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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS RUBENS GARCIA NUNES SOBRINHO Belo Horizonte-MG 2011 KÓSMOS E INTELIGÊNCIA: AS POTÊNCIAS DA ALMA NO GÓRGIAS

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Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE ... · Prometeu, a linguagem é posterior ao fogo técnico, que consolida o sacrifício como o rito ... filosóficas sustentadas

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIEcircNCIAS HUMANAS

RUBENS GARCIA NUNES SOBRINHO

Belo Horizonte-MG

2011

KOacuteSMOS E INTELIGEcircNCIA AS POTEcircNCIAS DA ALMA NO GOacuteRGIAS

ii

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIEcircNCIAS HUMANAS

RUBENS GARCIA NUNES SOBRINHO

Tese apresentada ao curso de Poacutes-graduaccedilatildeo

em Filosofia do Departamento de Filosofia da

Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas da

Universidade Federal de Minas Gerais como

requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em

Filosofia

Orientador Dr Marcelo Pimenta Marques

Belo Horizonte-MG

Junho 2011

KOacuteSMOS E INTELIGEcircNCIA AS POTEcircNCIAS DA ALMA NO GOacuteRGIAS

100

N972k

2011

Nunes Sobrinho Rubens Garcia

Koacutesmos e inteligecircncia [manuscrito] as potecircncias da alma

no Goacutergias Rubens Garcia Nunes Sobrinho - 2011

190 f

Orientador Marcelo P Marques

Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais

Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas

Inclui bibliografia

1Filosofia ndash Teses 2 Alma - Teses 3Vergonha - Teses

4Mito - Teses 5Platatildeo Goacutergias I Marques Marcelo

Pimenta II Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade

de Filosofia e Ciecircncias Humanas III Tiacutetulo

iv

Ao Roberto Vilela Marquez enigma cujos sinais satildeo a prova cabal de que os valores mais profundos tornam todas as buscas e inquiriccedilotildees do breve tempo da vida derrisoacuterias perante a grandeza do destino humano ndash que nada eacute aleacutem do que o seu eacutethos

v

AGRADECIMENTOS

A todos aqueles que acima da Necessidade alccedilaram a escolha

Agravequeles para os quais a amizade e o bem estatildeo acima da retribuiccedilatildeo

Agravequeles para os quais os afetos constituem a uacutenica natureza invenciacutevel da alma que

resiste ao esquecimento e agrave morte

Agravequeles que satildeo myacutestai pela simplicidade da accedilatildeo virtuosa que natildeo exige compensaccedilatildeo

mas que compensam toda incerteza inerente agrave vida mediante a convicccedilatildeo de que todo risco

eacute belo se for tambeacutem uma doaccedilatildeo

Agravequeles que se fizeram meus credores e cuja paga seraacute aquilatada pelo melhor a ser feito

em prol da alteridade

Agrave Soraya para quem o amor eacute princiacutepio da vida e do mundo que estaacute muito acima da

inteligibilidade e da razatildeo

Ao Marcelo Marques para quem o fim e o princiacutepio satildeo o mesmo para quem as

imagens identificam-se com Elpiacutes pois enquanto houver imagem haveraacute tambeacutem

possibilidade de superaccedilatildeo e enquanto houver o filosofar haveraacute o ciclo coacutesmico do

recomeccedilo

Ao tio Rubens Garcia Nunes modelo e fonte eterna de significaccedilatildeo

Agraves filhas Mariela e Marina depositaacuterias do eacutethos a viajar rumo ao oceano do belo

vi

Agrave toda a minha famiacutelia cujo amor supera qualquer meacuterito

Ao Programa de Poacutes da UFMG pela participaccedilatildeo da excelecircncia teacutecnica na

humanidade

Aos examinadores Adriano Roberto Fernando e Antocircnio pela mostra de que a vida

sem exame natildeo eacute digna de ser vivida

vii

Tive medo Sabe Tudo foi isso tive medo Enxerguei os confins do rio do outro lado Longe longe com que prazo se ir ateacute laacute Medo e vergonha A aguagem bruta traiccediloeira ndash o rio eacute cheio de baques modos moles de esfrio e uns sussurros de desamparo () Um fato assim eacute honra Ou eacute vergonha

Joatildeo Guimaratildees Rosa Grande Sertatildeo Veredas

viii

SUMAacuteRIO

0 INTRODUCcedilAtildeO5

1 MITOS E CAUSAS ndash excertos de imagens causais em Hesiacuteodo e Homero 21

11 Retribuiccedilatildeo e Causalidade 21

12 Causalidade e Poder 25

13 Causalidade e Reciprocidade 32

14 A astuacutecia dolosa o presente de Prometeu 37

15 Vergonha e causalidade a cosmogonia sexual do Papiro de

Derveni 44

2 O MITO DO PROTAacuteGORAS teacutecnicas aidōs e diacutekē61

3 RELACcedilOtildeES ESTRUTURAIS NO MITO DO GOacuteRGIAS92

31 Eros e Loacutegos92

32 Vida e ḗthos98

33 Aiskhyacutene Aidōs e Causalidade109

34 Parrhēsiacutea e Epithymiacutea122

35 A Retoacuterica da alma134

36 Julgamento e nudez149

4 NECESSIDADE E ESCOLHA 154

41 Imagens e causas no mito de Er154

42 Mito e psykhḗ159

43 Er o decreto de Laacutequesis162

5 BIBLIOGRAFIA174

1

Resumo

A partir do emprego do estruturalismo alematildeo de Walter Burkert pretendo destacar nesta

investigaccedilatildeo as relaccedilotildees estruturais entre as imagens do mito de julgamento do Goacutergias e

aplicaacute-las a um passo do mito de Er da Repuacuteblica Segundo Burkert (2001b) mito eacute um

programa ou sequecircncia de accedilotildees com uma estrutura discerniacutevel definida que se caracteriza

pela exemplaridade do tipo miacutetico e pela aplicabilidade atemporal Aprofundando a

definiccedilatildeo burkertiana de mito proponho que as accedilotildees implicam imagens psiacutequicas

imbuiacutedas de afetos ndash vergonha audaacutecia e ardor satildeo os afetos eroacuteticos mediante que a

dialeacutetica socraacutetica choca-se ingente com a retoacuterica daquele que viria a ser ao mesmo

tempo o mais violento e o mais brilhante dos interlocutores que travam combate com

Soacutecrates Caacutelicles

Devo esclarecer que toda a interpretaccedilatildeo elaborada neste artigo parte do pressuposto de que o

mito eacute pensar por imagens e que imagens mentais precedem a linguagem No mito de

Prometeu a linguagem eacute posterior ao fogo teacutecnico que consolida o sacrifiacutecio como o rito

adequado para a interaccedilatildeo entre as instacircncias divina e humana e a emergecircncia ritualiacutestica dos

esquemas mentais que compotildeem a inteligecircncia causal organizadora da experiecircncia e da

multiplicidade a conexatildeo infaliacutevel entre dois eventos consecutivos no tempo a deliberaccedilatildeo

projetiva inteligente a escolha de meios eficazes com vistas a um fim uacutetil determinado Por

extensatildeo pode-se dizer que os ritos satildeo anteriores agrave linguagem e que imagens e ritos natildeo a

linguagem satildeo os fundamentos do pensar

Por fim um olhar atento ao termo parrhēsiacutea que inicialmente aparece como a fala aberta

que revela o pensamento e as verdadeiras crenccedilas do proferidor no Goacutergias eacute mencionado

na ambiguidade irocircnica com que Soacutecrates alude ao livre curso dos apetites de Caacutelicles (que

engendram a violecircncia do seu loacutegos) e agrave qualidade psiacutequica pela qual a investigaccedilatildeo

2

dialeacutetica pode chegar a bom termo A franqueza (parrhēsiacutea) eacute a garantia pela qual

interlocutor assente a uma tese expressa e tambeacutem um indicativo de que uma certa

ordenaccedilatildeo psiacutequica transpotildee seu movimento proacuteprio para o loacutegos O discurso sem peias

reproduz de modo direto a trama que entretece os afetos neste princiacutepio de movimento e

inteligecircncia que eacute a psykheacute

Palavras-chave Goacutergias Repuacuteblica estrutura mito

3

Abstract

Based on approach of Water Burkert German structuralism in this issue I intend to point

out the structural relations between the images of the judgment myth in Plato‟s Gorgias and

apply them in Er myth of Republic

According to Burkert (2001b) myth is a program or a sequence of actions in a clear

distinguished structure characterized by exemplarity of the mythical model and the

timeless applicability Going further on Burkert definition of myth I put forward that the

actions imply psychic images filled with feelings ndash audacity and ardor are erotic feelings

through which the Socratic dialectics strikes against the rhetoric of that who became at the

same time the most violent and the cleverest interlocutor to antagonize Socrates Callicles

In addition I must say that the whole interpretation presented here assumes that myth is

thinking by images and mental images come before language In Prometheus myth language

comes after the technical fire that stabilizes the sacrifice as the right rite for the interplay of

divine and human instances and the ritual emergency of mental scheme that compound the

causal intelligence that organizes experience and multiplicity the infallible connection between

two consecutive events in time the intelligent projective deliberation the choice of efficient

means aiming a specific useful objective In other words it can be said that rites come before

language and that not language but images and rites give the bases to thoughts In conclusion

staring at the expression parrhēsiacutea ndash which first appears as an open speech that reveals the

thought and the true beliefs of its speaker ndash in Gorgias the word points out the ironic

ambiguity with which Socrates refers to the Callicles free course of desires (which

engender his loacutegos violence) and the psychic quality by which the dialectic investigation

can come to an end Sincerity (parrhēsiacutea) is the guarantee by which a speaker agrees to an

expressed thesis and also a sign that a certain psychic organization transfers its peculiar

4

movement to the logos The unchained speech imitates the scheme which intertwines the

feelings in the beginning of the movement and the intelligence which psykheacute is

Keyword Gorgias Republic structure myth

5

Introduccedilatildeo

O escopo desta pesquisa eacute desenvolver a partir do movimento proacuteprio do Goacutergias a

adequaccedilatildeo de um meacutetodo que desvele a estrutura interna do grandes mito de julgamento

que culmina o diaacutelogo de sorte a compreender sua funccedilatildeo suas regularidades seus

esquemas invariantes e as correspondecircncias entre as imagens miacuteticas e as concepccedilotildees

filosoacuteficas sustentadas na dramatizaccedilatildeo Para tanto adota-se os resultados da tese

ingressiva de Charles Kahn como fundamento para a abordagem comparativa de diaacutelogos

que historicamente satildeo situados em periacuteodos diversos

O enfoque sinoacutetico por sua vez possibilita a adoccedilatildeo da assunccedilatildeo estrateacutegica de que

o desenvolvimento do meacutetodo se faccedila a partir da comparaccedilatildeo do movimento interno das

imagens do mito de julgamento e simultaneamente possibilite uma compreensatildeo fecunda

dessas imagens a partir da aplicaccedilatildeo do meacutetodo Ademais visa-se examinar o influxo que o

pano de fundo composto pela tradiccedilatildeo cultual dos misteacuterios gregos a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e a

filosofia cosmoloacutegica anterior a Platatildeo exerceram nos mitos de julgamento e sobretudo a

transposiccedilatildeo filosoacutefica empreendida por Platatildeo em relaccedilatildeo a essa forja mental no

movimento dos mitos finais do Goacutergias Como anexo esboccedila-se uma extensatildeo desse

bricolage interpretativo a um passo do mito de Er (Repuacuteblica X 614b-621d)

Adoto o pressuposto de que o mito filosoacutefico platocircnico eacute um ldquopensar por imagensrdquo

que se expressa numa sequecircncia de accedilotildees Enquanto narrativa o mito eacute um fenocircmeno

linguiacutestico que natildeo possui referentes imediatos atestaacuteveis Natildeo haacute um isomorfismo entre a

narrativa e uma realidade diretamente verificaacutevel Uma narrativa natildeo eacute uma ldquoacumulaccedilatildeordquo

de sentenccedilas pontuais mas eacute uma sequecircncia no tempo (BURKERT 1979 3 ss) Mas a

6

sequecircncia temporal miacutetica natildeo eacute homoacuteloga ao tempo cronoloacutegico eacute uma sequecircncia

temporal que possui uma homologia estrutural com uma sequecircncia de significaccedilatildeo causal

A sequecircncia de imagens torna manifestas relaccedilotildees entre registros de realidade

distintos atraveacutes da necessidade de uma conexatildeo interna A linearidade e a

transmissibilidade de um complexo de relaccedilotildees e conexotildees causais homologaacuteveis

constituem o cerne da narrativa miacutetica Tais elementos exigem o suporte linguumliacutestico mas

embora Burkert consigne o mito ao domiacutenio da linguagem nos mitos filosoacuteficos a

linguagem eacute somente instrumental e natildeo eacute o fundamento uacuteltimo de significaccedilatildeo

As metaacuteforas imageacuteticas de um mito filosoacutefico por princiacutepio possuem uma

polissemia inexauriacutevel pela simples razatildeo de que seu referencial uacuteltimo eacute o pensamento ou

mais propriamente o psiquismo Natildeo se trata se identificar na psykheacute o princiacutepio do

inteligiacutevel mas de se pensar a inteligibilidade cosmoloacutegica inextricavelmente do modo

como o pensamento e os afetos apreendem o inteligiacutevel e o recompotildeem na accedilatildeo demiuacutergica

da molda das imagens e do discurso Inteligecircncia afetiva imagens pensamentos e os loacutegoi

conjugam-se necessariamente na ldquocaccedila ao realrdquo

Como se pode depreender do mito do Protaacutegoras o pensamento loacutegico

discriminador a inteligecircncia teacutecnica a linguagem e a matemaacutetica o engenho humano e as

teacutecnicas discursivas todos emanados do fogo teacutecnico satildeo ontologicamente posteriores aos

ritos aos cultos e agrave fabricaccedilatildeo de imagens dos deuses Isso implica que ndash a menos que se

considerem todos os mitos e toda forma de metaacutefora empregada no corpus platocircnico como

palavroacuterio sem sentido ndash a linguagem natildeo eacute e natildeo pode ser o fundamento uacuteltimo da

realidade O pensamento as imagens e os afetos satildeo intrinsecamente misturados agrave praacutexis

ao biacuteos agrave proacutepria vida que simultaneamente brota e interfere no mundo Os loacutegoi soacute

ganham autonomia mediante o reconhecimento e a alforria do senhorio das imagens

7

No corpus platocircnico os fenocircmenos se exprimem por uma gama de termos como

phainoacutemenon eiacutedōlon eikōn phaacutentasma miacutemēma homoiacuteōma e outras (SEKIMURA

2009 p 22 ss) Mas Platatildeo hierarquiza o estatuto epistecircmico das imagens Haacute uma clara

distinccedilatildeo entre eiacutedōlon eikōn e phaacutentasma Haacute imagens que satildeo determinantes no processo

do conhecimento haacute imagens cujas relaccedilotildees satildeo empobrecidas em relaccedilatildeo o modelo

original e haacute imagens ilusoacuterias que impedem a apreensatildeo da realidade A distinccedilatildeo entre

eiacutedōlon e eikōn eacute brilhantemente exposta por S Saiumld

Se as duas palavras satildeo formadas a partir de uma mesma

raiz bdquowei‟- somente eiacutedōlon por sua origem emerge da esfera do

visiacutevel pois eacute formada sobre um tema bdquoweid‟- que exprime a ideacuteia

de ver (este tema que deu ao latim bdquovideo‟ se encontra em grego

no verbo bdquoidein‟ bdquover‟ e no substantivo eidos que se aplica

inicialmente agrave aparecircncia visiacutevel) O eikōn do mesmo modo que os

verbos eisko ou eikazdo bdquoassimilar‟ ou o adjetivo eikelos

bdquosemelhante‟ se vincula a um tema bdquoweik‟- que indica uma relaccedilatildeo

de adequaccedilatildeo ou de conveniecircncia

(SAID apud SEKIMURA 2009 p 23)

Como nota Sekimura (2009 p 22 ss) o termo eiacutedōlon se forma sobre o mesmo

tema que origina Eidos e Idea designativos da realidade inteligiacutevel e de sua accedilatildeo causal

determinante A relaccedilatildeo entre as imagens e o inteligiacutevel invisiacutevel eacute constitutiva Nesse

sentido como afirma Saiumld existe entre o eiacutedōlon e seu modelo uma identidade de

superfiacutecie e de significante enquanto a relaccedilatildeo entre o eikōn e o que ele representa se

situa no niacutevel da estrutura profunda do significado (id) O eiacutedōlon estaacute para o eikōn assim

como a coacutepia da aparecircncia sensiacutevel estaacute para a transposiccedilatildeo da essecircncia

O eiacutedōlon eacute inerente ao olhar eacute o alvo e o ponto de encontro entre o olhar e a

silhueta que nada informa acerca das determinaccedilotildees do modelo Ele eacute valorizado ou

desvalorizado pela relatividade do olhar e sua manifestaccedilatildeo ao modo das imagens dos

deuses implica simultaneamente a presenccedila e a ausecircncia Sua marca eacute a do

8

empobrecimento e do afastamento do modelo original O eikōn por outro lado carrega em

seu bojo a remissatildeo pluriacutevoca a planos diversos Ele pode ser o ponto de partida para o

conhecimento de relaccedilotildees e determinaccedilotildees sensiacuteveis ou pode remeter agrave realidade inteligiacutevel

No eikōn a inteligecircncia se vale do olhar para ultrapassar a imagem e mediante a

transposiccedilatildeo e a homologaccedilatildeo de suas relaccedilotildees internas ldquosaturar-serdquo gradativamente do

inteligiacutevel e do invisiacutevel no foco das relaccedilotildees somente pensaacuteveis As imagens icocircnicas

constituem o esforccedilo ingloacuterio de pensar filosoficamente o invisiacutevel a morte a alma e os

referenciais imoacuteveis exigidos para a compreensatildeo de um mundo caoacutetico

Por isso a inteligecircncia usa imagens na tentativa de ver o invisiacutevel e operar a

passagem da sensaccedilatildeo para a concepccedilatildeo Natildeo eacute por acaso que os mitos filosoacuteficos estatildeo na

esfera da crenccedila que possui a pretensatildeo de ser o loacutegos mais verdadeiro suas imagens satildeo

um convite para a inquiriccedilatildeo da significaccedilatildeo profunda subjacente aos fenocircmenos

cambiantes caoacuteticos As imagens miacuteticas convocam a inteligecircncia e o olhar a jamais se

fixarem naquilo que eacute visto e manifesto e ascenderem em direccedilatildeo ao invisiacutevel ao

inteligiacutevel ateacute que a luz da lamparina subitamente se acenda pelo movimento psiacutequico

O mito filosoacutefico eacute verdadeiramente um ldquopensar por imagensrdquo e eacute tambeacutem a uacutenica

modalidade de pensar que natildeo se fixa no visiacutevel mas que convoca para a significaccedilatildeo mais

profunda oculta na maior profundeza do oceano do belo

Questotildees de meacutetodo e hermenecircutica

Mas a virtude de cada coisa seja instrumento corpo ou alma

seja qualquer animal vivo natildeo lhe vem por acaso e jaacute eacute

completa eacute o resultado de uma certa ordem de retidatildeo e da

arte adaptada agrave natureza de cada um Logo eacute pela ordem e

regramento que a virtude de cada coisa existe

Goacutergias 506 d5-e2

Desejando a divindade que tudo fosse bom e tanto quanto

possiacutevel estreme de defeitos tomou o conjunto das coisas

9

visiacuteveis ndash nunca em repouso mas movimentando-se discordante

e desordenadamente ndash e fecirc-lo passar da desordem para a

ordem por estar convencido de que esta em tudo eacute superior

agravequela

Timeu 30a

A composiccedilatildeo dramaacutetica do Goacutergias anuncia uma guerra e uma batalha (poacutelemos

kai maacutekhe) na qual Platatildeo iria se engajar ateacute a morte a defesa do gecircnero de vida filosoacutefico

No Goacutergias estatildeo mapeados e demarcados de maneira incipiente os principais temas que

compotildeem a Filosofia platocircnica Segundo Olimpiodoro o objetivo do diaacutelogo seria ldquofalar

sobre princiacutepios eacuteticos que levam ao bem-estar constitucionalrdquo (1998 p 57 04) Todo o

ardor que anima Soacutecrates (457e) na sua defesa apaixonada de um modo peculiar de vida

tem como alvo falar sobre a organizaccedilatildeo constitucional e sua correlaccedilatildeo com os valores

eacuteticos determinantes para o gecircnero de vida A questatildeo dos valores eacuteticos remonta em

uacuteltima instacircncia agrave oposiccedilatildeo fundamental entre o regramento e o desregramento o

regramento dos afetos corresponde ao regramento do mundo que por isso eacute chamado

kosmos (Goacutergias 507e ndash 508b) Natildeo pode existir nenhuma comunhatildeo ou associaccedilatildeo

humana sem regras assim como nada existe no kosmos que natildeo tenha regras Todo o

mundo eacute de fato um espetaacuteculo de geometria e proporccedilatildeo geomeacutetrica (Goacutergias 508a)

A questatildeo de um regramento matemaacutetico que perpassa o koacutesmos juntamente com os

mitos de julgamento suscita uma gama de questotildees natildeo respondidas

Por que Platatildeo um filoacutesofo que atribui um valor sublime agraves matemaacuteticas e assimila

o raciociacutenio puro ao divino (Feacutedon 84 a-b) culmina grandes diaacutelogos que concentram o

cerne de sua Filosofia com grandes mitos de julgamento Por que esse criacutetico mordaz da

poesia e dos mitos tradicionais recorre a um acervo de tradiccedilotildees miacutesticas e inventa seus

proacuteprios mitos A questatildeo da elucidaccedilatildeo do papel dos mitos na composiccedilatildeo complexa de

trecircs dos maiores diaacutelogos platocircnicos estaacute contida no acircmbito mais geral do problema

10

interpretativo que exige a superaccedilatildeo da distacircncia entre o que Platatildeo escreve em passagens

especiacuteficas e as concepccedilotildees maiores que atravessam a inteireza dos diaacutelogos Somente um

tratamento comparativo-sinoacutetico e o refazimento do movimento proacuteprio de cada diaacutelogo

permitem a distinccedilatildeo e a soluccedilatildeo do problema da relevacircncia dos mitos O postulado de que

o problema da interpretaccedilatildeo de um texto de Platatildeo exige a elucidaccedilatildeo de seu significado a

partir da comparaccedilatildeo de textos datados em periacuteodos distintos define o posicionamento de

ataque estrateacutegico ao problema da relevacircncia dos mitos e da possibilidade da conquista da

significaccedilatildeo (KAHN 1998 p 58 ss)

Por que Platatildeo se vale de imagens aparentemente desprovidas de regras e estranhas

agrave consecuccedilatildeo de proposiccedilotildees que se implicam mutuamente para expor suas principais

concepccedilotildees filosoacuteficas Qual o melhor meacutetodo para uma interpretaccedilatildeo fecunda desses

mitos O problema da relevacircncia abre o campo para o enfrentamento do estabelecimento

dos traccedilos constitutivos da composiccedilatildeo e distinccedilotildees especiacuteficas dos grandes mitos dos seus

efeitos e de um meacutetodo eficaz que sirva como arma que capture o sentido Se os grandes

mitos supotildeem regras em sua composiccedilatildeo e essas regras natildeo possuem referentes fora da

psykheacute entatildeo essas regras representam a determinaccedilatildeo profunda do psiquismo A riqueza

das metaacuteforas em Platatildeo instiga a investigaccedilatildeo das homologias estruturais em busca da

explicitaccedilatildeo dessas regras

Por que o filoacutesofo que recria dramaacutetica e imortalmente a refutaccedilatildeo destrutivo-

construtiva da dialeacutetica socraacutetica encena a impotecircncia do loacutegos diante de temas cruciais e eacute

obrigado a recorrer agrave encantaccedilatildeo miacutetica Por que os grandes mitos finais satildeo mitos de

julgamento das almas e da imortalidade Por que eles aparecem no fim dos diaacutelogos A

fundamentaccedilatildeo dos valores exige o emprego simultacircneo de todo o arsenal discursivo O

11

modelo metodoloacutegico permite a distinccedilatildeo de planos conceptuais que fazem a mediaccedilatildeo

entre oposiccedilotildees e uma interpretaccedilatildeo frutiacutefera deve destrinccedilar relaccedilotildees ocultas ou obscuras

Pensar filosoficamente a questatildeo da constituiccedilatildeo eacutetico-poliacutetica implica penetrar o

acircmago da alma e o tempo humano na perspectiva da perenidade e por isso o problema do

sentido emana indissociaacutevel das modalidades de inteligecircncia de um discurso complexo A

complexidade dos diaacutelogos sugere a hipoacutetese heuriacutestica de trataacute-los por inteiro como

grandes mitos Tal abordagem permite a superaccedilatildeo da dicotomia myacutethos-loacutegos e a aplicaccedilatildeo

do princiacutepio que permite o desvelamento auto-referenciado da significaccedilatildeo

Quais satildeo as concepccedilotildees que demarcam a arena comum na qual se desenrolam os

grandes mitos finais e quais satildeo suas implicaccedilotildees para a visatildeo de mundo e para a noccedilatildeo de

racionalidade de Platatildeo O campo no qual se desenrolam as gestas dos grandes mitos eacute

consistente e rigorosamente demarcado no Goacutergias e na Repuacuteblica a mousikecirc No Goacutergias

o domiacutenio da poesia traacutegica eacute determinado pela conjugaccedilatildeo de meacutelos rythmon e meacutetron

(Goacutergias 502c)

A demiurgia poeacutetica designa pois a atividade de fabricar um discurso complexo no

domiacutenio da muacutesica (BRISSON 1994 p 53) Na Repuacuteblica apoacutes o estabelecimento da

influecircncia exercida pelas narrativas miacuteticas sobre os afetos e o psiquismo a melodia

(meacutelos) eacute definida como sendo a composiccedilatildeo de trecircs elementos palavra (loacutegou) harmonia

(harmoniacuteas) e ritmo (rythmou) Haacute uma correlaccedilatildeo determinante entre o eacutethos e o gecircnero de

harmonia (Repuacuteblica 399 a-e) entre a natureza dos afetos e a natureza harmocircnica Mito e

harmonia pertencem ambos agrave esfera da muacutesica e caracterizam-se pela correlaccedilatildeo entre a

natureza de suas determinaccedilotildees e a natureza psiacutequica A natureza da harmonia incita

virtudes especiacuteficas ou afetos viciosos estados mentais e disposiccedilotildees de alma

correspondentes A correspondecircncia entre estados psiacutequicos e teoria musical constitui um

12

legado preacute-platocircnico como demonstra Aldo Brancacci (DIXSAUT 2006 p 89-106) A

grande transposiccedilatildeo operada por Platatildeo consiste no desenvolvimento de uma visatildeo

cosmoloacutegica unificada que abarca a muacutesica e explicita a sua relaccedilatildeo com a natureza da

alma

Mas qual eacute o elemento comum entre a alma e a harmonia A questatildeo da

ldquoharmoniardquo eacute expressamente tributaacuteria da tradiccedilatildeo pitagoacuterica e da concepccedilatildeo cosmoloacutegica

de Heraacuteclito A palavra harmoniacutea eacute aparentada ao termo harmos que designava o

acoplamento de duas liras originalmente tetracordes formando uma uacutenica lira heptacorde

(MOUTSOPOULOS in DIXSAUT 2006 p 110) A harmonia que originalmente tinha o

sentido de ldquojuntarrdquo ldquoacoplarrdquo passou a significar ldquoacordordquo ou ldquoreconciliaccedilatildeordquo Empeacutedocles

emprega harmoniecirc como outro nome para philotecircs a contrapartida para o oacutedio ou discoacuterdia

ndash o princiacutepio de proporccedilatildeo ou acordo que cria uma unidade harmoniosa entre poderes

potencialmente hostis Haacute ademais outro uso figurativo qual seja o de afinaccedilatildeo de um

instrumento musical o ajustamento das diferentes cordas para produzir uma escala

desejada Tanto o sentido musical como o sentido metafoacuterico mais amplo satildeo combinados

na concepccedilatildeo pitagoacuterica de que potecircncias opostas do kosmos satildeo mantidas juntas por um

princiacutepio ou harmonia como ldquoreconciliaccedilatildeordquo que toma a forma de uma oitava musical

(GUTHRIE 1990) (KAHN 2001) Boyanceacute (1993) demonstra com bastante propriedade

o enorme influxo que a concepccedilatildeo pitagoacuterica de ldquoharmoniardquo exerceu em Platatildeo sobretudo

no Timeu e na ldquomuacutesica celestialrdquo mencionada no mito de Er (Repuacuteblica X)

Tributaacuterio de uma longa tradiccedilatildeo de pensamento Platatildeo opera uma reviravolta

unificadora a harmonia musical eacute simultaneamente determinada pelo regramento

matemaacutetico e pela consonacircncia de movimentos complexos A transposiccedilatildeo cultural parte do

acervo de tradiccedilotildees vinculadas ao deus patrono da muacutesica e do regramento Apolo

13

Apolo eacute o deus da muacutesica da profecia e da harmonia A natureza musical de Apolo

representa a voz do mundo oliacutempico harmonia e medida que emergem da tensatildeo dos

contraacuterios Apolo o muacutesico eacute tambeacutem ldquoo deus fundador das regras e o conhecedor do

justo do necessaacuterio e do futurordquo (OTTO 1995 p 112) O viacutenculo entre a natureza musical

regramento e harmonia eacute estabelecido de modo inequiacutevoco no Craacutetilo Mas a grande

reviravolta empreendida por Platatildeo consiste na ampliaccedilatildeo desse viacutenculo para a esfera do

psiquismo mediante a noccedilatildeo de movimento

A etimologia do nome Apolo indica o ldquomovimento conjunto tanto no ceacuteu a que

damos o nome poacutelo como na harmonia do canto denominada sinfonia porque todos esses

movimentos como dizem os entendidos em Muacutesica e Astronomia satildeo feitos em conjunto

por uma espeacutecie de harmonia Eacute o deus que preside agrave harmonia e faz que tudo se mova

conjuntamente (omopolocircn) tanto entre os deuses como entre os homensrdquo (Craacutetilo 405 c-d)

No Timeu a consonacircncia de movimentos dissemelhantes eacute identificada com a harmonia

divina (Timeu 80 a-b) A harmonia cosmoloacutegica se expressa pelo regramento geomeacutetrico

que determina e unifica todos os seres num todo orgacircnico (Timeu 31d-32a) A psykheacute por

outro lado eacute ao mesmo tempo princiacutepio de movimento e princiacutepio da vida pois a ldquocessaccedilatildeo

do movimento corresponde ao fim da existecircnciardquo (Fedro 245 c) A existecircncia de todo o

koacutesmos deriva do movimento e todo o movimento proveacutem do princiacutepio (245d) Como a

ordem pressupotildee a inteligecircncia e a inteligecircncia pressupotildee a alma haacute uma correspondecircncia

pluriacutevoca e uma implicaccedilatildeo muacutetua entre a proporccedilatildeo geomeacutetrica a harmonia musical a

harmonia dos movimentos e a harmonia psiacutequica (Timeu 30 a-d) Os movimentos sonoros

possuem por conseguinte ressonacircncias simultaneamente fiacutesicas e psiacutequicas (Timeu 67a)

que afetam o caraacuteter (MOUTSOPOULOS in DIXSAUT 2006 p 107-120) Tais

14

correspondecircncias no entanto natildeo explicam as causas para a existecircncia de todos os seres no

palco de contradiccedilotildees que eacute o devir Quais satildeo essas causas

Platatildeo natildeo reelabora a tradiccedilatildeo na sua explicaccedilatildeo causal de mundo e inaugura um

procedimento jamais utilizado na histoacuteria do pensamento o modelo hipoteacutetico das Formas

A hipoacutetese das Formas provecirc ao mesmo tempo as razotildees que fazem com que cada

ser seja precisamente o que eacute e natildeo outra coisa as razotildees que explicam a predicaccedilatildeo e as

diferenccedilas especiacuteficas relativas as razotildees que elucidam as interaccedilotildees fiacutesicas envolvidas na

geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo uma norma absoluta que sirva de paracircmetro para as accedilotildees praacuteticas e

possibilite uma concepccedilatildeo poliacutetica cosmoloacutegica e geograacutefica que corresponde

estruturalmente a um psiquismo complexo Como afirma Cherniss (PRADEAU 2001) e

posteriormente Luc Brisson do mesmo modo que Eudemo fazia a hipoacutetese de um nuacutemero

determinado de movimentos regulares para explicar os movimentos irregulares dos

planetas Platatildeo para ldquodar conta da mudanccedila eterna e contraditoacuteria do mundo sensiacutevelrdquo

(BRISSON 1998 p 112) elaborou a hipoacutetese das Formas (Feacutedon 94d-100a) A estrutura

complexa do mundo compotildee um palco de contradiccedilotildees que abarca as accedilotildees praacuteticas e a

constituiccedilatildeo poliacutetica da cidade Ao contraacuterio dos filoacutesofos da natureza que partiam dos

fenocircmenos e buscavam princiacutepios explicativos materiais irredutiacuteveis Platatildeo empreende

uma inversatildeo epistemoloacutegica uma ldquosegunda navegaccedilatildeordquo (99e) e postula princiacutepios de

inteligibilidade que regram as contradiccedilotildees fiacutesicas e eacutetico-poliacuteticas

A causalidade constitui ao mesmo tempo o princiacutepio explicativo para a esfera

eacutetico-poliacutetica para os caracteres e valores psiacutequicos e para a physis (Feacutedon 98c-99b) (Leis

X 891e) (Filebo 27b) (Timeu 29d 44c-46e) A causalidade platocircnica eacute posta como

sucessatildeo temporal invariaacutevel na qual um efeito segue forccedilosamente uma causa e como

uma relaccedilatildeo de dependecircncia paradigmaacutetica na qual algo vem a ser a partir de um princiacutepio

15

ou modelo (BRISSON 2001 p 15-17) As explicaccedilotildees de mundo dos filoacutesofos da natureza

procuravam explicar a geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo de todos os seres a partir de elementos materiais

do proacuteprio plano da physis Tais explicaccedilotildees eram contraditoacuterias visto que violavam trecircs

princiacutepios basilares da causalidade o de que uma causa natildeo pode ter dois efeitos contraacuterios

(Feacutedon 96d 101a-b) o de que um efeito natildeo pode resultar de duas causas contraacuterias

(Feacutedon 96e-97b) e o de que algo natildeo pode ser causa do seu contraacuterio (101b) (FISCHER

2002 p 659) Uma explicaccedilatildeo racional de mundo pressupotildee uma instacircncia absoluta

separada do plano dos fenocircmenos e que sirva de referencial absoluto a partir do qual as

interaccedilotildees da physis satildeo reportadas

O esforccedilo da fundamentaccedilatildeo dos valores eacutetico-poliacuteticos leva Platatildeo a buscar essa

instacircncia normativa que sirva de medida e referencial absoluto para as accedilotildees praacuteticas Para

que os valores sejam reportados a um uacutenico paradigma normativo a sua temporalidade

deve ser superada mediante o recurso a uma epistemologia que lhes confira determinaccedilotildees

invariaacuteveis Tal epistemologia por sua vez engendra uma psicologia ad hoc como

fundamento para a praacutetica poliacutetica Todos estes planos encontram significaccedilatildeo num plano

cosmoloacutegico mais elevado cuja fundamentaccedilatildeo uacuteltima eacute a hipoacutetese causal das Formas

O grande mito de julgamento no Goacutergias anuncia o projeto da visatildeo cosmoloacutegica

unificada visada por Platatildeo Ele constitui um modo de inteligibilidade autocircnomo cuja

significaccedilatildeo soacute eacute passiacutevel de ser encontrada numa visatildeo da totalidade

A justificativa primacial da pesquisa eacute o fato de que uma exegese do mito de

julgamento do Goacutergias segundo um meacutetodo estrutural buerkertiano natildeo foi empreendida

Solidaacuterios de uma certa concepccedilatildeo de racionalidade segundo a qual a verdade eacute uniacutevoca e

soacute passiacutevel de ser obtida mediante raciociacutenios que seguem o modelo das demonstraccedilotildees

matemaacuteticas a maioria dos eruditos contemporacircneos identifica os mitos com um

16

pensamento primitivo e preacute-filosoacutefico susceptiacutevel de ser ultrapassado por uma razatildeo

esclarecida (OTTO 1987) A noccedilatildeo cartesiana de uma verdade cientiacutefica uacutenica reduz a

racionalidade aos argumentos demonstrativos ou agraves formas de raciociacutenio matemaacutetico A

ampliaccedilatildeo da noccedilatildeo de racionalidade para a esfera das imagens e formas afetivas de

inteligibilidade suscita a validade e o uso de formas discursivas complexas que abrangem

todo o espectro do psiquismo raciociacutenios imagens e afetos Tal noccedilatildeo ampliada de

racionalidade aliada ao desenvolvimento de um modelo teoacuterico consistente resulta num

enriquecimento original para a investigaccedilatildeo do pensamento platocircnico

Embora os uacuteltimos anos do seacuteculo passado e os primeiros anos deste seacuteculo

evidenciem uma retomada do interesse dos platonistas pelos mitos1 as questotildees acerca da

interpretaccedilatildeo dos grandes mitos finais natildeo foram suficientemente respondidas e

certamente natildeo foram tratadas num uacutenico modelo teoacuterico consistente2 A proacutepria gama das

perguntas natildeo respondidas justifica o esforccedilo pela forja desse modelo teoacuterico

ndash Consideraccedilotildees metodoloacutegicas

Como engenhar os instrumentos para tal modelo Felizmente os ensaios de anaacutelise

estrutural de Vernant (1990) e Burkert (1997) fornecem o martelo e a bigorna que

permitiratildeo a molda das noccedilotildees essenciais da Filosofia contida nos mitos platocircnicos Molda

esta que natildeo obstante a dureza da tecircmpera soacute seraacute possiacutevel na altiacutessima fornalha da longa

tradiccedilatildeo dos cultos de misteacuterio gregos

A abordagem de um texto antigo constitui um si mesma um trabalho de Siacutesifo que

pressupotildee a cada vez que eacute retomado modalidades do pensar que satildeo condicionadas pela

1 Dentre outros destacamos Ward White Brisson Dixsaut Vernant Matteacutei Joly Desclos e Annas 2 A anaacutelise de Ward (2002) abarca parcialmente as questotildees levantadas mas sua abordagem fortemente

alegoacuterica eacute ldquofechadardquo e embora constitua um notaacutevel avanccedilo natildeo configura um meacutetodo aplicaacutevel que possa

ser validado ou invalidado A abordagem de Brisson (1994) por outro lado empreende uma generalizaccedilatildeo de

uma teoria contemporacircnea da comunicaccedilatildeo e perde excessivamente a especificidade do movimento dialoacutegico

17

paideacuteia e especificidade histoacuterica A tarefa do historiador de Filosofia e do cientista em

geral eacute um constructum em aberto indefinidamente Mas tal abordagem pode ser

metodologicamente justificada Como conciliar um modelo teoacuterico contemporacircneo

construiacutedo mediante os oacuteculos da etnologia com um texto grego antigo Tal empresa natildeo

atenta contra as boas recomendaccedilotildees de uma abordagem filoloacutegico-doxograacutefica A boa

regra de meacutetodo doxograacutefico (ROSSETI 2006 p 274) natildeo preceitua que as teses

efetivamente sustentadas por um autor sejam coerente e validamente atestadas pelas fontes

Em primeiro lugar deve-se atentar que Leacutevi-Strauss explicitamente reconhece que

seu empreendimento teoacuterico se aproxima de um ldquokantismo sem sujeito transcendentalrdquo

(LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 18) Cada mito tomado em particular afirma Leacutevi-Strauss

ldquoexiste como aplicaccedilatildeo restrita de um esquema que as relaccedilotildees de inteligibilidade reciacuteproca

percebidas entre vaacuterios mitos ajudam progressivamente a extrairrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004

p 32) Por essa razatildeo ldquoos esquemas miacuteticos de pensamento apresentam no mais alto grau o

caraacuteter de objetos absolutosrdquo

O caraacuteter auto-referenciado permite com que as cadeias linguumliacutesticas se desprendam

dos mitos e caiam como as escaras dos olhos de um cego deixando-os livres das anaacutelises

filoloacutegicas e reste somente a estrutura Embora pertenccedila agrave ordem do discurso o mito para

expressar-se ldquopode descolar-se de seu suporte linguumliacutestico ao qual a histoacuteria que narra estaacute

menos intimamente ligada do que seria o caso em mensagens comunsrdquo (LEacuteVI-STRAUSS

2004 p 8)

Mas ainda que os esquemas miacuteticos de pensamento reflitam um modo de pensar

autocircnomo o ldquopensar por imagensrdquo cuja estrutura inteligiacutevel eacute indiferente agrave ldquoidentidade do

mensageiro ocasionalrdquo como operar a transformaccedilatildeo de coordenadas ou uma transposiccedilatildeo

estrutural vaacutelida do modelo de Leacutevi-Strauss para os mitos de julgamento platocircnicos Qual eacute

18

o elemento comum que permite a passagem que cobre o profundo fosso cultural entre dois

mundos tatildeo separados o de um pensador contemporacircneo e o de um filoacutesofo grego Tais

esquemas de pensamento seriam indiferentes ao tempo

Haacute uma instacircncia estritamente homoacuteloga ao mito cuja estrutura tanto para Leacutevi-

Strauss como para Platatildeo transcende ao tempo cronoloacutegico e permite uma experiecircncia e

uma inteligecircncia da totalidade a muacutesica Mito e muacutesica possuem e congregam as mesmas

funccedilotildees ndash ldquofunccedilatildeo intelectual e tambeacutem emotivardquo ndash (LEacuteVI-STRAUSS 2000 p 69) que

suscitam uma experiecircncia da totalidade e por essa razatildeo podem ser lidos por um

procedimento anaacutelogo tal como numa partitura musical o significado baacutesico de um mito

natildeo estaacute numa sequumlecircncia de acontecimentos mas como afirma Burkert a um grupo de

accedilotildees que podem ocorrer em momentos diferentes do tempo cronoloacutegico Mito e muacutesica

comportam uma dimensatildeo temporal proacutepria que inflige um desmentido ao tempo

cronoloacutegico ambos satildeo ldquomaquinas de suprimir o tempordquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 35)

Por isso o mito supera ldquoa antinomia de um tempo histoacuterico e findo e de uma estrutura

permanenterdquo

A leitura de uma partitura exige que se procure entender a paacutegina inteira pois o

significado da primeira frase musical escrita soacute pode ser obtido com a consideraccedilatildeo de que

o sentido das frases precedentes estaacute incluiacutedo nas frases subsequumlentes Temos de ler

simultaneamente da esquerda para a direita e de cima para baixo Soacute ldquoconsiderando o mito

como se fosse uma partitura orquestral escrita frase por frase eacute que o poderemos entender

como uma totalidade e extrair o seu significadordquo (op cit p 68) Os grandes estilos

musicais modernos dos seacuteculos XVII a XIX segundo Leacutevi-Strauss assumiram as funccedilotildees

que desempenhava a mousikeacute dos antigos mas a despeito dos rearranjos culturais ambos ndash

mito e muacutesica ndash ldquotranscendem a oposiccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel colocando-se

19

imediatamente no niacutevel dos signosrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 33) Tanto Leacutevi-Strauss

como Platatildeo usam o mito para operar a mediaccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Os

grandes mitos de julgamento compotildeem efetivamente um mosaico de oposiccedilotildees que

remetem para a mediaccedilatildeo entre o devir e aquilo que eacute somente pensaacutevel Eis a ponte que

supera o abismo entre dois mundos separados ao mesmo tempo pela racionalidade loacutegica e

pela distacircncia cultural das eacutepocas

Na sua anaacutelise dos mitos indiacutegenas da costa canadense Leacutevis-Strauss distingue e

compara quatro ldquoniacuteveisrdquo determinantes e independentes do tempo cronoloacutegico geograacutefico

teacutecnico-econocircmico socioloacutegico e cosmoloacutegico (LEacuteVI-STRAUSS 1993 p 164) Enquanto

os dois primeiros niacuteveis encontram referentes bem definidos o terceiro entremeia

elementos atestaacuteveis com elementos somente pensaacuteveis e o quarto compotildee-se de imagens e

elementos somente pensaacuteveis A anaacutelise do mito da ldquogesta de Asdiwalrdquo revela que os trecircs

primeiros eixos sincrocircnicos relacionam-se com a praacutexis poliacutetica teacutecnica e social dos iacutendios

Tsimshiam ao passo que o quarto eixo consiste na configuraccedilatildeo de imagens que possuem a

funccedilatildeo heuriacutestica e explicativa de conferir significaccedilatildeo a fenocircmenos cujas causas satildeo

inevidentes Todos os quatro niacuteveis satildeo demarcados por pares de oposiccedilotildees que

representam ldquouma seacuterie de mediaccedilotildees impossiacuteveis entre oposiccedilotildees organizadas em ordem

decrescenterdquo (LEacuteVI-STRAUSS 1993 p 167)

A construccedilatildeo dos mitos pressupotildee a distinccedilatildeo fundamental entre sequumlecircncias e

esquemas As sequumlecircncias constituem a linearidade da trama que expressa o conteuacutedo

aparente dos mitos as sequumlecircncias de accedilotildees que ocorrem na ordem cronoloacutegica do tempo o

um apoacutes o outro dos eventos que identifica-se com o proacuteprio tempo cronoloacutegico

Sequumlecircncias satildeo congruentes com a sucessatildeo temporal e constituem a silhueta do

tempo Esquemas por outro lado independem do tempo e organizam as sequumlecircncias em

20

planos de profundidade variaacutevel superpostos e sincrocircnicos de modo a cingir fenocircmenos

aparentemente desconexos numa causalidade inevidente Tal como um canto gregoriano o

mito ldquoestaacute preso a um duplo determinismo determinismo horizontal de sua proacutepria linha

meloacutedica e determinismo vertical dos esquemas em contrapontordquo (LEacuteVI-STRAUSS 1993

p 169)

Em Platatildeo os mitos de julgamento revelam a partir do problema da fundamentaccedilatildeo

dos valores quatro grandes eixos sincrocircnicos invariantes eacutetico-poliacutetico epistemoloacutegico

psicoloacutegico e cosmoloacutegico A determinaccedilatildeo dos traccedilos constitutivos desses eixos eacute feita por

pares de oposiccedilotildees insuperaacuteveis que exige a busca de significaccedilatildeo nos planos subsequumlentes

A ressonacircncia direta com a praacutexis eacutetico-poliacutetica enfraquece agrave medida em que a procura por

causas explicativas para as contradiccedilotildees insuperaacuteveis avanccedila em direccedilatildeo ao plano

cosmoloacutegico-causal A anaacutelise dessas oposiccedilotildees revela uma consistecircncia surpreendente nas

grandes narrativas de julgamento como modo de inteligibilidade proacutepria A aplicaccedilatildeo do

meacutetodo estrutural empregado por Walter Burkert aos mitos platocircnicos evidencia que os

grandes mitos de julgamento representam um esforccedilo atemporal na procura da causalidade

unificadora que confere sentido para as contradiccedilotildees do palco do devir

Em Platatildeo todos os mitos de julgamento convergem numa colossal teoria da

causalidade

21

I Mitos e Causas ndash excertos de imagens causais em Hesiacuteodo e Homero3

11 Retribuiccedilatildeo e Causalidade

O pai com o apelido de Titatildes apelidou-os

o grande Ceacuteu vituperando filhos que gerou

dizia terem feito na altiva estultiacutecia gratilde obra

de que castigo teriam no porvir

Hesiacuteodo Teogonia vs 207-2104

A Iliacuteada o poema mais antigo da literatura ocidental inicia-se com a narrativa de

uma peste Crises sacerdote de Apolo fora ultrajado pela recusa de Agamecircnon em

resgatar-lhe a filha raptada

Que Deus posto entre ambos provocou a rixa

O filho de Latona e Zeus Irou-o o rei

A peste entatildeo lavrou no exeacutercito ruiacutena

Cai sobre o povo A Crises ultrajara o Atreide

Ao sacerdote o qual viera ateacute as naus

velozes dos Aqueus remir com dons a filha

nas matildeos portando os nastros do certeiro Apolo

presos ao cetro de ouro e a todos implorava ()

Iliacuteada I vs 8-15

Diante da cataacutestrofe Aquiles recorre a um mediador o adivinho Calcas para

responder agrave questatildeo por que o deus estaacute tatildeo irado A calamidade suscita a questatildeo de se

saber a causa Segue-se entatildeo uma sequecircncia de eventos que configuram pela primeira

vez na poesia grega um ritual que envolve adivinhaccedilatildeo purificaccedilatildeo sacrifiacutecio preces e

danccedila Essa sequecircncia como demonstra Walter Burkert (2001 p 103 ss) transcende as

3 Emprego o pressuposto metodoloacutegico de que um mito eacute um programa ou sequumlecircncia de accedilotildees com uma

estrutura discerniacutevel definida que se caracteriza pela exemplaridade do tipo miacutetico e pela aplicabilidade atemporal O mito eacute a forma pela qual uma experiecircncia complexa se torna comunicaacutevel Suas personagens

configuram personificaccedilotildees geneacutericas que permitem a aplicaccedilatildeo a situaccedilotildees particulares definidas Esse

caraacuteter geneacuterico das imagens miacuteticas implica a sua atemporalidade aleacutem do fato de que elas satildeo

inverificaacuteveis Para a abordagem preliminar da causalidade a partir dos trechos selecionados emprego

conjuntamente a abordagem estruturalista da Escola de Paris representada por Jean Pierre Vernant e Marcel

Detienne com o estruturalismo alematildeo de Walter Burkert As questotildees de meacutetodo satildeo desenvolvidas no

primeiro capiacutetulo 4 Traduccedilatildeo de Jaa Torrano (2003)

22

fronteiras da civilizaccedilatildeo grega e constitui universalia antropoloacutegicos um padratildeo invariaacutevel

de cinco etapas (i) uma experiecircncia catastroacutefica ameaccediladora adveacutem de uma Potestade

divina (ii) a calamidade suscita a questatildeo da busca pela causa ldquopor querdquo (iii) a busca da

causa requer um mediador (iv) um diagnoacutestico eacute feito a causa do mal eacute definida e

localizada pelo estabelecimento da culpa e identificaccedilatildeo do responsaacutevel Conhecer a causa

eacute indicar o responsaacutevel e obter o caminho para a salvaccedilatildeo (v) Atos apropriados de expiaccedilatildeo

satildeo prescritos visando agrave libertaccedilatildeo do mal

Cataacutestrofes e doenccedilas satildeo frequumlentemente vistas como uma inevitaacutevel reaccedilatildeo divina

vinculada a algum tipo de transgressatildeo ou falta original agrave infraccedilatildeo de uma lei ou uma

accedilatildeo imprudente que denota uma afronta ou hyacutebris diante dos deuses A culpa eacute em geral

associada agrave transgressatildeo religiosa ou violaccedilatildeo das medidas humanas A causa do mal eacute

oculta inevidente e o seu estabelecimento requer a mediaccedilatildeo de videntes cujo saber

atemporal pode determinar-lhe a origem A busca por causas inevidentes invisiacuteveis confere

sentido agrave experiecircncia catastroacutefica e permite numa perspectiva abrangente da situaccedilatildeo do

passado e do futuro a praacutetica de accedilotildees que a tornem remediaacutevel A integraccedilatildeo dos sinais

complexos da experiecircncia caoacutetica num uacutenico pano de fundo mental confere-lhe significaccedilatildeo

mediante o estabelecimento do viacutenculo infrangiacutevel entre a falta e a puniccedilatildeo A causalidade

eacute a forma multimilenaacuteria de lidar com a experiecircncia aterradora do mal sem explicaccedilatildeo

mediante o estabelecimento de causas inevidentes A ira de um deus superior eacute a

consequecircncia infaliacutevel e justificada para a transgressatildeo Segundo Burkert (2001 p 125) ldquoo

padratildeo da causalidade da culpa estabelecida por um diagnoacutestico transcendente em

situaccedilotildees de calamidade eacute universal primitivo e tiacutepico da mente humana e do

comportamento humano em geralrdquo e haure seu modelo no ldquocomportamento do animal

apanhado numa armadilha ou perseguido por um predadorrdquo O estabelecimento de uma

23

conexatildeo infaliacutevel que vincula as noccedilotildees de falta consequecircncia e reparaccedilatildeo gera um

contexto de sentido no Koacutesmos A invenccedilatildeo da culpa coincide com a moldagem da

racionalidade que promove uma reconstruccedilatildeo de um universo de sentido para uma

experiecircncia original caoacutetica e catastroacutefica Encontrar a ldquocausardquo (aitiacutea) eacute encontrar o

ldquoresponsaacutevelrdquo (aiacutetios) e determinar a explicaccedilatildeo inevidente para uma situaccedilatildeo aflitiva As

conexotildees infrangiacuteveis entre violaccedilatildeo ndash culpa ndash retribuiccedilatildeo moldam os quadros mentais que

estabeleceratildeo as conexotildees infaliacuteveis entre fato ndash consequecircncia e causa ndash efeito que

caracterizam a reconstruccedilatildeo racional do mundo promovida pela mente humana

Nos primoacuterdios a Natureza eacute um estado de indistinccedilatildeo caoacutetica A diferenciaccedilatildeo soacute

ocorre mediante atos de violecircncia propiciados pela astuacutecia enganosa Por isso como afirma

Galimberti (2006 p 43) ldquofoi a violecircncia da razatildeo que permitiu ao homem subtrair-se

daquela violecircncia maior que eacute a falta de reconhecimento das diferenccedilas pela qual o pai natildeo

eacute reconhecido como pai a matildee como matildee o filho como filho com a consequente oscilaccedilatildeo

dos significados que a razatildeo humana trabalhosamente construiu para se orientar no

mundordquo

Se Gaia eacute a matildee primordial a partir da qual emerge toda diferenciaccedilatildeo a culpa eacute a

matildee miacutetica primordial da causalidade imprescindiacutevel para o desenvolvimento da

concepccedilatildeo racional da teacutecnica

Na Teogonia em particular a situaccedilatildeo aflitiva de aprisionamento experimentada

pelos filhos de Gaia suscita a identificaccedilatildeo do responsaacutevel no desregramento sexual de

Ourano A localizaccedilatildeo da causa da situaccedilatildeo aflitiva ocasiona as medidas apropriadas para a

sua remoccedilatildeo Tais medidas envolvem a escolha de meios que implicam uma inteligecircncia

astuciosa exigida para sobrepujar uma potecircncia divina Gaia forja um instrumento a foice

24

de branco accedilo que possibilita o estratagema doloso e o golpe violento pelos quais Crono

obteacutem a soberania do Koacutesmos

6 Por dentro gemia a Terra prodigiosa

atulhada e urdiu dolosa e maligna arte

Raacutepida criou o gecircnero do grisalho accedilo

forjou grande podatildeo e indicou aos filhos

Disse com ousadia ofendida no coraccedilatildeo

ldquoFilhos meus e do pai estoacutelido se quiserdes

ter-me feacute puniremos o maligno ultraje de vosso

pai pois ele tramou antes obras indignasrdquo

Teogonia 159-166

Essa sequecircncia de eventos estabelece as conexotildees entre a causalidade e a

inteligecircncia astuciosa a ldquoarte dolosardquo ndash doliacuteēn teacutekhnēn ndash concebida por Gaia e o emprego

dos meios apropriados para o sobrepujamento de Ourano que significa em uacuteltima

instacircncia o domiacutenio do Koacutesmos A accedilatildeo violenta de Crono acarreta a imprecaccedilatildeo de

Ourano e a admoestaccedilatildeo de uma retribuiccedilatildeo infaliacutevel ou ldquocastigo no porvirrdquo (v 210)

O esquema baacutesico pode ser resumido nas seguintes etapas (i) uma situaccedilatildeo

impediente adveacutem (ii) a situaccedilatildeo problemaacutetica suscita a busca da causa (iii) um mediador

com inteligecircncia astuciosa concebe um estratagema ou arte (teacutekhnē) fraudulenta (iv) os

meios apropriados satildeo escolhidos forjados e empregados oportunamente com violecircncia

para a remoccedilatildeo do mal (v) a accedilatildeo violenta suscita por sua vez uma retribuiccedilatildeo infaliacutevel

como consequecircncia Tal esquema eacute constitutivo para a formaccedilatildeo da primitiva inteligecircncia

teacutecnica que visa ao domiacutenio da natureza

A castraccedilatildeo de Ourano implica consequecircncias inevitaacuteveis a liberaccedilatildeo do tempo

linear irreversiacutevel a gecircnese a partir de princiacutepios opostos complementares e distintos As

gotas de sangue espargidas sobre Gaia datildeo origem agraves Potecircncias que presidem a vinganccedila a

violecircncia as guerras e provas de forccedila as Eriacutenias os Gigantes e Meliacuteades O oacutergatildeo sexual

de Crono atirado ao mar com seu esperma origina a espuma (aphroacutes) que daacute nascimento a

25

Afrodite cujos atributos satildeo a uniatildeo amorosa o prazer os sorrisos os ardis ndash opostos aos

das potecircncias violentas Doravante os contraacuterios soacute podem ser aproximados pela uniatildeo de

princiacutepios distintos A complementaridade de opostos confere agrave organizaccedilatildeo do Koacutesmos um

caraacuteter ambiacuteguo de mistura em que potecircncias de conflito se equilibram com potecircncias de

concoacuterdia (VERNANT 2002 p 252) Ademais ao processo de gestaccedilatildeo das potecircncias da

distinccedilatildeo se contrapotildee a emanaccedilatildeo das potecircncias de destruiccedilatildeo forccedilas da escuridatildeo e da

desordem personificadas nos filhos da Noite

A inscriccedilatildeo da ordem no Koacutesmos implica como contrapartida simeacutetrica a inscriccedilatildeo

de potecircncias caoacuteticas de desordem Uma lei de compensaccedilotildees perpassa o Koacutesmos assim

como Dia e Noite satildeo reversos Thaacutenatos Hyacutepnos e Oneiron se opotildeem agrave vida e as Moiras

Neacutemesis e Keres estendem a lei de retribuiccedilatildeo infaliacutevel para o acircmbito dos homens mortais

A estensatildeo das potecircncias de vinganccedila ao acircmbito dos mortais representa a contrapartida

simeacutetrica da conexatildeo infaliacutevel entre falta e retribuiccedilatildeo que rege o Koacutesmos divino Agrave

infalibilidade da conexatildeo falta-retribuiccedilatildeo eacute acrescentado o equiliacutebrio inevitaacutevel do reverso

A symmetriacutea5 eacute uma faceta ineludiacutevel de uma causalidade infaliacutevel

12 Causalidade e Poder

Agrave narrativa de um processo de diferenciaccedilatildeo substitui-se um mito de sucessatildeo de

poder6 A instauraccedilatildeo da conexatildeo culpa-retribuiccedilatildeo constitui a condiccedilatildeo para o domiacutenio do

Koacutesmos e a nota distintiva da inteligecircncia teacutecnica

5 No sentido de justa proporccedilatildeo Filebo 65e Repuacuteblica 530a 6 A ecircnfase na soberania que atravessa a anaacutelise estrutural de Vernant eacute tributaacuteria da primeira funccedilatildeo

estabelecida por George Dumeacutezil no seu esquema de interpretaccedilatildeo dos mitos indo-europeus Natildeo obstante a

anaacutelise empreendida por Jenny S Clay destaca o equiliacutebrio simeacutetrico de potecircncias como um elemento

constitutivo na cosmologia de Hesiacuteodo No seu vieacutes a ldquoa histoacuteria dos deuses como um todo pode ser vista

como uma explicaccedilatildeo das vaacuterias tentativas do deus supremo masculino de controlar e bloquear a direccedilatildeo

procriadora feminina de forma a obter um regime coacutesmico estaacutevelrdquo Segundo a autora no auguacuterio

apocaliacuteptico que encerra o mito das raccedilas Hesiacuteodo vincula a determinaccedilatildeo definitiva do estatuto humano ao

abandono gradual de e interpretados como senso de vergonha e ultraje ndash par

26

A soberania soacute eacute obtida mediante uma limitaccedilatildeo imposta por um ato de violecircncia

maquinado por uma inteligecircncia astuciosa Mas a instauraccedilatildeo infrangiacutevel da conexatildeo natildeo

implicaria um ciclo indefinidamente renovado A ordem do mundo natildeo seraacute

indefinidamente questionada e subvertida Esse problema eacute respondido na narrativa da

Titanomaquia e da vitoacuteria definitiva de Zeus

Reacuteia submetida a Crono pariu brilhantes filhos

Heacutestia demeacuteter e Hera de aacuteureas sandaacutelias

o forte Hades que sob o chatildeo habita um palaacutecio

com impiedoso coraccedilatildeo o troante Treme-terra

e o saacutebio Zeus pai dos Deuses e dos homens

sob cujo trovatildeo ateacute a ampla terra se abala

E engolia-os o grande Crono tatildeo logo cada um

do ventre sagrado da matildee descia aos joelhos

tramando-o para que outros magniacuteficos Uranidas

natildeo tivesse entre os imortais a honra de rei

HESIacuteODO 2003Teogonia vs 453-462

O temor da retribuiccedilatildeo leva Crono a impedir o florescimento de sua prole A

vigilacircncia inquieta de Crono deriva do seu ldquocurvo pensarrdquo da Mḗtis que conferia-lhe a

presciecircncia da retribuiccedilatildeo ao crime cometido contra o pai A situaccedilatildeo repressora leva Reacuteia a

uma ldquolonga afliccedilatildeordquo Reacuteia com Gaia e Ourano concebe um ardil (mḗtin) astucioso e

encontra os meios para que as Eriacutenias implacaacuteveis retribuidoras fizessem com que Zeus o

astuto (mētioacuteenta) tivesse destino diverso do de seus irmatildeos Clandestinamente Reacuteia

esconde o filho mais novo em Creta e dissimula uma pedra envolta em latildes de modo que

tivesse a aparecircncia enganosa do filho receacutem nascido O estratagema fruto da inteligecircncia

astuciosa envolve a descoberta dos meios apropriados a dissimulaccedilatildeo e o engodo que

complementar agrave potecircncia feminina de Nesse sentido contra Vernant a oposiccedilatildeo se estenderia a um

plano ulterior de distinccedilotildees que marca a unilateralidade da violecircncia inerente ao domiacutenio assimeacutetrico da

potecircncia masculina A sucessatildeo de violecircncias encenada na titanomaquia mais do que esboccedilar o cenaacuterio

historicista de luta pela soberania mostra a necessidade da assimilaccedilatildeo do elemento feminino proacuteprio de

agrave forccedila soberana (CLAY 2003 23-38)

27

permitem impedir e paralisar uma potestade divina soberana A questatildeo da soberania

basileacuteia coacutesmica implica o emprego do meio eficaz para enganar a Potecircncia divina o que

soacute eacute factiacutevel mediante uma astuacutecia dolosa que supera a astuacutecia da divindade

Desde o seu desabrochar a racionaliade teacutecnica aparece como um modo de trapaccedila

como um dolo inextricaacutevel da culpa O dolo eacute tatildeo somente o modo miacutetico de vindicar a

conexatildeo infaliacutevel da contrapartida do castigo Eacute a plasmaccedilatildeo da conexatildeo que funda um tipo

de pensamento indispensaacutevel para o regramento da experiecircncia humana e da busca pelos

melhores meios para a sobrevivecircncia eficaz num mundo cujas potecircncias naturais satildeo

poderosas a ponto de serem epifanias divinas

O grande Crono de curvo pensar eacute ldquoenganado (dolōtheis) por repetidas instigaccedilotildees

da Terrardquo (Teogonia v 494) solta sua prole e acaba por ser expulso agrave forccedila pelo filho mais

novo O mesmo padratildeo e a sequecircncia de accedilotildees baacutesica anterior eacute mantida (i) uma situaccedilatildeo

impediente adveacutem Crono impede que seus filhos venham a ser e os engole (ii) a situaccedilatildeo

problemaacutetica suscita a busca da causa Crono astuciosamente pretende manter a soberania

(iii) mediadores astuciosos concebem uma arte dolosa Reacuteia juntamente com Gaia e

Ourano tramam um ardil que engana Crono (iv) os meios adequados satildeo escolhidos e

empregados Crono engole uma pedra e Zeus eacute escondido em Creta ateacute que agrave forccedila

destrone seu pai (v) a accedilatildeo violenta reclama a justa retribuiccedilatildeo as Eriacutenias deveriam fazer

voltar contra Zeus a Mḗtis que lhe impingiria a mesma sorte dos seus antepassados

soberanos Todavia isso natildeo ocorre No reinado de Zeus a conexatildeo infrangiacutevel entre falta-

retribuiccedilatildeo eacute assimilada ao seu poder real Doravante a causalidade passa a ser um atributo

de uma ordem coacutesmica imutaacutevel

A garantia da ordem estabelecida eacute uma prerrogativa da Mḗtis a inteligecircncia

astuciosa que independentemente do poder e forccedila do adversaacuterio e em todas as

28

circunstacircncias garante a dominaccedilatildeo do Koacutesmos mediante a integraccedilatildeo entre macho e

fecircmea Somente a superioridade de uma inteligecircncia astuciosa que implica a presciecircncia a

escolha a forja e o emprego dos meios mais eficazes com vistas a um fim determinado

somente uma Mḗtis que eacute tambeacutem potecircncia divina propicia a supremacia do poder

soberano Por isso como diz Vernant ldquoo rei do ceacuteu deve dispor fora e aleacutem da forccedila bruta

de uma inteligecircncia haacutebil para prever o futuro para maquinar tudo antes para combinar em

sua prudecircncia meios e fins ateacute o menor detalhe de forma que o tempo da accedilatildeo natildeo

comporte acasos que o futuro natildeo traga surpresas fazendo com que nada e ningueacutem possa

pegar o deus de surpresa ou encontraacute-lo indefesordquo (2002 p 258) Combinaccedilatildeo eficaz de

meios e fins previsatildeo e planificaccedilatildeo baseados na sequecircncia infaliacutevel da causalidade tempo

oportuno eliminaccedilatildeo do acaso forja de instrumentos necessaacuterios eis as condiccedilotildees para a

consolidaccedilatildeo e desenvolvimento da inteligecircncia teacutecnica que eacute ao mesmo tempo a

provedora e a chancela do poder

Mḗtis a Oceacircnida deusa da astuacutecia eacute justamente quem assegura a Zeus os meios de

lutar contra os Titatildes ela induz Crono a beber um phaacutermakon que o obriga a vomitar os

irmatildeos de Zeus que haviam sido engolidos (APOLODORO I 2 6) Mas outros

coadjuvantes viriam de um expediente astucioso adicional Gaia revela a Zeus que para

obter a vitoacuteria deveria contar com a alianccedila dos Ciclopes e dos Cem-Braccedilos detentores

respectivamente do raio dos golpes e cadeias invenciacuteveis (Teogonia vs 624-653) Zeus

liberta as Potecircncias primordiais de suas correntes e lhes oferece neacutectar e ambrosia

consagrando-os a um estatuto divino parelho ao dos Oliacutempios O favor divino concedido

por Zeus eleva a um novo plano o tema da retribuiccedilatildeo a daacutediva eacute um meio de garantir a

reciprocidade e de escalonar valores As Potecircncias primordiais da violecircncia e da vitoacuteria

passam a ser os guardiotildees fieacuteis de Zeus Kraacutetos e Biacutea Poder e Violecircncia ldquoinsignes filhosrdquo

29

de Stix e Oceano ldquosempre perto de Zeus gravitroante repousamrdquo (Teogonia v 385)7 Para

instituir a ordem faz necessaacuteria a harmonizaccedilatildeo entre as potecircncias da violecircncia e a astuacutecia

presciente A emancipaccedilatildeo da ordem implica a ruptura violenta

Mḗtis ldquomais saacutebia que os deuses e os homens mortaisrdquo (v 887) eacute a primeira esposa

de Zeus O casamento eacute uma forma de daacutediva e de reciprocidade pelos serviccedilos prestados

pela deusa da inteligecircncia astuciosa mas eacute sobretudo uma alianccedila que assegura o domiacutenio

da soberania Para impedir que a retribuiccedilatildeo agrave violecircncia da falta infaliacutevel se volte contra si

mesmo Zeus emprega as proacuteprias armas de Mḗtis a astuacutecia a surpresa e o ardil O

Cronida ldquoengana suas entranhas com ardil com palavras sedutorasrdquo por conselhos de Gaia

e Ourano e engole-a ventre abaixo para que assim a deusa lhe indique o bem e o mal

(Teogonia v 886-900) A deusa que interveacutem nas lutas de soberania para restaurar o

equiliacutebrio rompido estabelece o fato inexoraacutevel de que o domiacutenio e o poder exigem o

concurso simultacircneo da audaacutecia da forccedila da artimanha da iniciativa inteligente do ardil e

do espiacuterito inventivo (DETIENNE 1974 p 105) Ao ser engolida Mḗtis eacute assimilada a

Zeus e ele ldquotorna-se mais que um simples monarca ele se torna a proacutepria Soberaniardquo

(VERNANT 2002 p 261) A inteligecircncia astuciosa estaacute ldquonas entranhasrdquo de Zeus faz parte

de sua constituiccedilatildeo divina configura uma de suas potecircncias constitutivas Zeus eacute todo

Astuacutecia e sua inteligecircncia abarca todo o ciclo do tempo conferindo-lhe a previsatildeo

presciecircncia e prudecircncia indispensaacuteveis para a accedilatildeo que se projeta no futuro Ao assimilar

7 Alguns exegetas como H Fraumlnkel atribuem o domiacutenio de Zeus agrave alianccedila decisiva estabelecida com Styx e

sua descendecircncia Zelos Niacuteke Kraacutetos e Biacutea Brown empreende uma interpretaccedilatildeo maquiavelista afirmando que os resultados finais justificam os meios empregados por Zeus que seria o fundador no koacutesmos do que

Maquiavel chamaria ldquosociedade civilrdquo Blickman observa no entanto que a alianccedila dos filhos de Styx foi

ldquoganhardquo mediante a oferta da garantia de conceder-lhes as devidas honras divinas O vieacutes que nos interessa ndash

a formaccedilatildeo dos elementos fundamentais da inteligecircncia teacutecnica ndash indica que o acento deve recair sobre o fato

de que a oferta e a contrapartida do serviccedilo leal dos aliados de Zeus configuram uma faceta e uma

perspectiva diversa de lei de retribuiccedilatildeo As alianccedilas de Zeus configuram a conexatildeo causal infaliacutevel como

oferta e contrapartida e satildeo compatiacuteveis com a interpretaccedilatildeo e o acento fortemente alegoacuterico que Vernant

confere a Mḗtis (BLICKMAN 1987 p 341-355)

30

Mḗtis Zeus inaugura a inteligecircncia projetiva a inteligecircncia teacutecnica como a ordem que

deteacutem a soberania sobre o mundo e por isso ldquoentre o projeto e a realizaccedilatildeo natildeo conhece

mais a distacircncia pela qual surgem na vida dos outros deuses as armadilhas do imprevistordquo

(ibid) O ciclo inexoraacutevel e sempre renovado entre falta e retribuiccedilatildeo em vez de abolir a

ordem coacutesmica passa a ser parte integrante dela A ordem eacute definitivamente estabelecida

quando a causalidade e a inteligecircncia teacutecnica passam a ser-lhe solidaacuterias

Na geraccedilatildeo anterior accedilatildeo astuciosa de Gaia decorre da violecircncia de Ourano que a

atulha e com isso impede sua potecircncia natural de gestaccedilatildeo e o devir das geraccedilotildees

subsequentes

Quantos da Terra e do Ceacuteu nasceram

filhos os mais temiacuteveis detestava-os o pai

decircs o comeccedilo tatildeo logo cada um deles nascia

a todos ocultava agrave luz natildeo os permitindo

na cova da Terra8

(HESIacuteODO Teogonia 2003 154-159)

A astuacutecia feninina aparece como contrapartida agrave violecircncia masculina na forja do

instrumento de salvaccedilatildeo o que implica inexoraacutevel tendecircncia a um ininterrupto ciclo de

violecircncia e retribuiccedilatildeo atraveacutes da descendecircncia masculina os Titatildes aqueles que pagam a

penalidade por suas accedilotildees A mudanccedila coacutesmica eacute desencadeada pela tensatildeo entre o

princiacutepio de accedilatildeo da procriaccedilatildeo natural ilimitada de Gaia e a violecircncia impediente de

Ourano A forccedila da proliferaccedilatildeo ilimitada de Gaia soacute pode ser limitada por um ato de

violecircncia e oposiccedilatildeo agrave potecircncia feminina num ciclo ininterrupto de violecircncia e retribuiccedilatildeo

astuciosa Todavia o primeiro ato de violecircncia de Zeus consiste em engolir Mḗtis

desencadeando uma reviravolta no ciclo coacutesmico O princiacutepio de movimento coacutesmico

8

31

emerge a partir dos pares de opostos caracterizados pela alternacircncia entre procriaccedilatildeo

masculina e gestaccedilatildeo feminina e pela oposiccedilatildeo entre violecircncia (biacutea) masculina e a mḗtis

feminina Enquanto a violecircncia eacute prerrogativa masculina a inteligecircncia astuciosa eacute um

apanaacutegio feminino Quando Zeus engole Mḗtis assimila em si mesmo a esfera coacutesmica

feminina cuja consequecircncia eacute o equiliacutebrio de princiacutepios opostos de movimento

Entretanto a ordem soacute pode ser perenemente garantida mediante uma outra

realidade coacutesmica primordial que dispotildee de poderes anteriores aos de Zeus a Oceacircnida

Thecircmis Assim como Mḗtis Thecircmis abarca a totalidade do tempo e possui uma onisciecircncia

que diz respeito a uma ordem estabelecida Seus proferimentos possuem um valor oracular

categoacuterico que estabelece de uma vez por todas como decretos o que eacute dito Thecircmis

ordena interdita decreta peremptoriamente e fixa os aspectos natildeo definidos do Koacutesmos Se

de um lado Mḗtis relaciona-se com o tempo oportuno e com o hipoteacutetico de outro

Thecircmis estabelece a regularidade a ordem e confere invariacircncia ao devir Ela eacute a Matildee das

Horas as Estaccedilotildees e fixa as Moiras dos mortais Sua funccedilatildeo eacute a de estabelecer limites

intransponiacuteveis ao Koacutesmos Sua uniatildeo com Zeus implica que a ordem coacutesmica possui

medidas regularidades e limites intransponiacuteveis (DETIENNE 1974 p 105 ss) A funccedilatildeo

primordial de Thecircmis eacute proclamar que os limites do Koacutesmos satildeo decretos divinos

irrevogaacuteveis Tais limites iniciam-se pela diferenciaccedilatildeo de potecircncias contraacuterias e por uma

sissiparidade sem a atraccedilatildeo de potecircncia primordial de Eros A uniatildeo de potecircncias opostas

brota do Amor coacutesmico afetividade que potildee em movimento a geraccedilatildeo e o ciclo coacutesmico

Mas cabe observar que as primeiras potecircncias instauradoras de limites coacutesmicos satildeo

princiacutepios temporais os primeiros limites consistem no estabelecimento de uma conexatildeo

irrevogaacutevel entre violecircncia desmedida e retribuiccedilatildeo astuciosa entre proliferaccedilatildeo

ininterrupta e a fixaccedilatildeo de limites e medidas temporais coacutesmicas

32

O casamento de Zeus com Thecircmis eacute ao mesmo tempo uma daacutediva pelos seus

serviccedilos e uma alianccedila que assimila sua potecircncia Suas decisotildees irrevogaacuteveis permitiratildeo a

partilha os lotes os domiacutenios e a hierarquia entre as Potecircncias divinas Com a daacutediva e a

reciprocidade do duplo casamento de Zeus a retribuiccedilatildeo adquire o estatuto inalienaacutevel de

lei e a reciprocidade passa a ser a condiccedilatildeo para a hierarquia de poderes Na Teogonia

hesioacutedica causalidade e hierarquia apontam para um limite uacuteltimo na Natureza a lei

irrevogaacutevel e intransponiacutevel estabelecida por Thecircmis

13 Causalidade e Reciprocidade

A caracteriacutestica fundamental de uma daacutediva ou presente eacute a expectativa da

reciprocidade consoante um criteacuterio de equivalecircncia A troca de presentes estabelece o

estatuto do doador e implica o escalonamento do poder No primeiro livro da Odisseacuteia

Palas Atena visita Telecircmaco sob a forma do estrangeiro Mentes e define a obrigaccedilatildeo da

reciprocidade

Hoacutespede tuas palavras satildeo ditas com acircnimo amigo

como de pai para filho jamais poderei esquececirc-las

Mas muito embora desejes partir fica um pouco te peccedilo

que te banhes e possas dar largas ao peito querido

para depois ao navio voltares levando um presente

muito valioso e bonito que seja lembranccedila de minha

parte tal como os amigos com os hoacutespedes fazem de grado

A de olhos glaucos Atena lhe disse em resposta o seguinte

Natildeo me domovas do intento pois muito me importa ir embora

Quanto ao presente se tanto o desejas que seja na volta

quando de novo passar por aqui levaacute-lo-ei para casa

Por mais valioso que escolhas teraacutes outro igual conquistado

Odisseacuteia I vs 307-318

Todo presente exige um contra-presente A obrigaccedilatildeo de reciprocidade natildeo

comporta exceccedilatildeo e a contrapartida ao ato de ofertar pressupotildee uma medida comum que

estabelece o valor (aacutexion) ou equivalecircncia que controla um sistema de hierarquia A

33

proacutepria noccedilatildeo de ldquomedidardquo eacute um refinamento da concepccedilatildeo de que a Natureza eacute

caracterizada por limites que natildeo podem ser transpostos (VLASTOS 1947 p 156) O

estabelecimento de uma obrigaccedilatildeo muacutetua implica o desenvolvimento de categorias mentais

que comportam a comparaccedilatildeo a igualdade a medida a contagem e o caacutelculo O presente

permite segundo Burkert o reconhecimento da igualdade de estatuto entre os ofertantes e a

representaccedilatildeo de um mesmo paacutethos Implica tambeacutem os quadros mentais que permitem o

discernimento da dimensatildeo temporal e a projeccedilatildeo futura da obrigaccedilatildeo mediante o

reconhecimento de um padratildeo invariaacutevel (BURKERT 2001 p 132) A reciprocidade eacute

apenas um outro aspecto da conexatildeo infaliacutevel da retribuiccedilatildeo e determina a expectativa

universal de que seres de um mesmo estatuto recebam o mesmo tratamento A

reciprocidade advinda da oferta implica por conseguinte o escalonamento ou

hierarquizaccedilatildeo dos atores envolvidos conferindo estabilidade ao todo

Outro modo de aplicaccedilatildeo da reciprocidade possui desdobramentos perenes no

desenvolvimento da racionalidade Na esfera da justiccedila punitiva o castigo eacute aceito como

justo se estiver subordinado agrave concepccedilatildeo de retribuiccedilatildeo que especificamente emerge da

oferta reciacuteproca A reciprocidade pressupotildee os quadros mentais que desenvolvem aquela

que viraacute a ser uma das noccedilotildees mais fecundas da Filosofia a noccedilatildeo de simetria

Nos Trabalhos e os Dias Hesiacuteodo desenvolve uma antropogonia que estabelece

significaccedilatildeo para o estatuto humano e serve de justificativa para uma exaltada exortaccedilatildeo a

seu irmatildeo Perses O equiliacutebrio compensatoacuterio de opostos eacute apresentado como princiacutepio

constitutivo do plano coacutesmico e humano de modo que o equiliacutebrio recebe a sanccedilatildeo da forccedila

do juramento dos deuses e da lei contra a desmedida hyacutebris A Justiccedila soacute pode compensar a

desmedida com o estabelecimento preacutevio do meacutetron padratildeo comum que garante a

equidade ou comensuralidade Mas a etimologia de meacutetron natildeo deixa de ter relaccedilatildeo com

34

mḗtis a proacutepria personificaccedilatildeo da inteligecircncia astuciosa inextrincaacutevel do kairoacutes da accedilatildeo

precisa no momento oportuno O primeiro golpe astucioso concebido por Gaia suscita natildeo

somente a forja do instrumento inteligentemente planeado mas exige ainda que o momento

oportuno coincida com a accedilatildeo instauradora do tempo cronoloacutegico Na mentalidade grega a

noccedilatildeo de excesso deriva das accedilotildees coacutesmicas do desregramento dos desejos da violecircncia e

do tempo oportuno e natildeo de uma replicaccedilatildeo espacial bilateral

Na perspectiva moderna algo eacute simeacutetrico se possui a mesma medida em relaccedilatildeo a

um padratildeo (syacutemmetros) ou se apoacutes ser submetido a uma determinada accedilatildeo permanece com

a mesma aparecircncia ou com o aspecto original Mas na mentalidade grega de Hesiacuteodo a

noccedilatildeo de equiliacutebrio entre opostos eacute imageticamente expressa na geraccedilatildeo de Harmoniacuteē

Resultante do sangue esparso no mar nascem potecircncias opostas as Eriacutenias

zeladoras da vinganccedila os Gigantes as Ninfas e a virgem da espuma rosada ndash Cytereacuteia ou

Afrodite Novas potecircncias divinas opostas satildeo engendradas a partir da uniatildeo de Afrodite e

Ares destruidor de cidades Harmoniacutea Phoacutebos e Deimos Medo e Terror rompedores das

falanges guerreiras (HESIOD 2006 v 935-937) As determinaccedilotildees afetivas de Afrodite

associadas a Eros ao Desejo (Hyacutemeros) agrave doccedilura graccedila e suavidade opoem-se agrave ira

guerreira de Ares Harmoniacuteē aparece como conjunccedilatildeo conciliadora de afetos opostos uniatildeo

e oposiccedilatildeo geraccedilatildeo e destruiccedilatildeo doce encanto e oacutedio ajustamento de princiacutepios de accedilatildeo

opostos

Por outro lado nos Trabalhos o enfoque visa o estabelecimento do estatuto humano

e o regramento da praacutexis eacutetico-poliacutetica Por essa razatildeo o equiliacutebrio de opostos passa a

abarcar a noccedilatildeo ulterior de meacutetron como avaliaccedilatildeo sopesada para evitar o excesso de

ambiccedilatildeo desmedida e encontrar o justo

35

Mede (metreisthai) bem do teu vizinho e paga-o bem de volta com

a mesma medida (tō metrō) e o melhor que podes pois se estiveres

em necessidade novamente o encontraraacutes mais tarde tambeacutem

confiante ()

Mas eu natildeo te darei nenhum dom a mais nem sobremedida

(epimetrḗsso) ()

Guarda a medida (meacutetra phylaacutessesthai) o momento oportuno eacute a

mais excelente de todas as coisas (kairograves d‟epigrave paacutesin aacuteristos )

(HESIOD Works and Days 2006 v 349-351 396 694)

A apaixonada exortaccedilatildeo de Hesiacuteodo realccedila a origem do excesso e da desmedida no

iacutempeto dos desejos e associa a medida ao kairoacutes o elemento temporal que ajusta

quantitativamente os frutos do trabalho agriacutecola aos periacuteodos regulares das estaccedilotildees e dos

dias As atividades agriacutecolas segundo o excelente trabalho de Jean-Luc Perrilleacute

entremeiam os aspectos quantitativos e temporais que compotildeem a molda da noccedilatildeo de

comensurabilidade (PERILLEacute 2005 p 23-33) A necessidade de ajustar o ano solar ao ano

lunar ocasiona a fusatildeo dos aspectos temporais e espaciais com relaccedilotildees numeacutericas

quantitativas Aleacutem disso a obervacircncia da medida configura o principal traccedilo dos

apotegmas dos sete saacutebios arcaicos A prescritiva de Cleoacutebulo a medida eacute a mais excelente

das coisas (meacutetron aacuteriston) eacute um iacutendice de que as noccedilotildees de equiliacutebrio medida e momento

oportuno modelam a inteireza da mentalidade que daacute identidade ao helecircnico Os apotegmas

de Tales Soacutelon e Pitacos reforccedilam o pressuposto de um pano de fundo compartilhado de

uma atmosfera mental comum que abarca todas as expressotildees do patrimocircnio da paideacuteia

grega observa a medida (meacutetrō khrō) nada em demasia (mēdeacuten aacutegan) apreende o

momento oportuno (kairograven gnōthi)

O acervo mental que correlaciona as noccedilotildees de medida agrave oportunidade temporal

agrega a questatildeo da afetividade como princiacutepio das accedilotildees praacuteticas Nos seus poemas

elegiacuteacos Teoacutegnis adverte que o excesso (hyacuteper meacutetron) de vinho acarreta a desmedida da

36

fala e a ausecircncia de vergonha que potildeem a perder o saacutebio9 ldquoEacute difiacutecil observar a medida

(gnōnai gagraver khalepograven meacutetron) quando o bem se oferece a noacutesrdquo (PERILLEacute 2005 p 25) O

excesso de prazeres e bebida satildeo correlacionados agrave desmedida do discurso improacuteprio e agrave

vergonha da impostura Moderaccedilatildeo afetiva modeacutestia e compostura conjugam-se num

espectro de afetos equilibrados ndash intrinsecamente ligados agrave aprovaccedilatildeo puacuteblica ndash que

suscitam a noccedilatildeo de justa medida O discurso descomedido que se segue a afetos

desenfreados tem como retribuiccedilatildeo inevitaacutevel a vergonha e a desonra As accedilotildees praacuteticas

suscitam justa retribuiccedilatildeo em consonacircncia com sua natureza proacutepria

No plano ciacutevico a retribuiccedilatildeo aparece como inversatildeo da accedilatildeo e determina a

exigecircncia de que o culpado sofra pelo que fez segundo um criteacuterio de equivalecircncia a

contagem de ldquochicotadasrdquo ou dias de prisatildeo por exemplo (BURKERT 2001 p 133) A

concepccedilatildeo da daacutediva estende muito adiante o horizonte da retribuiccedilatildeo e funda as noccedilotildees

que comporatildeo a concepccedilatildeo de ldquojusticcedila positivardquo a reciprocidade eacute de fato um tipo de

moralidade Em grego ser punido equivale a ldquodar justiccedilardquo (diacutekēn diacutedonai) a receber a

contrapartida o que eacute devido em funccedilatildeo de uma ofensa dada O mesmo ocorre com as

interaccedilotildees religiosas que aparecem como um ldquosistema de trocas artificialrdquo (ibid p 135) O

comeacutercio com os deuses eacute definido por Platatildeo como preces e sacrifiacutecios e ordens e

recompensas em paga dos sacrifiacutecios (Banquete 202e) A recompensa como obrigaccedilatildeo

muacutetua estaacute na base da crenccedila religiosa ndash independentemente da impossibilidade de

verificaccedilatildeo de uma recompensa ou puniccedilatildeo no aleacutem

9 O homem que bebe aleacutem da medida natildeo governa mais sua liacutengua nem seu espiacuterito Tem discursos sem fim

que enrubescem os saacutebios Ele natildeo se envergonha de nenhuma accedilatildeo em sua embriaguecircs De saacutebio que era

torna-se insensato Sabe isso e guarda-te de beber em excesso antes que venha a embriaguecircs levanta-te de

medo que teu ventre natildeo te submeta natildeo faccedilas de ti um escravo malfeitor (GIRARD 1892 v 469-495)

37

A mutaccedilatildeo da noccedilatildeo de reciprocidade resulta num contiacutenuo processo que culmina

com as noccedilotildees de leis ldquoobjetivasrdquo da Natureza A interpretaccedilatildeo matemaacutetica do mundo

operada pela Fiacutesica se expressa atraveacutes de equaccedilotildees relaccedilotildees e proporccedilotildees (entre as partes)

mediante os postulados de simetria de equiliacutebrio de homogeneidade (mesma natureza das

partes) e de conservaccedilatildeo Nesse sentido afirma Burkert ldquoo princiacutepio de reciprocidade eacute a

proacutepria fundaccedilatildeo do nosso mundo racional e cientiacuteficordquo (ibid p 154) Os fundamentos da

causalidade natildeo podem ser apreendidos sem o fio condutor das noccedilotildees implicadas pelo

princiacutepio de reciprocidade que nos primoacuterdios emerge da troca de presentes

14 A astuacutecia dolosa o presente de Prometeu

Natildeo se pode furtar nem superar o espiacuterito de Zeus

pois nem o filho de Jaacutepeto o beneacutefico Prometeu

escapou-lhe agrave pesada coacutelera mas sob coerccedilatildeo

apesar de multissaacutebio a grande cadeia o reteacutem

Teogonia vs 613-616

A narrativa de Prometeu eacute a descriccedilatildeo de um duelo de astuacutecias Trata-se de um

confronto sem duacutevida mas natildeo de um embate aberto de um combate singular em que a

violecircncia do golpe se anuncia no movimento aberto que se abate sobre o adversaacuterio No

combate travado entre Prometeu e Zeus as armas empregadas satildeo tatildeo somente suas

inteligecircncias astuciosas e cada lance cada manobra desferida contra o oponente apresenta-

se dissimulada sob a aparecircncia da oferta sedutora do furto ou da ocultaccedilatildeo A sequecircncia de

accedilotildees que compotildee a narrativa eacute um esboccedilo exemplar das conexotildees ineludiacuteveis que

distinguem a retribuiccedilatildeo e a reciprocidade que implicam a definiccedilatildeo de hierarquias os

acircmbitos proacuteprios na organizaccedilatildeo cosmoloacutegica No mito de Prometeu conjugam-se na

mesma sequecircncia de accedilotildees a inexorabilidade da causalidade que se segue a uma quebra de

38

simetria a mḗtis inteligente a previsatildeo temporal projetiva o ardil para a escolha de meios

eficazes a oferta e o contra-presente e a justa retribuiccedilatildeo pela transgressatildeo do meacutetron

O mito de Prometeu eacute o ldquomito de referecircncia para entender o lugar a funccedilatildeo e os

significados do sacrifiacutecio sangrento na vida religiosa dos gregosrdquo (VERNANT 2002 p

263) Natildeo obstante o mito coordena outros temas que ultrapassam em muito no tempo e

no espaccedilo a cultura grega e constituem a pedra fundamental de um tipo de inteligecircncia e de

um modo especiacutefico de racionalidade Prometeu eacute a personificaccedilatildeo da inteligecircncia teacutecnica

humana que se choca com os limites intransponiacuteveis que cingem um Koacutesmos divino

A distribuiccedilatildeo de honras entre Oliacutempios e Titatildes foi o resultado da guerra e das

alianccedilas promovidas por Zeus As honras devidas aos deuses foram fruto do consentimento

e do consenso mas a partilha entre os homens mortais e os Oliacutempios haveria de ser

efetivada por Prometeu Assim como Zeus Prometeu eacute todo ele astuacutecia fabricadora e por

conseguinte um rival uma potecircncia de rebeliatildeo diante da ordem instaurada Mas o Titatilde natildeo

almeja a soberania Ele emprega sua astuacutecia para usurpar a soberania de Zeus e os limites

as medidas que ela implica e para transferir aos mortais um lote que natildeo estaacute em

conformidade com seu estatuto

A partilha eacute o ato que marca o reconhecimento da igualdade e da hierarquia visto

que as ldquopartesrdquo os quinhotildees satildeo distribuiacutedas segundo proporccedilotildees e ordem determinadas

Os termos moira e aiacutesa inicialmente designam o ldquoquinhatildeordquo a ldquoquotardquo ldquoporccedilatildeordquo passando a

significar posteriormente a ordem apropriada a ordem do mundo o Destino O princiacutepio

da daacutediva e a expectativa de compensaccedilatildeo constituem uma extensatildeo da partilha e a

reciprocidade eacute um refinamento mental da accedilatildeo de doar Tal refinamento soacute eacute possiacutevel com

a modelagem dos esquemas mentais que implicam o reconhecimento das pretensotildees dos

atores ausentes o discernimento da passagem do tempo a habilidade para avaliar e

39

relembrar uma retribuiccedilatildeo adiada um mundo estaacutevel no tempo e no espaccedilo e as noccedilotildees

latentes de medida igualdade e equivalecircncia (BURKERT 2001 p 151) A oferenda a um

deus pode significar a submissatildeo aos seus poderes ameaccediladores e a delimitaccedilatildeo apropriada

de sua posiccedilatildeo hieraacuterquica superior ldquoNatildeo darrdquo por outro lado implica natildeo somente a

insubmissatildeo mas uma usurpaccedilatildeo da hierarquia de poder A usurpaccedilatildeo ardilosa de Prometeu

redunda na segregaccedilatildeo definitiva entre homens e deuses e na condiccedilatildeo ambiacutegua que

caracteriza a vida humana proacutexima dos animais e dos deuses

A partilha maquinada por Prometeu consiste no esquartejamento de um boi diante

dos deuses e homens a fim de definir-lhes mutuamente seus estatutos A fronteira seria

representada nas partes do animal sacrificado O sacrifiacutecio eacute efetivamente uma troca de

presentes mediada por Prometeu que deveria respeitar o meacutetron condizente com a soberania

de Zeus Todavia cada parte preparada pelo Titatilde eacute um engodo uma dolosa arte (doliacuteēin

teacutekhnēi) simultaneamente destinada a aviltar o estatuto divino e sobrelevar o estatuto

humano

A primeira parte dissimula os ossos nus do animal sob espessa camada de apetitosa

gordura e a segunda esconde dentro do estocircmago de aparecircncia nauseante as carnes

comestiacuteveis O presente de Prometeu eacute um logro um expediente artificioso cujo fim eacute a

apropriaccedilatildeo do melhor quinhatildeo para os homens Com isso Prometeu acrescenta a dimensatildeo

da vantagem na mḗtis e instaura o viacutenculo perene entre inteligecircncia teacutecnica e o uacutetil O

duelo de Prometeu com Zeus eacute o duelo da mḗtis utilitaacuteria contra a mḗtis da soberania A

primeira calcula os melhores meios para se obter o vantajoso e o uacutetil na perspectiva do

tempo humano A segunda calcula os melhores meios para se obter e manter a soberania

sobre o Koacutesmos na perspectiva da totalidade do tempo Duas ordens de realidade satildeo

40

segregadas uma mortal outra imortal Ambas deveriam ser representadas

proporcionalmente na partilha do sacrifiacutecio do animal e serem oferecidas como presentes

Se todo presente implica a obrigatoriedade do contra-presente e todo sacrifiacutecio

pressupotildee a expectativa de recompensa toda falta reclama a justa retribuiccedilatildeo ldquoZeus de

impereciacuteveis desiacutegnios soube natildeo ignorou a astuacuteciardquo (v 550-551) e escolheu a porccedilatildeo

coberta com gordura branca Por essa razatildeo queimam-se nos altares a gordura e os ossos

dos animais A astuacutecia de Prometeu volta-se contra os homens as partes com aparecircncia de

maior valor na verdade implicam a insaciabilidade da fome sempre renovada e a

perecibilidade proacutepria das carnes de um animal morto As exalaccedilotildees e os perfumes dos

ossos calcinados definem por outro lado a imortalidade impereciacutevel dos deuses que vivem

dos odores sutis A inteligecircncia utilitaacuteria de Prometeu transgride a ordem coacutesmica instituiacuteda

por Zeus A ldquovantagemrdquo auferida com o dolo implica a retribuiccedilatildeo infaliacutevel como

contrapartida O expediente utilitaacuterio desencadeia conexotildees causais natildeo previstas pela mḗtis

prometeacuteica Zeus esconde o biacuteos e o fogo celeste ateacute entatildeo livremente concedidos aos

homens As implicaccedilotildees satildeo a ausecircncia de cereais e gratildeos e a impossibilidade de cozinhar

as carnes obtidas na partilha Ao deixar de ldquodarrdquo as daacutedivas da vida e do fogo aos homens

Zeus daacute efetivamente a justa retribuiccedilatildeo pela falta de Prometeu A lei de taliatildeo da

causalidade preserva a ordem coacutesmica estabelecida

A estrutura baacutesica do programa de accedilotildees que caracteriza a retribuiccedilatildeo eacute repetida (i)

uma situaccedilatildeo impediente adveacutem os homens satildeo privados do fogo e da vida (ii) a

calamidade suscita a busca da causa a fraude de Prometeu (iii) o mediador astucioso

maquina um expediente astucioso Prometeu furta o fogo e o esconde no interior da feacuterula

oca para transportaacute-lo para a terra e doaacute-lo aos homens (iv) a audaacutecia da accedilatildeo criminosa

engendra nova retribuiccedilatildeo

41

O contra-presente de Zeus eacute o resultado da modelaccedilatildeo artificiosa que recebe o

contributo de todos os deuses e constitui o reverso simeacutetrico ao roubo do fogo O dom de

todos os deuses Pandora liberta todos os elementos que aprisionam os homens todos os

males que configuram sua precariedade Sua aparecircncia se reveste do mesmo engodo

astucioso do presente de Prometeu e sua inscriccedilatildeo no plano humano ocorre pela

contrapartida miacutetica da previsatildeo astuciosa que caracteriza Prometeu a imprevidecircncia de

Epimeteu Palco de ambiguidades o cenaacuterio dos homens eacute irremediavelmente vinculado agrave

necessidade de previsatildeo o mundo dos homens eacute o mundo da imprevisatildeo do acaso do

fortuito e conserva o caos originaacuterio das potecircncias primordiais

Pandora representa natildeo somente a explicaccedilatildeo para a duplicidade do estatuto humano

em par de gecircneros opostos ela eacute a noiva esplendorosa de invenciacutevel e adornada aparecircncia

divina que configuram a contrapartida para o dolo do fogo teacutecnico Diferentemente do

homem Pandora eacute fabricada pelos deuses Ela eacute o fruto de uma modelagem divina arte dos

deuses e sua uniatildeo com um Titatilde prenuncia nova caracterizaccedilatildeo do gecircnero humano

Doravante como afirma Jenny Clay (2009 p 102 ss) as distinccedilotildees que definem e

delimitam o gecircnero humano recebem traccedilos perenes e incontornaacuteveis ldquosua apariccedilatildeo

inaugura a instituiccedilatildeo do casamento que como o sacrifiacutecio serve para delimitar as

coordenadas da condiccedilatildeo humana Pois como seres mortais os humanos satildeo compelidos

tal como as bestas a se reproduzirem para que a espeacutecie seja mantidardquo

Por outro lado a prole de Pandora e do titatilde Epimeteu deveraacute unificar os elementos

titacircnicos com a arte bem concebida dos deuses mistura de opostos em permanente tensatildeo

de dissoluccedilatildeo Potecircncia coacutesmica de desmedida Epimeteu procriaraacute um novo gecircnero de ser

unindo-se ao artefacto divino meticulosamente medido miscigenaccedilatildeo equilibrada de

proporccedilotildees e determinaccedilotildees opostas que recebem um sopro de vida O casamento soacute pode

42

passar a ser condiccedilatildeo para a preservaccedilatildeo humana a partir da geraccedilatildeo de Pandora e

Epimeteu que assimila as forccedilas titacircnicas da desmedida agrave arte bem projetada mas ambiacutegua

Assim como o sacrifiacutecio ritualiza mediante em accedilotildees dramatizadas sem finalidade

ou propoacutesito visiacutevel o comeacutercio e o contato com o divino assim tambeacutem o casamento

inaugura a sacralizaccedilatildeo ritual dos apetites sexuais O sacrifiacutecio constitui os droacutemena que

separam o acircmbito e o estatuto divino do humano o espaccedilo-tempo dos deuses e o vivido

humano interposto entre os animais selvagens e o divino A integraccedilatildeo ritualiacutestica do

feminino personificado na Virgem divina ao mesmo tempo regra e sanciona os apetites

sexuais O casamento interpotildee o homem entre a promiscuidade selvagem e a promiscuidade

divina que desconhecem as inibiccedilotildees

O fogo teacutecnico que eacute empregado simultaneamente na fabricaccedilatildeo de utensiacutelios e de

armas que potencializam a violecircncia possui a potecircncia ambiacutegua de assegurar a vida e

sancionar a violecircncia Analogamente o casamento inaugurado por Pandora possui a

potecircncia ambiacutegua de legitimar o sexo atraveacutes da sacralizaccedilatildeo ritualiacutestica e interditar a

promiscuidade da besta ou o incesto dos deuses Todavia o feminino associa-se agrave

concepccedilatildeo da voracidade das forccedilas dissipadoras e destrutivas aportadas pelo fogo Sem

regramento ou controle o feminino natildeo integrado ritualmente consome o fruto dos

trabalhos e com sedutoras palavras e caraacuteter dissimulado induz aos homens a repeticcedilatildeo

miacutetica da imprevidecircncia de Epimeteu

A ambiguidade de Pandora eacute simetricamente compensatoacuteria agrave dyacutenamis piacuterica da

inteligecircncia astuciosa previdente Os males invisiacuteveis indistintamente libertos equilibram e

compensam a previsibilidade e presciecircncia aportada pela inteligecircncia demiuacutergica A

dissimulaccedilatildeo e olhar de catildeo satildeo a contraparte agrave agressatildeo e violecircncia potencializadas por

armas forjadas pelo fogo Por outro lado a esperanccedila retida no vaso opotildee-se agrave exterioridade

43

aberta dos males que assolam os homens Mistura de afeto e pensamento projetivo elpiacutes

anuncia em meio aos males bens somente pensaacuteveis e acalentados afetivamente no acircmago

humano

A causalidade inevidente confere sentido para a espontaneidade do mal na

experiecircncia humana aplaca a ansiedade das vivecircncias aterradoras e eacute o eacutelan para que a

inteligecircncia teacutecnica eluda a contingecircncia dos obstaacuteculos agrave vida Na leitura de Jenny Clay a

expectaccedilatildeo retida pode ser entendida com a mesma ambiguidade de Pandora ela confunde

o pensamento e promete becircnccedilatildeos enquanto sua natureza interna enganadora e caraacuteter

dissimulado mentem com palavras sedutoras Nesse sentido a expectaccedilatildeo seria um mal

iludente que promete e seduz mas que raramente entrega as ilusotildees aneladas (CLAY 2009

p 103) Natildeo obstante a inviolaacutevel posse de Elpiacutes claramente opotildee-se agrave dispersatildeo dos

males Sua accedilatildeo de oposiccedilatildeo eacute compensatoacuteria e natildeo da mesma natureza dos males

silenciosos autocircmatos (HESIacuteODO Trabalhos e os Dias 103) Sua posse implica a

significaccedilatildeo carreada pelo pensamento projetivo de bens pensaacuteveis e diziacuteveis mas incertos

Ela inscreve sentido e ordem numa sucessatildeo indistinta que de outra forma tornariam o

viver excessivamente pesado para ser suportado

O fogo furtado por Prometeu eacute um artifiacutecio derivaccedilatildeo secundaacuteria do fogo celeste

ocultado no interior de uma feacuterula oca e por essa razatildeo eacute um fogo destrutiacutevel e efecircmero

que estaacute no plano do devir e precisa ser alimentado para manter-se Mas eacute tambeacutem um

fogo teacutecnico o fogo do engenho e da metalurgia que possibilitam os meios para a

manutenccedilatildeo da vida10

O fogo dado aos homens representa o domiacutenio da inteligecircncia

teacutecnica astuciosa empregada para controlar as potecircncias naturais e eludir o estado de

10 Paul Diel empreende uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica do mito de Prometeu que a despeito de ser dogmaacutetica e

arbitraacuteria correlaciona de maneira interessante o fogo com a ldquointelectualizaccedilatildeo utilitaacuteriardquo cuja caracteriacutestica eacute

encontrar os meios adequados para a satisfaccedilatildeo dos desejos multiplicados (1980 p 235-236)

44

absoluta carecircncia humana Ele guarda a mesma ambiguidade que marca a condiccedilatildeo dos

homens possui uma origem divina mas eacute por outro lado mortal como os homens e

selvagem como os animais

O fogo prometeacuteico consolida o sacrifiacutecio como o rito adequado para a interaccedilatildeo

entre duas instacircncias definitivamente segregadas e com isso estabelece a partir da daacutediva

da partilha e da retribuiccedilatildeo a emergecircncia ritualiacutestica dos esquemas mentais que compotildeem a

inteligecircncia causal organizadora da experiecircncia e da multiplicidade a conexatildeo infaliacutevel

entre dois eventos consecutivos no tempo a deliberaccedilatildeo projetiva inteligente a escolha de

meios eficazes com vistas a um fim uacutetil determinado a forja de instrumentos as noccedilotildees

proto-matemaacuteticas de medida equivalecircncia proporccedilatildeo igualdade e simetria

Por outro lado a integraccedilatildeo do seu duplo oposto o feminino implica o regramento

a sanccedilatildeo e a inibiccedilatildeo de princiacutepios de accedilatildeo tatildeo destrutivos e incontrolaacuteveis como a

voracidade do fogo selvagem ou do fogo divino o sexo e a violecircncia

15 Vergonha e causalidade a cosmogonia sexual do Papiro de Derveni

Em 1962 uma espetacular descoberta arqueoloacutegica de tumbas funeraacuterias na regiatildeo

grega de Derbeacuteni ( ) havia de insuflar uma forte corrente de novas pesquisas sobre

os cultos de misteacuterio gregos O ceacutelebre papiro de Derveni trouxe agrave luz a exegese de um

uma cosmogonia sagrada desenvolvida por um experto cuja pretensatildeo manifesta eacute a

transposiccedilatildeo didaacutetica de imagens miacuteticas polissecircmicas para o registro de uma explicaccedilatildeo

causal cifrada situada no contexto do pensamento preacute-socraacutetico de Heraacuteclito Anaxaacutegoras

Eutiacutefron e Estesiacutembroto de Thasos (FUNGHI apud LAKS 1997 p 25 ss)

A despeito da profusatildeo dos enfoques hermenecircuticos e das premissas sempre

conjecturais que visam preencher as lacunas incontornaacuteveis dos fragmentos recuperados

45

os eruditos satildeo unacircnimes em reconhecer no rolo de Derveni a mais antiga versatildeo cosmo-

teogocircnica conhecida ateacute hoje (CALAMEacute apud LAKS 1997 p 65) Embora o texto tenha

sido datado por Tsantsanoglou (2006 p 9) da segunda metade do seacuteculo IV (entre 340 e

320 aC) o estilo constitui um forte indiacutecio de que o seu cadinho mental remonta ao Vordm

seacuteculo e que sua linguagem natildeo poderia ser muito posterior a 400 aC (JANKO apud

TSANSTANOGLOU 2006 p 10) Para todos os propoacutesitos aqui assumidos a questatildeo da

autoria e a imprecisatildeo vexatoacuteria que acompanha as referecircncias agrave figura miacutetica de Orfeu natildeo

interferem na fenomenologia das imagens cosmogocircnicas e na re-significaccedilatildeo operada pelo

exegeta Importa sobretudo o modo de manter viva uma tradiccedilatildeo cultual iniciaacutetica

aparentemente anacrocircnica a um ambiente filosoacutefico centrado na busca de princiacutepios causais

cosmoloacutegicos Por essa razatildeo a neutralidade da opccedilatildeo adotada por Janko de referir-se agrave

cosmogonia do papiro como teleteacute ou hieroacutes loacutegos (LAKS 1997 p 26) mostra-se

pertinente

O conteuacutedo dos versos recuperados expotildee a narrativa de uma teogonia sagrada e a

criacutetica por parte do exegeta da interpretaccedilatildeo literal operada por mediadores falseados os

maacutegoi e a inconsequecircncia dos recipiendaacuterios que lhes pagavam altas somas (Col XX) A

questatildeo da iniciaccedilatildeo se apresenta por conseguinte atraveacutes da oposiccedilatildeo entre uma

inteligecircncia subjacente profunda hypoacutenoia e um entendimento literal manifesto O

comentador opera a decifraccedilatildeo de uma narrativa escrita em forma de enigmas cuja

finalidade duacuteplice seria resguardar um saber interdito aos profanos e assegurar a

transmissatildeo de uma tradiccedilatildeo iniciaacutetica atraveacutes do legiacutetimo inteacuterprete

um hino dizendo salutares (hygiḗ) e legalizadas (themitaacute)

palavras Pois um rito sagrado era executado atraveacutes do poema E

natildeo se pode liberar o sentido das palavras (enigmaacuteticas) e falar o

que foi dito Pois este poema eacute algo estranho (xeacutenē) e enigmaacutetico

(ainigmatōdes) para os homens Orfeu mesmo entretanto natildeo

46

desejou falar eriacutesticos enigmas (esriacutest‟ainiacutegmata) mas as grandes

coisas em enigmas (en ainiacutegmasin degrave megaacutela) De fato ele profere

um discurso sagrado (hierologeicirctai) da primeira palavra ateacute o

acabamento do poema Como ele torna claro em um bem

reconhecido verso pois tendo lhes ordenado bdquocolocar portas nos

ouvidos‟ ele afirma que natildeo legisla para os muitos [mas que

ensina] agravequeles de ouvidos puros e no verso seguinte

(Derveni Papyrus Col VII)11

O exegeta justifica a aparecircncia enigmaacutetica do poema atribuiacutedo a Orfeu pelo poder

de velamento das imagens expressas na composiccedilatildeo Os deuses permitem (themitaacute) que os

salutares discursos sagrados (hieroi loacutegoi) sejam ouvidos pelos ldquomuitosrdquo em funccedilatildeo de sua

incapacidade de decifrar-lhes o sentido subjacente A razatildeo para isso eacute ao mesmo tempo

ritual jaacute que o poema eacute associado a accedilotildees ritualiacutesticas e iniciaacutetica pois a purificaccedilatildeo do

ouvir pressupotildee um ensino e a transmissatildeo de um exerciacutecio de atribuiccedilatildeo de significaccedilatildeo agraves

imagens exerciacutecio interdito aos natildeo-iniciados A alusatildeo agrave sauacutede intriacutenseca aos versos

sugere um papel terapecircutico e purificatoacuterio neste exerciacutecio exegeacutetico

A iniciaccedilatildeo jaacute se anuncia aqui como modalidade de exerciacutecio ritual interpretativo

terapecircutico e cataacutertico para a inteligecircncia das grandes coisas Essa inteligecircncia conduz a

uma diferenciaccedilatildeo a um plano superior ser iniciado eacute mudar de estatuto atraveacutes da

inteligecircncia das questotildees mais elevadas que se contrapotildee agrave disputa eriacutestica contrafaccedilatildeo da

polissemia imageacutetica Natildeo obstante o falseamento natildeo se delimita somente agrave

inteligibilidade das grandes coisas mas agrave distinccedilatildeo dos princiacutepios que determinam o

emprego da eficaacutecia ritual e da finalidade de seu uso (TSANTSANOGLOU 2006 p 130)

Na coluna VI os maacutegoi exercem uma accedilatildeo eficaz sobre os daiacutemones almas vingadoras

atraveacutes da encantaccedilatildeo (epōidḗ) sacrifiacutecios e libaccedilotildees Os myacutestai usam os mesmos

11 Texto estabelecido por Tsantsanoglou com traduccedilatildeo ligeiramente modificada (2006 p 130)

47

procedimentos que os maacutegoi mas como seus princiacutepios de accedilatildeo satildeo opostos12

os

sacrifiacutecios endereccedilam-se agrave manifestaccedilatildeo benevolente das almas servidoras da justiccedila as

Eumecircnides (JOURDAIN 2003 6 p 37-39) O poema inicia-se com a menccedilatildeo

extremamente fragmentaacuteria das Eriacutenias (col I) almas honradas por libaccedilotildees marcas

honoraacuteveis de honra feitas atraveacutes de holocaustos de paacutessaros harmonizados com

muacutesica13

Todavia a eficaacutecia da encantaccedilatildeo maacutegica contraposta agraves honras dos sacrifiacutecios e

libaccedilotildees executadas pelos myacutestai se depara com limites coacutesmicos infrangiacuteveis

A correta interpretaccedilatildeo do poema eacute reforccedilada pela necessidade de se evitar o engodo

dos usurpadores dos procedimentos rituais e discursos sagrados e para a distinccedilatildeo entre o

caminho das almas vingadoras e o caminho das Eumecircnides servidoras benevolentes da

Justiccedila O comentador de Derveni consigna a Orfeu a inteligecircncia da ordenaccedilatildeo coacutesmica e

sua expressatildeo cifrada em imagens miacuteticas narradas num poema escrito Como afirma

Obbink (LAKS 1997 p 42) a narrativa do mundo de Orfeu entendida corretamente

(orthōs) espelha nosso koacutesmos O autor pressupotildee o fato de que Orfeu possuiacutea uma

12 Bernabeacute assimila os magos mencionados na Col VI aos sacerdotes persas e confere uma interpretaccedilatildeo

pejorativo agrave sua atividade encantatoacuteria como charlatatildees que operam artifiacutecios com a finalidade de expiar

antigas faltas Betegh ao contraacuterio assume que o autor de Derveni aplica o temo bdquomaacutegoi‟ a um grupo de

sacerdotes persas ao qual ele mesmo pertence (TSNATSANOGLOU 2006 p 166 167) Fabienne Jourdain

(2003 p 37) associa os Maacutegoi a uma tribo meda composta por uma casta sacerdotal encarregada de assegurar a regularidade dos procedimentos em mateacuteria religiosa e que seria subjugada pelo rei Cambises e

posteriormente perseguida por Dario Segundo Apuleius ldquoum mago eacute algueacutem que mediante a comunidade

de fala com os deuses imortais possui um incriacutevel poder de encantar qualquer coisa que desejarrdquo (GRAF

apud MIRECKI MEYER 2002 p 93) No papiro de Derveni o comentador segue uma tradiccedilatildeo que atribui

ao substantivo o sentido pejorativo de ldquocharlatatildeordquo Os praticantes de ritos propiciatoacuterios e foacutermulas

encantatoacuterias que atraveacutes de pagamento procuravam esconjurar a culpa por transgressotildees satildeo a contrafaccedilatildeo

do genuiacuteno iniciado 13 Eriacutenias eles honram libaccedilotildees satildeo derramadas em gotas para Zeus em cada templo Aleacutem disso deve

oferecer excepcional honra agraves [Eumecircnides] e queimar um paacutessaro para cada [um dos daiacutemones] E ele junta

[hinos] bem adaptados ( ) agrave muacutesica

(TSANTSANOGLOU 2006 p 65 129)

48

inteligecircncia privilegiada das verdades maiores e deliberadamente as expressa

imageticamente em versos enigmaacuteticos

A questatildeo crucial natildeo se reduz ao domiacutenio de uma discussatildeo etimoloacutegica acerca da

natureza da linguagem da sinoniacutemia ou da alegorese nos moldes de um Estesiacutembroto com

o escopo semacircntico de atualizar um discurso miacutetico anacrocircnico e cristalizado pela escrita14

Trata-se sobretudo do desvelamento de uma modalidade discursiva que eacute

intencionalmente aberta agrave polissemia como meio de resguardar um saber iniciaacutetico que

carrega em seu bojo homologias estruturais entre relaccedilotildees de imagens e relaccedilotildees coacutesmicas

causais A exegese do autor de Derveni eacute ao mesmo tempo a transposiccedilatildeo de um pensar

por imagens para uma cosmologia da causalidade e o desvelamento daquilo que eacute oculto (e

interdito aos olhos e ouvidos natildeo adestrados) pelo esforccedilo e pelo exerciacutecio ritual

O poema de Orfeu no enfoque de Obbink se insere num ambiente cultual comum a

uma seacuterie de textos fuacutenebres como as lacircminas de ouro Oacuterficas cujas imagens configuram a

visatildeo do mundo dos mortos associada aos ritos de misteacuterio ldquoNatildeo eacute soacute o texto miacutestico que

possui uma significaccedilatildeo velada mas o mundo como um todo taacute eoacutenta a existecircncia humana

e a morterdquo (LAKS 1997 p 53)

A natureza ama ocultar-se diz Heraacuteclito15

A sabedoria consiste tradicionalmente

no aacuterduo exerciacutecio de conferir sentido agravequilo que se apresenta de forma cifrada ou

enigmaacutetica notadamente a interpretaccedilatildeo das prolaccedilotildees do oraacuteculo de Delfos Eacute sobre este

exerciacutecio praacutetico derivado da instituiccedilatildeo oracular de Delfos que Soacutecrates justifica sua

atividade filosoacutefica A inquiriccedilatildeo socraacutetica consiste na escalada ao piacutencaro secular de uma

14 Para uma descriccedilatildeo panoracircmica do debate contemporacircneo ver o ensaio introdutoacuterio de M S Funghi

(LACKS 1997 ) 15 DK B 123 THEMISTIUS Or 5 p 69 (KAHN

2003 p 63)

49

tradiccedilatildeo erigida sobre a inteligecircncia subjacente aos enigmas do deus O aacutenax cujo oraacuteculo

estaacute em Delfos natildeo diz nem oculta daacute sinal16

O discurso divino caracteriza-se pela

oposiccedilatildeo entre a fala manifesta e a inteligibilidade oculta A investigaccedilatildeo do sinal aparente

consiste na hyponoacuteia o desvelamento do sentido oculto da inteligecircncia inevidente que

subjaz agrave manifestaccedilatildeo visiacutevel A autecircntica obediecircncia ao deus consiste em investigar a si

mesmo (DK 101) em replicar a indagaccedilatildeo paradigmaacutetica de Soacutecrates em sua defesa o que

fala enfim o deus e qual eacute afinal o sentido oculto (ainiacutettetai17

)

O discurso divino (heiroacutes loacutegos) possui um modo enigmaacutetico proacuteprio de expressatildeo

que exige o recurso de imagens cifradas Qual eacute a relaccedilatildeo entre o manifesto e o invisiacutevel

Por que aquilo que natildeo estaacute presente ao olhar possui primado em relaccedilatildeo ao imediato Por

que buscar a inteligibilidade no oculto Por que o inevidente se assimila ao divino e por que

o discurso sagrado se expressa na plurivocidade das imagens e natildeo na literalidade da

palavra

O comentador de Derveni associa a natureza coacutesmica com o regramento e a

infrangibilidade dos limites divinos estabelecidos nas leis da phyacutesis Daiacutemones e Eriacutenias

satildeo almas psyacutekhai potecircncias invisiacuteveis servidoras da Justiccedila Diacuteke aparece como a

retribuiccedilatildeo infaliacutevel para a transgressatildeo aos limites coacutesmicos garantida por potecircncias

invisiacuteveis servidoras O viacutenculo inquebrantaacutevel entre transgressatildeo e retribuiccedilatildeo eacute

assegurado pela funccedilatildeo de vigilacircncia das almas A inteligecircncia apanaacutegio psiacutequico tem na

vigilacircncia da causalidade um princiacutepio constitutivo primordial Por essa razatildeo o

16 B 93 PLUT de Pyth or 21 p 404

Disponiacutevel em lthttppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics22-B92gt 17 Apologia 21b 04 (LEXICON I 2003)

50

comentador menciona o fragmento mais antigo de Heraacuteclito qualificando seu estilo

gnocircmico ao modo dos mitoacutelogos que falam por imagens

aquele que ltmudagt o que eacute estabelecido dar Ele

(Heraacuteclito) que precisamente se assemelha aos contadores de mitos

quando se exprime assim o sol segundo sua proacutepria natureza

possui a largura de um peacute humano natildeo ultrapassaraacute suas

medidas pois se ele excede sua proacutepria largura em algum grau as

Eriacutenias o descobriratildeo auxiliares de Diacuteke

(Col IV)18

Os maacutegoi procuram eludir transgressotildees de crimes passados atraveacutes de encantaccedilotildees

e sacrifiacutecios Mas as coisas estabelecidas (keiacutemena) natildeo podem ser modificadas Haacute uma

correlaccedilatildeo entre as leis coacutesmicas e as consequecircncias das accedilotildees humanas pois as mesmas

potecircncias invisiacuteveis asseguram o viacutenculo A apreensatildeo da inteligibilidade coacutesmica eacute parelha

agrave compreensatildeo das implicaccedilotildees psiacutequicas desencadeadas pela praacutexis O koacutesmos brota das

disposiccedilotildees da ordenaccedilatildeo (taacutexin) e natildeo do acaso A mesma Justiccedila que o regra impotildee

limites para o agir humano A referecircncia a Heraacuteclito indica que o campo da ascensatildeo

iniciaacutetica eacute simultaneamente cosmoloacutegico e eacutetico e faz parte da mesma tradiccedilatildeo da qual

emerge o ambiente mental dos preacute-socraacuteticos

Na sua abordagem estrutural-historicista sobre a formaccedilatildeo do pensamento positivo

grego Vernant sublinha o considera uma ldquomutaccedilatildeordquo mental operada pelos filoacutesofos

jocircnicos enquanto a loacutegica do mito hesioacutedico possui a ambiguidade de apreender

simultaneamente o mesmo fenocircmeno como fato natural no mundo visiacutevel e como geraccedilatildeo

divina no tempo primordial os elementos da Filosofia jocircnica seriam despojados de todo

caraacuteter antropomoacuterfico (VERNANT 2002 p 449 ss) Os elementos da Filosofia mileacutesia

18

(JOURDAIN 2003 v 6-10 p 4)

51

satildeo ao mesmo tempo ldquoforccedilasrdquo ativas divinas e naturais Embora o koacutesmos seja uma

ordenaccedilatildeo divina a causalidade jaacute natildeo eacute personificada mas delimitada e abstraiacuteda na

consecuccedilatildeo de efeitos fiacutesicos determinados Haveria uma mudanccedila de registro explicar e

compreender natildeo seriam mais encontrar a genealogia mas os princiacutepios primeiros

constitutivos do ser que implicam regularidade e ordenaccedilatildeo e que fazem com que koacutesmos

seja verdadeiramente um ldquoarranjordquo O historicismo marxista de Vernant comprometido

com a concepccedilatildeo de progresso ofusca a possibilidade hermenecircutica da coexistecircncia entre

planos polissecircmicos abertos que satildeo compartilhados por uma tradiccedilatildeo ritual iniciaacutetica e pela

exegese filosoacutefica que natildeo deixa de ser iniciaacutetica e ritual na praacutexis de um biacuteos

Na mudanccedila de registro operada por Heraacuteclito em particular as potecircncias divinas

satildeo despojadas de seu caraacuteter antropomoacuterfico e os nomes se revestem da sobriedade que

origina um vocabulaacuterio ontoloacutegico novo (RAMNOUX 1968 p 1-9) Mas o caraacuteter

indiferenciado do deus permanece no pensamento filosoacutefico

O deus dia noite inverno veratildeo guerra paz saciedade fome Ele

muda como se misturado a perfumes eacute nomeado segundo o gosto

de cada um

DK 67 (KAHN 2003 p 105)

Qual eacute o papel do fogo nesse cenaacuterio mental O que o dieferencia dos esquemas miacuteticos

hesioacutedicos Qual a relaccedilatildeo do fogo com os incensos Tal como o oacuteleo serve de meio neutro

para o perfume e recebe o nome do aroma o incenso evola-se do fogo e recebe o nome do

aroma do qual eacute constituiacutedo Nomeia-se o incenso natildeo pelo fogo mas pelo nome do

perfume que evola-se Deus da mesma maneira estaacute presente em tudo segundo as estaccedilotildees

e os dias mostrando-se sem cessar pelas contradiccedilotildees que compotildeem o drama da vida O

homem esquece-se do elemento que serve de base para todas as transformaccedilotildees que

compotildeem esse drama e nomeia cada aspecto segundo seu gosto (RAMNOUX 1968 P 377

52

ss) Para Heraacuteclito a coexistecircncia dos pares de opostos mostra aspectos multifacetados do

Um indistinto modos de contrariedade que manifestam um cosmo divino e um deus

presente em toda a physis Cada par de opostos constitui uma porccedilatildeo do Loacutegos divino

Quando se mistura uma multiplicidade de arocircmatas e se lhes atira ao fogo haacute

simultaneamente uma multidatildeo de perfumes e um uacutenico e indistinto fogo Do mesmo

modo haacute uma divindade e muitos nomes

Conforme observa Kahn o fragmento conteacutem a uacutenica definiccedilatildeo da divindade nos

fragmentos atribuiacutedos a Heraacuteclito A primeira parte do fragmento descreve a divindade em

termos formais mediante pares de opostos O texto sugere uma unidade coacutesmica que

ultrapassa a concepccedilatildeo tradicional da divindade Guerra e fogo satildeo designaccedilotildees de um

princiacutepio universal de ordem e justiccedila que eacute sobre-divino e coincide com o Um o princiacutepio

supremo que governa o koacutesmos e nutre todas as leis humanas (DK 114) O divino ldquoumrdquo eacute o

princiacutepio unificador representado pela guerra e pelo fogo eterno identificado com o

koacutesmos e que eacute o mesmo para todos os seres aceso com medida e com medida apagado19

(KAHN 2003 p 182-192) Deus eacute definido e identificado com os pares de opostos e

representa a unidade e a regularidade de um padratildeo de alternacircncia e de interdependecircncia

entre todos os opostos A identificaccedilatildeo da divindade com o padratildeo de alternacircncia entre

opostos determina a ordenaccedilatildeo coacutesmica Em Heraacuteclito a divindade eacute o que haacute de

regularidade nas manifestaccedilotildees infinitamente variegadas da Natureza eacute o princiacutepio de

ordenaccedilatildeo o Loacutegos que eacute tambeacutem o princiacutepio de unificaccedilatildeo que estaacute para aleacutem da

divindade tradicional hesioacutedica Na Filosofia de Heraacuteclito a causalidade eacute a relaccedilacirco

inexoraacutevel dos opostos que se alternam e a inteligecircncia teacutecnica eacute tatildeo somente uma

19

DK30

(KAHN 2003 p 73)

53

manifestaccedilatildeo particular de uma inteligecircncia coacutesmica universal ndash limite intransponiacutevel que

determina as ldquomedidas do fogordquo O koacutesmos eacute uma estrutura que abarca simultaneamente

todos os opostos como manifestaccedilatildeo de um padratildeo uacutenico o fogo que se mistura a incensos

Tal estrutura eacute um arranjo inteligente um Loacutegos metaforicamente expresso pelo fogo

O fogo segundo Charles Kahn (2003 p 138) eacute um siacutembolo de vida de vida sobre-

humana visto que eacute um elemento no qual nenhum ser vivo pode viver Aleacutem disso eacute um

poder que recebe os mortos na morte Representa simultaneamente a vida a criatividade a

morte e a destruiccedilatildeo Como fogo sacrificial ele representa o deus Ele eacute o elemento divino

inscrito na atividade humana que possibilita as teacutecnicas e a induacutestria que separam o homem

dos animais O fogo natildeo eacute um elemento material Eacute um processo de transiccedilatildeo de um estado

para outro um siacutembolo vivo da mudanccedila da vida e da morte do movimento e da

inteligecircncia criativa Em Heraacuteclito o fogo eacute o elemento do paradoxo As reversotildees do fogo

(DK 31) satildeo concebidas como medidas de um ciclo tal como a medida do pecircndulo

Para Anaximandro a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo pagam mutuamente as injusticcedilas

segundo a ordenaccedilatildeo do tempo ou seja a retribuiccedilatildeo eacute paga de acordo com a ordem do

tempo20

Princiacutepio dos seres o ilimitado pois o que eacute a geraccedilatildeo

para os seres a corrupccedilatildeo eacute para estes ao se gerar segundo o

necessaacuterio pois datildeo justiccedila a si mesmos e pagamento uns aos

outros pela injusticcedila segundo a ordenaccedilatildeo do tempo21

Heraacuteclito concebe a noccedilatildeo coacutesmica de trocas como um padratildeo de justiccedila segundo a

qual nada ocorre sem a justa retribuiccedilatildeo ou pagamento O princiacutepio que rege todo processo

20

(B 1 SIMPLIC Phys 24 13) Disponiacutevel

em lthttppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics12-Bgt 21 Trad de Cavalcante de Souza modificada (2000 p 50)

54

de mudanccedila eacute a justa retribuiccedilatildeo que ocorre segundo um criteacuterio em ldquomedidasrdquo Isso

significa que a estrutura coacutesmica eacute mantida pela causalidade como princiacutepio de ordenaccedilatildeo

A ldquomedidardquo que rege as trocas eacute preservada sobre uma sequumlecircncia de estaacutegios em uma

progressatildeo temporal que retorna ao ponto inicial do ciclo As medidas de igualdade satildeo

rigorosamente respeitadas pela retribuiccedilatildeo A noccedilatildeo de Justiccedila abarca natildeo somente a praacutexis

eacutetico-poliacutetica mas enraiacuteza-se na forja que molda laboriosamente a noccedilatildeo multifacetada da

causalidade Como afirma Vlastos (1947 p 146) o campo de aplicaccedilatildeo da palavra justiccedila

vai muito aleacutem da esfera legal e moral

Respeitar a natureza de algueacutem ou de algo eacute ser ldquojustordquo

com eles Piorar ou destruir a natureza eacute ldquoviolecircnciardquo ou

ldquoinjusticcedilardquo Assim em uma passagem bem conhecida Solon fala

do mar como o ldquomais justordquo quando imperturbaacutevel pelos ventos

natildeo perturba a ningueacutem ou a nenhuma coisa A lei da medida natildeo eacute

nada mais do que um refinamento desta ideacuteia de que a proacutepria

natureza de algueacutem e a natureza dos outros possuem limites que

natildeo podem ser ultrapassados

A justiccedila coacutesmica eacute uma concepccedilatildeo da natureza em geral

como associaccedilatildeo harmocircnica cujos membros observam ou satildeo

compelidos a observar a lei da medida Pode haver morte e

destruiccedilatildeo oacutedio e ateacute mesmo corrupccedilatildeo (como em Anaximandro)

Haacute justiccedila natildeo obstante se a usurpaccedilatildeo eacute invariavelmente

reparada e as coisas satildeo reinstaladas em seus limites proacuteprios

A causalidade em Heraacuteclito adquire um estatuto eminente de lei soberana que

cinge e preside a ordenaccedilatildeo coacutesmica O princiacutepio de regramento unificador pressupotildee as

concepccedilotildees de ldquomedidardquo ldquoigualdaderdquo ldquoequivalecircnciardquo ldquocompensaccedilatildeordquo ldquoproporccedilatildeordquo e

serve como fonte nutriz para as atividades humanas Na cosmologia de Heraacuteclito o fogo

teacutecnico eacute apenas uma fagulha do fogo coacutesmico a inteligecircncia humana assimila-se ao ciclo

coacutesmico divino e a Natureza permanece como fronteira divina intransponiacutevel

salvaguardada pelas Eriacutenias servas da Justiccedila

55

A causalidade no papiro de Derveni entremeia o plano das imagens miacuteticas

teogocircnicas com a significaccedilatildeo inevidente propiciada pela exegese cosmoloacutegica A eficaacutecia

das praacuteticas rituais dos maacutegoi atua como violaccedilatildeo entre a conexatildeo inquebrantaacutevel entre

falta e retribuiccedilatildeo excesso e compensaccedilatildeo O adivinho encantador eacute o intermediaacuterio

privilegiado entre o visiacutevel e o invisiacutevel entre o sacrifiacutecio violento e a puniccedilatildeo invisiacutevel

evitada A divisatildeo entre as imagens imediatas do poema e a interpretaccedilatildeo do seu sentido

oculto traz ao primeiro plano o conhecimento das causas e a legitimidade da transmissatildeo

Haacute uma homologia estrutural entre a transmissatildeo iniciaacutetica do ritual de misteacuterio e a

transmissatildeo iniciaacutetica de uma cosmologia que deve ser necessariamente misteriosoacutefica O

segredo consiste numa garantia contra a usurpaccedilatildeo do viacutenculo inexoraacutevel entre o longo

esforccedilo exigido pela via iniciaacutetica e a compreensatildeo das grandes verdades enigmaacuteticas que

soacute pode surgir como apanaacutegio de uma conquista de um estatuto superior de uma praacutetica de

vida concomitante agrave investigaccedilatildeo dos princiacutepios do koacutesmos

O sentido oculto pressupotildee um processo de conhecimento que se origina a partir de

imagens e signos provisoacuterios cujo papel deve ser o de remeter o inteacuterprete treinado para

realidades invisiacuteveis inevidentes

Por que natildeo crecircem (apistoucircsi) nas coisas terriacuteveis (deinagrave)

que os esperam no HadesSe natildeo compreendem (gignōskontes)

imagens oniacutericas (enyacutepnia) nem nenhuma outra de suas

manifestaccedilotildees praacuteticas particulares (tōn aacutellōm pragmaacutetōm

heacutekaston) por meio de que paradigma (paradeigmaacutetōm) se faria

com que cressemPois aqueles que tendem para a falta e os

prazeres que prevalecem nem aprendem nem crecircem (ou

manthaacutenousin oudegrave pisteuacuteousi) Pois incredulidade e ignoracircncia

satildeo o mesmo De fato se nem aprendem nem compreendem natildeo

haacute como crer ainda que vendo22

(Col V)

22 Trad de Fabienne Jourdain com modificaccedilotildees (2003 p 5 35-36)

56

As imagens oniacutericas (aquilo que eacute interno aos sonhos) configuram pontos de partida

para o conhecimento de accedilotildees Assim como a teleacutestica exige a transmissatildeo de um saber o

conhecimento das leis coacutesmicas exige a passagem da apreensatildeo das imagens manifestas

para a compreensatildeo de semelhanccedilas de homologias entre planos muacuteltiplos de significaccedilatildeo

discursiva e o koacutesmos A atividade exegeacutetica do comentador evidencia que o conhecimento

eacute intrinsecamente dependente de paradigmas imageacuteticos Aprender e compreender satildeo

diferentes de crer e incredulidade e ignoracircncia assimilam-se mutuamente pois a crenccedila eacute

um passo imprescindiacutevel tanto para aprender como para compreender Ademais o maior

obstaacuteculo para o aprendizado e para o conhecimento consiste na vitoacuteria dos prazeres Se o

conhecimento implica a transposiccedilatildeo de imagens ao mesmo tempo aparentes e

enigmaacuteticas para a inteligecircncia inaparente os prazeres induzem ao erro porque subjugam

vencem e impedem o aprendizado e a crenccedila na prisatildeo ao manifesto imediato Vencer a

tirania dos prazeres imediatos constitui o princiacutepio ritual para o conhecimento das grandes

verdades daiacute a inextricabilidade entre o sentido simboacutelico o segredo e o conhecimento

A palavra syacutembolon natildeo eacute atesta Burkert (1972 p 179) uma adiccedilatildeo da tradiccedilatildeo

tardia mas reflete uma concepccedilatildeo preacutevia a toda e qualquer exegese ldquosimboacutelicardquo Todos os

misteacuterios possuem segredos (apoacuterrēta) e palavras de passe secretas (syacutembola synthḗmata)

interpretados em um discurso sagrado (hierograves loacutegos) cujo sentido natildeo deve ser revelado

aos natildeo-iniciados

No domiacutenio da religiatildeo de misteacuterio satildeo bdquopalavras

de passe‟ ndash foacutermulas especificadas ditos (encantaccedilotildees)

dadas ao iniciado que asseguram por meio de seus confrades e

especialmente pelos deuses que seu novo e especial estatuto seja

reconhecido (BURKERT 1972 p 176)

57

No papiro de Derveni o exegeta indica a necessidade preacutevia de ldquocolocar portas nos

ouvidosrdquo pois Orfeu natildeo teria instituiacutedo leis para os muitos mas para aqueles cujos

ouvidos foram purificados (JOURDAIN 2003 p 44-45)

A teogonia escrita segue pari passu agrave cosmologia que emerge da interpretaccedilatildeo das

imagens Zeus recebe de seu pai a soberania ou a potecircncia (tegraven arkhḗn) como um filho

sucede ao pai (Col IX) A engendraccedilatildeo e a transferecircncia da forccedila sugerem a moldagem

coacutesmica a partir de princiacutepios e potecircncias primordiais O fogo possui a potecircncia de afastar

os seres e impedi-los de se combinar por causa do aquecimento Os seres aquecidos natildeo

podem juntar-se em massas compactas A nutriz dos deuses Niacutex possui a funccedilatildeo oracular

da profecia equivalente miacutetico do ensino da instruccedilatildeo foneacutetica que se vale da palavra

como meio de transmissatildeo (Col X) A fala articulada exige a faculdade foneacutetica como

mediaccedilatildeo necessaacuteria para o ensino A potecircncia profeacutetica da Noite indica a projeccedilatildeo

temporal da sua ldquoinstruccedilatildeordquo das regras mediadas pelo princiacutepio material Predizer equivale

a ensinar ou transmitir regramento Assim a Noite inscreve instruccedilatildeo no movimento

desencadeado pelo fogo e exerce uma accedilatildeo de resfriamento oposta ao aquecimento preacutevio

A disjunccedilatildeo operada pelo fogo eacute seguida pela combinaccedilatildeo propiciada pelo

aquecimento Sol e Noite satildeo potecircncias opostas de separaccedilatildeo e combinaccedilatildeo aquecimento e

resfriamento Os oraacuteculos da Noite satildeo proferidos das profundezas de santuaacuterio (aacutedyton)

impenetraacutevel (Col XI) As instruccedilotildees regradas satildeo fixas e interditas aos olhos profanos

pois a impenetrabilidade noturna eacute a imagem estaacutetica que se contrapotildee agrave periodicidade da

luz solar penetrante O proferimento oracular possui a finalidade de preservar as leis

(theacutemis) fixas que regem as profundezas dos seres a sua natureza oculta que faculta aos

myacutestai a capacidade de previsatildeo futura acerca das combinaccedilotildees e disjunccedilotildees das partiacuteculas

58

A Noite primordial exerce seu poder sobre o nevado Olimpo (Col XII) cuja

luminosa altitude e frieza satildeo assimiladas ao tempo cronoloacutegico A altitude e a largura

constituem grandezas polarizadas que simbolizam o regramento cronoloacutegico e o

regramento espacial identificado com o horizonte celeste O poder causal da Noite instaura

medidas no tempo-espaccedilo no qual se desenrolam as combinaccedilotildees e separaccedilotildees das

partiacuteculas Mas a potecircncia coacutesmica da geraccedilatildeo e soberania eacute identificada com a potecircncia

sexual

() o genital (aidoicircon) engoliu aquele que no eacuteter jorrou

primeiro Mas jaacute que em todo o poema ele recorre a enigmas para

falar das coisas pragmaacuteticas eacute necessaacuterio falar de cada verso

Vendo que os homens por haacutebito consideravam que a geraccedilatildeo

reside nos genitais (em toicircs aidoiacuteois) ele utiliza esse nome e como

eles consideravam que sem os genitais natildeo haacute geraccedilatildeo ele usa essa

palavra assimilando o sol ao genital De fato sem o sol natildeo eacute

possiacutevel que os seres venham a ser tais como satildeo ()

(Col XIII)23

Como observa Claude Calame (LAKS 1993 p 67 ss) na literatura grega aidoicircai

designa a genitaacutelia masculina ou feminina as vergonhas Os genitais satildeo a expressatildeo da

potecircncia geradora e a soberania coacutesmica assimila o poder de geraccedilatildeo em si mesma atraveacutes

da sequecircncia de accedilotildees na qual Zeus engole o pecircnis (aidoicircon) a proacutepria imagem da potecircncia

identificada com o sol O poder procriador manifesta-se na ambiguidade enigmaacutetica do

substantivo masculino aidoicircos que designa o genital masculino mas que pode ter tambeacutem

o sentido ativo de respeitoso e o sentido passivo de veneraacutevel (RAMNOUX 1968 p 97)

O princiacutepio procriador responsaacutevel pela geraccedilatildeo de todos os seres encontra no sol a

venerabilidade celeste da qual brotam as realidades que vecircem agrave luz Zeus por separaccedilatildeo

jorra no ar da brancura e brilho do resplandecente Kronos engendrado a partir do sol e da

23 Trad Fabienne Jourdain com modificaccedilotildees (2003 p 13)

59

Terra pelo choque das partiacuteculas umas com as outras (col XIV) Kronos aquele que choca

identifica-se com o Noucircs a Inteligecircncia que choca as partiacuteculas entre si Ouranos filho de

Euphroneacuteia a Noite eacute destituiacutedo da realeza pelo choque dissociativo empreendido pelo

Intelecto

A potecircncia procriadora inteligente associa a colisatildeo de partiacuteculas coacutesmicas com a

propriedade primordial da inteligecircncia de separar e discriminar A justaposiccedilatildeo do sol no

centro coacutesmico implica a transferecircncia da soberania para Zeus que possui a inteligecircncia

astuciosa Meacutetis Agrave segregaccedilatildeo e poder gerador do genital ajunta-se a inteligecircncia projetiva

astuciosa As realidades originam-se do genital coacutesmico e o Protogoacutenos eacute rei veneraacutevel

(aidoucirc) engendrado a partir de partiacuteculas eternas Toda a geraccedilatildeo coacutesmica pressupotildee o

concurso simultacircneo da potecircncia procriadora e do Noucircs Inteligecircncia primordial ldquoO

Intelecto eacute rei de todas as coisasrdquo As imagens cosmoloacutegicas forjadas pela exegese

simboacutelica satildeo consonantes com as concepccedilotildees pitagoacutericas de Filolau de Croacutetona

ndash E existem quatro princiacutepios do animal racional tal como Filolau

diz no ldquoDa Naturezardquo ceacuterebro coraccedilatildeo umbigo e os genitais A

cabeccedila eacute a sede do intelecto o coraccedilatildeo da alma e da sensaccedilatildeo o

umbigo do enraizamento e do primeiro crescimento os genitais da

emissatildeo de sementes e da geraccedilatildeo O ceacuterebro conteacutem o princiacutepio

do homem o coraccedilatildeo princiacutepio dos animais o umbigo o princiacutepio

das planta os genitais o princiacutepio de todos os seres vivos Pois

todas as coisas crescem e florescem das sementes F13 ndash

Theologumena arithmeticae 25 17

O acervo imageacutetico que associa o princiacutepio causal da geraccedilatildeo aos genitais eacute

onipresente na mentalidade grega na qual coexistem os cultos iniciaacuteticos e a Filosofia

cosmoloacutegica preacute-platocircnica A polissemia aberta suscita a questatildeo de que a vergonha eacute um

afeto primordial constitutivo Tal afeto irrompe da exposiccedilatildeo agrave visatildeo do devir derivado da

accedilatildeo sexual vinculada agrave luz solar fecundante Este viacutenculo entre enigma desvelamento e

vergonha tambeacutem eacute encontrado em Heraacuteclito (KAHN 2009 p 103)

60

Natildeo fosse Dioniso pelo qual marcham em procissatildeo e

cantam o hino ao falo suas accedilotildees poderiam ser vergonhosas Mas

Hades e Dioniso satildeo o mesmo por quem deliram e celebram a

Lenaia

(DK 15)

O jogo de oposiccedilotildees entre o poder procriador do falo e a morte entre a exposiccedilatildeo

vergonhosa e o invisiacutevel aideacutes justificam o canto ritual aidō que reclama exegese

filosoacutefica Dioniso e Hades satildeo o mesmo O deus da potecircncia sexual do transe e do

entusiasmo baacutequico eacute o mesmo deus da morte do invisiacutevel e das terriacuteveis puniccedilotildees que

aguardam os impuros no mundo dos mortos A potecircncia criadora do falo vergonha implica

a identidade com a inevitaacutevel morte com a retribuiccedilatildeo invisiacutevel e infaliacutevel A exposiccedilatildeo

vergonhosa manifesta implica a inexorabilidade oculta da retribuiccedilatildeo Vergonha e puniccedilatildeo

satildeo dois aspectos de uma identidade aidoacutes e diacuteke causalidade soberana salvaguardada

pelas Eriacutenias servas da Justiccedila

61

II - O MITO DO PROTAacuteGORAS teacutekhnai aidōs e diacutekē

Oacute Soacutecrates ele disse eu natildeo me recusarei mas por qual dos dois

modos o do mais velho que fala para com os mais jovens

demonstrando um mito ou narrando em detalhe por um discurso

(Protaacutegoras 320c02-04)24

O bom conselho que configura a preferecircncia (eubouliacutea) imbrica simultaneamente a

narrativa bem demonstrada e a argumentaccedilatildeo razoaacutevel Quando se trata da escolha

prudente a boa ordenaccedilatildeo do querer precede a boa ordem no agir e no falar (kaigrave praacutettein

kaigrave leacutegein) O discurso que move o querer se modela na razoabilidade das imagens miacuteticas

pois uma crenccedila soacute eacute verossiacutemil atraveacutes da ordenaccedilatildeo do loacutegos

O que explica a desigualdade entre homens iguais no que diz respeito aos dons

naturais para as teacutecnicas e a igualdade poliacutetica entre homens desiguais Como conciliar

estes opostos polarizados Por que o bom conselho concernente agraves teacutecnicas pressupotildee o

conhecimento o ensino e o especialista (dēmiurgoacuten) ao passo que o bom conselho poliacutetico

permite a opiniatildeo de qualquer um A narrativa miacutetica entremeada agrave phroacutenesis propicia a

inteligecircncia multivalente O ponto comum entre as imagens miacuteticas e o loacutegos eacute o seu poder

de invariacircncia pelo qual a presenccedila e realizaccedilatildeo da praacutexis viva remanescem e reaparecem

Tal eacute o caraacuteter primordial do discurso e do mito ambos expressam a invariacircncia no

movimento e tal como o divino natildeo constituem um apanaacutegio humano mas algo que se

apresenta como realidade viva Eacute por meio das accedilotildees e do falar que o homem apreende e

modela a sua realidade vivida captando-a natildeo mediante noccedilotildees exclusivamente racionais

mas atraveacutes de imagens que configuram uma inteligecircncia complexa (NUNES SOBRINHO

2008 p 30)

24

62

Natildeo obstante por que Platatildeo consigna uma grande narrativa miacutetica agrave fala de

Protaacutegoras um dos maiores sofistas contemporacircneos de Soacutecrates E por que esse mito

reproduz as imagens antropogecircnicas das narrativas hesioacutedicas Em sua anaacutelise das menccedilotildees

a Hesiacuteodo e Homero no corpus platocircnico Naoko Yamagata (in BOYS-STONES

HAUBOLD 2010 p 67-88) observa que Hesiacuteodo e Homero contribuiacuteram para os mitos

platocircnicos mais do que quaisquer outros poetas Os mitos que emprestam imagens de

Hesiacuteodo satildeo em geral mitos antropogecircnicos O mito do Protaacutegoras em particular cuja

estrutura eacute marcadamente hesioacutedica seria caracteristicamente anti-socraacutetico A tese geral de

Yamagata eacute a de que Hesiacuteodo eacute frequentemente ldquoinvocado como suporte para argumentos

epidecirciticos de natureza duacutebiardquo Haveria uma marcada tendecircncia em alguns diaacutelogos em

contrastar o uso ldquosofiacutesticordquo de Hesiacuteodo com um uso mais caracteristicamente socraacutetico de

Homero

Soacutecrates claramente prefere Homero a Hesiacuteodo mesmo em

diaacutelogos em que ele eacute alvo de ataque (Ion Repuacuteblica)

Ocasionalmente o contraste entre o Homero socraacutetico e o Hesiacuteodo

sofiacutestico ajuda a articular a estrutura global de um diaacutelogo

(Banquete Protaacutegoras) () Os mitos de Platatildeo mais bdquohesioacutedicos‟

tendem a ser estruturados diferentemente daqueles com um forte

sabor homeacuterico estes uacuteltimos satildeo todos narrados por Soacutecrates e

satildeo apresentados como relativamente ambiciosos quanto agrave sua

pretensatildeo agrave verdade Os mitos de Platatildeo mais bdquohesioacutedicos‟ satildeo

postos na boca de outros interlocutores que natildeo Soacutecrates e satildeo

estruturados como entretenimento (Protaacutegoras) jogo (Poliacutetico) ou

meramente verossiacutemil (Timeu) O uacutenico maior mito hesioacutedico

narrado por Soacutecrates eacute apresentado como uma bdquomentira Feniacutecia‟

(YAMAGATA in BOYS-STONES HAUBOLD 2010 p 88)

Embora o levantamento de Yamagata seja sugestivo no que tange ao escopo criacutetico

das narrativas de cunho hesioacutedico a suma cosmoloacutegica do Timeu e do mito do Poliacutetico

possuem uma densidade filosoacutefica de grandeza incompatiacutevel com qualquer desvalorizaccedilatildeo

e soacute satildeo anti-socraacuteticos na medida em que satildeo caracteristicamente platocircnicos Os mitos de

63

julgamento por outro lado satildeo explicitamente vinculados agraves ldquoantigas tradiccedilotildeesrdquo (paacutelai

leacutegetai Feacutedon 63c 06) de misteacuterios e natildeo podem ser identificados somente com a neacutekya

do livro XI da Odisseacuteia

Mesmo a narrativa encenada no Protaacutegoras evoca uma longa cadeia de transmissatildeo

oriunda dos cultos de misteacuterio e valores que compotildeem o ambiente mental grego Giovanni

Casadio (2010 p 3-5) distingue para efeito de anaacutelise os cultos de misteacuterios gregos em

modalidades diversas e salienta especialmente o caraacuteter da transmissatildeo de uma sabedoria

tradicional

Misteacuterios em geral implicam cerimocircnias especiais que satildeo

caracteristicamente esoteacutericas e frequentemente conectadas com o

ciclo anual da agricultura Usualmente eles envolvem o destino de

poderes divinos sendo venerados e a comunicaccedilatildeo de sabedoria

religiosa que habilita o iniciado a vencer a morte Eles eram parte

da vida religiosa geral mas separados do culto puacuteblico que era

acessiacutevel a todos Por essa razatildeo eram tambeacutem chamados ldquocultos

secretosrdquo(aporrēta) () ldquoMisteacuterio propriamente envolve toda

uma estrutura iniciatoacuteria de alguma duraccedilatildeo e complexidade cujo

tipo (e em muitos casos o real modelo) eacute Eleusis O ldquoculto

miacutesticordquo envolve natildeo a iniciaccedilatildeo mas antes uma relaccedilatildeo de

intensa comunhatildeo tipicamente extaacutetica ou entusiaacutestica com a

divindade (ex frenesi Baacutequico ou o kibeboiacute de Cybele) O culto

ldquomisteriosoacuteficordquooferece uma antropologia escatologia e meios

praacuteticos de reuniatildeo individual com a divindade cuja forma

primitiva e original eacute o Orfismo

O mito do Protaacutegoras amalgama elementos diacutespares da tradiccedilatildeo religiosa grega e

por isso aponta para uma composiccedilatildeo ao mesmo tempo argumentativa e narrativa que se

desdobra caracteristicamente numa espeacutecie de bricolage O amaacutelgama de um complexo de

elementos tradicionais dispostos numa sequecircncia de imagens sugere a hipoacutetese de que

Platatildeo como se fora sofista ao mesmo tempo em que fundamenta teses na tradiccedilatildeo rompe

com ela modificando-a atraveacutes de uma nova transmissatildeo re-significada Como afirma

Radcliffe Edmonds ldquouma narrativa dramatiza ldquovaloresrdquo mostrando na perspectiva do

64

narrador o que eacute bom e o que eacute inuacutetil ou maurdquo e salienta que os elementos tradicionais satildeo

evocativos (em vez de descritivos) de associaccedilotildees que ultrapassam o significado imediato

Os desdobramentos desencadeados pela sequecircncia de imagens accedilotildees e caracteres atraveacutes

da estrutura da narrativa carregam em seu bojo significaccedilatildeo para a audiecircncia (CASADIO

2010 p 74-75)

Composta a partir do acervo de imagens da mentalidade grega o mito do

Protaacutegoras eacute um constructo dramaacutetico de Platatildeo seu emprego argumentativo e retoacuterico

encenado pelo ceacutelebre mestre de sabedoria Protaacutegoras emana a fragracircncia acre-doce da

ironia platocircnica A encenaccedilatildeo articula-se com todo aroma irocircnico que permeia o diaacutelogo e

traz em seu bojo a discriminaccedilatildeo platocircnica que visa determinar a especificidade da

Filosofia mediante a cuidadosa separaccedilatildeo e descaracterizaccedilatildeo do ensino sofiacutestico

O mito do Protaacutegoras inicia-se com a afirmaccedilatildeo de uma clivagem no tempo Era um

tempo em que os deuses existiam mas os mortais natildeo25

A existecircncia preacutevia dos deuses

indica natildeo somente um tempo proacuteprio aos deuses mas a natildeo homogeneidade do tempo O

tempo dos mortais eacute essencialmente outro em relaccedilatildeo ao tempo dos deuses Por que o mito

comeccedila com a polarizaccedilatildeo e oposiccedilatildeo entre tempo dos deuses e tempo dos homens A

distinccedilatildeo qualitativa que rompe a homogeneidade esboccedila a concepccedilatildeo de que nem todo

devir nem todo tempo eacute equivalente a outro Haacute o tempo dos deuses o tempo das origens

o tempo forte que antecede o existir da experiecircncia humana e que por seu primado eacute um

tempo paradigmaacutetico exemplar absoluto norteador Retornar ao tempo das origens

implica em encontrar o sentido absoluto para a realidade presente a explicaccedilatildeo e o

25

65

fundamento26

mediante o tempo exemplar para todo o devir27

A explicaccedilatildeo e o sentido satildeo

buscados na origem coacutesmica e antropogocircnica de um Tempo primordial paradigma

absoluto Protaacutegoras funda o relativismo da isonomia e isēgoria28

poliacuteticas no absoluto

referencial do tempo primordial Antes que algo venha a ser seu tempo proacuteprio natildeo pode

constituir um devir o um apoacutes o outro dos phainoacutemena Por isso o tempo poliacutetico comeccedila

na origem das relaccedilotildees que possibilitam a formaccedilatildeo das primeiras poacuteleis e explica como a

praacutexis poliacutetica efetiva veio a instaurar-se

A oposiccedilatildeo entre myacutethos como discurso inverificaacutevel e loacutegos como discurso

atestaacutevel eacute superada no emprego argumentativo do mito e na narraccedilatildeo bem exposta do

argumento Protaacutegoras demonstra causas na narraccedilatildeo do mito e expotildee um argumento em

forma narrativa (myacutethon leacutegōn epideiacutexō ḗ loacutegō diexelthōn)29

A polarizaccedilatildeo opotildee o tempo

absoluto dos deuses ao tempo pereciacutevel e relativo dos mortais Este uacuteltimo soacute encontra a

estabilidade propiciadora da significaccedilatildeo na imutabilidade paradigmaacutetica do primeiro O

26 Mircea Eliade enfoca em vaacuterias obras a homologia estrutural entre o espaccedilo coacutesmico primordial e o tempo

original templum-templus O tempo ab initio das origens coacutesmicas corresponde ao centro do mundo

primordial O nascimento do Koacutesmos eacute tambeacutem o ponto originaacuterio o marco e o princiacutepio do ser e do existir

(ELIADE 1965 p 66 ss) A abordagem simbolista fortemente antropoloacutegica de Eliade identifica o tempo e espaccedilo miacuteticos com a experiecircncia religiosa e com o sagrado por excelecircncia Na transposiccedilatildeo filosoacutefica

platocircnica o mito narrado por Protaacutegoras emprega o retorno agraves origens teacutecnica de evasatildeo do tempo atual para

fundar e conferir significaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de uma experiecircncia poliacutetica e teacutecnica proacutepria agrave democracia

ateniense 27 A cosmogonia eacute modelo exemplar para toda espeacutecie de fabricaccedilatildeo e construccedilatildeo Acrescentemos que a

cosmogonia comporta tambeacutem a fabricaccedilatildeo do tempo Mais ainda assim como a cosmogonia eacute o arqueacutetipo

de toda fabricaccedilatildeo o Tempo coacutesmico que a cosmogonia faz jorrar eacute o modelo exemplar de todos os tempos

ou seja dos Tempos especiacuteficos das diversas categorias existentes (ELIADE 1965 p 69) 28 Berti (1978 p 348) identifica a liberdade poliacutetica com a liberdade de pensamento e expressatildeo que os

atenienses chamavam o ldquoigual direito de fala na assembleacuteia puacuteblicardquo (isēgoriacutea) A liberdade da fala seria uma

decorrecircncia da igualdade dos cidadatildeos perante a lei e um dos aspectos essenciais da democracia ateniense conforme se depreende de Heroacutetodo As forccedilas atenienses cresciam continuamente Poder-se-ia provar de mil

maneiras que a igualdade entre os cidadatildeos e o governo eacute a mais vantajosa () (HEROacuteDOTE V LXXVIII

1850) Claude Mosseacute afirma que os fundamentos da democracia ateniense no seacuteculo V satildeo ldquoa igualdade de

todos perante a lei o direito de todos de tomar a palavra diante da assembleacuteia o que eacute traduzido nos dois

termos frequentemente empregados como sinocircnimo de democracia isonomia e isēgoriacutea (1995 p84) 29 A iniciaccedilatildeo agrave virtude protagoriana inicia-se como observa Beall (1991 p 368) com um mythos que possui

um papel uacutetil na argumentaccedilatildeo Platatildeo ao contraacuterio correlaciona a Filosofia com a passagem pela morte e

seus grandes mitos de julgamento aparecem quase sempre no final dos diaacutelogos

66

tempo-irreversiacutevel devir relativo dos mortais se define atraveacutes do seu correlativo oposto o

paradigma absoluto o tempo-reversiacutevel dos deuses eternos Toda cosmogonia pressupotildee o

referencial absoluto do tempo primordial e do centro coacutesmico (ELIADE 1977 p 29-30)

Quando eacute chegado o tempo fixado pela sorte do nascimento dos mortais os deuses

os modelam a partir da terra misturada ao fogo e de tudo o que se mistura ao fogo

Era um tempo em que os deuses jaacute existiam mas o gecircnero dos

mortais natildeo Quando chegou o tempo de sua gecircnese fixado pelo

destino os deuses os modelaram no interior da terra realizando

uma mistura de terra de fogo e tudo o que se mistura agrave terra Em

seguida quando veio o momento de os trazer para a luz eles

encarregaram Prometeu e Epimeteu de repartir as potecircncias em

cada um deles em boa ordem como conveacutem30

(Protaacutegoras 320d)

Os mortais todos os thnētoi satildeo modelagem divina a partir de princiacutepios fiacutesicos

primordiais mistura de fogo terra e tudo o que a ele se mistura A demiurgia divina se

inscreve na terra com esse fogo primordial compondo uma mistura Em sua gecircnese os

mortais satildeo compostos da mistura de elementos fiacutesicos e inteligecircncia divina na sua

modelagem O divino modela o inanimado mediante a liga primordial entre terra e fogo

movente Seguem-se a partir disso novas oposiccedilotildees terra inanimada e fogo elementos

fiacutesicos destituiacutedos de inteligecircncia e inteligecircncia demiuacutergica dos deuses31

30 Texto estabelecido por A Croiset Traduccedilatildeo de F Idelfonse 31 O esquema da gecircnese dos mortais esboccedilado no mito evoca o fragmento 62 DK de Empeacutedocles

67

Quando chega o momento de trazer os mortais agrave luz (phōs) e distribuir os lotes com

kosmiacutea dois intermediaacuterios polarizados se interpotildeem Prometeu e Epimeteu Os filhos de

Jaacutepeto personificam a previdecircncia luacutecida antecipaccedilatildeo temporal de conexotildees inevitaacuteveis e a

imprevidecircncia cega indeterminaccedilatildeo e desacerto do devir A astuacutecia fulgurante (aioloacutemētis)

se opotildee ao errocircneo pensar (hamartiacutenooacuten)32

O equiliacutebrio entre os opostos exige a

compensaccedilatildeo muacutetua (Feacutedon 71e) Todavia haacute uma inversatildeo de papeacuteis e Epimeteu

astuciosamente persuade a Prometeu para que imprevidentemente delegue toda a tarefa de

distribuiccedilatildeo das potecircncias ao seu duplo miacutetico A distribuiccedilatildeo equilibra potecircncias opostas

nos seres vivos de maneira a assegurar a sobrevivecircncia diante dos perigos muacutetuos e diante

dos perigos naturais Todos os gecircneros de seres equilibram-se e justificam-se em seu

existir A hamartiacutea erro faltoso de Epimeteu resulta em uma aporiacutea a situaccedilatildeo impediente

B 62 SIMPL Phys 381 29

[v1] [I 335 5 App]

[v5]

[I33510App]

SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 381 29

Agora vem e como de homens e mulheres

de muitos prantos

noturnos rebentos trouxe agrave luz separando-

se o fogo destes ouve pois natildeo eacute mito sem

alvo e sem ciecircncia Inteiriccedilos primeiro (os) tipos de terra surgiam

de ambos de aacutegua e de forma brilhante

tendo parte estes fogo faziam subir

querendo ao semelhante chegar

nem ainda de membros amaacutevel forma

mostrando (eles)

Nem voz nem (tal) qual o membro

proacuteprio dos homens

(2000 Trad Joseacute Cavalcante de Souza)

(Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics31-B acessso em 03032010)

Segundo Clemence Ramnoux as operaccedilotildees artesanais constituem o modelo para a criaccedilatildeo as teacutecnicas de

ldquofusatildeo dos metais da combinaccedilatildeo de cores as receitas de panificaccedilatildeordquo configuram as noccedilotildees de ingredientes de mistura de proporccedilatildeo nas misturas e do artesatildeo fabricador Assim como um pintor pode com poucas

cores representar diversas formas de coisas variegadas assim tambeacutem a natureza pode criar todos os seres

naturais com poucos elementos (LONG 1999 p 160) O fogo emerge saltando em direccedilatildeo do Fogo do

alto levando ldquopequenas massas plaacutesticas feitas de terra com uma parte de calor e um lote

umidade Segundo a leitura de Ramnoux este esquema segue o padratildeo 3 + 1 trecircs lotes e um artesatildeo

(1968 p 187 ss) No mito de Protaacutegoras haacute trecircs elementos (terra fogo e elementos que se misturam aos

precedentes) e os deuses como artesatildeos 32 HESIOacuteDO Teogonia 511

68

ameaccediladora o homem no momento mesmo de sair de dentro da terra para a luz estaacute

inteiramente desprovido de capacidades

Eacute estabelecimento fixado pelo destino a saiacuteda do homem do seio da terra para a luz

(exieacutenai ek gḗs eis phōs Protaacutegoras 321c06-07) A ambiguidade da passagem anuncia a

duplicidade do existir humano que pressupotildee a saiacuteda da obscuridade do interior da terra

para a luz No Craacutetilo a personagem de Soacutecrates identifica a claridade seacutelas com a luz

phōs e por essa razatildeo a luz da lua eacute ao mesmo tempo nova e antiga sua luminosidade eacute

ambiacutegua por refletir a luz do sol (409b) A liga divina de fogo que surge para a luz eacute

ambiacutegua pois o estado de carecircncia dos homens anuncia a cataacutestrofe de seu

desaparecimento

A passagem da obscuridade da terra para a luz concatena uma sequecircncia

paradigmaacutetica de imagens e sugere uma mutaccedilatildeo no regime do ser Haacute a transposiccedilatildeo do

natildeo-ser atemporal mediado por uma geraccedilatildeo modeladora ateacute o ser e o devir Essa

sequecircncia eacute exemplar e narra como o homem veio a ser e por essa razatildeo funda e norteia

todo fazer toda praacutexis e todas as instituiccedilotildees poliacuteticas e ciacutevicas Eacute porque o homem foi

gerado por deuses sobrenaturais que a suma de suas condutas e praacuteticas pertence a um

tempo primordial As praacuteticas e instituiccedilotildees possuem sua razatildeo de ser porque na aurora do

tempo humano houve uma sequecircncia primordial de geraccedilatildeo e gestaccedilatildeo A modelagem

primordial constitui um modelo exemplar para todo fazer e toda fabricaccedilatildeo que remetem agraves

gestas operadas pelos deuses para a engendraccedilatildeo do koacutesmos e dos mortais A cosmogonia

primeva representa uma sequecircncia de imagens que configuram a passagem do khaacuteos

tenebroso matriz e Noite para a luz coacutesmica ou a passagem daquilo que natildeo existe o natildeo-

ser para o ser (ELIADE 1959 p 12-21)

69

Quando se trata de iniciar um neoacutefito na praacutexis poliacutetica o mito de emersatildeo e a

antropogonia do seio da terra re-atualiza o itineraacuterio complexo de accedilotildees que configuram a

passagem da obscuridade para a luz do sol A narrativa da criaccedilatildeo dos homens justifica o

ritual de refazer formar de criar uma nova situaccedilatildeo espiritual ou psiacutequica (ELIADE

1957 p 200) As imagens de uma iniciaccedilatildeo apontam para um novo iniacutecio mediante o qual

se anuncia a molda de um modo de ser superior da indistinccedilatildeo desordenada Nas imagens

antropogocircnicas o homem eacute modelado ele natildeo se faz a si mesmo Na origem do tempo

cronoloacutegico haacute uma accedilatildeo demiuacutergica que inscreve ordem em princiacutepios desordenados e

misturados accedilatildeo por conseguinte divina e produto de potecircncias invisiacuteveis Por outro lado

a iniciaccedilatildeo de um neoacutefito pressupotildee uma transmissatildeo operada por mestres de sabedoria

que se vincula e remonta a uma longa cadeia da tradiccedilatildeo ancestral Essa tradiccedilatildeo consolida-

se atraveacutes da transmissatildeo ritual que prepara o neoacutefito para um novo modo de ser mediante a

repeticcedilatildeo de gestas e imagens pertencentes a um cenaacuterio que natildeo pode ser descrito mas

somente narrado e dramatizado (ELIADE 1959 p 20)

O embate de Soacutecrates com o mestre de sabedoria Protaacutegoras dramatiza modos

concorrentes de interpretar e re-significar um acervo de saberes potecircncias crenccedilas afetos e

imagens religiosas em uma transposiccedilatildeo determinante para a mentalidade de um novo

gecircnero de vida e um novo tipo de homem Com isso Platatildeo coloca em questatildeo e em

combate singular transposiccedilotildees antagocircnicas de paideiacutea e paradigmas eacutetico-poliacuteticos para o

novo homem

Protaacutegoras transpotildee as iniciaccedilotildees e oraacuteculos das seitas de misteacuterio praticadas por

Orfeu e Museu para a atividade sofiacutestica33

(Protaacutegoras 316d08) A passagem da noite

trevosa para a luz do sol imagem da emergecircncia para um novo plano de ser eacute doravante

33

70

associada aos mestres de sabedoria cuja aparecircncia ocultava a verdadeira natureza do seu

saber e do seu poder Todas as modalidades de iniciaccedilotildees que conferem a possibilidade de

ascensatildeo aos planos superiores de humanidade satildeo no fim iniciaccedilotildees sofiacutesticas O mito de

retorno agraves origens eacute a fala razoaacutevel que consolida este postulado

A terra gḗ identifica-se com o uacutetero feminino e a gestaccedilatildeo gaicirca seria o nome

correto para geratriz gennḗteira e derivaria de gegennḗsthai ser engendrado (Craacutetilo

410c) A terra eacute matriz paradigmaacutetica para a gestaccedilatildeo e o nascimento

Ora eacute pela terra mais que pela mulher que eacute preciso receber tais

provas pois natildeo eacute a terra que imitou a mulher na concepccedilatildeo e na

gestaccedilatildeo mas eacute a mulher que imitou a terra

(Menexeno 238a 03-05)

A operaccedilatildeo fundidora do fogo com a terra expressa uma relaccedilatildeo solidaacuteria entre a

gestaccedilatildeo e o nascimento a partir da matildee terra e a metalurgia A gestaccedilatildeo ctocircnica constitui o

ato exemplar para a gestaccedilatildeo humana conjugaccedilatildeo solidaacuteria entre a moldagem metaluacutergica e

a sexualidade34

e nesse sentido a antropogonia se conjuga a uma ontogenia (ELIADE

1977 p 30)

Para assegurar a fusatildeo mediante o fogo primordial eacute preciso a intervenccedilatildeo do

artiacutefice vivo a forja dos homens pelo fogo eacute animada pelos deuses Mas as suas potecircncias

advecircm de mediadores que delimitam planos de ser distintos

A imprevidecircncia de Epimeteu suscita a aporiacutea impediente os homens estatildeo

desguarnecidos e desadornados diante do equiliacutebrio kosmeacutetico dos animais sem fala A

distribuiccedilatildeo das potecircncias aos mortais implica a sua determinaccedilatildeo O homem ao contraacuterio

34 Na menccedilatildeo de Simpliacutecio a Empeacutedocles (DK 71) haacute accedilatildeo artesanal operada por Afrodite que se assemelha agrave

de um pintor que mistura cores Terra aacutegua eacuteter e sol satildeo harmonizados numa mistura amorosa da qual

surgem as formas e as cores dos mortais As noccedilotildees de operaccedilatildeo mistura e harmonizaccedilatildeo se conjugam agrave

noccedilatildeo de forma visiacutevel como produto da accedilatildeo artesanal de Afrodite (RAMNOUX 1968 p 188-189) A

conotaccedilatildeo sexual eacute assimilada agrave operaccedilatildeo artiacutestica de mistura e produccedilatildeo de cores e formas visiacuteveis

Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics31-B

71

ndash desprovido de todas as potecircncias ndash eacute indeterminado Para compensar a falta desmedida

de Epimeteu eacute preciso um expediente ao mesmo tempo astucioso e sobrenatural Prometeu

natildeo tendo qualquer salvaccedilatildeo para os homens recorre ao instrumento divino do engenho

mecacircnico e furta o saber teacutecnico e o fogo de Hefestos e Athena35

Hefestos eacute o mestre do fogo e da luz (phaacuteeos hiacutestōr) o Brilhante (Phaicircstos) e

Athena eacute a inteligecircncia divina (Hatheonoacutea) a que tem inteligecircncia das coisas divinas (tagrave

theicirca nooucircsa)36

O domiacutenio do fogo evoca natildeo somente as imagens ligadas agrave inteligecircncia

teacutecnica mas indica a determinaccedilatildeo de um estatuto superior do ser que comporta um

aspecto maacutegico ou sobrenatural intriacutenseco a toda atividade fabricadora O ferreiro divino

portador do fogo aperfeiccediloa a obra dos deuses a organizaccedilatildeo do Koacutesmos e confere ao

homem a inteligecircncia que o distinguiraacute dos animais sem fala e a capacidade de apreender a

ordem coacutesmica (ELIADE 1977 p 65ss)

Prometeu sem ser visto entra oculto (lathōn eiseacuterkhethai) nas oficinas celestes

rouba o fogo e o presenteia aos homens Com isso mediante o saber portado pelo fogo os

homens adquirem as teacutecnicas e os meios para a manutenccedilatildeo da vida e para a proteccedilatildeo

contra as intempeacuteries naturais Se a dimensatildeo demiuacutergica permitiu ao homem superar sua

falta de determinaccedilotildees foi somente mediante as teacutecnicas que o homem descobriu a

possibilidade de agir livremente A eleutheria natildeo eacute um presente dos deuses (Protaacutegoras

312b) O homem soacute pode agir livremente pela capacidade antecipatoacuteria e valorativa

propiciada pelo caacutelculo do mais vantajoso e isso soacute ocorre porque ab initio ele eacute desprovido

de determinaccedilotildees no seu agir Ao contraacuterio dos animais cujo agir eacute preacute-determinado do

35

(Protaacutegoras 321c08-d01) 36 Craacutetilo 407b-c

72

nascimento ateacute a morte o homem eacute essencialmente indeterminado (GALIMBERTI 2009

p 2)

As artes suscitam ainda a demarcaccedilatildeo entre o estatuto divino e humano cuja

natureza ambiacutegua participa ao mesmo tempo do divino e do mortal37

O lote de participaccedilatildeo

e parentesco divino justifica a instauraccedilatildeo miacutetica do sacrifiacutecio e do culto aos deuses

mediante as estaacutetuas oferendas imageacuteticas de joalheria e elevaccedilatildeo de templos O lote de

participaccedilatildeo nos seres mortais determina a especificidade do uacutenico dos vivos zdōion que

pode nomear os deuses pela fala regrada

O esquema causal se esboccedila no mito de Protaacutegoras i) uma falta original a

imprevidecircncia de Epimeteu suscita uma situaccedilatildeo impediente ii) o quadro problemaacutetico

exige a busca da causa e o diagnoacutestico eacute feito por Prometeu iii) o mediador divino

mediante astuacutecia dolosa busca o expediente sobrenatural do fogo iv) o meio astucioso

teacutecnico eacute empregado e a cataacutestrofe remediada por um presente v) um novo estatuto eacute

determinado mas o dolo usurpador reclama nova retribuiccedilatildeo

Embora o saber teacutecnico salvaguarde a equipagem para a sobrevivecircncia natural os

homens natildeo obstante natildeo possuem o saber poliacutetico e a arte da guerra que participa da

poliacutetica Por essa razatildeo incapazes de dominar os instrumentos da guerra sucumbem diante

da forccedila dos animais e procuram agrupar-se em cidades para garantir a seguranccedila muacutetua

Todavia mostram-se igualmente destituiacutedos da philiacutea e acabam por cometer injusticcedilas

destruindo-se mutuamente A carecircncia da arte poliacutetica implica a incapacidade de seguranccedila

e salvaguarda da justiccedila necessaacuterias para a formaccedilatildeo de comunidades e cidades

37

(Protaacutegoras 322a04-08)

73

Todo presente exige o contra-presente a justa compensaccedilatildeo Em Hesiacuteodo o mito de

Prometeu esboccedila a narrativa na qual simultaneamente ocorre a separaccedilatildeo entre plano dos

deuses e o plano dos homens mortais mas tambeacutem entre o masculino e o feminino O

mito de Prometeu eacute tambeacutem o mito da primeira mulher Dom de todos os deuses artefato

moldado e adornado pela inteligecircncia oliacutempica Pandora eacute a contrapartida para a vida e o

fogo biacuteos e pyacuter Anti-pyacuter o contra-presente de Zeus instaura o poacutelo de um novo geacutenos o

feminino que demarca a ambiguidade humana Ao saber teacutecnico previdente e antecipatoacuterio

se contrapotildee a indefiniccedilatildeo dos males indefectiacuteveis e a espera indistinta de elpiacutes a

expectaccedilatildeo exclusivamente humana do bem indeterminado e natildeo dataacutevel38

(VERNANT

2005) Em Pandora equilibram-se o apelo irresistiacutevel do encanto da forma de virgem e da

graccedila determinaccedilotildees essenciais de Afrodite e Athena e a mentira conduta dissimulada e

olhar obliacutequo e traiccediloeiro do catildeo instilados por Hermes (HESIacuteODO 2006 v 59-85)

Mas no mito de Protaacutegoras se haacute uma polarizaccedilatildeo entre Hefestos e Athena opostos

divinos de saber e metalurgia teacutecnicas natildeo haacute por outro lado nenhuma menccedilatildeo a um

paacuterthenos o feminino no plano dos homens Por que Protaacutegoras rompe com a simetria de

contrapartidas da tradiccedilatildeo miacutetica Qual eacute a justa retribuiccedilatildeo para o dolo astucioso de

Prometeu O que estabelece definitivamente a natureza humana apoacutes a instrumentaccedilatildeo do

saber teacutecnico que simultaneamente distingue os homens dos animais e define a separaccedilatildeo

entre o plano dos deuses e o plano dos mortais Hermes mensageiro e arauto divino natildeo

retribui a fraude de ocultaccedilatildeo de Prometeu com a graccedila visiacutevel da mulher e com a

ambivalecircncia da mistura de bens males e incertezas caracteriacutesticos do biacuteos Em vez disso

opera a passagem para um novo plano de mediaccedilotildees

38 Beall (1991 p 367) conecta Elpiacutes com o auto-engano que nega a presenccedila visiacutevel dos males

74

O domiacutenio do fogo as artes metaluacutergicas e demiuacutergicas propiciadas pelo saber

teacutecnico natildeo encontram equivalentes simeacutetricos no plano da natureza Em vez do contra-

presente que estabelece o equiliacutebrio Protaacutegoras amplia a estrutura da narrativa para fundar

no registro da encantaccedilatildeo e do referencial absoluto das origens primordiais um novo plano

que se opotildee agrave natureza a poliacutetica Uma nova sequecircncia de accedilotildees emerge i) a injusticcedila

dolosa decorrente da carecircncia da arte poliacutetica anuncia uma situaccedilatildeo calamitosa ii) a

destruiccedilatildeo suscita a busca das causas e o diagnoacutestico iii) o mensageiro sobrenatural se vale

dos meios divinos astuciosamente forjados iv) os artifiacutecios divinos remediam a situaccedilatildeo

problemaacutetica v) os dolos subsequentes satildeo retribuiacutedos com a lei infaliacutevel de Zeus

Qual eacute a nova compensaccedilatildeo para o roubo oculto de Prometeu Pandora personifica a

ambiguidade feminina da natureza humana numa obra de arte divina concebida para ser

irresistiacutevel ao olhar Ao presente propiciado pela fraude oculta se contrapotildee o presente

concebido para ser visto como bem irresistiacutevel mas que esconde males invisiacuteveis No novo

plano de ser inaugurado por Protaacutegoras agrave fraude oculta se contrapotildee o par de presentes

essencialmente ligados ao olhar de todos aidōs e diacutekē

As accedilotildees de Zeus natildeo se desenrolam num combate singular de astuacutecias retribuiccedilatildeo

da hyacutebris desmedida O temor (deiacutedō) oliacutempico expressa a necessidade de manutenccedilatildeo da

ordem e simetria naturais e justifica a instauraccedilatildeo das condiccedilotildees primordiais para a

existecircncia da comunidade poliacutetica e de seus princiacutepios de determinaccedilatildeo

A sequecircncia de poacutelos opostos eacute homoacuteloga agrave sequecircncia de imagens do mito que

esboccedilam a natureza ontoloacutegica determinante do existir ndash ser ndash dos deuses e o natildeo-ser dos

mortais no princiacutepio os deuses eram e os mortais natildeo Ao par primordial corresponde uma

atividade mediadora que engendra novo par os deuses inscrevem inteligecircncia demiuacutergica

nos elementos primordiais inanimados terra elementos intermediaacuterios para a liga e fogo A

75

passagem do natildeo-ser para o ser eacute homoacuteloga agrave passagem do interior da terra para a luz do

sol imagem paradigmaacutetica da iniciaccedilatildeo

Surge assim a polarizaccedilatildeo entre inteligecircncia divina animada e elementos

inanimados destituiacutedos de inteligecircncia A mistura engendra a polarizaccedilatildeo entre deuses

imortais e seres mortais e instaura a separaccedilatildeo entre o tempo dos deuses e o tempo dos

mortais O regramento ordenado pressupotildee a distribuiccedilatildeo coacutesmica de potecircncias operada por

intermediaacuterios opostos divinos Prometeu e Epimeteu A imprevidecircncia e incapacidade de

antecipaccedilatildeo temporal de Epimeteu se opotildeem agrave astuacutecia engenhosa e antecipatoacuteria de

Prometeu A distribuiccedilatildeo desmedida das potecircncias aos animais salvaguarda a vida natural

mas determina a carecircncia completa de potecircncias para o homem

O estatuto humano estaacute sem lugar na oposiccedilatildeo entre imortais e mortais e a

determinaccedilatildeo exige a intervenccedilatildeo do fogo instrumento astuciosa e ocultamente

intermediado por Prometeu O estatuto humano implica a passagem da obscuridade da terra

para a luz fixada pela necessidade do destino O fogo teacutecnico dolosamente artificiado

permite o acabamento da iniciaccedilatildeo primordial que engendra o ser do homem e compensa a

sua impotecircncia original mas se opotildee ao fogo das forjas oliacutempicas Haacute entatildeo a oposiccedilatildeo

entre uma demiurgia divina que inscreve inteligecircncia no desregramento inanimado e a

demiurgia teacutecnica humana cuja funccedilatildeo eacute instrumental e mediatizada Enquanto a demiurgia

divina cumpre a finalizaccedilatildeo de determinaccedilotildees temporais absolutas a demiurgia humana

instrumentaliza recursos na indeterminaccedilatildeo da temporalidade do devir Ambas operam

iniciaccedilotildees opostas a iniciaccedilatildeo divina traz o homem agrave existecircncia pela saiacuteda do seio escuro

da terra para a luz a iniciaccedilatildeo nas artes humanas retira o homem da ignoracircncia trevosa dos

animais instaura seu parentesco com o plano dos deuses e demarca suficientemente

76

(hikanoacutes) a separaccedilatildeo entre o detentor do saber e os profanos os idioacutetai (Protaacutegoras

322c07)

A demiurgia humana e o domiacutenio do fogo definem o estatuto intermediaacuterio dos

homens diante dos deuses e animais A natureza do homem participa ao mesmo tempo do

divino e do mortal As teacutecnicas instauram as relaccedilotildees entre os planos e inauguram o culto o

sacrifiacutecio e os artefatos que definem os opostos entre visiacutevel e invisiacutevel As estaacutetuas

aacutegalmata e templos delimitam no plano visiacutevel a homologia estrutural entre o sagrado e o

profano o tempo dos deuses e devir dos mortais a presenccedila visiacutevel da imagem do deus

invisiacutevel e o reconhecimento invisiacutevel da inteligecircncia do deus presente

Entretanto ponte de mediaccedilatildeo entre o humano e o divino a inteligecircncia teacutecnica natildeo

salvaguarda a vida da violecircncia dos animais e da injusticcedila humana Intermediaacuterio entre

poacutelos opostos o plano dos homens requer para o seu perfeito acabamento a intervenccedilatildeo

dos princiacutepios divinos providenciados por novo mensageiro mediador Para compensar a

distribuiccedilatildeo fraudulenta oculta e desigual da participaccedilatildeo no saber teacutecnico Hermes com

equidade reparte abertamente aidōs e diacutekē entre os homens e arauto dos deuses proclama

em nome de Zeus suprema lei a de levar agrave morte como praga da cidade aquele que natildeo

tiver a potecircncia de participar de aidōs e diacutekē

O par aidōs e diacutekē natildeo constitui somente princiacutepio de possibilidade da comunidade

poliacutetica e existir das poacuteleis Ele eacute o contra-presente que compensa o furto e o dolo eacute a

contrapartida visiacutevel para a astuacutecia invisiacutevel Mas se Pandora eacute a personificaccedilatildeo

ambivalente do bem irresistiacutevel da graccedila divina visiacutevel e dos males indeterminados

invisiacuteveis qual deve ser a ocultaccedilatildeo sob o bem aparente de aidōs e diacutekē Se Pandora eacute

essencialmente modelagem de opostos visiacuteveis e invisiacuteveis qual eacute a oposiccedilatildeo essencial

subjacente a aidōs e diacutekē

77

Luc Brisson (2003 p 141-166) seguindo a majestosa esteira de Georges Dumeacutezil

desenvolve no mito encenado pela personagem platocircnica de Protaacutegoras uma interpretaccedilatildeo

de tonalidade positivista calcada numa estrutura tri-funcional A partir dos dois eixos

basilares da natureza e cultura Brisson distingue pares de opostos nos eixos seguranccedila

equipamentos e alimentaccedilatildeo As trecircs oposiccedilotildees fundamentais seriam deusesmortais

homensanimais teacutecnica demiuacutergicateacutecnica poliacutetica

I ndash Oposiccedilatildeo deuses mortais ndash Desse poacutelo derivam seres com existecircncia

independente e natildeo derivada seres com existecircncia dependente e derivada Satildeo enviados

delegados para distribuir poderes e terminar a organizaccedilatildeo Haacute uma triparticcedilatildeo divina Zeus

(soberania arte poliacutetica) Hefesto e Atena (detentores da arte do fogo e outras artes) A

triparticcedilatildeo relaciona-se com uma triparticcedilatildeo espacial Olimpoacroacutepolepeacute da elevaccedilatildeo Os

mortais devem sua existecircncia aos deuses

2 ndash Oposiccedilatildeo homens animais ndash O mundo dos animais eacute o reverso do mundo dos

homens animais desprovidos de razatildeo homens racionais que devem viver na cidade

determinismo sabedoria praacutetica O mundo dos animais implica um equiliacutebrio fechado e

suas necessidades satildeo satisfeitas o determinismo substitui a razatildeo Os homens

caracterizam-se pela condiccedilatildeo precaacuteria e vulnerabilidade que implica a indeterminaccedilatildeo das

necessidades Haacute a exigecircncia de mediaccedilatildeo do saber teacutecnico e da razatildeo A sobrevivecircncia

exige o domiacutenio da teacutecnica poliacutetica e da teacutecnica militar o que implica o uso irrestrito da

teacutecnica demiuacutergica O plano do possiacutevel compensa a carecircncia do plano do que eacute

determinado A razatildeo supera o determinismo

78

3 ndash Oposiccedilatildeo teacutecnica demiuacutergica teacutecnica poliacutetica -

Deste poacutelo surge a analogia fundamental modeterminis

razatildeo

animais

homens O saber

teacutecnico implica a oposiccedilatildeo demiurgiapoliacutetica O mundo dos deuses eacute tripartite e dele deriva

um reflexo funcional na cidade A cidade pressupotildee a poliacutetica que inclui a arte militar A

cidade exige o setor produtivo que abarca demiurgia e agricultura As necessidades

humanas satildeo tambeacutem tripartites seguranccedila equipamentos alimentaccedilatildeo As necessidades

humanas satildeo mediadas pelas teacutecnicas que garantem os trecircs planos A seguranccedila eacute absorvida

na Poliacutetica (guardas de Zeus) A funccedilatildeo produtiva se assimila agrave demiurgia A triparticcedilatildeo eacute

reduzida agrave oposiccedilatildeo demiurgiapoliacutetica e eacute sustentada pelos mediadores de Zeus Prometeu

(demiurgia) e Hermes (poliacutetica) O fogo simboliza a arte demiuacutergica e estabelece um

parentesco com o divino atraveacutes do culto uso do fogo sacrifical e a relaccedilatildeo entre o humano

e o divino A demiurgia implica especializaccedilatildeo de funccedilotildees e a divisatildeo do trabalho A

divisatildeo por sua vez acarreta a incapacidade de vida comunitaacuteria e a dispersatildeo Por isso

Zeus envia Hermes para levar aidōs e diacutekē (pudor e justiccedila) que se opotildeem agrave potecircncia

demiuacutergica a integraccedilatildeo se opotildee agrave divisatildeo A fundamentaccedilatildeo da existecircncia poliacutetica da

cidade depende da integraccedilatildeo entre todos Aidōs e diacutekē satildeo distribuiacutedos por Hermes de igual

maneira entre todos ao passo que a demiurgia representa um saber teacutecnico que cabe a

pequeno nuacutemero de especialistas Quem natildeo participar das duas virtudes deve ser excluiacutedo

e punido como se fosse uma doenccedila As relaccedilotildees cultuais estabelecem uma uniatildeo entre os

homens e os deuses mas estas natildeo satildeo suficientes para a uniatildeo dos homens entre si O fogo

teacutecnico eacute fator de divisatildeo e natildeo de uniatildeo A justiccedila no sentido largo para o cumprimento

das regras exige um sentimento iacutentimo de contenccedilatildeo que leva em conta a opiniatildeo do outro e

que confere vida ao direito Enquanto a demiurgia abarca a necessidade de equipamentos e

79

alimentaccedilatildeo a poliacutetica institui laccedilos de uniatildeo e seguranccedila Segundo Brisson o mito do

Protaacutegoras representa o surgimento da cidade e funda sua divisatildeo fundamental a partir da

oposiccedilatildeo demiurgia poliacutetica Tal divisatildeo eacute descrita como natural e espelha a oposiccedilatildeo

Natureza Cultura

Deuses

Mortais Homens

Animais Teacutecnicas militar e poliacutetica

Demiurgia

As oposiccedilotildees destacadas por Brisson embora esclarecedoras parecem

condicionadas agrave concepccedilatildeo positiva do Direito elaborada por Louis Gernet

Diacutekē eacute a justiccedila tal qual ela se manifesta antes de tudo no

julgamento ndash e por conseguinte na condenaccedilatildeo na execuccedilatildeo ndash e

tambeacutem por referecircncia impliacutecita e expliacutecita a um outro termo algo

como o jus strictum () Pode-se dizer que (aidoacutes) designa um

sentimento de respeito ou de moderaccedilatildeo que se aproxima pelo

menos da reverecircncia religiosa ndash que de fato pode ter por objeto a

divindade ndash mas vale essencialmente na ordem das relaccedilotildees

humanas onde ele comanda certas abstenccedilotildees ou certas atitudes

diante de um parente de um ser eminente em dignidade de um

suplicante sentimento social e moral jaacute que aidoacutes eacute

simultaneamente zelosa com a opiniatildeo puacuteblica da qual ela aparece

muitas vezes como a contrapartida e preocupada em um sentido de

bom grado aristocraacutetico com o que o sujeito deve a si mesmo

(GERNET 1982 p 14-15)

Em contrapartida ao aspecto afetivo que emana da opiniatildeo coletiva Walter Otto

realccedila a interpretaccedilatildeo de que originariamente Aidoacutes natildeo designa ldquoa vergonha de algo que

faz enrubescer mas a apreensatildeo sagrada face ao intocaacutevel a delicadeza do coraccedilatildeo e do

espiacuterito as consideraccedilotildees o respeito e na vida sexual o silecircncio e a vida da virgemrdquo

(1995 p 81) Todas as acepccedilotildees de Aidoacutes seriam abarcadas pelo charme ambivalente da

80

figura divina que eacute ao mesmo tempo respeitaacutevel e respeitoso puro e a piedosa apreensatildeo

diante daquilo que eacute puro

Derivado de aiacutedomai (que indica o respeito a um deus e laiciza-se no emprego

juriacutedico do perdatildeo ao assassiacutenio involuntaacuterio) Aidoacutes significa o sentimento de honra e

neacutemesis o temor da infacircmia de outro raramente no sentido ativo de tiacutemido e taacute aidoicirca que

designa as partes vergonhosas De Aidoacutes foi tirado 1) aidoicircos ndash divindades ou pessoas

respeitaacuteveis e 2) o composto anaidḗs impudecircncia (CHANTRAINE 1999 p 31) A palavra

aidoicirca originalmente designativa da genitaacutelia origina a palavra que designa a vergonha A

experiecircncia baacutesica da vergonha segundo B Williams (1993 p 78-80) eacute a ldquode ser visto

inapropriadamente pelas pessoas erradas na condiccedilatildeo erradardquo Tal experiecircncia eacute

diretamente conectada com a nudez sobretudo em conexotildees sexuais O afeto que decorre

da inadequaccedilatildeo decorrente da violaccedilatildeo da intimidade suscita reaccedilotildees imediatas de

evitamento Evitar a experiecircncia intoleraacutevel da vergonha serve para um propoacutesito antecipar

o afeto que se padeceria sob a exposiccedilatildeo ao olhar alheio A violaccedilatildeo de aidoacutes implica o par

reflexivo de neacutemesis uma reaccedilatildeo que varia do choque do ressentimento ateacute a justa

indignaccedilatildeo A vergonha pode ser antecipatoacuteria de uma exposiccedilatildeo possiacutevel prospectiva ou

derivada da exposiccedilatildeo irreversiacutevel agrave humilhaccedilatildeo retrospectiva

Por outro lado se o enfoque de Otto que vincula Aidoacutes ao temor reverente estiver

correto o emprego poliacutetico no contexto do Protaacutegoras indica uma transposiccedilatildeo semacircntica

para um afeto dependente sobretudo do olhar coletivo ainda que seja sancionada pelo

respeito devido a uma phḗmē declaraccedilatildeo divina de Zeus A mutaccedilatildeo da acepccedilatildeo do termo

indica a passagem de um temor religioso exteriorizado para uma vergonha interiorizada

resultante da coerccedilatildeo da opiniatildeo coletiva

81

A leitura que Brisson faz do mito tem como corolaacuterio o reconhecimento de que a

Poliacutetica eacute natildeo somente uma teacutecnica superior mas ldquoa uacutenica que eacute outorgada pelos deuses e a

uacutenica teacutecnica positiva o que implica que o ensino desta teacutecnica seja ao mesmo tempo o

mais elevado e o uacutenico positivordquo O que transpareceria insoacutelito em Platatildeo seria o fato de ele

ldquonatildeo dar nenhuma atenccedilatildeo agraves virtudes que o indiviacuteduo enquanto indiviacuteduo deve praticar

Soacute contam para ele as virtudes cujo exerciacutecio deve permitir a um indiviacuteduo encontrar seu

lugar numa sociedade harmoniosa onde natildeo interveacutem nenhuma mudanccedilardquo (2003 p 166)

Entretanto como observa Leacutevi-Strauss a maior oposiccedilatildeo que se observa em

estruturas miacuteticas ocorre no plano cosmoloacutegico que expressa a transcendecircncia insuperaacutevel

de uma realidade em relaccedilatildeo ao mundo percebido (1993 p 152-205) A antropogonia de

Protaacutegoras eacute tambeacutem uma cosmologia cuja funccedilatildeo mais marcante eacute da ordem de algo que

vem a ser

Ao se colocar como mestre de excelecircncia poliacutetica que se diferencia dos demais que

ensinam disciplinas teacutecnicas comuns como caacutelculo astronomia e muacutesica Protaacutegoras

afirma o itineraacuterio de uma nova modalidade de iniciaccedilatildeo quem recebe suas liccedilotildees torna-se

melhor a cada dia e sempre recebe acreacutescimos em direccedilatildeo ao melhor (aeigrave epigrave tograve beacuteltion

epididoacutenai 318a) Protaacutegoras transpotildee as antigas iniciaccedilotildees de Orfeu e Museu para o

itineraacuterio ritual de progredir em direccedilatildeo ao melhor e adquirir um novo estatuto de ser A

finalidade de suas liccedilotildees eacute desenvolver os dons naturais de que todos participam e levaacute-los

ao melhor acabamento criando um gecircnero superior de homem num novo plano de ser

Assim como os ritos das teletaiacute operam a repeticcedilatildeo coacutesmica dos atos primordiais e um

retorno vivido agraves origens constitutivas da realidade presente assim tambeacutem o rito do seu

ensino reproduz a estrutura de imagens de seu mito Protaacutegoras aparece como o novo

mensageiro divino o portador do fogo ou o arauto que eacute depositaacuterio dos instrumentos

82

oliacutempicos salvaguardas para a vida e condiccedilatildeo de organizaccedilatildeo da cidade Protaacutegoras eacute um

novo Hermes e seu ensino eacute ferramenta divina que eleva o homem e o aproxima do plano

dos deuses imortais Mas para isso eacute preciso aperfeiccediloar-se no exerciacutecio de sua proacutepria

concepccedilatildeo de aidōs e diacutekē

Quais satildeo as polarizaccedilotildees condensadas no par miacutetico aidōs e diacutekē Ambos satildeo

determinaccedilotildees de Zeus personificaccedilatildeo da soberania acompanhadas por lei suprema

inexoraacutevel Aleacutem disso satildeo os constituintes primordiais que possibilitam a existecircncia das

comunidades poliacuteticas Mas assim como Pandora compotildee modelaccedilatildeo de opostos do

visiacutevel bem aparente e dos males invisiacuteveis ocultos da determinaccedilatildeo maacutexima da forma de

virgem e da indeterminaccedilatildeo imprevisiacutevel aidōs e diacutekē devem representar compensaccedilatildeo

simeacutetrica para a potecircncia piacuterica da demiurgia

Quais satildeo as caracteriacutesticas intriacutensecas agraves teacutekhnai Na delineaccedilatildeo das imagens do

mito as teacutekhnai surgem como resultado da potecircncia demiuacutergica aportada pelo fogo Elas

satildeo o resultado de um dolo oculto da accedilatildeo fraudulenta impermeaacutevel ao olhar Aleacutem disso

caracterizam-se pela participaccedilatildeo desigual dos homens Sua reparticcedilatildeo foi feita de modo

que um uacutenico homem que possui a arte da medicina eacute suficiente para um grande nuacutemero de

profanos39

Haacute pois uma relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que confere o saber teacutecnico40

Eacute por

participar do saber teacutecnico e pelo domiacutenio do fogo que cada demiurgo pode iniciar-se em

sua especificidade que o distingue dos profanos idioacutetais A participaccedilatildeo desigual engendra

39

(Protaacutegoras 322c06-07) 40 Karl Reinhardt (2007 p 51 52) chama a atenccedilatildeo para o fato de que o mito narrado por Protaacutegoras suscita o

gosto a delicadeza o divertimento mas natildeo faz nenhuma menccedilatildeo ao tema da alma A diferenccedila entre um

mito narrado por um Sofista e o mito filosoacutefico reside nessa negaccedilatildeo da alma e do delineamento negativo que

Platatildeo esboccedila da figura do Sofista Para que Platatildeo consignasse ldquoseu coraccedilatildeordquo a um mito ldquoseria necessaacuteria

uma conversatildeo uma transformaccedilatildeo de sirdquo Contudo o que Reinhardt chama de ldquoconversatildeordquo estaacute jaacute ingresso

na oposiccedilatildeo entre a concepccedilatildeo protagoriana de teacutekhne ndash e sua correspondente iniciaccedilatildeo demiuacutergica ndash e a

iniciaccedilatildeo ao Ser poliacutetico

83

os opostos dēmiourgoi e idioacutetais que reproduzem no plano do devir as oposiccedilotildees

cosmoloacutegicas entre deuses e mortais sagrado e profano inteligecircncia e ausecircncia de

inteligecircncia Aleacutem disso as teacutecnicas instrumentalizam a violecircncia e a morte Depois do

domiacutenio do fogo os homens puderam forjar instrumentos para a caccedila mas tambeacutem

passaram a destruir-se mutuamente

Agrave participaccedilatildeo desigual na potecircncia das artes Hermes distribui de maneira

equacircnime aidōs e diacutekē como potecircncias definidoras do estatuto humano Todo aquele que

natildeo puder participar delas deve ser morto como peste A natildeo participaccedilatildeo no par de

potecircncias implica a exclusatildeo da determinaccedilatildeo essencial para a formaccedilatildeo das cidades e por

conseguinte da proacutepria humanidade como um todo A ausecircncia de aidōs e diacutekē representa a

desumanizaccedilatildeo a perda da determinaccedilatildeo essencial que torna possiacutevel que os homens

convivam sem se destruiacuterem mutuamente Mais do que mera forccedila de integraccedilatildeo como

afirma Brisson aidōs e diacutekē determinam a existecircncia do homem como ser poliacutetico e por

conseguinte da existecircncia da humanidade toda Ademais Hermes distribui as potecircncias

determinantes com a sanccedilatildeo aberta de Zeus em oposiccedilatildeo ao furto oculto de Prometeu A

participaccedilatildeo nessas potecircncias essenciais implica por consequecircncia a exposiccedilatildeo ao olhar

coletivo Agrave inteligecircncia teacutecnica fraudulenta e oculta que resulta na destruiccedilatildeo de todos por

todos se opotildee a participaccedilatildeo essencial em aidōs e diacutekē que pressupotildee o olhar de todos

sobre todos Desse modo pode-se destacar a oposiccedilatildeo entre aquilo que eacute recocircndito ao olhar

e aquilo que exige o olhar de todos sobre todos A ocultaccedilatildeo ao olhar acarreta a destruiccedilatildeo

muacutetua Os homens cometiam injusticcedilas uns aos outros por natildeo possuiacuterem a teacutekhnē poliacutetica

cuja ausecircncia configura um quadro de violecircncia muacutetua (ēdiacutekoun allḗlous haacutete ouk eacutekhontes

tḗn politikḗn teacutekhnēn 322b08) O olhar de todos sobre todos acarreta a renuacutencia ou

impedimento ao uso da violecircncia Ao oacutedio oculto se opotildee a philiacutea manifesta

84

A existecircncia da coletividade humana depende da associaccedilatildeo propiciada pela philiacutea e

da capacidade de cooperaccedilatildeo organizada O plano humano abarca duas estruturas coletivas

que se desdobram em dois mundos o do interior da cidade e o do exterior o mundo da

philiacutea e o mundo da morte (BURKERT 2005 p 31)

Mas quais satildeo as determinaccedilotildees mais distintivas de aidōs e diacutekē41

Em primeiro

lugar assim como a participaccedilatildeo na sabedoria teacutecnica e o domiacutenio do fogo constituem

potecircncias essenciais para a existecircncia do gecircnero humano o par de opostos compensatoacuterios

instituiacutedo por Zeus constitui condiccedilotildees de determinaccedilatildeo da existecircncia dos homens em

conviacutevio nas poacuteleis Tais determinaccedilotildees se opotildeem agraves demais teacutekhnai pela igualdade

participativa e pela abertura ao olhar coletivo Elas abarcam simultaneamente os afetos

vinculados ao olhar e agrave opiniatildeo coletiva e agrave retribuiccedilatildeo ineludiacutevel ao dolo Zeus

efetivamente daacute justiccedila aos homens condiccedilatildeo para a existecircncia da philiacutea o viacutenculo afetivo

determinante para a vida comum e exigecircncia de retribuiccedilatildeo divina que estabelece o caraacuteter

absoluto da consecuccedilatildeo infaliacutevel agrave accedilatildeo poliacutetica

Mas o par aidōs e diacutekē eacute inextricaacutevel dos afetos que suscita Na fundaccedilatildeo mesma da

existecircncia cosmoloacutegica das cidades subjazem afetos psiacutequicos Haacute uma homologia

estrutural entre as condiccedilotildees afetivas que possibilitam a existecircncia das cidades e impedem a

41

Sahonhouse faz um levantamento das traduccedilotildees sobre o termo no Protaacutegoras ldquoGuthrie traduz

como respeito pelos outros e respeito pelos companheirosW C Taylor como consciecircncia Sinclair como

dececircncia Cropsey o descreve como um complexo amaacutelgama entre respeito e susceptibilidade agrave vergonha ou

desgraccedila Bartlett o traduz como vergonha e acrescenta as notas de temor respeitoso e reverecircncia (2008 p 63

n 9) Segundo Douglas Cairns o conceito de honra nunca esteve afastado da avaliaccedilatildeo daquilo que eacute

constitutivo em tanto no que diz respeito agrave proacutepria honra de algueacutem ou status como no

reconhecimento das exigecircncias de se honrar os outros como algo que deve inibir as proacuteprias accedilotildees de algueacutem

Assim os diversos usos conferem unidade ao termo Ele pode indicar por exemplo vergonha diante da

proacutepria falha ou humilhaccedilatildeo embaraccedilo social inibiccedilatildeo em agir por medo do que os outros vatildeo dizer e

respeito diante do estatuto dos outros ou ainda para legitimar exigecircncias para tratar bem os hoacutespedes

suplicantes Todos os sentidos compartilham o foco no balanccedilo apropriado entre a proacutepria honra de algueacutem e

a honra dos outros seria uma emoccedilatildeo que cobre tanto o sentido de vergonha como de respeito e foca

simultaneamente a proacutepria honra como a dos outros (CAIRNS 1993)

85

destruiccedilatildeo muacutetua dos homens A homologaccedilatildeo eacute suscitada pelos afetos que constituem a

determinaccedilatildeo de homens e cidades

Se o homem eacute a medida de todas as coisas das que satildeo como satildeo e das que natildeo satildeo

como natildeo satildeo42

haacute todavia uma norma divina absoluta que determina o criteacuterio de que o

afeto determinante da philiacutea seja remetido ao olhar aberto coletivo e agrave retribuiccedilatildeo infaliacutevel

que se segue agraves accedilotildees injustas O tatildeo celebrado relativismo de Protaacutegoras deriva de norma

divina e por conseguinte absoluta que institui a medida do olhar de todos sobre todos

condiccedilatildeo poliacutetica da convivecircncia

O olhar muacutetuo configura afetos restritivos cuja funccedilatildeo primaacuteria consiste em

contrabalanccedilar os afetos violentos que se expressam em accedilotildees injustas e na violecircncia

destrutiva Tais afetos levam em conta o olhar e por conseguinte estatildeo na ordem

constitutiva da alteridade do levar em conta a existecircncia do olhar alheio como outro de si

A desconsideraccedilatildeo ao olhar implica a retribuiccedilatildeo punitiva como contrapartida causal para a

violaccedilatildeo deste princiacutepio de accedilatildeo afetivo que eacute tambeacutem o princiacutepio da accedilatildeo valorativa A

teacutecnica poliacutetica eacute primordialmente a teacutecnica valorativa da alteridade Ela estabelece a

medida pela qual o homem eacute meacutetron o olhar aberto que define a accedilatildeo aceitaacutevel na cidade

Como afirma Saxonhouse o conhecimento da desgraccedila implicada pela transgressatildeo

desses limites surge somente a partir das interaccedilotildees com os outros A vergonha dissolve

aquele que desconhece e natildeo reverencia os costumes e desconsidera as opiniotildees da

coletividade de seu entorno A irreverecircncia para com o olhar do outro eacute incompatiacutevel com a

vergonha (SAXONHOUSE 2008 p 63)

42

Protaacutegoras 80 B 1 DK SEXTUS EMPIRICUS adv math VII 60 Disponiacutevel em

httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics80-B

(Teeteto 160e09)

86

Aidōs e diacutekē compotildeem os afetos que inibem os impulsos para a morte e para a

destruiccedilatildeo e implicam as accedilotildees retribuidoras absolutas para a violecircncia cometida Se a

cidade e a comunidade poliacutetica existem eacute porque aidōs e diacutekē satildeo os princiacutepios que

possibilitam a coexistecircncia artificial entre os homens a partir da diferenciaccedilatildeo das accedilotildees

rudimentares que terminavam na violecircncia destrutiva Aidōs e diacutekē satildeo princiacutepios de

inibiccedilatildeo primordiais ao impulso para matar Eles emergem diretamente do temor que Zeus

experimenta ao prever a destruiccedilatildeo humana Mas eacute preciso ainda acrescentar a educaccedilatildeo

para que os homens tenham seu completo acabamento e possam conviver vinculados por

um afeto de pertenccedila muacutetua

Para cumprir seu papel ao mesmo tempo de caccediladores e guerreiros protetores da

polis os homens precisam conciliar a coragem para afrontar os perigos e a confiabilidade

exigida pela amizade Eacute preciso a previdecircncia astuciosa que permite a renuacutencia agrave satisfaccedilatildeo

do desejo imediato o domiacutenio da palavra a demiurgia das teacutecnicas manuais e instrumentais

para a forja de armas e ferramentas As accedilotildees humanas satildeo regradas artificialmente por uma

dupla tensatildeo de opostos o uso das armas e os afetos destrutivos devem ser dirigidos para

fora da cidade e o afeto integrador da philiacutea deve manter a coesatildeo coletiva interna e

amalgamar a unidade ciacutevica Aidōs e diacutekē conciliam em tensatildeo o amor e a morte Se a

vergonha eacute o afeto decorrente da transgressatildeo ao temor respeitoso que delimita a existecircncia

ciacutevica pela philiacutea as leis implicadas por diacutekē guiam e regulam os afetos destrutivos a

previsatildeo teacutecnica e a adaptabilidade para o proveito coletivo para o melhor do homem

como medida de todas as coisas Diacutekē implica que para ser medida de todas as coisas o

homem deva submeter-se agraves leis de modo que a violecircncia seja sancionada pela arte da

guerra na exterioridade e interdita pela poliacutetica no domiacutenio da poacutelis O que configura a accedilatildeo

heroacuteica num domiacutenio por ser necessaacuterio eacute absolutamente interdito em outro O homem

87

medida submetido agrave diacutekē eacute aquele cujas gestas heroacuteicas de um plano satildeo accedilotildees criminaacuteveis

em outro noacutesos peste da cidade

A concepccedilatildeo de diacutekē como dom compartilhado e determinaccedilatildeo do gecircnero humano

ultrapassa a noccedilatildeo primitiva ligada a uma ordem coacutesmica cujo equiliacutebrio exige a

compensaccedilatildeo de opostos A ordem da natureza associa-se agrave noccedilatildeo religiosa de um tempo

perioacutedico A adikiacutea se expia afirma Anaximandro segundo a ordem do tempo43

Pois donde a geraccedilatildeo eacute para os seres eacute para onde tambeacutem a

corrupccedilatildeo se gera segundo o necessaacuterio pois datildeo eles mesmos

justiccedila e deferecircncia uns aos outros pela injusticcedila segundo a

ordenaccedilatildeo do tempo

Aidōs e diacutekē eacute um par de opostos em tensatildeo A paz interna que deve reinar no seio

da cidade pressupotildee os limites da norma da ordem ciacutevica e os limites impostos pelos

afetos que levam em conta o olhar coletivo e a dissoluccedilatildeo afetiva inexoraacutevel que se segue agrave

violaccedilatildeo desses limites O estabelecimento desses limites suscita a dissoluccedilatildeo intriacutenseca agrave

vergonha ao medo a inibiccedilatildeo e a culpabilidade mas fora do centro ciacutevico as barreiras satildeo

ordenadamente levantadas pela arte da guerra dessacralizaccedilatildeo da violecircncia pelo uso das

armas a philiacutea se equilibra no seu oposto o oacutedio A comunidade poliacutetica assenta-se no

amor mas tambeacutem no sangue e na morte

A gecircnese da ordem poliacutetica da cidade inclui o seu elemento contraacuterio em tensatildeo

permanente A vergonha e a culpabilidade que emergem desta tensatildeo exigem desejo de

compensaccedilatildeo e reparaccedilatildeo que soacute pode efetivar-se no itineraacuterio de um acabamento em

direccedilatildeo ao melhor prometido pela educaccedilatildeo (BURKERT 2005 p 30-34)

43

DK 1 SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 24 13 Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics12-B

acesso em 042010 Traduccedilatildeo de Cavalcante com ligeira modificaccedilatildeo

88

Todavia para Platatildeo se o valor supremo do homem depende do olhar coletivo

entatildeo a excelecircncia deve se moldar a partir da exterioridade aberta que configura os afetos

ligados a aidoacutes A formaccedilatildeo poliacutetica passa a ser assim uma iniciaccedilatildeo agrave teacutecnica de domiacutenio

do olhar e da opiniatildeo teacutecnica da exterioridade cambiante que valora todas as coisas a partir

do aacutentrōpos em detrimento do seautoacuten do si mesmo teacutecnica que ganha o prestiacutegio na

cidade mas perde a alma

A encenaccedilatildeo dramaacutetica do Protaacutegoras eacute a miacutemesis de uma iniciaccedilatildeo nos misteacuterios

que coloca em perigo a alma44

O inventaacuterio histoacuterico das iniciaccedilotildees e misteacuterios

empreendido por Walter Burkert (1993 527-577) permite a distinccedilatildeo dos elementos

alusivos da encenaccedilatildeo dramaacutetica do Protaacutegoras O jovem Hipoacutecrates desejoso de iniciar-se

nos misteacuterios da praacutetica da sabedoria45

pretende receber um ensino transmitido por um

guia embora natildeo saiba o que dizer sobre o seu conteuacutedo efetivamente inexprimiacutevel

anaacutelogo do aacuterreton o segredo dos misteacuterios Protaacutegoras aparece como um guia um

mystagogos a quem Hipoacutecrates confiaraacute sua alma esperando adquirir um novo estatuto e

experimenta simultaneamente o medo proacuteprio ao grande perigo de expor sua alma ao

desconhecido e a promessa de uma nova realidade radiante O questionamento eroacutetesis

socraacutetico induz agrave revelaccedilatildeo de que o desejo pelo destaque e excelecircncia poliacutetica eacute

incompatiacutevel com a vergonha de aparecer ao olhar puacuteblico com o estatuto e desvalor de um

sofista em meio ao lusco-fusco do alvorecer que se anuncia Hipoacutecrates manifesta

fisicamente o sinal inequiacutevoco da vergonha enrubesce (Protaacutegoras 312a)

44

(Protaacutegoras 313a01-02) 45 (312d05) fabricante de praacuteticas do saber equivalente ao

saacutebio (LIDDELL SCOTT 1997 p 554)

89

Como profano suplicante o recipiendaacuterio protomyacutestes se dirige agrave casa do rico

Caacutelias equivalente do telesteacuterion templo das iniciaccedilotildees ou da caverna siacutembolo secreto

do oculto e do transcendente (BURKERT 1993 p 555)

Apoacutes percorrer a rota de peregrinaccedilatildeo o candidato se depara com a porta que separa

o sagrado do profano A passagem pela porta exige a passagem pelo seu guardiatildeo um

eunuco que parodia os temiacuteveis guardas de Zeus (Protaacutegoras 320d) ou os guardiotildees

postados agrave entrada do Hades (BURKERT 1993 p 558) Soacutecrates como espeacutecie de

hierophanteacutes que iraacute mostrar as coisas sagradas termina o assunto profano impuro antes de

bater agrave porta pois natildeo eacute permitido misturar o impuro ao puro

A entrada eacute vetada porque o guarda os toma por sofistas e fecha violentamente a

porta A porta eacute a imagem que abarca a correspondecircncia estrutural entre modalidades

muacuteltiplas de passagem das trevas para a luz do sol da preexistecircncia do homem para a

humanidade da vida para a morte e do novo nascimento para um estatuto de ser mais

elevado A abertura da porta torna possiacutevel a passagem para um modo de ser cosmicizado

pois todo Koacutesmos pressupotildee a passagem Uma vez que o homem vem agrave luz ele natildeo eacute um

ser acabado Eacute preciso repetir o vir a ser primordial e os vaacuterios planos de determinaccedilotildees

originaacuterias mediante ritos de passagem de iniciaccedilotildees sucessivas que propiciam a ascensatildeo

a modalidades mais elevadas de ser (ELIADE 1965 p 153)

O jovem Hipoacutecrates pretendia buscar o mediador da transmissatildeo do ensino

iniciaacutetico secreto que o levaria ao acabamento do homem pleno ao progresso gradativo em

direccedilatildeo ao melhor agrave melhor disposiccedilatildeo dentre a infinidade de aparecircncias que configuram a

medida de cada um dos homens A iniciaccedilatildeo protagoriana opera a mudanccedila em direccedilatildeo ao

90

melhor mudanccedila no estatuto do ser transformando metabaacutellō e metabletḗon46

Assim

como o meacutedico mediante os phaacutermakoi muda as disposiccedilotildees do corpo o sofista muda as

disposiccedilotildees da alma pelo seu ensino iniciaacutetico (Teeteto 167a04-06) A porta fechada e

guardada da casa de Caacutelias separa os ritos internos discretos da abertura ao olhar coletivo e

delimita a ocultaccedilatildeo do misteacuterio aos profanos

O apresentante Soacutecrates enuncia uma explicaccedilatildeo que serve de syacutenthema palavra de

passe que franqueia a entrada no recinto sagrado A declaraccedilatildeo de que natildeo satildeo sofistas

possui o efeito ritual de garantir que natildeo satildeo impuros e anuncia a iniciativa individual pela

iniciaccedilatildeo myacuteēsis atraveacutes do encontro com Protaacutegoras (314c-e)

A entrada no recinto sagrado revela o rito dos discursos sagrados hieroigrave loacutegoi de

Protaacutegoras Um seacutequito de estrangeiros encantados como se fora pelo charme do proacuteprio

Orfeu o segue cosmicamente em evoluccedilotildees circulares ritualmente regulares A viacutevida e

espetacular caricatura da cena fornece natildeo obstante a ironia indiacutecios caracteriacutesticos da

accedilatildeo ritual O ritual eacute ldquoalgo ataviacutestico compulsivo insensato no miacutenimo circunstancial e

supeacuterfluo mas ao mesmo tempo sagrado e misteriosordquo (BURKERT 1997 p 35-37)

O ritual eacute um conjunto de accedilotildees redirecionadas para a demonstraccedilatildeo exposiccedilatildeo

apontada para o olhar eacute um falar mediante gestos estereotipados e padronizados

independentes da situaccedilatildeo e afetos atuais O rito repete e ordena accedilotildees exageradas

aparentemente desvinculadas do contexto imediato com o escopo de esboccedilar um tipo

especiacutefico de efeito teatral eficaz ao olhar e de transmitir uma significaccedilatildeo mimeacutetica natildeo

mediada pela palavra

46

(Teeteto 167a04-06)

91

A harmonia do coro provoca alegria em Soacutecrates A alegria o devaneio e o ecircxtase

das iniciaccedilotildees oacuterficas satildeo intimamente ligados agrave danccedila e agrave muacutesica riacutetmica (BURKERT

1993 p 557) ldquoA repeticcedilatildeo faz nascer o ritmo o acompanhamento dos gestos por sinais

acuacutesticos daacute nascimento agrave muacutesica e agrave danccedila ndash duas formas de solidarizaccedilatildeo humanardquo

(BURKERT 2005 p 35) ldquoO ritual dramatiza a interaccedilatildeo poliacutetica a ordem existente sem

excluir que um rito possa fundar e definir um novo estatutordquo (ibid p 37) Segue-se a alusatildeo

direta agrave descida ao Hades katabasis siacutembolo da iniciaccedilatildeo em que Heraacutecles e Tacircntalo satildeo

ironicamente substituiacutedos por Hiacutepias e Proacutedico de Ceacuteos (315b-d)

A paroacutedia iniciaacutetica eacute mais do que irocircnica Platatildeo encena a laicizaccedilatildeo dos discursos

sagrados e sua transposiccedilatildeo num ensino na transmissatildeo iniciaacutetica de um saber que enseja a

condiccedilatildeo dos espectadores poliacuteticos os epoacutepatai os iniciados que ascendem a um estado

superior que promete a riqueza e a bem-aventuranccedila

A dramatizaccedilatildeo irocircnica sugere o falseamento de um ensino cuja eficaacutecia pretende

remontar agrave antropogonia primeva e dela tirar seu sentido Mas o perigo natildeo consiste

somente no risco e no terror que antecede a experiecircncia da prova iniciaacutetica O grande perigo

consiste em entregar a alma a misteacuterios cujos efeitos natildeo se pode afirmar que a melhorem

ou a piorem Para discriminar a natureza dos efeitos do ensino sobre a alma eacute preciso que o

olhar perscrutador do eacutelenkhos socraacutetico coloque os misteacuterios da iniciaccedilatildeo sofiacutestica sob

exame

92

III - RELACcedilOtildeES ESTRUTURAIS NO MITO DO GOacuteRGIAS O EacuteTHOS EM

QUESTAtildeO

31 Eros e Loacutegos

Audaacutecia e ardor tais satildeo os afetos divinos que incutidos na psykheacute fazem com que

o guerreiro sobreexceda o acircnimo das accedilotildees tatildeo somente humanas que encenam a batalha (Il

V 3)

Audaacutecia e ardor ndash tais satildeo os afetos pelos quais a dialeacutetica socraacutetica choca-se

ingente com a retoacuterica daquele que viria a ser ao mesmo tempo o mais violento e o mais

brilhante dos interlocutores que travam combate com Soacutecrates Caacutelicles

Batalha e guerra poacutelemos kaiacute maacutekhe eis o cenaacuterio com que Platatildeo monta o campo

dramaacutetico dialoacutegico em que satildeo confrontados os princiacutepios e valores ordenadores que

configuram dois modos de vida diametralmente opostos ndash cada qual com exigecircncias

especificidades procedimentos e formaccedilotildees perenemente antagocircnicas Um e outro

culminam no aacutegon retininte dos loacutegoi de seus campeotildees Moldado no apaixonado manifesto

de Soacutecrates o loacutegos dialeacutetico denuncia a ambiccedilatildeo unacircnime desmascara a injusticcedila e a

desfaccedilatez coerciva da maioria em torno da voluacutepia O discurso antagonista defendido

pelos retores e poliacuteticos eacute modelado pelo apetite desmesurado de poder de Caacutelicles que

reclama o testemunho histoacuterico dos grandes homens que se tornaram notaacuteveis

No retinir dos loacutegoi insinua-se a reverberaccedilatildeo da imprecaccedilatildeo a araacute que soa como

o vaticiacutenio do vidente que antecipa a praga o modo de vida implicado pela Filosofia

entendida como disciplina que se estende para aleacutem da educaccedilatildeo juvenil eacute indigno das

coisas belas nobres e bem reputadas entre os homens de valor eacute um modo de vida proacuteprio

da condiccedilatildeo dos sub-homens de escravos Ineficaz nos debates puacuteblicos a Filosofia

93

perverte a alma e resulta na incapacidade decisoacuteria em questotildees de justiccedila do que eacute

provaacutevel e crediacutevel incapacidade que redunda na impossibilidade de defesa diante de um

tribunal estabelecido por acusaccedilatildeo injusta levada a efeito por acusador desonesto e que

ineludivelmente acabaria na condenaccedilatildeo de Soacutecrates agrave morte (Goacutergias 485c-486b)

O manifesto socraacutetico se forja pela disposiccedilatildeo simeacutetrica da oposiccedilatildeo norteadora dos

valores Gecircneros de vida opostos satildeo determinados pela ordenaccedilatildeo simetricamente oposta

de valores incompatiacuteveis ndash ordenaccedilatildeo que implica praacuteticas e modos de inteligibilidade

distintos que por sua vez exprimem-se no esgrimir de discursos multifacetados Um e

outro identificam diferentes pragas psiacutequicas diferentes noacutesoi que exigem compensaccedilatildeo

mediada pela eficaacutecia discursiva do adivinho porta-voz das potecircncias ofendidas e

diferentes prescriccedilotildees A perversatildeo e a miseacuteria para Caacutelicles consistem na gradual

ignoracircncia determinada pela praacutetica filosoacutefica das leis em vigor na cidade da maneira de

falar exigida nas relaccedilotildees particulares e nos contratos puacuteblicos na perplexidade diante dos

prazeres e das voluacutepias dos homens e dito numa soacute fala em tornar-se irresoluto para com

todas as coisas que dizem respeito agraves maneiras de viver ao caraacuteter47

Valores opostos implicam caracteres que se contradizem e por conseguinte

pressupotildeem a multiplicidade de princiacutepios ordenadores opostos (DIXSAUT 2001 p 133)

Natildeo obstante a diversidade soacute pode ser unificada mediante a unidade do afeto na

afetividade do mesmo paacutethos (Goacutergias 481 d) A significaccedilatildeo unificadora deriva da

(Goacutergias 484 c09-d07)

94

possibilidade de se fazer mostrar um para o outro os proacuteprios afetos48

Soacutecrates e Caacutelicles

padecem do mesmo afeto eroacutetico direcionado para objetos distintos que caracterizam a

natureza do Eacuteros

O amor de Soacutecrates por Alcibiacuteades de um lado injunge a ordenaccedilatildeo cataacutertica da

encantaccedilatildeo a accedilatildeo terapecircutica dos belos discursos que toma a alma do ouvinte de assalto

como um canto de Sirena (Banquete 215c-216c) de outro deixa-se modelar pela Filosofia

ndash um desejo que eacute determinado pelo desejo mais elevado o desejo que aspira a ldquotocarrdquo o

belo visto que a Filosofia eacute ao mesmo tempo a muacutesica mais elevada (Feacutedon 61a) e o desejo

puro pelo que eacute ldquoem si mesmordquo (DIXSAUT 2001 p 184) Tal desejo faz do filoacutesofo um

carente e um amante incessantemente agrave procura do objeto de seu amor movido pela ldquobela

esperanccedilardquo (Feacutedon 114c) de encontraacute-lo e encontrando-o com a aspiraccedilatildeo imorredoura de

quem haveraacute de continuar procurando

O amor de Caacutelicles eacute simultaneamente modelado pelas pretensotildees e desejos de

Demos o filho de Pirilampo e demos o povo reunido na assembleacuteia (Goacutergias 481e) Em

Soacutecrates o amor eroacutetico deixa-se ordenar pelo desejo mais elevado e transpotildee-se como

forccedila encantatoacuteria do loacutegos ordenador na psykheacute do amado Em Caacutelicles o amor eroacutetico

segue o movimento inconstante da multiplicidade de desejos caoacuteticos da multidatildeo e

aquiesce aos apelos do amado de maneira que se transpotildee em discurso lisonjeiro no loacutegos

agradaacutevel cujo efeito eacute o incitamento e o acirramento dos apetites que o geraram Em

Soacutecrates o discurso eroacutetico afasta as falsas ilusotildees da alma e forceja o amado ao

reconhecimento das proacuteprias carecircncias e da falta de cuidado de si (Banquete 216a) Em

Caacutelicles o discurso compotildee-se na indeterminaccedilatildeo das aparecircncias ilusoacuterias que se

Goacutergias 481 d)

95

entrelaccedilam com a praacutetica poliacutetica Em Soacutecrates o discurso eacute engendrado a partir do desejo

sobre-determinado pelo desejo mais elevado e constante da Filosofia Em Caacutelicles o

discurso eacute engendrado pela inconstacircncia dos desejos indeterminados dos objetos de seu

amor o povo reunido na assembleacuteia Num e noutro o desejo se aconchega agrave inteligecircncia

para engendrar um discurso Em Soacutecrates inteligecircncia e desejo estatildeo em consonacircncia

harmonizam-se num uacutenico movimento ndash o da inteligecircncia do desejo e o do desejo da

inteligecircncia tal como o sopro da flauta se harmoniza com a danccedila do saacutetiro flautista

(Banquete 216c) O desejo possui a inteligecircncia de si mesmo e a inteligecircncia discerne seu

proacuteprio movimento como o movimento do desejo (DIXSAUT 2001 p 143) Em Caacutelicles

desejo e inteligecircncia satildeo asyacutemphonoi49

satildeo dissonantes de modo que o desejo subjuga e

arrasta a inteligecircncia para discernir somente aquilo que o atende o desejo torna-se entatildeo

apetite Quando desejo e inteligecircncia satildeo sinfocircnicos o discurso visa o melhor o beacuteltiston e

porta a explicaccedilatildeo racional (Goacutergias 464c-465e) e as causas de sua natureza50

Quando o

desejo domina a inteligecircncia o discurso visa o prazer e a inteligecircncia discerne apenas os

meios que determinam o seu assentimento num ldquoempirismordquo que atende agrave voluacutepia Num

49 A menccedilatildeo agrave desarmonia indica um desarranjo da multiplicidade de opiniotildees ou um desarranjo de uma

multiplicidade proacutepria ao si mesmo A metaacutefora ingressa uma homologia entre a multiplicidade dos muitos e

uma multiplicidade do si mesmo A intermitecircncia das opiniotildees de Caacutelicles implica a intermitecircncia correlativa

do seu psiquismo Tais questotildees determinam a hermenecircutica da leitura do Haacute uma divisatildeo na

natureza psiacutequica de Caacutelicles que se expressa na dissonacircncia de opiniotildees que natildeo satildeo sustentadas pela

refutaccedilatildeo da tese oposta A metaacutefora da harmonia como concordacircncia bem ajustada indica que o

opera uma concordacircncia no acircmbito do si mesmo ( ) em contraposiccedilatildeo com o

ajustamento e concordacircncia com as opiniotildees e desejos da multidatildeo (PLOCHMANN ROBINSON 1988 p

110)

(Goacutergias 482b04-c03) 50

(Goacutergias 465a)

96

caso e noutro eacute a natureza do desejo que determina o estado da psykheacute O amor eroacutetico faz a

mediaccedilatildeo entre um desejo paradigmaacutetico (a Filosofia ou os desejos da multidatildeo) e a

personificaccedilatildeo do amor Mediaccedilatildeo que engendra loacutegoi e modos distintivos de hierarquizar

valores que por sua vez implicam gecircneros caracteriacutesticos de vida opostos um voltado para

a inteligecircncia da justiccedila do que eacute sempre idecircntico e imutaacutevel o vasto oceano do belo e do

bem (Banquete 211a) e outro voltado para a inteligecircncia do gozo irrefreaacutevel visto o

discernimento e a inteligecircncia de prazeres diversos serem prerrogativas da alma (Goacutergias

465d)

A inconstacircncia do alvo do amor de Caacutelicles determina a intermitecircncia de suas

opiniotildees e a ambivalecircncia de seus afetos Assim como seus afetos oscilam de um fito para

outro o movimento de seus pensamentos se estende em direccedilotildees muacuteltiplas opostas

expressando opiniotildees contraacuterias sobre um mesmo assunto Sua ambivalecircncia alterna-se

entre a doccedilura amistosa e a hostilidade raivosa na tentativa de esconder sua autodissensatildeo

mediante algum pronunciamento dogmaacutetico para logo em seguida contradizer-se

relutante ou involuntariamente revelando seus princiacutepios de accedilatildeo conflitantes Pervertido

pelo medo e atormentado pelos apetites Caacutelicles eacute simultaneamente um mau amante e um

bom odiento sobretudo em relaccedilatildeo a si mesmo (PLOCHMANN ROBINSON 1988 p

105)

A simetria das oposiccedilotildees indica uma estrutura de relaccedilotildees anaacutelogas e homoacutelogas

assim como haacute uma boa disposiccedilatildeo do corpo haacute uma boa disposiccedilatildeo da alma Assim como

a boa disposiccedilatildeo do corpo eacute assegurada por duas artes uma preservadora e outra

restauradora a boa disposiccedilatildeo da alma eacute assegurada por duas artes do mesmo gecircnero

Assim como as artes relativas ao corpo satildeo conduzidas pelo desejo do melhor a boa

disposiccedilatildeo da alma eacute impelida pelo desejo do melhor Assim como as artes do corpo

97

implicam a inteligecircncia da natureza dos seus procedimentos e das causas assim tambeacutem as

artes da alma implicam o loacutegos de sua natureza e de suas causas

Assim como uma imagem eacute uma aparecircncia do modelo original as imagens das artes

autecircnticas satildeo aparecircncias de seus originais A lisonja kolakeiacutea estaacute para a Poliacutetica como as

aparecircncias estatildeo para os originais A cosmeacutetica estaacute para a ginaacutestica como a culinaacuteria estaacute

para a medicina A sofiacutestica estaacute para a legislaccedilatildeo como a retoacuterica estaacute para a justiccedila O

discurso persuasivo estaacute para o discurso racional como o prazer estaacute para o melhor e o

bem A inteligecircncia do prazer imediato estaacute para a inteligecircncia dos prazeres proacuteprios como

a inteligecircncia do empirismo da vantagem estaacute para a inteligecircncia das causas da boa

disposiccedilatildeo O Eros do retor estaacute para o Eros do filoacutesofo assim como a epithymia da

multidatildeo estaacute para a Filosofia

A Filosofia comporta um discurso que por sua proacutepria natureza eroacutetica desfaz a

ilusatildeo gerada pelo apetite as opiniotildees os falsos saberes e a valoraccedilatildeo do que eacute contingente

do que estaacute imerso no devir um discurso que busca refutar por amor da verdade e natildeo por

amor da vitoacuteria e das disputas a philoneikiacutea (Goacutergias 457e-458b) O amor de Soacutecrates por

Alcibiacuteades comporta o paradoxo da abstenccedilatildeo do deleite mesmo tendo-lhe compartilhado o

mesmo leito (Banquete 216e-217e) Soacutecrates soacute pocircde desprezar a beleza dos corpos a

riqueza e todas as vantagens apreciadas pelos muitos porque ascendeu ao cliacutemax do Eros

Tal eacute a razatildeo pela qual o discurso filosoacutefico eacute elecircntico a unificaccedilatildeo do desejo almeja o

plano mais alto e contrapotildee agrave incompletude que se dispersa na multiplicidade a visatildeo

sempiterna do belo

Ardor e audaacutecia - trata-se efetivamente do entrecruzar de dois discursos que

digladiam-se pelo manejo experimentado de dois amorosos animados pelo mesmo afeto

Eros que natildeo obstante volta-se para direccedilotildees excludentes O discurso expressa o

98

movimento da inteligecircncia que por sua vez acopla-se ao Eros ou identificando-se com ele

num uacutenico e mesmo movimento ou submetendo-se a ele (DIXSAUT 2001 p 153-ss) O

movimento eroacutetico do loacutegos acarreta disposiccedilotildees concordantes com seu direcionamento O

discurso pode suscitar o convencimento associado ao saber ou se natildeo emerge do

conhecimento das causas o assentimento engendrado pela aparecircncia visto que saber eacute

diferente de crer A persuasatildeo mesma divide-se em par de naturezas distintas ndash a crenccedila e o

conhecimento (Goacutergias 454 d-e) e por conseguinte o discurso distingue-se pela direccedilatildeo de

seu movimento e de seu alvo Mas tal qual glaacutedio que possui dois gumes o discurso natildeo

pode ser proferido sem que seu efeito seja duplo e sem que a resultante do golpe se volte

para sua origem Animado por um afeto eroacutetico o movimento discursivo natildeo pode ser

desferido sem que haja uma ordenaccedilatildeo preacutevia dos afetos que o engendram sem que o

proacuteprio movimento psiacutequico lhe seja condizente A palavra natildeo pode ser proferida sem que

haja ressonacircncias no acircmago da psykheacute que a engendra

32 ndash Vida e ḗthos

Batalha e guerra - valores organicamente opostos resultam em modos de vida que se

potildeem em pugna que implicam praacuteticas eacutetico-poliacuteticas opostas e que buscam na maacutekhe dos

loacutegoi no combate singular da palavra os posicionamentos que demarcam a estrateacutegia dos

antagonismos

Caacutelicles e Soacutecrates buscaratildeo defender natildeo somente suas teses mas seus gecircneros de

vida e seus valores a partir de razotildees enredadas em discursos estruturados de modo

excludente Retoacuterica e dialeacutetica entrecruzam-se como armas que reclamam o kraacutetos sobre a

inteireza da vida

99

O golpe de Caacutelicles eacute posto de iniacutecio muitas vezes natureza e lei51

se contradizem

uma agrave outra52

- tais satildeo as divisotildees que comportaratildeo todas as diferenccedilas A divisatildeo de um

todo em partes explica ao mesmo tempo as causas pelas quais Goacutergias e Polos caiacuteram em

contradiccedilatildeo e o procedimento refutativo empregado por Soacutecrates O argumento da divisatildeo

haure toda sua forccedila de uma oposiccedilatildeo efetivamente presente na mentalidade aristocraacutetica

grega e por isso justifica-se plenamente como ponto de partida da argumentaccedilatildeo de

Caacutelicles Tratar-se-ia de tese que natildeo sofreria contestaccedilatildeo direta53

O procedimento de dissociar duas noccedilotildees que se pretendem exaustivas permite a

afirmaccedilatildeo de que certos elementos independentes e irredutiacuteveis se mantecircm associados e

confundidos A cilada de Soacutecrates consistiria em se reportar agrave natureza quando se fala

51 Guthrie observa que noacutemos e phyacutesis adquirem significados opostos a partir do clima intelectual do seacuteculo

V ldquoO que existia por noacutemos natildeo existia por phyacutesis e vice-versardquo Nos sofistas historiadores e oradores da

eacutepoca e tambeacutem em Euriacutepides a antiacutetese passa para as esferas da moral e da poliacutetica ldquoNoacutemosrdquo passou a

significar basicamente (a) ldquouso ou costumes baseados em crenccedilas tradicionais ou convencionais quanto ao

que eacute certo ou verdadeirordquo (b) ldquoleis formalmente esboccediladas que codificam o uso corretordquo O sentido de

ldquophyacutesisrdquo por outro lado toma corpo a partir dos filoacutesofos preacute-socraacuteticos Embora o sentido de ldquonaturezardquo seja

claro pode-se pensar em termos poliacuteticos em ldquorealidaderdquo contrastada com as convenccedilotildees da lei positiva Em

Tuciacutedides a decadecircncia moral acarretada pela guerra faz sobressair o viacutenculo existente entre a ldquonatureza

humanardquo e o interesse ) em oposiccedilatildeo agrave justiccedila O interesse a vantagem e o uacutetil satildeo princiacutepios

inerentes agrave natureza humana e parte da realidade em que o mais forte se impotildee ao mais fraco Satildeo

significativos os relatos das negociaccedilotildees travadas entre os atenienses de um lado e Melos ou Mitilene de

outro A histoacuteria era a principal testemunha de que ldquoera da natureza humana tanto para os Estados como para

os indiviacuteduos comportar-se egoiacutestica e tiranicamente se dada a oportunidaderdquo Para o Caacutelicles platocircnico isso

natildeo soacute ldquoera inevitaacutevel senatildeo tambeacutem justo e adequadordquo (GUTHRIE 1995 p 57-103) Dodds afirma que ldquoA

fonte antiga mais importante aleacutem de Platatildeo satildeo os fragmentos dos manuscritos do sofista Antiacutefonte ()

mas inuacutemeras passagens em Euriacutepides Aristoacutefanes e Tuciacutedides mostram que a antiacutetese era imensamente examinada e compreendida nos anos posteriores do seacuteculo Vrdquo (DODDS 2002 p 263) A concepccedilatildeo

difundida no quadro mental herdado por Platatildeo no iniacutecio do quarto seacuteculo que alccedila o sucesso e o interesse ao

primeiro plano e preconiza ldquofazer bem aos amigos e mal aos inimigosrdquo natildeo reclamava justificaccedilatildeo uma vez

que era aceita universalmente Daiacute as teses defendidas por Soacutecrates soarem tatildeo chocantes e bizarras Nada

atentava mais ao senso comum do homem grego de entatildeo e de certa forma como mostra uma citaccedilatildeo feita

por Guthrie datada do seacuteculo XVIII nada atenta mais contra o senso comum de todos os tempos 52

(Goacutergias

482e) 53 Como Marian Demos afirma ldquoA antiacutetese entre e aparece com frequecircncia na literatura

Grega nos seacuteculos VI e V Caacutelicles natildeo diz nada revolucionaacuterio nesse ponto ele apenas estabelece o cenaacuterio

para aquilo que subsequentemente eacute sancionado pela A oposiccedilatildeo entre e eacute tambeacutem

refletida na discrepacircncia entre os verdadeiros sentimentos de Polos e sua relutacircncia em proclamaacute-los Pode-se

inferir que a de alguma forma corresponde com a visatildeo da realidade de Polos enquanto o

designando bdquoo consenso geral‟ o impede de expor sua visatildeo (DEMOS 1994 p 85-107)

100

segundo a lei e aludir agrave lei quando se lhe fala segundo a natureza54

(483a) A questatildeo dos

valores depende do ponto fixo a partir do qual eles seratildeo coordenados A noccedilatildeo de ldquojusticcedilardquo

pressupotildee seu proacuteprio esquema de coordenaccedilatildeo de valores cuja aquilataccedilatildeo muacutetua depende

de um padratildeo fixo Postula Caacutelicles que tal padratildeo expressa os interesses de quem o

estabelece segundo os dois gecircneros disjuntivos ou a lei ou a natureza55

A noccedilatildeo

convencional de justiccedila exprime o fato de que a aceitaccedilatildeo dos interesses da maioria inferior

determina o tratamento apropriado para cada pessoa e constitui o padratildeo pelo qual as accedilotildees

satildeo reputadas como justas ou injustas O princiacutepio rival invocado por Caacutelicles estabelece

que os interesses dos homens superiores devam constituir o uacutenico padratildeo de justiccedila uma

vez que o que promove a superioridade desses homens eacute naturalmente justo56

e coincide

com a proacutepria natureza (IRWIN 1995 p 103) Sofrer injusticcedilas eacute proacuteprio de escravos que

nem sequer podem ser chamados ldquohomensrdquo para quem a morte seria melhor (kreittoacuten) do

que a vida A lei eacute estabelecida para defender os interesses desses homens fracos dos

muitos que proclamam que toda superioridade eacute desonrosa (toacute kataacute noacutemon aiskhiacuteon

leacutegontos) e que cometer injusticcedila eacute censuraacutevel Para os muitos a injusticcedila (adikiacutea) consiste

em avantajar-se (pleonektecircin) em ter mais (pleacuteon eacutekhein) (483b-c) Satildeo os interesses das

54 Aristoacuteteles nas Refutaccedilotildees Sofiacutesticas menciona explicitamente Caacutelicles e refere-se agrave oposiccedilatildeo entre

e como um muito difundido que leva os homens a proferir paradoxos na aplicaccedilatildeo

dos padrotildees da natureza e da lei ldquoque todos os antigos consideravam vaacutelidordquo (ARISTOacuteTELES 2005 173a p

571) Kerferd argumenta que embora seja possiacutevel que a expressatildeo ldquotodos os antigosrdquo se refira natildeo soacute aos

sofistas mas tambeacutem a preacute-sofistas a clara referecircncia de Aristoacuteteles aos dois loacutegoi indica que ele tinha

sobretudo os sofistas em mente (KERFERD 2003 p 194) 55 Segundo a interpretaccedilatildeo que Kerferd (2003 p197 ss) faz do fragmento DK 87B44 (87 B 44 [cfr 99 B

118 S) de Antifonte fica clara a antiacutetese entre phyacutesis e noacutemos As vantagens preconizadas pela lei satildeo

impedimentos para a natureza ao passo que as vantagens da natureza levam agrave liberdade e devem ser

preferidas agraves prescriccedilotildees da lei A justiccedila deve ser usada em proveito do interesse se houver presenccedila de testemunha Na ausecircncia destas somente a natureza deve ser obedecida Infere-se que o que eacute vantajoso

favorece a natureza e eacute da natureza humana ter vantagem Tudo aquilo que favorece a vantagem e o interesse

constituem um bem As leis e provisotildees satildeo cadeias que impedem a realizaccedilatildeo da natureza humana 56 Irwin afirma que o princiacutepio de Caacutelicles soacute eacute imparcial se a dominaccedilatildeo dos fortes for boa natildeo somente para

as pessoas superiores mas desejaacuteveis para algum outro ponto de vista distinto do delas O exame dessa

posiccedilatildeo exige que se prove que (1) violar regras de outras perspectivas de justiccedila eacute do interesse de algumas

pessoas que (2) estas pessoas satildeo superiores que (3) o que promove o interesse destas pessoas eacute naturalmente

justo (IRWIN 1995 p 103)

101

multidotildees fracas que delimitam o estabelecimento das leis cujo objetivo eacute limitar os

melhores e os mais robustos dos homens

Pois eu penso que aqueles que estabelecem as leis satildeo os homens

fracos e os muitos Por conseguinte eacute para si mesmos que

estabelecem as leis e atribuem elogios e censuras com os olhos em

sua proacutepria vantagem Eles aterrorizam os mais robustos dos

homens e potentes para ter mais e previnem estes homens de que

possuir mais do que eles mesmos e ter mais eacute vergonhoso e injusto

E que fazer injusticcedila eacute isto procurar ter mais do que os outros

Eles estatildeo satisfeitos se tecircm uma partilha igual quando satildeo

inferiores Eacute por isso que pela lei eacute dito ser injusto e vergonhoso

procurar ter mais do que os muitos e eacute isso que eles chamam

injusticcedila57

(Goacutergias 483b04-c08)

A questatildeo da justiccedila eacute por conseguinte indissociaacutevel da afetividade da vergonha

que configura aquilo que eacute aceitaacutevel e elogiaacutevel coletivamente A desonra deriva

diretamente do olhar coletivo que sanciona o elogiaacutevel e o censuraacutevel determinaccedilotildees de

todos os valores compartilhados pelos quadros mentais da cidade Aquilo que eacute vergonhoso

(aiskhiacuteon) eacute intrinsecamente associado ao afeto do senso de honra (aidōs) que por sua vez

brota da estima puacuteblica58

Aleacutem disso o desejo e a cobiccedila de ter mais a ambiccedilatildeo que

caracteriza a pleonexiacutea afeto primaacuterio estatildeo na ordem constitutiva do que Caacutelicles

considera justo por natureza A polarizaccedilatildeo entre phyacutesis e noacutemos sugere em seu bojo a

Traduccedilatildeo modificada a partir de Irwin (1979)

58 O termo expressa a vergonha e a ignomiacutenia segundo Chantraine (1999 p 40) e eacute empregado na

prosa aacutetica para indicar a feiuacutera repugnante O adjetivo deriva deste sentido original da vergonha provocada

pela deformidade mas possui tambeacutem o valor de ldquosenso de honrardquo Derivado de o tema de

exprime em Homero o sentimento de respeito diante de um deus ou superior e sobretudo o

sentimento que proiacutebe a covardia ao homem O sentimento tambeacutem estaacute ligado a partes

vergonhosas a genitaacutelia

102

tensatildeo mais basilar entre os apetites aquilo que Dodds chama de ldquoimpulsos individuaisrdquo e

a pressatildeo coletiva que instaura os valores considerados aceitaacuteveis ou a ldquopressatildeo de

adaptaccedilatildeo social caracteriacutestica de uma cultura baseada na vergonhardquo (DODDS 2002 B p

26) Desejos cobiccedila honra vergonha discursos e os pensamentos que os movem

configuram os princiacutepios basilares que justificam a noccedilatildeo da justiccedila e o gecircnero de vida

honoraacutevel

O termo Aidōs eacute empregado na narrativa de Gygeacutes para designar a respeitabilidade

de uma mulher o senso de honra da mulher daquilo que pode ser visto e daquilo que natildeo

pode ser olhado Heroacutedoto narra a desmedida do rei que contrariamente agraves interdiccedilotildees

longamente moldadas pela tradiccedilatildeo desejava mostrar a nudez de sua mulher usurpando e

violentando a sua respeitabilidade

Esqueceis que uma mulher desfaz-se do seu pudor quando se

despe() Gygeacutes natildeo podendo fugir agrave situaccedilatildeo declarou-se pronto

a obedecer Candaulo agrave hora de dormir conduziu-o ao quarto

para onde a rainha natildeo tardou a se dirigir O guarda viu-a despir-

se e enquanto ela lhe voltava as costas para alcanccedilar o leito

esgueirou-se para fora do aposento mas a rainha percebeu-lhe a

presenccedila Compreendeu o que o marido havia feito e suportou o

ultraje em silecircncio fingindo nada ter notado mas decidindo no

fundo do coraccedilatildeo vingar-se de Candaulo pois entre os Liacutedios

como entre quase todos os povos baacuterbaros constitui um oproacutebrio

mesmo para um homem o mostrar-se nu (HERODOTE I VIII-X

1850)

A conotaccedilatildeo da pudiciacutecia emerge do sentido original das partes vergonhosas a

genitaacutelia que deve estar coberta para os olhares dos outros Esse sentido segundo observa

Arlene Saxonhouse (2008 p 58) se estende para um contexto praacutetico-poliacutetico no qual o

olhar puacuteblico determina o entendimento comunitaacuterio daquilo que deve ser escondido e

daquilo que deve ser revelado Em Heroacutedoto a vergonha denota a transgressatildeo aos

costumes aos noacutemoi longamente sedimentados que se expressam nas leis reverenciadas

103

pela tradiccedilatildeo A violaccedilatildeo do rei Candaulo consiste em identificar as coisas belas com a

beleza natural da silhueta da mulher em detrimento da reverecircncia agraves leis A longevidade dos

costumes sedimenta as interdiccedilotildees que configuram a esfera do que eacute vergonhoso e

desonroso e por isso os limites das leis ancestrais exigem uma observacircncia e reverecircncia

que se aproximam da natureza A origem remota perdida num tempo em que satildeo gestadas

as belas coisas taacute kalaacute associa a reverecircncia a um acervo de valores que possui a mesma

caracteriacutestica do enclave miacutetico a ausecircncia de dataccedilatildeo Transgredir esses limites implica

uma exposiccedilatildeo e uma impudecircncia equivalente agrave nudez

O eacutelenkhos socraacutetico expotildee a nudez de afetos e pensamentos que reclamam

encobrimento agrave dissoluccedilatildeo do olhar coletivo59

Por essa razatildeo Goacutergias e Polus foram

constrangidos nas amarras da dialeacutetica preferiram deixar-se refutar a exporem-se na sua

nudez Eacute necessaacuterio pois que se faccedila a exposiccedilatildeo das causas do seu embaraccedilo Lei e

Natureza frequentemente se contradizem

A proacutepria natureza pode ser invocada como testemunho e prova de que a justiccedila eacute

precisamente contraacuteria agrave lei os animais os chefes de famiacutelia os homens nas cidades o

grande Rei da Peacutersia e o proacuteprio Zeus exemplificam que a lei da natureza a verdadeira

natureza do direito eacute contraacuteria agraves leis estabelecidas que subjugam os homens mais

vigorosos agrave escravidatildeo A igualdade entre homens desiguais (toacute iacuteson eacutekhosin oacutentes)

subverte a natureza O homem de natureza suficientemente bem nascido para pisar em

todas as ldquomagias encantaccedilotildees e leis estabelecidasrdquo faria ldquobrilhar a justiccedila da naturezardquo

(483e-484b)

59 Arlene Saxonhouse vecirc na personagem do rei Candaulo narrada por Heroacutedoto um precursor de Soacutecrates A

dialeacutetica socraacutetica revela aquilo que na perspectiva da tradiccedilatildeo aristocraacutetica deveria permanecer oculto e isso

acaba por levaacute-lo agrave morte (2008 p 59)

104

A exemplaridade paradigmaacutetica de Goacutergias resplandece na fala de Caacutelicles

Koacutesmos60

para a cidade virilidade para o corpo beleza para a alma sabedoria para o ato

excelecircncia para o discurso verdade (Elogio de Helena 1) Soacutecrates sob pretexto de

perseguir a verdade (aleacutetheia) profere discursos populares (demegorikaacute ndash Goacutergias 482e)

Cabe pois ao loacutegos exaltar o homem excelente por natureza e detrair o contraacuterio pois eacute

um erro louvar o censuraacutevel e censurar o louvaacutevel61

Assim como o discurso exemplar de

seu mestre promove a inversatildeo da maacute fama de Helena urdida pelos poetas assim tambeacutem

Caacutelicles empreende exposiccedilatildeo (dieacutegesis) que inverte a crenccedila gerada pelas encantaccedilotildees dos

que estabelecem as leis Anunciada a verdade de que a justiccedila eacute o direito natural do mais

capaz a loacutegica (loacutegismos) discursiva de Caacutelicles enuncia as razotildees pelas quais as leis satildeo

estabelecidas e propotildee o elogio da lei verdadeira a lei da natureza que eacute a primeira entre os

animais entre as famiacutelias entre os reis e entre os deuses tal como Helena por natureza

(phyacutesei) eacute a primeira entre os primeiros homens e mulheres e divina entre os deuses

(Elogio de Helena 3) A enumeraccedilatildeo dos exemplos consolida as bases da tese Tal como

brilha a beleza da primeira dentre as mulheres o homem vigoroso faz resplandecer o brilho

da justiccedila da Natureza Pela Natureza tal como por Helena vinham todos tanto pelo amor

aacutevido de vitoria quanto pela invenciacutevel avidez de honra reuacutenem-se os melhores e maiores

homens de riqueza gloacuteria forccedila e sabedoria adquirida (Elogio de Helena 4)

60Wardy (1996 p 30) chama atenccedilatildeo para o fato de que a palavra Koacutesmos conforme eacute empregada no Elogio

de Helena designa simultaneamente a ornamentaccedilatildeo e o artifiacutecio do discurso Originalmente o termo

designava a atraccedilatildeo especiosa arranjos impostos como a maquiagem de meretrizes Eacute improvaacutevel argumenta

Wardy que Goacutergias tivesse em vista um raciociacutenio loacutegico pelo qual a verdade como excelecircncia do loacutegos fosse adquirida somente atraveacutes de uma histoacuteria verdadeira O proecircmio do Elogio deve ser interpretado no

sentido de que Koacutesmos natildeo significa um mero ornamento artificial oposto agravequilo que a realidade eacute de fato

