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10 UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA MESTRADO EM HISTÓRIA A ARISTOCRATIZAÇÃO PROVINCIANA EM FORTALEZA (1840-1890) DISSERTAÇÃO DE MESTRADO José Ernesto Pimentel Filho

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA MESTRADO EM HISTÓRIA

A ARISTOCRATIZAÇÃO PROVINCIANA EM FORTALEZA (1840-1890)

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO José Ernesto Pimentel Filho

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1995 UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA MESTRADO EM HISTÓRIA A Aristocratização Provinciana em Fortaleza (1840 - 1890) José Ernesto Pimentel Filho Dissertação de Mestrado Orientadores: Michel Zaidan Filho Antonio Jorge Siqueira Apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

História da Universidade Federal de Pernambuco para obtenção do grau de Mestre em História

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Recife 1995

“O que invocamos aqui é o horizonte da pesquisa, sabendo que teremos de nos deter enquanto avançamos em direção a esse horizonte. O importante é avançar e encontrar alguma coisa; nada de quedar esfomeado às voltas com uma pesquisa sem termo...”

Henri Lefebvre “Muita cousa me ocorre dizer sobre o assunto, que talvez devera antecipar à leitura da obra, para prevenir a surpresa de alguns e responder às observações de outros. “Mas sempre fui avesso aos prólogos; em meu conceito eles fazem à obra o mesmo que o pássaro à fruta antes de colhida; roubam as primícias do sabor literário”.

José de Alencar “Os guardanapos estão sempre limpos / “As empregadas uniformizadas/ “São caboclos querendo ser ingleses/

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“São caboclos querendo ser ingleses/ “A burguesia fede!”

Cazuza

Agradecimentos

O trabalho intelectual nunca é uma atividade solitária. Tal como os ventos

que sopram para construir as ondas e das ondas as marés, sem que para banharmo-

nos seja necessário distinguir todas as suas direções, muitas são as confluências

que levam a um escrito final. Algumas delas nem sabemos precisar direito.

Sabemos vagamente que estão lá... Até que um dia, alguém nos surpreende com a

lembrança daquele autor esquecido que lemos, ou um fato mancante condensado,

anos mais tarde, nas páginas de uma Dissertação. Essas redes são tão difíceis

quanto estimulantes.

Há também contribuições visíveis de pessoas e instituições, às quais seria

um verdadeiro pecado esquecê-las, muito embora não seja possível listar todas. De

antemão, peço desculpas pelos possíveis nomes não lembrados nesta seção. Diz o

ditado: “casa de ferreiro, espeto de madeira”. Apesar do historiador ter como

ofício principal o cuidado com a memória, não posso me considerar uma pessoa

lembrada.

Tenho muito a agradecer ao meu amigo Marco Aurélio Ferreira, com

quem dividi apartamento durante o período em que cursávamos os créditos.

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Juntos, discutíamos os projetos, as aulas e tudo quanto escrevíamos, o que fez com

que a proposta inicial deste trabalho fosse confeccionada em meio a esse ambiente.

Impossível não lembrar o nome de outro amigo, Antonio de Pádua

Santiago, com quem convivi como colega de Licenciatura. Dele partiram muitas e

geniais observações sobre a relação entre o popular e o erudito. Além disso, depois

que o conheci, aprofundou-se em mim o sentido da História como compromisso

frente presente. Na concepção geral do trabalho e em muitas reflexões pulsam

presenças suas.

As primeiras discussões que fiz datam ainda da Graduação, quando tive o

estímulo e o apoio concreto do professor Eurípedes Funes, além do professor

Gisafran Jucá e da professora Adelaide Gonçalves, entre outros. Eurípedes, já

durante o mestrado, contribuiu para fecharmos uma versão final do Projeto. O

professor João Alfredo Montenegro participou também das primeiras orientações,

com sua recepção acolhedora, em que expunha sugestões de fontes, bem como

concisas análises do desenvolvimento das idéias no Ceará. Cito ao longo da

Dissertação, alguns de seus trabalhos.

O professor de Comunicação Social da UFC, Gilmar de Carvalho, deu

uma contribuição grandiosa ao me deixar fotocopiar um vasto levantamento que

ele realizara em torno dos anúncios do jornal O Cearense. No segundo capítulo,

este material foi exaustivamente utilizado. O arquiteto Clóvis igualmente forneceu

um material que infelizmente não pude aproveitar neste momento.

O meu contato com os géografos nos últimos dois anos possibilitou

riquíssimas trocas. O professor José Borzachiello da Silva (UFC) contribuiu na

revisão dos originais. Igualmente a professora Maria do Céu de Lima (UFC)

esteve empenhada no processo de revisão e, mais do que isso, discutiu diversos

conceitos aqui abordados. Esse intercâmbio tem sido constante também com a

professora Maria de Fátima Rodrigues (UFPB).

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Meu querido amigo e também professor de Geografia (UFPB), Manoel

Fernandes de Sousa Neto, dialogou com entusiasmo e espírito crítico quase todos

pontos aqui levantados. Muitas das suas questões eu não pude responder nesse

momento.

Lembro ainda! A maior parte deste material foi digitado no escritório

pessoal do Fernandes, no que foi extremamente prestativo.

Sem o apoio, a compreensão e a confiança do meu tio, Erialdo Pimentel,

bem como de toda a sua família, eu não poderia ter cursado os créditos do

Mestrado.

A aluna de História, Carla Mary, digitou quase todo o material e

secretariou parte do processo de confecção. Foi uma amiga, sem dúvida,

compreensiva.

O acolhimento da professora Vanda, chefe do Departamento de Geo-

Ciências (UFPB), foi de grande profissionalismo. O LABOCAR, ligado ao mesmo

Departamento, confeccionou a Planta da cidade de Fortaleza com projeção

ampliada do Passeio Público em 1888.

Na Biblioteca Pública Meneses Pimentel, consultei o que há de mais

substancial em termos de fonte primária nesta pesquisa. Lá, a Magnólia,

responsável pelo setor de obras raras, foi pessoa preciosa na busca e sugestão de

fontes. O setor de microfilmagem do Arquivo Público, instalado na Biblioteca, sob

a direção da professora Valda Weyne e do Elmadan, tem um rico acervo

hemerográfico, do qual me servi amplamente.

O PICD-CAPES- UFC financiou a bolsa de mestrado durante dois anos e

meio. Sou grato a todos os meus colegas do Departamento de História da UFPB

(Campus I) pelo incentivo e apoio nas horas em que foi necessário. Em especial,

aos professores Ruston Lemos, Joana Neves e Lúcio Flávio Vasconcelos.

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Finalmente, tenho muito a agradecer ao professor Michel Zaidan Filho,

que durante todo este período deu-me confiança irrestrita. Ao longo do processo

de pesquisa acabei me distanciando bastante do projeto inicial, que previa um

trabalho na área de Teoria da História. Ao redirecionar o estudo para uma história

da cultura no Nordeste, o intercâmbio com o professor e a pessoa de Jorge

Siqueira foi dos mais gratificantes. Tenho para com ele inúmeros débitos.

Resumo

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Esta Dissertação trata de cinco manifestações culturais das elites

cearenses que habitavam a capital entre 1840 e 1890, com vistas a

construir o conceito de aristocratização provinciana. A narrativa detém-se

nas formas de produção e apropriação do simbólico e da cultura em geral,

por parte das camadas letradas e cultas. Surge uma visão de mundo que

exclui grande parte da população, ao passo que hierarquiza e disciplina os

que não partilham da modernidade do século XIX. Este conjunto de

representações está centrado na imagética da oposição luz/sombra,

remetendo esses referenciais a significados específicos da realidade e da

identidade locais. A metodologia possibilita o uso de fontes de Estado, da

literatura e do cotidiano urbano da cidade de Fortaleza.

ÍNDICE

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Introdução: do intelectual ao sócio-cultural 08

1. A modernidade no século XIX 10

2. A cidade, o espaço e a modernidade 45

3. A educação das elites e a disciplinarização dos pobres 92

4. O olhar de medusa 132

5. A supressão da memória e a história como tragédia 160

6. A luta contra as tradições 183

7. As literatices 210

Conclusão: representações em torno da luz 233

Sumário dos esquemas, tabelas e ilustrações 249

Bibliografia Geral 250

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SUMÁRIO DOS ESQUEMAS, ILUSTRAÇÕES E TABELAS

Esquema 01 - Fluxograma da Sociedade Patriarcal no século XVIII e primeira

metade do século XIX ................................................................................... p. 20

Esquema 02 - Acomodação e Subordinação .............................................. p. 31

Planta da cidade de Fortaleza com projeção ampliada do Passeio Público .. p.

83

Croquis do Plano Superior do Passeio Público .......................................... p. 85

Tabela 1 - Instrução pública: ensino primário ........................................... p. 118

Tabela 2 - Instrução pública: ensino secundário ....................................... p. 125

Tabela 3 - Instrução pública: porcentagens do ensino primário e secundário

.............................................................................................. p. 126

Tabela 4 - Instrução particular e pública: ensino secundário .................... p. 127

Tabela 5 - Instrução particular e pública: porcentagens do ensino secundário

............................................................................................. p. 128

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INTRODUÇÃO:

DO INTELECTUAL AO SÓCIO-CULTURAL

O nosso primeiro contato com a elite letrada cearense do século

XIX, deu-se durante a graduação no curso de História-UFC, a partir do

incentivo de uma bolsa de estudos da CAPES, o Programa Especial de

Treinamento (PET). Foi uma experiência com os discursos da Academia

Cearense, associação de homens cultos do final do século passado que

objetivava inteirar-se, debater e utilizar os progressos culturais da “época

do progresso”.

Nossas primeiras preocupações diziam respeito a resgatar o

pensamento da elite de então. Verificamos que, inda que de maneira

esparsa, algo já se tinha feito nesse sentido, através do trabalho de

literatos e alguns historiadores.

Menos, porém, avançou-se no estudo de um campo mais amplo, o

das mentalidades e comportamentos reveladores da construção cultural,

ou pelo menos alguns de seus aspectos, da cidade de Fortaleza e do

Estado do Ceará.

As leituras metodológicas apontaram-nos uma riqueza dessa

abordagem mais abrangente, que tenta recorrer não somente à produção

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de idéias, a uma análise essencialmente bibliográfica, mas também às

relações entre o saber e a sociedade, à prática sócio-mental dos homens

agindo coletivamente.

Durante o ano de 1991, ingressamos no Mestrado em História-

UFPE, passando a fazer leituras sobre o imaginário e as formas de

manipulação da memória das sociedades históricas1. A luta por

estabelecer e mesmo destruir identidades ou referenciais de ação social é

um dos aspectos que mais estão presentes nas democracias atuais. O

mental coletivo não é interclassista e nem singular, ele se faz na complexa

luta dos homens para se produzirem enquanto tais.

Assim, temos procurado uma história que seja mais do que a

história das idéias ou elaborações eruditas da elite, para vê-las em seu

contato, do qual ela nunca se distancia completamente, para com o

cotidiano e as lutas do social-urbano.

Tal perspectiva vem ao encontro de nossas aspirações de

provocar a elaboração de uma realidade crítica, inteligente e produtora de

bens culturais relacionados aos interesses sociais do presente.

Tentamos, portanto, não nos limitar a uma história das idéias e tão

somente das ações conscientes dos agentes históricos, para procurar a

representação2 da vida no ato de escrever, passear, de narrar

1 Vide Jacques Le Goff, “Documento/Monumento” e “Memória”, in: Jacques Le Goff. História e Memória. 3a ed. Campinas: UNICAMP, 1994. 2 Vide Carlo Ginsburg, “Représentation: le mot, l’idée, la chose”, in: ANNALES E.S.C., n.6, novembre- décembre, 1991, pp. 1219 - 1234 e Roger Chartier, “Le monde comme représentation”, in: ANNALES E.S.C., n. 6, novembre-décembre, 1989, pp. 1505 - 1520.

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acontecimentos pessoais, de nomear as ruas e a cidade, de lutar pela

memória e pela cultura.

Lembramos ainda que a retomada que aqui empreendemos de um

dos trabalhos escritos por Gilberto Freyre, não visa fazer uma leitura do

“nordeste sem cana e sem açúcar”, nos moldes freyrianos. De um lado,

mostramos o contraste de tempos para cada região: o nordeste

pernambucano e o nordeste do binômio algodão-pecuária. De outro,

vemos neste autor uma fonte de inspiração metodológica.

A MODERNIDADE NO SÉCULO XIX O nosso século XIX esteve enredado num processo de diferenciação profundo. O indivíduo e o grupo, a classe e a raça, o norte e o sul, o litorâneo, o sertanejo e muitas outras espécies de classificação ou preconceituação. Variadas distinções dos homens sob os mais diversos crivos do olhar comum. O escravo e o senhor foram apenas tipos de uma hierarquia mais à vista. A sociedade brasileira não era tão somente escravocrata mas conflituosa, tensa diante de elementos infinitamente díspares. Sem um passado, sem uma tradição, sem uma raça, ela era um conjunto multifacetado, recortado em economias incapazes de unificarem seu próprio raio de ação. Estruturas de produção fortes no interior de economias débeis. De uma fragilidade espantosa pela sua ação enquistada, esmigalhada. Uma província vizinha à outra sem comunicação efetiva, sem canais de integração econômica, sem uma composição de classe assemelhada. A prosperidade do irmão da província vizinha não era incompatível com a miséria de outra. Senhores opulentos roubando de também senhores que habitavam região infortunada. O homem escravo, o homem pobre, o homem urbano, cada um na sua sub-região (e havia muitas sub-regiões) era um distinto do outro. A urbe sobre as águas, a alta e a baixa cidade, a cidade plana; aqui uma cidade de progressos arquitetônicos, ali uma vila com o pelourinho, a casa do capitão-mor e a capela. A formação holandesa, a formação portuguesa, as variadas formações indígenas e também as variadas formações africanas... O século XIX porá a todos num imenso caldeirão. Por quê? Inomináveis caracteres culturais untados sob o nome de Brasil, de cultura brasileira, de nação? Será uma complexidade promissora? Ou será barbárie? Acrescentemos a elementos tão díspares o processo de reeuropeização. Se nos europeizamos à portuguesa durante a colonização, nos reeuropeizamos à francesa e à inglesa nesse século de apologias desmedidas ao progresso. Poderíamos dar, entretanto, outra nomenclatura a essas transformações:

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modernidade. De fato, não seria plenamente possível uma europeização e muito pouco mesmo somos cultura importada integralmente. Existe uma modernidade à brasileira. Tradicionalmente se têm referido a fatos econômicos no estudo do século passado. Por exemplo: o crescimento do imperialismo inglês, a necessidade de importação de maquinarias para as neo-colônias, a transição para o trabalho livre e outros temas que enfocam o que se chama de maneira um tanto convencional de modernização. Esta é uma designação que faz, normalmente, referência a processos econômicos. A modernidade está, sem sombra de dúvida, relacionada com aspectos econômicos, mas faz mais referência a amplas realidades culturais. A abordagem cultural da realidade brasileira não é nenhuma novidade. Como, de fato, as tendências ou "modas" intelectuais de uma época sempre procuram citar uma tradição, um passado onde certas insinuações e ensaios foram feitos até efetivar-se a explosão do inusitadamente novo. Digamos, então, que diversos aspectos da obra gilbertiana dos anos 30 ainda são capazes de despertar o nosso encantamento em plena década de 90, malgrado seus equívocos 3 .

3Sobre a trajetória de Gilberto Freyre, vide Luis A. de Castro Santos, “O espírito da aldeia”, in: Novos Estudos CEBRAP, n. 27, julho de 1990, pp. 45-66.

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O MUNDO URBANO E A SOCIEDADE PATRIARCAL O esforço de Gilberto Freyre em Sobrados e Mucambos concentra-se na elaboração de um painel do século XIX4. Grandes linhas de periodização são montadas para dar conta de nossa modernidade europeizada. Um processo total delineia-se à primeira vista para, em seguida, estilhaçar-se: nas relações entre o espaço íntimo da casa, do sobrado, e as grosserias do espaço público por onde passeia o branco pobre, o mestiço e o negro; nas relações familiares entre o pai, a esposa e o filho; nas trocas de uma cultura colonial freqüentemente perpassada de elementos árabes, africanos e mouros, por uma outra europeizada e elegante; por último, nas relações entre as classes, raças e grupos. Em todos os temas enfocados, a primazia da cultura. Em cada um vislumbra-se um mundo; o panorama que açambarca as linhas gerais do desenvolvimento cultural do século passado também se adensa nos subtemas5. Tem essas diversas sociologias a vantagem de não estarem sufocadas pela macro-periodização. Apenas que as páginas abordando um século das relações homem e mulher, por exemplo, também abordam um imenso caldo de influências e expressões cotidianamente vividas na extensão de um país que até geograficamente falando é sempre mais abrangente. Ainda assim, cada panorama está aberto, autônomo. É sujeito a novos cortes no tempo. Faz referência a uma suposta modernidade que não se esgota em esquematismos. O moderno se faz ver no estudo de cada aspecto do cotidiano abordado. Quase nada destina-se aprioristicamente a aparecer ou ser suplantado diante do moderno. Uns elementos sobrevivem, outros sucumbem. Tudo por uma historicidade própria. Sem determinismos:

Libertando-nos do determinismo étnico, como do geográfico e do

econômico, e vendo na raça como no meio físico e na técnica de produção,

forças que condicionam o desenvolvimento humano, sem o determinarem de

modo rígido e uniforme - ao contrário, influenciando-se reciprocamente e de

maneira sempre diversa - ficamos com liberdade para interpretar êsse

desenvolvimento, segundo a sua própria dinâmica.6

4Vide Gilberto Freyre, Sobrados e Mucambos. 6a. ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Recife: Câmara dos Deputados/ Gov. do Estado de Pernambuco, 2 vols., 1981, 758 p. 5Sobrados e Mucambos traz um panorama geral das modificações do séc. XIX, explicando-as do ponto de vista econômico-político (cap. l). Em seguida os temas vão se diversificando a cada capítulo, e estes passam a ser quase autônomos. 6Vide Gilberto Freyre, op. cit., p. 657.

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Completa ainda que: “Muitas das qualidades ligadas a raça, ou ao meio, vê-se então que se desenvolveram historicamente, ou antes, dinamicamente, pela cultura, no grupo e no homem”. 7 A historicidade aparece, então, como elemento fundante de suas análises caracterizadas como sociológicas. Não há um conceito que não se apresente como temática histórica construída na impureza do trato empírico. Não traz a limpidez das armações teóricas. Traz os conceitos partidos em "semi", antecedidos de "quase", mergulhados em suas próprias contradições e ressalvas. Tudo é suavizado por um polimento literário, um quase romance. Gilberto Freyre contou histórias. Suas histórias de modernidade começam distante, talvez no "tempo dos flamengo", na chegada dos judeus sefardins, vindos direto da Ásia para a Europa e daí para o Novo Mundo com holandeses e ibéricos. Uma história que, como já foi dito, é mais pernambucana, quando não recifense:“O Recife do século XVII ouvira por trinta anos o ruído de muitas línguas vivas, faladas nas ruas e dentro dos sobrados”8. Recife da modernidade antecipada pela influência urbanística, principalmente dos holandeses. Mas não só nesse campo, em todos. Também a presença judaica torna-se fundamental na análise gilbertiana da transição do “patriarcal” ao “semi-patriarcal”. O sefardim não seria o mesmo que o judeu folclórico que todos nós conhecemos com as características de avareza, de mesquinhez. Estas seriam marcas dos asquenazins. A cultura sefárdica seria cosmopolita por excelência. O próprio Recife era, para ele, cosmopolita "pelo seu gênero de vida e pela sua população desigual de neerlandeses, franceses, alemães, judeos, católicos, protestantes, negros e caboclos"9. Os holandeses e os judeus constituem duas presenças peculiares a moldar uma cidade do Norte da Colônia: “O Recife judaico-holandês tornou-se o maior centro de diferenciação intelectual na colônia, que o esforço Católico no sentido da integração procurava conservar estranha às novas ciências e às novas línguas10”. Para G. Freyre, Recife foi moderna antes do Brasil o ser. Foi o primeiro surto de uma dinamização econômica e cultural na Colônia. Os holandeses já transmutavam a apatia colonial, no século XVII. Mexiam as estruturas de sustentação do poder dos senhores de escravos, acostumados ao domínio da região. Endividavam as economias rurais fazendo do campo um subordinado dos homens de capital financeiro e usurário. Os engenhos insurgem-se contra os detentores do crédito numa

(...)campanha gloriosa contra os holandeses e os judeos no século XVII -

embora suas relações com os invasores não fossem puramente as de

7Ibidem. 8Idem, p. 319. 9Idem, p. 320. 10Ibidem.

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homens que defendessem o solo nativo das garras do estrangeiro: também

a de devedores relapsos contra credores impacientes.11 O Judeu age como financista e usurário... Atende às necessidades dos engenhos em manterem-se economicamente vivos. Alimentam os fundamentos básicos de uma economia ruralizante que são a monocultura e a escravidão: "Duas bocas enormes pedindo dinheiro e pedindo negro"12. Embora nem sempre o judeu tenha sido o elemento exclusivo nesse processo de monetarização, não foi ele unicamente a deter o capital investidor que se injetava, muitas vezes sem retorno, nas unidades produtivas da monocultura escravista. O próprio Estado português terá um papel fundamental no apoio das atividades comerciais em desvantagem dos potentados que se arvoravam autônomos frente a El-Rey. Em verdade, o marco fundamental desse processo é a chegada de D. João VI, em 1808. Um novo interesse pela Colônia se fizera desde a descoberta das minas:

O Brasil deixara de ser a terra de pau-de-tinta tratada um tanto de resto

por el-Rei, para tornar-se a melhor colônia de Portugal - sobretudo do

Portugal beato e pomposo de D. João V - e por isso mesmo a mais

profundamente explorada, a vigiada com maior ciúme, a governada com o

maior rigor.13

Um poder centralizado ensaiara-se com o ouro. Minas foi também promissora e urbana, embora em segundo lugar, depois de Recife. Precocemente industrial por força da atração do metal nobre. Precocemente urbana, muito embora sem aquela substância de cultura cosmopolita. Foi sociedade ainda "rusticamente agrária"14, mas onde a burocracia monárquico-portuguesa treinou seu controle zeloso e interventor. Sem o dedo do Estado, não se faria completamente esta modernização. Embora difusamente, por

(...) uma série de influências sociais - principalmente econômicas -

algumas anteriores à chegada do príncipe mas que só depois dela se

11Idem, p. 52. 12Idem, p. 10. 13Idem, p. 03. 14Idem, p. 282.

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definiram ou tomaram cor, começaram a alterar a estrutura da Colônia no

sentido do maior prestígio do poder real.15

A necessidade econômica da modernização é capitalizada politicamente pelas mãos engorduradas de D. João VI. O Rei realiza, à sua moda, o papel do monarca absoluto do velho mundo. Apóia-se no urbano contra o rural, cria o Banco, deixa prosperar a indústria e procura a centralização administrativa contra os potentados desconhecedores da autoridade real. Essa centralização que se avigora fora já preparada com as minas. Conhece-se a força do poder real disciplinando e vigiando o ouro. É a primeira vez que senhores do campo reconhecem um obstáculo, um poder maior que o seu. A mesma aliança do Estado com os sobrados urbanos se dá em Pernambuco. Os mesmos conflitos, agora entre a empáfia do patriciado da zona da mata contra a burguesia dos sobrados, que tomou forma de conflito violento na Guerra dos Mascates: “Guerra que terminaria com a vitória, embora vitória aos pedaços, incompleta, pela metade, dos interesses burgueses sobre os privilégios da nobreza rural, tão fortes e resistentes na capitania dos Albuquerques”.16 Nessa compreensão, Gilberto Freyre explora também os conflitos entre Olinda e Recife. A primeira, mais tradicional, eclesiástica, rural. A outra, burguesa e mecânica, com seus ofícios variados que herdou do cosmopolitismo judaico-holandês. Nem as minas foram mecânicas 17. Já no século XVIII, surgem novos patriarcas. Não mais os pertencentes à economia do engenho somente, mas homens urbanos, comerciantes que iniciaram no alho e na cebola. Enriqueceram tornando-se mercadores de sobrado. Aburguesam-se imitando o modo de viver dos senhores: semi-patriarcais, desejosos de uma moça de família tradicional, bem educada, branca. O mascate enriquecido também realizava sua fusão com o senhor de terras pela presença sua em negócios agrícolas. Era dono de terras, de escravos, de partidos de cana ou de café. Todo tipo de novo rico ascendia ao poder e virava um novo patriarca: “Ricaços de casas nobres, que às vezes, por imitação à nobreza rural tornam-se também donos de fazendas ou proprietários de engenhos de cana ou de sítio, onde suas famílias vão passar a festa”.18 Essas atividades eram mercantis, de agiotagem e intermediação com o tráfico de escravos e com a civilização européia. Essas atividades alimentavam as carências de capital de senhores que constantemente estavam endividados. O desenvolvimento de um conjunto de atividades intermediárias favorece a urbanização, o domínio do sobrado semi-patriarcal, e isso implica na mudança das

15Idem, p. 04. 16Ibidem. 17Idem, p. 282. Gilberto Freyre parece referir-se às atividades da gente plebéia, ou seja, trabalhadores operários que colaboravam com a maquinaria, como era o caso de assalariados empregados nos Engenhos de cana-de-açúcar. Essa categoria social é hoje melhor conhecida. 18Idem, p. 08.

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formas de comportamento, nas maneiras de fazer política, que vão corroendo as tradições rústicas nativas e portuguesas, aquelas que eram avessas a dinamizações modernizantes. TRANSIÇÃO AO MODERNO Nesse momento, o Rei está ao lado dos homens da cidade. Gilberto Freyre abre, portanto, a discussão da modernidade no século XIX por suas motivações econômicas e políticas. Pela gênese do novo no velho. Pela contradição interna de uma sociedade que precisa de financiamentos externos para sustentar sua negrada, seus luxos; que está constantemente em prejuízos e com isso cede, passo a passo, aos ávidos de lucro fácil, aos usurários. Estes, por sua vez, são os homens da urbe, que empregam os moradores de mucambos urbanos. Este modelo de transição que está condensado no capítulo referente ao sentido histórico das modificações nos séculos XVIII e XIX, aparece, então, bastante clássico. Pertence ao devenir moderno de uma sociedade sociologicamente feudal. Os agentes sociais determinantes são a usura, o comércio, a aliança do "príncipe com poderes de rei"19, para com os burgueses de sobrado, para com as cidades. (Vide Esquema 01) Toda obra em seguida centra forças nas esferas da cultura, embora alguns aspectos da economia e da política sejam retomados. No estudo sociológico, histórico e antropológico da modernidade brasileira no século passado, Gilberto Freyre foi um intelectual que sobre ela se dedicou demoradamente. Diga-se de passagem, numa abordagem antecipadora da Antropologia Histórica. Não somente detectou a importância da temática, mas olhou-a com as vantagens e vícios de uma metodologia inovadora. A melhor compreensão da obra gilbertiana talvez esteja dita nas palavras de Elide Rugai Bastos:

O que poderíamos considerar como temática privilegiada de Gilberto

Freyre? A transição ao moderno com dois elementos presentes no

processo: a decadência e a sobrevivência. Por isso elege como problemas

importantes da sociedade brasileira os vários momentos dessa passagem:

busca relações entre o regional e o nacional; questiona a centralização do

poder; procura compreender as formas da transformação do escravo em

trabalhador livre; segue os passos da transição da Monarquia à República;

19Idem, p. 03.

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tenta fixar as diferenças entre o século XIX e o XX; reflete sobre as perdas e

a sobrevivência do tradicional face ao moderno; indaga sobre a separação e

ESQUEMA 01

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a

articulação entre o agrário e o industrial; debate as semelhanças e a

diversidade entre o rural e o urbano; e, principalmente, esforça-se por

encontrar a continuidade e os rompimentos entre o privado e o público.20

Em Sobrados e Mucambos, o poder interventor do Estado reaparece mais à frente, quando Gilberto Freyre corrige esse suposto potencial inovador da cidade. Quase sempre não se deu assim. Por motivos enviesados, vários senhores foram revoltosos liberais, perseguidos por participarem de conspirações como a do Engenho Suassuna, nos primeiros anos do século XIX. Ou ainda os fazendeiros de "liberalismo esclarecido"21. O Estado sempre interessado na ordem e na estabilidade, em progressos sem mazelas para si próprio, tornava-se árbitro da modernização sui generis, sem antagonismos. Há uma bibliografia que já explorou esses aspectos mais de perto, com base na teoria das idéias fora do lugar22 e que a esta mesma também podem ser feitas reservas. O problema da elite política que se vai impondo no Brasil já imperial também decorre diretamente da formação das classes senhoriais no ambiente político e da aceitação dos homens esclarecidos pelo Estado Imperial. Os moços tomam o espaço dos velhos, ganham poder e status social. Quanto às "raposas" da sociedade patriarcal, os políticos antigos, experientes e sisudos, já eram de menor influência:

Estavam retirando-se da cena. Começara, vagamente, a vitória dos

moços, que se acentuaria em traços nítidos com o governo do senhor D.

Pedro II. Com a própria Igreja entregando os cajados de bispo a padres e

frades com aparência ainda de noviços; e não aos velhinhos de outrora.23

20Vide Elide R. Bastos."Gilberto Freyre:a Sociologia Como Sistema". In: Ciência e Trópico, Recife, n. 15(2), jul./dez. 1987, pp. 157-164. Na continuação do parágrafo citado, a autora completa suas observações, afirmando o modo como G. Freyre realiza uma transição "sem rupturas" em direção à modernidade. 21Vide Gilberto Freyre, op. cit., p. 52. 22Vide Robert Schwarz. "As idéias fora do lugar". In: Robert Schwarz. Ao Vencedor as Batatas. 4a. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1992. 23Vide Gilberto Freyre, op. cit., p. 86.

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Essa nova elite foi mais progressista do que se poderia deduzir da simples observação da origem de classe. Muitos filhos de senhores de engenho, foram embriagados pelo ar das universidades européias, pela leitura de obras positivistas e depois contistas, evolucionistas, etc. Muitos não foram fiéis, ao pé da letra, ao que desejavam seus pais:

São várias as cartas da época em que se refletem atitudes de

independência, quando não de revolta, da parte de moços para com velhos;

de jovens bacharéis para com patriarcas de casas-grandes de engenho e

fazenda. Começavam a ser rivais: o Filho e o Pai, o moço e o velho, o

bacharel e o capitão-mor24.

O século XIX caracteriza-se, então, como modernizante já desde sua primeira metade. Acentuam-se os conflitos que decompõem a sociedade patriarcal. Mas todas essas mudanças não levam a uma harmonização social, nem modernizam plenamente as relações entre os homens. Ao contrário, parece que Gilberto Freyre encontra nessa recomposição total da sociedade o engendramento de uma série de disparidades de todos os tipos.

(...) foi um período de diferenciação profunda - menos patriarcalismo,

menos absorção do filho pelo pai, da mulher pelo homem, do indivíduo pela

família, da família pelo chefe, do escravo pelo proprietário; e mais

individualismo - da mulher, do menino, do negro - ao mesmo tempo que

mais prostituição, mais miséria, mais doença. O patriarcalismo urbanizou-

se25.

24Idem, p. 88. Cf. Murilo de Carvalho. A Contrução da Ordem. Rio de Janeiro: Campus, 1980; onde se confirma a tese de Freyre. 25Vide Gilberto Freyre, op. cit., p. 30.

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A CULTURA NO JOGO DAS CLASSES Mais miséria, mais prostituição e doença. Mulher, menino e negro agora soltos: mais individualismo. Enfim: o patriarcalismo urbanizou-se. O que poderíamos entender de uma frase como essa? Uma primeira hipótese seria a de que nada mudou. Em termos sociais continuaram os mesmos conflitos, agora agudizados pela presença do urbano. Esse é apenas um entendimento possível e até provável, dado que o tema das disparidades sociais de raça, grupo, classe, região e sexo são recorrentes em quase todos os capítulos de Sobrados e Mucambos. Não existe somente culturas em conflito mas uma cultura do conflito e da disparidade. Gilberto Freyre mostra-nos que tudo podia ser motivo de discriminação do outro:

Encontram-se em nossa formação social predominâncias de figuras

senhoris e superiores, pelo conjunto das condições de região de origem, de

classe e de raça, ou por uma dessas condições, no momento decisiva, de

superioridade ou prestígio: o branco em relação com os indivíduos das

raças e sub-raças de cor; o proprietário de vastas terras de lavoura ou

criação e das respectivas casas-grandes de residência, em relação com os

moradores sem eira nem beira dessas terras e com os escravos ou servos

necessários à exploração agrária ou à atividade pastoril ou mineira; o cristão

velho em relação com o reinol ou com o brasileiro naturalizado; o habitante

do litoral mais europeizado em relação com o do interior mais agreste.26

Gostaríamos, porém, de não parar nessas observações, que, no nosso entender, constituem um aspecto rico da obra gilbertiana, na medida em que insere na análise eminentemente antropológica, um veio conflitual (senão antagônico) que além de extrapolar o instituído (o Estado, as estruturas), chega a pôr em questão o que é oficial pela cultura de então e, por outro lado, o que os mesmos participantes desta consideram de menor valor, desprezível e marginal. Essa teia que se estabelece nas relações entre os homens é das mais difíceis de serem captadas pelo pesquisador.

26Idem, p. 379.

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Essa leitura é típica da atual História Social. Lembramos aqui um texto de Déa Ribeiro Fenelon:

Retomada a partir dos últimos anos como preocupação de historiadores

norte-americanos, ingleses, alemães e franceses, criando rumos

diferenciados em cada uma das situações concretas, a história social tem

aspectos variados e abordagens as mais diversas, prolonga-se na história

das representações sociais, das ideologias, das mentalidades e da cultura,

campo onde o jogo das interações não permite o simplismo esquemático das

determinações estruturais ou das ligações artificiais e forçadas da infra com

a superestrutura.27

O exemplo dessas abordagens pode ser tomado na reflexão sobre a centralidade da questão do tempo no início da modernidade, o que foi analisado com brilhantismo por Jacques Le Goff 28e Edward Thompson29. Em Le Goff, a discussão gira em torno da relação cotidiana dos homens com o tempo e sua disputa por mercadores e clérigos. A presença da análise histórica dos valores e comportamentos torna-se evidente:

Nesta conversão ao homem quotidiano, a etnologia histórica conduz

naturalmente ao estudo das mentalidades, consideradas como 'aquilo que

menos muda' na evolução histórica. Assim, no seio das sociedades

industriais, o arcaísmo explode quando se perscruta a psicologia e o

comportamento colectivo. Desfasamento mental que não se perde na noite

27Vide Déa Ribeiro Fenelon "Trabalho, Cultura e História Social: Perspectivas de Investigação". Conferência pronunciada no Encontro Regional de História do Núcleo da ANPUH, São Paulo, setembro de 1984. 28Vide Jacques Le Goff"O Tempo de Trabalho na 'crise' do século XIV: do tempo medieval ao tempo moderno" In: Jacques Le Goff. Para um Novo Conceito de Idade Média.Lisboa: Estampa, 1980. Cf.: Jacques Le Goff. A Bolsa e a Vida. São Paulo: Brasiliense, 1989. 29Vide Edward Thompson. "Tiempo, Disciplina de Trabajo y Capitalismo Industrial" In Edward Thompson. Tradición, Revuelta y Consciencia de Clase. Barcelona: Grijalbo/Crítica, 1979.

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dos tempos[sic]. Os sistemas mentais são historicamente datáveis, mesmo

quando carreiam com eles destroços de arqueo-civilizações (...).30

Em Thompson, a História Social volta-se para os espaços de produção/reprodução do trabalho e da disciplina capitalista. A ênfase na história operária e seus processos de construção subjetiva impõem-se a uma análise estruturalista e técnica. Seu interesse pela mudança de percepção do tempo ganha cores mais vivas, como instrumento de questionamento da experiência de classe:

? Hasta qué punto, y en qué formas afectó este cambio en el sentido del

tiempo a la disciplina de trabajo, y hasta qué punto influyó en la percepción

interior del tiempo de la gente trabajadora? Si la transición a la sociedad

industrial madura supuso una severa reestructuración de los hábitos de

trabajo - nuevas disciplinas, nuevos incentivos y una nueva naturaleza

humana sobre la que pudieran actuar estos incentivos de manera efectiva?

hasta qué punto está todo esto en relación con los cambios en la

representación interna del tiempo?.31

Todavia, no nosso entender, Gilberto Freyre não alcançou plenamente essa dimensão. O problema fundamental do nosso autor foi uma certa nostalgia do patriarcalismo32. Para ele, não só a modernidade não muda nada, como ela piora tudo. A modernidade destrói a estabilidade por vezes benéfica da estrutura patriarcal. Gilberto Freyre, o que é mais interessante, demonstra isso pela opressão da vida do mundo popular. É como se todos tivessem perdido e não só os patriarcas:

Nos séculos anteriores, houvera, talvez maior prudência, maior

sabedoria, mais agudo senso de contemporização da parte das autoridades

30Vide Jacques Le Goff: "O historiador e o homem quotidiano" In: Jacques Le Goff. Para um Novo Conceito... op. cit., p. 317. 31Vide Edward Thompson. op. cit., p. 241. 32Para Carlos Guilherme Mota. Ideologia da Cultura Brasileira: 1933-1974. 4a. ed. São Paulo: Ática, 1980, p. 58, Gilberto Freyre empreendeu uma "busca do tempo perdido" e "uma volta às raízes".

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civis (quando não também eclesiásticas) e dos grandes senhores patriarcais,

com relação às culturas e populações consideradas por ele inferiores; e

encarnadas por elementos quando não servis, oprimidos, degradados ou

simplesmente ridicularizados pelos brancos, pelos cristãos velhos e pelos

moradores das áreas urbanas ou dominadas por casas-grandes mais

requintadas em sua organização ou na sua estrutura senhoril.33

Essa opressão tomará tonalidade cada vez mais aguda e específica com a proximidade do ambiente cultural da chamada Belle Époque. A principal decorrência da modernidade, o mundo urbano, não quebrará os quadros mentais do patriarcalismo. O social é pensado em termos da exclusão da massa da população, agora encarada como a sombra dos cidadãos letrados, e da desconfiança sobre a meia sombra, ou seja, todos aqueles homens de média cultura e pouca tradição. A influência das idéias estrangeiras, nesse momento, aparecia a muitos como cultura superior frente aos valores nacionais:

Não era de se esperar, igualmente, que essa sociedade tivesse

tolerância para com as formas de cultura e religiosidade populares. Afinal, a

luta contra a 'caturrice', a 'doença', o 'atraso' e a 'preguiça' era também uma

luta contra as trevas e a 'ignorância'; tratava-se da definitiva implantação do

progresso e da civilização. Aparece, pois, como natural, a proibição das

festas de Judas e do Bumba-meu-boi, os cercamentos contra as festas da

Glória e o combate policial a todas as formas de religiosidade popular:

líderes messiânicos, curandeiros, feiticeiros, etc...34

A constatação de uma modificação qualitativa dos conflitos na sociedade brasileira urbana não leva G. Freyre a refletir sobre sua densidade e as questões políticas envolvidas nesses conflitos. Para ele, o senhor e o escravo "tornaram-se metades antagônicas"35 e o poder público, como a Câmara Municipal da cidade do Recife, toma posições que:

33Vide Gilberto Freyre, op. cit., p. 390. 34Vide Nicolau Sevcenko. Literatura como missão. 2a ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 33. 35Vide Gilberto Freyre, op. cit., p. 353.

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"(...) atingem aqueles pretos cujos costumes mais cruamente africanos e

aqueles escravos cujo comportamento ou cujo trajo, considerado mais

ostensiva e perigosamente impróprio de sua condição servil, perturbavam ou

inquietavam os indivíduos da raça, da cultura e da classe dominantes"36. Todavia, Freyre não empreende uma crítica que dê conta do significado político da cultura37. Culturas e classes, porém, andam entrelaçadas. Corrobora nesse sentido, provavelmente, sua abordagem teórica que não é somente cultural, mas culturalista. Prendeu-se por vezes a categorias anti-históricas. Eclipsou no todo da obra o papel das classes para falar das durações temporais e esqueceu de fincá-las no jogo real. Diz-nos a respeito Elide Rugai Bastos:

A descrição gilbertiana da sociedade brasileira caracteriza-se por mostrar

que os atores sociais se encontram num locus não antagônico. Os conflitos

existem, por certo, por serem inerentes ao social. Todavia, são todos do

mesmo grau, temperados num caldo cultural que os torna parte de um jogo

político que se dá igualmente no público e no privado; no espaço doméstico

e no campo social.38

É sempre difícil atingir satisfatoriamente o que é, ou não, uma tese teórica em G. Freyre. Tratou, sempre que possível, de tudo. Em tudo encontrou reticências, ressalvas, quando não foi simplesmente contraditório. Como afirmou Carlos G. Mota: "Freyre desenvolveu uma série de mecanismos e artifícios para não ser facilmente localizável"39. No prefácio à primeira edição de Sobrados e Mucambos, por exemplo, tenta esclarecer a questão que vimos discutindo a respeito das contradições contidas nas classes sociais e na(s) cultura(s): “(...)procura-se principalmente estudar os processos de subordinação e, ao mesmo tempo, os de acomodação, de uma raça a outra, de uma classe a outra, de várias religiões e tradições de cultura a uma só”. 40

36Idem, p. 387. 37Para Carlos Guilherme Mota , isso se explica pelo lado aristocrático de Gilberto Freyre: "o gosto pelo popular, de resto, compõe um traço peculiar à visão aristocrática do mundo,conforme a lição de Alfred Weber".(Op.cit., p. 63). 38Vide Elide R. Bastos, op. cit., p. 161. 39Vide Carlos G. Mota, op. cit., p. 64. 40Vide Gilberto Freyre, op. cit., p. XXXVIII.

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Com as duas categorias básicas enunciadas nesse prefácio, exponho um mapa das declarações nele contidas, assinalando (A) para acomodação e (S) para subordinação. (Vide Esquema 02.) O uso, portanto, de categorias como as arroladas no Esquema 02, não leva a que nós possamos compreender os processos sociais estudados por Gilberto Freyre. Muito pouco também são confiáveis suas declarações de prefácio, entrevista ou semelhantes, em que o intelectual disserta com pachorra sobre sua genialidade ou sobre os motivos que levaram a tal obra ter vinte e tantas edições e esta ou aquela ter obtido três ou seis. Fato, porém, mais palpável, é que Gilberto Freyre amava o patriarcalismo e não seria capaz de abrir as perspectivas político-culturais de Sobrados e Mucambos, senão até o ponto em que se esmera nos hábitos, vestimentas e na culinária que distinguia uma ou outra classe. Considerou mesmo o patriarcalismo como o que nos era mais autêntico; mais democrático mesmo que nossa modernidade. Temos a impressão de que, para ele, se quiséssemos ser democráticos, seria preciso sermos patriarcais, já que:

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ESQUEMA 02 ACOMODAÇÃO E SUBORDINAÇÃO FONTE: FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. 6 a. edi- ção. Rio deJaneiro: José Olympio; Recife: Câmara dos Deputados/ Governo do Estado de Pernambuco, 1981.

A

“O patriarcado das cidades é ‘menos severo’ que o rural”. (p.XXXVIII.)

S

“A princípio os processos mais ativos foram de subordinação e até de coerção”. [cita o século XVII.] (Ibidem.)

A

“Mas ao lado de procuradores exclusivistas (...) foram aparecendo, desde os pricípios do século XVII, teóricos da acomodação entre as raças”. (Ibidem.)

A+S

“Nos séculos XVIII e XIX as duas tendências continuam”. (p.XXXIX.)

A

“Mas noutro jornal da mesma época [século XIX] surge-nos voz bem mais brasileira, isto é bem mais acomodatícia...” (Ibidem.)

S

“A situação, porém, não era idílica” (p.XL.)

?

“Essas distâncias sociais, se por um lado diminuiram com o declínio do patriarcado rural no Brasil através do século XIX, e com o desenvolvimento das cidades e das indústrias, por outro lado se acentuaram (...) com as condições de vida industrial desenvolvidas no país, outrora quase exclusivamente agrícola”. (Ibidem.)

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numerosos negros, crias de casas-grandes opulentas, adquiriram dos

senhores ou da família senhorial gestos, modos de falar, de andar, de rir,

característicos de classe alta e de raça 'superior', a ponto de terem se

tornado, cultural e sociologicamente, membros da mesma família(...)"41.

Em um de seus desmesurados equívocos, G. Freyre confundiu patriarcalismo de padrinhos com democracia:

Muitas vezes concedeu-se a afilhados, crias, filhos naturais, o direito de

tomarem de seus pais, padrinhos ou senhores brancos, nomes europeus e

fidalgos de família: outra forma de confusão de plebeus com fidalgos,

através da qual vem se democratizando a sociedade brasileira em virtude

do próprio sistema patriarcal.42

Mas esses aspectos, embora graves erros, não esgotam o autor. Se não aprofundou de todo os embates entre o popular e o oficial ou erudito, não deixou de ensaiar a temática e sugerir caminhos. Não se perdeu em uma história limitada ao estudo de embates ideológicos. Viu o popular indígena, africano e mestiço na sua moradia, no seu passeio forçosamente à pé pela urbe, enquanto o nobre expunha suas esporas e botinas, montado a cavalo. Viu o século XIX não somente pelas importações da cultura européia e viu nessas importações não apenas enfeites de parede colados à paisagem tropical ou idéias deslocadas do real. Escreveu passagens que radiografam o fundo dos conflitos sociais na modernidade nossa:

paralelo ao processo de europeização ou reeuropeização do Brasil que

caracterizou, nas principais áreas do país, a primeira metade do século XIX,

aguçou-se, entre nós, o processo, já antigo, de opressão não só de escravos

ou servos por senhores, como de pobres por ricos, de africanos e indígenas

41Idem, p. 399. 42Ibidem.

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por portadores exclusivistas da cultura européia, agora encarnada

principalmente nos moradores principais da cidade.43

Nosso autor tem lugar consagrado como um clássico, por motivos que lhe dão reconhecimento internacional. Recentemente, Peter Burke escreveu em um livro sobre a Nova História:

A famosa trilogia sobre a história social do Brasil do historiador-sociólogo

Gilberto Freyre (que conheceu Braudel nessa época), trabalha com tópicos

como família, sexualidade, infância e cultura material, antecipando a Nova

História dos anos 70 e 80.44

Incluimos, então, a problemática que ora nos propomos a desvendar, no campo da história das mentalidades, já que essa foi a principal inovação da historiografia francesa recente45. AS CLASSES SENHORIAIS Discutir o que hoje chamamos de mentalidades é um empreendimento que nada tem de simples. Ao falar em mentalidade aristocrática no espaço local, temos logo em conta que ela foi uma característica predominante no processo de

43Idem, p. 389. 44Vide Peter Burke. A Revolução Francesa da Historiografia: A Escola dos Annales 1929-1989. São Paulo: UNESP,1991. 45A história francesa das mentalidades deixou de ser hoje um campo a que possamos dar título de vanguardista. Não acontece mais o que Michel Vovelle relata de sua experiência de juventude em que falar de mentalidades era coisa sem muito crédito (Vide Ideologias e Mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987). Apesar de manterem-se "ambíguas", são objetos já bem assentados e até mesmo tradicionais, como nos diz Georges Duby: "Já não utilizo a palavra mentalidade. Ela não é satisfatória, coisa que em pouco tempo percebemos. Mas na época, no final dos anos 50, ela era bastante adequada, justamente devido a suas fraquezas, a sua imprecisão, para designar a terra icógnita que convidávamos os historiadores a explorar conosco e cujos limite e topografia ainda nos eram desconhecidos" ("Reflexões sobre a história das mentalidades e arte" In: Novos Estudos CEBRAP. n. 33, julho de 1992, p. 69). Todavia há aqueles historiadores que permanecem usando o termo e, pior, ignorando seus problemas conceituais. Sob um certo sentido as mentalidades evitam maiores questionamentos a certos objetos e ideologias, como parece ser o caso do catolicismo de Jean Delumeau ("Une nouvelle anthropologie chrétienne est à construire sur une vision plus réaliste des débuts de l'humanité"In: Le Monde - Les Grands Entretiens du Monde.Paris, número special, tome 2, mai , 1994, pp. 67-69).

