querido professor

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QUERIDO QUERIDO QUERIDO QUERIDO PROFESSOR PROFESSOR PROFESSOR PROFESSOR ANOS 80 ANOS 80 ANOS 80 ANOS 80 Autor: Sylvia Seny Editora

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Page 1: Querido professor

QUERIDO QUERIDO QUERIDO QUERIDO PROFESSORPROFESSORPROFESSORPROFESSOR

ANOS 80ANOS 80ANOS 80ANOS 80

Autor: Sylvia Seny

Editora

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1 Ler & Gostar

Seny, Sylvia Feitosa; Querido Professor Poá, SP: Editora Transformi, 2011 70 p. ISBN: 978-85-65194-01-3 1. Literatura Brasileira. 2. Romance 3. Poesia. Sylvia Seny. III. Título CDD 869.3.

CAPA: Gabriella Ramos ILUSTRAÇÕES: Lillian Naitzke

Índice Dedicatória Prefácio

Capítulo 1 Encrenca Dor de mundo adulto Caricatura Menarca Deise Sete de Setembro Seminário de Ciências Outro Eduardo Colegial x Amigos errados Álbum de Fotos Revista no ônibus, alcoolismo. Meu querido professor Carta Informal

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“porque não existe nada difícil para Deus”

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--------------------------x--------------------------------x------------------------ “Só ouvia o barulho da água do chuveiro interrompido por uma pequena voz que indagava por baixo da porta: mãe você está aí?” “A pipa está pedindo linha Ruan”. - Ta pedindo nada, ele não sabe falar!” Ruan Lucas, eu estou aqui e sempre estarei pra você enquanto eu Ruan Lucas, eu estou aqui e sempre estarei pra você enquanto eu Ruan Lucas, eu estou aqui e sempre estarei pra você enquanto eu Ruan Lucas, eu estou aqui e sempre estarei pra você enquanto eu viver, te amo filho.viver, te amo filho.viver, te amo filho.viver, te amo filho. ---------------------------------x--------------------------x-----------------------------------

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---------------------------------x--------------------------x----------------------------------- “num pra fazê isso...” Lembro-me muito da sua maneira de argumentar, Lillian Késia hoje você fala corretamente (e argumenta como ninguém!), porém o brilho nos olhos e o sorriso ainda são os mesmos que fazem repetir milhares de vezes: Jesus muito obrigado pela minha filha! ------------------------------------x----------------------------x-------------------------------

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------------------------------------x----------------------------x------------------------------- Às vezes quebra todas as barreiras quando diz com ar de historiadora com mistura de psicóloga: “entendo-te, mama”. É aquele mesmo bebezinho risonho, carequinha que encantava á todos e agora sabe cozinhar e ama futebol. O que vou fazer quando você se casar Kássia Gabriela? --------------------------------------x--------------------------x--------------------------------

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Agradecimentos: Ao meu Deus sempre e eternamente, pois, para Ele e por

Ele são todas as coisas, inclusive minhas composições e meu respirar.

À minha mãe, nunca conheci uma pessoa com tanta

fibra e força de vontade, nunca me inspirei tanto no poder de recomeçar que vi e reconheci nos teus atos por toda minha vida. Eu te amo!

(mãe foi uma forma de dizer o quanto sou grata e o quanto sua história é importante)

Dedicatória Dedico especialmente aos professores e mestres que

foram chamados para essa árdua e gratificante tarefa. Dedico á TODOS que foram citados direta e

indiretamente através de personagens, nomes ou fatos. Dedico aos meus filhos que são os leitores mais fiéis e

críticos que um escritor pode ter.

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PREFÁCIO

Disse com muita propriedade Jacinto Prado Coelho, grande educador: “Nada do que é humano pode ser alheio ao professor. Seu grande

poder é ter condição de moldar a alma segundo a concepção do humano” Tudo o que dissermos sobre o professor ainda será pouco dada à sua grande dimensão humana e social. Sua profissão é a mais digna entre todas porque é a única que além de instruir, educa. Ao transmitir cultura integra o homem ao seu tempo. Um professor é uma pessoa audaciosa, desafiadora, companheira e, sobretudo, humilde. Exigente mas nunca carrasco faz de cada aluno uma extensão de um filho seu. Não se deixa abater pelas injustiças e dificuldades inerentes ao cargo, pois sua profissão é o trabalho dedicado. Mesmo sendo ele o que oferece menos á curto prazo, mas cuja recompensa ao longo da vida é incomensurável. Ás vezes, não mais que de repente, surge uma ex-aluna agradecida na pessoa de uma escritora e poeta talentosa e através de um texto enxuto, ágil, fluente, cheio de graça e talento brinda os seus leitores com um belo trabalho... E deixa no coração de um mestre uma voz que grita: filha, muito obrigado.

José Hamilton Brito Escritor e membro do Grupo Experimental da

Academia Araçatubense de Letras

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Capitulo 1

São Paulo, anos 80, mais necessariamente 1986, o relato marcado entre o 6° ano do ensino fundamental e 2° ano do ensino médio, naquela época designados como ginásio e colegial.

Eu saí de uma escola pública e vim estudar em outra escola estadual perto de casa; a escola Professor Santos Amaro da Cruz era a melhor entre quatro bairros vizinhos. Parecia um quartel se observado pelo lado de fora. Os altos portões de entrada e saída eram trancados após dez minutos do segundo sinal; passado isso a entrada no colégio (escola), teria que ser por outra avenida, através das portas de vidro da diretoria; que também ficava trancada e era preciso apertar uma campainha e esperar que um das serventes viesse abrir; e como o nome já diz (diretoria), dependendo da justificativa pelo atraso a conversa era com a diretora! (Fato que deixava-nos com as pernas tremendo). Não que ela fosse muito brava, era temida e se algo chegava ao seu conhecimento, poderia envolver pais, castigo, advertência, etc.

Geralmente quem entrava pela diretoria perdia a primeira aula (para não atrapalhar o desenvolvimento da mesma) e tinha que ir á biblioteca ler um livro indicado pela diretora e “meditar” no numero de páginas que ela exigia, o tal aluno tinha que voltar dez minutos antes de bater o sinal para o término da primeira aula e rever a diretora; para fazer um pequeno QUIZ (teste ou chamada oral) das páginas que ela mandou ler como punição. Confesso que hoje acho uma forma perfeita de incentivo á leitura. Os pais só eram convocados no caso do mesmo aluno ter atrasos frequentes.

Na entrada as inspetoras verificavam se todos estavam de uniforme, que na época era um avental ou jaleco branco, com o símbolo da escola em cima do peito num bolso do lado direito. O aluno sem avental não poderia entrar e... Tinha que ir conversar com a diretora.

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Meus amigos dobravam o avental e colocavam entre os livros e cadernos. Parávamos á alguns passos do portão e vestíamos de má vontade os jalecos, muitas vezes sujos e amassados.

Eu tinha sido boa aluna até a 5ª série ou 1º ano do ginásio, depois disso, quando mudei de escola, resolvi deixar de ser solitária e me enturmar, foi aí que desandei.

Na sexta-feira era dia de dobradinha de matemática e eu detestava cálculos, mas o empenho do professor Luiz Américo me fazia ter vontade de aprender. Porém essa vontade não era suficiente pra romper com a tradição de matar a segunda aula da dobradinha.

- Viviane, corre não dá tempo, lá vem a Thelma. Desce, desce! Thelma era uma inspetora simpática e competente. No

estacionamento da escola tinha uma árvore com mais de cem anos, era o xodó de todo mundo, só que através de buracos feitos no tronco e dos galhos baixos, nós chegávamos ao muro do lado oposto e pulávamos pra rua até o termino da aula, depois tínhamos que pular de volta. Neste bendito dia, não deu tempo e eu fiquei dentro do estacionamento.

- O que você esta fazendo fora da sala mocinha? Pensei rápido, criatividade não faltava. - Eu deixei meu lápis cair pela janela e desci para ver se achava. - E achou? - Não. - Você esta na 6ªB, sala 4, a janela dá pra rua e não para o

estacionamento. - Ah! Nem pensei nisso. - Sei. Volte pra sala agora e não jogue mais lápis pela janela. - Certo. Estou indo. Eu achei que tinha escapado ilesa, engano meu. Ainda tinha que

entrar na sala. Bati na porta devagar. - Com licença professor, posso entrar? - Onde você estava Viviane? - Conversando com a inspetora Thelma, tive um probleminha. Fiz uma cara de mártir que só piorou a mentira.

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O professor Luiz Américo ergueu as sobrancelhas e balançou a cabeça num gesto desaprovador.

- Entre, se você continuar tendo problemas com a minha aula de sexta-feira sua mãe vai ter um problema com a diretora.

Eu gelei. Então, será que ele sabia que a minha turma cabulava a aula dele?

Mas sempre ficava um que respondia a chamada na segunda aula. Ele só estava me testando, a sala tinha quarenta e dois alunos, não era possível saber a não ser que fossemos flagrados no ato. Ninguém dedurava, nem os alunos mais bem nascidos, bem vestidos, educadinhos, cheirosos que sentavam nas primeiras carteiras. Tinha uma aluna chamada Roberta, ela sempre trazia pacotes e pacotes de Banda (uma bala que era moda na época), só que nem todos os alunos tinham dinheiro pra comprar bala, então aos que ela gostava ou os da turma dela, ela distribuía balas. E desconfio que as balas fossem o motivo dela ter tantos amigos. (amigos interesseiros já existiam). Eu já tinha ocupado um lugar na fileira ao lado dela, tinha sido dos “certinhos”, mas cansei e fui para os fundos. Pode até ter sido por inveja dela, por que não? Afinal hoje posso reconhecer melhor os sintomas.

Sentei-me e comecei a copiar a equação: 2²(-4+5³)... Geralmente as equações eram longas e a resolução ocupava uma

folha inteira. O bom disso, é que o professor não considerava só resultado final, ele considerava o raciocínio do aluno, por exemplo, se eu tivesse acertado a resolução até a metade da equação valia ponto, às vezes valia nota mesmo. O problema, é que tendo aulas dobradinhas, quando era matéria nova, ele dava a explicação e depois passava atividade, quem perdia a explicação, tinha que tentar ver no exemplo do livro. Desta vez tive sorte não era matéria nova, dava para calcular, embora eu estivesse nervosa e com vergonha de encarar o mestre.

Os professores tinham uma mania terrível de passar de carteira em carteira averiguando se o aluno estava ao menos tentando fazer a lição. A classe ficava em silêncio na presença do professor, porém, quando o

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pobre tinha que se ausentar pra ir ao toalete ou beber água, ou mesmo pra adiantar uma aula vaga em outra sala; a bagunça era geral, guerrinhas de papel, aviões de giz, e brigas esporádicas.

Estava tentando me concentrar na equação e não no flagrante que tinha tomado quando uma régua ecoou no meu caderno. Eu pulei assustada.

- Preste atenção você escreveu o mesmo numero três vezes! Balbuciei qualquer coisa e o professor passou rindo para a fileira

seguinte. Depois do susto fiquei com raiva, só ouvi os risinhos, aquilo ia ser

motivo de gozação o resto da semana. O sinal bateu e as risadas começaram. Outra aula memorável era aula da professora Vanda que lecionava

língua portuguesa e inglesa. As aulas de inglês eram de fato memoráveis. Quando a professora entrava na sala de aula, tínhamos que ficar de pé e cumprimentar: “Good afternoon, teacher”.

Responder “present ou I’m here” na chamada era uma maneira divertida de aprender.

Dona Vanda parecia um general, alta, os cabelos curtos e

encaracolados, voz grave e não admitia indisciplina de espécie alguma. Para castigo nosso tínhamos aula com ela todos os dias da semana por conta das duas matérias que lecionava.

Encrenca

- Viviane, você está tendo aula com o professor Luiz Américo? - Estou sim, ele dá aula de matemática. Por quê? - Porque ele foi padrinho de casamento da sua irmã. - Padrinho da Sara?

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- Sim senhorita. Sara trabalhou na casa deles como babá antes de cursar a faculdade, e este professor da aula para o seu irmão desde o ginásio.

- Que... Interessante, não é mamãe? Mas, porque a senhora me contou isso?

- Não sei, faz dias que lembrei no escritório e esqueci-me de perguntar á você. Espero que seja comportada, não quero passar vergonha, está ouvindo?

- Claro que sou comportada. Minha mãe me olhou de soslaio. Acho mesmo que mães têm um

sexto-sentido, a minha não tinha muito tempo de por o dela em prática. Raquel Helena era a competência em pessoa e brava igual urtiga. Éramos cinco: Elias e Sara, Mara, Daniel e eu. Os três primeiros já eram casados. Meu pai tinha um “pequeno problema” com alcoolismo fato que a ausência física e moral dele era sentida. “Gigante pela própria natureza”, sempre achei que minha mãe tinha dado uma mãozinha pro Joaquim Osório Duque Estrada compor o hino nacional. Nunca conheci uma pessoa tão forte, tão disposta a ter tempo, mesmo não o tendo, era escrituraria, começou como ajudante geral fazendo o café e acabou por ocupar uma mesa no escritório de contabilidade F.F.Braga. O chefe dela, o senhor Fernando era muito íntegro e viu um grande potencial em minha mãe, apostou contra os sócios na competência dela e ganhou! Mamãe era excelente com números. Meus irmãos mais velhos foram criados na rédea curta, mas, eu e Daniel tínhamos um pouco mais de tolerância. Aliás, eu quase nem apanhava, conseguia me safar de algum jeitinho, meu irmão Daniel era muito estudioso e comportado, era ambicioso também, motivo pelo qual nos pegávamos pelos cabelos, longe da mamãe é claro!

Passei o fim de semana lendo quadrinhos depois de limpar a cozinha, passei a tarde olhando pela janela (até hoje gosto de olhar pela janela e ficar lá pensando... pensando), estava entediada, eu ganhava mais a rua durante a semana quando minha mãe estava no trabalho, nos fins de semana era sempre “não”, ela não gostava de me deixar sair, dizia

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que meninas não ficam na rua. Eu tinha medo de responder e perder um dente, então quando meu irmão Elias não estava de visita pra interceder ou meu pai meio “chumbado” pra mandar deixar essa menina chata sair, eu me conformava e ficava na janela, muitas vezes eu chorava em silêncio e nem percebia, não sabia o porquê de estar chorando, sentia só um vazio, um nozinho aqui no peito. Passei o domingo deitada, só levantei pra lavar a louça, eu nem quis almoçar, só tomei o chá da tarde. Lá pelo final do dia, ajudei mamãe guardando a roupa passada, ouvindo o sermão de como eu era privilegiada, que minhas irmãs trabalhavam muito mais que eu e com menos regalias e algumas ameaças de uma boa surra se eu tirasse notas baixas, etc. Aquilo me deixou mais entediada. Percebi que minha mãe estava preocupada, não sei se comigo, mas parecia; ela não parava de puxar assunto, num momento em que eu estava olhando daquele jeito presa ao nada na janela ela se aproximou, começou a trançar meu cabelo e cantarolar: “Toda garoa quando fura a lama seca é sinal que a chuva chega ao sertão, toda menina que enjoa da boneca é sinal que o amor já chegou ao coração...”. Achei a musica engraçada, mamãe tinha esse lado bom, de não perguntar nada e eu gostava de ouvir as cantigas que ela entoava para me distrair.