Seu objetivo eacute mostrar a verdade Adriano Ribeiro explicita e desenvolve a indicaccedilatildeo de Wardy afirmando o

significado de Koacutesmos como ornada ordenaccedilatildeo Eacute funccedilatildeo do loacutegos expor modelos de ornamentos de modo

ordenado A argumentaccedilatildeo ordena ressaltando o que conveacutem ao que eacute afirmado e afirmando o que eacute

propriamente verdadeiro A ornamentaccedilatildeo da palavra eacute sua verdade e a ela cabe pois distinguir o certo do

incerto o elogiaacutevel do censuraacutevel (RIBEIRO 2002 p 167) 61 GORGIAS Elogio de Helena Adoto a traduccedilatildeo de Daniela Paulinelli 2009

105

A exposiccedilatildeo das causas confere razoabilidade agrave fala e Caacutelicles justifica sua tese com

razotildees No caso de Helena62

as primeiras causas justificam sua ida para Troacuteia mediante um

toacutepos aceito universalmente ndash o de que eacute natural que o mais forte subjugue o mais fraco eacute

natural o mais forte conduzir e o mais fraco seguir (Elogio de Helena 6) No caso de

Caacutelicles as leis satildeo reputadas injustificaacuteveis porque constituem reaccedilatildeo dos mais fracos para

se protegerem da forccedila dos fortes e escravizaacute-los agrave condiccedilatildeo mais baixa Nos dois discursos

o mesmo toacutepos eacute alccedilado agrave condiccedilatildeo de verdade universal visto natildeo reclamar justificaccedilatildeo e

ter acolhimento em qualquer ouvinte sensato Eacute tatildeo natural ser constrangido pela

Necessidade ou por decreto divino quanto pela sobreexcelecircncia do homem superior

Ademais a forccedila da Necessidade dos deuses e do guerreiro armado eacute equiparada agrave forccedila

persuasiva do discurso O loacutegos age como senhor poderoso e a persuasatildeo possui a forccedila de

um rapto Tanto para Goacutergias como para Caacutelicles a natureza passa a ser ldquoum tipo de base

material conveniente para construir uma teoria da persuasatildeordquo (CROCKETT 1994 p 78)

Mas para Goacutergias o constrangimento pela forccedila eacute ato terriacutevel cujo agente deve

receber pelo discurso a acusaccedilatildeo pela lei a desonra pelo ato o castigo (Elogio de Helena

7) Os encantamentos divinos mediante os loacutegoi encantam a alma e nela induzem calafrio

de medo compaixatildeo e pesar comprazido (Elogio de Helena 8) Encantamento e magia se

encontram como teacutecnicas que geram erros da alma e ilusatildeo da opiniatildeo63

ndash os loacutegoi movem

os prazeres e removem as tristezas (Elogio de Helena 10) O uso abusivo do loacutegos por

natureza arrebata a psykheacute e por isso deve ser condenado A retoacuterica eacute uma arte de

62 A retoacuterica no Goacutergias observa Andy Crockett eacute feminina eacute mulher assim como a natureza e a desordem ao passo que o kosmos eacute masculino A concepccedilatildeo de que o mais forte subjuga o mais fraco eacute reforccedilada pelo

fato de a mulher ser naturalmente mais fraca do que o homem e pela misoginia da mulher no regime

democraacutetico ateniense fundamentalmente falogocecircntrico (CROCKETT 1994 p 71 ) 63

106

combate que deve ser usada de maneira legiacutetima contra os inimigos e criminosos como

meio de defesa e natildeo de agressatildeo (Goacutergias 457e) O mestre natildeo deve ser considerado

ldquoculpado ou criminosordquo pelo mau uso da arte Os criminosos satildeo ldquoos indiviacuteduos que fazem

mau uso de sua arterdquo (Goacutergias 457a) A forccedila encantatoacuteria e arrebatadora dos discursos por

constituir princiacutepio de accedilatildeo autocircnomo e causalidade proacutepria justificam a imputabilidade

Tem a mesma relaccedilatildeo tanto o poder do discurso para o

ordenamento da alma quanto o ordenamento dos faacutermacos para a

natureza dos corpos Pois assim como alguns dos faacutermacos

expulsam alguns humores do corpo e fazem cessar uns a doenccedila

outros a vida assim tambeacutem dentre os discursos uns afligem

outros deleitam outros atemorizam outros conferem ousadia aos

ouvintes outros por alguma maacute persuasatildeo drogam e enfeiticcedilam

completamente a alma

(Elogio de Helena 13)

A accedilatildeo conquistadora subjugante eacute movida pelo desejo eroacutetico e a passividade

daquele que eacute conquistado eacute como doenccedila que afeta a alma (Elogio de Helena 18) Se

poreacutem eacute uma doenccedila humana e um desconhecimento por parte da alma natildeo se deve

imputar como erro mas se deve julgar como infortuacutenio A accedilatildeo condenaacutevel do discurso eacute a

usurpaccedilatildeo psiacutequica que equivale agrave violecircncia do rapto

Caacutelicles ao contraacuterio de Goacutergias condena a limitaccedilatildeo da forccedila e a supressatildeo do fato

natural apoiado na polarizaccedilatildeo entre ativo e passivo conquistador e conquistado forte e

fraco capaz e incapaz desregramento e regra phyacutesis e noacutemos Sua defesa despudorada da

forccedila o tipifica como personificaccedilatildeo do disciacutepulo que desconhece a noccedilatildeo de justiccedila e que

por isso faz mau uso da retoacuterica e dos seus efeitos proacuteprios Caacutelicles elogia o belo e

censura o feio A persuasatildeo do loacutegos deve ser posta a serviccedilo da incontinecircncia do apetite

Condenaacuteveis satildeo os muitos que defendem seus interesses com as encantaccedilotildees e maacutegicas

com que estabelecem as leis Condenaacutevel eacute o eacutethos a moralidade do escravo Caacutelicles

advoga a justificaccedilatildeo retoacuterica da violecircncia cometida em prol do prazer com base na

107

constataccedilatildeo factual de uma ordem natural que premia o mais forte No plano da vantagem

nua e crua no campo dos interesses em conflito natildeo eacute natural que o menos capaz sobrepuje

o mais capaz

Na sua apologia agrave forccedila Caacutelicles promove uma re-significaccedilatildeo para o sentido de

noacutemos ao citar Piacutendaro a lei eacute de todos o rei64

dos mortais e dos imortais Como observa

Marian Demos ldquoo uso que Piacutendaro faz do termo (noacutemos) eacute livre de qualquer conotaccedilatildeo

ulterior Piacutendaro vecirc noacutemos como algo poderoso e inevitaacutevel que manteacutem todas as coisas

ldquocompensadasrdquo que regula todas as coisas Ao contraacuterio do que afirma Caacutelicles o poema

de Piacutendaro refere-se agrave forccedila (biacutea) de Heacuteracles qualificando-a como violecircncia e natildeo para

retratar seus trabalhos como modelo exemplar para a aquilataccedilatildeo daquilo que eacute mais justo

(DEMOS 1994 p 94) Enquanto o noacutemos no poema de Piacutendaro indica uma limitaccedilatildeo para

a violecircncia de Heacuteracles Caacutelicles usurpa o poeta e cita o trecho para sustentar sua tese de

que o uso da forccedila eacute a lei da natureza e justiccedila65

Estaacute advertido de que o recurso ao poeta

de renome e agrave comparaccedilatildeo com Heacuteracles possui um apelo persuasivo poderoso Toda

comparaccedilatildeo implica a aproximaccedilatildeo e transferecircncia de valores que satildeo acompanhadas por

afetos proacuteprios Os afetos ligados ao valor do modelo transferem-se para o termo

comparado Assim como Heacuteracles se valeu da violecircncia para roubar os bois de Geriatildeo a

violecircncia do homem superior encontra guarida na celebridade do precedente e nos valores

64 (Goacutergias 484b) 65 Segundo Apolodoro 2 4 8-9 (CARRIEgraveRE MASSONIE 1991 p 63) Heacuteracles filho de Zeus e

Alcmeacutene ultrapassava a todos em altura e forccedila Sua aparecircncia manifestava a todos que o viam que era um

filho de Zeus Seu corpo media quatro cocircvados seus olhos brilhavam com o claratildeo do fogo e suas flechas ou

dardos natildeo erravam o alvo A beleza do semideus se contrapotildee agrave monstruosidade de Geriatildeo seu corpo era

formado por trecircs dorsos reunidos na cintura e que se cindia novamente em trecircs a partir dos quadris e das

coxas (id 2 5 10 106 p 70) Morto por uma flecha de Heacuteracles o disforme Geriatildeo encarna a feiuacutera

monstruosa que estaacute na origem do afeto da vergonha O semideus por sua vez belo e poderoso cruza o

Oceano na taccedila de ouro do deus Heacutelios com o seu espoacutelio o gado puacuterpuro roubado de Geriatildeo

108

que o acompanham trata-se do modo de agir do semideus sobre-humano ndash o maior dos

heroacuteis da Heacutelade

Eacute notaacutevel o uso que Caacutelicles faz de coordenadas miacuteticas para a fundamentaccedilatildeo da

sobreexcelecircncia da forccedila natural e para a significaccedilatildeo do vergonhoso e do honroso A forccedila

encantatoacuteria arrebatadora maacutegica e enfeiticcediladora dos discursos eacute originada segundo

Goacutergias no divino (Elogio de Helena 10)66

Caacutelicles se vale de esquemas miacuteticos

longamente sedimentados nos quadros mentais gregos para consolidar afetos e valores A

encantaccedilatildeo estaacute na base da afetividade que configura modela e justifica as crenccedilas e a

opiniatildeo (NUNES SOBRINHO 2008 p 48ss) e o princiacutepio de accedilatildeo mais poderoso para a

identidade coletiva de uma sociedade baseada no combate e na disputa eacute configurado pelos

afetos ligados ao crivo puacuteblico

Segundo Burkert a busca pelo gado de Geriatildeo exprime uma tradiccedilatildeo preacute-grega

(1979 p 84) e segue um esquema de accedilotildees bem definido (1) o heroacutei empreende uma

busca (2) chega ao lugar de destino (3) comeccedila uma luta com o possuidor (4) derrota-o

(5) leva o gado (6) e retorna Este padratildeo segundo Burkert determina um esquema

antropoloacutegico invariante67

A narrativa miacutetica de Geriatildeo possui a especificidade de

descrever uma geografia coacutesmica Heacuteracles deve atravessar o Oceano no rumo do Sol por

meio da taccedila dourada presenteada por Heacutelios O Oceano eacute o ponto de encontro entre o ceacuteu e

a terra mediaccedilatildeo entre os poacutelos opostos delimitados pelo terrestre e pelo celestial O heroacutei

se vecirc diante de uma situaccedilatildeo problemaacutetica o trabalho de roubar o gado do monstro Geriatildeo

66 67 Walter Burkert segue a estrutura padratildeo e os motifemas estabelecidos por Vladimir Propp Segundo este

padratildeo o trabalho de Heacuteracles teria o seguinte esquema na ordem proposta por Propp Para apanhar o gado

de Geriatildeo sob o comando de Euristeu (9) Heacuteracles parte para uma longa viagem (11) Encontra o Velho

Homem do mar que lhe fornece algumas direccedilotildees (12 13) depara-se com Heacutelios o deus do Sol do qual

obteacutem um objeto maacutegico a taccedila de ouro para atravessar o Oceano (14) quando aporta agrave ilha Vermelha de

Eriteacuteia (15) trava um combate com o chefe dos animais um rugidor de trecircs cabeccedilas Geriatildeo (18) e apodera-

se da manada (19) (BURKERT 2001 p 88)

109

Para realizar a mediaccedilatildeo implicada pela tarefa recebe como recurso um instrumento

divino a taccedila de ouro presenteada por Heacutelios A travessia ou passagem de um plano

coacutesmico para outro soacute eacute realizada mediante o emprego de um recurso divino A ilha

vermelha Eryteacuteia (paiacutes vermelho) onde se encontra o gado puacuterpuro evoca o ocaso

momento de encontro coacutesmico A luta o emprego de recursos divinos a forccedila sobre-

humana e finalmente a vitoacuteria sobre o monstro disforme justificam a soberania e o poder

(VERNANT 2002 p 250 ss) A universalidade deste esquema miacutetico de pensamento

confere segundo Burkert significaccedilatildeo para a vida pastoral cujo maior problema era a

possibilidade de que o rebanho fosse perdido ou roubado O desaparecimento dos animais

era atribuiacutedo sempre agrave accedilatildeo de algum daiacutemon O heroacutei eacute venerado e cultuado em funccedilatildeo de

encarnar dar expressatildeo e significaccedilatildeo para a necessidade vital de lidar com o medo difuso

(ansiedade) da perda do rebanho e do roubo perpetrado por adversaacuterios funestos Eacute preciso

encontrar coragem para a busca daquilo que foi extraviado por potecircncias demoniacuteacas e

haurir proteccedilatildeo efetivada na forccedila heroacuteica que modela a exemplaridade do sucesso

(BURKERT 1979 p 85)

33 Aiskhyacutene Aidōs e Causalidade

Na Apologia Soacutecrates se vale do recurso ao paradigma miacutetico com o escopo de re-

significar o afeto da vergonha Diante da questatildeo da vergonha provocada pelo perigo de

morte decorrente de suas ocupaccedilotildees praacuteticas 68

Soacutecrates recorre aos valores heroacuteicos da

bela morte de Aquiles como meio de reformular a hierarquia daquilo que eacute temiacutevel

vergonhoso e desonroso Nenhum valor pode estar acima de uma vida honrada nem

mesmo o perigo da morte pois nada eacute pior do que viver na desonra Por menor que seja o

68

(Apologia 28b03-04)

110

valor de um homem a vida praacutetica natildeo deve calcular o perigo da morte mas somente se eacute

justa ou injusta se as accedilotildees satildeo as de um homem bom ou mau (28b05-09) Se o risco da

morte ensejasse a vergonha a vida dos semideuses de Troacuteia seria uma vida inferior jaacute que

o filho de Theacutetis natildeo se preocupou com o perigo da morte perante a ameaccedila da vergonha

A morte e o perigo nada satildeo em comparaccedilatildeo com a infelicidade de uma vida em que os

amigos do heroacutei natildeo satildeo vingados (28c08-29d01)

Em uma sociedade de confronto na qual para ser reconhecido eacute

preciso derrotar os rivais em uma competiccedilatildeo incessante pela

gloacuteria cada indiviacuteduo estaacute colocado sob o olhar do outro cada

indiviacuteduo existe por esse olhar Ele eacute o que os outros veem dele A

identidade de um indiviacuteduo coincide com sua avaliaccedilatildeo social da

derrisatildeo ao louvor do desprezo agrave admiraccedilatildeo Se o valor de um

homem permanece assim ligado agrave sua reputaccedilatildeo toda ofensa

puacuteblica agrave sua dignidade todo ato ou comentaacuterio que atinge seu

prestiacutegio seratildeo sentidos pela viacutetima enquanto natildeo forem

abertamente reparados como uma forma de rebaixar ou destruir

seu ser sua virtude iacutentima e de consumir sua queda Desonrado

aquele que natildeo conseguiu que o homem que o ofendeu pague pelo

ultraje perde com sua timḗ o renome o lugar na hierarquia e os

privileacutegios Separado das solidariedades antigas afastado do

grupo de seus pares o que resta dele Caiacutedo abaixo do vilatildeo do

kakoacutes que ainda tem seu lugar nas hostes do povo torna-se um

errante sem paiacutes ou raiacutezes eacute um exilado despreziacutevel um homem

sem nenhum valor

(VERNANT 2001 p 407-408)

A simetria das imagens miacuteticas garante a transitividade dos valores secularmente

preservados assim como a bela morte indica que os desvalores e perigos da vida nada satildeo

em comparaccedilatildeo com a gloacuteria reservada pela memoacuteria imortal assim tambeacutem os valores

seguros nada satildeo diante da desonra reservada pela injusticcedila do viver O risco do oproacutebrio

coletivo torna a vergonha e a desonra mais insuportaacuteveis do que o risco da morte

Eis a verdade destas questotildees Atenienses qualquer que seja a

ordem que algueacutem ocupe quer tenha se tornado melhor por si

mesmo ou fixado por um arkhonte o dever se impotildee como eacute minha

opiniatildeo de permanecer nele qualquer que seja o perigo sem

111

calcular nem a morte nem outra coisa acima da desonra

(Apologia 28d06-10)

O emprego argumentativo das imagens confere significaccedilatildeo agraves accedilotildees mediante o

aporte afetivo suscitado pela encantaccedilatildeo Soacutecrates opera uma transposiccedilatildeo e re-valoraccedilatildeo

dos valores a partir de esquemas psiacutequicos compartilhados incontestes no enclave da

paideacuteia miacutetica Assim como uma vida de desonra natildeo vale a pena ser vivida uma vida sem

exame natildeo merece ser vivida69

A simetria das imagens miacuteticas engendra por outro lado a

reversatildeo dos valores o melhor dos homens cidadatildeo da mais importante e mais renomada

cidade pelo saber e pelo poder deve se envergonhar por cuidar (epimeloumenos) das

riquezas da reputaccedilatildeo e da honra e por natildeo se preocupar de cuidar do pensamento da

verdade e da melhoria da alma (Apologia 29d) O emprego da encantaccedilatildeo miacutetica visa

transpor a triparticcedilatildeo de valores praacuteticos exteriores para a triparticcedilatildeo de valores psiacutequicos e

com isso re-significar o vergonhoso e o desonroso a epimeleacuteia da psykheacute valor supremo

interioriza o afeto da vergonha A vergonha e o honroso cujo escopo eacute a alma natildeo depende

do olhar coletivo e de suas sanccedilotildees mas referencia-se tatildeo somente no olhar da alma para

consigo mesma Mas o discurso revolucionaacuterio de Soacutecrates eacute incompatiacutevel com a

brutalidade da constataccedilatildeo do fato de que as riquezas a fama e o poder constituem os

maiores valores de todos os tempos A sobrelevaccedilatildeo desses valores natildeo pode apoiar-se

numa tradiccedilatildeo miacutetica cujo apanaacutegio consiste em consolidar mediante a crenccedila os afetos

que sancionam os esquemas psiacutequicos tradicionais

No Goacutergias a menccedilatildeo ao deacutecimo trabalho de Heacuteracles ao mesmo tempo justifica

a soberania natural do mais forte e define a exemplaridade para aquilo que eacute assimilado ao

disforme e vergonhoso Caacutelicles habilmente qualifica o processo de estabelecimento das

69 (Apologia 38a05-06)

112

leis como encantaccedilotildees70

e sortileacutegios71

cujo fim eacute a subjugaccedilatildeo da sobreexcelecircncia natural

A inculcaccedilatildeo das leis nos jovens eacute uma violecircncia tatildeo antinatural como a domesticaccedilatildeo dos

leotildees O mau uso da encantaccedilatildeo potecircncia intriacutenseca do discurso eacute assacado ao

estabelecimento das leis e natildeo agrave retoacuterica Mas a forccedila retoacuterica das imagens miacuteticas serve

ainda para desqualificar o anti-heroacutei encarnado por Soacutecrates

Pois agora se fosses preso tu e todos os teus semelhantes e jogado

na prisatildeo sob o pretexto de uma injusticcedila natildeo cometida tu estarias

sem defesa tomado de vertigem e com a boca aberta sem nada

dizer depois levado diante de um tribunal colocado diante de um

acusador sem talento nem consideraccedilatildeo tu serias condenado a

morrer se ele quisesse se honrar com tua morte

Goacutergias 486a-b

A falta de recurso de Soacutecrates identifica-se com a ausecircncia do expediente divino que

interveacutem nos mitos de culpa Destituiacutedo dos expedientes retoacutericos Soacutecrates estaacute na posiccedilatildeo

do anti-heroacutei que natildeo pode superar as situaccedilotildees impedientes A retoacuterica eacute recurso divino

sub-repticiamente associado agrave analogia entre o homem justo por Natureza e Heacuteracles Com

isso Caacutelicles extrai da valoraccedilatildeo miacutetica a forccedila persuasiva da encantaccedilatildeo fundamento da

70

(Goacutergias 484e05-06) 71

Segundo Elizabeth Belfiore (1980) Platatildeo recorrentemente usa o vocabulaacuterio dos sortileacutegios

( ) dos encantos () remeacutedios e venenos ( ) para condenar um

inimigo (Sofista 234c 235a 241b) (Repuacuteblica 598d 602d 601b 607c-d) Em outras passagens os prazeres

afrodisiacuteacos satildeo apresentados como enfeiticcedilamento (Feacutedon 81b) (Filebo 44c) (Repuacuteblica 584a) Soacutecrates eacute

apresentado tambeacutem como feiticeiro encantador (Meacutenon 80b) (Banquete 215c-d) A tese de Belfiore

consiste em identificar na Filosofia uma contra-maacutegica e o papel de desfazer ilusotildees Em Repuacuteblica III (412e

413a) a identifica-se com a exposiccedilatildeo agrave ilusatildeo e ao fortalecimento da opiniatildeo Haacute trecircs meios de

privar-se da verdade de maneira natildeo consentida ( ) pelo roubo pela forccedila e pela Os que

satildeo encantados mudam a opiniatildeo por prazer ou pelo medo (413c) O enfeiticcedilamento muda as opiniotildees opera

por meio dos afetos prazeres e do medo ( ) e implica o abandono da opiniatildeo verdadeira de maneira natildeo

consentida Conforme jaacute notava Goacutergias (Elogio de Helena 10) as encantaccedilotildees persuadem por

meio da mas tambeacutem podem causar o medo O medo eacute um iacutendice e um signo de reconhecimento

de que o corpo se manteacutem preponderante sobre o pensamento apanaacutegio da alma (Feacutedon 68c) Eacute do medo que

derivam as duacutevidas e as hesitaccedilotildees que paralisam as accedilotildees humanas (NUNES SOBRINHO 2008 p 51) A Filosofia 1) afasta as falsas opiniotildees por meio do eacutelenkhos 2) habilita a resistir contra o prazer e o medo e 3)

capacita a agir sem compulsatildeo Natildeo obstante o discurso como natildeo pode prescindir do concurso

das encantaccedilotildees que predispotildeem a alma agrave (Caacutermides 155e05-08) As encantaccedilotildees afastam os

medos destrutivos curam os afetos violentos e satildeo condiccedilotildees para o pensamento purificado (Feacutedon 66d)

113

opiniatildeo justificada pela crenccedila e inaugura no diaacutelogo o emprego da narrativa miacutetica como

elemento integrado agrave argumentaccedilatildeo

O processo de cinco etapas estabelecido por Burkert para descrever a sequecircncia

universal de accedilotildees que caracterizam as narrativas de situaccedilotildees impedientes emerge do

vaticiacutenio de Caacutelicles i) surge uma experiecircncia ameaccediladora inquietante do mal ou da

desgraccedila ii) a calamidade suscita a procura da causa iii) surge um mediador com

conhecimentos sobre-humanos um vidente areter ou adivinhador iv) um diagnoacutestico eacute

feito a causa do mal eacute definida atraveacutes do estabelecimento da culpa e da identificaccedilatildeo do

erro cometido v) uma vez definida a causa expedientes para a salvaccedilatildeo satildeo prescritos

como medidas expiatoacuterias rituais que natildeo excluem procedimentos de natureza racional

uma arte dolosa eacute requerida para a salvaccedilatildeo (2001 p 142) Esta eacute exatamente a estrutura

do argumento que estabelece o anti-heroiacutesmo de Soacutecrates A causa eacute identificada mas

faltam os recursos necessaacuterios para a salvaccedilatildeo O argumento indica uma conexatildeo entre

responsabilidade e puniccedilatildeo ou cataacutestrofe Haacute um nexo causal entre culpa e castigo

personificado na moira (DODDS 2002 B p 41) O vaticiacutenio de Caacutelicles eacute antes de tudo a

afirmaccedilatildeo de uma conexatildeo causal Soacutecrates acabaraacute condenado agrave morte por ser o uacutenico

responsaacutevel por sua proacutepria aporiacutea Falta-lhe o expediente encantatoacuterio propiciador da

salvaccedilatildeo

Se a finalidade do discurso for uacutenica e exclusivamente a persuasatildeo e a adesatildeo

suscitados mediante a mobilizaccedilatildeo afetiva e valorativa a mestria de Caacutelicles esboccedila outro

aspecto intriacutenseco aos loacutegoi aos sortileacutegios e agrave maacutegica72

ndash todos endereccedilados agrave multidatildeo

eles satildeo espetaculares Agrave hoplomakhiacutea dos discursos cabe por princiacutepio estabelecer o bom

72 (Elogio de Helena 10)

114

e o mau uso dos seus efeitos a encantaccedilatildeo e o assentimento pela crenccedila Este uso dos

efeitos determina o bom e o mau uso da retoacuterica em suma a sua moralidade

Kerferd sustenta a tese de que a posiccedilatildeo de Caacutelicles natildeo eacute imoral pois (a) ldquoenvolvia

a rejeiccedilatildeo do direito convencional em favor do direito natural como algo reivindicado como

mais alto melhor e moralmente superiorrdquo e (b) Caacutelices natildeo eacute culpaacutevel de simplesmente

reduzir ldquodeverdquo a ldquoeacuterdquo como resposta agrave questatildeo do que eacute certo visto que simplesmente

constata que o que acontece na natureza deve ser melhor (KERFERD 2003 p 201)

Todavia ao contraacuterio do que afirma Kerferd parece ser mais correto atribuir muito

mais arguacutecia a Caacutelicles e com mais razatildeo ainda a Platatildeo Caacutelicles como demonstra

Demos promove conscientemente uma inversatildeo no sentido de noacutemos conforme aparece

em Piacutendaro Isso indica a mestria de uma presunccedilatildeo que constitui um dos recursos retoacutericos

mais poderosos e que se tornaria perenamente vaacutelido no campo da argumentaccedilatildeo

verossiacutemil o da alegaccedilatildeo de que o habitual por ser sempre esperado pela opiniatildeo comum

continuaraacute sempre ocorrendo Caacutelicles parece perfeitamente ciente de que pode alegar que

o que eacute habitual torna-se normativo e por isso sem receios opera a passagem do eacute para o

deve

A parte final da peccedila retoacuterica de Caacutelicles constitui-se em exortaccedilatildeo A filosofia eacute

desqualificada como adestramento disciplina que participa (meteacutekhein) da educaccedilatildeo

propedecircutica que deve ser abandonada em favor das coisas maiores73

Tal adestramento eacute

semelhante ao dos animais que se pretende domesticar e ldquoeacute orientado no sentido de

extraviar e iludir sistematicamente as naturezas fortes e manter de peacute o poder dos fracosrdquo

(JAEGER 1995 p 668) O argumento aporta ao recurso da reprovaccedilatildeo pelo ridiacuteculo

(katageacutelastos) o exerciacutecio filosoacutefico eacute uma desmedida punida pelo riso puacuteblico Desajuste

73 (Goacutergias 484c)

115

entre a praacutetica particular e o que eacute aceitaacutevel publicamente extravagacircncia de um exerciacutecio

indecoroso que se opotildee ao que eacute conveniente e bem reputado (eudoacutekimon) pela cidade a

formaccedilatildeo filosoacutefica e o seu modo de vida correspondente satildeo contraacuterios agrave natureza O

resultado disso eacute a perplexidade a irresoluccedilatildeo (apragmosyne) diante da efetividade poliacutetica

e a incapacidade de prover defesa de si mesmo o criteacuterio uacuteltimo para um modo de vida

calcado no conflito de interesses

A Filosofia eacute desqualificada mediante a sua identificaccedilatildeo com parte de uma Paideacuteia

mais ampla e voltada para as questotildees poliacuteticas A inclusatildeo desvalorizadora num conjunto

de disciplinas equivalentes exige a aplicaccedilatildeo a um momento oportuno da formaccedilatildeo do

homem A excrescecircncia eacute assimilada ao desajuste ao despudor A fala de Caacutelicles promove

a reversatildeo da presunccedilatildeo que associa a sabedoria ao presbyacuteteros em vez de ser associada agrave

sabedoria do mais velho Soacutecrates eacute comparado ao adulto que se porta com a conduta de

uma crianccedila balbuciante O homem que age de modo infantil parece ridiacuteculo (katageacutelastos)

e desvirilizado (anaacutendros) e deve por isso receber o mesmo tipo de correccedilatildeo que se aplica

agrave crianccedila e que Soacutecrates faz por merecer pancadas74

(MICHELINI 1998 p 55)

Toda a forccedila moral do golpe retoacuterico deriva do fato secular e lentamente cristalizado

na noccedilatildeo de que o maior princiacutepio de accedilatildeo para um homem bem reputado eudoacutekimon natildeo

eacute ldquoo medo de um deus mas o respeito agrave opiniatildeo puacuteblica aidōsrdquo (DODDS 2002 B p 26)

Tanto a atitude moral de Polos como a de Caacutelicles expressam simultaneamente a boa

reputaccedilatildeo como um objetivo social a ser atingido e a vergonha como fracasso ambas

exploradas pela habilidade retoacuterica (DODDS 2002 A p 11 ss) Nada mais insuportaacutevel

74

o

(Goacutergias 485c)

116

para um psiquismo coletivo fortemente impregnado pela ldquovergonhardquo do que a exposiccedilatildeo ao

desprezo e ao ridiacuteculo

Natildeo eacute por acaso que a vergonha seja reconhecida como um leimotiv de toda a

encenaccedilatildeo dramaacutetica a palavra aiskhyacutene juntamente com suas formas verbais e o adjetivo

aiskhroacutes ocorrem setenta e cinco vezes no diaacutelogo Por essa razatildeo a estrateacutegia de

desvalorizaccedilatildeo da retoacuterica promovida pela dialeacutetica socraacutetica implica o esvaziamento

eacutetico-afetivo de princiacutepios de accedilatildeo tradicionais baseados na reputaccedilatildeo e na vergonha

puacuteblicas (RACE 1979 p 197ss) que satildeo constituintes basilares da mentalidade

aristocraacutetica ateniense Goacutergias e Polos foram viacutetimas Sua derrota foi causada sobretudo

pelo constrangimento decorrente da proacutepria vergonha que os forccedilou agrave assunccedilatildeo de que eacute

mais vergonhoso cometer injusticcedila a ter de sofrecirc-la (DODDS 2002 A p 263) Essa

vergonha equivale agrave pudiciacutecia que natildeo deve despir-se ao olhar coletivo a beleza natural das

partes iacutentimas a nudez A contradiccedilatildeo que torna o discurso insustentaacutevel emerge a partir

de afeto insuportaacutevel suscitado pelo discurso demagoacutegico o paacutethos da vergonha75

Afeto e

discurso satildeo congruentes implicam-se e significam-se mutuamente

Entatildeo Goacutergias foi envergonhado disse Polos e admitiu ensinar (a

justiccedila segundo o haacutebito (eacutethos) dos homens para que algueacutem natildeo

se indignasse se dissesse o contraacuterio Foi por causa dessa

concordacircncia que Goacutergias foi constrangido a contradizer-se o que

muito te satisfaz Por isso Polos te ridicularizou corretamente

segundo penso Agora ele sofre o mesmo constrangimento

(eacutepathen) E por causa disso eu mesmo natildeo admiro Polos pelo

consentimento de que cometer injusticcedila eacute mais desonroso (aiskhiacuteon)

do que cometecirc-la Pois por causa dessa concordacircncia ele foi

enredado (sympodistheigraves) por ti nos argumentos e foi emudecido

por se envergonhar de dizer o que pensa76

75

Goacutergias 482c05-07 76

(Goacutergias 482d03-e02) Traduccedilatildeo modificada a partir de Irwin (1979)

117

Caacutelicles fundamenta a divisatildeo entre natureza e lei no afeto da vergonha segundo a

lei (kataacute noacutemos) eacute vergonhoso cometer injusticcedila mas segundo a natureza ocorre

precisamente o contraacuterio Haacute dois sentidos para a vergonha concernentes a cada um dos

dois termos da divisatildeo77

Qual das duas vergonhas deve fundamentar o respeito a

reverecircncia e a honra que possibilitam o criteacuterio para a escolha da melhor vida Seraacute a

vergonha que emerge do olhar coletivo longamente moldado na tradiccedilatildeo e nos noacutemoi ou a

vergonha aristocraacutetica que remete para a forccedila natural sem consideraccedilatildeo para com as

convenccedilotildees A disjunccedilatildeo entre natureza e lei sempre haure sentido na exterioridade

Soacutecrates subverte o sentido da vergonha ao vinculaacute-la ao cuidado da alma e agrave virtude O

criteacuterio para a escolha dos valores deriva da auto-sēmasiacutea ele brota do olhar da alma para

consigo mesma

Mas para Caacutelicles phyacutesis e noacutemos satildeo incompatiacuteveis e se a vergonha constituir um

impedimento para que ousadamente se fale aquilo que se pensa necessariamente haveraacute

contradiccedilatildeo (482e-483a) O afeto da vergonha indica uma incompatibilidade entre as

crenccedilas o pensamento (noeacuteō) e o discurso publicamente assumido O principal elemento

que caracteriza as ldquoamarrasrdquo da dialeacutetica socraacutetica natildeo eacute meramente proposicional e natildeo

77 Bensen Cain critica o procedimento refutativo de Soacutecrates mediante a distinccedilatildeo semacircntica do que eacute

moralmente vergonhoso e do que eacute mau ou prejudicial Polos admite a existecircncia factual de uma vergonha

convencional mas natildeo assente ao fato de que accedilotildees injustas sejam maacutes Ao contraacuterio o exemplo de Arquelau

seria suficiente para provar que o homem mais injusto eacute o mais feliz A refutaccedilatildeo de Polos eacute de ordem

semacircntica e ocorre por identificar o vergonhoso com o prejudicial Cain qualifica a falsa refutaccedilatildeo socraacutetica como falaacutecia de ambiguidade um deslizamento (sliding) ou oscilaccedilatildeo ambiacutegua entre duas acepccedilotildees

semacircnticas da vergonha (2008 p 221 ss) A anaacutelise de Cain expotildee com bastante clareza o fato de que as

interpretaccedilotildees do eacutelenkhos satildeo insuficientes por natildeo levarem em conta o exame semacircntico do afeto da

vergonha Natildeo obstante sua leitura aleacutem de empregar a terminologia proposicional moderna de Vlastos

pressupotildee o princiacutepio natildeo explicitado de que a significaccedilatildeo semacircntica faz referecircncia a uma realidade objetiva

exterior Caacutelicles personagem platocircnica aponta exatamente o problema da distinccedilatildeo semacircntica dos dois

sentidos de aiskhroacutes aiskhiacuteon como expediente demagoacutegico empregado por Soacutecrates A questatildeo da

significaccedilatildeo afetiva todavia deveria ser auto-referenciada no acircmbito interno da alma

118

pode ser reduzido agrave consecuccedilatildeo de conclusotildees que decorrem de premissas fracas78

O iniacutecio

da contradiccedilatildeo aponta para uma dissociaccedilatildeo psiacutequica a oposiccedilatildeo entre a vergonha suscitada

pela reprovaccedilatildeo coletiva e as crenccedilas subjacentes ao pensamento79

O proacuteprio Caacutelicles

afirma que natildeo seria presa da vergonha em funccedilatildeo de discernir com exatidatildeo a distinccedilatildeo

entre phyacutesis e noacutemos Esta ausecircncia de vergonha eacute inversamente proporcional agrave ousadia

(toacutelmacirci) no falar que configura a sua ldquofranquezardquo No tinir das espadas da palavra

emergem os afetos e atributos psiacutequicos como princiacutepios da accedilatildeo e do gecircnero de vida

aceitaacutevel e honoraacutevel o apetite de ter mais a vergonha e a honra o pensamento os

discursos e seus efeitos o caraacuteter e a justiccedila A verdadeira contradiccedilatildeo (enantiacutea) eacute

contradiccedilatildeo entre discurso afetos manipulaccedilatildeo dos afetos (encantaccedilatildeo e goēteiacutea) e

pensamentos determinantes para a melhor vida a vida de mais brilho de maior valor forccedila

e significaccedilatildeo A verdadeira contradiccedilatildeo ocorre no acircmbito da complexidade da alma

A divisatildeo entre phyacutesis e noacutemos implica uma oposiccedilatildeo que procura reduzir a questatildeo

da justiccedila a duas partes tornadas incompatiacuteveis pelos interesses em oposiccedilatildeo que

configuram a inteireza da cidade A exaustividade das duas partes exclui a possibilidade de

qualquer outra subdivisatildeo e reduz o debate a duas posiccedilotildees antagocircnicas entre as quais se

78 Irwin aponta o ldquoescruacutepulo convencionalrdquo como base do diagnoacutestico do embaraccedilo em que se meteram

Goacutergias e Polos mas somente reconhece na passagem uma criacutetica proposicional ao meacutetodo refutativo

empregado por Soacutecrates Caacutelicles teria oferecido duas objeccedilotildees ao eacutelenkhos (i) Soacutecrates muda as premissas

do argumento preacutevio (ii) Soacutecrates depende de premissas concedidas pelo interlocutor e com isso

simplesmente fia-se nos preconceitos do interlocutor ou em visotildees com as quais natildeo concorda inteiramente

(1979 p 170) O desenvolvimento da criacutetica de Caacutelicles no entanto indica que o embate dialoacutegico gira em

torno da questatildeo do gecircnero de vida e da decorrente significaccedilatildeo do paacutethos da vergonha 79 Vlastos consigna ao eacutelenkhos a funccedilatildeo de testar ou provar o modo de vida e o caraacuteter ou a honestidade do interlocutor mediante a afirmaccedilatildeo de uma crenccedila que este efetivamente possui O gecircnero de vida nessa

perspectiva seria somente uma garantia da veracidade das teses defendidas e da seriedade na busca da

verdade Embora Vlastos reconheccedila que o eacutelenkhos possua o duplo papel existencial de ldquomostrar como cada

ser humano deve viver e testar aquele ser humano uacutenico que estaacute respondendo a fim de descobrir se ele vive

como algueacutem deve viverrdquo sua anaacutelise do eacutelenkhos padratildeo possui um enfoque inteiramente proposicional

segundo o qual o esquema baacutesico seria a anaacutelise ad hoc de proposiccedilotildees q e r natildeo conectadas logicamente agrave

crenccedila p do interlocutor a fim de se chegar agrave assunccedilatildeo de natildeo-p

olympiodoro

119

deve forccedilosamente escolher O artifiacutecio retoacuterico de Caacutelicles eacute paradigmaticamente

estrateacutegico apoacutes reduzir o debate a dois poacutelos excludentes passa-se a desqualificar a

posiccedilatildeo do adversaacuterio mediante a reduccedilatildeo ao ridiacuteculo para logo em seguida conferir

primazia para a uacutenica alternativa possiacutevel Por essa razatildeo a exortaccedilatildeo caricatura o modo de

viver filosoacutefico num quadro em que Soacutecrates passa o resto de seu tempo cochichando

(psithyriacutezdonta) sem que seja capaz de murmurar (phtheacutenxasthai) o que eacute livre grande e o

que vem a propoacutesito (Goacutergias 485d-e)

Sob a aparecircncia da disposiccedilatildeo amigaacutevel80

a admoestaccedilatildeo segue impulsionada pela

alegaccedilatildeo de um paacutethos de perigo iminente que enseja a estrateacutegia de mais uma comparaccedilatildeo

depreciativa segundo a qual a situaccedilatildeo protagonizada por Soacutecrates evoca aqueloutra

encenada na Antiacuteope de Euriacutepides81

Como o muacutesico Amphion Soacutecrates esquece o modo de conduzir as ocupaccedilotildees e

torna a natureza de sua alma pueril natildeo sabe cuidar de si natildeo eacute capaz de um loacutegos reto em

conselhos de justiccedila natildeo poderia apreender nem o razoaacutevel (eikoacutes) nem o persuasivo

(pithanoacutes) e nem poderia pocircr a serviccedilo de outro um conselho decidido (bouacuteleuma

80

81 Segundo M Canto (1993 p 333) o tema principal da trageacutedia de Euriacutepides era a libertaccedilatildeo de Antiope por

sues filhos gecircmeos Zḗthos e Amphion O primeiro era pastor e Amphion muacutesico Na encenaccedilatildeo Euriacutepides

opotildee dois modos de vida conflitantes mediante a tipificaccedilatildeo dos dois irmatildeos ao deslocamento de um artista e

filoacutesofo que se afasta das atividades puacuteblicas se opotildee a atividade praacutetica de um homem de accedilatildeo Croiset

(2003 p 284-285 n 1) afirma que Zḗthos era vigoroso e eneacutergico se dedicava agrave caccedila e agrave criaccedilatildeo de animais

ao passo que Amphion desdenhava os exerciacutecios violentos por possuir uma natureza mais fina e mais

sensiacutevel Amphion teria recebido de Hermes a lira com a qual se dedicava agrave muacutesica e agrave poesia E R Dodds atribui a Euriacutepides uma visatildeo anti-racionalista que vai de encontro com a concepccedilatildeo platocircnica de

uma ordem racional que perpassa o Koacutesmos Para Euriacutepides o homem eacute escravo da Necessidade e o divino eacute

muito mais um conjunto de potecircncias irracionais do que a expressatildeo de uma racionalidade A atitude de

Amphion em relaccedilatildeo agrave poliacutetica torna manifesto o artifiacutecio da comparaccedilatildeo desqualificadora usado por Caacutelicles

na sua exortaccedilatildeo No Fr 201 Amphion suplica conceda-me o dom da muacutesica e da afirmaccedilatildeo sutil natildeo

permita de forma alguma que eu me meta nos destemperos do Estado A alusatildeo agrave personagem da Antiope de

Euriacutepides caricatura e desvaloriza Soacutecrates Natildeo obstante Dodds acentua as diferenccedilas entre o poeta traacutegico e

Platatildeo ldquoO contemplativo platocircnico estaacute em casa no Universo porque ele vecirc o Universo como sendo

penetrado por uma razatildeo divina e portanto eacute acessivel agrave razatildeo humana tambeacutem Mas o homem de Euriacutepides

eacute o escravo e natildeo a crianccedila favorita dos deuses e o nome da bdquoordem sem idade‟ eacute a Necessidade

chora o Coro na Alcestis (DODDS 1929 p 101)

120

bouleuacutesaio)82

Ao comparar a sua exortaccedilatildeo com a reprimenda que Zḗthos dirige ao irmatildeo

por causa de uma atividade lassa Caacutelicles coloca Soacutecrates e Amphion num mesmo plano

Natildeo haacute modo mais direto de desqualificar o adversaacuterio do que comparaacute-lo com uma

personagem reconhecidamente despreziacutevel A contundente desqualificaccedilatildeo eacute endereccedilada

simultaneamente ao homem e agrave sua atividade e possui o inegaacutevel valor retoacuterico de suscitar

a adesatildeo sem reclamar justificaccedilatildeo pois se vale do proacuteprio processo mental com que o

homem comum forma a sua opiniatildeo

A fala de Caacutelicles deixa entrever que o tipo de racionalidade pretendida pela retoacuterica

natildeo se preocupa com a explicaccedilatildeo e as causas de seu procedimento mas tatildeo somente aduz

arrazoados que se valem das opiniotildees arraigadas no quadro mental da cidade para forcejar a

persuasatildeo A elaborada construccedilatildeo do discurso de Caacutelicles torna patente o fato de que

Platatildeo natildeo nega a eficaacutecia da engenhosidade retoacuterica Pelo contraacuterio eacute em funccedilatildeo da

eficaacutecia de uma praacutetica que se vale de esquemas de pensamento que natildeo satildeo explicitados eacute

que Platatildeo contrapotildee agrave retoacuterica a Filosofia como a uacutenica racionalidade legiacutetima A

racionalidade genuiacutena eacute aquela que natildeo somente sustenta seu loacutegos em causas mas que

garante a excelecircncia do ḗthos a partir de uma noccedilatildeo de justiccedila que ultrapassa a efemeridade

das circunstacircncias e das conveniecircncias

Agrave rhḗsis retoricamente bem acabada de Caacutelicles Soacutecrates sem detenccedila evoca a

alma como a instacircncia na qual os seus efeitos se manifestam A psykheacute eacute a origem e o fim

do loacutegos Este por sua vez eacute um meio pelo qual os movimentos psiacutequicos interatuam e

influenciam-se mutuamente engendrando inteligecircncia ou ilusatildeo miriacuteades de afetos

significaccedilotildees ou perplexidades Se a alma fosse de ouro (khryacutesen) Caacutelicles seria o liacutethos a

82 icirc

(Goacutergias 485e06-a03)

121

pedra de toque abrasiva que prova a preciosidade Assim como a pedra de toque prova o

ouro agrave alma prova o loacutegos

Agrave ordenaccedilatildeo da rhḗsis segue raacutepida a sutileza da eironeiacutea Baacutesanos eacute

simultaneamente a pedra de toque que prova o ouro e a interrogaccedilatildeo sob tortura ndash a forma

mais brutal e desumanizadora de violecircncia e de manifestaccedilatildeo de poder83

A exortaccedilatildeo

retoacuterica de Caacutelicles eacute pedra de toque ou tortura Olympiodoro observa que a metaacutefora

ressalta o papel de teste do eacutelenkhos assim como uma pedra friccionada agrave outra provoca a

faiacutesca que se torna chama uma dificuldade friccionada agrave outra se torna a causa da

descoberta Assim como a pedra prova o ouro a pureza da alma eacute provada pela dureza do

caraacuteter de Caacutelicles (OLYMPIODORUS 1998 p 194)

O emprego irocircnico da ambiguidade enseja o estabelecimento de condiccedilotildees

diretrizes Para provar (basanieicircn) suficientemente se uma alma vive retamente ou natildeo eacute

preciso trecircs qualidades o saber (episteacuteme) a benevolecircncia (eunoacuteia) e a franqueza

(parrhēsiacutea)84

Tais condiccedilotildees satildeo determinaccedilotildees da alma e se contrapotildeem discursivamente

agrave divisatildeo bipolar postulada por Caacutelicles entre phyacutesis e noacutemos A questatildeo da valoraccedilatildeo das

accedilotildees pressupotildee a esfera psiacutequica e essa triparticcedilatildeo (triacutea) de determinaccedilotildees psiacutequicas

83

Michael Gagarin (1996 p 1) mostra que a tortura era praacutetica corrente na democracia ateniense como

instrumento juriacutedico usado nos tribunais Uma norma bem conhecida sustenta que na maioria dos casos os testemunhos dos escravos soacute eram admissiacuteveis no tribunal se eles fossem levados sob tortura e nos discursos

forenses de sobrevivecircncia os oradores frequentemente descrevem as regras que regem e enaltecem

a praacutetica como a mais eficaz e ateacute mesmo ldquomais democraacuteticardquo (Lycurg 129) Era um toacutepos que a informaccedilatildeo

mediante era preferiacutevel ao depoimento de testemunhas livres Sendo assim um orador afirma

(Dem 3037) Certamente vocecircs (jurados) consideram como a prova mais precisa de todas em

ambos os casos privado e puacuteblico e quando escravos e pessoas livres estiverem ambas disponiacuteveis e vocecircs

precisarem descobrir algum fato sob investigaccedilatildeo natildeo usem o testemunho das pessoas livres mas sujeitem

os escravos ao dessa forma procurem descobrir a verdade E isso eacute bem razoaacutevel senhores do

juacuteri pois vocecircs sabem muito bem que no passado algumas testemunhas pareceram depor falsamente

enquanto ningueacutem que se sujeitou ao comprovadamente jamais falou falsamente sob 84

(Goacutergias 487a)

122

aponta ao mesmo tempo para um modo de unificaccedilatildeo e um modo de dissociaccedilatildeo ou de

fragmentaccedilatildeo

34 Parrhēsiacutea e Epithymiacutea

Polos ndash Por quecirc Natildeo me eacute permitido falar o quanto eu quiser

Soacutecrates ndash Terriacutevel sofrimento terias oacute excelente se desde tua

chegada a Atenas a cidade da Heacutelade onde a liberdade de falar eacute a

maior tu fosses o uacutenico homem que tivesse essa falta de sorte

Goacutergias 461d85

A liberdade da fala reflete o igualitarismo ateniense e a expectativa de que o

cidadatildeo se engaja na assembleacuteia mediante o discurso aberto A participaccedilatildeo direta na vida

ciacutevica pressupotildee a fala consonante com o pensamento de quem a profere A parrhēsiacutea

constitui-se na abertura do discurso que revela o pensamento de quem fala Qualquer

expediente que ofusque o pensamento como a retoacuterica86

denota a prevalecircncia dos

interesses particulares em detrimento do bem-estar da cidade

Nesse sentido a parrhēsiacutea aparece inicialmente como a fala aberta que revela o

pensamento e as verdadeiras crenccedilas do proferidor A parrhēsiacutea eacute a fala que desvela e

revela eacute o tipo de discurso mediante o qual o cidadatildeo da democracia ateniense se engaja

com igualdade junto aos demais concidadatildeos na assembleacuteia deliberativa para expor sem

impedimentos o seu pensamento Na democracia do Vordm seacuteculo as principais caracteriacutesticas

da parrhēsiacutea praacutetica distintiva da democracia de Atenas como observa Arlene

Saxonhouse satildeo i) a ousadia corajosa da praacutetica que envolve o risco de afrontar os

85 ΠΩΛOS Τί δέ νὐθ ἐμέζηαη κνη ιέγεηλ ὁπόζα ἂλ βνύιωκαη

ΣΩKRATES Δεηλὰ κεληἂλ πάζνηο ὦ βέιηηζηε εἰ Ἀζήλαδε ἀθηθόκελνο νὗ ηῆο Ἑιιάδνο πιείζηε

ἐζηὶλ ἐμνπζία ηνῦ ιέγεηλ ἔπεηηα ζὺ ἐληαῦζα ηνύηνπ κόλνο ἀηπρήζαηο 86 No seu trabalho acerca da liberdade da fala na democracia ateniense Arlene Saxonhouse afirma que a

parrhēsiacutea se opotildee mais do que suporta a praacutetica da retoacuterica que obscurece e distorce a verdade em favor do

benefiacutecio individual O verdadeiro falante parresiaacutestico repudia a arte da retoacuterica A retoacuterica com seu

objetivo de enganar natildeo eacute uma expressatildeo de parrhēsiacutea mas sua perversatildeo () O contraste entre a retoacuterica

e a parrhēsiacutea eacute um tropo familiar que perpassa as falas dos oradores do quarto seacuteculo A retoacuterica de acordo

com suas proacuteprias promessas obstrui a praacutetica da parrhēsiacutea e mina o papel da liberdade da fala como uma

atividade que procura a verdade no regime democraacutetico (2008 p 92)

123

princiacutepios legais e cultos ciacutevicos e ii) o aspecto de desvelamento envolvido na praacutetica que

simultaneamente expotildee os verdadeiros pensamentos do interlocutor e sua resistecircncia a

ocultar a verdade por causa da coerccedilatildeo decorrente do olhar puacuteblico da vergonha coletiva

(SAXONHOUSE 2008 p 87)

A retoacuterica aparece como teacutecnica que promete a liberdade entre os homens e o poder

sobre o outro na cidade87

o poder de dominar o olhar coletivo mediante a persuasatildeo ndash

encantaccedilatildeo dos loacutegoi A retoacuterica eacute a dyacutenamis de dominaccedilatildeo das grandes massas (en toicircs

plḗthesin Goacutergias 457a06) Seu ensino intrinsecamente voltado para o espetaacuteculo na

assembleacuteia natildeo requer nem o conhecimento nem a verdade mas o poder de mobilizar os

afetos e suscitar a persuasatildeo A potecircncia da retoacuterica eacute a potecircncia da ocultaccedilatildeo da ilusatildeo e

da elisatildeo aos impedimentos derivados do olhar coletivo Trata-se de um procedimento

discursivo que suprime a necessidade da verdade e torna a vergonha ineficaz pelo poder

encantatoacuterio da persuasatildeo No Goacutergias a parrhēsiacutea aparece como condiccedilatildeo epistecircmica do

discurso investigativo Fala do desvelamento e da abertura ao olhar a parrhēsiacutea se opotildee

encobrimento retoacuterico assim como a igualdade se opotildee agrave dominaccedilatildeo e agrave usurpaccedilatildeo e assim

como a instruccedilatildeo (maacutethesis) se opotildee agrave crenccedila (piacutestis Goacutergias 454d)

Goacutergias e Polos se contradisseram por causa da indiscriccedilatildeo elecircntica de Soacutecrates que

desnudou crenccedilas e princiacutepios de accedilatildeo cujo papel no acircmbito do jogo poliacutetico deveriam

permanecer ocultas Goacutergias e Polos foram refutados por causa da vergonha que os impediu

de usar a fala aberta da qual os atenienses se orgulham88

Estrangeiros eles satildeo

87 κὲλ ἐιεπζεξίαο αὐηνῖο ηνῖο ἀλζξώπνηο ἅκα δὲ ηνῦ ἄιιωλ ἄξρεηλ ἐλ ηῇ αὑηνῦ πόιεη Goacutergias (452d07) 88

ηὼ δὲ μέλω ηώδε Γνξγίαο ηε θαὶ Πῶινο ζνθὼ κὲλ θαὶ θίιω ἐζηὸλ ἐκώ ἐλδεεζηέξω δὲ

παξξεζίαο θαὶ αἰζρπληεξνηέξω κᾶιινλ ηνῦ δένληνο πῶο γὰξ νὔ ὥ γε εἰο ηνζνῦηνλ αἰζρύλεο ἐιειύζαηνλ ὥζηε δηὰ ηὸ αἰζρύλεζζαη ηνικᾷ ἑθάηεξνο αὐηῶλ αὐηὸο αὑηῷ ἐλαληία ιέγεηλ ἐλαληίνλ

πνιιῶλ ἀλζξώπωλ θαὶ ηαῦηα πεξὶ ηῶλ κεγίζηωλ

124

considerados saacutebios e amigos mas ao mesmo tempo deficientes de parrhēsiacutea e

excessivamente envergonhados Satildeo carentes de liberdade no falar e plenos de vergonha A

vergonha que sofrem eacute tatildeo grande que os impede de ter audaacutecia ambos se contradizem sem

poder contraditar a multidatildeo dos homens acerca de questotildees que para Soacutecrates satildeo as

maiores Ao contraacuterio do cidadatildeo ateniense tiacutepico os estrangeiros Goacutergias e Polos

suportam excessiva vergonha mas natildeo suportam a firmeza da palavra e de seus verdadeiros

pensamentos Mas ao contraacuterio de Goacutergias e Polos Caacutelicles eacute ateniense e pode falar

livremente (parrhēsiaacutezdesthai) sem se envergonhar (megrave aiskhyacutenesthai Goacutergias 487d05)

Todavia a parrhēsiacutea praticada nas assembleacuteias puacuteblicas atenienses pressupotildee a fala aberta

entre iguais iacutesoi ao passo que Caacutelicles eacute apologista da excelecircncia dos melhores dentre

desiguais Em que difere o livre-falar de Caacutelicles e a parrhēsiacutea isonocircmica ateniense Quais

satildeo as determinaccedilotildees que operam as distinccedilotildees entre franquezas antagocircnicas

A parrhēsiacutea aparece no Laacuteques ligada agrave questatildeo da consonacircncia entre o discurso e o

gecircnero de vida de quem o profere Jaacute no iniacutecio do proacutelogo Lisiacutemaco estabelece o falar

francamente89

como condiccedilatildeo preacutevia agrave discussatildeo que teraacute iniacutecio Os conselhos mais

importantes exigem consonacircncia entre o pensamento e opiniatildeo ao contraacuterio daqueles que

buscam conformar o discurso agrave opiniatildeo da maioria (Laques 178b01-03)

A questatildeo do cuidado (epimeacuteleia) necessaacuterio para que os filhos se tornem excelentes

(aacuteristoi) reclama a franqueza muacutetua (parresiasoacutemetha) no falar90

(Laques 179c01) A

consonacircncia entre discurso e pensamento eacute condiccedilatildeo sine qua non para o aconselhamento

conjunto (symbouleuacuteomai) acerca de questotildees importantes A deliberaccedilatildeo acerca do melhor

Goacutergias 486a06-487b05 89

(Laacuteques 178a04) 90 Emlyn-Jones interpreta o desejo de Lisiacutemaco em ser franco como uma exposiccedilatildeo de si proacuteprio ao potencial

ridiacuteculo e sacrifiacutecio do prestiacutegio social por fazer a revelaccedilatildeo da incompetecircncia paterna Essa exposiccedilatildeo ao

ridiacuteculo seria uma demonstraccedilatildeo praacutetica do seu desejo reiterado de cooperaccedilatildeo (1999 p 126)

125

pressupotildee natildeo somente o conhecimento daquilo que vai ser ensinado (maacutethēma) e de seus

efeitos mas a comunhatildeo (koinōniacutea) de fins que suscita um discurso veraz sobre o cuidado a

ser dado aos filhos (Laacuteques 179e)

O cuidado (epimeleacuteia) se opotildee agrave libertinagem dos que chegam agrave adolescecircncia e

fazem o que querem91

A preocupaccedilatildeo com o cuidado para com os filhos configura um

conflito dos valores proacuteprios agraves atividades da democracia ateniense do V seacuteculo a

dedicaccedilatildeo agraves atividades puacuteblicas dos homens bem reputados implica em negligenciar a

educaccedilatildeo dos proacuteprios filhos As belas accedilotildees empreendidas pelos eudoacutekimoi tanto na

guerra como na paz na ocupaccedilatildeo das coisas dos aliados e da polis (179c) engendram

como contrapartida a corrupccedilatildeo da aristeiacutea das geraccedilotildees subsequentes em razatildeo do

descuidar (ameleicircn) Filhos de pais nobres e bons Lisiacutemaco e Meleacutesias envergonham-se

(hypaiskhynoacutemethaacute) diante dos proacuteprios filhos por natildeo terem accedilotildees valorosas a narrar O

descuido implica uma vida de moleza (tryacutephan) cuja consequecircncia eacute a licenciosidade92

A

dedicaccedilatildeo agraves coisas dos outros (tōn aacutellōn praacutegmata eacutepratton) implica a ameleiacutea

negligecircncia que torna a vida poliacutetica incompatiacutevel com a excelecircncia e a nobreza que

configura o homem bem reputado (179d) O cuidado epimeleacuteia e terapecircutica exigidos

pela excelecircncia se opotildeem agrave ameleiacutea e agrave vergonha A encenaccedilatildeo dramaacutetica sugere que a

democracia aristocraacutetica ateniense carrega em seu bojo a vergonha que emerge da

incompatibilidade interna de seus valores

O proacutelogo do Laacuteques encena a oposiccedilatildeo entre tipos de comunhotildees excludentes O

cuidado com as praacuteticas poliacuteticas exige a comunhatildeo com a maioria e consequentemente

um gecircnero de discurso que se pauta pela opiniatildeo dos muitos em detrimento do pensamento

91 179a06-07 92 Sobre Lisiacutemaco e Meleacutesias personagens do Laacuteques ver introduccedilatildeo de L A Dorion (PLATON 1997 p

15-20)

126

O cuidado com os filhos exige a comunhatildeo e a atenccedilatildeo simultacircnea de todos os pais e

reclama um gecircnero de discurso inteiramente consonante com o pensamento (Laques 180b)

Essa consonacircncia constitui a franqueza muacutetua (parrēsiaacutezomai) que possibilita o bom

conselho Haacute pois ao mesmo tempo um viacutenculo entre o falar franco e o pensamento que

lhe corresponde e um viacutenculo da licenciosidade no falar com os desejos da maioria Satildeo

tipos opostos de franqueza A franqueza muacutetua que instaura a comunhatildeo do bom conselho

mediante o confiar (pisteuacuteesthai 180b06) se opotildee agrave fala livre empregada nas atividades

poliacuteticas

A comunhatildeo gera a veracidade a veracidade gera a boa reputaccedilatildeo (181b08) e a

confianccedila a confianccedila gera a maior benevolecircncia (eunouacutestaton 181b08) e a benevolecircncia

manteacutem salva a amizade A encenaccedilatildeo dramaacutetica do proacutelogo do Laacutequesingressa

simultaneamente a conexatildeo entre o cuidado com o eacutethos e a investigaccedilatildeo das maiores

questotildees e entre a parrhēsiacutea a eunoacuteia e a episteacuteme A comunhatildeo dos pais em torno da

finalidade comum da formaccedilatildeo e da excelecircncia abarca a competecircncia no ensino a

franqueza muacutetua a benevolecircncia e a amizade ndash condiccedilotildees epistecircmicas da investigaccedilatildeo

Laacuteques admite que sua atitude diante dos loacutegoi eacute dupla a saber que ora eacute tomado de

paixatildeo ora eacute tido como homem que os detesta Seu amor pelos discursos eacute condicionado

pelo fato de haver uma harmonia entre o homem e seu discurso homem que em funccedilatildeo

dessa harmonia eacute ldquoverdadeiramente umrdquo (188c) e ldquomuacutesico completordquo natildeo por tocar

instrumentos que divertem mas por acordar suas palavras (loacutegoi) com seus atos (erga) sua

proacutepria vida Os discursos bem falados que natildeo estatildeo em consonacircncia com o modo de vida

devem ser detestados Soacutecrates poderia se permitir belos discursos e falar com toda

franqueza (parrhēsiacuteas) pois seus atos eram suficientemente provados (189a) A

incompatibilidade entre o modo de vida e o discurso entre os erga e os loacutegoi indica uma

127

fragmentaccedilatildeo no acircmbito da alma Soacute eacute verdadeiramente ldquoumrdquo aquele que harmoniza seu

loacutegos com os seus atos que em uacuteltima instacircncia derivam de seus desejos

Em outras passagens a parrhēsiacutea aparece ligada aos apetites No Banquete apoacutes o

veemente desabafo em que Alcibiacuteades confessa seu amor eroacutetico por Soacutecrates diante de

todos os circunstantes ldquotodos riram da sua franqueza (parrhēsiacuteas) por parecer que ele

ainda era apaixonado de Soacutecratesrdquo (Banquete 222c) Na Repuacuteblica apoacutes a associaccedilatildeo da

origem do governo democraacutetico com a revolta da pobreza as caracteriacutesticas da polis

democraacutetica satildeo identificadas com a liberdade licenccedila de se fazer o que se desejar93

e

franqueza de falar (parrhēsiacutea) que permitem que cada um possa ter um gecircnero de vida

particular segundo sua proacutepria fantasia A polis democraacutetica eacute caracterizada pela

multiplicidade dispersatildeo de prazeres (hedeiacutea) pela anarquia (aacutenarkhos) e variabilidade

(poikiacutele) O homem democraacutetico eacute dominado pelos apetites (aphrodisiacuteon) desejos

supeacuterfluos que natildeo produzem nenhum bem e prejudicam simultaneamente o corpo a

alma o discernimento e a temperanccedila (558c-559d) A parrhēsiacutea eacute nesse contexto o loacutegos

licencioso que exprime o predomiacutenio dos apetites No Fedro a distinccedilatildeo entre o desejo de

prazeres e a aspiraccedilatildeo ao melhor determina tendecircncias psiacutequicas que ldquoora se acordam ora

se combatemrdquo (237b) O descomedimento caracteriza o predomiacutenio do desejo que arrasta

em direccedilatildeo aos prazeres e aquele que eacute dominado pelo desejo e escravo dos prazeres

(238e) procura obter do amado o maior prazer possiacutevel ao preccedilo dos maiores prejuiacutezos para

o corpo e para a alma O ciuacuteme e a inveja incitam no homem dominado pelo apetite uma

vigilacircncia tiracircnica que se expressa em censuras insuportaacuteveis e infamantes ldquose o amante se

embriaga e fala com uma franqueza (parrhēsiacutea) grosseira e impudenterdquo (240a) Mais uma

vez a parrhēsiacutea aparece num contexto em que se discorre sobre a escravizaccedilatildeo aos apetites

93 (Repuacuteblica 557b)

128

e um discurso licencioso que lhes corresponde No livro X das Leis a parrhēsiacutea eacute associada

ao discurso licencioso em relaccedilatildeo aos deuses proferido pelos iacutempios cuja caracteriacutestica eacute a

incapacidade de dominar o prazer e a dor (908c) De maneira geral a parrhēsiacutea eacute

relacionada ao discurso desimpedido sem peias impulsionado pelo apetite pelo vinho ou

excesso de liberdade (Leis 649b 806d 829d-e)

No Goacutergias a parrhēsiacutea eacute mencionada na ambiguidade irocircnica com que Soacutecrates

alude ao mesmo tempo ao livre curso dos apetites de Caacutelicles que engendram a violecircncia

do seu loacutegos e a qualidade psiacutequica pela qual a investigaccedilatildeo dialeacutetica assimilada ao exame

da alma pode chegar a bom termo A franqueza eacute a garantia pela qual o assentimento do

interlocutor a uma tese expressa sem dissimulaccedilatildeo sua crenccedila e sua opiniatildeo mas eacute

tambeacutem um indicativo de que certa ordenaccedilatildeo psiacutequica transpotildee seu movimento proacuteprio

para o loacutegos O discurso sem peias reproduz de modo direto a trama que entretece os afetos

neste princiacutepio de movimento e inteligecircncia que eacute a psykheacute (Fedro 245d)

Caacutelicles independentemente da questatildeo de sua historicidade congrega e personifica

uma ordenaccedilatildeo de valores tiacutepica Ele eacute como afirma Jaeger a encarnaccedilatildeo perfeita de um

tipo de homem o adulador (JAEGER 1995 p 682) Tal como Soacutecrates e as grandes

personagens que protagonizam um papel de primeiro plano nos diaacutelogos Caacutelicles torna-se

um mito pois adquire a atemporalidade e a exemplaridade dos tipos psiacutequicos que soacute o

mito pode abarcar (DIXSAUT 2001 p 157-161) Eacute justamente a atemporalidade miacutetica

que faz com que o tipo psiacutequico personificado por Caacutelicles possa ser revivido em todas as

eacutepocas como um tipo de homem

Muito se tem discutido se a personagem de Caacutelicles esconde uma adaptaccedilatildeo

platocircnica de uma ou mais figuras histoacutericas da alta aristocracia de seu tempo (CANTO

1993 p 38-39) ou se a viacutevida imagem que Platatildeo faz do oponente de Soacutecrates trai um

129

ldquoconflito que se passa dentro de uma soacute menterdquo conflito que faria de Caacutelicles um ldquoretrato

do eu rejeitado de Platatildeordquo (GUTHRIE 1995 p 102-103) mas que seria tambeacutem integrado

a ele mediante a expressatildeo de ldquosincero interesse pela seguranccedila de Soacutecratesrdquo (DODDS

2002 A p 13) Werner Jaeger afirma que Platatildeo se deu ao trabalho de ldquocompreender

Caacutelicles antes de subjugaacute-lordquo e talvez tenha sentido ldquono seu natural essa acircnsia irreprimiacutevel

de poder com poder suficiente para em Caacutelicles atacar uma parte de seu proacuteprio eurdquo

(JAEGER 1995 p 666)

Que Platatildeo tenha tido a inteligecircncia das fiacutembrias da afetividade humana mais

perversa o demonstram a eloquumlecircncia e brilhantismo das falas antoloacutegicas de suas

personagens Mas no Laacuteques a incompatibilidade estabelecida entre o discurso e as accedilotildees

indica que a questatildeo dos valores implica a harmonia ou o conflito na instacircncia da proacutepria

psykheacute No Goacutergias a mesma concepccedilatildeo se repete eacute preferiacutevel tocar uma lira mal afinada

ou dirigir mal um coro ou ainda natildeo estar de acordo com a maioria do que natildeo estar em

consonacircncia consigo mesmo e contradizer-se (482c) A distinccedilatildeo socraacutetica de uma

triparticcedilatildeo de determinaccedilotildees psiacutequicas sugere que o problema da ordenaccedilatildeo dos valores

remete sobretudo para o modo como satildeo ordenadas certas instacircncias da psykheacute A

triparticcedilatildeo de qualidades implica uma triparticcedilatildeo funcional Eacute o conflito e a desarmonia da

proacutepria psykheacute que determina a incompatibilidade entre os valores professados e o discurso

de um lado e as accedilotildees de outro

Que o Goacutergias retrata um conflito entre modos de vida e valores opostos o atestam

os combates eriacutesticos das personagens e o seu mito de julgamento final Mas Platatildeo foi

muito aleacutem de divisar um conflito entre seus valores e aspiraccedilotildees ocultas A espantosa e

imortal vivacidade da personagem ndash que talvez tenha feito a mais mordaz e impactante

130

apologia do poder e do apetite de todos os tempos ndash constitui o principal testemunho de que

Platatildeo estaacute advertido de que na psykheacute de cada homem vive um Caacutelicles

A bela terapecircutica da alma (kalocircs tetherapeucircstai tegraven psykheacuten) pressupotildee que o

assentimento agraves opiniotildees da alma (psykheacute doxaacutezei) seja tomado como princiacutepio

verdadeiro94

Para que se examine a questatildeo do que eacute justo e por conseguinte do melhor

modo de vida eacute preciso que se examine a constituiccedilatildeo psiacutequica a partir das opiniotildees Mas

para isso eacute preciso que se tenha a determinaccedilatildeo preacutevia da benevolecircncia (eunoacuteia)

A eunoacuteia aparece no Protaacutegoras95

como determinaccedilatildeo proacutepria dos amigos que

entretecircm discussatildeo Apoacutes exortar Soacutecrates para que natildeo abandone sua discussatildeo com

94

Callicles natildeo tenciona assentir equivocadamente por causa de estupidez embaraccedilo ou insinceridade Sua

franqueza assegura que ele defenda firmemente sua posiccedilatildeo anti-convencional Assim Soacutecrates parece

exagerar quando demanda que tudo aquilo que for aceito de comum acordo seja verdadeirohellip Ainda que ele o prenda atraveacutes de sua concordacircncia o que garante a verdade das conclusotildees (IRWIN 2003 p 102) Dodds

por sua vez observa que a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates tem sido tipicamente vista como sinal do valor excessivo

que Platatildeo atribui ao meacutetodo do eacutelenkhos A acidentalidade e a particularidade da opiniatildeo do interlocutor

implicaria um bdquodefeito‟ e inferioridade do eacutelenkhos (Robinson) em relaccedilatildeo agrave axiomaacutetica universal de

Aristoacuteteles (DODDS 2002 p 279-280) Todavia como o proacuteprio Irwin admite Platatildeo natildeo vecirc a posiccedilatildeo de

Caacutelicles como sendo a de um excecircntrico com um ponto de vista extremamente radical da justiccedila

convencional Trata-se simplesmente de uma declaraccedilatildeo convincente de pontos de vista atraentes para

muitos contemporacircneos de Soacutecrates e Platatildeo A concepccedilatildeo de uma virtude e de uma boa pessoa que eacute focada

no poder individual na riqueza e no status eacute bem estabelecida no pensamento eacutetico Grego e coexiste

problematicamente com a concepccedilatildeo de virtude vinculada agraves outras obrigaccedilotildees concernentes agrave justiccedila (ibid p

103)rdquo A identificaccedilatildeo das teses assumidas pelo interlocutor com a verdade natildeo constitui exagero nem do ponto de

vista da dialeacutetica socraacutetica nem do ponto de vista da retoacuterica Caacutelicles representa natildeo somente uma corrente

de pensamento que configura uma concepccedilatildeo de virtude e justiccedila proacuteprias ao pensamento grego de entatildeo mas

encarna certos valores e tipifica um tipo de caraacuteter que exerce um papel decisivo no jogo poliacutetico ateniense

Por mais absurdas que possam ser as teses assumidas como ldquoverdaderdquo o tratamento do eacutelenkhos possui o

objetivo justamente de conduzir o raciociacutenio ateacute as uacuteltimas consequecircncias dos postulados assumidos Teses

verdadeiras natildeo podem implicar conclusotildees contraditoacuterias e absurdas A refutaccedilatildeo frequentemente se faz

pelo absurdo ou incompatibilidade das conclusotildees com um acordo inicial em torno de algum postulado A

incompatibilidade denuncia mais um conflito entre valores e gecircnero de vida do que propriamente de

proposiccedilotildees contraditoacuterias Como nota Charles Kahn o eacutelenkhos eacute mais uma maneira de testar o modo de

vida do que de testar proposiccedilotildees (KAHN 1996 p 98 133) Ademais do ponto de vista retoacuterico natildeo existe adesatildeo e por conseguinte persuasatildeo sem o assentimento e o

acordo em torno de teses que demarcam o ponto de partida do arrazoado De qualquer maneira o acordo em

torno de opiniotildees deve ser tomado como se fosse uma verdade A dialeacutetica socraacutetica eacute sempre hipoteacutetica em

seu iniacutecio 95 Hiacutepias de Elis estabelece no Protaacutegoras a mesma distinccedilatildeo entre phyacutesis e noacutemos que eacute empregada no

argumento de Caacutelicles Mas ao contraacuterio da distinccedilatildeo estabelecida no Goacutergias para Hiacutepias os semelhantes

satildeo iguais por natureza e as leis satildeo as causas pelas quais se estabelece uma desigualdade arbitraacuteria entre os

homens Ver KERFERD 2003 189-221

131

Protaacutegoras Proacutedico opera a distinccedilatildeo entre ldquodiscutirrdquo (amphisbetheicircn) e ldquodisputarrdquo

(eriacutezein)

As pessoas presentes a semelhantes discussotildees devem ouvir

imparcialmente as duas partes natildeo poreacutem de modo igual o que

natildeo eacute a mesma coisa ambos devem ser ouvidos com a mesma

atenccedilatildeo mas natildeo podemos conceder aos dois igual interesse

poreacutem maior ao que se revelar mais saacutebio e menor ao de menor

preparo Eu tambeacutem Soacutecrates e Protaacutegoras peccedilo que vos mostreis

mais condescendentes cada um poderaacute dissentir (amphisbetheicircn)

da opiniatildeo do outro poreacutem sem brigar (eriacutezein) Entre amigos pode

haver discussatildeo com simpatia (benevolecircncia bdquoeunoacuteia‟) soacute brigam

adversaacuterios e inimigos

(Protaacutegoras 337a-b)

A disposiccedilatildeo amistosa eacute diretiva na dialeacutetica visto que o questionamento capcioso

natildeo visa agrave busca da verdade mas sobrelevar ao adversaacuterio (Meacutenon 75c-d) Na Repuacuteblica a

eunoacuteia designa a disposiccedilatildeo amistosa que se contrapotildee agrave hostilidade e agrave cupidez que leva agraves

dissensotildees e conflitos de gregos contra gregos A benevolecircncia impede o despojamento das

armas dos cadaacuteveres (Rep V 470a) e constitui o desiacutegnio amistoso de Glauco quando este

se propotildee a defender Soacutecrates da ira dos adversaacuterios diante da estranheza provocada pela

tese de que a cidade natildeo pode ser feliz a menos que o Rei seja Filoacutesofo (474a) No Teeteto

a benevolecircncia eacute a atitude socraacutetica associada agrave expurgaccedilatildeo das falsas opiniotildees mediante a

eroacutetesis (Teeteto 151c) O efeito da dialeacutetica eacute analogicamente um partejamento da alma

que pode trazer agrave luz tanto fetos saudaacuteveis como imagens que devem ser rejeitadas A

atitude de hostilidade de alguns causada pela refutaccedilatildeo se contrapotildee agrave benevolecircncia que

constitui o princiacutepio operador do procedimento cataacutertico dialeacutetico O desejo da verdade eacute o

princiacutepio de accedilatildeo que constitui a dialeacutetica e o desejo do bem eacute o princiacutepio de accedilatildeo de sua

aplicaccedilatildeo praacutetica Assim como nenhum deus eacute hostil aos homens Soacutecrates possui a

atribuiccedilatildeo divina de natildeo fazer concessatildeo agrave falsidade e de natildeo enfraquecer o brilho da

132

verdade (Teeteto 151d) A operaccedilatildeo dialeacutetica eacute impulsionada por benevolecircncia em

oposiccedilatildeo agrave malevolecircncia No Fedro a benevolecircncia designa a manifestaccedilatildeo praacutetica em

relaccedilatildeo ao amado do Eros divino que se infunde no amante Tal manifestaccedilatildeo permite que

o amado se decirc conta da superioridade acima de qualquer comparaccedilatildeo do amor eroacutetico que

supera todos os afetos reunidos que se lhe possam devotar (255b)

Em todos esses contextos a benevolecircncia configura uma disposiccedilatildeo e uma funccedilatildeo

psiacutequica conciliatoacuteria entre instacircncias que de outra maneira estariam em conflito Trata-se

efetivamente de uma mediaccedilatildeo que promove o acordo que harmoniza reconcilia que

opera amistosamente promovendo o bem trata-se de uma funccedilatildeo que determina um modo

pelo qual se instaura a therapeacuteia psykheacute funccedilatildeo que pressupotildee um saber preacutevio um noucircs

que eacute a inteligecircncia do bem

No Goacutergias a eunoacuteia eacute sobretudo exigecircncia para o exame da alma e por

conseguinte exigecircncia para o bom andamento da investigaccedilatildeo discursiva A eriacutestica se

contrapotildee agrave dialeacutetica assim como a alma dissociada e fragmentada por conflitos se

contrapotildee agrave alma harmocircnica e unificada A eunoacuteia assegura que o desejo seja orientado na

direccedilatildeo da episteacuteme Ela eacute a funccedilatildeo mediadora entre o Eros e a inteligecircncia a funccedilatildeo que

permite que um se sobreponha ao outro fecundando-se mutuamente para gerar os belos

discursos Mas eacute tambeacutem a disposiccedilatildeo altruiacutesta a interaccedilatildeo que faz com que o Filoacutesofo

autecircntico seja antes de tudo o amigo que faz com que dialeacutetica e philiacutea se pressuponham e

que o Filoacutesofo veja-se no amigo como num espelho (Fedro 255d)

A implacabilidade do eacutelenkhos socraacutetico no Goacutergias evidencia de maneira

inelutaacutevel que Caacutelicles natildeo eacute nem franco nem benevolente e nem tampouco ciente Isso

133

implica que Caacutelicles seja a imagem de uma fragmentaccedilatildeo psiacutequica96

Por outro lado o

movimento dramaacutetico do Goacutergias realccedila a figura de Soacutecrates reluzente como a imagem da

verdadeira franqueza da verdadeira benevolecircncia e da verdadeira paideacuteia (JAEGER 1995

p 671)

As questotildees de se saber qual eacute o tipo de homem que se deve ser e qual atividade

deve reclamar o primado da vida humana (Goacutergias 488a) natildeo podem ser respondidas no

plano dos interesses em conflito A questatildeo da justiccedila reivindica um paradigma que esteja

acima do plano das relaccedilotildees praacuteticas um modelo absoluto ao qual sejam reportados os erga

e os loacutegoi Tal paradigma natildeo pode ser circunscrito a uma esfera particular de tempo

cronoloacutegico e por isso a questatildeo do eacutethos e dos valores temporais deve ser aquilatada por

um modelo atemporal e absoluto que lhes sirva de norma e medida Mas o atemporal e o

que estaacute para aleacutem da reportaccedilatildeo muacutetua dos valores humanos que configuram a

mentalidade da cidade o modelo perenamente vaacutelido exige um discurso proacuteprio com

estruturas homoacutelogas agrave grandeza das noccedilotildees que ele pretende abarcar A esse discurso

Soacutecrates chama de um belo logos (kaloucirc loacutegos) que eacute tambeacutem um myacutethos

96 Olimpiodoro interpreta as personagens do diaacutelogo como personificaccedilotildees de tipos de caracteres Assim os

erros seriam cometidos por trecircs razotildees 1) uma opiniatildeo pervertida 2) por causa da ira 3) por causa do apetite

O caraacuteter mal orientado foi refutado nos argumentos com Goacutergias o caraacuteter irasciacutevel foi refutado com Polo e

o caraacuteter apetitivo deve ser refutado na figura de Caacutelicles (OLYMPIODORUS 1998 p 195)

134

35 ndash A retoacuterica da alma

No Goacutergias o recurso ao mito (que aparece em 492e ss) permite que a personagem

de Soacutecrates discorra filosoficamente sobre esferas que natildeo podem ser atestadas ou

verificadas A existecircncia da alma como instacircncia que congrega faculdades distintas e da

equaccedilatildeo somasema satildeo postulados atribuiacutedos a um engenhoso homem (kompsoacutes aneacuter)

Siciliano ou Itaacutelico Natildeo se trata de um filoacutesofo mas de um mitoacutelogo cuja identidade como

o demonstram Dodds (1986 p 297) Burkert (1972 p 248) e Huffman (1998 p 404 ss)

natildeo pode ser conhecida Segundo a alegoria da narrativa a alma eacute uma instacircncia complexa

e possui uma parte que eacute sede dos apetites (epithymiacuteai) e que em funccedilatildeo do seu

desregramento e da insaciabilidade eacute comparada a um tonel furado No mundo invisiacutevel o

Hades os miseraacuteveis satildeo os natildeo-iniciados eternamente condenados a encher toneacuteis furados

com crivos A alma dos irrefletidos seria como uma peneira que nada reteacutem por causa da

descrenccedila e do esquecimento (493b-d)

Por que Soacutecrates interrompe a linha argumentativa do eacutelenkhos com imagens que

ele mesmo reconhece como algo estranhas (ti aacutetopa) Qual a razatildeo do emprego em uma

argumentaccedilatildeo complexa com um interlocutor resistente e hostil de uma narrativa que o

proacuteprio Soacutecrates antecipa como impotente para persuadir Caacutelicles de que uma vida bem

ordenada eacute preferiacutevel agrave vida incontida e insaciaacutevel

A narrativa lanccedila matildeo de um acervo tradicional de crenccedilas que segundo Burkert

(1972 p 249) satildeo semelhantes aos escritos do papiro de Derveni Carl Huffman alega por

outro lado que a noccedilatildeo de uma alma que constitui a sede de todas as faculdades psiacutequicas e

do pensamento eacute posterior a Filolau de Croacutetona cuja concepccedilatildeo de alma eacute muito mais

restritiva Independentemente da fonte do mito seus elementos remontam ao que Vernant

(1987 p 89 ss) chama de ldquomisticismo gregordquo uma corrente de grupos fechados associados

135

a uma busca de imortalidade bem-aventurada obtida mediante a observaccedilatildeo de uma regra

de vida pura reservada aos iniciados

O uso filosoacutefico de um acervo miacutetico concerne a um estoque de crenccedilas que

moldam o quadro mental da cidade e representa segundo Brisson (1994 p 28) um

ldquoinventaacuterio indissociaacutevel de um sistema de valoresrdquo cuja importacircncia determina sua

conservaccedilatildeo em memoacuteria coletiva Mas eacute tambeacutem um meio que confere significaccedilatildeo para

a atitude socraacutetica que preceitua a regra de que eacute preferiacutevel sofrer injusticcedila a cometecirc-la

Atitude incompatiacutevel com a expectativa coletiva de se fazer bem aos amigos e mal aos

inimigos

A referecircncia recorrente a uma antiga tradiccedilatildeo que aparece no Feacutedon justifica a

inflexatildeo que o proacuteprio Platatildeo opera na homologia entre a Filosofia e a iniciaccedilatildeo esboccedilando

modos concorrentes de interpretar e re-significar um acervo de saberes potecircncias crenccedilas

afetos e imagens religiosas em uma transposiccedilatildeo determinante para a mentalidade de um

novo gecircnero de vida e um novo tipo de eacutethos A homologia entre o biacuteos dos cultos de

misteacuterio e suas correspondentes imagens miacuteticas exigidos para a iniciaccedilatildeo indica que a

significaccedilatildeo eacutetico-poliacutetica aportada pelo exerciacutecio filosoacutefico natildeo encontra referentes no

mundo fiacutesico mas somente num acervo compartilhado de crenccedilas e afetos que modelam os

quadros mentais de uma comunidade valores coletivos que configuram o psiquismo

norteador para as percepccedilotildees e o agir humanos (WINKELMAN 2010 p 14 ss)

Assim como na chamada antiga tradiccedilatildeo (palaiograves loacutegos - Feacutedon 70c) dos misteacuterios

haacute uma transmissatildeo iniciaacutetica para que os puros encontrem a bem-aventuranccedila no Hades na

Filosofia haacute o exerciacutecio cataacutertico da vida virtuosa e do pensamento depurado A pureza

ritual eacute assimilada aos raciociacutenios isolados das sensaccedilotildees corporais a alma raciocina mais

136

belamente quando despreza os sentidos e foge das sensaccedilotildees corporais e procura o mais

possiacutevel isolar-se em si mesma e tornar-se si mesma (dzēteicirc degrave autḗ kath‟autḗn giacutegnesthai)

Este isolamento da alma atraveacutes dos raciociacutenios (logiacutedzesthai) eacute correlato ao modo

de aquisiccedilatildeo do conhecimento e da manifestaccedilatildeo da realidade daquilo que ocupa o

pensamento A grandeza a sauacutede a forccedila e a realidade (tēs ousiacuteas) de todas as coisas e o

que cada uma delas eacute em si mesma exigem uma cataacutertica das sensaccedilotildees (taacutes aistheacutetaacute)

Somente o pensamento em si mesmo (autḗ tḗ diacircnoia) o pensamento sem mistura isolado

e sem comunhatildeo com o corpo pode sair agrave caccedila (epikheiroicirc thēreuacuteein thēreuacuteein tōn oacutentōn)

dos seres da verdade e da inteligecircncia purificada (phroacutenēsin) A purificaccedilatildeo anunciada por

um filoacutesofo genuiacuteno (Feacutedon 65b-67e) representa o sumaacuterio daquilo que jaacute representa uma

transposiccedilatildeo em relaccedilatildeo aos ritos purificatoacuterios das seitas de misteacuterio

Pierre Boyanceacute (1994 85-95) correlaciona esta ascese filosoacutefica a um acervo oacuterfico

cujo escopo seria a separaccedilatildeo dos elementos titacircnicos da psykheacute de sua parte divina O

discurso que Soacutecrates consigna a um anocircnimo descreve um caminho sagrado purificatoacuterio

uma trilha (atrapoacutes) que demarca o itineraacuterio da razatildeo e da investigaccedilatildeo O alvo da

investigaccedilatildeo eacute identificado com a verdade e seu princiacutepio de accedilatildeo com um apetite pela sua

posse (me pote ktēsōmetha hikanōs hougrave epithymoucircmen) Na prescriccedilatildeo iniciaacutetica do filoacutesofo

genuiacuteno haacute uma concepccedilatildeo quase material de que a alma estaacute dispersa como sopro nos

elementos corporais e que a sua mistura com o corpo engendra toda sorte de males e

impedimentos para a aquisiccedilatildeo da verdade e a caccedila aos seres A mistura da alma ao corpo

segue na esteira do mito de Dioniso Zagreu esquartejado e devorado pelos Titatildes Natildeo

obstante a trilha iniciaacutetica descrita no Feacutedon natildeo promove a separaccedilatildeo dos elementos

divinos do elemento corporal titacircnico mediante ritos purificatoacuterios Em vez disso a

exaltaccedilatildeo iniciaacutetica daacute lugar a um apetite pelo pensamento purificado a phroacutenesis Haacute uma

137

homologia entre o caminho sagrado dos ritos iniciaacuteticos e a trilha filosoacutefica Todavia o

alvo deste itineraacuterio natildeo eacute mais a pureza ritual mas a posse da verdade e o pensamento

isolado do corpo

A purificaccedilatildeo teleacutestica tem como finalidade a remoccedilatildeo das faltas do miasma que

determina o destino futuro apoacutes a morte Como afirma Vernant (1994 p 107) ldquoo miasma

se purifica sempre com uma lavagem mas tambeacutem bdquose consome‟ bdquoadormece‟ bdquose

dispersa‟ Eacute uma mancha e tambeacutem uma coisa que rouba um bdquopeso‟ uma bdquodoenccedila‟ uma

perturbaccedilatildeo bdquouma ferida‟ bdquoum sofrimento‟

O vocabulaacuterio indica que Platatildeo se apropria de uma tradiccedilatildeo filosoacutefica associada agraves

praacuteticas rituais de lustraccedilatildeo como os misteacuterios de Elecircusis e outras praacuteticas iniciaacuteticas

comodamente rotuladas de oacuterficas Assim como as faltas os crimes de sangue ou a

impiedade transmitem-se numa cadeia de impureza a purificaccedilatildeo estaacute relacionada agrave

transmissatildeo iniciaacutetica a ritos que suscitam a passagem de um estado para outro mais

elevado Essa transmissatildeo consolida todo um gecircnero de vida modelado por exerciacutecios

espirituais A iniciaccedilatildeo tal como o miasma pressupotildee uma cadeia de transmissatildeo que

remonta agrave antiga tradiccedilatildeo o princiacutepio e a fonte da pureza

No seu comentaacuterio agraves lacircminas de ouro oacuterficas Giovanni Carratelli observa que as

instruccedilotildees mortuaacuterias objetivam servir de guia para que a alma do iniciado seja liberta das

faltas mediante a iniciaccedilatildeo (myacuteēsis) Os ritos compreendem instruccedilotildees foacutermulas de

reconhecimento (syacutenthēma) ou palavras de passe o segredo provas dolorosas

(pathḗmatha) e a referecircncia constante a Mneacutemosyne personificaccedilatildeo divina da memoacuteria Haacute

o importante papel do guia o mystagogos na conduccedilatildeo de estatutos diversos entre os

recipiendaacuterios os Baacuteckhoi satildeo superiores aos myacutestai A palavra de passe ou a foacutermula de

reconhecimento pressupotildee o exerciacutecio menemocircnico que faculta o conhecimento da origem

138

divina anterior agrave vida terrestre As expiaccedilotildees e as lustraccedilotildees cataacuterticas suscitam a

prevalecircncia do elemento divino da alma Na lacircmina mortuaacuteria encontrada na necroacutepole de

Hipocircnio em uma tumba datada no fim do seacutec V encontram-se as instruccedilotildees

Tu iraacutes na morada bem construiacuteda de Hades agrave direita haacute uma

fonte

ao lado dela se ergue um cipreste branco

eacute laacute que descem as almas dos mortos e onde elas se refrescam

Desta fonte tu natildeo te aproximaraacutes

Mas mais adiante tu encontraraacutes uma aacutegua fria que corre

do lago de Mnemosyacutene acima dela se encontram guardas

Eles te interrogaratildeo em seguro discernimento

porque tu exploras as trevas de Hades obscuro

Dize bdquoEu sou filho da Terra e do Ceacuteu estrelado

Eu queimo de sede e desfaleccedilo Decirc-me raacutepido

De beber da aacutegua fria que vem do lago de Mnemosyacutene‟

E eles te interrogaratildeo pelo querer do rei ctocircnico

Eles te daratildeo de beber do lago de Mnemosyacutene

E tu quando tiveres bebido percorreraacutes a via sagrada

Sobre a qual tambeacutem os outros mystai e baacuteckhoi avanccedilam na

gloacuteria 97

(I A 1 9-11)

Como observa Radcliffe Edmonds (in CASADIO 2010 p 72 ss) as referecircncias a

Perseacutefone a Mnemosyacutene e a Dioniso tem levado os historiadores da religiatildeo grega a rotular

as instruccedilotildees iniciaacuteticas contidas nas lacircminas funeraacuterias de ouro como oacuterficas baacutequicas

egiacutepcias e pitagoacutericas ou ainda eleusinas Embora alguns editores correlacionem as

instruccedilotildees das lacircminas de ouro a uma katabasis que remontaria a um poema oacuterfico ou a um

livro dos mortos pitagoacuterigo Edmonds salienta que infortunadamente os textos

escatoloacutegicos satildeo excessivamente vagos para identificaacute-los precisamente com alguma

vertente religiosa

Muitos eruditos esforccedilam-se no sentido de encontrar um estema de influecircncias que

permita delimitar suas origens em certos contextos Mas as imagens miacuteticas e alusotildees ao

misticismo grego que aparecem em Platatildeo sugerem um emprego caleidoscoacutepico de

97 Traduccedilatildeo de Giovanni P Carratelli (2003 p 35)

139

elementos tradicionais que varia segundo o movimento de cada diaacutelogo Para o inteacuterprete

dos diaacutelogos o contexto eacute a suma tradicional das seitas de misteacuterio gregas

Para Giovanni Casadio se haacute uma fronteira ndash e isto estaacute aleacutem de questatildeo ndash que

demarca os limites entre Dionisismo (uma realidade concreta) e o Orfismo (uma realidade

muito mais nebulosa) noacutes somos incapazes de determinar precisamente onde esta fronteira

se encontra (CASADIO 2010 p 36-37) Mais do que estabelecer distinccedilotildees canocircnicas

entre dionisismo orfismo ou pitagorismo cumpre focar os esquemas invariantes de

pensamento nas seitas de misteacuterio e as homologias correspondentes que emergem no

movimento dramaacutetico-dialoacutegico dos mitos platocircnicos

A personificaccedilatildeo da memoacuteria relaciona-se com o rito de purificaccedilatildeo pela aacutegua que

permite o acesso agrave via sagrada A purificaccedilatildeo propiciada pela memoacuteria ressalta a primazia

do pensamento nocircus na experiecircncia iniciaacutetica que ascende o aspirante agrave alḗtheia A

foacutermula de reconhecimento eu sou filho da Terra e do Ceacuteu estrelado identifica o aspirante

com a estirpe divina e sugere sua purificaccedilatildeo ritual preacutevia ela serve como palavra de passe

que garante o acesso agrave divindade A katabasis descrita na lacircmina funeraacuteria alude ao

cumprimento de uma purificaccedilatildeo preacutevia pressuposta agrave prova da passagem e ao esforccedilo

vinculado a uma potecircncia psiacutequica personificada em Mnemosyacutene Platatildeo se apropria desse

acervo da antiga tradiccedilatildeo com a finalidade protreacuteptica de apresentar a Filosofia como um

exerciacutecio de morte e a kaacutetharsis como purificaccedilatildeo do pensamento

A verdade a realidade da sabedoria da justiccedila da coragem

consistem sem duacutevida em uma purificaccedilatildeo de todas as coisas e o

proacuteprio pensamento (phroacutenēsis) natildeo eacute senatildeo um meio de

purificaccedilatildeo Haacute uma grande chance de que aqueles que

estabelecerem entre noacutes as iniciaccedilotildees natildeo tenham sido homens

fracos Mas a realidade dos seres deve ser oculta em enigmas

(ainiacutettesthai) quando eles dizem que ldquoaquele que chega no Hades

sem ter conhecido os misteacuterios sem ser iniciado aquele seraacute

140

deitado na lama mas aquele que foi purificado e iniciado uma vez

laacute chegando habitaraacute com os deuses De fato como dizem aqueles

que tratam das iniciaccedilotildees ldquonumerosos satildeo os portadores de tirso

(narthekophoacuteroi) raros os Baacutekkhoi

(Feacutedon 69b12-c2)

A distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os impuros e os puros de um lado e entre os myacutestai e

os baacutekkhoi de outro indica a tese protreacuteptica de apresentar a Filosofia como um exerciacutecio

iniciaacutetico de ascensatildeo ao princiacutepio uacuteltimo da realidade dos seres A purificaccedilatildeo eacute transposta

para a purificaccedilatildeo do pensamento e das virtudes por meio da phroacutenesis A homologia entre

o segredo e a realidade posta sob forma enigmaacutetica para evitar a apropriaccedilatildeo por aqueles

que natildeo passaram pelo longo exerciacutecio cataacutertico eacute mantida natildeo ser puro e se apossar do

que eacute puro e de fato eacute preciso temecirc-lo eacute algo interdito (ou themitoacuten Feacutedon 67b01)

Todavia a menccedilatildeo aos portadores de tirso e baacutekkhoi no Feacutedon suscita

controveacutersias A qual tradiccedilatildeo se refere o passo Quais satildeo os ritos e qual eacute o contexto que

suscita a analogia entre iniciaccedilatildeo aos misteacuterios e iniciaccedilatildeo filosoacutefica Ana J Cristoacutebal em

um instigante estudo acerca do campo semacircntico das expressotildees baacutekkhos e bakkheuacuteein

indica que os termos possuem significados diferentes entre os ciacuterculos reconhecidos como

oacuterficos e o culto a Dioniso Baacutekkos e baacutekkhoi satildeo denominaccedilotildees daqueles que passaram por

ritos purificatoacuterios ou extaacuteticos vinculados a Dioniso Tais ritos induzem a um estado

miacutestico de intensa afetividade decorrente da exaltaccedilatildeo e entusiasmo provocado pelo deus

Baacutekkos eacute o atributo de um seguidor de Dioniso Bakkhos O verbo bakkheuacuteein por outro

lado denota a possessatildeo divina e dentre todos os testemunhos somente Euriacutepides o

emprega no sentido de adoraccedilatildeo a Dioniso A accedilatildeo de bakkheuacuteein descreve

simultaneamente os afetos experimentados no transe delirante e a performance ritual que

envolve procissotildees carregar e agitar tirsos ornamentados gritos sacrificiais (eyoicirc) danccedila e

vinho (CASADIO 2010 p 46-60)

141

A terminologia empregada na inscriccedilatildeo da lacircmina de Hipocircnio evidencia que as

expressotildees myacutestai e baacutekkhoi pertencem a um acervo cultural comum de imagens que

configura o mesmo pano de fundo para a classe geral dos cultos de misteacuterio As instruccedilotildees

funeraacuterias evocam uma ascensatildeo iniciaacutetica na via sagrada para que o recipiendaacuterio seja

acolhido entre os bem-aventurados gloacuteria reservada aos puros que passaram pelas provas

Somente os puros possuem a potecircncia psiacutequica unificadora da memoacuteria condiccedilatildeo para o

proferimento da palavra de passe o syacutentema e o conhecimento da aleacutetheia reservado aos

baacutekkhoi mediante o inaudito ndash os apoacuterrheta Como salienta Boyanceacute as purificaccedilotildees

oacuterfico-pitagoacutericas referenciam-se no mito de Dioniso Zagreu desmembrado pelos Titatildes e

podem perfeitamente coexistir com rituais baacutequicos de livramento com hinos danccedilas

coros e a alegria extaacutetica as paidiaacute hēdonōn censuradas por Platatildeo como um tipo de

orfismo baacutequico

Eles produzem uma multidatildeo de livros de Museu e Orfeu filhos da

Lua e das Musas diz-se Eles regram seus sacrifiacutecios sob a

autoridade destes livros e fazem acreditar natildeo somente aos

particulares mas agrave cidade que se pode pelos sacrifiacutecios e jogos

prazerosos (paidiaacutes hēdonōn) ser absolvidos e purificados de seu

crime enquanto vivo e mesmo apoacutes sua morte Eles chamam

iniciaccedilotildees estes ritos (teletaacutes) que nos livram de males no outro

mundo e que natildeo se pode sacrificar sem esperar terriacuteveis supliacutecios

(Repuacuteblica 364 e ndash 365 a)

Boyanceacute assimila as teletai com os misteacuterios de Elecircusis Mas como evidencia a

exegese do comentador de Derveni a criacutetica agrave degeneraccedilatildeo do viacutenculo entre longas praacuteticas

de exerciacutecio espiritual e do papel da inteligecircncia na busca pela verdade com o segredo e a

transmissatildeo oral de uma sabedoria jaacute fazia parte da reflexatildeo filosoacutefica preacute-socraacutetica No

Teeteto (155e-156a) Platatildeo adverte en passant que o jovem olhe em derredor para que

natildeo aconteccedila que algum natildeo iniciado ouvisse o que era dito Este cuidado indica a

transposiccedilatildeo filosoacutefica do estatuto iniciaacutetico para a investigaccedilatildeo terapecircutica operada pela

142

Filosofia que exige a preparaccedilatildeo da alma A separaccedilatildeo dos elementos titacircnicos operada

pela encantaccedilatildeo musical e da harmonia de afetos coexiste com as praacuteticas cultuais de

exaltaccedilatildeo baacutequica dionisiacuteaca e com a ventura eleusina

A tensatildeo entre a multidatildeo dos portadores de tirso e os poucos bakkhoi sugere uma

gradaccedilatildeo entre narthēkophoacuteroi e iniciados No Goacutergias a oposiccedilatildeo entre os ininteligentes

natildeo-iniciados (anoḗtous amyacuteetous Goacutergias 493a07) e os myacutestai aponta para uma

polarizaccedilatildeo radical entre seres irrefletidos que se entregam aos apetites e aqueles que

buscam a proporccedilatildeo harmocircnica da alma

A tradiccedilatildeo pitagoacuterica vinculada a Alcmeacuteon de Croacutetona define a sauacutede como

isonomia e como mistura simeacutetrica de qualidades (tḗn syacutemmetron tōn poiōn kraacutesin) A

harmoniacutea resulta de um equiliacutebrio ao mesmo tempo espacial e temporal e nesse sentido haacute

uma equivalecircncia semacircntica kairoacutes-syacutemmetros o momento oportuno num arranjo

ordenado Kairoacutes symmetriacutea e eurythmiacutea configuram uma percepccedilatildeo refinada de

harmonia A noccedilatildeo de symmetriacutea se desdobra entre os preacute-socraacuteticos como proporccedilatildeo ou

uma identidade de relaccedilotildees A transposiccedilatildeo de semelhanccedila de relaccedilotildees se desdobra na

analogia identidade ou semelhanccedila de loacutegoi A funccedilatildeo da analogia consiste em remeter

uma multiplicidade de loacutegoi a uma unidade Funccedilatildeo unificadora a proporccedilatildeo geomeacutetrica e

a expressatildeo matemaacutetica da identidade de relaccedilotildees designam outro aspecto correlato da

harmonia a noccedilatildeo de mediania o meacuteson o meio-termo ndash mēsoacutetēs ndash que se estende para o

acircmbito da psykheacute como metreacutetica dos afetos A medida do tempo e o esforccedilo de conciliaccedilatildeo

entre o periacuteodo lunar e o solar engendram o problema matemaacutetico e geomeacutetrico da

comensurabilidade A harmocircnica pitagoacuterica conecta simultaneamente noccedilotildees qualitativas e

quantitativas temporais e espaciais ritmo e consonacircncia musical com o equiliacutebrio de

opostos no corpo na alma e na cidade (PERILLEacute 2005 p 24-65)

143

A menccedilatildeo ao Hades indica que os mitos escatoloacutegicos discorrem sobre o invisiacutevel

(Feacutedon 81c Craacutetilo 404b) sobre a natureza da alma seu destino futuro e seu papel na

economia cosmoloacutegica Em particular a passagem do Goacutergias postula o fato de que a alma

eacute complexa e que os apetites satildeo atributos psiacutequicos e natildeo corporais

Segundo Olimpiodoro o mito filosoacutefico eacute elaborado para que o invisiacutevel seja

inferido a partir do visiacutevel e aparente Como a alma natildeo eacute constituiacuteda somente pelo

pensamento mas tambeacutem pelos afetos e desejos o discurso deve ser multifacetado de

modo a corresponder a cada esfera psiacutequica Uma estrutura psiacutequica complexa exige uma

inteligecircncia complexa que por sua vez pressupotildee uma estrutura discursiva complexa

Conforme a tese claacutessica de Pierre Boyanceacute adotada pela maioria dos inteacuterpretes

que abordam os mitos platocircnicos o principal efeito da narrativa miacutetica eacute a ldquoencantaccedilatildeordquo

(epoidḗ) o efeito cataacutertico e terapecircutico irresistiacutevel do charme O mito filosoacutefico eacute o

discurso que expressa um pensar por imagens que eacute endereccedilado agrave parte afetiva da psykheacute

Em funccedilatildeo de sua accedilatildeo eficaz sobre os afetos o mito exerce uma accedilatildeo persuasiva que

consolida os postulados inverificaacuteveis que conferem significaccedilatildeo para as accedilotildees praacuteticas

A alegoria do tonel furado como nota Vernant eacute uma alusatildeo agrave condenaccedilatildeo infligida

agraves Danaides Segundo Apolodoro (II 1 5) na sua noite de nuacutepcias as filhas de Dacircnao em

colusatildeo com o pai decapitam seus maridos e primos filhos de Egito Por causa disso os

juiacutezes divinos condenaram-nas a encher eternamente toneacuteis furados no Hades

Carl Kereacutenyi alude ao fato de que o casamento eacute para os gregos um importante

teacutelos que demarca um rito de passagem (1998 p 46) As penas eternas indicam uma falta

vinculada agrave ausecircncia de teacutelos de completaccedilatildeo ou iniciaccedilatildeo

A iniciaccedilatildeo eacute transposta por Platatildeo em exerciacutecio filosoacutefico no esforccedilo que culmina

na phroacutenesis no pensamento puro que implica o isolamento psiacutequico No Goacutergias as

144

almas dos natildeo iniciados satildeo como toneacuteis furados que nada retecircm por descrenccedila e

esquecimento (493b) A ausecircncia de teacutelos eacute segundo Vernant (1990 p 146 ss)

indissociaacutevel do esquecimento que implica o ciclo do devir e da necessidade O

esquecimento representa a imersatildeo no eterno ciclo do tempo o eterno recomeccedilo a roda do

nascimento que faz com que a alma tome o breve instante da vida como se fosse totalidade

do tempo O mal supremo para a alma consiste em tomar a causa de um afeto violento

como se fosse a realidade mais verdadeira (Feacutedon 83c)

A transposiccedilatildeo filosoacutefica operada por Platatildeo insere o esquecimento e a memoacuteria

numa teoria do conhecimento que seraacute desenvolvida a partir do Meacutenon e do Feacutedon A

ameacuteleia ou ausecircncia de inquietaccedilatildeo configura o estado psiacutequico da vida voltada para os

apetites em detrimento da anaacutemenesis que suscita o exerciacutecio filosoacutefico que culmina na

inteligecircncia das verdades eternas A anaacutemenesis tende para o teacutelos que implica a visatildeo

unificada da totalidade do tempo pacircs khroacutenos

Na transposiccedilatildeo platocircnica meleacutete thanaacutetou eacute o exerciacutecio de morte mencionado no

Feacutedon pelo qual o pensamento puro eacute isolado da inconstacircncia do devir e da eterna

insaciabilidade dos apetites A menccedilatildeo breve do Goacutergias anuncia postulados ingressivos

que comporatildeo ao longo das obras centrais de Platatildeo uma visatildeo cosmoloacutegica unificada na

qual as questotildees eacuteticas satildeo abarcadas no domiacutenio mais amplo de uma epistemologia e

psicologia que por sua vez satildeo alicerccediladas numa ontologia

As imagens subsequentes correlacionam modos de vida excludentes com o

regramento e desregramento Um gecircnero de vida eacute representado por um homem que possui

toneacuteis repletos de conteuacutedos valiosos e que por isso natildeo se preocupa e se aquieta o outro eacute

representado por um homem cujos toneacuteis satildeo furados e que por isso eacute forccedilado agrave atividade

penosa de preenchecirc-los incessantemente O gecircnero de vida eacute determinado pela constituiccedilatildeo

145

psiacutequica que define um tipo de homem A alma temperante possui a inteligecircncia da ordem e

do regramento A inteligecircncia institui ordem naquilo que eacute desregrado A alma epitymeacutetica

eacute aquela inexoravelmente voltada para a repleccedilatildeo do vazio para o movimento sempre

renovado de uma saciedade que eacute continuamente relanccedilada na efemeridade do tempo

(DIXSAUT 2001 p 138) Desejo que nenhum recipiente pode conter esquecimento de

todo teacutelos o apetite eacute um estado penoso (Goacutergias 496d) que nunca se aquieta com a posse

do alvo desejado e que por isso reclama ausecircncia de limites

Por conseguinte mesmo que algueacutem seja de outro ponto de

vista na verdade aquele que realmente eacute tirano eacute realmente

escravo vive no cuacutemulo da bajulaccedilatildeo e da escravidatildeo e eacute adulador

dos maiores malfeitores Ele natildeo satisfaz de nenhum modo seus

desejos mas apareceria inteiramente desprovido de todas as coisas

e pobre se pudeacutessemos considerar a inteireza de sua alma Ele

extravasa de medo ao longo de toda a sua vida e eacute repleto de

sobressaltos e sofrimentos se de fato se assemelha agrave disposiccedilatildeo da

cidade que dirige

(Repuacuteblica 579e)98

Mas como pode se justificar a conexatildeo entre a inteligecircncia e o regramento Somente

a ordenaccedilatildeo e o regramento podem segundo Soacutecrates modelar uma visatildeo unificada que

vincula o ceacuteu a terra os deuses e os homens num conjunto articulado numa comunidade

cingida pela amizade ou amor da ordem (Goacutergias 507e-508a)

A lei universal que governa todas as esferas do kosmos que dirige ao mesmo

tempo o plano eacutetico-poliacutetico e a physis eacute a igualdade geomeacutetrica ndash todo-poderosa (mega

dyacutenatai) tanto entre os deuses como entre os homens O gecircnero de vida filosoacutefico norteia-se

pelo postulado de que haacute um princiacutepio unificador que cinge todo o kosmos o humano e o

divino segundo uma ordenaccedilatildeo matemaacutetica

98 Trad de Pierre Pachet (1993 p 466)

146

Walter Burkert (1972 78 n 156) Dodds (1959 339) Vlastos (1981 195 n 119) e

Irwin (1979) concordam que Platatildeo estaacute fazendo uma referecircncia direta a Arkhytas de

Tarento nas passagens em que satildeo mencionadas a geometria e a proporccedilatildeo no Goacutergias De

acordo com Carl Huffman um proeminente tema do final do pensamento do seacutec V aC

conecta a ambiccedilatildeo pleonexiacutea com o que eacute por natureza em contraste com o que eacute por

convenccedilatildeo Para Arkhytas a pleonexiacutea eacute a maior causa de discoacuterdia e instabilidade poliacutetica

do seu tempo A pleonexiacutea eacute associada com o abuso de poder tanto por um tirano quanto

por uma oligarquia rica Para combatecirc-la eacute necessaacuterio natildeo somente a lei mas a logistikeacute a

ciecircncia do caacutelculo e da geometria

No Goacutergias a pleonexiacutea de Caacutelices eacute explicada em termos da negligecircncia da

geometria e da igualdade geomeacutetrica No fragmento 3 (Stobeu e Jacircmblico) da ediccedilatildeo de

Huffman a igualdade que resulta do caacutelculo das proporccedilotildees como cura para a pleonexiacutea eacute

notavelmente paralela agrave do Goacutergias

Pois eacute necessaacuterio tornar-se ciente sendo insciente ou aprendendo

de um outro ou descobrindo por si mesmo Aprendendo a partir de

outro pertence a outro enquanto descobrindo por si mesmo

pertence a si mesmo Descoberta enquanto natildeo investigada eacute

difiacutecil e infrequumlente mas enquanto investigada faacutecil e frequumlente

mas se algueacutem natildeo sabe ltcomo calculargt (logiacutezdestai) eacute

impossiacutevel investigar

Uma vez que o caacutelculo foi descoberto impede a discoacuterdia e

aumenta a concoacuterdia Pois natildeo procuram ganacircncia desmedida

(pleonexiacutea) e igualdade existe uma vez que isto veio a ser Pois por

meio do caacutelculo (proporccedilatildeo) veremos reconciliaccedilatildeo em nossas

transaccedilotildees com os outros Por causa disso entatildeo o pobre recebe

do poderoso e o rico daacute para o necessitado ambos crendo que

haveraacute igualdade Isto serve como um cacircnon e um impedimento

para a injusticcedila Impede aqueles que sabem como calcular antes

que eles cometam injusticcedila persuadindo-os que eles natildeo poderatildeo

ficar ocultos sempre que eles aparecem para ele (o cacircnon) Impede

aqueles que natildeo sabem como calcular de cometer injusticcedila tendo

revelado a eles como injustos por meio dele (do caacutelculo) (STOBEUS IV 1139 IAMBLIKHUS Sobre a ciecircncia matemaacutetica

geral II 4410-17 apud HUFFMAN 2005 p 183)

147

O verbo pleonekteacuteō significa ter mais levar vantagem ter ganacircncia e o substantivo

pleonexiacuteaindica o iacutempeto depossuir mais do que o devido ambiccedilatildeo vantagem injusta

arrogacircncia Mas Platatildeo se apropria do viacutenculo estabelecido por Arkhytas entre a

organizaccedilatildeo poliacutetica e a matemaacutetica para promover uma generalizaccedilatildeo que ascende a uma

visatildeo unificada do kosmos e usa o termo ldquoigualdade geomeacutetricardquo num sentido muito mais

geral como equivalente a proporccedilatildeo ou regramento geomeacutetrico

A pleonexiacutea a negligecircncia do regramento geomeacutetrico que unifica o kosmos

constitui a fonte de todas as injusticcedilas A investigaccedilatildeo sobre a origem dos apetites e a

relaccedilatildeo destes com a inteligecircncia estabelece a alma como princiacutepio de accedilatildeo e causa da

justiccedila e da injusticcedila Ao postular um viacutenculo entre o domiacutenio da praacutexis e o da Natureza

pelo regramento geomeacutetrico Platatildeo estabelece o primado da alma como causa e da

inteligecircncia como condiccedilatildeo da kosmiacutea

O desenvolvimento da concepccedilatildeo de que a alma configura uma instacircncia complexa

cuja causalidade eacute intriacutenseca agrave natureza desejante estende o acervo conceptual pitagoacuterico

concernente agrave harmonia ao postulado fundamental de que a harmonia eacute uma inscriccedilatildeo a

posteriori de modalidades diversas de arranjo psiacutequico conferidas pelas proacuteprias escolhas

Em Platatildeo a alma eacute causa de sua proacutepria natureza e princiacutepio de harmonizaccedilatildeo

Essa subversatildeo nocional seraacute decisiva na causalidade platocircnica e no estabelecimento da

funccedilatildeo mediadora da alma entre o devir e a realidade inteligiacutevel

No Feacutedon Platatildeo inaugura a concepccedilatildeo de que uma harmonia de elementos

materiais pressupotildee a possibilidade de gradaccedilotildees diversas segundo o maior ou menor grau

de consonacircncia dos elementos Quanto maior for a combinaccedilatildeo maior seraacute a harmonia

148

Se a alma fosse uma harmonia de elementos materiais uma alma carregada de

viacutecios seria menos harmoniosa do que uma alma virtuosa e por conseguinte seria menos

alma o que natildeo pode ser admitido Em contrapartida se natildeo haacute uma alma que seja menos

alma que outra entatildeo natildeo haacute harmonia que seja mais intensa que outra ou seja uma

mesma harmonia natildeo pode participar ao mesmo tempo da harmonia e da ausecircncia de

harmonia Aleacutem disso a alma natildeo pode ter um estatuto secundaacuterio em relaccedilatildeo ao corpo A

alma natildeo deriva nem obedece aos processos corporais mas como sede da razatildeo regra pelo

domiacutenio dos desejos as necessidades corporais Como a alma natildeo segue aos impulsos

determinados pelos elementos em tensatildeo no corpo mas os domina e tem mestria sobre eles

a sua natureza eacute diferente das dos elementos do corpo e por isso a alma natildeo pode ser uma

harmonia ela possui harmonia Platatildeo transpotildee o conceito material de harmonia para a sua

concepccedilatildeo de consonacircncia e afinidade com o divino Essa transposiccedilatildeo enseja o argumento

de que a alma eacute princiacutepio de regramento e tende a assemelhar-se com as Formas

Toda a discussatildeo acerca das causas que daacute origem agrave concepccedilatildeo das Formas estaacute

calcada numa criacutetica a concepccedilotildees pitagoacutericas sobretudo as de Alcmeacuteon e de Filolau Haacute

causas necessaacuterias e causas uacuteltimas verdadeiras Os quatro elementos da physis e as

relaccedilotildees numeacutericas inteligiacuteveis satildeo necessaacuterios para a inteligecircncia mas natildeo se identificam

com o inteligiacutevel As verdadeiras causas satildeo as ldquocoisas em si mesmasrdquo ordenadas e

harmonizadas segundo o Bem O meio de inteligibilidade do kosmos eacute a phroacutenesis cuja

sede eacute a alma As relaccedilotildees numeacutericas indispensaacuteveis para a inteligibilidade natildeo satildeo

intriacutensecas agraves coisas nem a harmonia configura uma consonacircncia de coisas mas estatildeo no

acircmbito da psykheacute e constituem uma consonacircncia com as Formas causas fundamentais de

todas as coisas

149

36 Julgamento e nudez

O mito de julgamento do Goacutergias alude ao tempo primordial de Kroacutenos no qual a lei

da justa retribuiccedilatildeo foi instituiacuteda O destino futuro da alma depende da natureza de suas

accedilotildees pregressas A conexatildeo causal infrangiacutevel que rege ateacute mesmo os deuses estabelece a

correspondecircncia entre o estado psiacutequico e a praacutexis eacutetico-poliacutetica A bem-aventuranccedila ou os

sofrimentos a felicidade ou a infelicidade derivam dos princiacutepios da accedilatildeo O estado

caoacutetico representado pelo Taacutertaro prisatildeo das potecircncias coacutesmicas da violecircncia e da

desordem reflete a proacutepria natureza da alma Assim como haacute uma homologia estrutural

entre a alma do tirano e as disposiccedilotildees da cidade que governa haacute uma homologia entre a

desordem coacutesmica e a natureza psiacutequica do agente injusto

Todavia neste tempo primordial que remete ao primado do Intelecto noucircs os juiacutezes

vivos referenciavam seus criteacuterios no mesmo plano da vida e do devir e seus decretos eram

promulgados no proacuteprio tempo das accedilotildees submetidas a julgamento A auto-referecircncia dos

juiacutezos em que o vivo era a medida do vivo implicava o erro e a destinaccedilatildeo incompatiacutevel

com a natureza das almas Uma situaccedilatildeo impediente catastroacutefica eacute anunciada a ameaccedila agrave

validade universal da lei de Kroacutenos Zeus astucioso dentre todos os mediadores o mais

privilegiado diagnostica a causa do mal os julgamentos satildeo distorcidos pelas aparecircncias

das roupagens que ocultavam a verdadeira condiccedilatildeo das almas e interditavam a

perscrutaccedilatildeo de sua natureza pelo olhar

A justiccedila eacute recoberta pelas roupagens dos valores que norteiam a vida praacutetica e os

sinais visiacuteveis testemunhas oculares das sanccedilotildees que determinam os bens ndash o prazer as

riquezas e as honrarias ndash impedem o conhecimento da verdade Para que os julgamentos

possam se desprender dos sinais materiais e possam discernir segundo o melhor valor eacute

preciso referenciar a vida em outra coisa que natildeo seja ela mesma Todas as teacutecnicas

150

discursivas e persuasivas todos os signos de valores fundados na opiniatildeo coletiva satildeo

empregados para forcejar a adesatildeo dos juiacutezes a uma imagem ilusoacuteria de justiccedila

Os proacuteprios juiacutezes natildeo possuem outro acesso agrave investigaccedilatildeo que natildeo sejam

mediados pela falibilidade dos sentidos Diante do diagnoacutestico Zeus prescreve o

expediente astucioso que remediaraacute o mal

Primeiro eacute preciso diz Zeus que os homens cessem de

conhecer de antematildeo a hora da morte Pois agora eles sabem

em qual momento iratildeo morrer Ora eu acabo de dizer a

Prometeu para que lhes retire este conhecimento Em seguida

eacute necessaacuterio que os homens sejam julgados nus despojados

de tudo o que eles tecircm Eacute por isso que se lhes deve julgar

mortos E seus juiacutezes devem estar igualmente mortos nada

aleacutem daquilo que uma alma vecirc em outra alma Que desde o

momento da morte cada um esteja separado de todos os seus

proacuteximos que deixe sobre a terra todo este decoro ndash este eacute o

uacutenico meio para que o julgamento seja justo

(Goacutergias 523d-e)99

O expediente elucubrado por Zeus eacute poacutelo simeacutetrico ao expediente instrumental do

mito de Prometeu no Protaacutegoras A previsatildeo propiciada pela inteligecircncia utilitaacuteria

representada pelo fogo furtado deve ser retirada dos homens pelo filantropo Prometeu A

capacidade de engenho teacutecnico garante natildeo somente a provisatildeo e a compensaccedilatildeo para as

carecircncias humanas mas ocasionam a violecircncia e a injusticcedila endoacutegenas Se a vida do gecircnero

humano soacute pode ser assegurada pela inteligecircncia instrumental engenhosa a existecircncia da

comunidade poliacutetica depende da participaccedilatildeo no par aidoacutes-diacuteke sem a qual ocorre a

desumanizaccedilatildeo inevitaacutevel A retirada da capacidade projetiva implica uma divisatildeo no plano

cronoloacutegico em que se estabelece a consecuccedilatildeo entre accedilatildeo e consequecircncia A separaccedilatildeo

entre o tempo cronoloacutegico da vida e o tempo apoacutes a morte representa a dissociaccedilatildeo entre o

visiacutevel e manifesto e o invisiacutevel oculto

99 Trad de Monique Canto (PLATON 1993 p 304)

151

O corte radical impede a eficaacutecia dos signos exteriores de justiccedila mediados pelas

teacutecnicas do engano e da ilusatildeo Todos os recursos satildeo inelutavelmente abandonados todos

os apegos afetivos satildeo impotentes apoacutes a travessia A remissatildeo a paradigmas absolutos

exige o postulado de que a morte eacute a separaccedilatildeo entre o e a alma Eacute preciso crer na alma

separada e isolada para que se vislumbrem os paradigmas da vida de maior valor

A verdadeira natureza psiacutequica revela-se em funccedilatildeo de suas causas remotas e nada

pode violar a lei causal eacutetico-psiacutequica de Kroacutenos A nudez remove os sinais exteriores do

engano e inverte a relaccedilatildeo entre a ocultaccedilatildeo e a vergonha entre a exposiccedilatildeo e o juiacutezo A

vergonha natildeo depende mais da coerccedilatildeo do olhar coletivo das gestas reputaacuteveis e

censuraacuteveis que configuram os valores da cidade e os noacutemoi humanos A vergonha eacute o

afeto que revela a inadequaccedilatildeo da natureza psiacutequica com sua destinaccedilatildeo final afeto que

deixa de ser prospectivo e passa a ser retrospectivo acerca dos males que poderiam ser

evitados sem a tirania dos apetites

Na planiacutecie invisiacutevel em que as hierarquias da vida satildeo equalizadas no mesmo

meacutetron as foacutermulas de reconhecimento as palavras de passe e a memorizaccedilatildeo de

prescriccedilotildees rituais dos antigos cultos de misteacuterio satildeo transpostas pelo escrutiacutenio imediato

do ldquoolhar da almardquo que vecirc outra alma O discurso sagrado natildeo expressa a natureza proacutepria

do recipiendaacuterio e por isso o sentido enigmaacutetico do discurso polissecircmico perde a

finalidade Somente o olhar perscrutador desembaraccedilado de qualquer obstaacuteculo pode

apreender a verdade dos seres e determinar o loacutecus consonante a cada alma Os verdadeiros

baacutekkhoi natildeo satildeo os que declaram ser puros mas satildeo aqueles que puros resplandecem em

sua proacutepria natureza psiacutequica as ordenaccedilotildees da justiccedila efetivada em vida

A feiuacutera do debochado Tersites (Goacutergias 526e) a chaga do voluptuoso os conflitos

e sofrimentos do tirano apetitivo e as desmedidas dos natildeo-iniciados configuram uma nova

152

acepccedilatildeo da vergonha na qual o feio e o vergonhoso necessariamente implicam-se

mutuamente

No movimento da transposiccedilatildeo iniciaacutetica operado pelas imagens miacuteticas a

autecircntica hyponoacuteia consiste em apreender as grandes verdades que se ocultam subjacentes

aos signos aparentes O filoacutesofo eacute aquele que investiga o regramento coacutesmico e a proporccedilatildeo

geomeacutetrica e os aplica ao regramento dos princiacutepios de accedilatildeo e inteligibilidade da alma A

alma justa eacute a alma bem ordenada consonante com a harmonia coacutesmica (Goacutergias 507a)

Segundo Monique Dixsaut (2001 p 171-173) a uacutenica verdade que o filoacutesofo pode

crer eacute aquilo que o loacutegos lhe significa e natildeo a vida Este loacutegos indica que haacute uma maneira

de viver que eacute a melhor porque concede tempo agrave busca da verdade Todavia as imagens do

mito final apontam para o fato de que a cataacutertica elecircntica do loacutegos filosoacutefico possui a

eficaacutecia de desnudar o interlocutor de suas falsas ilusotildees e envergonhaacute-lo mediante a

contradiccedilatildeo entre as crenccedilas professadas e o gecircnero de vida efetivamente praticado Natildeo

obstante o loacutegos eacute inoperante diante da hostilidade da violecircncia e da ignoracircncia

(apaideusiacutea 527e) O discurso filosoacutefico natildeo assegura a salvaccedilatildeo diante de juiacutezes

desonestos e natildeo evitam o ridiacuteculo e a violecircncia

Mas o verdadeiro filoacutesofo eacute como o piloto cujo papel eacute simultaneamente o de

conduzir em seguranccedila os tripulantes os valores e a si mesmo ao bom porto (Goacutergias

511c-512a) Sua funccedilatildeo eacute a de preservar dos males as almas dos seus concidadatildeos Para

tanto eacute necessaacuteria a retoacuterica da alma que ultrapassa a significaccedilatildeo discursiva para

culminar na inteligecircncia da visatildeo direta de uma alma para outra Quando uma alma observa

outra sem qualquer das mediaccedilotildees sensiacuteveis ela compreende o modo como o tempo

devotado a certo gecircnero de vida que ela julgou digno de ser vivido a afetou e quais marcas

imprimiu em sua qualidade proacutepria (Goacutergias 524d)

153

Se os loacutegoi suscitam o refuacutegio e o mergulho na verdade dos seres (Feacutedon 99e) a

qualidade proacutepria da alma soacute eacute determinada pela instauraccedilatildeo praacutetica da justiccedila poliacutetica Para

exercitar o saber eacute preciso tambeacutem crer mas como dizia o exegeta de Derveni ainda que

se esteja vendo eacute impossiacutevel crer ou aprender sem que se leve em conta as coisas terriacuteveis

(deinaacute) do Hades Natildeo se pode exercitar o saber sem que este seja vivido pois mesmo as

melhores naturezas estatildeo sujeitas agrave perversatildeo do pior gecircnero de apetites Tais satildeo os

apetites que se manifestam em sonhos e suscitam repleccedilatildeo recocircndita daquele que possui

disposiccedilotildees doentias para empreender unir-se agrave proacutepria matildee a qualquer homem deus ou

besta e de manchar-se de qualquer crime por causa da demecircncia e da renuacutencia agrave vergonha

(Repuacuteblica 571d) Assim como a qualidade proacutepria de um ser artefato ou da alma natildeo

resulta do acaso mas do modo como cada um eacute regrado assim tambeacutem a qualidade proacutepria

da alma soacute pode regrar-se atraveacutes da consonacircncia com a proporccedilatildeo geomeacutetrica

indissociaacutevel da accedilatildeo virtuosa que muda as disposiccedilotildees da poacutelis (Goacutergias 506e)

Ao fim e ao cabo de todos os discursos eacute preciso prestar a maior atenccedilatildeo natildeo tanto

em evitar sofrer a injusticcedila mas em natildeo cometecirc-la Eacute necessaacuterio natildeo se aplicar em parecer

bom mas em secirc-lo verdadeiramente tanto em privado como em puacuteblico (Goacutergias 527b)

Nenhum mal pode sobrevir ao homem de bem se ele pratica a virtude (527d) nenhum

ultraje pode envergonhaacute-lo nenhum sofrimento corrompecirc-lo ndash a natildeo ser a possibilidade de

que ele mesmo pratique o mal Toda modalidade discursiva seja a retoacuterica seja o eacutelenkhos

deve servir para a perenidade do justo (527c)

154

IV - NECESSIDADE E ESCOLHA

41 Imagens e causas no mito de Er

No espetaacuteculo de imagens narradas no mito de Er haacute uma proclamaccedilatildeo majestosa

de um Propheacutetes que em nome da virgem Laacutequesis anuncia a coexistecircncia simultacircnea de

noccedilotildees contraditoacuterias de um lado haacute a necessidade inelutaacutevel da ligaccedilatildeo de cada alma com

a vida de outro a radicalidade da escolha como fonte de virtude e imputabilidade

Como conciliar a necessidade inevitaacutevel do periacuteodo de nascimentos e mortes com a

escolha mais determinante Como conceber a sorte e a liberdade radical da escolha como

princiacutepios causais simultacircneos da natureza da psykheacute O inteacuterprete da Moira anuncia o

desconcerto da unificaccedilatildeo de poacutelos opostos entre o irrefragaacutevel e o indeterminado entre o

lote infaliacutevel e a autodeterminaccedilatildeo desejada

Logos da virgem Laacutequesis filha da Necessidade Almas efecircmeras

ireis iniciar novo periacuteodo de nascimentos na condiccedilatildeo mortal Natildeo

eacute um daiacutemon que vos escolheu a sorte sois voacutes que escolhestes

vosso daiacutemon O primeiro que a sorte designar escolheraacute primeiro

a vida agrave qual seraacute ligado em toda necessidade Pois virtude natildeo

tem deacutespota Segundo a honrar ou desonrar cada um a teraacute mais

ou menos Responsabilidade (aitiacutea heloumeacutenou) eacute de quem escolhe

O deus natildeo eacute responsaacutevel (theoacutes anaiacutetios) 100

Repuacuteblica X 617d06ndash617e05

Eacute um espetaacuteculo curioso observar de que maneira as diferentes almas escolhem suas

vidas nada mais lamentaacutevel ridiacuteculo e assombroso diz o panfiacutelio Er 101

A maioria eacute

guiada em suas escolhas pelos haacutebitos adquiridos em suas vidas anteriores haacutebitos que

100

Adoto traduccedilatildeo de Pierre Pachet com ligeiras modificaccedilotildees

Anaacutenkhes thygatrograves koacuteres Lakheacuteseos loacutegos Psykhaigrave epheacutemeroi arkhegrave aacutelles perioacutedou thnetoucirc geacutenous

thanatephoacuterou Oukh hymacircs daiacutemon leacutexetai hlrmymeicircs daiacutemona haireacutesesthe Procirctos drsquo hoacute lakhograven procirctos

haireiacutestho biacuteon hoacutei syneacutestai ex[ Anaacutenkhes Aretegrave degrave adeacutespoton hegraven timocircn kaigrave atimazon pleacuteon kaigrave eacutelatton

autecircs heacutekastos heacutexei Aitiacutea helomeacutenou theograves anaiacutetios 101 eleeineacuten te gaacuter ideicircn eicircnai kai geloiacutean kaigrave thaumasiacutean (Repuacuteblica X 620a 01-02)

155

acabam por condicionar uma homologia entre a natureza psiacutequica e o gecircnero de vida

Quando o gecircnero de vida estaacute em questatildeo emerge o primado da escolha

Sendo assim na travessia em que consiste a vida quais satildeo os meios e por quais

modos de viver poderemos conduzir a existecircncia da melhor forma possiacutevel ateacute o seu termo

Tal eacute a questatildeo crucial levantada pela imagem exemplar do Livro VII das Leis

Um construtor de navios no momento em que comeccedila a construccedilatildeo

do navio potildee em primeiro lugar a carena e esboccedila assim a

estrutura do navio Parece-me que eu faccedilo a mesma coisa quando

tentando distinguir a estrutura dos modos de vida em funccedilatildeo dos

caracteres das almas eu coloco realmente em lugar as carenas

destes modos de vida examinando por quais meios por quais

maneiras de viver conduziremos o melhor possiacutevel nossa existecircncia

ateacute o fim desta travessia que consiste a vida

Leis VII 803a-b

A questatildeo da investigaccedilatildeo da natureza da alma eacute explicitada a partir de uma

analogia o Estrangeiro de Atenas alvitra que assim como o construtor de navios inicia a

construccedilatildeo pela carena e esboccedila a estrutura do barco assim tambeacutem devemos tentar

estabelecer o delineamento dos esquemas de vida por meio dos gecircneros de almas102

O problema da indeterminaccedilatildeo do modo de vida conjuga-se com a questatildeo mais

fundamental do Goacutergias Qual eacute o melhor gecircnero de vida que eacute preciso ter103

A mais

fundamental de todas as questotildees da vida consiste em se determinar a natureza do proacuteprio

modo de viver Dentre toda a gama infinita de escolhas a vida filosoacutefica postula o princiacutepio

de que haacute uma hierarquia entre os afetos e uma escolha que eacute a melhor possiacutevel

Pois esta vida esta vida uacutenica seja ela longa ou curta eacute o que de

fato um homem verdadeiramente homem deve deixar de lado Natildeo

eacute a isso que ele deve devotar o amor de sua alma Ao contraacuterio no

que diz respeito a sua longevidade deve remeter-se somente ao

deus e crer somente no que dizem as mulheres que ningueacutem

poderia escapar ao seu lote Natildeo o que antes se deve procurar

102

tagrave tocircn biacuteon peiroacutemenos skheacutemata diasteacutesasthai katagrave tpoacutepous tougraves tocircn psykhoacuten (Leis VII 803a06-07) 103 oacutentina khreacute troacutepon zeacuten (Goacutergias500c03)

156

examinar eacute qual a maneira que se deve viver a vida para que ela

seja a melhor possiacutevel

Goacutergias 512 d-e

A vida esta vida uacutenica que equivale a uma travessia articula dois opostos

inseparaacuteveis a determinaccedilatildeo incontestaacutevel de uma longevidade que escapa ao poder

humano e o poder inalienaacutevel do modo como esta travessia seraacute feita Se a nenhum homem

cabe determinar a duraccedilatildeo da proacutepria vida a cada homem cabe decidir como iraacute viver a

vida que lhe cabe pois o viver eacute fruto de escolhas Se o gecircnero de vida eacute determinado pelas

escolhas o que delimita o acircmbito das escolhas por sua vez eacute a natureza uacuteltima dos desejos

e do caraacuteter Natildeo haacute escolha que natildeo seja resultante do movimento dos desejos A

orientaccedilatildeo dos desejos determina os valores os criteacuterios de discriminaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo

do preferiacutevel que por sua vez nortearatildeo o modo como a vida eacute vivida Esta orientaccedilatildeo

natural dos desejos eacute por conseguinte preacutevia agrave percepccedilatildeo da realidade vivida

O discernimento da estrutura psiacutequica pressupotildee por sua vez a distinccedilatildeo da

multiplicidade e da natureza dos desejos Trata-se de uma correspondecircncia biuniacutevoca em

que o pensamento discerne o desejo e o desejo se exprime num modo de vida Pensamento

desejos e modo de vida articulam-se numa relaccedilatildeo de implicaccedilotildees e consequecircncias muacutetuas

Pensamento e desejos acarretam consequecircncias inevitaacuteveis sobre o gecircnero de vida de modo

a urdir a trama que entrelaccedila necessidade e liberdade na tecedura que compotildee o viver

Todavia os patheacutemata da alma configuram impulsos agogecircs contraacuterios (Repuacuteblica

X 604 a-b) Quando num mesmo homem em relaccedilatildeo ao mesmo elemento e ao mesmo

tempo dois impulsos contraacuterios coexistem eacute necessaacuterio que haja nele duas partes104

Os impulsos antiteacuteticos da alma determinam accedilotildees opostas e por conseguinte

implicam a diversidade de partes jaacute que efeitos opostos natildeo podem provir da mesma causa

104 Enantiacuteas degrave agogecircs gignoacutemenes en toacutei anthroacutepoi peri to auto haacutema duacuteo phamegraven em autocirci anankaicircon

eicircnai

157

(Repuacuteblica IV 439bss) Tal postulado transpotildee para a esfera do psiquismo a

impossibilidade de que haja contradiccedilatildeo numa mesma instacircncia e num mesmo instante de

princiacutepios de accedilatildeo que fazem com que a psykheacute seja uma causa (REIS M D 2000 p

114) As pulsotildees conflitantes e opostas da psykheacute indicam a necessidade de sua

complexidade

Na complexidade de princiacutepios de accedilatildeo opostos a afliccedilatildeo ou os afetos violentos

impedem a alma de discernir o melhor aquilo que haacute de bem e mal (toucirc agathoucirc te kaigrave

kakoucirc) nas dificultosas sobrecargas (en taicircs xymphoraicircs) que sobrevecircm ao homem A

tristeza e a afliccedilatildeo uma vez dominantes fazem obstaacuteculo agrave inteligecircncia dos expedientes

(touacutetoi empodograven gignoacutemenon tograve lypeicircsthai) e por essa razatildeo nenhuma das coisas humanas

merece grande reverecircncia (ouacutete ti tocircn anthropiacutenon aacutexion ograven megaacuteles spoudecircs Repuacuteblica X

604b09-c03) A natureza da psykheacute eacute determinada pela similitude com sua ocupaccedilatildeo

ordinaacuteria (Feacutedon 82a) Por isso a experiecircncia de um prazer ou pena intensos suscitam o

mal supremo a psykheacute eacute conduzida a tomar o que causa o afeto mais intenso por aquilo

que possui a maior evidecircncia e a realidade mais verdadeira enquanto ele natildeo eacute nada

(Feacutedon 83c05-08) A realidade dos sofrimentos intensos eacute ilusoacuteria e o mais belo consiste

em manter a maior quietude diante deles (maacutelista hesykhiacutean aacutegein Repuacuteblica 604b09)

No Feacutedon (99b) Platatildeo distingue duas ordens de causas (i) as causas verdadeiras e

(ii) as causas sem as quais nenhuma causa seria causa As verdadeiras causas identificam-se

com o noucircs e exigem que se postule a faculdade psiacutequica da inteligecircncia discriminadora do

melhor (beacuteltiston) A complexidade de impulsos faz da psykheacute princiacutepio de movimento e

causa

Concluamos eacute princiacutepio de movimento aquilo que se move a si

mesmo Ora natildeo eacute possiacutevel nem que ele se anule nem que comece

a existir do contraacuterio o ceacuteu inteiro a geraccedilatildeo inteira vindo ao

158

ocaso tudo isso pararia e jamais se renovaria Uma vez posto em

movimento em um ponto de partida para sua existecircncia Agora que

eacute evidente a imortalidade daquilo que eacute movido por si mesmo natildeo

se faraacute escruacutepulo de afirmar que isto eacute a essecircncia da alma e que

esta eacute sua natureza De fato todo corpo que recebe de fora seu

movimento eacute um corpo inanimado Um corpo eacute animado ao

contraacuterio por algo de dentro e que tem em si mesmo o princiacutepio

uma vez que eacute nisto que consiste a natureza da alma

Fedro 245d

A essecircncia da noccedilatildeo agrave qual corresponde o nome alma eacute ser princiacutepio de movimento

Um princiacutepio natildeo pode ser engendrado visto que sua existecircncia nesse caso derivaria de

outra coisa Tudo o que eacute engendrado eacute necessariamente engendrado sob o efeito de uma

causa pois sem a intervenccedilatildeo de uma causa nada pode ser engendrado eis a relaccedilatildeo

necessaacuteria que a noccedilatildeo de princiacutepio de movimento expressa haacute um viacutenculo infaliacutevel entre

efeito e causa (Timeu 28a) O princiacutepio eacute aquilo cuja existecircncia eacute intriacutenseca a si mesmo

(ROBIN in Fedro p 83) Nesse sentido o movimento da alma a torna causa e princiacutepio

Em Platatildeo a alma eacute ao mesmo tempo movimento impulso e causa

Somente a inteligecircncia pode regrar o acaso pois a opiniatildeo a presciecircncia

(epimeacuteleia) o noucircs a arte e a lei satildeo anteriores aos elementos da Natureza (Leis X 892b)

A questatildeo do melhor (beacuteltiston) e das escolhas pressupotildee a configuraccedilatildeo psiacutequica e a

economia de seus impulsos Nesta economia os desejos determinam o alvo em que

terminam Todo desejo eacute orientado e aponta para um fim

No Goacutergias Soacutecrates afirma que de todos os preparativos humanos (paraskeuaigrave)

alguns visam somente o prazer e desconhecem o melhor e o pior outros conhecem o Bem e

o mal

Eu dizia se tu te lembras que haacute certos preparativos que querem

somente atingir o prazer e se ocupam somente disto numa

ignoracircncia total do que eacute melhor ou pior Mas existem outros que

conhecem o bem e o mal Goacutergias 500a

159

A questatildeo eacutetica da melhor escolha exige o plano epistemoloacutegico da distinccedilatildeo do

Bem e do melhor O conhecimento do Bem e do mal deve fundamentar a praacutexis eacutetico-

poliacutetica

Platatildeo subordina agraves escolhas a questatildeo ldquoqual o melhor gecircnero de vida que se deve

terrdquo Escolhas pressupotildeem desejos como impulsos para a accedilatildeo Neste sentido o psiquismo

eacute causa e por isso a Filosofia deve existir como Eros como orientaccedilatildeo natural do desejo

para o melhor Somente a inteligecircncia pode discriminar diferenccedilas e discernir o melhor

somente o movimento do pensamento apanaacutegio da psykheacute configura e inteligibilidade do

Bem (DIXSAUT 2001 p 130)

A escolha do alvo que eacute o fim do desejo determina simultaneamente os valores a

potecircncia do discurso e a realidade do real A realidade eacute determinada pelo modo como se

escolhe vecirc-la Instacircncia complexa a natureza psiacutequica determina o modo de inteligibilidade

pelo qual a realidade eacute apreendida

Mas para discorrer filosoficamente acerca de instacircncias que natildeo podem ser

justificadas logicamente Platatildeo emprega o registro da narrativa miacutetica As noccedilotildees

multiacutevocas que compotildeem a realidade e natildeo possuem justificaccedilatildeo loacutegica exigem a piacutestis

como consolidaccedilatildeo

42 ndash Mito e psykhḗ

Da ordem da mousikeacute os mitos platocircnicos esboccedilam mediante um pensar por

imagens um modelo de visualizaccedilatildeo de realidades inverificaacuteveis e satildeo endereccedilados aos

patheacutemata com a finalidade de consolidar uma crenccedila No Feacutedon (77e-78a) a encantaccedilatildeo

miacutetica (epoideacute) eacute reclamada como meio de afastar o medo crucial da morte O medo eacute um

iacutendice um signo de reconhecimento de que o corpo se manteacutem preponderante sobre o

160

pensamento (Feacutedon 68c) Do medo derivam as duacutevidas e as hesitaccedilotildees que paralisam as

accedilotildees humanas e impedem a atividade filosoacutefica

A encantaccedilatildeo miacutetica possui simultaneamente (i) a funccedilatildeo pedagoacutegica de esclarecer

e de propiciar a crenccedila e (ii) a funccedilatildeo epistemoloacutegica de engendrar noccedilotildees que natildeo possuem

referentes verificaacuteveis (NUNES SOBRINHO 2007 p 186 ss) Ademais como toda

estrutura musical a estrutura miacutetica implica ressonacircncias psiacutequicas haacute uma homologia

estrutural entre muacutesica mito e o psiquismo105

Os mitos platocircnicos fornecem modelos exemplares para o comportamento humano e

constituem um referencial que confere sentido e orientaccedilatildeo para as accedilotildees A estrutura

miacutetica possui uma homologia estrutural multiacutevoca e profunda com a estrutura do

psiquismo com a estrutura poliacutetica e com a estrutura de determinaccedilatildeo das realidades

Aleacutem disso a estrutura imageacutetica do mito suscita a partir de imagens familiares

visiacuteveis a inferecircncia de estruturas inevidentes106

Assim como o Ser estaacute para o devir

assim tambeacutem a verdade estaacute para a crenccedila afirma Timeu de Locri (Timeu 29c) A analogia

se estende para o plano das relaccedilotildees assim como se pode inferir o inteligiacutevel a partir de

relaccedilotildees invariantes observadas no devir assim tambeacutem se pode inferir a verdade a partir

das imagens que lhes servem de postulados

Narrativas miacuteticas filosoacuteficas possuem a pretensatildeo de tornar comunicaacutevel uma

realidade complexa Quando a complexidade eacute excessiva para ser abarcada pela

inteligecircncia o mito faz ver Os grandes mitos de julgamento operam a transposiccedilatildeo de

105 hoacutes philosophiacuteas megraven ouses megiacutestes mousikeacutes emoucirc degrave toucircto praacutettontos (Feacutedon 61a03) A Filosofia eacute a

mais alta muacutesica inextricaacutevel do pensamento puro (phroacutenesis) e da aspiraccedilatildeo agraves realidades mais verdadeiras

No Timeu a alma participa da razatildeo da harmonia e do nuacutemero o que faz com que possa engendrar o melhor

dos seres que sempre satildeo autegrave degrave aoacuteratos meacuten logismoucirc degrave meteacutekhousa kaigrave harmonias pykheacute tocircn noetocircn aeiacute

te oacutenton hypograve toucirc ariacutestou ariacuteste genomeacutene tocircn genetheacutenton (37e06-a02) 106 With regard to nature and task of demiurge one must note that the invisible is inferred from the visible

and the incorporeal from the bodily (OLYMPIODORO 1998 p 290)

161

imagens familiares visualizaacuteveis para uma teia de relaccedilotildees invisiacuteveis que satildeo fundamentais

para a unificaccedilatildeo da experiecircncia humana muacuteltipla com uma cosmologia107

Como falar filosoficamente daquilo que eacute inverificaacutevel como a alma e a morte A

significaccedilatildeo aportada pelo mito filosoacutefico indica a possibilidade de transposiccedilatildeo de um

registro de realidade para outro de modo a se consolidar o primado e a inscriccedilatildeo da

inteligecircncia naquilo que eacute destituiacutedo de ordem (akosmiacutea) ou de regras naquilo que eacute

desregrado (akolasiacutea) Como diria Dixsaut toda ontologia eacute miacutetica e todo mito pode servir

como justificativa ontoloacutegica (DIXSAUT 2001 p 130) Por essa razatildeo quando a

argumentaccedilatildeo chega ao impasse e ao limite para natildeo se cair na misologia (Feacutedon 89d ss)

eacute preciso contar com a perspectiva dos discursos divinos para se afrontar o risco (kiacutendynos)

da travessia da vida (Feacutedon 85d) Para se evitar a misantropia eacute preciso compreender que a

bondade e a maldade completas satildeo raras e as misturas satildeo muitas108

Para se evitar a

misologia eacute preciso empregar todo o ardor em fazer o discurso parecer verdadeiro natildeo

para os que ouvem mas tatildeo somente para si mesmo (Feacutedon 89e-90a)

Como o plano da vida e do devir eacute o plano da mistura (metaxyacute) eacute preciso identificar

aquilo que no real soacute pode ser justificado miticamente Eis aiacute o belo risco da Filosofia

crer que a alma eacute imortal no pacircs kroacutenos eis o risco que deve correr aquele que crecirc que eacute

assim Pois este risco eacute belo (Feacutedon 114d)

107 Segundo Leacutevi-Strauss realidades demasiado complexas exigem para sua inteligibilidade uma reduccedilatildeo a

relaccedilotildees compreensiacuteveis mediante a busca de invariantes em suas relaccedilotildees internas As relaccedilotildees internas de

certo niacutevel de realidade satildeo suscetiacuteveis de aparecer a outros niacuteveis Nesse sentido eacute possiacutevel analisar no acircmbito do psiquismo relaccedilotildees que satildeo observadas na Natureza Os mitos possuem a funccedilatildeo de apresentar

mediante suas relaccedilotildees internas a inscriccedilatildeo de ordem numa aparente desordem A inscriccedilatildeo de ordem naquilo

que se apresenta caoacutetico implica precisamente a funccedilatildeo psiacutequica por excelecircncia e consolida a proacutepria noccedilatildeo

de significado O que significa significar Segundo Leacutevi-Strauss a significaccedilatildeo representa a possibilidade de

traduccedilatildeo ou transposiccedilatildeo de um registro de realidade para outro Por essa razatildeo os mitos platocircnicos satildeo

portadores de significaccedilatildeo pois traduzem para o acircmbito imageacutetico da narrativa noccedilotildees que satildeo somente

pensaacuteveis Sua operacionalidade eacute nesse aspecto dianoieacutetica (LEacuteVI-STRAUSS 1978 p 22 ss) 108 tougraves megraven khrestougraves kaigrave ponerougraves sphoacutedra oliacutegous eicircnai hekateacuterous tougraves degrave metaxỳ pleiacutestous

162

O mito propicia a ultrapassagem da condiccedilatildeo temporal e da ignoracircncia (apaideusiacutea)

que constituem o quinhatildeo de todo ser que se identifica a si mesmo e ao Real com sua

proacutepria situaccedilatildeo particular

43 - ER O DECRETO DE LAacuteQUESIS

A questatildeo da escolha do melhor gecircnero de vida eacute apresentada no mito de Er como

risco inerente agrave mistura em que consiste o breve instante que vai do nascimento ateacute a morte

O breve tempo que separa a infacircncia da velhice nada eacute em comparaccedilatildeo com a eternidade

A correta valoraccedilatildeo deve levar ser posta na perspectiva da totalidade do tempo paacutes kroacutenos

Que pode haver de grande em um intervalo que tempo tatildeo restrito Pois todo o intervalo

que separa a infacircncia da velhice eacute muito pouco em comparaccedilatildeo com a eternidade

(Repuacuteblica X 608c) Um ser imortal natildeo deve dedicar tanto esforccedilo por um tempo tatildeo curto

e negligenciar a eternidade109

A oposiccedilatildeo entre tempo da vida e a totalidade do tempo

indica a necessidade de uma re-valoraccedilatildeo dos valores humanos na perspectiva de um

paradigma atemporal

O espetaacuteculo narrado pelo panfiacutelio Er evoca uma estrutura coacutesmica tripartite as

almas encontram-se num prado (leimoacuten) lugar democircnico toacutepon tinaacute daimoacutenion

(Repuacuteblica X 614c) que media a regiatildeo superior do ceacuteu e a inferior da terra

Todo lugar nos mitos platocircnicos toda geografia e cosmologia do invisiacutevel

concernem ou agrave estrutura psiacutequica ou dizem respeito agrave estruturaccedilatildeo de planos de realidade

diversos A triparticcedilatildeo refere-se ao mesmo tempo agrave condiccedilatildeo psiacutequica e a estruturas de

109

Mas aquele de pensamento superior que contempla a totalidade do tempo e a totalidade do ser supotildees que

eacute capaz de ter em grande opiniatildeo a vida humana

bdquo´Hi oucircn hypaacuterkhei dianoiacuteai megalopreacutepeia kaigrave theoriacutea pantograves megraven khroacutenou paacuteses degrave ousiacuteas hoicircon te oiacuteei

touacutetoi mega ti dokecircin eicircnai tograven antroacutepinon biacuteon

Repuacuteblica VI 486a 09-10

163

realidades Natildeo eacute outra a razatildeo pela qual os tiranos como Ardieu satildeo arrastados e jogados

no Taacutertaro ndash imagem do caos turbulento Suas almas satildeo caoacuteticas e por si mesmas suscitam

a imagem da realidade que se lhes assemelha Por outro lado O Feacutedon apresenta uma

estrutura fisiograacutefica tripartite (109b-110a) que indica planos de realidade com

determinaccedilotildees variadas Haacute uma ldquoverdadeira terrardquo invisiacutevel mais pura cristalina e bela do

que a cavidade na qual habitam os homens A verdadeira Terra estaacute para a nossa

ldquocavidaderdquo assim como a nossa cavidade estaacute para as profundezas marinhas110

Haacute uma

simetria de proporccedilotildees entre planos com diferenccedilas de determinaccedilatildeo

Apoacutes haver passado sete dias no prado Er deveria partir no oitavo dia e chegar a um

lugar onde se estende do alto atraveacutes de todo o ceacuteu e da terra uma luz como uma coluna111

(phoacutes euthyacute hoicircon kiacuteona) muito semelhante ao arco iacuteris (maacutelista teacute igraveridi prospheacutere) mas

mais brilhante e mais pura (lampoacuteteron degrave kaigrave katharoacuteteron) Esta luz era uma cadeia que

prendia o ceacuteu (xyacutendesmon toucirc ouranoucirc) tal como as cordas de uma trirreme (Repuacuteblica

616b-c)

A mediaccedilatildeo entre planos de realidade distintos eacute representada pela imagem de uma

coluna de luz que encadeia o koacutesmos A cosmologia constitui o paradigma de toda

atividade criadora porque o Koacutesmos eacute o modelo divino de todo fazer O Koacutesmos eacute poieacutesis

divina e sua estrutura serve de paradigma para todo fazer que se pretende harmonioso

ordenado e ornado numa palavra cosmicizado (ELIADE 1978) Mas como atribuir um

sentido mais preciso agrave imagem da coluna de luz

110Autegraven degrave tegraven gecircn katharagraven em katharoacute keicircsthai toacutei ouranoacute en hoipeacuter esti tagrave aacutestra hoacuten degrave aitheacutera onomaacutezein

Feacutedon 109b0708 111

Hilda Richardson (1926 p 117 ss) defende a tese de que a coluna de luz envolve circularmente as

esferas coacutesmicas e simultaneamente atravessa o eixo central que passa pela terra Tal imagem teria filiaccedilatildeo

na concepccedilatildeo pitagoacuterica de que um ciacuterculo de fogo abarca o Koacutesmos

164

No Craacutetilo (408b) o nome de Iacuteris eacute associado agrave eiacuterein dizer e por isso ela eacute

mensageira112

No Teeteto (155d) Iacuteris eacute apresentada como filha de Thauacutemas

Pois este sentimento de se espantar eacute inteiramente de algueacutem que

ama o saber Natildeo haacute outro ponto de partida para a procura do

saber aleacutem deste e aquele que disse eacute nascida de Thaumas113

natildeo

esboccedilou mal sua genealogia

(Teeteto 155d)114

Como nota Narcy115

Iacuteris eacute mensageira portadora do Leacutegein e por conseguinte

constitui uma personificaccedilatildeo do papel mediador da Filosofia A busca pela sabedoria eacute a

atividade divina mais proacutepria e a mediaccedilatildeo entre o plano da divindade e o plano humano se

expressa pela imagem do arco-iacuteris ponte entre o ceacuteu e a terra116

Universal antropoloacutegico a

imagem da coluna ou pilastra que liga planos diversos de realidade o celeste e o terrestre

indica que o espaccedilo miacutetico possui um referencial absoluto um eixo coacutesmico aacutexis mundi117

112 Homens aquele que maquinou (emeacutesato) a palavra (eiacuterein) noacutes deveriacuteamos chamaacute-lo Eireacute-mecircs e presentemente crendo haver-lhe adornado o nome o chamamos Hermecircs Em todo caso Iacuteris foi

verdadeiramente chamada assim a partir de eirein (dizer) porque ela eacute mensageira

Trad DALMIER C in PLATON Cratyle 1998 113 Espanto agrave filha do Oceano de profundo fluir

desposou Ambarina Ela pariu ligeira Iacuteris

e Harpias de belos cabelos Procela e Aliacutegera

que a paacutessaros e rajadas de vento acompanham

com asas ligeiras pois no abismo do ar se lanccedilam

(HESIacuteODO Teogonia 265-269 Trad Torrano J 2003)

De Pontos et Gegrave naquirent Phorcos Thaumas Neacutereacutee Eurybia et Cegraveto De Thaumas et Electra naquirent

Iris et les Harpyes Aellocirc et Ocypeacutetegrave puis de Phorcos et de Cegraveto les Phorcides et les Gorgones dont nous

parlerons lorsque nous en seron agrave Perseacutee (APPOLODORE I 2 10 in CARRIEgraveRE MASSONIE 1991) 114 Trad NARCY M in PLATON Theacuteeacutetegravete 1995 115 Id nt 121 p 325 116 Chantraine afirma a possibilidade de que ityacutes e iacutetea arco ciacuterculo de arco sejam derivadas de Iacuteris

(CHANTRAINE 1999 p 469) 117

Proclo (2005 200 p 149) empreende uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica da passagem afirmando que a imagem

natildeo designa uma figura em forma de coluna mas consiste num sentido funcional de suporte firme e constante para os moacuteveis celestes A interpretaccedilatildeo alegoacuterica leva Proclo a rejeitar o pensamento de seus predecessores

segundo o qual a luz representa o eixo do mundo Embora Hilda Richardson (1926 p 115) confira um papel

estritamente poeacutetico ao mito sua interpretaccedilatildeo aventa a ausecircncia de dificuldades em correlacionar a luz e a

imagem da coluna com a noccedilatildeo matemaacutetica de um eixo coacutesmico It is hardly necessary to say that Plato quacirc

mathematician rightly conceived of the axis of the celestial sphere as na imaginary line and not as a material

body whether of light stuff or any other stuff But this is no real objection to his representing the axis

otherwise in a passage which is not scientific exposition but myth where he has a particular poetic and

imaginative purpose in view

165

que eacute o modelo exemplar que opera a mediaccedilatildeo entre o celeste e o terrestre entre o divino e

o plano do devir A noccedilatildeo de um eixo coacutesmico que vincula planos diversos eacute reforccedilada pelo

passo do Timeu

Quanto agrave terra nossa nutridora girando-a em torno do eixo que

atravessa o todo o deus a estabeleceu para ser guardiatilde e demiurga

da noite e do dia a primeira e a mais antiga das divindades

nascidas no interior do ceacuteu

Timeu 40b-c

Por que Platatildeo se vale de um rico acervo de imagens que aludem a um referencial

fora do devir e que implica uma evasatildeo do tempo humano cronoloacutegico No Feacutedon 96c-

97b Soacutecrates denuncia a perplexidade diante da tentativa de se aquilatar os particulares da

phyacutesis uns em relaccedilatildeo aos outros o que o leva a empreender o deucircteros ploucircs e empreender

a hipoacutetese das Formas No contexto do livro X da Repuacuteblica Soacutecrates aponta a contradiccedilatildeo

como condiccedilatildeo epistecircmica do devir

Os mesmos objetos parecem quebrados ou retos segundo se os

observa na aacutegua ou fora dela cocircncavos ou convexos segundo

outra ilusatildeo visual produzida pelas cores e eacute evidente que tudo isso

perturba nossa alma

Repuacuteblica X 602c

O socorro contra a ilusatildeo e a contradiccedilatildeo eacute o caacutelculo a medida e a pesagem de

modo que o que deve prevalecer eacute a faculdade da alma que lhes propicia (Repuacuteblica X

602d) O paradigma para estas operaccedilotildees da alma deve estar fora do plano do devir no

inteligiacutevel para escapar agrave contradiccedilatildeo Por essa razatildeo os mitos filosoacuteficos recorrentemente

aludem a um referencial absoluto que sirva de norma ao mesmo tempo para as accedilotildees

eacutetico-poliacuteticas e para a inteligibilidade da phyacutesis

Toda a estrutura coacutesmica representada pelo fuso da Necessidade gira nos joelhos

de Anaacutenkhe Brisson (1994 469-513) em sua anaacutelise de Anaacutenkhe vincula de maneira

166

geral a noccedilatildeo agrave causalidade e agrave explicaccedilatildeo causal118

No Timeu o princiacutepio geral da accedilatildeo

da necessidade eacute indicado no fato de que a geraccedilatildeo do Koacutesmos tem por princiacutepio uma

mistura de necessidade e razatildeo A razatildeo domina a necessidade persuadindo-a a orientar a

maior parte dos elementos do devir para o melhor O Koacutesmos eacute constituiacutedo pela vitoacuteria da

persuasatildeo sobre a necessidade configurando uma mistura

Haacute pois um elemento de resistecircncia agrave accedilatildeo ordenadora da inteligecircncia intriacutenseco agrave

constituiccedilatildeo coacutesmica Tal accedilatildeo faria da Necessidade pura uma causa errante

ontologicamente anterior ao Koacutesmos que implica a inexorabilidade da ausecircncia de

regramento e de inteligecircncia caracteriacutesticos da Khoacutera ou do meio espacial cujo movimento

eacute desarmocircnico e indeterminado A accedilatildeo da Necessidade neste plano indica o caraacuteter

randocircmico e desordenado inerente ao meio material Depois da constituiccedilatildeo do Koacutesmos

Anaacutenkhe permanece como ausecircncia de inteligecircncia resiacuteduo de resistecircncia agrave accedilatildeo de

determinaccedilatildeo ordenadora da razatildeo

No mito de Er Anaacutenkhe eacute matildee das Moiras e como tal potecircncia divina causal Na

estrutura imageacutetica apontar a causa implica em designar o genitor e a accedilatildeo de engendrar

Segundo Proclo no mito de Er Anaacutenkhe comanda o domiacutenio coacutesmico e preside o ciclo das

almas Mantenedora da ordem Anaacutenkhe vincula necessariamente os gecircneros de vida com as

118 Brisson identifica trecircs momentos distintos que caracterizam a necessidade (i) causa errante que configura

uma resistecircncia agrave accedilatildeo do Demiurgo (ii) causa coadjuvante que coopera com a razatildeo do Demiurgo e (iii)

causa segunda em relaccedilatildeo agrave alma do mundo O primeiro momento ocorre antes da modelaccedilatildeo proporcional

operada pelo Demiurgo (Timeu 56c) Trata-se da Necessidade como causa errante ou necessidade pura

anterior agrave formaccedilatildeo do Koacutesmos que se identifica com o movimento caoacutetico e ausecircncia de accedilatildeo racional No

segundo momento a Necessidade passa a cooperar com a razatildeo mediante a persuasatildeo e se torna causa coadjuvante Trata-se da razatildeo persuadindo a Necessidade Todavia nem a necessidade nem a razatildeo

desaparecem apoacutes a constituiccedilatildeo do Koacutesmos Sua influecircncia continua a se exercer em um terceiro estaacutegio o

demiurgo se retira e seus ajudantes terminam seu trabalho e a accedilatildeo da razatildeo se perpetua A razatildeo se manteacutem

no Koacutesmos atraveacutes de sua alma O seu corpo por outro lado eacute submetido agrave lei de necessidade que dirige a

geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo Essa lei implica uma cadeia causal infaliacutevel consequumlecircncia da figura da relaccedilatildeo e do

movimento proacuteprio de cada elemento A necessidade se torna uma causa segunda submetida agrave alma do

mundo de modo que a mistura entre razatildeo e necessidade eacute constitutiva do universo

167

escolhas e a necessidade inelutaacutevel de que cada alma seja ligada agrave vida corporal (Repuacuteblica

X 617e) Como potecircncia causal e matildee das Moiras Anaacutenkhe no contexto do mito de Er

representa a geraccedilatildeo da lei inflexiacutevel de retribuiccedilatildeo e implica a transferecircncia do estatuto

divino do noacutemos para as distribuidoras das sortes

Ela eacute a potecircncia regedora da ordem coacutesmica da manutenccedilatildeo de todas as coisas e do

lugar proacuteprio para cada elemento da phyacutesis e para as almas Sua accedilatildeo abarca a composiccedilatildeo

total do Koacutesmos e como afirma Proclo (que assimila Anaacutenkhe a Theacutemis) seu domiacutenio

soberano sobre todas as coisas no mundo implica uma ordem inevitaacutevel e uma guarda sem

remissatildeo

Potecircncia divina primordial a accedilatildeo de Anaacutenkhe alude ao fato de que a Repuacuteblica

coacutesmica jamais eacute subvertida e que o universo eacute guardado por meio de estatutos

indissoluacuteveis Ela eacute o garante da causalidade primordial e preside a ordem inerente ao

koacutesmos e arranjo dos seres vivos Atraveacutes das Moiras Anaacutenkhe preside todos os

movimentos celestes e os movimentos que configuram as accedilotildees praacuteticas Sua imagem

personifica a infalibilidade dos viacutenculos de arranjo harmocircnico que regem a phyacutesis e da

necessidade ineludiacutevel que vincula as escolhas e os gecircneros de vida com a condiccedilatildeo e a

natureza das almas Mas Anaacutenkhe implica tambeacutem a tyacutekhe como elemento fortuito

inelutaacutevel no Koacutesmos e inalienaacutevel agraves escolhas e agrave mistura dos paradigmas de vida

As Moiras satildeo as filhas de Anaacutenkhe Suas accedilotildees remetem para uma potecircncia

unificadora e uma causaccedilatildeo uacutenica Isso significa que haacute um viacutenculo causal que abarca

simultaneamente as conexotildees fiacutesicas e a tecedura dos destinos As Moiras satildeo mediadoras

entre os movimentos inelutaacuteveis dos ciacuterculos celestiais O fuso que liga as esferas celestes

mediante uma luz em linha reta como coluna phoacutes euthyacute hoicircon kiacuteona e sua accedilatildeo tanto

168

sobre as esferas como sobre os lotes de tipos de vida indica uma triparticcedilatildeo coacutesmica da

causalidade

Essa triparticcedilatildeo indica domiacutenios de causalidade diversos que satildeo abarcados por uma

causalidade universal e unificadora Causantes e causados diferem pelos traccedilos uno e

muacuteltiplo universal e particular inteligiacutevel e devir A unificaccedilatildeo eacute operada no domiacutenio da

causalidade inteligiacutevel Nenhum domiacutenio causal escapa a Anaacutenkhe As Moirai satildeo as

repartidoras das porccedilotildees relativas a cada ser porque elas mesmas satildeo partiacutecipes do domiacutenio

causal primordial de Anaacutenkhe

Em nome de Laacutequesis a filha da Necessidade o profeta proclama que a necessidade

eacute de viver mas a escolha cabe ao gecircnero de vida e esta escolha introduz taacutexis e noacutemos na

necessidade Guardiatilde do passado Laacutequesis eacute autora do decreto pois o passado eacute

determinante da configuraccedilatildeo presente e por isso mais compreensivo numa perspectiva

causal

Na distribuiccedilatildeo das vidas haacute uma mixoacuterdia de uma miriacuteade de elementos

miscigenados segundo a sorte e nos mais variados graus possiacuteveis (Repuacuteblica X 618b)

Mas eacute possiacutevel escolher a melhor vida em funccedilatildeo de um caacutelculo que permite o

discernimento das consequecircncias de cada uma destas misturas e de seus componentes

(Repuacuteblica X 618c-d) O mito de Er tal como ocorre no Feacutedon alude a um risco a um

perigo (Repuacuteblica X 618b) o de escolher mal um gecircnero de vida sem avaliar as

consequecircncias

O perigo tal como no Feacutedon indica a necessidade da encantaccedilatildeo da persuasatildeo que

mova os afetos e suscite a crenccedila de que haacute algo que remanesce apoacutes a morte de que haacute

algo para aleacutem da evidecircncia apontada pelo senso da maioria do fato bruto do apetite e de

que todo valor temporal deriva do amor agrave riqueza do amor ao poder e do amor ao prazer A

169

filosofia natildeo constitui garantia absoluta para a felicidade haacute um elemento fortuito

contingente inextrincaacutevel da tyacutekhe implicada por Anaacutenkhe eacute preciso que a sorte natildeo

designe os uacuteltimos lugares na hora da escolha As maacutes escolhas satildeo feitas por aqueles que

natildeo foram suficientemente treinados nos sofrimentos (aacutete poacutenon agymnaacutestous) Platatildeo

confere no mito de Er um valor positivo ao sofrimento como se fora um treinamento

Segundo Dixsaut (2001 p 177) para bem viver natildeo basta pensar e ter prazer na

atividade de pensar Ao pensamento leve eacute preciso acrescentar a forccedila de encaminhar

para o alto o lote de fardo pesado de desgraccedila e de infelicidade que eacute o lote de toda vida

jaacute que toda vida eacute uma mistura

Natildeo haacute vida sem mistura de alegria e dor felicidade e sofrimento Tudo ser vivo

tem seu lote misturado de felicidade e dores E no entanto a ascensatildeo da alma para o alto

pressupotildee um paacutethos o Eacuteros filosoacutefico

No Goacutergias (507e-508) Soacutecrates lembra um saacutebio que afirma que o ceacuteu a terra os

deuses e os homens satildeo vinculados por philiacutea119

respeito agrave kosmiacutea agrave sophrosyacutene e agrave

justiccedila e por essa razatildeo eles satildeo chamados Koacutesmos e natildeo akosmiacutea e akolasiacutea Todos os

planos de realidade satildeo mantidos juntos por philiacutea Haacute uma lei que cinge o universo uma

119 Canto afirma que a menccedilatildeo agrave philiacutea eacute uma referecircncia a Empeacutedocles em funccedilatildeo da importacircncia atribuiacuteda agrave

amizade como princiacutepio coacutesmico (M Canto in PLATON 1993 nt 189 p 347) Dodds por outro lado

observa que natildeo haacute nada que implique o fato de Platatildeo ter Empeacutedocles necessariamente em mente sobretudo

porque a doutrina da ldquoigualdade geomeacutetricardquo natildeo seria empedocleana A koinoiacutea indica a comunhatildeo condiccedilatildeo

necessaacuteria para a philiacutea ambos princiacutepios necessaacuterios para o governo tanto do Koacutesmos como das relaccedilotildees

poliacuteticas e pessoais Tais noccedilotildees satildeo firmemente aceitas como heranccedila pitagoacuterica Os pitagoacutericos teriam sido

os primeiros a chamar o universo Koacutesmos e certamente foram os primeiros a correlacionaacute-lo com leis

matemaacuteticas regradoras (E R Dodds in PLATO 1990 p 337)

Irwin por sua vez foca sua anaacutelise na explicitaccedilatildeo argumentativa da tese de que a comunhatildeo e a amizade satildeo preacute-condiccedilotildees para a virtude e distingue alguns problemas suscitados pelo argumento Soacutecrates argumenta se

A eacute amigo de B entatildeo deve haver comunhatildeo entre A e B Se B eacute intemperante entatildeo B natildeo pode ter

comunhatildeo e por conseguinte amizade com A Segundo Irwin a intemperanccedila de B natildeo implica

necessariamente sua incapacidade de ter amizade com A e tampouco a falta de amizade de A implica um

prejuiacutezo necessaacuterio para B (Irwin in PLATO 2004 nt 507e p 225) A pontualidade da anaacutelise

argumentativa nesse caso deixa na sombra a primazia fundamental estabelecida nas inuacutemeras passagens

correlatas que sugerem a homologia estrutural entre regramento cosmoloacutegico poliacutetico e psiacutequico A oposiccedilatildeo

entre kosmiacutea e akosmiacutea eacute congruente agrave oposiccedilatildeo entre sophrosyacutene e pleonexiacutea

170

lei que alude a um paacutethos e que se harmoniza com o regramento geomeacutetrico do Koacutesmos

Paacutethos e regramento matemaacutetico constituem um arranjo harmocircnico

Este arranjo eacute reafirmado no Timeu a modelaccedilatildeo do Koacutesmos manifesta um acordo

resultante da proporccedilatildeo geomeacutetrica e as relaccedilotildees instauradas por esta proporccedilatildeo lhe

conferem philiacutea de modo que tornado idecircntico a si mesmo ele natildeo pode ser dissolvido a

natildeo ser por aquele que estabeleceu seus viacutenculos (Timeu 32c) A menccedilatildeo agrave philiacutea indica

que os patheacutemata juntamente com relaccedilotildees geomeacutetricas invariantes satildeo constitutivos de

uma cosmogonia A inteligecircncia eacute indissociaacutevel dos desejos o inteligiacutevel indissociaacutevel da

inteligecircncia Os mitos filosoacuteficos possuem esse eixo invariante cuja distinccedilatildeo primordial

consiste no estabelecimento do primado da inteligecircncia como forccedila ordenadora e regradora

que suscita a unificaccedilatildeo de planos opostos e diacutespares o eacutetico-poliacutetico com o cosmoloacutegico o

fiacutesico com o psicoloacutegico a Natureza com a Lei

Mas inteligecircncia e as escolhas exigem prudecircncia e coragem para que se evite a

precipitaccedilatildeo A precipitaccedilatildeo eacute incompatiacutevel com o discernimento prudente propiciado pela

Filosofia Os sofrimentos satildeo ao mesmo tempo resultado da justa retribuiccedilatildeo a faltas

pregressas e uma exigecircncia paidecircutica trata-se de um exerciacutecio que faculta a maior

capacidade e o maior discernimento nas escolhas Como os sofrimentos satildeo uma partilha

comum de todas as almas todos os seres tecircm de passar por eles Eles fazem parte da

Necessidade Anaacutenkhe elemento intriacutenseco ao Koacutesmos e por isso satildeo agentes de

desenvolvimento Por constituiacuterem uma funccedilatildeo epistemoloacutegica os sofrimentos permitem

que as escolhas natildeo sejam precipitadas (Repuacuteblica X 619d)

Mesmo diante do desfavor da tyacutekhe aquele que se dedica ao estudo da Filosofia tem

mais chances segundo o que se diz em relaccedilatildeo ao Hades de viver mais feliz nesta vida e de

retornar atraveacutes da rota celeste (Repuacuteblica X 619e) Mas para isso eacute preciso vencer o

171

Grande Combate meacutegas agoacuten que se trata de se tornar bom ou mau e natildeo se deixar

arrastar pela gloacuteria pela riqueza e esquecer a justiccedila e a virtude

Disse tambeacutem grande eacute o combate oacute amigo Glauco um combate

maior do que se pensa o que se trata de tornar-se bom ou mau

Natildeo eacute preciso deixar-se arrastar nem pela gloacuteria nem pela riqueza

nem por nenhuma dignidade nem pela poesia mesma e

negligenciar a justiccedila e as outras virtudes120

Repuacuteblica X 608b 04-08

O grande combate consiste em escolher o genuiacuteno valor entre as coisas e saber que

os sofrimentos do tempo presente satildeo derrisoacuterios diante da totalidade do tempo e natildeo valem

muita coisa nem satildeo algo terriacutevel (Goacutergias 527d) O zecircnite da exortaccedilatildeo filosoacutefica consiste

em procurar contrariamente ao combate no qual todos se engajam o precircmio do mais belo

combate que existe121

a potecircncia (dyacutenamis) da alma cuja beleza eacute proporcional agrave gravidade

do mal a ser combatido122

A Filosofia propicia a phroacutenesis que permite a distinccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo de todos

os valores que se referem agrave vida e ao conhecimento Os males satildeo frequentemente

associados agrave dor sensiacutevel e aos afetos A Filosofia como gecircnero de vida virtuoso permite

viver a vida de maior valor e sair vitorioso do grande combate Todavia haacute sempre um

elemento de incerteza que remanesce e haacute a grandeza do risco Somente a encantaccedilatildeo

miacutetica e seu efeito crucial de afastar o medo permitem superar o fardo da mistura em que

consistem todos os lotes de vida Eacute preciso a crenccedila como condiccedilatildeo que suscita a coragem

para vencer a mistura de dores e prazeres

120 Meacutegas gaacuter eacutephen ho agoacuten oacute phiacutele Glauacutekon meacutegas oukh hoacutesos dokeicirc tograve khrestograven egrave kakograven geneacutesesthai

hoste ouacutete timecirci epartheacutenta ouacutete khreacutemasin ouacutete arkhecirci oudemiacirci oudeacute ge poietikecirci aacutexion amelecircsai

dikaiosyacutenes te kaigrave tecircs aacutelles aretecircis 121 kaigrave tograven agoacutena toucircton hograven egoacute phemi anti pantoacuten toacuten enthaacutede agoacutenon eicircnai

(Goacutergias 527e03-04) 122 hoacutes hekaacutestou kakoucirc meacutegethos peacutephyken houacutetoacute kaigrave kaacutellos toucirc dynatocircn eicircnai heacutekasta boetheicircn kaigrave aiskhyacutene

toucirc meacute

(Goacutergias 509c03-04)

172

A necessidade da vida implica a necessidade da mistura e a necessidade da

pluralidade de afetos Mas nem a dor nem a virtude possuem deacutespota Cabe a cada um ter

sophrosyacutene sobre os afetos proacuteprios que acompanham cada lote de dor e sensaccedilotildees A alma

discerne a realidade segundo a proacutepria constituiccedilatildeo de seus afetos Esta eacute grande

significaccedilatildeo da narrativa do deus marinho Glauco A exposiccedilatildeo continuada ao ambiente das

profundezas marinhas resultou na identificaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo de Glauco ao ambiente do seu

viver A incrustaccedilatildeo de algas conchas pedregulhos e a accedilatildeo das vagas acabaram por

desfigurar sua natureza primitiva ateacute que ele se tornasse mais semelhante a uma fera

Analogamente os males que se incrustam na alma acabam por desfiguraacute-la desumanizaacute-la

ateacute que se torne irreconheciacutevel na aparecircncia bestial (therioacute) que resulta da identificaccedilatildeo

com o ambiente do seu viver (Repuacuteblica X 611c-612a)

A alma pura e saacutebia discerne a realidade de modo diferente da alma impura A

noccedilatildeo de felicidade muda conforme a natureza psiacutequica A alma dotada de phroacutenesis

encontraraacute a felicidade no pensamento elevado na virtude na obra bela e ateacute no sofrimento

contingente que ela vecirc como aacuteskesis As aspiraccedilotildees humanas ligadas ao devir perturbam e

obscurecem o pensamento o que por sua vez traz uma proporccedilatildeo de desventuras

equivalente (Repuacuteblica X 619c a escolha do tirano)

Para quebrar os viacutenculos que prendem a psykheacute aos apetites eacute preciso a excisatildeo

ciruacutergica do sofrimento Os afetos engendrados pelo sofrimento desde que postos na

perspectiva da totalidade do tempo predispotildeem a inteligecircncia a apreender realidades natildeo

vistas e natildeo percebidas

Na medida em que se obscurece a realidade do devir abre-se a realidade do

pensamento purificado O filoacutesofo eacute aquele que a tudo tendo sofrido pode voltar-se para as

realidades mais verdadeiras Ele eacute o coroamento de um itineraacuterio de sofrimentos Em meio

173

agrave desordem dos modelos de vida ele pode como afirma Dixsaut (2001 p 178) inscrever

ordem no decreto e hierarquizar os modos de vida mediante a articulaccedilatildeo da inteligecircncia

com a Necessidade Por essa razatildeo o filoacutesofo pode converter o aparente caos da

multiplicidade em uma inteligecircncia segundo o paradigma da ordenaccedilatildeo coacutesmica

Nos grandes mitos de julgamento a inexorabilidade da justa retribuiccedilatildeo da praacutexis se

conjuga com a causalidade de maneira que responsabilidade e causalidade coacutesmica

infaliacutevel sejam aspectos diversos de uma mesma kosmiacutea

174

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Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE ... · Prometeu, a linguagem é posterior ao fogo técnico, que consolida o sacrifício como o rito ... filosóficas sustentadas

ii

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIEcircNCIAS HUMANAS

RUBENS GARCIA NUNES SOBRINHO

Tese apresentada ao curso de Poacutes-graduaccedilatildeo

em Filosofia do Departamento de Filosofia da

Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas da

Universidade Federal de Minas Gerais como

requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em

Filosofia

Orientador Dr Marcelo Pimenta Marques

Belo Horizonte-MG

Junho 2011

KOacuteSMOS E INTELIGEcircNCIA AS POTEcircNCIAS DA ALMA NO GOacuteRGIAS

100

N972k

2011

Nunes Sobrinho Rubens Garcia

Koacutesmos e inteligecircncia [manuscrito] as potecircncias da alma

no Goacutergias Rubens Garcia Nunes Sobrinho - 2011

190 f

Orientador Marcelo P Marques

Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais

Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas

Inclui bibliografia

1Filosofia ndash Teses 2 Alma - Teses 3Vergonha - Teses

4Mito - Teses 5Platatildeo Goacutergias I Marques Marcelo

Pimenta II Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade

de Filosofia e Ciecircncias Humanas III Tiacutetulo

iv

Ao Roberto Vilela Marquez enigma cujos sinais satildeo a prova cabal de que os valores mais profundos tornam todas as buscas e inquiriccedilotildees do breve tempo da vida derrisoacuterias perante a grandeza do destino humano ndash que nada eacute aleacutem do que o seu eacutethos

v

AGRADECIMENTOS

A todos aqueles que acima da Necessidade alccedilaram a escolha

Agravequeles para os quais a amizade e o bem estatildeo acima da retribuiccedilatildeo

Agravequeles para os quais os afetos constituem a uacutenica natureza invenciacutevel da alma que

resiste ao esquecimento e agrave morte

Agravequeles que satildeo myacutestai pela simplicidade da accedilatildeo virtuosa que natildeo exige compensaccedilatildeo

mas que compensam toda incerteza inerente agrave vida mediante a convicccedilatildeo de que todo risco

eacute belo se for tambeacutem uma doaccedilatildeo

Agravequeles que se fizeram meus credores e cuja paga seraacute aquilatada pelo melhor a ser feito

em prol da alteridade

Agrave Soraya para quem o amor eacute princiacutepio da vida e do mundo que estaacute muito acima da

inteligibilidade e da razatildeo

Ao Marcelo Marques para quem o fim e o princiacutepio satildeo o mesmo para quem as

imagens identificam-se com Elpiacutes pois enquanto houver imagem haveraacute tambeacutem

possibilidade de superaccedilatildeo e enquanto houver o filosofar haveraacute o ciclo coacutesmico do

recomeccedilo

Ao tio Rubens Garcia Nunes modelo e fonte eterna de significaccedilatildeo

Agraves filhas Mariela e Marina depositaacuterias do eacutethos a viajar rumo ao oceano do belo

vi

Agrave toda a minha famiacutelia cujo amor supera qualquer meacuterito

Ao Programa de Poacutes da UFMG pela participaccedilatildeo da excelecircncia teacutecnica na

humanidade

Aos examinadores Adriano Roberto Fernando e Antocircnio pela mostra de que a vida

sem exame natildeo eacute digna de ser vivida

vii

Tive medo Sabe Tudo foi isso tive medo Enxerguei os confins do rio do outro lado Longe longe com que prazo se ir ateacute laacute Medo e vergonha A aguagem bruta traiccediloeira ndash o rio eacute cheio de baques modos moles de esfrio e uns sussurros de desamparo () Um fato assim eacute honra Ou eacute vergonha

Joatildeo Guimaratildees Rosa Grande Sertatildeo Veredas

viii

SUMAacuteRIO

0 INTRODUCcedilAtildeO5

1 MITOS E CAUSAS ndash excertos de imagens causais em Hesiacuteodo e Homero 21

11 Retribuiccedilatildeo e Causalidade 21

12 Causalidade e Poder 25

13 Causalidade e Reciprocidade 32

14 A astuacutecia dolosa o presente de Prometeu 37

15 Vergonha e causalidade a cosmogonia sexual do Papiro de

Derveni 44

2 O MITO DO PROTAacuteGORAS teacutecnicas aidōs e diacutekē61

3 RELACcedilOtildeES ESTRUTURAIS NO MITO DO GOacuteRGIAS92

31 Eros e Loacutegos92

32 Vida e ḗthos98

33 Aiskhyacutene Aidōs e Causalidade109

34 Parrhēsiacutea e Epithymiacutea122

35 A Retoacuterica da alma134

36 Julgamento e nudez149

4 NECESSIDADE E ESCOLHA 154

41 Imagens e causas no mito de Er154

42 Mito e psykhḗ159

43 Er o decreto de Laacutequesis162

5 BIBLIOGRAFIA174

1

Resumo

A partir do emprego do estruturalismo alematildeo de Walter Burkert pretendo destacar nesta

investigaccedilatildeo as relaccedilotildees estruturais entre as imagens do mito de julgamento do Goacutergias e

aplicaacute-las a um passo do mito de Er da Repuacuteblica Segundo Burkert (2001b) mito eacute um

programa ou sequecircncia de accedilotildees com uma estrutura discerniacutevel definida que se caracteriza

pela exemplaridade do tipo miacutetico e pela aplicabilidade atemporal Aprofundando a

definiccedilatildeo burkertiana de mito proponho que as accedilotildees implicam imagens psiacutequicas

imbuiacutedas de afetos ndash vergonha audaacutecia e ardor satildeo os afetos eroacuteticos mediante que a

dialeacutetica socraacutetica choca-se ingente com a retoacuterica daquele que viria a ser ao mesmo

tempo o mais violento e o mais brilhante dos interlocutores que travam combate com

Soacutecrates Caacutelicles

Devo esclarecer que toda a interpretaccedilatildeo elaborada neste artigo parte do pressuposto de que o

mito eacute pensar por imagens e que imagens mentais precedem a linguagem No mito de

Prometeu a linguagem eacute posterior ao fogo teacutecnico que consolida o sacrifiacutecio como o rito

adequado para a interaccedilatildeo entre as instacircncias divina e humana e a emergecircncia ritualiacutestica dos

esquemas mentais que compotildeem a inteligecircncia causal organizadora da experiecircncia e da

multiplicidade a conexatildeo infaliacutevel entre dois eventos consecutivos no tempo a deliberaccedilatildeo

projetiva inteligente a escolha de meios eficazes com vistas a um fim uacutetil determinado Por

extensatildeo pode-se dizer que os ritos satildeo anteriores agrave linguagem e que imagens e ritos natildeo a

linguagem satildeo os fundamentos do pensar

Por fim um olhar atento ao termo parrhēsiacutea que inicialmente aparece como a fala aberta

que revela o pensamento e as verdadeiras crenccedilas do proferidor no Goacutergias eacute mencionado

na ambiguidade irocircnica com que Soacutecrates alude ao livre curso dos apetites de Caacutelicles (que

engendram a violecircncia do seu loacutegos) e agrave qualidade psiacutequica pela qual a investigaccedilatildeo

2

dialeacutetica pode chegar a bom termo A franqueza (parrhēsiacutea) eacute a garantia pela qual

interlocutor assente a uma tese expressa e tambeacutem um indicativo de que uma certa

ordenaccedilatildeo psiacutequica transpotildee seu movimento proacuteprio para o loacutegos O discurso sem peias

reproduz de modo direto a trama que entretece os afetos neste princiacutepio de movimento e

inteligecircncia que eacute a psykheacute

Palavras-chave Goacutergias Repuacuteblica estrutura mito

3

Abstract

Based on approach of Water Burkert German structuralism in this issue I intend to point

out the structural relations between the images of the judgment myth in Plato‟s Gorgias and

apply them in Er myth of Republic

According to Burkert (2001b) myth is a program or a sequence of actions in a clear

distinguished structure characterized by exemplarity of the mythical model and the

timeless applicability Going further on Burkert definition of myth I put forward that the

actions imply psychic images filled with feelings ndash audacity and ardor are erotic feelings

through which the Socratic dialectics strikes against the rhetoric of that who became at the

same time the most violent and the cleverest interlocutor to antagonize Socrates Callicles

In addition I must say that the whole interpretation presented here assumes that myth is

thinking by images and mental images come before language In Prometheus myth language

comes after the technical fire that stabilizes the sacrifice as the right rite for the interplay of

divine and human instances and the ritual emergency of mental scheme that compound the

causal intelligence that organizes experience and multiplicity the infallible connection between

two consecutive events in time the intelligent projective deliberation the choice of efficient

means aiming a specific useful objective In other words it can be said that rites come before

language and that not language but images and rites give the bases to thoughts In conclusion

staring at the expression parrhēsiacutea ndash which first appears as an open speech that reveals the

thought and the true beliefs of its speaker ndash in Gorgias the word points out the ironic

ambiguity with which Socrates refers to the Callicles free course of desires (which

engender his loacutegos violence) and the psychic quality by which the dialectic investigation

can come to an end Sincerity (parrhēsiacutea) is the guarantee by which a speaker agrees to an

expressed thesis and also a sign that a certain psychic organization transfers its peculiar

4

movement to the logos The unchained speech imitates the scheme which intertwines the

feelings in the beginning of the movement and the intelligence which psykheacute is

Keyword Gorgias Republic structure myth

5

Introduccedilatildeo

O escopo desta pesquisa eacute desenvolver a partir do movimento proacuteprio do Goacutergias a

adequaccedilatildeo de um meacutetodo que desvele a estrutura interna do grandes mito de julgamento

que culmina o diaacutelogo de sorte a compreender sua funccedilatildeo suas regularidades seus

esquemas invariantes e as correspondecircncias entre as imagens miacuteticas e as concepccedilotildees

filosoacuteficas sustentadas na dramatizaccedilatildeo Para tanto adota-se os resultados da tese

ingressiva de Charles Kahn como fundamento para a abordagem comparativa de diaacutelogos

que historicamente satildeo situados em periacuteodos diversos

O enfoque sinoacutetico por sua vez possibilita a adoccedilatildeo da assunccedilatildeo estrateacutegica de que

o desenvolvimento do meacutetodo se faccedila a partir da comparaccedilatildeo do movimento interno das

imagens do mito de julgamento e simultaneamente possibilite uma compreensatildeo fecunda

dessas imagens a partir da aplicaccedilatildeo do meacutetodo Ademais visa-se examinar o influxo que o

pano de fundo composto pela tradiccedilatildeo cultual dos misteacuterios gregos a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e a

filosofia cosmoloacutegica anterior a Platatildeo exerceram nos mitos de julgamento e sobretudo a

transposiccedilatildeo filosoacutefica empreendida por Platatildeo em relaccedilatildeo a essa forja mental no

movimento dos mitos finais do Goacutergias Como anexo esboccedila-se uma extensatildeo desse

bricolage interpretativo a um passo do mito de Er (Repuacuteblica X 614b-621d)

Adoto o pressuposto de que o mito filosoacutefico platocircnico eacute um ldquopensar por imagensrdquo

que se expressa numa sequecircncia de accedilotildees Enquanto narrativa o mito eacute um fenocircmeno

linguiacutestico que natildeo possui referentes imediatos atestaacuteveis Natildeo haacute um isomorfismo entre a

narrativa e uma realidade diretamente verificaacutevel Uma narrativa natildeo eacute uma ldquoacumulaccedilatildeordquo

de sentenccedilas pontuais mas eacute uma sequecircncia no tempo (BURKERT 1979 3 ss) Mas a

6

sequecircncia temporal miacutetica natildeo eacute homoacuteloga ao tempo cronoloacutegico eacute uma sequecircncia

temporal que possui uma homologia estrutural com uma sequecircncia de significaccedilatildeo causal

A sequecircncia de imagens torna manifestas relaccedilotildees entre registros de realidade

distintos atraveacutes da necessidade de uma conexatildeo interna A linearidade e a

transmissibilidade de um complexo de relaccedilotildees e conexotildees causais homologaacuteveis

constituem o cerne da narrativa miacutetica Tais elementos exigem o suporte linguumliacutestico mas

embora Burkert consigne o mito ao domiacutenio da linguagem nos mitos filosoacuteficos a

linguagem eacute somente instrumental e natildeo eacute o fundamento uacuteltimo de significaccedilatildeo

As metaacuteforas imageacuteticas de um mito filosoacutefico por princiacutepio possuem uma

polissemia inexauriacutevel pela simples razatildeo de que seu referencial uacuteltimo eacute o pensamento ou

mais propriamente o psiquismo Natildeo se trata se identificar na psykheacute o princiacutepio do

inteligiacutevel mas de se pensar a inteligibilidade cosmoloacutegica inextricavelmente do modo

como o pensamento e os afetos apreendem o inteligiacutevel e o recompotildeem na accedilatildeo demiuacutergica

da molda das imagens e do discurso Inteligecircncia afetiva imagens pensamentos e os loacutegoi

conjugam-se necessariamente na ldquocaccedila ao realrdquo

Como se pode depreender do mito do Protaacutegoras o pensamento loacutegico

discriminador a inteligecircncia teacutecnica a linguagem e a matemaacutetica o engenho humano e as

teacutecnicas discursivas todos emanados do fogo teacutecnico satildeo ontologicamente posteriores aos

ritos aos cultos e agrave fabricaccedilatildeo de imagens dos deuses Isso implica que ndash a menos que se

considerem todos os mitos e toda forma de metaacutefora empregada no corpus platocircnico como

palavroacuterio sem sentido ndash a linguagem natildeo eacute e natildeo pode ser o fundamento uacuteltimo da

realidade O pensamento as imagens e os afetos satildeo intrinsecamente misturados agrave praacutexis

ao biacuteos agrave proacutepria vida que simultaneamente brota e interfere no mundo Os loacutegoi soacute

ganham autonomia mediante o reconhecimento e a alforria do senhorio das imagens

7

No corpus platocircnico os fenocircmenos se exprimem por uma gama de termos como

phainoacutemenon eiacutedōlon eikōn phaacutentasma miacutemēma homoiacuteōma e outras (SEKIMURA

2009 p 22 ss) Mas Platatildeo hierarquiza o estatuto epistecircmico das imagens Haacute uma clara

distinccedilatildeo entre eiacutedōlon eikōn e phaacutentasma Haacute imagens que satildeo determinantes no processo

do conhecimento haacute imagens cujas relaccedilotildees satildeo empobrecidas em relaccedilatildeo o modelo

original e haacute imagens ilusoacuterias que impedem a apreensatildeo da realidade A distinccedilatildeo entre

eiacutedōlon e eikōn eacute brilhantemente exposta por S Saiumld

Se as duas palavras satildeo formadas a partir de uma mesma

raiz bdquowei‟- somente eiacutedōlon por sua origem emerge da esfera do

visiacutevel pois eacute formada sobre um tema bdquoweid‟- que exprime a ideacuteia

de ver (este tema que deu ao latim bdquovideo‟ se encontra em grego

no verbo bdquoidein‟ bdquover‟ e no substantivo eidos que se aplica

inicialmente agrave aparecircncia visiacutevel) O eikōn do mesmo modo que os

verbos eisko ou eikazdo bdquoassimilar‟ ou o adjetivo eikelos

bdquosemelhante‟ se vincula a um tema bdquoweik‟- que indica uma relaccedilatildeo

de adequaccedilatildeo ou de conveniecircncia

(SAID apud SEKIMURA 2009 p 23)

Como nota Sekimura (2009 p 22 ss) o termo eiacutedōlon se forma sobre o mesmo

tema que origina Eidos e Idea designativos da realidade inteligiacutevel e de sua accedilatildeo causal

determinante A relaccedilatildeo entre as imagens e o inteligiacutevel invisiacutevel eacute constitutiva Nesse

sentido como afirma Saiumld existe entre o eiacutedōlon e seu modelo uma identidade de

superfiacutecie e de significante enquanto a relaccedilatildeo entre o eikōn e o que ele representa se

situa no niacutevel da estrutura profunda do significado (id) O eiacutedōlon estaacute para o eikōn assim

como a coacutepia da aparecircncia sensiacutevel estaacute para a transposiccedilatildeo da essecircncia

O eiacutedōlon eacute inerente ao olhar eacute o alvo e o ponto de encontro entre o olhar e a

silhueta que nada informa acerca das determinaccedilotildees do modelo Ele eacute valorizado ou

desvalorizado pela relatividade do olhar e sua manifestaccedilatildeo ao modo das imagens dos

deuses implica simultaneamente a presenccedila e a ausecircncia Sua marca eacute a do

8

empobrecimento e do afastamento do modelo original O eikōn por outro lado carrega em

seu bojo a remissatildeo pluriacutevoca a planos diversos Ele pode ser o ponto de partida para o

conhecimento de relaccedilotildees e determinaccedilotildees sensiacuteveis ou pode remeter agrave realidade inteligiacutevel

No eikōn a inteligecircncia se vale do olhar para ultrapassar a imagem e mediante a

transposiccedilatildeo e a homologaccedilatildeo de suas relaccedilotildees internas ldquosaturar-serdquo gradativamente do

inteligiacutevel e do invisiacutevel no foco das relaccedilotildees somente pensaacuteveis As imagens icocircnicas

constituem o esforccedilo ingloacuterio de pensar filosoficamente o invisiacutevel a morte a alma e os

referenciais imoacuteveis exigidos para a compreensatildeo de um mundo caoacutetico

Por isso a inteligecircncia usa imagens na tentativa de ver o invisiacutevel e operar a

passagem da sensaccedilatildeo para a concepccedilatildeo Natildeo eacute por acaso que os mitos filosoacuteficos estatildeo na

esfera da crenccedila que possui a pretensatildeo de ser o loacutegos mais verdadeiro suas imagens satildeo

um convite para a inquiriccedilatildeo da significaccedilatildeo profunda subjacente aos fenocircmenos

cambiantes caoacuteticos As imagens miacuteticas convocam a inteligecircncia e o olhar a jamais se

fixarem naquilo que eacute visto e manifesto e ascenderem em direccedilatildeo ao invisiacutevel ao

inteligiacutevel ateacute que a luz da lamparina subitamente se acenda pelo movimento psiacutequico

O mito filosoacutefico eacute verdadeiramente um ldquopensar por imagensrdquo e eacute tambeacutem a uacutenica

modalidade de pensar que natildeo se fixa no visiacutevel mas que convoca para a significaccedilatildeo mais

profunda oculta na maior profundeza do oceano do belo

Questotildees de meacutetodo e hermenecircutica

Mas a virtude de cada coisa seja instrumento corpo ou alma

seja qualquer animal vivo natildeo lhe vem por acaso e jaacute eacute

completa eacute o resultado de uma certa ordem de retidatildeo e da

arte adaptada agrave natureza de cada um Logo eacute pela ordem e

regramento que a virtude de cada coisa existe

Goacutergias 506 d5-e2

Desejando a divindade que tudo fosse bom e tanto quanto

possiacutevel estreme de defeitos tomou o conjunto das coisas

9

visiacuteveis ndash nunca em repouso mas movimentando-se discordante

e desordenadamente ndash e fecirc-lo passar da desordem para a

ordem por estar convencido de que esta em tudo eacute superior

agravequela

Timeu 30a

A composiccedilatildeo dramaacutetica do Goacutergias anuncia uma guerra e uma batalha (poacutelemos

kai maacutekhe) na qual Platatildeo iria se engajar ateacute a morte a defesa do gecircnero de vida filosoacutefico

No Goacutergias estatildeo mapeados e demarcados de maneira incipiente os principais temas que

compotildeem a Filosofia platocircnica Segundo Olimpiodoro o objetivo do diaacutelogo seria ldquofalar

sobre princiacutepios eacuteticos que levam ao bem-estar constitucionalrdquo (1998 p 57 04) Todo o

ardor que anima Soacutecrates (457e) na sua defesa apaixonada de um modo peculiar de vida

tem como alvo falar sobre a organizaccedilatildeo constitucional e sua correlaccedilatildeo com os valores

eacuteticos determinantes para o gecircnero de vida A questatildeo dos valores eacuteticos remonta em

uacuteltima instacircncia agrave oposiccedilatildeo fundamental entre o regramento e o desregramento o

regramento dos afetos corresponde ao regramento do mundo que por isso eacute chamado

kosmos (Goacutergias 507e ndash 508b) Natildeo pode existir nenhuma comunhatildeo ou associaccedilatildeo

humana sem regras assim como nada existe no kosmos que natildeo tenha regras Todo o

mundo eacute de fato um espetaacuteculo de geometria e proporccedilatildeo geomeacutetrica (Goacutergias 508a)

A questatildeo de um regramento matemaacutetico que perpassa o koacutesmos juntamente com os

mitos de julgamento suscita uma gama de questotildees natildeo respondidas

Por que Platatildeo um filoacutesofo que atribui um valor sublime agraves matemaacuteticas e assimila

o raciociacutenio puro ao divino (Feacutedon 84 a-b) culmina grandes diaacutelogos que concentram o

cerne de sua Filosofia com grandes mitos de julgamento Por que esse criacutetico mordaz da

poesia e dos mitos tradicionais recorre a um acervo de tradiccedilotildees miacutesticas e inventa seus

proacuteprios mitos A questatildeo da elucidaccedilatildeo do papel dos mitos na composiccedilatildeo complexa de

trecircs dos maiores diaacutelogos platocircnicos estaacute contida no acircmbito mais geral do problema

10

interpretativo que exige a superaccedilatildeo da distacircncia entre o que Platatildeo escreve em passagens

especiacuteficas e as concepccedilotildees maiores que atravessam a inteireza dos diaacutelogos Somente um

tratamento comparativo-sinoacutetico e o refazimento do movimento proacuteprio de cada diaacutelogo

permitem a distinccedilatildeo e a soluccedilatildeo do problema da relevacircncia dos mitos O postulado de que

o problema da interpretaccedilatildeo de um texto de Platatildeo exige a elucidaccedilatildeo de seu significado a

partir da comparaccedilatildeo de textos datados em periacuteodos distintos define o posicionamento de

ataque estrateacutegico ao problema da relevacircncia dos mitos e da possibilidade da conquista da

significaccedilatildeo (KAHN 1998 p 58 ss)

Por que Platatildeo se vale de imagens aparentemente desprovidas de regras e estranhas

agrave consecuccedilatildeo de proposiccedilotildees que se implicam mutuamente para expor suas principais

concepccedilotildees filosoacuteficas Qual o melhor meacutetodo para uma interpretaccedilatildeo fecunda desses

mitos O problema da relevacircncia abre o campo para o enfrentamento do estabelecimento

dos traccedilos constitutivos da composiccedilatildeo e distinccedilotildees especiacuteficas dos grandes mitos dos seus

efeitos e de um meacutetodo eficaz que sirva como arma que capture o sentido Se os grandes

mitos supotildeem regras em sua composiccedilatildeo e essas regras natildeo possuem referentes fora da

psykheacute entatildeo essas regras representam a determinaccedilatildeo profunda do psiquismo A riqueza

das metaacuteforas em Platatildeo instiga a investigaccedilatildeo das homologias estruturais em busca da

explicitaccedilatildeo dessas regras

Por que o filoacutesofo que recria dramaacutetica e imortalmente a refutaccedilatildeo destrutivo-

construtiva da dialeacutetica socraacutetica encena a impotecircncia do loacutegos diante de temas cruciais e eacute

obrigado a recorrer agrave encantaccedilatildeo miacutetica Por que os grandes mitos finais satildeo mitos de

julgamento das almas e da imortalidade Por que eles aparecem no fim dos diaacutelogos A

fundamentaccedilatildeo dos valores exige o emprego simultacircneo de todo o arsenal discursivo O

11

modelo metodoloacutegico permite a distinccedilatildeo de planos conceptuais que fazem a mediaccedilatildeo

entre oposiccedilotildees e uma interpretaccedilatildeo frutiacutefera deve destrinccedilar relaccedilotildees ocultas ou obscuras

Pensar filosoficamente a questatildeo da constituiccedilatildeo eacutetico-poliacutetica implica penetrar o

acircmago da alma e o tempo humano na perspectiva da perenidade e por isso o problema do

sentido emana indissociaacutevel das modalidades de inteligecircncia de um discurso complexo A

complexidade dos diaacutelogos sugere a hipoacutetese heuriacutestica de trataacute-los por inteiro como

grandes mitos Tal abordagem permite a superaccedilatildeo da dicotomia myacutethos-loacutegos e a aplicaccedilatildeo

do princiacutepio que permite o desvelamento auto-referenciado da significaccedilatildeo

Quais satildeo as concepccedilotildees que demarcam a arena comum na qual se desenrolam os

grandes mitos finais e quais satildeo suas implicaccedilotildees para a visatildeo de mundo e para a noccedilatildeo de

racionalidade de Platatildeo O campo no qual se desenrolam as gestas dos grandes mitos eacute

consistente e rigorosamente demarcado no Goacutergias e na Repuacuteblica a mousikecirc No Goacutergias

o domiacutenio da poesia traacutegica eacute determinado pela conjugaccedilatildeo de meacutelos rythmon e meacutetron

(Goacutergias 502c)

A demiurgia poeacutetica designa pois a atividade de fabricar um discurso complexo no

domiacutenio da muacutesica (BRISSON 1994 p 53) Na Repuacuteblica apoacutes o estabelecimento da

influecircncia exercida pelas narrativas miacuteticas sobre os afetos e o psiquismo a melodia

(meacutelos) eacute definida como sendo a composiccedilatildeo de trecircs elementos palavra (loacutegou) harmonia

(harmoniacuteas) e ritmo (rythmou) Haacute uma correlaccedilatildeo determinante entre o eacutethos e o gecircnero de

harmonia (Repuacuteblica 399 a-e) entre a natureza dos afetos e a natureza harmocircnica Mito e

harmonia pertencem ambos agrave esfera da muacutesica e caracterizam-se pela correlaccedilatildeo entre a

natureza de suas determinaccedilotildees e a natureza psiacutequica A natureza da harmonia incita

virtudes especiacuteficas ou afetos viciosos estados mentais e disposiccedilotildees de alma

correspondentes A correspondecircncia entre estados psiacutequicos e teoria musical constitui um

12

legado preacute-platocircnico como demonstra Aldo Brancacci (DIXSAUT 2006 p 89-106) A

grande transposiccedilatildeo operada por Platatildeo consiste no desenvolvimento de uma visatildeo

cosmoloacutegica unificada que abarca a muacutesica e explicita a sua relaccedilatildeo com a natureza da

alma

Mas qual eacute o elemento comum entre a alma e a harmonia A questatildeo da

ldquoharmoniardquo eacute expressamente tributaacuteria da tradiccedilatildeo pitagoacuterica e da concepccedilatildeo cosmoloacutegica

de Heraacuteclito A palavra harmoniacutea eacute aparentada ao termo harmos que designava o

acoplamento de duas liras originalmente tetracordes formando uma uacutenica lira heptacorde

(MOUTSOPOULOS in DIXSAUT 2006 p 110) A harmonia que originalmente tinha o

sentido de ldquojuntarrdquo ldquoacoplarrdquo passou a significar ldquoacordordquo ou ldquoreconciliaccedilatildeordquo Empeacutedocles

emprega harmoniecirc como outro nome para philotecircs a contrapartida para o oacutedio ou discoacuterdia

ndash o princiacutepio de proporccedilatildeo ou acordo que cria uma unidade harmoniosa entre poderes

potencialmente hostis Haacute ademais outro uso figurativo qual seja o de afinaccedilatildeo de um

instrumento musical o ajustamento das diferentes cordas para produzir uma escala

desejada Tanto o sentido musical como o sentido metafoacuterico mais amplo satildeo combinados

na concepccedilatildeo pitagoacuterica de que potecircncias opostas do kosmos satildeo mantidas juntas por um

princiacutepio ou harmonia como ldquoreconciliaccedilatildeordquo que toma a forma de uma oitava musical

(GUTHRIE 1990) (KAHN 2001) Boyanceacute (1993) demonstra com bastante propriedade

o enorme influxo que a concepccedilatildeo pitagoacuterica de ldquoharmoniardquo exerceu em Platatildeo sobretudo

no Timeu e na ldquomuacutesica celestialrdquo mencionada no mito de Er (Repuacuteblica X)

Tributaacuterio de uma longa tradiccedilatildeo de pensamento Platatildeo opera uma reviravolta

unificadora a harmonia musical eacute simultaneamente determinada pelo regramento

matemaacutetico e pela consonacircncia de movimentos complexos A transposiccedilatildeo cultural parte do

acervo de tradiccedilotildees vinculadas ao deus patrono da muacutesica e do regramento Apolo

13

Apolo eacute o deus da muacutesica da profecia e da harmonia A natureza musical de Apolo

representa a voz do mundo oliacutempico harmonia e medida que emergem da tensatildeo dos

contraacuterios Apolo o muacutesico eacute tambeacutem ldquoo deus fundador das regras e o conhecedor do

justo do necessaacuterio e do futurordquo (OTTO 1995 p 112) O viacutenculo entre a natureza musical

regramento e harmonia eacute estabelecido de modo inequiacutevoco no Craacutetilo Mas a grande

reviravolta empreendida por Platatildeo consiste na ampliaccedilatildeo desse viacutenculo para a esfera do

psiquismo mediante a noccedilatildeo de movimento

A etimologia do nome Apolo indica o ldquomovimento conjunto tanto no ceacuteu a que

damos o nome poacutelo como na harmonia do canto denominada sinfonia porque todos esses

movimentos como dizem os entendidos em Muacutesica e Astronomia satildeo feitos em conjunto

por uma espeacutecie de harmonia Eacute o deus que preside agrave harmonia e faz que tudo se mova

conjuntamente (omopolocircn) tanto entre os deuses como entre os homensrdquo (Craacutetilo 405 c-d)

No Timeu a consonacircncia de movimentos dissemelhantes eacute identificada com a harmonia

divina (Timeu 80 a-b) A harmonia cosmoloacutegica se expressa pelo regramento geomeacutetrico

que determina e unifica todos os seres num todo orgacircnico (Timeu 31d-32a) A psykheacute por

outro lado eacute ao mesmo tempo princiacutepio de movimento e princiacutepio da vida pois a ldquocessaccedilatildeo

do movimento corresponde ao fim da existecircnciardquo (Fedro 245 c) A existecircncia de todo o

koacutesmos deriva do movimento e todo o movimento proveacutem do princiacutepio (245d) Como a

ordem pressupotildee a inteligecircncia e a inteligecircncia pressupotildee a alma haacute uma correspondecircncia

pluriacutevoca e uma implicaccedilatildeo muacutetua entre a proporccedilatildeo geomeacutetrica a harmonia musical a

harmonia dos movimentos e a harmonia psiacutequica (Timeu 30 a-d) Os movimentos sonoros

possuem por conseguinte ressonacircncias simultaneamente fiacutesicas e psiacutequicas (Timeu 67a)

que afetam o caraacuteter (MOUTSOPOULOS in DIXSAUT 2006 p 107-120) Tais

14

correspondecircncias no entanto natildeo explicam as causas para a existecircncia de todos os seres no

palco de contradiccedilotildees que eacute o devir Quais satildeo essas causas

Platatildeo natildeo reelabora a tradiccedilatildeo na sua explicaccedilatildeo causal de mundo e inaugura um

procedimento jamais utilizado na histoacuteria do pensamento o modelo hipoteacutetico das Formas

A hipoacutetese das Formas provecirc ao mesmo tempo as razotildees que fazem com que cada

ser seja precisamente o que eacute e natildeo outra coisa as razotildees que explicam a predicaccedilatildeo e as

diferenccedilas especiacuteficas relativas as razotildees que elucidam as interaccedilotildees fiacutesicas envolvidas na

geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo uma norma absoluta que sirva de paracircmetro para as accedilotildees praacuteticas e

possibilite uma concepccedilatildeo poliacutetica cosmoloacutegica e geograacutefica que corresponde

estruturalmente a um psiquismo complexo Como afirma Cherniss (PRADEAU 2001) e

posteriormente Luc Brisson do mesmo modo que Eudemo fazia a hipoacutetese de um nuacutemero

determinado de movimentos regulares para explicar os movimentos irregulares dos

planetas Platatildeo para ldquodar conta da mudanccedila eterna e contraditoacuteria do mundo sensiacutevelrdquo

(BRISSON 1998 p 112) elaborou a hipoacutetese das Formas (Feacutedon 94d-100a) A estrutura

complexa do mundo compotildee um palco de contradiccedilotildees que abarca as accedilotildees praacuteticas e a

constituiccedilatildeo poliacutetica da cidade Ao contraacuterio dos filoacutesofos da natureza que partiam dos

fenocircmenos e buscavam princiacutepios explicativos materiais irredutiacuteveis Platatildeo empreende

uma inversatildeo epistemoloacutegica uma ldquosegunda navegaccedilatildeordquo (99e) e postula princiacutepios de

inteligibilidade que regram as contradiccedilotildees fiacutesicas e eacutetico-poliacuteticas

A causalidade constitui ao mesmo tempo o princiacutepio explicativo para a esfera

eacutetico-poliacutetica para os caracteres e valores psiacutequicos e para a physis (Feacutedon 98c-99b) (Leis

X 891e) (Filebo 27b) (Timeu 29d 44c-46e) A causalidade platocircnica eacute posta como

sucessatildeo temporal invariaacutevel na qual um efeito segue forccedilosamente uma causa e como

uma relaccedilatildeo de dependecircncia paradigmaacutetica na qual algo vem a ser a partir de um princiacutepio

15

ou modelo (BRISSON 2001 p 15-17) As explicaccedilotildees de mundo dos filoacutesofos da natureza

procuravam explicar a geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo de todos os seres a partir de elementos materiais

do proacuteprio plano da physis Tais explicaccedilotildees eram contraditoacuterias visto que violavam trecircs

princiacutepios basilares da causalidade o de que uma causa natildeo pode ter dois efeitos contraacuterios

(Feacutedon 96d 101a-b) o de que um efeito natildeo pode resultar de duas causas contraacuterias

(Feacutedon 96e-97b) e o de que algo natildeo pode ser causa do seu contraacuterio (101b) (FISCHER

2002 p 659) Uma explicaccedilatildeo racional de mundo pressupotildee uma instacircncia absoluta

separada do plano dos fenocircmenos e que sirva de referencial absoluto a partir do qual as

interaccedilotildees da physis satildeo reportadas

O esforccedilo da fundamentaccedilatildeo dos valores eacutetico-poliacuteticos leva Platatildeo a buscar essa

instacircncia normativa que sirva de medida e referencial absoluto para as accedilotildees praacuteticas Para

que os valores sejam reportados a um uacutenico paradigma normativo a sua temporalidade

deve ser superada mediante o recurso a uma epistemologia que lhes confira determinaccedilotildees

invariaacuteveis Tal epistemologia por sua vez engendra uma psicologia ad hoc como

fundamento para a praacutetica poliacutetica Todos estes planos encontram significaccedilatildeo num plano

cosmoloacutegico mais elevado cuja fundamentaccedilatildeo uacuteltima eacute a hipoacutetese causal das Formas

O grande mito de julgamento no Goacutergias anuncia o projeto da visatildeo cosmoloacutegica

unificada visada por Platatildeo Ele constitui um modo de inteligibilidade autocircnomo cuja

significaccedilatildeo soacute eacute passiacutevel de ser encontrada numa visatildeo da totalidade

A justificativa primacial da pesquisa eacute o fato de que uma exegese do mito de

julgamento do Goacutergias segundo um meacutetodo estrutural buerkertiano natildeo foi empreendida

Solidaacuterios de uma certa concepccedilatildeo de racionalidade segundo a qual a verdade eacute uniacutevoca e

soacute passiacutevel de ser obtida mediante raciociacutenios que seguem o modelo das demonstraccedilotildees

matemaacuteticas a maioria dos eruditos contemporacircneos identifica os mitos com um

16

pensamento primitivo e preacute-filosoacutefico susceptiacutevel de ser ultrapassado por uma razatildeo

esclarecida (OTTO 1987) A noccedilatildeo cartesiana de uma verdade cientiacutefica uacutenica reduz a

racionalidade aos argumentos demonstrativos ou agraves formas de raciociacutenio matemaacutetico A

ampliaccedilatildeo da noccedilatildeo de racionalidade para a esfera das imagens e formas afetivas de

inteligibilidade suscita a validade e o uso de formas discursivas complexas que abrangem

todo o espectro do psiquismo raciociacutenios imagens e afetos Tal noccedilatildeo ampliada de

racionalidade aliada ao desenvolvimento de um modelo teoacuterico consistente resulta num

enriquecimento original para a investigaccedilatildeo do pensamento platocircnico

Embora os uacuteltimos anos do seacuteculo passado e os primeiros anos deste seacuteculo

evidenciem uma retomada do interesse dos platonistas pelos mitos1 as questotildees acerca da

interpretaccedilatildeo dos grandes mitos finais natildeo foram suficientemente respondidas e

certamente natildeo foram tratadas num uacutenico modelo teoacuterico consistente2 A proacutepria gama das

perguntas natildeo respondidas justifica o esforccedilo pela forja desse modelo teoacuterico

ndash Consideraccedilotildees metodoloacutegicas

Como engenhar os instrumentos para tal modelo Felizmente os ensaios de anaacutelise

estrutural de Vernant (1990) e Burkert (1997) fornecem o martelo e a bigorna que

permitiratildeo a molda das noccedilotildees essenciais da Filosofia contida nos mitos platocircnicos Molda

esta que natildeo obstante a dureza da tecircmpera soacute seraacute possiacutevel na altiacutessima fornalha da longa

tradiccedilatildeo dos cultos de misteacuterio gregos

A abordagem de um texto antigo constitui um si mesma um trabalho de Siacutesifo que

pressupotildee a cada vez que eacute retomado modalidades do pensar que satildeo condicionadas pela

1 Dentre outros destacamos Ward White Brisson Dixsaut Vernant Matteacutei Joly Desclos e Annas 2 A anaacutelise de Ward (2002) abarca parcialmente as questotildees levantadas mas sua abordagem fortemente

alegoacuterica eacute ldquofechadardquo e embora constitua um notaacutevel avanccedilo natildeo configura um meacutetodo aplicaacutevel que possa

ser validado ou invalidado A abordagem de Brisson (1994) por outro lado empreende uma generalizaccedilatildeo de

uma teoria contemporacircnea da comunicaccedilatildeo e perde excessivamente a especificidade do movimento dialoacutegico

17

paideacuteia e especificidade histoacuterica A tarefa do historiador de Filosofia e do cientista em

geral eacute um constructum em aberto indefinidamente Mas tal abordagem pode ser

metodologicamente justificada Como conciliar um modelo teoacuterico contemporacircneo

construiacutedo mediante os oacuteculos da etnologia com um texto grego antigo Tal empresa natildeo

atenta contra as boas recomendaccedilotildees de uma abordagem filoloacutegico-doxograacutefica A boa

regra de meacutetodo doxograacutefico (ROSSETI 2006 p 274) natildeo preceitua que as teses

efetivamente sustentadas por um autor sejam coerente e validamente atestadas pelas fontes

Em primeiro lugar deve-se atentar que Leacutevi-Strauss explicitamente reconhece que

seu empreendimento teoacuterico se aproxima de um ldquokantismo sem sujeito transcendentalrdquo

(LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 18) Cada mito tomado em particular afirma Leacutevi-Strauss

ldquoexiste como aplicaccedilatildeo restrita de um esquema que as relaccedilotildees de inteligibilidade reciacuteproca

percebidas entre vaacuterios mitos ajudam progressivamente a extrairrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004

p 32) Por essa razatildeo ldquoos esquemas miacuteticos de pensamento apresentam no mais alto grau o

caraacuteter de objetos absolutosrdquo

O caraacuteter auto-referenciado permite com que as cadeias linguumliacutesticas se desprendam

dos mitos e caiam como as escaras dos olhos de um cego deixando-os livres das anaacutelises

filoloacutegicas e reste somente a estrutura Embora pertenccedila agrave ordem do discurso o mito para

expressar-se ldquopode descolar-se de seu suporte linguumliacutestico ao qual a histoacuteria que narra estaacute

menos intimamente ligada do que seria o caso em mensagens comunsrdquo (LEacuteVI-STRAUSS

2004 p 8)

Mas ainda que os esquemas miacuteticos de pensamento reflitam um modo de pensar

autocircnomo o ldquopensar por imagensrdquo cuja estrutura inteligiacutevel eacute indiferente agrave ldquoidentidade do

mensageiro ocasionalrdquo como operar a transformaccedilatildeo de coordenadas ou uma transposiccedilatildeo

estrutural vaacutelida do modelo de Leacutevi-Strauss para os mitos de julgamento platocircnicos Qual eacute

18

o elemento comum que permite a passagem que cobre o profundo fosso cultural entre dois

mundos tatildeo separados o de um pensador contemporacircneo e o de um filoacutesofo grego Tais

esquemas de pensamento seriam indiferentes ao tempo

Haacute uma instacircncia estritamente homoacuteloga ao mito cuja estrutura tanto para Leacutevi-

Strauss como para Platatildeo transcende ao tempo cronoloacutegico e permite uma experiecircncia e

uma inteligecircncia da totalidade a muacutesica Mito e muacutesica possuem e congregam as mesmas

funccedilotildees ndash ldquofunccedilatildeo intelectual e tambeacutem emotivardquo ndash (LEacuteVI-STRAUSS 2000 p 69) que

suscitam uma experiecircncia da totalidade e por essa razatildeo podem ser lidos por um

procedimento anaacutelogo tal como numa partitura musical o significado baacutesico de um mito

natildeo estaacute numa sequumlecircncia de acontecimentos mas como afirma Burkert a um grupo de

accedilotildees que podem ocorrer em momentos diferentes do tempo cronoloacutegico Mito e muacutesica

comportam uma dimensatildeo temporal proacutepria que inflige um desmentido ao tempo

cronoloacutegico ambos satildeo ldquomaquinas de suprimir o tempordquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 35)

Por isso o mito supera ldquoa antinomia de um tempo histoacuterico e findo e de uma estrutura

permanenterdquo

A leitura de uma partitura exige que se procure entender a paacutegina inteira pois o

significado da primeira frase musical escrita soacute pode ser obtido com a consideraccedilatildeo de que

o sentido das frases precedentes estaacute incluiacutedo nas frases subsequumlentes Temos de ler

simultaneamente da esquerda para a direita e de cima para baixo Soacute ldquoconsiderando o mito

como se fosse uma partitura orquestral escrita frase por frase eacute que o poderemos entender

como uma totalidade e extrair o seu significadordquo (op cit p 68) Os grandes estilos

musicais modernos dos seacuteculos XVII a XIX segundo Leacutevi-Strauss assumiram as funccedilotildees

que desempenhava a mousikeacute dos antigos mas a despeito dos rearranjos culturais ambos ndash

mito e muacutesica ndash ldquotranscendem a oposiccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel colocando-se

19

imediatamente no niacutevel dos signosrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 33) Tanto Leacutevi-Strauss

como Platatildeo usam o mito para operar a mediaccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Os

grandes mitos de julgamento compotildeem efetivamente um mosaico de oposiccedilotildees que

remetem para a mediaccedilatildeo entre o devir e aquilo que eacute somente pensaacutevel Eis a ponte que

supera o abismo entre dois mundos separados ao mesmo tempo pela racionalidade loacutegica e

pela distacircncia cultural das eacutepocas

Na sua anaacutelise dos mitos indiacutegenas da costa canadense Leacutevis-Strauss distingue e

compara quatro ldquoniacuteveisrdquo determinantes e independentes do tempo cronoloacutegico geograacutefico

teacutecnico-econocircmico socioloacutegico e cosmoloacutegico (LEacuteVI-STRAUSS 1993 p 164) Enquanto

os dois primeiros niacuteveis encontram referentes bem definidos o terceiro entremeia

elementos atestaacuteveis com elementos somente pensaacuteveis e o quarto compotildee-se de imagens e

elementos somente pensaacuteveis A anaacutelise do mito da ldquogesta de Asdiwalrdquo revela que os trecircs

primeiros eixos sincrocircnicos relacionam-se com a praacutexis poliacutetica teacutecnica e social dos iacutendios

Tsimshiam ao passo que o quarto eixo consiste na configuraccedilatildeo de imagens que possuem a

funccedilatildeo heuriacutestica e explicativa de conferir significaccedilatildeo a fenocircmenos cujas causas satildeo

inevidentes Todos os quatro niacuteveis satildeo demarcados por pares de oposiccedilotildees que

representam ldquouma seacuterie de mediaccedilotildees impossiacuteveis entre oposiccedilotildees organizadas em ordem

decrescenterdquo (LEacuteVI-STRAUSS 1993 p 167)

A construccedilatildeo dos mitos pressupotildee a distinccedilatildeo fundamental entre sequumlecircncias e

esquemas As sequumlecircncias constituem a linearidade da trama que expressa o conteuacutedo

aparente dos mitos as sequumlecircncias de accedilotildees que ocorrem na ordem cronoloacutegica do tempo o

um apoacutes o outro dos eventos que identifica-se com o proacuteprio tempo cronoloacutegico

Sequumlecircncias satildeo congruentes com a sucessatildeo temporal e constituem a silhueta do

tempo Esquemas por outro lado independem do tempo e organizam as sequumlecircncias em

20

planos de profundidade variaacutevel superpostos e sincrocircnicos de modo a cingir fenocircmenos

aparentemente desconexos numa causalidade inevidente Tal como um canto gregoriano o

mito ldquoestaacute preso a um duplo determinismo determinismo horizontal de sua proacutepria linha

meloacutedica e determinismo vertical dos esquemas em contrapontordquo (LEacuteVI-STRAUSS 1993

p 169)

Em Platatildeo os mitos de julgamento revelam a partir do problema da fundamentaccedilatildeo

dos valores quatro grandes eixos sincrocircnicos invariantes eacutetico-poliacutetico epistemoloacutegico

psicoloacutegico e cosmoloacutegico A determinaccedilatildeo dos traccedilos constitutivos desses eixos eacute feita por

pares de oposiccedilotildees insuperaacuteveis que exige a busca de significaccedilatildeo nos planos subsequumlentes

A ressonacircncia direta com a praacutexis eacutetico-poliacutetica enfraquece agrave medida em que a procura por

causas explicativas para as contradiccedilotildees insuperaacuteveis avanccedila em direccedilatildeo ao plano

cosmoloacutegico-causal A anaacutelise dessas oposiccedilotildees revela uma consistecircncia surpreendente nas

grandes narrativas de julgamento como modo de inteligibilidade proacutepria A aplicaccedilatildeo do

meacutetodo estrutural empregado por Walter Burkert aos mitos platocircnicos evidencia que os

grandes mitos de julgamento representam um esforccedilo atemporal na procura da causalidade

unificadora que confere sentido para as contradiccedilotildees do palco do devir

Em Platatildeo todos os mitos de julgamento convergem numa colossal teoria da

causalidade

21

I Mitos e Causas ndash excertos de imagens causais em Hesiacuteodo e Homero3

11 Retribuiccedilatildeo e Causalidade

O pai com o apelido de Titatildes apelidou-os

o grande Ceacuteu vituperando filhos que gerou

dizia terem feito na altiva estultiacutecia gratilde obra

de que castigo teriam no porvir

Hesiacuteodo Teogonia vs 207-2104

A Iliacuteada o poema mais antigo da literatura ocidental inicia-se com a narrativa de

uma peste Crises sacerdote de Apolo fora ultrajado pela recusa de Agamecircnon em

resgatar-lhe a filha raptada

Que Deus posto entre ambos provocou a rixa

O filho de Latona e Zeus Irou-o o rei

A peste entatildeo lavrou no exeacutercito ruiacutena

Cai sobre o povo A Crises ultrajara o Atreide

Ao sacerdote o qual viera ateacute as naus

velozes dos Aqueus remir com dons a filha

nas matildeos portando os nastros do certeiro Apolo

presos ao cetro de ouro e a todos implorava ()

Iliacuteada I vs 8-15

Diante da cataacutestrofe Aquiles recorre a um mediador o adivinho Calcas para

responder agrave questatildeo por que o deus estaacute tatildeo irado A calamidade suscita a questatildeo de se

saber a causa Segue-se entatildeo uma sequecircncia de eventos que configuram pela primeira

vez na poesia grega um ritual que envolve adivinhaccedilatildeo purificaccedilatildeo sacrifiacutecio preces e

danccedila Essa sequecircncia como demonstra Walter Burkert (2001 p 103 ss) transcende as

3 Emprego o pressuposto metodoloacutegico de que um mito eacute um programa ou sequumlecircncia de accedilotildees com uma

estrutura discerniacutevel definida que se caracteriza pela exemplaridade do tipo miacutetico e pela aplicabilidade atemporal O mito eacute a forma pela qual uma experiecircncia complexa se torna comunicaacutevel Suas personagens

configuram personificaccedilotildees geneacutericas que permitem a aplicaccedilatildeo a situaccedilotildees particulares definidas Esse

caraacuteter geneacuterico das imagens miacuteticas implica a sua atemporalidade aleacutem do fato de que elas satildeo

inverificaacuteveis Para a abordagem preliminar da causalidade a partir dos trechos selecionados emprego

conjuntamente a abordagem estruturalista da Escola de Paris representada por Jean Pierre Vernant e Marcel

Detienne com o estruturalismo alematildeo de Walter Burkert As questotildees de meacutetodo satildeo desenvolvidas no

primeiro capiacutetulo 4 Traduccedilatildeo de Jaa Torrano (2003)

22

fronteiras da civilizaccedilatildeo grega e constitui universalia antropoloacutegicos um padratildeo invariaacutevel

de cinco etapas (i) uma experiecircncia catastroacutefica ameaccediladora adveacutem de uma Potestade

divina (ii) a calamidade suscita a questatildeo da busca pela causa ldquopor querdquo (iii) a busca da

causa requer um mediador (iv) um diagnoacutestico eacute feito a causa do mal eacute definida e

localizada pelo estabelecimento da culpa e identificaccedilatildeo do responsaacutevel Conhecer a causa

eacute indicar o responsaacutevel e obter o caminho para a salvaccedilatildeo (v) Atos apropriados de expiaccedilatildeo

satildeo prescritos visando agrave libertaccedilatildeo do mal

Cataacutestrofes e doenccedilas satildeo frequumlentemente vistas como uma inevitaacutevel reaccedilatildeo divina

vinculada a algum tipo de transgressatildeo ou falta original agrave infraccedilatildeo de uma lei ou uma

accedilatildeo imprudente que denota uma afronta ou hyacutebris diante dos deuses A culpa eacute em geral

associada agrave transgressatildeo religiosa ou violaccedilatildeo das medidas humanas A causa do mal eacute

oculta inevidente e o seu estabelecimento requer a mediaccedilatildeo de videntes cujo saber

atemporal pode determinar-lhe a origem A busca por causas inevidentes invisiacuteveis confere

sentido agrave experiecircncia catastroacutefica e permite numa perspectiva abrangente da situaccedilatildeo do

passado e do futuro a praacutetica de accedilotildees que a tornem remediaacutevel A integraccedilatildeo dos sinais

complexos da experiecircncia caoacutetica num uacutenico pano de fundo mental confere-lhe significaccedilatildeo

mediante o estabelecimento do viacutenculo infrangiacutevel entre a falta e a puniccedilatildeo A causalidade

eacute a forma multimilenaacuteria de lidar com a experiecircncia aterradora do mal sem explicaccedilatildeo

mediante o estabelecimento de causas inevidentes A ira de um deus superior eacute a

consequecircncia infaliacutevel e justificada para a transgressatildeo Segundo Burkert (2001 p 125) ldquoo

padratildeo da causalidade da culpa estabelecida por um diagnoacutestico transcendente em

situaccedilotildees de calamidade eacute universal primitivo e tiacutepico da mente humana e do

comportamento humano em geralrdquo e haure seu modelo no ldquocomportamento do animal

apanhado numa armadilha ou perseguido por um predadorrdquo O estabelecimento de uma

23

conexatildeo infaliacutevel que vincula as noccedilotildees de falta consequecircncia e reparaccedilatildeo gera um

contexto de sentido no Koacutesmos A invenccedilatildeo da culpa coincide com a moldagem da

racionalidade que promove uma reconstruccedilatildeo de um universo de sentido para uma

experiecircncia original caoacutetica e catastroacutefica Encontrar a ldquocausardquo (aitiacutea) eacute encontrar o

ldquoresponsaacutevelrdquo (aiacutetios) e determinar a explicaccedilatildeo inevidente para uma situaccedilatildeo aflitiva As

conexotildees infrangiacuteveis entre violaccedilatildeo ndash culpa ndash retribuiccedilatildeo moldam os quadros mentais que

estabeleceratildeo as conexotildees infaliacuteveis entre fato ndash consequecircncia e causa ndash efeito que

caracterizam a reconstruccedilatildeo racional do mundo promovida pela mente humana

Nos primoacuterdios a Natureza eacute um estado de indistinccedilatildeo caoacutetica A diferenciaccedilatildeo soacute

ocorre mediante atos de violecircncia propiciados pela astuacutecia enganosa Por isso como afirma

Galimberti (2006 p 43) ldquofoi a violecircncia da razatildeo que permitiu ao homem subtrair-se

daquela violecircncia maior que eacute a falta de reconhecimento das diferenccedilas pela qual o pai natildeo

eacute reconhecido como pai a matildee como matildee o filho como filho com a consequente oscilaccedilatildeo

dos significados que a razatildeo humana trabalhosamente construiu para se orientar no

mundordquo

Se Gaia eacute a matildee primordial a partir da qual emerge toda diferenciaccedilatildeo a culpa eacute a

matildee miacutetica primordial da causalidade imprescindiacutevel para o desenvolvimento da

concepccedilatildeo racional da teacutecnica

Na Teogonia em particular a situaccedilatildeo aflitiva de aprisionamento experimentada

pelos filhos de Gaia suscita a identificaccedilatildeo do responsaacutevel no desregramento sexual de

Ourano A localizaccedilatildeo da causa da situaccedilatildeo aflitiva ocasiona as medidas apropriadas para a

sua remoccedilatildeo Tais medidas envolvem a escolha de meios que implicam uma inteligecircncia

astuciosa exigida para sobrepujar uma potecircncia divina Gaia forja um instrumento a foice

24

de branco accedilo que possibilita o estratagema doloso e o golpe violento pelos quais Crono

obteacutem a soberania do Koacutesmos

6 Por dentro gemia a Terra prodigiosa

atulhada e urdiu dolosa e maligna arte

Raacutepida criou o gecircnero do grisalho accedilo

forjou grande podatildeo e indicou aos filhos

Disse com ousadia ofendida no coraccedilatildeo

ldquoFilhos meus e do pai estoacutelido se quiserdes

ter-me feacute puniremos o maligno ultraje de vosso

pai pois ele tramou antes obras indignasrdquo

Teogonia 159-166

Essa sequecircncia de eventos estabelece as conexotildees entre a causalidade e a

inteligecircncia astuciosa a ldquoarte dolosardquo ndash doliacuteēn teacutekhnēn ndash concebida por Gaia e o emprego

dos meios apropriados para o sobrepujamento de Ourano que significa em uacuteltima

instacircncia o domiacutenio do Koacutesmos A accedilatildeo violenta de Crono acarreta a imprecaccedilatildeo de

Ourano e a admoestaccedilatildeo de uma retribuiccedilatildeo infaliacutevel ou ldquocastigo no porvirrdquo (v 210)

O esquema baacutesico pode ser resumido nas seguintes etapas (i) uma situaccedilatildeo

impediente adveacutem (ii) a situaccedilatildeo problemaacutetica suscita a busca da causa (iii) um mediador

com inteligecircncia astuciosa concebe um estratagema ou arte (teacutekhnē) fraudulenta (iv) os

meios apropriados satildeo escolhidos forjados e empregados oportunamente com violecircncia

para a remoccedilatildeo do mal (v) a accedilatildeo violenta suscita por sua vez uma retribuiccedilatildeo infaliacutevel

como consequecircncia Tal esquema eacute constitutivo para a formaccedilatildeo da primitiva inteligecircncia

teacutecnica que visa ao domiacutenio da natureza

A castraccedilatildeo de Ourano implica consequecircncias inevitaacuteveis a liberaccedilatildeo do tempo

linear irreversiacutevel a gecircnese a partir de princiacutepios opostos complementares e distintos As

gotas de sangue espargidas sobre Gaia datildeo origem agraves Potecircncias que presidem a vinganccedila a

violecircncia as guerras e provas de forccedila as Eriacutenias os Gigantes e Meliacuteades O oacutergatildeo sexual

de Crono atirado ao mar com seu esperma origina a espuma (aphroacutes) que daacute nascimento a

25

Afrodite cujos atributos satildeo a uniatildeo amorosa o prazer os sorrisos os ardis ndash opostos aos

das potecircncias violentas Doravante os contraacuterios soacute podem ser aproximados pela uniatildeo de

princiacutepios distintos A complementaridade de opostos confere agrave organizaccedilatildeo do Koacutesmos um

caraacuteter ambiacuteguo de mistura em que potecircncias de conflito se equilibram com potecircncias de

concoacuterdia (VERNANT 2002 p 252) Ademais ao processo de gestaccedilatildeo das potecircncias da

distinccedilatildeo se contrapotildee a emanaccedilatildeo das potecircncias de destruiccedilatildeo forccedilas da escuridatildeo e da

desordem personificadas nos filhos da Noite

A inscriccedilatildeo da ordem no Koacutesmos implica como contrapartida simeacutetrica a inscriccedilatildeo

de potecircncias caoacuteticas de desordem Uma lei de compensaccedilotildees perpassa o Koacutesmos assim

como Dia e Noite satildeo reversos Thaacutenatos Hyacutepnos e Oneiron se opotildeem agrave vida e as Moiras

Neacutemesis e Keres estendem a lei de retribuiccedilatildeo infaliacutevel para o acircmbito dos homens mortais

A estensatildeo das potecircncias de vinganccedila ao acircmbito dos mortais representa a contrapartida

simeacutetrica da conexatildeo infaliacutevel entre falta e retribuiccedilatildeo que rege o Koacutesmos divino Agrave

infalibilidade da conexatildeo falta-retribuiccedilatildeo eacute acrescentado o equiliacutebrio inevitaacutevel do reverso

A symmetriacutea5 eacute uma faceta ineludiacutevel de uma causalidade infaliacutevel

12 Causalidade e Poder

Agrave narrativa de um processo de diferenciaccedilatildeo substitui-se um mito de sucessatildeo de

poder6 A instauraccedilatildeo da conexatildeo culpa-retribuiccedilatildeo constitui a condiccedilatildeo para o domiacutenio do

Koacutesmos e a nota distintiva da inteligecircncia teacutecnica

5 No sentido de justa proporccedilatildeo Filebo 65e Repuacuteblica 530a 6 A ecircnfase na soberania que atravessa a anaacutelise estrutural de Vernant eacute tributaacuteria da primeira funccedilatildeo

estabelecida por George Dumeacutezil no seu esquema de interpretaccedilatildeo dos mitos indo-europeus Natildeo obstante a

anaacutelise empreendida por Jenny S Clay destaca o equiliacutebrio simeacutetrico de potecircncias como um elemento

constitutivo na cosmologia de Hesiacuteodo No seu vieacutes a ldquoa histoacuteria dos deuses como um todo pode ser vista

como uma explicaccedilatildeo das vaacuterias tentativas do deus supremo masculino de controlar e bloquear a direccedilatildeo

procriadora feminina de forma a obter um regime coacutesmico estaacutevelrdquo Segundo a autora no auguacuterio

apocaliacuteptico que encerra o mito das raccedilas Hesiacuteodo vincula a determinaccedilatildeo definitiva do estatuto humano ao

abandono gradual de e interpretados como senso de vergonha e ultraje ndash par

26

A soberania soacute eacute obtida mediante uma limitaccedilatildeo imposta por um ato de violecircncia

maquinado por uma inteligecircncia astuciosa Mas a instauraccedilatildeo infrangiacutevel da conexatildeo natildeo

implicaria um ciclo indefinidamente renovado A ordem do mundo natildeo seraacute

indefinidamente questionada e subvertida Esse problema eacute respondido na narrativa da

Titanomaquia e da vitoacuteria definitiva de Zeus

Reacuteia submetida a Crono pariu brilhantes filhos

Heacutestia demeacuteter e Hera de aacuteureas sandaacutelias

o forte Hades que sob o chatildeo habita um palaacutecio

com impiedoso coraccedilatildeo o troante Treme-terra

e o saacutebio Zeus pai dos Deuses e dos homens

sob cujo trovatildeo ateacute a ampla terra se abala

E engolia-os o grande Crono tatildeo logo cada um

do ventre sagrado da matildee descia aos joelhos

tramando-o para que outros magniacuteficos Uranidas

natildeo tivesse entre os imortais a honra de rei

HESIacuteODO 2003Teogonia vs 453-462

O temor da retribuiccedilatildeo leva Crono a impedir o florescimento de sua prole A

vigilacircncia inquieta de Crono deriva do seu ldquocurvo pensarrdquo da Mḗtis que conferia-lhe a

presciecircncia da retribuiccedilatildeo ao crime cometido contra o pai A situaccedilatildeo repressora leva Reacuteia a

uma ldquolonga afliccedilatildeordquo Reacuteia com Gaia e Ourano concebe um ardil (mḗtin) astucioso e

encontra os meios para que as Eriacutenias implacaacuteveis retribuidoras fizessem com que Zeus o

astuto (mētioacuteenta) tivesse destino diverso do de seus irmatildeos Clandestinamente Reacuteia

esconde o filho mais novo em Creta e dissimula uma pedra envolta em latildes de modo que

tivesse a aparecircncia enganosa do filho receacutem nascido O estratagema fruto da inteligecircncia

astuciosa envolve a descoberta dos meios apropriados a dissimulaccedilatildeo e o engodo que

complementar agrave potecircncia feminina de Nesse sentido contra Vernant a oposiccedilatildeo se estenderia a um

plano ulterior de distinccedilotildees que marca a unilateralidade da violecircncia inerente ao domiacutenio assimeacutetrico da

potecircncia masculina A sucessatildeo de violecircncias encenada na titanomaquia mais do que esboccedilar o cenaacuterio

historicista de luta pela soberania mostra a necessidade da assimilaccedilatildeo do elemento feminino proacuteprio de

agrave forccedila soberana (CLAY 2003 23-38)

27

permitem impedir e paralisar uma potestade divina soberana A questatildeo da soberania

basileacuteia coacutesmica implica o emprego do meio eficaz para enganar a Potecircncia divina o que

soacute eacute factiacutevel mediante uma astuacutecia dolosa que supera a astuacutecia da divindade

Desde o seu desabrochar a racionaliade teacutecnica aparece como um modo de trapaccedila

como um dolo inextricaacutevel da culpa O dolo eacute tatildeo somente o modo miacutetico de vindicar a

conexatildeo infaliacutevel da contrapartida do castigo Eacute a plasmaccedilatildeo da conexatildeo que funda um tipo

de pensamento indispensaacutevel para o regramento da experiecircncia humana e da busca pelos

melhores meios para a sobrevivecircncia eficaz num mundo cujas potecircncias naturais satildeo

poderosas a ponto de serem epifanias divinas

O grande Crono de curvo pensar eacute ldquoenganado (dolōtheis) por repetidas instigaccedilotildees

da Terrardquo (Teogonia v 494) solta sua prole e acaba por ser expulso agrave forccedila pelo filho mais

novo O mesmo padratildeo e a sequecircncia de accedilotildees baacutesica anterior eacute mantida (i) uma situaccedilatildeo

impediente adveacutem Crono impede que seus filhos venham a ser e os engole (ii) a situaccedilatildeo

problemaacutetica suscita a busca da causa Crono astuciosamente pretende manter a soberania

(iii) mediadores astuciosos concebem uma arte dolosa Reacuteia juntamente com Gaia e

Ourano tramam um ardil que engana Crono (iv) os meios adequados satildeo escolhidos e

empregados Crono engole uma pedra e Zeus eacute escondido em Creta ateacute que agrave forccedila

destrone seu pai (v) a accedilatildeo violenta reclama a justa retribuiccedilatildeo as Eriacutenias deveriam fazer

voltar contra Zeus a Mḗtis que lhe impingiria a mesma sorte dos seus antepassados

soberanos Todavia isso natildeo ocorre No reinado de Zeus a conexatildeo infrangiacutevel entre falta-

retribuiccedilatildeo eacute assimilada ao seu poder real Doravante a causalidade passa a ser um atributo

de uma ordem coacutesmica imutaacutevel

A garantia da ordem estabelecida eacute uma prerrogativa da Mḗtis a inteligecircncia

astuciosa que independentemente do poder e forccedila do adversaacuterio e em todas as

28

circunstacircncias garante a dominaccedilatildeo do Koacutesmos mediante a integraccedilatildeo entre macho e

fecircmea Somente a superioridade de uma inteligecircncia astuciosa que implica a presciecircncia a

escolha a forja e o emprego dos meios mais eficazes com vistas a um fim determinado

somente uma Mḗtis que eacute tambeacutem potecircncia divina propicia a supremacia do poder

soberano Por isso como diz Vernant ldquoo rei do ceacuteu deve dispor fora e aleacutem da forccedila bruta

de uma inteligecircncia haacutebil para prever o futuro para maquinar tudo antes para combinar em

sua prudecircncia meios e fins ateacute o menor detalhe de forma que o tempo da accedilatildeo natildeo

comporte acasos que o futuro natildeo traga surpresas fazendo com que nada e ningueacutem possa

pegar o deus de surpresa ou encontraacute-lo indefesordquo (2002 p 258) Combinaccedilatildeo eficaz de

meios e fins previsatildeo e planificaccedilatildeo baseados na sequecircncia infaliacutevel da causalidade tempo

oportuno eliminaccedilatildeo do acaso forja de instrumentos necessaacuterios eis as condiccedilotildees para a

consolidaccedilatildeo e desenvolvimento da inteligecircncia teacutecnica que eacute ao mesmo tempo a

provedora e a chancela do poder

Mḗtis a Oceacircnida deusa da astuacutecia eacute justamente quem assegura a Zeus os meios de

lutar contra os Titatildes ela induz Crono a beber um phaacutermakon que o obriga a vomitar os

irmatildeos de Zeus que haviam sido engolidos (APOLODORO I 2 6) Mas outros

coadjuvantes viriam de um expediente astucioso adicional Gaia revela a Zeus que para

obter a vitoacuteria deveria contar com a alianccedila dos Ciclopes e dos Cem-Braccedilos detentores

respectivamente do raio dos golpes e cadeias invenciacuteveis (Teogonia vs 624-653) Zeus

liberta as Potecircncias primordiais de suas correntes e lhes oferece neacutectar e ambrosia

consagrando-os a um estatuto divino parelho ao dos Oliacutempios O favor divino concedido

por Zeus eleva a um novo plano o tema da retribuiccedilatildeo a daacutediva eacute um meio de garantir a

reciprocidade e de escalonar valores As Potecircncias primordiais da violecircncia e da vitoacuteria

passam a ser os guardiotildees fieacuteis de Zeus Kraacutetos e Biacutea Poder e Violecircncia ldquoinsignes filhosrdquo

29

de Stix e Oceano ldquosempre perto de Zeus gravitroante repousamrdquo (Teogonia v 385)7 Para

instituir a ordem faz necessaacuteria a harmonizaccedilatildeo entre as potecircncias da violecircncia e a astuacutecia

presciente A emancipaccedilatildeo da ordem implica a ruptura violenta

Mḗtis ldquomais saacutebia que os deuses e os homens mortaisrdquo (v 887) eacute a primeira esposa

de Zeus O casamento eacute uma forma de daacutediva e de reciprocidade pelos serviccedilos prestados

pela deusa da inteligecircncia astuciosa mas eacute sobretudo uma alianccedila que assegura o domiacutenio

da soberania Para impedir que a retribuiccedilatildeo agrave violecircncia da falta infaliacutevel se volte contra si

mesmo Zeus emprega as proacuteprias armas de Mḗtis a astuacutecia a surpresa e o ardil O

Cronida ldquoengana suas entranhas com ardil com palavras sedutorasrdquo por conselhos de Gaia

e Ourano e engole-a ventre abaixo para que assim a deusa lhe indique o bem e o mal

(Teogonia v 886-900) A deusa que interveacutem nas lutas de soberania para restaurar o

equiliacutebrio rompido estabelece o fato inexoraacutevel de que o domiacutenio e o poder exigem o

concurso simultacircneo da audaacutecia da forccedila da artimanha da iniciativa inteligente do ardil e

do espiacuterito inventivo (DETIENNE 1974 p 105) Ao ser engolida Mḗtis eacute assimilada a

Zeus e ele ldquotorna-se mais que um simples monarca ele se torna a proacutepria Soberaniardquo

(VERNANT 2002 p 261) A inteligecircncia astuciosa estaacute ldquonas entranhasrdquo de Zeus faz parte

de sua constituiccedilatildeo divina configura uma de suas potecircncias constitutivas Zeus eacute todo

Astuacutecia e sua inteligecircncia abarca todo o ciclo do tempo conferindo-lhe a previsatildeo

presciecircncia e prudecircncia indispensaacuteveis para a accedilatildeo que se projeta no futuro Ao assimilar

7 Alguns exegetas como H Fraumlnkel atribuem o domiacutenio de Zeus agrave alianccedila decisiva estabelecida com Styx e

sua descendecircncia Zelos Niacuteke Kraacutetos e Biacutea Brown empreende uma interpretaccedilatildeo maquiavelista afirmando que os resultados finais justificam os meios empregados por Zeus que seria o fundador no koacutesmos do que

Maquiavel chamaria ldquosociedade civilrdquo Blickman observa no entanto que a alianccedila dos filhos de Styx foi

ldquoganhardquo mediante a oferta da garantia de conceder-lhes as devidas honras divinas O vieacutes que nos interessa ndash

a formaccedilatildeo dos elementos fundamentais da inteligecircncia teacutecnica ndash indica que o acento deve recair sobre o fato

de que a oferta e a contrapartida do serviccedilo leal dos aliados de Zeus configuram uma faceta e uma

perspectiva diversa de lei de retribuiccedilatildeo As alianccedilas de Zeus configuram a conexatildeo causal infaliacutevel como

oferta e contrapartida e satildeo compatiacuteveis com a interpretaccedilatildeo e o acento fortemente alegoacuterico que Vernant

confere a Mḗtis (BLICKMAN 1987 p 341-355)

30

Mḗtis Zeus inaugura a inteligecircncia projetiva a inteligecircncia teacutecnica como a ordem que

deteacutem a soberania sobre o mundo e por isso ldquoentre o projeto e a realizaccedilatildeo natildeo conhece

mais a distacircncia pela qual surgem na vida dos outros deuses as armadilhas do imprevistordquo

(ibid) O ciclo inexoraacutevel e sempre renovado entre falta e retribuiccedilatildeo em vez de abolir a

ordem coacutesmica passa a ser parte integrante dela A ordem eacute definitivamente estabelecida

quando a causalidade e a inteligecircncia teacutecnica passam a ser-lhe solidaacuterias

Na geraccedilatildeo anterior accedilatildeo astuciosa de Gaia decorre da violecircncia de Ourano que a

atulha e com isso impede sua potecircncia natural de gestaccedilatildeo e o devir das geraccedilotildees

subsequentes

Quantos da Terra e do Ceacuteu nasceram

filhos os mais temiacuteveis detestava-os o pai

decircs o comeccedilo tatildeo logo cada um deles nascia

a todos ocultava agrave luz natildeo os permitindo

na cova da Terra8

(HESIacuteODO Teogonia 2003 154-159)

A astuacutecia feninina aparece como contrapartida agrave violecircncia masculina na forja do

instrumento de salvaccedilatildeo o que implica inexoraacutevel tendecircncia a um ininterrupto ciclo de

violecircncia e retribuiccedilatildeo atraveacutes da descendecircncia masculina os Titatildes aqueles que pagam a

penalidade por suas accedilotildees A mudanccedila coacutesmica eacute desencadeada pela tensatildeo entre o

princiacutepio de accedilatildeo da procriaccedilatildeo natural ilimitada de Gaia e a violecircncia impediente de

Ourano A forccedila da proliferaccedilatildeo ilimitada de Gaia soacute pode ser limitada por um ato de

violecircncia e oposiccedilatildeo agrave potecircncia feminina num ciclo ininterrupto de violecircncia e retribuiccedilatildeo

astuciosa Todavia o primeiro ato de violecircncia de Zeus consiste em engolir Mḗtis

desencadeando uma reviravolta no ciclo coacutesmico O princiacutepio de movimento coacutesmico