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colonização, com base no domínio da Casa e do senhor patriarcal46. Tal se expressava também nas relações hierárquicas, pessoais e diretas do senhor para com seus subordinados. Na sociedade patriarcal, entretanto, a predominância do rural sobre o urbano podia prescindir de um polimento aristocrático que se pautasse numa cultura erudita continuada e sistematicamente sustentada pelas instituições coloniais. Assim, a cultura erudita era concentrada na atuação da Igreja. A situação foi agravada, ao que sabemos, diante da expulsão dos jesuítas (1759). Afora a ação dos padres a manter "vivo e ativo aquele nervo de integração"47, predominava a rústica cultura de proprietários de escravos. Deles escreveu Saint-Hillaire, em 1822:

As revoluções que se operaram em Portugal e no Rio de Janeiro não

tiveram a menor influência sobre os habitantes desta zona paulista;

mostram-se absolutamente alheios às nossas teorias, a mudança de

governo não lhes fez mal nem bem, por conseguinte não se tem o menor

entusiasmo.48

Não obstante, as iniciativas educacionais de D. João VI, após 1808, o resultado ainda era limitado, mesmo para as elites que eram sua meta (dentro dos parâmetros do sistema colonial). Estava-se muito distante das representações mentais e ideológicas da segunda metade do século XIX. Diz-nos Gilberto Freyre que o senhor patriarcal "desprezava tudo pelo regalo de mandar sobre muitos escravos e de falar gritando com todo mundo"49. Complementa ainda que com relação à música "os senhores mais rústicos se contentavam com a dos passarinhos".50 Tendo em conta essa reflexão, lembramos que no século XIX ocorre o que Ilmar Rohloff de Mattos chama de formação da "classe senhorial"51,

46A esse respeito, lembramos a seguinte passagem de Ilmar R. de Mattos, tratando das regiões coloniais: "Nelas, as relações entre colonos e colonizados tinham como locus privilegiado aquilo que Caio Prado Júnior denominou de grande unidade produtora: o Engenho, a Fazenda ou a Data. Em cada uma delas a casa grande - ou de modo mais genérico, a Casa - aparecia como o símbolo do poder do proprietário sobre a própria família, o capelão, os agregados e a massa de escravos". Vide O Tempo Saquarema. 2a ed. São Paulo: Hucitec, 1990. p. 29. 47Vide Gilberto Freyre. Sobrados e Mucambos. 6a ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Recife: Câmara dos Deputados/ Governo do Estado de Pernambuco,1981, p. 78. 48Citado por Ilmar R. de Mattos, op. cit., p. 40. 49Vide Gilberto Freyre, op. cit., p. 46. 50Id. Ibid. 51"Se as cortes de Lisboa, num primeiro instante, apareciam com destaque, elas deixavam de ser o adversário exclusivo. Os interesses ingleses constrários ao tráfico negreiro intercontinental; os plantadores escravistas de outros pontos da região de agricultura mercantil-escravista; aqueles produtores interioranos, sobretudo do Sul de Minas, ligados ao abastecimento da cidade do Rio de Janeiro, e que se haviam projetado politicamente em âmbito local e provincial; os colonos das demais regiões; os escravos insurretos; e a malta urbana eram outros adversários de uma mesma luta que em

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tendo como resultado a política saquarema. Falamos em sociedade de classes pensando que nesse momento gesta-se um conjunto de representações a nível tanto de cotidiano das elites, quanto nos processos de auto-representação artístico-cultural e político52 . A análise do processo de constituição das classes senhoriais está embasada em representações e conceitos eminentemente político-ideológicos. Trata-se de uma análise mais conjuntural e de inspiração marxista. É inegável que o mundo social sofria influência das transformações culturais que se encaminhavam rumo à modernidade. Os processos de subjetivação das classes dominantes passam a reforçar a atuação do Estado, em substituição ao poder patriarcal do Senhor de Engenho. Até mesmo a unidade de formação educacional das elites brasileiras está em paralelo com a construção da experiência subjetiva e objetiva das classes senhoriais53. Estas são um fator fundamental de modernização do Estado e desagregação do que Ilmar Rohloff de Mattos chama de "moeda colonial"54. Durante a colonização, as classes dominantes se definem na estrutura de produção econômica por oposição aos escravos. Com a desestruturação do pacto colonial (fins do século XVIII até 1822) e a reestruturação de suas relações internacionais em novas bases e, conseqüentemente, novos atores, a Coroa Imperial passa a sobrepor-se à política de proprietários. Neste sentido, nos anos entre a década de quarenta e a década de oitenta do século passado podemos claramente perceber uma atuação de classe entre os grupos políticos e intelectuais, então dominantes. Para Mattos, esses setores não são simplesmente uma continuação dos homens da Independência. O fato político da Abdicação, em 1831, corrobora

sua cotidianidade abria um caminho que possibilitava uma integração diversa. A vivência de experiências comuns, experiências essas que lhes possibilitava sentir e identificar seus interesses como algo que lhes era comum, e desta forma contrapor-se a outros grupos de homens cujos os interesses eram diferentes e mesmo antagônicos aos seus constituía-se, sem dúvida, na condição para uma transformação. Intimamente ligados ao aparelho de Estado, expandiam seus interesses, procuravam exercitar uma direção e impunham uma dominação.(...) Não se constituindo unicamente dos plantadores escravistas, mas também dos comerciantes que lhes viabilizavam e, por vezes, com eles se confundiam de maneira indiscernível, além de setores burocráticos que tornavam possíveis as necessárias articulações entre política e negócios, a classe senhorial (grifo do autor) se distinguiria nesta trajetória por apresentar o processo no qual se forjava por meio do processo de construção do Estado imperial". Vide Ilmar R. de Mattos, op. cit., pp. 56-57. 52Lembramos aqui o fato de que nosso propósito não é investigar as representações artísticas enquanto tais. Por uma questão de rigor metodológico, não nos interessaremos pelo valor literário, jornalístico ou filosófico, seja qual obra for, embora não possamos concordar inteiramente com a idéia de que esses campos devam pertencer exclusivamente a uma história de tipo especial, separada da outra, uma história de tipo axiológica. Sobre essa história axiológica, vide Paul Veyne."Apêndice: A história axiológica". In: Paul Veyne.Como se Escreve a História. Lisboa: Edições 70, 1987, pp. 81-85. 53Sobre essa unidade de formação e treinamento, vide José Murilo de Carvalho. A Construção da Ordem: A Elite Política Colonial. Rio de Janeiro: Campus, 1980. 54"De um lado, a 'cara' ou face metropolitana, apresentando-se por meio do Reino ou do Estado Moderno; de outro, a 'coroa' ou a face colonial, sob a forma da Região, face geralmente oculta, impossível de ser pensada isoladamente da primeira, mas guardando também uma existência própria, um processo particular que não se restringe à mera reprodução da História metropolitana ou dos sucessos de outra região qualquer". Vide Ilmar R. de Mattos, op. cit., p. 20.

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neste sentido: os liberais chegam ao poder. Anti-lusitanos, os homens da Regência espantaram de uma vez por todas: a recolonização, a fragmentação territorial, o radicalismo liberal-republicano, até consolidar a soberania da pátria monarquista e escravista. Essa análise dá anterioridade à sociedade civil e às experiências sociais, frente ao Estado e à política. Se o tempo saquarema, enquanto conjunto de fenômenos políticos, pode ser datado entre Bernardo Pereira de Vasconcelos e Tavares Bastos55, a formação das classes senhoriais demanda uma maior frouxidão na periodização:

Das conjurações coloniais à Maioridade, a trajetória percorrida

transformou o colono em cidadão ativo, elevou o plantador escravista à

condição de uma classe, restaurando seus interesses e fazendo-o construir

uma auto-imagem que lhe permitia unir pontos descontínuos na fixação de

uma memória56.

Essa Experiência diz respeito a valores, tradições, comportamentos, famílias e toda uma gama de relações que não se prendem exclusivamente ao que Walter Benjamin chamou de "coisas brutas e materiais"57. Do mesmo modo, não podemos ignorar que, ao extrapolarmos o campo tradicionalmente pensado pelo marxismo, deparamo-nos com matrizes fundantes de nossas vidas. A dimensão imaginária aparece como campo de interferência inevitável. A própria modernidade está calcada em outras bases que não somente as européias e que, sem dúvida, podem ser desvendadas em alguns aspectos a partir do "imaginário oligárquico"58. A sociedade permeada pelo favor, pela pilhagem e pelo controle do poder de nomear as coisas59; é ela que se escuda no discurso do moderno. MODERNIDADE E PROVÍNCIA Pensando o Ceará e, mais especificamente, Fortaleza dentro dessa perspectiva, procuramos fazer o rastreamento do que a historiografia registra

55Vide Ilmar R. de Mattos, op. cit., p. 89. 56Id. Ibid., p. 95. 57Vide Walter Benjamin. Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985, (Obras Escolhidas, vol. 1), p. 223. 58Vide Paulo Henrique Martins. "O Imaginário Oligárquicoe a Modernização Agrária o Brasil: Pilhagem, Apropriação, Especulação" In: Sociedade e Estado. volume V, n. 1,jan.-jun., 1990, pp. 49-69. 59Vide Antônio Jorge de Siqueira. "Imaginários da Exclusão".Texto apresentado no XVII Simpósio Nacional da ANPUH. São Paulo, julho de 1993.

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como manifestações da cultura erudita60 das camadas dominantes locais. Poucas e pobres eram tais manifestações no início do século. Podemos dizer mesmo que havia um certo afrouxamento dos comportamentos públicos, e os homens de poder no interior da cidade podiam participar de certos aspectos da cultura popular sem grandes constrangimentos, haja visto o registro que temos das pasquinagens, fofocas e outras manifestações. Com o processo de urbanização crescente, ao passo que o século caminhava para seu fim, isso passará a ser adequado apenas para a "canalha". Nesse sentido, é bastante ilustrativo o que relata um historiador local, Raimundo Girão, sobre como o Boticário Ferreira fazia os transeuntes dos arruados da Fortaleza da primeira metade do século passar por vexames:

Noutras ocasiões, o Boticário - presidente da Assembléia - tornava-se

brincalhão. Na época dos entrudos carnavalescos, muito em moda, punha

uma tina d'água, na qual fazia mergulhar a quem passasse, fosse mister

mandar trazer à força o transeunte. Depois dava-lhe a beber um bom cálice

de vinho de ananás, uns filhozes a comer e fazia-lhe outros agrados.61

Fortaleza será eleita, porém, para uma nova sociabilidade: a de uma classe senhorial com seu conjunto de representações aristocráticas do urbano. Os homens de boa estirpe, tino comercial e vantajosas relações financeiras passam a fazer presença com a integração do Ceará ao mercado internacional, o que foi feito através da produção algodoeira, sua venda para os Estados Unidos e a instalação de casas comerciais em associação com ingleses e franceses. Nesse momento Fortaleza alcança uma hegemonia sobre os demais espaços citadinos, especialmente Aracati. De simples centro administrativo, ela passa a ser também capital econômica. Sua arquitetura e estrutura urbana começam a ser remodeladas, senão fundadas. Com exceção de alguns sobrados erguidos entre 1820 e 1850, inexistia arquitetura patriarcal. A nova camada dominante, surgindo e interagindo na urbanização, partilhará de uma espacialidade nova.

60Deixamos ainda explícito, o fato de o termo cultura erudita ser entendido no sentido antropológico, não limitando-se às manifestações superiores do espírito; e sócio-histórico, ou seja, mantendo complexas relações com o mundo das classes. 61Vide Raimundo Girão. Geografia Estética de Fortaleza. 2a ed. Fortaleza: BNB, 1979, p.87.

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IMAGINÁRIO DA EXCLUSÃO Procuramos fundamentar nossa reflexão na problemática teórica do imaginário da exclusão. Por imaginário, entendemos um conjunto de significações que fundamentam o ser do grupo, participantes de uma coletividade com a qual nos identificamos sob diversos aspectos, como a gestualidade, as idéias, a linguagem... Fundamenta também nossa relação com a natureza e com as coisas que nos cercam. Por fim, o imaginário está na base do que nos une e nos separa enquanto ser social, vivendo uma sociedade de classes62. Temos como referência fundamental para o estudo desse imaginário, sob o ponto de vista histórico, a metodologia das mentalidades e nelas compreendemos uma sincronia e uma diacronia de tempos e não somente um instrumental adequado para temporalidades longas. Pretendemos fazer uma releitura de certos aspectos da cultura erudita local, com base em práticas discursivas e extra-discursivas, buscando elementos para demonstrar que essa história cultural cearense, que fundamenta um discurso simbólico sobre a identidade local, exclui e oblitera o mundo popular. Ao longo de todo o processo que vai da década de quarenta até a década de oitenta do século passado, operou-se a criação de uma cultura letrada e provinciana que, em último caso, criava um universo próprio à elite e impróprio aos populares. Na década de quarenta do século passado ocorre a organização oficial da Instrução Pública primária e secundária, voltada para metas claras e específicas e que obtiveram considerável êxito ao longo do século, modificando o ensino abstrato e literário por um pragmatismo positivo. Essa instrução era pensada conforme um imaginário estratificador do social: de um lado, o ensino para as classes menos abastadas e que deveria capacitar o indivíduo para a lavoura e as atividades mecânicas, ser temente a Deus e obediente ao Estado; de outro, uma instrução voltada para as classes mais opulentas, criadora de uma elite que conduziria os negócios públicos e privados. Na prática, essa camada culta entrará para o mundo tacanho das tricas políticas e prestará seus serviços seja como burocrata, intermediadora de senhores de negócio ou como polemista na Imprensa. Nos documentos, procuramos perceber o conjunto das representações preconceituosas sobre o ordinário da vida dos comuns, do tipo: plebe ignara, almas medíocres, ânimos fracos e embrutecidos pela ignorância. Esses todos contrapor-se-iam aos gênios, aos luminares e todos os homens ilustres, tidos como modelo racional e moral de imitação. Buscamos selecionar algumas manifestações e criações lítero-filosóficas tipicamente elitistas e com vistas a doutrinar a alma dos citadinos, conforme a luz do século. Analisamos quatro: a) o pensamento e as representações liberais do jornal O Cearense, em sua fase inicial(1846 e 1847); b) a História da Província do Ceará (1867), de Tristão de Alencar Araripe; c) a "moderna geração" do Ceará, manifestada no grupo dos pioneiros em idéias cientificistas, escritores no jornal

62Vide Cornelius Castoriadis. "Papel das Significações Imaginárias" In: Cornelius Castoriadis.A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. pp. 176-187.

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Fraternidade (1873/1875); d) o Clube Literário, através de seu órgão A Quinzena (1887/1888). Damos ênfase, portanto, à idéia de evento, buscando aqueles mais expressivos para nossa problemática e simbolicamente importantes mesmo para os setores intelectuais de hoje, especialmente os conservadores, já que aí reside uma imagem do "ser cearense", sendo ao mesmo tempo apresentado como "moderno", "progressista". Por fim, essa experiência coletiva e de classe tornava a cidade como cidade para a Sociedade, entendida idealmente como: conjunto de pessoas de certa estirpe, condições financeiras elevadas, tradições claras (contraponho aqui ao que a documentação alerta preconcebidamente com relação às origens obscuras) e razoável formação intelectual.

A CIDADE, O ESPAÇO E A MODERNIDADE

Os primeiros espaços urbanos cearenses surgiram como pólos da

economia subsidiária a Pernambuco. O comércio local e interprovincial de gado e

charque produzira núcleos urbanos como Aracati e Icó. Sobral também se

desenvolveria como centro independente de Fortaleza, como nos explica José

Borzacchiello da Silva:

Uma enorme competição urbana foi travada entre Fortaleza e Aracati no

litoral leste e em grau menor com Sobral, que mantinha seu espaço bem

definido em decorrência da ferrovia Sobral-Camocim. Sobral ficou durante

muito tempo sem conexão com Fortaleza, e foi o grande centro coletor de

algodão e de outras matérias primas que eram transportadas pela ferrovia

até o porto de Camocim. Camocim na condição de porto exportador não

desenvolveu hinterlândia própria. Ao contrário, Sobral, como importante

centro regional, equipou o porto de Camocim, criando assim o binômio porto-

cidade. Aracati localizada próximo à foz do Jaguaribe se desenvolveu em

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função do preparo da carne-de-sol, que a transformou num dos maiores

entrepostos do Estado, carreando recursos para a cidade que se traduziram

em obras urbanísticas de vulto, que ainda hoje podem ser observadas na

suntuosidade de suas igrejas e de seus casarões. No interior, Icó era o

grande entreposto comercial.63

Fortaleza formava-se distante destas economias tradicionais e de certa

opulência. Tinha seu forte aberto para mares de maior horizonte, não restritos à

cabotagem, mas voltados para o continente europeu. Esteve, sempre que possível,

distante da poderosa província pernambucana. É a separação do Ceará frente a

Pernambuco (1799) que fará crescer o Porto de Fortaleza. Até então, o algodão da

Província deslocava-se inteiro para os portos de Recife, que reestruturava seu

papel frente às novas realidades políticas e econômicas de integração ao

capitalismo inglês. Afirma Pedro Geiger: “Recife refletiu o açúcar, inicialmente;

mas nos fins do século XVIII também era porto de exportação do Nordeste,

quando a Inglaterra recebia do Brasil cerca de 10% do algodão que importava do

mundo”64.

A cidade de Fortaleza assentou-se em bases urbanísticas e racionais, já

muito cedo. Nasceu extemporânea para uns, tal como Raimundo Girão, que

considerou com espanto o traçado em plano ortogonal, esboçado em 1823,

"quando não havia tomado corpo a ciência urbanística"65. Uma cidade muito

bonitinha e alinhada. Sua modelação urbana de fato não esperou nem a

modernização econômica. Ela foi plano racional ordenador antes de "espelhar" o

progresso do século. Seu caráter moderno nunca esteve dissociado da vivência de

63Vide José Borzacchiello da Silva. Os incomodados não se retiram. Fortaleza: Multigraf Editora, 1992, p. 21. 64Vide Pedro Pinchas Geiger. Evolução da Rede Urbana Brasileira. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais/MEC, 1963, p. 77. 65Vide Raimundo Girão. Geografia Estética de Fortaleza. 2a. ed. Fortaleza, BNB, 1979, p.77.

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hábitos, costumes e etiquetas de distinção e controle frente ao homem cotidiano.

Desde cedo, as classes sociais mais abastadas tinham à mão uma cidade

geometricamente manipulável.

É preciso reconhecer, porém, que os motivos que levaram homens e

mulheres do fim do século XIX a encantarem-se com a vida urbana de Fortaleza

foram bem diferentes daqueles que levaram a que ela assim chegasse a ser. A

Fortaleza dos anos coloniais e mesmo até as reformas de Herbster, não parecia ter

nenhuma vocação para as luzes. Seu próprio topônimo denuncia uma vocação para

a ordem e as armas.

A GEOMETRIA DO ELITISMO E SUAS ORIGENS AUTORITÁRIAS

Quando aqui chegaram em 1812, o Governador e Coronel Manuel Inácio

de Sampaio e seu ajudante de ordens, o tenente-coronel de Engenheiros Antônio

José da Silva Paulet, suas primeiras intenções voltaram-se para reconstruir a velha

fortaleza no monte à margem esquerda do Rio Pajeú, o Forte Schoonenborch,

construído pelo holandês Matias Beck, que deu lugar a sucessivas fortificações.

Outras cidades coloniais tiveram a mesma origem. A tendência dessas

fortificações incipientes foi o esquecimento ou desaparecimento completo com a

descaracterização da acrópole fundadora. Mas o Governador Sampaio empreendeu

a concretização de uma nova fortaleza, que deveria se perpetuar e ser a garantia da

boa ordem na Capitania. Além da fortaleza, o Governador mandou levantar a

"Carta da Capitania do Ceará", onde se incluiu uma "Planta da Villa da Fortaleza e

seu Porto", elaborada pelo ajudante de ordens com data de 1818.

O contexto de rebeldias e levantes na crise do sistema colonial não

encontraria, no Governador Sampaio, nenhuma simpatia, e a ordem, previdente e

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precavida era imposta. A fortaleza foi inaugurada ainda incompleta, no mesmo ano

da primeira rebeldia dos liberais do Cariri (1817). Sampaio era governante que

imprimia à sua administração certo ar de déspota esclarecido. Organizou um

sistema de comunicações próprio na Província, com fins de saber tudo o que nela

se passava. Quando veio a Revolução de 1817, sua ação foi pronta e antecipadora.

Organizou sistematicamente a repressão ao movimento que, ao contrário, parece

ter sido precipitado na sua condução política no Ceará.

Silva Paulet prosseguiu seus trabalhos mesmo depois de mudada a

governadoria. Sua orientação de acordo com a formação militar era, após a

construção do forte, estabelecer uma geometria urbana com fins a manter a

segurança e o controle da vila e, "a pedido de Barba Alardo, Paulet fornece as

diretrizes de um traçado urbano, em xadrez, através do qual a cidade se identifica

hoje, de imediato, diante dos que a visitam"66.

O tenente-coronel de Engenheiros, Silva Paulet, abriu mais ou menos ao

meio da acanhada cidade, exatamente a partir da sede da força militar, um longo

corredor de vigilância, que ganhava a cidade em direção ao sul:

A primeira rua em linha reta, baliza das futuras que se desdobrassem de

norte a sul, do mar para o sertão, fez-se a partir da fortaleza, tomando-se

como referência a Praça da Carolina e aproveitando-se os arruados como

Rua das Belas, Rua da Pitombeira e Rua da Alegria, correspondendo, os

três, à Rua da Boa Vista, atual Floriano Peixoto, compreendidos,

respectivamente, o primeiro entre a mesma fortaleza e a Rua São Paulo, o

outro daí até o lado sul da Praça do Ferreira, e o terceiro deste ponto ao

diante67.

66Vide Liberal de Castro. Fatores de Localização e Expansão da Cidade da Fortaleza. Fortaleza: UFC, 1977, p.29. 67Vide Raimundo Girão, op. cit., p. 77.

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Tais diretrizes foram aprontadas em 1823 e, malgrado a incerta

configuração do alinhamento das casas pelo lado leste, arranjadas ao longo do Rio

Pajeú, a rua então aberta mais parece com um corredor de vigilância, no qual

podemos vistoriar a cada esquina, de leste a oeste e norte a sul, tudo o que

acontece na cidade. Por cinismo ou eufemismo, esse corredor principal, feito a

partir da Rua das Pitombeiras e alinhando outras duas, não recebeu nenhum dos

nomes antigos, mas Rua da Boa Vista, que possibilitava, de fato, uma vista

completa da recém-cidade. (Vide Planta da cidade de Fortaleza com projeção

ampliada do Passeio Público em 1888.)

O traçado de Silva Paulet carece de uma explicação, sobre a qual não se

tem detido a historiografia, senão em passagens ligeiras. Nada diz o Raimundo

Girão de Geografia Estética de Fortaleza que explique o plano de Silva Paulet.

Por que foi feito se Fortaleza era uma vila modesta (tendo se tornado cidade no

mesmo ano de 1823) ? Que motivação havia, dada sua insignificância comercial

ou econômica? Lembramos que o embelezamento não era a ordem do dia, não

havendo grande quantidade de sobrados, sintoma da ausência de uma significativa

camada de senhores ou burgueses.

Liberal de Castro, em Fatores de Localização e Expansão da Cidade da

Fortaleza, descreve as intenções do plano xadrez de Paulet e afirma que o mesmo

servia para fins de dominação e ordenamento da expansão urbana. De certa

maneira, à descrição feita por Girão e à análise de Castro nada se acrescentou.

Embora Sebastião Rogério não tenha se interessado pelos dotes de Silva

Paulet, situou muito bem os seus objetivos, ao dizer que o traçado xadrez "corrigia

becos, desvios e ruas desalinhadas que facilitavam a rebeldia urbana, substituindo-

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os por vias alinhadas, longas e cruzadas em ângulo de 90o que favoreciam a vigília

do poder sobre as cidades"68.

Guardadas as proporções, o Governador Sampaio era homem que

imprimia a seu governo o ar de despotismo esclarecido. Organizou um sistema de

comunicações próprio na Província, com fins de saber tudo o que se passava.

Como foi dito, no levante liberal de 1817, sua ação foi pronta e antecipada.

Lembramos aqui o que nos diz João Alfredo de Sousa Montenegro ao

chamar atenção à personalidade do tradicionalista:

Justamente por refletir a visão de um extraordinário administrador, que

conciliava a experiência de vários anos à frente da capitania com um saldo

positivo de realizações públicas, a ponto de criar meios estáveis para o

funcionamento normal do governo, e fomentando a formação de

mentalidade a edificar um comportamento voltado mais para a coisa pública,

para a proteção dos seus direitos, de suas prerrogativas, com isso dando no

Ceará melhor consistência ao ideal monárquico, aos valores que o

exornavam.69

A formação de seu ajudante de ordens, o também militar com patente de

tenente-coronel, Silva Paulet, vem bem ao encontro da idéia de que a Rua da Boa

Vista dá continuidade ao desejo de vigilância sobre a cidade. Tal se faz com outro

governador, Barba Alardo, porém, pelo mesmo Silva Paulet.

Em 1850 o arruador Antônio Simões Ferreira de Farias levantou, com

seus instrumentos de leigo experimentado, uma planta, que demonstrava que o

68Vide Sebastião Rogério de Barros da Ponte. Remodelação Urbana de Fortaleza na virada do Século. Fortaleza: NUDOC/UFC, 1990, p.2. 69Vide João Alfredo de S. Montenegro. O Trono e o Altar: As Vicissitudes do Tradicionalismo no Ceará (1817-1978). Fortaleza: BNB, 1992, p. 14.

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plano de Paulet havia sido executado, tendo já alinhada a Rua da Boa Vista e

seguintes paralelas pelo lado oeste, oposto ao Pajeú, e as ortogonais até pouco

depois da atual Praça do Ferreira. A cidade estava em linhas cartesianas. Ainda

não era, porém, aristocrática, mas começaria a ser.

A população a nomeava em ruas e logradouros como nas cidades simples

e pequenas. Temos diante de nós uma reprodução da "Planta da Cidade de

Fortaleza, levantada no ano de 1856, pelo Padre Manoel do Rego Medeiros".

Surgem à vista ainda os nomes: Rua das Belas, da Pitombeira e da Alegria, mas

completamente alinhadas. Aqui, Praça Amélia, a Praça da Carolina mais adiante;

os largos: do Quartel, da Matriz, do Garrote... A Rua da Lagoinha, do Chafariz, do

Outeiro, da Palha, da Boa Hora, dos Mercadores, da Palma, da Ponte, do Cajueiro

e outras mais.

Próximo à praia, ao lado do Quartel-fortaleza, ficava o Largo do Hospital

de Caridade. Lugar que foi chamado também de Largo do Paiol, onde perto havia

um estabelecimento para guardar pólvora.

Mas ainda deram outro nome ao Largo do Paiol. Foi o de Campo da

Pólvora70, pelo fato de ali a pólvora não estar sempre no paiol, mas ter um uso que

bem marca a característica da Fortaleza de então, como centro do poder, não só da

administração, mas também da justiça. No largo ao lado da Fortaleza de N. S. da

Assunção ficava o "local destinado a sacrifício de criminosos. Ali também foi

erguido um patíbulo para punir condenados de crimes comuns"71.

É interessante ver que Fortaleza não foi inicialmente o campo mais

apropriado para o desenrolar do liberalismo radical. Quando as idéias liberais lhe

chegam elas já estão numa face ordeira. Em outras regiões do Brasil foi o

70A planta do Pe. Manoel do Rego Medeiros, de 1856, traz a denominação "Largo do Hospital de Caridade". 71Vide Ma. Noélia R. da Cunha. Praças de Fortaleza. Fortaleza: Imprensa Oficial do Ceará, 1990, p.269.

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contrário, as cidades "tiveram papel relevante na agitação das idéias de

independência e de liberdade o que, sem dúvida, indica possuírem certo conteúdo

econômico e social. Veja-se o caso das cidades originadas da mineração, nas quais

floresceram os primeiros elementos de uma camada intelectual nativa"72.

Em 1817, Fortaleza foi o centro da reação às idéias liberais, de onde

Ignácio de Sampaio coordenou a repressão.

Em 1825, os revolucionários da República do Equador foram fuzilados no

Largo da Pólvora. Nisso a Fortaleza imbatível dava mostra de seu poder

monárquico e ordeiro.

Quando o liberalismo moderado dos chimangos instala-se, seu orgão de

imprensa, O Cearense, faz o lamento dos mortos pela repressão ao movimento de

1824. O Largo da Pólvora maculava a memória das ilustres famílias locais que

viram o derramamento do sangue de seus filhos:

Esse sangue era innocente, e bradou vingança. E quem andando tarde

da noite por uma de nossas praças não vê os manes venerandos erguidos

gemerem: E ha no mundo fratrecidas! "Deos de bondade, compadecei-vos;

assás é a vingança".73

Essa vingança, evocada em 1847, não passa por recuperar as bandeiras

radicais, já que nelas pletorava um patriostismo infeliz. Uma tal vingança é

confiada às intervenções misteriosas, providenciais e liberais do Divino.

Justiça e administração marcavam a cidade como centro das decisões que

se impunham ao restante da Província. A geometria do poder casava com o poder

72Vide Pedro Geiger, op. cit., p. 67-68. 73Vide "O dedo da providência", in: O Cearense, no 83, 13-09-1847.

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da ordem e ficava aberto o horizonte das classes abastadas para fazer da cidade um

"espelho".

A imagem especular da cidade é narcísica frente à realidade provincial. A

Fortaleza ergue-se em desafio ao estranho do oceano, é verdade. Porém, o mar não

deixou nunca de arejar a cidade, fazendo sentir-se autônoma diante das

circunstâncias que a cercavam, das dunas e do areal que castigavam o povo em

meio a um sol escaldante. O mar aberto mostrava um horizonte que com certeza

havia de estar lá: a Europa. As luzes ainda chegariam, mais vivas que aquele sol de

todos.

Pela década de quarenta a opinião pública, restrita à elite, conheceu O

Cearense; o Liceu começou a educar os filhos das classes opulentas e a Fortaleza

reconstruída em 1817, junto a seus moldes de ordenamento das ruas, permaneceu

como monumento. Novas razões constituíram o espaço na cidade, sem

revolucionar os feitos de Paulet, sem questionar seus ângulos. Em 1859 configura-

se o plano de Adolfo Herbster para o crescimento da cidade. Foi, então, o nosso

primeiro Haussmann.74

Repetidas vezes tem-se tocado no nome de Adolfo Herbster, cuja ação se

fará como engenheiro da Província, em auxílio (desde 1857) ao folclórico

boticário Ferreira. Sua planta de 187575 é um projeto de delimitação e crescimento

da cidade fortalezense com vistas a dar-lhe uma estrutura condizente com uma

capital em francos progressos, mediante a nova configuração econômica no

mercado internacional por que vinha passando a Província há alguns anos.

Herbster cercou os limites do espaço urbano por uma cinta de avenidas, no total de

três. Duas delas partiam do mar, correndo paralelas em busca da parte sul da

cidade (as atuais Av. do Imperador e Av. D. Manuel). Mais à frente elas são

74A expressão "nosso Haussmann" foi cunhada pela genialidade de ironia do jornalista João Brígido, em 1908, a fim de ridicularizar o intendente Guilherme Rocha. 75O boticário Ferreira já estava falecido desde 1859, tendo garantido as linhas ortogonais de Paulet.

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interceptadas ortogonalmente pela terceira (Av. Duque de Caxias), que ultrapassa

a cidade no sentido leste-oeste.

Liberal de Castro acredita ver nas reformas de Herbster uma

"haussmanização" da Fortaleza, que já imitava o que de reformas urbanas havia

acontecido em meados do século em Paris. Um processo de importação indolor da

disciplina urbanística européia estaria em curso. Essa observação de Liberal de

Castro, como considera Paulo Linhares, "abriu um leque de hipóteses para o

estudo de Fortaleza que, do ponto de vista teórico, repousa sobre a possibilidade

de levar em conta a dimensão espacial como constituinte do ser social"76. Esse

processo, evidentemente, não se interrompe no século XIX.

Ao contrário, inicia-se neste momento e estendendo-se por todo o início

deste século, como nos informa Sebastião Rogério de B. Ponte:

Durante todo o período de vigência da oligarquia aciolina (1896-1912), a

intendência da capital ficou a cargo do coronel Guilherme Rocha,

considerado pela historiografia cearense um dos administradores municipais

que mais fizeram pelo embelezamento e melhoramento da cidade: 'o

aformoseamento fortalezense havia encontrado no intendente Guilherme

César da Rocha o mentor persistente durante 20 anos (...). Homem de fino

trato integrado na vida social elegante, procurava transformar velhos hábitos

por via da modificação física do ambiente urbano'.77

É possível, então, vermos uma ampliação do horizonte das modificações

urbanas que estão sendo empreendidas, cujo caráter passa a ser muito mais

aburguesado e eminentemente cultural. O contexto dessas reformas parece também

76Vide Paulo Linhares, op. cit., p. 184. 77Vide Sebastião Rogério de B. da Ponte, op. cit., p. 14.

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indicar suas intenções de distinção aristocrática e novos referenciais para as

camadas dominantes, embora sua datação vá além dos limites desta pesquisa.

Esses referenciais alienam Fortaleza do espaço local e jogam-na para uma

outra dimensão cultural imaginária. É uma realidade ilusória, a que se reportou

João Brígido no título de um artigo publicado no jornal Unitário, em 1908:

"Fortaleza em Paris". Haussmann rouba o nosso cenário.

As reformas da capital francesa, na segunda metade do século passado,

fizeram-se dentro do contexto de vazio político das propostas de esquerda que,

então, tinham a difícil missão de recuperarem-se dos insucessos de 1848. A

geometria das ruas parisienses não estava isenta de uma ideologia racionalista,

partidária da idolatria da técnica e do cálculo exato. Foram abertos largos e belos

Boulevards, desfazendo os casebres e guetos insalubres que por lá se

configuravam, num constante perigo à ordem que se ia constituindo.

Como nos esclareceu Benevolo78, todas essas reformas urbanísticas

empreendidas pela mediação dos saberes de projetistas, funcionários e homens de

ciência, não estão isoladas de um "novo conservadorismo europeu", aguçado pelo

olhar aristocrático e "humanitário" dos romances anteriores a 1848, imaginava-se

uma cidade utopista, racionalmente construída para atender às necessidades de

toda a população, devidamente habitada, bem alimentada, bem transportada e

divertida, de acordo com os melhores parâmetros da felicidade dos lares humanos.

Homens de estirpe e cabedal apareciam como os empreendedores de uma nova

cidade, isenta de contradições e, portanto, da política.

Os lares do povo foram o objeto principal desses senhores distintos, que

nos lembram uma tradição socialista e renascentista. As novas intenções não

estavam de acordo com a indústria capitalista insana, que continuou a construir "os

78As informações e observações em torno do Br. de Haussmann e do urbanismo parisiense aqui expressas estão fundamentadas na obra de Leonardo Benevolo. As Origens da Urbanística Moderna. Lisboa: Presença, s.d.

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ignóbeis casebres onde se alojava a população imigrada e a que fora desalojada do

centro citadino, na seqüência dos trabalhos de Haussmann"79. Este senhor foi um

empreendedor, a convite de Napoleão III. Encarnou os desejos expressos em

termos literários até então. Agradou, entretanto, à especulação imobiliária.

Contrapôs-se à desordem natural dos aglomerados:

A idéia de um plano para uma cidade implica a existência de um modelo

ideal, distinto e contraposto à realidade; de facto, volta-se nesta época a

aspirar a uma imagem geométrica da cidade, tão uniforme e regular quão

disforme e irregular é o agregado urbano existente.80

Há, todavia, nesse processo de intervenção urbana, uma leitura própria de

imaginários tão antigos expressos em livros como A Utopia, de Morus, e A Nova

Atlântida, de Bacon, para citar os mais conhecidos. O desejo de aplicar na prática

os falanstérios, partilha de preocupações com a ordem e a conservação das leis.

Segundo Benevolo, a"(...) mudança fundamental reside na aceitação dos aspectos

geométricos e técnicos, em detrimento dos políticos e econômicos; deste modo, o

contributo dos teóricos socialistas torna-se disponível para o novo

conservadorismo dos anos cinquenta"81.

Quanto a isso, o próprio Barão de Haussmann não parece ter deixado

dúvidas. Seu projeto, freqüentemente apresentado como verossímel e tecnicamente

objetivo, caminhou par a par com a instituição da sociedade conservadora:

Há dois anos, no meio da confusão provocada por uma revolução

profunda e inesperada, enquanto todos os princípios sobre que repousa a

79Vide Leonardo Benevolo, op. cit., p. 124. 80Idem, p. 132-133. 81Idem, p. 134.

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sociedade eram simultaneamente postos em discussão, este departamento

voltou-se com um movimento quase unânime para o herdeiro de um nome

que despertava recordações imperiais de glória, mas que recordava também

uma outra época na qual a França, longamente agitada pela tormenta

revolucionária, viu reflorir, à sombra de um poder popular, o domínio das

leis, o respeito pela autoridade, a veneração das coisas santas, e renascer,

como por encanto, a segurança, a confiança, a prosperidade pública.82

Deve-se, com cuidado, entender, porém, como esse momento europeu,

expresso em profundas cirurgias urbanas, foi posteriormente imitado em várias das

capitais brasileiras. O caso de Herbster, a quem chamei nosso primeiro

Haussmann, iniciador do que muitos outros urbanistas e administradores farão

posteriormente, é um caso particular, o qual devemos compreender dentro de

limitações já discutidas por alguns autores locais.

Sem dúvida que a amplitude e a dimensão da obra haussmaniana é

incomparável frente às avenidas de Herbster83. Nossa intenção não se concentra

em discutir esses aspectos de caráter quantitativo, se assim podemos dizer. Ou

seja, não queremos colocar as reformas parisienses em pé de igualdade com as

fortalezenses. Bastaria, para negar perspectivas desse tipo, contrastar imagens das

duas realidades. As residências da Avenue Foch não são comparáveis ao que João

Brígido intitulou, posteriormente (com relação a Guilherme Rocha), de

"pardieiro'', que era a característica da "ausência de arquitetura" nas residências do

centro fortalezense, já no início deste século. Como atesta, portanto, o próprio

jornalista, esse "nunca foi do repertório de Haussmann"84.

82Citado por Leonardo Benevolo, op. cit., p. 138. 83Veja-se o caso da Avenue Foch (Paris) e a Avenida D. Manuel (Fortaleza). 84Vide João Brígido, citado por José L. de Castro: "Arquitetura Eclética no Ceará". In: Annateresa Fabris(org.). Ecletismo na Arquitetura Brasileira. São Paulo: Nobel/EDUSP, 1987, p. 216.

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Essas observações não negam as colocações de Liberal de Castro quanto a

uma "hausmanização" na capital.

Mais importante assinalar, é que a inspiração européia, através dos planos

urbanísticos de Herbster, não excluía a Fortaleza da vigilância, já projetada por

Paulet e posta em prática pela Câmara, seguindo bem à risca suas orientações.

Herbster não fez nenhuma revolução para implementar seus três boulevares, como

observou Paulo Linhares:

O problema é que, ao contrário da reforma parisiense, a reforma Herbster

não foi de forma alguma um evento radical. Enquanto Haussmann, sob a

proteção de Luiz Napoleão, realiza em Paris uma renovação - convenção em

que uma nova sociedade se impõe sobre uma antiga, uma nova estrutura

urbana a uma antiga - em Fortaleza, Adolfo Herbster mantém o traçado

original de Silva Paulet (de 1823), conferindo-lhe 3 boulevares .(...) É certo

que a chamada "Planta Topográfica de Fortaleza e Subúrbios" estendeu o

traçado xadrez até os subúrbios, mas a comparação me parece excessiva,

pois para que, como no caso parisiense, uma antiga estrutura urbana ceda

diante de uma nova, é preciso um processo no qual a antiga tenha

começado a se desagregar; do contrário as condições que asseguram a

passagem de uma sociedade para a outra estariam mantidas. Ora, essa

necessidade teórica de uma etapa preliminar desmente a comparação em

termos de evento radical.85

O Barão de Haussmann procurou dar uma resposta, em nome da ordem e

da eficácia técnica, à mais original experiência política do século XIX, que foi a

85Vide Paulo Linhares, op. cit., p. 185.

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Revolução de 184886 . Sua composição precisava estar à altura. Refazer a cidade

sob novos moldes para que não mais houvesse desvios indesejados e a memória

coletiva tivesse apenas a imagem da Paris maravilhosa, tal qual imaginou

Napoleão III, exilado em Nova Iorque: "Naquele dia prometi a mim mesmo que

quando regressasse a Paris - pois nunca de tal duvidei - reconstruiria a capital das

capitais, como de facto comecei a fazer, se Deus me ajudar".87

No caso de Fortaleza, temos uma cidade muito mais em processo de

construção de uma identidade, real e imaginária, do que (re)construção. Temos

mais modelação do que (re)modelação. Temos de fato a constituição de uma

cultura oficial e erudita que era ainda incipiente. Seu espelho narcísico, como já

foi dito, não passa pela descoberta dos valores locais ou busca de autenticidade.

Ao contrário, mira no estranhamento de seu povo e de seu ambiente ecológico.

Talvez, mais ríspido que a geometria cartesiana, mais formalmente matemático do

que nossa racionalidade ocidental.

Se colocamos o problema nessas dimensões ainda pouco exploradas é

preciso rediscutir um entrave rebelde à análise dos escritores locais. Eles se vêem

constrangidos com a explicação histórica de nossas cirurgias urbanas no século

transato e acabam querendo colocar o problema com eufemismos, como fez

Liberal de Castro ao referir-se a "uma maneira indolor de participar das

proposições haussmanianas"88.

Nesse horizonte, Linhares aproveita as observações sobre a continuidade

da estrutura urbanística, de Paulet a Herbster, para argumentar: “No nosso caso

86Na revolução de 1848, a emergência do proletariado organizado e do socialismo colocavam para a história uma nova consciência das lutas políticas, a qual foi sintetizada por Marx e Engels nas reflexões acerca da luta de classes, em especial, no Manifesto Comunista. 87Citado por Leonardo Benevolo, op. cit., p.138. 88Vide José Liberal de Castro, "Arquitetura Eclética no Ceará", op. cit., p. 215.

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específico, nem tínhamos barricadas, nem tampouco uma relação de forças entre

diferentes frações da classe dominante ou entre o povo e a classe dominante”.89

Dizer isso significa criar uma cidade que seria historicamente

incompreensível.

O fato é que os lares do povo são templos de sua cultura. Sua maneira de

entrançar os cipós e preenchê-los de barro para fazer a tapera, a coberta de palha e

lama, bem como toda a ecologia das sociedades arcaicas ameríndias e africanas,

não poderia subsistir num contexto dezenovista. A princípio, com o início do

processo de europeização portuguesa, a casa de taipa não era sinônimo de

habitação popular. Diz-nos Gilberto Freyre que: “A taipa foi técnica empregada

tanto na construção de sobrados como de casebres”90.

Ainda na colônia, o entrelaçamento cultural entre camadas dominantes e

dominadas permitiu trocas entre a taipa portuguesa, a "cabana de varas e palmas

dos índios"91, bem como o "sistema de as cobrir de lama ou arremessos de

barro"92. Entretanto, com o correr do tempo, as classes passaram a ser mais

distintamente notadas na habitação. É ainda o mesmo G. Freyre que observa:

A nobreza da casa estava principalmente nos elementos mais

duradouros de sua composição: pedra e cal, adobe, telha, madeira de lei,

grade de ferro. Mas estava também na elevação do edifício: sobrado; na sua

vastidão: casa-grande.93

89Vide Paulo Linhares, op. cit., p. 186-187. 90Vide Gilberto Freyre, Sobrados e Mucambos, 6a. ed., Rio de Janeiro: José Olympio; Recife: Câmara dos Deputados/ Governo do Estado de Pernambuco, 1981, p.303. 91Ibidem. 92Ibidem. 93Idem, p.181.

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Quando chega o século positivista, a cidade enche-se de novidades e

aparatos domésticos que exigem mesmo a boa casa. As casas de material mais

frágil e efêmero não se confundem com as casas da gente da "Sociedade".

Esses templos do cotidiano do povo, onde se rezava a oração espontânea e

se realizavam todos os atos da vida ordinária estavam lá à época de Herbster e

eram bem menos coisa do que os "pardieiros" descritos por João Brígido, já neste

século. Essas casas ficavam afastadas do centro da cidade, como no oiteiro da

Praia, na Aldeiota, mas também dentro, nas redondezas do forte, na Rua das

Trincheiras.

Raimundo Girão os descreveu como "tugúrios de palha, mocambos

míseros, dispersos à toa"94. Quando muito, eram "madeira amarrada a cipós, com

enxameio de barro"95. Eles não tinham beleza: "paredes lisas, raras com

platibandas ou frontões, sem arabescos decorativos, sem frisos, sem colunatas, sem

azulejos, sem coisa alguma que acusasse o menor gosto arquitetural"96.

Em 1939, João Nogueira escreveu memórias sobre as residências

próximas ao que foi o Passeio Público (anteriormente Largo da Pólvora): “Quanto

ao lado sul, já em 1850 havia um correr de casinhas, das quais nenhum vestígio

restava em 1877”.97

Não é preciso que tenha havido barricadas para se empreender a

obliteração das habitações e, em última instância, da cultura popular98 . Muitas

vezes acontece justamente o processo inverso. O empreendimento de uma política

rígida, supostamente iluminada, ignorando todas as manifestações do homem

94Vide Raimundo Girão, op. cit., p.78. 95Ibidem. 96Com isso não forçamos a conclusão de que o popular seja sem gosto. Muitas das casas encontradas pelo interior do NE tem uma estética rústica, que é própria do mestre de obras. 97Vide João Nogueira, op. cit., p. 17. 98Para compreender alguns conceitos aqui aplicados, bem como aspectos da relação entre o erudito e o popular, vide Jacques Le Goff, Para um novo conceito de Idade Média, Lisboa: Estampa, 1979, pp. 213-214.

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como ser integral, complexo, acaba sendo uma regulação insana do nosso

cotidiano, que mais quer apagar, jogar à sombra, a vida multicolor do mundo

popular. E erguem-se as barricadas.

Muito pouco se tem referido a esse processo importante de obliteração do

que é identificado pelas elites como indesejável. O rol de equipamentos e

instituições implementados na Fortaleza da segunda metade do século caracteriza

o alcance das reformas de Herbster:

A disciplinarização do espaço urbano da capital cearense a partir do final

do século passado foi uma prática estreitamente relacionada com outra que

diz respeito ao reajustamento social sobretudo das camadas populares,

através do controle da saúde, dos corpos e do comportamento social e

moral. Tratava-se, latu sensu, de um processo disciplinador que pretendia

instaurar uma nova ordem capitalista, republicana e racional que, daquele

período até o fim da Primeira República, atravessou as principais cidades

brasileiras.99

De fato, a tensão social do século exigirá sempre o olhar atento das

classes superiores, levando-se em conta que a própria atual Rua Liberato Barroso,

como nos diz Sebastião Ponte, "antes se chamava 'Rua das Trincheiras', em alusão

a um momento do conflito urbano na capital na centúria passada"100:

A tensão social existente em Fortaleza não gerava tantos conflitos na

intensidade e no volume das revoltas urbanas de Paris, mas a recorrência a

99Vide Sebastião Rogério de B. da Ponte, op. cit., p. 04. 100Idem, p. 18.

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trincheiras e barricadas já havia acontecido no século passado e voltaria a

ocorrer em 1912.101

O processo de formação da cultura erudita local inclui, portanto, novos

lares, nova espacialidade. Mais ainda, vemos que os moldes dessa nova cultura

que encantou as classes dominantes nesse momento, não se deram num ambiente

de liberalismo democrático, mas de aristocratismo provinciano. Também essa

realidade aristocrática pode ser percebida pela mediação do espaço de lazer.

Voltaremos a ele mais adiante.

101Idem, p. 17.

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A SOCIABILIDADE

Uma classe e uma subjetividade de classe esboçam-se em meados do

século passado. Ela não é rústica; tem o horizonte da cultura erudita. Ela classifica,

perscruta, disseca, caracteriza identificando. E, por fim, controla. Ela traz como

signo imaginário a exclusão.

Os homens cultos do século XIX sentem a necessidade de erigir uma

nova sociabilidade, sentem a vontade de impor uma doutrina, um processo

educacional que possa corrigir os erros de seus ancestrais próximos, a fim de

recolocar a vida nos eixos da civilização branca cristã ocidental.

Daí o olhar dos liberais para a infância:

Semelhante à um tenro arbusto, o homem na sua infancia vai para onde

o lanção, e conserva na verilidade, como aquelle, a direcção, que o fizerão

tomar: é o que por outra se chama educação, arte melindrosa, e complicada,

ardua e pesada tarefa, que bem poucos estão habilitados para

desempenhar.102

O contraponto dessa visão de mundo é o olhar preconceituoso e

disciplinar sobre o popular, o negro e também o indígena. Mas há muitas outras

preconceituações.

A educação aparece claramente em sentido amplo. Diz respeito à

formação geral do indivíduo e ao seu comportamento diante das outras classes, já

102Vide O Cearense, no 25, 14-02-1847.

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que a imprensa é, por excelência, uma documentação dos homens da "boa

sociedade".

Uma matéria de jornal sobre "Educação" como a supracitada, extraída d'O

Cearense, pode fazer alusão às amas de leite.

Em Pernambuco, em 1850, um artigo d'O Conciliador clamava a

utilidade da importação das portuguesas para servir-nos e "na qualidade de amas

substituírem as africanas que tão prejudiciaes nos são na educação das nossas

famílias"103.

