacutes e Luiz Alberto Guimaratildees (no sentido das

apropriaccedilotildees das teacutecnicas claacutessicas da imagem fotograacutefica) guardadas as devidas singularidades

nas temaacuteticas a formas de abordagem

Figura 56 - O encontro (Cris Bierrenbach 2011)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

De volta a O encontro buscou-se a criaccedilatildeo de um personagem hiacutebrido algo indefinido

entre masculino e feminino (pela fusatildeo das duas cabeccedilas) O modelo de um retrato antropoloacutegico

178

(tomada de perfil) eacute utilizado para refletir sobre a natureza permeaacutevel e fluida das relaccedilotildees

afetivas e do gecircnero

() eu fotografei um amigo meu que eacute careca tambeacutem Entatildeo eu tratei dois personagensum pouco quase sem gecircnero () Claro que daacute pra ver que eacute um homem e uma mulhermas o assunto da careca eacute pra ter essas duas pessoas um pouco mais iguais possiacuteveis Prafazer um comentaacuterio (que eu faccedilo em outros trabalhos) sobre as relaccedilotildees afetivas Sobreo que eacute encontro afetivo que na minha opiniatildeo eacute um pouco um jogo uma soma mastambeacutem uma dissoluccedilatildeo () Tem vaacuterias maneiras de a gente ver mas tambeacutem temvaacuterios tipos de relaccedilotildees afetivas neacute Tem as que acontecem e permanecem tem as queacontecem e acabam ()112 (BIERRENBACH 2019)

Esse entrelugar do gecircnero tambeacutem simboliza o ruiacutedo no sentido de que da interlocuccedilatildeo

entre as figuras masculina e feminina cria-se um terceiro ser que natildeo tem gecircnero definido mas

que surge desse movimento de fusatildeo de mistura Uma entidade singular que ocupa um espaccedilo

existente em alternativa agraves modalidades socialmente demarcadas de masculino e feminino A

escolha pelo formato ldquoretrato antropoloacutegicordquo tambeacutem evoca essa dimensatildeo de perturbaccedilatildeo de um

padratildeo como modelo associado agraves funccedilotildees de identificaccedilatildeo de demarcaccedilatildeo de uma persona

social e de certa pretensatildeo cientiacutefica aqui o estilo eacute ressignificado para implodir a noccedilatildeo de

gecircnero atrelada ao sexo bioloacutegico Um efeito expresso natildeo apenas pela operaccedilatildeo de fusatildeo das

cabeccedilas (confundindo as identidades preacutevias) mas tambeacutem pela semelhanccedila estabelecida entre os

personagens ambos carecas Aleacutem disso o formato sequencial das imagens forja um movimento

que aproxima o trabalho do cinema ao estilo das obras de Duane Michaels (BIERRENBACH

2019)

A sequecircncia fotograacutefica conforme analisa Fatorelli (2013) em relaccedilatildeo a algumas obras

de Andy Warhol sugere mais uma possibilidade de desdobramento do instante fotograacutefico No

caso do artista norte-americano citado por Fatorelli eacute a repeticcedilatildeo de uma mesma imagem que de

certa maneira faz o instantacircneo animar-se a ponto de quase alcanccedilar o movimento De forma

parecida notamos essa inclinaccedilatildeo para a mobilidade da imagem fixa na estrutura de O encontro

a sequecircncia de imagens sugere claramente uma ideia de montagem de sucessatildeo de

temposmomentos que combina com a dinacircmica das relaccedilotildees afetivas Note-se que em conjunto

as imagens demandam o olhar por um tempo mais demorado prolongado em confronto com a

apreensatildeo da imagem uacutenica A respeito de trabalhos de Andy Warhol fundados nesse princiacutepio

Fatorelli (2013 p67) comenta que mudam o ldquomodo de percepccedilatildeo da obra e os modos de

participaccedilatildeo do espectadorrdquo exatamente porque a estrateacutegia da repeticcedilatildeo acusa uma modalidade

112 Entrevista concedida agrave autora desta tese em 2019

179

que se constroacutei a partir da imagem uacutenica mas estaacute aleacutem dela desdobra-se expande-se

ultrapassa-a Efeito semelhante ocorre na obra de Bierrenbach

O jogo entre fixidez e mobilidade tambeacutem originado na exploraccedilatildeo do instante

fotograacutefico eacute a base de um outro trabalho realizado em goma bicromatada As mulheres de Lot

(figura 57) A goma bicromatada eacute um processo de impressatildeo por contato inventado em 1849

sendo bastante apreciada pelos pictorialistas da virada do seacuteculo XX e caracterizada

esteticamente pela semelhanccedila com desenhos produzidos com carvatildeo ou pastel (ANTONINI et

al2015) A utilizaccedilatildeo da luz inclui a teacutecnica no rol dos processos fotograacuteficos mas suas

caracteriacutesticas visuais acabam por aproximaacute-la do escopo do desenho como se fosse uma

ldquoembaixatriz fotograacutefica das artes plaacutesticasrdquo (JAMES 2015 p488) Como as etapas de

construccedilatildeo da imagem exigem a aplicaccedilatildeo de pigmentos com pincel a metodologia da goma

bicromatada assenta-se num gesto pictoacuterico e dessa maneira carrega as marcas dessa presenccedila

fiacutesica doda artista As imagens tecircm a textura aparente do suporte utilizado (o mais comum eacute o

papel) e os contornos natildeo se afiguram rigidamente definidos

Figura 57 - As mulheres de Lot (Cris Bierrenbach 1993)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

180

Como o processo eacute adaptaacutevel e apresenta resultados variados Bierrenbach cogitou

utilizar a goma bicromatada em superfiacutecies tatildeo diversas quanto tecido madeira ou ateacute na

alvenaria de uma parede questionando assim os limites das impressotildees fotograacuteficas em papel

Para este trabalho escolheu a lixa Lot eacute um personagem biacuteblico ligado agrave narrativa da cidade de

Sodoma Ele recebe um aviso de Deus a cidade seraacute destruiacuteda mas a Lot eacute permitido fugir antes

que isso aconteccedila contanto que saia com sua famiacutelia sem olhar para traacutes O problema eacute que sua

mulher no uacuteltimo instante vira-se para fazer exatamente o que fora proibido A mulher

transforma-se entatildeo numa estaacutetua de sal

Isso era uma coisa muito forte natildeo soacute a cidade ser destruiacuteda mas a mulher ela daacute aquelaolhadinha e fica ali que nem uma estaacutetua () Eacute o seu uacuteltimo instante e aiacute eu escolhifazer a impressatildeo com goma bicromatada pelo mesmo motivo que eu fiz as linhas nopapel manteiga113 eu imprimo na lixa pra dar esse aspecto aacutespero que remete um poucoa areia sal deserto uma coisa aacutespera dura Hoje na verdade apesar de serem muitasmulheres eacute como se fosse uma soacute ou como se fossem todas Eu natildeo queria umarepresentaccedilatildeo fiel de emoccedilatildeo delas () eacute diferente mas eacute igual Natildeo queria a fidelidadefotograacutefica e a lixa mais a goma bicromatada me davam natildeo soacute essa textura mastambeacutem esse erro o que eu queria (BIERRENBACH 2019)

Para tematizar natildeo somente a desgraccedila da mulher que por seu ato transforma-se numa

estaacutetua a fotoacutegrafa convidou diversas mulheres para representar esse momento derradeiro Todas

unidas diferentes entre si associam-se num movimento semelhante de repeticcedilatildeo do gesto que ao

mesmo tempo as eterniza na imagem e permanece sinocircnimo de sua morte Cada fotografia eacute o

uacuteltimo instante de cada mulher mas esse instante se estende em todas as outras mulheres Eacute um

instante expandido que extrapola o tempo congelado ldquoEacute uma coisa um pouco jornaliacutestica do

retrato um pouco cinematograacutefica da faculdade do tempo e da representaccedilatildeo () esse uacuteltimo

segundo absoluto que tem a ver com a fotografiardquo (BIERRENBACH online 2017) Tons

terrosos e a textura da lixa a que se refere a artista tambeacutem ajudam a perturbar a nitidez da

imagem criando um efeito de aridez que remete ao deserto por onde se daacute a fuga de Lot e seus

parentes Recriada agraves centenas a mulher de Lot adquire cores diferentes fisionomias muacuteltiplas

costuradas uma ao lado da outra numa verdadeira montagem de foto(gramas) Aliaacutes vaacuterios

trabalhos de Bierrenbach concentram parte de sua forccedila expressiva na delicada metodologia

artesanal que envolve as tecnologias escolhidas o que tem uma relaccedilatildeo direta com o tempo longo

de elaboraccedilatildeo

113 Refere-se agrave seacuterie The lines of my life onde o suporte da imagem eacute papel manteiga Disponiacutevel emhttpscrisbierrenbachcompessoalfotothe-lines-of-my-life Acesso em 07022020

181

O sentido de movimento eacute levado a outros limites no viacutedeo VaacutecuoMoccedilambique (figura

58)114 Nele as fotografias tomadas em negativo 35mm satildeo utilizadas para falar sobre a passagem

do tempo sobre casas abandonadas A ideia de que o tempo desgasta a arquitetura ateacute o

desaparecimento desta eacute sugerida por meio de vaacuterias manipulaccedilotildees que fazem as casas sumirem

a cada alternacircncia de plano O tempo destroacutei as formas que se transformam em linhas coloridas

As habitaccedilotildees foram encontradas durante uma viagem em que os percursos eram feitos de carro

Pra mim no iniacutecio era como se fossem monumentos do que tinha sido essa grandehistoacuteria de Moccedilambique mas natildeo eacute isso Elas satildeo uma coisa de passagem de tempo Eaiacute eu fiz esse trabalho recriando essa minha suposta viagem e eu peguei cada imagem edescontruiacute ela digitalmente descontruiacutea uma e descontruiacutea outra e juntava essadesconstruccedilatildeo e criei essa ideia de movimento (BIERRENBACH online 2017)

Figura 58 - Trechos do viacutedeo VaacutecuoMoccedilambique (Cris Bierrenbach2009)

Fonte Reproduccedilatildeo Youtube

114 Disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=zb2z7xOk3coampt=109s Acesso em 08042020

182

Segundo Bellour (1997) o tracircnsito entre estaacutetico e moacutevel implica geralmente a mutaccedilatildeo

plaacutestica das configuraccedilotildees da imagem que eacute exatamente o que acontece nesse viacutedeo Formato

intermediaacuterio entre cinema e fotografia o viacutedeo desempenha esse papel de maleabilidade de

experiecircncias de fluidez viabilizado pelas teacutecnicas do computador (questatildeo essencial para a

videoarte) Essas mutaccedilotildees levam a imagem para um lugar aleacutem da analogia da reproduccedilatildeo do

visiacutevel Mas o viacutedeo arrasta a imagem a outros territoacuterios sem deixar de fazer referecircncia agrave

modalidades anteriores pois ldquonatildeo pode ser apreendido sem referecircncia ao que altera ndash o cinema

assim como outras artes (artes plaacutesticas muacutesica) em suma tudo de onde ele proveacutem e para onde

volta sem cessarrdquo (BELLOUR 1997 p14) Aiacute encontramos no viacutedeo uma natureza ruidosa (ao

mesmo tempo relacional e diletante) natildeo soacute neste trabalho mas de outros que potildeem em discussatildeo

a interlocuccedilatildeo entre foto e cinema A situaccedilatildeo intermeacutedia a que se refere o pesquisador francecircs eacute

confirmada pelo fato de que esta obra pode ser exibida tanto em formato viacutedeo quanto em seacuterie

de slides fotograacuteficos (BIERRENBACH 2014) Sua versatilidade em fazer interagir o

movimento e o congelamento permite que as condiccedilotildees de acessibilidade agrave obra sejam tambeacutem

mutaacuteveis

183

5 FALHAS BUGS E DESCONTINUIDADES SISTEcircMICAS

No iniacutecio havia apenas o ruiacutedo E entatildeo o artista passou do gratildeo deceluloacuteide para a distorccedilatildeo magneacutetica e o escaneamento de linhas de tubosde raios catoacutedicos Ele vagou por planos de monitores queimados apagoupixels mortos e agora faz performances baseadas na destruiccedilatildeo de telas deLCD - Manifesto de estudos em glitch Rosa Menkman

51ldquoCOMPUTADORES FAZEM ARTE ARTISTAS FAZEM DINHEIROrdquo

Ao longo da discussatildeo aqui feita sobre o ruiacutedo alguns autores jaacute citados evocam

tambeacutem termos como ldquoerrordquo e ldquofalhardquo que possuem uma vinculaccedilatildeo mais direta ao universo dos

sistemas informaacuteticos e relacionam-se igualmente como movimentos de diferenciaccedilatildeo

deslocamentos O brasileiro Erick Felinto (2013) eacute um pesquisador interessado em como a

questatildeo do ruiacutedo pode ser observada nos campos da comunicaccedilatildeo e das artes mas tambeacutem

assinala a influecircncia da cultura digital no interesse recente pelo tema e reflete

Mas por que motivo entatildeo dever-se-ia valorizar o ruiacutedo Ora o ruiacutedo eacute aquilo queescapa ao controle que perturba a ordem que questiona o sistema Paradoxalmente eleeacute aquilo que obstaculariza o funcionamento do sistema mas que ao mesmo tempotambeacutem o torna possiacutevel De fato a ordem se constitui atraveacutes de sua oposiccedilatildeo agravedesordem O erro o ruiacutedo satildeo responsaacuteveis por aquele aspecto de imprevisibilidade semo qual natildeo poderia existir diferenccedila e portanto a dimensatildeo produtiva do sistema Umsistema eacute produtivo ao estabelecer diferenccedila em relaccedilatildeo ao seu exterior Fosse eleinteiramente fechado sem brechas autocontido suas possibilidades produtivas seriamextremamente limitadas Eacute por essa razatildeo que a intrigante arqueologia dos viacuterus decomputador empreendida por Jussi Parikka natildeo os analisa unicamente como merasperturbaccedilotildees ou ruiacutedos dos sistemas informaacuteticos No complexo mundo tecnocultural emque vivemos os acidentes e viacuterus possuem uma dimensatildeo produtiva Acidentes natildeo satildeocomo numa concepccedilatildeo aristoteacutelica externos em relaccedilatildeo aos dispositivos teacutecnicos queafetam mas sim constitutivos desses mesmos aparatos115 (FELINTO 2013 p58)

Natildeo agrave toa em algum momento de suas anaacutelises praticamente todos esses autores e

autoras aos quais estamos nos reportando ao longo de nosso texto fazem referecircncia agrave teoria da

comunicaccedilatildeo e sua relaccedilatildeo com o tema do ruiacutedo segundo Shannon e Weaver o ruiacutedo atrapalha a

leitura de uma mensagem comprometendo a sua transmissatildeo e a percepccedilatildeo do destinataacuterio

115 Grifos do autor

184

() Eacute infelizmente caracteriacutestico que certas coisas satildeo adicionadas ao sinal coisas natildeointencionadas pela fonte de informaccedilatildeo Essas adiccedilotildees indesejadas podem ser distorccedilotildeessonoras (num telefone por exemplo) ou estaacuteticas (raacutedio) distorccedilotildees nas formas esombras da imagem (televisatildeo) erros na transmissatildeo (teleacutegrafo ou fac-siacutemile) etc Todasessas mudanccedilas no sinal transmitido satildeo ruiacutedos116 (SHANNON amp WEAVER apudHAINGE 2013 p3)

Ora essa teoria dos anos 1940-50 chama atenccedilatildeo para a presenccedila ldquoindesejaacutevelrdquo do ruiacutedo

mas admite que ele natildeo impede a transmissatildeo da mensagem Eacute como se agrave medida que enfatizam

um problema os teoacutericos acabassem reconhecendo a impossibilidade de um sistema funcionar

sem o ruiacutedo No veneno estaria o antiacutedoto117

Aleacutem de reconhecer a impossibilidade de a informaccedilatildeo se ver livre do ruiacutedo a teoria de

Shannon e Weaver entende o ruiacutedo como processos materiais que reorganizam o sistema atraveacutes

de distraccedilotildees e rupturas (BALLARD 2011 p68) questatildeo importante se estamos aqui

interessados nas obras em que o ruiacutedo desafia padrotildees da imagem ligados agrave indexicabilidade agrave

imagem uacutenica e sem interferecircncias

Tais consideraccedilotildees nos conduzem agrave outra caracteriacutestica do ruiacutedo sua natureza relacional

Se natildeo pode ser extirpado do sistema espaccedilo ou contexto que lhe daacute origem o ruiacutedo seraacute

reconhecido ou identificado em comparaccedilatildeo ao que ele natildeo eacute Emerge misturado ao que se opotildee

natildeo podendo existir de forma independente isolada

A artista e professora Xtine Burrough (2011 p81) indica que assumimos o ruiacutedo como

algo contido num espaccedilo de erro mas essa presenccedila eacute ignorada nas praacuteticas cotidianas o que

torna a percepccedilatildeo do ruiacutedo um fator bastante subjetivo Em seguida ela aponta o poder de

desconexatildeo que o ruiacutedo traz mas ressalta que se pensarmos por exemplo na estrutura de uma

narrativa ele constitui uma parte vital desta tanto quanto os diaacutelogos os cenaacuterios e as accedilotildees

Erick Felinto (2013 p56) cita o termo imbroglio utilizado por Bruno Latour (2005) para tratar

dessa questatildeo da inseparabilidade entre ruiacutedo e o sistema que o produz num emprego bastante

116 Traduccedilatildeo livre de ldquo() it is unfortunately characteristic that certain things are added to the signal which werenot intended by the information source These unwanted additions may be distortions of sound (in telephony forexample) or static (in radio) or distortions in shape or shading of picture (television) or errors in transmission(telegraphy or facsimile) etc All these changes in the transmitted signal are called noiserdquo Grifo dos autores117 Ward (2011) lembra que Shannon e Weaver natildeo eram teoacutericos do campo da comunicaccedilatildeo mas pesquisadores quedesenvolveram um modelo de comunicaccedilatildeo a serviccedilo de uma empresa de telefones daiacute sua ecircnfase na eficiecircnciateacutecnica do sinal a preocupaccedilatildeo com os ruiacutedos presentes no canal por onde passa a mensagem etc A abordagemdeles sobre a informaccedilatildeo como elemento mensuraacutevel foi apropriada pelos estudiosos da comunicaccedilatildeo e dashumanidades mas atualmente o modelo jaacute se mostra bastante defasado como referecircncia para as comunicaccedilotildeeshumanas

185

frutiacutefero da ideia de confusatildeo e indefiniccedilatildeo que ronda o assunto Esses argumentos apontam que a

anaacutelise do ruiacutedo (e do erro) sugere um espaccedilo de possibilidades onde se podem identificar

manifestaccedilotildees imprevistas do funcionamento de um sistema equipamento ou teacutecnica mas sem

que necessariamente essa manifestaccedilatildeo surja como um movimento de isolamento uma

singularidade que se aparta do todo Nesse sentido aproxima-se de noccedilotildees como virtualidade

devir desterritorializaccedilatildeo (DELEUZE amp GUATTARI 1997) e do debate em torno das relaccedilotildees

em detrimento das essecircncias (PARENTE apud FELINTO 2013 p57-58)

As observaccedilotildees desses autores sugerem uma interaccedilatildeo positiva entre indiviacuteduos

(materialidade) e tecnologias e estruturas do mundo (tambeacutem materiais) natildeo reservando ao

elemento humano um status diferenciado ou seja natildeo criando uma hierarquia entre

componentes Por entender que a expressividade surge de uma atuaccedilatildeo conjunta de entidades

diversas com tendecircncia mais proacutexima da simbiose que das particularidades das separaccedilotildees

Hainge (2013) aproxima-se tambeacutem da filosofia flusseriana interessada no modo como os

indiviacuteduos confrontam-se com os aparelhos118 A anaacutelise sobre o ruiacutedo pede uma visatildeo sistecircmica

e relacional da expressividade (palavra que natildeo se resume ao campo da arte e seus artefatos)

Vejamos essa afirmaccedilatildeo de seu estudo que demarca bem o territoacuterio onde se situa o ruiacutedo

() O que eu quero sugerir aqui entatildeo eacute que natildeo eacute preciso haver uma divisatildeo entre asoperaccedilotildees do ruiacutedo como um conceito filosoacutefico e suas manifestaccedilotildees na expressatildeo quenatildeo eacute necessaacuterio separar o ontoloacutegico do fenomenoloacutegico Eu quero sugerir que o ruiacutedo eacutemais do que apenas um conceito uma figura de pura potencialidade que eacute produzido naatualizaccedilatildeo da expressatildeo embora nunca abandone o exterior a partir do qual a expressatildeoeacute delineada e assim lembramo-nos dela Grosseiramente o ruiacutedo natildeo eacute apenas daordem de um futuro (agrave-venir) mas onipresente O ruiacutedo atravessa tanto o real como ovirtual os domiacutenios do conceito e da mateacuteria a multiplicidade e a singularidade eacute osubproduto do evento que ocorre nos devires situados atraveacutes desses polos a proacutepriapreacute-condiccedilatildeo para a expressividade que nasce apenas como uma consequecircncia natildeointencional ainda que inexoraacutevel da proacutepria expressatildeo119 (HAINGE 2013 p22-23)

118 Felinto (2013) tambeacutem se refere a Flusser e Nunes (2011) por sua vez utiliza a palavra ldquojogordquo na suaargumentaccedilatildeo (embora natildeo como referecircncia direta ao filoacutesofo tcheco) o que mostra como o entendimento dessesautores a respeito do tema do ruiacutedo converge numa direccedilatildeo comum119 Traduccedilatildeo livre de ldquo(hellip) what I want to suggest here then is that there need not be a split between the operationsof noise as a philosophical concept and its manifestations in expression that it is not necessary to separate out theontological from the phonomenological I want to suggest that noise is more than just a concept a figure of purepotentiality that it is produced in the actualisation of expression whilst never leaving behind the outside from whichexpression is drawn and thus reminding us of it To put crudely noise is not only of the future (agrave venir) butomnipresent Noise straddles both the actual and the virtual the realms of concept and matter multiplicity andsingularity it is the by-product of the event taking place in the becomings situated across these poles the veryprecondition for expressivity that is born only as an unintended yet inexorable consequence of expression itselfrdquo

186

Levando essa premissa agraves teorizaccedilotildees sobre a imagem contemporacircnea uma ontologia

relacional segue uma linha de raciociacutenio bastante conectada agraves teses sobre a funccedilatildeo

ldquoapresentativardquo da imagem (FATORELLI 2017) e admite que as imagens se apartem de uma

correspondecircncia figurativa que englobem regimes temporais muacuteltiplos que articulem diferentes

teacutecnicas recursos expressivos e metodologias de criaccedilatildeo e inclusive prescindam de uma

racionalidade posto que o ruiacutedo natildeo possui um sentido em si (HAINGE 2013 p95) Ele estaacute

mais inclinado agrave expressatildeo que ao significado digamos assim Eacute o fato de ldquoser multimiacutedia estar

em diferentes formas e meios incorporado em diferentes sentidos sensaccedilotildees respostas ()

sendo um permanente entre-lugar ()rdquo (HAINGE 2013 p13) Essa condiccedilatildeo de maior abertura

agrave expressividade num exerciacutecio de desafia as rotulagens de significado das obras eacute sentida como

chave discursiva nos trabalhos citados aqui As experiecircncias realizadas podem dissolver as

formas as temporalidades e os espaccedilos colocando a imagem nos limites do visiacutevel o que indica

uma disposiccedilatildeo de levar o debate sobre a sua potecircncia a um niacutevel mais conceitual por vezes

sensorial ou ateacute psiacutequico e sem duacutevida fazer-nos repensar nossa maneira de apreender o mundo

atraveacutes das tecnologias Aliaacutes melhor dizendo a proposta comum entre esses trabalhos eacute sugerir-

nos a possibilidade de ver outras realidades outros universos imageacuteticos natildeo necessariamente

verossiacutemeis Mundos invertidos desfocados interiores Paisagens multiplicadas distorcidas

efecircmeras Formas e identidades descentradas diluiacutedas multiformes As tecnologias estando

constantemente sujeitas agraves reprogramaccedilotildees

Podemos dizer que a inclinaccedilatildeo agrave descoberta de visualidades singulares conduz a

investigaccedilotildees que atualizam virtualidades jaacute presentes nos meios pois

Haacute regiotildees na imaginaccedilatildeo do aparelho que satildeo relativamente bem exploradas Em taisregiotildees eacute sempre possiacutevel fazer novas fotografias poreacutem embora novas satildeoredundantes Outras regiotildees satildeo quase inexploradas O fotoacutegrafo nelas navega regiotildeesnunca dantes navegadas para produzir imagens jamais vistas Imagens ldquoinformativasrdquoO fotoacutegrafo caccedila a fim de descobrir visotildees ateacute entatildeo jamais percebidas E quer descobri-las no interior do aparelho (FLUSSER 2011 p47)

Um terceiro ponto relevante eacute que os esforccedilos de conceituaccedilatildeo do termo ldquoruiacutedordquo

apresentam uma instabilidade Sobretudo quando se tenta singularizar o ruiacutedo as interpretaccedilotildees

divergem bastante a depender de aspectos temporais geograacuteficos culturais acarretando leituras

por vezes impregnadas de subjetividade Quer dizer teoricamente a questatildeo do ruiacutedo demonstra

187

uma natureza mutaacutevel sendo redefinida de tempos em tempos apresentando portanto certa

flutuaccedilatildeo conceitual diacrocircnica

Assim Hainge (2013) prefere elencar os pontos-chave que emergem de vaacuterias

problematizaccedilotildees acerca do ruiacutedo a fim de perceber de maneira mais geral as questotildees com as

quais o tema costuma ser identificado Perda de estabilidade e equiliacutebrio descontrole falha

feiura entropia ruptura de fronteiras confusatildeo dos sentidos desordem natildeo hierarquizaccedilatildeo de

elementos ou corpos entre outros termos mas tudo isso interpretado como movimentos que

ocorrem por forccedila de agenciamentos internos Veja o que nos diz o autor a respeito de filmes de

terror (especificamente o longa Poltergeist120 analisado em seu livro) nos quais geralmente

alguma perturbaccedilatildeo encontra-se na origem da narrativa

() O que eacute particularmente interessante a respeito de Poltergeist eacute que a batalha entrebem e mal ou entre conhecido e desconhecido (que para o terror e na vida muitas vezesequivale agrave mesma coisa) o desconhecido (o que figura como ruiacutedo) eacute algo que estaacutecontido subtendido no conhecido no comum O outro no qual o horror reside natildeo eacute umaabsoluta alteridade um monstro de um lugar distante um alieniacutegena ou fugitivo loucoComo mostra a sequecircncia de abertura do filme o outro ou esse desconhecido queguarda o terror estaacute sempre presente mas se revela somente quando olhamos perto obastante121 (HAINGE 2013 p90)

Isso significa que entender o ruiacutedo eacute tambeacutem reconhecer que esse termo envolve um

problema de percepccedilatildeo a depender de para onde se foca nossa atenccedilatildeo o ruiacutedo em quaisquer

miacutedias corre o risco de passar desapercebido Se as tecnologias da era da informaccedilatildeo tecircm a

capacidade de corromper as mensagens que deviam ser transmitidas de maneira confiaacutevel haacute um

encobrimento do agente desagregador sob a aparecircncia de miacutedias transparentes e discretas

(HAINGE 2013 p91) Nesta tese essa premissa conduz agrave argumentaccedilatildeo a respeito de imagens

limpas (MANOVICH 1995) que remetem na verdade a certas modalidades esteacuteticas e natildeo agraves

diferenccedilas apontadas em alguns debates sobre a digitalizaccedilatildeo no campo da imagem que segrega

120 Poltergeist (Tobe Hooper 1982) eacute uma das referecircncias citadas por Hainge em seu livro mas a ideia do terrorcomo algo que surge do cotidiano como um problema latente embora natildeo notado (o ruiacutedo como forccediladesestabilizadora oculta) eacute ainda utilizada com frequecircncia no gecircnero a exemplo de produccedilotildees recentes comoSuspiria ndash A danccedila do medo (remake de Luca Guadagnino de 2018 para o original de Dario Argento de 1977) ouCorra e Noacutes (ambos de Jordan Peele lanccedilados respectivamente em 2017 e 2019)

121 Traduccedilatildeo livre de ldquo() what is particularly interesting about Poltergeist is that in this struggle between goodand evil or the same thing ndash the unknown (figured as noise) is seen always to subtend the known The Other in whomhorror resides this is to say is not an absolute alterity a monster from a faraway place an alien or an escapedmadman rather as the filmrsquos opening sequence analysed above shows us the Other or the unknown from whichhorror issues is always present but revealed only when we look closely enoughrdquo

188

as miacutedias analoacutegicas e digitais Se pensarmos que ruiacutedos estatildeo sempre presentes (o que falha eacute

nossa capacidade de percebecirc-los) vamos compreender que todas as miacutedias os possuem

Mas haacute outros fatores que acarretam uma ldquocegueirardquo em relaccedilatildeo ao tema do ruiacutedo

quando consideramos os artefatos da cultura digital Nunes (Ibidem) aponta certa ideologia que

na busca por uma maacutexima performance da tecnologia encara o erro como elemento a ser contido

Mas devido agrave impossibilidade desse controle absoluto ldquoo erro assinala vaacutelvulas de escape dos

confins previsiacuteveis do controle informaacutetico uma abertura uma virtualidade uma poiesisrdquo

(NUNES 2011 p3) Segundo Peter Krapp (2011) se existe caos acidente e acaso em todos os

sistemas dispositivos e rotinas de operaccedilatildeo estes precisam ser rigidamente controlados sob pena

de denunciarem seus defeitos

Com mecanismos especiacuteficos de correccedilatildeo e reduccedilatildeo das falhas (como os antiviacuterus) ou

de aumento do desempenho a cibercultura daacute a falsa impressatildeo de uma eficiecircncia perfeita

Hainge reflete sobre essa percepccedilatildeo errocircnea no que tange agraves miacutedias musicais

Em meados de 1980 poderiacuteamos ser tentados a pensar que com o advento da tecnologiadigital e a introduccedilatildeo do compact disc essa retoacuterica de perfeiccedilatildeo e limpeza rapidamentese tornaria supeacuterflua porque esse formato prometia um niacutevel de fidelidade aparentementeinsuperaacutevel Poreacutem esse natildeo foi o caso122 (HAINGE 2007 p28)

Essa reflexatildeo traz agrave tona a contenda de negaccedilatildeo do erro e do ruiacutedo podendo ser

estendida a quaisquer artefatos digitais Quer dizer a retoacuterica (de fidelidade perfeiccedilatildeo

eficiecircncia) resiste sendo reivindicada sempre que viaacutevel e podendo ser ampliada ao campo da

imagem como jaacute apontamos em relaccedilatildeo ao cinema e os debates sobre formatos de exibiccedilatildeo

relanccedilamentos de tiacutetulos em formatos mais ldquoavanccediladosrdquo etc e com ela ressurgem tambeacutem as

estrateacutegias de supressatildeo do ruiacutedo Krapp (2011 p125) chega a considerar que ldquoa era do

apagamento do ruiacutedo instaura-se de fato com o advento das tecnologias digitaisrdquo embora

saibamos que noccedilotildees como perfeiccedilatildeo transparecircncia fidelidade entre outros termos tambeacutem

assombraram o contexto de emergecircncia de tecnologias anteriores

Hainge (2013 p120-121) por sua vez conclui que na cultura digital os produtos natildeo

apresentam um coeficiente de ruiacutedo menor na verdade para ele na era digital pode haver ateacute

122 Traduccedilatildeo livre de ldquoIn the mid-1980s one may well have been tempted to think that with the advent of digitaltechnology and the introduction of the compact disc such rhetoric of perfectibility and cleanliness would quicklybecome superfluous because this new format promised an apparently unsurpassable level of fidelity Such howeverhas patently not been the caserdquo

189

mais ruiacutedo O que ocorre eacute uma mudanccedila na natureza dos ruiacutedos daquilo que no ambiente

informaacutetico manifesta-se como tal O que nos interessa aqui eacute identificar no contexto da arte as

estrateacutegias que procuram exatamente uma abordagem criacutetica dessa retoacuterica de controle e

precisatildeo Seja pelo vieacutes da sabotagem do hackeamento ou do desvio de propoacutesitos e

funcionamento dos softwares e formatos das miacutedias o nosso interesse eacute a produccedilatildeo de imagens

surgidas exatamente do tensionamento dos mecanismos que existem para mitigar o erro e assim

o ruiacutedo

A produccedilatildeo da diferenccedila nascendo de um sistema repleto de mecanismos que trabalham

para eliminar esse movimento desviante assinala uma contradiccedilatildeo que pode ser estendida ao

pensamento sobre quaisquer tecnologias relacionadas agrave ideia de reproduccedilatildeo Mesmo que pareccedilam

fechadas transparentes todas as miacutedias de representaccedilatildeo quando analisadas em detalhe abrem-se

a um paradoxo interno que significa entender a falha como parte necessaacuteria de sua ontologia

(HAINGE 2007 p26-27)

As questotildees levantadas por esses autores que se ocuparam mais recentemente do tema

do ruiacutedo eou erro datildeo conta de alguns aspectos cruciais tomados como premissas da arte

contemporacircnea que retira dos sistemas informaacuteticos o substrato de seus trabalhos Algunsmas

dessesas artistas estatildeo reunidos sob a rubrica da glitch art e discutem o potencial da falha e do

ruiacutedo entendendo que estes satildeo inerentes ao proacuteprio funcionamento dos dispositivos Sua

abordagem choca-se diretamente com ideias de que as tecnologias do computador satildeo tatildeo

eficientes que supostamente estariam livres de apresentar defeitos paradas bugs

A proposta da glitch art natildeo surge apenas de uma atitude de recusa ao funcionamento

convencional de equipamentos e artefatos que podem ser apropriados para o campo da arte Natildeo

parece ter afinidade com uma atitude iconoclasta em relaccedilatildeo agraves tecnologias Ela tem o objetivo

poliacutetico de estimular uma reflexatildeo sobre o proacuteprio discurso evolucionista voltado agraves tecnologias

utilizando a falha desses dispositivos para criar novas formas artiacutesticas Tanto que pode revisitar

materiais e equipamentos considerados obsoletos ou ateacute descartados Enquanto promove a

exploraccedilatildeo de situaccedilotildees limiacutetrofes do funcionamento das miacutedias a glitch art acaba por ser

tambeacutem uma vertente na qual o ruiacutedo figura como modalidade das imagens O glitch choca-se

190

com ldquoa aparente ideia de uma tecnologia digital infaliacutevel atraveacutes de um ato esteacutetico positivo que

enxerga beleza onde parece soacute existir horrorrdquo123 (HAINGE 2007 p32)

As obras que se enquadram na abordagem da glitch art podem explorar efeitos gerados

pelo mau funcionamento dos computadores e perifeacutericos desenvolver-se mediante o uso

corrompido (intencional) de softwares arquivos e maacutequinas ou seja seu emprego natildeo-

padronizado fora das normas industriais originalmente prescritas Abraatildeo Filho (2018) que

desenvolveu amplo estudo sobre a glitch art traccedila um paralelo entre as proposiccedilotildees desses

artistas e a ideia de ldquoprofanaccedilatildeo do dispositivordquo de Giorgio Agamben (2007) ressaltando uma

apropriaccedilatildeo poliacutetica dos meios expressivos Do ponto de vista da recusa agraves normatizaccedilotildees

inscritas na tecnologia este conceito estaacute proacuteximo das ideias de Flusser (2011) que evocamos ao

longo de nosso texto sobretudo nas reflexotildees a respeito da postura do ldquojogadorrdquo frente ao

ldquoprogramardquo do ldquoaparelhordquo Ou seja em ambos os filoacutesofos identificamos o estiacutemulo agraves

apropriaccedilotildees natildeo convencionais dos dispositivos o que no campo artiacutestico eacute operado sob

diferentes metodologias questatildeo que nos interessa sobremaneira

A holandesa Rosa Menkman artista curadora e teoacuterica escreveu um manifesto que

condensa algumas das premissas do glitch entre elas o questionamento de modelos e praacuteticas a

impossibilidade de erradicaccedilatildeo do ruiacutedo (sendo ele base da criaccedilatildeo artiacutestica) a criacutetica da

obsolescecircncia programada a instabilidade e a renovaccedilatildeo como princiacutepios da arte a criacutetica da

perfeiccedilatildeo e do automatismo no uso das miacutedias Seus textos e obras atestam uma constante

investigaccedilatildeo das possibilidades esteacuteticas do erro e logicamente muitos trechos de seu manifesto

apresentam grande afinidade com as reflexotildees sobre o ruiacutedo

De qualquer forma que definamos o ruiacutedo qualquer definiccedilatildeo negativa teraacute umaconsequecircncia positiva pois ajuda a redefinir o seu oposto (o mundo do sentido a normaregulaccedilatildeo o ldquobemrdquo a beleza entre outros) Logo o ruiacutedo existe como paradoxoenquanto ele eacute frequentemente definido de maneira negativa tambeacutem apresenta umaqualidade gerativa e positiva () Os vazios gerados por uma ruptura natildeo existem apenascomo falta de sentido eles apresentam forccedilas que empurram o espectador para fora dodiscurso tradicional sobre a tecnologia consequentemente expandindo-o Atraveacutes dessesvazios artistas e espectadores podem entender a ideologia por traacutes do coacutedigo e da vozcomo uma criacutetica agrave miacutedia digital Esse entendimento pode servir de fonte a novos

123 Traduccedilatildeo livre de ldquothe apparently infallible sheen of digital technology through a positivistic aesthetic act thatfinds beauty in apparent horrorrdquo

191

padrotildees antipadrotildees ou novas possibilidades que estatildeo situadas em uma fronteira oucamada especiacutefica da linguagem (MENKMAN 2010 p16-17)124

Menkman atribui ao ruiacutedo um papel transgressor como elemento integrante das

tecnologias atraveacutes de sua exploraccedilatildeo confrontamos certos limites envolvidos no uso que

fazemos das miacutedias Quer dizer faz parte da abordagem artiacutestica do glitch a desconstruccedilatildeo da

ideia de fechamento de inacessibilidade das tecnologias (tanto que alguns artistas apresentam

suas obras junto a breves explicaccedilotildees sobre a teacutecnica utilizada numa atitude quase pedagoacutegica

tambeacutem ligada ao espiacuterito colaborativo da proacutepria cultura digital) Eacute como se esses artistas

tivessem como premissa a vontade de reafirmar que a ldquocaixa pretardquo (FLUSSER 2011) da

cibertecnologia pode (e deve) ter seus coacutedigos quebrados Eacute patente ainda em seu discurso a

reivindicaccedilatildeo de um espaccedilo de valorizaccedilatildeo das formas visuais que emergem de uma ecircnfase no

processo de feitura das obras (mais do que no conteuacutedo) Assim os processos da glitch art criam

novas esteacuteticas ampliando o repertoacuterio das formas e dos usos

Em Vernacular file of formats (figuras 59 e 60) Menkman submete arquivos a

diferentes formatos de compressatildeo de dados (JPEG TIFF PNG) e depois insere em cada um

deles o mesmo erro Como a taxa de compressatildeo de dados em cada imagem eacute diferente os efeitos

que o erro provoca tambeacutem o satildeo Desse modo ela permite que ldquoa linguagem de compressatildeo de

outra forma invisiacutevel se apresente na superfiacutecie da imagemrdquo (MENKMAN online 2010)

colocando em pauta questionamentos sobre a qualidade da imagem a suposta ldquopurezardquo do

arquivo RAW o gesto de manipulaccedilatildeo do artista a sabotagem dos padrotildees de compressatildeo e suas

finalidades a maleabilidade da imagem como elemento de uma cultura produzida distribuiacuteda e

consumida via computador e na internet O processo eacute repetido ainda com formatos de imagem

moacutevel (AVI MOV WMV DV) e modifica de tal forma as cores os contornos enfim as

caracteriacutesticas visuais do original que o processo eacute que passa a funcionar como tema da obra

124 O texto original escrito por Menkman data de 2010 A versatildeo citada aqui eacute uma traduccedilatildeo para o portuguecircspublicada em 2017 Disponiacutevel em httpsissuucomrosamenkmandocsmanifesto_de_estudos_em_glitch__rosAcesso em 16022020

192

Figura 59 - Vernacular of file formats - Photoshop RAW (Rosa Menkman2009-2010)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Figura 60 - Vernacular of file formats - WMV (Rosa Menkman 2009-2010)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Quando esse processo entra em funcionamento ele nos deixa antever os ruiacutedos de cada

miacutedia e formato em particular Essa abordagem estaacute intimamente ligada a um modo de encarar a

193

imagem pelo vieacutes do artifiacutecio e da manipulaccedilatildeo ou seja vecirc-la como campo de exploraccedilatildeo nas

suas dimensotildees teacutecnica e conceitual (em detrimento de uma preocupaccedilatildeo em referir uma

realidade dada a priori)

O brasileiro Sabato Visconti que utiliza a alcunha de glitch photographer tambeacutem

modifica arquivos e softwares segundo procedimentos que desestruturam intensamente as formas

Na cobertura que fez da Hartford Fashion Week (figuras 61 e 61a) alterou as fotografias usando

a teacutecnica de databending (quando um arquivo eacute manipulado num software diferente daquele

recomendado para o seu formato) Ele explica

() Essa seacuterie foi feita usando a nova versatildeo do Paint o Paint 3D que deixa transformarimagens em objetos 3D eu separei a imagem em camadas diferentes e exportei noformato fbx Aiacute eu fiz um databend no arquivo fbx e voltei para o Paint 3d paraexportar como imagem (VISCONTI 2019)125

Figura 61 - Hartford Fashion Week 2016 (Sabato Visconti 2016)

Fonte Reproduccedilatildeo site artista

Figura 61a - Hartford Fashion Week 2016 (Sabato Visconti 2016)

125 Entrevista concedida agrave autora em 2019

194

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

O formato fbx eacute um padratildeo para dados em 3D e foi apropriado para gerar fotografias

imagens bidimensionais Estas comeccedilam entatildeo a apresentar aberraccedilotildees exibindo linhas cores e

traccedilos estranhos aos modos de apresentaccedilatildeo correspondentes aos formatos de imagem

padronizados (JPEG TIFF etc) O niacutevel de mimesis tambeacutem decai sensivelmente Conforme a

interpretaccedilatildeo desviada do algoritmo a imagem sofre uma mutaccedilatildeo dissolvendo-se em linhas e

com intervalos espaccedilos negros A releitura do arquivo num software trocado apresenta uma seacuterie

de erros que se traduzem visualmente em formas imprevistas Qualquer glamour ou finalidade

comercial relativos ao contexto de um desfile de moda perdem-se completamente sob o

funcionamento de uma inteligecircncia maquiacutenica desprogramada corrompida pelo artista

Por sinal Sabato Visconti faz um tracircnsito bastante interessante entre meio artiacutestico e

comercial com sua fotografia jaacute que seus projetos estruturam-se paralelamente agrave atividade como

195

freelancer (tendo publicado em veiacuteculos como as revistas Time e Vogue e o jornal The New York

Times) Atraveacutes de suas obras encontra uma maneira de repensar natildeo soacute os ditames tecnoloacutegicos

mas a capacidade de sabotagem de padrotildees de um ponto de vista geopoliacutetico perifeacuterico Tendo

saiacutedo de Satildeo Paulo para os Estados Unidos ainda crianccedila e deparando-se com situaccedilotildees adversas

pela condiccedilatildeo de imigrante compreende seu trabalho tambeacutem como espaccedilo que reverbera essa

experiecircncia pessoal em afinidade com a conotaccedilatildeo poliacutetica da glitch art ldquo() Eu passei mais de

16 anos nos EUA sem documento de imigraccedilatildeo acho que essa experiecircncia tambeacutem me afetou

Vivendo em sistemas desenhados para falhar O glitch eacute um processo e eacutetica bem ldquopunkrdquo

comparada agrave produccedilatildeo comercialrdquo (VISCONTI 2019)

Em seu site na internet delimita algumas das preocupaccedilotildees que norteiam seu trabalho

Num breve conjunto de apontamentos intitulado Glitch Photography as a Practice in the Age of

Postphotography (2017) indica por exemplo que o aparato fotograacutefico ultrapassa a dimensatildeo

instrumental da cacircmera no contexto societaacuterio telemaacutetico pois engloba o desenvolvimento de

sistemas de vigilacircncia que capturam informaccedilotildees pessoais visuais e espaciais e seu

funcionamento independente da participaccedilatildeo humana o barateamento de cacircmeras e celulares

toda uma ecologia da imagem formatada atraveacutes das redes sociais e a internet como plataforma

de acesso e modelo de fruiccedilatildeo interativo dos mais diversos conteuacutedos imageacuteticos e ainda a

cultura de hibridizaccedilatildeo caracteriacutestica de muitos desses conteuacutedos Essas satildeo questotildees jaacute

apontadas por teoacutericos da fotografia (FONTCUBERTA 2016 ZYLINSKA 2017) dedicados a

pensar a imagem em suas articulaccedilotildees com o desenvolvimento mais recente da tecnologia e a

cultura da internet Poreacutem atraveacutes do texto de Visconti eacute interessante atentar para o sentido

poliacutetico que assume o artista partidaacuterio do glitch quando interveacutem no funcionamento dessa

estrutura que envolve indiviacuteduos o capitalismo informaacutetico mecanismos de controle baseados na

tecnologia e a economia das imagens Ou seja como a arte nos seus exerciacutecios poeacuteticos eacute capaz

de chamar atenccedilatildeo para aspectos negativos do proacuteprio sistema midiaacutetico que lhe daacute sustentaccedilatildeo

Aproveitando entatildeo as suas falhas as suas brechas para colocar esse sistema contra ele mesmo

A glitch photography considera este aparelho expansivo com todas as suas facetas natildeomencionadas e transversais bem como a forma como encarnamos o aparelho ereificamos as suas exigecircncias como locais de manipulaccedilatildeo perturbaccedilatildeo e perversatildeo ouseja como locais de falhas A glitch photography eacute por um lado a praacutetica que interpolao glitch na criaccedilatildeo da fotografia e por outro a praacutetica de capturar as manifestaccedilotildees

196

visuais de uma falha dentro do aparelho muito parecida com a forma como se capturaum momento espontacircneo ou um gesto fugaz126 (VISCONTI online 2017)

Figura 62 - wen your surveillance drone glitches out during a protest da seacuterie Wen yr surveillance drone (SabatoVisconti)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Essa estrateacutegia encontramos na seacuterie Wen yr surveillance drone (figuras 62 e 63)

construiacuteda com imagens de drones do FBI (Federal Bureau of Investigation) O trabalho eacute um

comentaacuterio sobre como sistemas de vigilacircncia interpretam a informaccedilatildeo visual recebida e as

possibilidades de reverter tais leituras atraveacutes da captura desse material pela arte Sabato Visconti

transformou as imagens originais em gifs formato em que ldquoo olhar panoacuteptico do drone eacute

capturado como de um espectador que testemunha o trecho de uma performancerdquo (VISCONTI

online) Esse trabalho debate a proacutepria tecnologia digital num sentido poliacutetico associado agrave

origem de sistemas computadorizados que foram desenvolvidos para fins militares Como

lembra Krapp (2011 pxvii) ldquonatildeo haacute tecnologia digital que natildeo levante questotildees sobre sigilo em

126 Traduccedilatildeo livre de ldquoGlitch photography considers this expansive apparatus with all its unmentioned facets andtransversals as well as the way we embody the apparatus and reify its demands as sites for manipulationdisruption and perversion in other words as sites for glitching Glitch photography is a beast with two backs Onthe one hand it is a practice that interpolates glitch into the creation of photography On the other hand it can alsobe the practice of capturing the visual manifestations of a glitch within the apparatus much like the way onecaptures a candid moment or a fleeting gesturerdquo

197

relaccedilatildeo a exigecircncias muitas vezes irreconciliaacuteveis de privacidade seguranccedila confianccedila liberdade

de expressatildeo e direitos humanosrdquo127

Quando o movimento contiacutenuo da imagem original eacute alterado para o curto movimento

de repeticcedilatildeo do gif como se sofresse um bloqueio notamos a falha do sistema de vigilacircncia e ao

mesmo tempo seu potencial de controle eacute esvaziado tornando-se incapaz de revelar qualquer ato

ou comportamento (supostamente) perigosos ou suspeitos

Figura 63 - b_01 da seacuterie Wen yr surveillance (Sabato Visconti)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista128

O gif como elemento da linguagem da internet surge a partir da apropriaccedilatildeo e estaacute

associado a uma expressatildeo irocircnica que de fato perverte as intenccedilotildees de controle do drone A

seacuterie completa tem 9 gifs desenvolvidos a partir de poucas imagens o que amplia o efeito de

repeticcedilatildeo e descontinuidade das accedilotildees registradas Em uma das cenas vemos pessoas reunidas em

ciacuterculo assistindo a um grupo que faz uma apresentaccedilatildeo de patins Em outra uma multidatildeo que

127 Traduccedilatildeo livre derdquothere is no digital technology that does not raise questions about secrecy in relation to oftenirreconcilable demands of privacy security trust freedom of speech and human rightsrdquo128 Seacuterie completa disponiacutevel em httpwwwsabatoboxcomwen-yr-surveillance-drone Acesso em 19022020

198

se concentra no cruzamento de duas ruas (originalmente essas imagens satildeo registros de protestos

ocorridos em Baltimore-Estados Unidos apoacutes a prisatildeo e morte do jovem negro Freddie Gray129)

O uso de dispositivos autocircnomos para capturar imagens sugere aleacutem de uma visatildeo total

(um olhar mais abrangente e eficiente que o humano) uma hierarquia desse olhar sob aquilo que

observa (ZYLINSKA 2017a p13) O fotoacutegrafo interfere nessa hierarquia ao capturar as imagens

e alteraacute-las transformando-as em ldquocenas de uma performancerdquo Com isso provoca o colapso da

funccedilatildeo de vigilacircncia natildeo apenas pela conversatildeo para o formato gif mas porque a legibilidade das

cenas eacute comprometida pelas falhas Corrompida a imagem impede a identificaccedilatildeo precisa dos

indiviacuteduos exibindo apenas erros O drone vira uma maacutequina com defeito produzindo a mesma

cena tecnologia imprestaacutevel para vigiar e punir

Esses breves exemplos indicam que os propoacutesitos da glitch art e as consideraccedilotildees sobre

o papel do ruiacutedo apresentam afinidade quando temos como horizonte o cenaacuterio da imagem

contemporacircnea Baseada numa atitude realmente experimental estilo do it yourself (DIY)

direcionada aos dispositivos a glitch art explora de maneira criativa as falhas e os erros para

criar esteacuteticas proacuteprias Eacute tambeacutem uma vertente artiacutestica que opera na iminecircncia de reciclagens

recombinaccedilotildees dos novos arranjos poeacuteticos tendo em vista que utiliza quaisquer conteuacutedos

manipulaacuteveis via software Encarando mais livremente inclusive aquilo que se consideram as

ldquomateacuterias-primasrdquo de suas obras os artistas do glitch utilizam natildeo apenas formatos e recursos do

computador incorporam elementos do design graacutefico da linguagem de programaccedilatildeo imagens de

sistemas autocircnomos (circuitos fechados drones sistemas de vigilacircncia) cenas de filmes

caracteres130 que uma vez disponibilizados no computador ou online podem ser livremente

utilizados Ou seja no que se refere ao campo da imagem satildeo obras que colocam em praacutetica o

conceito de hibridizaccedilatildeo (MANOVICH 2013) e valem-se da fluidez e da descontinuidade da

proacutepria cultura digital para fazer interagir a fotografia o cinema o viacutedeo atraveacutes de formatos

como o gif e os memes por exemplo

129 Freddie Gray foi detido em 2015 acusado pela poliacutecia de portar ilegalmente uma faca Conduzido algemado esem cinto de seguranccedila na viatura entrou em coma e faleceu na semana seguinte Os seis policiais envolvidos noepisoacutedio de sua prisatildeo foram absolvidos na justiccedila que considerou impossiacutevel relacionar a morte do jovem agrave condutados policiais alegando que as evidecircncias para uma condenaccedilatildeo eram insuficientes130 Nesse sentido ver o interessante trabalho desenvolvido pela artista Biarritzzz (httpswwwbiarritzzzcom)Acesso em 08042020

199

Partindo de uma atitude radical esses trabalhos vinculam-se a uma seacuterie de modalidades

visuais que poderiam ateacute ser negligenciadas enquanto conteuacutedo artiacutestico por sua inclinaccedilatildeo ao

feio ao disforme a uma certa precariedade da imagem Na verdade o glitch carrega em sua

proacutepria gecircnese esse sentido de transgressatildeo da forma de modo que como tendecircncia esteacutetica

ligada ao universo das imagens digitais estaacute muito proacuteximo da noccedilatildeo de ruiacutedo interessando-nos

como lugar de observaccedilatildeo de sua compreensatildeo poeacutetica no uso das miacutedias do computador As

obras da glitch art satildeo exerciacutecios que levam a uma ldquoruiacutena do sentidordquo o que natildeo significa uma

atitude iconoclasta que visa a destruiccedilatildeo dos sistemas digitais nem de suas formas

caracteriacutesticas mas a partir da ruiacutena investir na revelaccedilatildeo de novas formas e sentidos (ABRAAtildeO

FILHO 2018 p22)

Para os artistas da glitch art estaacute subentendido que todas as tecnologias da era da

informaccedilatildeo carregam em si mesmas o potencial de autosabotagem de corromper as mensagens

que deveriam transmitir com seguranccedila

() Devemos ir aleacutem e sugerir que imagens ou sons gerados por computador exibem deacordo com a definiccedilatildeo aqui proposta um coeficinete extremamente elevado de ruiacutedona medida em que natildeo buscam num objeto externo as condiccedilotildees para formar uma tramaexpressiva eles produzem sua expressatildeo puramente de dentro de suas proacutepriastecnologias e especificidades materiais (HAINGE 2013 p122)

Dessa maneira soacute podemos esperar que nas estrateacutegias de tensionamento da linguagem

informaacutetica dos formatos de arquivos e dos programas de computador essas obras apresentem

configuraccedilotildees esteacuteticas estranhas pois que satildeo geradas de elementos provindos de uma

inteligecircncia maquiacutenica com seus proacuteprios coacutedigos e formas Tal compreensatildeo aproxima nosso

debate da questatildeo da materialidade pensada no acircmbito do computador As contribuiccedilotildees de

Manovich (2013) e Zylinska (2017a) satildeo auxiliares para traccedilarmos um diaacutelogo entre a exploraccedilatildeo

da materialidade na cultura da imagem digital (como expressatildeo do ruiacutedo) natildeo sendo essa questatildeo

uma qualidade exclusiva das miacutedias analoacutegicas (imagens-objeto) Segundo a pesquisadora

polonesa (2017a p172) identificar a materialidade com o analoacutegico e a imaterialidade com o

digital eacute uma compreensatildeo que ldquoignora a presenccedila fiacutesica das telas dos componentes da cacircmera

ou do celular que satildeo parte do sistema de produccedilatildeo da imagem bem como os cabos de rede

atraveacutes dos quais ela eacute transferidardquo131

131 Traduccedilatildeo livre de ldquoThis (mis)percepction is only possible if one ignores the materiality of the screen on whichone views digital images the materials that make up the camera or cell phone which are part of its system ofproduction the network cables that participate in its transfer etcrdquo

200

Por outro lado alguns dos artistas aqui elencados sublinham a materialidade como um

dos pontos importantes da escolha em trabalhar com tecnologias fotoquiacutemicas Cris Bierrenbach

(2018) por exemplo ressalta que quando trabalha com tecnologias digitais ou analoacutegicas haacute

sempre um niacutevel de imprevisto envolvido no procedimento mas enquanto no computador as

accedilotildees podem ser revertidas nos processos artesanais da imagem eacute necessaacuterio destruir coisas para

atingir o resultado final que eacute um resultado original ldquoPra vocecirc repetir aquilo exatamente eacute muito

difiacutecil pra natildeo dizer praticamente impossiacutevel Entatildeo tem essa particularidade dessa unicidade

que cada uma tem que eu acho bem encantador Cada uma (imagem) eacute uma mesmordquo

(BIERRENBACH 2018) Luiz Alberto Guimaratildees defende o uso de cacircmeras artesanais porque

estas lhe permitem criar imagens sofisticadas e complexas que conservam uma ldquoaurardquo ndash

reportando-se a Walter Benjamin (1935-36) ndash por meio de instrumentos uacutenicos (GUIMARAtildeES

2014 p22) que os programas de computador conseguem apenas imitar Como vimos Dirceu

Maueacutes tambeacutem tece uma criacutetica agrave ideia de que aparelhos sofisticados e caros satildeo mais adequados

agrave produccedilatildeo de imagens elaboradas retoacuterica que o trabalho com as pinholes (que tambeacutem resulta

em peccedilas uacutenicas) desmente Embora os dois fotoacutegrafos natildeo explicitem uma preocupaccedilatildeo com a

materialidade de suas obras todo o trabalho de elaboraccedilatildeo em seus projetos o tempo dedicado

bem como a busca de esteacuteticas decorrentes da interaccedilatildeo entre os suportes empregados (negativo

papel fotograacutefico quiacutemicos slide etc) apontam que essa dimensatildeo palpaacutevel devido agrave

fisicalidade de cada um dos trabalhos constitui parte importante para a apreensatildeo sensiacutevel dos

mesmos Natildeo raro na exposiccedilatildeo de suas obras eacute comum que esses artistas apresentem tambeacutem

dispositivos estruturas utilizadas nos processos (figura 64) ndash natildeo apenas as imagens

201

Figura 64 - Cacircmeras pinhole como parte da exposiccedilatildeo Somewhere ndash Alexanderplatz (Dirceu Maueacutes2009)

Fonte Reproduccedilatildeo de Maueacutes (2015)

De toda forma como aqui nos interessam as visualidades que atestam a presenccedila do

ruiacutedo e a partir do momento em que o reconhecemos como expressatildeo mais crua e evidente da

trama material das imagens a divisatildeo entre miacutedias analoacutegicas e digitais torna-se sem sentido ateacute

porque conforme ficou patente atraveacutes dos exemplos da glitch art a inscriccedilatildeo da materialidade

nas imagens digitais eacute detectada nas distorccedilotildees de corpos e objetos na alteraccedilatildeo das cores com a

intenccedilatildeo de apontar a artificialidade da imagem na valorizaccedilatildeo do pixel do rastro do movimento

nos gifs na apariccedilatildeo de estruturas geomeacutetricas que fogem agrave figuraccedilatildeo tradicional Cada uma

dessas modalidades de expressatildeo vai de encontro ao ldquoprograma dos aparelhosrdquo e no que se refere

especificamente a esse campo da imagem digital identificamos que o programa se inscreve

atraveacutes da ldquoprogramaccedilatildeo do software nos coacutedigos relativos agrave reproduccedilatildeo das cores dispositivo

para reduccedilatildeo do ruiacutedo suavizaccedilatildeo das bordas da imagem preenchimento de pixels defeituososrdquo

(AGUERA amp ARCAS apud ZYLINSKA 2017a p214) Ou seja quando os artistas comeccedilam a

negar tais regras criando suas proacuteprias sensibilidades esteacuteticas contribuem para fortalecer uma

iconografia baseada no valor generativo do erro132 e plaacutestico do ruiacutedo

132 Zylinska (2017a) considera o pixel aparente e a animaccedilatildeo do gif indicativos do erro no ambiente do computador

202

Alguns trabalhos recentes utilizam o pixel para criar obras que sugerem atraveacutes de

diferentes abordagens e estrateacutegias aproximaccedilotildees entre as instacircncias moacutevel e fixa da imagem

embaralhando os espaccedilos e gecircneros da pintura e da fotografia Por exemplo o projeto iEarth

(2013) de Joanna Zylinska (figura 65) discute de forma irocircnica a ideia de que o gecircnero paisagem

constitui um olhar direcionado a um ambiente um recorte de um espaccedilo fiacutesico dado e livre de

mediaccedilotildees Em vez de reafirmar essa noccedilatildeo iEarth assume explicitamente que a paisagem natildeo

passa de uma construccedilatildeo de um artifiacutecio tecnoloacutegico fortemente influenciado pelas imagens

pertencentes a esse gecircnero que conformam nosso repertoacuterio iconograacutefico interferindo tambeacutem

na nossa maneira de olhar para o mundo Nesse trabalho o kit de um diorama para crianccedilas foi

usado para produccedilatildeo de quatro imagens fotografadas e processadas digitalmente para a criaccedilatildeo

de gifs Zylinska (2014) ressalta o aspecto fabricado dessas paisagens que natildeo remetem a

qualquer espaccedilo concreto e ao mesmo tempo estatildeo muito proacuteximas de representaccedilotildees midiaacuteticas

de espaccedilos reais (produzidas por exemplo pelo Google Earth) ldquoEsta perspectiva particular tem

uma dupla funccedilatildeo tanto desnaturaliza o familiar como cria uma ilusatildeo de imediatez

proximidade e domiacutenio visualrdquo (Idem)

Figura 65 - IEarth (Joanna Zylinska 2014)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista133

133 Sugerimos visualizar o trabalho diretamente na internet Disponiacutevel em httpwwwjoannazylinskanetiearthAcesso em 25022020

203

Profundamente ambiacuteguas e situadas entre o real e o artificial essas imagens promovem

atraveacutes do pixel e do gif uma afirmaccedilatildeo da tecnologia que natildeo eacute um intermediaacuterio entre o olhar e

o espaccedilo fiacutesico A tecnologia eacute o proacuteprio meio de existecircncia da paisagem Eacute ela que a constitui

A tecnologia eacute aqui mobilizada em vaacuterios niacuteveis ndash na elaboraccedilatildeo do diorama nacaptaccedilatildeo da imagem na pixelizaccedilatildeo das proacuteprias fotografias e em uacuteltima instacircncia naanimaccedilatildeo gif Pixelizaccedilatildeo e animaccedilatildeo natildeo satildeo apenas artifiacutecios visuais ou conceituais Oseu uso eacute uma tentativa de desestabilizar a relaccedilatildeo entre natureza e artefato entre oreal e o virtual134 (ZYLINSKA online 2014)

A paisagem eacute de fato elaborada segundo diversas camadas de imagens originaacuterias de

diferentes aparatos Cada um deles relacionado a um momento histoacuterico da representaccedilatildeo de

espaccedilos concretos o diorama uma forma de entretenimento moderna que criava uma ilusatildeo de

realismo e expressava um desejo de visatildeo total a fotografia imagem teacutecnica evocada no sentido

de um duplo do referente (mas sempre uma alteridade em relaccedilatildeo a este) e por fim o

computador metamiacutedia processadora de todas essas referecircncias anteriores que acrescenta

tambeacutem sua linguagem visual atraveacutes do pixel e da finalizaccedilatildeo em formato gif Nesse processo

cumulativo a paisagem fixa incorpora um movimento poreacutem um movimento tambeacutem

explicitamente artificial provocado (repetitivo em loop) Um movimento que natildeo almeja a ilusatildeo

de continuidade espaccedilo-temporal

Aleacutem disso estamos falando de um movimento atribuiacutedo a um espaccedilo fiacutesico (uma aacuterea

verde recriada por meio de um diorama infantil) o que intensifica o efeito de artificialidade Se o

diorama onde tudo comeccedila jaacute pressupotildee a interaccedilatildeo de um observador dotado de mobilidade

(CRARY 2012) na recriaccedilatildeo de um espaccedilo miniaturizado um cenaacuterio mesmo Zylisnka

reconecta essas noccedilotildees de mobilidade do olhar humano atraveacutes do gif um formato que articula

imagem estaacutetica e movimento Ela tambeacutem sugere um regime visual possibilitado pela

flexibilidade das imagens numeacutericas que embora jaacute tenha ultrapassado os limites do modelo

oacutetico linear (fixo) continua ainda se relacionando com este por meio de toda uma heranccedila visual

da pintura do cinema da fotografia e dos aparelhos oacuteticos como o estereoscoacutepio o panorama e

o proacuteprio diorama aqui revisitado

134 Traduccedilatildeo livre de ldquoTechnology is mobilised here on a number of levels ndash in the crafting of the diorama in thetaking of the image in the pixellation of the photographs themselves and then in the last instance in the gifanimation Pixellation and animation are not just visual or conceptual gimmicks Their use is an attempt todestabilise the relationship between lsquonaturersquo and lsquoartefactrsquo between lsquothe realrsquo and lsquothe virtualrsquordquo

204

Outro trabalho que curiosamente tambeacutem tematiza a paisagem aproximando-se do

formato cartatildeo postal jaacute que remete mais diretamente agrave fotografia eacute a seacuterie Jpegs (2007) de

Thomas Ruff (figuras 66 e 66a) Ela tambeacutem intensifica a presenccedila da miacutedia fotograacutefica expondo

a estrutura dos pixels O JPEG eacute um dos formatos de compressatildeo de imagem mais utilizados na

fotografia digital A compressatildeo significa perda de informaccedilatildeo Pois bem Ruff utiliza imagens

retiradas da internet e expressa atraveacutes de um olhar muito proacuteximo da estrutura dos pixels a

ideia de que a imagem digital eacute um conjunto de pequenos quadrados Ruff percebeu que o

software de compressatildeo para o formato JPEG dava agraves fotografias um efeito impressionista e

passou a explorar essa questatildeo

Descobri que quando se amplia bastante essas imagens 25m ou 18m cria-se um efeitoagradaacutevel quando vocecirc olha a uma distacircncia de 10 a 15 metros acha que estaacute vendouma fotografia precisa mas se chegar perto uns 5 metros reconhece a imagem pelo queela eacute Aiacute se chegar bem perto jaacute natildeo reconhece absolutamente nada vocecirc estaacute apenasdiante de milhares de pixels (RUFF 2009)135

Ou seja o que o artista alematildeo faz eacute simplesmente criar condiccedilotildees para desfazer a ilusatildeo

de uma estrutura dotada de extrema organizaccedilatildeo da imagem mostrando-nos um pouco do que eacute

constituiacuteda uma fotografia digital expondo seus intervalos e lacunas Segundo Hainge (2013

p221-222) os trabalhos de Ruff satildeo exemplares do aspecto ruidoso da miacutedia fotograacutefica que se

apresenta atraveacutes da manipulaccedilatildeo de cores formas da estrutura dos pixels e distribui-se por toda

a sua obra que versa sobre a arquitetura composicional da imagem e do frame sobre a

distribuiccedilatildeo da luz e da cor e como todas essas caracteriacutesticas da imagem satildeo manipulaacuteveis

David Campany (2008) aponta que este trabalho defende uma ldquoarte do pixelrdquo chamando

a nossa atenccedilatildeo para a forma tiacutepica da imagem em circulaccedilatildeo na internet (ldquoforma de grelha

maquiacutenica e repetitivardquo)

Todas as imagens que aparecem hoje na internet eou impressas em livros e revistas satildeodigitalizadas Quase todas as imagens satildeo digitais mesmo que tenham origem emformas natildeo digitais ou preacute-digitais Dado este fato eacute surpreendente como poucosabordam o fato de estas imagens existirem como massas de informaccedilatildeo eletrocircnica quetomam forma visual como pixels Ruff fez muito para introduzir na arte fotograacutefica o quepoderiacuteamos chamar de arte do pixel permitindo-nos contemplar a niacutevel esteacutetico efilosoacutefico a condiccedilatildeo baacutesica da imagem eletrocircnica Claro que ele faz isso natildeo nosmostrando as imagens em telas mas atraveacutes de impressotildees fotograacuteficas em larga escala

135 Benedictus Leo Thomas Ruff best shot Disponiacutevel emhttpswwwtheguardiancomartanddesign2009jun11my-best-shot-thomas-ruff Acesso em 24022020

205

levando-as muito aleacutem de sua resoluccedilatildeo fotorrealista Esta pode ser a primeira vez quealgumas destas imagens assumem uma forma material136 (CAMPANY online 2008)

O autor ainda estabelece uma comparaccedilatildeo entre a acircnfase dada ao pixel em Jpegs e a

ldquoesteacutetica do gratildeordquo cuja conotaccedilatildeo de autenticidade marcou obras William Klein e Nan Goldin

entre outros e embora diferencie o gratildeo do pixel referindo-se a este uacuteltimo como elemento de

uma frieza tecnoloacutegica as afirmaccedilotildees de Campany articulam a valorizaccedilatildeo do pixel como rastros

da materialidade da miacutedia quando comenta o efeito visual acarretado pela ampliaccedilatildeo em larga

escala de imagens que supostamente deveriam ser visualizadas em arquivos de tamanho reduzido

(dada sua baixa resoluccedilatildeo) Ruff na verdade subverte a loacutegica de apresentaccedilatildeo de uma imagem

em formato JPEG deixando-nos ver os pequenos quadrados as zonas onde a forma se desfaz em

partes esfumadas Ele quebra a aparecircncia de regularidade e organizaccedilatildeo da estrutura em pixels

quando altera a escala de sua exibiccedilatildeo original

136 Traduccedilatildeo livre de ldquoAll images that appear on the internet andor printed in books and magazines today aredigitised Nearly all images are digital even if they originated in non-digital or pre-digital forms Given this fact it issurprising how few of them ever wish to address the fact that they exist as masses of electronic information that takevisual form as pixels Ruff has done a great deal to introduce into photographic art what we might call an lsquoart of thepixelrsquo allowing us to contemplate at an aesthetic and philosophical level the basic condition of the electronic imageOf course he does this not by showing us the images on screens but by making large scale photographic printsblowing them up far beyond their photorealist resolution This might be the first time some of these images have evertaken a material formrdquo

206

Figuras 66 e 66a - Imagens da seacuterie Jpegs (Thomas Ruff 2007)

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

Seja na valorizaccedilatildeo do gratildeo do negativo (como nos trabalhos de Joseacute Luiacutes Neto) ou em

todos esses artistas interessados no pixel como elemento irradiador de uma esteacutetica

207

desconcertante no que diz respeito agrave definiccedilatildeo das formas concretizam-se as ideias de Flusser

(2008 p25) a respeito das imagens teacutecnicas como virtualidades guardadas nos aparelhos e

ativadas ou reveladas mediante a exploraccedilatildeo criativa daqueles No mesmo estudo o filoacutesofo

explica que a imagem teacutecnica eacute um ldquoacidente programadordquo pois emerge como possibilidade jaacute

contida no ldquoprogramardquo o que entra em conformidade com as teses sobre o ruiacutedo ser uma

internalidade de cada tecnologia Para noacutes a identificaccedilatildeo do ruiacutedo nessas obras eacute possiacutevel

atraveacutes de um equiliacutebrio entre esse niacutevel de programaccedilatildeo (caracteriacutestica inescapaacutevel dos

aparelhos) e um certo espaccedilo de negociaccedilatildeo acionado atraveacutes de diferentes estrateacutegias pelos

artistas o que para Flusser diz respeito agrave postura do ldquojogadorrdquo diante da miacutedia

Eacute interessante tambeacutem salientar que no conjunto de suas ideias o pensador tcheco

entende a eclosatildeo do novo ou de uma ldquoimagem informativardquo numa relaccedilatildeo diferencial de uma

tradiccedilatildeo visual homogeneizante padronizada que se manteacutem restrita agravequilo que o programa

epistemoloacutegico do meio prefigura Ele diz que determinadas imagens propotildeem siacutembolos novos

quando se colocam contra um fundo ldquoredundanterdquo do coacutedigo estabelecido e estimula um papel

ativo de quem utiliza as tecnologias para desligar-se dessa tradiccedilatildeo de mesmice (atraveacutes de

propostas sempre renovadas inusitadas)

52 O BOM O MAU E O FEIO

No intuito de chamar nossa atenccedilatildeo para a diversidade de imagens criadas quando se

concebe o aparelho fotograacutefico (e aqui natildeo falamos apenas no sentido estritamente teacutecnico)

como dispositivo sujeito a reescrituras a filosofia flusseriana alinha-se a reflexotildees bastante

recentes do campo da imagem que pensando no ambiente das miacutedias computadorizadas

reconhece um valor esteacutetico justamente nas visualidades consideradas irregulares feias erraacuteticas

incomuns difiacuteceis de classificar e de identificar

A artista pensadora e professora Hito Steyerl em seu texto onde defende as ldquoimagens

pobresrdquo (2009) usa termos como baixa qualidade erracircncia reproduccedilatildeo remix download coacutepia

compartilhamento reediccedilatildeo ou seja todo um vocabulaacuterio que diz respeito agraves diversas estrateacutegias

de manipulaccedilatildeo que estatildeo na ordem do dia para osas artistas analisados aqui Embora se refiram

especificamente ao contexto da imagem digital suas palavras podem servir muito bem para dar

conta da variabilidade de resultados encontrados neste pequeno grupo de obras que tecircm no ruiacutedo

um ponto em comum Aliaacutes pensamos que no universo da imagem contemporacircnea o constante

208

cruzamento das miacutedias as operaccedilotildees de apropriaccedilatildeo de referecircncias as mais diacutespares conferem agraves

obras incluiacutedas nesta tese grande afinidade com o pensamento sobre a imagem pobre (mesmo

agravequelas natildeo elaboradas exclusivamente mediante o uso de miacutedias computadorizadas)

Sem intenccedilatildeo de utilizar o texto de Steyerl promovendo um esvaziamento de seu

evidente conteuacutedo poliacutetico e de gecircnero acreditamos ser frutiacutefero pensar os contornos esteacuteticos

que sua noccedilatildeo de ldquoimagens pobresrdquo carrega pois que remonta ao cinema independente e como os

circuitos alternativos de acesso e distribuiccedilatildeo (anteriores e jaacute com o apoio da internet) e agraves

estrateacutegias de apropriaccedilatildeo (exemplificadas aqui nos trabalhos de Thomas Ruff Sabato Visconti

Caacutessio Vasconcellos Rosacircngela Rennoacute) para falar sobre uma imageacutetica caracterizada pela fuga

de padrotildees esteacuteticos na qual o lugar mais alto de uma suposta hierarquia de valores associa-se agrave

resoluccedilatildeo agrave definiccedilatildeo agrave precisatildeo ao mesmo tempo em que questiona noccedilotildees de autoria e

originalidade Se percebemos que todos esses elementos articulam-se no debate proposto aqui

por que natildeo entender que o investimento no ruiacutedo daacute sua contribuiccedilatildeo para alargar o universo das

ldquoimagens pobresrdquo no sentido de politicamente reivindicar um espaccedilo de celebraccedilatildeo agraves esteacuteticas

contraacuterias agrave agenda natildeo intervencionista industrial comercial purista da imagem fotograacutefica

Obviamente uma imagem de alta resoluccedilatildeo parece mais brilhante e impressionantemais mimeacutetica e maacutegica mais assustadora e sedutora do que uma pobre Eacute mais ricadigamos assim () A resoluccedilatildeo foi fetichizada como se sua ausecircncia significasse acastraccedilatildeo do autor (masculino) O culto da bitola fiacutelmica dominou ateacute a produccedilatildeo decinema independente A imagem rica estabeleceu seu proacuteprio padratildeo de hierarquias comas novas tecnologias oferecendo cada vez mais possibilidades para degradaacute-lacriativamente137 (STEYERL 2009 p3)

Eacute bastante interessante como Steyerl toma elementos formais ndash foco resoluccedilatildeo

definiccedilatildeo nitidez ndash que aparecem ao longo de sua argumentaccedilatildeo num sentido poliacutetico que

distingue o valor das imagens a partir de sua aparecircncia Essa percepccedilatildeo vem a calhar se

pensarmos que muitas das imagens consagradas na Histoacuteria da Arte possuem as caracteriacutesticas

elencadas no texto O contraacuterio o conjunto das imagens pobres reuacutene aquelas sujeitas agrave

circulaccedilatildeo na internet baixadas copiadas coladas editadas desgastadas na proacutepria mateacuteria que

as compotildee Essa desvalorizaccedilatildeo estaacute subentendida em diversos roacutetulos utilizados para classificar

trabalhos os mais heterogecircneos Basta lembrar por exemplo a conotaccedilatildeo da palavra

137Traduccedilatildeo livre de ldquoObviously a high-resolution image looks more brilliant and impressive more mimetic andmagic more scary and seductive than a poor one It is more rich so to speakconservative in their very structureResolution was fetishized as if its lack amounted to castration of the author The cult of film gauge dominated evenindependent film production The rich image established its own set of hierarchies with new technologies offeringmore and more possibilities to creatively degrade itrdquo

209

ldquoexperimentalrdquo como algo inacabado ou que carece de planejamento o que pode resultar em

interpretaccedilotildees equivocadas sobre o cinema e a fotografia experimentais

Ao nos falar sobre a presenccedila de imagens manipuladas descontruiacutedas e reconstruiacutedas

que participam de uma economia visual orientada pela velocidade e pelas ambiguidades e fluxos

o texto de Steyerl funciona tambeacutem como um gesto em favor das experiecircncias de reescrita

poeacutetica das formas limiacutetrofes surgidas atraveacutes do desgaste das recombinaccedilotildees dos usos

desviados como tambeacutem preconiza Flusser ldquoO novo eacute um ruiacutedo () ele me perturba ele eacute

repulsivo Eu o odeio A criatividade comeccedila com o feio () O novo se torna informativordquo

(FLUSSER apud FELINTO 2013 p63) Aqui vemos a atualidade do pensamento de Flusser

que testemunhava os primeiros anos da internet e dos contornos de uma sociedade telemaacutetica

(2011) como ele mesmo se referia agrave nossa condiccedilatildeo de seres sob permanente conectividade Mas

suas palavras podem ser entendidas no sentido mais geral de sua ideia filosoacutefica do ldquojogordquo como

caminho para produzir imagem informativa

53 AS FLUTUACcedilOtildeES DE UM CONCEITO

A emergecircncia do ldquonovordquo no sentido de ldquoinformaccedilatildeordquo flusseriana leva-nos a retornar ao

ruiacutedo em uma de suas caracteriacutesticas que mais dificultam (e agraves vezes opotildeem) teorizaccedilotildees o que

distingue o ruiacutedo muda de tempos em tempos Agraves vezes em sua proacutepria eacutepoca ruiacutedos natildeo satildeo

reconhecidos como tal sendo necessaacuteria a emergecircncia de um paradigma diferente para que isso

ocorra Ou seja a relaccedilatildeo entre materialidade miacutedia e esteacutetica e seus ruiacutedos eacute temporal e pode

depender de um gap para se estabelecer Retrospectivamente em face de uma nova norma

representativa o ruiacutedo pode tornar-se perceptiacutevel (ou atentarmos para ele) e quando uma nova

tecnologia toma o lugar da anterior superando-a isso ocorreraacute porque seu (aparente) sucesso vem

da forccedila em apagar o ruiacutedo do meio num grau maior do que era possiacutevel antes (HAINGE 2013

p118)138 Essa condiccedilatildeo leva a uma relaccedilatildeo com o ruiacutedo que pode ser paradoxal se confiamos no

138 Traduccedilatildeo livre de ldquo() when a new representational norm has come into being that this noise becomesperceptible or rather that it is consciously attended to Indeed if a new technology is able to take hold (hellip) andsupplant its predecessor this (hellip) will be because of its (apparent) success in effacing such medial noise to a higherdegree than was previously possiblerdquo

210

discurso de progressiva melhoria ligado ao surgimento de novas tecnologias e equipamentos139

Se por um lado haacute uma loacutegica de recusa ao ruiacutedo guiando a induacutestria da imagem verificada por

exemplo no tratamento preacutevio aplicado por meio de funccedilotildees do tipo ldquoreduccedilatildeo de olhos

vermelhosrdquo os controles de ISO (reduzindo efeitos que lembram a granulaccedilatildeo do negativo) e

iluminaccedilatildeo preacute-formatados o uso de filtros que realccedilam tons e cores evitando um efeito de

esmaecimento bastante comum apoacutes uma revelaccedilatildeo mal sucedida foco automaacutetico e todas essas

ldquovantagensrdquo no processamento automatizado da imagem indicam a negaccedilatildeo de ruiacutedos associados

a um paradigma visual anterior como promessa para elevar a qualidade da imagem participando

como argumento fundamental da cadeia da induacutestria em contrapartida haacute experiecircncias de

reintroduccedilatildeo daquilo antes rotulado como defeito Um processo de reaproveitamento de

elementos que normalmente seriam descartados

Essa questatildeo importante num horizonte de hibridizaccedilotildees fica tambeacutem evidente quando

Hainge (2013) cita artistas contemporacircneos que utilizam softwares capazes de ldquodegradarrdquo o som

produzido digitalmente com ruiacutedos remetendo agraves ldquofissurasrdquo do vinil ou seja artificialmente

agregar um elemento de outra tecnologia um ruiacutedo assim entendido como diverso da loacutegica do

sistema digital Um ruiacutedo simulado adicionado via poacutes-produccedilatildeo Esta associaccedilatildeo entre

componentes de uma tecnologia diversa e obras realizadas em ambiente digital cria uma

disjunccedilatildeo radical de forma e conteuacutedo e parece tentar dar aos produtos digitais certa

autenticidade (HAINGE 2013 p119) Eacute o que acontece com os procedimentos de aplicaccedilatildeo de

filtros que remetem a caracteriacutesticas de imagens analoacutegicas como no caso do trabalho do

coletivo Basetrack que jaacute analisamos cuja referecircncia visual ldquoadicionadardquo via software eacute a

Polaroid

Embora praacuteticas desse tipo contrariem a ontologia do ruiacutedo que o entende como

manifestaccedilatildeo interna ao sistema ou tecnologia considerados eacute interessante perceber como esses

empreacutestimos ocorrem num ambiente mais amplo de atravessamento das miacutedias no meio artiacutestico

contemporacircneo O artista visual Eacuteder Oliveira natural de BeacutelemPA apropria-se do pixel como

elemento ruidoso que responde a propoacutesitos midiaacuteticos e sociais de estigmatizaccedilatildeo de um

139 Conter (2017) faz interessante anaacutelise sobre essa questatildeo abordando por exemplo o uso de termos como hi-fipelo mercado de equipamentos de reproduccedilatildeo sonora e suas implicaccedilotildees no sentido de endossar um movimento dainduacutestria guiado pela substituiccedilatildeo de produtos oferecidos como promessas de melhor qualidade na medida em queseriam capazes de restituir ao som caracteriacutesticas experimentadas na ocasiatildeo da performance e ao mesmo tempoeliminar falhas ou resiacuteduos ldquonatildeo musicaisrdquo (mesmo que tal fidelidade seja um ideal e tatildeo pouco o ruiacutedo seja passiacutevelde eliminaccedilatildeo)

211

determinado segmento social Interessado em delinear um perfil do ldquohomem amazocircnicordquo atraveacutes

dos retratos de pessoas marginalizadas pela violecircncia cria pinturas a partir de fotografias

veiculadas na imprensa policial

Na seacuterie Pixels (figuras 67 e 67a) o pixel que constitui o elemento formador das

imagens digitais eacute enfatizado como que esgarccedilado quando alccedilado ao centro da pintura sugerindo

o apagamento da identidade atraveacutes do natildeo reconhecimento dos traccedilos faciais a naturalizaccedilatildeo da

violecircncia associada a indiviacuteduos dos quais pouco importa saber quem satildeo (poreacutem notadamente

pessoas majoritariamente pobres e negras) uma ideia de informaccedilatildeo corrompida e inuacutetil

vinculada agrave degradaccedilatildeo desses mesmos indiviacuteduos no conjunto da sociedade por sua associaccedilatildeo

com atos criminosos

Figuras 67 e 67a - Pinturas (oacuteleo sobre tela) da seacuterie Pixels (Eacuteder Oliveira 2018)

212

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

A descaracterizaccedilatildeo da identidade atraveacutes da pixelizaccedilatildeo coloca em debate o fato

tambeacutem de que essas pessoas ao transformarem-se em imagens perdem totalmente qualquer

controle sobre os discursos criados sobre elas Essa questatildeo ganha mais potecircncia quando a

estrateacutegia eacute articulada pela escolha do gecircnero retrato notadamente utilizado com funccedilotildees de

valorizaccedilatildeo do indiviacuteduo num esforccedilo de celebraccedilatildeo da singularidade Eacuteder Oliveira perverte

essa ideia por meio da aproximaccedilatildeo da imagem ateacute que ela exponha sua materialidade forjada e a

identidade da pessoa desintegre-se Ao mesmo tempo que podemos enxergar os traccedilos da

informaccedilatildeo de uma imagem de computador ela jaacute encena uma passagem para a modalidade de

informaccedilatildeo pictoacuterica mas continuam ainda perceptiacuteveis marcas de ambas as modalidades e

temos uma obra estranhamente indefinida entre fotografia e pintura

Esse mesmo aspecto de mesticcedilagem entre pintura e foto eacute encontrado no projeto The

Discrete Channel with Noise mdash an experiment into visual communication and misinformation

de Clare Strand (figuras 68 a 71) Partindo de fotografias de seu acervo pessoal a artista constroacutei

pinturas que no entanto se distanciam de aspectos de apresentaccedilatildeo de telas convencionais O

conceito do projeto estaacute relacionado aos imprevistos e erros ligados agrave transmissatildeo da informaccedilatildeo

e agrave reinterpretaccedilatildeo de coacutedigos em sistemas diferentes tocando diretamente a questatildeo do ruiacutedo

Durante uma residecircncia artiacutestica na Franccedila Strand (que reside na Inglaterra) utilizou o livro

Electronic Television (1936) de George H Eckhardt para seu projeto da seguinte maneira a

publicaccedilatildeo sugeria a possibilidade de transmitir imagens atraveacutes de um teleacutegrafo marcando toda

a imagem com linhas verticais e horizontais formando assim uma grade em sua superfiacutecie Cada

213

quadrado formado por essas linhas receberia um nuacutemero correspondente a um esquema de cores

numa escala de cinza Ou seja criaria um coacutedigo para reproduccedilatildeo de uma imagem que migraria

de um meio a outro

Atuando como receptora da informaccedilatildeo a fotoacutegrafa pediu ao seu marido (otransmissor) para escolher dez imagens do seu arquivo pessoal Usando a metodologiade Eckhardt as imagens foram transmitidas da Inglaterra para a Franccedila onde Strandpintou-as em uma versatildeo em grande escala da mesma grade O resultado satildeo 10 imagensanaloacutegicas que expressam os inevitaacuteveis erros de comunicaccedilatildeo ocorridos durante oprocesso levantando questotildees sobre as consequecircncias da maacute interpretaccedilatildeo no mundodigital (WARNER online 2020)

As imagens finais satildeo em grande escala em relaccedilatildeo agraves fotografias originais e pouco se

assemelham a estas uacuteltimas predominando o aspecto quadriculado retiliacuteneo e padronizado dos

grafismos de sistemas eletrocircnicos e computadorizados Satildeo expostas em papel (e natildeo em telas)

grampeadas em suportes e exibidas em conjunto com as fotos originais e outros materiais

utilizados no projeto como pinceacuteis e tintas

Figura 68 - The Discrete Channel with Noise Coded Paint Pots 4 - 7

Fonte Reproduccedilatildeo site do Centre Photographique DrsquoIle-de-France

214

Na verdade elas datildeo corpo ao proacuteprio processo ldquoO processo eacute tatildeo importante quanto os

quadros e as fotografias daiacute a exposiccedilatildeo dos potes e pinceacuteisrdquo (STRAND apud WARNER online

2020)

Figura 69 - Fotografia original submetida ao meacutetodo de Eckhardt

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

Figura 70 - Algorithmic Painting Destination 4 (Clare Strand 2017 ndash 2018)

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

215

Figura 71 - Vista da montagem da exposiccedilatildeo The Discrete Channel with Noise Algorithmic Painting Destination

3 - 8 2018

Fonte Reproduccedilatildeo site do Centre Photographique DrsquoIle-de-France

Nesse projeto a dimensatildeo processual eacute reforccedilada enquanto se assume como esteacutetica os

descaminhos da transmissatildeo-recepccedilatildeo de informaccedilatildeo entre tecnologias distintas embora voltadas

igualmente para a imagem Os exemplos apresentados ateacute aqui indicam ainda como o ruiacutedo pode

operar apagando fronteiras entre passado presente e futuro confundindo temporalidades e

modos esteacuteticos atraveacutes de estrateacutegias derivadas de assimilaccedilotildees mixagens empreacutestimos

gerando produtos hiacutebridos como observado em relaccedilatildeo agraves tecnologias da imagem que passam a

operar na ordem da trocas Na conclusatildeo de seu estudo Hainge (2013) reforccedila a natureza mutaacutevel

do ruiacutedo identificado de maneira diferente quando comparamos campos de expressatildeo distintos

ou ateacute dentro de uma mesma linguagem artiacutestica como verificamos haacute pouco a respeito da

fotografia Segundo ele eacute impossiacutevel definir precisamente o que eacute o ruiacutedo pois suas coordenadas

natildeo satildeo fixas e suas caracteriacutesticas dependem dos arranjos expressivos feitos o que exige uma

interrogaccedilatildeo contiacutenua a seu respeito (HAINGE 2013 p273)

Eacute crucial termos isso em mente porque em nosso corpus as diferentes abordagens

realizadas pelos artistas exploram diversas vertentes esteacuteticas e recursos plaacutesticos que trazem agrave

tona uma multiplicidade de ruiacutedos Estes podem estar relacionados a expectativas modelos e

usos comuns e largamente aceitos para o campo da imagem em termos de gecircnero fotograacutefico

relaccedilotildees espaccedilo-temporais entre outras questotildees bastante caras ao fazer e pensar a imagem

216

Ao discutir o universo dos filmes de David Lynch como exemplo de um cinema

profundamente ruidoso140 e seus recursos narrativos e esteacuteticos Hainge (2013) diz que uma

intensificaccedilatildeo do medium eleva o niacutevel de ruiacutedo o que ocorre nas diversas obras arroladas nesta

tese atraveacutes da exploraccedilatildeo limiacutetrofe de aspectos variados como granulaccedilatildeo manchas borrotildees

muacuteltiplas exposiccedilotildees traccedilos do arrasto da peliacutecula dentro do equipamento interrupccedilotildees causadas

pelo acionamento e pausar da cacircmera cortes bruscos e aparentes nos materiais que se tornam

visiacuteveis na superfiacutecie da imagem etc O excesso de inscriccedilatildeo da tecnologia impede o

discernimento entre forma e conteuacutedo fundo e figura (HAINGE 2103 p183) implicando um

voltar-se para a proacutepria miacutedia como lugar de investigaccedilatildeo o que indica que os trabalhos presentes

em nosso corpus possuem uma dimensatildeo processual marcante

Acrescente-se ainda aos resultados esteacuteticos que expotildeem os ruiacutedos na imagem os

contrastes entre aacutereas muito proacuteximas da lente (e seu aspecto borrado) e fundo cortes bruscos e

expliacutecitos na junccedilatildeo de elementos diacutespares dentro um mesmo quadro que mistura ambientes

temporalidades (HAINGE 2013 p198) texturas materiais provindos de diferentes signos

associados agrave imagem para favorecer natildeo uma intenccedilatildeo narrativa mas uma provocaccedilatildeo formal

caoacutetica

Na seacuterie Nuptias (2017) Rosacircngela Rennoacute (figuras 72 a 76) discute o paradoxo entre

um rito social altamente valorizado e cercado de idealizaccedilotildees ndash o matrimocircnio ndash e seu desgaste

sua ruiacutena jaacute que em muitos casos o casamento natildeo resiste ao tempo Satildeo imagens realizadas em

teacutecnica mista utilizando-se fotografias antigas e carte de visite Imagens recuperadas de

contextos de felicidade utilizadas para falar sobre as amarguras do casamento Isso eacute feito

aplicando-se agraves imagens objetos pedaccedilos de tecidos madeira desgastada ilustraccedilotildees recortadas

de enciclopeacutedias trechos de mangaacutes reproduccedilotildees de pinturas famosas entre outros materiais A

artista escreve pinta cola sobre as fotos Junta os noivos de uma cerimocircnia e personagens

totalmente estranhos agrave situaccedilatildeo (retirados de outras fotos) que pelos trajes e poses notamos natildeo

140 Para Hainge (2013) seja do ponto de vista filosoacutefico ou esteacutetico os filmes do cineasta satildeo cheios de perturbaccedilotildeesde identidades e categorias fixas formas delimitadas chegando a diluir o significado tendo em vista que os enredossolicitam que nos desapeguemos de ideias preacute-concebidas de narrativa uso do som gecircneros de noccedilotildees que separamo que eacute real devaneio ou loucura As estranhezas que se verificam nas imagens de Lynch estatildeo alinhadas com asestranhezas das narrativas O capiacutetulo de seu livro dedicado agrave produccedilatildeo do diretor norte-americano trataespecificamente de Eraserhead (1977) e Impeacuterio dos Sonhos (Inland Empire 2006)

217

pertencerem agrave situaccedilatildeo de festa alguma Vai e volta no tempo casando uma recatada mocinha com

o vilatildeo Darth Vader do filme Guerra nas Estrelas141

Figura 72 - Sem tiacutetulo (Lea loves Darth) da seacuterie Nuptias (Rosacircngela Rennoacute 2017)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Visualmente todo o conjunto formado por 150 fotopinturas142 sugere um excesso de

lugares expectativas desejos personagens referecircncias encontrando-se numa verdadeira

confusatildeo Um excesso de materialidade para o qual Rosacircngela Rennoacute oferece soluccedilotildees visuais

que lidam com o abandono e o esquecimento A obra problematiza a um soacute tempo modelos de

relacionamento sexualidade estereoacutetipos femininos a verdadeira induacutestria que envolve a

realizaccedilatildeo de um casamento e fala logicamente da proacutepria fotografia de casamento como um

141 Guerra nas Estrelas (Star Wars) eacute a franquia de filmes de ficccedilatildeo cientiacutefica criada pelo norte-americano GeorgeLucas Os primeiros filmes (Guerra nas Estrelas O impeacuterio Contra-Ataca O retorno de Jedi) foram lanccediladosnas deacutecadas de 1970-80 A partir dos anos 2000 outros nove episoacutedios jaacute foram lanccedilados entre eles O Ataque dosClones A vinganccedila dos Sith O despertar da forccedila e o mais recente Solo Uma Histoacuteria Star Wars (RonHoward 2018)142 ldquoFotopinturardquo eacute o termo utilizado pela artista na descriccedilatildeo da obra que consta em seu site Poreacutem lembremos quea teacutecnica de fotopintura pressupotildee a recriaccedilatildeo de uma imagem fotograacutefica a partir de teacutecnicas pictoacutericas (cominclusatildeo de elementos ausentes da imagem fotograacutefica original) De fato a seacuterie de Rennoacute junta fotografiasdescartadas e materiais diversos (papel madeira borracha tinta tela) alguns deles pertencentes ao universo dosmateriais pictoacutericos mas natildeo reconstroacutei as imagens fotograacuteficas repetindo os limites de enquadramento pose everossimilhanccedila como geralmente ocorre numa fotopintura tradicional Nesse sentido mais tradicional do termo haacuteapenas uma imagem entre as disponibilizadas no site que utiliza uma fotopintura como base a imagem Semtiacutetulopavatildeo (2017) Disponiacutevel em httpwwwrosangelarennocombrobrasview703 Acesso em 280419

218

artefato cheio de complexidades enquanto guarda certa aura de preciosidade pode ser tanto

viacutetima da abundante produccedilatildeo de imagens digitais quanto do descarte poacutes-separaccedilatildeo do

esmorecer das cores e dos afetos em aacutelbuns velhos da poeira e do passar dos anos que faz muitas

dessas fotografias irem parar em lugares onde o desapego se mede pelo preccedilo baixo e onde

Rennoacute foi buscaacute-las para compor sua seacuterie Ela explica

Me parece que a sociedade sofre cada vez mais com uma ansiedade generalizadaprovocada pelos ldquoexcessosrdquo Excesso de tudo de comunicaccedilatildeo de acessibilidade deconsumo de contraste entre pobreza e riqueza entre desejo e realizaccedilatildeo esse excessoempurra a satisfaccedilatildeo e consequentemente a felicidade para muito longe sempre muitoaleacutem do nosso alcance As cerimocircnias dos tradicionais matrimocircnios parecem ser tanto otermocircmetro desse sentimento quanto a proacutepria febre Entretanto e entre tantasfrustraccedilotildees casamentos se tornam imperfeitos por muito pouco Me interesso pelodocumento daquilo que foi sacramentado e depois desfeito quer seja pelo tempo ou peloproacuteprio ser humano Casamentos hoje natildeo parecem valer muita coisa apesar do aindaalto valor simboacutelico da cerimocircnia e do altiacutessimo preccedilo que se paga para realizaacute-las Eacuteimpressionante a quantidade de fotos de casamento que satildeo encontradas nos mercadosde pulgas soacute natildeo superada pela quantidade de fotos que satildeo realizadas hojedigitalmente nas inumeraacuteveis cerimocircnias cujo ideal de pompa e circunstacircncia varia emconformidade com o poder de compra das diferentes classes sociais143 (RENNOacute online2017)