8

31

emerge a partir dos pares de opostos caracterizados pela alternacircncia entre procriaccedilatildeo

masculina e gestaccedilatildeo feminina e pela oposiccedilatildeo entre violecircncia (biacutea) masculina e a mḗtis

feminina Enquanto a violecircncia eacute prerrogativa masculina a inteligecircncia astuciosa eacute um

apanaacutegio feminino Quando Zeus engole Mḗtis assimila em si mesmo a esfera coacutesmica

feminina cuja consequecircncia eacute o equiliacutebrio de princiacutepios opostos de movimento

Entretanto a ordem soacute pode ser perenemente garantida mediante uma outra

realidade coacutesmica primordial que dispotildee de poderes anteriores aos de Zeus a Oceacircnida

Thecircmis Assim como Mḗtis Thecircmis abarca a totalidade do tempo e possui uma onisciecircncia

que diz respeito a uma ordem estabelecida Seus proferimentos possuem um valor oracular

categoacuterico que estabelece de uma vez por todas como decretos o que eacute dito Thecircmis

ordena interdita decreta peremptoriamente e fixa os aspectos natildeo definidos do Koacutesmos Se

de um lado Mḗtis relaciona-se com o tempo oportuno e com o hipoteacutetico de outro

Thecircmis estabelece a regularidade a ordem e confere invariacircncia ao devir Ela eacute a Matildee das

Horas as Estaccedilotildees e fixa as Moiras dos mortais Sua funccedilatildeo eacute a de estabelecer limites

intransponiacuteveis ao Koacutesmos Sua uniatildeo com Zeus implica que a ordem coacutesmica possui

medidas regularidades e limites intransponiacuteveis (DETIENNE 1974 p 105 ss) A funccedilatildeo

primordial de Thecircmis eacute proclamar que os limites do Koacutesmos satildeo decretos divinos

irrevogaacuteveis Tais limites iniciam-se pela diferenciaccedilatildeo de potecircncias contraacuterias e por uma

sissiparidade sem a atraccedilatildeo de potecircncia primordial de Eros A uniatildeo de potecircncias opostas

brota do Amor coacutesmico afetividade que potildee em movimento a geraccedilatildeo e o ciclo coacutesmico

Mas cabe observar que as primeiras potecircncias instauradoras de limites coacutesmicos satildeo

princiacutepios temporais os primeiros limites consistem no estabelecimento de uma conexatildeo

irrevogaacutevel entre violecircncia desmedida e retribuiccedilatildeo astuciosa entre proliferaccedilatildeo

ininterrupta e a fixaccedilatildeo de limites e medidas temporais coacutesmicas

32

O casamento de Zeus com Thecircmis eacute ao mesmo tempo uma daacutediva pelos seus

serviccedilos e uma alianccedila que assimila sua potecircncia Suas decisotildees irrevogaacuteveis permitiratildeo a

partilha os lotes os domiacutenios e a hierarquia entre as Potecircncias divinas Com a daacutediva e a

reciprocidade do duplo casamento de Zeus a retribuiccedilatildeo adquire o estatuto inalienaacutevel de

lei e a reciprocidade passa a ser a condiccedilatildeo para a hierarquia de poderes Na Teogonia

hesioacutedica causalidade e hierarquia apontam para um limite uacuteltimo na Natureza a lei

irrevogaacutevel e intransponiacutevel estabelecida por Thecircmis

13 Causalidade e Reciprocidade

A caracteriacutestica fundamental de uma daacutediva ou presente eacute a expectativa da

reciprocidade consoante um criteacuterio de equivalecircncia A troca de presentes estabelece o

estatuto do doador e implica o escalonamento do poder No primeiro livro da Odisseacuteia

Palas Atena visita Telecircmaco sob a forma do estrangeiro Mentes e define a obrigaccedilatildeo da

reciprocidade

Hoacutespede tuas palavras satildeo ditas com acircnimo amigo

como de pai para filho jamais poderei esquececirc-las

Mas muito embora desejes partir fica um pouco te peccedilo

que te banhes e possas dar largas ao peito querido

para depois ao navio voltares levando um presente

muito valioso e bonito que seja lembranccedila de minha

parte tal como os amigos com os hoacutespedes fazem de grado

A de olhos glaucos Atena lhe disse em resposta o seguinte

Natildeo me domovas do intento pois muito me importa ir embora

Quanto ao presente se tanto o desejas que seja na volta

quando de novo passar por aqui levaacute-lo-ei para casa

Por mais valioso que escolhas teraacutes outro igual conquistado

Odisseacuteia I vs 307-318

Todo presente exige um contra-presente A obrigaccedilatildeo de reciprocidade natildeo

comporta exceccedilatildeo e a contrapartida ao ato de ofertar pressupotildee uma medida comum que

estabelece o valor (aacutexion) ou equivalecircncia que controla um sistema de hierarquia A

33

proacutepria noccedilatildeo de ldquomedidardquo eacute um refinamento da concepccedilatildeo de que a Natureza eacute

caracterizada por limites que natildeo podem ser transpostos (VLASTOS 1947 p 156) O

estabelecimento de uma obrigaccedilatildeo muacutetua implica o desenvolvimento de categorias mentais

que comportam a comparaccedilatildeo a igualdade a medida a contagem e o caacutelculo O presente

permite segundo Burkert o reconhecimento da igualdade de estatuto entre os ofertantes e a

representaccedilatildeo de um mesmo paacutethos Implica tambeacutem os quadros mentais que permitem o

discernimento da dimensatildeo temporal e a projeccedilatildeo futura da obrigaccedilatildeo mediante o

reconhecimento de um padratildeo invariaacutevel (BURKERT 2001 p 132) A reciprocidade eacute

apenas um outro aspecto da conexatildeo infaliacutevel da retribuiccedilatildeo e determina a expectativa

universal de que seres de um mesmo estatuto recebam o mesmo tratamento A

reciprocidade advinda da oferta implica por conseguinte o escalonamento ou

hierarquizaccedilatildeo dos atores envolvidos conferindo estabilidade ao todo

Outro modo de aplicaccedilatildeo da reciprocidade possui desdobramentos perenes no

desenvolvimento da racionalidade Na esfera da justiccedila punitiva o castigo eacute aceito como

justo se estiver subordinado agrave concepccedilatildeo de retribuiccedilatildeo que especificamente emerge da

oferta reciacuteproca A reciprocidade pressupotildee os quadros mentais que desenvolvem aquela

que viraacute a ser uma das noccedilotildees mais fecundas da Filosofia a noccedilatildeo de simetria

Nos Trabalhos e os Dias Hesiacuteodo desenvolve uma antropogonia que estabelece

significaccedilatildeo para o estatuto humano e serve de justificativa para uma exaltada exortaccedilatildeo a

seu irmatildeo Perses O equiliacutebrio compensatoacuterio de opostos eacute apresentado como princiacutepio

constitutivo do plano coacutesmico e humano de modo que o equiliacutebrio recebe a sanccedilatildeo da forccedila

do juramento dos deuses e da lei contra a desmedida hyacutebris A Justiccedila soacute pode compensar a

desmedida com o estabelecimento preacutevio do meacutetron padratildeo comum que garante a

equidade ou comensuralidade Mas a etimologia de meacutetron natildeo deixa de ter relaccedilatildeo com

34

mḗtis a proacutepria personificaccedilatildeo da inteligecircncia astuciosa inextrincaacutevel do kairoacutes da accedilatildeo

precisa no momento oportuno O primeiro golpe astucioso concebido por Gaia suscita natildeo

somente a forja do instrumento inteligentemente planeado mas exige ainda que o momento

oportuno coincida com a accedilatildeo instauradora do tempo cronoloacutegico Na mentalidade grega a

noccedilatildeo de excesso deriva das accedilotildees coacutesmicas do desregramento dos desejos da violecircncia e

do tempo oportuno e natildeo de uma replicaccedilatildeo espacial bilateral

Na perspectiva moderna algo eacute simeacutetrico se possui a mesma medida em relaccedilatildeo a

um padratildeo (syacutemmetros) ou se apoacutes ser submetido a uma determinada accedilatildeo permanece com

a mesma aparecircncia ou com o aspecto original Mas na mentalidade grega de Hesiacuteodo a

noccedilatildeo de equiliacutebrio entre opostos eacute imageticamente expressa na geraccedilatildeo de Harmoniacuteē

Resultante do sangue esparso no mar nascem potecircncias opostas as Eriacutenias

zeladoras da vinganccedila os Gigantes as Ninfas e a virgem da espuma rosada ndash Cytereacuteia ou

Afrodite Novas potecircncias divinas opostas satildeo engendradas a partir da uniatildeo de Afrodite e

Ares destruidor de cidades Harmoniacutea Phoacutebos e Deimos Medo e Terror rompedores das

falanges guerreiras (HESIOD 2006 v 935-937) As determinaccedilotildees afetivas de Afrodite

associadas a Eros ao Desejo (Hyacutemeros) agrave doccedilura graccedila e suavidade opoem-se agrave ira

guerreira de Ares Harmoniacuteē aparece como conjunccedilatildeo conciliadora de afetos opostos uniatildeo

e oposiccedilatildeo geraccedilatildeo e destruiccedilatildeo doce encanto e oacutedio ajustamento de princiacutepios de accedilatildeo

opostos

Por outro lado nos Trabalhos o enfoque visa o estabelecimento do estatuto humano

e o regramento da praacutexis eacutetico-poliacutetica Por essa razatildeo o equiliacutebrio de opostos passa a

abarcar a noccedilatildeo ulterior de meacutetron como avaliaccedilatildeo sopesada para evitar o excesso de

ambiccedilatildeo desmedida e encontrar o justo

35

Mede (metreisthai) bem do teu vizinho e paga-o bem de volta com

a mesma medida (tō metrō) e o melhor que podes pois se estiveres

em necessidade novamente o encontraraacutes mais tarde tambeacutem

confiante ()

Mas eu natildeo te darei nenhum dom a mais nem sobremedida

(epimetrḗsso) ()

Guarda a medida (meacutetra phylaacutessesthai) o momento oportuno eacute a

mais excelente de todas as coisas (kairograves d‟epigrave paacutesin aacuteristos )

(HESIOD Works and Days 2006 v 349-351 396 694)

A apaixonada exortaccedilatildeo de Hesiacuteodo realccedila a origem do excesso e da desmedida no

iacutempeto dos desejos e associa a medida ao kairoacutes o elemento temporal que ajusta

quantitativamente os frutos do trabalho agriacutecola aos periacuteodos regulares das estaccedilotildees e dos

dias As atividades agriacutecolas segundo o excelente trabalho de Jean-Luc Perrilleacute

entremeiam os aspectos quantitativos e temporais que compotildeem a molda da noccedilatildeo de

comensurabilidade (PERILLEacute 2005 p 23-33) A necessidade de ajustar o ano solar ao ano

lunar ocasiona a fusatildeo dos aspectos temporais e espaciais com relaccedilotildees numeacutericas

quantitativas Aleacutem disso a obervacircncia da medida configura o principal traccedilo dos

apotegmas dos sete saacutebios arcaicos A prescritiva de Cleoacutebulo a medida eacute a mais excelente

das coisas (meacutetron aacuteriston) eacute um iacutendice de que as noccedilotildees de equiliacutebrio medida e momento

oportuno modelam a inteireza da mentalidade que daacute identidade ao helecircnico Os apotegmas

de Tales Soacutelon e Pitacos reforccedilam o pressuposto de um pano de fundo compartilhado de

uma atmosfera mental comum que abarca todas as expressotildees do patrimocircnio da paideacuteia

grega observa a medida (meacutetrō khrō) nada em demasia (mēdeacuten aacutegan) apreende o

momento oportuno (kairograven gnōthi)

O acervo mental que correlaciona as noccedilotildees de medida agrave oportunidade temporal

agrega a questatildeo da afetividade como princiacutepio das accedilotildees praacuteticas Nos seus poemas

elegiacuteacos Teoacutegnis adverte que o excesso (hyacuteper meacutetron) de vinho acarreta a desmedida da

36

fala e a ausecircncia de vergonha que potildeem a perder o saacutebio9 ldquoEacute difiacutecil observar a medida

(gnōnai gagraver khalepograven meacutetron) quando o bem se oferece a noacutesrdquo (PERILLEacute 2005 p 25) O

excesso de prazeres e bebida satildeo correlacionados agrave desmedida do discurso improacuteprio e agrave

vergonha da impostura Moderaccedilatildeo afetiva modeacutestia e compostura conjugam-se num

espectro de afetos equilibrados ndash intrinsecamente ligados agrave aprovaccedilatildeo puacuteblica ndash que

suscitam a noccedilatildeo de justa medida O discurso descomedido que se segue a afetos

desenfreados tem como retribuiccedilatildeo inevitaacutevel a vergonha e a desonra As accedilotildees praacuteticas

suscitam justa retribuiccedilatildeo em consonacircncia com sua natureza proacutepria

No plano ciacutevico a retribuiccedilatildeo aparece como inversatildeo da accedilatildeo e determina a

exigecircncia de que o culpado sofra pelo que fez segundo um criteacuterio de equivalecircncia a

contagem de ldquochicotadasrdquo ou dias de prisatildeo por exemplo (BURKERT 2001 p 133) A

concepccedilatildeo da daacutediva estende muito adiante o horizonte da retribuiccedilatildeo e funda as noccedilotildees

que comporatildeo a concepccedilatildeo de ldquojusticcedila positivardquo a reciprocidade eacute de fato um tipo de

moralidade Em grego ser punido equivale a ldquodar justiccedilardquo (diacutekēn diacutedonai) a receber a

contrapartida o que eacute devido em funccedilatildeo de uma ofensa dada O mesmo ocorre com as

interaccedilotildees religiosas que aparecem como um ldquosistema de trocas artificialrdquo (ibid p 135) O

comeacutercio com os deuses eacute definido por Platatildeo como preces e sacrifiacutecios e ordens e

recompensas em paga dos sacrifiacutecios (Banquete 202e) A recompensa como obrigaccedilatildeo

muacutetua estaacute na base da crenccedila religiosa ndash independentemente da impossibilidade de

verificaccedilatildeo de uma recompensa ou puniccedilatildeo no aleacutem

9 O homem que bebe aleacutem da medida natildeo governa mais sua liacutengua nem seu espiacuterito Tem discursos sem fim

que enrubescem os saacutebios Ele natildeo se envergonha de nenhuma accedilatildeo em sua embriaguecircs De saacutebio que era

torna-se insensato Sabe isso e guarda-te de beber em excesso antes que venha a embriaguecircs levanta-te de

medo que teu ventre natildeo te submeta natildeo faccedilas de ti um escravo malfeitor (GIRARD 1892 v 469-495)

37

A mutaccedilatildeo da noccedilatildeo de reciprocidade resulta num contiacutenuo processo que culmina

com as noccedilotildees de leis ldquoobjetivasrdquo da Natureza A interpretaccedilatildeo matemaacutetica do mundo

operada pela Fiacutesica se expressa atraveacutes de equaccedilotildees relaccedilotildees e proporccedilotildees (entre as partes)

mediante os postulados de simetria de equiliacutebrio de homogeneidade (mesma natureza das

partes) e de conservaccedilatildeo Nesse sentido afirma Burkert ldquoo princiacutepio de reciprocidade eacute a

proacutepria fundaccedilatildeo do nosso mundo racional e cientiacuteficordquo (ibid p 154) Os fundamentos da

causalidade natildeo podem ser apreendidos sem o fio condutor das noccedilotildees implicadas pelo

princiacutepio de reciprocidade que nos primoacuterdios emerge da troca de presentes

14 A astuacutecia dolosa o presente de Prometeu

Natildeo se pode furtar nem superar o espiacuterito de Zeus

pois nem o filho de Jaacutepeto o beneacutefico Prometeu

escapou-lhe agrave pesada coacutelera mas sob coerccedilatildeo

apesar de multissaacutebio a grande cadeia o reteacutem

Teogonia vs 613-616

A narrativa de Prometeu eacute a descriccedilatildeo de um duelo de astuacutecias Trata-se de um

confronto sem duacutevida mas natildeo de um embate aberto de um combate singular em que a

violecircncia do golpe se anuncia no movimento aberto que se abate sobre o adversaacuterio No

combate travado entre Prometeu e Zeus as armas empregadas satildeo tatildeo somente suas

inteligecircncias astuciosas e cada lance cada manobra desferida contra o oponente apresenta-

se dissimulada sob a aparecircncia da oferta sedutora do furto ou da ocultaccedilatildeo A sequecircncia de

accedilotildees que compotildee a narrativa eacute um esboccedilo exemplar das conexotildees ineludiacuteveis que

distinguem a retribuiccedilatildeo e a reciprocidade que implicam a definiccedilatildeo de hierarquias os

acircmbitos proacuteprios na organizaccedilatildeo cosmoloacutegica No mito de Prometeu conjugam-se na

mesma sequecircncia de accedilotildees a inexorabilidade da causalidade que se segue a uma quebra de

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simetria a mḗtis inteligente a previsatildeo temporal projetiva o ardil para a escolha de meios

eficazes a oferta e o contra-presente e a justa retribuiccedilatildeo pela transgressatildeo do meacutetron

O mito de Prometeu eacute o ldquomito de referecircncia para entender o lugar a funccedilatildeo e os

significados do sacrifiacutecio sangrento na vida religiosa dos gregosrdquo (VERNANT 2002 p

263) Natildeo obstante o mito coordena outros temas que ultrapassam em muito no tempo e

no espaccedilo a cultura grega e constituem a pedra fundamental de um tipo de inteligecircncia e de

um modo especiacutefico de racionalidade Prometeu eacute a personificaccedilatildeo da inteligecircncia teacutecnica

humana que se choca com os limites intransponiacuteveis que cingem um Koacutesmos divino

A distribuiccedilatildeo de honras entre Oliacutempios e Titatildes foi o resultado da guerra e das

alianccedilas promovidas por Zeus As honras devidas aos deuses foram fruto do consentimento

e do consenso mas a partilha entre os homens mortais e os Oliacutempios haveria de ser

efetivada por Prometeu Assim como Zeus Prometeu eacute todo ele astuacutecia fabricadora e por

conseguinte um rival uma potecircncia de rebeliatildeo diante da ordem instaurada Mas o Titatilde natildeo

almeja a soberania Ele emprega sua astuacutecia para usurpar a soberania de Zeus e os limites

as medidas que ela implica e para transferir aos mortais um lote que natildeo estaacute em

conformidade com seu estatuto

A partilha eacute o ato que marca o reconhecimento da igualdade e da hierarquia visto

que as ldquopartesrdquo os quinhotildees satildeo distribuiacutedas segundo proporccedilotildees e ordem determinadas

Os termos moira e aiacutesa inicialmente designam o ldquoquinhatildeordquo a ldquoquotardquo ldquoporccedilatildeordquo passando a

significar posteriormente a ordem apropriada a ordem do mundo o Destino O princiacutepio

da daacutediva e a expectativa de compensaccedilatildeo constituem uma extensatildeo da partilha e a

reciprocidade eacute um refinamento mental da accedilatildeo de doar Tal refinamento soacute eacute possiacutevel com

a modelagem dos esquemas mentais que implicam o reconhecimento das pretensotildees dos

atores ausentes o discernimento da passagem do tempo a habilidade para avaliar e

39

relembrar uma retribuiccedilatildeo adiada um mundo estaacutevel no tempo e no espaccedilo e as noccedilotildees

latentes de medida igualdade e equivalecircncia (BURKERT 2001 p 151) A oferenda a um

deus pode significar a submissatildeo aos seus poderes ameaccediladores e a delimitaccedilatildeo apropriada

de sua posiccedilatildeo hieraacuterquica superior ldquoNatildeo darrdquo por outro lado implica natildeo somente a

insubmissatildeo mas uma usurpaccedilatildeo da hierarquia de poder A usurpaccedilatildeo ardilosa de Prometeu

redunda na segregaccedilatildeo definitiva entre homens e deuses e na condiccedilatildeo ambiacutegua que

caracteriza a vida humana proacutexima dos animais e dos deuses

A partilha maquinada por Prometeu consiste no esquartejamento de um boi diante

dos deuses e homens a fim de definir-lhes mutuamente seus estatutos A fronteira seria

representada nas partes do animal sacrificado O sacrifiacutecio eacute efetivamente uma troca de

presentes mediada por Prometeu que deveria respeitar o meacutetron condizente com a soberania

de Zeus Todavia cada parte preparada pelo Titatilde eacute um engodo uma dolosa arte (doliacuteēin

teacutekhnēi) simultaneamente destinada a aviltar o estatuto divino e sobrelevar o estatuto

humano

A primeira parte dissimula os ossos nus do animal sob espessa camada de apetitosa

gordura e a segunda esconde dentro do estocircmago de aparecircncia nauseante as carnes

comestiacuteveis O presente de Prometeu eacute um logro um expediente artificioso cujo fim eacute a

apropriaccedilatildeo do melhor quinhatildeo para os homens Com isso Prometeu acrescenta a dimensatildeo

da vantagem na mḗtis e instaura o viacutenculo perene entre inteligecircncia teacutecnica e o uacutetil O

duelo de Prometeu com Zeus eacute o duelo da mḗtis utilitaacuteria contra a mḗtis da soberania A

primeira calcula os melhores meios para se obter o vantajoso e o uacutetil na perspectiva do

tempo humano A segunda calcula os melhores meios para se obter e manter a soberania

sobre o Koacutesmos na perspectiva da totalidade do tempo Duas ordens de realidade satildeo

40

segregadas uma mortal outra imortal Ambas deveriam ser representadas

proporcionalmente na partilha do sacrifiacutecio do animal e serem oferecidas como presentes

Se todo presente implica a obrigatoriedade do contra-presente e todo sacrifiacutecio

pressupotildee a expectativa de recompensa toda falta reclama a justa retribuiccedilatildeo ldquoZeus de

impereciacuteveis desiacutegnios soube natildeo ignorou a astuacuteciardquo (v 550-551) e escolheu a porccedilatildeo

coberta com gordura branca Por essa razatildeo queimam-se nos altares a gordura e os ossos

dos animais A astuacutecia de Prometeu volta-se contra os homens as partes com aparecircncia de

maior valor na verdade implicam a insaciabilidade da fome sempre renovada e a

perecibilidade proacutepria das carnes de um animal morto As exalaccedilotildees e os perfumes dos

ossos calcinados definem por outro lado a imortalidade impereciacutevel dos deuses que vivem

dos odores sutis A inteligecircncia utilitaacuteria de Prometeu transgride a ordem coacutesmica instituiacuteda

por Zeus A ldquovantagemrdquo auferida com o dolo implica a retribuiccedilatildeo infaliacutevel como

contrapartida O expediente utilitaacuterio desencadeia conexotildees causais natildeo previstas pela mḗtis

prometeacuteica Zeus esconde o biacuteos e o fogo celeste ateacute entatildeo livremente concedidos aos

homens As implicaccedilotildees satildeo a ausecircncia de cereais e gratildeos e a impossibilidade de cozinhar

as carnes obtidas na partilha Ao deixar de ldquodarrdquo as daacutedivas da vida e do fogo aos homens

Zeus daacute efetivamente a justa retribuiccedilatildeo pela falta de Prometeu A lei de taliatildeo da

causalidade preserva a ordem coacutesmica estabelecida

A estrutura baacutesica do programa de accedilotildees que caracteriza a retribuiccedilatildeo eacute repetida (i)

uma situaccedilatildeo impediente adveacutem os homens satildeo privados do fogo e da vida (ii) a

calamidade suscita a busca da causa a fraude de Prometeu (iii) o mediador astucioso

maquina um expediente astucioso Prometeu furta o fogo e o esconde no interior da feacuterula

oca para transportaacute-lo para a terra e doaacute-lo aos homens (iv) a audaacutecia da accedilatildeo criminosa

engendra nova retribuiccedilatildeo

41

O contra-presente de Zeus eacute o resultado da modelaccedilatildeo artificiosa que recebe o

contributo de todos os deuses e constitui o reverso simeacutetrico ao roubo do fogo O dom de

todos os deuses Pandora liberta todos os elementos que aprisionam os homens todos os

males que configuram sua precariedade Sua aparecircncia se reveste do mesmo engodo

astucioso do presente de Prometeu e sua inscriccedilatildeo no plano humano ocorre pela

contrapartida miacutetica da previsatildeo astuciosa que caracteriza Prometeu a imprevidecircncia de

Epimeteu Palco de ambiguidades o cenaacuterio dos homens eacute irremediavelmente vinculado agrave

necessidade de previsatildeo o mundo dos homens eacute o mundo da imprevisatildeo do acaso do

fortuito e conserva o caos originaacuterio das potecircncias primordiais

Pandora representa natildeo somente a explicaccedilatildeo para a duplicidade do estatuto humano

em par de gecircneros opostos ela eacute a noiva esplendorosa de invenciacutevel e adornada aparecircncia

divina que configuram a contrapartida para o dolo do fogo teacutecnico Diferentemente do

homem Pandora eacute fabricada pelos deuses Ela eacute o fruto de uma modelagem divina arte dos

deuses e sua uniatildeo com um Titatilde prenuncia nova caracterizaccedilatildeo do gecircnero humano

Doravante como afirma Jenny Clay (2009 p 102 ss) as distinccedilotildees que definem e

delimitam o gecircnero humano recebem traccedilos perenes e incontornaacuteveis ldquosua apariccedilatildeo

inaugura a instituiccedilatildeo do casamento que como o sacrifiacutecio serve para delimitar as

coordenadas da condiccedilatildeo humana Pois como seres mortais os humanos satildeo compelidos

tal como as bestas a se reproduzirem para que a espeacutecie seja mantidardquo

Por outro lado a prole de Pandora e do titatilde Epimeteu deveraacute unificar os elementos

titacircnicos com a arte bem concebida dos deuses mistura de opostos em permanente tensatildeo

de dissoluccedilatildeo Potecircncia coacutesmica de desmedida Epimeteu procriaraacute um novo gecircnero de ser

unindo-se ao artefacto divino meticulosamente medido miscigenaccedilatildeo equilibrada de

proporccedilotildees e determinaccedilotildees opostas que recebem um sopro de vida O casamento soacute pode

42

passar a ser condiccedilatildeo para a preservaccedilatildeo humana a partir da geraccedilatildeo de Pandora e

Epimeteu que assimila as forccedilas titacircnicas da desmedida agrave arte bem projetada mas ambiacutegua

Assim como o sacrifiacutecio ritualiza mediante em accedilotildees dramatizadas sem finalidade

ou propoacutesito visiacutevel o comeacutercio e o contato com o divino assim tambeacutem o casamento

inaugura a sacralizaccedilatildeo ritual dos apetites sexuais O sacrifiacutecio constitui os droacutemena que

separam o acircmbito e o estatuto divino do humano o espaccedilo-tempo dos deuses e o vivido

humano interposto entre os animais selvagens e o divino A integraccedilatildeo ritualiacutestica do

feminino personificado na Virgem divina ao mesmo tempo regra e sanciona os apetites

sexuais O casamento interpotildee o homem entre a promiscuidade selvagem e a promiscuidade

divina que desconhecem as inibiccedilotildees

O fogo teacutecnico que eacute empregado simultaneamente na fabricaccedilatildeo de utensiacutelios e de

armas que potencializam a violecircncia possui a potecircncia ambiacutegua de assegurar a vida e

sancionar a violecircncia Analogamente o casamento inaugurado por Pandora possui a

potecircncia ambiacutegua de legitimar o sexo atraveacutes da sacralizaccedilatildeo ritualiacutestica e interditar a

promiscuidade da besta ou o incesto dos deuses Todavia o feminino associa-se agrave

concepccedilatildeo da voracidade das forccedilas dissipadoras e destrutivas aportadas pelo fogo Sem

regramento ou controle o feminino natildeo integrado ritualmente consome o fruto dos

trabalhos e com sedutoras palavras e caraacuteter dissimulado induz aos homens a repeticcedilatildeo

miacutetica da imprevidecircncia de Epimeteu

A ambiguidade de Pandora eacute simetricamente compensatoacuteria agrave dyacutenamis piacuterica da

inteligecircncia astuciosa previdente Os males invisiacuteveis indistintamente libertos equilibram e

compensam a previsibilidade e presciecircncia aportada pela inteligecircncia demiuacutergica A

dissimulaccedilatildeo e olhar de catildeo satildeo a contraparte agrave agressatildeo e violecircncia potencializadas por

armas forjadas pelo fogo Por outro lado a esperanccedila retida no vaso opotildee-se agrave exterioridade

43

aberta dos males que assolam os homens Mistura de afeto e pensamento projetivo elpiacutes

anuncia em meio aos males bens somente pensaacuteveis e acalentados afetivamente no acircmago

humano

A causalidade inevidente confere sentido para a espontaneidade do mal na

experiecircncia humana aplaca a ansiedade das vivecircncias aterradoras e eacute o eacutelan para que a

inteligecircncia teacutecnica eluda a contingecircncia dos obstaacuteculos agrave vida Na leitura de Jenny Clay a

expectaccedilatildeo retida pode ser entendida com a mesma ambiguidade de Pandora ela confunde

o pensamento e promete becircnccedilatildeos enquanto sua natureza interna enganadora e caraacuteter

dissimulado mentem com palavras sedutoras Nesse sentido a expectaccedilatildeo seria um mal

iludente que promete e seduz mas que raramente entrega as ilusotildees aneladas (CLAY 2009

p 103) Natildeo obstante a inviolaacutevel posse de Elpiacutes claramente opotildee-se agrave dispersatildeo dos

males Sua accedilatildeo de oposiccedilatildeo eacute compensatoacuteria e natildeo da mesma natureza dos males

silenciosos autocircmatos (HESIacuteODO Trabalhos e os Dias 103) Sua posse implica a

significaccedilatildeo carreada pelo pensamento projetivo de bens pensaacuteveis e diziacuteveis mas incertos

Ela inscreve sentido e ordem numa sucessatildeo indistinta que de outra forma tornariam o

viver excessivamente pesado para ser suportado

O fogo furtado por Prometeu eacute um artifiacutecio derivaccedilatildeo secundaacuteria do fogo celeste

ocultado no interior de uma feacuterula oca e por essa razatildeo eacute um fogo destrutiacutevel e efecircmero

que estaacute no plano do devir e precisa ser alimentado para manter-se Mas eacute tambeacutem um

fogo teacutecnico o fogo do engenho e da metalurgia que possibilitam os meios para a

manutenccedilatildeo da vida10

O fogo dado aos homens representa o domiacutenio da inteligecircncia

teacutecnica astuciosa empregada para controlar as potecircncias naturais e eludir o estado de

10 Paul Diel empreende uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica do mito de Prometeu que a despeito de ser dogmaacutetica e

arbitraacuteria correlaciona de maneira interessante o fogo com a ldquointelectualizaccedilatildeo utilitaacuteriardquo cuja caracteriacutestica eacute

encontrar os meios adequados para a satisfaccedilatildeo dos desejos multiplicados (1980 p 235-236)

44

absoluta carecircncia humana Ele guarda a mesma ambiguidade que marca a condiccedilatildeo dos

homens possui uma origem divina mas eacute por outro lado mortal como os homens e

selvagem como os animais

O fogo prometeacuteico consolida o sacrifiacutecio como o rito adequado para a interaccedilatildeo

entre duas instacircncias definitivamente segregadas e com isso estabelece a partir da daacutediva

da partilha e da retribuiccedilatildeo a emergecircncia ritualiacutestica dos esquemas mentais que compotildeem a

inteligecircncia causal organizadora da experiecircncia e da multiplicidade a conexatildeo infaliacutevel

entre dois eventos consecutivos no tempo a deliberaccedilatildeo projetiva inteligente a escolha de

meios eficazes com vistas a um fim uacutetil determinado a forja de instrumentos as noccedilotildees

proto-matemaacuteticas de medida equivalecircncia proporccedilatildeo igualdade e simetria

Por outro lado a integraccedilatildeo do seu duplo oposto o feminino implica o regramento

a sanccedilatildeo e a inibiccedilatildeo de princiacutepios de accedilatildeo tatildeo destrutivos e incontrolaacuteveis como a

voracidade do fogo selvagem ou do fogo divino o sexo e a violecircncia

15 Vergonha e causalidade a cosmogonia sexual do Papiro de Derveni

Em 1962 uma espetacular descoberta arqueoloacutegica de tumbas funeraacuterias na regiatildeo

grega de Derbeacuteni ( ) havia de insuflar uma forte corrente de novas pesquisas sobre

os cultos de misteacuterio gregos O ceacutelebre papiro de Derveni trouxe agrave luz a exegese de um

uma cosmogonia sagrada desenvolvida por um experto cuja pretensatildeo manifesta eacute a

transposiccedilatildeo didaacutetica de imagens miacuteticas polissecircmicas para o registro de uma explicaccedilatildeo

causal cifrada situada no contexto do pensamento preacute-socraacutetico de Heraacuteclito Anaxaacutegoras

Eutiacutefron e Estesiacutembroto de Thasos (FUNGHI apud LAKS 1997 p 25 ss)

A despeito da profusatildeo dos enfoques hermenecircuticos e das premissas sempre

conjecturais que visam preencher as lacunas incontornaacuteveis dos fragmentos recuperados

45

os eruditos satildeo unacircnimes em reconhecer no rolo de Derveni a mais antiga versatildeo cosmo-

teogocircnica conhecida ateacute hoje (CALAMEacute apud LAKS 1997 p 65) Embora o texto tenha

sido datado por Tsantsanoglou (2006 p 9) da segunda metade do seacuteculo IV (entre 340 e

320 aC) o estilo constitui um forte indiacutecio de que o seu cadinho mental remonta ao Vordm

seacuteculo e que sua linguagem natildeo poderia ser muito posterior a 400 aC (JANKO apud

TSANSTANOGLOU 2006 p 10) Para todos os propoacutesitos aqui assumidos a questatildeo da

autoria e a imprecisatildeo vexatoacuteria que acompanha as referecircncias agrave figura miacutetica de Orfeu natildeo

interferem na fenomenologia das imagens cosmogocircnicas e na re-significaccedilatildeo operada pelo

exegeta Importa sobretudo o modo de manter viva uma tradiccedilatildeo cultual iniciaacutetica

aparentemente anacrocircnica a um ambiente filosoacutefico centrado na busca de princiacutepios causais

cosmoloacutegicos Por essa razatildeo a neutralidade da opccedilatildeo adotada por Janko de referir-se agrave

cosmogonia do papiro como teleteacute ou hieroacutes loacutegos (LAKS 1997 p 26) mostra-se

pertinente

O conteuacutedo dos versos recuperados expotildee a narrativa de uma teogonia sagrada e a

criacutetica por parte do exegeta da interpretaccedilatildeo literal operada por mediadores falseados os

maacutegoi e a inconsequecircncia dos recipiendaacuterios que lhes pagavam altas somas (Col XX) A

questatildeo da iniciaccedilatildeo se apresenta por conseguinte atraveacutes da oposiccedilatildeo entre uma

inteligecircncia subjacente profunda hypoacutenoia e um entendimento literal manifesto O

comentador opera a decifraccedilatildeo de uma narrativa escrita em forma de enigmas cuja

finalidade duacuteplice seria resguardar um saber interdito aos profanos e assegurar a

transmissatildeo de uma tradiccedilatildeo iniciaacutetica atraveacutes do legiacutetimo inteacuterprete

um hino dizendo salutares (hygiḗ) e legalizadas (themitaacute)

palavras Pois um rito sagrado era executado atraveacutes do poema E

natildeo se pode liberar o sentido das palavras (enigmaacuteticas) e falar o

que foi dito Pois este poema eacute algo estranho (xeacutenē) e enigmaacutetico

(ainigmatōdes) para os homens Orfeu mesmo entretanto natildeo

46

desejou falar eriacutesticos enigmas (esriacutest‟ainiacutegmata) mas as grandes

coisas em enigmas (en ainiacutegmasin degrave megaacutela) De fato ele profere

um discurso sagrado (hierologeicirctai) da primeira palavra ateacute o

acabamento do poema Como ele torna claro em um bem

reconhecido verso pois tendo lhes ordenado bdquocolocar portas nos

ouvidos‟ ele afirma que natildeo legisla para os muitos [mas que

ensina] agravequeles de ouvidos puros e no verso seguinte

(Derveni Papyrus Col VII)11

O exegeta justifica a aparecircncia enigmaacutetica do poema atribuiacutedo a Orfeu pelo poder

de velamento das imagens expressas na composiccedilatildeo Os deuses permitem (themitaacute) que os

salutares discursos sagrados (hieroi loacutegoi) sejam ouvidos pelos ldquomuitosrdquo em funccedilatildeo de sua

incapacidade de decifrar-lhes o sentido subjacente A razatildeo para isso eacute ao mesmo tempo

ritual jaacute que o poema eacute associado a accedilotildees ritualiacutesticas e iniciaacutetica pois a purificaccedilatildeo do

ouvir pressupotildee um ensino e a transmissatildeo de um exerciacutecio de atribuiccedilatildeo de significaccedilatildeo agraves

imagens exerciacutecio interdito aos natildeo-iniciados A alusatildeo agrave sauacutede intriacutenseca aos versos

sugere um papel terapecircutico e purificatoacuterio neste exerciacutecio exegeacutetico

A iniciaccedilatildeo jaacute se anuncia aqui como modalidade de exerciacutecio ritual interpretativo

terapecircutico e cataacutertico para a inteligecircncia das grandes coisas Essa inteligecircncia conduz a

uma diferenciaccedilatildeo a um plano superior ser iniciado eacute mudar de estatuto atraveacutes da

inteligecircncia das questotildees mais elevadas que se contrapotildee agrave disputa eriacutestica contrafaccedilatildeo da

polissemia imageacutetica Natildeo obstante o falseamento natildeo se delimita somente agrave

inteligibilidade das grandes coisas mas agrave distinccedilatildeo dos princiacutepios que determinam o

emprego da eficaacutecia ritual e da finalidade de seu uso (TSANTSANOGLOU 2006 p 130)

Na coluna VI os maacutegoi exercem uma accedilatildeo eficaz sobre os daiacutemones almas vingadoras

atraveacutes da encantaccedilatildeo (epōidḗ) sacrifiacutecios e libaccedilotildees Os myacutestai usam os mesmos

11 Texto estabelecido por Tsantsanoglou com traduccedilatildeo ligeiramente modificada (2006 p 130)

47

procedimentos que os maacutegoi mas como seus princiacutepios de accedilatildeo satildeo opostos12

os

sacrifiacutecios endereccedilam-se agrave manifestaccedilatildeo benevolente das almas servidoras da justiccedila as

Eumecircnides (JOURDAIN 2003 6 p 37-39) O poema inicia-se com a menccedilatildeo

extremamente fragmentaacuteria das Eriacutenias (col I) almas honradas por libaccedilotildees marcas

honoraacuteveis de honra feitas atraveacutes de holocaustos de paacutessaros harmonizados com

muacutesica13

Todavia a eficaacutecia da encantaccedilatildeo maacutegica contraposta agraves honras dos sacrifiacutecios e

libaccedilotildees executadas pelos myacutestai se depara com limites coacutesmicos infrangiacuteveis

A correta interpretaccedilatildeo do poema eacute reforccedilada pela necessidade de se evitar o engodo

dos usurpadores dos procedimentos rituais e discursos sagrados e para a distinccedilatildeo entre o

caminho das almas vingadoras e o caminho das Eumecircnides servidoras benevolentes da

Justiccedila O comentador de Derveni consigna a Orfeu a inteligecircncia da ordenaccedilatildeo coacutesmica e

sua expressatildeo cifrada em imagens miacuteticas narradas num poema escrito Como afirma

Obbink (LAKS 1997 p 42) a narrativa do mundo de Orfeu entendida corretamente

(orthōs) espelha nosso koacutesmos O autor pressupotildee o fato de que Orfeu possuiacutea uma

12 Bernabeacute assimila os magos mencionados na Col VI aos sacerdotes persas e confere uma interpretaccedilatildeo

pejorativo agrave sua atividade encantatoacuteria como charlatatildees que operam artifiacutecios com a finalidade de expiar

antigas faltas Betegh ao contraacuterio assume que o autor de Derveni aplica o temo bdquomaacutegoi‟ a um grupo de

sacerdotes persas ao qual ele mesmo pertence (TSNATSANOGLOU 2006 p 166 167) Fabienne Jourdain

(2003 p 37) associa os Maacutegoi a uma tribo meda composta por uma casta sacerdotal encarregada de assegurar a regularidade dos procedimentos em mateacuteria religiosa e que seria subjugada pelo rei Cambises e

posteriormente perseguida por Dario Segundo Apuleius ldquoum mago eacute algueacutem que mediante a comunidade

de fala com os deuses imortais possui um incriacutevel poder de encantar qualquer coisa que desejarrdquo (GRAF

apud MIRECKI MEYER 2002 p 93) No papiro de Derveni o comentador segue uma tradiccedilatildeo que atribui

ao substantivo o sentido pejorativo de ldquocharlatatildeordquo Os praticantes de ritos propiciatoacuterios e foacutermulas

encantatoacuterias que atraveacutes de pagamento procuravam esconjurar a culpa por transgressotildees satildeo a contrafaccedilatildeo

do genuiacuteno iniciado 13 Eriacutenias eles honram libaccedilotildees satildeo derramadas em gotas para Zeus em cada templo Aleacutem disso deve

oferecer excepcional honra agraves [Eumecircnides] e queimar um paacutessaro para cada [um dos daiacutemones] E ele junta

[hinos] bem adaptados ( ) agrave muacutesica

(TSANTSANOGLOU 2006 p 65 129)

48

inteligecircncia privilegiada das verdades maiores e deliberadamente as expressa

imageticamente em versos enigmaacuteticos

A questatildeo crucial natildeo se reduz ao domiacutenio de uma discussatildeo etimoloacutegica acerca da

natureza da linguagem da sinoniacutemia ou da alegorese nos moldes de um Estesiacutembroto com

o escopo semacircntico de atualizar um discurso miacutetico anacrocircnico e cristalizado pela escrita14

Trata-se sobretudo do desvelamento de uma modalidade discursiva que eacute

intencionalmente aberta agrave polissemia como meio de resguardar um saber iniciaacutetico que

carrega em seu bojo homologias estruturais entre relaccedilotildees de imagens e relaccedilotildees coacutesmicas

causais A exegese do autor de Derveni eacute ao mesmo tempo a transposiccedilatildeo de um pensar

por imagens para uma cosmologia da causalidade e o desvelamento daquilo que eacute oculto (e

interdito aos olhos e ouvidos natildeo adestrados) pelo esforccedilo e pelo exerciacutecio ritual

O poema de Orfeu no enfoque de Obbink se insere num ambiente cultual comum a

uma seacuterie de textos fuacutenebres como as lacircminas de ouro Oacuterficas cujas imagens configuram a

visatildeo do mundo dos mortos associada aos ritos de misteacuterio ldquoNatildeo eacute soacute o texto miacutestico que

possui uma significaccedilatildeo velada mas o mundo como um todo taacute eoacutenta a existecircncia humana

e a morterdquo (LAKS 1997 p 53)

A natureza ama ocultar-se diz Heraacuteclito15

A sabedoria consiste tradicionalmente

no aacuterduo exerciacutecio de conferir sentido agravequilo que se apresenta de forma cifrada ou

enigmaacutetica notadamente a interpretaccedilatildeo das prolaccedilotildees do oraacuteculo de Delfos Eacute sobre este

exerciacutecio praacutetico derivado da instituiccedilatildeo oracular de Delfos que Soacutecrates justifica sua

atividade filosoacutefica A inquiriccedilatildeo socraacutetica consiste na escalada ao piacutencaro secular de uma

14 Para uma descriccedilatildeo panoracircmica do debate contemporacircneo ver o ensaio introdutoacuterio de M S Funghi

(LACKS 1997 ) 15 DK B 123 THEMISTIUS Or 5 p 69 (KAHN

2003 p 63)

49

tradiccedilatildeo erigida sobre a inteligecircncia subjacente aos enigmas do deus O aacutenax cujo oraacuteculo

estaacute em Delfos natildeo diz nem oculta daacute sinal16

O discurso divino caracteriza-se pela

oposiccedilatildeo entre a fala manifesta e a inteligibilidade oculta A investigaccedilatildeo do sinal aparente

consiste na hyponoacuteia o desvelamento do sentido oculto da inteligecircncia inevidente que

subjaz agrave manifestaccedilatildeo visiacutevel A autecircntica obediecircncia ao deus consiste em investigar a si

mesmo (DK 101) em replicar a indagaccedilatildeo paradigmaacutetica de Soacutecrates em sua defesa o que

fala enfim o deus e qual eacute afinal o sentido oculto (ainiacutettetai17

)

O discurso divino (heiroacutes loacutegos) possui um modo enigmaacutetico proacuteprio de expressatildeo

que exige o recurso de imagens cifradas Qual eacute a relaccedilatildeo entre o manifesto e o invisiacutevel

Por que aquilo que natildeo estaacute presente ao olhar possui primado em relaccedilatildeo ao imediato Por

que buscar a inteligibilidade no oculto Por que o inevidente se assimila ao divino e por que

o discurso sagrado se expressa na plurivocidade das imagens e natildeo na literalidade da

palavra

O comentador de Derveni associa a natureza coacutesmica com o regramento e a

infrangibilidade dos limites divinos estabelecidos nas leis da phyacutesis Daiacutemones e Eriacutenias

satildeo almas psyacutekhai potecircncias invisiacuteveis servidoras da Justiccedila Diacuteke aparece como a

retribuiccedilatildeo infaliacutevel para a transgressatildeo aos limites coacutesmicos garantida por potecircncias

invisiacuteveis servidoras O viacutenculo inquebrantaacutevel entre transgressatildeo e retribuiccedilatildeo eacute

assegurado pela funccedilatildeo de vigilacircncia das almas A inteligecircncia apanaacutegio psiacutequico tem na

vigilacircncia da causalidade um princiacutepio constitutivo primordial Por essa razatildeo o

16 B 93 PLUT de Pyth or 21 p 404

Disponiacutevel em lthttppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics22-B92gt 17 Apologia 21b 04 (LEXICON I 2003)

50

comentador menciona o fragmento mais antigo de Heraacuteclito qualificando seu estilo

gnocircmico ao modo dos mitoacutelogos que falam por imagens

aquele que ltmudagt o que eacute estabelecido dar Ele

(Heraacuteclito) que precisamente se assemelha aos contadores de mitos

quando se exprime assim o sol segundo sua proacutepria natureza

possui a largura de um peacute humano natildeo ultrapassaraacute suas

medidas pois se ele excede sua proacutepria largura em algum grau as

Eriacutenias o descobriratildeo auxiliares de Diacuteke

(Col IV)18

Os maacutegoi procuram eludir transgressotildees de crimes passados atraveacutes de encantaccedilotildees

e sacrifiacutecios Mas as coisas estabelecidas (keiacutemena) natildeo podem ser modificadas Haacute uma

correlaccedilatildeo entre as leis coacutesmicas e as consequecircncias das accedilotildees humanas pois as mesmas

potecircncias invisiacuteveis asseguram o viacutenculo A apreensatildeo da inteligibilidade coacutesmica eacute parelha

agrave compreensatildeo das implicaccedilotildees psiacutequicas desencadeadas pela praacutexis O koacutesmos brota das

disposiccedilotildees da ordenaccedilatildeo (taacutexin) e natildeo do acaso A mesma Justiccedila que o regra impotildee

limites para o agir humano A referecircncia a Heraacuteclito indica que o campo da ascensatildeo

iniciaacutetica eacute simultaneamente cosmoloacutegico e eacutetico e faz parte da mesma tradiccedilatildeo da qual

emerge o ambiente mental dos preacute-socraacuteticos

Na sua abordagem estrutural-historicista sobre a formaccedilatildeo do pensamento positivo

grego Vernant sublinha o considera uma ldquomutaccedilatildeordquo mental operada pelos filoacutesofos

jocircnicos enquanto a loacutegica do mito hesioacutedico possui a ambiguidade de apreender

simultaneamente o mesmo fenocircmeno como fato natural no mundo visiacutevel e como geraccedilatildeo

divina no tempo primordial os elementos da Filosofia jocircnica seriam despojados de todo

caraacuteter antropomoacuterfico (VERNANT 2002 p 449 ss) Os elementos da Filosofia mileacutesia

18

(JOURDAIN 2003 v 6-10 p 4)

51

satildeo ao mesmo tempo ldquoforccedilasrdquo ativas divinas e naturais Embora o koacutesmos seja uma

ordenaccedilatildeo divina a causalidade jaacute natildeo eacute personificada mas delimitada e abstraiacuteda na

consecuccedilatildeo de efeitos fiacutesicos determinados Haveria uma mudanccedila de registro explicar e

compreender natildeo seriam mais encontrar a genealogia mas os princiacutepios primeiros

constitutivos do ser que implicam regularidade e ordenaccedilatildeo e que fazem com que koacutesmos

seja verdadeiramente um ldquoarranjordquo O historicismo marxista de Vernant comprometido

com a concepccedilatildeo de progresso ofusca a possibilidade hermenecircutica da coexistecircncia entre

planos polissecircmicos abertos que satildeo compartilhados por uma tradiccedilatildeo ritual iniciaacutetica e pela

exegese filosoacutefica que natildeo deixa de ser iniciaacutetica e ritual na praacutexis de um biacuteos

Na mudanccedila de registro operada por Heraacuteclito em particular as potecircncias divinas

satildeo despojadas de seu caraacuteter antropomoacuterfico e os nomes se revestem da sobriedade que

origina um vocabulaacuterio ontoloacutegico novo (RAMNOUX 1968 p 1-9) Mas o caraacuteter

indiferenciado do deus permanece no pensamento filosoacutefico

O deus dia noite inverno veratildeo guerra paz saciedade fome Ele

muda como se misturado a perfumes eacute nomeado segundo o gosto

de cada um

DK 67 (KAHN 2003 p 105)

Qual eacute o papel do fogo nesse cenaacuterio mental O que o dieferencia dos esquemas miacuteticos

hesioacutedicos Qual a relaccedilatildeo do fogo com os incensos Tal como o oacuteleo serve de meio neutro

para o perfume e recebe o nome do aroma o incenso evola-se do fogo e recebe o nome do

aroma do qual eacute constituiacutedo Nomeia-se o incenso natildeo pelo fogo mas pelo nome do

perfume que evola-se Deus da mesma maneira estaacute presente em tudo segundo as estaccedilotildees

e os dias mostrando-se sem cessar pelas contradiccedilotildees que compotildeem o drama da vida O

homem esquece-se do elemento que serve de base para todas as transformaccedilotildees que

compotildeem esse drama e nomeia cada aspecto segundo seu gosto (RAMNOUX 1968 P 377

52

ss) Para Heraacuteclito a coexistecircncia dos pares de opostos mostra aspectos multifacetados do

Um indistinto modos de contrariedade que manifestam um cosmo divino e um deus

presente em toda a physis Cada par de opostos constitui uma porccedilatildeo do Loacutegos divino

Quando se mistura uma multiplicidade de arocircmatas e se lhes atira ao fogo haacute

simultaneamente uma multidatildeo de perfumes e um uacutenico e indistinto fogo Do mesmo

modo haacute uma divindade e muitos nomes

Conforme observa Kahn o fragmento conteacutem a uacutenica definiccedilatildeo da divindade nos

fragmentos atribuiacutedos a Heraacuteclito A primeira parte do fragmento descreve a divindade em

termos formais mediante pares de opostos O texto sugere uma unidade coacutesmica que

ultrapassa a concepccedilatildeo tradicional da divindade Guerra e fogo satildeo designaccedilotildees de um

princiacutepio universal de ordem e justiccedila que eacute sobre-divino e coincide com o Um o princiacutepio

supremo que governa o koacutesmos e nutre todas as leis humanas (DK 114) O divino ldquoumrdquo eacute o

princiacutepio unificador representado pela guerra e pelo fogo eterno identificado com o

koacutesmos e que eacute o mesmo para todos os seres aceso com medida e com medida apagado19

(KAHN 2003 p 182-192) Deus eacute definido e identificado com os pares de opostos e

representa a unidade e a regularidade de um padratildeo de alternacircncia e de interdependecircncia

entre todos os opostos A identificaccedilatildeo da divindade com o padratildeo de alternacircncia entre

opostos determina a ordenaccedilatildeo coacutesmica Em Heraacuteclito a divindade eacute o que haacute de

regularidade nas manifestaccedilotildees infinitamente variegadas da Natureza eacute o princiacutepio de

ordenaccedilatildeo o Loacutegos que eacute tambeacutem o princiacutepio de unificaccedilatildeo que estaacute para aleacutem da

divindade tradicional hesioacutedica Na Filosofia de Heraacuteclito a causalidade eacute a relaccedilacirco

inexoraacutevel dos opostos que se alternam e a inteligecircncia teacutecnica eacute tatildeo somente uma

19

DK30

(KAHN 2003 p 73)

53

manifestaccedilatildeo particular de uma inteligecircncia coacutesmica universal ndash limite intransponiacutevel que

determina as ldquomedidas do fogordquo O koacutesmos eacute uma estrutura que abarca simultaneamente

todos os opostos como manifestaccedilatildeo de um padratildeo uacutenico o fogo que se mistura a incensos

Tal estrutura eacute um arranjo inteligente um Loacutegos metaforicamente expresso pelo fogo

O fogo segundo Charles Kahn (2003 p 138) eacute um siacutembolo de vida de vida sobre-

humana visto que eacute um elemento no qual nenhum ser vivo pode viver Aleacutem disso eacute um

poder que recebe os mortos na morte Representa simultaneamente a vida a criatividade a

morte e a destruiccedilatildeo Como fogo sacrificial ele representa o deus Ele eacute o elemento divino

inscrito na atividade humana que possibilita as teacutecnicas e a induacutestria que separam o homem

dos animais O fogo natildeo eacute um elemento material Eacute um processo de transiccedilatildeo de um estado

para outro um siacutembolo vivo da mudanccedila da vida e da morte do movimento e da

inteligecircncia criativa Em Heraacuteclito o fogo eacute o elemento do paradoxo As reversotildees do fogo

(DK 31) satildeo concebidas como medidas de um ciclo tal como a medida do pecircndulo

Para Anaximandro a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo pagam mutuamente as injusticcedilas

segundo a ordenaccedilatildeo do tempo ou seja a retribuiccedilatildeo eacute paga de acordo com a ordem do

tempo20

Princiacutepio dos seres o ilimitado pois o que eacute a geraccedilatildeo

para os seres a corrupccedilatildeo eacute para estes ao se gerar segundo o

necessaacuterio pois datildeo justiccedila a si mesmos e pagamento uns aos

outros pela injusticcedila segundo a ordenaccedilatildeo do tempo21

Heraacuteclito concebe a noccedilatildeo coacutesmica de trocas como um padratildeo de justiccedila segundo a

qual nada ocorre sem a justa retribuiccedilatildeo ou pagamento O princiacutepio que rege todo processo

20

(B 1 SIMPLIC Phys 24 13) Disponiacutevel

em lthttppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics12-Bgt 21 Trad de Cavalcante de Souza modificada (2000 p 50)

54

de mudanccedila eacute a justa retribuiccedilatildeo que ocorre segundo um criteacuterio em ldquomedidasrdquo Isso

significa que a estrutura coacutesmica eacute mantida pela causalidade como princiacutepio de ordenaccedilatildeo

A ldquomedidardquo que rege as trocas eacute preservada sobre uma sequumlecircncia de estaacutegios em uma

progressatildeo temporal que retorna ao ponto inicial do ciclo As medidas de igualdade satildeo

rigorosamente respeitadas pela retribuiccedilatildeo A noccedilatildeo de Justiccedila abarca natildeo somente a praacutexis

eacutetico-poliacutetica mas enraiacuteza-se na forja que molda laboriosamente a noccedilatildeo multifacetada da

causalidade Como afirma Vlastos (1947 p 146) o campo de aplicaccedilatildeo da palavra justiccedila

vai muito aleacutem da esfera legal e moral

Respeitar a natureza de algueacutem ou de algo eacute ser ldquojustordquo

com eles Piorar ou destruir a natureza eacute ldquoviolecircnciardquo ou

ldquoinjusticcedilardquo Assim em uma passagem bem conhecida Solon fala

do mar como o ldquomais justordquo quando imperturbaacutevel pelos ventos

natildeo perturba a ningueacutem ou a nenhuma coisa A lei da medida natildeo eacute

nada mais do que um refinamento desta ideacuteia de que a proacutepria

natureza de algueacutem e a natureza dos outros possuem limites que

natildeo podem ser ultrapassados

A justiccedila coacutesmica eacute uma concepccedilatildeo da natureza em geral

como associaccedilatildeo harmocircnica cujos membros observam ou satildeo

compelidos a observar a lei da medida Pode haver morte e

destruiccedilatildeo oacutedio e ateacute mesmo corrupccedilatildeo (como em Anaximandro)

Haacute justiccedila natildeo obstante se a usurpaccedilatildeo eacute invariavelmente

reparada e as coisas satildeo reinstaladas em seus limites proacuteprios

A causalidade em Heraacuteclito adquire um estatuto eminente de lei soberana que

cinge e preside a ordenaccedilatildeo coacutesmica O princiacutepio de regramento unificador pressupotildee as

concepccedilotildees de ldquomedidardquo ldquoigualdaderdquo ldquoequivalecircnciardquo ldquocompensaccedilatildeordquo ldquoproporccedilatildeordquo e

serve como fonte nutriz para as atividades humanas Na cosmologia de Heraacuteclito o fogo

teacutecnico eacute apenas uma fagulha do fogo coacutesmico a inteligecircncia humana assimila-se ao ciclo

coacutesmico divino e a Natureza permanece como fronteira divina intransponiacutevel

salvaguardada pelas Eriacutenias servas da Justiccedila

55

A causalidade no papiro de Derveni entremeia o plano das imagens miacuteticas

teogocircnicas com a significaccedilatildeo inevidente propiciada pela exegese cosmoloacutegica A eficaacutecia

das praacuteticas rituais dos maacutegoi atua como violaccedilatildeo entre a conexatildeo inquebrantaacutevel entre

falta e retribuiccedilatildeo excesso e compensaccedilatildeo O adivinho encantador eacute o intermediaacuterio

privilegiado entre o visiacutevel e o invisiacutevel entre o sacrifiacutecio violento e a puniccedilatildeo invisiacutevel

evitada A divisatildeo entre as imagens imediatas do poema e a interpretaccedilatildeo do seu sentido

oculto traz ao primeiro plano o conhecimento das causas e a legitimidade da transmissatildeo

Haacute uma homologia estrutural entre a transmissatildeo iniciaacutetica do ritual de misteacuterio e a

transmissatildeo iniciaacutetica de uma cosmologia que deve ser necessariamente misteriosoacutefica O

segredo consiste numa garantia contra a usurpaccedilatildeo do viacutenculo inexoraacutevel entre o longo

esforccedilo exigido pela via iniciaacutetica e a compreensatildeo das grandes verdades enigmaacuteticas que

soacute pode surgir como apanaacutegio de uma conquista de um estatuto superior de uma praacutetica de

vida concomitante agrave investigaccedilatildeo dos princiacutepios do koacutesmos

O sentido oculto pressupotildee um processo de conhecimento que se origina a partir de

imagens e signos provisoacuterios cujo papel deve ser o de remeter o inteacuterprete treinado para

realidades invisiacuteveis inevidentes

Por que natildeo crecircem (apistoucircsi) nas coisas terriacuteveis (deinagrave)

que os esperam no HadesSe natildeo compreendem (gignōskontes)

imagens oniacutericas (enyacutepnia) nem nenhuma outra de suas

manifestaccedilotildees praacuteticas particulares (tōn aacutellōm pragmaacutetōm

heacutekaston) por meio de que paradigma (paradeigmaacutetōm) se faria

com que cressemPois aqueles que tendem para a falta e os

prazeres que prevalecem nem aprendem nem crecircem (ou

manthaacutenousin oudegrave pisteuacuteousi) Pois incredulidade e ignoracircncia

satildeo o mesmo De fato se nem aprendem nem compreendem natildeo

haacute como crer ainda que vendo22

(Col V)

22 Trad de Fabienne Jourdain com modificaccedilotildees (2003 p 5 35-36)

56

As imagens oniacutericas (aquilo que eacute interno aos sonhos) configuram pontos de partida

para o conhecimento de accedilotildees Assim como a teleacutestica exige a transmissatildeo de um saber o

conhecimento das leis coacutesmicas exige a passagem da apreensatildeo das imagens manifestas

para a compreensatildeo de semelhanccedilas de homologias entre planos muacuteltiplos de significaccedilatildeo

discursiva e o koacutesmos A atividade exegeacutetica do comentador evidencia que o conhecimento

eacute intrinsecamente dependente de paradigmas imageacuteticos Aprender e compreender satildeo

diferentes de crer e incredulidade e ignoracircncia assimilam-se mutuamente pois a crenccedila eacute

um passo imprescindiacutevel tanto para aprender como para compreender Ademais o maior

obstaacuteculo para o aprendizado e para o conhecimento consiste na vitoacuteria dos prazeres Se o

conhecimento implica a transposiccedilatildeo de imagens ao mesmo tempo aparentes e

enigmaacuteticas para a inteligecircncia inaparente os prazeres induzem ao erro porque subjugam

vencem e impedem o aprendizado e a crenccedila na prisatildeo ao manifesto imediato Vencer a

tirania dos prazeres imediatos constitui o princiacutepio ritual para o conhecimento das grandes

verdades daiacute a inextricabilidade entre o sentido simboacutelico o segredo e o conhecimento

A palavra syacutembolon natildeo eacute atesta Burkert (1972 p 179) uma adiccedilatildeo da tradiccedilatildeo

tardia mas reflete uma concepccedilatildeo preacutevia a toda e qualquer exegese ldquosimboacutelicardquo Todos os

misteacuterios possuem segredos (apoacuterrēta) e palavras de passe secretas (syacutembola synthḗmata)

interpretados em um discurso sagrado (hierograves loacutegos) cujo sentido natildeo deve ser revelado

aos natildeo-iniciados

No domiacutenio da religiatildeo de misteacuterio satildeo bdquopalavras

de passe‟ ndash foacutermulas especificadas ditos (encantaccedilotildees)

dadas ao iniciado que asseguram por meio de seus confrades e

especialmente pelos deuses que seu novo e especial estatuto seja

reconhecido (BURKERT 1972 p 176)

57

No papiro de Derveni o exegeta indica a necessidade preacutevia de ldquocolocar portas nos

ouvidosrdquo pois Orfeu natildeo teria instituiacutedo leis para os muitos mas para aqueles cujos

ouvidos foram purificados (JOURDAIN 2003 p 44-45)

A teogonia escrita segue pari passu agrave cosmologia que emerge da interpretaccedilatildeo das

imagens Zeus recebe de seu pai a soberania ou a potecircncia (tegraven arkhḗn) como um filho

sucede ao pai (Col IX) A engendraccedilatildeo e a transferecircncia da forccedila sugerem a moldagem

coacutesmica a partir de princiacutepios e potecircncias primordiais O fogo possui a potecircncia de afastar

os seres e impedi-los de se combinar por causa do aquecimento Os seres aquecidos natildeo

podem juntar-se em massas compactas A nutriz dos deuses Niacutex possui a funccedilatildeo oracular

da profecia equivalente miacutetico do ensino da instruccedilatildeo foneacutetica que se vale da palavra

como meio de transmissatildeo (Col X) A fala articulada exige a faculdade foneacutetica como

mediaccedilatildeo necessaacuteria para o ensino A potecircncia profeacutetica da Noite indica a projeccedilatildeo

temporal da sua ldquoinstruccedilatildeordquo das regras mediadas pelo princiacutepio material Predizer equivale

a ensinar ou transmitir regramento Assim a Noite inscreve instruccedilatildeo no movimento

desencadeado pelo fogo e exerce uma accedilatildeo de resfriamento oposta ao aquecimento preacutevio

A disjunccedilatildeo operada pelo fogo eacute seguida pela combinaccedilatildeo propiciada pelo

aquecimento Sol e Noite satildeo potecircncias opostas de separaccedilatildeo e combinaccedilatildeo aquecimento e

resfriamento Os oraacuteculos da Noite satildeo proferidos das profundezas de santuaacuterio (aacutedyton)

impenetraacutevel (Col XI) As instruccedilotildees regradas satildeo fixas e interditas aos olhos profanos

pois a impenetrabilidade noturna eacute a imagem estaacutetica que se contrapotildee agrave periodicidade da

luz solar penetrante O proferimento oracular possui a finalidade de preservar as leis

(theacutemis) fixas que regem as profundezas dos seres a sua natureza oculta que faculta aos

myacutestai a capacidade de previsatildeo futura acerca das combinaccedilotildees e disjunccedilotildees das partiacuteculas

58

A Noite primordial exerce seu poder sobre o nevado Olimpo (Col XII) cuja

luminosa altitude e frieza satildeo assimiladas ao tempo cronoloacutegico A altitude e a largura

constituem grandezas polarizadas que simbolizam o regramento cronoloacutegico e o

regramento espacial identificado com o horizonte celeste O poder causal da Noite instaura

medidas no tempo-espaccedilo no qual se desenrolam as combinaccedilotildees e separaccedilotildees das

partiacuteculas Mas a potecircncia coacutesmica da geraccedilatildeo e soberania eacute identificada com a potecircncia

sexual

() o genital (aidoicircon) engoliu aquele que no eacuteter jorrou

primeiro Mas jaacute que em todo o poema ele recorre a enigmas para

falar das coisas pragmaacuteticas eacute necessaacuterio falar de cada verso

Vendo que os homens por haacutebito consideravam que a geraccedilatildeo

reside nos genitais (em toicircs aidoiacuteois) ele utiliza esse nome e como

eles consideravam que sem os genitais natildeo haacute geraccedilatildeo ele usa essa

palavra assimilando o sol ao genital De fato sem o sol natildeo eacute

possiacutevel que os seres venham a ser tais como satildeo ()

(Col XIII)23

Como observa Claude Calame (LAKS 1993 p 67 ss) na literatura grega aidoicircai

designa a genitaacutelia masculina ou feminina as vergonhas Os genitais satildeo a expressatildeo da

potecircncia geradora e a soberania coacutesmica assimila o poder de geraccedilatildeo em si mesma atraveacutes

da sequecircncia de accedilotildees na qual Zeus engole o pecircnis (aidoicircon) a proacutepria imagem da potecircncia

identificada com o sol O poder procriador manifesta-se na ambiguidade enigmaacutetica do

substantivo masculino aidoicircos que designa o genital masculino mas que pode ter tambeacutem

o sentido ativo de respeitoso e o sentido passivo de veneraacutevel (RAMNOUX 1968 p 97)

O princiacutepio procriador responsaacutevel pela geraccedilatildeo de todos os seres encontra no sol a

venerabilidade celeste da qual brotam as realidades que vecircem agrave luz Zeus por separaccedilatildeo

jorra no ar da brancura e brilho do resplandecente Kronos engendrado a partir do sol e da

23 Trad Fabienne Jourdain com modificaccedilotildees (2003 p 13)

59

Terra pelo choque das partiacuteculas umas com as outras (col XIV) Kronos aquele que choca

identifica-se com o Noucircs a Inteligecircncia que choca as partiacuteculas entre si Ouranos filho de

Euphroneacuteia a Noite eacute destituiacutedo da realeza pelo choque dissociativo empreendido pelo

Intelecto

A potecircncia procriadora inteligente associa a colisatildeo de partiacuteculas coacutesmicas com a

propriedade primordial da inteligecircncia de separar e discriminar A justaposiccedilatildeo do sol no

centro coacutesmico implica a transferecircncia da soberania para Zeus que possui a inteligecircncia

astuciosa Meacutetis Agrave segregaccedilatildeo e poder gerador do genital ajunta-se a inteligecircncia projetiva

astuciosa As realidades originam-se do genital coacutesmico e o Protogoacutenos eacute rei veneraacutevel

(aidoucirc) engendrado a partir de partiacuteculas eternas Toda a geraccedilatildeo coacutesmica pressupotildee o

concurso simultacircneo da potecircncia procriadora e do Noucircs Inteligecircncia primordial ldquoO

Intelecto eacute rei de todas as coisasrdquo As imagens cosmoloacutegicas forjadas pela exegese

simboacutelica satildeo consonantes com as concepccedilotildees pitagoacutericas de Filolau de Croacutetona

ndash E existem quatro princiacutepios do animal racional tal como Filolau

diz no ldquoDa Naturezardquo ceacuterebro coraccedilatildeo umbigo e os genitais A

cabeccedila eacute a sede do intelecto o coraccedilatildeo da alma e da sensaccedilatildeo o

umbigo do enraizamento e do primeiro crescimento os genitais da

emissatildeo de sementes e da geraccedilatildeo O ceacuterebro conteacutem o princiacutepio

do homem o coraccedilatildeo princiacutepio dos animais o umbigo o princiacutepio

das planta os genitais o princiacutepio de todos os seres vivos Pois

todas as coisas crescem e florescem das sementes F13 ndash

Theologumena arithmeticae 25 17

O acervo imageacutetico que associa o princiacutepio causal da geraccedilatildeo aos genitais eacute

onipresente na mentalidade grega na qual coexistem os cultos iniciaacuteticos e a Filosofia

cosmoloacutegica preacute-platocircnica A polissemia aberta suscita a questatildeo de que a vergonha eacute um

afeto primordial constitutivo Tal afeto irrompe da exposiccedilatildeo agrave visatildeo do devir derivado da

accedilatildeo sexual vinculada agrave luz solar fecundante Este viacutenculo entre enigma desvelamento e

vergonha tambeacutem eacute encontrado em Heraacuteclito (KAHN 2009 p 103)

60

Natildeo fosse Dioniso pelo qual marcham em procissatildeo e

cantam o hino ao falo suas accedilotildees poderiam ser vergonhosas Mas

Hades e Dioniso satildeo o mesmo por quem deliram e celebram a

Lenaia

(DK 15)

O jogo de oposiccedilotildees entre o poder procriador do falo e a morte entre a exposiccedilatildeo

vergonhosa e o invisiacutevel aideacutes justificam o canto ritual aidō que reclama exegese

filosoacutefica Dioniso e Hades satildeo o mesmo O deus da potecircncia sexual do transe e do

entusiasmo baacutequico eacute o mesmo deus da morte do invisiacutevel e das terriacuteveis puniccedilotildees que

aguardam os impuros no mundo dos mortos A potecircncia criadora do falo vergonha implica

a identidade com a inevitaacutevel morte com a retribuiccedilatildeo invisiacutevel e infaliacutevel A exposiccedilatildeo

vergonhosa manifesta implica a inexorabilidade oculta da retribuiccedilatildeo Vergonha e puniccedilatildeo

satildeo dois aspectos de uma identidade aidoacutes e diacuteke causalidade soberana salvaguardada

pelas Eriacutenias servas da Justiccedila

61

II - O MITO DO PROTAacuteGORAS teacutekhnai aidōs e diacutekē

Oacute Soacutecrates ele disse eu natildeo me recusarei mas por qual dos dois

modos o do mais velho que fala para com os mais jovens

demonstrando um mito ou narrando em detalhe por um discurso

(Protaacutegoras 320c02-04)24

O bom conselho que configura a preferecircncia (eubouliacutea) imbrica simultaneamente a

narrativa bem demonstrada e a argumentaccedilatildeo razoaacutevel Quando se trata da escolha

prudente a boa ordenaccedilatildeo do querer precede a boa ordem no agir e no falar (kaigrave praacutettein

kaigrave leacutegein) O discurso que move o querer se modela na razoabilidade das imagens miacuteticas

pois uma crenccedila soacute eacute verossiacutemil atraveacutes da ordenaccedilatildeo do loacutegos

O que explica a desigualdade entre homens iguais no que diz respeito aos dons

naturais para as teacutecnicas e a igualdade poliacutetica entre homens desiguais Como conciliar

estes opostos polarizados Por que o bom conselho concernente agraves teacutecnicas pressupotildee o

conhecimento o ensino e o especialista (dēmiurgoacuten) ao passo que o bom conselho poliacutetico

permite a opiniatildeo de qualquer um A narrativa miacutetica entremeada agrave phroacutenesis propicia a

inteligecircncia multivalente O ponto comum entre as imagens miacuteticas e o loacutegos eacute o seu poder

de invariacircncia pelo qual a presenccedila e realizaccedilatildeo da praacutexis viva remanescem e reaparecem

Tal eacute o caraacuteter primordial do discurso e do mito ambos expressam a invariacircncia no

movimento e tal como o divino natildeo constituem um apanaacutegio humano mas algo que se

apresenta como realidade viva Eacute por meio das accedilotildees e do falar que o homem apreende e

modela a sua realidade vivida captando-a natildeo mediante noccedilotildees exclusivamente racionais

mas atraveacutes de imagens que configuram uma inteligecircncia complexa (NUNES SOBRINHO

2008 p 30)

24

62

Natildeo obstante por que Platatildeo consigna uma grande narrativa miacutetica agrave fala de

Protaacutegoras um dos maiores sofistas contemporacircneos de Soacutecrates E por que esse mito

reproduz as imagens antropogecircnicas das narrativas hesioacutedicas Em sua anaacutelise das menccedilotildees

a Hesiacuteodo e Homero no corpus platocircnico Naoko Yamagata (in BOYS-STONES

HAUBOLD 2010 p 67-88) observa que Hesiacuteodo e Homero contribuiacuteram para os mitos

platocircnicos mais do que quaisquer outros poetas Os mitos que emprestam imagens de

Hesiacuteodo satildeo em geral mitos antropogecircnicos O mito do Protaacutegoras em particular cuja

estrutura eacute marcadamente hesioacutedica seria caracteristicamente anti-socraacutetico A tese geral de

Yamagata eacute a de que Hesiacuteodo eacute frequentemente ldquoinvocado como suporte para argumentos

epidecirciticos de natureza duacutebiardquo Haveria uma marcada tendecircncia em alguns diaacutelogos em

contrastar o uso ldquosofiacutesticordquo de Hesiacuteodo com um uso mais caracteristicamente socraacutetico de

Homero

Soacutecrates claramente prefere Homero a Hesiacuteodo mesmo em

diaacutelogos em que ele eacute alvo de ataque (Ion Repuacuteblica)

Ocasionalmente o contraste entre o Homero socraacutetico e o Hesiacuteodo

sofiacutestico ajuda a articular a estrutura global de um diaacutelogo

(Banquete Protaacutegoras) () Os mitos de Platatildeo mais bdquohesioacutedicos‟

tendem a ser estruturados diferentemente daqueles com um forte

sabor homeacuterico estes uacuteltimos satildeo todos narrados por Soacutecrates e

satildeo apresentados como relativamente ambiciosos quanto agrave sua

pretensatildeo agrave verdade Os mitos de Platatildeo mais bdquohesioacutedicos‟ satildeo

postos na boca de outros interlocutores que natildeo Soacutecrates e satildeo

estruturados como entretenimento (Protaacutegoras) jogo (Poliacutetico) ou

meramente verossiacutemil (Timeu) O uacutenico maior mito hesioacutedico

narrado por Soacutecrates eacute apresentado como uma bdquomentira Feniacutecia‟

(YAMAGATA in BOYS-STONES HAUBOLD 2010 p 88)

Embora o levantamento de Yamagata seja sugestivo no que tange ao escopo criacutetico

das narrativas de cunho hesioacutedico a suma cosmoloacutegica do Timeu e do mito do Poliacutetico

possuem uma densidade filosoacutefica de grandeza incompatiacutevel com qualquer desvalorizaccedilatildeo

e soacute satildeo anti-socraacuteticos na medida em que satildeo caracteristicamente platocircnicos Os mitos de

63

julgamento por outro lado satildeo explicitamente vinculados agraves ldquoantigas tradiccedilotildeesrdquo (paacutelai

leacutegetai Feacutedon 63c 06) de misteacuterios e natildeo podem ser identificados somente com a neacutekya

do livro XI da Odisseacuteia

Mesmo a narrativa encenada no Protaacutegoras evoca uma longa cadeia de transmissatildeo

oriunda dos cultos de misteacuterio e valores que compotildeem o ambiente mental grego Giovanni

Casadio (2010 p 3-5) distingue para efeito de anaacutelise os cultos de misteacuterios gregos em

modalidades diversas e salienta especialmente o caraacuteter da transmissatildeo de uma sabedoria

tradicional

Misteacuterios em geral implicam cerimocircnias especiais que satildeo

caracteristicamente esoteacutericas e frequentemente conectadas com o

ciclo anual da agricultura Usualmente eles envolvem o destino de

poderes divinos sendo venerados e a comunicaccedilatildeo de sabedoria

religiosa que habilita o iniciado a vencer a morte Eles eram parte

da vida religiosa geral mas separados do culto puacuteblico que era

acessiacutevel a todos Por essa razatildeo eram tambeacutem chamados ldquocultos

secretosrdquo(aporrēta) () ldquoMisteacuterio propriamente envolve toda

uma estrutura iniciatoacuteria de alguma duraccedilatildeo e complexidade cujo

tipo (e em muitos casos o real modelo) eacute Eleusis O ldquoculto

miacutesticordquo envolve natildeo a iniciaccedilatildeo mas antes uma relaccedilatildeo de

intensa comunhatildeo tipicamente extaacutetica ou entusiaacutestica com a

divindade (ex frenesi Baacutequico ou o kibeboiacute de Cybele) O culto

ldquomisteriosoacuteficordquooferece uma antropologia escatologia e meios

praacuteticos de reuniatildeo individual com a divindade cuja forma

primitiva e original eacute o Orfismo

O mito do Protaacutegoras amalgama elementos diacutespares da tradiccedilatildeo religiosa grega e

por isso aponta para uma composiccedilatildeo ao mesmo tempo argumentativa e narrativa que se

desdobra caracteristicamente numa espeacutecie de bricolage O amaacutelgama de um complexo de

elementos tradicionais dispostos numa sequecircncia de imagens sugere a hipoacutetese de que

Platatildeo como se fora sofista ao mesmo tempo em que fundamenta teses na tradiccedilatildeo rompe

com ela modificando-a atraveacutes de uma nova transmissatildeo re-significada Como afirma

Radcliffe Edmonds ldquouma narrativa dramatiza ldquovaloresrdquo mostrando na perspectiva do

64

narrador o que eacute bom e o que eacute inuacutetil ou maurdquo e salienta que os elementos tradicionais satildeo

evocativos (em vez de descritivos) de associaccedilotildees que ultrapassam o significado imediato

Os desdobramentos desencadeados pela sequecircncia de imagens accedilotildees e caracteres atraveacutes

da estrutura da narrativa carregam em seu bojo significaccedilatildeo para a audiecircncia (CASADIO

2010 p 74-75)

Composta a partir do acervo de imagens da mentalidade grega o mito do

Protaacutegoras eacute um constructo dramaacutetico de Platatildeo seu emprego argumentativo e retoacuterico

encenado pelo ceacutelebre mestre de sabedoria Protaacutegoras emana a fragracircncia acre-doce da

ironia platocircnica A encenaccedilatildeo articula-se com todo aroma irocircnico que permeia o diaacutelogo e

traz em seu bojo a discriminaccedilatildeo platocircnica que visa determinar a especificidade da

Filosofia mediante a cuidadosa separaccedilatildeo e descaracterizaccedilatildeo do ensino sofiacutestico

O mito do Protaacutegoras inicia-se com a afirmaccedilatildeo de uma clivagem no tempo Era um

tempo em que os deuses existiam mas os mortais natildeo25

A existecircncia preacutevia dos deuses

indica natildeo somente um tempo proacuteprio aos deuses mas a natildeo homogeneidade do tempo O

tempo dos mortais eacute essencialmente outro em relaccedilatildeo ao tempo dos deuses Por que o mito

comeccedila com a polarizaccedilatildeo e oposiccedilatildeo entre tempo dos deuses e tempo dos homens A

distinccedilatildeo qualitativa que rompe a homogeneidade esboccedila a concepccedilatildeo de que nem todo

devir nem todo tempo eacute equivalente a outro Haacute o tempo dos deuses o tempo das origens

o tempo forte que antecede o existir da experiecircncia humana e que por seu primado eacute um

tempo paradigmaacutetico exemplar absoluto norteador Retornar ao tempo das origens

implica em encontrar o sentido absoluto para a realidade presente a explicaccedilatildeo e o

25

65

fundamento26

mediante o tempo exemplar para todo o devir27

A explicaccedilatildeo e o sentido satildeo

buscados na origem coacutesmica e antropogocircnica de um Tempo primordial paradigma

absoluto Protaacutegoras funda o relativismo da isonomia e isēgoria28

poliacuteticas no absoluto

referencial do tempo primordial Antes que algo venha a ser seu tempo proacuteprio natildeo pode

constituir um devir o um apoacutes o outro dos phainoacutemena Por isso o tempo poliacutetico comeccedila

na origem das relaccedilotildees que possibilitam a formaccedilatildeo das primeiras poacuteleis e explica como a

praacutexis poliacutetica efetiva veio a instaurar-se

A oposiccedilatildeo entre myacutethos como discurso inverificaacutevel e loacutegos como discurso

atestaacutevel eacute superada no emprego argumentativo do mito e na narraccedilatildeo bem exposta do

argumento Protaacutegoras demonstra causas na narraccedilatildeo do mito e expotildee um argumento em

forma narrativa (myacutethon leacutegōn epideiacutexō ḗ loacutegō diexelthōn)29

A polarizaccedilatildeo opotildee o tempo

absoluto dos deuses ao tempo pereciacutevel e relativo dos mortais Este uacuteltimo soacute encontra a

estabilidade propiciadora da significaccedilatildeo na imutabilidade paradigmaacutetica do primeiro O

26 Mircea Eliade enfoca em vaacuterias obras a homologia estrutural entre o espaccedilo coacutesmico primordial e o tempo

original templum-templus O tempo ab initio das origens coacutesmicas corresponde ao centro do mundo

primordial O nascimento do Koacutesmos eacute tambeacutem o ponto originaacuterio o marco e o princiacutepio do ser e do existir

(ELIADE 1965 p 66 ss) A abordagem simbolista fortemente antropoloacutegica de Eliade identifica o tempo e espaccedilo miacuteticos com a experiecircncia religiosa e com o sagrado por excelecircncia Na transposiccedilatildeo filosoacutefica

platocircnica o mito narrado por Protaacutegoras emprega o retorno agraves origens teacutecnica de evasatildeo do tempo atual para

fundar e conferir significaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de uma experiecircncia poliacutetica e teacutecnica proacutepria agrave democracia

ateniense 27 A cosmogonia eacute modelo exemplar para toda espeacutecie de fabricaccedilatildeo e construccedilatildeo Acrescentemos que a

cosmogonia comporta tambeacutem a fabricaccedilatildeo do tempo Mais ainda assim como a cosmogonia eacute o arqueacutetipo

de toda fabricaccedilatildeo o Tempo coacutesmico que a cosmogonia faz jorrar eacute o modelo exemplar de todos os tempos

ou seja dos Tempos especiacuteficos das diversas categorias existentes (ELIADE 1965 p 69) 28 Berti (1978 p 348) identifica a liberdade poliacutetica com a liberdade de pensamento e expressatildeo que os

atenienses chamavam o ldquoigual direito de fala na assembleacuteia puacuteblicardquo (isēgoriacutea) A liberdade da fala seria uma

decorrecircncia da igualdade dos cidadatildeos perante a lei e um dos aspectos essenciais da democracia ateniense conforme se depreende de Heroacutetodo As forccedilas atenienses cresciam continuamente Poder-se-ia provar de mil

maneiras que a igualdade entre os cidadatildeos e o governo eacute a mais vantajosa () (HEROacuteDOTE V LXXVIII

1850) Claude Mosseacute afirma que os fundamentos da democracia ateniense no seacuteculo V satildeo ldquoa igualdade de

todos perante a lei o direito de todos de tomar a palavra diante da assembleacuteia o que eacute traduzido nos dois

termos frequentemente empregados como sinocircnimo de democracia isonomia e isēgoriacutea (1995 p84) 29 A iniciaccedilatildeo agrave virtude protagoriana inicia-se como observa Beall (1991 p 368) com um mythos que possui

um papel uacutetil na argumentaccedilatildeo Platatildeo ao contraacuterio correlaciona a Filosofia com a passagem pela morte e

seus grandes mitos de julgamento aparecem quase sempre no final dos diaacutelogos

66

tempo-irreversiacutevel devir relativo dos mortais se define atraveacutes do seu correlativo oposto o

paradigma absoluto o tempo-reversiacutevel dos deuses eternos Toda cosmogonia pressupotildee o

referencial absoluto do tempo primordial e do centro coacutesmico (ELIADE 1977 p 29-30)

Quando eacute chegado o tempo fixado pela sorte do nascimento dos mortais os deuses

os modelam a partir da terra misturada ao fogo e de tudo o que se mistura ao fogo

Era um tempo em que os deuses jaacute existiam mas o gecircnero dos

mortais natildeo Quando chegou o tempo de sua gecircnese fixado pelo

destino os deuses os modelaram no interior da terra realizando

uma mistura de terra de fogo e tudo o que se mistura agrave terra Em

seguida quando veio o momento de os trazer para a luz eles

encarregaram Prometeu e Epimeteu de repartir as potecircncias em

cada um deles em boa ordem como conveacutem30

(Protaacutegoras 320d)

Os mortais todos os thnētoi satildeo modelagem divina a partir de princiacutepios fiacutesicos

primordiais mistura de fogo terra e tudo o que a ele se mistura A demiurgia divina se

inscreve na terra com esse fogo primordial compondo uma mistura Em sua gecircnese os

mortais satildeo compostos da mistura de elementos fiacutesicos e inteligecircncia divina na sua

modelagem O divino modela o inanimado mediante a liga primordial entre terra e fogo

movente Seguem-se a partir disso novas oposiccedilotildees terra inanimada e fogo elementos

fiacutesicos destituiacutedos de inteligecircncia e inteligecircncia demiuacutergica dos deuses31

30 Texto estabelecido por A Croiset Traduccedilatildeo de F Idelfonse 31 O esquema da gecircnese dos mortais esboccedilado no mito evoca o fragmento 62 DK de Empeacutedocles

67

Quando chega o momento de trazer os mortais agrave luz (phōs) e distribuir os lotes com

kosmiacutea dois intermediaacuterios polarizados se interpotildeem Prometeu e Epimeteu Os filhos de

Jaacutepeto personificam a previdecircncia luacutecida antecipaccedilatildeo temporal de conexotildees inevitaacuteveis e a

imprevidecircncia cega indeterminaccedilatildeo e desacerto do devir A astuacutecia fulgurante (aioloacutemētis)

se opotildee ao errocircneo pensar (hamartiacutenooacuten)32

O equiliacutebrio entre os opostos exige a

compensaccedilatildeo muacutetua (Feacutedon 71e) Todavia haacute uma inversatildeo de papeacuteis e Epimeteu

astuciosamente persuade a Prometeu para que imprevidentemente delegue toda a tarefa de

distribuiccedilatildeo das potecircncias ao seu duplo miacutetico A distribuiccedilatildeo equilibra potecircncias opostas

nos seres vivos de maneira a assegurar a sobrevivecircncia diante dos perigos muacutetuos e diante

dos perigos naturais Todos os gecircneros de seres equilibram-se e justificam-se em seu

existir A hamartiacutea erro faltoso de Epimeteu resulta em uma aporiacutea a situaccedilatildeo impediente

B 62 SIMPL Phys 381 29

[v1] [I 335 5 App]

[v5]

[I33510App]

SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 381 29

Agora vem e como de homens e mulheres

de muitos prantos

noturnos rebentos trouxe agrave luz separando-

se o fogo destes ouve pois natildeo eacute mito sem

alvo e sem ciecircncia Inteiriccedilos primeiro (os) tipos de terra surgiam

de ambos de aacutegua e de forma brilhante

tendo parte estes fogo faziam subir

querendo ao semelhante chegar

nem ainda de membros amaacutevel forma

mostrando (eles)

Nem voz nem (tal) qual o membro

proacuteprio dos homens

(2000 Trad Joseacute Cavalcante de Souza)

(Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics31-B acessso em 03032010)

Segundo Clemence Ramnoux as operaccedilotildees artesanais constituem o modelo para a criaccedilatildeo as teacutecnicas de

ldquofusatildeo dos metais da combinaccedilatildeo de cores as receitas de panificaccedilatildeordquo configuram as noccedilotildees de ingredientes de mistura de proporccedilatildeo nas misturas e do artesatildeo fabricador Assim como um pintor pode com poucas

cores representar diversas formas de coisas variegadas assim tambeacutem a natureza pode criar todos os seres

naturais com poucos elementos (LONG 1999 p 160) O fogo emerge saltando em direccedilatildeo do Fogo do

alto levando ldquopequenas massas plaacutesticas feitas de terra com uma parte de calor e um lote

umidade Segundo a leitura de Ramnoux este esquema segue o padratildeo 3 + 1 trecircs lotes e um artesatildeo

(1968 p 187 ss) No mito de Protaacutegoras haacute trecircs elementos (terra fogo e elementos que se misturam aos

precedentes) e os deuses como artesatildeos 32 HESIOacuteDO Teogonia 511

68

ameaccediladora o homem no momento mesmo de sair de dentro da terra para a luz estaacute

inteiramente desprovido de capacidades

Eacute estabelecimento fixado pelo destino a saiacuteda do homem do seio da terra para a luz

(exieacutenai ek gḗs eis phōs Protaacutegoras 321c06-07) A ambiguidade da passagem anuncia a

duplicidade do existir humano que pressupotildee a saiacuteda da obscuridade do interior da terra

para a luz No Craacutetilo a personagem de Soacutecrates identifica a claridade seacutelas com a luz

phōs e por essa razatildeo a luz da lua eacute ao mesmo tempo nova e antiga sua luminosidade eacute

ambiacutegua por refletir a luz do sol (409b) A liga divina de fogo que surge para a luz eacute

ambiacutegua pois o estado de carecircncia dos homens anuncia a cataacutestrofe de seu

desaparecimento

A passagem da obscuridade da terra para a luz concatena uma sequecircncia

paradigmaacutetica de imagens e sugere uma mutaccedilatildeo no regime do ser Haacute a transposiccedilatildeo do

natildeo-ser atemporal mediado por uma geraccedilatildeo modeladora ateacute o ser e o devir Essa

sequecircncia eacute exemplar e narra como o homem veio a ser e por essa razatildeo funda e norteia

todo fazer toda praacutexis e todas as instituiccedilotildees poliacuteticas e ciacutevicas Eacute porque o homem foi

gerado por deuses sobrenaturais que a suma de suas condutas e praacuteticas pertence a um

tempo primordial As praacuteticas e instituiccedilotildees possuem sua razatildeo de ser porque na aurora do

tempo humano houve uma sequecircncia primordial de geraccedilatildeo e gestaccedilatildeo A modelagem

primordial constitui um modelo exemplar para todo fazer e toda fabricaccedilatildeo que remetem agraves

gestas operadas pelos deuses para a engendraccedilatildeo do koacutesmos e dos mortais A cosmogonia

primeva representa uma sequecircncia de imagens que configuram a passagem do khaacuteos

tenebroso matriz e Noite para a luz coacutesmica ou a passagem daquilo que natildeo existe o natildeo-

ser para o ser (ELIADE 1959 p 12-21)

69

Quando se trata de iniciar um neoacutefito na praacutexis poliacutetica o mito de emersatildeo e a

antropogonia do seio da terra re-atualiza o itineraacuterio complexo de accedilotildees que configuram a

passagem da obscuridade para a luz do sol A narrativa da criaccedilatildeo dos homens justifica o

ritual de refazer formar de criar uma nova situaccedilatildeo espiritual ou psiacutequica (ELIADE

1957 p 200) As imagens de uma iniciaccedilatildeo apontam para um novo iniacutecio mediante o qual

se anuncia a molda de um modo de ser superior da indistinccedilatildeo desordenada Nas imagens

antropogocircnicas o homem eacute modelado ele natildeo se faz a si mesmo Na origem do tempo

cronoloacutegico haacute uma accedilatildeo demiuacutergica que inscreve ordem em princiacutepios desordenados e

misturados accedilatildeo por conseguinte divina e produto de potecircncias invisiacuteveis Por outro lado

a iniciaccedilatildeo de um neoacutefito pressupotildee uma transmissatildeo operada por mestres de sabedoria

que se vincula e remonta a uma longa cadeia da tradiccedilatildeo ancestral Essa tradiccedilatildeo consolida-

se atraveacutes da transmissatildeo ritual que prepara o neoacutefito para um novo modo de ser mediante a

repeticcedilatildeo de gestas e imagens pertencentes a um cenaacuterio que natildeo pode ser descrito mas

somente narrado e dramatizado (ELIADE 1959 p 20)

O embate de Soacutecrates com o mestre de sabedoria Protaacutegoras dramatiza modos

concorrentes de interpretar e re-significar um acervo de saberes potecircncias crenccedilas afetos e

imagens religiosas em uma transposiccedilatildeo determinante para a mentalidade de um novo

gecircnero de vida e um novo tipo de homem Com isso Platatildeo coloca em questatildeo e em

combate singular transposiccedilotildees antagocircnicas de paideiacutea e paradigmas eacutetico-poliacuteticos para o

novo homem

Protaacutegoras transpotildee as iniciaccedilotildees e oraacuteculos das seitas de misteacuterio praticadas por

Orfeu e Museu para a atividade sofiacutestica33

(Protaacutegoras 316d08) A passagem da noite

trevosa para a luz do sol imagem da emergecircncia para um novo plano de ser eacute doravante

33

70

associada aos mestres de sabedoria cuja aparecircncia ocultava a verdadeira natureza do seu

saber e do seu poder Todas as modalidades de iniciaccedilotildees que conferem a possibilidade de

ascensatildeo aos planos superiores de humanidade satildeo no fim iniciaccedilotildees sofiacutesticas O mito de

retorno agraves origens eacute a fala razoaacutevel que consolida este postulado

A terra gḗ identifica-se com o uacutetero feminino e a gestaccedilatildeo gaicirca seria o nome

correto para geratriz gennḗteira e derivaria de gegennḗsthai ser engendrado (Craacutetilo

410c) A terra eacute matriz paradigmaacutetica para a gestaccedilatildeo e o nascimento

Ora eacute pela terra mais que pela mulher que eacute preciso receber tais

provas pois natildeo eacute a terra que imitou a mulher na concepccedilatildeo e na

gestaccedilatildeo mas eacute a mulher que imitou a terra

(Menexeno 238a 03-05)

A operaccedilatildeo fundidora do fogo com a terra expressa uma relaccedilatildeo solidaacuteria entre a

gestaccedilatildeo e o nascimento a partir da matildee terra e a metalurgia A gestaccedilatildeo ctocircnica constitui o

ato exemplar para a gestaccedilatildeo humana conjugaccedilatildeo solidaacuteria entre a moldagem metaluacutergica e

a sexualidade34

e nesse sentido a antropogonia se conjuga a uma ontogenia (ELIADE

1977 p 30)

Para assegurar a fusatildeo mediante o fogo primordial eacute preciso a intervenccedilatildeo do

artiacutefice vivo a forja dos homens pelo fogo eacute animada pelos deuses Mas as suas potecircncias

advecircm de mediadores que delimitam planos de ser distintos

A imprevidecircncia de Epimeteu suscita a aporiacutea impediente os homens estatildeo

desguarnecidos e desadornados diante do equiliacutebrio kosmeacutetico dos animais sem fala A

distribuiccedilatildeo das potecircncias aos mortais implica a sua determinaccedilatildeo O homem ao contraacuterio

34 Na menccedilatildeo de Simpliacutecio a Empeacutedocles (DK 71) haacute accedilatildeo artesanal operada por Afrodite que se assemelha agrave

de um pintor que mistura cores Terra aacutegua eacuteter e sol satildeo harmonizados numa mistura amorosa da qual

surgem as formas e as cores dos mortais As noccedilotildees de operaccedilatildeo mistura e harmonizaccedilatildeo se conjugam agrave

noccedilatildeo de forma visiacutevel como produto da accedilatildeo artesanal de Afrodite (RAMNOUX 1968 p 188-189) A

conotaccedilatildeo sexual eacute assimilada agrave operaccedilatildeo artiacutestica de mistura e produccedilatildeo de cores e formas visiacuteveis

Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics31-B

71

ndash desprovido de todas as potecircncias ndash eacute indeterminado Para compensar a falta desmedida

de Epimeteu eacute preciso um expediente ao mesmo tempo astucioso e sobrenatural Prometeu

natildeo tendo qualquer salvaccedilatildeo para os homens recorre ao instrumento divino do engenho

mecacircnico e furta o saber teacutecnico e o fogo de Hefestos e Athena35

Hefestos eacute o mestre do fogo e da luz (phaacuteeos hiacutestōr) o Brilhante (Phaicircstos) e

Athena eacute a inteligecircncia divina (Hatheonoacutea) a que tem inteligecircncia das coisas divinas (tagrave

theicirca nooucircsa)36

O domiacutenio do fogo evoca natildeo somente as imagens ligadas agrave inteligecircncia

teacutecnica mas indica a determinaccedilatildeo de um estatuto superior do ser que comporta um

aspecto maacutegico ou sobrenatural intriacutenseco a toda atividade fabricadora O ferreiro divino

portador do fogo aperfeiccediloa a obra dos deuses a organizaccedilatildeo do Koacutesmos e confere ao

homem a inteligecircncia que o distinguiraacute dos animais sem fala e a capacidade de apreender a

ordem coacutesmica (ELIADE 1977 p 65ss)

Prometeu sem ser visto entra oculto (lathōn eiseacuterkhethai) nas oficinas celestes

rouba o fogo e o presenteia aos homens Com isso mediante o saber portado pelo fogo os

homens adquirem as teacutecnicas e os meios para a manutenccedilatildeo da vida e para a proteccedilatildeo

contra as intempeacuteries naturais Se a dimensatildeo demiuacutergica permitiu ao homem superar sua

falta de determinaccedilotildees foi somente mediante as teacutecnicas que o homem descobriu a

possibilidade de agir livremente A eleutheria natildeo eacute um presente dos deuses (Protaacutegoras

312b) O homem soacute pode agir livremente pela capacidade antecipatoacuteria e valorativa

propiciada pelo caacutelculo do mais vantajoso e isso soacute ocorre porque ab initio ele eacute desprovido

de determinaccedilotildees no seu agir Ao contraacuterio dos animais cujo agir eacute preacute-determinado do

35

(Protaacutegoras 321c08-d01) 36 Craacutetilo 407b-c

72

nascimento ateacute a morte o homem eacute essencialmente indeterminado (GALIMBERTI 2009

p 2)

As artes suscitam ainda a demarcaccedilatildeo entre o estatuto divino e humano cuja

natureza ambiacutegua participa ao mesmo tempo do divino e do mortal37

O lote de participaccedilatildeo

e parentesco divino justifica a instauraccedilatildeo miacutetica do sacrifiacutecio e do culto aos deuses

mediante as estaacutetuas oferendas imageacuteticas de joalheria e elevaccedilatildeo de templos O lote de

participaccedilatildeo nos seres mortais determina a especificidade do uacutenico dos vivos zdōion que

pode nomear os deuses pela fala regrada

O esquema causal se esboccedila no mito de Protaacutegoras i) uma falta original a

imprevidecircncia de Epimeteu suscita uma situaccedilatildeo impediente ii) o quadro problemaacutetico

exige a busca da causa e o diagnoacutestico eacute feito por Prometeu iii) o mediador divino

mediante astuacutecia dolosa busca o expediente sobrenatural do fogo iv) o meio astucioso

teacutecnico eacute empregado e a cataacutestrofe remediada por um presente v) um novo estatuto eacute

determinado mas o dolo usurpador reclama nova retribuiccedilatildeo

Embora o saber teacutecnico salvaguarde a equipagem para a sobrevivecircncia natural os

homens natildeo obstante natildeo possuem o saber poliacutetico e a arte da guerra que participa da

poliacutetica Por essa razatildeo incapazes de dominar os instrumentos da guerra sucumbem diante

da forccedila dos animais e procuram agrupar-se em cidades para garantir a seguranccedila muacutetua

Todavia mostram-se igualmente destituiacutedos da philiacutea e acabam por cometer injusticcedilas

destruindo-se mutuamente A carecircncia da arte poliacutetica implica a incapacidade de seguranccedila

e salvaguarda da justiccedila necessaacuterias para a formaccedilatildeo de comunidades e cidades

37

(Protaacutegoras 322a04-08)

73

Todo presente exige o contra-presente a justa compensaccedilatildeo Em Hesiacuteodo o mito de

Prometeu esboccedila a narrativa na qual simultaneamente ocorre a separaccedilatildeo entre plano dos

deuses e o plano dos homens mortais mas tambeacutem entre o masculino e o feminino O

mito de Prometeu eacute tambeacutem o mito da primeira mulher Dom de todos os deuses artefato

moldado e adornado pela inteligecircncia oliacutempica Pandora eacute a contrapartida para a vida e o

fogo biacuteos e pyacuter Anti-pyacuter o contra-presente de Zeus instaura o poacutelo de um novo geacutenos o

feminino que demarca a ambiguidade humana Ao saber teacutecnico previdente e antecipatoacuterio

se contrapotildee a indefiniccedilatildeo dos males indefectiacuteveis e a espera indistinta de elpiacutes a

expectaccedilatildeo exclusivamente humana do bem indeterminado e natildeo dataacutevel38

(VERNANT

2005) Em Pandora equilibram-se o apelo irresistiacutevel do encanto da forma de virgem e da

graccedila determinaccedilotildees essenciais de Afrodite e Athena e a mentira conduta dissimulada e

olhar obliacutequo e traiccediloeiro do catildeo instilados por Hermes (HESIacuteODO 2006 v 59-85)

Mas no mito de Protaacutegoras se haacute uma polarizaccedilatildeo entre Hefestos e Athena opostos

divinos de saber e metalurgia teacutecnicas natildeo haacute por outro lado nenhuma menccedilatildeo a um

paacuterthenos o feminino no plano dos homens Por que Protaacutegoras rompe com a simetria de

contrapartidas da tradiccedilatildeo miacutetica Qual eacute a justa retribuiccedilatildeo para o dolo astucioso de

Prometeu O que estabelece definitivamente a natureza humana apoacutes a instrumentaccedilatildeo do

saber teacutecnico que simultaneamente distingue os homens dos animais e define a separaccedilatildeo

entre o plano dos deuses e o plano dos mortais Hermes mensageiro e arauto divino natildeo

retribui a fraude de ocultaccedilatildeo de Prometeu com a graccedila visiacutevel da mulher e com a

ambivalecircncia da mistura de bens males e incertezas caracteriacutesticos do biacuteos Em vez disso

opera a passagem para um novo plano de mediaccedilotildees

38 Beall (1991 p 367) conecta Elpiacutes com o auto-engano que nega a presenccedila visiacutevel dos males

74

O domiacutenio do fogo as artes metaluacutergicas e demiuacutergicas propiciadas pelo saber

teacutecnico natildeo encontram equivalentes simeacutetricos no plano da natureza Em vez do contra-

presente que estabelece o equiliacutebrio Protaacutegoras amplia a estrutura da narrativa para fundar

no registro da encantaccedilatildeo e do referencial absoluto das origens primordiais um novo plano

que se opotildee agrave natureza a poliacutetica Uma nova sequecircncia de accedilotildees emerge i) a injusticcedila

dolosa decorrente da carecircncia da arte poliacutetica anuncia uma situaccedilatildeo calamitosa ii) a

destruiccedilatildeo suscita a busca das causas e o diagnoacutestico iii) o mensageiro sobrenatural se vale

dos meios divinos astuciosamente forjados iv) os artifiacutecios divinos remediam a situaccedilatildeo

problemaacutetica v) os dolos subsequentes satildeo retribuiacutedos com a lei infaliacutevel de Zeus

Qual eacute a nova compensaccedilatildeo para o roubo oculto de Prometeu Pandora personifica a

ambiguidade feminina da natureza humana numa obra de arte divina concebida para ser

irresistiacutevel ao olhar Ao presente propiciado pela fraude oculta se contrapotildee o presente

concebido para ser visto como bem irresistiacutevel mas que esconde males invisiacuteveis No novo

plano de ser inaugurado por Protaacutegoras agrave fraude oculta se contrapotildee o par de presentes

essencialmente ligados ao olhar de todos aidōs e diacutekē

As accedilotildees de Zeus natildeo se desenrolam num combate singular de astuacutecias retribuiccedilatildeo

da hyacutebris desmedida O temor (deiacutedō) oliacutempico expressa a necessidade de manutenccedilatildeo da

ordem e simetria naturais e justifica a instauraccedilatildeo das condiccedilotildees primordiais para a

existecircncia da comunidade poliacutetica e de seus princiacutepios de determinaccedilatildeo

A sequecircncia de poacutelos opostos eacute homoacuteloga agrave sequecircncia de imagens do mito que

esboccedilam a natureza ontoloacutegica determinante do existir ndash ser ndash dos deuses e o natildeo-ser dos

mortais no princiacutepio os deuses eram e os mortais natildeo Ao par primordial corresponde uma

atividade mediadora que engendra novo par os deuses inscrevem inteligecircncia demiuacutergica

nos elementos primordiais inanimados terra elementos intermediaacuterios para a liga e fogo A

75

passagem do natildeo-ser para o ser eacute homoacuteloga agrave passagem do interior da terra para a luz do

sol imagem paradigmaacutetica da iniciaccedilatildeo

Surge assim a polarizaccedilatildeo entre inteligecircncia divina animada e elementos

inanimados destituiacutedos de inteligecircncia A mistura engendra a polarizaccedilatildeo entre deuses

imortais e seres mortais e instaura a separaccedilatildeo entre o tempo dos deuses e o tempo dos

mortais O regramento ordenado pressupotildee a distribuiccedilatildeo coacutesmica de potecircncias operada por

intermediaacuterios opostos divinos Prometeu e Epimeteu A imprevidecircncia e incapacidade de

antecipaccedilatildeo temporal de Epimeteu se opotildeem agrave astuacutecia engenhosa e antecipatoacuteria de

Prometeu A distribuiccedilatildeo desmedida das potecircncias aos animais salvaguarda a vida natural

mas determina a carecircncia completa de potecircncias para o homem

O estatuto humano estaacute sem lugar na oposiccedilatildeo entre imortais e mortais e a

determinaccedilatildeo exige a intervenccedilatildeo do fogo instrumento astuciosa e ocultamente

intermediado por Prometeu O estatuto humano implica a passagem da obscuridade da terra

para a luz fixada pela necessidade do destino O fogo teacutecnico dolosamente artificiado

permite o acabamento da iniciaccedilatildeo primordial que engendra o ser do homem e compensa a

sua impotecircncia original mas se opotildee ao fogo das forjas oliacutempicas Haacute entatildeo a oposiccedilatildeo

entre uma demiurgia divina que inscreve inteligecircncia no desregramento inanimado e a

demiurgia teacutecnica humana cuja funccedilatildeo eacute instrumental e mediatizada Enquanto a demiurgia

divina cumpre a finalizaccedilatildeo de determinaccedilotildees temporais absolutas a demiurgia humana

instrumentaliza recursos na indeterminaccedilatildeo da temporalidade do devir Ambas operam

iniciaccedilotildees opostas a iniciaccedilatildeo divina traz o homem agrave existecircncia pela saiacuteda do seio escuro

da terra para a luz a iniciaccedilatildeo nas artes humanas retira o homem da ignoracircncia trevosa dos

animais instaura seu parentesco com o plano dos deuses e demarca suficientemente

76

(hikanoacutes) a separaccedilatildeo entre o detentor do saber e os profanos os idioacutetai (Protaacutegoras

322c07)

A demiurgia humana e o domiacutenio do fogo definem o estatuto intermediaacuterio dos

homens diante dos deuses e animais A natureza do homem participa ao mesmo tempo do

divino e do mortal As teacutecnicas instauram as relaccedilotildees entre os planos e inauguram o culto o

sacrifiacutecio e os artefatos que definem os opostos entre visiacutevel e invisiacutevel As estaacutetuas

aacutegalmata e templos delimitam no plano visiacutevel a homologia estrutural entre o sagrado e o

profano o tempo dos deuses e devir dos mortais a presenccedila visiacutevel da imagem do deus

invisiacutevel e o reconhecimento invisiacutevel da inteligecircncia do deus presente

Entretanto ponte de mediaccedilatildeo entre o humano e o divino a inteligecircncia teacutecnica natildeo

salvaguarda a vida da violecircncia dos animais e da injusticcedila humana Intermediaacuterio entre

poacutelos opostos o plano dos homens requer para o seu perfeito acabamento a intervenccedilatildeo

dos princiacutepios divinos providenciados por novo mensageiro mediador Para compensar a

distribuiccedilatildeo fraudulenta oculta e desigual da participaccedilatildeo no saber teacutecnico Hermes com

equidade reparte abertamente aidōs e diacutekē entre os homens e arauto dos deuses proclama

em nome de Zeus suprema lei a de levar agrave morte como praga da cidade aquele que natildeo

tiver a potecircncia de participar de aidōs e diacutekē

O par aidōs e diacutekē natildeo constitui somente princiacutepio de possibilidade da comunidade

poliacutetica e existir das poacuteleis Ele eacute o contra-presente que compensa o furto e o dolo eacute a

contrapartida visiacutevel para a astuacutecia invisiacutevel Mas se Pandora eacute a personificaccedilatildeo

ambivalente do bem irresistiacutevel da graccedila divina visiacutevel e dos males indeterminados

invisiacuteveis qual deve ser a ocultaccedilatildeo sob o bem aparente de aidōs e diacutekē Se Pandora eacute

essencialmente modelagem de opostos visiacuteveis e invisiacuteveis qual eacute a oposiccedilatildeo essencial

subjacente a aidōs e diacutekē

77

Luc Brisson (2003 p 141-166) seguindo a majestosa esteira de Georges Dumeacutezil

desenvolve no mito encenado pela personagem platocircnica de Protaacutegoras uma interpretaccedilatildeo

de tonalidade positivista calcada numa estrutura tri-funcional A partir dos dois eixos

basilares da natureza e cultura Brisson distingue pares de opostos nos eixos seguranccedila

equipamentos e alimentaccedilatildeo As trecircs oposiccedilotildees fundamentais seriam deusesmortais

homensanimais teacutecnica demiuacutergicateacutecnica poliacutetica

I ndash Oposiccedilatildeo deuses mortais ndash Desse poacutelo derivam seres com existecircncia

independente e natildeo derivada seres com existecircncia dependente e derivada Satildeo enviados

delegados para distribuir poderes e terminar a organizaccedilatildeo Haacute uma triparticcedilatildeo divina Zeus

(soberania arte poliacutetica) Hefesto e Atena (detentores da arte do fogo e outras artes) A

triparticcedilatildeo relaciona-se com uma triparticcedilatildeo espacial Olimpoacroacutepolepeacute da elevaccedilatildeo Os

mortais devem sua existecircncia aos deuses

2 ndash Oposiccedilatildeo homens animais ndash O mundo dos animais eacute o reverso do mundo dos

homens animais desprovidos de razatildeo homens racionais que devem viver na cidade

determinismo sabedoria praacutetica O mundo dos animais implica um equiliacutebrio fechado e

suas necessidades satildeo satisfeitas o determinismo substitui a razatildeo Os homens

caracterizam-se pela condiccedilatildeo precaacuteria e vulnerabilidade que implica a indeterminaccedilatildeo das

necessidades Haacute a exigecircncia de mediaccedilatildeo do saber teacutecnico e da razatildeo A sobrevivecircncia

exige o domiacutenio da teacutecnica poliacutetica e da teacutecnica militar o que implica o uso irrestrito da

teacutecnica demiuacutergica O plano do possiacutevel compensa a carecircncia do plano do que eacute

determinado A razatildeo supera o determinismo

78

3 ndash Oposiccedilatildeo teacutecnica demiuacutergica teacutecnica poliacutetica -

Deste poacutelo surge a analogia fundamental modeterminis

razatildeo

animais

homens O saber

teacutecnico implica a oposiccedilatildeo demiurgiapoliacutetica O mundo dos deuses eacute tripartite e dele deriva

um reflexo funcional na cidade A cidade pressupotildee a poliacutetica que inclui a arte militar A

cidade exige o setor produtivo que abarca demiurgia e agricultura As necessidades

humanas satildeo tambeacutem tripartites seguranccedila equipamentos alimentaccedilatildeo As necessidades

humanas satildeo mediadas pelas teacutecnicas que garantem os trecircs planos A seguranccedila eacute absorvida

na Poliacutetica (guardas de Zeus) A funccedilatildeo produtiva se assimila agrave demiurgia A triparticcedilatildeo eacute

reduzida agrave oposiccedilatildeo demiurgiapoliacutetica e eacute sustentada pelos mediadores de Zeus Prometeu

(demiurgia) e Hermes (poliacutetica) O fogo simboliza a arte demiuacutergica e estabelece um

parentesco com o divino atraveacutes do culto uso do fogo sacrifical e a relaccedilatildeo entre o humano

e o divino A demiurgia implica especializaccedilatildeo de funccedilotildees e a divisatildeo do trabalho A

divisatildeo por sua vez acarreta a incapacidade de vida comunitaacuteria e a dispersatildeo Por isso

Zeus envia Hermes para levar aidōs e diacutekē (pudor e justiccedila) que se opotildeem agrave potecircncia

demiuacutergica a integraccedilatildeo se opotildee agrave divisatildeo A fundamentaccedilatildeo da existecircncia poliacutetica da

cidade depende da integraccedilatildeo entre todos Aidōs e diacutekē satildeo distribuiacutedos por Hermes de igual

maneira entre todos ao passo que a demiurgia representa um saber teacutecnico que cabe a

pequeno nuacutemero de especialistas Quem natildeo participar das duas virtudes deve ser excluiacutedo

e punido como se fosse uma doenccedila As relaccedilotildees cultuais estabelecem uma uniatildeo entre os

homens e os deuses mas estas natildeo satildeo suficientes para a uniatildeo dos homens entre si O fogo

teacutecnico eacute fator de divisatildeo e natildeo de uniatildeo A justiccedila no sentido largo para o cumprimento

das regras exige um sentimento iacutentimo de contenccedilatildeo que leva em conta a opiniatildeo do outro e

que confere vida ao direito Enquanto a demiurgia abarca a necessidade de equipamentos e

79

alimentaccedilatildeo a poliacutetica institui laccedilos de uniatildeo e seguranccedila Segundo Brisson o mito do

Protaacutegoras representa o surgimento da cidade e funda sua divisatildeo fundamental a partir da

oposiccedilatildeo demiurgia poliacutetica Tal divisatildeo eacute descrita como natural e espelha a oposiccedilatildeo

Natureza Cultura

Deuses

Mortais Homens

Animais Teacutecnicas militar e poliacutetica

Demiurgia

As oposiccedilotildees destacadas por Brisson embora esclarecedoras parecem

condicionadas agrave concepccedilatildeo positiva do Direito elaborada por Louis Gernet

Diacutekē eacute a justiccedila tal qual ela se manifesta antes de tudo no

julgamento ndash e por conseguinte na condenaccedilatildeo na execuccedilatildeo ndash e

tambeacutem por referecircncia impliacutecita e expliacutecita a um outro termo algo

como o jus strictum () Pode-se dizer que (aidoacutes) designa um

sentimento de respeito ou de moderaccedilatildeo que se aproxima pelo

menos da reverecircncia religiosa ndash que de fato pode ter por objeto a

divindade ndash mas vale essencialmente na ordem das relaccedilotildees

humanas onde ele comanda certas abstenccedilotildees ou certas atitudes

diante de um parente de um ser eminente em dignidade de um

suplicante sentimento social e moral jaacute que aidoacutes eacute

simultaneamente zelosa com a opiniatildeo puacuteblica da qual ela aparece

muitas vezes como a contrapartida e preocupada em um sentido de

bom grado aristocraacutetico com o que o sujeito deve a si mesmo

(GERNET 1982 p 14-15)

Em contrapartida ao aspecto afetivo que emana da opiniatildeo coletiva Walter Otto

realccedila a interpretaccedilatildeo de que originariamente Aidoacutes natildeo designa ldquoa vergonha de algo que

faz enrubescer mas a apreensatildeo sagrada face ao intocaacutevel a delicadeza do coraccedilatildeo e do

espiacuterito as consideraccedilotildees o respeito e na vida sexual o silecircncio e a vida da virgemrdquo

(1995 p 81) Todas as acepccedilotildees de Aidoacutes seriam abarcadas pelo charme ambivalente da

80

figura divina que eacute ao mesmo tempo respeitaacutevel e respeitoso puro e a piedosa apreensatildeo

diante daquilo que eacute puro

Derivado de aiacutedomai (que indica o respeito a um deus e laiciza-se no emprego

juriacutedico do perdatildeo ao assassiacutenio involuntaacuterio) Aidoacutes significa o sentimento de honra e

neacutemesis o temor da infacircmia de outro raramente no sentido ativo de tiacutemido e taacute aidoicirca que

designa as partes vergonhosas De Aidoacutes foi tirado 1) aidoicircos ndash divindades ou pessoas

respeitaacuteveis e 2) o composto anaidḗs impudecircncia (CHANTRAINE 1999 p 31) A palavra

aidoicirca originalmente designativa da genitaacutelia origina a palavra que designa a vergonha A

experiecircncia baacutesica da vergonha segundo B Williams (1993 p 78-80) eacute a ldquode ser visto

inapropriadamente pelas pessoas erradas na condiccedilatildeo erradardquo Tal experiecircncia eacute

diretamente conectada com a nudez sobretudo em conexotildees sexuais O afeto que decorre

da inadequaccedilatildeo decorrente da violaccedilatildeo da intimidade suscita reaccedilotildees imediatas de

evitamento Evitar a experiecircncia intoleraacutevel da vergonha serve para um propoacutesito antecipar

o afeto que se padeceria sob a exposiccedilatildeo ao olhar alheio A violaccedilatildeo de aidoacutes implica o par

reflexivo de neacutemesis uma reaccedilatildeo que varia do choque do ressentimento ateacute a justa

indignaccedilatildeo A vergonha pode ser antecipatoacuteria de uma exposiccedilatildeo possiacutevel prospectiva ou

derivada da exposiccedilatildeo irreversiacutevel agrave humilhaccedilatildeo retrospectiva

Por outro lado se o enfoque de Otto que vincula Aidoacutes ao temor reverente estiver

correto o emprego poliacutetico no contexto do Protaacutegoras indica uma transposiccedilatildeo semacircntica

para um afeto dependente sobretudo do olhar coletivo ainda que seja sancionada pelo

respeito devido a uma phḗmē declaraccedilatildeo divina de Zeus A mutaccedilatildeo da acepccedilatildeo do termo

indica a passagem de um temor religioso exteriorizado para uma vergonha interiorizada

resultante da coerccedilatildeo da opiniatildeo coletiva

81

A leitura que Brisson faz do mito tem como corolaacuterio o reconhecimento de que a

Poliacutetica eacute natildeo somente uma teacutecnica superior mas ldquoa uacutenica que eacute outorgada pelos deuses e a

uacutenica teacutecnica positiva o que implica que o ensino desta teacutecnica seja ao mesmo tempo o

mais elevado e o uacutenico positivordquo O que transpareceria insoacutelito em Platatildeo seria o fato de ele

ldquonatildeo dar nenhuma atenccedilatildeo agraves virtudes que o indiviacuteduo enquanto indiviacuteduo deve praticar

Soacute contam para ele as virtudes cujo exerciacutecio deve permitir a um indiviacuteduo encontrar seu

lugar numa sociedade harmoniosa onde natildeo interveacutem nenhuma mudanccedilardquo (2003 p 166)

Entretanto como observa Leacutevi-Strauss a maior oposiccedilatildeo que se observa em

estruturas miacuteticas ocorre no plano cosmoloacutegico que expressa a transcendecircncia insuperaacutevel

de uma realidade em relaccedilatildeo ao mundo percebido (1993 p 152-205) A antropogonia de

Protaacutegoras eacute tambeacutem uma cosmologia cuja funccedilatildeo mais marcante eacute da ordem de algo que

vem a ser

Ao se colocar como mestre de excelecircncia poliacutetica que se diferencia dos demais que

ensinam disciplinas teacutecnicas comuns como caacutelculo astronomia e muacutesica Protaacutegoras

afirma o itineraacuterio de uma nova modalidade de iniciaccedilatildeo quem recebe suas liccedilotildees torna-se

melhor a cada dia e sempre recebe acreacutescimos em direccedilatildeo ao melhor (aeigrave epigrave tograve beacuteltion

epididoacutenai 318a) Protaacutegoras transpotildee as antigas iniciaccedilotildees de Orfeu e Museu para o

itineraacuterio ritual de progredir em direccedilatildeo ao melhor e adquirir um novo estatuto de ser A

finalidade de suas liccedilotildees eacute desenvolver os dons naturais de que todos participam e levaacute-los

ao melhor acabamento criando um gecircnero superior de homem num novo plano de ser

Assim como os ritos das teletaiacute operam a repeticcedilatildeo coacutesmica dos atos primordiais e um

retorno vivido agraves origens constitutivas da realidade presente assim tambeacutem o rito do seu

ensino reproduz a estrutura de imagens de seu mito Protaacutegoras aparece como o novo

mensageiro divino o portador do fogo ou o arauto que eacute depositaacuterio dos instrumentos

82

oliacutempicos salvaguardas para a vida e condiccedilatildeo de organizaccedilatildeo da cidade Protaacutegoras eacute um

novo Hermes e seu ensino eacute ferramenta divina que eleva o homem e o aproxima do plano

dos deuses imortais Mas para isso eacute preciso aperfeiccediloar-se no exerciacutecio de sua proacutepria

concepccedilatildeo de aidōs e diacutekē

Quais satildeo as polarizaccedilotildees condensadas no par miacutetico aidōs e diacutekē Ambos satildeo

determinaccedilotildees de Zeus personificaccedilatildeo da soberania acompanhadas por lei suprema

inexoraacutevel Aleacutem disso satildeo os constituintes primordiais que possibilitam a existecircncia das

comunidades poliacuteticas Mas assim como Pandora compotildee modelaccedilatildeo de opostos do

visiacutevel bem aparente e dos males invisiacuteveis ocultos da determinaccedilatildeo maacutexima da forma de

virgem e da indeterminaccedilatildeo imprevisiacutevel aidōs e diacutekē devem representar compensaccedilatildeo

simeacutetrica para a potecircncia piacuterica da demiurgia

Quais satildeo as caracteriacutesticas intriacutensecas agraves teacutekhnai Na delineaccedilatildeo das imagens do

mito as teacutekhnai surgem como resultado da potecircncia demiuacutergica aportada pelo fogo Elas

satildeo o resultado de um dolo oculto da accedilatildeo fraudulenta impermeaacutevel ao olhar Aleacutem disso

caracterizam-se pela participaccedilatildeo desigual dos homens Sua reparticcedilatildeo foi feita de modo

que um uacutenico homem que possui a arte da medicina eacute suficiente para um grande nuacutemero de

profanos39

Haacute pois uma relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que confere o saber teacutecnico40

Eacute por

participar do saber teacutecnico e pelo domiacutenio do fogo que cada demiurgo pode iniciar-se em

sua especificidade que o distingue dos profanos idioacutetais A participaccedilatildeo desigual engendra

39

(Protaacutegoras 322c06-07) 40 Karl Reinhardt (2007 p 51 52) chama a atenccedilatildeo para o fato de que o mito narrado por Protaacutegoras suscita o

gosto a delicadeza o divertimento mas natildeo faz nenhuma menccedilatildeo ao tema da alma A diferenccedila entre um

mito narrado por um Sofista e o mito filosoacutefico reside nessa negaccedilatildeo da alma e do delineamento negativo que

Platatildeo esboccedila da figura do Sofista Para que Platatildeo consignasse ldquoseu coraccedilatildeordquo a um mito ldquoseria necessaacuteria

uma conversatildeo uma transformaccedilatildeo de sirdquo Contudo o que Reinhardt chama de ldquoconversatildeordquo estaacute jaacute ingresso

na oposiccedilatildeo entre a concepccedilatildeo protagoriana de teacutekhne ndash e sua correspondente iniciaccedilatildeo demiuacutergica ndash e a

iniciaccedilatildeo ao Ser poliacutetico

83

os opostos dēmiourgoi e idioacutetais que reproduzem no plano do devir as oposiccedilotildees

cosmoloacutegicas entre deuses e mortais sagrado e profano inteligecircncia e ausecircncia de

inteligecircncia Aleacutem disso as teacutecnicas instrumentalizam a violecircncia e a morte Depois do

domiacutenio do fogo os homens puderam forjar instrumentos para a caccedila mas tambeacutem

passaram a destruir-se mutuamente

Agrave participaccedilatildeo desigual na potecircncia das artes Hermes distribui de maneira

equacircnime aidōs e diacutekē como potecircncias definidoras do estatuto humano Todo aquele que

natildeo puder participar delas deve ser morto como peste A natildeo participaccedilatildeo no par de

potecircncias implica a exclusatildeo da determinaccedilatildeo essencial para a formaccedilatildeo das cidades e por

conseguinte da proacutepria humanidade como um todo A ausecircncia de aidōs e diacutekē representa a

desumanizaccedilatildeo a perda da determinaccedilatildeo essencial que torna possiacutevel que os homens

convivam sem se destruiacuterem mutuamente Mais do que mera forccedila de integraccedilatildeo como

afirma Brisson aidōs e diacutekē determinam a existecircncia do homem como ser poliacutetico e por

conseguinte da existecircncia da humanidade toda Ademais Hermes distribui as potecircncias

determinantes com a sanccedilatildeo aberta de Zeus em oposiccedilatildeo ao furto oculto de Prometeu A

participaccedilatildeo nessas potecircncias essenciais implica por consequecircncia a exposiccedilatildeo ao olhar

coletivo Agrave inteligecircncia teacutecnica fraudulenta e oculta que resulta na destruiccedilatildeo de todos por

todos se opotildee a participaccedilatildeo essencial em aidōs e diacutekē que pressupotildee o olhar de todos

sobre todos Desse modo pode-se destacar a oposiccedilatildeo entre aquilo que eacute recocircndito ao olhar

e aquilo que exige o olhar de todos sobre todos A ocultaccedilatildeo ao olhar acarreta a destruiccedilatildeo

muacutetua Os homens cometiam injusticcedilas uns aos outros por natildeo possuiacuterem a teacutekhnē poliacutetica

cuja ausecircncia configura um quadro de violecircncia muacutetua (ēdiacutekoun allḗlous haacutete ouk eacutekhontes

tḗn politikḗn teacutekhnēn 322b08) O olhar de todos sobre todos acarreta a renuacutencia ou

impedimento ao uso da violecircncia Ao oacutedio oculto se opotildee a philiacutea manifesta

84

A existecircncia da coletividade humana depende da associaccedilatildeo propiciada pela philiacutea e

da capacidade de cooperaccedilatildeo organizada O plano humano abarca duas estruturas coletivas

que se desdobram em dois mundos o do interior da cidade e o do exterior o mundo da

philiacutea e o mundo da morte (BURKERT 2005 p 31)

Mas quais satildeo as determinaccedilotildees mais distintivas de aidōs e diacutekē41

Em primeiro

lugar assim como a participaccedilatildeo na sabedoria teacutecnica e o domiacutenio do fogo constituem

potecircncias essenciais para a existecircncia do gecircnero humano o par de opostos compensatoacuterios

instituiacutedo por Zeus constitui condiccedilotildees de determinaccedilatildeo da existecircncia dos homens em

conviacutevio nas poacuteleis Tais determinaccedilotildees se opotildeem agraves demais teacutekhnai pela igualdade

participativa e pela abertura ao olhar coletivo Elas abarcam simultaneamente os afetos

vinculados ao olhar e agrave opiniatildeo coletiva e agrave retribuiccedilatildeo ineludiacutevel ao dolo Zeus

efetivamente daacute justiccedila aos homens condiccedilatildeo para a existecircncia da philiacutea o viacutenculo afetivo

determinante para a vida comum e exigecircncia de retribuiccedilatildeo divina que estabelece o caraacuteter

absoluto da consecuccedilatildeo infaliacutevel agrave accedilatildeo poliacutetica

Mas o par aidōs e diacutekē eacute inextricaacutevel dos afetos que suscita Na fundaccedilatildeo mesma da

existecircncia cosmoloacutegica das cidades subjazem afetos psiacutequicos Haacute uma homologia

estrutural entre as condiccedilotildees afetivas que possibilitam a existecircncia das cidades e impedem a

41

Sahonhouse faz um levantamento das traduccedilotildees sobre o termo no Protaacutegoras ldquoGuthrie traduz

como respeito pelos outros e respeito pelos companheirosW C Taylor como consciecircncia Sinclair como

dececircncia Cropsey o descreve como um complexo amaacutelgama entre respeito e susceptibilidade agrave vergonha ou

desgraccedila Bartlett o traduz como vergonha e acrescenta as notas de temor respeitoso e reverecircncia (2008 p 63

n 9) Segundo Douglas Cairns o conceito de honra nunca esteve afastado da avaliaccedilatildeo daquilo que eacute

constitutivo em tanto no que diz respeito agrave proacutepria honra de algueacutem ou status como no

reconhecimento das exigecircncias de se honrar os outros como algo que deve inibir as proacuteprias accedilotildees de algueacutem

Assim os diversos usos conferem unidade ao termo Ele pode indicar por exemplo vergonha diante da

proacutepria falha ou humilhaccedilatildeo embaraccedilo social inibiccedilatildeo em agir por medo do que os outros vatildeo dizer e

respeito diante do estatuto dos outros ou ainda para legitimar exigecircncias para tratar bem os hoacutespedes

suplicantes Todos os sentidos compartilham o foco no balanccedilo apropriado entre a proacutepria honra de algueacutem e

a honra dos outros seria uma emoccedilatildeo que cobre tanto o sentido de vergonha como de respeito e foca

simultaneamente a proacutepria honra como a dos outros (CAIRNS 1993)

85

destruiccedilatildeo muacutetua dos homens A homologaccedilatildeo eacute suscitada pelos afetos que constituem a

determinaccedilatildeo de homens e cidades

Se o homem eacute a medida de todas as coisas das que satildeo como satildeo e das que natildeo satildeo

como natildeo satildeo42

haacute todavia uma norma divina absoluta que determina o criteacuterio de que o

afeto determinante da philiacutea seja remetido ao olhar aberto coletivo e agrave retribuiccedilatildeo infaliacutevel

que se segue agraves accedilotildees injustas O tatildeo celebrado relativismo de Protaacutegoras deriva de norma

divina e por conseguinte absoluta que institui a medida do olhar de todos sobre todos

condiccedilatildeo poliacutetica da convivecircncia

O olhar muacutetuo configura afetos restritivos cuja funccedilatildeo primaacuteria consiste em

contrabalanccedilar os afetos violentos que se expressam em accedilotildees injustas e na violecircncia

destrutiva Tais afetos levam em conta o olhar e por conseguinte estatildeo na ordem

constitutiva da alteridade do levar em conta a existecircncia do olhar alheio como outro de si

A desconsideraccedilatildeo ao olhar implica a retribuiccedilatildeo punitiva como contrapartida causal para a

violaccedilatildeo deste princiacutepio de accedilatildeo afetivo que eacute tambeacutem o princiacutepio da accedilatildeo valorativa A

teacutecnica poliacutetica eacute primordialmente a teacutecnica valorativa da alteridade Ela estabelece a

medida pela qual o homem eacute meacutetron o olhar aberto que define a accedilatildeo aceitaacutevel na cidade

Como afirma Saxonhouse o conhecimento da desgraccedila implicada pela transgressatildeo

desses limites surge somente a partir das interaccedilotildees com os outros A vergonha dissolve

aquele que desconhece e natildeo reverencia os costumes e desconsidera as opiniotildees da

coletividade de seu entorno A irreverecircncia para com o olhar do outro eacute incompatiacutevel com a

vergonha (SAXONHOUSE 2008 p 63)

42

Protaacutegoras 80 B 1 DK SEXTUS EMPIRICUS adv math VII 60 Disponiacutevel em

httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics80-B

(Teeteto 160e09)

86

Aidōs e diacutekē compotildeem os afetos que inibem os impulsos para a morte e para a

destruiccedilatildeo e implicam as accedilotildees retribuidoras absolutas para a violecircncia cometida Se a

cidade e a comunidade poliacutetica existem eacute porque aidōs e diacutekē satildeo os princiacutepios que

possibilitam a coexistecircncia artificial entre os homens a partir da diferenciaccedilatildeo das accedilotildees

rudimentares que terminavam na violecircncia destrutiva Aidōs e diacutekē satildeo princiacutepios de

inibiccedilatildeo primordiais ao impulso para matar Eles emergem diretamente do temor que Zeus

experimenta ao prever a destruiccedilatildeo humana Mas eacute preciso ainda acrescentar a educaccedilatildeo

para que os homens tenham seu completo acabamento e possam conviver vinculados por

um afeto de pertenccedila muacutetua

Para cumprir seu papel ao mesmo tempo de caccediladores e guerreiros protetores da

polis os homens precisam conciliar a coragem para afrontar os perigos e a confiabilidade

exigida pela amizade Eacute preciso a previdecircncia astuciosa que permite a renuacutencia agrave satisfaccedilatildeo

do desejo imediato o domiacutenio da palavra a demiurgia das teacutecnicas manuais e instrumentais

para a forja de armas e ferramentas As accedilotildees humanas satildeo regradas artificialmente por uma

dupla tensatildeo de opostos o uso das armas e os afetos destrutivos devem ser dirigidos para

fora da cidade e o afeto integrador da philiacutea deve manter a coesatildeo coletiva interna e

amalgamar a unidade ciacutevica Aidōs e diacutekē conciliam em tensatildeo o amor e a morte Se a

vergonha eacute o afeto decorrente da transgressatildeo ao temor respeitoso que delimita a existecircncia

ciacutevica pela philiacutea as leis implicadas por diacutekē guiam e regulam os afetos destrutivos a

previsatildeo teacutecnica e a adaptabilidade para o proveito coletivo para o melhor do homem

como medida de todas as coisas Diacutekē implica que para ser medida de todas as coisas o

homem deva submeter-se agraves leis de modo que a violecircncia seja sancionada pela arte da

guerra na exterioridade e interdita pela poliacutetica no domiacutenio da poacutelis O que configura a accedilatildeo

heroacuteica num domiacutenio por ser necessaacuterio eacute absolutamente interdito em outro O homem

87

medida submetido agrave diacutekē eacute aquele cujas gestas heroacuteicas de um plano satildeo accedilotildees criminaacuteveis

em outro noacutesos peste da cidade

A concepccedilatildeo de diacutekē como dom compartilhado e determinaccedilatildeo do gecircnero humano

ultrapassa a noccedilatildeo primitiva ligada a uma ordem coacutesmica cujo equiliacutebrio exige a

compensaccedilatildeo de opostos A ordem da natureza associa-se agrave noccedilatildeo religiosa de um tempo

perioacutedico A adikiacutea se expia afirma Anaximandro segundo a ordem do tempo43

Pois donde a geraccedilatildeo eacute para os seres eacute para onde tambeacutem a

corrupccedilatildeo se gera segundo o necessaacuterio pois datildeo eles mesmos

justiccedila e deferecircncia uns aos outros pela injusticcedila segundo a

ordenaccedilatildeo do tempo

Aidōs e diacutekē eacute um par de opostos em tensatildeo A paz interna que deve reinar no seio

da cidade pressupotildee os limites da norma da ordem ciacutevica e os limites impostos pelos

afetos que levam em conta o olhar coletivo e a dissoluccedilatildeo afetiva inexoraacutevel que se segue agrave

violaccedilatildeo desses limites O estabelecimento desses limites suscita a dissoluccedilatildeo intriacutenseca agrave

vergonha ao medo a inibiccedilatildeo e a culpabilidade mas fora do centro ciacutevico as barreiras satildeo

ordenadamente levantadas pela arte da guerra dessacralizaccedilatildeo da violecircncia pelo uso das

armas a philiacutea se equilibra no seu oposto o oacutedio A comunidade poliacutetica assenta-se no

amor mas tambeacutem no sangue e na morte

A gecircnese da ordem poliacutetica da cidade inclui o seu elemento contraacuterio em tensatildeo

permanente A vergonha e a culpabilidade que emergem desta tensatildeo exigem desejo de

compensaccedilatildeo e reparaccedilatildeo que soacute pode efetivar-se no itineraacuterio de um acabamento em

direccedilatildeo ao melhor prometido pela educaccedilatildeo (BURKERT 2005 p 30-34)

43

DK 1 SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 24 13 Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics12-B

acesso em 042010 Traduccedilatildeo de Cavalcante com ligeira modificaccedilatildeo

88

Todavia para Platatildeo se o valor supremo do homem depende do olhar coletivo

entatildeo a excelecircncia deve se moldar a partir da exterioridade aberta que configura os afetos

ligados a aidoacutes A formaccedilatildeo poliacutetica passa a ser assim uma iniciaccedilatildeo agrave teacutecnica de domiacutenio

do olhar e da opiniatildeo teacutecnica da exterioridade cambiante que valora todas as coisas a partir

do aacutentrōpos em detrimento do seautoacuten do si mesmo teacutecnica que ganha o prestiacutegio na

cidade mas perde a alma

A encenaccedilatildeo dramaacutetica do Protaacutegoras eacute a miacutemesis de uma iniciaccedilatildeo nos misteacuterios

que coloca em perigo a alma44

O inventaacuterio histoacuterico das iniciaccedilotildees e misteacuterios

empreendido por Walter Burkert (1993 527-577) permite a distinccedilatildeo dos elementos

alusivos da encenaccedilatildeo dramaacutetica do Protaacutegoras O jovem Hipoacutecrates desejoso de iniciar-se

nos misteacuterios da praacutetica da sabedoria45

pretende receber um ensino transmitido por um

guia embora natildeo saiba o que dizer sobre o seu conteuacutedo efetivamente inexprimiacutevel

anaacutelogo do aacuterreton o segredo dos misteacuterios Protaacutegoras aparece como um guia um

mystagogos a quem Hipoacutecrates confiaraacute sua alma esperando adquirir um novo estatuto e

experimenta simultaneamente o medo proacuteprio ao grande perigo de expor sua alma ao

desconhecido e a promessa de uma nova realidade radiante O questionamento eroacutetesis

socraacutetico induz agrave revelaccedilatildeo de que o desejo pelo destaque e excelecircncia poliacutetica eacute

incompatiacutevel com a vergonha de aparecer ao olhar puacuteblico com o estatuto e desvalor de um

sofista em meio ao lusco-fusco do alvorecer que se anuncia Hipoacutecrates manifesta

fisicamente o sinal inequiacutevoco da vergonha enrubesce (Protaacutegoras 312a)

44

(Protaacutegoras 313a01-02) 45 (312d05) fabricante de praacuteticas do saber equivalente ao

saacutebio (LIDDELL SCOTT 1997 p 554)

89

Como profano suplicante o recipiendaacuterio protomyacutestes se dirige agrave casa do rico

Caacutelias equivalente do telesteacuterion templo das iniciaccedilotildees ou da caverna siacutembolo secreto

do oculto e do transcendente (BURKERT 1993 p 555)

Apoacutes percorrer a rota de peregrinaccedilatildeo o candidato se depara com a porta que separa

o sagrado do profano A passagem pela porta exige a passagem pelo seu guardiatildeo um

eunuco que parodia os temiacuteveis guardas de Zeus (Protaacutegoras 320d) ou os guardiotildees

postados agrave entrada do Hades (BURKERT 1993 p 558) Soacutecrates como espeacutecie de

hierophanteacutes que iraacute mostrar as coisas sagradas termina o assunto profano impuro antes de

bater agrave porta pois natildeo eacute permitido misturar o impuro ao puro

A entrada eacute vetada porque o guarda os toma por sofistas e fecha violentamente a

porta A porta eacute a imagem que abarca a correspondecircncia estrutural entre modalidades

muacuteltiplas de passagem das trevas para a luz do sol da preexistecircncia do homem para a

humanidade da vida para a morte e do novo nascimento para um estatuto de ser mais

elevado A abertura da porta torna possiacutevel a passagem para um modo de ser cosmicizado

pois todo Koacutesmos pressupotildee a passagem Uma vez que o homem vem agrave luz ele natildeo eacute um

ser acabado Eacute preciso repetir o vir a ser primordial e os vaacuterios planos de determinaccedilotildees

originaacuterias mediante ritos de passagem de iniciaccedilotildees sucessivas que propiciam a ascensatildeo

a modalidades mais elevadas de ser (ELIADE 1965 p 153)

O jovem Hipoacutecrates pretendia buscar o mediador da transmissatildeo do ensino

iniciaacutetico secreto que o levaria ao acabamento do homem pleno ao progresso gradativo em

direccedilatildeo ao melhor agrave melhor disposiccedilatildeo dentre a infinidade de aparecircncias que configuram a

medida de cada um dos homens A iniciaccedilatildeo protagoriana opera a mudanccedila em direccedilatildeo ao

90

melhor mudanccedila no estatuto do ser transformando metabaacutellō e metabletḗon46

Assim

como o meacutedico mediante os phaacutermakoi muda as disposiccedilotildees do corpo o sofista muda as

disposiccedilotildees da alma pelo seu ensino iniciaacutetico (Teeteto 167a04-06) A porta fechada e

guardada da casa de Caacutelias separa os ritos internos discretos da abertura ao olhar coletivo e

delimita a ocultaccedilatildeo do misteacuterio aos profanos

O apresentante Soacutecrates enuncia uma explicaccedilatildeo que serve de syacutenthema palavra de

passe que franqueia a entrada no recinto sagrado A declaraccedilatildeo de que natildeo satildeo sofistas

possui o efeito ritual de garantir que natildeo satildeo impuros e anuncia a iniciativa individual pela

iniciaccedilatildeo myacuteēsis atraveacutes do encontro com Protaacutegoras (314c-e)

A entrada no recinto sagrado revela o rito dos discursos sagrados hieroigrave loacutegoi de

Protaacutegoras Um seacutequito de estrangeiros encantados como se fora pelo charme do proacuteprio

Orfeu o segue cosmicamente em evoluccedilotildees circulares ritualmente regulares A viacutevida e

espetacular caricatura da cena fornece natildeo obstante a ironia indiacutecios caracteriacutesticos da

accedilatildeo ritual O ritual eacute ldquoalgo ataviacutestico compulsivo insensato no miacutenimo circunstancial e

supeacuterfluo mas ao mesmo tempo sagrado e misteriosordquo (BURKERT 1997 p 35-37)

O ritual eacute um conjunto de accedilotildees redirecionadas para a demonstraccedilatildeo exposiccedilatildeo

apontada para o olhar eacute um falar mediante gestos estereotipados e padronizados

independentes da situaccedilatildeo e afetos atuais O rito repete e ordena accedilotildees exageradas

aparentemente desvinculadas do contexto imediato com o escopo de esboccedilar um tipo

especiacutefico de efeito teatral eficaz ao olhar e de transmitir uma significaccedilatildeo mimeacutetica natildeo

mediada pela palavra

46

(Teeteto 167a04-06)

91

A harmonia do coro provoca alegria em Soacutecrates A alegria o devaneio e o ecircxtase

das iniciaccedilotildees oacuterficas satildeo intimamente ligados agrave danccedila e agrave muacutesica riacutetmica (BURKERT

1993 p 557) ldquoA repeticcedilatildeo faz nascer o ritmo o acompanhamento dos gestos por sinais

acuacutesticos daacute nascimento agrave muacutesica e agrave danccedila ndash duas formas de solidarizaccedilatildeo humanardquo

(BURKERT 2005 p 35) ldquoO ritual dramatiza a interaccedilatildeo poliacutetica a ordem existente sem

excluir que um rito possa fundar e definir um novo estatutordquo (ibid p 37) Segue-se a alusatildeo

direta agrave descida ao Hades katabasis siacutembolo da iniciaccedilatildeo em que Heraacutecles e Tacircntalo satildeo

ironicamente substituiacutedos por Hiacutepias e Proacutedico de Ceacuteos (315b-d)

A paroacutedia iniciaacutetica eacute mais do que irocircnica Platatildeo encena a laicizaccedilatildeo dos discursos

sagrados e sua transposiccedilatildeo num ensino na transmissatildeo iniciaacutetica de um saber que enseja a

condiccedilatildeo dos espectadores poliacuteticos os epoacutepatai os iniciados que ascendem a um estado

superior que promete a riqueza e a bem-aventuranccedila

A dramatizaccedilatildeo irocircnica sugere o falseamento de um ensino cuja eficaacutecia pretende

remontar agrave antropogonia primeva e dela tirar seu sentido Mas o perigo natildeo consiste

somente no risco e no terror que antecede a experiecircncia da prova iniciaacutetica O grande perigo

consiste em entregar a alma a misteacuterios cujos efeitos natildeo se pode afirmar que a melhorem

ou a piorem Para discriminar a natureza dos efeitos do ensino sobre a alma eacute preciso que o

olhar perscrutador do eacutelenkhos socraacutetico coloque os misteacuterios da iniciaccedilatildeo sofiacutestica sob

exame

92

III - RELACcedilOtildeES ESTRUTURAIS NO MITO DO GOacuteRGIAS O EacuteTHOS EM

QUESTAtildeO

31 Eros e Loacutegos

Audaacutecia e ardor tais satildeo os afetos divinos que incutidos na psykheacute fazem com que

o guerreiro sobreexceda o acircnimo das accedilotildees tatildeo somente humanas que encenam a batalha (Il

V 3)

Audaacutecia e ardor ndash tais satildeo os afetos pelos quais a dialeacutetica socraacutetica choca-se

ingente com a retoacuterica daquele que viria a ser ao mesmo tempo o mais violento e o mais

brilhante dos interlocutores que travam combate com Soacutecrates Caacutelicles

Batalha e guerra poacutelemos kaiacute maacutekhe eis o cenaacuterio com que Platatildeo monta o campo

dramaacutetico dialoacutegico em que satildeo confrontados os princiacutepios e valores ordenadores que

configuram dois modos de vida diametralmente opostos ndash cada qual com exigecircncias

especificidades procedimentos e formaccedilotildees perenemente antagocircnicas Um e outro

culminam no aacutegon retininte dos loacutegoi de seus campeotildees Moldado no apaixonado manifesto

de Soacutecrates o loacutegos dialeacutetico denuncia a ambiccedilatildeo unacircnime desmascara a injusticcedila e a

desfaccedilatez coerciva da maioria em torno da voluacutepia O discurso antagonista defendido

pelos retores e poliacuteticos eacute modelado pelo apetite desmesurado de poder de Caacutelicles que

reclama o testemunho histoacuterico dos grandes homens que se tornaram notaacuteveis

No retinir dos loacutegoi insinua-se a reverberaccedilatildeo da imprecaccedilatildeo a araacute que soa como

o vaticiacutenio do vidente que antecipa a praga o modo de vida implicado pela Filosofia

entendida como disciplina que se estende para aleacutem da educaccedilatildeo juvenil eacute indigno das

coisas belas nobres e bem reputadas entre os homens de valor eacute um modo de vida proacuteprio

da condiccedilatildeo dos sub-homens de escravos Ineficaz nos debates puacuteblicos a Filosofia

93

perverte a alma e resulta na incapacidade decisoacuteria em questotildees de justiccedila do que eacute

provaacutevel e crediacutevel incapacidade que redunda na impossibilidade de defesa diante de um

tribunal estabelecido por acusaccedilatildeo injusta levada a efeito por acusador desonesto e que

ineludivelmente acabaria na condenaccedilatildeo de Soacutecrates agrave morte (Goacutergias 485c-486b)

O manifesto socraacutetico se forja pela disposiccedilatildeo simeacutetrica da oposiccedilatildeo norteadora dos

valores Gecircneros de vida opostos satildeo determinados pela ordenaccedilatildeo simetricamente oposta

de valores incompatiacuteveis ndash ordenaccedilatildeo que implica praacuteticas e modos de inteligibilidade

distintos que por sua vez exprimem-se no esgrimir de discursos multifacetados Um e

outro identificam diferentes pragas psiacutequicas diferentes noacutesoi que exigem compensaccedilatildeo

mediada pela eficaacutecia discursiva do adivinho porta-voz das potecircncias ofendidas e

diferentes prescriccedilotildees A perversatildeo e a miseacuteria para Caacutelicles consistem na gradual

ignoracircncia determinada pela praacutetica filosoacutefica das leis em vigor na cidade da maneira de

falar exigida nas relaccedilotildees particulares e nos contratos puacuteblicos na perplexidade diante dos

prazeres e das voluacutepias dos homens e dito numa soacute fala em tornar-se irresoluto para com

todas as coisas que dizem respeito agraves maneiras de viver ao caraacuteter47

Valores opostos implicam caracteres que se contradizem e por conseguinte

pressupotildeem a multiplicidade de princiacutepios ordenadores opostos (DIXSAUT 2001 p 133)

Natildeo obstante a diversidade soacute pode ser unificada mediante a unidade do afeto na

afetividade do mesmo paacutethos (Goacutergias 481 d) A significaccedilatildeo unificadora deriva da

(Goacutergias 484 c09-d07)

94

possibilidade de se fazer mostrar um para o outro os proacuteprios afetos48

Soacutecrates e Caacutelicles

padecem do mesmo afeto eroacutetico direcionado para objetos distintos que caracterizam a

natureza do Eacuteros

O amor de Soacutecrates por Alcibiacuteades de um lado injunge a ordenaccedilatildeo cataacutertica da

encantaccedilatildeo a accedilatildeo terapecircutica dos belos discursos que toma a alma do ouvinte de assalto

como um canto de Sirena (Banquete 215c-216c) de outro deixa-se modelar pela Filosofia

ndash um desejo que eacute determinado pelo desejo mais elevado o desejo que aspira a ldquotocarrdquo o

belo visto que a Filosofia eacute ao mesmo tempo a muacutesica mais elevada (Feacutedon 61a) e o desejo

puro pelo que eacute ldquoem si mesmordquo (DIXSAUT 2001 p 184) Tal desejo faz do filoacutesofo um

carente e um amante incessantemente agrave procura do objeto de seu amor movido pela ldquobela

esperanccedilardquo (Feacutedon 114c) de encontraacute-lo e encontrando-o com a aspiraccedilatildeo imorredoura de

quem haveraacute de continuar procurando

O amor de Caacutelicles eacute simultaneamente modelado pelas pretensotildees e desejos de

Demos o filho de Pirilampo e demos o povo reunido na assembleacuteia (Goacutergias 481e) Em

Soacutecrates o amor eroacutetico deixa-se ordenar pelo desejo mais elevado e transpotildee-se como

forccedila encantatoacuteria do loacutegos ordenador na psykheacute do amado Em Caacutelicles o amor eroacutetico

segue o movimento inconstante da multiplicidade de desejos caoacuteticos da multidatildeo e

aquiesce aos apelos do amado de maneira que se transpotildee em discurso lisonjeiro no loacutegos

agradaacutevel cujo efeito eacute o incitamento e o acirramento dos apetites que o geraram Em

Soacutecrates o discurso eroacutetico afasta as falsas ilusotildees da alma e forceja o amado ao

reconhecimento das proacuteprias carecircncias e da falta de cuidado de si (Banquete 216a) Em

Caacutelicles o discurso compotildee-se na indeterminaccedilatildeo das aparecircncias ilusoacuterias que se

Goacutergias 481 d)

95

entrelaccedilam com a praacutetica poliacutetica Em Soacutecrates o discurso eacute engendrado a partir do desejo

sobre-determinado pelo desejo mais elevado e constante da Filosofia Em Caacutelicles o

discurso eacute engendrado pela inconstacircncia dos desejos indeterminados dos objetos de seu

amor o povo reunido na assembleacuteia Num e noutro o desejo se aconchega agrave inteligecircncia

para engendrar um discurso Em Soacutecrates inteligecircncia e desejo estatildeo em consonacircncia

harmonizam-se num uacutenico movimento ndash o da inteligecircncia do desejo e o do desejo da

inteligecircncia tal como o sopro da flauta se harmoniza com a danccedila do saacutetiro flautista

(Banquete 216c) O desejo possui a inteligecircncia de si mesmo e a inteligecircncia discerne seu

proacuteprio movimento como o movimento do desejo (DIXSAUT 2001 p 143) Em Caacutelicles

desejo e inteligecircncia satildeo asyacutemphonoi49

satildeo dissonantes de modo que o desejo subjuga e

arrasta a inteligecircncia para discernir somente aquilo que o atende o desejo torna-se entatildeo

apetite Quando desejo e inteligecircncia satildeo sinfocircnicos o discurso visa o melhor o beacuteltiston e

porta a explicaccedilatildeo racional (Goacutergias 464c-465e) e as causas de sua natureza50

Quando o

desejo domina a inteligecircncia o discurso visa o prazer e a inteligecircncia discerne apenas os

meios que determinam o seu assentimento num ldquoempirismordquo que atende agrave voluacutepia Num

49 A menccedilatildeo agrave desarmonia indica um desarranjo da multiplicidade de opiniotildees ou um desarranjo de uma

multiplicidade proacutepria ao si mesmo A metaacutefora ingressa uma homologia entre a multiplicidade dos muitos e

uma multiplicidade do si mesmo A intermitecircncia das opiniotildees de Caacutelicles implica a intermitecircncia correlativa

do seu psiquismo Tais questotildees determinam a hermenecircutica da leitura do Haacute uma divisatildeo na

natureza psiacutequica de Caacutelicles que se expressa na dissonacircncia de opiniotildees que natildeo satildeo sustentadas pela

refutaccedilatildeo da tese oposta A metaacutefora da harmonia como concordacircncia bem ajustada indica que o

opera uma concordacircncia no acircmbito do si mesmo ( ) em contraposiccedilatildeo com o

ajustamento e concordacircncia com as opiniotildees e desejos da multidatildeo (PLOCHMANN ROBINSON 1988 p

110)

(Goacutergias 482b04-c03) 50

(Goacutergias 465a)

96

caso e noutro eacute a natureza do desejo que determina o estado da psykheacute O amor eroacutetico faz a

mediaccedilatildeo entre um desejo paradigmaacutetico (a Filosofia ou os desejos da multidatildeo) e a

personificaccedilatildeo do amor Mediaccedilatildeo que engendra loacutegoi e modos distintivos de hierarquizar

valores que por sua vez implicam gecircneros caracteriacutesticos de vida opostos um voltado para

a inteligecircncia da justiccedila do que eacute sempre idecircntico e imutaacutevel o vasto oceano do belo e do

bem (Banquete 211a) e outro voltado para a inteligecircncia do gozo irrefreaacutevel visto o

discernimento e a inteligecircncia de prazeres diversos serem prerrogativas da alma (Goacutergias

465d)

A inconstacircncia do alvo do amor de Caacutelicles determina a intermitecircncia de suas

opiniotildees e a ambivalecircncia de seus afetos Assim como seus afetos oscilam de um fito para

outro o movimento de seus pensamentos se estende em direccedilotildees muacuteltiplas opostas

expressando opiniotildees contraacuterias sobre um mesmo assunto Sua ambivalecircncia alterna-se

entre a doccedilura amistosa e a hostilidade raivosa na tentativa de esconder sua autodissensatildeo

mediante algum pronunciamento dogmaacutetico para logo em seguida contradizer-se

relutante ou involuntariamente revelando seus princiacutepios de accedilatildeo conflitantes Pervertido

pelo medo e atormentado pelos apetites Caacutelicles eacute simultaneamente um mau amante e um

bom odiento sobretudo em relaccedilatildeo a si mesmo (PLOCHMANN ROBINSON 1988 p

105)

A simetria das oposiccedilotildees indica uma estrutura de relaccedilotildees anaacutelogas e homoacutelogas

assim como haacute uma boa disposiccedilatildeo do corpo haacute uma boa disposiccedilatildeo da alma Assim como

a boa disposiccedilatildeo do corpo eacute assegurada por duas artes uma preservadora e outra

restauradora a boa disposiccedilatildeo da alma eacute assegurada por duas artes do mesmo gecircnero

Assim como as artes relativas ao corpo satildeo conduzidas pelo desejo do melhor a boa

disposiccedilatildeo da alma eacute impelida pelo desejo do melhor Assim como as artes do corpo

97

implicam a inteligecircncia da natureza dos seus procedimentos e das causas assim tambeacutem as

artes da alma implicam o loacutegos de sua natureza e de suas causas

Assim como uma imagem eacute uma aparecircncia do modelo original as imagens das artes

autecircnticas satildeo aparecircncias de seus originais A lisonja kolakeiacutea estaacute para a Poliacutetica como as

aparecircncias estatildeo para os originais A cosmeacutetica estaacute para a ginaacutestica como a culinaacuteria estaacute

para a medicina A sofiacutestica estaacute para a legislaccedilatildeo como a retoacuterica estaacute para a justiccedila O

discurso persuasivo estaacute para o discurso racional como o prazer estaacute para o melhor e o

bem A inteligecircncia do prazer imediato estaacute para a inteligecircncia dos prazeres proacuteprios como

a inteligecircncia do empirismo da vantagem estaacute para a inteligecircncia das causas da boa

disposiccedilatildeo O Eros do retor estaacute para o Eros do filoacutesofo assim como a epithymia da

multidatildeo estaacute para a Filosofia

A Filosofia comporta um discurso que por sua proacutepria natureza eroacutetica desfaz a

ilusatildeo gerada pelo apetite as opiniotildees os falsos saberes e a valoraccedilatildeo do que eacute contingente

do que estaacute imerso no devir um discurso que busca refutar por amor da verdade e natildeo por

amor da vitoacuteria e das disputas a philoneikiacutea (Goacutergias 457e-458b) O amor de Soacutecrates por

Alcibiacuteades comporta o paradoxo da abstenccedilatildeo do deleite mesmo tendo-lhe compartilhado o

mesmo leito (Banquete 216e-217e) Soacutecrates soacute pocircde desprezar a beleza dos corpos a

riqueza e todas as vantagens apreciadas pelos muitos porque ascendeu ao cliacutemax do Eros

Tal eacute a razatildeo pela qual o discurso filosoacutefico eacute elecircntico a unificaccedilatildeo do desejo almeja o

plano mais alto e contrapotildee agrave incompletude que se dispersa na multiplicidade a visatildeo

sempiterna do belo

Ardor e audaacutecia - trata-se efetivamente do entrecruzar de dois discursos que

digladiam-se pelo manejo experimentado de dois amorosos animados pelo mesmo afeto

Eros que natildeo obstante volta-se para direccedilotildees excludentes O discurso expressa o

98

movimento da inteligecircncia que por sua vez acopla-se ao Eros ou identificando-se com ele

num uacutenico e mesmo movimento ou submetendo-se a ele (DIXSAUT 2001 p 153-ss) O

movimento eroacutetico do loacutegos acarreta disposiccedilotildees concordantes com seu direcionamento O

discurso pode suscitar o convencimento associado ao saber ou se natildeo emerge do

conhecimento das causas o assentimento engendrado pela aparecircncia visto que saber eacute

diferente de crer A persuasatildeo mesma divide-se em par de naturezas distintas ndash a crenccedila e o

conhecimento (Goacutergias 454 d-e) e por conseguinte o discurso distingue-se pela direccedilatildeo de

seu movimento e de seu alvo Mas tal qual glaacutedio que possui dois gumes o discurso natildeo

pode ser proferido sem que seu efeito seja duplo e sem que a resultante do golpe se volte

para sua origem Animado por um afeto eroacutetico o movimento discursivo natildeo pode ser

desferido sem que haja uma ordenaccedilatildeo preacutevia dos afetos que o engendram sem que o

proacuteprio movimento psiacutequico lhe seja condizente A palavra natildeo pode ser proferida sem que

haja ressonacircncias no acircmago da psykheacute que a engendra

32 ndash Vida e ḗthos

Batalha e guerra - valores organicamente opostos resultam em modos de vida que se

potildeem em pugna que implicam praacuteticas eacutetico-poliacuteticas opostas e que buscam na maacutekhe dos

loacutegoi no combate singular da palavra os posicionamentos que demarcam a estrateacutegia dos

antagonismos

Caacutelicles e Soacutecrates buscaratildeo defender natildeo somente suas teses mas seus gecircneros de

vida e seus valores a partir de razotildees enredadas em discursos estruturados de modo

excludente Retoacuterica e dialeacutetica entrecruzam-se como armas que reclamam o kraacutetos sobre a

inteireza da vida

99

O golpe de Caacutelicles eacute posto de iniacutecio muitas vezes natureza e lei51

se contradizem

uma agrave outra52

- tais satildeo as divisotildees que comportaratildeo todas as diferenccedilas A divisatildeo de um

todo em partes explica ao mesmo tempo as causas pelas quais Goacutergias e Polos caiacuteram em

contradiccedilatildeo e o procedimento refutativo empregado por Soacutecrates O argumento da divisatildeo

haure toda sua forccedila de uma oposiccedilatildeo efetivamente presente na mentalidade aristocraacutetica

grega e por isso justifica-se plenamente como ponto de partida da argumentaccedilatildeo de

Caacutelicles Tratar-se-ia de tese que natildeo sofreria contestaccedilatildeo direta53

O procedimento de dissociar duas noccedilotildees que se pretendem exaustivas permite a

afirmaccedilatildeo de que certos elementos independentes e irredutiacuteveis se mantecircm associados e

confundidos A cilada de Soacutecrates consistiria em se reportar agrave natureza quando se fala

51 Guthrie observa que noacutemos e phyacutesis adquirem significados opostos a partir do clima intelectual do seacuteculo

V ldquoO que existia por noacutemos natildeo existia por phyacutesis e vice-versardquo Nos sofistas historiadores e oradores da

eacutepoca e tambeacutem em Euriacutepides a antiacutetese passa para as esferas da moral e da poliacutetica ldquoNoacutemosrdquo passou a

significar basicamente (a) ldquouso ou costumes baseados em crenccedilas tradicionais ou convencionais quanto ao

que eacute certo ou verdadeirordquo (b) ldquoleis formalmente esboccediladas que codificam o uso corretordquo O sentido de

ldquophyacutesisrdquo por outro lado toma corpo a partir dos filoacutesofos preacute-socraacuteticos Embora o sentido de ldquonaturezardquo seja

claro pode-se pensar em termos poliacuteticos em ldquorealidaderdquo contrastada com as convenccedilotildees da lei positiva Em

Tuciacutedides a decadecircncia moral acarretada pela guerra faz sobressair o viacutenculo existente entre a ldquonatureza

humanardquo e o interesse ) em oposiccedilatildeo agrave justiccedila O interesse a vantagem e o uacutetil satildeo princiacutepios

inerentes agrave natureza humana e parte da realidade em que o mais forte se impotildee ao mais fraco Satildeo

significativos os relatos das negociaccedilotildees travadas entre os atenienses de um lado e Melos ou Mitilene de

outro A histoacuteria era a principal testemunha de que ldquoera da natureza humana tanto para os Estados como para

os indiviacuteduos comportar-se egoiacutestica e tiranicamente se dada a oportunidaderdquo Para o Caacutelicles platocircnico isso

natildeo soacute ldquoera inevitaacutevel senatildeo tambeacutem justo e adequadordquo (GUTHRIE 1995 p 57-103) Dodds afirma que ldquoA

fonte antiga mais importante aleacutem de Platatildeo satildeo os fragmentos dos manuscritos do sofista Antiacutefonte ()

mas inuacutemeras passagens em Euriacutepides Aristoacutefanes e Tuciacutedides mostram que a antiacutetese era imensamente examinada e compreendida nos anos posteriores do seacuteculo Vrdquo (DODDS 2002 p 263) A concepccedilatildeo

difundida no quadro mental herdado por Platatildeo no iniacutecio do quarto seacuteculo que alccedila o sucesso e o interesse ao

primeiro plano e preconiza ldquofazer bem aos amigos e mal aos inimigosrdquo natildeo reclamava justificaccedilatildeo uma vez

que era aceita universalmente Daiacute as teses defendidas por Soacutecrates soarem tatildeo chocantes e bizarras Nada

atentava mais ao senso comum do homem grego de entatildeo e de certa forma como mostra uma citaccedilatildeo feita

por Guthrie datada do seacuteculo XVIII nada atenta mais contra o senso comum de todos os tempos 52

(Goacutergias

482e) 53 Como Marian Demos afirma ldquoA antiacutetese entre e aparece com frequecircncia na literatura

Grega nos seacuteculos VI e V Caacutelicles natildeo diz nada revolucionaacuterio nesse ponto ele apenas estabelece o cenaacuterio

para aquilo que subsequentemente eacute sancionado pela A oposiccedilatildeo entre e eacute tambeacutem

refletida na discrepacircncia entre os verdadeiros sentimentos de Polos e sua relutacircncia em proclamaacute-los Pode-se

inferir que a de alguma forma corresponde com a visatildeo da realidade de Polos enquanto o

designando bdquoo consenso geral‟ o impede de expor sua visatildeo (DEMOS 1994 p 85-107)

100

segundo a lei e aludir agrave lei quando se lhe fala segundo a natureza54

(483a) A questatildeo dos

valores depende do ponto fixo a partir do qual eles seratildeo coordenados A noccedilatildeo de ldquojusticcedilardquo

pressupotildee seu proacuteprio esquema de coordenaccedilatildeo de valores cuja aquilataccedilatildeo muacutetua depende

de um padratildeo fixo Postula Caacutelicles que tal padratildeo expressa os interesses de quem o

estabelece segundo os dois gecircneros disjuntivos ou a lei ou a natureza55

A noccedilatildeo

convencional de justiccedila exprime o fato de que a aceitaccedilatildeo dos interesses da maioria inferior

determina o tratamento apropriado para cada pessoa e constitui o padratildeo pelo qual as accedilotildees

satildeo reputadas como justas ou injustas O princiacutepio rival invocado por Caacutelicles estabelece

que os interesses dos homens superiores devam constituir o uacutenico padratildeo de justiccedila uma

vez que o que promove a superioridade desses homens eacute naturalmente justo56

e coincide

com a proacutepria natureza (IRWIN 1995 p 103) Sofrer injusticcedilas eacute proacuteprio de escravos que

nem sequer podem ser chamados ldquohomensrdquo para quem a morte seria melhor (kreittoacuten) do

que a vida A lei eacute estabelecida para defender os interesses desses homens fracos dos

muitos que proclamam que toda superioridade eacute desonrosa (toacute kataacute noacutemon aiskhiacuteon

leacutegontos) e que cometer injusticcedila eacute censuraacutevel Para os muitos a injusticcedila (adikiacutea) consiste

em avantajar-se (pleonektecircin) em ter mais (pleacuteon eacutekhein) (483b-c) Satildeo os interesses das

54 Aristoacuteteles nas Refutaccedilotildees Sofiacutesticas menciona explicitamente Caacutelicles e refere-se agrave oposiccedilatildeo entre

e como um muito difundido que leva os homens a proferir paradoxos na aplicaccedilatildeo

dos padrotildees da natureza e da lei ldquoque todos os antigos consideravam vaacutelidordquo (ARISTOacuteTELES 2005 173a p

571) Kerferd argumenta que embora seja possiacutevel que a expressatildeo ldquotodos os antigosrdquo se refira natildeo soacute aos

sofistas mas tambeacutem a preacute-sofistas a clara referecircncia de Aristoacuteteles aos dois loacutegoi indica que ele tinha

sobretudo os sofistas em mente (KERFERD 2003 p 194) 55 Segundo a interpretaccedilatildeo que Kerferd (2003 p197 ss) faz do fragmento DK 87B44 (87 B 44 [cfr 99 B

118 S) de Antifonte fica clara a antiacutetese entre phyacutesis e noacutemos As vantagens preconizadas pela lei satildeo

impedimentos para a natureza ao passo que as vantagens da natureza levam agrave liberdade e devem ser

preferidas agraves prescriccedilotildees da lei A justiccedila deve ser usada em proveito do interesse se houver presenccedila de testemunha Na ausecircncia destas somente a natureza deve ser obedecida Infere-se que o que eacute vantajoso

favorece a natureza e eacute da natureza humana ter vantagem Tudo aquilo que favorece a vantagem e o interesse

constituem um bem As leis e provisotildees satildeo cadeias que impedem a realizaccedilatildeo da natureza humana 56 Irwin afirma que o princiacutepio de Caacutelicles soacute eacute imparcial se a dominaccedilatildeo dos fortes for boa natildeo somente para

as pessoas superiores mas desejaacuteveis para algum outro ponto de vista distinto do delas O exame dessa

posiccedilatildeo exige que se prove que (1) violar regras de outras perspectivas de justiccedila eacute do interesse de algumas

pessoas que (2) estas pessoas satildeo superiores que (3) o que promove o interesse destas pessoas eacute naturalmente

justo (IRWIN 1995 p 103)

101

multidotildees fracas que delimitam o estabelecimento das leis cujo objetivo eacute limitar os

melhores e os mais robustos dos homens

Pois eu penso que aqueles que estabelecem as leis satildeo os homens

fracos e os muitos Por conseguinte eacute para si mesmos que

estabelecem as leis e atribuem elogios e censuras com os olhos em

sua proacutepria vantagem Eles aterrorizam os mais robustos dos

homens e potentes para ter mais e previnem estes homens de que

possuir mais do que eles mesmos e ter mais eacute vergonhoso e injusto

E que fazer injusticcedila eacute isto procurar ter mais do que os outros

Eles estatildeo satisfeitos se tecircm uma partilha igual quando satildeo

inferiores Eacute por isso que pela lei eacute dito ser injusto e vergonhoso

procurar ter mais do que os muitos e eacute isso que eles chamam

injusticcedila57

(Goacutergias 483b04-c08)

A questatildeo da justiccedila eacute por conseguinte indissociaacutevel da afetividade da vergonha

que configura aquilo que eacute aceitaacutevel e elogiaacutevel coletivamente A desonra deriva

diretamente do olhar coletivo que sanciona o elogiaacutevel e o censuraacutevel determinaccedilotildees de

todos os valores compartilhados pelos quadros mentais da cidade Aquilo que eacute vergonhoso

(aiskhiacuteon) eacute intrinsecamente associado ao afeto do senso de honra (aidōs) que por sua vez

brota da estima puacuteblica58

Aleacutem disso o desejo e a cobiccedila de ter mais a ambiccedilatildeo que

caracteriza a pleonexiacutea afeto primaacuterio estatildeo na ordem constitutiva do que Caacutelicles

considera justo por natureza A polarizaccedilatildeo entre phyacutesis e noacutemos sugere em seu bojo a

Traduccedilatildeo modificada a partir de Irwin (1979)

58 O termo expressa a vergonha e a ignomiacutenia segundo Chantraine (1999 p 40) e eacute empregado na

prosa aacutetica para indicar a feiuacutera repugnante O adjetivo deriva deste sentido original da vergonha provocada

pela deformidade mas possui tambeacutem o valor de ldquosenso de honrardquo Derivado de o tema de

exprime em Homero o sentimento de respeito diante de um deus ou superior e sobretudo o

sentimento que proiacutebe a covardia ao homem O sentimento tambeacutem estaacute ligado a partes

vergonhosas a genitaacutelia

102

tensatildeo mais basilar entre os apetites aquilo que Dodds chama de ldquoimpulsos individuaisrdquo e

a pressatildeo coletiva que instaura os valores considerados aceitaacuteveis ou a ldquopressatildeo de

adaptaccedilatildeo social caracteriacutestica de uma cultura baseada na vergonhardquo (DODDS 2002 B p

26) Desejos cobiccedila honra vergonha discursos e os pensamentos que os movem

configuram os princiacutepios basilares que justificam a noccedilatildeo da justiccedila e o gecircnero de vida

honoraacutevel

O termo Aidōs eacute empregado na narrativa de Gygeacutes para designar a respeitabilidade

de uma mulher o senso de honra da mulher daquilo que pode ser visto e daquilo que natildeo

pode ser olhado Heroacutedoto narra a desmedida do rei que contrariamente agraves interdiccedilotildees

longamente moldadas pela tradiccedilatildeo desejava mostrar a nudez de sua mulher usurpando e

violentando a sua respeitabilidade

Esqueceis que uma mulher desfaz-se do seu pudor quando se

despe() Gygeacutes natildeo podendo fugir agrave situaccedilatildeo declarou-se pronto

a obedecer Candaulo agrave hora de dormir conduziu-o ao quarto

para onde a rainha natildeo tardou a se dirigir O guarda viu-a despir-

se e enquanto ela lhe voltava as costas para alcanccedilar o leito

esgueirou-se para fora do aposento mas a rainha percebeu-lhe a

presenccedila Compreendeu o que o marido havia feito e suportou o

ultraje em silecircncio fingindo nada ter notado mas decidindo no

fundo do coraccedilatildeo vingar-se de Candaulo pois entre os Liacutedios

como entre quase todos os povos baacuterbaros constitui um oproacutebrio

mesmo para um homem o mostrar-se nu (HERODOTE I VIII-X

1850)

A conotaccedilatildeo da pudiciacutecia emerge do sentido original das partes vergonhosas a

genitaacutelia que deve estar coberta para os olhares dos outros Esse sentido segundo observa

Arlene Saxonhouse (2008 p 58) se estende para um contexto praacutetico-poliacutetico no qual o

olhar puacuteblico determina o entendimento comunitaacuterio daquilo que deve ser escondido e

daquilo que deve ser revelado Em Heroacutedoto a vergonha denota a transgressatildeo aos

costumes aos noacutemoi longamente sedimentados que se expressam nas leis reverenciadas

103

pela tradiccedilatildeo A violaccedilatildeo do rei Candaulo consiste em identificar as coisas belas com a

beleza natural da silhueta da mulher em detrimento da reverecircncia agraves leis A longevidade dos

costumes sedimenta as interdiccedilotildees que configuram a esfera do que eacute vergonhoso e

desonroso e por isso os limites das leis ancestrais exigem uma observacircncia e reverecircncia

que se aproximam da natureza A origem remota perdida num tempo em que satildeo gestadas

as belas coisas taacute kalaacute associa a reverecircncia a um acervo de valores que possui a mesma

caracteriacutestica do enclave miacutetico a ausecircncia de dataccedilatildeo Transgredir esses limites implica

uma exposiccedilatildeo e uma impudecircncia equivalente agrave nudez

O eacutelenkhos socraacutetico expotildee a nudez de afetos e pensamentos que reclamam

encobrimento agrave dissoluccedilatildeo do olhar coletivo59

Por essa razatildeo Goacutergias e Polus foram

constrangidos nas amarras da dialeacutetica preferiram deixar-se refutar a exporem-se na sua

nudez Eacute necessaacuterio pois que se faccedila a exposiccedilatildeo das causas do seu embaraccedilo Lei e

Natureza frequentemente se contradizem

A proacutepria natureza pode ser invocada como testemunho e prova de que a justiccedila eacute

precisamente contraacuteria agrave lei os animais os chefes de famiacutelia os homens nas cidades o

grande Rei da Peacutersia e o proacuteprio Zeus exemplificam que a lei da natureza a verdadeira

natureza do direito eacute contraacuteria agraves leis estabelecidas que subjugam os homens mais

vigorosos agrave escravidatildeo A igualdade entre homens desiguais (toacute iacuteson eacutekhosin oacutentes)

subverte a natureza O homem de natureza suficientemente bem nascido para pisar em

todas as ldquomagias encantaccedilotildees e leis estabelecidasrdquo faria ldquobrilhar a justiccedila da naturezardquo

(483e-484b)

59 Arlene Saxonhouse vecirc na personagem do rei Candaulo narrada por Heroacutedoto um precursor de Soacutecrates A

dialeacutetica socraacutetica revela aquilo que na perspectiva da tradiccedilatildeo aristocraacutetica deveria permanecer oculto e isso

acaba por levaacute-lo agrave morte (2008 p 59)

104

A exemplaridade paradigmaacutetica de Goacutergias resplandece na fala de Caacutelicles

Koacutesmos60

para a cidade virilidade para o corpo beleza para a alma sabedoria para o ato

excelecircncia para o discurso verdade (Elogio de Helena 1) Soacutecrates sob pretexto de

perseguir a verdade (aleacutetheia) profere discursos populares (demegorikaacute ndash Goacutergias 482e)

Cabe pois ao loacutegos exaltar o homem excelente por natureza e detrair o contraacuterio pois eacute

um erro louvar o censuraacutevel e censurar o louvaacutevel61

Assim como o discurso exemplar de

seu mestre promove a inversatildeo da maacute fama de Helena urdida pelos poetas assim tambeacutem

Caacutelicles empreende exposiccedilatildeo (dieacutegesis) que inverte a crenccedila gerada pelas encantaccedilotildees dos

que estabelecem as leis Anunciada a verdade de que a justiccedila eacute o direito natural do mais

capaz a loacutegica (loacutegismos) discursiva de Caacutelicles enuncia as razotildees pelas quais as leis satildeo

estabelecidas e propotildee o elogio da lei verdadeira a lei da natureza que eacute a primeira entre os

animais entre as famiacutelias entre os reis e entre os deuses tal como Helena por natureza

(phyacutesei) eacute a primeira entre os primeiros homens e mulheres e divina entre os deuses

(Elogio de Helena 3) A enumeraccedilatildeo dos exemplos consolida as bases da tese Tal como

brilha a beleza da primeira dentre as mulheres o homem vigoroso faz resplandecer o brilho

da justiccedila da Natureza Pela Natureza tal como por Helena vinham todos tanto pelo amor

aacutevido de vitoria quanto pela invenciacutevel avidez de honra reuacutenem-se os melhores e maiores

homens de riqueza gloacuteria forccedila e sabedoria adquirida (Elogio de Helena 4)

60Wardy (1996 p 30) chama atenccedilatildeo para o fato de que a palavra Koacutesmos conforme eacute empregada no Elogio

de Helena designa simultaneamente a ornamentaccedilatildeo e o artifiacutecio do discurso Originalmente o termo

designava a atraccedilatildeo especiosa arranjos impostos como a maquiagem de meretrizes Eacute improvaacutevel argumenta

Wardy que Goacutergias tivesse em vista um raciociacutenio loacutegico pelo qual a verdade como excelecircncia do loacutegos fosse adquirida somente atraveacutes de uma histoacuteria verdadeira O proecircmio do Elogio deve ser interpretado no

sentido de que Koacutesmos natildeo significa um mero ornamento artificial oposto agravequilo que a realidade eacute de fato

Seu objetivo eacute mostrar a verdade Adriano Ribeiro explicita e desenvolve a indicaccedilatildeo de Wardy afirmando o

significado de Koacutesmos como ornada ordenaccedilatildeo Eacute funccedilatildeo do loacutegos expor modelos de ornamentos de modo

ordenado A argumentaccedilatildeo ordena ressaltando o que conveacutem ao que eacute afirmado e afirmando o que eacute

propriamente verdadeiro A ornamentaccedilatildeo da palavra eacute sua verdade e a ela cabe pois distinguir o certo do

incerto o elogiaacutevel do censuraacutevel (RIBEIRO 2002 p 167) 61 GORGIAS Elogio de Helena Adoto a traduccedilatildeo de Daniela Paulinelli 2009

105

A exposiccedilatildeo das causas confere razoabilidade agrave fala e Caacutelicles justifica sua tese com

razotildees No caso de Helena62

as primeiras causas justificam sua ida para Troacuteia mediante um

toacutepos aceito universalmente ndash o de que eacute natural que o mais forte subjugue o mais fraco eacute

natural o mais forte conduzir e o mais fraco seguir (Elogio de Helena 6) No caso de

Caacutelicles as leis satildeo reputadas injustificaacuteveis porque constituem reaccedilatildeo dos mais fracos para

se protegerem da forccedila dos fortes e escravizaacute-los agrave condiccedilatildeo mais baixa Nos dois discursos

o mesmo toacutepos eacute alccedilado agrave condiccedilatildeo de verdade universal visto natildeo reclamar justificaccedilatildeo e

ter acolhimento em qualquer ouvinte sensato Eacute tatildeo natural ser constrangido pela

Necessidade ou por decreto divino quanto pela sobreexcelecircncia do homem superior

Ademais a forccedila da Necessidade dos deuses e do guerreiro armado eacute equiparada agrave forccedila

persuasiva do discurso O loacutegos age como senhor poderoso e a persuasatildeo possui a forccedila de

um rapto Tanto para Goacutergias como para Caacutelicles a natureza passa a ser ldquoum tipo de base

material conveniente para construir uma teoria da persuasatildeordquo (CROCKETT 1994 p 78)

Mas para Goacutergias o constrangimento pela forccedila eacute ato terriacutevel cujo agente deve

receber pelo discurso a acusaccedilatildeo pela lei a desonra pelo ato o castigo (Elogio de Helena

7) Os encantamentos divinos mediante os loacutegoi encantam a alma e nela induzem calafrio

de medo compaixatildeo e pesar comprazido (Elogio de Helena 8) Encantamento e magia se

encontram como teacutecnicas que geram erros da alma e ilusatildeo da opiniatildeo63

ndash os loacutegoi movem

os prazeres e removem as tristezas (Elogio de Helena 10) O uso abusivo do loacutegos por

natureza arrebata a psykheacute e por isso deve ser condenado A retoacuterica eacute uma arte de

62 A retoacuterica no Goacutergias observa Andy Crockett eacute feminina eacute mulher assim como a natureza e a desordem ao passo que o kosmos eacute masculino A concepccedilatildeo de que o mais forte subjuga o mais fraco eacute reforccedilada pelo

fato de a mulher ser naturalmente mais fraca do que o homem e pela misoginia da mulher no regime

democraacutetico ateniense fundamentalmente falogocecircntrico (CROCKETT 1994 p 71 ) 63

106

combate que deve ser usada de maneira legiacutetima contra os inimigos e criminosos como

meio de defesa e natildeo de agressatildeo (Goacutergias 457e) O mestre natildeo deve ser considerado

ldquoculpado ou criminosordquo pelo mau uso da arte Os criminosos satildeo ldquoos indiviacuteduos que fazem

mau uso de sua arterdquo (Goacutergias 457a) A forccedila encantatoacuteria e arrebatadora dos discursos por

constituir princiacutepio de accedilatildeo autocircnomo e causalidade proacutepria justificam a imputabilidade

Tem a mesma relaccedilatildeo tanto o poder do discurso para o

ordenamento da alma quanto o ordenamento dos faacutermacos para a

natureza dos corpos Pois assim como alguns dos faacutermacos

expulsam alguns humores do corpo e fazem cessar uns a doenccedila

outros a vida assim tambeacutem dentre os discursos uns afligem

outros deleitam outros atemorizam outros conferem ousadia aos

ouvintes outros por alguma maacute persuasatildeo drogam e enfeiticcedilam

completamente a alma

(Elogio de Helena 13)

A accedilatildeo conquistadora subjugante eacute movida pelo desejo eroacutetico e a passividade

daquele que eacute conquistado eacute como doenccedila que afeta a alma (Elogio de Helena 18) Se

poreacutem eacute uma doenccedila humana e um desconhecimento por parte da alma natildeo se deve

imputar como erro mas se deve julgar como infortuacutenio A accedilatildeo condenaacutevel do discurso eacute a

usurpaccedilatildeo psiacutequica que equivale agrave violecircncia do rapto

Caacutelicles ao contraacuterio de Goacutergias condena a limitaccedilatildeo da forccedila e a supressatildeo do fato

natural apoiado na polarizaccedilatildeo entre ativo e passivo conquistador e conquistado forte e

fraco capaz e incapaz desregramento e regra phyacutesis e noacutemos Sua defesa despudorada da

forccedila o tipifica como personificaccedilatildeo do disciacutepulo que desconhece a noccedilatildeo de justiccedila e que

por isso faz mau uso da retoacuterica e dos seus efeitos proacuteprios Caacutelicles elogia o belo e

censura o feio A persuasatildeo do loacutegos deve ser posta a serviccedilo da incontinecircncia do apetite

Condenaacuteveis satildeo os muitos que defendem seus interesses com as encantaccedilotildees e maacutegicas

com que estabelecem as leis Condenaacutevel eacute o eacutethos a moralidade do escravo Caacutelicles

advoga a justificaccedilatildeo retoacuterica da violecircncia cometida em prol do prazer com base na

107

constataccedilatildeo factual de uma ordem natural que premia o mais forte No plano da vantagem

nua e crua no campo dos interesses em conflito natildeo eacute natural que o menos capaz sobrepuje

o mais capaz

Na sua apologia agrave forccedila Caacutelicles promove uma re-significaccedilatildeo para o sentido de

noacutemos ao citar Piacutendaro a lei eacute de todos o rei64

dos mortais e dos imortais Como observa

Marian Demos ldquoo uso que Piacutendaro faz do termo (noacutemos) eacute livre de qualquer conotaccedilatildeo

ulterior Piacutendaro vecirc noacutemos como algo poderoso e inevitaacutevel que manteacutem todas as coisas

ldquocompensadasrdquo que regula todas as coisas Ao contraacuterio do que afirma Caacutelicles o poema

de Piacutendaro refere-se agrave forccedila (biacutea) de Heacuteracles qualificando-a como violecircncia e natildeo para

retratar seus trabalhos como modelo exemplar para a aquilataccedilatildeo daquilo que eacute mais justo

(DEMOS 1994 p 94) Enquanto o noacutemos no poema de Piacutendaro indica uma limitaccedilatildeo para

a violecircncia de Heacuteracles Caacutelicles usurpa o poeta e cita o trecho para sustentar sua tese de

que o uso da forccedila eacute a lei da natureza e justiccedila65

Estaacute advertido de que o recurso ao poeta

de renome e agrave comparaccedilatildeo com Heacuteracles possui um apelo persuasivo poderoso Toda

comparaccedilatildeo implica a aproximaccedilatildeo e transferecircncia de valores que satildeo acompanhadas por

afetos proacuteprios Os afetos ligados ao valor do modelo transferem-se para o termo

comparado Assim como Heacuteracles se valeu da violecircncia para roubar os bois de Geriatildeo a

violecircncia do homem superior encontra guarida na celebridade do precedente e nos valores

64 (Goacutergias 484b) 65 Segundo Apolodoro 2 4 8-9 (CARRIEgraveRE MASSONIE 1991 p 63) Heacuteracles filho de Zeus e

Alcmeacutene ultrapassava a todos em altura e forccedila Sua aparecircncia manifestava a todos que o viam que era um

filho de Zeus Seu corpo media quatro cocircvados seus olhos brilhavam com o claratildeo do fogo e suas flechas ou

dardos natildeo erravam o alvo A beleza do semideus se contrapotildee agrave monstruosidade de Geriatildeo seu corpo era

formado por trecircs dorsos reunidos na cintura e que se cindia novamente em trecircs a partir dos quadris e das

coxas (id 2 5 10 106 p 70) Morto por uma flecha de Heacuteracles o disforme Geriatildeo encarna a feiuacutera

monstruosa que estaacute na origem do afeto da vergonha O semideus por sua vez belo e poderoso cruza o

Oceano na taccedila de ouro do deus Heacutelios com o seu espoacutelio o gado puacuterpuro roubado de Geriatildeo

108

que o acompanham trata-se do modo de agir do semideus sobre-humano ndash o maior dos

heroacuteis da Heacutelade

Eacute notaacutevel o uso que Caacutelicles faz de coordenadas miacuteticas para a fundamentaccedilatildeo da

sobreexcelecircncia da forccedila natural e para a significaccedilatildeo do vergonhoso e do honroso A forccedila

encantatoacuteria arrebatadora maacutegica e enfeiticcediladora dos discursos eacute originada segundo

Goacutergias no divino (Elogio de Helena 10)66

Caacutelicles se vale de esquemas miacuteticos

longamente sedimentados nos quadros mentais gregos para consolidar afetos e valores A

encantaccedilatildeo estaacute na base da afetividade que configura modela e justifica as crenccedilas e a

opiniatildeo (NUNES SOBRINHO 2008 p 48ss) e o princiacutepio de accedilatildeo mais poderoso para a

identidade coletiva de uma sociedade baseada no combate e na disputa eacute configurado pelos

afetos ligados ao crivo puacuteblico

Segundo Burkert a busca pelo gado de Geriatildeo exprime uma tradiccedilatildeo preacute-grega

(1979 p 84) e segue um esquema de accedilotildees bem definido (1) o heroacutei empreende uma

busca (2) chega ao lugar de destino (3) comeccedila uma luta com o possuidor (4) derrota-o

(5) leva o gado (6) e retorna Este padratildeo segundo Burkert determina um esquema

antropoloacutegico invariante67

A narrativa miacutetica de Geriatildeo possui a especificidade de

descrever uma geografia coacutesmica Heacuteracles deve atravessar o Oceano no rumo do Sol por

meio da taccedila dourada presenteada por Heacutelios O Oceano eacute o ponto de encontro entre o ceacuteu e

a terra mediaccedilatildeo entre os poacutelos opostos delimitados pelo terrestre e pelo celestial O heroacutei

se vecirc diante de uma situaccedilatildeo problemaacutetica o trabalho de roubar o gado do monstro Geriatildeo

66 67 Walter Burkert segue a estrutura padratildeo e os motifemas estabelecidos por Vladimir Propp Segundo este

padratildeo o trabalho de Heacuteracles teria o seguinte esquema na ordem proposta por Propp Para apanhar o gado

de Geriatildeo sob o comando de Euristeu (9) Heacuteracles parte para uma longa viagem (11) Encontra o Velho

Homem do mar que lhe fornece algumas direccedilotildees (12 13) depara-se com Heacutelios o deus do Sol do qual

obteacutem um objeto maacutegico a taccedila de ouro para atravessar o Oceano (14) quando aporta agrave ilha Vermelha de

Eriteacuteia (15) trava um combate com o chefe dos animais um rugidor de trecircs cabeccedilas Geriatildeo (18) e apodera-

se da manada (19) (BURKERT 2001 p 88)

109

Para realizar a mediaccedilatildeo implicada pela tarefa recebe como recurso um instrumento

divino a taccedila de ouro presenteada por Heacutelios A travessia ou passagem de um plano

coacutesmico para outro soacute eacute realizada mediante o emprego de um recurso divino A ilha

vermelha Eryteacuteia (paiacutes vermelho) onde se encontra o gado puacuterpuro evoca o ocaso

momento de encontro coacutesmico A luta o emprego de recursos divinos a forccedila sobre-

humana e finalmente a vitoacuteria sobre o monstro disforme justificam a soberania e o poder

(VERNANT 2002 p 250 ss) A universalidade deste esquema miacutetico de pensamento

confere segundo Burkert significaccedilatildeo para a vida pastoral cujo maior problema era a

possibilidade de que o rebanho fosse perdido ou roubado O desaparecimento dos animais

era atribuiacutedo sempre agrave accedilatildeo de algum daiacutemon O heroacutei eacute venerado e cultuado em funccedilatildeo de

encarnar dar expressatildeo e significaccedilatildeo para a necessidade vital de lidar com o medo difuso

(ansiedade) da perda do rebanho e do roubo perpetrado por adversaacuterios funestos Eacute preciso

encontrar coragem para a busca daquilo que foi extraviado por potecircncias demoniacuteacas e

haurir proteccedilatildeo efetivada na forccedila heroacuteica que modela a exemplaridade do sucesso

(BURKERT 1979 p 85)

33 Aiskhyacutene Aidōs e Causalidade

Na Apologia Soacutecrates se vale do recurso ao paradigma miacutetico com o escopo de re-

significar o afeto da vergonha Diante da questatildeo da vergonha provocada pelo perigo de

morte decorrente de suas ocupaccedilotildees praacuteticas 68

Soacutecrates recorre aos valores heroacuteicos da

bela morte de Aquiles como meio de reformular a hierarquia daquilo que eacute temiacutevel

vergonhoso e desonroso Nenhum valor pode estar acima de uma vida honrada nem

mesmo o perigo da morte pois nada eacute pior do que viver na desonra Por menor que seja o

68

(Apologia 28b03-04)

110

valor de um homem a vida praacutetica natildeo deve calcular o perigo da morte mas somente se eacute

justa ou injusta se as accedilotildees satildeo as de um homem bom ou mau (28b05-09) Se o risco da

morte ensejasse a vergonha a vida dos semideuses de Troacuteia seria uma vida inferior jaacute que

o filho de Theacutetis natildeo se preocupou com o perigo da morte perante a ameaccedila da vergonha

A morte e o perigo nada satildeo em comparaccedilatildeo com a infelicidade de uma vida em que os

amigos do heroacutei natildeo satildeo vingados (28c08-29d01)

Em uma sociedade de confronto na qual para ser reconhecido eacute

preciso derrotar os rivais em uma competiccedilatildeo incessante pela

gloacuteria cada indiviacuteduo estaacute colocado sob o olhar do outro cada

indiviacuteduo existe por esse olhar Ele eacute o que os outros veem dele A

identidade de um indiviacuteduo coincide com sua avaliaccedilatildeo social da

derrisatildeo ao louvor do desprezo agrave admiraccedilatildeo Se o valor de um

homem permanece assim ligado agrave sua reputaccedilatildeo toda ofensa

puacuteblica agrave sua dignidade todo ato ou comentaacuterio que atinge seu

prestiacutegio seratildeo sentidos pela viacutetima enquanto natildeo forem

abertamente reparados como uma forma de rebaixar ou destruir

seu ser sua virtude iacutentima e de consumir sua queda Desonrado

aquele que natildeo conseguiu que o homem que o ofendeu pague pelo

ultraje perde com sua timḗ o renome o lugar na hierarquia e os

privileacutegios Separado das solidariedades antigas afastado do

grupo de seus pares o que resta dele Caiacutedo abaixo do vilatildeo do

kakoacutes que ainda tem seu lugar nas hostes do povo torna-se um

errante sem paiacutes ou raiacutezes eacute um exilado despreziacutevel um homem

sem nenhum valor

(VERNANT 2001 p 407-408)

A simetria das imagens miacuteticas garante a transitividade dos valores secularmente

preservados assim como a bela morte indica que os desvalores e perigos da vida nada satildeo

em comparaccedilatildeo com a gloacuteria reservada pela memoacuteria imortal assim tambeacutem os valores

seguros nada satildeo diante da desonra reservada pela injusticcedila do viver O risco do oproacutebrio

coletivo torna a vergonha e a desonra mais insuportaacuteveis do que o risco da morte

Eis a verdade destas questotildees Atenienses qualquer que seja a

ordem que algueacutem ocupe quer tenha se tornado melhor por si

mesmo ou fixado por um arkhonte o dever se impotildee como eacute minha

opiniatildeo de permanecer nele qualquer que seja o perigo sem

111

calcular nem a morte nem outra coisa acima da desonra

(Apologia 28d06-10)

O emprego argumentativo das imagens confere significaccedilatildeo agraves accedilotildees mediante o

aporte afetivo suscitado pela encantaccedilatildeo Soacutecrates opera uma transposiccedilatildeo e re-valoraccedilatildeo

dos valores a partir de esquemas psiacutequicos compartilhados incontestes no enclave da

paideacuteia miacutetica Assim como uma vida de desonra natildeo vale a pena ser vivida uma vida sem

exame natildeo merece ser vivida69

A simetria das imagens miacuteticas engendra por outro lado a

reversatildeo dos valores o melhor dos homens cidadatildeo da mais importante e mais renomada

cidade pelo saber e pelo poder deve se envergonhar por cuidar (epimeloumenos) das

riquezas da reputaccedilatildeo e da honra e por natildeo se preocupar de cuidar do pensamento da

verdade e da melhoria da alma (Apologia 29d) O emprego da encantaccedilatildeo miacutetica visa

transpor a triparticcedilatildeo de valores praacuteticos exteriores para a triparticcedilatildeo de valores psiacutequicos e

com isso re-significar o vergonhoso e o desonroso a epimeleacuteia da psykheacute valor supremo

interioriza o afeto da vergonha A vergonha e o honroso cujo escopo eacute a alma natildeo depende

do olhar coletivo e de suas sanccedilotildees mas referencia-se tatildeo somente no olhar da alma para

consigo mesma Mas o discurso revolucionaacuterio de Soacutecrates eacute incompatiacutevel com a

brutalidade da constataccedilatildeo do fato de que as riquezas a fama e o poder constituem os

maiores valores de todos os tempos A sobrelevaccedilatildeo desses valores natildeo pode apoiar-se

numa tradiccedilatildeo miacutetica cujo apanaacutegio consiste em consolidar mediante a crenccedila os afetos

que sancionam os esquemas psiacutequicos tradicionais

No Goacutergias a menccedilatildeo ao deacutecimo trabalho de Heacuteracles ao mesmo tempo justifica

a soberania natural do mais forte e define a exemplaridade para aquilo que eacute assimilado ao

disforme e vergonhoso Caacutelicles habilmente qualifica o processo de estabelecimento das

69 (Apologia 38a05-06)

112

leis como encantaccedilotildees70

e sortileacutegios71

cujo fim eacute a subjugaccedilatildeo da sobreexcelecircncia natural

A inculcaccedilatildeo das leis nos jovens eacute uma violecircncia tatildeo antinatural como a domesticaccedilatildeo dos

leotildees O mau uso da encantaccedilatildeo potecircncia intriacutenseca do discurso eacute assacado ao

estabelecimento das leis e natildeo agrave retoacuterica Mas a forccedila retoacuterica das imagens miacuteticas serve

ainda para desqualificar o anti-heroacutei encarnado por Soacutecrates

Pois agora se fosses preso tu e todos os teus semelhantes e jogado

na prisatildeo sob o pretexto de uma injusticcedila natildeo cometida tu estarias

sem defesa tomado de vertigem e com a boca aberta sem nada

dizer depois levado diante de um tribunal colocado diante de um

acusador sem talento nem consideraccedilatildeo tu serias condenado a

morrer se ele quisesse se honrar com tua morte

Goacutergias 486a-b

A falta de recurso de Soacutecrates identifica-se com a ausecircncia do expediente divino que

interveacutem nos mitos de culpa Destituiacutedo dos expedientes retoacutericos Soacutecrates estaacute na posiccedilatildeo

do anti-heroacutei que natildeo pode superar as situaccedilotildees impedientes A retoacuterica eacute recurso divino

sub-repticiamente associado agrave analogia entre o homem justo por Natureza e Heacuteracles Com

isso Caacutelicles extrai da valoraccedilatildeo miacutetica a forccedila persuasiva da encantaccedilatildeo fundamento da

70

(Goacutergias 484e05-06) 71

Segundo Elizabeth Belfiore (1980) Platatildeo recorrentemente usa o vocabulaacuterio dos sortileacutegios

( ) dos encantos () remeacutedios e venenos ( ) para condenar um

inimigo (Sofista 234c 235a 241b) (Repuacuteblica 598d 602d 601b 607c-d) Em outras passagens os prazeres

afrodisiacuteacos satildeo apresentados como enfeiticcedilamento (Feacutedon 81b) (Filebo 44c) (Repuacuteblica 584a) Soacutecrates eacute

apresentado tambeacutem como feiticeiro encantador (Meacutenon 80b) (Banquete 215c-d) A tese de Belfiore

consiste em identificar na Filosofia uma contra-maacutegica e o papel de desfazer ilusotildees Em Repuacuteblica III (412e

413a) a identifica-se com a exposiccedilatildeo agrave ilusatildeo e ao fortalecimento da opiniatildeo Haacute trecircs meios de

privar-se da verdade de maneira natildeo consentida ( ) pelo roubo pela forccedila e pela Os que

satildeo encantados mudam a opiniatildeo por prazer ou pelo medo (413c) O enfeiticcedilamento muda as opiniotildees opera

por meio dos afetos prazeres e do medo ( ) e implica o abandono da opiniatildeo verdadeira de maneira natildeo

consentida Conforme jaacute notava Goacutergias (Elogio de Helena 10) as encantaccedilotildees persuadem por

meio da mas tambeacutem podem causar o medo O medo eacute um iacutendice e um signo de reconhecimento

de que o corpo se manteacutem preponderante sobre o pensamento apanaacutegio da alma (Feacutedon 68c) Eacute do medo que

derivam as duacutevidas e as hesitaccedilotildees que paralisam as accedilotildees humanas (NUNES SOBRINHO 2008 p 51) A Filosofia 1) afasta as falsas opiniotildees por meio do eacutelenkhos 2) habilita a resistir contra o prazer e o medo e 3)

capacita a agir sem compulsatildeo Natildeo obstante o discurso como natildeo pode prescindir do concurso

das encantaccedilotildees que predispotildeem a alma agrave (Caacutermides 155e05-08) As encantaccedilotildees afastam os

medos destrutivos curam os afetos violentos e satildeo condiccedilotildees para o pensamento purificado (Feacutedon 66d)

113

opiniatildeo justificada pela crenccedila e inaugura no diaacutelogo o emprego da narrativa miacutetica como

elemento integrado agrave argumentaccedilatildeo

O processo de cinco etapas estabelecido por Burkert para descrever a sequecircncia

universal de accedilotildees que caracterizam as narrativas de situaccedilotildees impedientes emerge do

vaticiacutenio de Caacutelicles i) surge uma experiecircncia ameaccediladora inquietante do mal ou da

desgraccedila ii) a calamidade suscita a procura da causa iii) surge um mediador com

conhecimentos sobre-humanos um vidente areter ou adivinhador iv) um diagnoacutestico eacute

feito a causa do mal eacute definida atraveacutes do estabelecimento da culpa e da identificaccedilatildeo do

erro cometido v) uma vez definida a causa expedientes para a salvaccedilatildeo satildeo prescritos

como medidas expiatoacuterias rituais que natildeo excluem procedimentos de natureza racional

uma arte dolosa eacute requerida para a salvaccedilatildeo (2001 p 142) Esta eacute exatamente a estrutura

do argumento que estabelece o anti-heroiacutesmo de Soacutecrates A causa eacute identificada mas

faltam os recursos necessaacuterios para a salvaccedilatildeo O argumento indica uma conexatildeo entre

responsabilidade e puniccedilatildeo ou cataacutestrofe Haacute um nexo causal entre culpa e castigo

personificado na moira (DODDS 2002 B p 41) O vaticiacutenio de Caacutelicles eacute antes de tudo a

afirmaccedilatildeo de uma conexatildeo causal Soacutecrates acabaraacute condenado agrave morte por ser o uacutenico

responsaacutevel por sua proacutepria aporiacutea Falta-lhe o expediente encantatoacuterio propiciador da

salvaccedilatildeo

Se a finalidade do discurso for uacutenica e exclusivamente a persuasatildeo e a adesatildeo

suscitados mediante a mobilizaccedilatildeo afetiva e valorativa a mestria de Caacutelicles esboccedila outro

aspecto intriacutenseco aos loacutegoi aos sortileacutegios e agrave maacutegica72

ndash todos endereccedilados agrave multidatildeo

eles satildeo espetaculares Agrave hoplomakhiacutea dos discursos cabe por princiacutepio estabelecer o bom

72 (Elogio de Helena 10)

114

e o mau uso dos seus efeitos a encantaccedilatildeo e o assentimento pela crenccedila Este uso dos

efeitos determina o bom e o mau uso da retoacuterica em suma a sua moralidade

Kerferd sustenta a tese de que a posiccedilatildeo de Caacutelicles natildeo eacute imoral pois (a) ldquoenvolvia

a rejeiccedilatildeo do direito convencional em favor do direito natural como algo reivindicado como

mais alto melhor e moralmente superiorrdquo e (b) Caacutelices natildeo eacute culpaacutevel de simplesmente

reduzir ldquodeverdquo a ldquoeacuterdquo como resposta agrave questatildeo do que eacute certo visto que simplesmente

constata que o que acontece na natureza deve ser melhor (KERFERD 2003 p 201)

Todavia ao contraacuterio do que afirma Kerferd parece ser mais correto atribuir muito

mais arguacutecia a Caacutelicles e com mais razatildeo ainda a Platatildeo Caacutelicles como demonstra

Demos promove conscientemente uma inversatildeo no sentido de noacutemos conforme aparece

em Piacutendaro Isso indica a mestria de uma presunccedilatildeo que constitui um dos recursos retoacutericos

mais poderosos e que se tornaria perenamente vaacutelido no campo da argumentaccedilatildeo

verossiacutemil o da alegaccedilatildeo de que o habitual por ser sempre esperado pela opiniatildeo comum

continuaraacute sempre ocorrendo Caacutelicles parece perfeitamente ciente de que pode alegar que

o que eacute habitual torna-se normativo e por isso sem receios opera a passagem do eacute para o

deve

A parte final da peccedila retoacuterica de Caacutelicles constitui-se em exortaccedilatildeo A filosofia eacute

desqualificada como adestramento disciplina que participa (meteacutekhein) da educaccedilatildeo

propedecircutica que deve ser abandonada em favor das coisas maiores73

Tal adestramento eacute

semelhante ao dos animais que se pretende domesticar e ldquoeacute orientado no sentido de

extraviar e iludir sistematicamente as naturezas fortes e manter de peacute o poder dos fracosrdquo

(JAEGER 1995 p 668) O argumento aporta ao recurso da reprovaccedilatildeo pelo ridiacuteculo

(katageacutelastos) o exerciacutecio filosoacutefico eacute uma desmedida punida pelo riso puacuteblico Desajuste

73 (Goacutergias 484c)

115

entre a praacutetica particular e o que eacute aceitaacutevel publicamente extravagacircncia de um exerciacutecio

indecoroso que se opotildee ao que eacute conveniente e bem reputado (eudoacutekimon) pela cidade a

formaccedilatildeo filosoacutefica e o seu modo de vida correspondente satildeo contraacuterios agrave natureza O

resultado disso eacute a perplexidade a irresoluccedilatildeo (apragmosyne) diante da efetividade poliacutetica

e a incapacidade de prover defesa de si mesmo o criteacuterio uacuteltimo para um modo de vida

calcado no conflito de interesses

A Filosofia eacute desqualificada mediante a sua identificaccedilatildeo com parte de uma Paideacuteia

mais ampla e voltada para as questotildees poliacuteticas A inclusatildeo desvalorizadora num conjunto

de disciplinas equivalentes exige a aplicaccedilatildeo a um momento oportuno da formaccedilatildeo do

homem A excrescecircncia eacute assimilada ao desajuste ao despudor A fala de Caacutelicles promove

a reversatildeo da presunccedilatildeo que associa a sabedoria ao presbyacuteteros em vez de ser associada agrave

sabedoria do mais velho Soacutecrates eacute comparado ao adulto que se porta com a conduta de

uma crianccedila balbuciante O homem que age de modo infantil parece ridiacuteculo (katageacutelastos)

e desvirilizado (anaacutendros) e deve por isso receber o mesmo tipo de correccedilatildeo que se aplica

agrave crianccedila e que Soacutecrates faz por merecer pancadas74

(MICHELINI 1998 p 55)

Toda a forccedila moral do golpe retoacuterico deriva do fato secular e lentamente cristalizado

na noccedilatildeo de que o maior princiacutepio de accedilatildeo para um homem bem reputado eudoacutekimon natildeo

eacute ldquoo medo de um deus mas o respeito agrave opiniatildeo puacuteblica aidōsrdquo (DODDS 2002 B p 26)

Tanto a atitude moral de Polos como a de Caacutelicles expressam simultaneamente a boa

reputaccedilatildeo como um objetivo social a ser atingido e a vergonha como fracasso ambas

exploradas pela habilidade retoacuterica (DODDS 2002 A p 11 ss) Nada mais insuportaacutevel

74

o

(Goacutergias 485c)

116

para um psiquismo coletivo fortemente impregnado pela ldquovergonhardquo do que a exposiccedilatildeo ao

desprezo e ao ridiacuteculo

Natildeo eacute por acaso que a vergonha seja reconhecida como um leimotiv de toda a

encenaccedilatildeo dramaacutetica a palavra aiskhyacutene juntamente com suas formas verbais e o adjetivo

aiskhroacutes ocorrem setenta e cinco vezes no diaacutelogo Por essa razatildeo a estrateacutegia de

desvalorizaccedilatildeo da retoacuterica promovida pela dialeacutetica socraacutetica implica o esvaziamento

eacutetico-afetivo de princiacutepios de accedilatildeo tradicionais baseados na reputaccedilatildeo e na vergonha

puacuteblicas (RACE 1979 p 197ss) que satildeo constituintes basilares da mentalidade

aristocraacutetica ateniense Goacutergias e Polos foram viacutetimas Sua derrota foi causada sobretudo

pelo constrangimento decorrente da proacutepria vergonha que os forccedilou agrave assunccedilatildeo de que eacute

mais vergonhoso cometer injusticcedila a ter de sofrecirc-la (DODDS 2002 A p 263) Essa

vergonha equivale agrave pudiciacutecia que natildeo deve despir-se ao olhar coletivo a beleza natural das

partes iacutentimas a nudez A contradiccedilatildeo que torna o discurso insustentaacutevel emerge a partir

de afeto insuportaacutevel suscitado pelo discurso demagoacutegico o paacutethos da vergonha75

Afeto e

discurso satildeo congruentes implicam-se e significam-se mutuamente

Entatildeo Goacutergias foi envergonhado disse Polos e admitiu ensinar (a

justiccedila segundo o haacutebito (eacutethos) dos homens para que algueacutem natildeo

se indignasse se dissesse o contraacuterio Foi por causa dessa

concordacircncia que Goacutergias foi constrangido a contradizer-se o que

muito te satisfaz Por isso Polos te ridicularizou corretamente

segundo penso Agora ele sofre o mesmo constrangimento

(eacutepathen) E por causa disso eu mesmo natildeo admiro Polos pelo

consentimento de que cometer injusticcedila eacute mais desonroso (aiskhiacuteon)

do que cometecirc-la Pois por causa dessa concordacircncia ele foi

enredado (sympodistheigraves) por ti nos argumentos e foi emudecido

por se envergonhar de dizer o que pensa76

75

Goacutergias 482c05-07 76

(Goacutergias 482d03-e02) Traduccedilatildeo modificada a partir de Irwin (1979)

117

Caacutelicles fundamenta a divisatildeo entre natureza e lei no afeto da vergonha segundo a

lei (kataacute noacutemos) eacute vergonhoso cometer injusticcedila mas segundo a natureza ocorre

precisamente o contraacuterio Haacute dois sentidos para a vergonha concernentes a cada um dos

dois termos da divisatildeo77

Qual das duas vergonhas deve fundamentar o respeito a

reverecircncia e a honra que possibilitam o criteacuterio para a escolha da melhor vida Seraacute a

vergonha que emerge do olhar coletivo longamente moldado na tradiccedilatildeo e nos noacutemoi ou a

vergonha aristocraacutetica que remete para a forccedila natural sem consideraccedilatildeo para com as

convenccedilotildees A disjunccedilatildeo entre natureza e lei sempre haure sentido na exterioridade

Soacutecrates subverte o sentido da vergonha ao vinculaacute-la ao cuidado da alma e agrave virtude O

criteacuterio para a escolha dos valores deriva da auto-sēmasiacutea ele brota do olhar da alma para

consigo mesma

Mas para Caacutelicles phyacutesis e noacutemos satildeo incompatiacuteveis e se a vergonha constituir um

impedimento para que ousadamente se fale aquilo que se pensa necessariamente haveraacute

contradiccedilatildeo (482e-483a) O afeto da vergonha indica uma incompatibilidade entre as

crenccedilas o pensamento (noeacuteō) e o discurso publicamente assumido O principal elemento

que caracteriza as ldquoamarrasrdquo da dialeacutetica socraacutetica natildeo eacute meramente proposicional e natildeo

77 Bensen Cain critica o procedimento refutativo de Soacutecrates mediante a distinccedilatildeo semacircntica do que eacute

moralmente vergonhoso e do que eacute mau ou prejudicial Polos admite a existecircncia factual de uma vergonha

convencional mas natildeo assente ao fato de que accedilotildees injustas sejam maacutes Ao contraacuterio o exemplo de Arquelau

seria suficiente para provar que o homem mais injusto eacute o mais feliz A refutaccedilatildeo de Polos eacute de ordem

semacircntica e ocorre por identificar o vergonhoso com o prejudicial Cain qualifica a falsa refutaccedilatildeo socraacutetica como falaacutecia de ambiguidade um deslizamento (sliding) ou oscilaccedilatildeo ambiacutegua entre duas acepccedilotildees

semacircnticas da vergonha (2008 p 221 ss) A anaacutelise de Cain expotildee com bastante clareza o fato de que as

interpretaccedilotildees do eacutelenkhos satildeo insuficientes por natildeo levarem em conta o exame semacircntico do afeto da

vergonha Natildeo obstante sua leitura aleacutem de empregar a terminologia proposicional moderna de Vlastos

pressupotildee o princiacutepio natildeo explicitado de que a significaccedilatildeo semacircntica faz referecircncia a uma realidade objetiva

exterior Caacutelicles personagem platocircnica aponta exatamente o problema da distinccedilatildeo semacircntica dos dois

sentidos de aiskhroacutes aiskhiacuteon como expediente demagoacutegico empregado por Soacutecrates A questatildeo da

significaccedilatildeo afetiva todavia deveria ser auto-referenciada no acircmbito interno da alma

118

pode ser reduzido agrave consecuccedilatildeo de conclusotildees que decorrem de premissas fracas78

O iniacutecio

da contradiccedilatildeo aponta para uma dissociaccedilatildeo psiacutequica a oposiccedilatildeo entre a vergonha suscitada

pela reprovaccedilatildeo coletiva e as crenccedilas subjacentes ao pensamento79

O proacuteprio Caacutelicles

afirma que natildeo seria presa da vergonha em funccedilatildeo de discernir com exatidatildeo a distinccedilatildeo

entre phyacutesis e noacutemos Esta ausecircncia de vergonha eacute inversamente proporcional agrave ousadia

(toacutelmacirci) no falar que configura a sua ldquofranquezardquo No tinir das espadas da palavra

emergem os afetos e atributos psiacutequicos como princiacutepios da accedilatildeo e do gecircnero de vida

aceitaacutevel e honoraacutevel o apetite de ter mais a vergonha e a honra o pensamento os

discursos e seus efeitos o caraacuteter e a justiccedila A verdadeira contradiccedilatildeo (enantiacutea) eacute

contradiccedilatildeo entre discurso afetos manipulaccedilatildeo dos afetos (encantaccedilatildeo e goēteiacutea) e

pensamentos determinantes para a melhor vida a vida de mais brilho de maior valor forccedila

e significaccedilatildeo A verdadeira contradiccedilatildeo ocorre no acircmbito da complexidade da alma

A divisatildeo entre phyacutesis e noacutemos implica uma oposiccedilatildeo que procura reduzir a questatildeo

da justiccedila a duas partes tornadas incompatiacuteveis pelos interesses em oposiccedilatildeo que

configuram a inteireza da cidade A exaustividade das duas partes exclui a possibilidade de

qualquer outra subdivisatildeo e reduz o debate a duas posiccedilotildees antagocircnicas entre as quais se

78 Irwin aponta o ldquoescruacutepulo convencionalrdquo como base do diagnoacutestico do embaraccedilo em que se meteram

Goacutergias e Polos mas somente reconhece na passagem uma criacutetica proposicional ao meacutetodo refutativo

empregado por Soacutecrates Caacutelicles teria oferecido duas objeccedilotildees ao eacutelenkhos (i) Soacutecrates muda as premissas

do argumento preacutevio (ii) Soacutecrates depende de premissas concedidas pelo interlocutor e com isso

simplesmente fia-se nos preconceitos do interlocutor ou em visotildees com as quais natildeo concorda inteiramente

(1979 p 170) O desenvolvimento da criacutetica de Caacutelicles no entanto indica que o embate dialoacutegico gira em

torno da questatildeo do gecircnero de vida e da decorrente significaccedilatildeo do paacutethos da vergonha 79 Vlastos consigna ao eacutelenkhos a funccedilatildeo de testar ou provar o modo de vida e o caraacuteter ou a honestidade do interlocutor mediante a afirmaccedilatildeo de uma crenccedila que este efetivamente possui O gecircnero de vida nessa

perspectiva seria somente uma garantia da veracidade das teses defendidas e da seriedade na busca da

verdade Embora Vlastos reconheccedila que o eacutelenkhos possua o duplo papel existencial de ldquomostrar como cada

ser humano deve viver e testar aquele ser humano uacutenico que estaacute respondendo a fim de descobrir se ele vive

como algueacutem deve viverrdquo sua anaacutelise do eacutelenkhos padratildeo possui um enfoque inteiramente proposicional

segundo o qual o esquema baacutesico seria a anaacutelise ad hoc de proposiccedilotildees q e r natildeo conectadas logicamente agrave

crenccedila p do interlocutor a fim de se chegar agrave assunccedilatildeo de natildeo-p

olympiodoro

119

deve forccedilosamente escolher O artifiacutecio retoacuterico de Caacutelicles eacute paradigmaticamente

estrateacutegico apoacutes reduzir o debate a dois poacutelos excludentes passa-se a desqualificar a

posiccedilatildeo do adversaacuterio mediante a reduccedilatildeo ao ridiacuteculo para logo em seguida conferir

primazia para a uacutenica alternativa possiacutevel Por essa razatildeo a exortaccedilatildeo caricatura o modo de

viver filosoacutefico num quadro em que Soacutecrates passa o resto de seu tempo cochichando

(psithyriacutezdonta) sem que seja capaz de murmurar (phtheacutenxasthai) o que eacute livre grande e o

que vem a propoacutesito (Goacutergias 485d-e)

Sob a aparecircncia da disposiccedilatildeo amigaacutevel80

a admoestaccedilatildeo segue impulsionada pela

alegaccedilatildeo de um paacutethos de perigo iminente que enseja a estrateacutegia de mais uma comparaccedilatildeo

depreciativa segundo a qual a situaccedilatildeo protagonizada por Soacutecrates evoca aqueloutra

encenada na Antiacuteope de Euriacutepides81

Como o muacutesico Amphion Soacutecrates esquece o modo de conduzir as ocupaccedilotildees e

torna a natureza de sua alma pueril natildeo sabe cuidar de si natildeo eacute capaz de um loacutegos reto em

conselhos de justiccedila natildeo poderia apreender nem o razoaacutevel (eikoacutes) nem o persuasivo

(pithanoacutes) e nem poderia pocircr a serviccedilo de outro um conselho decidido (bouacuteleuma

80

81 Segundo M Canto (1993 p 333) o tema principal da trageacutedia de Euriacutepides era a libertaccedilatildeo de Antiope por

sues filhos gecircmeos Zḗthos e Amphion O primeiro era pastor e Amphion muacutesico Na encenaccedilatildeo Euriacutepides

opotildee dois modos de vida conflitantes mediante a tipificaccedilatildeo dos dois irmatildeos ao deslocamento de um artista e

filoacutesofo que se afasta das atividades puacuteblicas se opotildee a atividade praacutetica de um homem de accedilatildeo Croiset

(2003 p 284-285 n 1) afirma que Zḗthos era vigoroso e eneacutergico se dedicava agrave caccedila e agrave criaccedilatildeo de animais

ao passo que Amphion desdenhava os exerciacutecios violentos por possuir uma natureza mais fina e mais

sensiacutevel Amphion teria recebido de Hermes a lira com a qual se dedicava agrave muacutesica e agrave poesia E R Dodds atribui a Euriacutepides uma visatildeo anti-racionalista que vai de encontro com a concepccedilatildeo platocircnica de

uma ordem racional que perpassa o Koacutesmos Para Euriacutepides o homem eacute escravo da Necessidade e o divino eacute

muito mais um conjunto de potecircncias irracionais do que a expressatildeo de uma racionalidade A atitude de

Amphion em relaccedilatildeo agrave poliacutetica torna manifesto o artifiacutecio da comparaccedilatildeo desqualificadora usado por Caacutelicles

na sua exortaccedilatildeo No Fr 201 Amphion suplica conceda-me o dom da muacutesica e da afirmaccedilatildeo sutil natildeo

permita de forma alguma que eu me meta nos destemperos do Estado A alusatildeo agrave personagem da Antiope de

Euriacutepides caricatura e desvaloriza Soacutecrates Natildeo obstante Dodds acentua as diferenccedilas entre o poeta traacutegico e

Platatildeo ldquoO contemplativo platocircnico estaacute em casa no Universo porque ele vecirc o Universo como sendo

penetrado por uma razatildeo divina e portanto eacute acessivel agrave razatildeo humana tambeacutem Mas o homem de Euriacutepides

eacute o escravo e natildeo a crianccedila favorita dos deuses e o nome da bdquoordem sem idade‟ eacute a Necessidade

chora o Coro na Alcestis (DODDS 1929 p 101)

120

bouleuacutesaio)82

Ao comparar a sua exortaccedilatildeo com a reprimenda que Zḗthos dirige ao irmatildeo

por causa de uma atividade lassa Caacutelicles coloca Soacutecrates e Amphion num mesmo plano

Natildeo haacute modo mais direto de desqualificar o adversaacuterio do que comparaacute-lo com uma

personagem reconhecidamente despreziacutevel A contundente desqualificaccedilatildeo eacute endereccedilada

simultaneamente ao homem e agrave sua atividade e possui o inegaacutevel valor retoacuterico de suscitar

a adesatildeo sem reclamar justificaccedilatildeo pois se vale do proacuteprio processo mental com que o

homem comum forma a sua opiniatildeo

A fala de Caacutelicles deixa entrever que o tipo de racionalidade pretendida pela retoacuterica

natildeo se preocupa com a explicaccedilatildeo e as causas de seu procedimento mas tatildeo somente aduz

arrazoados que se valem das opiniotildees arraigadas no quadro mental da cidade para forcejar a

persuasatildeo A elaborada construccedilatildeo do discurso de Caacutelicles torna patente o fato de que

Platatildeo natildeo nega a eficaacutecia da engenhosidade retoacuterica Pelo contraacuterio eacute em funccedilatildeo da

eficaacutecia de uma praacutetica que se vale de esquemas de pensamento que natildeo satildeo explicitados eacute

que Platatildeo contrapotildee agrave retoacuterica a Filosofia como a uacutenica racionalidade legiacutetima A

racionalidade genuiacutena eacute aquela que natildeo somente sustenta seu loacutegos em causas mas que

garante a excelecircncia do ḗthos a partir de uma noccedilatildeo de justiccedila que ultrapassa a efemeridade

das circunstacircncias e das conveniecircncias

Agrave rhḗsis retoricamente bem acabada de Caacutelicles Soacutecrates sem detenccedila evoca a

alma como a instacircncia na qual os seus efeitos se manifestam A psykheacute eacute a origem e o fim

do loacutegos Este por sua vez eacute um meio pelo qual os movimentos psiacutequicos interatuam e

influenciam-se mutuamente engendrando inteligecircncia ou ilusatildeo miriacuteades de afetos

significaccedilotildees ou perplexidades Se a alma fosse de ouro (khryacutesen) Caacutelicles seria o liacutethos a

82 icirc

(Goacutergias 485e06-a03)

121

pedra de toque abrasiva que prova a preciosidade Assim como a pedra de toque prova o

ouro agrave alma prova o loacutegos

Agrave ordenaccedilatildeo da rhḗsis segue raacutepida a sutileza da eironeiacutea Baacutesanos eacute

simultaneamente a pedra de toque que prova o ouro e a interrogaccedilatildeo sob tortura ndash a forma

mais brutal e desumanizadora de violecircncia e de manifestaccedilatildeo de poder83

A exortaccedilatildeo

retoacuterica de Caacutelicles eacute pedra de toque ou tortura Olympiodoro observa que a metaacutefora

ressalta o papel de teste do eacutelenkhos assim como uma pedra friccionada agrave outra provoca a

faiacutesca que se torna chama uma dificuldade friccionada agrave outra se torna a causa da

descoberta Assim como a pedra prova o ouro a pureza da alma eacute provada pela dureza do

caraacuteter de Caacutelicles (OLYMPIODORUS 1998 p 194)

O emprego irocircnico da ambiguidade enseja o estabelecimento de condiccedilotildees

diretrizes Para provar (basanieicircn) suficientemente se uma alma vive retamente ou natildeo eacute

preciso trecircs qualidades o saber (episteacuteme) a benevolecircncia (eunoacuteia) e a franqueza

(parrhēsiacutea)84

Tais condiccedilotildees satildeo determinaccedilotildees da alma e se contrapotildeem discursivamente

agrave divisatildeo bipolar postulada por Caacutelicles entre phyacutesis e noacutemos A questatildeo da valoraccedilatildeo das

accedilotildees pressupotildee a esfera psiacutequica e essa triparticcedilatildeo (triacutea) de determinaccedilotildees psiacutequicas

83

Michael Gagarin (1996 p 1) mostra que a tortura era praacutetica corrente na democracia ateniense como

instrumento juriacutedico usado nos tribunais Uma norma bem conhecida sustenta que na maioria dos casos os testemunhos dos escravos soacute eram admissiacuteveis no tribunal se eles fossem levados sob tortura e nos discursos

forenses de sobrevivecircncia os oradores frequentemente descrevem as regras que regem e enaltecem

a praacutetica como a mais eficaz e ateacute mesmo ldquomais democraacuteticardquo (Lycurg 129) Era um toacutepos que a informaccedilatildeo

mediante era preferiacutevel ao depoimento de testemunhas livres Sendo assim um orador afirma

(Dem 3037) Certamente vocecircs (jurados) consideram como a prova mais precisa de todas em

ambos os casos privado e puacuteblico e quando escravos e pessoas livres estiverem ambas disponiacuteveis e vocecircs

precisarem descobrir algum fato sob investigaccedilatildeo natildeo usem o testemunho das pessoas livres mas sujeitem

os escravos ao dessa forma procurem descobrir a verdade E isso eacute bem razoaacutevel senhores do

juacuteri pois vocecircs sabem muito bem que no passado algumas testemunhas pareceram depor falsamente

enquanto ningueacutem que se sujeitou ao comprovadamente jamais falou falsamente sob 84

(Goacutergias 487a)

122

aponta ao mesmo tempo para um modo de unificaccedilatildeo e um modo de dissociaccedilatildeo ou de

fragmentaccedilatildeo

34 Parrhēsiacutea e Epithymiacutea

Polos ndash Por quecirc Natildeo me eacute permitido falar o quanto eu quiser

Soacutecrates ndash Terriacutevel sofrimento terias oacute excelente se desde tua

chegada a Atenas a cidade da Heacutelade onde a liberdade de falar eacute a

maior tu fosses o uacutenico homem que tivesse essa falta de sorte

Goacutergias 461d85

A liberdade da fala reflete o igualitarismo ateniense e a expectativa de que o

cidadatildeo se engaja na assembleacuteia mediante o discurso aberto A participaccedilatildeo direta na vida

ciacutevica pressupotildee a fala consonante com o pensamento de quem a profere A parrhēsiacutea

constitui-se na abertura do discurso que revela o pensamento de quem fala Qualquer

expediente que ofusque o pensamento como a retoacuterica86

denota a prevalecircncia dos

interesses particulares em detrimento do bem-estar da cidade

Nesse sentido a parrhēsiacutea aparece inicialmente como a fala aberta que revela o

pensamento e as verdadeiras crenccedilas do proferidor A parrhēsiacutea eacute a fala que desvela e

revela eacute o tipo de discurso mediante o qual o cidadatildeo da democracia ateniense se engaja

com igualdade junto aos demais concidadatildeos na assembleacuteia deliberativa para expor sem

impedimentos o seu pensamento Na democracia do Vordm seacuteculo as principais caracteriacutesticas

da parrhēsiacutea praacutetica distintiva da democracia de Atenas como observa Arlene

Saxonhouse satildeo i) a ousadia corajosa da praacutetica que envolve o risco de afrontar os

85 ΠΩΛOS Τί δέ νὐθ ἐμέζηαη κνη ιέγεηλ ὁπόζα ἂλ βνύιωκαη

ΣΩKRATES Δεηλὰ κεληἂλ πάζνηο ὦ βέιηηζηε εἰ Ἀζήλαδε ἀθηθόκελνο νὗ ηῆο Ἑιιάδνο πιείζηε

ἐζηὶλ ἐμνπζία ηνῦ ιέγεηλ ἔπεηηα ζὺ ἐληαῦζα ηνύηνπ κόλνο ἀηπρήζαηο 86 No seu trabalho acerca da liberdade da fala na democracia ateniense Arlene Saxonhouse afirma que a

parrhēsiacutea se opotildee mais do que suporta a praacutetica da retoacuterica que obscurece e distorce a verdade em favor do

benefiacutecio individual O verdadeiro falante parresiaacutestico repudia a arte da retoacuterica A retoacuterica com seu

objetivo de enganar natildeo eacute uma expressatildeo de parrhēsiacutea mas sua perversatildeo () O contraste entre a retoacuterica

e a parrhēsiacutea eacute um tropo familiar que perpassa as falas dos oradores do quarto seacuteculo A retoacuterica de acordo

com suas proacuteprias promessas obstrui a praacutetica da parrhēsiacutea e mina o papel da liberdade da fala como uma

atividade que procura a verdade no regime democraacutetico (2008 p 92)

123

princiacutepios legais e cultos ciacutevicos e ii) o aspecto de desvelamento envolvido na praacutetica que

simultaneamente expotildee os verdadeiros pensamentos do interlocutor e sua resistecircncia a

ocultar a verdade por causa da coerccedilatildeo decorrente do olhar puacuteblico da vergonha coletiva

(SAXONHOUSE 2008 p 87)

A retoacuterica aparece como teacutecnica que promete a liberdade entre os homens e o poder

sobre o outro na cidade87

o poder de dominar o olhar coletivo mediante a persuasatildeo ndash

encantaccedilatildeo dos loacutegoi A retoacuterica eacute a dyacutenamis de dominaccedilatildeo das grandes massas (en toicircs

plḗthesin Goacutergias 457a06) Seu ensino intrinsecamente voltado para o espetaacuteculo na

assembleacuteia natildeo requer nem o conhecimento nem a verdade mas o poder de mobilizar os

afetos e suscitar a persuasatildeo A potecircncia da retoacuterica eacute a potecircncia da ocultaccedilatildeo da ilusatildeo e

da elisatildeo aos impedimentos derivados do olhar coletivo Trata-se de um procedimento

discursivo que suprime a necessidade da verdade e torna a vergonha ineficaz pelo poder

encantatoacuterio da persuasatildeo No Goacutergias a parrhēsiacutea aparece como condiccedilatildeo epistecircmica do

discurso investigativo Fala do desvelamento e da abertura ao olhar a parrhēsiacutea se opotildee

encobrimento retoacuterico assim como a igualdade se opotildee agrave dominaccedilatildeo e agrave usurpaccedilatildeo e assim

como a instruccedilatildeo (maacutethesis) se opotildee agrave crenccedila (piacutestis Goacutergias 454d)

Goacutergias e Polos se contradisseram por causa da indiscriccedilatildeo elecircntica de Soacutecrates que

desnudou crenccedilas e princiacutepios de accedilatildeo cujo papel no acircmbito do jogo poliacutetico deveriam

permanecer ocultas Goacutergias e Polos foram refutados por causa da vergonha que os impediu

de usar a fala aberta da qual os atenienses se orgulham88

Estrangeiros eles satildeo

87 κὲλ ἐιεπζεξίαο αὐηνῖο ηνῖο ἀλζξώπνηο ἅκα δὲ ηνῦ ἄιιωλ ἄξρεηλ ἐλ ηῇ αὑηνῦ πόιεη Goacutergias (452d07) 88

ηὼ δὲ μέλω ηώδε Γνξγίαο ηε θαὶ Πῶινο ζνθὼ κὲλ θαὶ θίιω ἐζηὸλ ἐκώ ἐλδεεζηέξω δὲ

παξξεζίαο θαὶ αἰζρπληεξνηέξω κᾶιινλ ηνῦ δένληνο πῶο γὰξ νὔ ὥ γε εἰο ηνζνῦηνλ αἰζρύλεο ἐιειύζαηνλ ὥζηε δηὰ ηὸ αἰζρύλεζζαη ηνικᾷ ἑθάηεξνο αὐηῶλ αὐηὸο αὑηῷ ἐλαληία ιέγεηλ ἐλαληίνλ

πνιιῶλ ἀλζξώπωλ θαὶ ηαῦηα πεξὶ ηῶλ κεγίζηωλ

124

considerados saacutebios e amigos mas ao mesmo tempo deficientes de parrhēsiacutea e

excessivamente envergonhados Satildeo carentes de liberdade no falar e plenos de vergonha A

vergonha que sofrem eacute tatildeo grande que os impede de ter audaacutecia ambos se contradizem sem

poder contraditar a multidatildeo dos homens acerca de questotildees que para Soacutecrates satildeo as

maiores Ao contraacuterio do cidadatildeo ateniense tiacutepico os estrangeiros Goacutergias e Polos

suportam excessiva vergonha mas natildeo suportam a firmeza da palavra e de seus verdadeiros

pensamentos Mas ao contraacuterio de Goacutergias e Polos Caacutelicles eacute ateniense e pode falar

livremente (parrhēsiaacutezdesthai) sem se envergonhar (megrave aiskhyacutenesthai Goacutergias 487d05)

Todavia a parrhēsiacutea praticada nas assembleacuteias puacuteblicas atenienses pressupotildee a fala aberta

entre iguais iacutesoi ao passo que Caacutelicles eacute apologista da excelecircncia dos melhores dentre

desiguais Em que difere o livre-falar de Caacutelicles e a parrhēsiacutea isonocircmica ateniense Quais

satildeo as determinaccedilotildees que operam as distinccedilotildees entre franquezas antagocircnicas

A parrhēsiacutea aparece no Laacuteques ligada agrave questatildeo da consonacircncia entre o discurso e o

gecircnero de vida de quem o profere Jaacute no iniacutecio do proacutelogo Lisiacutemaco estabelece o falar

francamente89

como condiccedilatildeo preacutevia agrave discussatildeo que teraacute iniacutecio Os conselhos mais

importantes exigem consonacircncia entre o pensamento e opiniatildeo ao contraacuterio daqueles que

buscam conformar o discurso agrave opiniatildeo da maioria (Laques 178b01-03)

A questatildeo do cuidado (epimeacuteleia) necessaacuterio para que os filhos se tornem excelentes

(aacuteristoi) reclama a franqueza muacutetua (parresiasoacutemetha) no falar90

(Laques 179c01) A

consonacircncia entre discurso e pensamento eacute condiccedilatildeo sine qua non para o aconselhamento

conjunto (symbouleuacuteomai) acerca de questotildees importantes A deliberaccedilatildeo acerca do melhor

Goacutergias 486a06-487b05 89

(Laacuteques 178a04) 90 Emlyn-Jones interpreta o desejo de Lisiacutemaco em ser franco como uma exposiccedilatildeo de si proacuteprio ao potencial

ridiacuteculo e sacrifiacutecio do prestiacutegio social por fazer a revelaccedilatildeo da incompetecircncia paterna Essa exposiccedilatildeo ao

ridiacuteculo seria uma demonstraccedilatildeo praacutetica do seu desejo reiterado de cooperaccedilatildeo (1999 p 126)

125

pressupotildee natildeo somente o conhecimento daquilo que vai ser ensinado (maacutethēma) e de seus

efeitos mas a comunhatildeo (koinōniacutea) de fins que suscita um discurso veraz sobre o cuidado a

ser dado aos filhos (Laacuteques 179e)

O cuidado (epimeleacuteia) se opotildee agrave libertinagem dos que chegam agrave adolescecircncia e

fazem o que querem91

A preocupaccedilatildeo com o cuidado para com os filhos configura um

conflito dos valores proacuteprios agraves atividades da democracia ateniense do V seacuteculo a

dedicaccedilatildeo agraves atividades puacuteblicas dos homens bem reputados implica em negligenciar a

educaccedilatildeo dos proacuteprios filhos As belas accedilotildees empreendidas pelos eudoacutekimoi tanto na

guerra como na paz na ocupaccedilatildeo das coisas dos aliados e da polis (179c) engendram

como contrapartida a corrupccedilatildeo da aristeiacutea das geraccedilotildees subsequentes em razatildeo do

descuidar (ameleicircn) Filhos de pais nobres e bons Lisiacutemaco e Meleacutesias envergonham-se

(hypaiskhynoacutemethaacute) diante dos proacuteprios filhos por natildeo terem accedilotildees valorosas a narrar O

descuido implica uma vida de moleza (tryacutephan) cuja consequecircncia eacute a licenciosidade92

A

dedicaccedilatildeo agraves coisas dos outros (tōn aacutellōn praacutegmata eacutepratton) implica a ameleiacutea

negligecircncia que torna a vida poliacutetica incompatiacutevel com a excelecircncia e a nobreza que

configura o homem bem reputado (179d) O cuidado epimeleacuteia e terapecircutica exigidos

pela excelecircncia se opotildeem agrave ameleiacutea e agrave vergonha A encenaccedilatildeo dramaacutetica sugere que a

democracia aristocraacutetica ateniense carrega em seu bojo a vergonha que emerge da

incompatibilidade interna de seus valores

O proacutelogo do Laacuteques encena a oposiccedilatildeo entre tipos de comunhotildees excludentes O

cuidado com as praacuteticas poliacuteticas exige a comunhatildeo com a maioria e consequentemente

um gecircnero de discurso que se pauta pela opiniatildeo dos muitos em detrimento do pensamento

91 179a06-07 92 Sobre Lisiacutemaco e Meleacutesias personagens do Laacuteques ver introduccedilatildeo de L A Dorion (PLATON 1997 p

15-20)

126

O cuidado com os filhos exige a comunhatildeo e a atenccedilatildeo simultacircnea de todos os pais e

reclama um gecircnero de discurso inteiramente consonante com o pensamento (Laques 180b)

Essa consonacircncia constitui a franqueza muacutetua (parrēsiaacutezomai) que possibilita o bom

conselho Haacute pois ao mesmo tempo um viacutenculo entre o falar franco e o pensamento que

lhe corresponde e um viacutenculo da licenciosidade no falar com os desejos da maioria Satildeo

tipos opostos de franqueza A franqueza muacutetua que instaura a comunhatildeo do bom conselho

mediante o confiar (pisteuacuteesthai 180b06) se opotildee agrave fala livre empregada nas atividades

poliacuteticas

A comunhatildeo gera a veracidade a veracidade gera a boa reputaccedilatildeo (181b08) e a

confianccedila a confianccedila gera a maior benevolecircncia (eunouacutestaton 181b08) e a benevolecircncia

manteacutem salva a amizade A encenaccedilatildeo dramaacutetica do proacutelogo do Laacutequesingressa

simultaneamente a conexatildeo entre o cuidado com o eacutethos e a investigaccedilatildeo das maiores

questotildees e entre a parrhēsiacutea a eunoacuteia e a episteacuteme A comunhatildeo dos pais em torno da

finalidade comum da formaccedilatildeo e da excelecircncia abarca a competecircncia no ensino a

franqueza muacutetua a benevolecircncia e a amizade ndash condiccedilotildees epistecircmicas da investigaccedilatildeo

Laacuteques admite que sua atitude diante dos loacutegoi eacute dupla a saber que ora eacute tomado de

paixatildeo ora eacute tido como homem que os detesta Seu amor pelos discursos eacute condicionado

pelo fato de haver uma harmonia entre o homem e seu discurso homem que em funccedilatildeo

dessa harmonia eacute ldquoverdadeiramente umrdquo (188c) e ldquomuacutesico completordquo natildeo por tocar

instrumentos que divertem mas por acordar suas palavras (loacutegoi) com seus atos (erga) sua

proacutepria vida Os discursos bem falados que natildeo estatildeo em consonacircncia com o modo de vida

devem ser detestados Soacutecrates poderia se permitir belos discursos e falar com toda

franqueza (parrhēsiacuteas) pois seus atos eram suficientemente provados (189a) A

incompatibilidade entre o modo de vida e o discurso entre os erga e os loacutegoi indica uma

127

fragmentaccedilatildeo no acircmbito da alma Soacute eacute verdadeiramente ldquoumrdquo aquele que harmoniza seu

loacutegos com os seus atos que em uacuteltima instacircncia derivam de seus desejos

Em outras passagens a parrhēsiacutea aparece ligada aos apetites No Banquete apoacutes o

veemente desabafo em que Alcibiacuteades confessa seu amor eroacutetico por Soacutecrates diante de

todos os circunstantes ldquotodos riram da sua franqueza (parrhēsiacuteas) por parecer que ele

ainda era apaixonado de Soacutecratesrdquo (Banquete 222c) Na Repuacuteblica apoacutes a associaccedilatildeo da

origem do governo democraacutetico com a revolta da pobreza as caracteriacutesticas da polis

democraacutetica satildeo identificadas com a liberdade licenccedila de se fazer o que se desejar93

e

franqueza de falar (parrhēsiacutea) que permitem que cada um possa ter um gecircnero de vida

particular segundo sua proacutepria fantasia A polis democraacutetica eacute caracterizada pela

multiplicidade dispersatildeo de prazeres (hedeiacutea) pela anarquia (aacutenarkhos) e variabilidade

(poikiacutele) O homem democraacutetico eacute dominado pelos apetites (aphrodisiacuteon) desejos

supeacuterfluos que natildeo produzem nenhum bem e prejudicam simultaneamente o corpo a

alma o discernimento e a temperanccedila (558c-559d) A parrhēsiacutea eacute nesse contexto o loacutegos

licencioso que exprime o predomiacutenio dos apetites No Fedro a distinccedilatildeo entre o desejo de

prazeres e a aspiraccedilatildeo ao melhor determina tendecircncias psiacutequicas que ldquoora se acordam ora

se combatemrdquo (237b) O descomedimento caracteriza o predomiacutenio do desejo que arrasta

em direccedilatildeo aos prazeres e aquele que eacute dominado pelo desejo e escravo dos prazeres

(238e) procura obter do amado o maior prazer possiacutevel ao preccedilo dos maiores prejuiacutezos para

o corpo e para a alma O ciuacuteme e a inveja incitam no homem dominado pelo apetite uma

vigilacircncia tiracircnica que se expressa em censuras insuportaacuteveis e infamantes ldquose o amante se

embriaga e fala com uma franqueza (parrhēsiacutea) grosseira e impudenterdquo (240a) Mais uma

vez a parrhēsiacutea aparece num contexto em que se discorre sobre a escravizaccedilatildeo aos apetites

93 (Repuacuteblica 557b)

128

e um discurso licencioso que lhes corresponde No livro X das Leis a parrhēsiacutea eacute associada

ao discurso licencioso em relaccedilatildeo aos deuses proferido pelos iacutempios cuja caracteriacutestica eacute a

incapacidade de dominar o prazer e a dor (908c) De maneira geral a parrhēsiacutea eacute

relacionada ao discurso desimpedido sem peias impulsionado pelo apetite pelo vinho ou

excesso de liberdade (Leis 649b 806d 829d-e)

No Goacutergias a parrhēsiacutea eacute mencionada na ambiguidade irocircnica com que Soacutecrates

alude ao mesmo tempo ao livre curso dos apetites de Caacutelicles que engendram a violecircncia

do seu loacutegos e a qualidade psiacutequica pela qual a investigaccedilatildeo dialeacutetica assimilada ao exame

da alma pode chegar a bom termo A franqueza eacute a garantia pela qual o assentimento do

interlocutor a uma tese expressa sem dissimulaccedilatildeo sua crenccedila e sua opiniatildeo mas eacute

tambeacutem um indicativo de que certa ordenaccedilatildeo psiacutequica transpotildee seu movimento proacuteprio

para o loacutegos O discurso sem peias reproduz de modo direto a trama que entretece os afetos

neste princiacutepio de movimento e inteligecircncia que eacute a psykheacute (Fedro 245d)

Caacutelicles independentemente da questatildeo de sua historicidade congrega e personifica

uma ordenaccedilatildeo de valores tiacutepica Ele eacute como afirma Jaeger a encarnaccedilatildeo perfeita de um

tipo de homem o adulador (JAEGER 1995 p 682) Tal como Soacutecrates e as grandes

personagens que protagonizam um papel de primeiro plano nos diaacutelogos Caacutelicles torna-se

um mito pois adquire a atemporalidade e a exemplaridade dos tipos psiacutequicos que soacute o

mito pode abarcar (DIXSAUT 2001 p 157-161) Eacute justamente a atemporalidade miacutetica

que faz com que o tipo psiacutequico personificado por Caacutelicles possa ser revivido em todas as

eacutepocas como um tipo de homem

Muito se tem discutido se a personagem de Caacutelicles esconde uma adaptaccedilatildeo

platocircnica de uma ou mais figuras histoacutericas da alta aristocracia de seu tempo (CANTO

1993 p 38-39) ou se a viacutevida imagem que Platatildeo faz do oponente de Soacutecrates trai um

129

ldquoconflito que se passa dentro de uma soacute menterdquo conflito que faria de Caacutelicles um ldquoretrato

do eu rejeitado de Platatildeordquo (GUTHRIE 1995 p 102-103) mas que seria tambeacutem integrado

a ele mediante a expressatildeo de ldquosincero interesse pela seguranccedila de Soacutecratesrdquo (DODDS

2002 A p 13) Werner Jaeger afirma que Platatildeo se deu ao trabalho de ldquocompreender

Caacutelicles antes de subjugaacute-lordquo e talvez tenha sentido ldquono seu natural essa acircnsia irreprimiacutevel

de poder com poder suficiente para em Caacutelicles atacar uma parte de seu proacuteprio eurdquo

(JAEGER 1995 p 666)

Que Platatildeo tenha tido a inteligecircncia das fiacutembrias da afetividade humana mais

perversa o demonstram a eloquumlecircncia e brilhantismo das falas antoloacutegicas de suas

personagens Mas no Laacuteques a incompatibilidade estabelecida entre o discurso e as accedilotildees

indica que a questatildeo dos valores implica a harmonia ou o conflito na instacircncia da proacutepria

psykheacute No Goacutergias a mesma concepccedilatildeo se repete eacute preferiacutevel tocar uma lira mal afinada

ou dirigir mal um coro ou ainda natildeo estar de acordo com a maioria do que natildeo estar em

consonacircncia consigo mesmo e contradizer-se (482c) A distinccedilatildeo socraacutetica de uma

triparticcedilatildeo de determinaccedilotildees psiacutequicas sugere que o problema da ordenaccedilatildeo dos valores

remete sobretudo para o modo como satildeo ordenadas certas instacircncias da psykheacute A

triparticcedilatildeo de qualidades implica uma triparticcedilatildeo funcional Eacute o conflito e a desarmonia da

proacutepria psykheacute que determina a incompatibilidade entre os valores professados e o discurso

de um lado e as accedilotildees de outro

Que o Goacutergias retrata um conflito entre modos de vida e valores opostos o atestam

os combates eriacutesticos das personagens e o seu mito de julgamento final Mas Platatildeo foi

muito aleacutem de divisar um conflito entre seus valores e aspiraccedilotildees ocultas A espantosa e

imortal vivacidade da personagem ndash que talvez tenha feito a mais mordaz e impactante

130

apologia do poder e do apetite de todos os tempos ndash constitui o principal testemunho de que

Platatildeo estaacute advertido de que na psykheacute de cada homem vive um Caacutelicles

A bela terapecircutica da alma (kalocircs tetherapeucircstai tegraven psykheacuten) pressupotildee que o

assentimento agraves opiniotildees da alma (psykheacute doxaacutezei) seja tomado como princiacutepio

verdadeiro94

Para que se examine a questatildeo do que eacute justo e por conseguinte do melhor

modo de vida eacute preciso que se examine a constituiccedilatildeo psiacutequica a partir das opiniotildees Mas

para isso eacute preciso que se tenha a determinaccedilatildeo preacutevia da benevolecircncia (eunoacuteia)

A eunoacuteia aparece no Protaacutegoras95

como determinaccedilatildeo proacutepria dos amigos que

entretecircm discussatildeo Apoacutes exortar Soacutecrates para que natildeo abandone sua discussatildeo com

94

Callicles natildeo tenciona assentir equivocadamente por causa de estupidez embaraccedilo ou insinceridade Sua

franqueza assegura que ele defenda firmemente sua posiccedilatildeo anti-convencional Assim Soacutecrates parece

exagerar quando demanda que tudo aquilo que for aceito de comum acordo seja verdadeirohellip Ainda que ele o prenda atraveacutes de sua concordacircncia o que garante a verdade das conclusotildees (IRWIN 2003 p 102) Dodds

por sua vez observa que a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates tem sido tipicamente vista como sinal do valor excessivo

que Platatildeo atribui ao meacutetodo do eacutelenkhos A acidentalidade e a particularidade da opiniatildeo do interlocutor

implicaria um bdquodefeito‟ e inferioridade do eacutelenkhos (Robinson) em relaccedilatildeo agrave axiomaacutetica universal de

Aristoacuteteles (DODDS 2002 p 279-280) Todavia como o proacuteprio Irwin admite Platatildeo natildeo vecirc a posiccedilatildeo de

Caacutelicles como sendo a de um excecircntrico com um ponto de vista extremamente radical da justiccedila

convencional Trata-se simplesmente de uma declaraccedilatildeo convincente de pontos de vista atraentes para

muitos contemporacircneos de Soacutecrates e Platatildeo A concepccedilatildeo de uma virtude e de uma boa pessoa que eacute focada

no poder individual na riqueza e no status eacute bem estabelecida no pensamento eacutetico Grego e coexiste

problematicamente com a concepccedilatildeo de virtude vinculada agraves outras obrigaccedilotildees concernentes agrave justiccedila (ibid p

103)rdquo A identificaccedilatildeo das teses assumidas pelo interlocutor com a verdade natildeo constitui exagero nem do ponto de

vista da dialeacutetica socraacutetica nem do ponto de vista da retoacuterica Caacutelicles representa natildeo somente uma corrente

de pensamento que configura uma concepccedilatildeo de virtude e justiccedila proacuteprias ao pensamento grego de entatildeo mas

encarna certos valores e tipifica um tipo de caraacuteter que exerce um papel decisivo no jogo poliacutetico ateniense

Por mais absurdas que possam ser as teses assumidas como ldquoverdaderdquo o tratamento do eacutelenkhos possui o

objetivo justamente de conduzir o raciociacutenio ateacute as uacuteltimas consequecircncias dos postulados assumidos Teses

verdadeiras natildeo podem implicar conclusotildees contraditoacuterias e absurdas A refutaccedilatildeo frequentemente se faz

pelo absurdo ou incompatibilidade das conclusotildees com um acordo inicial em torno de algum postulado A

incompatibilidade denuncia mais um conflito entre valores e gecircnero de vida do que propriamente de

proposiccedilotildees contraditoacuterias Como nota Charles Kahn o eacutelenkhos eacute mais uma maneira de testar o modo de

vida do que de testar proposiccedilotildees (KAHN 1996 p 98 133) Ademais do ponto de vista retoacuterico natildeo existe adesatildeo e por conseguinte persuasatildeo sem o assentimento e o

acordo em torno de teses que demarcam o ponto de partida do arrazoado De qualquer maneira o acordo em

torno de opiniotildees deve ser tomado como se fosse uma verdade A dialeacutetica socraacutetica eacute sempre hipoteacutetica em

seu iniacutecio 95 Hiacutepias de Elis estabelece no Protaacutegoras a mesma distinccedilatildeo entre phyacutesis e noacutemos que eacute empregada no

argumento de Caacutelicles Mas ao contraacuterio da distinccedilatildeo estabelecida no Goacutergias para Hiacutepias os semelhantes

satildeo iguais por natureza e as leis satildeo as causas pelas quais se estabelece uma desigualdade arbitraacuteria entre os

homens Ver KERFERD 2003 189-221

131

Protaacutegoras Proacutedico opera a distinccedilatildeo entre ldquodiscutirrdquo (amphisbetheicircn) e ldquodisputarrdquo