Semelhante tema é tocado pela matéria de 1847, n'O Cearense:

Tratando desse assumpto, não podemos deixar de reprovar altamente o

costume de certas mãis barbaras e desnaturalisadas, que em vez de

aleitarem os seus filhinhos, os entregão a mulheres assalariadas, e de

nenhum zelo maternal, ou á escravas viciosas e desleixadas, que pouco ou

nenhum interesse tomão, e nem podem, inda que queirão, no fructo que lhes

é estranho: e isto até muita vez prolonga-se á uma idade adiantada.104

Na vontade de extirpar "uma usança de tão perniciosos resultados" - ainda

segundo a mesma matéria - o jornal O Cearense mostra-se mais rígido que a

própria opinião pernambucana, epicentro do patriarcalismo colonial. Além de

qualificar as escravas como "viciosas e desleixadas", O Cearense leva em conta

que até mesmo as assalariadas são prejudiciais à boa educação dos filhos da classe

senhorial.

Ambas as matérias estão num contexto de modificação da mentalidade.

Porém, o jornal da província do Ceará aprofunda ainda mais a cisão entre a cultura

103Citado por Gilberto Freyre, op. cit., p.269. 104Vide O Cearense, no 25, 14-02-1847.

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dos proprietários de escravos e a cultura da classe senhorial. O estigma da higiene

cultural, da distinta e nobre camada de senhores emerge com radicalidade.

O olhar classificatório sobre o homem comum parece sofisticar-se com o

correr dos anos. Seria interessante comparar os primeiros anúncios de escravos

fugitivos nos anos de 1850/9 aos dos anos de 1870/88; bem como, comparar o

anúncio do senhor patriarcal do campo com o do senhor letrado e citadino105.

Diz-nos um anúncio de 1856, da escrava Bertholesa, uma mestiça que, a

confiar na permanência da semântica de "cabra", tratava-se de uma pessoa de pele

branca e cabelo "ruim", encarapinhado. Publicou um certo capitão do Rio Grande

do Norte sobre a Bertholesa: “(...)cabra gorda, com cincoenta e cinco annos pouco

mais ou menos”106.

Acrescenta ainda o local provável do esconderijo.

Bem mais minuciosa é a descrição feita em anúncio publicado pelo Pe.

Tomás Pompeu de Sousa Brasil, renomado político e intelectual da Província:

Fugio do abaixo assignado um escravo cabra fulo de idade de 45 á 50

annos no dia 23 do corrente: tem os seguinte signaes - cabellos grandes e

anellados na cabeça tem um grande signal de queimadura que deixa o

casco da cabeça limpa, é um pouco surdo, tem olhos brancos, e grandes,

barbado e barba branca - chama-se Braz; é bem conhecido por aqui,

costuma apresentar presepios, e talvez ande por Soure. Recomendo á todas

authoridades policiaes; e quem o trouxer será recompensado.

Fortaleza, 27 de agosto de 1856.

Thomaz Pompeo de Souza Brasil.107

105Além de Gilberto Freyre, para uma análise metodologicamente semelhante a esta , vide Lilia Moritz Schwarcz, Retrato em Branco e Negro. São Paulo: Círculo do Livro, 1988. 106Vide O Cearense, 26-08-1856 (anúncio). 107Vide O Cearense, 29-08-1856 (anúncio).

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Vemos que Pompeu busca, na identificação do Braz, o fugitivo escondido

pelos lados do que é hoje a Caucaia, todos os aspectos marcantes: do físico ao

comportamento. O Braz destacava-se, ao que deduzimos, pela sua extroversão, sua

capacidade de fazer-se conhecer por todos e ser figura popular, ou, como se diz até

hoje, um presepeiro, em outras palavras, um brincalhão.

O espírito se que impõe às elites, embriagadas com o progresso no século

XIX, é bem oposto ao do Braz. As novas gerações tem como caráter distintivo o

aspecto sóbrio, signo de uma educação adequada. Elas não tem cores, vivem na

dualidade do preto e do branco. O chapéu preto e a luva de pelica branca, o

homem de frack preto e a mulher com pesados vestidos em branco. Ou, ainda, no

homem e na mulher, o contraste das peças de baixo em branco com calças e

paletós de um lado, e casaquinhas, saias e vestidos, de outro, todas roupas pretas.

As demandas de modificação nos hábitos citadinos locais surgem já em

meados do século. Em matéria sobre comemoração acontecida no "Theatro

Lyrico", o jornal O Commercial, de 4 de dezembro de 1856, sugere a construção

de "um bom theatro regularmente trabalhando", o que serviria não somente ao

deleite dos habitantes de Fortaleza - cidade que era, segundo a mesma fonte, "uma

das primeiras nas de segunda ordem" - mas para "instruir o augmento da

civilização do público que o possue"108 (grifos nossos).

Publicações de moda vindas do Rio de Janeiro, como a Revista Popular

e o Jornal do Commercio, têm registro na historiografia desde 1860. Este último

era reproduzido por jornais locais e informava "ao leitor sobre o estágio evolutivo

da moda europeia, a francesa"109.

108Citado por Eduardo Campos. Capítulos de História da Fortaleza do Século XIX (o social e o urbano). Fortaleza: Edição UFC (PROED), 1985, p. 75. 109Idem, p. 24.

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Esses artigos e também anúncios dos vestuários, ou toilettes como eram

comumente chamados, vão aparecer nos jornais cearenses da década de 60 em

diante. Acorrem as mulheres de "bom gosto" aos tecidos mais caros: o filó, a

talartana, a seda e o tafetá. Os colares ou "voltas" eram de plaqué e madrepérola.

Com a década de 1870/79 a influência francesa faz-se mais forte e atenua

as cores escuras, variando o monopólio do preto e do branco:

Durante anos, essa sociedade imponhe-se [sic] a si mesma a preferência

por vestes escuras. Tem-se, por assim dizer, irresistível atração pelo preto,

como se a elegância só pudesse representar pelo indumento retinto, fosse

vestido ou casaca, elementos de vestuário terrivelmente antiecológico.110

A "moda de Paris" fará "prevalecer os ternos menos escuros"111.

Em 1872 um comentário do Jornal do Commercio foi transcrito n'A

Constituição, este último, um periódico cearense. Segundo a transcrição, as

modas em França continuavam dadas a grandes toilettes. Os decotes trazidos às

costas das elegantes de Paris "pouco lhes falta para tocarem à cintura"112 e as

mangas "são extremamente curtas"113.

Os anúncios de produtos à venda vão se tornando cada vez mais

freqüentes e pouco a pouco predominam sobre o recado, o aviso pessoal, onde

ganhava vazão a linguagem de cunho até doméstico.

As primeiras matérias pagas n'O Cearense tinham o estilo de

correspondência ou de bilhete. Elas não traziam a marca da objetividade e da

impessoalidade, senão em raras exceções. Um anúncio curto, com todas as

110Idem, p. 51. 111Ibidem. 112Idem, p.25. 113Ibidem.

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condições propiciadoras da clareza e exterioridade, é escrito a modo íntimo, com a

sentimentalidade dos laços cordiais. Eles comunicam aos "amigos" que fulano está

fora da cidade, de partida para a Corte ou para Pernambuco.

Um comerciante, por exemplo, pode transcender sua função como

intermediário na troca de mercadorias para ser um prestador de serviços. Citemos,

para ilustrar, esse extrato de anúncio publicado por proprietário de estabelecimento

comercial na Vila de Aquiraz, em 1865:

Offerece tambem aos referidos amigos os seus serviços para o

desempenho de qualquer incumbencia commercial, que por ventura lhe

queiram confiar com destino à capital, no que promette toda assiduidade e

zelo.114

É possível, porém, vislumbrar já por essa época uma diferenciação entre o

comerciante da vila ou do sertão, daquele comerciante de capital. O mesmo

comerciante do Aquiraz, em seu anúncio, nos esclarece que "tem fazendas de bom

gosto e novas e alguma couza de molhados"115 (grifos nossos). Foge, portanto, ao

comum dos anúncios da capital, onde predomina o alarde, o exagero ou mesmo a

ilusão e a enganação.

Ainda vejamos a transcrição do anúncio seguinte, tipicamente pessoal:

O abaixo assignado proprietario da Capella de S. Bernardo, roga ao Ilmo.

e Rvm. Sr. Vigario Miguel Francisco da Frota, que por muito especial favor

queira mandar receber do mesmo a importancia de seus direitos da festa de

N.S. do Bom Parto, o que já não tem remettido por ignorar quanto seja.

114Vide O Cearense, 01-10-1865. 115Ibidem.

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Fortaleza, 2 de março de 1866.

Bernardo José de Melo.116

Nesse mundo da informalidade e, mais precisamente, da ausência de

delimitação entre os sentimentos pessoais e o espaço do público, o jornal também

foi a oportunidade da execração pública. Diversos anunciantes revelam que fulano

lhe deve, ou que sicrano tem os bens hipotecados. As hipotecas vão logo a público,

até como garantia social, assim como as dissoluções de casamento, em que a

partilha desses bens ainda está em questão por conta do divórcio em andamento.

Quando ocorrem os escândalos de rua, é o anúncio que permite que eles sejam

revidados. Nesse ponto, o jornal concorre e supera a força da fofoca, dos curiosos

de momento e futriqueiros de toda espécie. Os homens de cabedal, de

relacionamento social destacado, tinham a seu encalço a imprensa, principalmente

a "miúda". As tricas partidárias revelam uso social da imprensa no sentido da

humilhação pública e aviltante.

Os jornalecos e a pasquinagem nunca sumiram, e encontraram mesmo

uma recrudescência nos anos de 1880/89, mas uma nova opinião passa a ter

presença desde 1845, aproximadamente, como nos diz o historiador Geraldo da

Silva Nobre:

A iniciação literária, no Ceará, liga-se ao Liceu, que começou a funcionar

em 1845, mais do que a influências exteriores, e, por motivos óbvios, teve

nos jornais o instrumento principal, visto como os jovens não dispunham de

meios para publicar livros. O movimento alcançou maior intensidade no

decênio 1870-1879, quando o cearense José de Alencar, na Corte, já se

116Idem, 04-03-1866.

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havia firmado como um dos mais insígnes homens de letras do Império

oferecendo-se à imitação de seus conterrâneos.117

Nos anos 80 do século XIX, a ilusão típica da Belle Époque atinge os

consumidores. Os países periféricos desfrutam das "maravilhas do mundo

civilizado". Ocorre um natural alargamento do poder de compra dos citadinos e o

mercado para produtos de requinte obtém um considerável elastecimento.

Em 11 de outubro de 1884 é possível encontrar o seguinte anúncio de

vendas de charrete n'O Cearense:

Os americanos do norte acabam de mandar ao mercado, um novo

produto de sua maravilhosa industria, não é só o filho de potentado que

pode gozar dos commodos de um magnifico carro de luxo.

As pessoas de haveres os mais modestos podem tambem se utilizar dos

mesmos commodos para seus filhinhos.

São realmente lindas as pequeninas vitorias que acabamos de receber

dos Estados Unidos, são commodas, fortes e elegantes.118

As mesas cearenses dispõem, com certa facilidade, de nozes, ameixas,

"petits pois" e camarão, bastava dispender (como trazem os anúncios) de l'argent.

Novos hábitos de higiene e novos odores se fazem a partir dos sabões franceses,

perfumes e cremes. Por essa época, coletamos a informação de um certo

anunciante que ressaltava as vantagens do produto "Crême de Savon d'Amandes

Amêres" frente aos sabões de barbeiro, já que tal categoria profissional passava

117Vide Geraldo da Silva Nobre. Introdução à História do Jornalismo Cearense. Fortaleza: Gráfica Editora Cearense, 1975, p. 108 e 109. 118Vide O Cearense, 11-10-1884.

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qualquer coisa no rosto do cliente, sem ligar para o "aceio". Nisso, conforme o

anunciante, muitas moléstias de pele desconhecidas eram transmitidas119.

A loja de Jacques Weil vendia artigos finos, como papel de parede

(geralmente com vistas européias), leques de sândalo, de osso e de madeira preta,

bem como meias de seda para padre. O mesmo também anunciava roupa para

baile. Ela precisava ter aparência de boa:

Para baile

Riquissimos vestidos de tartalana e musolina recebeu e vende por menos

do que em outra parte.120

Houve vários tipos de bailes: Baile-Concerto, Baile Patriótico, Baile

Político, Baile de Sociedade e Baile de Máscaras. Começavam por volta das 19:00

ou 20:00 horas, com a apresentação de uma banda, como a do 15o Batalhão de

Infantaria e Corpo Policial, de acordo com descrição de Baile-Concerto n'A

Constituição de 27 de agosto de 1874121. Neste caso, houve a seguir a audiência

do vocal de distintas senhoras. Somente após, aconteceu o baile propriamente dito.

Era convencional servir-se chá por volta da meia-noite e uma mesa farta e

delicada à 1 hora da madrugada. Chegava, então, o momento dos discursos,

especialmente no Baile Político.

O Baile Político passa a ser signo de uma forma moderna de

demonstração de força deste ou daquele oligarca. Em fins dos anos 70 do século

em questão, foi usado por Acioli para oficializar o seu rompimento com a

administração José Júlio122.

119Idem, 06-11-1884. 120Idem, 13-09-1872. 121Citado por Eduardo Campos, op. cit., p. 32. 122Vide Abelardo Montenegro. Os Partidos do Ceará. Fortaleza: Edições UFC, 1980, p. 41.

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O baile não é a mesma coisa que a festa. Distingue-se desta última por ser

manifestação tipicamente elitista. Quando impõe-se o baile, não desaparece a

festa, nem as elites deixam de freqüentá-la. Na festa pública, em geral religiosa,

ocorre a hierarquia dos assentos. Encontra-se nos anúncios a distinção entre as

tribunas e cadeiras. Além disso, as cadeiras e tribunas eram marcadas e

teoricamente haveria também aquela multidão que não tinha acesso a nenhuma:

nem cadeiras, nem tribunas. Adolfo Caminha, em romance publicado em 1893,

fala das cadeiras de primeira ordem123. Distinção seguramente mais hierárquica

far-se-ia no teatro.

Os populares admiravam com encantamento o baile. Todavia, assistiam-

no do sereno. A esse respeito diz-nos Eduardo Campos:

Em certo momento ser serenista ou fazer sereno é condição dos que

também, empolgados, de maneira indireta atrelam-se aos fatos festejados.

É uma moldura de sensações plebéias, sem dúvida alguma, mas de

ponderável importância na estratificação de hábitos e costumes locais.124

Como provocação, o clube carnavalesco dos "Conspiradores Infernais"

convidou seus rivais, os "Dragões de Averno", para seu baile. Porém, mediante a

compra de "bilhete sereno"125.

Os bailes carnavalescos eram também uma manifestação do refinamento

social das elites. Em meados do século predominavam os Entrudos, descritos por

João Brígido, jornalista e político local de renome, como "a sublevação, a licença

na sua mais alta expressão, o desaforo e a porcaria triunfal"126. O Entrudo lembra o

123Vide Adolfo Caminha. A Normalista. 9a ed. São Paulo: Ática, 1992, p. 66. 124Vide Eduardo Campos, op. cit., p. 20. 125Idem, p. 18. 126Citado por Eduardo Campos, op. cit., p. 77.

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autêntico carnaval europeu medieval e deles todos participavam a seu modo, com

aparelhos "seringatórios", arremesso de lamas e toda extravagância possível.

Nessa manifestação, porém, a truculência dos opulentos atingirá

preferidamente às classes inferiores. O poder repressivo buscará a eliminação de

tais práticas, no que parece ter obtido êxito, dada a quase ausência de notícias a

esse respeito em fins do século, e sua substituição pelo Baile Masqué. Em meados

do século XIX, contudo, a intervenção repressiva foi rigorosa, como demonstram

as "instruções" de divertimento de 1866. Nelas transparece nitidamente uma

ambigüidade. A grotesca manifestação do carnaval faz-se dentro dos quadros do

mando senhorial, e a infringe também, ao praticar a usurpação da propriedade

alheia, incluindo o escravo:

Nenhum mascarado poderá atirar nas ruas, nas casas ou em qualquer

pessoa objecto algum, e muito menos água com ou sem cheiro, nem pegar

os que andarem nas ruas, principalmente sendo homens do campo,

escravos ou fâmulos.127

Contudo, é certo que o Entrudo era inadequado à aristocratização em

curso. A folia dos masqués terá caráter ordeiro e será signo de urbanidade,

contrária ao Entrudo. Diz-nos Eduardo Campos que próximo a 1860 "os bailes

enobreciam o uso da máscara, então de uso corrente"128. Em que pelos anos da

década de 1870/79, "esse tipo de comemoração social é ponderável realidade"129.

O jornal A República dá-nos a idéia do luxo de um desses eventos

carnavalescos, ocorrido em 1897 e promovido pelos "Companheiros do Silêncio":

127Idem., p. 36. 128Vide Eduardo Campos, op. cit., p. 77. 129Ibidem.

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Rompia o sumptuoso prestito uma infernal charanga, à qual seguiam-se

grupos batedores trajando casaca preta, calça branca e colete azul, e

cavalgando garbosamente fogosos corceis, sob cujos sellins appareciam

bellas mantas de setim azul.

Logo após guarnecida de uma luzida guarda de honra, vinha o

majestoso carro allegorico, portador do soberbo labaro dos

Companheiros.130

Essas manifestações diurnas, que assemelhavam-se mais a uma parada

que a um carnaval, eram encerradas com o Baile Noturno.

As fantasias dos foliões eram importadas ou anunciadas como tal. Essas

vestimentas e máscaras demonstram, a princípio, que os bailes saíam caro para

seus participantes e não havia sempre a honestidade do comerciante. Muito do que

se dizia vir da Europa era imitação ou falsificação.

Não sabemos se isso ocorria com as fantasias, mas no caso dos produtos,

como vinhos, a falsificação era tida como corriqueira.

Fato é que somente as máscaras de carnaval eram vendidas, em 1873, a

um valor médio de mil a mil e quinhentos réis, podendo chegar a mil e seiscentos.

Uma máscara simples de papelão custava quatrocentos réis. Cinco anos antes o

metro da chita custava trezentos réis, em certo anúncio.

Em 1882 era possível ler o seguinte anúncio n'O Cearense:

Para os pobres:

Mascaras, luvas, fios da Escossia para homens e senhoras.

Plumas de todas as cores

Franjas de sedas de cores

130Citado por Eduardo Campos, op. cit., p. 83.

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Tranças de sedas de cores

Para os ricos:

Mascaras para os grandes bailes no 'Club Cearense' e diversas

sociedades que compõem o Highlife cearense.

Soberbos cortes de vestidos de lindas côres bordados a ouro e prata.

- para ricos mas caras, a preço de pobres de 5$000 reis.

um corte de desgraça!!!!!

Meias de bonitas cores, par

E de differentes preços na Casa dos Pobres

de Tito Rocha.131

Havia também produtos para aqueles mais econômicos ou de menor

poder aquisitivo, e que não se dispusessem a comprar o enxoval carnavalesco. Era

comum folhear o jornal até a seção de anúncios, na última página, e encontrar

oferta de aluguel de máscaras, barbas, cabeleiras e narizes.

Em seguida, vinha a Semana Santa. Outra manifestação de forte

sociabilidade citadina. Ela era marcada pela sobriedade das roupas pretas, do

fraque, do paletó e do sobrecasaco. Vinham, de fora da Província, peixes como o

salmão. Queijo e ervilha eram oferecidos nos anúncios como sendo adequados

para o jejum da sexta-feira.

Na década de oitenta, os passeios campestres. Surge, nos anúncios, o

"Trem recreio", que desloca os citadinos até Canoa, localidade que ficava na

estrada para Baturité. Neste trem havia um vagão botequim tocando música

durante o percurso. Lá, aguardava a diversão do pau-de-sebo, untado de algum

líquido escorregadio e bastante liso para tornar-se obstáculo penoso a quem o

desejasse escalar.

131Vide O Cearense, 08-02-1882.

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Também se dançava: quadrilha, polka e valsas. Voltava-se pela tarde. “E

os dias passavam, longos e modorrentos, cheios de sol, sem nuvens no azul, iguais

sempre, eternamente monótonos”132.

Até chegar o domingo novamente e e optar-se agora pela mão-de-vaca

ofertada pelo sr. José, "cosinheiro habilitado" que servia a "rapasiada amante da

pandega e a todas as pessoas que gostão de almoçar aos domingos"133. Era ir,

então, à Rua das Flores, na casa contígua à do sr. João Mississipi.

Podia-se ir também ao "Restaurante Benfica", em 1887, através dos

bondes da Companhia Ferro Carril. Nesse estabelecimento, além da mão-de-vaca,

aos domingos, havia "excellentes commodos para hospedes e convalescentes",

uma "pittoresca chacara" e um "perito mestre de cosinha"134.

Eram diversões provincianas em que as camadas médias e as opulentas

encontravam algo por fazer, fora do cotidiano. Estabelecem uma distintiva relação

entre a cidade e o campestre, elegendo o dia e o lugar do ócio.

Por essa época, a vida frívola dos homens de cidade criara uma

consistência enquanto participantes de uma comunidade urbana. Não falamos aqui

do urbano clássico, industrial, mas dos hábitos mundanos da aristocratização

provinciana. Cria a referência dos que fazem e dos que não fazem parte da

"Sociedade". Ela não tem apenas o mundanismo como signo de sua urbanidade.

Tem as modas intelectuais elegantes, as filosofias, as letras, o jornalismo. Chegou

o tempo em que os anúncios literários não trazem apenas o Compêndio de

Geografia do Senador Pompeu e outras obras indicadas para compra, em função

do clichê de ser recomendado pela Instrução Pública. Vendiam-se as Revistas e os

Almanaques, leituras finas e de bom gosto. O Almanaque era um útil trabalho,

indicado para as famílias, versando das coisas antigas e das que estivessem na

132Vide Adolfo Caminha, op. cit, p. 64. 133Vide O Cearense, 14-05-1872. 134Idem, 15-05-1887.

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ordem do dia, com páginas coloridas, por fim, amplas informações condensadas

em tabelas e gráficos. Em 1884, anuncia-se um Almanach Cearense.

No mesmo ano, sai a Revista Contemporanea, "Publicação dedicada às

familias cearenses. Quatro páginas de capa e doze de texto sobre litteratura, Critica

Litteraria, Sciencias, Artes, Philosophia, Viagens"135.

Junto a esse consumo, do que um escritor local contemporâneo chamou

de "literatices", comprava-se Victor Hugo, lia-se em francês e em inglês.

Freqüentemente, a moda chegava ao exagero do ridículo. Nos jornais e

publicações diversas vinham à tona os galicismos de toda espécie. Alguns

anúncios inteiros, sejam de oferta de aula ou mensagens de aniversário, por

exemplo, vinham em francês.

De um baile da década de 1880/89, relata Antônio Bezerra:

Nos intervalos as damas e cavalheiros espalham-se pelas salas e

passeios. Ao angulo de uma varanda o academico Arthur Alves entretem a

d. Rosinha, a rainha do baile, com uma prelecção das doutrinas de Comte,

que ella muito aprecia, mas que não entende, nem elle.136

O intelectualismo vira uma diversão. Toda uma sociabilidade, forjada aos

poucos nos bailes, nas festas religiosas, nas folias carnavalescas, é agora

canalizada para a partilha dos bens culturais do século. Ser cidadão é ser dado a

toilletes e às letras.

Em primeiro de outubro de 1887, O Cearense anunciava:

F.G. Filhos do Genio

135O Cearense, 12-11-1884. 136Vide Eduardo Campos, op. cit., p.46.

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la sessão

Amanhã, domingo, haverá a 1a polemica litteraria deste Club, tendo por

thema:

O Progresso e o Século XIX.

Deve começar às 10 horas do dia, reunidos os socios na casa no 7 da

rua Municipal.

Fortaleza, 1o de outubro de 1887.137

Em 1882, foi inaugurado o Reform Club. A matéria a respeito, do jornal

Constituição, dá ênfase aos salões, às luzes e à Biblioteca:

Um concurso extraordinario de senhoras e cavalheiros dominava os

vastos e bellos salões do grande edificio, esplendidamente illuminados, e

com todo o gosto preparados, sobresahindo aquelles destinados à

biblioteca, onde se observava postos na melhor ordem, e em regular

classificação, milhares de livros.138

Após a entrega de uma pintura a óleo ao ex-presidente do Reform Club,

uma comissão de senhores entregou "quatro cartas de liberdade" aos escravos

Francisco, Antônio, Quitéria e Francisca: "Este ato de generosidade, que altamente

traduzia a grandeza dos sentimentos abolicionistas da illustre associação, foi

estrondosamente applaudido"139.

Em seguida, os oradores das respeitáveis associações locais, recital de

poesia e, por fim, veio a dança, "de modo que todos, ao retirar-se, levaram grata

137Vide O Cearense, 01-10-1887. 138Citado por Eduardo Campos, op. cit., p. 73. 139Ibidem.

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recordação daquela festa, mostrando-se reconhecidos pela urbanidade e delicadeza

de tão estimados cavalheiros"140.

Ao fim do artigo do Constituição, o cronista volta a dar relevo à

Biblioteca, como símbolo da civilidade e progresso da vida mundana local.

Considere-se que o mesmo busca na Biblioteca um caráter de monumento a ser

admirado. Os atributos principais dela estão na organização e na quantidade de

livros, na casa dos "milhares".

A atitude dos dirigentes do Reform Club era louvável. Tinham casado

mundanismo e intelectualismo: "uma excelente biblioteca em um elegante

palacete"141.

140Idem, p. 74. 141Ibidem.

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UM PASSEIO PÚBLICO NO IMAGINÁRIO

Ao discutirmos as formas espaciais do Passeio Público fortalezense

entramos, necessariamente, na intriga do desvendamento simbólico de sua

sociabilidade.

Ele foi objeto e signo maior da modernidade local, da sociedade frívola e

modista dos anos oitenta do século passado, em Fortaleza. Esse período foi de

grande efervescência cultural na capital cearense, com o lançamento de inúmeros

periódicos de títulos jocosos, cheios de discursos-relâmpago em torno da

Abolição.

Relata João Nogueira:

Durante a efervescência abolicionista, era no Passeio que, por vezes,

explodia o entusiasmo em discursos furiosos.

Então, ainda não havia meetings nem o risonho Passeio dispunha de um

coreto heróico, como esse da Praça do Ferreira.

Subia-se a uma cadeira qualquer emprestada na vizinhança e daí se

falava torrencialmente. Disse-se cada coisa...142

Dos Passeios, o arquiteto Joaquim Cartaxo nos põe a par: “(...) será fruto

das idéias da burguesia em ascensão entre elas transformar os jardins privados da

nobreza em espaço público gerando assim uma nova necessidade urbana no

programa das cidades” 143 .

142Vide João Nogueira. Fortaleza Velha: Crônicas. 2a ed. Fortaleza: UFC/PMF, 1981, p.21. 143Vide Joaquim Cartaxo Filho. A Emergência da Praça do Ferreira e a decadência do Passeio Público. Fortaleza: Monografia de Aperfeiçoamento em Arquitetura - UFC, 1984, p. 53.

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O Passeio Público Cearense é a porta de entrada que conduz à diversão

burguesa e, como tal, é o último e mais forte sintoma do aristocratismo

provinciano.

Localizava-se esse logradouro ao lado da Fortaleza de N. S. da Assunção,

no Largo da Pólvora, cuja imagem, sombria e punitiva, feria a memória da cidade

sob o paradigma da vigilância e da justiça cruenta. Em 1831, os patriotas exaltados

já haviam destruído o patíbulo deste Largo.

Lá, foram fuzilados os participantes da Confederação do Equador, líderes

patriotas que se insubordinaram contra os atos totalitários de D. Pedro I. Morreram

a olhos públicos: Padre Mororó, Azevedo Bolão, Pessoa Anta, Francisco Ibiapina,

Silva Carapinima, entre outros.

O lugar atraía maus pressentimentos.

Em 1847, o jornal O Cearense dava notícia dele: “E quem andando tarde

da noite por uma de nossas praças não vê os manes venerandos erguidos gemerem:

E ha no mundo fratrecidas!”144

A partir de 1850, partindo do Presidente da Província, começou-se a

idealizar uma nova imagem para o lugar, uma praça para ócio das horas matinais e

vesperais. "O Governo Provincial, porém, só realizou esse projeto em 1864. A

Praça foi ajardinada e arborizada. Mas a parte em ladeira, que descia a praia de

Maceió, onde outrora haviam ancorado os maracatins de Matias Beck, foi somente

cercada, constituindo uma espécie de pequeno sítio ou chácara, que a Câmara

Municipal alugava a particulares para hortas e capinzais"145.

Esse lado mais próximo à praia parece ter começado, pouco a pouco, a

ser ocupado pelos populares, enquanto os cidadãos foram se concentrando mais

acima, onde já se constituía um incipiente embelezamento. A partir de 1879, o

144Vide "O Dedo da Providência". in: O Cearense, 13-09-1847, no 83. 145Vide Maria N. R. da Cunha, op. cit., p. 270.

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Campo da Pólvora mudou de nome por ato da Câmara de Vereadores e passou a

ser memória gloriosa dos "sacrificados pela causa da liberdade", segundo

justificativa elaborada por João Câmara146. Fundou-se a Praça dos Mártires.

A 5 de julho de 1880 foi inaugurado o novo Passeio com bandas de

música e festas, completamente reformulado, "era um logradouro ornamentado

com muito bom gosto e onde havia uma porção de belas estátuas vindas da

Europa"147.

Havia três planos. (Vide Planta da cidade de Fortaleza com projeção

ampliada do Passeio Público em 1888.) O primeiro (no sentido de sul a norte)

era o Passeio propriamente dito, onde até 1888 não havia ainda a Avenida Caio

Prado, de eleição privilegiada para a freqüência das elites. Lá na Caio Prado, duas

esfinges guardavam a escadaria que conduzia aos demais planos.

O plano seguinte, mais abaixo, era sem nenhum embelezamento, tendo

tornado-se, posteriormente, um campo de futebol (ground).

O último plano ficava mais próximo à praia e era bastante arborizado,

tendo mesmo um certo aspecto de sítio, ao que se deduz das descrições de que

dispomos, como a que se segue, de João Nogueira:

No terceiro plano, que foi ajardinado, construiu um lago, alimentado pelas

águas do rio Pajeú. As margens eram revestidas de pedras vindas do

Mucuripe; e bem ao centro, sobre uma coluna dessas pedras, de tridente em

punho, uma estátua de Netuno olhava e dominava o oceano.148

146Ibidem. 147Vide Otacílio de Azevedo. Fortaleza Descalça: reminiscências. Fortaleza: UFC/PMF, 1980, p. 50. 148Vide João Nogueira, op. cit., p. 19.

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O Netuno cearense era um rei fora do que imaginava ser seu reino, ou

seja, os valores externos representados no Oceano Atlântico e nos navios ingleses

que eram avistados.

Cercado de cutias, veados e árvores frondosas, o Netuno virara um

criptograma da "gente fina" lá do alto (primeiro plano). Ele observava altivo o que

acontecia além-mar.

Da Avenida Caio Prado, "onde fervilhava a fina sociedade local"149,

netunos de carne e osso tinham uma paisagem à vista:

Defronte da Avenida o mar, na sua aparente imobilidade, tinha reflexos

opalinos que deslumbravam, crivado de cintilações minúsculas, largo,

imenso, desdobrando-se por ali fora a perder de vista, e para o sul, muito ao

PLANTA

149Vide Otacílio de Azevedo, op. cit., p. 50.

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longe o

farol tinha lampejos intermitentes, de minuto a minuto. No porto a

mastreação dos navios destacava nitidamente, inclinando-se num

movimento incessante para um e outro lado, como oscilações de um

pêndulo invertido.150

Várias descrições do plano em que estava a Avenida Caio Prado já foram

realizadas. Muitas delas imprecisas ou equivocadas151. Uma das mais completas e

confiáveis é a de Gustavo Barroso, ao falar das avenidas que o compunham:

150Vide Adolfo Caminha, op. cit., p. 64. 151Citemos como exemplo o trabalho de Maria Noélia R. da Cunha (op. cit., p. 270) que une num mesmo plano o Netuno e o Baobá (ainda hoje existente). Sebastião Rogério Ponte (op.cit.) trata dos planos como se fossem semelhantes às Avenidas.

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(...) em frente a Santa Casa, a avenida Pessoa Anta; em frente ao

quartel, a Bolão; em frente à Major Facundo, a Ibiapina; no centro a Mororó;

a paralela a esta, a Carapinima, sombreada de imponentes castanheiras.

Em 1888 aumentou-se o aterro diante desta e construiu-se a avenida Caio

Prado sobre o Segundo Plano com magnífica vista sobre o litoral152.

Neste plano superior dividiam-se os grupos sociais em três camadas.

(Vide Croquis do Plano Superior do Passeio Público.) As camadas nobres

tinham melhor vista do mar, ou seja, o espaço amplo e visível a todos, da Avenida

Caio Prado.

Ensombrada de castanheiras era Carapinima. Menos à vista do que a Caio

Prado , ela era destinada especialmente aos setores médios que viviam

a

CROQUIS

152Citado por Joaquim Cartaxo, op. cit., p. 66.

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mediocridade do mundanismo. Pessoas sem tradição, como está literariamente

expresso no caso da personagem Maria do Carmo, do romance A Normalista.

A Avenida Mororó era repleta de árvores. Embora não saibamos onde

exatamente situava-se, ficava mais ou menos ao meio do primeiro plano. Sua

obscuridade era freqüentada pela gente sem nenhum brilho e importância frente à

Fortaleza da Luz que se cristalizara definitivo em 1884, com a vitória do

Abolicionismo local.

Argumenta Otacílio de Azevedo sobre as avenidas:

O Passeio Público era uma ampla praça dividida em três partes iguais.

A primeira era a Caio Prado, onde fervilhava a fina sociedade local; a

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parte do meio era chamada Carapinima, destinada ao pessoal da classe

média e onde a Banda da Polícia Militar executava operetas e valsas

vienenses. A terceira era a Avenida Padre Mororó, freqüentada pela ralé -

as mulheres da vida, os rufiões e os operários pobres...153

A sociedade que compunha a capital cearense no fim do século XIX

estava profundamente seccionada. Fortaleza crescera rapidamente e de uma forma

espantosa até. Havia muitos signos de modernidade que perpassavam os espaços

cotidianos citadinos. Mas era ainda uma capitalzinha, tacanha em muitos aspectos

comportamentais de seus habitantes.

Havia uma quantidade considerável de escravos urbanos, já que o

trabalho servil deixara de compor o cenário rural como figura central, desde

meados do século. Em 1860, somente 28% da população escrava era agrícola. Esse

percentual baixou para 23% em 1872154.

Havia, de maneira marcante, a presença da canalha. Onde houvesse do

que rir e fazer mangofa, lá estava ela. Era muitas vezes a molecada de meninos e

jovens, mas também poderia estar presente a gentinha ou os mendigos... Em

alguns casos, mesmo senhores mais distintos e bem vestidos davam-se a

canalhices e a rir das bandalheiras. Por fim, havia a classe mais abastada,

composta de ricos coronéis, de bacharéis-coronéis, de estrangeiros casados com

moças de famílias tradicionais.

Todos, de uma maneira ou de outra, que fossem dados a bailes e a

requintes no Passeio, constituíam a "Sociedade". Os habitantes médios

compunham também a "Sociedade": jornalistas, bacharéis, funcionários públicos,

professores e toda a camada que vivia de salários contados.

153Vide Otacílio de Azevedo, op. cit., p. 50. 154Cf. Francisco José Pinheiro. "O Homem Livre/Pobre e a Organização das Relações de Trabalho no Ceará (1850-1880)". In: Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, vol. 20-21, no 1/2, 1989/1990, p. 205.

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Adolfo Caminha, na obra A Normalista, dá-nos um exemplo desses

cidadãos médios a partir da personagem José Pereira, redator d'A Província:

O Sr. Pereira sabia dar um laço na gravata, lá isto sabia, e também não

ignorava como se calça uma luva; mas (e isto é que preocupava a

sociedade cearense) o Sr. Pereira, quer fosse a um baile de primeira ordem,

quer fosse a uma festa inaugural, quer fosse ao teatro, levava sempre,

invariavelmente, a mesma sobrecasaca surrada e o mesmo chapéu ruço!

Um homem de talento, sem gosto, o que não se admite. A sociedade

cearense, porém, ignorava que o Sr. José Pereira era casado, tinha filhos e

ganhava apenas o essencial para o seu sustento e o da família, cento e

cinqüenta mil réis por mês, uma ninharia.155

A distância entre as classes era quase estamental, como nos informa ainda

a mesma obra de Adolfo Caminha, na exposição que faz do pensamento do

coronel Sousa Nunes:

-”Cada qual com seu igual”, doutrinava o coronel. O que não se admitia é

que o filho se metesse com gente de laia ruim, que, ele, coronel, nunca

descera de sua dignidade para tirar o chapéu ou apertar a mão a indivíduos

que não tivessem uma posição social definida. Aprendera isso em pequeno

com o pai, o finado desembargador Sousa Nunes, homem de costumes

severos que sabia dar aos filhos uma educação esmerada, quase

principesca. O Zuza, dizia ele, não era mais do que uma vergôntea digna

155Vide Adolfo Caminha, op. cit., p. 54.

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desse belo tronco genealógico dos legítimos Sousa Nunes, tão nobres

quanto respeitados no Ceará.156

O coronel temia a paixão de seu filho Zuza por alguém cuja origem não

fosse "nobre". E Zuza contrariava o pai: "Queria para esposa uma mulher nas

condições de Maria do Carmo, órfã, de origem obscura e pobre"157. Essa atribuição

de obscuridade ao que não era elitista marcava a distância entre as classes.

Diante da divisão estamental dos bailes e outros eventos pagos (é o que

nos informa ainda o mesmo Adolfo Caminha), o Passeio Público era o único

espaço democrático. Lá a divisão existia e não era sutil, como demonstramos

anteriormente. Mas era um gesto de incompatibilidade cultural entre as classes, e

não um impedimento artificial como os demais eventos. Sem camarotes, sem

cadeiras de primeira ordem, chegou a empolgar Adolfo Caminha: "todos tinham

ingressos para saracotear nas avenidas ao ar puro das noites de luar"158. Era uma

conclusão plausível diante das cisões profundas na (in)sociabilidade fortalezense.

Mas, mesmo assim, andar no passeio não era precisamente a coisa mais

digna, especialmente quando se era mulher viúva ou solteira, porque lá as classes

se contaminavam em demasia. Não nos parece que "todos" indistintamente

gostassem daquele ambiente.

A existência dessas hierarquias sociais nos eventos e espaços públicos

não foi novidade de fim de século. Constituiu uma mentalidade enraizada no

comportamento da cidade, em especial, uma idéia recorrente entre membros da

elite. É muito provável que o final do século tenha posto a nu as contradições

sociais, face a uma Fortaleza que integrava-se ao mercado internacional através do

algodão. Durante as secas, ela recebia levas de migrantes do interior e sua elite

156Idem, p. 33-34. 157Idem, p. 79. 158Idem, p. 66.

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queria ter, na desprezível e insignificante região econômica de que fazia parte,

uma ilusão moderna.

O fato dessa mentalidade estamental associar-se a elementos modernos

nos coloca num jogo mais complexo, que revela muito das práticas sócio-mentais

de nossas elites. O renovar-se de idéias, como foi característico do século transato,

não implicou numa democratização e quebra do tradicionalismo por inteiro. Em

muitos aspectos o incorporou.

Contudo, o Passeio foi o último signo do aristocratismo provinciano.

A ordem aristocrática era excludente. Era sociabilizante e estratificante ao

mesmo tempo, já que criava camadas hierárquicas de vida social, cuja

complexidade não foi ainda avaliada.

Essa ordem quebrou-se. Não exatamente com chegada de uma ordem

burguesa semelhante à européia, mas com a ditadura republicana.

O relato seguinte, de João Nogueira, é profundamente significativo:

A medida que esta [a República] avançava no caminho da Ordem e

Progresso, as definições que lhe davam eram cada vez mais mordazes,

pungentes e desanimadoras, justificando assim o negrume daquele agouro.

Contou-me (...) honrado amigo que dois meninos, filhos seus, brincavam

uma noite à calçada, quando passaram os cadetes da Escola Militar, música

à frente, empunhando balões venezianos e dando vivas à República.

Que República? perguntou um deles.

República... é cadetes com lanterna, respondeu o outro.

Já ouvimos dizer que esta é a melhor definição da grande obra de 15 de

novembro159.

159Vide João Nogueira, op. cit., p. 22.

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Este relato decepcionado e saudoso da velha ordem foi escrito em 1939.

Complementa à frente: "O passeio é lugar morto: o público fugiu e não há

esperança de animá-lo mais"160.

Em arguta observação ao fim dos anos da última década do século XIX,

João Brígido declara ter chegado o tempo das fardas161. A casaca portuguesa, junto

com os timões e robissões, foram predominantes até 1850, aproximadamente.

Foram substituídos pelo frack, os smokings e a sobrecasaca. Diz Brígido: “Os

padres derribaram os frades, os doutores derribaram os padres, e os soldados

derribaram os doutores não só de prender, como o de curar e de construir.

Doutores, dizemos nós, em direito, medicina e engenharia”.162

Ainda o mesmo Brígido: “As mulheres mesmo derão aos corpinhos dos

vestidos a forma de fardões, e os bebês tomarão de librés de marujo. De java e

jaquetão, existimos nós e meia dúzia de jarretas”163.

João Brígido dá mostra das diferenças vividas por ele em três momentos

de sua vida. Quando criança, no interior de Quixeramobim, vivera ainda um Ceará

colonial e tradicionalista, em que a Igreja era o único referencial de

comportamento. Depois, tornou-se um patrocinador das idéias cientificistas através

dos jovens que escreviam no Fraternidade (1873-1875). Aí viveu a "Sciencia", a

moda francesa, enfim, o aristocratismo provinciano dos doutores. Ao final de sua

vida, vê-se como um "jaqueta", aquele homem colonial que podendo "dispender

consigo, trajava, ordinariamente, jaqueta"164. A República não era dos jaquetas.

Era dos militares.

Assim pronunciou-se Otacílio de Azevedo:

160Idem, p. 25. 161Referimo-nos aqui à transcrição que Eduardo Campos (op. cit) faz de certo artigo atribuído por ele a João Brígido e que foi publicado no jornal A República, de 09 de fevereiro de 1898. 162Citado por Eduardo Campos, op. cit., p. 69. 163Ibidem. 164Idem, p. 65.

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Por mais que o enfeitem, por mais que tentem torná-lo habitado, o

Passeio Público apresenta um aspecto soturno - mesmo ao som das bandas

de música ou à luz feérica das lâmpadas. Talvez a razão dessa tristeza

esteja na sua própria história: em 1825, quando se chamava Largo da

Pólvora, foi palco do sacrifício dos patriotas que sonharam com a criação. Ali

foram mortos Silva Carapinima, Azevedo Bolão, Pereira Ibiapina, Padre

Mororó e Pessoa Anta165.

O Passeio Público vê suas luzes apagarem-se na sombria memória do

provincianismo puro e simples, sem aristocratismo. Os mortos assaltaram-no, tal

fantasmas a tirar o sossego dos vivos.

EDUCAÇÃO DAS ELITES E DISCIPLINARIZAÇÃO DOS POBRES

No século XIX, a Instrução Pública era um grande debate de Estado. A

Revolução Francesa, em seus diferentes momentos, discutira o papel da educação

e da instrução, ora enfatizando a dívida para com as classes populares, ora a

necessidade de uma nova sociedade onde não existissem hierarquias estamentais e

onde o Estado promovesse a riqueza pública, pelos cuidados com a formação

durante a infância.

A retórica francesa virara moda nas primeiras décadas do século. Era

comum entre a opinião pública a apologia à instrução, inclusive para as classes

165Vide Otacílio de Azevedo, op. cit., pp. 50-51.

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populares. Manacorda166 demonstra que o ideal e o consenso social em torno da

necessidade e dos benefícios da educação universal haviam se banalizado como

mero discurso. Era inquestionável o avanço atribuído ao Estado que investisse na

instrução e no esclarecimento de suas classes.

Entretanto, havia aqueles que eram partidários de que o ensino das classes

populares fosse pensado com restrição, dados os perigos que uma população

instruída e ociosa poderia representar.

Se nos primeiros momentos os revolucionários franceses compreendiam

que à Sociedade competia compensar os males provocados pelo obscurantismo às

classes do terceiro estado, após a Assembléia Legislativa (1791 e 1792) o que se

percebe é a ênfase na natureza das inteligências.

O Relatório de Condorcet inclinava-se a pensar a realidade do ensino dos

pobres com base no desenvolvimento dos talentos:

Entendemos que o Poder Público devia dizer aos cidadãos pobres: a

fartura de nossos pais apenas pode propiciar-nos os conhecimentos mais

indispensáveis, mas asseguram-se-vos os meios fáceis de os conservar e

ampliar. Se a Natureza vos deu talento, podeis desenvolvê-lo, a fim de que

não se perca, nem para vós, nem para a Pátria167.

Condorcet pautava-se também numa distinção muito clara em meados do

século XIX: a instrução e a educação. Segundo nos diz Ilmar de Mattos:

166Vide Mario Alighiero Manacorda, "A Educação no Oitocentos", in: Mario Alighiero Manacorda. História da Educação: da Antiguidade aos nossos dias. 3a ed. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1992., pp. 269-310. 167Citado por Eliane Marta Santos Teixeira Lopes. Origens da Educação Pública: a Instrução na Revolução Burguesa do século XVIII. São Paulo: Loyola, 1981, p. 72.

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(...) instrução eram os conhecimentos positivos e certos dos quais o

Estado era o despenseiro natural, enquanto que educação eram os

sentimentos em assunto religioso e político reservado onde o Estado devia

abster-se de ingressar, declarando-se independente168.

A educação das camadas populares foi deixando de ser uma questão de

cidadania, ou seja, partilha de uma moral e de uma cultura universal, bem como

possibilidade de ascensão sócio-econômica igualitária. Outrossim, tornava-se uma

questão da esfera política.

Mesmo neutralizada a educação aos populares, isso não deixava de ter

rebatimentos para a instrução de certos saberes indispensáveis ao setor produtivo.

A fábrica é que veio resolver a questão.

A economia fabril, ao criar o operário ignorante, aliviava a tensão política

de ter que dar instrução a uma massa de trabalhadores. Era plenamente possível o

crescimento capitalista ampliado e espoliador sem uma educação integral.

Quando o século XIX viu a extensão da instrução a camadas mais amplas

da população, foi com profundas restrições aos ideais da Revolução Francesa. Não

se pensava mais em educação universal e uniforme, ou seja, no ideal dos cidadãos

conscientes e atualizados nas luzes da razão. Não se pensava no ousar saber, de

Kant.

Era prudente aos estadistas, desde Napoleão, promover o ensino básico:

ler, escrever e contar.

Um publicista europeu da época expressa o caráter "necessário" da

instrução:

168Vide Ilmar R. de Mattos. O Tempo Saquarema: a Formação do Estado Imperial. 2a ed. São Paulo: Hucitec, 1990, p.265-266.

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É conveniente (...) não ocupar-se da instrução científica daquelas classes

da população [artesãos e camponeses], condenadas pela indigência a um

trabalho mecânico e diuturno. Para elas basta que sejam imbuídas de uma

moral pura e santa. O que seria realmente vergonhoso é descuidar da

educação da classe nobre, confortada e rica169.

Menos influente na educação popular foi a ilustração portuguesa. A

política ilustrada portuguesa foi inteiramente pragmática e conservadora, além de

ter estado associada a certos setores ilustrados da Igreja.

Da influência da ilustração portuguesa é que vai surgir no Brasil um José

Bonifácio de Andrada e Silva, um letrado conservador que perseguiu os

radicalismos ferrenhamente e foi, durante um largo momento, o principal

conselheiro do Imperador absoluto, D. Pedro I.

Segundo João Alfredo de S. Montenegro, a ilustração pombalina e sua

atuação na reforma da Universidade de Coimbra teriam sido a principal matriz da

Inteligência brasileira após a crise do Antigo Sistema Colonial:

Ver-se-á depois a ação ou a influência de estadistas ou publicistas, ex-

alunos da Universidade de Coimbra, seguidores do modelo de pensamento

e de atividades científicas ali implantados. E como conciliam aquela

concepção moral, tão afim e quase inseparável da concepção política, com

projetos de realizações materiais, econômicas, de índole modernizadora,

mantido rigorosamente o status quo, a sacralidade das estruturas sociais

vigentes!170

169Citado por Mario Alighiero Manacorda, op. cit., p. 276. 170Vide João Alfredo de S. Montenegro. "O Contexto da Reforma Pombalina da Universidade Portuguesa", in: Revista Brasileira de Filosofia,vol. XXVI, fasc. 103, 1976, p. 337.

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Penetrará nos tempos próximos à Independência uma ilustração católica

que conforma o que alguns pesquisadores chamam de Teologia Positiva171 ou

Teologia da Ilustração.

Seus ideais ilustrados não estiveram sempre na defesa do status quo. Pela

mediação dos pensamentos desses novos clérigos, difundiam-se também idéias

maçônicas, republicanas e um conjunto de acepções revolucionárias.

O Seminário de Olinda foi o principal foco desse catolicismo liberal.

A oratória da Teologia da Ilustração tinha uma grande preferência pelos

temas e motivos da natureza, numa visão racional/divina do mundo. Ao mesmo

tempo, predominavam os contrastes e as oposições, como nos revela Antônio

Jorge Siqueira: “Muitas vezes, na Carta Pastoral do Bispo de Beja, verbaliza-se

este ‘apetite para o Bem’ como sendo uma espécie de alternativa posta em termos

de contrastes: ‘luz’ v. ‘trevas’, ‘dia’ v. ‘noite’, ‘afeto’ v. ‘razão”172.