O resto da semana passou inerte. Não cabulei na sexta e no fim de semana, minha prima Rosely, filha do meu tio Zezinho ia lá pra casa, ela tinha dois anos á mais, mas era muito divertido quando ela ia, todo “não” de mamãe, virava sim agradando a visita e eu aproveitava ganhando a rua com ela.

Meu pai chegou de viagem no sábado á noite, ele ainda mal falava comigo, antes também ele não falava muito, porém, percebi que fazia falta a presença imposta, mesmo sem verbalização.

Rosely era sapeca demais, eu a adorava. Notei que minha prima veio mais calada e arredia e tive a impressão de que ela estava com raiva do mundo todo. Logo que saímos de manhã pra ir até a padaria, voltamos apertando as campainhas das casas chiques e saímos correndo e rindo, só ouvindo os xingos dos moradores sonolentos no portão. Corríamos tanto que o Sonic (personagem de videogame super-rápido) perderia pra nós. Chegamos ao portão de casa sem fôlego.

- Opa, opa! Que correria é essa? - Oi maninho!

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Abracei meu irmão Elias com muito entusiasmo, eu realmente o amava. - Correria é?

Daniel indagou já querendo me encrencar. Por que irmãos agem assim?

- È sim. (desafiei) – Não queríamos perder o Sítio do pica-pau amarelo.

- Deem-me o pacote de frios e vão lavar as mãos.

Frios era um luxo de fim de semana, especificamente mortadela.

Elias piscou e pegou o saquinho de leite da minha mão e os frios das mãos da minha prima.

Fomos para o banheiro rindo baixinho. Quantas vezes os vizinhos vinham reclamar com minha mãe antes do meu irmão mais velho se casar e ele dizia: “Ah! Minha mãe não está, mas pode deixar que além de comunicar meus pais; eu colocarei essa menina de castigo!”. Depois ele entrava em casa com cara de bravo olhava pra mim, eu levantava uma sobrancelha fazendo careta e ele caia na risada. Ele nunca contava nada pros meus pais, em compensação Daniel...

Saímos da mesa do café cheias de farelo de pão e sentamos como dondocas diante da TV, ninguém piscava. Eu sabia que depois tinha que varrer o chão, lavar a louça e outras tarefas aborrecidas, mas mamãe me deixava assistir primeiro. Era uma das poucas coisas que me encantavam ainda, assim como Vila Sésamo. Eu ria com o “caco” dentro do barril e ficava conversando mentalmente com o Garibaldo mesmo quando o programa já tinha acabado. Eu e Rosely fazíamos coro: “Narizinho, Narizinho, sonha, sonha com amigos, uma fada brasileira de afagos e castigos... Sonhando a vida passa no reino das águas claras, um céu de estrelas marinhas, pontilhão de coisas raras”. Neste dia vi lágrimas correr do rosto da minha prima enquanto a gente cantarolava balançando o sofá.

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Percebi que Elias e mamãe fingiram não ver o que eu vi, fiquei confusa e sem entender também fiquei triste.

Dor de mundo adulto

Nesta época, o mundo adulto era uma coisa cinza, com assuntos

feios que eles não conversavam perto de nós (entretanto, ouvíamos embaixo da janela, atrás da porta, etc. Agíamos assim por falta de vergonha e por curiosidade, pois, por mais que ouvíssemos, não entendíamos nada e só valia á pena a travessura em si). O mundo deles era sem sonhos e sem reino de águas claras. Eu não desejava tanto crescer, ainda na minha época, um adolescente de treze, catorze anos era tão inocente quanto uma criança de sete anos. Eu disse inocente e não ignorante. Éramos desprovidos de malícia.

Depois das tarefas domésticas que eu fazia emburrada, fomos brincar na rua com Daniel e algumas crianças da vizinhança. Estávamos brincando de cata-ramo ou rouba bandeira, a bandeira dos times era um galho de árvore ou qualquer ramo de mato que achávamos pela redondeza, ou caído por milagre na mão de Daniel da árvore da casa vizinha. Era uma correria pela calçada, quem era pego tinha que guardar a bandeira e o time que pegava o ramo alheio era vencedor. Inevitável dizer que sempre tinha pequenas discussões sobre as regras, o que não impedia de uma revanche. Falar palavrão perto ou longe dos pais era inadmissível, se um vizinho ouvisse nossa boca seriamente estava comprometida a ser esfregada com sabão (bem, se fosse ao pé da letra, os fabricantes de sabão ficariam ricos se pudessem provar o delito á nossos pais).

Eu e minha prima fomos tomar banho, entrei no quarto e Rosely ficou na porta de braços cruzados, olhando com raiva.

- O que foi? Gritei. Quando vi meu pai na janela abaixei o tom de voz, porém

Rosely não o viu. - Que foi o que? Palhaça! - Por que você me olhou assim? O que aconteceu?

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Diminui três oitavas na voz. Rosely era mais alta, mais velha e mais forte e assustadoramente nunca tínhamos nos estranhado.

- Por sua culpa perdemos o jogo. Você ficou com gracinha e deixou seu irmão roubar a bandeira!

- Claro que não! Mas e daí? É só uma brincadeira. Dei de ombros e minha prima me empurrou contra o guarda-roupa.

No ímpeto puxei os cabelos dela, mas parei quando percebi o que ocorria, estávamos brigando por nada.

- Para Rosely! Neste ponto ela já tinha me empurrado de novo e meu braço bateu

na cômoda derrubando uma caixinha de musica que se espatifou no chão. Apavorada ouvi os passos da mamãe junto com os gritos:

- Espera aí que eu vou ver onde é o incêndio! Olhei para meu pai de braços cruzados na janela. - Vem aqui! Ele gritou e eu obedeci automaticamente. Papai me puxou pela

janela, me deu uma palmada e mandou-me ir correndo pra dentro do carro no quintal, eu corri.

- O que aconteceu aqui? Ouvi a voz de mamãe mais alta que o sinal do colégio. E muito maior foi minha surpresa quando ouvi a voz de Rosely. - Odeio vocês, odeio todo mundo! Vai me bater tia? Que se dane! Isso não era bom. Rosely ia ficar sem dentes e quando meu tio

soubesse ia ficar sem sentar também. Ouvi o som de um tabefe e em seguida os soluços de minha prima,

depois não ouvi mais nada e covardemente cogitei se minha mãe estava procurando-me pra fazer parte da festa. Mas, ela não estava. Passaram-se alguns minutos e só continuava ouvindo apenas o choro de Rosely. Meu braço deu sinal de vida e percebi que estava latejando, senti as lágrimas quentes, vi o arroxeado que tomava conta de um cotovelo em forma de bola inflada. Criei coragem e olhei na direção de meu pai. Ele continuava na janela com uma expressão inescrutável, olhou-me e

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mandou-me continuar no carro. Então compreendi, Rosely estava com algum problema e meus pais não queriam que eu soubesse. Papai não tinha bebido desde que chegara da ultima viagem, às vezes ele passava muitos dias sem beber.

Eu senti um frio na barriga, meu estomago começou a virar e eu não aguentei (impulsividade é um defeito que já era característico em mim), sai do carro e corri pra dentro, ou melhor, tentei correr, o braço doía e eu estava começando a sentir uma fraqueza estranha.

Cheguei rubra na porta do quarto e vi mamãe ninando Rosely. Minha cara de interrogação desarmou até a severidade de meus pais. Minha mãe foi a primeira a falar.

- Viviane, vá dar uma volta filha, sua prima não quis agredir você, ela não esta bem.

- O que ela tem? Minha mãe baixou a cabeça e não respondeu. Eu imaginei que minha

prima devia estar com uma doença muito ruim e ia morrer e bateu o desespero. - O que você tem Rosely? Desculpe-me pela bandeira. Desculpa-me, por

favor! O que você tem? Eu desabei a gritar e a soluçar e minha mãe não sabia mais a quem

socorria. Repentinamente tudo rodou e eu vomitei. Elias chegou ao portão de entrada com a esposa, quando meu pai gritou

pra ele correr pra dentro. Quando meu irmão médico alcançou o quarto, Daniel chorava com a roupa suja de vomito tentando me amparar. Eu vomitei de novo e o choro de Rosely foi diminuindo, a voz de mamãe também, o rosto de Daniel balançava demais e o quarto entrou no gira-gira (brinquedo giratório com cadeiras presas com correntes que rodavam no ar á toda velocidade). Quando tudo clareou de novo eu estava embaixo do chuveiro, amparada pela minha cunhada e por meu irmão Elias. Sentei no vaso sanitário ainda tremula.

- Você esta melhor Viviane? Balancei a cabeça afirmativamente. Meu irmão transpirava e seu rosto estava muito sério. Pela primeira vez

ficara realmente bravo comigo. - A Jade, vai ajudá-la a tomar banho, vai logo que Daniel está todo

sujo esperando a vez dele. Disse isso e saiu da parte do Box separada apenas por uma cortina

de plástico. Fiquei sentada ainda uns instantes enquanto minha cunhada

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desabotoava minha bermuda e puxava pelas minhas pernas, depois ela soltou meu cabelo e puxou minha camiseta pela cabeça, esticou a mangueira do chuveirinho e começou a me lavar ali mesmo.

- Por que ele esta bravo? Eu quis saber. - Não está bravo, só preocupado com sua prima e agora com você. - O que aconteceu com a Rosely? Minha cunhada fingiu não ouvir e encheu meu cabelo de xampu. De

novo a sensação de medo tomou conta e eu vomitei pela terceira vez. Desta vez minha mãe correu para o banheiro, pediu pra Jade

acompanhar Elias que ia levar Rosely pra dar uma volta e conversar com ela. Jade assentiu e saiu do banheiro.

- Sua prima não tem nada demais, só coisa da idade. Agora a senhorita está nos deixando preocupados, comeu alguma coisa na rua?

- Não. Balbuciei ainda enjoada. Só então mamãe notou a bola roxa em meu braço. Acabou de me

ajudar a tomar banho. Fez-me tomar umas gotas de Dramin e disse que quando Elias voltasse ia olhar meu braço, pra ver se precisava imobilizar. Eu já ia perguntar de novo o problema com minha prima, pra ver se alguém me respondia, mas o sono começou a chegar e eu adormeci por algumas horas. Tive um sonho sinistro, eu via uma igreja com um sino enorme, enfeitada com muitos buquês de rosas vermelhas, em segundos um rio transbordou dentro da igreja e as rosas foram levadas, no sonho o sino batia ininterruptamente e o céu ia escurecendo, conforme o sino batia mais forte a água límpida ia escoando e no meio da igreja jazia uma aliança dourada no chão, tão brilhante que ofuscava a escuridão da noite. Acordei suando muito. Eu não era de ter sonhos, nem pesadelos, se os tinha não percebia, por isso, quando sonhava alguma coisa eu custava a esquecer.

Tentei levantar e parei quando senti uma tala dura limitar meu braço, sentei e vi minha prima dormindo ao meu lado. Percebi que meu

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braço estava imobilizado com uma tala e que aquele não era meu quarto, era o quarto dos meus pais. Voltei a deitar mais não dormi. Fiquei olhando Rosely dormir com aquele rosto angelical e uma ruga franzindo a testa.

Ela se mexeu e abriu os olhos. Eu fiz um sinal com o dedo nos lábios e ela ameaçou rir. Fiquei mais aliviada, ela não ia morrer afinal. Perguntei sussurrando:

- Você ainda é minha amiga? Ela pensou um momento e respondeu: - Sabe que sim, mas... - Mas o que? - Eu sei que você quer saber o porquê estou triste, mas, seus pais e

meus pais pediram-me pra não contar ainda. As lágrimas corriam novamente pela face dela. Eu insisti. - Nós nunca ligamos pra isso, sempre fomos amigas, quero saber

por você. Eu também sabia persuadir. - Esta bem, mas não diga nada á ninguém. -Eu prometo. - Então mostre as mãos, não vale cruzar os dedos. Mostrei as mãos e ela soletrou cada palavra bem devagar e

doloridamente. - Meus pais vão separar-se e papai vai embora. - Como assim? - Olha Vivi, adoro meu pai e ele disse que não vai deixar de me ver,

mas eu sei que não vai ser mais a mesma coisa. Meus irmãos estão revoltados e eu muito triste.

Mas, por que ele vai embora? - Ele tem outra família, tenho outra meia-irmã, e outros irmãos mais

novos. Eu não consegui entender aquilo, não consegui digerir. Como

assim? Meu tio era meu herói! Tratava-me como se eu fosse filha dele, vira e mexe ele ia buscar-me para eu ficar os fins de semana com Rosely, dava dinheiro pra comprar doce e era o único meio-irmão de mamãe que

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aparecia no Natal e não se envergonhava dele ser rico e nós pobres. O que era aquilo agora, ele ia embora? Eu senti vontade de gritar, controlei-me por causa da promessa. Mas chorei muito e Rosely acompanhou-me, então senti a dor dela e odiei os adultos e suas mentiras. Meu tio parecia com meu avô, avô que não conheci; tinha os olhos verdes, era alto, moreno claro, muito bonito e pelo jeito como meu avô tinha duas famílias. Meu avô era rico, tinha muitas casas e terras, quando ele morreu minha mãe era adolescente, em seguida ela casou-se e meu pai perdeu no jogo parte da herança, a outra parte minha avó vendeu quando se casou novamente e veio morar em São Paulo. Assim tornamos a parte indesejável da família. Só minha tia Iracema que era muito parecida fisicamente com minha mãe é que aparecia lá por casa, com exceção do meu Tio Zezinho, o resto da família apenas se reunia quando morria alguém. Lembro-me de um velório que devia ser da avó desses meus tios. Minha mãe me mandou chamar minha tia Malvina, do lado de fora da casa dela, os velórios eram nas casas. Essa minha tia jovem ainda era solteira. Cheguei perto dela e falei:

- Tia Malvina, minha mãe está chamando. - Não sou tia de nenhuma moreninha! A palavra acima não foi essa, mas hoje é crime de racismo, então

prefiro não usar. Realmente eu sou morena cor de bronzeado de praia e os traços índios como os de meu avô galinha de olhos claros. Nunca contei isso pra minha mãe. As crianças eram sábias naquele tempo, tinham medo do que falar e então se calavam.

Talvez esse seja um dos motivos da adoração que eu tinha pelo meu tio, ele realmente gostava de mamãe e de nossa família. E também o motivo da minha decepção ser tão grande, era algo que além de não compreender, não se podia questionar, perguntar sobre ou argumentar, tinha que aceitar e pronto. E um ponto de fuga começava a nascer dentro de mim. Um lugar onde eu poderia ser e fazer o que quisesse, mesmo que utopicamente.

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O domingo chegou e nem eu, nem Rosely tocamos mais no assunto, os adultos muito menos, meu braço doía porque eu não parava quieta. Elias e Jade vieram para o almoço, minhas irmãs não apareceram naqueles dias. Elias tinha ficado muito tempo no exterior, e sentia uma obrigação constante de estar por perto, ele venerava mamãe. Em alguns meses viajaria de novo para fazer residência em pediatria.

O clima estava pesado. Admiravelmente papai não bebeu. Eu estava me distraindo tentando pegar o copo com o braço imobilizado.

- Se você não parar quieta, esse braço vai piorar e vai ter que ser engessado. Você não acha que já é grandinha para perceber que temos problemas maiores?