Eacute muito interessante como nessa obra a questatildeo do ruiacutedo opera em vaacuterios niacuteveis o

simboacutelico tratando o casamento sob a perspectiva das relaccedilotildees amorosas confusas imperfeitas

deterioradas e ateacute improvaacuteveis do estilo das composiccedilotildees totalmente disjuntivo apelando aos

processos utilizados em fotomontagem e abrindo agrave imagem para diversos efeitos de choques

cromaacuteticos rasgos buracos riscos recortes e contornos bruscos o das temporalidades jaacute que a

artista daacute saltos no tempo trabalhando com imagens de eacutepocas variadas que adicionadas umas agraves

outras criam um tempo sem marcos de passado presente ou futuro investindo na dissoluccedilatildeo

dessas fronteiras e por fim o niacutevel das reflexotildees a respeito dos ldquosintomasrdquo das sociedades

contemporacircneas em processos como incomunicabilidade excesso de informaccedilatildeo fugacidade

alteridade medo quebra de paradigmas questotildees frequentemente evocadas ao longo do estudo

de Hainge (2013) e que reforccedilam a compreensatildeo de que o ruiacutedo estaacute em tudo (sentido

fenomenoloacutegico e ontoloacutegico) natildeo respeita aprisionamentos cronoloacutegicos bagunccedilando os

paradigmas os limites as preacute-definiccedilotildees

143 RENNOacute Rosacircngela Nuptias (2017) Disponiacutevel em httpwwwrosangelarennocombrobrassobre70 Acessoem 260419

219

A ecircnfase na ideia de que o casamento eacute felicidade e frustraccedilatildeo ao mesmo tempo

sentimentos misturados sem que nenhum deles sobreponha-se ao outro faz com que retornemos

ao tema do ruiacutedo Se pensamos que essa relaccedilatildeo entre contraacuterios eacute inescapaacutevel e responsaacutevel pelo

excesso de desejo e expectativas a que se refere a artista o ruiacutedo estaacute na impossibilidade de

equacionar esses extremos posto que satildeo vivenciados conjuntamente na relaccedilatildeo (da qual o

casamento eacute o rito social partilhado e registrado) embora as tentativas de controle sejam tatildeo

frequentes quanto inuacuteteis A seacuterie Nuptias proporciona uma leitura amarga e irocircnica do

casamento como instituiccedilatildeo social e atinge esse efeito sujeitando as imagens a procedimentos

que pervertem suas formas sentidos e usos originaacuterios

Figura 73 - Sem tiacutetulo (aacutelbuns) da seacuterie Nuptias (Rosacircngela Rennoacute 2017)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Rennoacute estaacute entre as artistas brasileiras contemporacircneas mais interessantes no uso de

materiais recuperados (fotografias aacutelbuns peliacuteculas) e equipamentos antigos ligados agrave histoacuteria

das tecnologias de imagem Vaacuterios de seus trabalhos problematizam binocircmios como fugacidade e

perenidade fixidez e mobilidade imaterialidade e fisicalidade ciclos de vida e morte real e

fabulaccedilatildeo tempo e memoacuteria sempre relacionados agrave imagem nos quais ela emprega cacircmeras

projetores e negativos remetendo agraves formas de entretenimento claacutessicas da imagem (tais como

lanterna maacutegica diorama cinema de atraccedilotildees fantasmagorias estereoscopia) Contudo nessas

obras em vez de sustentar o princiacutepio de ocultamento dos dispositivos trabalhando na chave

220

discursiva da ilusatildeo ndash como ocorre por exemplo no cinema convencional onde aparentemente a

imagem nos atinge sem recursos intermediaacuterios sem toda uma estrutura tecnoloacutegica que de fato

lhe daacute ldquocorpordquo ndash Rennoacute busca desnudar os mecanismos de funcionamento deixando o puacuteblico

ver as superfiacutecies os aparelhos as peliacuteculas as cacircmeras e os restos de materiais tornando a

presenccedila dessas estruturas um componente importante que enfatiza o artifiacutecio envolvido nos

procedimentos relativos agrave imagem Seu trabalho tira partido de uma verve colecionista e vai

tomando forma com base no rearranjo dos objetos coletados que sofrem intervenccedilotildees e satildeo

muitas vezes empregados em circuitos de fruiccedilatildeo totalmente apartados dos originais dobrando-se

a intencionalidades estranhas para as quais foram criadas Nesse sentido eacute bastante produtivo o

cruzamento entre imagens ligadas ao uso domeacutestico e afetivo (fotografia de famiacutelia viacutedeos

caseiros) e um estatuto mais coletivo adquirido quando satildeo utilizadas para discutir funccedilotildees de

arquivamento acumulaccedilatildeo valor histoacuterico simboacutelico ou poliacutetico memoacuteria esquecimento Todas

essas questotildees sempre rondaram de maneira especial os debates sobre a fotografia e satildeo

recolocadas pela criacutetica cada vez que a tecnologia apresenta alguma novidade Na obra de

Rosacircngela Rennoacute esses temas satildeo constantes que movem a busca pela reinterpretaccedilatildeo de uma

seacuterie de materiais abandonados condenados ao esquecimento

Figura 74 - Sem tiacutetulo (barata) seacuterie Nuptias (Rosacircngela Rennoacute 2017)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

221

Figura 75 - Sem tiacutetulo (davi tupi) da seacuterie Nuptias (Rosacircngela Rennoacute 2017)

FonteReproduccedilatildeo site da artista

Figura 76 - Sem tiacutetulo (Guernica) da seacuterie Nuptias (Rosacircngela Rennoacute 2017)

222

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Tais praacuteticas estatildeo em conformidade com estrateacutegias da arte contemporacircnea alinhadas agraves

teses flusserianas de desmonte do ldquoprogramardquo do ldquoaparelhordquo podendo incluir intervenccedilotildees no

modo de funcionamento convencional das miacutedias experiecircncias com as materialidades e o uso de

miacutedias obsoletas ou resgate de projetos abandonados (BAIO 2015 p21) Reintroduzir certos

artefatos ligados ao universo das tecnoimagens criando novos usos e modos de apresentaccedilatildeo e

estimulando assim modos novos de sensibilidade eacute tambeacutem uma maneira de reprogramar os

dispositivos

No projeto Imagem de sobrevivecircncia (figuras 77 78 e 78a) tambeacutem desenvolvido a

partir de imagens coletadas em feiras e mercados de pulgas a artista utiliza o slide (ou

diapositivo) Hoje praticamente esquecido (seja pela indisponibilidade de projetores ou da

descontinuidade da produccedilatildeo das proacuteprias imagens) o slide desempenhava uma funccedilatildeo de

fotografia de famiacutelia poreacutem na modalidade da imagem projetada Em seu site ao explicar um

pouco sobre o trabalho Rennoacute lembra que os diapositivos foram populares entre os anos 1950-

80 e simbolizavam o ato de contemplar entre parentes e amigos cenas cotidianas e momentos de

lazer Ao contraacuterio do aacutelbum de fotografias o contato com os diapositivos mostra-se mais

dinacircmico por causa de um deslumbramento que noacutes seres humanos temos pelas imagens

projetadas (RENNOacute online 2015) Soacute que neste trabalho em vez de dar ecircnfase agrave contemplaccedilatildeo

de momentos singularizados em cada diapositivo individualmente a artista projeta as imagens ao

mesmo tempo

Cada lsquoesculturaestantersquo abriga e expotildee 4 projetores do tipo Kodak Carousel queprojetam as imagens em transparecircncia de forma simultacircnea e sobreposta O resultado eacuteuma projeccedilatildeo muacuteltipla muito paacutelida que ao longo do tempo se modificaconstantemente sem jamais se repetir ateacute que a luz dos projetores a consumamtotalmente para que sejam substituiacutedas por outras mais frescas (RENNOacute online2015)

223

Figura 77 - Vista da montagem da obra Imagem de sobrevivecircncia (Rosacircngela Rennoacute 2015)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Desrespeitando o princiacutepio da imagem uacutenica e fixa os diapositivos satildeo submetidos a

uma montagem que sugere o excesso onde o caraacuteter de singularidade de cada um se desvanece e

nesse sentido o trabalho chama atenccedilatildeo para o aspecto da materialidade do suporte ldquoslides satildeo

feitos e colecionados agraves duacutezias agraves centenas e aos milharesrdquo (Idem) Essa materialidade abundante

eacute lembrada pela maneira como as imagens satildeo apresentadas (sobrepostas)

A estrateacutegia de exibi-los todos ao mesmo tempo tambeacutem provoca um embaralhamento

que entrecruza vaacuterios tempos e espaccedilos Note-se que os diapositivos selecionados foram

adquiridos em locais distintos provenientes de coleccedilotildees variadas ou seja natildeo necessariamente

possuem um tema comum ordenamento ou afinidade cronoloacutegica o que Rennoacute simboliza

exatamente pelo arranjo escolhido para sua apresentaccedilatildeo um arranjo desordenado As

associaccedilotildees entre eles satildeo aleatoacuterias Os personagens e cenaacuterios dessas imagens vecircm assombrar o

olhar do espectador como verdadeiros espectros evocados seja pela fugacidade da projeccedilatildeo seja

pelo fato de que pertencem a um tempo passado fragilmente lembrado apenas enquanto

permanece acesa a luz de cada equipamento

Ao mesmo tempo eacute como se a artista tentasse montar um pequeno e caoacutetico

documentaacuterio sobre pessoas que tinham nas coleccedilotildees de slides o diaacuterio visual de suas rotinas

224

num esforccedilo para dar sobrevida a cenas que originalmente eram produzidas para uma audiecircncia

reduzida (familiar) Rosacircngela Rennoacute se destaca pela elaboraccedilatildeo de obras em que confere

ldquodinamismo agrave imagem fixardquo (FATORELLI 2013 p24) e neste projeto em questatildeo ela articula

de maneira muito particular os dispositivos do cinema e da fotografia (reprogramando suas

ontologias claacutessicas) chamando nossa atenccedilatildeo para a estranheza do proacuteprio formato diapositivo

uma imagem fixa concebida para projeccedilatildeo Imagem fixa que adquiria um falso movimento a

partir da sucessatildeo de unidades na velocidade regular do projetor Se em seu modo de usar

corriqueiro a ideia de uma narrativa jaacute se anunciava como uma impossibilidade ao propor a

sobreposiccedilatildeo de vaacuterias destas unidades diante do espectador da obra Rennoacute provoca uma falha

no desejo de interligar as cenas visiacuteveis

Figuras 78 e 78a - Projeccedilotildees de Imagem de sobrevivecircncia (Rosacircngela Rennoacute2015)

225

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Quem observa tais cenas natildeo tem qualquer relaccedilatildeo de intimidade com o aquilo que eacute

exibido donde se perverte tambeacutem a natureza afetiva e particular original deste material

Deslocado de seu tempo num resgate em plena eacutepoca dos meios digitais o diapositivo aponta

para o ruiacutedo no sentido de que afasta-se de padrotildees utilitaacuterios e vigentes da induacutestria da imagem

atual Aleacutem disso ndash e este eacute tambeacutem um aspecto relevante da obra ndash como imagem que enfrenta

um processo de deterioramento no seu proacuteprio uso o slide caminha na direccedilatildeo de uma esteacutetica de

desgaste da precariedade do apagamento numa constante mutaccedilatildeo de suas caracteriacutesticas

fiacutesicas e consequentemente esteacuteticas

226

6 O QUE SUGEREM AS LIGACcedilOtildeES ENTRE RUIacuteDO E IMAGEM

Ao longo deste estudo certos temas emergiram das anaacutelises das obras alguns dos quais

representam tendecircncias observadas nas obras analisadas a influecircncia do acaso como elemento

que contribiu para a formaccedilatildeo de esteacuteticas singulares o valor da materialidade como base da

expressatildeo do ruiacutedo a reapropriaccedilatildeo criacutetica de tecnologias ldquoobsoletasrdquo ou ldquoabandonadasrdquo da

imagem em sua articulaccedilatildeo com uma abordagem arqueoloacutegica da miacutedia e por fim os

movimentos da teoria da imagem que podem nos ajudar a compreender esse universo de

imagens

Tais questotildees perpassam todo o trabalho e satildeo aqui evocadas com o objetivo de oferecer

uma espeacutecie de comentaacuterio final sobre os projetos artiacutesticos que trouxemos A reflexatildeo pode se

somar aos estudos recentes sobre a arte contemporacircnea e suas tendecircncias que discutem o tracircnsito

entre miacutedias a condiccedilatildeo plural da imagem o tensionamento do paradigma indicial o resgate de

teacutecnicas claacutessicas da imagem e a recente valorizaccedilatildeo formal das obras nascidas da exploraccedilatildeo do

erro da falha ou do ruiacutedo

61 O PAPEL CRIATIVO DO ACASO

ldquoMas deixo o destino deixo ao acaso

Quem sabe eu te encontrordquo - Lua e Estrela Caetano Veloso

Associado agrave sua ubiquidade nas mateacuterias sistemas e meios o ruiacutedo possui uma

dimensatildeo que escapa ao controle humano (HAINGE 2013 p94) conservando na sua

manifestaccedilatildeo algo de imprevisiacutevel que podemos associar agrave ordem do acaso Esse componente eacute

parte importante da elaboraccedilatildeo de vaacuterias obras analisadas aqui desempenhando papel

fundamental na proacutepria concepccedilatildeo da imagem e de suas configuraccedilotildees formais Um entendimento

do ruiacutedo que valoriza certa rebeldia como marca saudaacutevel e desejada da tecnologia

227

Esse imprevisiacutevel ndash um agenciamento surgido quando as proacuteprias tecnologias satildeo postas

em funcionamento pelos artistas na combinaccedilatildeo de materiais e ferramentas inusitados ou mesmo

na associaccedilatildeo entre teacutecnicas diversas ndash origina trabalhos bastante diacutespares ligados agrave vertente

ldquoexperimentalrdquo (LENOT 2017a) ldquoexpandidardquo (JUNIOR 2002) natildeo-representacional e ldquonatildeo-

humanardquo (ZYLINSKA 2017a) da fotografia A despeito da especificidade dessas terminologias

todas sugerem a abordagem da fotografia a partir de um caraacuteter processual em obras nas quais a

esteacutetica surge como decorrecircncia de um intenso processo de experiecircncias realizadas nas diferentes

etapas de produccedilatildeo da imagem Se entendemos que a imagem eacute essencialmente um processo

(sujeito a acidentes de toda sorte) a relaccedilatildeo com essa dimensatildeo do imprevisto adquire conotaccedilatildeo

positiva Isso fica evidente nas entrevistas que realizamos para esta tese nas quais termos como

ldquoacasordquo ldquodesconhecidordquo ldquoriscordquo (ou mesmo ldquoerrordquo e ldquoruiacutedordquo) foram citados para afirmar o

papel positivo da imprevisibilidade Ao mesmo tempo osas artistas natildeo atribuem a si mesmosas

o controle riacutegido dos processos criativos embora a maioria possua um consideraacutevel domiacutenio

sobre as teacutecnicas e materiais utilizados Na verdade quanto maior o niacutevel de intimidade com as

tecnologias mais as metodologias satildeo encaradas como abertas adaptaacuteveis maleaacuteveis e podem

ser reinventadas desdobradas Na trajetoacuteria dessas reinvenccedilotildees os acidentes acrescentam

camadas de significaccedilatildeo aos trabalhos

Maueacutes falando dos procedimentos relativos agrave teacutecnica do quimigrama indica

Brincando com esse processo eu descobri uma textura que dava uma ilusatildeo de ceacuteu Ohorizonte te remete agrave paisagem Algumas dessas imagens parecem fotografia por contado material Aiacute tem essa ilusatildeo de que o material te faz pensar numa paisagemfotograacutefica de um lugar que existe mas natildeo existe Eacute a ilusatildeo do processo Um ceacuteu umhorizonte e a mancha tambeacutem neacute Aquilo ali comeccedila a derramar () surge da accedilatildeodos dois juntos (revelador + fixador) que eacute totalmente imprevisiacutevel Porque depende daluz natildeo precisa de laboratoacuterio () de estar numa luz mais forte mais fraca Essasreaccedilotildees vatildeo sendo mais raacutepidas mais lentas e as cores vatildeo surgindo de formaimprevisiacutevel (MAUEacuteS 2017)

Luiz Alberto Guimaratildees avalia que a configuraccedilatildeo padratildeo das maacutequinas fotograacuteficas o

ldquoprogramardquo reduz a intervenccedilatildeo do acaso

Quando eu digo que a gente sabe o que vai sair a gente tem uma vaga ideia Ainda maisquando vocecirc tem muacuteltiplas exposiccedilotildees aquilo vai se superpor vocecirc natildeo tem a menorideia Quando eu digo saber () eacute tudo que vocecirc faz eacute mirar saber que quando vocecirc taacutebotando a maacutequina ali vocecirc natildeo vai pegar o chatildeo vocecirc vai pegar o alto do preacutedio ()Mesmo essas fotos que eu procurava fazer uma fusatildeo com o fundo vocecirc nunca sabeMuitas eu repetia e agraves vezes ficava transparente demais ou agraves vezes ficava pouco ()

228

Porque tambeacutem quando a gente mostra o trabalho pronto jaacute taacute editado apurado () masa maacutegica eacute muito isso o resultado eacute sempre a imprevisiblidade (que o aparelhoconvencional trabalha sempre no sentido oposto neacute) Para tirar toda a chance de natildeosair o que vocecirc queria Tanto que agraves vezes se vai fazer foto comum de gente aiacute lsquopuxaalgueacutem piscou cortoursquo porque natildeo podia sair aquilo () Na fotografia vocecirc tem essecampo do acaso que eacute bem grande mas que o projeto da cacircmera tenta limar neacute Eacutefantaacutestico (GUIMARAtildeES 2017)

Para Cris Bierrenbach aceitar que durante a realizaccedilatildeo de um trabalho nem tudo estaacute

previsto eacute parte da metodologia Sobre a seacuterie Febre de 2002 (ver figura 51) comenta ldquoO

trabalho acontece () Natildeo era uma foto qualquer era um rosto Eu tava num movimento de

destruir um rosto destruir uma representaccedilatildeo de identidade () Na cabeccedila tem um

direcionamento mas vai acontecendordquo (BIERRENBACH 2019)

Entler (2000) afirma que ao contraacuterio de vislumbrar na arte somente a expressatildeo

individual centralizada na figura de um sujeito criador podemos entender o acaso como

elemento participativo das obras Os artistas que fazem isso estatildeo interessados no que o autor

denomina ldquopoeacuteticas do acasordquo Segundo ele a poeacutetica estaacute ligada aos procedimentos aos modos

de fazer agraves funccedilotildees da arte Ele se refere ainda ao direcionamento adotado a partir do uso

intencional de uma determinada teacutecnica tecnologia ou mesmo esse direcionamento tomado com

referecircncia a um estilo ou movimento artiacutestico ldquoEacute a poeacutetica que determina as normas de uma

produccedilatildeo artiacutestica suas particularidades operativasrdquo (ENTLER 2000 p48)

Eacute interessante que ao lado de um conhecimento soacutelido das tecnologias empregadas

osas artistas natildeo intencionam a produccedilatildeo de obras que espelhem esse domiacutenio da teacutecnica eles

acolhem prontamente os acidentes e resultados inesperados surgidos no manuseio dessas

teacutecnicas Essa atitude demonstra que haacute uma espeacutecie de deslocamento da importacircncia doda

artista como responsaacutevel exclusivo pela concepccedilatildeo da obra em direccedilatildeo a uma colaboraccedilatildeo que

acontece na interaccedilatildeo dos elementos que compotildeem a proacutepria obra Ou melhor dizendo da

aceitaccedilatildeo de uma funccedilatildeo expressiva originada no medium Estamos diante de uma metodologia

caracterizada pela negociaccedilatildeo entre controle e imprevisto

O acaso natildeo se submete agrave habilidade e reciprocamente a habilidade eacute exatamente aarma que se pode ter contra o acaso para garantir o alcance de um objetivo qualquerTem-se aqui um sentido negativo que hoje estaacute contido na ideia de acidente e diante dosenso comum arte estaacute para criaccedilatildeo como acaso estaacute para a destruiccedilatildeo (ENTLER 2000p9)

229

Se o autor fala em destruiccedilatildeo e descontrole nos processos onde o acaso exerce funccedilatildeo

criativa Bierrenbach chega agrave mesma questatildeo e fala sobre a relaccedilatildeo entre miacutedias analoacutegicas e o

encontro com o acaso

No analoacutegico sempre tem um caraacuteter assim do imprevisiacutevel mais forte (lsquoQue vocecirc natildeoconsegue controlar totalmente o resultado neacutersquo) Exatamente Vocecirc natildeo consegue prevernatildeo consegue controlar natildeo tem como voltar atraacutes Eacute claro que eu consigo errar e testarmuitas coisas () fazer uma ldquogororobardquo aqui uma maluquice qualquer no computadorMas eu sempre consigo voltar e eu sempre ldquotocircrdquo com um peacute numa certeza da natildeodestruiccedilatildeo que no analoacutegico natildeo Vocecirc efetivamente tem que destruir coisas pra chegaragravequela imagem () Quando vocecirc transformou ela ela foi destruiacuteda (BIERRENBACH2018)

Entler considera ainda que oa artista traz para o primeiro plano do ato criativo o

processo sem no entanto ter uma consciecircncia definida sobre o resultado buscado O acaso

conteacutem a resposta de uma investigaccedilatildeo de iniacutecio demarcado mas de final incerto A ideia de

aproveitar algo que natildeo se sabia exatamente como seria eacute o princiacutepio norteador de vaacuterias obras

elencadas aqui que investigam por exemplo as inscriccedilotildees do tempo mediante longas exposiccedilotildees

ou o uso da teacutecnica de databending na glitch art a troca das ordens de quiacutemicos no procedimento

do quimigrama o emprego de cacircmeras pinhole (sem lente anel de foco) entre tantas estrateacutegias

desenvolvidas

611 O imprevisiacutevel instala-se por conta do uso desprogramado das tecnologias

A imprevisibilidade que essas obras carregam se torna parte integrante delas exatamente

pelo uso desviado as recodificaccedilotildees os ajustes e reinvenccedilotildees dos meios Utilizando as

tecnologias de maneira alternativa aos padrotildees industriais natildeo se pode prever completamente a

configuraccedilatildeo final dos trabalhos Essa margem de indeterminaccedilatildeo constitui entatildeo uma

caracteriacutestica relevante desses projetos artiacutesticos Entler comenta a relaccedilatildeo entre acaso e modos

de fazer originais

Parece oacutebvio que quando determinamos uma meta a maneira mais segura de atingi-la eacuteter o maacuteximo de controle sobre o processo Se me proponho a fazer um bolo devo saberexatamente a quantidade de cada ingrediente a forma de misturaacute-los o tempo e atemperatura de cozimento e para evitar equiacutevocos recorremos a uma receita Masquando a meta natildeo estaacute previamente configurada de maneira tatildeo riacutegida quando nossoalvo se move quando tentamos nos antecipar a um problema potencial o acaso se tornaum criteacuterio que merece nossa atenccedilatildeo Para a arte assim como para qualquer gecircnese oacaso encontra sua utilidade como uma das mais ricas fontes de diversidade e de

230

renovaccedilatildeo que conhecemos Natildeo haacute criaccedilatildeo verdadeira sem desvio (ENTLER 2000p39)

Nos trabalhos de nosso corpus os resultados expressam as escolhas adotadas em cada

processo por cada artista em particular Assim as obras constituem tambeacutem um exerciacutecio formal

e criacutetico dos usos corriqueiros das tecnologias e um tensionamento poliacutetico-esteacutetico para criar

visualidades erraacuteticas plurais e descontiacutenuas considernando sobretudo a dimensatildeo poeacutetica dos

erros falhas e ruiacutedos Bierrenbach estimula a refletir natildeo sobre a tipologia das miacutedias mas sobre

maneiras alternativas de utilizaacute-las

Num certo sentido chega a ser poliacutetico Ludimilla (lsquoSim eacute uma postura poliacutetica de comocolocar a maacutequinavocecirc criar sua proacutepria linguagemrsquo) Num certo sentido ateacutedesacreditar a maacutequina neacute Tirar esse poder da cacircmera As pessoas falam que cacircmeravocecirc tem Natildeo importa que cacircmera eu tenho Importa o que vocecirc pensa importa o quevocecirc vai fazer com aquilo Pode ter ateacute um xereta Vocecirc nem sabe o que eacute um xeretaneacute Uma cacircmera muito de crianccedila da deacutecada de 70 que as crianccedilas apertavam () (lsquoAhuma cacircmera fininharsquo) Eacute de plaacutestico Entatildeo eacute poliacutetico nesse sentido vocecirc desacreditaaquilo vocecirc diz natildeo agravequela imagem correta que as pessoas dizem que eacute a correta queaquilo eacute a foto certa Porque a cacircmera saiu da faacutebrica com essa programaccedilatildeo ()(BIERRENBACH 2018)

612 Caraacuteter processual

Em meio agraves estrateacutegias de desprogramaccedilatildeo podemos dizer que essas obras satildeo marcadas

por um caraacuteter processual em que suas configuraccedilotildees plaacutesticas carregam os traccedilos das

metodologias adotadas Aqui o termo ldquoprocessualrdquo eacute empregado de um ponto de vista teacutecnico e

metodoloacutegico pois os trabalhos apresentam vestiacutegios de seus materiais Pixels luzes gratildeos

pinceladas frames Os gestos dosdas artistas na construccedilatildeo dessas obras tais como borrotildees

arrastos sombras deformaccedilotildees sobreposiccedilotildees riscos manchas e quaisquer intervenccedilotildees

praticadas nos objetos artiacutesticos Note-se que novamente alcanccedilamos a questatildeo do ruiacutedo como

fenocircmeno (manifesto) e conceito (princiacutepio criativo)

Como quem vecirc input e output natildeo necessariamente vecirc o processo (FLUSSER 2011)

outra maneira de indicar suas etapas eacute por exemplo revelar os elementos compositivos das

obras incluindo em sua estrutura de apresentaccedilatildeo os equipamentos (desnudando modos

operativos e mecanismos de funcionamento) como Rosacircngela Rennoacute e Maueacutes quando

apresentam suas cacircmeras e dispositivos de imagem ou exibir os materiais (como Claire Strand

que expotildee junto agraves pinturas derivadas de fotografias tubos de tinta pinceacuteis e fotos originais) ou

231

no projeto para The Wilderness Downtown (ver figuras 1 a 6) em que a maacutequina que fabrica os

postais gerados digitalmente a Wilderness Machine (figura 7) eacute exibida em funcionamento

Essas estrateacutegias nos lembram que cada miacutedia possui singularidades e codificaccedilotildees (perceptivas

poliacuteticas e esteacuteticas) que orientam nossas interpretaccedilotildees e satildeo postas em jogo na estrutura dessas

obras muitas vezes com propoacutesito criacutetico

Ou seja estamos aqui defendendo que seja relevante para o corpus escolhido o fato de

o acaso desempenhar um papel preponderante na elaboraccedilatildeo de esteacuteticas imprevistas natildeo-

convencionais acrescentando complexidade e ambiguidade a muitas delas E que a relaccedilatildeo entre

acaso e criaccedilatildeo ajude a repensar as concepccedilotildees sobre a imagem somando-se agraves reflexotildees de

outros autores e autoras sobre os limites e expansotildees desse campo ndash como encontramos por

exemplo nas conceituaccedilatildeo da ldquoimagem pobrerdquo (Steyerl) do erro (Cheacuteroux) da glitch art

(Menkman) da ldquopoeacutetica dos errosrdquo (Fontcuberta) e da ldquofotografia natildeo-humanardquo (Zylinska)

Nossa contribuiccedilatildeo eacute que passemos a incluir o acaso como elemento integrante dos aspectos que

constituem a pluralidade das esteacuteticas hiacutebridas experimentais etc valorizadas pela combinaccedilatildeo

entre a imprevisibilidade e o domiacutenio das teacutecnicas

O acaso opera de maneiras variadas nas obras e procedimentos de cada artista Por

exemplo de maneira geral a obra de Rosacircngela Rennoacute eacute marcada por um desejo de redescobrir

materiais e equipamentos antigos arquivos ou objetos cotidianos com especial atenccedilatildeo ao

repertoacuterio de miacutedias visuais dos seacuteculos XIX e XX Uma disposiccedilatildeo arqueoloacutegica voltada a essas

tecnologias eacute manifestada em seus trabalhos sem que haja uma verve saudosista neste meacutetodo

Em Imagem de sobrevivecircncia (2015) (ver figuras 77 78 e 78a) a projeccedilatildeo simultacircnea de slides

sem relaccedilatildeo temaacutetica ou cronoloacutegica preacutevia tira proveito do acaso na medida em que a imagem

final eacute interaccedilatildeo entre vaacuterias unidades sem no entanto resultar de uma simples operaccedilatildeo de

adiccedilatildeo Aleacutem disso e conforme afirma a proacutepria artista144 essa projeccedilatildeo estaacute sempre sendo

alterada nunca se repetindo Numa espeacutecie de praacutetica de bricolagem (que se repete em vaacuterios

outros trabalhos citados ou natildeo em nossa tese) ela articula conjuntamente suportes estruturas e

tecnologias sem que se possa ser antevisto rigidamente o resultado final

A disposiccedilatildeo de incorporar arranjos trazidos pelos materiais ou pelo comportamento de

estruturas originais operando como princiacutepio metodoloacutegico baseado no acaso tambeacutem se faz

presente nas obras de Joseacute Luiacutes Neto (os quimigramas o trabalho com fotografias

144 Ver httpwwwrosangelarennocombrobrassobre62 Acesso em 06062020

232

ldquoencontradasrdquo) Dirceu Maueacutes (nos tempos imprecisos das pinholes ou mesmo nas instalaccedilotildees

com imagens fugidias natildeo fixadas em suportes que dependem do olhar do puacuteblico para adquirir

vida na interface entre viacutedeo foto e cinema145) Cris Bierrenbach (no aproveitamento de espelhos

como daguerreoacutetipos ldquomal-sucedidosrdquo na imagem revelada pelo desgaste de coacutepias) na glitch

art de Sabato Visconti e Rosa Menkman que desarranjam arquivos e softwares quando Caacutessio

Vasconcellos fotografa frames de produccedilotildees do cinema singularizando-os atraveacutes de uma fixidez

que lhes era estranha Ou ainda num procedimento similar nas fotografias de Jason Shulman

tambeacutem de filmes

62 MATERIALIDADE

Em nossas reflexotildees mencionamos tambeacutem a questatildeo da materialidade como

preocupaccedilatildeo de alguns artistas Sua importacircncia pode estar tanto na formataccedilatildeo de uma obra cuja

fisicalidade eacute evidente em suas dimensotildees formas cores texturas etc ou ser tambeacutem

interpretada como marcas visuais deixadas pelas miacutedias nos seus produtos Em meio a diversos

debates (questionaacuteveis como jaacute visto) sobre a impermanecircncia ou a imaterialidade das imagens

digitais evocamos a materialidade das obras como aspecto relevante para a arte contemporacircnea

Uma das correntes de pensamento que se volta para o assunto eacute o campo da

materialidades da comunicaccedilatildeo que tem como referecircncia principal o trabalho de Hans Ulrich

Gumbrecht (2010) e que propotildee recolocar no centro da anaacutelise das ciecircncias humanas e nas artes

a importacircncia da dimensatildeo material dos artefatos culturais Segundo Gumbrecht as Humanidades

conferiam demasiada importacircncia agrave interpretaccedilatildeo ao sentido ao logos numa supervalorizaccedilatildeo do

conhecimento fruto do intelecto em detrimento da experiecircncia e do saber adquiridos pelos

sentidos ou seja uma percepccedilatildeo haacuteptica Entatildeo seria tarefa de uma nova proposta

epistemoloacutegica posicionar lado a lado a relaccedilatildeo entre sentido e dimensatildeo material das ldquocoisas do

mundordquo investigando como o sentido eacute evocado tambeacutem pela ldquopresenccedilardquo fiacutesica dos objetos146

No entanto Gumbrecht natildeo propotildee um afastamento ou descarte da noccedilatildeo de sentido ou uma

145 A exemplo da obra Tambores de Luz - Estaccedilatildeo Cf MAUES Dirceu Tambores de Luz - Estaccedilatildeo (Campinas)Resgate - Revista Interdisciplinar de Cultura Campinas v26 n2 [36] p161-167 juldez 2018

146 Logo no comeccedilo de seu livro Gumbrecht define rapidamente que ldquocoisas do mundordquo satildeo todos os objetosdisponiacuteveis em ldquopresenccedilardquo um conceito que se refere a algo tangiacutevel acessiacutevel ao ser humano pelas matildeos e que nosafeta na superfiacutecie do corpo A ldquopresenccedilardquo indica uma noccedilatildeo espacial donde a ldquoproduccedilatildeo de presenccedilardquo eacute qualquerprocesso acontecimento ou evento onde se verifica o impacto de objetos sobre seres humanos Cf Gumbrecht2010 p13

233

reduccedilatildeo de sua importacircncia ele sugere uma forma alternativa de pensar a cultura (sobretudo a

arte) voltada agrave presenccedila das coisas na nossa relaccedilatildeo com o mundo atravessada por essa

fisicalidade dos materiais Natildeo se trata de ldquo() uma simples substituiccedilatildeo do sentido pela

presenccedila Em uacuteltima anaacutelise () uma relaccedilatildeo com as coisas do mundo que possa oscilar entre

efeitos de presenccedila e efeitos de sentidordquo (GUMBRECHT 2010 p15) Em seguida o autor

completa

() Natildeo existe nada de intrinsecamente errado com a produccedilatildeo de sentido aidentificaccedilatildeo de sentido e o paradigma metafisico O que nossas modestas rebeliotildeesacadecircmicas tentavam problematizar era mais do que tudo uma configuraccedilatildeoinstitucional no acircmbito da qual o domiacutenio absoluto das questotildees relacionadas com osentido havia levado haacute muito tempo ao abandono de todos os outros tipos defenocircmenos e questotildees Como uma consequecircncia dessa situaccedilatildeo nos viacuteamosconfrontados com a ausecircncia de conceitos que nos teriam permitido lidar com o quechamaacutevamos de materialidades de comunicaccedilatildeo (GUMBRECHT 2010 p37)

Desse modo as materialidades da comunicaccedilatildeo pensam a cultura atraveacutes de uma

abordagem natildeo hermenecircutica natildeo metafiacutesica e natildeo cartesiana A partir dos conceitos aristoteacutelicos

de ldquoformardquo e ldquosubstacircnciardquo Gumbrecht (2010 p37) propotildee uma questatildeo baacutesica como as miacutedias e

as materialidades podem ter impacto no sentido que carregam A contenda relaciona-se

diretamente com as discussotildees sobre tecnologias da imagem resgatadas modificadas sabotadas

enfim tensionadas em seus aspectos fiacutesicos como estrateacutegia para incrementar o significado das

obras Por que determinado artista sai da materialidade fotograacutefica e finaliza a obra no formato

pictoacuterico como faz Clare Strand em The Discrete Channel with Noise (ver figuras 68 a 71) por

exemplo Nesse trajeto estatildeo envolvidas noccedilotildees de memoacuteria afetividade singularidade temporal

associadas agrave fotografia convencional e ainda questotildees formais ligadas agrave captura (luz

composiccedilatildeo inscriccedilatildeo temporal traccedilo indicial etc) que satildeo relativizadas quando a imagem eacute

toda marcada como se fosse ser transmitida via teleacutegrafo Assistimos a uma transformaccedilatildeo natildeo soacute

fiacutesica mas formal que remete ao pixel da imagem digital que por sua vez eacute traduzido na

linguagem pictoacuterica Cada uma dessas materialidades responde a epistemologias distintas que

carregam tambeacutem expectativas de percepccedilatildeo diferentes que aparecem todas cruzadas de modo a

bagunccedilar misturar esses territoacuterios separados Como maneira de reafirmar essas condiccedilotildees

ressignificadas dos materiais empregados Clare Strand expotildee essas ldquopinturas fotograacuteficasrdquo como

quadros (natildeo em telas mas em papel) sem que elas deixem de remeter agrave esteacutetica pixelizada do

computador nem tatildeo pouco agraves fotos originais Ela tambeacutem cria um ambiente que encoraja a

relaccedilatildeo do puacuteblico com essa nova configuraccedilatildeo pictoacuterica das imagens expondo os potes da tinta

234

utilizada os pinceacuteis mas tambeacutem as fotos originais (marcadas conforme a metodologia utilizada

para a suposta transmissatildeo) e outros objetos que sugerem que sob a interferecircncia do ruiacutedo as

mateacuterias adquirem novas formas147

A seacuterie Nuptias (2017) de Rosacircngela Rennoacute (figuras 72 73 74 75 76 e 79) tambeacutem

possui um forte sentido material jaacute que as fotografias utilizadas estatildeo jaacute desgastadas pelo tempo

(e tambeacutem por terem sido coletadas em mercados de pulgas) sendo ainda submetidas a processos

de colagem recebendo riscos e anotaccedilotildees tinta ou objetos de materiais como papel madeira

borracha Cada um desses elementos sofre a accedilatildeo do tempo de maneira diversa possui uma

fragilidade sendo suscetiacutevel agrave luz umidade poeira e temperatura especiacuteficas e todos esses

aspectos contribuem para sugerir uma ideia de ruiacutena de fracasso e certo absurdo que rondam o

universo das relaccedilotildees afetivas e especialmente o casamento Em Experiecircncia de cinema

(2004)148 a mesma artista brinca com a materialidade da imagem dando-lhe uma fraacutegil sobrevida

atraveacutes da projeccedilatildeo numa cortina de fumaccedila O procedimento lembra-nos tambeacutem que a imagem

guarda sempre um componente de ilusatildeo ao qual natildeo podemos aceder totalmente e que neste

caso podemos tocar apenas atraveacutes do aparato que a faz surgir A experiecircncia do cinema eacute

truncada pois as imagens utilizadas satildeo fotografias de grandes temas (tratados frequentemente no

cinema) como ldquofamiliacuteardquo ldquoguerrardquo e ldquoamorrdquo e entre a exibiccedilatildeo das fotos haacute paradas do

dispositivo criando-se lacunas que impedem uma estruturaccedilatildeo narrativa

147 Para ver a montagem da exposiccedilatildeo The Discrete Channel with Noise ver httpsvimeocom294026015 Acessoem 11062020148 Disponiacutevel em httpwwwrosangelarennocombrobrasexibir241 Acesso em 11062020

235

Figura 79 - Vista da montagem da seacuterie Nuptias (2017) de Rosacircngela Rennoacute

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

A mesma disposiccedilatildeo de concentrar a materialidade atraveacutes dos aparelhos e objetos

escolhidos na montagem das obras (e na sua elaboraccedilatildeo) identificamos nos trabalhos de Dirceu

Maueacutes Joseacute Luiacutes Neto Caacutessio Vasconcellos Luiz Alberto Guimaratildees Cris Bierrenbach Cada

um agrave sua maneira escolheu teacutecnicas equipamentos e materiais que contribuem para simbolizar os

temas e conceitos presentes nas obras e que possuem tambeacutem um significado dentro da proacutepria

histoacuteria das tecnologias da imagem Natildeo eacute agrave toa que vaacuterios desses artistas gostam de trabalhar

com miacutedias analoacutegicas reformatadas manualmente ou como diz Guimaratildees (2014) que satildeo da

ordem de uma ldquoartesaniardquo As cacircmeras que ele utiliza satildeo todas diferentes em formato e isso

confere agraves imagens criadas com elas diferentes resultados no questionamento da perspectiva

geomeacutetrica que caracteriza seu trabalho A materialidade especiacutefica de cada dispositivo carrega

significados distintos sobre o tensionamento do paradigma monocular da fotografia

() as maacutequinas fotograacuteficas que construo e utilizo surgem quase sempre a partir de umaideia preacutevia de um projeto que pretendo realizar (ocorre tambeacutem o oposto agraves vezesreutilizo uma das maacutequinas jaacute construiacutedas em um novo projeto que surge a partir dasintaxe que aquela maacutequina propicia) (GUIMARAtildeES 2014 p29)

As fotografias panoracircmicas de Dirceu Maueacutes transmitem a sensaccedilatildeo de mobilidade

exatamente pelos borrotildees produzidos na captura realizada durante o movimento O aspecto da

236

imagem toda cortada por linhas verticais resulta da abertura em fenda da cacircmera usada e da

mesma maneira essas imagens transmitem o processo de integraccedilatildeo dos materiais utilizados O

que vemos nelas satildeo modos muito particulares de o movimento se pronunciar na superfiacutecie da

imagem

Essas obras permitem interpretar a imagem natildeo apenas atraveacutes de sua condiccedilatildeo oacutetica

mas apelam ao nosso corpo em diferentes modos de tatilidade Segundo Gumbrecht (2010 p39)

toda forma de comunicaccedilatildeo ldquotocardquo atraveacutes de seus elementos materiais nossos corpos mas o faz

de maneiras variadas e especiacuteficas de modo que se em alguns projetos a dimensatildeo material eacute

mais pronunciada na forma de imagem-objeto em outras as estruturas formadoras da imagem

representam seu lado fiacutesico Mesmo nos trabalhos em glitch art o componente material natildeo estaacute

ausente ndash ateacute porque jaacute falamos sobre como a materialidade eacute entendida no acircmbito das novas

miacutedias a partir dos estudos de software

As diferenccedilas no tratamento ou na expressatildeo da materialidade devem-se a variaccedilotildees

entre ldquoefeitos de sentidordquo e ldquoefeitos de presenccedilardquo De acordo com Gumbrecht a relaccedilatildeo entre

intensidade material e forccedila do sentido se daacute de maneira desigual nos objetos artiacutesticos numa

ldquotensatildeordquo numa ldquooscilaccedilatildeordquo (sem nunca se separarem) Os efeitos de presenccedila tambeacutem satildeo

efecircmeros e condicionados pela interpretaccedilatildeo preacutevia que normalmente tentamos dar agraves obras Mas

natildeo pensemos que a importacircncia do sentido e da presenccedila atingem um equiliacutebrio

A relaccedilatildeo entre efeitos de presenccedila e efeitos de sentido tambeacutem natildeo eacute uma relaccedilatildeo decomplementaridade na qual uma funccedilatildeo atribuiacuteda a cada uma das partes em relaccedilatildeo agraveoutra daria agrave co-presenccedila das duas a estabilidade de um padratildeo estrutural Ao contraacuteriopodemos dizer que a tensatildeooscilaccedilatildeo entre efeitos de presenccedila e efeitos de sentido dotao objeto de experiecircncia esteacutetica de um componente provocador de instabilidade edesassossego (GUMBRECHT 2010 p137)

Quando afirma essa tensatildeo entre sentido e materialidade nos objetos artiacutesticos o autor

resolve a diferenccedila que notamos nos trabalhos citados a respeito de um espaccedilo mais pronunciado

que se confere aos materiais na forma das miacutedias escolhidas Em alguns a dimensatildeo material

estaacute mais explicitamente articulada que em outros mas todos tecircm na materialidade um aspecto

que contribui significativamente para as sensibilidades propostas por seus autores e autoras

Mesmo quando os aspectos materiais relacionados agrave escolha da miacutedia (ou das miacutedias) a forma de

apresentaccedilatildeo e as configuraccedilotildees fiacutesicas (dimensatildeo cor volume textura etc) natildeo satildeo

mencionados como vetores de significado tais caracteriacutesticas satildeo responsaacuteveis pela maneira

237

como percebemos os trabalhos Eacute nessa presenccedila fiacutesica que podemos nos relacionar com tais

obras

Um bom exemplo dessa tensatildeo estaacute colocado na experiecircncia do filme interativo The

Wilderness Downtown de Chris Milk A participaccedilatildeo do usuaacuterio depende de informaccedilotildees

pessoais retiradas de experiecircncias concretas de suas memoacuterias que satildeo entatildeo utilizadas na

construccedilatildeo do filme Mesmo numa narrativa virtual haacute natildeo soacute uma plataforma fiacutesica (hardware

redes) mas a obra ganha continuidade na maacutequina que imprime os postais gerados no filme a

Wilderness Machine Nessas duas etapas os ldquoefeitos de sentidordquo e ldquoefeitos de presenccedilardquo estatildeo

separados no tempo e espaccedilo mas estatildeo ambos presentes

Para alguns projetos artiacutesticos que incluiacutemos neste trabalho a condiccedilatildeo material das

obras associadas agraves tecnologias escolhidas eacute mais proeminente como para Cris Bierrenbach que

considera bastante importante a materialidade em seus trabalhos jaacute que essa questatildeo para ela estaacute

ligada agrave proacutepria singularidade de cada obra Seus processos de elaboraccedilatildeo satildeo lentos e o

resultado final adquire essa importacircncia porque a configuraccedilatildeo definitiva expressa tambeacutem esse

tempo de ldquomaturaccedilatildeordquo

Agora eu tou pensando em pessoas que eu conheccedilo que trabalham assim vocecirc percebeque as pessoas tecircm uma relaccedilatildeo () satildeo relaccedilotildees individuais com cada trabalho () enatildeo eacute com cada trabalho eacute com cada coacutepia com cada objeto criado Cada um eacute uacutenicotem uma feiccedilatildeo muito proacutexima pessoal mesmo Num eacute uma coisa tipo lsquovai eumando aqui pelo Wetransfer e o sujeito laacute imprime tudo pra mimrsquo () As imagensdigitais natildeo satildeo materiais () se perde um certo preciosismo Pra mim eacute bemimportante Eu sei que isso natildeo tem valor comercial () mas pra mim tem () Eacute umacoisa que eu natildeo consigo explicar Eacute quase afetivo () Quase natildeo eacute afetivo Eu tenhofotos que foram feitas digitalmente que eu vendi muito melhor que satildeo maisvalorizadas Mas eu agraves vezes olho fotos que estatildeo do meu lado e que natildeo satildeo tatildeosignificantes (num sentido de valor de mercado) e eu tenho um afeto por elas que eacutedifiacutecil de explicar (BIERRENBACH 2018)

As palavras da artista ecoam um sentimento que Gumbrecht (2010 p135) sublinha

como traccedilo da experiecircncia esteacutetica que escapa agrave ordenaccedilatildeo racional quando provoca ldquoEm vez de

termos de pensar sempre e sem parar no que mais pode haver agraves vezes parecemos ligados num

niacutevel da nossa existecircncia que pura e simplesmente quer as coisas do mundo perto da nossa

pelerdquo

Haacute uma beleza nas afirmaccedilotildees de Gumbrecht a respeito do jogo entre componente

material e o sentido das obras artiacutesticas e para noacutes as preocupaccedilotildees do autor aproximam-se de

muitas das questotildees presentes nos estudos sobre o ruiacutedo Enquanto Gumbrecht fala de

materialidade sentida em termos de ldquointensidaderdquo evoca a ldquopresenccedilardquo como algo espacial e as

238

propriedades fiacutesicas das coisas que despertam nossos sentidos natildeo podemos deixar de lembrar do

potencial anaacuterquico desestabilizador de ruptura e de presenccedila (nem sempre manifesta poreacutem

inerente) que caracteriza o ruiacutedo

Ao longo de seu texto Gumbrecht comenta sobre aspectos da materialidade literaacuteria

musical (e de outras artes) num percurso bastante proacuteximo ao empreendido por Hainge (2013)

para falar sobre o ruiacutedo o que indica que as anaacutelises destes dois autores estatildeo afinadas sobre a

preocupaccedilatildeo com a expressividade e o fato de que em muitos casos a arte trabalha essa

expressividade atraveacutes de condiccedilotildees materiais que natildeo podem ser constrangidas por uma

racionalidade que as explique Disso podemos concluir que a materialidade trabalhada sob a

chave conceitual do ruiacutedo daacute origem a uma expressividade ou a formas de expressatildeo melhor

dizendo que se instituem por si mesmas como significantes

63 OLHAR RETROSPECTIVO A PROCESSOS CLAacuteSSICOS DA FOTOGRAFIA

Vaacuterios dos trabalhos que trouxemos em nosso corpus empregam tecnologias antigas da

imagem Os trabalhos aqui analisados que se valem da cacircmara escura da imagem estenopeica da

goma bicromatada do daguerreoacutetipo e por extensatildeo de tecnologias jaacute mais recentes mas pouco

utilizadas (ateacute pela descontinuidade de sua fabricaccedilatildeo como o slide) satildeo empregados de forma

criacutetica Os procedimentos satildeo reinventados a cacircmera escura tem sua geometria problematizada

referindo muacuteltiplas perspectivas ou passsa a referir tempos alargados e varrer ambientes no

decorrer de uma duraccedilatildeo (ampliando o instante de tal modo que percebemos as diversas accedilotildees

ocorridas no espaccedilo) ou ainda empregada para produzir imagens fugidias existentes apenas sob

a convergecircncia da arquitetura do dispositivo quando se encontra com o olhar do observador A

daguerreotipia a goma bicromatada o cianoacutetipo o papel salgado satildeo utilizados por Cris

Bierrenbach na exploraccedilatildeo de suas propriedades materiais e plaacutesticas e em desencontro com os

propoacutesitos originais O slide eacute apropriado para sugerir a acumulaccedilatildeo de visotildees atraveacutes do

processo de colagem (em Cris Bierrenbach149) ou a saturaccedilatildeo do olhar contemporacircneo cansado

da enxurrada de imagens em circulaccedilatildeo (em Rosacircngela Rennoacute) levando o formato para aleacutem da

remissatildeo afetiva iacutentima e familiar ao qual ficou associado

Tais usos alternativos das tecnologias nos remetem agraves praacuteticas artiacutesticas que levam o

campo da imagem a constantes reinvenccedilotildees Fontcuberta (2010) fala sobre a ideia de

149 httpscrisbierrenbachcompessoalfotocolagenscolagem Acesso em 05052020

239

contrariedade aos usos corriqueiros de teacutecnicas ressaltando que essa questatildeo desafia paradigmas

como a funccedilatildeo representativa da imagem

Em geral essa teoria do erro e do defeito de trabalhar ldquocontrardquo os materiais e suasregras que regeu muitos acircmbitos da vanguarda mais que aperfeiccediloar um coacutedigo derepresentaccedilatildeo o que normalmente fazia era questionaacute-lo Os dadaiacutestas comeccedilaram abrincar com o acaso e o acidental seguiram-se os tachistas e os expressionistas abstratoscom a teacutecnica do dripping em seguida a ciberneacutetica introduziu a noccedilatildeo de ldquoruiacutedordquo quefoi rapidamente aproveitada por muitos artistas No acircmbito da fotografia temos a escolagenerativa desenvolvida em Bielefeld a partir de 1967 os quimigramas de PierreCordier mostram o conflito entre controle e imprevisibilidade da mesma forma que osluminogramas de Karl Martin Holzhaumluser ou as Pinhole Structures (estruturasestenopeicas) de Gottfried Jaumlger O meacutetodo natildeo se apoiava em uma preacute-visualizaccedilatildeo queantecipasse os resultados mas no trial and error em um processo de experimentaccedilotildeessucessivas alterando as circunstacircncias no momento para selecionar finalmente osresultados valiosos (FONTCUBERTA 2010 p73)

As reflexotildees do autor sobre metodologias experimentais da imagem podem ser colocados

ao lado das de Fatorelli e Carvalho (2015) e ainda Junior (2002) que reconhecem entre as

praacuteticas plurais de uso do meio fotograacutefico esse olhar tardio voltado aos dispositivos Arlindo

Machado (1997) refletindo sobre a programaccedilatildeo dos aparelhos na obra de Flusser lembra que o

campo da arte sempe nos daacute provas de que as maneiras de apropriaccedilatildeo das tecnologias satildeo

constantemente atualizadas o que esse retorno agraves praticas analoacutegicas vem atestar Numa revisatildeo

criacutetica do pensamento de Flusser Machado comenta

Ora que haacute limites de manipulabilidade em toda maacutequina ou processo teacutecnico eacute algo deque soacute podemos fazer uma constataccedilatildeo teoacuterica pois na praacutetica esses limites estatildeo emcontiacutenua expansatildeo Que aparelhos suportes ou processos teacutecnicos poderiacuteamos dizer quejaacute tiveram esgotadas as suas possibilidades () Sempre existiratildeo potencialidadesdormentes e ignoradas que o artista inquieto acabaraacute por descobrir ou ateacute mesmo porinventar ampliando portanto o universo das possibilidades conhecidas de determinadomeio (MACHADO 1997)

No rastro da filosofia flusseriana podemos dizer que haacute diferentes graus e modalidades

de ldquojogordquo contra o ldquoaparelhordquo que fazem aparecer o ruiacutedo e nesse espaccedilo se incluem as

remodelagens e reprogramaccedilotildees dos aparelhos analoacutegicos As interlocuccedilotildees com materiais e

praacuteticas da pintura A proximidade com a linguagem do cinema exercitada por meio de recursos

fotoquiacutemicos Ou um certo devir cinema manifesto na utilizaccedilatildeo contraacuteria aos paracircmetros de

fabricaccedilatildeo de suportes e equipamentos fotograacuteficos

Tambeacutem verificamos como modos de desprogramar os aparelhos de imagem o uso

combinado de meios antigos e recentes Por exemplo as fotografias realizadas com pinholes por

Dirceu Maueacutes buscam uma ressignificaccedilatildeo do formato panorama como modalidade visual de

investigaccedilatildeo da paisagem Ao considerar o panorama um formato marginal um espeacutecie de preacute-

240

cinema Maueacutes valoriza justamente o movimento na imagem (atributo do cinematograacutefico)

atraveacutes do registro com as pinholes em movimento traccedilando assim uma linha de continuidade

entre fotografia estenopeica panorama e cinema

Bierrenbach quando utiliza a fotografia para montar um viacutedeo passa da imagem fixa agrave

imagem moacutevel explorando o contato entre essas duas instacircncias atraveacutes da montagem de

fotografias que registram o aparecer e o desaparecer de casas atraveacutes dos vestiacutegios do

movimento do equipamento Caacutessio Vasconcellos faz o trajeto inverso congelando a imagem que

era moacutevel na passagem entre viacutedeo e Polaroid Interrompendo um fluxo que nos faz lembrar que

em sua forma mais baacutesica o cinema eacute um fluxo de unidades de imagens fixas cuja velocidade de

exibiccedilatildeo cria a ilusatildeo do movimento

As obras da glitch art criadas atraveacutes de computadores levam essa continuidade a um

patamar ainda maior jaacute que transferidas para dentro do computador referecircncias diversas satildeo

trabalhadas atraveacutes de misturas e rearranjos os mais variados a ponto de agraves vezes natildeo ser

possiacutevel determinar singularidades entre os conteuacutedos Fotografia viacutedeo graacuteficos tudo se

mistura Ou Shulman que quando registra um filme inteiro ao longo de sua duraccedilatildeo tambeacutem

aproxima foto e cinema

631 Arqueologia da miacutedia

Essas estrateacutegias criativas reforccedilam a ideia de continuidade entre as tecnologias da

imagem (e natildeo de ruputra) Tal compreensatildeo estaacute presente na abordagem arqueoloacutegica da miacutedia

que olha para as miacutedias atuais procurando nelas traccedilos de miacutedias anteriores numa visada que

relativiza as noccedilotildees de velho e novo ateacute porque compreende as tecnologias a partir de uma

perspectiva relacional (natildeo sucessiva progressiva como se um meio superasse o anterior em

eficiecircncia qualidade etc) A arqueologia da miacutedia busca observar a cultura digital localizando

nela seus viacutenculos com a fotografia o cinema a televisatildeo o viacutedeo a propaganda a escrita

Enquanto as ldquonovas miacutediasrdquo alteram nossas rotinas as velhas miacutedias nunca nos abandonam

realmente pois reaparecem satildeo remediadas econtrando novos usos contextos e adaptaccedilotildees

(PARIKKA 2012 p3)

Se olharmos as obras agraves quais nos reportamos perceberemos como satildeo instrumentais as

proposiccedilotildees deste campo de pensamento sobre os meios de comunicaccedilatildeo e suas tecnologias

porque identificamos nas estrateacutegias artiacutesticas uma troca constante de referecircncias e elementos de

241

meios distintos muitas vezes separados cronologicamente Acoplagens entre computadores

softwares e hardwares sistemas de projeccedilatildeo imagens digitais scanners filtros adicionados por

meio de apps em diaacutelogo com formatos como a Polaroid o negativo 35mm a pintura o

daguerreoacutetipo o dispositivo cinematograacutefico o panorama o viacutedeo

Sabato Visconti que lanccedila matildeo de ldquoequipamentos obsoletos para fazer arterdquo

(VISCONTI 2019) utiliza como referecircncia para algumas obras videogames dos anos 1990150

dissolvendo formas alterando os movimentos dos personagens (aplicando efeito de loop)

inserindo defeitos nos graacuteficos falhas nos elementos que compotildeem o cenaacuterio dos jogos

intervindo nessa esteacutetica de um grafismo primitivo (cujas formas retiliacuteneas quadradas e os

movimentos bruscos dos games em 2D contrastam radicalmente com o volume das formas a

reproduccedilatildeo de sons o uso do recurso ldquocacircmera subjetivardquo que conferem realismo e efeito imersivo

aos games atuais em 3D) O processo consiste em corromper a memoacuteria ROM do jogo (memoacuteria

com dados armazenados para leitura) Dirigindo um gesto artiacutestico a um dos produtos mais

caracteriacutesticos da induacutestria do entretenimento Visconti ultrapassa a fronteira do jogador

convencional limitado pelos comandos que o sistema original lhe deixa executar e passa a

ocupar o lugar de reprogramador transformando os games em espaccedilos de pura contemplaccedilatildeo do

olhar forjando narrativas nas quais natildeo existe um objetivo final a ser alcanccedilado mas onde a

fraacutegil organizaccedilatildeo dos quadros sugere uma aproximaccedilatildeo com a montagem cinematograacutefica As

formas de games antigos vecircm habitar a linguagem informaacutetica convertendo-se em objetos

esteacuteticos Uma ldquomiacutedia-zumbirdquo (PARIKKA 2012) que ressucita via computador

150 Ver por exemplo No country for Donkey Kong (httpswwwsabatoboxcomrom-corruption-no-country-for-dk) eGlitching Sonic the Hedgehog 3 (httpswwwsabatoboxcomsonic-the-hedgehog-3-rom-corruption) Acesso em05052020

242

Figura 80 - Trechos de No country for Donkey Kong (Sabato Visconti)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

A arqueologia da miacutedia adota uma visatildeo histoacuterica dos meios e permite-nos verificar

conexotildees entre formas visuais antigas e recentes Ainda tomando como exemplo os trabalhos de

Sabato Visconti com videogames tratam-se de obras natildeo produzidas para os circuitos

convencionais de exibiccedilatildeo audiovisual como festivais salas de cinema ou afins mas que

estabelecem uma ligaccedilatildeo formal com o cinema A maneira como No country for Donkey Kong

(figura 80) estrutura-se ndash trechos que lembram frames com mudanccedilas de cenaacuterio sugerindo uma

narrativa fragmentada (ou a ausecircncia de uma linearidade) movimentos forjados e repetitivos dos

personagens ndash permiti-nos estabelecer uma identidade entre a linguagem da miacutedia digital e

movimentos cinematograacuteficos alternativos agrave narrativa claacutessica Como nos lembra Parikka (2012)

Lev Manovich (2001) situa o advento das ldquonovas miacutediasrdquo exatamente como herdeiras de

caracteriacutesticas de meios anteriores conferindo especial atenccedilatildeo ao cinema sovieacutetico dos anos

1920 em suas anaacutelises Essa cinematografia eacute marcada por aspectos formais como a natildeo-

linearidade a relaccedilatildeo natildeo-diegeacutetica entre som e imagem (filmes mudos com trilha sonora de

acompanhamento) uma montagem assentada no choque visual entre planos natildeo sequenciais que

criam metaacuteforas visuais a partir de conteuacutedos natildeo diretamente relacionaacuteveis151 Se olharmos para

as peccedilas de Visconti encontramos uma tendecircncia a certa dispersatildeo perceptiva que pode ser vista

como desdobramentos da natildeo-linearidade o excesso de informaccedilotildees visuais (tambeacutem presente no

estilo da montagem sovieacutetica) e o movimento repetitivo do gif como caracteriacutesticas tributaacuterias

natildeo apenas do cinema russo mas ateacute do cinema de atraccedilotildees (que tambeacutem se distinguia pelo

151 Como por exemplo a imagem de um pavatildeo associada a de um poliacutetico em Outubro (Serguei Eisenstein1927)

243

caraacuteter manipulado espetacular) e ainda com o cinema de animaccedilatildeo As trucagens a

manipulaccedilatildeo de conteuacutedos a praacutetica do remix (acumulando referecircncias de domiacutenios variados) a

tendecircncia dispersiva a fragmentaccedilatildeo da informaccedilatildeo satildeo marcas da cultura informaacutetica que

podem ser interpretadas na arte de Visconti como reminiscecircncias tardias dessas cinematografias

ao mesmo tempo que conservam ligaccedilotildees com o viacutedeo quando ao dissover o conteuacutedo das

imagens forccedila-nos a olhar para seus elementos formadores (num exerciacutecio de metalinguagem)

Num recuo ainda mais amplo em busca de formas visuais preacute-cinematograacuteficas brinquedos

oacuteticos como o fenascitoscoacutepio taumatroacutepio e praxinoscoacutepio ldquocareciam de narratividade linear e

suas estruturas em loop de gestos simples performavam um eterno retorno do mesmordquo (DULAC

amp GAUDREAULT apud PARIKKA 2012 p28) exatamente a sensaccedilatildeo causada pelo trabalho

de Visconti com os videogames

No country for Donkey Kong eacute uma simbiose de cinema e jogo (cujo tiacutetulo lembra No

country for Old Men de Ethan e Joel Cohen) que estabelece pontos de contato formais e

discursivos entre as vaacuterias miacutedias agraves quais a obra remete Mas promove essa mistura de forma

irocircnica esvaziando a proporccedilatildeo interativa do jogo em troca de uma disposiccedilatildeo contemplativa

(pois os personagens natildeo obedecem aos comandos de um jogador existindo numa pseudo-

narrativa sem plot sem enredo) gerando perturbaccedilotildees em sua configuraccedilatildeo esteacutetica para apontar

a presenccedila virtual do defeito nas maacutequinas

As demais obras presentes em nosso corpus tambeacutem estatildeo inseridas nessa dinacircmica do

diaacutelogo entre tecnologias seja pela retomada criacutetica de processos claacutessicos da imagem seja

emulando aspectos formais de meios fiacutesicos ou eletrocircnicos e artefatos digitais seja promovendo a

articulaccedilatildeo entre ambientes virtuais espectador e materiais sensiacuteveis (transitando entre cinema

performance pintura fotografia viacutedeo) seja ironizando padrotildees gecircneros e formas consagradas

da imagem atraveacutes do deslocamento de suas funccedilotildees primeiras Assim podemos concluir que em

boa parte dos trabalhos analisados as tecnologiais empregadas relacionam-se pelas trocas pelos

empreacutestimos em processos de contaacutegio de hibridizaccedilatildeo

Concordamos com a ideia de que haacute um impulso arqueoloacutegico na arte contemporacircnea

(PARIKKA 2017) jaacute que em diversos trabalhos observamos a recontextualizaccedilatildeo de tecnologias

da imagem a reinserccedilatildeo de problemaacuteticas ligadas a seus usos e uma saudaacutevel articulaccedilatildeo entre

miacutedias computadorizadas e analoacutegicas As obras relacionam-se com essa ideia de olhar para o

passado e satildeo marcadas pela convivecircncia de diversas temporalidades Embora a arqueologia da

244

miacuteda como vertente da histoacuteria da miacutedia se proponha a estudar os meios de comunicaccedilatildeo seus

enfoques satildeo tatildeo abrangentes e suas temaacuteticas tatildeo variadas que consideramos vaacutelido utilizar a

abordagem arqueoloacutegica da miacutedia para pensar todas essas experiecircncias que se voltam para formas

da imagem antigas inclusive porque muitos desses trabalhos levantam questotildees atuais ou seja

satildeo expressotildees de questionamentos (de ordem esteacutetica poliacutetica industrial cientiacutefica de gecircnero)

e sensibilidades atuais (em diversas vezes tangenciados pela relaccedilatildeo do ser humano com as

miacutedias digitais a redes sociais a vigilacircncia do capitalismo informaacutetico a atitude hacker e os

processos de remix a produccedilatildeo de imagens descartaacuteveis etc) Os trabalhos de Joanna Zylinska

Rosa Menkman Rosacircngela Rennoacute Sabato Visconti Dirceu Maueacutes e Thomas Ruff ecoam mais

diretamente essas questotildees

Consideramos que as proposiccedilotildees da arqueologia da miacuteda podem ser exploradas com

mais atenccedilatildeo no campo da imagem esforccedilo que conseguimos apenas esboccedilar nesta tese

Sobretudo na abordagem da media art na investigaccedilatildeo das potecircncias artiacutesticas surgidas da

exploraccedilatildeo das falhas dos sistemas de computador A partir de um breve olhar sobre os trabalhos

de Menkman Zylinska e Visconti principalmente entendemos que esse pode ser um vieacutes para o

desenvolvimento de pesquisas futuras Se o impulso inicial deste trabalho foi dado pela

observaccedilatildeo sobre a permanecircncia das miacutedias analoacutegicas ao depararmo-nos com a sua remediaccedilatildeo

em obras desenvolvidas por meio das inteligecircncias informaacuteticas acreditamos serem relevantes

investigaccedilotildees posteriores que se dediquem a essas poeacuteticas de ldquoreciclagemrdquo de referecircncias tatildeo

frequentens na arte contemporacircnea

Outro tema de interesse deste campo e que tambeacutem daacute margem a novos debates eacute o

arquivo Seja no resgate de uma produccedilatildeo vernacular esquecida ou na apropriaccedilatildeo de imagens de

banco de dados de instituiccedilotildees e grandes corporaccedilotildees da comunicaccedilatildeo em rede como o Google o

arquivo eacute tomado como lugar de investimento criacutetico para discutir o fato de que na cultura visual

atual agrave medida que nos tornamos imagem acabamos por transforma-nos em dados e

posterioremente em arquivo Ao contraacuterio de uma ideia de algo datado uma espeacutecie de artefato

intocaacutevel protegido pela marca do tempo e pela funccedilatildeo historiograacutefica os arquivos satildeo

interpretados pelos artistas como coisas vivas pertencentes a um fluxo de imagens que se produz

constantemente inseridos numa histoacuteria do olhar cujas bases se inauguram junto com o advento

das imagens teacutecnicas no seacuteculo XIX Para a arqueologia da miacutedia o arquivo eacute rearticulado na

cultura digital menos como lugar de histoacuteria memoacuteria e poder e mais como uma rede dinacircmica e

245

temporal um ambiente governado pelo software e uma plataforma social de memoacuteria

(PARIKKA 2012 p15) agrave espera de intervenccedilotildees ideias contempladas por exemplo nas obras

de Zylinska Visconti e mesmo nas apropriaccedilotildees feitas por Eacuteder Oliveira de material

fotojornaliacutestico tratado ao estilo da imagem numeacuterica em suas pinturas

Tambeacutem as produccedilotildees de Rennoacute utilizam largamente os arquivos muitas vezes de forma

irocircnica deslocando-os de suas funccedilotildees originais e discutindo a presenccedila das tecnologias da

imagem em nosso cotidiano Eacute importante lembrar mesmo que o enfoque arqueoloacutegico da miacutedia

decirc maior atenccedilatildeo ao potencial flexiacutevel do arquivo devemos considerar que as relaccedilotildees de poder

e de memoacuteria natildeo se encontram totalmente ausentes nesses trabalhos O processo que ocorre e

que a arqueologia da miacutedia nos ajuda a compreender como tocircnica da media art eacute que os arquivos

de imagens (ou as imagens esquecidas em arquivos de instituiccedilotildees ou abadonadas em espaccedilos

privados) acedem ao status de mateacuteria artiacutestica sujeitando-se agraves transformaccedilotildees do processo

criativo participando de um fluxo informativo que eacute tiacutepico da cultura digital

Haacute ainda dois outros temas de interesse da arqueologia da miacutedia que se ligam a questotildees

discutidas em nosso trabalho e que tambeacutem estimulam pesquisas futuras O primeiro eacute a

investigaccedilatildeo de histoacuterias abadonadas negligenciadas pela induacutestria dos meios de comunicaccedilatildeo

Conforme Parikka (2012 p39) eacute importante buscar as ldquovozes esquecidas da histoacuteria da miacutedia

para encontrar tambeacutem suas perversotildeesrdquo porque estas narrativas paralelas natildeo se afinam com a

ideia de um progresso dos meios frequentemente evocado pela induacutestria De fato os teoacutericos

visam principalmente as miacutedias que natildeo tiveram sucesso comercial os projetos abandonados ou

que nem chegaram a ser lanccedilados Poreacutem entendemos que essas narrativas desviantes estatildeo

representadas tambeacutem quando metodologias e teacutecnicas antigas satildeo revisitadas de forma natildeo-

saudosista ou seja quando satildeo submetidas agrave transformaccedilotildees em seus princiacutepios funccedilotildees e

esteacuteticas Saindo de um lugar perifeacuterico (como exemplares de esforccedilos mal-sucedidos ou

insuficientes) essas teacutecnicas vecircm reaparecendo sob interesses particulares de artistas Mesmo

fora do acircmbito artiacutestico teacutecnicas como pinhole antotipia goma bicromatada entre outras satildeo

exatamente denominadas ldquoalternativasrdquo ldquoexperimentaisrdquo152 no escopo de algumas iniciativas

pedagoacutegicas por causa desse interesse renovado por uma certa artesania da imagem aberta a

experiecircncias natildeo-convencionais e que tenta se desapegar de regras industriais de produccedilatildeo da

imagem

152 Como eacute o caso dos livros de James (op cit) e de Antonini et al (2015)

246

A segunda temaacutetica eacute a do ruiacutedo jaacute que os usos desviados os projetos e teacutecnicas

rejeitados trazem exatamente o ruiacutedo como conceito para formas de expressatildeo bastante diversas

Se a arqueologia da miacutedia se interessa pelas ldquoanomaliasrdquo e pelo ldquoanti-mainstreamrdquo nada mais

justo que acolha o ruiacutedo como tema de suas investigaccedilotildees Lembremos que o tema possui longa

tradiccedilatildeo de significados negativos e que temos explorado a compreensatildeo de seu valor poeacutetico O

ruiacutedo eacute parte integrante dos meios e dos processos e ao entender isso a arqueologia da miacutedia se

ocupa tambeacutem do mapeamento das consideraccedilotildees sobre o assunto ao longo do pensamento a

respeito da cultura midiaacutetica recuperando debates sobre o conceito na muacutesica na teoria

matemaacutetica da comunicaccedilatildeo nas pesquisas que vatildeo desembocar na ciberneacutetica

Jussi Parikka que tem sido nosso guia principal chega a muitas das conclusotildees jaacute

apontadas nos trabalhos de Nunes (2011) e Hainge (2013) e igualmente indica que a histoacuteria das

miacutedias lida com o tema do ruiacutedo de maneira problemaacutetica atraveacutes de mecanismos de controle

enfatizando seu caraacuteter de instabilidade e por fim assinalando que se ldquoeacute impossiacutevel se livrar dos

efeitos do ruiacutedo haacute maneiras de mapeaacute-lo constrangecirc-lo e examinaacute-lordquo (PARIKKA 2012

p101)

64 E A TEORIA DA FOTOGRAFIA

Natildeo poderiacuteamos finalizar este trabalho sem fazer algumas consideraccedilotildees que

relacionem os demais temas desta pesquisa e as teorias da imagem sobretudo porque falamos

exaustivamente no diaacutelgo entre tecnologias nos primeiros capiacutetulos Se naquele momento

assinalamos que o centro das discussotildees em torno da fotografia eram suas especificidades e o

debate ontoloacutegico como sintoma de determinada fase da reflexatildeo teoacuterica em seguida o

pensamento se alarga para falar da imagem (sem tratar as questotildees dentro do territoacuterio exclusivo

do fotograacutefico) Dubois (2017 p40) assinala que a partir dos anos 2000 a noccedilatildeo de ldquofotograacuteficordquo

bem como a de ldquoimagemrdquo satildeo evocadas em textos e obras dedicadas menos a pensar a identidade

do meio voltando-se mais para as questotildees da esteacutetica debatida atraveacutes dos variados modos de

acionamento da teacutecnica ldquoenfatizando seus usos especiacuteficos em campos relativamente

determinados ou mais especializados (as artes plaacutesticas ou a arte contemporacircnea os visual studies

e a cultura da internet o campo poliacutetico ou social os usos vernaculares ndash populares amadores

etc)rdquo

247

Em seu texto Dubois referencia principalmente autores franceses mas logicamente a

tendecircncia natildeo estaacute restrita aos ciacuterculos de pensamento francoacutefonos Ao longo de nosso texto

dialogamos com alguns destes nomes e pode-se dizer que possuem em comum o olhar dirigido

agraves praacuteticas hiacutebridas notadamente em conceitos como ldquoimagem apresentativardquo (FATORELLI

2017) ldquofoto expandidardquo (JUNIOR 2002) ldquonon-human photographyrdquo (ZYLINSKA 2017a)

Jaacute como desdobramento desse pensamento encontramos as tentativas de definir os

contornos de uma imagem ldquoexperimentalrdquo caracterizada pelo sentido praacutetico da manipualccedilatildeo dos

materiais de propriedade fotograacutefica mas tomada como conceito (ou uma modalidade) de um

fazer que busca atraveacutes dessa manipulaccedilatildeo expandir os horizontes da esteacutetica Basicamente esse eacute

o vieacutes de Poivert (2010) e Lenot (2017 2017a) ndash cuja influecircncia dos escritos de Vileacutem Flusser

converge em maior grau com as anaacutelises que empreendemos em nosso texto O primeiro localiza

uma tradiccedilatildeo experimental que se desenha entre os anos 1970-1980 (e que eacute tibutaacuteria das

experiecircncias realizadas com a imagem no contexto das vanguardas artiacutesticas de 1920) apontando

como traccedilos definidores o caraacuteter multidisciplinar (diaacutelogo entre as vaacuterias artes) a criacutetica ao

proacuteprio meio e suas normatizaccedilotildees (impulso luacutedico investigativo) e a tendecircncia de revisitar a

historiografia das teacutecnicas e a experiecircncia do ver Tais caracteriacutesticas estatildeo associadas a uma

teorizaccedilatildeo mais ampla sobre a imagem contemporacircnea onde a tendecircncia experimental estaacute

inserida e que considera a fotografia como um dos elementos constitutivos das obras artiacutesticas

Ou seja ao pensarmos o ldquoexperimentalrdquo como vertente da imagem contemporacircnea devemos

tambeacutem ter em mente que essa tendecircncia compreende a fotografia associada a outras miacutedias (jaacute

que muitas vezes eacute convocada referindo o cinema o panorama o viacutedeo etc)153 Todas essas

questotildees estatildeo contempladas nas obras apresentadas ateacute aqui em diferentes estrateacutegias poeacuteticas

Assim o ldquoexperimentalrdquo incorpora tambeacutem uma criacutetica ao discurso de constante

aperfeiccediloamento da tecnologia e identificamos essa mesma reflexatildeo nas obras de Rosacircngela

Rennoacute Joanna Zylinska Joseacute Luiacutes Neto Sabato Visconti Luiz Alberto Guimaratildees comenta

A induacutestria desde o seacuteculo XIX tem buscado ldquomelhorarrdquo a tecnologia dos aparelhosfotograacuteficos centrando seus esforccedilos na obtenccedilatildeo de imagens cada vez mais instantacircnease realistas Pois qual eacute o objetivo das atuais cacircmeras com sensibilidade que chega aatingir ISO 25600 senatildeo capturar o ldquoinstantacircneo tambeacutem no escurordquo Por que natildeo sefabricam cacircmeras com ISO baixo que permitam longas exposiccedilotildees mesmo em situaccedilotildeesde alta luminosidade () A subversatildeo desses conceitos estaacute de algum modo presenteem minha trajetoacuteria (GUIMARAtildeES 2014 p4)

153 Em texto dedicado agrave uma histoacuteria da fotografia contemporacircnea Poivert (2015) indica precisamente que apoacutes1970 a fotografia apresenta-se associada agrave proacutepria noccedilatildeo de arte contemporacircnea natildeo podendo mais ser pensadacomo categoria artiacutestica autocircnoma

248

Cris Bierrenbach toca a mesma questatildeo relacionando-a com o interesse pelas teacutecnicas claacutessicas

() Essa conexatildeo que eacute o que eu comecei a fugir no analoacutegico eacute uma coisa que eacuteimposta por uma induacutestria Existe uma induacutestria que produz as cacircmeras regula ascacircmeras porque ningueacutem estudou fotografia e taacute todo mundo fotografando pra fazerfotos boas neacute Vamos dizer corretas na luz foco porque o equipamento faz isso Eacute ainduacutestria que diz isso eacute o correto O resto eacute desvio Aiacute vem as pessoas que criam osfiltros que satildeo as miacutemicas do que era a fotografia anterior Eacute muito difiacutecil encontraruma pessoa que esteja nesse mundo digital e que realmente esteja entendendo etentando buscar o que eacute realmente especiacutefico desse ambiente (BIERRENBACH 2018)

Poivert (2010 p40) identifica uma visatildeo criativa que ldquose traduz por uma liberdade dos

artistas no que diz respeito agrave teacutecnica normativa o experimental eacute uma figura invertida do

progresso estabelecendo assim uma relaccedilatildeo particular com a histoacuteriardquo mencionando exatamente

os problemas citados por Guimaratildees e Bierrenbach O pesquisador indica ainda que os artistas

podem trabalhar diretamente a mateacuteria a metamorfose dos espaccedilos renovar as praacuteticas de

montagem (POIVERT 2015) fazendo-nos concluir que o termo ldquoexperimentalrdquo designa um

conjunto de iniciativas variadas

Das praacuteticas ditas pobres agraves sofisticaccedilotildees extremas dos processos digitais encontramosnessa fotografia experimental a vontade de romper com as praacuteticas normativas e instituirum jogo com o visiacutevel como propulsor da criatividade A serviccedilo de uma poeacutetica porvezes criacutetica por vezes oniacuterica a fotografia experimental desafia o uso da imagemsonha com uma relaccedilatildeo com o real construiacuteda sobre a subjetividade arruiacutena toda umatradiccedilatildeo de uma imagem definida pela sua continuidade descritiva (POIVERT 2015p140)

As conclusotildees do autor ecoam nos escritos de Lenot (2017a p16) que advoga a favor de

uma conceituaccedilatildeo especificamente dedicada agraves imagens que satildeo ldquoinuacuteteis do ponto de vista da

representaccedilatildeordquo em que os artistas se ocupam do ldquoobjeto fotograacutefico em sirdquo de sua

ldquomaterialidaderdquo Eacute interessante que em sua pesquisa Lenot lamenta ter-se concentrado na

produccedilatildeo de europeus e norte-americanos sem conseguir alcanccedilar artistas japoneses (um grupo

ao qual podemos acrescentar os artistas latino-americanos) Segundo ele quando surgem as

miacutedias digitais a miacutedia analoacutegica perde sua (suposta) funccedilatildeo de reporta-se ao referente o que

leva os artistas a questionarem seus pressupostos mimeacuteticos Isso permite que ele identifique toda

uma produccedilatildeo orientada para o questionamento do ldquoaparelhordquo nas dimensotildees teacutecnica

epistemoloacutegica e esteacutetica (sob influecircncia da filosofia flusseriana) A abordagem de Lenot eacute mais

voltada para a identificaccedilatildeo do experimental como tendecircncia que se expressa no campo da

imagem fotoquiacutemica

249

Aqui nosso objetivo foi utilizar sua reflexatildeo para incluir tambeacutem os trabalhos realizados

com miacutedias digitais abrangendo todo o conjunto de obras que tenham como traccedilo definidor a

investigaccedilatildeo das propriedades dos dispositivos negligenciadas pelos paradigmas do instantacircneo

da representaccedilatildeo etc Aleacutem disso compreendemos que o aporte teoacuterico sobre a tendecircncia

experimental pode ser estendido agraves obras de natureza informaacutetica tambeacutem porque os escritos de

Flusser (2011) natildeo parecem se referir agrave figura do ldquofotograacutefo experimentalrdquo como ligada

exclusivamente ao universo da imagem analoacutegica Lembremos que o trabalho mais significativo

do pensador tcheco nesse sentido ndash o livro ldquoFilosofia da Caixa Pretardquo ndash foi escrito em (1983154)

um momento em que o paradigma informaacutetico jaacute era uma realidade A necessidade de

desenvolver competecircncias para manipular e reprogramar softwares e hardwares (alterando

funccedilotildees e desempenhos) pode tornar um pouco mais tortuoso o caminho dos artistas que

pretendem abrir a ldquocaixa pretardquo da imagem digital mas natildeo impossiacutevel

Tambeacutem podemos considerar que a fotografia eacute apenas um objeto servindo de pretexto

para Flusser discutir nossas relaccedilotildees com os aparelhos midiaacuteticos como diagnoacutestico de um

momento histoacuterico no qual a imagem eacute o paradigma dominante de conhecimento (em detrimento

do texto) inaugurando tambeacutem uma seacuterie de problemaacuteticas vinculadas agrave nossa dificuldade de

enxergar os modelos de pensamento que a informam Na ldquopoacutes-histoacuteriardquo (FLUSSER 2011) a

narrativa linear causal e progressiva da histoacuteria eacute substituiacuteda pela forma de narrar descontiacutenua

fragmentada e caoacutetica Filmes cinematograacuteficos programas de televisatildeo slides satildeo citados por

Flusser (2017) como exemplos desses modos narrativos poacutes-histoacutericos aos quais podemos

acrescentrar memes gifs videoclipes a videoarte os filmes interativos as instalaccedilotildees artiacutesticas

etc Num texto posteiror (2008) que amplia as discussotildees de ldquoFilosofia da caixa pretardquo o teoacuterico

refere-se agraves tecnoimagens como formadas por ldquopontos gratildeos e pixelsrdquo contribuindo

decisivamente para as reflexotildees sobre a ldquocultura dos media ou cultura de redesrdquo (MENEZES

2010)

Se as proposiccedilotildees da filosofia de Flusser foram exploradas ao longo de nosso estudo

especialmente nas ideias de uma relaccedilatildeo de acoplagem entre os sujeitos e as tecnologias

devemos fazer aqui menccedilatildeo tambeacutem ao pensamento de Gilbert Simondon (2017) em suas

preocupaccedilotildees com os viacutenculos entre objetos teacutecnicos e seres humanos ou seja como mais um

aporte filosoacutefico que daacute conta de uma associaccedilatildeo entre noacutes seres humanos e os dispositivos

154 Publicaccedilatildeo original em alematildeo de 1983 cuja traduccedilatildeo no Brasil feita pelo proacuteprio Flusser data de 1985 CfMenezes 2010 p23

250

Infelizmente natildeo conseguimos alcanccedilar suas reflexotildees a ponto de que fossem incluiacutedas na tese

Ao passo que Simondon parece tambeacutem investir num entendimento de natildeo oposiccedilatildeo entre seres e

objetos teacutecnicos consideramos que explorar suas ideias eacute tarefa para investigaccedilotildees que ampliem

este trabalho

No percurso investigativo sobre as possibilidades dos meios a imagem depara-se com a

questatildeo do ruiacutedo passando a referir como caracteriacutestica do modo experimental prenhe de falhas

e erros uma ldquoesteacutetica dos usos improacutepriosrdquo formada ldquode sobras e margensrdquo (POIVERT 2017

p13) Para noacutes apontar a atenccedilatildeo dada em pesquisas recentes a esses temas (ainda concentradas

sob a terminologia da fotografia) eacute uma maneira de articular a emergecircncia do problema do ruiacutedo

no campo da imagem em suas ramificaccedilotildees possiacuteveis com a materialidade o experimentalismo

o acaso e a abordagem arqueoloacutegica da miacutedia sem perder de vista os proacuteprios movimentos do

pensamento teoacuterico do campo da imagem que foram nosso ponto de partida

251

7 CHEGADAS OU CONCLUSOtildeES

Este trabalho surgiu da tentativa de entender a valorizaccedilatildeo de marcas visuais como o

desfoque o borratildeo o tremido entre outras no acircmbito da produccedilatildeo fotograacutefica contemporacircnea Se

incialmente consideraacutevamos que essas praacuteticas estavam restritas ao uso de tecnologias

analoacutegicas empregadas como recusa agrave limpeza agrave regularidade da imagem digital percebemos

que o valor de uma esteacutetica com tais elementos deve-se ao interesse por esteacuteticas alternativas ao

modelo representativo da imagem fotograacutefica (questatildeo que ultrapassa a tipologia da miacutedia

utilizada)

Iniciamos fazendo uma revisatildeo de temas relevantes para os debates sobre o paradigma

digital posto que este trouxe para a centralidade da produccedilatildeo de imagens questotildees como a

abertura agrave manipulaccedilatildeo a interloculaccedilatildeo entre modos da imagem analoacutegica em dispositivos

computadorizados como por exemplo na praacutetica vernacular do uso de filtros de apps em

telefones celulares e consequentemente a elaboraccedilatildeo de produtos multimiacutedia Ao olhar para as

teorias da fotografia e a produccedilatildeo de imagens recente notamos que alguns dos trabalhos mais

interessantes apostam exatamente no diaacutelogo entre miacutedias atestando que o hibridismo eacute uma

tendecircncia forte das obras contemporacircneas Estes trabalhos convivem lado a lado com outros que

atraveacutes de uma esteacutetica de limpeza ndash atada a certo ideal de perfeiccedilatildeo ndash reintroduz teses caras agrave

teoria da fotografia tais como a relaccedilatildeo com o mimetismo a pespectiva geomeacutetrica e o

instantacircneo temporal

Tais observaccedilotildees nos levaram a concluir que ao contraacuterio de uma separaccedilatildeo radical entre

analoacutegico e digital haacute espaccedilo na produccedilatildeo atual para uma saudaacutevel negociaccedilatildeo entre essas

linguagens meios hardwares e softwares que eacute responsaacutevel pela composiccedilatildeo de todo um cenaacuterio

de imagens experimentais investigadas em nosso corpus Dessa forma conduzimos nossa

discussatildeo a partir de uma perspectiva relacional entre as miacutedias buscando as continuidades em

vez de ressaltar as oposiccedilotildees

Notamos tambeacutem que as obras conceituadas de experimentais podem ter suas esteacuteticas

relacionadas ao conceito de ruiacutedo na medida em que satildeo construiacutedas atraveacutes de movimentos de

diferenciaccedilatildeo dessa esteacutetica limpa e perfeita Desse modo propusemos como debate central da

252

tese as relaccedilotildees entre ruiacutedo e imagem e as variadas manifestaccedilotildees do ruiacutedo em trabalhos

fotograacuteficos resultantes de estrateacutegias criativas assentadas na desprogramaccedilatildeo das tecnologias

Descortinamos um conjunto de obras nas quais o ruiacutedo aparece como resultado de

intervenccedilotildees em equipamentos alteraccedilotildees das etapas de processos de obtenccedilatildeo da imagem

elaboraccedilatildeo de dispositivos originais (natildeo-industriais) uso de arquivos e softwares corrompidos

em suas funccedilotildees industriais combinaccedilatildeo de materiais fotograacuteficos cinematograacuteficos

videograacuteficos e pictoacutericos Ou seja toda sorte de metodologias adotadas por artistas que partem

de uma recusa ao uso acriacutetico das miacutedias provocando uma reflexatildeo sobre os limites das teacutecnicas

ao mesmo tempo em que nos fazem experimentar novas sensibilidades por meio das obras

A interlocuccedilatildeo entre ruiacutedo e imagem no campo da fotografia revelou caracteriacutesticas

importantes desses trabalhos Por exemplo como fenocircmeno que indica instabilidade

desagragaccedilatildeo de padrotildees e a convivecircncia de temporalidades haacute uma consideraacutevel variabilidade

de estilos abordagens e esteacuteticas O repertoacuterio iniciado aqui segue aberto a ampliaccedilotildees jaacute que

quando falamos em ruiacutedo na fotografia estamos considerando que o fotograacutefico possui uma

natureza polimorfa que exige constante investigaccedilatildeo sobre as possibilidades de configuraccedilatildeo do

ruiacutedo

Haacute obras que assentadas no tensionamento da proacutepria tecnologia revelam o ruiacutedo como

expressatildeo genuiacutena da experimentaccedilatildeo com maacutequinas quiacutemicos suportes arquivos softwares

gadgets afirmando-se como pura expressatildeo sem necessariamente buscar o viacutenculo com

significados uniacutevocos e de faacutecil rotulagem Assim denominamos essas imagens de processuais

porque muitas vezes elas carregam as marcas de seus processos de elaboraccedilatildeo e se uma das

caracteriacutesticas do ruiacutedo eacute ser traccedilo do medium onde se manifesta as imagens processuais trazem

em suas esteacuteticas as inscriccedilotildees dos ruiacutedos que suas tecnologias satildeo capazes de produzir

O ruiacutedo como traccedilo do medium indica tambeacutem a expressatildeo da materialidade das

tecnologias outra questatildeo importante em nosso detabe Em entrevistas realizadas para esta

pesquisa na proacutepria estrutura e na plaacutestica das obras entendemos que a dimensatildeo material das

imagens eacute um elemento importante da construccedilatildeo do sentido esteja essa materialidade

representada na dimensatildeo fiacutesica de uma imagem-objeto ou na tipologia de formatos de arquivos

manipulados via computador Em ambos os casos a exploraccedilatildeo da mateacuteria da imagem fotograacutefica

chama nossa atenccedilatildeo agrave presenccedila do ruiacutedo

As investigaccedilotildees dirigidas aos meios indicam ainda que haacute sempre expansotildees a serem

253

realizadas novos modos de uso e ressignificaccedilotildees possiacuteveis Isso mostra que nenhuma

tecnologia encontra-se esgotada do ponto de vista de suas potecircncias criativas Tanto pelas

intervenccedilotildees e reprogramaccedilotildees empreendidas pelos e pelas artistas na praacutetica quanto pelas

contribuiccedilotildees do campo da arqueologia da miacutedia afirmamos que a fotografia experimental revela

o interesse em lanccedilar um olhar renovado a quaisquer dispositivos Esse interesse por sua vez traz

como subtexto uma criacutetica agrave retoacuterica de evoluccedilatildeo da tecnologia (contida em noccedilotildees como

melhoria do desempenho aumento de qualidade e eficiecircncia incremento da fidelidade das

imagens ao real)

A emergecircncia do ruiacutedo mostrou tambeacutem a importacircncia de considerar a presenccedila do

acaso nas praacuteticas artiacutesticas Em muitas obras o acaso eacute responsaacutevel por certo grau de

imprevisibilidade que eacute bem-vindo no processo Percebemos que osas artistas compreendem que

para aleacutem de um domiacutenio sobre os meios e teacutecnicas o imprevisiacutevel colabora com o resultado

final de seus trabalhos (em vez de representar um empecilho) sendo aceito como elemento

positivo Tal compreensatildeo sobre o acaso explica por exemplo o fato de que os erros e falhas

ocorridos no funcionamento de sistemas computadorizados satildeo a base de algumas das obras

analisadas em nosso texto ou mesmo a questatildeo de que em alguns casos deixa-se os materiais

interagirem entre si para o desenvolvimento do trabalho Se o acaso eacute uma intervenccedilatildeo positiva

novas esteacuteticas surgem exatamente da exploraccedilatildeo dos desvios que o acaso traz agrave tona

O debate proposto nesta tese reforccedila que o universo da fotografia contemporacircnea eacute

plural em suas praacuteticas intencionalidades e esteacuteticas e que na convivecircncia entre miacutedias

analoacutegicas e digitais o campo da arte destaca-se por trazer agrave tona questotildees importantes que

provocam reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre seres humanos e tecnologias as praacuteticas artiacutesticas

experimentais e suas potecircncias de criacutetica a teses caras agrave teoria da fotografia e o interesse pelo

tema do ruiacutedo a partir de uma compreensatildeo de seu caraacuteter produtivo Acreditamos ainda que as

aproximaccedilotildees entre o tema do ruiacutedo e a fotografia juntam-se a outras perspectivas teoacutericas que

apontam o vieacutes de artifiacutecio de construccedilatildeo da imagem fotograacutefica em contraposiccedilatildeo ao

automatismo que por vezes eacute associado agraves imagens teacutecnicas

254

REFEREcircNCIAS

ABRAAtildeO FILHO Claudio O avesso da comunicaccedilatildeo Esteacutetica e poliacutetica do ruiacutedo na culturadigital 2018 Tese (Doutorado em Comunicaccedilatildeo e Semioacutetica) - Pontifiacutecia Universidade Catoacutelicade Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2018

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CORRA Direccedilatildeo Jordan Peele Universal Pictures 2017

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ENTRE Imagens (Joseacute Luiacutes Neto) Direccedilatildeo Pedro Macedo RTP2 2012 Disponiacutevel emhttpswwwyoutubecomwatchv=r8SQHL_Krfcampt=944s Acesso em 20 dezembro 2019

LEVIATHAN DireccedilatildeoLucien Castaing-Taylor e Veacutereacutena Paravel Cinema Guild 2012

NO country for old men Direccedilatildeo Joel e Ethan Cohen Miramax Films 2007

NOacuteS Direccedilatildeo Jordan Peele Universal Pictures 2019

O EVANGELHO Segundo Satildeo Mateus Direccedilatildeo Pier Paolo Pasolini 1964

O MAacuteGICO de Oz Direccedilatildeo Victor Fleming MGM 1939

OUTUBRO Direccedilatildeo Sergei Eisenstein Sovkino 1927

POLTERGEIST - O Fenocircmeno Direccedilatildeo Tobe Hooper MGM 1982

STALKER Direccedilatildeo Andrei Tarkovsky Mosfilm 1979

SOLO Uma histoacuteria Star Wars Direccedilatildeo Ron Howard Walt Disney Studios Motion Pictures2018

STAR Wars - Guerra nas Estrelas Direccedilatildeo George Lucas 20th Century Fox 1977

STAR Wars - Episoacutedio II - O Ataque dos Clones Direccedilatildeo George Lucas 20th Century

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Fox2002

STAR Wars - Episoacutedio VII - O despertar da forccedila Direccedilatildeo J J Abrams Walt Disney StudiosMotion Pictures 2015

STAR Wars - Episoacutedio V - O Impeacuterio Contra Ataca Direccedilatildeo Irvin Kershner 20th CenturyFox1980

STAR Wars - Episiacutedo VI - O retorno de Jedi Direccedilatildeo Richard Marquand 20th CenturyFox1983

STAR Wars - Episoacutedio III - A vinganccedila dos Sith Direccedilatildeo George Lucas 20th Century Fox2005

SUSPIRIA Direccedilatildeo Dario Argento 1977

SUSPIRIA - A danccedila do medo Direccedilatildeo Luca Guadagnino Playarte Pictures 2018

2001 UMA Odisseacuteia no espaccedilo Direccedilatildeo Stanley Kubrik MGM 1968

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E … · 2020. 12. 4. · Marina Feldhues, Philipe Fassarella, Alexandre Maciel, Mari Reis, Rafa Queiroz, Rafa Andrade (e Suzana,

Ludimilla Carvalho Wanderlei

EXPERIMENTALISMOS E RUIacuteDOS NA FOTOGRAFIA CONTEMPORAcircNEA

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeoem Comunicaccedilatildeo da Universidade Federal dePernambuco como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo dotiacutetulo de doutora em Comunicaccedilatildeo

Aprovada em 30072020

BANCA EXAMINADORA

______________________________________

Professora Doutora Nina Velasco e Cruz (Orientadora)Universidade Federal de Pernambuco

__________________________________________

Professora Doutora Acircngela Freire Prysthon (Examinadora interna)Universidade Federal de Pernambuco

___________________________________________

Professor Doutor Rodrigo Octaacutevio DrsquoAzevedo Carreiro (Examinador interno)Universidade Federal de Pernambuco

____________________________________________

Professor Doutor Cesar Augusto Baio Santos (Examinador externo)Universidade Estadual de Campinas

___________________________________________

Professora Doutora Cristina Maria da Silva Pinto Ferreira Fonseca (Examinadora externa)Universidade do Porto

Agraves conexotildees aos curtos-circuitos e aos descaminhos da vida Em quaisquer tempos e

lugares

AGRADECIMENTOS

Acho sempre difiacutecil essa coisa dos agradecimentos mas se eacute para fazecirc-los ei-los

obrigada a todos e todas que (consciente ou inconscientemente) incentivaram ajudaram

acolheram criticaram escolhas ideias e percursos deste trabalho que para nascer tem que

tambeacutem morrer todo dia um pouquinho Aos meus amigos e amigas que extrapolam a

convivecircncia nas salas de aula e que trago comigo na cabeccedila e no coraccedilatildeo em laccedilos

verdadeiramente construiacutedos entre risadas cervejas conversas sobre poliacutetica muacutesica cinema

fotografia e logicamente os dissabores da vida Yara Medeiros Olga Wanderley Thais Faria

Marina Feldhues Philipe Fassarella Alexandre Maciel Mari Reis Rafa Queiroz Rafa Andrade

(e Suzana e Andreacuteia) Pedro Severien Carol Almeida

Aos queridos Zeacute Claudinha e Robertinha da secretaria do PPGCOM que literalmente

nos salvam com boa vontade e simpatia flexibilizando os limites impostos pela burocracia tiacutepica

da universidade puacuteblica Aos professores e professoras com os quais tive momentos frutiacuteferos e

insights valiosos (embora em alguns casos nem sequer tenha externado isso) Acircngela Prysthon

Joseacute Afonso Jeder Janotti Thiago Soares Rodrigo Carreiro Isaltina Gomes A Cesar Baio e

Rodrigo Carreiro pela oacutetima qualificaccedilatildeo

Um salve especial agrave minha orientadora Nina Velasco e Cruz de quem fui aluna em trecircs

ocasiotildees anteriores e que com paciecircncia leveza e confianccedila esteve junto comigo nesse

processo avaliando com o rigor necessaacuterio e sem ferir a autonomia que se espera de quem se

ldquometerdquo nessa coisa chamada doutorado e com quem durante todas as trocas para

encaminhamentos da pesquisa tive abertura e senti-me confortaacutevel para falar natildeo apenas da

conduccedilatildeo da tese mas de coisas da vida

Aos fotoacutegrafos e fotoacutegrafas que entrevistei por sua generosidade e partilha

Ao Arquivo Vileacutem Flusser Satildeo Paulo pelo acesso a seus textos

Agrave Facepe e agrave Capes agecircncias das quais obtive bolsa respectivamente para os periacuteodos

regular e estaacutegio-sanduiacuteche do doutorado

Agrave Cristina Ferreira que com toda disponibilidade simpatia e carinho me acompanhou

nos nove meses do doutorado-sanduiacuteche na Universidade do Porto Nunca esquecerei as trocas e

laccedilos criados Obrigada tambeacutem a Eliza Steacutefani Daniel Jordana Joilson Felipe Roberto Clara

Eduardo a pequena Janaiacutena Jeacutessica Carol e Thalles que conheci no Porto

Aos meus amigos e amigas de vida Fernando Naia Anabele Joaninha Quequel Eacutethel

Cauecirc Line Nice Igor Mila Ruthinha Ju Patrick Maacutercio Andrade Ale Senna Raquel do

Monte Esquecidxs por culpa da minha memoacuteria sintam-se abraccediladxs

Obrigada sempre a mainha e Camila meus amores minha vidas meus carmas meus

piolhos

E obrigada a Rafael Pires meu companheiro de aventuras a fotografia e o acaso nos

aproximaram o frio nos castigou a muacutesica nunca nos abandonou e o afeto nos manteve unidos

Um cheirinho

ldquoNessa manhatilde de louco o olho do morto reflete o fogordquo (MACALEacute1970)