Essa mentalidade católico-liberal teve um ardor ideológico que refulgiu

nas revoluções nordestinas de 1817 e 1824. A conjuntura contribuiu

favoravelmente.

Na década de quarenta do século passado homens como o Padre Pompeu,

filho de ex-revolucionário, dirigiram-se a Pernambuco. Lá encontraram matrizes

liberais, mas não inssurreições. Aprenderam o quanto pode fazer um homem

ilustrado e justo.

A crônica contemporânea local fez dele o fundador da cultura cearense:

(...) a vida cultural cearense tem o seu ponto de partida na figura

exponencial do senador Pompeu, não somente pela sistematização que ele

imprimiu aos estudos objeto dos seus livros de geografia, história e

171Ibidem. 172Vide Antônio Jorge de Siqueira. Ilustração e Descolonização: o Clero na Revolução Pernambucana de 1817. São Paulo: Tese de Doutoramento-USP, 1980, p. 54.

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estatística, como pelo seu trabalho de orientação intelectual, política e

pedagógica através do jornal Cearense (orgão do seu partido), fundado em

1846, e da sua atuação construtiva como diretor do Liceu, e também, da

Instrução Pública da Província173.

173Vide Raimundo Girão. Pequena História do Ceará. 4a ed. Fortaleza: Edições UFC, 1984, p. 225.

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O PADRE POMPEU E O MITO DA FUNDAÇÃO DA CULTURA

O ensino foi a primeira forma de modificar o aprendizado cultural da boa

sociedade da província. Somente mais tarde é que vieram as academias e grupos

literários, ou reuniões informais que invadiram, próximo do fim do século, a

capital cearense. O ensino aqui, portanto, tem sentido restrito. Não chega nem a

ser a educação, palavra que à época não era abusada. Foi a "Instrução Pública" o

alvo em vista.

A formação de nossa elite era tão esparsa e restrita ao latim que podemos

dizer que quase inexistia. Era uma sociedade ainda rústica, com a maioria de seus

habitantes morando em casa de palha. Isso por volta da primeira metade do século

XIX.

Há pouco tempo a província havia se liberado de Pernambuco (1799) e

seu progresso econômico não caminhava ainda. A cidade de Fortaleza tinha apenas

a marca triste e sinistra do forte reconstruído em 1817 e onde ao lado, no Largo da

Pólvora, foram sacrificados os liberais de 1824, chamados liberais "patriotas". Era

uma cidade administrativa, marcada pelo rígido império da Justiça.

Mais importante que a capital era Aracati, que crescera com o comércio

interprovincial de charque. Beneficiada pela via terrestre, cruzamento do comércio

de gado vacum, era Icó, no sul. Mais a noroeste, fica Sobral, que também possuía

oficinas de charque.

Para Sobral viera, aos dezesseis anos de idade, um garoto, Tomás Pompeu

de Souza Brasil. Vinha ter aulas de latim com seu tio. Seu pai fora um "patriota".

Estes liberais tinham o costume de usar nomes nacionais a fim de apor ou

substituir os nomes menos nativos. Segundo Abelardo Montenegro, "muitas

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famílias passaram a usar sobrenome nacionalista que expressava algo peculiar à

terra brasileira"174. Entre eles: Mororó, Jataí, Sucupira, Carapinima, Buriti, etc. O

pai de Tomás, residente em Santa Quitéria, dera-lhe um sobrenome identificado

com a terra nacional: Brasil. Seu pai também se chamava Tomás, seguido de

Aquino e Sousa, e fora primo do Padre Mororó, figura central e mártir da

Revolução de 1824.

Diz-nos Francisco Alves de Andrade que: “Tomás de Aquino de Sousa,

também compatuara com aquele movimento, assinando a ata do Conselho da

Revolução de 1824, tendo sofrido perseguições que o levaram à penúria de

sofrimentos e haveres” 175.

Pompeu chegou a Sobral em 1834. Ainda no mesmo ano, após alguns

meses, partiu para a capital e daí para Olinda. Somente retornou na década de

quarenta, já padre e bacharel em Direito. A sua formação ideológica estava

fortemente embasada nos princípios da Teologia da Ilustração. O liberalismo

patriótico do pai não lhe nutria as idéias. Era, no catolicismo ilustrado, no espírito

pragmático e no clérigo voltado para atassalhar o misticismo e a ignorância que

Pompeu colocava na sua crença. Os artigos d'O Cearense e seus atos na Instrução

Pública deixam transparecer esse referencial ideólogico.

Havia a algum tempo a idéia de criar um Liceu. Após a derrota de

Pompeu como candidato a deputado da Câmara Geral em outubro de 1844, o

Liceu, por convite do presidente da província, fica-lhe encarregado. Neste cargo,

dirigia-se também a Instrução Pública. O Liceu instituiu um ensino centralizado e

de qualidade, permitindo ao seu responsável o controle da formação dos

comprovincianos.

174Vide Abelardo Montenegro.Os Partidos Políticos do Ceará. Fortaleza: Edições UFC, 1980, p.17. 175Vide Francisco Alves de Andrade. Ildefonso Albano e outros ensaios. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1985, p. 56.

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As reformas realizadas por Pompeu abriram espaço para uma orientação

da Instrução Pública que fosse mais definida e duradoura.

A grade curricular estabelecida oficialmente em 1844, definia as

seguintes disciplinas:

1 - Filosofia Racional e Moral

2 - Retórica e Poética

3 - Aritmética

Álgebra

Geometria

Trigonometria

4 - Geografia e História

5 - Latim

6 - Francês

7 - Inglês

Essa organização era ímpar no Ceará e quebrava com a unanimidade da

formação exclusivamente literária das aulas clássicas de latim. Dessa organização,

porém, não participara Pompeu. Quando tomou o encargo de diretor de Instrução

Pública, achou tal configuração curricular demasiadamente abstrata para nossa

realidade. Dizia: "Cada povo deve aprender principalmente aquilo de que mais

precisa para aumentar os cômodos da vida".176 Aliado a esse pragmatismo e

indissociável dele, Pompeu questionou a inexistência de uma disciplina religiosa,

uma formação "ampla" do educando na religião católica, especificamente.

Sua proposta curricular tencionava algumas reformas visando atingir a

dimensão prática do conhecimento, sem no entanto quebrar a formação universal e

religiosa. Pretendia que o Liceu fomentasse algo na realidade local.

176Citado por Raimundo Girão. O Senador Pompeu: 1877-1977..Fortaleza: Secretaria de Cultura, Desporto e Promoção Social, 1977, p. 12.

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Sua proposição curricular seria mais ou menos esta:

1 - Curso Religioso "Católico"

2 - Artes Liberais (Desenho e Música)

3 - Ciências Naturais

Física

Mecânica

Botânica

Agricultura

4 - Geometria e Agrimensura

Incluiu, portanto, um conjunto de disciplinas (Ciências Naturais) que

quebraram a formação exclusivamente voltada para as belas letras. Na verdade,

essa proposta eliminaria de todo essa formação mais abstrata, já que teria cortado

disciplinas como o Latim, a Retórica, a Poética, etc. Ao que parece, entretanto, sua

intenção era acrescer as novas disciplinas às outras e não a pura substituição. De

todo modo, essas novas disciplinas de Ciências Naturais impõem um elemento

modernizante e anti-tradicional ao ensino.

A Agrimensura, posposta à Geometria, tinha por intenção satisfazer uma

necessidade local relacionada à medição de terras, muito útil numa realidade local

cujo setor básico era a atividade agrícola.

O ensino de uma disciplina com esse título de Agricultura, relacionava-se

a mudança de velhas práticas no tratamento da terra que até hoje persistem no

sertão. O processo das "queimadas" foi enfaticamente abordado pela imprensa

liberal local, da qual o próprio Pompeu participava à época. Em 1846, O Cearense

criticava o corte indiscriminado das matas, o abandono dos campos ainda férteis, a

falta de cuidados com os mesmos e explicava ainda o processo das precipitações

chuvosas e sua dependência das matas. Indagava-se logo no primeiro artigo:

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Mas quem sabe disso entre nós? Qual é o nosso agricultor que tem

conhecimento destas cousas? Quem se tem ocupado de expol-as aos seus

olhos, fasendo dest'arte desviar nossa infeliz província do horrível flagello

que a tem assolado? Ninguém!177

Além dessas modificações da grade curricular, Pompeu pretendia

modificar todo plano de estudos da instituição em fase de implantação. Elaborou

um conjunto de observações críticas à estrutura de ensino que redimensionavam o

comportamento escolar. Para ele, as aulas avulsas deveriam ser substituídas pelo

ensino simultâneo e sucessivo, distribuídos em classes por faixa etária. Dividiu o

ano letivo em duas partes e estabeleceu exames para a passagem de uma classe a

outra. Pretendia também reformar a parte doutrinal, reduzir as férias e dar fim ao

feriado das quintas-feiras. Para dinamizar o ensino, estabeleceu duas lições por

aula ao invés de uma, ou seja, dois tópicos da matéria. A passagem de classe dava-

se semestralmente. A intenção de impor rigor à escola era claramente também a de

fazê-la funcionar como fomentadora de uma elite intelectual que posteriormente

continuaria seus estudos em Recife ou Olinda, cidades mais próximas onde haviam

cursos superiores.

Desde antes da implantação do Liceu, esses objetivos estavam claros.

O relatório do Brigadeiro José Maria Bitancourt, em 1844, então

presidente da província, definia a necessidade de generalização do ensino primário

para habilitar todos a "empregar-se com vantagem na lavoura, creação e artes

mecanicas"178, complementando ainda a compreensão do indivíduo em relação à

sociedade e à divindade, "conhecendo o bem e o mal, a fim de evitar este e seguir

177Vide O Cearense, 04-10-1846. 178Vide RELATÓRIO de Presidente de Província (Coronel José Maria Bitancourt), 01-07-1844.

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aquelle, pois que he fóra de duvida, que muitos crimes se comettem por não serem

conhecidos"179.

O "belo sexo" deve habilitar-se para exercer a função da boa mãe e ser

um agente da educação religiosa e oficial, as mulheres como

(...) os primeiros mestres dos seus filhos; não obstante sua instrucção

litteraria deve ser menor do que a recomendada para os homens, ao mesmo

tempo que nada devem ignorar desses conhecimentos domesticos que tem

que exercer dentro de suas cazas. A esses, a quem a natureza dotou de

tanta brandura e amabilidade deve ser dado amplo conhecimento da

doutrina Christã, a fim de a ensinar no coração de seus filhos desde suas

primeiras palavras; com isso muito ganhará a sociedade180.

Continua ainda:

Não são porém essas minhas idéias respeito a instrucção secundaria, eu

a creio só precisa a classe mais opulenta e nobre da sociedade, deve por

consequencia fazer-se della hum meio de centralisação. Nas capitaes he

que devem haver esses collegios de humanidades, que comprehendão as

necessarias materias para habilitar ao estudo das Sciencias181.

Tal estruturação não é original, esteve presente na França revolucionária

com a lei de Frimário ano III, ao instituir dois graus de ensino: para todos,

indistintamente, as escolas primárias; as centrais destinadas à elite nacional. A

179Ibidem. 180Ibidem. 181Ibidem.

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escola central seria um misto de ensino secundário e ensino superior. No caso

cearense, o Liceu representava essa "instrução" voltada para a formação da elite.

O relatório supra-citado data de 01 de julho de 1844. Neste ano o Pe.

Pompeu já havia retornado de Pernambuco. Porém, assumiu a Diretoria da

Instrução Pública meses depois da sua derrota como candidato à Câmara Geral,

que ocorreu em outubro182. Nesse ínterim, foi convidado pelo Presidente Ignácio

Correia de Vasconcelos, que substituíra José Maria Bitancourt.

O Presidente José Maria Bitancourt partilhava de idéias elitistas e certo

pragmatismo conservador, segundo deduzimos de seu relatório de 1844. Sabia da

precariedade das rendas provinciais, para os recursos exigidos pela Instrução

Pública e, ademais, não parecia querer quebrar a cabeça na transposição dos

obstáculos. A lei previra a instalação do Liceu em 1843, e Bitancourt alegou que o

artigo 9o da mesma não era de competência provincial183. Seu intento era remediar

a situação com base em princípios práticos. Queria o ensino das humanidades

centralizado na capital e para as classes "opulentas". Enquanto não chegasse o

Liceu, os mais hábeis iriam para o Rio de Janeiro, custeados pela Província, para

retornarem como professores. Argumentava que nem todos eram "sábios". Diga-se

de passagem, só uma pequena parte o era. O "sábio" pobre e interiorano, "achará

os meios de vencer as difficuldades que se aplanao em presença dos engenhos

fortes" - dizia Bitancourt184.

Ao assumir o cargo sob a presidência de Correia Vasconcelos, Pompeu

intentou uma ampla reformulação da Instrução Pública, a nível do currículo e do

Plano de Estudos, para empreender uma instituição de ensino com qualidade e

com possibilidade de retornos sociais práticos. Seria de fato um misto entre ensino

182Vide Guilherme Studart. Diccionario Bio-Bibliográfico Cearense. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, vol. 3, 1980, p. 142. 183Vide RELATÓRIO de Presidente de Província (Coronel José Maria Bitancourt), 01-07-1844. 184Ibidem.

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secundário e ensino superior. Na década de cinqüenta do século passado, o próprio

Pompeu não era um simples lente de Geografia e História, mas um pesquisador e

um escritor de livro didático com renome:

Sentindo que não havia compêndios que mais firmemente os guiasse na

aprendizagem, de logo procurou remover a dificuldade, preparando e

publicando Principios Elementares de Cronologia para uso no Liceu do

Ceará (1850) e Elementos de Geografia (1851, com 284 ps), ambos

'oferecidos à mocidade cearense'185.

Sua obra de maior divulgação foi o Compêndio de Geografia Geral.

Dela, encontramos anúncios como o que se segue:

Publicação litteraria.

Está a concluir a impressão da segunda eddição do Compêndio de

Geographia do Dr. Pompeu, consideravelmente desenvolvido em todas as

partes, ractificado e em dia com as ultimas publicações geographicas e

estatística.

Formará um volume duplo do primeiro. Recebem-se assignaturas que

serão pagas na occasião da entrega, na loja do Sr. Rocha Junior, e nas

typographias do Cearense, Commercial e Pedro II.

Preço da assignatura 3$000 e depois de impresso só se venderá a

4$000186.

185Vide Raimundo Girão. O Senador Pompeu 1877-1977. Op. cit., p. 20. 186Vide O Cearense, 07-03-1856.

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As tipografias referidas eram não só as de maior destaque na capital,

como opostas politicamente. A obra de Pompeu, entretanto, já obtivera respaldo

nacional quando fora adotada "oficialmente no Colégio Pedro II, da Corte, e nos

vários seminários do Império"187. Além da segunda edição (de 1856), houve uma

terceira em 1859 e ainda uma quarta, com o título Compêndio Elementar de

Geografia Geral e Especial do Brasil, editado no Rio de Janeiro pela Laemmer,

em 1864.

Devemos a Pompeu o empreendimento e a organização dos dados

estatísticos da Província do Ceará.

Foi também o editor do jornal O Cearense e ganhou grande notoriedade

política como senador (a partir de 1864), tornando-se um mito como fundador das

principais instituições responsáveis pela cultura letrada. No início deste século, em

1906, num exemplar do Almanach do Ceará, os senhores e senhoras da

"Sociedade" cearense podiam identificar a fotografia de um tipo cearense franzino,

portando paletó, e liam: “É de 1847 que data a sua nomeada como director de

partido e o influxo prodigioso trazido pelo seu espírito ás instituições liberais”188.

Mais adiante a biografia comenta: “Pompeu, despertando a instrucção

pública da província de seu lethargo, foi ainda o fundador do Lyceu do Ceará, e na

imprensa, á frente do Cearense que também creou, bateu-se sempre pelos grandes

idéaes” 189.

Em verdade, Pompeu não fundou O Cearense, pois que somente a partir

de 1848 iniciou sua tarefa da "redacção deste jornal", como ele próprio

declarou190. Mais ou menos a essa época, ou um pouco antes, assumira a chefia do

Partido.

187Vide Raimundo Girão, O Senador Pompeu..., op. cit., p. 20. 188Vide Almanach Administrativo, Estatistico, Mercantil, Industrial e Litterario do Estado do Ceará. Fortaleza: ano 12, 1906, p. 144. 189Idem, p. 145. 190Vide O Cearense, 06-04-1852.

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Na instrução pública teve menos influência, já que perdeu o cargo como

diretor em junho de 1846 e somente retornaria na década seguinte191, embora seu

nome conste como lente de "Geographia e História" em um outro relatório desse

intermédio de tempo.

A sua proposta curricular não foi executada, permanecendo a mesma

grade curricular de 1844192. Quando, dez anos depois, redigiu a parte da

"Instrucção Publica" no Relatório do Presidente da Província, ratificou suas

observações quanto ao caráter pouco útil das disciplinas lecionadas no Liceu:

He sabida a organização do Licêo, conhecido seu pessoal, e de muito

tempo domina a convicção que o sistema de estudos ali estabelecido é

defectivo pela omissão de disciplinas de uso prático, que habilitem para a

vida industrial193.

O sistema de aulas avulsas continuou e não foi implantado o curso amplo

de religião, como propusera.

Não resta dúvidas, contudo, de que a Instrução Pública da Província

passou por uma série de transformações que visavam criar condições mínimas para

o trabalho "mecânico" entre as classes populares e, por outro lado, atender a uma

demanda de criação de uma elite culta local que pudesse conduzir os negócios do

Estado e trazer as luzes da civilização. Todavia, para as classes populares, a ênfase

na preparação para o trabalho foi menor, tal qual se encaminhavam as propostas do

Pe. Pompeu. Maiores foram os interesses em combater o crime e o barbarismo dos

191Guilherme Studart não faz qualquer menção ao fato. Vide Raimundo Girão, O Senador Pompeu..., op. cit., p.15. 192Cf. p. 07 deste mesmo capítulo. 193Vide RELATÓRIO de Presidente de Província (Conselheiro Vicente Pires da Motta), 01-09-1854.

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homens rústicos do sertão, que desconheciam a importância das luzes do

conhecimento. Ou ainda frear a juventude empolgada com as "idéias" radicais.

A análise da trajetória de Pompeu torna-se importante na medida em que

damos a dimensão mais exata de seu liberalismo e, por outro lado, fazemos sua

demitificação como vetor ideológico determinante na orientação da instrução

pública local. Recolocamos, então, a questão de um ponto de vista que não é o da

relação indivíduo/sociedade, mas o resgate dos elementos constitutivos da cultura

dominante e erudita local. Os signos dessa cultura só podem ser quebrados pela

atividade crítico-empírica da História. Isso porque ela é capaz de nos dizer onde e

quando se forjaram as representações de uma determinada classe e nada do que

está dado é assim por acaso, mas dependeu de um processo. Se o mito Pompeu, ou

mito da fundação da cultura, é uma falsidade ideológica, veremos o que explicita e

o que é capaz de ocultar numa pequena província do Império Brasileiro.

Assim posto, dizemos que Pompeu reaparecerá ainda em nossa História,

mas dentro da resolução do problema que agora colocamos: as implicações sociais

e culturais da construção histórica de uma política de instrução pública, no Ceará

do século passado.

CRIME E DESORDEM

Podemos desenvolver a argumentação, continuando o diálogo com os

Relatórios de Presidente de Província, como o que foi redigido mais adiante por

Pompeu, já em 1854:

E com tudo a instrucção primária ainda carece de vossos cuidados e

desvelos; alem de ser uma dívida sagrada a que estaes obrigados, é uma

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medida de previdencia em beneficio da futura tranquilidade do Estado, é

mais uma garantia da observancia das leis e do respeito aos direitos

individuaes194.

Pompeu procura argumentar, junto à Assembléia Provincial, os resultados

práticos da Instrução Pública, particularmente o ensino primário, já que este

possui, para a mentalidade desses homens, uma conotação bem específica, se

comparada com o secundário ou o estudo das humanidades. É a garantia das leis e

da ordem o que se faz quando se propaga a instrução primária. E por que não ler, a

partir da própria fala de Pompeu, na expressão "direitos individuais", os direitos à

propriedade privada e à própria vida, constantemente ameaçada pela onda de

crimes e de "barbarismos"? Crimes que penetraram na mentalidade das classes

dominantes sob a forma de pesadelo social a ser extirpado.

Podemos mesmo dizer que uma das grandes bandeiras do Partido Liberal,

passada sua fase radical dos tempos de 1817 e 1824, é o combate ao crime. Crimes

que permaneceram acusando a consciência dos cearenses, seja qual fosse seu

partido. Crimes marcantes para a opinião pública, como foram os fuzilados em

1825, no Campo da Pólvora; como foi, um ano antes, o de Tristão Gonçalves;

como foi o de Major Facundo, morto à porta de sua casa. Crimes lembrados

sempre nos jornais, objeto da manipulação politiqueira sobre quem matou ou quem

deixou fulano morrer.

Causadores de alvoroço na opinião pública. Como corolário, quando o

crime não era político, o homem do povo ou o escravo era sempre o mais visado

para bode expiatório. Ele é o culpado de todas as imputações e conjecturas.

Os homens da outra classe, da outra raça, não respeitavam seu lugar.

Estavam misturados causando medo. Sobre isso, é sintomático o simbolismo de

194Ibidem.

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um certo artigo d'O Cearense. Um cabra invadiu os sonhos do senhor Ezequiel

Pessoa Gama. Este era um senhor proprietário, membro do Partido Conservador e

respeitável cidadão que obtinha a presteza do comandante de polícia. Morava fora

da capital e era já um homem temeroso de suas andanças:

Convem dizer que todas as vezes que o Sr. Gama vinha aqui e retirava-

se fazia-se acompanhar por dous soldados de polícia que lhe prestava o

respectivo commandante, á distancia de 12 legoas, pouco mais ou menos

desta cidadde, disendo que tinha receios (...)195

O senhor Gama parecia viver a tensão de muitos: a de encontrar a morte

numa emboscada. Através do barbarismo da vida política ou do contato para com

seus escravos, vivendo a tensão de classe mais crua.

O tema da morte parecia comum para aquela sociedade. Capistrano de

Abreu chegara a dizer que a vida era um valor pouco importante para o conjunto

social de seu tempo. O roubo, a perda da honra eram muito mais ofensivos:

A história social e política do Ceará está cheia de grandes crimes,

grandes criminosos e grandes crises de fanatismo. Não significa isso que na

formação de outras capitanias não surjam iguais fenômenos sociais. Mas no

Ceará os alicerces sociais se mancharam de sangue e com o sangue se foi

formando a consciência política e social196.

Essas são palavras um tanto generalizadoras de José Honório Rodrigues.

195Vide O Cearense, 03-02-1847. 196Vide José Honório Rodrigues. Índice Anotado da Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1959, p. 14.

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Mas a violência foi, sem dúvida, a marca das relações entre os homens. O

sinal de sua pobreza, a realidade feroz a ser sufocada pelo sonho liberal de

construir o Ceará do progresso. Nele, uma capital que fosse signo de civilização.

Retomando o caso que contávamos do Sr. Gama:

O certo é que elle parecia ter pres(s)entimentos da sua infausta sorte a

ponto de ter sonhado, antes de se retirar desta cidade que elle era

assassinado pelo seu cabra. Este facto presenciamos o Sr. Dr. João Carlos

Pereira Ibiapina, promotor desta comarca contal-o em palacio, quando ali

fôra entender-se com o sr. doutor chefe de policia a respeito: elle referio que

o infeliz Gama indo, cremos que despedir-se delle, lhe dicera haver naquelle

dia sonhado que o seo cabra o tinha morto; o que lhe fez aconcelhar que se

desfizesse do escravo, uma vez que tinha tão maos pressentimentos delle.

O Sr. Gama sahio desta cidade em companhia de dous escravos, que

desapparecerão, tendo sido encontrados á dias montados em gordos

cavallos: o infeliz foi achado putrido, mettido debaixo de cangalhos, às quais

os assassinos tinhão encostado os fardos de fasenda, que elle conduzia197.

O jornal procura, no minimamente exigido de cautela, ter algum cuidado

de não concluir de antemão pela culpa dos escravos, mas induz a que tudo leve a

isso. Os indícios iam desde o sonho até o insulto daquela gente, "tendo sido

encontrados á dias montados em gordos cavallos"198. Com isso, "desconfia-se ter

sido comettido por um escravo da infeliz victima"199.

A população necessitava, portanto, da instrução e ao lado desta, da

religião. O projeto das elites exclui o povo no sentido de não lhe dá nenhum

197Vide O Cearense, 03-02-1847. 198Ibidem. 199Ibidem.

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reconhecimento de alteridade cultural. As classes populares são sempre objeto das

políticas de instrução pública, pelo perigo que podem significar se não forem

"bem" educadas.

No Relatório de 1854, do Conselheiro Dr. Vicente Pires Motta expressa-

se esta opinião com relação à "Educação Religiosa e Culto Publico":

E de quem receberia a infancia essa preciosa educação? No lar

doméstico os pais que não a houverao de seus progenitores, não possuem o

que transmittir aos filhos, e como ou não conhecem a importancia dos

principios religiosos na conducta do homem, ou por ignorancia ou culpada

indiferença, fasem pouco caso a elles, despensão absolutamente o

cumprimento de uma obrigação, que lhes incumbe em qualidade de pais e

educadores, e assim preparão a seus filhos um perigoso futuro200.

A mesma compreensão "educativa" da população desde a puerícia e com

os fins a evitar desvios criminosos e desordeiros reincide anos depois, como no

Relatório de 1864, do Sr. Dr. Lafayette Rodrigues Pereira. Novamente percebemos

a ênfase no ensino primário e a associação entre educar para a ordem e educar com

base na religião:

O ensino primário abrange em seo dominio a formação do coração e do

entendimento da creança. Corrigir as tendencias malignas, fortificar as

propensões para o bem, cultivar os sentimentos nobres e elevados, gravar

no espírito as verdades morais e religiosas e provocar os primeiros

200Vide RELATÓRIO de Predidente de Província (Conselheiro Vicente Pires da Motta), 01-09-1854.

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desenvolvimentos da intelligencia, é uma sublime missão cercada de

difficuldades e cheia de perigos201.

Há, portanto, a projeção de desejos tipicamente conservadores, que

superdimensionam o poder de atuação da instrução. Podemos chamar de um

otimismo conservador, em que marchar "a par das luzes do século" é compatível

com uma "moral evangélica".

O nível fundamental para realizar o intento de instruir e disciplinar as

populações ignorantes, é o ensino primário. Os relatores subseqüentes a José

Maria Bitancourt não seguiram caminhos divergentes a suas proposições.

Em 1854, Pompeu escrevia em seu Relatório:

Conviria dissiminar a instrucção primaria em toda Provincia, dotando de

escolas as localidades um pouco populosas, aproximando mais que se

pudesse esses centros de educação publica, e facilitando assim sua

frequencia que na actualidade é absolutamente impossivel, pelas distancias,

a grande porção de habitantes202.

A CLASSE SENHORIAL E SUA CONSTRUÇÃO

Há uma reorientação da atuação do poder provincial, frente aos desafios

sociais e políticos que se colocaram na primeira metade do século, como as

revoluções de 17 e 24, propagando um ideal radical. Ou mesmo o oposto, como a

de 1832, em que Pinto Madeira lidera revoltosos místicos desejosos do retorno do

201Vide RELATÓRIO de Presidente de Província (Lafayette Rodrigues Pereira), 01-10-1864. 202Vide RELATÓRIO de Presidente de Província (Conselheiro Vicente Pires da Motta), 01-09-1854.

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Imperador, num misto de ideologia política e sebastianismo. Outro fator foi a

constante de crimes no interior da Província, espalhados em diversas regiões e que

exigiam uma atitude política das elites que extrapolasse a mera coerção física.

Assim é o que constata Francisco José Pinheiro:

O que se percebe pelo exame dos Relatórios dos Presidentes da

Província, em fins da década de 1840, é que a segurança pública, a

propriedade, bem como a individual passaram a ser encaradas sob outra

ótica. A resolução destes problemas não era mais entregue apenas ao

aperfeiçoamento dos mecanismos coercitivos. A partir de então, o

fortalecimento da religião, da educação, se apresentava como mecanismo

importante para solucionar as questões relacionadas com a segurança

pública, individual e da propriedade. É possível discernir nesse discurso,

também, uma certa preocupação em preparar a população para o

trabalho203.

Neste sentido, a religião é um aspecto tocado sempre com cautela entre os

homens de elite. Mesmo os mais descrentes louvam sua ação benéfica junto aos

populares. Inseparável da religião está a instrução, pública e particular.

A preocupação dos presidentes de Província com a Instrução era

crescente e positiva. Mais do que um "mecanismo", era uma crença otimista na

idéia de que a instrução era necessária. Ela poderia modificar substancialmente a

cultura do povo e trazer a "felicidade pública".

Já em 1844, pronuncia-se o Presidente José Maria Bitancourt:

203Vide Francisco José Pinheiro. "O homem livre/pobre e a organização das relações de trabalho no Ceará (1850-1880)", in: Revista de Ciências Sociais, vol. 20/21, no 1/2, 1989/1990, p. 216.

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As despezas que se fizerem com tão útil objecto, já mais aggravarao o

estado; está a educação intelectual tão ligada a felicidade publica, que esta

não se dá em quanto aquella não he cultivada com sucesso; sacrificios até

se devem fazer para o conseguir, mas esses devem ser methodicos, a fim

de não inutilizarem204.

Esse otimismo é fortemente associado a uma idéia de tranqüilidade e

progresso social. Na instrução estão colocados elementos com os quais

reconstituimos as aspirações de fabricação e conservação do mundo social próprio

às classes senhoriais.

Parece-nos, todavia, que a formação para o trabalho, acima assinalada,

deve ser compreendida como um elemento conservador a mais da mentalidade

senhorial local, particularmente das elites políticas e burocráticas.

No trabalho citado do professor Pinheiro, ele se detém sobre esse aspecto

e conclui que a Religião era um mecanismo "importante na organização do

Mercado de Trabalho na Província"205. Muito mais do que isso, tanto o Trabalho

como a Religião são garantias de uma sociabilidade a gosto das elites. Para

empreender essa sociabilidade há dois vetores: um deles é doutrinal (ou

ideológico). É a instrução, é a religião. O outro é prático: é o trabalho. Assim visto,

esse trabalho não é tão capitalista, tão progressista, senão se implementaria uma

política de Instrução Pública que fosse geradora de qualificação para o trabalho, tal

qual Pompeu propôs. Ele está dentro dos marcos da política de manutenção do

trabalho escravo, imprimida pelos conservadores.

204Vide RELATÓRIO de Presidente de Província (Coronel José Maria Bitancourt), 01-07-1844. 205Vide Francisco José Pinheiro, op. cit., p. 224.

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As funções comerciais, burocráticas e a empolgação do século

progressista é que motivavam uma demanda de instrução por parte das classes

mais elevadas e classes médias urbanas. No mais, com respeito aos populares, era

dado o mínimo de saber que, pela precariedade do estado provincial, atingia um

reduzido número de pessoas. A ênfase maior é a mesma do publicista francês

citado mais atrás: "uma moral pura e santa". Assemelha-se à educação "política"

da Áustria nos setecentos: uma garantia de bem-estar interno e externo ao Estado.

Além disso, não podemos trabalhar as transformações acontecidas no

Ceará do século XIX, particularmente a partir da segunda metade da década de

quarenta, dentro de uma dialética de coerção e do convencimento. Estamos

lidando com a criação de uma cultura política local, que é a cultura das classes

dominantes. Isso se faz em combates sociais, mas numa arena de conflitos

culturais. A questão não deve ser tratada como um "plano" racional que vise

determinados elementos (a Religião, por exemplo) como mecanismo de

convencimento. Todas as vezes que fizemos referência a certo "projeto", foi no

sentido de localizar a elite burocrática da Província. Há uma dimensão maior que

tentamos não perder de vista: a classe deseja ter suas representações de sociedade

realizadas. Nesse sentido ela se vale do Estado.

A INSTRUÇÃO DOS OPULENTOS E A INSTRUÇÃO DO POVO

Quanto à instrução secundária, concentrava-se para a mocidade da

capital através do Liceu, muito embora existisse, segundo palavras do próprio

Pompeu, "nas poucas escolas de Grammatica Latina que ainda subsistem em

algumas comarcas"206.

206Vide RELATÓRIO de Presidente de Província (Conselheiro Vicente Pires da Motta), 01-09-1854.

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A mesma orientação é enfatizada no Relatório de 01 de julho de 1866:

Em vez de estabelecermos em nossas capitaes, e nas cidades mais

importantes, casas de instrucção e institutos de artes e officios,

disseminamos pelo interior cadeiras avulsas de latim, que sendo aliás

um precioso instrumento do saber para os eruditos, em nada adiantam a

educação dos que não se propõe ás cadeiras scientificas, e constituem o

maior numero da sociedade207.

Essa orientação já estava mesmo constituída em lei, desde 1852. Na

Lei Provincial no 593 de 21 de outubro, sancionada pelo Presidente Joaquim

Marques de Almeida Rego, em artigo único lemos: “Fica prohibido o

provimento das cadeiras de latim, que se achão vagas, bem como das que

vagarem, excepto no Lycêo. Revogadas as leis e disposições em contrário”208.

As cadeiras existentes no interior, portanto, apenas subsistiam em

algumas comarcas.

Uma interrogação, porém, impõe-se diante da exposição deste projeto

da elite burocrática: tal discussão efetivou-se na prática? É possível que as

intenções dos presidentes de província ou dos diretores da Instrução Pública

não passassem de mero discurso (o que seria pouco provável frente ao caráter

prestador de contas e administrativo dos relatórios à Assembléia Provincial).

Também não seria de todo imprevisível se a efetivação dessas propostas

acabasse por sofrer pressões contrárias de certos setores da própria classe

senhorial, muito embora estejamos lidando com uma sociedade em que o

Estado impõe-se constantemente sobre ela (respeitado o caráter classista desse

207Vide RELATÓRIO de Presidente de Província (Francisco Ignácio Marcondes Homem de Mello), 01-07-1866. 208Cf. LEI Provincial no 593 de 21 de outubro de 1852.

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Estado e os limites de última instância bem conhecidos por certas vertentes de

análise).

Quanto à Lei Provincial no 593, poderia não ter sido seguida

posteriormente à declaração de Pompeu, feita em 1854. Muitas das leis e

normas quanto à Instrução Pública não foram seguidas. O Regulamento de 22

de outubro de 1855, por exemplo, estabelecia o ensino obrigatório e sobre isso

esclarece o Relatório do Presidente Lafayette R. Pereira:

O regulamento de 22 de outubro consagrou nos artigos 22 e 23 o

ensino obrigatório, comminando aos pais, tutores, curadores e

protectores que não derem ensino em aula publica ou particular, ou em

sua própria casa, a meninos sob sua guarda maiores de 7 annos, a

multa de 5$000 por semestre209.

Essa obrigatoriedade do Estado em cobrar a multa e dos pais ou

responsáveis em dar educação, virou (por bom senso) norma sem efeito real.

Sendo assim, serão apresentados alguns dados e reflexões que

enriquecerão nossa narrativa.

Quanto à instrução primária, podemos vislumbrar, malgrado a

precariedade em que se encontravam as fontes antes de serem microfilmadas, o

seguinte quadro. (Vide tabela I.)

O crescimento do número das cadeiras e do número de alunos é

constante e significativo, embora o deste último seja proporcionalmente menor.

Pelos motivos já apresentados se procurará realizar uma melhoria

significativa da instrução primária. As condições em que ele se encontrava em

209Vide RELATÓRIO de Presidente de Província ( Lafayette Rodrigues Pereira), 01-10-1864.

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meados do século passado eram bem mais precárias do que quando o vemos no

ocaso do mesmo século.

Em 1844, o Relatório de José Maria Bitancourt emitia à Assembléia

Provincial as queixas dos professores:

TABELA I

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Primeiramente não há cazas acommodadas á instrucção, excepto a

do ensino-mutuo na capital, sendo por isso preciso aos mestres

leccionarem nas suas residencias, que alem de pequenas dao lugar a

que os poucos zelosos tenhão junto de si motivos de continuas

distracções. Não tem essas cazas os utencilios necessarios; para que o

tempo possa distribuir convenientemente na leitura, escripta, etc.

devendo esperarem uns que desocuppem os outros as poucas mesas, e

assentos, o que não dará muitas vezes lugar a que todos escrevão e

sejam ouvidas suas lições. Além disso faltão os traslados, os

cathecismos, e resumos de arithmetica etc. que, como disse, não tem

sido fornecidos pelas Camaras, nem pelo Governo, na forma do artigo

8o, da Lei no 26 de 1836, já citado, nem os ha de venda210.

Acrescentou-se a essas observações a pobreza da Província, a

impossibilidade dos pais proverem o calçado, o vestuário, o papel, as penas e

todo um conjunto de materiais didáticos. Alegava também que os pais

retiravam seus filhos por julgarem menos útil a escola do que o serviço que

poderiam realizar na lavoura. Isso freqüentemente acontecia antes da chegada

do inverno, quando se abandonavam as povoações para garantir o sustento

210Vide RELATÓRIO de Presidente de Província (Coronel José Maria Bitancourt), 01-07-1844.

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através da atividade agrícola. Iam pais e filhos, mesmo os menores, afastados

"quatro e mais mezes"211.

O Pe. Pompeu chegara a ficar comovido diante dos esforços de um

certo professor, trabalhando em condições completamente adversas. Assim

relata em 1854:

Os dias passados fui visitar a escola de um dos lugares proximos a

esta Capital: em uma pequena salla arruinada estava o professor

cercado de quasi 50 meninos que mal cabião nella e o[número] não se

elevava a 80 e a mais por não haver commodo na casa: e o professor

que [cumpre,] segundo me informao de modo satisfatorio [,] as

obrigações do professorado que exerce inteiramente, e que pai de

numerosa familia, nao recebe senao dois terços de ordenado de 300 U.

rs [,] isto é [,] muito pouco mais do que recebe o jornal diario de um

trabalhador servente212.

Mesmo o ensino secundário que, como vimos demonstrando, é mais

elitizado, passou por situações difíceis frente a miséria da economia local. Deu-

se tal situação, por exemplo, logo no terceiro ano de funcionamento do Liceu,

como vemos pelo Relatório de 1847:

Uma das causas que tem contribuido para que [o]Liceu não

apresente maior no de alumnos é certamente a taxa de matricula a que

elles estão sugeitos. Com effeito o deploravel estado, a que ficarão

reduzidos, por causa da horrivel secca pela qual passamos, hia

211Ibidem. 212Vide RELATÓRIO de Presidente de Província (Conselheiro Vicente Pires da Motta), 01-09-1854.

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concorrendo para que apenas um ou outro estudante contasse esse

anno o estabelecimento de que nos occupamos213.

Parte das condições com que inicia a Instrução Pública cearense é

contornada com sucessivas reformas legais e de pessoal. A formação dos

professores será um alvo importante nesse processo, muito embora nem todos

os relatórios demonstrem uma relação harmônica para com tal categoria de

funcionários.

Muitas vezes vemos a desconfiança dos dirigentes para com o

exercício do magistério. O recurso à inspeção é uma das maneiras de tentar um

controle sobre essa atividade. Por outro lado, os inspetores eram tão mal pagos

(quando pagos) quanto os professores, o que fazia com que não preenchessem

devidamente seus relatórios. Também os professores freqüentemente não

enviavam os mapas exigidos pela Diretoria da Instrução Pública.

Além da vigilância se vai colocando o problema da formação dos

mestre-escola, como eram chamados. No Regulamento de 1855, já citado e que

reformou a instrução primária, criou-se o professor adjunto. Uma formação que

se dava na prática, com base em sucessivos níveis de graduação, até chegar a

mestre-escola. Estes eram retirados dentre os próprios alunos.

Sobre essa sistemática de formação, comenta o relator de 01 de

outubro de 1864:

No capítulo 4o [do Regulamento de 1852] ensaiou-se a creação de

professores adjuntos de um modo imperfeito. É alguma cousa do

systema austríaco; mas para que aquelle systema fosse completo, seria

213Vide RELATÓRIO de Presidente de Província (Ignácio Correia Vasconcelos), 01-07-1847.

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mister fazer dos professores adjuntos viveiro d'onde fossem

exclusivamente tirados os professores effectivos214.

Muito se critica e pouco se espera da prática desses professores sem

formação adequada e ganhando parcos salários. O mesmo Relatório fala com

crueza da falta de expectativas do professorado:

O indivíduo que se sente com certas habilitações, preferirá por certo

mil outras carreiras que lhe abrem ás esperanças largos horizontes, à

vida obscura de mestre-escola que sugeita-o a trabalho penoso,

infringe-lhe no presente duras privações e promette no futuro a

pobreza215.

Havia mesmo um olhar pejorativo sobre o ato da escolha dessa

profissão, como se constata nos corolários deste extrato do Relatório de 1864:

D'ahi um resultado profundamente deplorável: só aspira ao

professorado aquelle que é tão inepto que não póde viver de sua

industria particular, em um pais de tantos recursos, como o nosso.

Dest'arte o professorado torna-se o refugio da inhabilidade216.

O que parece ocorrer na prática é uma falta de crença na possibilidade

de um ensino primário, ou seja, o que atingia a maior parte possível da

população, que fosse de qualidade. Muito embora haja toda uma amplitude, a

nível meramente discursivo, dos benefícios desse mesmo ensino. Mais se

214Vide RELATÓRIO de Presidente de Província (Lafayette Rodrigues Pereira), 01-10-1864. 215Ibidem. 216Ibidem.

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almejava os frutos do equilíbrio social que a boa formação, já que esta somente

se faria no secundário.

Contudo, progressos perceptíveis foram feitos. O mesmo Relatório de

1864 pede o aumento dos ordenados e fundação de uma Escola Normal, que

implantaria de fato uma instituição formadora do professorado primário. Em

terceiro lugar, a divisão da Província em círculos literários para existirem em

número igual ao de comarcas.

O Relatório de Diogo Velho Cavalcante de Albuquerque, de 1868,

retorna ao problema da Escola Normal com grande eloqüência. Ressaltando a

importância da educação no "destino do homem, como no da sociedade"217,

apela aos senhores da Assembléia uma reflexão nos seguintes termos:

Mas nós que temos quarteis para formar soldados, estabelecimentos

techinicos para preparar engenheiros, faculdades para formar medicos e

advogados, seminarios para habilitar clerigos, cousa nenhuma

instituimos para crear bons mestre-escolas218.

Paralelo a esse esforço público, a demanda de alunos é também

satisfeita pelo ensino particular. Este cresce sem freios e sem controles do

poder público. Ademais, para muitos relatores era melhor alguma instrução

primária do que não ter nenhuma.

Não há dados nos Relatórios sobre o setor particular no nível primário.

Em 1857 (01 de julho),o Relatório nos apresenta, para as aulas públicas, 2.896

alunos e para as aulas particulares, 2.974. Avisa, porém, que esta quantidade

217Vide RELATÓRIO de Presidente de Província (Diogo Velho Cavalcante de Albuquerque), 01-11-1868. 218Ibidem.

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está defasada em aproximadamente 1.000 alunos. A presença do ensino

particular vai aumentando, ao que parece, com o correr dos anos.

Na verdade, essa influência pode ser claramente percebida no ensino

secundário.

O ensino secundário, ou ensino das humanidades, era notadamente

elitista, porém, a intenção do poder público provincial era torná-lo mais ainda

seletivo a partir do Liceu. Podemos avaliar o caráter da instrução secundária,

através de tabela demonstrativa.( Vide tabela II.)

Paralelo ao reforço do Liceu, seguia o corte nas aulas avulsas. Para

verificar essa concentração do investimento nas melhores inteligências, na

capital não se faz necessário dados detalhados. Basta dizer que em 1844, as

aulas avulsas atendiam 193 alunos em toda a Província, com 11 cadeiras em

funcionamento. Já em 1876, elas estavam restritas ao interior e com 164 alunos

em 8 cadeiras. Passadas várias décadas, houve redução das capacidades de

atendimento.

Algo semelhante aconteceu no Liceu, muito embora em decorrência

de um investimento educacional inverso. As aulas avulsas interioranas não

cresceram por uma falta de interesse em que isso acontecesse. Já no Liceu, por

uma estratégia que o credenciava como locus da formação de quadros.

Podemos, com o auxílio das tabelas (vide tabelas III e IV) ver a

diferença quantitativa, em percentagem, entre o ensino primário e secundário

públicos.

Frente a esse quadro da política educacional pública na Província,

percebe-se a penetração de outras instituições, particulares no caso, com fins de

atender a demanda.(Vide tabela IV.)

O que havia sido crescimento negativo, a partir da comparação entre

as médias das amostras de 50 a 60, passa a ter crescimento positivo. Diga-se de

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passagem, um crescimento bem significativo. Senão, vejamos outra tabela

sobre o secundário, incluindo o ensino particular (vide tabela V).

A modernidade do ensino no século também inclui a mudança de

métodos disciplinares sobre os alunos. Da palmatória, dos caroços de milho ou

do aluno de quatro feito cavalo para ridículo junto aos colegas, passa-se a

"novos métodos". Estes são propagandeados pelas escolas particulares como

TABELA II

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TABELA III

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TABELA IV

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TABELA V

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uma

nova embalagem do produto Educação. Isso para que atraiam os cobres dos

pais menos afeitos aos rigores patriarcais das outras instituições.

O "Ateneu Cearense", por exemplo, publicou n'O Cearense, em 02 de

dezembro de 1864, um anúncio com a relação completa do enxoval a ser

adquirido pelo aluno com fins de ingresso naquela instituição. Após o

uniforme, as ceroulas, as bacias para banho e para rosto e um "ourinol", vejam

a oferta vantajosa: "Systema de prêmios e correções moraes de preferência aos

castigos físicos"219.

O "Gymnasio Cearense" publicou de antemão o "Programma de

Estudos e Estatutos" já em 1873. Quase dez anos depois, podemos apreender

certa modificação:

Capítulo V - Dos Castigos

1o - Estação - de pé

2o - Privação de recreio - simples ou com trabalho escholar

3o - Meza de penitência

4o - Prohibição de sahir

5o - Prisão - simples ou com trabalho escholar

6o - Estação de joelhos durante a refeição

7o - Refeição

219Vide O Cearense, 02-12-1864.

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Estão completamente abolidos os castigos physicos220.

Lamentavelmente, não temos dados suficientes para, empiricamente,

saber o sucesso, ou não, desse proto-marketing do ensino particular no século

XIX.

220Idem, 27-02-1873.

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O BATISMO DE LUZ

Agora podemos dizer que as modificações ocorridas na Instrução Pública

entre 1840 e 1880 foram passos seguros no estabelecimento da principal

instituição cultural à época, no âmbito das classes dominantes, que foi o Liceu.

Graças a ele se formou um clima de florescimento intelectual para as elites ou para

os poucos filhos pobres da terra que aspiravam um preparatório que garantisse a

ascenção social e intelectual futura. Além disso, o Liceu teve algo de ensino

superior, na medida que alguém como Pompeu passa a produzir conhecimento.

Por outro lado, o ensino primário desenvolve-se num sentido completamente

oposto ao Liceu. Ele ensinava a ler e escrever, as quatro operações, a gramática

nacional, enfim, o básico para populações da capital e do interior. Principalmente,

incutia os princípios morais, as prédicas evangélicas a que o povo deveria ter

noção para não formar torpezas de caráter: ser bom cidadão e não seguir o crime.

Esse processo incide sobre as classes populares não sob a forma de

"convencimento" necessariamente. Pensamos até que só raramente. O caráter

coercitivo das relações sociais não está só no âmbito da violência física, mas

também no da violência cultural: “O estado deve derramar a instrucção sobre a

cabeça do povo; elle lhe deve esse baptismo de luz, já como conpensação dos

deveres, que lhe impõe, já como garantia dos direitos, que lhe concede” 221.(Grifos

nossos.)

Até os direitos do homem não são pensados no pressuposto liberal-

democrático, mas como concessão do poder soberano do Estado. É o imaginário

da luz, pensado nestes termos, que orientará as práticas mentais e a experiência

dos homens de elite da terra local.

221Vide RELATÓRIO de Presidente de Província (Coronel Joaquim Mendes da Cruz Guimarães), 01-07-1857.

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O OLHAR DE MEDUSA

As realidades de que tratamos no capítulo anterior têm seu peso: o Estado

e suas produções logísticas na esfera da Instrução Pública; a violência crua do

cotidiano social. O peso parece ser natural a esses objetos de estudo e à própria

realidade histórica, na medida em que a vida mesmo parecia petrificada. A aridez

do solo era também a dos homens.

Neste capítulo, entretanto, nos propomos a aprofundar mais o lado

ideológico e imaginário dessa experiência da elite cearense. Aqui tendemos a

pensar nas coisas leves; como se falar nesses campos dos estudos humanos fosse

recorrer, necessariamente, ao discurso utópico. Para fugirmos de Medusa seria

necessária a diligência de Perseu: nas palavras de um escritor da atualidade, "o

único herói capaz de decepar a cabeça da Medusa" já que ele "voa com sandálias

aladas"222.