Vindo do meu irmão isso foi cruel. Eu não disse nada. Parei de brincar com o copo e também não comi. Não importava também, meu mundo não era aquele, minha família não era aquela! Quando eu fechasse os olhos poderia ir pra uma família rica, paciente e mais carinhosa. Era só imaginar, só criar, poderia ir até pra dentro da novela da TV Tupi “Meu pé de laranja Lima”. Era só fingir dormir e sonhar.

Acabou o fim de semana, meu pai viajou a trabalho na segunda, minha mãe foi trabalhar e Daniel foi á uma entrevista para Office boy. Eu fiquei arrumando o que podia da casa usando só uma mão. Á tarde eu teria que enfrentar a escola.

Caricatura A tala no braço foi motivo de farra, todo mundo queria saber que

árvore eu teria escalado e de que muro cai no fim de semana. Até fiquei um tanto vaidosa com tanta atenção dos professores. Claro que eu disse que cai da escada (imaginária) do segundo andar (também fictício) do meu quarto, eu não ia dizer que foi brigando com minha prima, mas narrei muitas vezes toda orgulhosa que foi meu irmão que fez o pronto-atendimento e colocou a tala, meu irmão médico!

Na terceira aula eu pensava em minha prima e bateu a depressão. O professor Luiz Américo entrou na sala já sabendo de cor a história do acidente. Nenhum professor fazia chamada pelo nome na lista de presença, mas ele tinha essa mania vez ou outra.

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- Ronaldo, Sílvia, Tereza, Úrsula... Todos responderam “presente”. - Viviane... - Presente. - Parabéns! Fiquei cor de cera, não entendi a piadinha, mas a classe toda

gargalhava. -Parabéns pelo que? Arrependi-me de ter perguntado, foi quando as risadas ficaram mais

altas. - Pelo segundo andar que sua casa ganhou com a reforma -

relâmpago. As risadas cessaram, eu fiquei pasma. Então me lembrei de que ele

foi padrinho de casamento de Sara e devia conhecer bem minha humilde casa. Recusei-me a ceder e chorar.

- Obrigada professor, o senhor precisa ir à minha casa tomar um café com Sara.

Ele abaixou os óculos, fitou-me um longo tempo e depois simplesmente respondeu:

- Vou sim, sua irmã já tem filhos? - Ainda não. A conversa acabou. - Hoje matéria nova. Quero os exercícios prontos amanhã,

resolução na lousa. Regra de Três, abram o livro na página 16. A risadinha do Eduardo na carteira ao lado me dava nos nervos,

esqueci que ele também sabia como era minha casa, mas não tinha dito nada, preferia me torturar. Tentei concentrar-me na explicação do exercício. Não ouvi uma palavra se quer do que o professor disse, até pelo fato de que não conseguia mais encará-lo, fiquei com a cabeça baixa olhando para o livro.

- Façam os exercícios das páginas 17 e 18.

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O professor ordenou e eu comecei a copiar lentamente, as indiretas do Eduardo me incomodavam, minha mente não conseguia se concentrar em nada, senti enjoo de novo. Fiquei rezando pra não vomitar ali. “Nossa senhora do chuveiro, dai-me resistência”, murmurei pra mim mesma.

- Está precisando? Como é que os professores faziam aquilo? Em segundos ele estava

do lado da minha carteira e eu nem sequer o vi sair do lugar. E como se atrevem a ouvir os alheios pensamentos ditos em voz baixa?

- Seu pai estava viajando esse fim de semana? Parecia uma pergunta inocente e desinteressada do professor, mas

não era. Entendi o que ele queria saber, se foi meu pai que machucou meu braço. Aquilo era muito constrangedor. Eu menti de novo.

- Estava sim, acho que só volta daqui uns quinze dias. O professor cético levantou uma sobrancelha. - E para onde ele viajou dessa vez? - Pra lua! A classe explodiu em risos e eu engasguei. Santa impulsividade. Pra controvérsia o professor riu tanto que tirou os óculos pra limpar

as lentes. - Quando ele voltar de marte me avise, se a “nossa senhora do

chuveiro” não me der resistência eu pergunto á seu irmão no noturno quando seu pai volta.

Esqueci-me que Daniel também tinha aula de matemática com o professor Luiz Américo. O sinal soou e o Eduardo pensava ter descoberto o que causou a torção no meu braço

- Apanhou de novo? - Claro que não! - Apanhou, apanhou. Fiquei com mais raiva do professor do que do cretino do meu

colega de classe. Fiquei rabiscando o caderno foi assim que um desenho virou uma ideia brilhante. Eu desenhei o rosto do professor com os

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cabelos espessos; o bigode e os óculos formavam uma caricatura perfeita.

A próxima aula era de ciências e tinha questionário pra responder.

Foi o momento perfeito de correr a folha de caderno de carteira em carteira e ouvir as risadinhas e a confirmação: todos os alunos reconheceram o professor na caricatura. A folha voltou para mim e escondi dentro do caderno. Minha vingança estava planejada.

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Joguei o lápis de lado e fiquei amargando até bater o sinal do intervalo.

Sai da sala correndo com um giz no bolso, mas esperei pra fazer arte. Entrei na fila da merenda, comi sem vontade a sopa de feijão. Quando bateu o sinal pra fazer fila o Eduardo me puxou pelo braço.

- Eu vi você pegar o giz; sei o que vai fazer.

E apontou o quadro negro que ficava bem no canto do pátio de recreação.

- Você vai dedurar? - Não, vou ajudar. Vá para o

banheiro, eu falo que você já subiu. Fui para o banheiro e subi com

os pés no vaso. Uma servente passou olhando os banheiros e passou direto por mim. A fila subiu. Esperei uns

minutos e corri, fiz a caricatura na ponta de baixo do quadro, porque o quadro negro estava suspenso numa boa altura. Todos iam ver de longe.

A quarta aula ia ser de matemática, mas o professor foi adiantar aula na 7ªD, e a professora de inglês trocou com ele.

Na ultima aula eu e Eduardo já não contínhamos a curiosidade, será que alguém tinha visto? Teriam apagado?

Levei um susto quando o professor entrou na sala bufando, mas o motivo era pressa mesmo.

- Vamos resolver as questões, Viviane e Eduardo pra lousa já. Olhei pro Eduardo, ele nem se abalou. De um lado do quadro um

equação, no outro canto uma questão de aritmética. Eu errei a questão, estava muito nervosa não consegui resolver. O professor tomou o giz da minha mão e resolveu.

- Se você estivesse tentando fazer a lição em vez de ficar choramingando, teria conseguido resolver, agora vá sentar.

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Resolvi que o odiava! Bem feito quando os alunos percebessem a caricatura, bem-feito pra ele!

O sinal de término soou e corremos pra fora. Ufa! O desenho continuava lá, ninguém tinha percebido ainda, mas a turma do noturno não ia deixar passar, pensei. O Eduardo pensou a mesma coisa porque olhamos o relógio ao mesmo tempo e descemos as escadas rindo.

- Até amanhã. - Até! Quando cheguei à casa a porta estava aberta, eu estranhei. Entrei

devagarzinho. Vi meu pai sentado no sofá e percebi que ele tinha bebido. Meu mundo desmoronou.

- Bênção pai. - Deus te abençoe. O nível de álcool não deveria ser grande, ele ao menos conseguia

falar. - Você esta melhor menina, seu irmão entrou em contato comigo, e

a empresa mandou um motorista substituto, viajo terça-feira novamente. Fiquei pasma, meu pai não costumava conversar nem sóbrio, nem

ébrio. - Melhorei hoje. Fiquei apreensiva, a tarde levou uma eternidade pra passar e eu

gastei duas horas lavando a louça. Enfim, mamãe chegou do trabalho, foi fazer o jantar e eu fui fazer a lição.

Senti um pouco de ânsia, contudo não comentei o fato. Fui dormir cedo.

Novamente no fim de semana, minhas irmãs e meu irmão passaram o sábado e o domingo indo e vindo em visitas esporádicas. Daniel me deu a coleção de bolinhas de gude dele. Tive um pouco de febre, mas não foi preciso ir ao hospital.

Na segunda-feira quando acordei já era tarde, Daniel já tinham saído e papai tinha feito suco de laranja pra mim. Puxa, ou eu estava doente de verdade ou minha cotação estava alta mesmo. Minha

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ansiedade gritava pela hora de ir pra escola, eu queria muito saber no que deu a caricatura.

Três aulas voaram e nem tive tempo de confabular com Eduardo. No intervalo foi uma explosão de risadas, fiquei de longe olhando o

colégio todo em volta do quadro negro (inclusive Eduardo) apontando, rindo e comentando. Alguém mais ousado escreveu “Luiz Américo” abaixo do desenho.

Subi pra classe não tão satisfeita, a aula de matemática tinha sido antes do intervalo e também senti remorso.

Estava conjugando o verbo “to be” na chamada oral quando o professor bateu na porta e pediu para a professora Vanda me chamar.

- Viviane venha comigo. Segui-o com

medo de ele torcer meu pescoço no caminho da diretoria.

A sala dos professores estava vazia e ele fez sinal pra eu entrar.

Sentei de frente com ele.

- Viviane, seu irmão é um garoto esforçado e trabalhador, é muito inteligente, um orgulho, é o melhor aluno que tenho e saiba que já tive alunos rebeldes, piores que você, com problemas sérios de violência doméstica e drogas, mas você é a pior aluna que eu já tive! Conheço bem sua irmã que trabalhou em minha casa e sei que seus irmãos não permitem que você tenha as mesmas dificuldades que eles tiveram. Porém você é uma menina mimada, mal educada e egoísta, se fosse minha filha levaria umas boas palmadas! No entanto sou seu professor e quero conversar com seu irmão mais velho antes de falar com seus pais.

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É uma convocação oficial, você não vai poder entrar na escola enquanto seu irmão Elias ou seus pais comparecerem aqui pra falar diretamente comigo.

Fiquei rubra de vergonha e nauseada de pavor, como é que eu ia dizer isso á meu pai bêbado, a meu irmão ocupadíssimo e pior á minha mãe? Ela não poderia faltar no trabalho. E pior ainda, o castigo não ia ser fichinha.

Fiquei estática olhando para o professor enquanto a cor foi sumindo do meu rosto. O estomago começou a embrulhar, mas desta vez começou a doer também. Ele percebeu algo errado, pois num minuto estava em pé com a mão na minha testa, só então eu percebi que estava suando muito e falando sem parar. Só lembro-me da dor aumentando e da sala entrar na montanha russa...

- Thelma, bipe o irmão dela! Minutos depois eu continuava sentada com a cabeça entre as

pernas vomitando num cesto de papel. - Já mandei uma mensagem no bip dele. Parece que o pai dela

está em casa hoje. - Não! Consegui gritar entre a ânsia e as dores. - Calma, não vou conversar com seu pai sobre seu comportamento

agora, mas a escola vai encaminhá-la para um hospital e precisamos de um responsável. Seu pai ou mãe por exemplo.

- Por favor, não! Mamãe não, hospital não! Chorava, gritava e vomitava. - Fique calma, agora! A voz do professor foi tão severa que estanquei o choro, mas não

segurei a náusea. -Vou levá-la no meu carro com a Thelma, mas primeiro vamos mandar

alguém na sua casa avisar seu pai. Voltei a chorar compulsivamente. Uma inspetora foi até minha casa, meu pai não estava, graças a Deus,

mas ela avisou um vizinho.

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No caminho para o hospital já não tinha mais o que sair do estomago, sentia tontura e as dores apertavam meu ventre como se fosse me torcer ao meio.

- Professor... - Fique quietinha, fale com a Thelma á seu lado. Olhei para inspetora e vi compaixão. Lutei para ser o mais forte possível,

a dor não cedia e o medo de injeção também não. - Pode falar querida. A voz da inspetora soou reconfortante enquanto ela tentava prender meus

cabelos encaracolados num rabo de cavalo. - Não quero tomar injeção. Funguei e não vi mais nada, tudo escureceu repentinamente. Despertei com a voz da minha mãe chorando. - Vai ficar tudo bem meu amor. Observei um quarto todo branco e um tubo de soro no meu braço, senti

dor de novo, mas também senti muita sonolência. - Mãe, manda tirar isso do meu braço. Choraminguei, acreditando estar sonhando. - Já, já eles tiram. Deixe só seu pai chegar. Alguma coisa despontou no meu cérebro, lembrei-me da caricatura e das

consequências. - O professor... Não terminei a frase, uma pontada me calou. - Seu professor foi embora há apenas dez minutos. Ele disse para você

se comportar bem com os médicos e que espera você para o torneio de matemática.

Dizendo isso minha mãe debruçou-se sobre mim e chorou. Eu não estava entendendo nada, só que eu devia estar doente do

estomago. Estendi o braço para abraçar mamãe, mas ela não esta mais lá, vi um

túnel branco e um monte de vozes, um carro azul correndo sem parar, e um caminhão cheio de agulhas tombou. Meu irmão chegou e me bateu na perna, comecei a gritar porque as tapas doíam muito e queimavam perto da coxa. Eu gritei muito, mas não conseguia ouvir minha voz e nem conseguia segurar as mãos de Elias, ele me batia com uma régua de cálculos. A dor parou quando Eduardo chegou com uma caixinha cheia de injeções e mamãe

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começou a aplicar onde Elias tinha me batido, o carro azul correu de novo e o professor era o motorista, do lado dele papai tomava cerveja e praguejava. A luz ascendeu e eu já não vi o carro, eu jogava bolinha de gude com Daniel, mas não conseguia abaixar, o delírio prosseguiu.

Acordei depois de doze horas; fui operada de um apêndice que infeccionou e ia estuporar se eu não tivesse sido socorrida a tempo. O fato de ter passado por uma cirurgia para retirada do apêndice me assustava muito. E eu ainda tinha febre constante, o que preocupava minha família e também os médicos. Uma semana mais tarde tive alta e pude ir convalescer em casa. Papai viajou de novo, Elias adiou outra viagem ao exterior, Mara ficou comigo e com mamãe por uma semana inteira e Sara passava em casa toda noite pra ver como eu estava.

Num sábado depois de quinze dias convalescendo, Sara me trouxe uma visita inesperada.

Eu estava deitada numa cama improvisada na sala, ouvi a voz de Sara e duas outras vozes, uma muito familiar, mas eu achei que devia estar febril de novo.

Sara entrou acompanhada por uma mulher alta e ruiva, muito elegante e de sorriso amplo, Elias surgiu acompanhado pelo meu professor de matemática!

- Como está mocinha? Você nos deu um tremendo susto. Arregalei os olhos, fiquei sem reação, senti o rosto queimar, lembrei que

estava de pijama e fiquei mais encabulada ainda. - Não vai responder ao professor, Vivi? Só na entonação de voz de Elias eu já desconfiei que ele tivesse sido

informado dos acontecimentos na escola. Fiquei tão nervosa que comecei a piscar os olhos sem parar.

- Esta tudo bem, Viviane? Agora a voz do meu irmão tinha baixado algumas oitavas e o tom era

preocupado. - Sim, estou bem, obrigada por se preocupar professor... Luiz Américo sorriu tão á vontade como se estivesse acostumado a estar

ali, em casa, num lugar tão humilde. Apresentou-me sua esposa que também era encantadora, vi que Sara tinha muito a conversar com a esposa do meu professor.