RESUMO

Esta tese investiga as manifestaccedilotildees do ruiacutedo na fotografia contemporacircnea como

potecircncia de imagens hiacutebridas experimentais e processuais Partindo de um olhar sobre a

produccedilatildeo fotograacutefica recente que articula o despojamento e a agilidade de produccedilatildeo distribuiccedilatildeo

e acesso da imagem via computador a paradigmas formais (tais como a verossimilhanccedila o

mimetismo e a representaccedilatildeo) compreendemos que a vertente da fotografia experimental propotildee

uma agenda esteacutetica alternativa na medida em que natildeo se limita a essa retoacuterica de

correspondecircncia estrita com o referente A partir das obras de artistas brasileiros e estrangeiros

atestamos que os experimentalismos realizados com miacutedias analoacutegicas e digitais indicam a

valorizaccedilatildeo do ruiacutedo no campo da imagem atraveacutes da presenccedila de elementos como borrotildees

tremulaccedilotildees inscriccedilotildees do tempo muacuteltiplas exposiccedilotildees granulaccedilotildees pixel aparente exploraccedilatildeo

de efeitos cromaacuteticos texturas e estrutura das imagens distorccedilotildees entre outros A pluralidade de

manifestaccedilotildees do ruiacutedo ocorre por meio de estrateacutegias centradas na intervenccedilatildeo deliberada sobre

quaisquer miacutedias utilizadas para criar imagens tangenciando questotildees como o entrecruzamento

de territoacuterios da fotografia do cinema da pintura do viacutedeo das artes graacuteficas e o ambiente dos

softwares o desenvolvimento de poeacuteticas originais (geralmente contraacuterias aos usos industriais

das tecnologias) processos de criaccedilatildeo da ordem das apropriaccedilotildees dos hibridismos da

remixagem e a reprogramaccedilatildeo de softwares e hardwares para fins artiacutesticos Na pesquisa

refletimos ainda sobre a importacircncia do acaso como elemento partiacutecipe das metodologias

artiacutesticas o caraacuteter processual das imagens nas quais o ruiacutedo emerge a materialidade como vetor

de sentido nas obras analisadas o olhar dirigido agraves teacutecnicas claacutessicas da imagem fotoquiacutemica e agraves

miacutedias ldquoobsoletasrdquo (sob uma abordagem arqueoloacutegica da miacutedia) e por fim sobre as recentes

abordagens da teoria da fotografia que datildeo conta das proposiccedilotildees formais conceituais e

filosoacuteficas com agraves quais podemos associar a emergecircncia do ruiacutedo nas imagens

Palavras-chave Fotografia Fotografia experimental Ruiacutedo Erro Hibridismo

ABSTRACT

This thesis investigates the manifestations of noise in contemporary photography as a

power of hybrid experimental and processual images Starting from a look at recent

photographic production which articulates the stripping and agility of production distribution

and access of the image via computer to formal paradigms (such as verisimilitude mimesis and

representation) we understand that the experimental photography aspect proposes an alternative

aesthetic agenda insofar as it is not limited to this rhetoric of strict correspondence with the

referent From the works of Brazilian and foreign artists we attest that the experimentalisms

made with analog and digital media indicate the valorization of noise in the field of image

through the presence of elements such as blurs tremulations inscriptions of time multiple

exposures granulations apparent pixel exploration of chromatic effects textures and structure of

images distortions among others The plurality of noise manifestations occurs through strategies

focused on deliberate intervention on any media used to create images tangentiating issues such

as the intersection of territories of photography cinema painting video graphic arts the

software environment the development of original poetics (generally contrary to the industrial

uses of technologies) processes of creation such as appropriations hybrids remixing

resignification of old techniques of photography and the reprogramming of software and

hardware for artistic purposes In the research we also reflected on the importance of chance as a

partisan element of artistic methodologies the processual character of the images in which noise

emerges the materiality as a vector of meaning in the works analyzed the gaze directed to the

classical techniques of the photochemical image and to the ldquoobsoleterdquo media (under an

archaeological approach of the media) and finally on the recent approaches to the theory of

photography that account for the formal conceptual and philosophical propositions with which

we can associate the emergence of noise in images

Keywords Photography Experimental photography Noise Error Hybridism

SUMAacuteRIO

1 PARTIDAS OU UMA INTRODUCcedilAtildeO 13

2 INTELIGEcircNCIAS NUMEacuteRICAS 20

21 BREVE CONTEXTO SOCIAL E EMERGEcircNCIA DA CULTURA DIGITAL 20

22 RASTROS PEGADAS DA CULTURA DO NUMEacuteRICO 25

23 PARADIGMA NUMEacuteRICO ESPECIFICIDADES 26

24 SOBRE A IMAGEM 29

241 Virtualidade x materialidade 29

242 Ordem da representaccedilatildeo x ordem da simulaccedilatildeo 55

3 ANALOacuteGICO X DIGITAL INTERROGACcedilOtildeES EM DIRECcedilAtildeO Agrave

FOTOGRAFIA 61

31 RECONSIDERANDO ALGUMAS DISPARIDADES 61

32 ANALOacuteGICO + DIGITAL E A ZONA CINZA DE NEGOCIACcedilOtildeES

CONTINUIDADES ATRAVESSAMENTOS 66

321 Digital (re)visitando tradiccedilotildees visuais 66

322 Tatildeo longe tatildeo perto comparaccedilotildees 91

323 Arqueologia da miacutedia e investigaccedilotildees do medium 95

4 RUIacuteDO ERRO E IMAGEM 103

41 FOTOGRAFIA Eacute RUIacuteDO PARA ALEacuteM DE ESPECIFICIDADES

TECNOLOacuteGICAS 103

42 DISPUTAS ONTOLOacuteGICAS 109

43 COM OLHOS DE VIDRO DE CORES BERRANTES BALANCcedilAM

EDIFIacuteCIOS DE QUARENTA ANDARES 113

44 POR SERES TAtildeO INVENTIVO E PARECERES CONTIacuteNUO TEMPO

EacuteS UM DOS DEUSES MAIS LINDOS 121

45 EU SOU APENAS UM INCOcircMODO 134

46 CONTROLE EFICIEcircNCIA E DISPOSITIVOS 156

47 ERRO OU RUIacuteDO 158

48 A TECNOIMAGEM Eacute FEITA DE PONTOS GRAtildeOS E PIXELS 162

49 A TUA PRESENCcedilA Eacute BRANCA VERDE VERMELHA AZUL E AMARELA 169

410 QUANDO DAGUERRE ENCONTRA O PHOTOSHOP 173

5 FALHAS BUGS E DESCONTINUIDADES SISTEcircMICAS 183

51 COMPUTADORES FAZEM ARTE ARTISTAS FAZEM DINHEIRO 183

52 O BOM O MAU E O FEIO 207

53 AS FLUTUACcedilOtildeES DE UM CONCEITO 209

6 O QUE SUGEREM AS LIGACcedilOtildeES ENTRE RUIacuteDO E IMAGEM 226

61 O PAPEL CRIATIVO DO ACASO 226

611 O imprevisiacutevel instala-se por conta do uso desprogramado

das tecnologias 229

612 Caraacuteter processual 230

62 MATERIALIDADE 232

63 OLHAR RETROSPECTIVO A PROCESSOS CLAacuteSSICOS DA

FOTOGRAFIA 238

631 Arqueologia da miacutedia 240

64 E A TEORIA DA FOTOGRAFIA 246

7 CHEGADAS OU CONCLUSOtildeES 251

REFEREcircNCIAS 254

13

1 PARTIDAS OU UMA INTRODUCcedilAtildeO

A escrita desta tese as discussotildees que ela suscitou dentro ou fora da universidade as

leituras necessaacuterias para seu desenvolvimento fazem parte de um processo muito diverso para

mim Agrave medida que a pesquisa caminhava ideias foram repensadas outras simplesmente

abandonadas e o resultado final logicamente reflete essa trajetoacuteria de idas e vindas Acho que

para entender os caminhos (agraves vezes descaminhos) do doutorado eacute preciso resgatar as etapas

desse percurso e aqui acho que tenho a justa licenccedila para adotar um estilo mais pessoal de escrita

(sob risco de destoar um pouco do restante do trabalho) No mestrado aprendi que as introduccedilotildees

servem natildeo soacute para falar do que vem a seguir de como a investigaccedilatildeo foi conduzida e estaacute

estruturada mas tambeacutem sobre aquilo que nos direcionou para certos temas como alguns

assuntos nos provocam ajudando a desvendar o nascimento de uma pesquisa (seus problemas

hipoacuteteses etc)

A fotografia sempre me interessou como objeto de estudo Num percurso lacunar entre

graduaccedilatildeo e especializaccedilatildeo cheguei ao mestrado e ainda durante esse momento tomei contato

com algumas leituras que versavam a respeito de memoacuteria tecnologias afetos intimidade e de

maneira geral discutiam nossas relaccedilotildees com artefatos culturais variados entre eles as imagens

fotograacuteficas cinematograacuteficas a muacutesica Entre esses objetos sempre me interessaram mais as

ldquocoisasrdquo possuidoras mesmo de uma dimensatildeo fiacutesica Aquelas que podemos manusear que se

desgastam acumulam marcas do tempo poeira ou traccedilos de uso Agradeccedilo agrave Joseacute Van Dijck

(2007) e seu belo livro sobre as memoacuterias mediadas na era digital

Naquele momento jaacute tinha decidido continuar estudando questotildees relativas agrave imagem e

percebi que para me dedicar a uma pesquisa de quatro anos o tema natildeo teria apenas que ser

interessante mas me mobilizar num sentido talvez pessoal e comecei a pensar de que maneira

era possiacutevel articular questotildees da esteacutetica das tecnologias da imagem e um movimento (que

vinha observando sem pretensatildeo investigativa nenhuma e que na eacutepoca parecia marginal e

saudosista) ligado ao uso do filme fotograacutefico em plena ldquoera digitalrdquo A ldquodescobertardquo aconteceu

pura e simplesmente porque eu ndash que como diz um amigo ldquojaacute nasci velhardquo ndash sigo produzindo

fotografias em negativo e tambeacutem porque os algoritmos trabalham muito bem com base nas

14

miacutenimas informaccedilotildees fornecidas quando posto na internet algumas das minhas imagens Assim

descobri o Analogue Sunrise um tumblr de compartilhamento de fotografias analoacutegicas onde

aparentemente ningueacutem se conhece e todos estatildeo ali para ldquocelebrarrdquo a foto em negativo O

aspecto de fisicalidade da fotografia sempre significou um componente de certo vieacutes afetivo da

imagem assentado numa relativa estabilidade que o suporte proporciona Tambeacutem em niacutevel

pessoal enxergo um tipo de maacutegica no fato de que somente apoacutes a revelaccedilatildeo do negativo eacute que

conhecemos de fato as imagens Assim a fotografia produzida com teacutecnicas analoacutegicas figurava

como objeto de pesquisa inicial nesses contornos ainda meio fraacutegeis do ponto de vista do rigor

teoacuterico

Ainda de forma incipiente a investigaccedilatildeo parecia encaminhar-se para o lado da

nostalgia e inclinada a compreender uma atitude desviante daqueles que escolhiam o analoacutegico

em detrimento do digital Isso levou a um problema o que justificaria essa escolha para aleacutem de

uma certa verve cool que reveste o projeto do Analogue Sunrise Esse questionamento tambeacutem

se fazia presente na curiosidade que despertava em mim o Impossible Project (retomada da

produccedilatildeo de cacircmeras e insumos para a Polaroid em 2008) de revival da fotografia instantacircnea

Os usuaacuterios do Analogue Sunrise pareciam valorizar a granulaccedilatildeo das peliacuteculas o

desfocado as fotos ldquotremidasrdquo como se tais caracteriacutesticas indicassem o apreccedilo por uma esteacutetica

ldquodos defeitosrdquo que se afastava de certa frieza e perfeiccedilatildeo que o universo da imagem digital

supostamente representava Novamente essas questotildees partiam de uma observaccedilatildeo

despretensiosa sem muita base teoacuterica (da qual eu em niacutevel pessoal compartilhava)

Senti a necessidade de revisitar uma literatura que desse conta das preocupaccedilotildees em

torno da imagem digital como ela articulava mudanccedilas de haacutebitos modos de distribuiccedilatildeo

consumo e estrateacutegias criativas da fotografia na tentativa de encontrar nesses textos respostas

que explicassem uma ldquonegaccedilatildeordquo dessa tecnologia e assim uma interdiccedilatildeo tambeacutem de sua esteacutetica

ldquoperfeitardquo Notei que era necessaacuterio compreender primeiro esse contexto da imagem digital para

entender sua loacutegica e talvez defender uma posiccedilatildeo de recusa deliberada traduzida na escolha

pelo analoacutegico Comecei a buscar as referecircncias que espelhavam as principais questotildees surgidas e

aprofundadas quando o paradigma digital ganha corpo a partir dos anos 1980 Agrave medida que lia

Manovich (19952001) Couchot (2003) Parente (1993) Machado (1993) Soulages (20072010)

Fatorelli (2006) Valle (2012) Lister (1995) Baio (2016) entre tantas outras referecircncias fui

15

percebendo que a questatildeo central natildeo era de apenas fazer uma distinccedilatildeo epistemoloacutegica e teacutecnica

entre tecnologias fotoquiacutemicas e digitais capaz de explicar preferecircncias formais Quando

observamos as primeiras reflexotildees sobre a emergecircncia da cibercultura e os impactos desta no

campo da imagem os debates estatildeo mais centrados em questotildees tais como compartilhamento

vigilacircncia manipulaccedilatildeo de arquivos naturalizada autoria coletiva criaccedilatildeo de artefatos hiacutebridos

tentando mapear distinccedilotildees entre uma epistemologia herdada do pensamento moderno (imagem

analoacutegica) e um paradigma da imagem ligado ao surgimento do computador de uma

racionalidade matemaacutetica Nesse esforccedilo de reflexatildeo velhos debates ligados agrave (suposta) funccedilatildeo

indicial da fotografia foram revisitados ou ldquorecicladosrdquo

Essa discussatildeo que articula problemaacuteticas da cibercultura e paradigmas claacutessicos da

imagem faz com que as teorias oscilem entre o entusiasmo com as possibilidades criativas do

digital e anaacutelises que detectam justamente essas ambiguidades comportadas pelo campo da

imagem fazendo natildeo apenas conviverem mas se associarem as diferentes tecnologias e nesse

sentido faccedilo nos capiacutetulos ldquoInteligecircncias numeacutericasrdquo e ldquoAnaloacutegico x digital interrogaccedilotildees em

direccedilatildeo agrave fotografiardquo da tese diversas consideraccedilotildees a respeito desse cenaacuterio que jaacute natildeo eacute mais

novo mas precisava de certa maneira de alguma demarcaccedilatildeo para situar as discussotildees que se

seguem Aleacutem de delinear questotildees importantes que caracterizam o paradigma digital e que satildeo

evocados nos debates sobre a fotografia (como a manipulaccedilatildeo a imaterialidade o virtual a

simulaccedilatildeo automaccedilatildeo dos dispositivos entre outras) esses dois capiacutetulos trazem uma seacuterie de

observaccedilotildees que relativizam as diferenccedilas tatildeo demarcadas entre analoacutegico e digital

aproximando-se de temas como remediaccedilatildeo (BOLTER amp GRUSIN 2000) materialidade do

software (MANOVICH 2013) a compreensatildeo da imagem como espaccedilo de experiecircncias

(enfatizando assim seu caraacuteter de artifiacutecio) o que por sua vez alinha-se agraves teses sobre os

hidridismos as contaminaccedilotildees (FATORELLI 2013) entre meios e ao decliacutenio das teorizaccedilotildees

preocupadas em singularizar os territoacuterios da imagem (fotografia cinema viacutedeo)

O esforccedilo de revisitar essas teses eacute feito no intuito de associar os debates que permeiam

o campo da imagem na emergecircncia da cibercultura para estabelecer algumas questotildees

importantes que serviratildeo de base para as abordagens posteriores centradas na temaacutetica do ruiacutedo

Considero que para articular esses dois campos (imagem e ruiacutedo) era interessante primeiro situar

algumas reflexotildees que mobilizaram intensamente os pensadores voltados agrave fotografia ao cinema

16

ao viacutedeo Ateacute porque apesar de emergir como tema no campo da arte jaacute no iniacutecio do seacuteculo XX

o ruiacutedo eacute um assunto bastante associado ao universo da computaccedilatildeo (conforme veremos adiante)

O conjunto dessas reflexotildees abriu margem para pensar a exploraccedilatildeo das proacuteprias miacutedias

como estrateacutegia de criaccedilatildeo direcionando o foco de anaacutelise agraves experiecircncias situadas em zonas

limiacutetrofes das tecnologias e das linguagens fazendo emergir dessas investigaccedilotildees esteacuteticas

inusuais hiacutebridas e nascidas de usos pouco convencionais dos dispositivos Aqui comeccedilava a

ganhar corpo o tema principal deste trabalho o reconhecimento e a valorizaccedilatildeo de formas

surgidas pelo uso combinado ou exclusivo das mais diversas tecnologias da imagem empregadas

contrariamente aos seus respectivos ldquoprogramasrdquo (FLUSSER 2011 2008) industriais que por

sua vez enfatizam o potencial criativo que alguns artistas enxergam no ruiacutedo do medium Em

uacuteltima instacircncia o ruiacutedo como um conceito operador de esteacuteticas singulares experimentais

Pensei que a partir dessas associaccedilotildees seria possiacutevel entender a tendecircncia cada vez mais

heterogecircnea da imagem contemporacircnea e o interesse por aspectos formais antes considerados

sob a rubrica dos ldquodefeitosrdquo (tais como borrotildees tremidos riscos granulaccedilatildeo pixelizaccedilatildeo

vestiacutegios dos materiais utilizados ou do gesto interventivo doda artista fantasmagorias

anamorfoses e outras inscriccedilotildees de temporalidades complexas marcas do desgaste) Essa

orientaccedilatildeo por sua vez tornava problemaacutetica a insistecircncia (inicial) em vincular a pesquisa

exclusivamente ao universo das miacutedias analoacutegicas visto que o tema do ruiacutedo possui uma estreita

relaccedilatildeo com o contexto de industrializaccedilatildeo e crescimento da importacircncia dos meios de

comunicaccedilatildeo no iniacutecio do seacuteculo XX e com a cibercultura em especial em que noccedilotildees de

controle eficiecircncia e precisatildeo expressam justamente a ideia de constranger reduzir a

manifestaccedilatildeo erraacutetica irregular e imprevisiacutevel do ruiacutedo Aleacutem disso a fotografia vernacular que

me ocupava no iniacutecio da investigaccedilatildeo natildeo parecia diretamente relacionada aos

experimentalismos com as teacutecnicas associados agrave temaacutetica do ruiacutedo Foi preciso olhar para o

campo da arte que se tornou referecircncia principal do corpus

Decidi entrevistar artistas que ajudaram a perceber que o problema central enfrentado

em minha tese era na verdade o interesse por uma esteacutetica emergente dos procedimentos

realizados com a imagem (no qual a presenccedila das miacutedias analoacutegicas era uma caracteriacutestica mas

natildeo um traccedilo definidor exclusivo) Natildeo era o uso da fotografia analoacutegica que explicava uma

esteacutetica processual e cheia de ldquodefeitosrdquo mas esse uso representava uma das estrateacutegias que

17

fazem parte de um contexto maior que permite afirmarmos essa esteacutetica (ou esteacuteticas) As

conversas com sete artistas (mulheres e homens) realizadas nos anos de 2017 2018 e 2019

confirmaram o interesse pelos desvios nos usos das tecnologias apontando a pertinecircncia de tratar

essas questotildees em articulaccedilatildeo com os temas do ldquoruiacutedordquo (HAINGE 20072013 KRAPP 2011

NUNES 2011 BALLARD 2011 MENKMAN 2010 FELINTO 2013) ldquoerrordquo (CHEacuteROUX

2009 PIPER-WRIGHT 2018) ldquoimprevistordquo ldquoacasordquo e acidente (ENTLER 2000) Em todas as

entrevistas a filosofia de Vileacutem Flusser (1920-1991) surgiu como referecircncia de pensamento que

norteava os projetos artiacutesticos embora no recorte final do corpus alguns artistas tenham sido

retirados para dar lugar a outros que descobri ao longo da investigaccedilatildeo

Aleacutem do pensador tcheco tambeacutem faccedilo referecircncias pontuais aos escritos de Gilles

Deleuze individualmente (199920052012) a seus trabalhos em parceria com Feacutelix Guattari

(1995199720112012) Walter Benjamin (19361994) entre outros nomes da filosofia

Durante o processo de qualificaccedilatildeo sugeriu-se que o trabalho deveria concentrar-se nas

relaccedilotildees entre ruiacutedo e imagem Nesse sentido foi indicado que esse tema atravessasse a

totalidade dos capiacutetulos sendo tratado desde o iniacutecio do texto Hoje com o trabalho finalizado

pode-se dizer que o ldquocoraccedilatildeordquo da tese estaacute nas diversas estrateacutegias de emergecircncia do ruiacutedo em

diaacutelogo com a filosofia a esteacutetica e as teorias da fotografia Mas com a necessidade de

reestruturar o que jaacute estava produzido optei por incluir a partir dos primeiros capiacutetulos breves

observaccedilotildees que enquanto se referiam a obras especificamente trouxessem algumas das

caracteriacutesticas ou ideias tais como imprevisibilidade inteligecircncia maquiacutenica interferecircncia nos

sistemas perturbaccedilatildeo remixagem entre outras Desse modo busquei aos poucos introduzir

algumas questotildees relevantes (em articulaccedilatildeo com os debates sobre o cenaacuterio da imagem

contemporacircnea) para trabalhar especificamente o conceito de ruiacutedo juntamente agrave anaacutelise das

obras Minha ideia era que este tema pudesse ser discutido em suas possiacuteveis articulaccedilotildees com

referecircncias do campo da filosofia esteacutetica e da teoria da fotografia por meio da anaacutelise do

corpus de obras artiacutesticas selecionado que eacute o foco dos capiacutetulos ldquoRuiacutedo erro e imagemrdquo e

ldquoFalhas bugs e descontinuidades sistecircmicasrdquo

Neles procedo entatildeo agrave conceituaccedilatildeo sobre o ruiacutedo resgatando suas caracteriacutesticas

essenciais dialogando em alguns momentos com as ideias dosdas proacutepriosas artistas (com base

nas entrevistas e outros materiais de referecircncia) em conexatildeo com as reflexotildees de Baio (2015)

18

Fatorelli e Carvalho (2015) Costa (2015) Fatorelli (201320172017a) Bellour (1997) Parente

(2015) Menkman (2010) Fontcuberta (20102016) Piper-Wright (2018) Zylinska (20172017a)

Steyerl (2009) Lenot (2017) entre outros nomes passando por experiecircncias com as

temporalidades a ressignificaccedilatildeo criacutetica de tecnologias histoacutericas como daguerreoacutetipo cacircmara

escura fotografia estenopeica goma bicromatada pelo tracircnsito entre foto cinema viacutedeo e

pintura os diaacutelogos entre as vertentes fixa e moacutevel da imagem experiecircncias multimiacutedia ateacute a

apreciaccedilatildeo do ruiacutedo em suas manifestaccedilotildees nos domiacutenios da imagem digital em obras que

exploram softwares formatos de arquivos revisitam meios ldquoobsoletosrdquo e se apropriam de

material de terceiros (instituiccedilotildees ou particulares) em afinidade com temas como vigilacircncia

hackeamento sabotagem e remix

As anaacutelises dos trabalhos fotograacuteficos de Luiz Alberto Guimaratildees Dirceu Maueacutes Cris

Bierrenbach Rosacircngela Rennoacute Caacutessio Vasconcellos Joseacute Luiacutes Neto Sabato Visconti Rosa

Menkman Joanna Zylinska Jason Shulman Claire Strand Thomas Ruff e Eacuteder Oliveira

convocam-nos a repensar diversos paradigmas da imagem bem como os alargamentos das

possibilidades esteacuteticas atraveacutes da investigaccedilatildeo das tecnologias Por forccedila do debate em torno da

pluralidade de recursos e miacutedias empregados nos trabalhos e tambeacutem com base em toda revisatildeo

de bibliografia feita nos primeiros capiacutetulos optei por referir-me principalmente agraves obras

utilizando a terminologia da ldquoimagemrdquo que me parece gozar de maior abrangecircncia sobre os

fenocircmenos discutidos em comparaccedilatildeo com o uso do termo ldquofotografiardquo Eacute por isso que este

uacuteltimo eacute mais frequente nos capiacutetulos iniciais (que abordam a ldquotransiccedilatildeordquo analoacutegico-digital de

um ponto de vista mais teacutecnico) e paulatinamento sai de cena para dar lugar agrave categoria da

imagem que julgo ser mais coerente para tratar das experiecircncias realizadas no tracircnsito entre

tecnologias

Se o ruiacutedo acaba por ser o centro de meu debate as anaacutelises realizadas conduziram

tambeacutem a questotildees abordadas em campos como a arqueologia da miacutedia (ZIELINSKI 2006

BISHOP et al 2016 PARIKKA 20122017) as materialidades da comunicaccedilatildeo (FELINTO

2001 GUMBRECHT 2010) e o papel do acaso (ENTLER 2000) que embora rapidamente

citadas nas seccedilotildees anteriores trato de forma mais detalhada no uacuteltimo capiacutetulo Ao discutir as

visualidades surgidas da investigaccedilatildeo teacutecnica e conceitual voltada ao proacuteprio medium em

metodologias originais evoco novamente as ideias de ldquoaparelhordquo ldquojogordquo ldquoprogramardquo do

vocabulaacuterio flusseriano estabelecendo tambeacutem uma noccedilatildeo de criaccedilatildeo artiacutestica baseada na

19

colaboraccedilatildeo entre seres humanos e dispositivos (esta relaccedilatildeo que entendi ser mais da ordem das

acoplagens que das hierarquias ou dos conflitos)

Recolocar essas questotildees me pareceu pertinente na medida em que finalizo este trabalho

situando as abordagens da teoria da fotografia que guardam uma estreita relaccedilatildeo com essas

consideraccedilotildees de Flusser a saber os trabalhos de Lenot (20172017a) Poivert (20022015)

Fontcuberta (2010) Junior (2002) e mais uma vez Zylinska (2017a) Ou seja se partir do

contexto de emergecircncia da cultura digital abordando os debates surgidos no meio fotograacutefico as

contaminaccedilotildees entre as miacutedias e as experimentaccedilotildees artiacutesticas compreendo ser vaacutelido fechar

esse movimento apontando onde no espaccedilo das teorias da fotografia encontramos reflexotildees que

dialogam com as mesmas questotildees que se batem os pesquisadores dedicados ao espinhoso tema

do ruiacutedo

Compreendo nessa altura do debate proposto que o tema das expressotildees do ruiacutedo eacute

bastante vasto constituindo um territoacuterio feacutertil de anaacutelises que nem de longe tenho a pretensatildeo de

esgotar nesta tese Mesmo que a intenccedilatildeo aqui seja trazer a questatildeo para o universo da imagem

contemporacircnea natildeo me desviei de exemplos referecircncias e ideias de outras artes (notadamente a

muacutesica) valendo-me natildeo soacute do caraacuteter interdisciplinar que a aacuterea da comunicaccedilatildeo permite mas

tambeacutem em conformidade com o proacuteprio conceito de ruiacutedo que eacute tomado como traccedilo material

encontrado em quaisquer campos expressivos

Na maneira como essa empreitada foi conduzida fica evidente que perdeu forccedila o

questionamento inicial que deu iniacutecio a esse percurso (um certo afeto anacrocircnico pela foto

analoacutegica) que acabou por revelar questotildees outras relativas agrave filosofia agrave histoacuteria da miacutedia ao

potencial subversivo da criacutetica aos dispositivos ao decliacutenio de valores como o belo a mimesis e a

verossimilhanccedila agrave relativizaccedilatildeo do ser humano como sensibilidade hegemocircnica da criaccedilatildeo

artiacutestica e agraves tecnologias da imagem e sua presenccedila inescapaacutevel em nossas rotinas

Espero ter sido feliz na maioria das escolhas e que a leitura do trabalho seja guiada por

essas raacutepidas explicaccedilotildees dos caminhos e descaminhos de meu pensamento

20

2 INTELIGEcircNCIAS NUMEacuteRICAS

21 BREVE CONTEXTO SOCIAL E EMERGEcircNCIA DA CULTURA DIGITAL

A cultura digital ndash tendo no computador o marco fundamental ndash vai sendo desenhada a

partir de forccedilas industriais de mudanccedilas nas formas de comunicaccedilatildeo entre sujeitos governos e

empresas e se articula com uma visatildeo de mundo que enseja a conexatildeo a troca e o

compartilhamento de praacuteticas saberes e afetos Sua loacutegica inclui tambeacutem uma noccedilatildeo de

eficiecircncia precisatildeo e regularidade no desempenho da tecnologia obtida a partir do

desenvolvimento de mecanismos diversos de controle e reduccedilatildeo de erros (NUNES 2011)

questotildees essenciais para as discussotildees propostas nesta tese A partir de apontamentos que

remontam a um contexto cada vez mais contaminado de informaccedilotildees que se perdem no

ciberespaccedilo eacute que devemos pensar tambeacutem os movimentos que atingem o campo da imagem na

contemporaneidade

Como esse assunto jaacute foi tratado por autores variados optamos por escolher uma

abordagem que embora natildeo seja capaz de alcanccedilar todas as ramificaccedilotildees possiacuteveis do tema

propotildee uma compreensatildeo das tecnologias informaacuteticas e seus impactos num entrelaccedilamento com

estrateacutegias de produccedilatildeo e distribuiccedilatildeo do conhecimento anteriores Desse modo aleacutem de

reprisarmos alguns pontos importantes que tipificam a cultura legada pelos sistemas

computadorizados podemos identificar melhor o contexto que autoriza tambeacutem os debates sobre

novas formas da imagem Ao mesmo tempo a escolha desse recorte espelha uma compreensatildeo de

alguns autores evocados ao longo do texto de que as tecnologias sejam compreendidas sob uma

perspectiva relacional em que as miacutedias ao sucederem umas agraves outras compartilham certas

funccedilotildees e estrateacutegias podem resgatar esteacuteticas e ainda agregam ferramentas especiacuteficas

responsaacuteveis pela emergecircncia de artefatos culturais novos Quer dizer as tecnologias mais

recentes podem ao mesmo tempo conservar atributos de suas antecessoras e carregar potecircncias

que espelham suas proacuteprias identidades Nesse entendimento assinalamos a aproximaccedilatildeo de

nosso debate com teoacutericos da histoacuteria da miacutedia e da arqueologia da miacutedia como Siegfried

Zielinski (2006) Jussi Parikka (2012) e Lev Manovich (20012013) e de pesquisadores que

21

seguem debatendo os tensionamentos envolvidos nas relaccedilotildees entre arte tecnologia e ciecircncia

como Erick Felinto Antonio Fatorelli Cesar Baio Katia Maciel Joanna Zylinska pensando suas

contribuiccedilotildees para o campo da imagem

Se pensarmos na trajetoacuteria das tecnologias da inteligecircncia podemos afirmar que uma

modalidade nova incorpora as demais poreacutem isso natildeo eacute tudo Segundo Manovich (2013) o

computador eacute uma metamiacutedia porque aleacutem de trazer funccedilotildees e criar necessidades particulares

retoma tambeacutem estrateacutegias criativas de outras miacutedias tornando seus produtos uacutenicos Tomando o

hipertexto como exemplo o autor indica

() o software cultural transformou as miacutedias em metamiacutedias ndash um sistema tecnoloacutegicoe semioacutetico fundamental que inclui teacutecnicas e esteacuteticas dos meios (anteriores) como seuselementos ndash mas penso que o hipertexto eacute bem diferente da tradiccedilatildeo literaacuteria moderna1(MANOVICH 2013 p81)

Isso porque o hipertexto ultrapassa a ideia de algo cuja estrutura e conteuacutedo satildeo

estritamente ldquotextuaisrdquo seu conceito estende-se a imagens sons viacutedeos ecoando um princiacutepio

original de desenvolvimento da informaacutetica no qual o computador eacute uma maacutequina de articulaccedilatildeo

entre ldquoum amplo espectro de miacutedias existentes e miacutedias ainda natildeo inventadasrdquo (KAY amp

GOLDBERG apud MANOVICH 2013) Devemos considerar que os apontamentos do

pesquisador russo fazem parte da corrente dos estudos de software que investiga a posiccedilatildeo

central do software na cultura contemporacircnea em sua utilizaccedilatildeo como plataforma que autoriza

tanto a manipulaccedilatildeo de vaacuterios meios ldquoremediandordquo2 miacutedias fiacutesicas quanto criando artefatos com

auxiacutelio de propriedades intriacutensecas ao computador e nesse sentido haacute duas caracteriacutesticas

importantes do software que implicam todas as suas accedilotildees a simulaccedilatildeo e o hibridismo

1 Traduccedilatildeo livre de ldquocultural software turned media into metamediamdasha fundamentally new semiotic andtechnological system which includes most previous media techniques and aesthetics as its elementsmdashI also think thathypertext is actually quite different from modernist literary traditionrdquo

2 Remediaccedilatildeo eacute a propriedade de uma miacutedia ser representada em outra O termo eacute dos pesquisadores Jay Bolter eRichard Grusin (2000) para os quais a especificidade da miacutedia digital eacute remediar a TV a fotografia o filme e apintura pois que em muitas tarefas executadas pelo computador as estrateacutegias de interaccedilatildeo acesso armazenamentoe processamento de informaccedilatildeo fazem referecircncia aos processos tiacutepicos de miacutedias fiacutesicas (interface de editores detexto que imitam a superfiacutecie do papel aplicaccedilotildees para desenhar organizaccedilatildeo de arquivos em pastas ediccedilatildeo de some imagem remetendo a ferramentasobjetos) Manovich (2103) faz referecircncia a este trabalho ao desenvolver oraciociacutenio a respeito do computador como uma metamiacutedia embora amplie a discussatildeo enfatizando as propriedadesadicionais que o software traz aos produtos desenvolvidos sobretudo no que diz respeito ao caraacuteter hiacutebrido demuitos deles

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Voltaremos a elas mais detalhadamente nas discussotildees em torno da imagem contemporacircnea e

sobretudo nas esteacuteticas criadas em projetos artiacutesticos desenvolvidos com dispositivos digitais

Pierre Leacutevy (1993) por sua vez reflete sobre a propriedade de mutabilidade dos

produtos da cultura digital a ideia de que conteuacutedos e elementos tratados por sistemas

informaacuteticos estatildeo sujeitos agrave alteraccedilatildeo sempre que a necessidade e a subjetividade ordenem

Pensemos num texto que apoacutes elaborado nunca estaacute finalizado de fato podendo ser

ressignificado ou refeito por distintos autores ampliando sua rede de significados atraveacutes de

comentaacuterios compartilhamentos ou reescrita como ocorre no tratamento das informaccedilotildees no

Wikipeacutedia Da mesma forma se comportam as imagens alteradas desgarradas do espaccedilo e funccedilatildeo

originaacuterios para ativarem novos sentidos a exemplo do que ocorre na praacutetica dos memes e gifs

utilizados em redes sociais incorporados a peccedilas artiacutesticas ou emails Assim o princiacutepio da

metamorfose sugere um aspecto de abertura de estiacutemulo agrave investigaccedilatildeo uma disposiccedilatildeo para a

mudanccedila Tende para a eterna possibilidade da redefiniccedilatildeo de paracircmetros formas estilos

significados

O estudo de Leacutevy embora datado dos anos 1990 sugere algumas das principais

caracteriacutesticas do modelo informaacutetico que regem a produccedilatildeo de conhecimento a criaccedilatildeo artiacutestica

as relaccedilotildees sociais Entre elas podemos destacar a instantaneidade das tarefas a simulaccedilatildeo a

capacidade multimiacutedia uma atitude exploratoacuteria a relaccedilatildeo com o espaccedilo rizomaacutetico da internet a

natildeo-linearidade de processos e conteuacutedos a relaccedilatildeo com a informaccedilatildeo mediada por interfaces a

abertura dos dados agrave manipulaccedilatildeo e a imaterialidade destes Os apontamentos do autor permitem

compreender natildeo apenas o ambiente em que surgem os dispositivos informaacuteticos mas tambeacutem

uma cultura que enfatiza experiecircncias de autoria coletiva guiadas pela troca e pelo espiacuterito

colaborativo numa ideia de que o conhecimento a produccedilatildeo simboacutelica e as informaccedilotildees sobre a

proacutepria tecnologia devem ser livres e acessiacuteveis a qualquer pessoa (BAIO 2015 p20) Daiacute temos

questotildees como a relativizaccedilatildeo das hierarquias o cruzamento de referecircncias o poder fazerdesfazer

na base das operaccedilotildees cotidianas o remix as identidades fluidas o espaccedilo e tempo em relaccedilatildeo

descontiacutenua a interaccedilatildeo definida pela velocidade permeando um modelo epistemoloacutegico que

contraria os essencialismos as verdades acabadas as formas de pensamento estanques resultante

de um acuacutemulo de esforccedilos de aacutereas como a matemaacutetica a informaacutetica e a ciberneacutetica

23

Se vivemos numa ldquosociedade do softwarerdquo (MANOVICH 2013) Andreacute Lemos (2009)

lembra que a cultura digital eacute a cultura produzida e mediada pelo computador celular pelas

redes afetando nossas formas de agir politicamente produzir arte acessar e distribuir material e

acrescenta que a ideia de cibercultura natildeo eacute uma proposiccedilatildeo de futuro mas de um presente jaacute

naturalizado em nosso cotidiano O pesquisador brasileiro diz ainda que a cibercultura nasce natildeo

com a informaacutetica de 1940 mas com a microinformaacutetica quando cada pessoa pode ter no

computador um instrumento de produccedilatildeo de informaccedilatildeo (que estimula a criaccedilatildeo coletiva e a

colaboraccedilatildeo) inaugurando a possibilidade de distribuir conteuacutedo em formatos diversos a

qualquer ponto do mundo conectado agrave internet Manovich (2013) ao fazer um resgate de nomes

importantes da ciecircncia da computaccedilatildeo demonstra que o paradigma numeacuterico3 consolida-se no

momento em que os computadores deixam de ser ferramentas de uso militar e industrial para se

tornarem dispositivos para criaccedilatildeo e troca de conteuacutedo a niacutevel dos usuaacuterios comuns e

profissionais de aacutereas variadas (em especial nos campos da comunicaccedilatildeo em rede e do

entretenimento) Ou seja os dois pensadores estatildeo unidos na proposiccedilatildeo de que a cibercultura

representa a apropriaccedilatildeo social dos dispositivos informaacuteticos Lemos conclui

Eu sempre digo que essa tecnologia eacute muito mais um fenocircmeno social do quenecessariamente um fenocircmeno teacutecnico porque ela foi fruto de uma atitude que euchamei num texto de uma atitude ciberpunk contra a grande informaacutetica que vai dandoseus frutos ateacute hoje Obviamente que isso vai perdendo forccedila ganhando novoscontornos mas efetivamente ela continua ainda influenciando na maneira como a gentepensa a cultura digital (LEMOS 2009 p139)

Esse contexto social mais amplo eacute assinalado por um conjunto de pensadores bastante

diverso por causa das aacutereas de conhecimento agraves quais estatildeo relacionados entre os quais

destacamos Santaella (2007) Castells (2002) Jenkins (2009) Bauman (2001) Deleuze e

3 Numeacuterico eacute o termo consagrado na teoria francesa para tratar dos processos relacionados agrave tecnologia informaacuteticacomo referecircncia agrave linguagem baseada em nuacutemeros utilizada pelos computadores Aqui o termo segue o uso feito porEdmond Couchot Franccedilois Soulages Poreacutem utilizaremos ainda termos como digital virtual sinteacutetica ou poacutes-fotografia que se referem agrave mesma condiccedilatildeo tecnoloacutegica (principalmente ao tratar da imagem) em acordo com anomenclatura empregada por teoacutericos como Lev Manovich Joan Fontcuberta Philippe Dubois Antonio Fatorellientre outros fazendo as devidas ressalvas e explicaccedilotildees adicionais quando necessaacuterio ao tratar especificamente daaplicaccedilatildeo desses termos agrave fotografia

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Guattari (1995 2011 2012)4 Parente (2009) Krapp (2011) entre outros ao perceberem

mudanccedilas nos modos de sentir relacionar expressar e comunicar das sociedades em relaccedilatildeo cada

vez mais estreita com tecnologias automatizadas (principalmente a partir da segunda metade do

seacuteculo XX) Nosso intuito aqui natildeo eacute refazer o caminho desses autores mas apenas lembrar

alguns pontos importantes de suas reflexotildees aproveitando-as num esforccedilo introdutoacuterio de

brevemente demarcar o ambiente epistemoloacutegico no qual se configuram as formas de

comunicaccedilatildeo e expressatildeo ligadas ao computador

Essas breves observaccedilotildees a respeito da cultura digital tambeacutem satildeo aqui lanccediladas para

iniciar um debate mais especiacutefico em torno da imagem e do que acontece com ela por forccedila das

mudanccedilas tecnoloacutegicas Revisitaremos alguns pontos de discussatildeo que permearam a emergecircncia

da imagem digital e as posteriores comparaccedilotildees entre esta e a imagem analoacutegica apontando

particularidades modos de acionamento e aproximaccedilotildees Aqui de certa forma estamos assumindo

o risco de fazer esse paralelo em bases fortemente tecnoloacutegicas sujeitos agrave acusaccedilatildeo de

determinismo da maacutequina Tal questatildeo mostra-se central porque desencadeia caracteriacutesticas que

vatildeo diferenciar tais sistemas (linha de raciociacutenio que marcou sobretudo as primeiras reflexotildees

teoacutericas sobre as tecnologias digitais da imagem) Se eacute nosso intuito reivindicar um espaccedilo de

debate em torno da imagem em obras que por vezes enfatizam sua materialidade a exploraccedilatildeo de

elementos como a luz a superfiacutecie dos suportes a elasticidade do tempo investindo na

experimentaccedilatildeo com miacutedias analoacutegicas isso parece fazer sentido na medida em que a imagem

digital torna-se um padratildeo industrial e comeccedila a referir modelos representativos supostamente

associados a noccedilotildees qualitativas da imagem fotoquiacutemica Ao longo do texto ficaraacute perceptiacutevel

tambeacutem que passado o momento de celebraccedilatildeo da novidade e apontamento das especificidades do

digital as discussotildees a respeito da imagem digital trilham novos caminhos que incluem o impacto

dos algoritmos dos softwares das visualidades preacute-formatadas por filtros as operaccedilotildees de

hibridizaccedilatildeo e a emulaccedilatildeo de esteacuteticas cujos efeitos estatildeo bastante proacuteximos das tecnologias

analoacutegicas fazendo tambeacutem com que estas uacuteltimas sejam redescobertas retomadas ou reavaliadas

em diferentes metodologias Nesse processo detectamos algumas permanecircncias de modelos

4 Aqui nos restringimos a citar apenas alguns volumes do Mil Platocircs que contecircm o desenvolvimento em torno dosconceitos de devir rizoma e do tema do menor visto que satildeo evocados por outros autores ou mesmo pela proacutepriaautora (no conjunto da tese) Mas ressaltamos que o nuacutecleo da filosofia de Deleuze e Guattari dirige-se a objetosvariados (a linguagem a pintura a proacutepria filosofia o cinema) para desvendar a percepccedilatildeo de uma sociedadeheterogecircnea e em constante mudanccedila o que os coloca em alinhamento com os demais autores citados

25

esteacuteticos no uso da miacutedia digital e mais recentemente uma feacutertil exploraccedilatildeo artiacutestica do potencial

anaacuterquico e dissonante dos erros de sistemas computadorizados

Nas mais diversas estrateacutegias criativas com miacutedias fotoquiacutemicas e digitais observamos o

desejo de investigar os dispositivos e teacutecnicas na criaccedilatildeo de obras proacuteximas da tese do ruiacutedo

(HAINGE 2013) Ou seja temos um cenaacuterio bastante diversificado do qual tentaremos indicar

algumas tendecircncias

Assim nosso percurso vai abarcar primeiro algumas questotildees relativas a cibercultura ndash

tais como a simulaccedilatildeo a imaterialidade a alteraccedilatildeo de conteuacutedo ndash tendo em vista que no campo

da imagem a compreensatildeo de uma loacutegica informaacutetica sedimentou as primeiras reflexotildees teoacutericas

sobre os impactos esteacuteticos do paradigma numeacuterico e comparaccedilotildees com as imagens que lhes

precederam (em especial a fotografia analoacutegica) ateacute chegar a consideraccedilotildees mais recentes que

recolocam o lugar da materialidade as misturas de materiais e esteacuteticas promovidas por artistas

que demonstram uma postura ativa para explorar as tecnologias contrariamente a seus

funcionamentos padronizados e como as ideias de ldquoerrordquo e ldquoruiacutedordquo articulam-se com esse debate

de uma imagem experimental focada na exploraccedilatildeo das tecnologias

22 RASTROS PEGADAS DA CULTURA DO NUMEacuteRICO

A predominacircncia da numerizaccedilatildeo atual tem suas raiacutezes numa crescente automatizaccedilatildeo

das tarefas cotidianas ndash que por sua vez estende-se aos processos criativos artiacutesticos ndash ocorrida

no seacuteculo XIX da qual a fotografia eacute o exemplo inaugural evidente (COUCHOT 2003) Eacute com

ela que se daacute um rompimento crucial no seio da criaccedilatildeo e se instaura uma relaccedilatildeo entre seres

humanos e maacutequinas na busca de mobilizar significados sensaccedilotildees apontar caminhos para as

artes em geral A tarefa dos artistas a partir daiacute eacute brincar com essa relaccedilatildeo extraindo das

tecnologias aquilo que melhor expresse a sua vontade de comunicar uma ideia um sentimento

um questionamento Em meio ao desenvolvimento de praacuteticas da fotografia do cinema da

televisatildeo do viacutedeo e de pesquisas sobre o processamento o tratamento e a transmissatildeo

automaacutetica de informaccedilotildees sejam tais esforccedilos voltados para a induacutestria ou para o

entretenimento eacute que vai se desenvolvendo paulatinamente o conjunto de saberes que datildeo origem

ao campo da informaacutetica

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Para Manovich (2001) que analisou as miacutedias baseadas em computador natildeo somente em

seus reflexos no campo artiacutestico mas tambeacutem em seu uso domeacutestico haacute uma vizinhanccedila entre

meios analoacutegicos e digitais O que se denominou ldquonovas miacutediasrdquo entre o fim dos anos 1990 e

comeccedilo dos 2000 eacute resultado da uniatildeo entre miacutedias tradicionais de imagem som e texto e o

desenvolvimento da computaccedilatildeo as trajetoacuterias de campos como o cinema e a fotografia se

desenvolvem em paralelo agraves de maacutequinas criadas para caacutelculos e operaccedilotildees automatizadas que

satildeo as ldquoavoacutesrdquo do computador domeacutestico isso ainda no seacuteculo XIX5 Todas podem ser entendidas

como dispositivos para registrar armazenar e distribuir informaccedilotildees em vaacuterios formatos

(MANOVICH 2001 p20) Para ambos os pesquisadores a cultura digital eacute resultado de

processos de automatizaccedilatildeo diversos ocorridos em anos anteriores

Enquanto Couchot mapeia no acircmbito artiacutestico as propostas e convenccedilotildees que aos poucos

vatildeo desenhando o surgimento das tecnologias do computador e seu emprego nas praacuteticas

artiacutesticas pontuando uma seacuterie de rupturas teacutecnicas e filosoacuteficas mas tambeacutem reconfiguraccedilotildees

conceituais e esteacuteticas Manovich demonstra de um ponto de vista bastante praacutetico que diversas

ferramentas simbologias e accedilotildees ligadas ao uso do computador satildeo herdadas de outras praacuteticas

culturais ndash as miacutedias cinematograacutefica fotograacutefica e impressa ndash e que ao mesmo tempo em que o

paradigma digital oferece um novo espaccedilo criativo por suas potencialidades especiacuteficas ele

promove uma negociaccedilatildeo com as formas culturais anteriores

23 PARADIGMA NUMEacuteRICO ESPECIFICIDADES

Computadores satildeo produto da informaacutetica ciecircncia da loacutegica e da matemaacutetica Os

dispositivos que antecedem os computadores na tarefa de realizar operaccedilotildees complexas satildeo as

calculadoras usadas primeiro em acircmbito militar e depois na induacutestria Jaacute os computadores com o

surgimento da internet tornam-se objetos corriqueiros para o uso domeacutestico Um traccedilo forte da

cultura digital eacute substituir procedimentos realizados com materiais por funccedilotildees descritas numa

determinada linguagem sem existecircncia fiacutesica

5 O autor daacute exemplos de estudos e aparatos criados para realizaccedilatildeo de caacutelculos no seacuteculo XIX aproximando taisexemplos dos objetivos que norteiam o desenvolvimento da informaacutetica e por consequecircncia a invenccedilatildeo doscomputadores Cf Manovich 2001 p18-26

27

O matemaacutetico von Neumann teve entatildeo a ideia de registrar na memoacuteria da calculadora oproacuteprio programa assim como outros dados a tratar na forma de instruccedilotildees codificadasNuacutemeros e letras substituiacuteam conexotildees e os cabos siacutembolos abstratos constituindo uma

espeacutecie de linguagem ndash o programa (software) ndash que substituiacuteam mateacuterias fiacutesicas equinquilhariasrsquo (hardware) Assim nasceu o computador moderno e com ele ainformaacutetica que podemos considerar globalmente como ciecircncia das linguagens deprogramaccedilatildeo (COUCHOT 2003 p98)

Quer dizer qualquer tarefa executada por um sistema de computador segue orientaccedilotildees

para interpretar dados que tecircm uma natureza comum Nesse sentido quando nos referimos ao

paradigma digital natildeo haacute diferenccedila entre a ldquosubstacircnciardquo da informaccedilatildeo Tanto faz se o output seraacute

uma imagem um texto um som porque as informaccedilotildees satildeo interpretadas em linguagem

matemaacutetica Isso significa que uma imagem um texto ou uma muacutesica sejam ldquocriados por

computador ou convertidos de miacutedias originalmente analoacutegicas eles se tornam um coacutedigo digital

representaccedilotildees numeacutericasrdquo (MANOVICH 2001 p27) A perspectiva eacute compartilhada por Peter

Krapp (2011 p16) ldquocomputadores natildeo precisam distinguir entre um poema um retrato um

arquivo de viacutedeo () sons imagens e textos desaparecem igualmente em estados binaacuterios e satildeo

apenas simulados na tela6rdquo

Tal caracteriacutestica faz com que associar articular miacutedias de natureza diferente seja algo

natildeo apenas mais faacutecil mas que integra a proacutepria loacutegica da cultura digital Natildeo que isso natildeo tenha

sido feito antes do surgimento das tecnologias informaacuteticas Eacute que as operaccedilotildees de criar reverter

accedilotildees modificar coisas em resumo a manipulaccedilatildeo de dados constitui traccedilo marcante dessa

cultura bem como uma tocircnica da sociedade que a faz surgir Nesse sentido o termo ldquonovas

miacutediasrdquo eacute praticamente redundante se as miacutedias digitais satildeo conjuntos de operaccedilotildees de software

em constante desenvolvimento toda miacutedia produzida assim eacute sempre nova (MANOVICH 2013

p156) podendo ser modificada sempre que atualizaccedilotildees surgirem

Levando essas questotildees ao campo do visual a esteacutetica digital eacute caracterizada pela

hibridizaccedilatildeo (SOULAGES 2010) viabilizada por essa capacidade de juntar coisas diferentes

tratando-as sob um mesmo coacutedigo Assim o digital possui uma caracteriacutestica multimiacutedia que

permite transitar as artes e iconografias de todos os tempos sintetizadas pela virtualidade dos

6 Traduccedilatildeo livre de ldquocomputers have no need to distinguish between a poema portrait a video file () sounds imagesand texts all disappear into binary states and are only simulated on screenrdquo

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aparelhos tecnoloacutegicos que ao mesmo tempo em que conservam reinventam restauram e

misturam (PLAZA 1993 p86) Manovich (2013) utiliza o termo ldquodeep remixabilityrdquo para

referir-se a um niacutevel profundo de integraccedilatildeo de miacutedias diferentes operado pelo computador bem

como agrave capacidade do software de reproduzir caracteriacutesticas especiacuteficas dessas miacutedias7 O mesmo

autor discute essa questatildeo caracterizando as miacutedias computadorizadas por sua variabilidade ndash

condiccedilatildeo de serem abertas agrave modificaccedilatildeo E acrescenta

(hellip) todas as maacutequinas para sintetizar miacutedias eletrocircnicas gravaccedilatildeo transmissatildeo erecepccedilatildeo incluem controles para modificaccedilatildeo do sinal Como resultado um sinaleletrocircnico natildeo tem uma identidade singular ndash um estado particular qualitativamentediferente de todos os outros estados possiacuteveis (hellip) Ao contraacuterio de um objeto materialo sinal eletrocircnico eacute essencialmente mutaacutevel (MANOVICH 2001 p132-133)

Essa compreensatildeo pode ser estendida agraves miacutedias digitais que por sua estrutura permitem

que alteraccedilotildees de toda sorte sejam praticadas com mais facilidade constituindo-se de elementos

unidos mas que conservam sua independecircncia enquanto partes isoladas Os pixels estatildeo para

imagens assim como caracteres estatildeo para textos pois que podem ser localizados e alterados em

sua matriz de valores numeacutericos tornando a imagem uma metamorfose que se atualiza (quando a

vemos) mas que tambeacutem poderia ser algo diferente conforme o potencial de caacutelculo do

computador (SANTAELLA apud VALLE 2012 p123) Quer dizer a partir de um mesmo

elemento no paradigma digital podemos criar coisas diferentes Uma mesma imagem pode se

apresentar visualmente diversa ldquo() podemos mudar seu contraste e cor desfocaacute-la ou tornaacute-la

mais niacutetida transformaacute-la em uma forma em 3D usar seus valores para controlar o som e assim

por dianterdquo (MANOVICH 2001 p133) Soulages (2007 p83) indica que o digital estaacute aberto a

uma exploraccedilatildeo praacutetica e esteacutetica bem maior e que se distingue por uma nova forma de fazer

distribuir e comunicar

A automaccedilatildeo dos processos tambeacutem marca de maneira importante a cultura digital jaacute que

torna miacutenimo o tempo decorrido entre o comando de uma accedilatildeo e seu resultado poreacutem ela natildeo eacute

inaugurada pelas miacutedias digitais mas potencializada por elas Num exemplo simples a condiccedilatildeo

7 O mesmo autor fala sobre uma ldquoesteacutetica do remixrdquo que seria a base conceitual de muitas obras contemporacircneas quese estruturam a partir de elementos de diversos meios (e assim diferentes em seus estilos texturas visuais modos derepresentaccedilatildeo) e tambeacutem de uma ldquoesteacutetica visual hiacutebridardquo acionada na interrelaccedilatildeo entre diversos coacutedigos visuaisCf Manovich 2013 p243-277

29

de acessar a imagem assim que produzida eacute essencial para cacircmeras dos mais diversos gadgets jaacute

que muitas vezes o fazer dessas imagens estaacute orientado para seu compartilhamento Nas cacircmeras

DSLR8 a tela de LCD permite conferir a foto apoacutes sua produccedilatildeo

No que se refere agrave imagem em especial eacute necessaacuterio compreender os mecanismos dos

dispositivos que operam mediante a superficialidade (FLUSSER 2008) pois estamos nos

relacionando com imagens que satildeo conjuntos de dados binaacuterios Satildeo informaccedilotildees que se

organizam em algo que possamos reconhecer como uma imagem mas do ponto de vista de sua

ldquosubstacircnciardquo esses dados satildeo os mesmos de qualquer sistema informaacutetico

24 SOBRE A IMAGEM

241 Virtualidade x materialidade

As imagens digitais filhas do computador satildeo formadas por pixels unidades virtuais

Algumas das reflexotildees a esse respeito enfatizaram bastante a quebra de uma ligaccedilatildeo entre objeto

imagem e sujeito tomando a imagem digital como essencialmente imaterial Ou ainda como ldquoum

acontecimentordquo sujeito ao movimento de aparecer e desaparecer nas telas dependente de um

suporte material (PLAZA 1993)

Presentes em celulares tablets notebooks e cacircmeras atraveacutes de telas por onde noacutes as

acessamos repassamos modificamos Essas imagens satildeo dependentes de um aparato visualizador

que integra a estrutura do sistema ldquoacoplada ao computador a tela eacute a principal forma de acesso

agrave informaccedilatildeo imagens estaacuteticas ou moacuteveis ()rdquo (MANOVICH 2001 p94) Soulages (2007

p86) diz que passamos do mundo real para o mundo da tela jaacute que vemos a imagem no proacuteprio

aparelho o que reforccedila a concepccedilatildeo da fotografia natildeo como imagem da realidade mas como

imagem da imagem

Para esses teoacutericos a necessidade de uma interface de visualizaccedilatildeo pocircs em xeque uma

diferenccedila importante entre os paradigmas analoacutegico e digital a passagem de uma imagem dotada

de materialidade a outra que sequer teria existecircncia fiacutesica A despeito de hoje jaacute estarmos

acostumados com essa condiccedilatildeo essa mudanccedila tem implicaccedilotildees natildeo soacute teacutecnicas mas simboacutelicas

8 Sigla em inglecircs para Digital Single Lens Reflex cacircmeras reflex digitais de objetiva fixa

30

No paradigma digital a imagem existe menos sob a rubrica da durabilidade de um suporte e

sobrevive na fugacidade de uma memoacuteria (PARENTE1993 p27) Eacute efecircmera

As imagens analoacutegicas submetem-se a um procedimento evidente de etapas materiais ndash

revelar ampliar copiar ndash com resultado em um suporte que se tem em matildeos Entre o

ldquoirreversiacutevelrdquo da captura e o ldquoinacabaacutevelrdquo (SOULAGES 2010) da reproduccedilatildeo estamos nos

domiacutenios da quiacutemica e da fiacutesica de uma imagem que adquire um corpo Algo para colar rasgar

cortar queimar ou simplesmente guardar Haacutebitos nem tatildeo corriqueiros assim Valle (2012 p41)

considera uma das grandes diferenccedilas entre os sistemas analoacutegico e digital a passagem de uma

matriz fotograacutefica que era um objeto (o negativo) para outra que eacute formada por coacutedigos inscritos

num dispositivo de memoacuteria o que aumenta a escala do ldquoinacabaacutevelrdquo

Paul Virillo (1993 p129) entende que as imagens virtuais e fotoquiacutemicas se distanciam

tambeacutem num aspecto temporal porque a objetivaccedilatildeo da imagem natildeo se coloca em termos de um

ldquosuporte-superfiacutecierdquo mas sim na relaccedilatildeo que estabelecemos com a imagem num tempo de

exposiccedilatildeo em que podemos vecirc-la e depois jaacute natildeo podemos mais Satildeo imagens mais dadas agrave

circulaccedilatildeo fluidas e impalpaacuteveis Ele acrescenta ainda que enquanto as imagens da fotografia e

do cinema tradicionais demarcam a presenccedila de um tempo diferido um passado inscrito nas

placas e peliacuteculas as imagens digitais tecircm um estatuto acidental que se transfere de um agora

(presente) figurando como presenccedila em detrimento de um representar de um recuperar (Idem

p132) Van Dijck (2007) enxerga na imagem digital uma funccedilatildeo comunicativa um tipo de recado

visual instantacircneo capaz de ldquotocarrdquo algueacutem criando uma conexatildeo importando menos o que

exatamente a fotografia mostra (ZYLINSKA online 2017)

Saiacutemos do material para o virtual da foto em postal aacutelbum porta-retrato da coacutepia em

papel que enfeita a parede da sala de casa abandonamos as coisas guardadas como lembranccedilas

recordaccedilotildees de momentos importantes ritos de passagem Numa trajetoacuteria ainda meio confusa e

pontuada de perdas de arquivos esquecimento e dificuldades em lidar com uma quantidade cada

vez maior de dados saiacutemos da conservaccedilatildeo rumo ao compartilhamento Para Batchen (2002

p177) a digitalizaccedilatildeo aponta uma condiccedilatildeo da fotografia que deixa de ser uma mateacuteria inerte

impressatildeo bidimensional da realidade em si De uma exibiccedilatildeo instaacutevel cuja permanecircncia eacute

fragilizada pela loacutegica gerenciadora do sistema que eacute ao mesmo tempo produtor e consumidor

dessa imagem Para Soulages (2007 p96) eacute uma loacutegica de distribuiccedilatildeo em rede que implica uma

31

circulaccedilatildeo rizomaacutetica que natildeo corresponde a uma contemplaccedilatildeo solitaacuteria A partir de uma

abordagem mais social Fontcuberta (2016 p38) ressalta que o mais importante natildeo eacute que a

imagem tenha-se tornado imaterial mas sua transmissatildeo e circulaccedilatildeo vertiginosas adaptadas agraves

condiccedilotildees de nossas vidas online

No digital dispomos de imagens fotograacuteficas escaneadas ou de siacutentese (VALLE 2012)

feitas a partir da interpretaccedilatildeo de dados que nem se pode ver Na verdade interagimos com eles

atraveacutes de comandos que resultam em accedilotildees num aparato bem mais complexo que as cacircmeras

analoacutegicas Assim como outros dispositivos criados pela numerizaccedilatildeo as cacircmeras digitais satildeo

computadores que recebem um sinal interpretam organizam os dados e geram uma imagem

Tudo no mesmo aparelho Operaccedilotildees que nos levam aos domiacutenios da matemaacutetica e da

informaacutetica onde a interaccedilatildeo com superfiacutecies (telas) a velocidade dos resultados e o grau

crescente de automatizaccedilatildeo escondem ainda mais os processos internos Se a cacircmera analoacutegica jaacute

eacute ldquocaixa pretardquo fundadora de uma relaccedilatildeo entre sujeito e aparelho (FLUSSER 2011) na era

digital permanece a necessidade de compreender o que acontece no sistema para sair de um uso

meramente instrumental da tecnologia9

Se pensada para aleacutem de um objeto singularizado (como um artefato em si) a imagem

digital existe num sistema que inclui o proacuteprio dispositivo Seja este um tablet um smartphone

ou uma cacircmera que se parece com um modelo DSL convencional a imagem existe mediada pelo

equipamento o que afasta a afirmaccedilatildeo de que ela seria completamente imaterial Mesmos os

dados que a formam precisam ser processados por algum sistema que possui sim uma estrutura

fiacutesica especiacutefica Isso nos permite considerar modos outros de existecircncia das imagens

contemporacircneas na modalidade de evento algo processual que se constroacutei na relaccedilatildeo com o

sujeito espectador (em detrimento de um objeto concreto finalizado e supostamente inerte)

Maciel (2009) aponta essa situaccedilatildeo recente colocada pelas tecnologias digitais que potildee o

puacuteblico em interaccedilatildeo com o maquinaacuterio produtor de imagens em obras de formatos variados que

incluem instalaccedilotildees multimiacutedia trabalhos em cinema expandido videoarte hibridizaccedilotildees entre

cinema fotografia e performance no intuito de tornar a imagem uma abertura

fundamentalmente participativa Ela insiste que o caraacuteter experimental sempre esteve presente no

9 Conforme Joanna Zylinska (2017a p186) a ideia de caixa preta aplica-se agraves tecnologias fotograacuteficas analoacutegicas edigitais Essa percepccedilatildeo eacute compartilhada por Piper-Wright (2018)

32

campo da imagem em movimento (MACIEL 2009 p13) e mesmo a influecircncia muacutetua entre

cinema fotografia literatura e pintura natildeo sendo exatamente nova de fato algumas condiccedilotildees de

realizaccedilatildeo de obras atuais satildeo dependentes dos sistemas informaacuteticos de geraccedilatildeo montagem

transmissatildeo compartilhamento e da accedilatildeo dos algoritmos aplicados agrave imagem

Um trabalho interessante que dialoga com essas ideias eacute o filme interativo The

Wilderness Downtown10 (figuras 1-6) realizado por Chris Milk11 para a muacutesica We used to wait

da banda canadense Arcade Fire A letra fala de haacutebitos nada corriqueiros para os indiviacuteduos

nascidos no seacuteculo XXI como escrever agrave matildeo e enviarreceber cartas Um tanto melancoacutelica a

canccedilatildeo confronta as lembranccedilas de uma eacutepoca em que a comunicaccedilatildeo demandava um tempo

entre o envio de uma mensagem escrita e sua resposta e a realidade de uma eacutepoca em que o

tempo aparentemente passa mais raacutepido Na primeira estrofe ouvimos

Eu costumava escrever

Eu costumava escrever cartas

Eu costumava assinar meu nome

Eu costumava dormir agrave noite

Antes das luzes piscantes

Se enraizarem fundo no meu ceacuterebro

Mas quando nos conhecemos

Quando nos conhecemos

Os tempos jaacute eram outros ()12

Com base no tom nostaacutelgico da letra a produccedilatildeo estrutura-se a partir de quatro elementos

principais imagens capturadas a partir do Google Street View e Google Maps13 live footage de

10 A experiecircncia do filme pode ser feita no site httpwwwthewildernessdowntowncom Acesso em 16072019

11 Chris Milk tem em seu curriacuteculo aleacutem de videoclipes filmes publicitaacuterios e trabalhos artiacutesticos Cf MEacuteDOLA AS L CALDAS C H S Regimes de interaccedilatildeo no videoclipe a experiecircncia interativa de The Wilderness DowntownGalaxia (Satildeo Paulo Online) n 30 p35-47 dez 2015 Disponiacutevel em httpwwwscielobrpdfgaln301982-2553-gal-30-0035pdf Acesso em 200819

12 Traduccedilatildeo livre para We used to wait (Arcade Fire 2010) Composiccedilatildeo de Edwin Butler William Butler RegineChassagne Richard Parry Tim Kingsbury e Jeremy Gara

13 O projeto Wilderness Downtown foi desenvolvido em parceria com o Google Data Arts

33

um ator que aparece correndo em diferentes ambientes efeitos graacuteficos14 que remetem a artefatos

desse passado recente evocado atraveacutes de miacutedias fiacutesicas como bilhetes e cartotildees-postais e o

proacuteprio software que processa os materiais anteriores

The Wilderness Downtown encontra-se disponiacutevel num site desenvolvido especificamente

para a uma experiecircncia audiovisual online e ao acessar a home (figura 1) o espectador eacute

convidado a inserir o nome da cidade onde passou sua infacircncia Os dados satildeo coletados e geram

as imagens capturadas com a ajuda do Google utilizadas numa narrativa apresentada a partir de

muacuteltiplas janelas que vistas simultaneamente sugerem uma montagem paralela bastante

particular

Figura 1 - Home do projeto The Wilderness Downtown15

Fonte Reproduccedilatildeo site

14 Manovich (2013) define como motion graphics os efeitos utilizados em cinema e televisatildeo de menus dinacircmicoscaracteres artes e cartelas (bastante utilizadas em telejornalismo e documentaacuterios) graacuteficos para conteuacutedo dedispositivos moacuteveis e sequecircncias que possuem o recurso do movimento e satildeo sempre parte de um conjunto maisamplo (um filme completo um programa de televisatildeo)

15 httpwwwthewildernessdowntowncom

34

Figura 2 - Cenas iniciais de The Wilderness Downtown

Figura 2a - Cenas iniciais de The Wilderness Downtown

Fonte Reproduccedilatildeo site

35

Figura 3 - Montagem com live footage e fotografias capturadas com auxiacutelio do Google Street View e Google

Maps

Figura 3a - Montagem com live footage e fotografias capturadas com auxiacutelio do Google Street View e

Google Maps

Fonte Reproduccedilatildeo site

O efeito de intimidade criado a partir da identificaccedilatildeo de lugares informados pelo usuaacuterio

eacute curioso (eacute possiacutevel reconhecer ruas e pontos comerciais) Combinado agraves cenas do ator que corre

pela cidade o filme deixa uma estranha sensaccedilatildeo de que nunca se alcanccedila o lugar ao qual temos

36

certeza de ter pertencido um dia mas ao mesmo tempo a experiecircncia proposta eacute baseada nessa

identificaccedilatildeo pessoal (figuras 2-3) Aqui a obra natildeo determina completa e previamente as

condiccedilotildees de acesso elas satildeo ativadas na instacircncia de participaccedilatildeo o que significa que o

espectador eacute que encontra um lugar para si na imagem sem o qual ela natildeo ganha sentido

(PARENTE 2009 p175) Jaacute passado o tempo em que se viveu naqueles espaccedilos eles agora

servem de mote para narrativas outras elaboradas a partir da potecircncia maquiacutenica do computador

Segundo Aaron Koblin da equipe do Google a intenccedilatildeo era criar um videoclipe especificamente

para web numa dinacircmica capaz de incluir a histoacuteria para cada usuaacuterio individualmente A

resposta foi atraveacutes das fotografias armazenadas no banco de dados do Google

Podemos usar informaccedilotildees de bancos de dados ter janelas movendo-se na tela algo quenatildeo estaria limitado aos formatos de saiacuteda em 43 ou 169 Entatildeo fizemos o viacutedeo serintegrado a cada pessoa em particular com base no endereccedilo onde a pessoa cresceu Eusamos material do Google Maps e Street View como um tecido nas memoacuterias pessoaisda experiecircncia Eacute possiacutevel ter uma noccedilatildeo dessa histoacuteria pessoal na medida em que vocecircinterage com o viacutedeo escrevendo uma carta ou fazendo um desenho Vocecirc contribui como sistema ao vivo enquanto interage com o viacutedeo () Muitas pessoas participaramincluindo seus cartotildees postais e desenhos Literalmente algumas pessoas choram ao vermemoacuterias de suas vidas pessoais sendo tecidas junto com a histoacuteria (KOBLIN 2011)16

Em dado momento efeitos graacuteficos inserem uma revoada de paacutessaros sobre um fundo de

imagens gravadas previamente (figura 4 e 4a) Os paacutessaros ndash que reagem ao movimento do

mouse do computador ndash em seguida ldquoentramrdquo nas imagens coletadas do Google correspondentes

agrave cidade informada criando uma precaacuteria linearidade entre as accedilotildees

16 Depoimento para o viacutedeo The Wilderness Downtown behind the scenes Disponiacutevel emhttpswwwyoutubecomwatchv=EKg2HJ_qvKA Acesso em 210819

37

Figura 4 - Paacutessaros invadindo a paisagem

Figura 4a - Paacutessaros invadindo a paisagem

Fonte Reproduccedilatildeo site

Em seguida uma janela invade a tela principal (aleacutem das demais jaacute abertas) solicitando

que se ldquoescreva um postal para o seu eu mais jovemrdquo na tentativa de forjar um diaacutelogo entre o

ldquoeu virtualrdquo do presente e um suposto eu localizado no passado (figura 5 e 5a) A tela emula a

textura de um papel e permite a escrita por meio da digitaccedilatildeo ou utilizando o mouse Enquanto se

ldquoescreverdquo o recado trecircs pequenas telas se adicionam agraves demais mostrando uma engrenagem que

natildeo sabemos exatamente a que tipo de maquinaacuterio pertence mas que se movimenta

freneticamente agrave medida que clicamos com o mouse no espaccedilo do cartatildeo postal como se a

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velocidade das peccedilas da maacutequina acelerasse o envio do texto receacutem escrito A revoada de

paacutessaros que apareceu no comeccedilo junta-se ao cartatildeo postal arrastando a mensagem ali contida

para os lugares que voltam a ser o foco de nossa atenccedilatildeo principal

Figura 5 - Janelas do postal em The Wilderness Downtown

Figura 5a - Janelas do postal em The Wilderness Downtown

Fonte Reproduccedilatildeo site

O filme propotildee uma experiecircncia participativa cuja viabilidade estaacute estreitamente

relacionada agraves tecnologias digitais ao acesso a banco de dados conectados em rede aos recursos

de softwares que permitem gerar processar e transmitir conteuacutedos inserir elementos graacuteficos

transiccedilotildees etc mas evoca tambeacutem miacutedias de comunicaccedilatildeo do ldquopassadordquo (como o cartatildeo-postal e

39

sua modalidade escrita) Articulando as imagens apresentadas e a memoacuteria afetiva do espectador

acionando de maneira conjunta imagens fixas e em movimento num jogo que atravessa as

linguagens do videoclipe e da fotografia utilizando recursos que lembram ainda a interaccedilatildeo

tiacutepica dos games de estrateacutegia em que cada accedilatildeo eacute o ponto de entrada que desencadeia um

resultado especiacutefico

Segundo Meacutedola e Caldas (2015 p38) os trabalhos de Chris Milk satildeo inovadores e

experimentais na medida em que o realizador faz um investimento na interatividade buscando

desenvolver o formato videoclipe no ciberespaccedilo o que constitui para os pesquisadores um

avanccedilo em relaccedilatildeo aos recursos de linguagem utilizados nas miacutedias analoacutegicas A abordagem

desenvolvida por esses autores compreende as tecnologias de produccedilatildeo e fruiccedilatildeo do videoclipe

numa linha evolutiva em que os recursos informaacuteticos ocupariam o estaacutegio mais avanccedilado Aqui

numa anaacutelise diferente natildeo buscaremos comparar qualitativamente os recursos disponiacuteveis nas

diferentes miacutedias para a criaccedilatildeo artiacutestica mas sim compreender a singularidade da produccedilatildeo de

Chris Milk exatamente por colocar lado a lado efeitos de sentido evocados a partir de elementos

pertencentes a miacutedias antigas e recentes aproveitando a capacidade multimiacutedia do computador

para criar uma relaccedilatildeo de complementaridade de ludicidade entre essas miacutedias (e natildeo de

superaccedilatildeo)

De volta ao viacutedeo se mais agrave frente a letra da muacutesica diz ldquoagora nossas vidas estatildeo

mudando raacutepido espero que reste algo purordquo o romantismo associado agraves antigas formas de

relacionamento e comunicaccedilatildeo mostra-se apenas um ideal considerando que aqui tudo se mistura

e os efeitos de subjetivaccedilatildeo satildeo embaralhados natildeo havendo espaccedilo para falarmos em pureza nem

dos formatos nem das miacutedias nem tatildeo pouco das emoccedilotildees produzidas pela experiecircncia com tais

artefatos

40

Figura 6 - Sequecircncia de imagens - A maacutequina assume definitivamente o comando da experiecircncia e a

natureza invade todos os espaccedilos

41

Fonte Reproduccedilatildeo site

Agrave medida que a muacutesica avanccedila e com ela a conclusatildeo do clipe as imagens comeccedilam a se

sobrepor (sendo ainda exibidas em diversas janelas simultaneamente) e num ritmo acelerado as

accedilotildees se conectam por meio de um efeito que faz nascerem aacutervores em todos os ambientes

mostrados O personagem que finalmente para de correr gira em torno de si mesmo como se

tentasse se localizar Seu movimento conecta-se por sua vez com movimentos aplicados agraves

imagens dos lugares num efeito que promove o encontro entre o olhar dele (do personagem) e o

da cacircmera A natureza selvagem do tiacutetulo irrompe descontrolada nos espaccedilos urbanos por forccedila

42

do proacuteprio sistema na narrativa construiacuteda a partir das informaccedilotildees pertencentes agrave subjetividade

de quem laacute no iniacutecio inseriu o nome de sua cidade As aacutervores se juntam ao homem que (de

novo) corre agora num espaccedilo de topologia asseacuteptica e desconhecida para depois se desfazerem

junto com ele em manchas pretas sobre um fundo branco (figura 6) Note-se que essa natureza eacute

artificial de aacutervores negras e sintetizadas no computador A vegetaccedilatildeo se espalha como um viacuterus

encobrindo a paisagem da cidade que se escolheu recordar

Ao mesmo tempo que propotildee uma experiecircncia de co-criaccedilatildeo (sendo o input do usuaacuterio a

instacircncia de participaccedilatildeo que daacute iniacutecio agrave narrativa) essa obra tambeacutem estaacute agrave mercecirc dos

movimentos decisoacuterios do proacuteprio dispositivo No final somos informados da possibilidade de

reproduzir novamente o filme compartilhaacute-lo e ainda de enviar o postal escrito Nessa uacuteltima

opccedilatildeo o postal pode ter 3 destinos 1) servir de elemento compositivo dos cenaacuterios nas turnecircs da

banda Arcade Fire17 2) chegar a outro usuaacuterio que participou do The Wilderness Downtown 3)

cair na Wilderness Machine (figura 7) uma maacutequina criada pelo diretor onde a mensagem eacute

impressa e enviada de volta agrave pessoa que escreveu como uma semente para ser plantada

(MEacuteDOLA amp CALDAS 2015 p43) Ao decidir enviar o postal perde-se o controle do seu

destino

17 Nos shows do Arcade Fire durante a execuccedilatildeo da muacutesica We used to wait satildeo projetadas num telatildeo no fundo dopalco vaacuterias imagens com detalhes de cartotildees postais e cartas conforme vemos emhttpswwwyoutubecomwatchv=2Im6avxhIRM Acesso em 200819

43

Figura 7 - The Wilderness Machine (Chris Milk 2010)18

FonteReproduccedilatildeo site

Como eacute sabido o envio de qualquer informaccedilatildeo e a identificaccedilatildeo do remetente e do

destinataacuterio satildeo questotildees basilares para o campo da comunicaccedilatildeo independente da miacutedia

utilizada Do postal ao email dos chats em aplicativos de mensagens instantacircneas a incerteza de

para onde vai a mensagem envolve problemas de seguranccedila e privacidade gerando equiacutevocos

ansiedade por vezes situaccedilotildees vexatoacuterias ou de ordem legal A produccedilatildeo de Chris Milk

desconsidera essas questotildees quando deixa em aberto o destino final do cartatildeo postal redigido e

constitui-se como experiecircncia hiacutebrida tecida por meio de estruturas e elementos que remetem

tanto a meios fiacutesicos quanto virtuais

Caso o destino do postal seja a Wilderness Machine o sistema informa

18 No site de Chris Milk eacute possiacutevel ver a maacutequina e seu funcionamento Ver httpmilkcowilderness-machineAcesso em 200819

44

Seu postal foi feito atraveacutes de um sinal analoacutegico vocecirc Agora seu postal eacute virtual AWilderness Machine o faraacute analoacutegico de novo Procure por ele nas turnecircs da banda Setiver sorte para encontrar o postal de outra pessoa plante-o Uma aacutervore cresceraacute19

Eacute aiacute que o dispositivo assume dando continuidade agrave experiecircncia iniciada no site jaacute que

Wilderness Machine eacute um equipamento desenvolvido para recriar fisicamente os postais

redigidos virtualmente O fato de ela tornar palpaacutevel o recado escrito durante a interaccedilatildeo online

vem confirmar nossa leitura a respeito de como a produccedilatildeo de Milk destaca-se pela modulaccedilatildeo

entre mecanismos analoacutegicos e informaacuteticos Conforme indica o site do diretor

The Wilderness Machine eacute uma extensatildeo fiacutesica da obra online The WildernessDowntown A maacutequina gera cartotildees postais dos textos escritos agrave matildeo por espectadoresdo filme interativo Cada postal eacute um recado pessoal do usuaacuterio para si mesmo quandojovem A maacutequina utiliza um braccedilo de succcedilatildeo para transferir um cartatildeo postal em brancopara um poacutedio de metal onde uma caneta mecacircnica eacute programada para reproduzir ostraccedilos da caneta original () Cada postal conteacutem um coacutedigo uacutenico que permite orecipiente aleatoacuterio retornar ao website e escrever de volta ao emissor original um postaldigital Um tipo de versatildeo modernizada do conceito da mensagem na garrafa Os postaissatildeo impressos em papel com sementes compostaacuteveis que quando plantados viramaacutervores tentando recriar o fim da obra digital no mundo real () The WildernessMachine estaacute agora programada para twittar um postal por dia20 (MILK online 2010)

Eacute bastante curiosa a integraccedilatildeo de experiecircncias no site onde o videoclipe eacute criado a

transformaccedilatildeo das mensagens em postais pela maacutequina e a distribuiccedilatildeo aleatoacuteria delas nos shows

da banda ou outros locais onde o equipamento venha a ser exposto e por fim via Twitter Na

elaboraccedilatildeo de cada uma dessas etapas que compotildeem a experiecircncia a participaccedilatildeo do usuaacuterio e os

19 Traduccedilatildeo livre de ldquoYour postcard was made by an analog signal you Currently your postcard is digital TheWilderness Machine makes it analog again Look for it on tour with the band If yoursquore lucky enough to getsomeonersquos postcard form it plant it A tree will grow out of itrdquo20Traduccedilatildeo livre de ldquoThe Wilderness Machine is the physical extension of the online piece The WildernessDowntown The machine generates postcards from the handwritten notes created by viewers of the interactive filmEach postcard is a person writing to their younger selves The machine uses a suction arm to transfer a blankpostcard to a metal podium where a mechanical pen is programmed to reproduce the original pen strokes Then aclaw arm tosses the postcard out of a slot in its Plexiglas casing Each postcard contains a unique code that allowsthe random recipient to return to the website and write a digital postcard back to the original sender Sort of amodernized version of the message in a bottle concept The postcards are printed on compostable seeded paperwhich when planted will grow into birch trees attempting to recreate the end of the digital piece in the real world The machine has appeared at Arcade Fire concerts the Wired Magazine pop-up space in NYC and the 2011Sundance Film Festivalrsquos New Frontier exhibit The Wilderness Machine is now programmed to tweet one postcardper dayrdquo

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processos governados pelo software pelo dispositivo da Wilderness Machine se imbricam e se

complementam e o percurso da narrativa e da mensagem sujeitam-se a um movimento aleatoacuterio

que acusa a presenccedila de certo niacutevel de descontrole pois natildeo se sabe que destino a maacutequina daraacute

ao postal redigido Na verdade a participaccedilatildeo em The Wilderness Downtown sugere aceitar que

natildeo sabemos como os dados inseridos seratildeo utilizados pelo computador como vatildeo se comportar

em termos da construccedilatildeo de uma estrutura de significados Isso porque eacute caracteriacutestico das

narrativas criadas com e para as tecnologias digitais uma condiccedilatildeo de abertura que as torna um

campo de possibilidades orientado por um programa em uma situaccedilatildeo em que temos de um lado

um sujeito interagindo atraveacutes de dados inseridos numa determinada plataforma e de outro um

sistema que desenvolve situaccedilotildees narrativas a partir de um diaacutelogo com o primeiro (MACHADO

2009 p71) A relaccedilatildeo estabelecida nessa situaccedilatildeo eacute de jogabilidade que ora solicita a

participaccedilatildeo ora conduz a histoacuteria sob autonomia do programa

A possibilidade de evocar meios fiacutesicos utilizando-os como base de experiecircncias

dependentes de uma inteligecircncia numeacuterica eacute reconhecida como atributo tiacutepico do software nas

dimensotildees da simulaccedilatildeo e da hibridizaccedilatildeo (MANOVICH 2013) como paradigmas que

atravessam todas as referecircncias utilizadas em The Wilderness Downtown As imagens do Google

Street View satildeo fotografias que adquirem movimento ndash ldquohiacutebrido de fotografia e interfaces de

navegaccedilatildeo espacial21rdquo (MANOVICH 2013 p185) ndash efeitos criados no computador misturam-se

a live footage cartotildees-postais satildeo recriados como mensagens virtuais num formato novo e a

montagem (parte da linguagem cinematograacutefica cujo proacuteprio nome remonta ao trabalho manual

de colar partes da peliacutecula) eacute lembrada na estrutura de multitelas e elementos graacuteficos associados

durante toda a duraccedilatildeo do filme A todo tempo vemos a troca entre miacutedias fiacutesicas e o sistema do

computador que as recria revisita ou modifica sem contudo permanecerem idecircnticas aos

originais A imagem fotograacutefica reveste-se de atributos novos ndash num ldquoefeito de cruzamentordquo

(MANOVICH 2013 p272) no qual teacutecnicas de miacutedias particulares satildeo aplicadas a outras num

processo de assimilaccedilotildees ndash sendo capturada da perspectiva do dispositivo (sem remeter

necessariamente ao olhar de um sujeito)

21 Para Fontcuberta (2016) os registros do Google Street View satildeo processados para causar uma ilusatildeo oacutetica decontinuidade bastante realista na qual o usuaacuterio experimenta a simulaccedilatildeo de um entorno real atraveacutes de um modelointerativo em 3D Para mais ver Fontcuberta Joan Por um manifesto postfotograacutefico In La furia de las imaacutegensBarcelona Galaxia Gutenberg 2016 p35-52

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Tais questotildees nos levam a considerar uma presenccedila material do ambiente digital atribuiacuteda

agrave maneira de funcionamento do computador Se miacutedias fiacutesicas mecacircnicas e eletrocircnicas satildeo

ldquohardwarerdquo cujas inscriccedilotildees em materiais distintos (papel peliacutecula madeira fita magneacutetica) satildeo

responsaacuteveis pelo aspecto visual pelo ldquolookrdquo atribuiacutedo a cada tecnologia o software ao simular

as teacutecnicas desses meios acaba reproduzindo-as acumulando tambeacutem um certo repertoacuterio

Assim isso nos permite falar metaforicamente de uma materialidade do software

O software contemporacircneo conteacutem seus proacuteprios ldquomateriaisrdquo estruturas de dadosutilizados para representar imagens estaacuteticas e em movimentos formas 3D volumes eespaccedilos textos composiccedilotildees sonoras designs impressos paacuteginas da web e outrosldquocultural datardquo Essas estruturas natildeo correspondem a materiais fiacutesicos numa escala realEm vez disso um conjunto de materiais reais eacute codificado numa estrutura uacutenica ndash porexemplo imagens em diferentes materiais como papel tela filme fotograacutefico evideotape se tornam uma estrutura uacutenica de informaccedilotildees Essa junccedilatildeo de materiaisfiacutesicos em uma soacute estrutura de dados eacute umas das condiccedilotildees que permite a hibridizaccedilatildeode tecnologias22 (MANOVICH 2013 p204)

Esse intercacircmbio nos leva de volta agrave contenda a respeito de uma suposta cisatildeo entre

tecnologias analoacutegicas e digitais separadas por suas respectivas ldquomaterialidaderdquo e

ldquoimaterialidaderdquo e pode ser uma saiacuteda para encerrar esse debate Em outro momento de reflexatildeo

Manovich (2013) propotildee que encaremos separadamente o artefato material e as tecnologias

empregadas para produzi-lo (por exemplo fotografias e negativos de filme seriam materiais

enquanto cacircmeras projetores moviolas seriam as tecnologias) Ele diz que quando se trata do

software os materiais transformam-se nas estruturas de dados e as ferramentas fiacutesicas mecacircnicas

e eletrocircnicas (a tecnologia ou o aparato) satildeo transformados nas ferramentas do software que

operam sobre as estruturas de dados Eacute como se os aparatos com sistemas informatizados

ldquoaprendessemrdquo as teacutecnicas de meios analoacutegicos para introduzi-las agrave sua proacutepria maneira nos

projetos desenvolvidos no ambiente virtual fazendo desses referenciais e das ferramentas que os

22 Traduccedilatildeo livre de ldquoContemporary media software contains its own ldquomaterialsrdquo data structures used to representstill and moving images 3D forms volumes and spaces texts sound compositions print designs web pages andother ldquocultural datardquo These data structures do not correspond to physical materials in a 11 fashion Instead anumber of physical materials are mapped onto a single structuremdashfor instance different imaging materials such aspapercanvas photographic film and videotape become a single data structure (ie a bitmapped image) This manyto one mapping from physical materials to data structures is one of the conditions which enables hybridization ofmedia techniquesrdquo

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conduzem partes igualmente importantes de um mesmo espaccedilo criativo integrado Assim as

miacutedias digitais tecircm uma natureza dual que implica na mesma medida simulaccedilatildeo e criaccedilatildeo

O que o autor denomina ldquoestrutura de dadosrdquo satildeo os formatos de arquivos que utilizamos

no computador ndash HTML XML MP3 MOV JPEG TIFF RAW ndash enquanto as ldquoferramentasrdquo ou

ldquocomandosrdquo satildeo os algoritmos com os quais se trabalham esses formatos Estes uacuteltimos satildeo parte

dessa materialidade porque eles determinam a esteacutetica digital aleacutem do fato de que o formato de

um arquivo possui um registro uma ldquoinscriccedilatildeordquo gozando tambeacutem de certa estabilidade em

comparaccedilatildeo a outros tipos de dados que circulam num sistema computadorizado (MANOVICH

2013 p215-216) A estabilidade viabiliza alteraccedilotildees responsaacuteveis por diferentes esteacuteticas ndash

aplicaccedilatildeo de filtros montagem distorccedilatildeo entre outras ndash o que eacute especialmente importante

quando pensamos no universo das imagens digitais

De volta agraves teorizaccedilotildees a respeito da imagem haacute teoacutericos que tentam compreendecirc-la para

aleacutem de uma singularidade movimento que tambeacutem integra preocupaccedilotildees mais recentes sobre o

tema A polonesa Joanna Zylinska (online 2017) acredita que a imagem no ambiente digital natildeo

deve ser tomada como objeto uacutenico mas como um fluxo de dados que natildeo existe sozinha

necessitando de uma infraestrutura tecnoloacutegica que inclui telas celulares cabos impressoras Eacute

um entendimento mais abrangente da imagem que ultrapassa a noccedilatildeo de artefato individual

considerando de forma mais ampla todo o aparato necessaacuterio para sua emergecircncia (fazendo

retornar a criacutetica a uma inerente imaterialidade do digital) e compreendendo que tal estrutura eacute

parte tambeacutem das esteacuteticas das imagens digitais

Tambeacutem podemos questionar a ideia de que na fotografia analoacutegica a materialidade da

coacutepia eacute sinocircnimo de um certo estaacutegio de finalizaccedilatildeo ou ldquomateacuteria inerterdquo (BATCHEN 2002) Na

medida em que satildeo cada vez mais recorrentes os empregos de imagens fiacutesicas deslocadas de seus

contextos originais alteradas e reutilizadas em obras variadas haacute todo um universo de produccedilotildees

em fotomontagem ou de trabalhos recentes de recuperaccedilatildeo de arquivos ou ainda imagens

privadas para uso artiacutestico contrariando a ideia de que imagens fotoquiacutemicas encerram seu ciclo

semioacutetico apoacutes o clique (ou depois de reveladas e copiadas) Natildeo eacute a materialidade das imagens

que as faz menos manipulaacuteveis ou impotildee a elas restriccedilotildees de ordem simboacutelica Essa questatildeo

parece mais ligada a uma ideia de automatismo que compreende sobretudo a fotografia como

resultado de um processo que acaba na imagem que como artefato natildeo deve ser manipulado

48

Ao que parece a proacutepria natureza cada vez mais diversa das obras produzidas nos ajuda

a repensar alguns conceitos associados agraves miacutedias analoacutegicas e digitais cuja tendecircncia era de

distanciaacute-las Segundo Manovich (2013) o relevante natildeo eacute se os produtos da cultura digital satildeo

imateriais (em oposiccedilatildeo agraves miacutedias do seacuteculo XX) mas que eles possuem uma identidade

diferente porque a centralidade do software faz com que a experiecircncia do usuaacuterio seja

determinada parte pelo conteuacutedo parte pelo modo de interaccedilatildeo com esse conteuacutedo e a natureza

dessa interaccedilatildeo eacute colaborativa e aberta agrave intervenccedilatildeo ldquo() enquanto as miacutedias antigas ()

tambeacutem permitiam um acesso aleatoacuterio as interfaces da miacutedia dirigida por softwares

proporcionam muitas formas adicionais de navegar a miacutedia e selecionar o quecirc e como acessarrdquo

(MANOVICH 2013 p38) Entatildeo para aleacutem de pensar no binocircmio materialidadeimaterialidade

podemos atentar para a caracteriacutestica de ldquocoacutedigo abertordquo da imagem digital pois ela eacute parte de

um ambiente que pressupotildee experiecircncias com elementos que estatildeo sempre se modificando e

nesse sentido o exemplo do filme The Wilderness Downtown ilustra bem esse ponto

A respeito de uma fugacidade versus permanecircncia atributos que pertenceriam

respectivamente agraves imagens digitais e analoacutegicas tambeacutem percebemos que eacute uma noccedilatildeo

questionaacutevel jaacute que o desgaste e a deterioraccedilatildeo satildeo problemas dos quais nenhuma tecnologia estaacute

livre e suas implicaccedilotildees vecircm sendo consideradas e utilizadas a serviccedilo de uma intenccedilatildeo esteacutetica

Os vestiacutegios da accedilatildeo do tempo sobre os materiais se inscrevem de formas variadas nos

equipamentos e seus produtos sejam essas marcas mais ou menos perceptiacuteveis Se tomada como

realidade em si mesma (e natildeo como duplo de uma realidade precedente) podemos dizer que as

imagens de maneira geral pertencem ao domiacutenio de um possiacutevel marcado pela instabilidade

Portanto atribuir uma suposta permanecircncia ou menor fugacidade agrave existecircncia de um suporte

parece equivocado23 Talvez os usos mais comuns que fazemos das imagens no nosso cotidiano

sejam mais efecircmeros do que antes ndash postar compartilhar comentar como accedilotildees caracteriacutesticas da

circulaccedilatildeo da imagem na internet ndash e natildeo exatamente essa seja a natureza da imagem digital

A questatildeo do tempo na imagem analoacutegica percebido como algo condensado no objeto eacute

igualmente sujeita a revisotildees compreender a fotografia como miacutedia capaz de congelar o tempo

23 Eacute interessante assinalar que se podemos fazer uma criacutetica agrave relaccedilatildeo entre permanecircncia da imagem e suafisicalidade isso natildeo nos impede de identificar em vaacuterias das obras que compotildeem o nosso corpus de anaacutelise avalorizaccedilatildeo de aspectos visuais alcanccedilados pelas experimentaccedilotildees com a materialidade dos suportes utilizados ndash umaquestatildeo relevante que vem sendo retomada na perspectiva da materialidade das comunicaccedilotildees

49

resulta de uma percepccedilatildeo que decorre da noccedilatildeo de instantacircneo enquanto haacute diversas imagens

onde eacute possiacutevel perceber o escoamento do tempo o traccedilo de temporalidades que transitam entre

fixidez e mobilidade os estudos de Marey e as experiecircncias do fotodinamismo satildeo exemplos jaacute

claacutessicos e largamente evocados24

Dessa maneira assinalamos que algumas das questotildees levantadas quando do advento do

paradigma digitial refletem o momento teoacuterico inicial do debate sobre as mudanccedilas no campo da

imagem Nos anos mais recentes percebemos a emergecircncia de outras preocupaccedilotildees em torno da

relaccedilatildeo entre sistemas informaacuteticos e imagem Entre elas destacam-se as questotildees de vigilacircncia e

controle de informaccedilotildees coletadas em acircmbito institucional ou corporativo as relaccedilotildees entre

memoacuteria e esquecimento na produccedilatildeo e armazenamento de imagens por dispositivos inteligentes

a simulaccedilatildeo e o hibridismo a disponibilidade de esteacuteticas preacute-formatadas ndash pois na era da

fotografia de smartphone ldquoo modelo da cacircmera ou o Instagram e seus filtrosrdquo impotildeem

determinados padrotildees conforme Zylinska (online 2017) A pesquisadora tambeacutem chama atenccedilatildeo

para um conjunto de imagens geradas por sistemas autocircnomos (independente da accedilatildeo humana)

como microfotografia cacircmeras de controle de traacutefego cacircmeras instaladas no telescoacutepio Hubble

Google Street View drones aparelhos de raio-x (ZYLINSKA 2017a) como parte do que

denomina ldquofotografia natildeo-humanardquo Mas ao contraacuterio do que o termo sugere agrave primeira vista

essa perspectiva natildeo aposta numa visatildeo negativa dos aparatos criadores de imagem mas parte do

princiacutepio de que a fotografia eacute em si mesma criadora de universos e natildeo se restringe agrave

necessidade de reproduzir o mundo concreto Por outro lado a fotografia natildeo-humana reconhece

a dimensatildeo fortemente maquiacutenica no uso que as pessoas fazem da fotografia quando se limitam a

reproduzir paracircmetros prescritos no equipamento e seus coacutedigos visuais ou seja haacute um

componente inumano evolvido no uso da tecnologia que se mostra alienado dos processos e

modelos inscritos e perpetuados no proacuteprio aparato25

24 Eacutetienne-Jules Marey eacute um dos representantes da cronofotografia Seus estudos sobre o movimento dos corposbaseavam-se em conseguir registrar as diversas fases do movimento num mesmo suporte ampliando a noccedilatildeo deinstante fotograacutefico O fotodinamismo cujos expoentes mais conhecidos satildeo os irmatildeos Arturo e Anton Bragagliaregistra a trajetoacuteria do movimento (em vez de aglutinar uma seacuterie de instantacircneos que decompotildeem o movimento) demodo que suas experiecircncias apresentam borrotildees e distorccedilotildees das formas (enquanto que na cronofotografia as formasdos corpos satildeo preservadas)

25 Em seu livro dedicado ao tema (2017a) a autora explica que a abordagem natildeo-humana da fotografia natildeo consistena exclusatildeo do elemento humano mas no deslocamento do ser humano como ponto de vista privilegiado e tema dapraacutetica fotograacutefica dando-se maior ecircnfase ao papel do dispositivo como instacircncia criativa Cf Zylinska JoannaNonhuman Photography Cambridge MIT Press 2017

50

O conceito de fotografia natildeo-humana possui uma influecircncia direta da compreensatildeo

flusseriana das tecnologias que entende o papel desprogramador do sujeito em relaccedilatildeo ao aparato

como fundamental para o surgimento de novas propostas esteacuteticas Nesse sentido sua abordagem

aproxima-se ainda das anaacutelises de Almeida amp Baio (2019) que discutem as apropriaccedilotildees criacuteticas

de conteuacutedo imageacutetico do banco de dados de grandes empresas em projetos atuais que unem as

esferas da arte e do ativismo

Esses trecircs pesquisadores falam sobre as implicaccedilotildees poliacuteticas de termos nossas

informaccedilotildees pessoais coletadas e utilizadas por empresas governos e serviccedilos sem que

tenhamos controle desse uso Para Zylinska com base numa ideia pouco definida de

compartilhamento empresas acumulam grande quantidade de informaccedilatildeo dos usuaacuterios o que

constitui um problema

() essas empresas penetram em diferentes niacuteveis de nossa existecircncia diaacuteria Ficoincomodada com o acesso e a criaccedilatildeo de bancos de dados massivos de nossas vidas como aspecto inquisitoacuterio do que eacute e do que natildeo eacute uma boa vida (Facebook Google e tantasoutras empresas fazem isso) Acho que essa questatildeo da acumulaccedilatildeo de ldquocapitalinformacionalrdquo eacute muito importante porque nela residem as ambiccedilotildees de dominaccedilatildeo decertas empresas que se escondem em um discurso ldquoinocenterdquo sobre comunidades decompartilhamento (ZYLINSKA online 2017)