O problema reside no entendimento que damos ao caráter utópico.

Embora se tenha abusado um pouco desse termo, renunciando definições

estabelecidas, podemos dizer algo esclarecedor sobre esta problemática. Talvez

dois ou três lembretes. Temos em conta que utopia não é fantasia, mas ação

conseqüente. Embora a significação etimológica (terra de nenhum lugar) possa ter

um magnetismo idealista, a utopia está mais próxima da imaginação do que da

fantasia ou da ilusão223.Depois, que a utopia tem um gosto de sonho bom. Não é

222Vide Ítalo Calvino, "A Leveza", in: Ítalo Calvino. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 16. 223Vide Rubem Alves, "A Intenção Utópica da Imaginação", in: Rubem Alves. A Gestação do Futuro. 2a ed. Campinas: Papirus, 1987.

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um pesadelo, mas a evocação de desejos não realizados. Ela é um discurso

expressivo224. Aqui, o imaginário pode ser estreitamente associado à utopia225.

Mas para um autor como Castoriadis, por exemplo, ele só é utópico enquanto

poiésis226.

Como aspiração desiderativa, a utopia é muito mais identificada com os

projetos das classes subalternas do que com classes ou elites dominantes227. Isto

posto, a utopia define-se como problemática e a ausência desse entendimento pode

ser metodologicamente desorientadora.

Assim é que podemos nos perguntar: qual seria a problemática mais

adequada para compreender as elites intelectuais, políticas e sociais que ora temos

em foco?

As idéias liberais no Novo Mundo começam fora do seu lugar de origem:

a Europa e o capitalismo comercial em vias de transformação para uma sociedade

industrial, baseada no trabalho assalariado228. Os herdeiros mais visíveis desse

cabedal ideológico serão as camadas dominantes.

Na América portuguesa, as elites relacionam-se com a Metrópole de

forma filial, já que não conformaram uma camada distinta de criollos, como foi o

caso da América espanhola. A ruptura com os "laços" portugueses fez-se ainda por

meio da herança cultural européia, que foi o liberalismo lusófobo de influência

francesa e inglesa. A história ideológica das camadas dominantes inicia com asas

nos pés.

224Vide Rubem Alves, "O que significa dizer a verdade", in: Rubem Alves. O Suspiro dos Oprimidos. 2a ed. São Paulo: Paulinas, 1984, pp. 145-167. 225Vide Michel Zaidan. A História Como Paixão.Recife: Pindorama, s.d. 226Vide Cornelius Castoriadis. A Instituição Imaginária da Sociedade. 2a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. 227Vide Michael Löwy. As Aventuras de Karl Marx Contra o Barão de Münchhausen. São Paulo: Busca Vida, 1987. 228Vide Robert Schwartz. Ao Vencedor as Batatas. 4a ed. São Paulo: Duas Cidades, 1992.

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Por vezes, essa referência foi mero pastiche. Aquilo que Robert Schwartz

chamou de comédia ideológica:“Ao longo de sua reprodução social,

incansavelmente o Brasil põe e repõe idéias européias, sempre em sentido

impróprio” 229.

Para além de seu caráter de impropriedade - análise de âmbito

estritamente ideológico - a mentalidade européia era o que nos fazia "desterrados

em nossa terra"230. Segundo Michèle Bertrand, "em todo projeto, em todo

engajamento, há uma parte de ilusão"231.

Acontece que mesmo na sua impropriedade e leveza, as visões de mundo

estrangeiras vão ganhando densidade. É nesse momento que o progresso do

liberalismo fica assegurado.

229Idem, p. 24. 230Sérgio B. de Holanda, citado por Robert Schwartz, op. cit., p. 14. 231Vide Michèle Bertrand, "O Homem Clivado - a crença e o imaginário", in: Paulo Silveira et al. Elementos para uma Teoria Marxista da Subjetividade. São Paulo: Vértice, 1989, p. 19.

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O LIBERALISMO PATRIÓTICO

Talvez, a primeira manifestação de idéias liberais no Ceará tenha sido o

movimento de 1817. Sua penetração se deu pelo Crato e Jardim, na região do

Cariri cearense, ao sul da Província - região que mantinha laços familiares,

comerciais e religiosos com Pernambuco. A adesão da família Alencar foi

decisiva. Especialmente pela ação do Padre José Martiniano Pereira de Alencar,

recém chegado do Seminário de Olinda. Antes, um dos chefes do movimento em

Pernambuco, Domingos José Martins, tivera negócios no ceará, chegando a residir

por aqui. A ligação com Pernambuco era muito forte, inclusive por uma questão

estratégica em que o Ceará vai se colocando como espaço geo-político assegurador

do desempenho bem sucedido dos inssuretos:

Para os revolucionários pernambucanos era importante a participação do

Ceará no movimento, pois, em caso contrário, o Governador Sampaio iria

despachar tropas leais ao Rei, como realmente aconteceu, tendo eles de

combater em três frentes, com pouca possibilidade de êxito, ao menos de

resistir enquanto não se consumava o reconhecimento da novel república

pelos governos inglês, estadunidense e argentino, com o qual se definiria

uma situação praticamente irreversível232.

Esse processo de mobilização conheceu figuras de engajamento pessoal

completo e de convicção liberal exemplar, como Tristão Gonçalves, que liderou as

tropas junto ao irmão José Martiniano de Alencar e teve, como saldo pela

232Vide Geraldo Nobre, "A Revolução de 1817", in: Simone Souza (org.). História do Ceará. Fortaleza: UFC/Fundação Demócrito Rocha/Stylus Comunicações, 1989, p. 134.

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sublevação, a prisão em Fortaleza e, posteriormente, em Salvador, voltando

novamente a atuar na Confederação do Equador.

Para o historiador Geraldo Nobre, a radicalidade do movimento é

intocável:

Os principais atos dos revolucionários foram a adoção da forma

republicana de governo e a convocação de uma Assembléia Constituinte; a

decretação da liberdade de comércio, isentos de direitos os cereais, o

armamento, as munições e os objetos científicos; a emancipação do

elemento servil e o estabelecimento da liberdade de culto233.

Isso, muito embora Nobre veja 1817 como essencialmente

pernambucano, ou seja, uma conjunção de idéias radicais ou "burguesas", que

estavam inadequadas a um Nordeste "essencialmente ruralista", e por outro lado, a

conjuntura de insatisfação da Província de Pernambuco, que perdia cada vez mais

a importância político-administrativa, já que era ex-sede do antigo Governo Geral

e, recentemente (1799), perdera a subordinação do Ceará e da Paraíba, o que

implicou em perdas econômico-comerciais.

No Ceará, malgrado a atuação da família Alencar envolvendo desde a

mãe, Bárbara de Alencar, até os filhos, não houve expansão considerável do

movimento, até porque o Governador Sampaio é tido, pela historiografia, como

administrador muito hábil e possuindo um sistema de comunicação distribuído

pela Província (que controlava em quase toda sua extensão) e foi bastante

previdente, antecipando-se aos atos de rebeldia e detendo todos os que chegavam

de Pernambuco. O episódio em si parece ter sido efêmero, tendo durado oito dias,

233Idem, p. 127.

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embora os participantes tenham tentado imprimir-lhe simbolismo (ou farsa

afrancesada) de revolução:

Parentes e adeptos revolucionários ajudaram-no [Martiniano de Alencar]

a invadir o prédio da Câmara e ali içar a bandeira branca dos independentes.

São depostas as autoridades legais e abertas as portas da cadeia pública,

soltos os presos, tudo com o espanto geral dos habitantes da vila. O

pelourinho [da Vila do Crato] é posto por terra234.

A própria repressão aos sublevados não levou, ao contrário do que

aconteceu em Pernambuco, nenhum participante à execução de pena de morte,

embora alguns tenham estado presos por três anos e os bens da família Alencar

tenham sido confiscados.

A trajetória liberal tem aí, porém, apenas o início, embora pertença e

posteriormente continue pertencendo ao âmbito oligárquico, familiar e a um limite

regional. As providências de repressão oficial do movimento de 1817 não foram

seguidas de uma restruturação da organização econômico-política da Província,

não havendo nenhuma sensibilidade dos então vencedores no que toca a este

ponto. Nem a família Alencar foi extirpada com seu liberalismo de insurreição,

nem o Cariri modificou seu status na Província do Ceará. Quando ocorre, então, a

Confederação de 1824, ela está no mesmo fio de desenvolvimento histórico:

Desde 1817 os Alencar perseguiam uma nova ordem na Província. Os

acontecimentos advindos com a independência projetaram favoravelmente

para a cena política, a nível provincial, elementos influentes da zona

caririense, cujos interesses econômicos ligavam-se particularmente a

234Vide Raimundo Girão. Pequena História do Ceará. 4a ed. Fortaleza: Edições UFC, 1984, p. 127.

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Pernambuco. Foram esses elementos que fizeram a Confederação do

Equador no Ceará235.

Sua abrangência foi maior, mais articulada e resistente, sob a liderança

principal de Tristão Gonçalves e Pereira Filgueiras, tendo, ao que parece,

Martiniano de Alencar na articulação de cunho político:

O padre Alencar ao chegar ao Ceará, após ter sido dispensado com a

dissolução da Assembléia Constituinte, encontrou na província sinais visíveis

de rebeldia, particularmente nas vilas de Icó, Crato e Campo Maior. O

Presidente de Pernambuco o incubira de disseminar as idéias da república

que pretendia implantar no Nordeste contra as medidas centralizadoras do

monarca236.

O desfecho negativo foi fruto das traições, de uma ausência de coesão

ideológica firme entre os adeptos da família Alencar. A violência se fez bem mais

presente, com embates armados e a morte de Tristão Gonçalves, Presidente da

República do Ceará, fato que será remoído nos debates políticos posteriores.

A preocupação com as massas incultas, típica do liberalismo ilustrado237,

a fim de degolar a sociedade tradicionalmente estruturada, pode ser vislumbrada

no esboço de plano de ação republicano: “Havia uma preocupação com relação à

235Vide Ma do Carmo R. Araújo, "A Participação do Ceará na Confederação do Equador", in: Simone Sousa (org.), op. cit., p. 142. 236Idem, p. 143. 237"A filosofia das luzes acreditava firmemente que, educando o povo, e dando-lhe os meios de informação necessários, as bases subjetivas da ilusão seriam exterminadas; e a luta política que se seguiria solaparia sua base social. Esta é a sua própria ilusão. Ela subestima ao mesmo tempo a necessidade social da ilusão e sua necessidade subjetiva". Vide Michèle Bertrand, op. cit., p. 16-17.

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instrução nas escolas e recomendações no sentido de promover um "tratamento

legal" na promoção do índio, especificamente indicado para algumas vilas”238.

Esse liberalismo sensível às questões sociais não passava, entretanto (e aí

vem uma mentalidade oligárquico-vanguardista mais definidora que o elemento

ideológico), por uma construção política autônoma e democrática:

A participação "popular" foi usada não para defender seus interesses mas

os interesses dos seus líderes contra as medidas "escravizadoras" da Corte.

Tal liberdade política apregoada significava a expressão, antes de mais

nada, da necessidade de ascenção política de um grupo. As idéias de

liberdade não penetram na "massa popular", analfabeta, acomodada às suas

condições históricas de dependência dos poderosos da terra. Por tudo isso

o governo republicano não apresentou nenhuma medida que viesse a

mudar as condições de exploração e de dominação. A república da

Confederação nasceu e morreu com os seus líderes239.

O referencial de Maria do Carmo é notadamente estreito e muito

problemática sua noção de acomodação, bem como as ditas "condições históricas"

concentram um dogmatismo simplista de quase nenhuma base empírica. Além

disso, há um anacronismo na apreciação de Maria do Carmo, na medida em que o

problema da construção política, neste caso, foge ao domínio estritamente

ideológico. Embora a Confederação, enquanto evento social, tenha sucumbido, o

liberalismo cearense continuará seu percurso e não há uma morte do imaginário

liberal enquanto tal. É assim que os mesmos atores estarão ainda em cena por

longos anos, como o Pe. Martiniano de Alencar. Esse ideal vai transmutar-se. Se

238Vide Ma do Carmo R. Araújo, op. cit., p. 146. 239Idem, p. 147.

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nunca foi democrático, menos ainda será radical. Pouco a pouco as idéias vão

ficando no lugar.

A participação dos populares é algo complexo. Os estudos de cultura

popular nos ensinam a ter cautela na consideração desta temática. Não é possível

fazer senão considerações genéricas para o caso, já que os subalternos têm um

universo circundante de ambiente, linguagem e práticas específicas que, apesar das

trocas com a cultura erudita, exigem um tratamento metodológico também

específico. Já o ideário liberal teve adeptos de identificação biográfica para o

pesquisador. Esse ideário não existia de forma pura e muitos de seus aspectos

dificilmente seriam partilhados pelo mundo popular.

A estrutura produtiva era rural, baseada na grande propriedade de terras

pertencentes a famílias tradicionais que ocupavam o topo da escala social,

definiam a política, a administração e a justiça. Estas famílias enviavam seus filhos

para Olinda, já que o centro educacional mais próximo estava lá. A economia era

subsidiária de Pernambuco, para onde enviava-se o charque. O algodão, que mais

tarde possibilitou a comercialização e urbanização da Província, era uma cultura

em penetração. A realidade circundante era avessa à circulação consciente e motriz

das ideologias. Particularmente, as liberais.

Predominavam, em geral, os aspectos imóveis e estagnantes; os hábitos

arcaicos e infinitamente reprodutíveis. Os estudos do prof. João Alfredo de S.

Montenegro demonstram largamente esses aspectos, como nos elucida na obra

sobre os conflitos ocorridos em 1832, no Ceará:

Se bem que a Revolução de 1824 tenha sido uma das poucas em que as

elites selaram uma ponderável identidade doutrinária, demonstrando

extraordinária sensibilidade regional aos problemas políticos nacionais, ao

se analisar o desdobramento da sublevação nos círculos urbanos, os

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desvirtuamentos que sofreu assomaram com mais tônica nos sertões,

quando defronta sediços valores tradicionais, despojados de dinâmica

inovadora, vedando a correspondência funcional entre o ideal e a realidade

social240.

Essa correspondência é o de somenos importância, já que o fundamental

no ideário político é que ele suscite sempre um mundo imaginário para além do

que será efetivamente realizado, um desejo profundo que está colocado de maneira

utópica e não-realista, ou, pelo menos, não absolutamente realista. Ainda aqui,

porém, o liberalismo aspirado não é um imaginário mobilizador das massas, ele é

catalisador das forças oligárquicas e aqueles a elas ligados por laços de

dependência, parentesco ou amizade.

Sob essas condições, falar de liberalismo, ou idéias liberais (liberdade do

trabalho e igualdade perante a lei), é falar de uma história de nomes e personagens

presentes em inssurreições ou na condução de reformas ocorridas durante o século

XIX. Havia, então, uma clivagem não só entre o imaginário e a política do

possível, como entre o imaginário de elite e o imaginário popular. A região do

Cariri é, nesse sentido, exemplar; e mais ainda o contexto e o desenvolvimento do

movimento regressista de 1832, que será movido às custas do caráter sagrado do

rei, da aversão ao caráter diabólico do liberalismo que se implantava.

Nesse levante, as condições dos líderes revolucionários radicais dos dois

movimentos anteriores já conviviam numa situação política que lhes era favorável,

que se abria para o liberarismo que vigorará a partir do período regencial, "um

liberalismo que ajuda a consolidar a ordem vigente com esteio na propriedade,

240Vide João Alfredo de S. Montenegro. Ideologia e Conflito no Nordeste Rural: Pinto Madeira e a Revolução de 1832 no Ceará. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976, p. 28.

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resguardando-a de qualquer iniciativa reformista"241, vivendo politicamente das

tricas entre liberais e conservadores.

Pouco a pouco a família Alencar vai se recuperar dos reveses radicais:

E considere-se que entre aqueles presos [de 17 e 24] vários passaram

depois a ocupar posições importantes na Política e na Administração da

Província, um deles pelo menos com atuação destacada, no cenário

nacional, o Padre José Martiniano de Alencar242.

Ao mesmo tempo da ascensão desse novo grupo, vai-se fazendo uma

sistemática guerra àqueles que foram os repressores das lutas armadas radicais. O

alvo será o cel. Pinto Madeira, herói do conservadorismo tradicionalista, residente

na Vila do Jardim:

Firmou-se, nesta comuna, uma tradição de absolutismo monárquico, que

acharia mais tarde no Vigário Antônio Manuel e no militar Joaquim Pinto

Madeira, corajosos e poderosos adeptos, recebendo novo impulso.

O último principalmente deu provas sobejas de lealdade ao regime

absolutista vigente ao combater os revolucionários de 1817, conduzindo

muitos deles presos à capital da Província, Fortaleza.

Opôs-se também denotadamente aos Confederados de 1824,

participando de combates sangrentos que os derrotou243.

O que será articulado então pelos aliados de Martiniano de Alencar será

uma vingança, na análise de João Alfredo Montenegro, em que a Vila do Crato se

241Idem, p. 30. 242Idem, p. 22. 243Ibidem.

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oporá à Vila do Jardim e serão feitas todas as articulações possíveis no sentido de

sufocar a atuação do rival. Isso incluirá também a produção de uma campanha de

opinião para desmoralizar Pinto Madeira e colocá-lo mais tradicionalista que era,

e, na verdade, sua decisão pela rebelião absolutista foi fruto de toda uma pressão

realizada pela oligarquia do Crato (segundo nos coloca J. A. Montenegro). Teve de

lançar-se numa aventura absolutista como tábua de salvação. As articulações de

Alencar e seus adeptos levariam Pinto Madeira a ser processado e preso.

Ao lado do Pe. Antônio Manuel de Souza, Pinto Madeira prepara-se para

o contra-ataque, fugindo da esfera institucional e tornando-se subversor da ordem,

quando fora, antes, repressor anti-radical. Sua rebelião, porém, estará bem mais

articulada com o imaginário popular:

Nelas, incrementa a associação da Religião e do Absolutismo

monárquico, e assimila o Liberalismo às artes do demônio, e o propaga

como diluidor da moral e da ordem.

Aí reside em grande parte a razão do entusiasmo incontido e imprudente

da maioria dos "cabras", que se lançava à luta certo de que se morresse,

morreria mártir e teria a recompensa de Nosso Senhor no Céu244.

E ainda:

Ausentes, portanto, do Vale do Cariri, naquela quadra, os valores

fecundantes de novos horizontes políticos e sociais.

A própria mística da Restauração não se compatibilizava sequer com um

projeto político viável.

244Idem, p. 19.

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Cifra-se ela numa espécie de Sebastianismo que afina à maravilha com a

mitologia sertaneja, com as manifestações de fanatismo religioso, das que é

tão pródiga a história da Cariri.

Tinha-se do Rei uma imagem de profundas conotações rústico-religiosas,

inteligentemente exploradas pelo Vigário Antônio Manuel durante o

aliciamento de "cabras" em 1832.

Como não deixarem de considerar um verdadeiro ultraje ao "Sagrado" a

pressão liberal que levou Pedro I à Abdicação?245

Esse imaginário místico, confluência de nebulosas mentais, será

combatido pelos liberais com a ação inadiável da Instrução Pública e com o

recurso a uma religião atualizada, em consonância com valores positivos.

É, portanto, possível que todo o processo de reformas por que passou o

Ceará a partir da segunda metade do século passado não se tenha dado

exclusivamente em função da progressão comercial do algodão, mas que junto a

esse fator econômico possamos entender uma política de construção civilizatória

completa.

O fato é que os ideais liberais mostraram-se distantes do popular e isso

implicou mesmo na campanha militar repressora do levante restaurador de Pinto

Madeira:

Na "guerra civil entre os dois povos", enquanto o grosso da população

jardinense participa das lutas, com o entusiasmo que desafia a morte, os

habitantes do Crato pouco se empenham, ficando o encargo da refrega com

alguns potentados que se desdobram ao máximo no aliciamento de gente.

245Idem, p. 34.

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Sem a valiosa e decisiva ajuda dos Corpos de Milícias conduzidos pelo

Comandante de Armas da Província e, por último, pelo próprio Presidente da

Província, Mariano de Albuquerque, e também de tropas da Paraíba, de

certo que a repressão teria falhado246.

Passamos, à primeira vista, de um liberalismo radical e social para um

outro, de caráter positivo e reformador. O próprio O Cearense trará leituras desse

passado violento, em que mostra uma visão de esquecimento desse tipo de

conflitos e aponta a construção de uma política mais harmoniosa e conciliatória.

246Idem, p. 32-33.

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TRISTÍSSIMA RECORDAÇÃO

Tanto houve esse esquecimento que o conteúdo político dos patriotas de

1824 foi assim visto, vinte e dois anos depois:

Um tempo houve de tristissima recordação para os Cearenses, em que á

declaração de partido político se dava em resposta a manifestação da mais

pura odiosidade. Negava-se hospitalidade, fogo, um copo d'agua ao

individuo do credo contrario, a quem logo se aborrecia de morte.

Pelo mesmo motivo exemplos houverão de filhos, que despresavão o pai,

e ate convinhão, ou mostravão-se indiferentes as perseguições, que o

atrabilario espirito de partido contra elle descarregava. Com igual fanatismo

detestavão-se os irmãos, os primos, os sobrinhos aos tios, e com

reciprocidade os parentes em qualquer grao, os parentes que a natureza

tem ligado. Outro tanto se pode dizer dos fregueses para os parochos, e

vice-versa.

(...)

Erão os autores dessas maldades, e que por tantas maneiras destruirão

o desgraçado Ceará, que, affectando de patriotas não tiravão da boca o

nome de - Patria - Ah! se ella em sua pungente dôr articulasse algumas

palavras, serião as seguintes "Ó vós omnes, qui transitis per viam, atendite,

et videte, si est dolor, sicut dolor meus".

Recordai-vos, ó Cearenses, desse tempo luctuoso, desses planos de

carnificina, desses sustos, desses prantos, desses terrores não infundados,

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que, ou soffrestes, ou causastes; e evitai o fanatismo político; evitai os

delirios desse monstro, que a todos arruinou, arruinando tudo247.

Podemos perceber, portanto, que os chimangos excluem-se como

herdeiros do liberalismo radical dos patriotas de 1824, e fazem generalização do

passado traumático, sem fazer referência explícita a fenômenos específicos, ou

grupos específicos. Esse passado, portanto, é tido como o passado de todos os

cearenses, independentemente de facções ou eventos. Ao mesmo tempo, há um

sentimento de culpa e imputação da miséria da província a esse passado. Tal

imputação não possui apenas um caráter político, mas em se tratando de uma

mentalidade tradicional, a má sorte provincial é mesmo atribuída a um karma

religioso:

Quem sabe se os flagelos da secca não forão o justo castigo de tantas

perversidades? Deus o sabe. Vossos infortunios, vossas desgraças, vossas

actuaes miserias servirão por muitos annos do mais doloroso exemplo do

fanatismo248.

Ao mesmo tempo, destacamos que a defesa de uma construção política

mais ordeira e menos radical, a partir da construção de um conceito de pátria que

seja harmônico, como evidenciam outros artigos d'O Cearense, passa pela

representação do espaço num sentido imaginário. A escolha do título do jornal está

em consonância com a ascensão de uma nova opinião pública e política:

247Vide "O Fanatismo Político", in: O Cearense, no 10, 06-12-1846. 248Ibidem.

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(...) propalado por todas as classes o amor ao trabalho; infiltrado elle no

coração de todos; todos conhecendo que se desta guisa é que se póde,

adicionando-se-lhe a economia, faser huma fortuna, e até enriquecer; sendo

claro que este estado traz necessariamente a força consigo: é evidente que,

quando o povo conhecer os seus verdadeiros interesses; quando assim

pensar e obrar, o Ceará, o misero Ceará entregue á tantos obstaculos, que

entorpecem o seu desenvolvimento; victima dos rigores de repetidas seccas,

más filhas de nosso desleixo e inercia do que de nossa posição

topographica, não precisará mendigar o pão, como ora o tem feito; não

precisará estar dependente de algumas de suas irmas, como até hoje tem

estado: elle se collocará na verdadeira posição em que á muito devia estar

collocado, e será respeitado como deve ser249.

O editorial ainda conclui:

Tal é o nosso fim dando á luz o Cearense; revestido de tão caro nome

procuraremos nunca desmentil-o, nunca manchal-o; e se não conseguirmos

o fructo que desejamos, nos restará a consolação de que fisemos o quanto

podemos; o quanto estava em nossas fracas forças250.

Esta nova opinião está acima das facções. Nisso é importante notar que

nos primeiros anos d'O Cearense, ele não faz a declaração explícita de que é um

orgão chimango de defesa e voz completamente oficial do Partido, embora haja

sempre seções do jornal destinadas a esse fim. Nisso, aliás, corrobora também a

opinião de Guilherme Studart, quando comenta a fundação posterior de um outro

249Vide "O Cearense", in: O Cearense, no 01, 04-10-1846. 250Ibidem.

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jornal, já quando o Pe. Tomás Pompeu tem a direção d'O Cearense: “Com o

mesmo intuito do Cearense [ Pompeu] creou o jornal Brazileiro, de menor

formato, onde a opposição liberal se desabafava mais livremente contra os

adversarios” 251.

Portanto, mesmo representando o partido liberal-chimango, O Cearense

procurava uma abrangência acima dos partidarismos:

Uma vez que os Cearenses não se podem ligar em um só pensamento

politico; uma vez que isto é absolutamente impossivel pela natureza do bello

systema, que felizmente nos rege; procuremos unirnos naquillo em que o

podemos, inda que façamos um pequeno sacrificio, se nisto o fasemos:

liguemo-nos ao menos naquillo que, nada tendo de commum com o espirito

de partido, tem tudo com o credito de nos todos em geral, com a felicidade

presente e futura de nossa provincia252.

Erige-se, portanto, a partir de então, um imaginário em torno do cearense,

que, não resta dúvida, é liberal-positivo, a favor da modernização em curso, mas

vai mais além, produzindo uma utopia liberal-conservadora do "cearense", o

desejo de que um espaço imaginário torne-se real.

Um conjunto de representações em torno do ser liberal ia dando conta

destes ideais.

O jornal O Cearense será significativo nesse processo. Aqui os temos sob

o caráter de índice cultural do que se passava no liberalismo. Um liberalismo cada

vez mais voltado para uma prática social rígida e senhorial, com propósitos neo-

patrióticos que incluíam uma doutrinação das sua elites e um processo

251Vide Guilherme Studart. Diccionario Bio-Bibliográfico Cearense. vol. 3. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1980, p. 143. 252Vide "A Imprensa Entre Nós", in: O Cearense, no 01, 04-10-1846.

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civilizatório sobre os populares em geral, desconhecendo quaisquer diferenciações,

a não ser as "castas" hierarquicamente concebidas. Além disso, o entendimento de

que democracia liberal é um ato econômico e, não, político.

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FUGA DO LABIRINTO DE CRETA

Um primeiro elemento desse novo liberalismo era a crítica ao espírito de

partido. O jornal liberal surgido em 1846 é o primeiro movimento ideológico, de

parcela política da elite, a querer constituir um discurso que seja homogeneizador

das facções e classes. A alcunha de Cearense é uma das noções centrais,

juntamente com a de Brasileiro e Patriótico, para constituir uma realidade política

liberal, isenta de radicalismo. Aqui o espaço local ganha dimensão imaginária

profunda e estratégica.

O editorial do primeiro exemplar d'O Cearense propõe essa nova opinião

liberal, como demonstramos anteriormente.

O ser cearense digno, e de respeito, passaria por superar as condições

naturais adversas. essa superação somente seria possível com um forte

investimento em fatores modernos que vão de uma nova mentalidade pública e

política até uma estrutura econômica inteiramente modificada. Esta visão também

está presente no editorial inaugural d'O Cearense, como já vimos.

A nova mentalidade estaria acima das facções. Somente a partir de 06 de

agosto de 1850, com o exemplar de no 353 é que o referido orgão de imprensa

trará ao seu cabeçalho: "'O CEARENSE' é destinado a sustentar as idéias do

partido liberal (...)"253.Até então, o orgão chimango era identificado por seus

editoriais e parcela de artigos e pelos editores. Corrobora a opinião de Guilherme

Studart, citada acima.

Os liberais criavam um formador de opinião que esforçava-se por fugir da

"pasquinagem" de caráter satírico e popular. Mesmo representando o partido

253Vide O Cearense, 06-08-1850.

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liberal-chimango, O Cearense procurava uma abrangência ideológica que

estivesse acima dos partidarismos.

É desse locus discursivo, como orgão de opinião em acordo com o tempo

do progresso, que os liberais criticarão a outra imprensa, que não consegue

desvencilhar-se do espírito de partido:

É nestes impressos, que de tal modo se confunde as vezes a virtude com

o vicio, o bom com o perverso, o util com o inutil, o licito com o illicito, que o

Laberinto de Creta não seria mais intrincado e perigoso. Fujamos todos do

indiscreto espirito de partido, deste inimigo da verdade, e do homem254.

Não só o jornal se orienta pelo campo do que seria um autêntico espírito

público, mas intenciona mudar os hábitos cotidianos dos cidadãos. A moral reta do

homem está presente no público e no privado. É um discurso também "religioso',

onde o progresso parece ser o bem e o símbolo distintivo do justo. O justo

consegue sua meta selecionando seus próprios atos cotidianos que o dignificam

enquanto homem de boa estirpe. Apelava, no mesmo artigo, o escritor: “Não se

deve ler por passatempo; e sim com o desejo de aperfeiçoar sua naturesa, para

não merecer o epitheto de semibarbaro, para não cahir incauto em mil deffeitos, e

faltas” 255.

O ato de ler seria a ingestão de pensamentos: maus ou bons, ordeiros ou

subversivos. O liberalismo deveria primar por uma higiene não só do que entra

pelos ouvidos, mas também do que sai pela boca. Aqui, a liberdade de imprensa

pode ser "criminosa". Quando, a propósito da intimação do Sr. Borges da Fonseca

(redator do jornal Nazareno) no júri de Pernambuco, em fins de 1847, o jornal

254Vide "A Instrução Primária", in: O Cearense, no 12, 20-12-1846. 255Ibidem.

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entrará na defesa da ordem e do Monarca. Há uma intenção de dissociar a imagem

da "desordem" impingida aos liberais e associá-la aos saquaremas. Por intermédio

dessa trica, é possível ler alguns elementos do liberalismo d'O Cearense. As

limitações do como concebiam a imprensa ficam claras. O jornal enfatiza:

A falta de punição nos crimes commetidos por abuso de liberdade de

exprimir o pensamento tem chegado a ponto tal, que hoje ninguem hesita, e

antes apresenta garbo, em offender o pacto fundamental [leia-se

Constituição], apregoar doutrinas subversivas, e macular a alheia reputação,

illudido o espírito de nossas leis com o que acobertão esse phrenesi de

partido, essa sêde de infamar256.[grifos nossos]

O artigo acima, intitulado "Bom Exemplo", é categórico na sua

compreensão sobre os formadores de opinião: “A imprensa dirigida pela rasão é o

sustentaculo da liberdade; a imprensa desregrada é promotora da licença”257.

As manobras retóricas dos liberais não se fazem sem dificuldade, em

função da herança a que se filiam. Especificamente a memória dos patriotas

revolucionários. Elementos que eram líderes durante os anos quarenta, como José

Martiniano de Alencar ou o filho do líder-mártir Tristão Gonçalves, o redator d'O

Cearense, Tristão de Alencar Araripe, não podem negar o passado pouco pacífico

que a eles se colara. A ênfase, então, dar-se-á nas bandeiras específicas a este

liberalismo, na maneira de entender o que seja "democracia"258, por exemplo.

256Vide "Bom Exemplo", in: O Cearense, no 80, 02-09-1847. 257Ibidem. 258A "democracia" numa sociedade patriarcal e escravocrata é o que poderíamos chamar, evocando Schwartz, uma "impropriedade". Entretanto, um componente não menos significativo na composição do discurso. Penso que esse discurso vai ficando cada vez mais próprio e é justamente essa apropriação que assegura o progresso do liberalismo.

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O processo de emancipação política do Brasil fora fortemente contestado

pelos liberais cearenses, influenciados com a onda rebelde que assolou

Pernambuco. As atitudes de sublevação radical contra o imperador absoluto que

dissolvera a Constituinte e outorgara, em 25 de março de 1824, uma Constituição

ao seu gosto, comprometeram os principais membros da família Alencar e levaram

ao fuzilamento ou perseguição, muitas vezes seguida de morte, de tantos outros

homens:

A populaça invadia os povoados e vilas, principalmente no Cariri, na

serra do Pereiro, em Quixeramobim, na Serra Grande com o desígnio de

matar os patriotas. Essa gente só chamava patriota a pessoa que possuísse

alguma cousa. Espalhava-se que os patriotas queriam escravizar a classe

pobre259.

Esses perseguidos malditos, confundidos agora com todo e qualquer

proprietário, tinham sido liberais. Para eles, a noção abstrata de povo, confundia-se

com a de pátria. Colocavam em questão o caráter autoritário do Estado. A Carta

Constitucional não fora um "pacto" com o povo e, por isso, não merecera a

consideração e respeito dos Patriotas.

Portanto, a idéia de democracia estava, para esses liberais, associada

também às noções de "pátria " e "pacto".

Já não é a mesma coisa o que pensam os moderados chimangos algumas

décadas depois. Embora herdeiros da tradição liberal, vêem-se na necessidade de

uma releitura do conteúdo democrático. O que era abstrato vai, passo a passo,

ganhando materialidade e concretude. Pátria se identificaria mais com progresso;

outorga constitucional com pacto inquestionável.

259Vide Abelardo Montenegro. Os Partidos Políticos do Ceará. Fortaleza: Edições UFC, 1980, p. 17.

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A atenção dada aos "interesses materiais", em artigos de 1847, expressa

muito claramente a nova semântica, de ênfase mais econômica do que política:

Apesar da importância, que às discursões politicas dão alguns

innovadores, nós estamos persuadidos, que todos os seus arrasoados são

palavras sem alcance, nem por fim, por quanto a arena onde se debatem

está deserta, e os homens de bom senso já se não envolvem n'uma questão

decidida, uma vez que nenhum resultado vantajoso podemos colher da

repetição de uma luta, que deve estar terminada desde que proclamada a

nossa independencia juramos sustentar o pacto fundamental, que no dia 25

de março foi por nós aceito260.

O mesmo artigo esclarece que o fator primordial agora é o

aperfeiçoamento das instituições políticas de forma a garantir o progresso

material:

(...) devemos dirigir nossos esforços para completar a obra, que ellas

promettem, obra que consiste não em abalar o mundo, regrar [sic] a terra de

sangue, e faser do homem um agitador constante, mas sim em pacificar mas

sim em pacificar a sociedade, e promover o bem em sua maior escala com

proveito de todos261.

O mais importante nesse conjunto de representações é o embate do ser

humano contra a miséria e a natureza. Ainda afirma que: "Onde ha riquesa, ha

independencia: e nenhuma questão é hoje tão importante ao Brasil como a

260Vide "Os Interesses Materiaes", in: O Cearense, no 82, 09-09-1847. 261Ibidem.

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discussão do progresso de seus interesses materiaes"262. Em outro artigo de mesmo

título revela: "a democracia tem necessidades materiaes, necessita satisfazel-as,

quer mudar de condição, e tem forças, digamos francamente, para levar a effeito

seos desejos"263.

AS DOÇURAS DA COMODIDADE MATERIAL

Esse liberalismo é moderado e até reacionário, mas não é imobilista. É

um discurso expressivo que os referencia, já que não se atém simplesmente sobre

as estruturas e objetos existentes264. O imaginário político vai movendo-se para

uma zona menos turbulenta da prática social, de forma a possibilitar a

operacionalidade de certas ações coletivas e de classe.

A democracia é ofuscada como processo político, para ser orientada no

sentido das forças produtivas em andamento no mundo capitalista.

Há também uma representação do que possa ser um modelo inspirador

para o salto sobre o qual se lançaria este país. Não mais o campo das idéias e do

voluntarismo romântico. É preciso ter aspirações mais realistas e menos

inflamadas. Lançar sobre as idéias o olhar petrificante do apelo pragmático. Nisso,

os artigos são claros: “Não nos illudimos com um vão desejo de optimismo”265.

Esse apelo ao mundo mais denso - material - é também um apelo ao

sonho viável. Não é à toa que os homens da época fazem constante associação

entre as idéias, os livros e palavras subversivas com a ingenuidade ou o fogo

262Ibidem. 263Vide "Os Interesses Materiaes", in: O Cearense, no 84, 16-09-1847. 264Sobre os discursos expressivos, vide Rubem Alves, "Que significa dizer a verdade", in Rubem Alves.O Suspiro dos Oprimidos, op. cit., pp. 145-167. 265Vide "Os Interesses Materiaes", in: O Cearense, no 84, 16-09-1847.

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temível da juventude. Estas concepções, de caráter ideológico, são respaldadas

pela densidade das revoluções do século XIX: aquelas que apelam para a Indústria.

Os fins do século XVIII consagraram a França, e suas idéias políticas,

como modelo-mor. Já agora, o olhar é mais pragmático. Está-se a piscar o olho

para uma estéril ilha que se enriqueceu pelo trabalho: a Inglaterra.

O trabalho superará qualquer revolução política:

Si nós no Brasil obtivermos o desenvolvimento dos interesses materiaes,

em breve veremos uma população grande, um povo em estado de poder dar

exemplo aos povos do antigo mundo; e então já nos não maravilharão os

prodigios da industria europea, nem as sublimes scenas do entusiasmo

francez nos dias da revolução, e de Napoleão Bonaparte. Então gosaremos

dos bens da liberdade e da ordem enlaçados com as doçuras de uma vida

commoda 266 .[Grifos nossos.]

Parecem-nos muito elucidativas as palavras finais deste extrato. Nelas

está concentrado o conteúdo desiderativo do discurso e outro componente acrítico

e homogeneizador. O que não seria para aquela rudeza cotidiana dos contatos que

o distinto leitor d'O Cearense possuía como uma camada de "semi-bárbaros"

incultos e rebeldes, o sonhar em ser um livre quase lorde inglês, vivendo em clima

ordeiro e usufruindo das "doçuras da comodidade material"? É o próprio paraíso

do mundo liberal.

Este paraíso tem uma dimensão mental mais antiga. É também a

encarnação, pela elite nativa, dos velhos sonhos europeus nascidos com a própria

modernidade e as grandes navegações do século XVI. Acentuava-se o fato da

possibilidade de um novo mundo na América, com a seguinte vantagem: estar

266Ibidem.

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purgado das más tradições. Os europeus ensejavam instalar aqui todas as últimas

invenções e parafernálias técnicas mais brilhantes, ou seja, os frutos do que melhor

fizera a tradição, associadas a uma sociabilidade inteiramente revolucionária. A

vantagem dessa revolução é que não se faria no campo da luta política contra as

forças arcaicas.

Nesse ínterim, lembraríamos a entrevista ficcional de Tomas Morus com

a personagem Rafael Hitlodeu. No primeiro livro da Utopia, Morus relata o que

escutara atentamente das considerações e conselhos de Hitlodeu, acabando por

crer nas próprias potencialidades da velha Inglaterra e da Europa, caso os reis

fossem cercados de bons conselheiros. Procura, então, persuadir seu interlocutor a

seguir o plano de associar-se a alguma corte. Argumenta com a frase de Platão: “A

humanidade será feliz um dia, quando os filósofos forem reis, ou quando os reis

forem filósofos...” 267

Mas Hitlodeu redargüiu:

- Calunias os sábios, (...) eles não são bastante egoístas para esconder a

verdade; muitos a têm revelado em seus escritos; e se os senhores do

mundo estivessem preparados para receber a luz, poderiam ver e

compreender. Infelizmente cega-os uma venda fatal, a venda dos

preconceitos e dos falsos princípios em que se formaram dos quais foram

infeccionados já na infância268.

O mundo novo seria fruto de uma realização utópica concretizada em

bases geográficas isentas dos pesos antigos.

267Vide Tomas Morus. Utopia. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d., p. 60-61. 268Ibidem.

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Aos olhos do século XIX essa tradição está cristalizada discursivamente

em palavras-chaves. A filosofia das luzes já empreendera a definição dos inimigos

a serem combatidos: senhores feudais.

Assim, os artigos d'O Cearense são otimistas acerca de nossas vantagens,

como demonstram ainda as defesas do progresso material publicadas no ano de

1847:

O elemento democrático está consignado em nosso pacto fundamental; e

nem temos de recear fautores do feudalismo, que entre nós nu[n]ca existio,

e contra cujo reapparecimento por conseguinte nao é preciso tomar cautellas

como nas velhas sociedades da Europa269.

Isso faz de nossa elite local a herdeira do imaginário colonizador e

estabelece uma fissura intransponível entre o mundo erudito (voltado para o

estrangeiro) e o imaginário popular. Não foi por acaso que muitas das tentativas de

resgate da cultura popular no Brasil passaram por uma defesa política do

nacionalismo270, quando ela pode ter características universais, sob certos

aspectos.

É importante lembrar que as elites, no Brasil do século XIX, não se

distingüem como os supostos melhores entre os habitantes da nação. Muito ao

contrário, seriam melhores herdeiros do processo civilizatório em curso. Isso tem

evidentemente, implicações na criação de estereótipos de vestuário, alimentação,

raça, cor da pele, classe, etc.

269Vide O Cearense, no 82, 09-09-1847. 270Vide Manoel T. Berlink, "A Questão da Cultura Popular Posta em Questão", in: Manoel T. Berlink. O Centro Popular de Cultura da UNE. Campinas: Papirus, 1984, pp. 43-90; e Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos A. Gonçalves. Cultura e Participação nos Anos 60. 4a ed. São Paulo: Brasiliense, 1985 (Col. Tudo É História, no 41).

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Um tal liberalismo retira ao "povo" - expressão que em si já carece de

qualidades políticas autênticas - o poder de se construir como sujeito de direitos.

O jornal O Cearense, ainda na seqüência do mesmo artigo, interroga-se:

"O que entendemos por liberdade applicada as classes laboriosas?"271. A resposta

acaba tendo um veio cínico, porém, perfeitamente razoável, para os horizontes

oligárquicos:

Já que não se contende no Brasil para tirar funções publicas das mãos

de classes privilegiadas, que as tenhão em monopolio, devemos entender

debaixo de aspecto differente a liberdade para a democracia: não é

oppressão para ella o não alcançar effectivamente certas regalias politicas; o

seu verdadeiro jugo, o mal, que a opprime, e de que ella quer libertar-se é a

miséria; pois o homem , que tem fome não é livre e suas faculdades

physicas, intellectuaes e moraes perdem toda energia272.

É neste sentido também que não há o acirramento de contradições inter-

facções da elite. Aquelas saquaremas, as liberais, aquelas herdeiras do

tradicionalismo católico, as liberais-positivas, e as românticas unem-se num

campo discursivo mais ou menos harmônico, malgrado as pelejas e guerras

particulares movidas por questões de honra pessoal, de defesa da terra e do clã.

Qualquer expressão cultural e política do mundo popular, ou levantes, enfrenta

uma elite unida e uma identidade senhorial de classe.

Não é de se espantar que esse liberalismo, além da Razão, tenha se

fundamentado em dois pilares básicos do conservadorismo: a Pátria e Deus. Assim

será até este século. O sentido religioso é dado por uma tradição católica arraigada.

271Vide O Cearense, no 82, 09-09-1847. 272Ibidem.

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A efeméride do 7 de setembro é, sintomaticamente, comemorada em 1847

como fato consumado, manutenção da tranqüilidade e apologia do trabalho.

O jornal é bastante didático e simplório: "O que significa o dia 7 de

setembro? A vida de um povo. E como surgiu esse povo? Pelas mãos da

Providência"273. Esta providência confunde-se com o processo civilizatório através

do trabalho:

A terra pertinaz não tem resistido a deligencia humana, que com dextresa

e affinco tudo vence, levanta terra do seio dos mares, retalha com correntes

aridas charnecas, mescla as zonas, e estações, e a severo clima amolda as

brandas plantas do oriente; e assim como levou a Asia a Europa, trouxe a

Europa á America274.

O amor pátrio foi tema de um artigo de 17-01-1847, onde advertia-se que

essa força "é muitas vezes invisível ás vozes do sangue e da naturesa para só

escutar os dictames da honra e da fidelidade"275.(Grifos nossos.) A compensação

aos excessos patrióticos é dado pela tradição católica: "Elle [patriotismo] de

acordo com a religião operão os mais vantajosos effeitos, e são os primeiros

moveis da prosperidade de um povo"276.

Os medos com relação ao patriotismo remontam, como já foi referido, a

uma experiência política local. O olhar petrificante do liberalismo chimango

trouxe para o estado sólido o que pairava no ar. Fez rocha das insustentáveis

idéias.

273Vide "O Dia 7 de Setembro", in: O Cearense, no 82, 09-09-1847. 274Vide O Cearense, no 82, 09-09-1847. 275Vide "O Amor da Pátria", in: O Cearense, no 17, 17-01-1847. 276Ibidem.

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A SUPRESSÃO DA MEMÓRIA E A HISTÓRIA COMO TRAGÉDIA

Os anos da década de 1860 viram aparecer duas narrativas sobre o

passado cearense. A primeira foi a Lenda do Ceará (Iracema), por José de

Alencar, a segunda, a História da Província do Ceará, por seu primo, Tristão de

Alencar Araripe. Dois ângulos opostos enfocam os sucessos transatos. Um

assume-se como invenção, o outro como realismo histórico. Um é conservador, o

outro é progressista. Um movido pelo saudoso, o outro pelo futuro. Mas ambos os

ângulos se iluminam, já que as duas obras traçam o destino dos vencidos como

tragédia277.

Tristão de Alencar Araripe, o filho de Tristão Gonçalves, está dentro da

tradição liberal de que vimos tratando até o momento. Será ela a hegemônica no

Ceará, muito embora, possa-se dizer que em diferentes momentos e sob formas

variadas tenha colado-se ao mito romântico de Iracema. Seria quase inevitável

pela força das imagens da natureza e da cultura que José de Alencar nos traz aos

olhos, à consciência e à imaginação literária.

É privilegiadamente na historiografia em nascimento que vemos ter

continuidade uma construção imaginária relacionada com as idéias liberais e com

o desenvolvimento local das mesmas. Não é nossa intenção, contudo, dizer que só

houve continuidades ou atribuir a elas qualquer teleologia. Ou afirmar ainda que

os agentes históricos, sejam indivíduos, sejam as classes dominantes, tinham plena

277Para o romance de José de Alencar, vide as considerações literárias do artigo de Sânzio de Azevedo, "Releitura de Iracema". In: Sânzio de Azevedo. Aspectos da Literatura Cearense. Fortaleza: Edições UFC/Academia Cearense de Letras, 1982, pp. 85-108. Para ele, Iracema aproximar-se-ia do "romance dramático", por sua vez próximo da tragédia poética: "Talvez aqui se enquadrasse melhor o romance alencarino: como se sabe, em Iracema é a morte da bela índia que põe termo ao enredo: é verdade que alguma coisa ainda se diz os anos que se passaram depois de sua morte, mas isso a rigor não prolonga a fabulação" (p. 88).

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consciência - logo, controle - desses processos. Se isso fosse verdadeiro, nossa

análise seria de tipo exclusivamente ideológica, sem precisar recorrer da

metodologia da história das mentalidades, nem do conceito de imaginário. Nossa

abordagem se pretende histórica, com tudo que essa adjetivação implica em termos

de indeterminação.

A História da Província do Ceará teve motivações que se ligaram ainda

aos traumas políticos locais.

A MEMÓRIA DO PAI

Como abordamos anteriormente, o imaginário local havia impregnado,

em função da Confederação de 1824, todo um conteúdo radical à noção de

patriotas. Tendo sido composto por líderes de um liberalismo radical e violento,

eram vistos por todos como gente desordeira e vil. Na década de 40 do século

passado, porém, o liberalismo cearense já havia experimentado profundas

modificações, o que implicou uma relação conflituosa e mal resolvida para com

seu passado. Martiniano de Alencar, o pai do escritor, perdera o irmão no processo

repressivo à Confederação, e a retidão de seu caráter, relacionado à alcunha de

líder dos "cearenses bárbaros", punha em xeque não só a figura do chefe

oligárquico, mas a legitimidade do passado liberal cearense.

Assim expõe Tristão de Alencar Araripe:

Quando cursava as aulas preparatorias, tive em mãos um compendio da

Historia do Brazil, no qual, tratando-se da proclamação da independencia

nas provincias do Piauhi e Maranhão, dizia-se que os Cearenses, como

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horda de vandalos, havião invadido essas duas provincias, commetendo

tropelias e latrocinios278.