(eriacutezein)

As pessoas presentes a semelhantes discussotildees devem ouvir

imparcialmente as duas partes natildeo poreacutem de modo igual o que

natildeo eacute a mesma coisa ambos devem ser ouvidos com a mesma

atenccedilatildeo mas natildeo podemos conceder aos dois igual interesse

poreacutem maior ao que se revelar mais saacutebio e menor ao de menor

preparo Eu tambeacutem Soacutecrates e Protaacutegoras peccedilo que vos mostreis

mais condescendentes cada um poderaacute dissentir (amphisbetheicircn)

da opiniatildeo do outro poreacutem sem brigar (eriacutezein) Entre amigos pode

haver discussatildeo com simpatia (benevolecircncia bdquoeunoacuteia‟) soacute brigam

adversaacuterios e inimigos

(Protaacutegoras 337a-b)

A disposiccedilatildeo amistosa eacute diretiva na dialeacutetica visto que o questionamento capcioso

natildeo visa agrave busca da verdade mas sobrelevar ao adversaacuterio (Meacutenon 75c-d) Na Repuacuteblica a

eunoacuteia designa a disposiccedilatildeo amistosa que se contrapotildee agrave hostilidade e agrave cupidez que leva agraves

dissensotildees e conflitos de gregos contra gregos A benevolecircncia impede o despojamento das

armas dos cadaacuteveres (Rep V 470a) e constitui o desiacutegnio amistoso de Glauco quando este

se propotildee a defender Soacutecrates da ira dos adversaacuterios diante da estranheza provocada pela

tese de que a cidade natildeo pode ser feliz a menos que o Rei seja Filoacutesofo (474a) No Teeteto

a benevolecircncia eacute a atitude socraacutetica associada agrave expurgaccedilatildeo das falsas opiniotildees mediante a

eroacutetesis (Teeteto 151c) O efeito da dialeacutetica eacute analogicamente um partejamento da alma

que pode trazer agrave luz tanto fetos saudaacuteveis como imagens que devem ser rejeitadas A

atitude de hostilidade de alguns causada pela refutaccedilatildeo se contrapotildee agrave benevolecircncia que

constitui o princiacutepio operador do procedimento cataacutertico dialeacutetico O desejo da verdade eacute o

princiacutepio de accedilatildeo que constitui a dialeacutetica e o desejo do bem eacute o princiacutepio de accedilatildeo de sua

aplicaccedilatildeo praacutetica Assim como nenhum deus eacute hostil aos homens Soacutecrates possui a

atribuiccedilatildeo divina de natildeo fazer concessatildeo agrave falsidade e de natildeo enfraquecer o brilho da

132

verdade (Teeteto 151d) A operaccedilatildeo dialeacutetica eacute impulsionada por benevolecircncia em

oposiccedilatildeo agrave malevolecircncia No Fedro a benevolecircncia designa a manifestaccedilatildeo praacutetica em

relaccedilatildeo ao amado do Eros divino que se infunde no amante Tal manifestaccedilatildeo permite que

o amado se decirc conta da superioridade acima de qualquer comparaccedilatildeo do amor eroacutetico que

supera todos os afetos reunidos que se lhe possam devotar (255b)

Em todos esses contextos a benevolecircncia configura uma disposiccedilatildeo e uma funccedilatildeo

psiacutequica conciliatoacuteria entre instacircncias que de outra maneira estariam em conflito Trata-se

efetivamente de uma mediaccedilatildeo que promove o acordo que harmoniza reconcilia que

opera amistosamente promovendo o bem trata-se de uma funccedilatildeo que determina um modo

pelo qual se instaura a therapeacuteia psykheacute funccedilatildeo que pressupotildee um saber preacutevio um noucircs

que eacute a inteligecircncia do bem

No Goacutergias a eunoacuteia eacute sobretudo exigecircncia para o exame da alma e por

conseguinte exigecircncia para o bom andamento da investigaccedilatildeo discursiva A eriacutestica se

contrapotildee agrave dialeacutetica assim como a alma dissociada e fragmentada por conflitos se

contrapotildee agrave alma harmocircnica e unificada A eunoacuteia assegura que o desejo seja orientado na

direccedilatildeo da episteacuteme Ela eacute a funccedilatildeo mediadora entre o Eros e a inteligecircncia a funccedilatildeo que

permite que um se sobreponha ao outro fecundando-se mutuamente para gerar os belos

discursos Mas eacute tambeacutem a disposiccedilatildeo altruiacutesta a interaccedilatildeo que faz com que o Filoacutesofo

autecircntico seja antes de tudo o amigo que faz com que dialeacutetica e philiacutea se pressuponham e

que o Filoacutesofo veja-se no amigo como num espelho (Fedro 255d)

A implacabilidade do eacutelenkhos socraacutetico no Goacutergias evidencia de maneira

inelutaacutevel que Caacutelicles natildeo eacute nem franco nem benevolente e nem tampouco ciente Isso

133

implica que Caacutelicles seja a imagem de uma fragmentaccedilatildeo psiacutequica96

Por outro lado o

movimento dramaacutetico do Goacutergias realccedila a figura de Soacutecrates reluzente como a imagem da

verdadeira franqueza da verdadeira benevolecircncia e da verdadeira paideacuteia (JAEGER 1995

p 671)

As questotildees de se saber qual eacute o tipo de homem que se deve ser e qual atividade

deve reclamar o primado da vida humana (Goacutergias 488a) natildeo podem ser respondidas no

plano dos interesses em conflito A questatildeo da justiccedila reivindica um paradigma que esteja

acima do plano das relaccedilotildees praacuteticas um modelo absoluto ao qual sejam reportados os erga

e os loacutegoi Tal paradigma natildeo pode ser circunscrito a uma esfera particular de tempo

cronoloacutegico e por isso a questatildeo do eacutethos e dos valores temporais deve ser aquilatada por

um modelo atemporal e absoluto que lhes sirva de norma e medida Mas o atemporal e o

que estaacute para aleacutem da reportaccedilatildeo muacutetua dos valores humanos que configuram a

mentalidade da cidade o modelo perenamente vaacutelido exige um discurso proacuteprio com

estruturas homoacutelogas agrave grandeza das noccedilotildees que ele pretende abarcar A esse discurso

Soacutecrates chama de um belo logos (kaloucirc loacutegos) que eacute tambeacutem um myacutethos

96 Olimpiodoro interpreta as personagens do diaacutelogo como personificaccedilotildees de tipos de caracteres Assim os

erros seriam cometidos por trecircs razotildees 1) uma opiniatildeo pervertida 2) por causa da ira 3) por causa do apetite

O caraacuteter mal orientado foi refutado nos argumentos com Goacutergias o caraacuteter irasciacutevel foi refutado com Polo e

o caraacuteter apetitivo deve ser refutado na figura de Caacutelicles (OLYMPIODORUS 1998 p 195)

134

35 ndash A retoacuterica da alma

No Goacutergias o recurso ao mito (que aparece em 492e ss) permite que a personagem

de Soacutecrates discorra filosoficamente sobre esferas que natildeo podem ser atestadas ou

verificadas A existecircncia da alma como instacircncia que congrega faculdades distintas e da

equaccedilatildeo somasema satildeo postulados atribuiacutedos a um engenhoso homem (kompsoacutes aneacuter)

Siciliano ou Itaacutelico Natildeo se trata de um filoacutesofo mas de um mitoacutelogo cuja identidade como

o demonstram Dodds (1986 p 297) Burkert (1972 p 248) e Huffman (1998 p 404 ss)

natildeo pode ser conhecida Segundo a alegoria da narrativa a alma eacute uma instacircncia complexa

e possui uma parte que eacute sede dos apetites (epithymiacuteai) e que em funccedilatildeo do seu

desregramento e da insaciabilidade eacute comparada a um tonel furado No mundo invisiacutevel o

Hades os miseraacuteveis satildeo os natildeo-iniciados eternamente condenados a encher toneacuteis furados

com crivos A alma dos irrefletidos seria como uma peneira que nada reteacutem por causa da

descrenccedila e do esquecimento (493b-d)

Por que Soacutecrates interrompe a linha argumentativa do eacutelenkhos com imagens que

ele mesmo reconhece como algo estranhas (ti aacutetopa) Qual a razatildeo do emprego em uma

argumentaccedilatildeo complexa com um interlocutor resistente e hostil de uma narrativa que o

proacuteprio Soacutecrates antecipa como impotente para persuadir Caacutelicles de que uma vida bem

ordenada eacute preferiacutevel agrave vida incontida e insaciaacutevel

A narrativa lanccedila matildeo de um acervo tradicional de crenccedilas que segundo Burkert

(1972 p 249) satildeo semelhantes aos escritos do papiro de Derveni Carl Huffman alega por

outro lado que a noccedilatildeo de uma alma que constitui a sede de todas as faculdades psiacutequicas e

do pensamento eacute posterior a Filolau de Croacutetona cuja concepccedilatildeo de alma eacute muito mais

restritiva Independentemente da fonte do mito seus elementos remontam ao que Vernant

(1987 p 89 ss) chama de ldquomisticismo gregordquo uma corrente de grupos fechados associados

135

a uma busca de imortalidade bem-aventurada obtida mediante a observaccedilatildeo de uma regra

de vida pura reservada aos iniciados

O uso filosoacutefico de um acervo miacutetico concerne a um estoque de crenccedilas que

moldam o quadro mental da cidade e representa segundo Brisson (1994 p 28) um

ldquoinventaacuterio indissociaacutevel de um sistema de valoresrdquo cuja importacircncia determina sua

conservaccedilatildeo em memoacuteria coletiva Mas eacute tambeacutem um meio que confere significaccedilatildeo para

a atitude socraacutetica que preceitua a regra de que eacute preferiacutevel sofrer injusticcedila a cometecirc-la

Atitude incompatiacutevel com a expectativa coletiva de se fazer bem aos amigos e mal aos

inimigos

A referecircncia recorrente a uma antiga tradiccedilatildeo que aparece no Feacutedon justifica a

inflexatildeo que o proacuteprio Platatildeo opera na homologia entre a Filosofia e a iniciaccedilatildeo esboccedilando

modos concorrentes de interpretar e re-significar um acervo de saberes potecircncias crenccedilas

afetos e imagens religiosas em uma transposiccedilatildeo determinante para a mentalidade de um

novo gecircnero de vida e um novo tipo de eacutethos A homologia entre o biacuteos dos cultos de

misteacuterio e suas correspondentes imagens miacuteticas exigidos para a iniciaccedilatildeo indica que a

significaccedilatildeo eacutetico-poliacutetica aportada pelo exerciacutecio filosoacutefico natildeo encontra referentes no

mundo fiacutesico mas somente num acervo compartilhado de crenccedilas e afetos que modelam os

quadros mentais de uma comunidade valores coletivos que configuram o psiquismo

norteador para as percepccedilotildees e o agir humanos (WINKELMAN 2010 p 14 ss)

Assim como na chamada antiga tradiccedilatildeo (palaiograves loacutegos - Feacutedon 70c) dos misteacuterios

haacute uma transmissatildeo iniciaacutetica para que os puros encontrem a bem-aventuranccedila no Hades na

Filosofia haacute o exerciacutecio cataacutertico da vida virtuosa e do pensamento depurado A pureza

ritual eacute assimilada aos raciociacutenios isolados das sensaccedilotildees corporais a alma raciocina mais

136

belamente quando despreza os sentidos e foge das sensaccedilotildees corporais e procura o mais

possiacutevel isolar-se em si mesma e tornar-se si mesma (dzēteicirc degrave autḗ kath‟autḗn giacutegnesthai)

Este isolamento da alma atraveacutes dos raciociacutenios (logiacutedzesthai) eacute correlato ao modo

de aquisiccedilatildeo do conhecimento e da manifestaccedilatildeo da realidade daquilo que ocupa o

pensamento A grandeza a sauacutede a forccedila e a realidade (tēs ousiacuteas) de todas as coisas e o

que cada uma delas eacute em si mesma exigem uma cataacutertica das sensaccedilotildees (taacutes aistheacutetaacute)

Somente o pensamento em si mesmo (autḗ tḗ diacircnoia) o pensamento sem mistura isolado

e sem comunhatildeo com o corpo pode sair agrave caccedila (epikheiroicirc thēreuacuteein thēreuacuteein tōn oacutentōn)

dos seres da verdade e da inteligecircncia purificada (phroacutenēsin) A purificaccedilatildeo anunciada por

um filoacutesofo genuiacuteno (Feacutedon 65b-67e) representa o sumaacuterio daquilo que jaacute representa uma

transposiccedilatildeo em relaccedilatildeo aos ritos purificatoacuterios das seitas de misteacuterio

Pierre Boyanceacute (1994 85-95) correlaciona esta ascese filosoacutefica a um acervo oacuterfico

cujo escopo seria a separaccedilatildeo dos elementos titacircnicos da psykheacute de sua parte divina O

discurso que Soacutecrates consigna a um anocircnimo descreve um caminho sagrado purificatoacuterio

uma trilha (atrapoacutes) que demarca o itineraacuterio da razatildeo e da investigaccedilatildeo O alvo da

investigaccedilatildeo eacute identificado com a verdade e seu princiacutepio de accedilatildeo com um apetite pela sua

posse (me pote ktēsōmetha hikanōs hougrave epithymoucircmen) Na prescriccedilatildeo iniciaacutetica do filoacutesofo

genuiacuteno haacute uma concepccedilatildeo quase material de que a alma estaacute dispersa como sopro nos

elementos corporais e que a sua mistura com o corpo engendra toda sorte de males e

impedimentos para a aquisiccedilatildeo da verdade e a caccedila aos seres A mistura da alma ao corpo

segue na esteira do mito de Dioniso Zagreu esquartejado e devorado pelos Titatildes Natildeo

obstante a trilha iniciaacutetica descrita no Feacutedon natildeo promove a separaccedilatildeo dos elementos

divinos do elemento corporal titacircnico mediante ritos purificatoacuterios Em vez disso a

exaltaccedilatildeo iniciaacutetica daacute lugar a um apetite pelo pensamento purificado a phroacutenesis Haacute uma

137

homologia entre o caminho sagrado dos ritos iniciaacuteticos e a trilha filosoacutefica Todavia o

alvo deste itineraacuterio natildeo eacute mais a pureza ritual mas a posse da verdade e o pensamento

isolado do corpo

A purificaccedilatildeo teleacutestica tem como finalidade a remoccedilatildeo das faltas do miasma que

determina o destino futuro apoacutes a morte Como afirma Vernant (1994 p 107) ldquoo miasma

se purifica sempre com uma lavagem mas tambeacutem bdquose consome‟ bdquoadormece‟ bdquose

dispersa‟ Eacute uma mancha e tambeacutem uma coisa que rouba um bdquopeso‟ uma bdquodoenccedila‟ uma

perturbaccedilatildeo bdquouma ferida‟ bdquoum sofrimento‟

O vocabulaacuterio indica que Platatildeo se apropria de uma tradiccedilatildeo filosoacutefica associada agraves

praacuteticas rituais de lustraccedilatildeo como os misteacuterios de Elecircusis e outras praacuteticas iniciaacuteticas

comodamente rotuladas de oacuterficas Assim como as faltas os crimes de sangue ou a

impiedade transmitem-se numa cadeia de impureza a purificaccedilatildeo estaacute relacionada agrave

transmissatildeo iniciaacutetica a ritos que suscitam a passagem de um estado para outro mais

elevado Essa transmissatildeo consolida todo um gecircnero de vida modelado por exerciacutecios

espirituais A iniciaccedilatildeo tal como o miasma pressupotildee uma cadeia de transmissatildeo que

remonta agrave antiga tradiccedilatildeo o princiacutepio e a fonte da pureza

No seu comentaacuterio agraves lacircminas de ouro oacuterficas Giovanni Carratelli observa que as

instruccedilotildees mortuaacuterias objetivam servir de guia para que a alma do iniciado seja liberta das

faltas mediante a iniciaccedilatildeo (myacuteēsis) Os ritos compreendem instruccedilotildees foacutermulas de

reconhecimento (syacutenthēma) ou palavras de passe o segredo provas dolorosas

(pathḗmatha) e a referecircncia constante a Mneacutemosyne personificaccedilatildeo divina da memoacuteria Haacute

o importante papel do guia o mystagogos na conduccedilatildeo de estatutos diversos entre os

recipiendaacuterios os Baacuteckhoi satildeo superiores aos myacutestai A palavra de passe ou a foacutermula de

reconhecimento pressupotildee o exerciacutecio menemocircnico que faculta o conhecimento da origem

138

divina anterior agrave vida terrestre As expiaccedilotildees e as lustraccedilotildees cataacuterticas suscitam a

prevalecircncia do elemento divino da alma Na lacircmina mortuaacuteria encontrada na necroacutepole de

Hipocircnio em uma tumba datada no fim do seacutec V encontram-se as instruccedilotildees

Tu iraacutes na morada bem construiacuteda de Hades agrave direita haacute uma

fonte

ao lado dela se ergue um cipreste branco

eacute laacute que descem as almas dos mortos e onde elas se refrescam

Desta fonte tu natildeo te aproximaraacutes

Mas mais adiante tu encontraraacutes uma aacutegua fria que corre

do lago de Mnemosyacutene acima dela se encontram guardas

Eles te interrogaratildeo em seguro discernimento

porque tu exploras as trevas de Hades obscuro

Dize bdquoEu sou filho da Terra e do Ceacuteu estrelado

Eu queimo de sede e desfaleccedilo Decirc-me raacutepido

De beber da aacutegua fria que vem do lago de Mnemosyacutene‟

E eles te interrogaratildeo pelo querer do rei ctocircnico

Eles te daratildeo de beber do lago de Mnemosyacutene

E tu quando tiveres bebido percorreraacutes a via sagrada

Sobre a qual tambeacutem os outros mystai e baacuteckhoi avanccedilam na

gloacuteria 97

(I A 1 9-11)

Como observa Radcliffe Edmonds (in CASADIO 2010 p 72 ss) as referecircncias a

Perseacutefone a Mnemosyacutene e a Dioniso tem levado os historiadores da religiatildeo grega a rotular

as instruccedilotildees iniciaacuteticas contidas nas lacircminas funeraacuterias de ouro como oacuterficas baacutequicas

egiacutepcias e pitagoacutericas ou ainda eleusinas Embora alguns editores correlacionem as

instruccedilotildees das lacircminas de ouro a uma katabasis que remontaria a um poema oacuterfico ou a um

livro dos mortos pitagoacuterigo Edmonds salienta que infortunadamente os textos

escatoloacutegicos satildeo excessivamente vagos para identificaacute-los precisamente com alguma

vertente religiosa

Muitos eruditos esforccedilam-se no sentido de encontrar um estema de influecircncias que

permita delimitar suas origens em certos contextos Mas as imagens miacuteticas e alusotildees ao

misticismo grego que aparecem em Platatildeo sugerem um emprego caleidoscoacutepico de

97 Traduccedilatildeo de Giovanni P Carratelli (2003 p 35)

139

elementos tradicionais que varia segundo o movimento de cada diaacutelogo Para o inteacuterprete

dos diaacutelogos o contexto eacute a suma tradicional das seitas de misteacuterio gregas

Para Giovanni Casadio se haacute uma fronteira ndash e isto estaacute aleacutem de questatildeo ndash que

demarca os limites entre Dionisismo (uma realidade concreta) e o Orfismo (uma realidade

muito mais nebulosa) noacutes somos incapazes de determinar precisamente onde esta fronteira

se encontra (CASADIO 2010 p 36-37) Mais do que estabelecer distinccedilotildees canocircnicas

entre dionisismo orfismo ou pitagorismo cumpre focar os esquemas invariantes de

pensamento nas seitas de misteacuterio e as homologias correspondentes que emergem no

movimento dramaacutetico-dialoacutegico dos mitos platocircnicos

A personificaccedilatildeo da memoacuteria relaciona-se com o rito de purificaccedilatildeo pela aacutegua que

permite o acesso agrave via sagrada A purificaccedilatildeo propiciada pela memoacuteria ressalta a primazia

do pensamento nocircus na experiecircncia iniciaacutetica que ascende o aspirante agrave alḗtheia A

foacutermula de reconhecimento eu sou filho da Terra e do Ceacuteu estrelado identifica o aspirante

com a estirpe divina e sugere sua purificaccedilatildeo ritual preacutevia ela serve como palavra de passe

que garante o acesso agrave divindade A katabasis descrita na lacircmina funeraacuteria alude ao

cumprimento de uma purificaccedilatildeo preacutevia pressuposta agrave prova da passagem e ao esforccedilo

vinculado a uma potecircncia psiacutequica personificada em Mnemosyacutene Platatildeo se apropria desse

acervo da antiga tradiccedilatildeo com a finalidade protreacuteptica de apresentar a Filosofia como um

exerciacutecio de morte e a kaacutetharsis como purificaccedilatildeo do pensamento

A verdade a realidade da sabedoria da justiccedila da coragem

consistem sem duacutevida em uma purificaccedilatildeo de todas as coisas e o

proacuteprio pensamento (phroacutenēsis) natildeo eacute senatildeo um meio de

purificaccedilatildeo Haacute uma grande chance de que aqueles que

estabelecerem entre noacutes as iniciaccedilotildees natildeo tenham sido homens

fracos Mas a realidade dos seres deve ser oculta em enigmas

(ainiacutettesthai) quando eles dizem que ldquoaquele que chega no Hades

sem ter conhecido os misteacuterios sem ser iniciado aquele seraacute

140

deitado na lama mas aquele que foi purificado e iniciado uma vez

laacute chegando habitaraacute com os deuses De fato como dizem aqueles

que tratam das iniciaccedilotildees ldquonumerosos satildeo os portadores de tirso

(narthekophoacuteroi) raros os Baacutekkhoi

(Feacutedon 69b12-c2)

A distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os impuros e os puros de um lado e entre os myacutestai e

os baacutekkhoi de outro indica a tese protreacuteptica de apresentar a Filosofia como um exerciacutecio

iniciaacutetico de ascensatildeo ao princiacutepio uacuteltimo da realidade dos seres A purificaccedilatildeo eacute transposta

para a purificaccedilatildeo do pensamento e das virtudes por meio da phroacutenesis A homologia entre

o segredo e a realidade posta sob forma enigmaacutetica para evitar a apropriaccedilatildeo por aqueles

que natildeo passaram pelo longo exerciacutecio cataacutertico eacute mantida natildeo ser puro e se apossar do

que eacute puro e de fato eacute preciso temecirc-lo eacute algo interdito (ou themitoacuten Feacutedon 67b01)

Todavia a menccedilatildeo aos portadores de tirso e baacutekkhoi no Feacutedon suscita

controveacutersias A qual tradiccedilatildeo se refere o passo Quais satildeo os ritos e qual eacute o contexto que

suscita a analogia entre iniciaccedilatildeo aos misteacuterios e iniciaccedilatildeo filosoacutefica Ana J Cristoacutebal em

um instigante estudo acerca do campo semacircntico das expressotildees baacutekkhos e bakkheuacuteein

indica que os termos possuem significados diferentes entre os ciacuterculos reconhecidos como

oacuterficos e o culto a Dioniso Baacutekkos e baacutekkhoi satildeo denominaccedilotildees daqueles que passaram por

ritos purificatoacuterios ou extaacuteticos vinculados a Dioniso Tais ritos induzem a um estado

miacutestico de intensa afetividade decorrente da exaltaccedilatildeo e entusiasmo provocado pelo deus

Baacutekkos eacute o atributo de um seguidor de Dioniso Bakkhos O verbo bakkheuacuteein por outro

lado denota a possessatildeo divina e dentre todos os testemunhos somente Euriacutepides o

emprega no sentido de adoraccedilatildeo a Dioniso A accedilatildeo de bakkheuacuteein descreve

simultaneamente os afetos experimentados no transe delirante e a performance ritual que

envolve procissotildees carregar e agitar tirsos ornamentados gritos sacrificiais (eyoicirc) danccedila e

vinho (CASADIO 2010 p 46-60)

141

A terminologia empregada na inscriccedilatildeo da lacircmina de Hipocircnio evidencia que as

expressotildees myacutestai e baacutekkhoi pertencem a um acervo cultural comum de imagens que

configura o mesmo pano de fundo para a classe geral dos cultos de misteacuterio As instruccedilotildees

funeraacuterias evocam uma ascensatildeo iniciaacutetica na via sagrada para que o recipiendaacuterio seja

acolhido entre os bem-aventurados gloacuteria reservada aos puros que passaram pelas provas

Somente os puros possuem a potecircncia psiacutequica unificadora da memoacuteria condiccedilatildeo para o

proferimento da palavra de passe o syacutentema e o conhecimento da aleacutetheia reservado aos

baacutekkhoi mediante o inaudito ndash os apoacuterrheta Como salienta Boyanceacute as purificaccedilotildees

oacuterfico-pitagoacutericas referenciam-se no mito de Dioniso Zagreu desmembrado pelos Titatildes e

podem perfeitamente coexistir com rituais baacutequicos de livramento com hinos danccedilas

coros e a alegria extaacutetica as paidiaacute hēdonōn censuradas por Platatildeo como um tipo de

orfismo baacutequico

Eles produzem uma multidatildeo de livros de Museu e Orfeu filhos da

Lua e das Musas diz-se Eles regram seus sacrifiacutecios sob a

autoridade destes livros e fazem acreditar natildeo somente aos

particulares mas agrave cidade que se pode pelos sacrifiacutecios e jogos

prazerosos (paidiaacutes hēdonōn) ser absolvidos e purificados de seu

crime enquanto vivo e mesmo apoacutes sua morte Eles chamam

iniciaccedilotildees estes ritos (teletaacutes) que nos livram de males no outro

mundo e que natildeo se pode sacrificar sem esperar terriacuteveis supliacutecios

(Repuacuteblica 364 e ndash 365 a)

Boyanceacute assimila as teletai com os misteacuterios de Elecircusis Mas como evidencia a

exegese do comentador de Derveni a criacutetica agrave degeneraccedilatildeo do viacutenculo entre longas praacuteticas

de exerciacutecio espiritual e do papel da inteligecircncia na busca pela verdade com o segredo e a

transmissatildeo oral de uma sabedoria jaacute fazia parte da reflexatildeo filosoacutefica preacute-socraacutetica No

Teeteto (155e-156a) Platatildeo adverte en passant que o jovem olhe em derredor para que

natildeo aconteccedila que algum natildeo iniciado ouvisse o que era dito Este cuidado indica a

transposiccedilatildeo filosoacutefica do estatuto iniciaacutetico para a investigaccedilatildeo terapecircutica operada pela

142

Filosofia que exige a preparaccedilatildeo da alma A separaccedilatildeo dos elementos titacircnicos operada

pela encantaccedilatildeo musical e da harmonia de afetos coexiste com as praacuteticas cultuais de

exaltaccedilatildeo baacutequica dionisiacuteaca e com a ventura eleusina

A tensatildeo entre a multidatildeo dos portadores de tirso e os poucos bakkhoi sugere uma

gradaccedilatildeo entre narthēkophoacuteroi e iniciados No Goacutergias a oposiccedilatildeo entre os ininteligentes

natildeo-iniciados (anoḗtous amyacuteetous Goacutergias 493a07) e os myacutestai aponta para uma

polarizaccedilatildeo radical entre seres irrefletidos que se entregam aos apetites e aqueles que

buscam a proporccedilatildeo harmocircnica da alma

A tradiccedilatildeo pitagoacuterica vinculada a Alcmeacuteon de Croacutetona define a sauacutede como

isonomia e como mistura simeacutetrica de qualidades (tḗn syacutemmetron tōn poiōn kraacutesin) A

harmoniacutea resulta de um equiliacutebrio ao mesmo tempo espacial e temporal e nesse sentido haacute

uma equivalecircncia semacircntica kairoacutes-syacutemmetros o momento oportuno num arranjo

ordenado Kairoacutes symmetriacutea e eurythmiacutea configuram uma percepccedilatildeo refinada de

harmonia A noccedilatildeo de symmetriacutea se desdobra entre os preacute-socraacuteticos como proporccedilatildeo ou

uma identidade de relaccedilotildees A transposiccedilatildeo de semelhanccedila de relaccedilotildees se desdobra na

analogia identidade ou semelhanccedila de loacutegoi A funccedilatildeo da analogia consiste em remeter

uma multiplicidade de loacutegoi a uma unidade Funccedilatildeo unificadora a proporccedilatildeo geomeacutetrica e

a expressatildeo matemaacutetica da identidade de relaccedilotildees designam outro aspecto correlato da

harmonia a noccedilatildeo de mediania o meacuteson o meio-termo ndash mēsoacutetēs ndash que se estende para o

acircmbito da psykheacute como metreacutetica dos afetos A medida do tempo e o esforccedilo de conciliaccedilatildeo

entre o periacuteodo lunar e o solar engendram o problema matemaacutetico e geomeacutetrico da

comensurabilidade A harmocircnica pitagoacuterica conecta simultaneamente noccedilotildees qualitativas e

quantitativas temporais e espaciais ritmo e consonacircncia musical com o equiliacutebrio de

opostos no corpo na alma e na cidade (PERILLEacute 2005 p 24-65)

143

A menccedilatildeo ao Hades indica que os mitos escatoloacutegicos discorrem sobre o invisiacutevel

(Feacutedon 81c Craacutetilo 404b) sobre a natureza da alma seu destino futuro e seu papel na

economia cosmoloacutegica Em particular a passagem do Goacutergias postula o fato de que a alma

eacute complexa e que os apetites satildeo atributos psiacutequicos e natildeo corporais

Segundo Olimpiodoro o mito filosoacutefico eacute elaborado para que o invisiacutevel seja

inferido a partir do visiacutevel e aparente Como a alma natildeo eacute constituiacuteda somente pelo

pensamento mas tambeacutem pelos afetos e desejos o discurso deve ser multifacetado de

modo a corresponder a cada esfera psiacutequica Uma estrutura psiacutequica complexa exige uma

inteligecircncia complexa que por sua vez pressupotildee uma estrutura discursiva complexa

Conforme a tese claacutessica de Pierre Boyanceacute adotada pela maioria dos inteacuterpretes

que abordam os mitos platocircnicos o principal efeito da narrativa miacutetica eacute a ldquoencantaccedilatildeordquo

(epoidḗ) o efeito cataacutertico e terapecircutico irresistiacutevel do charme O mito filosoacutefico eacute o

discurso que expressa um pensar por imagens que eacute endereccedilado agrave parte afetiva da psykheacute

Em funccedilatildeo de sua accedilatildeo eficaz sobre os afetos o mito exerce uma accedilatildeo persuasiva que

consolida os postulados inverificaacuteveis que conferem significaccedilatildeo para as accedilotildees praacuteticas

A alegoria do tonel furado como nota Vernant eacute uma alusatildeo agrave condenaccedilatildeo infligida

agraves Danaides Segundo Apolodoro (II 1 5) na sua noite de nuacutepcias as filhas de Dacircnao em

colusatildeo com o pai decapitam seus maridos e primos filhos de Egito Por causa disso os

juiacutezes divinos condenaram-nas a encher eternamente toneacuteis furados no Hades

Carl Kereacutenyi alude ao fato de que o casamento eacute para os gregos um importante

teacutelos que demarca um rito de passagem (1998 p 46) As penas eternas indicam uma falta

vinculada agrave ausecircncia de teacutelos de completaccedilatildeo ou iniciaccedilatildeo

A iniciaccedilatildeo eacute transposta por Platatildeo em exerciacutecio filosoacutefico no esforccedilo que culmina

na phroacutenesis no pensamento puro que implica o isolamento psiacutequico No Goacutergias as

144

almas dos natildeo iniciados satildeo como toneacuteis furados que nada retecircm por descrenccedila e

esquecimento (493b) A ausecircncia de teacutelos eacute segundo Vernant (1990 p 146 ss)

indissociaacutevel do esquecimento que implica o ciclo do devir e da necessidade O

esquecimento representa a imersatildeo no eterno ciclo do tempo o eterno recomeccedilo a roda do

nascimento que faz com que a alma tome o breve instante da vida como se fosse totalidade

do tempo O mal supremo para a alma consiste em tomar a causa de um afeto violento

como se fosse a realidade mais verdadeira (Feacutedon 83c)

A transposiccedilatildeo filosoacutefica operada por Platatildeo insere o esquecimento e a memoacuteria

numa teoria do conhecimento que seraacute desenvolvida a partir do Meacutenon e do Feacutedon A

ameacuteleia ou ausecircncia de inquietaccedilatildeo configura o estado psiacutequico da vida voltada para os

apetites em detrimento da anaacutemenesis que suscita o exerciacutecio filosoacutefico que culmina na

inteligecircncia das verdades eternas A anaacutemenesis tende para o teacutelos que implica a visatildeo

unificada da totalidade do tempo pacircs khroacutenos

Na transposiccedilatildeo platocircnica meleacutete thanaacutetou eacute o exerciacutecio de morte mencionado no

Feacutedon pelo qual o pensamento puro eacute isolado da inconstacircncia do devir e da eterna

insaciabilidade dos apetites A menccedilatildeo breve do Goacutergias anuncia postulados ingressivos

que comporatildeo ao longo das obras centrais de Platatildeo uma visatildeo cosmoloacutegica unificada na

qual as questotildees eacuteticas satildeo abarcadas no domiacutenio mais amplo de uma epistemologia e

psicologia que por sua vez satildeo alicerccediladas numa ontologia

As imagens subsequentes correlacionam modos de vida excludentes com o

regramento e desregramento Um gecircnero de vida eacute representado por um homem que possui

toneacuteis repletos de conteuacutedos valiosos e que por isso natildeo se preocupa e se aquieta o outro eacute

representado por um homem cujos toneacuteis satildeo furados e que por isso eacute forccedilado agrave atividade

penosa de preenchecirc-los incessantemente O gecircnero de vida eacute determinado pela constituiccedilatildeo

145

psiacutequica que define um tipo de homem A alma temperante possui a inteligecircncia da ordem e

do regramento A inteligecircncia institui ordem naquilo que eacute desregrado A alma epitymeacutetica

eacute aquela inexoravelmente voltada para a repleccedilatildeo do vazio para o movimento sempre

renovado de uma saciedade que eacute continuamente relanccedilada na efemeridade do tempo

(DIXSAUT 2001 p 138) Desejo que nenhum recipiente pode conter esquecimento de

todo teacutelos o apetite eacute um estado penoso (Goacutergias 496d) que nunca se aquieta com a posse

do alvo desejado e que por isso reclama ausecircncia de limites

Por conseguinte mesmo que algueacutem seja de outro ponto de

vista na verdade aquele que realmente eacute tirano eacute realmente

escravo vive no cuacutemulo da bajulaccedilatildeo e da escravidatildeo e eacute adulador

dos maiores malfeitores Ele natildeo satisfaz de nenhum modo seus

desejos mas apareceria inteiramente desprovido de todas as coisas

e pobre se pudeacutessemos considerar a inteireza de sua alma Ele

extravasa de medo ao longo de toda a sua vida e eacute repleto de

sobressaltos e sofrimentos se de fato se assemelha agrave disposiccedilatildeo da

cidade que dirige

(Repuacuteblica 579e)98

Mas como pode se justificar a conexatildeo entre a inteligecircncia e o regramento Somente

a ordenaccedilatildeo e o regramento podem segundo Soacutecrates modelar uma visatildeo unificada que

vincula o ceacuteu a terra os deuses e os homens num conjunto articulado numa comunidade

cingida pela amizade ou amor da ordem (Goacutergias 507e-508a)

A lei universal que governa todas as esferas do kosmos que dirige ao mesmo

tempo o plano eacutetico-poliacutetico e a physis eacute a igualdade geomeacutetrica ndash todo-poderosa (mega

dyacutenatai) tanto entre os deuses como entre os homens O gecircnero de vida filosoacutefico norteia-se

pelo postulado de que haacute um princiacutepio unificador que cinge todo o kosmos o humano e o

divino segundo uma ordenaccedilatildeo matemaacutetica

98 Trad de Pierre Pachet (1993 p 466)

146

Walter Burkert (1972 78 n 156) Dodds (1959 339) Vlastos (1981 195 n 119) e

Irwin (1979) concordam que Platatildeo estaacute fazendo uma referecircncia direta a Arkhytas de

Tarento nas passagens em que satildeo mencionadas a geometria e a proporccedilatildeo no Goacutergias De

acordo com Carl Huffman um proeminente tema do final do pensamento do seacutec V aC

conecta a ambiccedilatildeo pleonexiacutea com o que eacute por natureza em contraste com o que eacute por

convenccedilatildeo Para Arkhytas a pleonexiacutea eacute a maior causa de discoacuterdia e instabilidade poliacutetica

do seu tempo A pleonexiacutea eacute associada com o abuso de poder tanto por um tirano quanto

por uma oligarquia rica Para combatecirc-la eacute necessaacuterio natildeo somente a lei mas a logistikeacute a

ciecircncia do caacutelculo e da geometria

No Goacutergias a pleonexiacutea de Caacutelices eacute explicada em termos da negligecircncia da

geometria e da igualdade geomeacutetrica No fragmento 3 (Stobeu e Jacircmblico) da ediccedilatildeo de

Huffman a igualdade que resulta do caacutelculo das proporccedilotildees como cura para a pleonexiacutea eacute

notavelmente paralela agrave do Goacutergias

Pois eacute necessaacuterio tornar-se ciente sendo insciente ou aprendendo

de um outro ou descobrindo por si mesmo Aprendendo a partir de

outro pertence a outro enquanto descobrindo por si mesmo

pertence a si mesmo Descoberta enquanto natildeo investigada eacute

difiacutecil e infrequumlente mas enquanto investigada faacutecil e frequumlente

mas se algueacutem natildeo sabe ltcomo calculargt (logiacutezdestai) eacute

impossiacutevel investigar

Uma vez que o caacutelculo foi descoberto impede a discoacuterdia e

aumenta a concoacuterdia Pois natildeo procuram ganacircncia desmedida

(pleonexiacutea) e igualdade existe uma vez que isto veio a ser Pois por

meio do caacutelculo (proporccedilatildeo) veremos reconciliaccedilatildeo em nossas

transaccedilotildees com os outros Por causa disso entatildeo o pobre recebe

do poderoso e o rico daacute para o necessitado ambos crendo que

haveraacute igualdade Isto serve como um cacircnon e um impedimento

para a injusticcedila Impede aqueles que sabem como calcular antes

que eles cometam injusticcedila persuadindo-os que eles natildeo poderatildeo

ficar ocultos sempre que eles aparecem para ele (o cacircnon) Impede

aqueles que natildeo sabem como calcular de cometer injusticcedila tendo

revelado a eles como injustos por meio dele (do caacutelculo) (STOBEUS IV 1139 IAMBLIKHUS Sobre a ciecircncia matemaacutetica

geral II 4410-17 apud HUFFMAN 2005 p 183)

147

O verbo pleonekteacuteō significa ter mais levar vantagem ter ganacircncia e o substantivo

pleonexiacuteaindica o iacutempeto depossuir mais do que o devido ambiccedilatildeo vantagem injusta

arrogacircncia Mas Platatildeo se apropria do viacutenculo estabelecido por Arkhytas entre a

organizaccedilatildeo poliacutetica e a matemaacutetica para promover uma generalizaccedilatildeo que ascende a uma

visatildeo unificada do kosmos e usa o termo ldquoigualdade geomeacutetricardquo num sentido muito mais

geral como equivalente a proporccedilatildeo ou regramento geomeacutetrico

A pleonexiacutea a negligecircncia do regramento geomeacutetrico que unifica o kosmos

constitui a fonte de todas as injusticcedilas A investigaccedilatildeo sobre a origem dos apetites e a

relaccedilatildeo destes com a inteligecircncia estabelece a alma como princiacutepio de accedilatildeo e causa da

justiccedila e da injusticcedila Ao postular um viacutenculo entre o domiacutenio da praacutexis e o da Natureza

pelo regramento geomeacutetrico Platatildeo estabelece o primado da alma como causa e da

inteligecircncia como condiccedilatildeo da kosmiacutea

O desenvolvimento da concepccedilatildeo de que a alma configura uma instacircncia complexa

cuja causalidade eacute intriacutenseca agrave natureza desejante estende o acervo conceptual pitagoacuterico

concernente agrave harmonia ao postulado fundamental de que a harmonia eacute uma inscriccedilatildeo a

posteriori de modalidades diversas de arranjo psiacutequico conferidas pelas proacuteprias escolhas

Em Platatildeo a alma eacute causa de sua proacutepria natureza e princiacutepio de harmonizaccedilatildeo

Essa subversatildeo nocional seraacute decisiva na causalidade platocircnica e no estabelecimento da

funccedilatildeo mediadora da alma entre o devir e a realidade inteligiacutevel

No Feacutedon Platatildeo inaugura a concepccedilatildeo de que uma harmonia de elementos

materiais pressupotildee a possibilidade de gradaccedilotildees diversas segundo o maior ou menor grau

de consonacircncia dos elementos Quanto maior for a combinaccedilatildeo maior seraacute a harmonia

148

Se a alma fosse uma harmonia de elementos materiais uma alma carregada de

viacutecios seria menos harmoniosa do que uma alma virtuosa e por conseguinte seria menos

alma o que natildeo pode ser admitido Em contrapartida se natildeo haacute uma alma que seja menos

alma que outra entatildeo natildeo haacute harmonia que seja mais intensa que outra ou seja uma

mesma harmonia natildeo pode participar ao mesmo tempo da harmonia e da ausecircncia de

harmonia Aleacutem disso a alma natildeo pode ter um estatuto secundaacuterio em relaccedilatildeo ao corpo A

alma natildeo deriva nem obedece aos processos corporais mas como sede da razatildeo regra pelo

domiacutenio dos desejos as necessidades corporais Como a alma natildeo segue aos impulsos

determinados pelos elementos em tensatildeo no corpo mas os domina e tem mestria sobre eles

a sua natureza eacute diferente das dos elementos do corpo e por isso a alma natildeo pode ser uma

harmonia ela possui harmonia Platatildeo transpotildee o conceito material de harmonia para a sua

concepccedilatildeo de consonacircncia e afinidade com o divino Essa transposiccedilatildeo enseja o argumento

de que a alma eacute princiacutepio de regramento e tende a assemelhar-se com as Formas

Toda a discussatildeo acerca das causas que daacute origem agrave concepccedilatildeo das Formas estaacute

calcada numa criacutetica a concepccedilotildees pitagoacutericas sobretudo as de Alcmeacuteon e de Filolau Haacute

causas necessaacuterias e causas uacuteltimas verdadeiras Os quatro elementos da physis e as

relaccedilotildees numeacutericas inteligiacuteveis satildeo necessaacuterios para a inteligecircncia mas natildeo se identificam

com o inteligiacutevel As verdadeiras causas satildeo as ldquocoisas em si mesmasrdquo ordenadas e

harmonizadas segundo o Bem O meio de inteligibilidade do kosmos eacute a phroacutenesis cuja

sede eacute a alma As relaccedilotildees numeacutericas indispensaacuteveis para a inteligibilidade natildeo satildeo

intriacutensecas agraves coisas nem a harmonia configura uma consonacircncia de coisas mas estatildeo no

acircmbito da psykheacute e constituem uma consonacircncia com as Formas causas fundamentais de

todas as coisas

149

36 Julgamento e nudez

O mito de julgamento do Goacutergias alude ao tempo primordial de Kroacutenos no qual a lei

da justa retribuiccedilatildeo foi instituiacuteda O destino futuro da alma depende da natureza de suas

accedilotildees pregressas A conexatildeo causal infrangiacutevel que rege ateacute mesmo os deuses estabelece a

correspondecircncia entre o estado psiacutequico e a praacutexis eacutetico-poliacutetica A bem-aventuranccedila ou os

sofrimentos a felicidade ou a infelicidade derivam dos princiacutepios da accedilatildeo O estado

caoacutetico representado pelo Taacutertaro prisatildeo das potecircncias coacutesmicas da violecircncia e da

desordem reflete a proacutepria natureza da alma Assim como haacute uma homologia estrutural

entre a alma do tirano e as disposiccedilotildees da cidade que governa haacute uma homologia entre a

desordem coacutesmica e a natureza psiacutequica do agente injusto

Todavia neste tempo primordial que remete ao primado do Intelecto noucircs os juiacutezes

vivos referenciavam seus criteacuterios no mesmo plano da vida e do devir e seus decretos eram

promulgados no proacuteprio tempo das accedilotildees submetidas a julgamento A auto-referecircncia dos

juiacutezos em que o vivo era a medida do vivo implicava o erro e a destinaccedilatildeo incompatiacutevel

com a natureza das almas Uma situaccedilatildeo impediente catastroacutefica eacute anunciada a ameaccedila agrave

validade universal da lei de Kroacutenos Zeus astucioso dentre todos os mediadores o mais

privilegiado diagnostica a causa do mal os julgamentos satildeo distorcidos pelas aparecircncias

das roupagens que ocultavam a verdadeira condiccedilatildeo das almas e interditavam a

perscrutaccedilatildeo de sua natureza pelo olhar

A justiccedila eacute recoberta pelas roupagens dos valores que norteiam a vida praacutetica e os

sinais visiacuteveis testemunhas oculares das sanccedilotildees que determinam os bens ndash o prazer as

riquezas e as honrarias ndash impedem o conhecimento da verdade Para que os julgamentos

possam se desprender dos sinais materiais e possam discernir segundo o melhor valor eacute

preciso referenciar a vida em outra coisa que natildeo seja ela mesma Todas as teacutecnicas

150

discursivas e persuasivas todos os signos de valores fundados na opiniatildeo coletiva satildeo

empregados para forcejar a adesatildeo dos juiacutezes a uma imagem ilusoacuteria de justiccedila

Os proacuteprios juiacutezes natildeo possuem outro acesso agrave investigaccedilatildeo que natildeo sejam

mediados pela falibilidade dos sentidos Diante do diagnoacutestico Zeus prescreve o

expediente astucioso que remediaraacute o mal

Primeiro eacute preciso diz Zeus que os homens cessem de

conhecer de antematildeo a hora da morte Pois agora eles sabem

em qual momento iratildeo morrer Ora eu acabo de dizer a

Prometeu para que lhes retire este conhecimento Em seguida

eacute necessaacuterio que os homens sejam julgados nus despojados

de tudo o que eles tecircm Eacute por isso que se lhes deve julgar

mortos E seus juiacutezes devem estar igualmente mortos nada

aleacutem daquilo que uma alma vecirc em outra alma Que desde o

momento da morte cada um esteja separado de todos os seus

proacuteximos que deixe sobre a terra todo este decoro ndash este eacute o

uacutenico meio para que o julgamento seja justo

(Goacutergias 523d-e)99

O expediente elucubrado por Zeus eacute poacutelo simeacutetrico ao expediente instrumental do

mito de Prometeu no Protaacutegoras A previsatildeo propiciada pela inteligecircncia utilitaacuteria

representada pelo fogo furtado deve ser retirada dos homens pelo filantropo Prometeu A

capacidade de engenho teacutecnico garante natildeo somente a provisatildeo e a compensaccedilatildeo para as

carecircncias humanas mas ocasionam a violecircncia e a injusticcedila endoacutegenas Se a vida do gecircnero

humano soacute pode ser assegurada pela inteligecircncia instrumental engenhosa a existecircncia da

comunidade poliacutetica depende da participaccedilatildeo no par aidoacutes-diacuteke sem a qual ocorre a

desumanizaccedilatildeo inevitaacutevel A retirada da capacidade projetiva implica uma divisatildeo no plano

cronoloacutegico em que se estabelece a consecuccedilatildeo entre accedilatildeo e consequecircncia A separaccedilatildeo

entre o tempo cronoloacutegico da vida e o tempo apoacutes a morte representa a dissociaccedilatildeo entre o

visiacutevel e manifesto e o invisiacutevel oculto

99 Trad de Monique Canto (PLATON 1993 p 304)

151

O corte radical impede a eficaacutecia dos signos exteriores de justiccedila mediados pelas

teacutecnicas do engano e da ilusatildeo Todos os recursos satildeo inelutavelmente abandonados todos

os apegos afetivos satildeo impotentes apoacutes a travessia A remissatildeo a paradigmas absolutos

exige o postulado de que a morte eacute a separaccedilatildeo entre o e a alma Eacute preciso crer na alma

separada e isolada para que se vislumbrem os paradigmas da vida de maior valor

A verdadeira natureza psiacutequica revela-se em funccedilatildeo de suas causas remotas e nada

pode violar a lei causal eacutetico-psiacutequica de Kroacutenos A nudez remove os sinais exteriores do

engano e inverte a relaccedilatildeo entre a ocultaccedilatildeo e a vergonha entre a exposiccedilatildeo e o juiacutezo A

vergonha natildeo depende mais da coerccedilatildeo do olhar coletivo das gestas reputaacuteveis e

censuraacuteveis que configuram os valores da cidade e os noacutemoi humanos A vergonha eacute o

afeto que revela a inadequaccedilatildeo da natureza psiacutequica com sua destinaccedilatildeo final afeto que

deixa de ser prospectivo e passa a ser retrospectivo acerca dos males que poderiam ser

evitados sem a tirania dos apetites

Na planiacutecie invisiacutevel em que as hierarquias da vida satildeo equalizadas no mesmo

meacutetron as foacutermulas de reconhecimento as palavras de passe e a memorizaccedilatildeo de

prescriccedilotildees rituais dos antigos cultos de misteacuterio satildeo transpostas pelo escrutiacutenio imediato

do ldquoolhar da almardquo que vecirc outra alma O discurso sagrado natildeo expressa a natureza proacutepria

do recipiendaacuterio e por isso o sentido enigmaacutetico do discurso polissecircmico perde a

finalidade Somente o olhar perscrutador desembaraccedilado de qualquer obstaacuteculo pode

apreender a verdade dos seres e determinar o loacutecus consonante a cada alma Os verdadeiros

baacutekkhoi natildeo satildeo os que declaram ser puros mas satildeo aqueles que puros resplandecem em

sua proacutepria natureza psiacutequica as ordenaccedilotildees da justiccedila efetivada em vida

A feiuacutera do debochado Tersites (Goacutergias 526e) a chaga do voluptuoso os conflitos

e sofrimentos do tirano apetitivo e as desmedidas dos natildeo-iniciados configuram uma nova

152

acepccedilatildeo da vergonha na qual o feio e o vergonhoso necessariamente implicam-se

mutuamente

No movimento da transposiccedilatildeo iniciaacutetica operado pelas imagens miacuteticas a

autecircntica hyponoacuteia consiste em apreender as grandes verdades que se ocultam subjacentes

aos signos aparentes O filoacutesofo eacute aquele que investiga o regramento coacutesmico e a proporccedilatildeo

geomeacutetrica e os aplica ao regramento dos princiacutepios de accedilatildeo e inteligibilidade da alma A

alma justa eacute a alma bem ordenada consonante com a harmonia coacutesmica (Goacutergias 507a)

Segundo Monique Dixsaut (2001 p 171-173) a uacutenica verdade que o filoacutesofo pode

crer eacute aquilo que o loacutegos lhe significa e natildeo a vida Este loacutegos indica que haacute uma maneira

de viver que eacute a melhor porque concede tempo agrave busca da verdade Todavia as imagens do

mito final apontam para o fato de que a cataacutertica elecircntica do loacutegos filosoacutefico possui a

eficaacutecia de desnudar o interlocutor de suas falsas ilusotildees e envergonhaacute-lo mediante a

contradiccedilatildeo entre as crenccedilas professadas e o gecircnero de vida efetivamente praticado Natildeo

obstante o loacutegos eacute inoperante diante da hostilidade da violecircncia e da ignoracircncia

(apaideusiacutea 527e) O discurso filosoacutefico natildeo assegura a salvaccedilatildeo diante de juiacutezes

desonestos e natildeo evitam o ridiacuteculo e a violecircncia

Mas o verdadeiro filoacutesofo eacute como o piloto cujo papel eacute simultaneamente o de

conduzir em seguranccedila os tripulantes os valores e a si mesmo ao bom porto (Goacutergias

511c-512a) Sua funccedilatildeo eacute a de preservar dos males as almas dos seus concidadatildeos Para

tanto eacute necessaacuteria a retoacuterica da alma que ultrapassa a significaccedilatildeo discursiva para

culminar na inteligecircncia da visatildeo direta de uma alma para outra Quando uma alma observa

outra sem qualquer das mediaccedilotildees sensiacuteveis ela compreende o modo como o tempo

devotado a certo gecircnero de vida que ela julgou digno de ser vivido a afetou e quais marcas

imprimiu em sua qualidade proacutepria (Goacutergias 524d)

153

Se os loacutegoi suscitam o refuacutegio e o mergulho na verdade dos seres (Feacutedon 99e) a

qualidade proacutepria da alma soacute eacute determinada pela instauraccedilatildeo praacutetica da justiccedila poliacutetica Para

exercitar o saber eacute preciso tambeacutem crer mas como dizia o exegeta de Derveni ainda que

se esteja vendo eacute impossiacutevel crer ou aprender sem que se leve em conta as coisas terriacuteveis

(deinaacute) do Hades Natildeo se pode exercitar o saber sem que este seja vivido pois mesmo as

melhores naturezas estatildeo sujeitas agrave perversatildeo do pior gecircnero de apetites Tais satildeo os

apetites que se manifestam em sonhos e suscitam repleccedilatildeo recocircndita daquele que possui

disposiccedilotildees doentias para empreender unir-se agrave proacutepria matildee a qualquer homem deus ou

besta e de manchar-se de qualquer crime por causa da demecircncia e da renuacutencia agrave vergonha

(Repuacuteblica 571d) Assim como a qualidade proacutepria de um ser artefato ou da alma natildeo

resulta do acaso mas do modo como cada um eacute regrado assim tambeacutem a qualidade proacutepria

da alma soacute pode regrar-se atraveacutes da consonacircncia com a proporccedilatildeo geomeacutetrica

indissociaacutevel da accedilatildeo virtuosa que muda as disposiccedilotildees da poacutelis (Goacutergias 506e)

Ao fim e ao cabo de todos os discursos eacute preciso prestar a maior atenccedilatildeo natildeo tanto

em evitar sofrer a injusticcedila mas em natildeo cometecirc-la Eacute necessaacuterio natildeo se aplicar em parecer

bom mas em secirc-lo verdadeiramente tanto em privado como em puacuteblico (Goacutergias 527b)

Nenhum mal pode sobrevir ao homem de bem se ele pratica a virtude (527d) nenhum

ultraje pode envergonhaacute-lo nenhum sofrimento corrompecirc-lo ndash a natildeo ser a possibilidade de

que ele mesmo pratique o mal Toda modalidade discursiva seja a retoacuterica seja o eacutelenkhos

deve servir para a perenidade do justo (527c)

154

IV - NECESSIDADE E ESCOLHA

41 Imagens e causas no mito de Er

No espetaacuteculo de imagens narradas no mito de Er haacute uma proclamaccedilatildeo majestosa

de um Propheacutetes que em nome da virgem Laacutequesis anuncia a coexistecircncia simultacircnea de

noccedilotildees contraditoacuterias de um lado haacute a necessidade inelutaacutevel da ligaccedilatildeo de cada alma com

a vida de outro a radicalidade da escolha como fonte de virtude e imputabilidade

Como conciliar a necessidade inevitaacutevel do periacuteodo de nascimentos e mortes com a

escolha mais determinante Como conceber a sorte e a liberdade radical da escolha como

princiacutepios causais simultacircneos da natureza da psykheacute O inteacuterprete da Moira anuncia o

desconcerto da unificaccedilatildeo de poacutelos opostos entre o irrefragaacutevel e o indeterminado entre o

lote infaliacutevel e a autodeterminaccedilatildeo desejada

Logos da virgem Laacutequesis filha da Necessidade Almas efecircmeras

ireis iniciar novo periacuteodo de nascimentos na condiccedilatildeo mortal Natildeo

eacute um daiacutemon que vos escolheu a sorte sois voacutes que escolhestes

vosso daiacutemon O primeiro que a sorte designar escolheraacute primeiro

a vida agrave qual seraacute ligado em toda necessidade Pois virtude natildeo

tem deacutespota Segundo a honrar ou desonrar cada um a teraacute mais

ou menos Responsabilidade (aitiacutea heloumeacutenou) eacute de quem escolhe

O deus natildeo eacute responsaacutevel (theoacutes anaiacutetios) 100

Repuacuteblica X 617d06ndash617e05

Eacute um espetaacuteculo curioso observar de que maneira as diferentes almas escolhem suas

vidas nada mais lamentaacutevel ridiacuteculo e assombroso diz o panfiacutelio Er 101

A maioria eacute

guiada em suas escolhas pelos haacutebitos adquiridos em suas vidas anteriores haacutebitos que

100

Adoto traduccedilatildeo de Pierre Pachet com ligeiras modificaccedilotildees

Anaacutenkhes thygatrograves koacuteres Lakheacuteseos loacutegos Psykhaigrave epheacutemeroi arkhegrave aacutelles perioacutedou thnetoucirc geacutenous

thanatephoacuterou Oukh hymacircs daiacutemon leacutexetai hlrmymeicircs daiacutemona haireacutesesthe Procirctos drsquo hoacute lakhograven procirctos

haireiacutestho biacuteon hoacutei syneacutestai ex[ Anaacutenkhes Aretegrave degrave adeacutespoton hegraven timocircn kaigrave atimazon pleacuteon kaigrave eacutelatton

autecircs heacutekastos heacutexei Aitiacutea helomeacutenou theograves anaiacutetios 101 eleeineacuten te gaacuter ideicircn eicircnai kai geloiacutean kaigrave thaumasiacutean (Repuacuteblica X 620a 01-02)

155

acabam por condicionar uma homologia entre a natureza psiacutequica e o gecircnero de vida

Quando o gecircnero de vida estaacute em questatildeo emerge o primado da escolha

Sendo assim na travessia em que consiste a vida quais satildeo os meios e por quais

modos de viver poderemos conduzir a existecircncia da melhor forma possiacutevel ateacute o seu termo

Tal eacute a questatildeo crucial levantada pela imagem exemplar do Livro VII das Leis

Um construtor de navios no momento em que comeccedila a construccedilatildeo

do navio potildee em primeiro lugar a carena e esboccedila assim a

estrutura do navio Parece-me que eu faccedilo a mesma coisa quando

tentando distinguir a estrutura dos modos de vida em funccedilatildeo dos

caracteres das almas eu coloco realmente em lugar as carenas

destes modos de vida examinando por quais meios por quais

maneiras de viver conduziremos o melhor possiacutevel nossa existecircncia

ateacute o fim desta travessia que consiste a vida

Leis VII 803a-b

A questatildeo da investigaccedilatildeo da natureza da alma eacute explicitada a partir de uma

analogia o Estrangeiro de Atenas alvitra que assim como o construtor de navios inicia a

construccedilatildeo pela carena e esboccedila a estrutura do barco assim tambeacutem devemos tentar

estabelecer o delineamento dos esquemas de vida por meio dos gecircneros de almas102

O problema da indeterminaccedilatildeo do modo de vida conjuga-se com a questatildeo mais

fundamental do Goacutergias Qual eacute o melhor gecircnero de vida que eacute preciso ter103

A mais

fundamental de todas as questotildees da vida consiste em se determinar a natureza do proacuteprio

modo de viver Dentre toda a gama infinita de escolhas a vida filosoacutefica postula o princiacutepio

de que haacute uma hierarquia entre os afetos e uma escolha que eacute a melhor possiacutevel

Pois esta vida esta vida uacutenica seja ela longa ou curta eacute o que de

fato um homem verdadeiramente homem deve deixar de lado Natildeo

eacute a isso que ele deve devotar o amor de sua alma Ao contraacuterio no

que diz respeito a sua longevidade deve remeter-se somente ao

deus e crer somente no que dizem as mulheres que ningueacutem

poderia escapar ao seu lote Natildeo o que antes se deve procurar

102

tagrave tocircn biacuteon peiroacutemenos skheacutemata diasteacutesasthai katagrave tpoacutepous tougraves tocircn psykhoacuten (Leis VII 803a06-07) 103 oacutentina khreacute troacutepon zeacuten (Goacutergias500c03)

156

examinar eacute qual a maneira que se deve viver a vida para que ela

seja a melhor possiacutevel

Goacutergias 512 d-e

A vida esta vida uacutenica que equivale a uma travessia articula dois opostos

inseparaacuteveis a determinaccedilatildeo incontestaacutevel de uma longevidade que escapa ao poder

humano e o poder inalienaacutevel do modo como esta travessia seraacute feita Se a nenhum homem

cabe determinar a duraccedilatildeo da proacutepria vida a cada homem cabe decidir como iraacute viver a

vida que lhe cabe pois o viver eacute fruto de escolhas Se o gecircnero de vida eacute determinado pelas

escolhas o que delimita o acircmbito das escolhas por sua vez eacute a natureza uacuteltima dos desejos

e do caraacuteter Natildeo haacute escolha que natildeo seja resultante do movimento dos desejos A

orientaccedilatildeo dos desejos determina os valores os criteacuterios de discriminaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo

do preferiacutevel que por sua vez nortearatildeo o modo como a vida eacute vivida Esta orientaccedilatildeo

natural dos desejos eacute por conseguinte preacutevia agrave percepccedilatildeo da realidade vivida

O discernimento da estrutura psiacutequica pressupotildee por sua vez a distinccedilatildeo da

multiplicidade e da natureza dos desejos Trata-se de uma correspondecircncia biuniacutevoca em

que o pensamento discerne o desejo e o desejo se exprime num modo de vida Pensamento

desejos e modo de vida articulam-se numa relaccedilatildeo de implicaccedilotildees e consequecircncias muacutetuas

Pensamento e desejos acarretam consequecircncias inevitaacuteveis sobre o gecircnero de vida de modo

a urdir a trama que entrelaccedila necessidade e liberdade na tecedura que compotildee o viver

Todavia os patheacutemata da alma configuram impulsos agogecircs contraacuterios (Repuacuteblica

X 604 a-b) Quando num mesmo homem em relaccedilatildeo ao mesmo elemento e ao mesmo

tempo dois impulsos contraacuterios coexistem eacute necessaacuterio que haja nele duas partes104

Os impulsos antiteacuteticos da alma determinam accedilotildees opostas e por conseguinte

implicam a diversidade de partes jaacute que efeitos opostos natildeo podem provir da mesma causa

104 Enantiacuteas degrave agogecircs gignoacutemenes en toacutei anthroacutepoi peri to auto haacutema duacuteo phamegraven em autocirci anankaicircon

eicircnai

157

(Repuacuteblica IV 439bss) Tal postulado transpotildee para a esfera do psiquismo a

impossibilidade de que haja contradiccedilatildeo numa mesma instacircncia e num mesmo instante de

princiacutepios de accedilatildeo que fazem com que a psykheacute seja uma causa (REIS M D 2000 p

114) As pulsotildees conflitantes e opostas da psykheacute indicam a necessidade de sua

complexidade

Na complexidade de princiacutepios de accedilatildeo opostos a afliccedilatildeo ou os afetos violentos

impedem a alma de discernir o melhor aquilo que haacute de bem e mal (toucirc agathoucirc te kaigrave

kakoucirc) nas dificultosas sobrecargas (en taicircs xymphoraicircs) que sobrevecircm ao homem A

tristeza e a afliccedilatildeo uma vez dominantes fazem obstaacuteculo agrave inteligecircncia dos expedientes

(touacutetoi empodograven gignoacutemenon tograve lypeicircsthai) e por essa razatildeo nenhuma das coisas humanas

merece grande reverecircncia (ouacutete ti tocircn anthropiacutenon aacutexion ograven megaacuteles spoudecircs Repuacuteblica X

604b09-c03) A natureza da psykheacute eacute determinada pela similitude com sua ocupaccedilatildeo

ordinaacuteria (Feacutedon 82a) Por isso a experiecircncia de um prazer ou pena intensos suscitam o

mal supremo a psykheacute eacute conduzida a tomar o que causa o afeto mais intenso por aquilo

que possui a maior evidecircncia e a realidade mais verdadeira enquanto ele natildeo eacute nada

(Feacutedon 83c05-08) A realidade dos sofrimentos intensos eacute ilusoacuteria e o mais belo consiste

em manter a maior quietude diante deles (maacutelista hesykhiacutean aacutegein Repuacuteblica 604b09)

No Feacutedon (99b) Platatildeo distingue duas ordens de causas (i) as causas verdadeiras e

(ii) as causas sem as quais nenhuma causa seria causa As verdadeiras causas identificam-se

com o noucircs e exigem que se postule a faculdade psiacutequica da inteligecircncia discriminadora do

melhor (beacuteltiston) A complexidade de impulsos faz da psykheacute princiacutepio de movimento e

causa

Concluamos eacute princiacutepio de movimento aquilo que se move a si

mesmo Ora natildeo eacute possiacutevel nem que ele se anule nem que comece

a existir do contraacuterio o ceacuteu inteiro a geraccedilatildeo inteira vindo ao

158

ocaso tudo isso pararia e jamais se renovaria Uma vez posto em

movimento em um ponto de partida para sua existecircncia Agora que

eacute evidente a imortalidade daquilo que eacute movido por si mesmo natildeo

se faraacute escruacutepulo de afirmar que isto eacute a essecircncia da alma e que

esta eacute sua natureza De fato todo corpo que recebe de fora seu

movimento eacute um corpo inanimado Um corpo eacute animado ao

contraacuterio por algo de dentro e que tem em si mesmo o princiacutepio

uma vez que eacute nisto que consiste a natureza da alma

Fedro 245d

A essecircncia da noccedilatildeo agrave qual corresponde o nome alma eacute ser princiacutepio de movimento

Um princiacutepio natildeo pode ser engendrado visto que sua existecircncia nesse caso derivaria de

outra coisa Tudo o que eacute engendrado eacute necessariamente engendrado sob o efeito de uma

causa pois sem a intervenccedilatildeo de uma causa nada pode ser engendrado eis a relaccedilatildeo

necessaacuteria que a noccedilatildeo de princiacutepio de movimento expressa haacute um viacutenculo infaliacutevel entre

efeito e causa (Timeu 28a) O princiacutepio eacute aquilo cuja existecircncia eacute intriacutenseca a si mesmo

(ROBIN in Fedro p 83) Nesse sentido o movimento da alma a torna causa e princiacutepio

Em Platatildeo a alma eacute ao mesmo tempo movimento impulso e causa

Somente a inteligecircncia pode regrar o acaso pois a opiniatildeo a presciecircncia

(epimeacuteleia) o noucircs a arte e a lei satildeo anteriores aos elementos da Natureza (Leis X 892b)

A questatildeo do melhor (beacuteltiston) e das escolhas pressupotildee a configuraccedilatildeo psiacutequica e a

economia de seus impulsos Nesta economia os desejos determinam o alvo em que

terminam Todo desejo eacute orientado e aponta para um fim

No Goacutergias Soacutecrates afirma que de todos os preparativos humanos (paraskeuaigrave)

alguns visam somente o prazer e desconhecem o melhor e o pior outros conhecem o Bem e

o mal

Eu dizia se tu te lembras que haacute certos preparativos que querem

somente atingir o prazer e se ocupam somente disto numa

ignoracircncia total do que eacute melhor ou pior Mas existem outros que

conhecem o bem e o mal Goacutergias 500a

159

A questatildeo eacutetica da melhor escolha exige o plano epistemoloacutegico da distinccedilatildeo do

Bem e do melhor O conhecimento do Bem e do mal deve fundamentar a praacutexis eacutetico-

poliacutetica

Platatildeo subordina agraves escolhas a questatildeo ldquoqual o melhor gecircnero de vida que se deve

terrdquo Escolhas pressupotildeem desejos como impulsos para a accedilatildeo Neste sentido o psiquismo

eacute causa e por isso a Filosofia deve existir como Eros como orientaccedilatildeo natural do desejo

para o melhor Somente a inteligecircncia pode discriminar diferenccedilas e discernir o melhor

somente o movimento do pensamento apanaacutegio da psykheacute configura e inteligibilidade do

Bem (DIXSAUT 2001 p 130)

A escolha do alvo que eacute o fim do desejo determina simultaneamente os valores a

potecircncia do discurso e a realidade do real A realidade eacute determinada pelo modo como se

escolhe vecirc-la Instacircncia complexa a natureza psiacutequica determina o modo de inteligibilidade

pelo qual a realidade eacute apreendida

Mas para discorrer filosoficamente acerca de instacircncias que natildeo podem ser

justificadas logicamente Platatildeo emprega o registro da narrativa miacutetica As noccedilotildees

multiacutevocas que compotildeem a realidade e natildeo possuem justificaccedilatildeo loacutegica exigem a piacutestis

como consolidaccedilatildeo

42 ndash Mito e psykhḗ

Da ordem da mousikeacute os mitos platocircnicos esboccedilam mediante um pensar por

imagens um modelo de visualizaccedilatildeo de realidades inverificaacuteveis e satildeo endereccedilados aos

patheacutemata com a finalidade de consolidar uma crenccedila No Feacutedon (77e-78a) a encantaccedilatildeo

miacutetica (epoideacute) eacute reclamada como meio de afastar o medo crucial da morte O medo eacute um

iacutendice um signo de reconhecimento de que o corpo se manteacutem preponderante sobre o

160

pensamento (Feacutedon 68c) Do medo derivam as duacutevidas e as hesitaccedilotildees que paralisam as

accedilotildees humanas e impedem a atividade filosoacutefica

A encantaccedilatildeo miacutetica possui simultaneamente (i) a funccedilatildeo pedagoacutegica de esclarecer

e de propiciar a crenccedila e (ii) a funccedilatildeo epistemoloacutegica de engendrar noccedilotildees que natildeo possuem

referentes verificaacuteveis (NUNES SOBRINHO 2007 p 186 ss) Ademais como toda

estrutura musical a estrutura miacutetica implica ressonacircncias psiacutequicas haacute uma homologia

estrutural entre muacutesica mito e o psiquismo105

Os mitos platocircnicos fornecem modelos exemplares para o comportamento humano e

constituem um referencial que confere sentido e orientaccedilatildeo para as accedilotildees A estrutura

miacutetica possui uma homologia estrutural multiacutevoca e profunda com a estrutura do

psiquismo com a estrutura poliacutetica e com a estrutura de determinaccedilatildeo das realidades

Aleacutem disso a estrutura imageacutetica do mito suscita a partir de imagens familiares

visiacuteveis a inferecircncia de estruturas inevidentes106

Assim como o Ser estaacute para o devir

assim tambeacutem a verdade estaacute para a crenccedila afirma Timeu de Locri (Timeu 29c) A analogia

se estende para o plano das relaccedilotildees assim como se pode inferir o inteligiacutevel a partir de

relaccedilotildees invariantes observadas no devir assim tambeacutem se pode inferir a verdade a partir

das imagens que lhes servem de postulados

Narrativas miacuteticas filosoacuteficas possuem a pretensatildeo de tornar comunicaacutevel uma

realidade complexa Quando a complexidade eacute excessiva para ser abarcada pela

inteligecircncia o mito faz ver Os grandes mitos de julgamento operam a transposiccedilatildeo de

105 hoacutes philosophiacuteas megraven ouses megiacutestes mousikeacutes emoucirc degrave toucircto praacutettontos (Feacutedon 61a03) A Filosofia eacute a

mais alta muacutesica inextricaacutevel do pensamento puro (phroacutenesis) e da aspiraccedilatildeo agraves realidades mais verdadeiras

No Timeu a alma participa da razatildeo da harmonia e do nuacutemero o que faz com que possa engendrar o melhor

dos seres que sempre satildeo autegrave degrave aoacuteratos meacuten logismoucirc degrave meteacutekhousa kaigrave harmonias pykheacute tocircn noetocircn aeiacute

te oacutenton hypograve toucirc ariacutestou ariacuteste genomeacutene tocircn genetheacutenton (37e06-a02) 106 With regard to nature and task of demiurge one must note that the invisible is inferred from the visible

and the incorporeal from the bodily (OLYMPIODORO 1998 p 290)

161

imagens familiares visualizaacuteveis para uma teia de relaccedilotildees invisiacuteveis que satildeo fundamentais

para a unificaccedilatildeo da experiecircncia humana muacuteltipla com uma cosmologia107

Como falar filosoficamente daquilo que eacute inverificaacutevel como a alma e a morte A

significaccedilatildeo aportada pelo mito filosoacutefico indica a possibilidade de transposiccedilatildeo de um

registro de realidade para outro de modo a se consolidar o primado e a inscriccedilatildeo da

inteligecircncia naquilo que eacute destituiacutedo de ordem (akosmiacutea) ou de regras naquilo que eacute

desregrado (akolasiacutea) Como diria Dixsaut toda ontologia eacute miacutetica e todo mito pode servir

como justificativa ontoloacutegica (DIXSAUT 2001 p 130) Por essa razatildeo quando a

argumentaccedilatildeo chega ao impasse e ao limite para natildeo se cair na misologia (Feacutedon 89d ss)

eacute preciso contar com a perspectiva dos discursos divinos para se afrontar o risco (kiacutendynos)

da travessia da vida (Feacutedon 85d) Para se evitar a misantropia eacute preciso compreender que a

bondade e a maldade completas satildeo raras e as misturas satildeo muitas108

Para se evitar a

misologia eacute preciso empregar todo o ardor em fazer o discurso parecer verdadeiro natildeo

para os que ouvem mas tatildeo somente para si mesmo (Feacutedon 89e-90a)

Como o plano da vida e do devir eacute o plano da mistura (metaxyacute) eacute preciso identificar

aquilo que no real soacute pode ser justificado miticamente Eis aiacute o belo risco da Filosofia

crer que a alma eacute imortal no pacircs kroacutenos eis o risco que deve correr aquele que crecirc que eacute

assim Pois este risco eacute belo (Feacutedon 114d)

107 Segundo Leacutevi-Strauss realidades demasiado complexas exigem para sua inteligibilidade uma reduccedilatildeo a

relaccedilotildees compreensiacuteveis mediante a busca de invariantes em suas relaccedilotildees internas As relaccedilotildees internas de

certo niacutevel de realidade satildeo suscetiacuteveis de aparecer a outros niacuteveis Nesse sentido eacute possiacutevel analisar no acircmbito do psiquismo relaccedilotildees que satildeo observadas na Natureza Os mitos possuem a funccedilatildeo de apresentar

mediante suas relaccedilotildees internas a inscriccedilatildeo de ordem numa aparente desordem A inscriccedilatildeo de ordem naquilo

que se apresenta caoacutetico implica precisamente a funccedilatildeo psiacutequica por excelecircncia e consolida a proacutepria noccedilatildeo

de significado O que significa significar Segundo Leacutevi-Strauss a significaccedilatildeo representa a possibilidade de

traduccedilatildeo ou transposiccedilatildeo de um registro de realidade para outro Por essa razatildeo os mitos platocircnicos satildeo

portadores de significaccedilatildeo pois traduzem para o acircmbito imageacutetico da narrativa noccedilotildees que satildeo somente

pensaacuteveis Sua operacionalidade eacute nesse aspecto dianoieacutetica (LEacuteVI-STRAUSS 1978 p 22 ss) 108 tougraves megraven khrestougraves kaigrave ponerougraves sphoacutedra oliacutegous eicircnai hekateacuterous tougraves degrave metaxỳ pleiacutestous

162

O mito propicia a ultrapassagem da condiccedilatildeo temporal e da ignoracircncia (apaideusiacutea)

que constituem o quinhatildeo de todo ser que se identifica a si mesmo e ao Real com sua

proacutepria situaccedilatildeo particular

43 - ER O DECRETO DE LAacuteQUESIS

A questatildeo da escolha do melhor gecircnero de vida eacute apresentada no mito de Er como

risco inerente agrave mistura em que consiste o breve instante que vai do nascimento ateacute a morte

O breve tempo que separa a infacircncia da velhice nada eacute em comparaccedilatildeo com a eternidade

A correta valoraccedilatildeo deve levar ser posta na perspectiva da totalidade do tempo paacutes kroacutenos

Que pode haver de grande em um intervalo que tempo tatildeo restrito Pois todo o intervalo

que separa a infacircncia da velhice eacute muito pouco em comparaccedilatildeo com a eternidade

(Repuacuteblica X 608c) Um ser imortal natildeo deve dedicar tanto esforccedilo por um tempo tatildeo curto

e negligenciar a eternidade109

A oposiccedilatildeo entre tempo da vida e a totalidade do tempo

indica a necessidade de uma re-valoraccedilatildeo dos valores humanos na perspectiva de um

paradigma atemporal

O espetaacuteculo narrado pelo panfiacutelio Er evoca uma estrutura coacutesmica tripartite as

almas encontram-se num prado (leimoacuten) lugar democircnico toacutepon tinaacute daimoacutenion

(Repuacuteblica X 614c) que media a regiatildeo superior do ceacuteu e a inferior da terra

Todo lugar nos mitos platocircnicos toda geografia e cosmologia do invisiacutevel

concernem ou agrave estrutura psiacutequica ou dizem respeito agrave estruturaccedilatildeo de planos de realidade

diversos A triparticcedilatildeo refere-se ao mesmo tempo agrave condiccedilatildeo psiacutequica e a estruturas de

109

Mas aquele de pensamento superior que contempla a totalidade do tempo e a totalidade do ser supotildees que

eacute capaz de ter em grande opiniatildeo a vida humana

bdquo´Hi oucircn hypaacuterkhei dianoiacuteai megalopreacutepeia kaigrave theoriacutea pantograves megraven khroacutenou paacuteses degrave ousiacuteas hoicircon te oiacuteei

touacutetoi mega ti dokecircin eicircnai tograven antroacutepinon biacuteon

Repuacuteblica VI 486a 09-10

163

realidades Natildeo eacute outra a razatildeo pela qual os tiranos como Ardieu satildeo arrastados e jogados

no Taacutertaro ndash imagem do caos turbulento Suas almas satildeo caoacuteticas e por si mesmas suscitam

a imagem da realidade que se lhes assemelha Por outro lado O Feacutedon apresenta uma

estrutura fisiograacutefica tripartite (109b-110a) que indica planos de realidade com

determinaccedilotildees variadas Haacute uma ldquoverdadeira terrardquo invisiacutevel mais pura cristalina e bela do

que a cavidade na qual habitam os homens A verdadeira Terra estaacute para a nossa

ldquocavidaderdquo assim como a nossa cavidade estaacute para as profundezas marinhas110

Haacute uma

simetria de proporccedilotildees entre planos com diferenccedilas de determinaccedilatildeo

Apoacutes haver passado sete dias no prado Er deveria partir no oitavo dia e chegar a um

lugar onde se estende do alto atraveacutes de todo o ceacuteu e da terra uma luz como uma coluna111

(phoacutes euthyacute hoicircon kiacuteona) muito semelhante ao arco iacuteris (maacutelista teacute igraveridi prospheacutere) mas

mais brilhante e mais pura (lampoacuteteron degrave kaigrave katharoacuteteron) Esta luz era uma cadeia que

prendia o ceacuteu (xyacutendesmon toucirc ouranoucirc) tal como as cordas de uma trirreme (Repuacuteblica

616b-c)

A mediaccedilatildeo entre planos de realidade distintos eacute representada pela imagem de uma

coluna de luz que encadeia o koacutesmos A cosmologia constitui o paradigma de toda

atividade criadora porque o Koacutesmos eacute o modelo divino de todo fazer O Koacutesmos eacute poieacutesis

divina e sua estrutura serve de paradigma para todo fazer que se pretende harmonioso

ordenado e ornado numa palavra cosmicizado (ELIADE 1978) Mas como atribuir um

sentido mais preciso agrave imagem da coluna de luz

110Autegraven degrave tegraven gecircn katharagraven em katharoacute keicircsthai toacutei ouranoacute en hoipeacuter esti tagrave aacutestra hoacuten degrave aitheacutera onomaacutezein

Feacutedon 109b0708 111

Hilda Richardson (1926 p 117 ss) defende a tese de que a coluna de luz envolve circularmente as

esferas coacutesmicas e simultaneamente atravessa o eixo central que passa pela terra Tal imagem teria filiaccedilatildeo

na concepccedilatildeo pitagoacuterica de que um ciacuterculo de fogo abarca o Koacutesmos

164

No Craacutetilo (408b) o nome de Iacuteris eacute associado agrave eiacuterein dizer e por isso ela eacute

mensageira112

No Teeteto (155d) Iacuteris eacute apresentada como filha de Thauacutemas

Pois este sentimento de se espantar eacute inteiramente de algueacutem que

ama o saber Natildeo haacute outro ponto de partida para a procura do

saber aleacutem deste e aquele que disse eacute nascida de Thaumas113

natildeo

esboccedilou mal sua genealogia

(Teeteto 155d)114

Como nota Narcy115

Iacuteris eacute mensageira portadora do Leacutegein e por conseguinte

constitui uma personificaccedilatildeo do papel mediador da Filosofia A busca pela sabedoria eacute a

atividade divina mais proacutepria e a mediaccedilatildeo entre o plano da divindade e o plano humano se

expressa pela imagem do arco-iacuteris ponte entre o ceacuteu e a terra116

Universal antropoloacutegico a

imagem da coluna ou pilastra que liga planos diversos de realidade o celeste e o terrestre

indica que o espaccedilo miacutetico possui um referencial absoluto um eixo coacutesmico aacutexis mundi117

112 Homens aquele que maquinou (emeacutesato) a palavra (eiacuterein) noacutes deveriacuteamos chamaacute-lo Eireacute-mecircs e presentemente crendo haver-lhe adornado o nome o chamamos Hermecircs Em todo caso Iacuteris foi

verdadeiramente chamada assim a partir de eirein (dizer) porque ela eacute mensageira

Trad DALMIER C in PLATON Cratyle 1998 113 Espanto agrave filha do Oceano de profundo fluir

desposou Ambarina Ela pariu ligeira Iacuteris

e Harpias de belos cabelos Procela e Aliacutegera

que a paacutessaros e rajadas de vento acompanham

com asas ligeiras pois no abismo do ar se lanccedilam

(HESIacuteODO Teogonia 265-269 Trad Torrano J 2003)

De Pontos et Gegrave naquirent Phorcos Thaumas Neacutereacutee Eurybia et Cegraveto De Thaumas et Electra naquirent

Iris et les Harpyes Aellocirc et Ocypeacutetegrave puis de Phorcos et de Cegraveto les Phorcides et les Gorgones dont nous

parlerons lorsque nous en seron agrave Perseacutee (APPOLODORE I 2 10 in CARRIEgraveRE MASSONIE 1991) 114 Trad NARCY M in PLATON Theacuteeacutetegravete 1995 115 Id nt 121 p 325 116 Chantraine afirma a possibilidade de que ityacutes e iacutetea arco ciacuterculo de arco sejam derivadas de Iacuteris

(CHANTRAINE 1999 p 469) 117

Proclo (2005 200 p 149) empreende uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica da passagem afirmando que a imagem

natildeo designa uma figura em forma de coluna mas consiste num sentido funcional de suporte firme e constante para os moacuteveis celestes A interpretaccedilatildeo alegoacuterica leva Proclo a rejeitar o pensamento de seus predecessores

segundo o qual a luz representa o eixo do mundo Embora Hilda Richardson (1926 p 115) confira um papel

estritamente poeacutetico ao mito sua interpretaccedilatildeo aventa a ausecircncia de dificuldades em correlacionar a luz e a

imagem da coluna com a noccedilatildeo matemaacutetica de um eixo coacutesmico It is hardly necessary to say that Plato quacirc

mathematician rightly conceived of the axis of the celestial sphere as na imaginary line and not as a material

body whether of light stuff or any other stuff But this is no real objection to his representing the axis

otherwise in a passage which is not scientific exposition but myth where he has a particular poetic and

imaginative purpose in view

165

que eacute o modelo exemplar que opera a mediaccedilatildeo entre o celeste e o terrestre entre o divino e

o plano do devir A noccedilatildeo de um eixo coacutesmico que vincula planos diversos eacute reforccedilada pelo

passo do Timeu

Quanto agrave terra nossa nutridora girando-a em torno do eixo que

atravessa o todo o deus a estabeleceu para ser guardiatilde e demiurga

da noite e do dia a primeira e a mais antiga das divindades

nascidas no interior do ceacuteu

Timeu 40b-c

Por que Platatildeo se vale de um rico acervo de imagens que aludem a um referencial

fora do devir e que implica uma evasatildeo do tempo humano cronoloacutegico No Feacutedon 96c-

97b Soacutecrates denuncia a perplexidade diante da tentativa de se aquilatar os particulares da

phyacutesis uns em relaccedilatildeo aos outros o que o leva a empreender o deucircteros ploucircs e empreender

a hipoacutetese das Formas No contexto do livro X da Repuacuteblica Soacutecrates aponta a contradiccedilatildeo

como condiccedilatildeo epistecircmica do devir

Os mesmos objetos parecem quebrados ou retos segundo se os

observa na aacutegua ou fora dela cocircncavos ou convexos segundo

outra ilusatildeo visual produzida pelas cores e eacute evidente que tudo isso

perturba nossa alma

Repuacuteblica X 602c

O socorro contra a ilusatildeo e a contradiccedilatildeo eacute o caacutelculo a medida e a pesagem de

modo que o que deve prevalecer eacute a faculdade da alma que lhes propicia (Repuacuteblica X

602d) O paradigma para estas operaccedilotildees da alma deve estar fora do plano do devir no

inteligiacutevel para escapar agrave contradiccedilatildeo Por essa razatildeo os mitos filosoacuteficos recorrentemente

aludem a um referencial absoluto que sirva de norma ao mesmo tempo para as accedilotildees

eacutetico-poliacuteticas e para a inteligibilidade da phyacutesis

Toda a estrutura coacutesmica representada pelo fuso da Necessidade gira nos joelhos

de Anaacutenkhe Brisson (1994 469-513) em sua anaacutelise de Anaacutenkhe vincula de maneira

166

geral a noccedilatildeo agrave causalidade e agrave explicaccedilatildeo causal118

No Timeu o princiacutepio geral da accedilatildeo

da necessidade eacute indicado no fato de que a geraccedilatildeo do Koacutesmos tem por princiacutepio uma

mistura de necessidade e razatildeo A razatildeo domina a necessidade persuadindo-a a orientar a

maior parte dos elementos do devir para o melhor O Koacutesmos eacute constituiacutedo pela vitoacuteria da

persuasatildeo sobre a necessidade configurando uma mistura

Haacute pois um elemento de resistecircncia agrave accedilatildeo ordenadora da inteligecircncia intriacutenseco agrave

constituiccedilatildeo coacutesmica Tal accedilatildeo faria da Necessidade pura uma causa errante

ontologicamente anterior ao Koacutesmos que implica a inexorabilidade da ausecircncia de

regramento e de inteligecircncia caracteriacutesticos da Khoacutera ou do meio espacial cujo movimento

eacute desarmocircnico e indeterminado A accedilatildeo da Necessidade neste plano indica o caraacuteter

randocircmico e desordenado inerente ao meio material Depois da constituiccedilatildeo do Koacutesmos

Anaacutenkhe permanece como ausecircncia de inteligecircncia resiacuteduo de resistecircncia agrave accedilatildeo de

determinaccedilatildeo ordenadora da razatildeo

No mito de Er Anaacutenkhe eacute matildee das Moiras e como tal potecircncia divina causal Na

estrutura imageacutetica apontar a causa implica em designar o genitor e a accedilatildeo de engendrar

Segundo Proclo no mito de Er Anaacutenkhe comanda o domiacutenio coacutesmico e preside o ciclo das

almas Mantenedora da ordem Anaacutenkhe vincula necessariamente os gecircneros de vida com as

118 Brisson identifica trecircs momentos distintos que caracterizam a necessidade (i) causa errante que configura

uma resistecircncia agrave accedilatildeo do Demiurgo (ii) causa coadjuvante que coopera com a razatildeo do Demiurgo e (iii)

causa segunda em relaccedilatildeo agrave alma do mundo O primeiro momento ocorre antes da modelaccedilatildeo proporcional

operada pelo Demiurgo (Timeu 56c) Trata-se da Necessidade como causa errante ou necessidade pura

anterior agrave formaccedilatildeo do Koacutesmos que se identifica com o movimento caoacutetico e ausecircncia de accedilatildeo racional No

segundo momento a Necessidade passa a cooperar com a razatildeo mediante a persuasatildeo e se torna causa coadjuvante Trata-se da razatildeo persuadindo a Necessidade Todavia nem a necessidade nem a razatildeo

desaparecem apoacutes a constituiccedilatildeo do Koacutesmos Sua influecircncia continua a se exercer em um terceiro estaacutegio o

demiurgo se retira e seus ajudantes terminam seu trabalho e a accedilatildeo da razatildeo se perpetua A razatildeo se manteacutem

no Koacutesmos atraveacutes de sua alma O seu corpo por outro lado eacute submetido agrave lei de necessidade que dirige a

geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo Essa lei implica uma cadeia causal infaliacutevel consequumlecircncia da figura da relaccedilatildeo e do

movimento proacuteprio de cada elemento A necessidade se torna uma causa segunda submetida agrave alma do

mundo de modo que a mistura entre razatildeo e necessidade eacute constitutiva do universo

167

escolhas e a necessidade inelutaacutevel de que cada alma seja ligada agrave vida corporal (Repuacuteblica

X 617e) Como potecircncia causal e matildee das Moiras Anaacutenkhe no contexto do mito de Er

representa a geraccedilatildeo da lei inflexiacutevel de retribuiccedilatildeo e implica a transferecircncia do estatuto

divino do noacutemos para as distribuidoras das sortes

Ela eacute a potecircncia regedora da ordem coacutesmica da manutenccedilatildeo de todas as coisas e do

lugar proacuteprio para cada elemento da phyacutesis e para as almas Sua accedilatildeo abarca a composiccedilatildeo

total do Koacutesmos e como afirma Proclo (que assimila Anaacutenkhe a Theacutemis) seu domiacutenio

soberano sobre todas as coisas no mundo implica uma ordem inevitaacutevel e uma guarda sem

remissatildeo

Potecircncia divina primordial a accedilatildeo de Anaacutenkhe alude ao fato de que a Repuacuteblica

coacutesmica jamais eacute subvertida e que o universo eacute guardado por meio de estatutos

indissoluacuteveis Ela eacute o garante da causalidade primordial e preside a ordem inerente ao

koacutesmos e arranjo dos seres vivos Atraveacutes das Moiras Anaacutenkhe preside todos os

movimentos celestes e os movimentos que configuram as accedilotildees praacuteticas Sua imagem

personifica a infalibilidade dos viacutenculos de arranjo harmocircnico que regem a phyacutesis e da

necessidade ineludiacutevel que vincula as escolhas e os gecircneros de vida com a condiccedilatildeo e a

natureza das almas Mas Anaacutenkhe implica tambeacutem a tyacutekhe como elemento fortuito

inelutaacutevel no Koacutesmos e inalienaacutevel agraves escolhas e agrave mistura dos paradigmas de vida

As Moiras satildeo as filhas de Anaacutenkhe Suas accedilotildees remetem para uma potecircncia

unificadora e uma causaccedilatildeo uacutenica Isso significa que haacute um viacutenculo causal que abarca

simultaneamente as conexotildees fiacutesicas e a tecedura dos destinos As Moiras satildeo mediadoras

entre os movimentos inelutaacuteveis dos ciacuterculos celestiais O fuso que liga as esferas celestes

mediante uma luz em linha reta como coluna phoacutes euthyacute hoicircon kiacuteona e sua accedilatildeo tanto

168

sobre as esferas como sobre os lotes de tipos de vida indica uma triparticcedilatildeo coacutesmica da

causalidade

Essa triparticcedilatildeo indica domiacutenios de causalidade diversos que satildeo abarcados por uma

causalidade universal e unificadora Causantes e causados diferem pelos traccedilos uno e

muacuteltiplo universal e particular inteligiacutevel e devir A unificaccedilatildeo eacute operada no domiacutenio da

causalidade inteligiacutevel Nenhum domiacutenio causal escapa a Anaacutenkhe As Moirai satildeo as

repartidoras das porccedilotildees relativas a cada ser porque elas mesmas satildeo partiacutecipes do domiacutenio

causal primordial de Anaacutenkhe

Em nome de Laacutequesis a filha da Necessidade o profeta proclama que a necessidade

eacute de viver mas a escolha cabe ao gecircnero de vida e esta escolha introduz taacutexis e noacutemos na

necessidade Guardiatilde do passado Laacutequesis eacute autora do decreto pois o passado eacute

determinante da configuraccedilatildeo presente e por isso mais compreensivo numa perspectiva

causal

Na distribuiccedilatildeo das vidas haacute uma mixoacuterdia de uma miriacuteade de elementos

miscigenados segundo a sorte e nos mais variados graus possiacuteveis (Repuacuteblica X 618b)

Mas eacute possiacutevel escolher a melhor vida em funccedilatildeo de um caacutelculo que permite o

discernimento das consequecircncias de cada uma destas misturas e de seus componentes

(Repuacuteblica X 618c-d) O mito de Er tal como ocorre no Feacutedon alude a um risco a um

perigo (Repuacuteblica X 618b) o de escolher mal um gecircnero de vida sem avaliar as

consequecircncias

O perigo tal como no Feacutedon indica a necessidade da encantaccedilatildeo da persuasatildeo que

mova os afetos e suscite a crenccedila de que haacute algo que remanesce apoacutes a morte de que haacute

algo para aleacutem da evidecircncia apontada pelo senso da maioria do fato bruto do apetite e de

que todo valor temporal deriva do amor agrave riqueza do amor ao poder e do amor ao prazer A

169

filosofia natildeo constitui garantia absoluta para a felicidade haacute um elemento fortuito

contingente inextrincaacutevel da tyacutekhe implicada por Anaacutenkhe eacute preciso que a sorte natildeo

designe os uacuteltimos lugares na hora da escolha As maacutes escolhas satildeo feitas por aqueles que

natildeo foram suficientemente treinados nos sofrimentos (aacutete poacutenon agymnaacutestous) Platatildeo

confere no mito de Er um valor positivo ao sofrimento como se fora um treinamento

Segundo Dixsaut (2001 p 177) para bem viver natildeo basta pensar e ter prazer na

atividade de pensar Ao pensamento leve eacute preciso acrescentar a forccedila de encaminhar

para o alto o lote de fardo pesado de desgraccedila e de infelicidade que eacute o lote de toda vida

jaacute que toda vida eacute uma mistura

Natildeo haacute vida sem mistura de alegria e dor felicidade e sofrimento Tudo ser vivo

tem seu lote misturado de felicidade e dores E no entanto a ascensatildeo da alma para o alto

pressupotildee um paacutethos o Eacuteros filosoacutefico

No Goacutergias (507e-508) Soacutecrates lembra um saacutebio que afirma que o ceacuteu a terra os

deuses e os homens satildeo vinculados por philiacutea119

respeito agrave kosmiacutea agrave sophrosyacutene e agrave

justiccedila e por essa razatildeo eles satildeo chamados Koacutesmos e natildeo akosmiacutea e akolasiacutea Todos os

planos de realidade satildeo mantidos juntos por philiacutea Haacute uma lei que cinge o universo uma

119 Canto afirma que a menccedilatildeo agrave philiacutea eacute uma referecircncia a Empeacutedocles em funccedilatildeo da importacircncia atribuiacuteda agrave

amizade como princiacutepio coacutesmico (M Canto in PLATON 1993 nt 189 p 347) Dodds por outro lado

observa que natildeo haacute nada que implique o fato de Platatildeo ter Empeacutedocles necessariamente em mente sobretudo

porque a doutrina da ldquoigualdade geomeacutetricardquo natildeo seria empedocleana A koinoiacutea indica a comunhatildeo condiccedilatildeo

necessaacuteria para a philiacutea ambos princiacutepios necessaacuterios para o governo tanto do Koacutesmos como das relaccedilotildees

poliacuteticas e pessoais Tais noccedilotildees satildeo firmemente aceitas como heranccedila pitagoacuterica Os pitagoacutericos teriam sido

os primeiros a chamar o universo Koacutesmos e certamente foram os primeiros a correlacionaacute-lo com leis

matemaacuteticas regradoras (E R Dodds in PLATO 1990 p 337)

Irwin por sua vez foca sua anaacutelise na explicitaccedilatildeo argumentativa da tese de que a comunhatildeo e a amizade satildeo preacute-condiccedilotildees para a virtude e distingue alguns problemas suscitados pelo argumento Soacutecrates argumenta se

A eacute amigo de B entatildeo deve haver comunhatildeo entre A e B Se B eacute intemperante entatildeo B natildeo pode ter

comunhatildeo e por conseguinte amizade com A Segundo Irwin a intemperanccedila de B natildeo implica

necessariamente sua incapacidade de ter amizade com A e tampouco a falta de amizade de A implica um

prejuiacutezo necessaacuterio para B (Irwin in PLATO 2004 nt 507e p 225) A pontualidade da anaacutelise

argumentativa nesse caso deixa na sombra a primazia fundamental estabelecida nas inuacutemeras passagens

correlatas que sugerem a homologia estrutural entre regramento cosmoloacutegico poliacutetico e psiacutequico A oposiccedilatildeo

entre kosmiacutea e akosmiacutea eacute congruente agrave oposiccedilatildeo entre sophrosyacutene e pleonexiacutea

170

lei que alude a um paacutethos e que se harmoniza com o regramento geomeacutetrico do Koacutesmos

Paacutethos e regramento matemaacutetico constituem um arranjo harmocircnico

Este arranjo eacute reafirmado no Timeu a modelaccedilatildeo do Koacutesmos manifesta um acordo

resultante da proporccedilatildeo geomeacutetrica e as relaccedilotildees instauradas por esta proporccedilatildeo lhe

conferem philiacutea de modo que tornado idecircntico a si mesmo ele natildeo pode ser dissolvido a

natildeo ser por aquele que estabeleceu seus viacutenculos (Timeu 32c) A menccedilatildeo agrave philiacutea indica

que os patheacutemata juntamente com relaccedilotildees geomeacutetricas invariantes satildeo constitutivos de

uma cosmogonia A inteligecircncia eacute indissociaacutevel dos desejos o inteligiacutevel indissociaacutevel da

inteligecircncia Os mitos filosoacuteficos possuem esse eixo invariante cuja distinccedilatildeo primordial

consiste no estabelecimento do primado da inteligecircncia como forccedila ordenadora e regradora

que suscita a unificaccedilatildeo de planos opostos e diacutespares o eacutetico-poliacutetico com o cosmoloacutegico o

fiacutesico com o psicoloacutegico a Natureza com a Lei

Mas inteligecircncia e as escolhas exigem prudecircncia e coragem para que se evite a

precipitaccedilatildeo A precipitaccedilatildeo eacute incompatiacutevel com o discernimento prudente propiciado pela

Filosofia Os sofrimentos satildeo ao mesmo tempo resultado da justa retribuiccedilatildeo a faltas

pregressas e uma exigecircncia paidecircutica trata-se de um exerciacutecio que faculta a maior

capacidade e o maior discernimento nas escolhas Como os sofrimentos satildeo uma partilha

comum de todas as almas todos os seres tecircm de passar por eles Eles fazem parte da

Necessidade Anaacutenkhe elemento intriacutenseco ao Koacutesmos e por isso satildeo agentes de

desenvolvimento Por constituiacuterem uma funccedilatildeo epistemoloacutegica os sofrimentos permitem

que as escolhas natildeo sejam precipitadas (Repuacuteblica X 619d)

Mesmo diante do desfavor da tyacutekhe aquele que se dedica ao estudo da Filosofia tem

mais chances segundo o que se diz em relaccedilatildeo ao Hades de viver mais feliz nesta vida e de

retornar atraveacutes da rota celeste (Repuacuteblica X 619e) Mas para isso eacute preciso vencer o

171

Grande Combate meacutegas agoacuten que se trata de se tornar bom ou mau e natildeo se deixar

arrastar pela gloacuteria pela riqueza e esquecer a justiccedila e a virtude

Disse tambeacutem grande eacute o combate oacute amigo Glauco um combate

maior do que se pensa o que se trata de tornar-se bom ou mau

Natildeo eacute preciso deixar-se arrastar nem pela gloacuteria nem pela riqueza

nem por nenhuma dignidade nem pela poesia mesma e

negligenciar a justiccedila e as outras virtudes120

Repuacuteblica X 608b 04-08

O grande combate consiste em escolher o genuiacuteno valor entre as coisas e saber que

os sofrimentos do tempo presente satildeo derrisoacuterios diante da totalidade do tempo e natildeo valem

muita coisa nem satildeo algo terriacutevel (Goacutergias 527d) O zecircnite da exortaccedilatildeo filosoacutefica consiste

em procurar contrariamente ao combate no qual todos se engajam o precircmio do mais belo

combate que existe121

a potecircncia (dyacutenamis) da alma cuja beleza eacute proporcional agrave gravidade

do mal a ser combatido122

A Filosofia propicia a phroacutenesis que permite a distinccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo de todos

os valores que se referem agrave vida e ao conhecimento Os males satildeo frequentemente

associados agrave dor sensiacutevel e aos afetos A Filosofia como gecircnero de vida virtuoso permite

viver a vida de maior valor e sair vitorioso do grande combate Todavia haacute sempre um

elemento de incerteza que remanesce e haacute a grandeza do risco Somente a encantaccedilatildeo

miacutetica e seu efeito crucial de afastar o medo permitem superar o fardo da mistura em que

consistem todos os lotes de vida Eacute preciso a crenccedila como condiccedilatildeo que suscita a coragem

para vencer a mistura de dores e prazeres

120 Meacutegas gaacuter eacutephen ho agoacuten oacute phiacutele Glauacutekon meacutegas oukh hoacutesos dokeicirc tograve khrestograven egrave kakograven geneacutesesthai

hoste ouacutete timecirci epartheacutenta ouacutete khreacutemasin ouacutete arkhecirci oudemiacirci oudeacute ge poietikecirci aacutexion amelecircsai

dikaiosyacutenes te kaigrave tecircs aacutelles aretecircis 121 kaigrave tograven agoacutena toucircton hograven egoacute phemi anti pantoacuten toacuten enthaacutede agoacutenon eicircnai

(Goacutergias 527e03-04) 122 hoacutes hekaacutestou kakoucirc meacutegethos peacutephyken houacutetoacute kaigrave kaacutellos toucirc dynatocircn eicircnai heacutekasta boetheicircn kaigrave aiskhyacutene

toucirc meacute

(Goacutergias 509c03-04)

172

A necessidade da vida implica a necessidade da mistura e a necessidade da

pluralidade de afetos Mas nem a dor nem a virtude possuem deacutespota Cabe a cada um ter

sophrosyacutene sobre os afetos proacuteprios que acompanham cada lote de dor e sensaccedilotildees A alma

discerne a realidade segundo a proacutepria constituiccedilatildeo de seus afetos Esta eacute grande

significaccedilatildeo da narrativa do deus marinho Glauco A exposiccedilatildeo continuada ao ambiente das

profundezas marinhas resultou na identificaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo de Glauco ao ambiente do seu

viver A incrustaccedilatildeo de algas conchas pedregulhos e a accedilatildeo das vagas acabaram por

desfigurar sua natureza primitiva ateacute que ele se tornasse mais semelhante a uma fera

Analogamente os males que se incrustam na alma acabam por desfiguraacute-la desumanizaacute-la

ateacute que se torne irreconheciacutevel na aparecircncia bestial (therioacute) que resulta da identificaccedilatildeo

com o ambiente do seu viver (Repuacuteblica X 611c-612a)

A alma pura e saacutebia discerne a realidade de modo diferente da alma impura A

noccedilatildeo de felicidade muda conforme a natureza psiacutequica A alma dotada de phroacutenesis

encontraraacute a felicidade no pensamento elevado na virtude na obra bela e ateacute no sofrimento

contingente que ela vecirc como aacuteskesis As aspiraccedilotildees humanas ligadas ao devir perturbam e

obscurecem o pensamento o que por sua vez traz uma proporccedilatildeo de desventuras

equivalente (Repuacuteblica X 619c a escolha do tirano)

Para quebrar os viacutenculos que prendem a psykheacute aos apetites eacute preciso a excisatildeo

ciruacutergica do sofrimento Os afetos engendrados pelo sofrimento desde que postos na

perspectiva da totalidade do tempo predispotildeem a inteligecircncia a apreender realidades natildeo

vistas e natildeo percebidas

Na medida em que se obscurece a realidade do devir abre-se a realidade do

pensamento purificado O filoacutesofo eacute aquele que a tudo tendo sofrido pode voltar-se para as

realidades mais verdadeiras Ele eacute o coroamento de um itineraacuterio de sofrimentos Em meio

173

agrave desordem dos modelos de vida ele pode como afirma Dixsaut (2001 p 178) inscrever

ordem no decreto e hierarquizar os modos de vida mediante a articulaccedilatildeo da inteligecircncia

com a Necessidade Por essa razatildeo o filoacutesofo pode converter o aparente caos da

multiplicidade em uma inteligecircncia segundo o paradigma da ordenaccedilatildeo coacutesmica

Nos grandes mitos de julgamento a inexorabilidade da justa retribuiccedilatildeo da praacutexis se

conjuga com a causalidade de maneira que responsabilidade e causalidade coacutesmica

infaliacutevel sejam aspectos diversos de uma mesma kosmiacutea

174

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________ Le Politique Traduction introduction et notes par Jean-Franccedilois Pradeau 2003

________ Les Lois Traduction introduction et notes par Luc Brisson 2005

________ Meacutenon Traduction introduction et notes par Monique Canto-Sperber 1993

________ Parmeacutenide Traduction introduction et notes par Luc Brisson 2001

________ Phegravedre Traduction introduction et notes par Luc Brisson 2000

________ Philegravebe Traduction introduction et notes par Jean-Franccedilois Pradeau 2002

________ Protagoras Traduction introduction et notes par Freacutederique Idelfonse 1997

________ La Reacutepublique Traduction introduction et notes par Geoorges Leroux 2004

________ Le Sophiste Traduction introduction et notes par Nestor Cordero 1993

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httpwwwdaphnetorgindex_frhtml

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE ... · Prometeu, a linguagem é posterior ao fogo técnico, que consolida o sacrifício como o rito ... filosóficas sustentadas

100

N972k

2011

Nunes Sobrinho Rubens Garcia

Koacutesmos e inteligecircncia [manuscrito] as potecircncias da alma

no Goacutergias Rubens Garcia Nunes Sobrinho - 2011

190 f

Orientador Marcelo P Marques

Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais

Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas

Inclui bibliografia

1Filosofia ndash Teses 2 Alma - Teses 3Vergonha - Teses

4Mito - Teses 5Platatildeo Goacutergias I Marques Marcelo

Pimenta II Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade

de Filosofia e Ciecircncias Humanas III Tiacutetulo

iv

Ao Roberto Vilela Marquez enigma cujos sinais satildeo a prova cabal de que os valores mais profundos tornam todas as buscas e inquiriccedilotildees do breve tempo da vida derrisoacuterias perante a grandeza do destino humano ndash que nada eacute aleacutem do que o seu eacutethos

v

AGRADECIMENTOS

A todos aqueles que acima da Necessidade alccedilaram a escolha

Agravequeles para os quais a amizade e o bem estatildeo acima da retribuiccedilatildeo

Agravequeles para os quais os afetos constituem a uacutenica natureza invenciacutevel da alma que

resiste ao esquecimento e agrave morte

Agravequeles que satildeo myacutestai pela simplicidade da accedilatildeo virtuosa que natildeo exige compensaccedilatildeo

mas que compensam toda incerteza inerente agrave vida mediante a convicccedilatildeo de que todo risco

eacute belo se for tambeacutem uma doaccedilatildeo

Agravequeles que se fizeram meus credores e cuja paga seraacute aquilatada pelo melhor a ser feito

em prol da alteridade

Agrave Soraya para quem o amor eacute princiacutepio da vida e do mundo que estaacute muito acima da

inteligibilidade e da razatildeo

Ao Marcelo Marques para quem o fim e o princiacutepio satildeo o mesmo para quem as

imagens identificam-se com Elpiacutes pois enquanto houver imagem haveraacute tambeacutem

possibilidade de superaccedilatildeo e enquanto houver o filosofar haveraacute o ciclo coacutesmico do

recomeccedilo

Ao tio Rubens Garcia Nunes modelo e fonte eterna de significaccedilatildeo

Agraves filhas Mariela e Marina depositaacuterias do eacutethos a viajar rumo ao oceano do belo

vi

Agrave toda a minha famiacutelia cujo amor supera qualquer meacuterito

Ao Programa de Poacutes da UFMG pela participaccedilatildeo da excelecircncia teacutecnica na

humanidade

Aos examinadores Adriano Roberto Fernando e Antocircnio pela mostra de que a vida

sem exame natildeo eacute digna de ser vivida

vii

Tive medo Sabe Tudo foi isso tive medo Enxerguei os confins do rio do outro lado Longe longe com que prazo se ir ateacute laacute Medo e vergonha A aguagem bruta traiccediloeira ndash o rio eacute cheio de baques modos moles de esfrio e uns sussurros de desamparo () Um fato assim eacute honra Ou eacute vergonha

Joatildeo Guimaratildees Rosa Grande Sertatildeo Veredas

viii

SUMAacuteRIO

0 INTRODUCcedilAtildeO5

1 MITOS E CAUSAS ndash excertos de imagens causais em Hesiacuteodo e Homero 21

11 Retribuiccedilatildeo e Causalidade 21

12 Causalidade e Poder 25

13 Causalidade e Reciprocidade 32

14 A astuacutecia dolosa o presente de Prometeu 37

15 Vergonha e causalidade a cosmogonia sexual do Papiro de

Derveni 44

2 O MITO DO PROTAacuteGORAS teacutecnicas aidōs e diacutekē61

3 RELACcedilOtildeES ESTRUTURAIS NO MITO DO GOacuteRGIAS92

31 Eros e Loacutegos92

32 Vida e ḗthos98

33 Aiskhyacutene Aidōs e Causalidade109

34 Parrhēsiacutea e Epithymiacutea122

35 A Retoacuterica da alma134

36 Julgamento e nudez149

4 NECESSIDADE E ESCOLHA 154

41 Imagens e causas no mito de Er154

42 Mito e psykhḗ159

43 Er o decreto de Laacutequesis162

5 BIBLIOGRAFIA174

1

Resumo

A partir do emprego do estruturalismo alematildeo de Walter Burkert pretendo destacar nesta

investigaccedilatildeo as relaccedilotildees estruturais entre as imagens do mito de julgamento do Goacutergias e

aplicaacute-las a um passo do mito de Er da Repuacuteblica Segundo Burkert (2001b) mito eacute um

programa ou sequecircncia de accedilotildees com uma estrutura discerniacutevel definida que se caracteriza

pela exemplaridade do tipo miacutetico e pela aplicabilidade atemporal Aprofundando a

definiccedilatildeo burkertiana de mito proponho que as accedilotildees implicam imagens psiacutequicas

imbuiacutedas de afetos ndash vergonha audaacutecia e ardor satildeo os afetos eroacuteticos mediante que a

dialeacutetica socraacutetica choca-se ingente com a retoacuterica daquele que viria a ser ao mesmo

tempo o mais violento e o mais brilhante dos interlocutores que travam combate com

Soacutecrates Caacutelicles

Devo esclarecer que toda a interpretaccedilatildeo elaborada neste artigo parte do pressuposto de que o

mito eacute pensar por imagens e que imagens mentais precedem a linguagem No mito de

Prometeu a linguagem eacute posterior ao fogo teacutecnico que consolida o sacrifiacutecio como o rito

adequado para a interaccedilatildeo entre as instacircncias divina e humana e a emergecircncia ritualiacutestica dos

esquemas mentais que compotildeem a inteligecircncia causal organizadora da experiecircncia e da

multiplicidade a conexatildeo infaliacutevel entre dois eventos consecutivos no tempo a deliberaccedilatildeo

projetiva inteligente a escolha de meios eficazes com vistas a um fim uacutetil determinado Por

extensatildeo pode-se dizer que os ritos satildeo anteriores agrave linguagem e que imagens e ritos natildeo a

linguagem satildeo os fundamentos do pensar

Por fim um olhar atento ao termo parrhēsiacutea que inicialmente aparece como a fala aberta

que revela o pensamento e as verdadeiras crenccedilas do proferidor no Goacutergias eacute mencionado

na ambiguidade irocircnica com que Soacutecrates alude ao livre curso dos apetites de Caacutelicles (que

engendram a violecircncia do seu loacutegos) e agrave qualidade psiacutequica pela qual a investigaccedilatildeo

2

dialeacutetica pode chegar a bom termo A franqueza (parrhēsiacutea) eacute a garantia pela qual

interlocutor assente a uma tese expressa e tambeacutem um indicativo de que uma certa

ordenaccedilatildeo psiacutequica transpotildee seu movimento proacuteprio para o loacutegos O discurso sem peias

reproduz de modo direto a trama que entretece os afetos neste princiacutepio de movimento e

inteligecircncia que eacute a psykheacute

Palavras-chave Goacutergias Repuacuteblica estrutura mito

3

Abstract

Based on approach of Water Burkert German structuralism in this issue I intend to point

out the structural relations between the images of the judgment myth in Plato‟s Gorgias and

apply them in Er myth of Republic

According to Burkert (2001b) myth is a program or a sequence of actions in a clear

distinguished structure characterized by exemplarity of the mythical model and the

timeless applicability Going further on Burkert definition of myth I put forward that the

actions imply psychic images filled with feelings ndash audacity and ardor are erotic feelings

through which the Socratic dialectics strikes against the rhetoric of that who became at the

same time the most violent and the cleverest interlocutor to antagonize Socrates Callicles

In addition I must say that the whole interpretation presented here assumes that myth is

thinking by images and mental images come before language In Prometheus myth language

comes after the technical fire that stabilizes the sacrifice as the right rite for the interplay of

divine and human instances and the ritual emergency of mental scheme that compound the

causal intelligence that organizes experience and multiplicity the infallible connection between

two consecutive events in time the intelligent projective deliberation the choice of efficient

means aiming a specific useful objective In other words it can be said that rites come before

language and that not language but images and rites give the bases to thoughts In conclusion

staring at the expression parrhēsiacutea ndash which first appears as an open speech that reveals the

thought and the true beliefs of its speaker ndash in Gorgias the word points out the ironic

ambiguity with which Socrates refers to the Callicles free course of desires (which

engender his loacutegos violence) and the psychic quality by which the dialectic investigation

can come to an end Sincerity (parrhēsiacutea) is the guarantee by which a speaker agrees to an

expressed thesis and also a sign that a certain psychic organization transfers its peculiar

4

movement to the logos The unchained speech imitates the scheme which intertwines the

feelings in the beginning of the movement and the intelligence which psykheacute is

Keyword Gorgias Republic structure myth

5

Introduccedilatildeo

O escopo desta pesquisa eacute desenvolver a partir do movimento proacuteprio do Goacutergias a

adequaccedilatildeo de um meacutetodo que desvele a estrutura interna do grandes mito de julgamento

que culmina o diaacutelogo de sorte a compreender sua funccedilatildeo suas regularidades seus

esquemas invariantes e as correspondecircncias entre as imagens miacuteticas e as concepccedilotildees

filosoacuteficas sustentadas na dramatizaccedilatildeo Para tanto adota-se os resultados da tese

ingressiva de Charles Kahn como fundamento para a abordagem comparativa de diaacutelogos

que historicamente satildeo situados em periacuteodos diversos

O enfoque sinoacutetico por sua vez possibilita a adoccedilatildeo da assunccedilatildeo estrateacutegica de que

o desenvolvimento do meacutetodo se faccedila a partir da comparaccedilatildeo do movimento interno das

imagens do mito de julgamento e simultaneamente possibilite uma compreensatildeo fecunda

dessas imagens a partir da aplicaccedilatildeo do meacutetodo Ademais visa-se examinar o influxo que o

pano de fundo composto pela tradiccedilatildeo cultual dos misteacuterios gregos a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e a

filosofia cosmoloacutegica anterior a Platatildeo exerceram nos mitos de julgamento e sobretudo a

transposiccedilatildeo filosoacutefica empreendida por Platatildeo em relaccedilatildeo a essa forja mental no

movimento dos mitos finais do Goacutergias Como anexo esboccedila-se uma extensatildeo desse

bricolage interpretativo a um passo do mito de Er (Repuacuteblica X 614b-621d)

Adoto o pressuposto de que o mito filosoacutefico platocircnico eacute um ldquopensar por imagensrdquo

que se expressa numa sequecircncia de accedilotildees Enquanto narrativa o mito eacute um fenocircmeno

linguiacutestico que natildeo possui referentes imediatos atestaacuteveis Natildeo haacute um isomorfismo entre a

narrativa e uma realidade diretamente verificaacutevel Uma narrativa natildeo eacute uma ldquoacumulaccedilatildeordquo

de sentenccedilas pontuais mas eacute uma sequecircncia no tempo (BURKERT 1979 3 ss) Mas a

6

sequecircncia temporal miacutetica natildeo eacute homoacuteloga ao tempo cronoloacutegico eacute uma sequecircncia

temporal que possui uma homologia estrutural com uma sequecircncia de significaccedilatildeo causal

A sequecircncia de imagens torna manifestas relaccedilotildees entre registros de realidade

distintos atraveacutes da necessidade de uma conexatildeo interna A linearidade e a

transmissibilidade de um complexo de relaccedilotildees e conexotildees causais homologaacuteveis

constituem o cerne da narrativa miacutetica Tais elementos exigem o suporte linguumliacutestico mas

embora Burkert consigne o mito ao domiacutenio da linguagem nos mitos filosoacuteficos a

linguagem eacute somente instrumental e natildeo eacute o fundamento uacuteltimo de significaccedilatildeo

As metaacuteforas imageacuteticas de um mito filosoacutefico por princiacutepio possuem uma

polissemia inexauriacutevel pela simples razatildeo de que seu referencial uacuteltimo eacute o pensamento ou

mais propriamente o psiquismo Natildeo se trata se identificar na psykheacute o princiacutepio do

inteligiacutevel mas de se pensar a inteligibilidade cosmoloacutegica inextricavelmente do modo

como o pensamento e os afetos apreendem o inteligiacutevel e o recompotildeem na accedilatildeo demiuacutergica

da molda das imagens e do discurso Inteligecircncia afetiva imagens pensamentos e os loacutegoi

conjugam-se necessariamente na ldquocaccedila ao realrdquo

Como se pode depreender do mito do Protaacutegoras o pensamento loacutegico

discriminador a inteligecircncia teacutecnica a linguagem e a matemaacutetica o engenho humano e as

teacutecnicas discursivas todos emanados do fogo teacutecnico satildeo ontologicamente posteriores aos

ritos aos cultos e agrave fabricaccedilatildeo de imagens dos deuses Isso implica que ndash a menos que se

considerem todos os mitos e toda forma de metaacutefora empregada no corpus platocircnico como

palavroacuterio sem sentido ndash a linguagem natildeo eacute e natildeo pode ser o fundamento uacuteltimo da

realidade O pensamento as imagens e os afetos satildeo intrinsecamente misturados agrave praacutexis

ao biacuteos agrave proacutepria vida que simultaneamente brota e interfere no mundo Os loacutegoi soacute

ganham autonomia mediante o reconhecimento e a alforria do senhorio das imagens

7

No corpus platocircnico os fenocircmenos se exprimem por uma gama de termos como

phainoacutemenon eiacutedōlon eikōn phaacutentasma miacutemēma homoiacuteōma e outras (SEKIMURA

2009 p 22 ss) Mas Platatildeo hierarquiza o estatuto epistecircmico das imagens Haacute uma clara

distinccedilatildeo entre eiacutedōlon eikōn e phaacutentasma Haacute imagens que satildeo determinantes no processo

do conhecimento haacute imagens cujas relaccedilotildees satildeo empobrecidas em relaccedilatildeo o modelo

original e haacute imagens ilusoacuterias que impedem a apreensatildeo da realidade A distinccedilatildeo entre

eiacutedōlon e eikōn eacute brilhantemente exposta por S Saiumld

Se as duas palavras satildeo formadas a partir de uma mesma

raiz bdquowei‟- somente eiacutedōlon por sua origem emerge da esfera do

visiacutevel pois eacute formada sobre um tema bdquoweid‟- que exprime a ideacuteia

de ver (este tema que deu ao latim bdquovideo‟ se encontra em grego

no verbo bdquoidein‟ bdquover‟ e no substantivo eidos que se aplica

inicialmente agrave aparecircncia visiacutevel) O eikōn do mesmo modo que os

verbos eisko ou eikazdo bdquoassimilar‟ ou o adjetivo eikelos

bdquosemelhante‟ se vincula a um tema bdquoweik‟- que indica uma relaccedilatildeo

de adequaccedilatildeo ou de conveniecircncia

(SAID apud SEKIMURA 2009 p 23)

Como nota Sekimura (2009 p 22 ss) o termo eiacutedōlon se forma sobre o mesmo

tema que origina Eidos e Idea designativos da realidade inteligiacutevel e de sua accedilatildeo causal

determinante A relaccedilatildeo entre as imagens e o inteligiacutevel invisiacutevel eacute constitutiva Nesse

sentido como afirma Saiumld existe entre o eiacutedōlon e seu modelo uma identidade de

superfiacutecie e de significante enquanto a relaccedilatildeo entre o eikōn e o que ele representa se

situa no niacutevel da estrutura profunda do significado (id) O eiacutedōlon estaacute para o eikōn assim

como a coacutepia da aparecircncia sensiacutevel estaacute para a transposiccedilatildeo da essecircncia

O eiacutedōlon eacute inerente ao olhar eacute o alvo e o ponto de encontro entre o olhar e a

silhueta que nada informa acerca das determinaccedilotildees do modelo Ele eacute valorizado ou

desvalorizado pela relatividade do olhar e sua manifestaccedilatildeo ao modo das imagens dos

deuses implica simultaneamente a presenccedila e a ausecircncia Sua marca eacute a do

8

empobrecimento e do afastamento do modelo original O eikōn por outro lado carrega em

seu bojo a remissatildeo pluriacutevoca a planos diversos Ele pode ser o ponto de partida para o

conhecimento de relaccedilotildees e determinaccedilotildees sensiacuteveis ou pode remeter agrave realidade inteligiacutevel

No eikōn a inteligecircncia se vale do olhar para ultrapassar a imagem e mediante a

transposiccedilatildeo e a homologaccedilatildeo de suas relaccedilotildees internas ldquosaturar-serdquo gradativamente do

inteligiacutevel e do invisiacutevel no foco das relaccedilotildees somente pensaacuteveis As imagens icocircnicas

constituem o esforccedilo ingloacuterio de pensar filosoficamente o invisiacutevel a morte a alma e os

referenciais imoacuteveis exigidos para a compreensatildeo de um mundo caoacutetico

Por isso a inteligecircncia usa imagens na tentativa de ver o invisiacutevel e operar a

passagem da sensaccedilatildeo para a concepccedilatildeo Natildeo eacute por acaso que os mitos filosoacuteficos estatildeo na

esfera da crenccedila que possui a pretensatildeo de ser o loacutegos mais verdadeiro suas imagens satildeo

um convite para a inquiriccedilatildeo da significaccedilatildeo profunda subjacente aos fenocircmenos

cambiantes caoacuteticos As imagens miacuteticas convocam a inteligecircncia e o olhar a jamais se

fixarem naquilo que eacute visto e manifesto e ascenderem em direccedilatildeo ao invisiacutevel ao

inteligiacutevel ateacute que a luz da lamparina subitamente se acenda pelo movimento psiacutequico

O mito filosoacutefico eacute verdadeiramente um ldquopensar por imagensrdquo e eacute tambeacutem a uacutenica

modalidade de pensar que natildeo se fixa no visiacutevel mas que convoca para a significaccedilatildeo mais

profunda oculta na maior profundeza do oceano do belo

Questotildees de meacutetodo e hermenecircutica

Mas a virtude de cada coisa seja instrumento corpo ou alma

seja qualquer animal vivo natildeo lhe vem por acaso e jaacute eacute

completa eacute o resultado de uma certa ordem de retidatildeo e da

arte adaptada agrave natureza de cada um Logo eacute pela ordem e

regramento que a virtude de cada coisa existe

Goacutergias 506 d5-e2

Desejando a divindade que tudo fosse bom e tanto quanto

possiacutevel estreme de defeitos tomou o conjunto das coisas

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visiacuteveis ndash nunca em repouso mas movimentando-se discordante

e desordenadamente ndash e fecirc-lo passar da desordem para a

ordem por estar convencido de que esta em tudo eacute superior

agravequela

Timeu 30a

A composiccedilatildeo dramaacutetica do Goacutergias anuncia uma guerra e uma batalha (poacutelemos

kai maacutekhe) na qual Platatildeo iria se engajar ateacute a morte a defesa do gecircnero de vida filosoacutefico

No Goacutergias estatildeo mapeados e demarcados de maneira incipiente os principais temas que

compotildeem a Filosofia platocircnica Segundo Olimpiodoro o objetivo do diaacutelogo seria ldquofalar

sobre princiacutepios eacuteticos que levam ao bem-estar constitucionalrdquo (1998 p 57 04) Todo o

ardor que anima Soacutecrates (457e) na sua defesa apaixonada de um modo peculiar de vida

tem como alvo falar sobre a organizaccedilatildeo constitucional e sua correlaccedilatildeo com os valores

eacuteticos determinantes para o gecircnero de vida A questatildeo dos valores eacuteticos remonta em

uacuteltima instacircncia agrave oposiccedilatildeo fundamental entre o regramento e o desregramento o

regramento dos afetos corresponde ao regramento do mundo que por isso eacute chamado

kosmos (Goacutergias 507e ndash 508b) Natildeo pode existir nenhuma comunhatildeo ou associaccedilatildeo

humana sem regras assim como nada existe no kosmos que natildeo tenha regras Todo o

mundo eacute de fato um espetaacuteculo de geometria e proporccedilatildeo geomeacutetrica (Goacutergias 508a)

A questatildeo de um regramento matemaacutetico que perpassa o koacutesmos juntamente com os

mitos de julgamento suscita uma gama de questotildees natildeo respondidas

Por que Platatildeo um filoacutesofo que atribui um valor sublime agraves matemaacuteticas e assimila

o raciociacutenio puro ao divino (Feacutedon 84 a-b) culmina grandes diaacutelogos que concentram o

cerne de sua Filosofia com grandes mitos de julgamento Por que esse criacutetico mordaz da

poesia e dos mitos tradicionais recorre a um acervo de tradiccedilotildees miacutesticas e inventa seus

proacuteprios mitos A questatildeo da elucidaccedilatildeo do papel dos mitos na composiccedilatildeo complexa de

trecircs dos maiores diaacutelogos platocircnicos estaacute contida no acircmbito mais geral do problema

10

interpretativo que exige a superaccedilatildeo da distacircncia entre o que Platatildeo escreve em passagens

especiacuteficas e as concepccedilotildees maiores que atravessam a inteireza dos diaacutelogos Somente um

tratamento comparativo-sinoacutetico e o refazimento do movimento proacuteprio de cada diaacutelogo

permitem a distinccedilatildeo e a soluccedilatildeo do problema da relevacircncia dos mitos O postulado de que

o problema da interpretaccedilatildeo de um texto de Platatildeo exige a elucidaccedilatildeo de seu significado a

partir da comparaccedilatildeo de textos datados em periacuteodos distintos define o posicionamento de

ataque estrateacutegico ao problema da relevacircncia dos mitos e da possibilidade da conquista da

significaccedilatildeo (KAHN 1998 p 58 ss)

Por que Platatildeo se vale de imagens aparentemente desprovidas de regras e estranhas

agrave consecuccedilatildeo de proposiccedilotildees que se implicam mutuamente para expor suas principais

concepccedilotildees filosoacuteficas Qual o melhor meacutetodo para uma interpretaccedilatildeo fecunda desses

mitos O problema da relevacircncia abre o campo para o enfrentamento do estabelecimento

dos traccedilos constitutivos da composiccedilatildeo e distinccedilotildees especiacuteficas dos grandes mitos dos seus

efeitos e de um meacutetodo eficaz que sirva como arma que capture o sentido Se os grandes

mitos supotildeem regras em sua composiccedilatildeo e essas regras natildeo possuem referentes fora da

psykheacute entatildeo essas regras representam a determinaccedilatildeo profunda do psiquismo A riqueza

das metaacuteforas em Platatildeo instiga a investigaccedilatildeo das homologias estruturais em busca da

explicitaccedilatildeo dessas regras

Por que o filoacutesofo que recria dramaacutetica e imortalmente a refutaccedilatildeo destrutivo-

construtiva da dialeacutetica socraacutetica encena a impotecircncia do loacutegos diante de temas cruciais e eacute

obrigado a recorrer agrave encantaccedilatildeo miacutetica Por que os grandes mitos finais satildeo mitos de

julgamento das almas e da imortalidade Por que eles aparecem no fim dos diaacutelogos A

fundamentaccedilatildeo dos valores exige o emprego simultacircneo de todo o arsenal discursivo O

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modelo metodoloacutegico permite a distinccedilatildeo de planos conceptuais que fazem a mediaccedilatildeo

entre oposiccedilotildees e uma interpretaccedilatildeo frutiacutefera deve destrinccedilar relaccedilotildees ocultas ou obscuras

Pensar filosoficamente a questatildeo da constituiccedilatildeo eacutetico-poliacutetica implica penetrar o

acircmago da alma e o tempo humano na perspectiva da perenidade e por isso o problema do

sentido emana indissociaacutevel das modalidades de inteligecircncia de um discurso complexo A

complexidade dos diaacutelogos sugere a hipoacutetese heuriacutestica de trataacute-los por inteiro como

grandes mitos Tal abordagem permite a superaccedilatildeo da dicotomia myacutethos-loacutegos e a aplicaccedilatildeo

do princiacutepio que permite o desvelamento auto-referenciado da significaccedilatildeo

Quais satildeo as concepccedilotildees que demarcam a arena comum na qual se desenrolam os

grandes mitos finais e quais satildeo suas implicaccedilotildees para a visatildeo de mundo e para a noccedilatildeo de

racionalidade de Platatildeo O campo no qual se desenrolam as gestas dos grandes mitos eacute

consistente e rigorosamente demarcado no Goacutergias e na Repuacuteblica a mousikecirc No Goacutergias

o domiacutenio da poesia traacutegica eacute determinado pela conjugaccedilatildeo de meacutelos rythmon e meacutetron

(Goacutergias 502c)

A demiurgia poeacutetica designa pois a atividade de fabricar um discurso complexo no

domiacutenio da muacutesica (BRISSON 1994 p 53) Na Repuacuteblica apoacutes o estabelecimento da

influecircncia exercida pelas narrativas miacuteticas sobre os afetos e o psiquismo a melodia

(meacutelos) eacute definida como sendo a composiccedilatildeo de trecircs elementos palavra (loacutegou) harmonia

(harmoniacuteas) e ritmo (rythmou) Haacute uma correlaccedilatildeo determinante entre o eacutethos e o gecircnero de

harmonia (Repuacuteblica 399 a-e) entre a natureza dos afetos e a natureza harmocircnica Mito e

harmonia pertencem ambos agrave esfera da muacutesica e caracterizam-se pela correlaccedilatildeo entre a

natureza de suas determinaccedilotildees e a natureza psiacutequica A natureza da harmonia incita

virtudes especiacuteficas ou afetos viciosos estados mentais e disposiccedilotildees de alma

correspondentes A correspondecircncia entre estados psiacutequicos e teoria musical constitui um

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legado preacute-platocircnico como demonstra Aldo Brancacci (DIXSAUT 2006 p 89-106) A

grande transposiccedilatildeo operada por Platatildeo consiste no desenvolvimento de uma visatildeo

cosmoloacutegica unificada que abarca a muacutesica e explicita a sua relaccedilatildeo com a natureza da

alma

Mas qual eacute o elemento comum entre a alma e a harmonia A questatildeo da

ldquoharmoniardquo eacute expressamente tributaacuteria da tradiccedilatildeo pitagoacuterica e da concepccedilatildeo cosmoloacutegica

de Heraacuteclito A palavra harmoniacutea eacute aparentada ao termo harmos que designava o

acoplamento de duas liras originalmente tetracordes formando uma uacutenica lira heptacorde

(MOUTSOPOULOS in DIXSAUT 2006 p 110) A harmonia que originalmente tinha o

sentido de ldquojuntarrdquo ldquoacoplarrdquo passou a significar ldquoacordordquo ou ldquoreconciliaccedilatildeordquo Empeacutedocles

emprega harmoniecirc como outro nome para philotecircs a contrapartida para o oacutedio ou discoacuterdia

ndash o princiacutepio de proporccedilatildeo ou acordo que cria uma unidade harmoniosa entre poderes

potencialmente hostis Haacute ademais outro uso figurativo qual seja o de afinaccedilatildeo de um

instrumento musical o ajustamento das diferentes cordas para produzir uma escala

desejada Tanto o sentido musical como o sentido metafoacuterico mais amplo satildeo combinados

na concepccedilatildeo pitagoacuterica de que potecircncias opostas do kosmos satildeo mantidas juntas por um

princiacutepio ou harmonia como ldquoreconciliaccedilatildeordquo que toma a forma de uma oitava musical

(GUTHRIE 1990) (KAHN 2001) Boyanceacute (1993) demonstra com bastante propriedade

o enorme influxo que a concepccedilatildeo pitagoacuterica de ldquoharmoniardquo exerceu em Platatildeo sobretudo

no Timeu e na ldquomuacutesica celestialrdquo mencionada no mito de Er (Repuacuteblica X)

Tributaacuterio de uma longa tradiccedilatildeo de pensamento Platatildeo opera uma reviravolta

unificadora a harmonia musical eacute simultaneamente determinada pelo regramento

matemaacutetico e pela consonacircncia de movimentos complexos A transposiccedilatildeo cultural parte do

acervo de tradiccedilotildees vinculadas ao deus patrono da muacutesica e do regramento Apolo

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Apolo eacute o deus da muacutesica da profecia e da harmonia A natureza musical de Apolo

representa a voz do mundo oliacutempico harmonia e medida que emergem da tensatildeo dos

contraacuterios Apolo o muacutesico eacute tambeacutem ldquoo deus fundador das regras e o conhecedor do

justo do necessaacuterio e do futurordquo (OTTO 1995 p 112) O viacutenculo entre a natureza musical

regramento e harmonia eacute estabelecido de modo inequiacutevoco no Craacutetilo Mas a grande

reviravolta empreendida por Platatildeo consiste na ampliaccedilatildeo desse viacutenculo para a esfera do

psiquismo mediante a noccedilatildeo de movimento

A etimologia do nome Apolo indica o ldquomovimento conjunto tanto no ceacuteu a que

damos o nome poacutelo como na harmonia do canto denominada sinfonia porque todos esses

movimentos como dizem os entendidos em Muacutesica e Astronomia satildeo feitos em conjunto

por uma espeacutecie de harmonia Eacute o deus que preside agrave harmonia e faz que tudo se mova

conjuntamente (omopolocircn) tanto entre os deuses como entre os homensrdquo (Craacutetilo 405 c-d)

No Timeu a consonacircncia de movimentos dissemelhantes eacute identificada com a harmonia

divina (Timeu 80 a-b) A harmonia cosmoloacutegica se expressa pelo regramento geomeacutetrico

que determina e unifica todos os seres num todo orgacircnico (Timeu 31d-32a) A psykheacute por

outro lado eacute ao mesmo tempo princiacutepio de movimento e princiacutepio da vida pois a ldquocessaccedilatildeo

do movimento corresponde ao fim da existecircnciardquo (Fedro 245 c) A existecircncia de todo o

koacutesmos deriva do movimento e todo o movimento proveacutem do princiacutepio (245d) Como a

ordem pressupotildee a inteligecircncia e a inteligecircncia pressupotildee a alma haacute uma correspondecircncia

pluriacutevoca e uma implicaccedilatildeo muacutetua entre a proporccedilatildeo geomeacutetrica a harmonia musical a

harmonia dos movimentos e a harmonia psiacutequica (Timeu 30 a-d) Os movimentos sonoros

possuem por conseguinte ressonacircncias simultaneamente fiacutesicas e psiacutequicas (Timeu 67a)

que afetam o caraacuteter (MOUTSOPOULOS in DIXSAUT 2006 p 107-120) Tais

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correspondecircncias no entanto natildeo explicam as causas para a existecircncia de todos os seres no

palco de contradiccedilotildees que eacute o devir Quais satildeo essas causas

Platatildeo natildeo reelabora a tradiccedilatildeo na sua explicaccedilatildeo causal de mundo e inaugura um

procedimento jamais utilizado na histoacuteria do pensamento o modelo hipoteacutetico das Formas

A hipoacutetese das Formas provecirc ao mesmo tempo as razotildees que fazem com que cada

ser seja precisamente o que eacute e natildeo outra coisa as razotildees que explicam a predicaccedilatildeo e as

diferenccedilas especiacuteficas relativas as razotildees que elucidam as interaccedilotildees fiacutesicas envolvidas na

geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo uma norma absoluta que sirva de paracircmetro para as accedilotildees praacuteticas e

possibilite uma concepccedilatildeo poliacutetica cosmoloacutegica e geograacutefica que corresponde

estruturalmente a um psiquismo complexo Como afirma Cherniss (PRADEAU 2001) e

posteriormente Luc Brisson do mesmo modo que Eudemo fazia a hipoacutetese de um nuacutemero

determinado de movimentos regulares para explicar os movimentos irregulares dos

planetas Platatildeo para ldquodar conta da mudanccedila eterna e contraditoacuteria do mundo sensiacutevelrdquo

(BRISSON 1998 p 112) elaborou a hipoacutetese das Formas (Feacutedon 94d-100a) A estrutura

complexa do mundo compotildee um palco de contradiccedilotildees que abarca as accedilotildees praacuteticas e a

constituiccedilatildeo poliacutetica da cidade Ao contraacuterio dos filoacutesofos da natureza que partiam dos

fenocircmenos e buscavam princiacutepios explicativos materiais irredutiacuteveis Platatildeo empreende

uma inversatildeo epistemoloacutegica uma ldquosegunda navegaccedilatildeordquo (99e) e postula princiacutepios de

inteligibilidade que regram as contradiccedilotildees fiacutesicas e eacutetico-poliacuteticas

A causalidade constitui ao mesmo tempo o princiacutepio explicativo para a esfera

eacutetico-poliacutetica para os caracteres e valores psiacutequicos e para a physis (Feacutedon 98c-99b) (Leis

X 891e) (Filebo 27b) (Timeu 29d 44c-46e) A causalidade platocircnica eacute posta como

sucessatildeo temporal invariaacutevel na qual um efeito segue forccedilosamente uma causa e como

uma relaccedilatildeo de dependecircncia paradigmaacutetica na qual algo vem a ser a partir de um princiacutepio

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ou modelo (BRISSON 2001 p 15-17) As explicaccedilotildees de mundo dos filoacutesofos da natureza

procuravam explicar a geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo de todos os seres a partir de elementos materiais

do proacuteprio plano da physis Tais explicaccedilotildees eram contraditoacuterias visto que violavam trecircs

princiacutepios basilares da causalidade o de que uma causa natildeo pode ter dois efeitos contraacuterios

(Feacutedon 96d 101a-b) o de que um efeito natildeo pode resultar de duas causas contraacuterias

(Feacutedon 96e-97b) e o de que algo natildeo pode ser causa do seu contraacuterio (101b) (FISCHER

2002 p 659) Uma explicaccedilatildeo racional de mundo pressupotildee uma instacircncia absoluta

separada do plano dos fenocircmenos e que sirva de referencial absoluto a partir do qual as

interaccedilotildees da physis satildeo reportadas

O esforccedilo da fundamentaccedilatildeo dos valores eacutetico-poliacuteticos leva Platatildeo a buscar essa

instacircncia normativa que sirva de medida e referencial absoluto para as accedilotildees praacuteticas Para

que os valores sejam reportados a um uacutenico paradigma normativo a sua temporalidade

deve ser superada mediante o recurso a uma epistemologia que lhes confira determinaccedilotildees

invariaacuteveis Tal epistemologia por sua vez engendra uma psicologia ad hoc como

fundamento para a praacutetica poliacutetica Todos estes planos encontram significaccedilatildeo num plano

cosmoloacutegico mais elevado cuja fundamentaccedilatildeo uacuteltima eacute a hipoacutetese causal das Formas

O grande mito de julgamento no Goacutergias anuncia o projeto da visatildeo cosmoloacutegica

unificada visada por Platatildeo Ele constitui um modo de inteligibilidade autocircnomo cuja

significaccedilatildeo soacute eacute passiacutevel de ser encontrada numa visatildeo da totalidade

A justificativa primacial da pesquisa eacute o fato de que uma exegese do mito de

julgamento do Goacutergias segundo um meacutetodo estrutural buerkertiano natildeo foi empreendida

Solidaacuterios de uma certa concepccedilatildeo de racionalidade segundo a qual a verdade eacute uniacutevoca e

soacute passiacutevel de ser obtida mediante raciociacutenios que seguem o modelo das demonstraccedilotildees

matemaacuteticas a maioria dos eruditos contemporacircneos identifica os mitos com um

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pensamento primitivo e preacute-filosoacutefico susceptiacutevel de ser ultrapassado por uma razatildeo

esclarecida (OTTO 1987) A noccedilatildeo cartesiana de uma verdade cientiacutefica uacutenica reduz a

racionalidade aos argumentos demonstrativos ou agraves formas de raciociacutenio matemaacutetico A

ampliaccedilatildeo da noccedilatildeo de racionalidade para a esfera das imagens e formas afetivas de

inteligibilidade suscita a validade e o uso de formas discursivas complexas que abrangem

todo o espectro do psiquismo raciociacutenios imagens e afetos Tal noccedilatildeo ampliada de

racionalidade aliada ao desenvolvimento de um modelo teoacuterico consistente resulta num

enriquecimento original para a investigaccedilatildeo do pensamento platocircnico

Embora os uacuteltimos anos do seacuteculo passado e os primeiros anos deste seacuteculo

evidenciem uma retomada do interesse dos platonistas pelos mitos1 as questotildees acerca da

interpretaccedilatildeo dos grandes mitos finais natildeo foram suficientemente respondidas e

certamente natildeo foram tratadas num uacutenico modelo teoacuterico consistente2 A proacutepria gama das

perguntas natildeo respondidas justifica o esforccedilo pela forja desse modelo teoacuterico

ndash Consideraccedilotildees metodoloacutegicas

Como engenhar os instrumentos para tal modelo Felizmente os ensaios de anaacutelise

estrutural de Vernant (1990) e Burkert (1997) fornecem o martelo e a bigorna que

permitiratildeo a molda das noccedilotildees essenciais da Filosofia contida nos mitos platocircnicos Molda

esta que natildeo obstante a dureza da tecircmpera soacute seraacute possiacutevel na altiacutessima fornalha da longa

tradiccedilatildeo dos cultos de misteacuterio gregos

A abordagem de um texto antigo constitui um si mesma um trabalho de Siacutesifo que

pressupotildee a cada vez que eacute retomado modalidades do pensar que satildeo condicionadas pela

1 Dentre outros destacamos Ward White Brisson Dixsaut Vernant Matteacutei Joly Desclos e Annas 2 A anaacutelise de Ward (2002) abarca parcialmente as questotildees levantadas mas sua abordagem fortemente

alegoacuterica eacute ldquofechadardquo e embora constitua um notaacutevel avanccedilo natildeo configura um meacutetodo aplicaacutevel que possa

ser validado ou invalidado A abordagem de Brisson (1994) por outro lado empreende uma generalizaccedilatildeo de

uma teoria contemporacircnea da comunicaccedilatildeo e perde excessivamente a especificidade do movimento dialoacutegico

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paideacuteia e especificidade histoacuterica A tarefa do historiador de Filosofia e do cientista em

geral eacute um constructum em aberto indefinidamente Mas tal abordagem pode ser

metodologicamente justificada Como conciliar um modelo teoacuterico contemporacircneo

construiacutedo mediante os oacuteculos da etnologia com um texto grego antigo Tal empresa natildeo

atenta contra as boas recomendaccedilotildees de uma abordagem filoloacutegico-doxograacutefica A boa

regra de meacutetodo doxograacutefico (ROSSETI 2006 p 274) natildeo preceitua que as teses

efetivamente sustentadas por um autor sejam coerente e validamente atestadas pelas fontes

Em primeiro lugar deve-se atentar que Leacutevi-Strauss explicitamente reconhece que

seu empreendimento teoacuterico se aproxima de um ldquokantismo sem sujeito transcendentalrdquo

(LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 18) Cada mito tomado em particular afirma Leacutevi-Strauss

ldquoexiste como aplicaccedilatildeo restrita de um esquema que as relaccedilotildees de inteligibilidade reciacuteproca

percebidas entre vaacuterios mitos ajudam progressivamente a extrairrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004

p 32) Por essa razatildeo ldquoos esquemas miacuteticos de pensamento apresentam no mais alto grau o

caraacuteter de objetos absolutosrdquo

O caraacuteter auto-referenciado permite com que as cadeias linguumliacutesticas se desprendam

dos mitos e caiam como as escaras dos olhos de um cego deixando-os livres das anaacutelises

filoloacutegicas e reste somente a estrutura Embora pertenccedila agrave ordem do discurso o mito para

expressar-se ldquopode descolar-se de seu suporte linguumliacutestico ao qual a histoacuteria que narra estaacute

menos intimamente ligada do que seria o caso em mensagens comunsrdquo (LEacuteVI-STRAUSS

2004 p 8)

Mas ainda que os esquemas miacuteticos de pensamento reflitam um modo de pensar

autocircnomo o ldquopensar por imagensrdquo cuja estrutura inteligiacutevel eacute indiferente agrave ldquoidentidade do

mensageiro ocasionalrdquo como operar a transformaccedilatildeo de coordenadas ou uma transposiccedilatildeo

estrutural vaacutelida do modelo de Leacutevi-Strauss para os mitos de julgamento platocircnicos Qual eacute

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o elemento comum que permite a passagem que cobre o profundo fosso cultural entre dois

mundos tatildeo separados o de um pensador contemporacircneo e o de um filoacutesofo grego Tais

esquemas de pensamento seriam indiferentes ao tempo

Haacute uma instacircncia estritamente homoacuteloga ao mito cuja estrutura tanto para Leacutevi-

Strauss como para Platatildeo transcende ao tempo cronoloacutegico e permite uma experiecircncia e

uma inteligecircncia da totalidade a muacutesica Mito e muacutesica possuem e congregam as mesmas

funccedilotildees ndash ldquofunccedilatildeo intelectual e tambeacutem emotivardquo ndash (LEacuteVI-STRAUSS 2000 p 69) que

suscitam uma experiecircncia da totalidade e por essa razatildeo podem ser lidos por um

procedimento anaacutelogo tal como numa partitura musical o significado baacutesico de um mito

natildeo estaacute numa sequumlecircncia de acontecimentos mas como afirma Burkert a um grupo de

accedilotildees que podem ocorrer em momentos diferentes do tempo cronoloacutegico Mito e muacutesica

comportam uma dimensatildeo temporal proacutepria que inflige um desmentido ao tempo

cronoloacutegico ambos satildeo ldquomaquinas de suprimir o tempordquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 35)

Por isso o mito supera ldquoa antinomia de um tempo histoacuterico e findo e de uma estrutura

permanenterdquo

A leitura de uma partitura exige que se procure entender a paacutegina inteira pois o

significado da primeira frase musical escrita soacute pode ser obtido com a consideraccedilatildeo de que

o sentido das frases precedentes estaacute incluiacutedo nas frases subsequumlentes Temos de ler

simultaneamente da esquerda para a direita e de cima para baixo Soacute ldquoconsiderando o mito

como se fosse uma partitura orquestral escrita frase por frase eacute que o poderemos entender

como uma totalidade e extrair o seu significadordquo (op cit p 68) Os grandes estilos

musicais modernos dos seacuteculos XVII a XIX segundo Leacutevi-Strauss assumiram as funccedilotildees

que desempenhava a mousikeacute dos antigos mas a despeito dos rearranjos culturais ambos ndash

mito e muacutesica ndash ldquotranscendem a oposiccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel colocando-se

19

imediatamente no niacutevel dos signosrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 33) Tanto Leacutevi-Strauss

como Platatildeo usam o mito para operar a mediaccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Os

grandes mitos de julgamento compotildeem efetivamente um mosaico de oposiccedilotildees que

remetem para a mediaccedilatildeo entre o devir e aquilo que eacute somente pensaacutevel Eis a ponte que

supera o abismo entre dois mundos separados ao mesmo tempo pela racionalidade loacutegica e

pela distacircncia cultural das eacutepocas

Na sua anaacutelise dos mitos indiacutegenas da costa canadense Leacutevis-Strauss distingue e

compara quatro ldquoniacuteveisrdquo determinantes e independentes do tempo cronoloacutegico geograacutefico

teacutecnico-econocircmico socioloacutegico e cosmoloacutegico (LEacuteVI-STRAUSS 1993 p 164) Enquanto

os dois primeiros niacuteveis encontram referentes bem definidos o terceiro entremeia

elementos atestaacuteveis com elementos somente pensaacuteveis e o quarto compotildee-se de imagens e

elementos somente pensaacuteveis A anaacutelise do mito da ldquogesta de Asdiwalrdquo revela que os trecircs

primeiros eixos sincrocircnicos relacionam-se com a praacutexis poliacutetica teacutecnica e social dos iacutendios

Tsimshiam ao passo que o quarto eixo consiste na configuraccedilatildeo de imagens que possuem a

funccedilatildeo heuriacutestica e explicativa de conferir significaccedilatildeo a fenocircmenos cujas causas satildeo

inevidentes Todos os quatro niacuteveis satildeo demarcados por pares de oposiccedilotildees que

representam ldquouma seacuterie de mediaccedilotildees impossiacuteveis entre oposiccedilotildees organizadas em ordem

decrescenterdquo (LEacuteVI-STRAUSS 1993 p 167)

A construccedilatildeo dos mitos pressupotildee a distinccedilatildeo fundamental entre sequumlecircncias e

esquemas As sequumlecircncias constituem a linearidade da trama que expressa o conteuacutedo

aparente dos mitos as sequumlecircncias de accedilotildees que ocorrem na ordem cronoloacutegica do tempo o

um apoacutes o outro dos eventos que identifica-se com o proacuteprio tempo cronoloacutegico

Sequumlecircncias satildeo congruentes com a sucessatildeo temporal e constituem a silhueta do

tempo Esquemas por outro lado independem do tempo e organizam as sequumlecircncias em

20

planos de profundidade variaacutevel superpostos e sincrocircnicos de modo a cingir fenocircmenos

aparentemente desconexos numa causalidade inevidente Tal como um canto gregoriano o

mito ldquoestaacute preso a um duplo determinismo determinismo horizontal de sua proacutepria linha

meloacutedica e determinismo vertical dos esquemas em contrapontordquo (LEacuteVI-STRAUSS 1993

p 169)

Em Platatildeo os mitos de julgamento revelam a partir do problema da fundamentaccedilatildeo

dos valores quatro grandes eixos sincrocircnicos invariantes eacutetico-poliacutetico epistemoloacutegico

psicoloacutegico e cosmoloacutegico A determinaccedilatildeo dos traccedilos constitutivos desses eixos eacute feita por

pares de oposiccedilotildees insuperaacuteveis que exige a busca de significaccedilatildeo nos planos subsequumlentes

A ressonacircncia direta com a praacutexis eacutetico-poliacutetica enfraquece agrave medida em que a procura por

causas explicativas para as contradiccedilotildees insuperaacuteveis avanccedila em direccedilatildeo ao plano

cosmoloacutegico-causal A anaacutelise dessas oposiccedilotildees revela uma consistecircncia surpreendente nas

grandes narrativas de julgamento como modo de inteligibilidade proacutepria A aplicaccedilatildeo do

meacutetodo estrutural empregado por Walter Burkert aos mitos platocircnicos evidencia que os

grandes mitos de julgamento representam um esforccedilo atemporal na procura da causalidade

unificadora que confere sentido para as contradiccedilotildees do palco do devir

Em Platatildeo todos os mitos de julgamento convergem numa colossal teoria da

causalidade

21

I Mitos e Causas ndash excertos de imagens causais em Hesiacuteodo e Homero3

11 Retribuiccedilatildeo e Causalidade

O pai com o apelido de Titatildes apelidou-os

o grande Ceacuteu vituperando filhos que gerou

dizia terem feito na altiva estultiacutecia gratilde obra

de que castigo teriam no porvir

Hesiacuteodo Teogonia vs 207-2104

A Iliacuteada o poema mais antigo da literatura ocidental inicia-se com a narrativa de

uma peste Crises sacerdote de Apolo fora ultrajado pela recusa de Agamecircnon em

resgatar-lhe a filha raptada

Que Deus posto entre ambos provocou a rixa

O filho de Latona e Zeus Irou-o o rei

A peste entatildeo lavrou no exeacutercito ruiacutena

Cai sobre o povo A Crises ultrajara o Atreide

Ao sacerdote o qual viera ateacute as naus

velozes dos Aqueus remir com dons a filha

nas matildeos portando os nastros do certeiro Apolo

presos ao cetro de ouro e a todos implorava ()

Iliacuteada I vs 8-15

Diante da cataacutestrofe Aquiles recorre a um mediador o adivinho Calcas para

responder agrave questatildeo por que o deus estaacute tatildeo irado A calamidade suscita a questatildeo de se

saber a causa Segue-se entatildeo uma sequecircncia de eventos que configuram pela primeira

vez na poesia grega um ritual que envolve adivinhaccedilatildeo purificaccedilatildeo sacrifiacutecio preces e

danccedila Essa sequecircncia como demonstra Walter Burkert (2001 p 103 ss) transcende as

3 Emprego o pressuposto metodoloacutegico de que um mito eacute um programa ou sequumlecircncia de accedilotildees com uma

estrutura discerniacutevel definida que se caracteriza pela exemplaridade do tipo miacutetico e pela aplicabilidade atemporal O mito eacute a forma pela qual uma experiecircncia complexa se torna comunicaacutevel Suas personagens

configuram personificaccedilotildees geneacutericas que permitem a aplicaccedilatildeo a situaccedilotildees particulares definidas Esse

caraacuteter geneacuterico das imagens miacuteticas implica a sua atemporalidade aleacutem do fato de que elas satildeo

inverificaacuteveis Para a abordagem preliminar da causalidade a partir dos trechos selecionados emprego

conjuntamente a abordagem estruturalista da Escola de Paris representada por Jean Pierre Vernant e Marcel

Detienne com o estruturalismo alematildeo de Walter Burkert As questotildees de meacutetodo satildeo desenvolvidas no

primeiro capiacutetulo 4 Traduccedilatildeo de Jaa Torrano (2003)

22

fronteiras da civilizaccedilatildeo grega e constitui universalia antropoloacutegicos um padratildeo invariaacutevel

de cinco etapas (i) uma experiecircncia catastroacutefica ameaccediladora adveacutem de uma Potestade

divina (ii) a calamidade suscita a questatildeo da busca pela causa ldquopor querdquo (iii) a busca da

causa requer um mediador (iv) um diagnoacutestico eacute feito a causa do mal eacute definida e

localizada pelo estabelecimento da culpa e identificaccedilatildeo do responsaacutevel Conhecer a causa

eacute indicar o responsaacutevel e obter o caminho para a salvaccedilatildeo (v) Atos apropriados de expiaccedilatildeo

satildeo prescritos visando agrave libertaccedilatildeo do mal

Cataacutestrofes e doenccedilas satildeo frequumlentemente vistas como uma inevitaacutevel reaccedilatildeo divina

vinculada a algum tipo de transgressatildeo ou falta original agrave infraccedilatildeo de uma lei ou uma

accedilatildeo imprudente que denota uma afronta ou hyacutebris diante dos deuses A culpa eacute em geral

associada agrave transgressatildeo religiosa ou violaccedilatildeo das medidas humanas A causa do mal eacute

oculta inevidente e o seu estabelecimento requer a mediaccedilatildeo de videntes cujo saber

atemporal pode determinar-lhe a origem A busca por causas inevidentes invisiacuteveis confere

sentido agrave experiecircncia catastroacutefica e permite numa perspectiva abrangente da situaccedilatildeo do

passado e do futuro a praacutetica de accedilotildees que a tornem remediaacutevel A integraccedilatildeo dos sinais

complexos da experiecircncia caoacutetica num uacutenico pano de fundo mental confere-lhe significaccedilatildeo

mediante o estabelecimento do viacutenculo infrangiacutevel entre a falta e a puniccedilatildeo A causalidade

eacute a forma multimilenaacuteria de lidar com a experiecircncia aterradora do mal sem explicaccedilatildeo

mediante o estabelecimento de causas inevidentes A ira de um deus superior eacute a

consequecircncia infaliacutevel e justificada para a transgressatildeo Segundo Burkert (2001 p 125) ldquoo

padratildeo da causalidade da culpa estabelecida por um diagnoacutestico transcendente em

situaccedilotildees de calamidade eacute universal primitivo e tiacutepico da mente humana e do

comportamento humano em geralrdquo e haure seu modelo no ldquocomportamento do animal

apanhado numa armadilha ou perseguido por um predadorrdquo O estabelecimento de uma

23

conexatildeo infaliacutevel que vincula as noccedilotildees de falta consequecircncia e reparaccedilatildeo gera um

contexto de sentido no Koacutesmos A invenccedilatildeo da culpa coincide com a moldagem da

racionalidade que promove uma reconstruccedilatildeo de um universo de sentido para uma

experiecircncia original caoacutetica e catastroacutefica Encontrar a ldquocausardquo (aitiacutea) eacute encontrar o

ldquoresponsaacutevelrdquo (aiacutetios) e determinar a explicaccedilatildeo inevidente para uma situaccedilatildeo aflitiva As

conexotildees infrangiacuteveis entre violaccedilatildeo ndash culpa ndash retribuiccedilatildeo moldam os quadros mentais que

estabeleceratildeo as conexotildees infaliacuteveis entre fato ndash consequecircncia e causa ndash efeito que

caracterizam a reconstruccedilatildeo racional do mundo promovida pela mente humana

Nos primoacuterdios a Natureza eacute um estado de indistinccedilatildeo caoacutetica A diferenciaccedilatildeo soacute

ocorre mediante atos de violecircncia propiciados pela astuacutecia enganosa Por isso como afirma

Galimberti (2006 p 43) ldquofoi a violecircncia da razatildeo que permitiu ao homem subtrair-se

daquela violecircncia maior que eacute a falta de reconhecimento das diferenccedilas pela qual o pai natildeo

eacute reconhecido como pai a matildee como matildee o filho como filho com a consequente oscilaccedilatildeo

dos significados que a razatildeo humana trabalhosamente construiu para se orientar no

mundordquo

Se Gaia eacute a matildee primordial a partir da qual emerge toda diferenciaccedilatildeo a culpa eacute a

matildee miacutetica primordial da causalidade imprescindiacutevel para o desenvolvimento da

concepccedilatildeo racional da teacutecnica

Na Teogonia em particular a situaccedilatildeo aflitiva de aprisionamento experimentada

pelos filhos de Gaia suscita a identificaccedilatildeo do responsaacutevel no desregramento sexual de

Ourano A localizaccedilatildeo da causa da situaccedilatildeo aflitiva ocasiona as medidas apropriadas para a

sua remoccedilatildeo Tais medidas envolvem a escolha de meios que implicam uma inteligecircncia

astuciosa exigida para sobrepujar uma potecircncia divina Gaia forja um instrumento a foice

24

de branco accedilo que possibilita o estratagema doloso e o golpe violento pelos quais Crono

obteacutem a soberania do Koacutesmos

6 Por dentro gemia a Terra prodigiosa

atulhada e urdiu dolosa e maligna arte

Raacutepida criou o gecircnero do grisalho accedilo

forjou grande podatildeo e indicou aos filhos

Disse com ousadia ofendida no coraccedilatildeo

ldquoFilhos meus e do pai estoacutelido se quiserdes

ter-me feacute puniremos o maligno ultraje de vosso

pai pois ele tramou antes obras indignasrdquo

Teogonia 159-166

Essa sequecircncia de eventos estabelece as conexotildees entre a causalidade e a

inteligecircncia astuciosa a ldquoarte dolosardquo ndash doliacuteēn teacutekhnēn ndash concebida por Gaia e o emprego

dos meios apropriados para o sobrepujamento de Ourano que significa em uacuteltima

instacircncia o domiacutenio do Koacutesmos A accedilatildeo violenta de Crono acarreta a imprecaccedilatildeo de

Ourano e a admoestaccedilatildeo de uma retribuiccedilatildeo infaliacutevel ou ldquocastigo no porvirrdquo (v 210)

O esquema baacutesico pode ser resumido nas seguintes etapas (i) uma situaccedilatildeo

impediente adveacutem (ii) a situaccedilatildeo problemaacutetica suscita a busca da causa (iii) um mediador

com inteligecircncia astuciosa concebe um estratagema ou arte (teacutekhnē) fraudulenta (iv) os

meios apropriados satildeo escolhidos forjados e empregados oportunamente com violecircncia

para a remoccedilatildeo do mal (v) a accedilatildeo violenta suscita por sua vez uma retribuiccedilatildeo infaliacutevel

como consequecircncia Tal esquema eacute constitutivo para a formaccedilatildeo da primitiva inteligecircncia

teacutecnica que visa ao domiacutenio da natureza

A castraccedilatildeo de Ourano implica consequecircncias inevitaacuteveis a liberaccedilatildeo do tempo

linear irreversiacutevel a gecircnese a partir de princiacutepios opostos complementares e distintos As

gotas de sangue espargidas sobre Gaia datildeo origem agraves Potecircncias que presidem a vinganccedila a

violecircncia as guerras e provas de forccedila as Eriacutenias os Gigantes e Meliacuteades O oacutergatildeo sexual

de Crono atirado ao mar com seu esperma origina a espuma (aphroacutes) que daacute nascimento a

25

Afrodite cujos atributos satildeo a uniatildeo amorosa o prazer os sorrisos os ardis ndash opostos aos

das potecircncias violentas Doravante os contraacuterios soacute podem ser aproximados pela uniatildeo de

princiacutepios distintos A complementaridade de opostos confere agrave organizaccedilatildeo do Koacutesmos um

caraacuteter ambiacuteguo de mistura em que potecircncias de conflito se equilibram com potecircncias de

concoacuterdia (VERNANT 2002 p 252) Ademais ao processo de gestaccedilatildeo das potecircncias da

distinccedilatildeo se contrapotildee a emanaccedilatildeo das potecircncias de destruiccedilatildeo forccedilas da escuridatildeo e da

desordem personificadas nos filhos da Noite

A inscriccedilatildeo da ordem no Koacutesmos implica como contrapartida simeacutetrica a inscriccedilatildeo

de potecircncias caoacuteticas de desordem Uma lei de compensaccedilotildees perpassa o Koacutesmos assim

como Dia e Noite satildeo reversos Thaacutenatos Hyacutepnos e Oneiron se opotildeem agrave vida e as Moiras

Neacutemesis e Keres estendem a lei de retribuiccedilatildeo infaliacutevel para o acircmbito dos homens mortais

A estensatildeo das potecircncias de vinganccedila ao acircmbito dos mortais representa a contrapartida

simeacutetrica da conexatildeo infaliacutevel entre falta e retribuiccedilatildeo que rege o Koacutesmos divino Agrave

infalibilidade da conexatildeo falta-retribuiccedilatildeo eacute acrescentado o equiliacutebrio inevitaacutevel do reverso

A symmetriacutea5 eacute uma faceta ineludiacutevel de uma causalidade infaliacutevel

12 Causalidade e Poder

Agrave narrativa de um processo de diferenciaccedilatildeo substitui-se um mito de sucessatildeo de

poder6 A instauraccedilatildeo da conexatildeo culpa-retribuiccedilatildeo constitui a condiccedilatildeo para o domiacutenio do

Koacutesmos e a nota distintiva da inteligecircncia teacutecnica

5 No sentido de justa proporccedilatildeo Filebo 65e Repuacuteblica 530a 6 A ecircnfase na soberania que atravessa a anaacutelise estrutural de Vernant eacute tributaacuteria da primeira funccedilatildeo

estabelecida por George Dumeacutezil no seu esquema de interpretaccedilatildeo dos mitos indo-europeus Natildeo obstante a

anaacutelise empreendida por Jenny S Clay destaca o equiliacutebrio simeacutetrico de potecircncias como um elemento

constitutivo na cosmologia de Hesiacuteodo No seu vieacutes a ldquoa histoacuteria dos deuses como um todo pode ser vista

como uma explicaccedilatildeo das vaacuterias tentativas do deus supremo masculino de controlar e bloquear a direccedilatildeo

procriadora feminina de forma a obter um regime coacutesmico estaacutevelrdquo Segundo a autora no auguacuterio

apocaliacuteptico que encerra o mito das raccedilas Hesiacuteodo vincula a determinaccedilatildeo definitiva do estatuto humano ao

abandono gradual de e interpretados como senso de vergonha e ultraje ndash par

26

A soberania soacute eacute obtida mediante uma limitaccedilatildeo imposta por um ato de violecircncia

maquinado por uma inteligecircncia astuciosa Mas a instauraccedilatildeo infrangiacutevel da conexatildeo natildeo

implicaria um ciclo indefinidamente renovado A ordem do mundo natildeo seraacute

indefinidamente questionada e subvertida Esse problema eacute respondido na narrativa da

Titanomaquia e da vitoacuteria definitiva de Zeus

Reacuteia submetida a Crono pariu brilhantes filhos

Heacutestia demeacuteter e Hera de aacuteureas sandaacutelias

o forte Hades que sob o chatildeo habita um palaacutecio

com impiedoso coraccedilatildeo o troante Treme-terra

e o saacutebio Zeus pai dos Deuses e dos homens

sob cujo trovatildeo ateacute a ampla terra se abala

E engolia-os o grande Crono tatildeo logo cada um

do ventre sagrado da matildee descia aos joelhos

tramando-o para que outros magniacuteficos Uranidas

natildeo tivesse entre os imortais a honra de rei

HESIacuteODO 2003Teogonia vs 453-462

O temor da retribuiccedilatildeo leva Crono a impedir o florescimento de sua prole A

vigilacircncia inquieta de Crono deriva do seu ldquocurvo pensarrdquo da Mḗtis que conferia-lhe a

presciecircncia da retribuiccedilatildeo ao crime cometido contra o pai A situaccedilatildeo repressora leva Reacuteia a

uma ldquolonga afliccedilatildeordquo Reacuteia com Gaia e Ourano concebe um ardil (mḗtin) astucioso e

encontra os meios para que as Eriacutenias implacaacuteveis retribuidoras fizessem com que Zeus o

astuto (mētioacuteenta) tivesse destino diverso do de seus irmatildeos Clandestinamente Reacuteia

esconde o filho mais novo em Creta e dissimula uma pedra envolta em latildes de modo que

tivesse a aparecircncia enganosa do filho receacutem nascido O estratagema fruto da inteligecircncia

astuciosa envolve a descoberta dos meios apropriados a dissimulaccedilatildeo e o engodo que

complementar agrave potecircncia feminina de Nesse sentido contra Vernant a oposiccedilatildeo se estenderia a um

plano ulterior de distinccedilotildees que marca a unilateralidade da violecircncia inerente ao domiacutenio assimeacutetrico da

potecircncia masculina A sucessatildeo de violecircncias encenada na titanomaquia mais do que esboccedilar o cenaacuterio

historicista de luta pela soberania mostra a necessidade da assimilaccedilatildeo do elemento feminino proacuteprio de

agrave forccedila soberana (CLAY 2003 23-38)

27

permitem impedir e paralisar uma potestade divina soberana A questatildeo da soberania

basileacuteia coacutesmica implica o emprego do meio eficaz para enganar a Potecircncia divina o que

soacute eacute factiacutevel mediante uma astuacutecia dolosa que supera a astuacutecia da divindade

Desde o seu desabrochar a racionaliade teacutecnica aparece como um modo de trapaccedila

como um dolo inextricaacutevel da culpa O dolo eacute tatildeo somente o modo miacutetico de vindicar a

conexatildeo infaliacutevel da contrapartida do castigo Eacute a plasmaccedilatildeo da conexatildeo que funda um tipo

de pensamento indispensaacutevel para o regramento da experiecircncia humana e da busca pelos

melhores meios para a sobrevivecircncia eficaz num mundo cujas potecircncias naturais satildeo

poderosas a ponto de serem epifanias divinas

O grande Crono de curvo pensar eacute ldquoenganado (dolōtheis) por repetidas instigaccedilotildees

da Terrardquo (Teogonia v 494) solta sua prole e acaba por ser expulso agrave forccedila pelo filho mais

novo O mesmo padratildeo e a sequecircncia de accedilotildees baacutesica anterior eacute mantida (i) uma situaccedilatildeo

impediente adveacutem Crono impede que seus filhos venham a ser e os engole (ii) a situaccedilatildeo

problemaacutetica suscita a busca da causa Crono astuciosamente pretende manter a soberania

(iii) mediadores astuciosos concebem uma arte dolosa Reacuteia juntamente com Gaia e

Ourano tramam um ardil que engana Crono (iv) os meios adequados satildeo escolhidos e

empregados Crono engole uma pedra e Zeus eacute escondido em Creta ateacute que agrave forccedila

destrone seu pai (v) a accedilatildeo violenta reclama a justa retribuiccedilatildeo as Eriacutenias deveriam fazer

voltar contra Zeus a Mḗtis que lhe impingiria a mesma sorte dos seus antepassados

soberanos Todavia isso natildeo ocorre No reinado de Zeus a conexatildeo infrangiacutevel entre falta-

retribuiccedilatildeo eacute assimilada ao seu poder real Doravante a causalidade passa a ser um atributo

de uma ordem coacutesmica imutaacutevel

A garantia da ordem estabelecida eacute uma prerrogativa da Mḗtis a inteligecircncia

astuciosa que independentemente do poder e forccedila do adversaacuterio e em todas as

28

circunstacircncias garante a dominaccedilatildeo do Koacutesmos mediante a integraccedilatildeo entre macho e

fecircmea Somente a superioridade de uma inteligecircncia astuciosa que implica a presciecircncia a

escolha a forja e o emprego dos meios mais eficazes com vistas a um fim determinado

somente uma Mḗtis que eacute tambeacutem potecircncia divina propicia a supremacia do poder

soberano Por isso como diz Vernant ldquoo rei do ceacuteu deve dispor fora e aleacutem da forccedila bruta

de uma inteligecircncia haacutebil para prever o futuro para maquinar tudo antes para combinar em

sua prudecircncia meios e fins ateacute o menor detalhe de forma que o tempo da accedilatildeo natildeo

comporte acasos que o futuro natildeo traga surpresas fazendo com que nada e ningueacutem possa

pegar o deus de surpresa ou encontraacute-lo indefesordquo (2002 p 258) Combinaccedilatildeo eficaz de

meios e fins previsatildeo e planificaccedilatildeo baseados na sequecircncia infaliacutevel da causalidade tempo

oportuno eliminaccedilatildeo do acaso forja de instrumentos necessaacuterios eis as condiccedilotildees para a

consolidaccedilatildeo e desenvolvimento da inteligecircncia teacutecnica que eacute ao mesmo tempo a

provedora e a chancela do poder

Mḗtis a Oceacircnida deusa da astuacutecia eacute justamente quem assegura a Zeus os meios de

lutar contra os Titatildes ela induz Crono a beber um phaacutermakon que o obriga a vomitar os

irmatildeos de Zeus que haviam sido engolidos (APOLODORO I 2 6) Mas outros

coadjuvantes viriam de um expediente astucioso adicional Gaia revela a Zeus que para

obter a vitoacuteria deveria contar com a alianccedila dos Ciclopes e dos Cem-Braccedilos detentores

respectivamente do raio dos golpes e cadeias invenciacuteveis (Teogonia vs 624-653) Zeus

liberta as Potecircncias primordiais de suas correntes e lhes oferece neacutectar e ambrosia

consagrando-os a um estatuto divino parelho ao dos Oliacutempios O favor divino concedido

por Zeus eleva a um novo plano o tema da retribuiccedilatildeo a daacutediva eacute um meio de garantir a

reciprocidade e de escalonar valores As Potecircncias primordiais da violecircncia e da vitoacuteria

passam a ser os guardiotildees fieacuteis de Zeus Kraacutetos e Biacutea Poder e Violecircncia ldquoinsignes filhosrdquo

29

de Stix e Oceano ldquosempre perto de Zeus gravitroante repousamrdquo (Teogonia v 385)7 Para

instituir a ordem faz necessaacuteria a harmonizaccedilatildeo entre as potecircncias da violecircncia e a astuacutecia

presciente A emancipaccedilatildeo da ordem implica a ruptura violenta

Mḗtis ldquomais saacutebia que os deuses e os homens mortaisrdquo (v 887) eacute a primeira esposa

de Zeus O casamento eacute uma forma de daacutediva e de reciprocidade pelos serviccedilos prestados

pela deusa da inteligecircncia astuciosa mas eacute sobretudo uma alianccedila que assegura o domiacutenio

da soberania Para impedir que a retribuiccedilatildeo agrave violecircncia da falta infaliacutevel se volte contra si

mesmo Zeus emprega as proacuteprias armas de Mḗtis a astuacutecia a surpresa e o ardil O

Cronida ldquoengana suas entranhas com ardil com palavras sedutorasrdquo por conselhos de Gaia

e Ourano e engole-a ventre abaixo para que assim a deusa lhe indique o bem e o mal

(Teogonia v 886-900) A deusa que interveacutem nas lutas de soberania para restaurar o

equiliacutebrio rompido estabelece o fato inexoraacutevel de que o domiacutenio e o poder exigem o

concurso simultacircneo da audaacutecia da forccedila da artimanha da iniciativa inteligente do ardil e

do espiacuterito inventivo (DETIENNE 1974 p 105) Ao ser engolida Mḗtis eacute assimilada a

Zeus e ele ldquotorna-se mais que um simples monarca ele se torna a proacutepria Soberaniardquo

(VERNANT 2002 p 261) A inteligecircncia astuciosa estaacute ldquonas entranhasrdquo de Zeus faz parte

de sua constituiccedilatildeo divina configura uma de suas potecircncias constitutivas Zeus eacute todo

Astuacutecia e sua inteligecircncia abarca todo o ciclo do tempo conferindo-lhe a previsatildeo

presciecircncia e prudecircncia indispensaacuteveis para a accedilatildeo que se projeta no futuro Ao assimilar

7 Alguns exegetas como H Fraumlnkel atribuem o domiacutenio de Zeus agrave alianccedila decisiva estabelecida com Styx e

sua descendecircncia Zelos Niacuteke Kraacutetos e Biacutea Brown empreende uma interpretaccedilatildeo maquiavelista afirmando que os resultados finais justificam os meios empregados por Zeus que seria o fundador no koacutesmos do que

Maquiavel chamaria ldquosociedade civilrdquo Blickman observa no entanto que a alianccedila dos filhos de Styx foi

ldquoganhardquo mediante a oferta da garantia de conceder-lhes as devidas honras divinas O vieacutes que nos interessa ndash

a formaccedilatildeo dos elementos fundamentais da inteligecircncia teacutecnica ndash indica que o acento deve recair sobre o fato

de que a oferta e a contrapartida do serviccedilo leal dos aliados de Zeus configuram uma faceta e uma

perspectiva diversa de lei de retribuiccedilatildeo As alianccedilas de Zeus configuram a conexatildeo causal infaliacutevel como

oferta e contrapartida e satildeo compatiacuteveis com a interpretaccedilatildeo e o acento fortemente alegoacuterico que Vernant

confere a Mḗtis (BLICKMAN 1987 p 341-355)

30

Mḗtis Zeus inaugura a inteligecircncia projetiva a inteligecircncia teacutecnica como a ordem que

deteacutem a soberania sobre o mundo e por isso ldquoentre o projeto e a realizaccedilatildeo natildeo conhece

mais a distacircncia pela qual surgem na vida dos outros deuses as armadilhas do imprevistordquo

(ibid) O ciclo inexoraacutevel e sempre renovado entre falta e retribuiccedilatildeo em vez de abolir a

ordem coacutesmica passa a ser parte integrante dela A ordem eacute definitivamente estabelecida

quando a causalidade e a inteligecircncia teacutecnica passam a ser-lhe solidaacuterias

Na geraccedilatildeo anterior accedilatildeo astuciosa de Gaia decorre da violecircncia de Ourano que a

atulha e com isso impede sua potecircncia natural de gestaccedilatildeo e o devir das geraccedilotildees

subsequentes

Quantos da Terra e do Ceacuteu nasceram

filhos os mais temiacuteveis detestava-os o pai

decircs o comeccedilo tatildeo logo cada um deles nascia

a todos ocultava agrave luz natildeo os permitindo

na cova da Terra8

(HESIacuteODO Teogonia 2003 154-159)

A astuacutecia feninina aparece como contrapartida agrave violecircncia masculina na forja do

instrumento de salvaccedilatildeo o que implica inexoraacutevel tendecircncia a um ininterrupto ciclo de

violecircncia e retribuiccedilatildeo atraveacutes da descendecircncia masculina os Titatildes aqueles que pagam a

penalidade por suas accedilotildees A mudanccedila coacutesmica eacute desencadeada pela tensatildeo entre o

princiacutepio de accedilatildeo da procriaccedilatildeo natural ilimitada de Gaia e a violecircncia impediente de

Ourano A forccedila da proliferaccedilatildeo ilimitada de Gaia soacute pode ser limitada por um ato de

violecircncia e oposiccedilatildeo agrave potecircncia feminina num ciclo ininterrupto de violecircncia e retribuiccedilatildeo

astuciosa Todavia o primeiro ato de violecircncia de Zeus consiste em engolir Mḗtis

desencadeando uma reviravolta no ciclo coacutesmico O princiacutepio de movimento coacutesmico

8

31

emerge a partir dos pares de opostos caracterizados pela alternacircncia entre procriaccedilatildeo

masculina e gestaccedilatildeo feminina e pela oposiccedilatildeo entre violecircncia (biacutea) masculina e a mḗtis

feminina Enquanto a violecircncia eacute prerrogativa masculina a inteligecircncia astuciosa eacute um

apanaacutegio feminino Quando Zeus engole Mḗtis assimila em si mesmo a esfera coacutesmica

feminina cuja consequecircncia eacute o equiliacutebrio de princiacutepios opostos de movimento

Entretanto a ordem soacute pode ser perenemente garantida mediante uma outra

realidade coacutesmica primordial que dispotildee de poderes anteriores aos de Zeus a Oceacircnida

Thecircmis Assim como Mḗtis Thecircmis abarca a totalidade do tempo e possui uma onisciecircncia

que diz respeito a uma ordem estabelecida Seus proferimentos possuem um valor oracular

categoacuterico que estabelece de uma vez por todas como decretos o que eacute dito Thecircmis

ordena interdita decreta peremptoriamente e fixa os aspectos natildeo definidos do Koacutesmos Se

de um lado Mḗtis relaciona-se com o tempo oportuno e com o hipoteacutetico de outro

Thecircmis estabelece a regularidade a ordem e confere invariacircncia ao devir Ela eacute a Matildee das

Horas as Estaccedilotildees e fixa as Moiras dos mortais Sua funccedilatildeo eacute a de estabelecer limites

intransponiacuteveis ao Koacutesmos Sua uniatildeo com Zeus implica que a ordem coacutesmica possui

medidas regularidades e limites intransponiacuteveis (DETIENNE 1974 p 105 ss) A funccedilatildeo

primordial de Thecircmis eacute proclamar que os limites do Koacutesmos satildeo decretos divinos

irrevogaacuteveis Tais limites iniciam-se pela diferenciaccedilatildeo de potecircncias contraacuterias e por uma

sissiparidade sem a atraccedilatildeo de potecircncia primordial de Eros A uniatildeo de potecircncias opostas

brota do Amor coacutesmico afetividade que potildee em movimento a geraccedilatildeo e o ciclo coacutesmico

Mas cabe observar que as primeiras potecircncias instauradoras de limites coacutesmicos satildeo

princiacutepios temporais os primeiros limites consistem no estabelecimento de uma conexatildeo

irrevogaacutevel entre violecircncia desmedida e retribuiccedilatildeo astuciosa entre proliferaccedilatildeo

ininterrupta e a fixaccedilatildeo de limites e medidas temporais coacutesmicas

32

O casamento de Zeus com Thecircmis eacute ao mesmo tempo uma daacutediva pelos seus

serviccedilos e uma alianccedila que assimila sua potecircncia Suas decisotildees irrevogaacuteveis permitiratildeo a

partilha os lotes os domiacutenios e a hierarquia entre as Potecircncias divinas Com a daacutediva e a

reciprocidade do duplo casamento de Zeus a retribuiccedilatildeo adquire o estatuto inalienaacutevel de

lei e a reciprocidade passa a ser a condiccedilatildeo para a hierarquia de poderes Na Teogonia

hesioacutedica causalidade e hierarquia apontam para um limite uacuteltimo na Natureza a lei

irrevogaacutevel e intransponiacutevel estabelecida por Thecircmis

13 Causalidade e Reciprocidade

A caracteriacutestica fundamental de uma daacutediva ou presente eacute a expectativa da

reciprocidade consoante um criteacuterio de equivalecircncia A troca de presentes estabelece o

estatuto do doador e implica o escalonamento do poder No primeiro livro da Odisseacuteia

Palas Atena visita Telecircmaco sob a forma do estrangeiro Mentes e define a obrigaccedilatildeo da

reciprocidade

Hoacutespede tuas palavras satildeo ditas com acircnimo amigo

como de pai para filho jamais poderei esquececirc-las

Mas muito embora desejes partir fica um pouco te peccedilo

que te banhes e possas dar largas ao peito querido

para depois ao navio voltares levando um presente

muito valioso e bonito que seja lembranccedila de minha

parte tal como os amigos com os hoacutespedes fazem de grado

A de olhos glaucos Atena lhe disse em resposta o seguinte

Natildeo me domovas do intento pois muito me importa ir embora

Quanto ao presente se tanto o desejas que seja na volta

quando de novo passar por aqui levaacute-lo-ei para casa

Por mais valioso que escolhas teraacutes outro igual conquistado

Odisseacuteia I vs 307-318

Todo presente exige um contra-presente A obrigaccedilatildeo de reciprocidade natildeo

comporta exceccedilatildeo e a contrapartida ao ato de ofertar pressupotildee uma medida comum que

estabelece o valor (aacutexion) ou equivalecircncia que controla um sistema de hierarquia A

33

proacutepria noccedilatildeo de ldquomedidardquo eacute um refinamento da concepccedilatildeo de que a Natureza eacute

caracterizada por limites que natildeo podem ser transpostos (VLASTOS 1947 p 156) O

estabelecimento de uma obrigaccedilatildeo muacutetua implica o desenvolvimento de categorias mentais

que comportam a comparaccedilatildeo a igualdade a medida a contagem e o caacutelculo O presente

permite segundo Burkert o reconhecimento da igualdade de estatuto entre os ofertantes e a

representaccedilatildeo de um mesmo paacutethos Implica tambeacutem os quadros mentais que permitem o

discernimento da dimensatildeo temporal e a projeccedilatildeo futura da obrigaccedilatildeo mediante o

reconhecimento de um padratildeo invariaacutevel (BURKERT 2001 p 132) A reciprocidade eacute

apenas um outro aspecto da conexatildeo infaliacutevel da retribuiccedilatildeo e determina a expectativa

universal de que seres de um mesmo estatuto recebam o mesmo tratamento A

reciprocidade advinda da oferta implica por conseguinte o escalonamento ou

hierarquizaccedilatildeo dos atores envolvidos conferindo estabilidade ao todo

Outro modo de aplicaccedilatildeo da reciprocidade possui desdobramentos perenes no

desenvolvimento da racionalidade Na esfera da justiccedila punitiva o castigo eacute aceito como

justo se estiver subordinado agrave concepccedilatildeo de retribuiccedilatildeo que especificamente emerge da

oferta reciacuteproca A reciprocidade pressupotildee os quadros mentais que desenvolvem aquela

que viraacute a ser uma das noccedilotildees mais fecundas da Filosofia a noccedilatildeo de simetria

Nos Trabalhos e os Dias Hesiacuteodo desenvolve uma antropogonia que estabelece

significaccedilatildeo para o estatuto humano e serve de justificativa para uma exaltada exortaccedilatildeo a

seu irmatildeo Perses O equiliacutebrio compensatoacuterio de opostos eacute apresentado como princiacutepio

constitutivo do plano coacutesmico e humano de modo que o equiliacutebrio recebe a sanccedilatildeo da forccedila

do juramento dos deuses e da lei contra a desmedida hyacutebris A Justiccedila soacute pode compensar a

desmedida com o estabelecimento preacutevio do meacutetron padratildeo comum que garante a

equidade ou comensuralidade Mas a etimologia de meacutetron natildeo deixa de ter relaccedilatildeo com

34

mḗtis a proacutepria personificaccedilatildeo da inteligecircncia astuciosa inextrincaacutevel do kairoacutes da accedilatildeo

precisa no momento oportuno O primeiro golpe astucioso concebido por Gaia suscita natildeo

somente a forja do instrumento inteligentemente planeado mas exige ainda que o momento

oportuno coincida com a accedilatildeo instauradora do tempo cronoloacutegico Na mentalidade grega a

noccedilatildeo de excesso deriva das accedilotildees coacutesmicas do desregramento dos desejos da violecircncia e

do tempo oportuno e natildeo de uma replicaccedilatildeo espacial bilateral

Na perspectiva moderna algo eacute simeacutetrico se possui a mesma medida em relaccedilatildeo a

um padratildeo (syacutemmetros) ou se apoacutes ser submetido a uma determinada accedilatildeo permanece com

a mesma aparecircncia ou com o aspecto original Mas na mentalidade grega de Hesiacuteodo a

noccedilatildeo de equiliacutebrio entre opostos eacute imageticamente expressa na geraccedilatildeo de Harmoniacuteē

Resultante do sangue esparso no mar nascem potecircncias opostas as Eriacutenias

zeladoras da vinganccedila os Gigantes as Ninfas e a virgem da espuma rosada ndash Cytereacuteia ou

Afrodite Novas potecircncias divinas opostas satildeo engendradas a partir da uniatildeo de Afrodite e

Ares destruidor de cidades Harmoniacutea Phoacutebos e Deimos Medo e Terror rompedores das

falanges guerreiras (HESIOD 2006 v 935-937) As determinaccedilotildees afetivas de Afrodite

associadas a Eros ao Desejo (Hyacutemeros) agrave doccedilura graccedila e suavidade opoem-se agrave ira

guerreira de Ares Harmoniacuteē aparece como conjunccedilatildeo conciliadora de afetos opostos uniatildeo

e oposiccedilatildeo geraccedilatildeo e destruiccedilatildeo doce encanto e oacutedio ajustamento de princiacutepios de accedilatildeo

opostos

Por outro lado nos Trabalhos o enfoque visa o estabelecimento do estatuto humano

e o regramento da praacutexis eacutetico-poliacutetica Por essa razatildeo o equiliacutebrio de opostos passa a

abarcar a noccedilatildeo ulterior de meacutetron como avaliaccedilatildeo sopesada para evitar o excesso de

ambiccedilatildeo desmedida e encontrar o justo

35

Mede (metreisthai) bem do teu vizinho e paga-o bem de volta com

a mesma medida (tō metrō) e o melhor que podes pois se estiveres

em necessidade novamente o encontraraacutes mais tarde tambeacutem

confiante ()

Mas eu natildeo te darei nenhum dom a mais nem sobremedida

(epimetrḗsso) ()

Guarda a medida (meacutetra phylaacutessesthai) o momento oportuno eacute a

mais excelente de todas as coisas (kairograves d‟epigrave paacutesin aacuteristos )

(HESIOD Works and Days 2006 v 349-351 396 694)

A apaixonada exortaccedilatildeo de Hesiacuteodo realccedila a origem do excesso e da desmedida no

iacutempeto dos desejos e associa a medida ao kairoacutes o elemento temporal que ajusta

quantitativamente os frutos do trabalho agriacutecola aos periacuteodos regulares das estaccedilotildees e dos

dias As atividades agriacutecolas segundo o excelente trabalho de Jean-Luc Perrilleacute

entremeiam os aspectos quantitativos e temporais que compotildeem a molda da noccedilatildeo de

comensurabilidade (PERILLEacute 2005 p 23-33) A necessidade de ajustar o ano solar ao ano

lunar ocasiona a fusatildeo dos aspectos temporais e espaciais com relaccedilotildees numeacutericas

quantitativas Aleacutem disso a obervacircncia da medida configura o principal traccedilo dos

apotegmas dos sete saacutebios arcaicos A prescritiva de Cleoacutebulo a medida eacute a mais excelente

das coisas (meacutetron aacuteriston) eacute um iacutendice de que as noccedilotildees de equiliacutebrio medida e momento

oportuno modelam a inteireza da mentalidade que daacute identidade ao helecircnico Os apotegmas

de Tales Soacutelon e Pitacos reforccedilam o pressuposto de um pano de fundo compartilhado de

uma atmosfera mental comum que abarca todas as expressotildees do patrimocircnio da paideacuteia

grega observa a medida (meacutetrō khrō) nada em demasia (mēdeacuten aacutegan) apreende o

momento oportuno (kairograven gnōthi)

O acervo mental que correlaciona as noccedilotildees de medida agrave oportunidade temporal

agrega a questatildeo da afetividade como princiacutepio das accedilotildees praacuteticas Nos seus poemas

elegiacuteacos Teoacutegnis adverte que o excesso (hyacuteper meacutetron) de vinho acarreta a desmedida da

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fala e a ausecircncia de vergonha que potildeem a perder o saacutebio9 ldquoEacute difiacutecil observar a medida

(gnōnai gagraver khalepograven meacutetron) quando o bem se oferece a noacutesrdquo (PERILLEacute 2005 p 25) O

excesso de prazeres e bebida satildeo correlacionados agrave desmedida do discurso improacuteprio e agrave

vergonha da impostura Moderaccedilatildeo afetiva modeacutestia e compostura conjugam-se num

espectro de afetos equilibrados ndash intrinsecamente ligados agrave aprovaccedilatildeo puacuteblica ndash que

suscitam a noccedilatildeo de justa medida O discurso descomedido que se segue a afetos

desenfreados tem como retribuiccedilatildeo inevitaacutevel a vergonha e a desonra As accedilotildees praacuteticas

suscitam justa retribuiccedilatildeo em consonacircncia com sua natureza proacutepria

No plano ciacutevico a retribuiccedilatildeo aparece como inversatildeo da accedilatildeo e determina a

exigecircncia de que o culpado sofra pelo que fez segundo um criteacuterio de equivalecircncia a

contagem de ldquochicotadasrdquo ou dias de prisatildeo por exemplo (BURKERT 2001 p 133) A

concepccedilatildeo da daacutediva estende muito adiante o horizonte da retribuiccedilatildeo e funda as noccedilotildees

que comporatildeo a concepccedilatildeo de ldquojusticcedila positivardquo a reciprocidade eacute de fato um tipo de

moralidade Em grego ser punido equivale a ldquodar justiccedilardquo (diacutekēn diacutedonai) a receber a

contrapartida o que eacute devido em funccedilatildeo de uma ofensa dada O mesmo ocorre com as

interaccedilotildees religiosas que aparecem como um ldquosistema de trocas artificialrdquo (ibid p 135) O

comeacutercio com os deuses eacute definido por Platatildeo como preces e sacrifiacutecios e ordens e

recompensas em paga dos sacrifiacutecios (Banquete 202e) A recompensa como obrigaccedilatildeo

muacutetua estaacute na base da crenccedila religiosa ndash independentemente da impossibilidade de

verificaccedilatildeo de uma recompensa ou puniccedilatildeo no aleacutem

9 O homem que bebe aleacutem da medida natildeo governa mais sua liacutengua nem seu espiacuterito Tem discursos sem fim

que enrubescem os saacutebios Ele natildeo se envergonha de nenhuma accedilatildeo em sua embriaguecircs De saacutebio que era

torna-se insensato Sabe isso e guarda-te de beber em excesso antes que venha a embriaguecircs levanta-te de

medo que teu ventre natildeo te submeta natildeo faccedilas de ti um escravo malfeitor (GIRARD 1892 v 469-495)

37

A mutaccedilatildeo da noccedilatildeo de reciprocidade resulta num contiacutenuo processo que culmina

com as noccedilotildees de leis ldquoobjetivasrdquo da Natureza A interpretaccedilatildeo matemaacutetica do mundo

operada pela Fiacutesica se expressa atraveacutes de equaccedilotildees relaccedilotildees e proporccedilotildees (entre as partes)

mediante os postulados de simetria de equiliacutebrio de homogeneidade (mesma natureza das

partes) e de conservaccedilatildeo Nesse sentido afirma Burkert ldquoo princiacutepio de reciprocidade eacute a

proacutepria fundaccedilatildeo do nosso mundo racional e cientiacuteficordquo (ibid p 154) Os fundamentos da

causalidade natildeo podem ser apreendidos sem o fio condutor das noccedilotildees implicadas pelo

princiacutepio de reciprocidade que nos primoacuterdios emerge da troca de presentes

14 A astuacutecia dolosa o presente de Prometeu

Natildeo se pode furtar nem superar o espiacuterito de Zeus

pois nem o filho de Jaacutepeto o beneacutefico Prometeu

escapou-lhe agrave pesada coacutelera mas sob coerccedilatildeo

apesar de multissaacutebio a grande cadeia o reteacutem

Teogonia vs 613-616

A narrativa de Prometeu eacute a descriccedilatildeo de um duelo de astuacutecias Trata-se de um

confronto sem duacutevida mas natildeo de um embate aberto de um combate singular em que a

violecircncia do golpe se anuncia no movimento aberto que se abate sobre o adversaacuterio No

combate travado entre Prometeu e Zeus as armas empregadas satildeo tatildeo somente suas

inteligecircncias astuciosas e cada lance cada manobra desferida contra o oponente apresenta-

se dissimulada sob a aparecircncia da oferta sedutora do furto ou da ocultaccedilatildeo A sequecircncia de

accedilotildees que compotildee a narrativa eacute um esboccedilo exemplar das conexotildees ineludiacuteveis que

distinguem a retribuiccedilatildeo e a reciprocidade que implicam a definiccedilatildeo de hierarquias os

acircmbitos proacuteprios na organizaccedilatildeo cosmoloacutegica No mito de Prometeu conjugam-se na

mesma sequecircncia de accedilotildees a inexorabilidade da causalidade que se segue a uma quebra de

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simetria a mḗtis inteligente a previsatildeo temporal projetiva o ardil para a escolha de meios

eficazes a oferta e o contra-presente e a justa retribuiccedilatildeo pela transgressatildeo do meacutetron

O mito de Prometeu eacute o ldquomito de referecircncia para entender o lugar a funccedilatildeo e os

significados do sacrifiacutecio sangrento na vida religiosa dos gregosrdquo (VERNANT 2002 p

263) Natildeo obstante o mito coordena outros temas que ultrapassam em muito no tempo e

no espaccedilo a cultura grega e constituem a pedra fundamental de um tipo de inteligecircncia e de

um modo especiacutefico de racionalidade Prometeu eacute a personificaccedilatildeo da inteligecircncia teacutecnica

humana que se choca com os limites intransponiacuteveis que cingem um Koacutesmos divino

A distribuiccedilatildeo de honras entre Oliacutempios e Titatildes foi o resultado da guerra e das

alianccedilas promovidas por Zeus As honras devidas aos deuses foram fruto do consentimento

e do consenso mas a partilha entre os homens mortais e os Oliacutempios haveria de ser

efetivada por Prometeu Assim como Zeus Prometeu eacute todo ele astuacutecia fabricadora e por

conseguinte um rival uma potecircncia de rebeliatildeo diante da ordem instaurada Mas o Titatilde natildeo

almeja a soberania Ele emprega sua astuacutecia para usurpar a soberania de Zeus e os limites

as medidas que ela implica e para transferir aos mortais um lote que natildeo estaacute em

conformidade com seu estatuto

A partilha eacute o ato que marca o reconhecimento da igualdade e da hierarquia visto

que as ldquopartesrdquo os quinhotildees satildeo distribuiacutedas segundo proporccedilotildees e ordem determinadas

Os termos moira e aiacutesa inicialmente designam o ldquoquinhatildeordquo a ldquoquotardquo ldquoporccedilatildeordquo passando a

significar posteriormente a ordem apropriada a ordem do mundo o Destino O princiacutepio

da daacutediva e a expectativa de compensaccedilatildeo constituem uma extensatildeo da partilha e a

reciprocidade eacute um refinamento mental da accedilatildeo de doar Tal refinamento soacute eacute possiacutevel com

a modelagem dos esquemas mentais que implicam o reconhecimento das pretensotildees dos

atores ausentes o discernimento da passagem do tempo a habilidade para avaliar e

39

relembrar uma retribuiccedilatildeo adiada um mundo estaacutevel no tempo e no espaccedilo e as noccedilotildees

latentes de medida igualdade e equivalecircncia (BURKERT 2001 p 151) A oferenda a um

deus pode significar a submissatildeo aos seus poderes ameaccediladores e a delimitaccedilatildeo apropriada

de sua posiccedilatildeo hieraacuterquica superior ldquoNatildeo darrdquo por outro lado implica natildeo somente a

insubmissatildeo mas uma usurpaccedilatildeo da hierarquia de poder A usurpaccedilatildeo ardilosa de Prometeu

redunda na segregaccedilatildeo definitiva entre homens e deuses e na condiccedilatildeo ambiacutegua que

caracteriza a vida humana proacutexima dos animais e dos deuses

A partilha maquinada por Prometeu consiste no esquartejamento de um boi diante

dos deuses e homens a fim de definir-lhes mutuamente seus estatutos A fronteira seria

representada nas partes do animal sacrificado O sacrifiacutecio eacute efetivamente uma troca de

presentes mediada por Prometeu que deveria respeitar o meacutetron condizente com a soberania

de Zeus Todavia cada parte preparada pelo Titatilde eacute um engodo uma dolosa arte (doliacuteēin

teacutekhnēi) simultaneamente destinada a aviltar o estatuto divino e sobrelevar o estatuto

humano

A primeira parte dissimula os ossos nus do animal sob espessa camada de apetitosa

gordura e a segunda esconde dentro do estocircmago de aparecircncia nauseante as carnes

comestiacuteveis O presente de Prometeu eacute um logro um expediente artificioso cujo fim eacute a

apropriaccedilatildeo do melhor quinhatildeo para os homens Com isso Prometeu acrescenta a dimensatildeo

da vantagem na mḗtis e instaura o viacutenculo perene entre inteligecircncia teacutecnica e o uacutetil O

duelo de Prometeu com Zeus eacute o duelo da mḗtis utilitaacuteria contra a mḗtis da soberania A

primeira calcula os melhores meios para se obter o vantajoso e o uacutetil na perspectiva do

tempo humano A segunda calcula os melhores meios para se obter e manter a soberania

sobre o Koacutesmos na perspectiva da totalidade do tempo Duas ordens de realidade satildeo

40

segregadas uma mortal outra imortal Ambas deveriam ser representadas

proporcionalmente na partilha do sacrifiacutecio do animal e serem oferecidas como presentes

Se todo presente implica a obrigatoriedade do contra-presente e todo sacrifiacutecio

pressupotildee a expectativa de recompensa toda falta reclama a justa retribuiccedilatildeo ldquoZeus de

impereciacuteveis desiacutegnios soube natildeo ignorou a astuacuteciardquo (v 550-551) e escolheu a porccedilatildeo

coberta com gordura branca Por essa razatildeo queimam-se nos altares a gordura e os ossos

dos animais A astuacutecia de Prometeu volta-se contra os homens as partes com aparecircncia de

maior valor na verdade implicam a insaciabilidade da fome sempre renovada e a

perecibilidade proacutepria das carnes de um animal morto As exalaccedilotildees e os perfumes dos

ossos calcinados definem por outro lado a imortalidade impereciacutevel dos deuses que vivem

dos odores sutis A inteligecircncia utilitaacuteria de Prometeu transgride a ordem coacutesmica instituiacuteda

por Zeus A ldquovantagemrdquo auferida com o dolo implica a retribuiccedilatildeo infaliacutevel como

contrapartida O expediente utilitaacuterio desencadeia conexotildees causais natildeo previstas pela mḗtis

prometeacuteica Zeus esconde o biacuteos e o fogo celeste ateacute entatildeo livremente concedidos aos

homens As implicaccedilotildees satildeo a ausecircncia de cereais e gratildeos e a impossibilidade de cozinhar

as carnes obtidas na partilha Ao deixar de ldquodarrdquo as daacutedivas da vida e do fogo aos homens

Zeus daacute efetivamente a justa retribuiccedilatildeo pela falta de Prometeu A lei de taliatildeo da

causalidade preserva a ordem coacutesmica estabelecida

A estrutura baacutesica do programa de accedilotildees que caracteriza a retribuiccedilatildeo eacute repetida (i)

uma situaccedilatildeo impediente adveacutem os homens satildeo privados do fogo e da vida (ii) a

calamidade suscita a busca da causa a fraude de Prometeu (iii) o mediador astucioso

maquina um expediente astucioso Prometeu furta o fogo e o esconde no interior da feacuterula

oca para transportaacute-lo para a terra e doaacute-lo aos homens (iv) a audaacutecia da accedilatildeo criminosa

engendra nova retribuiccedilatildeo

41

O contra-presente de Zeus eacute o resultado da modelaccedilatildeo artificiosa que recebe o

contributo de todos os deuses e constitui o reverso simeacutetrico ao roubo do fogo O dom de

todos os deuses Pandora liberta todos os elementos que aprisionam os homens todos os

males que configuram sua precariedade Sua aparecircncia se reveste do mesmo engodo

astucioso do presente de Prometeu e sua inscriccedilatildeo no plano humano ocorre pela

contrapartida miacutetica da previsatildeo astuciosa que caracteriza Prometeu a imprevidecircncia de

Epimeteu Palco de ambiguidades o cenaacuterio dos homens eacute irremediavelmente vinculado agrave

necessidade de previsatildeo o mundo dos homens eacute o mundo da imprevisatildeo do acaso do

fortuito e conserva o caos originaacuterio das potecircncias primordiais

Pandora representa natildeo somente a explicaccedilatildeo para a duplicidade do estatuto humano

em par de gecircneros opostos ela eacute a noiva esplendorosa de invenciacutevel e adornada aparecircncia

divina que configuram a contrapartida para o dolo do fogo teacutecnico Diferentemente do

homem Pandora eacute fabricada pelos deuses Ela eacute o fruto de uma modelagem divina arte dos

deuses e sua uniatildeo com um Titatilde prenuncia nova caracterizaccedilatildeo do gecircnero humano

Doravante como afirma Jenny Clay (2009 p 102 ss) as distinccedilotildees que definem e

delimitam o gecircnero humano recebem traccedilos perenes e incontornaacuteveis ldquosua apariccedilatildeo

inaugura a instituiccedilatildeo do casamento que como o sacrifiacutecio serve para delimitar as

coordenadas da condiccedilatildeo humana Pois como seres mortais os humanos satildeo compelidos

tal como as bestas a se reproduzirem para que a espeacutecie seja mantidardquo

Por outro lado a prole de Pandora e do titatilde Epimeteu deveraacute unificar os elementos

titacircnicos com a arte bem concebida dos deuses mistura de opostos em permanente tensatildeo

de dissoluccedilatildeo Potecircncia coacutesmica de desmedida Epimeteu procriaraacute um novo gecircnero de ser

unindo-se ao artefacto divino meticulosamente medido miscigenaccedilatildeo equilibrada de

proporccedilotildees e determinaccedilotildees opostas que recebem um sopro de vida O casamento soacute pode

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passar a ser condiccedilatildeo para a preservaccedilatildeo humana a partir da geraccedilatildeo de Pandora e

Epimeteu que assimila as forccedilas titacircnicas da desmedida agrave arte bem projetada mas ambiacutegua

Assim como o sacrifiacutecio ritualiza mediante em accedilotildees dramatizadas sem finalidade

ou propoacutesito visiacutevel o comeacutercio e o contato com o divino assim tambeacutem o casamento

inaugura a sacralizaccedilatildeo ritual dos apetites sexuais O sacrifiacutecio constitui os droacutemena que

separam o acircmbito e o estatuto divino do humano o espaccedilo-tempo dos deuses e o vivido

humano interposto entre os animais selvagens e o divino A integraccedilatildeo ritualiacutestica do

feminino personificado na Virgem divina ao mesmo tempo regra e sanciona os apetites

sexuais O casamento interpotildee o homem entre a promiscuidade selvagem e a promiscuidade

divina que desconhecem as inibiccedilotildees

O fogo teacutecnico que eacute empregado simultaneamente na fabricaccedilatildeo de utensiacutelios e de

armas que potencializam a violecircncia possui a potecircncia ambiacutegua de assegurar a vida e

sancionar a violecircncia Analogamente o casamento inaugurado por Pandora possui a

potecircncia ambiacutegua de legitimar o sexo atraveacutes da sacralizaccedilatildeo ritualiacutestica e interditar a

promiscuidade da besta ou o incesto dos deuses Todavia o feminino associa-se agrave

concepccedilatildeo da voracidade das forccedilas dissipadoras e destrutivas aportadas pelo fogo Sem

regramento ou controle o feminino natildeo integrado ritualmente consome o fruto dos

trabalhos e com sedutoras palavras e caraacuteter dissimulado induz aos homens a repeticcedilatildeo

miacutetica da imprevidecircncia de Epimeteu

A ambiguidade de Pandora eacute simetricamente compensatoacuteria agrave dyacutenamis piacuterica da

inteligecircncia astuciosa previdente Os males invisiacuteveis indistintamente libertos equilibram e

compensam a previsibilidade e presciecircncia aportada pela inteligecircncia demiuacutergica A

dissimulaccedilatildeo e olhar de catildeo satildeo a contraparte agrave agressatildeo e violecircncia potencializadas por

armas forjadas pelo fogo Por outro lado a esperanccedila retida no vaso opotildee-se agrave exterioridade

43

aberta dos males que assolam os homens Mistura de afeto e pensamento projetivo elpiacutes

anuncia em meio aos males bens somente pensaacuteveis e acalentados afetivamente no acircmago

humano

A causalidade inevidente confere sentido para a espontaneidade do mal na

experiecircncia humana aplaca a ansiedade das vivecircncias aterradoras e eacute o eacutelan para que a

inteligecircncia teacutecnica eluda a contingecircncia dos obstaacuteculos agrave vida Na leitura de Jenny Clay a

expectaccedilatildeo retida pode ser entendida com a mesma ambiguidade de Pandora ela confunde

o pensamento e promete becircnccedilatildeos enquanto sua natureza interna enganadora e caraacuteter

dissimulado mentem com palavras sedutoras Nesse sentido a expectaccedilatildeo seria um mal

iludente que promete e seduz mas que raramente entrega as ilusotildees aneladas (CLAY 2009

p 103) Natildeo obstante a inviolaacutevel posse de Elpiacutes claramente opotildee-se agrave dispersatildeo dos

males Sua accedilatildeo de oposiccedilatildeo eacute compensatoacuteria e natildeo da mesma natureza dos males

silenciosos autocircmatos (HESIacuteODO Trabalhos e os Dias 103) Sua posse implica a

significaccedilatildeo carreada pelo pensamento projetivo de bens pensaacuteveis e diziacuteveis mas incertos

Ela inscreve sentido e ordem numa sucessatildeo indistinta que de outra forma tornariam o

viver excessivamente pesado para ser suportado

O fogo furtado por Prometeu eacute um artifiacutecio derivaccedilatildeo secundaacuteria do fogo celeste

ocultado no interior de uma feacuterula oca e por essa razatildeo eacute um fogo destrutiacutevel e efecircmero

que estaacute no plano do devir e precisa ser alimentado para manter-se Mas eacute tambeacutem um

fogo teacutecnico o fogo do engenho e da metalurgia que possibilitam os meios para a

manutenccedilatildeo da vida10

O fogo dado aos homens representa o domiacutenio da inteligecircncia

teacutecnica astuciosa empregada para controlar as potecircncias naturais e eludir o estado de

10 Paul Diel empreende uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica do mito de Prometeu que a despeito de ser dogmaacutetica e

arbitraacuteria correlaciona de maneira interessante o fogo com a ldquointelectualizaccedilatildeo utilitaacuteriardquo cuja caracteriacutestica eacute

encontrar os meios adequados para a satisfaccedilatildeo dos desejos multiplicados (1980 p 235-236)

44

absoluta carecircncia humana Ele guarda a mesma ambiguidade que marca a condiccedilatildeo dos

homens possui uma origem divina mas eacute por outro lado mortal como os homens e

selvagem como os animais

O fogo prometeacuteico consolida o sacrifiacutecio como o rito adequado para a interaccedilatildeo

entre duas instacircncias definitivamente segregadas e com isso estabelece a partir da daacutediva

da partilha e da retribuiccedilatildeo a emergecircncia ritualiacutestica dos esquemas mentais que compotildeem a

inteligecircncia causal organizadora da experiecircncia e da multiplicidade a conexatildeo infaliacutevel

entre dois eventos consecutivos no tempo a deliberaccedilatildeo projetiva inteligente a escolha de

meios eficazes com vistas a um fim uacutetil determinado a forja de instrumentos as noccedilotildees

proto-matemaacuteticas de medida equivalecircncia proporccedilatildeo igualdade e simetria

Por outro lado a integraccedilatildeo do seu duplo oposto o feminino implica o regramento

a sanccedilatildeo e a inibiccedilatildeo de princiacutepios de accedilatildeo tatildeo destrutivos e incontrolaacuteveis como a

voracidade do fogo selvagem ou do fogo divino o sexo e a violecircncia

15 Vergonha e causalidade a cosmogonia sexual do Papiro de Derveni

Em 1962 uma espetacular descoberta arqueoloacutegica de tumbas funeraacuterias na regiatildeo

grega de Derbeacuteni ( ) havia de insuflar uma forte corrente de novas pesquisas sobre

os cultos de misteacuterio gregos O ceacutelebre papiro de Derveni trouxe agrave luz a exegese de um

uma cosmogonia sagrada desenvolvida por um experto cuja pretensatildeo manifesta eacute a

transposiccedilatildeo didaacutetica de imagens miacuteticas polissecircmicas para o registro de uma explicaccedilatildeo

causal cifrada situada no contexto do pensamento preacute-socraacutetico de Heraacuteclito Anaxaacutegoras

Eutiacutefron e Estesiacutembroto de Thasos (FUNGHI apud LAKS 1997 p 25 ss)

A despeito da profusatildeo dos enfoques hermenecircuticos e das premissas sempre

conjecturais que visam preencher as lacunas incontornaacuteveis dos fragmentos recuperados

45

os eruditos satildeo unacircnimes em reconhecer no rolo de Derveni a mais antiga versatildeo cosmo-

teogocircnica conhecida ateacute hoje (CALAMEacute apud LAKS 1997 p 65) Embora o texto tenha

sido datado por Tsantsanoglou (2006 p 9) da segunda metade do seacuteculo IV (entre 340 e

320 aC) o estilo constitui um forte indiacutecio de que o seu cadinho mental remonta ao Vordm

seacuteculo e que sua linguagem natildeo poderia ser muito posterior a 400 aC (JANKO apud

TSANSTANOGLOU 2006 p 10) Para todos os propoacutesitos aqui assumidos a questatildeo da

autoria e a imprecisatildeo vexatoacuteria que acompanha as referecircncias agrave figura miacutetica de Orfeu natildeo

interferem na fenomenologia das imagens cosmogocircnicas e na re-significaccedilatildeo operada pelo

exegeta Importa sobretudo o modo de manter viva uma tradiccedilatildeo cultual iniciaacutetica

aparentemente anacrocircnica a um ambiente filosoacutefico centrado na busca de princiacutepios causais

cosmoloacutegicos Por essa razatildeo a neutralidade da opccedilatildeo adotada por Janko de referir-se agrave

cosmogonia do papiro como teleteacute ou hieroacutes loacutegos (LAKS 1997 p 26) mostra-se

pertinente

O conteuacutedo dos versos recuperados expotildee a narrativa de uma teogonia sagrada e a

criacutetica por parte do exegeta da interpretaccedilatildeo literal operada por mediadores falseados os

maacutegoi e a inconsequecircncia dos recipiendaacuterios que lhes pagavam altas somas (Col XX) A

questatildeo da iniciaccedilatildeo se apresenta por conseguinte atraveacutes da oposiccedilatildeo entre uma

inteligecircncia subjacente profunda hypoacutenoia e um entendimento literal manifesto O

comentador opera a decifraccedilatildeo de uma narrativa escrita em forma de enigmas cuja

finalidade duacuteplice seria resguardar um saber interdito aos profanos e assegurar a

transmissatildeo de uma tradiccedilatildeo iniciaacutetica atraveacutes do legiacutetimo inteacuterprete

um hino dizendo salutares (hygiḗ) e legalizadas (themitaacute)

palavras Pois um rito sagrado era executado atraveacutes do poema E

natildeo se pode liberar o sentido das palavras (enigmaacuteticas) e falar o

que foi dito Pois este poema eacute algo estranho (xeacutenē) e enigmaacutetico

(ainigmatōdes) para os homens Orfeu mesmo entretanto natildeo

46

desejou falar eriacutesticos enigmas (esriacutest‟ainiacutegmata) mas as grandes

coisas em enigmas (en ainiacutegmasin degrave megaacutela) De fato ele profere

um discurso sagrado (hierologeicirctai) da primeira palavra ateacute o

acabamento do poema Como ele torna claro em um bem

reconhecido verso pois tendo lhes ordenado bdquocolocar portas nos

ouvidos‟ ele afirma que natildeo legisla para os muitos [mas que

ensina] agravequeles de ouvidos puros e no verso seguinte

(Derveni Papyrus Col VII)11

O exegeta justifica a aparecircncia enigmaacutetica do poema atribuiacutedo a Orfeu pelo poder

de velamento das imagens expressas na composiccedilatildeo Os deuses permitem (themitaacute) que os

salutares discursos sagrados (hieroi loacutegoi) sejam ouvidos pelos ldquomuitosrdquo em funccedilatildeo de sua

incapacidade de decifrar-lhes o sentido subjacente A razatildeo para isso eacute ao mesmo tempo

ritual jaacute que o poema eacute associado a accedilotildees ritualiacutesticas e iniciaacutetica pois a purificaccedilatildeo do

ouvir pressupotildee um ensino e a transmissatildeo de um exerciacutecio de atribuiccedilatildeo de significaccedilatildeo agraves

imagens exerciacutecio interdito aos natildeo-iniciados A alusatildeo agrave sauacutede intriacutenseca aos versos

sugere um papel terapecircutico e purificatoacuterio neste exerciacutecio exegeacutetico

A iniciaccedilatildeo jaacute se anuncia aqui como modalidade de exerciacutecio ritual interpretativo

terapecircutico e cataacutertico para a inteligecircncia das grandes coisas Essa inteligecircncia conduz a

uma diferenciaccedilatildeo a um plano superior ser iniciado eacute mudar de estatuto atraveacutes da

inteligecircncia das questotildees mais elevadas que se contrapotildee agrave disputa eriacutestica contrafaccedilatildeo da

polissemia imageacutetica Natildeo obstante o falseamento natildeo se delimita somente agrave

inteligibilidade das grandes coisas mas agrave distinccedilatildeo dos princiacutepios que determinam o

emprego da eficaacutecia ritual e da finalidade de seu uso (TSANTSANOGLOU 2006 p 130)

Na coluna VI os maacutegoi exercem uma accedilatildeo eficaz sobre os daiacutemones almas vingadoras

atraveacutes da encantaccedilatildeo (epōidḗ) sacrifiacutecios e libaccedilotildees Os myacutestai usam os mesmos

11 Texto estabelecido por Tsantsanoglou com traduccedilatildeo ligeiramente modificada (2006 p 130)

47

procedimentos que os maacutegoi mas como seus princiacutepios de accedilatildeo satildeo opostos12

os

sacrifiacutecios endereccedilam-se agrave manifestaccedilatildeo benevolente das almas servidoras da justiccedila as

Eumecircnides (JOURDAIN 2003 6 p 37-39) O poema inicia-se com a menccedilatildeo

extremamente fragmentaacuteria das Eriacutenias (col I) almas honradas por libaccedilotildees marcas

honoraacuteveis de honra feitas atraveacutes de holocaustos de paacutessaros harmonizados com

muacutesica13

Todavia a eficaacutecia da encantaccedilatildeo maacutegica contraposta agraves honras dos sacrifiacutecios e

libaccedilotildees executadas pelos myacutestai se depara com limites coacutesmicos infrangiacuteveis

A correta interpretaccedilatildeo do poema eacute reforccedilada pela necessidade de se evitar o engodo

dos usurpadores dos procedimentos rituais e discursos sagrados e para a distinccedilatildeo entre o

caminho das almas vingadoras e o caminho das Eumecircnides servidoras benevolentes da

Justiccedila O comentador de Derveni consigna a Orfeu a inteligecircncia da ordenaccedilatildeo coacutesmica e

sua expressatildeo cifrada em imagens miacuteticas narradas num poema escrito Como afirma

Obbink (LAKS 1997 p 42) a narrativa do mundo de Orfeu entendida corretamente

(orthōs) espelha nosso koacutesmos O autor pressupotildee o fato de que Orfeu possuiacutea uma

12 Bernabeacute assimila os magos mencionados na Col VI aos sacerdotes persas e confere uma interpretaccedilatildeo

pejorativo agrave sua atividade encantatoacuteria como charlatatildees que operam artifiacutecios com a finalidade de expiar

antigas faltas Betegh ao contraacuterio assume que o autor de Derveni aplica o temo bdquomaacutegoi‟ a um grupo de

sacerdotes persas ao qual ele mesmo pertence (TSNATSANOGLOU 2006 p 166 167) Fabienne Jourdain

(2003 p 37) associa os Maacutegoi a uma tribo meda composta por uma casta sacerdotal encarregada de assegurar a regularidade dos procedimentos em mateacuteria religiosa e que seria subjugada pelo rei Cambises e

posteriormente perseguida por Dario Segundo Apuleius ldquoum mago eacute algueacutem que mediante a comunidade

de fala com os deuses imortais possui um incriacutevel poder de encantar qualquer coisa que desejarrdquo (GRAF

apud MIRECKI MEYER 2002 p 93) No papiro de Derveni o comentador segue uma tradiccedilatildeo que atribui

ao substantivo o sentido pejorativo de ldquocharlatatildeordquo Os praticantes de ritos propiciatoacuterios e foacutermulas

encantatoacuterias que atraveacutes de pagamento procuravam esconjurar a culpa por transgressotildees satildeo a contrafaccedilatildeo

do genuiacuteno iniciado 13 Eriacutenias eles honram libaccedilotildees satildeo derramadas em gotas para Zeus em cada templo Aleacutem disso deve

oferecer excepcional honra agraves [Eumecircnides] e queimar um paacutessaro para cada [um dos daiacutemones] E ele junta

[hinos] bem adaptados ( ) agrave muacutesica

(TSANTSANOGLOU 2006 p 65 129)

48

inteligecircncia privilegiada das verdades maiores e deliberadamente as expressa

imageticamente em versos enigmaacuteticos

A questatildeo crucial natildeo se reduz ao domiacutenio de uma discussatildeo etimoloacutegica acerca da

natureza da linguagem da sinoniacutemia ou da alegorese nos moldes de um Estesiacutembroto com

o escopo semacircntico de atualizar um discurso miacutetico anacrocircnico e cristalizado pela escrita14

Trata-se sobretudo do desvelamento de uma modalidade discursiva que eacute

intencionalmente aberta agrave polissemia como meio de resguardar um saber iniciaacutetico que

carrega em seu bojo homologias estruturais entre relaccedilotildees de imagens e relaccedilotildees coacutesmicas

causais A exegese do autor de Derveni eacute ao mesmo tempo a transposiccedilatildeo de um pensar

por imagens para uma cosmologia da causalidade e o desvelamento daquilo que eacute oculto (e

interdito aos olhos e ouvidos natildeo adestrados) pelo esforccedilo e pelo exerciacutecio ritual

O poema de Orfeu no enfoque de Obbink se insere num ambiente cultual comum a

uma seacuterie de textos fuacutenebres como as lacircminas de ouro Oacuterficas cujas imagens configuram a

visatildeo do mundo dos mortos associada aos ritos de misteacuterio ldquoNatildeo eacute soacute o texto miacutestico que

possui uma significaccedilatildeo velada mas o mundo como um todo taacute eoacutenta a existecircncia humana

e a morterdquo (LAKS 1997 p 53)

A natureza ama ocultar-se diz Heraacuteclito15

A sabedoria consiste tradicionalmente

no aacuterduo exerciacutecio de conferir sentido agravequilo que se apresenta de forma cifrada ou

enigmaacutetica notadamente a interpretaccedilatildeo das prolaccedilotildees do oraacuteculo de Delfos Eacute sobre este

exerciacutecio praacutetico derivado da instituiccedilatildeo oracular de Delfos que Soacutecrates justifica sua

atividade filosoacutefica A inquiriccedilatildeo socraacutetica consiste na escalada ao piacutencaro secular de uma

14 Para uma descriccedilatildeo panoracircmica do debate contemporacircneo ver o ensaio introdutoacuterio de M S Funghi

(LACKS 1997 ) 15 DK B 123 THEMISTIUS Or 5 p 69 (KAHN

2003 p 63)

49

tradiccedilatildeo erigida sobre a inteligecircncia subjacente aos enigmas do deus O aacutenax cujo oraacuteculo

estaacute em Delfos natildeo diz nem oculta daacute sinal16

O discurso divino caracteriza-se pela

oposiccedilatildeo entre a fala manifesta e a inteligibilidade oculta A investigaccedilatildeo do sinal aparente

consiste na hyponoacuteia o desvelamento do sentido oculto da inteligecircncia inevidente que

subjaz agrave manifestaccedilatildeo visiacutevel A autecircntica obediecircncia ao deus consiste em investigar a si

mesmo (DK 101) em replicar a indagaccedilatildeo paradigmaacutetica de Soacutecrates em sua defesa o que

fala enfim o deus e qual eacute afinal o sentido oculto (ainiacutettetai17

)

O discurso divino (heiroacutes loacutegos) possui um modo enigmaacutetico proacuteprio de expressatildeo

que exige o recurso de imagens cifradas Qual eacute a relaccedilatildeo entre o manifesto e o invisiacutevel

Por que aquilo que natildeo estaacute presente ao olhar possui primado em relaccedilatildeo ao imediato Por

que buscar a inteligibilidade no oculto Por que o inevidente se assimila ao divino e por que

o discurso sagrado se expressa na plurivocidade das imagens e natildeo na literalidade da

palavra

O comentador de Derveni associa a natureza coacutesmica com o regramento e a

infrangibilidade dos limites divinos estabelecidos nas leis da phyacutesis Daiacutemones e Eriacutenias

satildeo almas psyacutekhai potecircncias invisiacuteveis servidoras da Justiccedila Diacuteke aparece como a

retribuiccedilatildeo infaliacutevel para a transgressatildeo aos limites coacutesmicos garantida por potecircncias

invisiacuteveis servidoras O viacutenculo inquebrantaacutevel entre transgressatildeo e retribuiccedilatildeo eacute

assegurado pela funccedilatildeo de vigilacircncia das almas A inteligecircncia apanaacutegio psiacutequico tem na

vigilacircncia da causalidade um princiacutepio constitutivo primordial Por essa razatildeo o

16 B 93 PLUT de Pyth or 21 p 404

Disponiacutevel em lthttppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics22-B92gt 17 Apologia 21b 04 (LEXICON I 2003)

50

comentador menciona o fragmento mais antigo de Heraacuteclito qualificando seu estilo

gnocircmico ao modo dos mitoacutelogos que falam por imagens

aquele que ltmudagt o que eacute estabelecido dar Ele

(Heraacuteclito) que precisamente se assemelha aos contadores de mitos

quando se exprime assim o sol segundo sua proacutepria natureza

possui a largura de um peacute humano natildeo ultrapassaraacute suas

medidas pois se ele excede sua proacutepria largura em algum grau as

Eriacutenias o descobriratildeo auxiliares de Diacuteke

(Col IV)18

Os maacutegoi procuram eludir transgressotildees de crimes passados atraveacutes de encantaccedilotildees

e sacrifiacutecios Mas as coisas estabelecidas (keiacutemena) natildeo podem ser modificadas Haacute uma

correlaccedilatildeo entre as leis coacutesmicas e as consequecircncias das accedilotildees humanas pois as mesmas

potecircncias invisiacuteveis asseguram o viacutenculo A apreensatildeo da inteligibilidade coacutesmica eacute parelha

agrave compreensatildeo das implicaccedilotildees psiacutequicas desencadeadas pela praacutexis O koacutesmos brota das

disposiccedilotildees da ordenaccedilatildeo (taacutexin) e natildeo do acaso A mesma Justiccedila que o regra impotildee

limites para o agir humano A referecircncia a Heraacuteclito indica que o campo da ascensatildeo

iniciaacutetica eacute simultaneamente cosmoloacutegico e eacutetico e faz parte da mesma tradiccedilatildeo da qual

emerge o ambiente mental dos preacute-socraacuteticos

Na sua abordagem estrutural-historicista sobre a formaccedilatildeo do pensamento positivo

grego Vernant sublinha o considera uma ldquomutaccedilatildeordquo mental operada pelos filoacutesofos

jocircnicos enquanto a loacutegica do mito hesioacutedico possui a ambiguidade de apreender

simultaneamente o mesmo fenocircmeno como fato natural no mundo visiacutevel e como geraccedilatildeo

divina no tempo primordial os elementos da Filosofia jocircnica seriam despojados de todo

caraacuteter antropomoacuterfico (VERNANT 2002 p 449 ss) Os elementos da Filosofia mileacutesia

18

(JOURDAIN 2003 v 6-10 p 4)

51

satildeo ao mesmo tempo ldquoforccedilasrdquo ativas divinas e naturais Embora o koacutesmos seja uma

ordenaccedilatildeo divina a causalidade jaacute natildeo eacute personificada mas delimitada e abstraiacuteda na

consecuccedilatildeo de efeitos fiacutesicos determinados Haveria uma mudanccedila de registro explicar e

compreender natildeo seriam mais encontrar a genealogia mas os princiacutepios primeiros

constitutivos do ser que implicam regularidade e ordenaccedilatildeo e que fazem com que koacutesmos

seja verdadeiramente um ldquoarranjordquo O historicismo marxista de Vernant comprometido

com a concepccedilatildeo de progresso ofusca a possibilidade hermenecircutica da coexistecircncia entre

planos polissecircmicos abertos que satildeo compartilhados por uma tradiccedilatildeo ritual iniciaacutetica e pela

exegese filosoacutefica que natildeo deixa de ser iniciaacutetica e ritual na praacutexis de um biacuteos

Na mudanccedila de registro operada por Heraacuteclito em particular as potecircncias divinas

satildeo despojadas de seu caraacuteter antropomoacuterfico e os nomes se revestem da sobriedade que

origina um vocabulaacuterio ontoloacutegico novo (RAMNOUX 1968 p 1-9) Mas o caraacuteter

indiferenciado do deus permanece no pensamento filosoacutefico

O deus dia noite inverno veratildeo guerra paz saciedade fome Ele

muda como se misturado a perfumes eacute nomeado segundo o gosto

de cada um

DK 67 (KAHN 2003 p 105)

Qual eacute o papel do fogo nesse cenaacuterio mental O que o dieferencia dos esquemas miacuteticos

hesioacutedicos Qual a relaccedilatildeo do fogo com os incensos Tal como o oacuteleo serve de meio neutro

para o perfume e recebe o nome do aroma o incenso evola-se do fogo e recebe o nome do

aroma do qual eacute constituiacutedo Nomeia-se o incenso natildeo pelo fogo mas pelo nome do

perfume que evola-se Deus da mesma maneira estaacute presente em tudo segundo as estaccedilotildees

e os dias mostrando-se sem cessar pelas contradiccedilotildees que compotildeem o drama da vida O

homem esquece-se do elemento que serve de base para todas as transformaccedilotildees que

compotildeem esse drama e nomeia cada aspecto segundo seu gosto (RAMNOUX 1968 P 377

52

ss) Para Heraacuteclito a coexistecircncia dos pares de opostos mostra aspectos multifacetados do

Um indistinto modos de contrariedade que manifestam um cosmo divino e um deus

presente em toda a physis Cada par de opostos constitui uma porccedilatildeo do Loacutegos divino

Quando se mistura uma multiplicidade de arocircmatas e se lhes atira ao fogo haacute

simultaneamente uma multidatildeo de perfumes e um uacutenico e indistinto fogo Do mesmo

modo haacute uma divindade e muitos nomes

Conforme observa Kahn o fragmento conteacutem a uacutenica definiccedilatildeo da divindade nos

fragmentos atribuiacutedos a Heraacuteclito A primeira parte do fragmento descreve a divindade em

termos formais mediante pares de opostos O texto sugere uma unidade coacutesmica que

ultrapassa a concepccedilatildeo tradicional da divindade Guerra e fogo satildeo designaccedilotildees de um

princiacutepio universal de ordem e justiccedila que eacute sobre-divino e coincide com o Um o princiacutepio

supremo que governa o koacutesmos e nutre todas as leis humanas (DK 114) O divino ldquoumrdquo eacute o

princiacutepio unificador representado pela guerra e pelo fogo eterno identificado com o

koacutesmos e que eacute o mesmo para todos os seres aceso com medida e com medida apagado19

(KAHN 2003 p 182-192) Deus eacute definido e identificado com os pares de opostos e

representa a unidade e a regularidade de um padratildeo de alternacircncia e de interdependecircncia

entre todos os opostos A identificaccedilatildeo da divindade com o padratildeo de alternacircncia entre

opostos determina a ordenaccedilatildeo coacutesmica Em Heraacuteclito a divindade eacute o que haacute de

regularidade nas manifestaccedilotildees infinitamente variegadas da Natureza eacute o princiacutepio de

ordenaccedilatildeo o Loacutegos que eacute tambeacutem o princiacutepio de unificaccedilatildeo que estaacute para aleacutem da

divindade tradicional hesioacutedica Na Filosofia de Heraacuteclito a causalidade eacute a relaccedilacirco

inexoraacutevel dos opostos que se alternam e a inteligecircncia teacutecnica eacute tatildeo somente uma

19

DK30

(KAHN 2003 p 73)

53

manifestaccedilatildeo particular de uma inteligecircncia coacutesmica universal ndash limite intransponiacutevel que

determina as ldquomedidas do fogordquo O koacutesmos eacute uma estrutura que abarca simultaneamente

todos os opostos como manifestaccedilatildeo de um padratildeo uacutenico o fogo que se mistura a incensos

Tal estrutura eacute um arranjo inteligente um Loacutegos metaforicamente expresso pelo fogo

O fogo segundo Charles Kahn (2003 p 138) eacute um siacutembolo de vida de vida sobre-

humana visto que eacute um elemento no qual nenhum ser vivo pode viver Aleacutem disso eacute um

poder que recebe os mortos na morte Representa simultaneamente a vida a criatividade a

morte e a destruiccedilatildeo Como fogo sacrificial ele representa o deus Ele eacute o elemento divino

inscrito na atividade humana que possibilita as teacutecnicas e a induacutestria que separam o homem

dos animais O fogo natildeo eacute um elemento material Eacute um processo de transiccedilatildeo de um estado

para outro um siacutembolo vivo da mudanccedila da vida e da morte do movimento e da

inteligecircncia criativa Em Heraacuteclito o fogo eacute o elemento do paradoxo As reversotildees do fogo

(DK 31) satildeo concebidas como medidas de um ciclo tal como a medida do pecircndulo

Para Anaximandro a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo pagam mutuamente as injusticcedilas

segundo a ordenaccedilatildeo do tempo ou seja a retribuiccedilatildeo eacute paga de acordo com a ordem do

tempo20

Princiacutepio dos seres o ilimitado pois o que eacute a geraccedilatildeo

para os seres a corrupccedilatildeo eacute para estes ao se gerar segundo o

necessaacuterio pois datildeo justiccedila a si mesmos e pagamento uns aos

outros pela injusticcedila segundo a ordenaccedilatildeo do tempo21

Heraacuteclito concebe a noccedilatildeo coacutesmica de trocas como um padratildeo de justiccedila segundo a

qual nada ocorre sem a justa retribuiccedilatildeo ou pagamento O princiacutepio que rege todo processo

20

(B 1 SIMPLIC Phys 24 13) Disponiacutevel

em lthttppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics12-Bgt 21 Trad de Cavalcante de Souza modificada (2000 p 50)

54

de mudanccedila eacute a justa retribuiccedilatildeo que ocorre segundo um criteacuterio em ldquomedidasrdquo Isso

significa que a estrutura coacutesmica eacute mantida pela causalidade como princiacutepio de ordenaccedilatildeo

A ldquomedidardquo que rege as trocas eacute preservada sobre uma sequumlecircncia de estaacutegios em uma

progressatildeo temporal que retorna ao ponto inicial do ciclo As medidas de igualdade satildeo

rigorosamente respeitadas pela retribuiccedilatildeo A noccedilatildeo de Justiccedila abarca natildeo somente a praacutexis

eacutetico-poliacutetica mas enraiacuteza-se na forja que molda laboriosamente a noccedilatildeo multifacetada da

causalidade Como afirma Vlastos (1947 p 146) o campo de aplicaccedilatildeo da palavra justiccedila

vai muito aleacutem da esfera legal e moral

Respeitar a natureza de algueacutem ou de algo eacute ser ldquojustordquo

com eles Piorar ou destruir a natureza eacute ldquoviolecircnciardquo ou

ldquoinjusticcedilardquo Assim em uma passagem bem conhecida Solon fala

do mar como o ldquomais justordquo quando imperturbaacutevel pelos ventos

natildeo perturba a ningueacutem ou a nenhuma coisa A lei da medida natildeo eacute

nada mais do que um refinamento desta ideacuteia de que a proacutepria

natureza de algueacutem e a natureza dos outros possuem limites que

natildeo podem ser ultrapassados

A justiccedila coacutesmica eacute uma concepccedilatildeo da natureza em geral

como associaccedilatildeo harmocircnica cujos membros observam ou satildeo

compelidos a observar a lei da medida Pode haver morte e

destruiccedilatildeo oacutedio e ateacute mesmo corrupccedilatildeo (como em Anaximandro)

Haacute justiccedila natildeo obstante se a usurpaccedilatildeo eacute invariavelmente

reparada e as coisas satildeo reinstaladas em seus limites proacuteprios

A causalidade em Heraacuteclito adquire um estatuto eminente de lei soberana que

cinge e preside a ordenaccedilatildeo coacutesmica O princiacutepio de regramento unificador pressupotildee as

concepccedilotildees de ldquomedidardquo ldquoigualdaderdquo ldquoequivalecircnciardquo ldquocompensaccedilatildeordquo ldquoproporccedilatildeordquo e

serve como fonte nutriz para as atividades humanas Na cosmologia de Heraacuteclito o fogo

teacutecnico eacute apenas uma fagulha do fogo coacutesmico a inteligecircncia humana assimila-se ao ciclo

coacutesmico divino e a Natureza permanece como fronteira divina intransponiacutevel

salvaguardada pelas Eriacutenias servas da Justiccedila

55

A causalidade no papiro de Derveni entremeia o plano das imagens miacuteticas

teogocircnicas com a significaccedilatildeo inevidente propiciada pela exegese cosmoloacutegica A eficaacutecia

das praacuteticas rituais dos maacutegoi atua como violaccedilatildeo entre a conexatildeo inquebrantaacutevel entre

falta e retribuiccedilatildeo excesso e compensaccedilatildeo O adivinho encantador eacute o intermediaacuterio

privilegiado entre o visiacutevel e o invisiacutevel entre o sacrifiacutecio violento e a puniccedilatildeo invisiacutevel

evitada A divisatildeo entre as imagens imediatas do poema e a interpretaccedilatildeo do seu sentido

oculto traz ao primeiro plano o conhecimento das causas e a legitimidade da transmissatildeo

Haacute uma homologia estrutural entre a transmissatildeo iniciaacutetica do ritual de misteacuterio e a

transmissatildeo iniciaacutetica de uma cosmologia que deve ser necessariamente misteriosoacutefica O

segredo consiste numa garantia contra a usurpaccedilatildeo do viacutenculo inexoraacutevel entre o longo

esforccedilo exigido pela via iniciaacutetica e a compreensatildeo das grandes verdades enigmaacuteticas que

soacute pode surgir como apanaacutegio de uma conquista de um estatuto superior de uma praacutetica de

vida concomitante agrave investigaccedilatildeo dos princiacutepios do koacutesmos

O sentido oculto pressupotildee um processo de conhecimento que se origina a partir de

imagens e signos provisoacuterios cujo papel deve ser o de remeter o inteacuterprete treinado para

realidades invisiacuteveis inevidentes

Por que natildeo crecircem (apistoucircsi) nas coisas terriacuteveis (deinagrave)

que os esperam no HadesSe natildeo compreendem (gignōskontes)

imagens oniacutericas (enyacutepnia) nem nenhuma outra de suas

manifestaccedilotildees praacuteticas particulares (tōn aacutellōm pragmaacutetōm

heacutekaston) por meio de que paradigma (paradeigmaacutetōm) se faria

com que cressemPois aqueles que tendem para a falta e os

prazeres que prevalecem nem aprendem nem crecircem (ou

manthaacutenousin oudegrave pisteuacuteousi) Pois incredulidade e ignoracircncia

satildeo o mesmo De fato se nem aprendem nem compreendem natildeo

haacute como crer ainda que vendo22

(Col V)

22 Trad de Fabienne Jourdain com modificaccedilotildees (2003 p 5 35-36)

56

As imagens oniacutericas (aquilo que eacute interno aos sonhos) configuram pontos de partida

para o conhecimento de accedilotildees Assim como a teleacutestica exige a transmissatildeo de um saber o

conhecimento das leis coacutesmicas exige a passagem da apreensatildeo das imagens manifestas

para a compreensatildeo de semelhanccedilas de homologias entre planos muacuteltiplos de significaccedilatildeo

discursiva e o koacutesmos A atividade exegeacutetica do comentador evidencia que o conhecimento

eacute intrinsecamente dependente de paradigmas imageacuteticos Aprender e compreender satildeo

diferentes de crer e incredulidade e ignoracircncia assimilam-se mutuamente pois a crenccedila eacute

um passo imprescindiacutevel tanto para aprender como para compreender Ademais o maior

obstaacuteculo para o aprendizado e para o conhecimento consiste na vitoacuteria dos prazeres Se o

conhecimento implica a transposiccedilatildeo de imagens ao mesmo tempo aparentes e

enigmaacuteticas para a inteligecircncia inaparente os prazeres induzem ao erro porque subjugam

vencem e impedem o aprendizado e a crenccedila na prisatildeo ao manifesto imediato Vencer a

tirania dos prazeres imediatos constitui o princiacutepio ritual para o conhecimento das grandes

verdades daiacute a inextricabilidade entre o sentido simboacutelico o segredo e o conhecimento

A palavra syacutembolon natildeo eacute atesta Burkert (1972 p 179) uma adiccedilatildeo da tradiccedilatildeo

tardia mas reflete uma concepccedilatildeo preacutevia a toda e qualquer exegese ldquosimboacutelicardquo Todos os

misteacuterios possuem segredos (apoacuterrēta) e palavras de passe secretas (syacutembola synthḗmata)

interpretados em um discurso sagrado (hierograves loacutegos) cujo sentido natildeo deve ser revelado

aos natildeo-iniciados

No domiacutenio da religiatildeo de misteacuterio satildeo bdquopalavras

de passe‟ ndash foacutermulas especificadas ditos (encantaccedilotildees)

dadas ao iniciado que asseguram por meio de seus confrades e

especialmente pelos deuses que seu novo e especial estatuto seja

reconhecido (BURKERT 1972 p 176)

57

No papiro de Derveni o exegeta indica a necessidade preacutevia de ldquocolocar portas nos

ouvidosrdquo pois Orfeu natildeo teria instituiacutedo leis para os muitos mas para aqueles cujos

ouvidos foram purificados (JOURDAIN 2003 p 44-45)

A teogonia escrita segue pari passu agrave cosmologia que emerge da interpretaccedilatildeo das

imagens Zeus recebe de seu pai a soberania ou a potecircncia (tegraven arkhḗn) como um filho

sucede ao pai (Col IX) A engendraccedilatildeo e a transferecircncia da forccedila sugerem a moldagem

coacutesmica a partir de princiacutepios e potecircncias primordiais O fogo possui a potecircncia de afastar

os seres e impedi-los de se combinar por causa do aquecimento Os seres aquecidos natildeo

podem juntar-se em massas compactas A nutriz dos deuses Niacutex possui a funccedilatildeo oracular

da profecia equivalente miacutetico do ensino da instruccedilatildeo foneacutetica que se vale da palavra

como meio de transmissatildeo (Col X) A fala articulada exige a faculdade foneacutetica como

mediaccedilatildeo necessaacuteria para o ensino A potecircncia profeacutetica da Noite indica a projeccedilatildeo

temporal da sua ldquoinstruccedilatildeordquo das regras mediadas pelo princiacutepio material Predizer equivale

a ensinar ou transmitir regramento Assim a Noite inscreve instruccedilatildeo no movimento

desencadeado pelo fogo e exerce uma accedilatildeo de resfriamento oposta ao aquecimento preacutevio

A disjunccedilatildeo operada pelo fogo eacute seguida pela combinaccedilatildeo propiciada pelo

aquecimento Sol e Noite satildeo potecircncias opostas de separaccedilatildeo e combinaccedilatildeo aquecimento e

resfriamento Os oraacuteculos da Noite satildeo proferidos das profundezas de santuaacuterio (aacutedyton)

impenetraacutevel (Col XI) As instruccedilotildees regradas satildeo fixas e interditas aos olhos profanos

pois a impenetrabilidade noturna eacute a imagem estaacutetica que se contrapotildee agrave periodicidade da

luz solar penetrante O proferimento oracular possui a finalidade de preservar as leis

(theacutemis) fixas que regem as profundezas dos seres a sua natureza oculta que faculta aos

myacutestai a capacidade de previsatildeo futura acerca das combinaccedilotildees e disjunccedilotildees das partiacuteculas

58

A Noite primordial exerce seu poder sobre o nevado Olimpo (Col XII) cuja

luminosa altitude e frieza satildeo assimiladas ao tempo cronoloacutegico A altitude e a largura

constituem grandezas polarizadas que simbolizam o regramento cronoloacutegico e o

regramento espacial identificado com o horizonte celeste O poder causal da Noite instaura

medidas no tempo-espaccedilo no qual se desenrolam as combinaccedilotildees e separaccedilotildees das

partiacuteculas Mas a potecircncia coacutesmica da geraccedilatildeo e soberania eacute identificada com a potecircncia

sexual

() o genital (aidoicircon) engoliu aquele que no eacuteter jorrou

primeiro Mas jaacute que em todo o poema ele recorre a enigmas para

falar das coisas pragmaacuteticas eacute necessaacuterio falar de cada verso

Vendo que os homens por haacutebito consideravam que a geraccedilatildeo

reside nos genitais (em toicircs aidoiacuteois) ele utiliza esse nome e como

eles consideravam que sem os genitais natildeo haacute geraccedilatildeo ele usa essa

palavra assimilando o sol ao genital De fato sem o sol natildeo eacute

possiacutevel que os seres venham a ser tais como satildeo ()

(Col XIII)23

Como observa Claude Calame (LAKS 1993 p 67 ss) na literatura grega aidoicircai

designa a genitaacutelia masculina ou feminina as vergonhas Os genitais satildeo a expressatildeo da

potecircncia geradora e a soberania coacutesmica assimila o poder de geraccedilatildeo em si mesma atraveacutes

da sequecircncia de accedilotildees na qual Zeus engole o pecircnis (aidoicircon) a proacutepria imagem da potecircncia

identificada com o sol O poder procriador manifesta-se na ambiguidade enigmaacutetica do

substantivo masculino aidoicircos que designa o genital masculino mas que pode ter tambeacutem

o sentido ativo de respeitoso e o sentido passivo de veneraacutevel (RAMNOUX 1968 p 97)

O princiacutepio procriador responsaacutevel pela geraccedilatildeo de todos os seres encontra no sol a

venerabilidade celeste da qual brotam as realidades que vecircem agrave luz Zeus por separaccedilatildeo

jorra no ar da brancura e brilho do resplandecente Kronos engendrado a partir do sol e da

23 Trad Fabienne Jourdain com modificaccedilotildees (2003 p 13)

59

Terra pelo choque das partiacuteculas umas com as outras (col XIV) Kronos aquele que choca

identifica-se com o Noucircs a Inteligecircncia que choca as partiacuteculas entre si Ouranos filho de

Euphroneacuteia a Noite eacute destituiacutedo da realeza pelo choque dissociativo empreendido pelo

Intelecto

A potecircncia procriadora inteligente associa a colisatildeo de partiacuteculas coacutesmicas com a

propriedade primordial da inteligecircncia de separar e discriminar A justaposiccedilatildeo do sol no

centro coacutesmico implica a transferecircncia da soberania para Zeus que possui a inteligecircncia

astuciosa Meacutetis Agrave segregaccedilatildeo e poder gerador do genital ajunta-se a inteligecircncia projetiva

astuciosa As realidades originam-se do genital coacutesmico e o Protogoacutenos eacute rei veneraacutevel

(aidoucirc) engendrado a partir de partiacuteculas eternas Toda a geraccedilatildeo coacutesmica pressupotildee o

concurso simultacircneo da potecircncia procriadora e do Noucircs Inteligecircncia primordial ldquoO

Intelecto eacute rei de todas as coisasrdquo As imagens cosmoloacutegicas forjadas pela exegese

simboacutelica satildeo consonantes com as concepccedilotildees pitagoacutericas de Filolau de Croacutetona

ndash E existem quatro princiacutepios do animal racional tal como Filolau

diz no ldquoDa Naturezardquo ceacuterebro coraccedilatildeo umbigo e os genitais A

cabeccedila eacute a sede do intelecto o coraccedilatildeo da alma e da sensaccedilatildeo o

umbigo do enraizamento e do primeiro crescimento os genitais da

emissatildeo de sementes e da geraccedilatildeo O ceacuterebro conteacutem o princiacutepio

do homem o coraccedilatildeo princiacutepio dos animais o umbigo o princiacutepio

das planta os genitais o princiacutepio de todos os seres vivos Pois

todas as coisas crescem e florescem das sementes F13 ndash

Theologumena arithmeticae 25 17

O acervo imageacutetico que associa o princiacutepio causal da geraccedilatildeo aos genitais eacute

onipresente na mentalidade grega na qual coexistem os cultos iniciaacuteticos e a Filosofia

cosmoloacutegica preacute-platocircnica A polissemia aberta suscita a questatildeo de que a vergonha eacute um

afeto primordial constitutivo Tal afeto irrompe da exposiccedilatildeo agrave visatildeo do devir derivado da

accedilatildeo sexual vinculada agrave luz solar fecundante Este viacutenculo entre enigma desvelamento e

vergonha tambeacutem eacute encontrado em Heraacuteclito (KAHN 2009 p 103)

60

Natildeo fosse Dioniso pelo qual marcham em procissatildeo e

cantam o hino ao falo suas accedilotildees poderiam ser vergonhosas Mas

Hades e Dioniso satildeo o mesmo por quem deliram e celebram a

Lenaia

(DK 15)

O jogo de oposiccedilotildees entre o poder procriador do falo e a morte entre a exposiccedilatildeo

vergonhosa e o invisiacutevel aideacutes justificam o canto ritual aidō que reclama exegese

filosoacutefica Dioniso e Hades satildeo o mesmo O deus da potecircncia sexual do transe e do

entusiasmo baacutequico eacute o mesmo deus da morte do invisiacutevel e das terriacuteveis puniccedilotildees que

aguardam os impuros no mundo dos mortos A potecircncia criadora do falo vergonha implica

a identidade com a inevitaacutevel morte com a retribuiccedilatildeo invisiacutevel e infaliacutevel A exposiccedilatildeo

vergonhosa manifesta implica a inexorabilidade oculta da retribuiccedilatildeo Vergonha e puniccedilatildeo

satildeo dois aspectos de uma identidade aidoacutes e diacuteke causalidade soberana salvaguardada

pelas Eriacutenias servas da Justiccedila

61

II - O MITO DO PROTAacuteGORAS teacutekhnai aidōs e diacutekē

Oacute Soacutecrates ele disse eu natildeo me recusarei mas por qual dos dois

modos o do mais velho que fala para com os mais jovens

demonstrando um mito ou narrando em detalhe por um discurso

(Protaacutegoras 320c02-04)24

O bom conselho que configura a preferecircncia (eubouliacutea) imbrica simultaneamente a

narrativa bem demonstrada e a argumentaccedilatildeo razoaacutevel Quando se trata da escolha

prudente a boa ordenaccedilatildeo do querer precede a boa ordem no agir e no falar (kaigrave praacutettein

kaigrave leacutegein) O discurso que move o querer se modela na razoabilidade das imagens miacuteticas

pois uma crenccedila soacute eacute verossiacutemil atraveacutes da ordenaccedilatildeo do loacutegos

O que explica a desigualdade entre homens iguais no que diz respeito aos dons

naturais para as teacutecnicas e a igualdade poliacutetica entre homens desiguais Como conciliar

estes opostos polarizados Por que o bom conselho concernente agraves teacutecnicas pressupotildee o

conhecimento o ensino e o especialista (dēmiurgoacuten) ao passo que o bom conselho poliacutetico

permite a opiniatildeo de qualquer um A narrativa miacutetica entremeada agrave phroacutenesis propicia a

inteligecircncia multivalente O ponto comum entre as imagens miacuteticas e o loacutegos eacute o seu poder

de invariacircncia pelo qual a presenccedila e realizaccedilatildeo da praacutexis viva remanescem e reaparecem

Tal eacute o caraacuteter primordial do discurso e do mito ambos expressam a invariacircncia no

movimento e tal como o divino natildeo constituem um apanaacutegio humano mas algo que se

apresenta como realidade viva Eacute por meio das accedilotildees e do falar que o homem apreende e

modela a sua realidade vivida captando-a natildeo mediante noccedilotildees exclusivamente racionais

mas atraveacutes de imagens que configuram uma inteligecircncia complexa (NUNES SOBRINHO

2008 p 30)

24

62

Natildeo obstante por que Platatildeo consigna uma grande narrativa miacutetica agrave fala de

Protaacutegoras um dos maiores sofistas contemporacircneos de Soacutecrates E por que esse mito

reproduz as imagens antropogecircnicas das narrativas hesioacutedicas Em sua anaacutelise das menccedilotildees

a Hesiacuteodo e Homero no corpus platocircnico Naoko Yamagata (in BOYS-STONES

HAUBOLD 2010 p 67-88) observa que Hesiacuteodo e Homero contribuiacuteram para os mitos

platocircnicos mais do que quaisquer outros poetas Os mitos que emprestam imagens de