Por outro lado Almeida Baio e Zylinska indicam igualmente que o campo da arte vem

problematizando essas questotildees fazendo uso exatamente do material produzido sob tais

condiccedilotildees especiacuteficas da sociedade informaacutetica subvertendo entatildeo os propoacutesitos corporativos

originais

Figura 8 - Park Road London (Joanna Zylinska 2011)

51

Fonte Reproduccedilatildeo site26

A polonesa que aleacutem de pesquisadora eacute artista utiliza suas proacuteprias obras para discutir

essas questotildees Com imagens retiradas do Google Street View ela produziu uma seacuterie fotograacutefica

intitulada Park Road London (figuras 8 e 9) e um viacutedeo homocircnimo (2011) sobre lugares que se

chamam Park Road um dos nomes mais comuns para ruas no Reino Unido Assim ela vai

criando uma paisagem composta de imagens roubadas de um sistema de localizaccedilatildeo geograacutefica

que se converte em dispositivo de vigilacircncia contiacutenuo apropriando-se dos corpos de transeuntes

desavisados Versatildeo maquiacutenica de um olhar onipresente o Google Street View oferece uma

percepccedilatildeo diferida em segunda matildeo passeando pelas ruas captando tudo que ocorre nas

margens traacutefego de veiacuteculos caminhar de pessoas e accedilotildees imprevistas tiradas do cotidiano e

congeladas para sempre acessiacuteveis a qualquer internauta (FONTCUBERTA 2016 p44)

Agrave medida que se apropria de informaccedilotildees de uma estrutura corporativa onipresente no

cotidiano das cidades contemporacircneas e submete-as aos propoacutesitos criacuteticos da arte a artista faz

pensar sobre como nossas identidades gestos e accedilotildees diaacuterios satildeo despidos de qualquer

singularidade no momento em que a imagem nos captura nas Park Roads da vida O flagrante

tiacutepico das cacircmeras de vigilacircncia que se aprende a ignorar transforma-se aqui em material baacutesico

para cenas que articulam o apagamento da identidade nas imagens contemporacircneas (ao serem

fotografadas pelas cacircmeras do Google todas essas pessoas transformam-se em dados brutos num

26 Disponiacutevel em httpwwwjoannazylinskanetpark-road-london Acesso em 190919

52

sistema) ldquoO ser humano eacute uma perturbaccedilatildeo no fluxo de dados do Google Street Viewrdquo

(ZYLINSKA 2017a p27) Aleacutem disso eacute preocupante o fato de que mesmo a experiecircncia

totalmente banal de transitar na rua natildeo escapa agrave mediaccedilatildeo dos aparelhos Essas pessoas satildeo a

forma representada desses dados construiacuteda a partir da linguagem do computador Lev Manovich

(2013) reflete sobre uma continuidade entre ldquomiacutediaconteuacutedordquo e

ldquodadosinformaccedilotildeesconhecimentordquo geralmente vistas como categorias distintas Para ele

quando se trata de dispositivos computadorizados determinados artefatos transitam de uma

categoria a outra

Um longa-metragem eacute um bom exemplo da primeira categoria (miacutediaconteuacutedo) e umaplanilha de Excel da segunda ndash mas entre esses exemplos bem separados haacute vaacuteriosoutros que pertencem a ambas as categorias Por exemplo se faccedilo uma visualizaccedilatildeo deinformaccedilotildees dos dados numa planilha essa visualizaccedilatildeo agora se encaixa nas duascategorias Ainda satildeo ldquodadosrdquo mas dados representados numa nova maneira que permitechegar a insights e ao ldquoconhecimentordquo Tambeacutem se torna uma peccedila de miacutedia visual queagrada aos nossos sentidos da mesma forma que fotografias e pinturas27 (MANOVICH2013 p30)

Tomando como base esse raciociacutenio um trabalho como Park Road London brinca

exatamente com a possibilidade de a imagem ser uma modalidade de informaccedilatildeo ou ldquodadosrdquo

(num sentido mais cru de sua morfologia de pixels e coacutedigos do sistema que a produz) quanto

ldquomiacutediaconteuacutedordquo pois que adquire uma forma determinada uma plaacutestica especiacutefica

Numa taacutetica de inversatildeo o proacuteprio sistema de vigilacircncia eacute usado para fazer a criacutetica

dessa mediaccedilatildeo constante dos dispositivos em nosso dia a dia O efeito esfumado aplicado aos

rostos das pessoas guarda certa ironia parece proteger a identidade das pessoas observadas mas

as nivela diante do sistema sujeitando-as agrave condiccedilatildeo de meros corpos que passam Do ponto de

vista formal o efeito eacute resultado da simulaccedilatildeo ldquocom a softwarizaccedilatildeo possibilidades impliacutecitas e

maneiras diferentes de usar ferramentas fiacutesicas satildeo trazidas agrave tona lsquoTeacutecnicas artiacutesticasrsquo e lsquomeios

27 Traduccedilatildeo livre de ldquoA feature film is a good example of the first category and an Excel spreadsheet represents thesecond categorymdashbut between such clear-cut examples there are numerous other cases which are both Forexample if I make an information visualization of the data in the spreadsheet this visualization now fits equally intoboth categories It is still ldquodatardquo but data represented in a new way which allows us to arrive at insights andldquoknowledgerdquo It also becomes a piece of visual media which appeals to our senses in the same way as photographsand paintings dordquo

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de expressatildeorsquo tornam-se expliacutecitosrdquo (MANOVICH 2013 p221) O mesmo pode ser dito sobre o

aspecto ldquogranuladordquo (peliacutecula) de toda a seacuterie

Park Road London potildee em questatildeo a ideia central da artista de que a fotografia cria

mundos e circunstacircncias proacuteprias que extrapolam a vontade de reconhecimento de um real

precedente o que nos faz compreender que ao serem capturadas pelo sistema de cacircmeras a

noccedilatildeo de identidade jaacute natildeo eacute mais adequada para os personagens que habitam essas imagens Eles

satildeo sinais de um sistema de dados transmitido em forma de imagens Podemos considerar os

transeuntes de Park Road London fantasmagorias desse sistema28 O trabalho busca ainda

provocar uma reflexatildeo sobre como nossas vidas satildeo escrutinadas por grandes empresas e como a

imagem hoje se integra quase que automaticamente nesse processo

() Este aspecto mais amplo da miacutedia social da qual a fotografia faz parte meincomoda profundamente Existe tambeacutem a questatildeo da vigilacircncia da invasatildeo diaacuteria danossa existecircncia e a ingenuidade de parte dos usuaacuterios que abrem matildeo de informaccedilotildeessobre sua vida sem saber para quem e com qual propoacutesito Aleacutem disso os proacuteprioshumanos viraram ldquonoacutesrdquo nessa rede de troca de dados rapidamente se transformando emmercadoria A fotografia natildeo-humana portanto tambeacutem pode ser entendida como dadoe por este motivo pode ser vista como uma forma de transaccedilatildeo que exclui os usuaacuteriosque se oferecem voluntariamente ou involuntariamente como parte dessa economiaconsolidada em poucas e gigantescas corporaccedilotildees (ZYLINSKA Idem)

Ao mesmo tempo a abordagem da foto natildeo-humana que embasa os trabalhos de

Zylinksa sugere como os enquadramentos e modos de captura dos dispositivos autocircnomos satildeo

naturalizados por noacutes como observadores dessas imagens configurando talvez um regime visual

que ecoa em fotografias vernaculares ou viacutedeos amadores como referecircncia a um ldquoestilo cacircmera

de vigilacircnciardquo Tal estilo converte um certo voyeurismo em modelo de observaccedilatildeo sob a frieza

do equipamento e formalmente identifica-se na aceitaccedilatildeo de imagens de baixa resoluccedilatildeo

28 Resultado semelhante pode ser observado no viacutedeo da instalaccedilatildeo Pasajeros Peregrinos Pilotos (2008) de ThomasKoumlner em que vaacuterios monitores distribuiacutedos numa estaccedilatildeo de metrocirc da cidade de Santiago (Chile) mostram o vai evem dos passageiros Agrave medida que o viacutedeo avanccedila as pessoas vatildeo se multiplicando num efeito que torna quaseimpossiacutevel distinguir entre corpos e sombras fazendo da situaccedilatildeo transitoacuteria de quem passa pela estaccedilatildeo avisualidade que remete agrave fantasmagoria A tomada da imagem eacute fixa lembrando a posiccedilatildeo de uma cacircmera devigilacircncia Disponiacutevel em httpthomaskonercom201404pasajeros-peregrinos-pilotos Acesso em 191119

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Figura 9 - Park RoadLondon (Joanna Zylinska 2011)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Na economia dos sistemas informaacuteticos o banco de dados figura como local simboacutelico

que permite criar experiecircncias sensiacuteveis fora de sua loacutegica corporativa (ALMEIDA amp BAIO

Ibidem) pois que ganha significado quando os dados satildeo processados sujeitos a relaccedilotildees com

outros elementos ou como eacute aqui o caso adaptados aos propoacutesitos de artistas como Zylinska e

tantos outros29 Esses trabalhos tambeacutem representam um impulso criacutetico de apropriaccedilatildeo de

conteuacutedos que remete a uma atitude hacker fundamentando sua forccedila poeacutetica numa estrateacutegia de

contrabando de informaccedilotildees que submetidas a propoacutesitos esteacuteticos adquirem tambeacutem uma

dimensatildeo poliacutetica levando-nos a refletir sobre o nosso lugar nessa miriacuteade de sistemas

maacutequinas corpos (e logicamente imagens)

29O trabalho e a perspectiva teoacuterica de Zylinska satildeo bastante interessantes porque para ela a fotografia sempre foiparceira de outras imagens e seu interesse eacute discutir a dimensatildeo teacutecnica da imagem atraveacutes de implicaccedilotildees sociaispoliacuteticas e esteacuteticas Para uma melhor compreensatildeo das abordagens da artista sugerimos ler o texto-manifestoPhilosophy as photography disponiacutevel em httpwwwjoannazylinskanetartists-statement Acesso em 190919

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Nesse sentido percebemos que certos haacutebitos e relaccedilotildees estabelecidos com as imagens

modificaram-se sensivelmente por forccedila das mudanccedilas tecnoloacutegicas mas processos realizados

com dispositivos digitais e analoacutegicos estatildeo sempre sujeitos a desvios (re)invenccedilotildees recuos e

procedimentos alternativos dos quais o campo da arte natildeo cansa de oferecer exemplos conforme

veremos ao longo deste trabalho

242 Ordem da representaccedilatildeo x ordem da simulaccedilatildeo

Outras questotildees foram levantadas para distinguir as imagens analoacutegicas e digitais entre

elas a ideia de que as primeiras alinham-se agrave ideia de representaccedilatildeo enquanto as imagens

numeacutericas apresentariam uma tendecircncia maior agrave simulaccedilatildeo Ao falar sobre os coacutedigos por traacutes das

interfaces dos artefatos digitais Manovich (2001 p112) compara as tradiccedilotildees da representaccedilatildeo e

da simulaccedilatildeo A primeira supotildee a organizaccedilatildeo de uma cena num espaccedilo demarcado fiacutesico

especiacutefico geralmente estaacutetico A representaccedilatildeo recorre a vaacuterias convenccedilotildees e sua mateacuteria se

reporta ao mundo fiacutesico mas sem se confundir com ele Jaacute a simulaccedilatildeo quer ficar mais proacutexima

do mundo material repetindo suas escalas e dimensotildees ateacute confundir-se com ele

Para o teoacuterico russo o modo da representaccedilatildeo predominou nas culturas da pintura

fotografia cinema em detrimento do modo da simulaccedilatildeo30 Contudo essa tendecircncia de

continuidade do espaccedilo fiacutesico no virtual faria parte apenas do momento inicial da tradiccedilatildeo da

simulaccedilatildeo e a emergecircncia das miacutedias digitais traz outras questotildees A realidade virtual por

exemplo relacionada a noccedilotildees como a interatividade entre sujeito e maacutequina os movimentos e

reaccedilotildees do usuaacuterio tecircm efeitos no que ocorre no ambiente do dispositivo onde se propotildee uma

imersatildeo Nesse ponto se instaura uma diferenccedila importante em vez da inclinaccedilatildeo para uma falsa

continuidade do ambiente fiacutesico acentua-se agora a separaccedilatildeo entre espaccedilo real e virtual e a

ldquorealidade fiacutesica eacute ignorada dispensada abandonadardquo (MANOVICH 2001 p113)

O ordenamento da simulaccedilatildeo eacute tambeacutem resultado de convenccedilotildees culturais Quando essas

referecircncias satildeo ldquofiltradasrdquo e ldquotraduzidasrdquo nas ferramentas disponiacuteveis e na maneira delas

30 Manovich apresenta indiacutecios dessa loacutegica em formas de entretenimento do seacuteculo XIX como o panorama queseria uma forma cultural intermediaacuteria entre representaccedilatildeo e simulaccedilatildeo Museus de cera escultura em escalahumana e dioramas nos museus de histoacuteria natural seriam exemplos da loacutegica da simulaccedilatildeo tambeacutem no mesmoperiacuteodo Cf Manovich 2001 p113

56

operarem nos sistemas informaacuteticos a tendecircncia agrave abstraccedilatildeo ganha espaccedilo Satildeo as regras internas

do sistema que definem os paracircmetros de sentido vaacutelidos no universo digital Segundo Manovich

(2001 p117) a evoluccedilatildeo dos softwares em direccedilatildeo a uma abstraccedilatildeo crescente eacute compatiacutevel com

a automatizaccedilatildeo de tarefas que governa o proacuteprio desenvolvimento da cultura digital O mesmo

autor explica que basicamente as operaccedilotildees dos computadores satildeo inicialmente conceitos quer

dizer estatildeo primeiro no niacutevel abstrato para soacute depois se materializarem na tela onde aparecem

como resultados de comandos dados pelo usuaacuterio

Quando entendemos que a abstraccedilatildeo eacute uma loacutegica influenciada pela caracteriacutestica da

automaccedilatildeo eacute possiacutevel apontar uma tendecircncia do paradigma digital que influencia sobremaneira

as discussotildees no acircmbito da arte e por consequecircncia da imagem a criaccedilatildeo a partir de conteuacutedos

preacute-formatados A criaccedilatildeo que parte de elementos dados e natildeo ldquodo zerordquo tambeacutem se vincula a

uma visatildeo do artista que haacute muito natildeo coincide com a ideia individualista de gecircnio isolado mas

estaacute de acordo com um universo artiacutestico que se consolida atraveacutes da relaccedilatildeo estreita com as

maacutequinas

Esse novo tipo de autoria () se encaixa perfeitamente com a loacutegica do avanccedilo industriale das sociedades poacutes-industriais onde quase toda praacutetica envolve a escolha em algummenu cataacutelogo ou base de dados Na verdade como percebi as novas miacutedias satildeo amelhor expressatildeo disponiacutevel da loacutegica da identidade nessas sociedades ndash valoresselecionados de menus preacute-definidos (MANOVICH 2001 p128)

Se a norma da linguagem informaacutetica eacute lidar com coisas e operaccedilotildees jaacute determinadas

pela maacutequina o exerciacutecio da criatividade vai em direccedilatildeo agrave modificaccedilatildeo do que estaacute posto como

modelo estabelecendo um tipo de autoria baseada nas accedilotildees de escolher e selecionar entre um

conjunto de possibilidades efetivando como tendecircncias dessa autoria estrateacutegias como a

mixagem a customizaccedilatildeo a releitura a composiccedilatildeo31 Eacute um modelo criativo que preconiza as

conexotildees e reinterpretaccedilotildees produzidas ao longo de zonas de contato moacuteveis por agenciamentos

e bricolagens realizados por uma multiplicidade de atores (LEacuteVY 1993 p107) ou como diz

31 Deve-se salientar que do mesmo jeito que outras caracteriacutesticas das miacutedias digitais essas tendecircncias natildeo surgemcom a emergecircncia do computador mas satildeo basilares da loacutegica que rege seu funcionamento No universo das artesreleituras e apropriaccedilotildees de elementos prontos natildeo satildeo novidades e jaacute se verificavam por exemplo nas praacuteticas daPop Art da fotomontagem Fatorelli (2017) faz observaccedilotildees relevantes sobre estrateacutegias de apropriaccedilotildees e releiturascomo algo que marca os procedimentos da fotografia contemporacircnea

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Parente (2009) o digital baseia-se na vontade de ldquodesterritorializarrdquo as formas de relacionamento

das pessoas nos processos de criaccedilatildeo

De acordo com Ritchin (2008) a natildeo linearidade e a quebra de hierarquias no ambiente

multimiacutedia o constante recriar a partir de elementos preacute-concebidos (imagens sons textos) aleacutem

de promover o desenvolvimento coletivo de conteuacutedos permite que os lugares antes

marcadamente separados para amadores e profissionais sejam relativizados As fronteiras entre

essas duas instacircncias tornam-se sutis menos definidas Fontcuberta (2016 p32) acrescenta a esse

debate a democratizaccedilatildeo promovida pelo digital na medida em que no espaccedilo da imagem ldquopela

primeira vez somos todos produtores e consumidoresrdquo dada a profusatildeo de aparelhos Um ponto

de vista interessante eacute desenvolvido por Zylinska (2017a p179) nesse sentido quando a autora

afirma que se a cultura da imagem digital sugere um incremento na produccedilatildeo e circulaccedilatildeo de

fotografias esse movimento tem raiacutezes ainda no seio da imagem fotoquiacutemica no momento em

que a Kodak populariza a praacutetica fotograacutefica atraveacutes de cacircmeras baratas A fotografia digital

estabelece uma continuidade com praacuteticas iniciadas nas miacutedias analoacutegicas soacute que eacute mais raacutepida

menos permanente e mais excessiva Tais questotildees satildeo importantes do ponto de vista dos usos da

fotografia bem como sintomaacuteticas de um modelo criativo que ganha forccedila com as miacutedias digitais

baseado no intercacircmbio de referecircncia e informaccedilotildees e em uma certa horizontalidade de

participaccedilatildeo de quem manipula os conteuacutedos para produzir significado

Nas comparaccedilotildees entre representaccedilatildeo e simulaccedilatildeo foram enfatizadas questotildees como a

imaterialidade a fugacidade a abstraccedilatildeo em relaccedilatildeo ao real que caracterizam as imagens

digitais Hoje alguns autores jaacute adotam posiccedilotildees menos ortodoxas a respeito do digital A

abordagem das materialidades da comunicaccedilatildeo que inclui pensadores de eacutepocas diversas como

Benjamin Simondon Derrida e Gumbrecht (FELINTO 2001) pode contribuir para repensar

afirmaccedilotildees sobre o digital e sua imaterialidade Na medida em que propotildee uma valorizaccedilatildeo das

tecnologias dos objetos e das articulaccedilotildees entre sujeitos e miacutedias as materialidades da

comunicaccedilatildeo emergem como lugar de anaacutelise dos meios em sua funccedilatildeo significativa Ou seja o

sentido das coisas dos artefatos culturais natildeo eacute dado a priori nem apreendido exclusivamente por

um intelecto elevado mas por nossa relaccedilatildeo com a forma das coisas E esta abordagem natildeo

exclui os artefatos da cultura digital do rol de seus objetos de anaacutelise Conforme afirma Felinto

(2001 p14) ldquoa teoria das materialidades tem buscado utilizar os mais recentes desenvolvimentos

da ciberneacutetica e da teoria dos sistemas para conjugar diferentes estruturas em uma perspectiva

58

autenticamente conceptualrdquo32 O mesmo autor reivindicando a presenccedila do corpo como oposiccedilatildeo

aos discursos sobre a cibercultura sempre a negar o valor dessa fisicalidade diz que mesmo

aquilo que inicialmente afirma-se imaterial pode ganhar corpo () e que essa ideia alcanccedila o

universo da tecnocultura (FELINTO 2004) Para ele a proacutepria palavra ldquocorpordquo jaacute possui uma

semacircntica de materialidade Manovich (2013) aleacutem de apontar a evidente necessidade de

hardwares na cibercultura tambeacutem reconhece enquanto materialidade do computador e seus

produtos os formatos de arquivos pois que estes gozam de uma identidade (como jaacute indicamos)

Mesmo a simulaccedilatildeo apontada como marca do paradigma digital que a princiacutepio sugere um

afastamento em relaccedilatildeo ao real retira do mundo concreto as referecircncias para elaborar objetos

criar ambientes reproduzir movimentos recursos amplamente utilizados no cinema e na

publicidade por exemplo Se com o auxiacutelio de um software eacute possiacutevel recriar no computador uma

cadeira exatamente igual agrave cadeira na qual estou sentada escrevendo esse texto eacute porque as

referecircncias para que ela seja modelizada no computador satildeo tomadas de uma cadeira concreta

que possui volume massa textura enfim dimensotildees especiacuteficas e definidas utilizadas como

paracircmetro

Reconhecemos que tais questotildees contribuem para pensar que o ambiente informaacutetico

natildeo eacute mesmo totalmente desprovido de materialidade Tatildeo pouco se pode dizer que haacute um grau

menor de abstraccedilatildeo quando se trata de sistemas analoacutegicos (comparativamente aos digitais) O

que nos parece eacute que frente agraves especificidades dos aparelhos digitais e as novas condiccedilotildees de

interaccedilatildeo que noacutes (enquanto espectadores e criadores de conteuacutedo) experimentamos no contexto

da cibercultura muitos pensadores tendem a atribuir a essas especificidades a responsabilidade

majoritaacuteria pelas noccedilotildees de simulaccedilatildeo e graus variados de abstraccedilatildeo de algumas obras quando na

verdade tais questotildees jaacute se colocavam para artistas que entendem (ou entendiam) as miacutedias da

imagem como essencialmente permeaacuteveis e destinadas a produzirem simbologias fantasmagorias

(em detrimento de reproduccedilotildees do cotidiano) Ou seja a ecircnfase nas propriedades de simulaccedilatildeo

na imaterialidade na fluidez eacute teoacuterica enquanto que na praacutetica haacute diversos exemplos indicando a

anterioridade dessas questotildees no campo da imagem reduzindo assim uma distacircncia a priori entre

miacutedias analoacutegicas e digitais

32 Nas discussotildees a respeito de nosso corpus e nas explanaccedilotildees a respeito do ruiacutedo como pontos importantes destatese retomaremos a perspectiva das materialidades da comunicaccedilatildeo como instrumento de anaacutelise

59

No campo da filosofia temos em Flusser (2008) boas rotas de fuga agraves divisotildees

excessivamente demarcadas entre as tecnologias pois ele considera que a partir do momento em

que as informaccedilotildees ndash e para ele informar significa dar forma33 ndash satildeo produzidas por aparelhos

estamos sempre operando com abstraccedilotildees Mesmo que uma imagem seja semelhante ao que

esteve em frente ao dispositivo ela resulta de transcodificaccedilotildees de sinais recebidos e

interpretados de acordo com os paracircmetros do dispositivo o que termina por colocar num mesmo

niacutevel imagens digitais e analoacutegicas Os ldquoaparelhosrdquo ndash os dispositivos produtores de imagem para

Flusser ndash tecircm a peculiaridade de serem desenvolvidos com base em conhecimentos cientiacuteficos e

tais conhecimentos estatildeo simbolicamente informando as imagens criadas Quando diz que ldquoa

fotografia eacute consequecircncia da recodagem de textos da oacutetica e da quiacutemicardquo (FLUSSER

Nascimento da imagem nova34) o filoacutesofo estaacute dizendo que se observarmos com atenccedilatildeo

encontraremos nas fotografias o pensamento cientiacutefico sobre a oacutetica e a quiacutemica de uma eacutepoca o

que tambeacutem se reflete em determinada reflexatildeo criacutetica e esteacutetica sobre a fotografia

Essas observaccedilotildees mostram que algumas reflexotildees que remontam agrave emergecircncia do

paradigma digital ressaltaram questotildees apresentadas naquele momento como novidades e

porque natildeo superaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves tecnologias analoacutegicas Com o passar dos anos os

pesquisadores do campo da imagem voltaram-se para outros temas e alguns posicionamentos e

afirmaccedilotildees podem ser revisados no sentido de que do ponto de vista esteacutetico (que eacute o nosso

interesse central) haacute tanto negociaccedilotildees quanto formas diferentes de produzir disseminar e pensar

a imagem e experiecircncias variadas que talvez nos impeccedilam de separar tatildeo duramente analoacutegico e

digital Podemos indicar diferenccedilas sem com isso estabelecer uma relaccedilatildeo evolutiva entre os

meios ou reforccedilar ideias de que haacute tecnologias melhores quanto mais recentes forem Como se o

progresso teacutecnico inexoraacutevel fosse algo natural (ZIELINSKI 2006)

A seguir analisaremos alguns exemplos que demonstram esse campo de negociaccedilotildees

entre os sistemas analoacutegico e digital relativizando uma dicotomia entre eles pois que considerar

os empreacutestimos de elementos de cada um deles em alguns trabalhos artiacutesticos e mesmo a

resistecircncia de certos paradigmas agraves mudanccedilas tecnoloacutegicas satildeo questotildees centrais em nossa

33 FLUSSER Vileacutem O mundo codificado por uma filosofia do design e da comunicaccedilatildeo Satildeo Paulo Ubu Editora2017

34 Disponiacutevel em httpwwwarquivovilemflusserspcombrvilemflusserpage_id=1577 Acesso em 08042020

60

discussatildeo e apontam que o campo de produccedilatildeo das imagens contemporacircneas eacute cada vez mais

norteado pelo diaacutelogo entre tecnologias formatos e esteacuteticas

61

3 ANALOacuteGICO X DIGITAL INTERROGACcedilOtildeES EM DIRECcedilAtildeO Agrave FOTOGRAFIA

ldquoAntes de existir computador existia tevecircAntes de existir tevecirc existia luz eleacutetrica

Antes de existir luz eleacutetrica existia bicicletaAntes de existir bicicleta existia enciclopeacutediaAntes de existir enciclopeacutedia existia alfabeto

Antes de existir alfabeto existia a vozAntes de existir a voz existia o silecircnciordquo - O silecircncio Arnaldo Antunes

31 RECONSIDERANDO ALGUMAS DISPARIDADES

Jaacute indicamos que as tecnologias do computador datildeo ecircnfase a uma seacuterie de

procedimentos governados pelas informaccedilotildees do proacuteprio sistema e apontamos a dicotomia que

alguns teoacutericos estabeleceram por exemplo em relaccedilatildeo agraves ordens da ldquorepresentaccedilatildeordquo e da

ldquosimulaccedilatildeordquo Essa comparaccedilatildeo daacute a entender que haacute uma distacircncia teacutecnica significativa (aleacutem de

epistemoloacutegica) na origem de cada uma dessas ordens com implicaccedilotildees conceituais e esteacuteticas

E ainda que existe uma correspondecircncia entre as imagens preacute-informaacuteticas com esse regime da

representaccedilatildeo enquanto que a partir das imagens eletrocircnicas e na direccedilatildeo das imagens digitais a

simulaccedilatildeo ganha corpo e consolida-se

Embora seja inegaacutevel a natureza teacutecnica diversa do paradigma digital conforme tais

indicaccedilotildees apostar numa ruptura profunda entre as ordens da representaccedilatildeo e da simulaccedilatildeo eacute algo

que podemos questionar Quando falamos da fotografia a questatildeo se complica jaacute que ateacute o

estaacutegio da captura as operaccedilotildees necessaacuterias satildeo as mesmas seja a cacircmera analoacutegica ou digital A

partir do registro eacute que as mudanccedilas seriam mais significativas porque a imagem oacutetica da cena

capturada eacute projetada sobre o fundo da cacircmera escura o dispositivo interpreta as informaccedilotildees

recebidas que satildeo entatildeo decompostas em pixels (COUCHOT 2003 p162)

62

Ainda nas comparaccedilotildees entre analoacutegico e digital haacute menccedilatildeo por exemplo agrave digitalizaccedilatildeo

como estrateacutegia que sepulta a dicotomia entre original e coacutepia

() coacutepia e original passam a natildeo fazer mais sentido na fotografia digital Nesta tudo eacutecoacutepia (hellip) Na fotografia analoacutegica a reproduccedilatildeo de uma imagem acarretava um saltoentre ldquogeraccedilotildeesrdquo da imagem com distinccedilotildees mesmo que imperceptiacuteveis entre original ecoacutepia a coacutepia e a coacutepia da coacutepia No digital as coacutepias satildeo sempre idecircnticas(QUEIROGA 2015 110-111)

De nosso ponto de vista essa questatildeo natildeo faz sentido se consideramos as noccedilotildees de

original e coacutepia tomando a fotografia como imagem teacutecnica (FLUSSER 2011) como fruto do

cruzamento entre subjetividade e uma maacutequina qualquer fotografia jaacute natildeo poderia ser tratada

como ldquooriginalrdquo apenas porque foi a primeira de uma seacuterie de outras idecircnticas Antes de Flusser

Walter Benjamin (1936 1994) jaacute indicava que uma pretensa originalidade se perde no momento

em que a arte se faz por instrumentos que ensejam a reprodutibilidade tornando sua existecircncia

independente da operaccedilatildeo exclusiva da matildeo humana De fato podemos dizer que a fotografia

digital (assim como a digitalizaccedilatildeo de imagens de outra natureza) estimula uma atitude de

recriaccedilatildeo reelaboraccedilatildeo de alteraccedilatildeo que visa produzir imagens novas dada a maior facilidade

com que isso eacute feito nos aparatos computadorizados Se para copiar uma foto analoacutegica

dependiacuteamos de laboratoacuterio revelaccedilatildeo e ampliaccedilotildees num processo mais demorado que

demandava um conhecimento razoaacutevel de suas etapas no digital mesmo um leigo consegue sem

maiores problemas copiar uma imagem

De fato natildeo haacute formas de reproduccedilatildeo melhores ou piores em termos de fidelidade ou

autenticidade a partir de que haacute mediaccedilatildeo de um aparato acreditar na capacidade de replicar

algo atraveacutes da imagem de maneira fiel eacute um ideal para natildeo dizer um paradoxo Pensemos menos

em termos de originalidade e reprodutibilidade e notemos que a imagem fotograacutefica carrega

certas tradiccedilotildees Por exemplo expectativas de correspondecircncia entre tempo e espaccedilo retratados

para uma situaccedilatildeo dada De modo que natildeo apenas a forccedila de uma novidade tecnoloacutegica conduz

necessariamente a alteraccedilotildees esteacuteticas formais A imagem digital pode ser diversa menos na sua

mensagem e mais na maneira como eacute feita (PLAZA 1993 p73) Se o digital reconstroacutei o real as

leis que governam a maneira de construir e exibir esse real praticadas nas formas visuais

anteriores continuam operando de certa forma ldquoadaptadasrdquo ldquotraduzidasrdquo nas leis do paradigma

63

digital A capacidade de reconstruir esse real vem de uma referecircncia a ele jaacute consagrada em

outras formas visuais da fotografia do cinema da pintura

Eacute compreensiacutevel que os primeiros exerciacutecios de pensar essas mudanccedilas se mostrassem

entusiastas apostando na conformaccedilatildeo de um discurso da ruptura e da novidade mas passado

esse momento a produccedilatildeo de imagens tem mostrado que para aleacutem da recusa de qualquer

referecircncia ao real haacute diferentes maneiras de exercitar uma relaccedilatildeo criacutetica oniacuterica ou irocircnica com

ele sem contudo descartaacute-lo totalmente O que parece problemaacutetico em alguns dos argumentos e

definiccedilotildees pioneiros sobre as tecnologias digitais eacute tentar compreender as mudanccedilas a partir de

um horizonte fortemente teacutecnico da produccedilatildeo circulaccedilatildeo e consumo de imagens sem atentar para

o peso que representam as tradiccedilotildees visuais e ideologias das quais a fotografia tem dificuldade

de se apartar seja na teoria nas praacuteticas artiacutesticas jornaliacutesticas vernaculares etc

Isso significa que quando abordamos o digital de maneira geral apontamos suas

caracteriacutesticas e como elas satildeo incorporadas no desenvolvimento de toda uma imageacutetica

especiacutefica mas ao direcionarmos esse conjunto de informaccedilotildees para o campo das praacuteticas

fotograacuteficas talvez seja preciso refinar um pouco a discussatildeo Por exemplo Lister (1995 p15)

sugere que a simulaccedilatildeo de imagens fotoquiacutemicas pelo digital a digitalizaccedilatildeo de fotografias

analoacutegicas e imagens de siacutentese sejam vistas como coisas distintas e que estas uacuteltimas devem

ainda se diferenciar da realidade virtual Ele acrescenta que a simulaccedilatildeo e a digitalizaccedilatildeo eacute que

possuem maiores implicaccedilotildees para a fotorreportagem o jornalismo o documental As

possibilidades oferecidas pelos softwares alteram nosso entendimento sobre as miacutedias por causa

das operaccedilotildees de criaccedilatildeo ediccedilatildeo interaccedilatildeo compartilhamento (MANOVICH 2013 p122) o

que justifica certa desconfianccedila ou descreacutedito em relaccedilatildeo agraves imagens digitais Essas questotildees

permitem-nos compreender porque alguns debates em torno da fotografia digital preocupam-se

com os limites eacuteticos da manipulaccedilatildeo com as fronteiras que podem ser ultrapassadas no trabalhar

da imagem artiacutestica e da informativa e como esses espaccedilos estatildeo mais ou menos abertos agraves

potecircncias de heterogeneidade descontinuidade do digital Quer dizer no que tange agrave fotografia

haacute certa ecircnfase em tirar proveito do paradigma digital a partir da manipulaccedilatildeo da justaposiccedilatildeo

da elaboraccedilatildeo de universos ficcionais ndash sem que se desfaccedilam totalmente os liames com as formas

institucionalizadas na tradiccedilatildeo fotograacutefica anterior A questatildeo central eacute de que maneira isso

ocorre nesses diferentes campos de produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo da imagem fotograacutefica

64

Esse argumento nos daacute a pista de que para aleacutem dos imperativos teacutecnicos a heranccedila

cultural e simboacutelica de uma visualidade fotograacutefica parece estar sempre tangenciando as

experiecircncias com a imagem mesmo sob um horizonte de ferramentas que aparentemente

permitiriam solapaacute-la de maneiras diversas O hibridismo visual eacute mais evidente no campo do

viacutedeo experimental e independente em obras produzidas para circuitos de festivais web e

dispositivos moacuteveis que utilizam vaacuterias camadas de imagens abstratas geradas em tempo real em

2D animaccedilatildeo e menos frequente em obras comerciais (MANOVICH 2013 p258) Ou seja a

potecircncia de questionar essa heranccedila realista apresentou-se com mais evidecircncia no campo da arte

e conforme observamos passado o momento em que a noccedilatildeo de uma ruptura total com modelos

ldquorealistasrdquo haacute uma tendecircncia de jogar com esse modelo com suas expectativas de representaccedilatildeo

da realidade ao mesmo tempo em que natildeo se nega a natureza artificial da imagem Aqui jaacute

indicamos que o conceito de remediaccedilatildeo (BOLTER amp GRUSIN 2000) eacute instrumental para

entendermos que em alguns casos a imagem digital natildeo se aparta totalmente em seus aspectos

formais da analoacutegica investindo nas caracteriacutesticas esteacuteticas desta uacuteltima como efeito de um

hibridismo e jaacute apontamos casos em que a partir da compreensatildeo do lado discursivo da imagem

digital alguns artistas encontram a condiccedilatildeo especial que os permite explorar narratividades

discutir situaccedilotildees de vigilacircncia a fluidez dos dados Temos vertentes distintas com propoacutesitos

diferentes nos usos dados agrave imagem digital porque parte do DNA da fotografia digital deve-se a

seu lugar de nascimento dentro de uma cacircmera digital e outra parte eacute resultado do paradigma

atual da computaccedilatildeo em rede (MANOVICH 2013 p62-63) Ou seja o mesmo sistema onde se

integra a imagem tanto pode dar vazatildeo a processos de simulaccedilatildeo quanto criar novos paradigmas

visuais jaacute que ambas as possibilidades advecircm de um mesmo software fazendo parte de um

contiacutenuo

Soulages (2007 p80) tentando mapear os reais ganhos do digital interroga se este

determina algumas mudanccedilas na fotografia ou uma mudanccedila da fotografia35 O jogo de palavras

feito pelo autor demonstra a preocupaccedilatildeo em identificar natildeo apenas novidades de procedimento e

usos que aparecem na imagem em sentido restrito mas como uma epistemologia loacutegico-

matemaacutetica eacute capaz de operar modificaccedilotildees no acircmbito geral da fotografia traduzindo-se em obras

que conceitual e plasticamente se apresentem diversas que nos faccedilam repensar as relaccedilotildees que a

35 Grifo do autor

65

imagem fotograacutefica vem problematizando ao longo de sua histoacuteria a partir de novos moldes ou

chaves discursivas relacionados a um contexto social recente que se delineia de meados de 1970

em diante e hoje jaacute apresenta feiccedilotildees mais claras (nas tecnologias criadas nas formas de

circulaccedilatildeo de informaccedilotildees nos haacutebitos) Na medida em que separa ldquoa imagemrdquo da ldquofotografiardquo

Soulages indica que a ecircnfase na investigaccedilatildeo dos atributos teacutecnicos pode fazer sombra agrave potecircncia

esteacutetica

No horizonte do debate em torno da cultura digital alguns pesquisadores como Felinto

(2013) Nunes (2011) e Hainge (2013) Krapp (20112018) entre outros tecircm atentado para o

interesse pelos temas do erro e do ruiacutedo como abordagens que relacionam as especificidades das

tecnologias inteligentes e como elas se traduzem esteticamente Na mesma linha de raciociacutenio

Menkman (2010) e Krapp (2011) evocam o termo ldquofalhardquo (ou no original em inglecircs glitch) Para

noacutes eacute fundamental associar esse movimento agrave emergecircncia de certa tendecircncia em obras

contemporacircneas que buscam alternativas (ou questionamentos) ao ldquomodelo realistardquo na medida

em que as consideramos exemplares das modificaccedilotildees poeacuteticas agraves quais Soulages (Idem) referiu-

se quer dizer o interesse pelo erro e pelo ruiacutedo no acircmbito da cibercultura tem indicado o

aproveitamento de suas manifestaccedilotildees como uma poeacutetica Fontcuberta (2010) e Nunes (2011)

utilizam respectivamente as expressotildees ldquopoeacutetica dos errosrdquo e ldquopoeacutetica do ruiacutedordquo para falar do

interesse que recentemente alguns artistas tecircm demonstrado por marcas visuais antes

consideradas indesejaacuteveis na imagem fazendo uso seja do computador seja de teacutecnicas claacutessicas

da fotografia (como pinhole ou cacircmara escura) seja de equipamentos artesanais criados de forma

independente ou ainda de estruturas que juntam dispositivos eletrocircnicos computadorizados e

analoacutegicos A questatildeo central aqui para noacutes eacute como essas diferentes estrateacutegias criativas tecircm

impactado o campo da imagem atraveacutes da valorizaccedilatildeo de uma esteacutetica onde o ruiacutedo e o erro

tornam-se natildeo apenas evidentes mas ocupam uma centralidade nas experiecircncias dos e das

artistas podendo ser entendidos como parte de uma tendecircncia de criacutetica a um modelo da imagem

ldquolimpardquo e sem interferecircncias Essa questatildeo seraacute melhor explorada mais agrave frente pois se

percebemos que o tema do ruiacutedo eacute capaz de chamar nossa atenccedilatildeo para esteacuteticas alternativas ao

modelo ldquorealistardquo da imagem percebemos tambeacutem que as caracteriacutesticas desse modelo ainda se

fazem presentes em algumas praacuteticas fotograacuteficas

Em suma podemos afirmar que enquanto o paradigma digital suscita no campo da

imagem uma seacuterie de discussotildees em torno das possibilidades criativas diferentes ndash dentre as quais

66

se pode incluir o ruiacutedo (em formas diversas) como elemento esteacutetico ndash haacute ainda usos bastante

convencionais que natildeo apenas desmentem as teses fundamentadas numa total renovaccedilatildeo esteacutetica

como confirmam noccedilotildees anteriormente relacionadas agraves miacutedias analoacutegicas (como por exemplo a

relaccedilatildeo estreita com o referente) Observar esses movimentos paralelos e simultacircneos bem como

o natildeo desaparecimento por completo das teacutecnicas da imagem fotoquiacutemica (e em alguns casos

seus entrelaccedilamentos com as miacutedias digitais) demonstra duas coisas a primeira eacute que para

identificar movimentos esteacuteticos e tendecircncias que venham a renovar o campo da imagem natildeo

podemos olhar exclusivamente para a emergecircncia de novos dispositivos e em segundo lugar

entender que se o surgimento de novas tecnologias pode ser tomado como ponto de partida para

experiecircncias com uma nova linguagem essas miacutedias vatildeo tambeacutem relacionar-se com toda uma

tradiccedilatildeo artiacutestica ontoloacutegica e filosoacutefica O resultado disso vem sendo detectado por uma seacuterie de

pesquisadores36 que nos uacuteltimos anos estatildeo reafirmando a natureza plural e hiacutebrida da imagem

cada vez mais orientada para uma abertura em trabalhos de caraacuteter multimiacutedia que enfatizam

uma certa verve processual (em detrimento da ldquoobrardquo como objeto artiacutestico finalizado) e menos

preocupados com limites das especificidades dos meios (contenda bastante presente nos debates

que costumavam separar pintura fotografia cinema etc)

32 ANALOacuteGICO + DIGITAL E A ZONA CINZA DE NEGOCIACcedilOtildeES CONTINUIDADES

ATRAVESSAMENTOS

321 Digital (re)visitando tradiccedilotildees visuais

Discutindo alguns trabalhos de artistas da transiccedilatildeo analoacutegico-digital Antonio Fatorelli

(2006) buscou identificar alguns usos das potencialidades do computador Ele analisa exemplos

desse caraacuteter inovador em imagens de registradas em negativo poreacutem modificadas no

computador que de acordo com o pesquisador ldquoquerem fazer ver aleacutem do visiacutevel acrescentar

realidade agraves realidades jaacute construiacutedasrdquo (FATORELLI 2006 p21) Entre as fotografias analisadas

estaacute Revenge of the gold fish da norte-americana Sandy Skoglund (figura 10)37 Uma cena

produzida em estuacutedio que embora alinhada com uma funccedilatildeo testemunhal denuncia sua condiccedilatildeo

36 A exemplo de Fatorelli (20132017) Baio (2015) Katia Maciel (2009) entre outros

37 Disponiacutevel em httpsakronartmuseumorgcollectionObj1713sid=1ampx=970472 Acesso em 200718

67

artificial seu caraacuteter construiacutedo apelando a uma atmosfera oniacuterica (FATORELLI 2006 p30)

Os exemplos reunidos no texto de Fatorelli acionam estrateacutegias de ficcionalizaccedilatildeo ironia

apropriaccedilatildeo sem apartar-se totalmente do referente

Figura 10 - Revenge of the gold fish (Sandy Skoglund1981)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

A exemplo do movimento que o autor executa em seu texto eacute interessante para nosso

debate pensar como os processos de computador partem do real para transformaacute-lo numa espeacutecie

de ldquomundo perfeitordquo uma certa visualidade aprimorada em termos teacutecnicos Por sua

caracteriacutestica de maleabilidade a imagem digital eacute em diversas ocasiotildees alterada em busca dessa

perfeiccedilatildeo seja na direccedilatildeo da melhoria das cores da iluminaccedilatildeo do retoque para realce ou

retiradainclusatildeo de elementos Eacute curioso como essa vontade de aperfeiccediloamento repete um

paradoxo que jaacute se via na fotografia analoacutegica um ideal de perfeiccedilatildeo atribuiacutedo ao real na

imagem Um esforccedilo de composiccedilatildeo na direccedilatildeo de uma imagem sem falhas quando de fato o

real eacute irregular muacuteltiplo confuso imperfeito Eacute algo dinacircmico um aberto impossiacutevel de ser

copiado (PARENTE 1993 p30) Os recursos de que vai dispor o digital por forccedila da informaacutetica

68

seratildeo utilizados na composiccedilatildeo de algo que estaacute para aleacutem do real mas que se finca justamente

em ultrapassaacute-lo no ldquoniacutevel de perfeiccedilatildeordquo conseguido pelo analoacutegico

Conforme jaacute indicado depois que um material eacute digitalizado ele se transforma em

informaccedilatildeo numeacuterica e pode ser trabalhado no computador Assim o digital modifica as outras

miacutedias que quando numerizadas perdem suas caracteriacutesticas originais A partir da hibridizaccedilatildeo

com teacutecnicas anteriores (ateacute o ponto de natildeo ser possiacutevel distinguir entre o que eacute novo ou antigo)

o digital consegue simular em aparecircncia os modos visuais tradicionais

Essas duas questotildees ndash hibridizaccedilatildeo de elementos distintos e simulaccedilatildeo de miacutedias

anteriores ndash satildeo enfatizadas tambeacutem por Manovich (2001) quando explica que as miacutedias digitais

possuem algumas estrateacutegias como a seleccedilatildeo a composiccedilatildeo e a teleaccedilatildeo Ao falar da segunda ele

propotildee que quando o computador mescla elementos analoacutegicos e puramente numeacutericos muitas

vezes as identidades de cada elemento tendem a ser minimizadas ou apagadas para que

esteticamente se tenha a sensaccedilatildeo de uma fusatildeo completa e coerente desses elementos

Referindo-se particularmente ao cinema e ao emprego do que chama de ldquocomposiccedilatildeo digitalrdquo

propotildee que boa parte dos filmes utilize o recurso para criar sequecircncias que simulam uma

filmagem tradicional unindo material captado e cenaacuterio personagens ou objetos sintetizados em

computador para que pareccedilam terem estado todos simultaneamente no mesmo espaccedilo fiacutesico

gravado pela cacircmera criando assim um ldquoefeito de realidaderdquo (MANOVICH 2001 p137)

Um ponto interessante das anaacutelises acima vaacutelido para a fotografia eacute que nos casos em

que ocorre essa suavizaccedilatildeo das manipulaccedilotildees o paradigma digital apresenta uma tendecircncia de

ldquoefeito de realidaderdquo Um efeito que na verdade corresponde aos paracircmetros naturalizados nas

miacutedias visuais anteriores cujas formas de mostrar a realidade seguem certos padrotildees cromaacuteticos

e de iluminaccedilatildeo enquadramento proporccedilatildeo textura Por extensatildeo o digital referencia o

analoacutegico

Se hoje considerarmos toda miacutedia digital criada por consumidores e profissionais ndash fotodigital viacutedeo feito com cacircmeras baratas e celulares conteuacutedo de blogs e jornais onlineilustraccedilotildees criadas com Photoshop filmes editados em Avid etc ndash em termos deaparecircncia a miacutedia digital frequentemente parece exatamente igual agrave miacutedia preacute-computador (MANOVICH 2013 p59)

69

Indo aleacutem nesse debate para o ponto que nos interessa diretamente nesse processo de

revisitar a imagem analoacutegica a fotografia digital o faz adotando como modelo um tipo de

fotografia que supotildee uma correspondecircncia entre espaccedilo-tempo da captura uma clareza em

detrimento da penumbra (favorece o detalhamento) e principalmente a ideia do registro direto

(sem alteraccedilotildees) Ou seja incorpora normas esteacuteticas e premissas associadas agrave fotografia de base

fotoquiacutemica de determinado tipo Mistura questotildees formais e conceituais fundamentais de um

momento histoacuterico que lhe eacute estranho

Se pensamos no campo do fotojornalismo a transiccedilatildeo analoacutegico-digital trouxe ganhos

inegaacuteveis de velocidade de produccedilatildeo e circulaccedilatildeo da imagem mas reposicionou o debate sobre

manipulaccedilatildeo que sempre assombrou a fotografia jaacute que a praacutetica natildeo eacute nova Mas do ponto de

vista esteacutetico o fotojornalismo manteve-se bem tradicional em suas praacuteticas De maneira geral

continua repudiando intervenccedilotildees na imagem por motivos eacuteticos

Em 2013 o fotoacutegrafo sueco Paul Hansen teve sua foto Gaza Burial (figura 11) ndash

vencedora do World Press Photo 2012 ndash analisada sob suspeita de falsificaccedilatildeo A imagem mostra

um funeral de duas crianccedilas viacutetimas da guerra entre o exeacutercito israelense e o Hamas na cidade de

Gaza Agrave eacutepoca uma especialista indicou que se tratava de uma composiccedilatildeo com partes de outras

trecircs fotos aleacutem de ter sido clareada Hansen negou as modificaccedilotildees e a equipe da premiaccedilatildeo

afirmou que o fotoacutegrafo jaacute havia explicado o processo de ediccedilatildeo da imagem visto que o WPP

autoriza retoques mas natildeo alteraccedilatildeo de conteuacutedo38 No final concluiu-se que natildeo houve fraude

mas ldquopoacutes-produccedilatildeo com tonsrdquo

38 Fotoacutegrafo vencedor de precircmio de fotojornalismo enfrenta acusaccedilotildees de manipulaccedilatildeo de imagem Disponiacutevel emhttpsnoticiasr7cominternacionalfotografo-vencedor-de-premio-de-fotojornalismo-enfrenta-acusacoes-de-manipulacao-de-imagem-15052013 Acesso em 290718

70

Figura 11 - Gaza Burial (Paul Hansen 2012)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Em 2015 o mesmo precircmio foi retirado de um fotoacutegrafo italiano que havia produzido uma

seacuterie sobre a cidade de Charleroi (Beacutelgica) enfatizando a decadecircncia econocircmica do lugar Das

fotos que compotildeem a seacuterie ldquoCidade negrardquo uma foi tomada em Molenbeek (subuacuterbio de

Bruxelas) e natildeo em Charleroi A situaccedilatildeo de algueacutem que perdeu o precircmio era ineacutedita na

competiccedilatildeo e um de seus representantes ponderou a necessidade de avaliar o significado da

imprensa graacutefica do fotojornalismo e do fotodocumental em suas dimensotildees eacuteticas e

profissionais39 O cerne do debate gerado pelo primeiro caso estaacute na negaccedilatildeo da intervenccedilatildeo

numa imagem que tem como premissa reportar fatos ndash sustentando uma concepccedilatildeo da fotografia

essencialmente como ldquoespelho do realrdquo (DUBOIS 2012) ndash e tomada no momento do

acontecimento e ainda na possibilidade da intervenccedilatildeo acontecer que as mudanccedilas natildeo alterem

39 FERRER Isabel World Press Photo revoga um primeiro precircmio devido a fraude Disponiacutevel emhttpsbrasilelpaiscombrasil20150305cultura1425546065_452789html Acesso em 290718

71

o sentido da imagem (o que ela nos diz objetivamente) Jaacute no segundo exemplo a imagem fora

produzida num lugar diferente do informado40

Eacute interessante refletir sobre como o cenaacuterio de produccedilatildeo da fotografia eacute afetado pelos

dispositivos informaacuteticos para questionarmos se realmente as mudanccedilas alcanccedilam o plano

conceitual de maneira a se evidenciarem tambeacutem visualmente Ou em que esferas da produccedilatildeo

visual isso ocorre Ao que parece o fotojornalismo natildeo mudou a maneira de relatar os

acontecimentos e segue privilegiando imagens que atestam uma correspondecircncia com o que se

passou frente ao dispositivo Cabe aqui destacar que quando ocorrem manipulaccedilotildees

() tanto as que atuam no fato em si quanto as acontecidas no momento da revelaccedilatildeodigital estatildeo ligadas a uma busca pela ldquoimagem perfeitardquo possivelmente influenciadapor outros campos como a televisatildeo o cinema ou a publicidade Convive-se cada vezmais com imagens bem produzidas esteticamente bem trabalhadas com boasresoluccedilotildees de luz Elas estatildeo nos anuacutencios das revistas nos outdoors nos livros nainternet Eacute possiacutevel por exemplo perceber que ateacute mesmo utilizaccedilotildees mais ldquocaseirasrdquocomo os perfis nas redes sociais ou apresentaccedilotildees escolares jaacute acompanham apreocupaccedilatildeo por um resultado visual mais acurado (QUEIROGA 2015 p114)

Percebe-se que as caracteriacutesticas do paradigma digital satildeo acionadas para alcanccedilar uma

esteacutetica de equiliacutebrio de tonalidade de luz de plena identificaccedilatildeo das formas que se persegue

atraveacutes das ferramentas de manipulaccedilatildeo oferecidas pelo computador Martins (2013) chama de

ldquoimagens polidasrdquo aquelas modificadas pelo retoque pelo aumento da nitidez cuja plaacutestica estaacute

bem proacutexima ao que aponta Queiroga (Ibidem) Piper-Wright (2018 p8) ressalta que o advento

da fotografia digital nos reconduz a uma era em que a ideia de uma ldquoverdaderdquo na imagem atinge

um patamar elevado associado a certa transparecircncia do meio que conseguiria apagar a

interferecircncia da subjetividade no registro a fim de produzir ldquoimagens melhoresrdquo Para ela a

loacutegica da fotografia digital eacute que a qualidade da imagem estaacute diretamente relacionada com o

incremento do automatismo e da velocidade e com a reduccedilatildeo do grau de intervenccedilatildeo do usuaacuterio

Ela faz uma reflexatildeo bastante interessante do ponto de vista do papel da induacutestria na esteacutetica

preconizada pelos dispositivos digitais

40 Por ocasiatildeo de visita agrave exposiccedilatildeo com os vencedores do World Press Photo 2019 a autora desta tese constatou queentre os valores declarados da competiccedilatildeo estatildeo ldquojusticcedilardquo e ldquoverdaderdquo o que indica que as manipulaccedilotildees de imagenspermanecem como um problema eacutetico para esse tipo de premiaccedilatildeo

72

O desenvolvimento tecnoloacutegico na fotografia digital desde o iniacutecio dos anos 2000quando o consumo de cacircmeras digitais se torna largamente acessiacutevel tem levado nossashabilidades na produccedilatildeo imageacutetica a tal ponto que o direcionamento destas a resoluccedilotildeescada vez mais altas (megapixels) constitui um exemplo notaacutevel Embora o imediatismoe a natureza baseada na tela da fotografia digital sejam as principais mudanccedilasobservaacuteveis nas praacuteticas fotograacuteficas na era digital tambeacutem eacute verdade que esses avanccedilostecnoloacutegicos removeram muitos dos aspectos incocircmodos e defeituosos da fotografiainerentes tanto agrave cacircmera quanto ao ser humano41 (PIPER-WRIGHT 2018 p8)

O conjunto dessas questotildees indica uma tendecircncia de associar esse tipo de imagem

perfeita agrave qualidade da proacutepria miacutedia utilizada toacutepico relevante para a induacutestria das tecnologias

da imagem Para aleacutem do que se verifica no campo do fotojornalismo encontramos evidecircncias da

relaccedilatildeo qualidadeimagem perfeita por exemplo na campanha em favor da transiccedilatildeo do sinal de

TV analoacutegico para digital no Brasil42 (e a contenda sobre se a escolha mais adequada era pelo

modelo japonecircs ou norte-americano de TV digital43) e consequentemente uma certa euforia no

emprego de cacircmeras digitais no iniacutecio desse processo como esforccedilo para elevar o padratildeo de

qualidade dos programas A ldquoperfeiccedilatildeordquo da imagem estaacute na reproduccedilatildeo de texturas volume na

intensidade de cores e luminosidade sua nitidez elevada Ainda se sustenta como argumento

mercadoloacutegico a ideia de que a imagem digital agrave medida que aumenta sua resoluccedilatildeo torna-se

mais e mais realista Curiosamente essa maacutexima contraria afirmaccedilotildees anteriores de que o digital

natildeo tem relaccedilatildeo com o real Tanto possui que atinge o lugar o hiper-real Quando exploramos

uma suposta dicotomia entre o digital e o real (como propunham alguns teoacutericos) parece que

caiacutemos num paradoxo que nos leva a questotildees que retornam ao acircmbito da imagem independente

41 Traduccedilatildeo livre de ldquoThe technological developments in digital photography since the early 2000s when consumerdigital cameras became widely available has progressed our image-making skills and outputs in unprecedentedways with the drive toward increased resolutions (megapixels) being a case in point While the immediacy andscreen-based nature of digital photography is the main observable change to photographic practices in the digitalera it is also the case that these thecnological advances have removed many of the awkward and faulty aspects ofphotography inherent in both camera and humanrdquo

42 Um exemplo disso satildeo as estrateacutegias utilizadas pela TV Globo para promover a digitalizaccedilatildeo Aleacutem das inserccedilotildeesdurante a programaccedilatildeo e informaccedilotildees repassadas nos seus mais diversos programas produziram-se viacutedeos cominstruccedilotildees baacutesicas sobre os equipamentos necessaacuterios para recepccedilatildeo do sinal enfatizando a qualidade do sinal(embora natildeo se explique com base em quecirc a qualidade aumentaria) Ver por exemplo o viacutedeo promocionaldisponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=v_iIq4jQQ_8 Acesso em 28052019

43 O sinal analoacutegico de TV comeccedilou a ser desligado em 2018 de acordo com as capacidades teacutecnicas das emissorasnos diferentes estados e cidades brasileiros ficando disponiacutevel apenas o sinal digital A utilizaccedilatildeo de tecnologiasdigitais na produccedilatildeo televisiva jaacute se observava no comeccedilo dos anos 2000 (filmadoras ilhas de ediccedilatildeo natildeo linearcomputaccedilatildeo graacutefica etc) Note-se que esse movimento eacute acompanhado exatamente de um forte incremento nainduacutestria de equipamentos de TV que utiliza como principal argumento de venda a relaccedilatildeo entre ldquoqualidade daimagemrdquo ou ldquoefeito de realidaderdquo aprimorado e os paracircmetros HD FULL HD (correspondentes ao nuacutemero de pixelspor polegada)

73

da tecnologia Uma questatildeo relativa a modelos esteacuteticos perpetuados em algumas instacircncias

midiaacuteticas ndash a televisatildeo o cinema o fotojornalismo ndash que servem tambeacutem aos propoacutesitos da

induacutestria da imagem

Figura 12 - Trechos do viacutedeo promocional de lanccedilamento de Star Wars em HD

74

Fonte Reproduccedilatildeo internet44

Ao refletir de maneira criacutetica sobre o afatilde de um constante aperfeiccediloamento dos

resultados Krapp (2011 p57) comenta que natildeo podemos pensar linearmente a histoacuteria dos

meios e que ideias sobre tecnologias baseadas num progresso satildeo complicadas a partir de uma

dimensatildeo esteacutetica mas por outro lado de fato uma noccedilatildeo de ldquocruezardquo ou pureza dos dados nas

miacutedias digitais corresponde a expectativas crescentes em relaccedilatildeo ao aumento da resoluccedilatildeo da

imagem no campo audiovisual O cinema tambeacutem experimentou certo entusiasmo em torno da

digitalizaccedilatildeo como marco de uma imagem aperfeiccediloada que traria ao puacuteblico uma experiecircncia

diferenciada Em 2015 os filmes da seacuterie Star Wars (que ateacute aquele momento contabilizavam

seis produccedilotildees) foram relanccedilados em formato digital (HD) conforme sinaliza o viacutedeo

promocional (figura 12) Apesar do conteuacutedo extra (como cenas excluiacutedas do original) enquanto

produto cinematograacutefico tratava-se exatamente dos mesmos filmes A conversatildeo para a

tecnologia digital eacute um dado teacutecnico com seus recursos timidamente empregados para oferecer

um produto velho com nova roupagem

Em filmes como Star Wars - Episoacutedio I - A ameaccedila fantasma (1999) criaram-se efeitos

no computador (cenaacuterios personagens) que foram adicionados agraves cenas gravadas constituindo

um produto que corresponde agrave conceituaccedilatildeo de hiacutebrido de Manovich (2013) Aprofundando essa

44 Disponiacutevel em httpsyoutubeXuNhZ8K4iow Acesso em 28052019

75

questatildeo o pesquisador explica que nem sempre o hibridismo se expressa como uma esteacutetica

atraveacutes de um estilo colagem onde a justaposiccedilatildeo de elementos diferentes eacute evidente

(MANOVICH 2013 p257) ou seja que nem todos os hiacutebridos nos permitem identificar a

presenccedila de elementos de miacutedias distintas O que ocorre em Star Wars eacute a uniatildeo de camadas de

material filmado elementos animados em 2D e 3D e efeitos graacuteficos que se misturam dando a

impressatildeo de um todo estilisticamente coerente (MANOVICH 2013 p259) Tal tendecircncia eacute

particularmente interessante tanto nos exemplos cinematograacuteficos quanto no campo do

fotojornalismo (conforme indicamos) nos quais predomina uma esteacutetica de suavidade nas

diversas estrateacutegias de manipulaccedilatildeo da imagem

Esses breves exemplos mostram que no acircmbito da imagem haacute questotildees que

supostamente pertencem aos paradigmas analoacutegico e digital entrando em choque Se por um

lado tais imagens diferem muito pouco esteticamente da fotografia e do cinema convencionais

pelos motivos apontados que vecircm de uma referecircncia visual anterior ndash imagens fotoquiacutemicas ndash ateacute

quando haacute retoques o esforccedilo dos profissionais eacute para que natildeo sejam evidenciados A partir de

imperativos eacuteticos recusam-se os artifiacutecios a natildeo ser quando usados para um aperfeiccediloamento

que tende a um velho e conhecido padratildeo Assim imagens atuais se assemelham agraves imagens

antigas Ou literalmente imitam-nas reproduzem-nas Em contrapartida satildeo artefatos digitais que

tecircm como caracteriacutestica a potecircncia de alteraccedilatildeo facilitada mas os artifiacutecios satildeo aceitos com

ressalvas porque as ideias em torno do que significa por exemplo uma imagem fotograacutefica

informativa parecem mais fortes do que a capacidade de compreender aceitar e tirar partido de

uma ordem visual que oferece novos arranjos significaccedilotildees e opccedilotildees formais45 Afinal

intervenccedilotildees e mesmo a ficcionalizaccedilatildeo natildeo satildeo novidades no campo da imagem

Nos campos do fotojornalismo e do documentarismo o contrato entre imagem e

realidade decorrente da funccedilatildeo de evidecircncia que a fotografia assumiu desde seus primeiros usos

acaba por impor limites agraves intervenccedilotildees Poreacutem o que nos chama mais a atenccedilatildeo eacute a ideia

45 O site de notiacutecias The Intercept Brasil utiliza a fotografia como parte de seu conteuacutedo informativo de maneirabastante criativa aplicando movimento em imagens originalmente estaacuteticas alterando cores utilizando o recurso dafotomontagem entre outras estrateacutegias que tornam a imagem dinacircmica atraveacutes exatamente das ferramentasoferecidas pelo paradigma numeacuterico Ver por exemplo as reportagens ldquoEmprestou seu wifi a um amigo criacutetico doDoria Cuidado ele processou ateacute o dentista de quem falou mal delerdquo (Disponiacutevel emhttpstheinterceptcom20181004doria-processo-facebook) e ldquoComo a eleiccedilatildeo de Ronaldo Caiado do DEMcoloca em risco a Chapada dos Veadeirosrdquo (Disponiacutevel em httpstheinterceptcom20180923ronaldo-caiado-chapada) ambas acessadas em 011118

76

impliacutecita de que em caso de manipulaccedilotildees estas sejam tatildeo refinadas a ponto de que seja difiacutecil

identificaacute-las reafirmando por um lado a imagem enquanto duplo do referente ao mesmo tempo

em que se nega a condiccedilatildeo de artifiacutecio que caracteriza em uacuteltima instacircncia o fotograacutefico

A fotografia digital caracteriza-se entatildeo por uma ldquoloacutegica paradoxalrdquo de um lado tem

procedimentos bastante diferentes dos que satildeo a base da imagem fotoquiacutemica e por outro reforccedila

antigos modos de representaccedilatildeo visual (MANOVICH 1995 p2) Enquanto se expandiam e se

consolidavam ndash devemos aqui ter em conta que o texto de Manovich sobre o assunto data do

comeccedilo dos anos 1990 ndash as tecnologias digitais eram postas em comparaccedilatildeo com as imagens

anteriores e tambeacutem contribuiacuteram para reconfigurar suas funccedilotildees Como exemplo Manovich cita

o cinema que atravessava um processo de tendecircncia ao desaparecimentos da peliacutecula provocando

tambeacutem uma fetichizaccedilatildeo do ldquofilm lookrdquo da sua aparecircncia granulada desfocada (que remete ao

estilo proacuteprio da imagem de base fotoquiacutemica) em contraste com a imagem sintetizada em

computador ldquomuito limpa muito perfeitardquo (Idem p5)

Dessa forma a imagem de siacutentese parece ldquoreal demaisrdquo e sua referecircncia criativa

permanece sendo a imagem fotograacutefica tradicional (MANOVICH 1995 p13) Conforme vimos

o cinema comercial tambeacutem investe na mesma loacutegica empregando formas criadas digitalmente

que quando combinadas a cenas gravadas e agrave atuaccedilatildeo do elenco mal podemos distinguir o que

foi filmado em set do material elaborado em computador Para que a narrativa se torne criacutevel eacute

necessaacuterio que todo o conjunto artificial esteja respaldado numa ideia de realidade

correspondente agraves tecnologias de imagem anteriores

O uso de filtros nas imagens fotograacuteficas digitais constitui uma outra vertente que potildee

lado a lado referecircncias visuais analoacutegicas e a estrutura das miacutedias digitais imitando a granulaccedilatildeo

efeitos de solarizaccedilatildeo e ateacute o negativo preto e branco46 Hoje essas praacuteticas jaacute estatildeo naturalizadas

entre os usuaacuterios de smartphones e aplicativos fotograacuteficos mesmo que estes sequer tenham

conhecido e praticado a fotografia analoacutegica num estranho revisitar de estilos e modos de

tecnologias antigas

46 Uma imagem digital fotograacutefica em preto e branco jaacute eacute resultado de uma alteraccedilatildeo Conforme explica Valle (2012p45) os sensores de cacircmeras digitais possuem filtros que captam a informaccedilatildeo luminosa em azul verde e vermelhoe uma imagem em preto e branco eacute obtida quando se descartam as informaccedilotildees de cor Ou seja um equipamentodigital natildeo registra diretamente uma foto em preto e branco

77

Um caso bastante interessante eacute o projeto desenvolvido pelo coletivo Basetrack (figuras

13 14 e 15) O grupo formou-se em 2010 por iniciativa do fotoacutegrafo Balazs Gardi e conta ainda

com mais quatro integrantes Teru Kuwayama Rita Leistner Omar Mullick e Tivadar

Domaniczky Gardi eacute fotojornalista e acompanha desde 2001 o desdobramento da guerra no

Afeganistatildeo Apoacutes 2003 Gardi comeccedilou a ter dificuldades para comercializar seu material junto

agraves agecircncias e veiacuteculos de miacutedia tradicional porque o tema do Afeganistatildeo comeccedilava a sumir da

pauta da imprensa ndash que se focava na guerra do Iraque O Basetrack acompanhou durante seis

meses um batalhatildeo com mil fuzileiros norte-americanos divulgando as imagens na internet (em

site proacuteprio e em redes sociais como Facebook e Twitter) Por meio dessa estrutura parentes e

amigos dos fuzileiros tinham uma fonte de informaccedilatildeo um canal de comunicaccedilatildeo para

acompanhar a rotina do batalhatildeo

As imagens produzidas pelo Basetrack foram feitas com Iphones47 visando o

barateamento da produccedilatildeo Aleacutem de fotos o equipamento podia gravar tambeacutem viacutedeos e aacuteudios

aleacutem de ser resistente agraves intempeacuteries do lugar Fora isso o Iphone oferecia a possibilidade de

aplicar agraves imagens filtros que remetem agrave esteacutetica de antigas Polaroids (o aplicativo utilizado foi o

Hipstamatic) com tonalidades esverdeadas e um efeito que lembra granulaccedilatildeo

Uso cacircmeras com filme preto e branco cacircmeras de plaacutestico chinesas e o iPhone eacute apenasuma versatildeo digital destas cacircmeras de brinquedo Tira fotos muito boas e com qualidadeOs softwares de poacutes-produccedilatildeo satildeo aplicativos baratos como o que usamos Hipstamaticque custou 2 doacutelares O iPhone eacute a minha cacircmera profissional mais barata soacute custou 800doacutelares e eacute uma ferramenta que tem basicamente tudo que um jornalista precisa hoje(GARDI online 2012)

Pelo exposto a escolha do equipamento se deu por motivos de ordem praacutetica Mas sobre

o uso dos filtros ou seja qual a intencionalidade desse artifiacutecio os fotoacutegrafos natildeo falam Poreacutem

ao discutir sobre o tipo de imagem publicado Kuwayama afirma

Evito expectativas ou noccedilotildees preconcebidas mas na eacutepoca em que lanccedilamos o projeto acontra-insurgecircncia (ou ldquoCOINrdquo na sua abreviaccedilatildeo militar) fora introduzida como novaestrateacutegia no Afeganistatildeo Um dos objetivos do Basetrack era mostrar ao puacuteblico o queessa contrainsurgecircncia realmente significava e com o que se parecia na praacutetica Emuacuteltima anaacutelise o projeto natildeo era sobre fotografia era sobre a abertura de linhas de

47 Smartphone fabricado pela Apple desde 2007

78

comunicaccedilatildeo Fotografias natildeo eram o produto eles eram a taacutetica48 (KUWAYAMAonline 2014)

Ao dizer que a fotografia eacute mais um meio e menos uma mensagem o fotoacutegrafo reduz a

importacircncia das escolhas temaacuteticas e esteacuteticas em detrimento da funccedilatildeo desempenhada pela

imagem no projeto conectar os fuzileiros suas famiacutelias e amigos Ou seja enfatiza o propoacutesito

interativo da iniciativa Na mesma entrevista ele diz que as fotografias eram eficazes porque as

pessoas estavam em busca de qualquer evidecircncia de que seus conhecidos estavam vivos e

interessavam-se por qualquer percepccedilatildeo de suas rotinas no Afeganistatildeo Por esse motivo

principalmente os retratos eram alvo de muita atenccedilatildeo

O resultado eacute uma estranha combinaccedilatildeo da visualidade de uma imagem fotoquiacutemica

produzida pelo caacutelculo informaacutetico num esforccedilo de hibridizaccedilatildeo que natildeo esconde a mesticcedilagem

de referecircncias No tocante ao conteuacutedo o Basetrack tanto se aproxima de uma fotografia de

guerra convencional quanto obteacutem um registro despojado da rotina na zona de conflito mais

proacuteximo da fotografia vernacular ndash a exemplo do conjunto de imagens que mostram as tatuagens

dos soldados norte-americanos (figura 13) um estilo tiacutepico da fotografia com intenccedilotildees de

compartilhamento A concepccedilatildeo e o planejamento do projeto ancoram-se na praacutetica de uma

fotografia de guerra que se articula com a oferta visual agregada ao Iphone e a uma cultura

visual mais geral na qual as tendecircncias de assimilaccedilotildees esteacuteticas jaacute se tornaram corriqueiras

Satildeo incontaacuteveis neste sentido os aplicativos atual coqueluche do mundo digital que sevoltam para a fotografia e o mais interessante transcodificando para os efeitosprogramados as respostas visuais que correspondem exatamente ao tipo de imagementregue pela Polaroid e congecircneres O que eacute sob o ponto de vista dos filtros e ajustes oInstagram senatildeo vaacuterios estilos de texturas cores e acabamentos que eram comuns agravePolaroid ndash memoacuteria plaacutestica Mais que isso agregaccedilatildeo de valor simboacutelico (SILVAJUNIOR online 2017)

48 Traduccedilatildeo livre de ldquoI avoid expectations or preconceived notions but at the time we launched the projectcounterinsurgency (or ldquoCOINrdquo its military abbreviation) had been introduced as the new strategy in AfghanistanOne of the goals of Basetrack was to show the public what that counterinsurgency actually meant and looked like inpractice Ultimately it wasnrsquot about photography it was about opening lines of communication Photographs werenrsquotthe product they were the tacticrdquo

79

Figura 13 - Tattoed US Marines First Battalion Eighth Marine Regiment Helmand Province

Afghanistan (Projeto Basetrack 2010)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

80

Figura 14 - Notes on a whiteboard at the command center on Halloween night at Combat Outpost 7171 In

Helmand Province Afghanistan on October 31 2010 (Projeto Basetrack 2010)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Eacute interessante que os efeitos aplicados pelo Basetrack podem atualmente figurar como

um artifiacutecio esteacutetico mas pensadas agrave luz de sua eacutepoca essas marcas visuais da Polaroid eram

tidas como defeitos Poreacutem hoje deslocadas de seu contexto e jaacute dissociadas da ideia de uma

fotografia de amadores e de pouco rigor teacutecnico o ldquoefeito Polaroidrdquo reveste-se de uma aura de

despojamento como bem observou Silva Junior (Idem) Uma certa informalidade esteacutetica

evocada para combinar com a simplicidade de imagens que funcionam como breves

comunicaccedilotildees entre usuaacuterios de internet quebrando um pouco da seriedade da narrativa visual

jornaliacutestica

Como aqui o que assistimos eacute a aplicaccedilatildeo desse ldquoestilo coolrdquo a imagens que ficam entre

o fotojornalismo e a foto vernacular elas podem ser caracterizadas de hiacutebridos originados na

interlocuccedilatildeo entre as propriedades do software e referecircncias de meios anteriores ldquotraduzidasrdquo

em suas ferramentas

81

Uma vez que computadores satildeo um ambiente para miacutedias simuladas e novas eacute logicoque eles comecem a criar hiacutebridos () Traduzidas para o software teacutecnicas de miacutediasfiacutesicas mecacircnicas e eletrocircnicas atuam como espeacutecies que possuem uma ecologia comumndash nesse caso um ambiente compartilhado e uma vez lanccediladas nesse ambiente comeccedilama interagir mudar e construir hiacutebridos49 (MANOVICH 2013 p163-164)

Nas fotografias do Basetrack a esteacutetica Polaroid eacute revisitada atraveacutes dos filtros mas o

resultado possui certa estranheza vinda exatamente desse aspecto ldquopolidordquo da imagem criada

por aparelhos digitais (aparentemente livres de ruiacutedo) que a Polaroid resultante de um processo

fotoquiacutemico normalmente natildeo tem Quer dizer embora se busque uma conexatildeo com o visual da

Polaroid a natureza emulada da imagem final natildeo eacute dissimulada pelo contraacuterio noacutes percebemos

esse caraacuteter de imitaccedilatildeo

Como na emulaccedilatildeo uma parte de um sistema imita e substitui parte de outro sistema ecomo o ecircmulo natildeo pode se manter totalmente isolado das caracteriacutesticas da base dosistema emulador acontece algo como um contaacutegio de um pelo outro () Eacute justamenteesse corpo a corpo das materialidades dos aparatos que retira o sistema emulador de suacondiccedilatildeo de transparecircncia e o revela como parte do sistema emulado Dessa maneiraentatildeo da emulaccedilatildeo resulta () um corpo impuro uma imagem engendrada entre oemulador e o emulado (BAIO 2016 p 54)

Baio (2016) explica ainda que a emulaccedilatildeo conserva sempre algo da ordem da

incompletude da imprecisatildeo e da falha e eacute nesse sentido que comparativamente notamos

diferenccedilas entre a produccedilatildeo do Basetrack e Polaroids antigas50 A partir desse blend de

referecircncias visuais as fotografias de guerra do Afeganistatildeo caracterizam-se justamente como esse

ldquocorpo impurordquo que fica num lugar intermediaacuterio entre o digital e o analoacutegico formatando algo

que tenta unir esses dois universos sem contudo definir-se por um ou outro em maior grau Na

condiccedilatildeo de artefatos criados por meio da estrutura de um software que reproduz efeitos texturas

e tonalidades de uma miacutedia analoacutegica a presenccedila dessas referecircncias de miacutedias preacute-digitais natildeo se

faz em seu estado puro ou original (MANOVICH 2013 p326) Assim natildeo se trata de uma

simples incorporaccedilatildeo de caracteriacutesticas da Polaroid mas de uma recriaccedilatildeo de determinado modo

visual sob os paracircmetros de um sistema totalmente diferente Essas imagens apresentam a

49 Traduccedilatildeo livre de ldquoOnce computers became a comfortable home for a large number of simulated and new mediait is only logical to expect that they would start creating hybrids () Translated into software media techniquesstart acting like species within a common ecologymdashin this case a shared software environment Once ldquoreleasedrdquointo this environment they start interacting mutating and making hybridsrdquo50 Peter Krapp (2011) discute o processo de emulaccedilatildeo em games recentes produzidos para consoles como NintendoWii que recuperam o design de jogos dos anos 1980 em 2D como recurso que termina por estetizar a falha nosambientes da cultura digital atraveacutes de uma esteacutetica retrocirc (nos recursos graacuteficos e sonoros)

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estranha condiccedilatildeo de lembrarem fotografias da Polaroid mas diferem delas conformando um

hiacutebrido uma espeacutecie de Polaroid digital

Figura 15 - Afghan detainee at Patrol Base Talibjan Helmand Province Afghanistan (Projeto Basetrack

2010)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

De volta agraves ideias de Manovich a respeito da imagem digital o autor lembra que

independente do que signifique esta ainda representa a fotografia remetendo a certas ideias do

que deve ser uma fotografia o que devemos esperar dela

() enquanto a imagem digital promete substituir completamente as teacutecnicas defilmagem ao mesmo tempo encontra novas funccedilotildees e valores para o aparatocinematograacutefico para os filmes claacutessicos e a esteacutetica fotograacutefica Esse eacute o primeiroparadoxo da imagem digital () o que a imagem digital preserva e propaga satildeo oscoacutedigos culturais do filme e da fotografia (MANOVICH 1995 p5)

Quer dizer se na base mesmo do sistema haacute uma diferenccedila inegaacutevel entre fotografia

digital e analoacutegica a novidade que representa a primeira em termos teacutecnicos se articula com uma

83

expectativa de produtores consumidores e espectadores da imagem fotograacutefica que (embora natildeo

exclusivamente) corresponda agraves noccedilotildees de um momento temporal singularizado de um

alinhamento entre objeto e imagem de que retoques e alteraccedilotildees (se ocorrerem) sejam

praticamente imperceptiacuteveis que haja alguma organizaccedilatildeo compositiva na tomada da cena cujos

paracircmetros dominantes sejam o da perspectiva geomeacutetrica e ainda que seja possiacutevel o

reconhecimento do referente na imagem Para Aumont (apud BAIO 2015 p47) quando

relacionamos a imagem aos seus modos de produccedilatildeo e consumo assumimos que a teacutecnica

influencia a forma como compreendemos essas imagens de modo que esse entendimento eacute

atravessado por certas ideias dominantes ligadas agrave tecnologia utilizada Essas caracteriacutesticas satildeo

sintomaacuteticas de certa tradiccedilatildeo na fotografia (MANOVICH 1995 p12) que eacute uma entre vaacuterias e

sempre conviveu com movimentos e praacuteticas que lhe contrariavam E a imagem digital ainda

convive com tais questotildees

Considerando que as premissas da imagem informativa suas relaccedilotildees com a necessidade

de reportar fatos acabam por constranger alteraccedilotildees expliacutecitas e de verossimilhanccedila reduzida51

acreditamos ser necessaacuterio levar o debate sobre as vizinhanccedilas entre analoacutegico e digital para o

espaccedilo artiacutestico Nesse sentido Antonio Fatorelli (2017) aponta que haacute uma negociaccedilatildeo entre

analoacutegico e digital minando pretensotildees renovadoras atribuiacutedas ao advento do numeacuterico

(hellip) ao simular o dispositivo analoacutegico de registro a cacircmera digital passa a incorporaras singularidades da codificaccedilatildeo perspectivista e os princiacutepios materiais e imateriaistradicionalmente vinculados agrave cultura visual analoacutegica Uma decorrecircncia decisiva desseprocesso de emulaccedilatildeo refere-se agrave particularidade de que ao perpetuar a dependecircncia dossinais de luz no momento do registro da imagem realizada na presenccedila do mundo fiacutesicoa fotografia digital incorpora as fabulaccedilotildees relacionadas ao modo de inscriccedilatildeo indicial(hellip) Do mesmo modo que as imagens de fatura analoacutegica tambeacutem as fotografias digitaisencontram-se contaminadas para usar uma figura cara ao modo de impressatildeo indicial enesse sentido balizadas pela loacutegica do traccedilo (hellip) (FATORELLI 2017 p66)

Aqui o autor indica como problema central o registro da imagem que ainda se vincula

ao que estaacute em frente agrave cacircmera Isso funda uma noccedilatildeo de correspondecircncia entre

imagemreferente e mesmo quando os fotoacutegrafos promovem intervenccedilotildees na imagem fazem-no

tentando respeitar convenccedilotildees de verossimilhanccedila mimetismo figuraccedilatildeo Enquanto se mantiver

atado ao imperativo do traccedilo indicial jogando com a transformaccedilatildeo de uma imagem anterior o

51 Fred Ritchin (2008) discute alguns exemplos de recriaccedilotildees de imagens a partir do computador e observa que noacircmbito do jornalismo e da documentaccedilatildeo eacute necessaacuterio estabelecer alguns padrotildees e limites que natildeo comprometam ainformaccedilatildeo e a confianccedila na imagem digital

84

digital natildeo instaura uma nova imagem podendo ser colocado ao lado do modo analoacutegico

(FATORELLI 2017 p67) Ou pelo menos natildeo parece o fazer de maneira radical como esteve

no desejo associado a seu surgimento Essa questatildeo pode ser observada em muitas das fotos

compartilhadas em redes sociais e tambeacutem na esfera da imagem artiacutestica

O fotoacutegrafo Andreas Gursky realiza montagens que parecem imagens tomadas num uacutenico

clique Ele eacute lembrado por seu entusiasmo em relaccedilatildeo agrave tecnologia pela manipulaccedilatildeo que realiza

no material produzindo imagens que propotildeem alargar o vieacutes realista da fotografia graccedilas ao

aparato digital O alematildeo trabalha com fotografias em grande escala de paisagens ou cenas que

discutem o consumo a economia e seus efeitos na atualidade ndash a exemplo de Amazon (figura

17) Eacute importante lembrar que ele estaacute ligado agrave tradiccedilatildeo artiacutestica da Escola de Dusseldorf onde

sob orientaccedilatildeo de Bernd e Hilla Becher vaacuterios profissionais consolidaram a ldquoesteacutetica

inexpressivardquo52 (COTTON 2013) Nesse sentido seu trabalho apresenta caracteriacutesticas

documentais valendo-se da tecnologia digital para potencializar um olhar ampliado e objetivo

sobre os temas abordados

Hoje em dia uma foto sua tem em geral dois metros de altura e cinco metros de larguraSeus trabalhos constituem objetos que se impotildeem imagens que nos fazem parar o queestamos fazendo (hellip) As fotografias se valem de tecnologias tanto novas comotradicionais (por exemplo ele usou cacircmeras de formato grande para obter o maacuteximo declaridade e depois recorreu agrave manipulaccedilatildeo digital para refinar a imagem) com umafluidez que ateacute entatildeo tinha sido exclusiva da fotografia comercial em publicidade(COTTON 2013 p83)

A dimensatildeo das imagens ndash levando o observador a tomar distacircncia para perceber a cena

em sua totalidade ndash eacute um elemento importante de significado o que natildeo impede quem queira de

se ater ao grande conjunto de detalhes das fotos (por conta da alta resoluccedilatildeo)53 E foi para atingir

uma grande escala que recorreu ao computador Em imagens como Love parade (figura 16)

juntou digitalmente fotos capturadas em separado Satildeo composiccedilotildees de situaccedilotildees que nunca

52 Para detalhes sobre a fotografia inexpressiva alematilde bem como sobre a influecircncia de movimentos como a NovaObjetividade e os trabalhos documentais de August Sander para seu desenvolvimento ver Cotton 2013 p81-113

53 Cf Manatakis Lexi The photographer who offers a Godrsquos-eye view on our world Revista Dazed Disponiacutevel emhttpwwwdazeddigitalcomart-photographyarticle389651photographer-andreas-gursky-gods-eye-view-on-earth-hayward-gallery Acesso em 140718

85

ocorreram da maneira como satildeo exibidas Realidades que existem especificamente enquanto

imagem Como toda fotografia

Figura 16 - Love parade (Andreas Gursky 2001)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Figura 17 - Amazon (Andreas Gursky 2016)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

O trabalho de Gursky apresentado aqui embora possiacutevel pela operaccedilatildeo de ldquocolagemrdquo de

mais de uma imagem via computador utiliza como elementos constituintes fotografias

86

registradas de maneira convencional e promove a junccedilatildeo das partes de forma cuidadosamente

sofisticada sutil que natildeo deixa ver as emendas Love parade mais parece uma fotografia aeacuterea

feita com uma super cacircmera capaz de manter os mais iacutenfimos detalhes da cena

Tais operaccedilotildees de montagem feitas pelo computador se reportam a uma esteacutetica marcada

pela suavidade e pela continuidade nas quais as fronteiras entre elementos distintos satildeo

apagadas em vez de enfatizadas (MANOVICH 2001 p142) como pode ser visto tambeacutem na

fotografia A sudden gust of wind (after Hokusai) (1993) de Jeff Wall (figura 18) Nela estaacute

retratada uma situaccedilatildeo pouco provaacutevel poreacutem plausiacutevel A montagem eacute inspirada numa pintura

japonesa e mostra algumas pessoas surpreendidas por uma ventania Os personagens satildeo atores

fotografados previamente os papeacuteis que voam foram replicados vaacuterias vezes para aumentar a

sensaccedilatildeo de desordem A sutileza dessas ldquoemendasrdquo eacute marcante Uma perfeita ilusatildeo Para

Fontcuberta (2010 p100) Jeff Wall e outros artistas da era digital valorizam o computador como

instrumento produtor de sentido poreacutem as manipulaccedilotildees que promovem satildeo dissimuladas

correspondendo agrave loacutegica testemunhal da qual em vaacuterias situaccedilotildees a fotografia se vecirc dependente

Como diz Ritchin (2008 p17) ldquo(hellip) uma fotografia pode ser considerada um menu a ser

tocado ou clicado ou simulado (embora a cena representada talvez nunca tenha ocorrido e

possivelmente natildeo ocorreu mesmo) ou seus zeros e uns podem ser transformados em qualquer

outra coisardquo O mesmo autor compreende o que acontece na fotografia como sintomaacutetico de uma

sociedade que busca cada vez mais a excelecircncia e o aperfeiccediloamento de habilidades alterando os

proacuteprios coacutedigos Quer dizer atraveacutes de mudanccedilas na base informativa das coisas mas que na

aparecircncia satildeo imperceptiacuteveis O conjunto da imagem corresponde a paracircmetros de uma cena

tomada espontaneamente como um instantacircneo de um fotoacutegrafo atento o suficiente para capturar

o momento exato em que o vento carrega os papeis diante de quatro personagens surpresos

O que parece eacute que a loacutegica do numeacuterico e sua natureza criativa e calculada vatildeo nos dar

essa realidade fotograacutefica numa plaacutestica proacutepria que possui algo de hiper-real ndash jaacute que o hiper-

real eacute mais proacuteximo da fotografia convencional (MANOVICH 2013 p260) ndash pois eacute resultado de

uma visatildeo aperfeiccediloada ndash maquiacutenica automatizada Poreacutem o diferencial trazido pelo sistema

digital por vezes eacute utilizado jogando apenas com essa plaacutestica ldquomuito limpardquo ldquomuito realrdquo sem

questionamento a respeito de dimensotildees que envolvem a fotografia como o tempo e as formas

87

experimentando com seus limites para que de fato novas visualidades se apresentem O digital

nem sempre sugere maneiras de repensar a fotografia para aleacutem de um esquema visual que

revisita o ldquorecorte do mundordquo As imagens satildeo mesmo bastante ambiacuteguas Enquanto se valem da

articulaccedilatildeo cuidadosa de elementos constituindo-se como verdadeiras montagens (sem agrave primeira

vista denunciarem-se como tal) elas conceitualmente potildeem em debate a natureza intriacutenseca da

imagem em geral que eacute tratar-se de uma elaboraccedilatildeo de uma construccedilatildeo uma ldquosegunda realidaderdquo

(PARENTE1993) E desse modo devem habitar a esfera do possiacutevel Por outro lado

plasticamente elas natildeo diferem tanto de imagens anteriores realizadas sob o pensamento de que a

fotografia estaacute sob a regra do instantacircneo carrega um vieacutes testemunhal evocando em uacuteltimo caso

o registro que pode sempre ser revisitado de algo que esteve diante de algueacutem com uma cacircmera

Ou com vimos a respeito do uso de filtros que recuperam esteacuteticas analoacutegicas a fotografia

digital atua na chave da remediaccedilatildeo criando situaccedilotildees em que as imagens trazem formas visuais

anteriores retrabalhadas pelo dispositivo e deixam expliacutecita a sua natureza emulada

Figura 18 - A Sudden Gust of Wind (after Hokusai) (Jeff Wall 1993)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Num estudo sobre as imagens digitais Cesar Baio (2015) faz uma retomada do

pensamento teoacuterico sobre o termo ldquodispositivordquo mostrando que as tradiccedilotildees e modelos de

pensamento contaminam as teacutecnicas para aleacutem do atributo de ineditismo que o surgimento de

88

uma nova tecnologia parece carregar54 A partir de apontamentos de vaacuterios autores percebe-se

que os dispositivos podem transmitir atraveacutes de seus aspectos teacutecnicos formas de entender o

mundo e modelos esteacuteticos reforccedilados eou enfraquecidos na praacutetica artiacutestica o que se relaciona

com a ambiguidade encontrada nos trabalhos de Wall e Gursky Ou que a imagem digital tida natildeo

como unidade mas como a estrutura de software que lhe daacute corpo pode servir agrave criaccedilatildeo de

formas especiacuteficas que decorrem do cruzamento de referenciais esteacuteticos alheios ao ambiente

digital (como no caso dos filtros e aplicativos)

Haacute dois aspectos levantados nesse debate (que o autor faz a respeito do cinema mas que

utilizamos aqui em favor da fotografia) a noccedilatildeo de que o dispositivo presta-se ao registro do

mundo e o mascaramento da presenccedila e articulaccedilotildees que ocorrem no seu interior (transparecircncia

da maacutequina) ambos aspectos naturalizados pelo espectador Esses elementos aparecem

relacionados nas obras citadas haacute pouco que empregam a tecnologia digital a serviccedilo de marcos

ideoloacutegicos da imagem indicial ldquotraccedilo do realrdquo (DUBOIS 2012) Montam cenas que se alinham

ao modelo realista que decorre do registro direto do mundo e valem-se da transparecircncia (os

processos no dispositivo natildeo satildeo detectaacuteveis) Reafirmam assim as ldquoheranccedilas ontoloacutegicas e

epistemoloacutegicasrdquo (BAIO 2015 p48) dominantes nos seacuteculos XIX e XX

Na seara dos que empregam o digital ainda ligados agrave epistemologia da imagem

fotoquiacutemica Valle (2012) realizou um levantamento bastante interessante sobre o comportamento

dos ldquofotoacutegrafos migrantesrdquo aqueles que entram no mundo da fotografia digital utilizando-a numa

correspondecircncia com padrotildees teacutecnicos comuns no paradigma analoacutegico Atraveacutes de entrevistas

ela demonstra por exemplo as frequentes comparaccedilotildees entre pixels e gratildeos entre o negativo e o

CCD entre o padratildeo ISO e a resoluccedilatildeo das cacircmeras digitais que atestam a incompreensatildeo da

natureza distinta dos sistemas e assim impedem os usuaacuterios de renovarem a linguagem visual

Outro ponto interessante indicado na pesquisa eacute que toda uma gramaacutetica utilizada por softwares e

comandos do universo da imagem digital ndash a exemplo do Photoshop e Lightroom ndash remete a

processos analoacutegicos como pintar clarear borrar desfocar associados a paracircmetros oacuteticos

materiais e quiacutemicos Esse conjunto de ferramentas utilizado no tratamento das fotografias

54 No mesmo livro o autor faz uma interessante distinccedilatildeo entre dois usos do termo ldquonovordquo o primeiro marca umaoposiccedilatildeo a algo velho que se torna ultrapassado e o segundo eacute a compreensatildeo do novo como maneiras originais ediferentes de utilizar algo jaacute conhecido ou seja reinventar reposicionar o velho em novas articulaccedilotildees estrateacutegiasEssa uacuteltima compreensatildeo estaacute bastante proacutexima de nossa maneira de rediscutir os aparecimentos e sobrevivecircnciasdas miacutedias analoacutegicas da imagem

89

estabelece ldquo(hellip) um padratildeo de ordem impedindo o desenvolvimento de novas linguagens e

induzindo o fotoacutegrafo a uma produccedilatildeo condicionada distante da exploraccedilatildeo de novas

possibilidades do numeacutericordquo (VALLE 2012 p60) A pesquisadora atesta que natildeo raro os

fotoacutegrafos usavam os mesmos recursos repetindo certas modalidades esteacuteticas

() a distacircncia entre o programador e o fotoacutegrafo usuaacuterio do programa eacute enormeEnquanto a diferenccedila entre os programas feitos para usuaacuterios descomprometidos (natildeo-fotoacutegrafos) e para fotoacutegrafos (que se pretendem criadores) satildeo miacutenimas E mais adiferenccedila de habilidades exigidas para explorar programas entre os natildeo-fotoacutegrafos e osfotoacutegrafos tambeacutem eacute miacutenima (hellip) Os artistas desbravadores de novas linguagensfotograacuteficas se igualam a usuaacuterios quaisquer quando estatildeo diante do Photoshop e doLightroom por exemplo Usam os mesmos filtros e presets Apertam os mesmos bototildeesProduzem os velhos e repetidos efeitos e imagens padronizadas (VALLE 2012 p97)

Baio (2016) nota que uma estrateacutegia adotada pela induacutestria para mascarar as

disparidades entre os sistemas analoacutegico e digital eacute o fato de as cacircmeras digitais emularem

fisicamente as analoacutegicas na medida em que a formaccedilatildeo e entrega da imagem satildeo desconhecidas

estando invisiacuteveis aos nossos olhos eacute compreensiacutevel os usuaacuterios acreditarem que praticamente

natildeo haacute diferenccedilas significativas na passagem de um modo de registro para o outro Quando o

dispositivo ecoa em sua proacutepria estrutura a tecnologia que promete superar curiosamente o

usuaacuterio repete o modo de usar tiacutepico do equipamento ldquoobsoletordquo acionando comportamentos e

esteacuteticas padronizados

Em decorrecircncia dos pontos abordados percebemos que haacute certa continuidade de aspectos

esteacuteticos na passagem do analoacutegico para o digital Que as distinccedilotildees de natureza entre os sistemas

natildeo fundam necessariamente e sempre uma renovaccedilatildeo de modos visuais fazendo com que

interroguemos o que permanece e o que se modifica para aleacutem do imperativo tecnoloacutegico na

imagem

Lister (1995 p20-21) faz uma criacutetica ao pensamento sobre certo impacto revolucionaacuterio

do digital e afirma que natildeo haacute uma ruptura clara entre este e a antiga fotografia analoacutegica porque

mesmo que se tenham novas estruturas produtoras usos e ferramentas isso tem que ser

negociado junto a ideologias e convenccedilotildees de uma cultura fotograacutefica Para noacutes esse arcabouccedilo

cultural a que o autor se refere eacute um conjunto de ideias que vai paulatinamente sendo posto e

confirmado desde o surgimento da miacutedia fotograacutefica atraveacutes de uma esteacutetica que procura

90

sublinhar certas especificidades Marcas formais das quais vaacuterios artistas natildeo se apartam

contribuindo na elaboraccedilatildeo da proacutepria histoacuteria do campo e para o destaque mais pronunciado de

alguns movimentos e estilos bem como de artistas que correspondem atraveacutes de suas obras a

esses paracircmetros de visualidade

Ao mesmo tempo em que reconhecemos mudanccedilas nos paracircmetros de circulaccedilatildeo e

transmissatildeo uma disposiccedilatildeo facilitada agraves reconfiguraccedilotildees e hibridismos mediante conexotildees com

fontes escritas sonoras e tambeacutem visuais proporcionando novos meios de interaccedilatildeo55 agrave

onipresenccedila da imagem em espaccedilos que diluem as fronteiras entre privado e puacuteblico uma

tendecircncia maior agrave intencionalidade comunicativa dessa imagem disponiacutevel em ambientes virtuais

(em detrimento de seu papel como artefato constitutivo de uma memoacuteria) devemos notar que haacute

interrogaccedilotildees no campo da fotografia que permanecem vaacutelidas e talvez por isso algumas

continuidades satildeo observadas Para Soulages (online 2017) ao lado de capacidades tiacutepicas do

digital e novos usos dessa modalidade de imagem dentre as quais ele destaca a fluidez da

circulaccedilatildeo haacute pessoas que fazem com a miacutedia digital o mesmo tipo de imagem que realizavam

com dispositivos analoacutegicos56 Aleacutem disso as preocupaccedilotildees que cercam o fotograacutefico satildeo ldquosuas

relaccedilotildees com o real o sujeito o fotografaacutevel o espaccedilo o tempordquo e elas permanecem vaacutelidas na

cultura digital tanto quanto para a imagem fotoquiacutemica

O que interessa de fato eacute como essas problemaacuteticas satildeo articuladas trabalhadas agrave luz de

tecnologias especiacuteficas e suas ferramentas como num sentido processual depois de obtido ldquoum

negativordquo ou uma ldquomatriz digitalrdquo (SOULAGES online 2017) a imagem pode ser algo diferente

de um mero registro colocar-se aleacutem de uma proposta unicamente testemunhal Ser explorada

para gerar significados ideias sensaccedilotildees diversas

55 Ritchin (2008) indica alguns exemplos de projetos desenvolvidos na internet com material fotojornaliacutestico quepromoviam uma interlocuccedilatildeo entre internautas e profissionais incluindo material multimiacutedia Ver em especialRitchin op cit p 96-139