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- Diga-me, teria sido melhor umas palmadas ou você preferiu mesmo a cirurgia?

Aquilo me desconcertou ainda mais, eu verifiquei se Elias tinha ouvido a pergunta do professor e vi que sim, eu sabia que não ia mais ser castigada por causa da caricatura, mas sentia-me tão entediada e depressiva que as lágrimas não pediam licença e eu balbuciei com muita vergonha.

- Acho que a cirurgia. Luiz Américo e Elias riram, parece que tinham apostado na resposta e

ambos me conheciam bem. Mamãe se aproximou e mudaram de assunto. Todos foram pra cozinha tomar café e eu fiquei sozinha assistindo reprise

de Vila Sésamo. Papai chegou sóbrio, graças a Deus, conversou bastante sobre

amenidades com meu professor e eu comecei a sentir sono. Eu ficava muito sonolenta e detestava dormir de dia.

Quando todos voltaram pra sala eu agradeci ao professor por ter me socorrido e mandei meu agradecimento á inspetora Thelma.

- Em poucos dias você poderá agradecer pessoalmente. Os professores reuniram-se e delegamos ao seu colega Eduardo e a Carol a responsabilidade de trazer os deveres de casa para você.

- Obrigada. Aquela informação fez-me recuperar mais depressa do que o previsto.

Menarca

Aquele semestre passou bem rápido e o fim do ano chegou, passei

raspando como diz o povo, mas passei. O Natal passou tranquilo e ficamos em família, com minhas irmãs, irmãos, cunhados e avós. Uma ceia simples, em que tradicionalmente á meia-noite, minha mãe reunia todo mundo em volta da mesa e orava agradecendo á Deus por estarmos todos juntos. Daniel não tinha mais idade pra rodar pião, então agora ganhava camisetas ou livros, eu... Bem eu ainda gostava de bonecas e aquela que a dona do mercadinho me deu era um prêmio e tanto, uma boneca importada á uma criança pobre! Ganhei um bonecão da Sara, era todo de plástico , só os braços eram moveis, era careca e tinha um

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macacão azul. Meu cunhado Osvaldo é que tinha comprado. Antes eu daria pulos, mas depois da boneca moderna...

Meu pai sempre ganhava meias, ele rasgava todas no caminhão, ou sei lá por onde, Mara fazia toalhinhas de crochê, cachecol e enfeites de geladeira e presenteava até as vizinhas. Mamãe sempre ganhava algo especial (era o melhor que podíamos): Uma carta minha com umas quatro páginas pedindo desculpas pelo trabalho que dei o ano todo e versinhos dizendo o quanto eu a amava, Mara, Sara, Elias e agora Daniel juntavam as economias e a presenteavam com algo moderno tipo; um aspirador de pó, um liquidificador novo e na melhor das hipóteses, sapatos e conjuntos sócias pra ela usar no trabalho. Neste Natal tio Zezinho não apareceu, além de faltar o tradicional jogo de dama de todo ano, faltou o sorriso dele. Eu chorei escondidinho, ninguém ia entender mesmo. Também Rosely e seus irmãos não vieram e pelo jeito não haveria mais festas com eles.

Um novo ano começou; 7ª série. Muitos

dos colegas do ano passado continuavam os mesmos. Chegou uma aluna nova vinda da cidade de Penápolis, a Kelly. A princípio eu não fui com a cara dela; parecia metidinha, filhinha de papai, com aqueles cabelos compridos cacheados e os olhos verdes, magricela igual uma tábua, mas os meninos vibraram com a nova aluna.

- Está olhando o que? Eu provoquei logo no primeiro dia na hora

de formar fila. - Não estou olhando nada. Qual o problema? - Que problema! E a fila subiu.

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Displicentemente sentei ao lado dela, quando percebemos os outros lugares já ocupávamos as primeiras carteiras (pasmem).

A rivalidade não durou uma aula. A primeira aula foi com a professora Odette, também nova na escola, lecionava língua portuguesa, era de baixa estatura e calma.

A régua da professora caiu, automaticamente fomos apanhá-la. Viramos o rosto em sinal de desdém e depois começamos a rir. Ali nasceu uma amizade pra vida toda!

Kelly tinha mudado por causa da separação dos pais (mais uma!), tinha uma irmã dois anos mais velha chamada Cássia, que era terrível, batia em todo mundo. Ai de quem mexesse com a Kelly e comigo. Mas, a Cássia estudava de manhã e já fazia o primeiro ano colegial.

Excepcionalmente o professor Luís Américo não me deu aula, ele deu aula pra outra sétima, 7ª D, onde tinha outra aluna chamada Viviane. Tive aula de matemática com o professor Léo, alto, bonitão e ensinava muito bem. Usava método de avaliação semelhante ao do professor Luís Américo. Uma moça da sala, por nome Solange, que devia ter sido reprovada pelo menos uns três anos pelo tamanho e corpo que exibia, vivia puxando o saco do professor Léo, apagando a lousa, sentava-se à mesa do professor (uma tremenda bajuladora), o que causou muitas brigas entre meninas de classes rivais e rumores que na época eu nem cogitava pensar. Deixe-se em nota que o professor era inocente e não tinha culpa da aluna ter corpo de Madona e ele de ter ótima aparência e carisma.

Bem, meus hormônios estavam ainda bem em paz, graças á Deus! Teve uma atividade folclórica no término do segundo bimestre,

minha classe ia dançar quadrilha e outras cantigas de roda. A professora responsável pela minha sala (7ª A), era a professora Odette. Ensaiávamos toda quarta-feira depois de hastear a bandeira e cantar o hino nacional com a mão no peito (ninguém ia passar vergonha naquele tempo, porque a letra era matéria de prova e os alunos tinham os hinos impressos nas capas dos cadernos de brochura e sabíamos de cor, era um orgulho). Ensaiamos temas como bumba-meu-boi, e a tradicional

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Quadrilha. Estávamos no meio de uma cantiga de roda: “Samba-Lele está doente, ta com a cabeça quebrada, Samba-lele precisava é de umas boas lambadas, samba ,samba, samba oh Le,Le, samba na barra da saia, oh lá, lá”. Soltei a mão da Kelly e agachei, senti uma enorme dor no ventre (apendicite de novo? Eu pensei); a professora parou o ensaio uns minutos e chamou a Kelly pra sentar um pouco comigo. No tom mais neutro ela perguntou:

- Você está com cólica? - Não! Eu nem sabia o que significava, quer dizer, ouvia as outras meninas

falarem e para não ficar atrás eu dizia que também já era mocinha, e até inventava histórias, só a Kelly sabia que eram mentiras. Mara me deu um livrinho sobre a Menarca (primeiro ciclo menstrual), eu li e larguei na gaveta.

- Mas, você já é mocinha? Aquilo foi pior do que a dor incômoda. - Fala a verdade. A Kelly se intrometeu. - Ainda não. - Então ainda não era. Sua calça está manchada, Tire a blusa e

amarre na cintura. - Galileu Galilei, com todos os gênios! Eu queria sumir, ir á lua, á Marte, para casa, pra barriga da minha

mãe, mas não queria estar ali, pagando esse mico e o pior vendo minha melhor amiga rir da minha cara.

Bom, a blusa da Kelly era mais comprida, a professora trouxe um: “tapa fluxo” e meu material, a Kelly foi comigo pra casa.

- Viviane; posso perguntar uma coisa? - Não enche! - É sério. - Diga. - Porque a professora chamou de tapa fluxo e não de modes?

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- E eu é que sei? - Ainda está doendo? - Não. Só doeu àquela hora, agora está queimando. - Queimando? - Sim, queimando a minha orelha de tanto que a classe está rindo

de mim! - Ai! Para com isso, ninguém viu e você acha que a professora vai

contar? - A professora não, mas, você vai! - Credo, acha que eu ia fazer isso? - Você não vai perder a chance não é? - Puxa vida! É assim que eu sou sua amiga? - Certo então não vai contar nem pra Cássia? - Ah! Pra Cássia eu vou. - Então nem precisa por na gazeta, ela mesma põe. - Deixa de ser besta! Minha irmã gosta de você, e eu tenho que

explicar porque tive que sair mais cedo com você. - Está bem! Agora fecha a matraca que meu pai chegou de

madrugada e esta dormindo. Fui direto para o banheiro, tomei um banho frio (o chuveiro havia

quebrado), coloquei “aquele trem” vesti duas calças jeans e sentei no sofá.

- Quer um leite Kelly? - Não, já vou embora. Minha mãe vai para igreja e eu tenho que ir

junto. - Ah! Nem vai acabar de assistir Jeannie é um gênio? - Vou, só para lembrar que foi a primeira coisa que você falou

quando menstruou. - Psiu! Meu pai está em casa. - Ah, esqueci. Seu pai não é bravo, é? - Não sei. Acho que não. Por quê? - Nada em especial, o meu é muito, mesmo assim eu não queria

que ele tivesse ido embora.

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Puxa aquilo doeu, tive a impressão que todos os pais um dia iam embora. Pobre Kelly!

- Sinto muito Kelly. Meu pai fica pouco em casa; e quase rotineiramente embriagado, às vezes eu prefiro que ele não volte, eu devo ser muito ruim.

- Credo Viviane! Pois, eu queria meu pai em casa de qualquer jeito. - Eu sei Kelly. Olha começou A Feiticeira, olha o que a Tábata fez! - Eu queria ter um nariz desses, com poderes mágicos. Rimos muito do nariz da Kelly. Ela foi para casa e eu me

arrepender de ter dito bobagem. Assim que a Kelly bateu a porta, meu pai levantou, não sei se

estava acordado, mas me olhou de um jeito estranho, cético, uma expressão inescrutável. Foi á cozinha, senti cheiro de café, depois se sentou á meu lado no sofá, perguntou por que eu tinha vindo mais cedo da escola, eu disse que não tinha me sentido bem. Ele balançou a cabeça e disse que eu devia conversar com a minha irmã Sara. Então percebi duas coisas; a primeira é que estava sóbrio e a segunda (a pior) é que tinha ouvido tudo que falei. Eu fiquei cor de pimentão e pior senti cólica de novo. Ele pegou seu fusca 1968 e me levou á casa da Mara, já que a Sara não estava em casa.

Conversando em segredo e bem baixinho a Mara me explicou o processo todo e eu descobri que coloquei o absorvente do lado errado! (não riam!). Deu-me um remédio pra dor e outro pra ânsia (parece que toda vez que eu me encrencava, queria vomitar), tudo junto deu sono e já de noitinha meu pai me levou de volta. Quando chegamos mamãe já estava fazendo a janta preocupada. Meu pai a chamou no quarto e conversaram. Ela não me perguntou nada e eu dei graças á Deus.

Deise

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A Deise tinha uma gangue de briga, se ela cismava com alguém, este com certeza teria complicações. Neste dia a Kelly não veio pra escola e eu fiquei com a turma da Carol. Quando acabou o intervalo a inspetora parou a fila que já ia subindo e mandou-me abotoar o avental. Fui logo abotoando. A Deise passou por mim e deu um esbarrão no meu ombro, quando eu me recobrei do susto ela falou:

- Está me encarando muito pirralha, eu te acerto na saída. A turma dela riu e eu respondi que não estava encarando ninguém. - Está com medo tampinha? - Não tenho medo de você! Foi a pior besteira que eu fiz a briga já fora marcada e a escola toda

estava fazendo as apostas. A professora de inglês logo que entrou na classe, perguntou quem

era Viviane. E aconselhou-me a brigar muitos metros longe da escola se não ia

ter suspensão. Eu tremia dos pés á cabeça, ela nunca vinha sozinha, sempre

brigava em turma, era covarde. Uma menina esquelética com boca suja e má fama. E eu ainda sentia cólica, Fala sério! Pelo menos a Carol se ofereceu para segurar meu material.

A saída do ginásio era pela diretoria e dava na Estrada da Barreira Grande; uma avenida movimentada, com trânsito intenso e fluxo de ônibus.

Esqueci-me de contar uma coisa, meu pai cansou de viajar e mais rápido do que ele imaginou segundo as orações de minha mãe, ele conseguiu emprego como motorista numa empresa de ônibus.

Voltando ao dia cinza... Ao tocar o sinal os alunos se aglomeraram á uns 10 metros do portão, numa esquina, de frente com a banca de jornal lá estava a Deise e suas comparsas, Carol segurou meu material e eu atravessei para o outro lado de encontro á protagonista do Rambo. Ela logo me empurrou e nós caímos no meio-fio ralando os cotovelos, levantei-me e ela me empurrou de novo, meu sangue subiu, empurrei-a para frente de um carro e puxei seus cabelos até o chão. A turma

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assoviava, torcia, vibrava, ela estava perdendo, até que a Claudia e outras meninas me seguraram e de repente as inspetoras apontaram na rua para minha sorte; todas correram (quem disse que eu não tinha anjo da guarda?), arrumei o cabelo que estava todo despenteado e solto, prendi de qualquer jeito e pus-me a correr antes que as inspetoras pudessem me reconhecer, atravessei a rua sem olhar, um carro freou e um ônibus quase colidiu com ele. Nem olhei para trás, peguei o material com a Carol e nos pusemos a correr pra casa.

Ainda bem que não tinha ninguém em casa, a não ser um novo membro, o Bilu, um cachorro de rua que Elias apiedou-se e trouxe pra mamãe cuidar.

Cheguei ofegante. Sentei-me até tudo parar de rodar e vomitei. (como sempre; efeito retardado). Tomei um banho, lavei a louça, tirei o pó dos moveis e passei um pano com sabão no piso da sala e cozinha. Entre uma coisa e outra eu parava para assistir O Sítio do Pica-Pau Amarelo, a Deise bem parecia a Cuca.

Sentei-me e vi que a camiseta depois do banho ficou com um pouco de sangue dos cotovelos, tremia de raiva só de lembrar. Papai tinha escalas diferentes, quando não fazia hora-extra, retornava cedo do trabalho. Dei graças á Deus quando ele chegou, eu estava com sentia ânsia e o Bilu queria comida.

Ele parou na porta, sem sinal de uma gota de álcool, mas a cara muito brava.

Oh! Oh! Quem deu férias para o meu anjo da guarda? - Então era você que estava brigando igual uma vagabunda no

meio da rua? A voz dele subiu quatro oitavas e a minha baixou oito, se é que era

possível. - Pai a culpa não foi minha... Desta vez ele nem esperou ouvir uma explicação, nem o veredicto

da mamãe. Vermelho de cólera a coisa mais próxima que enxergou foi um chinelo jogado na entrada do quarto.

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Deu-me duas chineladas (que valeram por dez! A mão dele era pesada), e como eu sou bem normal em vez de chorar eu vomitei, a cólica aumentou e eu me encolhi no canto do sofá. Meu pai jogou o chinelo no chão e correu a me acudir.

- O que foi? Aquela menina te machucou? Fiquei tão tremula que não sabia se chorava ou pedia um remédio

para dor. Meu pai fez algo que nunca tinha feito, pediu desculpas. Disse-me que ficou apavorado a me ver correr na frente do carro e que eu podia ter sido atropelada inclusive por ele que dirigia o ônibus naquele momento. Depois ele me abraçou, fez uns curativos com band-aide e deu-me umas gotas de novalgina. Eca!

- È melhor você nem dizer nada pra sua mãe. Brigar na rua é coisa para delinquente!