Hesiacuteodo satildeo em geral mitos antropogecircnicos O mito do Protaacutegoras em particular cuja

estrutura eacute marcadamente hesioacutedica seria caracteristicamente anti-socraacutetico A tese geral de

Yamagata eacute a de que Hesiacuteodo eacute frequentemente ldquoinvocado como suporte para argumentos

epidecirciticos de natureza duacutebiardquo Haveria uma marcada tendecircncia em alguns diaacutelogos em

contrastar o uso ldquosofiacutesticordquo de Hesiacuteodo com um uso mais caracteristicamente socraacutetico de

Homero

Soacutecrates claramente prefere Homero a Hesiacuteodo mesmo em

diaacutelogos em que ele eacute alvo de ataque (Ion Repuacuteblica)

Ocasionalmente o contraste entre o Homero socraacutetico e o Hesiacuteodo

sofiacutestico ajuda a articular a estrutura global de um diaacutelogo

(Banquete Protaacutegoras) () Os mitos de Platatildeo mais bdquohesioacutedicos‟

tendem a ser estruturados diferentemente daqueles com um forte

sabor homeacuterico estes uacuteltimos satildeo todos narrados por Soacutecrates e

satildeo apresentados como relativamente ambiciosos quanto agrave sua

pretensatildeo agrave verdade Os mitos de Platatildeo mais bdquohesioacutedicos‟ satildeo

postos na boca de outros interlocutores que natildeo Soacutecrates e satildeo

estruturados como entretenimento (Protaacutegoras) jogo (Poliacutetico) ou

meramente verossiacutemil (Timeu) O uacutenico maior mito hesioacutedico

narrado por Soacutecrates eacute apresentado como uma bdquomentira Feniacutecia‟

(YAMAGATA in BOYS-STONES HAUBOLD 2010 p 88)

Embora o levantamento de Yamagata seja sugestivo no que tange ao escopo criacutetico

das narrativas de cunho hesioacutedico a suma cosmoloacutegica do Timeu e do mito do Poliacutetico

possuem uma densidade filosoacutefica de grandeza incompatiacutevel com qualquer desvalorizaccedilatildeo

e soacute satildeo anti-socraacuteticos na medida em que satildeo caracteristicamente platocircnicos Os mitos de

63

julgamento por outro lado satildeo explicitamente vinculados agraves ldquoantigas tradiccedilotildeesrdquo (paacutelai

leacutegetai Feacutedon 63c 06) de misteacuterios e natildeo podem ser identificados somente com a neacutekya

do livro XI da Odisseacuteia

Mesmo a narrativa encenada no Protaacutegoras evoca uma longa cadeia de transmissatildeo

oriunda dos cultos de misteacuterio e valores que compotildeem o ambiente mental grego Giovanni

Casadio (2010 p 3-5) distingue para efeito de anaacutelise os cultos de misteacuterios gregos em

modalidades diversas e salienta especialmente o caraacuteter da transmissatildeo de uma sabedoria

tradicional

Misteacuterios em geral implicam cerimocircnias especiais que satildeo

caracteristicamente esoteacutericas e frequentemente conectadas com o

ciclo anual da agricultura Usualmente eles envolvem o destino de

poderes divinos sendo venerados e a comunicaccedilatildeo de sabedoria

religiosa que habilita o iniciado a vencer a morte Eles eram parte

da vida religiosa geral mas separados do culto puacuteblico que era

acessiacutevel a todos Por essa razatildeo eram tambeacutem chamados ldquocultos

secretosrdquo(aporrēta) () ldquoMisteacuterio propriamente envolve toda

uma estrutura iniciatoacuteria de alguma duraccedilatildeo e complexidade cujo

tipo (e em muitos casos o real modelo) eacute Eleusis O ldquoculto

miacutesticordquo envolve natildeo a iniciaccedilatildeo mas antes uma relaccedilatildeo de

intensa comunhatildeo tipicamente extaacutetica ou entusiaacutestica com a

divindade (ex frenesi Baacutequico ou o kibeboiacute de Cybele) O culto

ldquomisteriosoacuteficordquooferece uma antropologia escatologia e meios

praacuteticos de reuniatildeo individual com a divindade cuja forma

primitiva e original eacute o Orfismo

O mito do Protaacutegoras amalgama elementos diacutespares da tradiccedilatildeo religiosa grega e

por isso aponta para uma composiccedilatildeo ao mesmo tempo argumentativa e narrativa que se

desdobra caracteristicamente numa espeacutecie de bricolage O amaacutelgama de um complexo de

elementos tradicionais dispostos numa sequecircncia de imagens sugere a hipoacutetese de que

Platatildeo como se fora sofista ao mesmo tempo em que fundamenta teses na tradiccedilatildeo rompe

com ela modificando-a atraveacutes de uma nova transmissatildeo re-significada Como afirma

Radcliffe Edmonds ldquouma narrativa dramatiza ldquovaloresrdquo mostrando na perspectiva do

64

narrador o que eacute bom e o que eacute inuacutetil ou maurdquo e salienta que os elementos tradicionais satildeo

evocativos (em vez de descritivos) de associaccedilotildees que ultrapassam o significado imediato

Os desdobramentos desencadeados pela sequecircncia de imagens accedilotildees e caracteres atraveacutes

da estrutura da narrativa carregam em seu bojo significaccedilatildeo para a audiecircncia (CASADIO

2010 p 74-75)

Composta a partir do acervo de imagens da mentalidade grega o mito do

Protaacutegoras eacute um constructo dramaacutetico de Platatildeo seu emprego argumentativo e retoacuterico

encenado pelo ceacutelebre mestre de sabedoria Protaacutegoras emana a fragracircncia acre-doce da

ironia platocircnica A encenaccedilatildeo articula-se com todo aroma irocircnico que permeia o diaacutelogo e

traz em seu bojo a discriminaccedilatildeo platocircnica que visa determinar a especificidade da

Filosofia mediante a cuidadosa separaccedilatildeo e descaracterizaccedilatildeo do ensino sofiacutestico

O mito do Protaacutegoras inicia-se com a afirmaccedilatildeo de uma clivagem no tempo Era um

tempo em que os deuses existiam mas os mortais natildeo25

A existecircncia preacutevia dos deuses

indica natildeo somente um tempo proacuteprio aos deuses mas a natildeo homogeneidade do tempo O

tempo dos mortais eacute essencialmente outro em relaccedilatildeo ao tempo dos deuses Por que o mito

comeccedila com a polarizaccedilatildeo e oposiccedilatildeo entre tempo dos deuses e tempo dos homens A

distinccedilatildeo qualitativa que rompe a homogeneidade esboccedila a concepccedilatildeo de que nem todo

devir nem todo tempo eacute equivalente a outro Haacute o tempo dos deuses o tempo das origens

o tempo forte que antecede o existir da experiecircncia humana e que por seu primado eacute um

tempo paradigmaacutetico exemplar absoluto norteador Retornar ao tempo das origens

implica em encontrar o sentido absoluto para a realidade presente a explicaccedilatildeo e o

25

65

fundamento26

mediante o tempo exemplar para todo o devir27

A explicaccedilatildeo e o sentido satildeo

buscados na origem coacutesmica e antropogocircnica de um Tempo primordial paradigma

absoluto Protaacutegoras funda o relativismo da isonomia e isēgoria28

poliacuteticas no absoluto

referencial do tempo primordial Antes que algo venha a ser seu tempo proacuteprio natildeo pode

constituir um devir o um apoacutes o outro dos phainoacutemena Por isso o tempo poliacutetico comeccedila

na origem das relaccedilotildees que possibilitam a formaccedilatildeo das primeiras poacuteleis e explica como a

praacutexis poliacutetica efetiva veio a instaurar-se

A oposiccedilatildeo entre myacutethos como discurso inverificaacutevel e loacutegos como discurso

atestaacutevel eacute superada no emprego argumentativo do mito e na narraccedilatildeo bem exposta do

argumento Protaacutegoras demonstra causas na narraccedilatildeo do mito e expotildee um argumento em

forma narrativa (myacutethon leacutegōn epideiacutexō ḗ loacutegō diexelthōn)29

A polarizaccedilatildeo opotildee o tempo

absoluto dos deuses ao tempo pereciacutevel e relativo dos mortais Este uacuteltimo soacute encontra a

estabilidade propiciadora da significaccedilatildeo na imutabilidade paradigmaacutetica do primeiro O

26 Mircea Eliade enfoca em vaacuterias obras a homologia estrutural entre o espaccedilo coacutesmico primordial e o tempo

original templum-templus O tempo ab initio das origens coacutesmicas corresponde ao centro do mundo

primordial O nascimento do Koacutesmos eacute tambeacutem o ponto originaacuterio o marco e o princiacutepio do ser e do existir

(ELIADE 1965 p 66 ss) A abordagem simbolista fortemente antropoloacutegica de Eliade identifica o tempo e espaccedilo miacuteticos com a experiecircncia religiosa e com o sagrado por excelecircncia Na transposiccedilatildeo filosoacutefica

platocircnica o mito narrado por Protaacutegoras emprega o retorno agraves origens teacutecnica de evasatildeo do tempo atual para

fundar e conferir significaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de uma experiecircncia poliacutetica e teacutecnica proacutepria agrave democracia

ateniense 27 A cosmogonia eacute modelo exemplar para toda espeacutecie de fabricaccedilatildeo e construccedilatildeo Acrescentemos que a

cosmogonia comporta tambeacutem a fabricaccedilatildeo do tempo Mais ainda assim como a cosmogonia eacute o arqueacutetipo

de toda fabricaccedilatildeo o Tempo coacutesmico que a cosmogonia faz jorrar eacute o modelo exemplar de todos os tempos

ou seja dos Tempos especiacuteficos das diversas categorias existentes (ELIADE 1965 p 69) 28 Berti (1978 p 348) identifica a liberdade poliacutetica com a liberdade de pensamento e expressatildeo que os

atenienses chamavam o ldquoigual direito de fala na assembleacuteia puacuteblicardquo (isēgoriacutea) A liberdade da fala seria uma

decorrecircncia da igualdade dos cidadatildeos perante a lei e um dos aspectos essenciais da democracia ateniense conforme se depreende de Heroacutetodo As forccedilas atenienses cresciam continuamente Poder-se-ia provar de mil

maneiras que a igualdade entre os cidadatildeos e o governo eacute a mais vantajosa () (HEROacuteDOTE V LXXVIII

1850) Claude Mosseacute afirma que os fundamentos da democracia ateniense no seacuteculo V satildeo ldquoa igualdade de

todos perante a lei o direito de todos de tomar a palavra diante da assembleacuteia o que eacute traduzido nos dois

termos frequentemente empregados como sinocircnimo de democracia isonomia e isēgoriacutea (1995 p84) 29 A iniciaccedilatildeo agrave virtude protagoriana inicia-se como observa Beall (1991 p 368) com um mythos que possui

um papel uacutetil na argumentaccedilatildeo Platatildeo ao contraacuterio correlaciona a Filosofia com a passagem pela morte e

seus grandes mitos de julgamento aparecem quase sempre no final dos diaacutelogos

66

tempo-irreversiacutevel devir relativo dos mortais se define atraveacutes do seu correlativo oposto o

paradigma absoluto o tempo-reversiacutevel dos deuses eternos Toda cosmogonia pressupotildee o

referencial absoluto do tempo primordial e do centro coacutesmico (ELIADE 1977 p 29-30)

Quando eacute chegado o tempo fixado pela sorte do nascimento dos mortais os deuses

os modelam a partir da terra misturada ao fogo e de tudo o que se mistura ao fogo

Era um tempo em que os deuses jaacute existiam mas o gecircnero dos

mortais natildeo Quando chegou o tempo de sua gecircnese fixado pelo

destino os deuses os modelaram no interior da terra realizando

uma mistura de terra de fogo e tudo o que se mistura agrave terra Em

seguida quando veio o momento de os trazer para a luz eles

encarregaram Prometeu e Epimeteu de repartir as potecircncias em

cada um deles em boa ordem como conveacutem30

(Protaacutegoras 320d)

Os mortais todos os thnētoi satildeo modelagem divina a partir de princiacutepios fiacutesicos

primordiais mistura de fogo terra e tudo o que a ele se mistura A demiurgia divina se

inscreve na terra com esse fogo primordial compondo uma mistura Em sua gecircnese os

mortais satildeo compostos da mistura de elementos fiacutesicos e inteligecircncia divina na sua

modelagem O divino modela o inanimado mediante a liga primordial entre terra e fogo

movente Seguem-se a partir disso novas oposiccedilotildees terra inanimada e fogo elementos

fiacutesicos destituiacutedos de inteligecircncia e inteligecircncia demiuacutergica dos deuses31

30 Texto estabelecido por A Croiset Traduccedilatildeo de F Idelfonse 31 O esquema da gecircnese dos mortais esboccedilado no mito evoca o fragmento 62 DK de Empeacutedocles

67

Quando chega o momento de trazer os mortais agrave luz (phōs) e distribuir os lotes com

kosmiacutea dois intermediaacuterios polarizados se interpotildeem Prometeu e Epimeteu Os filhos de

Jaacutepeto personificam a previdecircncia luacutecida antecipaccedilatildeo temporal de conexotildees inevitaacuteveis e a

imprevidecircncia cega indeterminaccedilatildeo e desacerto do devir A astuacutecia fulgurante (aioloacutemētis)

se opotildee ao errocircneo pensar (hamartiacutenooacuten)32

O equiliacutebrio entre os opostos exige a

compensaccedilatildeo muacutetua (Feacutedon 71e) Todavia haacute uma inversatildeo de papeacuteis e Epimeteu

astuciosamente persuade a Prometeu para que imprevidentemente delegue toda a tarefa de

distribuiccedilatildeo das potecircncias ao seu duplo miacutetico A distribuiccedilatildeo equilibra potecircncias opostas

nos seres vivos de maneira a assegurar a sobrevivecircncia diante dos perigos muacutetuos e diante

dos perigos naturais Todos os gecircneros de seres equilibram-se e justificam-se em seu

existir A hamartiacutea erro faltoso de Epimeteu resulta em uma aporiacutea a situaccedilatildeo impediente

B 62 SIMPL Phys 381 29

[v1] [I 335 5 App]

[v5]

[I33510App]

SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 381 29

Agora vem e como de homens e mulheres

de muitos prantos

noturnos rebentos trouxe agrave luz separando-

se o fogo destes ouve pois natildeo eacute mito sem

alvo e sem ciecircncia Inteiriccedilos primeiro (os) tipos de terra surgiam

de ambos de aacutegua e de forma brilhante

tendo parte estes fogo faziam subir

querendo ao semelhante chegar

nem ainda de membros amaacutevel forma

mostrando (eles)

Nem voz nem (tal) qual o membro

proacuteprio dos homens

(2000 Trad Joseacute Cavalcante de Souza)

(Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics31-B acessso em 03032010)

Segundo Clemence Ramnoux as operaccedilotildees artesanais constituem o modelo para a criaccedilatildeo as teacutecnicas de

ldquofusatildeo dos metais da combinaccedilatildeo de cores as receitas de panificaccedilatildeordquo configuram as noccedilotildees de ingredientes de mistura de proporccedilatildeo nas misturas e do artesatildeo fabricador Assim como um pintor pode com poucas

cores representar diversas formas de coisas variegadas assim tambeacutem a natureza pode criar todos os seres

naturais com poucos elementos (LONG 1999 p 160) O fogo emerge saltando em direccedilatildeo do Fogo do

alto levando ldquopequenas massas plaacutesticas feitas de terra com uma parte de calor e um lote

umidade Segundo a leitura de Ramnoux este esquema segue o padratildeo 3 + 1 trecircs lotes e um artesatildeo

(1968 p 187 ss) No mito de Protaacutegoras haacute trecircs elementos (terra fogo e elementos que se misturam aos

precedentes) e os deuses como artesatildeos 32 HESIOacuteDO Teogonia 511

68

ameaccediladora o homem no momento mesmo de sair de dentro da terra para a luz estaacute

inteiramente desprovido de capacidades

Eacute estabelecimento fixado pelo destino a saiacuteda do homem do seio da terra para a luz

(exieacutenai ek gḗs eis phōs Protaacutegoras 321c06-07) A ambiguidade da passagem anuncia a

duplicidade do existir humano que pressupotildee a saiacuteda da obscuridade do interior da terra

para a luz No Craacutetilo a personagem de Soacutecrates identifica a claridade seacutelas com a luz

phōs e por essa razatildeo a luz da lua eacute ao mesmo tempo nova e antiga sua luminosidade eacute

ambiacutegua por refletir a luz do sol (409b) A liga divina de fogo que surge para a luz eacute

ambiacutegua pois o estado de carecircncia dos homens anuncia a cataacutestrofe de seu

desaparecimento

A passagem da obscuridade da terra para a luz concatena uma sequecircncia

paradigmaacutetica de imagens e sugere uma mutaccedilatildeo no regime do ser Haacute a transposiccedilatildeo do

natildeo-ser atemporal mediado por uma geraccedilatildeo modeladora ateacute o ser e o devir Essa

sequecircncia eacute exemplar e narra como o homem veio a ser e por essa razatildeo funda e norteia

todo fazer toda praacutexis e todas as instituiccedilotildees poliacuteticas e ciacutevicas Eacute porque o homem foi

gerado por deuses sobrenaturais que a suma de suas condutas e praacuteticas pertence a um

tempo primordial As praacuteticas e instituiccedilotildees possuem sua razatildeo de ser porque na aurora do

tempo humano houve uma sequecircncia primordial de geraccedilatildeo e gestaccedilatildeo A modelagem

primordial constitui um modelo exemplar para todo fazer e toda fabricaccedilatildeo que remetem agraves

gestas operadas pelos deuses para a engendraccedilatildeo do koacutesmos e dos mortais A cosmogonia

primeva representa uma sequecircncia de imagens que configuram a passagem do khaacuteos

tenebroso matriz e Noite para a luz coacutesmica ou a passagem daquilo que natildeo existe o natildeo-

ser para o ser (ELIADE 1959 p 12-21)

69

Quando se trata de iniciar um neoacutefito na praacutexis poliacutetica o mito de emersatildeo e a

antropogonia do seio da terra re-atualiza o itineraacuterio complexo de accedilotildees que configuram a

passagem da obscuridade para a luz do sol A narrativa da criaccedilatildeo dos homens justifica o

ritual de refazer formar de criar uma nova situaccedilatildeo espiritual ou psiacutequica (ELIADE

1957 p 200) As imagens de uma iniciaccedilatildeo apontam para um novo iniacutecio mediante o qual

se anuncia a molda de um modo de ser superior da indistinccedilatildeo desordenada Nas imagens

antropogocircnicas o homem eacute modelado ele natildeo se faz a si mesmo Na origem do tempo

cronoloacutegico haacute uma accedilatildeo demiuacutergica que inscreve ordem em princiacutepios desordenados e

misturados accedilatildeo por conseguinte divina e produto de potecircncias invisiacuteveis Por outro lado

a iniciaccedilatildeo de um neoacutefito pressupotildee uma transmissatildeo operada por mestres de sabedoria

que se vincula e remonta a uma longa cadeia da tradiccedilatildeo ancestral Essa tradiccedilatildeo consolida-

se atraveacutes da transmissatildeo ritual que prepara o neoacutefito para um novo modo de ser mediante a

repeticcedilatildeo de gestas e imagens pertencentes a um cenaacuterio que natildeo pode ser descrito mas

somente narrado e dramatizado (ELIADE 1959 p 20)

O embate de Soacutecrates com o mestre de sabedoria Protaacutegoras dramatiza modos

concorrentes de interpretar e re-significar um acervo de saberes potecircncias crenccedilas afetos e

imagens religiosas em uma transposiccedilatildeo determinante para a mentalidade de um novo

gecircnero de vida e um novo tipo de homem Com isso Platatildeo coloca em questatildeo e em

combate singular transposiccedilotildees antagocircnicas de paideiacutea e paradigmas eacutetico-poliacuteticos para o

novo homem

Protaacutegoras transpotildee as iniciaccedilotildees e oraacuteculos das seitas de misteacuterio praticadas por

Orfeu e Museu para a atividade sofiacutestica33

(Protaacutegoras 316d08) A passagem da noite

trevosa para a luz do sol imagem da emergecircncia para um novo plano de ser eacute doravante

33

70

associada aos mestres de sabedoria cuja aparecircncia ocultava a verdadeira natureza do seu

saber e do seu poder Todas as modalidades de iniciaccedilotildees que conferem a possibilidade de

ascensatildeo aos planos superiores de humanidade satildeo no fim iniciaccedilotildees sofiacutesticas O mito de

retorno agraves origens eacute a fala razoaacutevel que consolida este postulado

A terra gḗ identifica-se com o uacutetero feminino e a gestaccedilatildeo gaicirca seria o nome

correto para geratriz gennḗteira e derivaria de gegennḗsthai ser engendrado (Craacutetilo

410c) A terra eacute matriz paradigmaacutetica para a gestaccedilatildeo e o nascimento

Ora eacute pela terra mais que pela mulher que eacute preciso receber tais

provas pois natildeo eacute a terra que imitou a mulher na concepccedilatildeo e na

gestaccedilatildeo mas eacute a mulher que imitou a terra

(Menexeno 238a 03-05)

A operaccedilatildeo fundidora do fogo com a terra expressa uma relaccedilatildeo solidaacuteria entre a

gestaccedilatildeo e o nascimento a partir da matildee terra e a metalurgia A gestaccedilatildeo ctocircnica constitui o

ato exemplar para a gestaccedilatildeo humana conjugaccedilatildeo solidaacuteria entre a moldagem metaluacutergica e

a sexualidade34

e nesse sentido a antropogonia se conjuga a uma ontogenia (ELIADE

1977 p 30)

Para assegurar a fusatildeo mediante o fogo primordial eacute preciso a intervenccedilatildeo do

artiacutefice vivo a forja dos homens pelo fogo eacute animada pelos deuses Mas as suas potecircncias

advecircm de mediadores que delimitam planos de ser distintos

A imprevidecircncia de Epimeteu suscita a aporiacutea impediente os homens estatildeo

desguarnecidos e desadornados diante do equiliacutebrio kosmeacutetico dos animais sem fala A

distribuiccedilatildeo das potecircncias aos mortais implica a sua determinaccedilatildeo O homem ao contraacuterio

34 Na menccedilatildeo de Simpliacutecio a Empeacutedocles (DK 71) haacute accedilatildeo artesanal operada por Afrodite que se assemelha agrave

de um pintor que mistura cores Terra aacutegua eacuteter e sol satildeo harmonizados numa mistura amorosa da qual

surgem as formas e as cores dos mortais As noccedilotildees de operaccedilatildeo mistura e harmonizaccedilatildeo se conjugam agrave

noccedilatildeo de forma visiacutevel como produto da accedilatildeo artesanal de Afrodite (RAMNOUX 1968 p 188-189) A

conotaccedilatildeo sexual eacute assimilada agrave operaccedilatildeo artiacutestica de mistura e produccedilatildeo de cores e formas visiacuteveis

Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics31-B

71

ndash desprovido de todas as potecircncias ndash eacute indeterminado Para compensar a falta desmedida

de Epimeteu eacute preciso um expediente ao mesmo tempo astucioso e sobrenatural Prometeu

natildeo tendo qualquer salvaccedilatildeo para os homens recorre ao instrumento divino do engenho

mecacircnico e furta o saber teacutecnico e o fogo de Hefestos e Athena35

Hefestos eacute o mestre do fogo e da luz (phaacuteeos hiacutestōr) o Brilhante (Phaicircstos) e

Athena eacute a inteligecircncia divina (Hatheonoacutea) a que tem inteligecircncia das coisas divinas (tagrave

theicirca nooucircsa)36

O domiacutenio do fogo evoca natildeo somente as imagens ligadas agrave inteligecircncia

teacutecnica mas indica a determinaccedilatildeo de um estatuto superior do ser que comporta um

aspecto maacutegico ou sobrenatural intriacutenseco a toda atividade fabricadora O ferreiro divino

portador do fogo aperfeiccediloa a obra dos deuses a organizaccedilatildeo do Koacutesmos e confere ao

homem a inteligecircncia que o distinguiraacute dos animais sem fala e a capacidade de apreender a

ordem coacutesmica (ELIADE 1977 p 65ss)

Prometeu sem ser visto entra oculto (lathōn eiseacuterkhethai) nas oficinas celestes

rouba o fogo e o presenteia aos homens Com isso mediante o saber portado pelo fogo os

homens adquirem as teacutecnicas e os meios para a manutenccedilatildeo da vida e para a proteccedilatildeo

contra as intempeacuteries naturais Se a dimensatildeo demiuacutergica permitiu ao homem superar sua

falta de determinaccedilotildees foi somente mediante as teacutecnicas que o homem descobriu a

possibilidade de agir livremente A eleutheria natildeo eacute um presente dos deuses (Protaacutegoras

312b) O homem soacute pode agir livremente pela capacidade antecipatoacuteria e valorativa

propiciada pelo caacutelculo do mais vantajoso e isso soacute ocorre porque ab initio ele eacute desprovido

de determinaccedilotildees no seu agir Ao contraacuterio dos animais cujo agir eacute preacute-determinado do

35

(Protaacutegoras 321c08-d01) 36 Craacutetilo 407b-c

72

nascimento ateacute a morte o homem eacute essencialmente indeterminado (GALIMBERTI 2009

p 2)

As artes suscitam ainda a demarcaccedilatildeo entre o estatuto divino e humano cuja

natureza ambiacutegua participa ao mesmo tempo do divino e do mortal37

O lote de participaccedilatildeo

e parentesco divino justifica a instauraccedilatildeo miacutetica do sacrifiacutecio e do culto aos deuses

mediante as estaacutetuas oferendas imageacuteticas de joalheria e elevaccedilatildeo de templos O lote de

participaccedilatildeo nos seres mortais determina a especificidade do uacutenico dos vivos zdōion que

pode nomear os deuses pela fala regrada

O esquema causal se esboccedila no mito de Protaacutegoras i) uma falta original a

imprevidecircncia de Epimeteu suscita uma situaccedilatildeo impediente ii) o quadro problemaacutetico

exige a busca da causa e o diagnoacutestico eacute feito por Prometeu iii) o mediador divino

mediante astuacutecia dolosa busca o expediente sobrenatural do fogo iv) o meio astucioso

teacutecnico eacute empregado e a cataacutestrofe remediada por um presente v) um novo estatuto eacute

determinado mas o dolo usurpador reclama nova retribuiccedilatildeo

Embora o saber teacutecnico salvaguarde a equipagem para a sobrevivecircncia natural os

homens natildeo obstante natildeo possuem o saber poliacutetico e a arte da guerra que participa da

poliacutetica Por essa razatildeo incapazes de dominar os instrumentos da guerra sucumbem diante

da forccedila dos animais e procuram agrupar-se em cidades para garantir a seguranccedila muacutetua

Todavia mostram-se igualmente destituiacutedos da philiacutea e acabam por cometer injusticcedilas

destruindo-se mutuamente A carecircncia da arte poliacutetica implica a incapacidade de seguranccedila

e salvaguarda da justiccedila necessaacuterias para a formaccedilatildeo de comunidades e cidades

37

(Protaacutegoras 322a04-08)

73

Todo presente exige o contra-presente a justa compensaccedilatildeo Em Hesiacuteodo o mito de

Prometeu esboccedila a narrativa na qual simultaneamente ocorre a separaccedilatildeo entre plano dos

deuses e o plano dos homens mortais mas tambeacutem entre o masculino e o feminino O

mito de Prometeu eacute tambeacutem o mito da primeira mulher Dom de todos os deuses artefato

moldado e adornado pela inteligecircncia oliacutempica Pandora eacute a contrapartida para a vida e o

fogo biacuteos e pyacuter Anti-pyacuter o contra-presente de Zeus instaura o poacutelo de um novo geacutenos o

feminino que demarca a ambiguidade humana Ao saber teacutecnico previdente e antecipatoacuterio

se contrapotildee a indefiniccedilatildeo dos males indefectiacuteveis e a espera indistinta de elpiacutes a

expectaccedilatildeo exclusivamente humana do bem indeterminado e natildeo dataacutevel38

(VERNANT

2005) Em Pandora equilibram-se o apelo irresistiacutevel do encanto da forma de virgem e da

graccedila determinaccedilotildees essenciais de Afrodite e Athena e a mentira conduta dissimulada e

olhar obliacutequo e traiccediloeiro do catildeo instilados por Hermes (HESIacuteODO 2006 v 59-85)

Mas no mito de Protaacutegoras se haacute uma polarizaccedilatildeo entre Hefestos e Athena opostos

divinos de saber e metalurgia teacutecnicas natildeo haacute por outro lado nenhuma menccedilatildeo a um

paacuterthenos o feminino no plano dos homens Por que Protaacutegoras rompe com a simetria de

contrapartidas da tradiccedilatildeo miacutetica Qual eacute a justa retribuiccedilatildeo para o dolo astucioso de

Prometeu O que estabelece definitivamente a natureza humana apoacutes a instrumentaccedilatildeo do

saber teacutecnico que simultaneamente distingue os homens dos animais e define a separaccedilatildeo

entre o plano dos deuses e o plano dos mortais Hermes mensageiro e arauto divino natildeo

retribui a fraude de ocultaccedilatildeo de Prometeu com a graccedila visiacutevel da mulher e com a

ambivalecircncia da mistura de bens males e incertezas caracteriacutesticos do biacuteos Em vez disso

opera a passagem para um novo plano de mediaccedilotildees

38 Beall (1991 p 367) conecta Elpiacutes com o auto-engano que nega a presenccedila visiacutevel dos males

74

O domiacutenio do fogo as artes metaluacutergicas e demiuacutergicas propiciadas pelo saber

teacutecnico natildeo encontram equivalentes simeacutetricos no plano da natureza Em vez do contra-

presente que estabelece o equiliacutebrio Protaacutegoras amplia a estrutura da narrativa para fundar

no registro da encantaccedilatildeo e do referencial absoluto das origens primordiais um novo plano

que se opotildee agrave natureza a poliacutetica Uma nova sequecircncia de accedilotildees emerge i) a injusticcedila

dolosa decorrente da carecircncia da arte poliacutetica anuncia uma situaccedilatildeo calamitosa ii) a

destruiccedilatildeo suscita a busca das causas e o diagnoacutestico iii) o mensageiro sobrenatural se vale

dos meios divinos astuciosamente forjados iv) os artifiacutecios divinos remediam a situaccedilatildeo

problemaacutetica v) os dolos subsequentes satildeo retribuiacutedos com a lei infaliacutevel de Zeus

Qual eacute a nova compensaccedilatildeo para o roubo oculto de Prometeu Pandora personifica a

ambiguidade feminina da natureza humana numa obra de arte divina concebida para ser

irresistiacutevel ao olhar Ao presente propiciado pela fraude oculta se contrapotildee o presente

concebido para ser visto como bem irresistiacutevel mas que esconde males invisiacuteveis No novo

plano de ser inaugurado por Protaacutegoras agrave fraude oculta se contrapotildee o par de presentes

essencialmente ligados ao olhar de todos aidōs e diacutekē

As accedilotildees de Zeus natildeo se desenrolam num combate singular de astuacutecias retribuiccedilatildeo

da hyacutebris desmedida O temor (deiacutedō) oliacutempico expressa a necessidade de manutenccedilatildeo da

ordem e simetria naturais e justifica a instauraccedilatildeo das condiccedilotildees primordiais para a

existecircncia da comunidade poliacutetica e de seus princiacutepios de determinaccedilatildeo

A sequecircncia de poacutelos opostos eacute homoacuteloga agrave sequecircncia de imagens do mito que

esboccedilam a natureza ontoloacutegica determinante do existir ndash ser ndash dos deuses e o natildeo-ser dos

mortais no princiacutepio os deuses eram e os mortais natildeo Ao par primordial corresponde uma

atividade mediadora que engendra novo par os deuses inscrevem inteligecircncia demiuacutergica

nos elementos primordiais inanimados terra elementos intermediaacuterios para a liga e fogo A

75

passagem do natildeo-ser para o ser eacute homoacuteloga agrave passagem do interior da terra para a luz do

sol imagem paradigmaacutetica da iniciaccedilatildeo

Surge assim a polarizaccedilatildeo entre inteligecircncia divina animada e elementos

inanimados destituiacutedos de inteligecircncia A mistura engendra a polarizaccedilatildeo entre deuses

imortais e seres mortais e instaura a separaccedilatildeo entre o tempo dos deuses e o tempo dos

mortais O regramento ordenado pressupotildee a distribuiccedilatildeo coacutesmica de potecircncias operada por

intermediaacuterios opostos divinos Prometeu e Epimeteu A imprevidecircncia e incapacidade de

antecipaccedilatildeo temporal de Epimeteu se opotildeem agrave astuacutecia engenhosa e antecipatoacuteria de

Prometeu A distribuiccedilatildeo desmedida das potecircncias aos animais salvaguarda a vida natural

mas determina a carecircncia completa de potecircncias para o homem

O estatuto humano estaacute sem lugar na oposiccedilatildeo entre imortais e mortais e a

determinaccedilatildeo exige a intervenccedilatildeo do fogo instrumento astuciosa e ocultamente

intermediado por Prometeu O estatuto humano implica a passagem da obscuridade da terra

para a luz fixada pela necessidade do destino O fogo teacutecnico dolosamente artificiado

permite o acabamento da iniciaccedilatildeo primordial que engendra o ser do homem e compensa a

sua impotecircncia original mas se opotildee ao fogo das forjas oliacutempicas Haacute entatildeo a oposiccedilatildeo

entre uma demiurgia divina que inscreve inteligecircncia no desregramento inanimado e a

demiurgia teacutecnica humana cuja funccedilatildeo eacute instrumental e mediatizada Enquanto a demiurgia

divina cumpre a finalizaccedilatildeo de determinaccedilotildees temporais absolutas a demiurgia humana

instrumentaliza recursos na indeterminaccedilatildeo da temporalidade do devir Ambas operam

iniciaccedilotildees opostas a iniciaccedilatildeo divina traz o homem agrave existecircncia pela saiacuteda do seio escuro

da terra para a luz a iniciaccedilatildeo nas artes humanas retira o homem da ignoracircncia trevosa dos

animais instaura seu parentesco com o plano dos deuses e demarca suficientemente

76

(hikanoacutes) a separaccedilatildeo entre o detentor do saber e os profanos os idioacutetai (Protaacutegoras

322c07)

A demiurgia humana e o domiacutenio do fogo definem o estatuto intermediaacuterio dos

homens diante dos deuses e animais A natureza do homem participa ao mesmo tempo do

divino e do mortal As teacutecnicas instauram as relaccedilotildees entre os planos e inauguram o culto o

sacrifiacutecio e os artefatos que definem os opostos entre visiacutevel e invisiacutevel As estaacutetuas

aacutegalmata e templos delimitam no plano visiacutevel a homologia estrutural entre o sagrado e o

profano o tempo dos deuses e devir dos mortais a presenccedila visiacutevel da imagem do deus

invisiacutevel e o reconhecimento invisiacutevel da inteligecircncia do deus presente

Entretanto ponte de mediaccedilatildeo entre o humano e o divino a inteligecircncia teacutecnica natildeo

salvaguarda a vida da violecircncia dos animais e da injusticcedila humana Intermediaacuterio entre

poacutelos opostos o plano dos homens requer para o seu perfeito acabamento a intervenccedilatildeo

dos princiacutepios divinos providenciados por novo mensageiro mediador Para compensar a

distribuiccedilatildeo fraudulenta oculta e desigual da participaccedilatildeo no saber teacutecnico Hermes com

equidade reparte abertamente aidōs e diacutekē entre os homens e arauto dos deuses proclama

em nome de Zeus suprema lei a de levar agrave morte como praga da cidade aquele que natildeo

tiver a potecircncia de participar de aidōs e diacutekē

O par aidōs e diacutekē natildeo constitui somente princiacutepio de possibilidade da comunidade

poliacutetica e existir das poacuteleis Ele eacute o contra-presente que compensa o furto e o dolo eacute a

contrapartida visiacutevel para a astuacutecia invisiacutevel Mas se Pandora eacute a personificaccedilatildeo

ambivalente do bem irresistiacutevel da graccedila divina visiacutevel e dos males indeterminados

invisiacuteveis qual deve ser a ocultaccedilatildeo sob o bem aparente de aidōs e diacutekē Se Pandora eacute

essencialmente modelagem de opostos visiacuteveis e invisiacuteveis qual eacute a oposiccedilatildeo essencial

subjacente a aidōs e diacutekē

77

Luc Brisson (2003 p 141-166) seguindo a majestosa esteira de Georges Dumeacutezil

desenvolve no mito encenado pela personagem platocircnica de Protaacutegoras uma interpretaccedilatildeo

de tonalidade positivista calcada numa estrutura tri-funcional A partir dos dois eixos

basilares da natureza e cultura Brisson distingue pares de opostos nos eixos seguranccedila

equipamentos e alimentaccedilatildeo As trecircs oposiccedilotildees fundamentais seriam deusesmortais

homensanimais teacutecnica demiuacutergicateacutecnica poliacutetica

I ndash Oposiccedilatildeo deuses mortais ndash Desse poacutelo derivam seres com existecircncia

independente e natildeo derivada seres com existecircncia dependente e derivada Satildeo enviados

delegados para distribuir poderes e terminar a organizaccedilatildeo Haacute uma triparticcedilatildeo divina Zeus

(soberania arte poliacutetica) Hefesto e Atena (detentores da arte do fogo e outras artes) A

triparticcedilatildeo relaciona-se com uma triparticcedilatildeo espacial Olimpoacroacutepolepeacute da elevaccedilatildeo Os

mortais devem sua existecircncia aos deuses

2 ndash Oposiccedilatildeo homens animais ndash O mundo dos animais eacute o reverso do mundo dos

homens animais desprovidos de razatildeo homens racionais que devem viver na cidade

determinismo sabedoria praacutetica O mundo dos animais implica um equiliacutebrio fechado e

suas necessidades satildeo satisfeitas o determinismo substitui a razatildeo Os homens

caracterizam-se pela condiccedilatildeo precaacuteria e vulnerabilidade que implica a indeterminaccedilatildeo das

necessidades Haacute a exigecircncia de mediaccedilatildeo do saber teacutecnico e da razatildeo A sobrevivecircncia

exige o domiacutenio da teacutecnica poliacutetica e da teacutecnica militar o que implica o uso irrestrito da

teacutecnica demiuacutergica O plano do possiacutevel compensa a carecircncia do plano do que eacute

determinado A razatildeo supera o determinismo

78

3 ndash Oposiccedilatildeo teacutecnica demiuacutergica teacutecnica poliacutetica -

Deste poacutelo surge a analogia fundamental modeterminis

razatildeo

animais

homens O saber

teacutecnico implica a oposiccedilatildeo demiurgiapoliacutetica O mundo dos deuses eacute tripartite e dele deriva

um reflexo funcional na cidade A cidade pressupotildee a poliacutetica que inclui a arte militar A

cidade exige o setor produtivo que abarca demiurgia e agricultura As necessidades

humanas satildeo tambeacutem tripartites seguranccedila equipamentos alimentaccedilatildeo As necessidades

humanas satildeo mediadas pelas teacutecnicas que garantem os trecircs planos A seguranccedila eacute absorvida

na Poliacutetica (guardas de Zeus) A funccedilatildeo produtiva se assimila agrave demiurgia A triparticcedilatildeo eacute

reduzida agrave oposiccedilatildeo demiurgiapoliacutetica e eacute sustentada pelos mediadores de Zeus Prometeu

(demiurgia) e Hermes (poliacutetica) O fogo simboliza a arte demiuacutergica e estabelece um

parentesco com o divino atraveacutes do culto uso do fogo sacrifical e a relaccedilatildeo entre o humano

e o divino A demiurgia implica especializaccedilatildeo de funccedilotildees e a divisatildeo do trabalho A

divisatildeo por sua vez acarreta a incapacidade de vida comunitaacuteria e a dispersatildeo Por isso

Zeus envia Hermes para levar aidōs e diacutekē (pudor e justiccedila) que se opotildeem agrave potecircncia

demiuacutergica a integraccedilatildeo se opotildee agrave divisatildeo A fundamentaccedilatildeo da existecircncia poliacutetica da

cidade depende da integraccedilatildeo entre todos Aidōs e diacutekē satildeo distribuiacutedos por Hermes de igual

maneira entre todos ao passo que a demiurgia representa um saber teacutecnico que cabe a

pequeno nuacutemero de especialistas Quem natildeo participar das duas virtudes deve ser excluiacutedo

e punido como se fosse uma doenccedila As relaccedilotildees cultuais estabelecem uma uniatildeo entre os

homens e os deuses mas estas natildeo satildeo suficientes para a uniatildeo dos homens entre si O fogo

teacutecnico eacute fator de divisatildeo e natildeo de uniatildeo A justiccedila no sentido largo para o cumprimento

das regras exige um sentimento iacutentimo de contenccedilatildeo que leva em conta a opiniatildeo do outro e

que confere vida ao direito Enquanto a demiurgia abarca a necessidade de equipamentos e

79

alimentaccedilatildeo a poliacutetica institui laccedilos de uniatildeo e seguranccedila Segundo Brisson o mito do

Protaacutegoras representa o surgimento da cidade e funda sua divisatildeo fundamental a partir da

oposiccedilatildeo demiurgia poliacutetica Tal divisatildeo eacute descrita como natural e espelha a oposiccedilatildeo

Natureza Cultura

Deuses

Mortais Homens

Animais Teacutecnicas militar e poliacutetica

Demiurgia

As oposiccedilotildees destacadas por Brisson embora esclarecedoras parecem

condicionadas agrave concepccedilatildeo positiva do Direito elaborada por Louis Gernet

Diacutekē eacute a justiccedila tal qual ela se manifesta antes de tudo no

julgamento ndash e por conseguinte na condenaccedilatildeo na execuccedilatildeo ndash e

tambeacutem por referecircncia impliacutecita e expliacutecita a um outro termo algo

como o jus strictum () Pode-se dizer que (aidoacutes) designa um

sentimento de respeito ou de moderaccedilatildeo que se aproxima pelo

menos da reverecircncia religiosa ndash que de fato pode ter por objeto a

divindade ndash mas vale essencialmente na ordem das relaccedilotildees

humanas onde ele comanda certas abstenccedilotildees ou certas atitudes

diante de um parente de um ser eminente em dignidade de um

suplicante sentimento social e moral jaacute que aidoacutes eacute

simultaneamente zelosa com a opiniatildeo puacuteblica da qual ela aparece

muitas vezes como a contrapartida e preocupada em um sentido de

bom grado aristocraacutetico com o que o sujeito deve a si mesmo

(GERNET 1982 p 14-15)

Em contrapartida ao aspecto afetivo que emana da opiniatildeo coletiva Walter Otto

realccedila a interpretaccedilatildeo de que originariamente Aidoacutes natildeo designa ldquoa vergonha de algo que

faz enrubescer mas a apreensatildeo sagrada face ao intocaacutevel a delicadeza do coraccedilatildeo e do

espiacuterito as consideraccedilotildees o respeito e na vida sexual o silecircncio e a vida da virgemrdquo

(1995 p 81) Todas as acepccedilotildees de Aidoacutes seriam abarcadas pelo charme ambivalente da

80

figura divina que eacute ao mesmo tempo respeitaacutevel e respeitoso puro e a piedosa apreensatildeo

diante daquilo que eacute puro

Derivado de aiacutedomai (que indica o respeito a um deus e laiciza-se no emprego

juriacutedico do perdatildeo ao assassiacutenio involuntaacuterio) Aidoacutes significa o sentimento de honra e

neacutemesis o temor da infacircmia de outro raramente no sentido ativo de tiacutemido e taacute aidoicirca que

designa as partes vergonhosas De Aidoacutes foi tirado 1) aidoicircos ndash divindades ou pessoas

respeitaacuteveis e 2) o composto anaidḗs impudecircncia (CHANTRAINE 1999 p 31) A palavra

aidoicirca originalmente designativa da genitaacutelia origina a palavra que designa a vergonha A

experiecircncia baacutesica da vergonha segundo B Williams (1993 p 78-80) eacute a ldquode ser visto

inapropriadamente pelas pessoas erradas na condiccedilatildeo erradardquo Tal experiecircncia eacute

diretamente conectada com a nudez sobretudo em conexotildees sexuais O afeto que decorre

da inadequaccedilatildeo decorrente da violaccedilatildeo da intimidade suscita reaccedilotildees imediatas de

evitamento Evitar a experiecircncia intoleraacutevel da vergonha serve para um propoacutesito antecipar

o afeto que se padeceria sob a exposiccedilatildeo ao olhar alheio A violaccedilatildeo de aidoacutes implica o par

reflexivo de neacutemesis uma reaccedilatildeo que varia do choque do ressentimento ateacute a justa

indignaccedilatildeo A vergonha pode ser antecipatoacuteria de uma exposiccedilatildeo possiacutevel prospectiva ou

derivada da exposiccedilatildeo irreversiacutevel agrave humilhaccedilatildeo retrospectiva

Por outro lado se o enfoque de Otto que vincula Aidoacutes ao temor reverente estiver

correto o emprego poliacutetico no contexto do Protaacutegoras indica uma transposiccedilatildeo semacircntica

para um afeto dependente sobretudo do olhar coletivo ainda que seja sancionada pelo

respeito devido a uma phḗmē declaraccedilatildeo divina de Zeus A mutaccedilatildeo da acepccedilatildeo do termo

indica a passagem de um temor religioso exteriorizado para uma vergonha interiorizada

resultante da coerccedilatildeo da opiniatildeo coletiva

81

A leitura que Brisson faz do mito tem como corolaacuterio o reconhecimento de que a

Poliacutetica eacute natildeo somente uma teacutecnica superior mas ldquoa uacutenica que eacute outorgada pelos deuses e a

uacutenica teacutecnica positiva o que implica que o ensino desta teacutecnica seja ao mesmo tempo o

mais elevado e o uacutenico positivordquo O que transpareceria insoacutelito em Platatildeo seria o fato de ele

ldquonatildeo dar nenhuma atenccedilatildeo agraves virtudes que o indiviacuteduo enquanto indiviacuteduo deve praticar

Soacute contam para ele as virtudes cujo exerciacutecio deve permitir a um indiviacuteduo encontrar seu

lugar numa sociedade harmoniosa onde natildeo interveacutem nenhuma mudanccedilardquo (2003 p 166)

Entretanto como observa Leacutevi-Strauss a maior oposiccedilatildeo que se observa em

estruturas miacuteticas ocorre no plano cosmoloacutegico que expressa a transcendecircncia insuperaacutevel

de uma realidade em relaccedilatildeo ao mundo percebido (1993 p 152-205) A antropogonia de

Protaacutegoras eacute tambeacutem uma cosmologia cuja funccedilatildeo mais marcante eacute da ordem de algo que

vem a ser

Ao se colocar como mestre de excelecircncia poliacutetica que se diferencia dos demais que

ensinam disciplinas teacutecnicas comuns como caacutelculo astronomia e muacutesica Protaacutegoras

afirma o itineraacuterio de uma nova modalidade de iniciaccedilatildeo quem recebe suas liccedilotildees torna-se

melhor a cada dia e sempre recebe acreacutescimos em direccedilatildeo ao melhor (aeigrave epigrave tograve beacuteltion

epididoacutenai 318a) Protaacutegoras transpotildee as antigas iniciaccedilotildees de Orfeu e Museu para o

itineraacuterio ritual de progredir em direccedilatildeo ao melhor e adquirir um novo estatuto de ser A

finalidade de suas liccedilotildees eacute desenvolver os dons naturais de que todos participam e levaacute-los

ao melhor acabamento criando um gecircnero superior de homem num novo plano de ser

Assim como os ritos das teletaiacute operam a repeticcedilatildeo coacutesmica dos atos primordiais e um

retorno vivido agraves origens constitutivas da realidade presente assim tambeacutem o rito do seu

ensino reproduz a estrutura de imagens de seu mito Protaacutegoras aparece como o novo

mensageiro divino o portador do fogo ou o arauto que eacute depositaacuterio dos instrumentos

82

oliacutempicos salvaguardas para a vida e condiccedilatildeo de organizaccedilatildeo da cidade Protaacutegoras eacute um

novo Hermes e seu ensino eacute ferramenta divina que eleva o homem e o aproxima do plano

dos deuses imortais Mas para isso eacute preciso aperfeiccediloar-se no exerciacutecio de sua proacutepria

concepccedilatildeo de aidōs e diacutekē

Quais satildeo as polarizaccedilotildees condensadas no par miacutetico aidōs e diacutekē Ambos satildeo

determinaccedilotildees de Zeus personificaccedilatildeo da soberania acompanhadas por lei suprema

inexoraacutevel Aleacutem disso satildeo os constituintes primordiais que possibilitam a existecircncia das

comunidades poliacuteticas Mas assim como Pandora compotildee modelaccedilatildeo de opostos do

visiacutevel bem aparente e dos males invisiacuteveis ocultos da determinaccedilatildeo maacutexima da forma de

virgem e da indeterminaccedilatildeo imprevisiacutevel aidōs e diacutekē devem representar compensaccedilatildeo

simeacutetrica para a potecircncia piacuterica da demiurgia

Quais satildeo as caracteriacutesticas intriacutensecas agraves teacutekhnai Na delineaccedilatildeo das imagens do

mito as teacutekhnai surgem como resultado da potecircncia demiuacutergica aportada pelo fogo Elas

satildeo o resultado de um dolo oculto da accedilatildeo fraudulenta impermeaacutevel ao olhar Aleacutem disso

caracterizam-se pela participaccedilatildeo desigual dos homens Sua reparticcedilatildeo foi feita de modo

que um uacutenico homem que possui a arte da medicina eacute suficiente para um grande nuacutemero de

profanos39

Haacute pois uma relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que confere o saber teacutecnico40

Eacute por

participar do saber teacutecnico e pelo domiacutenio do fogo que cada demiurgo pode iniciar-se em

sua especificidade que o distingue dos profanos idioacutetais A participaccedilatildeo desigual engendra

39

(Protaacutegoras 322c06-07) 40 Karl Reinhardt (2007 p 51 52) chama a atenccedilatildeo para o fato de que o mito narrado por Protaacutegoras suscita o

gosto a delicadeza o divertimento mas natildeo faz nenhuma menccedilatildeo ao tema da alma A diferenccedila entre um

mito narrado por um Sofista e o mito filosoacutefico reside nessa negaccedilatildeo da alma e do delineamento negativo que

Platatildeo esboccedila da figura do Sofista Para que Platatildeo consignasse ldquoseu coraccedilatildeordquo a um mito ldquoseria necessaacuteria

uma conversatildeo uma transformaccedilatildeo de sirdquo Contudo o que Reinhardt chama de ldquoconversatildeordquo estaacute jaacute ingresso

na oposiccedilatildeo entre a concepccedilatildeo protagoriana de teacutekhne ndash e sua correspondente iniciaccedilatildeo demiuacutergica ndash e a

iniciaccedilatildeo ao Ser poliacutetico

83

os opostos dēmiourgoi e idioacutetais que reproduzem no plano do devir as oposiccedilotildees

cosmoloacutegicas entre deuses e mortais sagrado e profano inteligecircncia e ausecircncia de

inteligecircncia Aleacutem disso as teacutecnicas instrumentalizam a violecircncia e a morte Depois do

domiacutenio do fogo os homens puderam forjar instrumentos para a caccedila mas tambeacutem

passaram a destruir-se mutuamente

Agrave participaccedilatildeo desigual na potecircncia das artes Hermes distribui de maneira

equacircnime aidōs e diacutekē como potecircncias definidoras do estatuto humano Todo aquele que

natildeo puder participar delas deve ser morto como peste A natildeo participaccedilatildeo no par de

potecircncias implica a exclusatildeo da determinaccedilatildeo essencial para a formaccedilatildeo das cidades e por

conseguinte da proacutepria humanidade como um todo A ausecircncia de aidōs e diacutekē representa a

desumanizaccedilatildeo a perda da determinaccedilatildeo essencial que torna possiacutevel que os homens

convivam sem se destruiacuterem mutuamente Mais do que mera forccedila de integraccedilatildeo como

afirma Brisson aidōs e diacutekē determinam a existecircncia do homem como ser poliacutetico e por

conseguinte da existecircncia da humanidade toda Ademais Hermes distribui as potecircncias

determinantes com a sanccedilatildeo aberta de Zeus em oposiccedilatildeo ao furto oculto de Prometeu A

participaccedilatildeo nessas potecircncias essenciais implica por consequecircncia a exposiccedilatildeo ao olhar

coletivo Agrave inteligecircncia teacutecnica fraudulenta e oculta que resulta na destruiccedilatildeo de todos por

todos se opotildee a participaccedilatildeo essencial em aidōs e diacutekē que pressupotildee o olhar de todos

sobre todos Desse modo pode-se destacar a oposiccedilatildeo entre aquilo que eacute recocircndito ao olhar

e aquilo que exige o olhar de todos sobre todos A ocultaccedilatildeo ao olhar acarreta a destruiccedilatildeo

muacutetua Os homens cometiam injusticcedilas uns aos outros por natildeo possuiacuterem a teacutekhnē poliacutetica

cuja ausecircncia configura um quadro de violecircncia muacutetua (ēdiacutekoun allḗlous haacutete ouk eacutekhontes

tḗn politikḗn teacutekhnēn 322b08) O olhar de todos sobre todos acarreta a renuacutencia ou

impedimento ao uso da violecircncia Ao oacutedio oculto se opotildee a philiacutea manifesta

84

A existecircncia da coletividade humana depende da associaccedilatildeo propiciada pela philiacutea e

da capacidade de cooperaccedilatildeo organizada O plano humano abarca duas estruturas coletivas

que se desdobram em dois mundos o do interior da cidade e o do exterior o mundo da

philiacutea e o mundo da morte (BURKERT 2005 p 31)

Mas quais satildeo as determinaccedilotildees mais distintivas de aidōs e diacutekē41

Em primeiro

lugar assim como a participaccedilatildeo na sabedoria teacutecnica e o domiacutenio do fogo constituem

potecircncias essenciais para a existecircncia do gecircnero humano o par de opostos compensatoacuterios

instituiacutedo por Zeus constitui condiccedilotildees de determinaccedilatildeo da existecircncia dos homens em

conviacutevio nas poacuteleis Tais determinaccedilotildees se opotildeem agraves demais teacutekhnai pela igualdade

participativa e pela abertura ao olhar coletivo Elas abarcam simultaneamente os afetos

vinculados ao olhar e agrave opiniatildeo coletiva e agrave retribuiccedilatildeo ineludiacutevel ao dolo Zeus

efetivamente daacute justiccedila aos homens condiccedilatildeo para a existecircncia da philiacutea o viacutenculo afetivo

determinante para a vida comum e exigecircncia de retribuiccedilatildeo divina que estabelece o caraacuteter

absoluto da consecuccedilatildeo infaliacutevel agrave accedilatildeo poliacutetica

Mas o par aidōs e diacutekē eacute inextricaacutevel dos afetos que suscita Na fundaccedilatildeo mesma da

existecircncia cosmoloacutegica das cidades subjazem afetos psiacutequicos Haacute uma homologia

estrutural entre as condiccedilotildees afetivas que possibilitam a existecircncia das cidades e impedem a

41

Sahonhouse faz um levantamento das traduccedilotildees sobre o termo no Protaacutegoras ldquoGuthrie traduz

como respeito pelos outros e respeito pelos companheirosW C Taylor como consciecircncia Sinclair como

dececircncia Cropsey o descreve como um complexo amaacutelgama entre respeito e susceptibilidade agrave vergonha ou

desgraccedila Bartlett o traduz como vergonha e acrescenta as notas de temor respeitoso e reverecircncia (2008 p 63

n 9) Segundo Douglas Cairns o conceito de honra nunca esteve afastado da avaliaccedilatildeo daquilo que eacute

constitutivo em tanto no que diz respeito agrave proacutepria honra de algueacutem ou status como no

reconhecimento das exigecircncias de se honrar os outros como algo que deve inibir as proacuteprias accedilotildees de algueacutem

Assim os diversos usos conferem unidade ao termo Ele pode indicar por exemplo vergonha diante da

proacutepria falha ou humilhaccedilatildeo embaraccedilo social inibiccedilatildeo em agir por medo do que os outros vatildeo dizer e

respeito diante do estatuto dos outros ou ainda para legitimar exigecircncias para tratar bem os hoacutespedes

suplicantes Todos os sentidos compartilham o foco no balanccedilo apropriado entre a proacutepria honra de algueacutem e

a honra dos outros seria uma emoccedilatildeo que cobre tanto o sentido de vergonha como de respeito e foca

simultaneamente a proacutepria honra como a dos outros (CAIRNS 1993)

85

destruiccedilatildeo muacutetua dos homens A homologaccedilatildeo eacute suscitada pelos afetos que constituem a

determinaccedilatildeo de homens e cidades

Se o homem eacute a medida de todas as coisas das que satildeo como satildeo e das que natildeo satildeo

como natildeo satildeo42

haacute todavia uma norma divina absoluta que determina o criteacuterio de que o

afeto determinante da philiacutea seja remetido ao olhar aberto coletivo e agrave retribuiccedilatildeo infaliacutevel

que se segue agraves accedilotildees injustas O tatildeo celebrado relativismo de Protaacutegoras deriva de norma

divina e por conseguinte absoluta que institui a medida do olhar de todos sobre todos

condiccedilatildeo poliacutetica da convivecircncia

O olhar muacutetuo configura afetos restritivos cuja funccedilatildeo primaacuteria consiste em

contrabalanccedilar os afetos violentos que se expressam em accedilotildees injustas e na violecircncia

destrutiva Tais afetos levam em conta o olhar e por conseguinte estatildeo na ordem

constitutiva da alteridade do levar em conta a existecircncia do olhar alheio como outro de si

A desconsideraccedilatildeo ao olhar implica a retribuiccedilatildeo punitiva como contrapartida causal para a

violaccedilatildeo deste princiacutepio de accedilatildeo afetivo que eacute tambeacutem o princiacutepio da accedilatildeo valorativa A

teacutecnica poliacutetica eacute primordialmente a teacutecnica valorativa da alteridade Ela estabelece a

medida pela qual o homem eacute meacutetron o olhar aberto que define a accedilatildeo aceitaacutevel na cidade

Como afirma Saxonhouse o conhecimento da desgraccedila implicada pela transgressatildeo

desses limites surge somente a partir das interaccedilotildees com os outros A vergonha dissolve

aquele que desconhece e natildeo reverencia os costumes e desconsidera as opiniotildees da

coletividade de seu entorno A irreverecircncia para com o olhar do outro eacute incompatiacutevel com a

vergonha (SAXONHOUSE 2008 p 63)

42

Protaacutegoras 80 B 1 DK SEXTUS EMPIRICUS adv math VII 60 Disponiacutevel em

httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics80-B

(Teeteto 160e09)

86

Aidōs e diacutekē compotildeem os afetos que inibem os impulsos para a morte e para a

destruiccedilatildeo e implicam as accedilotildees retribuidoras absolutas para a violecircncia cometida Se a

cidade e a comunidade poliacutetica existem eacute porque aidōs e diacutekē satildeo os princiacutepios que

possibilitam a coexistecircncia artificial entre os homens a partir da diferenciaccedilatildeo das accedilotildees

rudimentares que terminavam na violecircncia destrutiva Aidōs e diacutekē satildeo princiacutepios de

inibiccedilatildeo primordiais ao impulso para matar Eles emergem diretamente do temor que Zeus

experimenta ao prever a destruiccedilatildeo humana Mas eacute preciso ainda acrescentar a educaccedilatildeo

para que os homens tenham seu completo acabamento e possam conviver vinculados por

um afeto de pertenccedila muacutetua

Para cumprir seu papel ao mesmo tempo de caccediladores e guerreiros protetores da

polis os homens precisam conciliar a coragem para afrontar os perigos e a confiabilidade

exigida pela amizade Eacute preciso a previdecircncia astuciosa que permite a renuacutencia agrave satisfaccedilatildeo

do desejo imediato o domiacutenio da palavra a demiurgia das teacutecnicas manuais e instrumentais

para a forja de armas e ferramentas As accedilotildees humanas satildeo regradas artificialmente por uma

dupla tensatildeo de opostos o uso das armas e os afetos destrutivos devem ser dirigidos para

fora da cidade e o afeto integrador da philiacutea deve manter a coesatildeo coletiva interna e

amalgamar a unidade ciacutevica Aidōs e diacutekē conciliam em tensatildeo o amor e a morte Se a

vergonha eacute o afeto decorrente da transgressatildeo ao temor respeitoso que delimita a existecircncia

ciacutevica pela philiacutea as leis implicadas por diacutekē guiam e regulam os afetos destrutivos a

previsatildeo teacutecnica e a adaptabilidade para o proveito coletivo para o melhor do homem

como medida de todas as coisas Diacutekē implica que para ser medida de todas as coisas o

homem deva submeter-se agraves leis de modo que a violecircncia seja sancionada pela arte da

guerra na exterioridade e interdita pela poliacutetica no domiacutenio da poacutelis O que configura a accedilatildeo

heroacuteica num domiacutenio por ser necessaacuterio eacute absolutamente interdito em outro O homem

87

medida submetido agrave diacutekē eacute aquele cujas gestas heroacuteicas de um plano satildeo accedilotildees criminaacuteveis

em outro noacutesos peste da cidade

A concepccedilatildeo de diacutekē como dom compartilhado e determinaccedilatildeo do gecircnero humano

ultrapassa a noccedilatildeo primitiva ligada a uma ordem coacutesmica cujo equiliacutebrio exige a

compensaccedilatildeo de opostos A ordem da natureza associa-se agrave noccedilatildeo religiosa de um tempo

perioacutedico A adikiacutea se expia afirma Anaximandro segundo a ordem do tempo43

Pois donde a geraccedilatildeo eacute para os seres eacute para onde tambeacutem a

corrupccedilatildeo se gera segundo o necessaacuterio pois datildeo eles mesmos

justiccedila e deferecircncia uns aos outros pela injusticcedila segundo a

ordenaccedilatildeo do tempo

Aidōs e diacutekē eacute um par de opostos em tensatildeo A paz interna que deve reinar no seio

da cidade pressupotildee os limites da norma da ordem ciacutevica e os limites impostos pelos

afetos que levam em conta o olhar coletivo e a dissoluccedilatildeo afetiva inexoraacutevel que se segue agrave

violaccedilatildeo desses limites O estabelecimento desses limites suscita a dissoluccedilatildeo intriacutenseca agrave

vergonha ao medo a inibiccedilatildeo e a culpabilidade mas fora do centro ciacutevico as barreiras satildeo

ordenadamente levantadas pela arte da guerra dessacralizaccedilatildeo da violecircncia pelo uso das

armas a philiacutea se equilibra no seu oposto o oacutedio A comunidade poliacutetica assenta-se no

amor mas tambeacutem no sangue e na morte

A gecircnese da ordem poliacutetica da cidade inclui o seu elemento contraacuterio em tensatildeo

permanente A vergonha e a culpabilidade que emergem desta tensatildeo exigem desejo de

compensaccedilatildeo e reparaccedilatildeo que soacute pode efetivar-se no itineraacuterio de um acabamento em

direccedilatildeo ao melhor prometido pela educaccedilatildeo (BURKERT 2005 p 30-34)

43

DK 1 SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 24 13 Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics12-B

acesso em 042010 Traduccedilatildeo de Cavalcante com ligeira modificaccedilatildeo

88

Todavia para Platatildeo se o valor supremo do homem depende do olhar coletivo

entatildeo a excelecircncia deve se moldar a partir da exterioridade aberta que configura os afetos

ligados a aidoacutes A formaccedilatildeo poliacutetica passa a ser assim uma iniciaccedilatildeo agrave teacutecnica de domiacutenio

do olhar e da opiniatildeo teacutecnica da exterioridade cambiante que valora todas as coisas a partir

do aacutentrōpos em detrimento do seautoacuten do si mesmo teacutecnica que ganha o prestiacutegio na

cidade mas perde a alma

A encenaccedilatildeo dramaacutetica do Protaacutegoras eacute a miacutemesis de uma iniciaccedilatildeo nos misteacuterios

que coloca em perigo a alma44

O inventaacuterio histoacuterico das iniciaccedilotildees e misteacuterios

empreendido por Walter Burkert (1993 527-577) permite a distinccedilatildeo dos elementos

alusivos da encenaccedilatildeo dramaacutetica do Protaacutegoras O jovem Hipoacutecrates desejoso de iniciar-se

nos misteacuterios da praacutetica da sabedoria45

pretende receber um ensino transmitido por um

guia embora natildeo saiba o que dizer sobre o seu conteuacutedo efetivamente inexprimiacutevel

anaacutelogo do aacuterreton o segredo dos misteacuterios Protaacutegoras aparece como um guia um

mystagogos a quem Hipoacutecrates confiaraacute sua alma esperando adquirir um novo estatuto e

experimenta simultaneamente o medo proacuteprio ao grande perigo de expor sua alma ao

desconhecido e a promessa de uma nova realidade radiante O questionamento eroacutetesis

socraacutetico induz agrave revelaccedilatildeo de que o desejo pelo destaque e excelecircncia poliacutetica eacute

incompatiacutevel com a vergonha de aparecer ao olhar puacuteblico com o estatuto e desvalor de um

sofista em meio ao lusco-fusco do alvorecer que se anuncia Hipoacutecrates manifesta

fisicamente o sinal inequiacutevoco da vergonha enrubesce (Protaacutegoras 312a)

44

(Protaacutegoras 313a01-02) 45 (312d05) fabricante de praacuteticas do saber equivalente ao

saacutebio (LIDDELL SCOTT 1997 p 554)

89

Como profano suplicante o recipiendaacuterio protomyacutestes se dirige agrave casa do rico

Caacutelias equivalente do telesteacuterion templo das iniciaccedilotildees ou da caverna siacutembolo secreto

do oculto e do transcendente (BURKERT 1993 p 555)

Apoacutes percorrer a rota de peregrinaccedilatildeo o candidato se depara com a porta que separa

o sagrado do profano A passagem pela porta exige a passagem pelo seu guardiatildeo um

eunuco que parodia os temiacuteveis guardas de Zeus (Protaacutegoras 320d) ou os guardiotildees

postados agrave entrada do Hades (BURKERT 1993 p 558) Soacutecrates como espeacutecie de

hierophanteacutes que iraacute mostrar as coisas sagradas termina o assunto profano impuro antes de

bater agrave porta pois natildeo eacute permitido misturar o impuro ao puro

A entrada eacute vetada porque o guarda os toma por sofistas e fecha violentamente a

porta A porta eacute a imagem que abarca a correspondecircncia estrutural entre modalidades

muacuteltiplas de passagem das trevas para a luz do sol da preexistecircncia do homem para a

humanidade da vida para a morte e do novo nascimento para um estatuto de ser mais

elevado A abertura da porta torna possiacutevel a passagem para um modo de ser cosmicizado

pois todo Koacutesmos pressupotildee a passagem Uma vez que o homem vem agrave luz ele natildeo eacute um

ser acabado Eacute preciso repetir o vir a ser primordial e os vaacuterios planos de determinaccedilotildees

originaacuterias mediante ritos de passagem de iniciaccedilotildees sucessivas que propiciam a ascensatildeo

a modalidades mais elevadas de ser (ELIADE 1965 p 153)

O jovem Hipoacutecrates pretendia buscar o mediador da transmissatildeo do ensino

iniciaacutetico secreto que o levaria ao acabamento do homem pleno ao progresso gradativo em

direccedilatildeo ao melhor agrave melhor disposiccedilatildeo dentre a infinidade de aparecircncias que configuram a

medida de cada um dos homens A iniciaccedilatildeo protagoriana opera a mudanccedila em direccedilatildeo ao

90

melhor mudanccedila no estatuto do ser transformando metabaacutellō e metabletḗon46

Assim

como o meacutedico mediante os phaacutermakoi muda as disposiccedilotildees do corpo o sofista muda as

disposiccedilotildees da alma pelo seu ensino iniciaacutetico (Teeteto 167a04-06) A porta fechada e

guardada da casa de Caacutelias separa os ritos internos discretos da abertura ao olhar coletivo e

delimita a ocultaccedilatildeo do misteacuterio aos profanos

O apresentante Soacutecrates enuncia uma explicaccedilatildeo que serve de syacutenthema palavra de

passe que franqueia a entrada no recinto sagrado A declaraccedilatildeo de que natildeo satildeo sofistas

possui o efeito ritual de garantir que natildeo satildeo impuros e anuncia a iniciativa individual pela

iniciaccedilatildeo myacuteēsis atraveacutes do encontro com Protaacutegoras (314c-e)

A entrada no recinto sagrado revela o rito dos discursos sagrados hieroigrave loacutegoi de

Protaacutegoras Um seacutequito de estrangeiros encantados como se fora pelo charme do proacuteprio

Orfeu o segue cosmicamente em evoluccedilotildees circulares ritualmente regulares A viacutevida e

espetacular caricatura da cena fornece natildeo obstante a ironia indiacutecios caracteriacutesticos da

accedilatildeo ritual O ritual eacute ldquoalgo ataviacutestico compulsivo insensato no miacutenimo circunstancial e

supeacuterfluo mas ao mesmo tempo sagrado e misteriosordquo (BURKERT 1997 p 35-37)

O ritual eacute um conjunto de accedilotildees redirecionadas para a demonstraccedilatildeo exposiccedilatildeo

apontada para o olhar eacute um falar mediante gestos estereotipados e padronizados

independentes da situaccedilatildeo e afetos atuais O rito repete e ordena accedilotildees exageradas

aparentemente desvinculadas do contexto imediato com o escopo de esboccedilar um tipo

especiacutefico de efeito teatral eficaz ao olhar e de transmitir uma significaccedilatildeo mimeacutetica natildeo

mediada pela palavra

46

(Teeteto 167a04-06)

91

A harmonia do coro provoca alegria em Soacutecrates A alegria o devaneio e o ecircxtase

das iniciaccedilotildees oacuterficas satildeo intimamente ligados agrave danccedila e agrave muacutesica riacutetmica (BURKERT

1993 p 557) ldquoA repeticcedilatildeo faz nascer o ritmo o acompanhamento dos gestos por sinais

acuacutesticos daacute nascimento agrave muacutesica e agrave danccedila ndash duas formas de solidarizaccedilatildeo humanardquo

(BURKERT 2005 p 35) ldquoO ritual dramatiza a interaccedilatildeo poliacutetica a ordem existente sem

excluir que um rito possa fundar e definir um novo estatutordquo (ibid p 37) Segue-se a alusatildeo

direta agrave descida ao Hades katabasis siacutembolo da iniciaccedilatildeo em que Heraacutecles e Tacircntalo satildeo

ironicamente substituiacutedos por Hiacutepias e Proacutedico de Ceacuteos (315b-d)

A paroacutedia iniciaacutetica eacute mais do que irocircnica Platatildeo encena a laicizaccedilatildeo dos discursos

sagrados e sua transposiccedilatildeo num ensino na transmissatildeo iniciaacutetica de um saber que enseja a

condiccedilatildeo dos espectadores poliacuteticos os epoacutepatai os iniciados que ascendem a um estado

superior que promete a riqueza e a bem-aventuranccedila

A dramatizaccedilatildeo irocircnica sugere o falseamento de um ensino cuja eficaacutecia pretende

remontar agrave antropogonia primeva e dela tirar seu sentido Mas o perigo natildeo consiste

somente no risco e no terror que antecede a experiecircncia da prova iniciaacutetica O grande perigo

consiste em entregar a alma a misteacuterios cujos efeitos natildeo se pode afirmar que a melhorem

ou a piorem Para discriminar a natureza dos efeitos do ensino sobre a alma eacute preciso que o

olhar perscrutador do eacutelenkhos socraacutetico coloque os misteacuterios da iniciaccedilatildeo sofiacutestica sob

exame

92

III - RELACcedilOtildeES ESTRUTURAIS NO MITO DO GOacuteRGIAS O EacuteTHOS EM

QUESTAtildeO

31 Eros e Loacutegos

Audaacutecia e ardor tais satildeo os afetos divinos que incutidos na psykheacute fazem com que

o guerreiro sobreexceda o acircnimo das accedilotildees tatildeo somente humanas que encenam a batalha (Il

V 3)

Audaacutecia e ardor ndash tais satildeo os afetos pelos quais a dialeacutetica socraacutetica choca-se

ingente com a retoacuterica daquele que viria a ser ao mesmo tempo o mais violento e o mais

brilhante dos interlocutores que travam combate com Soacutecrates Caacutelicles

Batalha e guerra poacutelemos kaiacute maacutekhe eis o cenaacuterio com que Platatildeo monta o campo

dramaacutetico dialoacutegico em que satildeo confrontados os princiacutepios e valores ordenadores que

configuram dois modos de vida diametralmente opostos ndash cada qual com exigecircncias

especificidades procedimentos e formaccedilotildees perenemente antagocircnicas Um e outro

culminam no aacutegon retininte dos loacutegoi de seus campeotildees Moldado no apaixonado manifesto

de Soacutecrates o loacutegos dialeacutetico denuncia a ambiccedilatildeo unacircnime desmascara a injusticcedila e a

desfaccedilatez coerciva da maioria em torno da voluacutepia O discurso antagonista defendido

pelos retores e poliacuteticos eacute modelado pelo apetite desmesurado de poder de Caacutelicles que

reclama o testemunho histoacuterico dos grandes homens que se tornaram notaacuteveis

No retinir dos loacutegoi insinua-se a reverberaccedilatildeo da imprecaccedilatildeo a araacute que soa como

o vaticiacutenio do vidente que antecipa a praga o modo de vida implicado pela Filosofia

entendida como disciplina que se estende para aleacutem da educaccedilatildeo juvenil eacute indigno das

coisas belas nobres e bem reputadas entre os homens de valor eacute um modo de vida proacuteprio

da condiccedilatildeo dos sub-homens de escravos Ineficaz nos debates puacuteblicos a Filosofia

93

perverte a alma e resulta na incapacidade decisoacuteria em questotildees de justiccedila do que eacute

provaacutevel e crediacutevel incapacidade que redunda na impossibilidade de defesa diante de um

tribunal estabelecido por acusaccedilatildeo injusta levada a efeito por acusador desonesto e que

ineludivelmente acabaria na condenaccedilatildeo de Soacutecrates agrave morte (Goacutergias 485c-486b)

O manifesto socraacutetico se forja pela disposiccedilatildeo simeacutetrica da oposiccedilatildeo norteadora dos

valores Gecircneros de vida opostos satildeo determinados pela ordenaccedilatildeo simetricamente oposta

de valores incompatiacuteveis ndash ordenaccedilatildeo que implica praacuteticas e modos de inteligibilidade

distintos que por sua vez exprimem-se no esgrimir de discursos multifacetados Um e

outro identificam diferentes pragas psiacutequicas diferentes noacutesoi que exigem compensaccedilatildeo

mediada pela eficaacutecia discursiva do adivinho porta-voz das potecircncias ofendidas e

diferentes prescriccedilotildees A perversatildeo e a miseacuteria para Caacutelicles consistem na gradual

ignoracircncia determinada pela praacutetica filosoacutefica das leis em vigor na cidade da maneira de

falar exigida nas relaccedilotildees particulares e nos contratos puacuteblicos na perplexidade diante dos

prazeres e das voluacutepias dos homens e dito numa soacute fala em tornar-se irresoluto para com

todas as coisas que dizem respeito agraves maneiras de viver ao caraacuteter47

Valores opostos implicam caracteres que se contradizem e por conseguinte

pressupotildeem a multiplicidade de princiacutepios ordenadores opostos (DIXSAUT 2001 p 133)

Natildeo obstante a diversidade soacute pode ser unificada mediante a unidade do afeto na

afetividade do mesmo paacutethos (Goacutergias 481 d) A significaccedilatildeo unificadora deriva da

(Goacutergias 484 c09-d07)

94

possibilidade de se fazer mostrar um para o outro os proacuteprios afetos48

Soacutecrates e Caacutelicles

padecem do mesmo afeto eroacutetico direcionado para objetos distintos que caracterizam a

natureza do Eacuteros

O amor de Soacutecrates por Alcibiacuteades de um lado injunge a ordenaccedilatildeo cataacutertica da

encantaccedilatildeo a accedilatildeo terapecircutica dos belos discursos que toma a alma do ouvinte de assalto

como um canto de Sirena (Banquete 215c-216c) de outro deixa-se modelar pela Filosofia

ndash um desejo que eacute determinado pelo desejo mais elevado o desejo que aspira a ldquotocarrdquo o

belo visto que a Filosofia eacute ao mesmo tempo a muacutesica mais elevada (Feacutedon 61a) e o desejo

puro pelo que eacute ldquoem si mesmordquo (DIXSAUT 2001 p 184) Tal desejo faz do filoacutesofo um

carente e um amante incessantemente agrave procura do objeto de seu amor movido pela ldquobela

esperanccedilardquo (Feacutedon 114c) de encontraacute-lo e encontrando-o com a aspiraccedilatildeo imorredoura de

quem haveraacute de continuar procurando

O amor de Caacutelicles eacute simultaneamente modelado pelas pretensotildees e desejos de

Demos o filho de Pirilampo e demos o povo reunido na assembleacuteia (Goacutergias 481e) Em

Soacutecrates o amor eroacutetico deixa-se ordenar pelo desejo mais elevado e transpotildee-se como

forccedila encantatoacuteria do loacutegos ordenador na psykheacute do amado Em Caacutelicles o amor eroacutetico

segue o movimento inconstante da multiplicidade de desejos caoacuteticos da multidatildeo e

aquiesce aos apelos do amado de maneira que se transpotildee em discurso lisonjeiro no loacutegos

agradaacutevel cujo efeito eacute o incitamento e o acirramento dos apetites que o geraram Em

Soacutecrates o discurso eroacutetico afasta as falsas ilusotildees da alma e forceja o amado ao

reconhecimento das proacuteprias carecircncias e da falta de cuidado de si (Banquete 216a) Em

Caacutelicles o discurso compotildee-se na indeterminaccedilatildeo das aparecircncias ilusoacuterias que se

Goacutergias 481 d)

95

entrelaccedilam com a praacutetica poliacutetica Em Soacutecrates o discurso eacute engendrado a partir do desejo

sobre-determinado pelo desejo mais elevado e constante da Filosofia Em Caacutelicles o

discurso eacute engendrado pela inconstacircncia dos desejos indeterminados dos objetos de seu

amor o povo reunido na assembleacuteia Num e noutro o desejo se aconchega agrave inteligecircncia

para engendrar um discurso Em Soacutecrates inteligecircncia e desejo estatildeo em consonacircncia

harmonizam-se num uacutenico movimento ndash o da inteligecircncia do desejo e o do desejo da

inteligecircncia tal como o sopro da flauta se harmoniza com a danccedila do saacutetiro flautista

(Banquete 216c) O desejo possui a inteligecircncia de si mesmo e a inteligecircncia discerne seu

proacuteprio movimento como o movimento do desejo (DIXSAUT 2001 p 143) Em Caacutelicles

desejo e inteligecircncia satildeo asyacutemphonoi49

satildeo dissonantes de modo que o desejo subjuga e

arrasta a inteligecircncia para discernir somente aquilo que o atende o desejo torna-se entatildeo

apetite Quando desejo e inteligecircncia satildeo sinfocircnicos o discurso visa o melhor o beacuteltiston e

porta a explicaccedilatildeo racional (Goacutergias 464c-465e) e as causas de sua natureza50

Quando o

desejo domina a inteligecircncia o discurso visa o prazer e a inteligecircncia discerne apenas os

meios que determinam o seu assentimento num ldquoempirismordquo que atende agrave voluacutepia Num

49 A menccedilatildeo agrave desarmonia indica um desarranjo da multiplicidade de opiniotildees ou um desarranjo de uma

multiplicidade proacutepria ao si mesmo A metaacutefora ingressa uma homologia entre a multiplicidade dos muitos e

uma multiplicidade do si mesmo A intermitecircncia das opiniotildees de Caacutelicles implica a intermitecircncia correlativa

do seu psiquismo Tais questotildees determinam a hermenecircutica da leitura do Haacute uma divisatildeo na

natureza psiacutequica de Caacutelicles que se expressa na dissonacircncia de opiniotildees que natildeo satildeo sustentadas pela

refutaccedilatildeo da tese oposta A metaacutefora da harmonia como concordacircncia bem ajustada indica que o

opera uma concordacircncia no acircmbito do si mesmo ( ) em contraposiccedilatildeo com o

ajustamento e concordacircncia com as opiniotildees e desejos da multidatildeo (PLOCHMANN ROBINSON 1988 p

110)

(Goacutergias 482b04-c03) 50

(Goacutergias 465a)

96

caso e noutro eacute a natureza do desejo que determina o estado da psykheacute O amor eroacutetico faz a

mediaccedilatildeo entre um desejo paradigmaacutetico (a Filosofia ou os desejos da multidatildeo) e a

personificaccedilatildeo do amor Mediaccedilatildeo que engendra loacutegoi e modos distintivos de hierarquizar

valores que por sua vez implicam gecircneros caracteriacutesticos de vida opostos um voltado para

a inteligecircncia da justiccedila do que eacute sempre idecircntico e imutaacutevel o vasto oceano do belo e do

bem (Banquete 211a) e outro voltado para a inteligecircncia do gozo irrefreaacutevel visto o

discernimento e a inteligecircncia de prazeres diversos serem prerrogativas da alma (Goacutergias

465d)

A inconstacircncia do alvo do amor de Caacutelicles determina a intermitecircncia de suas

opiniotildees e a ambivalecircncia de seus afetos Assim como seus afetos oscilam de um fito para

outro o movimento de seus pensamentos se estende em direccedilotildees muacuteltiplas opostas

expressando opiniotildees contraacuterias sobre um mesmo assunto Sua ambivalecircncia alterna-se

entre a doccedilura amistosa e a hostilidade raivosa na tentativa de esconder sua autodissensatildeo

mediante algum pronunciamento dogmaacutetico para logo em seguida contradizer-se

relutante ou involuntariamente revelando seus princiacutepios de accedilatildeo conflitantes Pervertido

pelo medo e atormentado pelos apetites Caacutelicles eacute simultaneamente um mau amante e um

bom odiento sobretudo em relaccedilatildeo a si mesmo (PLOCHMANN ROBINSON 1988 p

105)

A simetria das oposiccedilotildees indica uma estrutura de relaccedilotildees anaacutelogas e homoacutelogas

assim como haacute uma boa disposiccedilatildeo do corpo haacute uma boa disposiccedilatildeo da alma Assim como

a boa disposiccedilatildeo do corpo eacute assegurada por duas artes uma preservadora e outra

restauradora a boa disposiccedilatildeo da alma eacute assegurada por duas artes do mesmo gecircnero

Assim como as artes relativas ao corpo satildeo conduzidas pelo desejo do melhor a boa

disposiccedilatildeo da alma eacute impelida pelo desejo do melhor Assim como as artes do corpo

97

implicam a inteligecircncia da natureza dos seus procedimentos e das causas assim tambeacutem as

artes da alma implicam o loacutegos de sua natureza e de suas causas

Assim como uma imagem eacute uma aparecircncia do modelo original as imagens das artes

autecircnticas satildeo aparecircncias de seus originais A lisonja kolakeiacutea estaacute para a Poliacutetica como as

aparecircncias estatildeo para os originais A cosmeacutetica estaacute para a ginaacutestica como a culinaacuteria estaacute

para a medicina A sofiacutestica estaacute para a legislaccedilatildeo como a retoacuterica estaacute para a justiccedila O

discurso persuasivo estaacute para o discurso racional como o prazer estaacute para o melhor e o

bem A inteligecircncia do prazer imediato estaacute para a inteligecircncia dos prazeres proacuteprios como

a inteligecircncia do empirismo da vantagem estaacute para a inteligecircncia das causas da boa

disposiccedilatildeo O Eros do retor estaacute para o Eros do filoacutesofo assim como a epithymia da

multidatildeo estaacute para a Filosofia

A Filosofia comporta um discurso que por sua proacutepria natureza eroacutetica desfaz a

ilusatildeo gerada pelo apetite as opiniotildees os falsos saberes e a valoraccedilatildeo do que eacute contingente

do que estaacute imerso no devir um discurso que busca refutar por amor da verdade e natildeo por

amor da vitoacuteria e das disputas a philoneikiacutea (Goacutergias 457e-458b) O amor de Soacutecrates por

Alcibiacuteades comporta o paradoxo da abstenccedilatildeo do deleite mesmo tendo-lhe compartilhado o

mesmo leito (Banquete 216e-217e) Soacutecrates soacute pocircde desprezar a beleza dos corpos a

riqueza e todas as vantagens apreciadas pelos muitos porque ascendeu ao cliacutemax do Eros

Tal eacute a razatildeo pela qual o discurso filosoacutefico eacute elecircntico a unificaccedilatildeo do desejo almeja o

plano mais alto e contrapotildee agrave incompletude que se dispersa na multiplicidade a visatildeo

sempiterna do belo

Ardor e audaacutecia - trata-se efetivamente do entrecruzar de dois discursos que

digladiam-se pelo manejo experimentado de dois amorosos animados pelo mesmo afeto

Eros que natildeo obstante volta-se para direccedilotildees excludentes O discurso expressa o

98

movimento da inteligecircncia que por sua vez acopla-se ao Eros ou identificando-se com ele

num uacutenico e mesmo movimento ou submetendo-se a ele (DIXSAUT 2001 p 153-ss) O

movimento eroacutetico do loacutegos acarreta disposiccedilotildees concordantes com seu direcionamento O

discurso pode suscitar o convencimento associado ao saber ou se natildeo emerge do

conhecimento das causas o assentimento engendrado pela aparecircncia visto que saber eacute

diferente de crer A persuasatildeo mesma divide-se em par de naturezas distintas ndash a crenccedila e o

conhecimento (Goacutergias 454 d-e) e por conseguinte o discurso distingue-se pela direccedilatildeo de

seu movimento e de seu alvo Mas tal qual glaacutedio que possui dois gumes o discurso natildeo

pode ser proferido sem que seu efeito seja duplo e sem que a resultante do golpe se volte

para sua origem Animado por um afeto eroacutetico o movimento discursivo natildeo pode ser

desferido sem que haja uma ordenaccedilatildeo preacutevia dos afetos que o engendram sem que o

proacuteprio movimento psiacutequico lhe seja condizente A palavra natildeo pode ser proferida sem que

haja ressonacircncias no acircmago da psykheacute que a engendra

32 ndash Vida e ḗthos

Batalha e guerra - valores organicamente opostos resultam em modos de vida que se

potildeem em pugna que implicam praacuteticas eacutetico-poliacuteticas opostas e que buscam na maacutekhe dos

loacutegoi no combate singular da palavra os posicionamentos que demarcam a estrateacutegia dos

antagonismos

Caacutelicles e Soacutecrates buscaratildeo defender natildeo somente suas teses mas seus gecircneros de

vida e seus valores a partir de razotildees enredadas em discursos estruturados de modo

excludente Retoacuterica e dialeacutetica entrecruzam-se como armas que reclamam o kraacutetos sobre a

inteireza da vida

99

O golpe de Caacutelicles eacute posto de iniacutecio muitas vezes natureza e lei51

se contradizem

uma agrave outra52

- tais satildeo as divisotildees que comportaratildeo todas as diferenccedilas A divisatildeo de um

todo em partes explica ao mesmo tempo as causas pelas quais Goacutergias e Polos caiacuteram em

contradiccedilatildeo e o procedimento refutativo empregado por Soacutecrates O argumento da divisatildeo

haure toda sua forccedila de uma oposiccedilatildeo efetivamente presente na mentalidade aristocraacutetica

grega e por isso justifica-se plenamente como ponto de partida da argumentaccedilatildeo de

Caacutelicles Tratar-se-ia de tese que natildeo sofreria contestaccedilatildeo direta53

O procedimento de dissociar duas noccedilotildees que se pretendem exaustivas permite a

afirmaccedilatildeo de que certos elementos independentes e irredutiacuteveis se mantecircm associados e

confundidos A cilada de Soacutecrates consistiria em se reportar agrave natureza quando se fala

51 Guthrie observa que noacutemos e phyacutesis adquirem significados opostos a partir do clima intelectual do seacuteculo

V ldquoO que existia por noacutemos natildeo existia por phyacutesis e vice-versardquo Nos sofistas historiadores e oradores da

eacutepoca e tambeacutem em Euriacutepides a antiacutetese passa para as esferas da moral e da poliacutetica ldquoNoacutemosrdquo passou a

significar basicamente (a) ldquouso ou costumes baseados em crenccedilas tradicionais ou convencionais quanto ao

que eacute certo ou verdadeirordquo (b) ldquoleis formalmente esboccediladas que codificam o uso corretordquo O sentido de

ldquophyacutesisrdquo por outro lado toma corpo a partir dos filoacutesofos preacute-socraacuteticos Embora o sentido de ldquonaturezardquo seja

claro pode-se pensar em termos poliacuteticos em ldquorealidaderdquo contrastada com as convenccedilotildees da lei positiva Em

Tuciacutedides a decadecircncia moral acarretada pela guerra faz sobressair o viacutenculo existente entre a ldquonatureza

humanardquo e o interesse ) em oposiccedilatildeo agrave justiccedila O interesse a vantagem e o uacutetil satildeo princiacutepios

inerentes agrave natureza humana e parte da realidade em que o mais forte se impotildee ao mais fraco Satildeo

significativos os relatos das negociaccedilotildees travadas entre os atenienses de um lado e Melos ou Mitilene de

outro A histoacuteria era a principal testemunha de que ldquoera da natureza humana tanto para os Estados como para

os indiviacuteduos comportar-se egoiacutestica e tiranicamente se dada a oportunidaderdquo Para o Caacutelicles platocircnico isso

natildeo soacute ldquoera inevitaacutevel senatildeo tambeacutem justo e adequadordquo (GUTHRIE 1995 p 57-103) Dodds afirma que ldquoA

fonte antiga mais importante aleacutem de Platatildeo satildeo os fragmentos dos manuscritos do sofista Antiacutefonte ()

mas inuacutemeras passagens em Euriacutepides Aristoacutefanes e Tuciacutedides mostram que a antiacutetese era imensamente examinada e compreendida nos anos posteriores do seacuteculo Vrdquo (DODDS 2002 p 263) A concepccedilatildeo

difundida no quadro mental herdado por Platatildeo no iniacutecio do quarto seacuteculo que alccedila o sucesso e o interesse ao

primeiro plano e preconiza ldquofazer bem aos amigos e mal aos inimigosrdquo natildeo reclamava justificaccedilatildeo uma vez

que era aceita universalmente Daiacute as teses defendidas por Soacutecrates soarem tatildeo chocantes e bizarras Nada

atentava mais ao senso comum do homem grego de entatildeo e de certa forma como mostra uma citaccedilatildeo feita

por Guthrie datada do seacuteculo XVIII nada atenta mais contra o senso comum de todos os tempos 52

(Goacutergias

482e) 53 Como Marian Demos afirma ldquoA antiacutetese entre e aparece com frequecircncia na literatura

Grega nos seacuteculos VI e V Caacutelicles natildeo diz nada revolucionaacuterio nesse ponto ele apenas estabelece o cenaacuterio

para aquilo que subsequentemente eacute sancionado pela A oposiccedilatildeo entre e eacute tambeacutem

refletida na discrepacircncia entre os verdadeiros sentimentos de Polos e sua relutacircncia em proclamaacute-los Pode-se

inferir que a de alguma forma corresponde com a visatildeo da realidade de Polos enquanto o

designando bdquoo consenso geral‟ o impede de expor sua visatildeo (DEMOS 1994 p 85-107)

100

segundo a lei e aludir agrave lei quando se lhe fala segundo a natureza54

(483a) A questatildeo dos

valores depende do ponto fixo a partir do qual eles seratildeo coordenados A noccedilatildeo de ldquojusticcedilardquo

pressupotildee seu proacuteprio esquema de coordenaccedilatildeo de valores cuja aquilataccedilatildeo muacutetua depende

de um padratildeo fixo Postula Caacutelicles que tal padratildeo expressa os interesses de quem o

estabelece segundo os dois gecircneros disjuntivos ou a lei ou a natureza55

A noccedilatildeo

convencional de justiccedila exprime o fato de que a aceitaccedilatildeo dos interesses da maioria inferior

determina o tratamento apropriado para cada pessoa e constitui o padratildeo pelo qual as accedilotildees

satildeo reputadas como justas ou injustas O princiacutepio rival invocado por Caacutelicles estabelece

que os interesses dos homens superiores devam constituir o uacutenico padratildeo de justiccedila uma

vez que o que promove a superioridade desses homens eacute naturalmente justo56

e coincide

com a proacutepria natureza (IRWIN 1995 p 103) Sofrer injusticcedilas eacute proacuteprio de escravos que

nem sequer podem ser chamados ldquohomensrdquo para quem a morte seria melhor (kreittoacuten) do

que a vida A lei eacute estabelecida para defender os interesses desses homens fracos dos

muitos que proclamam que toda superioridade eacute desonrosa (toacute kataacute noacutemon aiskhiacuteon

leacutegontos) e que cometer injusticcedila eacute censuraacutevel Para os muitos a injusticcedila (adikiacutea) consiste

em avantajar-se (pleonektecircin) em ter mais (pleacuteon eacutekhein) (483b-c) Satildeo os interesses das

54 Aristoacuteteles nas Refutaccedilotildees Sofiacutesticas menciona explicitamente Caacutelicles e refere-se agrave oposiccedilatildeo entre

e como um muito difundido que leva os homens a proferir paradoxos na aplicaccedilatildeo

dos padrotildees da natureza e da lei ldquoque todos os antigos consideravam vaacutelidordquo (ARISTOacuteTELES 2005 173a p

571) Kerferd argumenta que embora seja possiacutevel que a expressatildeo ldquotodos os antigosrdquo se refira natildeo soacute aos

sofistas mas tambeacutem a preacute-sofistas a clara referecircncia de Aristoacuteteles aos dois loacutegoi indica que ele tinha

sobretudo os sofistas em mente (KERFERD 2003 p 194) 55 Segundo a interpretaccedilatildeo que Kerferd (2003 p197 ss) faz do fragmento DK 87B44 (87 B 44 [cfr 99 B

118 S) de Antifonte fica clara a antiacutetese entre phyacutesis e noacutemos As vantagens preconizadas pela lei satildeo

impedimentos para a natureza ao passo que as vantagens da natureza levam agrave liberdade e devem ser

preferidas agraves prescriccedilotildees da lei A justiccedila deve ser usada em proveito do interesse se houver presenccedila de testemunha Na ausecircncia destas somente a natureza deve ser obedecida Infere-se que o que eacute vantajoso

favorece a natureza e eacute da natureza humana ter vantagem Tudo aquilo que favorece a vantagem e o interesse

constituem um bem As leis e provisotildees satildeo cadeias que impedem a realizaccedilatildeo da natureza humana 56 Irwin afirma que o princiacutepio de Caacutelicles soacute eacute imparcial se a dominaccedilatildeo dos fortes for boa natildeo somente para

as pessoas superiores mas desejaacuteveis para algum outro ponto de vista distinto do delas O exame dessa

posiccedilatildeo exige que se prove que (1) violar regras de outras perspectivas de justiccedila eacute do interesse de algumas

pessoas que (2) estas pessoas satildeo superiores que (3) o que promove o interesse destas pessoas eacute naturalmente

justo (IRWIN 1995 p 103)

101

multidotildees fracas que delimitam o estabelecimento das leis cujo objetivo eacute limitar os

melhores e os mais robustos dos homens

Pois eu penso que aqueles que estabelecem as leis satildeo os homens

fracos e os muitos Por conseguinte eacute para si mesmos que

estabelecem as leis e atribuem elogios e censuras com os olhos em

sua proacutepria vantagem Eles aterrorizam os mais robustos dos

homens e potentes para ter mais e previnem estes homens de que

possuir mais do que eles mesmos e ter mais eacute vergonhoso e injusto

E que fazer injusticcedila eacute isto procurar ter mais do que os outros

Eles estatildeo satisfeitos se tecircm uma partilha igual quando satildeo

inferiores Eacute por isso que pela lei eacute dito ser injusto e vergonhoso

procurar ter mais do que os muitos e eacute isso que eles chamam

injusticcedila57

(Goacutergias 483b04-c08)

A questatildeo da justiccedila eacute por conseguinte indissociaacutevel da afetividade da vergonha

que configura aquilo que eacute aceitaacutevel e elogiaacutevel coletivamente A desonra deriva

diretamente do olhar coletivo que sanciona o elogiaacutevel e o censuraacutevel determinaccedilotildees de

todos os valores compartilhados pelos quadros mentais da cidade Aquilo que eacute vergonhoso

(aiskhiacuteon) eacute intrinsecamente associado ao afeto do senso de honra (aidōs) que por sua vez

brota da estima puacuteblica58

Aleacutem disso o desejo e a cobiccedila de ter mais a ambiccedilatildeo que

caracteriza a pleonexiacutea afeto primaacuterio estatildeo na ordem constitutiva do que Caacutelicles

considera justo por natureza A polarizaccedilatildeo entre phyacutesis e noacutemos sugere em seu bojo a

Traduccedilatildeo modificada a partir de Irwin (1979)

58 O termo expressa a vergonha e a ignomiacutenia segundo Chantraine (1999 p 40) e eacute empregado na

prosa aacutetica para indicar a feiuacutera repugnante O adjetivo deriva deste sentido original da vergonha provocada

pela deformidade mas possui tambeacutem o valor de ldquosenso de honrardquo Derivado de o tema de

exprime em Homero o sentimento de respeito diante de um deus ou superior e sobretudo o

sentimento que proiacutebe a covardia ao homem O sentimento tambeacutem estaacute ligado a partes

vergonhosas a genitaacutelia

102

tensatildeo mais basilar entre os apetites aquilo que Dodds chama de ldquoimpulsos individuaisrdquo e

a pressatildeo coletiva que instaura os valores considerados aceitaacuteveis ou a ldquopressatildeo de

adaptaccedilatildeo social caracteriacutestica de uma cultura baseada na vergonhardquo (DODDS 2002 B p

26) Desejos cobiccedila honra vergonha discursos e os pensamentos que os movem

configuram os princiacutepios basilares que justificam a noccedilatildeo da justiccedila e o gecircnero de vida

honoraacutevel

O termo Aidōs eacute empregado na narrativa de Gygeacutes para designar a respeitabilidade

de uma mulher o senso de honra da mulher daquilo que pode ser visto e daquilo que natildeo

pode ser olhado Heroacutedoto narra a desmedida do rei que contrariamente agraves interdiccedilotildees

longamente moldadas pela tradiccedilatildeo desejava mostrar a nudez de sua mulher usurpando e

violentando a sua respeitabilidade

Esqueceis que uma mulher desfaz-se do seu pudor quando se

despe() Gygeacutes natildeo podendo fugir agrave situaccedilatildeo declarou-se pronto

a obedecer Candaulo agrave hora de dormir conduziu-o ao quarto

para onde a rainha natildeo tardou a se dirigir O guarda viu-a despir-

se e enquanto ela lhe voltava as costas para alcanccedilar o leito

esgueirou-se para fora do aposento mas a rainha percebeu-lhe a

presenccedila Compreendeu o que o marido havia feito e suportou o

ultraje em silecircncio fingindo nada ter notado mas decidindo no

fundo do coraccedilatildeo vingar-se de Candaulo pois entre os Liacutedios

como entre quase todos os povos baacuterbaros constitui um oproacutebrio

mesmo para um homem o mostrar-se nu (HERODOTE I VIII-X

1850)

A conotaccedilatildeo da pudiciacutecia emerge do sentido original das partes vergonhosas a

genitaacutelia que deve estar coberta para os olhares dos outros Esse sentido segundo observa

Arlene Saxonhouse (2008 p 58) se estende para um contexto praacutetico-poliacutetico no qual o

olhar puacuteblico determina o entendimento comunitaacuterio daquilo que deve ser escondido e

daquilo que deve ser revelado Em Heroacutedoto a vergonha denota a transgressatildeo aos

costumes aos noacutemoi longamente sedimentados que se expressam nas leis reverenciadas

103

pela tradiccedilatildeo A violaccedilatildeo do rei Candaulo consiste em identificar as coisas belas com a

beleza natural da silhueta da mulher em detrimento da reverecircncia agraves leis A longevidade dos

costumes sedimenta as interdiccedilotildees que configuram a esfera do que eacute vergonhoso e

desonroso e por isso os limites das leis ancestrais exigem uma observacircncia e reverecircncia

que se aproximam da natureza A origem remota perdida num tempo em que satildeo gestadas

as belas coisas taacute kalaacute associa a reverecircncia a um acervo de valores que possui a mesma

caracteriacutestica do enclave miacutetico a ausecircncia de dataccedilatildeo Transgredir esses limites implica

uma exposiccedilatildeo e uma impudecircncia equivalente agrave nudez

O eacutelenkhos socraacutetico expotildee a nudez de afetos e pensamentos que reclamam

encobrimento agrave dissoluccedilatildeo do olhar coletivo59

Por essa razatildeo Goacutergias e Polus foram

constrangidos nas amarras da dialeacutetica preferiram deixar-se refutar a exporem-se na sua

nudez Eacute necessaacuterio pois que se faccedila a exposiccedilatildeo das causas do seu embaraccedilo Lei e

Natureza frequentemente se contradizem

A proacutepria natureza pode ser invocada como testemunho e prova de que a justiccedila eacute

precisamente contraacuteria agrave lei os animais os chefes de famiacutelia os homens nas cidades o

grande Rei da Peacutersia e o proacuteprio Zeus exemplificam que a lei da natureza a verdadeira

natureza do direito eacute contraacuteria agraves leis estabelecidas que subjugam os homens mais

vigorosos agrave escravidatildeo A igualdade entre homens desiguais (toacute iacuteson eacutekhosin oacutentes)

subverte a natureza O homem de natureza suficientemente bem nascido para pisar em

todas as ldquomagias encantaccedilotildees e leis estabelecidasrdquo faria ldquobrilhar a justiccedila da naturezardquo

(483e-484b)

59 Arlene Saxonhouse vecirc na personagem do rei Candaulo narrada por Heroacutedoto um precursor de Soacutecrates A

dialeacutetica socraacutetica revela aquilo que na perspectiva da tradiccedilatildeo aristocraacutetica deveria permanecer oculto e isso

acaba por levaacute-lo agrave morte (2008 p 59)

104

A exemplaridade paradigmaacutetica de Goacutergias resplandece na fala de Caacutelicles

Koacutesmos60

para a cidade virilidade para o corpo beleza para a alma sabedoria para o ato

excelecircncia para o discurso verdade (Elogio de Helena 1) Soacutecrates sob pretexto de

perseguir a verdade (aleacutetheia) profere discursos populares (demegorikaacute ndash Goacutergias 482e)

Cabe pois ao loacutegos exaltar o homem excelente por natureza e detrair o contraacuterio pois eacute

um erro louvar o censuraacutevel e censurar o louvaacutevel61

Assim como o discurso exemplar de

seu mestre promove a inversatildeo da maacute fama de Helena urdida pelos poetas assim tambeacutem

Caacutelicles empreende exposiccedilatildeo (dieacutegesis) que inverte a crenccedila gerada pelas encantaccedilotildees dos

que estabelecem as leis Anunciada a verdade de que a justiccedila eacute o direito natural do mais

capaz a loacutegica (loacutegismos) discursiva de Caacutelicles enuncia as razotildees pelas quais as leis satildeo

estabelecidas e propotildee o elogio da lei verdadeira a lei da natureza que eacute a primeira entre os

animais entre as famiacutelias entre os reis e entre os deuses tal como Helena por natureza

(phyacutesei) eacute a primeira entre os primeiros homens e mulheres e divina entre os deuses

(Elogio de Helena 3) A enumeraccedilatildeo dos exemplos consolida as bases da tese Tal como

brilha a beleza da primeira dentre as mulheres o homem vigoroso faz resplandecer o brilho

da justiccedila da Natureza Pela Natureza tal como por Helena vinham todos tanto pelo amor

aacutevido de vitoria quanto pela invenciacutevel avidez de honra reuacutenem-se os melhores e maiores

homens de riqueza gloacuteria forccedila e sabedoria adquirida (Elogio de Helena 4)

60Wardy (1996 p 30) chama atenccedilatildeo para o fato de que a palavra Koacutesmos conforme eacute empregada no Elogio

de Helena designa simultaneamente a ornamentaccedilatildeo e o artifiacutecio do discurso Originalmente o termo

designava a atraccedilatildeo especiosa arranjos impostos como a maquiagem de meretrizes Eacute improvaacutevel argumenta

Wardy que Goacutergias tivesse em vista um raciociacutenio loacutegico pelo qual a verdade como excelecircncia do loacutegos fosse adquirida somente atraveacutes de uma histoacuteria verdadeira O proecircmio do Elogio deve ser interpretado no

sentido de que Koacutesmos natildeo significa um mero ornamento artificial oposto agravequilo que a realidade eacute de fato

Seu objetivo eacute mostrar a verdade Adriano Ribeiro explicita e desenvolve a indicaccedilatildeo de Wardy afirmando o

significado de Koacutesmos como ornada ordenaccedilatildeo Eacute funccedilatildeo do loacutegos expor modelos de ornamentos de modo

ordenado A argumentaccedilatildeo ordena ressaltando o que conveacutem ao que eacute afirmado e afirmando o que eacute

propriamente verdadeiro A ornamentaccedilatildeo da palavra eacute sua verdade e a ela cabe pois distinguir o certo do

incerto o elogiaacutevel do censuraacutevel (RIBEIRO 2002 p 167) 61 GORGIAS Elogio de Helena Adoto a traduccedilatildeo de Daniela Paulinelli 2009

105

A exposiccedilatildeo das causas confere razoabilidade agrave fala e Caacutelicles justifica sua tese com

razotildees No caso de Helena62

as primeiras causas justificam sua ida para Troacuteia mediante um

toacutepos aceito universalmente ndash o de que eacute natural que o mais forte subjugue o mais fraco eacute

natural o mais forte conduzir e o mais fraco seguir (Elogio de Helena 6) No caso de

Caacutelicles as leis satildeo reputadas injustificaacuteveis porque constituem reaccedilatildeo dos mais fracos para

se protegerem da forccedila dos fortes e escravizaacute-los agrave condiccedilatildeo mais baixa Nos dois discursos

o mesmo toacutepos eacute alccedilado agrave condiccedilatildeo de verdade universal visto natildeo reclamar justificaccedilatildeo e

ter acolhimento em qualquer ouvinte sensato Eacute tatildeo natural ser constrangido pela

Necessidade ou por decreto divino quanto pela sobreexcelecircncia do homem superior

Ademais a forccedila da Necessidade dos deuses e do guerreiro armado eacute equiparada agrave forccedila

persuasiva do discurso O loacutegos age como senhor poderoso e a persuasatildeo possui a forccedila de

um rapto Tanto para Goacutergias como para Caacutelicles a natureza passa a ser ldquoum tipo de base

material conveniente para construir uma teoria da persuasatildeordquo (CROCKETT 1994 p 78)

Mas para Goacutergias o constrangimento pela forccedila eacute ato terriacutevel cujo agente deve

receber pelo discurso a acusaccedilatildeo pela lei a desonra pelo ato o castigo (Elogio de Helena

7) Os encantamentos divinos mediante os loacutegoi encantam a alma e nela induzem calafrio

de medo compaixatildeo e pesar comprazido (Elogio de Helena 8) Encantamento e magia se

encontram como teacutecnicas que geram erros da alma e ilusatildeo da opiniatildeo63

ndash os loacutegoi movem

os prazeres e removem as tristezas (Elogio de Helena 10) O uso abusivo do loacutegos por

natureza arrebata a psykheacute e por isso deve ser condenado A retoacuterica eacute uma arte de

62 A retoacuterica no Goacutergias observa Andy Crockett eacute feminina eacute mulher assim como a natureza e a desordem ao passo que o kosmos eacute masculino A concepccedilatildeo de que o mais forte subjuga o mais fraco eacute reforccedilada pelo

fato de a mulher ser naturalmente mais fraca do que o homem e pela misoginia da mulher no regime

democraacutetico ateniense fundamentalmente falogocecircntrico (CROCKETT 1994 p 71 ) 63

106

combate que deve ser usada de maneira legiacutetima contra os inimigos e criminosos como

meio de defesa e natildeo de agressatildeo (Goacutergias 457e) O mestre natildeo deve ser considerado

ldquoculpado ou criminosordquo pelo mau uso da arte Os criminosos satildeo ldquoos indiviacuteduos que fazem

mau uso de sua arterdquo (Goacutergias 457a) A forccedila encantatoacuteria e arrebatadora dos discursos por

constituir princiacutepio de accedilatildeo autocircnomo e causalidade proacutepria justificam a imputabilidade

Tem a mesma relaccedilatildeo tanto o poder do discurso para o

ordenamento da alma quanto o ordenamento dos faacutermacos para a

natureza dos corpos Pois assim como alguns dos faacutermacos

expulsam alguns humores do corpo e fazem cessar uns a doenccedila

outros a vida assim tambeacutem dentre os discursos uns afligem

outros deleitam outros atemorizam outros conferem ousadia aos

ouvintes outros por alguma maacute persuasatildeo drogam e enfeiticcedilam

completamente a alma

(Elogio de Helena 13)

A accedilatildeo conquistadora subjugante eacute movida pelo desejo eroacutetico e a passividade

daquele que eacute conquistado eacute como doenccedila que afeta a alma (Elogio de Helena 18) Se

poreacutem eacute uma doenccedila humana e um desconhecimento por parte da alma natildeo se deve

imputar como erro mas se deve julgar como infortuacutenio A accedilatildeo condenaacutevel do discurso eacute a

usurpaccedilatildeo psiacutequica que equivale agrave violecircncia do rapto

Caacutelicles ao contraacuterio de Goacutergias condena a limitaccedilatildeo da forccedila e a supressatildeo do fato

natural apoiado na polarizaccedilatildeo entre ativo e passivo conquistador e conquistado forte e

fraco capaz e incapaz desregramento e regra phyacutesis e noacutemos Sua defesa despudorada da

forccedila o tipifica como personificaccedilatildeo do disciacutepulo que desconhece a noccedilatildeo de justiccedila e que

por isso faz mau uso da retoacuterica e dos seus efeitos proacuteprios Caacutelicles elogia o belo e

censura o feio A persuasatildeo do loacutegos deve ser posta a serviccedilo da incontinecircncia do apetite

Condenaacuteveis satildeo os muitos que defendem seus interesses com as encantaccedilotildees e maacutegicas

com que estabelecem as leis Condenaacutevel eacute o eacutethos a moralidade do escravo Caacutelicles

advoga a justificaccedilatildeo retoacuterica da violecircncia cometida em prol do prazer com base na

107

constataccedilatildeo factual de uma ordem natural que premia o mais forte No plano da vantagem

nua e crua no campo dos interesses em conflito natildeo eacute natural que o menos capaz sobrepuje

o mais capaz

Na sua apologia agrave forccedila Caacutelicles promove uma re-significaccedilatildeo para o sentido de

noacutemos ao citar Piacutendaro a lei eacute de todos o rei64

dos mortais e dos imortais Como observa

Marian Demos ldquoo uso que Piacutendaro faz do termo (noacutemos) eacute livre de qualquer conotaccedilatildeo

ulterior Piacutendaro vecirc noacutemos como algo poderoso e inevitaacutevel que manteacutem todas as coisas

ldquocompensadasrdquo que regula todas as coisas Ao contraacuterio do que afirma Caacutelicles o poema

de Piacutendaro refere-se agrave forccedila (biacutea) de Heacuteracles qualificando-a como violecircncia e natildeo para

retratar seus trabalhos como modelo exemplar para a aquilataccedilatildeo daquilo que eacute mais justo

(DEMOS 1994 p 94) Enquanto o noacutemos no poema de Piacutendaro indica uma limitaccedilatildeo para

a violecircncia de Heacuteracles Caacutelicles usurpa o poeta e cita o trecho para sustentar sua tese de

que o uso da forccedila eacute a lei da natureza e justiccedila65

Estaacute advertido de que o recurso ao poeta

de renome e agrave comparaccedilatildeo com Heacuteracles possui um apelo persuasivo poderoso Toda

comparaccedilatildeo implica a aproximaccedilatildeo e transferecircncia de valores que satildeo acompanhadas por

afetos proacuteprios Os afetos ligados ao valor do modelo transferem-se para o termo

comparado Assim como Heacuteracles se valeu da violecircncia para roubar os bois de Geriatildeo a

violecircncia do homem superior encontra guarida na celebridade do precedente e nos valores

64 (Goacutergias 484b) 65 Segundo Apolodoro 2 4 8-9 (CARRIEgraveRE MASSONIE 1991 p 63) Heacuteracles filho de Zeus e

Alcmeacutene ultrapassava a todos em altura e forccedila Sua aparecircncia manifestava a todos que o viam que era um

filho de Zeus Seu corpo media quatro cocircvados seus olhos brilhavam com o claratildeo do fogo e suas flechas ou

dardos natildeo erravam o alvo A beleza do semideus se contrapotildee agrave monstruosidade de Geriatildeo seu corpo era

formado por trecircs dorsos reunidos na cintura e que se cindia novamente em trecircs a partir dos quadris e das

coxas (id 2 5 10 106 p 70) Morto por uma flecha de Heacuteracles o disforme Geriatildeo encarna a feiuacutera

monstruosa que estaacute na origem do afeto da vergonha O semideus por sua vez belo e poderoso cruza o

Oceano na taccedila de ouro do deus Heacutelios com o seu espoacutelio o gado puacuterpuro roubado de Geriatildeo

108

que o acompanham trata-se do modo de agir do semideus sobre-humano ndash o maior dos

heroacuteis da Heacutelade

Eacute notaacutevel o uso que Caacutelicles faz de coordenadas miacuteticas para a fundamentaccedilatildeo da

sobreexcelecircncia da forccedila natural e para a significaccedilatildeo do vergonhoso e do honroso A forccedila

encantatoacuteria arrebatadora maacutegica e enfeiticcediladora dos discursos eacute originada segundo

Goacutergias no divino (Elogio de Helena 10)66

Caacutelicles se vale de esquemas miacuteticos

longamente sedimentados nos quadros mentais gregos para consolidar afetos e valores A

encantaccedilatildeo estaacute na base da afetividade que configura modela e justifica as crenccedilas e a

opiniatildeo (NUNES SOBRINHO 2008 p 48ss) e o princiacutepio de accedilatildeo mais poderoso para a

identidade coletiva de uma sociedade baseada no combate e na disputa eacute configurado pelos

afetos ligados ao crivo puacuteblico

Segundo Burkert a busca pelo gado de Geriatildeo exprime uma tradiccedilatildeo preacute-grega

(1979 p 84) e segue um esquema de accedilotildees bem definido (1) o heroacutei empreende uma

busca (2) chega ao lugar de destino (3) comeccedila uma luta com o possuidor (4) derrota-o

(5) leva o gado (6) e retorna Este padratildeo segundo Burkert determina um esquema

antropoloacutegico invariante67

A narrativa miacutetica de Geriatildeo possui a especificidade de

descrever uma geografia coacutesmica Heacuteracles deve atravessar o Oceano no rumo do Sol por

meio da taccedila dourada presenteada por Heacutelios O Oceano eacute o ponto de encontro entre o ceacuteu e

a terra mediaccedilatildeo entre os poacutelos opostos delimitados pelo terrestre e pelo celestial O heroacutei

se vecirc diante de uma situaccedilatildeo problemaacutetica o trabalho de roubar o gado do monstro Geriatildeo

66 67 Walter Burkert segue a estrutura padratildeo e os motifemas estabelecidos por Vladimir Propp Segundo este

padratildeo o trabalho de Heacuteracles teria o seguinte esquema na ordem proposta por Propp Para apanhar o gado

de Geriatildeo sob o comando de Euristeu (9) Heacuteracles parte para uma longa viagem (11) Encontra o Velho

Homem do mar que lhe fornece algumas direccedilotildees (12 13) depara-se com Heacutelios o deus do Sol do qual

obteacutem um objeto maacutegico a taccedila de ouro para atravessar o Oceano (14) quando aporta agrave ilha Vermelha de

Eriteacuteia (15) trava um combate com o chefe dos animais um rugidor de trecircs cabeccedilas Geriatildeo (18) e apodera-

se da manada (19) (BURKERT 2001 p 88)

109

Para realizar a mediaccedilatildeo implicada pela tarefa recebe como recurso um instrumento

divino a taccedila de ouro presenteada por Heacutelios A travessia ou passagem de um plano

coacutesmico para outro soacute eacute realizada mediante o emprego de um recurso divino A ilha

vermelha Eryteacuteia (paiacutes vermelho) onde se encontra o gado puacuterpuro evoca o ocaso

momento de encontro coacutesmico A luta o emprego de recursos divinos a forccedila sobre-

humana e finalmente a vitoacuteria sobre o monstro disforme justificam a soberania e o poder

(VERNANT 2002 p 250 ss) A universalidade deste esquema miacutetico de pensamento

confere segundo Burkert significaccedilatildeo para a vida pastoral cujo maior problema era a

possibilidade de que o rebanho fosse perdido ou roubado O desaparecimento dos animais

era atribuiacutedo sempre agrave accedilatildeo de algum daiacutemon O heroacutei eacute venerado e cultuado em funccedilatildeo de

encarnar dar expressatildeo e significaccedilatildeo para a necessidade vital de lidar com o medo difuso

(ansiedade) da perda do rebanho e do roubo perpetrado por adversaacuterios funestos Eacute preciso

encontrar coragem para a busca daquilo que foi extraviado por potecircncias demoniacuteacas e

haurir proteccedilatildeo efetivada na forccedila heroacuteica que modela a exemplaridade do sucesso

(BURKERT 1979 p 85)

33 Aiskhyacutene Aidōs e Causalidade

Na Apologia Soacutecrates se vale do recurso ao paradigma miacutetico com o escopo de re-

significar o afeto da vergonha Diante da questatildeo da vergonha provocada pelo perigo de

morte decorrente de suas ocupaccedilotildees praacuteticas 68

Soacutecrates recorre aos valores heroacuteicos da

bela morte de Aquiles como meio de reformular a hierarquia daquilo que eacute temiacutevel

vergonhoso e desonroso Nenhum valor pode estar acima de uma vida honrada nem

mesmo o perigo da morte pois nada eacute pior do que viver na desonra Por menor que seja o

68

(Apologia 28b03-04)

110

valor de um homem a vida praacutetica natildeo deve calcular o perigo da morte mas somente se eacute

justa ou injusta se as accedilotildees satildeo as de um homem bom ou mau (28b05-09) Se o risco da

morte ensejasse a vergonha a vida dos semideuses de Troacuteia seria uma vida inferior jaacute que

o filho de Theacutetis natildeo se preocupou com o perigo da morte perante a ameaccedila da vergonha

A morte e o perigo nada satildeo em comparaccedilatildeo com a infelicidade de uma vida em que os

amigos do heroacutei natildeo satildeo vingados (28c08-29d01)

Em uma sociedade de confronto na qual para ser reconhecido eacute

preciso derrotar os rivais em uma competiccedilatildeo incessante pela

gloacuteria cada indiviacuteduo estaacute colocado sob o olhar do outro cada

indiviacuteduo existe por esse olhar Ele eacute o que os outros veem dele A

identidade de um indiviacuteduo coincide com sua avaliaccedilatildeo social da

derrisatildeo ao louvor do desprezo agrave admiraccedilatildeo Se o valor de um

homem permanece assim ligado agrave sua reputaccedilatildeo toda ofensa

puacuteblica agrave sua dignidade todo ato ou comentaacuterio que atinge seu

prestiacutegio seratildeo sentidos pela viacutetima enquanto natildeo forem

abertamente reparados como uma forma de rebaixar ou destruir

seu ser sua virtude iacutentima e de consumir sua queda Desonrado

aquele que natildeo conseguiu que o homem que o ofendeu pague pelo

ultraje perde com sua timḗ o renome o lugar na hierarquia e os

privileacutegios Separado das solidariedades antigas afastado do

grupo de seus pares o que resta dele Caiacutedo abaixo do vilatildeo do

kakoacutes que ainda tem seu lugar nas hostes do povo torna-se um

errante sem paiacutes ou raiacutezes eacute um exilado despreziacutevel um homem

sem nenhum valor

(VERNANT 2001 p 407-408)

A simetria das imagens miacuteticas garante a transitividade dos valores secularmente

preservados assim como a bela morte indica que os desvalores e perigos da vida nada satildeo

em comparaccedilatildeo com a gloacuteria reservada pela memoacuteria imortal assim tambeacutem os valores

seguros nada satildeo diante da desonra reservada pela injusticcedila do viver O risco do oproacutebrio

coletivo torna a vergonha e a desonra mais insuportaacuteveis do que o risco da morte

Eis a verdade destas questotildees Atenienses qualquer que seja a

ordem que algueacutem ocupe quer tenha se tornado melhor por si

mesmo ou fixado por um arkhonte o dever se impotildee como eacute minha

opiniatildeo de permanecer nele qualquer que seja o perigo sem

111

calcular nem a morte nem outra coisa acima da desonra

(Apologia 28d06-10)

O emprego argumentativo das imagens confere significaccedilatildeo agraves accedilotildees mediante o

aporte afetivo suscitado pela encantaccedilatildeo Soacutecrates opera uma transposiccedilatildeo e re-valoraccedilatildeo

dos valores a partir de esquemas psiacutequicos compartilhados incontestes no enclave da

paideacuteia miacutetica Assim como uma vida de desonra natildeo vale a pena ser vivida uma vida sem

exame natildeo merece ser vivida69

A simetria das imagens miacuteticas engendra por outro lado a

reversatildeo dos valores o melhor dos homens cidadatildeo da mais importante e mais renomada

cidade pelo saber e pelo poder deve se envergonhar por cuidar (epimeloumenos) das

riquezas da reputaccedilatildeo e da honra e por natildeo se preocupar de cuidar do pensamento da

verdade e da melhoria da alma (Apologia 29d) O emprego da encantaccedilatildeo miacutetica visa

transpor a triparticcedilatildeo de valores praacuteticos exteriores para a triparticcedilatildeo de valores psiacutequicos e

com isso re-significar o vergonhoso e o desonroso a epimeleacuteia da psykheacute valor supremo

interioriza o afeto da vergonha A vergonha e o honroso cujo escopo eacute a alma natildeo depende

do olhar coletivo e de suas sanccedilotildees mas referencia-se tatildeo somente no olhar da alma para

consigo mesma Mas o discurso revolucionaacuterio de Soacutecrates eacute incompatiacutevel com a

brutalidade da constataccedilatildeo do fato de que as riquezas a fama e o poder constituem os

maiores valores de todos os tempos A sobrelevaccedilatildeo desses valores natildeo pode apoiar-se

numa tradiccedilatildeo miacutetica cujo apanaacutegio consiste em consolidar mediante a crenccedila os afetos

que sancionam os esquemas psiacutequicos tradicionais

No Goacutergias a menccedilatildeo ao deacutecimo trabalho de Heacuteracles ao mesmo tempo justifica

a soberania natural do mais forte e define a exemplaridade para aquilo que eacute assimilado ao

disforme e vergonhoso Caacutelicles habilmente qualifica o processo de estabelecimento das

69 (Apologia 38a05-06)

112

leis como encantaccedilotildees70

e sortileacutegios71

cujo fim eacute a subjugaccedilatildeo da sobreexcelecircncia natural

A inculcaccedilatildeo das leis nos jovens eacute uma violecircncia tatildeo antinatural como a domesticaccedilatildeo dos

leotildees O mau uso da encantaccedilatildeo potecircncia intriacutenseca do discurso eacute assacado ao

estabelecimento das leis e natildeo agrave retoacuterica Mas a forccedila retoacuterica das imagens miacuteticas serve

ainda para desqualificar o anti-heroacutei encarnado por Soacutecrates

Pois agora se fosses preso tu e todos os teus semelhantes e jogado

na prisatildeo sob o pretexto de uma injusticcedila natildeo cometida tu estarias

sem defesa tomado de vertigem e com a boca aberta sem nada

dizer depois levado diante de um tribunal colocado diante de um

acusador sem talento nem consideraccedilatildeo tu serias condenado a

morrer se ele quisesse se honrar com tua morte

Goacutergias 486a-b

A falta de recurso de Soacutecrates identifica-se com a ausecircncia do expediente divino que

interveacutem nos mitos de culpa Destituiacutedo dos expedientes retoacutericos Soacutecrates estaacute na posiccedilatildeo

do anti-heroacutei que natildeo pode superar as situaccedilotildees impedientes A retoacuterica eacute recurso divino

sub-repticiamente associado agrave analogia entre o homem justo por Natureza e Heacuteracles Com

isso Caacutelicles extrai da valoraccedilatildeo miacutetica a forccedila persuasiva da encantaccedilatildeo fundamento da

70

(Goacutergias 484e05-06) 71

Segundo Elizabeth Belfiore (1980) Platatildeo recorrentemente usa o vocabulaacuterio dos sortileacutegios

( ) dos encantos () remeacutedios e venenos ( ) para condenar um

inimigo (Sofista 234c 235a 241b) (Repuacuteblica 598d 602d 601b 607c-d) Em outras passagens os prazeres

afrodisiacuteacos satildeo apresentados como enfeiticcedilamento (Feacutedon 81b) (Filebo 44c) (Repuacuteblica 584a) Soacutecrates eacute

apresentado tambeacutem como feiticeiro encantador (Meacutenon 80b) (Banquete 215c-d) A tese de Belfiore

consiste em identificar na Filosofia uma contra-maacutegica e o papel de desfazer ilusotildees Em Repuacuteblica III (412e

413a) a identifica-se com a exposiccedilatildeo agrave ilusatildeo e ao fortalecimento da opiniatildeo Haacute trecircs meios de

privar-se da verdade de maneira natildeo consentida ( ) pelo roubo pela forccedila e pela Os que

satildeo encantados mudam a opiniatildeo por prazer ou pelo medo (413c) O enfeiticcedilamento muda as opiniotildees opera

por meio dos afetos prazeres e do medo ( ) e implica o abandono da opiniatildeo verdadeira de maneira natildeo

consentida Conforme jaacute notava Goacutergias (Elogio de Helena 10) as encantaccedilotildees persuadem por

meio da mas tambeacutem podem causar o medo O medo eacute um iacutendice e um signo de reconhecimento

de que o corpo se manteacutem preponderante sobre o pensamento apanaacutegio da alma (Feacutedon 68c) Eacute do medo que

derivam as duacutevidas e as hesitaccedilotildees que paralisam as accedilotildees humanas (NUNES SOBRINHO 2008 p 51) A Filosofia 1) afasta as falsas opiniotildees por meio do eacutelenkhos 2) habilita a resistir contra o prazer e o medo e 3)

capacita a agir sem compulsatildeo Natildeo obstante o discurso como natildeo pode prescindir do concurso

das encantaccedilotildees que predispotildeem a alma agrave (Caacutermides 155e05-08) As encantaccedilotildees afastam os

medos destrutivos curam os afetos violentos e satildeo condiccedilotildees para o pensamento purificado (Feacutedon 66d)

113

opiniatildeo justificada pela crenccedila e inaugura no diaacutelogo o emprego da narrativa miacutetica como

elemento integrado agrave argumentaccedilatildeo

O processo de cinco etapas estabelecido por Burkert para descrever a sequecircncia

universal de accedilotildees que caracterizam as narrativas de situaccedilotildees impedientes emerge do

vaticiacutenio de Caacutelicles i) surge uma experiecircncia ameaccediladora inquietante do mal ou da

desgraccedila ii) a calamidade suscita a procura da causa iii) surge um mediador com

conhecimentos sobre-humanos um vidente areter ou adivinhador iv) um diagnoacutestico eacute

feito a causa do mal eacute definida atraveacutes do estabelecimento da culpa e da identificaccedilatildeo do

erro cometido v) uma vez definida a causa expedientes para a salvaccedilatildeo satildeo prescritos

como medidas expiatoacuterias rituais que natildeo excluem procedimentos de natureza racional

uma arte dolosa eacute requerida para a salvaccedilatildeo (2001 p 142) Esta eacute exatamente a estrutura

do argumento que estabelece o anti-heroiacutesmo de Soacutecrates A causa eacute identificada mas

faltam os recursos necessaacuterios para a salvaccedilatildeo O argumento indica uma conexatildeo entre

responsabilidade e puniccedilatildeo ou cataacutestrofe Haacute um nexo causal entre culpa e castigo

personificado na moira (DODDS 2002 B p 41) O vaticiacutenio de Caacutelicles eacute antes de tudo a

afirmaccedilatildeo de uma conexatildeo causal Soacutecrates acabaraacute condenado agrave morte por ser o uacutenico

responsaacutevel por sua proacutepria aporiacutea Falta-lhe o expediente encantatoacuterio propiciador da

salvaccedilatildeo

Se a finalidade do discurso for uacutenica e exclusivamente a persuasatildeo e a adesatildeo

suscitados mediante a mobilizaccedilatildeo afetiva e valorativa a mestria de Caacutelicles esboccedila outro

aspecto intriacutenseco aos loacutegoi aos sortileacutegios e agrave maacutegica72

ndash todos endereccedilados agrave multidatildeo

eles satildeo espetaculares Agrave hoplomakhiacutea dos discursos cabe por princiacutepio estabelecer o bom

72 (Elogio de Helena 10)

114

e o mau uso dos seus efeitos a encantaccedilatildeo e o assentimento pela crenccedila Este uso dos

efeitos determina o bom e o mau uso da retoacuterica em suma a sua moralidade

Kerferd sustenta a tese de que a posiccedilatildeo de Caacutelicles natildeo eacute imoral pois (a) ldquoenvolvia

a rejeiccedilatildeo do direito convencional em favor do direito natural como algo reivindicado como

mais alto melhor e moralmente superiorrdquo e (b) Caacutelices natildeo eacute culpaacutevel de simplesmente

reduzir ldquodeverdquo a ldquoeacuterdquo como resposta agrave questatildeo do que eacute certo visto que simplesmente

constata que o que acontece na natureza deve ser melhor (KERFERD 2003 p 201)

Todavia ao contraacuterio do que afirma Kerferd parece ser mais correto atribuir muito

mais arguacutecia a Caacutelicles e com mais razatildeo ainda a Platatildeo Caacutelicles como demonstra

Demos promove conscientemente uma inversatildeo no sentido de noacutemos conforme aparece

em Piacutendaro Isso indica a mestria de uma presunccedilatildeo que constitui um dos recursos retoacutericos

mais poderosos e que se tornaria perenamente vaacutelido no campo da argumentaccedilatildeo

verossiacutemil o da alegaccedilatildeo de que o habitual por ser sempre esperado pela opiniatildeo comum

continuaraacute sempre ocorrendo Caacutelicles parece perfeitamente ciente de que pode alegar que

o que eacute habitual torna-se normativo e por isso sem receios opera a passagem do eacute para o

deve

A parte final da peccedila retoacuterica de Caacutelicles constitui-se em exortaccedilatildeo A filosofia eacute

desqualificada como adestramento disciplina que participa (meteacutekhein) da educaccedilatildeo

propedecircutica que deve ser abandonada em favor das coisas maiores73

Tal adestramento eacute

semelhante ao dos animais que se pretende domesticar e ldquoeacute orientado no sentido de

extraviar e iludir sistematicamente as naturezas fortes e manter de peacute o poder dos fracosrdquo

(JAEGER 1995 p 668) O argumento aporta ao recurso da reprovaccedilatildeo pelo ridiacuteculo

(katageacutelastos) o exerciacutecio filosoacutefico eacute uma desmedida punida pelo riso puacuteblico Desajuste

73 (Goacutergias 484c)

115

entre a praacutetica particular e o que eacute aceitaacutevel publicamente extravagacircncia de um exerciacutecio

indecoroso que se opotildee ao que eacute conveniente e bem reputado (eudoacutekimon) pela cidade a

formaccedilatildeo filosoacutefica e o seu modo de vida correspondente satildeo contraacuterios agrave natureza O

resultado disso eacute a perplexidade a irresoluccedilatildeo (apragmosyne) diante da efetividade poliacutetica

e a incapacidade de prover defesa de si mesmo o criteacuterio uacuteltimo para um modo de vida

calcado no conflito de interesses

A Filosofia eacute desqualificada mediante a sua identificaccedilatildeo com parte de uma Paideacuteia

mais ampla e voltada para as questotildees poliacuteticas A inclusatildeo desvalorizadora num conjunto

de disciplinas equivalentes exige a aplicaccedilatildeo a um momento oportuno da formaccedilatildeo do

homem A excrescecircncia eacute assimilada ao desajuste ao despudor A fala de Caacutelicles promove

a reversatildeo da presunccedilatildeo que associa a sabedoria ao presbyacuteteros em vez de ser associada agrave

sabedoria do mais velho Soacutecrates eacute comparado ao adulto que se porta com a conduta de

uma crianccedila balbuciante O homem que age de modo infantil parece ridiacuteculo (katageacutelastos)

e desvirilizado (anaacutendros) e deve por isso receber o mesmo tipo de correccedilatildeo que se aplica

agrave crianccedila e que Soacutecrates faz por merecer pancadas74

(MICHELINI 1998 p 55)

Toda a forccedila moral do golpe retoacuterico deriva do fato secular e lentamente cristalizado

na noccedilatildeo de que o maior princiacutepio de accedilatildeo para um homem bem reputado eudoacutekimon natildeo

eacute ldquoo medo de um deus mas o respeito agrave opiniatildeo puacuteblica aidōsrdquo (DODDS 2002 B p 26)

Tanto a atitude moral de Polos como a de Caacutelicles expressam simultaneamente a boa

reputaccedilatildeo como um objetivo social a ser atingido e a vergonha como fracasso ambas

exploradas pela habilidade retoacuterica (DODDS 2002 A p 11 ss) Nada mais insuportaacutevel

74

o

(Goacutergias 485c)

116

para um psiquismo coletivo fortemente impregnado pela ldquovergonhardquo do que a exposiccedilatildeo ao

desprezo e ao ridiacuteculo

Natildeo eacute por acaso que a vergonha seja reconhecida como um leimotiv de toda a

encenaccedilatildeo dramaacutetica a palavra aiskhyacutene juntamente com suas formas verbais e o adjetivo

aiskhroacutes ocorrem setenta e cinco vezes no diaacutelogo Por essa razatildeo a estrateacutegia de

desvalorizaccedilatildeo da retoacuterica promovida pela dialeacutetica socraacutetica implica o esvaziamento

eacutetico-afetivo de princiacutepios de accedilatildeo tradicionais baseados na reputaccedilatildeo e na vergonha

puacuteblicas (RACE 1979 p 197ss) que satildeo constituintes basilares da mentalidade

aristocraacutetica ateniense Goacutergias e Polos foram viacutetimas Sua derrota foi causada sobretudo

pelo constrangimento decorrente da proacutepria vergonha que os forccedilou agrave assunccedilatildeo de que eacute

mais vergonhoso cometer injusticcedila a ter de sofrecirc-la (DODDS 2002 A p 263) Essa

vergonha equivale agrave pudiciacutecia que natildeo deve despir-se ao olhar coletivo a beleza natural das

partes iacutentimas a nudez A contradiccedilatildeo que torna o discurso insustentaacutevel emerge a partir

de afeto insuportaacutevel suscitado pelo discurso demagoacutegico o paacutethos da vergonha75

Afeto e

discurso satildeo congruentes implicam-se e significam-se mutuamente

Entatildeo Goacutergias foi envergonhado disse Polos e admitiu ensinar (a

justiccedila segundo o haacutebito (eacutethos) dos homens para que algueacutem natildeo

se indignasse se dissesse o contraacuterio Foi por causa dessa

concordacircncia que Goacutergias foi constrangido a contradizer-se o que

muito te satisfaz Por isso Polos te ridicularizou corretamente

segundo penso Agora ele sofre o mesmo constrangimento

(eacutepathen) E por causa disso eu mesmo natildeo admiro Polos pelo

consentimento de que cometer injusticcedila eacute mais desonroso (aiskhiacuteon)

do que cometecirc-la Pois por causa dessa concordacircncia ele foi

enredado (sympodistheigraves) por ti nos argumentos e foi emudecido

por se envergonhar de dizer o que pensa76

75

Goacutergias 482c05-07 76

(Goacutergias 482d03-e02) Traduccedilatildeo modificada a partir de Irwin (1979)

117

Caacutelicles fundamenta a divisatildeo entre natureza e lei no afeto da vergonha segundo a

lei (kataacute noacutemos) eacute vergonhoso cometer injusticcedila mas segundo a natureza ocorre

precisamente o contraacuterio Haacute dois sentidos para a vergonha concernentes a cada um dos

dois termos da divisatildeo77

Qual das duas vergonhas deve fundamentar o respeito a

reverecircncia e a honra que possibilitam o criteacuterio para a escolha da melhor vida Seraacute a

vergonha que emerge do olhar coletivo longamente moldado na tradiccedilatildeo e nos noacutemoi ou a

vergonha aristocraacutetica que remete para a forccedila natural sem consideraccedilatildeo para com as

convenccedilotildees A disjunccedilatildeo entre natureza e lei sempre haure sentido na exterioridade

Soacutecrates subverte o sentido da vergonha ao vinculaacute-la ao cuidado da alma e agrave virtude O

criteacuterio para a escolha dos valores deriva da auto-sēmasiacutea ele brota do olhar da alma para

consigo mesma

Mas para Caacutelicles phyacutesis e noacutemos satildeo incompatiacuteveis e se a vergonha constituir um

impedimento para que ousadamente se fale aquilo que se pensa necessariamente haveraacute

contradiccedilatildeo (482e-483a) O afeto da vergonha indica uma incompatibilidade entre as

crenccedilas o pensamento (noeacuteō) e o discurso publicamente assumido O principal elemento

que caracteriza as ldquoamarrasrdquo da dialeacutetica socraacutetica natildeo eacute meramente proposicional e natildeo

77 Bensen Cain critica o procedimento refutativo de Soacutecrates mediante a distinccedilatildeo semacircntica do que eacute

moralmente vergonhoso e do que eacute mau ou prejudicial Polos admite a existecircncia factual de uma vergonha

convencional mas natildeo assente ao fato de que accedilotildees injustas sejam maacutes Ao contraacuterio o exemplo de Arquelau

seria suficiente para provar que o homem mais injusto eacute o mais feliz A refutaccedilatildeo de Polos eacute de ordem

semacircntica e ocorre por identificar o vergonhoso com o prejudicial Cain qualifica a falsa refutaccedilatildeo socraacutetica como falaacutecia de ambiguidade um deslizamento (sliding) ou oscilaccedilatildeo ambiacutegua entre duas acepccedilotildees

semacircnticas da vergonha (2008 p 221 ss) A anaacutelise de Cain expotildee com bastante clareza o fato de que as

interpretaccedilotildees do eacutelenkhos satildeo insuficientes por natildeo levarem em conta o exame semacircntico do afeto da

vergonha Natildeo obstante sua leitura aleacutem de empregar a terminologia proposicional moderna de Vlastos

pressupotildee o princiacutepio natildeo explicitado de que a significaccedilatildeo semacircntica faz referecircncia a uma realidade objetiva

exterior Caacutelicles personagem platocircnica aponta exatamente o problema da distinccedilatildeo semacircntica dos dois

sentidos de aiskhroacutes aiskhiacuteon como expediente demagoacutegico empregado por Soacutecrates A questatildeo da

significaccedilatildeo afetiva todavia deveria ser auto-referenciada no acircmbito interno da alma

118

pode ser reduzido agrave consecuccedilatildeo de conclusotildees que decorrem de premissas fracas78

O iniacutecio

da contradiccedilatildeo aponta para uma dissociaccedilatildeo psiacutequica a oposiccedilatildeo entre a vergonha suscitada

pela reprovaccedilatildeo coletiva e as crenccedilas subjacentes ao pensamento79

O proacuteprio Caacutelicles

afirma que natildeo seria presa da vergonha em funccedilatildeo de discernir com exatidatildeo a distinccedilatildeo

entre phyacutesis e noacutemos Esta ausecircncia de vergonha eacute inversamente proporcional agrave ousadia

(toacutelmacirci) no falar que configura a sua ldquofranquezardquo No tinir das espadas da palavra

emergem os afetos e atributos psiacutequicos como princiacutepios da accedilatildeo e do gecircnero de vida

aceitaacutevel e honoraacutevel o apetite de ter mais a vergonha e a honra o pensamento os

discursos e seus efeitos o caraacuteter e a justiccedila A verdadeira contradiccedilatildeo (enantiacutea) eacute

contradiccedilatildeo entre discurso afetos manipulaccedilatildeo dos afetos (encantaccedilatildeo e goēteiacutea) e

pensamentos determinantes para a melhor vida a vida de mais brilho de maior valor forccedila

e significaccedilatildeo A verdadeira contradiccedilatildeo ocorre no acircmbito da complexidade da alma

A divisatildeo entre phyacutesis e noacutemos implica uma oposiccedilatildeo que procura reduzir a questatildeo

da justiccedila a duas partes tornadas incompatiacuteveis pelos interesses em oposiccedilatildeo que

configuram a inteireza da cidade A exaustividade das duas partes exclui a possibilidade de

qualquer outra subdivisatildeo e reduz o debate a duas posiccedilotildees antagocircnicas entre as quais se

78 Irwin aponta o ldquoescruacutepulo convencionalrdquo como base do diagnoacutestico do embaraccedilo em que se meteram

Goacutergias e Polos mas somente reconhece na passagem uma criacutetica proposicional ao meacutetodo refutativo

empregado por Soacutecrates Caacutelicles teria oferecido duas objeccedilotildees ao eacutelenkhos (i) Soacutecrates muda as premissas

do argumento preacutevio (ii) Soacutecrates depende de premissas concedidas pelo interlocutor e com isso

simplesmente fia-se nos preconceitos do interlocutor ou em visotildees com as quais natildeo concorda inteiramente

(1979 p 170) O desenvolvimento da criacutetica de Caacutelicles no entanto indica que o embate dialoacutegico gira em

torno da questatildeo do gecircnero de vida e da decorrente significaccedilatildeo do paacutethos da vergonha 79 Vlastos consigna ao eacutelenkhos a funccedilatildeo de testar ou provar o modo de vida e o caraacuteter ou a honestidade do interlocutor mediante a afirmaccedilatildeo de uma crenccedila que este efetivamente possui O gecircnero de vida nessa

perspectiva seria somente uma garantia da veracidade das teses defendidas e da seriedade na busca da

verdade Embora Vlastos reconheccedila que o eacutelenkhos possua o duplo papel existencial de ldquomostrar como cada

ser humano deve viver e testar aquele ser humano uacutenico que estaacute respondendo a fim de descobrir se ele vive

como algueacutem deve viverrdquo sua anaacutelise do eacutelenkhos padratildeo possui um enfoque inteiramente proposicional

segundo o qual o esquema baacutesico seria a anaacutelise ad hoc de proposiccedilotildees q e r natildeo conectadas logicamente agrave

crenccedila p do interlocutor a fim de se chegar agrave assunccedilatildeo de natildeo-p

olympiodoro

119

deve forccedilosamente escolher O artifiacutecio retoacuterico de Caacutelicles eacute paradigmaticamente

estrateacutegico apoacutes reduzir o debate a dois poacutelos excludentes passa-se a desqualificar a

posiccedilatildeo do adversaacuterio mediante a reduccedilatildeo ao ridiacuteculo para logo em seguida conferir

primazia para a uacutenica alternativa possiacutevel Por essa razatildeo a exortaccedilatildeo caricatura o modo de

viver filosoacutefico num quadro em que Soacutecrates passa o resto de seu tempo cochichando

(psithyriacutezdonta) sem que seja capaz de murmurar (phtheacutenxasthai) o que eacute livre grande e o

que vem a propoacutesito (Goacutergias 485d-e)

Sob a aparecircncia da disposiccedilatildeo amigaacutevel80

a admoestaccedilatildeo segue impulsionada pela

alegaccedilatildeo de um paacutethos de perigo iminente que enseja a estrateacutegia de mais uma comparaccedilatildeo

depreciativa segundo a qual a situaccedilatildeo protagonizada por Soacutecrates evoca aqueloutra

encenada na Antiacuteope de Euriacutepides81

Como o muacutesico Amphion Soacutecrates esquece o modo de conduzir as ocupaccedilotildees e

torna a natureza de sua alma pueril natildeo sabe cuidar de si natildeo eacute capaz de um loacutegos reto em

conselhos de justiccedila natildeo poderia apreender nem o razoaacutevel (eikoacutes) nem o persuasivo

(pithanoacutes) e nem poderia pocircr a serviccedilo de outro um conselho decidido (bouacuteleuma

80

81 Segundo M Canto (1993 p 333) o tema principal da trageacutedia de Euriacutepides era a libertaccedilatildeo de Antiope por

sues filhos gecircmeos Zḗthos e Amphion O primeiro era pastor e Amphion muacutesico Na encenaccedilatildeo Euriacutepides

opotildee dois modos de vida conflitantes mediante a tipificaccedilatildeo dos dois irmatildeos ao deslocamento de um artista e

filoacutesofo que se afasta das atividades puacuteblicas se opotildee a atividade praacutetica de um homem de accedilatildeo Croiset

(2003 p 284-285 n 1) afirma que Zḗthos era vigoroso e eneacutergico se dedicava agrave caccedila e agrave criaccedilatildeo de animais

ao passo que Amphion desdenhava os exerciacutecios violentos por possuir uma natureza mais fina e mais

sensiacutevel Amphion teria recebido de Hermes a lira com a qual se dedicava agrave muacutesica e agrave poesia E R Dodds atribui a Euriacutepides uma visatildeo anti-racionalista que vai de encontro com a concepccedilatildeo platocircnica de

uma ordem racional que perpassa o Koacutesmos Para Euriacutepides o homem eacute escravo da Necessidade e o divino eacute

muito mais um conjunto de potecircncias irracionais do que a expressatildeo de uma racionalidade A atitude de

Amphion em relaccedilatildeo agrave poliacutetica torna manifesto o artifiacutecio da comparaccedilatildeo desqualificadora usado por Caacutelicles

na sua exortaccedilatildeo No Fr 201 Amphion suplica conceda-me o dom da muacutesica e da afirmaccedilatildeo sutil natildeo

permita de forma alguma que eu me meta nos destemperos do Estado A alusatildeo agrave personagem da Antiope de

Euriacutepides caricatura e desvaloriza Soacutecrates Natildeo obstante Dodds acentua as diferenccedilas entre o poeta traacutegico e

Platatildeo ldquoO contemplativo platocircnico estaacute em casa no Universo porque ele vecirc o Universo como sendo

penetrado por uma razatildeo divina e portanto eacute acessivel agrave razatildeo humana tambeacutem Mas o homem de Euriacutepides

eacute o escravo e natildeo a crianccedila favorita dos deuses e o nome da bdquoordem sem idade‟ eacute a Necessidade

chora o Coro na Alcestis (DODDS 1929 p 101)

120

bouleuacutesaio)82

Ao comparar a sua exortaccedilatildeo com a reprimenda que Zḗthos dirige ao irmatildeo

por causa de uma atividade lassa Caacutelicles coloca Soacutecrates e Amphion num mesmo plano

Natildeo haacute modo mais direto de desqualificar o adversaacuterio do que comparaacute-lo com uma

personagem reconhecidamente despreziacutevel A contundente desqualificaccedilatildeo eacute endereccedilada

simultaneamente ao homem e agrave sua atividade e possui o inegaacutevel valor retoacuterico de suscitar

a adesatildeo sem reclamar justificaccedilatildeo pois se vale do proacuteprio processo mental com que o

homem comum forma a sua opiniatildeo

A fala de Caacutelicles deixa entrever que o tipo de racionalidade pretendida pela retoacuterica

natildeo se preocupa com a explicaccedilatildeo e as causas de seu procedimento mas tatildeo somente aduz

arrazoados que se valem das opiniotildees arraigadas no quadro mental da cidade para forcejar a

persuasatildeo A elaborada construccedilatildeo do discurso de Caacutelicles torna patente o fato de que

Platatildeo natildeo nega a eficaacutecia da engenhosidade retoacuterica Pelo contraacuterio eacute em funccedilatildeo da

eficaacutecia de uma praacutetica que se vale de esquemas de pensamento que natildeo satildeo explicitados eacute

que Platatildeo contrapotildee agrave retoacuterica a Filosofia como a uacutenica racionalidade legiacutetima A

racionalidade genuiacutena eacute aquela que natildeo somente sustenta seu loacutegos em causas mas que

garante a excelecircncia do ḗthos a partir de uma noccedilatildeo de justiccedila que ultrapassa a efemeridade

das circunstacircncias e das conveniecircncias

Agrave rhḗsis retoricamente bem acabada de Caacutelicles Soacutecrates sem detenccedila evoca a

alma como a instacircncia na qual os seus efeitos se manifestam A psykheacute eacute a origem e o fim

do loacutegos Este por sua vez eacute um meio pelo qual os movimentos psiacutequicos interatuam e

influenciam-se mutuamente engendrando inteligecircncia ou ilusatildeo miriacuteades de afetos

significaccedilotildees ou perplexidades Se a alma fosse de ouro (khryacutesen) Caacutelicles seria o liacutethos a

82 icirc

(Goacutergias 485e06-a03)

121

pedra de toque abrasiva que prova a preciosidade Assim como a pedra de toque prova o

ouro agrave alma prova o loacutegos

Agrave ordenaccedilatildeo da rhḗsis segue raacutepida a sutileza da eironeiacutea Baacutesanos eacute

simultaneamente a pedra de toque que prova o ouro e a interrogaccedilatildeo sob tortura ndash a forma

mais brutal e desumanizadora de violecircncia e de manifestaccedilatildeo de poder83

A exortaccedilatildeo

retoacuterica de Caacutelicles eacute pedra de toque ou tortura Olympiodoro observa que a metaacutefora

ressalta o papel de teste do eacutelenkhos assim como uma pedra friccionada agrave outra provoca a

faiacutesca que se torna chama uma dificuldade friccionada agrave outra se torna a causa da

descoberta Assim como a pedra prova o ouro a pureza da alma eacute provada pela dureza do

caraacuteter de Caacutelicles (OLYMPIODORUS 1998 p 194)

O emprego irocircnico da ambiguidade enseja o estabelecimento de condiccedilotildees

diretrizes Para provar (basanieicircn) suficientemente se uma alma vive retamente ou natildeo eacute

preciso trecircs qualidades o saber (episteacuteme) a benevolecircncia (eunoacuteia) e a franqueza

(parrhēsiacutea)84

Tais condiccedilotildees satildeo determinaccedilotildees da alma e se contrapotildeem discursivamente

agrave divisatildeo bipolar postulada por Caacutelicles entre phyacutesis e noacutemos A questatildeo da valoraccedilatildeo das

accedilotildees pressupotildee a esfera psiacutequica e essa triparticcedilatildeo (triacutea) de determinaccedilotildees psiacutequicas

83

Michael Gagarin (1996 p 1) mostra que a tortura era praacutetica corrente na democracia ateniense como

instrumento juriacutedico usado nos tribunais Uma norma bem conhecida sustenta que na maioria dos casos os testemunhos dos escravos soacute eram admissiacuteveis no tribunal se eles fossem levados sob tortura e nos discursos

forenses de sobrevivecircncia os oradores frequentemente descrevem as regras que regem e enaltecem

a praacutetica como a mais eficaz e ateacute mesmo ldquomais democraacuteticardquo (Lycurg 129) Era um toacutepos que a informaccedilatildeo

mediante era preferiacutevel ao depoimento de testemunhas livres Sendo assim um orador afirma

(Dem 3037) Certamente vocecircs (jurados) consideram como a prova mais precisa de todas em

ambos os casos privado e puacuteblico e quando escravos e pessoas livres estiverem ambas disponiacuteveis e vocecircs

precisarem descobrir algum fato sob investigaccedilatildeo natildeo usem o testemunho das pessoas livres mas sujeitem

os escravos ao dessa forma procurem descobrir a verdade E isso eacute bem razoaacutevel senhores do

juacuteri pois vocecircs sabem muito bem que no passado algumas testemunhas pareceram depor falsamente

enquanto ningueacutem que se sujeitou ao comprovadamente jamais falou falsamente sob 84

(Goacutergias 487a)

122

aponta ao mesmo tempo para um modo de unificaccedilatildeo e um modo de dissociaccedilatildeo ou de

fragmentaccedilatildeo

34 Parrhēsiacutea e Epithymiacutea

Polos ndash Por quecirc Natildeo me eacute permitido falar o quanto eu quiser

Soacutecrates ndash Terriacutevel sofrimento terias oacute excelente se desde tua

chegada a Atenas a cidade da Heacutelade onde a liberdade de falar eacute a

maior tu fosses o uacutenico homem que tivesse essa falta de sorte

Goacutergias 461d85

A liberdade da fala reflete o igualitarismo ateniense e a expectativa de que o

cidadatildeo se engaja na assembleacuteia mediante o discurso aberto A participaccedilatildeo direta na vida

ciacutevica pressupotildee a fala consonante com o pensamento de quem a profere A parrhēsiacutea

constitui-se na abertura do discurso que revela o pensamento de quem fala Qualquer

expediente que ofusque o pensamento como a retoacuterica86

denota a prevalecircncia dos

interesses particulares em detrimento do bem-estar da cidade

Nesse sentido a parrhēsiacutea aparece inicialmente como a fala aberta que revela o

pensamento e as verdadeiras crenccedilas do proferidor A parrhēsiacutea eacute a fala que desvela e

revela eacute o tipo de discurso mediante o qual o cidadatildeo da democracia ateniense se engaja

com igualdade junto aos demais concidadatildeos na assembleacuteia deliberativa para expor sem

impedimentos o seu pensamento Na democracia do Vordm seacuteculo as principais caracteriacutesticas

da parrhēsiacutea praacutetica distintiva da democracia de Atenas como observa Arlene

Saxonhouse satildeo i) a ousadia corajosa da praacutetica que envolve o risco de afrontar os

85 ΠΩΛOS Τί δέ νὐθ ἐμέζηαη κνη ιέγεηλ ὁπόζα ἂλ βνύιωκαη

ΣΩKRATES Δεηλὰ κεληἂλ πάζνηο ὦ βέιηηζηε εἰ Ἀζήλαδε ἀθηθόκελνο νὗ ηῆο Ἑιιάδνο πιείζηε

ἐζηὶλ ἐμνπζία ηνῦ ιέγεηλ ἔπεηηα ζὺ ἐληαῦζα ηνύηνπ κόλνο ἀηπρήζαηο 86 No seu trabalho acerca da liberdade da fala na democracia ateniense Arlene Saxonhouse afirma que a

parrhēsiacutea se opotildee mais do que suporta a praacutetica da retoacuterica que obscurece e distorce a verdade em favor do

benefiacutecio individual O verdadeiro falante parresiaacutestico repudia a arte da retoacuterica A retoacuterica com seu

objetivo de enganar natildeo eacute uma expressatildeo de parrhēsiacutea mas sua perversatildeo () O contraste entre a retoacuterica

e a parrhēsiacutea eacute um tropo familiar que perpassa as falas dos oradores do quarto seacuteculo A retoacuterica de acordo

com suas proacuteprias promessas obstrui a praacutetica da parrhēsiacutea e mina o papel da liberdade da fala como uma

atividade que procura a verdade no regime democraacutetico (2008 p 92)

123

princiacutepios legais e cultos ciacutevicos e ii) o aspecto de desvelamento envolvido na praacutetica que

simultaneamente expotildee os verdadeiros pensamentos do interlocutor e sua resistecircncia a

ocultar a verdade por causa da coerccedilatildeo decorrente do olhar puacuteblico da vergonha coletiva

(SAXONHOUSE 2008 p 87)

A retoacuterica aparece como teacutecnica que promete a liberdade entre os homens e o poder

sobre o outro na cidade87

o poder de dominar o olhar coletivo mediante a persuasatildeo ndash

encantaccedilatildeo dos loacutegoi A retoacuterica eacute a dyacutenamis de dominaccedilatildeo das grandes massas (en toicircs

plḗthesin Goacutergias 457a06) Seu ensino intrinsecamente voltado para o espetaacuteculo na

assembleacuteia natildeo requer nem o conhecimento nem a verdade mas o poder de mobilizar os

afetos e suscitar a persuasatildeo A potecircncia da retoacuterica eacute a potecircncia da ocultaccedilatildeo da ilusatildeo e

da elisatildeo aos impedimentos derivados do olhar coletivo Trata-se de um procedimento

discursivo que suprime a necessidade da verdade e torna a vergonha ineficaz pelo poder

encantatoacuterio da persuasatildeo No Goacutergias a parrhēsiacutea aparece como condiccedilatildeo epistecircmica do

discurso investigativo Fala do desvelamento e da abertura ao olhar a parrhēsiacutea se opotildee

encobrimento retoacuterico assim como a igualdade se opotildee agrave dominaccedilatildeo e agrave usurpaccedilatildeo e assim

como a instruccedilatildeo (maacutethesis) se opotildee agrave crenccedila (piacutestis Goacutergias 454d)

Goacutergias e Polos se contradisseram por causa da indiscriccedilatildeo elecircntica de Soacutecrates que

desnudou crenccedilas e princiacutepios de accedilatildeo cujo papel no acircmbito do jogo poliacutetico deveriam

permanecer ocultas Goacutergias e Polos foram refutados por causa da vergonha que os impediu

de usar a fala aberta da qual os atenienses se orgulham88

Estrangeiros eles satildeo

87 κὲλ ἐιεπζεξίαο αὐηνῖο ηνῖο ἀλζξώπνηο ἅκα δὲ ηνῦ ἄιιωλ ἄξρεηλ ἐλ ηῇ αὑηνῦ πόιεη Goacutergias (452d07) 88

ηὼ δὲ μέλω ηώδε Γνξγίαο ηε θαὶ Πῶινο ζνθὼ κὲλ θαὶ θίιω ἐζηὸλ ἐκώ ἐλδεεζηέξω δὲ

παξξεζίαο θαὶ αἰζρπληεξνηέξω κᾶιινλ ηνῦ δένληνο πῶο γὰξ νὔ ὥ γε εἰο ηνζνῦηνλ αἰζρύλεο ἐιειύζαηνλ ὥζηε δηὰ ηὸ αἰζρύλεζζαη ηνικᾷ ἑθάηεξνο αὐηῶλ αὐηὸο αὑηῷ ἐλαληία ιέγεηλ ἐλαληίνλ

πνιιῶλ ἀλζξώπωλ θαὶ ηαῦηα πεξὶ ηῶλ κεγίζηωλ

124

considerados saacutebios e amigos mas ao mesmo tempo deficientes de parrhēsiacutea e

excessivamente envergonhados Satildeo carentes de liberdade no falar e plenos de vergonha A

vergonha que sofrem eacute tatildeo grande que os impede de ter audaacutecia ambos se contradizem sem

poder contraditar a multidatildeo dos homens acerca de questotildees que para Soacutecrates satildeo as

maiores Ao contraacuterio do cidadatildeo ateniense tiacutepico os estrangeiros Goacutergias e Polos

suportam excessiva vergonha mas natildeo suportam a firmeza da palavra e de seus verdadeiros

pensamentos Mas ao contraacuterio de Goacutergias e Polos Caacutelicles eacute ateniense e pode falar

livremente (parrhēsiaacutezdesthai) sem se envergonhar (megrave aiskhyacutenesthai Goacutergias 487d05)

Todavia a parrhēsiacutea praticada nas assembleacuteias puacuteblicas atenienses pressupotildee a fala aberta

entre iguais iacutesoi ao passo que Caacutelicles eacute apologista da excelecircncia dos melhores dentre

desiguais Em que difere o livre-falar de Caacutelicles e a parrhēsiacutea isonocircmica ateniense Quais

satildeo as determinaccedilotildees que operam as distinccedilotildees entre franquezas antagocircnicas

A parrhēsiacutea aparece no Laacuteques ligada agrave questatildeo da consonacircncia entre o discurso e o

gecircnero de vida de quem o profere Jaacute no iniacutecio do proacutelogo Lisiacutemaco estabelece o falar

francamente89

como condiccedilatildeo preacutevia agrave discussatildeo que teraacute iniacutecio Os conselhos mais

importantes exigem consonacircncia entre o pensamento e opiniatildeo ao contraacuterio daqueles que

buscam conformar o discurso agrave opiniatildeo da maioria (Laques 178b01-03)

A questatildeo do cuidado (epimeacuteleia) necessaacuterio para que os filhos se tornem excelentes

(aacuteristoi) reclama a franqueza muacutetua (parresiasoacutemetha) no falar90

(Laques 179c01) A

consonacircncia entre discurso e pensamento eacute condiccedilatildeo sine qua non para o aconselhamento

conjunto (symbouleuacuteomai) acerca de questotildees importantes A deliberaccedilatildeo acerca do melhor

Goacutergias 486a06-487b05 89

(Laacuteques 178a04) 90 Emlyn-Jones interpreta o desejo de Lisiacutemaco em ser franco como uma exposiccedilatildeo de si proacuteprio ao potencial

ridiacuteculo e sacrifiacutecio do prestiacutegio social por fazer a revelaccedilatildeo da incompetecircncia paterna Essa exposiccedilatildeo ao

ridiacuteculo seria uma demonstraccedilatildeo praacutetica do seu desejo reiterado de cooperaccedilatildeo (1999 p 126)

125

pressupotildee natildeo somente o conhecimento daquilo que vai ser ensinado (maacutethēma) e de seus

efeitos mas a comunhatildeo (koinōniacutea) de fins que suscita um discurso veraz sobre o cuidado a

ser dado aos filhos (Laacuteques 179e)

O cuidado (epimeleacuteia) se opotildee agrave libertinagem dos que chegam agrave adolescecircncia e

fazem o que querem91

A preocupaccedilatildeo com o cuidado para com os filhos configura um

conflito dos valores proacuteprios agraves atividades da democracia ateniense do V seacuteculo a

dedicaccedilatildeo agraves atividades puacuteblicas dos homens bem reputados implica em negligenciar a

educaccedilatildeo dos proacuteprios filhos As belas accedilotildees empreendidas pelos eudoacutekimoi tanto na

guerra como na paz na ocupaccedilatildeo das coisas dos aliados e da polis (179c) engendram

como contrapartida a corrupccedilatildeo da aristeiacutea das geraccedilotildees subsequentes em razatildeo do

descuidar (ameleicircn) Filhos de pais nobres e bons Lisiacutemaco e Meleacutesias envergonham-se

(hypaiskhynoacutemethaacute) diante dos proacuteprios filhos por natildeo terem accedilotildees valorosas a narrar O

descuido implica uma vida de moleza (tryacutephan) cuja consequecircncia eacute a licenciosidade92

A

dedicaccedilatildeo agraves coisas dos outros (tōn aacutellōn praacutegmata eacutepratton) implica a ameleiacutea

negligecircncia que torna a vida poliacutetica incompatiacutevel com a excelecircncia e a nobreza que

configura o homem bem reputado (179d) O cuidado epimeleacuteia e terapecircutica exigidos

pela excelecircncia se opotildeem agrave ameleiacutea e agrave vergonha A encenaccedilatildeo dramaacutetica sugere que a

democracia aristocraacutetica ateniense carrega em seu bojo a vergonha que emerge da

incompatibilidade interna de seus valores

O proacutelogo do Laacuteques encena a oposiccedilatildeo entre tipos de comunhotildees excludentes O

cuidado com as praacuteticas poliacuteticas exige a comunhatildeo com a maioria e consequentemente

um gecircnero de discurso que se pauta pela opiniatildeo dos muitos em detrimento do pensamento

91 179a06-07 92 Sobre Lisiacutemaco e Meleacutesias personagens do Laacuteques ver introduccedilatildeo de L A Dorion (PLATON 1997 p

15-20)

126

O cuidado com os filhos exige a comunhatildeo e a atenccedilatildeo simultacircnea de todos os pais e

reclama um gecircnero de discurso inteiramente consonante com o pensamento (Laques 180b)

Essa consonacircncia constitui a franqueza muacutetua (parrēsiaacutezomai) que possibilita o bom

conselho Haacute pois ao mesmo tempo um viacutenculo entre o falar franco e o pensamento que

lhe corresponde e um viacutenculo da licenciosidade no falar com os desejos da maioria Satildeo

tipos opostos de franqueza A franqueza muacutetua que instaura a comunhatildeo do bom conselho

mediante o confiar (pisteuacuteesthai 180b06) se opotildee agrave fala livre empregada nas atividades

poliacuteticas

A comunhatildeo gera a veracidade a veracidade gera a boa reputaccedilatildeo (181b08) e a

confianccedila a confianccedila gera a maior benevolecircncia (eunouacutestaton 181b08) e a benevolecircncia

manteacutem salva a amizade A encenaccedilatildeo dramaacutetica do proacutelogo do Laacutequesingressa

simultaneamente a conexatildeo entre o cuidado com o eacutethos e a investigaccedilatildeo das maiores

questotildees e entre a parrhēsiacutea a eunoacuteia e a episteacuteme A comunhatildeo dos pais em torno da

finalidade comum da formaccedilatildeo e da excelecircncia abarca a competecircncia no ensino a

franqueza muacutetua a benevolecircncia e a amizade ndash condiccedilotildees epistecircmicas da investigaccedilatildeo

Laacuteques admite que sua atitude diante dos loacutegoi eacute dupla a saber que ora eacute tomado de

paixatildeo ora eacute tido como homem que os detesta Seu amor pelos discursos eacute condicionado

pelo fato de haver uma harmonia entre o homem e seu discurso homem que em funccedilatildeo

dessa harmonia eacute ldquoverdadeiramente umrdquo (188c) e ldquomuacutesico completordquo natildeo por tocar

instrumentos que divertem mas por acordar suas palavras (loacutegoi) com seus atos (erga) sua

proacutepria vida Os discursos bem falados que natildeo estatildeo em consonacircncia com o modo de vida

devem ser detestados Soacutecrates poderia se permitir belos discursos e falar com toda

franqueza (parrhēsiacuteas) pois seus atos eram suficientemente provados (189a) A

incompatibilidade entre o modo de vida e o discurso entre os erga e os loacutegoi indica uma

127

fragmentaccedilatildeo no acircmbito da alma Soacute eacute verdadeiramente ldquoumrdquo aquele que harmoniza seu

loacutegos com os seus atos que em uacuteltima instacircncia derivam de seus desejos

Em outras passagens a parrhēsiacutea aparece ligada aos apetites No Banquete apoacutes o

veemente desabafo em que Alcibiacuteades confessa seu amor eroacutetico por Soacutecrates diante de

todos os circunstantes ldquotodos riram da sua franqueza (parrhēsiacuteas) por parecer que ele

ainda era apaixonado de Soacutecratesrdquo (Banquete 222c) Na Repuacuteblica apoacutes a associaccedilatildeo da

origem do governo democraacutetico com a revolta da pobreza as caracteriacutesticas da polis

democraacutetica satildeo identificadas com a liberdade licenccedila de se fazer o que se desejar93

e

franqueza de falar (parrhēsiacutea) que permitem que cada um possa ter um gecircnero de vida

particular segundo sua proacutepria fantasia A polis democraacutetica eacute caracterizada pela

multiplicidade dispersatildeo de prazeres (hedeiacutea) pela anarquia (aacutenarkhos) e variabilidade

(poikiacutele) O homem democraacutetico eacute dominado pelos apetites (aphrodisiacuteon) desejos

supeacuterfluos que natildeo produzem nenhum bem e prejudicam simultaneamente o corpo a

alma o discernimento e a temperanccedila (558c-559d) A parrhēsiacutea eacute nesse contexto o loacutegos

licencioso que exprime o predomiacutenio dos apetites No Fedro a distinccedilatildeo entre o desejo de

prazeres e a aspiraccedilatildeo ao melhor determina tendecircncias psiacutequicas que ldquoora se acordam ora

se combatemrdquo (237b) O descomedimento caracteriza o predomiacutenio do desejo que arrasta

em direccedilatildeo aos prazeres e aquele que eacute dominado pelo desejo e escravo dos prazeres

(238e) procura obter do amado o maior prazer possiacutevel ao preccedilo dos maiores prejuiacutezos para

o corpo e para a alma O ciuacuteme e a inveja incitam no homem dominado pelo apetite uma

vigilacircncia tiracircnica que se expressa em censuras insuportaacuteveis e infamantes ldquose o amante se

embriaga e fala com uma franqueza (parrhēsiacutea) grosseira e impudenterdquo (240a) Mais uma

vez a parrhēsiacutea aparece num contexto em que se discorre sobre a escravizaccedilatildeo aos apetites

93 (Repuacuteblica 557b)

128

e um discurso licencioso que lhes corresponde No livro X das Leis a parrhēsiacutea eacute associada

ao discurso licencioso em relaccedilatildeo aos deuses proferido pelos iacutempios cuja caracteriacutestica eacute a

incapacidade de dominar o prazer e a dor (908c) De maneira geral a parrhēsiacutea eacute

relacionada ao discurso desimpedido sem peias impulsionado pelo apetite pelo vinho ou

excesso de liberdade (Leis 649b 806d 829d-e)

No Goacutergias a parrhēsiacutea eacute mencionada na ambiguidade irocircnica com que Soacutecrates

alude ao mesmo tempo ao livre curso dos apetites de Caacutelicles que engendram a violecircncia

do seu loacutegos e a qualidade psiacutequica pela qual a investigaccedilatildeo dialeacutetica assimilada ao exame

da alma pode chegar a bom termo A franqueza eacute a garantia pela qual o assentimento do

interlocutor a uma tese expressa sem dissimulaccedilatildeo sua crenccedila e sua opiniatildeo mas eacute

tambeacutem um indicativo de que certa ordenaccedilatildeo psiacutequica transpotildee seu movimento proacuteprio

para o loacutegos O discurso sem peias reproduz de modo direto a trama que entretece os afetos

neste princiacutepio de movimento e inteligecircncia que eacute a psykheacute (Fedro 245d)

Caacutelicles independentemente da questatildeo de sua historicidade congrega e personifica

uma ordenaccedilatildeo de valores tiacutepica Ele eacute como afirma Jaeger a encarnaccedilatildeo perfeita de um

tipo de homem o adulador (JAEGER 1995 p 682) Tal como Soacutecrates e as grandes

personagens que protagonizam um papel de primeiro plano nos diaacutelogos Caacutelicles torna-se

um mito pois adquire a atemporalidade e a exemplaridade dos tipos psiacutequicos que soacute o

mito pode abarcar (DIXSAUT 2001 p 157-161) Eacute justamente a atemporalidade miacutetica

que faz com que o tipo psiacutequico personificado por Caacutelicles possa ser revivido em todas as

eacutepocas como um tipo de homem

Muito se tem discutido se a personagem de Caacutelicles esconde uma adaptaccedilatildeo

platocircnica de uma ou mais figuras histoacutericas da alta aristocracia de seu tempo (CANTO

1993 p 38-39) ou se a viacutevida imagem que Platatildeo faz do oponente de Soacutecrates trai um

129

ldquoconflito que se passa dentro de uma soacute menterdquo conflito que faria de Caacutelicles um ldquoretrato

do eu rejeitado de Platatildeordquo (GUTHRIE 1995 p 102-103) mas que seria tambeacutem integrado

a ele mediante a expressatildeo de ldquosincero interesse pela seguranccedila de Soacutecratesrdquo (DODDS

2002 A p 13) Werner Jaeger afirma que Platatildeo se deu ao trabalho de ldquocompreender

Caacutelicles antes de subjugaacute-lordquo e talvez tenha sentido ldquono seu natural essa acircnsia irreprimiacutevel

de poder com poder suficiente para em Caacutelicles atacar uma parte de seu proacuteprio eurdquo

(JAEGER 1995 p 666)

Que Platatildeo tenha tido a inteligecircncia das fiacutembrias da afetividade humana mais

perversa o demonstram a eloquumlecircncia e brilhantismo das falas antoloacutegicas de suas

personagens Mas no Laacuteques a incompatibilidade estabelecida entre o discurso e as accedilotildees

indica que a questatildeo dos valores implica a harmonia ou o conflito na instacircncia da proacutepria

psykheacute No Goacutergias a mesma concepccedilatildeo se repete eacute preferiacutevel tocar uma lira mal afinada

ou dirigir mal um coro ou ainda natildeo estar de acordo com a maioria do que natildeo estar em

consonacircncia consigo mesmo e contradizer-se (482c) A distinccedilatildeo socraacutetica de uma

triparticcedilatildeo de determinaccedilotildees psiacutequicas sugere que o problema da ordenaccedilatildeo dos valores

remete sobretudo para o modo como satildeo ordenadas certas instacircncias da psykheacute A

triparticcedilatildeo de qualidades implica uma triparticcedilatildeo funcional Eacute o conflito e a desarmonia da

proacutepria psykheacute que determina a incompatibilidade entre os valores professados e o discurso

de um lado e as accedilotildees de outro

Que o Goacutergias retrata um conflito entre modos de vida e valores opostos o atestam

os combates eriacutesticos das personagens e o seu mito de julgamento final Mas Platatildeo foi

muito aleacutem de divisar um conflito entre seus valores e aspiraccedilotildees ocultas A espantosa e

imortal vivacidade da personagem ndash que talvez tenha feito a mais mordaz e impactante

130

apologia do poder e do apetite de todos os tempos ndash constitui o principal testemunho de que

Platatildeo estaacute advertido de que na psykheacute de cada homem vive um Caacutelicles

A bela terapecircutica da alma (kalocircs tetherapeucircstai tegraven psykheacuten) pressupotildee que o

assentimento agraves opiniotildees da alma (psykheacute doxaacutezei) seja tomado como princiacutepio

verdadeiro94

Para que se examine a questatildeo do que eacute justo e por conseguinte do melhor

modo de vida eacute preciso que se examine a constituiccedilatildeo psiacutequica a partir das opiniotildees Mas

para isso eacute preciso que se tenha a determinaccedilatildeo preacutevia da benevolecircncia (eunoacuteia)

A eunoacuteia aparece no Protaacutegoras95

como determinaccedilatildeo proacutepria dos amigos que

entretecircm discussatildeo Apoacutes exortar Soacutecrates para que natildeo abandone sua discussatildeo com

94

Callicles natildeo tenciona assentir equivocadamente por causa de estupidez embaraccedilo ou insinceridade Sua

franqueza assegura que ele defenda firmemente sua posiccedilatildeo anti-convencional Assim Soacutecrates parece

exagerar quando demanda que tudo aquilo que for aceito de comum acordo seja verdadeirohellip Ainda que ele o prenda atraveacutes de sua concordacircncia o que garante a verdade das conclusotildees (IRWIN 2003 p 102) Dodds

por sua vez observa que a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates tem sido tipicamente vista como sinal do valor excessivo

que Platatildeo atribui ao meacutetodo do eacutelenkhos A acidentalidade e a particularidade da opiniatildeo do interlocutor

implicaria um bdquodefeito‟ e inferioridade do eacutelenkhos (Robinson) em relaccedilatildeo agrave axiomaacutetica universal de

Aristoacuteteles (DODDS 2002 p 279-280) Todavia como o proacuteprio Irwin admite Platatildeo natildeo vecirc a posiccedilatildeo de

Caacutelicles como sendo a de um excecircntrico com um ponto de vista extremamente radical da justiccedila

convencional Trata-se simplesmente de uma declaraccedilatildeo convincente de pontos de vista atraentes para

muitos contemporacircneos de Soacutecrates e Platatildeo A concepccedilatildeo de uma virtude e de uma boa pessoa que eacute focada

no poder individual na riqueza e no status eacute bem estabelecida no pensamento eacutetico Grego e coexiste

problematicamente com a concepccedilatildeo de virtude vinculada agraves outras obrigaccedilotildees concernentes agrave justiccedila (ibid p

103)rdquo A identificaccedilatildeo das teses assumidas pelo interlocutor com a verdade natildeo constitui exagero nem do ponto de

vista da dialeacutetica socraacutetica nem do ponto de vista da retoacuterica Caacutelicles representa natildeo somente uma corrente

de pensamento que configura uma concepccedilatildeo de virtude e justiccedila proacuteprias ao pensamento grego de entatildeo mas

encarna certos valores e tipifica um tipo de caraacuteter que exerce um papel decisivo no jogo poliacutetico ateniense

Por mais absurdas que possam ser as teses assumidas como ldquoverdaderdquo o tratamento do eacutelenkhos possui o

objetivo justamente de conduzir o raciociacutenio ateacute as uacuteltimas consequecircncias dos postulados assumidos Teses

verdadeiras natildeo podem implicar conclusotildees contraditoacuterias e absurdas A refutaccedilatildeo frequentemente se faz

pelo absurdo ou incompatibilidade das conclusotildees com um acordo inicial em torno de algum postulado A

incompatibilidade denuncia mais um conflito entre valores e gecircnero de vida do que propriamente de

proposiccedilotildees contraditoacuterias Como nota Charles Kahn o eacutelenkhos eacute mais uma maneira de testar o modo de

vida do que de testar proposiccedilotildees (KAHN 1996 p 98 133) Ademais do ponto de vista retoacuterico natildeo existe adesatildeo e por conseguinte persuasatildeo sem o assentimento e o

acordo em torno de teses que demarcam o ponto de partida do arrazoado De qualquer maneira o acordo em

torno de opiniotildees deve ser tomado como se fosse uma verdade A dialeacutetica socraacutetica eacute sempre hipoteacutetica em

seu iniacutecio 95 Hiacutepias de Elis estabelece no Protaacutegoras a mesma distinccedilatildeo entre phyacutesis e noacutemos que eacute empregada no

argumento de Caacutelicles Mas ao contraacuterio da distinccedilatildeo estabelecida no Goacutergias para Hiacutepias os semelhantes

satildeo iguais por natureza e as leis satildeo as causas pelas quais se estabelece uma desigualdade arbitraacuteria entre os

homens Ver KERFERD 2003 189-221

131

Protaacutegoras Proacutedico opera a distinccedilatildeo entre ldquodiscutirrdquo (amphisbetheicircn) e ldquodisputarrdquo

(eriacutezein)

As pessoas presentes a semelhantes discussotildees devem ouvir

imparcialmente as duas partes natildeo poreacutem de modo igual o que

natildeo eacute a mesma coisa ambos devem ser ouvidos com a mesma

atenccedilatildeo mas natildeo podemos conceder aos dois igual interesse

poreacutem maior ao que se revelar mais saacutebio e menor ao de menor

preparo Eu tambeacutem Soacutecrates e Protaacutegoras peccedilo que vos mostreis

mais condescendentes cada um poderaacute dissentir (amphisbetheicircn)

da opiniatildeo do outro poreacutem sem brigar (eriacutezein) Entre amigos pode

haver discussatildeo com simpatia (benevolecircncia bdquoeunoacuteia‟) soacute brigam

adversaacuterios e inimigos

(Protaacutegoras 337a-b)

A disposiccedilatildeo amistosa eacute diretiva na dialeacutetica visto que o questionamento capcioso

natildeo visa agrave busca da verdade mas sobrelevar ao adversaacuterio (Meacutenon 75c-d) Na Repuacuteblica a

eunoacuteia designa a disposiccedilatildeo amistosa que se contrapotildee agrave hostilidade e agrave cupidez que leva agraves

dissensotildees e conflitos de gregos contra gregos A benevolecircncia impede o despojamento das

armas dos cadaacuteveres (Rep V 470a) e constitui o desiacutegnio amistoso de Glauco quando este

se propotildee a defender Soacutecrates da ira dos adversaacuterios diante da estranheza provocada pela

tese de que a cidade natildeo pode ser feliz a menos que o Rei seja Filoacutesofo (474a) No Teeteto

a benevolecircncia eacute a atitude socraacutetica associada agrave expurgaccedilatildeo das falsas opiniotildees mediante a

eroacutetesis (Teeteto 151c) O efeito da dialeacutetica eacute analogicamente um partejamento da alma

que pode trazer agrave luz tanto fetos saudaacuteveis como imagens que devem ser rejeitadas A

atitude de hostilidade de alguns causada pela refutaccedilatildeo se contrapotildee agrave benevolecircncia que

constitui o princiacutepio operador do procedimento cataacutertico dialeacutetico O desejo da verdade eacute o

princiacutepio de accedilatildeo que constitui a dialeacutetica e o desejo do bem eacute o princiacutepio de accedilatildeo de sua

aplicaccedilatildeo praacutetica Assim como nenhum deus eacute hostil aos homens Soacutecrates possui a

atribuiccedilatildeo divina de natildeo fazer concessatildeo agrave falsidade e de natildeo enfraquecer o brilho da

132

verdade (Teeteto 151d) A operaccedilatildeo dialeacutetica eacute impulsionada por benevolecircncia em

oposiccedilatildeo agrave malevolecircncia No Fedro a benevolecircncia designa a manifestaccedilatildeo praacutetica em

relaccedilatildeo ao amado do Eros divino que se infunde no amante Tal manifestaccedilatildeo permite que

o amado se decirc conta da superioridade acima de qualquer comparaccedilatildeo do amor eroacutetico que

supera todos os afetos reunidos que se lhe possam devotar (255b)

Em todos esses contextos a benevolecircncia configura uma disposiccedilatildeo e uma funccedilatildeo

psiacutequica conciliatoacuteria entre instacircncias que de outra maneira estariam em conflito Trata-se

efetivamente de uma mediaccedilatildeo que promove o acordo que harmoniza reconcilia que

opera amistosamente promovendo o bem trata-se de uma funccedilatildeo que determina um modo

pelo qual se instaura a therapeacuteia psykheacute funccedilatildeo que pressupotildee um saber preacutevio um noucircs

que eacute a inteligecircncia do bem

No Goacutergias a eunoacuteia eacute sobretudo exigecircncia para o exame da alma e por

conseguinte exigecircncia para o bom andamento da investigaccedilatildeo discursiva A eriacutestica se

contrapotildee agrave dialeacutetica assim como a alma dissociada e fragmentada por conflitos se

contrapotildee agrave alma harmocircnica e unificada A eunoacuteia assegura que o desejo seja orientado na

direccedilatildeo da episteacuteme Ela eacute a funccedilatildeo mediadora entre o Eros e a inteligecircncia a funccedilatildeo que

permite que um se sobreponha ao outro fecundando-se mutuamente para gerar os belos

discursos Mas eacute tambeacutem a disposiccedilatildeo altruiacutesta a interaccedilatildeo que faz com que o Filoacutesofo

autecircntico seja antes de tudo o amigo que faz com que dialeacutetica e philiacutea se pressuponham e

que o Filoacutesofo veja-se no amigo como num espelho (Fedro 255d)

A implacabilidade do eacutelenkhos socraacutetico no Goacutergias evidencia de maneira

inelutaacutevel que Caacutelicles natildeo eacute nem franco nem benevolente e nem tampouco ciente Isso

133

implica que Caacutelicles seja a imagem de uma fragmentaccedilatildeo psiacutequica96

Por outro lado o

movimento dramaacutetico do Goacutergias realccedila a figura de Soacutecrates reluzente como a imagem da

verdadeira franqueza da verdadeira benevolecircncia e da verdadeira paideacuteia (JAEGER 1995

p 671)

As questotildees de se saber qual eacute o tipo de homem que se deve ser e qual atividade

deve reclamar o primado da vida humana (Goacutergias 488a) natildeo podem ser respondidas no

plano dos interesses em conflito A questatildeo da justiccedila reivindica um paradigma que esteja

acima do plano das relaccedilotildees praacuteticas um modelo absoluto ao qual sejam reportados os erga

e os loacutegoi Tal paradigma natildeo pode ser circunscrito a uma esfera particular de tempo

cronoloacutegico e por isso a questatildeo do eacutethos e dos valores temporais deve ser aquilatada por

um modelo atemporal e absoluto que lhes sirva de norma e medida Mas o atemporal e o

que estaacute para aleacutem da reportaccedilatildeo muacutetua dos valores humanos que configuram a

mentalidade da cidade o modelo perenamente vaacutelido exige um discurso proacuteprio com

estruturas homoacutelogas agrave grandeza das noccedilotildees que ele pretende abarcar A esse discurso

Soacutecrates chama de um belo logos (kaloucirc loacutegos) que eacute tambeacutem um myacutethos

96 Olimpiodoro interpreta as personagens do diaacutelogo como personificaccedilotildees de tipos de caracteres Assim os

erros seriam cometidos por trecircs razotildees 1) uma opiniatildeo pervertida 2) por causa da ira 3) por causa do apetite

O caraacuteter mal orientado foi refutado nos argumentos com Goacutergias o caraacuteter irasciacutevel foi refutado com Polo e

o caraacuteter apetitivo deve ser refutado na figura de Caacutelicles (OLYMPIODORUS 1998 p 195)

134

35 ndash A retoacuterica da alma

No Goacutergias o recurso ao mito (que aparece em 492e ss) permite que a personagem

de Soacutecrates discorra filosoficamente sobre esferas que natildeo podem ser atestadas ou

verificadas A existecircncia da alma como instacircncia que congrega faculdades distintas e da

equaccedilatildeo somasema satildeo postulados atribuiacutedos a um engenhoso homem (kompsoacutes aneacuter)

Siciliano ou Itaacutelico Natildeo se trata de um filoacutesofo mas de um mitoacutelogo cuja identidade como

o demonstram Dodds (1986 p 297) Burkert (1972 p 248) e Huffman (1998 p 404 ss)

natildeo pode ser conhecida Segundo a alegoria da narrativa a alma eacute uma instacircncia complexa

e possui uma parte que eacute sede dos apetites (epithymiacuteai) e que em funccedilatildeo do seu

desregramento e da insaciabilidade eacute comparada a um tonel furado No mundo invisiacutevel o

Hades os miseraacuteveis satildeo os natildeo-iniciados eternamente condenados a encher toneacuteis furados

com crivos A alma dos irrefletidos seria como uma peneira que nada reteacutem por causa da

descrenccedila e do esquecimento (493b-d)

Por que Soacutecrates interrompe a linha argumentativa do eacutelenkhos com imagens que

ele mesmo reconhece como algo estranhas (ti aacutetopa) Qual a razatildeo do emprego em uma

argumentaccedilatildeo complexa com um interlocutor resistente e hostil de uma narrativa que o

proacuteprio Soacutecrates antecipa como impotente para persuadir Caacutelicles de que uma vida bem

ordenada eacute preferiacutevel agrave vida incontida e insaciaacutevel

A narrativa lanccedila matildeo de um acervo tradicional de crenccedilas que segundo Burkert

(1972 p 249) satildeo semelhantes aos escritos do papiro de Derveni Carl Huffman alega por

outro lado que a noccedilatildeo de uma alma que constitui a sede de todas as faculdades psiacutequicas e

do pensamento eacute posterior a Filolau de Croacutetona cuja concepccedilatildeo de alma eacute muito mais

restritiva Independentemente da fonte do mito seus elementos remontam ao que Vernant

(1987 p 89 ss) chama de ldquomisticismo gregordquo uma corrente de grupos fechados associados

135

a uma busca de imortalidade bem-aventurada obtida mediante a observaccedilatildeo de uma regra

de vida pura reservada aos iniciados

O uso filosoacutefico de um acervo miacutetico concerne a um estoque de crenccedilas que

moldam o quadro mental da cidade e representa segundo Brisson (1994 p 28) um

ldquoinventaacuterio indissociaacutevel de um sistema de valoresrdquo cuja importacircncia determina sua

conservaccedilatildeo em memoacuteria coletiva Mas eacute tambeacutem um meio que confere significaccedilatildeo para

a atitude socraacutetica que preceitua a regra de que eacute preferiacutevel sofrer injusticcedila a cometecirc-la

Atitude incompatiacutevel com a expectativa coletiva de se fazer bem aos amigos e mal aos

inimigos

A referecircncia recorrente a uma antiga tradiccedilatildeo que aparece no Feacutedon justifica a

inflexatildeo que o proacuteprio Platatildeo opera na homologia entre a Filosofia e a iniciaccedilatildeo esboccedilando

modos concorrentes de interpretar e re-significar um acervo de saberes potecircncias crenccedilas

afetos e imagens religiosas em uma transposiccedilatildeo determinante para a mentalidade de um

novo gecircnero de vida e um novo tipo de eacutethos A homologia entre o biacuteos dos cultos de

misteacuterio e suas correspondentes imagens miacuteticas exigidos para a iniciaccedilatildeo indica que a

significaccedilatildeo eacutetico-poliacutetica aportada pelo exerciacutecio filosoacutefico natildeo encontra referentes no

mundo fiacutesico mas somente num acervo compartilhado de crenccedilas e afetos que modelam os

quadros mentais de uma comunidade valores coletivos que configuram o psiquismo

norteador para as percepccedilotildees e o agir humanos (WINKELMAN 2010 p 14 ss)

Assim como na chamada antiga tradiccedilatildeo (palaiograves loacutegos - Feacutedon 70c) dos misteacuterios

haacute uma transmissatildeo iniciaacutetica para que os puros encontrem a bem-aventuranccedila no Hades na

Filosofia haacute o exerciacutecio cataacutertico da vida virtuosa e do pensamento depurado A pureza

ritual eacute assimilada aos raciociacutenios isolados das sensaccedilotildees corporais a alma raciocina mais

136

belamente quando despreza os sentidos e foge das sensaccedilotildees corporais e procura o mais

possiacutevel isolar-se em si mesma e tornar-se si mesma (dzēteicirc degrave autḗ kath‟autḗn giacutegnesthai)

Este isolamento da alma atraveacutes dos raciociacutenios (logiacutedzesthai) eacute correlato ao modo

de aquisiccedilatildeo do conhecimento e da manifestaccedilatildeo da realidade daquilo que ocupa o

pensamento A grandeza a sauacutede a forccedila e a realidade (tēs ousiacuteas) de todas as coisas e o

que cada uma delas eacute em si mesma exigem uma cataacutertica das sensaccedilotildees (taacutes aistheacutetaacute)

Somente o pensamento em si mesmo (autḗ tḗ diacircnoia) o pensamento sem mistura isolado

e sem comunhatildeo com o corpo pode sair agrave caccedila (epikheiroicirc thēreuacuteein thēreuacuteein tōn oacutentōn)

dos seres da verdade e da inteligecircncia purificada (phroacutenēsin) A purificaccedilatildeo anunciada por

um filoacutesofo genuiacuteno (Feacutedon 65b-67e) representa o sumaacuterio daquilo que jaacute representa uma

transposiccedilatildeo em relaccedilatildeo aos ritos purificatoacuterios das seitas de misteacuterio

Pierre Boyanceacute (1994 85-95) correlaciona esta ascese filosoacutefica a um acervo oacuterfico

cujo escopo seria a separaccedilatildeo dos elementos titacircnicos da psykheacute de sua parte divina O

discurso que Soacutecrates consigna a um anocircnimo descreve um caminho sagrado purificatoacuterio

uma trilha (atrapoacutes) que demarca o itineraacuterio da razatildeo e da investigaccedilatildeo O alvo da

investigaccedilatildeo eacute identificado com a verdade e seu princiacutepio de accedilatildeo com um apetite pela sua

posse (me pote ktēsōmetha hikanōs hougrave epithymoucircmen) Na prescriccedilatildeo iniciaacutetica do filoacutesofo

genuiacuteno haacute uma concepccedilatildeo quase material de que a alma estaacute dispersa como sopro nos

elementos corporais e que a sua mistura com o corpo engendra toda sorte de males e

impedimentos para a aquisiccedilatildeo da verdade e a caccedila aos seres A mistura da alma ao corpo

segue na esteira do mito de Dioniso Zagreu esquartejado e devorado pelos Titatildes Natildeo

obstante a trilha iniciaacutetica descrita no Feacutedon natildeo promove a separaccedilatildeo dos elementos

divinos do elemento corporal titacircnico mediante ritos purificatoacuterios Em vez disso a

exaltaccedilatildeo iniciaacutetica daacute lugar a um apetite pelo pensamento purificado a phroacutenesis Haacute uma

137

homologia entre o caminho sagrado dos ritos iniciaacuteticos e a trilha filosoacutefica Todavia o

alvo deste itineraacuterio natildeo eacute mais a pureza ritual mas a posse da verdade e o pensamento

isolado do corpo

A purificaccedilatildeo teleacutestica tem como finalidade a remoccedilatildeo das faltas do miasma que

determina o destino futuro apoacutes a morte Como afirma Vernant (1994 p 107) ldquoo miasma

se purifica sempre com uma lavagem mas tambeacutem bdquose consome‟ bdquoadormece‟ bdquose

dispersa‟ Eacute uma mancha e tambeacutem uma coisa que rouba um bdquopeso‟ uma bdquodoenccedila‟ uma

perturbaccedilatildeo bdquouma ferida‟ bdquoum sofrimento‟

O vocabulaacuterio indica que Platatildeo se apropria de uma tradiccedilatildeo filosoacutefica associada agraves

praacuteticas rituais de lustraccedilatildeo como os misteacuterios de Elecircusis e outras praacuteticas iniciaacuteticas

comodamente rotuladas de oacuterficas Assim como as faltas os crimes de sangue ou a

impiedade transmitem-se numa cadeia de impureza a purificaccedilatildeo estaacute relacionada agrave

transmissatildeo iniciaacutetica a ritos que suscitam a passagem de um estado para outro mais

elevado Essa transmissatildeo consolida todo um gecircnero de vida modelado por exerciacutecios

espirituais A iniciaccedilatildeo tal como o miasma pressupotildee uma cadeia de transmissatildeo que

remonta agrave antiga tradiccedilatildeo o princiacutepio e a fonte da pureza

No seu comentaacuterio agraves lacircminas de ouro oacuterficas Giovanni Carratelli observa que as

instruccedilotildees mortuaacuterias objetivam servir de guia para que a alma do iniciado seja liberta das

faltas mediante a iniciaccedilatildeo (myacuteēsis) Os ritos compreendem instruccedilotildees foacutermulas de

reconhecimento (syacutenthēma) ou palavras de passe o segredo provas dolorosas

(pathḗmatha) e a referecircncia constante a Mneacutemosyne personificaccedilatildeo divina da memoacuteria Haacute

o importante papel do guia o mystagogos na conduccedilatildeo de estatutos diversos entre os

recipiendaacuterios os Baacuteckhoi satildeo superiores aos myacutestai A palavra de passe ou a foacutermula de

reconhecimento pressupotildee o exerciacutecio menemocircnico que faculta o conhecimento da origem

138

divina anterior agrave vida terrestre As expiaccedilotildees e as lustraccedilotildees cataacuterticas suscitam a

prevalecircncia do elemento divino da alma Na lacircmina mortuaacuteria encontrada na necroacutepole de

Hipocircnio em uma tumba datada no fim do seacutec V encontram-se as instruccedilotildees

Tu iraacutes na morada bem construiacuteda de Hades agrave direita haacute uma

fonte

ao lado dela se ergue um cipreste branco

eacute laacute que descem as almas dos mortos e onde elas se refrescam

Desta fonte tu natildeo te aproximaraacutes

Mas mais adiante tu encontraraacutes uma aacutegua fria que corre

do lago de Mnemosyacutene acima dela se encontram guardas

Eles te interrogaratildeo em seguro discernimento

porque tu exploras as trevas de Hades obscuro

Dize bdquoEu sou filho da Terra e do Ceacuteu estrelado

Eu queimo de sede e desfaleccedilo Decirc-me raacutepido

De beber da aacutegua fria que vem do lago de Mnemosyacutene‟

E eles te interrogaratildeo pelo querer do rei ctocircnico

Eles te daratildeo de beber do lago de Mnemosyacutene

E tu quando tiveres bebido percorreraacutes a via sagrada

Sobre a qual tambeacutem os outros mystai e baacuteckhoi avanccedilam na

gloacuteria 97

(I A 1 9-11)

Como observa Radcliffe Edmonds (in CASADIO 2010 p 72 ss) as referecircncias a

Perseacutefone a Mnemosyacutene e a Dioniso tem levado os historiadores da religiatildeo grega a rotular

as instruccedilotildees iniciaacuteticas contidas nas lacircminas funeraacuterias de ouro como oacuterficas baacutequicas

egiacutepcias e pitagoacutericas ou ainda eleusinas Embora alguns editores correlacionem as

instruccedilotildees das lacircminas de ouro a uma katabasis que remontaria a um poema oacuterfico ou a um

livro dos mortos pitagoacuterigo Edmonds salienta que infortunadamente os textos

escatoloacutegicos satildeo excessivamente vagos para identificaacute-los precisamente com alguma

vertente religiosa

Muitos eruditos esforccedilam-se no sentido de encontrar um estema de influecircncias que

permita delimitar suas origens em certos contextos Mas as imagens miacuteticas e alusotildees ao

misticismo grego que aparecem em Platatildeo sugerem um emprego caleidoscoacutepico de

97 Traduccedilatildeo de Giovanni P Carratelli (2003 p 35)

139

elementos tradicionais que varia segundo o movimento de cada diaacutelogo Para o inteacuterprete

dos diaacutelogos o contexto eacute a suma tradicional das seitas de misteacuterio gregas

Para Giovanni Casadio se haacute uma fronteira ndash e isto estaacute aleacutem de questatildeo ndash que

demarca os limites entre Dionisismo (uma realidade concreta) e o Orfismo (uma realidade

muito mais nebulosa) noacutes somos incapazes de determinar precisamente onde esta fronteira

se encontra (CASADIO 2010 p 36-37) Mais do que estabelecer distinccedilotildees canocircnicas

entre dionisismo orfismo ou pitagorismo cumpre focar os esquemas invariantes de

pensamento nas seitas de misteacuterio e as homologias correspondentes que emergem no

movimento dramaacutetico-dialoacutegico dos mitos platocircnicos

A personificaccedilatildeo da memoacuteria relaciona-se com o rito de purificaccedilatildeo pela aacutegua que

permite o acesso agrave via sagrada A purificaccedilatildeo propiciada pela memoacuteria ressalta a primazia

do pensamento nocircus na experiecircncia iniciaacutetica que ascende o aspirante agrave alḗtheia A

foacutermula de reconhecimento eu sou filho da Terra e do Ceacuteu estrelado identifica o aspirante

com a estirpe divina e sugere sua purificaccedilatildeo ritual preacutevia ela serve como palavra de passe

que garante o acesso agrave divindade A katabasis descrita na lacircmina funeraacuteria alude ao

cumprimento de uma purificaccedilatildeo preacutevia pressuposta agrave prova da passagem e ao esforccedilo

vinculado a uma potecircncia psiacutequica personificada em Mnemosyacutene Platatildeo se apropria desse

acervo da antiga tradiccedilatildeo com a finalidade protreacuteptica de apresentar a Filosofia como um

exerciacutecio de morte e a kaacutetharsis como purificaccedilatildeo do pensamento

A verdade a realidade da sabedoria da justiccedila da coragem

consistem sem duacutevida em uma purificaccedilatildeo de todas as coisas e o

proacuteprio pensamento (phroacutenēsis) natildeo eacute senatildeo um meio de

purificaccedilatildeo Haacute uma grande chance de que aqueles que

estabelecerem entre noacutes as iniciaccedilotildees natildeo tenham sido homens

fracos Mas a realidade dos seres deve ser oculta em enigmas

(ainiacutettesthai) quando eles dizem que ldquoaquele que chega no Hades

sem ter conhecido os misteacuterios sem ser iniciado aquele seraacute

140

deitado na lama mas aquele que foi purificado e iniciado uma vez

laacute chegando habitaraacute com os deuses De fato como dizem aqueles

que tratam das iniciaccedilotildees ldquonumerosos satildeo os portadores de tirso

(narthekophoacuteroi) raros os Baacutekkhoi

(Feacutedon 69b12-c2)

A distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os impuros e os puros de um lado e entre os myacutestai e

os baacutekkhoi de outro indica a tese protreacuteptica de apresentar a Filosofia como um exerciacutecio

iniciaacutetico de ascensatildeo ao princiacutepio uacuteltimo da realidade dos seres A purificaccedilatildeo eacute transposta

para a purificaccedilatildeo do pensamento e das virtudes por meio da phroacutenesis A homologia entre

o segredo e a realidade posta sob forma enigmaacutetica para evitar a apropriaccedilatildeo por aqueles

que natildeo passaram pelo longo exerciacutecio cataacutertico eacute mantida natildeo ser puro e se apossar do

que eacute puro e de fato eacute preciso temecirc-lo eacute algo interdito (ou themitoacuten Feacutedon 67b01)

Todavia a menccedilatildeo aos portadores de tirso e baacutekkhoi no Feacutedon suscita

controveacutersias A qual tradiccedilatildeo se refere o passo Quais satildeo os ritos e qual eacute o contexto que

suscita a analogia entre iniciaccedilatildeo aos misteacuterios e iniciaccedilatildeo filosoacutefica Ana J Cristoacutebal em

um instigante estudo acerca do campo semacircntico das expressotildees baacutekkhos e bakkheuacuteein

indica que os termos possuem significados diferentes entre os ciacuterculos reconhecidos como

oacuterficos e o culto a Dioniso Baacutekkos e baacutekkhoi satildeo denominaccedilotildees daqueles que passaram por

ritos purificatoacuterios ou extaacuteticos vinculados a Dioniso Tais ritos induzem a um estado

miacutestico de intensa afetividade decorrente da exaltaccedilatildeo e entusiasmo provocado pelo deus

Baacutekkos eacute o atributo de um seguidor de Dioniso Bakkhos O verbo bakkheuacuteein por outro

lado denota a possessatildeo divina e dentre todos os testemunhos somente Euriacutepides o

emprega no sentido de adoraccedilatildeo a Dioniso A accedilatildeo de bakkheuacuteein descreve

simultaneamente os afetos experimentados no transe delirante e a performance ritual que

envolve procissotildees carregar e agitar tirsos ornamentados gritos sacrificiais (eyoicirc) danccedila e

vinho (CASADIO 2010 p 46-60)

141

A terminologia empregada na inscriccedilatildeo da lacircmina de Hipocircnio evidencia que as

expressotildees myacutestai e baacutekkhoi pertencem a um acervo cultural comum de imagens que

configura o mesmo pano de fundo para a classe geral dos cultos de misteacuterio As instruccedilotildees

funeraacuterias evocam uma ascensatildeo iniciaacutetica na via sagrada para que o recipiendaacuterio seja

acolhido entre os bem-aventurados gloacuteria reservada aos puros que passaram pelas provas

Somente os puros possuem a potecircncia psiacutequica unificadora da memoacuteria condiccedilatildeo para o

proferimento da palavra de passe o syacutentema e o conhecimento da aleacutetheia reservado aos

baacutekkhoi mediante o inaudito ndash os apoacuterrheta Como salienta Boyanceacute as purificaccedilotildees

oacuterfico-pitagoacutericas referenciam-se no mito de Dioniso Zagreu desmembrado pelos Titatildes e

podem perfeitamente coexistir com rituais baacutequicos de livramento com hinos danccedilas

coros e a alegria extaacutetica as paidiaacute hēdonōn censuradas por Platatildeo como um tipo de

orfismo baacutequico

Eles produzem uma multidatildeo de livros de Museu e Orfeu filhos da

Lua e das Musas diz-se Eles regram seus sacrifiacutecios sob a

autoridade destes livros e fazem acreditar natildeo somente aos

particulares mas agrave cidade que se pode pelos sacrifiacutecios e jogos

prazerosos (paidiaacutes hēdonōn) ser absolvidos e purificados de seu

crime enquanto vivo e mesmo apoacutes sua morte Eles chamam

iniciaccedilotildees estes ritos (teletaacutes) que nos livram de males no outro

mundo e que natildeo se pode sacrificar sem esperar terriacuteveis supliacutecios

(Repuacuteblica 364 e ndash 365 a)

Boyanceacute assimila as teletai com os misteacuterios de Elecircusis Mas como evidencia a

exegese do comentador de Derveni a criacutetica agrave degeneraccedilatildeo do viacutenculo entre longas praacuteticas

de exerciacutecio espiritual e do papel da inteligecircncia na busca pela verdade com o segredo e a

transmissatildeo oral de uma sabedoria jaacute fazia parte da reflexatildeo filosoacutefica preacute-socraacutetica No

Teeteto (155e-156a) Platatildeo adverte en passant que o jovem olhe em derredor para que

natildeo aconteccedila que algum natildeo iniciado ouvisse o que era dito Este cuidado indica a

transposiccedilatildeo filosoacutefica do estatuto iniciaacutetico para a investigaccedilatildeo terapecircutica operada pela

142

Filosofia que exige a preparaccedilatildeo da alma A separaccedilatildeo dos elementos titacircnicos operada

pela encantaccedilatildeo musical e da harmonia de afetos coexiste com as praacuteticas cultuais de

exaltaccedilatildeo baacutequica dionisiacuteaca e com a ventura eleusina

A tensatildeo entre a multidatildeo dos portadores de tirso e os poucos bakkhoi sugere uma

gradaccedilatildeo entre narthēkophoacuteroi e iniciados No Goacutergias a oposiccedilatildeo entre os ininteligentes

natildeo-iniciados (anoḗtous amyacuteetous Goacutergias 493a07) e os myacutestai aponta para uma

polarizaccedilatildeo radical entre seres irrefletidos que se entregam aos apetites e aqueles que

buscam a proporccedilatildeo harmocircnica da alma

A tradiccedilatildeo pitagoacuterica vinculada a Alcmeacuteon de Croacutetona define a sauacutede como

isonomia e como mistura simeacutetrica de qualidades (tḗn syacutemmetron tōn poiōn kraacutesin) A

harmoniacutea resulta de um equiliacutebrio ao mesmo tempo espacial e temporal e nesse sentido haacute

uma equivalecircncia semacircntica kairoacutes-syacutemmetros o momento oportuno num arranjo

ordenado Kairoacutes symmetriacutea e eurythmiacutea configuram uma percepccedilatildeo refinada de

harmonia A noccedilatildeo de symmetriacutea se desdobra entre os preacute-socraacuteticos como proporccedilatildeo ou

uma identidade de relaccedilotildees A transposiccedilatildeo de semelhanccedila de relaccedilotildees se desdobra na

analogia identidade ou semelhanccedila de loacutegoi A funccedilatildeo da analogia consiste em remeter

uma multiplicidade de loacutegoi a uma unidade Funccedilatildeo unificadora a proporccedilatildeo geomeacutetrica e

a expressatildeo matemaacutetica da identidade de relaccedilotildees designam outro aspecto correlato da

harmonia a noccedilatildeo de mediania o meacuteson o meio-termo ndash mēsoacutetēs ndash que se estende para o

acircmbito da psykheacute como metreacutetica dos afetos A medida do tempo e o esforccedilo de conciliaccedilatildeo

entre o periacuteodo lunar e o solar engendram o problema matemaacutetico e geomeacutetrico da

comensurabilidade A harmocircnica pitagoacuterica conecta simultaneamente noccedilotildees qualitativas e

quantitativas temporais e espaciais ritmo e consonacircncia musical com o equiliacutebrio de

opostos no corpo na alma e na cidade (PERILLEacute 2005 p 24-65)

143

A menccedilatildeo ao Hades indica que os mitos escatoloacutegicos discorrem sobre o invisiacutevel

(Feacutedon 81c Craacutetilo 404b) sobre a natureza da alma seu destino futuro e seu papel na

economia cosmoloacutegica Em particular a passagem do Goacutergias postula o fato de que a alma

eacute complexa e que os apetites satildeo atributos psiacutequicos e natildeo corporais

Segundo Olimpiodoro o mito filosoacutefico eacute elaborado para que o invisiacutevel seja

inferido a partir do visiacutevel e aparente Como a alma natildeo eacute constituiacuteda somente pelo

pensamento mas tambeacutem pelos afetos e desejos o discurso deve ser multifacetado de

modo a corresponder a cada esfera psiacutequica Uma estrutura psiacutequica complexa exige uma

inteligecircncia complexa que por sua vez pressupotildee uma estrutura discursiva complexa

Conforme a tese claacutessica de Pierre Boyanceacute adotada pela maioria dos inteacuterpretes

que abordam os mitos platocircnicos o principal efeito da narrativa miacutetica eacute a ldquoencantaccedilatildeordquo

(epoidḗ) o efeito cataacutertico e terapecircutico irresistiacutevel do charme O mito filosoacutefico eacute o

discurso que expressa um pensar por imagens que eacute endereccedilado agrave parte afetiva da psykheacute

Em funccedilatildeo de sua accedilatildeo eficaz sobre os afetos o mito exerce uma accedilatildeo persuasiva que

consolida os postulados inverificaacuteveis que conferem significaccedilatildeo para as accedilotildees praacuteticas

A alegoria do tonel furado como nota Vernant eacute uma alusatildeo agrave condenaccedilatildeo infligida

agraves Danaides Segundo Apolodoro (II 1 5) na sua noite de nuacutepcias as filhas de Dacircnao em

colusatildeo com o pai decapitam seus maridos e primos filhos de Egito Por causa disso os

juiacutezes divinos condenaram-nas a encher eternamente toneacuteis furados no Hades

Carl Kereacutenyi alude ao fato de que o casamento eacute para os gregos um importante

teacutelos que demarca um rito de passagem (1998 p 46) As penas eternas indicam uma falta

vinculada agrave ausecircncia de teacutelos de completaccedilatildeo ou iniciaccedilatildeo

A iniciaccedilatildeo eacute transposta por Platatildeo em exerciacutecio filosoacutefico no esforccedilo que culmina

na phroacutenesis no pensamento puro que implica o isolamento psiacutequico No Goacutergias as

144

almas dos natildeo iniciados satildeo como toneacuteis furados que nada retecircm por descrenccedila e

esquecimento (493b) A ausecircncia de teacutelos eacute segundo Vernant (1990 p 146 ss)

indissociaacutevel do esquecimento que implica o ciclo do devir e da necessidade O

esquecimento representa a imersatildeo no eterno ciclo do tempo o eterno recomeccedilo a roda do

nascimento que faz com que a alma tome o breve instante da vida como se fosse totalidade

do tempo O mal supremo para a alma consiste em tomar a causa de um afeto violento

como se fosse a realidade mais verdadeira (Feacutedon 83c)

A transposiccedilatildeo filosoacutefica operada por Platatildeo insere o esquecimento e a memoacuteria

numa teoria do conhecimento que seraacute desenvolvida a partir do Meacutenon e do Feacutedon A

ameacuteleia ou ausecircncia de inquietaccedilatildeo configura o estado psiacutequico da vida voltada para os

apetites em detrimento da anaacutemenesis que suscita o exerciacutecio filosoacutefico que culmina na

inteligecircncia das verdades eternas A anaacutemenesis tende para o teacutelos que implica a visatildeo

unificada da totalidade do tempo pacircs khroacutenos

Na transposiccedilatildeo platocircnica meleacutete thanaacutetou eacute o exerciacutecio de morte mencionado no

Feacutedon pelo qual o pensamento puro eacute isolado da inconstacircncia do devir e da eterna

insaciabilidade dos apetites A menccedilatildeo breve do Goacutergias anuncia postulados ingressivos

que comporatildeo ao longo das obras centrais de Platatildeo uma visatildeo cosmoloacutegica unificada na

qual as questotildees eacuteticas satildeo abarcadas no domiacutenio mais amplo de uma epistemologia e

psicologia que por sua vez satildeo alicerccediladas numa ontologia

As imagens subsequentes correlacionam modos de vida excludentes com o

regramento e desregramento Um gecircnero de vida eacute representado por um homem que possui

toneacuteis repletos de conteuacutedos valiosos e que por isso natildeo se preocupa e se aquieta o outro eacute

representado por um homem cujos toneacuteis satildeo furados e que por isso eacute forccedilado agrave atividade

penosa de preenchecirc-los incessantemente O gecircnero de vida eacute determinado pela constituiccedilatildeo

145

psiacutequica que define um tipo de homem A alma temperante possui a inteligecircncia da ordem e

do regramento A inteligecircncia institui ordem naquilo que eacute desregrado A alma epitymeacutetica

eacute aquela inexoravelmente voltada para a repleccedilatildeo do vazio para o movimento sempre

renovado de uma saciedade que eacute continuamente relanccedilada na efemeridade do tempo

(DIXSAUT 2001 p 138) Desejo que nenhum recipiente pode conter esquecimento de

todo teacutelos o apetite eacute um estado penoso (Goacutergias 496d) que nunca se aquieta com a posse

do alvo desejado e que por isso reclama ausecircncia de limites

Por conseguinte mesmo que algueacutem seja de outro ponto de

vista na verdade aquele que realmente eacute tirano eacute realmente

escravo vive no cuacutemulo da bajulaccedilatildeo e da escravidatildeo e eacute adulador

dos maiores malfeitores Ele natildeo satisfaz de nenhum modo seus

desejos mas apareceria inteiramente desprovido de todas as coisas

e pobre se pudeacutessemos considerar a inteireza de sua alma Ele

extravasa de medo ao longo de toda a sua vida e eacute repleto de

sobressaltos e sofrimentos se de fato se assemelha agrave disposiccedilatildeo da

cidade que dirige

(Repuacuteblica 579e)98

Mas como pode se justificar a conexatildeo entre a inteligecircncia e o regramento Somente

a ordenaccedilatildeo e o regramento podem segundo Soacutecrates modelar uma visatildeo unificada que

vincula o ceacuteu a terra os deuses e os homens num conjunto articulado numa comunidade

cingida pela amizade ou amor da ordem (Goacutergias 507e-508a)

A lei universal que governa todas as esferas do kosmos que dirige ao mesmo

tempo o plano eacutetico-poliacutetico e a physis eacute a igualdade geomeacutetrica ndash todo-poderosa (mega

dyacutenatai) tanto entre os deuses como entre os homens O gecircnero de vida filosoacutefico norteia-se

pelo postulado de que haacute um princiacutepio unificador que cinge todo o kosmos o humano e o

divino segundo uma ordenaccedilatildeo matemaacutetica

98 Trad de Pierre Pachet (1993 p 466)

146

Walter Burkert (1972 78 n 156) Dodds (1959 339) Vlastos (1981 195 n 119) e

Irwin (1979) concordam que Platatildeo estaacute fazendo uma referecircncia direta a Arkhytas de

Tarento nas passagens em que satildeo mencionadas a geometria e a proporccedilatildeo no Goacutergias De

acordo com Carl Huffman um proeminente tema do final do pensamento do seacutec V aC

conecta a ambiccedilatildeo pleonexiacutea com o que eacute por natureza em contraste com o que eacute por

convenccedilatildeo Para Arkhytas a pleonexiacutea eacute a maior causa de discoacuterdia e instabilidade poliacutetica

do seu tempo A pleonexiacutea eacute associada com o abuso de poder tanto por um tirano quanto

por uma oligarquia rica Para combatecirc-la eacute necessaacuterio natildeo somente a lei mas a logistikeacute a

ciecircncia do caacutelculo e da geometria

No Goacutergias a pleonexiacutea de Caacutelices eacute explicada em termos da negligecircncia da

geometria e da igualdade geomeacutetrica No fragmento 3 (Stobeu e Jacircmblico) da ediccedilatildeo de

Huffman a igualdade que resulta do caacutelculo das proporccedilotildees como cura para a pleonexiacutea eacute

notavelmente paralela agrave do Goacutergias

Pois eacute necessaacuterio tornar-se ciente sendo insciente ou aprendendo

de um outro ou descobrindo por si mesmo Aprendendo a partir de

outro pertence a outro enquanto descobrindo por si mesmo

pertence a si mesmo Descoberta enquanto natildeo investigada eacute

difiacutecil e infrequumlente mas enquanto investigada faacutecil e frequumlente

mas se algueacutem natildeo sabe ltcomo calculargt (logiacutezdestai) eacute

impossiacutevel investigar

Uma vez que o caacutelculo foi descoberto impede a discoacuterdia e

aumenta a concoacuterdia Pois natildeo procuram ganacircncia desmedida

(pleonexiacutea) e igualdade existe uma vez que isto veio a ser Pois por

meio do caacutelculo (proporccedilatildeo) veremos reconciliaccedilatildeo em nossas

transaccedilotildees com os outros Por causa disso entatildeo o pobre recebe

do poderoso e o rico daacute para o necessitado ambos crendo que

haveraacute igualdade Isto serve como um cacircnon e um impedimento

para a injusticcedila Impede aqueles que sabem como calcular antes

que eles cometam injusticcedila persuadindo-os que eles natildeo poderatildeo

ficar ocultos sempre que eles aparecem para ele (o cacircnon) Impede

aqueles que natildeo sabem como calcular de cometer injusticcedila tendo

revelado a eles como injustos por meio dele (do caacutelculo) (STOBEUS IV 1139 IAMBLIKHUS Sobre a ciecircncia matemaacutetica

geral II 4410-17 apud HUFFMAN 2005 p 183)

147

O verbo pleonekteacuteō significa ter mais levar vantagem ter ganacircncia e o substantivo

pleonexiacuteaindica o iacutempeto depossuir mais do que o devido ambiccedilatildeo vantagem injusta

arrogacircncia Mas Platatildeo se apropria do viacutenculo estabelecido por Arkhytas entre a

organizaccedilatildeo poliacutetica e a matemaacutetica para promover uma generalizaccedilatildeo que ascende a uma

visatildeo unificada do kosmos e usa o termo ldquoigualdade geomeacutetricardquo num sentido muito mais

geral como equivalente a proporccedilatildeo ou regramento geomeacutetrico

A pleonexiacutea a negligecircncia do regramento geomeacutetrico que unifica o kosmos

constitui a fonte de todas as injusticcedilas A investigaccedilatildeo sobre a origem dos apetites e a

relaccedilatildeo destes com a inteligecircncia estabelece a alma como princiacutepio de accedilatildeo e causa da

justiccedila e da injusticcedila Ao postular um viacutenculo entre o domiacutenio da praacutexis e o da Natureza

pelo regramento geomeacutetrico Platatildeo estabelece o primado da alma como causa e da

inteligecircncia como condiccedilatildeo da kosmiacutea

O desenvolvimento da concepccedilatildeo de que a alma configura uma instacircncia complexa

cuja causalidade eacute intriacutenseca agrave natureza desejante estende o acervo conceptual pitagoacuterico

concernente agrave harmonia ao postulado fundamental de que a harmonia eacute uma inscriccedilatildeo a

posteriori de modalidades diversas de arranjo psiacutequico conferidas pelas proacuteprias escolhas

Em Platatildeo a alma eacute causa de sua proacutepria natureza e princiacutepio de harmonizaccedilatildeo

Essa subversatildeo nocional seraacute decisiva na causalidade platocircnica e no estabelecimento da

funccedilatildeo mediadora da alma entre o devir e a realidade inteligiacutevel

No Feacutedon Platatildeo inaugura a concepccedilatildeo de que uma harmonia de elementos

materiais pressupotildee a possibilidade de gradaccedilotildees diversas segundo o maior ou menor grau

de consonacircncia dos elementos Quanto maior for a combinaccedilatildeo maior seraacute a harmonia

148

Se a alma fosse uma harmonia de elementos materiais uma alma carregada de

viacutecios seria menos harmoniosa do que uma alma virtuosa e por conseguinte seria menos

alma o que natildeo pode ser admitido Em contrapartida se natildeo haacute uma alma que seja menos

alma que outra entatildeo natildeo haacute harmonia que seja mais intensa que outra ou seja uma

mesma harmonia natildeo pode participar ao mesmo tempo da harmonia e da ausecircncia de

harmonia Aleacutem disso a alma natildeo pode ter um estatuto secundaacuterio em relaccedilatildeo ao corpo A

alma natildeo deriva nem obedece aos processos corporais mas como sede da razatildeo regra pelo

domiacutenio dos desejos as necessidades corporais Como a alma natildeo segue aos impulsos

determinados pelos elementos em tensatildeo no corpo mas os domina e tem mestria sobre eles

a sua natureza eacute diferente das dos elementos do corpo e por isso a alma natildeo pode ser uma

harmonia ela possui harmonia Platatildeo transpotildee o conceito material de harmonia para a sua

concepccedilatildeo de consonacircncia e afinidade com o divino Essa transposiccedilatildeo enseja o argumento

de que a alma eacute princiacutepio de regramento e tende a assemelhar-se com as Formas

Toda a discussatildeo acerca das causas que daacute origem agrave concepccedilatildeo das Formas estaacute

calcada numa criacutetica a concepccedilotildees pitagoacutericas sobretudo as de Alcmeacuteon e de Filolau Haacute

causas necessaacuterias e causas uacuteltimas verdadeiras Os quatro elementos da physis e as

relaccedilotildees numeacutericas inteligiacuteveis satildeo necessaacuterios para a inteligecircncia mas natildeo se identificam

com o inteligiacutevel As verdadeiras causas satildeo as ldquocoisas em si mesmasrdquo ordenadas e

harmonizadas segundo o Bem O meio de inteligibilidade do kosmos eacute a phroacutenesis cuja

sede eacute a alma As relaccedilotildees numeacutericas indispensaacuteveis para a inteligibilidade natildeo satildeo

intriacutensecas agraves coisas nem a harmonia configura uma consonacircncia de coisas mas estatildeo no

acircmbito da psykheacute e constituem uma consonacircncia com as Formas causas fundamentais de

todas as coisas

149

36 Julgamento e nudez

O mito de julgamento do Goacutergias alude ao tempo primordial de Kroacutenos no qual a lei

da justa retribuiccedilatildeo foi instituiacuteda O destino futuro da alma depende da natureza de suas

accedilotildees pregressas A conexatildeo causal infrangiacutevel que rege ateacute mesmo os deuses estabelece a

correspondecircncia entre o estado psiacutequico e a praacutexis eacutetico-poliacutetica A bem-aventuranccedila ou os

sofrimentos a felicidade ou a infelicidade derivam dos princiacutepios da accedilatildeo O estado

caoacutetico representado pelo Taacutertaro prisatildeo das potecircncias coacutesmicas da violecircncia e da

desordem reflete a proacutepria natureza da alma Assim como haacute uma homologia estrutural

entre a alma do tirano e as disposiccedilotildees da cidade que governa haacute uma homologia entre a

desordem coacutesmica e a natureza psiacutequica do agente injusto

Todavia neste tempo primordial que remete ao primado do Intelecto noucircs os juiacutezes

vivos referenciavam seus criteacuterios no mesmo plano da vida e do devir e seus decretos eram

promulgados no proacuteprio tempo das accedilotildees submetidas a julgamento A auto-referecircncia dos

juiacutezos em que o vivo era a medida do vivo implicava o erro e a destinaccedilatildeo incompatiacutevel

com a natureza das almas Uma situaccedilatildeo impediente catastroacutefica eacute anunciada a ameaccedila agrave

validade universal da lei de Kroacutenos Zeus astucioso dentre todos os mediadores o mais

privilegiado diagnostica a causa do mal os julgamentos satildeo distorcidos pelas aparecircncias

das roupagens que ocultavam a verdadeira condiccedilatildeo das almas e interditavam a

perscrutaccedilatildeo de sua natureza pelo olhar

A justiccedila eacute recoberta pelas roupagens dos valores que norteiam a vida praacutetica e os

sinais visiacuteveis testemunhas oculares das sanccedilotildees que determinam os bens ndash o prazer as

riquezas e as honrarias ndash impedem o conhecimento da verdade Para que os julgamentos

possam se desprender dos sinais materiais e possam discernir segundo o melhor valor eacute

preciso referenciar a vida em outra coisa que natildeo seja ela mesma Todas as teacutecnicas

150

discursivas e persuasivas todos os signos de valores fundados na opiniatildeo coletiva satildeo

empregados para forcejar a adesatildeo dos juiacutezes a uma imagem ilusoacuteria de justiccedila

Os proacuteprios juiacutezes natildeo possuem outro acesso agrave investigaccedilatildeo que natildeo sejam

mediados pela falibilidade dos sentidos Diante do diagnoacutestico Zeus prescreve o

expediente astucioso que remediaraacute o mal

Primeiro eacute preciso diz Zeus que os homens cessem de

conhecer de antematildeo a hora da morte Pois agora eles sabem

em qual momento iratildeo morrer Ora eu acabo de dizer a

Prometeu para que lhes retire este conhecimento Em seguida

eacute necessaacuterio que os homens sejam julgados nus despojados

de tudo o que eles tecircm Eacute por isso que se lhes deve julgar

mortos E seus juiacutezes devem estar igualmente mortos nada

aleacutem daquilo que uma alma vecirc em outra alma Que desde o

momento da morte cada um esteja separado de todos os seus

proacuteximos que deixe sobre a terra todo este decoro ndash este eacute o

uacutenico meio para que o julgamento seja justo

(Goacutergias 523d-e)99

O expediente elucubrado por Zeus eacute poacutelo simeacutetrico ao expediente instrumental do

mito de Prometeu no Protaacutegoras A previsatildeo propiciada pela inteligecircncia utilitaacuteria

representada pelo fogo furtado deve ser retirada dos homens pelo filantropo Prometeu A

capacidade de engenho teacutecnico garante natildeo somente a provisatildeo e a compensaccedilatildeo para as

carecircncias humanas mas ocasionam a violecircncia e a injusticcedila endoacutegenas Se a vida do gecircnero

humano soacute pode ser assegurada pela inteligecircncia instrumental engenhosa a existecircncia da

comunidade poliacutetica depende da participaccedilatildeo no par aidoacutes-diacuteke sem a qual ocorre a

desumanizaccedilatildeo inevitaacutevel A retirada da capacidade projetiva implica uma divisatildeo no plano

cronoloacutegico em que se estabelece a consecuccedilatildeo entre accedilatildeo e consequecircncia A separaccedilatildeo

entre o tempo cronoloacutegico da vida e o tempo apoacutes a morte representa a dissociaccedilatildeo entre o

visiacutevel e manifesto e o invisiacutevel oculto

99 Trad de Monique Canto (PLATON 1993 p 304)

151

O corte radical impede a eficaacutecia dos signos exteriores de justiccedila mediados pelas

teacutecnicas do engano e da ilusatildeo Todos os recursos satildeo inelutavelmente abandonados todos

os apegos afetivos satildeo impotentes apoacutes a travessia A remissatildeo a paradigmas absolutos

exige o postulado de que a morte eacute a separaccedilatildeo entre o e a alma Eacute preciso crer na alma

separada e isolada para que se vislumbrem os paradigmas da vida de maior valor

A verdadeira natureza psiacutequica revela-se em funccedilatildeo de suas causas remotas e nada

pode violar a lei causal eacutetico-psiacutequica de Kroacutenos A nudez remove os sinais exteriores do

engano e inverte a relaccedilatildeo entre a ocultaccedilatildeo e a vergonha entre a exposiccedilatildeo e o juiacutezo A

vergonha natildeo depende mais da coerccedilatildeo do olhar coletivo das gestas reputaacuteveis e

censuraacuteveis que configuram os valores da cidade e os noacutemoi humanos A vergonha eacute o

afeto que revela a inadequaccedilatildeo da natureza psiacutequica com sua destinaccedilatildeo final afeto que

deixa de ser prospectivo e passa a ser retrospectivo acerca dos males que poderiam ser

evitados sem a tirania dos apetites

Na planiacutecie invisiacutevel em que as hierarquias da vida satildeo equalizadas no mesmo

meacutetron as foacutermulas de reconhecimento as palavras de passe e a memorizaccedilatildeo de

prescriccedilotildees rituais dos antigos cultos de misteacuterio satildeo transpostas pelo escrutiacutenio imediato

do ldquoolhar da almardquo que vecirc outra alma O discurso sagrado natildeo expressa a natureza proacutepria

do recipiendaacuterio e por isso o sentido enigmaacutetico do discurso polissecircmico perde a

finalidade Somente o olhar perscrutador desembaraccedilado de qualquer obstaacuteculo pode

apreender a verdade dos seres e determinar o loacutecus consonante a cada alma Os verdadeiros

baacutekkhoi natildeo satildeo os que declaram ser puros mas satildeo aqueles que puros resplandecem em

sua proacutepria natureza psiacutequica as ordenaccedilotildees da justiccedila efetivada em vida

A feiuacutera do debochado Tersites (Goacutergias 526e) a chaga do voluptuoso os conflitos

e sofrimentos do tirano apetitivo e as desmedidas dos natildeo-iniciados configuram uma nova

152

acepccedilatildeo da vergonha na qual o feio e o vergonhoso necessariamente implicam-se

mutuamente

No movimento da transposiccedilatildeo iniciaacutetica operado pelas imagens miacuteticas a

autecircntica hyponoacuteia consiste em apreender as grandes verdades que se ocultam subjacentes

aos signos aparentes O filoacutesofo eacute aquele que investiga o regramento coacutesmico e a proporccedilatildeo

geomeacutetrica e os aplica ao regramento dos princiacutepios de accedilatildeo e inteligibilidade da alma A

alma justa eacute a alma bem ordenada consonante com a harmonia coacutesmica (Goacutergias 507a)

Segundo Monique Dixsaut (2001 p 171-173) a uacutenica verdade que o filoacutesofo pode

crer eacute aquilo que o loacutegos lhe significa e natildeo a vida Este loacutegos indica que haacute uma maneira

de viver que eacute a melhor porque concede tempo agrave busca da verdade Todavia as imagens do

mito final apontam para o fato de que a cataacutertica elecircntica do loacutegos filosoacutefico possui a

eficaacutecia de desnudar o interlocutor de suas falsas ilusotildees e envergonhaacute-lo mediante a

contradiccedilatildeo entre as crenccedilas professadas e o gecircnero de vida efetivamente praticado Natildeo

obstante o loacutegos eacute inoperante diante da hostilidade da violecircncia e da ignoracircncia

(apaideusiacutea 527e) O discurso filosoacutefico natildeo assegura a salvaccedilatildeo diante de juiacutezes

desonestos e natildeo evitam o ridiacuteculo e a violecircncia

Mas o verdadeiro filoacutesofo eacute como o piloto cujo papel eacute simultaneamente o de

conduzir em seguranccedila os tripulantes os valores e a si mesmo ao bom porto (Goacutergias

511c-512a) Sua funccedilatildeo eacute a de preservar dos males as almas dos seus concidadatildeos Para

tanto eacute necessaacuteria a retoacuterica da alma que ultrapassa a significaccedilatildeo discursiva para

culminar na inteligecircncia da visatildeo direta de uma alma para outra Quando uma alma observa

outra sem qualquer das mediaccedilotildees sensiacuteveis ela compreende o modo como o tempo

devotado a certo gecircnero de vida que ela julgou digno de ser vivido a afetou e quais marcas

imprimiu em sua qualidade proacutepria (Goacutergias 524d)

153

Se os loacutegoi suscitam o refuacutegio e o mergulho na verdade dos seres (Feacutedon 99e) a

qualidade proacutepria da alma soacute eacute determinada pela instauraccedilatildeo praacutetica da justiccedila poliacutetica Para

exercitar o saber eacute preciso tambeacutem crer mas como dizia o exegeta de Derveni ainda que

se esteja vendo eacute impossiacutevel crer ou aprender sem que se leve em conta as coisas terriacuteveis

(deinaacute) do Hades Natildeo se pode exercitar o saber sem que este seja vivido pois mesmo as

melhores naturezas estatildeo sujeitas agrave perversatildeo do pior gecircnero de apetites Tais satildeo os

apetites que se manifestam em sonhos e suscitam repleccedilatildeo recocircndita daquele que possui

disposiccedilotildees doentias para empreender unir-se agrave proacutepria matildee a qualquer homem deus ou

besta e de manchar-se de qualquer crime por causa da demecircncia e da renuacutencia agrave vergonha

(Repuacuteblica 571d) Assim como a qualidade proacutepria de um ser artefato ou da alma natildeo

resulta do acaso mas do modo como cada um eacute regrado assim tambeacutem a qualidade proacutepria

da alma soacute pode regrar-se atraveacutes da consonacircncia com a proporccedilatildeo geomeacutetrica

indissociaacutevel da accedilatildeo virtuosa que muda as disposiccedilotildees da poacutelis (Goacutergias 506e)

Ao fim e ao cabo de todos os discursos eacute preciso prestar a maior atenccedilatildeo natildeo tanto

em evitar sofrer a injusticcedila mas em natildeo cometecirc-la Eacute necessaacuterio natildeo se aplicar em parecer

bom mas em secirc-lo verdadeiramente tanto em privado como em puacuteblico (Goacutergias 527b)

Nenhum mal pode sobrevir ao homem de bem se ele pratica a virtude (527d) nenhum

ultraje pode envergonhaacute-lo nenhum sofrimento corrompecirc-lo ndash a natildeo ser a possibilidade de

que ele mesmo pratique o mal Toda modalidade discursiva seja a retoacuterica seja o eacutelenkhos

deve servir para a perenidade do justo (527c)

154

IV - NECESSIDADE E ESCOLHA

41 Imagens e causas no mito de Er

No espetaacuteculo de imagens narradas no mito de Er haacute uma proclamaccedilatildeo majestosa

de um Propheacutetes que em nome da virgem Laacutequesis anuncia a coexistecircncia simultacircnea de

noccedilotildees contraditoacuterias de um lado haacute a necessidade inelutaacutevel da ligaccedilatildeo de cada alma com

a vida de outro a radicalidade da escolha como fonte de virtude e imputabilidade

Como conciliar a necessidade inevitaacutevel do periacuteodo de nascimentos e mortes com a

escolha mais determinante Como conceber a sorte e a liberdade radical da escolha como

princiacutepios causais simultacircneos da natureza da psykheacute O inteacuterprete da Moira anuncia o

desconcerto da unificaccedilatildeo de poacutelos opostos entre o irrefragaacutevel e o indeterminado entre o

lote infaliacutevel e a autodeterminaccedilatildeo desejada

Logos da virgem Laacutequesis filha da Necessidade Almas efecircmeras

ireis iniciar novo periacuteodo de nascimentos na condiccedilatildeo mortal Natildeo

eacute um daiacutemon que vos escolheu a sorte sois voacutes que escolhestes

vosso daiacutemon O primeiro que a sorte designar escolheraacute primeiro

a vida agrave qual seraacute ligado em toda necessidade Pois virtude natildeo

tem deacutespota Segundo a honrar ou desonrar cada um a teraacute mais

ou menos Responsabilidade (aitiacutea heloumeacutenou) eacute de quem escolhe

O deus natildeo eacute responsaacutevel (theoacutes anaiacutetios) 100

Repuacuteblica X 617d06ndash617e05

Eacute um espetaacuteculo curioso observar de que maneira as diferentes almas escolhem suas

vidas nada mais lamentaacutevel ridiacuteculo e assombroso diz o panfiacutelio Er 101

A maioria eacute

guiada em suas escolhas pelos haacutebitos adquiridos em suas vidas anteriores haacutebitos que

100

Adoto traduccedilatildeo de Pierre Pachet com ligeiras modificaccedilotildees

Anaacutenkhes thygatrograves koacuteres Lakheacuteseos loacutegos Psykhaigrave epheacutemeroi arkhegrave aacutelles perioacutedou thnetoucirc geacutenous

thanatephoacuterou Oukh hymacircs daiacutemon leacutexetai hlrmymeicircs daiacutemona haireacutesesthe Procirctos drsquo hoacute lakhograven procirctos

haireiacutestho biacuteon hoacutei syneacutestai ex[ Anaacutenkhes Aretegrave degrave adeacutespoton hegraven timocircn kaigrave atimazon pleacuteon kaigrave eacutelatton

autecircs heacutekastos heacutexei Aitiacutea helomeacutenou theograves anaiacutetios 101 eleeineacuten te gaacuter ideicircn eicircnai kai geloiacutean kaigrave thaumasiacutean (Repuacuteblica X 620a 01-02)

155

acabam por condicionar uma homologia entre a natureza psiacutequica e o gecircnero de vida

Quando o gecircnero de vida estaacute em questatildeo emerge o primado da escolha

Sendo assim na travessia em que consiste a vida quais satildeo os meios e por quais

modos de viver poderemos conduzir a existecircncia da melhor forma possiacutevel ateacute o seu termo

Tal eacute a questatildeo crucial levantada pela imagem exemplar do Livro VII das Leis

Um construtor de navios no momento em que comeccedila a construccedilatildeo

do navio potildee em primeiro lugar a carena e esboccedila assim a

estrutura do navio Parece-me que eu faccedilo a mesma coisa quando

tentando distinguir a estrutura dos modos de vida em funccedilatildeo dos

caracteres das almas eu coloco realmente em lugar as carenas

destes modos de vida examinando por quais meios por quais

maneiras de viver conduziremos o melhor possiacutevel nossa existecircncia

ateacute o fim desta travessia que consiste a vida

Leis VII 803a-b

A questatildeo da investigaccedilatildeo da natureza da alma eacute explicitada a partir de uma

analogia o Estrangeiro de Atenas alvitra que assim como o construtor de navios inicia a

construccedilatildeo pela carena e esboccedila a estrutura do barco assim tambeacutem devemos tentar

estabelecer o delineamento dos esquemas de vida por meio dos gecircneros de almas102

O problema da indeterminaccedilatildeo do modo de vida conjuga-se com a questatildeo mais

fundamental do Goacutergias Qual eacute o melhor gecircnero de vida que eacute preciso ter103

A mais

fundamental de todas as questotildees da vida consiste em se determinar a natureza do proacuteprio

modo de viver Dentre toda a gama infinita de escolhas a vida filosoacutefica postula o princiacutepio

de que haacute uma hierarquia entre os afetos e uma escolha que eacute a melhor possiacutevel

Pois esta vida esta vida uacutenica seja ela longa ou curta eacute o que de

fato um homem verdadeiramente homem deve deixar de lado Natildeo

eacute a isso que ele deve devotar o amor de sua alma Ao contraacuterio no

que diz respeito a sua longevidade deve remeter-se somente ao

deus e crer somente no que dizem as mulheres que ningueacutem

poderia escapar ao seu lote Natildeo o que antes se deve procurar

102

tagrave tocircn biacuteon peiroacutemenos skheacutemata diasteacutesasthai katagrave tpoacutepous tougraves tocircn psykhoacuten (Leis VII 803a06-07) 103 oacutentina khreacute troacutepon zeacuten (Goacutergias500c03)

156

examinar eacute qual a maneira que se deve viver a vida para que ela

seja a melhor possiacutevel

Goacutergias 512 d-e

A vida esta vida uacutenica que equivale a uma travessia articula dois opostos

inseparaacuteveis a determinaccedilatildeo incontestaacutevel de uma longevidade que escapa ao poder

humano e o poder inalienaacutevel do modo como esta travessia seraacute feita Se a nenhum homem

cabe determinar a duraccedilatildeo da proacutepria vida a cada homem cabe decidir como iraacute viver a

vida que lhe cabe pois o viver eacute fruto de escolhas Se o gecircnero de vida eacute determinado pelas

escolhas o que delimita o acircmbito das escolhas por sua vez eacute a natureza uacuteltima dos desejos

e do caraacuteter Natildeo haacute escolha que natildeo seja resultante do movimento dos desejos A

orientaccedilatildeo dos desejos determina os valores os criteacuterios de discriminaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo

do preferiacutevel que por sua vez nortearatildeo o modo como a vida eacute vivida Esta orientaccedilatildeo

natural dos desejos eacute por conseguinte preacutevia agrave percepccedilatildeo da realidade vivida

O discernimento da estrutura psiacutequica pressupotildee por sua vez a distinccedilatildeo da

multiplicidade e da natureza dos desejos Trata-se de uma correspondecircncia biuniacutevoca em

que o pensamento discerne o desejo e o desejo se exprime num modo de vida Pensamento

desejos e modo de vida articulam-se numa relaccedilatildeo de implicaccedilotildees e consequecircncias muacutetuas

Pensamento e desejos acarretam consequecircncias inevitaacuteveis sobre o gecircnero de vida de modo

a urdir a trama que entrelaccedila necessidade e liberdade na tecedura que compotildee o viver

Todavia os patheacutemata da alma configuram impulsos agogecircs contraacuterios (Repuacuteblica

X 604 a-b) Quando num mesmo homem em relaccedilatildeo ao mesmo elemento e ao mesmo

tempo dois impulsos contraacuterios coexistem eacute necessaacuterio que haja nele duas partes104

Os impulsos antiteacuteticos da alma determinam accedilotildees opostas e por conseguinte

implicam a diversidade de partes jaacute que efeitos opostos natildeo podem provir da mesma causa

104 Enantiacuteas degrave agogecircs gignoacutemenes en toacutei anthroacutepoi peri to auto haacutema duacuteo phamegraven em autocirci anankaicircon

eicircnai

157

(Repuacuteblica IV 439bss) Tal postulado transpotildee para a esfera do psiquismo a

impossibilidade de que haja contradiccedilatildeo numa mesma instacircncia e num mesmo instante de

princiacutepios de accedilatildeo que fazem com que a psykheacute seja uma causa (REIS M D 2000 p

114) As pulsotildees conflitantes e opostas da psykheacute indicam a necessidade de sua

complexidade

Na complexidade de princiacutepios de accedilatildeo opostos a afliccedilatildeo ou os afetos violentos

impedem a alma de discernir o melhor aquilo que haacute de bem e mal (toucirc agathoucirc te kaigrave

kakoucirc) nas dificultosas sobrecargas (en taicircs xymphoraicircs) que sobrevecircm ao homem A

tristeza e a afliccedilatildeo uma vez dominantes fazem obstaacuteculo agrave inteligecircncia dos expedientes

(touacutetoi empodograven gignoacutemenon tograve lypeicircsthai) e por essa razatildeo nenhuma das coisas humanas

merece grande reverecircncia (ouacutete ti tocircn anthropiacutenon aacutexion ograven megaacuteles spoudecircs Repuacuteblica X

604b09-c03) A natureza da psykheacute eacute determinada pela similitude com sua ocupaccedilatildeo

ordinaacuteria (Feacutedon 82a) Por isso a experiecircncia de um prazer ou pena intensos suscitam o

mal supremo a psykheacute eacute conduzida a tomar o que causa o afeto mais intenso por aquilo

que possui a maior evidecircncia e a realidade mais verdadeira enquanto ele natildeo eacute nada

(Feacutedon 83c05-08) A realidade dos sofrimentos intensos eacute ilusoacuteria e o mais belo consiste

em manter a maior quietude diante deles (maacutelista hesykhiacutean aacutegein Repuacuteblica 604b09)

No Feacutedon (99b) Platatildeo distingue duas ordens de causas (i) as causas verdadeiras e

(ii) as causas sem as quais nenhuma causa seria causa As verdadeiras causas identificam-se

com o noucircs e exigem que se postule a faculdade psiacutequica da inteligecircncia discriminadora do

melhor (beacuteltiston) A complexidade de impulsos faz da psykheacute princiacutepio de movimento e

causa

Concluamos eacute princiacutepio de movimento aquilo que se move a si

mesmo Ora natildeo eacute possiacutevel nem que ele se anule nem que comece

a existir do contraacuterio o ceacuteu inteiro a geraccedilatildeo inteira vindo ao

158

ocaso tudo isso pararia e jamais se renovaria Uma vez posto em

movimento em um ponto de partida para sua existecircncia Agora que

eacute evidente a imortalidade daquilo que eacute movido por si mesmo natildeo

se faraacute escruacutepulo de afirmar que isto eacute a essecircncia da alma e que

esta eacute sua natureza De fato todo corpo que recebe de fora seu

movimento eacute um corpo inanimado Um corpo eacute animado ao

contraacuterio por algo de dentro e que tem em si mesmo o princiacutepio

uma vez que eacute nisto que consiste a natureza da alma

Fedro 245d

A essecircncia da noccedilatildeo agrave qual corresponde o nome alma eacute ser princiacutepio de movimento

Um princiacutepio natildeo pode ser engendrado visto que sua existecircncia nesse caso derivaria de

outra coisa Tudo o que eacute engendrado eacute necessariamente engendrado sob o efeito de uma

causa pois sem a intervenccedilatildeo de uma causa nada pode ser engendrado eis a relaccedilatildeo

necessaacuteria que a noccedilatildeo de princiacutepio de movimento expressa haacute um viacutenculo infaliacutevel entre

efeito e causa (Timeu 28a) O princiacutepio eacute aquilo cuja existecircncia eacute intriacutenseca a si mesmo

(ROBIN in Fedro p 83) Nesse sentido o movimento da alma a torna causa e princiacutepio

Em Platatildeo a alma eacute ao mesmo tempo movimento impulso e causa

Somente a inteligecircncia pode regrar o acaso pois a opiniatildeo a presciecircncia

(epimeacuteleia) o noucircs a arte e a lei satildeo anteriores aos elementos da Natureza (Leis X 892b)

A questatildeo do melhor (beacuteltiston) e das escolhas pressupotildee a configuraccedilatildeo psiacutequica e a

economia de seus impulsos Nesta economia os desejos determinam o alvo em que

terminam Todo desejo eacute orientado e aponta para um fim

No Goacutergias Soacutecrates afirma que de todos os preparativos humanos (paraskeuaigrave)

alguns visam somente o prazer e desconhecem o melhor e o pior outros conhecem o Bem e

o mal

Eu dizia se tu te lembras que haacute certos preparativos que querem

somente atingir o prazer e se ocupam somente disto numa

ignoracircncia total do que eacute melhor ou pior Mas existem outros que

conhecem o bem e o mal Goacutergias 500a

159

A questatildeo eacutetica da melhor escolha exige o plano epistemoloacutegico da distinccedilatildeo do

Bem e do melhor O conhecimento do Bem e do mal deve fundamentar a praacutexis eacutetico-

poliacutetica

Platatildeo subordina agraves escolhas a questatildeo ldquoqual o melhor gecircnero de vida que se deve

terrdquo Escolhas pressupotildeem desejos como impulsos para a accedilatildeo Neste sentido o psiquismo

eacute causa e por isso a Filosofia deve existir como Eros como orientaccedilatildeo natural do desejo

para o melhor Somente a inteligecircncia pode discriminar diferenccedilas e discernir o melhor

somente o movimento do pensamento apanaacutegio da psykheacute configura e inteligibilidade do

Bem (DIXSAUT 2001 p 130)

A escolha do alvo que eacute o fim do desejo determina simultaneamente os valores a

potecircncia do discurso e a realidade do real A realidade eacute determinada pelo modo como se

escolhe vecirc-la Instacircncia complexa a natureza psiacutequica determina o modo de inteligibilidade

pelo qual a realidade eacute apreendida

Mas para discorrer filosoficamente acerca de instacircncias que natildeo podem ser

justificadas logicamente Platatildeo emprega o registro da narrativa miacutetica As noccedilotildees

multiacutevocas que compotildeem a realidade e natildeo possuem justificaccedilatildeo loacutegica exigem a piacutestis

como consolidaccedilatildeo

42 ndash Mito e psykhḗ

Da ordem da mousikeacute os mitos platocircnicos esboccedilam mediante um pensar por

imagens um modelo de visualizaccedilatildeo de realidades inverificaacuteveis e satildeo endereccedilados aos

patheacutemata com a finalidade de consolidar uma crenccedila No Feacutedon (77e-78a) a encantaccedilatildeo

miacutetica (epoideacute) eacute reclamada como meio de afastar o medo crucial da morte O medo eacute um

iacutendice um signo de reconhecimento de que o corpo se manteacutem preponderante sobre o

160

pensamento (Feacutedon 68c) Do medo derivam as duacutevidas e as hesitaccedilotildees que paralisam as

accedilotildees humanas e impedem a atividade filosoacutefica

A encantaccedilatildeo miacutetica possui simultaneamente (i) a funccedilatildeo pedagoacutegica de esclarecer

e de propiciar a crenccedila e (ii) a funccedilatildeo epistemoloacutegica de engendrar noccedilotildees que natildeo possuem

referentes verificaacuteveis (NUNES SOBRINHO 2007 p 186 ss) Ademais como toda

estrutura musical a estrutura miacutetica implica ressonacircncias psiacutequicas haacute uma homologia

estrutural entre muacutesica mito e o psiquismo105

Os mitos platocircnicos fornecem modelos exemplares para o comportamento humano e

constituem um referencial que confere sentido e orientaccedilatildeo para as accedilotildees A estrutura

miacutetica possui uma homologia estrutural multiacutevoca e profunda com a estrutura do

psiquismo com a estrutura poliacutetica e com a estrutura de determinaccedilatildeo das realidades

Aleacutem disso a estrutura imageacutetica do mito suscita a partir de imagens familiares

visiacuteveis a inferecircncia de estruturas inevidentes106

Assim como o Ser estaacute para o devir

assim tambeacutem a verdade estaacute para a crenccedila afirma Timeu de Locri (Timeu 29c) A analogia

se estende para o plano das relaccedilotildees assim como se pode inferir o inteligiacutevel a partir de

relaccedilotildees invariantes observadas no devir assim tambeacutem se pode inferir a verdade a partir

das imagens que lhes servem de postulados

Narrativas miacuteticas filosoacuteficas possuem a pretensatildeo de tornar comunicaacutevel uma

realidade complexa Quando a complexidade eacute excessiva para ser abarcada pela

inteligecircncia o mito faz ver Os grandes mitos de julgamento operam a transposiccedilatildeo de

105 hoacutes philosophiacuteas megraven ouses megiacutestes mousikeacutes emoucirc degrave toucircto praacutettontos (Feacutedon 61a03) A Filosofia eacute a

mais alta muacutesica inextricaacutevel do pensamento puro (phroacutenesis) e da aspiraccedilatildeo agraves realidades mais verdadeiras

No Timeu a alma participa da razatildeo da harmonia e do nuacutemero o que faz com que possa engendrar o melhor

dos seres que sempre satildeo autegrave degrave aoacuteratos meacuten logismoucirc degrave meteacutekhousa kaigrave harmonias pykheacute tocircn noetocircn aeiacute

te oacutenton hypograve toucirc ariacutestou ariacuteste genomeacutene tocircn genetheacutenton (37e06-a02) 106 With regard to nature and task of demiurge one must note that the invisible is inferred from the visible

and the incorporeal from the bodily (OLYMPIODORO 1998 p 290)

161

imagens familiares visualizaacuteveis para uma teia de relaccedilotildees invisiacuteveis que satildeo fundamentais

para a unificaccedilatildeo da experiecircncia humana muacuteltipla com uma cosmologia107

Como falar filosoficamente daquilo que eacute inverificaacutevel como a alma e a morte A

significaccedilatildeo aportada pelo mito filosoacutefico indica a possibilidade de transposiccedilatildeo de um

registro de realidade para outro de modo a se consolidar o primado e a inscriccedilatildeo da

inteligecircncia naquilo que eacute destituiacutedo de ordem (akosmiacutea) ou de regras naquilo que eacute

desregrado (akolasiacutea) Como diria Dixsaut toda ontologia eacute miacutetica e todo mito pode servir

como justificativa ontoloacutegica (DIXSAUT 2001 p 130) Por essa razatildeo quando a

argumentaccedilatildeo chega ao impasse e ao limite para natildeo se cair na misologia (Feacutedon 89d ss)

eacute preciso contar com a perspectiva dos discursos divinos para se afrontar o risco (kiacutendynos)

da travessia da vida (Feacutedon 85d) Para se evitar a misantropia eacute preciso compreender que a

bondade e a maldade completas satildeo raras e as misturas satildeo muitas108

Para se evitar a

misologia eacute preciso empregar todo o ardor em fazer o discurso parecer verdadeiro natildeo

para os que ouvem mas tatildeo somente para si mesmo (Feacutedon 89e-90a)