A reação de Alencar Araripe foi a de começar a compulsar os documentos

e organizar uma história:

Vi quão desnaturada estava a narração de um facto recente, e quão mal

apreciado havia sido um importante serviço prestado por homens briozos,

que não se contentaram com aceitar na terra natal a idéa grandiosa da

independencia nacional, mas que, impondo-se um espontaneo sacrificio,

haviam eficasmente concorrido para que essa idéa se tornasse uma

realidade em mais duas provincias do Império.279

Essa história, a primeira da historiografia cearense, não se restringiria,

quando do seu planejamento, à narrativa da Confederação do Equador, mas seria

uma concepção abrangente dos fatos locais e uma interpretação liberal desses

fatos, inclusive do que representou a revolução de Pinto Madeira:

Nas minhas investigações conheci, que os impulsos do coração na

puericia não me haviam iludido, recuzando fé ás palavras do escriptor, que

sem informações sinceras injuriava uma província inteira: adiantei-me na

indagação dos successos, e lancei alguns traços sobre a história do Ceará,

abrangendo o espaço decorrido desde os tempos primitivos, em que no seo

territorio vagavam os Potiguaras, e os Tabajáras até a época, em que a

278Vide Tristão de Alencar Araripe. História da Província do Ceará. Recife: Typographia do Jornal do Recife, 1867. 279Idem, p. VII.

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guerra civil de Pinto Madeira ostentou os perigos da superstição, fascinando

um povo pouco iluminado.280

Alencar Araripe, porém, não publicou de imediato sua obra, que era ainda

um conjunto desconexo de notas. Além disso, o tempo parecia ir amenizando o

peso do passado. O fato traumático ia se acomodando no esquecimento: se vive no

passado, morre um pouco a cada dia281.

Triste engano, narra-nos nosso primeiro historiador cearense:

E quando já d'esse trabalho me não lembrava, vejo repetida a injustiça

das apreciações erroneas pela insciencia dos factos: Desta vez os nomes de

meo pai, o finado tenente-coronel Tristão Gonçalves de Alencar Araripe, e

de meo tio, o falecido senador José Martiniano de Alencar, são

mencionados282.

As acusações haviam sido feitas pelo Diário de Pernambuco, por volta

do início dos anos sessenta do século passado, demonstrando a persistência da

mácula cearense no imaginário social.

As acusações eram demasiadamente fortes, especialmente para o ator em

questão: “Estou certo, que não ouvirei mais dizer, que o tenente-coronel Tristão

Gonçalves foi por seu irmão induzido a adoptar idéas, cujo alcance não

compreendia, e que por esse irmão foi sacrificado” 283.

Para Alencar Araripe, tratava-se de resolver limpar o nome da família, a

tradição política e dramas pessoais através da investigação positiva dos fatos. Com

280Idem, p. VIII. 281Permitimo-nos aqui a citação da frase final do filme Cabo do Medo, de Martin Scorcese. 282Ibidem. 283Idem, p. X.

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esse intuito, publicou o primeiro volume, mas não chegou a tocar no ponto que lhe

era crucial. Retornaremos mais à frente a esse fato. O intento acabou ganhando

outras significações para o momento em que viveu.

MÉTODOS HISTORIOGRÁFICOS E TENSÃO REALISTA

A História da Província do Ceará inscreve-se num cruzamento de

influências sociais e mentais múltiplas, mas opta definitivamente por inserir-se

como portadora de um racionalismo objetivista que ganhará maiores dimensões na

década seguinte. Esse racionalismo, entendemo-lo tal como define Castoriadis: "A

história do futuro será o que ela deve ser, verá nascer uma sociedade racional que

encarnará as aspirações da humanidade, onde o homem será enfim humano"284.

Trata-se de uma explicação do passado provincial a partir de um

naturalismo teleológico que aponta para o progresso e a civilização, mas não sem

sentir os impasses e problemas que decorrem desse imã mental que os atraía em

meados do século.

Em primeira abordagem, vemos que ela paga tributos à imaginação

literária que vigorava, ao descrever, com suas palavras ou de outrem, em forte

carga emotiva, os elementos topográficos. A História da Província do Ceará

tem, por vezes, o elemento geográfico e natural como motivo poético. Pesa aqui a

formação clássica que lhe definiu o papel da história em estimular o amor

pátrio285, que pode ser o Brasil, mas que freqüentemente é o Ceará.

284Vide Cornélius Castoriadis. A Instituição Imaginária da Sociedade. 2a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 56. A análise aqui recaiu sobre Marx e sobre o marxismo como decorrência do hegelianismo, mas penso que enquadra-se também no realismo do século XIX, em geral. 285Vide o "Prefácio" de Tristão de Alencar Araripe (op. cit., p. III e IV) em que ele faz citação a Grécia e Roma. Diz-nos de saída: "Intentei escrever a história do Ceará, uma das esperançosas provincias do imperio brazileiro, para dar testimunho de amor ao solo patrio"(p. III do Prefácio).

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O indianismo arcádico tem seus resíduos. Algumas passagens recuam a

interpretação ou a narrativa dos fatos para trazerem trechos de Santa Rita Durão. O

Caramuru tem seus versos citados três vezes ao longo do livro286. Quando o autor

nos fala das lutas entre os nativos e o espírito de preservação dos "sítios

abundantes de caça e pesca"287 que os animava, explica: "É este sentimento das

hordas brazilicas, que tão bem exprime o poema Caramuru"288.

Esses são aspectos pontuais e residuais da narrativa.

Em verdade, a crítica das fontes está relativamente desenvolvida em

Alencar Araripe. Seu trabalho de investigação está hipotecado por um

racionalismo pautado no "bom senso", que a modernidade cartesiana nos ensinou.

De tudo se deve duvidar, a menos que esteja positivamente comprovado. A forma

básica de comprovação é o cotejo de fontes diversas, inclusive as orais.

De outro lado, o raciocínio jurídico era imprescindível:

A leitura dos antigos historiadores me tem convencido da necessidade de

documentar a História. Escrevel-a é proferir continuos julgamentos; e

nenhum juiz imparcial deve recuzar os fundamentos da sua sentença, para

que se conheça, si é justa289.

A existência da historiografia positivista da segunda metade do século

XIX com um Buckle, ou os membros da Escola Metódica francesa, ainda iria se

construir e, evidente, essa influência estava ausente no autor cearense. Na

apreciação de Alencar Araripe, portanto, o que mais importava era a prova quase

jurídica e de valor. Ele respira insatisfeito pelos réus: "Quantos juizos sobre

286Vide Tristão de Alencar Araripe, op. cit., p. 21, p. 23 e p. 78. 287Idem, p. 23. 288Ibidem. 289Idem, p. XI.

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importantes personagens históricos se nos afiguram hoje exagerados, ou

deficientes!"290 Exige o critério das avaliações e, como corolário indispensável

desse ato de julgar, a exposição dos documentos.

Esteve catalogando documentos oficiais nas câmaras do Aquiraz, na

secretaria do governo imperial, recorreu a memórias de contemporâneos. É

freqüente a referência a fontes populares ou da "tradição", como ele nos diz. Ele as

tem como metodologia garantidora de certos aspectos da história. Diz-nos sobre a

ascendência de Antônio Camarão: "A tradição oral, fonte importantíssima da

verdade histórica, é constante em dar o ilustre indigena como oriundo da

Ibiapaba"291. Todavia faz uso da tradição como reforço a outras fontes, para

endossar o mito de Poti, já referido dois anos antes em Iracema292.

Em questões mais traumáticas, como as secas no final do século XVIII,

exerce sua atividade de crítica, contradizendo as fontes orais. Trata-se de uma

importante passagem para avaliarmos seus critérios técnicos de crítica histórica e

suas limitações ideológicas.

Ao falar das secas, contesta o fato de se ter morrido de fome. O bom

senso aliado a fatores ecológicos, como a suposta inesgotável fonte de recursos das

matas cearenses, contestariam cabalmente os contos do povo. Para Alencar

Araripe haveria "exageração"293. Segundo nos diz quase ingenuamente: "Si alguem

morria, era isso antes devido ás molestias rezultantes dos rigores das estações, e da

má alimentação, do que propriamente de fome"294. Antes de tudo, essa crítica

estreita das fontes nos mostra o mal uso da tradição oral e impõe a ela os mesmos

critérios de precisão que a crítica do documento escrito. É mesmo ridículo que

290Ibidem. 291Idem, p. 97. 292A historiografia tem hoje o nascimento de Poti, irmão de Jacaúna, como tendo sido no Rio Grande do Norte. 293Vide Tristão de Alencar Araripe, op. cit., p. 124. 294Ibidem.

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possa pensar que a tradição oral fosse estabelecer classificações que pudessem

distingüir os males decorrentes da desnutrição do que seria estritamente fome. De

fato, o que nos parece perpassar é uma leitura que prima por valorizar e ufanar as

condições telúricas. O clima e o solo não são pensados como impróprios à vida na

Província.

Os liberais cearenses sempre estiveram otimistas com as possibilidades de

transformação das condições naturais cearenses pela via do trabalho. Falar em seca

parecia-lhes falar em acomodação, ignorância e atribuição pejorativa.

Alencar Araripe busca desfazer o fatalismo atribuído à seca, quando trata,

em outra passagem, a respeito das conseqüências demográficas que as secas

trazem:

Julgamos, porém, que taes sêcas não cauzaram atrazo á população da

provincia; primeiramente, porque muito exagera-se o estrago d'ellas, não

sendo a mortandade da gente quanta se afigura, nem sendo tão crescida

essa apregoada emigração; e em segundo lugar porque, quando real fosse

esse atrazo, todos sabem que as perdas de uma população em

consequência de qualquer flagello em breve se recuperam, conforme a ação

reparadora da natureza, já por consideravel acrescimo de nascimentos, já

pela sensível diminuição dos óbitos. É um fato constante n'essas ocasiões

de sêca, que si alguma população nossa emigra para o Maranhão e Piauhi,

outra igual ou maior população entra para a nossa província, vindo dos

sertões da Paraiba e Rio-Grande-do-Norte, flagelados igualmente pela seca

nas mesmas epocas buscar abrigo no uberrimo distrito do Crato295.

295Idem, p. 42.

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Caberia notar na citação acima o valor negativo que tem, para os liberais,

a perda de braços para o trabalho. Seria perder riquezas profundamente danosas no

desenvolvimento econômico da Província. Esse valor da mão-de-obra era

reconhecido contemporaneamente pelas obras de demografia então empreendidas

pelo Senador Pompeu. Anos mais tarde, por volta da década de noventa, seu filho

homônimo, o Sr. Pompeu, publicará artigo na Revista da Academia Cearense,

onde inicia elogiando a grande importância da vida humana no progresso do

mundo civilizado.

Há passagens da História escrita por Alencar Araripe em que ele recorre

ao artifício da descrição etnográfica em substituição à consulta de documentos.

Recurso até certo ponto legítimo e que será admitido anos mais tarde entre os

metódicos (Langlois e Seignobos) franceses como válido para o preenchimento

das lacunas possíveis que a enumeração cronológica dos documentos possa deixar.

A generalização lógico-dedutiva, então, substituiria a investigação empírica. É o

que faz Alencar Araripe no caso das considerações sobre a propriedade entre os

indígenas.

O estranhamento da outra forma cultural vem sob a maneira de norma

social, delimitando o valor liberal intocável: "A propriedade é a idéa, que fixa, e

dezenvolve o homem social: tirado esse ligamen, não ha sociedade possivel"296; no

que devemos entender aqui por "sociedade" como boa sociabilidade ou civilização.

Logo em seguida nos traz uma transcrição do trabalho escrito pelo Pe. Simão de

Vasconcelos, e nos esclarece: "Copiando-a, descrevemos o indígena das nossas

aldeias"297.

Evidente que tais erros não são simples equívocos, mas uma leitura

ideológica da realidade e constituem uma visão parcial do livro. O senso de crítica

296Idem, p. 73. 297Ïbidem.

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histórica lhe é razoável para a época, sem deixar de ter influência decisiva o

caráter positivista e liberal.

A narrativa histórica de Alencar Araripe tem também um valor crítico

considerável ao fazer a exposição, em diversas passagens, do que foi a prática da

colonização e suas implicações para o mundo indígena.

O avanço relativo da crítica das fontes foi um elemento importante na

confrontação entre ideologia e realidade histórica, o que garante o valor intelectual

da obra. Intuição metodológica em história e visão de mundo chocam-se para

produzir um discurso sem uma saída conveniente. Em outros termos: de uma parte,

a vida indígena, vista como pura (resíduos da ideologia indianista, seja arcádica,

seja romântica), bem como os ideais de progresso (paradigma liberal-positivo

predominante). De outro, em pleno choque, a crueldade e a ambição no europeu; o

estado de selvageria das hordas indígenas.

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ADEUS AO PASSADO

A motivação intelectual mais ampla e coletiva está comprometida com o

futuro:

A posteridade quererá conhecer como incultas selvas transformarão-se

em cidades; como invios sertões abriram-se a commodas estradas; como

paludosas xarnecas cobriram-se de proficuas culturas, e como em nossos

mares e suberbos rios domina a espantoza força do vapor, substituindo uma

população numeroza e rica á hordas mingoadas e mizeraveis298.

Isso associa seu liberalismo à sua escrita e, retomando o que foi dito

inicialmente, afasta-o da lenda de Iracema. Esta, pauta-se em três elementos

básicos: a saudade, o sofrimento e a tristeza/resignação. A saudade: é a do

guerreiro branco Martim ao sonhar constantemente com a Europa299. Quando ele

parte do Ceará acompanhado do filho, volta pelas asas da saudade à terra onde

esposara a virgem300. O sofrimento está em Moacir e a tristeza resignada de amor é

Iracema. A apologia do saudoso, quase passadista, está colocada por José de

Alencar em sua lenda romântica301.

298Idem, p. V. 299Parece-nos que houve equívoco de Sânzio de Azevedo (op. cit.) ao dizer que Martins Soares Moreno "segundo o enredo do romance, teria nascido no Rio Grande do Norte" (p. 94). Vemos que no argumento histórico do romance, Alencar nos diz que Martim Soares Moreno viera do Rio Grande do Norte para a primeira expedição ao Ceará e que o mesmo "foi um dos excelentes cabos portugueses". À p. 58, Iracema provoca explicações ao guerreiro branco: "Agora só buscas as praias ardentes, porque o mar que lá murmura vem dos campos em que nasceste". 300"Enquanto vagas assim à discrição do vento, airoso barco, volva às brancas areias a saudade, que te acompanha, mas não se parte da terra onde revoa". Vide José de Alencar, op. cit., p. 20. 301Sânzio de Azevedo nos propõe a seguinte leitura: "o vento traz da praia o eco do nome da bela índia e talvez pela força da saudade renasce todo o drama, que se desenrola até novamente nos encontrarmos no instante em que havíamos ficado ao iniciar a leitura" (grifos nossos, op. cit., p. 89). Ressaltamos o caráter migrante, de certa forma saudoso do cearense já presente nessa passagem do romance: "O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra da pátria. Havia aí a predestinação de uma raça?" (José de Alencar, op. cit., p. 64).

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Concordamos com a análise do autor de Dialética da Colonização, ao

mostrar no âmago do indianismo alencariano a ideologia conservadora302 e a

submissão de uma etnia a outra303. Isso aproxima e afasta os dois autores primos.

A submissão em Iracema tem gosto de predestinação. Terão também a

sua predestinação as comunidades indígenas que vieram à tona na historiografia de

Alencar Araripe. Voltaremos a isso um pouco à frente. Porém, Alencar Araripe

tem em seu trabalho desejos claramente afinados com o liberalismo chimango,

admirador do progresso europeu, da modernidade industrial. O regresso

conservador (tendo à frente os saquaremas e os conservadores em geral) embora

igualmente oriundo do liberalismo vitorioso com a abdicação, era muito mais

retrógrado. Era pouco afinado com a política modernizante da Inglaterra, ao pregar

o trabalho livre e, com isso, ameaçava a estrutura fundiária304.

Os elementos ideológicos do liberalismo chimango, aliados ao já citado

desenvolvimento da crítica histórica farão em História da Província do Ceará

um equacionamento anacrônico entre civilização (abstratamente falando) e prática

dos colonizadores europeus.

A verdade que o cotejo de várias fontes apresentava, podemos extrair do

seguinte trecho (um mais candente entre vários outros):

Consistindo a escravidão dos gentios no abuzo e na opressão do fraco

pelo forte, e ezistindo, na fraze de um rei portuguez, sem mais razão do que

302No quadro ideológico amplo, Bosi nos diz: "Há um nó apertado de pensamento conservador, mito indianista e metáfora romântica na rede narrativa de O Guarani" (Vide Alfredo Bosi. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 180). Mais à frente parece filiar o Alencar literato ao regressismo e à conciliação, num contraponto com Gonçalves Dias (Idem, p. 185). 303"Nas histórias de Peri e de Iracema a entrega do índio ao branco é incondicional, faz-se de corpo e alma, implicando sacrifício e abandono da sua pertença à tribo de origem. Uma partida sem retorno". Vide Alfredo Bosi, op. cit., p. 178 e 179. 304Bernardo Pereira de Vasconcelos e os Saquaremas distinguiam-se ideologicamente dos liberais chimangos em função do combate ao autonomismo e ao liberalismo econômico, entendido como livre-cambismo, acordos diplomáticos com potência mais poderosa e trabalho assalariado. Vide Ilmar R. de Mattos, O Império da Boa Sociedade. São Paulo: Atual, 1991.

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a cobiça e a força dos opressores, e a rusticidade e a fraqueza dos

oprimidos, era impossivel que esse facto lamentavel, se não generalizasse,

quando a cubiça instigava o industriozo europeu a tirar proveito da simpleza

dos incolas americanos, cujo vigor muscular empregava na satisfação de

sordida ambição.

Desprezados os principios cristãos, e as idéas de civilização, os nossos

primitivos povoadores não meditavam nas consequencias de um ato de

reprovada prepotencia, e só visavam o proveito immediato. Viam o

acanhado presente do paiz selvagem sem crer no amplo futuro de um povo

civilizado305.

A citação é um tanto longa, mas poupa a repetição da mesma idéia através

de muitas outras passagens do texto. Na medida em que o livro avança em seus

capítulos, o que recorre sempre é a questão indígena e, ligado a ela, o destino de

nossa população. Em outros termos, a composição étnica e moral de um povo,

especialmente suas classes subalternas.

Uma informação após outra vem confirmar a extrema crueldade dos

colonizadores em perseguir, prender e matar; a expropriação indevida dos bens e

riquezas indígenas, seja por particulares, seja pelo poder público.

Parece não haver meio de conciliar os ideais civilizados com a prática

concreta e impiedosa dos colonizadores. É neste ponto onde pesquisa histórica,

pautada no investigar para julgar, tem que se justificar teoricamente com a

ideologia do autor. É preciso entender que essas opções pessoais pelo liberalismo

não se fizeram sem uma trajetória coletiva muito anterior que criou, de antemão, a

identidade entre os dominadores europeus e a classe de descendentes e agentes

internos dessa dominação.

305Vide Tristão de Alencar Araripe, op. cit., p. 68 e 69.

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Essa tensão está ausente na Lenda do Ceará (Iracema), já que o discurso

literário não tem os procedimentos técnicos e críticos que possui a

historiografia306. O romance encarna com saudosismo os elementos simbólicos que

se despedem do que se foi. O que está salvo para a posteridade são características

específicas que se colaram a uma nova nação a partir da simbiose entre etnias,

natureza e linguagens. Essas características, avaliadas do ponto de vista político,

são os valores a serem conservados pela nação brasileira: a dor, a resignação e a

saudade. Conservados por quê? Porquê estariam naturalizados simbolicamente no

espírito coletivo.

O que anima a historiografia liberal é um conjunto valorativo e ideológico

bastante diferenciado. Já reproduzimos aqui a visão do fantástico, no qual Alencar

Araripe acreditava. Para ele, as hordas errantes deveriam sumir, para realizar-se o

destino racional que conduzia a história, a "lei providencial": “Os factos humanos

comprovam, que em todos os tempos a raça inteligente domina a menos feliz na

força das faculdades, e que esta tende a desaparecer ante o predominio daquella”

307.

Acontece que os documentos vêm negar escancaradamente a realização

desse desiderato oculto. Como resolver a questão?

Num flanco, Alencar Araripe desvincula o colonizador da Metrópole.

Esta estaria sempre pronta em dar guarida ao índio e promover a aliança entre as

raças. Seu esforço foi inútil pela própria ambição dos colonizadores.

306De outra forma, diz Alfredo Bosi em Dialética da Colonização (op. cit., p. 179): "O que importa é ver como a figura do índio belo, forte e livre se modelou em um regime de combinação com a franca apologia do colonizador. Essa conciliação, dada como espontânea por Alencar, viola abertamente a história da ocupação portuguesa no primeiro século (é só ler a crônica da maioria das capitanias para saber o que aconteceu), toca o inverossímel no caso de Peri, enfim é pesadamente ideológica como interpretação do processo colonial. Nada disso impede, porém, que a linguagem narrativa de Alencar acione, em mais de um passo, a tecla da poesia". 307Vide Tristão de Alencar Araripe, op. cit., p. 20.

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Quando Alencar Araripe lança seu olhar sobre os oprimidos, então não há

salvação. Todo esforço da Metrópole é sem retorno: “(...) os resultados jamais

corresponderam ás esperanças, e ao empenho da metropole” 308.

A explicação desta constatação vem logo a seguir:

A indole do indigena é antipatica aos principios da civilização européa; e

jamais podiam fructificar os esforços empregados para reduzir as hordas

silvestres á vida civilizada. Mal admitiam os primeiros ensaios das artes, e

da cultura intelectual, e logo abandonavam a vida civil para procurar os seus

primevos bosques309.

Aldear era civilizar, na visão do historiador. A recusa ao aldeamento

demonstrava o caráter arredio e inóspito do indígena. Tudo lhe fora dado pelos

meios mais brandos e ele não se adaptou. Também seria isso muito difícil pela

ausência de religião entre os aborígenes:

Os indigenas do Ceará, bem como os do resto do Brazil, não tinham

verdadeiros principios religiosos, nem crenças definidas da divindade: ao

menos não nos legaram ao conhecimento observações exactas e

escrupulozas, que nos déssem uma idéa clara e preciza dos sentimentos

religiozos dos primitivos habitadores da terra310.

Só a atitude religiosa do colonizador podia empreender algum resultado,

dado o fracasso da violência e da usurpação desonesta. Porém, se os indígenas não

sabiam o que era religião, acreditando simplesmente em "superstições proprias de

308Idem, p. 73. 309Ibidem. 310Idem, p. 21.

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animos fracos e embrutecidos pela ignorância"311, ficava impossível a penetração

das formas da "raça inteligente".

Alencar Araripe cede sua narrativa aos desígnios do trágico.

No ano de 1775, a Coroa dá oportunidade de governo das vilas pelos

próprios indígenas, segundo estrutura jurídico-administrativa portuguesa. Haveria

de ter juiz, vereador e oficial de justiça. Para Alencar Araripe:

A incapacidade dos indigenas para similhantes governos brevemente

revelou-se; e ainda mais uma vez deve reconhecer-se o dezejo sincero da

metropole em civilizar os indigenas, e a insuficiencia das faculdades d'estes

para aceitar e desenvolver a civilização européa312.

A tensão perde qualquer tonalidade humana. O conflito

indígena/civilizado é visto como insolúvel. Não haveria política correta. Por mais

complacência que houvesse da Coroa, os colonizadores estariam sempre dispostos

a romper a legalidade e agir pela cobiça. Os gentios, por sua vez, seriam incapazes

da civilização. A narrativa é tomada pela tragédia. O historiador equaciona o

problema, delimita variáveis, mas demonstra a incapacidade de solução a bom

termo. Não há mais astúcia racional e, sim, realização catastrófica e necessária. A

história é imanente aos homens, mas sobre ela não há controle. O tempo torna-se

uma entidade e ganha dimensão decisiva como agente histórico: “O indigena

cearense vio em principio sem cuidado a uzurpação de seus terrenos. O tempo

lhes foi estreitando o espaço dos bosques: a caça, a pesca e os frutos lhe

escasseavam (...)” (grifo nosso)313.

311Ibidem. 312Idem, p. 76. 313Idem, p. 78.

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Alencar Araripe busca recorrer ainda ao direito: “(...) não podia, segundo

as regras do direito civil e do direito das gentes, obstar, que o homem civilizado se

apoderasse d'essas terras, e as beneficiasse, adquirindo assim um título estavel e

seguro de propriedade” 314.

Esta passagem grita a ausência de solução viável da questão. O direito,

sendo fruto da sociedade burguesa, não resolve o drama da violência civilizatória.

É-lhe extemporânea. Justifica, então, o injustificável. Alivia a dor de consciência,

admitindo a falha da razão.

Encontramo-nos, então, diante de uma questão etnológica em que o

instrumento teórico é insuficiente. O racionalismo objetivista do século XIX

esteve às voltas com a questão colonialista como um enigma insolúvel. Mesmo um

autor como Marx, que não podemos enquadrar como defensor do direito burguês,

titubeou em reconhecer a alteridade dos indianos colonizados pela Inglaterra.

Parecia-lhe impensável que, diante de todos os males que causava a destruição das

culturas arcaicas, não houvesse alguma vantagem na penetração da modernização

capitalista.

A adoração à vaca ou ao macaco como animais sagrados e outros

aspectos estranhíssimos pintavam uma imagem de "barbarismo" que era

inadmissível à cultura européia do século XIX315.

No imaginário europeu, cultura indígena e natureza identificavam-se.

Desbravar a terra, lavrá-la, prepará-la e fazê-la produtora de riquezas era tarefa tão

urgente quanto domesticar os nativos. Eles são representados como objeto, solo a

ser mondado pela civilização. Entretanto, a inegável realidade humana,

indeterminável, dos povos indígenas persistia a toda domesticação. Assim, a

314Idem, p. 79. 315A este respeito, vide José William Vesentini, "A Problemática do Imperialismo", in: José William Vesentini. Imperialismo e Geopolítica Global. Campinas: Papirus, 1987, pp. 21-54.

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tragédia toma o lugar da explicação e da compreensão. A ficção sobrepõe-se à

"Sciencia".

As questões étnicas aparecem como insolúveis. Em Alencar Araripe não

resta senão a tragédia histórica. O desfavorecimento moral e intelectual de uma

"raça" fazia com que sucumbissem frente à "raça mais ativa e mais capaz de

vencer a natureza"316. O liberalismo, já objetivista, era incapaz do mais radical

reconhecimento da alteridade indígena. Admite um pragmatismo cruel: a

destruição dos povos nativos como realidade inevitável e progressista317.

Sem dúvida que a conseqüência mais imediata desse discurso é a recusa

de pensar, senão pejorativamente, a idéia de povo, tão louvada à época do

liberalismo patriótico. A história, tida como processo real vivido, teria criado uma

série de distorções na população. A violência das inumeráveis guerras familiares e

dos crimes inescrupulosos seria a mais cabal: “As guerras contra os gentios

habituaram os nossos primeiros colonos ao pouco respeito á vida do homem” 318.

Em Aquiraz, o nosso historiador contabiliza, em 1700 e 1708, 214

delinqüentes "que não eram perseguidos por falta de cadeia, e de agentes

policiaes"319. Em Icó, entre 1735 e 1795, "haviam para cima de 1:000 criminosos,

sendo a maior parte por facto de homicidio"320. A historiografia posterior cozeu de

várias formas essa tese, dentre eles João Alfredo Montenegro321, Abelardo

316Vide Tristão de Alencar Araripe, op. cit., p. 79. 317"Ella [a posteridade] dezejará saber como a nobre raça cauziana suplantou, e anniquilou a raça autoctone, arrebatando-lhe o dominio livre dos bosques, e plantando a civilização, que doma as feras, e ameniza as brenhas" (Idem, Prefácio, p. V). 318Idem, p. 127. 319Ibidem. 320Ibidem. 321Um certo atavismo cultural enraizado na cultura popular caririense é o que demonstra o trabalho de João Alfredo Montenegro, onde o catolicismo acaba tomando feições rústicas e irracionais, como nos mostra a análise do movimento de 1832 (Vide João Alfredo de S. Montenegro. Ideologia e Conflito no Nordeste Rural: Pinto Madeira e a Revolução de 1832 no Ceará. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976).

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Montenegro322 e José Honório Rodrigues323. Porém enfatizaram mais os crimes no

Ceará pela via das influências atávicas e anômicas dos aborígenes, ou de "cabras"

e soterraram o caminho historicamente datável da violência dos colonos. Para

Alencar Araripe, o próprio mundo dos "brancos" recebeu uma contrapartida

destrutiva. A violência se colou a seus hábitos e às relações interpessoais e sócio-

jurídicas.

Como fato mental, a História da Província do Ceará foi o ritual de

passagem do liberalismo cearense rumo à prática imaginária e social da exclusão.

Uma elite sorvedora da "luz", sem o povo que desejaria ter. Ela impõe-se sobre ele

para fazer valer seus desígnios providenciais e inadiáveis a qualquer preço. Vale-

se da fria razão moderna e positiva e não mais dos direitos e da representatividade.

Os selvagens desconheciam a representação política, mesmo que lhes fosse dada

"autonomia" de organização.

Sob certos aspectos, essa elite empreende representações enquanto

participante ativa de uma classe senhorial e não mais do patriarcado rural, mais

frágil nas zonas subsidiárias a Pernambuco. Mas suas características são tão

fortemente autoritárias que a idéia de um patriarcado urbano ou novo patriarcado

não é absurda.

Alencar Araripe diz-nos que foi a violência contra o nativo que nos fez

habitantes de uma terra sem lei. Os desconhecimentos dos direitos daquele que não

é o nós, tem implicações lógicas em um nós que exerce a violência sobre o outro.

322"A massa de mestiços sem terras e sob o guante de imperiosas necessidades orientava-se pelos instintos" (Vide Abelardo Montenegro. Os Partidos Políticos do Ceará. Fortaleza: Edições UFC, 1980, p. 19). 323Vide José Honório Rodrigues. Índice Anotado da Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1959. José Honório tenta explicar todas essas manifestações ocorridas no Ceará, que em outros autores aparecem mescladas de questões econômicas e de mestiçagem, exclusivamente pela desisntegração do mundo indígena decorrente do contato com o branco: "As raízes religiosas atrofiam-se e o que permanece é apenas magia ou bruxaria. A vida para a população que resulta do mundo antigo para o novo torna-se deserta e os valores vitais desaparecem" (p. 16). Mais à frente: "A vida local já é uma síntese nova, uma nova criação não lusitana, mas lusitana, indígena e muito pouco negra" (p. 16).

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Quando se escravizou, espancou e matou o indígena, quebrando qualquer princípio

jurídico norteador, fundamentando-se simplesmente na diferença do nós para com

eles, houve sérias implicações negativas. O árbitro do poder deixou de existir: tudo

passou a ser arbitrário. Logo, agressivo. O nós, então, tornou-se o eu-todo-

poderoso. Este, inicialmente, é o colonizador; depois o patriarca, senhor da família

e dos agregados. É também o gênero masculino e, sob um ponto de vista

sociológico, a classe senhorial do século XIX.

A situação é mais problemática, lembramos novamente, ao pensarmos nos

indígenas como componentes da futura população e constituintes do povo da

nação. Esse povo, desprovido, a priori, da cidadania, está marcado pelos signos e

estigmas da incapacidade. Alencar Araripe não problematiza até aqui. Abandona a

questão indígena, expressão hodierna, a uma trama trágica e insolúvel. Faz uso do

canto indianista de Santa Rita Durão para fixar e imobilizar na memória um

mundo que já se foi, no que podemos lembrar a seguinte passagem do teórico

alemão, Walter Benjamim:

Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os

dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no

chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses

despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os

contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm

uma origem sobre a qual não pode refletir sem horror. Devem sua existência

não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia

anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura

que não fosse também um monumento da barbárie324.

324Vide Walter Benjamim. Magia e Técnica, Arte e Política (Obras Escolhidas).São Paulo: Brasilense,1988, p. 225.

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Bastante diferente do indianismo de Durão e de Alencar, foi o de

Gonçalves Dias. Para Alfredo Bosi, o poeta romântico Gonçalves Dias conseguiria

resgatar a tradição dos vencidos numa dimensão de tragédia mitológica. O

"trágico" em José de Alencar é, ao contrário, uma doce escravidão (expressão

contida no clássico artigo de Machado de Assis, referindo-se a Iracema). Já em

Gonçalves Dias, os "poemas fortes como O Canto do Piaga e Deprecação são

agouros do massacre que dizimaria o selvagem mal descessem os brancos de suas

caravelas"325. Essa tradição é mitológica, já que está inscrita também na cultura

asteca (da qual Gonçalves Dias não teria tido notícias), bem como no apocalipse

cristão.

Bosi arrisca também uma explicação de caráter ideológico:

Talvez a familiaridade do maranhense com a luta entre brasileiros e

marinheiros que marcou nas províncias do norte os anos da Independência

explique a aura violenta e aterrada que rodeia aqueles versos de primeira

mocidade. Em Alencar, ao contrário, a imagem do conflito retrocederia para

épocas remotas passando por um decidido processo de atenuação e

sublimação. Gonçalves Dias nasceu sob o signo de tensões locais anti-

lusitanas, que vão de 1822 aos Balaios. Alencar formou-se no período que

vai da maioridade precoce de Pedro II (de que seu pai fora um hábil

articulador) à conciliação partidária dos anos 50326.

Se considerávamos desde o início de nossa análise a presença residual do

indianismo arcádico (somado ao romantismo) em Alencar Araripe historiador,

325Vide Alfredo Bosi, op. cit., p. 184. 326Idem, p. 185.

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mais ainda se confirma esse caráter. Isto mescla-se, seguramente, aos padrões

românticos vigentes.

Lembramos que o caráter romântico fez figura não só em certas

passagens, mas nas motivações políticas do livro. A intenção era resgatar a figura

do pai do historiador, Tristão Gonçalves, como herói-mártir de uma idéia - a

independência - e do povo. Implicaria o resgate do imaginário romântico-

patriótico.

Tudo isso será abandonado.

A visão autêntica do ideal romântico no Ceará ainda é a do literato José

de Alencar com sua Lenda do Ceará. Sua fama e sua romântica retribuição ao

carinho e às "qualidades" do povo cearense, fizeram dele e do romance, a via

possível de encontro entre as classes abastadas e o povo. Surge como possibilidade

fantasiosa e sentimental, a fusão da elite com o mundo popular num só éthos. Esse

imaginário cobraria uma alma e um orgulho em ser elite de um povo brasileiro (a

partir das identidades locais).

Por um lado, a "lenda" tem muito de simplesmente forjada327 e, por outro,

é de fundo conservador. Mas não deixou de exigir, a si mesmo, ganchos que

fugissem ao mundo da cultura erudita328:

É evidente que o escritor, ao aludir a essa história, poeticamente contada

em noites de luar, ao tempo de sua infância, quis dar-lhe cunho de lenda

327Referimo-nos aqui à inexistência entre os populares de uma tal índia Iracema, ou semelhante, com tal roteiro de fatos. Não estamos contestando o caráter de beleza e de imaginação do grande escritor. 328Esta reflexão não quer associar o romance Iracema, de José de Alencar, ao campo das representações populares. Se ele representa uma alternativa ao imaginário liberal-positivo, a mesma coisa não pode ser dita em relação às tradições nobiliárquicas e imperiais, calcadas nos emblemas da natureza e naqueles representativos do povo e da linhagem nobre. Isso fica patente, para o Brasil, no caso do imaginário republicano. Perpassado de emblemas franceses, ele se vê em dificuldades para atingir o que José Murilo de Carvalho (A Formação das Almas. São Paulo, Companhia das Letras, 1990) chamou de "coração" da população.

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existente na tradição popular e, como todas as lendas, esta teria base em

dados que se assentassem em remotos fatos reais329.

Um grupo de românticos (que não sabemos bem seus nomes), reunidos

num certo periódico Iracema, resolveu, trinta anos mais tarde, propor, a partir da

"lenda" e da imaginação, uma outra nomeação para a cidade de Fortaleza. Ela se

chamaria Iracema330.

Esse imaginário romântico foi combatido com altivez. A mais

fundamental argumentação exposta por Barão de Studart e apoiada pelo

conselheiro Tristão foi a do fato inverossímel331. A verdadeira história não o

confirmava. Caso a sede do Estado do Ceará - argumentavam os historiadores -

tivesse de mudar o topônimo, que fosse para Morenópolis, em homenagem à

personagem histórica, Martim Soares Moreno.

Tristão de Alencar Araripe destacou-se à ponta da opinião positivista

sobre a questão. Desconhecia não só o imaginário romântico, mas junto com ele, o

direito dos signos naturais/populares construírem a identidade da memória local.

No campo da tradição liberal, sua opção também não fez jus à memória

do pai, que perdeu a vida lutando contra a atitude autoritária e anti-patriótica do

Imperador ao dissolver a Constituição. Nas palavras do Barão de Studart, deu-se

com Alencar Araripe uma "notável ironia" quando assinou, como Ministro da

329Vide Sânzio de Azevedo. Aspectos da Literatura Cearense. op. cit., p. 95. 330Primeiro encontrei esta informação na ata de reunião da Academia Cearense, datada de 15 de outubro de 1895. Lá se registrava a leitura de uma certa carta do conselheiro Tristão de Alencar Araripe, e a mesma foi posteriormente publicada na Revista do Instituto do Ceará, anno X, II trimestre, tomo , 1896, pp. 129-133. 331A carta do conselheiro, referida na nota anterior, foi um reforço enfático do nosso primeiro historiador ao corroborar a opinião de Guilherme Studart. Este, porém, foi o primeiro a manifestar-se contra o topônimo de inspiração romântica, na sua introdução aos Documentos para a Biographia do Fundador do Ceará. Fortaleza: Typographia Studart, 1895. Em exemplar que está no acervo de obras raras da Biblioteca Menezes Pimentel, em Fortaleza, temos a informação seguinte, do punho de Ismael Pordeus: "A lembrança de mudar o topônimo Fortaleza pôr Iracema foi de Antonio Bezerra, em artigo publicado no jornalzinho de igual nome - Iracema - em 2 de abril de 1895. Ano 1, no 1".

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Justiça, o "decreto do Marechal Deodoro que dissolveu a 1a Assembléia Geral da

República que fôra Constituinte"332.

Ao que nos parece, Tristão de Alencar Araripe compreendeu tardiamente

a realidade política. Os tempos já eram outros desde 1831, com a abdicação de D.

Pedro I, quando já não existia um liberal no Ceará que ainda fosse um patriota. As

elites liberais estavam no poder. Tendo conformado-se disto somente em fins dos

anos sessenta, talvez. Certo é, que da História da Província do Ceará, privou-nos

do segundo volume333, onde Tristão Gonçalves figuraria na imagem de herói.

A LUTA CONTRA AS TRADIÇÕES

Nas camadas mais radicais e criativas do social-histórico está o

imaginário. À superfície, as idéias. Flutua pelos tempos em durações datáveis -

médias ou longas - arrastando-se, as mentalidades ... as tradições.

Perceptíveis entre os signos letratos, os costumes, e, por excelência, na

força que nos puxa ao arcaico, ao inusitadamente antigo diante da admirável

parafernália moderna. As mentalidades são o que nos toma de assalto, quando

pensávamos já extinto, um mundo "composto de idéias deformadas, de

automatismos psíquicos, sobrevivências e destroços, nebulosas mentais e

332Vide Guilherme Studart. Diccionário Bio-Bibliográfico. 3 vol. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1980, p. 160. 333José Aurélio Câmara, na introdução à obra de Tristão de Alencar Araripe (História da Província do Ceará. Fortaleza: Minerva, 1958, 2a ed.), afirma: "É possível que tal parte tenha sido apenas esquematizada, reunida a documentação correspondente, mas não escrita, embora tempo e habilitação não faltassem ao autor. Escrevendo êste livro na casa dos trinta anos e falecendo aos oitenta e sete, tempo lhe sobraria para completá-lo, se assim o tivesse desejado (...)".

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incoerências arranjadas, contudo, em pseudológicas"334. A essência dos modernos

está em combatê-las, feri-las e, por fim, sucumbir a elas inesperadamente.

A textura mental de uma sociedade é profundamente complexa e muitas

vezes só a conhecemos pelo enunciado negativo, por aquilo que ela não é. Mas

sabemos, por referências parciais, embutidas em textos de temáticas distintas, que

o terreno místico-religioso tomava conta da Província do Ceará. Que se reclamou

muito da falta de "luzes" por parte de sua população.

Tristão de Alencar Araripe fez referências, em sua obra aqui estudada,

dos caracteres de selvageria e violência no seio da população. Além disso, a

herança indígena deixava para nós um misticismo "irracional" que não poderia ser

classificado de religião. Atestou Alencar Araripe que "a ilustração era

nenhuma"335, vivendo o povo com pouco mais de uma dúzia de escolas primárias

durante o século XVIII.

Para combater essas superstições que alimentavam os "animos fracos e

embrutecidos pela ignorancia"336, somente a missão civilizatória do catolicismo

seria instrumento razoável e eficiente:

Se do emprego das armas rezultou o temor, o espanto e a distruição dos

mízeros gentios, veremos, que do emprego dos meios evangelicos

rezultados verdadeiramente beneficos se colhiam, xamando os salvaticos

incolas ao gremio da religião, e aproveitando-os para a civilização337.

O MARAVILHOSO E O ERUDITO

334Vide Jacques Le Goff. Para um Novo Conceito de Idade Média. Lisboa: Estampa, 1980, p. 101. 335Vide Tristão de Alencar Araripe. História da Província do Ceará. Recife: Typographia do Jornal do Recife, 1867, p. 127. 336Idem, p. 21. 337Idem, p. 27.

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Em publicação do início deste século a respeito da descrição de nossa

natureza e geografia, o Dr. Pompeu (filho do senador Pompeu) comentava a

mística popular. Ela via na natureza significados que a razão positiva não

compreendia senão como fenômenos científicos.

A gruta do Ubajara era uma dessas fontes do maravilhoso:

É atravessada por uma corrente de agua límpida, que corre no seu fundo,

e desaparece adiante: do tecto e incrustados nas paredes, pendem

stalactites de formas caprichosas, que vistos ao clarão dos talhos produzem

na imaginação das pessôas ignorantes, que alli descem já preocuppadas do

maravilhoso, effeitos phantasticos338.

Em livro escrito por Alipio Luiz Pereira da Silva, em torno das

Considerações Geraes Sobre as Provincias do Ceará e R. G. do Norte, em

1885, vemos o próprio imaginário europeu tomado por mentalidades populares a

encontrar, novamente, a natureza: “ No Cumbe ha um lugar onde os supersticiosos

dizem estar encantado o rei D. Sebastião: essa superstição nasce do ruido que se

ouve em certas epocas, semelhante ao rufar de tambor” 339.

O famoso Ensaio Estatístico do Senador Pompeu, publicado décadas

antes, reforçava a contraposição entre dados positivos e o mundo natural-popular,

a partir do fogo que faiscava periodicamente num serrote escarpado em Santa

Quitéria:

338Vide Thomaz Pompeo de Sousa Brasil. O Ceará no Começo doSéculo XX. Fortaleza: Typo-Lithographia a vapor, 1909, p. 95. 339Idem, p. 90.

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Este phenomeno que apparece raro, é recebido pelos sertanejos como

um pressagio de bom inverno. Á ultima apparição foi no inverno de 1829

depois de uma grande trovoada. Podia ser a comunicação de uma faisca

electrica a alguma materia inflammavel. Desta vez durou uns 20 dias, e era

perfeitamente visto de Sobral a 14 leguas. Por baixo deste serrote ha uma

vasta caverna340.

Constatamos, dessas citações, pelo menos duas observações preliminares.

Primeiramente, é razoável ressaltar que os hábitos e imaginários da população

fazem um misto entre cultura e natureza, compondo, portanto, um universo

natural-popular, que não investigaremos neste trabalho, já que não cabe em nossa

discussão um estudo aprofundado e sistemático da cultura popular. Aqui, a vemos

num pálido reflexo, pelos espelhos deformadores do discurso positivo.

Em segundo lugar, percebemos que o mundo erudito esquadrinha e

classifica as impressões rústicas como fenômenos, palavra que distingue o fato das

opiniões infundadas, ou, em outros termos, a aparência das coisas e sua

investigação científica. Nos extratos acima transcritos, aquele que nos descreve o

ocorrido sente a pulsão de explicar e estabelecer uma apreciação verossímel.

Demarca, na explicação, dois universos mentais: um é plausível e racional e, por

corolário lógico, o que sobra é a ignorância e a superstição.

Mesmo os românticos, que temos aqui analisado, não fugiram à tentação

de esclarecer as sombrias fontes do natural-popular, de onde iam, em parte, sorver

em imaginação e criatividade.

Demonstra bem essa análise o caso do Pajé Araquém, pai de Iracema, ao

enfrentar o guerreiro Irapuã, membro de sua tribo, com o poder do trovão de Tupã.

Irapuã invade a cabana de Araquém e o desafia. Mas o velho tem a seu lado o

340Citado por Thomaz Pompeo de Sousa Brasil, op. cit., p. 91.

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apoio das forças da natureza, no caso o trovão, que pode ser evocado pelo nome de

Tupã, e que lhe confere virilidade sobrenatural:

- Ouve seu trovão, e treme em teu seio, guerreiro, como a terra em sua

profundeza.

Araquém proferindo essa palavra terrível, avançou até o meio da cabana;

ali ergueu a grande pedra e calcou o pé com força no chão: súbito, abriu-se

a terra. Do antro profundo saiu um medonho gemido, que parecia arrancado

das entranhas do rochedo341.

José de Alencar poderia ter deixado sua narrativa como acima está e

mantido oculto o segredo das tradições místicas. É muito provável que o leitor do

século XIX visse aí a perigosa conivência do escritor contra duas outras

instituições da cultura: o catolicismo (ao propagar superstições) e a ciência (ao

aceitar o ato xamânico sem explicá-lo). Mas o autor desencanta o mundo natural-

popular, por meio da explicação positiva do fantástico feito do pajé:

Todo esse episódio do rugido da terra é uma astúcia, como usavam os

pajés e os sacerdotes dessa nação selvagem para fascinar a imaginação do

povo. A cabana estava assentada sobre um rochedo, onde havia uma

galeria subterrânea que comunicava com a várzea por estreita abertura;

Araquém tivera o cuidado de tapar com grandes pedras as duas aberturas,

para ocultar a gruta dos guerreiros. Nessa ocasião a fenda inferior estava

aberta, e o Pajé o sabia, abrindo a fenda superior, o ar encanou-se pelo

antro espiral com estridor medonho, e de que pode das uma idéia o

341Vide José de Alencar. Iracema (Lenda do Ceará). Rio de Janeiro: Ediouro, s.d., p. 33.

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sussurro dos caramujos. - O fato é, pois, natural; a aparência, sim, é

maravilhosa342.

Podemos, portanto, distingüir para as classes sociais pelo menos dois

amplos campos de vivência cultural, ou seja, relações com as coisas do mundo,

imprimindo-lhes nomes específicos e funções específicas para o ato de nomear.

Em outros termos, linguagens diferenciadas para cultura erudita e para a cultura

popular.

Apesar das visões de mundo existirem em sua pluralidade, podem

canalizar-se em um mesmo campo da experiência cultural. É o caso dos

românticos e dos liberais-positivistas, para o campo da cultura erudita.

A persistência dessa oposição entre o discurso positivo e concepções

naturais-populares fez marcas na história local. Diversos fatos políticos estiveram

pautados em linguagens muito distintas. Vivendo o mesmo espaço, participando

mais ou menos dos mesmos acontecimentos, os homens, entretanto, não estão

partilhando a mesma experiência.

Daí, talvez, Gilberto Freyre ter destacado que nunca houve uma

europeização ou cristianização que atingisse profundamente as consciências do

ameríndios e africanos no Brasil. Para ele, esse processo foi “obra de

superfície”343. Paradoxalmente, mesmo as manifestações de adesão às ortodoxias

européias (de caráter político, moral ou religioso) expressaram o que Freyre

chamou de “apego à região”344, explicando-se mais pela cultura e economia do que

pelas ortodoxias enquanto conjunto sistemático e coerente de princípios. Assim é

que muitas vezes teria ocorrido no sertão “a defesa de valores europeus ortodoxos

342Idem, nota II da p. 33. 343Vide Gilberto Freyre. Sobrados e Mucambos. 6a ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Recife: Câmara dos Deputados/Governo do Estado de Pernambuco, 1981, p. 364. 344Ibidem.

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ou já tradicionais, no Brasil”345. Todavia, essa demarcação geográfica (aspecto

mais problemático) do sertão ortodoxo versus o litoral mais arejado, deve ser

entendida como um índice relativo da cultura e não uma determinação.

As lições fenomenológicas346 contidas nesse pensamento são várias.

Dentre elas, as conexões entre cultura européia e cultura brasileira, bem como a

circularidade da cultura popular com a erudita. É o que ocorre com o catolicismo

nosso e que é exemplar em determinados conflitos da história sertaneja cearense.

Demonstra-o bem o uso que o tradicionalismo fez da mística popular em torno dos

cacetes do Pe. Antônio Manuel, na rebelião restauradora de 1832, duramente

reprimida sob o governo liberal de José Martiniano de Alencar: “O cacete bento

pelo vigário de Jardim adquiria, na crença da massa ignara e fanática, propriedades

milagrosas, tornando-se grande a procura da nova arma” 347.