Meu pai (ao contraio da minha mãe e do meu irmão mais velho) nunca tinha me batido de verdade e eu não era mais nenhuma criança, apesar da adolescência ser bem diferente de hoje em dia. Acho que isso o deixou confuso e ele saiu.

Mamãe chegou e eu resolvi contar desde a inspetora me mandando fechar o avental... Ela não brigou comigo, mandou que eu evitasse essa menina e qualquer outra do tipo dela. Parecia solidária e divertida (vai entender os adultos!). Infelizmente meu pai chegou duas horas mais tarde trocando os pés, deitou no sofá e dormiu. E infelizmente também eu não era nenhum anjinho. Mamãe foi deitar eu amarrei os cadarços dos sapatos do meu pai, sem nenhum remorso fui dormir depois da janta. Daniel chegou do colégio por volta das onze horas, preocupado comigo, a notícia já tinha chegado ao professor Luiz Américo embora ele não lecionasse na minha classe neste ano. Mamãe contou todos os detalhes, pediu para que ele não fizesse barulho para não acordar meu pai e foram dormir.

As cinco da madrugada todos acordaram com um barulho de algo pesado caindo na sala, lembrei-me dos cadarços e fingi estar dormindo. Meu pai praguejou horrores, mas já atrasado tomou banho, se barbeou e

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disse que não se lembrava de voltar pulando do bar, ele ia averiguar o delito mais tarde. Eu continuei fingindo dormir.

Passou-se dois dias e o assunto foi esquecido (assim eu pensava).

Sete de Setembro

Eu queria participar da fanfarra da escola, queria ser baliza (bailarina que ia dançando na frente da banda), mas eu era “comum” e nem um pouco magrela para ser destaque, além do mais eu era morena e não branca! Contentei-me tocando pratos. A roupa da fanfarra era verde e branca, camisa branca, bamba branca (tênis), calça branca, colete e boina de veludo verde. Mara comprou os tecidos e Elias pagou a costureira.

A Kelly não quis participar mais ia assistir ao desfile sempre que a escola ia á algum evento. Fomos desfilar no museu do Ipiranga e eu tocava orgulhosa batendo os pratos no ritmo da melodia, até hoje me lembro da musica, jamais esqueci e se eu pudesse reproduziria o som perfeito da banda toda, foi algo muito bom na pré- adolescência.

Tínhamos que estar no museu as 7H00 num sábado, várias escolas apresentaram-se o desfile acabou meio-dia. Chegamos às 14h00, aproveitando a deixa que meus irmãos estariam em casa visitando minha mãe, pensei que não sentiriam minha falta e que não havia nenhum mal em ir para casa da Kelly jogar um pouco de vôlei.

Ficamos na rua jogando queima, vôlei, lá para o final da tarde, tinha uma turminha da escola que morava perto e resolvemos brincar de passar anel (quem nunca brincou disso?).

Um casal de gêmeos, o Alexandro e Adriana, vieram pra escola no meio do semestre e incluímo-los no grupo, os dois eram bonitos e educados e motivo de uma disputa platônica.

Bom, quando eles chegaram à Rua da Kelly, a brincadeira pegou fogo.

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- Vamos pular corda e brincar de “lencinho na mão”?

A maioria venceu e brincamos um tempo.

Já beirava as 19h00 da noite e eu tinha me esquecido da vida. Alguém sugeriu Brincar de “beijo, abraço, aperto - de - mão”.

Era minha vez, o Eduardo tapou meus olhos e ficou apontando e perguntando:

- É esse? - Não. - É esse? - Não. Eu tinha pedido pra Kelly tapar meus olhos e dar um toque quando o

dedo apontasse para o Alexandro, mas o estraga prazer do Eduardo não deixou. - É esse? De repente, a turma começou a assobiar, rir e falar ao mesmo tempo. Das

duas uma: ou o Eduardo estava apontando para uma menina ou apontava para o Alexandro, não pensei mais.

- É! - O que você quer dele? Beijo, abraço ou aperto de mão? Ouvi a Kelly gritar “não”, só podia ser o Alexandro. E agora era a

chance de beijar um garoto pela primeira vez. Respondi. - Beijo. Senti o Eduardo tremer e outra mão tapar meus olhos e repetir: - O que você quer mesmo? Mas nem a mulher maravilha com a poderosa Ísis poderia me

ajudar; reconheci a voz e fiquei gaga. - Eu... Eu. - Você! Esqueceu a hora de ir para casa e seus pais estão

desesperados! Meu irmão lembrava o incrível Huck. Pegou-me pela mão e foi

apertando ela até eu falar ai. Fomos andando em silêncio até sairmos da vista da turma. Tinha uma árvore que dava uma flor cheirosa, Dama - da -noite; rodeada por outras árvores na calçada das ruas. Elias arrancou um galho fino de uma árvore e apontou a vara pra mim, eu entendi o que me esperava e resolvi treinar para a futura corrida de São Silvestre. Entrei

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num quintal de uma casa, subi pelo muro, corri por dois telhados até dar com uma casa de fundos em outra rua. Elias correu tanto que sua condição física de médico permitiu me alcançar na esquina, porém dei meia-volta e corri de volta até entrar mato adentro. Não ouvi mais os passos dele.

- Uma hora você vai ter que sair daí, vai esperar para apanhar! Ouvi a ultima ameaça e fiquei pensando o que eu tinha feito de tão

errado? Eu nem tinha beijado o menino. Só estava brincando com a turma, me divertindo um pouco. Que injustiça, eu ia fazer treze anos! Ninguém devia tentar me bater mais, hora essa! Não tinham ouvido falar em ajoelhar no milho como minha avó mandava ou em jogar as revistinhas da turma da Monica fora, rasgar as figurinhas dos Super- Amigos; etc. Afinal existiam outros castigos, pelo jeito eu ia ganharia todos num só dia.

Passados quinze minutos, o que parecia uma eternidade, eu arrisquei ir mato á dentro já no escuro e segui uma trilha, o terreno agora era um espaço descampado, corri e sai numa viela, de lá em outra rua, perto da panificadora vi os garotos jogando fliperama.

Quando me aproximei da esquina da rua, minha irmã Mara veio á meu encontro com os olhos cheios de lágrimas, me abraçou e disse que mamãe pensou que eu fugi de casa, a pressão dela subiu e o marido de Sara junto com papai já a tinham levado ao pronto socorro quando Elias voltou. Desabei a chorar.

- E agora, ela vai ficar bem? - Vai sim, mas é melhor você vir comigo por enquanto. - E o Elias? - Foi levar a Jade e depois passará no hospital para ver se mamãe

já esta liberada. Todavia, ele esta uma fera com você e dessa você não vai escapar mocinha.

Minha mãe recebeu alta na madrugada de domingo, Elias já a tinha posto a par dos fatos relevantes somente para não agravar mais sua saúde. Ele passou na casa da Mara, e meu cunhado disse que eu tinha

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vomitado a noite toda e só tinha dormido com muito esforço. Minha mãe repousou o domingo todo, meu pai não saiu do lado dela (algo nele estava mudando. Será?); fiquei na casa da Mara.

Segunda - feira, meu pai foi trabalhar, minha mãe muito teimosamente também foi e meu irmão tinha plantão diurno no hospital. Daniel me deixou um bilhete em que a palavra mais leve da linguagem formal foi: “irresponsável”. Eu já não me preocupava com a surra, tive medo de minha mãe morrer. Não fui á escola. Sem ansiedade, a culpa e o medo me deixaram sem nada mais pra pensar. Minha mãe saiu mais cedo do escritório. Meu irmão acompanhou-a. Ambos me olharam como se eu fosse uma alienígena. Mamãe puxou uma cadeira e botou outra frente á ela. Chamou-me.

- Venha aqui. Minhas pernas queriam correr, mas eu fiquei. - Você sabe o que fez? - Eu não queria deixar a senhora doente, só fui brincar na Kelly, não

vi nenhum mal nisso... Pela primeira vez consegui argumentar com minha mãe. O que o

medo não faz! Minha mãe fitou-me longamente, eu pensei que ela fosse desmaiar

e gritei. - Mamãe! Meu irmão médico correu para o lado dela. Mamãe me abraçou e

pediu pra eu nunca mais fazer aquilo, disse que enlouqueceria se acontecesse alguma coisa e que somente desta vez eu não ia apanhar porque ela estava muito doente.

Eu chorei muito mais do que se tivesse apanhado. Culpa é um sentimento muito ruim.

Elias fez um chá para mamãe e aconselhou-a repousar. Depois ele me puxou pelo braço lá para o quintal, fez um sermão de uma hora, até papai chegar.

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- Estou jurando que dá próxima vez, que você aprontar seja lá o que for, vou te dar surra que você não vai esquecer jamais, vai descontar todas as suas travessuras dos últimos anos! Esta me ouvindo?

Fiz um sinal afirmativo com a cabeça, eu não ousava olhar para ele, quando consegui fitá-lo, meu pai já tinha aberto o portão e meu estomago embrulhou escurecendo tudo que já estava cinza. De novo crises de vomito com desmaio. (Bendito vomito involuntário que me livrou de apanhar do meu pai e do meu irmão). Papai poupou minha mãe do ocorrido, eu senti muita dor de cabeça depois. Meu irmão ficou muito tempo em casa naquele dia, me fez muitas perguntas que eu não entendi o motivo, mas ele pareceu-me intrigado.

Na terça-feira a vida voltou ao normal, ou quase.

Seminário de ciências

A professora Maria Aparecida de ciências separou grupos para

apresentar seminários, o tema sorteado para o meu grupo foi Nutrição. Eu e a Kelly ficamos com a parte escrita (não existia, ou não tínhamos conhecimento do computador ainda), os trabalhos eram copiados em cadernos e depois passávamos a limpo com a letra mais caprichada em folhas de papel almaço, as gravuras na cartolina tinham que ser desenhadas á mão, as alunas Regina e Luciana ficaram com a parte das gravuras na cartolina, Eduardo e Carol com a apresentação.

- Vamos à biblioteca amanha? A Kelly quis saber. - Não sei se posso estou de castigo, meus pais não vão permitir

ainda mais que é na Vila Formosa, eles acham perigoso. - Vamos de manhã, é muita coisa para copiar, caso contrário não

dará tempo ir á escola. - Então vamos, mas tenho que estar aqui na hora da entrada. - Relaxa, a gente vai estar.

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- Vamos como? - A pé, horas! Ah vá, nós já fomos antes. - Combinado então. Saímos cedinho no outro dia e fomos a pé, tivemos uma surpresa,

vimos o carro da professora Odette numa casa enorme, próximo da biblioteca, a professora nos viu. Convidou-nos para tomar café e apresentou suas lindas filhas gêmeas. Ficamos o tempo de engolir um suco, agradecemos e corremos para biblioteca.

- Nossa Kelly como a professora é gente boa . - É mesmo, tão rica e até nos chamou pra entrar no casarão dela. - Vendo e surpreendendo! Rimos e corremos, a biblioteca tinha horário, era a mais consultada

da zona leste, acho que a única na época e só podíamos entrar até as 9h30 da manhã, depois disso só após 13h00.

Deu tempo, ao entregarmos as cadernetas escolares fomos avisadas que mais três grupos de escolas diferentes estavam ali fazendo a mesma pesquisa. Pegamos um livro assinamos o prontuário sentamo-nos à mesa mais próxima e mãos á obra.

Eram mais de 50 páginas que descreviam os alimentos, seu valor nutricional, os complexos vitamínicos e as doenças decorrentes da falta das vitaminas, sem contar todo o funcionamento do aparelho digestivo. O relógio bateu meio-dia e neste momento a Kelly percebeu que faltava uma folha da enciclopédia que estávamos usando e outra turma consultou antes.

- E agora? - Fazer o que, já pegamos o livro assim, a biblioteca vai fechar e

estamos atrasadas, não vamos chegar á tempo para aula. - Mas, e agora avisamos ou não? - Nem pensar, vai ser uma burocracia, não posso me atrasar

mesmo Kelly, meu irmão está querendo minha cabeça e meus pais vão conceder a honra á ele. Não posso ter mais nenhuma transgressão na lista, mesmo sendo por uma boa causa.

- Então, vamos embora.

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Entregamos os livros, assinamos o prontuário e pegamos as cadernetas escolares de volta.

Enquanto corríamos o percurso de uma hora a pé de volta pra escola, lá na biblioteca outra turma pediu o livro para retirada e na hora da revisão constataram a falta da pagina, justo com parte dos alimentos com vitamina C, tema que fazia parte do nosso trabalho escolar. A bibliotecária viu as ultimas pessoas que consultaram o livro pela ficha; ligaram imediatamente para escola e acusaram-nos de roubar as folhas do livro. Falaram diretamente com a diretora; na casa da Kelly, nem na minha tinha telefone, por isso consultaram o professor Luiz Américo que mesmo argumentando uma contraprova, confirmou o numero do Bip do meu irmão Elias. Vai dar tudo errado assim lá na Indonésia!

Sem saber de nada, nos atrasamos e a única saída (na nossa cabecinha mole) era pular o muro do estacionamento. A Kelly foi a primeira e fez um corte no braço com um galho da árvore, eu pulei depois e conforme fui descendo, via Kelly ficando pálida, me apavorei e pulei com tudo. Meu joelho estralou, e eu fui chutar o carro que prendeu meu pé e adivinha quem estava gargalhando dentro do carro? È ele mesmo, o professor Luiz Américo.

Como não sabíamos do pior, ele saiu do carro, viu as folhas de almaço e o caderno, pediu para ver, analisou friamente e perguntou:

- Vieram da biblioteca? - Exatamente, por isso nos atrasamos e eu não posso ter uma falta

este mês! - Bom, não posso fingir que não presenciei a entrada clandestina,

embora eu não lecione para vocês este ano, não é Viviane? Nem posso te dar um zero. Mas se eu fosse vocês ia direto á sala da diretora.

- Mas, o senhor não pode relevar estou me comportando, estávamos realmente fazendo o trabalho.

- Eu acredito, acontece que a direção da biblioteca ligou e a diretora quer falar com vocês.

Ficamos de boca aberta. Era muita má sorte para um dia só.

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Ele nos conduziu até a diretoria, mas só disse que nos atrasamos por causa da pesquisa.

Fomos informadas da denuncia, interrogadas e acareadas. Nesse ínterim, o pai da Kelly que vinha para São Paulo vez em nunca chegou à diretoria. Senti pena da minha amiga, o pai dela tinha cara de buldog, dava medo até de olhar. A diretora pediu que ele sentasse e esperasse o irmão da outra aluna. Alguma coisa me ascendeu dentro do cérebro, algo com castigo, vara, Elias, encrenca! Depois de muita conversa e averiguação em nossos materiais a diretora decidiu por aceitar nossa versão como verídica. O pai da Kelly fez uma cara de insatisfeito e fomos autorizadas a voltar para aula, meu irmão não pôde vir pelo jeito e fiquei mais confiante.

Tivemos as duas ultimas aulas vagas e nossa classe foi dispensada. Na escadaria de saída a Kelly faz um comentário incoerente.

- Olha Vivi, tem um homem com roupa de anjo e varinha na mão conversando com o professor Luís Américo.

- Anjo uma ova! Corre que é meu irmão que deve ter vindo direto do hospital.