Como o plano da vida e do devir eacute o plano da mistura (metaxyacute) eacute preciso identificar

aquilo que no real soacute pode ser justificado miticamente Eis aiacute o belo risco da Filosofia

crer que a alma eacute imortal no pacircs kroacutenos eis o risco que deve correr aquele que crecirc que eacute

assim Pois este risco eacute belo (Feacutedon 114d)

107 Segundo Leacutevi-Strauss realidades demasiado complexas exigem para sua inteligibilidade uma reduccedilatildeo a

relaccedilotildees compreensiacuteveis mediante a busca de invariantes em suas relaccedilotildees internas As relaccedilotildees internas de

certo niacutevel de realidade satildeo suscetiacuteveis de aparecer a outros niacuteveis Nesse sentido eacute possiacutevel analisar no acircmbito do psiquismo relaccedilotildees que satildeo observadas na Natureza Os mitos possuem a funccedilatildeo de apresentar

mediante suas relaccedilotildees internas a inscriccedilatildeo de ordem numa aparente desordem A inscriccedilatildeo de ordem naquilo

que se apresenta caoacutetico implica precisamente a funccedilatildeo psiacutequica por excelecircncia e consolida a proacutepria noccedilatildeo

de significado O que significa significar Segundo Leacutevi-Strauss a significaccedilatildeo representa a possibilidade de

traduccedilatildeo ou transposiccedilatildeo de um registro de realidade para outro Por essa razatildeo os mitos platocircnicos satildeo

portadores de significaccedilatildeo pois traduzem para o acircmbito imageacutetico da narrativa noccedilotildees que satildeo somente

pensaacuteveis Sua operacionalidade eacute nesse aspecto dianoieacutetica (LEacuteVI-STRAUSS 1978 p 22 ss) 108 tougraves megraven khrestougraves kaigrave ponerougraves sphoacutedra oliacutegous eicircnai hekateacuterous tougraves degrave metaxỳ pleiacutestous

162

O mito propicia a ultrapassagem da condiccedilatildeo temporal e da ignoracircncia (apaideusiacutea)

que constituem o quinhatildeo de todo ser que se identifica a si mesmo e ao Real com sua

proacutepria situaccedilatildeo particular

43 - ER O DECRETO DE LAacuteQUESIS

A questatildeo da escolha do melhor gecircnero de vida eacute apresentada no mito de Er como

risco inerente agrave mistura em que consiste o breve instante que vai do nascimento ateacute a morte

O breve tempo que separa a infacircncia da velhice nada eacute em comparaccedilatildeo com a eternidade

A correta valoraccedilatildeo deve levar ser posta na perspectiva da totalidade do tempo paacutes kroacutenos

Que pode haver de grande em um intervalo que tempo tatildeo restrito Pois todo o intervalo

que separa a infacircncia da velhice eacute muito pouco em comparaccedilatildeo com a eternidade

(Repuacuteblica X 608c) Um ser imortal natildeo deve dedicar tanto esforccedilo por um tempo tatildeo curto

e negligenciar a eternidade109

A oposiccedilatildeo entre tempo da vida e a totalidade do tempo

indica a necessidade de uma re-valoraccedilatildeo dos valores humanos na perspectiva de um

paradigma atemporal

O espetaacuteculo narrado pelo panfiacutelio Er evoca uma estrutura coacutesmica tripartite as

almas encontram-se num prado (leimoacuten) lugar democircnico toacutepon tinaacute daimoacutenion

(Repuacuteblica X 614c) que media a regiatildeo superior do ceacuteu e a inferior da terra

Todo lugar nos mitos platocircnicos toda geografia e cosmologia do invisiacutevel

concernem ou agrave estrutura psiacutequica ou dizem respeito agrave estruturaccedilatildeo de planos de realidade

diversos A triparticcedilatildeo refere-se ao mesmo tempo agrave condiccedilatildeo psiacutequica e a estruturas de

109

Mas aquele de pensamento superior que contempla a totalidade do tempo e a totalidade do ser supotildees que

eacute capaz de ter em grande opiniatildeo a vida humana

bdquo´Hi oucircn hypaacuterkhei dianoiacuteai megalopreacutepeia kaigrave theoriacutea pantograves megraven khroacutenou paacuteses degrave ousiacuteas hoicircon te oiacuteei

touacutetoi mega ti dokecircin eicircnai tograven antroacutepinon biacuteon

Repuacuteblica VI 486a 09-10

163

realidades Natildeo eacute outra a razatildeo pela qual os tiranos como Ardieu satildeo arrastados e jogados

no Taacutertaro ndash imagem do caos turbulento Suas almas satildeo caoacuteticas e por si mesmas suscitam

a imagem da realidade que se lhes assemelha Por outro lado O Feacutedon apresenta uma

estrutura fisiograacutefica tripartite (109b-110a) que indica planos de realidade com

determinaccedilotildees variadas Haacute uma ldquoverdadeira terrardquo invisiacutevel mais pura cristalina e bela do

que a cavidade na qual habitam os homens A verdadeira Terra estaacute para a nossa

ldquocavidaderdquo assim como a nossa cavidade estaacute para as profundezas marinhas110

Haacute uma

simetria de proporccedilotildees entre planos com diferenccedilas de determinaccedilatildeo

Apoacutes haver passado sete dias no prado Er deveria partir no oitavo dia e chegar a um

lugar onde se estende do alto atraveacutes de todo o ceacuteu e da terra uma luz como uma coluna111

(phoacutes euthyacute hoicircon kiacuteona) muito semelhante ao arco iacuteris (maacutelista teacute igraveridi prospheacutere) mas

mais brilhante e mais pura (lampoacuteteron degrave kaigrave katharoacuteteron) Esta luz era uma cadeia que

prendia o ceacuteu (xyacutendesmon toucirc ouranoucirc) tal como as cordas de uma trirreme (Repuacuteblica

616b-c)

A mediaccedilatildeo entre planos de realidade distintos eacute representada pela imagem de uma

coluna de luz que encadeia o koacutesmos A cosmologia constitui o paradigma de toda

atividade criadora porque o Koacutesmos eacute o modelo divino de todo fazer O Koacutesmos eacute poieacutesis

divina e sua estrutura serve de paradigma para todo fazer que se pretende harmonioso

ordenado e ornado numa palavra cosmicizado (ELIADE 1978) Mas como atribuir um

sentido mais preciso agrave imagem da coluna de luz

110Autegraven degrave tegraven gecircn katharagraven em katharoacute keicircsthai toacutei ouranoacute en hoipeacuter esti tagrave aacutestra hoacuten degrave aitheacutera onomaacutezein

Feacutedon 109b0708 111

Hilda Richardson (1926 p 117 ss) defende a tese de que a coluna de luz envolve circularmente as

esferas coacutesmicas e simultaneamente atravessa o eixo central que passa pela terra Tal imagem teria filiaccedilatildeo

na concepccedilatildeo pitagoacuterica de que um ciacuterculo de fogo abarca o Koacutesmos

164

No Craacutetilo (408b) o nome de Iacuteris eacute associado agrave eiacuterein dizer e por isso ela eacute

mensageira112

No Teeteto (155d) Iacuteris eacute apresentada como filha de Thauacutemas

Pois este sentimento de se espantar eacute inteiramente de algueacutem que

ama o saber Natildeo haacute outro ponto de partida para a procura do

saber aleacutem deste e aquele que disse eacute nascida de Thaumas113

natildeo

esboccedilou mal sua genealogia

(Teeteto 155d)114

Como nota Narcy115

Iacuteris eacute mensageira portadora do Leacutegein e por conseguinte

constitui uma personificaccedilatildeo do papel mediador da Filosofia A busca pela sabedoria eacute a

atividade divina mais proacutepria e a mediaccedilatildeo entre o plano da divindade e o plano humano se

expressa pela imagem do arco-iacuteris ponte entre o ceacuteu e a terra116

Universal antropoloacutegico a

imagem da coluna ou pilastra que liga planos diversos de realidade o celeste e o terrestre

indica que o espaccedilo miacutetico possui um referencial absoluto um eixo coacutesmico aacutexis mundi117

112 Homens aquele que maquinou (emeacutesato) a palavra (eiacuterein) noacutes deveriacuteamos chamaacute-lo Eireacute-mecircs e presentemente crendo haver-lhe adornado o nome o chamamos Hermecircs Em todo caso Iacuteris foi

verdadeiramente chamada assim a partir de eirein (dizer) porque ela eacute mensageira

Trad DALMIER C in PLATON Cratyle 1998 113 Espanto agrave filha do Oceano de profundo fluir

desposou Ambarina Ela pariu ligeira Iacuteris

e Harpias de belos cabelos Procela e Aliacutegera

que a paacutessaros e rajadas de vento acompanham

com asas ligeiras pois no abismo do ar se lanccedilam

(HESIacuteODO Teogonia 265-269 Trad Torrano J 2003)

De Pontos et Gegrave naquirent Phorcos Thaumas Neacutereacutee Eurybia et Cegraveto De Thaumas et Electra naquirent

Iris et les Harpyes Aellocirc et Ocypeacutetegrave puis de Phorcos et de Cegraveto les Phorcides et les Gorgones dont nous

parlerons lorsque nous en seron agrave Perseacutee (APPOLODORE I 2 10 in CARRIEgraveRE MASSONIE 1991) 114 Trad NARCY M in PLATON Theacuteeacutetegravete 1995 115 Id nt 121 p 325 116 Chantraine afirma a possibilidade de que ityacutes e iacutetea arco ciacuterculo de arco sejam derivadas de Iacuteris

(CHANTRAINE 1999 p 469) 117

Proclo (2005 200 p 149) empreende uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica da passagem afirmando que a imagem

natildeo designa uma figura em forma de coluna mas consiste num sentido funcional de suporte firme e constante para os moacuteveis celestes A interpretaccedilatildeo alegoacuterica leva Proclo a rejeitar o pensamento de seus predecessores

segundo o qual a luz representa o eixo do mundo Embora Hilda Richardson (1926 p 115) confira um papel

estritamente poeacutetico ao mito sua interpretaccedilatildeo aventa a ausecircncia de dificuldades em correlacionar a luz e a

imagem da coluna com a noccedilatildeo matemaacutetica de um eixo coacutesmico It is hardly necessary to say that Plato quacirc

mathematician rightly conceived of the axis of the celestial sphere as na imaginary line and not as a material

body whether of light stuff or any other stuff But this is no real objection to his representing the axis

otherwise in a passage which is not scientific exposition but myth where he has a particular poetic and

imaginative purpose in view

165

que eacute o modelo exemplar que opera a mediaccedilatildeo entre o celeste e o terrestre entre o divino e

o plano do devir A noccedilatildeo de um eixo coacutesmico que vincula planos diversos eacute reforccedilada pelo

passo do Timeu

Quanto agrave terra nossa nutridora girando-a em torno do eixo que

atravessa o todo o deus a estabeleceu para ser guardiatilde e demiurga

da noite e do dia a primeira e a mais antiga das divindades

nascidas no interior do ceacuteu

Timeu 40b-c

Por que Platatildeo se vale de um rico acervo de imagens que aludem a um referencial

fora do devir e que implica uma evasatildeo do tempo humano cronoloacutegico No Feacutedon 96c-

97b Soacutecrates denuncia a perplexidade diante da tentativa de se aquilatar os particulares da

phyacutesis uns em relaccedilatildeo aos outros o que o leva a empreender o deucircteros ploucircs e empreender

a hipoacutetese das Formas No contexto do livro X da Repuacuteblica Soacutecrates aponta a contradiccedilatildeo

como condiccedilatildeo epistecircmica do devir

Os mesmos objetos parecem quebrados ou retos segundo se os

observa na aacutegua ou fora dela cocircncavos ou convexos segundo

outra ilusatildeo visual produzida pelas cores e eacute evidente que tudo isso

perturba nossa alma

Repuacuteblica X 602c

O socorro contra a ilusatildeo e a contradiccedilatildeo eacute o caacutelculo a medida e a pesagem de

modo que o que deve prevalecer eacute a faculdade da alma que lhes propicia (Repuacuteblica X

602d) O paradigma para estas operaccedilotildees da alma deve estar fora do plano do devir no

inteligiacutevel para escapar agrave contradiccedilatildeo Por essa razatildeo os mitos filosoacuteficos recorrentemente

aludem a um referencial absoluto que sirva de norma ao mesmo tempo para as accedilotildees

eacutetico-poliacuteticas e para a inteligibilidade da phyacutesis

Toda a estrutura coacutesmica representada pelo fuso da Necessidade gira nos joelhos

de Anaacutenkhe Brisson (1994 469-513) em sua anaacutelise de Anaacutenkhe vincula de maneira

166

geral a noccedilatildeo agrave causalidade e agrave explicaccedilatildeo causal118

No Timeu o princiacutepio geral da accedilatildeo

da necessidade eacute indicado no fato de que a geraccedilatildeo do Koacutesmos tem por princiacutepio uma

mistura de necessidade e razatildeo A razatildeo domina a necessidade persuadindo-a a orientar a

maior parte dos elementos do devir para o melhor O Koacutesmos eacute constituiacutedo pela vitoacuteria da

persuasatildeo sobre a necessidade configurando uma mistura

Haacute pois um elemento de resistecircncia agrave accedilatildeo ordenadora da inteligecircncia intriacutenseco agrave

constituiccedilatildeo coacutesmica Tal accedilatildeo faria da Necessidade pura uma causa errante

ontologicamente anterior ao Koacutesmos que implica a inexorabilidade da ausecircncia de

regramento e de inteligecircncia caracteriacutesticos da Khoacutera ou do meio espacial cujo movimento

eacute desarmocircnico e indeterminado A accedilatildeo da Necessidade neste plano indica o caraacuteter

randocircmico e desordenado inerente ao meio material Depois da constituiccedilatildeo do Koacutesmos

Anaacutenkhe permanece como ausecircncia de inteligecircncia resiacuteduo de resistecircncia agrave accedilatildeo de

determinaccedilatildeo ordenadora da razatildeo

No mito de Er Anaacutenkhe eacute matildee das Moiras e como tal potecircncia divina causal Na

estrutura imageacutetica apontar a causa implica em designar o genitor e a accedilatildeo de engendrar

Segundo Proclo no mito de Er Anaacutenkhe comanda o domiacutenio coacutesmico e preside o ciclo das

almas Mantenedora da ordem Anaacutenkhe vincula necessariamente os gecircneros de vida com as

118 Brisson identifica trecircs momentos distintos que caracterizam a necessidade (i) causa errante que configura

uma resistecircncia agrave accedilatildeo do Demiurgo (ii) causa coadjuvante que coopera com a razatildeo do Demiurgo e (iii)

causa segunda em relaccedilatildeo agrave alma do mundo O primeiro momento ocorre antes da modelaccedilatildeo proporcional

operada pelo Demiurgo (Timeu 56c) Trata-se da Necessidade como causa errante ou necessidade pura

anterior agrave formaccedilatildeo do Koacutesmos que se identifica com o movimento caoacutetico e ausecircncia de accedilatildeo racional No

segundo momento a Necessidade passa a cooperar com a razatildeo mediante a persuasatildeo e se torna causa coadjuvante Trata-se da razatildeo persuadindo a Necessidade Todavia nem a necessidade nem a razatildeo

desaparecem apoacutes a constituiccedilatildeo do Koacutesmos Sua influecircncia continua a se exercer em um terceiro estaacutegio o

demiurgo se retira e seus ajudantes terminam seu trabalho e a accedilatildeo da razatildeo se perpetua A razatildeo se manteacutem

no Koacutesmos atraveacutes de sua alma O seu corpo por outro lado eacute submetido agrave lei de necessidade que dirige a

geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo Essa lei implica uma cadeia causal infaliacutevel consequumlecircncia da figura da relaccedilatildeo e do

movimento proacuteprio de cada elemento A necessidade se torna uma causa segunda submetida agrave alma do

mundo de modo que a mistura entre razatildeo e necessidade eacute constitutiva do universo

167

escolhas e a necessidade inelutaacutevel de que cada alma seja ligada agrave vida corporal (Repuacuteblica

X 617e) Como potecircncia causal e matildee das Moiras Anaacutenkhe no contexto do mito de Er

representa a geraccedilatildeo da lei inflexiacutevel de retribuiccedilatildeo e implica a transferecircncia do estatuto

divino do noacutemos para as distribuidoras das sortes

Ela eacute a potecircncia regedora da ordem coacutesmica da manutenccedilatildeo de todas as coisas e do

lugar proacuteprio para cada elemento da phyacutesis e para as almas Sua accedilatildeo abarca a composiccedilatildeo

total do Koacutesmos e como afirma Proclo (que assimila Anaacutenkhe a Theacutemis) seu domiacutenio

soberano sobre todas as coisas no mundo implica uma ordem inevitaacutevel e uma guarda sem

remissatildeo

Potecircncia divina primordial a accedilatildeo de Anaacutenkhe alude ao fato de que a Repuacuteblica

coacutesmica jamais eacute subvertida e que o universo eacute guardado por meio de estatutos

indissoluacuteveis Ela eacute o garante da causalidade primordial e preside a ordem inerente ao

koacutesmos e arranjo dos seres vivos Atraveacutes das Moiras Anaacutenkhe preside todos os

movimentos celestes e os movimentos que configuram as accedilotildees praacuteticas Sua imagem

personifica a infalibilidade dos viacutenculos de arranjo harmocircnico que regem a phyacutesis e da

necessidade ineludiacutevel que vincula as escolhas e os gecircneros de vida com a condiccedilatildeo e a

natureza das almas Mas Anaacutenkhe implica tambeacutem a tyacutekhe como elemento fortuito

inelutaacutevel no Koacutesmos e inalienaacutevel agraves escolhas e agrave mistura dos paradigmas de vida

As Moiras satildeo as filhas de Anaacutenkhe Suas accedilotildees remetem para uma potecircncia

unificadora e uma causaccedilatildeo uacutenica Isso significa que haacute um viacutenculo causal que abarca

simultaneamente as conexotildees fiacutesicas e a tecedura dos destinos As Moiras satildeo mediadoras

entre os movimentos inelutaacuteveis dos ciacuterculos celestiais O fuso que liga as esferas celestes

mediante uma luz em linha reta como coluna phoacutes euthyacute hoicircon kiacuteona e sua accedilatildeo tanto

168

sobre as esferas como sobre os lotes de tipos de vida indica uma triparticcedilatildeo coacutesmica da

causalidade

Essa triparticcedilatildeo indica domiacutenios de causalidade diversos que satildeo abarcados por uma

causalidade universal e unificadora Causantes e causados diferem pelos traccedilos uno e

muacuteltiplo universal e particular inteligiacutevel e devir A unificaccedilatildeo eacute operada no domiacutenio da

causalidade inteligiacutevel Nenhum domiacutenio causal escapa a Anaacutenkhe As Moirai satildeo as

repartidoras das porccedilotildees relativas a cada ser porque elas mesmas satildeo partiacutecipes do domiacutenio

causal primordial de Anaacutenkhe

Em nome de Laacutequesis a filha da Necessidade o profeta proclama que a necessidade

eacute de viver mas a escolha cabe ao gecircnero de vida e esta escolha introduz taacutexis e noacutemos na

necessidade Guardiatilde do passado Laacutequesis eacute autora do decreto pois o passado eacute

determinante da configuraccedilatildeo presente e por isso mais compreensivo numa perspectiva

causal

Na distribuiccedilatildeo das vidas haacute uma mixoacuterdia de uma miriacuteade de elementos

miscigenados segundo a sorte e nos mais variados graus possiacuteveis (Repuacuteblica X 618b)

Mas eacute possiacutevel escolher a melhor vida em funccedilatildeo de um caacutelculo que permite o

discernimento das consequecircncias de cada uma destas misturas e de seus componentes

(Repuacuteblica X 618c-d) O mito de Er tal como ocorre no Feacutedon alude a um risco a um

perigo (Repuacuteblica X 618b) o de escolher mal um gecircnero de vida sem avaliar as

consequecircncias

O perigo tal como no Feacutedon indica a necessidade da encantaccedilatildeo da persuasatildeo que

mova os afetos e suscite a crenccedila de que haacute algo que remanesce apoacutes a morte de que haacute

algo para aleacutem da evidecircncia apontada pelo senso da maioria do fato bruto do apetite e de

que todo valor temporal deriva do amor agrave riqueza do amor ao poder e do amor ao prazer A

169

filosofia natildeo constitui garantia absoluta para a felicidade haacute um elemento fortuito

contingente inextrincaacutevel da tyacutekhe implicada por Anaacutenkhe eacute preciso que a sorte natildeo

designe os uacuteltimos lugares na hora da escolha As maacutes escolhas satildeo feitas por aqueles que

natildeo foram suficientemente treinados nos sofrimentos (aacutete poacutenon agymnaacutestous) Platatildeo

confere no mito de Er um valor positivo ao sofrimento como se fora um treinamento

Segundo Dixsaut (2001 p 177) para bem viver natildeo basta pensar e ter prazer na

atividade de pensar Ao pensamento leve eacute preciso acrescentar a forccedila de encaminhar

para o alto o lote de fardo pesado de desgraccedila e de infelicidade que eacute o lote de toda vida

jaacute que toda vida eacute uma mistura

Natildeo haacute vida sem mistura de alegria e dor felicidade e sofrimento Tudo ser vivo

tem seu lote misturado de felicidade e dores E no entanto a ascensatildeo da alma para o alto

pressupotildee um paacutethos o Eacuteros filosoacutefico

No Goacutergias (507e-508) Soacutecrates lembra um saacutebio que afirma que o ceacuteu a terra os

deuses e os homens satildeo vinculados por philiacutea119

respeito agrave kosmiacutea agrave sophrosyacutene e agrave

justiccedila e por essa razatildeo eles satildeo chamados Koacutesmos e natildeo akosmiacutea e akolasiacutea Todos os

planos de realidade satildeo mantidos juntos por philiacutea Haacute uma lei que cinge o universo uma

119 Canto afirma que a menccedilatildeo agrave philiacutea eacute uma referecircncia a Empeacutedocles em funccedilatildeo da importacircncia atribuiacuteda agrave

amizade como princiacutepio coacutesmico (M Canto in PLATON 1993 nt 189 p 347) Dodds por outro lado

observa que natildeo haacute nada que implique o fato de Platatildeo ter Empeacutedocles necessariamente em mente sobretudo

porque a doutrina da ldquoigualdade geomeacutetricardquo natildeo seria empedocleana A koinoiacutea indica a comunhatildeo condiccedilatildeo

necessaacuteria para a philiacutea ambos princiacutepios necessaacuterios para o governo tanto do Koacutesmos como das relaccedilotildees

poliacuteticas e pessoais Tais noccedilotildees satildeo firmemente aceitas como heranccedila pitagoacuterica Os pitagoacutericos teriam sido

os primeiros a chamar o universo Koacutesmos e certamente foram os primeiros a correlacionaacute-lo com leis

matemaacuteticas regradoras (E R Dodds in PLATO 1990 p 337)

Irwin por sua vez foca sua anaacutelise na explicitaccedilatildeo argumentativa da tese de que a comunhatildeo e a amizade satildeo preacute-condiccedilotildees para a virtude e distingue alguns problemas suscitados pelo argumento Soacutecrates argumenta se

A eacute amigo de B entatildeo deve haver comunhatildeo entre A e B Se B eacute intemperante entatildeo B natildeo pode ter

comunhatildeo e por conseguinte amizade com A Segundo Irwin a intemperanccedila de B natildeo implica

necessariamente sua incapacidade de ter amizade com A e tampouco a falta de amizade de A implica um

prejuiacutezo necessaacuterio para B (Irwin in PLATO 2004 nt 507e p 225) A pontualidade da anaacutelise

argumentativa nesse caso deixa na sombra a primazia fundamental estabelecida nas inuacutemeras passagens

correlatas que sugerem a homologia estrutural entre regramento cosmoloacutegico poliacutetico e psiacutequico A oposiccedilatildeo

entre kosmiacutea e akosmiacutea eacute congruente agrave oposiccedilatildeo entre sophrosyacutene e pleonexiacutea

170

lei que alude a um paacutethos e que se harmoniza com o regramento geomeacutetrico do Koacutesmos

Paacutethos e regramento matemaacutetico constituem um arranjo harmocircnico

Este arranjo eacute reafirmado no Timeu a modelaccedilatildeo do Koacutesmos manifesta um acordo

resultante da proporccedilatildeo geomeacutetrica e as relaccedilotildees instauradas por esta proporccedilatildeo lhe

conferem philiacutea de modo que tornado idecircntico a si mesmo ele natildeo pode ser dissolvido a

natildeo ser por aquele que estabeleceu seus viacutenculos (Timeu 32c) A menccedilatildeo agrave philiacutea indica

que os patheacutemata juntamente com relaccedilotildees geomeacutetricas invariantes satildeo constitutivos de

uma cosmogonia A inteligecircncia eacute indissociaacutevel dos desejos o inteligiacutevel indissociaacutevel da

inteligecircncia Os mitos filosoacuteficos possuem esse eixo invariante cuja distinccedilatildeo primordial

consiste no estabelecimento do primado da inteligecircncia como forccedila ordenadora e regradora

que suscita a unificaccedilatildeo de planos opostos e diacutespares o eacutetico-poliacutetico com o cosmoloacutegico o

fiacutesico com o psicoloacutegico a Natureza com a Lei

Mas inteligecircncia e as escolhas exigem prudecircncia e coragem para que se evite a

precipitaccedilatildeo A precipitaccedilatildeo eacute incompatiacutevel com o discernimento prudente propiciado pela

Filosofia Os sofrimentos satildeo ao mesmo tempo resultado da justa retribuiccedilatildeo a faltas

pregressas e uma exigecircncia paidecircutica trata-se de um exerciacutecio que faculta a maior

capacidade e o maior discernimento nas escolhas Como os sofrimentos satildeo uma partilha

comum de todas as almas todos os seres tecircm de passar por eles Eles fazem parte da

Necessidade Anaacutenkhe elemento intriacutenseco ao Koacutesmos e por isso satildeo agentes de

desenvolvimento Por constituiacuterem uma funccedilatildeo epistemoloacutegica os sofrimentos permitem

que as escolhas natildeo sejam precipitadas (Repuacuteblica X 619d)

Mesmo diante do desfavor da tyacutekhe aquele que se dedica ao estudo da Filosofia tem

mais chances segundo o que se diz em relaccedilatildeo ao Hades de viver mais feliz nesta vida e de

retornar atraveacutes da rota celeste (Repuacuteblica X 619e) Mas para isso eacute preciso vencer o

171

Grande Combate meacutegas agoacuten que se trata de se tornar bom ou mau e natildeo se deixar

arrastar pela gloacuteria pela riqueza e esquecer a justiccedila e a virtude

Disse tambeacutem grande eacute o combate oacute amigo Glauco um combate

maior do que se pensa o que se trata de tornar-se bom ou mau

Natildeo eacute preciso deixar-se arrastar nem pela gloacuteria nem pela riqueza

nem por nenhuma dignidade nem pela poesia mesma e

negligenciar a justiccedila e as outras virtudes120

Repuacuteblica X 608b 04-08

O grande combate consiste em escolher o genuiacuteno valor entre as coisas e saber que

os sofrimentos do tempo presente satildeo derrisoacuterios diante da totalidade do tempo e natildeo valem

muita coisa nem satildeo algo terriacutevel (Goacutergias 527d) O zecircnite da exortaccedilatildeo filosoacutefica consiste

em procurar contrariamente ao combate no qual todos se engajam o precircmio do mais belo

combate que existe121

a potecircncia (dyacutenamis) da alma cuja beleza eacute proporcional agrave gravidade

do mal a ser combatido122

A Filosofia propicia a phroacutenesis que permite a distinccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo de todos

os valores que se referem agrave vida e ao conhecimento Os males satildeo frequentemente

associados agrave dor sensiacutevel e aos afetos A Filosofia como gecircnero de vida virtuoso permite

viver a vida de maior valor e sair vitorioso do grande combate Todavia haacute sempre um

elemento de incerteza que remanesce e haacute a grandeza do risco Somente a encantaccedilatildeo

miacutetica e seu efeito crucial de afastar o medo permitem superar o fardo da mistura em que

consistem todos os lotes de vida Eacute preciso a crenccedila como condiccedilatildeo que suscita a coragem

para vencer a mistura de dores e prazeres

120 Meacutegas gaacuter eacutephen ho agoacuten oacute phiacutele Glauacutekon meacutegas oukh hoacutesos dokeicirc tograve khrestograven egrave kakograven geneacutesesthai

hoste ouacutete timecirci epartheacutenta ouacutete khreacutemasin ouacutete arkhecirci oudemiacirci oudeacute ge poietikecirci aacutexion amelecircsai

dikaiosyacutenes te kaigrave tecircs aacutelles aretecircis 121 kaigrave tograven agoacutena toucircton hograven egoacute phemi anti pantoacuten toacuten enthaacutede agoacutenon eicircnai

(Goacutergias 527e03-04) 122 hoacutes hekaacutestou kakoucirc meacutegethos peacutephyken houacutetoacute kaigrave kaacutellos toucirc dynatocircn eicircnai heacutekasta boetheicircn kaigrave aiskhyacutene

toucirc meacute

(Goacutergias 509c03-04)

172

A necessidade da vida implica a necessidade da mistura e a necessidade da

pluralidade de afetos Mas nem a dor nem a virtude possuem deacutespota Cabe a cada um ter

sophrosyacutene sobre os afetos proacuteprios que acompanham cada lote de dor e sensaccedilotildees A alma

discerne a realidade segundo a proacutepria constituiccedilatildeo de seus afetos Esta eacute grande

significaccedilatildeo da narrativa do deus marinho Glauco A exposiccedilatildeo continuada ao ambiente das

profundezas marinhas resultou na identificaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo de Glauco ao ambiente do seu

viver A incrustaccedilatildeo de algas conchas pedregulhos e a accedilatildeo das vagas acabaram por

desfigurar sua natureza primitiva ateacute que ele se tornasse mais semelhante a uma fera

Analogamente os males que se incrustam na alma acabam por desfiguraacute-la desumanizaacute-la

ateacute que se torne irreconheciacutevel na aparecircncia bestial (therioacute) que resulta da identificaccedilatildeo

com o ambiente do seu viver (Repuacuteblica X 611c-612a)

A alma pura e saacutebia discerne a realidade de modo diferente da alma impura A

noccedilatildeo de felicidade muda conforme a natureza psiacutequica A alma dotada de phroacutenesis

encontraraacute a felicidade no pensamento elevado na virtude na obra bela e ateacute no sofrimento

contingente que ela vecirc como aacuteskesis As aspiraccedilotildees humanas ligadas ao devir perturbam e

obscurecem o pensamento o que por sua vez traz uma proporccedilatildeo de desventuras

equivalente (Repuacuteblica X 619c a escolha do tirano)

Para quebrar os viacutenculos que prendem a psykheacute aos apetites eacute preciso a excisatildeo

ciruacutergica do sofrimento Os afetos engendrados pelo sofrimento desde que postos na

perspectiva da totalidade do tempo predispotildeem a inteligecircncia a apreender realidades natildeo

vistas e natildeo percebidas

Na medida em que se obscurece a realidade do devir abre-se a realidade do

pensamento purificado O filoacutesofo eacute aquele que a tudo tendo sofrido pode voltar-se para as

realidades mais verdadeiras Ele eacute o coroamento de um itineraacuterio de sofrimentos Em meio

173

agrave desordem dos modelos de vida ele pode como afirma Dixsaut (2001 p 178) inscrever

ordem no decreto e hierarquizar os modos de vida mediante a articulaccedilatildeo da inteligecircncia

com a Necessidade Por essa razatildeo o filoacutesofo pode converter o aparente caos da

multiplicidade em uma inteligecircncia segundo o paradigma da ordenaccedilatildeo coacutesmica

Nos grandes mitos de julgamento a inexorabilidade da justa retribuiccedilatildeo da praacutexis se

conjuga com a causalidade de maneira que responsabilidade e causalidade coacutesmica

infaliacutevel sejam aspectos diversos de uma mesma kosmiacutea

174

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Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE ... · Prometeu, a linguagem é posterior ao fogo técnico, que consolida o sacrifício como o rito ... filosóficas sustentadas

iv

Ao Roberto Vilela Marquez enigma cujos sinais satildeo a prova cabal de que os valores mais profundos tornam todas as buscas e inquiriccedilotildees do breve tempo da vida derrisoacuterias perante a grandeza do destino humano ndash que nada eacute aleacutem do que o seu eacutethos

v

AGRADECIMENTOS

A todos aqueles que acima da Necessidade alccedilaram a escolha

Agravequeles para os quais a amizade e o bem estatildeo acima da retribuiccedilatildeo

Agravequeles para os quais os afetos constituem a uacutenica natureza invenciacutevel da alma que

resiste ao esquecimento e agrave morte

Agravequeles que satildeo myacutestai pela simplicidade da accedilatildeo virtuosa que natildeo exige compensaccedilatildeo

mas que compensam toda incerteza inerente agrave vida mediante a convicccedilatildeo de que todo risco

eacute belo se for tambeacutem uma doaccedilatildeo

Agravequeles que se fizeram meus credores e cuja paga seraacute aquilatada pelo melhor a ser feito

em prol da alteridade

Agrave Soraya para quem o amor eacute princiacutepio da vida e do mundo que estaacute muito acima da

inteligibilidade e da razatildeo

Ao Marcelo Marques para quem o fim e o princiacutepio satildeo o mesmo para quem as

imagens identificam-se com Elpiacutes pois enquanto houver imagem haveraacute tambeacutem

possibilidade de superaccedilatildeo e enquanto houver o filosofar haveraacute o ciclo coacutesmico do

recomeccedilo

Ao tio Rubens Garcia Nunes modelo e fonte eterna de significaccedilatildeo

Agraves filhas Mariela e Marina depositaacuterias do eacutethos a viajar rumo ao oceano do belo

vi

Agrave toda a minha famiacutelia cujo amor supera qualquer meacuterito

Ao Programa de Poacutes da UFMG pela participaccedilatildeo da excelecircncia teacutecnica na

humanidade

Aos examinadores Adriano Roberto Fernando e Antocircnio pela mostra de que a vida

sem exame natildeo eacute digna de ser vivida

vii

Tive medo Sabe Tudo foi isso tive medo Enxerguei os confins do rio do outro lado Longe longe com que prazo se ir ateacute laacute Medo e vergonha A aguagem bruta traiccediloeira ndash o rio eacute cheio de baques modos moles de esfrio e uns sussurros de desamparo () Um fato assim eacute honra Ou eacute vergonha

Joatildeo Guimaratildees Rosa Grande Sertatildeo Veredas

viii

SUMAacuteRIO

0 INTRODUCcedilAtildeO5

1 MITOS E CAUSAS ndash excertos de imagens causais em Hesiacuteodo e Homero 21

11 Retribuiccedilatildeo e Causalidade 21

12 Causalidade e Poder 25

13 Causalidade e Reciprocidade 32

14 A astuacutecia dolosa o presente de Prometeu 37

15 Vergonha e causalidade a cosmogonia sexual do Papiro de

Derveni 44

2 O MITO DO PROTAacuteGORAS teacutecnicas aidōs e diacutekē61

3 RELACcedilOtildeES ESTRUTURAIS NO MITO DO GOacuteRGIAS92

31 Eros e Loacutegos92

32 Vida e ḗthos98

33 Aiskhyacutene Aidōs e Causalidade109

34 Parrhēsiacutea e Epithymiacutea122

35 A Retoacuterica da alma134

36 Julgamento e nudez149

4 NECESSIDADE E ESCOLHA 154

41 Imagens e causas no mito de Er154

42 Mito e psykhḗ159

43 Er o decreto de Laacutequesis162

5 BIBLIOGRAFIA174

1

Resumo

A partir do emprego do estruturalismo alematildeo de Walter Burkert pretendo destacar nesta

investigaccedilatildeo as relaccedilotildees estruturais entre as imagens do mito de julgamento do Goacutergias e

aplicaacute-las a um passo do mito de Er da Repuacuteblica Segundo Burkert (2001b) mito eacute um

programa ou sequecircncia de accedilotildees com uma estrutura discerniacutevel definida que se caracteriza

pela exemplaridade do tipo miacutetico e pela aplicabilidade atemporal Aprofundando a

definiccedilatildeo burkertiana de mito proponho que as accedilotildees implicam imagens psiacutequicas

imbuiacutedas de afetos ndash vergonha audaacutecia e ardor satildeo os afetos eroacuteticos mediante que a

dialeacutetica socraacutetica choca-se ingente com a retoacuterica daquele que viria a ser ao mesmo

tempo o mais violento e o mais brilhante dos interlocutores que travam combate com

Soacutecrates Caacutelicles

Devo esclarecer que toda a interpretaccedilatildeo elaborada neste artigo parte do pressuposto de que o

mito eacute pensar por imagens e que imagens mentais precedem a linguagem No mito de

Prometeu a linguagem eacute posterior ao fogo teacutecnico que consolida o sacrifiacutecio como o rito

adequado para a interaccedilatildeo entre as instacircncias divina e humana e a emergecircncia ritualiacutestica dos

esquemas mentais que compotildeem a inteligecircncia causal organizadora da experiecircncia e da

multiplicidade a conexatildeo infaliacutevel entre dois eventos consecutivos no tempo a deliberaccedilatildeo

projetiva inteligente a escolha de meios eficazes com vistas a um fim uacutetil determinado Por

extensatildeo pode-se dizer que os ritos satildeo anteriores agrave linguagem e que imagens e ritos natildeo a

linguagem satildeo os fundamentos do pensar

Por fim um olhar atento ao termo parrhēsiacutea que inicialmente aparece como a fala aberta

que revela o pensamento e as verdadeiras crenccedilas do proferidor no Goacutergias eacute mencionado

na ambiguidade irocircnica com que Soacutecrates alude ao livre curso dos apetites de Caacutelicles (que

engendram a violecircncia do seu loacutegos) e agrave qualidade psiacutequica pela qual a investigaccedilatildeo

2

dialeacutetica pode chegar a bom termo A franqueza (parrhēsiacutea) eacute a garantia pela qual

interlocutor assente a uma tese expressa e tambeacutem um indicativo de que uma certa

ordenaccedilatildeo psiacutequica transpotildee seu movimento proacuteprio para o loacutegos O discurso sem peias

reproduz de modo direto a trama que entretece os afetos neste princiacutepio de movimento e

inteligecircncia que eacute a psykheacute

Palavras-chave Goacutergias Repuacuteblica estrutura mito

3

Abstract

Based on approach of Water Burkert German structuralism in this issue I intend to point

out the structural relations between the images of the judgment myth in Plato‟s Gorgias and

apply them in Er myth of Republic

According to Burkert (2001b) myth is a program or a sequence of actions in a clear

distinguished structure characterized by exemplarity of the mythical model and the

timeless applicability Going further on Burkert definition of myth I put forward that the

actions imply psychic images filled with feelings ndash audacity and ardor are erotic feelings

through which the Socratic dialectics strikes against the rhetoric of that who became at the

same time the most violent and the cleverest interlocutor to antagonize Socrates Callicles

In addition I must say that the whole interpretation presented here assumes that myth is

thinking by images and mental images come before language In Prometheus myth language

comes after the technical fire that stabilizes the sacrifice as the right rite for the interplay of

divine and human instances and the ritual emergency of mental scheme that compound the

causal intelligence that organizes experience and multiplicity the infallible connection between

two consecutive events in time the intelligent projective deliberation the choice of efficient

means aiming a specific useful objective In other words it can be said that rites come before

language and that not language but images and rites give the bases to thoughts In conclusion

staring at the expression parrhēsiacutea ndash which first appears as an open speech that reveals the

thought and the true beliefs of its speaker ndash in Gorgias the word points out the ironic

ambiguity with which Socrates refers to the Callicles free course of desires (which

engender his loacutegos violence) and the psychic quality by which the dialectic investigation

can come to an end Sincerity (parrhēsiacutea) is the guarantee by which a speaker agrees to an

expressed thesis and also a sign that a certain psychic organization transfers its peculiar

4

movement to the logos The unchained speech imitates the scheme which intertwines the

feelings in the beginning of the movement and the intelligence which psykheacute is

Keyword Gorgias Republic structure myth

5

Introduccedilatildeo

O escopo desta pesquisa eacute desenvolver a partir do movimento proacuteprio do Goacutergias a

adequaccedilatildeo de um meacutetodo que desvele a estrutura interna do grandes mito de julgamento

que culmina o diaacutelogo de sorte a compreender sua funccedilatildeo suas regularidades seus

esquemas invariantes e as correspondecircncias entre as imagens miacuteticas e as concepccedilotildees

filosoacuteficas sustentadas na dramatizaccedilatildeo Para tanto adota-se os resultados da tese

ingressiva de Charles Kahn como fundamento para a abordagem comparativa de diaacutelogos

que historicamente satildeo situados em periacuteodos diversos

O enfoque sinoacutetico por sua vez possibilita a adoccedilatildeo da assunccedilatildeo estrateacutegica de que

o desenvolvimento do meacutetodo se faccedila a partir da comparaccedilatildeo do movimento interno das

imagens do mito de julgamento e simultaneamente possibilite uma compreensatildeo fecunda

dessas imagens a partir da aplicaccedilatildeo do meacutetodo Ademais visa-se examinar o influxo que o

pano de fundo composto pela tradiccedilatildeo cultual dos misteacuterios gregos a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e a

filosofia cosmoloacutegica anterior a Platatildeo exerceram nos mitos de julgamento e sobretudo a

transposiccedilatildeo filosoacutefica empreendida por Platatildeo em relaccedilatildeo a essa forja mental no

movimento dos mitos finais do Goacutergias Como anexo esboccedila-se uma extensatildeo desse

bricolage interpretativo a um passo do mito de Er (Repuacuteblica X 614b-621d)

Adoto o pressuposto de que o mito filosoacutefico platocircnico eacute um ldquopensar por imagensrdquo

que se expressa numa sequecircncia de accedilotildees Enquanto narrativa o mito eacute um fenocircmeno

linguiacutestico que natildeo possui referentes imediatos atestaacuteveis Natildeo haacute um isomorfismo entre a

narrativa e uma realidade diretamente verificaacutevel Uma narrativa natildeo eacute uma ldquoacumulaccedilatildeordquo

de sentenccedilas pontuais mas eacute uma sequecircncia no tempo (BURKERT 1979 3 ss) Mas a

6

sequecircncia temporal miacutetica natildeo eacute homoacuteloga ao tempo cronoloacutegico eacute uma sequecircncia

temporal que possui uma homologia estrutural com uma sequecircncia de significaccedilatildeo causal

A sequecircncia de imagens torna manifestas relaccedilotildees entre registros de realidade

distintos atraveacutes da necessidade de uma conexatildeo interna A linearidade e a

transmissibilidade de um complexo de relaccedilotildees e conexotildees causais homologaacuteveis

constituem o cerne da narrativa miacutetica Tais elementos exigem o suporte linguumliacutestico mas

embora Burkert consigne o mito ao domiacutenio da linguagem nos mitos filosoacuteficos a

linguagem eacute somente instrumental e natildeo eacute o fundamento uacuteltimo de significaccedilatildeo

As metaacuteforas imageacuteticas de um mito filosoacutefico por princiacutepio possuem uma

polissemia inexauriacutevel pela simples razatildeo de que seu referencial uacuteltimo eacute o pensamento ou

mais propriamente o psiquismo Natildeo se trata se identificar na psykheacute o princiacutepio do

inteligiacutevel mas de se pensar a inteligibilidade cosmoloacutegica inextricavelmente do modo

como o pensamento e os afetos apreendem o inteligiacutevel e o recompotildeem na accedilatildeo demiuacutergica

da molda das imagens e do discurso Inteligecircncia afetiva imagens pensamentos e os loacutegoi

conjugam-se necessariamente na ldquocaccedila ao realrdquo

Como se pode depreender do mito do Protaacutegoras o pensamento loacutegico

discriminador a inteligecircncia teacutecnica a linguagem e a matemaacutetica o engenho humano e as

teacutecnicas discursivas todos emanados do fogo teacutecnico satildeo ontologicamente posteriores aos

ritos aos cultos e agrave fabricaccedilatildeo de imagens dos deuses Isso implica que ndash a menos que se

considerem todos os mitos e toda forma de metaacutefora empregada no corpus platocircnico como

palavroacuterio sem sentido ndash a linguagem natildeo eacute e natildeo pode ser o fundamento uacuteltimo da

realidade O pensamento as imagens e os afetos satildeo intrinsecamente misturados agrave praacutexis

ao biacuteos agrave proacutepria vida que simultaneamente brota e interfere no mundo Os loacutegoi soacute

ganham autonomia mediante o reconhecimento e a alforria do senhorio das imagens

7

No corpus platocircnico os fenocircmenos se exprimem por uma gama de termos como

phainoacutemenon eiacutedōlon eikōn phaacutentasma miacutemēma homoiacuteōma e outras (SEKIMURA

2009 p 22 ss) Mas Platatildeo hierarquiza o estatuto epistecircmico das imagens Haacute uma clara

distinccedilatildeo entre eiacutedōlon eikōn e phaacutentasma Haacute imagens que satildeo determinantes no processo

do conhecimento haacute imagens cujas relaccedilotildees satildeo empobrecidas em relaccedilatildeo o modelo

original e haacute imagens ilusoacuterias que impedem a apreensatildeo da realidade A distinccedilatildeo entre

eiacutedōlon e eikōn eacute brilhantemente exposta por S Saiumld

Se as duas palavras satildeo formadas a partir de uma mesma

raiz bdquowei‟- somente eiacutedōlon por sua origem emerge da esfera do

visiacutevel pois eacute formada sobre um tema bdquoweid‟- que exprime a ideacuteia

de ver (este tema que deu ao latim bdquovideo‟ se encontra em grego

no verbo bdquoidein‟ bdquover‟ e no substantivo eidos que se aplica

inicialmente agrave aparecircncia visiacutevel) O eikōn do mesmo modo que os

verbos eisko ou eikazdo bdquoassimilar‟ ou o adjetivo eikelos

bdquosemelhante‟ se vincula a um tema bdquoweik‟- que indica uma relaccedilatildeo

de adequaccedilatildeo ou de conveniecircncia

(SAID apud SEKIMURA 2009 p 23)

Como nota Sekimura (2009 p 22 ss) o termo eiacutedōlon se forma sobre o mesmo

tema que origina Eidos e Idea designativos da realidade inteligiacutevel e de sua accedilatildeo causal

determinante A relaccedilatildeo entre as imagens e o inteligiacutevel invisiacutevel eacute constitutiva Nesse

sentido como afirma Saiumld existe entre o eiacutedōlon e seu modelo uma identidade de

superfiacutecie e de significante enquanto a relaccedilatildeo entre o eikōn e o que ele representa se

situa no niacutevel da estrutura profunda do significado (id) O eiacutedōlon estaacute para o eikōn assim

como a coacutepia da aparecircncia sensiacutevel estaacute para a transposiccedilatildeo da essecircncia

O eiacutedōlon eacute inerente ao olhar eacute o alvo e o ponto de encontro entre o olhar e a

silhueta que nada informa acerca das determinaccedilotildees do modelo Ele eacute valorizado ou

desvalorizado pela relatividade do olhar e sua manifestaccedilatildeo ao modo das imagens dos

deuses implica simultaneamente a presenccedila e a ausecircncia Sua marca eacute a do

8

empobrecimento e do afastamento do modelo original O eikōn por outro lado carrega em

seu bojo a remissatildeo pluriacutevoca a planos diversos Ele pode ser o ponto de partida para o

conhecimento de relaccedilotildees e determinaccedilotildees sensiacuteveis ou pode remeter agrave realidade inteligiacutevel

No eikōn a inteligecircncia se vale do olhar para ultrapassar a imagem e mediante a

transposiccedilatildeo e a homologaccedilatildeo de suas relaccedilotildees internas ldquosaturar-serdquo gradativamente do

inteligiacutevel e do invisiacutevel no foco das relaccedilotildees somente pensaacuteveis As imagens icocircnicas

constituem o esforccedilo ingloacuterio de pensar filosoficamente o invisiacutevel a morte a alma e os

referenciais imoacuteveis exigidos para a compreensatildeo de um mundo caoacutetico

Por isso a inteligecircncia usa imagens na tentativa de ver o invisiacutevel e operar a

passagem da sensaccedilatildeo para a concepccedilatildeo Natildeo eacute por acaso que os mitos filosoacuteficos estatildeo na

esfera da crenccedila que possui a pretensatildeo de ser o loacutegos mais verdadeiro suas imagens satildeo

um convite para a inquiriccedilatildeo da significaccedilatildeo profunda subjacente aos fenocircmenos

cambiantes caoacuteticos As imagens miacuteticas convocam a inteligecircncia e o olhar a jamais se

fixarem naquilo que eacute visto e manifesto e ascenderem em direccedilatildeo ao invisiacutevel ao

inteligiacutevel ateacute que a luz da lamparina subitamente se acenda pelo movimento psiacutequico

O mito filosoacutefico eacute verdadeiramente um ldquopensar por imagensrdquo e eacute tambeacutem a uacutenica

modalidade de pensar que natildeo se fixa no visiacutevel mas que convoca para a significaccedilatildeo mais

profunda oculta na maior profundeza do oceano do belo

Questotildees de meacutetodo e hermenecircutica

Mas a virtude de cada coisa seja instrumento corpo ou alma

seja qualquer animal vivo natildeo lhe vem por acaso e jaacute eacute

completa eacute o resultado de uma certa ordem de retidatildeo e da

arte adaptada agrave natureza de cada um Logo eacute pela ordem e

regramento que a virtude de cada coisa existe

Goacutergias 506 d5-e2

Desejando a divindade que tudo fosse bom e tanto quanto

possiacutevel estreme de defeitos tomou o conjunto das coisas

9

visiacuteveis ndash nunca em repouso mas movimentando-se discordante

e desordenadamente ndash e fecirc-lo passar da desordem para a

ordem por estar convencido de que esta em tudo eacute superior

agravequela

Timeu 30a

A composiccedilatildeo dramaacutetica do Goacutergias anuncia uma guerra e uma batalha (poacutelemos

kai maacutekhe) na qual Platatildeo iria se engajar ateacute a morte a defesa do gecircnero de vida filosoacutefico

No Goacutergias estatildeo mapeados e demarcados de maneira incipiente os principais temas que

compotildeem a Filosofia platocircnica Segundo Olimpiodoro o objetivo do diaacutelogo seria ldquofalar

sobre princiacutepios eacuteticos que levam ao bem-estar constitucionalrdquo (1998 p 57 04) Todo o

ardor que anima Soacutecrates (457e) na sua defesa apaixonada de um modo peculiar de vida

tem como alvo falar sobre a organizaccedilatildeo constitucional e sua correlaccedilatildeo com os valores

eacuteticos determinantes para o gecircnero de vida A questatildeo dos valores eacuteticos remonta em

uacuteltima instacircncia agrave oposiccedilatildeo fundamental entre o regramento e o desregramento o

regramento dos afetos corresponde ao regramento do mundo que por isso eacute chamado

kosmos (Goacutergias 507e ndash 508b) Natildeo pode existir nenhuma comunhatildeo ou associaccedilatildeo

humana sem regras assim como nada existe no kosmos que natildeo tenha regras Todo o

mundo eacute de fato um espetaacuteculo de geometria e proporccedilatildeo geomeacutetrica (Goacutergias 508a)

A questatildeo de um regramento matemaacutetico que perpassa o koacutesmos juntamente com os

mitos de julgamento suscita uma gama de questotildees natildeo respondidas

Por que Platatildeo um filoacutesofo que atribui um valor sublime agraves matemaacuteticas e assimila

o raciociacutenio puro ao divino (Feacutedon 84 a-b) culmina grandes diaacutelogos que concentram o

cerne de sua Filosofia com grandes mitos de julgamento Por que esse criacutetico mordaz da

poesia e dos mitos tradicionais recorre a um acervo de tradiccedilotildees miacutesticas e inventa seus

proacuteprios mitos A questatildeo da elucidaccedilatildeo do papel dos mitos na composiccedilatildeo complexa de

trecircs dos maiores diaacutelogos platocircnicos estaacute contida no acircmbito mais geral do problema

10

interpretativo que exige a superaccedilatildeo da distacircncia entre o que Platatildeo escreve em passagens

especiacuteficas e as concepccedilotildees maiores que atravessam a inteireza dos diaacutelogos Somente um

tratamento comparativo-sinoacutetico e o refazimento do movimento proacuteprio de cada diaacutelogo

permitem a distinccedilatildeo e a soluccedilatildeo do problema da relevacircncia dos mitos O postulado de que

o problema da interpretaccedilatildeo de um texto de Platatildeo exige a elucidaccedilatildeo de seu significado a

partir da comparaccedilatildeo de textos datados em periacuteodos distintos define o posicionamento de

ataque estrateacutegico ao problema da relevacircncia dos mitos e da possibilidade da conquista da

significaccedilatildeo (KAHN 1998 p 58 ss)

Por que Platatildeo se vale de imagens aparentemente desprovidas de regras e estranhas

agrave consecuccedilatildeo de proposiccedilotildees que se implicam mutuamente para expor suas principais

concepccedilotildees filosoacuteficas Qual o melhor meacutetodo para uma interpretaccedilatildeo fecunda desses

mitos O problema da relevacircncia abre o campo para o enfrentamento do estabelecimento

dos traccedilos constitutivos da composiccedilatildeo e distinccedilotildees especiacuteficas dos grandes mitos dos seus

efeitos e de um meacutetodo eficaz que sirva como arma que capture o sentido Se os grandes

mitos supotildeem regras em sua composiccedilatildeo e essas regras natildeo possuem referentes fora da

psykheacute entatildeo essas regras representam a determinaccedilatildeo profunda do psiquismo A riqueza

das metaacuteforas em Platatildeo instiga a investigaccedilatildeo das homologias estruturais em busca da

explicitaccedilatildeo dessas regras

Por que o filoacutesofo que recria dramaacutetica e imortalmente a refutaccedilatildeo destrutivo-

construtiva da dialeacutetica socraacutetica encena a impotecircncia do loacutegos diante de temas cruciais e eacute

obrigado a recorrer agrave encantaccedilatildeo miacutetica Por que os grandes mitos finais satildeo mitos de

julgamento das almas e da imortalidade Por que eles aparecem no fim dos diaacutelogos A

fundamentaccedilatildeo dos valores exige o emprego simultacircneo de todo o arsenal discursivo O

11

modelo metodoloacutegico permite a distinccedilatildeo de planos conceptuais que fazem a mediaccedilatildeo

entre oposiccedilotildees e uma interpretaccedilatildeo frutiacutefera deve destrinccedilar relaccedilotildees ocultas ou obscuras

Pensar filosoficamente a questatildeo da constituiccedilatildeo eacutetico-poliacutetica implica penetrar o

acircmago da alma e o tempo humano na perspectiva da perenidade e por isso o problema do

sentido emana indissociaacutevel das modalidades de inteligecircncia de um discurso complexo A

complexidade dos diaacutelogos sugere a hipoacutetese heuriacutestica de trataacute-los por inteiro como

grandes mitos Tal abordagem permite a superaccedilatildeo da dicotomia myacutethos-loacutegos e a aplicaccedilatildeo

do princiacutepio que permite o desvelamento auto-referenciado da significaccedilatildeo

Quais satildeo as concepccedilotildees que demarcam a arena comum na qual se desenrolam os

grandes mitos finais e quais satildeo suas implicaccedilotildees para a visatildeo de mundo e para a noccedilatildeo de

racionalidade de Platatildeo O campo no qual se desenrolam as gestas dos grandes mitos eacute

consistente e rigorosamente demarcado no Goacutergias e na Repuacuteblica a mousikecirc No Goacutergias

o domiacutenio da poesia traacutegica eacute determinado pela conjugaccedilatildeo de meacutelos rythmon e meacutetron

(Goacutergias 502c)

A demiurgia poeacutetica designa pois a atividade de fabricar um discurso complexo no

domiacutenio da muacutesica (BRISSON 1994 p 53) Na Repuacuteblica apoacutes o estabelecimento da

influecircncia exercida pelas narrativas miacuteticas sobre os afetos e o psiquismo a melodia

(meacutelos) eacute definida como sendo a composiccedilatildeo de trecircs elementos palavra (loacutegou) harmonia

(harmoniacuteas) e ritmo (rythmou) Haacute uma correlaccedilatildeo determinante entre o eacutethos e o gecircnero de

harmonia (Repuacuteblica 399 a-e) entre a natureza dos afetos e a natureza harmocircnica Mito e

harmonia pertencem ambos agrave esfera da muacutesica e caracterizam-se pela correlaccedilatildeo entre a

natureza de suas determinaccedilotildees e a natureza psiacutequica A natureza da harmonia incita

virtudes especiacuteficas ou afetos viciosos estados mentais e disposiccedilotildees de alma

correspondentes A correspondecircncia entre estados psiacutequicos e teoria musical constitui um

12

legado preacute-platocircnico como demonstra Aldo Brancacci (DIXSAUT 2006 p 89-106) A

grande transposiccedilatildeo operada por Platatildeo consiste no desenvolvimento de uma visatildeo

cosmoloacutegica unificada que abarca a muacutesica e explicita a sua relaccedilatildeo com a natureza da

alma

Mas qual eacute o elemento comum entre a alma e a harmonia A questatildeo da

ldquoharmoniardquo eacute expressamente tributaacuteria da tradiccedilatildeo pitagoacuterica e da concepccedilatildeo cosmoloacutegica

de Heraacuteclito A palavra harmoniacutea eacute aparentada ao termo harmos que designava o

acoplamento de duas liras originalmente tetracordes formando uma uacutenica lira heptacorde

(MOUTSOPOULOS in DIXSAUT 2006 p 110) A harmonia que originalmente tinha o

sentido de ldquojuntarrdquo ldquoacoplarrdquo passou a significar ldquoacordordquo ou ldquoreconciliaccedilatildeordquo Empeacutedocles

emprega harmoniecirc como outro nome para philotecircs a contrapartida para o oacutedio ou discoacuterdia

ndash o princiacutepio de proporccedilatildeo ou acordo que cria uma unidade harmoniosa entre poderes

potencialmente hostis Haacute ademais outro uso figurativo qual seja o de afinaccedilatildeo de um

instrumento musical o ajustamento das diferentes cordas para produzir uma escala

desejada Tanto o sentido musical como o sentido metafoacuterico mais amplo satildeo combinados

na concepccedilatildeo pitagoacuterica de que potecircncias opostas do kosmos satildeo mantidas juntas por um

princiacutepio ou harmonia como ldquoreconciliaccedilatildeordquo que toma a forma de uma oitava musical

(GUTHRIE 1990) (KAHN 2001) Boyanceacute (1993) demonstra com bastante propriedade

o enorme influxo que a concepccedilatildeo pitagoacuterica de ldquoharmoniardquo exerceu em Platatildeo sobretudo

no Timeu e na ldquomuacutesica celestialrdquo mencionada no mito de Er (Repuacuteblica X)

Tributaacuterio de uma longa tradiccedilatildeo de pensamento Platatildeo opera uma reviravolta

unificadora a harmonia musical eacute simultaneamente determinada pelo regramento

matemaacutetico e pela consonacircncia de movimentos complexos A transposiccedilatildeo cultural parte do

acervo de tradiccedilotildees vinculadas ao deus patrono da muacutesica e do regramento Apolo

13

Apolo eacute o deus da muacutesica da profecia e da harmonia A natureza musical de Apolo

representa a voz do mundo oliacutempico harmonia e medida que emergem da tensatildeo dos

contraacuterios Apolo o muacutesico eacute tambeacutem ldquoo deus fundador das regras e o conhecedor do

justo do necessaacuterio e do futurordquo (OTTO 1995 p 112) O viacutenculo entre a natureza musical

regramento e harmonia eacute estabelecido de modo inequiacutevoco no Craacutetilo Mas a grande

reviravolta empreendida por Platatildeo consiste na ampliaccedilatildeo desse viacutenculo para a esfera do

psiquismo mediante a noccedilatildeo de movimento

A etimologia do nome Apolo indica o ldquomovimento conjunto tanto no ceacuteu a que

damos o nome poacutelo como na harmonia do canto denominada sinfonia porque todos esses

movimentos como dizem os entendidos em Muacutesica e Astronomia satildeo feitos em conjunto

por uma espeacutecie de harmonia Eacute o deus que preside agrave harmonia e faz que tudo se mova

conjuntamente (omopolocircn) tanto entre os deuses como entre os homensrdquo (Craacutetilo 405 c-d)

No Timeu a consonacircncia de movimentos dissemelhantes eacute identificada com a harmonia

divina (Timeu 80 a-b) A harmonia cosmoloacutegica se expressa pelo regramento geomeacutetrico

que determina e unifica todos os seres num todo orgacircnico (Timeu 31d-32a) A psykheacute por

outro lado eacute ao mesmo tempo princiacutepio de movimento e princiacutepio da vida pois a ldquocessaccedilatildeo

do movimento corresponde ao fim da existecircnciardquo (Fedro 245 c) A existecircncia de todo o

koacutesmos deriva do movimento e todo o movimento proveacutem do princiacutepio (245d) Como a

ordem pressupotildee a inteligecircncia e a inteligecircncia pressupotildee a alma haacute uma correspondecircncia

pluriacutevoca e uma implicaccedilatildeo muacutetua entre a proporccedilatildeo geomeacutetrica a harmonia musical a

harmonia dos movimentos e a harmonia psiacutequica (Timeu 30 a-d) Os movimentos sonoros

possuem por conseguinte ressonacircncias simultaneamente fiacutesicas e psiacutequicas (Timeu 67a)

que afetam o caraacuteter (MOUTSOPOULOS in DIXSAUT 2006 p 107-120) Tais

14

correspondecircncias no entanto natildeo explicam as causas para a existecircncia de todos os seres no

palco de contradiccedilotildees que eacute o devir Quais satildeo essas causas

Platatildeo natildeo reelabora a tradiccedilatildeo na sua explicaccedilatildeo causal de mundo e inaugura um

procedimento jamais utilizado na histoacuteria do pensamento o modelo hipoteacutetico das Formas

A hipoacutetese das Formas provecirc ao mesmo tempo as razotildees que fazem com que cada

ser seja precisamente o que eacute e natildeo outra coisa as razotildees que explicam a predicaccedilatildeo e as

diferenccedilas especiacuteficas relativas as razotildees que elucidam as interaccedilotildees fiacutesicas envolvidas na

geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo uma norma absoluta que sirva de paracircmetro para as accedilotildees praacuteticas e

possibilite uma concepccedilatildeo poliacutetica cosmoloacutegica e geograacutefica que corresponde

estruturalmente a um psiquismo complexo Como afirma Cherniss (PRADEAU 2001) e

posteriormente Luc Brisson do mesmo modo que Eudemo fazia a hipoacutetese de um nuacutemero

determinado de movimentos regulares para explicar os movimentos irregulares dos

planetas Platatildeo para ldquodar conta da mudanccedila eterna e contraditoacuteria do mundo sensiacutevelrdquo

(BRISSON 1998 p 112) elaborou a hipoacutetese das Formas (Feacutedon 94d-100a) A estrutura

complexa do mundo compotildee um palco de contradiccedilotildees que abarca as accedilotildees praacuteticas e a

constituiccedilatildeo poliacutetica da cidade Ao contraacuterio dos filoacutesofos da natureza que partiam dos

fenocircmenos e buscavam princiacutepios explicativos materiais irredutiacuteveis Platatildeo empreende

uma inversatildeo epistemoloacutegica uma ldquosegunda navegaccedilatildeordquo (99e) e postula princiacutepios de

inteligibilidade que regram as contradiccedilotildees fiacutesicas e eacutetico-poliacuteticas

A causalidade constitui ao mesmo tempo o princiacutepio explicativo para a esfera

eacutetico-poliacutetica para os caracteres e valores psiacutequicos e para a physis (Feacutedon 98c-99b) (Leis

X 891e) (Filebo 27b) (Timeu 29d 44c-46e) A causalidade platocircnica eacute posta como

sucessatildeo temporal invariaacutevel na qual um efeito segue forccedilosamente uma causa e como

uma relaccedilatildeo de dependecircncia paradigmaacutetica na qual algo vem a ser a partir de um princiacutepio

15

ou modelo (BRISSON 2001 p 15-17) As explicaccedilotildees de mundo dos filoacutesofos da natureza

procuravam explicar a geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo de todos os seres a partir de elementos materiais

do proacuteprio plano da physis Tais explicaccedilotildees eram contraditoacuterias visto que violavam trecircs

princiacutepios basilares da causalidade o de que uma causa natildeo pode ter dois efeitos contraacuterios

(Feacutedon 96d 101a-b) o de que um efeito natildeo pode resultar de duas causas contraacuterias

(Feacutedon 96e-97b) e o de que algo natildeo pode ser causa do seu contraacuterio (101b) (FISCHER

2002 p 659) Uma explicaccedilatildeo racional de mundo pressupotildee uma instacircncia absoluta

separada do plano dos fenocircmenos e que sirva de referencial absoluto a partir do qual as

interaccedilotildees da physis satildeo reportadas

O esforccedilo da fundamentaccedilatildeo dos valores eacutetico-poliacuteticos leva Platatildeo a buscar essa

instacircncia normativa que sirva de medida e referencial absoluto para as accedilotildees praacuteticas Para

que os valores sejam reportados a um uacutenico paradigma normativo a sua temporalidade

deve ser superada mediante o recurso a uma epistemologia que lhes confira determinaccedilotildees

invariaacuteveis Tal epistemologia por sua vez engendra uma psicologia ad hoc como

fundamento para a praacutetica poliacutetica Todos estes planos encontram significaccedilatildeo num plano

cosmoloacutegico mais elevado cuja fundamentaccedilatildeo uacuteltima eacute a hipoacutetese causal das Formas

O grande mito de julgamento no Goacutergias anuncia o projeto da visatildeo cosmoloacutegica

unificada visada por Platatildeo Ele constitui um modo de inteligibilidade autocircnomo cuja

significaccedilatildeo soacute eacute passiacutevel de ser encontrada numa visatildeo da totalidade

A justificativa primacial da pesquisa eacute o fato de que uma exegese do mito de

julgamento do Goacutergias segundo um meacutetodo estrutural buerkertiano natildeo foi empreendida

Solidaacuterios de uma certa concepccedilatildeo de racionalidade segundo a qual a verdade eacute uniacutevoca e

soacute passiacutevel de ser obtida mediante raciociacutenios que seguem o modelo das demonstraccedilotildees

matemaacuteticas a maioria dos eruditos contemporacircneos identifica os mitos com um

16

pensamento primitivo e preacute-filosoacutefico susceptiacutevel de ser ultrapassado por uma razatildeo

esclarecida (OTTO 1987) A noccedilatildeo cartesiana de uma verdade cientiacutefica uacutenica reduz a

racionalidade aos argumentos demonstrativos ou agraves formas de raciociacutenio matemaacutetico A

ampliaccedilatildeo da noccedilatildeo de racionalidade para a esfera das imagens e formas afetivas de

inteligibilidade suscita a validade e o uso de formas discursivas complexas que abrangem

todo o espectro do psiquismo raciociacutenios imagens e afetos Tal noccedilatildeo ampliada de

racionalidade aliada ao desenvolvimento de um modelo teoacuterico consistente resulta num

enriquecimento original para a investigaccedilatildeo do pensamento platocircnico

Embora os uacuteltimos anos do seacuteculo passado e os primeiros anos deste seacuteculo

evidenciem uma retomada do interesse dos platonistas pelos mitos1 as questotildees acerca da

interpretaccedilatildeo dos grandes mitos finais natildeo foram suficientemente respondidas e

certamente natildeo foram tratadas num uacutenico modelo teoacuterico consistente2 A proacutepria gama das

perguntas natildeo respondidas justifica o esforccedilo pela forja desse modelo teoacuterico

ndash Consideraccedilotildees metodoloacutegicas

Como engenhar os instrumentos para tal modelo Felizmente os ensaios de anaacutelise

estrutural de Vernant (1990) e Burkert (1997) fornecem o martelo e a bigorna que

permitiratildeo a molda das noccedilotildees essenciais da Filosofia contida nos mitos platocircnicos Molda

esta que natildeo obstante a dureza da tecircmpera soacute seraacute possiacutevel na altiacutessima fornalha da longa

tradiccedilatildeo dos cultos de misteacuterio gregos

A abordagem de um texto antigo constitui um si mesma um trabalho de Siacutesifo que

pressupotildee a cada vez que eacute retomado modalidades do pensar que satildeo condicionadas pela

1 Dentre outros destacamos Ward White Brisson Dixsaut Vernant Matteacutei Joly Desclos e Annas 2 A anaacutelise de Ward (2002) abarca parcialmente as questotildees levantadas mas sua abordagem fortemente

alegoacuterica eacute ldquofechadardquo e embora constitua um notaacutevel avanccedilo natildeo configura um meacutetodo aplicaacutevel que possa

ser validado ou invalidado A abordagem de Brisson (1994) por outro lado empreende uma generalizaccedilatildeo de

uma teoria contemporacircnea da comunicaccedilatildeo e perde excessivamente a especificidade do movimento dialoacutegico

17

paideacuteia e especificidade histoacuterica A tarefa do historiador de Filosofia e do cientista em

geral eacute um constructum em aberto indefinidamente Mas tal abordagem pode ser

metodologicamente justificada Como conciliar um modelo teoacuterico contemporacircneo

construiacutedo mediante os oacuteculos da etnologia com um texto grego antigo Tal empresa natildeo

atenta contra as boas recomendaccedilotildees de uma abordagem filoloacutegico-doxograacutefica A boa

regra de meacutetodo doxograacutefico (ROSSETI 2006 p 274) natildeo preceitua que as teses

efetivamente sustentadas por um autor sejam coerente e validamente atestadas pelas fontes

Em primeiro lugar deve-se atentar que Leacutevi-Strauss explicitamente reconhece que

seu empreendimento teoacuterico se aproxima de um ldquokantismo sem sujeito transcendentalrdquo

(LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 18) Cada mito tomado em particular afirma Leacutevi-Strauss

ldquoexiste como aplicaccedilatildeo restrita de um esquema que as relaccedilotildees de inteligibilidade reciacuteproca

percebidas entre vaacuterios mitos ajudam progressivamente a extrairrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004

p 32) Por essa razatildeo ldquoos esquemas miacuteticos de pensamento apresentam no mais alto grau o

caraacuteter de objetos absolutosrdquo

O caraacuteter auto-referenciado permite com que as cadeias linguumliacutesticas se desprendam

dos mitos e caiam como as escaras dos olhos de um cego deixando-os livres das anaacutelises

filoloacutegicas e reste somente a estrutura Embora pertenccedila agrave ordem do discurso o mito para

expressar-se ldquopode descolar-se de seu suporte linguumliacutestico ao qual a histoacuteria que narra estaacute

menos intimamente ligada do que seria o caso em mensagens comunsrdquo (LEacuteVI-STRAUSS

2004 p 8)

Mas ainda que os esquemas miacuteticos de pensamento reflitam um modo de pensar

autocircnomo o ldquopensar por imagensrdquo cuja estrutura inteligiacutevel eacute indiferente agrave ldquoidentidade do

mensageiro ocasionalrdquo como operar a transformaccedilatildeo de coordenadas ou uma transposiccedilatildeo

estrutural vaacutelida do modelo de Leacutevi-Strauss para os mitos de julgamento platocircnicos Qual eacute

18

o elemento comum que permite a passagem que cobre o profundo fosso cultural entre dois

mundos tatildeo separados o de um pensador contemporacircneo e o de um filoacutesofo grego Tais

esquemas de pensamento seriam indiferentes ao tempo

Haacute uma instacircncia estritamente homoacuteloga ao mito cuja estrutura tanto para Leacutevi-

Strauss como para Platatildeo transcende ao tempo cronoloacutegico e permite uma experiecircncia e

uma inteligecircncia da totalidade a muacutesica Mito e muacutesica possuem e congregam as mesmas

funccedilotildees ndash ldquofunccedilatildeo intelectual e tambeacutem emotivardquo ndash (LEacuteVI-STRAUSS 2000 p 69) que

suscitam uma experiecircncia da totalidade e por essa razatildeo podem ser lidos por um

procedimento anaacutelogo tal como numa partitura musical o significado baacutesico de um mito

natildeo estaacute numa sequumlecircncia de acontecimentos mas como afirma Burkert a um grupo de

accedilotildees que podem ocorrer em momentos diferentes do tempo cronoloacutegico Mito e muacutesica

comportam uma dimensatildeo temporal proacutepria que inflige um desmentido ao tempo

cronoloacutegico ambos satildeo ldquomaquinas de suprimir o tempordquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 35)

Por isso o mito supera ldquoa antinomia de um tempo histoacuterico e findo e de uma estrutura

permanenterdquo

A leitura de uma partitura exige que se procure entender a paacutegina inteira pois o

significado da primeira frase musical escrita soacute pode ser obtido com a consideraccedilatildeo de que

o sentido das frases precedentes estaacute incluiacutedo nas frases subsequumlentes Temos de ler

simultaneamente da esquerda para a direita e de cima para baixo Soacute ldquoconsiderando o mito

como se fosse uma partitura orquestral escrita frase por frase eacute que o poderemos entender

como uma totalidade e extrair o seu significadordquo (op cit p 68) Os grandes estilos

musicais modernos dos seacuteculos XVII a XIX segundo Leacutevi-Strauss assumiram as funccedilotildees

que desempenhava a mousikeacute dos antigos mas a despeito dos rearranjos culturais ambos ndash

mito e muacutesica ndash ldquotranscendem a oposiccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel colocando-se

19

imediatamente no niacutevel dos signosrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 33) Tanto Leacutevi-Strauss

como Platatildeo usam o mito para operar a mediaccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Os

grandes mitos de julgamento compotildeem efetivamente um mosaico de oposiccedilotildees que

remetem para a mediaccedilatildeo entre o devir e aquilo que eacute somente pensaacutevel Eis a ponte que

supera o abismo entre dois mundos separados ao mesmo tempo pela racionalidade loacutegica e

pela distacircncia cultural das eacutepocas

Na sua anaacutelise dos mitos indiacutegenas da costa canadense Leacutevis-Strauss distingue e

compara quatro ldquoniacuteveisrdquo determinantes e independentes do tempo cronoloacutegico geograacutefico

teacutecnico-econocircmico socioloacutegico e cosmoloacutegico (LEacuteVI-STRAUSS 1993 p 164) Enquanto

os dois primeiros niacuteveis encontram referentes bem definidos o terceiro entremeia

elementos atestaacuteveis com elementos somente pensaacuteveis e o quarto compotildee-se de imagens e

elementos somente pensaacuteveis A anaacutelise do mito da ldquogesta de Asdiwalrdquo revela que os trecircs

primeiros eixos sincrocircnicos relacionam-se com a praacutexis poliacutetica teacutecnica e social dos iacutendios

Tsimshiam ao passo que o quarto eixo consiste na configuraccedilatildeo de imagens que possuem a

funccedilatildeo heuriacutestica e explicativa de conferir significaccedilatildeo a fenocircmenos cujas causas satildeo

inevidentes Todos os quatro niacuteveis satildeo demarcados por pares de oposiccedilotildees que

representam ldquouma seacuterie de mediaccedilotildees impossiacuteveis entre oposiccedilotildees organizadas em ordem

decrescenterdquo (LEacuteVI-STRAUSS 1993 p 167)

A construccedilatildeo dos mitos pressupotildee a distinccedilatildeo fundamental entre sequumlecircncias e

esquemas As sequumlecircncias constituem a linearidade da trama que expressa o conteuacutedo

aparente dos mitos as sequumlecircncias de accedilotildees que ocorrem na ordem cronoloacutegica do tempo o

um apoacutes o outro dos eventos que identifica-se com o proacuteprio tempo cronoloacutegico

Sequumlecircncias satildeo congruentes com a sucessatildeo temporal e constituem a silhueta do

tempo Esquemas por outro lado independem do tempo e organizam as sequumlecircncias em

20

planos de profundidade variaacutevel superpostos e sincrocircnicos de modo a cingir fenocircmenos

aparentemente desconexos numa causalidade inevidente Tal como um canto gregoriano o

mito ldquoestaacute preso a um duplo determinismo determinismo horizontal de sua proacutepria linha

meloacutedica e determinismo vertical dos esquemas em contrapontordquo (LEacuteVI-STRAUSS 1993

p 169)

Em Platatildeo os mitos de julgamento revelam a partir do problema da fundamentaccedilatildeo

dos valores quatro grandes eixos sincrocircnicos invariantes eacutetico-poliacutetico epistemoloacutegico

psicoloacutegico e cosmoloacutegico A determinaccedilatildeo dos traccedilos constitutivos desses eixos eacute feita por

pares de oposiccedilotildees insuperaacuteveis que exige a busca de significaccedilatildeo nos planos subsequumlentes

A ressonacircncia direta com a praacutexis eacutetico-poliacutetica enfraquece agrave medida em que a procura por

causas explicativas para as contradiccedilotildees insuperaacuteveis avanccedila em direccedilatildeo ao plano

cosmoloacutegico-causal A anaacutelise dessas oposiccedilotildees revela uma consistecircncia surpreendente nas

grandes narrativas de julgamento como modo de inteligibilidade proacutepria A aplicaccedilatildeo do

meacutetodo estrutural empregado por Walter Burkert aos mitos platocircnicos evidencia que os

grandes mitos de julgamento representam um esforccedilo atemporal na procura da causalidade

unificadora que confere sentido para as contradiccedilotildees do palco do devir

Em Platatildeo todos os mitos de julgamento convergem numa colossal teoria da

causalidade

21

I Mitos e Causas ndash excertos de imagens causais em Hesiacuteodo e Homero3

11 Retribuiccedilatildeo e Causalidade

O pai com o apelido de Titatildes apelidou-os

o grande Ceacuteu vituperando filhos que gerou

dizia terem feito na altiva estultiacutecia gratilde obra

de que castigo teriam no porvir

Hesiacuteodo Teogonia vs 207-2104

A Iliacuteada o poema mais antigo da literatura ocidental inicia-se com a narrativa de

uma peste Crises sacerdote de Apolo fora ultrajado pela recusa de Agamecircnon em

resgatar-lhe a filha raptada

Que Deus posto entre ambos provocou a rixa

O filho de Latona e Zeus Irou-o o rei

A peste entatildeo lavrou no exeacutercito ruiacutena

Cai sobre o povo A Crises ultrajara o Atreide

Ao sacerdote o qual viera ateacute as naus

velozes dos Aqueus remir com dons a filha

nas matildeos portando os nastros do certeiro Apolo

presos ao cetro de ouro e a todos implorava ()

Iliacuteada I vs 8-15

Diante da cataacutestrofe Aquiles recorre a um mediador o adivinho Calcas para

responder agrave questatildeo por que o deus estaacute tatildeo irado A calamidade suscita a questatildeo de se

saber a causa Segue-se entatildeo uma sequecircncia de eventos que configuram pela primeira

vez na poesia grega um ritual que envolve adivinhaccedilatildeo purificaccedilatildeo sacrifiacutecio preces e

danccedila Essa sequecircncia como demonstra Walter Burkert (2001 p 103 ss) transcende as

3 Emprego o pressuposto metodoloacutegico de que um mito eacute um programa ou sequumlecircncia de accedilotildees com uma

estrutura discerniacutevel definida que se caracteriza pela exemplaridade do tipo miacutetico e pela aplicabilidade atemporal O mito eacute a forma pela qual uma experiecircncia complexa se torna comunicaacutevel Suas personagens

configuram personificaccedilotildees geneacutericas que permitem a aplicaccedilatildeo a situaccedilotildees particulares definidas Esse

caraacuteter geneacuterico das imagens miacuteticas implica a sua atemporalidade aleacutem do fato de que elas satildeo

inverificaacuteveis Para a abordagem preliminar da causalidade a partir dos trechos selecionados emprego

conjuntamente a abordagem estruturalista da Escola de Paris representada por Jean Pierre Vernant e Marcel

Detienne com o estruturalismo alematildeo de Walter Burkert As questotildees de meacutetodo satildeo desenvolvidas no

primeiro capiacutetulo 4 Traduccedilatildeo de Jaa Torrano (2003)

22

fronteiras da civilizaccedilatildeo grega e constitui universalia antropoloacutegicos um padratildeo invariaacutevel

de cinco etapas (i) uma experiecircncia catastroacutefica ameaccediladora adveacutem de uma Potestade

divina (ii) a calamidade suscita a questatildeo da busca pela causa ldquopor querdquo (iii) a busca da

causa requer um mediador (iv) um diagnoacutestico eacute feito a causa do mal eacute definida e

localizada pelo estabelecimento da culpa e identificaccedilatildeo do responsaacutevel Conhecer a causa

eacute indicar o responsaacutevel e obter o caminho para a salvaccedilatildeo (v) Atos apropriados de expiaccedilatildeo

satildeo prescritos visando agrave libertaccedilatildeo do mal

Cataacutestrofes e doenccedilas satildeo frequumlentemente vistas como uma inevitaacutevel reaccedilatildeo divina

vinculada a algum tipo de transgressatildeo ou falta original agrave infraccedilatildeo de uma lei ou uma

accedilatildeo imprudente que denota uma afronta ou hyacutebris diante dos deuses A culpa eacute em geral

associada agrave transgressatildeo religiosa ou violaccedilatildeo das medidas humanas A causa do mal eacute

oculta inevidente e o seu estabelecimento requer a mediaccedilatildeo de videntes cujo saber

atemporal pode determinar-lhe a origem A busca por causas inevidentes invisiacuteveis confere

sentido agrave experiecircncia catastroacutefica e permite numa perspectiva abrangente da situaccedilatildeo do

passado e do futuro a praacutetica de accedilotildees que a tornem remediaacutevel A integraccedilatildeo dos sinais

complexos da experiecircncia caoacutetica num uacutenico pano de fundo mental confere-lhe significaccedilatildeo

mediante o estabelecimento do viacutenculo infrangiacutevel entre a falta e a puniccedilatildeo A causalidade

eacute a forma multimilenaacuteria de lidar com a experiecircncia aterradora do mal sem explicaccedilatildeo

mediante o estabelecimento de causas inevidentes A ira de um deus superior eacute a

consequecircncia infaliacutevel e justificada para a transgressatildeo Segundo Burkert (2001 p 125) ldquoo

padratildeo da causalidade da culpa estabelecida por um diagnoacutestico transcendente em

situaccedilotildees de calamidade eacute universal primitivo e tiacutepico da mente humana e do

comportamento humano em geralrdquo e haure seu modelo no ldquocomportamento do animal

apanhado numa armadilha ou perseguido por um predadorrdquo O estabelecimento de uma

23

conexatildeo infaliacutevel que vincula as noccedilotildees de falta consequecircncia e reparaccedilatildeo gera um

contexto de sentido no Koacutesmos A invenccedilatildeo da culpa coincide com a moldagem da

racionalidade que promove uma reconstruccedilatildeo de um universo de sentido para uma

experiecircncia original caoacutetica e catastroacutefica Encontrar a ldquocausardquo (aitiacutea) eacute encontrar o

ldquoresponsaacutevelrdquo (aiacutetios) e determinar a explicaccedilatildeo inevidente para uma situaccedilatildeo aflitiva As

conexotildees infrangiacuteveis entre violaccedilatildeo ndash culpa ndash retribuiccedilatildeo moldam os quadros mentais que

estabeleceratildeo as conexotildees infaliacuteveis entre fato ndash consequecircncia e causa ndash efeito que

caracterizam a reconstruccedilatildeo racional do mundo promovida pela mente humana

Nos primoacuterdios a Natureza eacute um estado de indistinccedilatildeo caoacutetica A diferenciaccedilatildeo soacute

ocorre mediante atos de violecircncia propiciados pela astuacutecia enganosa Por isso como afirma

Galimberti (2006 p 43) ldquofoi a violecircncia da razatildeo que permitiu ao homem subtrair-se

daquela violecircncia maior que eacute a falta de reconhecimento das diferenccedilas pela qual o pai natildeo

eacute reconhecido como pai a matildee como matildee o filho como filho com a consequente oscilaccedilatildeo

dos significados que a razatildeo humana trabalhosamente construiu para se orientar no

mundordquo

Se Gaia eacute a matildee primordial a partir da qual emerge toda diferenciaccedilatildeo a culpa eacute a

matildee miacutetica primordial da causalidade imprescindiacutevel para o desenvolvimento da

concepccedilatildeo racional da teacutecnica

Na Teogonia em particular a situaccedilatildeo aflitiva de aprisionamento experimentada

pelos filhos de Gaia suscita a identificaccedilatildeo do responsaacutevel no desregramento sexual de

Ourano A localizaccedilatildeo da causa da situaccedilatildeo aflitiva ocasiona as medidas apropriadas para a

sua remoccedilatildeo Tais medidas envolvem a escolha de meios que implicam uma inteligecircncia

astuciosa exigida para sobrepujar uma potecircncia divina Gaia forja um instrumento a foice

24

de branco accedilo que possibilita o estratagema doloso e o golpe violento pelos quais Crono

obteacutem a soberania do Koacutesmos

6 Por dentro gemia a Terra prodigiosa

atulhada e urdiu dolosa e maligna arte

Raacutepida criou o gecircnero do grisalho accedilo

forjou grande podatildeo e indicou aos filhos

Disse com ousadia ofendida no coraccedilatildeo

ldquoFilhos meus e do pai estoacutelido se quiserdes

ter-me feacute puniremos o maligno ultraje de vosso

pai pois ele tramou antes obras indignasrdquo

Teogonia 159-166

Essa sequecircncia de eventos estabelece as conexotildees entre a causalidade e a

inteligecircncia astuciosa a ldquoarte dolosardquo ndash doliacuteēn teacutekhnēn ndash concebida por Gaia e o emprego

dos meios apropriados para o sobrepujamento de Ourano que significa em uacuteltima

instacircncia o domiacutenio do Koacutesmos A accedilatildeo violenta de Crono acarreta a imprecaccedilatildeo de

Ourano e a admoestaccedilatildeo de uma retribuiccedilatildeo infaliacutevel ou ldquocastigo no porvirrdquo (v 210)

O esquema baacutesico pode ser resumido nas seguintes etapas (i) uma situaccedilatildeo

impediente adveacutem (ii) a situaccedilatildeo problemaacutetica suscita a busca da causa (iii) um mediador

com inteligecircncia astuciosa concebe um estratagema ou arte (teacutekhnē) fraudulenta (iv) os

meios apropriados satildeo escolhidos forjados e empregados oportunamente com violecircncia

para a remoccedilatildeo do mal (v) a accedilatildeo violenta suscita por sua vez uma retribuiccedilatildeo infaliacutevel

como consequecircncia Tal esquema eacute constitutivo para a formaccedilatildeo da primitiva inteligecircncia

teacutecnica que visa ao domiacutenio da natureza

A castraccedilatildeo de Ourano implica consequecircncias inevitaacuteveis a liberaccedilatildeo do tempo

linear irreversiacutevel a gecircnese a partir de princiacutepios opostos complementares e distintos As

gotas de sangue espargidas sobre Gaia datildeo origem agraves Potecircncias que presidem a vinganccedila a

violecircncia as guerras e provas de forccedila as Eriacutenias os Gigantes e Meliacuteades O oacutergatildeo sexual

de Crono atirado ao mar com seu esperma origina a espuma (aphroacutes) que daacute nascimento a

25

Afrodite cujos atributos satildeo a uniatildeo amorosa o prazer os sorrisos os ardis ndash opostos aos

das potecircncias violentas Doravante os contraacuterios soacute podem ser aproximados pela uniatildeo de

princiacutepios distintos A complementaridade de opostos confere agrave organizaccedilatildeo do Koacutesmos um

caraacuteter ambiacuteguo de mistura em que potecircncias de conflito se equilibram com potecircncias de

concoacuterdia (VERNANT 2002 p 252) Ademais ao processo de gestaccedilatildeo das potecircncias da

distinccedilatildeo se contrapotildee a emanaccedilatildeo das potecircncias de destruiccedilatildeo forccedilas da escuridatildeo e da

desordem personificadas nos filhos da Noite

A inscriccedilatildeo da ordem no Koacutesmos implica como contrapartida simeacutetrica a inscriccedilatildeo

de potecircncias caoacuteticas de desordem Uma lei de compensaccedilotildees perpassa o Koacutesmos assim

como Dia e Noite satildeo reversos Thaacutenatos Hyacutepnos e Oneiron se opotildeem agrave vida e as Moiras

Neacutemesis e Keres estendem a lei de retribuiccedilatildeo infaliacutevel para o acircmbito dos homens mortais

A estensatildeo das potecircncias de vinganccedila ao acircmbito dos mortais representa a contrapartida

simeacutetrica da conexatildeo infaliacutevel entre falta e retribuiccedilatildeo que rege o Koacutesmos divino Agrave

infalibilidade da conexatildeo falta-retribuiccedilatildeo eacute acrescentado o equiliacutebrio inevitaacutevel do reverso

A symmetriacutea5 eacute uma faceta ineludiacutevel de uma causalidade infaliacutevel

12 Causalidade e Poder

Agrave narrativa de um processo de diferenciaccedilatildeo substitui-se um mito de sucessatildeo de

poder6 A instauraccedilatildeo da conexatildeo culpa-retribuiccedilatildeo constitui a condiccedilatildeo para o domiacutenio do

Koacutesmos e a nota distintiva da inteligecircncia teacutecnica

5 No sentido de justa proporccedilatildeo Filebo 65e Repuacuteblica 530a 6 A ecircnfase na soberania que atravessa a anaacutelise estrutural de Vernant eacute tributaacuteria da primeira funccedilatildeo

estabelecida por George Dumeacutezil no seu esquema de interpretaccedilatildeo dos mitos indo-europeus Natildeo obstante a

anaacutelise empreendida por Jenny S Clay destaca o equiliacutebrio simeacutetrico de potecircncias como um elemento

constitutivo na cosmologia de Hesiacuteodo No seu vieacutes a ldquoa histoacuteria dos deuses como um todo pode ser vista

como uma explicaccedilatildeo das vaacuterias tentativas do deus supremo masculino de controlar e bloquear a direccedilatildeo

procriadora feminina de forma a obter um regime coacutesmico estaacutevelrdquo Segundo a autora no auguacuterio

apocaliacuteptico que encerra o mito das raccedilas Hesiacuteodo vincula a determinaccedilatildeo definitiva do estatuto humano ao

abandono gradual de e interpretados como senso de vergonha e ultraje ndash par

26

A soberania soacute eacute obtida mediante uma limitaccedilatildeo imposta por um ato de violecircncia

maquinado por uma inteligecircncia astuciosa Mas a instauraccedilatildeo infrangiacutevel da conexatildeo natildeo

implicaria um ciclo indefinidamente renovado A ordem do mundo natildeo seraacute

indefinidamente questionada e subvertida Esse problema eacute respondido na narrativa da

Titanomaquia e da vitoacuteria definitiva de Zeus

Reacuteia submetida a Crono pariu brilhantes filhos

Heacutestia demeacuteter e Hera de aacuteureas sandaacutelias

o forte Hades que sob o chatildeo habita um palaacutecio

com impiedoso coraccedilatildeo o troante Treme-terra

e o saacutebio Zeus pai dos Deuses e dos homens

sob cujo trovatildeo ateacute a ampla terra se abala

E engolia-os o grande Crono tatildeo logo cada um

do ventre sagrado da matildee descia aos joelhos

tramando-o para que outros magniacuteficos Uranidas

natildeo tivesse entre os imortais a honra de rei

HESIacuteODO 2003Teogonia vs 453-462

O temor da retribuiccedilatildeo leva Crono a impedir o florescimento de sua prole A

vigilacircncia inquieta de Crono deriva do seu ldquocurvo pensarrdquo da Mḗtis que conferia-lhe a

presciecircncia da retribuiccedilatildeo ao crime cometido contra o pai A situaccedilatildeo repressora leva Reacuteia a

uma ldquolonga afliccedilatildeordquo Reacuteia com Gaia e Ourano concebe um ardil (mḗtin) astucioso e

encontra os meios para que as Eriacutenias implacaacuteveis retribuidoras fizessem com que Zeus o

astuto (mētioacuteenta) tivesse destino diverso do de seus irmatildeos Clandestinamente Reacuteia

esconde o filho mais novo em Creta e dissimula uma pedra envolta em latildes de modo que

tivesse a aparecircncia enganosa do filho receacutem nascido O estratagema fruto da inteligecircncia

astuciosa envolve a descoberta dos meios apropriados a dissimulaccedilatildeo e o engodo que

complementar agrave potecircncia feminina de Nesse sentido contra Vernant a oposiccedilatildeo se estenderia a um

plano ulterior de distinccedilotildees que marca a unilateralidade da violecircncia inerente ao domiacutenio assimeacutetrico da

potecircncia masculina A sucessatildeo de violecircncias encenada na titanomaquia mais do que esboccedilar o cenaacuterio

historicista de luta pela soberania mostra a necessidade da assimilaccedilatildeo do elemento feminino proacuteprio de

agrave forccedila soberana (CLAY 2003 23-38)

27

permitem impedir e paralisar uma potestade divina soberana A questatildeo da soberania

basileacuteia coacutesmica implica o emprego do meio eficaz para enganar a Potecircncia divina o que

soacute eacute factiacutevel mediante uma astuacutecia dolosa que supera a astuacutecia da divindade

Desde o seu desabrochar a racionaliade teacutecnica aparece como um modo de trapaccedila

como um dolo inextricaacutevel da culpa O dolo eacute tatildeo somente o modo miacutetico de vindicar a

conexatildeo infaliacutevel da contrapartida do castigo Eacute a plasmaccedilatildeo da conexatildeo que funda um tipo

de pensamento indispensaacutevel para o regramento da experiecircncia humana e da busca pelos

melhores meios para a sobrevivecircncia eficaz num mundo cujas potecircncias naturais satildeo

poderosas a ponto de serem epifanias divinas

O grande Crono de curvo pensar eacute ldquoenganado (dolōtheis) por repetidas instigaccedilotildees

da Terrardquo (Teogonia v 494) solta sua prole e acaba por ser expulso agrave forccedila pelo filho mais

novo O mesmo padratildeo e a sequecircncia de accedilotildees baacutesica anterior eacute mantida (i) uma situaccedilatildeo

impediente adveacutem Crono impede que seus filhos venham a ser e os engole (ii) a situaccedilatildeo

problemaacutetica suscita a busca da causa Crono astuciosamente pretende manter a soberania

(iii) mediadores astuciosos concebem uma arte dolosa Reacuteia juntamente com Gaia e

Ourano tramam um ardil que engana Crono (iv) os meios adequados satildeo escolhidos e

empregados Crono engole uma pedra e Zeus eacute escondido em Creta ateacute que agrave forccedila

destrone seu pai (v) a accedilatildeo violenta reclama a justa retribuiccedilatildeo as Eriacutenias deveriam fazer

voltar contra Zeus a Mḗtis que lhe impingiria a mesma sorte dos seus antepassados

soberanos Todavia isso natildeo ocorre No reinado de Zeus a conexatildeo infrangiacutevel entre falta-

retribuiccedilatildeo eacute assimilada ao seu poder real Doravante a causalidade passa a ser um atributo

de uma ordem coacutesmica imutaacutevel

A garantia da ordem estabelecida eacute uma prerrogativa da Mḗtis a inteligecircncia

astuciosa que independentemente do poder e forccedila do adversaacuterio e em todas as

28

circunstacircncias garante a dominaccedilatildeo do Koacutesmos mediante a integraccedilatildeo entre macho e

fecircmea Somente a superioridade de uma inteligecircncia astuciosa que implica a presciecircncia a

escolha a forja e o emprego dos meios mais eficazes com vistas a um fim determinado

somente uma Mḗtis que eacute tambeacutem potecircncia divina propicia a supremacia do poder

soberano Por isso como diz Vernant ldquoo rei do ceacuteu deve dispor fora e aleacutem da forccedila bruta

de uma inteligecircncia haacutebil para prever o futuro para maquinar tudo antes para combinar em

sua prudecircncia meios e fins ateacute o menor detalhe de forma que o tempo da accedilatildeo natildeo

comporte acasos que o futuro natildeo traga surpresas fazendo com que nada e ningueacutem possa

pegar o deus de surpresa ou encontraacute-lo indefesordquo (2002 p 258) Combinaccedilatildeo eficaz de

meios e fins previsatildeo e planificaccedilatildeo baseados na sequecircncia infaliacutevel da causalidade tempo

oportuno eliminaccedilatildeo do acaso forja de instrumentos necessaacuterios eis as condiccedilotildees para a

consolidaccedilatildeo e desenvolvimento da inteligecircncia teacutecnica que eacute ao mesmo tempo a

provedora e a chancela do poder

Mḗtis a Oceacircnida deusa da astuacutecia eacute justamente quem assegura a Zeus os meios de

lutar contra os Titatildes ela induz Crono a beber um phaacutermakon que o obriga a vomitar os

irmatildeos de Zeus que haviam sido engolidos (APOLODORO I 2 6) Mas outros

coadjuvantes viriam de um expediente astucioso adicional Gaia revela a Zeus que para

obter a vitoacuteria deveria contar com a alianccedila dos Ciclopes e dos Cem-Braccedilos detentores

respectivamente do raio dos golpes e cadeias invenciacuteveis (Teogonia vs 624-653) Zeus

liberta as Potecircncias primordiais de suas correntes e lhes oferece neacutectar e ambrosia

consagrando-os a um estatuto divino parelho ao dos Oliacutempios O favor divino concedido

por Zeus eleva a um novo plano o tema da retribuiccedilatildeo a daacutediva eacute um meio de garantir a

reciprocidade e de escalonar valores As Potecircncias primordiais da violecircncia e da vitoacuteria

passam a ser os guardiotildees fieacuteis de Zeus Kraacutetos e Biacutea Poder e Violecircncia ldquoinsignes filhosrdquo

29

de Stix e Oceano ldquosempre perto de Zeus gravitroante repousamrdquo (Teogonia v 385)7 Para

instituir a ordem faz necessaacuteria a harmonizaccedilatildeo entre as potecircncias da violecircncia e a astuacutecia

presciente A emancipaccedilatildeo da ordem implica a ruptura violenta

Mḗtis ldquomais saacutebia que os deuses e os homens mortaisrdquo (v 887) eacute a primeira esposa

de Zeus O casamento eacute uma forma de daacutediva e de reciprocidade pelos serviccedilos prestados

pela deusa da inteligecircncia astuciosa mas eacute sobretudo uma alianccedila que assegura o domiacutenio

da soberania Para impedir que a retribuiccedilatildeo agrave violecircncia da falta infaliacutevel se volte contra si

mesmo Zeus emprega as proacuteprias armas de Mḗtis a astuacutecia a surpresa e o ardil O

Cronida ldquoengana suas entranhas com ardil com palavras sedutorasrdquo por conselhos de Gaia

e Ourano e engole-a ventre abaixo para que assim a deusa lhe indique o bem e o mal

(Teogonia v 886-900) A deusa que interveacutem nas lutas de soberania para restaurar o

equiliacutebrio rompido estabelece o fato inexoraacutevel de que o domiacutenio e o poder exigem o

concurso simultacircneo da audaacutecia da forccedila da artimanha da iniciativa inteligente do ardil e

do espiacuterito inventivo (DETIENNE 1974 p 105) Ao ser engolida Mḗtis eacute assimilada a

Zeus e ele ldquotorna-se mais que um simples monarca ele se torna a proacutepria Soberaniardquo

(VERNANT 2002 p 261) A inteligecircncia astuciosa estaacute ldquonas entranhasrdquo de Zeus faz parte

de sua constituiccedilatildeo divina configura uma de suas potecircncias constitutivas Zeus eacute todo

Astuacutecia e sua inteligecircncia abarca todo o ciclo do tempo conferindo-lhe a previsatildeo

presciecircncia e prudecircncia indispensaacuteveis para a accedilatildeo que se projeta no futuro Ao assimilar

7 Alguns exegetas como H Fraumlnkel atribuem o domiacutenio de Zeus agrave alianccedila decisiva estabelecida com Styx e

sua descendecircncia Zelos Niacuteke Kraacutetos e Biacutea Brown empreende uma interpretaccedilatildeo maquiavelista afirmando que os resultados finais justificam os meios empregados por Zeus que seria o fundador no koacutesmos do que

Maquiavel chamaria ldquosociedade civilrdquo Blickman observa no entanto que a alianccedila dos filhos de Styx foi

ldquoganhardquo mediante a oferta da garantia de conceder-lhes as devidas honras divinas O vieacutes que nos interessa ndash

a formaccedilatildeo dos elementos fundamentais da inteligecircncia teacutecnica ndash indica que o acento deve recair sobre o fato

de que a oferta e a contrapartida do serviccedilo leal dos aliados de Zeus configuram uma faceta e uma

perspectiva diversa de lei de retribuiccedilatildeo As alianccedilas de Zeus configuram a conexatildeo causal infaliacutevel como

oferta e contrapartida e satildeo compatiacuteveis com a interpretaccedilatildeo e o acento fortemente alegoacuterico que Vernant

confere a Mḗtis (BLICKMAN 1987 p 341-355)

30

Mḗtis Zeus inaugura a inteligecircncia projetiva a inteligecircncia teacutecnica como a ordem que

deteacutem a soberania sobre o mundo e por isso ldquoentre o projeto e a realizaccedilatildeo natildeo conhece

mais a distacircncia pela qual surgem na vida dos outros deuses as armadilhas do imprevistordquo

(ibid) O ciclo inexoraacutevel e sempre renovado entre falta e retribuiccedilatildeo em vez de abolir a

ordem coacutesmica passa a ser parte integrante dela A ordem eacute definitivamente estabelecida

quando a causalidade e a inteligecircncia teacutecnica passam a ser-lhe solidaacuterias

Na geraccedilatildeo anterior accedilatildeo astuciosa de Gaia decorre da violecircncia de Ourano que a

atulha e com isso impede sua potecircncia natural de gestaccedilatildeo e o devir das geraccedilotildees

subsequentes

Quantos da Terra e do Ceacuteu nasceram

filhos os mais temiacuteveis detestava-os o pai

decircs o comeccedilo tatildeo logo cada um deles nascia

a todos ocultava agrave luz natildeo os permitindo

na cova da Terra8

(HESIacuteODO Teogonia 2003 154-159)

A astuacutecia feninina aparece como contrapartida agrave violecircncia masculina na forja do

instrumento de salvaccedilatildeo o que implica inexoraacutevel tendecircncia a um ininterrupto ciclo de

violecircncia e retribuiccedilatildeo atraveacutes da descendecircncia masculina os Titatildes aqueles que pagam a

penalidade por suas accedilotildees A mudanccedila coacutesmica eacute desencadeada pela tensatildeo entre o

princiacutepio de accedilatildeo da procriaccedilatildeo natural ilimitada de Gaia e a violecircncia impediente de

Ourano A forccedila da proliferaccedilatildeo ilimitada de Gaia soacute pode ser limitada por um ato de

violecircncia e oposiccedilatildeo agrave potecircncia feminina num ciclo ininterrupto de violecircncia e retribuiccedilatildeo

astuciosa Todavia o primeiro ato de violecircncia de Zeus consiste em engolir Mḗtis

desencadeando uma reviravolta no ciclo coacutesmico O princiacutepio de movimento coacutesmico

8

31

emerge a partir dos pares de opostos caracterizados pela alternacircncia entre procriaccedilatildeo

masculina e gestaccedilatildeo feminina e pela oposiccedilatildeo entre violecircncia (biacutea) masculina e a mḗtis

feminina Enquanto a violecircncia eacute prerrogativa masculina a inteligecircncia astuciosa eacute um

apanaacutegio feminino Quando Zeus engole Mḗtis assimila em si mesmo a esfera coacutesmica

feminina cuja consequecircncia eacute o equiliacutebrio de princiacutepios opostos de movimento

Entretanto a ordem soacute pode ser perenemente garantida mediante uma outra

realidade coacutesmica primordial que dispotildee de poderes anteriores aos de Zeus a Oceacircnida

Thecircmis Assim como Mḗtis Thecircmis abarca a totalidade do tempo e possui uma onisciecircncia

que diz respeito a uma ordem estabelecida Seus proferimentos possuem um valor oracular

categoacuterico que estabelece de uma vez por todas como decretos o que eacute dito Thecircmis

ordena interdita decreta peremptoriamente e fixa os aspectos natildeo definidos do Koacutesmos Se

de um lado Mḗtis relaciona-se com o tempo oportuno e com o hipoteacutetico de outro

Thecircmis estabelece a regularidade a ordem e confere invariacircncia ao devir Ela eacute a Matildee das

Horas as Estaccedilotildees e fixa as Moiras dos mortais Sua funccedilatildeo eacute a de estabelecer limites

intransponiacuteveis ao Koacutesmos Sua uniatildeo com Zeus implica que a ordem coacutesmica possui

medidas regularidades e limites intransponiacuteveis (DETIENNE 1974 p 105 ss) A funccedilatildeo

primordial de Thecircmis eacute proclamar que os limites do Koacutesmos satildeo decretos divinos

irrevogaacuteveis Tais limites iniciam-se pela diferenciaccedilatildeo de potecircncias contraacuterias e por uma

sissiparidade sem a atraccedilatildeo de potecircncia primordial de Eros A uniatildeo de potecircncias opostas

brota do Amor coacutesmico afetividade que potildee em movimento a geraccedilatildeo e o ciclo coacutesmico

Mas cabe observar que as primeiras potecircncias instauradoras de limites coacutesmicos satildeo

princiacutepios temporais os primeiros limites consistem no estabelecimento de uma conexatildeo

irrevogaacutevel entre violecircncia desmedida e retribuiccedilatildeo astuciosa entre proliferaccedilatildeo

ininterrupta e a fixaccedilatildeo de limites e medidas temporais coacutesmicas

32

O casamento de Zeus com Thecircmis eacute ao mesmo tempo uma daacutediva pelos seus

serviccedilos e uma alianccedila que assimila sua potecircncia Suas decisotildees irrevogaacuteveis permitiratildeo a

partilha os lotes os domiacutenios e a hierarquia entre as Potecircncias divinas Com a daacutediva e a

reciprocidade do duplo casamento de Zeus a retribuiccedilatildeo adquire o estatuto inalienaacutevel de

lei e a reciprocidade passa a ser a condiccedilatildeo para a hierarquia de poderes Na Teogonia

hesioacutedica causalidade e hierarquia apontam para um limite uacuteltimo na Natureza a lei

irrevogaacutevel e intransponiacutevel estabelecida por Thecircmis

13 Causalidade e Reciprocidade

A caracteriacutestica fundamental de uma daacutediva ou presente eacute a expectativa da

reciprocidade consoante um criteacuterio de equivalecircncia A troca de presentes estabelece o

estatuto do doador e implica o escalonamento do poder No primeiro livro da Odisseacuteia

Palas Atena visita Telecircmaco sob a forma do estrangeiro Mentes e define a obrigaccedilatildeo da

reciprocidade

Hoacutespede tuas palavras satildeo ditas com acircnimo amigo

como de pai para filho jamais poderei esquececirc-las

Mas muito embora desejes partir fica um pouco te peccedilo

que te banhes e possas dar largas ao peito querido

para depois ao navio voltares levando um presente

muito valioso e bonito que seja lembranccedila de minha

parte tal como os amigos com os hoacutespedes fazem de grado

A de olhos glaucos Atena lhe disse em resposta o seguinte

Natildeo me domovas do intento pois muito me importa ir embora

Quanto ao presente se tanto o desejas que seja na volta

quando de novo passar por aqui levaacute-lo-ei para casa

Por mais valioso que escolhas teraacutes outro igual conquistado

Odisseacuteia I vs 307-318

Todo presente exige um contra-presente A obrigaccedilatildeo de reciprocidade natildeo

comporta exceccedilatildeo e a contrapartida ao ato de ofertar pressupotildee uma medida comum que

estabelece o valor (aacutexion) ou equivalecircncia que controla um sistema de hierarquia A

33

proacutepria noccedilatildeo de ldquomedidardquo eacute um refinamento da concepccedilatildeo de que a Natureza eacute

caracterizada por limites que natildeo podem ser transpostos (VLASTOS 1947 p 156) O

estabelecimento de uma obrigaccedilatildeo muacutetua implica o desenvolvimento de categorias mentais

que comportam a comparaccedilatildeo a igualdade a medida a contagem e o caacutelculo O presente

permite segundo Burkert o reconhecimento da igualdade de estatuto entre os ofertantes e a

representaccedilatildeo de um mesmo paacutethos Implica tambeacutem os quadros mentais que permitem o

discernimento da dimensatildeo temporal e a projeccedilatildeo futura da obrigaccedilatildeo mediante o

reconhecimento de um padratildeo invariaacutevel (BURKERT 2001 p 132) A reciprocidade eacute

apenas um outro aspecto da conexatildeo infaliacutevel da retribuiccedilatildeo e determina a expectativa

universal de que seres de um mesmo estatuto recebam o mesmo tratamento A

reciprocidade advinda da oferta implica por conseguinte o escalonamento ou

hierarquizaccedilatildeo dos atores envolvidos conferindo estabilidade ao todo

Outro modo de aplicaccedilatildeo da reciprocidade possui desdobramentos perenes no

desenvolvimento da racionalidade Na esfera da justiccedila punitiva o castigo eacute aceito como

justo se estiver subordinado agrave concepccedilatildeo de retribuiccedilatildeo que especificamente emerge da

oferta reciacuteproca A reciprocidade pressupotildee os quadros mentais que desenvolvem aquela

que viraacute a ser uma das noccedilotildees mais fecundas da Filosofia a noccedilatildeo de simetria

Nos Trabalhos e os Dias Hesiacuteodo desenvolve uma antropogonia que estabelece

significaccedilatildeo para o estatuto humano e serve de justificativa para uma exaltada exortaccedilatildeo a

seu irmatildeo Perses O equiliacutebrio compensatoacuterio de opostos eacute apresentado como princiacutepio

constitutivo do plano coacutesmico e humano de modo que o equiliacutebrio recebe a sanccedilatildeo da forccedila

do juramento dos deuses e da lei contra a desmedida hyacutebris A Justiccedila soacute pode compensar a

desmedida com o estabelecimento preacutevio do meacutetron padratildeo comum que garante a

equidade ou comensuralidade Mas a etimologia de meacutetron natildeo deixa de ter relaccedilatildeo com

34

mḗtis a proacutepria personificaccedilatildeo da inteligecircncia astuciosa inextrincaacutevel do kairoacutes da accedilatildeo

precisa no momento oportuno O primeiro golpe astucioso concebido por Gaia suscita natildeo

somente a forja do instrumento inteligentemente planeado mas exige ainda que o momento

oportuno coincida com a accedilatildeo instauradora do tempo cronoloacutegico Na mentalidade grega a

noccedilatildeo de excesso deriva das accedilotildees coacutesmicas do desregramento dos desejos da violecircncia e

do tempo oportuno e natildeo de uma replicaccedilatildeo espacial bilateral

Na perspectiva moderna algo eacute simeacutetrico se possui a mesma medida em relaccedilatildeo a

um padratildeo (syacutemmetros) ou se apoacutes ser submetido a uma determinada accedilatildeo permanece com

a mesma aparecircncia ou com o aspecto original Mas na mentalidade grega de Hesiacuteodo a

noccedilatildeo de equiliacutebrio entre opostos eacute imageticamente expressa na geraccedilatildeo de Harmoniacuteē

Resultante do sangue esparso no mar nascem potecircncias opostas as Eriacutenias

zeladoras da vinganccedila os Gigantes as Ninfas e a virgem da espuma rosada ndash Cytereacuteia ou

Afrodite Novas potecircncias divinas opostas satildeo engendradas a partir da uniatildeo de Afrodite e

Ares destruidor de cidades Harmoniacutea Phoacutebos e Deimos Medo e Terror rompedores das

falanges guerreiras (HESIOD 2006 v 935-937) As determinaccedilotildees afetivas de Afrodite

associadas a Eros ao Desejo (Hyacutemeros) agrave doccedilura graccedila e suavidade opoem-se agrave ira

guerreira de Ares Harmoniacuteē aparece como conjunccedilatildeo conciliadora de afetos opostos uniatildeo

e oposiccedilatildeo geraccedilatildeo e destruiccedilatildeo doce encanto e oacutedio ajustamento de princiacutepios de accedilatildeo

opostos

Por outro lado nos Trabalhos o enfoque visa o estabelecimento do estatuto humano

e o regramento da praacutexis eacutetico-poliacutetica Por essa razatildeo o equiliacutebrio de opostos passa a

abarcar a noccedilatildeo ulterior de meacutetron como avaliaccedilatildeo sopesada para evitar o excesso de

ambiccedilatildeo desmedida e encontrar o justo

35

Mede (metreisthai) bem do teu vizinho e paga-o bem de volta com

a mesma medida (tō metrō) e o melhor que podes pois se estiveres

em necessidade novamente o encontraraacutes mais tarde tambeacutem

confiante ()

Mas eu natildeo te darei nenhum dom a mais nem sobremedida

(epimetrḗsso) ()

Guarda a medida (meacutetra phylaacutessesthai) o momento oportuno eacute a

mais excelente de todas as coisas (kairograves d‟epigrave paacutesin aacuteristos )

(HESIOD Works and Days 2006 v 349-351 396 694)

A apaixonada exortaccedilatildeo de Hesiacuteodo realccedila a origem do excesso e da desmedida no

iacutempeto dos desejos e associa a medida ao kairoacutes o elemento temporal que ajusta

quantitativamente os frutos do trabalho agriacutecola aos periacuteodos regulares das estaccedilotildees e dos

dias As atividades agriacutecolas segundo o excelente trabalho de Jean-Luc Perrilleacute

entremeiam os aspectos quantitativos e temporais que compotildeem a molda da noccedilatildeo de

comensurabilidade (PERILLEacute 2005 p 23-33) A necessidade de ajustar o ano solar ao ano

lunar ocasiona a fusatildeo dos aspectos temporais e espaciais com relaccedilotildees numeacutericas

quantitativas Aleacutem disso a obervacircncia da medida configura o principal traccedilo dos

apotegmas dos sete saacutebios arcaicos A prescritiva de Cleoacutebulo a medida eacute a mais excelente

das coisas (meacutetron aacuteriston) eacute um iacutendice de que as noccedilotildees de equiliacutebrio medida e momento

oportuno modelam a inteireza da mentalidade que daacute identidade ao helecircnico Os apotegmas

de Tales Soacutelon e Pitacos reforccedilam o pressuposto de um pano de fundo compartilhado de

uma atmosfera mental comum que abarca todas as expressotildees do patrimocircnio da paideacuteia

grega observa a medida (meacutetrō khrō) nada em demasia (mēdeacuten aacutegan) apreende o

momento oportuno (kairograven gnōthi)

O acervo mental que correlaciona as noccedilotildees de medida agrave oportunidade temporal

agrega a questatildeo da afetividade como princiacutepio das accedilotildees praacuteticas Nos seus poemas

elegiacuteacos Teoacutegnis adverte que o excesso (hyacuteper meacutetron) de vinho acarreta a desmedida da

36

fala e a ausecircncia de vergonha que potildeem a perder o saacutebio9 ldquoEacute difiacutecil observar a medida

(gnōnai gagraver khalepograven meacutetron) quando o bem se oferece a noacutesrdquo (PERILLEacute 2005 p 25) O

excesso de prazeres e bebida satildeo correlacionados agrave desmedida do discurso improacuteprio e agrave

vergonha da impostura Moderaccedilatildeo afetiva modeacutestia e compostura conjugam-se num

espectro de afetos equilibrados ndash intrinsecamente ligados agrave aprovaccedilatildeo puacuteblica ndash que

suscitam a noccedilatildeo de justa medida O discurso descomedido que se segue a afetos

desenfreados tem como retribuiccedilatildeo inevitaacutevel a vergonha e a desonra As accedilotildees praacuteticas

suscitam justa retribuiccedilatildeo em consonacircncia com sua natureza proacutepria

No plano ciacutevico a retribuiccedilatildeo aparece como inversatildeo da accedilatildeo e determina a

exigecircncia de que o culpado sofra pelo que fez segundo um criteacuterio de equivalecircncia a

contagem de ldquochicotadasrdquo ou dias de prisatildeo por exemplo (BURKERT 2001 p 133) A

concepccedilatildeo da daacutediva estende muito adiante o horizonte da retribuiccedilatildeo e funda as noccedilotildees

que comporatildeo a concepccedilatildeo de ldquojusticcedila positivardquo a reciprocidade eacute de fato um tipo de

moralidade Em grego ser punido equivale a ldquodar justiccedilardquo (diacutekēn diacutedonai) a receber a

contrapartida o que eacute devido em funccedilatildeo de uma ofensa dada O mesmo ocorre com as

interaccedilotildees religiosas que aparecem como um ldquosistema de trocas artificialrdquo (ibid p 135) O

comeacutercio com os deuses eacute definido por Platatildeo como preces e sacrifiacutecios e ordens e

recompensas em paga dos sacrifiacutecios (Banquete 202e) A recompensa como obrigaccedilatildeo

muacutetua estaacute na base da crenccedila religiosa ndash independentemente da impossibilidade de

verificaccedilatildeo de uma recompensa ou puniccedilatildeo no aleacutem

9 O homem que bebe aleacutem da medida natildeo governa mais sua liacutengua nem seu espiacuterito Tem discursos sem fim

que enrubescem os saacutebios Ele natildeo se envergonha de nenhuma accedilatildeo em sua embriaguecircs De saacutebio que era

torna-se insensato Sabe isso e guarda-te de beber em excesso antes que venha a embriaguecircs levanta-te de

medo que teu ventre natildeo te submeta natildeo faccedilas de ti um escravo malfeitor (GIRARD 1892 v 469-495)

37

A mutaccedilatildeo da noccedilatildeo de reciprocidade resulta num contiacutenuo processo que culmina

com as noccedilotildees de leis ldquoobjetivasrdquo da Natureza A interpretaccedilatildeo matemaacutetica do mundo

operada pela Fiacutesica se expressa atraveacutes de equaccedilotildees relaccedilotildees e proporccedilotildees (entre as partes)

mediante os postulados de simetria de equiliacutebrio de homogeneidade (mesma natureza das

partes) e de conservaccedilatildeo Nesse sentido afirma Burkert ldquoo princiacutepio de reciprocidade eacute a

proacutepria fundaccedilatildeo do nosso mundo racional e cientiacuteficordquo (ibid p 154) Os fundamentos da

causalidade natildeo podem ser apreendidos sem o fio condutor das noccedilotildees implicadas pelo

princiacutepio de reciprocidade que nos primoacuterdios emerge da troca de presentes

14 A astuacutecia dolosa o presente de Prometeu

Natildeo se pode furtar nem superar o espiacuterito de Zeus

pois nem o filho de Jaacutepeto o beneacutefico Prometeu

escapou-lhe agrave pesada coacutelera mas sob coerccedilatildeo

apesar de multissaacutebio a grande cadeia o reteacutem

Teogonia vs 613-616

A narrativa de Prometeu eacute a descriccedilatildeo de um duelo de astuacutecias Trata-se de um

confronto sem duacutevida mas natildeo de um embate aberto de um combate singular em que a

violecircncia do golpe se anuncia no movimento aberto que se abate sobre o adversaacuterio No

combate travado entre Prometeu e Zeus as armas empregadas satildeo tatildeo somente suas

inteligecircncias astuciosas e cada lance cada manobra desferida contra o oponente apresenta-

se dissimulada sob a aparecircncia da oferta sedutora do furto ou da ocultaccedilatildeo A sequecircncia de

accedilotildees que compotildee a narrativa eacute um esboccedilo exemplar das conexotildees ineludiacuteveis que

distinguem a retribuiccedilatildeo e a reciprocidade que implicam a definiccedilatildeo de hierarquias os

acircmbitos proacuteprios na organizaccedilatildeo cosmoloacutegica No mito de Prometeu conjugam-se na

mesma sequecircncia de accedilotildees a inexorabilidade da causalidade que se segue a uma quebra de

38

simetria a mḗtis inteligente a previsatildeo temporal projetiva o ardil para a escolha de meios

eficazes a oferta e o contra-presente e a justa retribuiccedilatildeo pela transgressatildeo do meacutetron

O mito de Prometeu eacute o ldquomito de referecircncia para entender o lugar a funccedilatildeo e os

significados do sacrifiacutecio sangrento na vida religiosa dos gregosrdquo (VERNANT 2002 p

263) Natildeo obstante o mito coordena outros temas que ultrapassam em muito no tempo e

no espaccedilo a cultura grega e constituem a pedra fundamental de um tipo de inteligecircncia e de

um modo especiacutefico de racionalidade Prometeu eacute a personificaccedilatildeo da inteligecircncia teacutecnica

humana que se choca com os limites intransponiacuteveis que cingem um Koacutesmos divino

A distribuiccedilatildeo de honras entre Oliacutempios e Titatildes foi o resultado da guerra e das

alianccedilas promovidas por Zeus As honras devidas aos deuses foram fruto do consentimento

e do consenso mas a partilha entre os homens mortais e os Oliacutempios haveria de ser

efetivada por Prometeu Assim como Zeus Prometeu eacute todo ele astuacutecia fabricadora e por

conseguinte um rival uma potecircncia de rebeliatildeo diante da ordem instaurada Mas o Titatilde natildeo

almeja a soberania Ele emprega sua astuacutecia para usurpar a soberania de Zeus e os limites

as medidas que ela implica e para transferir aos mortais um lote que natildeo estaacute em

conformidade com seu estatuto

A partilha eacute o ato que marca o reconhecimento da igualdade e da hierarquia visto

que as ldquopartesrdquo os quinhotildees satildeo distribuiacutedas segundo proporccedilotildees e ordem determinadas

Os termos moira e aiacutesa inicialmente designam o ldquoquinhatildeordquo a ldquoquotardquo ldquoporccedilatildeordquo passando a

significar posteriormente a ordem apropriada a ordem do mundo o Destino O princiacutepio

da daacutediva e a expectativa de compensaccedilatildeo constituem uma extensatildeo da partilha e a

reciprocidade eacute um refinamento mental da accedilatildeo de doar Tal refinamento soacute eacute possiacutevel com

a modelagem dos esquemas mentais que implicam o reconhecimento das pretensotildees dos

atores ausentes o discernimento da passagem do tempo a habilidade para avaliar e

39

relembrar uma retribuiccedilatildeo adiada um mundo estaacutevel no tempo e no espaccedilo e as noccedilotildees

latentes de medida igualdade e equivalecircncia (BURKERT 2001 p 151) A oferenda a um

deus pode significar a submissatildeo aos seus poderes ameaccediladores e a delimitaccedilatildeo apropriada

de sua posiccedilatildeo hieraacuterquica superior ldquoNatildeo darrdquo por outro lado implica natildeo somente a

insubmissatildeo mas uma usurpaccedilatildeo da hierarquia de poder A usurpaccedilatildeo ardilosa de Prometeu

redunda na segregaccedilatildeo definitiva entre homens e deuses e na condiccedilatildeo ambiacutegua que

caracteriza a vida humana proacutexima dos animais e dos deuses

A partilha maquinada por Prometeu consiste no esquartejamento de um boi diante

dos deuses e homens a fim de definir-lhes mutuamente seus estatutos A fronteira seria

representada nas partes do animal sacrificado O sacrifiacutecio eacute efetivamente uma troca de

presentes mediada por Prometeu que deveria respeitar o meacutetron condizente com a soberania

de Zeus Todavia cada parte preparada pelo Titatilde eacute um engodo uma dolosa arte (doliacuteēin

teacutekhnēi) simultaneamente destinada a aviltar o estatuto divino e sobrelevar o estatuto

humano

A primeira parte dissimula os ossos nus do animal sob espessa camada de apetitosa

gordura e a segunda esconde dentro do estocircmago de aparecircncia nauseante as carnes

comestiacuteveis O presente de Prometeu eacute um logro um expediente artificioso cujo fim eacute a

apropriaccedilatildeo do melhor quinhatildeo para os homens Com isso Prometeu acrescenta a dimensatildeo

da vantagem na mḗtis e instaura o viacutenculo perene entre inteligecircncia teacutecnica e o uacutetil O

duelo de Prometeu com Zeus eacute o duelo da mḗtis utilitaacuteria contra a mḗtis da soberania A

primeira calcula os melhores meios para se obter o vantajoso e o uacutetil na perspectiva do

tempo humano A segunda calcula os melhores meios para se obter e manter a soberania

sobre o Koacutesmos na perspectiva da totalidade do tempo Duas ordens de realidade satildeo

40

segregadas uma mortal outra imortal Ambas deveriam ser representadas

proporcionalmente na partilha do sacrifiacutecio do animal e serem oferecidas como presentes

Se todo presente implica a obrigatoriedade do contra-presente e todo sacrifiacutecio

pressupotildee a expectativa de recompensa toda falta reclama a justa retribuiccedilatildeo ldquoZeus de

impereciacuteveis desiacutegnios soube natildeo ignorou a astuacuteciardquo (v 550-551) e escolheu a porccedilatildeo

coberta com gordura branca Por essa razatildeo queimam-se nos altares a gordura e os ossos

dos animais A astuacutecia de Prometeu volta-se contra os homens as partes com aparecircncia de

maior valor na verdade implicam a insaciabilidade da fome sempre renovada e a

perecibilidade proacutepria das carnes de um animal morto As exalaccedilotildees e os perfumes dos

ossos calcinados definem por outro lado a imortalidade impereciacutevel dos deuses que vivem

dos odores sutis A inteligecircncia utilitaacuteria de Prometeu transgride a ordem coacutesmica instituiacuteda

por Zeus A ldquovantagemrdquo auferida com o dolo implica a retribuiccedilatildeo infaliacutevel como

contrapartida O expediente utilitaacuterio desencadeia conexotildees causais natildeo previstas pela mḗtis

prometeacuteica Zeus esconde o biacuteos e o fogo celeste ateacute entatildeo livremente concedidos aos

homens As implicaccedilotildees satildeo a ausecircncia de cereais e gratildeos e a impossibilidade de cozinhar

as carnes obtidas na partilha Ao deixar de ldquodarrdquo as daacutedivas da vida e do fogo aos homens

Zeus daacute efetivamente a justa retribuiccedilatildeo pela falta de Prometeu A lei de taliatildeo da

causalidade preserva a ordem coacutesmica estabelecida

A estrutura baacutesica do programa de accedilotildees que caracteriza a retribuiccedilatildeo eacute repetida (i)

uma situaccedilatildeo impediente adveacutem os homens satildeo privados do fogo e da vida (ii) a

calamidade suscita a busca da causa a fraude de Prometeu (iii) o mediador astucioso

maquina um expediente astucioso Prometeu furta o fogo e o esconde no interior da feacuterula

oca para transportaacute-lo para a terra e doaacute-lo aos homens (iv) a audaacutecia da accedilatildeo criminosa

engendra nova retribuiccedilatildeo

41

O contra-presente de Zeus eacute o resultado da modelaccedilatildeo artificiosa que recebe o

contributo de todos os deuses e constitui o reverso simeacutetrico ao roubo do fogo O dom de

todos os deuses Pandora liberta todos os elementos que aprisionam os homens todos os

males que configuram sua precariedade Sua aparecircncia se reveste do mesmo engodo

astucioso do presente de Prometeu e sua inscriccedilatildeo no plano humano ocorre pela

contrapartida miacutetica da previsatildeo astuciosa que caracteriza Prometeu a imprevidecircncia de

Epimeteu Palco de ambiguidades o cenaacuterio dos homens eacute irremediavelmente vinculado agrave

necessidade de previsatildeo o mundo dos homens eacute o mundo da imprevisatildeo do acaso do

fortuito e conserva o caos originaacuterio das potecircncias primordiais

Pandora representa natildeo somente a explicaccedilatildeo para a duplicidade do estatuto humano

em par de gecircneros opostos ela eacute a noiva esplendorosa de invenciacutevel e adornada aparecircncia

divina que configuram a contrapartida para o dolo do fogo teacutecnico Diferentemente do

homem Pandora eacute fabricada pelos deuses Ela eacute o fruto de uma modelagem divina arte dos

deuses e sua uniatildeo com um Titatilde prenuncia nova caracterizaccedilatildeo do gecircnero humano

Doravante como afirma Jenny Clay (2009 p 102 ss) as distinccedilotildees que definem e

delimitam o gecircnero humano recebem traccedilos perenes e incontornaacuteveis ldquosua apariccedilatildeo

inaugura a instituiccedilatildeo do casamento que como o sacrifiacutecio serve para delimitar as

coordenadas da condiccedilatildeo humana Pois como seres mortais os humanos satildeo compelidos

tal como as bestas a se reproduzirem para que a espeacutecie seja mantidardquo

Por outro lado a prole de Pandora e do titatilde Epimeteu deveraacute unificar os elementos

titacircnicos com a arte bem concebida dos deuses mistura de opostos em permanente tensatildeo

de dissoluccedilatildeo Potecircncia coacutesmica de desmedida Epimeteu procriaraacute um novo gecircnero de ser

unindo-se ao artefacto divino meticulosamente medido miscigenaccedilatildeo equilibrada de

proporccedilotildees e determinaccedilotildees opostas que recebem um sopro de vida O casamento soacute pode

42

passar a ser condiccedilatildeo para a preservaccedilatildeo humana a partir da geraccedilatildeo de Pandora e

Epimeteu que assimila as forccedilas titacircnicas da desmedida agrave arte bem projetada mas ambiacutegua

Assim como o sacrifiacutecio ritualiza mediante em accedilotildees dramatizadas sem finalidade

ou propoacutesito visiacutevel o comeacutercio e o contato com o divino assim tambeacutem o casamento

inaugura a sacralizaccedilatildeo ritual dos apetites sexuais O sacrifiacutecio constitui os droacutemena que

separam o acircmbito e o estatuto divino do humano o espaccedilo-tempo dos deuses e o vivido

humano interposto entre os animais selvagens e o divino A integraccedilatildeo ritualiacutestica do

feminino personificado na Virgem divina ao mesmo tempo regra e sanciona os apetites

sexuais O casamento interpotildee o homem entre a promiscuidade selvagem e a promiscuidade

divina que desconhecem as inibiccedilotildees

O fogo teacutecnico que eacute empregado simultaneamente na fabricaccedilatildeo de utensiacutelios e de

armas que potencializam a violecircncia possui a potecircncia ambiacutegua de assegurar a vida e

sancionar a violecircncia Analogamente o casamento inaugurado por Pandora possui a

potecircncia ambiacutegua de legitimar o sexo atraveacutes da sacralizaccedilatildeo ritualiacutestica e interditar a

promiscuidade da besta ou o incesto dos deuses Todavia o feminino associa-se agrave

concepccedilatildeo da voracidade das forccedilas dissipadoras e destrutivas aportadas pelo fogo Sem

regramento ou controle o feminino natildeo integrado ritualmente consome o fruto dos

trabalhos e com sedutoras palavras e caraacuteter dissimulado induz aos homens a repeticcedilatildeo

miacutetica da imprevidecircncia de Epimeteu

A ambiguidade de Pandora eacute simetricamente compensatoacuteria agrave dyacutenamis piacuterica da

inteligecircncia astuciosa previdente Os males invisiacuteveis indistintamente libertos equilibram e

compensam a previsibilidade e presciecircncia aportada pela inteligecircncia demiuacutergica A

dissimulaccedilatildeo e olhar de catildeo satildeo a contraparte agrave agressatildeo e violecircncia potencializadas por

armas forjadas pelo fogo Por outro lado a esperanccedila retida no vaso opotildee-se agrave exterioridade

43

aberta dos males que assolam os homens Mistura de afeto e pensamento projetivo elpiacutes

anuncia em meio aos males bens somente pensaacuteveis e acalentados afetivamente no acircmago

humano

A causalidade inevidente confere sentido para a espontaneidade do mal na

experiecircncia humana aplaca a ansiedade das vivecircncias aterradoras e eacute o eacutelan para que a

inteligecircncia teacutecnica eluda a contingecircncia dos obstaacuteculos agrave vida Na leitura de Jenny Clay a

expectaccedilatildeo retida pode ser entendida com a mesma ambiguidade de Pandora ela confunde

o pensamento e promete becircnccedilatildeos enquanto sua natureza interna enganadora e caraacuteter

dissimulado mentem com palavras sedutoras Nesse sentido a expectaccedilatildeo seria um mal

iludente que promete e seduz mas que raramente entrega as ilusotildees aneladas (CLAY 2009

p 103) Natildeo obstante a inviolaacutevel posse de Elpiacutes claramente opotildee-se agrave dispersatildeo dos

males Sua accedilatildeo de oposiccedilatildeo eacute compensatoacuteria e natildeo da mesma natureza dos males

silenciosos autocircmatos (HESIacuteODO Trabalhos e os Dias 103) Sua posse implica a

significaccedilatildeo carreada pelo pensamento projetivo de bens pensaacuteveis e diziacuteveis mas incertos

Ela inscreve sentido e ordem numa sucessatildeo indistinta que de outra forma tornariam o

viver excessivamente pesado para ser suportado

O fogo furtado por Prometeu eacute um artifiacutecio derivaccedilatildeo secundaacuteria do fogo celeste

ocultado no interior de uma feacuterula oca e por essa razatildeo eacute um fogo destrutiacutevel e efecircmero

que estaacute no plano do devir e precisa ser alimentado para manter-se Mas eacute tambeacutem um

fogo teacutecnico o fogo do engenho e da metalurgia que possibilitam os meios para a

manutenccedilatildeo da vida10

O fogo dado aos homens representa o domiacutenio da inteligecircncia

teacutecnica astuciosa empregada para controlar as potecircncias naturais e eludir o estado de

10 Paul Diel empreende uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica do mito de Prometeu que a despeito de ser dogmaacutetica e

arbitraacuteria correlaciona de maneira interessante o fogo com a ldquointelectualizaccedilatildeo utilitaacuteriardquo cuja caracteriacutestica eacute

encontrar os meios adequados para a satisfaccedilatildeo dos desejos multiplicados (1980 p 235-236)

44

absoluta carecircncia humana Ele guarda a mesma ambiguidade que marca a condiccedilatildeo dos

homens possui uma origem divina mas eacute por outro lado mortal como os homens e

selvagem como os animais

O fogo prometeacuteico consolida o sacrifiacutecio como o rito adequado para a interaccedilatildeo

entre duas instacircncias definitivamente segregadas e com isso estabelece a partir da daacutediva

da partilha e da retribuiccedilatildeo a emergecircncia ritualiacutestica dos esquemas mentais que compotildeem a

inteligecircncia causal organizadora da experiecircncia e da multiplicidade a conexatildeo infaliacutevel

entre dois eventos consecutivos no tempo a deliberaccedilatildeo projetiva inteligente a escolha de

meios eficazes com vistas a um fim uacutetil determinado a forja de instrumentos as noccedilotildees

proto-matemaacuteticas de medida equivalecircncia proporccedilatildeo igualdade e simetria

Por outro lado a integraccedilatildeo do seu duplo oposto o feminino implica o regramento

a sanccedilatildeo e a inibiccedilatildeo de princiacutepios de accedilatildeo tatildeo destrutivos e incontrolaacuteveis como a

voracidade do fogo selvagem ou do fogo divino o sexo e a violecircncia

15 Vergonha e causalidade a cosmogonia sexual do Papiro de Derveni

Em 1962 uma espetacular descoberta arqueoloacutegica de tumbas funeraacuterias na regiatildeo

grega de Derbeacuteni ( ) havia de insuflar uma forte corrente de novas pesquisas sobre

os cultos de misteacuterio gregos O ceacutelebre papiro de Derveni trouxe agrave luz a exegese de um

uma cosmogonia sagrada desenvolvida por um experto cuja pretensatildeo manifesta eacute a

transposiccedilatildeo didaacutetica de imagens miacuteticas polissecircmicas para o registro de uma explicaccedilatildeo

causal cifrada situada no contexto do pensamento preacute-socraacutetico de Heraacuteclito Anaxaacutegoras

Eutiacutefron e Estesiacutembroto de Thasos (FUNGHI apud LAKS 1997 p 25 ss)

A despeito da profusatildeo dos enfoques hermenecircuticos e das premissas sempre

conjecturais que visam preencher as lacunas incontornaacuteveis dos fragmentos recuperados

45

os eruditos satildeo unacircnimes em reconhecer no rolo de Derveni a mais antiga versatildeo cosmo-

teogocircnica conhecida ateacute hoje (CALAMEacute apud LAKS 1997 p 65) Embora o texto tenha

sido datado por Tsantsanoglou (2006 p 9) da segunda metade do seacuteculo IV (entre 340 e

320 aC) o estilo constitui um forte indiacutecio de que o seu cadinho mental remonta ao Vordm

seacuteculo e que sua linguagem natildeo poderia ser muito posterior a 400 aC (JANKO apud

TSANSTANOGLOU 2006 p 10) Para todos os propoacutesitos aqui assumidos a questatildeo da

autoria e a imprecisatildeo vexatoacuteria que acompanha as referecircncias agrave figura miacutetica de Orfeu natildeo

interferem na fenomenologia das imagens cosmogocircnicas e na re-significaccedilatildeo operada pelo

exegeta Importa sobretudo o modo de manter viva uma tradiccedilatildeo cultual iniciaacutetica

aparentemente anacrocircnica a um ambiente filosoacutefico centrado na busca de princiacutepios causais

cosmoloacutegicos Por essa razatildeo a neutralidade da opccedilatildeo adotada por Janko de referir-se agrave

cosmogonia do papiro como teleteacute ou hieroacutes loacutegos (LAKS 1997 p 26) mostra-se

pertinente

O conteuacutedo dos versos recuperados expotildee a narrativa de uma teogonia sagrada e a

criacutetica por parte do exegeta da interpretaccedilatildeo literal operada por mediadores falseados os

maacutegoi e a inconsequecircncia dos recipiendaacuterios que lhes pagavam altas somas (Col XX) A

questatildeo da iniciaccedilatildeo se apresenta por conseguinte atraveacutes da oposiccedilatildeo entre uma

inteligecircncia subjacente profunda hypoacutenoia e um entendimento literal manifesto O

comentador opera a decifraccedilatildeo de uma narrativa escrita em forma de enigmas cuja

finalidade duacuteplice seria resguardar um saber interdito aos profanos e assegurar a

transmissatildeo de uma tradiccedilatildeo iniciaacutetica atraveacutes do legiacutetimo inteacuterprete

um hino dizendo salutares (hygiḗ) e legalizadas (themitaacute)

palavras Pois um rito sagrado era executado atraveacutes do poema E

natildeo se pode liberar o sentido das palavras (enigmaacuteticas) e falar o

que foi dito Pois este poema eacute algo estranho (xeacutenē) e enigmaacutetico

(ainigmatōdes) para os homens Orfeu mesmo entretanto natildeo

46

desejou falar eriacutesticos enigmas (esriacutest‟ainiacutegmata) mas as grandes

coisas em enigmas (en ainiacutegmasin degrave megaacutela) De fato ele profere

um discurso sagrado (hierologeicirctai) da primeira palavra ateacute o

acabamento do poema Como ele torna claro em um bem

reconhecido verso pois tendo lhes ordenado bdquocolocar portas nos

ouvidos‟ ele afirma que natildeo legisla para os muitos [mas que

ensina] agravequeles de ouvidos puros e no verso seguinte

(Derveni Papyrus Col VII)11

O exegeta justifica a aparecircncia enigmaacutetica do poema atribuiacutedo a Orfeu pelo poder

de velamento das imagens expressas na composiccedilatildeo Os deuses permitem (themitaacute) que os

salutares discursos sagrados (hieroi loacutegoi) sejam ouvidos pelos ldquomuitosrdquo em funccedilatildeo de sua

incapacidade de decifrar-lhes o sentido subjacente A razatildeo para isso eacute ao mesmo tempo

ritual jaacute que o poema eacute associado a accedilotildees ritualiacutesticas e iniciaacutetica pois a purificaccedilatildeo do

ouvir pressupotildee um ensino e a transmissatildeo de um exerciacutecio de atribuiccedilatildeo de significaccedilatildeo agraves

imagens exerciacutecio interdito aos natildeo-iniciados A alusatildeo agrave sauacutede intriacutenseca aos versos

sugere um papel terapecircutico e purificatoacuterio neste exerciacutecio exegeacutetico

A iniciaccedilatildeo jaacute se anuncia aqui como modalidade de exerciacutecio ritual interpretativo

terapecircutico e cataacutertico para a inteligecircncia das grandes coisas Essa inteligecircncia conduz a

uma diferenciaccedilatildeo a um plano superior ser iniciado eacute mudar de estatuto atraveacutes da

inteligecircncia das questotildees mais elevadas que se contrapotildee agrave disputa eriacutestica contrafaccedilatildeo da

polissemia imageacutetica Natildeo obstante o falseamento natildeo se delimita somente agrave

inteligibilidade das grandes coisas mas agrave distinccedilatildeo dos princiacutepios que determinam o

emprego da eficaacutecia ritual e da finalidade de seu uso (TSANTSANOGLOU 2006 p 130)

Na coluna VI os maacutegoi exercem uma accedilatildeo eficaz sobre os daiacutemones almas vingadoras

atraveacutes da encantaccedilatildeo (epōidḗ) sacrifiacutecios e libaccedilotildees Os myacutestai usam os mesmos

11 Texto estabelecido por Tsantsanoglou com traduccedilatildeo ligeiramente modificada (2006 p 130)

47

procedimentos que os maacutegoi mas como seus princiacutepios de accedilatildeo satildeo opostos12

os

sacrifiacutecios endereccedilam-se agrave manifestaccedilatildeo benevolente das almas servidoras da justiccedila as

Eumecircnides (JOURDAIN 2003 6 p 37-39) O poema inicia-se com a menccedilatildeo

extremamente fragmentaacuteria das Eriacutenias (col I) almas honradas por libaccedilotildees marcas

honoraacuteveis de honra feitas atraveacutes de holocaustos de paacutessaros harmonizados com

muacutesica13

Todavia a eficaacutecia da encantaccedilatildeo maacutegica contraposta agraves honras dos sacrifiacutecios e

libaccedilotildees executadas pelos myacutestai se depara com limites coacutesmicos infrangiacuteveis

A correta interpretaccedilatildeo do poema eacute reforccedilada pela necessidade de se evitar o engodo

dos usurpadores dos procedimentos rituais e discursos sagrados e para a distinccedilatildeo entre o

caminho das almas vingadoras e o caminho das Eumecircnides servidoras benevolentes da

Justiccedila O comentador de Derveni consigna a Orfeu a inteligecircncia da ordenaccedilatildeo coacutesmica e

sua expressatildeo cifrada em imagens miacuteticas narradas num poema escrito Como afirma

Obbink (LAKS 1997 p 42) a narrativa do mundo de Orfeu entendida corretamente

(orthōs) espelha nosso koacutesmos O autor pressupotildee o fato de que Orfeu possuiacutea uma

12 Bernabeacute assimila os magos mencionados na Col VI aos sacerdotes persas e confere uma interpretaccedilatildeo

pejorativo agrave sua atividade encantatoacuteria como charlatatildees que operam artifiacutecios com a finalidade de expiar

antigas faltas Betegh ao contraacuterio assume que o autor de Derveni aplica o temo bdquomaacutegoi‟ a um grupo de

sacerdotes persas ao qual ele mesmo pertence (TSNATSANOGLOU 2006 p 166 167) Fabienne Jourdain

(2003 p 37) associa os Maacutegoi a uma tribo meda composta por uma casta sacerdotal encarregada de assegurar a regularidade dos procedimentos em mateacuteria religiosa e que seria subjugada pelo rei Cambises e

posteriormente perseguida por Dario Segundo Apuleius ldquoum mago eacute algueacutem que mediante a comunidade

de fala com os deuses imortais possui um incriacutevel poder de encantar qualquer coisa que desejarrdquo (GRAF

apud MIRECKI MEYER 2002 p 93) No papiro de Derveni o comentador segue uma tradiccedilatildeo que atribui

ao substantivo o sentido pejorativo de ldquocharlatatildeordquo Os praticantes de ritos propiciatoacuterios e foacutermulas

encantatoacuterias que atraveacutes de pagamento procuravam esconjurar a culpa por transgressotildees satildeo a contrafaccedilatildeo

do genuiacuteno iniciado 13 Eriacutenias eles honram libaccedilotildees satildeo derramadas em gotas para Zeus em cada templo Aleacutem disso deve

oferecer excepcional honra agraves [Eumecircnides] e queimar um paacutessaro para cada [um dos daiacutemones] E ele junta

[hinos] bem adaptados ( ) agrave muacutesica

(TSANTSANOGLOU 2006 p 65 129)

48

inteligecircncia privilegiada das verdades maiores e deliberadamente as expressa

imageticamente em versos enigmaacuteticos

A questatildeo crucial natildeo se reduz ao domiacutenio de uma discussatildeo etimoloacutegica acerca da

natureza da linguagem da sinoniacutemia ou da alegorese nos moldes de um Estesiacutembroto com

o escopo semacircntico de atualizar um discurso miacutetico anacrocircnico e cristalizado pela escrita14

Trata-se sobretudo do desvelamento de uma modalidade discursiva que eacute

intencionalmente aberta agrave polissemia como meio de resguardar um saber iniciaacutetico que

carrega em seu bojo homologias estruturais entre relaccedilotildees de imagens e relaccedilotildees coacutesmicas

causais A exegese do autor de Derveni eacute ao mesmo tempo a transposiccedilatildeo de um pensar

por imagens para uma cosmologia da causalidade e o desvelamento daquilo que eacute oculto (e

interdito aos olhos e ouvidos natildeo adestrados) pelo esforccedilo e pelo exerciacutecio ritual

O poema de Orfeu no enfoque de Obbink se insere num ambiente cultual comum a

uma seacuterie de textos fuacutenebres como as lacircminas de ouro Oacuterficas cujas imagens configuram a

visatildeo do mundo dos mortos associada aos ritos de misteacuterio ldquoNatildeo eacute soacute o texto miacutestico que

possui uma significaccedilatildeo velada mas o mundo como um todo taacute eoacutenta a existecircncia humana

e a morterdquo (LAKS 1997 p 53)

A natureza ama ocultar-se diz Heraacuteclito15

A sabedoria consiste tradicionalmente

no aacuterduo exerciacutecio de conferir sentido agravequilo que se apresenta de forma cifrada ou

enigmaacutetica notadamente a interpretaccedilatildeo das prolaccedilotildees do oraacuteculo de Delfos Eacute sobre este

exerciacutecio praacutetico derivado da instituiccedilatildeo oracular de Delfos que Soacutecrates justifica sua

atividade filosoacutefica A inquiriccedilatildeo socraacutetica consiste na escalada ao piacutencaro secular de uma

14 Para uma descriccedilatildeo panoracircmica do debate contemporacircneo ver o ensaio introdutoacuterio de M S Funghi

(LACKS 1997 ) 15 DK B 123 THEMISTIUS Or 5 p 69 (KAHN

2003 p 63)

49

tradiccedilatildeo erigida sobre a inteligecircncia subjacente aos enigmas do deus O aacutenax cujo oraacuteculo

estaacute em Delfos natildeo diz nem oculta daacute sinal16

O discurso divino caracteriza-se pela

oposiccedilatildeo entre a fala manifesta e a inteligibilidade oculta A investigaccedilatildeo do sinal aparente

consiste na hyponoacuteia o desvelamento do sentido oculto da inteligecircncia inevidente que

subjaz agrave manifestaccedilatildeo visiacutevel A autecircntica obediecircncia ao deus consiste em investigar a si

mesmo (DK 101) em replicar a indagaccedilatildeo paradigmaacutetica de Soacutecrates em sua defesa o que

fala enfim o deus e qual eacute afinal o sentido oculto (ainiacutettetai17

)

O discurso divino (heiroacutes loacutegos) possui um modo enigmaacutetico proacuteprio de expressatildeo

que exige o recurso de imagens cifradas Qual eacute a relaccedilatildeo entre o manifesto e o invisiacutevel

Por que aquilo que natildeo estaacute presente ao olhar possui primado em relaccedilatildeo ao imediato Por

que buscar a inteligibilidade no oculto Por que o inevidente se assimila ao divino e por que

o discurso sagrado se expressa na plurivocidade das imagens e natildeo na literalidade da

palavra

O comentador de Derveni associa a natureza coacutesmica com o regramento e a

infrangibilidade dos limites divinos estabelecidos nas leis da phyacutesis Daiacutemones e Eriacutenias

satildeo almas psyacutekhai potecircncias invisiacuteveis servidoras da Justiccedila Diacuteke aparece como a

retribuiccedilatildeo infaliacutevel para a transgressatildeo aos limites coacutesmicos garantida por potecircncias

invisiacuteveis servidoras O viacutenculo inquebrantaacutevel entre transgressatildeo e retribuiccedilatildeo eacute

assegurado pela funccedilatildeo de vigilacircncia das almas A inteligecircncia apanaacutegio psiacutequico tem na

vigilacircncia da causalidade um princiacutepio constitutivo primordial Por essa razatildeo o

16 B 93 PLUT de Pyth or 21 p 404

Disponiacutevel em lthttppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics22-B92gt 17 Apologia 21b 04 (LEXICON I 2003)

50

comentador menciona o fragmento mais antigo de Heraacuteclito qualificando seu estilo

gnocircmico ao modo dos mitoacutelogos que falam por imagens

aquele que ltmudagt o que eacute estabelecido dar Ele

(Heraacuteclito) que precisamente se assemelha aos contadores de mitos

quando se exprime assim o sol segundo sua proacutepria natureza

possui a largura de um peacute humano natildeo ultrapassaraacute suas

medidas pois se ele excede sua proacutepria largura em algum grau as

Eriacutenias o descobriratildeo auxiliares de Diacuteke

(Col IV)18

Os maacutegoi procuram eludir transgressotildees de crimes passados atraveacutes de encantaccedilotildees

e sacrifiacutecios Mas as coisas estabelecidas (keiacutemena) natildeo podem ser modificadas Haacute uma

correlaccedilatildeo entre as leis coacutesmicas e as consequecircncias das accedilotildees humanas pois as mesmas

potecircncias invisiacuteveis asseguram o viacutenculo A apreensatildeo da inteligibilidade coacutesmica eacute parelha

agrave compreensatildeo das implicaccedilotildees psiacutequicas desencadeadas pela praacutexis O koacutesmos brota das

disposiccedilotildees da ordenaccedilatildeo (taacutexin) e natildeo do acaso A mesma Justiccedila que o regra impotildee

limites para o agir humano A referecircncia a Heraacuteclito indica que o campo da ascensatildeo

iniciaacutetica eacute simultaneamente cosmoloacutegico e eacutetico e faz parte da mesma tradiccedilatildeo da qual

emerge o ambiente mental dos preacute-socraacuteticos

Na sua abordagem estrutural-historicista sobre a formaccedilatildeo do pensamento positivo

grego Vernant sublinha o considera uma ldquomutaccedilatildeordquo mental operada pelos filoacutesofos

jocircnicos enquanto a loacutegica do mito hesioacutedico possui a ambiguidade de apreender

simultaneamente o mesmo fenocircmeno como fato natural no mundo visiacutevel e como geraccedilatildeo

divina no tempo primordial os elementos da Filosofia jocircnica seriam despojados de todo

caraacuteter antropomoacuterfico (VERNANT 2002 p 449 ss) Os elementos da Filosofia mileacutesia

18

(JOURDAIN 2003 v 6-10 p 4)

51

satildeo ao mesmo tempo ldquoforccedilasrdquo ativas divinas e naturais Embora o koacutesmos seja uma

ordenaccedilatildeo divina a causalidade jaacute natildeo eacute personificada mas delimitada e abstraiacuteda na

consecuccedilatildeo de efeitos fiacutesicos determinados Haveria uma mudanccedila de registro explicar e

compreender natildeo seriam mais encontrar a genealogia mas os princiacutepios primeiros

constitutivos do ser que implicam regularidade e ordenaccedilatildeo e que fazem com que koacutesmos

seja verdadeiramente um ldquoarranjordquo O historicismo marxista de Vernant comprometido

com a concepccedilatildeo de progresso ofusca a possibilidade hermenecircutica da coexistecircncia entre

planos polissecircmicos abertos que satildeo compartilhados por uma tradiccedilatildeo ritual iniciaacutetica e pela

exegese filosoacutefica que natildeo deixa de ser iniciaacutetica e ritual na praacutexis de um biacuteos

Na mudanccedila de registro operada por Heraacuteclito em particular as potecircncias divinas

satildeo despojadas de seu caraacuteter antropomoacuterfico e os nomes se revestem da sobriedade que

origina um vocabulaacuterio ontoloacutegico novo (RAMNOUX 1968 p 1-9) Mas o caraacuteter

indiferenciado do deus permanece no pensamento filosoacutefico

O deus dia noite inverno veratildeo guerra paz saciedade fome Ele

muda como se misturado a perfumes eacute nomeado segundo o gosto

de cada um

DK 67 (KAHN 2003 p 105)

Qual eacute o papel do fogo nesse cenaacuterio mental O que o dieferencia dos esquemas miacuteticos

hesioacutedicos Qual a relaccedilatildeo do fogo com os incensos Tal como o oacuteleo serve de meio neutro

para o perfume e recebe o nome do aroma o incenso evola-se do fogo e recebe o nome do

aroma do qual eacute constituiacutedo Nomeia-se o incenso natildeo pelo fogo mas pelo nome do

perfume que evola-se Deus da mesma maneira estaacute presente em tudo segundo as estaccedilotildees

e os dias mostrando-se sem cessar pelas contradiccedilotildees que compotildeem o drama da vida O

homem esquece-se do elemento que serve de base para todas as transformaccedilotildees que

compotildeem esse drama e nomeia cada aspecto segundo seu gosto (RAMNOUX 1968 P 377

52

ss) Para Heraacuteclito a coexistecircncia dos pares de opostos mostra aspectos multifacetados do

Um indistinto modos de contrariedade que manifestam um cosmo divino e um deus

presente em toda a physis Cada par de opostos constitui uma porccedilatildeo do Loacutegos divino

Quando se mistura uma multiplicidade de arocircmatas e se lhes atira ao fogo haacute

simultaneamente uma multidatildeo de perfumes e um uacutenico e indistinto fogo Do mesmo

modo haacute uma divindade e muitos nomes

Conforme observa Kahn o fragmento conteacutem a uacutenica definiccedilatildeo da divindade nos

fragmentos atribuiacutedos a Heraacuteclito A primeira parte do fragmento descreve a divindade em

termos formais mediante pares de opostos O texto sugere uma unidade coacutesmica que

ultrapassa a concepccedilatildeo tradicional da divindade Guerra e fogo satildeo designaccedilotildees de um

princiacutepio universal de ordem e justiccedila que eacute sobre-divino e coincide com o Um o princiacutepio

supremo que governa o koacutesmos e nutre todas as leis humanas (DK 114) O divino ldquoumrdquo eacute o

princiacutepio unificador representado pela guerra e pelo fogo eterno identificado com o

koacutesmos e que eacute o mesmo para todos os seres aceso com medida e com medida apagado19

(KAHN 2003 p 182-192) Deus eacute definido e identificado com os pares de opostos e

representa a unidade e a regularidade de um padratildeo de alternacircncia e de interdependecircncia

entre todos os opostos A identificaccedilatildeo da divindade com o padratildeo de alternacircncia entre

opostos determina a ordenaccedilatildeo coacutesmica Em Heraacuteclito a divindade eacute o que haacute de

regularidade nas manifestaccedilotildees infinitamente variegadas da Natureza eacute o princiacutepio de

ordenaccedilatildeo o Loacutegos que eacute tambeacutem o princiacutepio de unificaccedilatildeo que estaacute para aleacutem da

divindade tradicional hesioacutedica Na Filosofia de Heraacuteclito a causalidade eacute a relaccedilacirco

inexoraacutevel dos opostos que se alternam e a inteligecircncia teacutecnica eacute tatildeo somente uma

19

DK30

(KAHN 2003 p 73)

53

manifestaccedilatildeo particular de uma inteligecircncia coacutesmica universal ndash limite intransponiacutevel que

determina as ldquomedidas do fogordquo O koacutesmos eacute uma estrutura que abarca simultaneamente

todos os opostos como manifestaccedilatildeo de um padratildeo uacutenico o fogo que se mistura a incensos

Tal estrutura eacute um arranjo inteligente um Loacutegos metaforicamente expresso pelo fogo

O fogo segundo Charles Kahn (2003 p 138) eacute um siacutembolo de vida de vida sobre-

humana visto que eacute um elemento no qual nenhum ser vivo pode viver Aleacutem disso eacute um

poder que recebe os mortos na morte Representa simultaneamente a vida a criatividade a

morte e a destruiccedilatildeo Como fogo sacrificial ele representa o deus Ele eacute o elemento divino

inscrito na atividade humana que possibilita as teacutecnicas e a induacutestria que separam o homem

dos animais O fogo natildeo eacute um elemento material Eacute um processo de transiccedilatildeo de um estado

para outro um siacutembolo vivo da mudanccedila da vida e da morte do movimento e da

inteligecircncia criativa Em Heraacuteclito o fogo eacute o elemento do paradoxo As reversotildees do fogo

(DK 31) satildeo concebidas como medidas de um ciclo tal como a medida do pecircndulo

Para Anaximandro a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo pagam mutuamente as injusticcedilas

segundo a ordenaccedilatildeo do tempo ou seja a retribuiccedilatildeo eacute paga de acordo com a ordem do

tempo20

Princiacutepio dos seres o ilimitado pois o que eacute a geraccedilatildeo

para os seres a corrupccedilatildeo eacute para estes ao se gerar segundo o

necessaacuterio pois datildeo justiccedila a si mesmos e pagamento uns aos

outros pela injusticcedila segundo a ordenaccedilatildeo do tempo21

Heraacuteclito concebe a noccedilatildeo coacutesmica de trocas como um padratildeo de justiccedila segundo a

qual nada ocorre sem a justa retribuiccedilatildeo ou pagamento O princiacutepio que rege todo processo

20

(B 1 SIMPLIC Phys 24 13) Disponiacutevel

em lthttppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics12-Bgt 21 Trad de Cavalcante de Souza modificada (2000 p 50)

54

de mudanccedila eacute a justa retribuiccedilatildeo que ocorre segundo um criteacuterio em ldquomedidasrdquo Isso

significa que a estrutura coacutesmica eacute mantida pela causalidade como princiacutepio de ordenaccedilatildeo

A ldquomedidardquo que rege as trocas eacute preservada sobre uma sequumlecircncia de estaacutegios em uma

progressatildeo temporal que retorna ao ponto inicial do ciclo As medidas de igualdade satildeo

rigorosamente respeitadas pela retribuiccedilatildeo A noccedilatildeo de Justiccedila abarca natildeo somente a praacutexis

eacutetico-poliacutetica mas enraiacuteza-se na forja que molda laboriosamente a noccedilatildeo multifacetada da

causalidade Como afirma Vlastos (1947 p 146) o campo de aplicaccedilatildeo da palavra justiccedila

vai muito aleacutem da esfera legal e moral

Respeitar a natureza de algueacutem ou de algo eacute ser ldquojustordquo

com eles Piorar ou destruir a natureza eacute ldquoviolecircnciardquo ou

ldquoinjusticcedilardquo Assim em uma passagem bem conhecida Solon fala

do mar como o ldquomais justordquo quando imperturbaacutevel pelos ventos

natildeo perturba a ningueacutem ou a nenhuma coisa A lei da medida natildeo eacute

nada mais do que um refinamento desta ideacuteia de que a proacutepria

natureza de algueacutem e a natureza dos outros possuem limites que

natildeo podem ser ultrapassados

A justiccedila coacutesmica eacute uma concepccedilatildeo da natureza em geral

como associaccedilatildeo harmocircnica cujos membros observam ou satildeo

compelidos a observar a lei da medida Pode haver morte e

destruiccedilatildeo oacutedio e ateacute mesmo corrupccedilatildeo (como em Anaximandro)

Haacute justiccedila natildeo obstante se a usurpaccedilatildeo eacute invariavelmente

reparada e as coisas satildeo reinstaladas em seus limites proacuteprios

A causalidade em Heraacuteclito adquire um estatuto eminente de lei soberana que

cinge e preside a ordenaccedilatildeo coacutesmica O princiacutepio de regramento unificador pressupotildee as

concepccedilotildees de ldquomedidardquo ldquoigualdaderdquo ldquoequivalecircnciardquo ldquocompensaccedilatildeordquo ldquoproporccedilatildeordquo e

serve como fonte nutriz para as atividades humanas Na cosmologia de Heraacuteclito o fogo

teacutecnico eacute apenas uma fagulha do fogo coacutesmico a inteligecircncia humana assimila-se ao ciclo

coacutesmico divino e a Natureza permanece como fronteira divina intransponiacutevel

salvaguardada pelas Eriacutenias servas da Justiccedila

55

A causalidade no papiro de Derveni entremeia o plano das imagens miacuteticas

teogocircnicas com a significaccedilatildeo inevidente propiciada pela exegese cosmoloacutegica A eficaacutecia

das praacuteticas rituais dos maacutegoi atua como violaccedilatildeo entre a conexatildeo inquebrantaacutevel entre

falta e retribuiccedilatildeo excesso e compensaccedilatildeo O adivinho encantador eacute o intermediaacuterio

privilegiado entre o visiacutevel e o invisiacutevel entre o sacrifiacutecio violento e a puniccedilatildeo invisiacutevel

evitada A divisatildeo entre as imagens imediatas do poema e a interpretaccedilatildeo do seu sentido

oculto traz ao primeiro plano o conhecimento das causas e a legitimidade da transmissatildeo

Haacute uma homologia estrutural entre a transmissatildeo iniciaacutetica do ritual de misteacuterio e a

transmissatildeo iniciaacutetica de uma cosmologia que deve ser necessariamente misteriosoacutefica O

segredo consiste numa garantia contra a usurpaccedilatildeo do viacutenculo inexoraacutevel entre o longo

esforccedilo exigido pela via iniciaacutetica e a compreensatildeo das grandes verdades enigmaacuteticas que

soacute pode surgir como apanaacutegio de uma conquista de um estatuto superior de uma praacutetica de

vida concomitante agrave investigaccedilatildeo dos princiacutepios do koacutesmos

O sentido oculto pressupotildee um processo de conhecimento que se origina a partir de

imagens e signos provisoacuterios cujo papel deve ser o de remeter o inteacuterprete treinado para

realidades invisiacuteveis inevidentes

Por que natildeo crecircem (apistoucircsi) nas coisas terriacuteveis (deinagrave)

que os esperam no HadesSe natildeo compreendem (gignōskontes)

imagens oniacutericas (enyacutepnia) nem nenhuma outra de suas

manifestaccedilotildees praacuteticas particulares (tōn aacutellōm pragmaacutetōm

heacutekaston) por meio de que paradigma (paradeigmaacutetōm) se faria

com que cressemPois aqueles que tendem para a falta e os

prazeres que prevalecem nem aprendem nem crecircem (ou

manthaacutenousin oudegrave pisteuacuteousi) Pois incredulidade e ignoracircncia

satildeo o mesmo De fato se nem aprendem nem compreendem natildeo

haacute como crer ainda que vendo22

(Col V)

22 Trad de Fabienne Jourdain com modificaccedilotildees (2003 p 5 35-36)

56

As imagens oniacutericas (aquilo que eacute interno aos sonhos) configuram pontos de partida

para o conhecimento de accedilotildees Assim como a teleacutestica exige a transmissatildeo de um saber o

conhecimento das leis coacutesmicas exige a passagem da apreensatildeo das imagens manifestas

para a compreensatildeo de semelhanccedilas de homologias entre planos muacuteltiplos de significaccedilatildeo

discursiva e o koacutesmos A atividade exegeacutetica do comentador evidencia que o conhecimento

eacute intrinsecamente dependente de paradigmas imageacuteticos Aprender e compreender satildeo

diferentes de crer e incredulidade e ignoracircncia assimilam-se mutuamente pois a crenccedila eacute

um passo imprescindiacutevel tanto para aprender como para compreender Ademais o maior

obstaacuteculo para o aprendizado e para o conhecimento consiste na vitoacuteria dos prazeres Se o

conhecimento implica a transposiccedilatildeo de imagens ao mesmo tempo aparentes e

enigmaacuteticas para a inteligecircncia inaparente os prazeres induzem ao erro porque subjugam

vencem e impedem o aprendizado e a crenccedila na prisatildeo ao manifesto imediato Vencer a

tirania dos prazeres imediatos constitui o princiacutepio ritual para o conhecimento das grandes

verdades daiacute a inextricabilidade entre o sentido simboacutelico o segredo e o conhecimento

A palavra syacutembolon natildeo eacute atesta Burkert (1972 p 179) uma adiccedilatildeo da tradiccedilatildeo

tardia mas reflete uma concepccedilatildeo preacutevia a toda e qualquer exegese ldquosimboacutelicardquo Todos os

misteacuterios possuem segredos (apoacuterrēta) e palavras de passe secretas (syacutembola synthḗmata)

interpretados em um discurso sagrado (hierograves loacutegos) cujo sentido natildeo deve ser revelado

aos natildeo-iniciados

No domiacutenio da religiatildeo de misteacuterio satildeo bdquopalavras

de passe‟ ndash foacutermulas especificadas ditos (encantaccedilotildees)

dadas ao iniciado que asseguram por meio de seus confrades e

especialmente pelos deuses que seu novo e especial estatuto seja

reconhecido (BURKERT 1972 p 176)

57

No papiro de Derveni o exegeta indica a necessidade preacutevia de ldquocolocar portas nos

ouvidosrdquo pois Orfeu natildeo teria instituiacutedo leis para os muitos mas para aqueles cujos

ouvidos foram purificados (JOURDAIN 2003 p 44-45)

A teogonia escrita segue pari passu agrave cosmologia que emerge da interpretaccedilatildeo das

imagens Zeus recebe de seu pai a soberania ou a potecircncia (tegraven arkhḗn) como um filho

sucede ao pai (Col IX) A engendraccedilatildeo e a transferecircncia da forccedila sugerem a moldagem

coacutesmica a partir de princiacutepios e potecircncias primordiais O fogo possui a potecircncia de afastar

os seres e impedi-los de se combinar por causa do aquecimento Os seres aquecidos natildeo

podem juntar-se em massas compactas A nutriz dos deuses Niacutex possui a funccedilatildeo oracular

da profecia equivalente miacutetico do ensino da instruccedilatildeo foneacutetica que se vale da palavra

como meio de transmissatildeo (Col X) A fala articulada exige a faculdade foneacutetica como

mediaccedilatildeo necessaacuteria para o ensino A potecircncia profeacutetica da Noite indica a projeccedilatildeo

temporal da sua ldquoinstruccedilatildeordquo das regras mediadas pelo princiacutepio material Predizer equivale

a ensinar ou transmitir regramento Assim a Noite inscreve instruccedilatildeo no movimento

desencadeado pelo fogo e exerce uma accedilatildeo de resfriamento oposta ao aquecimento preacutevio

A disjunccedilatildeo operada pelo fogo eacute seguida pela combinaccedilatildeo propiciada pelo

aquecimento Sol e Noite satildeo potecircncias opostas de separaccedilatildeo e combinaccedilatildeo aquecimento e

resfriamento Os oraacuteculos da Noite satildeo proferidos das profundezas de santuaacuterio (aacutedyton)

impenetraacutevel (Col XI) As instruccedilotildees regradas satildeo fixas e interditas aos olhos profanos

pois a impenetrabilidade noturna eacute a imagem estaacutetica que se contrapotildee agrave periodicidade da

luz solar penetrante O proferimento oracular possui a finalidade de preservar as leis

(theacutemis) fixas que regem as profundezas dos seres a sua natureza oculta que faculta aos

myacutestai a capacidade de previsatildeo futura acerca das combinaccedilotildees e disjunccedilotildees das partiacuteculas

58

A Noite primordial exerce seu poder sobre o nevado Olimpo (Col XII) cuja

luminosa altitude e frieza satildeo assimiladas ao tempo cronoloacutegico A altitude e a largura

constituem grandezas polarizadas que simbolizam o regramento cronoloacutegico e o

regramento espacial identificado com o horizonte celeste O poder causal da Noite instaura

medidas no tempo-espaccedilo no qual se desenrolam as combinaccedilotildees e separaccedilotildees das

partiacuteculas Mas a potecircncia coacutesmica da geraccedilatildeo e soberania eacute identificada com a potecircncia

sexual

() o genital (aidoicircon) engoliu aquele que no eacuteter jorrou

primeiro Mas jaacute que em todo o poema ele recorre a enigmas para

falar das coisas pragmaacuteticas eacute necessaacuterio falar de cada verso

Vendo que os homens por haacutebito consideravam que a geraccedilatildeo

reside nos genitais (em toicircs aidoiacuteois) ele utiliza esse nome e como

eles consideravam que sem os genitais natildeo haacute geraccedilatildeo ele usa essa

palavra assimilando o sol ao genital De fato sem o sol natildeo eacute

possiacutevel que os seres venham a ser tais como satildeo ()

(Col XIII)23

Como observa Claude Calame (LAKS 1993 p 67 ss) na literatura grega aidoicircai

designa a genitaacutelia masculina ou feminina as vergonhas Os genitais satildeo a expressatildeo da

potecircncia geradora e a soberania coacutesmica assimila o poder de geraccedilatildeo em si mesma atraveacutes

da sequecircncia de accedilotildees na qual Zeus engole o pecircnis (aidoicircon) a proacutepria imagem da potecircncia

identificada com o sol O poder procriador manifesta-se na ambiguidade enigmaacutetica do

substantivo masculino aidoicircos que designa o genital masculino mas que pode ter tambeacutem

o sentido ativo de respeitoso e o sentido passivo de veneraacutevel (RAMNOUX 1968 p 97)

O princiacutepio procriador responsaacutevel pela geraccedilatildeo de todos os seres encontra no sol a

venerabilidade celeste da qual brotam as realidades que vecircem agrave luz Zeus por separaccedilatildeo

jorra no ar da brancura e brilho do resplandecente Kronos engendrado a partir do sol e da

23 Trad Fabienne Jourdain com modificaccedilotildees (2003 p 13)

59

Terra pelo choque das partiacuteculas umas com as outras (col XIV) Kronos aquele que choca

identifica-se com o Noucircs a Inteligecircncia que choca as partiacuteculas entre si Ouranos filho de

Euphroneacuteia a Noite eacute destituiacutedo da realeza pelo choque dissociativo empreendido pelo

Intelecto

A potecircncia procriadora inteligente associa a colisatildeo de partiacuteculas coacutesmicas com a

propriedade primordial da inteligecircncia de separar e discriminar A justaposiccedilatildeo do sol no

centro coacutesmico implica a transferecircncia da soberania para Zeus que possui a inteligecircncia

astuciosa Meacutetis Agrave segregaccedilatildeo e poder gerador do genital ajunta-se a inteligecircncia projetiva

astuciosa As realidades originam-se do genital coacutesmico e o Protogoacutenos eacute rei veneraacutevel

(aidoucirc) engendrado a partir de partiacuteculas eternas Toda a geraccedilatildeo coacutesmica pressupotildee o

concurso simultacircneo da potecircncia procriadora e do Noucircs Inteligecircncia primordial ldquoO

Intelecto eacute rei de todas as coisasrdquo As imagens cosmoloacutegicas forjadas pela exegese

simboacutelica satildeo consonantes com as concepccedilotildees pitagoacutericas de Filolau de Croacutetona

ndash E existem quatro princiacutepios do animal racional tal como Filolau

diz no ldquoDa Naturezardquo ceacuterebro coraccedilatildeo umbigo e os genitais A

cabeccedila eacute a sede do intelecto o coraccedilatildeo da alma e da sensaccedilatildeo o

umbigo do enraizamento e do primeiro crescimento os genitais da

emissatildeo de sementes e da geraccedilatildeo O ceacuterebro conteacutem o princiacutepio

do homem o coraccedilatildeo princiacutepio dos animais o umbigo o princiacutepio

das planta os genitais o princiacutepio de todos os seres vivos Pois

todas as coisas crescem e florescem das sementes F13 ndash

Theologumena arithmeticae 25 17

O acervo imageacutetico que associa o princiacutepio causal da geraccedilatildeo aos genitais eacute

onipresente na mentalidade grega na qual coexistem os cultos iniciaacuteticos e a Filosofia

cosmoloacutegica preacute-platocircnica A polissemia aberta suscita a questatildeo de que a vergonha eacute um

afeto primordial constitutivo Tal afeto irrompe da exposiccedilatildeo agrave visatildeo do devir derivado da

accedilatildeo sexual vinculada agrave luz solar fecundante Este viacutenculo entre enigma desvelamento e

vergonha tambeacutem eacute encontrado em Heraacuteclito (KAHN 2009 p 103)

60

Natildeo fosse Dioniso pelo qual marcham em procissatildeo e

cantam o hino ao falo suas accedilotildees poderiam ser vergonhosas Mas

Hades e Dioniso satildeo o mesmo por quem deliram e celebram a

Lenaia

(DK 15)

O jogo de oposiccedilotildees entre o poder procriador do falo e a morte entre a exposiccedilatildeo

vergonhosa e o invisiacutevel aideacutes justificam o canto ritual aidō que reclama exegese

filosoacutefica Dioniso e Hades satildeo o mesmo O deus da potecircncia sexual do transe e do

entusiasmo baacutequico eacute o mesmo deus da morte do invisiacutevel e das terriacuteveis puniccedilotildees que

aguardam os impuros no mundo dos mortos A potecircncia criadora do falo vergonha implica

a identidade com a inevitaacutevel morte com a retribuiccedilatildeo invisiacutevel e infaliacutevel A exposiccedilatildeo

vergonhosa manifesta implica a inexorabilidade oculta da retribuiccedilatildeo Vergonha e puniccedilatildeo

satildeo dois aspectos de uma identidade aidoacutes e diacuteke causalidade soberana salvaguardada

pelas Eriacutenias servas da Justiccedila

61

II - O MITO DO PROTAacuteGORAS teacutekhnai aidōs e diacutekē

Oacute Soacutecrates ele disse eu natildeo me recusarei mas por qual dos dois

modos o do mais velho que fala para com os mais jovens

demonstrando um mito ou narrando em detalhe por um discurso

(Protaacutegoras 320c02-04)24

O bom conselho que configura a preferecircncia (eubouliacutea) imbrica simultaneamente a

narrativa bem demonstrada e a argumentaccedilatildeo razoaacutevel Quando se trata da escolha

prudente a boa ordenaccedilatildeo do querer precede a boa ordem no agir e no falar (kaigrave praacutettein

kaigrave leacutegein) O discurso que move o querer se modela na razoabilidade das imagens miacuteticas

pois uma crenccedila soacute eacute verossiacutemil atraveacutes da ordenaccedilatildeo do loacutegos

O que explica a desigualdade entre homens iguais no que diz respeito aos dons

naturais para as teacutecnicas e a igualdade poliacutetica entre homens desiguais Como conciliar

estes opostos polarizados Por que o bom conselho concernente agraves teacutecnicas pressupotildee o

conhecimento o ensino e o especialista (dēmiurgoacuten) ao passo que o bom conselho poliacutetico

permite a opiniatildeo de qualquer um A narrativa miacutetica entremeada agrave phroacutenesis propicia a

inteligecircncia multivalente O ponto comum entre as imagens miacuteticas e o loacutegos eacute o seu poder

de invariacircncia pelo qual a presenccedila e realizaccedilatildeo da praacutexis viva remanescem e reaparecem

Tal eacute o caraacuteter primordial do discurso e do mito ambos expressam a invariacircncia no

movimento e tal como o divino natildeo constituem um apanaacutegio humano mas algo que se

apresenta como realidade viva Eacute por meio das accedilotildees e do falar que o homem apreende e

modela a sua realidade vivida captando-a natildeo mediante noccedilotildees exclusivamente racionais

mas atraveacutes de imagens que configuram uma inteligecircncia complexa (NUNES SOBRINHO

2008 p 30)

24

62

Natildeo obstante por que Platatildeo consigna uma grande narrativa miacutetica agrave fala de

Protaacutegoras um dos maiores sofistas contemporacircneos de Soacutecrates E por que esse mito

reproduz as imagens antropogecircnicas das narrativas hesioacutedicas Em sua anaacutelise das menccedilotildees

a Hesiacuteodo e Homero no corpus platocircnico Naoko Yamagata (in BOYS-STONES

HAUBOLD 2010 p 67-88) observa que Hesiacuteodo e Homero contribuiacuteram para os mitos

platocircnicos mais do que quaisquer outros poetas Os mitos que emprestam imagens de

Hesiacuteodo satildeo em geral mitos antropogecircnicos O mito do Protaacutegoras em particular cuja

estrutura eacute marcadamente hesioacutedica seria caracteristicamente anti-socraacutetico A tese geral de

Yamagata eacute a de que Hesiacuteodo eacute frequentemente ldquoinvocado como suporte para argumentos

epidecirciticos de natureza duacutebiardquo Haveria uma marcada tendecircncia em alguns diaacutelogos em

contrastar o uso ldquosofiacutesticordquo de Hesiacuteodo com um uso mais caracteristicamente socraacutetico de

Homero

Soacutecrates claramente prefere Homero a Hesiacuteodo mesmo em

diaacutelogos em que ele eacute alvo de ataque (Ion Repuacuteblica)

Ocasionalmente o contraste entre o Homero socraacutetico e o Hesiacuteodo

sofiacutestico ajuda a articular a estrutura global de um diaacutelogo

(Banquete Protaacutegoras) () Os mitos de Platatildeo mais bdquohesioacutedicos‟

tendem a ser estruturados diferentemente daqueles com um forte

sabor homeacuterico estes uacuteltimos satildeo todos narrados por Soacutecrates e

satildeo apresentados como relativamente ambiciosos quanto agrave sua

pretensatildeo agrave verdade Os mitos de Platatildeo mais bdquohesioacutedicos‟ satildeo

postos na boca de outros interlocutores que natildeo Soacutecrates e satildeo

estruturados como entretenimento (Protaacutegoras) jogo (Poliacutetico) ou

meramente verossiacutemil (Timeu) O uacutenico maior mito hesioacutedico

narrado por Soacutecrates eacute apresentado como uma bdquomentira Feniacutecia‟

(YAMAGATA in BOYS-STONES HAUBOLD 2010 p 88)

Embora o levantamento de Yamagata seja sugestivo no que tange ao escopo criacutetico

das narrativas de cunho hesioacutedico a suma cosmoloacutegica do Timeu e do mito do Poliacutetico

possuem uma densidade filosoacutefica de grandeza incompatiacutevel com qualquer desvalorizaccedilatildeo

e soacute satildeo anti-socraacuteticos na medida em que satildeo caracteristicamente platocircnicos Os mitos de

63

julgamento por outro lado satildeo explicitamente vinculados agraves ldquoantigas tradiccedilotildeesrdquo (paacutelai

leacutegetai Feacutedon 63c 06) de misteacuterios e natildeo podem ser identificados somente com a neacutekya

do livro XI da Odisseacuteia

Mesmo a narrativa encenada no Protaacutegoras evoca uma longa cadeia de transmissatildeo

oriunda dos cultos de misteacuterio e valores que compotildeem o ambiente mental grego Giovanni

Casadio (2010 p 3-5) distingue para efeito de anaacutelise os cultos de misteacuterios gregos em

modalidades diversas e salienta especialmente o caraacuteter da transmissatildeo de uma sabedoria

tradicional

Misteacuterios em geral implicam cerimocircnias especiais que satildeo

caracteristicamente esoteacutericas e frequentemente conectadas com o

ciclo anual da agricultura Usualmente eles envolvem o destino de

poderes divinos sendo venerados e a comunicaccedilatildeo de sabedoria

religiosa que habilita o iniciado a vencer a morte Eles eram parte

da vida religiosa geral mas separados do culto puacuteblico que era

acessiacutevel a todos Por essa razatildeo eram tambeacutem chamados ldquocultos

secretosrdquo(aporrēta) () ldquoMisteacuterio propriamente envolve toda

uma estrutura iniciatoacuteria de alguma duraccedilatildeo e complexidade cujo

tipo (e em muitos casos o real modelo) eacute Eleusis O ldquoculto

miacutesticordquo envolve natildeo a iniciaccedilatildeo mas antes uma relaccedilatildeo de

intensa comunhatildeo tipicamente extaacutetica ou entusiaacutestica com a

divindade (ex frenesi Baacutequico ou o kibeboiacute de Cybele) O culto

ldquomisteriosoacuteficordquooferece uma antropologia escatologia e meios

praacuteticos de reuniatildeo individual com a divindade cuja forma

primitiva e original eacute o Orfismo

O mito do Protaacutegoras amalgama elementos diacutespares da tradiccedilatildeo religiosa grega e

por isso aponta para uma composiccedilatildeo ao mesmo tempo argumentativa e narrativa que se

desdobra caracteristicamente numa espeacutecie de bricolage O amaacutelgama de um complexo de

elementos tradicionais dispostos numa sequecircncia de imagens sugere a hipoacutetese de que

Platatildeo como se fora sofista ao mesmo tempo em que fundamenta teses na tradiccedilatildeo rompe

com ela modificando-a atraveacutes de uma nova transmissatildeo re-significada Como afirma

Radcliffe Edmonds ldquouma narrativa dramatiza ldquovaloresrdquo mostrando na perspectiva do

64

narrador o que eacute bom e o que eacute inuacutetil ou maurdquo e salienta que os elementos tradicionais satildeo

evocativos (em vez de descritivos) de associaccedilotildees que ultrapassam o significado imediato

Os desdobramentos desencadeados pela sequecircncia de imagens accedilotildees e caracteres atraveacutes

da estrutura da narrativa carregam em seu bojo significaccedilatildeo para a audiecircncia (CASADIO

2010 p 74-75)

Composta a partir do acervo de imagens da mentalidade grega o mito do

Protaacutegoras eacute um constructo dramaacutetico de Platatildeo seu emprego argumentativo e retoacuterico

encenado pelo ceacutelebre mestre de sabedoria Protaacutegoras emana a fragracircncia acre-doce da

ironia platocircnica A encenaccedilatildeo articula-se com todo aroma irocircnico que permeia o diaacutelogo e

traz em seu bojo a discriminaccedilatildeo platocircnica que visa determinar a especificidade da

Filosofia mediante a cuidadosa separaccedilatildeo e descaracterizaccedilatildeo do ensino sofiacutestico

O mito do Protaacutegoras inicia-se com a afirmaccedilatildeo de uma clivagem no tempo Era um

tempo em que os deuses existiam mas os mortais natildeo25

A existecircncia preacutevia dos deuses

indica natildeo somente um tempo proacuteprio aos deuses mas a natildeo homogeneidade do tempo O

tempo dos mortais eacute essencialmente outro em relaccedilatildeo ao tempo dos deuses Por que o mito

comeccedila com a polarizaccedilatildeo e oposiccedilatildeo entre tempo dos deuses e tempo dos homens A

distinccedilatildeo qualitativa que rompe a homogeneidade esboccedila a concepccedilatildeo de que nem todo

devir nem todo tempo eacute equivalente a outro Haacute o tempo dos deuses o tempo das origens

o tempo forte que antecede o existir da experiecircncia humana e que por seu primado eacute um

tempo paradigmaacutetico exemplar absoluto norteador Retornar ao tempo das origens

implica em encontrar o sentido absoluto para a realidade presente a explicaccedilatildeo e o

25

65

fundamento26

mediante o tempo exemplar para todo o devir27

A explicaccedilatildeo e o sentido satildeo

buscados na origem coacutesmica e antropogocircnica de um Tempo primordial paradigma

absoluto Protaacutegoras funda o relativismo da isonomia e isēgoria28

poliacuteticas no absoluto

referencial do tempo primordial Antes que algo venha a ser seu tempo proacuteprio natildeo pode

constituir um devir o um apoacutes o outro dos phainoacutemena Por isso o tempo poliacutetico comeccedila

na origem das relaccedilotildees que possibilitam a formaccedilatildeo das primeiras poacuteleis e explica como a

praacutexis poliacutetica efetiva veio a instaurar-se

A oposiccedilatildeo entre myacutethos como discurso inverificaacutevel e loacutegos como discurso

atestaacutevel eacute superada no emprego argumentativo do mito e na narraccedilatildeo bem exposta do

argumento Protaacutegoras demonstra causas na narraccedilatildeo do mito e expotildee um argumento em

forma narrativa (myacutethon leacutegōn epideiacutexō ḗ loacutegō diexelthōn)29

A polarizaccedilatildeo opotildee o tempo

absoluto dos deuses ao tempo pereciacutevel e relativo dos mortais Este uacuteltimo soacute encontra a

estabilidade propiciadora da significaccedilatildeo na imutabilidade paradigmaacutetica do primeiro O

26 Mircea Eliade enfoca em vaacuterias obras a homologia estrutural entre o espaccedilo coacutesmico primordial e o tempo

original templum-templus O tempo ab initio das origens coacutesmicas corresponde ao centro do mundo

primordial O nascimento do Koacutesmos eacute tambeacutem o ponto originaacuterio o marco e o princiacutepio do ser e do existir

(ELIADE 1965 p 66 ss) A abordagem simbolista fortemente antropoloacutegica de Eliade identifica o tempo e espaccedilo miacuteticos com a experiecircncia religiosa e com o sagrado por excelecircncia Na transposiccedilatildeo filosoacutefica

platocircnica o mito narrado por Protaacutegoras emprega o retorno agraves origens teacutecnica de evasatildeo do tempo atual para

fundar e conferir significaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de uma experiecircncia poliacutetica e teacutecnica proacutepria agrave democracia

ateniense 27 A cosmogonia eacute modelo exemplar para toda espeacutecie de fabricaccedilatildeo e construccedilatildeo Acrescentemos que a

cosmogonia comporta tambeacutem a fabricaccedilatildeo do tempo Mais ainda assim como a cosmogonia eacute o arqueacutetipo

de toda fabricaccedilatildeo o Tempo coacutesmico que a cosmogonia faz jorrar eacute o modelo exemplar de todos os tempos

ou seja dos Tempos especiacuteficos das diversas categorias existentes (ELIADE 1965 p 69) 28 Berti (1978 p 348) identifica a liberdade poliacutetica com a liberdade de pensamento e expressatildeo que os

atenienses chamavam o ldquoigual direito de fala na assembleacuteia puacuteblicardquo (isēgoriacutea) A liberdade da fala seria uma

decorrecircncia da igualdade dos cidadatildeos perante a lei e um dos aspectos essenciais da democracia ateniense conforme se depreende de Heroacutetodo As forccedilas atenienses cresciam continuamente Poder-se-ia provar de mil

maneiras que a igualdade entre os cidadatildeos e o governo eacute a mais vantajosa () (HEROacuteDOTE V LXXVIII

1850) Claude Mosseacute afirma que os fundamentos da democracia ateniense no seacuteculo V satildeo ldquoa igualdade de

todos perante a lei o direito de todos de tomar a palavra diante da assembleacuteia o que eacute traduzido nos dois

termos frequentemente empregados como sinocircnimo de democracia isonomia e isēgoriacutea (1995 p84) 29 A iniciaccedilatildeo agrave virtude protagoriana inicia-se como observa Beall (1991 p 368) com um mythos que possui

um papel uacutetil na argumentaccedilatildeo Platatildeo ao contraacuterio correlaciona a Filosofia com a passagem pela morte e

seus grandes mitos de julgamento aparecem quase sempre no final dos diaacutelogos

66

tempo-irreversiacutevel devir relativo dos mortais se define atraveacutes do seu correlativo oposto o

paradigma absoluto o tempo-reversiacutevel dos deuses eternos Toda cosmogonia pressupotildee o

referencial absoluto do tempo primordial e do centro coacutesmico (ELIADE 1977 p 29-30)

Quando eacute chegado o tempo fixado pela sorte do nascimento dos mortais os deuses

os modelam a partir da terra misturada ao fogo e de tudo o que se mistura ao fogo

Era um tempo em que os deuses jaacute existiam mas o gecircnero dos

mortais natildeo Quando chegou o tempo de sua gecircnese fixado pelo

destino os deuses os modelaram no interior da terra realizando

uma mistura de terra de fogo e tudo o que se mistura agrave terra Em

seguida quando veio o momento de os trazer para a luz eles

encarregaram Prometeu e Epimeteu de repartir as potecircncias em

cada um deles em boa ordem como conveacutem30

(Protaacutegoras 320d)

Os mortais todos os thnētoi satildeo modelagem divina a partir de princiacutepios fiacutesicos

primordiais mistura de fogo terra e tudo o que a ele se mistura A demiurgia divina se

inscreve na terra com esse fogo primordial compondo uma mistura Em sua gecircnese os

mortais satildeo compostos da mistura de elementos fiacutesicos e inteligecircncia divina na sua

modelagem O divino modela o inanimado mediante a liga primordial entre terra e fogo

movente Seguem-se a partir disso novas oposiccedilotildees terra inanimada e fogo elementos

fiacutesicos destituiacutedos de inteligecircncia e inteligecircncia demiuacutergica dos deuses31

30 Texto estabelecido por A Croiset Traduccedilatildeo de F Idelfonse 31 O esquema da gecircnese dos mortais esboccedilado no mito evoca o fragmento 62 DK de Empeacutedocles

67

Quando chega o momento de trazer os mortais agrave luz (phōs) e distribuir os lotes com

kosmiacutea dois intermediaacuterios polarizados se interpotildeem Prometeu e Epimeteu Os filhos de

Jaacutepeto personificam a previdecircncia luacutecida antecipaccedilatildeo temporal de conexotildees inevitaacuteveis e a

imprevidecircncia cega indeterminaccedilatildeo e desacerto do devir A astuacutecia fulgurante (aioloacutemētis)

se opotildee ao errocircneo pensar (hamartiacutenooacuten)32

O equiliacutebrio entre os opostos exige a

compensaccedilatildeo muacutetua (Feacutedon 71e) Todavia haacute uma inversatildeo de papeacuteis e Epimeteu

astuciosamente persuade a Prometeu para que imprevidentemente delegue toda a tarefa de

distribuiccedilatildeo das potecircncias ao seu duplo miacutetico A distribuiccedilatildeo equilibra potecircncias opostas

nos seres vivos de maneira a assegurar a sobrevivecircncia diante dos perigos muacutetuos e diante

dos perigos naturais Todos os gecircneros de seres equilibram-se e justificam-se em seu

existir A hamartiacutea erro faltoso de Epimeteu resulta em uma aporiacutea a situaccedilatildeo impediente

B 62 SIMPL Phys 381 29

[v1] [I 335 5 App]

[v5]

[I33510App]

SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 381 29

Agora vem e como de homens e mulheres

de muitos prantos

noturnos rebentos trouxe agrave luz separando-

se o fogo destes ouve pois natildeo eacute mito sem

alvo e sem ciecircncia Inteiriccedilos primeiro (os) tipos de terra surgiam

de ambos de aacutegua e de forma brilhante

tendo parte estes fogo faziam subir

querendo ao semelhante chegar

nem ainda de membros amaacutevel forma

mostrando (eles)

Nem voz nem (tal) qual o membro

proacuteprio dos homens

(2000 Trad Joseacute Cavalcante de Souza)

(Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics31-B acessso em 03032010)

Segundo Clemence Ramnoux as operaccedilotildees artesanais constituem o modelo para a criaccedilatildeo as teacutecnicas de

ldquofusatildeo dos metais da combinaccedilatildeo de cores as receitas de panificaccedilatildeordquo configuram as noccedilotildees de ingredientes de mistura de proporccedilatildeo nas misturas e do artesatildeo fabricador Assim como um pintor pode com poucas

cores representar diversas formas de coisas variegadas assim tambeacutem a natureza pode criar todos os seres

naturais com poucos elementos (LONG 1999 p 160) O fogo emerge saltando em direccedilatildeo do Fogo do

alto levando ldquopequenas massas plaacutesticas feitas de terra com uma parte de calor e um lote

umidade Segundo a leitura de Ramnoux este esquema segue o padratildeo 3 + 1 trecircs lotes e um artesatildeo

(1968 p 187 ss) No mito de Protaacutegoras haacute trecircs elementos (terra fogo e elementos que se misturam aos

precedentes) e os deuses como artesatildeos 32 HESIOacuteDO Teogonia 511

68

ameaccediladora o homem no momento mesmo de sair de dentro da terra para a luz estaacute

inteiramente desprovido de capacidades

Eacute estabelecimento fixado pelo destino a saiacuteda do homem do seio da terra para a luz

(exieacutenai ek gḗs eis phōs Protaacutegoras 321c06-07) A ambiguidade da passagem anuncia a

duplicidade do existir humano que pressupotildee a saiacuteda da obscuridade do interior da terra

para a luz No Craacutetilo a personagem de Soacutecrates identifica a claridade seacutelas com a luz

phōs e por essa razatildeo a luz da lua eacute ao mesmo tempo nova e antiga sua luminosidade eacute

ambiacutegua por refletir a luz do sol (409b) A liga divina de fogo que surge para a luz eacute

ambiacutegua pois o estado de carecircncia dos homens anuncia a cataacutestrofe de seu

desaparecimento

A passagem da obscuridade da terra para a luz concatena uma sequecircncia

paradigmaacutetica de imagens e sugere uma mutaccedilatildeo no regime do ser Haacute a transposiccedilatildeo do

natildeo-ser atemporal mediado por uma geraccedilatildeo modeladora ateacute o ser e o devir Essa

sequecircncia eacute exemplar e narra como o homem veio a ser e por essa razatildeo funda e norteia

todo fazer toda praacutexis e todas as instituiccedilotildees poliacuteticas e ciacutevicas Eacute porque o homem foi

gerado por deuses sobrenaturais que a suma de suas condutas e praacuteticas pertence a um

tempo primordial As praacuteticas e instituiccedilotildees possuem sua razatildeo de ser porque na aurora do

tempo humano houve uma sequecircncia primordial de geraccedilatildeo e gestaccedilatildeo A modelagem

primordial constitui um modelo exemplar para todo fazer e toda fabricaccedilatildeo que remetem agraves

gestas operadas pelos deuses para a engendraccedilatildeo do koacutesmos e dos mortais A cosmogonia

primeva representa uma sequecircncia de imagens que configuram a passagem do khaacuteos

tenebroso matriz e Noite para a luz coacutesmica ou a passagem daquilo que natildeo existe o natildeo-

ser para o ser (ELIADE 1959 p 12-21)

69

Quando se trata de iniciar um neoacutefito na praacutexis poliacutetica o mito de emersatildeo e a

antropogonia do seio da terra re-atualiza o itineraacuterio complexo de accedilotildees que configuram a

passagem da obscuridade para a luz do sol A narrativa da criaccedilatildeo dos homens justifica o

ritual de refazer formar de criar uma nova situaccedilatildeo espiritual ou psiacutequica (ELIADE

1957 p 200) As imagens de uma iniciaccedilatildeo apontam para um novo iniacutecio mediante o qual

se anuncia a molda de um modo de ser superior da indistinccedilatildeo desordenada Nas imagens

antropogocircnicas o homem eacute modelado ele natildeo se faz a si mesmo Na origem do tempo

cronoloacutegico haacute uma accedilatildeo demiuacutergica que inscreve ordem em princiacutepios desordenados e

misturados accedilatildeo por conseguinte divina e produto de potecircncias invisiacuteveis Por outro lado

a iniciaccedilatildeo de um neoacutefito pressupotildee uma transmissatildeo operada por mestres de sabedoria

que se vincula e remonta a uma longa cadeia da tradiccedilatildeo ancestral Essa tradiccedilatildeo consolida-

se atraveacutes da transmissatildeo ritual que prepara o neoacutefito para um novo modo de ser mediante a

repeticcedilatildeo de gestas e imagens pertencentes a um cenaacuterio que natildeo pode ser descrito mas

somente narrado e dramatizado (ELIADE 1959 p 20)

O embate de Soacutecrates com o mestre de sabedoria Protaacutegoras dramatiza modos

concorrentes de interpretar e re-significar um acervo de saberes potecircncias crenccedilas afetos e

imagens religiosas em uma transposiccedilatildeo determinante para a mentalidade de um novo

gecircnero de vida e um novo tipo de homem Com isso Platatildeo coloca em questatildeo e em

combate singular transposiccedilotildees antagocircnicas de paideiacutea e paradigmas eacutetico-poliacuteticos para o

novo homem

Protaacutegoras transpotildee as iniciaccedilotildees e oraacuteculos das seitas de misteacuterio praticadas por

Orfeu e Museu para a atividade sofiacutestica33

(Protaacutegoras 316d08) A passagem da noite

trevosa para a luz do sol imagem da emergecircncia para um novo plano de ser eacute doravante

33

70

associada aos mestres de sabedoria cuja aparecircncia ocultava a verdadeira natureza do seu

saber e do seu poder Todas as modalidades de iniciaccedilotildees que conferem a possibilidade de

ascensatildeo aos planos superiores de humanidade satildeo no fim iniciaccedilotildees sofiacutesticas O mito de

retorno agraves origens eacute a fala razoaacutevel que consolida este postulado

A terra gḗ identifica-se com o uacutetero feminino e a gestaccedilatildeo gaicirca seria o nome

correto para geratriz gennḗteira e derivaria de gegennḗsthai ser engendrado (Craacutetilo

410c) A terra eacute matriz paradigmaacutetica para a gestaccedilatildeo e o nascimento

Ora eacute pela terra mais que pela mulher que eacute preciso receber tais

provas pois natildeo eacute a terra que imitou a mulher na concepccedilatildeo e na

gestaccedilatildeo mas eacute a mulher que imitou a terra

(Menexeno 238a 03-05)

A operaccedilatildeo fundidora do fogo com a terra expressa uma relaccedilatildeo solidaacuteria entre a

gestaccedilatildeo e o nascimento a partir da matildee terra e a metalurgia A gestaccedilatildeo ctocircnica constitui o

ato exemplar para a gestaccedilatildeo humana conjugaccedilatildeo solidaacuteria entre a moldagem metaluacutergica e

a sexualidade34

e nesse sentido a antropogonia se conjuga a uma ontogenia (ELIADE

1977 p 30)

Para assegurar a fusatildeo mediante o fogo primordial eacute preciso a intervenccedilatildeo do

artiacutefice vivo a forja dos homens pelo fogo eacute animada pelos deuses Mas as suas potecircncias

advecircm de mediadores que delimitam planos de ser distintos

A imprevidecircncia de Epimeteu suscita a aporiacutea impediente os homens estatildeo

desguarnecidos e desadornados diante do equiliacutebrio kosmeacutetico dos animais sem fala A

distribuiccedilatildeo das potecircncias aos mortais implica a sua determinaccedilatildeo O homem ao contraacuterio

34 Na menccedilatildeo de Simpliacutecio a Empeacutedocles (DK 71) haacute accedilatildeo artesanal operada por Afrodite que se assemelha agrave

de um pintor que mistura cores Terra aacutegua eacuteter e sol satildeo harmonizados numa mistura amorosa da qual

surgem as formas e as cores dos mortais As noccedilotildees de operaccedilatildeo mistura e harmonizaccedilatildeo se conjugam agrave

noccedilatildeo de forma visiacutevel como produto da accedilatildeo artesanal de Afrodite (RAMNOUX 1968 p 188-189) A

conotaccedilatildeo sexual eacute assimilada agrave operaccedilatildeo artiacutestica de mistura e produccedilatildeo de cores e formas visiacuteveis

Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics31-B

71

ndash desprovido de todas as potecircncias ndash eacute indeterminado Para compensar a falta desmedida

de Epimeteu eacute preciso um expediente ao mesmo tempo astucioso e sobrenatural Prometeu

natildeo tendo qualquer salvaccedilatildeo para os homens recorre ao instrumento divino do engenho

mecacircnico e furta o saber teacutecnico e o fogo de Hefestos e Athena35

Hefestos eacute o mestre do fogo e da luz (phaacuteeos hiacutestōr) o Brilhante (Phaicircstos) e

Athena eacute a inteligecircncia divina (Hatheonoacutea) a que tem inteligecircncia das coisas divinas (tagrave

theicirca nooucircsa)36

O domiacutenio do fogo evoca natildeo somente as imagens ligadas agrave inteligecircncia

teacutecnica mas indica a determinaccedilatildeo de um estatuto superior do ser que comporta um

aspecto maacutegico ou sobrenatural intriacutenseco a toda atividade fabricadora O ferreiro divino

portador do fogo aperfeiccediloa a obra dos deuses a organizaccedilatildeo do Koacutesmos e confere ao

homem a inteligecircncia que o distinguiraacute dos animais sem fala e a capacidade de apreender a

ordem coacutesmica (ELIADE 1977 p 65ss)

Prometeu sem ser visto entra oculto (lathōn eiseacuterkhethai) nas oficinas celestes

rouba o fogo e o presenteia aos homens Com isso mediante o saber portado pelo fogo os

homens adquirem as teacutecnicas e os meios para a manutenccedilatildeo da vida e para a proteccedilatildeo

contra as intempeacuteries naturais Se a dimensatildeo demiuacutergica permitiu ao homem superar sua

falta de determinaccedilotildees foi somente mediante as teacutecnicas que o homem descobriu a

possibilidade de agir livremente A eleutheria natildeo eacute um presente dos deuses (Protaacutegoras

312b) O homem soacute pode agir livremente pela capacidade antecipatoacuteria e valorativa

propiciada pelo caacutelculo do mais vantajoso e isso soacute ocorre porque ab initio ele eacute desprovido

de determinaccedilotildees no seu agir Ao contraacuterio dos animais cujo agir eacute preacute-determinado do

35

(Protaacutegoras 321c08-d01) 36 Craacutetilo 407b-c

72

nascimento ateacute a morte o homem eacute essencialmente indeterminado (GALIMBERTI 2009

p 2)

As artes suscitam ainda a demarcaccedilatildeo entre o estatuto divino e humano cuja

natureza ambiacutegua participa ao mesmo tempo do divino e do mortal37

O lote de participaccedilatildeo

e parentesco divino justifica a instauraccedilatildeo miacutetica do sacrifiacutecio e do culto aos deuses

mediante as estaacutetuas oferendas imageacuteticas de joalheria e elevaccedilatildeo de templos O lote de

participaccedilatildeo nos seres mortais determina a especificidade do uacutenico dos vivos zdōion que

pode nomear os deuses pela fala regrada

O esquema causal se esboccedila no mito de Protaacutegoras i) uma falta original a

imprevidecircncia de Epimeteu suscita uma situaccedilatildeo impediente ii) o quadro problemaacutetico

exige a busca da causa e o diagnoacutestico eacute feito por Prometeu iii) o mediador divino

mediante astuacutecia dolosa busca o expediente sobrenatural do fogo iv) o meio astucioso

teacutecnico eacute empregado e a cataacutestrofe remediada por um presente v) um novo estatuto eacute

determinado mas o dolo usurpador reclama nova retribuiccedilatildeo

Embora o saber teacutecnico salvaguarde a equipagem para a sobrevivecircncia natural os

homens natildeo obstante natildeo possuem o saber poliacutetico e a arte da guerra que participa da

poliacutetica Por essa razatildeo incapazes de dominar os instrumentos da guerra sucumbem diante

da forccedila dos animais e procuram agrupar-se em cidades para garantir a seguranccedila muacutetua

Todavia mostram-se igualmente destituiacutedos da philiacutea e acabam por cometer injusticcedilas

destruindo-se mutuamente A carecircncia da arte poliacutetica implica a incapacidade de seguranccedila

e salvaguarda da justiccedila necessaacuterias para a formaccedilatildeo de comunidades e cidades

37

(Protaacutegoras 322a04-08)

73

Todo presente exige o contra-presente a justa compensaccedilatildeo Em Hesiacuteodo o mito de

Prometeu esboccedila a narrativa na qual simultaneamente ocorre a separaccedilatildeo entre plano dos

deuses e o plano dos homens mortais mas tambeacutem entre o masculino e o feminino O

mito de Prometeu eacute tambeacutem o mito da primeira mulher Dom de todos os deuses artefato

moldado e adornado pela inteligecircncia oliacutempica Pandora eacute a contrapartida para a vida e o

fogo biacuteos e pyacuter Anti-pyacuter o contra-presente de Zeus instaura o poacutelo de um novo geacutenos o

feminino que demarca a ambiguidade humana Ao saber teacutecnico previdente e antecipatoacuterio

se contrapotildee a indefiniccedilatildeo dos males indefectiacuteveis e a espera indistinta de elpiacutes a

expectaccedilatildeo exclusivamente humana do bem indeterminado e natildeo dataacutevel38

(VERNANT

2005) Em Pandora equilibram-se o apelo irresistiacutevel do encanto da forma de virgem e da

graccedila determinaccedilotildees essenciais de Afrodite e Athena e a mentira conduta dissimulada e

olhar obliacutequo e traiccediloeiro do catildeo instilados por Hermes (HESIacuteODO 2006 v 59-85)

Mas no mito de Protaacutegoras se haacute uma polarizaccedilatildeo entre Hefestos e Athena opostos

divinos de saber e metalurgia teacutecnicas natildeo haacute por outro lado nenhuma menccedilatildeo a um

paacuterthenos o feminino no plano dos homens Por que Protaacutegoras rompe com a simetria de

contrapartidas da tradiccedilatildeo miacutetica Qual eacute a justa retribuiccedilatildeo para o dolo astucioso de

Prometeu O que estabelece definitivamente a natureza humana apoacutes a instrumentaccedilatildeo do

saber teacutecnico que simultaneamente distingue os homens dos animais e define a separaccedilatildeo

entre o plano dos deuses e o plano dos mortais Hermes mensageiro e arauto divino natildeo

retribui a fraude de ocultaccedilatildeo de Prometeu com a graccedila visiacutevel da mulher e com a

ambivalecircncia da mistura de bens males e incertezas caracteriacutesticos do biacuteos Em vez disso

opera a passagem para um novo plano de mediaccedilotildees

38 Beall (1991 p 367) conecta Elpiacutes com o auto-engano que nega a presenccedila visiacutevel dos males

74

O domiacutenio do fogo as artes metaluacutergicas e demiuacutergicas propiciadas pelo saber

teacutecnico natildeo encontram equivalentes simeacutetricos no plano da natureza Em vez do contra-

presente que estabelece o equiliacutebrio Protaacutegoras amplia a estrutura da narrativa para fundar

no registro da encantaccedilatildeo e do referencial absoluto das origens primordiais um novo plano

que se opotildee agrave natureza a poliacutetica Uma nova sequecircncia de accedilotildees emerge i) a injusticcedila

dolosa decorrente da carecircncia da arte poliacutetica anuncia uma situaccedilatildeo calamitosa ii) a

destruiccedilatildeo suscita a busca das causas e o diagnoacutestico iii) o mensageiro sobrenatural se vale

dos meios divinos astuciosamente forjados iv) os artifiacutecios divinos remediam a situaccedilatildeo

problemaacutetica v) os dolos subsequentes satildeo retribuiacutedos com a lei infaliacutevel de Zeus

Qual eacute a nova compensaccedilatildeo para o roubo oculto de Prometeu Pandora personifica a

ambiguidade feminina da natureza humana numa obra de arte divina concebida para ser

irresistiacutevel ao olhar Ao presente propiciado pela fraude oculta se contrapotildee o presente

concebido para ser visto como bem irresistiacutevel mas que esconde males invisiacuteveis No novo

plano de ser inaugurado por Protaacutegoras agrave fraude oculta se contrapotildee o par de presentes

essencialmente ligados ao olhar de todos aidōs e diacutekē

As accedilotildees de Zeus natildeo se desenrolam num combate singular de astuacutecias retribuiccedilatildeo

da hyacutebris desmedida O temor (deiacutedō) oliacutempico expressa a necessidade de manutenccedilatildeo da

ordem e simetria naturais e justifica a instauraccedilatildeo das condiccedilotildees primordiais para a

existecircncia da comunidade poliacutetica e de seus princiacutepios de determinaccedilatildeo

A sequecircncia de poacutelos opostos eacute homoacuteloga agrave sequecircncia de imagens do mito que

esboccedilam a natureza ontoloacutegica determinante do existir ndash ser ndash dos deuses e o natildeo-ser dos

mortais no princiacutepio os deuses eram e os mortais natildeo Ao par primordial corresponde uma

atividade mediadora que engendra novo par os deuses inscrevem inteligecircncia demiuacutergica

nos elementos primordiais inanimados terra elementos intermediaacuterios para a liga e fogo A

75

passagem do natildeo-ser para o ser eacute homoacuteloga agrave passagem do interior da terra para a luz do

sol imagem paradigmaacutetica da iniciaccedilatildeo

Surge assim a polarizaccedilatildeo entre inteligecircncia divina animada e elementos

inanimados destituiacutedos de inteligecircncia A mistura engendra a polarizaccedilatildeo entre deuses

imortais e seres mortais e instaura a separaccedilatildeo entre o tempo dos deuses e o tempo dos

mortais O regramento ordenado pressupotildee a distribuiccedilatildeo coacutesmica de potecircncias operada por

intermediaacuterios opostos divinos Prometeu e Epimeteu A imprevidecircncia e incapacidade de

antecipaccedilatildeo temporal de Epimeteu se opotildeem agrave astuacutecia engenhosa e antecipatoacuteria de

Prometeu A distribuiccedilatildeo desmedida das potecircncias aos animais salvaguarda a vida natural

mas determina a carecircncia completa de potecircncias para o homem

O estatuto humano estaacute sem lugar na oposiccedilatildeo entre imortais e mortais e a

determinaccedilatildeo exige a intervenccedilatildeo do fogo instrumento astuciosa e ocultamente

intermediado por Prometeu O estatuto humano implica a passagem da obscuridade da terra

para a luz fixada pela necessidade do destino O fogo teacutecnico dolosamente artificiado

permite o acabamento da iniciaccedilatildeo primordial que engendra o ser do homem e compensa a

sua impotecircncia original mas se opotildee ao fogo das forjas oliacutempicas Haacute entatildeo a oposiccedilatildeo

entre uma demiurgia divina que inscreve inteligecircncia no desregramento inanimado e a

demiurgia teacutecnica humana cuja funccedilatildeo eacute instrumental e mediatizada Enquanto a demiurgia

divina cumpre a finalizaccedilatildeo de determinaccedilotildees temporais absolutas a demiurgia humana

instrumentaliza recursos na indeterminaccedilatildeo da temporalidade do devir Ambas operam

iniciaccedilotildees opostas a iniciaccedilatildeo divina traz o homem agrave existecircncia pela saiacuteda do seio escuro

da terra para a luz a iniciaccedilatildeo nas artes humanas retira o homem da ignoracircncia trevosa dos

animais instaura seu parentesco com o plano dos deuses e demarca suficientemente

76

(hikanoacutes) a separaccedilatildeo entre o detentor do saber e os profanos os idioacutetai (Protaacutegoras

322c07)

A demiurgia humana e o domiacutenio do fogo definem o estatuto intermediaacuterio dos

homens diante dos deuses e animais A natureza do homem participa ao mesmo tempo do

divino e do mortal As teacutecnicas instauram as relaccedilotildees entre os planos e inauguram o culto o

sacrifiacutecio e os artefatos que definem os opostos entre visiacutevel e invisiacutevel As estaacutetuas

aacutegalmata e templos delimitam no plano visiacutevel a homologia estrutural entre o sagrado e o

profano o tempo dos deuses e devir dos mortais a presenccedila visiacutevel da imagem do deus

invisiacutevel e o reconhecimento invisiacutevel da inteligecircncia do deus presente

Entretanto ponte de mediaccedilatildeo entre o humano e o divino a inteligecircncia teacutecnica natildeo

salvaguarda a vida da violecircncia dos animais e da injusticcedila humana Intermediaacuterio entre

poacutelos opostos o plano dos homens requer para o seu perfeito acabamento a intervenccedilatildeo

dos princiacutepios divinos providenciados por novo mensageiro mediador Para compensar a

distribuiccedilatildeo fraudulenta oculta e desigual da participaccedilatildeo no saber teacutecnico Hermes com

equidade reparte abertamente aidōs e diacutekē entre os homens e arauto dos deuses proclama

em nome de Zeus suprema lei a de levar agrave morte como praga da cidade aquele que natildeo

tiver a potecircncia de participar de aidōs e diacutekē

O par aidōs e diacutekē natildeo constitui somente princiacutepio de possibilidade da comunidade

poliacutetica e existir das poacuteleis Ele eacute o contra-presente que compensa o furto e o dolo eacute a

contrapartida visiacutevel para a astuacutecia invisiacutevel Mas se Pandora eacute a personificaccedilatildeo

ambivalente do bem irresistiacutevel da graccedila divina visiacutevel e dos males indeterminados

invisiacuteveis qual deve ser a ocultaccedilatildeo sob o bem aparente de aidōs e diacutekē Se Pandora eacute

essencialmente modelagem de opostos visiacuteveis e invisiacuteveis qual eacute a oposiccedilatildeo essencial

subjacente a aidōs e diacutekē

77

Luc Brisson (2003 p 141-166) seguindo a majestosa esteira de Georges Dumeacutezil

desenvolve no mito encenado pela personagem platocircnica de Protaacutegoras uma interpretaccedilatildeo

de tonalidade positivista calcada numa estrutura tri-funcional A partir dos dois eixos

basilares da natureza e cultura Brisson distingue pares de opostos nos eixos seguranccedila

equipamentos e alimentaccedilatildeo As trecircs oposiccedilotildees fundamentais seriam deusesmortais

homensanimais teacutecnica demiuacutergicateacutecnica poliacutetica

I ndash Oposiccedilatildeo deuses mortais ndash Desse poacutelo derivam seres com existecircncia

independente e natildeo derivada seres com existecircncia dependente e derivada Satildeo enviados

delegados para distribuir poderes e terminar a organizaccedilatildeo Haacute uma triparticcedilatildeo divina Zeus

(soberania arte poliacutetica) Hefesto e Atena (detentores da arte do fogo e outras artes) A

triparticcedilatildeo relaciona-se com uma triparticcedilatildeo espacial Olimpoacroacutepolepeacute da elevaccedilatildeo Os

mortais devem sua existecircncia aos deuses

2 ndash Oposiccedilatildeo homens animais ndash O mundo dos animais eacute o reverso do mundo dos

homens animais desprovidos de razatildeo homens racionais que devem viver na cidade

determinismo sabedoria praacutetica O mundo dos animais implica um equiliacutebrio fechado e

suas necessidades satildeo satisfeitas o determinismo substitui a razatildeo Os homens

caracterizam-se pela condiccedilatildeo precaacuteria e vulnerabilidade que implica a indeterminaccedilatildeo das

necessidades Haacute a exigecircncia de mediaccedilatildeo do saber teacutecnico e da razatildeo A sobrevivecircncia

exige o domiacutenio da teacutecnica poliacutetica e da teacutecnica militar o que implica o uso irrestrito da

teacutecnica demiuacutergica O plano do possiacutevel compensa a carecircncia do plano do que eacute

determinado A razatildeo supera o determinismo

78

3 ndash Oposiccedilatildeo teacutecnica demiuacutergica teacutecnica poliacutetica -

Deste poacutelo surge a analogia fundamental modeterminis

razatildeo

animais

homens O saber

teacutecnico implica a oposiccedilatildeo demiurgiapoliacutetica O mundo dos deuses eacute tripartite e dele deriva

um reflexo funcional na cidade A cidade pressupotildee a poliacutetica que inclui a arte militar A

cidade exige o setor produtivo que abarca demiurgia e agricultura As necessidades

humanas satildeo tambeacutem tripartites seguranccedila equipamentos alimentaccedilatildeo As necessidades

humanas satildeo mediadas pelas teacutecnicas que garantem os trecircs planos A seguranccedila eacute absorvida

na Poliacutetica (guardas de Zeus) A funccedilatildeo produtiva se assimila agrave demiurgia A triparticcedilatildeo eacute

reduzida agrave oposiccedilatildeo demiurgiapoliacutetica e eacute sustentada pelos mediadores de Zeus Prometeu

(demiurgia) e Hermes (poliacutetica) O fogo simboliza a arte demiuacutergica e estabelece um

parentesco com o divino atraveacutes do culto uso do fogo sacrifical e a relaccedilatildeo entre o humano

e o divino A demiurgia implica especializaccedilatildeo de funccedilotildees e a divisatildeo do trabalho A

divisatildeo por sua vez acarreta a incapacidade de vida comunitaacuteria e a dispersatildeo Por isso

Zeus envia Hermes para levar aidōs e diacutekē (pudor e justiccedila) que se opotildeem agrave potecircncia

demiuacutergica a integraccedilatildeo se opotildee agrave divisatildeo A fundamentaccedilatildeo da existecircncia poliacutetica da

cidade depende da integraccedilatildeo entre todos Aidōs e diacutekē satildeo distribuiacutedos por Hermes de igual

maneira entre todos ao passo que a demiurgia representa um saber teacutecnico que cabe a

pequeno nuacutemero de especialistas Quem natildeo participar das duas virtudes deve ser excluiacutedo

e punido como se fosse uma doenccedila As relaccedilotildees cultuais estabelecem uma uniatildeo entre os

homens e os deuses mas estas natildeo satildeo suficientes para a uniatildeo dos homens entre si O fogo

teacutecnico eacute fator de divisatildeo e natildeo de uniatildeo A justiccedila no sentido largo para o cumprimento

das regras exige um sentimento iacutentimo de contenccedilatildeo que leva em conta a opiniatildeo do outro e

que confere vida ao direito Enquanto a demiurgia abarca a necessidade de equipamentos e

79

alimentaccedilatildeo a poliacutetica institui laccedilos de uniatildeo e seguranccedila Segundo Brisson o mito do

Protaacutegoras representa o surgimento da cidade e funda sua divisatildeo fundamental a partir da

oposiccedilatildeo demiurgia poliacutetica Tal divisatildeo eacute descrita como natural e espelha a oposiccedilatildeo

Natureza Cultura

Deuses

Mortais Homens

Animais Teacutecnicas militar e poliacutetica

Demiurgia

As oposiccedilotildees destacadas por Brisson embora esclarecedoras parecem

condicionadas agrave concepccedilatildeo positiva do Direito elaborada por Louis Gernet

Diacutekē eacute a justiccedila tal qual ela se manifesta antes de tudo no

julgamento ndash e por conseguinte na condenaccedilatildeo na execuccedilatildeo ndash e

tambeacutem por referecircncia impliacutecita e expliacutecita a um outro termo algo

como o jus strictum () Pode-se dizer que (aidoacutes) designa um

sentimento de respeito ou de moderaccedilatildeo que se aproxima pelo

menos da reverecircncia religiosa ndash que de fato pode ter por objeto a

divindade ndash mas vale essencialmente na ordem das relaccedilotildees

humanas onde ele comanda certas abstenccedilotildees ou certas atitudes

diante de um parente de um ser eminente em dignidade de um

suplicante sentimento social e moral jaacute que aidoacutes eacute

simultaneamente zelosa com a opiniatildeo puacuteblica da qual ela aparece

muitas vezes como a contrapartida e preocupada em um sentido de

bom grado aristocraacutetico com o que o sujeito deve a si mesmo

(GERNET 1982 p 14-15)

Em contrapartida ao aspecto afetivo que emana da opiniatildeo coletiva Walter Otto

realccedila a interpretaccedilatildeo de que originariamente Aidoacutes natildeo designa ldquoa vergonha de algo que

faz enrubescer mas a apreensatildeo sagrada face ao intocaacutevel a delicadeza do coraccedilatildeo e do

espiacuterito as consideraccedilotildees o respeito e na vida sexual o silecircncio e a vida da virgemrdquo

(1995 p 81) Todas as acepccedilotildees de Aidoacutes seriam abarcadas pelo charme ambivalente da

80

figura divina que eacute ao mesmo tempo respeitaacutevel e respeitoso puro e a piedosa apreensatildeo

diante daquilo que eacute puro

Derivado de aiacutedomai (que indica o respeito a um deus e laiciza-se no emprego

juriacutedico do perdatildeo ao assassiacutenio involuntaacuterio) Aidoacutes significa o sentimento de honra e

neacutemesis o temor da infacircmia de outro raramente no sentido ativo de tiacutemido e taacute aidoicirca que

designa as partes vergonhosas De Aidoacutes foi tirado 1) aidoicircos ndash divindades ou pessoas

respeitaacuteveis e 2) o composto anaidḗs impudecircncia (CHANTRAINE 1999 p 31) A palavra

aidoicirca originalmente designativa da genitaacutelia origina a palavra que designa a vergonha A

experiecircncia baacutesica da vergonha segundo B Williams (1993 p 78-80) eacute a ldquode ser visto

inapropriadamente pelas pessoas erradas na condiccedilatildeo erradardquo Tal experiecircncia eacute

diretamente conectada com a nudez sobretudo em conexotildees sexuais O afeto que decorre

da inadequaccedilatildeo decorrente da violaccedilatildeo da intimidade suscita reaccedilotildees imediatas de

evitamento Evitar a experiecircncia intoleraacutevel da vergonha serve para um propoacutesito antecipar

o afeto que se padeceria sob a exposiccedilatildeo ao olhar alheio A violaccedilatildeo de aidoacutes implica o par

reflexivo de neacutemesis uma reaccedilatildeo que varia do choque do ressentimento ateacute a justa

indignaccedilatildeo A vergonha pode ser antecipatoacuteria de uma exposiccedilatildeo possiacutevel prospectiva ou

derivada da exposiccedilatildeo irreversiacutevel agrave humilhaccedilatildeo retrospectiva

Por outro lado se o enfoque de Otto que vincula Aidoacutes ao temor reverente estiver

correto o emprego poliacutetico no contexto do Protaacutegoras indica uma transposiccedilatildeo semacircntica

para um afeto dependente sobretudo do olhar coletivo ainda que seja sancionada pelo

respeito devido a uma phḗmē declaraccedilatildeo divina de Zeus A mutaccedilatildeo da acepccedilatildeo do termo

indica a passagem de um temor religioso exteriorizado para uma vergonha interiorizada

resultante da coerccedilatildeo da opiniatildeo coletiva

81

A leitura que Brisson faz do mito tem como corolaacuterio o reconhecimento de que a

Poliacutetica eacute natildeo somente uma teacutecnica superior mas ldquoa uacutenica que eacute outorgada pelos deuses e a

uacutenica teacutecnica positiva o que implica que o ensino desta teacutecnica seja ao mesmo tempo o

mais elevado e o uacutenico positivordquo O que transpareceria insoacutelito em Platatildeo seria o fato de ele

ldquonatildeo dar nenhuma atenccedilatildeo agraves virtudes que o indiviacuteduo enquanto indiviacuteduo deve praticar

Soacute contam para ele as virtudes cujo exerciacutecio deve permitir a um indiviacuteduo encontrar seu

lugar numa sociedade harmoniosa onde natildeo interveacutem nenhuma mudanccedilardquo (2003 p 166)

Entretanto como observa Leacutevi-Strauss a maior oposiccedilatildeo que se observa em

estruturas miacuteticas ocorre no plano cosmoloacutegico que expressa a transcendecircncia insuperaacutevel

de uma realidade em relaccedilatildeo ao mundo percebido (1993 p 152-205) A antropogonia de

Protaacutegoras eacute tambeacutem uma cosmologia cuja funccedilatildeo mais marcante eacute da ordem de algo que

vem a ser

Ao se colocar como mestre de excelecircncia poliacutetica que se diferencia dos demais que

ensinam disciplinas teacutecnicas comuns como caacutelculo astronomia e muacutesica Protaacutegoras

afirma o itineraacuterio de uma nova modalidade de iniciaccedilatildeo quem recebe suas liccedilotildees torna-se

melhor a cada dia e sempre recebe acreacutescimos em direccedilatildeo ao melhor (aeigrave epigrave tograve beacuteltion

epididoacutenai 318a) Protaacutegoras transpotildee as antigas iniciaccedilotildees de Orfeu e Museu para o

itineraacuterio ritual de progredir em direccedilatildeo ao melhor e adquirir um novo estatuto de ser A

finalidade de suas liccedilotildees eacute desenvolver os dons naturais de que todos participam e levaacute-los

ao melhor acabamento criando um gecircnero superior de homem num novo plano de ser

Assim como os ritos das teletaiacute operam a repeticcedilatildeo coacutesmica dos atos primordiais e um

retorno vivido agraves origens constitutivas da realidade presente assim tambeacutem o rito do seu

ensino reproduz a estrutura de imagens de seu mito Protaacutegoras aparece como o novo

mensageiro divino o portador do fogo ou o arauto que eacute depositaacuterio dos instrumentos

82

oliacutempicos salvaguardas para a vida e condiccedilatildeo de organizaccedilatildeo da cidade Protaacutegoras eacute um

novo Hermes e seu ensino eacute ferramenta divina que eleva o homem e o aproxima do plano

dos deuses imortais Mas para isso eacute preciso aperfeiccediloar-se no exerciacutecio de sua proacutepria

concepccedilatildeo de aidōs e diacutekē

Quais satildeo as polarizaccedilotildees condensadas no par miacutetico aidōs e diacutekē Ambos satildeo

determinaccedilotildees de Zeus personificaccedilatildeo da soberania acompanhadas por lei suprema

inexoraacutevel Aleacutem disso satildeo os constituintes primordiais que possibilitam a existecircncia das

comunidades poliacuteticas Mas assim como Pandora compotildee modelaccedilatildeo de opostos do

visiacutevel bem aparente e dos males invisiacuteveis ocultos da determinaccedilatildeo maacutexima da forma de

virgem e da indeterminaccedilatildeo imprevisiacutevel aidōs e diacutekē devem representar compensaccedilatildeo

simeacutetrica para a potecircncia piacuterica da demiurgia

Quais satildeo as caracteriacutesticas intriacutensecas agraves teacutekhnai Na delineaccedilatildeo das imagens do

mito as teacutekhnai surgem como resultado da potecircncia demiuacutergica aportada pelo fogo Elas

satildeo o resultado de um dolo oculto da accedilatildeo fraudulenta impermeaacutevel ao olhar Aleacutem disso

caracterizam-se pela participaccedilatildeo desigual dos homens Sua reparticcedilatildeo foi feita de modo

que um uacutenico homem que possui a arte da medicina eacute suficiente para um grande nuacutemero de

profanos39

Haacute pois uma relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que confere o saber teacutecnico40

Eacute por

participar do saber teacutecnico e pelo domiacutenio do fogo que cada demiurgo pode iniciar-se em

sua especificidade que o distingue dos profanos idioacutetais A participaccedilatildeo desigual engendra

39

(Protaacutegoras 322c06-07) 40 Karl Reinhardt (2007 p 51 52) chama a atenccedilatildeo para o fato de que o mito narrado por Protaacutegoras suscita o

gosto a delicadeza o divertimento mas natildeo faz nenhuma menccedilatildeo ao tema da alma A diferenccedila entre um

mito narrado por um Sofista e o mito filosoacutefico reside nessa negaccedilatildeo da alma e do delineamento negativo que

Platatildeo esboccedila da figura do Sofista Para que Platatildeo consignasse ldquoseu coraccedilatildeordquo a um mito ldquoseria necessaacuteria

uma conversatildeo uma transformaccedilatildeo de sirdquo Contudo o que Reinhardt chama de ldquoconversatildeordquo estaacute jaacute ingresso

na oposiccedilatildeo entre a concepccedilatildeo protagoriana de teacutekhne ndash e sua correspondente iniciaccedilatildeo demiuacutergica ndash e a

iniciaccedilatildeo ao Ser poliacutetico

83

os opostos dēmiourgoi e idioacutetais que reproduzem no plano do devir as oposiccedilotildees

cosmoloacutegicas entre deuses e mortais sagrado e profano inteligecircncia e ausecircncia de

inteligecircncia Aleacutem disso as teacutecnicas instrumentalizam a violecircncia e a morte Depois do

domiacutenio do fogo os homens puderam forjar instrumentos para a caccedila mas tambeacutem

passaram a destruir-se mutuamente

Agrave participaccedilatildeo desigual na potecircncia das artes Hermes distribui de maneira

equacircnime aidōs e diacutekē como potecircncias definidoras do estatuto humano Todo aquele que

natildeo puder participar delas deve ser morto como peste A natildeo participaccedilatildeo no par de

potecircncias implica a exclusatildeo da determinaccedilatildeo essencial para a formaccedilatildeo das cidades e por

conseguinte da proacutepria humanidade como um todo A ausecircncia de aidōs e diacutekē representa a

desumanizaccedilatildeo a perda da determinaccedilatildeo essencial que torna possiacutevel que os homens

convivam sem se destruiacuterem mutuamente Mais do que mera forccedila de integraccedilatildeo como

afirma Brisson aidōs e diacutekē determinam a existecircncia do homem como ser poliacutetico e por

conseguinte da existecircncia da humanidade toda Ademais Hermes distribui as potecircncias

determinantes com a sanccedilatildeo aberta de Zeus em oposiccedilatildeo ao furto oculto de Prometeu A

participaccedilatildeo nessas potecircncias essenciais implica por consequecircncia a exposiccedilatildeo ao olhar

coletivo Agrave inteligecircncia teacutecnica fraudulenta e oculta que resulta na destruiccedilatildeo de todos por

todos se opotildee a participaccedilatildeo essencial em aidōs e diacutekē que pressupotildee o olhar de todos

sobre todos Desse modo pode-se destacar a oposiccedilatildeo entre aquilo que eacute recocircndito ao olhar

e aquilo que exige o olhar de todos sobre todos A ocultaccedilatildeo ao olhar acarreta a destruiccedilatildeo

muacutetua Os homens cometiam injusticcedilas uns aos outros por natildeo possuiacuterem a teacutekhnē poliacutetica

cuja ausecircncia configura um quadro de violecircncia muacutetua (ēdiacutekoun allḗlous haacutete ouk eacutekhontes

tḗn politikḗn teacutekhnēn 322b08) O olhar de todos sobre todos acarreta a renuacutencia ou

impedimento ao uso da violecircncia Ao oacutedio oculto se opotildee a philiacutea manifesta

84

A existecircncia da coletividade humana depende da associaccedilatildeo propiciada pela philiacutea e

da capacidade de cooperaccedilatildeo organizada O plano humano abarca duas estruturas coletivas

que se desdobram em dois mundos o do interior da cidade e o do exterior o mundo da

philiacutea e o mundo da morte (BURKERT 2005 p 31)

Mas quais satildeo as determinaccedilotildees mais distintivas de aidōs e diacutekē41

Em primeiro

lugar assim como a participaccedilatildeo na sabedoria teacutecnica e o domiacutenio do fogo constituem

potecircncias essenciais para a existecircncia do gecircnero humano o par de opostos compensatoacuterios

instituiacutedo por Zeus constitui condiccedilotildees de determinaccedilatildeo da existecircncia dos homens em

conviacutevio nas poacuteleis Tais determinaccedilotildees se opotildeem agraves demais teacutekhnai pela igualdade

participativa e pela abertura ao olhar coletivo Elas abarcam simultaneamente os afetos

vinculados ao olhar e agrave opiniatildeo coletiva e agrave retribuiccedilatildeo ineludiacutevel ao dolo Zeus

efetivamente daacute justiccedila aos homens condiccedilatildeo para a existecircncia da philiacutea o viacutenculo afetivo

determinante para a vida comum e exigecircncia de retribuiccedilatildeo divina que estabelece o caraacuteter

absoluto da consecuccedilatildeo infaliacutevel agrave accedilatildeo poliacutetica

Mas o par aidōs e diacutekē eacute inextricaacutevel dos afetos que suscita Na fundaccedilatildeo mesma da

existecircncia cosmoloacutegica das cidades subjazem afetos psiacutequicos Haacute uma homologia

estrutural entre as condiccedilotildees afetivas que possibilitam a existecircncia das cidades e impedem a

41

Sahonhouse faz um levantamento das traduccedilotildees sobre o termo no Protaacutegoras ldquoGuthrie traduz

como respeito pelos outros e respeito pelos companheirosW C Taylor como consciecircncia Sinclair como

dececircncia Cropsey o descreve como um complexo amaacutelgama entre respeito e susceptibilidade agrave vergonha ou

desgraccedila Bartlett o traduz como vergonha e acrescenta as notas de temor respeitoso e reverecircncia (2008 p 63

n 9) Segundo Douglas Cairns o conceito de honra nunca esteve afastado da avaliaccedilatildeo daquilo que eacute

constitutivo em tanto no que diz respeito agrave proacutepria honra de algueacutem ou status como no

reconhecimento das exigecircncias de se honrar os outros como algo que deve inibir as proacuteprias accedilotildees de algueacutem

Assim os diversos usos conferem unidade ao termo Ele pode indicar por exemplo vergonha diante da

proacutepria falha ou humilhaccedilatildeo embaraccedilo social inibiccedilatildeo em agir por medo do que os outros vatildeo dizer e

respeito diante do estatuto dos outros ou ainda para legitimar exigecircncias para tratar bem os hoacutespedes

suplicantes Todos os sentidos compartilham o foco no balanccedilo apropriado entre a proacutepria honra de algueacutem e

a honra dos outros seria uma emoccedilatildeo que cobre tanto o sentido de vergonha como de respeito e foca

simultaneamente a proacutepria honra como a dos outros (CAIRNS 1993)

85

destruiccedilatildeo muacutetua dos homens A homologaccedilatildeo eacute suscitada pelos afetos que constituem a

determinaccedilatildeo de homens e cidades

Se o homem eacute a medida de todas as coisas das que satildeo como satildeo e das que natildeo satildeo

como natildeo satildeo42

haacute todavia uma norma divina absoluta que determina o criteacuterio de que o

afeto determinante da philiacutea seja remetido ao olhar aberto coletivo e agrave retribuiccedilatildeo infaliacutevel

que se segue agraves accedilotildees injustas O tatildeo celebrado relativismo de Protaacutegoras deriva de norma

divina e por conseguinte absoluta que institui a medida do olhar de todos sobre todos

condiccedilatildeo poliacutetica da convivecircncia

O olhar muacutetuo configura afetos restritivos cuja funccedilatildeo primaacuteria consiste em

contrabalanccedilar os afetos violentos que se expressam em accedilotildees injustas e na violecircncia

destrutiva Tais afetos levam em conta o olhar e por conseguinte estatildeo na ordem

constitutiva da alteridade do levar em conta a existecircncia do olhar alheio como outro de si

A desconsideraccedilatildeo ao olhar implica a retribuiccedilatildeo punitiva como contrapartida causal para a

violaccedilatildeo deste princiacutepio de accedilatildeo afetivo que eacute tambeacutem o princiacutepio da accedilatildeo valorativa A

teacutecnica poliacutetica eacute primordialmente a teacutecnica valorativa da alteridade Ela estabelece a

medida pela qual o homem eacute meacutetron o olhar aberto que define a accedilatildeo aceitaacutevel na cidade

Como afirma Saxonhouse o conhecimento da desgraccedila implicada pela transgressatildeo

desses limites surge somente a partir das interaccedilotildees com os outros A vergonha dissolve

aquele que desconhece e natildeo reverencia os costumes e desconsidera as opiniotildees da

coletividade de seu entorno A irreverecircncia para com o olhar do outro eacute incompatiacutevel com a

vergonha (SAXONHOUSE 2008 p 63)

42

Protaacutegoras 80 B 1 DK SEXTUS EMPIRICUS adv math VII 60 Disponiacutevel em

httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics80-B

(Teeteto 160e09)

86

Aidōs e diacutekē compotildeem os afetos que inibem os impulsos para a morte e para a

destruiccedilatildeo e implicam as accedilotildees retribuidoras absolutas para a violecircncia cometida Se a

cidade e a comunidade poliacutetica existem eacute porque aidōs e diacutekē satildeo os princiacutepios que

possibilitam a coexistecircncia artificial entre os homens a partir da diferenciaccedilatildeo das accedilotildees

rudimentares que terminavam na violecircncia destrutiva Aidōs e diacutekē satildeo princiacutepios de

inibiccedilatildeo primordiais ao impulso para matar Eles emergem diretamente do temor que Zeus

experimenta ao prever a destruiccedilatildeo humana Mas eacute preciso ainda acrescentar a educaccedilatildeo

para que os homens tenham seu completo acabamento e possam conviver vinculados por

um afeto de pertenccedila muacutetua

Para cumprir seu papel ao mesmo tempo de caccediladores e guerreiros protetores da

polis os homens precisam conciliar a coragem para afrontar os perigos e a confiabilidade

exigida pela amizade Eacute preciso a previdecircncia astuciosa que permite a renuacutencia agrave satisfaccedilatildeo

do desejo imediato o domiacutenio da palavra a demiurgia das teacutecnicas manuais e instrumentais

para a forja de armas e ferramentas As accedilotildees humanas satildeo regradas artificialmente por uma

dupla tensatildeo de opostos o uso das armas e os afetos destrutivos devem ser dirigidos para

fora da cidade e o afeto integrador da philiacutea deve manter a coesatildeo coletiva interna e

amalgamar a unidade ciacutevica Aidōs e diacutekē conciliam em tensatildeo o amor e a morte Se a

vergonha eacute o afeto decorrente da transgressatildeo ao temor respeitoso que delimita a existecircncia

ciacutevica pela philiacutea as leis implicadas por diacutekē guiam e regulam os afetos destrutivos a

previsatildeo teacutecnica e a adaptabilidade para o proveito coletivo para o melhor do homem

como medida de todas as coisas Diacutekē implica que para ser medida de todas as coisas o

homem deva submeter-se agraves leis de modo que a violecircncia seja sancionada pela arte da

guerra na exterioridade e interdita pela poliacutetica no domiacutenio da poacutelis O que configura a accedilatildeo

heroacuteica num domiacutenio por ser necessaacuterio eacute absolutamente interdito em outro O homem

87

medida submetido agrave diacutekē eacute aquele cujas gestas heroacuteicas de um plano satildeo accedilotildees criminaacuteveis

em outro noacutesos peste da cidade

A concepccedilatildeo de diacutekē como dom compartilhado e determinaccedilatildeo do gecircnero humano

ultrapassa a noccedilatildeo primitiva ligada a uma ordem coacutesmica cujo equiliacutebrio exige a

compensaccedilatildeo de opostos A ordem da natureza associa-se agrave noccedilatildeo religiosa de um tempo

perioacutedico A adikiacutea se expia afirma Anaximandro segundo a ordem do tempo43

Pois donde a geraccedilatildeo eacute para os seres eacute para onde tambeacutem a

corrupccedilatildeo se gera segundo o necessaacuterio pois datildeo eles mesmos

justiccedila e deferecircncia uns aos outros pela injusticcedila segundo a

ordenaccedilatildeo do tempo

Aidōs e diacutekē eacute um par de opostos em tensatildeo A paz interna que deve reinar no seio

da cidade pressupotildee os limites da norma da ordem ciacutevica e os limites impostos pelos

afetos que levam em conta o olhar coletivo e a dissoluccedilatildeo afetiva inexoraacutevel que se segue agrave

violaccedilatildeo desses limites O estabelecimento desses limites suscita a dissoluccedilatildeo intriacutenseca agrave

vergonha ao medo a inibiccedilatildeo e a culpabilidade mas fora do centro ciacutevico as barreiras satildeo

ordenadamente levantadas pela arte da guerra dessacralizaccedilatildeo da violecircncia pelo uso das

armas a philiacutea se equilibra no seu oposto o oacutedio A comunidade poliacutetica assenta-se no

amor mas tambeacutem no sangue e na morte

A gecircnese da ordem poliacutetica da cidade inclui o seu elemento contraacuterio em tensatildeo

permanente A vergonha e a culpabilidade que emergem desta tensatildeo exigem desejo de

compensaccedilatildeo e reparaccedilatildeo que soacute pode efetivar-se no itineraacuterio de um acabamento em

direccedilatildeo ao melhor prometido pela educaccedilatildeo (BURKERT 2005 p 30-34)

43

DK 1 SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 24 13 Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics12-B

acesso em 042010 Traduccedilatildeo de Cavalcante com ligeira modificaccedilatildeo

88

Todavia para Platatildeo se o valor supremo do homem depende do olhar coletivo

entatildeo a excelecircncia deve se moldar a partir da exterioridade aberta que configura os afetos

ligados a aidoacutes A formaccedilatildeo poliacutetica passa a ser assim uma iniciaccedilatildeo agrave teacutecnica de domiacutenio

do olhar e da opiniatildeo teacutecnica da exterioridade cambiante que valora todas as coisas a partir

do aacutentrōpos em detrimento do seautoacuten do si mesmo teacutecnica que ganha o prestiacutegio na

cidade mas perde a alma

A encenaccedilatildeo dramaacutetica do Protaacutegoras eacute a miacutemesis de uma iniciaccedilatildeo nos misteacuterios

que coloca em perigo a alma44

O inventaacuterio histoacuterico das iniciaccedilotildees e misteacuterios

empreendido por Walter Burkert (1993 527-577) permite a distinccedilatildeo dos elementos

alusivos da encenaccedilatildeo dramaacutetica do Protaacutegoras O jovem Hipoacutecrates desejoso de iniciar-se

nos misteacuterios da praacutetica da sabedoria45

pretende receber um ensino transmitido por um

guia embora natildeo saiba o que dizer sobre o seu conteuacutedo efetivamente inexprimiacutevel

anaacutelogo do aacuterreton o segredo dos misteacuterios Protaacutegoras aparece como um guia um

mystagogos a quem Hipoacutecrates confiaraacute sua alma esperando adquirir um novo estatuto e

experimenta simultaneamente o medo proacuteprio ao grande perigo de expor sua alma ao

desconhecido e a promessa de uma nova realidade radiante O questionamento eroacutetesis

socraacutetico induz agrave revelaccedilatildeo de que o desejo pelo destaque e excelecircncia poliacutetica eacute

incompatiacutevel com a vergonha de aparecer ao olhar puacuteblico com o estatuto e desvalor de um

sofista em meio ao lusco-fusco do alvorecer que se anuncia Hipoacutecrates manifesta

fisicamente o sinal inequiacutevoco da vergonha enrubesce (Protaacutegoras 312a)

44

(Protaacutegoras 313a01-02) 45 (312d05) fabricante de praacuteticas do saber equivalente ao

saacutebio (LIDDELL SCOTT 1997 p 554)

89

Como profano suplicante o recipiendaacuterio protomyacutestes se dirige agrave casa do rico

Caacutelias equivalente do telesteacuterion templo das iniciaccedilotildees ou da caverna siacutembolo secreto

do oculto e do transcendente (BURKERT 1993 p 555)

Apoacutes percorrer a rota de peregrinaccedilatildeo o candidato se depara com a porta que separa

o sagrado do profano A passagem pela porta exige a passagem pelo seu guardiatildeo um

eunuco que parodia os temiacuteveis guardas de Zeus (Protaacutegoras 320d) ou os guardiotildees

postados agrave entrada do Hades (BURKERT 1993 p 558) Soacutecrates como espeacutecie de

hierophanteacutes que iraacute mostrar as coisas sagradas termina o assunto profano impuro antes de

bater agrave porta pois natildeo eacute permitido misturar o impuro ao puro

A entrada eacute vetada porque o guarda os toma por sofistas e fecha violentamente a

porta A porta eacute a imagem que abarca a correspondecircncia estrutural entre modalidades

muacuteltiplas de passagem das trevas para a luz do sol da preexistecircncia do homem para a

humanidade da vida para a morte e do novo nascimento para um estatuto de ser mais

elevado A abertura da porta torna possiacutevel a passagem para um modo de ser cosmicizado

pois todo Koacutesmos pressupotildee a passagem Uma vez que o homem vem agrave luz ele natildeo eacute um

ser acabado Eacute preciso repetir o vir a ser primordial e os vaacuterios planos de determinaccedilotildees

originaacuterias mediante ritos de passagem de iniciaccedilotildees sucessivas que propiciam a ascensatildeo

a modalidades mais elevadas de ser (ELIADE 1965 p 153)

O jovem Hipoacutecrates pretendia buscar o mediador da transmissatildeo do ensino

iniciaacutetico secreto que o levaria ao acabamento do homem pleno ao progresso gradativo em

direccedilatildeo ao melhor agrave melhor disposiccedilatildeo dentre a infinidade de aparecircncias que configuram a

medida de cada um dos homens A iniciaccedilatildeo protagoriana opera a mudanccedila em direccedilatildeo ao

90

melhor mudanccedila no estatuto do ser transformando metabaacutellō e metabletḗon46

Assim

como o meacutedico mediante os phaacutermakoi muda as disposiccedilotildees do corpo o sofista muda as

disposiccedilotildees da alma pelo seu ensino iniciaacutetico (Teeteto 167a04-06) A porta fechada e

guardada da casa de Caacutelias separa os ritos internos discretos da abertura ao olhar coletivo e

delimita a ocultaccedilatildeo do misteacuterio aos profanos

O apresentante Soacutecrates enuncia uma explicaccedilatildeo que serve de syacutenthema palavra de

passe que franqueia a entrada no recinto sagrado A declaraccedilatildeo de que natildeo satildeo sofistas

possui o efeito ritual de garantir que natildeo satildeo impuros e anuncia a iniciativa individual pela

iniciaccedilatildeo myacuteēsis atraveacutes do encontro com Protaacutegoras (314c-e)

A entrada no recinto sagrado revela o rito dos discursos sagrados hieroigrave loacutegoi de

Protaacutegoras Um seacutequito de estrangeiros encantados como se fora pelo charme do proacuteprio

Orfeu o segue cosmicamente em evoluccedilotildees circulares ritualmente regulares A viacutevida e

espetacular caricatura da cena fornece natildeo obstante a ironia indiacutecios caracteriacutesticos da

accedilatildeo ritual O ritual eacute ldquoalgo ataviacutestico compulsivo insensato no miacutenimo circunstancial e

supeacuterfluo mas ao mesmo tempo sagrado e misteriosordquo (BURKERT 1997 p 35-37)

O ritual eacute um conjunto de accedilotildees redirecionadas para a demonstraccedilatildeo exposiccedilatildeo

apontada para o olhar eacute um falar mediante gestos estereotipados e padronizados

independentes da situaccedilatildeo e afetos atuais O rito repete e ordena accedilotildees exageradas

aparentemente desvinculadas do contexto imediato com o escopo de esboccedilar um tipo

especiacutefico de efeito teatral eficaz ao olhar e de transmitir uma significaccedilatildeo mimeacutetica natildeo

mediada pela palavra

46

(Teeteto 167a04-06)

91

A harmonia do coro provoca alegria em Soacutecrates A alegria o devaneio e o ecircxtase

das iniciaccedilotildees oacuterficas satildeo intimamente ligados agrave danccedila e agrave muacutesica riacutetmica (BURKERT

1993 p 557) ldquoA repeticcedilatildeo faz nascer o ritmo o acompanhamento dos gestos por sinais

acuacutesticos daacute nascimento agrave muacutesica e agrave danccedila ndash duas formas de solidarizaccedilatildeo humanardquo

(BURKERT 2005 p 35) ldquoO ritual dramatiza a interaccedilatildeo poliacutetica a ordem existente sem

excluir que um rito possa fundar e definir um novo estatutordquo (ibid p 37) Segue-se a alusatildeo

direta agrave descida ao Hades katabasis siacutembolo da iniciaccedilatildeo em que Heraacutecles e Tacircntalo satildeo

ironicamente substituiacutedos por Hiacutepias e Proacutedico de Ceacuteos (315b-d)

A paroacutedia iniciaacutetica eacute mais do que irocircnica Platatildeo encena a laicizaccedilatildeo dos discursos

sagrados e sua transposiccedilatildeo num ensino na transmissatildeo iniciaacutetica de um saber que enseja a

condiccedilatildeo dos espectadores poliacuteticos os epoacutepatai os iniciados que ascendem a um estado

superior que promete a riqueza e a bem-aventuranccedila

A dramatizaccedilatildeo irocircnica sugere o falseamento de um ensino cuja eficaacutecia pretende

remontar agrave antropogonia primeva e dela tirar seu sentido Mas o perigo natildeo consiste

somente no risco e no terror que antecede a experiecircncia da prova iniciaacutetica O grande perigo

consiste em entregar a alma a misteacuterios cujos efeitos natildeo se pode afirmar que a melhorem

ou a piorem Para discriminar a natureza dos efeitos do ensino sobre a alma eacute preciso que o

olhar perscrutador do eacutelenkhos socraacutetico coloque os misteacuterios da iniciaccedilatildeo sofiacutestica sob

exame

92

III - RELACcedilOtildeES ESTRUTURAIS NO MITO DO GOacuteRGIAS O EacuteTHOS EM

QUESTAtildeO

31 Eros e Loacutegos

Audaacutecia e ardor tais satildeo os afetos divinos que incutidos na psykheacute fazem com que

o guerreiro sobreexceda o acircnimo das accedilotildees tatildeo somente humanas que encenam a batalha (Il

V 3)

Audaacutecia e ardor ndash tais satildeo os afetos pelos quais a dialeacutetica socraacutetica choca-se

ingente com a retoacuterica daquele que viria a ser ao mesmo tempo o mais violento e o mais

brilhante dos interlocutores que travam combate com Soacutecrates Caacutelicles

Batalha e guerra poacutelemos kaiacute maacutekhe eis o cenaacuterio com que Platatildeo monta o campo

dramaacutetico dialoacutegico em que satildeo confrontados os princiacutepios e valores ordenadores que

configuram dois modos de vida diametralmente opostos ndash cada qual com exigecircncias

especificidades procedimentos e formaccedilotildees perenemente antagocircnicas Um e outro

culminam no aacutegon retininte dos loacutegoi de seus campeotildees Moldado no apaixonado manifesto

de Soacutecrates o loacutegos dialeacutetico denuncia a ambiccedilatildeo unacircnime desmascara a injusticcedila e a

desfaccedilatez coerciva da maioria em torno da voluacutepia O discurso antagonista defendido

pelos retores e poliacuteticos eacute modelado pelo apetite desmesurado de poder de Caacutelicles que

reclama o testemunho histoacuterico dos grandes homens que se tornaram notaacuteveis

No retinir dos loacutegoi insinua-se a reverberaccedilatildeo da imprecaccedilatildeo a araacute que soa como

o vaticiacutenio do vidente que antecipa a praga o modo de vida implicado pela Filosofia

entendida como disciplina que se estende para aleacutem da educaccedilatildeo juvenil eacute indigno das

coisas belas nobres e bem reputadas entre os homens de valor eacute um modo de vida proacuteprio

da condiccedilatildeo dos sub-homens de escravos Ineficaz nos debates puacuteblicos a Filosofia

93

perverte a alma e resulta na incapacidade decisoacuteria em questotildees de justiccedila do que eacute

provaacutevel e crediacutevel incapacidade que redunda na impossibilidade de defesa diante de um

tribunal estabelecido por acusaccedilatildeo injusta levada a efeito por acusador desonesto e que

ineludivelmente acabaria na condenaccedilatildeo de Soacutecrates agrave morte (Goacutergias 485c-486b)