56 Fontcuberta (2010) acredita que entre os usuaacuterios comuns a diferenccedila de uso entre dispositivos fotograacuteficosanaloacutegicos e digitais eacute praticamente igual ficando a cargo dos artistas as experiecircncias mais interessantes derenovaccedilatildeo da imagem

91

322 Tatildeo longe tatildeo perto comparaccedilotildees

Kevin Robins (1995 p38) indica aproximaccedilotildees entre analoacutegico e digital explicando que

a relaccedilatildeo entre fotografia e pensamento cartesiano (racionalista) percebe a mudanccedila tecnoloacutegica

numa linha evolutiva com anseios de aperfeiccediloamento e sofisticaccedilatildeo da imagem que se traduzem

num ideal de liberar o medium de ldquoimpurezasrdquo e que uma noccedilatildeo de ldquorevoluccedilatildeo digitalrdquo leva esse

projeto cartesiano a um estaacutegio elevado A fotografia quiacutemica e a digital compartilham a

preocupaccedilatildeo com um tipo de imagem um padratildeo que seraacute melhor alcanccedilado com a emergecircncia

de novas ferramentas tecnoloacutegicas Esse pensamento cria uma hierarquia entre velho e novo

fazendo deste uacuteltimo uma cura para as incapacidades do primeiro O digital teria a capacidade de

ultrapassar o analoacutegico ser de alguma forma superior a ele na tarefa de produzir imagens

O problema eacute que estabelecer essa dicotomia impede-nos de perceber que se troca uma

tecnologia por outra sem que se modifiquem algumas concepccedilotildees em torno da imagem Quando

natildeo se observa cuidadosamente se (e como) o contato com dispositivos que engendram uma

maneira diferente de lidar com o mundo traduzem essa relaccedilatildeo para a forma de conceber

imagens interferindo no que pensamos sentimos compreendemos a respeito delas e o que

fazemos com elas Agrave medida que o paradigma digital entra em cena apenas para aperfeiccediloar

ideias jaacute assentadas na fotografia de base quiacutemica como podemos celebrar seu poder inovador

revolucionaacuterio Mais adiante o pesquisador britacircnico observa

() significativas natildeo satildeo as novas tecnologias e imagens em si mesmas mas oreordenamento do campo visual em geral e a reavaliaccedilatildeo das culturas da imagem etradiccedilotildees que elas evocam Eacute notaacutevel que boa parte da discussatildeo mais interessante sobrea imagem agora se refere natildeo aos futuros digitais mas na verdade ao que pareciam ateacuterecentemente miacutedias antigas e esquecidas (o panorama a camera obscura oestereoscoacutepio) de nossa posiccedilatildeo vantajosa poacutes-fotograacutefica tais miacutedias de repenteadquiriram novos significados e a reavaliaccedilatildeo delas eacute agora importante para entender osignificado da cultura digital Nesse contexto parece produtivo pensar natildeo em termosde descontinuidades e disjunccedilotildees mas sim com base em continuidades atraveacutes degeraccedilotildees de imagens e atraveacutes de formas visuais (ROBINS 1995 p45)

Aqui Robins convoca a repensar a convivecircncia entre imagens fotoquiacutemicas e digitais na

tentativa de identificar o que realmente estas uacuteltimas apresentam Podemos tomar sua proposta

num sentido mais abrangente pois ele jaacute apostava que a imagem contemporacircnea num sentido

mais geral se distingue pela diversidade de modos praacuteticas ferramentas e indagar que caminhos

92

os tensionamentos de tradiccedilotildees no campo visual jaacute ocorriam nas miacutedias analoacutegicas E como eles

vecircm sendo mantidos vivos de que maneira e por quais motivaccedilotildees satildeo mantidos sobretudo nas

praacuteticas artiacutesticas Eacute possiacutevel identificarmos nas estrateacutegias da arte contemporacircnea um marco

comum que encerre o debate divisionista entre analoacutegico e digital Ateacute que ponto a tipologia do

medium eacute a questatildeo relevante para artistas interessados na experimentaccedilatildeo com as tecnologias

Onde podemos encontrar um marco conceitual que funcione como denominador esteacutetico na

promoccedilatildeo de uma imagem experimental que se vale de tecnologias diversas da imagem De que

maneiras a produccedilatildeo contemporacircnea manteacutem ativa uma reflexatildeo que contraria esses paradigmas

claacutessicos da imagem ultrapassando a divisatildeo analoacutegicodigital em favor de esteacuteticas que natildeo

obedeccedilam apenas ao marco indexical

Parente (1993) tambeacutem faz uma ressalva ao fato de a imagem de siacutentese ser vista como

uma oposiccedilatildeo radical ao regime da representaccedilatildeo No que denomina ldquoamneacutesia da histoacuteria da arterdquo

(Ibidem p21) ele lembra que movimentos de confrontaccedilatildeo a modelos dominantes sempre foram

observados no campo artiacutestico O cinema experimental a videoarte a pintura impressionista o

pontilhismo as obras de Godard Tarkovsky Resnais satildeo exemplos de alternativas ao modelo da

representaccedilatildeo57 E haacute aiacute um problema quando a transiccedilatildeo para o digital assume o papel de

condensar uma trajetoacuteria de afirmaccedilatildeo de tradiccedilotildees formais hegemocircnicas em vez de promover

verdadeiras rupturas nos modos de pensar e realizar imagens utilizando para isso seus proacuteprios

modos esteacuteticos conceituais e teacutecnicos ldquoou o virtual eacute uma imagem-acontecimento uma

imagem-devir ou eacute apenas uma determinaccedilatildeo teacutecnica sem interesse Ou melhor uma

determinaccedilatildeo teacutecnica interessada na reproduccedilatildeo social das representaccedilotildees dominantesrdquo

(PARENTE 1993 p22) Em texto datado de 2009 Parente convoca-nos a pensar que o virtual

natildeo se opotildee a um suposto real entregue pelas tecnologias fotoquiacutemicas mas que ele se torna

interessante para o campo da imagem quando figura como ponto de interrogaccedilatildeo das ideias de

verdade ligadas aos modelos representativos que de fato satildeo puras ficccedilotildees58 Num outro

57 Andreacute Parente faz referecircncia ao raciociacutenio de Deleuze (2005 2018) sobre o cinema da ldquoimagem-movimentordquobaseada na loacutegica de accedilatildeo-reaccedilatildeo (estabelecida pela forccedila da montagem da mobilidade da cacircmera da contiguidadeentre tempo-espaccedilo) e produccedilotildees da ldquoimagem-tempordquo que indicam o enfraquecimento dessa loacutegica abrindo-se atempos heterogecircneos e sobrepostos na narrativa (o sonho o devaneio) caracteriacutesticas das obras de ResnaisAntonioni entre outros Na transiccedilatildeo da imagem-movimento para a imagem-tempo haacute uma ruptura com a narrativaclaacutessica do cinema ou seja do modelo da representaccedilatildeo

58 Cf Parente Andreacute A forma cinema variaccedilotildees e rupturas In Maciel Katia Transcinemas Rio de JaneiroContracapa Livraria 2009 p 23-47

93

momento de reflexatildeo questiona uma afirmaccedilatildeo bastante comum nos debates a respeito da

imagem digital

Porque muita gente diz o seguinte quando eu produzo uma imagem de siacutentese que eacutefruto de uma simulaccedilatildeo computacional essa imagem de siacutentese natildeo diz mais respeito auma realidade preexistente No entanto ela tem a ver ainda com o processo derepresentaccedilatildeo ao contraacuterio do que se pensa Por quecirc Porque se eu testo um protoacutetipovirtual eu natildeo faccedilo mais um protoacutetipo de carro que eacute fiacutesico eu faccedilo ele virtualmente etesto ele num computador Mas se ele vai funcionar depois eacute porque justamente esseprotoacutetipo virtual representava uma seacuterie de fenocircmenos fiacutesicos (PARENTE 2009 p169)

As observaccedilotildees desses teoacutericos estatildeo alinhadas com nosso objetivo de deslocar um

pouco o debate sobre analoacutegicodigital feito em bases notadamente teacutecnicas para reposicionaacute-lo

em direccedilatildeo agraves proposiccedilotildees esteacuteticas Ou seja tentar perceber em que medida a emergecircncia de

novas bases tecnoloacutegicas serve para chacoalhar modelos de visualidade resvalando em

procedimentos e experiecircncias singulares no campo da imagem Ao mesmo tempo apontamos

uma convivecircncia entre essas obras (que satildeo objeto de nosso interesse) e trabalhos que ainda se

relacionam com padrotildees de visualidade que eram ateacute o surgimento das novas miacutedias atribuiacutedos

quase que unicamente agraves miacutedias analoacutegicas

Apontamentos de outros pesquisadores tambeacutem estabelecem alguns pontos de

interrogaccedilatildeo nessa direccedilatildeo Rogeacuterio Luz (1993) indica que natildeo haacute uma diferenccedila radical entre

analoacutegico e digital pois pensando no modelo da perspectiva centralizada ele jaacute propotildee uma

interpretaccedilatildeo do mundo que cria imagens sob um paracircmetro cientiacutefico (geomeacutetrico) Qualquer

imagem regida pela perspectiva renascentista jaacute eacute uma virtualizaccedilatildeo bidimensionada agrave luz de uma

convenccedilatildeo e aiacute imagens digitais e analoacutegicas satildeo igualmente criaccedilotildees orientadas por modelos

cientiacuteficos o que difere eacute o modelo imposto em cada eacutepoca e como a imagem incorpora seu

discurso

Reafirmo que as novas imagens satildeo um sintoma entre muitos de um determinadoestado de cultura em que a prevalecircncia da imagem resultado de sua importacircnciacognitiva em especial na arte e na ciecircncia revela uma tradiccedilatildeo problemaacutetica marcanteem nossa civilizaccedilatildeo desde o Renascimento Natildeo eacute o mundo real mas a maneira deinventar o mundo possiacutevel que aqui interessa e natildeo apenas uma perspectiva esteacuteticamas tambeacutem eacutetica e poliacutetica (LUZ 1993 p54)

94

Para o autor as mudanccedilas tecnoloacutegicas embora saudadas como ferramentas para liberar a

imagem do real continuam fazendo referecircncia a ele sob o ditame de um modelo cientiacutefico de

organizaccedilatildeo de direcionamento do olhar e como isso pode impedir a oxigenaccedilatildeo dos modos de

criar Essa compreensatildeo entra em acordo com as anaacutelises de Weissberg (1993) para quem toda

eacutepoca possui simulacros e maneiras de interpretar e a simulaccedilatildeo quando faz o real parecer aquilo

que natildeo eacute jaacute trabalha com a ilusatildeo de profundidade causada pela perspectiva geomeacutetrica

remontando ao que fazia a pintura trompe-loeil Zylinska (2017a p15-17) acompanha-os na

percepccedilatildeo de que a proacutepria visatildeo eacute um processo historicamente construiacutedo jaacute que eacute mediado por

dispositivos que sugerem um incremento dessa capacidade (o que conforma uma artificialidade

inerente tambeacutem agrave produccedilatildeo de imagens) e satildeo elaborados com base em relaccedilotildees cientiacuteficas entre

maacutequinas e corpos Ritchin (2008) assim como outros teoacutericos jaacute apresentados aqui elenca

caracteriacutesticas que a fotografia digital tem como pontos fortes entre elas natildeo-linearidade natildeo-

sincronicidade abstraccedilatildeo possibilidade de autoria muacuteltipla e a reconfiguraccedilatildeo de tempos

diferentes mas olhando para experiecircncias realizadas ao longo da Histoacuteria da fotografia tais

questotildees jaacute se colocavam para os artistas sendo trabalhadas como ponto de origem de um

pensamento sobre os limites e expansotildees do meio fotograacutefico O mesmo autor reconhece que se

por um lado a publicidade e a moda estiveram mais abertas agraves possibilidades trazidas pela

imagem digital nas artes e na documentaccedilatildeo a investigaccedilatildeo da tecnologia fez-se mais tiacutemida

Acrescente-se que segundo ele a ldquohiperfotografiardquo (digital) aleacutem de mais facilmente criada

veiculada e refeita provoca modos temporais mais elaacutesticos antagocircnicos ao ldquomomento decisivordquo

pinccedilado de um contiacutenuo agrave imagem estaacutetica que conforma um objeto palpaacutevel e que carece de

instantaneidade ndash que corresponde ao analoacutegico (RITCHIN 2008 p142)

O julgamento do autor para estabelecer uma distinccedilatildeo que valoriza o novo em

detrimento do antigo leva em consideraccedilatildeo principalmente os efeitos de distribuiccedilatildeo decorrentes

da maneira de se produzir a imagem sem contudo entender que ideias de congelamento do

tempo da imagem uacutenica e restrita ao paradigma do clique sem modificaccedilotildees do material

capturado natildeo satildeo marcos exclusivos da tecnologia analoacutegica mas de um tipo de interpretaccedilatildeo

da fotografia Natildeo foi o surgimento do digital que oportunizou o intercacircmbio entre fotografia e

outras artes ou a exploraccedilatildeo de regimes temporais que oscilam entre estaacutetico e moacutevel mas para

Ritchin (2008 p180-182) a fotografia convencional possui uma temporalidade contiacutenua pouca

abertura para a ambiguidade ndash estaria de certa forma presa agrave ideia de retratar uma verdade ndash e

95

frente ao digital restaria para ela o reconhecimento de ter servido agrave documentaccedilatildeo histoacuterica e

possuir uma singularidade comparaacutevel agrave da pintura

Ao lado do entusiasmo em relaccedilatildeo ao potencial de interatividade e autoria compartilhada

de produccedilatildeo Ritchin acredita que num ambiente multimiacutedia a fotografia beneficia-se do uso mais

democraacutetico traduzido na oferta de conteuacutedo mais igualitaacuteria plural e qualitativa do ponto de

vista informativo Nos seus argumentos haacute uma crenccedila na forccedila poliacutetica que a imagem fotograacutefica

pode adquirir nessa conjuntura de digitalizaccedilatildeo mas de uma perspectiva esteacutetica esse debate eacute

pouco explorado

As contribuiccedilotildees desses autores levam a crer que colocar em debate os sistemas

analoacutegico e digital eacute um exerciacutecio de compreender e pontuar caracteriacutesticas diferenciadoras e

paralelamente manter uma atenccedilatildeo a questotildees onde se verificam continuidades Em outras

palavras as mudanccedilas teacutecnicas e epistemoloacutegicas que acompanham a passagem do analoacutegico

para o digital nem sempre significam o abandono de convenccedilotildees assentadas em nossa cultura

visual embora apareccedilam trabalhadas pelos artistas a partir de chaves discursivas do paradigma

digital

323 Arqueologia da miacutedia e investigaccedilotildees do medium

Satildeo importantes para a anaacutelise proposta nesta tese a busca de caminhos teoacutericos que na

aacuterea da comunicaccedilatildeo contribuam para relativizar essa hierarquia entre meios analoacutegicos e as

ldquonovas miacutediasrdquo Ao mesmo tempo em que diversos dos artistas que integram nosso corpus

seguem trabalhando com miacutedias analoacutegicas e digitais num interessante cruzamento que beneficia

o campo da esteacutetica interessam-nos perspectivas capazes de apaziguar o debate que prioriza

certos dispositivos em detrimento de outros Assim destacamos o papel da abordagem

arqueoloacutegica da miacutedia As ideias de autores como Jussi Parikka (2012) e Siegfried Zielinski

(2006) a respeito de uma continuidade entre tecnologias demonstram natildeo apenas uma criacutetica agrave

supervalorizaccedilatildeo do progresso teacutecnico mas propotildeem observar como miacutedias antigas e novas se

assemelham em seus propoacutesitos mesmo que separadas no tempo Se Leacutevy (Ibidem) por

exemplo utilizou o hipertexto para falar de como formas de comunicaccedilatildeo antigas podem se

condensar num dos principais elementos da cibercultura para Zielinski (2006 p49) a internet

96

tambeacutem eacute local de convivecircncia das miacutedias anteriores que permanecem em uso natildeo sendo

completamente abandonas por forccedila da informaacutetica

A partir da recusa de apontar tendecircncias dominantes meios hegemocircnicos ou mais

eficientes a abordagem arqueoloacutegica da miacutedia sugere compreender a tecnologia num sentido

natildeo-evolucionista adotando entatildeo uma compreensatildeo relacional dos meios de uma constante

hibridizaccedilatildeo entre velho e novo (GANSING 2016) Atraveacutes do resgate histoacuterico de vaacuterias

experiecircncias desenvolvidas em eacutepocas distintas (seacuteculos XVII XVIII XIX) Zielinski (Ibidem)

demonstra que autocircmatos instrumentos musicais de estrutura extremamente sofisticada coacutedigos

desenvolvidos para ocultar informaccedilotildees dispositivos de produccedilatildeo de imagens e fantasmagorias

entre outras invenccedilotildees possuiacuteam as mesmas funccedilotildees das tecnologias audiovisuais e informaacuteticas

atuais registrar o mundo concreto dar forma ao invisiacutevel compor e reproduzir sons criptografar

dados fazer caacutelculos enviar e receber informaccedilotildees comunicar agrave distacircncia etc

Aleacutem desses nomes diretamente ligados ao campo da arqueologia da miacutedia consideramos

a notaacutevel contribuiccedilatildeo de pesquisadores como Lev Manovich e seus estudos de software (2013)

atraveacutes de sua reflexatildeo a respeito do computador como dispositivo capaz de reposicionar

caracteriacutesticas de miacutedias fiacutesicas ao mesmo tempo em que agrega atributos tiacutepicos dos sistemas

informaacuteticos Essa questatildeo que perpassa toda a discussatildeo proposta pelo estudioso russo tem

grande relevacircncia no debate em que nos inserimos no tocante aos movimentos esteacuteticos ligados agrave

imagem A noccedilatildeo desse caraacuteter dual do computadorsoftware incorpora o pensamento

arqueoloacutegico da miacutedia ao afirmar uma ligaccedilatildeo por exemplo entre miacutedias fiacutesicas ndash pintura o

cinema a fotografia a escrita ndash e os processos realizados pelo software que nos ajuda a

compreender natildeo apenas a relaccedilatildeo entre coacutedigos visuais realistas e os usos dos dispositivos

digitais mas tambeacutem a apropriaccedilatildeo de diversos estilos e marcas desses meios analoacutegicos por

softwares dedicados agrave manipulaccedilatildeo da imagem na contemporaneidade

Tambeacutem a jaacute citada proposta em torno da ldquofotografia natildeo-humanardquo desvia-se de uma

ecircnfase na tipologia da miacutedia para focar-se nas formas de apropriaccedilatildeo dos diversos dispositivos e

materiais que se constituem em imagens pensando a fotografia como uma praacutetica vital A partir

de uma compreensatildeo bioloacutegica e geoloacutegica da fotografia ela estabelece que o universo de suas

imagens eacute povoado de artefatos nos quais a luz se registra inscrevendo-se em suportes os mais

variados ldquoO reconhecimento do papel formativo da luz atraveacutes de diferentes periacuteodos (em

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foacutesseis impressotildees fotogramas frames de negativos e imagens digitais) tambeacutem nos ajuda a

levar o debate para aleacutem do binarismo analoacutegico-digitalrdquo (ZYLINSKA 2017a p7) Assinale-se

que esta abordagem eacute bastante interessante pois na medida em que enxerga certa autonomia dos

dispositivos de imagem abre caminho para a consideraccedilatildeo de esteacuteticas natildeo-convencionais

acionadas pela experimentaccedilatildeo com a proacutepria miacutedia

A perspectiva da arqueologia da miacutedia tambeacutem ecoa uma vontade de olhar para o

passado das teacutecnicas ou melhor dizendo para as teacutecnicas do passado em busca de novos

caminhos criativos ldquoNatildeo procuremos o velho no novo mas encontremos algo novo no velhordquo

(ZIELINSKI 2006 p19) Essa atitude eacute sintomaacutetica dosdas artistas incluiacutedos em nosso corpus

que se voltam para redescobrir teacutecnicas antigas da imagem (como pinhole camera obscura

daguerreoacutetipo panorama diapositivo) sem traccedilos de saudosismo mas em busca de experiecircncias

que possam reinventar coacutedigos e metodologias ou mesmo para o uso de dispositivos de imagem

analoacutegicos ou eletrocircnicos em conjunto com o computador Acreditamos que encarar o universo

da imagem contemporacircnea atraveacutes de uma perspectiva arqueoloacutegica da miacutedia permite-nos

considerar igualmente feacutertil todo um conjunto de obras que aproveita tecnologias antigas e novas

da imagem para indicar como estas satildeo apropriadas em favor do vieacutes ldquoexperimentalrdquo (LENOT

2017) do fotograacutefico Nesse sentido alguns estudiosos e estudiosas partindo de uma visatildeo mais

horizontal das miacutedias convocam a reconsiderar dicotomias tatildeo marcadas entre analoacutegico e

digital Cruz e Oliveira (2009) indicam a importacircncia demasiada atribuiacuteda aos aspectos teacutecnicos

na teorizaccedilatildeo sobre a fotografia digital fazendo com que as diferenccedilas encobrissem as

continuidades ao mesmo tempo em que as teses de indexicabilidade permaneciam bastante

associadas ao paradigma analoacutegico As autoras acrescentam que por forccedila do digital abrem-se

novas possibilidades de compreensatildeo da imagem e ao mesmo tempo se pode repensar a miacutedia

analoacutegica

Fatorelli (2017) faz observaccedilotildees que nos orientam a pensar em uma pluralidade esteacutetica

mais alinhada com aberturas da proacutepria fotografia independente da miacutedia empregada Para ele a

imagem fotograacutefica tem uma dupla condiccedilatildeo que a faz por vezes aproximar-se do referente e

outras vezes apartar-se dele e partindo de experimentos variados no acircmbito do proacuteprio

dispositivo acaba por gerar uma realidade proacutepria centrada em processos teacutecnicos Podemos aqui

enumerar rapidamente alguns nomes que utilizando exclusivamente ou natildeo materiais

fotograacuteficos acabaram desenvolvendo trabalhos que nos ajudam a pensar essa condiccedilatildeo maleaacutevel

98

da imagem que vai do figurativo ao abstrato Paolo Gioli Andy Warhol Marey Jacques-Henri

Lartigue Geraldo de Barros Esses artistas buscaram investigar os limites e vizinhanccedilas entre

fotografia e outros modos visuais brincando com as formas o tempo as luzes os materiais

Construiacuteda em torno de uma funccedilatildeo ldquoapresentativardquo em detrimento de uma funccedilatildeo

ldquorepresentativardquo a fotografia se vale de praacuteticas como a apropriaccedilatildeo de outras imagens a criaccedilatildeo

de cenaacuterios especiacuteficos para serem registrados pela cacircmera a tomada de empreacutestimo de modos de

outras artes como cinema pintura performance teatro e literatura (FATORELLI 2017)

tendecircncias que ganharam corpo e hoje seguem como marcas significativas da produccedilatildeo

contemporacircnea Esse espaccedilo eacute coabitado pelas miacutedias analoacutegicas e digitais com propostas de uso

exclusivo mas tambeacutem de cruzamentos

Tambeacutem Zylinska (2017a) quando propotildee uma definiccedilatildeo de fotografia como processo de

registro da luz por meio de diversos aparatos (cacircmeras scanners sateacutelites e corpos vivos)

afirmando que esse processo eacute de ldquotraduccedilatildeordquo e natildeo de ldquotranscriccedilatildeordquo apaga a necessidade de uma

diferenciaccedilatildeo entre sistemas analoacutegicos e digitais e propotildee ainda que a imagem fotograacutefica seja

aceita como algo novo uma realidade especiacutefica e natildeo uma reacuteplica do mundo concreto Todas

essas observaccedilotildees ajudam-nos a lanccedilar um olhar sobre trabalhos recentes com ecircnfase nas

experiecircncias com os meios e na articulaccedilatildeo entre eles

Andreas Muumlller-Pohle eacute um artista alematildeo cujo trabalho desenvolve uma pesquisa criacutetica

em torno deste vieacutes ldquorepresentativordquo da imagem discutindo a arraigada ideia de que aquela

guarda correspondecircncia de semelhanccedila com o mundo material Ele reconhece que ainda muito da

produccedilatildeo em digital natildeo passa de ldquosimulaccedilotildees e kitschificaccedilotildees de imagens analoacutegicasrdquo

(MUumlLLER-POHLE 1996) e problematiza o status realista tanto em projetos de base analoacutegica

quanto digital o que estaacute de acordo com as afirmaccedilotildees a respeito de uma abertura ao muacuteltiplo ser

inerente ao fotograacutefico

Em Digital Scores (after Niceacutephore Nieacutepce) de 1995ndash1998 (figuras 19 e 20) ele

digitaliza a claacutessica View from the window (Joseph Niceacutephore Nieacutepce 1826) A informaccedilatildeo

contida na paisagem retratada atraveacutes de um meacutetodo fiacutesico-quiacutemico daacute origem a um montante de

sete milhotildees de bytes que traduzida em dados binaacuterios eacute distribuiacuteda em oito partes O que vemos

eacute literalmente a informaccedilatildeo que a imagem carrega num diaacutelogo irocircnico que potildee lado a lado o

siacutembolo pioneiro dos esforccedilos do pensamento cientiacutefico para fixar visualmente o mundo ndash o

99

palpaacutevel o acabado o material ndash e sua total desmaterializaccedilatildeo num conjunto disforme abstrato

sem nenhuma relaccedilatildeo esteacutetica como aquilo que o originou O computador atua como ferramenta

que expotildee a estrutura mesma dos coacutedigos com os quais opera59 A obra Digital scores eacute

informaccedilatildeo pura e demonstra uma disposiccedilatildeo do artista em conceituar o proacuteprio meio a imagem

de Niegravepce eacute o ponto de partida para uma reflexatildeo sobre a fotografia em geral e os resultados satildeo

decisotildees esteacuteticas da maacutequina (BATCHEN 2002 p177)

No projeto Cyclograms (1991-1994) (figuras 21 e 21a) a ideia baacutesica tambeacutem parte de

imagens previamente selecionadas para criar algo diferente Vaacuterias fotos satildeo picotadas e os

pedaccedilos jogados num recipiente que conteacutem revelador fotograacutefico O interior do recipiente eacute

revestido com papel fotograacutefico Agrave medida que tudo se mistura os pedaccedilos de imagens vatildeo

manchando o papel criando fotogramas Novas imagens surgem por meio da destruiccedilatildeo das

anteriores Meacutetodo e materiais analoacutegicos satildeo empregados num processo de reciclagem onde o

resultado final eacute uma surpresa e o substrato original desgarrou-se de seus contextos intenccedilotildees e

usos Esse rearranjo eacute alheio agrave centralidade de um dispositivo de registro pois a presenccedila da

cacircmera ficou laacute atraacutes (nas fotos retalhadas) sendo relativizada em relaccedilatildeo aos demais materiais

empregados (o revelador o papel) Haacute ainda uma liberdade envolvida no processo de obtenccedilatildeo

das imagens que se assenta num certo niacutevel de descontrole ldquoEm muitas das obras de Muumlller-

Pohle o acaso assume uma funccedilatildeo importante no vir-a-representar pictoacuterico que termina em

indeterminaccedilatildeo isto eacute quando a imagem testemunha pictorialmente uma reaccedilatildeo de maneira

imprevisiacutevel60rdquo (VON AMELUNXEN 1999 traduccedilatildeo nossa)

59 Muumlller-Pohle tem outro trabalho que resulta da interface analoacutegicodigital a instalaccedilatildeo Analog-Digital Mirror(2004) na qual a imagem capturada por uma cacircmera de viacutedeo perde a forma e transforma-se em nuacutemeros e letras deacordo com o movimento de quem interage com o sistema Disponiacutevel em httpmuellerpohlenetprojectsanalog-digital-mirror Acesso em 19092018

60 Traduccedilatildeo livre de ldquoIn many of Muumlller-Pohlersquos works chance assumes an important function in the pictorialcoming-to-be that ends in indeterminateness that is when the image pictorially testifies to a reaction in anunforeseeable mannerrdquo

100

Figuras 19 e 20 - Digital scores I e Digital scores IV (Andreas Muumlller-Pohle 1995-98)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

A obra do alematildeo exemplifica uma forma de pensar a fotografia como artefato que pode

se reinventar contrariando modelos ou regras de procedimentos ligados agrave proacutepria tecnologia que

por sua vez contribuem para revisitar sob diversas metodologias paradigmas sempre caros agrave

imagem conforme nos lembrou Soulages (online 2017)

Junto a ele podemos colocar todo um grupo de artistas que em vez de contentarem-se em

reafirmar o debate em torno do mimetismo da veia testemunhal da imagem preferem

experimentar com equipamentos e conceitos produzindo uma esteacutetica implicada pelos rearranjos

do proacuteprio dispositivo Haacute um despojamento na elaboraccedilatildeo da imagem ligado a um fazer dotado

de curiosidade mais interessado em deixar que os materiais se misturem sem controle riacutegido e

seu valor reside tambeacutem no elemento surpresa

101

Figuras 21 e 21a - Cyclograms 521994 (Andreas Muumlller-Pohle1994)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

O que parece seguro apontar eacute que no campo da imagem miacutedias analoacutegicas eletrocircnicas e

digitais compartilham um espaccedilo de convivecircncia e utilizaccedilatildeo em diferentes praacuteticas que vatildeo do

acircmbito artiacutestico ao vernacular com empreacutestimos e (re)posicionamentos que acontecem sobretudo

pela maleabilidade proacutepria da fotografia Ao mesmo tempo esforccedilos de repensar alguns

paradigmas baacutesicos da fotografia ndash sua condiccedilatildeo de imagem uacutenica fixa e mimeacutetica entre outras

questotildees ndash natildeo satildeo exclusivos das miacutedias digitais nem tatildeo pouco satildeo catalisados apenas quando

elas surgem Eles jaacute se verificavam entre alguns pioneiros da fotografia61 portanto num momento

em que o digital sequer sonhava aparecer e satildeo revisitados por artistas que na atualidade

trabalham tambeacutem com a miacutedia analoacutegica De maneira mais generalizante parece que o espaccedilo

da fotografia contemporacircnea eacute afetado pela convivecircncia entre formatos com tendecircncias tanto de

hibridizaccedilatildeo de contaminaccedilotildees de empreacutestimos e reposicionamento de paradigmas e esteacuteticas

61 Fatorelli (2006) faz referecircncia ao movimento pictorialista ao flou das fotografias de Julia Margaret Cameron edos movimentos da vanguarda europeia da deacutecada de 1920 como exemplos de confrontaccedilatildeo de uma fotografialdquopurista e diretardquo um debate que se aprofunda em outros textos do autor

102

quanto de fetichizaccedilatildeo de esteacuteticas antigas e da ressignificaccedilatildeo de tecnologias vistas como

obsoletas e de teacutecnicas claacutessicas da imagem num movimento que vai das alianccedilas aos

afastamentos com a mesma fluidez

Contudo parece que o reconhecimento de uma atitude mais criacutetica ao medium como algo

capaz de influenciar a busca por novas esteacuteticas aleacutem da representaccedilatildeo eacute algo que se torna mais

presente no debate acadecircmico e artiacutestico a partir exatamente do entendimento paralelo de que 1)

a fotografia eacute plural mas sua histoacuteria tem zonas de sombra por vezes negligentemente

exploradas principalmente no diaacutelogo com outras artes da imagem 2) a tocircnica de abertura do

fotograacutefico eacute uma caracteriacutestica que jaacute vinha sendo demonstrada passando a ser aceita com mais

evidecircncia porque a discussatildeo a respeito do que caracteriza a fotografia retorna agrave medida que vai

se instituindo o paradigma digital e se procura desvendar o que muda e o que permanece das

teses claacutessicas que conformam a teoria do meio

103

4 RUIacuteDO ERRO E IMAGEM

ldquoE aquilo que nesse momento se revelaraacute aos povosSurpreenderaacute a todos natildeo por ser exoacuteticoMas pelo fato de poder ter sempre estado ocultoQuando teraacute sido o oacutebviordquo - Um iacutendio Caetano Veloso

41 FOTOGRAFIA Eacute RUIacuteDO PARA ALEacuteM DE ESPECIFICIDADES TECNOLOacuteGICAS

O exerciacutecio de revisitar ideias e paradigmas que marcam a histoacuteria da imagem em busca

de pontos cruciais para alguns teoacutericos no momento de emergecircncia da cultura numeacuterica tem um

sentido praacutetico que sustenta nossa criacutetica a um discurso de ruptura servindo para reconhecer

juntamente a alguns pesquisadores aqui citados que haacute em grande medida uma continuidade de

processos e formas visuais conectando as tecnologias fotoquiacutemicas e digitais Reconhecido esse

caraacuteter (em diversas praacuteticas de hibridismo apropriaccedilotildees emulaccedilotildees remixagens) que orienta o

pensamento sobre a imagem na direccedilatildeo das continuidades dos atravessamentos e das

contaminaccedilotildees pode-se tambeacutem evocar uma revalorizaccedilatildeo de praacuteticas claacutessicas da imagem

contribuindo para a um movimento de afirmaccedilatildeo de toda uma esteacutetica marcada pela emergecircncia

do erro do ruiacutedo do acaso do imprevisiacutevel como elementos criativos Um emprego criacutetico e natildeo

convencional de teacutecnicas da imagem fotoquiacutemica e do computador na realizaccedilatildeo de obras que

centram sua potecircncia em desconstruir noccedilotildees associadas agrave ldquoforma fotografiardquo (FATORELLI

2013) ao ldquophotographic standardrdquo (ZYLINSKA 2017a) com seus paracircmetros de

enquadramento riacutegidos iluminaccedilatildeo correta com equiliacutebrio de luz e sombras e nitidez marcada

Traccedilos alinhados ao vieacutes mimeacutetico da imagem com raiacutezes na construccedilatildeo perspectivista da

realidade

Eacute interessante notar que o foco recente nas noccedilotildees de erro e ruiacutedo emerge junto agraves

consideraccedilotildees sobre o paradigma digital e a partir dos estudos de vaacuterios pesquisadores

104

(HAINGE 2013 NUNES 2011 FELINTO 2013 KRAPP 2018) comeccedila a ser considerado

questatildeo essencial para criaccedilatildeo artiacutestica neste ambiente Mas aqui embora reconhecendo essa

valorizaccedilatildeo como questatildeo fortemente ligada agrave cultura dos artefatos informaacuteticos queremos

afirmar as noccedilotildees de erro e ruiacutedo tomadas como potecircncias esteacuteticas tambeacutem nos trabalhos

realizados a partir de miacutedias fotoquiacutemicas Ou seja se incialmente houve uma preocupaccedilatildeo em

diferenciar obras realizadas com equipamentos analoacutegicos e digitais buscando traccedilos de uma

certa esteacutetica diferencial ndash tratada como hiper-realista apontada como desvinculada do mundo

concreto ou ainda como pertencente ao acircmbito da pura simulaccedilatildeo de uma inteligecircncia maquiacutenica

ndash hoje vemos o reposicionamento do debate sobre as materialidades (enfoque trazido pelo campo

das materialidades da comunicaccedilatildeo) e a partir disso podemos entender como a percepccedilatildeo do

ruiacutedo eacute na verdade a inscriccedilatildeo o traccedilo da materialidade que compotildee as miacutedias sejam elas digitais

ou analoacutegicas Para noacutes eacute especialmente relevante o fato de que o tema do ruiacutedo como resultado

de experiecircncias diversas com tecnologias da imagem vem horizontalizar possiacuteveis separaccedilotildees

entre as miacutedias analoacutegicas e digitais pois parece convergir nas praacuteticas artiacutesticas que aparecem

em nosso trabalho Na medida em que manifestam o desejo de extrair das teacutecnicas materiais e

equipamentos resultados pouco convencionais assistimos ao emprego de miacutedias ldquoobsoletasrdquo em

meio agrave cultura digital e tambeacutem agrave exploraccedilatildeo conjunta de tecnologias digitais e analoacutegicas em

obras de esteacuteticas hiacutebridas e de vieacutes fortemente experimental por vezes satildeo difiacuteceis de rotular

Hainge (2013 p211) ndash um dos autores principais na abordagem aqui proposta sobre as

relaccedilotildees entre ruiacutedo e imagem ndash lembra que as teorias de indexicabilidade consideraram a

fotografia essencialmente um produto de suas tecnologias desconsiderando singularidades e a

multiplicidade das praacuteticas inscritas na historiografia do meio e propotildee discutir uma ontologia da

fotografia apostando em sua ldquonatureza expressivardquo ldquopolimorfardquo sem necessitar da separaccedilatildeo

entre analoacutegico e digital Para ele jaacute natildeo fazem mais sentido as distinccedilotildees desse tipo Ao detalhar

sua proposta e como atentar para o ruiacutedo na fotografia afirma

Concebida dessa maneira natildeo haacute porque estabelecer uma relaccedilatildeo necessariamenteindexical entre realidade externa e imagem fotograacutefica dessa realidade nem uma divisatildeoontoloacutegica entre fotografia analoacutegica e digital () O ruiacutedo eacute expresso em todafotografia se este for tomado como expressatildeo especiacutefica da operaccedilatildeo geral pela qual a

105

imagem se torna uma distribuiccedilatildeo de zonas diferenciais Mas nem todas as fotografiastrazem esse aspecto expressivo da imagem num mesmo grau62 (HAINGE 2013 p234)

Eacute importante delimitar que para o autor o ruiacutedo expotildee uma relaccedilatildeo diferencial tanto do

ponto de vista da feitura da imagem (seus arranjos apropriaccedilotildees de elementos diversos

manipulaccedilotildees recriaccedilotildees hibridismos etc) quanto da percepccedilatildeo desses procedimentos jaacute que a

imagem na qual o ruiacutedo eacute notado tem a capacidade de bagunccedilar modelos perceptivos

estabelecidos Eacute por isso que quando nos reportamos aos trabalhos de Wall e Grusky buscamos

contrastaacute-los com as experiecircncias de Muumlller-Pohle na medida em que estas uacuteltimas nos parecem

atingir esse lugar das imagens com niacutevel de ruiacutedo mais evidente Ou melhor onde o artista parece

compreender o ruiacutedo como princiacutepio originaacuterio de uma esteacutetica e que isso decorre de uma

aproximaccedilatildeo extrema da mateacuteria formadora da imagem Enquanto as fotografias de Wall e

Gursky principalmente resultam de vaacuterias manipulaccedilotildees elas continuam filiadas a um modelo

visual que prioriza o conteuacutedo e uma ldquoesteacutetica da transparecircncia supostamente livre de ruiacutedordquo

(HAINGE 2013) ao passo que Muumlller-Pohle constroacutei a obra em torno da proacutepria informaccedilatildeo que

forma eacute a substacircncia da imagem Hainge tambeacutem entende que a analogia direta entre imagem e

referente esconde o processo e o ruiacutedo na sua anaacutelise eacute essencialmente um fenocircmeno processual

ou seja que se revela em meio agraves experiecircncias com a miacutedia que o produz

Especificamente no capiacutetulo que dedica agrave fotografia Hainge sugere que seu estudo seja

feito a partir do tema do ruiacutedo atentando para este como marca dos processos envolvidos na

elaboraccedilatildeo da imagem e sem preocupaccedilotildees com a correspondecircncia entre referente e imagem que

tanto interessou alguns pensadores claacutessicos da fotografia Se o ruiacutedo eacute o ponto de partida da

investigaccedilatildeo a respeito da imagem fotograacutefica a tecnologia utilizada bem como a divisatildeo entre

analoacutegico e digital tornam-se menos importantes pois a imagem comeccedila a ser observada como

lugar de exploraccedilatildeo de artifiacutecios que caminham na direccedilatildeo da abstraccedilatildeo em detrimento da

verossimilhanccedila A imagem seria um espaccedilo de reflexatildeo sobre o mundo seus sujeitos e a proacutepria

tecnologia com cada uma dessas instacircncias tomadas conjuntamente A partir do momento em

62 Traduccedilatildeo livre de ldquoConceived of this way there is no reason to posit a necessarily indexical relation between anexternal reality and the photographic image of that reality nor an ontological divide between silver-gelatin anddigital photography (hellip) Noise of course is expressed in every photography if noise is taken to be the expressionspecific to the operation by which the image comes to be as a distribution of differential zones But not everyphotography makes us attend to this expressive aspect of the image to the same degreerdquo

106

que recusa as distinccedilotildees analiacuteticas baseadas no tipo de tecnologia empregado Hainge aproxima-

se de Flusser (20112008) para quem o universo das imagens goza de uma autonomia e

singularidade natildeo associadas agrave reproduccedilatildeo fidedigna do mundo possibilitando olhar para a

fotografia a partir de seus processos

O que acho importante sobre esses insights eacute que permitem uma reflexatildeo sobre afotografia como modo particular de produccedilatildeo da imagem que eacute capaz de ultrapassar adivisatildeo entre fotografia baseada em filme e digital de uma maneira que natildeo podeocorrer se nos fixamos nos aspectos fotoquiacutemicos da foto tradicional ou natranscodificaccedilatildeo que ganha espaccedilo com a digitalizaccedilatildeo da imagem Na verdade o queFlusser nos indica acredito eacute que a fotografia longe de ser uma manifestaccedilatildeo do real eacutemeramente a arte da composiccedilatildeo da imagem do arranjo de cores ou tons em um espaccedilobidimensional Como tal a fotografia estaacute sempre preocupada com seu proacuteprio statusenquanto uma miacutedia visual mesmo quando tenta ser um documento e apaga a si mesmanum esforccedilo para falar sobre o mundo de uma maneira transparente63 (HAINGE 2013p 213)

O autor segue argumentando que a fotografia eacute uma miacutedia essencialmente ruidosa que

relaciona (em favor da expressividade) a subjetividade humana e a objetividade tecnoloacutegica e

que nem a subjetividade humana nem a objetividade da maacutequina satildeo puras a primeira eacute

contaminada pelos princiacutepios da tecnologia e a segunda eacute semi-autocircnoma dobrando-se

frequentemente agraves interferecircncias humanas no seu funcionamento (HAINGE 2013 p226) O

cerne dessas afirmaccedilotildees nos conecta de novo a Flusser que pensa os viacutenculos entre ldquoaparelhosrdquo e

seres humanos na linha de um intercacircmbio positivo embora cheio de descontinuidades Para o

filoacutesofo tcheco eacute nessa simbiose que estaacute a chave da criaccedilatildeo mais libertaacuteria frente aos

ldquoprogramasrdquo jaacute instituiacutedos nos aparelhos pois ele enxerga um espaccedilo de negociaccedilatildeo por meio da

63 Traduccedilatildeo livre de ldquoWhat I think is important about these insights is that they enable a reflection on photographyas a particular way of producing the image that is able to bridge the divide between film-based and digitalphotography in a way that cannot be done if one fixates on the photochemical aspects of traditional photography oron the flipside the transcoding that takes place in the digitization of the image Indeed what Flusserrsquos pointsindicate to us I feel is that photography far from being a manifestation of the real is merely the art of imagecomposition of arranging colours or tones in two-dimensional space As such photography is always concernedwith its own status and being as a visual medium even when tries to be a document and struggles to efface itself inorder to tell us something transparent about the worldrdquo

107

ideia de ldquojogordquo Satildeo as estrateacutegias adotadas pelos fotoacutegrafos experimentais64 na condiccedilatildeo de

jogadores que vatildeo nos revelar entatildeo o coeficiente de ruiacutedo das imagens

Influenciada tambeacutem pela visatildeo flusseriana da ligaccedilatildeo entre seres humanos e os

dispositivos Zylinska (2017a) propotildee uma filosofia poacutes-humana da imagem fotograacutefica na qual

ressalta a importacircncia de todo um universo imageacutetico forjado pelo desempenho autocircnomo de

maacutequinas criadoras de imagem Drones aparelhos de raio-x cacircmeras do Google Earth e Google

Street View a microfotografia o scanner o QR code ou mesmo acoplagens desenvolvidas para

captura sem a perspectiva ocular humana65 fazem parte desse universo de equipamentos

responsaacuteveis por caracterizar a fotografia-natildeo humana A partir do que propotildee Flusser sobre o

automatismo e programa dos aparelhos Zylinska afirma ainda que na verdade toda fotografia

possui uma dimensatildeo natildeo-humana que em sua opiniatildeo tem der ser explorada para contrapor-se agrave

noccedilatildeo de imagem como mera reproduccedilatildeo do real ldquo() essa abordagem eacute um desafio agrave orientaccedilatildeo

tiacutepica da teoria fotograacutefica para a indexicabilidade a representaccedilatildeo e a preservaccedilatildeo de traccedilos da

memoacuteria Ela tambeacutem chama atenccedilatildeo para os esforccedilos natildeo-representacionais da criaccedilatildeo

fotograacutefica66rdquo (ZYLINSKA 2017a p4)

Ora se nosso foco se volta para a emergecircncia do ruiacutedo na imagem contemporacircnea fica

difiacutecil manter um debate que ainda aposte em especificidades conectadas a um pensamento que

entende as imagens a partir de diferenccedilas nitidamente demarcadas entre as tecnologias Claro que

podemos apontar ruiacutedos que satildeo inscriccedilotildees das caracteriacutesticas de determinados meios mas pensar

neles em termos de exclusividades como se fosse possiacutevel identificaacute-los somente em obras

realizadas por meios analoacutegicos ou digitais natildeo eacute o caso

64 Utilizamos aqui a expressatildeo ldquofotoacutegrafos experimentaisrdquo no sentido senso comum de artistas que promovemexperiecircncias diversas com as tecnologias da imagem contudo assinalamos que o proacuteprio Flusser (2011) utiliza essestermos no mesmo sentido empregado aqui para falar dos indiviacuteduos capazes de confrontar o ldquoprogramardquo doldquoaparelhordquo

65 A autora daacute interessantes exemplos de projetos nesse sentido destacando a criaccedilatildeo de pombo-cacircmera (1908)CfZylinska2017 p16-17 Podemos acrescentar a este exemplo o documentaacuterio Leviathan (Lucien Castaing-Tayloramp Verena Paravel2012) que propotildee a imersatildeo no ambiente de uma embarcaccedilatildeo de pesca o filme tem diversasimagens capturadas por cacircmeras deixadas no chatildeo do conveacutes mergulhadas na aacutegua ou posicionadas para registrar omovimento sobre as ondas do mar para referir respectivamente o ponto de vista de peixes aves do navio O trailerdo filme estaacute disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=ADiDMEnDmTQ Acesso em 041119

66 Traduccedilatildeo livre de ldquoThrough this framework it challenges the typical orientation of photography theory towardindexicality representation and the preservation of memory traces It also shifts attention to the non-representational acts of photographic creationrdquo

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Parece importante no escopo de nossa pesquisa compreender que muitos dos artistas aqui

citados estatildeo interessados em teacutecnicas analoacutegicas da imagem tanto pela afinidade que possuem

em manipular insumos materiais e equipamentos como pela possibilidade de recolocar um

interesse pela questatildeo da materialidade em seus trabalhos Aleacutem de imprimirem a esse uso de

tecnologias ldquoobsoletasrdquo um olhar bastante conectado aos modos de operar e sentir de uma

sociedade que se comunica trabalha e se expressa em rede Natildeo se verifica uma atitude

saudosista ou romantizada frente aos dispositivos mas o emprego criativo que os submete aos

usos mais diversos e em vaacuterios casos as obras demandam ferramentas e estrateacutegias trazidas pela

cultura digital

Desse modo o tom geral eacute das alianccedilas entre esteacuteticas maacutequinas sistemas visotildees de

mundo que atuam na criaccedilatildeo artiacutestica no campo da imagem de uma maneira agraves vezes anaacuterquica e

desapegada de preocupaccedilotildees com a especificidade do medium utilizado Ao mesmo tempo esse

olhar tardio para modos de fazer da imagem jaacute datados pode constituir uma estrateacutegia criacutetica aos

automatismos embutidos nas praacuteticas da imagem como lembra Fontcuberta (2010)

A recuperaccedilatildeo de meios e de uma esteacutetica jaacute ldquosuperadardquo se legitima com um novo usocriacutetico que ironiza precisamente os objetivos programaacuteticos que guiaram esses meios eessa esteacutetica O que antes era um acidente agora eacute um efeito voluntaacuterio Os defeitos setransformarem em signos intencionais faz parte de uma evoluccedilatildeo da consciecircncia Trata-se sem duacutevida da saiacuteda para um processo de esgotamento e saturaccedilatildeo paulatina(FONTCUBERTA 2010 p71)

Esse eacute o intuito mais especiacutefico desta tese demonstrar que haacute uma tendecircncia no campo da

imagem apontando para a reflexatildeo sobre paradigmas claacutessicos a partir da exploraccedilatildeo das

tecnologias de investigaccedilotildees artiacutesticas dirigidas aos proacuteprios meios e que podemos compreendecirc-

las esteticamente a partir dos conceitos de ldquoruiacutedordquo e ldquoerrordquo Essas concepccedilotildees tomadas num

sentido de pluralidade formal atingem igualmente as obras realizadas no tracircnsito entre

dispositivos analoacutegicos eletrocircnicos e digitais desterritorializam os lugares do cinema da

fotografia do viacutedeo da pintura e em alguns casos contribuem para (re)afirmar o lugar da

materialidade no campo da comunicaccedilatildeo Ao que parece a tocircnica da imagem contemporacircnea estaacute

nas constantes operaccedilotildees de negociaccedilatildeo de articulaccedilatildeo de materiais e dispositivos da

109

investigaccedilatildeo do medium guiada pelo acesso e criaccedilatildeo compartilhados e dessa maneira a miacutedia

analoacutegica natildeo resulta sepultada Ela eacute revisitada articula-se com o computador ou mesmo

sozinha enquanto artefato fiacutesico estaacute inserida em estrateacutegias artiacutesticas caracteriacutesticas de uma

sociedade que se relaciona por meio do intercacircmbio das trocas culturais do fluxo informativo

em rede

Para tanto o mapeamento busca identificar as recusas agraves ldquoteses essencialistasrdquo

(FATORELLI 2003) exemplificada pelo trabalhos de diversos artistas onde se destacam a

compreensatildeo da imagem como artifiacutecio a ser trabalhado numa via processual de etapas com

especial reconfiguraccedilatildeo da materialidade (em contraposiccedilatildeo agrave uma noccedilatildeo automatizante) uma

atitude que incorpora acidentes e resultados imprevistos como instacircncias criativas a recuperaccedilatildeo

de teacutecnicas antigas como o pinhole a cacircmara escura o daguerreoacutetipo bem como experiecircncias

alternativas e natildeo industriais com quiacutemicos laboratoriais a exploraccedilatildeo de temporalidades atraveacutes

de longa exposiccedilatildeo e de tempos elaacutesticos a desconstruccedilatildeo de formas (do referente) em direccedilatildeo agrave

abstraccedilatildeo por meio de negativos e pixels o aproveitamento dos erros do sistemas informaacutetico

para a construccedilatildeo de obras artiacutesticas a criaccedilatildeo de sistemas hiacutebridos que potildeem em jogo diferentes

aparatos numa investigaccedilatildeo dirigida agrave proacutepria miacutedia a elaboraccedilatildeo de esteacuteticas e formas

desconectadas de uma necessidade representativa

42 DISPUTAS ONTOLOacuteGICAS

Um dos temas centrais que atravessa os debates propostos nesta tese eacute o conceito de

ruiacutedo analisado aqui principalmente atraveacutes das contribuiccedilotildees de Hainge (2013) que buscou

identificar alguns traccedilos definidores do ruiacutedo em obras pertencentes a diferentes campos

artiacutesticos O tema do ruiacutedo vem recebendo atenccedilatildeo de outros pesquisadores aos quais nos

reportamos ao longo de nossas anaacutelises poreacutem a ecircnfase maior no estudo de Hainge deve-se ao

fato de que este propotildee uma abordagem ampla do assunto discutindo-o a partir de objetos

variados como a muacutesica o cinema a literatura e a fotografia e articulando esses objetos com

questotildees da filosofia da teoria da comunicaccedilatildeo da esteacutetica da linguagem cinematograacutefica da

ontologia fotograacutefica O pesquisador australiano compreende o ruiacutedo como conceito e tambeacutem

como um fenocircmeno observado em qualquer dinacircmica onde se ateste um movimento diferencial

afastado de normatizaccedilotildees hegemocircnicas Assim seu pensamento funcionaraacute aqui como conjunto

110

de ideias centrais o que natildeo impede que os textos nos quais o tema do ruiacutedo aparece associado a

termos como ldquofalhardquo e ldquoerrordquo (NUNES 2011 KRAPP 20112018 FELINTO 2015

BALLARD 2011 MENKMAN 2010 PIPER-WRIGHT 2018 ABRAAtildeO FILHO 2018) e

cujas abordagens estatildeo mais especificamente relacionadas ao universo da cultura digital sejam

evocados para auxiliar a reflexatildeo tendo em vista que essas terminologias partilham um sentido

comum ndash de desvio instabilidade desorganizaccedilatildeo ruptura de paradigmas ndash ligado a processos

que executam um movimento de afastamento de padronizaccedilotildees

Ressalte-se que todos esses autores e autoras investigam como o ruiacutedo o erro e a falha

tornam-se elementos de partida para a criaccedilatildeo artiacutestica em detrimento de uma reaccedilatildeo que

primeiro nega para depois (tentar) excluir sua presenccedila Esse entendimento do ruiacutedo como lugar

produtivo na perspectiva da arte constitui questatildeo relevante em nossa pesquisa Como veremos

ao longo do texto a partir das obras apresentadas o experimento com as tecnologias da imagem

as mais diversas faz emergir formas variadas de ruiacutedo

Hainge (2013) localiza algumas das primeiras tentativas de abordagem do tema do ruiacutedo

no seacuteculo XX associadas aos trabalhos de artistas e movimentos no acircmbito da muacutesica67

articuladas por sua vez agrave ideia de incorporaccedilatildeo na criaccedilatildeo musical de ldquoatonalidade dissonacircncia

explosotildees tossidos arranhados retorno sonoro distorccedilatildeo falhasrdquo (HAINGE 2013 p2) O

assunto ainda eacute bastante associado ao universo musical Nesse sentido poderiacuteamos acrescentar ao

conjunto de elementos ligados ao ruiacutedo aleacutem de sons gerados pela tecnologia utilizada os

barulhos gerados no proacuteprio ambiente onde se executa a performance musical (base por

exemplo da peccedila 4rsquo33rdquo de John Cage)

Ballard (2011 p61) eacute um pouco mais especiacutefica quando indica que as preocupaccedilotildees a

respeito dos problemas entre informaccedilatildeo e ruiacutedo remontam ao final da 2ordf Guerra Mundial

quando matemaacuteticos engenheiros e fiacutesicos tentavam desenvolver sistemas de controle e

comunicaccedilatildeo perfeitos Embora natildeo consideremos necessaacuterio procurar um marco inicial para as

reflexotildees a respeito do tema (outros pesquisadores jaacute o fizeram) parece seguro apontar que o

aprimoramento das tecnologias de informaccedilatildeo e de sistemas inteligentes no seacuteculo XX trouxe o

67 Especialmente Luigi Russolo John Cage e a musique concregravete Sobre esses artistas ver os capiacutetulos The (not so)noisy elephants in the room e On Noise and Music em HAINGE Greg Noise matters Towards an ontology ofnoise London Bloomsbury 2013

111

ruiacutedo como ldquoproblemardquo para muitas esferas cientiacuteficas fazendo deste periacuteodo histoacuterico um

momento de especial interesse no assunto

Essas breves observaccedilotildees jaacute sugerem duas questotildees a serem consideradas para o debate

A primeira eacute que inclusive para os artistas citados ndash e devemos ter em conta que essa ideia torna-

se dominante e senso comum ndash o ruiacutedo eacute compreendido numa oposiccedilatildeo agrave muacutesica como entidades

separadas ruiacutedo natildeo eacute muacutesica e assim eles natildeo se misturam A essa premissa o estudo de

Hainge opotildee-se fortemente Para ele embora o caraacuteter desagregador e transgressivo seja inerente

ao ruiacutedo enquanto marca conceitual este natildeo pode ser tomado como uma intromissatildeo externa

uma sonoridade totalmente estranha O ruiacutedo integra a estrutura expressiva do meio onde se

manifesta e natildeo se distingue pela capacidade de surgir e desaparecer pois estaacute sempre presente

O problema eacute que ele nem sempre eacute notado (constituindo assim um problema de percepccedilatildeo) Se

pensarmos nas obras de artistas como Sonic Youth68 Bjoumlrk69 Kraftwerk70 Metaacute Metaacute71 ou Oval72

ndash somente para citar alguns e essa lista pode aumentar e modificar-se toda vez que esta tese seja

lida por algueacutem diferente ndash que se utilizam largamente de objetos ldquonatildeo-musicaisrdquo e de sons

originados pelo uso natildeo programado de instrumentos convencionais ou materiais como

microfones e amplificadores eacute possiacutevel determinar onde termina a muacutesica e onde entra o ruiacutedo

Esses artistas apropriam-se de sonoridades variadas e geradas atraveacutes de diversos recursos em

composiccedilotildees onde o ruiacutedo flui como parte de uma massa sonora completa uma energia que

atravessa um sistema ou um corpo poreacutem sem ser estranho a ele Peter Krapp (2018)73 comenta

que o glitch o feedback e o click satildeo elementos importantes do aproveitamento de resultados

gerados pelo imprevisiacutevel no ambiente sonoro demarcando seu apelo esteacutetico embora afirme (ao

68Grupo de rock alternativo norte-americano que iniciou suas atividades na deacutecada de 1980 permanecendo ativo ateacutemeados de 2011 Com influecircncias de John Cage Velvet Undergound Patti Smith entre outros sua muacutesica eacutereferecircncia para artistas da deacutecada seguinte com destaque para os tambeacutem norte-americanos do Nirvana69Cantora compositora produtora instrumentista e atriz islandesa que antes de seguir carreira solo integrou a bandaSugar Cubes ativa entre os anos 1980-1990 Seu trabalho incorpora elementos de jazz muacutesica eletrocircnica trip-hopentre outros gecircneros70 Kraftwerk eacute uma banda alematilde de muacutesica eletrocircnica que surgiu nos anos 1970 conhecida pela sonoridade criada apartir de sintetizadores computadores e equipamentos desenvolvidos pelos proacuteprios integrantes do grupo Natildeo rarosuas muacutesicas falam da vida urbana e da tecnologia71 Metaacute Metaacute eacute um grupo brasileiro formado em Satildeo Paulo cujas muacutesicas articulam instrumentos como guitarrabateria metais e percussatildeo Em atividade desde 2008 seu trabalho pode ser colocado junto ao de uma safra deartistas recentes como Passo Torto e os trabalhos solo de Rodrigo Campos e Kiko Dinucci (integrante do MetaacuteMetaacute) Esses uacuteltimos por sua vez satildeo influenciados por nomes como Tom Zeacute Arrigo Barnabeacute e Itamar Assumpccedilatildeona maneira de compreender a criaccedilatildeo musical como algo a ser reinventado por meio dos materiais etc72 Grupo alematildeo de muacutesica eletrocircnica experimental considerado um dos expoentes da glitch music73 Luersen Eduardo Harry Maschke Guilherme Malo Erro e ruiacutedo na tecnocultura contemporacircnea - Entrevista comPeter Krapp Galaxia n 39 set-dez 2018 p 15-22

112

contraacuterio de Hainge) que o progresso teacutecnico seja capaz de banir o ruiacutedo que eacute nesses casos

reintroduzido pela intencionalidade dos artistas

Ao tratar da oposiccedilatildeo entre muacutesica e ruiacutedo Hainge lembra o manifesto de Luigi Russolo

(Art of noise1913)74 compositor italiano ligado ao Futurismo que investe numa tentativa de

falar sobre o tema do ruiacutedo e acaba por afirmar essa mesma divisatildeo O problema do manifesto

seria que como parte da proposta esteacutetica futurista ele distinguia claramente som e ruiacutedo o que

significava tambeacutem uma tentativa de contenccedilatildeo do ruiacutedo75 A mesma criacutetica eacute feita pelo autor agrave

proposta de John Cage (na peccedila 4rsquo33rdquo jaacute citada) que embora estimulando uma atitude mais

participativa da audiecircncia como elemento de construccedilatildeo da proacutepria obra reproduz a ideia de que

o ruiacutedo necessita ser ldquoconvertidordquo em algo mais palataacutevel (ou melhor dizendo audiacutevel) para

entatildeo ser integrado ao trabalho musical

Tais exemplos revelam um ponto que se deve ter em mente na questatildeo do ruiacutedo

perceber que sua conotaccedilatildeo negativa nasce dessa leitura de sua presenccedila como algo estranho ao

sistema que ele tende a desagregar Ainda no acircmbito musical tido como sonoridade erraacutetica agraves

vezes desagradaacutevel e criadora de desconforto o ruiacutedo provoca uma necessidade de expurgo Esse

movimento de negaccedilatildeo acaba permeando natildeo soacute algumas leituras na aacuterea da muacutesica mas tambeacutem

no cinema e na fotografia como demonstra Hainge (Ibidem) ao longo de seu livro afirmando

sempre que a exclusatildeo do ruiacutedo eacute na verdade impossiacutevel

Em nossas anaacutelises seguiremos o entendimento de Hainge (2013) considerando o ruiacutedo

natildeo como externalidade intrusiva mas como parte constitutiva dos processos envolvidos na

relaccedilatildeo artistasaparatos sobretudo nas apariccedilotildees do ruiacutedo relativas agraves materialidades

empregadas Interessam-nos os experimentos agenciamentos perversotildees realizados nos mais

diversos insumos e equipamentos que venham a expor o ruiacutedo na imagem Entendemos que ao

submeter as tecnologias a experiecircncias que muitas vezes contrariam suas funccedilotildees originais

muitos artistas estatildeo deixando entrever em seus trabalhos um interesse genuiacuteno pelo caraacuteter

74 Sobre o manifesto ver Art of noises em httpswwwunknownnufuturismnoiseshtml Acesso em 160419

75 Russolo criou instrumentos que imitavam sons diversos (sirenes e carros acelerando por exemplo) que para elerepresentavam os ruiacutedos da vida urbana no seacuteculo XX Os ldquointonarumorirdquo ou ldquoentoarruiacutedosrdquo Cf Abraatildeo FilhoClaudio Luiz Cecim O avesso da comunicaccedilatildeo Esteacutetica e poliacutetica do ruiacutedo na cultura digital (tese dedoutorado) Programa de Estudos Poacutes-Graduados em Comunicaccedilatildeo e Semioacutetica Pontiacutefica Universidade Catoacutelica deSatildeo Paulo 2018 p45-50

113

dissonante que a imagem pode assumir Ao pressionarem os materiais de que dispotildeem abrem

margem para que o ruiacutedo possa revelar-se atraveacutes de elementos como borrotildees tremulaccedilotildees

vazamentos de luz sobreposiccedilotildees de imagens granulaccedilotildees alteraccedilotildees cromaacuteticas resultantes de

manipulaccedilotildees riscos e outros tipos de intervenccedilotildees fiacutesicas na superfiacutecie da imagem

superexposiccedilatildeo anamorfoses e distorccedilotildees variadas que atestam a inscriccedilatildeo do tempo manchas

desfoque pixelizaccedilatildeo e demais efeitos causados pelo uso poeacutetico de erros nos sistemas de

computador (softwares) como modalidades esteacuteticas Aqui entendemos que os ruiacutedos satildeo as

diferentes maneiras de inscriccedilatildeo das tecnologias rastros dos processos realizados para obtenccedilatildeo

de imagens no acircmbito da investigaccedilatildeo artiacutestica

43 ldquoCOM OLHOS DE VIDRO DE CORES BERRANTES BALANCcedilAM EDIFIacuteCIOS DE

QUARENTA ANDARESrdquo

O artista carioca Luiz Alberto Guimaratildees possui seacuteries fotograacuteficas que problematizam a

perspectiva geomeacutetrica (herdada do Renascimento e tantas vezes citada como marco formal

apropriado no modelo da cacircmera fotograacutefica) produzindo imagens com alto grau de ruiacutedo

Influenciado pelos escritos de Vileacutem Flusser ele trabalha a partir de uma revisatildeo da cacircmara

escura desconstruindo seu modelo monocular a partir do uso de equipamentos com vaacuterias

entradas de luz Na seacuterie Paisagens cacofocircnicas (2015) (figuras 22 e 22a) traccedila um olhar caoacutetico

sobre a ocupaccedilatildeo do espaccedilo urbano sugerindo um excesso um certo sufoco desse espaccedilo a partir

das diversas imagens geradas pelos muacuteltiplos furos da cacircmera As imagens satildeo demasiado

confusas e mostram-se como recusa da noccedilatildeo de paisagem ligada agrave construccedilatildeo perspectiva do

espaccedilo

Entatildeo quando eu comecei esse meu trabalho a minha pegada era meio flusseriana muitona questatildeo da relaccedilatildeo do aparelho o quanto que o aparelho eacute preacute-formatado pra vocecirc() a grande formataccedilatildeo do aparelho fotograacutefico eacute a questatildeo da representaccedilatildeo De quemaneira ele pega a realidade e representa planarmente () que eacute extremamente antiga eacuterenascentista () A representaccedilatildeo ficou presa demais a esse modo ficou muitoformatada A fotografia aceitou passivamente essa funccedilatildeo enquanto que a pintura vocecircteve todos os movimentos o Cubismo e outras formas de representar () Muito do queeu tento fazer com a fotografia () eacute uma perspectiva () mas natildeo tem as regras quetanto atraiu o pessoal no final do seacuteculo 19 Eacute justamente ver que tem outro jeito76(GUIMARAtildeES 2017)

76 Entrevista concedida agrave autora desta tese em 2017

114

Figuras 22 e 22a - Paisagens cacofocircnicas (Luiz Alberto Guimaratildees 2015)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

No trabalho do artista carioca a ldquodesprogramaccedilatildeo do aparelhordquo na abordagem de

Flusser (2011) natildeo se daacute apenas em niacutevel conceitual no sentido de que busca subverter a

perspectiva convencional atraveacutes da junccedilatildeo numa mesma imagem de vaacuterios pontos de vista mas

tambeacutem no niacutevel da proacutepria estrutura da cacircmera jaacute que Guimaratildees constroacutei boa parte de seus

equipamentos Neste caso o fotoacutegrafo utilizou uma cacircmera com vaacuterios orifiacutecios que projetam as

115

diferentes imagens no papel fotograacutefico gerando distorccedilotildees zonas de sombra profunda em

contraste com aacutereas praticamente superexpostas marcas visuais da inscriccedilatildeo da luz na superfiacutecie

fotossensiacutevel Fruto da interaccedilatildeo entre luz e agentes fotoquiacutemicos a superexposiccedilatildeo eacute um tipo de

intensificaccedilatildeo do medium fotograacutefico que conteacutem grande niacutevel de ruiacutedo (HAINGE 2013 p183)

se o ruiacutedo eacute considerado a marca visiacutevel deixada pelas tecnologias em seus produtos aqui vemos

surgir uma cidade em suas muacuteltiplas facetas devido agrave maneira como se relacionam agraves diversas

entradas de luz do equipamento e a superfiacutecie onde se registram esses traccedilos A esteacutetica resultante

da perversatildeo do formato baacutesico da cacircmara escura produz edifiacutecios que se projetam em direccedilatildeo ao

espectador como num movimento crescente assumindo formas estranhas dado o caraacuteter

nitidamente artificial da composiccedilatildeo

O mundo que emerge das Paisagens Cacofocircnicas funciona como uma criacutetica tanto agrave

ocupaccedilatildeo capitalista predatoacuteria das cidades brasileiras quanto agrave forma tradicional de captura

dessa paisagem pela fotografia Em vez de uma abordagem realista aqui vemos uma verdadeira

construccedilatildeo paisagiacutestica voltada para o caraacuteter perverso da presenccedila humana No texto que

acompanha o trabalho em seu site Luiz Alberto Guimaratildees apropria-se de uma reflexatildeo do

cineasta alematildeo Win Wenders que sublinha exatamente essas questotildees

Assim como o mundo de imagens que nos circunda eacute cada vez mais cacofocircnicodesarmocircnico ruidoso proteiforme e pretencioso as cidades se tornaram por sua vezmais e mais complexas discordes ruidosas confusas e massacrantes Imagens e cidadesvatildeo bem juntas (WIM WENDERS apud GUIMARAtildeES online 2015)

Aqui tambeacutem se recusa qualquer tom idiacutelico ou bucoacutelico que formatos como o cartatildeo

postal ajudaram a consagrar no acircmbito da fotografia voltada para a paisagem o que constitui um

confronto a paradigmas da imagem assinalando mais uma vez a presenccedila do ruiacutedo no tocante a

um procedimento distante das padronizaccedilotildees de um estilo bastante difundido de imagem

Recusando-se a se apropriar da cacircmara escura no seu modelo convencional o artista recusou

tambeacutem determinada tipologia imageacutetica

Tenho desde entatildeo procurado atuar no limite do que Flusser denomina de jogo contra oaparelho comeccedilo por destruiacute-lo para entatildeo reconstruiacute-lo segundo novos programaselaborados pelo proacuteprio fotoacutegrafo Dessa forma creio que para quem quer ldquoinventarcategorias e continuar fotografandordquo a soluccedilatildeo pode estar nas maacutequinas artesanais comas quais venho trabalhando (e com certeza me divertindo) onde o que estaacute sobretudo empauta eacute o tempo de exposiccedilatildeo e a geometria da representaccedilatildeo (GUIMARAtildeES 2014p5)

Conforme assinala Baio (2015) alguns artistas desenvolvem seus trabalhos inventando

seus proacuteprios algoritmos sistemas e modelos maquiacutenicos e conceituais o que configura

116

exatamente uma abordagem flusseriana das miacutedias que orienta a estrateacutegia adotada pelo fotoacutegrafo

carioca Ele se preocupa em elaborar dispositivos especiacuteficos para cada trabalho de acordo com a

esteacutetica e o conceito perseguidos Ainda no que se refere ao gecircnero paisagem Guimaratildees

demonstra especial atenccedilatildeo agrave caracteriacutestica construiacuteda da representaccedilatildeo dos espaccedilos algo que

acabou por naturalizar-se de certa maneira nas praacuteticas da imagem Aqui natildeo haacute uma visatildeo

monocular que possamos atribuir ao fotoacutegrafo como entidade articuladora da tomada do espaccedilo

na verdade para o artista eacute inclusive necessaacuterio percebermos que essa forma de abordagem natildeo

passa de uma construccedilatildeo mental

() o que a Anne Cauquelin77 () tenta mostrar eacute que se num momento a perspectivaclaacutessica foi revolucionaacuteria () que ateacute aquele momento natildeo existia a ideia de paisagemExistia a natureza mas a ideia dessa representaccedilatildeo da paisagem que a gente tem hojemuito forte () (GUIMARAtildeES 2017)

A priori a cacircmara escura utilizada como modelo base para elaborar vaacuterios dos

equipamentos empregados por Guimaratildees tem como caracteriacutesticas baacutesicas a ausecircncia de um

sistema de lentes focagem controles de velocidade e abertura do obturador Eacute literalmente um

dispositivo cego e de certa forma descontrolado e imprevisiacutevel por excelecircncia (embora sujeito a

leis fiacutesicas que regem o comportamento da luz em seu interior e agrave geometria de sua estrutura)

Sua exploraccedilatildeo criacutetica atesta uma verdadeira investigaccedilatildeo de possibilidades outras ainda natildeo

reveladas do ponto de vista plaacutestico Para aleacutem do paradigma monocular essa teacutecnica claacutessica

ainda guarda ldquoimagens abandonadasrdquo que se formam nas vaacuterias direccedilotildees da cacircmara escura uma

totalidade que inunda a cacircmera com porccedilotildees formadas nas suas paredes laterais piso e teto

(GUIMARAtildeES 2014 p16) Imagens cuja descoberta eacute possibilitada pela inquietude do artista

que parece aleacutem de exercitar uma criacutetica ao fetichismo do desenvolvimento tecnoloacutegico

aprofundar resultados obtidos atraveacutes de procedimentos tidos como superados desgastados ou

interditos aos novos usos

Mas natildeo eacute apenas em seu iteresse pela uniatildeo entre fotografia e artesania que Guimaratildees

reflete sobre a programaccedilatildeo dos aparelhos tatildeo discutida por Flusser Para ele esse problema

atinge quaisquer dispositvos de imagem pois em sua visatildeo o dispositivo seja analoacutegico ou

digital ldquotem um preacute-programa que eacute o mais forte de todos Eu sempre brinco dizendo que tem um

77 Refere-se ao livro A invenccedilatildeo da paisagem de Anne Cauquelin publicado em 2007

117

pecado original ali que eacute te dar uma visatildeo que por mais que vocecirc tente tente estaacute amarrado

nelardquo (GUIMARAtildeES 2017)

Na seacuterie Os dois mundos de Alice (2015) (figuras 23 e 24) utilizam-se de

equipamentos digitais para construir cenaacuterios fantaacutesticos como forma de criticar a segregaccedilatildeo

entre pobres e ricos nas praias do Rio de Janeiro A partir de um incocircmodo causado pela situaccedilatildeo

aleacutem da observaccedilatildeo paralela de que a praia sobrevive hoje como principal forma de lazer ainda

gratuito da populaccedilatildeo de baixa renda o fotoacutegrafo realizou uma seacuterie de registros dos banhistas

Para mostrar este ambiente como uma espeacutecie de refuacutegio manipulou as cores de forma a produzir

tonalidades extremamente artificiais meio aberrantes ateacute criando um cenaacuterio onde mulheres

homens crianccedilas podem desfrutar do mar do sol como num pequeno paraiacuteso O estranhamento

visual eacute forte natildeo somente pela artificialidade das cores mas tambeacutem porque embora a atmosfera

criada estabeleccedila uma criacutetica por meio de uma celebraccedilatildeo da relaccedilatildeo entre os sujeitos e o espaccedilo

a composiccedilatildeo escolhida foge agrave regra da centralidade

Natildeo satildeo aquelas praias de Itaquatiara que vatildeo aquelas mulheres lindas aqueles carasldquosaradotildeesrdquo () Eu fui nas praias que eu vejo ainda como uacuteltimo espaccedilo de liberdadetalvez onde as pessoas () natildeo tomaram dos pobres Entatildeo eu fui laacute e fotografei eles nassituaccedilotildees normais deles alguns fazendo piqueniques outros com a famiacutelia Evitando aomaacuteximo frontalizar a maior parte dessas fotos eu pego as pessoas de costas ateacute pra natildeoidentificar () E aiacute fiz esse efeito de criar um mundo meio estranho tambeacutem como sefossem pessoas que estatildeo ali mas o mundo natildeo as aceita muito natildeo Estatildeo ali tambeacutemprestes a perder esse espaccedilo Aiacute eu dei esse efeito no restante criei uma camada que eusolarizei em volta (GUIMARAtildeES 2017)

Figura 23 - Os dois mundos de Alice (Luiz Alberto Guimaratildees 2015)

118

Figura 24 - Os dois mundos de Alice (Luiz Alberto Guimaratildees 2015)

Fonte Reproduccedilatildeo site artista

Um outro aspecto curioso desse trabalho que dialoga diretamente com a questatildeo do

ruiacutedo criado a partir da manipulaccedilatildeo da miacutedia eacute o ldquoefeito colagemrdquo aplicado aos corpos dos

banhistas Se satildeo corpos na iminecircncia da expulsatildeo do espaccedilo que (ainda) lhes pertence

119

formalmente isso eacute demonstrado atraveacutes da localizaccedilatildeo predominante desses corpos nas bordas

da imagem Como uma espeacutecie de ruiacutedo na estrutura social essas pessoas habitam um mundo

construiacutedo para elas atraveacutes tambeacutem de estrateacutegias de negaccedilatildeo de certa normatividade esteacutetica da

fotografia negaccedilatildeo de ocuparem uma posiccedilatildeo central negaccedilatildeo de padrotildees de beleza negaccedilatildeo de

uma suavidade das cores num estilo naturalista negaccedilatildeo do equiliacutebrio entre as proporccedilotildees e

escalas de seus corpos em relaccedilatildeo aos elementos da paisagem (nuvens faixa de areia ondas) A

composiccedilatildeo desse conjunto de imagens eacute bastante carregada As silhuetas demarcadas pelo

ldquoefeito colagemrdquo reforccedilam ainda mais a noccedilatildeo de pessoas que podem facilmente serem retiradas

daquele contexto Na relaccedilatildeo visual estabelecida entre as pessoas e o fundo (cenaacuterio da praia) haacute

um forte caraacuteter disjuntivo perturbando a composiccedilatildeo que remete agraves praacuteticas da fotomontagem

Mas ao mesmo tempo mostrar que eles estatildeo ldquocoladosrdquo ali eles natildeo estatildeo integrados Eacutecomo se vocecirc tivesse o mundo e botasse () eles estatildeo ali por um favor de algueacutem quedeixou eles ficarem aderentes ali mas daqui a pouco natildeo vatildeo estar mais Aiacute as pessoasestatildeo aiacute mas estatildeo demarcadas () Depois uma leitura que se pode dar a esse trabalholsquoah vocecirc quis ironizar essas pessoas esses corpos feiosrsquo Natildeo justamente o contraacuterio() Aqui em Niteroacutei a segregaccedilatildeo nas praias eacute fantaacutestica Vocecirc tem as praias dos ricos eas praias dos pobres Isso eacute niacutetido natildeo deixam misturar E as pessoas acabam aceitandoisso (GUIMARAtildeES 2017)

Em sua investigaccedilatildeo de visualidades singulares natildeo alinhadas ao modelo perspectivista

geomeacutetrico Luiz Alberto Guimaratildees realizou tambeacutem imagens que prescindem da proacutepria

cacircmera fotograacutefica como aparato modelo a exemplo da seacuterie de autorretratos que fez com um

scanner de mesa como parte de um processo terapecircutico entre os anos de 2006 e 200878 Suas

proposiccedilotildees estatildeo alinhadas com as noccedilotildees de que o universo das ldquoimagens teacutecnicasrdquo (FLUSSER

2011) eacute vasto extrapolando o campo da fotografia e de seus dispositivos convencionais Ressalte-

se que as ideias desenvolvidas por Flusser em seus escritos (2011 2008) sugerem que a imagem

fotograacutefica eacute um campo aberto agrave investigaccedilatildeo livre de amarras ou regramentos impostos seja pela

tecnologia ou por concepccedilotildees de sua ontologia Sobre as imagens teacutecnicas afirma

Elas satildeo dificilmente decifraacuteveis pela razatildeo curiosa de que aparentemente natildeonecessitam ser decifradas Aparentemente o significado das imagens teacutecnicas seimprime de forma automaacutetica sobre suas superfiacutecies como se fossem impressotildees digitaisonde o significado (o dedo) eacute a causa e a imagem (o impresso) eacute o efeito (FLUSSER2011 p24)

78 Disponiacutevel em httpsissuucomlamguimaraesdocsvarreduras Acesso em 17122019 O scanner tem sidoutilizado como maacutequina de imagem em projetos de outros fotoacutegrafos a exemplo do tambeacutem brasileiro GuilhermeMaranhatildeo que realizou o projeto Meu Corpo (2004) Disponiacutevel emhttpsissuucomitauculturaldocspossibilidades_da_fotografia169 Acesso em 29022020

120

Quando diz que ldquoaparentementerdquo o significado de uma imagem estaacute dado o filoacutesofo

lembra-nos que uma imagem natildeo se restringe a uma tentativa de coacutepia do que se passou frente agrave

cacircmera Assim caem por terra as teses centradas na indicialidade que fazem da fotografia um

produto da captura objetiva de um referente Aqui se nega toda uma fortuna criacutetica e expectativas

de senso comum assentadas no desejo de reconhecer o mundo concreto na imagem Um conjunto

de proposiccedilotildees que entende a fotografia pela linha ontoloacutegica da analogia A imagem natildeo eacute rastro

de um real mas o resultado do jogo entre ser humano e aparato constituindo algo que existe

enquanto fenocircmeno autocircnomo O efeito de um gesto no qual algo em frente agrave cacircmera eacute um

pretexto para criar que visa menos explicar o mundo do que lhe dar sentido (BAIO 2015 p93-

100) Fatorelli (2017 p56) diz que a fotografia apresenta uma dupla articulaccedilatildeo oscila entre a

aproximaccedilatildeo e o afastamento do referente e instituindo-se a partir de procedimentos teacutecnicos

torna-se independente de condiccedilotildees precedentes e anteriores agrave sua criaccedilatildeo instaurando assim a

sua proacutepria realidade

Vejamos o que Flusser diz sobre como desvendar as imagens teacutecnicas

Natildeo eacute analisando a casa mostrada na fotografia mas analisando a cacircmera fotograacutefica e aintenccedilatildeo do fotoacutegrafo que a decifraremos (hellip) Natildeo adianta perguntar se a casafotografada estaacute ldquorealmenterdquo laacute fora ou se eacute falsa Natildeo adianta perguntar se a batalhamostrada na TV se passou ldquorealmenterdquo ou se foi encenada () As cenas mostradasdevem ser analisadas em funccedilatildeo do programa a partir do qual foram projetadas Ora istoexige criteacuterios novos natildeo mais do tipo ldquoverdadeiro ou falsordquo ou do tipo ldquobelo ou feiordquomas do tipo ldquoinformativo ou redundanterdquo (FLUSSER 2008 p68-69)

Quando evoca a necessidade de entender a ldquocacircmerardquo o filoacutesofo natildeo se refere agrave

compreensatildeo dos paracircmetros estritamente teacutecnicos do equipamento Na verdade Flusser nos

convoca a observar os paradigmas cientiacuteficos econocircmicos poliacuteticos ideoloacutegicos e esteacuteticos que

permitem o surgimento de uma tecnologia como a fotografia e sua condiccedilatildeo de dispostivo

intermediaacuterio entre sujeito e mundo concreto O conjunto dessas questotildees forma o ldquoprogramardquo do

ldquoaparelhordquo fotograacutefico outros dois conceitos fundamentais no pensamento flusseriano Entender

o ldquoprogramardquo nada mais eacute que compreender os paradigmas envolvidos na estrutura da tecnologia

A questatildeo eacute perceber o que estaacute nesse niacutevel abstrato para entender o que significam as imagens e

de que maneira esses paradigmas satildeo rediscutidos na produccedilatildeo dos artistas Tais conclusotildees a

respeito da imagem por meio da obra de Flusser marcam o perfil das obras incluiacutedas em nosso

121

corpus Tambeacutem devemos considerar as questotildees levantadas por Flusser a respeito do aparelho

fotograacutefico aplicaacuteveis aos demais aparatos imageacuteticos com os quais os artistas trabalham

sobretudo se consideramos o atual cenaacuterio de contaminaccedilatildeo entre as miacutedias

Podemos dizer que osas artistas cujas obras satildeo aqui apresentadas posicionam-se contra

o modelo da imagem que investe prioritariamente na condiccedilatildeo indicial representativa realista

Consequentemente estatildeo todos engajados na produccedilatildeo de imagens elaboradas (negando os

automatismos) desenvolvendo processos especiacuteficos que discutem paradigmas importantes do

meio fotograacutefico Nos trabalhos do artista carioca haacute a proposiccedilatildeo de um debate sobre a

perspectiva monocular da cacircmera e a busca de alternativas a esse modelo de construccedilatildeo do

espaccedilo fiacutesico atraveacutes da criaccedilatildeo de maacutequinas artesanais ou seja atraveacutes de um investimento na

proacutepria estrutura do dispositivo Haacute tambeacutem aqueles artistas que de posse das miacutedias digitais

articulam essa mesma criacutetica inflitrando-se nos sistemas criadores de imagem a partir de falhas

ou do uso natildeo padronizado de softwares formatos de arquivos e dispositivos produzindo assim

novas esteacuteticas

Ainda eacute importante lembrar que Flusser (2011) considera a fotografia a imagem teacutecnica

inaugural pois ao contraacuterio das imagens tradicionais dependentes da matildeo humana para

existirem as fotografias satildeo produtos de ldquoaparelhosrdquo que por sua vez satildeo maacutequinas de tipo

especial desenvolvidas mediante conhecimentos cientiacuteficos Os aparelhos tecircm depositados em

sua maneira de funcionar em sua estrutura saberes complexos de ordem econocircmica ideoloacutegica

filosoacutefica poliacutetica Uma das grandes contribuiccedilotildees de Flusser eacute demonstrar como esses saberes

determinam os caminhos da praacutetica fotograacutefica No texto ldquoNascimento da imagem novardquo (op cit)

o autor afirma que a fotografia resulta de conhecimentos oacuteticos e quiacutemicos e explica que para

decifrar o ldquomundo codificadordquo ao nosso redor eacute preciso buscar os conceitos com base nos quais

ocorre essa codificaccedilatildeo

44 ldquoPOR SERES TAtildeO INVENTIVO E PARECERES CONTIacuteNUO TEMPO EacuteS UM DOSDEUSES MAIS LINDOSrdquo

Por meio da ligaccedilatildeo que Flusser estabelece entre conhecimento cientiacutefico e ldquoaparelhordquo eacute

possiacutevel compreender toda uma cadeia de entendimentos presentes na historiografia da

122

fotografia e identificar determinado modelo epistemoloacutegico estabelecido no que Antonio

Fatorelli (2013) denomina ldquoforma fotografiardquo para entendermos como osas artistas presentes em

nossa pesquisa tensionam esse modelo e suas modalidades esteacuteticas Dessa forma satildeo

instrumentais ainda as noccedilotildees de ldquojogadorrdquo e ldquofuncionaacuteriordquo no tocante agrave atitude de cada artista

frente ao aparelho Pois a postura luacutedica que caracteriza o jogador em termos flusserianos

expressa a recusa aos limites e regras das tecnologias e por conseguinte das esteacuteticas

produzidas por tais regras quando utilizadas de maneira acriacutetica Eacute se infiltrando nas brechas do

aparelho que o artista consegue driblar seu ldquoprogramardquo Nesse esforccedilo de subverter coacutedigos e

normas de utilizaccedilatildeo eacute que identificamos a emergecircncia do ruiacutedo No caso dos trabalhos de Luiz

Alberto Guimaratildees o ruiacutedo opera em niacutevel conceitual e formal atraveacutes das muacuteltiplas exposiccedilotildees

do aspecto francamente construiacutedo da imagem com tendecircncias agrave ficcionalizaccedilatildeo e como veremos

a seguir da exploraccedilatildeo de um tempo dilatado (em detrimento do instante)

Figura 25 - Sequecircncia de fotografias da seacuterie Retratos do Indiziacutevel (Luiz Alberto Guimaratildees 2008)

123

124

125

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Na seacuterie Retratos do Indiziacutevel (2008) ndash sequecircncia de fotos da figura 25 ndash foi utilizada

uma cacircmera construiacuteda pelo fotoacutegrafo que permitia fazer longas exposiccedilotildees (figura 26) Durante

um periacuteodo de depressatildeo Luiz Alberto fotografava-se diariamente em diferentes posiccedilotildees

gesticulando interagindo com objetos ou elementos do ambiente Enquanto tentava compreender

o que se passava em seu universo interior a cacircmera foi sua companheira no registro de seus

estados psicoloacutegicos Ao longo das centenas de autorretratos (depois reunidos num fotolivro79)

sua figura aparece e desaparece funde-se agrave textura das paredes ao mobiliaacuterio passando de um

estado de concretude ao fantasmagoacuterico Por vezes numa mesma fotografia habitam as diferentes

fases de seus movimentos inscritos no decurso do tempo de captura distendido Haacute momentos em

que Luiz perde a cabeccedila usa maacutescaras forja identidades outras em imagens que sugerem

79 Disponiacutevel em httpsissuucomlamguimaraesdocsretratos_do_indiz__vel Acesso em 13012020

126

instabilidade mostrando ldquoaquilo que se passava comigo que eu natildeo conseguia compreender e

muito menos expressar com palavrasrdquo (GUIMARAtildeES online)

Fiquei quatro anos praticamente trancado dentro de casa sem conseguir sair () Depoiseu vou me dar conta dessa coisa que eu tenho de me expor agraves maacutequinas que era umtratamento uma psicanaacutelise de mim mesmo neacute () e aiacute fiz essa maacutequina que eacute umamaacutequina tradicional do ponto de vista da representaccedilatildeo espacial tem o furo e o papelMas como o tempo dela de exposiccedilatildeo eacute grande ela me permitiu fazer uma coisa que ateacuteo Fatorelli tambeacutem fala natildeo eacute bem movimento mas eacute vocecirc colocar natildeo eacute o instantacircneomais () (lsquoVocecirc tem o instante dilatadorsquo) Dilatadiacutessimo e eu fazia muita performance() E o fato de eu ficar ali me expondo 6 8 minutos eacute muito tempo e acaba sendo umtratamento (GUIMARAtildeES 2017)

Conforme lembrou o fotoacutegrafo o pesquisador Antonio Fatorelli (2017a) indica que as

imagens contemporacircneas se notabilizam pela proposiccedilatildeo de ldquotempos sobrepostos bifurcados

multivetoriaisrdquo natildeo restritos ao instantacircneo Aqui essa condiccedilatildeo se daacute por meio do longo tempo

da feitura da imagem fazendo o instante estender-se Eacute como se atraveacutes da dissoluccedilatildeo do

apagamento dos detalhes das formas do corpo do fotoacutegrafo pudeacutessemos ser tocados pela

extensatildeo desse tempo Natildeo raro encontramos obras em que o tracircnsito entre a total fixidez e o

indiacutecio do movimento aparecem conjugados como nesses autorretratos Se pensarmos que nos

equipamentos fotograacuteficos convencionais os tempos da velocidade do obturador satildeo marcados

em fraccedilotildees de segundo exposiccedilotildees como as feitas por Guimaratildees cuja duraccedilatildeo gira em torno dos

8 minutos satildeo da ordem de uma verdadeira eternidade produzindo formas tambeacutem inusuais

Segundo Parikka (et al 2016) as tecnologias as mais variadas propotildeem sempre temporalidades

alternativas o que coloca um trabalho baseado na longa exposiccedilatildeo como exemplo de uma

temporalidade que eacute mais da ordem do possiacutevel Essas questotildees aparecem conceitual e

plasticamente em Retratos do indiziacutevel para aleacutem da normatividade do tempo condensado

isolado (fragmento temporal) vemos uma distensatildeo do tempo de captura A duraccedilatildeo em

detrimento do instante Se as imagens mentais do devaneio do sonho da memoacuteria satildeo estranhos

a um ordenamento linear natildeo obedecendo a uma estrutura loacutegica nesses autorretratos parece que

a imagem que registra o encontro o embaralhamento de vaacuterios estados psiacutequicos tambeacutem se

apresenta nesses termos estando impregnada de certa confusatildeo atraveacutes da distorccedilatildeo dos

contornos de um acuacutemulo das accedilotildees que se desenvolvem ao longo dessa duraccedilatildeo A

representaccedilatildeo desse tempo psiacutequico eacute tambeacutem impregnada de incertezas formais de corpos

fugidios de fisionomias que se desfazem quase se desintegrando Aqui os borrotildees e os fantasmas

127

satildeo indiacutecios dos movimentos executados pelo fotoacutegrafo mas esse movimento eacute instaacutevel

oscilando entre a presenccedila e a desapariccedilatildeo (FATORELLI 2013 p40)

Se lembrarmos que essas imagens satildeo produzidas em papel fotograacutefico (exigindo um

tempo realmente mais lento de exposiccedilatildeo se comparado agrave peliacutecula) fica patente que os momentos

vatildeo mesmo se depositando na superfiacutecie fotosenssiacutevel Ana Angeacutelica Costa (2015 p7) indica

que os trabalhos desenvolvidos com cacircmeras artesanais satildeo determinados pelas caracteriacutesticas do

ambiente retratado e pela superfiacutecie onde a luz se projeta o que amplia as possibilidades de

imagens (na medida em que cada dispositivo eacute uacutenico) Ainda segundo a autora as teacutecnicas em

que o modelo da cacircmara escura eacute desnudado e podemos compreender seu funcionamento baacutesico

ajudam a desmistificar o proacuteprio fazer fotograacutefico enfatizando o que acontece durante a

exposiccedilatildeo da superfiacutecie fotossensiacutevel agrave luz Essas teacutecnicas deixam transparecer o percurso de

construccedilatildeo da imagem chamando atenccedilatildeo para o processo que ocorre no interior do dispositivo

Bem se o que vemos eacute o registro mesmo desse processo considerando as fotografias obtidas

pelas cacircmeras artesanais aqui citadas (com suas muacuteltiplas imagens projetadas diversos traccedilos de

luz texturas aparentes dos papeis utilizados) percebemos que somos direcionados para as

materialidades formadoras da imagem a luz o papel o tempo a natureza fugidia da imagem

Eacute interessante tambeacutem notar que diferentes equipamentos satildeo criados a partir do

princiacutepio da cacircmara escura gerando diferentes resultados Isso porque o modelo da cacircmara escura

eacute evocado natildeo em sua forma original e claacutessica (engendrando a produccedilatildeo da imagem autocircnoma

sem a interferecircncia humana supostamente gozando de maior precisatildeo) mas sofre variados tipos

de intervenccedilotildees adaptaccedilotildees e acoplagens Estas por sua vez correspondem agrave concepccedilatildeo

experimental da fotografia (LENOT 2017) alinhada aos preceitos da filosofia flusseriana no que

se refere ao jogar contra o aparelho Se conforme diz Ana Angeacutelica Costa (Ibidem) as

especificidades de cada equipamento contribuem para a variabilidade das imagens essa premissa

eacute adotada na metodologia de trabalho do fotoacutegrafo carioca que explica

Vocecirc olha uma imagem pinhole vocecirc reconhece isso foi feito com uma pinhole E aiacute agravesvezes quando eu comeccedilo a mostrar meu trabalho lsquoah mas o seu eacute deiferentersquo Pois eacuteporque natildeo eacute o fato de ser um buraquinho a questatildeo eacute a esteacutetica e como eu vou usar equais as possibilidades que eu vou descobrindo em cada maacutequina E eu te mostro vaacuteriostrabalhos feitos com cada maacutequina e vocecirc vecirc que satildeo completamente distintos Cada umte daacute uma possibilidade uma expressatildeo diferente e diferente da maacutequina convencionalEntatildeo eacute isso que eu busco neacute seja colocando o negativopapel natildeo na posiccedilatildeo frontalmuacuteltiplas exposiccedilotildees () (GUIMARAtildeES 2017)

128

Figura 26 - Cacircmera utilizada na seacuterie Retratos do Indiziacutevel

Fonte Cortesia do artista

O escultor e fotoacutegrafo Jason Shulman levou a questatildeo da manipulaccedilatildeo do tempo

registrada na imagem a um niacutevel ainda mais radical No trabalho Photographs of films (2017)

ele realizou imagens em longuiacutessima exposiccedilatildeo Na verdade sua cacircmera capturou todos os

frames de vaacuterios filmes numa soacute fotografia exposta ao longo do tempo decorrido de cada

produccedilatildeo Mais uma vez estamos diante da captura de uma duraccedilatildeo As fotografias de filmes

resultam num conjunto de borrotildees Cada imagem condensa a narrativa ao mesmo tempo que a

dissolve corrompendo a regularidade de uma montagem linear num confuso emaranhado de

formas praticamente irreconheciacuteveis O que se vecirc neste trabalho eacute uma ldquopresenccedila virtual do

movimento no domiacutenio da imagem fixardquo (FATORELLI 2013 p23) uma sobreposiccedilatildeo de

instacircncias da imagem moacutevel (riscos traccedilos sombras fantasmagorias de objetos e corpos

pertencentes agrave narrativa fiacutelmica) no modo de registro fotograacutefico notadamente estaacutetico A

experiecircncia cria imagens que se localizam a meio caminho do cinema e da fotografia e nessa

configuraccedilatildeo eacute que se encontra seu componente de ruiacutedo

A quebra do paradigma da ilusatildeo do tempo linear presente nessas imagens junta-se a

outras experiecircncias da historiografia da imagem que tambeacutem extrapolaram a noccedilatildeo do

129

instantacircneo como a cronofotografia de Marey e Muybridge a fotomontagem as sequecircncias o

fotodinamismo dos irmatildeos Bragaglia ou ainda os longuiacutessimos tempos de captura presentes nos

trabalhos de Michael Wesely Cada uma a seu modo elas contribuem para repensarmos a

inscriccedilatildeo do tempo na imagem rompendo com as expectativas perceptivas sobre a fotografia e

sobre o cinema

Atraveacutes de um retardar da narrativa que de modo natildeo convencional condensa-a

totalmente numa uacutenica imagem Shulman faz-nos lembrar de pinturas onde todas as accedilotildees estatildeo

representadas no mesmo plano de significado (a exemplo de O combate entre o Carnaval e

Quaresma ou Caminho para o calvaacuterio produzidos respectivamente em 1559 e 1564 por

Pieter Brueguel) o que tambeacutem quebra uma hierarquia de tempos uma organizaccedilatildeo espacial

concernente ao enredo de cada filme

() em cada uma dessas imagens cada filme vira uma matriz abstrata de cores variaacuteveise formas vagas Ficamos com uma imagem mais atmosfeacuterica da sensaccedilatildeo do filme emdetrimento de seu conteuacutedo agrave medida que as cores se espalham e desfocam entrefotogramas e lentamente recompotildeem o filme em algo totalmente pictoacuterico80(JAECKLE online 2018)

Haacute mais um aspecto que avizinha essa obra das imagens pictoacutericas o fato de o artista as

ter apresentado como peccedilas uacutenicas (expostas como quadros) o que implica tambeacutem uma forma

de relaccedilatildeo perceptiva mais demorada realizada num tempo mais longo que o comumente

dedicado aos filmes

Conforme o autor um detalhe interessante do processo adotado eacute responsaacutevel pela

esteacutetica das imagens elas satildeo fotografias da reproduccedilatildeo dos filmes em monitores digitais (e natildeo

de projetados em salas de cinema81) Segundo o artista ldquoos filmes foram fotografados de

monitores praticamente livres de pixelsrdquo (SHULMAN online 2018) monitores 5K o que lhe

permitiu capturar uma diversidade de tons que aparecem ao longo de cada filme Caso tivesse

fotografado a projeccedilatildeo teria captado uma grande aacuterea iluminada de forma mais homogecircnea Quer