Corri o mais que pude, fui derrubando os alunos pela frente, tropeçando, já não tinha forças de tanto que tinha andado naquele dia, passei pelo professor e por meu irmão como uma flecha derrubando os livros.

Rezei para Sara me emprestar o “Cavalo de Fogo”, para o papa-léguas ganhar a corrida e para o Batman me sequestrar. Cheguei à casa ofegante, assim que abri a porta, meu irmão abriu o portão. Ele correu também pelo jeito, o que era mau sinal.

- Eu te fiz uma promessa, lembra? - Mas, desta vez eu não... O resto da frase foi uma porção de ai, ai, ai. A vara comeu solta,

aquilo ardia igual pimenta na pele, quanto mais eu gritava, mais ele batia, e isso porque era bonzinho. (Sei!).

A ânsia veio e mesmo vomitando eu apanhei por todos os meus pecados passados, presentes e futuros. Quando ele parou de bater a

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varinha já tinha se despedaçado e eu estava rouca de tanto gritar. Isso tudo levou eternos cinco minutos!

Só que ele já esperava pela expressão impassível, que eu fosse vomitar sem parar. O estomago doeu ate sair um líquido amargo. Recompus-me e fiquei fitando-o em desafio; quando ele ameaçou tirar o cinto, desisti e pedi para tomar banho. Quando pronunciei a ultima frase o estomago contraiu-se.

- Vá tomar banho, ainda temos muito que conversar. Pra ajudar o banho foi gelado, o chuveiro vivia com defeito e meu

pai estava esperando que papai Noel trouxesse um de presente, já que ele gostava mesmo de banho frio. (Alguém pode dizer pra ele que o resto da casa prefere a água do banho bem quente? Obrigada!).

Quando sai do banheiro, vestida de pijamas, Elias me deu um chá que não pude engolir, depois deitou minha cabeça na almofada no colo dele e me contou uma história de um menino que tinha tido um grande susto e depois disso cada vez que sentia medo, ele via um buraco negro girar e ficava tonto, vindo a cair e machucar-se. Disse que esse menino cresceu e tornou-se cirurgião dentista. Um dia a mãe levou uma criança para extrair o dente e advertiu muito que a criança era filha do prefeito e não poderia sentir dor. A extração correu normal ate a anestesia, entretanto, quando o dentista puxou o dente com alicate a menina começou a chorar, ele apavorou-se e desmaiou e a menina engasgou-se com o dente, por sorte não morreu. Ele nunca mais pôde exercer o oficio. Se ele tivesse sido tratado deste medo, se tivesse sido diagnosticado quando ainda era criança, ele provavelmente teria se curado.

Abri os olhos e vi que os olhos dele estavam marejados e eu não tinha compreendido ainda a moral da história.

- Qual a moral da história? - É melhor enfrentar os medos que fugir deles, cortar o mal pela

raiz.

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Achei que ele referia-se ás minhas muitas travessuras e fiquei ali curtindo um cafuné de brinde, com o corpo fraco e dolorido marcado pela sova.

Elias ficou comigo até mamãe chegar, e pela cara que ela fez ela somou dois mais dois, ou seja, vara quebrada no quintal, Elias em casa com possível remorso, meu rosto vermelho de chorar.

- O que foi desta vez? Fiquei tão fraca pelo exercício matutino e por passar mal do

estomago que Elias contou tudo com detalhes, inclusive que a diretora nos deu por inocente.

Minha mãe ergueu uma sobrancelha como se fosse uma pergunta, ele abaixou a cabeça e justificou.

- Para quem é que ela avisou que ia cedinho á biblioteca da Vila Formosa e a pé?

- Certo, palmadas merecidas! A voz dela não foi muito convincente. Talvez porque ela sabia que

eu tinha passado mal de novo e nos exames gástricos não dava nenhuma alteração.

Quando fui dormir, mamãe sentou na cama trançando meu cabelo e meu pai vendo o jornal. Mamãe cantava, não sei se para me consolar, para me fazer rir ou para eu dormir: “Mamãe dizia, vem cá Maria, mas eu já sabia que ia apanhar, eu saia em toda carreira pulando a fogueira sem me machucar, logo a frente tinha um rio eu caia n’água só pra se molhar, eu ficava toda ensopadinha, mas não me importava era bom nadar. – Maria! Maria!... Eu corria pra não apanhar. – Maria! Maria! Não adianta tu vais me pagar!”.

- Desta vez eu não tive culpa nenhuma mãe! - Sei disso, porém das outras vezes mereceu o castigo e escapou

ilesa, não se pode ganhar sempre. Ela continuou cantando e mexendo no meu cabelo. Minha mãe era

uma incógnita. Eu nunca sabia qual sua a reação. Eu sempre esperava o pior e ela me surpreendia. Eu admirava a força de vontade dela, a

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seriedade, a fibra, a capacidade de conduzir, a sabedoria com a qual ela lidava com cada filho, o jogo de cintura no trabalho e principalmente não entendia por que ela aguentava meu pai por tantos anos.

A oitava série e outro Eduardo

Tentei ser o mais comportada possível até o fim do ano letivo. Já

tinha visto que meu irmão era um chato! Mas, ele viajou para Bolívia com a esposa para terminar a residência medica e eu senti demais a falta dele. Papai parecia não sentir saudade das viagens, mas vez ou outra chegava a casa com alguns apetrechos de amigos e cheiro de álcool (às vezes me pergunto por que mamãe não batia nele), isso sem contar as horas extras na rua que excediam a madrugada.

Janeiro passou. Parte das férias foi na casa de Sara, ela engravidou e resolveu curtir a gestação, deixou de trabalhar fora e até que ficou mais calminha, serena, até me prometeu um videogame Atari caso eu fosse exemplar neste ano.

Primeiro dia de aula. Corremos no período da manhã pra ver a listagem com nossos nomes, para saber qual o numero da sala e quais colegas ainda estariam na mesma turma. A escola nessa época tinha quatro períodos. Eu, a Kelly, Carol, Luciana, Alexandro, Regina, Roberta e a outra Viviane estreamos no horário das 11h00 ás 15h00. O colegial foi para o período da manhã. Meu coração disparou todo mundo eufórico, ultimo ano de ginásio, ia haver baile de formatura, tremia ansiosa para saber quem eram os professores deste ano. Eu tinha acabado de ler o livro “A oitava serie C” e sentia-me compulsiva por fazer parte de um grupo como o do livro. Outra coisa mudou no colégio, nossa entrada era pelo mesmo portão de saída da turma da manhã, pelos portões da diretoria. A educação física não era no mesmo horário de aula.

Dois dias e já conhecíamos quase todos os professores, todos já tinham sido nossos mestres, o ultimo a aparecer foi o professor de

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matemática, que não podia ser outro: Luiz Américo! O ano letivo prometia e eu nem sabia o quanto.

O uniforme de Educação física era camiseta branca, agasalho (PENALTI ou ADIDAS) azul marinho com duas listas brancas do lado, ou minissaia pregueada branca e shorts vermelho por baixo, tênis branco ou conga vermelha.

A primeira aula na quadra foi um jogo de vôlei muito disputado com a outra oitava, 9h15 era o horário de intervalo da turma da manha e muitos do colegial rodeavam a quadra assistindo o jogo. Minha vez de sacar, o outro time passou a bola por cima de rede e atingiu os expectadores, fui à busca da bola e um menino já vinha trazendo-a. Nossos olhos se cruzaram e foi instantâneo o interesse pelo garoto moreno que sorria. Seu nome era Eduardo e ele cursava o colegial. Os dias de educação física eram os melhores pra mim. A paquera durou muito, ele só tinha quinze anos e eu ainda ia fazer quatorze em setembro, éramos tímidos, mas trocávamos bilhetinhos com versos e nos considerávamos namorados. A Kelly ficava pondo fogo e eu já não aguentava mais o assunto. Eu tinha medo de namorar, de não saber como namorar.

- Kelly presta atenção na fórmula de Bhaskara! - Deixa de ser besta! Treina no espelho. Ele vai arrumar outra

namorada se você não o beijar. - Cala a boca Kelly! O professor mirou o giz e assustei-me quando este pousou na folha

de exercícios. - Qual o assunto interessante que as duas não param de papear e

estão atrapalhando a aula? Viviane você já tem uma nota vermelha e o ano nem começou, está difícil de entender a matéria? Eu explico pra você.

- Não! Quer dizer, está. Não sei... - Então faça a lição, antes que eu acrescente um ponto negativo á

sua nota. Droga, a Kelly tinha que me encrencar justo com esse professor?

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Escrevi o resultado da questão na borracha e passei pra ela. Ela virou a borracha e escreveu: treina no espelho! E jogou a borracha de volta.

Não é possível meu professor era o Sonic do videogame, eu nem pressenti a presença dele e lá estava a borracha na mão dele.

-Treina no espelho? Treinar fórmula de Bhaskara no espelho? Que interessante!

De novo não! A classe inteira riu ate cansar e eu mudei de cor alternada entre vermelho e roxo.

- Seu irmão vem quando de férias?

- No meio do ano.

- Bom! Vai ser ótimo conversar com ele, mas antes disso se suas notas não

melhorarem vou convocar sua mãe e

pedir pra ela te ensinar a beijar! Sou o coordenador dessa oitava este ano. Eu ia matá-lo, juro! Mas primeiro eu ia matar a Kelly! Todo assunto interessante é fomentado no ginásio. No outro dia até

o Eduardo já sabia da história da borracha na mão do professor. Ele vinha (quando a mãe dele deixava) me buscar na porta da escola. A Kelly adorou a desculpa de não segurar vela para conversar com o Alexandre e a poucos metros da primeira esquina, o Eduardo pegou o material das minhas mãos, deu um sorriso torto, passou o braço pelo meu ombro e

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continuamos andando. Eu fiquei com medo de vomitar, Mas que nada! No portão de casa ele pôs meus cadernos no muro segurou minhas mãos puxando para o pescoço dele e me beijou.

Não precisou de espelho! Fiquei sem saber se era bom ou ruim, fiquei com medo de não ter beijado direito, fiquei com vergonha dele, a preocupação foi tanta que não distingui a sensação. Eu me despedi e entrei em casa correndo, o bilu latindo atrás de mim pelo quintal. Peguei um espelho pequeno e treinei até a língua ficar amarga (não riam!).

Nos dias seguintes os beijos na volta para casa tiraram qualquer dúvida; era bom beijar e eu comecei a me apegar demais naquele garoto. A boa noticia é que era um garoto estudioso, exemplar em casa e obediente aos pais, ajudava até nos afazeres domésticos. Ele conseguiu um curso de elétrica no SENAI, e nos víamos menos ou quando eu conseguia cabular aula para ir á rua em que ele residia. Os finais de semana eram odiosos, minha mãe quase não deixava mais eu sair, nem para jogar vôlei, qualquer desculpa tinha uma resposta: Não e pronto! Eu me sentia solitária com quatorze anos.

Meu pai estava mudando, eu não identifiquei bem em quê, ou o que era a mudança, ele parava mais em casa e fazia meses que não o via ébrio. Mamãe ia á igreja, uma comunidade eclesiástica no nosso bairro, virava e mexia eu a via orando, mas também a via me olhar como quem estava adivinhando o motivo deu querer ir á rua, uma mistura de intriga, dúvida e ameaça pairava nas conversas e no olhar dela em relação á mim.

Num abençoado fim de semana em que ela me deixou ir ao cinema com a Kelly, fui ver Eduardo e justo neste dia ele estava indo viajar com o pai dele. Na minha infantilidade eu chorei na frente dele e depois me deu uma raiva danada. Lembro-me que a mãe dele disse do portão:

- Vai com Deus, meu filho. E eu disse. - Tomara que você morra! Por que você tem que viajar? Minha impulsividade custou simpatia da mãe dele e o namoro foi

ameaçado.

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Antes que ele voltasse de viagem eu tomei coragem toquei a companhia da casa dele e pedi perdão á mãe dele, ela me passou um sermão sobre a minha idade e a falta de respeito do que eu tinha feito. Eu me desculpei de novo e passei a ter um medo ferrenho dela.

Quando ele voltou não foi me buscar na saída, não mandava mais bilhetes e eu acreditava seriamente que o amava. Eu só chorava, não prestava atenção nas aulas, e as aulas de matemática eram as piores. Fui emagrecendo e tendo problemas com o estomago quase que diariamente.

O professor ficou de olho em mim e percebi que não era por implicância, era algo paternal, uma real preocupação. No meio de uma avaliação em que eu mal escrevi o nome na folha ele me tirou da sala e mandou outro professor ficar na classe aplicando a prova, me levou ao corredor e me pôs contra a parede.

- O Eduardo do 1º A é o motivo de você jogar um ano todo pela janela?

- Como é que o senhor sabe? - E quem é que não sabe? A escola inteira sabe. O que aconteceu

de tão grave? - Na verdade nada. Ele só se afastou de mim, por causa dos pais

dele. - Isso é ótimo, sua cabeça não concilia namoro e estudo e você mal

saiu das fraldas! E não estou aqui para lecionar e você fingir que não tem ninguém lá na frente, preste atenção. Vai haver conselho de classe e vamos levar seu caso para diretora. Sabe onde isso vai parar?

- Na Bolívia provavelmente. Respondi sarcasticamente, mas era algo bem possível. - Duvida disso? - Não, estou tentando professor, estou tentando estudar, mas não

consigo parar de pensar nele. - E nem de passar mal do estomago. Chamamos seu pai e ele

disse que os exames não deram nada, que o problema é emocional. Você quer ficar igual um objeto inanimado tomando remédios controlados?

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- Por quê? O que quer dizer? - Vamos lá, você sabe muito bem, porque acha que seus pais não

levaram você á um neurologista ou psicólogo? Eles sabem que teria sido melhor você superar com o tempo, mas não contavam com uma paixonite maléfica.

-Não é paixonite. Eu vou melhorar; deixa-me fazer a prova na ultima aula, eu vou conseguir!

- A senhorita vai ao menos tentar. Eu gostaria de ser seu pai por dez minutos! Ou de ser seu padrinho por quinze dias! Eu ia por você na linha mocinha, agora acabou, entendeu? Acabou a tolerância. Em uma semana a direção vai analisar seu comportamento, vamos chamar os pais de Eduardo também, e teremos uma conversa esclarecedora com seus pais!

- E se acaso eu melhorar as notas? Não precisa falar com os pais dele.

-Vamos ver, conversamos com ele hoje de manha. - Ah! Não! Não é justo professor. - Eduardo é um excelente aluno e também está disperso, não

chega a ter notas baixas, mas a dispersão dele foi observada pelos professores.

- “Shit”, você dá aula pra ele? - Com certeza! E por causa dessa palavrinha em inglês você tem

mais um ponto negativo, recuperar a nota vai ser difícil. - Droga! Droga! Nem as lágrimas, nem a revolta comoveram o professor e na última

aula o máximo que consegui foram 4,5 subtraindo o ponto negativo, já era!

Saí da escola desolada, quanto o vi apoiado na grade... Cumprimentou-me com um selinho, pegou meu material, passou o

braço pelo meu ombro e me acompanhou até em casa como se nada tivesse acontecido.

- Du? - Que é?