Os atos dos presidentes de Província eram tomados pelas preocupações

com as classes perigosas do interior cearense, onde banditismo e misticismo

caminhavam juntos. Como assinalou José Honório Rodrigues348, do Ceará saíram

Antônio Conselheiro, Pe. Cícero e o beato José Lourenço; do centro geográfico

cearense para baixo. A férrea justiça civilizatória estava na Capital.

SER LIBERAL E SER CATÓLICO

345Ibidem. 346Assinalo o fenomenológico em função de que Gilberto Freyre teve claros limites teóricos e ideológicos de compreender a cultura popular. Nesta passagem mesmo, ressaltamos alguns conceitos insuficientes para analisar a questão como: assimilação, primitivo, fanatismo. Aspeado, temos: raça e raça inferior, denotando (o que já sabemos) sua restrição a esses conceitos, mas deixando ver sua incapacidade em substituí-los. 347Vide Abelardo Montenegro. Os Partidos Políticos do Ceará. Fortaleza: Edições UFC, 1980, p. 18. 348Vide José Honório Rodrigues. Índice Anotado da Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1959.

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Sabemos, porém, que o embate não se fez somente no campo da repressão

policial e que havia, ao menos, duas alternativas para contrapor-se ao imaginário

popular, então vigoroso e explosivo. O poder da tradição católica foi vivamente

evocado, especialmente a partir de meados do século, como nos diz em seu estudo

o pesquisador Francisco Pinheiro: "a Religião era encarada como um instrumento

fundamental para transformar o modo de vida"349.

Para a velha geração liberal, liderada pelo Pe. e, depois, senador Pompeu,

o campo do catolicismo poderia não ser a melhor opção, caso se opusesse aos

valores em curso no século. Criar-se-á, algumas décadas após, uma oposição entre

tradicionalistas e liberais.

O correr do século XIX iria confirmar a validade das "teses" e maneiras

de viver de uma sociedade liberal. Parecia impossível conter a marcha do

progresso, os benefícios da "sciencia" para todas as sociedades do mundo. Porém,

as mentalidades mais tradicionais não deixavam de aparecer, muitas vezes

solidamente articuladas. É verdade também que o liberalismo chimango perdia no

campo político para as forças regressistas dos saquaremas e conservadores.

A vitória dos liberais moderados ou chimangos em 1835, com a eleição

do Pe. Feijó, não tranqüilizou lideranças como Bernardo Pereira de Vasconcelos.

Ele, juntamente com a força política fluminense dos saquaremas, começaram a

questionar o autonomismo imperial, temem a anarquia e são contrários ao

liberalismo econômico (livre-cambismo, acordos diplomáticos com potência mais

poderosa e trabalho assalariado)350.

Explica-nos com propriedade essa correlação de forças, Alfredo Bosi:

349Vide Francisco José Pinheiro, "O homem livre/pobre e a organização das relações de trabalho no Ceará", in: Revista de Ciências Sociais, vol. 20/21, no 1/2, 1989/1990, p. 225. 350Vide Ilmar R. de Mattos. O Império da Boa Sociedade. São Paulo: Atual, 1991.

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Formado ao longo das crises da Regência, o núcleo conservador definiu-

se pela voz dos seus líderes, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Araújo Lima

e Honório Hermeto, como o Partido da Ordem, no ano crítico de 1837 e logo

após a renúncia de Feijó. A sua história é a de uma aliança estratégica,

flexível mas tenaz, entre as oligarquias mais antigas do açúcar nordestino e

as mais novas do café do Vale do Paraíba, as firmas exportadoras, os

traficantes negreiros, os parlamentares que lhes davam cobertura, e o braço

militar chamado sucessivas vezes, nos anos de 1830 e 40, para debelar

surtos de facções que espocavam nas províncias351.

Esse grupo que compunha inicialmente os liberais moderados, sem

grandes distinções entre eles, conformará posteriormente as bases dos

conservadores que, em 1843, predominam na Assembléia Legislativa. É conhecida

a categórica frase de Bernardo Pereira de Vasconcelos ao pretender servir à

sociedade, mudando sua concepção política que fora, até então, liberal: “Como

então quis, quero hoje servi-la, quero salvá-la, e por isso sou regressista” 352.

Evaristo da Veiga e o Pe. Feijó, como lideranças moderadas desde os

tempos de 1831, com a Abdicação, tiveram seu raio de influência tomada pelos

regressistas.

No Ceará, os liberais progressistas se auto-identificavam como

chimangos. Eram oponentes dos saquaremas e dos regressistas em geral. Quando

Feijó perde a regência em 1837, igualmente José Martiniano de Alencar perde a

presidência da Província. A oposição ao governo de Alencar teve articulação com

Bernardo Pereira de Vasconcelos, tendo contribuído para a fundação do jornal

351Vide Alfredo Bosi. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 196. 352Citado por Alfredo Bosi, op. cit., p. 200.

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Oposição Constitucional, que publicou violentos artigos contra sua

administração353.

Os chimangos, ou moderados, visando retorno ao poder, incentivaram a

Maioridade antecipada de Pedro II. Neste processo, a articulação do Senador

Alencar será destacada, tendo fundado, em abril de 1840, o Clube da

Maioridade354.

A maioridade deu certo, mas o poder não ficou muito tempo à mão dos

liberais.

Por essa época, no Ceará, já o dissemos anteriormente 355, a liderança

liberal será entregue ao Pe. Pompeu, que dará uma tonalidade ilustrada à política

local, ajudando a conformar uma tradição de homens cultos que deveriam dirigir

os negócios públicos e incentivar o progresso material.

Pompeu era um liberal, mas era um católico igualmente. O jornal O

Cearense, no qual fora editor-chefe, publicava artigos francamente anti-liberais e

era mesmo tido como órgão de imprensa de vertente católica, afinal tinha à frente

de sua redação um padre.

Em 1857, o vigário visitador da cidade de Quixeramobim, sertão central

cearense, aos 23 de novembro, enviou uma missiva endereçada ao Padre Pompeu:

Acabo de receber do Exm. Rvm. Sr. Bispo Diocesano as Inclusas

Pastoraes do mesmo Sr. de 29 de julho e 14 d'outubro p.p. impressas no

periodico - Progresso* - pidindo-me para mandar publicar nesta provincia a

fim de que possão ser lidas por todos os seos diocesanos. E porque o

periodico de V.S. o Cearense he hum dos de maior circulação e que he

353Vide Abelardo Montenegro, op. cit., p. 20. 354Vide Ilmar R. de Mattos, op. cit., p. 63. 355Cf. neste trabalho, o capítulo "Educação das Elites e Disciplinarização dos Pobres". * Periódico católico de Pernambuco.

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lido na provincia com mais interesse, e que ao mesmo tempos e presta

com maior gosto a todos os negocios tendentes a Religião; por isso

peço a V.S. que, sendo possivel se digne mandar transcrever as

sobreditas pastoraes356.

Junto a essas palavras do visitador, o vigário Antonio Pinto de Mendonça,

estavam as pastorais que foram devidamente publicadas n'O Cearense, ocupando

a primeira seção, que normalmente era dedicada ao editorial . Neste dia, o editorial

ficou em segundo plano.

Todavia, Pompeu não foi um tradicionalista. Formado no Seminário de

Olinda, pertencia ao catolicismo liberal. Por volta da década de sessenta do século

passado, um feixe de forças conservadoras penetrara fortemente na sociedade

brasileira. Em idos da década de cinqüenta, dera-se a Conciliação, política

estagnante de permuta do controle do poder entre liberais e conservadores.

Malgrado as penetrações da técnica e os avanços do capitalismo para a periferia do

mundo, os valores sócio-mentais asseguravam largos retrocessos. No plano

literário, o saudosismo romântico; no político, a exclusão dos liberais do poder, em

1869.

É esse vazio, pleno de regressismo político, que fará abrir-se uma nova

conjuntura na década seguinte, caracterizada por Sílvio Romero na frase em que

assinala que "um bando de idéias novas esvoaçou sobre nós de todos os pontos do

horizonte"357.Os liberais divulgaram um Programa Liberal Internacional que

discutia, mesmo cauteloso, a emancipação dos escravos. Antonio Paim explica-nos

a conexão desse programa com a geração de setenta:

356Vide O Cearense, 11-12-1857. 357Citado por Antonio Paim. História das Idéias Filosóficas no Brasil. 3a ed. São Paulo: Convívio/Instituto Nacional do Livro, 1984, p. 375.

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Reclamam liberdade de indústria e de comércio; a extinção dos

monopólios; a descentralização administrativa com o reforço da autonomia

das províncias e municípios. exigem mais: que o rei se limite a reinar

deixando a função de governo a cargo do Ministério. No ano seguinte, com a

fundação do Partido republicano, tais campanhas assumem uma feição

nitidamente antimonárquica. Ainda que no plano político, a avalancha

renovadora haja conhecido sucessivas alternâncias, tréguas e

compromissos, o impulso inicial daí recebido parece ter sido suficientemente

forte para assegurar a eclosão do chamado surto de idéias novas e seu

ulterior movimento ascendente358

Contrários às inovações e arraigados em uma mentalidade católica e

monárquica absoluta, estavam os tradicionalistas que durante a década de sessenta

iniciaram sua militância político-intelectual, com o apoio de Roma. Forte será a

sua atuação no Ceará.

A Província do Ceará será área de romanização por excelência. A

começar pelo período de organização de sua Diocese, criada em 1859, o

seu primeiro bispo foi nomeado em 1860. A organização da Diocese ocorre

no período inicial do processo de romanização, e que terá seu ápice por

volta de 1870 com o fim do Concílio Vaticano I, que procura traçar o caminho

a ser seguido pelas igrejas diante desta realidade. E, para completar este

quadro tipicamente romanizado, foi nomeado como primeiro Bispo D. Luiz

Antonio dos Santos, que iniciou seus estudos no Rio de Janeiro em 1835359.

358Idem, p.376. 359Vide Francisco José Pinheiro, "O Processo de Romanização no Ceará", in Simone Souza. História do Ceará. Fortaleza: UFC/Fundação Demócrito Rocha/Stylus Comunicações, 1989, p.195.

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A Diocese iniciará sua atuação tradicionalista sob os auspícios de D. Luiz,

procurando combater o afrouxamento das relações com Roma. Sofria a Igreja, no

Brasil, uma influência crescente do liberalismo, que aspirava modificá-la aos

moldes das inovações do século, de forma a que ela não fosse uma instituição de

entrave social. Aqui, o plano político articula-se, inconfundivelmente, como o

religioso, já que um líder como o Pe. Diogo Feijó "chegou a elaborar leis

propondo o fim do celibato, a criação de uma Igreja Nacional"360.

CRÍTICA AO TRADICIONALISTA CATÓLICO

D. Luiz tratou de buscar uma congregação estrangeira que recuperasse o

catolicismo original e "monta em Fortaleza sólida infra-estrutura eclesial, a

começar pela criação do Seminário"361. Tendo dedicado-se em Minas Gerais às

missões na Companhia dos Lazaristas, a eles caberá a incumbência, "por

pertencerem a uma ordem confiável, isto é, virtuosa, obediente, muito ligada a

Roma e estrangeira"362.

Em 1864, o prédio do Seminário da Prainha é inaugurado, entregando a

sua direção aos Padres Lazaristas franceses, fiéis agentes do processo de

romanização, logo mais imprimindo-lhe a orientação tradicionalista, em tudo

oposta à do velho Seminário de Olinda, e constituindo-se desta forma, pólo

de sedimentação de uma Igreja purificada no Nordeste363.

360Idem, p. 196. 361Vide João Alfredo de S. Montenegro. O Trono e o Altar: as Vicissitudes do Tradicionalismo no Ceará (1817-1978). Fortaleza: BNB, 1992, p. 94. 362Vide Francisco José Pinheiro, op. cit., p. 195. 363Vide João Alfredo de S. Montenegro, op. cit., p. 94.

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A ter em conta os estudos de João Alfredo de S. Montenegro, toda a

década de sessenta está fortemente marcada, em Fortaleza, pela militância

tradicionalista. Em 1866, funda-se o jornal A Tribuna Católica com os artigos de

Manoel Soares Bezerra em plena campanha doutrinária a combater a política

profana, isenta da orientação religiosa. Por essa época, Soares Bezerra publica Os

Dogmas Políticos do Cristão:

Eis que a elaboração tradicionalista do pensador cearense se põe em dia

com as singularidades da segunda metade do século XIX, e não ficando

apenas na enunciação abstrata, generalizante, mas cobrindo também a

conjuntura política trepidante de sua terra, numa simbiose interessante e que

revelava tendências novas para a ideologia que tanto amava e pela qual

travou ingente batalha364.

O documento de apoio dos tradicionalistas ainda era o Sylabbus, de Pio

XI e o Concílio de Trento.

Manoel Soares Bezerra ia contra, mesmo, o sistema de eleições, por

considerá-las corruptoras da moral pública. A eleição democrática seria expressão

sintomática do individualismo do mundo liberal, que a Revolução Francesa

implantara, sendo ela um estímulo aos ataques difamatórios, a busca da

"destruição moral e política dos adversários"365.

A reação liberal somente veio nos anos iniciais da década de setenta do

século XIX, e feita pelas "moderna geração" de intelectuais cearenses, como

afirmou Capistrano de Abreu366. Por volta de 1872 e 1873, um grupo de rapazes de

364Idem, p. 79. 365Idem, p. 73. 366Vide Capistrano de Abreu, "Raimundo Antonio da Rocha Lima - Prefácio", in: Raimundo Antonio da Rocha Lima. Crítica e Literatura. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1968, p. 82.

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dezoito a vinte e poucos anos começou a reunir-se na casa de Tomás Pompeu de

Sousa Brasil, filho homônimo do senador Pompeu, e de Raimundo Antonio da

Rocha Lima. Alguns tinham passado por Recife e bebido do ar de novas idéias que

por lá havia, muito embora nenhuma filiação teórica possa ser feita entre o

cientificismo nascente na capital pernambucana e o Grupo de pioneiros em idéias

cientificistas no Ceará.

Quase todos os membros haviam tido formação secundária no Ateneu

Cearense e um ou outro no Liceu do Ceará. Mas a instrução secundária a essa

época, como pudemos mostrar anteriormente367, era de qualidade e fruto de um

investimento público e particular de algumas décadas atrás.

Reuniam-se Capistrano de Abreu, Tomás Pompeu, Rocha Lima, Araripe

Jr. (filho de Tristão de Alencar Araripe), Xilderico de Farias, João Lopes

(posteriormente abolicionista atuante e participante ativo do jornal A Quinzena),

entre outros.

Estavam em contato com a velha geração através das pessoas do próprio

Senador Pompeu e do incendiário polígrafo, João Brígido, destacado polemista

liberal da terra. Não se pode filiar ao Grupo dos Pioneiros qualquer

republicanismo convicto, já que não era isso que os unia. Havia mesmo um

monarquista coerente, que foi Pompeu. Ele assim manteve-se, mesmo após

implantada a República e como nos informa Sânzio de Azevedo, "sendo anti-

republicano, fêz-se constitucionalista"368, no melhor espírito da tradição de liberais

moderados do Império. João Lopes, ao que parece, nunca fora nem monarquista,

nem republicano, nem constitucionalista:

367Cf. neste trabalho, "Educação das Elites e Disciplinarização dos Pobres". 368Vide Sânzio de Azevedo. A Academia Francesa do Ceará. Fortaleza: Casa José de Alencar/UFC, 1971, p. 13.

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João Lopes havia sido deputado provincial no antigo regime; proclamada

a república, foi escolhido para encarregado dos Negócios do Interior e

depois passou a representar o Ceará na Câmara Federal, da qual chegou a

ocupar a presidência ao tempo de Deodoro369.

A historiografia já tem fastigiosamente citado e recitado as lembranças

escritas por Pompeu, Capistrano e os escritos de Farias Brito e Clóvis Beviláqua a

respeito do grupo, sempre enfatizando a penetração de idéias darwinistas,

espencerianas e positivistas. Sem desconhecer a veracidade e o valor das

afirmações, cabe-nos dar uma abordagem histórica explicativa, que possa

transcender a mera contextualização, ou ao simples desfilar de idéias que aqui

ocorreram.

Na verdade, todo movimento intelectual, que começa a brotar na década

de setenta do século XIX, deveu-se a dois fatores básicos: 1 - À moda: a ilustração

e o positivismo como símbolos de status superior; 2 - Aos variados agrupamentos

intelectuais de esforço autônomo: eram grupos espontâneos, grêmios, academias,

clubes e gabinetes de leitura que floresceram exuberantemente entre 1880 e 1889.

Foi a liberdade dessas discussões, alienantes por essência e por desejo dos

homens e mulheres da época, que forneceram a idéia não apenas de uma elite

culta, mas de uma Sociedade culta: a da capital. Alimentavam-se de ilusões e

sonhos em torno da luz do progresso em uma insignificante província:

Pulsa aqui [refere-se Djacir Menezes a Fortaleza] um centro autônomo,

ressonância de centros europeus, com líderes dotados daquela pensée

369Idem, p. 24.

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agissante que se manifestava nas lojas maçônicas, na redação dos jornais,

nos clubes, nos cafés, nos gabinetes de leitura370.

O espaço urbano cria indefinidos locus para o saber. Não é mais apenas a

instrução pública. Lembremos que um dos mais conhecidos e jovens intelectuais

do Grupo dos Pioneiros, Rocha Lima, era desconhecido de seus professores: um

aluno sem destaque. Capistrano de Abreu era indisciplinado diante do sistema

escolar, e foi mandado voltar de Recife por não ter feito um só exame nos estudos

preparatórios. Sua formação foi autodidata.

O espírito coletivo destes jovens era frívolo e idealista. Poucos

permaneciam nele na maturidade. Vejamos o depoimento de Capistrano de Abreu,

falando do fim da convivência do grupo:

Essa existência em comum durou até princípios de 1875. Então uns

retiraram-se da província; outros entraram em carreiras e ocupações

contraditórias com a essência da Academia; outros acharam que a comédia

se prolongara demais, e lançaram para longe a máscara a que deviam a

introdução no santuário371.

Essa máscara lhes foi indispensável, esse conteúdo de ilusão criou na

vida de cada um e na vida da cidade um outro ambiente. Através das reuniões mais

ou menos informais do grupo, usufruiam dos esclarecimentos do século, conforme

depoimento de Pompeu, em 1929: "Cada um de nós lia e tomava notas de uma

obra de Comte, Darwin, Spencer ou Littré e, reunidos, expunhamos o resultado

370Vide Djacir Menezes, "Rocha Lima e a Ideologia Cearense de 1870", in: Raimundo Antonio da Rocha Lima, op. cit., p. 07. 371Vide Capistrano de Abreu, op. cit., p. 78 e 79.

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dessa leitura, submetendo-a à crítica ou análise dos demais"372. Nessa

reminiscência, dera-se conta do que fizeram: "Fôramos talvez os pioneiros das

doutrinas positivistas e da filosofia evolucionista no norte do Brasil"373.

O cenário ampliou-se quando se criou, especialmente pela iniciativa de

João Lopes e Rocha Lima, a Escola Popular. Inspiração das escolas do mundo

europeu, em que membros da elite e senhores filantrópicos desciam à militância

intelectual e pública das aulas e conferências. As aulas eram em latim, gramática,

língua estrangeira, aritmética e geografia e história. As conferências eram de temas

variados, mas a gosto do espírito maçônico e burguês. Por baixo, a freqüência da

escola popular ficava em mais de seis dezenas. Matriculavam-se mais de 150

alunos.

AS POLÊMICAS

À escola popular respondeu o tradicionalista Manoel Soares Bezerra, com

discursos na Praça da Feira Nova (atual Praça do Ferreira) e foi contestado em

apartes feitos por membros do Grupo dos Pioneiros. O jornal maçônico A

Fraternidade estampava - nos diz Sânzio de Azevedo - em 30 de março de 1875:

os ultramontanos desta cidade reconhecem como mestre de filosofia um

velho tolo e ignorante, cujas sandices são recebidas pelos moços do Liceu

com pilhérias e gargalhadas. Já o ouvimos tirar da sensualidade do bode

uma prova da existência de Deus 374.

372Vide Sânzio de Azevedo, op. cit., p. 30. 373Ibidem. 374Citado por Sânzio de Azevedo, op. cit., p. 27-28.

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O jornal Fraternidade foi o veículo de opinião oposto à Tribuna

Católica. A patrocinar esse jornal, a Augusta Loja Fraternidade Cearense, tendo

como figura de proa, João Brígido dos Santos, e a colaboração do velho Pe.

Senador Pompeu.

Cabe-nos analisar alguns aspectos desse jornal dentro da problemática

que ora empreendemos e que ainda não foram discutidos pela historiografia.

A afirmação de que os moços do Grupo dos Pioneiros Cientificistas

"revolucionaram o pensamento da pequena cidade"375, ou é óbvia, ou é

simplesmente falsa. A obviedade está patente pelo caráter de importação, se é que

assim podemos chamar, das idéias comtianas, usadas então como elemento de

respaldo na luta contra o tradicionalismo. Para os moldes da pequena capital, ávida

de vestir-se de moderna, seria um ato "revolucionário". Seus participantes assim

queriam que os vissem, como percebemos há pouco no discurso retrospectivo de

Pompeu. Como podemos reconhecer isso em Capistrano de Abreu, ao comentar a

Escola Popular:

Os que tiveram ocasião de visitá-la recordam-se da animação, da

cordialidade, do estímulo que ali reinavam e corriam parelhas com o

desinterêsse dos jovens professores. E entretanto quantos obstáculos não

tiveram a vencer, quanta calúnia a esmagar, quanta prevenção a destruir!376

Mais à frente:

Grande foi a influência da Escola Popular não só sobre as classes a que

se destinava, como sôbre a sociedade cearense em geral, por intermédio de

375Vide Sânzio de Azevedo, op. cit., p. 35. 376Vide Capistrano de Abreu, op. cit., p. 77.

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conferências ali feitas, em que o ideal moderno era apregoado por pessoas

altamente convencidas de sua excelência. Maior ainda foi a influência da

escola sôbre os espíritos audazes e juvenis, que congregou, reuniu e

fecundou uns pelos outros377.

Sem dúvida que, a nível conjuntural, a opinião fortalezense esteve

agitava, até porque era muito provinciana e qualquer acontecimento provocava um

frigir quase escandaloso.

Todavia, três observações desfazem qualquer impressão "revolucionária":

1o) A militância dos pioneiros foi uma reação ao tradicionalismo sectário; 2o)

Nada mais moderado do que a tradição liberal do Ceará, a qual pertenciam os

pioneiros cientificistas; 3o) A campanha do jornal maçônico, por mais que tenha

tido tintas irônicas e picarescas, não foi rigorosamente anti-católica, se é que o foi.

Quem levou o debate, literalmente, à praça pública foram os

tradicionalistas e não os liberais cientificistas. O discurso extremado de Soares

Bezerra e as conseqüentes polêmicas travadas entre o Tribuna Católica e o

Fraternidade levaram mesmo a que o primeiro fosse desabonado como orgão

avalizado pelo bispo da Diocese, D. Luiz378. A pugna não era saudável à imagem

do representante máximo da Igreja na Província.

O TEMOR DAS "DOUTRINAS PERIGOSAS"

No editorial do Fraternidade, em 04 de novembro de 1873, no 1, anno I,

o autor trabalha com pares opostos em seu discurso: civilização/barbárie,

377Ibidem. 378Vide Dolor Barreira,"A Academia Francesa do Ceará", in: Dolor Barreira. História da Literatura Cearense (Ed. Fac-similar). Fortaleza: Instituto do Ceará, 1986.

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conquistas/erro, dia/noite, bem/mal. O artifício de opinião servia para dar ao leitor

a dimensão dos perigos do tradicionalismo à sociedade. Segundo expressões do

próprio jornal, haveria uma "surda agitação", uma "revolução subjacente", que é

estimulada por forças arcaicas a travarem a marcha para o futuro: “O passado,

envolto em seu sangrento sudário, assoma das trevas, agita a discordia, e vem

bradando - a postos!” 379

Sabemos, então, quem representa o passado que quer emergir sob a forma

da violência, no presente: o tradicionalismo, ou a Igreja romanizada. Encontra-se

aí o alvo da crítica dos maçons.

Não paramos no alvo. Vemos, logo em seguida, que há uma geração

brasileira que ordena prudência. Não é ela senão a dos liberais, "homens práticos"

- como diz o editorial - que depuseram o Imperador Pedro I:

Todas essas vozes, que agora se levantam de um extremo a outro do

paiz, não são as dos combatentes de hontem, mas dos combatentes de

1831. Não tem accento do impeto, mas da convicção, não praguejam,

admoestam. O individuo ninguem distinguirá n'esse immenso echo, unisono

e conforme, mas uma geração.

Foram elles que consolidaram a paz do imperio, serviram á industria e ás

artes, firmaram a liberdade, implantaram a fé em animos rudes, sem a

minima noção das verdades reveladas380.

O discurso é claro. Trata-se da ideologia dos liberais moderados. Não por

acaso, que os autores do Fraternidade eram aceitos com facilidade n'O Cearense

- orgão do Partido Liberal - e que este último noticiasse com atenção o que

379Vide Fraternidade, anno I, no 01, 04-11-1873. 380Ibidem.

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acontecia na Escola Popular381. Por trás da moderna geração estavam os velhos

liberais. Também é óbvio que não estava em questão um novo modelo estético,

como o realismo ou o naturalismo382. É certo que lhes preparou o terreno, ao

criticar obras românticas como as de José de Alencar. Já sabemos que o

romantismo não possuía o apreço dos liberais-positivistas383.

As posturas perante o clero cearense eram de resposta aos avanços feitos

pela romanização, já que "é uma das características fundamentais do processo de

romanização, apresentar o Clero liberal como sinal de decadência, de formação

inadequada, inobservante, portanto um Clero que não merece confiança, enquanto

o Clero romanizado é sempre apresentado como aquele que deve salvar a Igreja do

caos liberal"384. Eram os debates da chamada questão religiosa que tanto abalou a

opinião pública de fins do Império.

Em toda a coleção do Fraternidade que hoje dispomos para consulta,

perpassam os conflitos da questão religiosa. Mas a argumentação não se apresenta

no sentido de ruptura irreconciliável com a Igreja católica. O editorial do segundo

381Vide Dolor Barreira (op. cit.), onde fornece nas notas do capítulo "A Academia Francesa do Ceará", as notícias d'O Cearense. 382Vide Sânzio de Azevedo (op. cit.), onde insinua isso: "Houve um momento em que, esvaziado o Romantismo, com sua crítica fundamental na intuição e no subjetivismo, tiveram os pensadores que recorrer a outros métodos, a outros meios de interpretação mais consetâneos com a época em que viviam" (p. 05). O argumento é infundado, já que no mesmo trabalho o próprio Sânzio de Azevedo reconhece que o romantismo estava longe de sentir-se "esvaziado" no Ceará: "(...) com a sua pregação anti romântica, [a Academia Francesa] não conseguiu modificar a literatura que então se fazia, tendo ainda o Ceará que esperar longos anos pelo advento do Realismo na prosa de ficção e na poesia (...)" (p. 36, grifos nossos). A leitura de Dolor Barreira caminha nessa tese do gosto estético, ao elidir as questões políticas. Parece-nos que Sânzio de Azevedo, vindo posteriormente, enfatizou e explicitou essa interpretação. 383Cf. capítulo anterior deste trabalho. No depoimento de 1929, de Tomás Pompeu de Sousa Brasil, Sânzio de Azevedo vê a "primeira reação à sentimentalidade romântica" ("Grêmios Literários do Ceará", in: Simone de Souza, op. cit., p. 181) quando Pompeu declara que as obras de "pura imaginação" tinham "a sentimentalidade um tanto feminil, que amolenta as faculdades afetivas com o poetar dulçuroso e lânguido". É uma declaração retrospectiva que expressa a oposição aos românticos, em acordo com a mentalidade cientificista de Pompeu. Nisto não temos o que discordar. Apontamos o perigo de se fazer a leitura da história a partir de paradigmas estritamente literários e abstratos, no que se constitui uma análise inconsistente. 384Vide Francisco José Pinheiro, op. cit., p. 196.

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número385, por exemplo, move-se no sentido de aliar a questão do clero nacional

(já aqui citada) à questão da perseguição aos maçons pela sede romana, o que

infligiria o direito burguês. O governo brasileiro imperial aparece como omisso

diante das interferências de Roma, tanto nas lutas do clero nacional com os

estrangeiros como na caça aos maçons.

A estrutura discursiva caminha, portanto, na defensiva, ressaltando o que

seria uma mentalidade moderna para o Estado: a garantia da lei, do respeito e da

tolerância. Tudo isso estaria garantido num estado constitucional. O receio se

constrói na lógica de que, debelado o clero nacional, passa-se a perseguir a

maçonaria.

Daí por diante, seguem respostas mais fortes e específicas. O governo é

enfaticamente criticado em sua omissão à campanha tradicionalista em curso,

como diz o editorial de 18 de novembro de 1873: “Culpa foi de quem consentio

na invasão, retirando toda proteção ao clero nacional e consentindo no exbulho,

que lhe faziam, da cadeira, do pulpito e quiça do altar” 386.

O jornal tem a compreeensão de que está em jogo uma questão de Estado

e de hegemonia sobre a população. Como diziam esses homens à época: uma luta

pelas "consciências". Hoje, diríamos, uma batalha cultural pela manutenção e

avanço das conquistas do pensamento das classes dominantes sobre as camadas

subalternas.

Enfatiza o Fraternidade:

Não se pode admittir clero que não seja nacional, sob pena de perder a

nação alguma cousa dos seus traços moraes. A ele incumbe a guarda dos

385Vide Fraternidade, anno I, no 02, 11-11-1873. 386Vide Fraternidade, anno I, no 03, 18-11-1873.

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costumes na inspecção da família, a segurança do estado na sua

sustentação das doutrinas, que são o fundamento de sua lei387.

Viam com preocupação, que as vitórias dos liberais moderados,

agenciadas desde a Abdicação (1831), fossem agora ameaçadas. O pensamento

corrente entre os partidários do racionalismo objetivista do século XIX era de que

uma vez barrado o progresso, dar-se-ia vazão às forças caóticas de desagregação

moral e social.

Um pensador europeu, como Marx, sintetizou com genialidade essa

percepção da história (que era típica do século XIX) ao dizer que era preciso

aprender a linguagem do novo "sem apelar para o passado"388. Referindo-se à

revolução proletária afirmou: “A revolução social do século dezenove não pode

tirar sua poesia do passado, e sim do futuro. Não pode iniciar sua tarefa enquanto

não se despojar de tôda veneração supersticiosa do passado” 389.

Partindo da mesma mentalidade, porém de um ponto de vista oposto, já

que profundamente conservador, os liberais da maçonaria cearense alertavam para

as conseqüências de um abafamento do desenvolvimento natural do progresso:

Por uma dessas manifestações potentes das leis moraes, o ensino

jesuitico produzio Voltaire e a Enciclopedia enimigo irreconciliaveis da Igreja

e das tradicções.

Mais tarde,a compreensão religiosa da Restauração produzio a explsão

revolucionária de 1830 e com ella os germens do socialismo que deu

nascimento a communa de Pariz.

387Ibidem. 388Vide Karl Marx. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. 4a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 18. 389Idem, p. 20.

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Não nos illudamos mais: quando o ultramontanismo parece ter assimilado

todas as crenças ao typo romano, é que surgem as theorias desvairadas de

S. Simon, expropriando o homem da família e as não menos dezoladoras

doctrinas de Fourier levando a humanidade inteira ao regimen do

phalansterio390.

A propositura dessa geração de modernos do Ceará tinha, por intenção,

neutralizar a tradição, que eles subestimavam como coisa infundada do ponto de

vista cientificista. Tal transparece em outro editorial do Fraternidade:

"Trabalhemo-nos e conservemo-nos. Tudo mais não passa de mentalidade"391.

Em verdade, foi dentro dessa mesma "mentalidade" que estiveram

imersos. Bem respondeu o Visconde do Rio Branco, face aos apelos dos católicos

tradicionais:

notadamente ao declarar que os maçons do Brasil eram diferentes dos da

Europa, não merecendo, portanto, a condenação da Cúria. Ou melhor

dizendo, essa condenação não se estendia aos daqui, por continuarem

católicos, prestando toda assistência ao culto divino, fazendo parte de

associações religiosas e não manifestando restrições de cunho doutrinário à

Igreja392.

390Vide Fraternidade, anno I, no 09, 06-01-1874. 391Vide Fraternidade, anno I, no 37, 04-08-1874. 392Vide João Alfredo S. Montenegro, op. cit., p. 85. Muito embora João Alfredo S. Montenegro discorde dessa perspectiva. Isso se deve ao fato de que, malgrado as multiplicidade de fontes de sua reconhecida produção historiográfica, predomina nela o veio ideológico que opõe duas visões de mundo, em seus fundamentos axiológicos. Mas reconhece: "O princípio da transição por igual vem testemunhando o encaminhamento de um mecanismo tradicionalista-conservador que perdura até hoje na vida política nacional. Algo que preside às mudanças de regime político, às alterações do Estado brasileiro. Com esse critério político-ideológico se processaram a substituição da Monarquia pela República, a abolição da escravatura, a própria passagem de um nível do Tradicionalismo para outro" (p. 77).

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Claramente expressava-se o jornal Fraternidade, em editorial de 14 de

julho de 1874:“Quando a tempestade serenar, e as nuvens da ignorancia e da

barbaria forem dissipadas dous pontos luminosos hão de indicar aos homens os

caminhos do futuro - a Cruz e a liberdade” 393.

Um dos mais empolgados defensores do positivismo de Augusto Comte,

entre os pioneiros cientificistas, era Rocha Lima. Dele declarou Capistrano de

Abreu: "O coração impelia-o para o espiritualismo, porém a razão perguntava-lhe

se a verdade não estaria com os materialistas. Entretanto nunca foi materialista

(...)"394.

O que repelia os liberais cientificistas desse momento parecia ser a

ressonância que o tradicionalismo tinha no imaginário popular. Muito acertada é a

interpretação de João Alfredo S. Montenegro sobre o tradicionalismo:

Ele desce fundo nos costumes, nas práticas sertanejas, nos mitos, no

sebastianismo, embora transfigurado pela mediação sócio-cultural, a lhe

imprimir orientação paralela, que reforça o fixismo já justificado no plano

racionalista395.

A experiência da rebelião de Pinto Madeira, em 1832, mostrara

inegavelmente a força da religião e da mística na manipulação política local.

Em 1887, já n'A Quinzena, João Lopes salientava a importância social do

grupo dos pioneiros cientificistas, através da folha Fraternidade:

393Vide Fraternidade, anno I, no 34, 14-07-1874. 394Vide Capistrano de Abreu, op. cit., p. 74. 395Vide João Alfredo de S. Montenegro, "Rocha Lima - a obra e a época", in: Revista Brasileira de Filosofia, vol. XXVIII, fasc. 110, 1978, p. 134.

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Esta não exprimia simplesmente uma brecha nos habitos da população

pouco affeita a lettras. Significava uma reacção violenta, sem gradações,

sem medida, contra crenças religiosas, cujo enraizamento no espirito publico

é escusado encarecer e demonstrar396.

Nota-se que o caráter "progressista" do movimento é assinalado por ter

incutido novos hábitos. Estes, eram distintivos da nova sociabilidade de elite, qual

seja, a de homens dedicados às letras. Mais profundo foi o combate não

exatamente à religião e, sim, a "crenças religiosas". Fica também nítido que João

Lopes, que fora ativo membro do grupo, as encarava do ponto de vista de uma

mentalidade enraizada, não simplesmente no pensamento ou nas idéias, mas no

"espirito publico".

Do catolicismo oficial, os cientificistas não tinham críticas aos

fundamentos doutrinários. Achavam que era uma questão de fé. Por isso, alguns

foram agnósticos. Mas interrogavam do ponto de vista do benefício social: o que

restava do ensinamento cristão?

A resposta denota o medo de uma outra tradição como diz o

Fraternidade, em abril de 1874:“Idéias vagas e sem cohesão, prejuisos que

abundam sempre no espirito das classes rudes e timoratas; a credulidade mas não a

fé, a superstição mas não a consciência”397.

AS LITERATICES

396Vide A Quinzena, anno I, no 01, 1887. 397Vide "As inhumações", in: Fraternidade, anno I, no 22, 14-04-1874.

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Abordaremos neste capítulo uma outra expressão do movimento

intelectual local. Trata-se do Clube Literário, criado em 1886 por um grupo de

românticos tardios e de abolicionistas. Sua importância para consolidar o que

temos chamado de imaginário da luz é capital. A luz poderia não ter sido o núcleo

aglutinador, ao redor do qual a elite culta estruturaria suas práticas, opiniões e

mentalidades. É só com o fim do trabalho escravo, em 1884, que essa identidade

torna-se definitiva. O acontecimento é aqui o ponto de intersecção de diversos

vetores conjunturais e estruturais. É ele que pinça para o campo da memória a sua

própria validade, na medida em que é capaz de se auto-reproduzir na posteridade e

de orientar o nosso olhar sobre sua própria anterioridade. O acontecimento é a

mágica da memória. Sua ilusão mais atraente e enganadora é a que nos faz pensar

que as coisas e os seres estavam predestinados a acontecer como fruto de uma

força invisível qualquer.

A identidade do Ceará, Terra da Luz ainda hoje persiste, ou seja, para

além do sol forte e constante, um espaço arejado em idéias e costumes, de onde

saem os "judeus brasileiros" em busca da superação de suas dificuldades pessoais;

homens e mulheres afeitos ao estudo, a única coisa que teriam podido dedicar-se

face às condições castigadas do sertão e às poucas oportunidades em sua pequena

pátria.

Lembremos o discurso d'O Cearense: essa mísera província que esmola

junto a suas irmãs, poderia viver de uma outra maneira, com mais alteridade

poderia ser superior às demais. Lembremos Tristão de Alencar Araripe, o primeiro

historiador, ao evocar confiante a idéia de pátria mais relacionada ao solo

provincial que ao território nacional. Lá na História da Província do Ceará398,

398Vide Tristão de Alencar Araripe. História da Província do Ceará. Recife: Typographia do Jornal do Recife, 1867.

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ele anunciava a vitória do progresso sobre os selvagens. Ali onde estavam

paludosas charnecas, ver-se-iam férteis culturas; os sertões seriam recortados por

estradas; as selvas, se é que assim podemos chamar a vegetação nativa mais densa,

transforma-se-iam em cidades, e o vapor ganharia rios e mares. Já da

movimentação ideológica que invadiu a província com autores e títulos alemães,

ingleses e franceses, disse o Dr. Tomas Pompeu que talvez seu grupo tivesse sido

o pioneiro em idéias científicas no Norte do país e nisso desconsiderava a famosa

Escola do Recife. A historiografia reforçou provincianamente essa trica.

Mesmo os tradicionalistas católicos profetizavam novos tempos através

d'A Tribuna Católica, especialmente assinalando a chegada de D. Luis, como diz

artigo de 1867:

Quando Deus na sua misericórdia determinou dar ao Ceará um Bispo,

provel-o de um bispo de seu coração como Dom Luiz (...)para aquelles que

não crêem na acção lenta da providência seguindo a marcha natural das

cousas como se só devesse obrar por milagre; mas quando estuda as

consequências instituições novas que o nosso Bispo medra e desenvolve

com a sua fortuna, suas luzes e suas virtudes; para quem calcula qual deve

ser o resultado do Seminário e collegio de caridade, dirigido pelas filhas de

São Vicente de Paulo, (...), que Deus por graça ao seu instituidor tem

preservado da desmoralização e concepção comum; (...)não podia deixar de

perceber e entrever um brilhante futuro para esta província; (...) uma

geração nova que se prepara nestes christãos para formar uma nova

sociedade reformada, melhorada e costumes que não temos (...)399.

399Citado por Francisco José Pinheiro, "O Processo de Romanização no Ceará", in: Simone Souza (org.). História do Ceará. Fortaleza: UFC/Fundação Demócrito Rocha/Stylus Comunicações, 1989, p. 196.

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Não é verdade que o fundo de todos esses discursos, mesmo os

cientificistas, é expressivo e até profético? Discurso expressivo, porém, não

discurso utópico. No nosso entender, é uma representação imaginária que busca

uma ação coletiva homogênea.

Para certos historiadores e memorialistas, essas tradições e identidades

elitistas viraram signos referenciais da cultura local. E quem as viu decantar, senão

os literatos e críticos d'A Quinzena, órgão do Club Litterario?

Barão de Studart considerou esse movimento como sendo o

"renascimento" intelectual do Ceará, o mais significativo movimento após a

agitação que se seguiu ao Grupo dos Pioneiros. A Belle Époque chegara, enfim,

com as polêmicas entre modernos e tradicionalistas dos anos 70 do século passado.

ANOS EUFÓRICOS

A imprensa ganha mais chamativos com os anúncios comerciais

ilustrados, a partir de 1873. No mesmo ano, implanta-se a Estrada de Ferro

Fortaleza-Baturité. Herbster, o arquiteto, chega a planejar um novo traçado para a

cidade, dando continuidade ao traçado xadrez (implantado em 1823) e previa os

três boulevars, que efetivamente abriram o espaço citadino.

O próprio desenvolvimento do algodão (desde meados do século),com

sua atuação na diversificação da economia provincial, possibilitava a realização da

já sonhada urbanidade. Novos cabedais chegavam ao Ceará.

O algodão possibilitou os contatos do capital inglês e propiciou uma

maior dinamização sócio-econômica: comércio, divisão trabalho, uma urbanidade

sem indústria. Os primeiros "homens cultos" vinham sendo educados no Seminário

de Olinda e na Faculdade de Direito do Recife. Depois, junto com o capital

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externo que se consorciava com famílias locais, vários elementos aportam na

província com diplomas de curso superior, formados na Bahia, São Paulo, ou na

Corte.

Os bailes começam a ser hábito freqüente nas camadas superiores. A

própria política começa a civilizar-se, recorrendo a eles e criando novos espaços

de decisão tipicamente urbanos.

Os bailes também podiam ser carnavalescos. Os anúncios mostram as

fantasias de carnaval. Essas vestimentas variadas e seus adereços, como as

máscaras, deveriam sair caro para seus participantes, o que era contornado com o

aluguel de fantasias, atividade em que se especializavam certos comerciantes ao

longo dos festejos.

A sociabilidade de elite ganhara certa consistência e a incipiente

publicidade procurava unir a todos, ignorando as polêmicas normais da época,

como demonstra o anúncio que segue, publicado n'O Cearense, em 15 de

fevereiro de 1874:

Passo da Patria

53 - Rua da Palma - 53

Grande e variado sortimento de generos de estivas, louças, vinhos, etc,

etc.

Os proprietarios deste estabelecimmento tendo feito acquisição do predio

n. 53 da rua da Palma, continuão no seu antigo modo negociar, e acabão de

receber um completo sortimento de tudo quanto o necessario para 'agradar o

ventre' que apesar de 'livre' como nos diz a lei patriotica de 1870, não se faz

independente das 'provisões escorregadiças' que fazem o alimento da

humanidade.

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Os maçons, jesuitas e ultramontanos, todos sem excepção terão livre

acesso, e serão bem recebidos, com tanto 'pinguem' os metaes os quaes

podem ser de ouro, prata, cobre, nickel e até mesmo cedulas!

Tudo serve menos o fuso, porque os annunciantes estão dispostos a não

ter escripturação, nem a pagar guarda livros.

No 'Passo da Patria' ha tudo quanto se necessita na salla de jantar, ou na

alcova das panellas.

A dinheiro a vista

Joaquim Filicio d'Oliveira e Irmão400.

A euforia foi interrompida pela seca de 1877 a 1879, sendo retomada no

início dos anos 80. A ausência de uma estrutura mais sólida e diversificada dava

poucas opções aos seus agentes. Os cabedais passam a ser perdidos, as famílias

anunciam que estão mudando e vendendo seus bens.

A sociabilidade elitista cai num vazio durante tal interregno. Logo findou

a seca e o trabalho escravo, já secundário na pecuária, entrava em crise definitiva.

No ano seguinte, iniciou-se a campanha abolicionista, que foi vitoriosa em 1884. É

nesse contexto que entra A Quinzena e os membros do Clube Literário.

Composto por um grupo de literatos oriundos do romantismo e de

membros do movimento abolicionista, o Clube Literário virá para sedimentar com

suas "literatices" o imaginário da "heróica" província do norte que rompeu todos

os obstáculos e conquistou lugar de honra no simbolismo pátrio, ao libertar seus

cativos. É a província da luz como nos diz a famosa frase de Joaquim Nabuco: "A

imensa luz acesa no Norte há de apagar as trevas do sul". O Ceará veria a

possibilidade de ter seu status elevado: de mísera província, a emblema nacional

da liberdade, portanto, da luz do progresso dezenovista.

400Vide O Cearense, 15-02-1874.

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É aqui que se forma uma representação cara ao conservadorismo histórico

e monolítico até poucas décadas atrás, como se pode ver na síntese de Mozart

Soriano Aderaldo:

"O Ceará não é salão de baile. É escola!"- diria na terceira década do

atual século, Silvio Júlio, um pernambucano que aqui esteve por dois anos,

como professor do Colégio Militar, e amou nossa terra profundamente. José

Veríssimo, como relembrou Leonardo Mota em livro sobre a "Padaria

Espiritual", não se tenha de dizer que depois do Rio de Janeiro, "é Fortaleza

a cidade do Brasil onde menos apagada é a vida literária". Na citada obra ,

Leonardo Mota arrolou nada menos de 85 sociedades ou grêmios culturais,

aludindo ainda a outros movimentos disseminados pelo interior do Estado.

Foi por isso que Gilberto Freyre identificou o Ceará, ao lado de Minas e

Bahia, como sede uma das três culturas brasileiras. "Precisa-se do Ceará!"-

proclamou o Mestre de Apipucos, no ano de 1845, em conferência proferida

no Teatro José de Alencar, de Fortaleza. E, na década de 1960, discorreu o

mesmo pensador sobre o "Ceará de que se precisa", insistindo no tema401.

Ainda outros textos poderiam ser analisados, seguindo o mesmo conjunto

de representações. Como representação historicamente situada, dizemos que sua

gênese deu-se por um conjunto de experiências intelectuais da elite culta na

duração entre 1840 e 1890. O Clube Literário foi a desembocadura, não

necessária, mas histórica e antropologicamente possível. A semântica desse

imaginário iniciou como nebulosa mental que flutuava na linguagem social ou que

reluzia instantaneamente, mediada pelos acontecimentos, tal como vagalumes na

401Vide Mozart Soriano Aderaldo. "Renascimento Literário do Ceará". In: A Quinzena - edição fac-similar. Fortaleza: ACL/BNB, 1984

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noite, para usar uma analogia braudeliana. Depois, passo a passo, aqui e ali, vai se

colando aos homens e mulheres da elite e ganhando equivalência mais ou menos

universal quando atinge conexões mais profundas.

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IMAGEM DE POVO, IMAGEM DE NOBRE

A Quinzena, propriedade do Clube Literário, teve sua aparição em 15 de

janeiro de 1887, com editorial escrito pelo antigo participante do Grupo dos

pioneiros, João Lopes. Ali esboçavam-se os objetivos puramente literários do

grupo. Reivindicavam o direito a tal empresa: “ Sabemos d'ante-mão que muito

caro vae custar cada um desses ephemeros prazeres intellectuaes, deliciosos

prazeres que só compreendel-os e poder aspiral-os é já uma fortuna immensa,

gaudio ineffavel” 402.

Mais tarde, na regular crônica d"Os quinze dias", o mesmo João Lopes

insistirá nessa cidadania literária, porém, de forma chistosa:

Sem grandes pretensões, mas com grandes estímulos, enveredou o

Clube Literário no caminho que traçou e não se pode com muita razão

duvidar que chegue em paz ao porto de seu destino. O princípio é

prometedor. A muita gente parecerá de uma insipidez grandemente

bocejante e soporífera isto de sair de casa para conversar literatices.

Questão de gosto. Cá por mim voto pelas palestras puxadas a erudição.

Entre dormir com a macaca dos azares ou com o enredo da última teoria

crítica ou filosófica, prefiro levar para entre os linhos do meu leito as

impressões que me trouxer esta segunda maneira de passar os serões403.

Ao contrário dos liberais positivistas, seu discurso enfatiza a fruição

estética por si próprio e seus grandes adversários seriam os "homens práticos".

Tais homens práticos setenciavam ex-catedra que o público era hostil às atividades

402Vide A Quinzena, anno I, no 01, 15-01-1887. 403Citado por Dolor Barreira. História da Literatura Cearense (ed. fac-similar). Fortaleza: Instituto do Ceará, 1986, p. 123.

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literárias; já que, como o próprio João Lopes aspeava, é algo "que não bota

ninguém para adiante"404.

Porém, alguns elementos tidos como concretos, apontavam um outro

rumo social, motivando esperança no coração e confirmando a vocação

"evolucionista" do povo cearense. Essa palavra era, no texto, o sinônimo de

progressita, esclarecida. Primeiramente, elegia o feito mais nobre dos componentes

do grupo: “A eliminação do elemento serviu foi decretada ‘em nome e pela

vontade deste povo’ quando ainda os governos só se dignavam referir à abolição

do captiveiro para dizer que não cogitavam d'ella” 405.