80 Traduccedilatildeo livre de ldquoin each of these images each motion picture becomes an abstract hue of shifting colours andvague shapes Wersquore left with a more atmospheric picture of the filmrsquos feeling rather than its content as colours bleedand blur between frames and slowly recompose the film as something altogether more painterly in tone andcharacterrdquo81 Como ocorre por exemplo nos trabalhos de Hiroshi Sugimoto que fotografou com cacircmeras analoacutegicas a projeccedilatildeoem salas de cinema Para detalhes ver Fatorelli 2013 p103-127

130

dizer para o autor haacute especificidades tecnoloacutegicas que satildeo diretamente responsaacuteveis pela

maneira como cada imagem se constroacutei sendo uacutenica em sua multiplicidade de frames

Figura 27 - O maacutegico de Oz 1939 Victor Flaming (Jason Shulman 2018)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Figura 28 - 2001 Uma odisseacuteia no espaccedilo 1968 Stanley Kubrick (Jason Shulman 2018)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

131

Figura 29 - Stalker 1979 Andrei Tarkovski (Jason Shulman 2018)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Eacute curioso notar ainda que em filmes onde a narrativa eacute mais lenta e os planos tecircm maior

duraccedilatildeo algumas formas satildeo ainda perceptiacuteveis (como 2001 Uma odisseacuteia no espaccedilo e Stalker

figuras 28 e 29 respectivamente) e naqueles em que o estilo da montagem eacute mais aacutegil com mais

planos e cortes predomina o aspecto difuso na imagem (O maacutegico de Oz figura 27) Ou seja as

produccedilotildees em que o estilo da narrativa aproxima-se da fotografia (planos fixos e longos) as

formas apresentadas satildeo precariamente conservadas Nesses casos surgem entatildeo verdadeiras

fantasmagorias pois o que a cacircmera registra eacute o escorrer do tempo narrativo nas mutaccedilotildees que

provoca no conjunto do filme Os frames de cada produccedilatildeo apresentados assim de modo

embaralhado criam uma imagem heterogecircnea uma desordem uma confusatildeo de temporalidades

que debilita os anseios da representaccedilatildeo figurativa

Uma das fotografias chamou a atenccedilatildeo de Shulman exatamente porque esse efeito

figurativo chegou a insinuar-se (sem contudo firmar-se) a imagem de O evangelho segundo Satildeo

Mateus filme de Pier Paolo Pasolini de 1972 (figura 30) A fisionomia de Cristo torna-se

perceptiacutevel mas continua uma imagem fugaz pois que ela natildeo constitui completamente o todo

narrativo do filme Conforme o artista isso ocorre pelo estilo cinematograacutefico de Pasolini que

frequentemente situava atores e atrizes no centro do quadro ldquoum rosto grande ocupando a tela o

132

olhar direcionado ao espectadorrdquo (SHULMAN Ibidem) Pela regularidade dessa escolha de

composiccedilatildeo a imagem do personagem vai como que se acumulando em diversos planos a ponto

de delinear-se fragilmente na fotografia

Figura 30 - O evangelho segundo Satildeo Mateus 1972 Pier Paolo Pasolini (Jason Shulman 2018)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Para o artista a esteacutetica conserva as formas exibidas em cada filme embora desfazendo

seus contornos numa ldquotraduccedilatildeo pictoacuterica uacutenica de cada frame individual que foi vistordquo

(SHULMAN Ibidem) Aleacutem disso Shulman entende que cada imagem final eacute tambeacutem

construiacuteda atraveacutes do olhar do espectador Ela pertence a um domiacutenio que ultrapassa o mero

registro Ele preferiu trabalhar com filmes que jaacute possuem um lugar no imaginaacuterio do puacuteblico

pertencentes a cinematografias de vaacuterios paiacuteses exatamente para ver como seria a recepccedilatildeo a

esse processo que torna o filme inteiro uma grande mancha cromaacutetica Ele explica que eacute curioso

como as pessoas insistem em reconhecer cenas sem no entanto estarem de fato diante destas

cenas ndash pois nesse grau de desintegraccedilatildeo da imagem natildeo cabe mais falarmos de uma divisatildeo

convencional da imagem cinematograacutefica (frames planos cenas sequecircncias)

Nas imagens mais difusas notei que as pessoas tendem a ver as coisas que querem vernelas especialmente se for um filme familiar () Encontram formas e cenas quecombinam com a sua memoacuteria do filme Veja a fotografia de O maacutegico de Oz Agraves vezesalgueacutem me diraacute que pode ver a forma do Homem de Lata Mas a pessoa natildeo vecirc o

133

Homem de Lata Eles conseguiram esforccedilar-se para ver o Homem de Lata eles queremver o Homem de Lata ()82 (SHULMAN Idem)

A partir das observaccedilotildees postas o trabalho de Shulman faz um interessante tracircnsito entre

foto cinema e pintura Agrave medida que a sucessatildeo de planos do filme eacute organizada num soacute quadro

exibida individualmente as imagens aproximam-se da pintura pois os tempos e espaccedilos de cada

narrativa satildeo condensados numa peccedila uacutenica O processo contudo eacute registrado atraveacutes da miacutedia

fotograacutefica que registra cada plano de maneira imprecisa conservando os vestiacutegios da

singularidade de cada um desses fragmentos sem no entanto perder a noccedilatildeo de conjunto da

totalidade do filme O resultado deste trabalho eacute uma modalidade visual elaborada nos liames

entre as possibilidades da tecnologia e nossas proacuteprias experiecircncias seja com a cinematografia

seja com os dispositivos que lhes datildeo vida

Tambeacutem eacute notaacutevel que um processo desse tipo enseja que o resultado final eacute

desconhecido e o artista incorpora esse imprevisto como parte da metodologia ldquoEstou em busca

de algo que natildeo sei explicar Eacute apenas subjetivo e gosto deste sentimento de expectativa

imprevisiacutevelrdquo (SHULMAN Ibidem)

O caraacuteter de abertura a descontinuidade e a surpresa satildeo elementos caracterizadores das

manifestaccedilotildees expressivas do ruiacutedo e haacute outros pormenores deste trabalho que se conectam com

a questatildeo do ruiacutedo como os resultados gerados das proacuteprias condiccedilotildees esteacuteticas jaacute contidas nos

filmes entrando em articulaccedilatildeo com as propriedades da fotografia as expressotildees visuais geradas

pelo emprego de tecnologias de maneira cruzada e inovadora e os tensionamentos dos

paradigmas formais da fotografia do cinema e da pintura que se vecircem revisitados e

reprogramados Antonio Fatorelli reconhece que no cenaacuterio da arte contemporacircnea esses trecircs

campos da imagem satildeo acionados de forma simultacircnea e natildeo mais evocados em razatildeo de suas

especificidades

Encontramo-nos cada vez mais na condiccedilatildeo de criadores multimiacutedia envolvidos naproduccedilatildeo de imagens de diversos formatos Se ainda podemos falar de fotografia decinema e de pintura (e essa eacute a nossa aposta) trata-se de uma fotografia de um cinema e

82 Traduccedilatildeo livre de ldquoIn the fuzzier ones Irsquove noticed that people tend to see the things in them that they want to seeespecially if itrsquos a familiar film Itrsquos apophenia They find shapes and scenes that tally with their recollection of thefilm Take the photograph of The Wizard of Oz Sometimes someone will tell me that they can make out the shape ofthe Tin Man But they donrsquot see the Tin Man Theyve managed to make themselves see the Tin Man they want to seethe Tin Manrdquo

134

de uma pintura marcados pelas intensas experimentaccedilotildees observadas nas uacuteltimas trecircsdeacutecadas ndash expandidos reconfigurados significativamente modificados atravessados porvetores temporais singulares investidos de potecircncias anteriormente inimaginaacuteveisAlteraccedilotildees de tal modo consideraacuteveis no acircmbito das formas expressivas e daslinguagens a ponto de questionar a manutenccedilatildeo das formulaccedilotildees teoacutericas historicamenteconsagradas marcadas pela especificidade das miacutedias e pela especializaccedilatildeo das praacuteticasartiacutesticas (FATORELLI 2017a p124-125)

A pluralidade de resultados e consequentemente de esteacuteticas vistas ateacute aqui conecta-se

com uma questatildeo importante a respeito do ruiacutedo o fato de ele natildeo ter uma forma definida Como

surge atraveacutes das mais variadas experiecircncias promovidas seja com equipamentos ou insumos

cada artista desenvolve teacutecnicas proacuteprias e utiliza recursos especiacuteficos que resultam tambeacutem em

obras bastante singulares Sua inscriccedilatildeo nas obras pode indicar a elasticidade do tempo a

intrusatildeo de vaacuterias fontes de luz expor a trama compositiva da imagem enfatizar a textura dos

materiais empregados entre outros efeitos de modo que natildeo encontramos um tipo de ruiacutedo mas

diversas formas de sua manifestaccedilatildeo

O ruiacutedo tambeacutem pode surgir em meio agraves falhas ao desvio de funcionamento ou ao uso

natildeo preacute-formatado de sistemas geradores de imagens dos mais diversos tipos Muitas vezes o

ruiacutedo funciona como uma perturbaccedilatildeo que chama atenccedilatildeo para o processo de elaboraccedilatildeo da

imagem ou como diz Ballard (2011 p66) ldquoatraveacutes das vaacuterias modalidades utilizadas a

aparecircncia do ruiacutedo natildeo se daacute atraveacutes de uma formaccedilatildeo mas por meio do erro do acidente e da

surpresardquo Quer dizer notamos mais a sua presenccedila e menos sua identificaccedilatildeo como um conjunto

de formas delimitadas Tal questatildeo eacute relevante no sentido de que se conecta com a diversidade do

corpus selecionado nesta tese Se o ruiacutedo natildeo encontra uma esteacutetica uacutenica os procedimentos

adotados nas imagens onde podemos observaacute-lo tambeacutem apresentam variabilidade

45 ldquoEU SOU APENAS UM INCOcircMODOrdquo

Assim como a abordagem utilizada por Luiz Alberto Guimaratildees outro artista brasileiro

especialmente dedicado ao trabalho com dispositivos artesanais que ele mesmo chama de

ldquoprecaacuteriosrdquo (MAUEacuteS 2012) eacute o paraense Dirceu Maueacutes Apoacutes uma trajetoacuteria como

fotojornalista iniciada nos anos 1990 desde 2004 dedica-se aos trabalhos artiacutesticos que

atravessam os territoacuterios da fotografia do cinema do viacutedeo da instalaccedilatildeo tambeacutem abordando

entre outros temas a problemaacutetica da paisagem Segundo Maueacutes seu interesse pelos

135

equipamentos alternativos desenvolvidos com materiais simples como caixas de papelatildeo vem de

uma inquietaccedilatildeo em discutir tanto a esteacutetica quanto a ideia senso comum de que a tecnologia e a

qualidade da imagem dependem de equipamentos sofisticados

A questatildeo do ruiacutedo dentro da fotografia vem junto com esse uso do analoacutegico () deuma tecnologia mais simples E como sempre me incomodou o discurso comercial ()da imagem perfeita de colocar o dispositivo o equipamento na frente do fotoacutegrafo ()como se isso fosse garantir uma certa narrativa do trabalho Vocecirc garantir uma qualidadeesteacutetica () O meu interesse em usar pinhole a construccedilatildeo de cacircmera (e aiacute vem o ruiacutedojunto) acaba fazendo parte de um conjunto que se contrapotildee a esse discruso hegemocircnico() que se construiu sobre a fotografia um discruso mais teleoloacutegico () Comecei a meinteressar por certo confronto com esse discurso E no final o ruiacutedo acaba vindo juntocom o processo construindo a cacircmera Eu tinha lido Flusser e tinha adorado E pra mimera meio que tu entrar na ldquocaixa pretardquo e poder fazer o que tu quisesse apesar de que elate daacute umas limitaccedilotildees (MAUEacuteS 2017)83

Para Maueacutes a desconstruccedilatildeo do dispositivo convencional atraveacutes do emprego de

processos antigos da imagem como a fotografia estenopeica e a cacircmara obscura trazem uma

possibilidade de criacutetica agraves normatizaccedilotildees contidas no proacuteprio dispositivo (conforme atestou

Flusser sobre o ldquoprogramardquo) e reafirmadas por criacuteticos instituiccedilotildees pela induacutestria por alguns

teoacutericos e outros artistas Tambeacutem eacute uma forma de questionar as percepccedilotildees que ligam as

inovaccedilotildees no campo da imagem ao aprimoramento das tecnologias Para ele fabricar seus

proacuteprios equipamentos eacute uma das premissas libertadoras do ruiacutedo em suas obras

Construir sua proacutepria cacircmera significa estar livre das amarras de um modelo que lhe eacuteimposto pela induacutestria Significa poder experimentar uma enorme gama de novaspossibilidades que o processo permite a partir de um projeto muito pessoal deconstruccedilatildeo da cacircmera e das caracteriacutesticas que satildeo escolhidas para essa cacircmera(MAUEacuteS 2012 p10)

Agrave medida que foi experimentando com suas cacircmeras e outros dispositivos Maueacutes

acabou por discutir natildeo somente paradigmas centrais para a fotografia (como os limites do

instantacircneo da verossimilhanccedila e do automatismo das maacutequinas) mas aproximou-se de questotildees

mais fortemente relacionadas aos domiacutenios do cinema e do viacutedeo como a presenccedila do

movimento a montagem e o lugar do espectador Em um trabalho desenvolvido com uma

cacircmera de fenda (onde a abertura por onde entra a luz eacute vertical) uma estrutura bastante simples

foi criada para capturar o trajeto percorrido pelo fotoacutegrafo durante um passeio de bicicleta Uma

83 Entrevista concedida a autora em novembro de 2017

136

toy camera (meacutedio formato carregada com filme 120mm) foi presa ao guidatildeo de uma bicicleta

(figura 31)

Figura 31 - Adaptaccedilatildeo da toy camera e seu ajuste na bicicleta

Fonte Reproduccedilatildeo de Maueacutes (2015)

Figura 32 - Panoracircmica da seacuterie Extremo Horizonte realizada com cacircmera de fenda acoplada agrave bicicleta

(Dirceu Maueacutes 2014)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Figura 33 - Panoracircmica da seacuterie Extremo Horizonte realizada com cacircmera de fenda acoplada agrave bicicleta

(Dirceu Maueacutes 2012)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

137

A imagem tomada continuamente foi realizada com a bicicleta em movimento Em vez

de fotogramas individuais com vaacuterias imagens obteve-se uma uacutenica imagem que apesar de

adquirir certa continuidade espacial apresenta em toda a sua extensatildeo porccedilotildees verticais

resultantes do pequeno trecho do negativo esquadrinhado pela luz Isso permite ldquoum registro que

ganha em acuidade mas estaacute mais suscetiacutevel a efeitos de movimento na composiccedilatildeo da imagemrdquo

(MAUEacuteS 2012 p27) Na verdade nos primeiros testes com o formato panorama em fotografia

pinhole a intenccedilatildeo era manter a conexatildeo espacial entre os fotogramas mas essa ideia foi

abandonada em seguida

O artista desenvolveu tambeacutem um mecanismo para fazer avanccedilar o negativo durante o

registro Haacute nessa situaccedilatildeo uma combinaccedilatildeo de movimento bastante estranha aos processos

fotograacuteficos comuns peliacutecula e cacircmera movem-se simultaneamente durante todo o processo de

inscriccedilatildeo da imagem84 Desse modo temos a vista de uma paisagem cheia de arrastos borrotildees

corpos e objetos distorcidos (figuras 32 e 33) De acordo com Maueacutes (2012) as cacircmeras de fenda

eram utilizadas para fotografar corridas de cavalos Posicionando o equipamento ao lado da linha

de chegada movia-se o filme enquanto a maacutequina ficava parada No seu projeto esse princiacutepio

de funcionamento da cacircmera de fenda eacute invertido e natildeo vemos um movimento congelado mas

com paradas e continuidades numa mesma tomada Aliaacutes a partir de experiecircncias anteriores o

artista percebeu que as interrupccedilotildees no arrasto do negativo produziam efeitos interessantes

() em panoracircmicas muito longas meu braccedilo natildeo conseguia fazer um giro contiacutenuo Eranecessaacuterio soltar a chave no ponto que natildeo era possiacutevel continuar torcendo o braccedilo eretomar o movimento novamente Cada parada no movimento de giro do filmeprovocava uma superexposiccedilatildeo de uma pequena aacuterea dentro da imagem panoracircmicaressaltando assim ao acaso algumas partes da imagem uma pessoa que passava objetosna rua Haacute uma certa intermitecircncia de campos que atraem o olhar para essas pequenasaacutereas Temos como que um jogo de frames superpostos mas natildeo satildeo exatamente framespois a imagem tem uma certa continuidade A cidade eacute desvelada num contiacutenuo efragmentado movimento longitudinal (MAUEacuteS 2012 p27-28)

Os movimentos efetuados por esse construto de homem-cacircmera-bicicleta se transferem

para a imagem final criando um resultado que ocupa um lugar intermediaacuterio entre o imoacutevel e a

84 Processo semelhante eacute adotado pelo italiano Paolo Gioli que tambeacutem trabalha bastante com equipamentosartesanais Um exemplo satildeo as fotografias realizadas atraveacutes da teacutecnica de photo finish onde arrastos na imagemindicam o movimento da cacircmera durante a captura como ocorre em Figure Dissoluti (1974-78) (disponiacutevel emhttpwwwpaologioliitfoto6aphppage=fotoampsez=1ampid=6 Acesso em 13012020) e na seacuterie Crosswise Natures(2016) Cf Wanderlei L Na margem da histoacuteria fotografia analoacutegica artistas e as imagens erradas RevistaSignificaccedilatildeo v 46 n 52 p293-308 jul-dez 2019

138

mobilidade algo que habita o territoacuterio das ldquoentre-imagensrdquo (BELLOUR 1997) numa reflexatildeo

que nos ajuda a reconsiderar as fronteiras entre as artes (foto e cinema) e compreender o papel do

ruiacutedo como elemento pelo qual vaacuterios artistas vecircm expandindo o campo das visualidades Aliaacutes

Maueacutes (2015 p14) afirma que quanto mais explora os equipamentos a fim de alcanccedilar essas

imperfeiccedilotildees de grande valor plaacutestico mais extrapola o acircmbito do fotograacutefico indo na direccedilatildeo de

outras artes E de fato eacute o que se verifica nas diversas obras que realizou com auxiacutelio das

pinhole associando o movimento ao registro da paisagem No lugar do emprego desses

dispositivos voltado para a precisatildeo do olhar a irregularidade das condiccedilotildees de captura eacute que se

faz presente com ecircnfase na valorizaccedilatildeo das inscriccedilotildees do movimento Cada fotografia promove

uma junccedilatildeo de fragmentos do espaccedilo percorrido O processo lembra a reconstruccedilatildeo de um visiacutevel

realizada atraveacutes da montagem cinematograacutefica Natildeo agrave toa o artista faz referecircncia ao frame como

unidade narrativa miacutenima do cinema

As investigaccedilotildees sobre a paisagem levaram o artista a pensar a ligaccedilatildeo entre imagens

fixas e moacuteveis a partir do formato panorama que para ele eacute fotografia e cinema ao mesmo

tempo (MAUEacuteS 2012 p30) Se o panorama consiste no esquadrinhamento de uma paisagem

que se apresenta de maneira plana ao olhar do espectador (ver tamanho meacutedio das imagens nas

figuras 32 e 33) da mesma forma ocorre o procedimento nas imagens que compotildeem a seacuterie

Extremo Horizonte Mas em lugar de uma ilusatildeo de harmonia entre cada elemento do espaccedilo

(lembremos que os panoramas uma espeacutecie de preacute-cinema valorizavam um estilo realista de

representaccedilatildeo) haacute um estudo do ambiente que tende a apagar os pormenores Ou melhor

distorcecirc-los embaralhaacute-los Assim natildeo haacute coincidecircncia entre o visiacutevel e o resultado dessas

fotografias panoracircmicas conformando uma visatildeo nada convencional Aleacutem disso a inscriccedilatildeo da

paisagem numa continuidade temporal apresenta uma acumulaccedilatildeo de instantes todos contidos

numa mesma imagem mais uma vez lembrando o processo da montagem de um filme

139

Figura 34 - Montagem de peccedilas da seacuterie Extremo Horizonte

Fonte Reproduccedilatildeo internet85

A questatildeo eacute que se o panorama eacute cinema e foto e as fotografias panoracircmicas de

Extremo Horizonte (figuras 34 35 e 36) possuem tambeacutem a dupla natureza do cinema e da

fotografia tampouco elas pertencem completamente a apenas um destes campos Nesse sentido o

artista faz aproximaccedilotildees entre os processos da pinhole e do panorama

() o tempo usado na pinhole tambeacutem eacute uma duraccedilatildeo ele inscreve a imagem lentamentesobre o negativo E as caracteriacutesticas da fotografia pinhole potencializam o conceito dopanorama A soma de vistas sobre o proacuteprio negativo emendadas sem precisatildeo ou atomada da foto em sistema de varredura girando a cacircmera sobre seu proacuteprio eixo aomesmo tempo em que o filme tambeacutem eacute girado dentro da cacircmera () (MAUEacuteS 2012p24)

As interferecircncias do corpo e do espaccedilo durante a realizaccedilatildeo da imagem demonstram a

afirmaccedilatildeo de um corpo estranho (homem+maacutequina+bicicleta) como gecircnese de uma esteacutetica

85 Reproduccedilatildeo do site da Galeria Karla Osorio Disponiacutevel em httpkarlaosoriocomolhares-dispositivos-paisagem Acesso em 14012020

140

especiacutefica negando tambeacutem a ideia de um aparato divorciado do sujeito (funcionando automaacutetica

e independentemente) Maueacutes (2015) considera que a experiecircncia desse corpo desvenda a cidade

de maneira ldquoerraacuteticardquo em busca de um certo ldquoestranhamentordquo localizaacutevel entre a velocidade e a

lentidatildeo materializado atraveacutes das irregularidades da proacutepria esteacutetica Algo entre o familiar e o

desconhecido Assim do ponto de vista formal esse trabalho apresenta um afastamento

significativo de uma relaccedilatildeo de analogia purista entre o mundo concreto e sua imagem (tantas

vezes vinculada agrave funccedilatildeo da fotografia) Natildeo haacute intenccedilatildeo de correspondecircncia entre imagem e o

perceptiacutevel mas a sugestatildeo de uma alteridade proacutepria ao olhar do dispositivo formada em grande

medida por essa presenccedila corporal-maquiacutenica como explica o autor

Muitos ruiacutedos satildeo incorporados no processo Ruiacutedos que satildeo produzidos pelacombinaccedilatildeo de erros e acidentes que agora jaacute mais que intencionais provocados poruma despreocupaccedilatildeo cada vez maior com qualquer estabilidade que a imagem possa terImagem que se transforma quase que em pintura Onde sua textura eacute dada por um certogestual por uma accedilatildeo Comeccedilo a usar a cacircmera como um instrumento mais livre ondemeu movimento determina que resultado vou ter (MAUEacuteS 2012 p29)

Se o que vemos nos parece incomum eacute porque essa obra faz um investimento no registro

da experiecircncia de uma estrutura alternativa de captura da imagem explorando aspectos luacutedicos

de um processo que se abre para reconsiderar o valor de um certo imprevisiacutevel O fotoacutegrafo

brinca com o niacutevel de imprecisatildeo dos resultados oferecidos pelo equipamento numa investigaccedilatildeo

conceitual que potildee em xeque ideologias esteacuteticas e tecnoloacutegicas da fotografia

As reflexotildees sobre a fotografia enquanto linguagem no campo da arte a partir dasexperimentaccedilotildees com fotografia pinhole construccedilotildees de cacircmeras artesanais e produccedilatildeode imagens utilizando aparelhos precaacuterios despertaram em mim o interesse pelasimperfeiccedilotildees dessas imagens seus ldquoerrosrdquo ruiacutedos imprevistos e acasos Tal poeacuteticabaseada na incerteza de imagens produzidas com a utilizaccedilatildeo de aparelhos precaacuterios(cacircmeras artesanais toy cameras cacircmeras de celular) em tempos de deslumbre poraparelhos tecnoloacutegicos sofisticados eacute uma poeacutetica de subversatildeo dos meios (MAUEacuteS2012 p13)

A contenda de subversatildeo dos meios para Maueacutes (assim como para Luiz Alberto

Guimaratildees e outrosas artistas presentes aqui) estaacute afinada com o pensamento flusseriano sobre

as possibilidades de um ldquofotoacutegrafo experimentalrdquo (2011) atuar numa margem de negociaccedilatildeo

relativa ao ldquoprogramardquo do ldquoaparelhordquo A relaccedilatildeo sujeito-aparelho eacute de uma acoplagem de um

funcionamento conjunto mas o aparelho opera na medida da intenccedilatildeo humana enquanto que ao

sujeito resta extrair do aparelho aquilo que este tem capacidade de lhe oferecer (FLUSSER 2017

141

p38) Ou seja encontrar um espaccedilo de liberdade (relativa) onde seja possiacutevel surpreender-se

testar novas abordagens criar modos de uso especiacuteficos Conscientes de que essa atuaccedilatildeo

enfrenta limites osas artistas manipulam as estruturas dos dispositivos a fim de manipular

tambeacutem paradigmas do campo da imagem e acabam jogando em diversos niacuteveis com a ideia do

ruiacutedo

O trabalho com cacircmeras pinhole eacute para o artista paraense a chave que abre a porta

desse lugar de ldquoincertezasrdquo na imagem onde se verifica exatamente a ocorrecircncia do ruiacutedo pois

haacute uma imprecisatildeo como carcateriacutestica inerente a essas cacircmeras que permite ao usuaacuterio atuar na

fronteira entre os paracircmetros teacutecnicos e a intuiccedilatildeo Nunca se sabe por completo como a imagem

iraacute comportar-se

Na fotografia pinhole apesar de todo controle racional que se faz necessaacuterio ter sobre oprocesso eacute a intuiccedilatildeo que opera sobre esse racional O modo de fazer eacute muito intuitivoAs cacircmeras pinhole natildeo tecircm visor () Eacute necessaacuterio ativar um terceiro olho na palma dasmatildeos que posicionam a cacircmera A passagem do filme eacute feita sem exatidatildeo O fotoacutegrafo eacuteresponsaacutevel por controlar tudo usando sua intuiccedilatildeo e o resultado sempre oferecesurpresas (MAUES 2015 p19)

Haacute uma especificidade teacutecnica importante das cacircmeras pinhole responsaacutevel pela esteacutetica

de todos esses trabalhos o fato de natildeo possuir lentes faz com que todos os planos da imagem

possuam o mesmo grau de definiccedilatildeo mas natildeo uma definiccedilatildeo acentuada como eacute possiacutevel obter

por exemplo quando temos uma cacircmera industrial que dispotildee de um anel para focagem Assim

haacute um ruiacutedo decorrente da proacutepria teacutecnica que eacute um efeito levemente desfocado encontrado nos

contornos dos elementos presentes na imagem uma ldquotextura mais acentuadardquo (MAUEacuteS 2015

p23) E aqui se quebra uma regra de ouro de um fazer fotograacutefico normatizado que eacute a busca

pela definiccedilatildeo ou na totalidade da imagem ou em algum ponto tomado como principal atraveacutes

do foco Poreacutem eacute possiacutevel melhorar essa definiccedilatildeo atraveacutes do tamanho do orifiacutecio de entrada da

luz quanto menor ele for e mais perfeito mais definiccedilatildeo teremos considerando ainda uma relaccedilatildeo

entre as proporccedilotildees do diacircmetro do furo e as dimensotildees da cacircmera Isso faria a pinhole funcionar

de maneira muito parecida com uma maacutequina convencional

A exemplo do que vemos em Paisagens cacofocircnicas haacute um relativo niacutevel de definiccedilatildeo

pois o que estaacute em jogo eacute a negaccedilatildeo da perspectiva monocular atraveacutes das muacuteltiplas exposiccedilotildees

Jaacute em Retratos do indiziacutevel como a problemaacutetica abordada inclui uma temporalidade estendida

(o que significa lidar com a presenccedila do movimento) a questatildeo da definiccedilatildeo jaacute estaacute mais

142

relativizada principalmente nos efeitos de repeticcedilatildeo e transparecircncia do corpo do artista que

algumas das fotos apresentam (figura 25) Nas panoracircmicas de Dirceu Maueacutes a captura feita

numa situaccedilatildeo de movimento do equipamento e do proacuteprio negativo eleva sobremaneira a

potecircncia de indefiniccedilatildeo geral da imagem em alguns casos transitamos de um desfocado para

verdadeiros borrotildees num intenso desmanchar das formas o que representa uma perturbaccedilatildeo da

figuraccedilatildeo Esse resultado potildee a fotografia em diaacutelogo com a pintura Se concordarmos com

Bellour (1997) para quem o desfoque e o tremido satildeo dimensotildees do proacuteprio instantacircneo

fotograacutefico ou seja desdobramentos contidos neste poreacutem nem sempre visiacuteveis eacute possiacutevel

analisaacute-los ainda como manifestaccedilotildees que aleacutem de mexerem com a forma apontam outras

vertentes do tempo perfazendo modalidades do ruiacutedo que emergem do tensionamento do

instantacircneo

Figura 35 - Panoracircmica da seacuterie Extremo horizonte (Dirceu Maueacutes 2012)

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

Figura 36 - Panoracircmicas da seacuterie Extremo horizonte (Dirceu Maueacutes 2013)

Fonte Reproduccedilatildeo de Maueacutes (2015)

143

Ao discutir a retomada de processos claacutessicos da imagem fotoquiacutemica na atualidade

Fatorelli e Carvalho (2015) atestam que ao contraacuterio de um ingecircnuo tributo a seus usos

tradicionais a fotografia contemporacircnea baseia-se em muitos casos em seus proacuteprios recursos

teacutecnicos afirmando ao mesmo tempo uma independecircncia com relaccedilatildeo a quaisquer condiccedilotildees

precedentes agrave imagem sem contudo abandonar totalmente o laccedilo com o referente Essa tocircnica

encontramos nas obras de Guimaratildees e Maueacutes em seus diferentes modos operativos da pinhole

ambos procedendo a experiecircncias que colocam a imagem num verdadeiro ldquoterritoacuterio

intermediaacuterio de inuacutemeras nuances e gradaccedilotildees situado entre a abstraccedilatildeo metafoacuterica e a

reproduccedilatildeo literalrdquo (FATORELLI amp CARVALHO 2015 p51)

Conforme adiantamos o diaacutelogo entre formas de expressatildeo centradas na imagem

engloba experiecircncias com teacutecnicas fotograacuteficas e recursos oriundos do cinema e tambeacutem do

viacutedeo Se em Extremo horizonte haacute um flerte com o movimento cinematograacutefico a partir de

esteacuteticas que expressam o movimento do proacuteprio equipamento o resultado permanece ainda

circunscrito ao domiacutenio da fotografia como imagem-objeto em trabalhos como Feito poeira ao

vento (2006)86 as pinhole satildeo utilizadas para a montagem de um viacutedeo que mostra uma

conhecida feira paraense A imagem transita da imobilidade da pinhole em direccedilatildeo ao viacutedeo em

velocidades variaacuteveis entre a lentidatildeo e a rapidez Elas adquirem um ldquoefeito cinemardquo (PARENTE

2015) que nos deixa perceber se tratarem de fotografias animadas O proacuteprio Maueacutes (2012)

refere-se a essa proposiccedilatildeo como um ldquocinema mancordquo porque notamos lacunas temporais

interrupccedilotildees com cortes bem marcados chamando a atenccedilatildeo para a quebra da ilusatildeo de um

movimento contiacutenuo uma sensiacutevel mudanccedila de luz atestando os diferentes momentos do dia

capturados por vaacuterias cacircmeras (30 pinholes efetuando um giro de 360 graus produzindo mais de

900 imagens) os corpos de feirantes e transeuntes os veiacuteculos aparecendo e desaparecendo Eacute

um viacutedeo no qual o processo de elaboraccedilatildeo eacute sentido na proacutepria maneira de apresentaccedilatildeo ao

espectador Segundo Parente (2015 p77-78) embora a realizaccedilatildeo desse trabalho demande um

planejamento bastante sofisticado (construccedilatildeo das cacircmeras posicionamento coordenaccedilatildeo da

captura etc) apoacutes a organizaccedilatildeo dessa estrutura toda eacute o acaso que domina a cena como parte de

um processo notadamente artesanal natildeo interessando a imagem perfeita mas sim os seus ruiacutedos e

imprevistos suas interrupccedilotildees o fade expliacutecito86 Disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=7iqFdY5vD8c Acesso em 20012020

144

Figura 37 - Vista da videoinstalaccedilatildeo Em um lugar qualquer - Outeiro em 2011

Fonte Reproduccedilatildeo de Maueacutes (2012)

Aqui jaacute observamos um movimento de mudanccedila do estatuto da imagem na direccedilatildeo de

sua desmaterializaccedilatildeo atraveacutes do formato viacutedeo procedimento que se intensifica nas instalaccedilotildees

como Em um lugar qualquer Outeiro (2009) (figura 37) na qual as fotografias satildeo empregadas

como projeccedilotildees montadas de forma a criar uma nova organizaccedilatildeo espacial do lugar retratado

uma praia vista atraveacutes dos registros de cacircmeras montadas sobre uma base hexagonal Mais uma

vez a construccedilatildeo da obra ativa a estrutura da imagem moacutevel sendo ao mesmo tempo fotografia

O mecanismo da instalaccedilatildeo impressiona

170 cacircmeras pinhole construiacutedas a partir de pequenas caixas de foacutesforos foram divididasentre seis fotoacutegrafos posicionados no interior de uma base hexagonal Cada fotoacutegrafotomava uma sequecircncia de fotografias na direccedilatildeo do horizonte apoiando as cacircmeras emcada um dos lados do hexaacutegono Cada sequecircncia era animada e assim tiacutenhamos seisviacutedeos que juntos lado a lado formando uma vista panoracircmica em 360 graus da praia(MAUEacuteS 2015 p43)

Tais trabalhos mostram constantemente uma vontade de repensar os lugares atribuiacutedos agraves

diversas modalidades da imagem uma tocircnica bastante forte na arte contemporacircnea Nessas zonas

de aproximaccedilatildeo entre foto viacutedeo e cinema encontram-se uma seacuterie de ruiacutedos surgidos de

experiecircncias que aleacutem de proporem novas sensibilidades tambeacutem servem para repensar

criticamente os usos convencionais das tecnologias

Figura 38 - Quimigramas da seacuterie (In)certa paisagem imaginaacuterio de luz e prata (Dirceu Maueacutes 2017)

145

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Figura 39 - Quimigramas da seacuterie (In)certa paisagem imaginaacuterio de luz e prata (Dirceu Maueacutes 2017)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Na interface entre processos fotograacuteficos desenho e pintura o artista paraense

desenvolveu um trabalho chamado (In)certa paisagem imaginaacuterio de luz e prata (2017)

146

(figuras 38 39 e 40) atraveacutes da teacutecnica do quimigrama87 Este procedimento consiste em deixar o

papel fotograacutefico sofrer livremente a accedilatildeo dos quiacutemicos fotograacuteficos revelador ldquostoprdquo (banho de

parada) e fixador A imagem forma-se a depender da quantidade intensidade e ordem das

substacircncias aplicadas e tambeacutem de acordo com a regularidade dos movimentos que o fotoacutegrafo

executa para que os quiacutemicos deslizem sobre a superfiacutecie do papel Assim como em outras obras

haacute um interessante jogo entre o domiacutenio da teacutecnica e a impossibilidade de controlar totalmente o

resultado Numa mesma imagem o estilo das manchas que ficam no papel varia entre tonalidades

mais profundas e outras mais transluacutecidas As manchas entatildeo podem assemelhar-se a pinceladas

ou agrave tinta que escorre quando se faz uma aquarela

() Eu fiz em Berlim os quimigramas O material eacute fotograacutefico Natildeo chega a serfotografia () eacute papel mas ele taacute mais para desenho e pintura Na verdade eu uso umpapel fotograacutefico velado e uso revelador e fixador como agentes de escrita de pinturade desenho Entatildeo natildeo parte de uma imagem Natildeo eacute uma imagem fotograacutefica nessesentido de um recorte de uma realidade Tem uma representaccedilatildeo mas mais ligada agravepintura ao desenho do que agrave fotografia uma coisa mais indicial Parte do zero Natildeo temimagem nenhuma Eacute como se tivesse trabalhando com nanquim sei laacute mas com ummaterial que tem um tempo de reaccedilatildeo () Ele escorre o tempo de accedilatildeo do quiacutemico nopapel ( ) eacute um tempo um pouco parecido com a gravura em metal Essa coisa da accedilatildeodo quiacutemico no suporte que vai revelando as coisas (MAUEacuteS 2017)

87 Poivert (2009) assinala a produccedilatildeo de imagens com essa teacutecnica em 1956 no trabalho do artista belga PierreCorrier

147

Figura 40 - Quimigramas da seacuterie (In)certa paisagem imaginaacuterio de luz e prata (Dirceu Maueacutes 2017)

Fonte Cortesia do artista

Aqui a ideia de paisagem imaginada sonhada e portanto construiacuteda (e por isso mesmo

incerta) guarda relaccedilatildeo tanto com a maneira como a imagem se forma aos poucos sem muito

controle nem precisatildeo e tambeacutem com o fato de que literalmente quem olha eacute que monta um

ambiente a partir de sua proacutepria imaginaccedilatildeo tambeacutem com base em referecircncias de pinturas

anteriores (que jaacute satildeo elas proacuteprias fabulaccedilotildees sobre um espaccedilo) Quer dizer estamos diante de

paisagens que nascem de outras paisagens Dividido pela linha do horizonte eacute possiacutevel sugerir

que estamos diante de um lago margeado por plantas cujos galhos apontam em direccedilatildeo ao ceacuteu

(figura 38) Podemos ver na aacutegua o reflexo desse ceacuteu de nuvens carregadas etc Ou seja eacute

preciso buscar as formas de um espaccedilo representado onde de fato soacute haacute as marcas dos quiacutemicos

Essa questatildeo nos leva a refletir sobre uma tocircnica que eacute geral nas obras sobre a paisagem

apresentadas aqui o caraacuteter elaborado construiacutedo e convencionado da paisagem como uma

externalidade que se oferece ao olhar sob determinadas regras sendo que muitas vezes nos

esquecemos desses ordenamentos e naturalizamos essa construccedilatildeo (como uma espeacutecie de

148

transferecircncia do mundo real agrave imagem) Uma condiccedilatildeo jaacute ressaltada tanto por Maueacutes quanto por

Guimaratildees em suas preocupaccedilotildees na abordagem do espaccedilo atraveacutes da imagem

Outro ponto relevante eacute que o lugar do fotograacutefico eacute reduzido a seus materiais baacutesicos

(papel e substacircncias quiacutemicas) sem a participaccedilatildeo da cacircmera O aparato desenvolvido pelo artista

eacute simples e potente no sentido de mais uma vez chamar nossa atenccedilatildeo para os automatismos no

uso das tecnologias Fotografia pintura desenho sem cacircmeras industrializadas lentes

fotocircmetro sem pinceacuteis sem telas tintas sem cavalete sem laacutepis etc Desse modo tambeacutem o

referente como condiccedilatildeo precedente agrave imagem se vecirc expulso do processo Esse trabalho

questiona a proacutepria noccedilatildeo de paisagem como duplo de um real contenda que tanto assombra a

fotografia Uma seacuterie de questotildees apontando para os ruiacutedos criados com base na exploraccedilatildeo das

materialidades disponiacuteveis

A teacutecnica dos quimigramas eacute utilizada tambeacutem nas investigaccedilotildees do fotoacutegrafo Joseacute Luiacutes

Neto na seacuterie Classic 111 (figuras 41 e 41a) No entanto o resultado alcanccedilado eacute diferente Se o

artista paraense quer sugerir paisagens desenhar mundos o artista portuguecircs deixa a interaccedilatildeo

entre os materiais construir as formas sem se preocupar tanto com o gecircnero a que elas vatildeo

pertencer Seus quimigramas satildeo intencionalmente abstraccedilotildees

O quimigrama eacute algo que tu natildeo controlas agrave partida Implica sempre que tu sigas o quevai acontecendo ao papel fotograacutefico agrave medida que a imagem vai aparecendo dentro dosquiacutemicos Daiacute o importante desse lado fiacutesico das tuas matildeos com a folha Tu podesmarcar na folha os teus gestos Os quimigramas acabam por ser esse lado maisexperimental soacute com a luz papel fotograacutefico e quiacutemicos (NETO 2014)88

Conforme se apreende do exposto a teacutecnica eacute empregada para explorar os resultados

esteacuteticos da interferecircncia do fotoacutegrafo no processo que decorre da accedilatildeo das substacircncias aleacutem das

marcas que a proacutepria adiccedilatildeo dessas substacircncias jaacute provoca A valorizaccedilatildeo do gestual em cima da

coacutepia final como quem preenche uma tela cria uma ponte entre o fotograacutefico e o pictoacuterico no

que este uacuteltimo tem de singularidade de originalidade de artesania Assinale-se tambeacutem que o

artista desordena as etapas de revelaccedilatildeo-parada-fixaccedilatildeo pois ele tanto pode mergulhar o papel

primeiro no ldquostoprdquo depois no fixador no revelador ou em outra ordem qualquer inclusive

passando mais de uma vez por cada um dos quiacutemicos O quimigrama eacute uma forma de criar

88 Depoimento ao programa Entre Imagens da rede de televisatildeo RTP Disponiacutevel emhttpswwwyoutubecomwatchv=r8SQHL_Krfc Acesso em 18012020

149

imagens prescindindo de um dos elementos mais caros agrave fotografia (a luz) Esse jogo com a luz

demonstra uma vontade de levar a imagem ao limite do visiacutevel contrariando as regras habituaus

da boa fotografia questionando assim o dispositivo fotograacutefico (LENOT 2017a p45)

A teacutecnica por fim constitui uma verdadeira perversatildeo do processamento quiacutemico

utilizado na fotografia industrial e por isso mesmo traz agrave tona sempre imagens novas e

imprevisiacuteveis embora de certa forma jaacute contidas no ldquoprogramardquo do aparelho fotograacutefico

Figuras 41 e 41a - Quimigramas da seacuterie Classic 111 (Joseacute Luiacutes Neto 2006)

150

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

A partir do momento em que se abandona a preocupaccedilatildeo de referir o inteligiacutevel na

imagem abre-se o espaccedilo para uma investigaccedilatildeo voltada para o medium que busca a pura

expressatildeo da mateacuteria E na verdade essa premissa caracteriza em larga medida toda a obra desse

artista Ao observarmos seus demais trabalhos entendemos que seu interesse estaacute nas

possibilidades escondidas (ainda natildeo desvendadas ou valorizadas) nos princiacutepios que envolvem a

fotografia como a luz o tempo as caracteriacutesticas dos equipamentos o jogo entre figuraccedilatildeo e

abstraccedilatildeo Uma pesquisa devotada agraves zonas pouco ou mal exploradas do aparelho (FLUSSER

2011)

Outros trabalhos baseados na apropriaccedilatildeo de imagens constroem-se atraveacutes de uma

metodologia bastante livre o artista usa fotografias adquiridas de maneiras variadas (encontradas

nas ruas doadas por outras pessoas jaacute que ele mesmo raramente compra fotografias antigas) O

uacutenico ponto em comum eacute que todas estatildeo relacionadas agrave cidade de Lisboa (onde vive atualmente

Joseacute Luiacutes Neto) Ou seja os trabalhos constroem-se agrave medida que os materiais vatildeo se

apresentando sem que necessariamente se proceda a uma busca deliberada orientada e

planejada O material da seacuterie July 1984 (figuras 42 42a e 42b) foi encontrado abandonado

numa casa As fotos estavam coladas umas agraves outras Cada uma delas exibe vestiacutegios

provavelmente de reaccedilotildees ocorridas no material sob a accedilatildeo do tempo da umidade dos proacuteprios

quiacutemicos e do papel (jaacute que esse material natildeo estava armazenado em condiccedilotildees ideais) Essa

151

combinaccedilatildeo de fatores criou interessantes efeitos cromaacuteticos em manchas distribuiacutedas na

superfiacutecie de cada foto A escolha de preservar essas caracteriacutesticas indica certo despojamento

que atribui um valor plaacutestico aos vestiacutegios da proacutepria deterioraccedilatildeo dos materiais Assim uma

esteacutetica de precariedade se faz presente nesse trabalho Na fase de impressatildeo para o livro

Caderno de imagens (onde encontramos a seacuterie) o fotoacutegrafo percebeu detalhes que natildeo

estavam (aparentes) nas fotos elementos revelados por causa da impressatildeo ldquoNa imagem

transferida haacute pormenores que () natildeo aparecem no original Quando tu olhas pra esta imagem

haacute uma crianccedila que aponta para o chatildeo e tu vais perceber que o mosaico eacute o negativo ()rdquo

(NETO 2014)

Figura 42 42a 42b - Imagens de July 1984 (Joseacute Luiacutes Neto2012)

152

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

No procedimento de vaacuterias etapas de desgaste da imagem vemos personagens e espaccedilos

praticamente sumirem encobertos pelas manchas como que invocando um processo de

deterioraccedilatildeo (que ocorre em qualquer material) e tambeacutem nos dizendo que a imagem eacute tambeacutem

uma impermanecircncia localizandp-se ainda na fronteira no limiar entre a figuraccedilatildeo e o abstrato

As pessoas deixam de ser a temaacutetica para simplesmente dar lugar agraves manchas que vatildeo se

espalhando pela superfiacutecie da imagem fazendo-se presente em toda a sua extensatildeo ateacute se

tornarem elas mesmas o assunto da seacuterie

Esse princiacutepio que coloca em evidecircncia a articulaccedilatildeo entre materiais gerando uma

esteacutetica calcada nos vestiacutegios dos materiais empregados eacute intensificado na outra seacuterie que

compotildee o livro de artista Caderno de Imagens que se chama High Speed Press Plate (2006)

(figura 43) O fotoacutegrafo utiliza negativos de vidro digitaliza-os e depois faz impressotildees em papel

(CAMACHO online 2007) Partindo de matrizes jaacute processadas com formas jaacute desfeitas o que

sobram satildeo novamente manchas Na passagem de negativo para digital ateacute a finalizaccedilatildeo com

impressatildeo em papel cada um desses suportes deixa na imagem vestiacutegios que funcionam como

camadas acumuladas criando uma esteacutetica hiacutebrida O tiacutetulo da seacuterie eacute irocircnico considerando que

153

o processo de realizaccedilatildeo de negativos em vidro tem vaacuterias etapas de produccedilatildeo Por exemplo nas

wet plates ou coloacutedio uacutemido89 (um tipo de processo que utiliza em negativos de vidro) a

sensibilizaccedilatildeo das placas necessita entre 1 minuto e meio e 3 minutos de imersatildeo na substacircncia

fotossensiacutevel O tempo de exposiccedilatildeo pode variar de alguns segundos a 2 minutos90 Mas com essa

etapa jaacute vencida (pois Neto utiliza imagens jaacute prontas) esse tempo mais lento do coloacutedio eacute

submetido ao extremo automatismo da digitalizaccedilatildeo para em seguida encontrar de novo relativa

permanecircncia no formato de saiacuteda em papel

Figura 43 - High Speed Press Plate 1 (Joseacute Luiacutes Neto 2006)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Os trabalhos de Joseacute Luiacutes Neto satildeo de fato comentaacuterios interrogaccedilotildees sobre o meio

fotograacutefico seus gecircneros estatutos sociais e conceitos seus limites e expansotildees teacutecnicos e as

metodologias que ele cria evocam uma simplicidade no fazer que nos leva a pensar a respeito dos

princiacutepios mais baacutesicos da imagem tais como o referente as temporalidades a inscriccedilatildeo por

meio da luz

89 Wet plates ou placas uacutemidas satildeo as fotografias que utilizam o coloacutedio uacutemido como ligante para o suporte daimagem (de vidro) Satildeo tambeacutem chamadas de ambroacutetipos90 Gold Jens The Ambrotype Wet Collodion Positives on Glass Treatment Challenges on Complex Nineteenth-Century Photographic Objects Dissertaccedilatildeo de mestrado Universidade de Oslo - Departamento de ArqueologiaConservaccedilatildeo e Histoacuteria - Faculdade de Humanidades 2018 p26-28

154

Eu acho que a fotografia eacute um meio fantaacutestico no sentido de que natildeo haacute propriamentelimites Os meus trabalhos soacute podem ser feitos em fotografia Eacute o meio de que eu maisgosto mas tambeacutem aquele que eu mais domino E eu natildeo sei fazer outra coisa Eacute o meioque vai de encontro agraves minhas preocupaccedilotildees agraves minhas ideias agrave minha imaginaccedilatildeo Eacute alinguagem ideal para eu poder construir os meus trabalhos autorais () No meutrabalho nunca dei prioridade a formatos exceto que tenho uma grande admiraccedilatildeo pelolado da barra da tira (NETO 2014)

As barras ou tiras satildeo o elemento baacutesico de estruturaccedilatildeo de um trabalho bastante

peculiar Na verdade um retrato Agrave semelhanccedila do que faz Maueacutes com as panoracircmicas o artista

portuguecircs criou um mecanismo para movimentar o filme dentro da cacircmera enquanto capturava a

imagem de um muacutesico Um motor foi acoplado agrave maacutequina que garante o avanccedilo do negativo a

uma velocidade constante (RODRIGUES 2017)91 enquanto o retratado olhava a lente por um

tempo aproximado de 3 minutos A imagem eacute um compoacutesito de linhas verticais coloridas

resultante de um registro feito por varredura o que torna qualquer tentativa de identificar uma

fisionomia inviaacutevel Um retrato que nasce da dissoluccedilatildeo da forma (Chromatic Fantasy 2002)

Figura 44 - Detalhe de Chromatic Fantasy (Joseacute Luiacutes Neto 2002)

Fonte Reproduccedilatildeo site Projecto MAP92

91 Jaacute citamos aqui o trabalho de Paolo Gioli como partidaacuterio da mesma metodologia de avanccedilo do negativo paracaptura por varredura Nesse sentido nota-se uma grande semelhanccedila entre as obras Natildeo 1 de Joseacute Luiacutes Neto(httpwwwjoseluisnetopten01-01-00html) e a seacuterie Crosswise natures de Gioli(httpwwwrevistasuspbrsignificacaoarticleview148839154304) Acesso em 1002202092 Disponiacutevel em httpwwwprojectomapcom Acesso em 10022020

155

Figura 45 - Vista da instalaccedilatildeo Chromatic phantasy (Joseacute Luiacutes Neto 2002)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Em Chromatic phantasy (2002) (figuras 44 e 45) e outras obras semelhantes como

Continuum (2005)93 Brgycm (1993)94 haacute ainda uma proposta de reflexatildeo sobre a gecircnese da

exposiccedilatildeo fotograacutefica ou seja que configuraccedilotildees (supostamente) podem surgir quando

repensamos a maneira de expor a superfiacutecie fotossensiacutevel segundo certas condiccedilotildees de

iluminaccedilatildeo tempo de captura etc Que possibilidades podemos encontrar se criamos nossos

paracircmetros especiacuteficos jogando com as expectativas sobre o funcionamento ldquoadequadordquo do

equipamento

De maneira geral os trabalhos de Joseacute Luiacutes Neto demonstram uma inclinaccedilatildeo agrave

abstraccedilatildeo que nasce de uma intenccedilatildeo exploratoacuteria dos recursos das maacutequinas e dos insumos e

resultam numa esteacutetica bastante minimalista Eles tambeacutem nos permitem ver de perto a estrutura

compositiva do negativo as texturas das coacutepias os vestiacutegios dos quiacutemicos ou seja potildeem a nu a

mateacuteria da imagem Todas essas questotildees e a maneira como satildeo exploradas levam-nos de volta ao

tema do ruiacutedo no territoacuterio da imagem pela conexatildeo com a expressatildeo da mateacuteria dando-se de

forma erraacutetica e por vezes imprevisiacutevel e isso nos mais diferentes recursos empregados pelos

artistas de nosso corpus

93 Disponiacutevel em httpwwwjoseluisnetopten01-07-00html Acesso em 0804202094 Disponiacutevel em http2132391972268800listObrasjspid_obra=927 Acesso em 08042020

156

46 CONTROLE EFICIEcircNCIA E DISPOSITIVOS

Conforme adiantamos brevemente o estudo de Hainge (2013) aposta numa

compreensatildeo ampla do ruiacutedo natildeo restringindo a compreensatildeo do tema ao campo das artes muito

menos ao acircmbito sonoro O ruiacutedo estaria em tudo

Sugeri que o ruiacutedo eacute o artefato de uma ontologia expressiva assinalando o movimentonecessaacuterio que subsiste em todo ser seja num niacutevel subatocircmico existencial filosoacuteficoquacircntico ou individual O ruiacutedo entatildeo eacute aquilo que desmorona o mundo de uma fixidezilusoacuteria agrave qual nos agarramos numa tentativa de manter as coisas no lugar separarelementos uns dos outros e elevarmo-nos acima do ldquomundo natural95 (HAINGE 2013p68)

A concepccedilatildeo do ruiacutedo como algo positivo ldquoexpressivordquo demonstra o interesse nos

processos de fluxo produccedilatildeo de diferenccedila ruptura de paradigmas e especialmente nas

articulaccedilotildees entre seres humanos e tecnologias questotildees cruciais para a discussatildeo proposta nesta

tese Mas o autor natildeo estaacute sozinho nessa interpretaccedilatildeo

Mark Nunes (2011) ndash organizador de uma seacuterie de textos relacionados ao papel do erro e

do ruiacutedo nas praacuteticas culturais ndash lembra que esses temas se conectam com a resposta inerente a

uma ideologia do controle da precisatildeo e da maacutexima eficiecircncia caracterizadoras da sociedade

atual Sua abordagem parte de uma concepccedilatildeo de ruiacutedo ligada agrave ciberneacutetica preocupada com a

emergecircncia do erro no acircmbito dos sistemas informaacuteticos da cultura digital dos procedimentos e

estrateacutegias utilizados no universo de uma sociedade conectada em rede Por isso mesmo enfatiza

que vivemos sob uma ldquoideologia do controle informaacuteticordquo uma loacutegica que demanda uma

performance livre de falhas e na qual o erro demonstra exatamente a fuga desse padratildeo pois

funciona como

() Uma estrateacutegia potencial de desorientaccedilatildeo e evoca uma loacutegica de controle para criaruma abertura agrave variaccedilatildeo ao jogo e a resultados natildeo intencionais O erro como domiacutenioerrante sugere maneiras pelas quais o defeito a falha e a maacute comunicaccedilatildeoproporcionam aberturas criativas e linhas de voo que permitem uma reconceituaccedilatildeo do

95 Traduccedilatildeo livre de ldquoI have suggested in the introduction that noise is the artefact of an expressive ontologysignaling the necessary movement that subsists in all being whether this be at a subatomic existentialphilosophical quantum or individual level Noise then is that which unmoors the world from the illusory fixity towhich we tie down in an attempt to keep it in place to separate its elements out of each other and elevate ourselvesabove the lsquonatural worldrsquordquo

157

que pode (ou natildeo) ser realizado nas praacuteticas sociais e culturais existentes96 (NUNES2011 p3-4)

O pesquisador exalta a capacidade de o ruiacutedo abrir novos caminhos expressivos

contribuindo para alterar modelos esteacuteticos ligados por exemplo a ideais como beleza

equiliacutebrio pureza ou mesmo organizaccedilatildeo que simbolicamente estatildeo incorporados como valores

para o campo da arte e sintomaacuteticos de certos movimentos artiacutesticos97 Apropriar-se do caraacuteter

desagregador do ruiacutedo para sugerir a emergecircncia de esteacuteticas ldquosujasrdquo ldquocaoacuteticasrdquo ldquoindefinidasrdquo

ldquoexperimentaisrdquo (e sua legitimaccedilatildeo) representa uma proposiccedilatildeo que encontra paridade tambeacutem

nas correntes filosoacuteficas que refletem sobre o papel central da tecnologia nas relaccedilotildees humanas

A aposta no ruiacutedo como catalisador de esteacuteticas complexas fluidas e abertas estaacute intimamente

relacionada ao pensamento de nomes como Gilles Deleuze Feacutelix Guattari Vileacutem Flusser (jaacute

citado) cujos apontamentos diagnosticaram o ambiente da comunicaccedilatildeo em rede dos circuitos

informaacuteticos de uma certa acessibilidade ampliada agrave informaccedilatildeo como caracterizadores das

sociedades contemporacircneas sem perder de vista a potecircncia de reescritura subversatildeo e sabotagem

escondidas nessas mesmas tecnologias e como isso poderia efetivar-se atraveacutes de uma relaccedilatildeo

natildeo-hieraacuterquica entre seres humanos e dispositivos Um aproveitamento das teacutecnicas feito na

base da desconstruccedilatildeo de ordenamentos em favor da criatividade de pensar atraveacutes da arte um

espaccedilo de questionamento de paracircmetros formais de modelos societaacuterios e tambeacutem dos

pressupostos filosoacuteficos que servem de referecircncia a todas essas normatizaccedilotildees

96 Traduccedilatildeo livre de ldquo() a potential for a strategy of misdirection one that invokes a logic of control to create anopening for variance play and unintended outcomes Error as errant heading suggests ways in which failureglitch and miscommunication provide creative openings and lines of flight that allow for a reconceptualization ofwhat can (or cannot) be realized within existing social and cultural practicesrdquo97 Desde o advento do fotograacutefico houve natildeo apenas uma disputa pelo protagonismo da invenccedilatildeo da fotografia(embora natildeo se possa atribuir a um uacutenico personagem esse papel) mas tambeacutem relaccedilotildees desiguais de prestiacutegio ouvalorizaccedilatildeo (e mesmo viabilidade comercial) entre tecnologias de acordo com as esteacuteticas dessas teacutecnicas estaremem maior ou menor grau sintonizadas com a agenda epistemoloacutegica da Modernidade bem como associadas agravesfuncionalidades adquiridas pela fotografia no seacuteculo XIX Por exemplo a daguerreotipia como uma imagem melhordefinida uacutenica e sua importacircncia na consolidaccedilatildeo do gecircnero retrato explicam em parte porque o nome de LouisJacques Mandeacute Daguerre (1787-1851) eacute quase sempre mais citado do que os de seus contemporacircneos HippolyteBayard (1801-1887) ou William Henry Fox-Talbot (1800-1877) que desenvolveram respectivamente as impressotildeesem papel (positivo direto) e as photogenic drawings Essas teacutecnicas possuem nitidez e permanecircncia bem menores secomparadas ao daguerreoacutetipo e por isso mesmo mais distantes da precisatildeo associada agrave racionalidade cientiacuteficadaquela eacutepoca Essa agenda modernista seraacute determinante para caracterizar aquilo que Fatorelli (2006) considerauma fotografia ldquopura e diretardquo cuja influecircncia podemos identificar por exemplo nas premissas do grupo f64 domovimento da Nova Objetividade e no fotodocumentarismo da primeira metade do seacuteculo XX ou ainda na straightphotography

158

47 ERRO OU RUIacuteDO

Nunes (Ibidem) faz uma pequena genealogia do termo ldquoerrordquo mapeando suas

conotaccedilotildees nos seacuteculos XVI XVII e XVIII todas elas negativas e relacionadas a movimentos de

desvio Bem se tais periacuteodos histoacutericos satildeo influenciados pela batalha filosoacutefica entre mente e

corpo na qual o intelecto humano assume uma posiccedilatildeo dominante o erro e o ruiacutedo natildeo poderiam

ser vistos com bons olhos ldquoNo Iluminismo argumenta Deleuze o ldquoerrordquo funciona como um

conceito delimitador para categorizar qualquer imagem de pensamento que natildeo se coordene com

a imagem ortodoxa do pensamento como um reconhecimento da verdaderdquo (NUNES 2011

p9)98

O autor sugere uma discussatildeo em torno de uma ldquopoeacutetica do ruiacutedordquo abrangendo o

conjunto de procedimentos e obras que se valem do ruiacutedo como efeito revelador de visualidades

estranhas diferenciais e capazes de mexer com expectativas e paradigmas da esfera artiacutestica

Como se a ldquopoeacutetica do ruiacutedordquo99 assinalasse um esforccedilo de tensionamento dos paracircmetros

esteacuteticos introduzindo como valor aquilo que antes fora negligenciado Para tanto seria

necessaacuterio dirigir nossa atenccedilatildeo agraves estrateacutegias de combinaccedilatildeo dos meios e de que forma as

tecnologias podem voltar-se contra si mesmas

Figura 46 - New York City (Lee Friedlander1966)

98 Traduccedilatildeo livre deldquoWithin the Enlightenment Deleuze argues ldquoerrorrdquo functions as a delimiting concept tocategorize any image of thought that does not coordinate with the orthodox image of thought as a ldquorecognitionrdquo oftruthrdquo99 Para um melhor entendimento sobre como se desenvolve a ideia de poeacutetica do ruiacutedo ver Nunes 2011 p3-23

159

Fonte Reproduccedilatildeo internet

Especificamente no campo do fotograacutefico Cheacuteroux (2009) defende o erro como ponto

de partida para diversos artistas desenvolverem suas obras levando a proacutepria miacutedia fotograacutefica a

seus limites Sua concepccedilatildeo do erro estaacute relacionada exatamente a paracircmetros de qualidade

instituiacutedos pela induacutestria fotograacutefica e que foram largamente disseminados em manuais e

consolidados no imaginaacuterio dos usuaacuterios Para o autor agrave medida que os erros comeccedilam a ser

incorporados por artistas eles passam a habitar o universo das inovaccedilotildees fotograacuteficas

abandonando uma conotaccedilatildeo explicitamente negativa Por exemplo ele cita a presenccedila da sombra

de quem opera a cacircmera na imagem como um dos erros mais comuns entre amadores que no

entanto tornou-se um recurso para inscriccedilatildeo de autoria (uma afirmaccedilatildeo da presenccedila de um sujeito

ativo no processo fotograacutefico) sobretudo no contexto das vanguardas artiacutesticas europeias

empregado por Moholy-Nagy por exemplo e que encontramos tambeacutem na fotografia de Lee

Friedlander (figura 46)

O que antes era apenas um defeito tornou-se uma estrateacutegia para contrariar a suposta

objetividade fotograacutefica (associada a certa frieza do dispositivo) mas tambeacutem uma manifestaccedilatildeo

da proacutepria teacutecnica Aleacutem disso se a luz conteacutem a sombra (BAXANDALL 1977) que surge por

um esforccedilo de intencionalidade ela pode ser considerada um ruiacutedo (algo contido poreacutem nem

sempre manifesto) o que nos leva a enxergar uma aproximaccedilatildeo entre os termos ldquoruiacutedordquo e ldquoerrordquo

de uma perspectiva teoacuterica da fotografia (aleacutem da proposta de Nunes no acircmbito da ciberneacutetica)

Embora o erro esteja associado agrave ideia de falha de mal funcionamento de um sistema e

o ruiacutedo seja essencialmente parte de qualquer corpo estrutura enfim universo expressivo (o que

aparentemente faria do primeiro um ldquodefeitordquo e do segundo um ldquoefeitordquo) esses dois conceitos

natildeo estatildeo assim tatildeo distantes porque a ocorrecircncia do erro eacute uma presenccedila ldquovirtualrdquo que se

ldquoatualizardquo (DELEUZE 1999)100 sob determinadas condiccedilotildees e logicamente sua configuraccedilatildeo

100 Ao contraacuterio de uma relaccedilatildeo negativa o pensamento deleuziano considera o par virtualautal a partir de umarelaccedilatildeo de potecircncia contida de algo em vias de se expressar (natildeo como externalidade) mas como parte constituinteda proacutepria coisa Entendemos que o erro como parte integrante de quaisquer sistemas pode ou natildeo se materializarprovocar impactos nesses sistemas e mesmo que natildeo o faccedila conserva-se como presenccedila Eacute a partir desta ideia que sefaz a associaccedilatildeo entre o erro e o ruiacutedo e as noccedilotildees de virutalautal em Deleuze Craia (2009) faz uma anaacutelise dovirtual em interlocuccedilatildeo com temas importantes do pensamento deleuziano (como as questotildees da diferenccedila e daontologia) recuperando a influecircncia do pensamento de Henri Bergson nesse sentido Deleuze (1999) em seu livrodedicado agrave filosofia bergsoniana discorre sobre as relaccedilotildees entre virtual e atual

160

depende das caracteriacutesticas intriacutensecas a um dado sistema mediante intervenccedilatildeo de algo (ou

algueacutem)

De volta agrave fotografia na abordagem de Cheacuteroux (Ibidem) a utilizaccedilatildeo de todo um

ldquorepertoacuterio de errosrdquo ndash que inclui desfoque tremulaccedilotildees descentralizaccedilatildeo de motivos

deformaccedilotildees sobreposiccedilotildees reflexos mal uso do flash efeito lsquoolhos vermelhosrsquo saturaccedilatildeo das

cores ndash de modo criativo delimita certa divisatildeo entre o universo das praacuteticas vernacular e

artiacutestica

Toda fotografia eacute julgada de maneira diferente segundo o lugar no qual se exibe aimagem segundo as matildeos nas quais se encontra e sobretudo de acordo com os olhos dequem a contempla A apreciaccedilatildeo (sobre os erros) varia por exemplo segundo a filiaccedilatildeodo autor ndash e por extensatildeo daquele que observa ndash a uma das seguintes categorias artistasamadores ou profissionais101 (CHEacuteROUX 2009 p47)

Concordamos que esta divisatildeo entre amadores e artistas eacute relevante na medida em que a

identificaccedilatildeo do erro na fotografia transfere-se de uma conotaccedilatildeo meramente negativa para referir

um valor esteacutetico poreacutem atualmente haacute um entendimento partilhado entre essas duas categorias

sobre a noccedilatildeo de erro como um elemento surpresa acolhido com simpatia quando passa a figurar

na imagem De algum modo a natureza plural que caracteriza a imagem contemporacircnea jaacute

permite que mesmos erros ldquoclaacutessicosrdquo como os apontados pelo autor sejam considerados parte

de uma certa zona de indeterminaccedilatildeo do dispositivo que mesmo os amadores jaacute natildeo se recusam a

aceitar exatamente porque no escopo da arte jaacute se encontram reconhecidos e incorporados

Fontcuberta (online 2010)102 identifica que nos uacuteltimos anos os resultados mais

interessantes em criaccedilatildeo fotograacutefica emergem dos usos vernaculares da imagem natildeo associados agrave

ideia de qualidade o que para ele enseja uma renovaccedilatildeo visual Aprofundando-se nesse debate

Piper-Wright (2018) estuda as diversas motivaccedilotildees de ordem subjetiva e suas relaccedilotildees com o

pensamento teoacuterico-filosoacutefico sobre a miacutedia fotograacutefica que explicam a presenccedila e valorizaccedilatildeo do

erro fora do circuito artiacutestico ou seja entre usuaacuterios comuns Para tanto vem desenvolvendo um

projeto chamado In Pursuit of Error103 no qual recebe imagens enviadas por amadores Imagens

101 Traduccedilatildeo livre de ldquoToda fotografia es juzgada de manera diferente seguacuten el lugar en el cual se muestra laimagen seguacuten las manos en las que se encuentra y sobre todo de los ojos que la miran La apreciacioacuten variacuteaporejemplo seguacuten la pertenencia del autor - y por extensioacuten del que la observa - a una de las siguientes categoriacuteasartistas aficionados o profesionalesrdquo102 Disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=LCByiio0adQ Acesso em 10022020103 Imagens e tambeacutem com a produccedilatildeo teoacuterica da autora sobre o tema do erro na fotografia contemporacircnea estatildeo nosite do projeto httpsinpursuitoferrorcouk Acesso em 30012020

161

que ldquoderam erradordquo Para ela a fotografia significa um agenciamento complexo entre as

intenccedilotildees humanas e o funcionamento do equipamento e nessa interrelaccedilatildeo haacute um espaccedilo de

abertura invadido de certa maneira pelas circunstacircncias espaccedilo-temporais do ato fotograacutefico

Nesse espaccedilo eacute que o erro digamos assim toma corpo

O erro abre um espaccedilo paradoxal entre a maacutequina e o humano e apresenta esse espaccedilocomo lacuna uma aporia nas convenccedilotildees da praacutetica fotograacutefica tecnoacutelogica eculturalmente Essa aporia eacute uma zona rica em imaginaccedilatildeo surpresa e desconhecimentoque tem sido explorada em si mesma por artistas ao longo dos anos104 (PIPER-WRIGHT Ibidem p1)

Comparando imagens e relatos de usuaacuterios a autora percebe que seja o erro causado por

mal funcionamento do equipamento ou accedilotildees natildeo planejadas pelos usuaacuterios externas ao medium

para eles a causa eacute menos importante do que o resultado e a tendecircncia dominante eacute as imagens

natildeo serem descartadas Ela distingue dois tipos de erro os acidentais e os resultantes da

manipulaccedilatildeo do equipamento Os primeiros seriam causados por uma subjetividade maquiacutenica

atuando sem o controle nem conhecimento preciso do usuaacuterio do que se passa internamente no

dispositivo Jaacute os outros vecircm agrave tona com a intenccedilatildeo de subversatildeo do ldquoprogramardquo da cacircmera

(FLUSSER 2011) Se tanto artistas quanto amadores satildeo capazes de enxergar o caraacuteter

diferencial do erro como elemento criativo o que distingue essas duas categorias de praticantes

da fotografia seria no caso dos primeiros o fato de o erro emergir (curiosamente) em meio a

processos de domiacutenio bastante razoaacutevel da tecnologia e de constante tensionamento do

dispositivo como parte integrante de procedimentos deliberados O que natildeo se verificaria em

relaccedilatildeo aos fotoacutegrafos amadores

O erro deliberado usa a cacircmera contra ela mesma pertubando os paracircmetros para que seproduza o erro na imagem Enquanto haacute determinadas accedilotildees que podem ser previstastambeacutem haacute situaccedilotildees em que o conhecimento de determinado resultado eacute parcial Eu seique reduzindo a velocidade do obturador obtenho um borratildeo mas natildeo posso prever oresultado da imagem apenas com base nessa intervenccedilatildeo A situaccedilatildeo que estaacute sendofotografada bem como a luz e o tempo contribuem com elementos adicionais eimprevisiacuteveis para o resultado105 (PIPER-WRIGHT Ibidem p5)

104 Traduccedilatildeo livre de ldquoThe photographic error opens up a paradoxical space between machine anda human andpresents this space as a gap an aporia in the conventions of photogrpahic practice both technologically andculturally This aporia is a rich space of wonder surprise and not-knowing which in itself has been explored byartists for many yearsrdquo105 Traduccedilatildeo livre de ldquoThe deliberate error uses the camera against itself disrupting the settings in order to producean error image While there are certain actions which can be predicted it is also the case that knowledge of aproposed outcome can only be partial I might know that reducing the shutter speed will produce blur but I cannotpredict what the resulting image will look like based on that intervention alone The situation been photographed aswell as light and time will all contribute additional unforseen elements to the resulting photographrdquo

162

Estas reflexotildees sobre uma zona de fricccedilatildeo entre o controle e a imprevisibilidade

envolvendo a noccedilatildeo de erro ressoam as concepccedilotildees dos artistas incluiacutedos nesta tese sobre a

interaccedilatildeo destes com as tecnologias da imagem mesmo que o estudo de Piper-Wrtight em

questatildeo seja dirigido a fotoacutegrafos amadores Para noacutes seja nas fotografias de amadores ou no

campo da arte o erro expotildee o caraacuteter processual da fotografia (PIPER-WRIGHT Ibidem) algo

percebido igualmente por amadores e artistas pois que todos reconhecem esse espaccedilo de

liberdade presente na nossa relaccedilatildeo com as miacutedias sendo capazes de entender a manifestaccedilatildeo

desse caraacuteter processual como um valor esteacutetico

Para aleacutem dos debates sobre apropriaccedilotildees de amadores ou artistas interessa-nos aqui a

variabilidade de abordagens que exprimem a concepccedilatildeo esteacutetica do erro do ruiacutedo e da falha nas

obras contemporacircneas que pertencem ao universo das tecnoimagens (FLUSSER 2008) em

especial na relevacircncia que estas vecircm adquirindo nos anos recentes como verdadeiras

problematizaccedilotildees de paradigmas centrais para o campo da fotografia Nesse sentido o estudo de

Cheacuteroux oferece outras contribuiccedilotildees que se alinham aos trabalhos presentes em nosso corpus

Em muitos dos exemplos trazidos em seu livro ele ressalta o potencial dos artistas para

criar imagens que brincam com as noccedilotildees de verossimilhanccedila e o mimetismo Segundo o autor o

erro tambeacutem se relaciona com a alteraccedilatildeo da funccedilatildeo mimeacutetica da fotografia (CHEacuteROUX 2009

p188) ndash tema largamente explorado pelos movimentos da vanguarda artiacutestica europeia de

meados de 1920 nas aproximaccedilotildees com o medium fotograacutefico106 ndash originando trabalhos em que

muitas vezes nem eacute mais possiacutevel reconhecer os traccedilos caracteriacutesticos dos objetos ou mesmo de

um rosto Estes podem desfazer-se em linhas pontos pixels deixando agrave mostra os elementos

miacutenimos formadores da imagem que passam a ocupar o centro de nossa atenccedilatildeo (em detrimento

da funccedilatildeo de reconhecimento das formas)

48 ldquoA TECNOIMAGEM Eacute FEITA DE PONTOS GRAtildeOS E PIXELSrdquo

As imagens que compotildeem o trabalho 22474 (2000) de Joseacute Luiacutes Neto figuras 48 e 49

satildeo um bom exemplo dessa perturbaccedilatildeo da mimeses Cada uma das imagens satildeo recortes rostos

isolados de originais produzidos em negativo de vidro de autoria do fotojornalista Joshua

Benoliel (1873-1932) As imagens das quais Joseacute Luiacutes Neto se apropria fazem parte do acervo do

106 A influecircncia desses movimentos eacute sempre lembrada por autores (FATORELLI 2013 BAIO2015 JUNIOR2002)que discutem a abertura os hidridismos e uma atitude questionadora frente aos meios e modelos esteacuteticos e acabamfuncionando como um legado para as geraccedilotildees de artistas posteriores

163

Arquivo Municipal de Lisboa Elas satildeo registros de uma norma (abolida logo apoacutes a tomada

destas imagens) adotada na penitenciaacuteria da capital portuguesa que determinava o uso de capuz

pelos detentos As fotos de Benoliel (figura 47) satildeo tomadas como ponto de partida de uma

investigaccedilatildeo dirigida ao proacuteprio suporte

Figura 47 - 22474 de Joshua Benoliel

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

Se na imagem de Benoliel os sujeitos jaacute estavam reduzidos sob a violecircncia de um capuz

(ali a morte de qualquer singularidade de identidade jaacute se anunciava) o movimento que nos

conduz ao gratildeo da foto aprofunda essa ideia atingindo um verdadeiro esvaziamento pois os

rostos vatildeo se desfazendo em pontos O nuacutemero ldquo22474rdquo faz referecircncia agrave numeraccedilatildeo da imagem

que consta nos registros de arquivamento Toma-se a impessoalidade dos nuacutemeros para transmitir

a frieza do ato de despersonalizar os indiviacuteduos que desaparecem primeiro sob os capuzes que a

todos igualam para depois sumirem novamente na miriacuteade de gratildeos de um segundo negativo

Sim jaacute que os negativos de Benoliel foram refotografados em negativo de celuloacuteide apoacutes a

seleccedilatildeo cuidadosa das aacutereas onde se encontram os rostos As coacutepias finais satildeo ampliaccedilotildees em

tamanho 41 x 31 cm Em comparaccedilatildeo com os originais que medem 9 x 12 cm a escala altera-se

significativamente

164

Joseacute Luiacutes Neto retirou os detentos da cadeia e construiu uma galeria de perturbadoras

cabeccedilas de aspecto fantasmagoacuterico Essa obra faz-nos lembrar as relaccedilotildees entre o fotograacutefico e a

vigilacircncia institucional na dimensatildeo do arquivo uma das funccedilotildees mais importantes que a

fotografia assume desde seu advento O retrato foi o gecircnero obrigatoacuterio na consolidaccedilatildeo de um

amplo regime de controle social que envolveu instituiccedilotildees como manicocircmios hospitais cadeias

delegacias reformatoacuterios para jovens delinquentes e o sistema juriacutedico Ao revisitar essas

questotildees resgatando os negativos de Benoliel Joseacute Luiacutes Neto atualiza o debate sobre identidades

apagadas suprimidas da ldquohistoacuteria oficialrdquo confinadas ao subterracircneo das poliacuteticas de

encarceramento para dar-lhes sobrevida atraveacutes de um olhar renovado sobre o negativo O

substrato poliacutetico das fotografias originais eacute de certa maneira minimizado em favor de uma

investigaccedilatildeo de cunho mais formalista Atraveacutes do movimento radical de aproximaccedilatildeo da

materialidade chegamos ao ponto em que nosso olhar encontra o gratildeo da imagem Aqui podemos

considerar a exploraccedilatildeo esteacutetica do gratildeo como uma modalidade de ruiacutedo que perturba a ideia de

mimetismo jaacute que mexe diretamente com as expectativas de reconhecimento de um referente

qualquer expondo os intervalos entre os gratildeos as diferenccedilas de intensidade nos tons de preto e

branco da imagem Por meio da granulaccedilatildeo assistimos agrave intensificaccedilatildeo da miacutedia fotograacutefica em

sua mateacuteria constituinte uma intensificaccedilatildeo da proacutepria tecnologia (HAINGE 2013) Fernando

Feio que analisou o trabalho por ocasiatildeo da exibiccedilatildeo ao puacuteblico comenta

Ele desloca seu olhar da foto para o proacuteprio negativo a fim de recuperar da maneiramais fiel possiacutevel o material puramente fotograacutefico () A sua expressatildeo continuacentrada na fotografia que aqui natildeo tem nenhuma realidade externa da qual se originaro que eacute fotografado no presente trabalho eacute o gratildeo fotograacutefico na verdade uma impressatildeodireta da realidade Se existe realidade aqui ela pertence ao domiacutenio fotograacutefico e a elaretornaremos (devemos) () Esta eacute portanto uma seacuterie nascida do espanto que vem doolhar atraveacutes da superfiacutecie de um negativo apreciando a disposiccedilatildeo do gratildeo e doaparecimento de uma forma numa dobra da (ir)regularidade do plano (e quem tentouolhar as imagens dessa forma conhece bem o espanto e a maravilha de olhar para ummundo familiar com valores luminosos invertidos onde a luz eacute sempre sombra e asombra torna-se luz) (FEIO online)

165

Figura 48 - 22474 (Joseacute Luiacutes Neto 2000)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

A estrateacutegia de apropriaccedilatildeo praacutetica jaacute disseminada entre diversos artistas

contemporacircneos aqui se articula com a pesquisa mais ampla sobre as possibilidades escondidas

no substrato da imagem fotograacutefica que constitui um traccedilo comum das obras de Joseacute Luiacutes Neto

Nesse sentido esta seacuterie pode tambeacutem ser interpretada como uma homenagem agrave miacutedia

fotograacutefica a busca de um elemento pessoal que pode ser desvendado no olhar de um outro

O trabalho de apropriaccedilatildeo permite-me trabalhar com imagens de outros autores () queme desafiam a encontrar o meu olhar a minha maneira de ver de encontrar pequenosfragmentos de imagem que me permite depois isolar esses fragmentos na procuraexatamente da minha maneira de ver (NETO 2014)

A investigaccedilatildeo da seacuterie 22474 tem continuidade na fotografia imediatamente posterior

de Benoliel que mostra os presos com os rostos descobertos Submetida ao mesmo meacutetodo a

166

imagem identificada pelo nuacutemero seguinte 22475 fragmentada refotografada e ampliada torna-

se ainda mais sintomaacutetica da operaccedilatildeo de apagamento das identidades pois agora vemos de fato

os rostos perderem-se na granulaccedilatildeo107 do negativo O processo ecoa o comportamento obcecado

do personagem principal de Blow up (Michelangelo Antonioni 1966) que no intuito de

desvendar um assassinato amplia exaustivamente uma fotografia na qual apenas ele enxerga

haver um corpo Em ambos os casos estaacute impliacutecita a ideia de que a imagem natildeo passa de uma

ficccedilatildeo construiacuteda atraveacutes de liames muito fraacutegeis com o real

Figura 49 - Imagens da seacuterie 22745 (Joseacute Luis Neto2003)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Utilizando como base o mesmo procedimento de aproximar-se da miacutedia o brasileiro

Caacutessio Vasconcellos elaborou uma seacuterie chamada Rostos (1990) Submetendo ao congelamento a

imagem fugidia do viacutedeo Vasconcellos fotografa em Polaroid rostos de atores e atrizes de

107 Outro trabalho bastante interessante que promove uma espeacutecie de ldquoelogio do gratildeordquo eacute The Enlargement de UgoMulas no qual foram feitas imagens do ceacuteu ampliadas ateacute o ponto de o gratildeo do negativo ficar aparente Em seguidasatildeo escolhidos detalhes das mesmas imagens para nova ampliaccedilatildeo O ceacuteu entatildeo desaparece e ficamos somente comos gratildeos Para mais detalhes sobre os trabalhos de Ugo Mulas ver Lenot 2017a p27-33 As imagens estatildeodisponiacuteveis em httpwwwugomulasorgindexcgiaction=viewampidramo=1090233762amplang=eng Acesso em04052020

167

produccedilotildees cinematograacuteficas Atravessando diferentes meios partindo do movimento e chegando

ao estaacutetico atraveacutes de uma verdadeira desaceleraccedilatildeo das imagens o que resta eacute uma espeacutecie de

apariccedilatildeo do fotograacutefico aprisionado na imagem moacutevel Nesses enquadramentos que se

aproximam do close up as fotografias ganham um aspecto desfocado As fisionomias adquirem

cores artificiais (ressaltadas pela esteacutetica da Polaroid) flutuando sobre um fundo negro Rostos

sem qualquer ligaccedilatildeo com um corpo que de tatildeo proacuteximos ao nosso olhar perdem os contornos A

estrateacutegia de isolar planos dos filmes escolhidos natildeo consegue nos apartar totalmente do cinema

pois nos faz lembrar do close que assim como a cacircmera lenta assinala uma ldquoconfiguraccedilatildeo pouco

previsiacutevelrdquo (FATORELLI 2013 p44) da imagem operada pelo retardamento de seu movimento

Dubois (2004) Fatorelli (2013) e Bellour (1997) entre outros jaacute atentaram para a

natureza irregular intermediaacuteria e por isso mesmo bastante criativa do viacutedeo Como zona de

passagem entre o cinema a fotografia e as miacutedias digitais o viacutedeo eacute compreendido na seacuterie do

fotoacutegrafo paulistano exatamente como esse ambiente graacutevido das dimensotildees muacuteltiplas da

imagem que ele explora atraveacutes da articulaccedilatildeo com a cacircmera instantacircnea da Polaroid De certo

modo podemos dizer que o presente da imagem eletrocircnica encontra-se restituiacutedo quando ganha

vida na fotografia instantacircnea materializando-se no espaccedilo da Polaroid Rostos perdidos em

meio agrave continuidade narrativa adquirem relevacircncia quando retirados do fluxo da montagem pelo

gesto da captura promovia pelo dispositivo fotograacutefico Ocorre aqui algo parecido com o Bellour

(Ibidem) chama de ldquotomada fotograacutefica do filmerdquo que eacute uma parada da imagem moacutevel que a

torna proacutexima do fotograacutefico

Na seacuterie Rostos (1990) conforme as figuras de nuacutemero 50 50a e 50b transitam

diferentes miacutedias e estatutos da imagem e as fisionomias satildeo submetidas a um processo que

ressalta a dissoluccedilatildeo da forma atraveacutes do desfocado e da ecircnfase na cor Um investimento na

abordagem da imagem como artifiacutecio

168

Figuras 50 50a e 50b - Rostos (Caacutessio Vasconcellos 1990)

169

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

49 ldquoA TUA PRESENCcedilA Eacute BRANCA VERDE VERMELHA AZUL E AMARELArdquo

As experiecircncias com os efeitos das cores na imagem tambeacutem estatildeo presentes em outros

trabalhos de nosso corpus podendo sua exploraccedilatildeo ser entendida como mais uma forma de

potencializar o ruiacutedo contido nos materiais empregados na produccedilatildeo das obras As imagens de

Febre (2002) (figura 51) de Cris Bierrenbach surgiram quase que de uma brincadeira na qual se

aplicou uma substacircncia a uma coacutepia fotograacutefica que aos poucos foi modificando completamente

a imagem A fotoacutegrafa natildeo sabia de antematildeo qual seria o resultado e comeccedilou o processo apenas

pela vontade de experimentar Ela simplesmente se deparou com um retrato antigo comeccedilou a

manipulaacute-lo e percebeu que o rosto comeccedilava a se desfazer adquirindo uma tonalidade

vermelha A dissoluccedilatildeo da fisionomia intensificava-se cada vez mais A digitalizaccedilatildeo num

scanner desregulado ampliou o efeito das cores e a artista achou entatildeo que o trabalho

representava perfeitamente sensaccedilotildees tiacutepicas das mulheres em periacuteodos menstruais

() Quando eu vi aquilo saturado eu falei Uau Foi completamente sem querer () Euia mexer tentar fazer alguma coisa mas eu nem precisei porque quando veio aquelacoisa saturada no vermelho () aquilo falava comigo Quando eu vi aquele negoacutecio

170

desmontando desfazendo Foi tudo meio casual mas quando eu vi aquilo era pra mimtanto a representaccedilatildeo de estados de espiacuterito de raiva de tensatildeo de sangue de dor deuma coisa menstrual () Eu tinha muita coacutelica de menstruaccedilatildeo eu precisava tomar anti-inflamatoacuterio pra passar dor entatildeo era assim ldquoeu falei nossa eu acho que eu fico assimalguns diasrdquo Eacute essa transformaccedilatildeo parece que eacute uma coisa que toma por dentro sei laacute() Tinha uma outra parecida e eu peguei a outra e comecei a fazer de outro jeito ()(BIERRENBACH 2018)

Com base na destruiccedilatildeo de um rosto aqui se constroacutei uma personagem estranha que

surge completamente da interaccedilatildeo de substacircncias aplicadas a uma imagem jaacute processada e

posteriormente submetida agrave leitura do digitalizador Em cada uma dessas etapas os traccedilos das

miacutedias vatildeo se acrescentando para compor a imagem final Eacute particularmente interessante a

questatildeo de uma leitura ldquodesviadardquo feita pelo scanner resultar na saturaccedilatildeo incomum do vermelho

e como essa fuga de um padratildeo cromaacutetico foi justamente o que interessou agrave fotoacutegrafa Atraveacutes

das vaacuterias fases de manipulaccedilatildeo da imagem essas cores foram sendo liberadas pouco a pouco

Confrontando diretamente a representaccedilatildeo mais claacutessica da identidade (o retrato) e promovendo

a destruiccedilatildeo de seus traccedilos fisionocircmicos a artista alcanccedilou uma representaccedilatildeo que cria uma

identificaccedilatildeo com qualquer mulher poreacutem natildeo no niacutevel descritivo mas simboacutelico

Figura 51 - Febre (Cris Bierrenbach 2002)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Artifiacutecios que trazem agrave tona cores estranhas ao processo fotograacutefico tradicional tambeacutem

satildeo parte essencial da seacuterie Noturnos (1998-2004) de Caacutessio Vasconcellos (figuras 52 e 53)

171

desenvolvida em cidades do Brasil Franccedila e Estados Unidos O intuito era fotografar com uma

cacircmera Polaroid apenas ambientes noturnos (alguns ateacute pontos turiacutesticos) Poreacutem aleacutem dos

enquadramentos fechados que tornam irreconheciacuteveis alguns desses locais foi utilizada uma luz

adicional (lanterna ou holofote com filtro colorido) que alterou as tonalidades originais dos

objetos frente agrave cacircmera

Figura 52 - Aeroporto de Congonhas 4 (Caacutessio Vasconcellos 2002)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

O despojamento de um equipamento como a Polaroid cuja instantaneidade eacute marca

registrada do elemento surpresa do fotograacutefico combina-se nesse projeto com o fato de

Vasconcellos ter realizado as imagens agrave medida que ia (re)descobrindo o espaccedilo urbano

(primeiramente da cidade Satildeo Paulo) sem muita rigidez de planejamento A ideia inicial era

apenas lanccedilar um olhar sobre as facetas escondidas de sua cidade natal As andanccedilas por lugares

que normalmente estatildeo submersos no vai-e-vem dos transeuntes e o esquadrinhamento de um

olhar atento agraves particularidades das formas das linhas de edifiacutecios muros das silhuetas

desenhadas pela penumbra na superfiacutecie dos objetos constroacutei uma paisagem cheia de vida que

nasce dos cantos esquecidos exatamente pela forccedila das cores Vasconcellos arma uma estrateacutegia

teacutecnica que permite fazer surgir das sombras noturnas uma profusatildeo de cores Na verdade

podemos dizer que a luz adicional depositada sobre formas de diferentes tonalidades exprime o

excesso de cada cor ou seja faz emergir uma potecircncia escondida de cada azul amarelo verde

vermelho O resultado eacute de um aspecto fantaacutestico

172

Como uma marca registrada procuro a singularidade o limite entre o real e oimaginaacuterio Nessas fotos particularmente busquei formas de retratar uma visatildeo pessoale distinta Tentei resgatar o que estaacute invisiacutevel ou o que natildeo eacute tatildeo expliacutecito Encontrar nafotografia a beleza escondida no comum no caos no feio () (VASCONCELLOS2002 p6)

O caoacutetico a feiura e o estranhamento que surgem do cotidiano ou melhor que se

esconde sob a pele da normalidade satildeo simbolismos bastante associados ao tema do ruiacutedo

(HAINGE 2013) Na seacuterie Norturnos esse ruiacutedo eacute o desconhecido que nasce das formas

construiacutedas atraveacutes de enquadramentos inclinados de paisagens sem linha do horizonte

entrecortadas por placas muros que se sobrepotildeem de maneira confusa agraves vezes enganando o

nosso olhar que por sua vez encontra dificuldade em reconhecer aquilo que fita E surge tambeacutem

da exploraccedilatildeo dos efeitos da luz e da interpretaccedilatildeo ldquoerradardquo do sistema da Polaroid que nos daacute

tonalidades novas A apropriaccedilatildeo poeacutetica da Polaroid inscreve-se numa tradiccedilatildeo que de certo

modo ironiza e critica a sofisticaccedilatildeo dos dispositivos de imagem representada por artistas como

Andy Warhol (1928-1987) Paolo Gioli (1942- ) William Eggleston (1939- ) sendo este uacuteltimo

fortemente interessado na questatildeo da cor assim como Vasconcellos

Desde o iniacutecio usei o mesmo tipo de cacircmera uma antiga maacutequina Polaroid SX-70 dadeacutecada de 70 um claacutessico da fotografia no seu estilo Meu trabalho pessoal eacutebasicamente em preto e branco Cor somente em Polaroid que confere agraves fotos umresultado peculiar em resoluccedilatildeo e textura justamente o que me fascina(VASCONCELLOS 2002 p6)

Nos dias de hoje o formato vem sendo revisitado em projetos comerciais como o

Impossible Project108 que reveste seu negoacutecio com uma aura de saudosismo perfeitamente

adaptaacutevel ao estilo cool ao qual a esteacutetica Polaroid foi sendo associada ao longo do tempo

(justamente pela investida dos artistas) Mas na proposta do fotoacutegrafo paulistano o dispositivo

natildeo eacute empregado nessa atitude saudosista nem tatildeo pouco purista Ela eacute desprogramada pela

intromissatildeo da luz adicional no processo (um elemento necessaacuterio jaacute que todo o trabalho eacute

noturno) o que contribui para um forte aspecto de artificialidade dessas imagens As originais em

Polaroid ainda foram escaneadas e impressas em jato de tinta ou seja acrescenta-se ainda mais

uma ldquocamadardquo de processamento da imagem O autor quis inventar uma cidade surreal onde o

108 No site do Impossible Project toda a estrateacutegia de venda dos produtos (cacircmeras e filmes) converge para uma ideiade autenticidade ligada ao formato Polaroid como padratildeo da fotografia instantacircnea Mas sem perder de vista ocenaacuterio de convergecircncia dos meios entre os produtos oferecidos jaacute haacute um equipamento que recebe imagens digitais eimprime-as em formato Polaroid (o Polaroid Lab) Conferir httpseupolaroidoriginalscom Acesso em07022020

173

burburinho e a agitaccedilatildeo estatildeo nas entrelinhas impliacutecitos numa espeacutecie de tensatildeo inaudita Tais

condiccedilotildees de um misteacuterio escondido sob a aparecircncia da calmaria jaacute satildeo lugar-comum no

imaginaacuterio sobre a noite na literatura no cinema e ecoa a presenccedila de um ruiacutedo contido

subentendido no conhecido no comum

Figura 53- Avenida Paulista 7 (Caacutessio Vasconcellos 2001)

Fonte Reproduccedilatildeo internet

410 ldquoQUANDO DAGUERRE ENCONTRA O PHOTOSHOPrdquo

Entre as estrateacutegias que tornam sensiacutevel a presenccedila do ruiacutedo na imagem contemporacircnea

estatildeo as reapropriaccedilotildees de teacutecnicas histoacutericas da fotografia Tomadas de forma mais maleaacutevel

atraveacutes de metodologias adaptadas reinventadas pelos e pelas artistas (distantes de uma noccedilatildeo

purista e nostaacutelgica com a historiografia do meio) Nesse sentido as obras de Cris Bierrenbach

satildeo exemplares

Natural da cidade de Satildeo Paulo apaixonou-se pela fotografia na eacutepoca em que estudava

cinema e acabou depois trabalhando para o jornal Folha de Satildeo Paulo Um de seus primeiros

174

trabalhos ldquoque foge da fotografia direta109rdquo (BIERRENBACH online 2017) eacute resultado jaacute do

interesse pelas experimentaccedilotildees com as teacutecnicas da imagem Em Dois homens no centro (1992)

(figura 54) primeiro o negativo utilizado foi impresso pelo lado contraacuterio e em seguida foi feita

uma sobreimpressatildeo com uma teacutecnica diferente

Figura 54 - Dois homens no centro (Cris Bierrenbach 1992)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

As imagens acima foram realizadas em negativo 35mm mas a paulista eacute conhecida pelo

uso em diversas obras de teacutecnicas como goma bicromatada cianotipia papel salgado e

daguerreotipia Para ela o interesse em revisitar esses processos antigos estaacute tambeacutem no fato de

que o erro vem junto com o fazer

Eacute o que eu mais gosto da praacutetica desses processos do seacuteculo 19 porque eles datildeo tantoerrado E que no erro muitas ideias aparecem () Eu falo isso quando eu dou aulaspalestras () vocecirc tem que errar tem que jogar com a imagem () As pessoas queremmuito ter controle de tudo Bota uma ideia na cabeccedila e vai fazer uma coisa que nuncafez e vai ter um trabalho pronto e natildeo eacute assim110 (BIERRENBACH 2018)

Nas primeiras tentativas de realizar projetos usando o daguerreoacutetipo os erros

transformam-se em oportunidades Foi o que aconteceu com a obra Vitral (figura 55) Pensando

109 1ordm Ciclo de fotografia - Cidade Ivertida Disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=MUp098qZLDYAcesso em 05022020110 Entrevista concedida agrave autora desta tese

175

que os vitrais contam histoacuterias (como os das igrejas com passagens da via Crucis por exemplo)

Bierrenbach fotografou meninos e meninas de rua e juntou suas imagens com as de outros

colegas do fotojornalismo As fotografias das crianccedilas foram impressas em espelhos baratos

numa referecircncia direta agrave superfiacutecie espelhada dos daguerreoacutetipos que ainda natildeo tinha conseguido

produzir Ou seja na tentativa de ldquofazerrdquo um daguerreoacutetipo ela descobriu uma esteacutetica uacutenica

fruto da impressatildeo num outro material refletor (o espelho)

Figura 55 - Detalhe da instalaccedilatildeo Vitrais (Cris Bierrenbach 1996)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista111

O caraacuteter do imprevisiacutevel nesse caso levou agrave descoberta de uma alternativa ao

daguerreoacutetipo Aceitando essa imprevisibilidade como parte inerente ao trabalho Cris

Bierrenbach utiliza as teacutecnicas claacutessicas introduzindo modificaccedilotildees nos processos Tambeacutem jaacute

desenvolveu obras a partir de slide e papel fotograacutefico mas com base numa ideia de hibridismo

111 Sugerimos visualizar o trabalho na versatildeo integral Disponiacutevel em httpscrisbierrenbachcompessoalvitralAcesso em 05022020

176

entre as tecnologias que permite por exemplo criar peccedilas uacutenicas mas que passaram em algum

momento de sua produccedilatildeo pelo scanner ou que foram originalmente tomadas com o celular ldquoEu

fotografo com tudo Celular cacircmera digital 35 fullframe () Aleacutem das analoacutegicas Eu uso

qualquer negoacutecio Porque tambeacutem o que me interessa eacute fazer o cruzamento do analoacutegico com o

digitalrdquo (BIERRENBACH 2018)

O desprendimento em relaccedilatildeo ao equipamento escolhido e a proposta de articular

diferentes miacutedias ficam evidentes em obras como O encontro (2011) (figura 56) uma sequecircncia

que tem como ponto de partida uma imagem realizada em negativo digitalizada e finalizada em

formato daguerreoacutetipo O procedimento eacute o seguinte as fotos digitalizadas satildeo fundidas com

auxiacutelio do Photoshop e em seguida transmitidas para o daguerreoacutetipo O percurso inicia no seacuteculo

XX passa pelo seacuteculo XXI e retrocede ao seacuteculo XIX A limpeza do tratamento digital da

imagem eacute contrabalanccedilada pela saiacuteda em daguerreoacutetipo que apresenta algumas falhas na borda

das imagens A teacutecnica do daguerreoacutetipo tambeacutem natildeo eacute reproduzida agrave risca exatamente como se

fazia antigamente Ela eacute adaptada aos propoacutesitos da obra gerando uma esteacutetica que se afasta do

padratildeo claacutessico

O daguerreoacutetipo eacute a uacutenica fotografia que natildeo tem emulsatildeo () Eu parto de uma chapaprateada super polida Ela eacute um espelho Um espelho perfeito quanto mais espelhomelhor Aiacute eu coloco essa placa numa caixa com vapor de iodo entatildeo o vapor naverdade () nada encosta na placa O vapor vai deixar ela fotossensiacutevel () O processoque eu faccedilo natildeo tem outro vapor () eu faccedilo um vapor soacute e depois eu revelo na luz Eacutedifiacutecil de explicar () Nem tem muito que explicar porque natildeo se sabe direito o queacontece () Vocecirc fixa e coloca um filtro vermelho e volta pra luz Aiacute a imagem eacuterevelada (BIERRENBACH 2018)