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- Sinto muito. - Eu também, mas só vou te namorar se você melhorar as notas. - Credo! Mas, e sua mãe? - Ela já perdoou, eu também e queremos ver suas notas. Você sabe

que estou cursando o SENAI, não vai dar pra vir buscar você todo dia. - Eu já sabia disso. E também, não vou chorar quando você viajar,

nem maldizer. Ele riu e bagunçou meu cabelo, num gesto carinhoso. Meu dia

ganhou um novo brilho, parecia que eu estava viva de novo e no bimestre seguinte eu ralei muito para recuperara as notas, mas consegui.

O motivo do conselho não chamar meus pais, além da melhora visível, foi que outro aluno o Eduardo que estudou quase todo o ginásio comigo, estava dando mais problemas na 8ª D, ele sempre fora meio agressivo, mas havia suspeita de roubo de material escolar e de que ele estivesse envolvido com a droga da vez, a maconha.

Com o tempo eu via muito pouco meu namorado. Saber que ele mantinha o compromisso bastava-me. Edu foi transferido para o horário noturno por causa do curso. Os finais de semana eram tediosos; no final do ano estávamos nos vendo quinzenalmente. O namoro resistiu até depois da colação de grau, a escola não fez formatura naquele ano e fiquei muito decepcionada, queria dançar com o Eduardo, eu deitava na cama e ficava escutando Johnny Rivers, Bry Adams, RPM, (Olhar 43), Capital inicial, Camisa de Vênus (Isso é só o fim) e uma musica me fazia chorar muito: “I Should have know Bether”, eu curtia uma dor de cotovelo incrível e passei horas chorando, sem entender o que era aquela dor chamada saudade.

No Natal tive uma surpresa boa, meu Tio Zezinho apareceu, rodopiou comigo junto á árvore no quintal, disse que eu tinha crescido muito e que nem queria sonhar que sua sobrinha favorita estava namorando, prometeu me levar para conhecer a outra família dele e cumpriu mais rápido que pensei, nunca mais vi Rosely, mas amei também meus primos mais novos.

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Primeiro colegial, amigos errados.

Em 1989 pedi para minha mãe transferir-me para o colegial noturno. Meu

irmão Daniel, transferiu-se no meio do ano passado para o Colégio visconde de Cairu para o curso técnico em publicidade, fez adaptação das matérias e ganhou um novo nicho.

Eu fiquei muito perdida, a Kelly mudou-se novamente para Penápolis, foi morar um tempo com o pai e eu tive que fazer novos amigos. Um consolo foi que os professores do noturno eram os mesmos do vespertino. Continuei tendo aula com Luiz Américo e o professor Léo dava aula de Física. Conheci Tânia, Marcel e Ana, os três curtiam rock e cabulavam na sexta-feira para ir para o bote (nome dado á um barzinho com musica ao vivo onde os roqueiros reuniam-se). O Edu cursava o ultimo ano e fiquei surpresa quando o vi com uma nova namorada sem me dar aviso prévio.

Marcel era um rapaz alto como um poste, era carismático apesar do cabelo longo e das camisetas pretas, usava calças jeans muito surradas, assim como Tânia e Ana. Eles sempre me convidavam para ir ao tal bote, porém eu ainda estava tentando me encontrar.

Certa vez durante o intervalo eu não resisti e interpelei o Edu no corredor. - É seu ultimo ano aqui e no SENAI não é? - Oi! Que... Surpresa, sim, é. Por quê? - Porque para alguém tão capacitado no seu currículo não devia constar

“covardia”! Eu nem sabia ao certo porque estava gritando com ele, mas, o fato é que

estava, e na frente dos amigos dele. - Está me chamando de covarde? - Estou! E será por quê? Seu hipócrita! - Exatamente o motivo deu me afastar é essa sua impulsividade. Dizendo isso ele virou as costas para mim e saiu andando. A talzinha que

vi abraçada com ele passou por mim chamando-o, não resisti e a empurrei em cima dele. Meus olhos fulminaram e eu saí correndo para fora da escola. Foi oportunidade perfeita, os roqueiros estavam no ponto de ônibus para ir ao “bote” curtir.

- Viviane! Vamos, vai ficar ai curtindo dor de cotovelo na frente do colégio todo?

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A voz de Ana foi um desafio e eu aceitei. - Não tenho dinheiro pra passagem. - Nós pagamos a sua. O ônibus só levava quinze minutos até o bairro do Quarto Centenário,

depois do ponto da avenida principal, subimos uma ruazinha e pegamos outra paralela, o bote localizava-se na esquina e tinha outro bem no final da rua uns vinte metros acima.

Aprendi muita coisa sobre o rock naquele dia, conheci uma moça punk chamada Paula, ela era enorme, trazia correntes penduradas e o cabelo vermelho tinha um corte irregular. Os punks carecas não simpatizavam com os punks cabeludos que era o caso da Paula. Esses punks cabeludos andavam com roqueiros, se as gangues se encontravam era briga na certa. Eu me tornei sua protegida no espaço dos botes e quando ela não estava drogada com bolinhas azuis na bebida ou maconha. Hoje eu seria chamada de noob (iniciante), na época eu era a amiga careta da Ana.

Depois disso raramente eu entrava na escola ás sextas-feiras, por mais que eu não visse graça naquele grupo social, eu não tinha outros amigos então tentei me adaptar.

O Tom Crise brasileiro apareceu no bote certa sexta-feira, Ana nos apresentou...

- Márcio, está é Viviane, uma careta que gosta de MPB e anda conosco, é protegida da Paula.

O rapaz alto de olhos claros e aparência tola olhou-me com bastante curiosidade.

- Bem vinda, amiga careta. Sorriu-me e convidou para sentar à mesa, a música era barulhenta e alta.

Conversamos um pouco, nem identifiquei o assunto, quase não ouvia nada, mas o rapaz era mesmo bonito, Fiquei sabendo que os pais dele eram ricos e me perguntei o que ele fazia ali.

Márcio ofereceu-me uma bebida, geralmente eu negava, mas aquele dia eu quis provar.

Quando o copo com menta chegou à mesa, vi Paula furiosa aproximar-se e jogar o copo no chão.

- Com ela não!

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Fiquei perplexa, não entendi nada, comecei a rezar para não sair uma briga, eu ainda queria ficar viva.

- Desculpa Paula, tudo bem. Esquece isso. Paula balançou as correntes e golpeou a mesa. Respirou fundo e

puxou-me pela mão. Quase desmaiei. - Você vai pra casa agora, vou resolver um assunto com o Márcio. Eu concordei automaticamente. A ira dela aplacou-se e ela pareceu

sentir pena. - Eu já te alertei pra olhar sempre dentro dos copos de bebida e no

seu caso até dos guaranás. Tinha boa noite cinderela naquela menta sua idiota!

Eu disparei em direção ao ponto de ônibus e quando percebi, Tânia corria atrás de mim.

- Espera, vou com você, vai sair pancada no bote. - Por minha causa? - Não! Isso era um bom motivo, mas é outra mina que ficou com um

cara que a Paula gosta. Meu estomago se contraiu. Fiquei algum tempo sem aparecer no bote.

Álbum de fotos Eu sentia-me sozinha. Os fins de semana eram cada vez mais sem graça,

já não conseguia me concentrar na leitura de um bom livro. Sentia que eu não fazia parte de nenhum grupo, eu não me encaixava em nada. Ficava calada em casa e um sentimento de revolta começou a crescer dentro de mim.

No sábado havia gincana na escola; com correio elegante, pescaria, tinha a brincadeira da prisão (pagávamos para mandar prender alguém, as brincadeiras até que eram divertidas). Todas as series participavam, uns elaborando, outros no comando e a maioria divertindo-se nas quermesses de Junho e Julho.

Revi Carol, a outra Viviane, minha chara, Eduardo (meu ex.), e conheci o primo dele.

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Encontrar Eduardo foi um golpe duro, eu ainda ficava sem jeito perto dele e de maneira alguma o havia esquecido. Tinha quinze anos e uma paixão quase platônica não correspondida. Tomei conhecimento de uma matinê na Vila Formosa, no baile da Ponta. No domingo seguinte Mara me deu dinheiro para ir ao baile, meus pais estavam entretidos com a netinha Natali, filha de Sara, e assim ficou fácil para Mara convencê-los a permitir. Lá conheci um grupo diferente e musicas diferentes, a era DARK, músicas POP, garotas fúteis e rapazes orgulhosos, todavia, quem andava fútil e orgulhosa era eu e não o resto da adolescência. As danças em grupo eram gostosas, e as danças lentas tinham um “que” de nostalgia. O baile perdeu a graça quando percebi que todo menino que me tirava para dançar tinha o rosto de Eduardo.

As férias de Julho passaram e na primeira semana eu voltei a frequentar o bote. Como premio fiquei com zero de média em matemática, mas eu tinha tirado nota cinco na prova.

- Professor, eu tirei cinco! - E tinha seis pontos negativos, por cabular seis aulas minhas em seis

semanas antes das férias e uma agora. Aquilo me irritou. Passei a noite acordada pensando numa vingança

inofensiva. Lembrei-me do álbum de fotos do casamento de Sara. O terno que o professor vestia parecia de cetim, era da cor cinza clara, brilhante e justo. O noturno todo ia adorar ver aquele álbum.

No dia seguinte o colégio todo folheou o álbum, por sorte eu não tinha

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aula do Luís Américo naquele dia. No 2º C a outra Viviane ganhou a fama. - Como assim? Que casamento eu fui padrinho, de que fotos estão

falando? Como viram este álbum? - A Viviane trouxe para escola hoje. - Ah! Essa Viviane precisa de umas boas palmadas! - Aí Viviane, vai apanhar do professor. A sala zombou dela. - Hei, o professor esta falando da Viviane do 2º A. Foi o casamento

da irmã dela. Assunto fomentado e esclarecido, o professor Luís Américo estava

ansioso por ver-me e eu por fugir dele. Elias terminou a residência em pediatria, voltou definitivamente ao

Brasil, fazia plantão no hospital municipal e atendia numa clinica particular na Vila Diva, meia-hora de carro até a casa dos meus pais. Elias e Jade compraram um carro Parati e alugaram uma casa próximo á clínica.

Desde que voltou Elias insistia para que eu fizesse terapia, eu me recusava , chantageava e entre mim, meus pais e meus demais irmãos, exceto Mara, as distâncias eram cada vez maiores.

Os pais tinham que assinar o boletim ou comparecer á reunião bimestral. Eu menti a data da reunião e omiti o boletim, dessa maneira a nota vermelha demorou um pouco mais para ser descoberta.

A primeira oportunidade que meu professor teve comentou sarcasticamente sobre o episódio do álbum.

- Essa atitude de querer chamar atenção, é de uma pessoa mimada, egoísta. E o desleixo com as próprias notas é de alguém tão covarde que desistiu de si mesmo, que está preocupada em impressionar uma minoria. Só me responda se esta minoria vai garantir seu futuro, ou se vale a pena dar um desgosto tão grande á seus pais.

- Eles já têm uma neta e um filho médico para se orgulhar, eu posso ser normal afinal, eu posso viver sem a obrigação de ser aquilo que esperam de mim.

- Pode mesmo? E o que você mesma espera? Onde espera chegar?

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- Ah! Basta professor, o senhor já deu zero, dispenso o sermão. Não satisfeito em tirar cinco pontos da minha nota?

- Justificado, sim. Satisfeito jamais! Aviso aos matadores das aulas de sexta-feira, na próxima vez, serão suspensos e sala da dona Vanda!

- Ufa!

Revista no ônibus, alcoolismo. Ficamos duas semanas sem cabular, mais no domingo eu sai sem avisar

e fui numa matinê de roqueiros num baile na Avenida Celso Garcia. Foi um dia para tudo dar errado, apesar da sorte inicial. Minha mãe foi visitar Elias, meu pai a acompanhou, Daniel saiu com os amigos e dava tempo deu chegar a casa antes de retornarem.

Neste dia eu bebi, fiquei muito zen, mas a loucura passou logo, os punks carecas invadiram o salão e eu e meus amigos tivemos que sair por uma janela e correr pacas para escapar da pancadaria. Eu fiquei muito assustada, mas ainda estava um pouco leve pelo álcool, tínhamos que andar bastante até a estação do metrô Belém para pegar o ônibus de volta. No meio do itinerário, uma viatura parou o ônibus, eu gelei, Marcel estava drogado com maconha, para sorte nossa os policias só deram uma olhada no ônibus e mandaram seguir. Por causa da confusão saímos antes do termino da matinê e eu cheguei a casa á tempo de tomar um banho e ir dormir antes que meus pais retornassem.

Dormi até á metade do dia seguinte, a outra metade eu passei vomitando e rindo sob o efeito do meu desleixo, eu não precisava explicar porque não fiz a tarefas domésticas já que eu não me sentia bem do estomago. Tudo era tedioso. Fui para a escola só para ver como os outros estavam.

Só Marcel compareceu á aula, Tânia e Ana cabularam. Na terça só a Ana apareceu. - Cadê o pessoal? - Estão curtindo por ai, Tânia conheceu um cara especial, foram dar umas

voltas ontem e hoje. - Conheceu onde? - No bote domingo á noite. - E Marcel?

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- Anda muito louco, não veio pra não sujar. Traduzindo, Tânia namorava um roqueiro mais velho por nome de Beto e

estava matando aula para ficar com ele, e Marcel fumava maconha todo dia. O professor ficou de olho em nós, e no meio da aula o apagador veio

girando e acertou o pé da carteira da Ana, ela desenhava cantores de rock na pagina de exercícios do livro.

Decidimos entrar na sexta e pular o muro em seguida, pretendíamos voltar para ultima aula, assim o professor não ia poder implicar. Fizemos isso.

O fato deu me sentir tão adulta, me dava noção de ser imune, Elias me deu uma pequena mesada, eu usava para comprar bebida. Não entendia de que me escondia, só sentia que buscava alguma coisa. Depois daquele incidente com o punk Márcio, não quis mais saber de ficar com algum garoto bonito ou feio. Pulamos o muro de volta, já escurecera bastante, rasguei minha bata no arame ao pular no estacionamento, dei um nó no lugar do rasgo e fui para sala.

O professor Luís Américo mostrou-se surpreso ao ver nossas carteiras ocupadas, e muito mais surpreso ao ver o estado da minha bata e o jeito estranho que eu agia, deixando cair lápis, caderno, borracha, meu material tinha vida própria.

- Além do estomago você esta com problemas de coordenação? - Estou legal professor, paz e amor. Metade da classe riu, a outra metade ficou perplexa. Olhei o rosto

incrédulo dos meus colegas de classe e uma coisa que eu não sentia á muito tempo se apossou de mim: vergonha!

- Quero os quatro lá fora agora! Fora da minha aula! Mesmo sabendo da encrenca eu saí rindo. Os outros me culparam. - Você nem serve para ser careta! Poxa mina, fica entregando a gente. - É segura sua onda, quando o Marcel fica zen ele nem aparece e você

só tomou uma menta. - Está bem, a culpa é minha e daí? O professor intervém: - Os três podem assinar a advertência com a Thelma amanhã na entrada,

agora podem ir embora. Viviane você vem comigo. - Segura essa careta! Tânia desceu me fulminando, mas só assinar uma advertência não era

tão preocupante. Fui para sala de leitura e fiquei lá de cabeça baixa até o fim das aulas.

Minha cabeça começou a doer.

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- Finalmente! - O que? - Um professor muito preocupado com você, passou uma mensagem no

meu bipe. Então é essa a razão de você andar tão estranha! Esta usando drogas?