Em segundo lugar, João Lopes lembra a participação da mulher na

instrução pública oficial do Ceará: “O ensino primário dado pela mulher foi

instituído pelas nossas assembléas, quando ainda não tinha passado de

controversia pedagogica na maior parte do paiz” 406.

Esse papel atribuído à mulher é fundamental entre os românticos. Ela é

idealizada como membro ativo da abolição, já que o abolicionismo cearense

contou com um clube feminino e o próprio jornal A Quinzena tinha em suas

folhas as contribuições do "belo sexo". Sua presença era signo inconfundível de

desenvolvimento intelectual e progresso. Não significa, entretanto, um repensar de

seu papel como esposa e como mãe, que, desde as orientações da Teologia da

Ilustração e os relatórios de presidente de província, acentuavam a importância

dela como primeira mestra de seus filhos.

Nesse ínterim, lembramos o artigo "A mulher cearense", de Abel Garcia,

distribuído em três números do periódico. Para ele, a relação do povo com o seu

meio fez uma população ativa e vocacionada aos desafios. A principal prova

estaria na posição atuante da mulher, quase em pé de igualdade com o homem.

Todos os fatos levantados por estudos histórico-naturais, ou seja, com base em

404Vide A Quinzena, anno I, no 01, 15-01-1887. 405Ibidem. 406Ibidem.

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verdades "escudadas com o prestígio da sciencia e a força de ideias bem

accentuadas"407, viriam a ratificar a índole particular do cearense:

No Ceara o homem é activo, arrojado e impressionavel. As fatalidades do

meio deram-lhe às formas da vida a mais forte organização. Educado na

lucta, energico pela necessidade, tem mais de uma vez attestado

brilhantemente o sentimento profundo de sua força408.

Abel Garcia relembra logo o combate contra a escravidão, "instituição

antipathica à sua indole democratica", o que foi vencido pelo povo cearense. Neste

sentido, empreende a construção de uma identidade psicológica e familiariza a

relação entre as instâncias político-administrativas do Estado:

Rompa por entre os obstaculos naturaes ou sobrepuje os impecilhos e

artificios oppostos pelo governo central que tem para elle a rispidez de uma

madrasta, parece que o cearense timbra em dar a todos seus actos a

sanção do sacrificio409.

Esse feito tão orgulhosamente exaltado tem o cotejo das virtudes naturais.

O conservadorismo de tal proposta procura respaldar-se nos cientistas renomados

do século, como Lamarck, Darwin, Comte, Buckle e Taine. O objetivo é assinalar

a procedência supostamente científica das afirmações e sua modernidade: “O

methodo historico-naturalista vae instruir-nos do modo da formação do caracter

cearense, constatando a divergencia, que apontamos, entre o filho do Ceara e o

typo nacional em geral” 410.

O sol, o solo e outros fatores teriam feito o povo em modalidades específicas,

instigando-o, ao invés de acomodá-lo. As raças pouco desenvolvidas foram

407Vide "A Mulher Cearense", Parte I, in: A Quinzena, anno I, no 2, 30-01-1887. 408Ibidem. 409Ibidem. 410Ibidem.

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suplantadas em seu estágio intelectual pela interação com o meio, no que apurou a

"percepção" e acentuou a "impressionabilidade do systema nervoso"411. A mulher

não foi menos beneficiada nesse processo:

Nesse crescendo de aperfeiçoamento moral do povo cearense,

accumulou a mulher principalmente novos capitaes de potencia cerebral e

flexibilidade de sentimento. Em concurrencia com o homem, nas phases de

agitações physico-sociaes por que tem passado esta provincia, a mulher

conquistou por sucessivas accumulações, hereditarias qualidades superiores

d'espirito, que habilitaram-n'a mais tarde a representar uma figura distincta

na historia da civilização brazileira.412

No mesmo artigo, Abel Garcia chega a comparar a mulher parisiense com

a mulher tida como a companheira do homem, ou seja, a cearense. Aquela, teria

"parca cultura mental, nenhuma participação no torvelinho da vida publica" 413. Já

que a parisiense era protegida das dificuldades e obstáculos e dada apenas a festas

e modas, vivia "psycologicamente em paridade com a criança" 414. Bem diferente

era o comentário de Garcia com relação às raças inferiores indígenas. Ao mesmo

tempo que as considerava como tal, alimentava a idéia de que nelas teria se

construído um outro modo de vida mais participativo para a figura feminina. A

comunhão tribal teria sido mais democrática com os gêneros e nela a mulher seria

habilidosa construtora de objetos artesanais e artísticos, bem como, figura

responsável pela pequena agricultura. Assinalamos que embora o escritor dessas

"literatices" advogasse para si o cientificismo e o naturalismo, estamos ainda

falando de uma representação das mais caras aos românticos locais: a de construir

as identidades coletivas pelo veio do ethos indígena, o que não ocorreu entre os

liberais-positivistas.

411Ibidem. 412Ibidem. 413Idem, Parte II, in: A Quinzena,anno I, no 3, 15-02-1887. 414Idem, Parte II.

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Além disso, toda imagem do mundo feminino pauta-se nas qualidades que

emanam de um bem supremo e resignado:

No exercicio da caridade e da virtude a mulher cearense attingiu muita

vez a essas culminações da perfectibilidade moral da humanidade."(Idem,

parte III).Ou ainda: "A bondade é a feição proeminente de seu caracter. Tem

o segredo de saber soffrer e consolar415.

Francisca Clotilde também resolveu abordar o tema ao escrever o artigo

"A mulher na família"416. Comentou, então, o dilema da mulher heroína versus a

mulher do lar. Para Clotilde, as duas posturas eram incompatíveis, dadas as

aptidões naturais do ser feminino. Naturalmente ela aconselhava o cultivo de tais

aptidões, que relacionavam-se ao cuidado com esposo e filhos, impedindo o

gênero feminino de participar ativamente da luta diária, dado o seu caráter "frágil"

e "nervoso". Em casa, a mulher deveria estimular a união e o prazer dos laços

sanguíneos e de amor, a fim de que filhos e marido não viessem a encantar-se de

outros ambientes externos à casa. A escritora indaga: “Que melhor glória do que

educar futuros cidadãos que saibam honrar a pátria e engrandecel-a com o merito

que sempre resulta das bôas acções?” 417

Como se vê, parece que o papel feminino permanece intocado ao fim do

século. Ele não é pouco importante. A mulher é a primeira educadora e, como tal,

seu gênero não é um fim, mas um meio para o aprimoramento das rudes

qualidades a que está inclinado o gênero masculino. Sua importância não reside no

fato de ser ela o eixo para o qual devem confluir as instituições, já que esse eixo é

o patriarca e, com ele, o gênero masculino; mas em ser a portadora por excelência

da boa moral.

415Vide "A Mulher Cearense", Parte III, in: A Quinzena, anno I, no 4, 28-02-1887. 416Vide "A Mulher na Família", in: A Quinzena, anno I, no 5, 15-03-1887. 417Ibidem.

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Na verdade, essa mulher bem relacionada contrapõe-se àquela dos

sertões, muitas vezes estigmatizada como a luzia-homem, mais firme e viril que o

próprio homem. Este último - ainda lembrando o romance de Domingos Olímpio -

era dado às suas próprias inconseqüências levando ambos ao abismo mortal. A

sertaneja, por outro lado, pode fonte de temor, ao corporificar a rebeldia popular

contrária ao "progresso público".

Essa força aterrorizante parece ter sido pouco impressionável no Ceará, como

nos lembra ainda o editorial escrito por João Lopes:

A adopção de melhoramentos adiantados no commercio e na pequena e

pobre industria da provincia, fez-se sempre facilmente, naturalmente, sem

quebra-kilos e sem levantamento do mulheril sertanejo, diabolica

multiplicação de Maria da Fonte, que andou a dar cabellos brancos aos

governos e colletes de couro aos povos de outras regiães brazilias418.

Esse fato construído pelo imaginário indicava, na maneira de ver de João

Lopes, que as modificações evolucionistas do século não estavam distantes da

compreensão e das aspirações de todo o povo cearense. A ignorância sertaneja,

portanto, não era forte o suficiete para se sobrepor às luzes dezenovistas.

Por outro lado, há entre os românticos um senso de retorno ao mundo

popular, na intenção da folclorização da cultura. Nesse sentido, são mais sensíveis

que os liberais-positivistas, o que não implica em nenhum reconhecimento da

alteridade popular.

O próprio Abel Garcia, há pouco citado, expressa a sua fé no tipo

cearense a partir da interação entre natureza/ambiente e caráter da coletividade:

A ardencia da natureza desta parte do continente sul-americano como

que infiltrou nas feições physicas e moraes de seus filhos os traços reaes da

418Vide "Preliminares", in: A Quinzena, anno I, no 01, 15-01-1887.

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virilidade e altivez de sentimento, que transparece nos seus usos e

costumes, nas suas instituições, na sua pequena litteratura, na sua poesia

popular tão vivamente colorida419.

As literatices incorporaram uma boa dose de folclore, como é o caso dos

trabalhos de Paulino Nogueira sobre a jangada, o caipora, o capoeira, o papagaio, a

carnaúba, a cor morena, a origem indígena das palavras e outros temas.

Ao publicar artigo sobre "A origem da palavra Ceará"420, não esperava

irritar o caturra da geração de modernos, Capistrano de Abreu.

Paulino Nogueira arrola cinco sentidos etimológicos para a palavra,

contestando todas. Expressa a seguinte apreciação sobre a versão de autoria do

famoso romântico José de Alencar, que atribuía a significação de Canto da

Jandaia:

(...) a principio, seduzio-me tanto que no meo Vocabulario Indigena em

uso no Ceará, acompanhado de explicações etymologicas, historicas, etc,

trabalho que ofereci ao Instituto Historico e Geographico do Rio de Janeiro,

preferi-a, confesso, levado principalmente pela autoridade de Alencar (...)421.

A quinta significação etimológica fora retirada de um artigo de

Capistrano de Abreu. A resposta de Capistrano de Abreu foi categórica e bem no

espírito do pesquisador inveterado. Sem fazer concessões, ele sai apontando as

precipitações e mostrando os erros das considerações de Nogueira. Alerta que

comentara a questão sem grandes pretensões, ou dito com suas palavras: "a cavallo

e di galoppo". "Entretanto meu ilustre patricio Dr. Paulino Nogueira apanhou-o e

deu-lhe as honras de uma refutação em regra."422.

419Vide "A Mulher Cearense", Parte I, in: A Quinzena, anno I, no 02, 30-01-1887. 420Vide "Origem da Palavra Ceará", in: A Quinzena, anno I, no 01, 15-01-1887. 421Ibidem. 422Vide "Origem da Palavra Ceará, resposta ao Dr. Paulino Nogueira", in: A Quinzena, anno I, no 05, 15-03-1887.

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A contestação está antecedida por uma manifestação de displicência

frente à suposição do romântico tardio: “Devia dizer agora algumas palavras sobre

a etimologia proposta pelo Sr. Dr. Paulino Nogueira, mas falta-me tempo e

competencia” 423.

Entendia que os padrões de transformação de uma palavra não permitiam

aquela especulação supostamente erudita do escritor. Tendo Nogueira levantado a

significação "Tempo de Caça", escreveu Capistrano: "é exquisito que chamasse

attenção especial no Ceará a caça que é hoje tão insignificante e que naturalmente

foi-o sempre"424.

De forma mais polida, Guilherme Studart também criticou o

procedimento filológico de Paulino Nogueira, quando este escreveu o artigo "A

Jangada"425. Tal artigo trazia: detalhada descrição de suas partes e adereços, uma

explicação etimológica e a exaltação apologética ao jangadeiro defensor dos ideais

abolicionistas:

No dia 14 de março de 1884 trez delles, Francisco José do Nascimento

(hoje alferes da guarda nacional), Francisco José de Alcantara e José Felix

Pereira Barbosa, embarcaram no paquete "Espirito santo" para a Côrte,

conduzindo a "Jangada Libertadora", que foi recolhida, como reliquia

patriotica, ao Muzeo Nacional426.

Paulino Nogueira acreditava que somente o habitante do "Norte" do

Brasil, do Maranhão até Alagoas, seria possuidor dessa embarcação, tal

conhecíamo-la. Sua origem seria nativa, já que feita sem nenhum elemento de

ferro, mas com os meios que dispunha o indígena. A origem etimológica seria:

jan-ig-ára, ou "aquilo que corre n'água"427.

423Ibidem. 424Ibidem. 425Vide "A Jangada", in: A Quinzena, anno I, no 10, 31-05-1887. 426Ibidem. 427Ibidem.

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Studart contestou parcialmente o artigo428, recorrendo a vários

dicionários, enciclopédias e a obras em português antigo, para afirmar que os

materiais de feitura e seu modo de fazer não eram específicos ao Brasil. Quanto ao

nome, é de origem asiática, sendo as expressões "janga" e "jangada" já usadas nos

séculos XVI e XVII, no que não poderiam ser brasileiras "considerando com que

difficuldade palavras puramente brasileiras penetraram na escripta classica de

Portugal" 429. Afirma com pertinência que sua antigüidade não remonta "aos

tempos mythologicos, como disse em perfeita contradicção comsigo mesmo o meu

erudito amigo"430.

Nos artigos de Paulino Nogueira, não há uma compreensão mais profunda

da cultura popular, mas a eleição de certos aspectos materiais e certos fenômenos

que tornam-se objeto de observação e análise conforme um cientificismo por vezes

apressado, sem maiores bases histórico-filológicas.

No seu artigo sobre "Capoeira" 431, discute a capoeiragem, tida como arte

praticada por tipo violento e assassino frio, que mata sem motivo. Conclui ao

realçar, com humor, o caráter pacífico do espírito popular local:

Felizmente ou não, uma cousa posso asseverar com muita ou toda

segurança - é que na nossa Fortaleza e em toda Provincia do Ceará só ha

capoeira com a significação que também lhe dà Moraes no seo

Diccionario: - ladrão de gallinhas.

Aquelles demonios só vivem e medram, desgraçamente, na Côrte e um

pouco tambem no Recife432.

428Vide "A Jangada", in: A Quinzena, anno I, no 11, 15-06-1887. 429Ibidem. 430Ibidem. 431Vide A Quinzena, anno I, no 13, 18-07-1887. 432Ibidem.

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É porém, dentro do horizonte erudito que tais curiosidades populares são

investigadas. Elas não vem a compor um outro horizonte na ordem do mundo, mas

compor uma face hierárquica desse horizonte provinciano.

As representações românticas devem muito ao conjunto de ordenações

aristocráticas do social e, por conseguinte, ao imaginário da exclusão. Mantém

firmes laços com o binômio mental elite versus povo. Este último, como

contraponto necessário ao primeiro. O povo é visto como um conjunto

regional/nacional de valores a serem preservados pela nobreza. Ocorre nesse

processo a cristalização de aspectos parciais da cultura popular, a fim de que se

tornem emblema do puro e do nobre.

Podemos, porém, encontrar n'A Quinzena manifestações claramente

críticas à Monarquia e algumas poucas defesas da República. Isto ocorre pela

identificação da Monarquia com a impropriedade do trabalho escravo. A realeza

tem a legitimidade não só da tradição. Essa tradição precisa ser iluminada, estar a

par com o que há de melhor no mundo das artes , letras e ciências. O princípio da

realeza casa com a ordem do mundo, construída pelos critérios da inteligência dos

indivíduos e das classes.

Tal imaginário vê-se reproduzido provincianamente n'A Quinzena, na

pena de Justiniano de Serpa, ao engrandecer, no artigo "O Povo à Realeza, o

Jubileu da Rainha Vitoria", a linhagem nobre inglesa:

A Inglaterra - no meio das nações civilisadas - não é simplesmente uma

grande potencia politica. "Veneravel pelas altas tradições litterarias do cyclo

shakspereano, pela obra scientifica dos seus grandes sabios do seculo XVII,

como Bacon e Newton, e bem assim pela sua precedencia sobre todos os

povos ocidentaes na conquista e na systhematisação constitucional dos

direitos e liberdades modernas", ella continua a illuminar o seu passado,

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offerecendo á admiração universal quadros brilhantes de aperfeiçoamento e

progresso em todas as manifestações da actividade humana433.

Em seguida, o mesmo autor lista as genialidades inglesas, como Locke,

Hume, Mill, Spencer e outros nomes. Em nenhum momento esse ideal

aristocrático é confrontado com a modernidade. Chamamos aqui a atenção para o

fato (mesmo sendo verdadeiro para a Inglaterra), já que a opção de um modelo de

nação podia ter sido feita diferente. A partir da França, por exemplo. Mas nos

parece que a realeza britânica possibilitou a confluência, de forma mais completa,

do ideal elitista. Senão, vejamos ainda Justiniano de Serpa discutindo os três

componentes indissociáveis da prosperidade inglesa, saber: a riqueza, o progresso

e a realeza:

E a riqueza, como todas as condições de adiantamento e progresso da

nacionalidade britannica, é o resultado immediato ou remoto, da politica real,

profundamente inspirada nos avanços da opinião e nos sonhos côr de rosa

da gloria e da immortalidade434.

Na nação inglesa, ter-se-ia dado a harmoniosa confluência entre "povo" e

"aristocracia", no que se extrairia o "systema de equilibrio que é a essencia do seu

governo" - pensava Justiniano de Serpa435. O único protesto contra a nossa

Monarquia é feito por ela não encarnar as funções que lhe são cabidas: “Uma

cousa apenas ha para lamentar - não podermos imitar os subditos britannicos,

saudando, com a alma de joelhos, a aurora do reinado, que tomou a son métier de

roi a felicidade do Brasil!” 436

É preciso dizer que Justiniano de Serpa não fazia figura de apologista

incondicional de qualquer ideologia, bem como não escrevia só "literatices".

433Vide A Quinzena, anno I, no 12, 05-07-1887. 434Ibidem. 435Ibidem. 436Ibidem.

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Gostava de por à prova da crítica as idéias que lia. Era mais cauteloso, juntamente

com Oliveira Paiva e o José Carlos Junior de "Apontamentos Esparsos"437. Seus

artigos, mesmo conservadores, não eram acríticos. Lembramos a crítica à

influência de Lombroso438 na criminologia e suas ressalvas à idéia perigosa da

valorização de uma classe de gênios que se aperfeiçoaria por hereditariedade, idéia

que, vinda do darwinismo social, desaguaria no nazismo, durante os anos trinta de

nosso século.

Mesmo assim, o imaginário aristocrático persiste, pautando-se nas luzes

da inteligência para dirigir a sociedade, como transparece no artigo "Os Genios",

do mesmo Serpa:

Ninguem conhece uma familia de genios. E é por isso, é porque são

muito raros, que a humanidade tem ainda tanto culto por elles. A

vulgaridade, por mais respeitavel que seja, não se impõe a uma adoração439.

O que esse grupo literário pretendeu foi legitimar uma mentalidade já

vigente. A inexistência de tradições coloniais, de famílias verdadeiramente nobres,

foi compensada pela apologia das luzes, da vocação para o desenvolvimento da

inteligência.

OS ÚLTIMOS ROMÂNTICOS

Um valioso artigo de Antônio Bezerra, intitulado "O Nosso Progresso"440,

foi praticamente inexplorado pela historiografia. Nele, Bezerra recupera a

437Vide A Quinzena, anno II, no 06, 16-04-1888. 438Comentou sobre a escola de Lombroso: "Consequencia da falta de limites, nos dominios das sciencias, e mais ainda do hyperbolismo scientifico dessa jeune école presompteuse, conforme á expressão de Renan. Felizmente para a humanidade as legislações estão ainda muito longe de se deixar fascinar pelo brilho das novas doutrinas. Entre a theoria e a pratica medeia ainda um verdadeiro abysmo" (in: A Quinzena, anno II, no 03, 23-02-1888). 439Vide "Os Genios", in: A Quinzena, anno II, no 02, 31-01-1888.

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trajetória dos românticos cearenses. Diz-nos que se reuniam desde fins dos anos de

1860/69, com o intuito especial de propagar a literatura.

Conforme Antônio Bezerra comenta poucos é que dedicavam-se a

atividades desta natureza, "ainda menos a especulações scientificas"441 - cito suas

palavras.

A reunião do grupo era feita aos domingos e dela participavam Juvenal

Galeno, José de Barcellos, Catão Mamede e Dr. Augusto Barbosa. Pensou-se em

um jornal, depois numa biblioteca e, por fim, numa associação.

Não encontramos registro qualquer dessa associação e imaginamos que,

como ela, podem ter surgido outras de igual cunho, ou seja, imbuídas de desejos e

estéticas românticas. O fato é que essa associação não teve êxito, nem apoio dos

liberais-positivistas.

Antônio Bezerra ainda buscou as publicações esparsas n'O Cearense.

Todavia, parecem lhe ter sido indiferentes, como à proposta de seus companheiros.

Afirma ele, com certo ressentimento: “(...) e de tudo quanto escrevi, me lembro

que uma única vez encorajou-me a prosseguir o Sr. João Brígido” 442. (Grifos

nossos.)

É significativo o quanto se revela nesta passagem. De antemão, a

clivagem entre dois horizontes imaginários: os românticos, preocupados com a

literatura; e os liberais, preocupados com a vida prática, a política, a história, a

geografia, como enfatiza mais adiante.

Aqui, lembramos de que Antônio Bezerra era filho de um tradicionalista

católico, o Dr. Soares, como ele diz. Soares fora o rival impertinente de João

Brígido e seus moços do Fraternidade, como explicitamos em capítulo anterior.

Bezerra chega a lembrar o quanto era difícil congregar grupos de

intelectuais como esses, e qual o resultado político e ideológico do embate:

440Vide A Quinzena, anno II, no 07, 03-05-1888. 441Ibidem. 442Ibidem.

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Travou-se luta renhida na imprensa entre a Tribuna Catholica e a

Fraternidade, e si bem que tivesse sido desesperada a resistencia

empregada para deter a invasão do ensino livre, triumphou este afinal,

augmentando de dia em dia o numero dos adeptos, que vinham participar

das vantagens dos vencedores443.

Os "vencedores" haviam sido os cientificistas. Entretanto, uma vitória que

era um sintoma de uma mudança mais global e que os próprios românticos farão

uma apropriação. Tal se faz numa apropriação discursiva sobre a ciência, as luzes

em geral, acompanhando o bonde do século. É assim que seus associados abrem

certas ocasiões para conferências públicas, que elogiam o evolucionismo e o

naturalismo.

Permanece, porém, o afastamento da política, tida como o locus da

degeneração e pouco adequado a homens como eles. Seu elitismo consta no

próprio Estatuto. Nele, o filantropismo para com as classes menos instruídas, que

orientou as demais agremiações, é obnubilado por inteiro. O artigo I traz como

objetivo fundamental: “- O CLUB LITTERARIO tem por fim promover e activar

o progresso intelectual de seus associados ” 444.(Grifos nossos.)

Além disso, o critério de entrada era restrito, conforme o artigo V: “- So

podem ser socios do Club os homens dados às letras”445.

A política era o que mais lhes obstacularizava no prestígio e na atenção

pública. Os membros d'A Quinzena, em plena década de oitenta, ainda

reclamavam do desdém daqueles que não pertenciam à agremiação. Em certo

artigo446 criticou-se a população local, já que esta só lia Escrich e Paulo de Kock -

certamente autores menores - e as tricas da imprensa política.

443Ibidem. 444Vide A Quinzena, anno I, no 17, 17-09-1887. 445Ibidem. 446Vide A Quinzena, anno II, no 01, 15-01-1888.

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O artigo de Antônio Bezerra citado agora há pouco pintava um quadro

mais desolador durante os anos anteriores ao Fraternidade, já que segundo ele,

até então, os moços em retorno do Recife deixavam-se vencer pela indolência.

Antônio Bezerra deixa claro o fato, que faz recrudescer o romantismo e

reunir todos num mesmo conjunto de representações:

Com o aparecimento da Sociedade Cearense Libertadora em 1880, que

fez olvidar os estragos da secca pela soffreguidão de que se achavam os

consocios possuidos para debellarem o inimigo commum - a escravidão,

ninguem pensou mais nos resentimentos despertados por esta ou aquella

doutrina, e todos animados do mesmo sentimento, do mesmo zelo, da

mesma energia, desdobrando ao quatro ventos a bandeira branca da

confraternização universal, vieram a ensaiar as armas de combate nas

paginas do Libertador, orgam daquella sociedade, que tornou-se em breve

uma escola de patriotismo e instrucção447.

A sensação que tinham os atores era a de que chegara o fim de um ciclo e

o Ceará estava pronto para alçar vôo:

Se não pussuimos litteratura nossa, temos todavia em elaboração

diversos trabalhos que mais tarde, reppelidas as formas acceitas, segundo a

tendencia geral, hão de dar em resultado tornar-nos uma excepção no paiz,

como a Hungria o é no meio da Europa448.

Daí para diante, os anos verão reproduzir largamente a pompa dessa

época.

447Vide Antônio Bezerra. "O Nosso Progresso", in: A Quinzena, anno II, no 07, 03-05-1888. 448Ibidem.

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Todavia, a República, as novas modas, a industrialização e as novas

gerações intelectuais vieram lhes desfazer a euforia. Veio, então, o saudosismo da

Fortaleza daqueles tempos...

Destaca-se, neste novo contexto, o grupo da Padaria Espiritual. Dentre

eles, Adolfo Caminha, que recolocou o problema da tal modernidade cearense,

munido de um olhar profundamente crítico. De um de seus personagens saiu essa

fala: “Província estúpida! Estava doido para se ver livre de semelhante

canalhismo. E àquilo é que se chamava terra da luz!” 449 CONCLUSÃO : REPRESENTAÇÕES EM TORNO DA LUZ - 1840/1900 Com a instalação da República vem o ceticismo, o sentimento de traição e crise dos ideais. Senão vejamos o que diz Farias Brito:

Quem me conhece de perto, sabe o que sucedeu. Eu tinha um ideal

incompatível com nossas condições sociais, um ideal talvez absurdo

considerando-se as circunstâncias do meio; e porque conheci que era

impossível realizá-lo, condenei tudo que se fazia. A impaciência de que me

achava possuído e o estado de excitação em que estava precipitaram meu

procedimento, e descrendo de todos e de tudo, considerei inimigos todos os

que não se mostravam de acôrdo com meu ponto de vista. Cheguei a ser

dominado pela intolerância dos fanáticos. Tudo o que eu sonhava de bom vi

transformado em anarquia e desordem, perturbação e injustiça. Compreendi

que o patriotismo é uma palavra sem sentido e perdi minha fé no direito. Foi

uma luta terrível a que se operou em meu espírito; e a república passou e eu

fiquei de fora450. Ao longo desses processos de transformação, no convívio com a história real, as elites cultas vão se relacionando com seu cotidiano e fazendo imagens do

449Vide Adolfo Caminha. A Normalista. 9a ed. São Paulo: Ática, 1992, p. 54. 450 Vide Farias Brito. Inéditos e Dispersos. São Paulo: Grijalbo, 1966, p.46

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vivido numa realidade em constante mudança, desde a economia até os hábitos sociais e o traçado da cidade. A cidade modificara a própria configuração do traçado urbano. O início do século (1823) conhecera o plano urbanístico em traçado xadrez de Silva Paulet, que foi garantido pela atuação do poder público e continuado na ação ampliadora do engenheiro Adolfo Herbster, com apoio da presidência da Câmara. Herbster elaborara a primeira planta em 1859 e, depois, em 1875 e 1888, idealizara dois planos diretores para o crescimento harmonioso e ordenado de Fortaleza em anos distintos, acompanhando as novas necessidades que surgiam no decorrer do século451. Estas necessidades ampliavam-se cada vez mais e de maneira acelerada durante toda segunda metade do século XIX. As exportações de algodão a partir dessa época, em especial desde a década de sessenta, e os contatos de agentes comerciais ingleses de Liverpool propiciariam a detonada e o desenvolvimento, ocupado depois por firmas estrangeiras e mistas, do almejado progresso material e a mobilização de capital significativa para redimensionar a cidade, que passa a ser o centro decisório do que acontece na província452. Como os homens cultos e membros da elite relacionavam-se com a sociedade em ritmo de mudanças? Que imagens formulavam da população e que implicações elas possuem sobre a cultura política local? Quais pluralidades e virtualidades podemos encontrar nessas elaborações? Este trabalho procurou dar resposta a estas perguntas. A análise do discurso demonstra a centralidade da idéia da luz, como catalisadora de um conjunto de representações e identidades. O aspecto elitista e pomposo da linguagem, as imagens transmitidas pelos monumentos (geralmente do mundo greco-romano) e mesmo as referências diretas sobre “o cidadão comum”, parecem dar um caráter predominantemente aristocrático, o qual foi problematizado. Mas esses aspectos indicativos são partes de um campo complexo, vacilante, que não pode ser homogeneizado. A própria intelectualidade não queria perder de vista os que lhe cercavam, como indagou Pompeu: “Quais os documentos legados pelas eras mortas para reconstruir a alma dessa multidão anônima?”453. Além do caráter desqualificador sobre o popular, houve impulsos e desejos de cognoscibilidade. Em 1895, dizia Pedro de Queiroz em discurso na Academia Cearense:

Os coloristas da tribuna iluminam o salão, deslumbram ao auditório com

os fulgores da eloqüência.

Mas a lei do claro/obscuro é fonte inexaurível nas regiões da arte. O

painel de valor artístico deve em proporção ser banhado de luz e sombra,

451 Vide Raimundo Girão, “O Boticário e o Herbster”, in: Raimundo Girão. Geografia Estética de Fortaleza. 2a. ed.Fortaleza: BNB, 1979. 452 Vide José Borzacchielo da Silva, “O algodão na organização do espaço”, in: Simone Souza(org), História do Ceará. Fortaleza: UFC: Fundação Demócritgo Rocha: Stylus Comunicações, 1989. 453 Vide Thomaz Pompeo de Souza Brasil, “Discurso proferido pelo sr. dr. Thomaz Pompeo na sessão de 12 de março de 1889, por ocasião de sua posse de sócio efectivo”, in: Revista do Instituto do Ceará, tomo III, 1889.

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cuja combinação dá a sensação da forma na tela de Rembrandt, que

realçava os brilhos de uma pelo vigor da outra.

Pois bem eu sou a sombra desse quadro454. Estudar as mentalidades e expressões culturais de qualquer realidade implica, freqüentemente, em armadilhas perigosas, teórica e metodologicamente incorretas, em especial se falarmos de popular e de elitista ou dominante. Delimitar uma problemática profícua implica em preparar estratégias para recuperar as sutilezas inaparentes, criticar o explícito e fazer aflorar os recantos ainda ocultos, mas recorrentes. A documentação, quase toda das elites, estará sempre disposta a nos conduzir a uma história fria e límpida, cujas montagens e peripécias nos falarão apenas sob a máscara da realidade e nunca sob o caráter de construção histórica. Discutir até que ponto os símbolos e imaginários atingem ou não a camada popular é um lado fraco da questão. A elite já constrói a sua própria idéia do que seja “povo”, e nesse construir já está presente o bloqueamento dos subalternos em seus projetos políticos e culturais. A construção e a arregimentação de forças humanas para levar a cabo o projeto burguês, passa por critérios que ordenam e estabelecem a função de cada componente que irá interagir para o progresso material e cultural de uma nação ou tão simplesmente da província. No Ceará, um dos primeiros órgãos da imprensa a realizar a convocação de todos para fornecerem esforços pelo “mísero Ceará entregue a tantos obstáculos, que entorpecem seu desenvolvimento”455 foi O Cearense, o jornal liberal fundado por Tristão de Alencar Araripe e Frederico Pamplona. O Cearense coloca já em questão a relação saber/progresso e saber/ordenação social:

É o genero humano como um campo lavrado. O agricultor espalha por

elle as mesmas sementes: mas aqui nascem, e crescem com vigor; alli

outras são tardas e acanhadas; acolá outras nem sahem a superficie da

terra. O creador a todos os homens deu intelligencia, porem a de uns é mais

facil em mostrar-se, e se desenvolver, a d’outros menos, e em outros

finalmente está como sumida. Assim como não aconselharemos aos moços

dessa ultima classe, que se dêm ao cultivo do espírito, por que melhor

sortirão em applicações materiaes; tambem não soffreremos, que se

desanimem os que não têm intelligencia superior. Nestes o trabalho pode

vencer a Natureza. A arvore acanhada no crescimento, se o jardineiro lhe

454 Vide Revista da Academia Cearense. Tomo II, 1897. 455 Vide “O Cearense”, in: O Cearense, Fortaleza, no 1, 04-10-1846.

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achegar estrume ao tronco, e com cuidado a regar, tempo virá, em que

igualhe áquellas, cujos ramos vergarão depressa com o peso dos fructos.

(...) Consultemos os entendedores illustrados e justos, elles nos emendarão

os erros; e aprenderemos a corrigil-os. Se os ignorantes nos atassalharam,

sem attender ás nossas intenções, isto mesmo nos será proveitoso; por que

nos acostumaremos a desprezal-os456. O escrito tem o tom retórico, com caráter de ensinamento. Soa como uma doutrina explicada a um público leigo. esses elementos do estilo do autor, o qual desconhecemos, dizem respeito ainda a uma sociedade tradicional, anterior aos movimentos cientificistas, evolucionistas e conteanos da década de setenta do século transato, que se instaurará no Ceará em função do movimento lítero-filosófico que tinha à frente Rocha Lima e Tomas Pompeu de Sousa Brasil, o qual intitulou Grupo dos Pioneiros. A intelectualidade está ainda marcada fortemente pelo espírito da moral e retórica católico-cristã, mas podemos identificar elementos de raciocínio positivo, a mesclar-se com o tradicional, produzindo e projetando uma racionalização sobre a sociedade. O elemento inspirador dessa construção imaginária que divide os homens em classes provém da fonte bíblica do evangelho, presente em três dos quatro evangelistas (Mt 13, 1-23; Mc 4, 1-20; Lc 8, 4-15). A parábola do semeador original nos fala de uma divisão quadripartida da humanidade na sua relação com Deus. Haveria a semente que mal chegaria à terra e que seria levada pelos pássaros, a que cairia entre pedras e seria queimada pelo sol, a que nasceria entre os espinhos e, por último, a que se desenvolveria e frutificar-se-ia em boa terra. Em Marcos (4,14) temos: “O que o semeador semeia é a palavra”. Em Lucas (8,11): “O sentido da parábola é este: a semente é a palavra de Deus”. Ocorre no texto d’O Cearense uma reconstrução e, mais ainda, uma ressemantização completa da parábola evangélica. O esquema é simplificado com uma estratificação tripartida do social e as palavras procuram ser as mais simples e mais próximas da experiência de uma sociabilidade simples e mais próximas de uma sociabilidade rural e natural: campo lavrado, agricultor, sementes, nascem/crescem, cultivo do espírito, trabalho, natureza, árvore acanhada no crescimento, jardineiro, estrume, tronco, regar, ramos, frutos. Há, também, no sentido geral do texto, uma laicalização da temática. No evangelho, é uma relação homem/Deus e, n’O Cearense, trata-se da relação sociedade/saber útil. Os três tipos de homem, aquele no qual a inteligência aparece com facilidade, aquele que se desenvolve a custa de maiores esforços o seu conhecimento e aquele com a inteligência desapareceu, deparam-se com suas capacidades intelectuais humanas e a semente, que tinha o sentido de palavra de deus, passa a ser a ciência e seus resultados. Sobressai marcantemente a mescla de concepções e mentalidades: a expressão do científico pelos cânones do catolicismo e do tradicionalismo. Ciência e moralidade estão coladas, os “entendedores ilustrados e justos” associam os

456 Vide “O desânimo em matéria de estudo”, in O Cearense, Fortaleza, no 13, 27-12-1846.

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campos que fluem das atividades humanas e divinas: 1) o saber sobre a natureza provindo da ilustração; 2) a justiça iluminada pela “palavra”. A “árvore acanhada no crescimento” é uma reprodução sem modificações de uma outra passagem evangélica presente em Lucas (13, 6-9). Quando este faz referência à pequena parábola narrada por Cristo da figueira que não dava frutos, e o proprietário havia mandado cortá-la, explica que este recebeu um apelo de seu vinhateiro: “Senhor, deixa-a este ano ainda, que eu vou cavar ao redor dela e colocar adubo. Se produzir fruto, ainda bem; senão, a cortarás no futuro”. A palavra vinhateiro está substituída por jardineiro no artigo d’O Cearense. As “doutrinações” d’O Cearense são, portanto, profundamente aristocráticas e hierárquicas, jogando para o popular toda uma carga de negatividade e negando mesmo qualquer cultura entre os homens da última classe: naqueles a inteligência sumira. Não há diálogo possível, só ensinamento e domesticação ao saber culto e religioso. Essas imagens aristocráticas se reforçam ainda mais depois da penetração do contismo e do evolucionismo e tendências modernizantes. Em 1895, estavam reunidos ao mês de agosto, dia 15, os membros da Academia Cearense “com o concurso de grande número de convidados, á hora designada (1 da tarde)”457. Era a “sessão solemne commemorativa do 1o anniversario da Academia Cearense”458 e estava sendo realizada no Palacete da Assembléia Legislativa, um dos palcos do poder político-intitucional. “Fizeram-se representar na solemnidade a Assembléia Legislativa, a Escola Militar, Tribunal de Relação, Instituto do Ceará, Justiça Federal, Imprensa, Corpo Consular, Magistratura Estadual, as sociedades litterarias Padaria Espiritual, Centro Litterario, Phenix Caixeiral, Congresso Estudantal, Sociedade de Arboricultura, Congresso de Sciencias Praticas, Lyceu e Escola Normal, Instituto de Humanidades, Escola Christã, Gymnasio Cearense e Parthenon Cearense”459, toda a Fortaleza das letras que começou por escutar Tomás Pompeu de Sousa Brasil e ouviu-lhe dizer que “neste recinto todos têm os mesmos direitos de cidade, as mesmas garantias de externação, os mesmos tributos de respeito e homenagem. É um campo aberto a todos os romeiros da intelligencia, no centro do qual ergue-se o altar de uma única divindade, que adoramos - a TOLERÂNCIA”460. Pompeu opunha, na verdade, o campo do saber ao mundo profano da política onde o embate possui outras mediações; mas ainda fazendo ciência, fazia política no sentido mais amplo que tem a ver com cultura e com visão social de mundo.

Quero crer [ disse ainda Pompeu ao mesmo dia ] que ha diffundido no

espaço e para cada estagio da humanidade, um fluido imperceptível de

idéas, que irradia os cerebros privilegiados dos Sakia-Muni, Moysés,

457 Vide “Ata da Academia Cearense, de 15 de agosto de 1895”, in: Revista da Academia Cearense, tomo I, 1896. 458 Ibidem. 459 Ibidem. 460 Vide Thomaz Pompeo de Souza Brazil, “Discurso lido perante a ‘Academia Cearense’, na sessão

magna do 1o aniversário, pelo seu presidente”, in: Revista da Academia Cearense, tomo II, 1897, p. 10.

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Socrates e Platões, dos Christos, São Paulos e Lutheros, dos Praxiateles, e

Miguel Angelos, dos Dantes e Shakspeares, dos Newtons e Laplaces, dos

Bichats e Pasteurs e de tantos outros que projectam fugazmente luz viva,

deslumbrante, na meia sombra em que vive a aura mediocritas das

intelligencias communs, para em seguida descer mortiço as profundezas

mentaes do povo ignaro461. Novamente temos aqui um esquema tripartido da sociedade, agrupada pelos seguintes elementos: 1o) cérebros privilegiados; 2o) as inteligências comuns; 3o) o povo ignorante. As referências a personagens religiosos podem, primeiramente, nos sugerir uma interpretação semelhante à anterior, mas se repararmos melhor, podemos perceber um cosmopolitismo enciclopédico que não estava presente ainda na cultura tradicional católica. Sob este aspecto poderíamos dizer que há uma abertura maior da sociedade referenciada pelas modas intelectuais da Belle Époque européia. Reina a tolerância. Porém, a permanência dos quadros mentais sobre o social continua a excluir a massa da população, encarada como sombra dos cidadãos letrados e a incluir com desconfiança a meia sombra, os homens de cultura média. Na oposição do luminoso/sombrio não somente está o popular, mas também o campo do cotidiano. Diz-nos ainda Pompeu:

As conquistas da sciencia vão depressa como os mortos da lenda

germanica: o vapor, a eletricidade não gastaram um século para percorrer e

penetrar as ultimas camadas das sociedades civilisadas. Não assim as idéas

moraes; os mais belos preceitos, as predicas evangelicas de Christo, quão

longe estam de ser comprehendidas e de objectivarem-se em actos da vida

ordinária!462 O homem e o cotidiano são os alvos da ciência e, ao mesmo tempo, os seus estorvos. Para explicar essa relação, Pompeu recorre às mesmas imagens da parábola do semeador:

É que as idéas, como a bôa semente, precisam terreno apropriado,

adubado, para produzir e fructificar.

461 Idem, p. 07. 462 Vide Thomaz Pompeo de Souza Brazil, “Discurso lido perante a ‘Academia Cearense’...”, op. cit., p. 07.

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Laborar esse sol, preparal-o, mondal-o, eis a tarefa dos sonhadores -

philosophos, poetas, litteratos - que como os modestos e obscuros socios da

- Academia Cearense - nutrem a grata esperança de facilitar a adaptação

d’aquellas idéas ao meio em que vivem, ás intelligencias que os rodeiam463. Dá-se ênfase, aqui, à função predeterminada que possui o intelectual. Ele deve estar a serviço do progresso cultural, o campo das idéias, assim como as inovações técnicas e seus inventores estão a serviço do progresso material. Estabelece-se uma diferenciação de ritmos de mudança entre o mundo material e o mundo subjetivo ou cultural. Essa distinção já estava patente sob um corte mais radical, no prefácio do livro Finalidade do Mundo, de Farias Brito, que foi discutido nas primeiras sessões da Academia Cearense. Para Brito havia dois campos de conhecimento com suas categorias específicas e úteis somente dentro de cada corte epistemológico. O conhecimento objetivo utilizar-se-ia das categorias de espaço, tempo e causalidade e teria suas origens na filosofia crítica de Kant. “Mas estas categorias não são suficientes, são verdadeiras, mas não bastam. São as categorias do conhecimento objetivo, mas somente do conhecimento objetivo”464. Para o que Farias Brito chamou de “conhecimento relativo aos fenômenos subjetivos”, ele propunha as categorias do sentimento, conhecimento e ação. A distinção do objetivo em relação ao subjetivo delimita um campo de engajamento para as academias e seus membros, uma comunhão cultural que nos interessa na percepção das relações classes sociais e camadas cultas. As academias são a expressão e , ao mesmo tempo, o campo de produção de mentalidades na província. Suas idéias e preconceitos não estão apenas no mundo estritamente acadêmico. Estão, até anteriormente, em outros setores da sociedade, mesclando-se às influências exógenas. Na instrução pública, por exemplo, vimos repassar a mesma concepção aristocrática de que falamos. A divisão entre o ensino primário e o ensino secundário e o ensino para mulheres revela uma tripartição da educação e de sua clientela, embora não agrupe exatamente as mesmas partes anteriormente citadas. Também encontramos uma mentalidade hierárquica e aristocrática presente nos hábitos sociais da década eufórica dos anos oitenta do século passado, o momento que registra, pelo menos a nível de Fortaleza, um espírito modista, frívolo e jocoso, acentuado. A ilusão mais real da entrada em outros tempos, alimentados pelas campanhas republicana e abolicionista. Reforça-se, como especial fonte de alimentação dessa mentalidade de curto prazo, a antecipação mitológica dessa última no Ceará. A memória histórica até hoje reproduz frases como a de Joaquim Nabuco sobre a “imensa luz acesa do norte” a destruir “as trevas do sul”. Além disso instaura-se toda uma representação fundante de uma cultura superior:

463 Idem, p. 07-08. 464 Vide Farias Brito. A Finalidade do Mundo. 2a ed. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957, vol. I, p. 36.

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E a fase que sucedeu a essa criação robusteceu-se dia por dia, com o

nascimento de novas casas de educação secundária, ao mesmo passo que,

embora sem a convergência em agremiações, como as do ciclo de 1884-

1894, florescia nas letras e nas ciências uma porção de inteligências

vigorosas a produzir optimos frutos, prosadores e poetas, educadores,

filólogos, juristas, jornalistas, estudiosos, mestres que, abundantemente,

adornavam com as suas produções a já milionária cultura da Terra do Sol465. Em 1887, Farias Brito publica o poema “Luz e Sombra - fragmento”, no qual lemos a seguinte passagem:

Ha muita analogia entre as paixões humanas/ E as forças naturaes,

immensas soberanas/ O crime é a noite escura, as sombras da caverna/ A

virtude é uma flor, uma alvorada eterna/ No céo do coração. A alma tem

auroras,/ Tem manhãs ideáes, manhãs consoladoras/ E tem noites horríveis,

noites de explosões466. Repassa nesse escrito d’A Quinzena, uma mescla, ao mesmo tempo, uma síntese de todas as matrizes sociais e teóricas anteriormente analisadas. Há imagens naturais-populares quando o autor vê a majestade e espanto que a natureza provoca na subjetividade humana, o que está subordinado ao moralismo que articula-se na contradição crime versus virtude. Essa moral imagética não dissocia-se de temas nitidamente filosóficos: claridade versus sombra, a caverna de Platão e a oposição entre razão e paixões humanas. O discurso tem uma tônica esclarecida, ao mesmo tempo que religiosa, moralista. Há também débitos com liberalismo e, obviamente, com o romantismo. Nesses mesmos anos podemos vislumbrar uma tripartição ordenadora do social, através da hierarquização do principal espaço de lazer da cidade, que foi o Passeio Público467. Essas diversas construções parecem erigir-se sobre uma base mais ou menos comum que é a do esquecimento ou esterilização do que não representa o progresso, da cultura popular, do ordinário da vida dos comuns e da imaginação livre que não se subordina ao imperativo utilitário. As concepções da história desses homens que voltam privilegiadamente o seu olhar para o futuro, fazem do passado um tempo vazio e quase óbvio. Uma brochura escrita por Barão de Studart, por exemplo, justifica a catalogação e publicação de documentos do passado “pelas razões que saltam

465 Vide Raimundo Girão. Pequena História do Ceará. 4a. ed. Fortaleza: UFC, 1984, p. 229-230. 466 Vide A Quinzena, anno I, no 18, 15-10-1887. 467 Cf. Capítulo 2.

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aos olhos de todos”468 e reclama: “O amor Brazileiro, em geral, pelos papéis velhos é nullo pode-se dizer”469. Noções quase óbvias porque na verdade as próprias fontes já nos apontam que atrás da obviedade está a memória construída sem popular e sem cotidiano, sem imaginação livre. É o caso da discussão que se dá nos anos noventa, em torno da mudança do nome de Fortaleza para Iracema, que significaria uma representação da cidade, embora no campo da cultura superior do romantismo, muito mais imaginativa. O importante é ressaltar que nesse embate, na luta por nomear, por estabelecer um referencial memorável, as mentalidades tornam-se campo de luta, para definir o que é obscuro e o que não é. O conselheiro Alencar Araripe escreve em carta ao Barão de Studart, discutindo o assunto e, na argumentação, elogia a mudança da vila “Maria-Pereira” para vila “Benjamin-Constant”:

Substituio-se o nome de uma mulher obscura e desconhecida pelo de um

varão eminente470. Studart dissera ainda:

Cidades, praças, ruas vejo condecoradas com os nomes de umas

mediocridades [...]; até mesmo as creações poéticas ou os devaneios da

imaginação de escriptores e litteratos ha quem deseje ver perpetuadas com

o baptismo das nossas cidades e villas, embora se atropele a tradicção e

nada lucre com isso a verdade, a realidade471. Verifica-se, portanto, que nossa pesquisa teve como referencial toda uma construção mental e imaginária da realidade que, embora não seja una e nem possa ser, revela o que Lilian Moritz Schwarz chamou de “situações plenas de significação”472. Da década de noventa em diante o horizonte de euforia arrefeceu. As novas gerações intelectuais distanciavam-se da política e surge, então, a maior novidade: a Padaria Espiritual. Ali todo intelectualismo e provincianismo estava abolido. As reuniões enfadonhas e superficiais, a retórica exagerada, o palavreado rebuscado, foi tudo abaixo. A ironia e a irreverência ganharam a tônica, para relativizar a moral rígida da luz, herança pesada do moralismo católico. Os meninos da Padaria foram os primeiros e verdadeiros mundanos da Fortaleza. É somente aí que se abriria uma mentalidade letrada, porém, menos distante do elitismo. O barroquismo deu vez

468 Vide Guilherme Studart. Documentos para a Biografia do Fundador do Ceará. Fortaleza: Typographia Studart, 1895, p. I. 469 Idem, p. III. 470 Vide “Carta do Ilhmo. Snr. Conso. Alencar Araripe ao Director da ‘Revista do Instituto do Ceará’ ”, in: Revista do Instituto do Ceará, tomo X, II trimestre, 1896. 471 Vide Guilherme Studart, op. cit., p. XXVII. 472 Vide Lilian Moritz Schwarz. Retrato em Branco e Negro. São Paulo: Círculo do Livro, 1988, p. 15.

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ao verdadeiro modernismo que anos após será sacralizado pela Semana de Arte de São Paulo. Isso já é uma outra história...

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