O manifesto socraacutetico se forja pela disposiccedilatildeo simeacutetrica da oposiccedilatildeo norteadora dos

valores Gecircneros de vida opostos satildeo determinados pela ordenaccedilatildeo simetricamente oposta

de valores incompatiacuteveis ndash ordenaccedilatildeo que implica praacuteticas e modos de inteligibilidade

distintos que por sua vez exprimem-se no esgrimir de discursos multifacetados Um e

outro identificam diferentes pragas psiacutequicas diferentes noacutesoi que exigem compensaccedilatildeo

mediada pela eficaacutecia discursiva do adivinho porta-voz das potecircncias ofendidas e

diferentes prescriccedilotildees A perversatildeo e a miseacuteria para Caacutelicles consistem na gradual

ignoracircncia determinada pela praacutetica filosoacutefica das leis em vigor na cidade da maneira de

falar exigida nas relaccedilotildees particulares e nos contratos puacuteblicos na perplexidade diante dos

prazeres e das voluacutepias dos homens e dito numa soacute fala em tornar-se irresoluto para com

todas as coisas que dizem respeito agraves maneiras de viver ao caraacuteter47

Valores opostos implicam caracteres que se contradizem e por conseguinte

pressupotildeem a multiplicidade de princiacutepios ordenadores opostos (DIXSAUT 2001 p 133)

Natildeo obstante a diversidade soacute pode ser unificada mediante a unidade do afeto na

afetividade do mesmo paacutethos (Goacutergias 481 d) A significaccedilatildeo unificadora deriva da

(Goacutergias 484 c09-d07)

94

possibilidade de se fazer mostrar um para o outro os proacuteprios afetos48

Soacutecrates e Caacutelicles

padecem do mesmo afeto eroacutetico direcionado para objetos distintos que caracterizam a

natureza do Eacuteros

O amor de Soacutecrates por Alcibiacuteades de um lado injunge a ordenaccedilatildeo cataacutertica da

encantaccedilatildeo a accedilatildeo terapecircutica dos belos discursos que toma a alma do ouvinte de assalto

como um canto de Sirena (Banquete 215c-216c) de outro deixa-se modelar pela Filosofia

ndash um desejo que eacute determinado pelo desejo mais elevado o desejo que aspira a ldquotocarrdquo o

belo visto que a Filosofia eacute ao mesmo tempo a muacutesica mais elevada (Feacutedon 61a) e o desejo

puro pelo que eacute ldquoem si mesmordquo (DIXSAUT 2001 p 184) Tal desejo faz do filoacutesofo um

carente e um amante incessantemente agrave procura do objeto de seu amor movido pela ldquobela

esperanccedilardquo (Feacutedon 114c) de encontraacute-lo e encontrando-o com a aspiraccedilatildeo imorredoura de

quem haveraacute de continuar procurando

O amor de Caacutelicles eacute simultaneamente modelado pelas pretensotildees e desejos de

Demos o filho de Pirilampo e demos o povo reunido na assembleacuteia (Goacutergias 481e) Em

Soacutecrates o amor eroacutetico deixa-se ordenar pelo desejo mais elevado e transpotildee-se como

forccedila encantatoacuteria do loacutegos ordenador na psykheacute do amado Em Caacutelicles o amor eroacutetico

segue o movimento inconstante da multiplicidade de desejos caoacuteticos da multidatildeo e

aquiesce aos apelos do amado de maneira que se transpotildee em discurso lisonjeiro no loacutegos

agradaacutevel cujo efeito eacute o incitamento e o acirramento dos apetites que o geraram Em

Soacutecrates o discurso eroacutetico afasta as falsas ilusotildees da alma e forceja o amado ao

reconhecimento das proacuteprias carecircncias e da falta de cuidado de si (Banquete 216a) Em

Caacutelicles o discurso compotildee-se na indeterminaccedilatildeo das aparecircncias ilusoacuterias que se

Goacutergias 481 d)

95

entrelaccedilam com a praacutetica poliacutetica Em Soacutecrates o discurso eacute engendrado a partir do desejo

sobre-determinado pelo desejo mais elevado e constante da Filosofia Em Caacutelicles o

discurso eacute engendrado pela inconstacircncia dos desejos indeterminados dos objetos de seu

amor o povo reunido na assembleacuteia Num e noutro o desejo se aconchega agrave inteligecircncia

para engendrar um discurso Em Soacutecrates inteligecircncia e desejo estatildeo em consonacircncia

harmonizam-se num uacutenico movimento ndash o da inteligecircncia do desejo e o do desejo da

inteligecircncia tal como o sopro da flauta se harmoniza com a danccedila do saacutetiro flautista

(Banquete 216c) O desejo possui a inteligecircncia de si mesmo e a inteligecircncia discerne seu

proacuteprio movimento como o movimento do desejo (DIXSAUT 2001 p 143) Em Caacutelicles

desejo e inteligecircncia satildeo asyacutemphonoi49

satildeo dissonantes de modo que o desejo subjuga e

arrasta a inteligecircncia para discernir somente aquilo que o atende o desejo torna-se entatildeo

apetite Quando desejo e inteligecircncia satildeo sinfocircnicos o discurso visa o melhor o beacuteltiston e

porta a explicaccedilatildeo racional (Goacutergias 464c-465e) e as causas de sua natureza50

Quando o

desejo domina a inteligecircncia o discurso visa o prazer e a inteligecircncia discerne apenas os

meios que determinam o seu assentimento num ldquoempirismordquo que atende agrave voluacutepia Num

49 A menccedilatildeo agrave desarmonia indica um desarranjo da multiplicidade de opiniotildees ou um desarranjo de uma

multiplicidade proacutepria ao si mesmo A metaacutefora ingressa uma homologia entre a multiplicidade dos muitos e

uma multiplicidade do si mesmo A intermitecircncia das opiniotildees de Caacutelicles implica a intermitecircncia correlativa

do seu psiquismo Tais questotildees determinam a hermenecircutica da leitura do Haacute uma divisatildeo na

natureza psiacutequica de Caacutelicles que se expressa na dissonacircncia de opiniotildees que natildeo satildeo sustentadas pela

refutaccedilatildeo da tese oposta A metaacutefora da harmonia como concordacircncia bem ajustada indica que o

opera uma concordacircncia no acircmbito do si mesmo ( ) em contraposiccedilatildeo com o

ajustamento e concordacircncia com as opiniotildees e desejos da multidatildeo (PLOCHMANN ROBINSON 1988 p

110)

(Goacutergias 482b04-c03) 50

(Goacutergias 465a)

96

caso e noutro eacute a natureza do desejo que determina o estado da psykheacute O amor eroacutetico faz a

mediaccedilatildeo entre um desejo paradigmaacutetico (a Filosofia ou os desejos da multidatildeo) e a

personificaccedilatildeo do amor Mediaccedilatildeo que engendra loacutegoi e modos distintivos de hierarquizar

valores que por sua vez implicam gecircneros caracteriacutesticos de vida opostos um voltado para

a inteligecircncia da justiccedila do que eacute sempre idecircntico e imutaacutevel o vasto oceano do belo e do

bem (Banquete 211a) e outro voltado para a inteligecircncia do gozo irrefreaacutevel visto o

discernimento e a inteligecircncia de prazeres diversos serem prerrogativas da alma (Goacutergias

465d)

A inconstacircncia do alvo do amor de Caacutelicles determina a intermitecircncia de suas

opiniotildees e a ambivalecircncia de seus afetos Assim como seus afetos oscilam de um fito para

outro o movimento de seus pensamentos se estende em direccedilotildees muacuteltiplas opostas

expressando opiniotildees contraacuterias sobre um mesmo assunto Sua ambivalecircncia alterna-se

entre a doccedilura amistosa e a hostilidade raivosa na tentativa de esconder sua autodissensatildeo

mediante algum pronunciamento dogmaacutetico para logo em seguida contradizer-se

relutante ou involuntariamente revelando seus princiacutepios de accedilatildeo conflitantes Pervertido

pelo medo e atormentado pelos apetites Caacutelicles eacute simultaneamente um mau amante e um

bom odiento sobretudo em relaccedilatildeo a si mesmo (PLOCHMANN ROBINSON 1988 p

105)

A simetria das oposiccedilotildees indica uma estrutura de relaccedilotildees anaacutelogas e homoacutelogas

assim como haacute uma boa disposiccedilatildeo do corpo haacute uma boa disposiccedilatildeo da alma Assim como

a boa disposiccedilatildeo do corpo eacute assegurada por duas artes uma preservadora e outra

restauradora a boa disposiccedilatildeo da alma eacute assegurada por duas artes do mesmo gecircnero

Assim como as artes relativas ao corpo satildeo conduzidas pelo desejo do melhor a boa

disposiccedilatildeo da alma eacute impelida pelo desejo do melhor Assim como as artes do corpo

97

implicam a inteligecircncia da natureza dos seus procedimentos e das causas assim tambeacutem as

artes da alma implicam o loacutegos de sua natureza e de suas causas

Assim como uma imagem eacute uma aparecircncia do modelo original as imagens das artes

autecircnticas satildeo aparecircncias de seus originais A lisonja kolakeiacutea estaacute para a Poliacutetica como as

aparecircncias estatildeo para os originais A cosmeacutetica estaacute para a ginaacutestica como a culinaacuteria estaacute

para a medicina A sofiacutestica estaacute para a legislaccedilatildeo como a retoacuterica estaacute para a justiccedila O

discurso persuasivo estaacute para o discurso racional como o prazer estaacute para o melhor e o

bem A inteligecircncia do prazer imediato estaacute para a inteligecircncia dos prazeres proacuteprios como

a inteligecircncia do empirismo da vantagem estaacute para a inteligecircncia das causas da boa

disposiccedilatildeo O Eros do retor estaacute para o Eros do filoacutesofo assim como a epithymia da

multidatildeo estaacute para a Filosofia

A Filosofia comporta um discurso que por sua proacutepria natureza eroacutetica desfaz a

ilusatildeo gerada pelo apetite as opiniotildees os falsos saberes e a valoraccedilatildeo do que eacute contingente

do que estaacute imerso no devir um discurso que busca refutar por amor da verdade e natildeo por

amor da vitoacuteria e das disputas a philoneikiacutea (Goacutergias 457e-458b) O amor de Soacutecrates por

Alcibiacuteades comporta o paradoxo da abstenccedilatildeo do deleite mesmo tendo-lhe compartilhado o

mesmo leito (Banquete 216e-217e) Soacutecrates soacute pocircde desprezar a beleza dos corpos a

riqueza e todas as vantagens apreciadas pelos muitos porque ascendeu ao cliacutemax do Eros

Tal eacute a razatildeo pela qual o discurso filosoacutefico eacute elecircntico a unificaccedilatildeo do desejo almeja o

plano mais alto e contrapotildee agrave incompletude que se dispersa na multiplicidade a visatildeo

sempiterna do belo

Ardor e audaacutecia - trata-se efetivamente do entrecruzar de dois discursos que

digladiam-se pelo manejo experimentado de dois amorosos animados pelo mesmo afeto

Eros que natildeo obstante volta-se para direccedilotildees excludentes O discurso expressa o

98

movimento da inteligecircncia que por sua vez acopla-se ao Eros ou identificando-se com ele

num uacutenico e mesmo movimento ou submetendo-se a ele (DIXSAUT 2001 p 153-ss) O

movimento eroacutetico do loacutegos acarreta disposiccedilotildees concordantes com seu direcionamento O

discurso pode suscitar o convencimento associado ao saber ou se natildeo emerge do

conhecimento das causas o assentimento engendrado pela aparecircncia visto que saber eacute

diferente de crer A persuasatildeo mesma divide-se em par de naturezas distintas ndash a crenccedila e o

conhecimento (Goacutergias 454 d-e) e por conseguinte o discurso distingue-se pela direccedilatildeo de

seu movimento e de seu alvo Mas tal qual glaacutedio que possui dois gumes o discurso natildeo

pode ser proferido sem que seu efeito seja duplo e sem que a resultante do golpe se volte

para sua origem Animado por um afeto eroacutetico o movimento discursivo natildeo pode ser

desferido sem que haja uma ordenaccedilatildeo preacutevia dos afetos que o engendram sem que o

proacuteprio movimento psiacutequico lhe seja condizente A palavra natildeo pode ser proferida sem que

haja ressonacircncias no acircmago da psykheacute que a engendra

32 ndash Vida e ḗthos

Batalha e guerra - valores organicamente opostos resultam em modos de vida que se

potildeem em pugna que implicam praacuteticas eacutetico-poliacuteticas opostas e que buscam na maacutekhe dos

loacutegoi no combate singular da palavra os posicionamentos que demarcam a estrateacutegia dos

antagonismos

Caacutelicles e Soacutecrates buscaratildeo defender natildeo somente suas teses mas seus gecircneros de

vida e seus valores a partir de razotildees enredadas em discursos estruturados de modo

excludente Retoacuterica e dialeacutetica entrecruzam-se como armas que reclamam o kraacutetos sobre a

inteireza da vida

99

O golpe de Caacutelicles eacute posto de iniacutecio muitas vezes natureza e lei51

se contradizem

uma agrave outra52

- tais satildeo as divisotildees que comportaratildeo todas as diferenccedilas A divisatildeo de um

todo em partes explica ao mesmo tempo as causas pelas quais Goacutergias e Polos caiacuteram em

contradiccedilatildeo e o procedimento refutativo empregado por Soacutecrates O argumento da divisatildeo

haure toda sua forccedila de uma oposiccedilatildeo efetivamente presente na mentalidade aristocraacutetica

grega e por isso justifica-se plenamente como ponto de partida da argumentaccedilatildeo de

Caacutelicles Tratar-se-ia de tese que natildeo sofreria contestaccedilatildeo direta53

O procedimento de dissociar duas noccedilotildees que se pretendem exaustivas permite a

afirmaccedilatildeo de que certos elementos independentes e irredutiacuteveis se mantecircm associados e

confundidos A cilada de Soacutecrates consistiria em se reportar agrave natureza quando se fala

51 Guthrie observa que noacutemos e phyacutesis adquirem significados opostos a partir do clima intelectual do seacuteculo

V ldquoO que existia por noacutemos natildeo existia por phyacutesis e vice-versardquo Nos sofistas historiadores e oradores da

eacutepoca e tambeacutem em Euriacutepides a antiacutetese passa para as esferas da moral e da poliacutetica ldquoNoacutemosrdquo passou a

significar basicamente (a) ldquouso ou costumes baseados em crenccedilas tradicionais ou convencionais quanto ao

que eacute certo ou verdadeirordquo (b) ldquoleis formalmente esboccediladas que codificam o uso corretordquo O sentido de

ldquophyacutesisrdquo por outro lado toma corpo a partir dos filoacutesofos preacute-socraacuteticos Embora o sentido de ldquonaturezardquo seja

claro pode-se pensar em termos poliacuteticos em ldquorealidaderdquo contrastada com as convenccedilotildees da lei positiva Em

Tuciacutedides a decadecircncia moral acarretada pela guerra faz sobressair o viacutenculo existente entre a ldquonatureza

humanardquo e o interesse ) em oposiccedilatildeo agrave justiccedila O interesse a vantagem e o uacutetil satildeo princiacutepios

inerentes agrave natureza humana e parte da realidade em que o mais forte se impotildee ao mais fraco Satildeo

significativos os relatos das negociaccedilotildees travadas entre os atenienses de um lado e Melos ou Mitilene de

outro A histoacuteria era a principal testemunha de que ldquoera da natureza humana tanto para os Estados como para

os indiviacuteduos comportar-se egoiacutestica e tiranicamente se dada a oportunidaderdquo Para o Caacutelicles platocircnico isso

natildeo soacute ldquoera inevitaacutevel senatildeo tambeacutem justo e adequadordquo (GUTHRIE 1995 p 57-103) Dodds afirma que ldquoA

fonte antiga mais importante aleacutem de Platatildeo satildeo os fragmentos dos manuscritos do sofista Antiacutefonte ()

mas inuacutemeras passagens em Euriacutepides Aristoacutefanes e Tuciacutedides mostram que a antiacutetese era imensamente examinada e compreendida nos anos posteriores do seacuteculo Vrdquo (DODDS 2002 p 263) A concepccedilatildeo

difundida no quadro mental herdado por Platatildeo no iniacutecio do quarto seacuteculo que alccedila o sucesso e o interesse ao

primeiro plano e preconiza ldquofazer bem aos amigos e mal aos inimigosrdquo natildeo reclamava justificaccedilatildeo uma vez

que era aceita universalmente Daiacute as teses defendidas por Soacutecrates soarem tatildeo chocantes e bizarras Nada

atentava mais ao senso comum do homem grego de entatildeo e de certa forma como mostra uma citaccedilatildeo feita

por Guthrie datada do seacuteculo XVIII nada atenta mais contra o senso comum de todos os tempos 52

(Goacutergias

482e) 53 Como Marian Demos afirma ldquoA antiacutetese entre e aparece com frequecircncia na literatura

Grega nos seacuteculos VI e V Caacutelicles natildeo diz nada revolucionaacuterio nesse ponto ele apenas estabelece o cenaacuterio

para aquilo que subsequentemente eacute sancionado pela A oposiccedilatildeo entre e eacute tambeacutem

refletida na discrepacircncia entre os verdadeiros sentimentos de Polos e sua relutacircncia em proclamaacute-los Pode-se

inferir que a de alguma forma corresponde com a visatildeo da realidade de Polos enquanto o

designando bdquoo consenso geral‟ o impede de expor sua visatildeo (DEMOS 1994 p 85-107)

100

segundo a lei e aludir agrave lei quando se lhe fala segundo a natureza54

(483a) A questatildeo dos

valores depende do ponto fixo a partir do qual eles seratildeo coordenados A noccedilatildeo de ldquojusticcedilardquo

pressupotildee seu proacuteprio esquema de coordenaccedilatildeo de valores cuja aquilataccedilatildeo muacutetua depende

de um padratildeo fixo Postula Caacutelicles que tal padratildeo expressa os interesses de quem o

estabelece segundo os dois gecircneros disjuntivos ou a lei ou a natureza55

A noccedilatildeo

convencional de justiccedila exprime o fato de que a aceitaccedilatildeo dos interesses da maioria inferior

determina o tratamento apropriado para cada pessoa e constitui o padratildeo pelo qual as accedilotildees

satildeo reputadas como justas ou injustas O princiacutepio rival invocado por Caacutelicles estabelece

que os interesses dos homens superiores devam constituir o uacutenico padratildeo de justiccedila uma

vez que o que promove a superioridade desses homens eacute naturalmente justo56

e coincide

com a proacutepria natureza (IRWIN 1995 p 103) Sofrer injusticcedilas eacute proacuteprio de escravos que

nem sequer podem ser chamados ldquohomensrdquo para quem a morte seria melhor (kreittoacuten) do

que a vida A lei eacute estabelecida para defender os interesses desses homens fracos dos

muitos que proclamam que toda superioridade eacute desonrosa (toacute kataacute noacutemon aiskhiacuteon

leacutegontos) e que cometer injusticcedila eacute censuraacutevel Para os muitos a injusticcedila (adikiacutea) consiste

em avantajar-se (pleonektecircin) em ter mais (pleacuteon eacutekhein) (483b-c) Satildeo os interesses das

54 Aristoacuteteles nas Refutaccedilotildees Sofiacutesticas menciona explicitamente Caacutelicles e refere-se agrave oposiccedilatildeo entre

e como um muito difundido que leva os homens a proferir paradoxos na aplicaccedilatildeo

dos padrotildees da natureza e da lei ldquoque todos os antigos consideravam vaacutelidordquo (ARISTOacuteTELES 2005 173a p

571) Kerferd argumenta que embora seja possiacutevel que a expressatildeo ldquotodos os antigosrdquo se refira natildeo soacute aos

sofistas mas tambeacutem a preacute-sofistas a clara referecircncia de Aristoacuteteles aos dois loacutegoi indica que ele tinha

sobretudo os sofistas em mente (KERFERD 2003 p 194) 55 Segundo a interpretaccedilatildeo que Kerferd (2003 p197 ss) faz do fragmento DK 87B44 (87 B 44 [cfr 99 B

118 S) de Antifonte fica clara a antiacutetese entre phyacutesis e noacutemos As vantagens preconizadas pela lei satildeo

impedimentos para a natureza ao passo que as vantagens da natureza levam agrave liberdade e devem ser

preferidas agraves prescriccedilotildees da lei A justiccedila deve ser usada em proveito do interesse se houver presenccedila de testemunha Na ausecircncia destas somente a natureza deve ser obedecida Infere-se que o que eacute vantajoso

favorece a natureza e eacute da natureza humana ter vantagem Tudo aquilo que favorece a vantagem e o interesse

constituem um bem As leis e provisotildees satildeo cadeias que impedem a realizaccedilatildeo da natureza humana 56 Irwin afirma que o princiacutepio de Caacutelicles soacute eacute imparcial se a dominaccedilatildeo dos fortes for boa natildeo somente para

as pessoas superiores mas desejaacuteveis para algum outro ponto de vista distinto do delas O exame dessa

posiccedilatildeo exige que se prove que (1) violar regras de outras perspectivas de justiccedila eacute do interesse de algumas

pessoas que (2) estas pessoas satildeo superiores que (3) o que promove o interesse destas pessoas eacute naturalmente

justo (IRWIN 1995 p 103)

101

multidotildees fracas que delimitam o estabelecimento das leis cujo objetivo eacute limitar os

melhores e os mais robustos dos homens

Pois eu penso que aqueles que estabelecem as leis satildeo os homens

fracos e os muitos Por conseguinte eacute para si mesmos que

estabelecem as leis e atribuem elogios e censuras com os olhos em

sua proacutepria vantagem Eles aterrorizam os mais robustos dos

homens e potentes para ter mais e previnem estes homens de que

possuir mais do que eles mesmos e ter mais eacute vergonhoso e injusto

E que fazer injusticcedila eacute isto procurar ter mais do que os outros

Eles estatildeo satisfeitos se tecircm uma partilha igual quando satildeo

inferiores Eacute por isso que pela lei eacute dito ser injusto e vergonhoso

procurar ter mais do que os muitos e eacute isso que eles chamam

injusticcedila57

(Goacutergias 483b04-c08)

A questatildeo da justiccedila eacute por conseguinte indissociaacutevel da afetividade da vergonha

que configura aquilo que eacute aceitaacutevel e elogiaacutevel coletivamente A desonra deriva

diretamente do olhar coletivo que sanciona o elogiaacutevel e o censuraacutevel determinaccedilotildees de

todos os valores compartilhados pelos quadros mentais da cidade Aquilo que eacute vergonhoso

(aiskhiacuteon) eacute intrinsecamente associado ao afeto do senso de honra (aidōs) que por sua vez

brota da estima puacuteblica58

Aleacutem disso o desejo e a cobiccedila de ter mais a ambiccedilatildeo que

caracteriza a pleonexiacutea afeto primaacuterio estatildeo na ordem constitutiva do que Caacutelicles

considera justo por natureza A polarizaccedilatildeo entre phyacutesis e noacutemos sugere em seu bojo a

Traduccedilatildeo modificada a partir de Irwin (1979)

58 O termo expressa a vergonha e a ignomiacutenia segundo Chantraine (1999 p 40) e eacute empregado na

prosa aacutetica para indicar a feiuacutera repugnante O adjetivo deriva deste sentido original da vergonha provocada

pela deformidade mas possui tambeacutem o valor de ldquosenso de honrardquo Derivado de o tema de

exprime em Homero o sentimento de respeito diante de um deus ou superior e sobretudo o

sentimento que proiacutebe a covardia ao homem O sentimento tambeacutem estaacute ligado a partes

vergonhosas a genitaacutelia

102

tensatildeo mais basilar entre os apetites aquilo que Dodds chama de ldquoimpulsos individuaisrdquo e

a pressatildeo coletiva que instaura os valores considerados aceitaacuteveis ou a ldquopressatildeo de

adaptaccedilatildeo social caracteriacutestica de uma cultura baseada na vergonhardquo (DODDS 2002 B p

26) Desejos cobiccedila honra vergonha discursos e os pensamentos que os movem

configuram os princiacutepios basilares que justificam a noccedilatildeo da justiccedila e o gecircnero de vida

honoraacutevel

O termo Aidōs eacute empregado na narrativa de Gygeacutes para designar a respeitabilidade

de uma mulher o senso de honra da mulher daquilo que pode ser visto e daquilo que natildeo

pode ser olhado Heroacutedoto narra a desmedida do rei que contrariamente agraves interdiccedilotildees

longamente moldadas pela tradiccedilatildeo desejava mostrar a nudez de sua mulher usurpando e

violentando a sua respeitabilidade

Esqueceis que uma mulher desfaz-se do seu pudor quando se

despe() Gygeacutes natildeo podendo fugir agrave situaccedilatildeo declarou-se pronto

a obedecer Candaulo agrave hora de dormir conduziu-o ao quarto

para onde a rainha natildeo tardou a se dirigir O guarda viu-a despir-

se e enquanto ela lhe voltava as costas para alcanccedilar o leito

esgueirou-se para fora do aposento mas a rainha percebeu-lhe a

presenccedila Compreendeu o que o marido havia feito e suportou o

ultraje em silecircncio fingindo nada ter notado mas decidindo no

fundo do coraccedilatildeo vingar-se de Candaulo pois entre os Liacutedios

como entre quase todos os povos baacuterbaros constitui um oproacutebrio

mesmo para um homem o mostrar-se nu (HERODOTE I VIII-X

1850)

A conotaccedilatildeo da pudiciacutecia emerge do sentido original das partes vergonhosas a

genitaacutelia que deve estar coberta para os olhares dos outros Esse sentido segundo observa

Arlene Saxonhouse (2008 p 58) se estende para um contexto praacutetico-poliacutetico no qual o

olhar puacuteblico determina o entendimento comunitaacuterio daquilo que deve ser escondido e

daquilo que deve ser revelado Em Heroacutedoto a vergonha denota a transgressatildeo aos

costumes aos noacutemoi longamente sedimentados que se expressam nas leis reverenciadas

103

pela tradiccedilatildeo A violaccedilatildeo do rei Candaulo consiste em identificar as coisas belas com a

beleza natural da silhueta da mulher em detrimento da reverecircncia agraves leis A longevidade dos

costumes sedimenta as interdiccedilotildees que configuram a esfera do que eacute vergonhoso e

desonroso e por isso os limites das leis ancestrais exigem uma observacircncia e reverecircncia

que se aproximam da natureza A origem remota perdida num tempo em que satildeo gestadas

as belas coisas taacute kalaacute associa a reverecircncia a um acervo de valores que possui a mesma

caracteriacutestica do enclave miacutetico a ausecircncia de dataccedilatildeo Transgredir esses limites implica

uma exposiccedilatildeo e uma impudecircncia equivalente agrave nudez

O eacutelenkhos socraacutetico expotildee a nudez de afetos e pensamentos que reclamam

encobrimento agrave dissoluccedilatildeo do olhar coletivo59

Por essa razatildeo Goacutergias e Polus foram

constrangidos nas amarras da dialeacutetica preferiram deixar-se refutar a exporem-se na sua

nudez Eacute necessaacuterio pois que se faccedila a exposiccedilatildeo das causas do seu embaraccedilo Lei e

Natureza frequentemente se contradizem

A proacutepria natureza pode ser invocada como testemunho e prova de que a justiccedila eacute

precisamente contraacuteria agrave lei os animais os chefes de famiacutelia os homens nas cidades o

grande Rei da Peacutersia e o proacuteprio Zeus exemplificam que a lei da natureza a verdadeira

natureza do direito eacute contraacuteria agraves leis estabelecidas que subjugam os homens mais

vigorosos agrave escravidatildeo A igualdade entre homens desiguais (toacute iacuteson eacutekhosin oacutentes)

subverte a natureza O homem de natureza suficientemente bem nascido para pisar em

todas as ldquomagias encantaccedilotildees e leis estabelecidasrdquo faria ldquobrilhar a justiccedila da naturezardquo

(483e-484b)

59 Arlene Saxonhouse vecirc na personagem do rei Candaulo narrada por Heroacutedoto um precursor de Soacutecrates A

dialeacutetica socraacutetica revela aquilo que na perspectiva da tradiccedilatildeo aristocraacutetica deveria permanecer oculto e isso

acaba por levaacute-lo agrave morte (2008 p 59)

104

A exemplaridade paradigmaacutetica de Goacutergias resplandece na fala de Caacutelicles

Koacutesmos60

para a cidade virilidade para o corpo beleza para a alma sabedoria para o ato

excelecircncia para o discurso verdade (Elogio de Helena 1) Soacutecrates sob pretexto de

perseguir a verdade (aleacutetheia) profere discursos populares (demegorikaacute ndash Goacutergias 482e)

Cabe pois ao loacutegos exaltar o homem excelente por natureza e detrair o contraacuterio pois eacute

um erro louvar o censuraacutevel e censurar o louvaacutevel61

Assim como o discurso exemplar de

seu mestre promove a inversatildeo da maacute fama de Helena urdida pelos poetas assim tambeacutem

Caacutelicles empreende exposiccedilatildeo (dieacutegesis) que inverte a crenccedila gerada pelas encantaccedilotildees dos

que estabelecem as leis Anunciada a verdade de que a justiccedila eacute o direito natural do mais

capaz a loacutegica (loacutegismos) discursiva de Caacutelicles enuncia as razotildees pelas quais as leis satildeo

estabelecidas e propotildee o elogio da lei verdadeira a lei da natureza que eacute a primeira entre os

animais entre as famiacutelias entre os reis e entre os deuses tal como Helena por natureza

(phyacutesei) eacute a primeira entre os primeiros homens e mulheres e divina entre os deuses

(Elogio de Helena 3) A enumeraccedilatildeo dos exemplos consolida as bases da tese Tal como

brilha a beleza da primeira dentre as mulheres o homem vigoroso faz resplandecer o brilho

da justiccedila da Natureza Pela Natureza tal como por Helena vinham todos tanto pelo amor

aacutevido de vitoria quanto pela invenciacutevel avidez de honra reuacutenem-se os melhores e maiores

homens de riqueza gloacuteria forccedila e sabedoria adquirida (Elogio de Helena 4)

60Wardy (1996 p 30) chama atenccedilatildeo para o fato de que a palavra Koacutesmos conforme eacute empregada no Elogio

de Helena designa simultaneamente a ornamentaccedilatildeo e o artifiacutecio do discurso Originalmente o termo

designava a atraccedilatildeo especiosa arranjos impostos como a maquiagem de meretrizes Eacute improvaacutevel argumenta

Wardy que Goacutergias tivesse em vista um raciociacutenio loacutegico pelo qual a verdade como excelecircncia do loacutegos fosse adquirida somente atraveacutes de uma histoacuteria verdadeira O proecircmio do Elogio deve ser interpretado no

sentido de que Koacutesmos natildeo significa um mero ornamento artificial oposto agravequilo que a realidade eacute de fato

Seu objetivo eacute mostrar a verdade Adriano Ribeiro explicita e desenvolve a indicaccedilatildeo de Wardy afirmando o

significado de Koacutesmos como ornada ordenaccedilatildeo Eacute funccedilatildeo do loacutegos expor modelos de ornamentos de modo

ordenado A argumentaccedilatildeo ordena ressaltando o que conveacutem ao que eacute afirmado e afirmando o que eacute

propriamente verdadeiro A ornamentaccedilatildeo da palavra eacute sua verdade e a ela cabe pois distinguir o certo do

incerto o elogiaacutevel do censuraacutevel (RIBEIRO 2002 p 167) 61 GORGIAS Elogio de Helena Adoto a traduccedilatildeo de Daniela Paulinelli 2009

105

A exposiccedilatildeo das causas confere razoabilidade agrave fala e Caacutelicles justifica sua tese com

razotildees No caso de Helena62

as primeiras causas justificam sua ida para Troacuteia mediante um

toacutepos aceito universalmente ndash o de que eacute natural que o mais forte subjugue o mais fraco eacute

natural o mais forte conduzir e o mais fraco seguir (Elogio de Helena 6) No caso de

Caacutelicles as leis satildeo reputadas injustificaacuteveis porque constituem reaccedilatildeo dos mais fracos para

se protegerem da forccedila dos fortes e escravizaacute-los agrave condiccedilatildeo mais baixa Nos dois discursos

o mesmo toacutepos eacute alccedilado agrave condiccedilatildeo de verdade universal visto natildeo reclamar justificaccedilatildeo e

ter acolhimento em qualquer ouvinte sensato Eacute tatildeo natural ser constrangido pela

Necessidade ou por decreto divino quanto pela sobreexcelecircncia do homem superior

Ademais a forccedila da Necessidade dos deuses e do guerreiro armado eacute equiparada agrave forccedila

persuasiva do discurso O loacutegos age como senhor poderoso e a persuasatildeo possui a forccedila de

um rapto Tanto para Goacutergias como para Caacutelicles a natureza passa a ser ldquoum tipo de base

material conveniente para construir uma teoria da persuasatildeordquo (CROCKETT 1994 p 78)

Mas para Goacutergias o constrangimento pela forccedila eacute ato terriacutevel cujo agente deve

receber pelo discurso a acusaccedilatildeo pela lei a desonra pelo ato o castigo (Elogio de Helena

7) Os encantamentos divinos mediante os loacutegoi encantam a alma e nela induzem calafrio

de medo compaixatildeo e pesar comprazido (Elogio de Helena 8) Encantamento e magia se

encontram como teacutecnicas que geram erros da alma e ilusatildeo da opiniatildeo63

ndash os loacutegoi movem

os prazeres e removem as tristezas (Elogio de Helena 10) O uso abusivo do loacutegos por

natureza arrebata a psykheacute e por isso deve ser condenado A retoacuterica eacute uma arte de

62 A retoacuterica no Goacutergias observa Andy Crockett eacute feminina eacute mulher assim como a natureza e a desordem ao passo que o kosmos eacute masculino A concepccedilatildeo de que o mais forte subjuga o mais fraco eacute reforccedilada pelo

fato de a mulher ser naturalmente mais fraca do que o homem e pela misoginia da mulher no regime

democraacutetico ateniense fundamentalmente falogocecircntrico (CROCKETT 1994 p 71 ) 63

106

combate que deve ser usada de maneira legiacutetima contra os inimigos e criminosos como

meio de defesa e natildeo de agressatildeo (Goacutergias 457e) O mestre natildeo deve ser considerado

ldquoculpado ou criminosordquo pelo mau uso da arte Os criminosos satildeo ldquoos indiviacuteduos que fazem

mau uso de sua arterdquo (Goacutergias 457a) A forccedila encantatoacuteria e arrebatadora dos discursos por

constituir princiacutepio de accedilatildeo autocircnomo e causalidade proacutepria justificam a imputabilidade

Tem a mesma relaccedilatildeo tanto o poder do discurso para o

ordenamento da alma quanto o ordenamento dos faacutermacos para a

natureza dos corpos Pois assim como alguns dos faacutermacos

expulsam alguns humores do corpo e fazem cessar uns a doenccedila

outros a vida assim tambeacutem dentre os discursos uns afligem

outros deleitam outros atemorizam outros conferem ousadia aos

ouvintes outros por alguma maacute persuasatildeo drogam e enfeiticcedilam

completamente a alma

(Elogio de Helena 13)

A accedilatildeo conquistadora subjugante eacute movida pelo desejo eroacutetico e a passividade

daquele que eacute conquistado eacute como doenccedila que afeta a alma (Elogio de Helena 18) Se

poreacutem eacute uma doenccedila humana e um desconhecimento por parte da alma natildeo se deve

imputar como erro mas se deve julgar como infortuacutenio A accedilatildeo condenaacutevel do discurso eacute a

usurpaccedilatildeo psiacutequica que equivale agrave violecircncia do rapto

Caacutelicles ao contraacuterio de Goacutergias condena a limitaccedilatildeo da forccedila e a supressatildeo do fato

natural apoiado na polarizaccedilatildeo entre ativo e passivo conquistador e conquistado forte e

fraco capaz e incapaz desregramento e regra phyacutesis e noacutemos Sua defesa despudorada da

forccedila o tipifica como personificaccedilatildeo do disciacutepulo que desconhece a noccedilatildeo de justiccedila e que

por isso faz mau uso da retoacuterica e dos seus efeitos proacuteprios Caacutelicles elogia o belo e

censura o feio A persuasatildeo do loacutegos deve ser posta a serviccedilo da incontinecircncia do apetite

Condenaacuteveis satildeo os muitos que defendem seus interesses com as encantaccedilotildees e maacutegicas

com que estabelecem as leis Condenaacutevel eacute o eacutethos a moralidade do escravo Caacutelicles

advoga a justificaccedilatildeo retoacuterica da violecircncia cometida em prol do prazer com base na

107

constataccedilatildeo factual de uma ordem natural que premia o mais forte No plano da vantagem

nua e crua no campo dos interesses em conflito natildeo eacute natural que o menos capaz sobrepuje

o mais capaz

Na sua apologia agrave forccedila Caacutelicles promove uma re-significaccedilatildeo para o sentido de

noacutemos ao citar Piacutendaro a lei eacute de todos o rei64

dos mortais e dos imortais Como observa

Marian Demos ldquoo uso que Piacutendaro faz do termo (noacutemos) eacute livre de qualquer conotaccedilatildeo

ulterior Piacutendaro vecirc noacutemos como algo poderoso e inevitaacutevel que manteacutem todas as coisas

ldquocompensadasrdquo que regula todas as coisas Ao contraacuterio do que afirma Caacutelicles o poema

de Piacutendaro refere-se agrave forccedila (biacutea) de Heacuteracles qualificando-a como violecircncia e natildeo para

retratar seus trabalhos como modelo exemplar para a aquilataccedilatildeo daquilo que eacute mais justo

(DEMOS 1994 p 94) Enquanto o noacutemos no poema de Piacutendaro indica uma limitaccedilatildeo para

a violecircncia de Heacuteracles Caacutelicles usurpa o poeta e cita o trecho para sustentar sua tese de

que o uso da forccedila eacute a lei da natureza e justiccedila65

Estaacute advertido de que o recurso ao poeta

de renome e agrave comparaccedilatildeo com Heacuteracles possui um apelo persuasivo poderoso Toda

comparaccedilatildeo implica a aproximaccedilatildeo e transferecircncia de valores que satildeo acompanhadas por

afetos proacuteprios Os afetos ligados ao valor do modelo transferem-se para o termo

comparado Assim como Heacuteracles se valeu da violecircncia para roubar os bois de Geriatildeo a

violecircncia do homem superior encontra guarida na celebridade do precedente e nos valores

64 (Goacutergias 484b) 65 Segundo Apolodoro 2 4 8-9 (CARRIEgraveRE MASSONIE 1991 p 63) Heacuteracles filho de Zeus e

Alcmeacutene ultrapassava a todos em altura e forccedila Sua aparecircncia manifestava a todos que o viam que era um

filho de Zeus Seu corpo media quatro cocircvados seus olhos brilhavam com o claratildeo do fogo e suas flechas ou

dardos natildeo erravam o alvo A beleza do semideus se contrapotildee agrave monstruosidade de Geriatildeo seu corpo era

formado por trecircs dorsos reunidos na cintura e que se cindia novamente em trecircs a partir dos quadris e das

coxas (id 2 5 10 106 p 70) Morto por uma flecha de Heacuteracles o disforme Geriatildeo encarna a feiuacutera

monstruosa que estaacute na origem do afeto da vergonha O semideus por sua vez belo e poderoso cruza o

Oceano na taccedila de ouro do deus Heacutelios com o seu espoacutelio o gado puacuterpuro roubado de Geriatildeo

108

que o acompanham trata-se do modo de agir do semideus sobre-humano ndash o maior dos

heroacuteis da Heacutelade

Eacute notaacutevel o uso que Caacutelicles faz de coordenadas miacuteticas para a fundamentaccedilatildeo da

sobreexcelecircncia da forccedila natural e para a significaccedilatildeo do vergonhoso e do honroso A forccedila

encantatoacuteria arrebatadora maacutegica e enfeiticcediladora dos discursos eacute originada segundo

Goacutergias no divino (Elogio de Helena 10)66

Caacutelicles se vale de esquemas miacuteticos

longamente sedimentados nos quadros mentais gregos para consolidar afetos e valores A

encantaccedilatildeo estaacute na base da afetividade que configura modela e justifica as crenccedilas e a

opiniatildeo (NUNES SOBRINHO 2008 p 48ss) e o princiacutepio de accedilatildeo mais poderoso para a

identidade coletiva de uma sociedade baseada no combate e na disputa eacute configurado pelos

afetos ligados ao crivo puacuteblico

Segundo Burkert a busca pelo gado de Geriatildeo exprime uma tradiccedilatildeo preacute-grega

(1979 p 84) e segue um esquema de accedilotildees bem definido (1) o heroacutei empreende uma

busca (2) chega ao lugar de destino (3) comeccedila uma luta com o possuidor (4) derrota-o

(5) leva o gado (6) e retorna Este padratildeo segundo Burkert determina um esquema

antropoloacutegico invariante67

A narrativa miacutetica de Geriatildeo possui a especificidade de

descrever uma geografia coacutesmica Heacuteracles deve atravessar o Oceano no rumo do Sol por

meio da taccedila dourada presenteada por Heacutelios O Oceano eacute o ponto de encontro entre o ceacuteu e

a terra mediaccedilatildeo entre os poacutelos opostos delimitados pelo terrestre e pelo celestial O heroacutei

se vecirc diante de uma situaccedilatildeo problemaacutetica o trabalho de roubar o gado do monstro Geriatildeo

66 67 Walter Burkert segue a estrutura padratildeo e os motifemas estabelecidos por Vladimir Propp Segundo este

padratildeo o trabalho de Heacuteracles teria o seguinte esquema na ordem proposta por Propp Para apanhar o gado

de Geriatildeo sob o comando de Euristeu (9) Heacuteracles parte para uma longa viagem (11) Encontra o Velho

Homem do mar que lhe fornece algumas direccedilotildees (12 13) depara-se com Heacutelios o deus do Sol do qual

obteacutem um objeto maacutegico a taccedila de ouro para atravessar o Oceano (14) quando aporta agrave ilha Vermelha de

Eriteacuteia (15) trava um combate com o chefe dos animais um rugidor de trecircs cabeccedilas Geriatildeo (18) e apodera-

se da manada (19) (BURKERT 2001 p 88)

109

Para realizar a mediaccedilatildeo implicada pela tarefa recebe como recurso um instrumento

divino a taccedila de ouro presenteada por Heacutelios A travessia ou passagem de um plano

coacutesmico para outro soacute eacute realizada mediante o emprego de um recurso divino A ilha

vermelha Eryteacuteia (paiacutes vermelho) onde se encontra o gado puacuterpuro evoca o ocaso

momento de encontro coacutesmico A luta o emprego de recursos divinos a forccedila sobre-

humana e finalmente a vitoacuteria sobre o monstro disforme justificam a soberania e o poder

(VERNANT 2002 p 250 ss) A universalidade deste esquema miacutetico de pensamento

confere segundo Burkert significaccedilatildeo para a vida pastoral cujo maior problema era a

possibilidade de que o rebanho fosse perdido ou roubado O desaparecimento dos animais

era atribuiacutedo sempre agrave accedilatildeo de algum daiacutemon O heroacutei eacute venerado e cultuado em funccedilatildeo de

encarnar dar expressatildeo e significaccedilatildeo para a necessidade vital de lidar com o medo difuso

(ansiedade) da perda do rebanho e do roubo perpetrado por adversaacuterios funestos Eacute preciso

encontrar coragem para a busca daquilo que foi extraviado por potecircncias demoniacuteacas e

haurir proteccedilatildeo efetivada na forccedila heroacuteica que modela a exemplaridade do sucesso

(BURKERT 1979 p 85)

33 Aiskhyacutene Aidōs e Causalidade

Na Apologia Soacutecrates se vale do recurso ao paradigma miacutetico com o escopo de re-

significar o afeto da vergonha Diante da questatildeo da vergonha provocada pelo perigo de

morte decorrente de suas ocupaccedilotildees praacuteticas 68

Soacutecrates recorre aos valores heroacuteicos da

bela morte de Aquiles como meio de reformular a hierarquia daquilo que eacute temiacutevel

vergonhoso e desonroso Nenhum valor pode estar acima de uma vida honrada nem

mesmo o perigo da morte pois nada eacute pior do que viver na desonra Por menor que seja o

68

(Apologia 28b03-04)

110

valor de um homem a vida praacutetica natildeo deve calcular o perigo da morte mas somente se eacute

justa ou injusta se as accedilotildees satildeo as de um homem bom ou mau (28b05-09) Se o risco da

morte ensejasse a vergonha a vida dos semideuses de Troacuteia seria uma vida inferior jaacute que

o filho de Theacutetis natildeo se preocupou com o perigo da morte perante a ameaccedila da vergonha

A morte e o perigo nada satildeo em comparaccedilatildeo com a infelicidade de uma vida em que os

amigos do heroacutei natildeo satildeo vingados (28c08-29d01)

Em uma sociedade de confronto na qual para ser reconhecido eacute

preciso derrotar os rivais em uma competiccedilatildeo incessante pela

gloacuteria cada indiviacuteduo estaacute colocado sob o olhar do outro cada

indiviacuteduo existe por esse olhar Ele eacute o que os outros veem dele A

identidade de um indiviacuteduo coincide com sua avaliaccedilatildeo social da

derrisatildeo ao louvor do desprezo agrave admiraccedilatildeo Se o valor de um

homem permanece assim ligado agrave sua reputaccedilatildeo toda ofensa

puacuteblica agrave sua dignidade todo ato ou comentaacuterio que atinge seu

prestiacutegio seratildeo sentidos pela viacutetima enquanto natildeo forem

abertamente reparados como uma forma de rebaixar ou destruir

seu ser sua virtude iacutentima e de consumir sua queda Desonrado

aquele que natildeo conseguiu que o homem que o ofendeu pague pelo

ultraje perde com sua timḗ o renome o lugar na hierarquia e os

privileacutegios Separado das solidariedades antigas afastado do

grupo de seus pares o que resta dele Caiacutedo abaixo do vilatildeo do

kakoacutes que ainda tem seu lugar nas hostes do povo torna-se um

errante sem paiacutes ou raiacutezes eacute um exilado despreziacutevel um homem

sem nenhum valor

(VERNANT 2001 p 407-408)

A simetria das imagens miacuteticas garante a transitividade dos valores secularmente

preservados assim como a bela morte indica que os desvalores e perigos da vida nada satildeo

em comparaccedilatildeo com a gloacuteria reservada pela memoacuteria imortal assim tambeacutem os valores

seguros nada satildeo diante da desonra reservada pela injusticcedila do viver O risco do oproacutebrio

coletivo torna a vergonha e a desonra mais insuportaacuteveis do que o risco da morte

Eis a verdade destas questotildees Atenienses qualquer que seja a

ordem que algueacutem ocupe quer tenha se tornado melhor por si

mesmo ou fixado por um arkhonte o dever se impotildee como eacute minha

opiniatildeo de permanecer nele qualquer que seja o perigo sem

111

calcular nem a morte nem outra coisa acima da desonra

(Apologia 28d06-10)

O emprego argumentativo das imagens confere significaccedilatildeo agraves accedilotildees mediante o

aporte afetivo suscitado pela encantaccedilatildeo Soacutecrates opera uma transposiccedilatildeo e re-valoraccedilatildeo

dos valores a partir de esquemas psiacutequicos compartilhados incontestes no enclave da

paideacuteia miacutetica Assim como uma vida de desonra natildeo vale a pena ser vivida uma vida sem

exame natildeo merece ser vivida69

A simetria das imagens miacuteticas engendra por outro lado a

reversatildeo dos valores o melhor dos homens cidadatildeo da mais importante e mais renomada

cidade pelo saber e pelo poder deve se envergonhar por cuidar (epimeloumenos) das

riquezas da reputaccedilatildeo e da honra e por natildeo se preocupar de cuidar do pensamento da

verdade e da melhoria da alma (Apologia 29d) O emprego da encantaccedilatildeo miacutetica visa

transpor a triparticcedilatildeo de valores praacuteticos exteriores para a triparticcedilatildeo de valores psiacutequicos e

com isso re-significar o vergonhoso e o desonroso a epimeleacuteia da psykheacute valor supremo

interioriza o afeto da vergonha A vergonha e o honroso cujo escopo eacute a alma natildeo depende

do olhar coletivo e de suas sanccedilotildees mas referencia-se tatildeo somente no olhar da alma para

consigo mesma Mas o discurso revolucionaacuterio de Soacutecrates eacute incompatiacutevel com a

brutalidade da constataccedilatildeo do fato de que as riquezas a fama e o poder constituem os

maiores valores de todos os tempos A sobrelevaccedilatildeo desses valores natildeo pode apoiar-se

numa tradiccedilatildeo miacutetica cujo apanaacutegio consiste em consolidar mediante a crenccedila os afetos

que sancionam os esquemas psiacutequicos tradicionais

No Goacutergias a menccedilatildeo ao deacutecimo trabalho de Heacuteracles ao mesmo tempo justifica

a soberania natural do mais forte e define a exemplaridade para aquilo que eacute assimilado ao

disforme e vergonhoso Caacutelicles habilmente qualifica o processo de estabelecimento das

69 (Apologia 38a05-06)

112

leis como encantaccedilotildees70

e sortileacutegios71

cujo fim eacute a subjugaccedilatildeo da sobreexcelecircncia natural

A inculcaccedilatildeo das leis nos jovens eacute uma violecircncia tatildeo antinatural como a domesticaccedilatildeo dos

leotildees O mau uso da encantaccedilatildeo potecircncia intriacutenseca do discurso eacute assacado ao

estabelecimento das leis e natildeo agrave retoacuterica Mas a forccedila retoacuterica das imagens miacuteticas serve

ainda para desqualificar o anti-heroacutei encarnado por Soacutecrates

Pois agora se fosses preso tu e todos os teus semelhantes e jogado

na prisatildeo sob o pretexto de uma injusticcedila natildeo cometida tu estarias

sem defesa tomado de vertigem e com a boca aberta sem nada

dizer depois levado diante de um tribunal colocado diante de um

acusador sem talento nem consideraccedilatildeo tu serias condenado a

morrer se ele quisesse se honrar com tua morte

Goacutergias 486a-b

A falta de recurso de Soacutecrates identifica-se com a ausecircncia do expediente divino que

interveacutem nos mitos de culpa Destituiacutedo dos expedientes retoacutericos Soacutecrates estaacute na posiccedilatildeo

do anti-heroacutei que natildeo pode superar as situaccedilotildees impedientes A retoacuterica eacute recurso divino

sub-repticiamente associado agrave analogia entre o homem justo por Natureza e Heacuteracles Com

isso Caacutelicles extrai da valoraccedilatildeo miacutetica a forccedila persuasiva da encantaccedilatildeo fundamento da

70

(Goacutergias 484e05-06) 71

Segundo Elizabeth Belfiore (1980) Platatildeo recorrentemente usa o vocabulaacuterio dos sortileacutegios

( ) dos encantos () remeacutedios e venenos ( ) para condenar um

inimigo (Sofista 234c 235a 241b) (Repuacuteblica 598d 602d 601b 607c-d) Em outras passagens os prazeres

afrodisiacuteacos satildeo apresentados como enfeiticcedilamento (Feacutedon 81b) (Filebo 44c) (Repuacuteblica 584a) Soacutecrates eacute

apresentado tambeacutem como feiticeiro encantador (Meacutenon 80b) (Banquete 215c-d) A tese de Belfiore

consiste em identificar na Filosofia uma contra-maacutegica e o papel de desfazer ilusotildees Em Repuacuteblica III (412e

413a) a identifica-se com a exposiccedilatildeo agrave ilusatildeo e ao fortalecimento da opiniatildeo Haacute trecircs meios de

privar-se da verdade de maneira natildeo consentida ( ) pelo roubo pela forccedila e pela Os que

satildeo encantados mudam a opiniatildeo por prazer ou pelo medo (413c) O enfeiticcedilamento muda as opiniotildees opera

por meio dos afetos prazeres e do medo ( ) e implica o abandono da opiniatildeo verdadeira de maneira natildeo

consentida Conforme jaacute notava Goacutergias (Elogio de Helena 10) as encantaccedilotildees persuadem por

meio da mas tambeacutem podem causar o medo O medo eacute um iacutendice e um signo de reconhecimento

de que o corpo se manteacutem preponderante sobre o pensamento apanaacutegio da alma (Feacutedon 68c) Eacute do medo que

derivam as duacutevidas e as hesitaccedilotildees que paralisam as accedilotildees humanas (NUNES SOBRINHO 2008 p 51) A Filosofia 1) afasta as falsas opiniotildees por meio do eacutelenkhos 2) habilita a resistir contra o prazer e o medo e 3)

capacita a agir sem compulsatildeo Natildeo obstante o discurso como natildeo pode prescindir do concurso

das encantaccedilotildees que predispotildeem a alma agrave (Caacutermides 155e05-08) As encantaccedilotildees afastam os

medos destrutivos curam os afetos violentos e satildeo condiccedilotildees para o pensamento purificado (Feacutedon 66d)

113

opiniatildeo justificada pela crenccedila e inaugura no diaacutelogo o emprego da narrativa miacutetica como

elemento integrado agrave argumentaccedilatildeo

O processo de cinco etapas estabelecido por Burkert para descrever a sequecircncia

universal de accedilotildees que caracterizam as narrativas de situaccedilotildees impedientes emerge do

vaticiacutenio de Caacutelicles i) surge uma experiecircncia ameaccediladora inquietante do mal ou da

desgraccedila ii) a calamidade suscita a procura da causa iii) surge um mediador com

conhecimentos sobre-humanos um vidente areter ou adivinhador iv) um diagnoacutestico eacute

feito a causa do mal eacute definida atraveacutes do estabelecimento da culpa e da identificaccedilatildeo do

erro cometido v) uma vez definida a causa expedientes para a salvaccedilatildeo satildeo prescritos

como medidas expiatoacuterias rituais que natildeo excluem procedimentos de natureza racional

uma arte dolosa eacute requerida para a salvaccedilatildeo (2001 p 142) Esta eacute exatamente a estrutura

do argumento que estabelece o anti-heroiacutesmo de Soacutecrates A causa eacute identificada mas

faltam os recursos necessaacuterios para a salvaccedilatildeo O argumento indica uma conexatildeo entre

responsabilidade e puniccedilatildeo ou cataacutestrofe Haacute um nexo causal entre culpa e castigo

personificado na moira (DODDS 2002 B p 41) O vaticiacutenio de Caacutelicles eacute antes de tudo a

afirmaccedilatildeo de uma conexatildeo causal Soacutecrates acabaraacute condenado agrave morte por ser o uacutenico

responsaacutevel por sua proacutepria aporiacutea Falta-lhe o expediente encantatoacuterio propiciador da

salvaccedilatildeo

Se a finalidade do discurso for uacutenica e exclusivamente a persuasatildeo e a adesatildeo

suscitados mediante a mobilizaccedilatildeo afetiva e valorativa a mestria de Caacutelicles esboccedila outro

aspecto intriacutenseco aos loacutegoi aos sortileacutegios e agrave maacutegica72

ndash todos endereccedilados agrave multidatildeo

eles satildeo espetaculares Agrave hoplomakhiacutea dos discursos cabe por princiacutepio estabelecer o bom

72 (Elogio de Helena 10)

114

e o mau uso dos seus efeitos a encantaccedilatildeo e o assentimento pela crenccedila Este uso dos

efeitos determina o bom e o mau uso da retoacuterica em suma a sua moralidade

Kerferd sustenta a tese de que a posiccedilatildeo de Caacutelicles natildeo eacute imoral pois (a) ldquoenvolvia

a rejeiccedilatildeo do direito convencional em favor do direito natural como algo reivindicado como

mais alto melhor e moralmente superiorrdquo e (b) Caacutelices natildeo eacute culpaacutevel de simplesmente

reduzir ldquodeverdquo a ldquoeacuterdquo como resposta agrave questatildeo do que eacute certo visto que simplesmente

constata que o que acontece na natureza deve ser melhor (KERFERD 2003 p 201)

Todavia ao contraacuterio do que afirma Kerferd parece ser mais correto atribuir muito

mais arguacutecia a Caacutelicles e com mais razatildeo ainda a Platatildeo Caacutelicles como demonstra

Demos promove conscientemente uma inversatildeo no sentido de noacutemos conforme aparece

em Piacutendaro Isso indica a mestria de uma presunccedilatildeo que constitui um dos recursos retoacutericos

mais poderosos e que se tornaria perenamente vaacutelido no campo da argumentaccedilatildeo

verossiacutemil o da alegaccedilatildeo de que o habitual por ser sempre esperado pela opiniatildeo comum

continuaraacute sempre ocorrendo Caacutelicles parece perfeitamente ciente de que pode alegar que

o que eacute habitual torna-se normativo e por isso sem receios opera a passagem do eacute para o

deve

A parte final da peccedila retoacuterica de Caacutelicles constitui-se em exortaccedilatildeo A filosofia eacute

desqualificada como adestramento disciplina que participa (meteacutekhein) da educaccedilatildeo

propedecircutica que deve ser abandonada em favor das coisas maiores73

Tal adestramento eacute

semelhante ao dos animais que se pretende domesticar e ldquoeacute orientado no sentido de

extraviar e iludir sistematicamente as naturezas fortes e manter de peacute o poder dos fracosrdquo

(JAEGER 1995 p 668) O argumento aporta ao recurso da reprovaccedilatildeo pelo ridiacuteculo

(katageacutelastos) o exerciacutecio filosoacutefico eacute uma desmedida punida pelo riso puacuteblico Desajuste

73 (Goacutergias 484c)

115

entre a praacutetica particular e o que eacute aceitaacutevel publicamente extravagacircncia de um exerciacutecio

indecoroso que se opotildee ao que eacute conveniente e bem reputado (eudoacutekimon) pela cidade a

formaccedilatildeo filosoacutefica e o seu modo de vida correspondente satildeo contraacuterios agrave natureza O

resultado disso eacute a perplexidade a irresoluccedilatildeo (apragmosyne) diante da efetividade poliacutetica

e a incapacidade de prover defesa de si mesmo o criteacuterio uacuteltimo para um modo de vida

calcado no conflito de interesses

A Filosofia eacute desqualificada mediante a sua identificaccedilatildeo com parte de uma Paideacuteia

mais ampla e voltada para as questotildees poliacuteticas A inclusatildeo desvalorizadora num conjunto

de disciplinas equivalentes exige a aplicaccedilatildeo a um momento oportuno da formaccedilatildeo do

homem A excrescecircncia eacute assimilada ao desajuste ao despudor A fala de Caacutelicles promove

a reversatildeo da presunccedilatildeo que associa a sabedoria ao presbyacuteteros em vez de ser associada agrave

sabedoria do mais velho Soacutecrates eacute comparado ao adulto que se porta com a conduta de

uma crianccedila balbuciante O homem que age de modo infantil parece ridiacuteculo (katageacutelastos)

e desvirilizado (anaacutendros) e deve por isso receber o mesmo tipo de correccedilatildeo que se aplica

agrave crianccedila e que Soacutecrates faz por merecer pancadas74

(MICHELINI 1998 p 55)

Toda a forccedila moral do golpe retoacuterico deriva do fato secular e lentamente cristalizado

na noccedilatildeo de que o maior princiacutepio de accedilatildeo para um homem bem reputado eudoacutekimon natildeo

eacute ldquoo medo de um deus mas o respeito agrave opiniatildeo puacuteblica aidōsrdquo (DODDS 2002 B p 26)

Tanto a atitude moral de Polos como a de Caacutelicles expressam simultaneamente a boa

reputaccedilatildeo como um objetivo social a ser atingido e a vergonha como fracasso ambas

exploradas pela habilidade retoacuterica (DODDS 2002 A p 11 ss) Nada mais insuportaacutevel

74

o

(Goacutergias 485c)

116

para um psiquismo coletivo fortemente impregnado pela ldquovergonhardquo do que a exposiccedilatildeo ao

desprezo e ao ridiacuteculo

Natildeo eacute por acaso que a vergonha seja reconhecida como um leimotiv de toda a

encenaccedilatildeo dramaacutetica a palavra aiskhyacutene juntamente com suas formas verbais e o adjetivo

aiskhroacutes ocorrem setenta e cinco vezes no diaacutelogo Por essa razatildeo a estrateacutegia de

desvalorizaccedilatildeo da retoacuterica promovida pela dialeacutetica socraacutetica implica o esvaziamento

eacutetico-afetivo de princiacutepios de accedilatildeo tradicionais baseados na reputaccedilatildeo e na vergonha

puacuteblicas (RACE 1979 p 197ss) que satildeo constituintes basilares da mentalidade

aristocraacutetica ateniense Goacutergias e Polos foram viacutetimas Sua derrota foi causada sobretudo

pelo constrangimento decorrente da proacutepria vergonha que os forccedilou agrave assunccedilatildeo de que eacute

mais vergonhoso cometer injusticcedila a ter de sofrecirc-la (DODDS 2002 A p 263) Essa

vergonha equivale agrave pudiciacutecia que natildeo deve despir-se ao olhar coletivo a beleza natural das

partes iacutentimas a nudez A contradiccedilatildeo que torna o discurso insustentaacutevel emerge a partir

de afeto insuportaacutevel suscitado pelo discurso demagoacutegico o paacutethos da vergonha75

Afeto e

discurso satildeo congruentes implicam-se e significam-se mutuamente

Entatildeo Goacutergias foi envergonhado disse Polos e admitiu ensinar (a

justiccedila segundo o haacutebito (eacutethos) dos homens para que algueacutem natildeo

se indignasse se dissesse o contraacuterio Foi por causa dessa

concordacircncia que Goacutergias foi constrangido a contradizer-se o que

muito te satisfaz Por isso Polos te ridicularizou corretamente

segundo penso Agora ele sofre o mesmo constrangimento

(eacutepathen) E por causa disso eu mesmo natildeo admiro Polos pelo

consentimento de que cometer injusticcedila eacute mais desonroso (aiskhiacuteon)

do que cometecirc-la Pois por causa dessa concordacircncia ele foi

enredado (sympodistheigraves) por ti nos argumentos e foi emudecido

por se envergonhar de dizer o que pensa76

75

Goacutergias 482c05-07 76

(Goacutergias 482d03-e02) Traduccedilatildeo modificada a partir de Irwin (1979)

117

Caacutelicles fundamenta a divisatildeo entre natureza e lei no afeto da vergonha segundo a

lei (kataacute noacutemos) eacute vergonhoso cometer injusticcedila mas segundo a natureza ocorre

precisamente o contraacuterio Haacute dois sentidos para a vergonha concernentes a cada um dos

dois termos da divisatildeo77

Qual das duas vergonhas deve fundamentar o respeito a

reverecircncia e a honra que possibilitam o criteacuterio para a escolha da melhor vida Seraacute a

vergonha que emerge do olhar coletivo longamente moldado na tradiccedilatildeo e nos noacutemoi ou a

vergonha aristocraacutetica que remete para a forccedila natural sem consideraccedilatildeo para com as

convenccedilotildees A disjunccedilatildeo entre natureza e lei sempre haure sentido na exterioridade

Soacutecrates subverte o sentido da vergonha ao vinculaacute-la ao cuidado da alma e agrave virtude O

criteacuterio para a escolha dos valores deriva da auto-sēmasiacutea ele brota do olhar da alma para

consigo mesma

Mas para Caacutelicles phyacutesis e noacutemos satildeo incompatiacuteveis e se a vergonha constituir um

impedimento para que ousadamente se fale aquilo que se pensa necessariamente haveraacute

contradiccedilatildeo (482e-483a) O afeto da vergonha indica uma incompatibilidade entre as

crenccedilas o pensamento (noeacuteō) e o discurso publicamente assumido O principal elemento

que caracteriza as ldquoamarrasrdquo da dialeacutetica socraacutetica natildeo eacute meramente proposicional e natildeo

77 Bensen Cain critica o procedimento refutativo de Soacutecrates mediante a distinccedilatildeo semacircntica do que eacute

moralmente vergonhoso e do que eacute mau ou prejudicial Polos admite a existecircncia factual de uma vergonha

convencional mas natildeo assente ao fato de que accedilotildees injustas sejam maacutes Ao contraacuterio o exemplo de Arquelau

seria suficiente para provar que o homem mais injusto eacute o mais feliz A refutaccedilatildeo de Polos eacute de ordem

semacircntica e ocorre por identificar o vergonhoso com o prejudicial Cain qualifica a falsa refutaccedilatildeo socraacutetica como falaacutecia de ambiguidade um deslizamento (sliding) ou oscilaccedilatildeo ambiacutegua entre duas acepccedilotildees

semacircnticas da vergonha (2008 p 221 ss) A anaacutelise de Cain expotildee com bastante clareza o fato de que as

interpretaccedilotildees do eacutelenkhos satildeo insuficientes por natildeo levarem em conta o exame semacircntico do afeto da

vergonha Natildeo obstante sua leitura aleacutem de empregar a terminologia proposicional moderna de Vlastos

pressupotildee o princiacutepio natildeo explicitado de que a significaccedilatildeo semacircntica faz referecircncia a uma realidade objetiva

exterior Caacutelicles personagem platocircnica aponta exatamente o problema da distinccedilatildeo semacircntica dos dois

sentidos de aiskhroacutes aiskhiacuteon como expediente demagoacutegico empregado por Soacutecrates A questatildeo da

significaccedilatildeo afetiva todavia deveria ser auto-referenciada no acircmbito interno da alma

118

pode ser reduzido agrave consecuccedilatildeo de conclusotildees que decorrem de premissas fracas78

O iniacutecio

da contradiccedilatildeo aponta para uma dissociaccedilatildeo psiacutequica a oposiccedilatildeo entre a vergonha suscitada

pela reprovaccedilatildeo coletiva e as crenccedilas subjacentes ao pensamento79

O proacuteprio Caacutelicles

afirma que natildeo seria presa da vergonha em funccedilatildeo de discernir com exatidatildeo a distinccedilatildeo

entre phyacutesis e noacutemos Esta ausecircncia de vergonha eacute inversamente proporcional agrave ousadia

(toacutelmacirci) no falar que configura a sua ldquofranquezardquo No tinir das espadas da palavra

emergem os afetos e atributos psiacutequicos como princiacutepios da accedilatildeo e do gecircnero de vida

aceitaacutevel e honoraacutevel o apetite de ter mais a vergonha e a honra o pensamento os

discursos e seus efeitos o caraacuteter e a justiccedila A verdadeira contradiccedilatildeo (enantiacutea) eacute

contradiccedilatildeo entre discurso afetos manipulaccedilatildeo dos afetos (encantaccedilatildeo e goēteiacutea) e

pensamentos determinantes para a melhor vida a vida de mais brilho de maior valor forccedila

e significaccedilatildeo A verdadeira contradiccedilatildeo ocorre no acircmbito da complexidade da alma

A divisatildeo entre phyacutesis e noacutemos implica uma oposiccedilatildeo que procura reduzir a questatildeo

da justiccedila a duas partes tornadas incompatiacuteveis pelos interesses em oposiccedilatildeo que

configuram a inteireza da cidade A exaustividade das duas partes exclui a possibilidade de

qualquer outra subdivisatildeo e reduz o debate a duas posiccedilotildees antagocircnicas entre as quais se

78 Irwin aponta o ldquoescruacutepulo convencionalrdquo como base do diagnoacutestico do embaraccedilo em que se meteram

Goacutergias e Polos mas somente reconhece na passagem uma criacutetica proposicional ao meacutetodo refutativo

empregado por Soacutecrates Caacutelicles teria oferecido duas objeccedilotildees ao eacutelenkhos (i) Soacutecrates muda as premissas

do argumento preacutevio (ii) Soacutecrates depende de premissas concedidas pelo interlocutor e com isso

simplesmente fia-se nos preconceitos do interlocutor ou em visotildees com as quais natildeo concorda inteiramente

(1979 p 170) O desenvolvimento da criacutetica de Caacutelicles no entanto indica que o embate dialoacutegico gira em

torno da questatildeo do gecircnero de vida e da decorrente significaccedilatildeo do paacutethos da vergonha 79 Vlastos consigna ao eacutelenkhos a funccedilatildeo de testar ou provar o modo de vida e o caraacuteter ou a honestidade do interlocutor mediante a afirmaccedilatildeo de uma crenccedila que este efetivamente possui O gecircnero de vida nessa

perspectiva seria somente uma garantia da veracidade das teses defendidas e da seriedade na busca da

verdade Embora Vlastos reconheccedila que o eacutelenkhos possua o duplo papel existencial de ldquomostrar como cada

ser humano deve viver e testar aquele ser humano uacutenico que estaacute respondendo a fim de descobrir se ele vive

como algueacutem deve viverrdquo sua anaacutelise do eacutelenkhos padratildeo possui um enfoque inteiramente proposicional

segundo o qual o esquema baacutesico seria a anaacutelise ad hoc de proposiccedilotildees q e r natildeo conectadas logicamente agrave

crenccedila p do interlocutor a fim de se chegar agrave assunccedilatildeo de natildeo-p

olympiodoro

119

deve forccedilosamente escolher O artifiacutecio retoacuterico de Caacutelicles eacute paradigmaticamente

estrateacutegico apoacutes reduzir o debate a dois poacutelos excludentes passa-se a desqualificar a

posiccedilatildeo do adversaacuterio mediante a reduccedilatildeo ao ridiacuteculo para logo em seguida conferir

primazia para a uacutenica alternativa possiacutevel Por essa razatildeo a exortaccedilatildeo caricatura o modo de

viver filosoacutefico num quadro em que Soacutecrates passa o resto de seu tempo cochichando

(psithyriacutezdonta) sem que seja capaz de murmurar (phtheacutenxasthai) o que eacute livre grande e o

que vem a propoacutesito (Goacutergias 485d-e)

Sob a aparecircncia da disposiccedilatildeo amigaacutevel80

a admoestaccedilatildeo segue impulsionada pela

alegaccedilatildeo de um paacutethos de perigo iminente que enseja a estrateacutegia de mais uma comparaccedilatildeo

depreciativa segundo a qual a situaccedilatildeo protagonizada por Soacutecrates evoca aqueloutra

encenada na Antiacuteope de Euriacutepides81

Como o muacutesico Amphion Soacutecrates esquece o modo de conduzir as ocupaccedilotildees e

torna a natureza de sua alma pueril natildeo sabe cuidar de si natildeo eacute capaz de um loacutegos reto em

conselhos de justiccedila natildeo poderia apreender nem o razoaacutevel (eikoacutes) nem o persuasivo

(pithanoacutes) e nem poderia pocircr a serviccedilo de outro um conselho decidido (bouacuteleuma

80

81 Segundo M Canto (1993 p 333) o tema principal da trageacutedia de Euriacutepides era a libertaccedilatildeo de Antiope por

sues filhos gecircmeos Zḗthos e Amphion O primeiro era pastor e Amphion muacutesico Na encenaccedilatildeo Euriacutepides

opotildee dois modos de vida conflitantes mediante a tipificaccedilatildeo dos dois irmatildeos ao deslocamento de um artista e

filoacutesofo que se afasta das atividades puacuteblicas se opotildee a atividade praacutetica de um homem de accedilatildeo Croiset

(2003 p 284-285 n 1) afirma que Zḗthos era vigoroso e eneacutergico se dedicava agrave caccedila e agrave criaccedilatildeo de animais

ao passo que Amphion desdenhava os exerciacutecios violentos por possuir uma natureza mais fina e mais

sensiacutevel Amphion teria recebido de Hermes a lira com a qual se dedicava agrave muacutesica e agrave poesia E R Dodds atribui a Euriacutepides uma visatildeo anti-racionalista que vai de encontro com a concepccedilatildeo platocircnica de

uma ordem racional que perpassa o Koacutesmos Para Euriacutepides o homem eacute escravo da Necessidade e o divino eacute

muito mais um conjunto de potecircncias irracionais do que a expressatildeo de uma racionalidade A atitude de

Amphion em relaccedilatildeo agrave poliacutetica torna manifesto o artifiacutecio da comparaccedilatildeo desqualificadora usado por Caacutelicles

na sua exortaccedilatildeo No Fr 201 Amphion suplica conceda-me o dom da muacutesica e da afirmaccedilatildeo sutil natildeo

permita de forma alguma que eu me meta nos destemperos do Estado A alusatildeo agrave personagem da Antiope de

Euriacutepides caricatura e desvaloriza Soacutecrates Natildeo obstante Dodds acentua as diferenccedilas entre o poeta traacutegico e

Platatildeo ldquoO contemplativo platocircnico estaacute em casa no Universo porque ele vecirc o Universo como sendo

penetrado por uma razatildeo divina e portanto eacute acessivel agrave razatildeo humana tambeacutem Mas o homem de Euriacutepides

eacute o escravo e natildeo a crianccedila favorita dos deuses e o nome da bdquoordem sem idade‟ eacute a Necessidade

chora o Coro na Alcestis (DODDS 1929 p 101)

120

bouleuacutesaio)82

Ao comparar a sua exortaccedilatildeo com a reprimenda que Zḗthos dirige ao irmatildeo

por causa de uma atividade lassa Caacutelicles coloca Soacutecrates e Amphion num mesmo plano

Natildeo haacute modo mais direto de desqualificar o adversaacuterio do que comparaacute-lo com uma

personagem reconhecidamente despreziacutevel A contundente desqualificaccedilatildeo eacute endereccedilada

simultaneamente ao homem e agrave sua atividade e possui o inegaacutevel valor retoacuterico de suscitar

a adesatildeo sem reclamar justificaccedilatildeo pois se vale do proacuteprio processo mental com que o

homem comum forma a sua opiniatildeo

A fala de Caacutelicles deixa entrever que o tipo de racionalidade pretendida pela retoacuterica

natildeo se preocupa com a explicaccedilatildeo e as causas de seu procedimento mas tatildeo somente aduz

arrazoados que se valem das opiniotildees arraigadas no quadro mental da cidade para forcejar a

persuasatildeo A elaborada construccedilatildeo do discurso de Caacutelicles torna patente o fato de que

Platatildeo natildeo nega a eficaacutecia da engenhosidade retoacuterica Pelo contraacuterio eacute em funccedilatildeo da

eficaacutecia de uma praacutetica que se vale de esquemas de pensamento que natildeo satildeo explicitados eacute

que Platatildeo contrapotildee agrave retoacuterica a Filosofia como a uacutenica racionalidade legiacutetima A

racionalidade genuiacutena eacute aquela que natildeo somente sustenta seu loacutegos em causas mas que

garante a excelecircncia do ḗthos a partir de uma noccedilatildeo de justiccedila que ultrapassa a efemeridade

das circunstacircncias e das conveniecircncias

Agrave rhḗsis retoricamente bem acabada de Caacutelicles Soacutecrates sem detenccedila evoca a

alma como a instacircncia na qual os seus efeitos se manifestam A psykheacute eacute a origem e o fim

do loacutegos Este por sua vez eacute um meio pelo qual os movimentos psiacutequicos interatuam e

influenciam-se mutuamente engendrando inteligecircncia ou ilusatildeo miriacuteades de afetos

significaccedilotildees ou perplexidades Se a alma fosse de ouro (khryacutesen) Caacutelicles seria o liacutethos a

82 icirc

(Goacutergias 485e06-a03)

121

pedra de toque abrasiva que prova a preciosidade Assim como a pedra de toque prova o

ouro agrave alma prova o loacutegos

Agrave ordenaccedilatildeo da rhḗsis segue raacutepida a sutileza da eironeiacutea Baacutesanos eacute

simultaneamente a pedra de toque que prova o ouro e a interrogaccedilatildeo sob tortura ndash a forma

mais brutal e desumanizadora de violecircncia e de manifestaccedilatildeo de poder83

A exortaccedilatildeo

retoacuterica de Caacutelicles eacute pedra de toque ou tortura Olympiodoro observa que a metaacutefora

ressalta o papel de teste do eacutelenkhos assim como uma pedra friccionada agrave outra provoca a

faiacutesca que se torna chama uma dificuldade friccionada agrave outra se torna a causa da

descoberta Assim como a pedra prova o ouro a pureza da alma eacute provada pela dureza do

caraacuteter de Caacutelicles (OLYMPIODORUS 1998 p 194)

O emprego irocircnico da ambiguidade enseja o estabelecimento de condiccedilotildees

diretrizes Para provar (basanieicircn) suficientemente se uma alma vive retamente ou natildeo eacute

preciso trecircs qualidades o saber (episteacuteme) a benevolecircncia (eunoacuteia) e a franqueza

(parrhēsiacutea)84

Tais condiccedilotildees satildeo determinaccedilotildees da alma e se contrapotildeem discursivamente

agrave divisatildeo bipolar postulada por Caacutelicles entre phyacutesis e noacutemos A questatildeo da valoraccedilatildeo das

accedilotildees pressupotildee a esfera psiacutequica e essa triparticcedilatildeo (triacutea) de determinaccedilotildees psiacutequicas

83

Michael Gagarin (1996 p 1) mostra que a tortura era praacutetica corrente na democracia ateniense como

instrumento juriacutedico usado nos tribunais Uma norma bem conhecida sustenta que na maioria dos casos os testemunhos dos escravos soacute eram admissiacuteveis no tribunal se eles fossem levados sob tortura e nos discursos

forenses de sobrevivecircncia os oradores frequentemente descrevem as regras que regem e enaltecem

a praacutetica como a mais eficaz e ateacute mesmo ldquomais democraacuteticardquo (Lycurg 129) Era um toacutepos que a informaccedilatildeo

mediante era preferiacutevel ao depoimento de testemunhas livres Sendo assim um orador afirma

(Dem 3037) Certamente vocecircs (jurados) consideram como a prova mais precisa de todas em

ambos os casos privado e puacuteblico e quando escravos e pessoas livres estiverem ambas disponiacuteveis e vocecircs

precisarem descobrir algum fato sob investigaccedilatildeo natildeo usem o testemunho das pessoas livres mas sujeitem

os escravos ao dessa forma procurem descobrir a verdade E isso eacute bem razoaacutevel senhores do

juacuteri pois vocecircs sabem muito bem que no passado algumas testemunhas pareceram depor falsamente

enquanto ningueacutem que se sujeitou ao comprovadamente jamais falou falsamente sob 84

(Goacutergias 487a)

122

aponta ao mesmo tempo para um modo de unificaccedilatildeo e um modo de dissociaccedilatildeo ou de

fragmentaccedilatildeo

34 Parrhēsiacutea e Epithymiacutea

Polos ndash Por quecirc Natildeo me eacute permitido falar o quanto eu quiser

Soacutecrates ndash Terriacutevel sofrimento terias oacute excelente se desde tua

chegada a Atenas a cidade da Heacutelade onde a liberdade de falar eacute a

maior tu fosses o uacutenico homem que tivesse essa falta de sorte

Goacutergias 461d85

A liberdade da fala reflete o igualitarismo ateniense e a expectativa de que o

cidadatildeo se engaja na assembleacuteia mediante o discurso aberto A participaccedilatildeo direta na vida

ciacutevica pressupotildee a fala consonante com o pensamento de quem a profere A parrhēsiacutea

constitui-se na abertura do discurso que revela o pensamento de quem fala Qualquer

expediente que ofusque o pensamento como a retoacuterica86

denota a prevalecircncia dos

interesses particulares em detrimento do bem-estar da cidade

Nesse sentido a parrhēsiacutea aparece inicialmente como a fala aberta que revela o

pensamento e as verdadeiras crenccedilas do proferidor A parrhēsiacutea eacute a fala que desvela e

revela eacute o tipo de discurso mediante o qual o cidadatildeo da democracia ateniense se engaja

com igualdade junto aos demais concidadatildeos na assembleacuteia deliberativa para expor sem

impedimentos o seu pensamento Na democracia do Vordm seacuteculo as principais caracteriacutesticas

da parrhēsiacutea praacutetica distintiva da democracia de Atenas como observa Arlene

Saxonhouse satildeo i) a ousadia corajosa da praacutetica que envolve o risco de afrontar os

85 ΠΩΛOS Τί δέ νὐθ ἐμέζηαη κνη ιέγεηλ ὁπόζα ἂλ βνύιωκαη

ΣΩKRATES Δεηλὰ κεληἂλ πάζνηο ὦ βέιηηζηε εἰ Ἀζήλαδε ἀθηθόκελνο νὗ ηῆο Ἑιιάδνο πιείζηε

ἐζηὶλ ἐμνπζία ηνῦ ιέγεηλ ἔπεηηα ζὺ ἐληαῦζα ηνύηνπ κόλνο ἀηπρήζαηο 86 No seu trabalho acerca da liberdade da fala na democracia ateniense Arlene Saxonhouse afirma que a

parrhēsiacutea se opotildee mais do que suporta a praacutetica da retoacuterica que obscurece e distorce a verdade em favor do

benefiacutecio individual O verdadeiro falante parresiaacutestico repudia a arte da retoacuterica A retoacuterica com seu

objetivo de enganar natildeo eacute uma expressatildeo de parrhēsiacutea mas sua perversatildeo () O contraste entre a retoacuterica

e a parrhēsiacutea eacute um tropo familiar que perpassa as falas dos oradores do quarto seacuteculo A retoacuterica de acordo

com suas proacuteprias promessas obstrui a praacutetica da parrhēsiacutea e mina o papel da liberdade da fala como uma

atividade que procura a verdade no regime democraacutetico (2008 p 92)

123

princiacutepios legais e cultos ciacutevicos e ii) o aspecto de desvelamento envolvido na praacutetica que

simultaneamente expotildee os verdadeiros pensamentos do interlocutor e sua resistecircncia a

ocultar a verdade por causa da coerccedilatildeo decorrente do olhar puacuteblico da vergonha coletiva

(SAXONHOUSE 2008 p 87)

A retoacuterica aparece como teacutecnica que promete a liberdade entre os homens e o poder

sobre o outro na cidade87

o poder de dominar o olhar coletivo mediante a persuasatildeo ndash

encantaccedilatildeo dos loacutegoi A retoacuterica eacute a dyacutenamis de dominaccedilatildeo das grandes massas (en toicircs

plḗthesin Goacutergias 457a06) Seu ensino intrinsecamente voltado para o espetaacuteculo na

assembleacuteia natildeo requer nem o conhecimento nem a verdade mas o poder de mobilizar os

afetos e suscitar a persuasatildeo A potecircncia da retoacuterica eacute a potecircncia da ocultaccedilatildeo da ilusatildeo e

da elisatildeo aos impedimentos derivados do olhar coletivo Trata-se de um procedimento

discursivo que suprime a necessidade da verdade e torna a vergonha ineficaz pelo poder

encantatoacuterio da persuasatildeo No Goacutergias a parrhēsiacutea aparece como condiccedilatildeo epistecircmica do

discurso investigativo Fala do desvelamento e da abertura ao olhar a parrhēsiacutea se opotildee

encobrimento retoacuterico assim como a igualdade se opotildee agrave dominaccedilatildeo e agrave usurpaccedilatildeo e assim

como a instruccedilatildeo (maacutethesis) se opotildee agrave crenccedila (piacutestis Goacutergias 454d)

Goacutergias e Polos se contradisseram por causa da indiscriccedilatildeo elecircntica de Soacutecrates que

desnudou crenccedilas e princiacutepios de accedilatildeo cujo papel no acircmbito do jogo poliacutetico deveriam

permanecer ocultas Goacutergias e Polos foram refutados por causa da vergonha que os impediu

de usar a fala aberta da qual os atenienses se orgulham88

Estrangeiros eles satildeo

87 κὲλ ἐιεπζεξίαο αὐηνῖο ηνῖο ἀλζξώπνηο ἅκα δὲ ηνῦ ἄιιωλ ἄξρεηλ ἐλ ηῇ αὑηνῦ πόιεη Goacutergias (452d07) 88

ηὼ δὲ μέλω ηώδε Γνξγίαο ηε θαὶ Πῶινο ζνθὼ κὲλ θαὶ θίιω ἐζηὸλ ἐκώ ἐλδεεζηέξω δὲ

παξξεζίαο θαὶ αἰζρπληεξνηέξω κᾶιινλ ηνῦ δένληνο πῶο γὰξ νὔ ὥ γε εἰο ηνζνῦηνλ αἰζρύλεο ἐιειύζαηνλ ὥζηε δηὰ ηὸ αἰζρύλεζζαη ηνικᾷ ἑθάηεξνο αὐηῶλ αὐηὸο αὑηῷ ἐλαληία ιέγεηλ ἐλαληίνλ

πνιιῶλ ἀλζξώπωλ θαὶ ηαῦηα πεξὶ ηῶλ κεγίζηωλ

124

considerados saacutebios e amigos mas ao mesmo tempo deficientes de parrhēsiacutea e

excessivamente envergonhados Satildeo carentes de liberdade no falar e plenos de vergonha A

vergonha que sofrem eacute tatildeo grande que os impede de ter audaacutecia ambos se contradizem sem

poder contraditar a multidatildeo dos homens acerca de questotildees que para Soacutecrates satildeo as

maiores Ao contraacuterio do cidadatildeo ateniense tiacutepico os estrangeiros Goacutergias e Polos

suportam excessiva vergonha mas natildeo suportam a firmeza da palavra e de seus verdadeiros

pensamentos Mas ao contraacuterio de Goacutergias e Polos Caacutelicles eacute ateniense e pode falar

livremente (parrhēsiaacutezdesthai) sem se envergonhar (megrave aiskhyacutenesthai Goacutergias 487d05)

Todavia a parrhēsiacutea praticada nas assembleacuteias puacuteblicas atenienses pressupotildee a fala aberta

entre iguais iacutesoi ao passo que Caacutelicles eacute apologista da excelecircncia dos melhores dentre

desiguais Em que difere o livre-falar de Caacutelicles e a parrhēsiacutea isonocircmica ateniense Quais

satildeo as determinaccedilotildees que operam as distinccedilotildees entre franquezas antagocircnicas

A parrhēsiacutea aparece no Laacuteques ligada agrave questatildeo da consonacircncia entre o discurso e o

gecircnero de vida de quem o profere Jaacute no iniacutecio do proacutelogo Lisiacutemaco estabelece o falar

francamente89

como condiccedilatildeo preacutevia agrave discussatildeo que teraacute iniacutecio Os conselhos mais

importantes exigem consonacircncia entre o pensamento e opiniatildeo ao contraacuterio daqueles que

buscam conformar o discurso agrave opiniatildeo da maioria (Laques 178b01-03)

A questatildeo do cuidado (epimeacuteleia) necessaacuterio para que os filhos se tornem excelentes

(aacuteristoi) reclama a franqueza muacutetua (parresiasoacutemetha) no falar90

(Laques 179c01) A

consonacircncia entre discurso e pensamento eacute condiccedilatildeo sine qua non para o aconselhamento

conjunto (symbouleuacuteomai) acerca de questotildees importantes A deliberaccedilatildeo acerca do melhor

Goacutergias 486a06-487b05 89

(Laacuteques 178a04) 90 Emlyn-Jones interpreta o desejo de Lisiacutemaco em ser franco como uma exposiccedilatildeo de si proacuteprio ao potencial

ridiacuteculo e sacrifiacutecio do prestiacutegio social por fazer a revelaccedilatildeo da incompetecircncia paterna Essa exposiccedilatildeo ao

ridiacuteculo seria uma demonstraccedilatildeo praacutetica do seu desejo reiterado de cooperaccedilatildeo (1999 p 126)

125

pressupotildee natildeo somente o conhecimento daquilo que vai ser ensinado (maacutethēma) e de seus

efeitos mas a comunhatildeo (koinōniacutea) de fins que suscita um discurso veraz sobre o cuidado a

ser dado aos filhos (Laacuteques 179e)

O cuidado (epimeleacuteia) se opotildee agrave libertinagem dos que chegam agrave adolescecircncia e

fazem o que querem91

A preocupaccedilatildeo com o cuidado para com os filhos configura um

conflito dos valores proacuteprios agraves atividades da democracia ateniense do V seacuteculo a

dedicaccedilatildeo agraves atividades puacuteblicas dos homens bem reputados implica em negligenciar a

educaccedilatildeo dos proacuteprios filhos As belas accedilotildees empreendidas pelos eudoacutekimoi tanto na

guerra como na paz na ocupaccedilatildeo das coisas dos aliados e da polis (179c) engendram

como contrapartida a corrupccedilatildeo da aristeiacutea das geraccedilotildees subsequentes em razatildeo do

descuidar (ameleicircn) Filhos de pais nobres e bons Lisiacutemaco e Meleacutesias envergonham-se

(hypaiskhynoacutemethaacute) diante dos proacuteprios filhos por natildeo terem accedilotildees valorosas a narrar O

descuido implica uma vida de moleza (tryacutephan) cuja consequecircncia eacute a licenciosidade92

A

dedicaccedilatildeo agraves coisas dos outros (tōn aacutellōn praacutegmata eacutepratton) implica a ameleiacutea

negligecircncia que torna a vida poliacutetica incompatiacutevel com a excelecircncia e a nobreza que

configura o homem bem reputado (179d) O cuidado epimeleacuteia e terapecircutica exigidos

pela excelecircncia se opotildeem agrave ameleiacutea e agrave vergonha A encenaccedilatildeo dramaacutetica sugere que a

democracia aristocraacutetica ateniense carrega em seu bojo a vergonha que emerge da

incompatibilidade interna de seus valores

O proacutelogo do Laacuteques encena a oposiccedilatildeo entre tipos de comunhotildees excludentes O

cuidado com as praacuteticas poliacuteticas exige a comunhatildeo com a maioria e consequentemente

um gecircnero de discurso que se pauta pela opiniatildeo dos muitos em detrimento do pensamento

91 179a06-07 92 Sobre Lisiacutemaco e Meleacutesias personagens do Laacuteques ver introduccedilatildeo de L A Dorion (PLATON 1997 p

15-20)

126

O cuidado com os filhos exige a comunhatildeo e a atenccedilatildeo simultacircnea de todos os pais e

reclama um gecircnero de discurso inteiramente consonante com o pensamento (Laques 180b)

Essa consonacircncia constitui a franqueza muacutetua (parrēsiaacutezomai) que possibilita o bom

conselho Haacute pois ao mesmo tempo um viacutenculo entre o falar franco e o pensamento que

lhe corresponde e um viacutenculo da licenciosidade no falar com os desejos da maioria Satildeo

tipos opostos de franqueza A franqueza muacutetua que instaura a comunhatildeo do bom conselho

mediante o confiar (pisteuacuteesthai 180b06) se opotildee agrave fala livre empregada nas atividades

poliacuteticas

A comunhatildeo gera a veracidade a veracidade gera a boa reputaccedilatildeo (181b08) e a

confianccedila a confianccedila gera a maior benevolecircncia (eunouacutestaton 181b08) e a benevolecircncia

manteacutem salva a amizade A encenaccedilatildeo dramaacutetica do proacutelogo do Laacutequesingressa

simultaneamente a conexatildeo entre o cuidado com o eacutethos e a investigaccedilatildeo das maiores

questotildees e entre a parrhēsiacutea a eunoacuteia e a episteacuteme A comunhatildeo dos pais em torno da

finalidade comum da formaccedilatildeo e da excelecircncia abarca a competecircncia no ensino a

franqueza muacutetua a benevolecircncia e a amizade ndash condiccedilotildees epistecircmicas da investigaccedilatildeo

Laacuteques admite que sua atitude diante dos loacutegoi eacute dupla a saber que ora eacute tomado de

paixatildeo ora eacute tido como homem que os detesta Seu amor pelos discursos eacute condicionado

pelo fato de haver uma harmonia entre o homem e seu discurso homem que em funccedilatildeo

dessa harmonia eacute ldquoverdadeiramente umrdquo (188c) e ldquomuacutesico completordquo natildeo por tocar

instrumentos que divertem mas por acordar suas palavras (loacutegoi) com seus atos (erga) sua

proacutepria vida Os discursos bem falados que natildeo estatildeo em consonacircncia com o modo de vida

devem ser detestados Soacutecrates poderia se permitir belos discursos e falar com toda

franqueza (parrhēsiacuteas) pois seus atos eram suficientemente provados (189a) A

incompatibilidade entre o modo de vida e o discurso entre os erga e os loacutegoi indica uma

127

fragmentaccedilatildeo no acircmbito da alma Soacute eacute verdadeiramente ldquoumrdquo aquele que harmoniza seu

loacutegos com os seus atos que em uacuteltima instacircncia derivam de seus desejos

Em outras passagens a parrhēsiacutea aparece ligada aos apetites No Banquete apoacutes o

veemente desabafo em que Alcibiacuteades confessa seu amor eroacutetico por Soacutecrates diante de

todos os circunstantes ldquotodos riram da sua franqueza (parrhēsiacuteas) por parecer que ele

ainda era apaixonado de Soacutecratesrdquo (Banquete 222c) Na Repuacuteblica apoacutes a associaccedilatildeo da

origem do governo democraacutetico com a revolta da pobreza as caracteriacutesticas da polis

democraacutetica satildeo identificadas com a liberdade licenccedila de se fazer o que se desejar93

e

franqueza de falar (parrhēsiacutea) que permitem que cada um possa ter um gecircnero de vida

particular segundo sua proacutepria fantasia A polis democraacutetica eacute caracterizada pela

multiplicidade dispersatildeo de prazeres (hedeiacutea) pela anarquia (aacutenarkhos) e variabilidade

(poikiacutele) O homem democraacutetico eacute dominado pelos apetites (aphrodisiacuteon) desejos

supeacuterfluos que natildeo produzem nenhum bem e prejudicam simultaneamente o corpo a

alma o discernimento e a temperanccedila (558c-559d) A parrhēsiacutea eacute nesse contexto o loacutegos

licencioso que exprime o predomiacutenio dos apetites No Fedro a distinccedilatildeo entre o desejo de

prazeres e a aspiraccedilatildeo ao melhor determina tendecircncias psiacutequicas que ldquoora se acordam ora

se combatemrdquo (237b) O descomedimento caracteriza o predomiacutenio do desejo que arrasta

em direccedilatildeo aos prazeres e aquele que eacute dominado pelo desejo e escravo dos prazeres

(238e) procura obter do amado o maior prazer possiacutevel ao preccedilo dos maiores prejuiacutezos para

o corpo e para a alma O ciuacuteme e a inveja incitam no homem dominado pelo apetite uma

vigilacircncia tiracircnica que se expressa em censuras insuportaacuteveis e infamantes ldquose o amante se

embriaga e fala com uma franqueza (parrhēsiacutea) grosseira e impudenterdquo (240a) Mais uma

vez a parrhēsiacutea aparece num contexto em que se discorre sobre a escravizaccedilatildeo aos apetites

93 (Repuacuteblica 557b)

128

e um discurso licencioso que lhes corresponde No livro X das Leis a parrhēsiacutea eacute associada

ao discurso licencioso em relaccedilatildeo aos deuses proferido pelos iacutempios cuja caracteriacutestica eacute a

incapacidade de dominar o prazer e a dor (908c) De maneira geral a parrhēsiacutea eacute

relacionada ao discurso desimpedido sem peias impulsionado pelo apetite pelo vinho ou

excesso de liberdade (Leis 649b 806d 829d-e)

No Goacutergias a parrhēsiacutea eacute mencionada na ambiguidade irocircnica com que Soacutecrates

alude ao mesmo tempo ao livre curso dos apetites de Caacutelicles que engendram a violecircncia

do seu loacutegos e a qualidade psiacutequica pela qual a investigaccedilatildeo dialeacutetica assimilada ao exame

da alma pode chegar a bom termo A franqueza eacute a garantia pela qual o assentimento do

interlocutor a uma tese expressa sem dissimulaccedilatildeo sua crenccedila e sua opiniatildeo mas eacute

tambeacutem um indicativo de que certa ordenaccedilatildeo psiacutequica transpotildee seu movimento proacuteprio

para o loacutegos O discurso sem peias reproduz de modo direto a trama que entretece os afetos

neste princiacutepio de movimento e inteligecircncia que eacute a psykheacute (Fedro 245d)

Caacutelicles independentemente da questatildeo de sua historicidade congrega e personifica

uma ordenaccedilatildeo de valores tiacutepica Ele eacute como afirma Jaeger a encarnaccedilatildeo perfeita de um

tipo de homem o adulador (JAEGER 1995 p 682) Tal como Soacutecrates e as grandes

personagens que protagonizam um papel de primeiro plano nos diaacutelogos Caacutelicles torna-se

um mito pois adquire a atemporalidade e a exemplaridade dos tipos psiacutequicos que soacute o

mito pode abarcar (DIXSAUT 2001 p 157-161) Eacute justamente a atemporalidade miacutetica

que faz com que o tipo psiacutequico personificado por Caacutelicles possa ser revivido em todas as

eacutepocas como um tipo de homem

Muito se tem discutido se a personagem de Caacutelicles esconde uma adaptaccedilatildeo

platocircnica de uma ou mais figuras histoacutericas da alta aristocracia de seu tempo (CANTO

1993 p 38-39) ou se a viacutevida imagem que Platatildeo faz do oponente de Soacutecrates trai um

129

ldquoconflito que se passa dentro de uma soacute menterdquo conflito que faria de Caacutelicles um ldquoretrato

do eu rejeitado de Platatildeordquo (GUTHRIE 1995 p 102-103) mas que seria tambeacutem integrado

a ele mediante a expressatildeo de ldquosincero interesse pela seguranccedila de Soacutecratesrdquo (DODDS

2002 A p 13) Werner Jaeger afirma que Platatildeo se deu ao trabalho de ldquocompreender

Caacutelicles antes de subjugaacute-lordquo e talvez tenha sentido ldquono seu natural essa acircnsia irreprimiacutevel

de poder com poder suficiente para em Caacutelicles atacar uma parte de seu proacuteprio eurdquo

(JAEGER 1995 p 666)

Que Platatildeo tenha tido a inteligecircncia das fiacutembrias da afetividade humana mais

perversa o demonstram a eloquumlecircncia e brilhantismo das falas antoloacutegicas de suas

personagens Mas no Laacuteques a incompatibilidade estabelecida entre o discurso e as accedilotildees

indica que a questatildeo dos valores implica a harmonia ou o conflito na instacircncia da proacutepria

psykheacute No Goacutergias a mesma concepccedilatildeo se repete eacute preferiacutevel tocar uma lira mal afinada

ou dirigir mal um coro ou ainda natildeo estar de acordo com a maioria do que natildeo estar em

consonacircncia consigo mesmo e contradizer-se (482c) A distinccedilatildeo socraacutetica de uma

triparticcedilatildeo de determinaccedilotildees psiacutequicas sugere que o problema da ordenaccedilatildeo dos valores

remete sobretudo para o modo como satildeo ordenadas certas instacircncias da psykheacute A

triparticcedilatildeo de qualidades implica uma triparticcedilatildeo funcional Eacute o conflito e a desarmonia da

proacutepria psykheacute que determina a incompatibilidade entre os valores professados e o discurso

de um lado e as accedilotildees de outro

Que o Goacutergias retrata um conflito entre modos de vida e valores opostos o atestam

os combates eriacutesticos das personagens e o seu mito de julgamento final Mas Platatildeo foi

muito aleacutem de divisar um conflito entre seus valores e aspiraccedilotildees ocultas A espantosa e

imortal vivacidade da personagem ndash que talvez tenha feito a mais mordaz e impactante

130

apologia do poder e do apetite de todos os tempos ndash constitui o principal testemunho de que

Platatildeo estaacute advertido de que na psykheacute de cada homem vive um Caacutelicles

A bela terapecircutica da alma (kalocircs tetherapeucircstai tegraven psykheacuten) pressupotildee que o

assentimento agraves opiniotildees da alma (psykheacute doxaacutezei) seja tomado como princiacutepio

verdadeiro94

Para que se examine a questatildeo do que eacute justo e por conseguinte do melhor

modo de vida eacute preciso que se examine a constituiccedilatildeo psiacutequica a partir das opiniotildees Mas

para isso eacute preciso que se tenha a determinaccedilatildeo preacutevia da benevolecircncia (eunoacuteia)

A eunoacuteia aparece no Protaacutegoras95

como determinaccedilatildeo proacutepria dos amigos que

entretecircm discussatildeo Apoacutes exortar Soacutecrates para que natildeo abandone sua discussatildeo com

94

Callicles natildeo tenciona assentir equivocadamente por causa de estupidez embaraccedilo ou insinceridade Sua

franqueza assegura que ele defenda firmemente sua posiccedilatildeo anti-convencional Assim Soacutecrates parece

exagerar quando demanda que tudo aquilo que for aceito de comum acordo seja verdadeirohellip Ainda que ele o prenda atraveacutes de sua concordacircncia o que garante a verdade das conclusotildees (IRWIN 2003 p 102) Dodds

por sua vez observa que a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates tem sido tipicamente vista como sinal do valor excessivo

que Platatildeo atribui ao meacutetodo do eacutelenkhos A acidentalidade e a particularidade da opiniatildeo do interlocutor

implicaria um bdquodefeito‟ e inferioridade do eacutelenkhos (Robinson) em relaccedilatildeo agrave axiomaacutetica universal de

Aristoacuteteles (DODDS 2002 p 279-280) Todavia como o proacuteprio Irwin admite Platatildeo natildeo vecirc a posiccedilatildeo de

Caacutelicles como sendo a de um excecircntrico com um ponto de vista extremamente radical da justiccedila

convencional Trata-se simplesmente de uma declaraccedilatildeo convincente de pontos de vista atraentes para

muitos contemporacircneos de Soacutecrates e Platatildeo A concepccedilatildeo de uma virtude e de uma boa pessoa que eacute focada

no poder individual na riqueza e no status eacute bem estabelecida no pensamento eacutetico Grego e coexiste

problematicamente com a concepccedilatildeo de virtude vinculada agraves outras obrigaccedilotildees concernentes agrave justiccedila (ibid p

103)rdquo A identificaccedilatildeo das teses assumidas pelo interlocutor com a verdade natildeo constitui exagero nem do ponto de

vista da dialeacutetica socraacutetica nem do ponto de vista da retoacuterica Caacutelicles representa natildeo somente uma corrente

de pensamento que configura uma concepccedilatildeo de virtude e justiccedila proacuteprias ao pensamento grego de entatildeo mas

encarna certos valores e tipifica um tipo de caraacuteter que exerce um papel decisivo no jogo poliacutetico ateniense

Por mais absurdas que possam ser as teses assumidas como ldquoverdaderdquo o tratamento do eacutelenkhos possui o

objetivo justamente de conduzir o raciociacutenio ateacute as uacuteltimas consequecircncias dos postulados assumidos Teses

verdadeiras natildeo podem implicar conclusotildees contraditoacuterias e absurdas A refutaccedilatildeo frequentemente se faz

pelo absurdo ou incompatibilidade das conclusotildees com um acordo inicial em torno de algum postulado A

incompatibilidade denuncia mais um conflito entre valores e gecircnero de vida do que propriamente de

proposiccedilotildees contraditoacuterias Como nota Charles Kahn o eacutelenkhos eacute mais uma maneira de testar o modo de

vida do que de testar proposiccedilotildees (KAHN 1996 p 98 133) Ademais do ponto de vista retoacuterico natildeo existe adesatildeo e por conseguinte persuasatildeo sem o assentimento e o

acordo em torno de teses que demarcam o ponto de partida do arrazoado De qualquer maneira o acordo em

torno de opiniotildees deve ser tomado como se fosse uma verdade A dialeacutetica socraacutetica eacute sempre hipoteacutetica em

seu iniacutecio 95 Hiacutepias de Elis estabelece no Protaacutegoras a mesma distinccedilatildeo entre phyacutesis e noacutemos que eacute empregada no

argumento de Caacutelicles Mas ao contraacuterio da distinccedilatildeo estabelecida no Goacutergias para Hiacutepias os semelhantes

satildeo iguais por natureza e as leis satildeo as causas pelas quais se estabelece uma desigualdade arbitraacuteria entre os

homens Ver KERFERD 2003 189-221

131

Protaacutegoras Proacutedico opera a distinccedilatildeo entre ldquodiscutirrdquo (amphisbetheicircn) e ldquodisputarrdquo

(eriacutezein)

As pessoas presentes a semelhantes discussotildees devem ouvir

imparcialmente as duas partes natildeo poreacutem de modo igual o que

natildeo eacute a mesma coisa ambos devem ser ouvidos com a mesma

atenccedilatildeo mas natildeo podemos conceder aos dois igual interesse

poreacutem maior ao que se revelar mais saacutebio e menor ao de menor

preparo Eu tambeacutem Soacutecrates e Protaacutegoras peccedilo que vos mostreis

mais condescendentes cada um poderaacute dissentir (amphisbetheicircn)

da opiniatildeo do outro poreacutem sem brigar (eriacutezein) Entre amigos pode

haver discussatildeo com simpatia (benevolecircncia bdquoeunoacuteia‟) soacute brigam

adversaacuterios e inimigos

(Protaacutegoras 337a-b)

A disposiccedilatildeo amistosa eacute diretiva na dialeacutetica visto que o questionamento capcioso

natildeo visa agrave busca da verdade mas sobrelevar ao adversaacuterio (Meacutenon 75c-d) Na Repuacuteblica a

eunoacuteia designa a disposiccedilatildeo amistosa que se contrapotildee agrave hostilidade e agrave cupidez que leva agraves

dissensotildees e conflitos de gregos contra gregos A benevolecircncia impede o despojamento das

armas dos cadaacuteveres (Rep V 470a) e constitui o desiacutegnio amistoso de Glauco quando este

se propotildee a defender Soacutecrates da ira dos adversaacuterios diante da estranheza provocada pela

tese de que a cidade natildeo pode ser feliz a menos que o Rei seja Filoacutesofo (474a) No Teeteto

a benevolecircncia eacute a atitude socraacutetica associada agrave expurgaccedilatildeo das falsas opiniotildees mediante a

eroacutetesis (Teeteto 151c) O efeito da dialeacutetica eacute analogicamente um partejamento da alma

que pode trazer agrave luz tanto fetos saudaacuteveis como imagens que devem ser rejeitadas A

atitude de hostilidade de alguns causada pela refutaccedilatildeo se contrapotildee agrave benevolecircncia que

constitui o princiacutepio operador do procedimento cataacutertico dialeacutetico O desejo da verdade eacute o

princiacutepio de accedilatildeo que constitui a dialeacutetica e o desejo do bem eacute o princiacutepio de accedilatildeo de sua

aplicaccedilatildeo praacutetica Assim como nenhum deus eacute hostil aos homens Soacutecrates possui a

atribuiccedilatildeo divina de natildeo fazer concessatildeo agrave falsidade e de natildeo enfraquecer o brilho da

132

verdade (Teeteto 151d) A operaccedilatildeo dialeacutetica eacute impulsionada por benevolecircncia em

oposiccedilatildeo agrave malevolecircncia No Fedro a benevolecircncia designa a manifestaccedilatildeo praacutetica em

relaccedilatildeo ao amado do Eros divino que se infunde no amante Tal manifestaccedilatildeo permite que

o amado se decirc conta da superioridade acima de qualquer comparaccedilatildeo do amor eroacutetico que

supera todos os afetos reunidos que se lhe possam devotar (255b)

Em todos esses contextos a benevolecircncia configura uma disposiccedilatildeo e uma funccedilatildeo

psiacutequica conciliatoacuteria entre instacircncias que de outra maneira estariam em conflito Trata-se

efetivamente de uma mediaccedilatildeo que promove o acordo que harmoniza reconcilia que

opera amistosamente promovendo o bem trata-se de uma funccedilatildeo que determina um modo

pelo qual se instaura a therapeacuteia psykheacute funccedilatildeo que pressupotildee um saber preacutevio um noucircs

que eacute a inteligecircncia do bem

No Goacutergias a eunoacuteia eacute sobretudo exigecircncia para o exame da alma e por

conseguinte exigecircncia para o bom andamento da investigaccedilatildeo discursiva A eriacutestica se

contrapotildee agrave dialeacutetica assim como a alma dissociada e fragmentada por conflitos se

contrapotildee agrave alma harmocircnica e unificada A eunoacuteia assegura que o desejo seja orientado na

direccedilatildeo da episteacuteme Ela eacute a funccedilatildeo mediadora entre o Eros e a inteligecircncia a funccedilatildeo que

permite que um se sobreponha ao outro fecundando-se mutuamente para gerar os belos

discursos Mas eacute tambeacutem a disposiccedilatildeo altruiacutesta a interaccedilatildeo que faz com que o Filoacutesofo

autecircntico seja antes de tudo o amigo que faz com que dialeacutetica e philiacutea se pressuponham e

que o Filoacutesofo veja-se no amigo como num espelho (Fedro 255d)

A implacabilidade do eacutelenkhos socraacutetico no Goacutergias evidencia de maneira

inelutaacutevel que Caacutelicles natildeo eacute nem franco nem benevolente e nem tampouco ciente Isso

133

implica que Caacutelicles seja a imagem de uma fragmentaccedilatildeo psiacutequica96

Por outro lado o

movimento dramaacutetico do Goacutergias realccedila a figura de Soacutecrates reluzente como a imagem da

verdadeira franqueza da verdadeira benevolecircncia e da verdadeira paideacuteia (JAEGER 1995

p 671)

As questotildees de se saber qual eacute o tipo de homem que se deve ser e qual atividade

deve reclamar o primado da vida humana (Goacutergias 488a) natildeo podem ser respondidas no

plano dos interesses em conflito A questatildeo da justiccedila reivindica um paradigma que esteja

acima do plano das relaccedilotildees praacuteticas um modelo absoluto ao qual sejam reportados os erga

e os loacutegoi Tal paradigma natildeo pode ser circunscrito a uma esfera particular de tempo

cronoloacutegico e por isso a questatildeo do eacutethos e dos valores temporais deve ser aquilatada por

um modelo atemporal e absoluto que lhes sirva de norma e medida Mas o atemporal e o

que estaacute para aleacutem da reportaccedilatildeo muacutetua dos valores humanos que configuram a

mentalidade da cidade o modelo perenamente vaacutelido exige um discurso proacuteprio com

estruturas homoacutelogas agrave grandeza das noccedilotildees que ele pretende abarcar A esse discurso

Soacutecrates chama de um belo logos (kaloucirc loacutegos) que eacute tambeacutem um myacutethos

96 Olimpiodoro interpreta as personagens do diaacutelogo como personificaccedilotildees de tipos de caracteres Assim os

erros seriam cometidos por trecircs razotildees 1) uma opiniatildeo pervertida 2) por causa da ira 3) por causa do apetite

O caraacuteter mal orientado foi refutado nos argumentos com Goacutergias o caraacuteter irasciacutevel foi refutado com Polo e

o caraacuteter apetitivo deve ser refutado na figura de Caacutelicles (OLYMPIODORUS 1998 p 195)

134

35 ndash A retoacuterica da alma

No Goacutergias o recurso ao mito (que aparece em 492e ss) permite que a personagem

de Soacutecrates discorra filosoficamente sobre esferas que natildeo podem ser atestadas ou

verificadas A existecircncia da alma como instacircncia que congrega faculdades distintas e da

equaccedilatildeo somasema satildeo postulados atribuiacutedos a um engenhoso homem (kompsoacutes aneacuter)

Siciliano ou Itaacutelico Natildeo se trata de um filoacutesofo mas de um mitoacutelogo cuja identidade como

o demonstram Dodds (1986 p 297) Burkert (1972 p 248) e Huffman (1998 p 404 ss)

natildeo pode ser conhecida Segundo a alegoria da narrativa a alma eacute uma instacircncia complexa

e possui uma parte que eacute sede dos apetites (epithymiacuteai) e que em funccedilatildeo do seu

desregramento e da insaciabilidade eacute comparada a um tonel furado No mundo invisiacutevel o

Hades os miseraacuteveis satildeo os natildeo-iniciados eternamente condenados a encher toneacuteis furados

com crivos A alma dos irrefletidos seria como uma peneira que nada reteacutem por causa da

descrenccedila e do esquecimento (493b-d)

Por que Soacutecrates interrompe a linha argumentativa do eacutelenkhos com imagens que

ele mesmo reconhece como algo estranhas (ti aacutetopa) Qual a razatildeo do emprego em uma

argumentaccedilatildeo complexa com um interlocutor resistente e hostil de uma narrativa que o

proacuteprio Soacutecrates antecipa como impotente para persuadir Caacutelicles de que uma vida bem

ordenada eacute preferiacutevel agrave vida incontida e insaciaacutevel

A narrativa lanccedila matildeo de um acervo tradicional de crenccedilas que segundo Burkert

(1972 p 249) satildeo semelhantes aos escritos do papiro de Derveni Carl Huffman alega por

outro lado que a noccedilatildeo de uma alma que constitui a sede de todas as faculdades psiacutequicas e

do pensamento eacute posterior a Filolau de Croacutetona cuja concepccedilatildeo de alma eacute muito mais

restritiva Independentemente da fonte do mito seus elementos remontam ao que Vernant

(1987 p 89 ss) chama de ldquomisticismo gregordquo uma corrente de grupos fechados associados

135

a uma busca de imortalidade bem-aventurada obtida mediante a observaccedilatildeo de uma regra

de vida pura reservada aos iniciados

O uso filosoacutefico de um acervo miacutetico concerne a um estoque de crenccedilas que

moldam o quadro mental da cidade e representa segundo Brisson (1994 p 28) um

ldquoinventaacuterio indissociaacutevel de um sistema de valoresrdquo cuja importacircncia determina sua

conservaccedilatildeo em memoacuteria coletiva Mas eacute tambeacutem um meio que confere significaccedilatildeo para

a atitude socraacutetica que preceitua a regra de que eacute preferiacutevel sofrer injusticcedila a cometecirc-la

Atitude incompatiacutevel com a expectativa coletiva de se fazer bem aos amigos e mal aos

inimigos

A referecircncia recorrente a uma antiga tradiccedilatildeo que aparece no Feacutedon justifica a

inflexatildeo que o proacuteprio Platatildeo opera na homologia entre a Filosofia e a iniciaccedilatildeo esboccedilando

modos concorrentes de interpretar e re-significar um acervo de saberes potecircncias crenccedilas

afetos e imagens religiosas em uma transposiccedilatildeo determinante para a mentalidade de um

novo gecircnero de vida e um novo tipo de eacutethos A homologia entre o biacuteos dos cultos de

misteacuterio e suas correspondentes imagens miacuteticas exigidos para a iniciaccedilatildeo indica que a

significaccedilatildeo eacutetico-poliacutetica aportada pelo exerciacutecio filosoacutefico natildeo encontra referentes no

mundo fiacutesico mas somente num acervo compartilhado de crenccedilas e afetos que modelam os

quadros mentais de uma comunidade valores coletivos que configuram o psiquismo

norteador para as percepccedilotildees e o agir humanos (WINKELMAN 2010 p 14 ss)

Assim como na chamada antiga tradiccedilatildeo (palaiograves loacutegos - Feacutedon 70c) dos misteacuterios

haacute uma transmissatildeo iniciaacutetica para que os puros encontrem a bem-aventuranccedila no Hades na

Filosofia haacute o exerciacutecio cataacutertico da vida virtuosa e do pensamento depurado A pureza

ritual eacute assimilada aos raciociacutenios isolados das sensaccedilotildees corporais a alma raciocina mais

136

belamente quando despreza os sentidos e foge das sensaccedilotildees corporais e procura o mais

possiacutevel isolar-se em si mesma e tornar-se si mesma (dzēteicirc degrave autḗ kath‟autḗn giacutegnesthai)

Este isolamento da alma atraveacutes dos raciociacutenios (logiacutedzesthai) eacute correlato ao modo

de aquisiccedilatildeo do conhecimento e da manifestaccedilatildeo da realidade daquilo que ocupa o

pensamento A grandeza a sauacutede a forccedila e a realidade (tēs ousiacuteas) de todas as coisas e o

que cada uma delas eacute em si mesma exigem uma cataacutertica das sensaccedilotildees (taacutes aistheacutetaacute)

Somente o pensamento em si mesmo (autḗ tḗ diacircnoia) o pensamento sem mistura isolado

e sem comunhatildeo com o corpo pode sair agrave caccedila (epikheiroicirc thēreuacuteein thēreuacuteein tōn oacutentōn)

dos seres da verdade e da inteligecircncia purificada (phroacutenēsin) A purificaccedilatildeo anunciada por

um filoacutesofo genuiacuteno (Feacutedon 65b-67e) representa o sumaacuterio daquilo que jaacute representa uma

transposiccedilatildeo em relaccedilatildeo aos ritos purificatoacuterios das seitas de misteacuterio

Pierre Boyanceacute (1994 85-95) correlaciona esta ascese filosoacutefica a um acervo oacuterfico

cujo escopo seria a separaccedilatildeo dos elementos titacircnicos da psykheacute de sua parte divina O

discurso que Soacutecrates consigna a um anocircnimo descreve um caminho sagrado purificatoacuterio

uma trilha (atrapoacutes) que demarca o itineraacuterio da razatildeo e da investigaccedilatildeo O alvo da

investigaccedilatildeo eacute identificado com a verdade e seu princiacutepio de accedilatildeo com um apetite pela sua

posse (me pote ktēsōmetha hikanōs hougrave epithymoucircmen) Na prescriccedilatildeo iniciaacutetica do filoacutesofo

genuiacuteno haacute uma concepccedilatildeo quase material de que a alma estaacute dispersa como sopro nos

elementos corporais e que a sua mistura com o corpo engendra toda sorte de males e

impedimentos para a aquisiccedilatildeo da verdade e a caccedila aos seres A mistura da alma ao corpo

segue na esteira do mito de Dioniso Zagreu esquartejado e devorado pelos Titatildes Natildeo

obstante a trilha iniciaacutetica descrita no Feacutedon natildeo promove a separaccedilatildeo dos elementos

divinos do elemento corporal titacircnico mediante ritos purificatoacuterios Em vez disso a

exaltaccedilatildeo iniciaacutetica daacute lugar a um apetite pelo pensamento purificado a phroacutenesis Haacute uma

137

homologia entre o caminho sagrado dos ritos iniciaacuteticos e a trilha filosoacutefica Todavia o

alvo deste itineraacuterio natildeo eacute mais a pureza ritual mas a posse da verdade e o pensamento

isolado do corpo

A purificaccedilatildeo teleacutestica tem como finalidade a remoccedilatildeo das faltas do miasma que

determina o destino futuro apoacutes a morte Como afirma Vernant (1994 p 107) ldquoo miasma

se purifica sempre com uma lavagem mas tambeacutem bdquose consome‟ bdquoadormece‟ bdquose

dispersa‟ Eacute uma mancha e tambeacutem uma coisa que rouba um bdquopeso‟ uma bdquodoenccedila‟ uma

perturbaccedilatildeo bdquouma ferida‟ bdquoum sofrimento‟

O vocabulaacuterio indica que Platatildeo se apropria de uma tradiccedilatildeo filosoacutefica associada agraves

praacuteticas rituais de lustraccedilatildeo como os misteacuterios de Elecircusis e outras praacuteticas iniciaacuteticas

comodamente rotuladas de oacuterficas Assim como as faltas os crimes de sangue ou a

impiedade transmitem-se numa cadeia de impureza a purificaccedilatildeo estaacute relacionada agrave

transmissatildeo iniciaacutetica a ritos que suscitam a passagem de um estado para outro mais

elevado Essa transmissatildeo consolida todo um gecircnero de vida modelado por exerciacutecios

espirituais A iniciaccedilatildeo tal como o miasma pressupotildee uma cadeia de transmissatildeo que

remonta agrave antiga tradiccedilatildeo o princiacutepio e a fonte da pureza

No seu comentaacuterio agraves lacircminas de ouro oacuterficas Giovanni Carratelli observa que as

instruccedilotildees mortuaacuterias objetivam servir de guia para que a alma do iniciado seja liberta das

faltas mediante a iniciaccedilatildeo (myacuteēsis) Os ritos compreendem instruccedilotildees foacutermulas de

reconhecimento (syacutenthēma) ou palavras de passe o segredo provas dolorosas

(pathḗmatha) e a referecircncia constante a Mneacutemosyne personificaccedilatildeo divina da memoacuteria Haacute

o importante papel do guia o mystagogos na conduccedilatildeo de estatutos diversos entre os

recipiendaacuterios os Baacuteckhoi satildeo superiores aos myacutestai A palavra de passe ou a foacutermula de

reconhecimento pressupotildee o exerciacutecio menemocircnico que faculta o conhecimento da origem

138

divina anterior agrave vida terrestre As expiaccedilotildees e as lustraccedilotildees cataacuterticas suscitam a

prevalecircncia do elemento divino da alma Na lacircmina mortuaacuteria encontrada na necroacutepole de

Hipocircnio em uma tumba datada no fim do seacutec V encontram-se as instruccedilotildees

Tu iraacutes na morada bem construiacuteda de Hades agrave direita haacute uma

fonte

ao lado dela se ergue um cipreste branco

eacute laacute que descem as almas dos mortos e onde elas se refrescam

Desta fonte tu natildeo te aproximaraacutes

Mas mais adiante tu encontraraacutes uma aacutegua fria que corre

do lago de Mnemosyacutene acima dela se encontram guardas

Eles te interrogaratildeo em seguro discernimento

porque tu exploras as trevas de Hades obscuro

Dize bdquoEu sou filho da Terra e do Ceacuteu estrelado

Eu queimo de sede e desfaleccedilo Decirc-me raacutepido

De beber da aacutegua fria que vem do lago de Mnemosyacutene‟

E eles te interrogaratildeo pelo querer do rei ctocircnico

Eles te daratildeo de beber do lago de Mnemosyacutene

E tu quando tiveres bebido percorreraacutes a via sagrada

Sobre a qual tambeacutem os outros mystai e baacuteckhoi avanccedilam na

gloacuteria 97

(I A 1 9-11)

Como observa Radcliffe Edmonds (in CASADIO 2010 p 72 ss) as referecircncias a

Perseacutefone a Mnemosyacutene e a Dioniso tem levado os historiadores da religiatildeo grega a rotular

as instruccedilotildees iniciaacuteticas contidas nas lacircminas funeraacuterias de ouro como oacuterficas baacutequicas

egiacutepcias e pitagoacutericas ou ainda eleusinas Embora alguns editores correlacionem as

instruccedilotildees das lacircminas de ouro a uma katabasis que remontaria a um poema oacuterfico ou a um

livro dos mortos pitagoacuterigo Edmonds salienta que infortunadamente os textos

escatoloacutegicos satildeo excessivamente vagos para identificaacute-los precisamente com alguma

vertente religiosa

Muitos eruditos esforccedilam-se no sentido de encontrar um estema de influecircncias que

permita delimitar suas origens em certos contextos Mas as imagens miacuteticas e alusotildees ao

misticismo grego que aparecem em Platatildeo sugerem um emprego caleidoscoacutepico de

97 Traduccedilatildeo de Giovanni P Carratelli (2003 p 35)

139

elementos tradicionais que varia segundo o movimento de cada diaacutelogo Para o inteacuterprete

dos diaacutelogos o contexto eacute a suma tradicional das seitas de misteacuterio gregas

Para Giovanni Casadio se haacute uma fronteira ndash e isto estaacute aleacutem de questatildeo ndash que

demarca os limites entre Dionisismo (uma realidade concreta) e o Orfismo (uma realidade

muito mais nebulosa) noacutes somos incapazes de determinar precisamente onde esta fronteira

se encontra (CASADIO 2010 p 36-37) Mais do que estabelecer distinccedilotildees canocircnicas

entre dionisismo orfismo ou pitagorismo cumpre focar os esquemas invariantes de

pensamento nas seitas de misteacuterio e as homologias correspondentes que emergem no

movimento dramaacutetico-dialoacutegico dos mitos platocircnicos

A personificaccedilatildeo da memoacuteria relaciona-se com o rito de purificaccedilatildeo pela aacutegua que

permite o acesso agrave via sagrada A purificaccedilatildeo propiciada pela memoacuteria ressalta a primazia

do pensamento nocircus na experiecircncia iniciaacutetica que ascende o aspirante agrave alḗtheia A

foacutermula de reconhecimento eu sou filho da Terra e do Ceacuteu estrelado identifica o aspirante

com a estirpe divina e sugere sua purificaccedilatildeo ritual preacutevia ela serve como palavra de passe

que garante o acesso agrave divindade A katabasis descrita na lacircmina funeraacuteria alude ao

cumprimento de uma purificaccedilatildeo preacutevia pressuposta agrave prova da passagem e ao esforccedilo

vinculado a uma potecircncia psiacutequica personificada em Mnemosyacutene Platatildeo se apropria desse

acervo da antiga tradiccedilatildeo com a finalidade protreacuteptica de apresentar a Filosofia como um

exerciacutecio de morte e a kaacutetharsis como purificaccedilatildeo do pensamento

A verdade a realidade da sabedoria da justiccedila da coragem

consistem sem duacutevida em uma purificaccedilatildeo de todas as coisas e o

proacuteprio pensamento (phroacutenēsis) natildeo eacute senatildeo um meio de

purificaccedilatildeo Haacute uma grande chance de que aqueles que

estabelecerem entre noacutes as iniciaccedilotildees natildeo tenham sido homens

fracos Mas a realidade dos seres deve ser oculta em enigmas

(ainiacutettesthai) quando eles dizem que ldquoaquele que chega no Hades

sem ter conhecido os misteacuterios sem ser iniciado aquele seraacute

140

deitado na lama mas aquele que foi purificado e iniciado uma vez

laacute chegando habitaraacute com os deuses De fato como dizem aqueles

que tratam das iniciaccedilotildees ldquonumerosos satildeo os portadores de tirso

(narthekophoacuteroi) raros os Baacutekkhoi

(Feacutedon 69b12-c2)

A distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os impuros e os puros de um lado e entre os myacutestai e

os baacutekkhoi de outro indica a tese protreacuteptica de apresentar a Filosofia como um exerciacutecio

iniciaacutetico de ascensatildeo ao princiacutepio uacuteltimo da realidade dos seres A purificaccedilatildeo eacute transposta

para a purificaccedilatildeo do pensamento e das virtudes por meio da phroacutenesis A homologia entre

o segredo e a realidade posta sob forma enigmaacutetica para evitar a apropriaccedilatildeo por aqueles

que natildeo passaram pelo longo exerciacutecio cataacutertico eacute mantida natildeo ser puro e se apossar do

que eacute puro e de fato eacute preciso temecirc-lo eacute algo interdito (ou themitoacuten Feacutedon 67b01)

Todavia a menccedilatildeo aos portadores de tirso e baacutekkhoi no Feacutedon suscita

controveacutersias A qual tradiccedilatildeo se refere o passo Quais satildeo os ritos e qual eacute o contexto que

suscita a analogia entre iniciaccedilatildeo aos misteacuterios e iniciaccedilatildeo filosoacutefica Ana J Cristoacutebal em

um instigante estudo acerca do campo semacircntico das expressotildees baacutekkhos e bakkheuacuteein

indica que os termos possuem significados diferentes entre os ciacuterculos reconhecidos como

oacuterficos e o culto a Dioniso Baacutekkos e baacutekkhoi satildeo denominaccedilotildees daqueles que passaram por

ritos purificatoacuterios ou extaacuteticos vinculados a Dioniso Tais ritos induzem a um estado

miacutestico de intensa afetividade decorrente da exaltaccedilatildeo e entusiasmo provocado pelo deus

Baacutekkos eacute o atributo de um seguidor de Dioniso Bakkhos O verbo bakkheuacuteein por outro

lado denota a possessatildeo divina e dentre todos os testemunhos somente Euriacutepides o

emprega no sentido de adoraccedilatildeo a Dioniso A accedilatildeo de bakkheuacuteein descreve

simultaneamente os afetos experimentados no transe delirante e a performance ritual que

envolve procissotildees carregar e agitar tirsos ornamentados gritos sacrificiais (eyoicirc) danccedila e

vinho (CASADIO 2010 p 46-60)

141

A terminologia empregada na inscriccedilatildeo da lacircmina de Hipocircnio evidencia que as

expressotildees myacutestai e baacutekkhoi pertencem a um acervo cultural comum de imagens que

configura o mesmo pano de fundo para a classe geral dos cultos de misteacuterio As instruccedilotildees

funeraacuterias evocam uma ascensatildeo iniciaacutetica na via sagrada para que o recipiendaacuterio seja

acolhido entre os bem-aventurados gloacuteria reservada aos puros que passaram pelas provas

Somente os puros possuem a potecircncia psiacutequica unificadora da memoacuteria condiccedilatildeo para o

proferimento da palavra de passe o syacutentema e o conhecimento da aleacutetheia reservado aos

baacutekkhoi mediante o inaudito ndash os apoacuterrheta Como salienta Boyanceacute as purificaccedilotildees

oacuterfico-pitagoacutericas referenciam-se no mito de Dioniso Zagreu desmembrado pelos Titatildes e

podem perfeitamente coexistir com rituais baacutequicos de livramento com hinos danccedilas

coros e a alegria extaacutetica as paidiaacute hēdonōn censuradas por Platatildeo como um tipo de

orfismo baacutequico

Eles produzem uma multidatildeo de livros de Museu e Orfeu filhos da

Lua e das Musas diz-se Eles regram seus sacrifiacutecios sob a

autoridade destes livros e fazem acreditar natildeo somente aos

particulares mas agrave cidade que se pode pelos sacrifiacutecios e jogos

prazerosos (paidiaacutes hēdonōn) ser absolvidos e purificados de seu

crime enquanto vivo e mesmo apoacutes sua morte Eles chamam

iniciaccedilotildees estes ritos (teletaacutes) que nos livram de males no outro

mundo e que natildeo se pode sacrificar sem esperar terriacuteveis supliacutecios

(Repuacuteblica 364 e ndash 365 a)

Boyanceacute assimila as teletai com os misteacuterios de Elecircusis Mas como evidencia a

exegese do comentador de Derveni a criacutetica agrave degeneraccedilatildeo do viacutenculo entre longas praacuteticas

de exerciacutecio espiritual e do papel da inteligecircncia na busca pela verdade com o segredo e a

transmissatildeo oral de uma sabedoria jaacute fazia parte da reflexatildeo filosoacutefica preacute-socraacutetica No

Teeteto (155e-156a) Platatildeo adverte en passant que o jovem olhe em derredor para que

natildeo aconteccedila que algum natildeo iniciado ouvisse o que era dito Este cuidado indica a

transposiccedilatildeo filosoacutefica do estatuto iniciaacutetico para a investigaccedilatildeo terapecircutica operada pela

142

Filosofia que exige a preparaccedilatildeo da alma A separaccedilatildeo dos elementos titacircnicos operada

pela encantaccedilatildeo musical e da harmonia de afetos coexiste com as praacuteticas cultuais de

exaltaccedilatildeo baacutequica dionisiacuteaca e com a ventura eleusina

A tensatildeo entre a multidatildeo dos portadores de tirso e os poucos bakkhoi sugere uma

gradaccedilatildeo entre narthēkophoacuteroi e iniciados No Goacutergias a oposiccedilatildeo entre os ininteligentes

natildeo-iniciados (anoḗtous amyacuteetous Goacutergias 493a07) e os myacutestai aponta para uma

polarizaccedilatildeo radical entre seres irrefletidos que se entregam aos apetites e aqueles que

buscam a proporccedilatildeo harmocircnica da alma

A tradiccedilatildeo pitagoacuterica vinculada a Alcmeacuteon de Croacutetona define a sauacutede como

isonomia e como mistura simeacutetrica de qualidades (tḗn syacutemmetron tōn poiōn kraacutesin) A

harmoniacutea resulta de um equiliacutebrio ao mesmo tempo espacial e temporal e nesse sentido haacute

uma equivalecircncia semacircntica kairoacutes-syacutemmetros o momento oportuno num arranjo

ordenado Kairoacutes symmetriacutea e eurythmiacutea configuram uma percepccedilatildeo refinada de

harmonia A noccedilatildeo de symmetriacutea se desdobra entre os preacute-socraacuteticos como proporccedilatildeo ou

uma identidade de relaccedilotildees A transposiccedilatildeo de semelhanccedila de relaccedilotildees se desdobra na

analogia identidade ou semelhanccedila de loacutegoi A funccedilatildeo da analogia consiste em remeter

uma multiplicidade de loacutegoi a uma unidade Funccedilatildeo unificadora a proporccedilatildeo geomeacutetrica e

a expressatildeo matemaacutetica da identidade de relaccedilotildees designam outro aspecto correlato da

harmonia a noccedilatildeo de mediania o meacuteson o meio-termo ndash mēsoacutetēs ndash que se estende para o

acircmbito da psykheacute como metreacutetica dos afetos A medida do tempo e o esforccedilo de conciliaccedilatildeo

entre o periacuteodo lunar e o solar engendram o problema matemaacutetico e geomeacutetrico da

comensurabilidade A harmocircnica pitagoacuterica conecta simultaneamente noccedilotildees qualitativas e

quantitativas temporais e espaciais ritmo e consonacircncia musical com o equiliacutebrio de

opostos no corpo na alma e na cidade (PERILLEacute 2005 p 24-65)

143

A menccedilatildeo ao Hades indica que os mitos escatoloacutegicos discorrem sobre o invisiacutevel

(Feacutedon 81c Craacutetilo 404b) sobre a natureza da alma seu destino futuro e seu papel na

economia cosmoloacutegica Em particular a passagem do Goacutergias postula o fato de que a alma

eacute complexa e que os apetites satildeo atributos psiacutequicos e natildeo corporais

Segundo Olimpiodoro o mito filosoacutefico eacute elaborado para que o invisiacutevel seja

inferido a partir do visiacutevel e aparente Como a alma natildeo eacute constituiacuteda somente pelo

pensamento mas tambeacutem pelos afetos e desejos o discurso deve ser multifacetado de

modo a corresponder a cada esfera psiacutequica Uma estrutura psiacutequica complexa exige uma

inteligecircncia complexa que por sua vez pressupotildee uma estrutura discursiva complexa

Conforme a tese claacutessica de Pierre Boyanceacute adotada pela maioria dos inteacuterpretes

que abordam os mitos platocircnicos o principal efeito da narrativa miacutetica eacute a ldquoencantaccedilatildeordquo

(epoidḗ) o efeito cataacutertico e terapecircutico irresistiacutevel do charme O mito filosoacutefico eacute o

discurso que expressa um pensar por imagens que eacute endereccedilado agrave parte afetiva da psykheacute

Em funccedilatildeo de sua accedilatildeo eficaz sobre os afetos o mito exerce uma accedilatildeo persuasiva que

consolida os postulados inverificaacuteveis que conferem significaccedilatildeo para as accedilotildees praacuteticas

A alegoria do tonel furado como nota Vernant eacute uma alusatildeo agrave condenaccedilatildeo infligida

agraves Danaides Segundo Apolodoro (II 1 5) na sua noite de nuacutepcias as filhas de Dacircnao em

colusatildeo com o pai decapitam seus maridos e primos filhos de Egito Por causa disso os

juiacutezes divinos condenaram-nas a encher eternamente toneacuteis furados no Hades

Carl Kereacutenyi alude ao fato de que o casamento eacute para os gregos um importante

teacutelos que demarca um rito de passagem (1998 p 46) As penas eternas indicam uma falta

vinculada agrave ausecircncia de teacutelos de completaccedilatildeo ou iniciaccedilatildeo

A iniciaccedilatildeo eacute transposta por Platatildeo em exerciacutecio filosoacutefico no esforccedilo que culmina

na phroacutenesis no pensamento puro que implica o isolamento psiacutequico No Goacutergias as

144

almas dos natildeo iniciados satildeo como toneacuteis furados que nada retecircm por descrenccedila e

esquecimento (493b) A ausecircncia de teacutelos eacute segundo Vernant (1990 p 146 ss)

indissociaacutevel do esquecimento que implica o ciclo do devir e da necessidade O

esquecimento representa a imersatildeo no eterno ciclo do tempo o eterno recomeccedilo a roda do

nascimento que faz com que a alma tome o breve instante da vida como se fosse totalidade

do tempo O mal supremo para a alma consiste em tomar a causa de um afeto violento

como se fosse a realidade mais verdadeira (Feacutedon 83c)

A transposiccedilatildeo filosoacutefica operada por Platatildeo insere o esquecimento e a memoacuteria

numa teoria do conhecimento que seraacute desenvolvida a partir do Meacutenon e do Feacutedon A

ameacuteleia ou ausecircncia de inquietaccedilatildeo configura o estado psiacutequico da vida voltada para os

apetites em detrimento da anaacutemenesis que suscita o exerciacutecio filosoacutefico que culmina na

inteligecircncia das verdades eternas A anaacutemenesis tende para o teacutelos que implica a visatildeo

unificada da totalidade do tempo pacircs khroacutenos

Na transposiccedilatildeo platocircnica meleacutete thanaacutetou eacute o exerciacutecio de morte mencionado no

Feacutedon pelo qual o pensamento puro eacute isolado da inconstacircncia do devir e da eterna

insaciabilidade dos apetites A menccedilatildeo breve do Goacutergias anuncia postulados ingressivos

que comporatildeo ao longo das obras centrais de Platatildeo uma visatildeo cosmoloacutegica unificada na

qual as questotildees eacuteticas satildeo abarcadas no domiacutenio mais amplo de uma epistemologia e

psicologia que por sua vez satildeo alicerccediladas numa ontologia

As imagens subsequentes correlacionam modos de vida excludentes com o

regramento e desregramento Um gecircnero de vida eacute representado por um homem que possui

toneacuteis repletos de conteuacutedos valiosos e que por isso natildeo se preocupa e se aquieta o outro eacute

representado por um homem cujos toneacuteis satildeo furados e que por isso eacute forccedilado agrave atividade

penosa de preenchecirc-los incessantemente O gecircnero de vida eacute determinado pela constituiccedilatildeo

145

psiacutequica que define um tipo de homem A alma temperante possui a inteligecircncia da ordem e

do regramento A inteligecircncia institui ordem naquilo que eacute desregrado A alma epitymeacutetica

eacute aquela inexoravelmente voltada para a repleccedilatildeo do vazio para o movimento sempre

renovado de uma saciedade que eacute continuamente relanccedilada na efemeridade do tempo

(DIXSAUT 2001 p 138) Desejo que nenhum recipiente pode conter esquecimento de

todo teacutelos o apetite eacute um estado penoso (Goacutergias 496d) que nunca se aquieta com a posse

do alvo desejado e que por isso reclama ausecircncia de limites

Por conseguinte mesmo que algueacutem seja de outro ponto de

vista na verdade aquele que realmente eacute tirano eacute realmente

escravo vive no cuacutemulo da bajulaccedilatildeo e da escravidatildeo e eacute adulador

dos maiores malfeitores Ele natildeo satisfaz de nenhum modo seus

desejos mas apareceria inteiramente desprovido de todas as coisas

e pobre se pudeacutessemos considerar a inteireza de sua alma Ele

extravasa de medo ao longo de toda a sua vida e eacute repleto de

sobressaltos e sofrimentos se de fato se assemelha agrave disposiccedilatildeo da

cidade que dirige

(Repuacuteblica 579e)98

Mas como pode se justificar a conexatildeo entre a inteligecircncia e o regramento Somente

a ordenaccedilatildeo e o regramento podem segundo Soacutecrates modelar uma visatildeo unificada que

vincula o ceacuteu a terra os deuses e os homens num conjunto articulado numa comunidade

cingida pela amizade ou amor da ordem (Goacutergias 507e-508a)

A lei universal que governa todas as esferas do kosmos que dirige ao mesmo

tempo o plano eacutetico-poliacutetico e a physis eacute a igualdade geomeacutetrica ndash todo-poderosa (mega

dyacutenatai) tanto entre os deuses como entre os homens O gecircnero de vida filosoacutefico norteia-se

pelo postulado de que haacute um princiacutepio unificador que cinge todo o kosmos o humano e o

divino segundo uma ordenaccedilatildeo matemaacutetica

98 Trad de Pierre Pachet (1993 p 466)

146

Walter Burkert (1972 78 n 156) Dodds (1959 339) Vlastos (1981 195 n 119) e

Irwin (1979) concordam que Platatildeo estaacute fazendo uma referecircncia direta a Arkhytas de

Tarento nas passagens em que satildeo mencionadas a geometria e a proporccedilatildeo no Goacutergias De

acordo com Carl Huffman um proeminente tema do final do pensamento do seacutec V aC

conecta a ambiccedilatildeo pleonexiacutea com o que eacute por natureza em contraste com o que eacute por

convenccedilatildeo Para Arkhytas a pleonexiacutea eacute a maior causa de discoacuterdia e instabilidade poliacutetica

do seu tempo A pleonexiacutea eacute associada com o abuso de poder tanto por um tirano quanto

por uma oligarquia rica Para combatecirc-la eacute necessaacuterio natildeo somente a lei mas a logistikeacute a

ciecircncia do caacutelculo e da geometria

No Goacutergias a pleonexiacutea de Caacutelices eacute explicada em termos da negligecircncia da

geometria e da igualdade geomeacutetrica No fragmento 3 (Stobeu e Jacircmblico) da ediccedilatildeo de

Huffman a igualdade que resulta do caacutelculo das proporccedilotildees como cura para a pleonexiacutea eacute

notavelmente paralela agrave do Goacutergias

Pois eacute necessaacuterio tornar-se ciente sendo insciente ou aprendendo

de um outro ou descobrindo por si mesmo Aprendendo a partir de

outro pertence a outro enquanto descobrindo por si mesmo

pertence a si mesmo Descoberta enquanto natildeo investigada eacute

difiacutecil e infrequumlente mas enquanto investigada faacutecil e frequumlente

mas se algueacutem natildeo sabe ltcomo calculargt (logiacutezdestai) eacute

impossiacutevel investigar

Uma vez que o caacutelculo foi descoberto impede a discoacuterdia e

aumenta a concoacuterdia Pois natildeo procuram ganacircncia desmedida

(pleonexiacutea) e igualdade existe uma vez que isto veio a ser Pois por

meio do caacutelculo (proporccedilatildeo) veremos reconciliaccedilatildeo em nossas

transaccedilotildees com os outros Por causa disso entatildeo o pobre recebe

do poderoso e o rico daacute para o necessitado ambos crendo que

haveraacute igualdade Isto serve como um cacircnon e um impedimento

para a injusticcedila Impede aqueles que sabem como calcular antes

que eles cometam injusticcedila persuadindo-os que eles natildeo poderatildeo

ficar ocultos sempre que eles aparecem para ele (o cacircnon) Impede

aqueles que natildeo sabem como calcular de cometer injusticcedila tendo

revelado a eles como injustos por meio dele (do caacutelculo) (STOBEUS IV 1139 IAMBLIKHUS Sobre a ciecircncia matemaacutetica

geral II 4410-17 apud HUFFMAN 2005 p 183)

147

O verbo pleonekteacuteō significa ter mais levar vantagem ter ganacircncia e o substantivo

pleonexiacuteaindica o iacutempeto depossuir mais do que o devido ambiccedilatildeo vantagem injusta

arrogacircncia Mas Platatildeo se apropria do viacutenculo estabelecido por Arkhytas entre a

organizaccedilatildeo poliacutetica e a matemaacutetica para promover uma generalizaccedilatildeo que ascende a uma

visatildeo unificada do kosmos e usa o termo ldquoigualdade geomeacutetricardquo num sentido muito mais

geral como equivalente a proporccedilatildeo ou regramento geomeacutetrico

A pleonexiacutea a negligecircncia do regramento geomeacutetrico que unifica o kosmos

constitui a fonte de todas as injusticcedilas A investigaccedilatildeo sobre a origem dos apetites e a

relaccedilatildeo destes com a inteligecircncia estabelece a alma como princiacutepio de accedilatildeo e causa da

justiccedila e da injusticcedila Ao postular um viacutenculo entre o domiacutenio da praacutexis e o da Natureza

pelo regramento geomeacutetrico Platatildeo estabelece o primado da alma como causa e da

inteligecircncia como condiccedilatildeo da kosmiacutea

O desenvolvimento da concepccedilatildeo de que a alma configura uma instacircncia complexa

cuja causalidade eacute intriacutenseca agrave natureza desejante estende o acervo conceptual pitagoacuterico

concernente agrave harmonia ao postulado fundamental de que a harmonia eacute uma inscriccedilatildeo a

posteriori de modalidades diversas de arranjo psiacutequico conferidas pelas proacuteprias escolhas

Em Platatildeo a alma eacute causa de sua proacutepria natureza e princiacutepio de harmonizaccedilatildeo

Essa subversatildeo nocional seraacute decisiva na causalidade platocircnica e no estabelecimento da

funccedilatildeo mediadora da alma entre o devir e a realidade inteligiacutevel

No Feacutedon Platatildeo inaugura a concepccedilatildeo de que uma harmonia de elementos

materiais pressupotildee a possibilidade de gradaccedilotildees diversas segundo o maior ou menor grau

de consonacircncia dos elementos Quanto maior for a combinaccedilatildeo maior seraacute a harmonia

148

Se a alma fosse uma harmonia de elementos materiais uma alma carregada de

viacutecios seria menos harmoniosa do que uma alma virtuosa e por conseguinte seria menos

alma o que natildeo pode ser admitido Em contrapartida se natildeo haacute uma alma que seja menos

alma que outra entatildeo natildeo haacute harmonia que seja mais intensa que outra ou seja uma

mesma harmonia natildeo pode participar ao mesmo tempo da harmonia e da ausecircncia de

harmonia Aleacutem disso a alma natildeo pode ter um estatuto secundaacuterio em relaccedilatildeo ao corpo A

alma natildeo deriva nem obedece aos processos corporais mas como sede da razatildeo regra pelo

domiacutenio dos desejos as necessidades corporais Como a alma natildeo segue aos impulsos

determinados pelos elementos em tensatildeo no corpo mas os domina e tem mestria sobre eles

a sua natureza eacute diferente das dos elementos do corpo e por isso a alma natildeo pode ser uma

harmonia ela possui harmonia Platatildeo transpotildee o conceito material de harmonia para a sua

concepccedilatildeo de consonacircncia e afinidade com o divino Essa transposiccedilatildeo enseja o argumento

de que a alma eacute princiacutepio de regramento e tende a assemelhar-se com as Formas

Toda a discussatildeo acerca das causas que daacute origem agrave concepccedilatildeo das Formas estaacute

calcada numa criacutetica a concepccedilotildees pitagoacutericas sobretudo as de Alcmeacuteon e de Filolau Haacute

causas necessaacuterias e causas uacuteltimas verdadeiras Os quatro elementos da physis e as

relaccedilotildees numeacutericas inteligiacuteveis satildeo necessaacuterios para a inteligecircncia mas natildeo se identificam

com o inteligiacutevel As verdadeiras causas satildeo as ldquocoisas em si mesmasrdquo ordenadas e

harmonizadas segundo o Bem O meio de inteligibilidade do kosmos eacute a phroacutenesis cuja

sede eacute a alma As relaccedilotildees numeacutericas indispensaacuteveis para a inteligibilidade natildeo satildeo

intriacutensecas agraves coisas nem a harmonia configura uma consonacircncia de coisas mas estatildeo no

acircmbito da psykheacute e constituem uma consonacircncia com as Formas causas fundamentais de

todas as coisas

149

36 Julgamento e nudez

O mito de julgamento do Goacutergias alude ao tempo primordial de Kroacutenos no qual a lei

da justa retribuiccedilatildeo foi instituiacuteda O destino futuro da alma depende da natureza de suas

accedilotildees pregressas A conexatildeo causal infrangiacutevel que rege ateacute mesmo os deuses estabelece a

correspondecircncia entre o estado psiacutequico e a praacutexis eacutetico-poliacutetica A bem-aventuranccedila ou os

sofrimentos a felicidade ou a infelicidade derivam dos princiacutepios da accedilatildeo O estado

caoacutetico representado pelo Taacutertaro prisatildeo das potecircncias coacutesmicas da violecircncia e da

desordem reflete a proacutepria natureza da alma Assim como haacute uma homologia estrutural

entre a alma do tirano e as disposiccedilotildees da cidade que governa haacute uma homologia entre a

desordem coacutesmica e a natureza psiacutequica do agente injusto

Todavia neste tempo primordial que remete ao primado do Intelecto noucircs os juiacutezes

vivos referenciavam seus criteacuterios no mesmo plano da vida e do devir e seus decretos eram

promulgados no proacuteprio tempo das accedilotildees submetidas a julgamento A auto-referecircncia dos

juiacutezos em que o vivo era a medida do vivo implicava o erro e a destinaccedilatildeo incompatiacutevel

com a natureza das almas Uma situaccedilatildeo impediente catastroacutefica eacute anunciada a ameaccedila agrave

validade universal da lei de Kroacutenos Zeus astucioso dentre todos os mediadores o mais

privilegiado diagnostica a causa do mal os julgamentos satildeo distorcidos pelas aparecircncias

das roupagens que ocultavam a verdadeira condiccedilatildeo das almas e interditavam a

perscrutaccedilatildeo de sua natureza pelo olhar

A justiccedila eacute recoberta pelas roupagens dos valores que norteiam a vida praacutetica e os

sinais visiacuteveis testemunhas oculares das sanccedilotildees que determinam os bens ndash o prazer as

riquezas e as honrarias ndash impedem o conhecimento da verdade Para que os julgamentos

possam se desprender dos sinais materiais e possam discernir segundo o melhor valor eacute

preciso referenciar a vida em outra coisa que natildeo seja ela mesma Todas as teacutecnicas

150

discursivas e persuasivas todos os signos de valores fundados na opiniatildeo coletiva satildeo

empregados para forcejar a adesatildeo dos juiacutezes a uma imagem ilusoacuteria de justiccedila

Os proacuteprios juiacutezes natildeo possuem outro acesso agrave investigaccedilatildeo que natildeo sejam

mediados pela falibilidade dos sentidos Diante do diagnoacutestico Zeus prescreve o

expediente astucioso que remediaraacute o mal

Primeiro eacute preciso diz Zeus que os homens cessem de

conhecer de antematildeo a hora da morte Pois agora eles sabem

em qual momento iratildeo morrer Ora eu acabo de dizer a

Prometeu para que lhes retire este conhecimento Em seguida

eacute necessaacuterio que os homens sejam julgados nus despojados

de tudo o que eles tecircm Eacute por isso que se lhes deve julgar

mortos E seus juiacutezes devem estar igualmente mortos nada

aleacutem daquilo que uma alma vecirc em outra alma Que desde o

momento da morte cada um esteja separado de todos os seus

proacuteximos que deixe sobre a terra todo este decoro ndash este eacute o

uacutenico meio para que o julgamento seja justo

(Goacutergias 523d-e)99

O expediente elucubrado por Zeus eacute poacutelo simeacutetrico ao expediente instrumental do

mito de Prometeu no Protaacutegoras A previsatildeo propiciada pela inteligecircncia utilitaacuteria

representada pelo fogo furtado deve ser retirada dos homens pelo filantropo Prometeu A

capacidade de engenho teacutecnico garante natildeo somente a provisatildeo e a compensaccedilatildeo para as

carecircncias humanas mas ocasionam a violecircncia e a injusticcedila endoacutegenas Se a vida do gecircnero

humano soacute pode ser assegurada pela inteligecircncia instrumental engenhosa a existecircncia da

comunidade poliacutetica depende da participaccedilatildeo no par aidoacutes-diacuteke sem a qual ocorre a

desumanizaccedilatildeo inevitaacutevel A retirada da capacidade projetiva implica uma divisatildeo no plano

cronoloacutegico em que se estabelece a consecuccedilatildeo entre accedilatildeo e consequecircncia A separaccedilatildeo

entre o tempo cronoloacutegico da vida e o tempo apoacutes a morte representa a dissociaccedilatildeo entre o

visiacutevel e manifesto e o invisiacutevel oculto

99 Trad de Monique Canto (PLATON 1993 p 304)

151

O corte radical impede a eficaacutecia dos signos exteriores de justiccedila mediados pelas

teacutecnicas do engano e da ilusatildeo Todos os recursos satildeo inelutavelmente abandonados todos

os apegos afetivos satildeo impotentes apoacutes a travessia A remissatildeo a paradigmas absolutos

exige o postulado de que a morte eacute a separaccedilatildeo entre o e a alma Eacute preciso crer na alma

separada e isolada para que se vislumbrem os paradigmas da vida de maior valor

A verdadeira natureza psiacutequica revela-se em funccedilatildeo de suas causas remotas e nada

pode violar a lei causal eacutetico-psiacutequica de Kroacutenos A nudez remove os sinais exteriores do

engano e inverte a relaccedilatildeo entre a ocultaccedilatildeo e a vergonha entre a exposiccedilatildeo e o juiacutezo A

vergonha natildeo depende mais da coerccedilatildeo do olhar coletivo das gestas reputaacuteveis e

censuraacuteveis que configuram os valores da cidade e os noacutemoi humanos A vergonha eacute o

afeto que revela a inadequaccedilatildeo da natureza psiacutequica com sua destinaccedilatildeo final afeto que

deixa de ser prospectivo e passa a ser retrospectivo acerca dos males que poderiam ser

evitados sem a tirania dos apetites

Na planiacutecie invisiacutevel em que as hierarquias da vida satildeo equalizadas no mesmo

meacutetron as foacutermulas de reconhecimento as palavras de passe e a memorizaccedilatildeo de

prescriccedilotildees rituais dos antigos cultos de misteacuterio satildeo transpostas pelo escrutiacutenio imediato

do ldquoolhar da almardquo que vecirc outra alma O discurso sagrado natildeo expressa a natureza proacutepria

do recipiendaacuterio e por isso o sentido enigmaacutetico do discurso polissecircmico perde a

finalidade Somente o olhar perscrutador desembaraccedilado de qualquer obstaacuteculo pode

apreender a verdade dos seres e determinar o loacutecus consonante a cada alma Os verdadeiros

baacutekkhoi natildeo satildeo os que declaram ser puros mas satildeo aqueles que puros resplandecem em

sua proacutepria natureza psiacutequica as ordenaccedilotildees da justiccedila efetivada em vida

A feiuacutera do debochado Tersites (Goacutergias 526e) a chaga do voluptuoso os conflitos

e sofrimentos do tirano apetitivo e as desmedidas dos natildeo-iniciados configuram uma nova

152

acepccedilatildeo da vergonha na qual o feio e o vergonhoso necessariamente implicam-se

mutuamente

No movimento da transposiccedilatildeo iniciaacutetica operado pelas imagens miacuteticas a

autecircntica hyponoacuteia consiste em apreender as grandes verdades que se ocultam subjacentes

aos signos aparentes O filoacutesofo eacute aquele que investiga o regramento coacutesmico e a proporccedilatildeo

geomeacutetrica e os aplica ao regramento dos princiacutepios de accedilatildeo e inteligibilidade da alma A

alma justa eacute a alma bem ordenada consonante com a harmonia coacutesmica (Goacutergias 507a)

Segundo Monique Dixsaut (2001 p 171-173) a uacutenica verdade que o filoacutesofo pode

crer eacute aquilo que o loacutegos lhe significa e natildeo a vida Este loacutegos indica que haacute uma maneira

de viver que eacute a melhor porque concede tempo agrave busca da verdade Todavia as imagens do

mito final apontam para o fato de que a cataacutertica elecircntica do loacutegos filosoacutefico possui a

eficaacutecia de desnudar o interlocutor de suas falsas ilusotildees e envergonhaacute-lo mediante a

contradiccedilatildeo entre as crenccedilas professadas e o gecircnero de vida efetivamente praticado Natildeo

obstante o loacutegos eacute inoperante diante da hostilidade da violecircncia e da ignoracircncia

(apaideusiacutea 527e) O discurso filosoacutefico natildeo assegura a salvaccedilatildeo diante de juiacutezes

desonestos e natildeo evitam o ridiacuteculo e a violecircncia

Mas o verdadeiro filoacutesofo eacute como o piloto cujo papel eacute simultaneamente o de

conduzir em seguranccedila os tripulantes os valores e a si mesmo ao bom porto (Goacutergias

511c-512a) Sua funccedilatildeo eacute a de preservar dos males as almas dos seus concidadatildeos Para

tanto eacute necessaacuteria a retoacuterica da alma que ultrapassa a significaccedilatildeo discursiva para

culminar na inteligecircncia da visatildeo direta de uma alma para outra Quando uma alma observa

outra sem qualquer das mediaccedilotildees sensiacuteveis ela compreende o modo como o tempo

devotado a certo gecircnero de vida que ela julgou digno de ser vivido a afetou e quais marcas

imprimiu em sua qualidade proacutepria (Goacutergias 524d)

153

Se os loacutegoi suscitam o refuacutegio e o mergulho na verdade dos seres (Feacutedon 99e) a

qualidade proacutepria da alma soacute eacute determinada pela instauraccedilatildeo praacutetica da justiccedila poliacutetica Para

exercitar o saber eacute preciso tambeacutem crer mas como dizia o exegeta de Derveni ainda que

se esteja vendo eacute impossiacutevel crer ou aprender sem que se leve em conta as coisas terriacuteveis

(deinaacute) do Hades Natildeo se pode exercitar o saber sem que este seja vivido pois mesmo as

melhores naturezas estatildeo sujeitas agrave perversatildeo do pior gecircnero de apetites Tais satildeo os

apetites que se manifestam em sonhos e suscitam repleccedilatildeo recocircndita daquele que possui

disposiccedilotildees doentias para empreender unir-se agrave proacutepria matildee a qualquer homem deus ou

besta e de manchar-se de qualquer crime por causa da demecircncia e da renuacutencia agrave vergonha

(Repuacuteblica 571d) Assim como a qualidade proacutepria de um ser artefato ou da alma natildeo

resulta do acaso mas do modo como cada um eacute regrado assim tambeacutem a qualidade proacutepria

da alma soacute pode regrar-se atraveacutes da consonacircncia com a proporccedilatildeo geomeacutetrica

indissociaacutevel da accedilatildeo virtuosa que muda as disposiccedilotildees da poacutelis (Goacutergias 506e)

Ao fim e ao cabo de todos os discursos eacute preciso prestar a maior atenccedilatildeo natildeo tanto

em evitar sofrer a injusticcedila mas em natildeo cometecirc-la Eacute necessaacuterio natildeo se aplicar em parecer

bom mas em secirc-lo verdadeiramente tanto em privado como em puacuteblico (Goacutergias 527b)

Nenhum mal pode sobrevir ao homem de bem se ele pratica a virtude (527d) nenhum

ultraje pode envergonhaacute-lo nenhum sofrimento corrompecirc-lo ndash a natildeo ser a possibilidade de

que ele mesmo pratique o mal Toda modalidade discursiva seja a retoacuterica seja o eacutelenkhos

deve servir para a perenidade do justo (527c)

154

IV - NECESSIDADE E ESCOLHA

41 Imagens e causas no mito de Er

No espetaacuteculo de imagens narradas no mito de Er haacute uma proclamaccedilatildeo majestosa

de um Propheacutetes que em nome da virgem Laacutequesis anuncia a coexistecircncia simultacircnea de

noccedilotildees contraditoacuterias de um lado haacute a necessidade inelutaacutevel da ligaccedilatildeo de cada alma com

a vida de outro a radicalidade da escolha como fonte de virtude e imputabilidade

Como conciliar a necessidade inevitaacutevel do periacuteodo de nascimentos e mortes com a

escolha mais determinante Como conceber a sorte e a liberdade radical da escolha como

princiacutepios causais simultacircneos da natureza da psykheacute O inteacuterprete da Moira anuncia o

desconcerto da unificaccedilatildeo de poacutelos opostos entre o irrefragaacutevel e o indeterminado entre o

lote infaliacutevel e a autodeterminaccedilatildeo desejada

Logos da virgem Laacutequesis filha da Necessidade Almas efecircmeras

ireis iniciar novo periacuteodo de nascimentos na condiccedilatildeo mortal Natildeo

eacute um daiacutemon que vos escolheu a sorte sois voacutes que escolhestes

vosso daiacutemon O primeiro que a sorte designar escolheraacute primeiro

a vida agrave qual seraacute ligado em toda necessidade Pois virtude natildeo

tem deacutespota Segundo a honrar ou desonrar cada um a teraacute mais

ou menos Responsabilidade (aitiacutea heloumeacutenou) eacute de quem escolhe

O deus natildeo eacute responsaacutevel (theoacutes anaiacutetios) 100

Repuacuteblica X 617d06ndash617e05

Eacute um espetaacuteculo curioso observar de que maneira as diferentes almas escolhem suas

vidas nada mais lamentaacutevel ridiacuteculo e assombroso diz o panfiacutelio Er 101

A maioria eacute

guiada em suas escolhas pelos haacutebitos adquiridos em suas vidas anteriores haacutebitos que

100

Adoto traduccedilatildeo de Pierre Pachet com ligeiras modificaccedilotildees

Anaacutenkhes thygatrograves koacuteres Lakheacuteseos loacutegos Psykhaigrave epheacutemeroi arkhegrave aacutelles perioacutedou thnetoucirc geacutenous

thanatephoacuterou Oukh hymacircs daiacutemon leacutexetai hlrmymeicircs daiacutemona haireacutesesthe Procirctos drsquo hoacute lakhograven procirctos

haireiacutestho biacuteon hoacutei syneacutestai ex[ Anaacutenkhes Aretegrave degrave adeacutespoton hegraven timocircn kaigrave atimazon pleacuteon kaigrave eacutelatton

autecircs heacutekastos heacutexei Aitiacutea helomeacutenou theograves anaiacutetios 101 eleeineacuten te gaacuter ideicircn eicircnai kai geloiacutean kaigrave thaumasiacutean (Repuacuteblica X 620a 01-02)

155

acabam por condicionar uma homologia entre a natureza psiacutequica e o gecircnero de vida

Quando o gecircnero de vida estaacute em questatildeo emerge o primado da escolha

Sendo assim na travessia em que consiste a vida quais satildeo os meios e por quais

modos de viver poderemos conduzir a existecircncia da melhor forma possiacutevel ateacute o seu termo

Tal eacute a questatildeo crucial levantada pela imagem exemplar do Livro VII das Leis

Um construtor de navios no momento em que comeccedila a construccedilatildeo

do navio potildee em primeiro lugar a carena e esboccedila assim a

estrutura do navio Parece-me que eu faccedilo a mesma coisa quando

tentando distinguir a estrutura dos modos de vida em funccedilatildeo dos

caracteres das almas eu coloco realmente em lugar as carenas

destes modos de vida examinando por quais meios por quais

maneiras de viver conduziremos o melhor possiacutevel nossa existecircncia

ateacute o fim desta travessia que consiste a vida

Leis VII 803a-b

A questatildeo da investigaccedilatildeo da natureza da alma eacute explicitada a partir de uma

analogia o Estrangeiro de Atenas alvitra que assim como o construtor de navios inicia a

construccedilatildeo pela carena e esboccedila a estrutura do barco assim tambeacutem devemos tentar

estabelecer o delineamento dos esquemas de vida por meio dos gecircneros de almas102

O problema da indeterminaccedilatildeo do modo de vida conjuga-se com a questatildeo mais

fundamental do Goacutergias Qual eacute o melhor gecircnero de vida que eacute preciso ter103

A mais

fundamental de todas as questotildees da vida consiste em se determinar a natureza do proacuteprio

modo de viver Dentre toda a gama infinita de escolhas a vida filosoacutefica postula o princiacutepio

de que haacute uma hierarquia entre os afetos e uma escolha que eacute a melhor possiacutevel

Pois esta vida esta vida uacutenica seja ela longa ou curta eacute o que de

fato um homem verdadeiramente homem deve deixar de lado Natildeo

eacute a isso que ele deve devotar o amor de sua alma Ao contraacuterio no

que diz respeito a sua longevidade deve remeter-se somente ao

deus e crer somente no que dizem as mulheres que ningueacutem

poderia escapar ao seu lote Natildeo o que antes se deve procurar

102

tagrave tocircn biacuteon peiroacutemenos skheacutemata diasteacutesasthai katagrave tpoacutepous tougraves tocircn psykhoacuten (Leis VII 803a06-07) 103 oacutentina khreacute troacutepon zeacuten (Goacutergias500c03)

156

examinar eacute qual a maneira que se deve viver a vida para que ela

seja a melhor possiacutevel

Goacutergias 512 d-e

A vida esta vida uacutenica que equivale a uma travessia articula dois opostos

inseparaacuteveis a determinaccedilatildeo incontestaacutevel de uma longevidade que escapa ao poder

humano e o poder inalienaacutevel do modo como esta travessia seraacute feita Se a nenhum homem

cabe determinar a duraccedilatildeo da proacutepria vida a cada homem cabe decidir como iraacute viver a

vida que lhe cabe pois o viver eacute fruto de escolhas Se o gecircnero de vida eacute determinado pelas

escolhas o que delimita o acircmbito das escolhas por sua vez eacute a natureza uacuteltima dos desejos

e do caraacuteter Natildeo haacute escolha que natildeo seja resultante do movimento dos desejos A

orientaccedilatildeo dos desejos determina os valores os criteacuterios de discriminaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo

do preferiacutevel que por sua vez nortearatildeo o modo como a vida eacute vivida Esta orientaccedilatildeo

natural dos desejos eacute por conseguinte preacutevia agrave percepccedilatildeo da realidade vivida

O discernimento da estrutura psiacutequica pressupotildee por sua vez a distinccedilatildeo da

multiplicidade e da natureza dos desejos Trata-se de uma correspondecircncia biuniacutevoca em

que o pensamento discerne o desejo e o desejo se exprime num modo de vida Pensamento

desejos e modo de vida articulam-se numa relaccedilatildeo de implicaccedilotildees e consequecircncias muacutetuas

Pensamento e desejos acarretam consequecircncias inevitaacuteveis sobre o gecircnero de vida de modo

a urdir a trama que entrelaccedila necessidade e liberdade na tecedura que compotildee o viver

Todavia os patheacutemata da alma configuram impulsos agogecircs contraacuterios (Repuacuteblica

X 604 a-b) Quando num mesmo homem em relaccedilatildeo ao mesmo elemento e ao mesmo

tempo dois impulsos contraacuterios coexistem eacute necessaacuterio que haja nele duas partes104

Os impulsos antiteacuteticos da alma determinam accedilotildees opostas e por conseguinte

implicam a diversidade de partes jaacute que efeitos opostos natildeo podem provir da mesma causa

104 Enantiacuteas degrave agogecircs gignoacutemenes en toacutei anthroacutepoi peri to auto haacutema duacuteo phamegraven em autocirci anankaicircon

eicircnai

157

(Repuacuteblica IV 439bss) Tal postulado transpotildee para a esfera do psiquismo a

impossibilidade de que haja contradiccedilatildeo numa mesma instacircncia e num mesmo instante de

princiacutepios de accedilatildeo que fazem com que a psykheacute seja uma causa (REIS M D 2000 p

114) As pulsotildees conflitantes e opostas da psykheacute indicam a necessidade de sua

complexidade

Na complexidade de princiacutepios de accedilatildeo opostos a afliccedilatildeo ou os afetos violentos

impedem a alma de discernir o melhor aquilo que haacute de bem e mal (toucirc agathoucirc te kaigrave

kakoucirc) nas dificultosas sobrecargas (en taicircs xymphoraicircs) que sobrevecircm ao homem A

tristeza e a afliccedilatildeo uma vez dominantes fazem obstaacuteculo agrave inteligecircncia dos expedientes

(touacutetoi empodograven gignoacutemenon tograve lypeicircsthai) e por essa razatildeo nenhuma das coisas humanas

merece grande reverecircncia (ouacutete ti tocircn anthropiacutenon aacutexion ograven megaacuteles spoudecircs Repuacuteblica X

604b09-c03) A natureza da psykheacute eacute determinada pela similitude com sua ocupaccedilatildeo

ordinaacuteria (Feacutedon 82a) Por isso a experiecircncia de um prazer ou pena intensos suscitam o

mal supremo a psykheacute eacute conduzida a tomar o que causa o afeto mais intenso por aquilo

que possui a maior evidecircncia e a realidade mais verdadeira enquanto ele natildeo eacute nada

(Feacutedon 83c05-08) A realidade dos sofrimentos intensos eacute ilusoacuteria e o mais belo consiste

em manter a maior quietude diante deles (maacutelista hesykhiacutean aacutegein Repuacuteblica 604b09)

No Feacutedon (99b) Platatildeo distingue duas ordens de causas (i) as causas verdadeiras e

(ii) as causas sem as quais nenhuma causa seria causa As verdadeiras causas identificam-se

com o noucircs e exigem que se postule a faculdade psiacutequica da inteligecircncia discriminadora do

melhor (beacuteltiston) A complexidade de impulsos faz da psykheacute princiacutepio de movimento e

causa

Concluamos eacute princiacutepio de movimento aquilo que se move a si

mesmo Ora natildeo eacute possiacutevel nem que ele se anule nem que comece

a existir do contraacuterio o ceacuteu inteiro a geraccedilatildeo inteira vindo ao

158

ocaso tudo isso pararia e jamais se renovaria Uma vez posto em

movimento em um ponto de partida para sua existecircncia Agora que

eacute evidente a imortalidade daquilo que eacute movido por si mesmo natildeo

se faraacute escruacutepulo de afirmar que isto eacute a essecircncia da alma e que

esta eacute sua natureza De fato todo corpo que recebe de fora seu

movimento eacute um corpo inanimado Um corpo eacute animado ao

contraacuterio por algo de dentro e que tem em si mesmo o princiacutepio

uma vez que eacute nisto que consiste a natureza da alma

Fedro 245d

A essecircncia da noccedilatildeo agrave qual corresponde o nome alma eacute ser princiacutepio de movimento

Um princiacutepio natildeo pode ser engendrado visto que sua existecircncia nesse caso derivaria de

outra coisa Tudo o que eacute engendrado eacute necessariamente engendrado sob o efeito de uma

causa pois sem a intervenccedilatildeo de uma causa nada pode ser engendrado eis a relaccedilatildeo

necessaacuteria que a noccedilatildeo de princiacutepio de movimento expressa haacute um viacutenculo infaliacutevel entre

efeito e causa (Timeu 28a) O princiacutepio eacute aquilo cuja existecircncia eacute intriacutenseca a si mesmo

(ROBIN in Fedro p 83) Nesse sentido o movimento da alma a torna causa e princiacutepio

Em Platatildeo a alma eacute ao mesmo tempo movimento impulso e causa

Somente a inteligecircncia pode regrar o acaso pois a opiniatildeo a presciecircncia

(epimeacuteleia) o noucircs a arte e a lei satildeo anteriores aos elementos da Natureza (Leis X 892b)

A questatildeo do melhor (beacuteltiston) e das escolhas pressupotildee a configuraccedilatildeo psiacutequica e a

economia de seus impulsos Nesta economia os desejos determinam o alvo em que

terminam Todo desejo eacute orientado e aponta para um fim

No Goacutergias Soacutecrates afirma que de todos os preparativos humanos (paraskeuaigrave)

alguns visam somente o prazer e desconhecem o melhor e o pior outros conhecem o Bem e

o mal

Eu dizia se tu te lembras que haacute certos preparativos que querem

somente atingir o prazer e se ocupam somente disto numa

ignoracircncia total do que eacute melhor ou pior Mas existem outros que

conhecem o bem e o mal Goacutergias 500a

159

A questatildeo eacutetica da melhor escolha exige o plano epistemoloacutegico da distinccedilatildeo do

Bem e do melhor O conhecimento do Bem e do mal deve fundamentar a praacutexis eacutetico-

poliacutetica

Platatildeo subordina agraves escolhas a questatildeo ldquoqual o melhor gecircnero de vida que se deve

terrdquo Escolhas pressupotildeem desejos como impulsos para a accedilatildeo Neste sentido o psiquismo

eacute causa e por isso a Filosofia deve existir como Eros como orientaccedilatildeo natural do desejo

para o melhor Somente a inteligecircncia pode discriminar diferenccedilas e discernir o melhor

somente o movimento do pensamento apanaacutegio da psykheacute configura e inteligibilidade do

Bem (DIXSAUT 2001 p 130)

A escolha do alvo que eacute o fim do desejo determina simultaneamente os valores a

potecircncia do discurso e a realidade do real A realidade eacute determinada pelo modo como se

escolhe vecirc-la Instacircncia complexa a natureza psiacutequica determina o modo de inteligibilidade

pelo qual a realidade eacute apreendida

Mas para discorrer filosoficamente acerca de instacircncias que natildeo podem ser

justificadas logicamente Platatildeo emprega o registro da narrativa miacutetica As noccedilotildees

multiacutevocas que compotildeem a realidade e natildeo possuem justificaccedilatildeo loacutegica exigem a piacutestis

como consolidaccedilatildeo

42 ndash Mito e psykhḗ

Da ordem da mousikeacute os mitos platocircnicos esboccedilam mediante um pensar por

imagens um modelo de visualizaccedilatildeo de realidades inverificaacuteveis e satildeo endereccedilados aos

patheacutemata com a finalidade de consolidar uma crenccedila No Feacutedon (77e-78a) a encantaccedilatildeo

miacutetica (epoideacute) eacute reclamada como meio de afastar o medo crucial da morte O medo eacute um

iacutendice um signo de reconhecimento de que o corpo se manteacutem preponderante sobre o

160

pensamento (Feacutedon 68c) Do medo derivam as duacutevidas e as hesitaccedilotildees que paralisam as

accedilotildees humanas e impedem a atividade filosoacutefica

A encantaccedilatildeo miacutetica possui simultaneamente (i) a funccedilatildeo pedagoacutegica de esclarecer

e de propiciar a crenccedila e (ii) a funccedilatildeo epistemoloacutegica de engendrar noccedilotildees que natildeo possuem

referentes verificaacuteveis (NUNES SOBRINHO 2007 p 186 ss) Ademais como toda

estrutura musical a estrutura miacutetica implica ressonacircncias psiacutequicas haacute uma homologia

estrutural entre muacutesica mito e o psiquismo105

Os mitos platocircnicos fornecem modelos exemplares para o comportamento humano e

constituem um referencial que confere sentido e orientaccedilatildeo para as accedilotildees A estrutura

miacutetica possui uma homologia estrutural multiacutevoca e profunda com a estrutura do

psiquismo com a estrutura poliacutetica e com a estrutura de determinaccedilatildeo das realidades

Aleacutem disso a estrutura imageacutetica do mito suscita a partir de imagens familiares

visiacuteveis a inferecircncia de estruturas inevidentes106

Assim como o Ser estaacute para o devir

assim tambeacutem a verdade estaacute para a crenccedila afirma Timeu de Locri (Timeu 29c) A analogia

se estende para o plano das relaccedilotildees assim como se pode inferir o inteligiacutevel a partir de

relaccedilotildees invariantes observadas no devir assim tambeacutem se pode inferir a verdade a partir

das imagens que lhes servem de postulados

Narrativas miacuteticas filosoacuteficas possuem a pretensatildeo de tornar comunicaacutevel uma

realidade complexa Quando a complexidade eacute excessiva para ser abarcada pela

inteligecircncia o mito faz ver Os grandes mitos de julgamento operam a transposiccedilatildeo de

105 hoacutes philosophiacuteas megraven ouses megiacutestes mousikeacutes emoucirc degrave toucircto praacutettontos (Feacutedon 61a03) A Filosofia eacute a

mais alta muacutesica inextricaacutevel do pensamento puro (phroacutenesis) e da aspiraccedilatildeo agraves realidades mais verdadeiras

No Timeu a alma participa da razatildeo da harmonia e do nuacutemero o que faz com que possa engendrar o melhor

dos seres que sempre satildeo autegrave degrave aoacuteratos meacuten logismoucirc degrave meteacutekhousa kaigrave harmonias pykheacute tocircn noetocircn aeiacute

te oacutenton hypograve toucirc ariacutestou ariacuteste genomeacutene tocircn genetheacutenton (37e06-a02) 106 With regard to nature and task of demiurge one must note that the invisible is inferred from the visible

and the incorporeal from the bodily (OLYMPIODORO 1998 p 290)

161

imagens familiares visualizaacuteveis para uma teia de relaccedilotildees invisiacuteveis que satildeo fundamentais

para a unificaccedilatildeo da experiecircncia humana muacuteltipla com uma cosmologia107

Como falar filosoficamente daquilo que eacute inverificaacutevel como a alma e a morte A

significaccedilatildeo aportada pelo mito filosoacutefico indica a possibilidade de transposiccedilatildeo de um

registro de realidade para outro de modo a se consolidar o primado e a inscriccedilatildeo da

inteligecircncia naquilo que eacute destituiacutedo de ordem (akosmiacutea) ou de regras naquilo que eacute

desregrado (akolasiacutea) Como diria Dixsaut toda ontologia eacute miacutetica e todo mito pode servir

como justificativa ontoloacutegica (DIXSAUT 2001 p 130) Por essa razatildeo quando a

argumentaccedilatildeo chega ao impasse e ao limite para natildeo se cair na misologia (Feacutedon 89d ss)

eacute preciso contar com a perspectiva dos discursos divinos para se afrontar o risco (kiacutendynos)

da travessia da vida (Feacutedon 85d) Para se evitar a misantropia eacute preciso compreender que a

bondade e a maldade completas satildeo raras e as misturas satildeo muitas108

Para se evitar a

misologia eacute preciso empregar todo o ardor em fazer o discurso parecer verdadeiro natildeo

para os que ouvem mas tatildeo somente para si mesmo (Feacutedon 89e-90a)

Como o plano da vida e do devir eacute o plano da mistura (metaxyacute) eacute preciso identificar

aquilo que no real soacute pode ser justificado miticamente Eis aiacute o belo risco da Filosofia

crer que a alma eacute imortal no pacircs kroacutenos eis o risco que deve correr aquele que crecirc que eacute

assim Pois este risco eacute belo (Feacutedon 114d)

107 Segundo Leacutevi-Strauss realidades demasiado complexas exigem para sua inteligibilidade uma reduccedilatildeo a

relaccedilotildees compreensiacuteveis mediante a busca de invariantes em suas relaccedilotildees internas As relaccedilotildees internas de

certo niacutevel de realidade satildeo suscetiacuteveis de aparecer a outros niacuteveis Nesse sentido eacute possiacutevel analisar no acircmbito do psiquismo relaccedilotildees que satildeo observadas na Natureza Os mitos possuem a funccedilatildeo de apresentar

mediante suas relaccedilotildees internas a inscriccedilatildeo de ordem numa aparente desordem A inscriccedilatildeo de ordem naquilo

que se apresenta caoacutetico implica precisamente a funccedilatildeo psiacutequica por excelecircncia e consolida a proacutepria noccedilatildeo

de significado O que significa significar Segundo Leacutevi-Strauss a significaccedilatildeo representa a possibilidade de

traduccedilatildeo ou transposiccedilatildeo de um registro de realidade para outro Por essa razatildeo os mitos platocircnicos satildeo

portadores de significaccedilatildeo pois traduzem para o acircmbito imageacutetico da narrativa noccedilotildees que satildeo somente

pensaacuteveis Sua operacionalidade eacute nesse aspecto dianoieacutetica (LEacuteVI-STRAUSS 1978 p 22 ss) 108 tougraves megraven khrestougraves kaigrave ponerougraves sphoacutedra oliacutegous eicircnai hekateacuterous tougraves degrave metaxỳ pleiacutestous

162

O mito propicia a ultrapassagem da condiccedilatildeo temporal e da ignoracircncia (apaideusiacutea)

que constituem o quinhatildeo de todo ser que se identifica a si mesmo e ao Real com sua

proacutepria situaccedilatildeo particular

43 - ER O DECRETO DE LAacuteQUESIS

A questatildeo da escolha do melhor gecircnero de vida eacute apresentada no mito de Er como

risco inerente agrave mistura em que consiste o breve instante que vai do nascimento ateacute a morte

O breve tempo que separa a infacircncia da velhice nada eacute em comparaccedilatildeo com a eternidade

A correta valoraccedilatildeo deve levar ser posta na perspectiva da totalidade do tempo paacutes kroacutenos

Que pode haver de grande em um intervalo que tempo tatildeo restrito Pois todo o intervalo

que separa a infacircncia da velhice eacute muito pouco em comparaccedilatildeo com a eternidade

(Repuacuteblica X 608c) Um ser imortal natildeo deve dedicar tanto esforccedilo por um tempo tatildeo curto

e negligenciar a eternidade109

A oposiccedilatildeo entre tempo da vida e a totalidade do tempo

indica a necessidade de uma re-valoraccedilatildeo dos valores humanos na perspectiva de um

paradigma atemporal

O espetaacuteculo narrado pelo panfiacutelio Er evoca uma estrutura coacutesmica tripartite as

almas encontram-se num prado (leimoacuten) lugar democircnico toacutepon tinaacute daimoacutenion

(Repuacuteblica X 614c) que media a regiatildeo superior do ceacuteu e a inferior da terra

Todo lugar nos mitos platocircnicos toda geografia e cosmologia do invisiacutevel

concernem ou agrave estrutura psiacutequica ou dizem respeito agrave estruturaccedilatildeo de planos de realidade

diversos A triparticcedilatildeo refere-se ao mesmo tempo agrave condiccedilatildeo psiacutequica e a estruturas de

109

Mas aquele de pensamento superior que contempla a totalidade do tempo e a totalidade do ser supotildees que

eacute capaz de ter em grande opiniatildeo a vida humana

bdquo´Hi oucircn hypaacuterkhei dianoiacuteai megalopreacutepeia kaigrave theoriacutea pantograves megraven khroacutenou paacuteses degrave ousiacuteas hoicircon te oiacuteei

touacutetoi mega ti dokecircin eicircnai tograven antroacutepinon biacuteon

Repuacuteblica VI 486a 09-10

163

realidades Natildeo eacute outra a razatildeo pela qual os tiranos como Ardieu satildeo arrastados e jogados

no Taacutertaro ndash imagem do caos turbulento Suas almas satildeo caoacuteticas e por si mesmas suscitam

a imagem da realidade que se lhes assemelha Por outro lado O Feacutedon apresenta uma

estrutura fisiograacutefica tripartite (109b-110a) que indica planos de realidade com

determinaccedilotildees variadas Haacute uma ldquoverdadeira terrardquo invisiacutevel mais pura cristalina e bela do

que a cavidade na qual habitam os homens A verdadeira Terra estaacute para a nossa

ldquocavidaderdquo assim como a nossa cavidade estaacute para as profundezas marinhas110

Haacute uma

simetria de proporccedilotildees entre planos com diferenccedilas de determinaccedilatildeo

Apoacutes haver passado sete dias no prado Er deveria partir no oitavo dia e chegar a um

lugar onde se estende do alto atraveacutes de todo o ceacuteu e da terra uma luz como uma coluna111

(phoacutes euthyacute hoicircon kiacuteona) muito semelhante ao arco iacuteris (maacutelista teacute igraveridi prospheacutere) mas

mais brilhante e mais pura (lampoacuteteron degrave kaigrave katharoacuteteron) Esta luz era uma cadeia que

prendia o ceacuteu (xyacutendesmon toucirc ouranoucirc) tal como as cordas de uma trirreme (Repuacuteblica

616b-c)

A mediaccedilatildeo entre planos de realidade distintos eacute representada pela imagem de uma

coluna de luz que encadeia o koacutesmos A cosmologia constitui o paradigma de toda

atividade criadora porque o Koacutesmos eacute o modelo divino de todo fazer O Koacutesmos eacute poieacutesis

divina e sua estrutura serve de paradigma para todo fazer que se pretende harmonioso

ordenado e ornado numa palavra cosmicizado (ELIADE 1978) Mas como atribuir um

sentido mais preciso agrave imagem da coluna de luz

110Autegraven degrave tegraven gecircn katharagraven em katharoacute keicircsthai toacutei ouranoacute en hoipeacuter esti tagrave aacutestra hoacuten degrave aitheacutera onomaacutezein

Feacutedon 109b0708 111

Hilda Richardson (1926 p 117 ss) defende a tese de que a coluna de luz envolve circularmente as

esferas coacutesmicas e simultaneamente atravessa o eixo central que passa pela terra Tal imagem teria filiaccedilatildeo

na concepccedilatildeo pitagoacuterica de que um ciacuterculo de fogo abarca o Koacutesmos

164

No Craacutetilo (408b) o nome de Iacuteris eacute associado agrave eiacuterein dizer e por isso ela eacute

mensageira112

No Teeteto (155d) Iacuteris eacute apresentada como filha de Thauacutemas

Pois este sentimento de se espantar eacute inteiramente de algueacutem que

ama o saber Natildeo haacute outro ponto de partida para a procura do

saber aleacutem deste e aquele que disse eacute nascida de Thaumas113

natildeo

esboccedilou mal sua genealogia

(Teeteto 155d)114

Como nota Narcy115

Iacuteris eacute mensageira portadora do Leacutegein e por conseguinte

constitui uma personificaccedilatildeo do papel mediador da Filosofia A busca pela sabedoria eacute a

atividade divina mais proacutepria e a mediaccedilatildeo entre o plano da divindade e o plano humano se

expressa pela imagem do arco-iacuteris ponte entre o ceacuteu e a terra116

Universal antropoloacutegico a

imagem da coluna ou pilastra que liga planos diversos de realidade o celeste e o terrestre

indica que o espaccedilo miacutetico possui um referencial absoluto um eixo coacutesmico aacutexis mundi117

112 Homens aquele que maquinou (emeacutesato) a palavra (eiacuterein) noacutes deveriacuteamos chamaacute-lo Eireacute-mecircs e presentemente crendo haver-lhe adornado o nome o chamamos Hermecircs Em todo caso Iacuteris foi

verdadeiramente chamada assim a partir de eirein (dizer) porque ela eacute mensageira

Trad DALMIER C in PLATON Cratyle 1998 113 Espanto agrave filha do Oceano de profundo fluir

desposou Ambarina Ela pariu ligeira Iacuteris

e Harpias de belos cabelos Procela e Aliacutegera

que a paacutessaros e rajadas de vento acompanham

com asas ligeiras pois no abismo do ar se lanccedilam

(HESIacuteODO Teogonia 265-269 Trad Torrano J 2003)

De Pontos et Gegrave naquirent Phorcos Thaumas Neacutereacutee Eurybia et Cegraveto De Thaumas et Electra naquirent

Iris et les Harpyes Aellocirc et Ocypeacutetegrave puis de Phorcos et de Cegraveto les Phorcides et les Gorgones dont nous

parlerons lorsque nous en seron agrave Perseacutee (APPOLODORE I 2 10 in CARRIEgraveRE MASSONIE 1991) 114 Trad NARCY M in PLATON Theacuteeacutetegravete 1995 115 Id nt 121 p 325 116 Chantraine afirma a possibilidade de que ityacutes e iacutetea arco ciacuterculo de arco sejam derivadas de Iacuteris

(CHANTRAINE 1999 p 469) 117

Proclo (2005 200 p 149) empreende uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica da passagem afirmando que a imagem

natildeo designa uma figura em forma de coluna mas consiste num sentido funcional de suporte firme e constante para os moacuteveis celestes A interpretaccedilatildeo alegoacuterica leva Proclo a rejeitar o pensamento de seus predecessores

segundo o qual a luz representa o eixo do mundo Embora Hilda Richardson (1926 p 115) confira um papel

estritamente poeacutetico ao mito sua interpretaccedilatildeo aventa a ausecircncia de dificuldades em correlacionar a luz e a

imagem da coluna com a noccedilatildeo matemaacutetica de um eixo coacutesmico It is hardly necessary to say that Plato quacirc

mathematician rightly conceived of the axis of the celestial sphere as na imaginary line and not as a material

body whether of light stuff or any other stuff But this is no real objection to his representing the axis

otherwise in a passage which is not scientific exposition but myth where he has a particular poetic and

imaginative purpose in view

165

que eacute o modelo exemplar que opera a mediaccedilatildeo entre o celeste e o terrestre entre o divino e

o plano do devir A noccedilatildeo de um eixo coacutesmico que vincula planos diversos eacute reforccedilada pelo

passo do Timeu

Quanto agrave terra nossa nutridora girando-a em torno do eixo que

atravessa o todo o deus a estabeleceu para ser guardiatilde e demiurga

da noite e do dia a primeira e a mais antiga das divindades

nascidas no interior do ceacuteu

Timeu 40b-c

Por que Platatildeo se vale de um rico acervo de imagens que aludem a um referencial

fora do devir e que implica uma evasatildeo do tempo humano cronoloacutegico No Feacutedon 96c-

97b Soacutecrates denuncia a perplexidade diante da tentativa de se aquilatar os particulares da

phyacutesis uns em relaccedilatildeo aos outros o que o leva a empreender o deucircteros ploucircs e empreender

a hipoacutetese das Formas No contexto do livro X da Repuacuteblica Soacutecrates aponta a contradiccedilatildeo

como condiccedilatildeo epistecircmica do devir

Os mesmos objetos parecem quebrados ou retos segundo se os

observa na aacutegua ou fora dela cocircncavos ou convexos segundo

outra ilusatildeo visual produzida pelas cores e eacute evidente que tudo isso

perturba nossa alma

Repuacuteblica X 602c

O socorro contra a ilusatildeo e a contradiccedilatildeo eacute o caacutelculo a medida e a pesagem de

modo que o que deve prevalecer eacute a faculdade da alma que lhes propicia (Repuacuteblica X

602d) O paradigma para estas operaccedilotildees da alma deve estar fora do plano do devir no

inteligiacutevel para escapar agrave contradiccedilatildeo Por essa razatildeo os mitos filosoacuteficos recorrentemente

aludem a um referencial absoluto que sirva de norma ao mesmo tempo para as accedilotildees

eacutetico-poliacuteticas e para a inteligibilidade da phyacutesis

Toda a estrutura coacutesmica representada pelo fuso da Necessidade gira nos joelhos

de Anaacutenkhe Brisson (1994 469-513) em sua anaacutelise de Anaacutenkhe vincula de maneira

166

geral a noccedilatildeo agrave causalidade e agrave explicaccedilatildeo causal118

No Timeu o princiacutepio geral da accedilatildeo

da necessidade eacute indicado no fato de que a geraccedilatildeo do Koacutesmos tem por princiacutepio uma

mistura de necessidade e razatildeo A razatildeo domina a necessidade persuadindo-a a orientar a

maior parte dos elementos do devir para o melhor O Koacutesmos eacute constituiacutedo pela vitoacuteria da

persuasatildeo sobre a necessidade configurando uma mistura

Haacute pois um elemento de resistecircncia agrave accedilatildeo ordenadora da inteligecircncia intriacutenseco agrave

constituiccedilatildeo coacutesmica Tal accedilatildeo faria da Necessidade pura uma causa errante

ontologicamente anterior ao Koacutesmos que implica a inexorabilidade da ausecircncia de

regramento e de inteligecircncia caracteriacutesticos da Khoacutera ou do meio espacial cujo movimento

eacute desarmocircnico e indeterminado A accedilatildeo da Necessidade neste plano indica o caraacuteter

randocircmico e desordenado inerente ao meio material Depois da constituiccedilatildeo do Koacutesmos

Anaacutenkhe permanece como ausecircncia de inteligecircncia resiacuteduo de resistecircncia agrave accedilatildeo de

determinaccedilatildeo ordenadora da razatildeo

No mito de Er Anaacutenkhe eacute matildee das Moiras e como tal potecircncia divina causal Na

estrutura imageacutetica apontar a causa implica em designar o genitor e a accedilatildeo de engendrar

Segundo Proclo no mito de Er Anaacutenkhe comanda o domiacutenio coacutesmico e preside o ciclo das

almas Mantenedora da ordem Anaacutenkhe vincula necessariamente os gecircneros de vida com as

118 Brisson identifica trecircs momentos distintos que caracterizam a necessidade (i) causa errante que configura

uma resistecircncia agrave accedilatildeo do Demiurgo (ii) causa coadjuvante que coopera com a razatildeo do Demiurgo e (iii)

causa segunda em relaccedilatildeo agrave alma do mundo O primeiro momento ocorre antes da modelaccedilatildeo proporcional

operada pelo Demiurgo (Timeu 56c) Trata-se da Necessidade como causa errante ou necessidade pura

anterior agrave formaccedilatildeo do Koacutesmos que se identifica com o movimento caoacutetico e ausecircncia de accedilatildeo racional No

segundo momento a Necessidade passa a cooperar com a razatildeo mediante a persuasatildeo e se torna causa coadjuvante Trata-se da razatildeo persuadindo a Necessidade Todavia nem a necessidade nem a razatildeo

desaparecem apoacutes a constituiccedilatildeo do Koacutesmos Sua influecircncia continua a se exercer em um terceiro estaacutegio o

demiurgo se retira e seus ajudantes terminam seu trabalho e a accedilatildeo da razatildeo se perpetua A razatildeo se manteacutem

no Koacutesmos atraveacutes de sua alma O seu corpo por outro lado eacute submetido agrave lei de necessidade que dirige a

geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo Essa lei implica uma cadeia causal infaliacutevel consequumlecircncia da figura da relaccedilatildeo e do

movimento proacuteprio de cada elemento A necessidade se torna uma causa segunda submetida agrave alma do

mundo de modo que a mistura entre razatildeo e necessidade eacute constitutiva do universo

167

escolhas e a necessidade inelutaacutevel de que cada alma seja ligada agrave vida corporal (Repuacuteblica

X 617e) Como potecircncia causal e matildee das Moiras Anaacutenkhe no contexto do mito de Er

representa a geraccedilatildeo da lei inflexiacutevel de retribuiccedilatildeo e implica a transferecircncia do estatuto

divino do noacutemos para as distribuidoras das sortes

Ela eacute a potecircncia regedora da ordem coacutesmica da manutenccedilatildeo de todas as coisas e do

lugar proacuteprio para cada elemento da phyacutesis e para as almas Sua accedilatildeo abarca a composiccedilatildeo

total do Koacutesmos e como afirma Proclo (que assimila Anaacutenkhe a Theacutemis) seu domiacutenio

soberano sobre todas as coisas no mundo implica uma ordem inevitaacutevel e uma guarda sem

remissatildeo

Potecircncia divina primordial a accedilatildeo de Anaacutenkhe alude ao fato de que a Repuacuteblica

coacutesmica jamais eacute subvertida e que o universo eacute guardado por meio de estatutos

indissoluacuteveis Ela eacute o garante da causalidade primordial e preside a ordem inerente ao

koacutesmos e arranjo dos seres vivos Atraveacutes das Moiras Anaacutenkhe preside todos os

movimentos celestes e os movimentos que configuram as accedilotildees praacuteticas Sua imagem

personifica a infalibilidade dos viacutenculos de arranjo harmocircnico que regem a phyacutesis e da

necessidade ineludiacutevel que vincula as escolhas e os gecircneros de vida com a condiccedilatildeo e a

natureza das almas Mas Anaacutenkhe implica tambeacutem a tyacutekhe como elemento fortuito

inelutaacutevel no Koacutesmos e inalienaacutevel agraves escolhas e agrave mistura dos paradigmas de vida

As Moiras satildeo as filhas de Anaacutenkhe Suas accedilotildees remetem para uma potecircncia

unificadora e uma causaccedilatildeo uacutenica Isso significa que haacute um viacutenculo causal que abarca

simultaneamente as conexotildees fiacutesicas e a tecedura dos destinos As Moiras satildeo mediadoras

entre os movimentos inelutaacuteveis dos ciacuterculos celestiais O fuso que liga as esferas celestes

mediante uma luz em linha reta como coluna phoacutes euthyacute hoicircon kiacuteona e sua accedilatildeo tanto

168

sobre as esferas como sobre os lotes de tipos de vida indica uma triparticcedilatildeo coacutesmica da

causalidade

Essa triparticcedilatildeo indica domiacutenios de causalidade diversos que satildeo abarcados por uma

causalidade universal e unificadora Causantes e causados diferem pelos traccedilos uno e

muacuteltiplo universal e particular inteligiacutevel e devir A unificaccedilatildeo eacute operada no domiacutenio da

causalidade inteligiacutevel Nenhum domiacutenio causal escapa a Anaacutenkhe As Moirai satildeo as

repartidoras das porccedilotildees relativas a cada ser porque elas mesmas satildeo partiacutecipes do domiacutenio

causal primordial de Anaacutenkhe

Em nome de Laacutequesis a filha da Necessidade o profeta proclama que a necessidade

eacute de viver mas a escolha cabe ao gecircnero de vida e esta escolha introduz taacutexis e noacutemos na

necessidade Guardiatilde do passado Laacutequesis eacute autora do decreto pois o passado eacute

determinante da configuraccedilatildeo presente e por isso mais compreensivo numa perspectiva

causal

Na distribuiccedilatildeo das vidas haacute uma mixoacuterdia de uma miriacuteade de elementos

miscigenados segundo a sorte e nos mais variados graus possiacuteveis (Repuacuteblica X 618b)

Mas eacute possiacutevel escolher a melhor vida em funccedilatildeo de um caacutelculo que permite o

discernimento das consequecircncias de cada uma destas misturas e de seus componentes

(Repuacuteblica X 618c-d) O mito de Er tal como ocorre no Feacutedon alude a um risco a um

perigo (Repuacuteblica X 618b) o de escolher mal um gecircnero de vida sem avaliar as

consequecircncias

O perigo tal como no Feacutedon indica a necessidade da encantaccedilatildeo da persuasatildeo que

mova os afetos e suscite a crenccedila de que haacute algo que remanesce apoacutes a morte de que haacute

algo para aleacutem da evidecircncia apontada pelo senso da maioria do fato bruto do apetite e de

que todo valor temporal deriva do amor agrave riqueza do amor ao poder e do amor ao prazer A

169

filosofia natildeo constitui garantia absoluta para a felicidade haacute um elemento fortuito

contingente inextrincaacutevel da tyacutekhe implicada por Anaacutenkhe eacute preciso que a sorte natildeo

designe os uacuteltimos lugares na hora da escolha As maacutes escolhas satildeo feitas por aqueles que

natildeo foram suficientemente treinados nos sofrimentos (aacutete poacutenon agymnaacutestous) Platatildeo

confere no mito de Er um valor positivo ao sofrimento como se fora um treinamento

Segundo Dixsaut (2001 p 177) para bem viver natildeo basta pensar e ter prazer na

atividade de pensar Ao pensamento leve eacute preciso acrescentar a forccedila de encaminhar

para o alto o lote de fardo pesado de desgraccedila e de infelicidade que eacute o lote de toda vida

jaacute que toda vida eacute uma mistura

Natildeo haacute vida sem mistura de alegria e dor felicidade e sofrimento Tudo ser vivo

tem seu lote misturado de felicidade e dores E no entanto a ascensatildeo da alma para o alto

pressupotildee um paacutethos o Eacuteros filosoacutefico

No Goacutergias (507e-508) Soacutecrates lembra um saacutebio que afirma que o ceacuteu a terra os

deuses e os homens satildeo vinculados por philiacutea119

respeito agrave kosmiacutea agrave sophrosyacutene e agrave

justiccedila e por essa razatildeo eles satildeo chamados Koacutesmos e natildeo akosmiacutea e akolasiacutea Todos os

planos de realidade satildeo mantidos juntos por philiacutea Haacute uma lei que cinge o universo uma

119 Canto afirma que a menccedilatildeo agrave philiacutea eacute uma referecircncia a Empeacutedocles em funccedilatildeo da importacircncia atribuiacuteda agrave

amizade como princiacutepio coacutesmico (M Canto in PLATON 1993 nt 189 p 347) Dodds por outro lado

observa que natildeo haacute nada que implique o fato de Platatildeo ter Empeacutedocles necessariamente em mente sobretudo

porque a doutrina da ldquoigualdade geomeacutetricardquo natildeo seria empedocleana A koinoiacutea indica a comunhatildeo condiccedilatildeo

necessaacuteria para a philiacutea ambos princiacutepios necessaacuterios para o governo tanto do Koacutesmos como das relaccedilotildees

poliacuteticas e pessoais Tais noccedilotildees satildeo firmemente aceitas como heranccedila pitagoacuterica Os pitagoacutericos teriam sido

os primeiros a chamar o universo Koacutesmos e certamente foram os primeiros a correlacionaacute-lo com leis

matemaacuteticas regradoras (E R Dodds in PLATO 1990 p 337)

Irwin por sua vez foca sua anaacutelise na explicitaccedilatildeo argumentativa da tese de que a comunhatildeo e a amizade satildeo preacute-condiccedilotildees para a virtude e distingue alguns problemas suscitados pelo argumento Soacutecrates argumenta se

A eacute amigo de B entatildeo deve haver comunhatildeo entre A e B Se B eacute intemperante entatildeo B natildeo pode ter

comunhatildeo e por conseguinte amizade com A Segundo Irwin a intemperanccedila de B natildeo implica

necessariamente sua incapacidade de ter amizade com A e tampouco a falta de amizade de A implica um

prejuiacutezo necessaacuterio para B (Irwin in PLATO 2004 nt 507e p 225) A pontualidade da anaacutelise

argumentativa nesse caso deixa na sombra a primazia fundamental estabelecida nas inuacutemeras passagens

correlatas que sugerem a homologia estrutural entre regramento cosmoloacutegico poliacutetico e psiacutequico A oposiccedilatildeo

entre kosmiacutea e akosmiacutea eacute congruente agrave oposiccedilatildeo entre sophrosyacutene e pleonexiacutea

170

lei que alude a um paacutethos e que se harmoniza com o regramento geomeacutetrico do Koacutesmos

Paacutethos e regramento matemaacutetico constituem um arranjo harmocircnico

Este arranjo eacute reafirmado no Timeu a modelaccedilatildeo do Koacutesmos manifesta um acordo

resultante da proporccedilatildeo geomeacutetrica e as relaccedilotildees instauradas por esta proporccedilatildeo lhe

conferem philiacutea de modo que tornado idecircntico a si mesmo ele natildeo pode ser dissolvido a

natildeo ser por aquele que estabeleceu seus viacutenculos (Timeu 32c) A menccedilatildeo agrave philiacutea indica

que os patheacutemata juntamente com relaccedilotildees geomeacutetricas invariantes satildeo constitutivos de

uma cosmogonia A inteligecircncia eacute indissociaacutevel dos desejos o inteligiacutevel indissociaacutevel da

inteligecircncia Os mitos filosoacuteficos possuem esse eixo invariante cuja distinccedilatildeo primordial

consiste no estabelecimento do primado da inteligecircncia como forccedila ordenadora e regradora

que suscita a unificaccedilatildeo de planos opostos e diacutespares o eacutetico-poliacutetico com o cosmoloacutegico o

fiacutesico com o psicoloacutegico a Natureza com a Lei

Mas inteligecircncia e as escolhas exigem prudecircncia e coragem para que se evite a

precipitaccedilatildeo A precipitaccedilatildeo eacute incompatiacutevel com o discernimento prudente propiciado pela

Filosofia Os sofrimentos satildeo ao mesmo tempo resultado da justa retribuiccedilatildeo a faltas

pregressas e uma exigecircncia paidecircutica trata-se de um exerciacutecio que faculta a maior

capacidade e o maior discernimento nas escolhas Como os sofrimentos satildeo uma partilha

comum de todas as almas todos os seres tecircm de passar por eles Eles fazem parte da

Necessidade Anaacutenkhe elemento intriacutenseco ao Koacutesmos e por isso satildeo agentes de

desenvolvimento Por constituiacuterem uma funccedilatildeo epistemoloacutegica os sofrimentos permitem

que as escolhas natildeo sejam precipitadas (Repuacuteblica X 619d)

Mesmo diante do desfavor da tyacutekhe aquele que se dedica ao estudo da Filosofia tem

mais chances segundo o que se diz em relaccedilatildeo ao Hades de viver mais feliz nesta vida e de

retornar atraveacutes da rota celeste (Repuacuteblica X 619e) Mas para isso eacute preciso vencer o

171

Grande Combate meacutegas agoacuten que se trata de se tornar bom ou mau e natildeo se deixar

arrastar pela gloacuteria pela riqueza e esquecer a justiccedila e a virtude

Disse tambeacutem grande eacute o combate oacute amigo Glauco um combate

maior do que se pensa o que se trata de tornar-se bom ou mau

Natildeo eacute preciso deixar-se arrastar nem pela gloacuteria nem pela riqueza

nem por nenhuma dignidade nem pela poesia mesma e

negligenciar a justiccedila e as outras virtudes120

Repuacuteblica X 608b 04-08

O grande combate consiste em escolher o genuiacuteno valor entre as coisas e saber que

os sofrimentos do tempo presente satildeo derrisoacuterios diante da totalidade do tempo e natildeo valem

muita coisa nem satildeo algo terriacutevel (Goacutergias 527d) O zecircnite da exortaccedilatildeo filosoacutefica consiste

em procurar contrariamente ao combate no qual todos se engajam o precircmio do mais belo

combate que existe121

a potecircncia (dyacutenamis) da alma cuja beleza eacute proporcional agrave gravidade

do mal a ser combatido122

A Filosofia propicia a phroacutenesis que permite a distinccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo de todos

os valores que se referem agrave vida e ao conhecimento Os males satildeo frequentemente

associados agrave dor sensiacutevel e aos afetos A Filosofia como gecircnero de vida virtuoso permite

viver a vida de maior valor e sair vitorioso do grande combate Todavia haacute sempre um

elemento de incerteza que remanesce e haacute a grandeza do risco Somente a encantaccedilatildeo

miacutetica e seu efeito crucial de afastar o medo permitem superar o fardo da mistura em que

consistem todos os lotes de vida Eacute preciso a crenccedila como condiccedilatildeo que suscita a coragem

para vencer a mistura de dores e prazeres

120 Meacutegas gaacuter eacutephen ho agoacuten oacute phiacutele Glauacutekon meacutegas oukh hoacutesos dokeicirc tograve khrestograven egrave kakograven geneacutesesthai

hoste ouacutete timecirci epartheacutenta ouacutete khreacutemasin ouacutete arkhecirci oudemiacirci oudeacute ge poietikecirci aacutexion amelecircsai

dikaiosyacutenes te kaigrave tecircs aacutelles aretecircis 121 kaigrave tograven agoacutena toucircton hograven egoacute phemi anti pantoacuten toacuten enthaacutede agoacutenon eicircnai

(Goacutergias 527e03-04) 122 hoacutes hekaacutestou kakoucirc meacutegethos peacutephyken houacutetoacute kaigrave kaacutellos toucirc dynatocircn eicircnai heacutekasta boetheicircn kaigrave aiskhyacutene

toucirc meacute

(Goacutergias 509c03-04)

172

A necessidade da vida implica a necessidade da mistura e a necessidade da

pluralidade de afetos Mas nem a dor nem a virtude possuem deacutespota Cabe a cada um ter

sophrosyacutene sobre os afetos proacuteprios que acompanham cada lote de dor e sensaccedilotildees A alma

discerne a realidade segundo a proacutepria constituiccedilatildeo de seus afetos Esta eacute grande

significaccedilatildeo da narrativa do deus marinho Glauco A exposiccedilatildeo continuada ao ambiente das

profundezas marinhas resultou na identificaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo de Glauco ao ambiente do seu

viver A incrustaccedilatildeo de algas conchas pedregulhos e a accedilatildeo das vagas acabaram por

desfigurar sua natureza primitiva ateacute que ele se tornasse mais semelhante a uma fera

Analogamente os males que se incrustam na alma acabam por desfiguraacute-la desumanizaacute-la

ateacute que se torne irreconheciacutevel na aparecircncia bestial (therioacute) que resulta da identificaccedilatildeo

com o ambiente do seu viver (Repuacuteblica X 611c-612a)

A alma pura e saacutebia discerne a realidade de modo diferente da alma impura A

noccedilatildeo de felicidade muda conforme a natureza psiacutequica A alma dotada de phroacutenesis

encontraraacute a felicidade no pensamento elevado na virtude na obra bela e ateacute no sofrimento

contingente que ela vecirc como aacuteskesis As aspiraccedilotildees humanas ligadas ao devir perturbam e

obscurecem o pensamento o que por sua vez traz uma proporccedilatildeo de desventuras

equivalente (Repuacuteblica X 619c a escolha do tirano)

Para quebrar os viacutenculos que prendem a psykheacute aos apetites eacute preciso a excisatildeo

ciruacutergica do sofrimento Os afetos engendrados pelo sofrimento desde que postos na

perspectiva da totalidade do tempo predispotildeem a inteligecircncia a apreender realidades natildeo

vistas e natildeo percebidas

Na medida em que se obscurece a realidade do devir abre-se a realidade do

pensamento purificado O filoacutesofo eacute aquele que a tudo tendo sofrido pode voltar-se para as

realidades mais verdadeiras Ele eacute o coroamento de um itineraacuterio de sofrimentos Em meio

173

agrave desordem dos modelos de vida ele pode como afirma Dixsaut (2001 p 178) inscrever

ordem no decreto e hierarquizar os modos de vida mediante a articulaccedilatildeo da inteligecircncia

com a Necessidade Por essa razatildeo o filoacutesofo pode converter o aparente caos da

multiplicidade em uma inteligecircncia segundo o paradigma da ordenaccedilatildeo coacutesmica

Nos grandes mitos de julgamento a inexorabilidade da justa retribuiccedilatildeo da praacutexis se

conjuga com a causalidade de maneira que responsabilidade e causalidade coacutesmica

infaliacutevel sejam aspectos diversos de uma mesma kosmiacutea

174

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Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE ... · Prometeu, a linguagem é posterior ao fogo técnico, que consolida o sacrifício como o rito ... filosóficas sustentadas

v

AGRADECIMENTOS

A todos aqueles que acima da Necessidade alccedilaram a escolha

Agravequeles para os quais a amizade e o bem estatildeo acima da retribuiccedilatildeo

Agravequeles para os quais os afetos constituem a uacutenica natureza invenciacutevel da alma que

resiste ao esquecimento e agrave morte

Agravequeles que satildeo myacutestai pela simplicidade da accedilatildeo virtuosa que natildeo exige compensaccedilatildeo

mas que compensam toda incerteza inerente agrave vida mediante a convicccedilatildeo de que todo risco

eacute belo se for tambeacutem uma doaccedilatildeo

Agravequeles que se fizeram meus credores e cuja paga seraacute aquilatada pelo melhor a ser feito

em prol da alteridade

Agrave Soraya para quem o amor eacute princiacutepio da vida e do mundo que estaacute muito acima da

inteligibilidade e da razatildeo

Ao Marcelo Marques para quem o fim e o princiacutepio satildeo o mesmo para quem as

imagens identificam-se com Elpiacutes pois enquanto houver imagem haveraacute tambeacutem

possibilidade de superaccedilatildeo e enquanto houver o filosofar haveraacute o ciclo coacutesmico do

recomeccedilo

Ao tio Rubens Garcia Nunes modelo e fonte eterna de significaccedilatildeo

Agraves filhas Mariela e Marina depositaacuterias do eacutethos a viajar rumo ao oceano do belo

vi

Agrave toda a minha famiacutelia cujo amor supera qualquer meacuterito

Ao Programa de Poacutes da UFMG pela participaccedilatildeo da excelecircncia teacutecnica na

humanidade

Aos examinadores Adriano Roberto Fernando e Antocircnio pela mostra de que a vida

sem exame natildeo eacute digna de ser vivida

vii

Tive medo Sabe Tudo foi isso tive medo Enxerguei os confins do rio do outro lado Longe longe com que prazo se ir ateacute laacute Medo e vergonha A aguagem bruta traiccediloeira ndash o rio eacute cheio de baques modos moles de esfrio e uns sussurros de desamparo () Um fato assim eacute honra Ou eacute vergonha

Joatildeo Guimaratildees Rosa Grande Sertatildeo Veredas

viii

SUMAacuteRIO

0 INTRODUCcedilAtildeO5

1 MITOS E CAUSAS ndash excertos de imagens causais em Hesiacuteodo e Homero 21

11 Retribuiccedilatildeo e Causalidade 21

12 Causalidade e Poder 25

13 Causalidade e Reciprocidade 32

14 A astuacutecia dolosa o presente de Prometeu 37

15 Vergonha e causalidade a cosmogonia sexual do Papiro de

Derveni 44

2 O MITO DO PROTAacuteGORAS teacutecnicas aidōs e diacutekē61

3 RELACcedilOtildeES ESTRUTURAIS NO MITO DO GOacuteRGIAS92

31 Eros e Loacutegos92

32 Vida e ḗthos98

33 Aiskhyacutene Aidōs e Causalidade109

34 Parrhēsiacutea e Epithymiacutea122

35 A Retoacuterica da alma134

36 Julgamento e nudez149

4 NECESSIDADE E ESCOLHA 154

41 Imagens e causas no mito de Er154

42 Mito e psykhḗ159

43 Er o decreto de Laacutequesis162

5 BIBLIOGRAFIA174

1

Resumo

A partir do emprego do estruturalismo alematildeo de Walter Burkert pretendo destacar nesta

investigaccedilatildeo as relaccedilotildees estruturais entre as imagens do mito de julgamento do Goacutergias e

aplicaacute-las a um passo do mito de Er da Repuacuteblica Segundo Burkert (2001b) mito eacute um

programa ou sequecircncia de accedilotildees com uma estrutura discerniacutevel definida que se caracteriza

pela exemplaridade do tipo miacutetico e pela aplicabilidade atemporal Aprofundando a

definiccedilatildeo burkertiana de mito proponho que as accedilotildees implicam imagens psiacutequicas

imbuiacutedas de afetos ndash vergonha audaacutecia e ardor satildeo os afetos eroacuteticos mediante que a

dialeacutetica socraacutetica choca-se ingente com a retoacuterica daquele que viria a ser ao mesmo

tempo o mais violento e o mais brilhante dos interlocutores que travam combate com

Soacutecrates Caacutelicles

Devo esclarecer que toda a interpretaccedilatildeo elaborada neste artigo parte do pressuposto de que o

mito eacute pensar por imagens e que imagens mentais precedem a linguagem No mito de

Prometeu a linguagem eacute posterior ao fogo teacutecnico que consolida o sacrifiacutecio como o rito

adequado para a interaccedilatildeo entre as instacircncias divina e humana e a emergecircncia ritualiacutestica dos

esquemas mentais que compotildeem a inteligecircncia causal organizadora da experiecircncia e da

multiplicidade a conexatildeo infaliacutevel entre dois eventos consecutivos no tempo a deliberaccedilatildeo

projetiva inteligente a escolha de meios eficazes com vistas a um fim uacutetil determinado Por

extensatildeo pode-se dizer que os ritos satildeo anteriores agrave linguagem e que imagens e ritos natildeo a

linguagem satildeo os fundamentos do pensar

Por fim um olhar atento ao termo parrhēsiacutea que inicialmente aparece como a fala aberta

que revela o pensamento e as verdadeiras crenccedilas do proferidor no Goacutergias eacute mencionado

na ambiguidade irocircnica com que Soacutecrates alude ao livre curso dos apetites de Caacutelicles (que

engendram a violecircncia do seu loacutegos) e agrave qualidade psiacutequica pela qual a investigaccedilatildeo

2

dialeacutetica pode chegar a bom termo A franqueza (parrhēsiacutea) eacute a garantia pela qual

interlocutor assente a uma tese expressa e tambeacutem um indicativo de que uma certa

ordenaccedilatildeo psiacutequica transpotildee seu movimento proacuteprio para o loacutegos O discurso sem peias

reproduz de modo direto a trama que entretece os afetos neste princiacutepio de movimento e

inteligecircncia que eacute a psykheacute

Palavras-chave Goacutergias Repuacuteblica estrutura mito

3

Abstract

Based on approach of Water Burkert German structuralism in this issue I intend to point

out the structural relations between the images of the judgment myth in Plato‟s Gorgias and

apply them in Er myth of Republic

According to Burkert (2001b) myth is a program or a sequence of actions in a clear

distinguished structure characterized by exemplarity of the mythical model and the

timeless applicability Going further on Burkert definition of myth I put forward that the

actions imply psychic images filled with feelings ndash audacity and ardor are erotic feelings

through which the Socratic dialectics strikes against the rhetoric of that who became at the

same time the most violent and the cleverest interlocutor to antagonize Socrates Callicles

In addition I must say that the whole interpretation presented here assumes that myth is

thinking by images and mental images come before language In Prometheus myth language

comes after the technical fire that stabilizes the sacrifice as the right rite for the interplay of

divine and human instances and the ritual emergency of mental scheme that compound the

causal intelligence that organizes experience and multiplicity the infallible connection between

two consecutive events in time the intelligent projective deliberation the choice of efficient

means aiming a specific useful objective In other words it can be said that rites come before

language and that not language but images and rites give the bases to thoughts In conclusion

staring at the expression parrhēsiacutea ndash which first appears as an open speech that reveals the

thought and the true beliefs of its speaker ndash in Gorgias the word points out the ironic

ambiguity with which Socrates refers to the Callicles free course of desires (which

engender his loacutegos violence) and the psychic quality by which the dialectic investigation

can come to an end Sincerity (parrhēsiacutea) is the guarantee by which a speaker agrees to an

expressed thesis and also a sign that a certain psychic organization transfers its peculiar

4

movement to the logos The unchained speech imitates the scheme which intertwines the

feelings in the beginning of the movement and the intelligence which psykheacute is

Keyword Gorgias Republic structure myth

5

Introduccedilatildeo

O escopo desta pesquisa eacute desenvolver a partir do movimento proacuteprio do Goacutergias a

adequaccedilatildeo de um meacutetodo que desvele a estrutura interna do grandes mito de julgamento

que culmina o diaacutelogo de sorte a compreender sua funccedilatildeo suas regularidades seus

esquemas invariantes e as correspondecircncias entre as imagens miacuteticas e as concepccedilotildees

filosoacuteficas sustentadas na dramatizaccedilatildeo Para tanto adota-se os resultados da tese

ingressiva de Charles Kahn como fundamento para a abordagem comparativa de diaacutelogos

que historicamente satildeo situados em periacuteodos diversos

O enfoque sinoacutetico por sua vez possibilita a adoccedilatildeo da assunccedilatildeo estrateacutegica de que

o desenvolvimento do meacutetodo se faccedila a partir da comparaccedilatildeo do movimento interno das

imagens do mito de julgamento e simultaneamente possibilite uma compreensatildeo fecunda

dessas imagens a partir da aplicaccedilatildeo do meacutetodo Ademais visa-se examinar o influxo que o

pano de fundo composto pela tradiccedilatildeo cultual dos misteacuterios gregos a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e a

filosofia cosmoloacutegica anterior a Platatildeo exerceram nos mitos de julgamento e sobretudo a

transposiccedilatildeo filosoacutefica empreendida por Platatildeo em relaccedilatildeo a essa forja mental no

movimento dos mitos finais do Goacutergias Como anexo esboccedila-se uma extensatildeo desse

bricolage interpretativo a um passo do mito de Er (Repuacuteblica X 614b-621d)

Adoto o pressuposto de que o mito filosoacutefico platocircnico eacute um ldquopensar por imagensrdquo

que se expressa numa sequecircncia de accedilotildees Enquanto narrativa o mito eacute um fenocircmeno

linguiacutestico que natildeo possui referentes imediatos atestaacuteveis Natildeo haacute um isomorfismo entre a

narrativa e uma realidade diretamente verificaacutevel Uma narrativa natildeo eacute uma ldquoacumulaccedilatildeordquo

de sentenccedilas pontuais mas eacute uma sequecircncia no tempo (BURKERT 1979 3 ss) Mas a

6

sequecircncia temporal miacutetica natildeo eacute homoacuteloga ao tempo cronoloacutegico eacute uma sequecircncia

temporal que possui uma homologia estrutural com uma sequecircncia de significaccedilatildeo causal

A sequecircncia de imagens torna manifestas relaccedilotildees entre registros de realidade

distintos atraveacutes da necessidade de uma conexatildeo interna A linearidade e a

transmissibilidade de um complexo de relaccedilotildees e conexotildees causais homologaacuteveis

constituem o cerne da narrativa miacutetica Tais elementos exigem o suporte linguumliacutestico mas

embora Burkert consigne o mito ao domiacutenio da linguagem nos mitos filosoacuteficos a

linguagem eacute somente instrumental e natildeo eacute o fundamento uacuteltimo de significaccedilatildeo

As metaacuteforas imageacuteticas de um mito filosoacutefico por princiacutepio possuem uma

polissemia inexauriacutevel pela simples razatildeo de que seu referencial uacuteltimo eacute o pensamento ou

mais propriamente o psiquismo Natildeo se trata se identificar na psykheacute o princiacutepio do

inteligiacutevel mas de se pensar a inteligibilidade cosmoloacutegica inextricavelmente do modo

como o pensamento e os afetos apreendem o inteligiacutevel e o recompotildeem na accedilatildeo demiuacutergica

da molda das imagens e do discurso Inteligecircncia afetiva imagens pensamentos e os loacutegoi

conjugam-se necessariamente na ldquocaccedila ao realrdquo

Como se pode depreender do mito do Protaacutegoras o pensamento loacutegico

discriminador a inteligecircncia teacutecnica a linguagem e a matemaacutetica o engenho humano e as

teacutecnicas discursivas todos emanados do fogo teacutecnico satildeo ontologicamente posteriores aos

ritos aos cultos e agrave fabricaccedilatildeo de imagens dos deuses Isso implica que ndash a menos que se

considerem todos os mitos e toda forma de metaacutefora empregada no corpus platocircnico como

palavroacuterio sem sentido ndash a linguagem natildeo eacute e natildeo pode ser o fundamento uacuteltimo da

realidade O pensamento as imagens e os afetos satildeo intrinsecamente misturados agrave praacutexis

ao biacuteos agrave proacutepria vida que simultaneamente brota e interfere no mundo Os loacutegoi soacute

ganham autonomia mediante o reconhecimento e a alforria do senhorio das imagens

7

No corpus platocircnico os fenocircmenos se exprimem por uma gama de termos como

phainoacutemenon eiacutedōlon eikōn phaacutentasma miacutemēma homoiacuteōma e outras (SEKIMURA

2009 p 22 ss) Mas Platatildeo hierarquiza o estatuto epistecircmico das imagens Haacute uma clara

distinccedilatildeo entre eiacutedōlon eikōn e phaacutentasma Haacute imagens que satildeo determinantes no processo

do conhecimento haacute imagens cujas relaccedilotildees satildeo empobrecidas em relaccedilatildeo o modelo

original e haacute imagens ilusoacuterias que impedem a apreensatildeo da realidade A distinccedilatildeo entre

eiacutedōlon e eikōn eacute brilhantemente exposta por S Saiumld

Se as duas palavras satildeo formadas a partir de uma mesma

raiz bdquowei‟- somente eiacutedōlon por sua origem emerge da esfera do

visiacutevel pois eacute formada sobre um tema bdquoweid‟- que exprime a ideacuteia

de ver (este tema que deu ao latim bdquovideo‟ se encontra em grego

no verbo bdquoidein‟ bdquover‟ e no substantivo eidos que se aplica

inicialmente agrave aparecircncia visiacutevel) O eikōn do mesmo modo que os

verbos eisko ou eikazdo bdquoassimilar‟ ou o adjetivo eikelos

bdquosemelhante‟ se vincula a um tema bdquoweik‟- que indica uma relaccedilatildeo

de adequaccedilatildeo ou de conveniecircncia

(SAID apud SEKIMURA 2009 p 23)

Como nota Sekimura (2009 p 22 ss) o termo eiacutedōlon se forma sobre o mesmo

tema que origina Eidos e Idea designativos da realidade inteligiacutevel e de sua accedilatildeo causal

determinante A relaccedilatildeo entre as imagens e o inteligiacutevel invisiacutevel eacute constitutiva Nesse

sentido como afirma Saiumld existe entre o eiacutedōlon e seu modelo uma identidade de

superfiacutecie e de significante enquanto a relaccedilatildeo entre o eikōn e o que ele representa se

situa no niacutevel da estrutura profunda do significado (id) O eiacutedōlon estaacute para o eikōn assim

como a coacutepia da aparecircncia sensiacutevel estaacute para a transposiccedilatildeo da essecircncia

O eiacutedōlon eacute inerente ao olhar eacute o alvo e o ponto de encontro entre o olhar e a

silhueta que nada informa acerca das determinaccedilotildees do modelo Ele eacute valorizado ou

desvalorizado pela relatividade do olhar e sua manifestaccedilatildeo ao modo das imagens dos

deuses implica simultaneamente a presenccedila e a ausecircncia Sua marca eacute a do

8

empobrecimento e do afastamento do modelo original O eikōn por outro lado carrega em

seu bojo a remissatildeo pluriacutevoca a planos diversos Ele pode ser o ponto de partida para o

conhecimento de relaccedilotildees e determinaccedilotildees sensiacuteveis ou pode remeter agrave realidade inteligiacutevel

No eikōn a inteligecircncia se vale do olhar para ultrapassar a imagem e mediante a

transposiccedilatildeo e a homologaccedilatildeo de suas relaccedilotildees internas ldquosaturar-serdquo gradativamente do

inteligiacutevel e do invisiacutevel no foco das relaccedilotildees somente pensaacuteveis As imagens icocircnicas

constituem o esforccedilo ingloacuterio de pensar filosoficamente o invisiacutevel a morte a alma e os

referenciais imoacuteveis exigidos para a compreensatildeo de um mundo caoacutetico

Por isso a inteligecircncia usa imagens na tentativa de ver o invisiacutevel e operar a

passagem da sensaccedilatildeo para a concepccedilatildeo Natildeo eacute por acaso que os mitos filosoacuteficos estatildeo na

esfera da crenccedila que possui a pretensatildeo de ser o loacutegos mais verdadeiro suas imagens satildeo

um convite para a inquiriccedilatildeo da significaccedilatildeo profunda subjacente aos fenocircmenos

cambiantes caoacuteticos As imagens miacuteticas convocam a inteligecircncia e o olhar a jamais se

fixarem naquilo que eacute visto e manifesto e ascenderem em direccedilatildeo ao invisiacutevel ao

inteligiacutevel ateacute que a luz da lamparina subitamente se acenda pelo movimento psiacutequico

O mito filosoacutefico eacute verdadeiramente um ldquopensar por imagensrdquo e eacute tambeacutem a uacutenica

modalidade de pensar que natildeo se fixa no visiacutevel mas que convoca para a significaccedilatildeo mais

profunda oculta na maior profundeza do oceano do belo

Questotildees de meacutetodo e hermenecircutica

Mas a virtude de cada coisa seja instrumento corpo ou alma

seja qualquer animal vivo natildeo lhe vem por acaso e jaacute eacute

completa eacute o resultado de uma certa ordem de retidatildeo e da

arte adaptada agrave natureza de cada um Logo eacute pela ordem e

regramento que a virtude de cada coisa existe

Goacutergias 506 d5-e2

Desejando a divindade que tudo fosse bom e tanto quanto

possiacutevel estreme de defeitos tomou o conjunto das coisas

9

visiacuteveis ndash nunca em repouso mas movimentando-se discordante

e desordenadamente ndash e fecirc-lo passar da desordem para a

ordem por estar convencido de que esta em tudo eacute superior

agravequela

Timeu 30a

A composiccedilatildeo dramaacutetica do Goacutergias anuncia uma guerra e uma batalha (poacutelemos

kai maacutekhe) na qual Platatildeo iria se engajar ateacute a morte a defesa do gecircnero de vida filosoacutefico

No Goacutergias estatildeo mapeados e demarcados de maneira incipiente os principais temas que

compotildeem a Filosofia platocircnica Segundo Olimpiodoro o objetivo do diaacutelogo seria ldquofalar

sobre princiacutepios eacuteticos que levam ao bem-estar constitucionalrdquo (1998 p 57 04) Todo o

ardor que anima Soacutecrates (457e) na sua defesa apaixonada de um modo peculiar de vida

tem como alvo falar sobre a organizaccedilatildeo constitucional e sua correlaccedilatildeo com os valores

eacuteticos determinantes para o gecircnero de vida A questatildeo dos valores eacuteticos remonta em

uacuteltima instacircncia agrave oposiccedilatildeo fundamental entre o regramento e o desregramento o

regramento dos afetos corresponde ao regramento do mundo que por isso eacute chamado

kosmos (Goacutergias 507e ndash 508b) Natildeo pode existir nenhuma comunhatildeo ou associaccedilatildeo

humana sem regras assim como nada existe no kosmos que natildeo tenha regras Todo o

mundo eacute de fato um espetaacuteculo de geometria e proporccedilatildeo geomeacutetrica (Goacutergias 508a)

A questatildeo de um regramento matemaacutetico que perpassa o koacutesmos juntamente com os

mitos de julgamento suscita uma gama de questotildees natildeo respondidas

Por que Platatildeo um filoacutesofo que atribui um valor sublime agraves matemaacuteticas e assimila

o raciociacutenio puro ao divino (Feacutedon 84 a-b) culmina grandes diaacutelogos que concentram o

cerne de sua Filosofia com grandes mitos de julgamento Por que esse criacutetico mordaz da

poesia e dos mitos tradicionais recorre a um acervo de tradiccedilotildees miacutesticas e inventa seus

proacuteprios mitos A questatildeo da elucidaccedilatildeo do papel dos mitos na composiccedilatildeo complexa de

trecircs dos maiores diaacutelogos platocircnicos estaacute contida no acircmbito mais geral do problema

10

interpretativo que exige a superaccedilatildeo da distacircncia entre o que Platatildeo escreve em passagens

especiacuteficas e as concepccedilotildees maiores que atravessam a inteireza dos diaacutelogos Somente um

tratamento comparativo-sinoacutetico e o refazimento do movimento proacuteprio de cada diaacutelogo

permitem a distinccedilatildeo e a soluccedilatildeo do problema da relevacircncia dos mitos O postulado de que

o problema da interpretaccedilatildeo de um texto de Platatildeo exige a elucidaccedilatildeo de seu significado a

partir da comparaccedilatildeo de textos datados em periacuteodos distintos define o posicionamento de

ataque estrateacutegico ao problema da relevacircncia dos mitos e da possibilidade da conquista da

significaccedilatildeo (KAHN 1998 p 58 ss)

Por que Platatildeo se vale de imagens aparentemente desprovidas de regras e estranhas

agrave consecuccedilatildeo de proposiccedilotildees que se implicam mutuamente para expor suas principais

concepccedilotildees filosoacuteficas Qual o melhor meacutetodo para uma interpretaccedilatildeo fecunda desses

mitos O problema da relevacircncia abre o campo para o enfrentamento do estabelecimento

dos traccedilos constitutivos da composiccedilatildeo e distinccedilotildees especiacuteficas dos grandes mitos dos seus

efeitos e de um meacutetodo eficaz que sirva como arma que capture o sentido Se os grandes

mitos supotildeem regras em sua composiccedilatildeo e essas regras natildeo possuem referentes fora da

psykheacute entatildeo essas regras representam a determinaccedilatildeo profunda do psiquismo A riqueza

das metaacuteforas em Platatildeo instiga a investigaccedilatildeo das homologias estruturais em busca da

explicitaccedilatildeo dessas regras

Por que o filoacutesofo que recria dramaacutetica e imortalmente a refutaccedilatildeo destrutivo-

construtiva da dialeacutetica socraacutetica encena a impotecircncia do loacutegos diante de temas cruciais e eacute

obrigado a recorrer agrave encantaccedilatildeo miacutetica Por que os grandes mitos finais satildeo mitos de

julgamento das almas e da imortalidade Por que eles aparecem no fim dos diaacutelogos A

fundamentaccedilatildeo dos valores exige o emprego simultacircneo de todo o arsenal discursivo O

11

modelo metodoloacutegico permite a distinccedilatildeo de planos conceptuais que fazem a mediaccedilatildeo

entre oposiccedilotildees e uma interpretaccedilatildeo frutiacutefera deve destrinccedilar relaccedilotildees ocultas ou obscuras

Pensar filosoficamente a questatildeo da constituiccedilatildeo eacutetico-poliacutetica implica penetrar o

acircmago da alma e o tempo humano na perspectiva da perenidade e por isso o problema do

sentido emana indissociaacutevel das modalidades de inteligecircncia de um discurso complexo A

complexidade dos diaacutelogos sugere a hipoacutetese heuriacutestica de trataacute-los por inteiro como

grandes mitos Tal abordagem permite a superaccedilatildeo da dicotomia myacutethos-loacutegos e a aplicaccedilatildeo

do princiacutepio que permite o desvelamento auto-referenciado da significaccedilatildeo

Quais satildeo as concepccedilotildees que demarcam a arena comum na qual se desenrolam os

grandes mitos finais e quais satildeo suas implicaccedilotildees para a visatildeo de mundo e para a noccedilatildeo de

racionalidade de Platatildeo O campo no qual se desenrolam as gestas dos grandes mitos eacute

consistente e rigorosamente demarcado no Goacutergias e na Repuacuteblica a mousikecirc No Goacutergias

o domiacutenio da poesia traacutegica eacute determinado pela conjugaccedilatildeo de meacutelos rythmon e meacutetron

(Goacutergias 502c)

A demiurgia poeacutetica designa pois a atividade de fabricar um discurso complexo no

domiacutenio da muacutesica (BRISSON 1994 p 53) Na Repuacuteblica apoacutes o estabelecimento da

influecircncia exercida pelas narrativas miacuteticas sobre os afetos e o psiquismo a melodia

(meacutelos) eacute definida como sendo a composiccedilatildeo de trecircs elementos palavra (loacutegou) harmonia

(harmoniacuteas) e ritmo (rythmou) Haacute uma correlaccedilatildeo determinante entre o eacutethos e o gecircnero de

harmonia (Repuacuteblica 399 a-e) entre a natureza dos afetos e a natureza harmocircnica Mito e

harmonia pertencem ambos agrave esfera da muacutesica e caracterizam-se pela correlaccedilatildeo entre a

natureza de suas determinaccedilotildees e a natureza psiacutequica A natureza da harmonia incita

virtudes especiacuteficas ou afetos viciosos estados mentais e disposiccedilotildees de alma

correspondentes A correspondecircncia entre estados psiacutequicos e teoria musical constitui um

12

legado preacute-platocircnico como demonstra Aldo Brancacci (DIXSAUT 2006 p 89-106) A

grande transposiccedilatildeo operada por Platatildeo consiste no desenvolvimento de uma visatildeo

cosmoloacutegica unificada que abarca a muacutesica e explicita a sua relaccedilatildeo com a natureza da

alma

Mas qual eacute o elemento comum entre a alma e a harmonia A questatildeo da

ldquoharmoniardquo eacute expressamente tributaacuteria da tradiccedilatildeo pitagoacuterica e da concepccedilatildeo cosmoloacutegica

de Heraacuteclito A palavra harmoniacutea eacute aparentada ao termo harmos que designava o

acoplamento de duas liras originalmente tetracordes formando uma uacutenica lira heptacorde

(MOUTSOPOULOS in DIXSAUT 2006 p 110) A harmonia que originalmente tinha o

sentido de ldquojuntarrdquo ldquoacoplarrdquo passou a significar ldquoacordordquo ou ldquoreconciliaccedilatildeordquo Empeacutedocles

emprega harmoniecirc como outro nome para philotecircs a contrapartida para o oacutedio ou discoacuterdia

ndash o princiacutepio de proporccedilatildeo ou acordo que cria uma unidade harmoniosa entre poderes

potencialmente hostis Haacute ademais outro uso figurativo qual seja o de afinaccedilatildeo de um

instrumento musical o ajustamento das diferentes cordas para produzir uma escala

desejada Tanto o sentido musical como o sentido metafoacuterico mais amplo satildeo combinados

na concepccedilatildeo pitagoacuterica de que potecircncias opostas do kosmos satildeo mantidas juntas por um

princiacutepio ou harmonia como ldquoreconciliaccedilatildeordquo que toma a forma de uma oitava musical

(GUTHRIE 1990) (KAHN 2001) Boyanceacute (1993) demonstra com bastante propriedade

o enorme influxo que a concepccedilatildeo pitagoacuterica de ldquoharmoniardquo exerceu em Platatildeo sobretudo

no Timeu e na ldquomuacutesica celestialrdquo mencionada no mito de Er (Repuacuteblica X)

Tributaacuterio de uma longa tradiccedilatildeo de pensamento Platatildeo opera uma reviravolta

unificadora a harmonia musical eacute simultaneamente determinada pelo regramento

matemaacutetico e pela consonacircncia de movimentos complexos A transposiccedilatildeo cultural parte do

acervo de tradiccedilotildees vinculadas ao deus patrono da muacutesica e do regramento Apolo

13

Apolo eacute o deus da muacutesica da profecia e da harmonia A natureza musical de Apolo

representa a voz do mundo oliacutempico harmonia e medida que emergem da tensatildeo dos

contraacuterios Apolo o muacutesico eacute tambeacutem ldquoo deus fundador das regras e o conhecedor do

justo do necessaacuterio e do futurordquo (OTTO 1995 p 112) O viacutenculo entre a natureza musical

regramento e harmonia eacute estabelecido de modo inequiacutevoco no Craacutetilo Mas a grande

reviravolta empreendida por Platatildeo consiste na ampliaccedilatildeo desse viacutenculo para a esfera do

psiquismo mediante a noccedilatildeo de movimento

A etimologia do nome Apolo indica o ldquomovimento conjunto tanto no ceacuteu a que

damos o nome poacutelo como na harmonia do canto denominada sinfonia porque todos esses

movimentos como dizem os entendidos em Muacutesica e Astronomia satildeo feitos em conjunto

por uma espeacutecie de harmonia Eacute o deus que preside agrave harmonia e faz que tudo se mova

conjuntamente (omopolocircn) tanto entre os deuses como entre os homensrdquo (Craacutetilo 405 c-d)

No Timeu a consonacircncia de movimentos dissemelhantes eacute identificada com a harmonia

divina (Timeu 80 a-b) A harmonia cosmoloacutegica se expressa pelo regramento geomeacutetrico

que determina e unifica todos os seres num todo orgacircnico (Timeu 31d-32a) A psykheacute por

outro lado eacute ao mesmo tempo princiacutepio de movimento e princiacutepio da vida pois a ldquocessaccedilatildeo

do movimento corresponde ao fim da existecircnciardquo (Fedro 245 c) A existecircncia de todo o

koacutesmos deriva do movimento e todo o movimento proveacutem do princiacutepio (245d) Como a

ordem pressupotildee a inteligecircncia e a inteligecircncia pressupotildee a alma haacute uma correspondecircncia

pluriacutevoca e uma implicaccedilatildeo muacutetua entre a proporccedilatildeo geomeacutetrica a harmonia musical a

harmonia dos movimentos e a harmonia psiacutequica (Timeu 30 a-d) Os movimentos sonoros

possuem por conseguinte ressonacircncias simultaneamente fiacutesicas e psiacutequicas (Timeu 67a)

que afetam o caraacuteter (MOUTSOPOULOS in DIXSAUT 2006 p 107-120) Tais

14

correspondecircncias no entanto natildeo explicam as causas para a existecircncia de todos os seres no

palco de contradiccedilotildees que eacute o devir Quais satildeo essas causas

Platatildeo natildeo reelabora a tradiccedilatildeo na sua explicaccedilatildeo causal de mundo e inaugura um

procedimento jamais utilizado na histoacuteria do pensamento o modelo hipoteacutetico das Formas

A hipoacutetese das Formas provecirc ao mesmo tempo as razotildees que fazem com que cada

ser seja precisamente o que eacute e natildeo outra coisa as razotildees que explicam a predicaccedilatildeo e as

diferenccedilas especiacuteficas relativas as razotildees que elucidam as interaccedilotildees fiacutesicas envolvidas na

geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo uma norma absoluta que sirva de paracircmetro para as accedilotildees praacuteticas e

possibilite uma concepccedilatildeo poliacutetica cosmoloacutegica e geograacutefica que corresponde

estruturalmente a um psiquismo complexo Como afirma Cherniss (PRADEAU 2001) e

posteriormente Luc Brisson do mesmo modo que Eudemo fazia a hipoacutetese de um nuacutemero

determinado de movimentos regulares para explicar os movimentos irregulares dos

planetas Platatildeo para ldquodar conta da mudanccedila eterna e contraditoacuteria do mundo sensiacutevelrdquo

(BRISSON 1998 p 112) elaborou a hipoacutetese das Formas (Feacutedon 94d-100a) A estrutura

complexa do mundo compotildee um palco de contradiccedilotildees que abarca as accedilotildees praacuteticas e a

constituiccedilatildeo poliacutetica da cidade Ao contraacuterio dos filoacutesofos da natureza que partiam dos

fenocircmenos e buscavam princiacutepios explicativos materiais irredutiacuteveis Platatildeo empreende

uma inversatildeo epistemoloacutegica uma ldquosegunda navegaccedilatildeordquo (99e) e postula princiacutepios de

inteligibilidade que regram as contradiccedilotildees fiacutesicas e eacutetico-poliacuteticas

A causalidade constitui ao mesmo tempo o princiacutepio explicativo para a esfera

eacutetico-poliacutetica para os caracteres e valores psiacutequicos e para a physis (Feacutedon 98c-99b) (Leis

X 891e) (Filebo 27b) (Timeu 29d 44c-46e) A causalidade platocircnica eacute posta como

sucessatildeo temporal invariaacutevel na qual um efeito segue forccedilosamente uma causa e como

uma relaccedilatildeo de dependecircncia paradigmaacutetica na qual algo vem a ser a partir de um princiacutepio

15

ou modelo (BRISSON 2001 p 15-17) As explicaccedilotildees de mundo dos filoacutesofos da natureza

procuravam explicar a geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo de todos os seres a partir de elementos materiais

do proacuteprio plano da physis Tais explicaccedilotildees eram contraditoacuterias visto que violavam trecircs

princiacutepios basilares da causalidade o de que uma causa natildeo pode ter dois efeitos contraacuterios

(Feacutedon 96d 101a-b) o de que um efeito natildeo pode resultar de duas causas contraacuterias

(Feacutedon 96e-97b) e o de que algo natildeo pode ser causa do seu contraacuterio (101b) (FISCHER

2002 p 659) Uma explicaccedilatildeo racional de mundo pressupotildee uma instacircncia absoluta

separada do plano dos fenocircmenos e que sirva de referencial absoluto a partir do qual as

interaccedilotildees da physis satildeo reportadas

O esforccedilo da fundamentaccedilatildeo dos valores eacutetico-poliacuteticos leva Platatildeo a buscar essa

instacircncia normativa que sirva de medida e referencial absoluto para as accedilotildees praacuteticas Para

que os valores sejam reportados a um uacutenico paradigma normativo a sua temporalidade

deve ser superada mediante o recurso a uma epistemologia que lhes confira determinaccedilotildees

invariaacuteveis Tal epistemologia por sua vez engendra uma psicologia ad hoc como

fundamento para a praacutetica poliacutetica Todos estes planos encontram significaccedilatildeo num plano

cosmoloacutegico mais elevado cuja fundamentaccedilatildeo uacuteltima eacute a hipoacutetese causal das Formas

O grande mito de julgamento no Goacutergias anuncia o projeto da visatildeo cosmoloacutegica

unificada visada por Platatildeo Ele constitui um modo de inteligibilidade autocircnomo cuja

significaccedilatildeo soacute eacute passiacutevel de ser encontrada numa visatildeo da totalidade

A justificativa primacial da pesquisa eacute o fato de que uma exegese do mito de

julgamento do Goacutergias segundo um meacutetodo estrutural buerkertiano natildeo foi empreendida

Solidaacuterios de uma certa concepccedilatildeo de racionalidade segundo a qual a verdade eacute uniacutevoca e

soacute passiacutevel de ser obtida mediante raciociacutenios que seguem o modelo das demonstraccedilotildees

matemaacuteticas a maioria dos eruditos contemporacircneos identifica os mitos com um

16

pensamento primitivo e preacute-filosoacutefico susceptiacutevel de ser ultrapassado por uma razatildeo

esclarecida (OTTO 1987) A noccedilatildeo cartesiana de uma verdade cientiacutefica uacutenica reduz a

racionalidade aos argumentos demonstrativos ou agraves formas de raciociacutenio matemaacutetico A

ampliaccedilatildeo da noccedilatildeo de racionalidade para a esfera das imagens e formas afetivas de

inteligibilidade suscita a validade e o uso de formas discursivas complexas que abrangem

todo o espectro do psiquismo raciociacutenios imagens e afetos Tal noccedilatildeo ampliada de

racionalidade aliada ao desenvolvimento de um modelo teoacuterico consistente resulta num

enriquecimento original para a investigaccedilatildeo do pensamento platocircnico

Embora os uacuteltimos anos do seacuteculo passado e os primeiros anos deste seacuteculo

evidenciem uma retomada do interesse dos platonistas pelos mitos1 as questotildees acerca da

interpretaccedilatildeo dos grandes mitos finais natildeo foram suficientemente respondidas e

certamente natildeo foram tratadas num uacutenico modelo teoacuterico consistente2 A proacutepria gama das

perguntas natildeo respondidas justifica o esforccedilo pela forja desse modelo teoacuterico

ndash Consideraccedilotildees metodoloacutegicas

Como engenhar os instrumentos para tal modelo Felizmente os ensaios de anaacutelise

estrutural de Vernant (1990) e Burkert (1997) fornecem o martelo e a bigorna que

permitiratildeo a molda das noccedilotildees essenciais da Filosofia contida nos mitos platocircnicos Molda

esta que natildeo obstante a dureza da tecircmpera soacute seraacute possiacutevel na altiacutessima fornalha da longa

tradiccedilatildeo dos cultos de misteacuterio gregos

A abordagem de um texto antigo constitui um si mesma um trabalho de Siacutesifo que

pressupotildee a cada vez que eacute retomado modalidades do pensar que satildeo condicionadas pela

1 Dentre outros destacamos Ward White Brisson Dixsaut Vernant Matteacutei Joly Desclos e Annas 2 A anaacutelise de Ward (2002) abarca parcialmente as questotildees levantadas mas sua abordagem fortemente

alegoacuterica eacute ldquofechadardquo e embora constitua um notaacutevel avanccedilo natildeo configura um meacutetodo aplicaacutevel que possa

ser validado ou invalidado A abordagem de Brisson (1994) por outro lado empreende uma generalizaccedilatildeo de

uma teoria contemporacircnea da comunicaccedilatildeo e perde excessivamente a especificidade do movimento dialoacutegico

17

paideacuteia e especificidade histoacuterica A tarefa do historiador de Filosofia e do cientista em

geral eacute um constructum em aberto indefinidamente Mas tal abordagem pode ser

metodologicamente justificada Como conciliar um modelo teoacuterico contemporacircneo

construiacutedo mediante os oacuteculos da etnologia com um texto grego antigo Tal empresa natildeo

atenta contra as boas recomendaccedilotildees de uma abordagem filoloacutegico-doxograacutefica A boa

regra de meacutetodo doxograacutefico (ROSSETI 2006 p 274) natildeo preceitua que as teses

efetivamente sustentadas por um autor sejam coerente e validamente atestadas pelas fontes

Em primeiro lugar deve-se atentar que Leacutevi-Strauss explicitamente reconhece que

seu empreendimento teoacuterico se aproxima de um ldquokantismo sem sujeito transcendentalrdquo

(LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 18) Cada mito tomado em particular afirma Leacutevi-Strauss

ldquoexiste como aplicaccedilatildeo restrita de um esquema que as relaccedilotildees de inteligibilidade reciacuteproca

percebidas entre vaacuterios mitos ajudam progressivamente a extrairrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004

p 32) Por essa razatildeo ldquoos esquemas miacuteticos de pensamento apresentam no mais alto grau o

caraacuteter de objetos absolutosrdquo

O caraacuteter auto-referenciado permite com que as cadeias linguumliacutesticas se desprendam

dos mitos e caiam como as escaras dos olhos de um cego deixando-os livres das anaacutelises

filoloacutegicas e reste somente a estrutura Embora pertenccedila agrave ordem do discurso o mito para

expressar-se ldquopode descolar-se de seu suporte linguumliacutestico ao qual a histoacuteria que narra estaacute

menos intimamente ligada do que seria o caso em mensagens comunsrdquo (LEacuteVI-STRAUSS

2004 p 8)

Mas ainda que os esquemas miacuteticos de pensamento reflitam um modo de pensar

autocircnomo o ldquopensar por imagensrdquo cuja estrutura inteligiacutevel eacute indiferente agrave ldquoidentidade do

mensageiro ocasionalrdquo como operar a transformaccedilatildeo de coordenadas ou uma transposiccedilatildeo

estrutural vaacutelida do modelo de Leacutevi-Strauss para os mitos de julgamento platocircnicos Qual eacute

18

o elemento comum que permite a passagem que cobre o profundo fosso cultural entre dois

mundos tatildeo separados o de um pensador contemporacircneo e o de um filoacutesofo grego Tais

esquemas de pensamento seriam indiferentes ao tempo

Haacute uma instacircncia estritamente homoacuteloga ao mito cuja estrutura tanto para Leacutevi-

Strauss como para Platatildeo transcende ao tempo cronoloacutegico e permite uma experiecircncia e

uma inteligecircncia da totalidade a muacutesica Mito e muacutesica possuem e congregam as mesmas

funccedilotildees ndash ldquofunccedilatildeo intelectual e tambeacutem emotivardquo ndash (LEacuteVI-STRAUSS 2000 p 69) que

suscitam uma experiecircncia da totalidade e por essa razatildeo podem ser lidos por um

procedimento anaacutelogo tal como numa partitura musical o significado baacutesico de um mito

natildeo estaacute numa sequumlecircncia de acontecimentos mas como afirma Burkert a um grupo de

accedilotildees que podem ocorrer em momentos diferentes do tempo cronoloacutegico Mito e muacutesica

comportam uma dimensatildeo temporal proacutepria que inflige um desmentido ao tempo

cronoloacutegico ambos satildeo ldquomaquinas de suprimir o tempordquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 35)

Por isso o mito supera ldquoa antinomia de um tempo histoacuterico e findo e de uma estrutura

permanenterdquo

A leitura de uma partitura exige que se procure entender a paacutegina inteira pois o

significado da primeira frase musical escrita soacute pode ser obtido com a consideraccedilatildeo de que

o sentido das frases precedentes estaacute incluiacutedo nas frases subsequumlentes Temos de ler

simultaneamente da esquerda para a direita e de cima para baixo Soacute ldquoconsiderando o mito

como se fosse uma partitura orquestral escrita frase por frase eacute que o poderemos entender

como uma totalidade e extrair o seu significadordquo (op cit p 68) Os grandes estilos

musicais modernos dos seacuteculos XVII a XIX segundo Leacutevi-Strauss assumiram as funccedilotildees

que desempenhava a mousikeacute dos antigos mas a despeito dos rearranjos culturais ambos ndash

mito e muacutesica ndash ldquotranscendem a oposiccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel colocando-se

19

imediatamente no niacutevel dos signosrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 33) Tanto Leacutevi-Strauss

como Platatildeo usam o mito para operar a mediaccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Os

grandes mitos de julgamento compotildeem efetivamente um mosaico de oposiccedilotildees que

remetem para a mediaccedilatildeo entre o devir e aquilo que eacute somente pensaacutevel Eis a ponte que

supera o abismo entre dois mundos separados ao mesmo tempo pela racionalidade loacutegica e

pela distacircncia cultural das eacutepocas

Na sua anaacutelise dos mitos indiacutegenas da costa canadense Leacutevis-Strauss distingue e

compara quatro ldquoniacuteveisrdquo determinantes e independentes do tempo cronoloacutegico geograacutefico

teacutecnico-econocircmico socioloacutegico e cosmoloacutegico (LEacuteVI-STRAUSS 1993 p 164) Enquanto

os dois primeiros niacuteveis encontram referentes bem definidos o terceiro entremeia

elementos atestaacuteveis com elementos somente pensaacuteveis e o quarto compotildee-se de imagens e

elementos somente pensaacuteveis A anaacutelise do mito da ldquogesta de Asdiwalrdquo revela que os trecircs

primeiros eixos sincrocircnicos relacionam-se com a praacutexis poliacutetica teacutecnica e social dos iacutendios