- Ainda não Elias! Mas se estivesse não seria da sua conta. - Você é muito corajosa maninha, ou não gosta dos dentes! O que acha

que mamãe vai fazer quando vir você assim? E papai então? - Seu pai não pode fazer nada! - Como assim, seu pai? È seu pai também! - Aprendi com ele! Meu irmão ficou rubro, e fez-se silêncio. Ouvi passos e algumas vozes,

quando a porta parou no lugar e meu estomago também, vi a imagem de minha mãe num rosto impassível e do meu pai numa ira indisfarçável.

- É isso que eu mereço de você, Viviane? Minha mãe falou com voz trêmula e olhos perplexos. Temi que ela adoecesse por minha causa, então não respondi. Quando

fitei meu pai, uma raiva irascível ascendeu-se em mim e eu enfrentei-o antes de ceder á escuridão.

- Sou cópia sua, a filha que você não queria que nascesse, tem orgulho agora, papai?

E sucumbi junto com toda a sala que rodava com meu estomago e mente cuspindo fogo.

Acordei numa cama desconhecida, improvisada no sofá de uma sala simples e decorada em branco e azul, o branco predominava nos moveis, nos dois quadros, e na mesinha de centro, os sofás e um vaso grande no canto eram de cor azul. Pensei estar no hospital, senti cheiro de éter, e o silêncio era constrangedor. Fechei os olhos de novo, torcendo para tudo aquilo ter sido um pesadelo infeliz. Algum tempo depois ouvi a voz de mamãe, papai e meu irmão Elias, mas alguns segundos e ouvi minha irmã Mara chorando. Pensei se acaso eu tinha morrido e não me contaram.

- Vou transferi-la de colégio. - Não mamãe, a escola pode ser diferente, mas, as amizades poderão ser

as mesmas. - Mande-a morar comigo até o fim do ano.

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- Não Mara, ela poderia achar que estamos querendo nos livrar dela. - Pode ser papai, mas, acho que por hora, vamos aceitar a sugestão do

professor Luís Américo; transferimos de volta para o período matutino, o professor vai nos ajudar junto com o corpo docente. A tarde ela vai me ajudar na clínica datilografando as fichas, isso vai ocupar o tempo e a mente dela.

- Certo! Houve concordância unânime. - E é claro, estará de castigo até acabar a revolução musical. - Não é pouco? Que tal até ela completar 30 anos! Escutei umas risadas e discerni que aquela deveria ser a casa de Elias e

que ainda era madrugada, porque ainda senti sono e voltei a dormir adiando minha sentença.

Meu querido professor

Na manhã seguinte quando despertei, minha cunhada fez-me as

honras da casa, mais tarde Mara apareceu. - Só quero entender o porquê de tudo. - Também não sei, não é o fim de mundo! - Todos te protegemos, tratamos você diferente, até mamãe que foi

sempre severa conosco dá um mole danado pra você, egoísta e mal educada é o que tu és!

- Este é o problema, não sou diferente de vocês! Olha Mara já vou ouvir sermão para o resto da minha vida, aqui e no colégio, então...

- Cala a boca! Uma vez na vida pense nas outras pessoas e não em você! Se minha mãe adoecer a culpa é toda sua! E eu não vou te perdoar.

- Então não perdoe! Acha que eu quero minha mãe doente? Por que você não faz esse sermão para o seu pai?

- Então é isso! - Isso o que? - Você realmente quer atingir alguém, e eu pensando que você era

tão doce. - Docinho de abóbora! Já disse tudo? Posso ir pra minha casa?

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- Não! Elias vai levar você mais tarde. Mara pegou a bolsa e saiu enxugando uma lágrima. - Mara... - O que é? - Eu... Simplesmente não pude evitar, não planejei nada, as coisas

foram acontecendo, achei que era igual pra todo mundo, essa coisa da vida ser assim sem graça, da gente não poder falar o que pensa o que sente, de sentir tristeza sem definir o porquê de ser assim; Pensei que se alguém não tem problemas no estômago, tem com dor de cabeça, com dor na perna que é um jeito de se esconder sem ser mais ferido, eu não queria magoar você.

- Está é a Vivi que conheço. Não minha flor, as coisas não são assim e você pode fazer a diferença para o bem. Pense nisso, tenho que ir.

Minha irmã saiu e eu chorei, enfim consegui chorar e não vomitar, enfim extravasei um sentimento ruim que eu não definia. Minha cunhada me ofereceu um lenço e um copo com suco, aceitei e depois estendi a mão para devolver-lhe o copo.

- Sabe Viviane, quando Elias falava de você, da preocupação que tinha todos os dias lá na Bolívia, eu cheguei a ficar com ciúme, mas, percebo que apesar dessa família linda que você tem você não consegue desfrutar da benção de fazer parte dela, Seu pai já é abstêmio há vários meses, não seja você a atirar pedras nele, uma vez na vida sua mãe está completamente feliz; é hora de mudar mocinha.

Fiquei olhando-a desconfiada, quem ela pensava que era, ah Jade! Todavia, ela tinha razão e muita, eu precisava me libertar desse egoísmo que no começo era só uma atração por travessuras e depois se tornou amargura. Elias chegou logo após o almoço. Sentou-se á meu lado, não fez nenhuma pergunta, só repetiu a mesma parábola do rapaz que tinha medo.

- Por que esta me cotando isso de novo?

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- Porque está na hora de enfrentar seus medos. Por que a raiva que você tem do seu pai?

- Eu não sei, não pensei sobre isso! Apavorei-me, até então eu mesmo não tinha me dado conta de

nada. Elias me levou para casa, mudei de horário, senti-me deslocada

com a turma da manhã me perguntando por que mudei de turno no meio do semestre. Meu professor de matemática tinha a árdua tarefa de lecionar na classe para qual fui transferida. Fiquei mais calada e menos sociável.

A turma da manhã tinha “mais tempo livre” e o corpo docente decidiu por uma excursão ao museu do Ipiranga. Eu já tinha visitado umas três vezes pelo menos durante o ginásio, mas, não tinha nenhum programa melhor.

Depois de dar várias voltas com a Carol admirando antiguidades, afastei-me. Comprei um cachorro quente sentei num banco de frente ao monumento. Fitei a estatua de Dom Pedro II, desafiando-me. Mentalmente eu debati com ele! Percebi que eu fazia careta e ri.

Casualmente, Luís Américo sentou-se á meu lado. - Gostou da estátua? Eu ri. - Acho que Dom Pedro gostou de mim. - É possível, Viviane, como estão às coisas pra você? - Como sempre, sem novidades. - Sua amiga Tânia, vai casar-se, sabia? - A roqueira? Casar-se com quinze anos? -Sim, ela deixou os estudos, está gestante. - Grávida? Com quinze anos! Joguei o cachorro quente na lixeira, comecei a suar, naquele tempo

isso era uma coisa terrível. - Imaginei que você não tivesse mais contato com eles. Sabe

mocinha, bebida e drogas, leva á sexo precoce, e esse tipo de coisa acaba acontecendo, antecipando o amadurecimento.

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- Não sei o que dizer... - Apenas sinta-se privilegiada por ter escapado ilesa dessas marcas

e tantas outras presentes na rebeldia. - Professor, como seus pais eram?

- Minha mãe muito serena e submissa, ótima cozinheira, uma mãe carinhosa, sinto muito sua falta. Olhe mocinha, ter uma mãe como a sua que é tão esforçada é uma dádiva, dê valor á sua mãe, é muito triste não ter mãe. Lembro-me da minha sempre que ouço essa musica: “Mamãe, mamãe, mamãe, eu te vejo chinelos na mão, avental todo sujo de ovo, se pudesse eu queria outra vez mamãe, começar tudo, tudo de novo...”.

- O ritmo me lembra duma valsa. E o pai do senhor? - Meu pai... Acho que é isso que quer saber, era um homem severo

e não admitia o mínimo desrespeito. Os tempos mudaram um pouco, mas nem tanto, se minha filha aprontasse a metade do trabalho que você me deu, eu teria infartado!

- Por que se importa? - Porque você tem recuperação, mesmo para seus amigos tem

jeito, só precisa acreditar em si mesma, na sua capacidade, ter sonhos, fazer planos, impor-se metas! E não sou eu apenas que acredito, porque acha que o conselho não a expulsou?

- Acredita realmente nisso? - Com certeza, eu nunca perdi meu tempo em vinte anos

lecionando e não vai ser agora que vou perder! Eu sorri espontaneamente. - Sabe professor, eu lembro uma vez quando eu tinha uns três

anos; meu pai ébrio me bateu por causa de um caqui. - Uma fruta? Conte-me. Eu não sei o motivo de lembrar daquilo, aproveitei a atenção dele e

contei o episódio que agora me parecia engraçado. - Foi assim, fomos todos á feira, a família toda. Meu pai gostava de

sarapatel e uma vizinha nos acompanhou nas compras, ela comprou um

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cáqui muito vermelho e a parte que parecia uma coroa desenhada nele era muito verdinha, a formosura do caqui chamou minha atenção e eu não consegui desprender os olhos dele. Meu pai pensou que eu cobiçava a fruta, que eu ia pedir o caqui pra vizinha, me mandou olhar pra frente e quando chegamos a casa me bateu por ter olhado para a sacola da vizinha. Minha mãe jazia ocupada na cozinha e minha irmã foi me defender, ela apanhou também. Quando minha mãe viu a barulheira era tarde, ele disse para ela não reclamar que eu nem deveria ter nascido.

Parei a narrativa, então percebi que chorava e que o professor não ficou surpreso.

- Você não tem mais três anos e seu pai já não é alcoólatra, conte-lhe essa história, nem tudo que ouvimos chega claro á nossos ouvidos, ou melhor, aos ouvidos do coração.

- Obrigada. Levantei timidamente, os outros professores que acompanhavam a

excursão se aproximaram. Eu sabia que deviam estar ali há algum tempo e que provavelmente teriam ouvido tudo, porém, existia um pacto entre eles, muita discrição e amor pelo ensino. Eram rígidos, exigentes, até severos, mas eram mestres!

Cogitei se eles se inspiravam nos filmes de aventura de Indiana Jones, que Daniel amava assistir, contudo, eu pendia mais para o personagem principal da novela da TV Tupi, “Meu pé de Laranja Lima”, ou para série vaga-lume, como Zezinho o dono da porquinha preta. Pura nostalgia como a musica: “Agora eu era herói e o meu cavalo só falava inglês... guardava o meu bodoque e ensaiava o rock para as matines (João e Maria)”.

O passeio foi surpreendente, até me interessei por uma exposição de quadros, aproveitei bem o resto do tempo graças á meu professor eu tinha uma missão, porque é que ele tinha que dizer aquela frase que acreditava em mim? Isso não saia mais da minha cabeça.

Ao entardecer encontrei-me na sala de estar com meus pensamentos, um livro qualquer aberto no colo, uma multidão de lembranças me inundou e senti um nó na garganta. Fiquei neste estado

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de flashback por algum tempo, fui dispersa pela voz do meu pai parado na soleira da porta.

- Tudo bem Viviane? - Tudo, sim senhor. Ele continuou parado e senti seus olhos sobre mim, minha face

esquentou. Então papai pigarreou duas vezes. - Sinto muito pelo mal que causei á você Viviane. O fato de ele citar meu nome a cada frase tornava a distância entre

nós ainda maior (eu acredito em você), a voz do professor ressoava em minha mente.

Ele continuou falando como se soletrasse pra si mesmo cada silaba.

- Eu nunca disse que não queria que você tivesse nascido pelo menos não me lembro de sentir, nem de falar tal coisa, nem sua mãe se lembra de algo assim, mas se por infelicidade essas palavras chegaram á seus ouvidos, elas nunca foram pronunciadas de sã consciência e nem de

coração... Sua mãe está sofrendo muito, você deve saber o fato de ser nossa filha caçula ter sido diferente pra você, por você ser mulher até sacrificarmos Daniel ás vezes... Bem, é isso.

Como é que ele sabia da minha queixa? Meu pai ameaçou um passo á frente e girou nos calcanhares para sair. As correntes do orgulho me prendiam e a voz do meu professor pulsava na minha mente quando eu gritei:

- Pai! Ele virou e encarou-me passivo,

não vi emoção no seu rosto, tomei

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fôlego e continuei. - Pai, a única coisa pior do que ver o senhor embriagado quase toda

minha vida não foi tê-lo ouvido me rejeitar! - E o que foi então? - Foi... Respirei, o estomago contraiu , ouvi outra voz, a do meu irmão “Você tem

que vencer seus medos”. O que seria se meu irmão não fosse um médico esclarecido? Melhor não pensar nisso. Tentei de novo.

- Foi o fato de nunca saber se o senhor voltaria a cada viagem que fazia. No dia que Elias chegou do exterior a primeira vez, eu vi o senhor parado na porta, olhava pra todos como se não fosse mais voltar. Eu...

Senti as lágrimas quentes e traidoras. - Você... Encorajou-me, pela primeira vez aquela voz grave era tão bem

vinda! - Eu tinha medo de que desaparecesse de vez! De que arrumasse

outra família como o Tio Zezinho, de que nunca voltasse pra nós, eu odiei-o por cada vez que mesmo inconsciente senti medo!

- Medo? - Medo do meu pai não voltar, medo de não ter pai! Medo de perder

você, papai. Meu pai correu em direção á mim, abraçou-me e eu senti

segurança pela primeira vez em muitos anos. Eu ainda estava confusa, mas devia o perdão á ele, devia essa paz á minha mãe, devia a proteção á meu irmão Elias, a abnegação do meu irmão Daniel, os mimos ás minhas irmãs e o empenho em mudar á meu querido professor de matemática. Como podem perceber eu devia á muita gente!

Carta informal

Aula de gramática, Redação, correspondência informal. Escreva

uma carta á um amigo. Tema livre. Cara amiga Kelly, como vai?

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Tenho muitas novidades, vários acontecimentos mudaram minha vida após o ginásio.

Envolvi-me com amigos rebeldes, ingeri bebida e matei muitas aulas, quase fui reprovada. Entretanto, fui salva pelo bom senso imposto á mim, pelo nosso querido professor de matemática. (PS. Nunca contei á ele que eu fazia suas provas, mas acredito que ele soubesse sua letra sempre foi mais redondinha (fato!).

Saiba que meu estomago melhorou muito e não tenho mais crises de vomito. (Eca! Eu tinha que contar-lhe que sarei, espero que não esteja fazendo o lanche da tarde agora (gargalhei!). Vou bem de saúde e você? responda-me assim que puder.

O que faz de bom ai em Penápolis?

Saiba que todo o esforço e até a exigência dos professores me inspiraram, estou preparando-me para lecionar. Tenho uma filha

igualzinha á mim (graças á Deus, ela nunca intentou ¼ do que fiz com mamãe, é uma benção!), ela tem quinze anos e é a moça mais linda que já vi. Sinto muita falta do corpo docente da nossa década, e dedico estas linhas á nosso Querido professor, Luís Américo (in memorian).

Um grande abraço;

Era do conceito tecnológico, Planeta Terra,

Brasil, SP - 2011.

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Ass: Professora Viviane.

Sílvia Ramos S. Feitosa (Sylvia Seny), educadora, poetisa, romancista, filha do Rei!

“sempre há de existir novo amanhã preparado pra mim”