Bierrenbach introduz uma artimanha no processo tradicional Pela teacutecnica claacutessica um

daguerreoacutetipo utiliza uma chapa de cobre sensibilizada com vapor de iodo que apoacutes exposta

conserva uma imagem latente que eacute por sua vez revelada com vapor de mercuacuterio Este uacuteltimo

passo eacute que a fotoacutegrafa dispensa optando por revelar sua imagem direto com a accedilatildeo da luz num

procedimento especiacutefico envolto ateacute num certo misteacuterio Essa intervenccedilatildeo nas ldquoregras do jogordquo eacute

um traccedilo distintivo dosdas artistas que utilizam a fotografia numa abordagem experimental

(LENOT 2017) A maneira com que se apropriam das tecnologias eacute geralmente muito particular

pois submetem os materiais a diversas adaptaccedilotildees em vez de utilizaacute-los conforme os paracircmetros

industriais tambeacutem com forma de criacutetica ao uso alienado das miacutedias Para Juacutenior (2006) a

177

fotografia expandida (que se distingue pelos hibridismos) associa-se tambeacutem a esse olhar

retrospectivo para teacutecnicas antigas perifeacutericas eou esquecidas que satildeo contudo retomadas a

partir de um vieacutes criacutetico Elas satildeo resgatadas para nos fazer refletir tanto sobre o niacutevel de

automaccedilatildeo com que produzimos imagens quanto para demonstrar que haacute modalidades do visiacutevel

ainda por revelar nessas tecnologias As praacuteticas de Cris Bierrenbach podem assim ser colocadas

ao lado dos procedimentos de Dirceu Maueacutes e Luiz Alberto Guimaratildees (no sentido das

apropriaccedilotildees das teacutecnicas claacutessicas da imagem fotograacutefica) guardadas as devidas singularidades

nas temaacuteticas a formas de abordagem

Figura 56 - O encontro (Cris Bierrenbach 2011)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

De volta a O encontro buscou-se a criaccedilatildeo de um personagem hiacutebrido algo indefinido

entre masculino e feminino (pela fusatildeo das duas cabeccedilas) O modelo de um retrato antropoloacutegico

178

(tomada de perfil) eacute utilizado para refletir sobre a natureza permeaacutevel e fluida das relaccedilotildees

afetivas e do gecircnero

() eu fotografei um amigo meu que eacute careca tambeacutem Entatildeo eu tratei dois personagensum pouco quase sem gecircnero () Claro que daacute pra ver que eacute um homem e uma mulhermas o assunto da careca eacute pra ter essas duas pessoas um pouco mais iguais possiacuteveis Prafazer um comentaacuterio (que eu faccedilo em outros trabalhos) sobre as relaccedilotildees afetivas Sobreo que eacute encontro afetivo que na minha opiniatildeo eacute um pouco um jogo uma soma mastambeacutem uma dissoluccedilatildeo () Tem vaacuterias maneiras de a gente ver mas tambeacutem temvaacuterios tipos de relaccedilotildees afetivas neacute Tem as que acontecem e permanecem tem as queacontecem e acabam ()112 (BIERRENBACH 2019)

Esse entrelugar do gecircnero tambeacutem simboliza o ruiacutedo no sentido de que da interlocuccedilatildeo

entre as figuras masculina e feminina cria-se um terceiro ser que natildeo tem gecircnero definido mas

que surge desse movimento de fusatildeo de mistura Uma entidade singular que ocupa um espaccedilo

existente em alternativa agraves modalidades socialmente demarcadas de masculino e feminino A

escolha pelo formato ldquoretrato antropoloacutegicordquo tambeacutem evoca essa dimensatildeo de perturbaccedilatildeo de um

padratildeo como modelo associado agraves funccedilotildees de identificaccedilatildeo de demarcaccedilatildeo de uma persona

social e de certa pretensatildeo cientiacutefica aqui o estilo eacute ressignificado para implodir a noccedilatildeo de

gecircnero atrelada ao sexo bioloacutegico Um efeito expresso natildeo apenas pela operaccedilatildeo de fusatildeo das

cabeccedilas (confundindo as identidades preacutevias) mas tambeacutem pela semelhanccedila estabelecida entre os

personagens ambos carecas Aleacutem disso o formato sequencial das imagens forja um movimento

que aproxima o trabalho do cinema ao estilo das obras de Duane Michaels (BIERRENBACH

2019)

A sequecircncia fotograacutefica conforme analisa Fatorelli (2013) em relaccedilatildeo a algumas obras

de Andy Warhol sugere mais uma possibilidade de desdobramento do instante fotograacutefico No

caso do artista norte-americano citado por Fatorelli eacute a repeticcedilatildeo de uma mesma imagem que de

certa maneira faz o instantacircneo animar-se a ponto de quase alcanccedilar o movimento De forma

parecida notamos essa inclinaccedilatildeo para a mobilidade da imagem fixa na estrutura de O encontro

a sequecircncia de imagens sugere claramente uma ideia de montagem de sucessatildeo de

temposmomentos que combina com a dinacircmica das relaccedilotildees afetivas Note-se que em conjunto

as imagens demandam o olhar por um tempo mais demorado prolongado em confronto com a

apreensatildeo da imagem uacutenica A respeito de trabalhos de Andy Warhol fundados nesse princiacutepio

Fatorelli (2013 p67) comenta que mudam o ldquomodo de percepccedilatildeo da obra e os modos de

participaccedilatildeo do espectadorrdquo exatamente porque a estrateacutegia da repeticcedilatildeo acusa uma modalidade

112 Entrevista concedida agrave autora desta tese em 2019

179

que se constroacutei a partir da imagem uacutenica mas estaacute aleacutem dela desdobra-se expande-se

ultrapassa-a Efeito semelhante ocorre na obra de Bierrenbach

O jogo entre fixidez e mobilidade tambeacutem originado na exploraccedilatildeo do instante

fotograacutefico eacute a base de um outro trabalho realizado em goma bicromatada As mulheres de Lot

(figura 57) A goma bicromatada eacute um processo de impressatildeo por contato inventado em 1849

sendo bastante apreciada pelos pictorialistas da virada do seacuteculo XX e caracterizada

esteticamente pela semelhanccedila com desenhos produzidos com carvatildeo ou pastel (ANTONINI et

al2015) A utilizaccedilatildeo da luz inclui a teacutecnica no rol dos processos fotograacuteficos mas suas

caracteriacutesticas visuais acabam por aproximaacute-la do escopo do desenho como se fosse uma

ldquoembaixatriz fotograacutefica das artes plaacutesticasrdquo (JAMES 2015 p488) Como as etapas de

construccedilatildeo da imagem exigem a aplicaccedilatildeo de pigmentos com pincel a metodologia da goma

bicromatada assenta-se num gesto pictoacuterico e dessa maneira carrega as marcas dessa presenccedila

fiacutesica doda artista As imagens tecircm a textura aparente do suporte utilizado (o mais comum eacute o

papel) e os contornos natildeo se afiguram rigidamente definidos

Figura 57 - As mulheres de Lot (Cris Bierrenbach 1993)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

180

Como o processo eacute adaptaacutevel e apresenta resultados variados Bierrenbach cogitou

utilizar a goma bicromatada em superfiacutecies tatildeo diversas quanto tecido madeira ou ateacute na

alvenaria de uma parede questionando assim os limites das impressotildees fotograacuteficas em papel

Para este trabalho escolheu a lixa Lot eacute um personagem biacuteblico ligado agrave narrativa da cidade de

Sodoma Ele recebe um aviso de Deus a cidade seraacute destruiacuteda mas a Lot eacute permitido fugir antes

que isso aconteccedila contanto que saia com sua famiacutelia sem olhar para traacutes O problema eacute que sua

mulher no uacuteltimo instante vira-se para fazer exatamente o que fora proibido A mulher

transforma-se entatildeo numa estaacutetua de sal

Isso era uma coisa muito forte natildeo soacute a cidade ser destruiacuteda mas a mulher ela daacute aquelaolhadinha e fica ali que nem uma estaacutetua () Eacute o seu uacuteltimo instante e aiacute eu escolhifazer a impressatildeo com goma bicromatada pelo mesmo motivo que eu fiz as linhas nopapel manteiga113 eu imprimo na lixa pra dar esse aspecto aacutespero que remete um poucoa areia sal deserto uma coisa aacutespera dura Hoje na verdade apesar de serem muitasmulheres eacute como se fosse uma soacute ou como se fossem todas Eu natildeo queria umarepresentaccedilatildeo fiel de emoccedilatildeo delas () eacute diferente mas eacute igual Natildeo queria a fidelidadefotograacutefica e a lixa mais a goma bicromatada me davam natildeo soacute essa textura mastambeacutem esse erro o que eu queria (BIERRENBACH 2019)

Para tematizar natildeo somente a desgraccedila da mulher que por seu ato transforma-se numa

estaacutetua a fotoacutegrafa convidou diversas mulheres para representar esse momento derradeiro Todas

unidas diferentes entre si associam-se num movimento semelhante de repeticcedilatildeo do gesto que ao

mesmo tempo as eterniza na imagem e permanece sinocircnimo de sua morte Cada fotografia eacute o

uacuteltimo instante de cada mulher mas esse instante se estende em todas as outras mulheres Eacute um

instante expandido que extrapola o tempo congelado ldquoEacute uma coisa um pouco jornaliacutestica do

retrato um pouco cinematograacutefica da faculdade do tempo e da representaccedilatildeo () esse uacuteltimo

segundo absoluto que tem a ver com a fotografiardquo (BIERRENBACH online 2017) Tons

terrosos e a textura da lixa a que se refere a artista tambeacutem ajudam a perturbar a nitidez da

imagem criando um efeito de aridez que remete ao deserto por onde se daacute a fuga de Lot e seus

parentes Recriada agraves centenas a mulher de Lot adquire cores diferentes fisionomias muacuteltiplas

costuradas uma ao lado da outra numa verdadeira montagem de foto(gramas) Aliaacutes vaacuterios

trabalhos de Bierrenbach concentram parte de sua forccedila expressiva na delicada metodologia

artesanal que envolve as tecnologias escolhidas o que tem uma relaccedilatildeo direta com o tempo longo

de elaboraccedilatildeo

113 Refere-se agrave seacuterie The lines of my life onde o suporte da imagem eacute papel manteiga Disponiacutevel emhttpscrisbierrenbachcompessoalfotothe-lines-of-my-life Acesso em 07022020

181

O sentido de movimento eacute levado a outros limites no viacutedeo VaacutecuoMoccedilambique (figura

58)114 Nele as fotografias tomadas em negativo 35mm satildeo utilizadas para falar sobre a passagem

do tempo sobre casas abandonadas A ideia de que o tempo desgasta a arquitetura ateacute o

desaparecimento desta eacute sugerida por meio de vaacuterias manipulaccedilotildees que fazem as casas sumirem

a cada alternacircncia de plano O tempo destroacutei as formas que se transformam em linhas coloridas

As habitaccedilotildees foram encontradas durante uma viagem em que os percursos eram feitos de carro

Pra mim no iniacutecio era como se fossem monumentos do que tinha sido essa grandehistoacuteria de Moccedilambique mas natildeo eacute isso Elas satildeo uma coisa de passagem de tempo Eaiacute eu fiz esse trabalho recriando essa minha suposta viagem e eu peguei cada imagem edescontruiacute ela digitalmente descontruiacutea uma e descontruiacutea outra e juntava essadesconstruccedilatildeo e criei essa ideia de movimento (BIERRENBACH online 2017)

Figura 58 - Trechos do viacutedeo VaacutecuoMoccedilambique (Cris Bierrenbach2009)

Fonte Reproduccedilatildeo Youtube

114 Disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=zb2z7xOk3coampt=109s Acesso em 08042020

182

Segundo Bellour (1997) o tracircnsito entre estaacutetico e moacutevel implica geralmente a mutaccedilatildeo

plaacutestica das configuraccedilotildees da imagem que eacute exatamente o que acontece nesse viacutedeo Formato

intermediaacuterio entre cinema e fotografia o viacutedeo desempenha esse papel de maleabilidade de

experiecircncias de fluidez viabilizado pelas teacutecnicas do computador (questatildeo essencial para a

videoarte) Essas mutaccedilotildees levam a imagem para um lugar aleacutem da analogia da reproduccedilatildeo do

visiacutevel Mas o viacutedeo arrasta a imagem a outros territoacuterios sem deixar de fazer referecircncia agrave

modalidades anteriores pois ldquonatildeo pode ser apreendido sem referecircncia ao que altera ndash o cinema

assim como outras artes (artes plaacutesticas muacutesica) em suma tudo de onde ele proveacutem e para onde

volta sem cessarrdquo (BELLOUR 1997 p14) Aiacute encontramos no viacutedeo uma natureza ruidosa (ao

mesmo tempo relacional e diletante) natildeo soacute neste trabalho mas de outros que potildeem em discussatildeo

a interlocuccedilatildeo entre foto e cinema A situaccedilatildeo intermeacutedia a que se refere o pesquisador francecircs eacute

confirmada pelo fato de que esta obra pode ser exibida tanto em formato viacutedeo quanto em seacuterie

de slides fotograacuteficos (BIERRENBACH 2014) Sua versatilidade em fazer interagir o

movimento e o congelamento permite que as condiccedilotildees de acessibilidade agrave obra sejam tambeacutem

mutaacuteveis

183

5 FALHAS BUGS E DESCONTINUIDADES SISTEcircMICAS

No iniacutecio havia apenas o ruiacutedo E entatildeo o artista passou do gratildeo deceluloacuteide para a distorccedilatildeo magneacutetica e o escaneamento de linhas de tubosde raios catoacutedicos Ele vagou por planos de monitores queimados apagoupixels mortos e agora faz performances baseadas na destruiccedilatildeo de telas deLCD - Manifesto de estudos em glitch Rosa Menkman

51ldquoCOMPUTADORES FAZEM ARTE ARTISTAS FAZEM DINHEIROrdquo

Ao longo da discussatildeo aqui feita sobre o ruiacutedo alguns autores jaacute citados evocam

tambeacutem termos como ldquoerrordquo e ldquofalhardquo que possuem uma vinculaccedilatildeo mais direta ao universo dos

sistemas informaacuteticos e relacionam-se igualmente como movimentos de diferenciaccedilatildeo

deslocamentos O brasileiro Erick Felinto (2013) eacute um pesquisador interessado em como a

questatildeo do ruiacutedo pode ser observada nos campos da comunicaccedilatildeo e das artes mas tambeacutem

assinala a influecircncia da cultura digital no interesse recente pelo tema e reflete

Mas por que motivo entatildeo dever-se-ia valorizar o ruiacutedo Ora o ruiacutedo eacute aquilo queescapa ao controle que perturba a ordem que questiona o sistema Paradoxalmente eleeacute aquilo que obstaculariza o funcionamento do sistema mas que ao mesmo tempotambeacutem o torna possiacutevel De fato a ordem se constitui atraveacutes de sua oposiccedilatildeo agravedesordem O erro o ruiacutedo satildeo responsaacuteveis por aquele aspecto de imprevisibilidade semo qual natildeo poderia existir diferenccedila e portanto a dimensatildeo produtiva do sistema Umsistema eacute produtivo ao estabelecer diferenccedila em relaccedilatildeo ao seu exterior Fosse eleinteiramente fechado sem brechas autocontido suas possibilidades produtivas seriamextremamente limitadas Eacute por essa razatildeo que a intrigante arqueologia dos viacuterus decomputador empreendida por Jussi Parikka natildeo os analisa unicamente como merasperturbaccedilotildees ou ruiacutedos dos sistemas informaacuteticos No complexo mundo tecnocultural emque vivemos os acidentes e viacuterus possuem uma dimensatildeo produtiva Acidentes natildeo satildeocomo numa concepccedilatildeo aristoteacutelica externos em relaccedilatildeo aos dispositivos teacutecnicos queafetam mas sim constitutivos desses mesmos aparatos115 (FELINTO 2013 p58)

Natildeo agrave toa em algum momento de suas anaacutelises praticamente todos esses autores e

autoras aos quais estamos nos reportando ao longo de nosso texto fazem referecircncia agrave teoria da

comunicaccedilatildeo e sua relaccedilatildeo com o tema do ruiacutedo segundo Shannon e Weaver o ruiacutedo atrapalha a

leitura de uma mensagem comprometendo a sua transmissatildeo e a percepccedilatildeo do destinataacuterio

115 Grifos do autor

184

() Eacute infelizmente caracteriacutestico que certas coisas satildeo adicionadas ao sinal coisas natildeointencionadas pela fonte de informaccedilatildeo Essas adiccedilotildees indesejadas podem ser distorccedilotildeessonoras (num telefone por exemplo) ou estaacuteticas (raacutedio) distorccedilotildees nas formas esombras da imagem (televisatildeo) erros na transmissatildeo (teleacutegrafo ou fac-siacutemile) etc Todasessas mudanccedilas no sinal transmitido satildeo ruiacutedos116 (SHANNON amp WEAVER apudHAINGE 2013 p3)

Ora essa teoria dos anos 1940-50 chama atenccedilatildeo para a presenccedila ldquoindesejaacutevelrdquo do ruiacutedo

mas admite que ele natildeo impede a transmissatildeo da mensagem Eacute como se agrave medida que enfatizam

um problema os teoacutericos acabassem reconhecendo a impossibilidade de um sistema funcionar

sem o ruiacutedo No veneno estaria o antiacutedoto117

Aleacutem de reconhecer a impossibilidade de a informaccedilatildeo se ver livre do ruiacutedo a teoria de

Shannon e Weaver entende o ruiacutedo como processos materiais que reorganizam o sistema atraveacutes

de distraccedilotildees e rupturas (BALLARD 2011 p68) questatildeo importante se estamos aqui

interessados nas obras em que o ruiacutedo desafia padrotildees da imagem ligados agrave indexicabilidade agrave

imagem uacutenica e sem interferecircncias

Tais consideraccedilotildees nos conduzem agrave outra caracteriacutestica do ruiacutedo sua natureza relacional

Se natildeo pode ser extirpado do sistema espaccedilo ou contexto que lhe daacute origem o ruiacutedo seraacute

reconhecido ou identificado em comparaccedilatildeo ao que ele natildeo eacute Emerge misturado ao que se opotildee

natildeo podendo existir de forma independente isolada

A artista e professora Xtine Burrough (2011 p81) indica que assumimos o ruiacutedo como

algo contido num espaccedilo de erro mas essa presenccedila eacute ignorada nas praacuteticas cotidianas o que

torna a percepccedilatildeo do ruiacutedo um fator bastante subjetivo Em seguida ela aponta o poder de

desconexatildeo que o ruiacutedo traz mas ressalta que se pensarmos por exemplo na estrutura de uma

narrativa ele constitui uma parte vital desta tanto quanto os diaacutelogos os cenaacuterios e as accedilotildees

Erick Felinto (2013 p56) cita o termo imbroglio utilizado por Bruno Latour (2005) para tratar

dessa questatildeo da inseparabilidade entre ruiacutedo e o sistema que o produz num emprego bastante

116 Traduccedilatildeo livre de ldquo() it is unfortunately characteristic that certain things are added to the signal which werenot intended by the information source These unwanted additions may be distortions of sound (in telephony forexample) or static (in radio) or distortions in shape or shading of picture (television) or errors in transmission(telegraphy or facsimile) etc All these changes in the transmitted signal are called noiserdquo Grifo dos autores117 Ward (2011) lembra que Shannon e Weaver natildeo eram teoacutericos do campo da comunicaccedilatildeo mas pesquisadores quedesenvolveram um modelo de comunicaccedilatildeo a serviccedilo de uma empresa de telefones daiacute sua ecircnfase na eficiecircnciateacutecnica do sinal a preocupaccedilatildeo com os ruiacutedos presentes no canal por onde passa a mensagem etc A abordagemdeles sobre a informaccedilatildeo como elemento mensuraacutevel foi apropriada pelos estudiosos da comunicaccedilatildeo e dashumanidades mas atualmente o modelo jaacute se mostra bastante defasado como referecircncia para as comunicaccedilotildeeshumanas

185

frutiacutefero da ideia de confusatildeo e indefiniccedilatildeo que ronda o assunto Esses argumentos apontam que a

anaacutelise do ruiacutedo (e do erro) sugere um espaccedilo de possibilidades onde se podem identificar

manifestaccedilotildees imprevistas do funcionamento de um sistema equipamento ou teacutecnica mas sem

que necessariamente essa manifestaccedilatildeo surja como um movimento de isolamento uma

singularidade que se aparta do todo Nesse sentido aproxima-se de noccedilotildees como virtualidade

devir desterritorializaccedilatildeo (DELEUZE amp GUATTARI 1997) e do debate em torno das relaccedilotildees

em detrimento das essecircncias (PARENTE apud FELINTO 2013 p57-58)

As observaccedilotildees desses autores sugerem uma interaccedilatildeo positiva entre indiviacuteduos

(materialidade) e tecnologias e estruturas do mundo (tambeacutem materiais) natildeo reservando ao

elemento humano um status diferenciado ou seja natildeo criando uma hierarquia entre

componentes Por entender que a expressividade surge de uma atuaccedilatildeo conjunta de entidades

diversas com tendecircncia mais proacutexima da simbiose que das particularidades das separaccedilotildees

Hainge (2013) aproxima-se tambeacutem da filosofia flusseriana interessada no modo como os

indiviacuteduos confrontam-se com os aparelhos118 A anaacutelise sobre o ruiacutedo pede uma visatildeo sistecircmica

e relacional da expressividade (palavra que natildeo se resume ao campo da arte e seus artefatos)

Vejamos essa afirmaccedilatildeo de seu estudo que demarca bem o territoacuterio onde se situa o ruiacutedo

() O que eu quero sugerir aqui entatildeo eacute que natildeo eacute preciso haver uma divisatildeo entre asoperaccedilotildees do ruiacutedo como um conceito filosoacutefico e suas manifestaccedilotildees na expressatildeo quenatildeo eacute necessaacuterio separar o ontoloacutegico do fenomenoloacutegico Eu quero sugerir que o ruiacutedo eacutemais do que apenas um conceito uma figura de pura potencialidade que eacute produzido naatualizaccedilatildeo da expressatildeo embora nunca abandone o exterior a partir do qual a expressatildeoeacute delineada e assim lembramo-nos dela Grosseiramente o ruiacutedo natildeo eacute apenas daordem de um futuro (agrave-venir) mas onipresente O ruiacutedo atravessa tanto o real como ovirtual os domiacutenios do conceito e da mateacuteria a multiplicidade e a singularidade eacute osubproduto do evento que ocorre nos devires situados atraveacutes desses polos a proacutepriapreacute-condiccedilatildeo para a expressividade que nasce apenas como uma consequecircncia natildeointencional ainda que inexoraacutevel da proacutepria expressatildeo119 (HAINGE 2013 p22-23)

118 Felinto (2013) tambeacutem se refere a Flusser e Nunes (2011) por sua vez utiliza a palavra ldquojogordquo na suaargumentaccedilatildeo (embora natildeo como referecircncia direta ao filoacutesofo tcheco) o que mostra como o entendimento dessesautores a respeito do tema do ruiacutedo converge numa direccedilatildeo comum119 Traduccedilatildeo livre de ldquo(hellip) what I want to suggest here then is that there need not be a split between the operationsof noise as a philosophical concept and its manifestations in expression that it is not necessary to separate out theontological from the phonomenological I want to suggest that noise is more than just a concept a figure of purepotentiality that it is produced in the actualisation of expression whilst never leaving behind the outside from whichexpression is drawn and thus reminding us of it To put crudely noise is not only of the future (agrave venir) butomnipresent Noise straddles both the actual and the virtual the realms of concept and matter multiplicity andsingularity it is the by-product of the event taking place in the becomings situated across these poles the veryprecondition for expressivity that is born only as an unintended yet inexorable consequence of expression itselfrdquo

186

Levando essa premissa agraves teorizaccedilotildees sobre a imagem contemporacircnea uma ontologia

relacional segue uma linha de raciociacutenio bastante conectada agraves teses sobre a funccedilatildeo

ldquoapresentativardquo da imagem (FATORELLI 2017) e admite que as imagens se apartem de uma

correspondecircncia figurativa que englobem regimes temporais muacuteltiplos que articulem diferentes

teacutecnicas recursos expressivos e metodologias de criaccedilatildeo e inclusive prescindam de uma

racionalidade posto que o ruiacutedo natildeo possui um sentido em si (HAINGE 2013 p95) Ele estaacute

mais inclinado agrave expressatildeo que ao significado digamos assim Eacute o fato de ldquoser multimiacutedia estar

em diferentes formas e meios incorporado em diferentes sentidos sensaccedilotildees respostas ()

sendo um permanente entre-lugar ()rdquo (HAINGE 2013 p13) Essa condiccedilatildeo de maior abertura

agrave expressividade num exerciacutecio de desafia as rotulagens de significado das obras eacute sentida como

chave discursiva nos trabalhos citados aqui As experiecircncias realizadas podem dissolver as

formas as temporalidades e os espaccedilos colocando a imagem nos limites do visiacutevel o que indica

uma disposiccedilatildeo de levar o debate sobre a sua potecircncia a um niacutevel mais conceitual por vezes

sensorial ou ateacute psiacutequico e sem duacutevida fazer-nos repensar nossa maneira de apreender o mundo

atraveacutes das tecnologias Aliaacutes melhor dizendo a proposta comum entre esses trabalhos eacute sugerir-

nos a possibilidade de ver outras realidades outros universos imageacuteticos natildeo necessariamente

verossiacutemeis Mundos invertidos desfocados interiores Paisagens multiplicadas distorcidas

efecircmeras Formas e identidades descentradas diluiacutedas multiformes As tecnologias estando

constantemente sujeitas agraves reprogramaccedilotildees

Podemos dizer que a inclinaccedilatildeo agrave descoberta de visualidades singulares conduz a

investigaccedilotildees que atualizam virtualidades jaacute presentes nos meios pois

Haacute regiotildees na imaginaccedilatildeo do aparelho que satildeo relativamente bem exploradas Em taisregiotildees eacute sempre possiacutevel fazer novas fotografias poreacutem embora novas satildeoredundantes Outras regiotildees satildeo quase inexploradas O fotoacutegrafo nelas navega regiotildeesnunca dantes navegadas para produzir imagens jamais vistas Imagens ldquoinformativasrdquoO fotoacutegrafo caccedila a fim de descobrir visotildees ateacute entatildeo jamais percebidas E quer descobri-las no interior do aparelho (FLUSSER 2011 p47)

Um terceiro ponto relevante eacute que os esforccedilos de conceituaccedilatildeo do termo ldquoruiacutedordquo

apresentam uma instabilidade Sobretudo quando se tenta singularizar o ruiacutedo as interpretaccedilotildees

divergem bastante a depender de aspectos temporais geograacuteficos culturais acarretando leituras

por vezes impregnadas de subjetividade Quer dizer teoricamente a questatildeo do ruiacutedo demonstra

187

uma natureza mutaacutevel sendo redefinida de tempos em tempos apresentando portanto certa

flutuaccedilatildeo conceitual diacrocircnica

Assim Hainge (2013) prefere elencar os pontos-chave que emergem de vaacuterias

problematizaccedilotildees acerca do ruiacutedo a fim de perceber de maneira mais geral as questotildees com as

quais o tema costuma ser identificado Perda de estabilidade e equiliacutebrio descontrole falha

feiura entropia ruptura de fronteiras confusatildeo dos sentidos desordem natildeo hierarquizaccedilatildeo de

elementos ou corpos entre outros termos mas tudo isso interpretado como movimentos que

ocorrem por forccedila de agenciamentos internos Veja o que nos diz o autor a respeito de filmes de

terror (especificamente o longa Poltergeist120 analisado em seu livro) nos quais geralmente

alguma perturbaccedilatildeo encontra-se na origem da narrativa

() O que eacute particularmente interessante a respeito de Poltergeist eacute que a batalha entrebem e mal ou entre conhecido e desconhecido (que para o terror e na vida muitas vezesequivale agrave mesma coisa) o desconhecido (o que figura como ruiacutedo) eacute algo que estaacutecontido subtendido no conhecido no comum O outro no qual o horror reside natildeo eacute umaabsoluta alteridade um monstro de um lugar distante um alieniacutegena ou fugitivo loucoComo mostra a sequecircncia de abertura do filme o outro ou esse desconhecido queguarda o terror estaacute sempre presente mas se revela somente quando olhamos perto obastante121 (HAINGE 2013 p90)

Isso significa que entender o ruiacutedo eacute tambeacutem reconhecer que esse termo envolve um

problema de percepccedilatildeo a depender de para onde se foca nossa atenccedilatildeo o ruiacutedo em quaisquer

miacutedias corre o risco de passar desapercebido Se as tecnologias da era da informaccedilatildeo tecircm a

capacidade de corromper as mensagens que deviam ser transmitidas de maneira confiaacutevel haacute um

encobrimento do agente desagregador sob a aparecircncia de miacutedias transparentes e discretas

(HAINGE 2013 p91) Nesta tese essa premissa conduz agrave argumentaccedilatildeo a respeito de imagens

limpas (MANOVICH 1995) que remetem na verdade a certas modalidades esteacuteticas e natildeo agraves

diferenccedilas apontadas em alguns debates sobre a digitalizaccedilatildeo no campo da imagem que segrega

120 Poltergeist (Tobe Hooper 1982) eacute uma das referecircncias citadas por Hainge em seu livro mas a ideia do terrorcomo algo que surge do cotidiano como um problema latente embora natildeo notado (o ruiacutedo como forccediladesestabilizadora oculta) eacute ainda utilizada com frequecircncia no gecircnero a exemplo de produccedilotildees recentes comoSuspiria ndash A danccedila do medo (remake de Luca Guadagnino de 2018 para o original de Dario Argento de 1977) ouCorra e Noacutes (ambos de Jordan Peele lanccedilados respectivamente em 2017 e 2019)

121 Traduccedilatildeo livre de ldquo() what is particularly interesting about Poltergeist is that in this struggle between goodand evil or the same thing ndash the unknown (figured as noise) is seen always to subtend the known The Other in whomhorror resides this is to say is not an absolute alterity a monster from a faraway place an alien or an escapedmadman rather as the filmrsquos opening sequence analysed above shows us the Other or the unknown from whichhorror issues is always present but revealed only when we look closely enoughrdquo

188

as miacutedias analoacutegicas e digitais Se pensarmos que ruiacutedos estatildeo sempre presentes (o que falha eacute

nossa capacidade de percebecirc-los) vamos compreender que todas as miacutedias os possuem

Mas haacute outros fatores que acarretam uma ldquocegueirardquo em relaccedilatildeo ao tema do ruiacutedo

quando consideramos os artefatos da cultura digital Nunes (Ibidem) aponta certa ideologia que

na busca por uma maacutexima performance da tecnologia encara o erro como elemento a ser contido

Mas devido agrave impossibilidade desse controle absoluto ldquoo erro assinala vaacutelvulas de escape dos

confins previsiacuteveis do controle informaacutetico uma abertura uma virtualidade uma poiesisrdquo

(NUNES 2011 p3) Segundo Peter Krapp (2011) se existe caos acidente e acaso em todos os

sistemas dispositivos e rotinas de operaccedilatildeo estes precisam ser rigidamente controlados sob pena

de denunciarem seus defeitos

Com mecanismos especiacuteficos de correccedilatildeo e reduccedilatildeo das falhas (como os antiviacuterus) ou

de aumento do desempenho a cibercultura daacute a falsa impressatildeo de uma eficiecircncia perfeita

Hainge reflete sobre essa percepccedilatildeo errocircnea no que tange agraves miacutedias musicais

Em meados de 1980 poderiacuteamos ser tentados a pensar que com o advento da tecnologiadigital e a introduccedilatildeo do compact disc essa retoacuterica de perfeiccedilatildeo e limpeza rapidamentese tornaria supeacuterflua porque esse formato prometia um niacutevel de fidelidade aparentementeinsuperaacutevel Poreacutem esse natildeo foi o caso122 (HAINGE 2007 p28)

Essa reflexatildeo traz agrave tona a contenda de negaccedilatildeo do erro e do ruiacutedo podendo ser

estendida a quaisquer artefatos digitais Quer dizer a retoacuterica (de fidelidade perfeiccedilatildeo

eficiecircncia) resiste sendo reivindicada sempre que viaacutevel e podendo ser ampliada ao campo da

imagem como jaacute apontamos em relaccedilatildeo ao cinema e os debates sobre formatos de exibiccedilatildeo

relanccedilamentos de tiacutetulos em formatos mais ldquoavanccediladosrdquo etc e com ela ressurgem tambeacutem as

estrateacutegias de supressatildeo do ruiacutedo Krapp (2011 p125) chega a considerar que ldquoa era do

apagamento do ruiacutedo instaura-se de fato com o advento das tecnologias digitaisrdquo embora

saibamos que noccedilotildees como perfeiccedilatildeo transparecircncia fidelidade entre outros termos tambeacutem

assombraram o contexto de emergecircncia de tecnologias anteriores

Hainge (2013 p120-121) por sua vez conclui que na cultura digital os produtos natildeo

apresentam um coeficiente de ruiacutedo menor na verdade para ele na era digital pode haver ateacute

122 Traduccedilatildeo livre de ldquoIn the mid-1980s one may well have been tempted to think that with the advent of digitaltechnology and the introduction of the compact disc such rhetoric of perfectibility and cleanliness would quicklybecome superfluous because this new format promised an apparently unsurpassable level of fidelity Such howeverhas patently not been the caserdquo

189

mais ruiacutedo O que ocorre eacute uma mudanccedila na natureza dos ruiacutedos daquilo que no ambiente

informaacutetico manifesta-se como tal O que nos interessa aqui eacute identificar no contexto da arte as

estrateacutegias que procuram exatamente uma abordagem criacutetica dessa retoacuterica de controle e

precisatildeo Seja pelo vieacutes da sabotagem do hackeamento ou do desvio de propoacutesitos e

funcionamento dos softwares e formatos das miacutedias o nosso interesse eacute a produccedilatildeo de imagens

surgidas exatamente do tensionamento dos mecanismos que existem para mitigar o erro e assim

o ruiacutedo

A produccedilatildeo da diferenccedila nascendo de um sistema repleto de mecanismos que trabalham

para eliminar esse movimento desviante assinala uma contradiccedilatildeo que pode ser estendida ao

pensamento sobre quaisquer tecnologias relacionadas agrave ideia de reproduccedilatildeo Mesmo que pareccedilam

fechadas transparentes todas as miacutedias de representaccedilatildeo quando analisadas em detalhe abrem-se

a um paradoxo interno que significa entender a falha como parte necessaacuteria de sua ontologia

(HAINGE 2007 p26-27)

As questotildees levantadas por esses autores que se ocuparam mais recentemente do tema

do ruiacutedo eou erro datildeo conta de alguns aspectos cruciais tomados como premissas da arte

contemporacircnea que retira dos sistemas informaacuteticos o substrato de seus trabalhos Algunsmas

dessesas artistas estatildeo reunidos sob a rubrica da glitch art e discutem o potencial da falha e do

ruiacutedo entendendo que estes satildeo inerentes ao proacuteprio funcionamento dos dispositivos Sua

abordagem choca-se diretamente com ideias de que as tecnologias do computador satildeo tatildeo

eficientes que supostamente estariam livres de apresentar defeitos paradas bugs

A proposta da glitch art natildeo surge apenas de uma atitude de recusa ao funcionamento

convencional de equipamentos e artefatos que podem ser apropriados para o campo da arte Natildeo

parece ter afinidade com uma atitude iconoclasta em relaccedilatildeo agraves tecnologias Ela tem o objetivo

poliacutetico de estimular uma reflexatildeo sobre o proacuteprio discurso evolucionista voltado agraves tecnologias

utilizando a falha desses dispositivos para criar novas formas artiacutesticas Tanto que pode revisitar

materiais e equipamentos considerados obsoletos ou ateacute descartados Enquanto promove a

exploraccedilatildeo de situaccedilotildees limiacutetrofes do funcionamento das miacutedias a glitch art acaba por ser

tambeacutem uma vertente na qual o ruiacutedo figura como modalidade das imagens O glitch choca-se

190

com ldquoa aparente ideia de uma tecnologia digital infaliacutevel atraveacutes de um ato esteacutetico positivo que

enxerga beleza onde parece soacute existir horrorrdquo123 (HAINGE 2007 p32)

As obras que se enquadram na abordagem da glitch art podem explorar efeitos gerados

pelo mau funcionamento dos computadores e perifeacutericos desenvolver-se mediante o uso

corrompido (intencional) de softwares arquivos e maacutequinas ou seja seu emprego natildeo-

padronizado fora das normas industriais originalmente prescritas Abraatildeo Filho (2018) que

desenvolveu amplo estudo sobre a glitch art traccedila um paralelo entre as proposiccedilotildees desses

artistas e a ideia de ldquoprofanaccedilatildeo do dispositivordquo de Giorgio Agamben (2007) ressaltando uma

apropriaccedilatildeo poliacutetica dos meios expressivos Do ponto de vista da recusa agraves normatizaccedilotildees

inscritas na tecnologia este conceito estaacute proacuteximo das ideias de Flusser (2011) que evocamos ao

longo de nosso texto sobretudo nas reflexotildees a respeito da postura do ldquojogadorrdquo frente ao

ldquoprogramardquo do ldquoaparelhordquo Ou seja em ambos os filoacutesofos identificamos o estiacutemulo agraves

apropriaccedilotildees natildeo convencionais dos dispositivos o que no campo artiacutestico eacute operado sob

diferentes metodologias questatildeo que nos interessa sobremaneira

A holandesa Rosa Menkman artista curadora e teoacuterica escreveu um manifesto que

condensa algumas das premissas do glitch entre elas o questionamento de modelos e praacuteticas a

impossibilidade de erradicaccedilatildeo do ruiacutedo (sendo ele base da criaccedilatildeo artiacutestica) a criacutetica da

obsolescecircncia programada a instabilidade e a renovaccedilatildeo como princiacutepios da arte a criacutetica da

perfeiccedilatildeo e do automatismo no uso das miacutedias Seus textos e obras atestam uma constante

investigaccedilatildeo das possibilidades esteacuteticas do erro e logicamente muitos trechos de seu manifesto

apresentam grande afinidade com as reflexotildees sobre o ruiacutedo

De qualquer forma que definamos o ruiacutedo qualquer definiccedilatildeo negativa teraacute umaconsequecircncia positiva pois ajuda a redefinir o seu oposto (o mundo do sentido a normaregulaccedilatildeo o ldquobemrdquo a beleza entre outros) Logo o ruiacutedo existe como paradoxoenquanto ele eacute frequentemente definido de maneira negativa tambeacutem apresenta umaqualidade gerativa e positiva () Os vazios gerados por uma ruptura natildeo existem apenascomo falta de sentido eles apresentam forccedilas que empurram o espectador para fora dodiscurso tradicional sobre a tecnologia consequentemente expandindo-o Atraveacutes dessesvazios artistas e espectadores podem entender a ideologia por traacutes do coacutedigo e da vozcomo uma criacutetica agrave miacutedia digital Esse entendimento pode servir de fonte a novos

123 Traduccedilatildeo livre de ldquothe apparently infallible sheen of digital technology through a positivistic aesthetic act thatfinds beauty in apparent horrorrdquo

191

padrotildees antipadrotildees ou novas possibilidades que estatildeo situadas em uma fronteira oucamada especiacutefica da linguagem (MENKMAN 2010 p16-17)124

Menkman atribui ao ruiacutedo um papel transgressor como elemento integrante das

tecnologias atraveacutes de sua exploraccedilatildeo confrontamos certos limites envolvidos no uso que

fazemos das miacutedias Quer dizer faz parte da abordagem artiacutestica do glitch a desconstruccedilatildeo da

ideia de fechamento de inacessibilidade das tecnologias (tanto que alguns artistas apresentam

suas obras junto a breves explicaccedilotildees sobre a teacutecnica utilizada numa atitude quase pedagoacutegica

tambeacutem ligada ao espiacuterito colaborativo da proacutepria cultura digital) Eacute como se esses artistas

tivessem como premissa a vontade de reafirmar que a ldquocaixa pretardquo (FLUSSER 2011) da

cibertecnologia pode (e deve) ter seus coacutedigos quebrados Eacute patente ainda em seu discurso a

reivindicaccedilatildeo de um espaccedilo de valorizaccedilatildeo das formas visuais que emergem de uma ecircnfase no

processo de feitura das obras (mais do que no conteuacutedo) Assim os processos da glitch art criam

novas esteacuteticas ampliando o repertoacuterio das formas e dos usos

Em Vernacular file of formats (figuras 59 e 60) Menkman submete arquivos a

diferentes formatos de compressatildeo de dados (JPEG TIFF PNG) e depois insere em cada um

deles o mesmo erro Como a taxa de compressatildeo de dados em cada imagem eacute diferente os efeitos

que o erro provoca tambeacutem o satildeo Desse modo ela permite que ldquoa linguagem de compressatildeo de

outra forma invisiacutevel se apresente na superfiacutecie da imagemrdquo (MENKMAN online 2010)

colocando em pauta questionamentos sobre a qualidade da imagem a suposta ldquopurezardquo do

arquivo RAW o gesto de manipulaccedilatildeo do artista a sabotagem dos padrotildees de compressatildeo e suas

finalidades a maleabilidade da imagem como elemento de uma cultura produzida distribuiacuteda e

consumida via computador e na internet O processo eacute repetido ainda com formatos de imagem

moacutevel (AVI MOV WMV DV) e modifica de tal forma as cores os contornos enfim as

caracteriacutesticas visuais do original que o processo eacute que passa a funcionar como tema da obra

124 O texto original escrito por Menkman data de 2010 A versatildeo citada aqui eacute uma traduccedilatildeo para o portuguecircspublicada em 2017 Disponiacutevel em httpsissuucomrosamenkmandocsmanifesto_de_estudos_em_glitch__rosAcesso em 16022020

192

Figura 59 - Vernacular of file formats - Photoshop RAW (Rosa Menkman2009-2010)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Figura 60 - Vernacular of file formats - WMV (Rosa Menkman 2009-2010)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Quando esse processo entra em funcionamento ele nos deixa antever os ruiacutedos de cada

miacutedia e formato em particular Essa abordagem estaacute intimamente ligada a um modo de encarar a

193

imagem pelo vieacutes do artifiacutecio e da manipulaccedilatildeo ou seja vecirc-la como campo de exploraccedilatildeo nas

suas dimensotildees teacutecnica e conceitual (em detrimento de uma preocupaccedilatildeo em referir uma

realidade dada a priori)

O brasileiro Sabato Visconti que utiliza a alcunha de glitch photographer tambeacutem

modifica arquivos e softwares segundo procedimentos que desestruturam intensamente as formas

Na cobertura que fez da Hartford Fashion Week (figuras 61 e 61a) alterou as fotografias usando

a teacutecnica de databending (quando um arquivo eacute manipulado num software diferente daquele

recomendado para o seu formato) Ele explica

() Essa seacuterie foi feita usando a nova versatildeo do Paint o Paint 3D que deixa transformarimagens em objetos 3D eu separei a imagem em camadas diferentes e exportei noformato fbx Aiacute eu fiz um databend no arquivo fbx e voltei para o Paint 3d paraexportar como imagem (VISCONTI 2019)125

Figura 61 - Hartford Fashion Week 2016 (Sabato Visconti 2016)

Fonte Reproduccedilatildeo site artista

Figura 61a - Hartford Fashion Week 2016 (Sabato Visconti 2016)

125 Entrevista concedida agrave autora em 2019

194

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

O formato fbx eacute um padratildeo para dados em 3D e foi apropriado para gerar fotografias

imagens bidimensionais Estas comeccedilam entatildeo a apresentar aberraccedilotildees exibindo linhas cores e

traccedilos estranhos aos modos de apresentaccedilatildeo correspondentes aos formatos de imagem

padronizados (JPEG TIFF etc) O niacutevel de mimesis tambeacutem decai sensivelmente Conforme a

interpretaccedilatildeo desviada do algoritmo a imagem sofre uma mutaccedilatildeo dissolvendo-se em linhas e

com intervalos espaccedilos negros A releitura do arquivo num software trocado apresenta uma seacuterie

de erros que se traduzem visualmente em formas imprevistas Qualquer glamour ou finalidade

comercial relativos ao contexto de um desfile de moda perdem-se completamente sob o

funcionamento de uma inteligecircncia maquiacutenica desprogramada corrompida pelo artista

Por sinal Sabato Visconti faz um tracircnsito bastante interessante entre meio artiacutestico e

comercial com sua fotografia jaacute que seus projetos estruturam-se paralelamente agrave atividade como

195

freelancer (tendo publicado em veiacuteculos como as revistas Time e Vogue e o jornal The New York

Times) Atraveacutes de suas obras encontra uma maneira de repensar natildeo soacute os ditames tecnoloacutegicos

mas a capacidade de sabotagem de padrotildees de um ponto de vista geopoliacutetico perifeacuterico Tendo

saiacutedo de Satildeo Paulo para os Estados Unidos ainda crianccedila e deparando-se com situaccedilotildees adversas

pela condiccedilatildeo de imigrante compreende seu trabalho tambeacutem como espaccedilo que reverbera essa

experiecircncia pessoal em afinidade com a conotaccedilatildeo poliacutetica da glitch art ldquo() Eu passei mais de

16 anos nos EUA sem documento de imigraccedilatildeo acho que essa experiecircncia tambeacutem me afetou

Vivendo em sistemas desenhados para falhar O glitch eacute um processo e eacutetica bem ldquopunkrdquo

comparada agrave produccedilatildeo comercialrdquo (VISCONTI 2019)

Em seu site na internet delimita algumas das preocupaccedilotildees que norteiam seu trabalho

Num breve conjunto de apontamentos intitulado Glitch Photography as a Practice in the Age of

Postphotography (2017) indica por exemplo que o aparato fotograacutefico ultrapassa a dimensatildeo

instrumental da cacircmera no contexto societaacuterio telemaacutetico pois engloba o desenvolvimento de

sistemas de vigilacircncia que capturam informaccedilotildees pessoais visuais e espaciais e seu

funcionamento independente da participaccedilatildeo humana o barateamento de cacircmeras e celulares

toda uma ecologia da imagem formatada atraveacutes das redes sociais e a internet como plataforma

de acesso e modelo de fruiccedilatildeo interativo dos mais diversos conteuacutedos imageacuteticos e ainda a

cultura de hibridizaccedilatildeo caracteriacutestica de muitos desses conteuacutedos Essas satildeo questotildees jaacute

apontadas por teoacutericos da fotografia (FONTCUBERTA 2016 ZYLINSKA 2017) dedicados a

pensar a imagem em suas articulaccedilotildees com o desenvolvimento mais recente da tecnologia e a

cultura da internet Poreacutem atraveacutes do texto de Visconti eacute interessante atentar para o sentido

poliacutetico que assume o artista partidaacuterio do glitch quando interveacutem no funcionamento dessa

estrutura que envolve indiviacuteduos o capitalismo informaacutetico mecanismos de controle baseados na

tecnologia e a economia das imagens Ou seja como a arte nos seus exerciacutecios poeacuteticos eacute capaz

de chamar atenccedilatildeo para aspectos negativos do proacuteprio sistema midiaacutetico que lhe daacute sustentaccedilatildeo

Aproveitando entatildeo as suas falhas as suas brechas para colocar esse sistema contra ele mesmo

A glitch photography considera este aparelho expansivo com todas as suas facetas natildeomencionadas e transversais bem como a forma como encarnamos o aparelho ereificamos as suas exigecircncias como locais de manipulaccedilatildeo perturbaccedilatildeo e perversatildeo ouseja como locais de falhas A glitch photography eacute por um lado a praacutetica que interpolao glitch na criaccedilatildeo da fotografia e por outro a praacutetica de capturar as manifestaccedilotildees

196

visuais de uma falha dentro do aparelho muito parecida com a forma como se capturaum momento espontacircneo ou um gesto fugaz126 (VISCONTI online 2017)

Figura 62 - wen your surveillance drone glitches out during a protest da seacuterie Wen yr surveillance drone (SabatoVisconti)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

Essa estrateacutegia encontramos na seacuterie Wen yr surveillance drone (figuras 62 e 63)

construiacuteda com imagens de drones do FBI (Federal Bureau of Investigation) O trabalho eacute um

comentaacuterio sobre como sistemas de vigilacircncia interpretam a informaccedilatildeo visual recebida e as

possibilidades de reverter tais leituras atraveacutes da captura desse material pela arte Sabato Visconti

transformou as imagens originais em gifs formato em que ldquoo olhar panoacuteptico do drone eacute

capturado como de um espectador que testemunha o trecho de uma performancerdquo (VISCONTI

online) Esse trabalho debate a proacutepria tecnologia digital num sentido poliacutetico associado agrave

origem de sistemas computadorizados que foram desenvolvidos para fins militares Como

lembra Krapp (2011 pxvii) ldquonatildeo haacute tecnologia digital que natildeo levante questotildees sobre sigilo em

126 Traduccedilatildeo livre de ldquoGlitch photography considers this expansive apparatus with all its unmentioned facets andtransversals as well as the way we embody the apparatus and reify its demands as sites for manipulationdisruption and perversion in other words as sites for glitching Glitch photography is a beast with two backs Onthe one hand it is a practice that interpolates glitch into the creation of photography On the other hand it can alsobe the practice of capturing the visual manifestations of a glitch within the apparatus much like the way onecaptures a candid moment or a fleeting gesturerdquo

197

relaccedilatildeo a exigecircncias muitas vezes irreconciliaacuteveis de privacidade seguranccedila confianccedila liberdade

de expressatildeo e direitos humanosrdquo127

Quando o movimento contiacutenuo da imagem original eacute alterado para o curto movimento

de repeticcedilatildeo do gif como se sofresse um bloqueio notamos a falha do sistema de vigilacircncia e ao

mesmo tempo seu potencial de controle eacute esvaziado tornando-se incapaz de revelar qualquer ato

ou comportamento (supostamente) perigosos ou suspeitos

Figura 63 - b_01 da seacuterie Wen yr surveillance (Sabato Visconti)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista128

O gif como elemento da linguagem da internet surge a partir da apropriaccedilatildeo e estaacute

associado a uma expressatildeo irocircnica que de fato perverte as intenccedilotildees de controle do drone A

seacuterie completa tem 9 gifs desenvolvidos a partir de poucas imagens o que amplia o efeito de

repeticcedilatildeo e descontinuidade das accedilotildees registradas Em uma das cenas vemos pessoas reunidas em

ciacuterculo assistindo a um grupo que faz uma apresentaccedilatildeo de patins Em outra uma multidatildeo que

127 Traduccedilatildeo livre derdquothere is no digital technology that does not raise questions about secrecy in relation to oftenirreconcilable demands of privacy security trust freedom of speech and human rightsrdquo128 Seacuterie completa disponiacutevel em httpwwwsabatoboxcomwen-yr-surveillance-drone Acesso em 19022020

198

se concentra no cruzamento de duas ruas (originalmente essas imagens satildeo registros de protestos

ocorridos em Baltimore-Estados Unidos apoacutes a prisatildeo e morte do jovem negro Freddie Gray129)

O uso de dispositivos autocircnomos para capturar imagens sugere aleacutem de uma visatildeo total

(um olhar mais abrangente e eficiente que o humano) uma hierarquia desse olhar sob aquilo que

observa (ZYLINSKA 2017a p13) O fotoacutegrafo interfere nessa hierarquia ao capturar as imagens

e alteraacute-las transformando-as em ldquocenas de uma performancerdquo Com isso provoca o colapso da

funccedilatildeo de vigilacircncia natildeo apenas pela conversatildeo para o formato gif mas porque a legibilidade das

cenas eacute comprometida pelas falhas Corrompida a imagem impede a identificaccedilatildeo precisa dos

indiviacuteduos exibindo apenas erros O drone vira uma maacutequina com defeito produzindo a mesma

cena tecnologia imprestaacutevel para vigiar e punir

Esses breves exemplos indicam que os propoacutesitos da glitch art e as consideraccedilotildees sobre

o papel do ruiacutedo apresentam afinidade quando temos como horizonte o cenaacuterio da imagem

contemporacircnea Baseada numa atitude realmente experimental estilo do it yourself (DIY)

direcionada aos dispositivos a glitch art explora de maneira criativa as falhas e os erros para

criar esteacuteticas proacuteprias Eacute tambeacutem uma vertente artiacutestica que opera na iminecircncia de reciclagens

recombinaccedilotildees dos novos arranjos poeacuteticos tendo em vista que utiliza quaisquer conteuacutedos

manipulaacuteveis via software Encarando mais livremente inclusive aquilo que se consideram as

ldquomateacuterias-primasrdquo de suas obras os artistas do glitch utilizam natildeo apenas formatos e recursos do

computador incorporam elementos do design graacutefico da linguagem de programaccedilatildeo imagens de

sistemas autocircnomos (circuitos fechados drones sistemas de vigilacircncia) cenas de filmes

caracteres130 que uma vez disponibilizados no computador ou online podem ser livremente

utilizados Ou seja no que se refere ao campo da imagem satildeo obras que colocam em praacutetica o

conceito de hibridizaccedilatildeo (MANOVICH 2013) e valem-se da fluidez e da descontinuidade da

proacutepria cultura digital para fazer interagir a fotografia o cinema o viacutedeo atraveacutes de formatos

como o gif e os memes por exemplo

129 Freddie Gray foi detido em 2015 acusado pela poliacutecia de portar ilegalmente uma faca Conduzido algemado esem cinto de seguranccedila na viatura entrou em coma e faleceu na semana seguinte Os seis policiais envolvidos noepisoacutedio de sua prisatildeo foram absolvidos na justiccedila que considerou impossiacutevel relacionar a morte do jovem agrave condutados policiais alegando que as evidecircncias para uma condenaccedilatildeo eram insuficientes130 Nesse sentido ver o interessante trabalho desenvolvido pela artista Biarritzzz (httpswwwbiarritzzzcom)Acesso em 08042020

199

Partindo de uma atitude radical esses trabalhos vinculam-se a uma seacuterie de modalidades

visuais que poderiam ateacute ser negligenciadas enquanto conteuacutedo artiacutestico por sua inclinaccedilatildeo ao

feio ao disforme a uma certa precariedade da imagem Na verdade o glitch carrega em sua

proacutepria gecircnese esse sentido de transgressatildeo da forma de modo que como tendecircncia esteacutetica

ligada ao universo das imagens digitais estaacute muito proacuteximo da noccedilatildeo de ruiacutedo interessando-nos

como lugar de observaccedilatildeo de sua compreensatildeo poeacutetica no uso das miacutedias do computador As

obras da glitch art satildeo exerciacutecios que levam a uma ldquoruiacutena do sentidordquo o que natildeo significa uma

atitude iconoclasta que visa a destruiccedilatildeo dos sistemas digitais nem de suas formas

caracteriacutesticas mas a partir da ruiacutena investir na revelaccedilatildeo de novas formas e sentidos (ABRAAtildeO

FILHO 2018 p22)

Para os artistas da glitch art estaacute subentendido que todas as tecnologias da era da

informaccedilatildeo carregam em si mesmas o potencial de autosabotagem de corromper as mensagens

que deveriam transmitir com seguranccedila

() Devemos ir aleacutem e sugerir que imagens ou sons gerados por computador exibem deacordo com a definiccedilatildeo aqui proposta um coeficinete extremamente elevado de ruiacutedona medida em que natildeo buscam num objeto externo as condiccedilotildees para formar uma tramaexpressiva eles produzem sua expressatildeo puramente de dentro de suas proacutepriastecnologias e especificidades materiais (HAINGE 2013 p122)

Dessa maneira soacute podemos esperar que nas estrateacutegias de tensionamento da linguagem

informaacutetica dos formatos de arquivos e dos programas de computador essas obras apresentem

configuraccedilotildees esteacuteticas estranhas pois que satildeo geradas de elementos provindos de uma

inteligecircncia maquiacutenica com seus proacuteprios coacutedigos e formas Tal compreensatildeo aproxima nosso

debate da questatildeo da materialidade pensada no acircmbito do computador As contribuiccedilotildees de

Manovich (2013) e Zylinska (2017a) satildeo auxiliares para traccedilarmos um diaacutelogo entre a exploraccedilatildeo

da materialidade na cultura da imagem digital (como expressatildeo do ruiacutedo) natildeo sendo essa questatildeo

uma qualidade exclusiva das miacutedias analoacutegicas (imagens-objeto) Segundo a pesquisadora

polonesa (2017a p172) identificar a materialidade com o analoacutegico e a imaterialidade com o

digital eacute uma compreensatildeo que ldquoignora a presenccedila fiacutesica das telas dos componentes da cacircmera

ou do celular que satildeo parte do sistema de produccedilatildeo da imagem bem como os cabos de rede

atraveacutes dos quais ela eacute transferidardquo131

131 Traduccedilatildeo livre de ldquoThis (mis)percepction is only possible if one ignores the materiality of the screen on whichone views digital images the materials that make up the camera or cell phone which are part of its system ofproduction the network cables that participate in its transfer etcrdquo

200

Por outro lado alguns dos artistas aqui elencados sublinham a materialidade como um

dos pontos importantes da escolha em trabalhar com tecnologias fotoquiacutemicas Cris Bierrenbach

(2018) por exemplo ressalta que quando trabalha com tecnologias digitais ou analoacutegicas haacute

sempre um niacutevel de imprevisto envolvido no procedimento mas enquanto no computador as

accedilotildees podem ser revertidas nos processos artesanais da imagem eacute necessaacuterio destruir coisas para

atingir o resultado final que eacute um resultado original ldquoPra vocecirc repetir aquilo exatamente eacute muito

difiacutecil pra natildeo dizer praticamente impossiacutevel Entatildeo tem essa particularidade dessa unicidade

que cada uma tem que eu acho bem encantador Cada uma (imagem) eacute uma mesmordquo

(BIERRENBACH 2018) Luiz Alberto Guimaratildees defende o uso de cacircmeras artesanais porque

estas lhe permitem criar imagens sofisticadas e complexas que conservam uma ldquoaurardquo ndash

reportando-se a Walter Benjamin (1935-36) ndash por meio de instrumentos uacutenicos (GUIMARAtildeES

2014 p22) que os programas de computador conseguem apenas imitar Como vimos Dirceu

Maueacutes tambeacutem tece uma criacutetica agrave ideia de que aparelhos sofisticados e caros satildeo mais adequados

agrave produccedilatildeo de imagens elaboradas retoacuterica que o trabalho com as pinholes (que tambeacutem resulta

em peccedilas uacutenicas) desmente Embora os dois fotoacutegrafos natildeo explicitem uma preocupaccedilatildeo com a

materialidade de suas obras todo o trabalho de elaboraccedilatildeo em seus projetos o tempo dedicado

bem como a busca de esteacuteticas decorrentes da interaccedilatildeo entre os suportes empregados (negativo

papel fotograacutefico quiacutemicos slide etc) apontam que essa dimensatildeo palpaacutevel devido agrave

fisicalidade de cada um dos trabalhos constitui parte importante para a apreensatildeo sensiacutevel dos

mesmos Natildeo raro na exposiccedilatildeo de suas obras eacute comum que esses artistas apresentem tambeacutem

dispositivos estruturas utilizadas nos processos (figura 64) ndash natildeo apenas as imagens

201

Figura 64 - Cacircmeras pinhole como parte da exposiccedilatildeo Somewhere ndash Alexanderplatz (Dirceu Maueacutes2009)

Fonte Reproduccedilatildeo de Maueacutes (2015)

De toda forma como aqui nos interessam as visualidades que atestam a presenccedila do

ruiacutedo e a partir do momento em que o reconhecemos como expressatildeo mais crua e evidente da

trama material das imagens a divisatildeo entre miacutedias analoacutegicas e digitais torna-se sem sentido ateacute

porque conforme ficou patente atraveacutes dos exemplos da glitch art a inscriccedilatildeo da materialidade

nas imagens digitais eacute detectada nas distorccedilotildees de corpos e objetos na alteraccedilatildeo das cores com a

intenccedilatildeo de apontar a artificialidade da imagem na valorizaccedilatildeo do pixel do rastro do movimento

nos gifs na apariccedilatildeo de estruturas geomeacutetricas que fogem agrave figuraccedilatildeo tradicional Cada uma

dessas modalidades de expressatildeo vai de encontro ao ldquoprograma dos aparelhosrdquo e no que se refere

especificamente a esse campo da imagem digital identificamos que o programa se inscreve

atraveacutes da ldquoprogramaccedilatildeo do software nos coacutedigos relativos agrave reproduccedilatildeo das cores dispositivo

para reduccedilatildeo do ruiacutedo suavizaccedilatildeo das bordas da imagem preenchimento de pixels defeituososrdquo

(AGUERA amp ARCAS apud ZYLINSKA 2017a p214) Ou seja quando os artistas comeccedilam a

negar tais regras criando suas proacuteprias sensibilidades esteacuteticas contribuem para fortalecer uma

iconografia baseada no valor generativo do erro132 e plaacutestico do ruiacutedo

132 Zylinska (2017a) considera o pixel aparente e a animaccedilatildeo do gif indicativos do erro no ambiente do computador

202

Alguns trabalhos recentes utilizam o pixel para criar obras que sugerem atraveacutes de

diferentes abordagens e estrateacutegias aproximaccedilotildees entre as instacircncias moacutevel e fixa da imagem

embaralhando os espaccedilos e gecircneros da pintura e da fotografia Por exemplo o projeto iEarth

(2013) de Joanna Zylinska (figura 65) discute de forma irocircnica a ideia de que o gecircnero paisagem

constitui um olhar direcionado a um ambiente um recorte de um espaccedilo fiacutesico dado e livre de

mediaccedilotildees Em vez de reafirmar essa noccedilatildeo iEarth assume explicitamente que a paisagem natildeo

passa de uma construccedilatildeo de um artifiacutecio tecnoloacutegico fortemente influenciado pelas imagens

pertencentes a esse gecircnero que conformam nosso repertoacuterio iconograacutefico interferindo tambeacutem

na nossa maneira de olhar para o mundo Nesse trabalho o kit de um diorama para crianccedilas foi

usado para produccedilatildeo de quatro imagens fotografadas e processadas digitalmente para a criaccedilatildeo

de gifs Zylinska (2014) ressalta o aspecto fabricado dessas paisagens que natildeo remetem a

qualquer espaccedilo concreto e ao mesmo tempo estatildeo muito proacuteximas de representaccedilotildees midiaacuteticas

de espaccedilos reais (produzidas por exemplo pelo Google Earth) ldquoEsta perspectiva particular tem

uma dupla funccedilatildeo tanto desnaturaliza o familiar como cria uma ilusatildeo de imediatez

proximidade e domiacutenio visualrdquo (Idem)

Figura 65 - IEarth (Joanna Zylinska 2014)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista133

133 Sugerimos visualizar o trabalho diretamente na internet Disponiacutevel em httpwwwjoannazylinskanetiearthAcesso em 25022020

203

Profundamente ambiacuteguas e situadas entre o real e o artificial essas imagens promovem

atraveacutes do pixel e do gif uma afirmaccedilatildeo da tecnologia que natildeo eacute um intermediaacuterio entre o olhar e

o espaccedilo fiacutesico A tecnologia eacute o proacuteprio meio de existecircncia da paisagem Eacute ela que a constitui

A tecnologia eacute aqui mobilizada em vaacuterios niacuteveis ndash na elaboraccedilatildeo do diorama nacaptaccedilatildeo da imagem na pixelizaccedilatildeo das proacuteprias fotografias e em uacuteltima instacircncia naanimaccedilatildeo gif Pixelizaccedilatildeo e animaccedilatildeo natildeo satildeo apenas artifiacutecios visuais ou conceituais Oseu uso eacute uma tentativa de desestabilizar a relaccedilatildeo entre natureza e artefato entre oreal e o virtual134 (ZYLINSKA online 2014)

A paisagem eacute de fato elaborada segundo diversas camadas de imagens originaacuterias de

diferentes aparatos Cada um deles relacionado a um momento histoacuterico da representaccedilatildeo de

espaccedilos concretos o diorama uma forma de entretenimento moderna que criava uma ilusatildeo de

realismo e expressava um desejo de visatildeo total a fotografia imagem teacutecnica evocada no sentido

de um duplo do referente (mas sempre uma alteridade em relaccedilatildeo a este) e por fim o

computador metamiacutedia processadora de todas essas referecircncias anteriores que acrescenta

tambeacutem sua linguagem visual atraveacutes do pixel e da finalizaccedilatildeo em formato gif Nesse processo

cumulativo a paisagem fixa incorpora um movimento poreacutem um movimento tambeacutem

explicitamente artificial provocado (repetitivo em loop) Um movimento que natildeo almeja a ilusatildeo

de continuidade espaccedilo-temporal

Aleacutem disso estamos falando de um movimento atribuiacutedo a um espaccedilo fiacutesico (uma aacuterea

verde recriada por meio de um diorama infantil) o que intensifica o efeito de artificialidade Se o

diorama onde tudo comeccedila jaacute pressupotildee a interaccedilatildeo de um observador dotado de mobilidade

(CRARY 2012) na recriaccedilatildeo de um espaccedilo miniaturizado um cenaacuterio mesmo Zylisnka

reconecta essas noccedilotildees de mobilidade do olhar humano atraveacutes do gif um formato que articula

imagem estaacutetica e movimento Ela tambeacutem sugere um regime visual possibilitado pela

flexibilidade das imagens numeacutericas que embora jaacute tenha ultrapassado os limites do modelo

oacutetico linear (fixo) continua ainda se relacionando com este por meio de toda uma heranccedila visual

da pintura do cinema da fotografia e dos aparelhos oacuteticos como o estereoscoacutepio o panorama e

o proacuteprio diorama aqui revisitado

134 Traduccedilatildeo livre de ldquoTechnology is mobilised here on a number of levels ndash in the crafting of the diorama in thetaking of the image in the pixellation of the photographs themselves and then in the last instance in the gifanimation Pixellation and animation are not just visual or conceptual gimmicks Their use is an attempt todestabilise the relationship between lsquonaturersquo and lsquoartefactrsquo between lsquothe realrsquo and lsquothe virtualrsquordquo

204

Outro trabalho que curiosamente tambeacutem tematiza a paisagem aproximando-se do

formato cartatildeo postal jaacute que remete mais diretamente agrave fotografia eacute a seacuterie Jpegs (2007) de

Thomas Ruff (figuras 66 e 66a) Ela tambeacutem intensifica a presenccedila da miacutedia fotograacutefica expondo

a estrutura dos pixels O JPEG eacute um dos formatos de compressatildeo de imagem mais utilizados na

fotografia digital A compressatildeo significa perda de informaccedilatildeo Pois bem Ruff utiliza imagens

retiradas da internet e expressa atraveacutes de um olhar muito proacuteximo da estrutura dos pixels a

ideia de que a imagem digital eacute um conjunto de pequenos quadrados Ruff percebeu que o

software de compressatildeo para o formato JPEG dava agraves fotografias um efeito impressionista e

passou a explorar essa questatildeo

Descobri que quando se amplia bastante essas imagens 25m ou 18m cria-se um efeitoagradaacutevel quando vocecirc olha a uma distacircncia de 10 a 15 metros acha que estaacute vendouma fotografia precisa mas se chegar perto uns 5 metros reconhece a imagem pelo queela eacute Aiacute se chegar bem perto jaacute natildeo reconhece absolutamente nada vocecirc estaacute apenasdiante de milhares de pixels (RUFF 2009)135

Ou seja o que o artista alematildeo faz eacute simplesmente criar condiccedilotildees para desfazer a ilusatildeo

de uma estrutura dotada de extrema organizaccedilatildeo da imagem mostrando-nos um pouco do que eacute

constituiacuteda uma fotografia digital expondo seus intervalos e lacunas Segundo Hainge (2013

p221-222) os trabalhos de Ruff satildeo exemplares do aspecto ruidoso da miacutedia fotograacutefica que se

apresenta atraveacutes da manipulaccedilatildeo de cores formas da estrutura dos pixels e distribui-se por toda

a sua obra que versa sobre a arquitetura composicional da imagem e do frame sobre a

distribuiccedilatildeo da luz e da cor e como todas essas caracteriacutesticas da imagem satildeo manipulaacuteveis

David Campany (2008) aponta que este trabalho defende uma ldquoarte do pixelrdquo chamando

a nossa atenccedilatildeo para a forma tiacutepica da imagem em circulaccedilatildeo na internet (ldquoforma de grelha

maquiacutenica e repetitivardquo)

Todas as imagens que aparecem hoje na internet eou impressas em livros e revistas satildeodigitalizadas Quase todas as imagens satildeo digitais mesmo que tenham origem emformas natildeo digitais ou preacute-digitais Dado este fato eacute surpreendente como poucosabordam o fato de estas imagens existirem como massas de informaccedilatildeo eletrocircnica quetomam forma visual como pixels Ruff fez muito para introduzir na arte fotograacutefica o quepoderiacuteamos chamar de arte do pixel permitindo-nos contemplar a niacutevel esteacutetico efilosoacutefico a condiccedilatildeo baacutesica da imagem eletrocircnica Claro que ele faz isso natildeo nosmostrando as imagens em telas mas atraveacutes de impressotildees fotograacuteficas em larga escala

135 Benedictus Leo Thomas Ruff best shot Disponiacutevel emhttpswwwtheguardiancomartanddesign2009jun11my-best-shot-thomas-ruff Acesso em 24022020

205

levando-as muito aleacutem de sua resoluccedilatildeo fotorrealista Esta pode ser a primeira vez quealgumas destas imagens assumem uma forma material136 (CAMPANY online 2008)

O autor ainda estabelece uma comparaccedilatildeo entre a acircnfase dada ao pixel em Jpegs e a

ldquoesteacutetica do gratildeordquo cuja conotaccedilatildeo de autenticidade marcou obras William Klein e Nan Goldin

entre outros e embora diferencie o gratildeo do pixel referindo-se a este uacuteltimo como elemento de

uma frieza tecnoloacutegica as afirmaccedilotildees de Campany articulam a valorizaccedilatildeo do pixel como rastros

da materialidade da miacutedia quando comenta o efeito visual acarretado pela ampliaccedilatildeo em larga

escala de imagens que supostamente deveriam ser visualizadas em arquivos de tamanho reduzido

(dada sua baixa resoluccedilatildeo) Ruff na verdade subverte a loacutegica de apresentaccedilatildeo de uma imagem

em formato JPEG deixando-nos ver os pequenos quadrados as zonas onde a forma se desfaz em

partes esfumadas Ele quebra a aparecircncia de regularidade e organizaccedilatildeo da estrutura em pixels

quando altera a escala de sua exibiccedilatildeo original

136 Traduccedilatildeo livre de ldquoAll images that appear on the internet andor printed in books and magazines today aredigitised Nearly all images are digital even if they originated in non-digital or pre-digital forms Given this fact it issurprising how few of them ever wish to address the fact that they exist as masses of electronic information that takevisual form as pixels Ruff has done a great deal to introduce into photographic art what we might call an lsquoart of thepixelrsquo allowing us to contemplate at an aesthetic and philosophical level the basic condition of the electronic imageOf course he does this not by showing us the images on screens but by making large scale photographic printsblowing them up far beyond their photorealist resolution This might be the first time some of these images have evertaken a material formrdquo

206

Figuras 66 e 66a - Imagens da seacuterie Jpegs (Thomas Ruff 2007)

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

Seja na valorizaccedilatildeo do gratildeo do negativo (como nos trabalhos de Joseacute Luiacutes Neto) ou em

todos esses artistas interessados no pixel como elemento irradiador de uma esteacutetica

207

desconcertante no que diz respeito agrave definiccedilatildeo das formas concretizam-se as ideias de Flusser

(2008 p25) a respeito das imagens teacutecnicas como virtualidades guardadas nos aparelhos e

ativadas ou reveladas mediante a exploraccedilatildeo criativa daqueles No mesmo estudo o filoacutesofo

explica que a imagem teacutecnica eacute um ldquoacidente programadordquo pois emerge como possibilidade jaacute

contida no ldquoprogramardquo o que entra em conformidade com as teses sobre o ruiacutedo ser uma

internalidade de cada tecnologia Para noacutes a identificaccedilatildeo do ruiacutedo nessas obras eacute possiacutevel

atraveacutes de um equiliacutebrio entre esse niacutevel de programaccedilatildeo (caracteriacutestica inescapaacutevel dos

aparelhos) e um certo espaccedilo de negociaccedilatildeo acionado atraveacutes de diferentes estrateacutegias pelos

artistas o que para Flusser diz respeito agrave postura do ldquojogadorrdquo diante da miacutedia

Eacute interessante tambeacutem salientar que no conjunto de suas ideias o pensador tcheco

entende a eclosatildeo do novo ou de uma ldquoimagem informativardquo numa relaccedilatildeo diferencial de uma

tradiccedilatildeo visual homogeneizante padronizada que se manteacutem restrita agravequilo que o programa

epistemoloacutegico do meio prefigura Ele diz que determinadas imagens propotildeem siacutembolos novos

quando se colocam contra um fundo ldquoredundanterdquo do coacutedigo estabelecido e estimula um papel

ativo de quem utiliza as tecnologias para desligar-se dessa tradiccedilatildeo de mesmice (atraveacutes de

propostas sempre renovadas inusitadas)

52 O BOM O MAU E O FEIO

No intuito de chamar nossa atenccedilatildeo para a diversidade de imagens criadas quando se

concebe o aparelho fotograacutefico (e aqui natildeo falamos apenas no sentido estritamente teacutecnico)

como dispositivo sujeito a reescrituras a filosofia flusseriana alinha-se a reflexotildees bastante

recentes do campo da imagem que pensando no ambiente das miacutedias computadorizadas

reconhece um valor esteacutetico justamente nas visualidades consideradas irregulares feias erraacuteticas

incomuns difiacuteceis de classificar e de identificar

A artista pensadora e professora Hito Steyerl em seu texto onde defende as ldquoimagens

pobresrdquo (2009) usa termos como baixa qualidade erracircncia reproduccedilatildeo remix download coacutepia

compartilhamento reediccedilatildeo ou seja todo um vocabulaacuterio que diz respeito agraves diversas estrateacutegias

de manipulaccedilatildeo que estatildeo na ordem do dia para osas artistas analisados aqui Embora se refiram

especificamente ao contexto da imagem digital suas palavras podem servir muito bem para dar

conta da variabilidade de resultados encontrados neste pequeno grupo de obras que tecircm no ruiacutedo

um ponto em comum Aliaacutes pensamos que no universo da imagem contemporacircnea o constante

208

cruzamento das miacutedias as operaccedilotildees de apropriaccedilatildeo de referecircncias as mais diacutespares conferem agraves

obras incluiacutedas nesta tese grande afinidade com o pensamento sobre a imagem pobre (mesmo

agravequelas natildeo elaboradas exclusivamente mediante o uso de miacutedias computadorizadas)

Sem intenccedilatildeo de utilizar o texto de Steyerl promovendo um esvaziamento de seu

evidente conteuacutedo poliacutetico e de gecircnero acreditamos ser frutiacutefero pensar os contornos esteacuteticos

que sua noccedilatildeo de ldquoimagens pobresrdquo carrega pois que remonta ao cinema independente e como os

circuitos alternativos de acesso e distribuiccedilatildeo (anteriores e jaacute com o apoio da internet) e agraves

estrateacutegias de apropriaccedilatildeo (exemplificadas aqui nos trabalhos de Thomas Ruff Sabato Visconti

Caacutessio Vasconcellos Rosacircngela Rennoacute) para falar sobre uma imageacutetica caracterizada pela fuga

de padrotildees esteacuteticos na qual o lugar mais alto de uma suposta hierarquia de valores associa-se agrave

resoluccedilatildeo agrave definiccedilatildeo agrave precisatildeo ao mesmo tempo em que questiona noccedilotildees de autoria e

originalidade Se percebemos que todos esses elementos articulam-se no debate proposto aqui

por que natildeo entender que o investimento no ruiacutedo daacute sua contribuiccedilatildeo para alargar o universo das

ldquoimagens pobresrdquo no sentido de politicamente reivindicar um espaccedilo de celebraccedilatildeo agraves esteacuteticas

contraacuterias agrave agenda natildeo intervencionista industrial comercial purista da imagem fotograacutefica

Obviamente uma imagem de alta resoluccedilatildeo parece mais brilhante e impressionantemais mimeacutetica e maacutegica mais assustadora e sedutora do que uma pobre Eacute mais ricadigamos assim () A resoluccedilatildeo foi fetichizada como se sua ausecircncia significasse acastraccedilatildeo do autor (masculino) O culto da bitola fiacutelmica dominou ateacute a produccedilatildeo decinema independente A imagem rica estabeleceu seu proacuteprio padratildeo de hierarquias comas novas tecnologias oferecendo cada vez mais possibilidades para degradaacute-lacriativamente137 (STEYERL 2009 p3)

Eacute bastante interessante como Steyerl toma elementos formais ndash foco resoluccedilatildeo

definiccedilatildeo nitidez ndash que aparecem ao longo de sua argumentaccedilatildeo num sentido poliacutetico que

distingue o valor das imagens a partir de sua aparecircncia Essa percepccedilatildeo vem a calhar se

pensarmos que muitas das imagens consagradas na Histoacuteria da Arte possuem as caracteriacutesticas

elencadas no texto O contraacuterio o conjunto das imagens pobres reuacutene aquelas sujeitas agrave

circulaccedilatildeo na internet baixadas copiadas coladas editadas desgastadas na proacutepria mateacuteria que

as compotildee Essa desvalorizaccedilatildeo estaacute subentendida em diversos roacutetulos utilizados para classificar

trabalhos os mais heterogecircneos Basta lembrar por exemplo a conotaccedilatildeo da palavra

137Traduccedilatildeo livre de ldquoObviously a high-resolution image looks more brilliant and impressive more mimetic andmagic more scary and seductive than a poor one It is more rich so to speakconservative in their very structureResolution was fetishized as if its lack amounted to castration of the author The cult of film gauge dominated evenindependent film production The rich image established its own set of hierarchies with new technologies offeringmore and more possibilities to creatively degrade itrdquo

209

ldquoexperimentalrdquo como algo inacabado ou que carece de planejamento o que pode resultar em

interpretaccedilotildees equivocadas sobre o cinema e a fotografia experimentais

Ao nos falar sobre a presenccedila de imagens manipuladas descontruiacutedas e reconstruiacutedas

que participam de uma economia visual orientada pela velocidade e pelas ambiguidades e fluxos

o texto de Steyerl funciona tambeacutem como um gesto em favor das experiecircncias de reescrita

poeacutetica das formas limiacutetrofes surgidas atraveacutes do desgaste das recombinaccedilotildees dos usos

desviados como tambeacutem preconiza Flusser ldquoO novo eacute um ruiacutedo () ele me perturba ele eacute

repulsivo Eu o odeio A criatividade comeccedila com o feio () O novo se torna informativordquo

(FLUSSER apud FELINTO 2013 p63) Aqui vemos a atualidade do pensamento de Flusser

que testemunhava os primeiros anos da internet e dos contornos de uma sociedade telemaacutetica

(2011) como ele mesmo se referia agrave nossa condiccedilatildeo de seres sob permanente conectividade Mas

suas palavras podem ser entendidas no sentido mais geral de sua ideia filosoacutefica do ldquojogordquo como

caminho para produzir imagem informativa

53 AS FLUTUACcedilOtildeES DE UM CONCEITO

A emergecircncia do ldquonovordquo no sentido de ldquoinformaccedilatildeordquo flusseriana leva-nos a retornar ao

ruiacutedo em uma de suas caracteriacutesticas que mais dificultam (e agraves vezes opotildeem) teorizaccedilotildees o que

distingue o ruiacutedo muda de tempos em tempos Agraves vezes em sua proacutepria eacutepoca ruiacutedos natildeo satildeo

reconhecidos como tal sendo necessaacuteria a emergecircncia de um paradigma diferente para que isso

ocorra Ou seja a relaccedilatildeo entre materialidade miacutedia e esteacutetica e seus ruiacutedos eacute temporal e pode

depender de um gap para se estabelecer Retrospectivamente em face de uma nova norma

representativa o ruiacutedo pode tornar-se perceptiacutevel (ou atentarmos para ele) e quando uma nova

tecnologia toma o lugar da anterior superando-a isso ocorreraacute porque seu (aparente) sucesso vem

da forccedila em apagar o ruiacutedo do meio num grau maior do que era possiacutevel antes (HAINGE 2013

p118)138 Essa condiccedilatildeo leva a uma relaccedilatildeo com o ruiacutedo que pode ser paradoxal se confiamos no

138 Traduccedilatildeo livre de ldquo() when a new representational norm has come into being that this noise becomesperceptible or rather that it is consciously attended to Indeed if a new technology is able to take hold (hellip) andsupplant its predecessor this (hellip) will be because of its (apparent) success in effacing such medial noise to a higherdegree than was previously possiblerdquo

210

discurso de progressiva melhoria ligado ao surgimento de novas tecnologias e equipamentos139

Se por um lado haacute uma loacutegica de recusa ao ruiacutedo guiando a induacutestria da imagem verificada por

exemplo no tratamento preacutevio aplicado por meio de funccedilotildees do tipo ldquoreduccedilatildeo de olhos

vermelhosrdquo os controles de ISO (reduzindo efeitos que lembram a granulaccedilatildeo do negativo) e

iluminaccedilatildeo preacute-formatados o uso de filtros que realccedilam tons e cores evitando um efeito de

esmaecimento bastante comum apoacutes uma revelaccedilatildeo mal sucedida foco automaacutetico e todas essas

ldquovantagensrdquo no processamento automatizado da imagem indicam a negaccedilatildeo de ruiacutedos associados

a um paradigma visual anterior como promessa para elevar a qualidade da imagem participando

como argumento fundamental da cadeia da induacutestria em contrapartida haacute experiecircncias de

reintroduccedilatildeo daquilo antes rotulado como defeito Um processo de reaproveitamento de

elementos que normalmente seriam descartados

Essa questatildeo importante num horizonte de hibridizaccedilotildees fica tambeacutem evidente quando

Hainge (2013) cita artistas contemporacircneos que utilizam softwares capazes de ldquodegradarrdquo o som

produzido digitalmente com ruiacutedos remetendo agraves ldquofissurasrdquo do vinil ou seja artificialmente

agregar um elemento de outra tecnologia um ruiacutedo assim entendido como diverso da loacutegica do

sistema digital Um ruiacutedo simulado adicionado via poacutes-produccedilatildeo Esta associaccedilatildeo entre

componentes de uma tecnologia diversa e obras realizadas em ambiente digital cria uma

disjunccedilatildeo radical de forma e conteuacutedo e parece tentar dar aos produtos digitais certa

autenticidade (HAINGE 2013 p119) Eacute o que acontece com os procedimentos de aplicaccedilatildeo de

filtros que remetem a caracteriacutesticas de imagens analoacutegicas como no caso do trabalho do

coletivo Basetrack que jaacute analisamos cuja referecircncia visual ldquoadicionadardquo via software eacute a

Polaroid

Embora praacuteticas desse tipo contrariem a ontologia do ruiacutedo que o entende como

manifestaccedilatildeo interna ao sistema ou tecnologia considerados eacute interessante perceber como esses

empreacutestimos ocorrem num ambiente mais amplo de atravessamento das miacutedias no meio artiacutestico

contemporacircneo O artista visual Eacuteder Oliveira natural de BeacutelemPA apropria-se do pixel como

elemento ruidoso que responde a propoacutesitos midiaacuteticos e sociais de estigmatizaccedilatildeo de um

139 Conter (2017) faz interessante anaacutelise sobre essa questatildeo abordando por exemplo o uso de termos como hi-fipelo mercado de equipamentos de reproduccedilatildeo sonora e suas implicaccedilotildees no sentido de endossar um movimento dainduacutestria guiado pela substituiccedilatildeo de produtos oferecidos como promessas de melhor qualidade na medida em queseriam capazes de restituir ao som caracteriacutesticas experimentadas na ocasiatildeo da performance e ao mesmo tempoeliminar falhas ou resiacuteduos ldquonatildeo musicaisrdquo (mesmo que tal fidelidade seja um ideal e tatildeo pouco o ruiacutedo seja passiacutevelde eliminaccedilatildeo)

211

determinado segmento social Interessado em delinear um perfil do ldquohomem amazocircnicordquo atraveacutes

dos retratos de pessoas marginalizadas pela violecircncia cria pinturas a partir de fotografias

veiculadas na imprensa policial

Na seacuterie Pixels (figuras 67 e 67a) o pixel que constitui o elemento formador das

imagens digitais eacute enfatizado como que esgarccedilado quando alccedilado ao centro da pintura sugerindo

o apagamento da identidade atraveacutes do natildeo reconhecimento dos traccedilos faciais a naturalizaccedilatildeo da

violecircncia associada a indiviacuteduos dos quais pouco importa saber quem satildeo (poreacutem notadamente

pessoas majoritariamente pobres e negras) uma ideia de informaccedilatildeo corrompida e inuacutetil

vinculada agrave degradaccedilatildeo desses mesmos indiviacuteduos no conjunto da sociedade por sua associaccedilatildeo

com atos criminosos

Figuras 67 e 67a - Pinturas (oacuteleo sobre tela) da seacuterie Pixels (Eacuteder Oliveira 2018)

212

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

A descaracterizaccedilatildeo da identidade atraveacutes da pixelizaccedilatildeo coloca em debate o fato

tambeacutem de que essas pessoas ao transformarem-se em imagens perdem totalmente qualquer

controle sobre os discursos criados sobre elas Essa questatildeo ganha mais potecircncia quando a

estrateacutegia eacute articulada pela escolha do gecircnero retrato notadamente utilizado com funccedilotildees de

valorizaccedilatildeo do indiviacuteduo num esforccedilo de celebraccedilatildeo da singularidade Eacuteder Oliveira perverte

essa ideia por meio da aproximaccedilatildeo da imagem ateacute que ela exponha sua materialidade forjada e a

identidade da pessoa desintegre-se Ao mesmo tempo que podemos enxergar os traccedilos da

informaccedilatildeo de uma imagem de computador ela jaacute encena uma passagem para a modalidade de

informaccedilatildeo pictoacuterica mas continuam ainda perceptiacuteveis marcas de ambas as modalidades e

temos uma obra estranhamente indefinida entre fotografia e pintura

Esse mesmo aspecto de mesticcedilagem entre pintura e foto eacute encontrado no projeto The

Discrete Channel with Noise mdash an experiment into visual communication and misinformation

de Clare Strand (figuras 68 a 71) Partindo de fotografias de seu acervo pessoal a artista constroacutei

pinturas que no entanto se distanciam de aspectos de apresentaccedilatildeo de telas convencionais O

conceito do projeto estaacute relacionado aos imprevistos e erros ligados agrave transmissatildeo da informaccedilatildeo

e agrave reinterpretaccedilatildeo de coacutedigos em sistemas diferentes tocando diretamente a questatildeo do ruiacutedo

Durante uma residecircncia artiacutestica na Franccedila Strand (que reside na Inglaterra) utilizou o livro

Electronic Television (1936) de George H Eckhardt para seu projeto da seguinte maneira a

publicaccedilatildeo sugeria a possibilidade de transmitir imagens atraveacutes de um teleacutegrafo marcando toda

a imagem com linhas verticais e horizontais formando assim uma grade em sua superfiacutecie Cada

213

quadrado formado por essas linhas receberia um nuacutemero correspondente a um esquema de cores

numa escala de cinza Ou seja criaria um coacutedigo para reproduccedilatildeo de uma imagem que migraria

de um meio a outro

Atuando como receptora da informaccedilatildeo a fotoacutegrafa pediu ao seu marido (otransmissor) para escolher dez imagens do seu arquivo pessoal Usando a metodologiade Eckhardt as imagens foram transmitidas da Inglaterra para a Franccedila onde Strandpintou-as em uma versatildeo em grande escala da mesma grade O resultado satildeo 10 imagensanaloacutegicas que expressam os inevitaacuteveis erros de comunicaccedilatildeo ocorridos durante oprocesso levantando questotildees sobre as consequecircncias da maacute interpretaccedilatildeo no mundodigital (WARNER online 2020)

As imagens finais satildeo em grande escala em relaccedilatildeo agraves fotografias originais e pouco se

assemelham a estas uacuteltimas predominando o aspecto quadriculado retiliacuteneo e padronizado dos

grafismos de sistemas eletrocircnicos e computadorizados Satildeo expostas em papel (e natildeo em telas)

grampeadas em suportes e exibidas em conjunto com as fotos originais e outros materiais

utilizados no projeto como pinceacuteis e tintas

Figura 68 - The Discrete Channel with Noise Coded Paint Pots 4 - 7

Fonte Reproduccedilatildeo site do Centre Photographique DrsquoIle-de-France

214

Na verdade elas datildeo corpo ao proacuteprio processo ldquoO processo eacute tatildeo importante quanto os

quadros e as fotografias daiacute a exposiccedilatildeo dos potes e pinceacuteisrdquo (STRAND apud WARNER online

2020)

Figura 69 - Fotografia original submetida ao meacutetodo de Eckhardt

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

Figura 70 - Algorithmic Painting Destination 4 (Clare Strand 2017 ndash 2018)

Fonte Reproduccedilatildeo da internet

215

Figura 71 - Vista da montagem da exposiccedilatildeo The Discrete Channel with Noise Algorithmic Painting Destination

3 - 8 2018

Fonte Reproduccedilatildeo site do Centre Photographique DrsquoIle-de-France

Nesse projeto a dimensatildeo processual eacute reforccedilada enquanto se assume como esteacutetica os

descaminhos da transmissatildeo-recepccedilatildeo de informaccedilatildeo entre tecnologias distintas embora voltadas

igualmente para a imagem Os exemplos apresentados ateacute aqui indicam ainda como o ruiacutedo pode

operar apagando fronteiras entre passado presente e futuro confundindo temporalidades e

modos esteacuteticos atraveacutes de estrateacutegias derivadas de assimilaccedilotildees mixagens empreacutestimos

gerando produtos hiacutebridos como observado em relaccedilatildeo agraves tecnologias da imagem que passam a

operar na ordem da trocas Na conclusatildeo de seu estudo Hainge (2013) reforccedila a natureza mutaacutevel

do ruiacutedo identificado de maneira diferente quando comparamos campos de expressatildeo distintos

ou ateacute dentro de uma mesma linguagem artiacutestica como verificamos haacute pouco a respeito da

fotografia Segundo ele eacute impossiacutevel definir precisamente o que eacute o ruiacutedo pois suas coordenadas

natildeo satildeo fixas e suas caracteriacutesticas dependem dos arranjos expressivos feitos o que exige uma

interrogaccedilatildeo contiacutenua a seu respeito (HAINGE 2013 p273)

Eacute crucial termos isso em mente porque em nosso corpus as diferentes abordagens

realizadas pelos artistas exploram diversas vertentes esteacuteticas e recursos plaacutesticos que trazem agrave

tona uma multiplicidade de ruiacutedos Estes podem estar relacionados a expectativas modelos e

usos comuns e largamente aceitos para o campo da imagem em termos de gecircnero fotograacutefico

relaccedilotildees espaccedilo-temporais entre outras questotildees bastante caras ao fazer e pensar a imagem

216

Ao discutir o universo dos filmes de David Lynch como exemplo de um cinema

profundamente ruidoso140 e seus recursos narrativos e esteacuteticos Hainge (2013) diz que uma

intensificaccedilatildeo do medium eleva o niacutevel de ruiacutedo o que ocorre nas diversas obras arroladas nesta

tese atraveacutes da exploraccedilatildeo limiacutetrofe de aspectos variados como granulaccedilatildeo manchas borrotildees

muacuteltiplas exposiccedilotildees traccedilos do arrasto da peliacutecula dentro do equipamento interrupccedilotildees causadas

pelo acionamento e pausar da cacircmera cortes bruscos e aparentes nos materiais que se tornam

visiacuteveis na superfiacutecie da imagem etc O excesso de inscriccedilatildeo da tecnologia impede o

discernimento entre forma e conteuacutedo fundo e figura (HAINGE 2103 p183) implicando um

voltar-se para a proacutepria miacutedia como lugar de investigaccedilatildeo o que indica que os trabalhos presentes

em nosso corpus possuem uma dimensatildeo processual marcante

Acrescente-se ainda aos resultados esteacuteticos que expotildeem os ruiacutedos na imagem os

contrastes entre aacutereas muito proacuteximas da lente (e seu aspecto borrado) e fundo cortes bruscos e

expliacutecitos na junccedilatildeo de elementos diacutespares dentro um mesmo quadro que mistura ambientes

temporalidades (HAINGE 2013 p198) texturas materiais provindos de diferentes signos

associados agrave imagem para favorecer natildeo uma intenccedilatildeo narrativa mas uma provocaccedilatildeo formal

caoacutetica

Na seacuterie Nuptias (2017) Rosacircngela Rennoacute (figuras 72 a 76) discute o paradoxo entre

um rito social altamente valorizado e cercado de idealizaccedilotildees ndash o matrimocircnio ndash e seu desgaste

sua ruiacutena jaacute que em muitos casos o casamento natildeo resiste ao tempo Satildeo imagens realizadas em

teacutecnica mista utilizando-se fotografias antigas e carte de visite Imagens recuperadas de

contextos de felicidade utilizadas para falar sobre as amarguras do casamento Isso eacute feito

aplicando-se agraves imagens objetos pedaccedilos de tecidos madeira desgastada ilustraccedilotildees recortadas

de enciclopeacutedias trechos de mangaacutes reproduccedilotildees de pinturas famosas entre outros materiais A

artista escreve pinta cola sobre as fotos Junta os noivos de uma cerimocircnia e personagens

totalmente estranhos agrave situaccedilatildeo (retirados de outras fotos) que pelos trajes e poses notamos natildeo

140 Para Hainge (2013) seja do ponto de vista filosoacutefico ou esteacutetico os filmes do cineasta satildeo cheios de perturbaccedilotildeesde identidades e categorias fixas formas delimitadas chegando a diluir o significado tendo em vista que os enredossolicitam que nos desapeguemos de ideias preacute-concebidas de narrativa uso do som gecircneros de noccedilotildees que separamo que eacute real devaneio ou loucura As estranhezas que se verificam nas imagens de Lynch estatildeo alinhadas com asestranhezas das narrativas O capiacutetulo de seu livro dedicado agrave produccedilatildeo do diretor norte-americano trataespecificamente de Eraserhead (1977) e Impeacuterio dos Sonhos (Inland Empire 2006)

217

pertencerem agrave situaccedilatildeo de festa alguma Vai e volta no tempo casando uma recatada mocinha com

o vilatildeo Darth Vader do filme Guerra nas Estrelas141

Figura 72 - Sem tiacutetulo (Lea loves Darth) da seacuterie Nuptias (Rosacircngela Rennoacute 2017)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Visualmente todo o conjunto formado por 150 fotopinturas142 sugere um excesso de

lugares expectativas desejos personagens referecircncias encontrando-se numa verdadeira

confusatildeo Um excesso de materialidade para o qual Rosacircngela Rennoacute oferece soluccedilotildees visuais

que lidam com o abandono e o esquecimento A obra problematiza a um soacute tempo modelos de

relacionamento sexualidade estereoacutetipos femininos a verdadeira induacutestria que envolve a

realizaccedilatildeo de um casamento e fala logicamente da proacutepria fotografia de casamento como um

141 Guerra nas Estrelas (Star Wars) eacute a franquia de filmes de ficccedilatildeo cientiacutefica criada pelo norte-americano GeorgeLucas Os primeiros filmes (Guerra nas Estrelas O impeacuterio Contra-Ataca O retorno de Jedi) foram lanccediladosnas deacutecadas de 1970-80 A partir dos anos 2000 outros nove episoacutedios jaacute foram lanccedilados entre eles O Ataque dosClones A vinganccedila dos Sith O despertar da forccedila e o mais recente Solo Uma Histoacuteria Star Wars (RonHoward 2018)142 ldquoFotopinturardquo eacute o termo utilizado pela artista na descriccedilatildeo da obra que consta em seu site Poreacutem lembremos quea teacutecnica de fotopintura pressupotildee a recriaccedilatildeo de uma imagem fotograacutefica a partir de teacutecnicas pictoacutericas (cominclusatildeo de elementos ausentes da imagem fotograacutefica original) De fato a seacuterie de Rennoacute junta fotografiasdescartadas e materiais diversos (papel madeira borracha tinta tela) alguns deles pertencentes ao universo dosmateriais pictoacutericos mas natildeo reconstroacutei as imagens fotograacuteficas repetindo os limites de enquadramento pose everossimilhanccedila como geralmente ocorre numa fotopintura tradicional Nesse sentido mais tradicional do termo haacuteapenas uma imagem entre as disponibilizadas no site que utiliza uma fotopintura como base a imagem Semtiacutetulopavatildeo (2017) Disponiacutevel em httpwwwrosangelarennocombrobrasview703 Acesso em 280419

218

artefato cheio de complexidades enquanto guarda certa aura de preciosidade pode ser tanto

viacutetima da abundante produccedilatildeo de imagens digitais quanto do descarte poacutes-separaccedilatildeo do

esmorecer das cores e dos afetos em aacutelbuns velhos da poeira e do passar dos anos que faz muitas

dessas fotografias irem parar em lugares onde o desapego se mede pelo preccedilo baixo e onde

Rennoacute foi buscaacute-las para compor sua seacuterie Ela explica

Me parece que a sociedade sofre cada vez mais com uma ansiedade generalizadaprovocada pelos ldquoexcessosrdquo Excesso de tudo de comunicaccedilatildeo de acessibilidade deconsumo de contraste entre pobreza e riqueza entre desejo e realizaccedilatildeo esse excessoempurra a satisfaccedilatildeo e consequentemente a felicidade para muito longe sempre muitoaleacutem do nosso alcance As cerimocircnias dos tradicionais matrimocircnios parecem ser tanto otermocircmetro desse sentimento quanto a proacutepria febre Entretanto e entre tantasfrustraccedilotildees casamentos se tornam imperfeitos por muito pouco Me interesso pelodocumento daquilo que foi sacramentado e depois desfeito quer seja pelo tempo ou peloproacuteprio ser humano Casamentos hoje natildeo parecem valer muita coisa apesar do aindaalto valor simboacutelico da cerimocircnia e do altiacutessimo preccedilo que se paga para realizaacute-las Eacuteimpressionante a quantidade de fotos de casamento que satildeo encontradas nos mercadosde pulgas soacute natildeo superada pela quantidade de fotos que satildeo realizadas hojedigitalmente nas inumeraacuteveis cerimocircnias cujo ideal de pompa e circunstacircncia varia emconformidade com o poder de compra das diferentes classes sociais143 (RENNOacute online2017)

Eacute muito interessante como nessa obra a questatildeo do ruiacutedo opera em vaacuterios niacuteveis o

simboacutelico tratando o casamento sob a perspectiva das relaccedilotildees amorosas confusas imperfeitas

deterioradas e ateacute improvaacuteveis do estilo das composiccedilotildees totalmente disjuntivo apelando aos

processos utilizados em fotomontagem e abrindo agrave imagem para diversos efeitos de choques

cromaacuteticos rasgos buracos riscos recortes e contornos bruscos o das temporalidades jaacute que a

artista daacute saltos no tempo trabalhando com imagens de eacutepocas variadas que adicionadas umas agraves

outras criam um tempo sem marcos de passado presente ou futuro investindo na dissoluccedilatildeo

dessas fronteiras e por fim o niacutevel das reflexotildees a respeito dos ldquosintomasrdquo das sociedades

contemporacircneas em processos como incomunicabilidade excesso de informaccedilatildeo fugacidade

alteridade medo quebra de paradigmas questotildees frequentemente evocadas ao longo do estudo

de Hainge (2013) e que reforccedilam a compreensatildeo de que o ruiacutedo estaacute em tudo (sentido

fenomenoloacutegico e ontoloacutegico) natildeo respeita aprisionamentos cronoloacutegicos bagunccedilando os

paradigmas os limites as preacute-definiccedilotildees

143 RENNOacute Rosacircngela Nuptias (2017) Disponiacutevel em httpwwwrosangelarennocombrobrassobre70 Acessoem 260419

219

A ecircnfase na ideia de que o casamento eacute felicidade e frustraccedilatildeo ao mesmo tempo

sentimentos misturados sem que nenhum deles sobreponha-se ao outro faz com que retornemos

ao tema do ruiacutedo Se pensamos que essa relaccedilatildeo entre contraacuterios eacute inescapaacutevel e responsaacutevel pelo

excesso de desejo e expectativas a que se refere a artista o ruiacutedo estaacute na impossibilidade de

equacionar esses extremos posto que satildeo vivenciados conjuntamente na relaccedilatildeo (da qual o

casamento eacute o rito social partilhado e registrado) embora as tentativas de controle sejam tatildeo

frequentes quanto inuacuteteis A seacuterie Nuptias proporciona uma leitura amarga e irocircnica do

casamento como instituiccedilatildeo social e atinge esse efeito sujeitando as imagens a procedimentos

que pervertem suas formas sentidos e usos originaacuterios

Figura 73 - Sem tiacutetulo (aacutelbuns) da seacuterie Nuptias (Rosacircngela Rennoacute 2017)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Rennoacute estaacute entre as artistas brasileiras contemporacircneas mais interessantes no uso de

materiais recuperados (fotografias aacutelbuns peliacuteculas) e equipamentos antigos ligados agrave histoacuteria

das tecnologias de imagem Vaacuterios de seus trabalhos problematizam binocircmios como fugacidade e

perenidade fixidez e mobilidade imaterialidade e fisicalidade ciclos de vida e morte real e

fabulaccedilatildeo tempo e memoacuteria sempre relacionados agrave imagem nos quais ela emprega cacircmeras

projetores e negativos remetendo agraves formas de entretenimento claacutessicas da imagem (tais como

lanterna maacutegica diorama cinema de atraccedilotildees fantasmagorias estereoscopia) Contudo nessas

obras em vez de sustentar o princiacutepio de ocultamento dos dispositivos trabalhando na chave

220

discursiva da ilusatildeo ndash como ocorre por exemplo no cinema convencional onde aparentemente a

imagem nos atinge sem recursos intermediaacuterios sem toda uma estrutura tecnoloacutegica que de fato

lhe daacute ldquocorpordquo ndash Rennoacute busca desnudar os mecanismos de funcionamento deixando o puacuteblico

ver as superfiacutecies os aparelhos as peliacuteculas as cacircmeras e os restos de materiais tornando a

presenccedila dessas estruturas um componente importante que enfatiza o artifiacutecio envolvido nos

procedimentos relativos agrave imagem Seu trabalho tira partido de uma verve colecionista e vai

tomando forma com base no rearranjo dos objetos coletados que sofrem intervenccedilotildees e satildeo

muitas vezes empregados em circuitos de fruiccedilatildeo totalmente apartados dos originais dobrando-se

a intencionalidades estranhas para as quais foram criadas Nesse sentido eacute bastante produtivo o

cruzamento entre imagens ligadas ao uso domeacutestico e afetivo (fotografia de famiacutelia viacutedeos

caseiros) e um estatuto mais coletivo adquirido quando satildeo utilizadas para discutir funccedilotildees de

arquivamento acumulaccedilatildeo valor histoacuterico simboacutelico ou poliacutetico memoacuteria esquecimento Todas

essas questotildees sempre rondaram de maneira especial os debates sobre a fotografia e satildeo

recolocadas pela criacutetica cada vez que a tecnologia apresenta alguma novidade Na obra de

Rosacircngela Rennoacute esses temas satildeo constantes que movem a busca pela reinterpretaccedilatildeo de uma

seacuterie de materiais abandonados condenados ao esquecimento

Figura 74 - Sem tiacutetulo (barata) seacuterie Nuptias (Rosacircngela Rennoacute 2017)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

221

Figura 75 - Sem tiacutetulo (davi tupi) da seacuterie Nuptias (Rosacircngela Rennoacute 2017)

FonteReproduccedilatildeo site da artista

Figura 76 - Sem tiacutetulo (Guernica) da seacuterie Nuptias (Rosacircngela Rennoacute 2017)

222

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Tais praacuteticas estatildeo em conformidade com estrateacutegias da arte contemporacircnea alinhadas agraves

teses flusserianas de desmonte do ldquoprogramardquo do ldquoaparelhordquo podendo incluir intervenccedilotildees no

modo de funcionamento convencional das miacutedias experiecircncias com as materialidades e o uso de

miacutedias obsoletas ou resgate de projetos abandonados (BAIO 2015 p21) Reintroduzir certos

artefatos ligados ao universo das tecnoimagens criando novos usos e modos de apresentaccedilatildeo e

estimulando assim modos novos de sensibilidade eacute tambeacutem uma maneira de reprogramar os

dispositivos

No projeto Imagem de sobrevivecircncia (figuras 77 78 e 78a) tambeacutem desenvolvido a

partir de imagens coletadas em feiras e mercados de pulgas a artista utiliza o slide (ou

diapositivo) Hoje praticamente esquecido (seja pela indisponibilidade de projetores ou da

descontinuidade da produccedilatildeo das proacuteprias imagens) o slide desempenhava uma funccedilatildeo de

fotografia de famiacutelia poreacutem na modalidade da imagem projetada Em seu site ao explicar um

pouco sobre o trabalho Rennoacute lembra que os diapositivos foram populares entre os anos 1950-

80 e simbolizavam o ato de contemplar entre parentes e amigos cenas cotidianas e momentos de

lazer Ao contraacuterio do aacutelbum de fotografias o contato com os diapositivos mostra-se mais

dinacircmico por causa de um deslumbramento que noacutes seres humanos temos pelas imagens

projetadas (RENNOacute online 2015) Soacute que neste trabalho em vez de dar ecircnfase agrave contemplaccedilatildeo

de momentos singularizados em cada diapositivo individualmente a artista projeta as imagens ao

mesmo tempo

Cada lsquoesculturaestantersquo abriga e expotildee 4 projetores do tipo Kodak Carousel queprojetam as imagens em transparecircncia de forma simultacircnea e sobreposta O resultado eacuteuma projeccedilatildeo muacuteltipla muito paacutelida que ao longo do tempo se modificaconstantemente sem jamais se repetir ateacute que a luz dos projetores a consumamtotalmente para que sejam substituiacutedas por outras mais frescas (RENNOacute online2015)

223

Figura 77 - Vista da montagem da obra Imagem de sobrevivecircncia (Rosacircngela Rennoacute 2015)

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Desrespeitando o princiacutepio da imagem uacutenica e fixa os diapositivos satildeo submetidos a

uma montagem que sugere o excesso onde o caraacuteter de singularidade de cada um se desvanece e

nesse sentido o trabalho chama atenccedilatildeo para o aspecto da materialidade do suporte ldquoslides satildeo

feitos e colecionados agraves duacutezias agraves centenas e aos milharesrdquo (Idem) Essa materialidade abundante

eacute lembrada pela maneira como as imagens satildeo apresentadas (sobrepostas)

A estrateacutegia de exibi-los todos ao mesmo tempo tambeacutem provoca um embaralhamento

que entrecruza vaacuterios tempos e espaccedilos Note-se que os diapositivos selecionados foram

adquiridos em locais distintos provenientes de coleccedilotildees variadas ou seja natildeo necessariamente

possuem um tema comum ordenamento ou afinidade cronoloacutegica o que Rennoacute simboliza

exatamente pelo arranjo escolhido para sua apresentaccedilatildeo um arranjo desordenado As

associaccedilotildees entre eles satildeo aleatoacuterias Os personagens e cenaacuterios dessas imagens vecircm assombrar o

olhar do espectador como verdadeiros espectros evocados seja pela fugacidade da projeccedilatildeo seja

pelo fato de que pertencem a um tempo passado fragilmente lembrado apenas enquanto

permanece acesa a luz de cada equipamento

Ao mesmo tempo eacute como se a artista tentasse montar um pequeno e caoacutetico

documentaacuterio sobre pessoas que tinham nas coleccedilotildees de slides o diaacuterio visual de suas rotinas

224

num esforccedilo para dar sobrevida a cenas que originalmente eram produzidas para uma audiecircncia

reduzida (familiar) Rosacircngela Rennoacute se destaca pela elaboraccedilatildeo de obras em que confere

ldquodinamismo agrave imagem fixardquo (FATORELLI 2013 p24) e neste projeto em questatildeo ela articula

de maneira muito particular os dispositivos do cinema e da fotografia (reprogramando suas

ontologias claacutessicas) chamando nossa atenccedilatildeo para a estranheza do proacuteprio formato diapositivo

uma imagem fixa concebida para projeccedilatildeo Imagem fixa que adquiria um falso movimento a

partir da sucessatildeo de unidades na velocidade regular do projetor Se em seu modo de usar

corriqueiro a ideia de uma narrativa jaacute se anunciava como uma impossibilidade ao propor a

sobreposiccedilatildeo de vaacuterias destas unidades diante do espectador da obra Rennoacute provoca uma falha

no desejo de interligar as cenas visiacuteveis

Figuras 78 e 78a - Projeccedilotildees de Imagem de sobrevivecircncia (Rosacircngela Rennoacute2015)

225

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

Quem observa tais cenas natildeo tem qualquer relaccedilatildeo de intimidade com o aquilo que eacute

exibido donde se perverte tambeacutem a natureza afetiva e particular original deste material

Deslocado de seu tempo num resgate em plena eacutepoca dos meios digitais o diapositivo aponta

para o ruiacutedo no sentido de que afasta-se de padrotildees utilitaacuterios e vigentes da induacutestria da imagem

atual Aleacutem disso ndash e este eacute tambeacutem um aspecto relevante da obra ndash como imagem que enfrenta

um processo de deterioramento no seu proacuteprio uso o slide caminha na direccedilatildeo de uma esteacutetica de

desgaste da precariedade do apagamento numa constante mutaccedilatildeo de suas caracteriacutesticas

fiacutesicas e consequentemente esteacuteticas

226

6 O QUE SUGEREM AS LIGACcedilOtildeES ENTRE RUIacuteDO E IMAGEM

Ao longo deste estudo certos temas emergiram das anaacutelises das obras alguns dos quais

representam tendecircncias observadas nas obras analisadas a influecircncia do acaso como elemento

que contribiu para a formaccedilatildeo de esteacuteticas singulares o valor da materialidade como base da

expressatildeo do ruiacutedo a reapropriaccedilatildeo criacutetica de tecnologias ldquoobsoletasrdquo ou ldquoabandonadasrdquo da

imagem em sua articulaccedilatildeo com uma abordagem arqueoloacutegica da miacutedia e por fim os

movimentos da teoria da imagem que podem nos ajudar a compreender esse universo de

imagens

Tais questotildees perpassam todo o trabalho e satildeo aqui evocadas com o objetivo de oferecer

uma espeacutecie de comentaacuterio final sobre os projetos artiacutesticos que trouxemos A reflexatildeo pode se

somar aos estudos recentes sobre a arte contemporacircnea e suas tendecircncias que discutem o tracircnsito

entre miacutedias a condiccedilatildeo plural da imagem o tensionamento do paradigma indicial o resgate de

teacutecnicas claacutessicas da imagem e a recente valorizaccedilatildeo formal das obras nascidas da exploraccedilatildeo do

erro da falha ou do ruiacutedo

61 O PAPEL CRIATIVO DO ACASO

ldquoMas deixo o destino deixo ao acaso

Quem sabe eu te encontrordquo - Lua e Estrela Caetano Veloso

Associado agrave sua ubiquidade nas mateacuterias sistemas e meios o ruiacutedo possui uma

dimensatildeo que escapa ao controle humano (HAINGE 2013 p94) conservando na sua

manifestaccedilatildeo algo de imprevisiacutevel que podemos associar agrave ordem do acaso Esse componente eacute

parte importante da elaboraccedilatildeo de vaacuterias obras analisadas aqui desempenhando papel

fundamental na proacutepria concepccedilatildeo da imagem e de suas configuraccedilotildees formais Um entendimento

do ruiacutedo que valoriza certa rebeldia como marca saudaacutevel e desejada da tecnologia

227

Esse imprevisiacutevel ndash um agenciamento surgido quando as proacuteprias tecnologias satildeo postas

em funcionamento pelos artistas na combinaccedilatildeo de materiais e ferramentas inusitados ou mesmo

na associaccedilatildeo entre teacutecnicas diversas ndash origina trabalhos bastante diacutespares ligados agrave vertente

ldquoexperimentalrdquo (LENOT 2017a) ldquoexpandidardquo (JUNIOR 2002) natildeo-representacional e ldquonatildeo-

humanardquo (ZYLINSKA 2017a) da fotografia A despeito da especificidade dessas terminologias

todas sugerem a abordagem da fotografia a partir de um caraacuteter processual em obras nas quais a

esteacutetica surge como decorrecircncia de um intenso processo de experiecircncias realizadas nas diferentes

etapas de produccedilatildeo da imagem Se entendemos que a imagem eacute essencialmente um processo

(sujeito a acidentes de toda sorte) a relaccedilatildeo com essa dimensatildeo do imprevisto adquire conotaccedilatildeo

positiva Isso fica evidente nas entrevistas que realizamos para esta tese nas quais termos como

ldquoacasordquo ldquodesconhecidordquo ldquoriscordquo (ou mesmo ldquoerrordquo e ldquoruiacutedordquo) foram citados para afirmar o

papel positivo da imprevisibilidade Ao mesmo tempo osas artistas natildeo atribuem a si mesmosas

o controle riacutegido dos processos criativos embora a maioria possua um consideraacutevel domiacutenio

sobre as teacutecnicas e materiais utilizados Na verdade quanto maior o niacutevel de intimidade com as

tecnologias mais as metodologias satildeo encaradas como abertas adaptaacuteveis maleaacuteveis e podem

ser reinventadas desdobradas Na trajetoacuteria dessas reinvenccedilotildees os acidentes acrescentam

camadas de significaccedilatildeo aos trabalhos

Maueacutes falando dos procedimentos relativos agrave teacutecnica do quimigrama indica

Brincando com esse processo eu descobri uma textura que dava uma ilusatildeo de ceacuteu Ohorizonte te remete agrave paisagem Algumas dessas imagens parecem fotografia por contado material Aiacute tem essa ilusatildeo de que o material te faz pensar numa paisagemfotograacutefica de um lugar que existe mas natildeo existe Eacute a ilusatildeo do processo Um ceacuteu umhorizonte e a mancha tambeacutem neacute Aquilo ali comeccedila a derramar () surge da accedilatildeodos dois juntos (revelador + fixador) que eacute totalmente imprevisiacutevel Porque depende daluz natildeo precisa de laboratoacuterio () de estar numa luz mais forte mais fraca Essasreaccedilotildees vatildeo sendo mais raacutepidas mais lentas e as cores vatildeo surgindo de formaimprevisiacutevel (MAUEacuteS 2017)

Luiz Alberto Guimaratildees avalia que a configuraccedilatildeo padratildeo das maacutequinas fotograacuteficas o

ldquoprogramardquo reduz a intervenccedilatildeo do acaso

Quando eu digo que a gente sabe o que vai sair a gente tem uma vaga ideia Ainda maisquando vocecirc tem muacuteltiplas exposiccedilotildees aquilo vai se superpor vocecirc natildeo tem a menorideia Quando eu digo saber () eacute tudo que vocecirc faz eacute mirar saber que quando vocecirc taacutebotando a maacutequina ali vocecirc natildeo vai pegar o chatildeo vocecirc vai pegar o alto do preacutedio ()Mesmo essas fotos que eu procurava fazer uma fusatildeo com o fundo vocecirc nunca sabeMuitas eu repetia e agraves vezes ficava transparente demais ou agraves vezes ficava pouco ()

228

Porque tambeacutem quando a gente mostra o trabalho pronto jaacute taacute editado apurado () masa maacutegica eacute muito isso o resultado eacute sempre a imprevisiblidade (que o aparelhoconvencional trabalha sempre no sentido oposto neacute) Para tirar toda a chance de natildeosair o que vocecirc queria Tanto que agraves vezes se vai fazer foto comum de gente aiacute lsquopuxaalgueacutem piscou cortoursquo porque natildeo podia sair aquilo () Na fotografia vocecirc tem essecampo do acaso que eacute bem grande mas que o projeto da cacircmera tenta limar neacute Eacutefantaacutestico (GUIMARAtildeES 2017)

Para Cris Bierrenbach aceitar que durante a realizaccedilatildeo de um trabalho nem tudo estaacute

previsto eacute parte da metodologia Sobre a seacuterie Febre de 2002 (ver figura 51) comenta ldquoO

trabalho acontece () Natildeo era uma foto qualquer era um rosto Eu tava num movimento de

destruir um rosto destruir uma representaccedilatildeo de identidade () Na cabeccedila tem um

direcionamento mas vai acontecendordquo (BIERRENBACH 2019)

Entler (2000) afirma que ao contraacuterio de vislumbrar na arte somente a expressatildeo

individual centralizada na figura de um sujeito criador podemos entender o acaso como

elemento participativo das obras Os artistas que fazem isso estatildeo interessados no que o autor

denomina ldquopoeacuteticas do acasordquo Segundo ele a poeacutetica estaacute ligada aos procedimentos aos modos

de fazer agraves funccedilotildees da arte Ele se refere ainda ao direcionamento adotado a partir do uso

intencional de uma determinada teacutecnica tecnologia ou mesmo esse direcionamento tomado com

referecircncia a um estilo ou movimento artiacutestico ldquoEacute a poeacutetica que determina as normas de uma

produccedilatildeo artiacutestica suas particularidades operativasrdquo (ENTLER 2000 p48)

Eacute interessante que ao lado de um conhecimento soacutelido das tecnologias empregadas

osas artistas natildeo intencionam a produccedilatildeo de obras que espelhem esse domiacutenio da teacutecnica eles

acolhem prontamente os acidentes e resultados inesperados surgidos no manuseio dessas

teacutecnicas Essa atitude demonstra que haacute uma espeacutecie de deslocamento da importacircncia doda

artista como responsaacutevel exclusivo pela concepccedilatildeo da obra em direccedilatildeo a uma colaboraccedilatildeo que

acontece na interaccedilatildeo dos elementos que compotildeem a proacutepria obra Ou melhor dizendo da

aceitaccedilatildeo de uma funccedilatildeo expressiva originada no medium Estamos diante de uma metodologia

caracterizada pela negociaccedilatildeo entre controle e imprevisto

O acaso natildeo se submete agrave habilidade e reciprocamente a habilidade eacute exatamente aarma que se pode ter contra o acaso para garantir o alcance de um objetivo qualquerTem-se aqui um sentido negativo que hoje estaacute contido na ideia de acidente e diante dosenso comum arte estaacute para criaccedilatildeo como acaso estaacute para a destruiccedilatildeo (ENTLER 2000p9)

229

Se o autor fala em destruiccedilatildeo e descontrole nos processos onde o acaso exerce funccedilatildeo

criativa Bierrenbach chega agrave mesma questatildeo e fala sobre a relaccedilatildeo entre miacutedias analoacutegicas e o

encontro com o acaso

No analoacutegico sempre tem um caraacuteter assim do imprevisiacutevel mais forte (lsquoQue vocecirc natildeoconsegue controlar totalmente o resultado neacutersquo) Exatamente Vocecirc natildeo consegue prevernatildeo consegue controlar natildeo tem como voltar atraacutes Eacute claro que eu consigo errar e testarmuitas coisas () fazer uma ldquogororobardquo aqui uma maluquice qualquer no computadorMas eu sempre consigo voltar e eu sempre ldquotocircrdquo com um peacute numa certeza da natildeodestruiccedilatildeo que no analoacutegico natildeo Vocecirc efetivamente tem que destruir coisas pra chegaragravequela imagem () Quando vocecirc transformou ela ela foi destruiacuteda (BIERRENBACH2018)

Entler considera ainda que oa artista traz para o primeiro plano do ato criativo o

processo sem no entanto ter uma consciecircncia definida sobre o resultado buscado O acaso

conteacutem a resposta de uma investigaccedilatildeo de iniacutecio demarcado mas de final incerto A ideia de

aproveitar algo que natildeo se sabia exatamente como seria eacute o princiacutepio norteador de vaacuterias obras

elencadas aqui que investigam por exemplo as inscriccedilotildees do tempo mediante longas exposiccedilotildees

ou o uso da teacutecnica de databending na glitch art a troca das ordens de quiacutemicos no procedimento

do quimigrama o emprego de cacircmeras pinhole (sem lente anel de foco) entre tantas estrateacutegias

desenvolvidas

611 O imprevisiacutevel instala-se por conta do uso desprogramado das tecnologias

A imprevisibilidade que essas obras carregam se torna parte integrante delas exatamente

pelo uso desviado as recodificaccedilotildees os ajustes e reinvenccedilotildees dos meios Utilizando as

tecnologias de maneira alternativa aos padrotildees industriais natildeo se pode prever completamente a

configuraccedilatildeo final dos trabalhos Essa margem de indeterminaccedilatildeo constitui entatildeo uma

caracteriacutestica relevante desses projetos artiacutesticos Entler comenta a relaccedilatildeo entre acaso e modos

de fazer originais

Parece oacutebvio que quando determinamos uma meta a maneira mais segura de atingi-la eacuteter o maacuteximo de controle sobre o processo Se me proponho a fazer um bolo devo saberexatamente a quantidade de cada ingrediente a forma de misturaacute-los o tempo e atemperatura de cozimento e para evitar equiacutevocos recorremos a uma receita Masquando a meta natildeo estaacute previamente configurada de maneira tatildeo riacutegida quando nossoalvo se move quando tentamos nos antecipar a um problema potencial o acaso se tornaum criteacuterio que merece nossa atenccedilatildeo Para a arte assim como para qualquer gecircnese oacaso encontra sua utilidade como uma das mais ricas fontes de diversidade e de

230

renovaccedilatildeo que conhecemos Natildeo haacute criaccedilatildeo verdadeira sem desvio (ENTLER 2000p39)

Nos trabalhos de nosso corpus os resultados expressam as escolhas adotadas em cada

processo por cada artista em particular Assim as obras constituem tambeacutem um exerciacutecio formal

e criacutetico dos usos corriqueiros das tecnologias e um tensionamento poliacutetico-esteacutetico para criar

visualidades erraacuteticas plurais e descontiacutenuas considernando sobretudo a dimensatildeo poeacutetica dos

erros falhas e ruiacutedos Bierrenbach estimula a refletir natildeo sobre a tipologia das miacutedias mas sobre

maneiras alternativas de utilizaacute-las

Num certo sentido chega a ser poliacutetico Ludimilla (lsquoSim eacute uma postura poliacutetica de comocolocar a maacutequinavocecirc criar sua proacutepria linguagemrsquo) Num certo sentido ateacutedesacreditar a maacutequina neacute Tirar esse poder da cacircmera As pessoas falam que cacircmeravocecirc tem Natildeo importa que cacircmera eu tenho Importa o que vocecirc pensa importa o quevocecirc vai fazer com aquilo Pode ter ateacute um xereta Vocecirc nem sabe o que eacute um xeretaneacute Uma cacircmera muito de crianccedila da deacutecada de 70 que as crianccedilas apertavam () (lsquoAhuma cacircmera fininharsquo) Eacute de plaacutestico Entatildeo eacute poliacutetico nesse sentido vocecirc desacreditaaquilo vocecirc diz natildeo agravequela imagem correta que as pessoas dizem que eacute a correta queaquilo eacute a foto certa Porque a cacircmera saiu da faacutebrica com essa programaccedilatildeo ()(BIERRENBACH 2018)

612 Caraacuteter processual

Em meio agraves estrateacutegias de desprogramaccedilatildeo podemos dizer que essas obras satildeo marcadas

por um caraacuteter processual em que suas configuraccedilotildees plaacutesticas carregam os traccedilos das

metodologias adotadas Aqui o termo ldquoprocessualrdquo eacute empregado de um ponto de vista teacutecnico e

metodoloacutegico pois os trabalhos apresentam vestiacutegios de seus materiais Pixels luzes gratildeos

pinceladas frames Os gestos dosdas artistas na construccedilatildeo dessas obras tais como borrotildees

arrastos sombras deformaccedilotildees sobreposiccedilotildees riscos manchas e quaisquer intervenccedilotildees

praticadas nos objetos artiacutesticos Note-se que novamente alcanccedilamos a questatildeo do ruiacutedo como

fenocircmeno (manifesto) e conceito (princiacutepio criativo)

Como quem vecirc input e output natildeo necessariamente vecirc o processo (FLUSSER 2011)

outra maneira de indicar suas etapas eacute por exemplo revelar os elementos compositivos das

obras incluindo em sua estrutura de apresentaccedilatildeo os equipamentos (desnudando modos

operativos e mecanismos de funcionamento) como Rosacircngela Rennoacute e Maueacutes quando

apresentam suas cacircmeras e dispositivos de imagem ou exibir os materiais (como Claire Strand

que expotildee junto agraves pinturas derivadas de fotografias tubos de tinta pinceacuteis e fotos originais) ou

231

no projeto para The Wilderness Downtown (ver figuras 1 a 6) em que a maacutequina que fabrica os

postais gerados digitalmente a Wilderness Machine (figura 7) eacute exibida em funcionamento

Essas estrateacutegias nos lembram que cada miacutedia possui singularidades e codificaccedilotildees (perceptivas

poliacuteticas e esteacuteticas) que orientam nossas interpretaccedilotildees e satildeo postas em jogo na estrutura dessas

obras muitas vezes com propoacutesito criacutetico

Ou seja estamos aqui defendendo que seja relevante para o corpus escolhido o fato de

o acaso desempenhar um papel preponderante na elaboraccedilatildeo de esteacuteticas imprevistas natildeo-

convencionais acrescentando complexidade e ambiguidade a muitas delas E que a relaccedilatildeo entre

acaso e criaccedilatildeo ajude a repensar as concepccedilotildees sobre a imagem somando-se agraves reflexotildees de

outros autores e autoras sobre os limites e expansotildees desse campo ndash como encontramos por

exemplo nas conceituaccedilatildeo da ldquoimagem pobrerdquo (Steyerl) do erro (Cheacuteroux) da glitch art

(Menkman) da ldquopoeacutetica dos errosrdquo (Fontcuberta) e da ldquofotografia natildeo-humanardquo (Zylinska)

Nossa contribuiccedilatildeo eacute que passemos a incluir o acaso como elemento integrante dos aspectos que

constituem a pluralidade das esteacuteticas hiacutebridas experimentais etc valorizadas pela combinaccedilatildeo

entre a imprevisibilidade e o domiacutenio das teacutecnicas

O acaso opera de maneiras variadas nas obras e procedimentos de cada artista Por

exemplo de maneira geral a obra de Rosacircngela Rennoacute eacute marcada por um desejo de redescobrir

materiais e equipamentos antigos arquivos ou objetos cotidianos com especial atenccedilatildeo ao

repertoacuterio de miacutedias visuais dos seacuteculos XIX e XX Uma disposiccedilatildeo arqueoloacutegica voltada a essas

tecnologias eacute manifestada em seus trabalhos sem que haja uma verve saudosista neste meacutetodo

Em Imagem de sobrevivecircncia (2015) (ver figuras 77 78 e 78a) a projeccedilatildeo simultacircnea de slides

sem relaccedilatildeo temaacutetica ou cronoloacutegica preacutevia tira proveito do acaso na medida em que a imagem

final eacute interaccedilatildeo entre vaacuterias unidades sem no entanto resultar de uma simples operaccedilatildeo de

adiccedilatildeo Aleacutem disso e conforme afirma a proacutepria artista144 essa projeccedilatildeo estaacute sempre sendo

alterada nunca se repetindo Numa espeacutecie de praacutetica de bricolagem (que se repete em vaacuterios

outros trabalhos citados ou natildeo em nossa tese) ela articula conjuntamente suportes estruturas e

tecnologias sem que se possa ser antevisto rigidamente o resultado final

A disposiccedilatildeo de incorporar arranjos trazidos pelos materiais ou pelo comportamento de

estruturas originais operando como princiacutepio metodoloacutegico baseado no acaso tambeacutem se faz

presente nas obras de Joseacute Luiacutes Neto (os quimigramas o trabalho com fotografias

144 Ver httpwwwrosangelarennocombrobrassobre62 Acesso em 06062020

232

ldquoencontradasrdquo) Dirceu Maueacutes (nos tempos imprecisos das pinholes ou mesmo nas instalaccedilotildees

com imagens fugidias natildeo fixadas em suportes que dependem do olhar do puacuteblico para adquirir

vida na interface entre viacutedeo foto e cinema145) Cris Bierrenbach (no aproveitamento de espelhos

como daguerreoacutetipos ldquomal-sucedidosrdquo na imagem revelada pelo desgaste de coacutepias) na glitch

art de Sabato Visconti e Rosa Menkman que desarranjam arquivos e softwares quando Caacutessio

Vasconcellos fotografa frames de produccedilotildees do cinema singularizando-os atraveacutes de uma fixidez

que lhes era estranha Ou ainda num procedimento similar nas fotografias de Jason Shulman

tambeacutem de filmes

62 MATERIALIDADE

Em nossas reflexotildees mencionamos tambeacutem a questatildeo da materialidade como

preocupaccedilatildeo de alguns artistas Sua importacircncia pode estar tanto na formataccedilatildeo de uma obra cuja

fisicalidade eacute evidente em suas dimensotildees formas cores texturas etc ou ser tambeacutem

interpretada como marcas visuais deixadas pelas miacutedias nos seus produtos Em meio a diversos

debates (questionaacuteveis como jaacute visto) sobre a impermanecircncia ou a imaterialidade das imagens

digitais evocamos a materialidade das obras como aspecto relevante para a arte contemporacircnea

Uma das correntes de pensamento que se volta para o assunto eacute o campo da

materialidades da comunicaccedilatildeo que tem como referecircncia principal o trabalho de Hans Ulrich

Gumbrecht (2010) e que propotildee recolocar no centro da anaacutelise das ciecircncias humanas e nas artes

a importacircncia da dimensatildeo material dos artefatos culturais Segundo Gumbrecht as Humanidades

conferiam demasiada importacircncia agrave interpretaccedilatildeo ao sentido ao logos numa supervalorizaccedilatildeo do

conhecimento fruto do intelecto em detrimento da experiecircncia e do saber adquiridos pelos

sentidos ou seja uma percepccedilatildeo haacuteptica Entatildeo seria tarefa de uma nova proposta

epistemoloacutegica posicionar lado a lado a relaccedilatildeo entre sentido e dimensatildeo material das ldquocoisas do

mundordquo investigando como o sentido eacute evocado tambeacutem pela ldquopresenccedilardquo fiacutesica dos objetos146

No entanto Gumbrecht natildeo propotildee um afastamento ou descarte da noccedilatildeo de sentido ou uma

145 A exemplo da obra Tambores de Luz - Estaccedilatildeo Cf MAUES Dirceu Tambores de Luz - Estaccedilatildeo (Campinas)Resgate - Revista Interdisciplinar de Cultura Campinas v26 n2 [36] p161-167 juldez 2018

146 Logo no comeccedilo de seu livro Gumbrecht define rapidamente que ldquocoisas do mundordquo satildeo todos os objetosdisponiacuteveis em ldquopresenccedilardquo um conceito que se refere a algo tangiacutevel acessiacutevel ao ser humano pelas matildeos e que nosafeta na superfiacutecie do corpo A ldquopresenccedilardquo indica uma noccedilatildeo espacial donde a ldquoproduccedilatildeo de presenccedilardquo eacute qualquerprocesso acontecimento ou evento onde se verifica o impacto de objetos sobre seres humanos Cf Gumbrecht2010 p13

233

reduccedilatildeo de sua importacircncia ele sugere uma forma alternativa de pensar a cultura (sobretudo a

arte) voltada agrave presenccedila das coisas na nossa relaccedilatildeo com o mundo atravessada por essa

fisicalidade dos materiais Natildeo se trata de ldquo() uma simples substituiccedilatildeo do sentido pela

presenccedila Em uacuteltima anaacutelise () uma relaccedilatildeo com as coisas do mundo que possa oscilar entre

efeitos de presenccedila e efeitos de sentidordquo (GUMBRECHT 2010 p15) Em seguida o autor

completa

() Natildeo existe nada de intrinsecamente errado com a produccedilatildeo de sentido aidentificaccedilatildeo de sentido e o paradigma metafisico O que nossas modestas rebeliotildeesacadecircmicas tentavam problematizar era mais do que tudo uma configuraccedilatildeoinstitucional no acircmbito da qual o domiacutenio absoluto das questotildees relacionadas com osentido havia levado haacute muito tempo ao abandono de todos os outros tipos defenocircmenos e questotildees Como uma consequecircncia dessa situaccedilatildeo nos viacuteamosconfrontados com a ausecircncia de conceitos que nos teriam permitido lidar com o quechamaacutevamos de materialidades de comunicaccedilatildeo (GUMBRECHT 2010 p37)

Desse modo as materialidades da comunicaccedilatildeo pensam a cultura atraveacutes de uma

abordagem natildeo hermenecircutica natildeo metafiacutesica e natildeo cartesiana A partir dos conceitos aristoteacutelicos

de ldquoformardquo e ldquosubstacircnciardquo Gumbrecht (2010 p37) propotildee uma questatildeo baacutesica como as miacutedias e

as materialidades podem ter impacto no sentido que carregam A contenda relaciona-se

diretamente com as discussotildees sobre tecnologias da imagem resgatadas modificadas sabotadas

enfim tensionadas em seus aspectos fiacutesicos como estrateacutegia para incrementar o significado das

obras Por que determinado artista sai da materialidade fotograacutefica e finaliza a obra no formato

pictoacuterico como faz Clare Strand em The Discrete Channel with Noise (ver figuras 68 a 71) por

exemplo Nesse trajeto estatildeo envolvidas noccedilotildees de memoacuteria afetividade singularidade temporal

associadas agrave fotografia convencional e ainda questotildees formais ligadas agrave captura (luz

composiccedilatildeo inscriccedilatildeo temporal traccedilo indicial etc) que satildeo relativizadas quando a imagem eacute

toda marcada como se fosse ser transmitida via teleacutegrafo Assistimos a uma transformaccedilatildeo natildeo soacute

fiacutesica mas formal que remete ao pixel da imagem digital que por sua vez eacute traduzido na

linguagem pictoacuterica Cada uma dessas materialidades responde a epistemologias distintas que

carregam tambeacutem expectativas de percepccedilatildeo diferentes que aparecem todas cruzadas de modo a

bagunccedilar misturar esses territoacuterios separados Como maneira de reafirmar essas condiccedilotildees

ressignificadas dos materiais empregados Clare Strand expotildee essas ldquopinturas fotograacuteficasrdquo como

quadros (natildeo em telas mas em papel) sem que elas deixem de remeter agrave esteacutetica pixelizada do

computador nem tatildeo pouco agraves fotos originais Ela tambeacutem cria um ambiente que encoraja a

relaccedilatildeo do puacuteblico com essa nova configuraccedilatildeo pictoacuterica das imagens expondo os potes da tinta

234

utilizada os pinceacuteis mas tambeacutem as fotos originais (marcadas conforme a metodologia utilizada

para a suposta transmissatildeo) e outros objetos que sugerem que sob a interferecircncia do ruiacutedo as

mateacuterias adquirem novas formas147

A seacuterie Nuptias (2017) de Rosacircngela Rennoacute (figuras 72 73 74 75 76 e 79) tambeacutem

possui um forte sentido material jaacute que as fotografias utilizadas estatildeo jaacute desgastadas pelo tempo

(e tambeacutem por terem sido coletadas em mercados de pulgas) sendo ainda submetidas a processos

de colagem recebendo riscos e anotaccedilotildees tinta ou objetos de materiais como papel madeira

borracha Cada um desses elementos sofre a accedilatildeo do tempo de maneira diversa possui uma

fragilidade sendo suscetiacutevel agrave luz umidade poeira e temperatura especiacuteficas e todos esses

aspectos contribuem para sugerir uma ideia de ruiacutena de fracasso e certo absurdo que rondam o

universo das relaccedilotildees afetivas e especialmente o casamento Em Experiecircncia de cinema

(2004)148 a mesma artista brinca com a materialidade da imagem dando-lhe uma fraacutegil sobrevida

atraveacutes da projeccedilatildeo numa cortina de fumaccedila O procedimento lembra-nos tambeacutem que a imagem

guarda sempre um componente de ilusatildeo ao qual natildeo podemos aceder totalmente e que neste

caso podemos tocar apenas atraveacutes do aparato que a faz surgir A experiecircncia do cinema eacute

truncada pois as imagens utilizadas satildeo fotografias de grandes temas (tratados frequentemente no

cinema) como ldquofamiliacuteardquo ldquoguerrardquo e ldquoamorrdquo e entre a exibiccedilatildeo das fotos haacute paradas do

dispositivo criando-se lacunas que impedem uma estruturaccedilatildeo narrativa

147 Para ver a montagem da exposiccedilatildeo The Discrete Channel with Noise ver httpsvimeocom294026015 Acessoem 11062020148 Disponiacutevel em httpwwwrosangelarennocombrobrasexibir241 Acesso em 11062020

235

Figura 79 - Vista da montagem da seacuterie Nuptias (2017) de Rosacircngela Rennoacute

Fonte Reproduccedilatildeo site da artista

A mesma disposiccedilatildeo de concentrar a materialidade atraveacutes dos aparelhos e objetos

escolhidos na montagem das obras (e na sua elaboraccedilatildeo) identificamos nos trabalhos de Dirceu

Maueacutes Joseacute Luiacutes Neto Caacutessio Vasconcellos Luiz Alberto Guimaratildees Cris Bierrenbach Cada

um agrave sua maneira escolheu teacutecnicas equipamentos e materiais que contribuem para simbolizar os

temas e conceitos presentes nas obras e que possuem tambeacutem um significado dentro da proacutepria

histoacuteria das tecnologias da imagem Natildeo eacute agrave toa que vaacuterios desses artistas gostam de trabalhar

com miacutedias analoacutegicas reformatadas manualmente ou como diz Guimaratildees (2014) que satildeo da

ordem de uma ldquoartesaniardquo As cacircmeras que ele utiliza satildeo todas diferentes em formato e isso

confere agraves imagens criadas com elas diferentes resultados no questionamento da perspectiva

geomeacutetrica que caracteriza seu trabalho A materialidade especiacutefica de cada dispositivo carrega

significados distintos sobre o tensionamento do paradigma monocular da fotografia

() as maacutequinas fotograacuteficas que construo e utilizo surgem quase sempre a partir de umaideia preacutevia de um projeto que pretendo realizar (ocorre tambeacutem o oposto agraves vezesreutilizo uma das maacutequinas jaacute construiacutedas em um novo projeto que surge a partir dasintaxe que aquela maacutequina propicia) (GUIMARAtildeES 2014 p29)

As fotografias panoracircmicas de Dirceu Maueacutes transmitem a sensaccedilatildeo de mobilidade

exatamente pelos borrotildees produzidos na captura realizada durante o movimento O aspecto da

236

imagem toda cortada por linhas verticais resulta da abertura em fenda da cacircmera usada e da

mesma maneira essas imagens transmitem o processo de integraccedilatildeo dos materiais utilizados O

que vemos nelas satildeo modos muito particulares de o movimento se pronunciar na superfiacutecie da

imagem

Essas obras permitem interpretar a imagem natildeo apenas atraveacutes de sua condiccedilatildeo oacutetica

mas apelam ao nosso corpo em diferentes modos de tatilidade Segundo Gumbrecht (2010 p39)

toda forma de comunicaccedilatildeo ldquotocardquo atraveacutes de seus elementos materiais nossos corpos mas o faz

de maneiras variadas e especiacuteficas de modo que se em alguns projetos a dimensatildeo material eacute

mais pronunciada na forma de imagem-objeto em outras as estruturas formadoras da imagem

representam seu lado fiacutesico Mesmo nos trabalhos em glitch art o componente material natildeo estaacute

ausente ndash ateacute porque jaacute falamos sobre como a materialidade eacute entendida no acircmbito das novas

miacutedias a partir dos estudos de software

As diferenccedilas no tratamento ou na expressatildeo da materialidade devem-se a variaccedilotildees

entre ldquoefeitos de sentidordquo e ldquoefeitos de presenccedilardquo De acordo com Gumbrecht a relaccedilatildeo entre

intensidade material e forccedila do sentido se daacute de maneira desigual nos objetos artiacutesticos numa

ldquotensatildeordquo numa ldquooscilaccedilatildeordquo (sem nunca se separarem) Os efeitos de presenccedila tambeacutem satildeo

efecircmeros e condicionados pela interpretaccedilatildeo preacutevia que normalmente tentamos dar agraves obras Mas

natildeo pensemos que a importacircncia do sentido e da presenccedila atingem um equiliacutebrio

A relaccedilatildeo entre efeitos de presenccedila e efeitos de sentido tambeacutem natildeo eacute uma relaccedilatildeo decomplementaridade na qual uma funccedilatildeo atribuiacuteda a cada uma das partes em relaccedilatildeo agraveoutra daria agrave co-presenccedila das duas a estabilidade de um padratildeo estrutural Ao contraacuteriopodemos dizer que a tensatildeooscilaccedilatildeo entre efeitos de presenccedila e efeitos de sentido dotao objeto de experiecircncia esteacutetica de um componente provocador de instabilidade edesassossego (GUMBRECHT 2010 p137)

Quando afirma essa tensatildeo entre sentido e materialidade nos objetos artiacutesticos o autor

resolve a diferenccedila que notamos nos trabalhos citados a respeito de um espaccedilo mais pronunciado

que se confere aos materiais na forma das miacutedias escolhidas Em alguns a dimensatildeo material

estaacute mais explicitamente articulada que em outros mas todos tecircm na materialidade um aspecto

que contribui significativamente para as sensibilidades propostas por seus autores e autoras

Mesmo quando os aspectos materiais relacionados agrave escolha da miacutedia (ou das miacutedias) a forma de

apresentaccedilatildeo e as configuraccedilotildees fiacutesicas (dimensatildeo cor volume textura etc) natildeo satildeo

mencionados como vetores de significado tais caracteriacutesticas satildeo responsaacuteveis pela maneira

237

como percebemos os trabalhos Eacute nessa presenccedila fiacutesica que podemos nos relacionar com tais

obras

Um bom exemplo dessa tensatildeo estaacute colocado na experiecircncia do filme interativo The

Wilderness Downtown de Chris Milk A participaccedilatildeo do usuaacuterio depende de informaccedilotildees

pessoais retiradas de experiecircncias concretas de suas memoacuterias que satildeo entatildeo utilizadas na

construccedilatildeo do filme Mesmo numa narrativa virtual haacute natildeo soacute uma plataforma fiacutesica (hardware

redes) mas a obra ganha continuidade na maacutequina que imprime os postais gerados no filme a

Wilderness Machine Nessas duas etapas os ldquoefeitos de sentidordquo e ldquoefeitos de presenccedilardquo estatildeo

separados no tempo e espaccedilo mas estatildeo ambos presentes

Para alguns projetos artiacutesticos que incluiacutemos neste trabalho a condiccedilatildeo material das

obras associadas agraves tecnologias escolhidas eacute mais proeminente como para Cris Bierrenbach que

considera bastante importante a materialidade em seus trabalhos jaacute que essa questatildeo para ela estaacute

ligada agrave proacutepria singularidade de cada obra Seus processos de elaboraccedilatildeo satildeo lentos e o

resultado final adquire essa importacircncia porque a configuraccedilatildeo definitiva expressa tambeacutem esse

tempo de ldquomaturaccedilatildeordquo

Agora eu tou pensando em pessoas que eu conheccedilo que trabalham assim vocecirc percebeque as pessoas tecircm uma relaccedilatildeo () satildeo relaccedilotildees individuais com cada trabalho () enatildeo eacute com cada trabalho eacute com cada coacutepia com cada objeto criado Cada um eacute uacutenicotem uma feiccedilatildeo muito proacutexima pessoal mesmo Num eacute uma coisa tipo lsquovai eumando aqui pelo Wetransfer e o sujeito laacute imprime tudo pra mimrsquo () As imagensdigitais natildeo satildeo materiais () se perde um certo preciosismo Pra mim eacute bemimportante Eu sei que isso natildeo tem valor comercial () mas pra mim tem () Eacute umacoisa que eu natildeo consigo explicar Eacute quase afetivo () Quase natildeo eacute afetivo Eu tenhofotos que foram feitas digitalmente que eu vendi muito melhor que satildeo maisvalorizadas Mas eu agraves vezes olho fotos que estatildeo do meu lado e que natildeo satildeo tatildeosignificantes (num sentido de valor de mercado) e eu tenho um afeto por elas que eacutedifiacutecil de explicar (BIERRENBACH 2018)

As palavras da artista ecoam um sentimento que Gumbrecht (2010 p135) sublinha

como traccedilo da experiecircncia esteacutetica que escapa agrave ordenaccedilatildeo racional quando provoca ldquoEm vez de

termos de pensar sempre e sem parar no que mais pode haver agraves vezes parecemos ligados num

niacutevel da nossa existecircncia que pura e simplesmente quer as coisas do mundo perto da nossa

pelerdquo

Haacute uma beleza nas afirmaccedilotildees de Gumbrecht a respeito do jogo entre componente

material e o sentido das obras artiacutesticas e para noacutes as preocupaccedilotildees do autor aproximam-se de

muitas das questotildees presentes nos estudos sobre o ruiacutedo Enquanto Gumbrecht fala de

materialidade sentida em termos de ldquointensidaderdquo evoca a ldquopresenccedilardquo como algo espacial e as

238

propriedades fiacutesicas das coisas que despertam nossos sentidos natildeo podemos deixar de lembrar do

potencial anaacuterquico desestabilizador de ruptura e de presenccedila (nem sempre manifesta poreacutem

inerente) que caracteriza o ruiacutedo

Ao longo de seu texto Gumbrecht comenta sobre aspectos da materialidade literaacuteria

musical (e de outras artes) num percurso bastante proacuteximo ao empreendido por Hainge (2013)

para falar sobre o ruiacutedo o que indica que as anaacutelises destes dois autores estatildeo afinadas sobre a

preocupaccedilatildeo com a expressividade e o fato de que em muitos casos a arte trabalha essa

expressividade atraveacutes de condiccedilotildees materiais que natildeo podem ser constrangidas por uma

racionalidade que as explique Disso podemos concluir que a materialidade trabalhada sob a

chave conceitual do ruiacutedo daacute origem a uma expressividade ou a formas de expressatildeo melhor

dizendo que se instituem por si mesmas como significantes

63 OLHAR RETROSPECTIVO A PROCESSOS CLAacuteSSICOS DA FOTOGRAFIA

Vaacuterios dos trabalhos que trouxemos em nosso corpus empregam tecnologias antigas da

imagem Os trabalhos aqui analisados que se valem da cacircmara escura da imagem estenopeica da

goma bicromatada do daguerreoacutetipo e por extensatildeo de tecnologias jaacute mais recentes mas pouco

utilizadas (ateacute pela descontinuidade de sua fabricaccedilatildeo como o slide) satildeo empregados de forma

criacutetica Os procedimentos satildeo reinventados a cacircmera escura tem sua geometria problematizada

referindo muacuteltiplas perspectivas ou passsa a referir tempos alargados e varrer ambientes no

decorrer de uma duraccedilatildeo (ampliando o instante de tal modo que percebemos as diversas accedilotildees

ocorridas no espaccedilo) ou ainda empregada para produzir imagens fugidias existentes apenas sob

a convergecircncia da arquitetura do dispositivo quando se encontra com o olhar do observador A

daguerreotipia a goma bicromatada o cianoacutetipo o papel salgado satildeo utilizados por Cris

Bierrenbach na exploraccedilatildeo de suas propriedades materiais e plaacutesticas e em desencontro com os

propoacutesitos originais O slide eacute apropriado para sugerir a acumulaccedilatildeo de visotildees atraveacutes do

processo de colagem (em Cris Bierrenbach149) ou a saturaccedilatildeo do olhar contemporacircneo cansado

da enxurrada de imagens em circulaccedilatildeo (em Rosacircngela Rennoacute) levando o formato para aleacutem da

remissatildeo afetiva iacutentima e familiar ao qual ficou associado

Tais usos alternativos das tecnologias nos remetem agraves praacuteticas artiacutesticas que levam o

campo da imagem a constantes reinvenccedilotildees Fontcuberta (2010) fala sobre a ideia de

149 httpscrisbierrenbachcompessoalfotocolagenscolagem Acesso em 05052020

239

contrariedade aos usos corriqueiros de teacutecnicas ressaltando que essa questatildeo desafia paradigmas

como a funccedilatildeo representativa da imagem

Em geral essa teoria do erro e do defeito de trabalhar ldquocontrardquo os materiais e suasregras que regeu muitos acircmbitos da vanguarda mais que aperfeiccediloar um coacutedigo derepresentaccedilatildeo o que normalmente fazia era questionaacute-lo Os dadaiacutestas comeccedilaram abrincar com o acaso e o acidental seguiram-se os tachistas e os expressionistas abstratoscom a teacutecnica do dripping em seguida a ciberneacutetica introduziu a noccedilatildeo de ldquoruiacutedordquo quefoi rapidamente aproveitada por muitos artistas No acircmbito da fotografia temos a escolagenerativa desenvolvida em Bielefeld a partir de 1967 os quimigramas de PierreCordier mostram o conflito entre controle e imprevisibilidade da mesma forma que osluminogramas de Karl Martin Holzhaumluser ou as Pinhole Structures (estruturasestenopeicas) de Gottfried Jaumlger O meacutetodo natildeo se apoiava em uma preacute-visualizaccedilatildeo queantecipasse os resultados mas no trial and error em um processo de experimentaccedilotildeessucessivas alterando as circunstacircncias no momento para selecionar finalmente osresultados valiosos (FONTCUBERTA 2010 p73)

As reflexotildees do autor sobre metodologias experimentais da imagem podem ser colocados

ao lado das de Fatorelli e Carvalho (2015) e ainda Junior (2002) que reconhecem entre as

praacuteticas plurais de uso do meio fotograacutefico esse olhar tardio voltado aos dispositivos Arlindo

Machado (1997) refletindo sobre a programaccedilatildeo dos aparelhos na obra de Flusser lembra que o

campo da arte sempe nos daacute provas de que as maneiras de apropriaccedilatildeo das tecnologias satildeo

constantemente atualizadas o que esse retorno agraves praticas analoacutegicas vem atestar Numa revisatildeo

criacutetica do pensamento de Flusser Machado comenta

Ora que haacute limites de manipulabilidade em toda maacutequina ou processo teacutecnico eacute algo deque soacute podemos fazer uma constataccedilatildeo teoacuterica pois na praacutetica esses limites estatildeo emcontiacutenua expansatildeo Que aparelhos suportes ou processos teacutecnicos poderiacuteamos dizer quejaacute tiveram esgotadas as suas possibilidades () Sempre existiratildeo potencialidadesdormentes e ignoradas que o artista inquieto acabaraacute por descobrir ou ateacute mesmo porinventar ampliando portanto o universo das possibilidades conhecidas de determinadomeio (MACHADO 1997)

No rastro da filosofia flusseriana podemos dizer que haacute diferentes graus e modalidades

de ldquojogordquo contra o ldquoaparelhordquo que fazem aparecer o ruiacutedo e nesse espaccedilo se incluem as

remodelagens e reprogramaccedilotildees dos aparelhos analoacutegicos As interlocuccedilotildees com materiais e

praacuteticas da pintura A proximidade com a linguagem do cinema exercitada por meio de recursos

fotoquiacutemicos Ou um certo devir cinema manifesto na utilizaccedilatildeo contraacuteria aos paracircmetros de

fabricaccedilatildeo de suportes e equipamentos fotograacuteficos

Tambeacutem verificamos como modos de desprogramar os aparelhos de imagem o uso

combinado de meios antigos e recentes Por exemplo as fotografias realizadas com pinholes por

Dirceu Maueacutes buscam uma ressignificaccedilatildeo do formato panorama como modalidade visual de

investigaccedilatildeo da paisagem Ao considerar o panorama um formato marginal um espeacutecie de preacute-

240

cinema Maueacutes valoriza justamente o movimento na imagem (atributo do cinematograacutefico)

atraveacutes do registro com as pinholes em movimento traccedilando assim uma linha de continuidade

entre fotografia estenopeica panorama e cinema

Bierrenbach quando utiliza a fotografia para montar um viacutedeo passa da imagem fixa agrave

imagem moacutevel explorando o contato entre essas duas instacircncias atraveacutes da montagem de

fotografias que registram o aparecer e o desaparecer de casas atraveacutes dos vestiacutegios do

movimento do equipamento Caacutessio Vasconcellos faz o trajeto inverso congelando a imagem que

era moacutevel na passagem entre viacutedeo e Polaroid Interrompendo um fluxo que nos faz lembrar que

em sua forma mais baacutesica o cinema eacute um fluxo de unidades de imagens fixas cuja velocidade de

exibiccedilatildeo cria a ilusatildeo do movimento

As obras da glitch art criadas atraveacutes de computadores levam essa continuidade a um

patamar ainda maior jaacute que transferidas para dentro do computador referecircncias diversas satildeo

trabalhadas atraveacutes de misturas e rearranjos os mais variados a ponto de agraves vezes natildeo ser

possiacutevel determinar singularidades entre os conteuacutedos Fotografia viacutedeo graacuteficos tudo se

mistura Ou Shulman que quando registra um filme inteiro ao longo de sua duraccedilatildeo tambeacutem

aproxima foto e cinema

631 Arqueologia da miacutedia

Essas estrateacutegias criativas reforccedilam a ideia de continuidade entre as tecnologias da

imagem (e natildeo de ruputra) Tal compreensatildeo estaacute presente na abordagem arqueoloacutegica da miacutedia

que olha para as miacutedias atuais procurando nelas traccedilos de miacutedias anteriores numa visada que

relativiza as noccedilotildees de velho e novo ateacute porque compreende as tecnologias a partir de uma

perspectiva relacional (natildeo sucessiva progressiva como se um meio superasse o anterior em

eficiecircncia qualidade etc) A arqueologia da miacutedia busca observar a cultura digital localizando

nela seus viacutenculos com a fotografia o cinema a televisatildeo o viacutedeo a propaganda a escrita

Enquanto as ldquonovas miacutediasrdquo alteram nossas rotinas as velhas miacutedias nunca nos abandonam

realmente pois reaparecem satildeo remediadas econtrando novos usos contextos e adaptaccedilotildees

(PARIKKA 2012 p3)

Se olharmos as obras agraves quais nos reportamos perceberemos como satildeo instrumentais as

proposiccedilotildees deste campo de pensamento sobre os meios de comunicaccedilatildeo e suas tecnologias

porque identificamos nas estrateacutegias artiacutesticas uma troca constante de referecircncias e elementos de

241

meios distintos muitas vezes separados cronologicamente Acoplagens entre computadores

softwares e hardwares sistemas de projeccedilatildeo imagens digitais scanners filtros adicionados por

meio de apps em diaacutelogo com formatos como a Polaroid o negativo 35mm a pintura o

daguerreoacutetipo o dispositivo cinematograacutefico o panorama o viacutedeo

Sabato Visconti que lanccedila matildeo de ldquoequipamentos obsoletos para fazer arterdquo

(VISCONTI 2019) utiliza como referecircncia para algumas obras videogames dos anos 1990150

dissolvendo formas alterando os movimentos dos personagens (aplicando efeito de loop)

inserindo defeitos nos graacuteficos falhas nos elementos que compotildeem o cenaacuterio dos jogos

intervindo nessa esteacutetica de um grafismo primitivo (cujas formas retiliacuteneas quadradas e os

movimentos bruscos dos games em 2D contrastam radicalmente com o volume das formas a

reproduccedilatildeo de sons o uso do recurso ldquocacircmera subjetivardquo que conferem realismo e efeito imersivo

aos games atuais em 3D) O processo consiste em corromper a memoacuteria ROM do jogo (memoacuteria

com dados armazenados para leitura) Dirigindo um gesto artiacutestico a um dos produtos mais

caracteriacutesticos da induacutestria do entretenimento Visconti ultrapassa a fronteira do jogador

convencional limitado pelos comandos que o sistema original lhe deixa executar e passa a

ocupar o lugar de reprogramador transformando os games em espaccedilos de pura contemplaccedilatildeo do

olhar forjando narrativas nas quais natildeo existe um objetivo final a ser alcanccedilado mas onde a

fraacutegil organizaccedilatildeo dos quadros sugere uma aproximaccedilatildeo com a montagem cinematograacutefica As

formas de games antigos vecircm habitar a linguagem informaacutetica convertendo-se em objetos

esteacuteticos Uma ldquomiacutedia-zumbirdquo (PARIKKA 2012) que ressucita via computador

150 Ver por exemplo No country for Donkey Kong (httpswwwsabatoboxcomrom-corruption-no-country-for-dk) eGlitching Sonic the Hedgehog 3 (httpswwwsabatoboxcomsonic-the-hedgehog-3-rom-corruption) Acesso em05052020

242

Figura 80 - Trechos de No country for Donkey Kong (Sabato Visconti)

Fonte Reproduccedilatildeo site do artista

A arqueologia da miacutedia adota uma visatildeo histoacuterica dos meios e permite-nos verificar

conexotildees entre formas visuais antigas e recentes Ainda tomando como exemplo os trabalhos de

Sabato Visconti com videogames tratam-se de obras natildeo produzidas para os circuitos

convencionais de exibiccedilatildeo audiovisual como festivais salas de cinema ou afins mas que

estabelecem uma ligaccedilatildeo formal com o cinema A maneira como No country for Donkey Kong

(figura 80) estrutura-se ndash trechos que lembram frames com mudanccedilas de cenaacuterio sugerindo uma

narrativa fragmentada (ou a ausecircncia de uma linearidade) movimentos forjados e repetitivos dos

personagens ndash permiti-nos estabelecer uma identidade entre a linguagem da miacutedia digital e

movimentos cinematograacuteficos alternativos agrave narrativa claacutessica Como nos lembra Parikka (2012)

Lev Manovich (2001) situa o advento das ldquonovas miacutediasrdquo exatamente como herdeiras de

caracteriacutesticas de meios anteriores conferindo especial atenccedilatildeo ao cinema sovieacutetico dos anos

1920 em suas anaacutelises Essa cinematografia eacute marcada por aspectos formais como a natildeo-

linearidade a relaccedilatildeo natildeo-diegeacutetica entre som e imagem (filmes mudos com trilha sonora de

acompanhamento) uma montagem assentada no choque visual entre planos natildeo sequenciais que

criam metaacuteforas visuais a partir de conteuacutedos natildeo diretamente relacionaacuteveis151 Se olharmos para

as peccedilas de Visconti encontramos uma tendecircncia a certa dispersatildeo perceptiva que pode ser vista

como desdobramentos da natildeo-linearidade o excesso de informaccedilotildees visuais (tambeacutem presente no

estilo da montagem sovieacutetica) e o movimento repetitivo do gif como caracteriacutesticas tributaacuterias

natildeo apenas do cinema russo mas ateacute do cinema de atraccedilotildees (que tambeacutem se distinguia pelo

151 Como por exemplo a imagem de um pavatildeo associada a de um poliacutetico em Outubro (Serguei Eisenstein1927)

243

caraacuteter manipulado espetacular) e ainda com o cinema de animaccedilatildeo As trucagens a

manipulaccedilatildeo de conteuacutedos a praacutetica do remix (acumulando referecircncias de domiacutenios variados) a

tendecircncia dispersiva a fragmentaccedilatildeo da informaccedilatildeo satildeo marcas da cultura informaacutetica que

podem ser interpretadas na arte de Visconti como reminiscecircncias tardias dessas cinematografias

ao mesmo tempo que conservam ligaccedilotildees com o viacutedeo quando ao dissover o conteuacutedo das

imagens forccedila-nos a olhar para seus elementos formadores (num exerciacutecio de metalinguagem)

Num recuo ainda mais amplo em busca de formas visuais preacute-cinematograacuteficas brinquedos

oacuteticos como o fenascitoscoacutepio taumatroacutepio e praxinoscoacutepio ldquocareciam de narratividade linear e

suas estruturas em loop de gestos simples performavam um eterno retorno do mesmordquo (DULAC

amp GAUDREAULT apud PARIKKA 2012 p28) exatamente a sensaccedilatildeo causada pelo trabalho

de Visconti com os videogames

No country for Donkey Kong eacute uma simbiose de cinema e jogo (cujo tiacutetulo lembra No

country for Old Men de Ethan e Joel Cohen) que estabelece pontos de contato formais e

discursivos entre as vaacuterias miacutedias agraves quais a obra remete Mas promove essa mistura de forma

irocircnica esvaziando a proporccedilatildeo interativa do jogo em troca de uma disposiccedilatildeo contemplativa

(pois os personagens natildeo obedecem aos comandos de um jogador existindo numa pseudo-

narrativa sem plot sem enredo) gerando perturbaccedilotildees em sua configuraccedilatildeo esteacutetica para apontar

a presenccedila virtual do defeito nas maacutequinas

As demais obras presentes em nosso corpus tambeacutem estatildeo inseridas nessa dinacircmica do

diaacutelogo entre tecnologias seja pela retomada criacutetica de processos claacutessicos da imagem seja

emulando aspectos formais de meios fiacutesicos ou eletrocircnicos e artefatos digitais seja promovendo a

articulaccedilatildeo entre ambientes virtuais espectador e materiais sensiacuteveis (transitando entre cinema

performance pintura fotografia viacutedeo) seja ironizando padrotildees gecircneros e formas consagradas

da imagem atraveacutes do deslocamento de suas funccedilotildees primeiras Assim podemos concluir que em

boa parte dos trabalhos analisados as tecnologiais empregadas relacionam-se pelas trocas pelos

empreacutestimos em processos de contaacutegio de hibridizaccedilatildeo

Concordamos com a ideia de que haacute um impulso arqueoloacutegico na arte contemporacircnea

(PARIKKA 2017) jaacute que em diversos trabalhos observamos a recontextualizaccedilatildeo de tecnologias

da imagem a reinserccedilatildeo de problemaacuteticas ligadas a seus usos e uma saudaacutevel articulaccedilatildeo entre

miacutedias computadorizadas e analoacutegicas As obras relacionam-se com essa ideia de olhar para o

passado e satildeo marcadas pela convivecircncia de diversas temporalidades Embora a arqueologia da

244

miacuteda como vertente da histoacuteria da miacutedia se proponha a estudar os meios de comunicaccedilatildeo seus

enfoques satildeo tatildeo abrangentes e suas temaacuteticas tatildeo variadas que consideramos vaacutelido utilizar a

abordagem arqueoloacutegica da miacutedia para pensar todas essas experiecircncias que se voltam para formas

da imagem antigas inclusive porque muitos desses trabalhos levantam questotildees atuais ou seja

satildeo expressotildees de questionamentos (de ordem esteacutetica poliacutetica industrial cientiacutefica de gecircnero)

e sensibilidades atuais (em diversas vezes tangenciados pela relaccedilatildeo do ser humano com as

miacutedias digitais a redes sociais a vigilacircncia do capitalismo informaacutetico a atitude hacker e os

processos de remix a produccedilatildeo de imagens descartaacuteveis etc) Os trabalhos de Joanna Zylinska

Rosa Menkman Rosacircngela Rennoacute Sabato Visconti Dirceu Maueacutes e Thomas Ruff ecoam mais

diretamente essas questotildees

Consideramos que as proposiccedilotildees da arqueologia da miacuteda podem ser exploradas com

mais atenccedilatildeo no campo da imagem esforccedilo que conseguimos apenas esboccedilar nesta tese

Sobretudo na abordagem da media art na investigaccedilatildeo das potecircncias artiacutesticas surgidas da

exploraccedilatildeo das falhas dos sistemas de computador A partir de um breve olhar sobre os trabalhos

de Menkman Zylinska e Visconti principalmente entendemos que esse pode ser um vieacutes para o

desenvolvimento de pesquisas futuras Se o impulso inicial deste trabalho foi dado pela

observaccedilatildeo sobre a permanecircncia das miacutedias analoacutegicas ao depararmo-nos com a sua remediaccedilatildeo

em obras desenvolvidas por meio das inteligecircncias informaacuteticas acreditamos serem relevantes

investigaccedilotildees posteriores que se dediquem a essas poeacuteticas de ldquoreciclagemrdquo de referecircncias tatildeo

frequentens na arte contemporacircnea

Outro tema de interesse deste campo e que tambeacutem daacute margem a novos debates eacute o

arquivo Seja no resgate de uma produccedilatildeo vernacular esquecida ou na apropriaccedilatildeo de imagens de

banco de dados de instituiccedilotildees e grandes corporaccedilotildees da comunicaccedilatildeo em rede como o Google o

arquivo eacute tomado como lugar de investimento criacutetico para discutir o fato de que na cultura visual

atual agrave medida que nos tornamos imagem acabamos por transforma-nos em dados e

posterioremente em arquivo Ao contraacuterio de uma ideia de algo datado uma espeacutecie de artefato

intocaacutevel protegido pela marca do tempo e pela funccedilatildeo historiograacutefica os arquivos satildeo

interpretados pelos artistas como coisas vivas pertencentes a um fluxo de imagens que se produz

constantemente inseridos numa histoacuteria do olhar cujas bases se inauguram junto com o advento

das imagens teacutecnicas no seacuteculo XIX Para a arqueologia da miacutedia o arquivo eacute rearticulado na

cultura digital menos como lugar de histoacuteria memoacuteria e poder e mais como uma rede dinacircmica e

245

temporal um ambiente governado pelo software e uma plataforma social de memoacuteria

(PARIKKA 2012 p15) agrave espera de intervenccedilotildees ideias contempladas por exemplo nas obras

de Zylinska Visconti e mesmo nas apropriaccedilotildees feitas por Eacuteder Oliveira de material

fotojornaliacutestico tratado ao estilo da imagem numeacuterica em suas pinturas

Tambeacutem as produccedilotildees de Rennoacute utilizam largamente os arquivos muitas vezes de forma

irocircnica deslocando-os de suas funccedilotildees originais e discutindo a presenccedila das tecnologias da

imagem em nosso cotidiano Eacute importante lembrar mesmo que o enfoque arqueoloacutegico da miacutedia

decirc maior atenccedilatildeo ao potencial flexiacutevel do arquivo devemos considerar que as relaccedilotildees de poder

e de memoacuteria natildeo se encontram totalmente ausentes nesses trabalhos O processo que ocorre e

que a arqueologia da miacutedia nos ajuda a compreender como tocircnica da media art eacute que os arquivos

de imagens (ou as imagens esquecidas em arquivos de instituiccedilotildees ou abadonadas em espaccedilos

privados) acedem ao status de mateacuteria artiacutestica sujeitando-se agraves transformaccedilotildees do processo

criativo participando de um fluxo informativo que eacute tiacutepico da cultura digital

Haacute ainda dois outros temas de interesse da arqueologia da miacutedia que se ligam a questotildees

discutidas em nosso trabalho e que tambeacutem estimulam pesquisas futuras O primeiro eacute a

investigaccedilatildeo de histoacuterias abadonadas negligenciadas pela induacutestria dos meios de comunicaccedilatildeo

Conforme Parikka (2012 p39) eacute importante buscar as ldquovozes esquecidas da histoacuteria da miacutedia

para encontrar tambeacutem suas perversotildeesrdquo porque estas narrativas paralelas natildeo se afinam com a

ideia de um progresso dos meios frequentemente evocado pela induacutestria De fato os teoacutericos

visam principalmente as miacutedias que natildeo tiveram sucesso comercial os projetos abandonados ou

que nem chegaram a ser lanccedilados Poreacutem entendemos que essas narrativas desviantes estatildeo

representadas tambeacutem quando metodologias e teacutecnicas antigas satildeo revisitadas de forma natildeo-

saudosista ou seja quando satildeo submetidas agrave transformaccedilotildees em seus princiacutepios funccedilotildees e

esteacuteticas Saindo de um lugar perifeacuterico (como exemplares de esforccedilos mal-sucedidos ou

insuficientes) essas teacutecnicas vecircm reaparecendo sob interesses particulares de artistas Mesmo

fora do acircmbito artiacutestico teacutecnicas como pinhole antotipia goma bicromatada entre outras satildeo

exatamente denominadas ldquoalternativasrdquo ldquoexperimentaisrdquo152 no escopo de algumas iniciativas

pedagoacutegicas por causa desse interesse renovado por uma certa artesania da imagem aberta a

experiecircncias natildeo-convencionais e que tenta se desapegar de regras industriais de produccedilatildeo da

imagem

152 Como eacute o caso dos livros de James (op cit) e de Antonini et al (2015)

246

A segunda temaacutetica eacute a do ruiacutedo jaacute que os usos desviados os projetos e teacutecnicas

rejeitados trazem exatamente o ruiacutedo como conceito para formas de expressatildeo bastante diversas

Se a arqueologia da miacutedia se interessa pelas ldquoanomaliasrdquo e pelo ldquoanti-mainstreamrdquo nada mais

justo que acolha o ruiacutedo como tema de suas investigaccedilotildees Lembremos que o tema possui longa

tradiccedilatildeo de significados negativos e que temos explorado a compreensatildeo de seu valor poeacutetico O

ruiacutedo eacute parte integrante dos meios e dos processos e ao entender isso a arqueologia da miacutedia se

ocupa tambeacutem do mapeamento das consideraccedilotildees sobre o assunto ao longo do pensamento a

respeito da cultura midiaacutetica recuperando debates sobre o conceito na muacutesica na teoria

matemaacutetica da comunicaccedilatildeo nas pesquisas que vatildeo desembocar na ciberneacutetica

Jussi Parikka que tem sido nosso guia principal chega a muitas das conclusotildees jaacute

apontadas nos trabalhos de Nunes (2011) e Hainge (2013) e igualmente indica que a histoacuteria das

miacutedias lida com o tema do ruiacutedo de maneira problemaacutetica atraveacutes de mecanismos de controle

enfatizando seu caraacuteter de instabilidade e por fim assinalando que se ldquoeacute impossiacutevel se livrar dos

efeitos do ruiacutedo haacute maneiras de mapeaacute-lo constrangecirc-lo e examinaacute-lordquo (PARIKKA 2012

p101)

64 E A TEORIA DA FOTOGRAFIA

Natildeo poderiacuteamos finalizar este trabalho sem fazer algumas consideraccedilotildees que

relacionem os demais temas desta pesquisa e as teorias da imagem sobretudo porque falamos

exaustivamente no diaacutelgo entre tecnologias nos primeiros capiacutetulos Se naquele momento

assinalamos que o centro das discussotildees em torno da fotografia eram suas especificidades e o

debate ontoloacutegico como sintoma de determinada fase da reflexatildeo teoacuterica em seguida o

pensamento se alarga para falar da imagem (sem tratar as questotildees dentro do territoacuterio exclusivo

do fotograacutefico) Dubois (2017 p40) assinala que a partir dos anos 2000 a noccedilatildeo de ldquofotograacuteficordquo

bem como a de ldquoimagemrdquo satildeo evocadas em textos e obras dedicadas menos a pensar a identidade

do meio voltando-se mais para as questotildees da esteacutetica debatida atraveacutes dos variados modos de

acionamento da teacutecnica ldquoenfatizando seus usos especiacuteficos em campos relativamente

determinados ou mais especializados (as artes plaacutesticas ou a arte contemporacircnea os visual studies

e a cultura da internet o campo poliacutetico ou social os usos vernaculares ndash populares amadores

etc)rdquo

247

Em seu texto Dubois referencia principalmente autores franceses mas logicamente a

tendecircncia natildeo estaacute restrita aos ciacuterculos de pensamento francoacutefonos Ao longo de nosso texto

dialogamos com alguns destes nomes e pode-se dizer que possuem em comum o olhar dirigido

agraves praacuteticas hiacutebridas notadamente em conceitos como ldquoimagem apresentativardquo (FATORELLI

2017) ldquofoto expandidardquo (JUNIOR 2002) ldquonon-human photographyrdquo (ZYLINSKA 2017a)

Jaacute como desdobramento desse pensamento encontramos as tentativas de definir os

contornos de uma imagem ldquoexperimentalrdquo caracterizada pelo sentido praacutetico da manipualccedilatildeo dos

materiais de propriedade fotograacutefica mas tomada como conceito (ou uma modalidade) de um

fazer que busca atraveacutes dessa manipulaccedilatildeo expandir os horizontes da esteacutetica Basicamente esse eacute

o vieacutes de Poivert (2010) e Lenot (2017 2017a) ndash cuja influecircncia dos escritos de Vileacutem Flusser

converge em maior grau com as anaacutelises que empreendemos em nosso texto O primeiro localiza

uma tradiccedilatildeo experimental que se desenha entre os anos 1970-1980 (e que eacute tibutaacuteria das

experiecircncias realizadas com a imagem no contexto das vanguardas artiacutesticas de 1920) apontando

como traccedilos definidores o caraacuteter multidisciplinar (diaacutelogo entre as vaacuterias artes) a criacutetica ao

proacuteprio meio e suas normatizaccedilotildees (impulso luacutedico investigativo) e a tendecircncia de revisitar a

historiografia das teacutecnicas e a experiecircncia do ver Tais caracteriacutesticas estatildeo associadas a uma

teorizaccedilatildeo mais ampla sobre a imagem contemporacircnea onde a tendecircncia experimental estaacute

inserida e que considera a fotografia como um dos elementos constitutivos das obras artiacutesticas

Ou seja ao pensarmos o ldquoexperimentalrdquo como vertente da imagem contemporacircnea devemos

tambeacutem ter em mente que essa tendecircncia compreende a fotografia associada a outras miacutedias (jaacute

que muitas vezes eacute convocada referindo o cinema o panorama o viacutedeo etc)153 Todas essas

questotildees estatildeo contempladas nas obras apresentadas ateacute aqui em diferentes estrateacutegias poeacuteticas

Assim o ldquoexperimentalrdquo incorpora tambeacutem uma criacutetica ao discurso de constante

aperfeiccediloamento da tecnologia e identificamos essa mesma reflexatildeo nas obras de Rosacircngela

Rennoacute Joanna Zylinska Joseacute Luiacutes Neto Sabato Visconti Luiz Alberto Guimaratildees comenta

A induacutestria desde o seacuteculo XIX tem buscado ldquomelhorarrdquo a tecnologia dos aparelhosfotograacuteficos centrando seus esforccedilos na obtenccedilatildeo de imagens cada vez mais instantacircnease realistas Pois qual eacute o objetivo das atuais cacircmeras com sensibilidade que chega aatingir ISO 25600 senatildeo capturar o ldquoinstantacircneo tambeacutem no escurordquo Por que natildeo sefabricam cacircmeras com ISO baixo que permitam longas exposiccedilotildees mesmo em situaccedilotildeesde alta luminosidade () A subversatildeo desses conceitos estaacute de algum modo presenteem minha trajetoacuteria (GUIMARAtildeES 2014 p4)

153 Em texto dedicado agrave uma histoacuteria da fotografia contemporacircnea Poivert (2015) indica precisamente que apoacutes1970 a fotografia apresenta-se associada agrave proacutepria noccedilatildeo de arte contemporacircnea natildeo podendo mais ser pensadacomo categoria artiacutestica autocircnoma

248

Cris Bierrenbach toca a mesma questatildeo relacionando-a com o interesse pelas teacutecnicas claacutessicas

() Essa conexatildeo que eacute o que eu comecei a fugir no analoacutegico eacute uma coisa que eacuteimposta por uma induacutestria Existe uma induacutestria que produz as cacircmeras regula ascacircmeras porque ningueacutem estudou fotografia e taacute todo mundo fotografando pra fazerfotos boas neacute Vamos dizer corretas na luz foco porque o equipamento faz isso Eacute ainduacutestria que diz isso eacute o correto O resto eacute desvio Aiacute vem as pessoas que criam osfiltros que satildeo as miacutemicas do que era a fotografia anterior Eacute muito difiacutecil encontraruma pessoa que esteja nesse mundo digital e que realmente esteja entendendo etentando buscar o que eacute realmente especiacutefico desse ambiente (BIERRENBACH 2018)

Poivert (2010 p40) identifica uma visatildeo criativa que ldquose traduz por uma liberdade dos

artistas no que diz respeito agrave teacutecnica normativa o experimental eacute uma figura invertida do

progresso estabelecendo assim uma relaccedilatildeo particular com a histoacuteriardquo mencionando exatamente

os problemas citados por Guimaratildees e Bierrenbach O pesquisador indica ainda que os artistas

podem trabalhar diretamente a mateacuteria a metamorfose dos espaccedilos renovar as praacuteticas de

montagem (POIVERT 2015) fazendo-nos concluir que o termo ldquoexperimentalrdquo designa um

conjunto de iniciativas variadas

Das praacuteticas ditas pobres agraves sofisticaccedilotildees extremas dos processos digitais encontramosnessa fotografia experimental a vontade de romper com as praacuteticas normativas e instituirum jogo com o visiacutevel como propulsor da criatividade A serviccedilo de uma poeacutetica porvezes criacutetica por vezes oniacuterica a fotografia experimental desafia o uso da imagemsonha com uma relaccedilatildeo com o real construiacuteda sobre a subjetividade arruiacutena toda umatradiccedilatildeo de uma imagem definida pela sua continuidade descritiva (POIVERT 2015p140)

As conclusotildees do autor ecoam nos escritos de Lenot (2017a p16) que advoga a favor de

uma conceituaccedilatildeo especificamente dedicada agraves imagens que satildeo ldquoinuacuteteis do ponto de vista da

representaccedilatildeordquo em que os artistas se ocupam do ldquoobjeto fotograacutefico em sirdquo de sua

ldquomaterialidaderdquo Eacute interessante que em sua pesquisa Lenot lamenta ter-se concentrado na

produccedilatildeo de europeus e norte-americanos sem conseguir alcanccedilar artistas japoneses (um grupo

ao qual podemos acrescentar os artistas latino-americanos) Segundo ele quando surgem as

miacutedias digitais a miacutedia analoacutegica perde sua (suposta) funccedilatildeo de reporta-se ao referente o que

leva os artistas a questionarem seus pressupostos mimeacuteticos Isso permite que ele identifique toda

uma produccedilatildeo orientada para o questionamento do ldquoaparelhordquo nas dimensotildees teacutecnica

epistemoloacutegica e esteacutetica (sob influecircncia da filosofia flusseriana) A abordagem de Lenot eacute mais

voltada para a identificaccedilatildeo do experimental como tendecircncia que se expressa no campo da

imagem fotoquiacutemica

249

Aqui nosso objetivo foi utilizar sua reflexatildeo para incluir tambeacutem os trabalhos realizados

com miacutedias digitais abrangendo todo o conjunto de obras que tenham como traccedilo definidor a

investigaccedilatildeo das propriedades dos dispositivos negligenciadas pelos paradigmas do instantacircneo

da representaccedilatildeo etc Aleacutem disso compreendemos que o aporte teoacuterico sobre a tendecircncia

experimental pode ser estendido agraves obras de natureza informaacutetica tambeacutem porque os escritos de

Flusser (2011) natildeo parecem se referir agrave figura do ldquofotograacutefo experimentalrdquo como ligada

exclusivamente ao universo da imagem analoacutegica Lembremos que o trabalho mais significativo

do pensador tcheco nesse sentido ndash o livro ldquoFilosofia da Caixa Pretardquo ndash foi escrito em (1983154)

um momento em que o paradigma informaacutetico jaacute era uma realidade A necessidade de

desenvolver competecircncias para manipular e reprogramar softwares e hardwares (alterando

funccedilotildees e desempenhos) pode tornar um pouco mais tortuoso o caminho dos artistas que

pretendem abrir a ldquocaixa pretardquo da imagem digital mas natildeo impossiacutevel

Tambeacutem podemos considerar que a fotografia eacute apenas um objeto servindo de pretexto

para Flusser discutir nossas relaccedilotildees com os aparelhos midiaacuteticos como diagnoacutestico de um

momento histoacuterico no qual a imagem eacute o paradigma dominante de conhecimento (em detrimento

do texto) inaugurando tambeacutem uma seacuterie de problemaacuteticas vinculadas agrave nossa dificuldade de

enxergar os modelos de pensamento que a informam Na ldquopoacutes-histoacuteriardquo (FLUSSER 2011) a

narrativa linear causal e progressiva da histoacuteria eacute substituiacuteda pela forma de narrar descontiacutenua

fragmentada e caoacutetica Filmes cinematograacuteficos programas de televisatildeo slides satildeo citados por

Flusser (2017) como exemplos desses modos narrativos poacutes-histoacutericos aos quais podemos

acrescentrar memes gifs videoclipes a videoarte os filmes interativos as instalaccedilotildees artiacutesticas

etc Num texto posteiror (2008) que amplia as discussotildees de ldquoFilosofia da caixa pretardquo o teoacuterico

refere-se agraves tecnoimagens como formadas por ldquopontos gratildeos e pixelsrdquo contribuindo

decisivamente para as reflexotildees sobre a ldquocultura dos media ou cultura de redesrdquo (MENEZES

2010)

Se as proposiccedilotildees da filosofia de Flusser foram exploradas ao longo de nosso estudo

especialmente nas ideias de uma relaccedilatildeo de acoplagem entre os sujeitos e as tecnologias

devemos fazer aqui menccedilatildeo tambeacutem ao pensamento de Gilbert Simondon (2017) em suas

preocupaccedilotildees com os viacutenculos entre objetos teacutecnicos e seres humanos ou seja como mais um

aporte filosoacutefico que daacute conta de uma associaccedilatildeo entre noacutes seres humanos e os dispositivos

154 Publicaccedilatildeo original em alematildeo de 1983 cuja traduccedilatildeo no Brasil feita pelo proacuteprio Flusser data de 1985 CfMenezes 2010 p23

250

Infelizmente natildeo conseguimos alcanccedilar suas reflexotildees a ponto de que fossem incluiacutedas na tese

Ao passo que Simondon parece tambeacutem investir num entendimento de natildeo oposiccedilatildeo entre seres e

objetos teacutecnicos consideramos que explorar suas ideias eacute tarefa para investigaccedilotildees que ampliem

este trabalho

No percurso investigativo sobre as possibilidades dos meios a imagem depara-se com a

questatildeo do ruiacutedo passando a referir como caracteriacutestica do modo experimental prenhe de falhas

e erros uma ldquoesteacutetica dos usos improacutepriosrdquo formada ldquode sobras e margensrdquo (POIVERT 2017

p13) Para noacutes apontar a atenccedilatildeo dada em pesquisas recentes a esses temas (ainda concentradas

sob a terminologia da fotografia) eacute uma maneira de articular a emergecircncia do problema do ruiacutedo

no campo da imagem em suas ramificaccedilotildees possiacuteveis com a materialidade o experimentalismo

o acaso e a abordagem arqueoloacutegica da miacutedia sem perder de vista os proacuteprios movimentos do

pensamento teoacuterico do campo da imagem que foram nosso ponto de partida

251

7 CHEGADAS OU CONCLUSOtildeES

Este trabalho surgiu da tentativa de entender a valorizaccedilatildeo de marcas visuais como o

desfoque o borratildeo o tremido entre outras no acircmbito da produccedilatildeo fotograacutefica contemporacircnea Se

incialmente consideraacutevamos que essas praacuteticas estavam restritas ao uso de tecnologias

analoacutegicas empregadas como recusa agrave limpeza agrave regularidade da imagem digital percebemos

que o valor de uma esteacutetica com tais elementos deve-se ao interesse por esteacuteticas alternativas ao

modelo representativo da imagem fotograacutefica (questatildeo que ultrapassa a tipologia da miacutedia

utilizada)

Iniciamos fazendo uma revisatildeo de temas relevantes para os debates sobre o paradigma

digital posto que este trouxe para a centralidade da produccedilatildeo de imagens questotildees como a

abertura agrave manipulaccedilatildeo a interloculaccedilatildeo entre modos da imagem analoacutegica em dispositivos

computadorizados como por exemplo na praacutetica vernacular do uso de filtros de apps em

telefones celulares e consequentemente a elaboraccedilatildeo de produtos multimiacutedia Ao olhar para as

teorias da fotografia e a produccedilatildeo de imagens recente notamos que alguns dos trabalhos mais

interessantes apostam exatamente no diaacutelogo entre miacutedias atestando que o hibridismo eacute uma

tendecircncia forte das obras contemporacircneas Estes trabalhos convivem lado a lado com outros que

atraveacutes de uma esteacutetica de limpeza ndash atada a certo ideal de perfeiccedilatildeo ndash reintroduz teses caras agrave

teoria da fotografia tais como a relaccedilatildeo com o mimetismo a pespectiva geomeacutetrica e o

instantacircneo temporal

Tais observaccedilotildees nos levaram a concluir que ao contraacuterio de uma separaccedilatildeo radical entre

analoacutegico e digital haacute espaccedilo na produccedilatildeo atual para uma saudaacutevel negociaccedilatildeo entre essas

linguagens meios hardwares e softwares que eacute responsaacutevel pela composiccedilatildeo de todo um cenaacuterio

de imagens experimentais investigadas em nosso corpus Dessa forma conduzimos nossa

discussatildeo a partir de uma perspectiva relacional entre as miacutedias buscando as continuidades em

vez de ressaltar as oposiccedilotildees

Notamos tambeacutem que as obras conceituadas de experimentais podem ter suas esteacuteticas

relacionadas ao conceito de ruiacutedo na medida em que satildeo construiacutedas atraveacutes de movimentos de

diferenciaccedilatildeo dessa esteacutetica limpa e perfeita Desse modo propusemos como debate central da

252

tese as relaccedilotildees entre ruiacutedo e imagem e as variadas manifestaccedilotildees do ruiacutedo em trabalhos

fotograacuteficos resultantes de estrateacutegias criativas assentadas na desprogramaccedilatildeo das tecnologias

Descortinamos um conjunto de obras nas quais o ruiacutedo aparece como resultado de

intervenccedilotildees em equipamentos alteraccedilotildees das etapas de processos de obtenccedilatildeo da imagem

elaboraccedilatildeo de dispositivos originais (natildeo-industriais) uso de arquivos e softwares corrompidos

em suas funccedilotildees industriais combinaccedilatildeo de materiais fotograacuteficos cinematograacuteficos

videograacuteficos e pictoacutericos Ou seja toda sorte de metodologias adotadas por artistas que partem

de uma recusa ao uso acriacutetico das miacutedias provocando uma reflexatildeo sobre os limites das teacutecnicas

ao mesmo tempo em que nos fazem experimentar novas sensibilidades por meio das obras

A interlocuccedilatildeo entre ruiacutedo e imagem no campo da fotografia revelou caracteriacutesticas

importantes desses trabalhos Por exemplo como fenocircmeno que indica instabilidade

desagragaccedilatildeo de padrotildees e a convivecircncia de temporalidades haacute uma consideraacutevel variabilidade

de estilos abordagens e esteacuteticas O repertoacuterio iniciado aqui segue aberto a ampliaccedilotildees jaacute que

quando falamos em ruiacutedo na fotografia estamos considerando que o fotograacutefico possui uma

natureza polimorfa que exige constante investigaccedilatildeo sobre as possibilidades de configuraccedilatildeo do

ruiacutedo

Haacute obras que assentadas no tensionamento da proacutepria tecnologia revelam o ruiacutedo como

expressatildeo genuiacutena da experimentaccedilatildeo com maacutequinas quiacutemicos suportes arquivos softwares

gadgets afirmando-se como pura expressatildeo sem necessariamente buscar o viacutenculo com

significados uniacutevocos e de faacutecil rotulagem Assim denominamos essas imagens de processuais

porque muitas vezes elas carregam as marcas de seus processos de elaboraccedilatildeo e se uma das

caracteriacutesticas do ruiacutedo eacute ser traccedilo do medium onde se manifesta as imagens processuais trazem

em suas esteacuteticas as inscriccedilotildees dos ruiacutedos que suas tecnologias satildeo capazes de produzir

O ruiacutedo como traccedilo do medium indica tambeacutem a expressatildeo da materialidade das

tecnologias outra questatildeo importante em nosso detabe Em entrevistas realizadas para esta

pesquisa na proacutepria estrutura e na plaacutestica das obras entendemos que a dimensatildeo material das

imagens eacute um elemento importante da construccedilatildeo do sentido esteja essa materialidade

representada na dimensatildeo fiacutesica de uma imagem-objeto ou na tipologia de formatos de arquivos

manipulados via computador Em ambos os casos a exploraccedilatildeo da mateacuteria da imagem fotograacutefica

chama nossa atenccedilatildeo agrave presenccedila do ruiacutedo

As investigaccedilotildees dirigidas aos meios indicam ainda que haacute sempre expansotildees a serem

253

realizadas novos modos de uso e ressignificaccedilotildees possiacuteveis Isso mostra que nenhuma

tecnologia encontra-se esgotada do ponto de vista de suas potecircncias criativas Tanto pelas

intervenccedilotildees e reprogramaccedilotildees empreendidas pelos e pelas artistas na praacutetica quanto pelas

contribuiccedilotildees do campo da arqueologia da miacutedia afirmamos que a fotografia experimental revela

o interesse em lanccedilar um olhar renovado a quaisquer dispositivos Esse interesse por sua vez traz

como subtexto uma criacutetica agrave retoacuterica de evoluccedilatildeo da tecnologia (contida em noccedilotildees como

melhoria do desempenho aumento de qualidade e eficiecircncia incremento da fidelidade das

imagens ao real)

A emergecircncia do ruiacutedo mostrou tambeacutem a importacircncia de considerar a presenccedila do

acaso nas praacuteticas artiacutesticas Em muitas obras o acaso eacute responsaacutevel por certo grau de

imprevisibilidade que eacute bem-vindo no processo Percebemos que osas artistas compreendem que

para aleacutem de um domiacutenio sobre os meios e teacutecnicas o imprevisiacutevel colabora com o resultado

final de seus trabalhos (em vez de representar um empecilho) sendo aceito como elemento

positivo Tal compreensatildeo sobre o acaso explica por exemplo o fato de que os erros e falhas

ocorridos no funcionamento de sistemas computadorizados satildeo a base de algumas das obras

analisadas em nosso texto ou mesmo a questatildeo de que em alguns casos deixa-se os materiais

interagirem entre si para o desenvolvimento do trabalho Se o acaso eacute uma intervenccedilatildeo positiva

novas esteacuteticas surgem exatamente da exploraccedilatildeo dos desvios que o acaso traz agrave tona

O debate proposto nesta tese reforccedila que o universo da fotografia contemporacircnea eacute

plural em suas praacuteticas intencionalidades e esteacuteticas e que na convivecircncia entre miacutedias

analoacutegicas e digitais o campo da arte destaca-se por trazer agrave tona questotildees importantes que

provocam reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre seres humanos e tecnologias as praacuteticas artiacutesticas

experimentais e suas potecircncias de criacutetica a teses caras agrave teoria da fotografia e o interesse pelo

tema do ruiacutedo a partir de uma compreensatildeo de seu caraacuteter produtivo Acreditamos ainda que as

aproximaccedilotildees entre o tema do ruiacutedo e a fotografia juntam-se a outras perspectivas teoacutericas que

apontam o vieacutes de artifiacutecio de construccedilatildeo da imagem fotograacutefica em contraposiccedilatildeo ao

automatismo que por vezes eacute associado agraves imagens teacutecnicas

254

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WARNER Marigold Clare Strand investigates communication and misinformationDisponiacutevel em httpswwwbjp-onlinecom202002clare-strand-deutsche-borse-the-photographers-galleryutm_campaign=Newsletter20Emails202019amputm_source=hs_emailamputm_medium=emailamputm_content=83723946amp_hsenc=p2ANqtz-9qS_x4_4HGsd8coAECvsTwhnHqnBdzHS4NXG8dZfnyZbsklfhy5O7fn9Z3aAtPTKCbzBAyY-vUVFJjNaEJz6j4jeNzO2Aamp_hsmi=83737033 Acesso em 11 mar 2020

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________________ Nonhuman Photography Cambridge MIT Press 2017a

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httpwwwandreasgurskycom ndash Andreas Gursky

httpswwwngvvicgovau ndash Jeff Wall

httpwwwjoannazylinskanetphotography - Joanna Zylinska

httplumieregallerynetwp - Lumiegravere Gallery

httppromagnumphotoscom - Magnum Agency

httpapertureorgshopthomas-ruff-j ndash Aperture

httpwwwmetmuseumorg - The Metropolitan Museum of Art

httpmuellerpohlenetvita - Andreas Muumlller-Phole

httpswwwcassiovasconcelloscombr - Caacutessio Vasconcellos

httpscrisbierrenbachcom - Cris Bierrenbach

httpswwwflickrcomphotosdirceumaues - Dirceu Maueacutes Flickr

httpswwwlaguimaraescom - Luiz Alberto Guimaratildees

httpthomaskonercom - Thomas Koumlner

httpwwwarquivovilemflusserspcombrvilemflusser - Arquivo Vileacutem Flusser Satildeo Paulo

httpwwwgraffitiofwarcomthe-basetrack-projecthtml - Basetrack Project

httpswwwbiarritzzzcom - Biarritzzz

httpwwwcpifneten - Centre Photographique DrsquoIle-de-France

httpswwwclarestrandcouk - Claire Strand

httpwwwederoliveiranet - Eacuteder Oliveira

httpkarlaosoriocom - Galeria Karla Osorio

httpimpossiblesupersensecom - Impossible Project

httpsinpursuitoferrorcouk - In Pursuit of Error (Tracy Piper-Wright)

httpswwwjasonshulmanstudiocom - Jason Shulman

httpwwwjoannazylinskanet - Joanna Zylinska

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httpwwwjoseluisnetopt - Joseacute Luiacutes Neto

httpwwwpaologioliit - Paolo Gioli

httpwwwprojectomapcom Projecto MAP (Mapa de Artistas de Portugal)

httpwwwrosangelarennocombr- Rosacircngela Rennoacute

httpswwwsabatoboxcom - Sabato Visconti

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FILMES E VIacuteDEOS

BLOW Up Direccedilatildeo Michelangelo Antonioni MGM 1966

CORRA Direccedilatildeo Jordan Peele Universal Pictures 2017

CRIS Bierrenbach - 1ordm Ciclo de fotografia - Cidade Invertida 2017 Disponiacutevel emhttpswwwyoutubecomwatchv=MUp098qZLDY Acesso em 20 dezembro 2019

ENTRE Imagens (Joseacute Luiacutes Neto) Direccedilatildeo Pedro Macedo RTP2 2012 Disponiacutevel emhttpswwwyoutubecomwatchv=r8SQHL_Krfcampt=944s Acesso em 20 dezembro 2019

LEVIATHAN DireccedilatildeoLucien Castaing-Taylor e Veacutereacutena Paravel Cinema Guild 2012

NO country for old men Direccedilatildeo Joel e Ethan Cohen Miramax Films 2007

NOacuteS Direccedilatildeo Jordan Peele Universal Pictures 2019

O EVANGELHO Segundo Satildeo Mateus Direccedilatildeo Pier Paolo Pasolini 1964

O MAacuteGICO de Oz Direccedilatildeo Victor Fleming MGM 1939

OUTUBRO Direccedilatildeo Sergei Eisenstein Sovkino 1927

POLTERGEIST - O Fenocircmeno Direccedilatildeo Tobe Hooper MGM 1982

STALKER Direccedilatildeo Andrei Tarkovsky Mosfilm 1979

SOLO Uma histoacuteria Star Wars Direccedilatildeo Ron Howard Walt Disney Studios Motion Pictures2018

STAR Wars - Guerra nas Estrelas Direccedilatildeo George Lucas 20th Century Fox 1977

STAR Wars - Episoacutedio II - O Ataque dos Clones Direccedilatildeo George Lucas 20th Century

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Fox2002

STAR Wars - Episoacutedio VII - O despertar da forccedila Direccedilatildeo J J Abrams Walt Disney StudiosMotion Pictures 2015

STAR Wars - Episoacutedio V - O Impeacuterio Contra Ataca Direccedilatildeo Irvin Kershner 20th CenturyFox1980

STAR Wars - Episiacutedo VI - O retorno de Jedi Direccedilatildeo Richard Marquand 20th CenturyFox1983

STAR Wars - Episoacutedio III - A vinganccedila dos Sith Direccedilatildeo George Lucas 20th Century Fox2005

SUSPIRIA Direccedilatildeo Dario Argento 1977

SUSPIRIA - A danccedila do medo Direccedilatildeo Luca Guadagnino Playarte Pictures 2018

2001 UMA Odisseacuteia no espaccedilo Direccedilatildeo Stanley Kubrik MGM 1968

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