Tsimshiam ao passo que o quarto eixo consiste na configuraccedilatildeo de imagens que possuem a

funccedilatildeo heuriacutestica e explicativa de conferir significaccedilatildeo a fenocircmenos cujas causas satildeo

inevidentes Todos os quatro niacuteveis satildeo demarcados por pares de oposiccedilotildees que

representam ldquouma seacuterie de mediaccedilotildees impossiacuteveis entre oposiccedilotildees organizadas em ordem

decrescenterdquo (LEacuteVI-STRAUSS 1993 p 167)

A construccedilatildeo dos mitos pressupotildee a distinccedilatildeo fundamental entre sequumlecircncias e

esquemas As sequumlecircncias constituem a linearidade da trama que expressa o conteuacutedo

aparente dos mitos as sequumlecircncias de accedilotildees que ocorrem na ordem cronoloacutegica do tempo o

um apoacutes o outro dos eventos que identifica-se com o proacuteprio tempo cronoloacutegico

Sequumlecircncias satildeo congruentes com a sucessatildeo temporal e constituem a silhueta do

tempo Esquemas por outro lado independem do tempo e organizam as sequumlecircncias em

20

planos de profundidade variaacutevel superpostos e sincrocircnicos de modo a cingir fenocircmenos

aparentemente desconexos numa causalidade inevidente Tal como um canto gregoriano o

mito ldquoestaacute preso a um duplo determinismo determinismo horizontal de sua proacutepria linha

meloacutedica e determinismo vertical dos esquemas em contrapontordquo (LEacuteVI-STRAUSS 1993

p 169)

Em Platatildeo os mitos de julgamento revelam a partir do problema da fundamentaccedilatildeo

dos valores quatro grandes eixos sincrocircnicos invariantes eacutetico-poliacutetico epistemoloacutegico

psicoloacutegico e cosmoloacutegico A determinaccedilatildeo dos traccedilos constitutivos desses eixos eacute feita por

pares de oposiccedilotildees insuperaacuteveis que exige a busca de significaccedilatildeo nos planos subsequumlentes

A ressonacircncia direta com a praacutexis eacutetico-poliacutetica enfraquece agrave medida em que a procura por

causas explicativas para as contradiccedilotildees insuperaacuteveis avanccedila em direccedilatildeo ao plano

cosmoloacutegico-causal A anaacutelise dessas oposiccedilotildees revela uma consistecircncia surpreendente nas

grandes narrativas de julgamento como modo de inteligibilidade proacutepria A aplicaccedilatildeo do

meacutetodo estrutural empregado por Walter Burkert aos mitos platocircnicos evidencia que os

grandes mitos de julgamento representam um esforccedilo atemporal na procura da causalidade

unificadora que confere sentido para as contradiccedilotildees do palco do devir

Em Platatildeo todos os mitos de julgamento convergem numa colossal teoria da

causalidade

21

I Mitos e Causas ndash excertos de imagens causais em Hesiacuteodo e Homero3

11 Retribuiccedilatildeo e Causalidade

O pai com o apelido de Titatildes apelidou-os

o grande Ceacuteu vituperando filhos que gerou

dizia terem feito na altiva estultiacutecia gratilde obra

de que castigo teriam no porvir

Hesiacuteodo Teogonia vs 207-2104

A Iliacuteada o poema mais antigo da literatura ocidental inicia-se com a narrativa de

uma peste Crises sacerdote de Apolo fora ultrajado pela recusa de Agamecircnon em

resgatar-lhe a filha raptada

Que Deus posto entre ambos provocou a rixa

O filho de Latona e Zeus Irou-o o rei

A peste entatildeo lavrou no exeacutercito ruiacutena

Cai sobre o povo A Crises ultrajara o Atreide

Ao sacerdote o qual viera ateacute as naus

velozes dos Aqueus remir com dons a filha

nas matildeos portando os nastros do certeiro Apolo

presos ao cetro de ouro e a todos implorava ()

Iliacuteada I vs 8-15

Diante da cataacutestrofe Aquiles recorre a um mediador o adivinho Calcas para

responder agrave questatildeo por que o deus estaacute tatildeo irado A calamidade suscita a questatildeo de se

saber a causa Segue-se entatildeo uma sequecircncia de eventos que configuram pela primeira

vez na poesia grega um ritual que envolve adivinhaccedilatildeo purificaccedilatildeo sacrifiacutecio preces e

danccedila Essa sequecircncia como demonstra Walter Burkert (2001 p 103 ss) transcende as

3 Emprego o pressuposto metodoloacutegico de que um mito eacute um programa ou sequumlecircncia de accedilotildees com uma

estrutura discerniacutevel definida que se caracteriza pela exemplaridade do tipo miacutetico e pela aplicabilidade atemporal O mito eacute a forma pela qual uma experiecircncia complexa se torna comunicaacutevel Suas personagens

configuram personificaccedilotildees geneacutericas que permitem a aplicaccedilatildeo a situaccedilotildees particulares definidas Esse

caraacuteter geneacuterico das imagens miacuteticas implica a sua atemporalidade aleacutem do fato de que elas satildeo

inverificaacuteveis Para a abordagem preliminar da causalidade a partir dos trechos selecionados emprego

conjuntamente a abordagem estruturalista da Escola de Paris representada por Jean Pierre Vernant e Marcel

Detienne com o estruturalismo alematildeo de Walter Burkert As questotildees de meacutetodo satildeo desenvolvidas no

primeiro capiacutetulo 4 Traduccedilatildeo de Jaa Torrano (2003)

22

fronteiras da civilizaccedilatildeo grega e constitui universalia antropoloacutegicos um padratildeo invariaacutevel

de cinco etapas (i) uma experiecircncia catastroacutefica ameaccediladora adveacutem de uma Potestade

divina (ii) a calamidade suscita a questatildeo da busca pela causa ldquopor querdquo (iii) a busca da

causa requer um mediador (iv) um diagnoacutestico eacute feito a causa do mal eacute definida e

localizada pelo estabelecimento da culpa e identificaccedilatildeo do responsaacutevel Conhecer a causa

eacute indicar o responsaacutevel e obter o caminho para a salvaccedilatildeo (v) Atos apropriados de expiaccedilatildeo

satildeo prescritos visando agrave libertaccedilatildeo do mal

Cataacutestrofes e doenccedilas satildeo frequumlentemente vistas como uma inevitaacutevel reaccedilatildeo divina

vinculada a algum tipo de transgressatildeo ou falta original agrave infraccedilatildeo de uma lei ou uma

accedilatildeo imprudente que denota uma afronta ou hyacutebris diante dos deuses A culpa eacute em geral

associada agrave transgressatildeo religiosa ou violaccedilatildeo das medidas humanas A causa do mal eacute

oculta inevidente e o seu estabelecimento requer a mediaccedilatildeo de videntes cujo saber

atemporal pode determinar-lhe a origem A busca por causas inevidentes invisiacuteveis confere

sentido agrave experiecircncia catastroacutefica e permite numa perspectiva abrangente da situaccedilatildeo do

passado e do futuro a praacutetica de accedilotildees que a tornem remediaacutevel A integraccedilatildeo dos sinais

complexos da experiecircncia caoacutetica num uacutenico pano de fundo mental confere-lhe significaccedilatildeo

mediante o estabelecimento do viacutenculo infrangiacutevel entre a falta e a puniccedilatildeo A causalidade

eacute a forma multimilenaacuteria de lidar com a experiecircncia aterradora do mal sem explicaccedilatildeo

mediante o estabelecimento de causas inevidentes A ira de um deus superior eacute a

consequecircncia infaliacutevel e justificada para a transgressatildeo Segundo Burkert (2001 p 125) ldquoo

padratildeo da causalidade da culpa estabelecida por um diagnoacutestico transcendente em

situaccedilotildees de calamidade eacute universal primitivo e tiacutepico da mente humana e do

comportamento humano em geralrdquo e haure seu modelo no ldquocomportamento do animal

apanhado numa armadilha ou perseguido por um predadorrdquo O estabelecimento de uma

23

conexatildeo infaliacutevel que vincula as noccedilotildees de falta consequecircncia e reparaccedilatildeo gera um

contexto de sentido no Koacutesmos A invenccedilatildeo da culpa coincide com a moldagem da

racionalidade que promove uma reconstruccedilatildeo de um universo de sentido para uma

experiecircncia original caoacutetica e catastroacutefica Encontrar a ldquocausardquo (aitiacutea) eacute encontrar o

ldquoresponsaacutevelrdquo (aiacutetios) e determinar a explicaccedilatildeo inevidente para uma situaccedilatildeo aflitiva As

conexotildees infrangiacuteveis entre violaccedilatildeo ndash culpa ndash retribuiccedilatildeo moldam os quadros mentais que

estabeleceratildeo as conexotildees infaliacuteveis entre fato ndash consequecircncia e causa ndash efeito que

caracterizam a reconstruccedilatildeo racional do mundo promovida pela mente humana

Nos primoacuterdios a Natureza eacute um estado de indistinccedilatildeo caoacutetica A diferenciaccedilatildeo soacute

ocorre mediante atos de violecircncia propiciados pela astuacutecia enganosa Por isso como afirma

Galimberti (2006 p 43) ldquofoi a violecircncia da razatildeo que permitiu ao homem subtrair-se

daquela violecircncia maior que eacute a falta de reconhecimento das diferenccedilas pela qual o pai natildeo

eacute reconhecido como pai a matildee como matildee o filho como filho com a consequente oscilaccedilatildeo

dos significados que a razatildeo humana trabalhosamente construiu para se orientar no

mundordquo

Se Gaia eacute a matildee primordial a partir da qual emerge toda diferenciaccedilatildeo a culpa eacute a

matildee miacutetica primordial da causalidade imprescindiacutevel para o desenvolvimento da

concepccedilatildeo racional da teacutecnica

Na Teogonia em particular a situaccedilatildeo aflitiva de aprisionamento experimentada

pelos filhos de Gaia suscita a identificaccedilatildeo do responsaacutevel no desregramento sexual de

Ourano A localizaccedilatildeo da causa da situaccedilatildeo aflitiva ocasiona as medidas apropriadas para a

sua remoccedilatildeo Tais medidas envolvem a escolha de meios que implicam uma inteligecircncia

astuciosa exigida para sobrepujar uma potecircncia divina Gaia forja um instrumento a foice

24

de branco accedilo que possibilita o estratagema doloso e o golpe violento pelos quais Crono

obteacutem a soberania do Koacutesmos

6 Por dentro gemia a Terra prodigiosa

atulhada e urdiu dolosa e maligna arte

Raacutepida criou o gecircnero do grisalho accedilo

forjou grande podatildeo e indicou aos filhos

Disse com ousadia ofendida no coraccedilatildeo

ldquoFilhos meus e do pai estoacutelido se quiserdes

ter-me feacute puniremos o maligno ultraje de vosso

pai pois ele tramou antes obras indignasrdquo

Teogonia 159-166

Essa sequecircncia de eventos estabelece as conexotildees entre a causalidade e a

inteligecircncia astuciosa a ldquoarte dolosardquo ndash doliacuteēn teacutekhnēn ndash concebida por Gaia e o emprego

dos meios apropriados para o sobrepujamento de Ourano que significa em uacuteltima

instacircncia o domiacutenio do Koacutesmos A accedilatildeo violenta de Crono acarreta a imprecaccedilatildeo de

Ourano e a admoestaccedilatildeo de uma retribuiccedilatildeo infaliacutevel ou ldquocastigo no porvirrdquo (v 210)

O esquema baacutesico pode ser resumido nas seguintes etapas (i) uma situaccedilatildeo

impediente adveacutem (ii) a situaccedilatildeo problemaacutetica suscita a busca da causa (iii) um mediador

com inteligecircncia astuciosa concebe um estratagema ou arte (teacutekhnē) fraudulenta (iv) os

meios apropriados satildeo escolhidos forjados e empregados oportunamente com violecircncia

para a remoccedilatildeo do mal (v) a accedilatildeo violenta suscita por sua vez uma retribuiccedilatildeo infaliacutevel

como consequecircncia Tal esquema eacute constitutivo para a formaccedilatildeo da primitiva inteligecircncia

teacutecnica que visa ao domiacutenio da natureza

A castraccedilatildeo de Ourano implica consequecircncias inevitaacuteveis a liberaccedilatildeo do tempo

linear irreversiacutevel a gecircnese a partir de princiacutepios opostos complementares e distintos As

gotas de sangue espargidas sobre Gaia datildeo origem agraves Potecircncias que presidem a vinganccedila a

violecircncia as guerras e provas de forccedila as Eriacutenias os Gigantes e Meliacuteades O oacutergatildeo sexual

de Crono atirado ao mar com seu esperma origina a espuma (aphroacutes) que daacute nascimento a

25

Afrodite cujos atributos satildeo a uniatildeo amorosa o prazer os sorrisos os ardis ndash opostos aos

das potecircncias violentas Doravante os contraacuterios soacute podem ser aproximados pela uniatildeo de

princiacutepios distintos A complementaridade de opostos confere agrave organizaccedilatildeo do Koacutesmos um

caraacuteter ambiacuteguo de mistura em que potecircncias de conflito se equilibram com potecircncias de

concoacuterdia (VERNANT 2002 p 252) Ademais ao processo de gestaccedilatildeo das potecircncias da

distinccedilatildeo se contrapotildee a emanaccedilatildeo das potecircncias de destruiccedilatildeo forccedilas da escuridatildeo e da

desordem personificadas nos filhos da Noite

A inscriccedilatildeo da ordem no Koacutesmos implica como contrapartida simeacutetrica a inscriccedilatildeo

de potecircncias caoacuteticas de desordem Uma lei de compensaccedilotildees perpassa o Koacutesmos assim

como Dia e Noite satildeo reversos Thaacutenatos Hyacutepnos e Oneiron se opotildeem agrave vida e as Moiras

Neacutemesis e Keres estendem a lei de retribuiccedilatildeo infaliacutevel para o acircmbito dos homens mortais

A estensatildeo das potecircncias de vinganccedila ao acircmbito dos mortais representa a contrapartida

simeacutetrica da conexatildeo infaliacutevel entre falta e retribuiccedilatildeo que rege o Koacutesmos divino Agrave

infalibilidade da conexatildeo falta-retribuiccedilatildeo eacute acrescentado o equiliacutebrio inevitaacutevel do reverso

A symmetriacutea5 eacute uma faceta ineludiacutevel de uma causalidade infaliacutevel

12 Causalidade e Poder

Agrave narrativa de um processo de diferenciaccedilatildeo substitui-se um mito de sucessatildeo de

poder6 A instauraccedilatildeo da conexatildeo culpa-retribuiccedilatildeo constitui a condiccedilatildeo para o domiacutenio do

Koacutesmos e a nota distintiva da inteligecircncia teacutecnica

5 No sentido de justa proporccedilatildeo Filebo 65e Repuacuteblica 530a 6 A ecircnfase na soberania que atravessa a anaacutelise estrutural de Vernant eacute tributaacuteria da primeira funccedilatildeo

estabelecida por George Dumeacutezil no seu esquema de interpretaccedilatildeo dos mitos indo-europeus Natildeo obstante a

anaacutelise empreendida por Jenny S Clay destaca o equiliacutebrio simeacutetrico de potecircncias como um elemento

constitutivo na cosmologia de Hesiacuteodo No seu vieacutes a ldquoa histoacuteria dos deuses como um todo pode ser vista

como uma explicaccedilatildeo das vaacuterias tentativas do deus supremo masculino de controlar e bloquear a direccedilatildeo

procriadora feminina de forma a obter um regime coacutesmico estaacutevelrdquo Segundo a autora no auguacuterio

apocaliacuteptico que encerra o mito das raccedilas Hesiacuteodo vincula a determinaccedilatildeo definitiva do estatuto humano ao

abandono gradual de e interpretados como senso de vergonha e ultraje ndash par

26

A soberania soacute eacute obtida mediante uma limitaccedilatildeo imposta por um ato de violecircncia

maquinado por uma inteligecircncia astuciosa Mas a instauraccedilatildeo infrangiacutevel da conexatildeo natildeo

implicaria um ciclo indefinidamente renovado A ordem do mundo natildeo seraacute

indefinidamente questionada e subvertida Esse problema eacute respondido na narrativa da

Titanomaquia e da vitoacuteria definitiva de Zeus

Reacuteia submetida a Crono pariu brilhantes filhos

Heacutestia demeacuteter e Hera de aacuteureas sandaacutelias

o forte Hades que sob o chatildeo habita um palaacutecio

com impiedoso coraccedilatildeo o troante Treme-terra

e o saacutebio Zeus pai dos Deuses e dos homens

sob cujo trovatildeo ateacute a ampla terra se abala

E engolia-os o grande Crono tatildeo logo cada um

do ventre sagrado da matildee descia aos joelhos

tramando-o para que outros magniacuteficos Uranidas

natildeo tivesse entre os imortais a honra de rei

HESIacuteODO 2003Teogonia vs 453-462

O temor da retribuiccedilatildeo leva Crono a impedir o florescimento de sua prole A

vigilacircncia inquieta de Crono deriva do seu ldquocurvo pensarrdquo da Mḗtis que conferia-lhe a

presciecircncia da retribuiccedilatildeo ao crime cometido contra o pai A situaccedilatildeo repressora leva Reacuteia a

uma ldquolonga afliccedilatildeordquo Reacuteia com Gaia e Ourano concebe um ardil (mḗtin) astucioso e

encontra os meios para que as Eriacutenias implacaacuteveis retribuidoras fizessem com que Zeus o

astuto (mētioacuteenta) tivesse destino diverso do de seus irmatildeos Clandestinamente Reacuteia

esconde o filho mais novo em Creta e dissimula uma pedra envolta em latildes de modo que

tivesse a aparecircncia enganosa do filho receacutem nascido O estratagema fruto da inteligecircncia

astuciosa envolve a descoberta dos meios apropriados a dissimulaccedilatildeo e o engodo que

complementar agrave potecircncia feminina de Nesse sentido contra Vernant a oposiccedilatildeo se estenderia a um

plano ulterior de distinccedilotildees que marca a unilateralidade da violecircncia inerente ao domiacutenio assimeacutetrico da

potecircncia masculina A sucessatildeo de violecircncias encenada na titanomaquia mais do que esboccedilar o cenaacuterio

historicista de luta pela soberania mostra a necessidade da assimilaccedilatildeo do elemento feminino proacuteprio de

agrave forccedila soberana (CLAY 2003 23-38)

27

permitem impedir e paralisar uma potestade divina soberana A questatildeo da soberania

basileacuteia coacutesmica implica o emprego do meio eficaz para enganar a Potecircncia divina o que

soacute eacute factiacutevel mediante uma astuacutecia dolosa que supera a astuacutecia da divindade

Desde o seu desabrochar a racionaliade teacutecnica aparece como um modo de trapaccedila

como um dolo inextricaacutevel da culpa O dolo eacute tatildeo somente o modo miacutetico de vindicar a

conexatildeo infaliacutevel da contrapartida do castigo Eacute a plasmaccedilatildeo da conexatildeo que funda um tipo

de pensamento indispensaacutevel para o regramento da experiecircncia humana e da busca pelos

melhores meios para a sobrevivecircncia eficaz num mundo cujas potecircncias naturais satildeo

poderosas a ponto de serem epifanias divinas

O grande Crono de curvo pensar eacute ldquoenganado (dolōtheis) por repetidas instigaccedilotildees

da Terrardquo (Teogonia v 494) solta sua prole e acaba por ser expulso agrave forccedila pelo filho mais

novo O mesmo padratildeo e a sequecircncia de accedilotildees baacutesica anterior eacute mantida (i) uma situaccedilatildeo

impediente adveacutem Crono impede que seus filhos venham a ser e os engole (ii) a situaccedilatildeo

problemaacutetica suscita a busca da causa Crono astuciosamente pretende manter a soberania

(iii) mediadores astuciosos concebem uma arte dolosa Reacuteia juntamente com Gaia e

Ourano tramam um ardil que engana Crono (iv) os meios adequados satildeo escolhidos e

empregados Crono engole uma pedra e Zeus eacute escondido em Creta ateacute que agrave forccedila

destrone seu pai (v) a accedilatildeo violenta reclama a justa retribuiccedilatildeo as Eriacutenias deveriam fazer

voltar contra Zeus a Mḗtis que lhe impingiria a mesma sorte dos seus antepassados

soberanos Todavia isso natildeo ocorre No reinado de Zeus a conexatildeo infrangiacutevel entre falta-

retribuiccedilatildeo eacute assimilada ao seu poder real Doravante a causalidade passa a ser um atributo

de uma ordem coacutesmica imutaacutevel

A garantia da ordem estabelecida eacute uma prerrogativa da Mḗtis a inteligecircncia

astuciosa que independentemente do poder e forccedila do adversaacuterio e em todas as

28

circunstacircncias garante a dominaccedilatildeo do Koacutesmos mediante a integraccedilatildeo entre macho e

fecircmea Somente a superioridade de uma inteligecircncia astuciosa que implica a presciecircncia a

escolha a forja e o emprego dos meios mais eficazes com vistas a um fim determinado

somente uma Mḗtis que eacute tambeacutem potecircncia divina propicia a supremacia do poder

soberano Por isso como diz Vernant ldquoo rei do ceacuteu deve dispor fora e aleacutem da forccedila bruta

de uma inteligecircncia haacutebil para prever o futuro para maquinar tudo antes para combinar em

sua prudecircncia meios e fins ateacute o menor detalhe de forma que o tempo da accedilatildeo natildeo

comporte acasos que o futuro natildeo traga surpresas fazendo com que nada e ningueacutem possa

pegar o deus de surpresa ou encontraacute-lo indefesordquo (2002 p 258) Combinaccedilatildeo eficaz de

meios e fins previsatildeo e planificaccedilatildeo baseados na sequecircncia infaliacutevel da causalidade tempo

oportuno eliminaccedilatildeo do acaso forja de instrumentos necessaacuterios eis as condiccedilotildees para a

consolidaccedilatildeo e desenvolvimento da inteligecircncia teacutecnica que eacute ao mesmo tempo a

provedora e a chancela do poder

Mḗtis a Oceacircnida deusa da astuacutecia eacute justamente quem assegura a Zeus os meios de

lutar contra os Titatildes ela induz Crono a beber um phaacutermakon que o obriga a vomitar os

irmatildeos de Zeus que haviam sido engolidos (APOLODORO I 2 6) Mas outros

coadjuvantes viriam de um expediente astucioso adicional Gaia revela a Zeus que para

obter a vitoacuteria deveria contar com a alianccedila dos Ciclopes e dos Cem-Braccedilos detentores

respectivamente do raio dos golpes e cadeias invenciacuteveis (Teogonia vs 624-653) Zeus

liberta as Potecircncias primordiais de suas correntes e lhes oferece neacutectar e ambrosia

consagrando-os a um estatuto divino parelho ao dos Oliacutempios O favor divino concedido

por Zeus eleva a um novo plano o tema da retribuiccedilatildeo a daacutediva eacute um meio de garantir a

reciprocidade e de escalonar valores As Potecircncias primordiais da violecircncia e da vitoacuteria

passam a ser os guardiotildees fieacuteis de Zeus Kraacutetos e Biacutea Poder e Violecircncia ldquoinsignes filhosrdquo

29

de Stix e Oceano ldquosempre perto de Zeus gravitroante repousamrdquo (Teogonia v 385)7 Para

instituir a ordem faz necessaacuteria a harmonizaccedilatildeo entre as potecircncias da violecircncia e a astuacutecia

presciente A emancipaccedilatildeo da ordem implica a ruptura violenta

Mḗtis ldquomais saacutebia que os deuses e os homens mortaisrdquo (v 887) eacute a primeira esposa

de Zeus O casamento eacute uma forma de daacutediva e de reciprocidade pelos serviccedilos prestados

pela deusa da inteligecircncia astuciosa mas eacute sobretudo uma alianccedila que assegura o domiacutenio

da soberania Para impedir que a retribuiccedilatildeo agrave violecircncia da falta infaliacutevel se volte contra si

mesmo Zeus emprega as proacuteprias armas de Mḗtis a astuacutecia a surpresa e o ardil O

Cronida ldquoengana suas entranhas com ardil com palavras sedutorasrdquo por conselhos de Gaia

e Ourano e engole-a ventre abaixo para que assim a deusa lhe indique o bem e o mal

(Teogonia v 886-900) A deusa que interveacutem nas lutas de soberania para restaurar o

equiliacutebrio rompido estabelece o fato inexoraacutevel de que o domiacutenio e o poder exigem o

concurso simultacircneo da audaacutecia da forccedila da artimanha da iniciativa inteligente do ardil e

do espiacuterito inventivo (DETIENNE 1974 p 105) Ao ser engolida Mḗtis eacute assimilada a

Zeus e ele ldquotorna-se mais que um simples monarca ele se torna a proacutepria Soberaniardquo

(VERNANT 2002 p 261) A inteligecircncia astuciosa estaacute ldquonas entranhasrdquo de Zeus faz parte

de sua constituiccedilatildeo divina configura uma de suas potecircncias constitutivas Zeus eacute todo

Astuacutecia e sua inteligecircncia abarca todo o ciclo do tempo conferindo-lhe a previsatildeo

presciecircncia e prudecircncia indispensaacuteveis para a accedilatildeo que se projeta no futuro Ao assimilar

7 Alguns exegetas como H Fraumlnkel atribuem o domiacutenio de Zeus agrave alianccedila decisiva estabelecida com Styx e

sua descendecircncia Zelos Niacuteke Kraacutetos e Biacutea Brown empreende uma interpretaccedilatildeo maquiavelista afirmando que os resultados finais justificam os meios empregados por Zeus que seria o fundador no koacutesmos do que

Maquiavel chamaria ldquosociedade civilrdquo Blickman observa no entanto que a alianccedila dos filhos de Styx foi

ldquoganhardquo mediante a oferta da garantia de conceder-lhes as devidas honras divinas O vieacutes que nos interessa ndash

a formaccedilatildeo dos elementos fundamentais da inteligecircncia teacutecnica ndash indica que o acento deve recair sobre o fato

de que a oferta e a contrapartida do serviccedilo leal dos aliados de Zeus configuram uma faceta e uma

perspectiva diversa de lei de retribuiccedilatildeo As alianccedilas de Zeus configuram a conexatildeo causal infaliacutevel como

oferta e contrapartida e satildeo compatiacuteveis com a interpretaccedilatildeo e o acento fortemente alegoacuterico que Vernant

confere a Mḗtis (BLICKMAN 1987 p 341-355)

30

Mḗtis Zeus inaugura a inteligecircncia projetiva a inteligecircncia teacutecnica como a ordem que

deteacutem a soberania sobre o mundo e por isso ldquoentre o projeto e a realizaccedilatildeo natildeo conhece

mais a distacircncia pela qual surgem na vida dos outros deuses as armadilhas do imprevistordquo

(ibid) O ciclo inexoraacutevel e sempre renovado entre falta e retribuiccedilatildeo em vez de abolir a

ordem coacutesmica passa a ser parte integrante dela A ordem eacute definitivamente estabelecida

quando a causalidade e a inteligecircncia teacutecnica passam a ser-lhe solidaacuterias

Na geraccedilatildeo anterior accedilatildeo astuciosa de Gaia decorre da violecircncia de Ourano que a

atulha e com isso impede sua potecircncia natural de gestaccedilatildeo e o devir das geraccedilotildees

subsequentes

Quantos da Terra e do Ceacuteu nasceram

filhos os mais temiacuteveis detestava-os o pai

decircs o comeccedilo tatildeo logo cada um deles nascia

a todos ocultava agrave luz natildeo os permitindo

na cova da Terra8

(HESIacuteODO Teogonia 2003 154-159)

A astuacutecia feninina aparece como contrapartida agrave violecircncia masculina na forja do

instrumento de salvaccedilatildeo o que implica inexoraacutevel tendecircncia a um ininterrupto ciclo de

violecircncia e retribuiccedilatildeo atraveacutes da descendecircncia masculina os Titatildes aqueles que pagam a

penalidade por suas accedilotildees A mudanccedila coacutesmica eacute desencadeada pela tensatildeo entre o

princiacutepio de accedilatildeo da procriaccedilatildeo natural ilimitada de Gaia e a violecircncia impediente de

Ourano A forccedila da proliferaccedilatildeo ilimitada de Gaia soacute pode ser limitada por um ato de

violecircncia e oposiccedilatildeo agrave potecircncia feminina num ciclo ininterrupto de violecircncia e retribuiccedilatildeo

astuciosa Todavia o primeiro ato de violecircncia de Zeus consiste em engolir Mḗtis

desencadeando uma reviravolta no ciclo coacutesmico O princiacutepio de movimento coacutesmico

8

31

emerge a partir dos pares de opostos caracterizados pela alternacircncia entre procriaccedilatildeo

masculina e gestaccedilatildeo feminina e pela oposiccedilatildeo entre violecircncia (biacutea) masculina e a mḗtis

feminina Enquanto a violecircncia eacute prerrogativa masculina a inteligecircncia astuciosa eacute um

apanaacutegio feminino Quando Zeus engole Mḗtis assimila em si mesmo a esfera coacutesmica

feminina cuja consequecircncia eacute o equiliacutebrio de princiacutepios opostos de movimento

Entretanto a ordem soacute pode ser perenemente garantida mediante uma outra

realidade coacutesmica primordial que dispotildee de poderes anteriores aos de Zeus a Oceacircnida

Thecircmis Assim como Mḗtis Thecircmis abarca a totalidade do tempo e possui uma onisciecircncia

que diz respeito a uma ordem estabelecida Seus proferimentos possuem um valor oracular

categoacuterico que estabelece de uma vez por todas como decretos o que eacute dito Thecircmis

ordena interdita decreta peremptoriamente e fixa os aspectos natildeo definidos do Koacutesmos Se

de um lado Mḗtis relaciona-se com o tempo oportuno e com o hipoteacutetico de outro

Thecircmis estabelece a regularidade a ordem e confere invariacircncia ao devir Ela eacute a Matildee das

Horas as Estaccedilotildees e fixa as Moiras dos mortais Sua funccedilatildeo eacute a de estabelecer limites

intransponiacuteveis ao Koacutesmos Sua uniatildeo com Zeus implica que a ordem coacutesmica possui

medidas regularidades e limites intransponiacuteveis (DETIENNE 1974 p 105 ss) A funccedilatildeo

primordial de Thecircmis eacute proclamar que os limites do Koacutesmos satildeo decretos divinos

irrevogaacuteveis Tais limites iniciam-se pela diferenciaccedilatildeo de potecircncias contraacuterias e por uma

sissiparidade sem a atraccedilatildeo de potecircncia primordial de Eros A uniatildeo de potecircncias opostas

brota do Amor coacutesmico afetividade que potildee em movimento a geraccedilatildeo e o ciclo coacutesmico

Mas cabe observar que as primeiras potecircncias instauradoras de limites coacutesmicos satildeo

princiacutepios temporais os primeiros limites consistem no estabelecimento de uma conexatildeo

irrevogaacutevel entre violecircncia desmedida e retribuiccedilatildeo astuciosa entre proliferaccedilatildeo

ininterrupta e a fixaccedilatildeo de limites e medidas temporais coacutesmicas

32

O casamento de Zeus com Thecircmis eacute ao mesmo tempo uma daacutediva pelos seus

serviccedilos e uma alianccedila que assimila sua potecircncia Suas decisotildees irrevogaacuteveis permitiratildeo a

partilha os lotes os domiacutenios e a hierarquia entre as Potecircncias divinas Com a daacutediva e a

reciprocidade do duplo casamento de Zeus a retribuiccedilatildeo adquire o estatuto inalienaacutevel de

lei e a reciprocidade passa a ser a condiccedilatildeo para a hierarquia de poderes Na Teogonia

hesioacutedica causalidade e hierarquia apontam para um limite uacuteltimo na Natureza a lei

irrevogaacutevel e intransponiacutevel estabelecida por Thecircmis

13 Causalidade e Reciprocidade

A caracteriacutestica fundamental de uma daacutediva ou presente eacute a expectativa da

reciprocidade consoante um criteacuterio de equivalecircncia A troca de presentes estabelece o

estatuto do doador e implica o escalonamento do poder No primeiro livro da Odisseacuteia

Palas Atena visita Telecircmaco sob a forma do estrangeiro Mentes e define a obrigaccedilatildeo da

reciprocidade

Hoacutespede tuas palavras satildeo ditas com acircnimo amigo

como de pai para filho jamais poderei esquececirc-las

Mas muito embora desejes partir fica um pouco te peccedilo

que te banhes e possas dar largas ao peito querido

para depois ao navio voltares levando um presente

muito valioso e bonito que seja lembranccedila de minha

parte tal como os amigos com os hoacutespedes fazem de grado

A de olhos glaucos Atena lhe disse em resposta o seguinte

Natildeo me domovas do intento pois muito me importa ir embora

Quanto ao presente se tanto o desejas que seja na volta

quando de novo passar por aqui levaacute-lo-ei para casa

Por mais valioso que escolhas teraacutes outro igual conquistado

Odisseacuteia I vs 307-318

Todo presente exige um contra-presente A obrigaccedilatildeo de reciprocidade natildeo

comporta exceccedilatildeo e a contrapartida ao ato de ofertar pressupotildee uma medida comum que

estabelece o valor (aacutexion) ou equivalecircncia que controla um sistema de hierarquia A

33

proacutepria noccedilatildeo de ldquomedidardquo eacute um refinamento da concepccedilatildeo de que a Natureza eacute

caracterizada por limites que natildeo podem ser transpostos (VLASTOS 1947 p 156) O

estabelecimento de uma obrigaccedilatildeo muacutetua implica o desenvolvimento de categorias mentais

que comportam a comparaccedilatildeo a igualdade a medida a contagem e o caacutelculo O presente

permite segundo Burkert o reconhecimento da igualdade de estatuto entre os ofertantes e a

representaccedilatildeo de um mesmo paacutethos Implica tambeacutem os quadros mentais que permitem o

discernimento da dimensatildeo temporal e a projeccedilatildeo futura da obrigaccedilatildeo mediante o

reconhecimento de um padratildeo invariaacutevel (BURKERT 2001 p 132) A reciprocidade eacute

apenas um outro aspecto da conexatildeo infaliacutevel da retribuiccedilatildeo e determina a expectativa

universal de que seres de um mesmo estatuto recebam o mesmo tratamento A

reciprocidade advinda da oferta implica por conseguinte o escalonamento ou

hierarquizaccedilatildeo dos atores envolvidos conferindo estabilidade ao todo

Outro modo de aplicaccedilatildeo da reciprocidade possui desdobramentos perenes no

desenvolvimento da racionalidade Na esfera da justiccedila punitiva o castigo eacute aceito como

justo se estiver subordinado agrave concepccedilatildeo de retribuiccedilatildeo que especificamente emerge da

oferta reciacuteproca A reciprocidade pressupotildee os quadros mentais que desenvolvem aquela

que viraacute a ser uma das noccedilotildees mais fecundas da Filosofia a noccedilatildeo de simetria

Nos Trabalhos e os Dias Hesiacuteodo desenvolve uma antropogonia que estabelece

significaccedilatildeo para o estatuto humano e serve de justificativa para uma exaltada exortaccedilatildeo a

seu irmatildeo Perses O equiliacutebrio compensatoacuterio de opostos eacute apresentado como princiacutepio

constitutivo do plano coacutesmico e humano de modo que o equiliacutebrio recebe a sanccedilatildeo da forccedila

do juramento dos deuses e da lei contra a desmedida hyacutebris A Justiccedila soacute pode compensar a

desmedida com o estabelecimento preacutevio do meacutetron padratildeo comum que garante a

equidade ou comensuralidade Mas a etimologia de meacutetron natildeo deixa de ter relaccedilatildeo com

34

mḗtis a proacutepria personificaccedilatildeo da inteligecircncia astuciosa inextrincaacutevel do kairoacutes da accedilatildeo

precisa no momento oportuno O primeiro golpe astucioso concebido por Gaia suscita natildeo

somente a forja do instrumento inteligentemente planeado mas exige ainda que o momento

oportuno coincida com a accedilatildeo instauradora do tempo cronoloacutegico Na mentalidade grega a

noccedilatildeo de excesso deriva das accedilotildees coacutesmicas do desregramento dos desejos da violecircncia e

do tempo oportuno e natildeo de uma replicaccedilatildeo espacial bilateral

Na perspectiva moderna algo eacute simeacutetrico se possui a mesma medida em relaccedilatildeo a

um padratildeo (syacutemmetros) ou se apoacutes ser submetido a uma determinada accedilatildeo permanece com

a mesma aparecircncia ou com o aspecto original Mas na mentalidade grega de Hesiacuteodo a

noccedilatildeo de equiliacutebrio entre opostos eacute imageticamente expressa na geraccedilatildeo de Harmoniacuteē

Resultante do sangue esparso no mar nascem potecircncias opostas as Eriacutenias

zeladoras da vinganccedila os Gigantes as Ninfas e a virgem da espuma rosada ndash Cytereacuteia ou

Afrodite Novas potecircncias divinas opostas satildeo engendradas a partir da uniatildeo de Afrodite e

Ares destruidor de cidades Harmoniacutea Phoacutebos e Deimos Medo e Terror rompedores das

falanges guerreiras (HESIOD 2006 v 935-937) As determinaccedilotildees afetivas de Afrodite

associadas a Eros ao Desejo (Hyacutemeros) agrave doccedilura graccedila e suavidade opoem-se agrave ira

guerreira de Ares Harmoniacuteē aparece como conjunccedilatildeo conciliadora de afetos opostos uniatildeo

e oposiccedilatildeo geraccedilatildeo e destruiccedilatildeo doce encanto e oacutedio ajustamento de princiacutepios de accedilatildeo

opostos

Por outro lado nos Trabalhos o enfoque visa o estabelecimento do estatuto humano

e o regramento da praacutexis eacutetico-poliacutetica Por essa razatildeo o equiliacutebrio de opostos passa a

abarcar a noccedilatildeo ulterior de meacutetron como avaliaccedilatildeo sopesada para evitar o excesso de

ambiccedilatildeo desmedida e encontrar o justo

35

Mede (metreisthai) bem do teu vizinho e paga-o bem de volta com

a mesma medida (tō metrō) e o melhor que podes pois se estiveres

em necessidade novamente o encontraraacutes mais tarde tambeacutem

confiante ()

Mas eu natildeo te darei nenhum dom a mais nem sobremedida

(epimetrḗsso) ()

Guarda a medida (meacutetra phylaacutessesthai) o momento oportuno eacute a

mais excelente de todas as coisas (kairograves d‟epigrave paacutesin aacuteristos )

(HESIOD Works and Days 2006 v 349-351 396 694)

A apaixonada exortaccedilatildeo de Hesiacuteodo realccedila a origem do excesso e da desmedida no

iacutempeto dos desejos e associa a medida ao kairoacutes o elemento temporal que ajusta

quantitativamente os frutos do trabalho agriacutecola aos periacuteodos regulares das estaccedilotildees e dos

dias As atividades agriacutecolas segundo o excelente trabalho de Jean-Luc Perrilleacute

entremeiam os aspectos quantitativos e temporais que compotildeem a molda da noccedilatildeo de

comensurabilidade (PERILLEacute 2005 p 23-33) A necessidade de ajustar o ano solar ao ano

lunar ocasiona a fusatildeo dos aspectos temporais e espaciais com relaccedilotildees numeacutericas

quantitativas Aleacutem disso a obervacircncia da medida configura o principal traccedilo dos

apotegmas dos sete saacutebios arcaicos A prescritiva de Cleoacutebulo a medida eacute a mais excelente

das coisas (meacutetron aacuteriston) eacute um iacutendice de que as noccedilotildees de equiliacutebrio medida e momento

oportuno modelam a inteireza da mentalidade que daacute identidade ao helecircnico Os apotegmas

de Tales Soacutelon e Pitacos reforccedilam o pressuposto de um pano de fundo compartilhado de

uma atmosfera mental comum que abarca todas as expressotildees do patrimocircnio da paideacuteia

grega observa a medida (meacutetrō khrō) nada em demasia (mēdeacuten aacutegan) apreende o

momento oportuno (kairograven gnōthi)

O acervo mental que correlaciona as noccedilotildees de medida agrave oportunidade temporal

agrega a questatildeo da afetividade como princiacutepio das accedilotildees praacuteticas Nos seus poemas

elegiacuteacos Teoacutegnis adverte que o excesso (hyacuteper meacutetron) de vinho acarreta a desmedida da

36

fala e a ausecircncia de vergonha que potildeem a perder o saacutebio9 ldquoEacute difiacutecil observar a medida

(gnōnai gagraver khalepograven meacutetron) quando o bem se oferece a noacutesrdquo (PERILLEacute 2005 p 25) O

excesso de prazeres e bebida satildeo correlacionados agrave desmedida do discurso improacuteprio e agrave

vergonha da impostura Moderaccedilatildeo afetiva modeacutestia e compostura conjugam-se num

espectro de afetos equilibrados ndash intrinsecamente ligados agrave aprovaccedilatildeo puacuteblica ndash que

suscitam a noccedilatildeo de justa medida O discurso descomedido que se segue a afetos

desenfreados tem como retribuiccedilatildeo inevitaacutevel a vergonha e a desonra As accedilotildees praacuteticas

suscitam justa retribuiccedilatildeo em consonacircncia com sua natureza proacutepria

No plano ciacutevico a retribuiccedilatildeo aparece como inversatildeo da accedilatildeo e determina a

exigecircncia de que o culpado sofra pelo que fez segundo um criteacuterio de equivalecircncia a

contagem de ldquochicotadasrdquo ou dias de prisatildeo por exemplo (BURKERT 2001 p 133) A

concepccedilatildeo da daacutediva estende muito adiante o horizonte da retribuiccedilatildeo e funda as noccedilotildees

que comporatildeo a concepccedilatildeo de ldquojusticcedila positivardquo a reciprocidade eacute de fato um tipo de

moralidade Em grego ser punido equivale a ldquodar justiccedilardquo (diacutekēn diacutedonai) a receber a

contrapartida o que eacute devido em funccedilatildeo de uma ofensa dada O mesmo ocorre com as

interaccedilotildees religiosas que aparecem como um ldquosistema de trocas artificialrdquo (ibid p 135) O

comeacutercio com os deuses eacute definido por Platatildeo como preces e sacrifiacutecios e ordens e

recompensas em paga dos sacrifiacutecios (Banquete 202e) A recompensa como obrigaccedilatildeo

muacutetua estaacute na base da crenccedila religiosa ndash independentemente da impossibilidade de

verificaccedilatildeo de uma recompensa ou puniccedilatildeo no aleacutem

9 O homem que bebe aleacutem da medida natildeo governa mais sua liacutengua nem seu espiacuterito Tem discursos sem fim

que enrubescem os saacutebios Ele natildeo se envergonha de nenhuma accedilatildeo em sua embriaguecircs De saacutebio que era

torna-se insensato Sabe isso e guarda-te de beber em excesso antes que venha a embriaguecircs levanta-te de

medo que teu ventre natildeo te submeta natildeo faccedilas de ti um escravo malfeitor (GIRARD 1892 v 469-495)

37

A mutaccedilatildeo da noccedilatildeo de reciprocidade resulta num contiacutenuo processo que culmina

com as noccedilotildees de leis ldquoobjetivasrdquo da Natureza A interpretaccedilatildeo matemaacutetica do mundo

operada pela Fiacutesica se expressa atraveacutes de equaccedilotildees relaccedilotildees e proporccedilotildees (entre as partes)

mediante os postulados de simetria de equiliacutebrio de homogeneidade (mesma natureza das

partes) e de conservaccedilatildeo Nesse sentido afirma Burkert ldquoo princiacutepio de reciprocidade eacute a

proacutepria fundaccedilatildeo do nosso mundo racional e cientiacuteficordquo (ibid p 154) Os fundamentos da

causalidade natildeo podem ser apreendidos sem o fio condutor das noccedilotildees implicadas pelo

princiacutepio de reciprocidade que nos primoacuterdios emerge da troca de presentes

14 A astuacutecia dolosa o presente de Prometeu

Natildeo se pode furtar nem superar o espiacuterito de Zeus

pois nem o filho de Jaacutepeto o beneacutefico Prometeu

escapou-lhe agrave pesada coacutelera mas sob coerccedilatildeo

apesar de multissaacutebio a grande cadeia o reteacutem

Teogonia vs 613-616

A narrativa de Prometeu eacute a descriccedilatildeo de um duelo de astuacutecias Trata-se de um

confronto sem duacutevida mas natildeo de um embate aberto de um combate singular em que a

violecircncia do golpe se anuncia no movimento aberto que se abate sobre o adversaacuterio No

combate travado entre Prometeu e Zeus as armas empregadas satildeo tatildeo somente suas

inteligecircncias astuciosas e cada lance cada manobra desferida contra o oponente apresenta-

se dissimulada sob a aparecircncia da oferta sedutora do furto ou da ocultaccedilatildeo A sequecircncia de

accedilotildees que compotildee a narrativa eacute um esboccedilo exemplar das conexotildees ineludiacuteveis que

distinguem a retribuiccedilatildeo e a reciprocidade que implicam a definiccedilatildeo de hierarquias os

acircmbitos proacuteprios na organizaccedilatildeo cosmoloacutegica No mito de Prometeu conjugam-se na

mesma sequecircncia de accedilotildees a inexorabilidade da causalidade que se segue a uma quebra de

38

simetria a mḗtis inteligente a previsatildeo temporal projetiva o ardil para a escolha de meios

eficazes a oferta e o contra-presente e a justa retribuiccedilatildeo pela transgressatildeo do meacutetron

O mito de Prometeu eacute o ldquomito de referecircncia para entender o lugar a funccedilatildeo e os

significados do sacrifiacutecio sangrento na vida religiosa dos gregosrdquo (VERNANT 2002 p

263) Natildeo obstante o mito coordena outros temas que ultrapassam em muito no tempo e

no espaccedilo a cultura grega e constituem a pedra fundamental de um tipo de inteligecircncia e de

um modo especiacutefico de racionalidade Prometeu eacute a personificaccedilatildeo da inteligecircncia teacutecnica

humana que se choca com os limites intransponiacuteveis que cingem um Koacutesmos divino

A distribuiccedilatildeo de honras entre Oliacutempios e Titatildes foi o resultado da guerra e das

alianccedilas promovidas por Zeus As honras devidas aos deuses foram fruto do consentimento

e do consenso mas a partilha entre os homens mortais e os Oliacutempios haveria de ser

efetivada por Prometeu Assim como Zeus Prometeu eacute todo ele astuacutecia fabricadora e por

conseguinte um rival uma potecircncia de rebeliatildeo diante da ordem instaurada Mas o Titatilde natildeo

almeja a soberania Ele emprega sua astuacutecia para usurpar a soberania de Zeus e os limites

as medidas que ela implica e para transferir aos mortais um lote que natildeo estaacute em

conformidade com seu estatuto

A partilha eacute o ato que marca o reconhecimento da igualdade e da hierarquia visto

que as ldquopartesrdquo os quinhotildees satildeo distribuiacutedas segundo proporccedilotildees e ordem determinadas

Os termos moira e aiacutesa inicialmente designam o ldquoquinhatildeordquo a ldquoquotardquo ldquoporccedilatildeordquo passando a

significar posteriormente a ordem apropriada a ordem do mundo o Destino O princiacutepio

da daacutediva e a expectativa de compensaccedilatildeo constituem uma extensatildeo da partilha e a

reciprocidade eacute um refinamento mental da accedilatildeo de doar Tal refinamento soacute eacute possiacutevel com

a modelagem dos esquemas mentais que implicam o reconhecimento das pretensotildees dos

atores ausentes o discernimento da passagem do tempo a habilidade para avaliar e

39

relembrar uma retribuiccedilatildeo adiada um mundo estaacutevel no tempo e no espaccedilo e as noccedilotildees

latentes de medida igualdade e equivalecircncia (BURKERT 2001 p 151) A oferenda a um

deus pode significar a submissatildeo aos seus poderes ameaccediladores e a delimitaccedilatildeo apropriada

de sua posiccedilatildeo hieraacuterquica superior ldquoNatildeo darrdquo por outro lado implica natildeo somente a

insubmissatildeo mas uma usurpaccedilatildeo da hierarquia de poder A usurpaccedilatildeo ardilosa de Prometeu

redunda na segregaccedilatildeo definitiva entre homens e deuses e na condiccedilatildeo ambiacutegua que

caracteriza a vida humana proacutexima dos animais e dos deuses

A partilha maquinada por Prometeu consiste no esquartejamento de um boi diante

dos deuses e homens a fim de definir-lhes mutuamente seus estatutos A fronteira seria

representada nas partes do animal sacrificado O sacrifiacutecio eacute efetivamente uma troca de

presentes mediada por Prometeu que deveria respeitar o meacutetron condizente com a soberania

de Zeus Todavia cada parte preparada pelo Titatilde eacute um engodo uma dolosa arte (doliacuteēin

teacutekhnēi) simultaneamente destinada a aviltar o estatuto divino e sobrelevar o estatuto

humano

A primeira parte dissimula os ossos nus do animal sob espessa camada de apetitosa

gordura e a segunda esconde dentro do estocircmago de aparecircncia nauseante as carnes

comestiacuteveis O presente de Prometeu eacute um logro um expediente artificioso cujo fim eacute a

apropriaccedilatildeo do melhor quinhatildeo para os homens Com isso Prometeu acrescenta a dimensatildeo

da vantagem na mḗtis e instaura o viacutenculo perene entre inteligecircncia teacutecnica e o uacutetil O

duelo de Prometeu com Zeus eacute o duelo da mḗtis utilitaacuteria contra a mḗtis da soberania A

primeira calcula os melhores meios para se obter o vantajoso e o uacutetil na perspectiva do

tempo humano A segunda calcula os melhores meios para se obter e manter a soberania

sobre o Koacutesmos na perspectiva da totalidade do tempo Duas ordens de realidade satildeo

40

segregadas uma mortal outra imortal Ambas deveriam ser representadas

proporcionalmente na partilha do sacrifiacutecio do animal e serem oferecidas como presentes

Se todo presente implica a obrigatoriedade do contra-presente e todo sacrifiacutecio

pressupotildee a expectativa de recompensa toda falta reclama a justa retribuiccedilatildeo ldquoZeus de

impereciacuteveis desiacutegnios soube natildeo ignorou a astuacuteciardquo (v 550-551) e escolheu a porccedilatildeo

coberta com gordura branca Por essa razatildeo queimam-se nos altares a gordura e os ossos

dos animais A astuacutecia de Prometeu volta-se contra os homens as partes com aparecircncia de

maior valor na verdade implicam a insaciabilidade da fome sempre renovada e a

perecibilidade proacutepria das carnes de um animal morto As exalaccedilotildees e os perfumes dos

ossos calcinados definem por outro lado a imortalidade impereciacutevel dos deuses que vivem

dos odores sutis A inteligecircncia utilitaacuteria de Prometeu transgride a ordem coacutesmica instituiacuteda

por Zeus A ldquovantagemrdquo auferida com o dolo implica a retribuiccedilatildeo infaliacutevel como

contrapartida O expediente utilitaacuterio desencadeia conexotildees causais natildeo previstas pela mḗtis

prometeacuteica Zeus esconde o biacuteos e o fogo celeste ateacute entatildeo livremente concedidos aos

homens As implicaccedilotildees satildeo a ausecircncia de cereais e gratildeos e a impossibilidade de cozinhar

as carnes obtidas na partilha Ao deixar de ldquodarrdquo as daacutedivas da vida e do fogo aos homens

Zeus daacute efetivamente a justa retribuiccedilatildeo pela falta de Prometeu A lei de taliatildeo da

causalidade preserva a ordem coacutesmica estabelecida

A estrutura baacutesica do programa de accedilotildees que caracteriza a retribuiccedilatildeo eacute repetida (i)

uma situaccedilatildeo impediente adveacutem os homens satildeo privados do fogo e da vida (ii) a

calamidade suscita a busca da causa a fraude de Prometeu (iii) o mediador astucioso

maquina um expediente astucioso Prometeu furta o fogo e o esconde no interior da feacuterula

oca para transportaacute-lo para a terra e doaacute-lo aos homens (iv) a audaacutecia da accedilatildeo criminosa

engendra nova retribuiccedilatildeo

41

O contra-presente de Zeus eacute o resultado da modelaccedilatildeo artificiosa que recebe o

contributo de todos os deuses e constitui o reverso simeacutetrico ao roubo do fogo O dom de

todos os deuses Pandora liberta todos os elementos que aprisionam os homens todos os

males que configuram sua precariedade Sua aparecircncia se reveste do mesmo engodo

astucioso do presente de Prometeu e sua inscriccedilatildeo no plano humano ocorre pela

contrapartida miacutetica da previsatildeo astuciosa que caracteriza Prometeu a imprevidecircncia de

Epimeteu Palco de ambiguidades o cenaacuterio dos homens eacute irremediavelmente vinculado agrave

necessidade de previsatildeo o mundo dos homens eacute o mundo da imprevisatildeo do acaso do

fortuito e conserva o caos originaacuterio das potecircncias primordiais

Pandora representa natildeo somente a explicaccedilatildeo para a duplicidade do estatuto humano

em par de gecircneros opostos ela eacute a noiva esplendorosa de invenciacutevel e adornada aparecircncia

divina que configuram a contrapartida para o dolo do fogo teacutecnico Diferentemente do

homem Pandora eacute fabricada pelos deuses Ela eacute o fruto de uma modelagem divina arte dos

deuses e sua uniatildeo com um Titatilde prenuncia nova caracterizaccedilatildeo do gecircnero humano

Doravante como afirma Jenny Clay (2009 p 102 ss) as distinccedilotildees que definem e

delimitam o gecircnero humano recebem traccedilos perenes e incontornaacuteveis ldquosua apariccedilatildeo

inaugura a instituiccedilatildeo do casamento que como o sacrifiacutecio serve para delimitar as

coordenadas da condiccedilatildeo humana Pois como seres mortais os humanos satildeo compelidos

tal como as bestas a se reproduzirem para que a espeacutecie seja mantidardquo

Por outro lado a prole de Pandora e do titatilde Epimeteu deveraacute unificar os elementos

titacircnicos com a arte bem concebida dos deuses mistura de opostos em permanente tensatildeo

de dissoluccedilatildeo Potecircncia coacutesmica de desmedida Epimeteu procriaraacute um novo gecircnero de ser

unindo-se ao artefacto divino meticulosamente medido miscigenaccedilatildeo equilibrada de

proporccedilotildees e determinaccedilotildees opostas que recebem um sopro de vida O casamento soacute pode

42

passar a ser condiccedilatildeo para a preservaccedilatildeo humana a partir da geraccedilatildeo de Pandora e

Epimeteu que assimila as forccedilas titacircnicas da desmedida agrave arte bem projetada mas ambiacutegua

Assim como o sacrifiacutecio ritualiza mediante em accedilotildees dramatizadas sem finalidade

ou propoacutesito visiacutevel o comeacutercio e o contato com o divino assim tambeacutem o casamento

inaugura a sacralizaccedilatildeo ritual dos apetites sexuais O sacrifiacutecio constitui os droacutemena que

separam o acircmbito e o estatuto divino do humano o espaccedilo-tempo dos deuses e o vivido

humano interposto entre os animais selvagens e o divino A integraccedilatildeo ritualiacutestica do

feminino personificado na Virgem divina ao mesmo tempo regra e sanciona os apetites

sexuais O casamento interpotildee o homem entre a promiscuidade selvagem e a promiscuidade

divina que desconhecem as inibiccedilotildees

O fogo teacutecnico que eacute empregado simultaneamente na fabricaccedilatildeo de utensiacutelios e de

armas que potencializam a violecircncia possui a potecircncia ambiacutegua de assegurar a vida e

sancionar a violecircncia Analogamente o casamento inaugurado por Pandora possui a

potecircncia ambiacutegua de legitimar o sexo atraveacutes da sacralizaccedilatildeo ritualiacutestica e interditar a

promiscuidade da besta ou o incesto dos deuses Todavia o feminino associa-se agrave

concepccedilatildeo da voracidade das forccedilas dissipadoras e destrutivas aportadas pelo fogo Sem

regramento ou controle o feminino natildeo integrado ritualmente consome o fruto dos

trabalhos e com sedutoras palavras e caraacuteter dissimulado induz aos homens a repeticcedilatildeo

miacutetica da imprevidecircncia de Epimeteu

A ambiguidade de Pandora eacute simetricamente compensatoacuteria agrave dyacutenamis piacuterica da

inteligecircncia astuciosa previdente Os males invisiacuteveis indistintamente libertos equilibram e

compensam a previsibilidade e presciecircncia aportada pela inteligecircncia demiuacutergica A

dissimulaccedilatildeo e olhar de catildeo satildeo a contraparte agrave agressatildeo e violecircncia potencializadas por

armas forjadas pelo fogo Por outro lado a esperanccedila retida no vaso opotildee-se agrave exterioridade

43

aberta dos males que assolam os homens Mistura de afeto e pensamento projetivo elpiacutes

anuncia em meio aos males bens somente pensaacuteveis e acalentados afetivamente no acircmago

humano

A causalidade inevidente confere sentido para a espontaneidade do mal na

experiecircncia humana aplaca a ansiedade das vivecircncias aterradoras e eacute o eacutelan para que a

inteligecircncia teacutecnica eluda a contingecircncia dos obstaacuteculos agrave vida Na leitura de Jenny Clay a

expectaccedilatildeo retida pode ser entendida com a mesma ambiguidade de Pandora ela confunde

o pensamento e promete becircnccedilatildeos enquanto sua natureza interna enganadora e caraacuteter

dissimulado mentem com palavras sedutoras Nesse sentido a expectaccedilatildeo seria um mal

iludente que promete e seduz mas que raramente entrega as ilusotildees aneladas (CLAY 2009

p 103) Natildeo obstante a inviolaacutevel posse de Elpiacutes claramente opotildee-se agrave dispersatildeo dos

males Sua accedilatildeo de oposiccedilatildeo eacute compensatoacuteria e natildeo da mesma natureza dos males

silenciosos autocircmatos (HESIacuteODO Trabalhos e os Dias 103) Sua posse implica a

significaccedilatildeo carreada pelo pensamento projetivo de bens pensaacuteveis e diziacuteveis mas incertos

Ela inscreve sentido e ordem numa sucessatildeo indistinta que de outra forma tornariam o

viver excessivamente pesado para ser suportado

O fogo furtado por Prometeu eacute um artifiacutecio derivaccedilatildeo secundaacuteria do fogo celeste

ocultado no interior de uma feacuterula oca e por essa razatildeo eacute um fogo destrutiacutevel e efecircmero

que estaacute no plano do devir e precisa ser alimentado para manter-se Mas eacute tambeacutem um

fogo teacutecnico o fogo do engenho e da metalurgia que possibilitam os meios para a

manutenccedilatildeo da vida10

O fogo dado aos homens representa o domiacutenio da inteligecircncia

teacutecnica astuciosa empregada para controlar as potecircncias naturais e eludir o estado de

10 Paul Diel empreende uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica do mito de Prometeu que a despeito de ser dogmaacutetica e

arbitraacuteria correlaciona de maneira interessante o fogo com a ldquointelectualizaccedilatildeo utilitaacuteriardquo cuja caracteriacutestica eacute

encontrar os meios adequados para a satisfaccedilatildeo dos desejos multiplicados (1980 p 235-236)

44

absoluta carecircncia humana Ele guarda a mesma ambiguidade que marca a condiccedilatildeo dos

homens possui uma origem divina mas eacute por outro lado mortal como os homens e

selvagem como os animais

O fogo prometeacuteico consolida o sacrifiacutecio como o rito adequado para a interaccedilatildeo

entre duas instacircncias definitivamente segregadas e com isso estabelece a partir da daacutediva

da partilha e da retribuiccedilatildeo a emergecircncia ritualiacutestica dos esquemas mentais que compotildeem a

inteligecircncia causal organizadora da experiecircncia e da multiplicidade a conexatildeo infaliacutevel

entre dois eventos consecutivos no tempo a deliberaccedilatildeo projetiva inteligente a escolha de

meios eficazes com vistas a um fim uacutetil determinado a forja de instrumentos as noccedilotildees

proto-matemaacuteticas de medida equivalecircncia proporccedilatildeo igualdade e simetria

Por outro lado a integraccedilatildeo do seu duplo oposto o feminino implica o regramento

a sanccedilatildeo e a inibiccedilatildeo de princiacutepios de accedilatildeo tatildeo destrutivos e incontrolaacuteveis como a

voracidade do fogo selvagem ou do fogo divino o sexo e a violecircncia

15 Vergonha e causalidade a cosmogonia sexual do Papiro de Derveni

Em 1962 uma espetacular descoberta arqueoloacutegica de tumbas funeraacuterias na regiatildeo

grega de Derbeacuteni ( ) havia de insuflar uma forte corrente de novas pesquisas sobre

os cultos de misteacuterio gregos O ceacutelebre papiro de Derveni trouxe agrave luz a exegese de um

uma cosmogonia sagrada desenvolvida por um experto cuja pretensatildeo manifesta eacute a

transposiccedilatildeo didaacutetica de imagens miacuteticas polissecircmicas para o registro de uma explicaccedilatildeo

causal cifrada situada no contexto do pensamento preacute-socraacutetico de Heraacuteclito Anaxaacutegoras

Eutiacutefron e Estesiacutembroto de Thasos (FUNGHI apud LAKS 1997 p 25 ss)

A despeito da profusatildeo dos enfoques hermenecircuticos e das premissas sempre

conjecturais que visam preencher as lacunas incontornaacuteveis dos fragmentos recuperados

45

os eruditos satildeo unacircnimes em reconhecer no rolo de Derveni a mais antiga versatildeo cosmo-

teogocircnica conhecida ateacute hoje (CALAMEacute apud LAKS 1997 p 65) Embora o texto tenha

sido datado por Tsantsanoglou (2006 p 9) da segunda metade do seacuteculo IV (entre 340 e

320 aC) o estilo constitui um forte indiacutecio de que o seu cadinho mental remonta ao Vordm

seacuteculo e que sua linguagem natildeo poderia ser muito posterior a 400 aC (JANKO apud

TSANSTANOGLOU 2006 p 10) Para todos os propoacutesitos aqui assumidos a questatildeo da

autoria e a imprecisatildeo vexatoacuteria que acompanha as referecircncias agrave figura miacutetica de Orfeu natildeo

interferem na fenomenologia das imagens cosmogocircnicas e na re-significaccedilatildeo operada pelo

exegeta Importa sobretudo o modo de manter viva uma tradiccedilatildeo cultual iniciaacutetica

aparentemente anacrocircnica a um ambiente filosoacutefico centrado na busca de princiacutepios causais

cosmoloacutegicos Por essa razatildeo a neutralidade da opccedilatildeo adotada por Janko de referir-se agrave

cosmogonia do papiro como teleteacute ou hieroacutes loacutegos (LAKS 1997 p 26) mostra-se

pertinente

O conteuacutedo dos versos recuperados expotildee a narrativa de uma teogonia sagrada e a

criacutetica por parte do exegeta da interpretaccedilatildeo literal operada por mediadores falseados os

maacutegoi e a inconsequecircncia dos recipiendaacuterios que lhes pagavam altas somas (Col XX) A

questatildeo da iniciaccedilatildeo se apresenta por conseguinte atraveacutes da oposiccedilatildeo entre uma

inteligecircncia subjacente profunda hypoacutenoia e um entendimento literal manifesto O

comentador opera a decifraccedilatildeo de uma narrativa escrita em forma de enigmas cuja

finalidade duacuteplice seria resguardar um saber interdito aos profanos e assegurar a

transmissatildeo de uma tradiccedilatildeo iniciaacutetica atraveacutes do legiacutetimo inteacuterprete

um hino dizendo salutares (hygiḗ) e legalizadas (themitaacute)

palavras Pois um rito sagrado era executado atraveacutes do poema E

natildeo se pode liberar o sentido das palavras (enigmaacuteticas) e falar o

que foi dito Pois este poema eacute algo estranho (xeacutenē) e enigmaacutetico

(ainigmatōdes) para os homens Orfeu mesmo entretanto natildeo

46

desejou falar eriacutesticos enigmas (esriacutest‟ainiacutegmata) mas as grandes

coisas em enigmas (en ainiacutegmasin degrave megaacutela) De fato ele profere

um discurso sagrado (hierologeicirctai) da primeira palavra ateacute o

acabamento do poema Como ele torna claro em um bem

reconhecido verso pois tendo lhes ordenado bdquocolocar portas nos

ouvidos‟ ele afirma que natildeo legisla para os muitos [mas que

ensina] agravequeles de ouvidos puros e no verso seguinte

(Derveni Papyrus Col VII)11

O exegeta justifica a aparecircncia enigmaacutetica do poema atribuiacutedo a Orfeu pelo poder

de velamento das imagens expressas na composiccedilatildeo Os deuses permitem (themitaacute) que os

salutares discursos sagrados (hieroi loacutegoi) sejam ouvidos pelos ldquomuitosrdquo em funccedilatildeo de sua

incapacidade de decifrar-lhes o sentido subjacente A razatildeo para isso eacute ao mesmo tempo

ritual jaacute que o poema eacute associado a accedilotildees ritualiacutesticas e iniciaacutetica pois a purificaccedilatildeo do

ouvir pressupotildee um ensino e a transmissatildeo de um exerciacutecio de atribuiccedilatildeo de significaccedilatildeo agraves

imagens exerciacutecio interdito aos natildeo-iniciados A alusatildeo agrave sauacutede intriacutenseca aos versos

sugere um papel terapecircutico e purificatoacuterio neste exerciacutecio exegeacutetico

A iniciaccedilatildeo jaacute se anuncia aqui como modalidade de exerciacutecio ritual interpretativo

terapecircutico e cataacutertico para a inteligecircncia das grandes coisas Essa inteligecircncia conduz a

uma diferenciaccedilatildeo a um plano superior ser iniciado eacute mudar de estatuto atraveacutes da

inteligecircncia das questotildees mais elevadas que se contrapotildee agrave disputa eriacutestica contrafaccedilatildeo da

polissemia imageacutetica Natildeo obstante o falseamento natildeo se delimita somente agrave

inteligibilidade das grandes coisas mas agrave distinccedilatildeo dos princiacutepios que determinam o

emprego da eficaacutecia ritual e da finalidade de seu uso (TSANTSANOGLOU 2006 p 130)

Na coluna VI os maacutegoi exercem uma accedilatildeo eficaz sobre os daiacutemones almas vingadoras

atraveacutes da encantaccedilatildeo (epōidḗ) sacrifiacutecios e libaccedilotildees Os myacutestai usam os mesmos

11 Texto estabelecido por Tsantsanoglou com traduccedilatildeo ligeiramente modificada (2006 p 130)

47

procedimentos que os maacutegoi mas como seus princiacutepios de accedilatildeo satildeo opostos12

os

sacrifiacutecios endereccedilam-se agrave manifestaccedilatildeo benevolente das almas servidoras da justiccedila as

Eumecircnides (JOURDAIN 2003 6 p 37-39) O poema inicia-se com a menccedilatildeo

extremamente fragmentaacuteria das Eriacutenias (col I) almas honradas por libaccedilotildees marcas

honoraacuteveis de honra feitas atraveacutes de holocaustos de paacutessaros harmonizados com

muacutesica13

Todavia a eficaacutecia da encantaccedilatildeo maacutegica contraposta agraves honras dos sacrifiacutecios e

libaccedilotildees executadas pelos myacutestai se depara com limites coacutesmicos infrangiacuteveis

A correta interpretaccedilatildeo do poema eacute reforccedilada pela necessidade de se evitar o engodo

dos usurpadores dos procedimentos rituais e discursos sagrados e para a distinccedilatildeo entre o

caminho das almas vingadoras e o caminho das Eumecircnides servidoras benevolentes da

Justiccedila O comentador de Derveni consigna a Orfeu a inteligecircncia da ordenaccedilatildeo coacutesmica e

sua expressatildeo cifrada em imagens miacuteticas narradas num poema escrito Como afirma

Obbink (LAKS 1997 p 42) a narrativa do mundo de Orfeu entendida corretamente

(orthōs) espelha nosso koacutesmos O autor pressupotildee o fato de que Orfeu possuiacutea uma

12 Bernabeacute assimila os magos mencionados na Col VI aos sacerdotes persas e confere uma interpretaccedilatildeo

pejorativo agrave sua atividade encantatoacuteria como charlatatildees que operam artifiacutecios com a finalidade de expiar

antigas faltas Betegh ao contraacuterio assume que o autor de Derveni aplica o temo bdquomaacutegoi‟ a um grupo de

sacerdotes persas ao qual ele mesmo pertence (TSNATSANOGLOU 2006 p 166 167) Fabienne Jourdain

(2003 p 37) associa os Maacutegoi a uma tribo meda composta por uma casta sacerdotal encarregada de assegurar a regularidade dos procedimentos em mateacuteria religiosa e que seria subjugada pelo rei Cambises e

posteriormente perseguida por Dario Segundo Apuleius ldquoum mago eacute algueacutem que mediante a comunidade

de fala com os deuses imortais possui um incriacutevel poder de encantar qualquer coisa que desejarrdquo (GRAF

apud MIRECKI MEYER 2002 p 93) No papiro de Derveni o comentador segue uma tradiccedilatildeo que atribui

ao substantivo o sentido pejorativo de ldquocharlatatildeordquo Os praticantes de ritos propiciatoacuterios e foacutermulas

encantatoacuterias que atraveacutes de pagamento procuravam esconjurar a culpa por transgressotildees satildeo a contrafaccedilatildeo

do genuiacuteno iniciado 13 Eriacutenias eles honram libaccedilotildees satildeo derramadas em gotas para Zeus em cada templo Aleacutem disso deve

oferecer excepcional honra agraves [Eumecircnides] e queimar um paacutessaro para cada [um dos daiacutemones] E ele junta

[hinos] bem adaptados ( ) agrave muacutesica

(TSANTSANOGLOU 2006 p 65 129)

48

inteligecircncia privilegiada das verdades maiores e deliberadamente as expressa

imageticamente em versos enigmaacuteticos

A questatildeo crucial natildeo se reduz ao domiacutenio de uma discussatildeo etimoloacutegica acerca da

natureza da linguagem da sinoniacutemia ou da alegorese nos moldes de um Estesiacutembroto com

o escopo semacircntico de atualizar um discurso miacutetico anacrocircnico e cristalizado pela escrita14

Trata-se sobretudo do desvelamento de uma modalidade discursiva que eacute

intencionalmente aberta agrave polissemia como meio de resguardar um saber iniciaacutetico que

carrega em seu bojo homologias estruturais entre relaccedilotildees de imagens e relaccedilotildees coacutesmicas

causais A exegese do autor de Derveni eacute ao mesmo tempo a transposiccedilatildeo de um pensar

por imagens para uma cosmologia da causalidade e o desvelamento daquilo que eacute oculto (e

interdito aos olhos e ouvidos natildeo adestrados) pelo esforccedilo e pelo exerciacutecio ritual

O poema de Orfeu no enfoque de Obbink se insere num ambiente cultual comum a

uma seacuterie de textos fuacutenebres como as lacircminas de ouro Oacuterficas cujas imagens configuram a

visatildeo do mundo dos mortos associada aos ritos de misteacuterio ldquoNatildeo eacute soacute o texto miacutestico que

possui uma significaccedilatildeo velada mas o mundo como um todo taacute eoacutenta a existecircncia humana

e a morterdquo (LAKS 1997 p 53)

A natureza ama ocultar-se diz Heraacuteclito15

A sabedoria consiste tradicionalmente

no aacuterduo exerciacutecio de conferir sentido agravequilo que se apresenta de forma cifrada ou

enigmaacutetica notadamente a interpretaccedilatildeo das prolaccedilotildees do oraacuteculo de Delfos Eacute sobre este

exerciacutecio praacutetico derivado da instituiccedilatildeo oracular de Delfos que Soacutecrates justifica sua

atividade filosoacutefica A inquiriccedilatildeo socraacutetica consiste na escalada ao piacutencaro secular de uma

14 Para uma descriccedilatildeo panoracircmica do debate contemporacircneo ver o ensaio introdutoacuterio de M S Funghi

(LACKS 1997 ) 15 DK B 123 THEMISTIUS Or 5 p 69 (KAHN

2003 p 63)

49

tradiccedilatildeo erigida sobre a inteligecircncia subjacente aos enigmas do deus O aacutenax cujo oraacuteculo

estaacute em Delfos natildeo diz nem oculta daacute sinal16

O discurso divino caracteriza-se pela

oposiccedilatildeo entre a fala manifesta e a inteligibilidade oculta A investigaccedilatildeo do sinal aparente

consiste na hyponoacuteia o desvelamento do sentido oculto da inteligecircncia inevidente que

subjaz agrave manifestaccedilatildeo visiacutevel A autecircntica obediecircncia ao deus consiste em investigar a si

mesmo (DK 101) em replicar a indagaccedilatildeo paradigmaacutetica de Soacutecrates em sua defesa o que

fala enfim o deus e qual eacute afinal o sentido oculto (ainiacutettetai17

)

O discurso divino (heiroacutes loacutegos) possui um modo enigmaacutetico proacuteprio de expressatildeo

que exige o recurso de imagens cifradas Qual eacute a relaccedilatildeo entre o manifesto e o invisiacutevel

Por que aquilo que natildeo estaacute presente ao olhar possui primado em relaccedilatildeo ao imediato Por

que buscar a inteligibilidade no oculto Por que o inevidente se assimila ao divino e por que

o discurso sagrado se expressa na plurivocidade das imagens e natildeo na literalidade da

palavra

O comentador de Derveni associa a natureza coacutesmica com o regramento e a

infrangibilidade dos limites divinos estabelecidos nas leis da phyacutesis Daiacutemones e Eriacutenias

satildeo almas psyacutekhai potecircncias invisiacuteveis servidoras da Justiccedila Diacuteke aparece como a

retribuiccedilatildeo infaliacutevel para a transgressatildeo aos limites coacutesmicos garantida por potecircncias

invisiacuteveis servidoras O viacutenculo inquebrantaacutevel entre transgressatildeo e retribuiccedilatildeo eacute

assegurado pela funccedilatildeo de vigilacircncia das almas A inteligecircncia apanaacutegio psiacutequico tem na

vigilacircncia da causalidade um princiacutepio constitutivo primordial Por essa razatildeo o

16 B 93 PLUT de Pyth or 21 p 404

Disponiacutevel em lthttppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics22-B92gt 17 Apologia 21b 04 (LEXICON I 2003)

50

comentador menciona o fragmento mais antigo de Heraacuteclito qualificando seu estilo

gnocircmico ao modo dos mitoacutelogos que falam por imagens

aquele que ltmudagt o que eacute estabelecido dar Ele

(Heraacuteclito) que precisamente se assemelha aos contadores de mitos

quando se exprime assim o sol segundo sua proacutepria natureza

possui a largura de um peacute humano natildeo ultrapassaraacute suas

medidas pois se ele excede sua proacutepria largura em algum grau as

Eriacutenias o descobriratildeo auxiliares de Diacuteke

(Col IV)18

Os maacutegoi procuram eludir transgressotildees de crimes passados atraveacutes de encantaccedilotildees

e sacrifiacutecios Mas as coisas estabelecidas (keiacutemena) natildeo podem ser modificadas Haacute uma

correlaccedilatildeo entre as leis coacutesmicas e as consequecircncias das accedilotildees humanas pois as mesmas

potecircncias invisiacuteveis asseguram o viacutenculo A apreensatildeo da inteligibilidade coacutesmica eacute parelha

agrave compreensatildeo das implicaccedilotildees psiacutequicas desencadeadas pela praacutexis O koacutesmos brota das

disposiccedilotildees da ordenaccedilatildeo (taacutexin) e natildeo do acaso A mesma Justiccedila que o regra impotildee

limites para o agir humano A referecircncia a Heraacuteclito indica que o campo da ascensatildeo

iniciaacutetica eacute simultaneamente cosmoloacutegico e eacutetico e faz parte da mesma tradiccedilatildeo da qual

emerge o ambiente mental dos preacute-socraacuteticos

Na sua abordagem estrutural-historicista sobre a formaccedilatildeo do pensamento positivo

grego Vernant sublinha o considera uma ldquomutaccedilatildeordquo mental operada pelos filoacutesofos

jocircnicos enquanto a loacutegica do mito hesioacutedico possui a ambiguidade de apreender

simultaneamente o mesmo fenocircmeno como fato natural no mundo visiacutevel e como geraccedilatildeo

divina no tempo primordial os elementos da Filosofia jocircnica seriam despojados de todo

caraacuteter antropomoacuterfico (VERNANT 2002 p 449 ss) Os elementos da Filosofia mileacutesia

18

(JOURDAIN 2003 v 6-10 p 4)

51

satildeo ao mesmo tempo ldquoforccedilasrdquo ativas divinas e naturais Embora o koacutesmos seja uma

ordenaccedilatildeo divina a causalidade jaacute natildeo eacute personificada mas delimitada e abstraiacuteda na

consecuccedilatildeo de efeitos fiacutesicos determinados Haveria uma mudanccedila de registro explicar e

compreender natildeo seriam mais encontrar a genealogia mas os princiacutepios primeiros

constitutivos do ser que implicam regularidade e ordenaccedilatildeo e que fazem com que koacutesmos

seja verdadeiramente um ldquoarranjordquo O historicismo marxista de Vernant comprometido

com a concepccedilatildeo de progresso ofusca a possibilidade hermenecircutica da coexistecircncia entre

planos polissecircmicos abertos que satildeo compartilhados por uma tradiccedilatildeo ritual iniciaacutetica e pela

exegese filosoacutefica que natildeo deixa de ser iniciaacutetica e ritual na praacutexis de um biacuteos

Na mudanccedila de registro operada por Heraacuteclito em particular as potecircncias divinas

satildeo despojadas de seu caraacuteter antropomoacuterfico e os nomes se revestem da sobriedade que

origina um vocabulaacuterio ontoloacutegico novo (RAMNOUX 1968 p 1-9) Mas o caraacuteter

indiferenciado do deus permanece no pensamento filosoacutefico

O deus dia noite inverno veratildeo guerra paz saciedade fome Ele

muda como se misturado a perfumes eacute nomeado segundo o gosto

de cada um

DK 67 (KAHN 2003 p 105)

Qual eacute o papel do fogo nesse cenaacuterio mental O que o dieferencia dos esquemas miacuteticos

hesioacutedicos Qual a relaccedilatildeo do fogo com os incensos Tal como o oacuteleo serve de meio neutro

para o perfume e recebe o nome do aroma o incenso evola-se do fogo e recebe o nome do

aroma do qual eacute constituiacutedo Nomeia-se o incenso natildeo pelo fogo mas pelo nome do

perfume que evola-se Deus da mesma maneira estaacute presente em tudo segundo as estaccedilotildees

e os dias mostrando-se sem cessar pelas contradiccedilotildees que compotildeem o drama da vida O

homem esquece-se do elemento que serve de base para todas as transformaccedilotildees que

compotildeem esse drama e nomeia cada aspecto segundo seu gosto (RAMNOUX 1968 P 377

52

ss) Para Heraacuteclito a coexistecircncia dos pares de opostos mostra aspectos multifacetados do

Um indistinto modos de contrariedade que manifestam um cosmo divino e um deus

presente em toda a physis Cada par de opostos constitui uma porccedilatildeo do Loacutegos divino

Quando se mistura uma multiplicidade de arocircmatas e se lhes atira ao fogo haacute

simultaneamente uma multidatildeo de perfumes e um uacutenico e indistinto fogo Do mesmo

modo haacute uma divindade e muitos nomes

Conforme observa Kahn o fragmento conteacutem a uacutenica definiccedilatildeo da divindade nos

fragmentos atribuiacutedos a Heraacuteclito A primeira parte do fragmento descreve a divindade em

termos formais mediante pares de opostos O texto sugere uma unidade coacutesmica que

ultrapassa a concepccedilatildeo tradicional da divindade Guerra e fogo satildeo designaccedilotildees de um

princiacutepio universal de ordem e justiccedila que eacute sobre-divino e coincide com o Um o princiacutepio

supremo que governa o koacutesmos e nutre todas as leis humanas (DK 114) O divino ldquoumrdquo eacute o

princiacutepio unificador representado pela guerra e pelo fogo eterno identificado com o

koacutesmos e que eacute o mesmo para todos os seres aceso com medida e com medida apagado19

(KAHN 2003 p 182-192) Deus eacute definido e identificado com os pares de opostos e

representa a unidade e a regularidade de um padratildeo de alternacircncia e de interdependecircncia

entre todos os opostos A identificaccedilatildeo da divindade com o padratildeo de alternacircncia entre

opostos determina a ordenaccedilatildeo coacutesmica Em Heraacuteclito a divindade eacute o que haacute de

regularidade nas manifestaccedilotildees infinitamente variegadas da Natureza eacute o princiacutepio de

ordenaccedilatildeo o Loacutegos que eacute tambeacutem o princiacutepio de unificaccedilatildeo que estaacute para aleacutem da

divindade tradicional hesioacutedica Na Filosofia de Heraacuteclito a causalidade eacute a relaccedilacirco

inexoraacutevel dos opostos que se alternam e a inteligecircncia teacutecnica eacute tatildeo somente uma

19

DK30

(KAHN 2003 p 73)

53

manifestaccedilatildeo particular de uma inteligecircncia coacutesmica universal ndash limite intransponiacutevel que

determina as ldquomedidas do fogordquo O koacutesmos eacute uma estrutura que abarca simultaneamente

todos os opostos como manifestaccedilatildeo de um padratildeo uacutenico o fogo que se mistura a incensos

Tal estrutura eacute um arranjo inteligente um Loacutegos metaforicamente expresso pelo fogo

O fogo segundo Charles Kahn (2003 p 138) eacute um siacutembolo de vida de vida sobre-

humana visto que eacute um elemento no qual nenhum ser vivo pode viver Aleacutem disso eacute um

poder que recebe os mortos na morte Representa simultaneamente a vida a criatividade a

morte e a destruiccedilatildeo Como fogo sacrificial ele representa o deus Ele eacute o elemento divino

inscrito na atividade humana que possibilita as teacutecnicas e a induacutestria que separam o homem

dos animais O fogo natildeo eacute um elemento material Eacute um processo de transiccedilatildeo de um estado

para outro um siacutembolo vivo da mudanccedila da vida e da morte do movimento e da

inteligecircncia criativa Em Heraacuteclito o fogo eacute o elemento do paradoxo As reversotildees do fogo

(DK 31) satildeo concebidas como medidas de um ciclo tal como a medida do pecircndulo

Para Anaximandro a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo pagam mutuamente as injusticcedilas

segundo a ordenaccedilatildeo do tempo ou seja a retribuiccedilatildeo eacute paga de acordo com a ordem do

tempo20

Princiacutepio dos seres o ilimitado pois o que eacute a geraccedilatildeo

para os seres a corrupccedilatildeo eacute para estes ao se gerar segundo o

necessaacuterio pois datildeo justiccedila a si mesmos e pagamento uns aos

outros pela injusticcedila segundo a ordenaccedilatildeo do tempo21

Heraacuteclito concebe a noccedilatildeo coacutesmica de trocas como um padratildeo de justiccedila segundo a

qual nada ocorre sem a justa retribuiccedilatildeo ou pagamento O princiacutepio que rege todo processo

20

(B 1 SIMPLIC Phys 24 13) Disponiacutevel

em lthttppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics12-Bgt 21 Trad de Cavalcante de Souza modificada (2000 p 50)

54

de mudanccedila eacute a justa retribuiccedilatildeo que ocorre segundo um criteacuterio em ldquomedidasrdquo Isso

significa que a estrutura coacutesmica eacute mantida pela causalidade como princiacutepio de ordenaccedilatildeo

A ldquomedidardquo que rege as trocas eacute preservada sobre uma sequumlecircncia de estaacutegios em uma

progressatildeo temporal que retorna ao ponto inicial do ciclo As medidas de igualdade satildeo

rigorosamente respeitadas pela retribuiccedilatildeo A noccedilatildeo de Justiccedila abarca natildeo somente a praacutexis

eacutetico-poliacutetica mas enraiacuteza-se na forja que molda laboriosamente a noccedilatildeo multifacetada da

causalidade Como afirma Vlastos (1947 p 146) o campo de aplicaccedilatildeo da palavra justiccedila

vai muito aleacutem da esfera legal e moral

Respeitar a natureza de algueacutem ou de algo eacute ser ldquojustordquo

com eles Piorar ou destruir a natureza eacute ldquoviolecircnciardquo ou

ldquoinjusticcedilardquo Assim em uma passagem bem conhecida Solon fala

do mar como o ldquomais justordquo quando imperturbaacutevel pelos ventos

natildeo perturba a ningueacutem ou a nenhuma coisa A lei da medida natildeo eacute

nada mais do que um refinamento desta ideacuteia de que a proacutepria

natureza de algueacutem e a natureza dos outros possuem limites que

natildeo podem ser ultrapassados

A justiccedila coacutesmica eacute uma concepccedilatildeo da natureza em geral

como associaccedilatildeo harmocircnica cujos membros observam ou satildeo

compelidos a observar a lei da medida Pode haver morte e

destruiccedilatildeo oacutedio e ateacute mesmo corrupccedilatildeo (como em Anaximandro)

Haacute justiccedila natildeo obstante se a usurpaccedilatildeo eacute invariavelmente

reparada e as coisas satildeo reinstaladas em seus limites proacuteprios

A causalidade em Heraacuteclito adquire um estatuto eminente de lei soberana que

cinge e preside a ordenaccedilatildeo coacutesmica O princiacutepio de regramento unificador pressupotildee as

concepccedilotildees de ldquomedidardquo ldquoigualdaderdquo ldquoequivalecircnciardquo ldquocompensaccedilatildeordquo ldquoproporccedilatildeordquo e

serve como fonte nutriz para as atividades humanas Na cosmologia de Heraacuteclito o fogo

teacutecnico eacute apenas uma fagulha do fogo coacutesmico a inteligecircncia humana assimila-se ao ciclo

coacutesmico divino e a Natureza permanece como fronteira divina intransponiacutevel

salvaguardada pelas Eriacutenias servas da Justiccedila

55

A causalidade no papiro de Derveni entremeia o plano das imagens miacuteticas

teogocircnicas com a significaccedilatildeo inevidente propiciada pela exegese cosmoloacutegica A eficaacutecia

das praacuteticas rituais dos maacutegoi atua como violaccedilatildeo entre a conexatildeo inquebrantaacutevel entre

falta e retribuiccedilatildeo excesso e compensaccedilatildeo O adivinho encantador eacute o intermediaacuterio

privilegiado entre o visiacutevel e o invisiacutevel entre o sacrifiacutecio violento e a puniccedilatildeo invisiacutevel

evitada A divisatildeo entre as imagens imediatas do poema e a interpretaccedilatildeo do seu sentido

oculto traz ao primeiro plano o conhecimento das causas e a legitimidade da transmissatildeo

Haacute uma homologia estrutural entre a transmissatildeo iniciaacutetica do ritual de misteacuterio e a

transmissatildeo iniciaacutetica de uma cosmologia que deve ser necessariamente misteriosoacutefica O

segredo consiste numa garantia contra a usurpaccedilatildeo do viacutenculo inexoraacutevel entre o longo

esforccedilo exigido pela via iniciaacutetica e a compreensatildeo das grandes verdades enigmaacuteticas que

soacute pode surgir como apanaacutegio de uma conquista de um estatuto superior de uma praacutetica de

vida concomitante agrave investigaccedilatildeo dos princiacutepios do koacutesmos

O sentido oculto pressupotildee um processo de conhecimento que se origina a partir de

imagens e signos provisoacuterios cujo papel deve ser o de remeter o inteacuterprete treinado para

realidades invisiacuteveis inevidentes

Por que natildeo crecircem (apistoucircsi) nas coisas terriacuteveis (deinagrave)

que os esperam no HadesSe natildeo compreendem (gignōskontes)

imagens oniacutericas (enyacutepnia) nem nenhuma outra de suas

manifestaccedilotildees praacuteticas particulares (tōn aacutellōm pragmaacutetōm

heacutekaston) por meio de que paradigma (paradeigmaacutetōm) se faria

com que cressemPois aqueles que tendem para a falta e os

prazeres que prevalecem nem aprendem nem crecircem (ou

manthaacutenousin oudegrave pisteuacuteousi) Pois incredulidade e ignoracircncia

satildeo o mesmo De fato se nem aprendem nem compreendem natildeo

haacute como crer ainda que vendo22

(Col V)

22 Trad de Fabienne Jourdain com modificaccedilotildees (2003 p 5 35-36)

56

As imagens oniacutericas (aquilo que eacute interno aos sonhos) configuram pontos de partida

para o conhecimento de accedilotildees Assim como a teleacutestica exige a transmissatildeo de um saber o

conhecimento das leis coacutesmicas exige a passagem da apreensatildeo das imagens manifestas

para a compreensatildeo de semelhanccedilas de homologias entre planos muacuteltiplos de significaccedilatildeo

discursiva e o koacutesmos A atividade exegeacutetica do comentador evidencia que o conhecimento

eacute intrinsecamente dependente de paradigmas imageacuteticos Aprender e compreender satildeo

diferentes de crer e incredulidade e ignoracircncia assimilam-se mutuamente pois a crenccedila eacute

um passo imprescindiacutevel tanto para aprender como para compreender Ademais o maior

obstaacuteculo para o aprendizado e para o conhecimento consiste na vitoacuteria dos prazeres Se o

conhecimento implica a transposiccedilatildeo de imagens ao mesmo tempo aparentes e

enigmaacuteticas para a inteligecircncia inaparente os prazeres induzem ao erro porque subjugam

vencem e impedem o aprendizado e a crenccedila na prisatildeo ao manifesto imediato Vencer a

tirania dos prazeres imediatos constitui o princiacutepio ritual para o conhecimento das grandes

verdades daiacute a inextricabilidade entre o sentido simboacutelico o segredo e o conhecimento

A palavra syacutembolon natildeo eacute atesta Burkert (1972 p 179) uma adiccedilatildeo da tradiccedilatildeo

tardia mas reflete uma concepccedilatildeo preacutevia a toda e qualquer exegese ldquosimboacutelicardquo Todos os

misteacuterios possuem segredos (apoacuterrēta) e palavras de passe secretas (syacutembola synthḗmata)

interpretados em um discurso sagrado (hierograves loacutegos) cujo sentido natildeo deve ser revelado

aos natildeo-iniciados

No domiacutenio da religiatildeo de misteacuterio satildeo bdquopalavras

de passe‟ ndash foacutermulas especificadas ditos (encantaccedilotildees)

dadas ao iniciado que asseguram por meio de seus confrades e

especialmente pelos deuses que seu novo e especial estatuto seja

reconhecido (BURKERT 1972 p 176)

57

No papiro de Derveni o exegeta indica a necessidade preacutevia de ldquocolocar portas nos

ouvidosrdquo pois Orfeu natildeo teria instituiacutedo leis para os muitos mas para aqueles cujos

ouvidos foram purificados (JOURDAIN 2003 p 44-45)

A teogonia escrita segue pari passu agrave cosmologia que emerge da interpretaccedilatildeo das

imagens Zeus recebe de seu pai a soberania ou a potecircncia (tegraven arkhḗn) como um filho

sucede ao pai (Col IX) A engendraccedilatildeo e a transferecircncia da forccedila sugerem a moldagem

coacutesmica a partir de princiacutepios e potecircncias primordiais O fogo possui a potecircncia de afastar

os seres e impedi-los de se combinar por causa do aquecimento Os seres aquecidos natildeo

podem juntar-se em massas compactas A nutriz dos deuses Niacutex possui a funccedilatildeo oracular

da profecia equivalente miacutetico do ensino da instruccedilatildeo foneacutetica que se vale da palavra

como meio de transmissatildeo (Col X) A fala articulada exige a faculdade foneacutetica como

mediaccedilatildeo necessaacuteria para o ensino A potecircncia profeacutetica da Noite indica a projeccedilatildeo

temporal da sua ldquoinstruccedilatildeordquo das regras mediadas pelo princiacutepio material Predizer equivale

a ensinar ou transmitir regramento Assim a Noite inscreve instruccedilatildeo no movimento

desencadeado pelo fogo e exerce uma accedilatildeo de resfriamento oposta ao aquecimento preacutevio

A disjunccedilatildeo operada pelo fogo eacute seguida pela combinaccedilatildeo propiciada pelo

aquecimento Sol e Noite satildeo potecircncias opostas de separaccedilatildeo e combinaccedilatildeo aquecimento e

resfriamento Os oraacuteculos da Noite satildeo proferidos das profundezas de santuaacuterio (aacutedyton)

impenetraacutevel (Col XI) As instruccedilotildees regradas satildeo fixas e interditas aos olhos profanos

pois a impenetrabilidade noturna eacute a imagem estaacutetica que se contrapotildee agrave periodicidade da

luz solar penetrante O proferimento oracular possui a finalidade de preservar as leis

(theacutemis) fixas que regem as profundezas dos seres a sua natureza oculta que faculta aos

myacutestai a capacidade de previsatildeo futura acerca das combinaccedilotildees e disjunccedilotildees das partiacuteculas

58

A Noite primordial exerce seu poder sobre o nevado Olimpo (Col XII) cuja

luminosa altitude e frieza satildeo assimiladas ao tempo cronoloacutegico A altitude e a largura

constituem grandezas polarizadas que simbolizam o regramento cronoloacutegico e o

regramento espacial identificado com o horizonte celeste O poder causal da Noite instaura

medidas no tempo-espaccedilo no qual se desenrolam as combinaccedilotildees e separaccedilotildees das

partiacuteculas Mas a potecircncia coacutesmica da geraccedilatildeo e soberania eacute identificada com a potecircncia

sexual

() o genital (aidoicircon) engoliu aquele que no eacuteter jorrou

primeiro Mas jaacute que em todo o poema ele recorre a enigmas para

falar das coisas pragmaacuteticas eacute necessaacuterio falar de cada verso

Vendo que os homens por haacutebito consideravam que a geraccedilatildeo

reside nos genitais (em toicircs aidoiacuteois) ele utiliza esse nome e como

eles consideravam que sem os genitais natildeo haacute geraccedilatildeo ele usa essa

palavra assimilando o sol ao genital De fato sem o sol natildeo eacute

possiacutevel que os seres venham a ser tais como satildeo ()

(Col XIII)23

Como observa Claude Calame (LAKS 1993 p 67 ss) na literatura grega aidoicircai

designa a genitaacutelia masculina ou feminina as vergonhas Os genitais satildeo a expressatildeo da

potecircncia geradora e a soberania coacutesmica assimila o poder de geraccedilatildeo em si mesma atraveacutes

da sequecircncia de accedilotildees na qual Zeus engole o pecircnis (aidoicircon) a proacutepria imagem da potecircncia

identificada com o sol O poder procriador manifesta-se na ambiguidade enigmaacutetica do

substantivo masculino aidoicircos que designa o genital masculino mas que pode ter tambeacutem

o sentido ativo de respeitoso e o sentido passivo de veneraacutevel (RAMNOUX 1968 p 97)

O princiacutepio procriador responsaacutevel pela geraccedilatildeo de todos os seres encontra no sol a

venerabilidade celeste da qual brotam as realidades que vecircem agrave luz Zeus por separaccedilatildeo

jorra no ar da brancura e brilho do resplandecente Kronos engendrado a partir do sol e da

23 Trad Fabienne Jourdain com modificaccedilotildees (2003 p 13)

59

Terra pelo choque das partiacuteculas umas com as outras (col XIV) Kronos aquele que choca

identifica-se com o Noucircs a Inteligecircncia que choca as partiacuteculas entre si Ouranos filho de

Euphroneacuteia a Noite eacute destituiacutedo da realeza pelo choque dissociativo empreendido pelo

Intelecto

A potecircncia procriadora inteligente associa a colisatildeo de partiacuteculas coacutesmicas com a

propriedade primordial da inteligecircncia de separar e discriminar A justaposiccedilatildeo do sol no

centro coacutesmico implica a transferecircncia da soberania para Zeus que possui a inteligecircncia

astuciosa Meacutetis Agrave segregaccedilatildeo e poder gerador do genital ajunta-se a inteligecircncia projetiva

astuciosa As realidades originam-se do genital coacutesmico e o Protogoacutenos eacute rei veneraacutevel

(aidoucirc) engendrado a partir de partiacuteculas eternas Toda a geraccedilatildeo coacutesmica pressupotildee o

concurso simultacircneo da potecircncia procriadora e do Noucircs Inteligecircncia primordial ldquoO

Intelecto eacute rei de todas as coisasrdquo As imagens cosmoloacutegicas forjadas pela exegese

simboacutelica satildeo consonantes com as concepccedilotildees pitagoacutericas de Filolau de Croacutetona

ndash E existem quatro princiacutepios do animal racional tal como Filolau

diz no ldquoDa Naturezardquo ceacuterebro coraccedilatildeo umbigo e os genitais A

cabeccedila eacute a sede do intelecto o coraccedilatildeo da alma e da sensaccedilatildeo o

umbigo do enraizamento e do primeiro crescimento os genitais da

emissatildeo de sementes e da geraccedilatildeo O ceacuterebro conteacutem o princiacutepio

do homem o coraccedilatildeo princiacutepio dos animais o umbigo o princiacutepio

das planta os genitais o princiacutepio de todos os seres vivos Pois

todas as coisas crescem e florescem das sementes F13 ndash

Theologumena arithmeticae 25 17

O acervo imageacutetico que associa o princiacutepio causal da geraccedilatildeo aos genitais eacute

onipresente na mentalidade grega na qual coexistem os cultos iniciaacuteticos e a Filosofia

cosmoloacutegica preacute-platocircnica A polissemia aberta suscita a questatildeo de que a vergonha eacute um

afeto primordial constitutivo Tal afeto irrompe da exposiccedilatildeo agrave visatildeo do devir derivado da

accedilatildeo sexual vinculada agrave luz solar fecundante Este viacutenculo entre enigma desvelamento e

vergonha tambeacutem eacute encontrado em Heraacuteclito (KAHN 2009 p 103)

60

Natildeo fosse Dioniso pelo qual marcham em procissatildeo e

cantam o hino ao falo suas accedilotildees poderiam ser vergonhosas Mas

Hades e Dioniso satildeo o mesmo por quem deliram e celebram a

Lenaia

(DK 15)

O jogo de oposiccedilotildees entre o poder procriador do falo e a morte entre a exposiccedilatildeo

vergonhosa e o invisiacutevel aideacutes justificam o canto ritual aidō que reclama exegese

filosoacutefica Dioniso e Hades satildeo o mesmo O deus da potecircncia sexual do transe e do

entusiasmo baacutequico eacute o mesmo deus da morte do invisiacutevel e das terriacuteveis puniccedilotildees que

aguardam os impuros no mundo dos mortos A potecircncia criadora do falo vergonha implica

a identidade com a inevitaacutevel morte com a retribuiccedilatildeo invisiacutevel e infaliacutevel A exposiccedilatildeo

vergonhosa manifesta implica a inexorabilidade oculta da retribuiccedilatildeo Vergonha e puniccedilatildeo

satildeo dois aspectos de uma identidade aidoacutes e diacuteke causalidade soberana salvaguardada

pelas Eriacutenias servas da Justiccedila

61

II - O MITO DO PROTAacuteGORAS teacutekhnai aidōs e diacutekē

Oacute Soacutecrates ele disse eu natildeo me recusarei mas por qual dos dois

modos o do mais velho que fala para com os mais jovens

demonstrando um mito ou narrando em detalhe por um discurso

(Protaacutegoras 320c02-04)24

O bom conselho que configura a preferecircncia (eubouliacutea) imbrica simultaneamente a

narrativa bem demonstrada e a argumentaccedilatildeo razoaacutevel Quando se trata da escolha

prudente a boa ordenaccedilatildeo do querer precede a boa ordem no agir e no falar (kaigrave praacutettein

kaigrave leacutegein) O discurso que move o querer se modela na razoabilidade das imagens miacuteticas

pois uma crenccedila soacute eacute verossiacutemil atraveacutes da ordenaccedilatildeo do loacutegos

O que explica a desigualdade entre homens iguais no que diz respeito aos dons

naturais para as teacutecnicas e a igualdade poliacutetica entre homens desiguais Como conciliar

estes opostos polarizados Por que o bom conselho concernente agraves teacutecnicas pressupotildee o

conhecimento o ensino e o especialista (dēmiurgoacuten) ao passo que o bom conselho poliacutetico

permite a opiniatildeo de qualquer um A narrativa miacutetica entremeada agrave phroacutenesis propicia a

inteligecircncia multivalente O ponto comum entre as imagens miacuteticas e o loacutegos eacute o seu poder

de invariacircncia pelo qual a presenccedila e realizaccedilatildeo da praacutexis viva remanescem e reaparecem

Tal eacute o caraacuteter primordial do discurso e do mito ambos expressam a invariacircncia no

movimento e tal como o divino natildeo constituem um apanaacutegio humano mas algo que se

apresenta como realidade viva Eacute por meio das accedilotildees e do falar que o homem apreende e

modela a sua realidade vivida captando-a natildeo mediante noccedilotildees exclusivamente racionais

mas atraveacutes de imagens que configuram uma inteligecircncia complexa (NUNES SOBRINHO

2008 p 30)

24

62

Natildeo obstante por que Platatildeo consigna uma grande narrativa miacutetica agrave fala de

Protaacutegoras um dos maiores sofistas contemporacircneos de Soacutecrates E por que esse mito

reproduz as imagens antropogecircnicas das narrativas hesioacutedicas Em sua anaacutelise das menccedilotildees

a Hesiacuteodo e Homero no corpus platocircnico Naoko Yamagata (in BOYS-STONES

HAUBOLD 2010 p 67-88) observa que Hesiacuteodo e Homero contribuiacuteram para os mitos

platocircnicos mais do que quaisquer outros poetas Os mitos que emprestam imagens de

Hesiacuteodo satildeo em geral mitos antropogecircnicos O mito do Protaacutegoras em particular cuja

estrutura eacute marcadamente hesioacutedica seria caracteristicamente anti-socraacutetico A tese geral de

Yamagata eacute a de que Hesiacuteodo eacute frequentemente ldquoinvocado como suporte para argumentos

epidecirciticos de natureza duacutebiardquo Haveria uma marcada tendecircncia em alguns diaacutelogos em

contrastar o uso ldquosofiacutesticordquo de Hesiacuteodo com um uso mais caracteristicamente socraacutetico de

Homero

Soacutecrates claramente prefere Homero a Hesiacuteodo mesmo em

diaacutelogos em que ele eacute alvo de ataque (Ion Repuacuteblica)

Ocasionalmente o contraste entre o Homero socraacutetico e o Hesiacuteodo

sofiacutestico ajuda a articular a estrutura global de um diaacutelogo

(Banquete Protaacutegoras) () Os mitos de Platatildeo mais bdquohesioacutedicos‟

tendem a ser estruturados diferentemente daqueles com um forte

sabor homeacuterico estes uacuteltimos satildeo todos narrados por Soacutecrates e

satildeo apresentados como relativamente ambiciosos quanto agrave sua

pretensatildeo agrave verdade Os mitos de Platatildeo mais bdquohesioacutedicos‟ satildeo

postos na boca de outros interlocutores que natildeo Soacutecrates e satildeo

estruturados como entretenimento (Protaacutegoras) jogo (Poliacutetico) ou

meramente verossiacutemil (Timeu) O uacutenico maior mito hesioacutedico

narrado por Soacutecrates eacute apresentado como uma bdquomentira Feniacutecia‟

(YAMAGATA in BOYS-STONES HAUBOLD 2010 p 88)

Embora o levantamento de Yamagata seja sugestivo no que tange ao escopo criacutetico

das narrativas de cunho hesioacutedico a suma cosmoloacutegica do Timeu e do mito do Poliacutetico

possuem uma densidade filosoacutefica de grandeza incompatiacutevel com qualquer desvalorizaccedilatildeo

e soacute satildeo anti-socraacuteticos na medida em que satildeo caracteristicamente platocircnicos Os mitos de

63

julgamento por outro lado satildeo explicitamente vinculados agraves ldquoantigas tradiccedilotildeesrdquo (paacutelai

leacutegetai Feacutedon 63c 06) de misteacuterios e natildeo podem ser identificados somente com a neacutekya

do livro XI da Odisseacuteia

Mesmo a narrativa encenada no Protaacutegoras evoca uma longa cadeia de transmissatildeo

oriunda dos cultos de misteacuterio e valores que compotildeem o ambiente mental grego Giovanni

Casadio (2010 p 3-5) distingue para efeito de anaacutelise os cultos de misteacuterios gregos em

modalidades diversas e salienta especialmente o caraacuteter da transmissatildeo de uma sabedoria

tradicional

Misteacuterios em geral implicam cerimocircnias especiais que satildeo

caracteristicamente esoteacutericas e frequentemente conectadas com o

ciclo anual da agricultura Usualmente eles envolvem o destino de

poderes divinos sendo venerados e a comunicaccedilatildeo de sabedoria

religiosa que habilita o iniciado a vencer a morte Eles eram parte

da vida religiosa geral mas separados do culto puacuteblico que era

acessiacutevel a todos Por essa razatildeo eram tambeacutem chamados ldquocultos

secretosrdquo(aporrēta) () ldquoMisteacuterio propriamente envolve toda

uma estrutura iniciatoacuteria de alguma duraccedilatildeo e complexidade cujo

tipo (e em muitos casos o real modelo) eacute Eleusis O ldquoculto

miacutesticordquo envolve natildeo a iniciaccedilatildeo mas antes uma relaccedilatildeo de

intensa comunhatildeo tipicamente extaacutetica ou entusiaacutestica com a

divindade (ex frenesi Baacutequico ou o kibeboiacute de Cybele) O culto

ldquomisteriosoacuteficordquooferece uma antropologia escatologia e meios

praacuteticos de reuniatildeo individual com a divindade cuja forma

primitiva e original eacute o Orfismo

O mito do Protaacutegoras amalgama elementos diacutespares da tradiccedilatildeo religiosa grega e

por isso aponta para uma composiccedilatildeo ao mesmo tempo argumentativa e narrativa que se

desdobra caracteristicamente numa espeacutecie de bricolage O amaacutelgama de um complexo de

elementos tradicionais dispostos numa sequecircncia de imagens sugere a hipoacutetese de que

Platatildeo como se fora sofista ao mesmo tempo em que fundamenta teses na tradiccedilatildeo rompe

com ela modificando-a atraveacutes de uma nova transmissatildeo re-significada Como afirma

Radcliffe Edmonds ldquouma narrativa dramatiza ldquovaloresrdquo mostrando na perspectiva do

64

narrador o que eacute bom e o que eacute inuacutetil ou maurdquo e salienta que os elementos tradicionais satildeo

evocativos (em vez de descritivos) de associaccedilotildees que ultrapassam o significado imediato

Os desdobramentos desencadeados pela sequecircncia de imagens accedilotildees e caracteres atraveacutes

da estrutura da narrativa carregam em seu bojo significaccedilatildeo para a audiecircncia (CASADIO

2010 p 74-75)

Composta a partir do acervo de imagens da mentalidade grega o mito do

Protaacutegoras eacute um constructo dramaacutetico de Platatildeo seu emprego argumentativo e retoacuterico

encenado pelo ceacutelebre mestre de sabedoria Protaacutegoras emana a fragracircncia acre-doce da

ironia platocircnica A encenaccedilatildeo articula-se com todo aroma irocircnico que permeia o diaacutelogo e

traz em seu bojo a discriminaccedilatildeo platocircnica que visa determinar a especificidade da

Filosofia mediante a cuidadosa separaccedilatildeo e descaracterizaccedilatildeo do ensino sofiacutestico

O mito do Protaacutegoras inicia-se com a afirmaccedilatildeo de uma clivagem no tempo Era um

tempo em que os deuses existiam mas os mortais natildeo25

A existecircncia preacutevia dos deuses

indica natildeo somente um tempo proacuteprio aos deuses mas a natildeo homogeneidade do tempo O

tempo dos mortais eacute essencialmente outro em relaccedilatildeo ao tempo dos deuses Por que o mito

comeccedila com a polarizaccedilatildeo e oposiccedilatildeo entre tempo dos deuses e tempo dos homens A

distinccedilatildeo qualitativa que rompe a homogeneidade esboccedila a concepccedilatildeo de que nem todo

devir nem todo tempo eacute equivalente a outro Haacute o tempo dos deuses o tempo das origens

o tempo forte que antecede o existir da experiecircncia humana e que por seu primado eacute um

tempo paradigmaacutetico exemplar absoluto norteador Retornar ao tempo das origens

implica em encontrar o sentido absoluto para a realidade presente a explicaccedilatildeo e o

25

65

fundamento26

mediante o tempo exemplar para todo o devir27

A explicaccedilatildeo e o sentido satildeo

buscados na origem coacutesmica e antropogocircnica de um Tempo primordial paradigma

absoluto Protaacutegoras funda o relativismo da isonomia e isēgoria28

poliacuteticas no absoluto

referencial do tempo primordial Antes que algo venha a ser seu tempo proacuteprio natildeo pode

constituir um devir o um apoacutes o outro dos phainoacutemena Por isso o tempo poliacutetico comeccedila

na origem das relaccedilotildees que possibilitam a formaccedilatildeo das primeiras poacuteleis e explica como a

praacutexis poliacutetica efetiva veio a instaurar-se

A oposiccedilatildeo entre myacutethos como discurso inverificaacutevel e loacutegos como discurso

atestaacutevel eacute superada no emprego argumentativo do mito e na narraccedilatildeo bem exposta do

argumento Protaacutegoras demonstra causas na narraccedilatildeo do mito e expotildee um argumento em

forma narrativa (myacutethon leacutegōn epideiacutexō ḗ loacutegō diexelthōn)29

A polarizaccedilatildeo opotildee o tempo

absoluto dos deuses ao tempo pereciacutevel e relativo dos mortais Este uacuteltimo soacute encontra a

estabilidade propiciadora da significaccedilatildeo na imutabilidade paradigmaacutetica do primeiro O

26 Mircea Eliade enfoca em vaacuterias obras a homologia estrutural entre o espaccedilo coacutesmico primordial e o tempo

original templum-templus O tempo ab initio das origens coacutesmicas corresponde ao centro do mundo

primordial O nascimento do Koacutesmos eacute tambeacutem o ponto originaacuterio o marco e o princiacutepio do ser e do existir

(ELIADE 1965 p 66 ss) A abordagem simbolista fortemente antropoloacutegica de Eliade identifica o tempo e espaccedilo miacuteticos com a experiecircncia religiosa e com o sagrado por excelecircncia Na transposiccedilatildeo filosoacutefica

platocircnica o mito narrado por Protaacutegoras emprega o retorno agraves origens teacutecnica de evasatildeo do tempo atual para

fundar e conferir significaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de uma experiecircncia poliacutetica e teacutecnica proacutepria agrave democracia

ateniense 27 A cosmogonia eacute modelo exemplar para toda espeacutecie de fabricaccedilatildeo e construccedilatildeo Acrescentemos que a

cosmogonia comporta tambeacutem a fabricaccedilatildeo do tempo Mais ainda assim como a cosmogonia eacute o arqueacutetipo

de toda fabricaccedilatildeo o Tempo coacutesmico que a cosmogonia faz jorrar eacute o modelo exemplar de todos os tempos

ou seja dos Tempos especiacuteficos das diversas categorias existentes (ELIADE 1965 p 69) 28 Berti (1978 p 348) identifica a liberdade poliacutetica com a liberdade de pensamento e expressatildeo que os

atenienses chamavam o ldquoigual direito de fala na assembleacuteia puacuteblicardquo (isēgoriacutea) A liberdade da fala seria uma

decorrecircncia da igualdade dos cidadatildeos perante a lei e um dos aspectos essenciais da democracia ateniense conforme se depreende de Heroacutetodo As forccedilas atenienses cresciam continuamente Poder-se-ia provar de mil

maneiras que a igualdade entre os cidadatildeos e o governo eacute a mais vantajosa () (HEROacuteDOTE V LXXVIII

1850) Claude Mosseacute afirma que os fundamentos da democracia ateniense no seacuteculo V satildeo ldquoa igualdade de

todos perante a lei o direito de todos de tomar a palavra diante da assembleacuteia o que eacute traduzido nos dois

termos frequentemente empregados como sinocircnimo de democracia isonomia e isēgoriacutea (1995 p84) 29 A iniciaccedilatildeo agrave virtude protagoriana inicia-se como observa Beall (1991 p 368) com um mythos que possui

um papel uacutetil na argumentaccedilatildeo Platatildeo ao contraacuterio correlaciona a Filosofia com a passagem pela morte e

seus grandes mitos de julgamento aparecem quase sempre no final dos diaacutelogos

66

tempo-irreversiacutevel devir relativo dos mortais se define atraveacutes do seu correlativo oposto o

paradigma absoluto o tempo-reversiacutevel dos deuses eternos Toda cosmogonia pressupotildee o

referencial absoluto do tempo primordial e do centro coacutesmico (ELIADE 1977 p 29-30)

Quando eacute chegado o tempo fixado pela sorte do nascimento dos mortais os deuses

os modelam a partir da terra misturada ao fogo e de tudo o que se mistura ao fogo

Era um tempo em que os deuses jaacute existiam mas o gecircnero dos

mortais natildeo Quando chegou o tempo de sua gecircnese fixado pelo

destino os deuses os modelaram no interior da terra realizando

uma mistura de terra de fogo e tudo o que se mistura agrave terra Em

seguida quando veio o momento de os trazer para a luz eles

encarregaram Prometeu e Epimeteu de repartir as potecircncias em

cada um deles em boa ordem como conveacutem30

(Protaacutegoras 320d)

Os mortais todos os thnētoi satildeo modelagem divina a partir de princiacutepios fiacutesicos

primordiais mistura de fogo terra e tudo o que a ele se mistura A demiurgia divina se

inscreve na terra com esse fogo primordial compondo uma mistura Em sua gecircnese os

mortais satildeo compostos da mistura de elementos fiacutesicos e inteligecircncia divina na sua

modelagem O divino modela o inanimado mediante a liga primordial entre terra e fogo

movente Seguem-se a partir disso novas oposiccedilotildees terra inanimada e fogo elementos

fiacutesicos destituiacutedos de inteligecircncia e inteligecircncia demiuacutergica dos deuses31

30 Texto estabelecido por A Croiset Traduccedilatildeo de F Idelfonse 31 O esquema da gecircnese dos mortais esboccedilado no mito evoca o fragmento 62 DK de Empeacutedocles

67

Quando chega o momento de trazer os mortais agrave luz (phōs) e distribuir os lotes com

kosmiacutea dois intermediaacuterios polarizados se interpotildeem Prometeu e Epimeteu Os filhos de

Jaacutepeto personificam a previdecircncia luacutecida antecipaccedilatildeo temporal de conexotildees inevitaacuteveis e a

imprevidecircncia cega indeterminaccedilatildeo e desacerto do devir A astuacutecia fulgurante (aioloacutemētis)

se opotildee ao errocircneo pensar (hamartiacutenooacuten)32

O equiliacutebrio entre os opostos exige a

compensaccedilatildeo muacutetua (Feacutedon 71e) Todavia haacute uma inversatildeo de papeacuteis e Epimeteu

astuciosamente persuade a Prometeu para que imprevidentemente delegue toda a tarefa de

distribuiccedilatildeo das potecircncias ao seu duplo miacutetico A distribuiccedilatildeo equilibra potecircncias opostas

nos seres vivos de maneira a assegurar a sobrevivecircncia diante dos perigos muacutetuos e diante

dos perigos naturais Todos os gecircneros de seres equilibram-se e justificam-se em seu

existir A hamartiacutea erro faltoso de Epimeteu resulta em uma aporiacutea a situaccedilatildeo impediente

B 62 SIMPL Phys 381 29

[v1] [I 335 5 App]

[v5]

[I33510App]

SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 381 29

Agora vem e como de homens e mulheres

de muitos prantos

noturnos rebentos trouxe agrave luz separando-

se o fogo destes ouve pois natildeo eacute mito sem

alvo e sem ciecircncia Inteiriccedilos primeiro (os) tipos de terra surgiam

de ambos de aacutegua e de forma brilhante

tendo parte estes fogo faziam subir

querendo ao semelhante chegar

nem ainda de membros amaacutevel forma

mostrando (eles)

Nem voz nem (tal) qual o membro

proacuteprio dos homens

(2000 Trad Joseacute Cavalcante de Souza)

(Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics31-B acessso em 03032010)

Segundo Clemence Ramnoux as operaccedilotildees artesanais constituem o modelo para a criaccedilatildeo as teacutecnicas de

ldquofusatildeo dos metais da combinaccedilatildeo de cores as receitas de panificaccedilatildeordquo configuram as noccedilotildees de ingredientes de mistura de proporccedilatildeo nas misturas e do artesatildeo fabricador Assim como um pintor pode com poucas

cores representar diversas formas de coisas variegadas assim tambeacutem a natureza pode criar todos os seres

naturais com poucos elementos (LONG 1999 p 160) O fogo emerge saltando em direccedilatildeo do Fogo do

alto levando ldquopequenas massas plaacutesticas feitas de terra com uma parte de calor e um lote

umidade Segundo a leitura de Ramnoux este esquema segue o padratildeo 3 + 1 trecircs lotes e um artesatildeo

(1968 p 187 ss) No mito de Protaacutegoras haacute trecircs elementos (terra fogo e elementos que se misturam aos

precedentes) e os deuses como artesatildeos 32 HESIOacuteDO Teogonia 511

68

ameaccediladora o homem no momento mesmo de sair de dentro da terra para a luz estaacute

inteiramente desprovido de capacidades

Eacute estabelecimento fixado pelo destino a saiacuteda do homem do seio da terra para a luz

(exieacutenai ek gḗs eis phōs Protaacutegoras 321c06-07) A ambiguidade da passagem anuncia a

duplicidade do existir humano que pressupotildee a saiacuteda da obscuridade do interior da terra

para a luz No Craacutetilo a personagem de Soacutecrates identifica a claridade seacutelas com a luz

phōs e por essa razatildeo a luz da lua eacute ao mesmo tempo nova e antiga sua luminosidade eacute

ambiacutegua por refletir a luz do sol (409b) A liga divina de fogo que surge para a luz eacute

ambiacutegua pois o estado de carecircncia dos homens anuncia a cataacutestrofe de seu

desaparecimento

A passagem da obscuridade da terra para a luz concatena uma sequecircncia

paradigmaacutetica de imagens e sugere uma mutaccedilatildeo no regime do ser Haacute a transposiccedilatildeo do

natildeo-ser atemporal mediado por uma geraccedilatildeo modeladora ateacute o ser e o devir Essa

sequecircncia eacute exemplar e narra como o homem veio a ser e por essa razatildeo funda e norteia

todo fazer toda praacutexis e todas as instituiccedilotildees poliacuteticas e ciacutevicas Eacute porque o homem foi

gerado por deuses sobrenaturais que a suma de suas condutas e praacuteticas pertence a um

tempo primordial As praacuteticas e instituiccedilotildees possuem sua razatildeo de ser porque na aurora do

tempo humano houve uma sequecircncia primordial de geraccedilatildeo e gestaccedilatildeo A modelagem

primordial constitui um modelo exemplar para todo fazer e toda fabricaccedilatildeo que remetem agraves

gestas operadas pelos deuses para a engendraccedilatildeo do koacutesmos e dos mortais A cosmogonia

primeva representa uma sequecircncia de imagens que configuram a passagem do khaacuteos

tenebroso matriz e Noite para a luz coacutesmica ou a passagem daquilo que natildeo existe o natildeo-

ser para o ser (ELIADE 1959 p 12-21)

69

Quando se trata de iniciar um neoacutefito na praacutexis poliacutetica o mito de emersatildeo e a

antropogonia do seio da terra re-atualiza o itineraacuterio complexo de accedilotildees que configuram a

passagem da obscuridade para a luz do sol A narrativa da criaccedilatildeo dos homens justifica o

ritual de refazer formar de criar uma nova situaccedilatildeo espiritual ou psiacutequica (ELIADE

1957 p 200) As imagens de uma iniciaccedilatildeo apontam para um novo iniacutecio mediante o qual

se anuncia a molda de um modo de ser superior da indistinccedilatildeo desordenada Nas imagens

antropogocircnicas o homem eacute modelado ele natildeo se faz a si mesmo Na origem do tempo

cronoloacutegico haacute uma accedilatildeo demiuacutergica que inscreve ordem em princiacutepios desordenados e

misturados accedilatildeo por conseguinte divina e produto de potecircncias invisiacuteveis Por outro lado

a iniciaccedilatildeo de um neoacutefito pressupotildee uma transmissatildeo operada por mestres de sabedoria

que se vincula e remonta a uma longa cadeia da tradiccedilatildeo ancestral Essa tradiccedilatildeo consolida-

se atraveacutes da transmissatildeo ritual que prepara o neoacutefito para um novo modo de ser mediante a

repeticcedilatildeo de gestas e imagens pertencentes a um cenaacuterio que natildeo pode ser descrito mas

somente narrado e dramatizado (ELIADE 1959 p 20)

O embate de Soacutecrates com o mestre de sabedoria Protaacutegoras dramatiza modos

concorrentes de interpretar e re-significar um acervo de saberes potecircncias crenccedilas afetos e

imagens religiosas em uma transposiccedilatildeo determinante para a mentalidade de um novo

gecircnero de vida e um novo tipo de homem Com isso Platatildeo coloca em questatildeo e em

combate singular transposiccedilotildees antagocircnicas de paideiacutea e paradigmas eacutetico-poliacuteticos para o

novo homem

Protaacutegoras transpotildee as iniciaccedilotildees e oraacuteculos das seitas de misteacuterio praticadas por

Orfeu e Museu para a atividade sofiacutestica33

(Protaacutegoras 316d08) A passagem da noite

trevosa para a luz do sol imagem da emergecircncia para um novo plano de ser eacute doravante

33

70

associada aos mestres de sabedoria cuja aparecircncia ocultava a verdadeira natureza do seu

saber e do seu poder Todas as modalidades de iniciaccedilotildees que conferem a possibilidade de

ascensatildeo aos planos superiores de humanidade satildeo no fim iniciaccedilotildees sofiacutesticas O mito de

retorno agraves origens eacute a fala razoaacutevel que consolida este postulado

A terra gḗ identifica-se com o uacutetero feminino e a gestaccedilatildeo gaicirca seria o nome

correto para geratriz gennḗteira e derivaria de gegennḗsthai ser engendrado (Craacutetilo

410c) A terra eacute matriz paradigmaacutetica para a gestaccedilatildeo e o nascimento

Ora eacute pela terra mais que pela mulher que eacute preciso receber tais

provas pois natildeo eacute a terra que imitou a mulher na concepccedilatildeo e na

gestaccedilatildeo mas eacute a mulher que imitou a terra

(Menexeno 238a 03-05)

A operaccedilatildeo fundidora do fogo com a terra expressa uma relaccedilatildeo solidaacuteria entre a

gestaccedilatildeo e o nascimento a partir da matildee terra e a metalurgia A gestaccedilatildeo ctocircnica constitui o

ato exemplar para a gestaccedilatildeo humana conjugaccedilatildeo solidaacuteria entre a moldagem metaluacutergica e

a sexualidade34

e nesse sentido a antropogonia se conjuga a uma ontogenia (ELIADE

1977 p 30)

Para assegurar a fusatildeo mediante o fogo primordial eacute preciso a intervenccedilatildeo do

artiacutefice vivo a forja dos homens pelo fogo eacute animada pelos deuses Mas as suas potecircncias

advecircm de mediadores que delimitam planos de ser distintos

A imprevidecircncia de Epimeteu suscita a aporiacutea impediente os homens estatildeo

desguarnecidos e desadornados diante do equiliacutebrio kosmeacutetico dos animais sem fala A

distribuiccedilatildeo das potecircncias aos mortais implica a sua determinaccedilatildeo O homem ao contraacuterio

34 Na menccedilatildeo de Simpliacutecio a Empeacutedocles (DK 71) haacute accedilatildeo artesanal operada por Afrodite que se assemelha agrave

de um pintor que mistura cores Terra aacutegua eacuteter e sol satildeo harmonizados numa mistura amorosa da qual

surgem as formas e as cores dos mortais As noccedilotildees de operaccedilatildeo mistura e harmonizaccedilatildeo se conjugam agrave

noccedilatildeo de forma visiacutevel como produto da accedilatildeo artesanal de Afrodite (RAMNOUX 1968 p 188-189) A

conotaccedilatildeo sexual eacute assimilada agrave operaccedilatildeo artiacutestica de mistura e produccedilatildeo de cores e formas visiacuteveis

Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics31-B

71

ndash desprovido de todas as potecircncias ndash eacute indeterminado Para compensar a falta desmedida

de Epimeteu eacute preciso um expediente ao mesmo tempo astucioso e sobrenatural Prometeu

natildeo tendo qualquer salvaccedilatildeo para os homens recorre ao instrumento divino do engenho

mecacircnico e furta o saber teacutecnico e o fogo de Hefestos e Athena35

Hefestos eacute o mestre do fogo e da luz (phaacuteeos hiacutestōr) o Brilhante (Phaicircstos) e

Athena eacute a inteligecircncia divina (Hatheonoacutea) a que tem inteligecircncia das coisas divinas (tagrave

theicirca nooucircsa)36

O domiacutenio do fogo evoca natildeo somente as imagens ligadas agrave inteligecircncia

teacutecnica mas indica a determinaccedilatildeo de um estatuto superior do ser que comporta um

aspecto maacutegico ou sobrenatural intriacutenseco a toda atividade fabricadora O ferreiro divino

portador do fogo aperfeiccediloa a obra dos deuses a organizaccedilatildeo do Koacutesmos e confere ao

homem a inteligecircncia que o distinguiraacute dos animais sem fala e a capacidade de apreender a

ordem coacutesmica (ELIADE 1977 p 65ss)

Prometeu sem ser visto entra oculto (lathōn eiseacuterkhethai) nas oficinas celestes

rouba o fogo e o presenteia aos homens Com isso mediante o saber portado pelo fogo os

homens adquirem as teacutecnicas e os meios para a manutenccedilatildeo da vida e para a proteccedilatildeo

contra as intempeacuteries naturais Se a dimensatildeo demiuacutergica permitiu ao homem superar sua

falta de determinaccedilotildees foi somente mediante as teacutecnicas que o homem descobriu a

possibilidade de agir livremente A eleutheria natildeo eacute um presente dos deuses (Protaacutegoras

312b) O homem soacute pode agir livremente pela capacidade antecipatoacuteria e valorativa

propiciada pelo caacutelculo do mais vantajoso e isso soacute ocorre porque ab initio ele eacute desprovido

de determinaccedilotildees no seu agir Ao contraacuterio dos animais cujo agir eacute preacute-determinado do

35

(Protaacutegoras 321c08-d01) 36 Craacutetilo 407b-c

72

nascimento ateacute a morte o homem eacute essencialmente indeterminado (GALIMBERTI 2009

p 2)

As artes suscitam ainda a demarcaccedilatildeo entre o estatuto divino e humano cuja

natureza ambiacutegua participa ao mesmo tempo do divino e do mortal37

O lote de participaccedilatildeo

e parentesco divino justifica a instauraccedilatildeo miacutetica do sacrifiacutecio e do culto aos deuses

mediante as estaacutetuas oferendas imageacuteticas de joalheria e elevaccedilatildeo de templos O lote de

participaccedilatildeo nos seres mortais determina a especificidade do uacutenico dos vivos zdōion que

pode nomear os deuses pela fala regrada

O esquema causal se esboccedila no mito de Protaacutegoras i) uma falta original a

imprevidecircncia de Epimeteu suscita uma situaccedilatildeo impediente ii) o quadro problemaacutetico

exige a busca da causa e o diagnoacutestico eacute feito por Prometeu iii) o mediador divino

mediante astuacutecia dolosa busca o expediente sobrenatural do fogo iv) o meio astucioso

teacutecnico eacute empregado e a cataacutestrofe remediada por um presente v) um novo estatuto eacute

determinado mas o dolo usurpador reclama nova retribuiccedilatildeo

Embora o saber teacutecnico salvaguarde a equipagem para a sobrevivecircncia natural os

homens natildeo obstante natildeo possuem o saber poliacutetico e a arte da guerra que participa da

poliacutetica Por essa razatildeo incapazes de dominar os instrumentos da guerra sucumbem diante

da forccedila dos animais e procuram agrupar-se em cidades para garantir a seguranccedila muacutetua

Todavia mostram-se igualmente destituiacutedos da philiacutea e acabam por cometer injusticcedilas

destruindo-se mutuamente A carecircncia da arte poliacutetica implica a incapacidade de seguranccedila

e salvaguarda da justiccedila necessaacuterias para a formaccedilatildeo de comunidades e cidades

37

(Protaacutegoras 322a04-08)

73

Todo presente exige o contra-presente a justa compensaccedilatildeo Em Hesiacuteodo o mito de

Prometeu esboccedila a narrativa na qual simultaneamente ocorre a separaccedilatildeo entre plano dos

deuses e o plano dos homens mortais mas tambeacutem entre o masculino e o feminino O

mito de Prometeu eacute tambeacutem o mito da primeira mulher Dom de todos os deuses artefato

moldado e adornado pela inteligecircncia oliacutempica Pandora eacute a contrapartida para a vida e o

fogo biacuteos e pyacuter Anti-pyacuter o contra-presente de Zeus instaura o poacutelo de um novo geacutenos o

feminino que demarca a ambiguidade humana Ao saber teacutecnico previdente e antecipatoacuterio

se contrapotildee a indefiniccedilatildeo dos males indefectiacuteveis e a espera indistinta de elpiacutes a

expectaccedilatildeo exclusivamente humana do bem indeterminado e natildeo dataacutevel38

(VERNANT

2005) Em Pandora equilibram-se o apelo irresistiacutevel do encanto da forma de virgem e da

graccedila determinaccedilotildees essenciais de Afrodite e Athena e a mentira conduta dissimulada e

olhar obliacutequo e traiccediloeiro do catildeo instilados por Hermes (HESIacuteODO 2006 v 59-85)

Mas no mito de Protaacutegoras se haacute uma polarizaccedilatildeo entre Hefestos e Athena opostos

divinos de saber e metalurgia teacutecnicas natildeo haacute por outro lado nenhuma menccedilatildeo a um

paacuterthenos o feminino no plano dos homens Por que Protaacutegoras rompe com a simetria de

contrapartidas da tradiccedilatildeo miacutetica Qual eacute a justa retribuiccedilatildeo para o dolo astucioso de

Prometeu O que estabelece definitivamente a natureza humana apoacutes a instrumentaccedilatildeo do

saber teacutecnico que simultaneamente distingue os homens dos animais e define a separaccedilatildeo

entre o plano dos deuses e o plano dos mortais Hermes mensageiro e arauto divino natildeo

retribui a fraude de ocultaccedilatildeo de Prometeu com a graccedila visiacutevel da mulher e com a

ambivalecircncia da mistura de bens males e incertezas caracteriacutesticos do biacuteos Em vez disso

opera a passagem para um novo plano de mediaccedilotildees

38 Beall (1991 p 367) conecta Elpiacutes com o auto-engano que nega a presenccedila visiacutevel dos males

74

O domiacutenio do fogo as artes metaluacutergicas e demiuacutergicas propiciadas pelo saber

teacutecnico natildeo encontram equivalentes simeacutetricos no plano da natureza Em vez do contra-

presente que estabelece o equiliacutebrio Protaacutegoras amplia a estrutura da narrativa para fundar

no registro da encantaccedilatildeo e do referencial absoluto das origens primordiais um novo plano

que se opotildee agrave natureza a poliacutetica Uma nova sequecircncia de accedilotildees emerge i) a injusticcedila

dolosa decorrente da carecircncia da arte poliacutetica anuncia uma situaccedilatildeo calamitosa ii) a

destruiccedilatildeo suscita a busca das causas e o diagnoacutestico iii) o mensageiro sobrenatural se vale

dos meios divinos astuciosamente forjados iv) os artifiacutecios divinos remediam a situaccedilatildeo

problemaacutetica v) os dolos subsequentes satildeo retribuiacutedos com a lei infaliacutevel de Zeus

Qual eacute a nova compensaccedilatildeo para o roubo oculto de Prometeu Pandora personifica a

ambiguidade feminina da natureza humana numa obra de arte divina concebida para ser

irresistiacutevel ao olhar Ao presente propiciado pela fraude oculta se contrapotildee o presente

concebido para ser visto como bem irresistiacutevel mas que esconde males invisiacuteveis No novo

plano de ser inaugurado por Protaacutegoras agrave fraude oculta se contrapotildee o par de presentes

essencialmente ligados ao olhar de todos aidōs e diacutekē

As accedilotildees de Zeus natildeo se desenrolam num combate singular de astuacutecias retribuiccedilatildeo

da hyacutebris desmedida O temor (deiacutedō) oliacutempico expressa a necessidade de manutenccedilatildeo da

ordem e simetria naturais e justifica a instauraccedilatildeo das condiccedilotildees primordiais para a

existecircncia da comunidade poliacutetica e de seus princiacutepios de determinaccedilatildeo

A sequecircncia de poacutelos opostos eacute homoacuteloga agrave sequecircncia de imagens do mito que

esboccedilam a natureza ontoloacutegica determinante do existir ndash ser ndash dos deuses e o natildeo-ser dos

mortais no princiacutepio os deuses eram e os mortais natildeo Ao par primordial corresponde uma

atividade mediadora que engendra novo par os deuses inscrevem inteligecircncia demiuacutergica

nos elementos primordiais inanimados terra elementos intermediaacuterios para a liga e fogo A

75

passagem do natildeo-ser para o ser eacute homoacuteloga agrave passagem do interior da terra para a luz do

sol imagem paradigmaacutetica da iniciaccedilatildeo

Surge assim a polarizaccedilatildeo entre inteligecircncia divina animada e elementos

inanimados destituiacutedos de inteligecircncia A mistura engendra a polarizaccedilatildeo entre deuses

imortais e seres mortais e instaura a separaccedilatildeo entre o tempo dos deuses e o tempo dos

mortais O regramento ordenado pressupotildee a distribuiccedilatildeo coacutesmica de potecircncias operada por

intermediaacuterios opostos divinos Prometeu e Epimeteu A imprevidecircncia e incapacidade de

antecipaccedilatildeo temporal de Epimeteu se opotildeem agrave astuacutecia engenhosa e antecipatoacuteria de

Prometeu A distribuiccedilatildeo desmedida das potecircncias aos animais salvaguarda a vida natural

mas determina a carecircncia completa de potecircncias para o homem

O estatuto humano estaacute sem lugar na oposiccedilatildeo entre imortais e mortais e a

determinaccedilatildeo exige a intervenccedilatildeo do fogo instrumento astuciosa e ocultamente

intermediado por Prometeu O estatuto humano implica a passagem da obscuridade da terra

para a luz fixada pela necessidade do destino O fogo teacutecnico dolosamente artificiado

permite o acabamento da iniciaccedilatildeo primordial que engendra o ser do homem e compensa a

sua impotecircncia original mas se opotildee ao fogo das forjas oliacutempicas Haacute entatildeo a oposiccedilatildeo

entre uma demiurgia divina que inscreve inteligecircncia no desregramento inanimado e a

demiurgia teacutecnica humana cuja funccedilatildeo eacute instrumental e mediatizada Enquanto a demiurgia

divina cumpre a finalizaccedilatildeo de determinaccedilotildees temporais absolutas a demiurgia humana

instrumentaliza recursos na indeterminaccedilatildeo da temporalidade do devir Ambas operam

iniciaccedilotildees opostas a iniciaccedilatildeo divina traz o homem agrave existecircncia pela saiacuteda do seio escuro

da terra para a luz a iniciaccedilatildeo nas artes humanas retira o homem da ignoracircncia trevosa dos

animais instaura seu parentesco com o plano dos deuses e demarca suficientemente

76

(hikanoacutes) a separaccedilatildeo entre o detentor do saber e os profanos os idioacutetai (Protaacutegoras

322c07)

A demiurgia humana e o domiacutenio do fogo definem o estatuto intermediaacuterio dos

homens diante dos deuses e animais A natureza do homem participa ao mesmo tempo do

divino e do mortal As teacutecnicas instauram as relaccedilotildees entre os planos e inauguram o culto o

sacrifiacutecio e os artefatos que definem os opostos entre visiacutevel e invisiacutevel As estaacutetuas

aacutegalmata e templos delimitam no plano visiacutevel a homologia estrutural entre o sagrado e o

profano o tempo dos deuses e devir dos mortais a presenccedila visiacutevel da imagem do deus

invisiacutevel e o reconhecimento invisiacutevel da inteligecircncia do deus presente

Entretanto ponte de mediaccedilatildeo entre o humano e o divino a inteligecircncia teacutecnica natildeo

salvaguarda a vida da violecircncia dos animais e da injusticcedila humana Intermediaacuterio entre

poacutelos opostos o plano dos homens requer para o seu perfeito acabamento a intervenccedilatildeo

dos princiacutepios divinos providenciados por novo mensageiro mediador Para compensar a

distribuiccedilatildeo fraudulenta oculta e desigual da participaccedilatildeo no saber teacutecnico Hermes com

equidade reparte abertamente aidōs e diacutekē entre os homens e arauto dos deuses proclama

em nome de Zeus suprema lei a de levar agrave morte como praga da cidade aquele que natildeo

tiver a potecircncia de participar de aidōs e diacutekē

O par aidōs e diacutekē natildeo constitui somente princiacutepio de possibilidade da comunidade

poliacutetica e existir das poacuteleis Ele eacute o contra-presente que compensa o furto e o dolo eacute a

contrapartida visiacutevel para a astuacutecia invisiacutevel Mas se Pandora eacute a personificaccedilatildeo

ambivalente do bem irresistiacutevel da graccedila divina visiacutevel e dos males indeterminados

invisiacuteveis qual deve ser a ocultaccedilatildeo sob o bem aparente de aidōs e diacutekē Se Pandora eacute

essencialmente modelagem de opostos visiacuteveis e invisiacuteveis qual eacute a oposiccedilatildeo essencial

subjacente a aidōs e diacutekē

77

Luc Brisson (2003 p 141-166) seguindo a majestosa esteira de Georges Dumeacutezil

desenvolve no mito encenado pela personagem platocircnica de Protaacutegoras uma interpretaccedilatildeo

de tonalidade positivista calcada numa estrutura tri-funcional A partir dos dois eixos

basilares da natureza e cultura Brisson distingue pares de opostos nos eixos seguranccedila

equipamentos e alimentaccedilatildeo As trecircs oposiccedilotildees fundamentais seriam deusesmortais

homensanimais teacutecnica demiuacutergicateacutecnica poliacutetica

I ndash Oposiccedilatildeo deuses mortais ndash Desse poacutelo derivam seres com existecircncia

independente e natildeo derivada seres com existecircncia dependente e derivada Satildeo enviados

delegados para distribuir poderes e terminar a organizaccedilatildeo Haacute uma triparticcedilatildeo divina Zeus

(soberania arte poliacutetica) Hefesto e Atena (detentores da arte do fogo e outras artes) A

triparticcedilatildeo relaciona-se com uma triparticcedilatildeo espacial Olimpoacroacutepolepeacute da elevaccedilatildeo Os

mortais devem sua existecircncia aos deuses

2 ndash Oposiccedilatildeo homens animais ndash O mundo dos animais eacute o reverso do mundo dos

homens animais desprovidos de razatildeo homens racionais que devem viver na cidade

determinismo sabedoria praacutetica O mundo dos animais implica um equiliacutebrio fechado e

suas necessidades satildeo satisfeitas o determinismo substitui a razatildeo Os homens

caracterizam-se pela condiccedilatildeo precaacuteria e vulnerabilidade que implica a indeterminaccedilatildeo das

necessidades Haacute a exigecircncia de mediaccedilatildeo do saber teacutecnico e da razatildeo A sobrevivecircncia

exige o domiacutenio da teacutecnica poliacutetica e da teacutecnica militar o que implica o uso irrestrito da

teacutecnica demiuacutergica O plano do possiacutevel compensa a carecircncia do plano do que eacute

determinado A razatildeo supera o determinismo

78

3 ndash Oposiccedilatildeo teacutecnica demiuacutergica teacutecnica poliacutetica -

Deste poacutelo surge a analogia fundamental modeterminis

razatildeo

animais

homens O saber

teacutecnico implica a oposiccedilatildeo demiurgiapoliacutetica O mundo dos deuses eacute tripartite e dele deriva

um reflexo funcional na cidade A cidade pressupotildee a poliacutetica que inclui a arte militar A

cidade exige o setor produtivo que abarca demiurgia e agricultura As necessidades

humanas satildeo tambeacutem tripartites seguranccedila equipamentos alimentaccedilatildeo As necessidades

humanas satildeo mediadas pelas teacutecnicas que garantem os trecircs planos A seguranccedila eacute absorvida

na Poliacutetica (guardas de Zeus) A funccedilatildeo produtiva se assimila agrave demiurgia A triparticcedilatildeo eacute

reduzida agrave oposiccedilatildeo demiurgiapoliacutetica e eacute sustentada pelos mediadores de Zeus Prometeu

(demiurgia) e Hermes (poliacutetica) O fogo simboliza a arte demiuacutergica e estabelece um

parentesco com o divino atraveacutes do culto uso do fogo sacrifical e a relaccedilatildeo entre o humano

e o divino A demiurgia implica especializaccedilatildeo de funccedilotildees e a divisatildeo do trabalho A

divisatildeo por sua vez acarreta a incapacidade de vida comunitaacuteria e a dispersatildeo Por isso

Zeus envia Hermes para levar aidōs e diacutekē (pudor e justiccedila) que se opotildeem agrave potecircncia

demiuacutergica a integraccedilatildeo se opotildee agrave divisatildeo A fundamentaccedilatildeo da existecircncia poliacutetica da

cidade depende da integraccedilatildeo entre todos Aidōs e diacutekē satildeo distribuiacutedos por Hermes de igual

maneira entre todos ao passo que a demiurgia representa um saber teacutecnico que cabe a

pequeno nuacutemero de especialistas Quem natildeo participar das duas virtudes deve ser excluiacutedo

e punido como se fosse uma doenccedila As relaccedilotildees cultuais estabelecem uma uniatildeo entre os

homens e os deuses mas estas natildeo satildeo suficientes para a uniatildeo dos homens entre si O fogo

teacutecnico eacute fator de divisatildeo e natildeo de uniatildeo A justiccedila no sentido largo para o cumprimento

das regras exige um sentimento iacutentimo de contenccedilatildeo que leva em conta a opiniatildeo do outro e

que confere vida ao direito Enquanto a demiurgia abarca a necessidade de equipamentos e

79

alimentaccedilatildeo a poliacutetica institui laccedilos de uniatildeo e seguranccedila Segundo Brisson o mito do

Protaacutegoras representa o surgimento da cidade e funda sua divisatildeo fundamental a partir da

oposiccedilatildeo demiurgia poliacutetica Tal divisatildeo eacute descrita como natural e espelha a oposiccedilatildeo

Natureza Cultura

Deuses

Mortais Homens

Animais Teacutecnicas militar e poliacutetica

Demiurgia

As oposiccedilotildees destacadas por Brisson embora esclarecedoras parecem

condicionadas agrave concepccedilatildeo positiva do Direito elaborada por Louis Gernet

Diacutekē eacute a justiccedila tal qual ela se manifesta antes de tudo no

julgamento ndash e por conseguinte na condenaccedilatildeo na execuccedilatildeo ndash e

tambeacutem por referecircncia impliacutecita e expliacutecita a um outro termo algo

como o jus strictum () Pode-se dizer que (aidoacutes) designa um

sentimento de respeito ou de moderaccedilatildeo que se aproxima pelo

menos da reverecircncia religiosa ndash que de fato pode ter por objeto a

divindade ndash mas vale essencialmente na ordem das relaccedilotildees

humanas onde ele comanda certas abstenccedilotildees ou certas atitudes

diante de um parente de um ser eminente em dignidade de um

suplicante sentimento social e moral jaacute que aidoacutes eacute

simultaneamente zelosa com a opiniatildeo puacuteblica da qual ela aparece

muitas vezes como a contrapartida e preocupada em um sentido de

bom grado aristocraacutetico com o que o sujeito deve a si mesmo

(GERNET 1982 p 14-15)

Em contrapartida ao aspecto afetivo que emana da opiniatildeo coletiva Walter Otto

realccedila a interpretaccedilatildeo de que originariamente Aidoacutes natildeo designa ldquoa vergonha de algo que

faz enrubescer mas a apreensatildeo sagrada face ao intocaacutevel a delicadeza do coraccedilatildeo e do

espiacuterito as consideraccedilotildees o respeito e na vida sexual o silecircncio e a vida da virgemrdquo

(1995 p 81) Todas as acepccedilotildees de Aidoacutes seriam abarcadas pelo charme ambivalente da

80

figura divina que eacute ao mesmo tempo respeitaacutevel e respeitoso puro e a piedosa apreensatildeo

diante daquilo que eacute puro

Derivado de aiacutedomai (que indica o respeito a um deus e laiciza-se no emprego

juriacutedico do perdatildeo ao assassiacutenio involuntaacuterio) Aidoacutes significa o sentimento de honra e

neacutemesis o temor da infacircmia de outro raramente no sentido ativo de tiacutemido e taacute aidoicirca que

designa as partes vergonhosas De Aidoacutes foi tirado 1) aidoicircos ndash divindades ou pessoas

respeitaacuteveis e 2) o composto anaidḗs impudecircncia (CHANTRAINE 1999 p 31) A palavra

aidoicirca originalmente designativa da genitaacutelia origina a palavra que designa a vergonha A

experiecircncia baacutesica da vergonha segundo B Williams (1993 p 78-80) eacute a ldquode ser visto

inapropriadamente pelas pessoas erradas na condiccedilatildeo erradardquo Tal experiecircncia eacute

diretamente conectada com a nudez sobretudo em conexotildees sexuais O afeto que decorre

da inadequaccedilatildeo decorrente da violaccedilatildeo da intimidade suscita reaccedilotildees imediatas de

evitamento Evitar a experiecircncia intoleraacutevel da vergonha serve para um propoacutesito antecipar

o afeto que se padeceria sob a exposiccedilatildeo ao olhar alheio A violaccedilatildeo de aidoacutes implica o par

reflexivo de neacutemesis uma reaccedilatildeo que varia do choque do ressentimento ateacute a justa

indignaccedilatildeo A vergonha pode ser antecipatoacuteria de uma exposiccedilatildeo possiacutevel prospectiva ou

derivada da exposiccedilatildeo irreversiacutevel agrave humilhaccedilatildeo retrospectiva

Por outro lado se o enfoque de Otto que vincula Aidoacutes ao temor reverente estiver

correto o emprego poliacutetico no contexto do Protaacutegoras indica uma transposiccedilatildeo semacircntica

para um afeto dependente sobretudo do olhar coletivo ainda que seja sancionada pelo

respeito devido a uma phḗmē declaraccedilatildeo divina de Zeus A mutaccedilatildeo da acepccedilatildeo do termo

indica a passagem de um temor religioso exteriorizado para uma vergonha interiorizada

resultante da coerccedilatildeo da opiniatildeo coletiva

81

A leitura que Brisson faz do mito tem como corolaacuterio o reconhecimento de que a

Poliacutetica eacute natildeo somente uma teacutecnica superior mas ldquoa uacutenica que eacute outorgada pelos deuses e a

uacutenica teacutecnica positiva o que implica que o ensino desta teacutecnica seja ao mesmo tempo o

mais elevado e o uacutenico positivordquo O que transpareceria insoacutelito em Platatildeo seria o fato de ele

ldquonatildeo dar nenhuma atenccedilatildeo agraves virtudes que o indiviacuteduo enquanto indiviacuteduo deve praticar

Soacute contam para ele as virtudes cujo exerciacutecio deve permitir a um indiviacuteduo encontrar seu

lugar numa sociedade harmoniosa onde natildeo interveacutem nenhuma mudanccedilardquo (2003 p 166)

Entretanto como observa Leacutevi-Strauss a maior oposiccedilatildeo que se observa em

estruturas miacuteticas ocorre no plano cosmoloacutegico que expressa a transcendecircncia insuperaacutevel

de uma realidade em relaccedilatildeo ao mundo percebido (1993 p 152-205) A antropogonia de

Protaacutegoras eacute tambeacutem uma cosmologia cuja funccedilatildeo mais marcante eacute da ordem de algo que

vem a ser

Ao se colocar como mestre de excelecircncia poliacutetica que se diferencia dos demais que

ensinam disciplinas teacutecnicas comuns como caacutelculo astronomia e muacutesica Protaacutegoras

afirma o itineraacuterio de uma nova modalidade de iniciaccedilatildeo quem recebe suas liccedilotildees torna-se

melhor a cada dia e sempre recebe acreacutescimos em direccedilatildeo ao melhor (aeigrave epigrave tograve beacuteltion

epididoacutenai 318a) Protaacutegoras transpotildee as antigas iniciaccedilotildees de Orfeu e Museu para o

itineraacuterio ritual de progredir em direccedilatildeo ao melhor e adquirir um novo estatuto de ser A

finalidade de suas liccedilotildees eacute desenvolver os dons naturais de que todos participam e levaacute-los

ao melhor acabamento criando um gecircnero superior de homem num novo plano de ser

Assim como os ritos das teletaiacute operam a repeticcedilatildeo coacutesmica dos atos primordiais e um

retorno vivido agraves origens constitutivas da realidade presente assim tambeacutem o rito do seu

ensino reproduz a estrutura de imagens de seu mito Protaacutegoras aparece como o novo

mensageiro divino o portador do fogo ou o arauto que eacute depositaacuterio dos instrumentos

82

oliacutempicos salvaguardas para a vida e condiccedilatildeo de organizaccedilatildeo da cidade Protaacutegoras eacute um

novo Hermes e seu ensino eacute ferramenta divina que eleva o homem e o aproxima do plano

dos deuses imortais Mas para isso eacute preciso aperfeiccediloar-se no exerciacutecio de sua proacutepria

concepccedilatildeo de aidōs e diacutekē

Quais satildeo as polarizaccedilotildees condensadas no par miacutetico aidōs e diacutekē Ambos satildeo

determinaccedilotildees de Zeus personificaccedilatildeo da soberania acompanhadas por lei suprema

inexoraacutevel Aleacutem disso satildeo os constituintes primordiais que possibilitam a existecircncia das

comunidades poliacuteticas Mas assim como Pandora compotildee modelaccedilatildeo de opostos do

visiacutevel bem aparente e dos males invisiacuteveis ocultos da determinaccedilatildeo maacutexima da forma de

virgem e da indeterminaccedilatildeo imprevisiacutevel aidōs e diacutekē devem representar compensaccedilatildeo

simeacutetrica para a potecircncia piacuterica da demiurgia

Quais satildeo as caracteriacutesticas intriacutensecas agraves teacutekhnai Na delineaccedilatildeo das imagens do

mito as teacutekhnai surgem como resultado da potecircncia demiuacutergica aportada pelo fogo Elas

satildeo o resultado de um dolo oculto da accedilatildeo fraudulenta impermeaacutevel ao olhar Aleacutem disso

caracterizam-se pela participaccedilatildeo desigual dos homens Sua reparticcedilatildeo foi feita de modo

que um uacutenico homem que possui a arte da medicina eacute suficiente para um grande nuacutemero de

profanos39

Haacute pois uma relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que confere o saber teacutecnico40

Eacute por

participar do saber teacutecnico e pelo domiacutenio do fogo que cada demiurgo pode iniciar-se em

sua especificidade que o distingue dos profanos idioacutetais A participaccedilatildeo desigual engendra

39

(Protaacutegoras 322c06-07) 40 Karl Reinhardt (2007 p 51 52) chama a atenccedilatildeo para o fato de que o mito narrado por Protaacutegoras suscita o

gosto a delicadeza o divertimento mas natildeo faz nenhuma menccedilatildeo ao tema da alma A diferenccedila entre um

mito narrado por um Sofista e o mito filosoacutefico reside nessa negaccedilatildeo da alma e do delineamento negativo que

Platatildeo esboccedila da figura do Sofista Para que Platatildeo consignasse ldquoseu coraccedilatildeordquo a um mito ldquoseria necessaacuteria

uma conversatildeo uma transformaccedilatildeo de sirdquo Contudo o que Reinhardt chama de ldquoconversatildeordquo estaacute jaacute ingresso

na oposiccedilatildeo entre a concepccedilatildeo protagoriana de teacutekhne ndash e sua correspondente iniciaccedilatildeo demiuacutergica ndash e a

iniciaccedilatildeo ao Ser poliacutetico

83

os opostos dēmiourgoi e idioacutetais que reproduzem no plano do devir as oposiccedilotildees

cosmoloacutegicas entre deuses e mortais sagrado e profano inteligecircncia e ausecircncia de

inteligecircncia Aleacutem disso as teacutecnicas instrumentalizam a violecircncia e a morte Depois do

domiacutenio do fogo os homens puderam forjar instrumentos para a caccedila mas tambeacutem

passaram a destruir-se mutuamente

Agrave participaccedilatildeo desigual na potecircncia das artes Hermes distribui de maneira

equacircnime aidōs e diacutekē como potecircncias definidoras do estatuto humano Todo aquele que

natildeo puder participar delas deve ser morto como peste A natildeo participaccedilatildeo no par de

potecircncias implica a exclusatildeo da determinaccedilatildeo essencial para a formaccedilatildeo das cidades e por

conseguinte da proacutepria humanidade como um todo A ausecircncia de aidōs e diacutekē representa a

desumanizaccedilatildeo a perda da determinaccedilatildeo essencial que torna possiacutevel que os homens

convivam sem se destruiacuterem mutuamente Mais do que mera forccedila de integraccedilatildeo como

afirma Brisson aidōs e diacutekē determinam a existecircncia do homem como ser poliacutetico e por

conseguinte da existecircncia da humanidade toda Ademais Hermes distribui as potecircncias

determinantes com a sanccedilatildeo aberta de Zeus em oposiccedilatildeo ao furto oculto de Prometeu A

participaccedilatildeo nessas potecircncias essenciais implica por consequecircncia a exposiccedilatildeo ao olhar

coletivo Agrave inteligecircncia teacutecnica fraudulenta e oculta que resulta na destruiccedilatildeo de todos por

todos se opotildee a participaccedilatildeo essencial em aidōs e diacutekē que pressupotildee o olhar de todos

sobre todos Desse modo pode-se destacar a oposiccedilatildeo entre aquilo que eacute recocircndito ao olhar

e aquilo que exige o olhar de todos sobre todos A ocultaccedilatildeo ao olhar acarreta a destruiccedilatildeo

muacutetua Os homens cometiam injusticcedilas uns aos outros por natildeo possuiacuterem a teacutekhnē poliacutetica

cuja ausecircncia configura um quadro de violecircncia muacutetua (ēdiacutekoun allḗlous haacutete ouk eacutekhontes

tḗn politikḗn teacutekhnēn 322b08) O olhar de todos sobre todos acarreta a renuacutencia ou

impedimento ao uso da violecircncia Ao oacutedio oculto se opotildee a philiacutea manifesta

84

A existecircncia da coletividade humana depende da associaccedilatildeo propiciada pela philiacutea e

da capacidade de cooperaccedilatildeo organizada O plano humano abarca duas estruturas coletivas

que se desdobram em dois mundos o do interior da cidade e o do exterior o mundo da

philiacutea e o mundo da morte (BURKERT 2005 p 31)

Mas quais satildeo as determinaccedilotildees mais distintivas de aidōs e diacutekē41

Em primeiro

lugar assim como a participaccedilatildeo na sabedoria teacutecnica e o domiacutenio do fogo constituem

potecircncias essenciais para a existecircncia do gecircnero humano o par de opostos compensatoacuterios

instituiacutedo por Zeus constitui condiccedilotildees de determinaccedilatildeo da existecircncia dos homens em

conviacutevio nas poacuteleis Tais determinaccedilotildees se opotildeem agraves demais teacutekhnai pela igualdade

participativa e pela abertura ao olhar coletivo Elas abarcam simultaneamente os afetos

vinculados ao olhar e agrave opiniatildeo coletiva e agrave retribuiccedilatildeo ineludiacutevel ao dolo Zeus

efetivamente daacute justiccedila aos homens condiccedilatildeo para a existecircncia da philiacutea o viacutenculo afetivo

determinante para a vida comum e exigecircncia de retribuiccedilatildeo divina que estabelece o caraacuteter

absoluto da consecuccedilatildeo infaliacutevel agrave accedilatildeo poliacutetica

Mas o par aidōs e diacutekē eacute inextricaacutevel dos afetos que suscita Na fundaccedilatildeo mesma da

existecircncia cosmoloacutegica das cidades subjazem afetos psiacutequicos Haacute uma homologia

estrutural entre as condiccedilotildees afetivas que possibilitam a existecircncia das cidades e impedem a

41

Sahonhouse faz um levantamento das traduccedilotildees sobre o termo no Protaacutegoras ldquoGuthrie traduz

como respeito pelos outros e respeito pelos companheirosW C Taylor como consciecircncia Sinclair como

dececircncia Cropsey o descreve como um complexo amaacutelgama entre respeito e susceptibilidade agrave vergonha ou

desgraccedila Bartlett o traduz como vergonha e acrescenta as notas de temor respeitoso e reverecircncia (2008 p 63

n 9) Segundo Douglas Cairns o conceito de honra nunca esteve afastado da avaliaccedilatildeo daquilo que eacute

constitutivo em tanto no que diz respeito agrave proacutepria honra de algueacutem ou status como no

reconhecimento das exigecircncias de se honrar os outros como algo que deve inibir as proacuteprias accedilotildees de algueacutem

Assim os diversos usos conferem unidade ao termo Ele pode indicar por exemplo vergonha diante da

proacutepria falha ou humilhaccedilatildeo embaraccedilo social inibiccedilatildeo em agir por medo do que os outros vatildeo dizer e

respeito diante do estatuto dos outros ou ainda para legitimar exigecircncias para tratar bem os hoacutespedes

suplicantes Todos os sentidos compartilham o foco no balanccedilo apropriado entre a proacutepria honra de algueacutem e

a honra dos outros seria uma emoccedilatildeo que cobre tanto o sentido de vergonha como de respeito e foca

simultaneamente a proacutepria honra como a dos outros (CAIRNS 1993)

85

destruiccedilatildeo muacutetua dos homens A homologaccedilatildeo eacute suscitada pelos afetos que constituem a

determinaccedilatildeo de homens e cidades

Se o homem eacute a medida de todas as coisas das que satildeo como satildeo e das que natildeo satildeo

como natildeo satildeo42

haacute todavia uma norma divina absoluta que determina o criteacuterio de que o

afeto determinante da philiacutea seja remetido ao olhar aberto coletivo e agrave retribuiccedilatildeo infaliacutevel

que se segue agraves accedilotildees injustas O tatildeo celebrado relativismo de Protaacutegoras deriva de norma

divina e por conseguinte absoluta que institui a medida do olhar de todos sobre todos

condiccedilatildeo poliacutetica da convivecircncia

O olhar muacutetuo configura afetos restritivos cuja funccedilatildeo primaacuteria consiste em

contrabalanccedilar os afetos violentos que se expressam em accedilotildees injustas e na violecircncia

destrutiva Tais afetos levam em conta o olhar e por conseguinte estatildeo na ordem

constitutiva da alteridade do levar em conta a existecircncia do olhar alheio como outro de si

A desconsideraccedilatildeo ao olhar implica a retribuiccedilatildeo punitiva como contrapartida causal para a

violaccedilatildeo deste princiacutepio de accedilatildeo afetivo que eacute tambeacutem o princiacutepio da accedilatildeo valorativa A

teacutecnica poliacutetica eacute primordialmente a teacutecnica valorativa da alteridade Ela estabelece a

medida pela qual o homem eacute meacutetron o olhar aberto que define a accedilatildeo aceitaacutevel na cidade

Como afirma Saxonhouse o conhecimento da desgraccedila implicada pela transgressatildeo

desses limites surge somente a partir das interaccedilotildees com os outros A vergonha dissolve

aquele que desconhece e natildeo reverencia os costumes e desconsidera as opiniotildees da

coletividade de seu entorno A irreverecircncia para com o olhar do outro eacute incompatiacutevel com a

vergonha (SAXONHOUSE 2008 p 63)

42

Protaacutegoras 80 B 1 DK SEXTUS EMPIRICUS adv math VII 60 Disponiacutevel em

httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics80-B

(Teeteto 160e09)

86

Aidōs e diacutekē compotildeem os afetos que inibem os impulsos para a morte e para a

destruiccedilatildeo e implicam as accedilotildees retribuidoras absolutas para a violecircncia cometida Se a

cidade e a comunidade poliacutetica existem eacute porque aidōs e diacutekē satildeo os princiacutepios que

possibilitam a coexistecircncia artificial entre os homens a partir da diferenciaccedilatildeo das accedilotildees

rudimentares que terminavam na violecircncia destrutiva Aidōs e diacutekē satildeo princiacutepios de

inibiccedilatildeo primordiais ao impulso para matar Eles emergem diretamente do temor que Zeus

experimenta ao prever a destruiccedilatildeo humana Mas eacute preciso ainda acrescentar a educaccedilatildeo

para que os homens tenham seu completo acabamento e possam conviver vinculados por

um afeto de pertenccedila muacutetua

Para cumprir seu papel ao mesmo tempo de caccediladores e guerreiros protetores da

polis os homens precisam conciliar a coragem para afrontar os perigos e a confiabilidade

exigida pela amizade Eacute preciso a previdecircncia astuciosa que permite a renuacutencia agrave satisfaccedilatildeo

do desejo imediato o domiacutenio da palavra a demiurgia das teacutecnicas manuais e instrumentais

para a forja de armas e ferramentas As accedilotildees humanas satildeo regradas artificialmente por uma

dupla tensatildeo de opostos o uso das armas e os afetos destrutivos devem ser dirigidos para

fora da cidade e o afeto integrador da philiacutea deve manter a coesatildeo coletiva interna e

amalgamar a unidade ciacutevica Aidōs e diacutekē conciliam em tensatildeo o amor e a morte Se a

vergonha eacute o afeto decorrente da transgressatildeo ao temor respeitoso que delimita a existecircncia

ciacutevica pela philiacutea as leis implicadas por diacutekē guiam e regulam os afetos destrutivos a

previsatildeo teacutecnica e a adaptabilidade para o proveito coletivo para o melhor do homem

como medida de todas as coisas Diacutekē implica que para ser medida de todas as coisas o

homem deva submeter-se agraves leis de modo que a violecircncia seja sancionada pela arte da

guerra na exterioridade e interdita pela poliacutetica no domiacutenio da poacutelis O que configura a accedilatildeo

heroacuteica num domiacutenio por ser necessaacuterio eacute absolutamente interdito em outro O homem

87

medida submetido agrave diacutekē eacute aquele cujas gestas heroacuteicas de um plano satildeo accedilotildees criminaacuteveis

em outro noacutesos peste da cidade

A concepccedilatildeo de diacutekē como dom compartilhado e determinaccedilatildeo do gecircnero humano

ultrapassa a noccedilatildeo primitiva ligada a uma ordem coacutesmica cujo equiliacutebrio exige a

compensaccedilatildeo de opostos A ordem da natureza associa-se agrave noccedilatildeo religiosa de um tempo

perioacutedico A adikiacutea se expia afirma Anaximandro segundo a ordem do tempo43

Pois donde a geraccedilatildeo eacute para os seres eacute para onde tambeacutem a

corrupccedilatildeo se gera segundo o necessaacuterio pois datildeo eles mesmos

justiccedila e deferecircncia uns aos outros pela injusticcedila segundo a

ordenaccedilatildeo do tempo

Aidōs e diacutekē eacute um par de opostos em tensatildeo A paz interna que deve reinar no seio

da cidade pressupotildee os limites da norma da ordem ciacutevica e os limites impostos pelos

afetos que levam em conta o olhar coletivo e a dissoluccedilatildeo afetiva inexoraacutevel que se segue agrave

violaccedilatildeo desses limites O estabelecimento desses limites suscita a dissoluccedilatildeo intriacutenseca agrave

vergonha ao medo a inibiccedilatildeo e a culpabilidade mas fora do centro ciacutevico as barreiras satildeo

ordenadamente levantadas pela arte da guerra dessacralizaccedilatildeo da violecircncia pelo uso das

armas a philiacutea se equilibra no seu oposto o oacutedio A comunidade poliacutetica assenta-se no

amor mas tambeacutem no sangue e na morte

A gecircnese da ordem poliacutetica da cidade inclui o seu elemento contraacuterio em tensatildeo

permanente A vergonha e a culpabilidade que emergem desta tensatildeo exigem desejo de

compensaccedilatildeo e reparaccedilatildeo que soacute pode efetivar-se no itineraacuterio de um acabamento em

direccedilatildeo ao melhor prometido pela educaccedilatildeo (BURKERT 2005 p 30-34)

43

DK 1 SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 24 13 Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics12-B

acesso em 042010 Traduccedilatildeo de Cavalcante com ligeira modificaccedilatildeo

88

Todavia para Platatildeo se o valor supremo do homem depende do olhar coletivo

entatildeo a excelecircncia deve se moldar a partir da exterioridade aberta que configura os afetos

ligados a aidoacutes A formaccedilatildeo poliacutetica passa a ser assim uma iniciaccedilatildeo agrave teacutecnica de domiacutenio

do olhar e da opiniatildeo teacutecnica da exterioridade cambiante que valora todas as coisas a partir

do aacutentrōpos em detrimento do seautoacuten do si mesmo teacutecnica que ganha o prestiacutegio na

cidade mas perde a alma

A encenaccedilatildeo dramaacutetica do Protaacutegoras eacute a miacutemesis de uma iniciaccedilatildeo nos misteacuterios

que coloca em perigo a alma44

O inventaacuterio histoacuterico das iniciaccedilotildees e misteacuterios

empreendido por Walter Burkert (1993 527-577) permite a distinccedilatildeo dos elementos

alusivos da encenaccedilatildeo dramaacutetica do Protaacutegoras O jovem Hipoacutecrates desejoso de iniciar-se

nos misteacuterios da praacutetica da sabedoria45

pretende receber um ensino transmitido por um

guia embora natildeo saiba o que dizer sobre o seu conteuacutedo efetivamente inexprimiacutevel

anaacutelogo do aacuterreton o segredo dos misteacuterios Protaacutegoras aparece como um guia um

mystagogos a quem Hipoacutecrates confiaraacute sua alma esperando adquirir um novo estatuto e

experimenta simultaneamente o medo proacuteprio ao grande perigo de expor sua alma ao

desconhecido e a promessa de uma nova realidade radiante O questionamento eroacutetesis

socraacutetico induz agrave revelaccedilatildeo de que o desejo pelo destaque e excelecircncia poliacutetica eacute

incompatiacutevel com a vergonha de aparecer ao olhar puacuteblico com o estatuto e desvalor de um

sofista em meio ao lusco-fusco do alvorecer que se anuncia Hipoacutecrates manifesta

fisicamente o sinal inequiacutevoco da vergonha enrubesce (Protaacutegoras 312a)

44

(Protaacutegoras 313a01-02) 45 (312d05) fabricante de praacuteticas do saber equivalente ao

saacutebio (LIDDELL SCOTT 1997 p 554)

89

Como profano suplicante o recipiendaacuterio protomyacutestes se dirige agrave casa do rico

Caacutelias equivalente do telesteacuterion templo das iniciaccedilotildees ou da caverna siacutembolo secreto

do oculto e do transcendente (BURKERT 1993 p 555)

Apoacutes percorrer a rota de peregrinaccedilatildeo o candidato se depara com a porta que separa

o sagrado do profano A passagem pela porta exige a passagem pelo seu guardiatildeo um

eunuco que parodia os temiacuteveis guardas de Zeus (Protaacutegoras 320d) ou os guardiotildees

postados agrave entrada do Hades (BURKERT 1993 p 558) Soacutecrates como espeacutecie de

hierophanteacutes que iraacute mostrar as coisas sagradas termina o assunto profano impuro antes de

bater agrave porta pois natildeo eacute permitido misturar o impuro ao puro

A entrada eacute vetada porque o guarda os toma por sofistas e fecha violentamente a

porta A porta eacute a imagem que abarca a correspondecircncia estrutural entre modalidades

muacuteltiplas de passagem das trevas para a luz do sol da preexistecircncia do homem para a

humanidade da vida para a morte e do novo nascimento para um estatuto de ser mais

elevado A abertura da porta torna possiacutevel a passagem para um modo de ser cosmicizado

pois todo Koacutesmos pressupotildee a passagem Uma vez que o homem vem agrave luz ele natildeo eacute um

ser acabado Eacute preciso repetir o vir a ser primordial e os vaacuterios planos de determinaccedilotildees

originaacuterias mediante ritos de passagem de iniciaccedilotildees sucessivas que propiciam a ascensatildeo

a modalidades mais elevadas de ser (ELIADE 1965 p 153)

O jovem Hipoacutecrates pretendia buscar o mediador da transmissatildeo do ensino

iniciaacutetico secreto que o levaria ao acabamento do homem pleno ao progresso gradativo em

direccedilatildeo ao melhor agrave melhor disposiccedilatildeo dentre a infinidade de aparecircncias que configuram a

medida de cada um dos homens A iniciaccedilatildeo protagoriana opera a mudanccedila em direccedilatildeo ao

90

melhor mudanccedila no estatuto do ser transformando metabaacutellō e metabletḗon46

Assim

como o meacutedico mediante os phaacutermakoi muda as disposiccedilotildees do corpo o sofista muda as

disposiccedilotildees da alma pelo seu ensino iniciaacutetico (Teeteto 167a04-06) A porta fechada e

guardada da casa de Caacutelias separa os ritos internos discretos da abertura ao olhar coletivo e

delimita a ocultaccedilatildeo do misteacuterio aos profanos

O apresentante Soacutecrates enuncia uma explicaccedilatildeo que serve de syacutenthema palavra de

passe que franqueia a entrada no recinto sagrado A declaraccedilatildeo de que natildeo satildeo sofistas

possui o efeito ritual de garantir que natildeo satildeo impuros e anuncia a iniciativa individual pela

iniciaccedilatildeo myacuteēsis atraveacutes do encontro com Protaacutegoras (314c-e)

A entrada no recinto sagrado revela o rito dos discursos sagrados hieroigrave loacutegoi de

Protaacutegoras Um seacutequito de estrangeiros encantados como se fora pelo charme do proacuteprio

Orfeu o segue cosmicamente em evoluccedilotildees circulares ritualmente regulares A viacutevida e

espetacular caricatura da cena fornece natildeo obstante a ironia indiacutecios caracteriacutesticos da

accedilatildeo ritual O ritual eacute ldquoalgo ataviacutestico compulsivo insensato no miacutenimo circunstancial e

supeacuterfluo mas ao mesmo tempo sagrado e misteriosordquo (BURKERT 1997 p 35-37)

O ritual eacute um conjunto de accedilotildees redirecionadas para a demonstraccedilatildeo exposiccedilatildeo

apontada para o olhar eacute um falar mediante gestos estereotipados e padronizados

independentes da situaccedilatildeo e afetos atuais O rito repete e ordena accedilotildees exageradas

aparentemente desvinculadas do contexto imediato com o escopo de esboccedilar um tipo

especiacutefico de efeito teatral eficaz ao olhar e de transmitir uma significaccedilatildeo mimeacutetica natildeo

mediada pela palavra

46

(Teeteto 167a04-06)

91

A harmonia do coro provoca alegria em Soacutecrates A alegria o devaneio e o ecircxtase

das iniciaccedilotildees oacuterficas satildeo intimamente ligados agrave danccedila e agrave muacutesica riacutetmica (BURKERT

1993 p 557) ldquoA repeticcedilatildeo faz nascer o ritmo o acompanhamento dos gestos por sinais

acuacutesticos daacute nascimento agrave muacutesica e agrave danccedila ndash duas formas de solidarizaccedilatildeo humanardquo

(BURKERT 2005 p 35) ldquoO ritual dramatiza a interaccedilatildeo poliacutetica a ordem existente sem

excluir que um rito possa fundar e definir um novo estatutordquo (ibid p 37) Segue-se a alusatildeo

direta agrave descida ao Hades katabasis siacutembolo da iniciaccedilatildeo em que Heraacutecles e Tacircntalo satildeo

ironicamente substituiacutedos por Hiacutepias e Proacutedico de Ceacuteos (315b-d)

A paroacutedia iniciaacutetica eacute mais do que irocircnica Platatildeo encena a laicizaccedilatildeo dos discursos

sagrados e sua transposiccedilatildeo num ensino na transmissatildeo iniciaacutetica de um saber que enseja a

condiccedilatildeo dos espectadores poliacuteticos os epoacutepatai os iniciados que ascendem a um estado

superior que promete a riqueza e a bem-aventuranccedila

A dramatizaccedilatildeo irocircnica sugere o falseamento de um ensino cuja eficaacutecia pretende

remontar agrave antropogonia primeva e dela tirar seu sentido Mas o perigo natildeo consiste

somente no risco e no terror que antecede a experiecircncia da prova iniciaacutetica O grande perigo

consiste em entregar a alma a misteacuterios cujos efeitos natildeo se pode afirmar que a melhorem

ou a piorem Para discriminar a natureza dos efeitos do ensino sobre a alma eacute preciso que o

olhar perscrutador do eacutelenkhos socraacutetico coloque os misteacuterios da iniciaccedilatildeo sofiacutestica sob

exame

92

III - RELACcedilOtildeES ESTRUTURAIS NO MITO DO GOacuteRGIAS O EacuteTHOS EM

QUESTAtildeO

31 Eros e Loacutegos

Audaacutecia e ardor tais satildeo os afetos divinos que incutidos na psykheacute fazem com que

o guerreiro sobreexceda o acircnimo das accedilotildees tatildeo somente humanas que encenam a batalha (Il

V 3)

Audaacutecia e ardor ndash tais satildeo os afetos pelos quais a dialeacutetica socraacutetica choca-se

ingente com a retoacuterica daquele que viria a ser ao mesmo tempo o mais violento e o mais

brilhante dos interlocutores que travam combate com Soacutecrates Caacutelicles

Batalha e guerra poacutelemos kaiacute maacutekhe eis o cenaacuterio com que Platatildeo monta o campo

dramaacutetico dialoacutegico em que satildeo confrontados os princiacutepios e valores ordenadores que

configuram dois modos de vida diametralmente opostos ndash cada qual com exigecircncias

especificidades procedimentos e formaccedilotildees perenemente antagocircnicas Um e outro

culminam no aacutegon retininte dos loacutegoi de seus campeotildees Moldado no apaixonado manifesto

de Soacutecrates o loacutegos dialeacutetico denuncia a ambiccedilatildeo unacircnime desmascara a injusticcedila e a

desfaccedilatez coerciva da maioria em torno da voluacutepia O discurso antagonista defendido

pelos retores e poliacuteticos eacute modelado pelo apetite desmesurado de poder de Caacutelicles que

reclama o testemunho histoacuterico dos grandes homens que se tornaram notaacuteveis

No retinir dos loacutegoi insinua-se a reverberaccedilatildeo da imprecaccedilatildeo a araacute que soa como

o vaticiacutenio do vidente que antecipa a praga o modo de vida implicado pela Filosofia

entendida como disciplina que se estende para aleacutem da educaccedilatildeo juvenil eacute indigno das

coisas belas nobres e bem reputadas entre os homens de valor eacute um modo de vida proacuteprio

da condiccedilatildeo dos sub-homens de escravos Ineficaz nos debates puacuteblicos a Filosofia

93

perverte a alma e resulta na incapacidade decisoacuteria em questotildees de justiccedila do que eacute

provaacutevel e crediacutevel incapacidade que redunda na impossibilidade de defesa diante de um

tribunal estabelecido por acusaccedilatildeo injusta levada a efeito por acusador desonesto e que

ineludivelmente acabaria na condenaccedilatildeo de Soacutecrates agrave morte (Goacutergias 485c-486b)

O manifesto socraacutetico se forja pela disposiccedilatildeo simeacutetrica da oposiccedilatildeo norteadora dos

valores Gecircneros de vida opostos satildeo determinados pela ordenaccedilatildeo simetricamente oposta

de valores incompatiacuteveis ndash ordenaccedilatildeo que implica praacuteticas e modos de inteligibilidade

distintos que por sua vez exprimem-se no esgrimir de discursos multifacetados Um e

outro identificam diferentes pragas psiacutequicas diferentes noacutesoi que exigem compensaccedilatildeo

mediada pela eficaacutecia discursiva do adivinho porta-voz das potecircncias ofendidas e

diferentes prescriccedilotildees A perversatildeo e a miseacuteria para Caacutelicles consistem na gradual

ignoracircncia determinada pela praacutetica filosoacutefica das leis em vigor na cidade da maneira de

falar exigida nas relaccedilotildees particulares e nos contratos puacuteblicos na perplexidade diante dos

prazeres e das voluacutepias dos homens e dito numa soacute fala em tornar-se irresoluto para com

todas as coisas que dizem respeito agraves maneiras de viver ao caraacuteter47

Valores opostos implicam caracteres que se contradizem e por conseguinte

pressupotildeem a multiplicidade de princiacutepios ordenadores opostos (DIXSAUT 2001 p 133)

Natildeo obstante a diversidade soacute pode ser unificada mediante a unidade do afeto na

afetividade do mesmo paacutethos (Goacutergias 481 d) A significaccedilatildeo unificadora deriva da

(Goacutergias 484 c09-d07)

94

possibilidade de se fazer mostrar um para o outro os proacuteprios afetos48

Soacutecrates e Caacutelicles

padecem do mesmo afeto eroacutetico direcionado para objetos distintos que caracterizam a

natureza do Eacuteros

O amor de Soacutecrates por Alcibiacuteades de um lado injunge a ordenaccedilatildeo cataacutertica da

encantaccedilatildeo a accedilatildeo terapecircutica dos belos discursos que toma a alma do ouvinte de assalto

como um canto de Sirena (Banquete 215c-216c) de outro deixa-se modelar pela Filosofia

ndash um desejo que eacute determinado pelo desejo mais elevado o desejo que aspira a ldquotocarrdquo o

belo visto que a Filosofia eacute ao mesmo tempo a muacutesica mais elevada (Feacutedon 61a) e o desejo

puro pelo que eacute ldquoem si mesmordquo (DIXSAUT 2001 p 184) Tal desejo faz do filoacutesofo um

carente e um amante incessantemente agrave procura do objeto de seu amor movido pela ldquobela

esperanccedilardquo (Feacutedon 114c) de encontraacute-lo e encontrando-o com a aspiraccedilatildeo imorredoura de

quem haveraacute de continuar procurando

O amor de Caacutelicles eacute simultaneamente modelado pelas pretensotildees e desejos de

Demos o filho de Pirilampo e demos o povo reunido na assembleacuteia (Goacutergias 481e) Em

Soacutecrates o amor eroacutetico deixa-se ordenar pelo desejo mais elevado e transpotildee-se como

forccedila encantatoacuteria do loacutegos ordenador na psykheacute do amado Em Caacutelicles o amor eroacutetico

segue o movimento inconstante da multiplicidade de desejos caoacuteticos da multidatildeo e

aquiesce aos apelos do amado de maneira que se transpotildee em discurso lisonjeiro no loacutegos

agradaacutevel cujo efeito eacute o incitamento e o acirramento dos apetites que o geraram Em

Soacutecrates o discurso eroacutetico afasta as falsas ilusotildees da alma e forceja o amado ao

reconhecimento das proacuteprias carecircncias e da falta de cuidado de si (Banquete 216a) Em

Caacutelicles o discurso compotildee-se na indeterminaccedilatildeo das aparecircncias ilusoacuterias que se

Goacutergias 481 d)

95

entrelaccedilam com a praacutetica poliacutetica Em Soacutecrates o discurso eacute engendrado a partir do desejo

sobre-determinado pelo desejo mais elevado e constante da Filosofia Em Caacutelicles o

discurso eacute engendrado pela inconstacircncia dos desejos indeterminados dos objetos de seu

amor o povo reunido na assembleacuteia Num e noutro o desejo se aconchega agrave inteligecircncia

para engendrar um discurso Em Soacutecrates inteligecircncia e desejo estatildeo em consonacircncia

harmonizam-se num uacutenico movimento ndash o da inteligecircncia do desejo e o do desejo da

inteligecircncia tal como o sopro da flauta se harmoniza com a danccedila do saacutetiro flautista

(Banquete 216c) O desejo possui a inteligecircncia de si mesmo e a inteligecircncia discerne seu

proacuteprio movimento como o movimento do desejo (DIXSAUT 2001 p 143) Em Caacutelicles

desejo e inteligecircncia satildeo asyacutemphonoi49

satildeo dissonantes de modo que o desejo subjuga e

arrasta a inteligecircncia para discernir somente aquilo que o atende o desejo torna-se entatildeo

apetite Quando desejo e inteligecircncia satildeo sinfocircnicos o discurso visa o melhor o beacuteltiston e

porta a explicaccedilatildeo racional (Goacutergias 464c-465e) e as causas de sua natureza50

Quando o

desejo domina a inteligecircncia o discurso visa o prazer e a inteligecircncia discerne apenas os

meios que determinam o seu assentimento num ldquoempirismordquo que atende agrave voluacutepia Num

49 A menccedilatildeo agrave desarmonia indica um desarranjo da multiplicidade de opiniotildees ou um desarranjo de uma

multiplicidade proacutepria ao si mesmo A metaacutefora ingressa uma homologia entre a multiplicidade dos muitos e

uma multiplicidade do si mesmo A intermitecircncia das opiniotildees de Caacutelicles implica a intermitecircncia correlativa

do seu psiquismo Tais questotildees determinam a hermenecircutica da leitura do Haacute uma divisatildeo na

natureza psiacutequica de Caacutelicles que se expressa na dissonacircncia de opiniotildees que natildeo satildeo sustentadas pela

refutaccedilatildeo da tese oposta A metaacutefora da harmonia como concordacircncia bem ajustada indica que o

opera uma concordacircncia no acircmbito do si mesmo ( ) em contraposiccedilatildeo com o

ajustamento e concordacircncia com as opiniotildees e desejos da multidatildeo (PLOCHMANN ROBINSON 1988 p

110)

(Goacutergias 482b04-c03) 50

(Goacutergias 465a)

96

caso e noutro eacute a natureza do desejo que determina o estado da psykheacute O amor eroacutetico faz a

mediaccedilatildeo entre um desejo paradigmaacutetico (a Filosofia ou os desejos da multidatildeo) e a

personificaccedilatildeo do amor Mediaccedilatildeo que engendra loacutegoi e modos distintivos de hierarquizar

valores que por sua vez implicam gecircneros caracteriacutesticos de vida opostos um voltado para

a inteligecircncia da justiccedila do que eacute sempre idecircntico e imutaacutevel o vasto oceano do belo e do

bem (Banquete 211a) e outro voltado para a inteligecircncia do gozo irrefreaacutevel visto o

discernimento e a inteligecircncia de prazeres diversos serem prerrogativas da alma (Goacutergias

465d)

A inconstacircncia do alvo do amor de Caacutelicles determina a intermitecircncia de suas

opiniotildees e a ambivalecircncia de seus afetos Assim como seus afetos oscilam de um fito para

outro o movimento de seus pensamentos se estende em direccedilotildees muacuteltiplas opostas

expressando opiniotildees contraacuterias sobre um mesmo assunto Sua ambivalecircncia alterna-se

entre a doccedilura amistosa e a hostilidade raivosa na tentativa de esconder sua autodissensatildeo

mediante algum pronunciamento dogmaacutetico para logo em seguida contradizer-se

relutante ou involuntariamente revelando seus princiacutepios de accedilatildeo conflitantes Pervertido

pelo medo e atormentado pelos apetites Caacutelicles eacute simultaneamente um mau amante e um

bom odiento sobretudo em relaccedilatildeo a si mesmo (PLOCHMANN ROBINSON 1988 p

105)

A simetria das oposiccedilotildees indica uma estrutura de relaccedilotildees anaacutelogas e homoacutelogas

assim como haacute uma boa disposiccedilatildeo do corpo haacute uma boa disposiccedilatildeo da alma Assim como

a boa disposiccedilatildeo do corpo eacute assegurada por duas artes uma preservadora e outra

restauradora a boa disposiccedilatildeo da alma eacute assegurada por duas artes do mesmo gecircnero

Assim como as artes relativas ao corpo satildeo conduzidas pelo desejo do melhor a boa

disposiccedilatildeo da alma eacute impelida pelo desejo do melhor Assim como as artes do corpo

97

implicam a inteligecircncia da natureza dos seus procedimentos e das causas assim tambeacutem as

artes da alma implicam o loacutegos de sua natureza e de suas causas

Assim como uma imagem eacute uma aparecircncia do modelo original as imagens das artes

autecircnticas satildeo aparecircncias de seus originais A lisonja kolakeiacutea estaacute para a Poliacutetica como as

aparecircncias estatildeo para os originais A cosmeacutetica estaacute para a ginaacutestica como a culinaacuteria estaacute

para a medicina A sofiacutestica estaacute para a legislaccedilatildeo como a retoacuterica estaacute para a justiccedila O

discurso persuasivo estaacute para o discurso racional como o prazer estaacute para o melhor e o

bem A inteligecircncia do prazer imediato estaacute para a inteligecircncia dos prazeres proacuteprios como

a inteligecircncia do empirismo da vantagem estaacute para a inteligecircncia das causas da boa

disposiccedilatildeo O Eros do retor estaacute para o Eros do filoacutesofo assim como a epithymia da

multidatildeo estaacute para a Filosofia

A Filosofia comporta um discurso que por sua proacutepria natureza eroacutetica desfaz a

ilusatildeo gerada pelo apetite as opiniotildees os falsos saberes e a valoraccedilatildeo do que eacute contingente

do que estaacute imerso no devir um discurso que busca refutar por amor da verdade e natildeo por

amor da vitoacuteria e das disputas a philoneikiacutea (Goacutergias 457e-458b) O amor de Soacutecrates por

Alcibiacuteades comporta o paradoxo da abstenccedilatildeo do deleite mesmo tendo-lhe compartilhado o

mesmo leito (Banquete 216e-217e) Soacutecrates soacute pocircde desprezar a beleza dos corpos a

riqueza e todas as vantagens apreciadas pelos muitos porque ascendeu ao cliacutemax do Eros

Tal eacute a razatildeo pela qual o discurso filosoacutefico eacute elecircntico a unificaccedilatildeo do desejo almeja o

plano mais alto e contrapotildee agrave incompletude que se dispersa na multiplicidade a visatildeo

sempiterna do belo

Ardor e audaacutecia - trata-se efetivamente do entrecruzar de dois discursos que

digladiam-se pelo manejo experimentado de dois amorosos animados pelo mesmo afeto

Eros que natildeo obstante volta-se para direccedilotildees excludentes O discurso expressa o

98

movimento da inteligecircncia que por sua vez acopla-se ao Eros ou identificando-se com ele

num uacutenico e mesmo movimento ou submetendo-se a ele (DIXSAUT 2001 p 153-ss) O

movimento eroacutetico do loacutegos acarreta disposiccedilotildees concordantes com seu direcionamento O

discurso pode suscitar o convencimento associado ao saber ou se natildeo emerge do

conhecimento das causas o assentimento engendrado pela aparecircncia visto que saber eacute

diferente de crer A persuasatildeo mesma divide-se em par de naturezas distintas ndash a crenccedila e o

conhecimento (Goacutergias 454 d-e) e por conseguinte o discurso distingue-se pela direccedilatildeo de

seu movimento e de seu alvo Mas tal qual glaacutedio que possui dois gumes o discurso natildeo

pode ser proferido sem que seu efeito seja duplo e sem que a resultante do golpe se volte

para sua origem Animado por um afeto eroacutetico o movimento discursivo natildeo pode ser

desferido sem que haja uma ordenaccedilatildeo preacutevia dos afetos que o engendram sem que o

proacuteprio movimento psiacutequico lhe seja condizente A palavra natildeo pode ser proferida sem que

haja ressonacircncias no acircmago da psykheacute que a engendra

32 ndash Vida e ḗthos

Batalha e guerra - valores organicamente opostos resultam em modos de vida que se

potildeem em pugna que implicam praacuteticas eacutetico-poliacuteticas opostas e que buscam na maacutekhe dos

loacutegoi no combate singular da palavra os posicionamentos que demarcam a estrateacutegia dos

antagonismos

Caacutelicles e Soacutecrates buscaratildeo defender natildeo somente suas teses mas seus gecircneros de

vida e seus valores a partir de razotildees enredadas em discursos estruturados de modo

excludente Retoacuterica e dialeacutetica entrecruzam-se como armas que reclamam o kraacutetos sobre a

inteireza da vida

99

O golpe de Caacutelicles eacute posto de iniacutecio muitas vezes natureza e lei51

se contradizem

uma agrave outra52

- tais satildeo as divisotildees que comportaratildeo todas as diferenccedilas A divisatildeo de um

todo em partes explica ao mesmo tempo as causas pelas quais Goacutergias e Polos caiacuteram em

contradiccedilatildeo e o procedimento refutativo empregado por Soacutecrates O argumento da divisatildeo

haure toda sua forccedila de uma oposiccedilatildeo efetivamente presente na mentalidade aristocraacutetica

grega e por isso justifica-se plenamente como ponto de partida da argumentaccedilatildeo de

Caacutelicles Tratar-se-ia de tese que natildeo sofreria contestaccedilatildeo direta53

O procedimento de dissociar duas noccedilotildees que se pretendem exaustivas permite a

afirmaccedilatildeo de que certos elementos independentes e irredutiacuteveis se mantecircm associados e

confundidos A cilada de Soacutecrates consistiria em se reportar agrave natureza quando se fala

51 Guthrie observa que noacutemos e phyacutesis adquirem significados opostos a partir do clima intelectual do seacuteculo

V ldquoO que existia por noacutemos natildeo existia por phyacutesis e vice-versardquo Nos sofistas historiadores e oradores da

eacutepoca e tambeacutem em Euriacutepides a antiacutetese passa para as esferas da moral e da poliacutetica ldquoNoacutemosrdquo passou a

significar basicamente (a) ldquouso ou costumes baseados em crenccedilas tradicionais ou convencionais quanto ao

que eacute certo ou verdadeirordquo (b) ldquoleis formalmente esboccediladas que codificam o uso corretordquo O sentido de

ldquophyacutesisrdquo por outro lado toma corpo a partir dos filoacutesofos preacute-socraacuteticos Embora o sentido de ldquonaturezardquo seja

claro pode-se pensar em termos poliacuteticos em ldquorealidaderdquo contrastada com as convenccedilotildees da lei positiva Em

Tuciacutedides a decadecircncia moral acarretada pela guerra faz sobressair o viacutenculo existente entre a ldquonatureza

humanardquo e o interesse ) em oposiccedilatildeo agrave justiccedila O interesse a vantagem e o uacutetil satildeo princiacutepios

inerentes agrave natureza humana e parte da realidade em que o mais forte se impotildee ao mais fraco Satildeo

significativos os relatos das negociaccedilotildees travadas entre os atenienses de um lado e Melos ou Mitilene de

outro A histoacuteria era a principal testemunha de que ldquoera da natureza humana tanto para os Estados como para

os indiviacuteduos comportar-se egoiacutestica e tiranicamente se dada a oportunidaderdquo Para o Caacutelicles platocircnico isso

natildeo soacute ldquoera inevitaacutevel senatildeo tambeacutem justo e adequadordquo (GUTHRIE 1995 p 57-103) Dodds afirma que ldquoA

fonte antiga mais importante aleacutem de Platatildeo satildeo os fragmentos dos manuscritos do sofista Antiacutefonte ()

mas inuacutemeras passagens em Euriacutepides Aristoacutefanes e Tuciacutedides mostram que a antiacutetese era imensamente examinada e compreendida nos anos posteriores do seacuteculo Vrdquo (DODDS 2002 p 263) A concepccedilatildeo

difundida no quadro mental herdado por Platatildeo no iniacutecio do quarto seacuteculo que alccedila o sucesso e o interesse ao

primeiro plano e preconiza ldquofazer bem aos amigos e mal aos inimigosrdquo natildeo reclamava justificaccedilatildeo uma vez

que era aceita universalmente Daiacute as teses defendidas por Soacutecrates soarem tatildeo chocantes e bizarras Nada

atentava mais ao senso comum do homem grego de entatildeo e de certa forma como mostra uma citaccedilatildeo feita

por Guthrie datada do seacuteculo XVIII nada atenta mais contra o senso comum de todos os tempos 52

(Goacutergias

482e) 53 Como Marian Demos afirma ldquoA antiacutetese entre e aparece com frequecircncia na literatura

Grega nos seacuteculos VI e V Caacutelicles natildeo diz nada revolucionaacuterio nesse ponto ele apenas estabelece o cenaacuterio

para aquilo que subsequentemente eacute sancionado pela A oposiccedilatildeo entre e eacute tambeacutem

refletida na discrepacircncia entre os verdadeiros sentimentos de Polos e sua relutacircncia em proclamaacute-los Pode-se

inferir que a de alguma forma corresponde com a visatildeo da realidade de Polos enquanto o

designando bdquoo consenso geral‟ o impede de expor sua visatildeo (DEMOS 1994 p 85-107)

100

segundo a lei e aludir agrave lei quando se lhe fala segundo a natureza54

(483a) A questatildeo dos

valores depende do ponto fixo a partir do qual eles seratildeo coordenados A noccedilatildeo de ldquojusticcedilardquo

pressupotildee seu proacuteprio esquema de coordenaccedilatildeo de valores cuja aquilataccedilatildeo muacutetua depende

de um padratildeo fixo Postula Caacutelicles que tal padratildeo expressa os interesses de quem o

estabelece segundo os dois gecircneros disjuntivos ou a lei ou a natureza55

A noccedilatildeo

convencional de justiccedila exprime o fato de que a aceitaccedilatildeo dos interesses da maioria inferior

determina o tratamento apropriado para cada pessoa e constitui o padratildeo pelo qual as accedilotildees

satildeo reputadas como justas ou injustas O princiacutepio rival invocado por Caacutelicles estabelece

que os interesses dos homens superiores devam constituir o uacutenico padratildeo de justiccedila uma

vez que o que promove a superioridade desses homens eacute naturalmente justo56

e coincide

com a proacutepria natureza (IRWIN 1995 p 103) Sofrer injusticcedilas eacute proacuteprio de escravos que

nem sequer podem ser chamados ldquohomensrdquo para quem a morte seria melhor (kreittoacuten) do

que a vida A lei eacute estabelecida para defender os interesses desses homens fracos dos

muitos que proclamam que toda superioridade eacute desonrosa (toacute kataacute noacutemon aiskhiacuteon

leacutegontos) e que cometer injusticcedila eacute censuraacutevel Para os muitos a injusticcedila (adikiacutea) consiste

em avantajar-se (pleonektecircin) em ter mais (pleacuteon eacutekhein) (483b-c) Satildeo os interesses das

54 Aristoacuteteles nas Refutaccedilotildees Sofiacutesticas menciona explicitamente Caacutelicles e refere-se agrave oposiccedilatildeo entre

e como um muito difundido que leva os homens a proferir paradoxos na aplicaccedilatildeo

dos padrotildees da natureza e da lei ldquoque todos os antigos consideravam vaacutelidordquo (ARISTOacuteTELES 2005 173a p

571) Kerferd argumenta que embora seja possiacutevel que a expressatildeo ldquotodos os antigosrdquo se refira natildeo soacute aos

sofistas mas tambeacutem a preacute-sofistas a clara referecircncia de Aristoacuteteles aos dois loacutegoi indica que ele tinha

sobretudo os sofistas em mente (KERFERD 2003 p 194) 55 Segundo a interpretaccedilatildeo que Kerferd (2003 p197 ss) faz do fragmento DK 87B44 (87 B 44 [cfr 99 B

118 S) de Antifonte fica clara a antiacutetese entre phyacutesis e noacutemos As vantagens preconizadas pela lei satildeo

impedimentos para a natureza ao passo que as vantagens da natureza levam agrave liberdade e devem ser

preferidas agraves prescriccedilotildees da lei A justiccedila deve ser usada em proveito do interesse se houver presenccedila de testemunha Na ausecircncia destas somente a natureza deve ser obedecida Infere-se que o que eacute vantajoso

favorece a natureza e eacute da natureza humana ter vantagem Tudo aquilo que favorece a vantagem e o interesse

constituem um bem As leis e provisotildees satildeo cadeias que impedem a realizaccedilatildeo da natureza humana 56 Irwin afirma que o princiacutepio de Caacutelicles soacute eacute imparcial se a dominaccedilatildeo dos fortes for boa natildeo somente para

as pessoas superiores mas desejaacuteveis para algum outro ponto de vista distinto do delas O exame dessa

posiccedilatildeo exige que se prove que (1) violar regras de outras perspectivas de justiccedila eacute do interesse de algumas

pessoas que (2) estas pessoas satildeo superiores que (3) o que promove o interesse destas pessoas eacute naturalmente

justo (IRWIN 1995 p 103)

101

multidotildees fracas que delimitam o estabelecimento das leis cujo objetivo eacute limitar os

melhores e os mais robustos dos homens

Pois eu penso que aqueles que estabelecem as leis satildeo os homens

fracos e os muitos Por conseguinte eacute para si mesmos que

estabelecem as leis e atribuem elogios e censuras com os olhos em

sua proacutepria vantagem Eles aterrorizam os mais robustos dos

homens e potentes para ter mais e previnem estes homens de que

possuir mais do que eles mesmos e ter mais eacute vergonhoso e injusto

E que fazer injusticcedila eacute isto procurar ter mais do que os outros

Eles estatildeo satisfeitos se tecircm uma partilha igual quando satildeo

inferiores Eacute por isso que pela lei eacute dito ser injusto e vergonhoso

procurar ter mais do que os muitos e eacute isso que eles chamam

injusticcedila57

(Goacutergias 483b04-c08)

A questatildeo da justiccedila eacute por conseguinte indissociaacutevel da afetividade da vergonha

que configura aquilo que eacute aceitaacutevel e elogiaacutevel coletivamente A desonra deriva

diretamente do olhar coletivo que sanciona o elogiaacutevel e o censuraacutevel determinaccedilotildees de

todos os valores compartilhados pelos quadros mentais da cidade Aquilo que eacute vergonhoso

(aiskhiacuteon) eacute intrinsecamente associado ao afeto do senso de honra (aidōs) que por sua vez

brota da estima puacuteblica58

Aleacutem disso o desejo e a cobiccedila de ter mais a ambiccedilatildeo que

caracteriza a pleonexiacutea afeto primaacuterio estatildeo na ordem constitutiva do que Caacutelicles

considera justo por natureza A polarizaccedilatildeo entre phyacutesis e noacutemos sugere em seu bojo a

Traduccedilatildeo modificada a partir de Irwin (1979)

58 O termo expressa a vergonha e a ignomiacutenia segundo Chantraine (1999 p 40) e eacute empregado na

prosa aacutetica para indicar a feiuacutera repugnante O adjetivo deriva deste sentido original da vergonha provocada

pela deformidade mas possui tambeacutem o valor de ldquosenso de honrardquo Derivado de o tema de

exprime em Homero o sentimento de respeito diante de um deus ou superior e sobretudo o

sentimento que proiacutebe a covardia ao homem O sentimento tambeacutem estaacute ligado a partes

vergonhosas a genitaacutelia

102

tensatildeo mais basilar entre os apetites aquilo que Dodds chama de ldquoimpulsos individuaisrdquo e

a pressatildeo coletiva que instaura os valores considerados aceitaacuteveis ou a ldquopressatildeo de

adaptaccedilatildeo social caracteriacutestica de uma cultura baseada na vergonhardquo (DODDS 2002 B p

26) Desejos cobiccedila honra vergonha discursos e os pensamentos que os movem

configuram os princiacutepios basilares que justificam a noccedilatildeo da justiccedila e o gecircnero de vida

honoraacutevel

O termo Aidōs eacute empregado na narrativa de Gygeacutes para designar a respeitabilidade

de uma mulher o senso de honra da mulher daquilo que pode ser visto e daquilo que natildeo

pode ser olhado Heroacutedoto narra a desmedida do rei que contrariamente agraves interdiccedilotildees

longamente moldadas pela tradiccedilatildeo desejava mostrar a nudez de sua mulher usurpando e

violentando a sua respeitabilidade

Esqueceis que uma mulher desfaz-se do seu pudor quando se

despe() Gygeacutes natildeo podendo fugir agrave situaccedilatildeo declarou-se pronto

a obedecer Candaulo agrave hora de dormir conduziu-o ao quarto

para onde a rainha natildeo tardou a se dirigir O guarda viu-a despir-

se e enquanto ela lhe voltava as costas para alcanccedilar o leito

esgueirou-se para fora do aposento mas a rainha percebeu-lhe a

presenccedila Compreendeu o que o marido havia feito e suportou o

ultraje em silecircncio fingindo nada ter notado mas decidindo no

fundo do coraccedilatildeo vingar-se de Candaulo pois entre os Liacutedios

como entre quase todos os povos baacuterbaros constitui um oproacutebrio

mesmo para um homem o mostrar-se nu (HERODOTE I VIII-X

1850)

A conotaccedilatildeo da pudiciacutecia emerge do sentido original das partes vergonhosas a

genitaacutelia que deve estar coberta para os olhares dos outros Esse sentido segundo observa

Arlene Saxonhouse (2008 p 58) se estende para um contexto praacutetico-poliacutetico no qual o

olhar puacuteblico determina o entendimento comunitaacuterio daquilo que deve ser escondido e

daquilo que deve ser revelado Em Heroacutedoto a vergonha denota a transgressatildeo aos

costumes aos noacutemoi longamente sedimentados que se expressam nas leis reverenciadas

103

pela tradiccedilatildeo A violaccedilatildeo do rei Candaulo consiste em identificar as coisas belas com a

beleza natural da silhueta da mulher em detrimento da reverecircncia agraves leis A longevidade dos

costumes sedimenta as interdiccedilotildees que configuram a esfera do que eacute vergonhoso e

desonroso e por isso os limites das leis ancestrais exigem uma observacircncia e reverecircncia

que se aproximam da natureza A origem remota perdida num tempo em que satildeo gestadas

as belas coisas taacute kalaacute associa a reverecircncia a um acervo de valores que possui a mesma

caracteriacutestica do enclave miacutetico a ausecircncia de dataccedilatildeo Transgredir esses limites implica

uma exposiccedilatildeo e uma impudecircncia equivalente agrave nudez

O eacutelenkhos socraacutetico expotildee a nudez de afetos e pensamentos que reclamam

encobrimento agrave dissoluccedilatildeo do olhar coletivo59

Por essa razatildeo Goacutergias e Polus foram

constrangidos nas amarras da dialeacutetica preferiram deixar-se refutar a exporem-se na sua

nudez Eacute necessaacuterio pois que se faccedila a exposiccedilatildeo das causas do seu embaraccedilo Lei e

Natureza frequentemente se contradizem

A proacutepria natureza pode ser invocada como testemunho e prova de que a justiccedila eacute

precisamente contraacuteria agrave lei os animais os chefes de famiacutelia os homens nas cidades o

grande Rei da Peacutersia e o proacuteprio Zeus exemplificam que a lei da natureza a verdadeira

natureza do direito eacute contraacuteria agraves leis estabelecidas que subjugam os homens mais

vigorosos agrave escravidatildeo A igualdade entre homens desiguais (toacute iacuteson eacutekhosin oacutentes)

subverte a natureza O homem de natureza suficientemente bem nascido para pisar em

todas as ldquomagias encantaccedilotildees e leis estabelecidasrdquo faria ldquobrilhar a justiccedila da naturezardquo

(483e-484b)

59 Arlene Saxonhouse vecirc na personagem do rei Candaulo narrada por Heroacutedoto um precursor de Soacutecrates A

dialeacutetica socraacutetica revela aquilo que na perspectiva da tradiccedilatildeo aristocraacutetica deveria permanecer oculto e isso

acaba por levaacute-lo agrave morte (2008 p 59)

104

A exemplaridade paradigmaacutetica de Goacutergias resplandece na fala de Caacutelicles

Koacutesmos60

para a cidade virilidade para o corpo beleza para a alma sabedoria para o ato

excelecircncia para o discurso verdade (Elogio de Helena 1) Soacutecrates sob pretexto de

perseguir a verdade (aleacutetheia) profere discursos populares (demegorikaacute ndash Goacutergias 482e)

Cabe pois ao loacutegos exaltar o homem excelente por natureza e detrair o contraacuterio pois eacute

um erro louvar o censuraacutevel e censurar o louvaacutevel61

Assim como o discurso exemplar de

seu mestre promove a inversatildeo da maacute fama de Helena urdida pelos poetas assim tambeacutem

Caacutelicles empreende exposiccedilatildeo (dieacutegesis) que inverte a crenccedila gerada pelas encantaccedilotildees dos

que estabelecem as leis Anunciada a verdade de que a justiccedila eacute o direito natural do mais

capaz a loacutegica (loacutegismos) discursiva de Caacutelicles enuncia as razotildees pelas quais as leis satildeo

estabelecidas e propotildee o elogio da lei verdadeira a lei da natureza que eacute a primeira entre os

animais entre as famiacutelias entre os reis e entre os deuses tal como Helena por natureza

(phyacutesei) eacute a primeira entre os primeiros homens e mulheres e divina entre os deuses

(Elogio de Helena 3) A enumeraccedilatildeo dos exemplos consolida as bases da tese Tal como

brilha a beleza da primeira dentre as mulheres o homem vigoroso faz resplandecer o brilho

da justiccedila da Natureza Pela Natureza tal como por Helena vinham todos tanto pelo amor

aacutevido de vitoria quanto pela invenciacutevel avidez de honra reuacutenem-se os melhores e maiores

homens de riqueza gloacuteria forccedila e sabedoria adquirida (Elogio de Helena 4)

60Wardy (1996 p 30) chama atenccedilatildeo para o fato de que a palavra Koacutesmos conforme eacute empregada no Elogio

de Helena designa simultaneamente a ornamentaccedilatildeo e o artifiacutecio do discurso Originalmente o termo

designava a atraccedilatildeo especiosa arranjos impostos como a maquiagem de meretrizes Eacute improvaacutevel argumenta

Wardy que Goacutergias tivesse em vista um raciociacutenio loacutegico pelo qual a verdade como excelecircncia do loacutegos fosse adquirida somente atraveacutes de uma histoacuteria verdadeira O proecircmio do Elogio deve ser interpretado no

sentido de que Koacutesmos natildeo significa um mero ornamento artificial oposto agravequilo que a realidade eacute de fato

Seu objetivo eacute mostrar a verdade Adriano Ribeiro explicita e desenvolve a indicaccedilatildeo de Wardy afirmando o

significado de Koacutesmos como ornada ordenaccedilatildeo Eacute funccedilatildeo do loacutegos expor modelos de ornamentos de modo

ordenado A argumentaccedilatildeo ordena ressaltando o que conveacutem ao que eacute afirmado e afirmando o que eacute

propriamente verdadeiro A ornamentaccedilatildeo da palavra eacute sua verdade e a ela cabe pois distinguir o certo do

incerto o elogiaacutevel do censuraacutevel (RIBEIRO 2002 p 167) 61 GORGIAS Elogio de Helena Adoto a traduccedilatildeo de Daniela Paulinelli 2009

105

A exposiccedilatildeo das causas confere razoabilidade agrave fala e Caacutelicles justifica sua tese com

razotildees No caso de Helena62

as primeiras causas justificam sua ida para Troacuteia mediante um

toacutepos aceito universalmente ndash o de que eacute natural que o mais forte subjugue o mais fraco eacute

natural o mais forte conduzir e o mais fraco seguir (Elogio de Helena 6) No caso de

Caacutelicles as leis satildeo reputadas injustificaacuteveis porque constituem reaccedilatildeo dos mais fracos para

se protegerem da forccedila dos fortes e escravizaacute-los agrave condiccedilatildeo mais baixa Nos dois discursos

o mesmo toacutepos eacute alccedilado agrave condiccedilatildeo de verdade universal visto natildeo reclamar justificaccedilatildeo e

ter acolhimento em qualquer ouvinte sensato Eacute tatildeo natural ser constrangido pela

Necessidade ou por decreto divino quanto pela sobreexcelecircncia do homem superior

Ademais a forccedila da Necessidade dos deuses e do guerreiro armado eacute equiparada agrave forccedila

persuasiva do discurso O loacutegos age como senhor poderoso e a persuasatildeo possui a forccedila de

um rapto Tanto para Goacutergias como para Caacutelicles a natureza passa a ser ldquoum tipo de base

material conveniente para construir uma teoria da persuasatildeordquo (CROCKETT 1994 p 78)

Mas para Goacutergias o constrangimento pela forccedila eacute ato terriacutevel cujo agente deve

receber pelo discurso a acusaccedilatildeo pela lei a desonra pelo ato o castigo (Elogio de Helena

7) Os encantamentos divinos mediante os loacutegoi encantam a alma e nela induzem calafrio

de medo compaixatildeo e pesar comprazido (Elogio de Helena 8) Encantamento e magia se

encontram como teacutecnicas que geram erros da alma e ilusatildeo da opiniatildeo63

ndash os loacutegoi movem

os prazeres e removem as tristezas (Elogio de Helena 10) O uso abusivo do loacutegos por

natureza arrebata a psykheacute e por isso deve ser condenado A retoacuterica eacute uma arte de

62 A retoacuterica no Goacutergias observa Andy Crockett eacute feminina eacute mulher assim como a natureza e a desordem ao passo que o kosmos eacute masculino A concepccedilatildeo de que o mais forte subjuga o mais fraco eacute reforccedilada pelo

fato de a mulher ser naturalmente mais fraca do que o homem e pela misoginia da mulher no regime

democraacutetico ateniense fundamentalmente falogocecircntrico (CROCKETT 1994 p 71 ) 63

106

combate que deve ser usada de maneira legiacutetima contra os inimigos e criminosos como

meio de defesa e natildeo de agressatildeo (Goacutergias 457e) O mestre natildeo deve ser considerado

ldquoculpado ou criminosordquo pelo mau uso da arte Os criminosos satildeo ldquoos indiviacuteduos que fazem

mau uso de sua arterdquo (Goacutergias 457a) A forccedila encantatoacuteria e arrebatadora dos discursos por

constituir princiacutepio de accedilatildeo autocircnomo e causalidade proacutepria justificam a imputabilidade

Tem a mesma relaccedilatildeo tanto o poder do discurso para o

ordenamento da alma quanto o ordenamento dos faacutermacos para a

natureza dos corpos Pois assim como alguns dos faacutermacos

expulsam alguns humores do corpo e fazem cessar uns a doenccedila

outros a vida assim tambeacutem dentre os discursos uns afligem

outros deleitam outros atemorizam outros conferem ousadia aos

ouvintes outros por alguma maacute persuasatildeo drogam e enfeiticcedilam

completamente a alma

(Elogio de Helena 13)

A accedilatildeo conquistadora subjugante eacute movida pelo desejo eroacutetico e a passividade

daquele que eacute conquistado eacute como doenccedila que afeta a alma (Elogio de Helena 18) Se

poreacutem eacute uma doenccedila humana e um desconhecimento por parte da alma natildeo se deve

imputar como erro mas se deve julgar como infortuacutenio A accedilatildeo condenaacutevel do discurso eacute a

usurpaccedilatildeo psiacutequica que equivale agrave violecircncia do rapto

Caacutelicles ao contraacuterio de Goacutergias condena a limitaccedilatildeo da forccedila e a supressatildeo do fato

natural apoiado na polarizaccedilatildeo entre ativo e passivo conquistador e conquistado forte e

fraco capaz e incapaz desregramento e regra phyacutesis e noacutemos Sua defesa despudorada da

forccedila o tipifica como personificaccedilatildeo do disciacutepulo que desconhece a noccedilatildeo de justiccedila e que

por isso faz mau uso da retoacuterica e dos seus efeitos proacuteprios Caacutelicles elogia o belo e

censura o feio A persuasatildeo do loacutegos deve ser posta a serviccedilo da incontinecircncia do apetite

Condenaacuteveis satildeo os muitos que defendem seus interesses com as encantaccedilotildees e maacutegicas

com que estabelecem as leis Condenaacutevel eacute o eacutethos a moralidade do escravo Caacutelicles

advoga a justificaccedilatildeo retoacuterica da violecircncia cometida em prol do prazer com base na

107

constataccedilatildeo factual de uma ordem natural que premia o mais forte No plano da vantagem

nua e crua no campo dos interesses em conflito natildeo eacute natural que o menos capaz sobrepuje

o mais capaz

Na sua apologia agrave forccedila Caacutelicles promove uma re-significaccedilatildeo para o sentido de

noacutemos ao citar Piacutendaro a lei eacute de todos o rei64

dos mortais e dos imortais Como observa

Marian Demos ldquoo uso que Piacutendaro faz do termo (noacutemos) eacute livre de qualquer conotaccedilatildeo

ulterior Piacutendaro vecirc noacutemos como algo poderoso e inevitaacutevel que manteacutem todas as coisas

ldquocompensadasrdquo que regula todas as coisas Ao contraacuterio do que afirma Caacutelicles o poema

de Piacutendaro refere-se agrave forccedila (biacutea) de Heacuteracles qualificando-a como violecircncia e natildeo para

retratar seus trabalhos como modelo exemplar para a aquilataccedilatildeo daquilo que eacute mais justo

(DEMOS 1994 p 94) Enquanto o noacutemos no poema de Piacutendaro indica uma limitaccedilatildeo para

a violecircncia de Heacuteracles Caacutelicles usurpa o poeta e cita o trecho para sustentar sua tese de

que o uso da forccedila eacute a lei da natureza e justiccedila65

Estaacute advertido de que o recurso ao poeta

de renome e agrave comparaccedilatildeo com Heacuteracles possui um apelo persuasivo poderoso Toda

comparaccedilatildeo implica a aproximaccedilatildeo e transferecircncia de valores que satildeo acompanhadas por

afetos proacuteprios Os afetos ligados ao valor do modelo transferem-se para o termo

comparado Assim como Heacuteracles se valeu da violecircncia para roubar os bois de Geriatildeo a

violecircncia do homem superior encontra guarida na celebridade do precedente e nos valores

64 (Goacutergias 484b) 65 Segundo Apolodoro 2 4 8-9 (CARRIEgraveRE MASSONIE 1991 p 63) Heacuteracles filho de Zeus e

Alcmeacutene ultrapassava a todos em altura e forccedila Sua aparecircncia manifestava a todos que o viam que era um

filho de Zeus Seu corpo media quatro cocircvados seus olhos brilhavam com o claratildeo do fogo e suas flechas ou

dardos natildeo erravam o alvo A beleza do semideus se contrapotildee agrave monstruosidade de Geriatildeo seu corpo era

formado por trecircs dorsos reunidos na cintura e que se cindia novamente em trecircs a partir dos quadris e das

coxas (id 2 5 10 106 p 70) Morto por uma flecha de Heacuteracles o disforme Geriatildeo encarna a feiuacutera

monstruosa que estaacute na origem do afeto da vergonha O semideus por sua vez belo e poderoso cruza o

Oceano na taccedila de ouro do deus Heacutelios com o seu espoacutelio o gado puacuterpuro roubado de Geriatildeo

108

que o acompanham trata-se do modo de agir do semideus sobre-humano ndash o maior dos

heroacuteis da Heacutelade

Eacute notaacutevel o uso que Caacutelicles faz de coordenadas miacuteticas para a fundamentaccedilatildeo da

sobreexcelecircncia da forccedila natural e para a significaccedilatildeo do vergonhoso e do honroso A forccedila

encantatoacuteria arrebatadora maacutegica e enfeiticcediladora dos discursos eacute originada segundo

Goacutergias no divino (Elogio de Helena 10)66

Caacutelicles se vale de esquemas miacuteticos

longamente sedimentados nos quadros mentais gregos para consolidar afetos e valores A

encantaccedilatildeo estaacute na base da afetividade que configura modela e justifica as crenccedilas e a

opiniatildeo (NUNES SOBRINHO 2008 p 48ss) e o princiacutepio de accedilatildeo mais poderoso para a

identidade coletiva de uma sociedade baseada no combate e na disputa eacute configurado pelos

afetos ligados ao crivo puacuteblico

Segundo Burkert a busca pelo gado de Geriatildeo exprime uma tradiccedilatildeo preacute-grega

(1979 p 84) e segue um esquema de accedilotildees bem definido (1) o heroacutei empreende uma

busca (2) chega ao lugar de destino (3) comeccedila uma luta com o possuidor (4) derrota-o

(5) leva o gado (6) e retorna Este padratildeo segundo Burkert determina um esquema

antropoloacutegico invariante67

A narrativa miacutetica de Geriatildeo possui a especificidade de

descrever uma geografia coacutesmica Heacuteracles deve atravessar o Oceano no rumo do Sol por

meio da taccedila dourada presenteada por Heacutelios O Oceano eacute o ponto de encontro entre o ceacuteu e

a terra mediaccedilatildeo entre os poacutelos opostos delimitados pelo terrestre e pelo celestial O heroacutei

se vecirc diante de uma situaccedilatildeo problemaacutetica o trabalho de roubar o gado do monstro Geriatildeo

66 67 Walter Burkert segue a estrutura padratildeo e os motifemas estabelecidos por Vladimir Propp Segundo este

padratildeo o trabalho de Heacuteracles teria o seguinte esquema na ordem proposta por Propp Para apanhar o gado

de Geriatildeo sob o comando de Euristeu (9) Heacuteracles parte para uma longa viagem (11) Encontra o Velho

Homem do mar que lhe fornece algumas direccedilotildees (12 13) depara-se com Heacutelios o deus do Sol do qual

obteacutem um objeto maacutegico a taccedila de ouro para atravessar o Oceano (14) quando aporta agrave ilha Vermelha de

Eriteacuteia (15) trava um combate com o chefe dos animais um rugidor de trecircs cabeccedilas Geriatildeo (18) e apodera-

se da manada (19) (BURKERT 2001 p 88)

109

Para realizar a mediaccedilatildeo implicada pela tarefa recebe como recurso um instrumento

divino a taccedila de ouro presenteada por Heacutelios A travessia ou passagem de um plano

coacutesmico para outro soacute eacute realizada mediante o emprego de um recurso divino A ilha

vermelha Eryteacuteia (paiacutes vermelho) onde se encontra o gado puacuterpuro evoca o ocaso

momento de encontro coacutesmico A luta o emprego de recursos divinos a forccedila sobre-

humana e finalmente a vitoacuteria sobre o monstro disforme justificam a soberania e o poder

(VERNANT 2002 p 250 ss) A universalidade deste esquema miacutetico de pensamento

confere segundo Burkert significaccedilatildeo para a vida pastoral cujo maior problema era a

possibilidade de que o rebanho fosse perdido ou roubado O desaparecimento dos animais

era atribuiacutedo sempre agrave accedilatildeo de algum daiacutemon O heroacutei eacute venerado e cultuado em funccedilatildeo de

encarnar dar expressatildeo e significaccedilatildeo para a necessidade vital de lidar com o medo difuso

(ansiedade) da perda do rebanho e do roubo perpetrado por adversaacuterios funestos Eacute preciso

encontrar coragem para a busca daquilo que foi extraviado por potecircncias demoniacuteacas e

haurir proteccedilatildeo efetivada na forccedila heroacuteica que modela a exemplaridade do sucesso

(BURKERT 1979 p 85)

33 Aiskhyacutene Aidōs e Causalidade

Na Apologia Soacutecrates se vale do recurso ao paradigma miacutetico com o escopo de re-

significar o afeto da vergonha Diante da questatildeo da vergonha provocada pelo perigo de

morte decorrente de suas ocupaccedilotildees praacuteticas 68

Soacutecrates recorre aos valores heroacuteicos da

bela morte de Aquiles como meio de reformular a hierarquia daquilo que eacute temiacutevel

vergonhoso e desonroso Nenhum valor pode estar acima de uma vida honrada nem

mesmo o perigo da morte pois nada eacute pior do que viver na desonra Por menor que seja o

68

(Apologia 28b03-04)

110

valor de um homem a vida praacutetica natildeo deve calcular o perigo da morte mas somente se eacute

justa ou injusta se as accedilotildees satildeo as de um homem bom ou mau (28b05-09) Se o risco da

morte ensejasse a vergonha a vida dos semideuses de Troacuteia seria uma vida inferior jaacute que

o filho de Theacutetis natildeo se preocupou com o perigo da morte perante a ameaccedila da vergonha

A morte e o perigo nada satildeo em comparaccedilatildeo com a infelicidade de uma vida em que os

amigos do heroacutei natildeo satildeo vingados (28c08-29d01)

Em uma sociedade de confronto na qual para ser reconhecido eacute

preciso derrotar os rivais em uma competiccedilatildeo incessante pela

gloacuteria cada indiviacuteduo estaacute colocado sob o olhar do outro cada

indiviacuteduo existe por esse olhar Ele eacute o que os outros veem dele A

identidade de um indiviacuteduo coincide com sua avaliaccedilatildeo social da

derrisatildeo ao louvor do desprezo agrave admiraccedilatildeo Se o valor de um

homem permanece assim ligado agrave sua reputaccedilatildeo toda ofensa

puacuteblica agrave sua dignidade todo ato ou comentaacuterio que atinge seu

prestiacutegio seratildeo sentidos pela viacutetima enquanto natildeo forem

abertamente reparados como uma forma de rebaixar ou destruir

seu ser sua virtude iacutentima e de consumir sua queda Desonrado

aquele que natildeo conseguiu que o homem que o ofendeu pague pelo

ultraje perde com sua timḗ o renome o lugar na hierarquia e os

privileacutegios Separado das solidariedades antigas afastado do

grupo de seus pares o que resta dele Caiacutedo abaixo do vilatildeo do

kakoacutes que ainda tem seu lugar nas hostes do povo torna-se um

errante sem paiacutes ou raiacutezes eacute um exilado despreziacutevel um homem

sem nenhum valor

(VERNANT 2001 p 407-408)

A simetria das imagens miacuteticas garante a transitividade dos valores secularmente

preservados assim como a bela morte indica que os desvalores e perigos da vida nada satildeo

em comparaccedilatildeo com a gloacuteria reservada pela memoacuteria imortal assim tambeacutem os valores

seguros nada satildeo diante da desonra reservada pela injusticcedila do viver O risco do oproacutebrio

coletivo torna a vergonha e a desonra mais insuportaacuteveis do que o risco da morte

Eis a verdade destas questotildees Atenienses qualquer que seja a

ordem que algueacutem ocupe quer tenha se tornado melhor por si

mesmo ou fixado por um arkhonte o dever se impotildee como eacute minha

opiniatildeo de permanecer nele qualquer que seja o perigo sem

111

calcular nem a morte nem outra coisa acima da desonra

(Apologia 28d06-10)

O emprego argumentativo das imagens confere significaccedilatildeo agraves accedilotildees mediante o

aporte afetivo suscitado pela encantaccedilatildeo Soacutecrates opera uma transposiccedilatildeo e re-valoraccedilatildeo

dos valores a partir de esquemas psiacutequicos compartilhados incontestes no enclave da

paideacuteia miacutetica Assim como uma vida de desonra natildeo vale a pena ser vivida uma vida sem

exame natildeo merece ser vivida69

A simetria das imagens miacuteticas engendra por outro lado a

reversatildeo dos valores o melhor dos homens cidadatildeo da mais importante e mais renomada

cidade pelo saber e pelo poder deve se envergonhar por cuidar (epimeloumenos) das

riquezas da reputaccedilatildeo e da honra e por natildeo se preocupar de cuidar do pensamento da

verdade e da melhoria da alma (Apologia 29d) O emprego da encantaccedilatildeo miacutetica visa

transpor a triparticcedilatildeo de valores praacuteticos exteriores para a triparticcedilatildeo de valores psiacutequicos e

com isso re-significar o vergonhoso e o desonroso a epimeleacuteia da psykheacute valor supremo

interioriza o afeto da vergonha A vergonha e o honroso cujo escopo eacute a alma natildeo depende

do olhar coletivo e de suas sanccedilotildees mas referencia-se tatildeo somente no olhar da alma para

consigo mesma Mas o discurso revolucionaacuterio de Soacutecrates eacute incompatiacutevel com a

brutalidade da constataccedilatildeo do fato de que as riquezas a fama e o poder constituem os

maiores valores de todos os tempos A sobrelevaccedilatildeo desses valores natildeo pode apoiar-se

numa tradiccedilatildeo miacutetica cujo apanaacutegio consiste em consolidar mediante a crenccedila os afetos

que sancionam os esquemas psiacutequicos tradicionais

No Goacutergias a menccedilatildeo ao deacutecimo trabalho de Heacuteracles ao mesmo tempo justifica

a soberania natural do mais forte e define a exemplaridade para aquilo que eacute assimilado ao

disforme e vergonhoso Caacutelicles habilmente qualifica o processo de estabelecimento das

69 (Apologia 38a05-06)

112

leis como encantaccedilotildees70

e sortileacutegios71

cujo fim eacute a subjugaccedilatildeo da sobreexcelecircncia natural

A inculcaccedilatildeo das leis nos jovens eacute uma violecircncia tatildeo antinatural como a domesticaccedilatildeo dos

leotildees O mau uso da encantaccedilatildeo potecircncia intriacutenseca do discurso eacute assacado ao

estabelecimento das leis e natildeo agrave retoacuterica Mas a forccedila retoacuterica das imagens miacuteticas serve

ainda para desqualificar o anti-heroacutei encarnado por Soacutecrates

Pois agora se fosses preso tu e todos os teus semelhantes e jogado

na prisatildeo sob o pretexto de uma injusticcedila natildeo cometida tu estarias

sem defesa tomado de vertigem e com a boca aberta sem nada

dizer depois levado diante de um tribunal colocado diante de um

acusador sem talento nem consideraccedilatildeo tu serias condenado a

morrer se ele quisesse se honrar com tua morte

Goacutergias 486a-b

A falta de recurso de Soacutecrates identifica-se com a ausecircncia do expediente divino que

interveacutem nos mitos de culpa Destituiacutedo dos expedientes retoacutericos Soacutecrates estaacute na posiccedilatildeo

do anti-heroacutei que natildeo pode superar as situaccedilotildees impedientes A retoacuterica eacute recurso divino

sub-repticiamente associado agrave analogia entre o homem justo por Natureza e Heacuteracles Com

isso Caacutelicles extrai da valoraccedilatildeo miacutetica a forccedila persuasiva da encantaccedilatildeo fundamento da

70

(Goacutergias 484e05-06) 71

Segundo Elizabeth Belfiore (1980) Platatildeo recorrentemente usa o vocabulaacuterio dos sortileacutegios

( ) dos encantos () remeacutedios e venenos ( ) para condenar um

inimigo (Sofista 234c 235a 241b) (Repuacuteblica 598d 602d 601b 607c-d) Em outras passagens os prazeres

afrodisiacuteacos satildeo apresentados como enfeiticcedilamento (Feacutedon 81b) (Filebo 44c) (Repuacuteblica 584a) Soacutecrates eacute

apresentado tambeacutem como feiticeiro encantador (Meacutenon 80b) (Banquete 215c-d) A tese de Belfiore

consiste em identificar na Filosofia uma contra-maacutegica e o papel de desfazer ilusotildees Em Repuacuteblica III (412e

413a) a identifica-se com a exposiccedilatildeo agrave ilusatildeo e ao fortalecimento da opiniatildeo Haacute trecircs meios de

privar-se da verdade de maneira natildeo consentida ( ) pelo roubo pela forccedila e pela Os que

satildeo encantados mudam a opiniatildeo por prazer ou pelo medo (413c) O enfeiticcedilamento muda as opiniotildees opera

por meio dos afetos prazeres e do medo ( ) e implica o abandono da opiniatildeo verdadeira de maneira natildeo

consentida Conforme jaacute notava Goacutergias (Elogio de Helena 10) as encantaccedilotildees persuadem por

meio da mas tambeacutem podem causar o medo O medo eacute um iacutendice e um signo de reconhecimento

de que o corpo se manteacutem preponderante sobre o pensamento apanaacutegio da alma (Feacutedon 68c) Eacute do medo que

derivam as duacutevidas e as hesitaccedilotildees que paralisam as accedilotildees humanas (NUNES SOBRINHO 2008 p 51) A Filosofia 1) afasta as falsas opiniotildees por meio do eacutelenkhos 2) habilita a resistir contra o prazer e o medo e 3)

capacita a agir sem compulsatildeo Natildeo obstante o discurso como natildeo pode prescindir do concurso

das encantaccedilotildees que predispotildeem a alma agrave (Caacutermides 155e05-08) As encantaccedilotildees afastam os

medos destrutivos curam os afetos violentos e satildeo condiccedilotildees para o pensamento purificado (Feacutedon 66d)

113

opiniatildeo justificada pela crenccedila e inaugura no diaacutelogo o emprego da narrativa miacutetica como

elemento integrado agrave argumentaccedilatildeo

O processo de cinco etapas estabelecido por Burkert para descrever a sequecircncia

universal de accedilotildees que caracterizam as narrativas de situaccedilotildees impedientes emerge do

vaticiacutenio de Caacutelicles i) surge uma experiecircncia ameaccediladora inquietante do mal ou da

desgraccedila ii) a calamidade suscita a procura da causa iii) surge um mediador com

conhecimentos sobre-humanos um vidente areter ou adivinhador iv) um diagnoacutestico eacute

feito a causa do mal eacute definida atraveacutes do estabelecimento da culpa e da identificaccedilatildeo do

erro cometido v) uma vez definida a causa expedientes para a salvaccedilatildeo satildeo prescritos

como medidas expiatoacuterias rituais que natildeo excluem procedimentos de natureza racional

uma arte dolosa eacute requerida para a salvaccedilatildeo (2001 p 142) Esta eacute exatamente a estrutura

do argumento que estabelece o anti-heroiacutesmo de Soacutecrates A causa eacute identificada mas

faltam os recursos necessaacuterios para a salvaccedilatildeo O argumento indica uma conexatildeo entre

responsabilidade e puniccedilatildeo ou cataacutestrofe Haacute um nexo causal entre culpa e castigo

personificado na moira (DODDS 2002 B p 41) O vaticiacutenio de Caacutelicles eacute antes de tudo a

afirmaccedilatildeo de uma conexatildeo causal Soacutecrates acabaraacute condenado agrave morte por ser o uacutenico

responsaacutevel por sua proacutepria aporiacutea Falta-lhe o expediente encantatoacuterio propiciador da

salvaccedilatildeo

Se a finalidade do discurso for uacutenica e exclusivamente a persuasatildeo e a adesatildeo

suscitados mediante a mobilizaccedilatildeo afetiva e valorativa a mestria de Caacutelicles esboccedila outro

aspecto intriacutenseco aos loacutegoi aos sortileacutegios e agrave maacutegica72

ndash todos endereccedilados agrave multidatildeo

eles satildeo espetaculares Agrave hoplomakhiacutea dos discursos cabe por princiacutepio estabelecer o bom

72 (Elogio de Helena 10)

114

e o mau uso dos seus efeitos a encantaccedilatildeo e o assentimento pela crenccedila Este uso dos

efeitos determina o bom e o mau uso da retoacuterica em suma a sua moralidade

Kerferd sustenta a tese de que a posiccedilatildeo de Caacutelicles natildeo eacute imoral pois (a) ldquoenvolvia

a rejeiccedilatildeo do direito convencional em favor do direito natural como algo reivindicado como

mais alto melhor e moralmente superiorrdquo e (b) Caacutelices natildeo eacute culpaacutevel de simplesmente

reduzir ldquodeverdquo a ldquoeacuterdquo como resposta agrave questatildeo do que eacute certo visto que simplesmente

constata que o que acontece na natureza deve ser melhor (KERFERD 2003 p 201)

Todavia ao contraacuterio do que afirma Kerferd parece ser mais correto atribuir muito

mais arguacutecia a Caacutelicles e com mais razatildeo ainda a Platatildeo Caacutelicles como demonstra

Demos promove conscientemente uma inversatildeo no sentido de noacutemos conforme aparece

em Piacutendaro Isso indica a mestria de uma presunccedilatildeo que constitui um dos recursos retoacutericos

mais poderosos e que se tornaria perenamente vaacutelido no campo da argumentaccedilatildeo

verossiacutemil o da alegaccedilatildeo de que o habitual por ser sempre esperado pela opiniatildeo comum

continuaraacute sempre ocorrendo Caacutelicles parece perfeitamente ciente de que pode alegar que

o que eacute habitual torna-se normativo e por isso sem receios opera a passagem do eacute para o

deve

A parte final da peccedila retoacuterica de Caacutelicles constitui-se em exortaccedilatildeo A filosofia eacute

desqualificada como adestramento disciplina que participa (meteacutekhein) da educaccedilatildeo

propedecircutica que deve ser abandonada em favor das coisas maiores73

Tal adestramento eacute

semelhante ao dos animais que se pretende domesticar e ldquoeacute orientado no sentido de

extraviar e iludir sistematicamente as naturezas fortes e manter de peacute o poder dos fracosrdquo

(JAEGER 1995 p 668) O argumento aporta ao recurso da reprovaccedilatildeo pelo ridiacuteculo

(katageacutelastos) o exerciacutecio filosoacutefico eacute uma desmedida punida pelo riso puacuteblico Desajuste

73 (Goacutergias 484c)

115

entre a praacutetica particular e o que eacute aceitaacutevel publicamente extravagacircncia de um exerciacutecio

indecoroso que se opotildee ao que eacute conveniente e bem reputado (eudoacutekimon) pela cidade a

formaccedilatildeo filosoacutefica e o seu modo de vida correspondente satildeo contraacuterios agrave natureza O

resultado disso eacute a perplexidade a irresoluccedilatildeo (apragmosyne) diante da efetividade poliacutetica

e a incapacidade de prover defesa de si mesmo o criteacuterio uacuteltimo para um modo de vida

calcado no conflito de interesses

A Filosofia eacute desqualificada mediante a sua identificaccedilatildeo com parte de uma Paideacuteia

mais ampla e voltada para as questotildees poliacuteticas A inclusatildeo desvalorizadora num conjunto

de disciplinas equivalentes exige a aplicaccedilatildeo a um momento oportuno da formaccedilatildeo do

homem A excrescecircncia eacute assimilada ao desajuste ao despudor A fala de Caacutelicles promove

a reversatildeo da presunccedilatildeo que associa a sabedoria ao presbyacuteteros em vez de ser associada agrave

sabedoria do mais velho Soacutecrates eacute comparado ao adulto que se porta com a conduta de

uma crianccedila balbuciante O homem que age de modo infantil parece ridiacuteculo (katageacutelastos)

e desvirilizado (anaacutendros) e deve por isso receber o mesmo tipo de correccedilatildeo que se aplica

agrave crianccedila e que Soacutecrates faz por merecer pancadas74

(MICHELINI 1998 p 55)

Toda a forccedila moral do golpe retoacuterico deriva do fato secular e lentamente cristalizado

na noccedilatildeo de que o maior princiacutepio de accedilatildeo para um homem bem reputado eudoacutekimon natildeo

eacute ldquoo medo de um deus mas o respeito agrave opiniatildeo puacuteblica aidōsrdquo (DODDS 2002 B p 26)

Tanto a atitude moral de Polos como a de Caacutelicles expressam simultaneamente a boa

reputaccedilatildeo como um objetivo social a ser atingido e a vergonha como fracasso ambas

exploradas pela habilidade retoacuterica (DODDS 2002 A p 11 ss) Nada mais insuportaacutevel

74

o

(Goacutergias 485c)

116

para um psiquismo coletivo fortemente impregnado pela ldquovergonhardquo do que a exposiccedilatildeo ao

desprezo e ao ridiacuteculo

Natildeo eacute por acaso que a vergonha seja reconhecida como um leimotiv de toda a

encenaccedilatildeo dramaacutetica a palavra aiskhyacutene juntamente com suas formas verbais e o adjetivo

aiskhroacutes ocorrem setenta e cinco vezes no diaacutelogo Por essa razatildeo a estrateacutegia de

desvalorizaccedilatildeo da retoacuterica promovida pela dialeacutetica socraacutetica implica o esvaziamento

eacutetico-afetivo de princiacutepios de accedilatildeo tradicionais baseados na reputaccedilatildeo e na vergonha

puacuteblicas (RACE 1979 p 197ss) que satildeo constituintes basilares da mentalidade

aristocraacutetica ateniense Goacutergias e Polos foram viacutetimas Sua derrota foi causada sobretudo

pelo constrangimento decorrente da proacutepria vergonha que os forccedilou agrave assunccedilatildeo de que eacute

mais vergonhoso cometer injusticcedila a ter de sofrecirc-la (DODDS 2002 A p 263) Essa

vergonha equivale agrave pudiciacutecia que natildeo deve despir-se ao olhar coletivo a beleza natural das

partes iacutentimas a nudez A contradiccedilatildeo que torna o discurso insustentaacutevel emerge a partir

de afeto insuportaacutevel suscitado pelo discurso demagoacutegico o paacutethos da vergonha75

Afeto e

discurso satildeo congruentes implicam-se e significam-se mutuamente

Entatildeo Goacutergias foi envergonhado disse Polos e admitiu ensinar (a

justiccedila segundo o haacutebito (eacutethos) dos homens para que algueacutem natildeo

se indignasse se dissesse o contraacuterio Foi por causa dessa

concordacircncia que Goacutergias foi constrangido a contradizer-se o que

muito te satisfaz Por isso Polos te ridicularizou corretamente

segundo penso Agora ele sofre o mesmo constrangimento

(eacutepathen) E por causa disso eu mesmo natildeo admiro Polos pelo

consentimento de que cometer injusticcedila eacute mais desonroso (aiskhiacuteon)

do que cometecirc-la Pois por causa dessa concordacircncia ele foi

enredado (sympodistheigraves) por ti nos argumentos e foi emudecido

por se envergonhar de dizer o que pensa76

75

Goacutergias 482c05-07 76

(Goacutergias 482d03-e02) Traduccedilatildeo modificada a partir de Irwin (1979)

117

Caacutelicles fundamenta a divisatildeo entre natureza e lei no afeto da vergonha segundo a

lei (kataacute noacutemos) eacute vergonhoso cometer injusticcedila mas segundo a natureza ocorre

precisamente o contraacuterio Haacute dois sentidos para a vergonha concernentes a cada um dos

dois termos da divisatildeo77

Qual das duas vergonhas deve fundamentar o respeito a

reverecircncia e a honra que possibilitam o criteacuterio para a escolha da melhor vida Seraacute a

vergonha que emerge do olhar coletivo longamente moldado na tradiccedilatildeo e nos noacutemoi ou a

vergonha aristocraacutetica que remete para a forccedila natural sem consideraccedilatildeo para com as

convenccedilotildees A disjunccedilatildeo entre natureza e lei sempre haure sentido na exterioridade

Soacutecrates subverte o sentido da vergonha ao vinculaacute-la ao cuidado da alma e agrave virtude O

criteacuterio para a escolha dos valores deriva da auto-sēmasiacutea ele brota do olhar da alma para

consigo mesma

Mas para Caacutelicles phyacutesis e noacutemos satildeo incompatiacuteveis e se a vergonha constituir um

impedimento para que ousadamente se fale aquilo que se pensa necessariamente haveraacute

contradiccedilatildeo (482e-483a) O afeto da vergonha indica uma incompatibilidade entre as

crenccedilas o pensamento (noeacuteō) e o discurso publicamente assumido O principal elemento

que caracteriza as ldquoamarrasrdquo da dialeacutetica socraacutetica natildeo eacute meramente proposicional e natildeo

77 Bensen Cain critica o procedimento refutativo de Soacutecrates mediante a distinccedilatildeo semacircntica do que eacute

moralmente vergonhoso e do que eacute mau ou prejudicial Polos admite a existecircncia factual de uma vergonha

convencional mas natildeo assente ao fato de que accedilotildees injustas sejam maacutes Ao contraacuterio o exemplo de Arquelau

seria suficiente para provar que o homem mais injusto eacute o mais feliz A refutaccedilatildeo de Polos eacute de ordem

semacircntica e ocorre por identificar o vergonhoso com o prejudicial Cain qualifica a falsa refutaccedilatildeo socraacutetica como falaacutecia de ambiguidade um deslizamento (sliding) ou oscilaccedilatildeo ambiacutegua entre duas acepccedilotildees

semacircnticas da vergonha (2008 p 221 ss) A anaacutelise de Cain expotildee com bastante clareza o fato de que as

interpretaccedilotildees do eacutelenkhos satildeo insuficientes por natildeo levarem em conta o exame semacircntico do afeto da

vergonha Natildeo obstante sua leitura aleacutem de empregar a terminologia proposicional moderna de Vlastos

pressupotildee o princiacutepio natildeo explicitado de que a significaccedilatildeo semacircntica faz referecircncia a uma realidade objetiva

exterior Caacutelicles personagem platocircnica aponta exatamente o problema da distinccedilatildeo semacircntica dos dois

sentidos de aiskhroacutes aiskhiacuteon como expediente demagoacutegico empregado por Soacutecrates A questatildeo da

significaccedilatildeo afetiva todavia deveria ser auto-referenciada no acircmbito interno da alma

118

pode ser reduzido agrave consecuccedilatildeo de conclusotildees que decorrem de premissas fracas78

O iniacutecio

da contradiccedilatildeo aponta para uma dissociaccedilatildeo psiacutequica a oposiccedilatildeo entre a vergonha suscitada

pela reprovaccedilatildeo coletiva e as crenccedilas subjacentes ao pensamento79

O proacuteprio Caacutelicles

afirma que natildeo seria presa da vergonha em funccedilatildeo de discernir com exatidatildeo a distinccedilatildeo

entre phyacutesis e noacutemos Esta ausecircncia de vergonha eacute inversamente proporcional agrave ousadia

(toacutelmacirci) no falar que configura a sua ldquofranquezardquo No tinir das espadas da palavra

emergem os afetos e atributos psiacutequicos como princiacutepios da accedilatildeo e do gecircnero de vida

aceitaacutevel e honoraacutevel o apetite de ter mais a vergonha e a honra o pensamento os

discursos e seus efeitos o caraacuteter e a justiccedila A verdadeira contradiccedilatildeo (enantiacutea) eacute

contradiccedilatildeo entre discurso afetos manipulaccedilatildeo dos afetos (encantaccedilatildeo e goēteiacutea) e

pensamentos determinantes para a melhor vida a vida de mais brilho de maior valor forccedila

e significaccedilatildeo A verdadeira contradiccedilatildeo ocorre no acircmbito da complexidade da alma

A divisatildeo entre phyacutesis e noacutemos implica uma oposiccedilatildeo que procura reduzir a questatildeo

da justiccedila a duas partes tornadas incompatiacuteveis pelos interesses em oposiccedilatildeo que

configuram a inteireza da cidade A exaustividade das duas partes exclui a possibilidade de

qualquer outra subdivisatildeo e reduz o debate a duas posiccedilotildees antagocircnicas entre as quais se

78 Irwin aponta o ldquoescruacutepulo convencionalrdquo como base do diagnoacutestico do embaraccedilo em que se meteram

Goacutergias e Polos mas somente reconhece na passagem uma criacutetica proposicional ao meacutetodo refutativo

empregado por Soacutecrates Caacutelicles teria oferecido duas objeccedilotildees ao eacutelenkhos (i) Soacutecrates muda as premissas

do argumento preacutevio (ii) Soacutecrates depende de premissas concedidas pelo interlocutor e com isso

simplesmente fia-se nos preconceitos do interlocutor ou em visotildees com as quais natildeo concorda inteiramente

(1979 p 170) O desenvolvimento da criacutetica de Caacutelicles no entanto indica que o embate dialoacutegico gira em

torno da questatildeo do gecircnero de vida e da decorrente significaccedilatildeo do paacutethos da vergonha 79 Vlastos consigna ao eacutelenkhos a funccedilatildeo de testar ou provar o modo de vida e o caraacuteter ou a honestidade do interlocutor mediante a afirmaccedilatildeo de uma crenccedila que este efetivamente possui O gecircnero de vida nessa

perspectiva seria somente uma garantia da veracidade das teses defendidas e da seriedade na busca da

verdade Embora Vlastos reconheccedila que o eacutelenkhos possua o duplo papel existencial de ldquomostrar como cada

ser humano deve viver e testar aquele ser humano uacutenico que estaacute respondendo a fim de descobrir se ele vive

como algueacutem deve viverrdquo sua anaacutelise do eacutelenkhos padratildeo possui um enfoque inteiramente proposicional

segundo o qual o esquema baacutesico seria a anaacutelise ad hoc de proposiccedilotildees q e r natildeo conectadas logicamente agrave

crenccedila p do interlocutor a fim de se chegar agrave assunccedilatildeo de natildeo-p

olympiodoro

119

deve forccedilosamente escolher O artifiacutecio retoacuterico de Caacutelicles eacute paradigmaticamente

estrateacutegico apoacutes reduzir o debate a dois poacutelos excludentes passa-se a desqualificar a

posiccedilatildeo do adversaacuterio mediante a reduccedilatildeo ao ridiacuteculo para logo em seguida conferir

primazia para a uacutenica alternativa possiacutevel Por essa razatildeo a exortaccedilatildeo caricatura o modo de

viver filosoacutefico num quadro em que Soacutecrates passa o resto de seu tempo cochichando

(psithyriacutezdonta) sem que seja capaz de murmurar (phtheacutenxasthai) o que eacute livre grande e o

que vem a propoacutesito (Goacutergias 485d-e)

Sob a aparecircncia da disposiccedilatildeo amigaacutevel80

a admoestaccedilatildeo segue impulsionada pela

alegaccedilatildeo de um paacutethos de perigo iminente que enseja a estrateacutegia de mais uma comparaccedilatildeo

depreciativa segundo a qual a situaccedilatildeo protagonizada por Soacutecrates evoca aqueloutra

encenada na Antiacuteope de Euriacutepides81

Como o muacutesico Amphion Soacutecrates esquece o modo de conduzir as ocupaccedilotildees e

torna a natureza de sua alma pueril natildeo sabe cuidar de si natildeo eacute capaz de um loacutegos reto em

conselhos de justiccedila natildeo poderia apreender nem o razoaacutevel (eikoacutes) nem o persuasivo

(pithanoacutes) e nem poderia pocircr a serviccedilo de outro um conselho decidido (bouacuteleuma

80

81 Segundo M Canto (1993 p 333) o tema principal da trageacutedia de Euriacutepides era a libertaccedilatildeo de Antiope por

sues filhos gecircmeos Zḗthos e Amphion O primeiro era pastor e Amphion muacutesico Na encenaccedilatildeo Euriacutepides

opotildee dois modos de vida conflitantes mediante a tipificaccedilatildeo dos dois irmatildeos ao deslocamento de um artista e

filoacutesofo que se afasta das atividades puacuteblicas se opotildee a atividade praacutetica de um homem de accedilatildeo Croiset

(2003 p 284-285 n 1) afirma que Zḗthos era vigoroso e eneacutergico se dedicava agrave caccedila e agrave criaccedilatildeo de animais

ao passo que Amphion desdenhava os exerciacutecios violentos por possuir uma natureza mais fina e mais

sensiacutevel Amphion teria recebido de Hermes a lira com a qual se dedicava agrave muacutesica e agrave poesia E R Dodds atribui a Euriacutepides uma visatildeo anti-racionalista que vai de encontro com a concepccedilatildeo platocircnica de

uma ordem racional que perpassa o Koacutesmos Para Euriacutepides o homem eacute escravo da Necessidade e o divino eacute

muito mais um conjunto de potecircncias irracionais do que a expressatildeo de uma racionalidade A atitude de

Amphion em relaccedilatildeo agrave poliacutetica torna manifesto o artifiacutecio da comparaccedilatildeo desqualificadora usado por Caacutelicles

na sua exortaccedilatildeo No Fr 201 Amphion suplica conceda-me o dom da muacutesica e da afirmaccedilatildeo sutil natildeo

permita de forma alguma que eu me meta nos destemperos do Estado A alusatildeo agrave personagem da Antiope de

Euriacutepides caricatura e desvaloriza Soacutecrates Natildeo obstante Dodds acentua as diferenccedilas entre o poeta traacutegico e

Platatildeo ldquoO contemplativo platocircnico estaacute em casa no Universo porque ele vecirc o Universo como sendo

penetrado por uma razatildeo divina e portanto eacute acessivel agrave razatildeo humana tambeacutem Mas o homem de Euriacutepides

eacute o escravo e natildeo a crianccedila favorita dos deuses e o nome da bdquoordem sem idade‟ eacute a Necessidade

chora o Coro na Alcestis (DODDS 1929 p 101)

120

bouleuacutesaio)82

Ao comparar a sua exortaccedilatildeo com a reprimenda que Zḗthos dirige ao irmatildeo

por causa de uma atividade lassa Caacutelicles coloca Soacutecrates e Amphion num mesmo plano

Natildeo haacute modo mais direto de desqualificar o adversaacuterio do que comparaacute-lo com uma

personagem reconhecidamente despreziacutevel A contundente desqualificaccedilatildeo eacute endereccedilada

simultaneamente ao homem e agrave sua atividade e possui o inegaacutevel valor retoacuterico de suscitar

a adesatildeo sem reclamar justificaccedilatildeo pois se vale do proacuteprio processo mental com que o

homem comum forma a sua opiniatildeo

A fala de Caacutelicles deixa entrever que o tipo de racionalidade pretendida pela retoacuterica

natildeo se preocupa com a explicaccedilatildeo e as causas de seu procedimento mas tatildeo somente aduz

arrazoados que se valem das opiniotildees arraigadas no quadro mental da cidade para forcejar a

persuasatildeo A elaborada construccedilatildeo do discurso de Caacutelicles torna patente o fato de que

Platatildeo natildeo nega a eficaacutecia da engenhosidade retoacuterica Pelo contraacuterio eacute em funccedilatildeo da

eficaacutecia de uma praacutetica que se vale de esquemas de pensamento que natildeo satildeo explicitados eacute

que Platatildeo contrapotildee agrave retoacuterica a Filosofia como a uacutenica racionalidade legiacutetima A

racionalidade genuiacutena eacute aquela que natildeo somente sustenta seu loacutegos em causas mas que

garante a excelecircncia do ḗthos a partir de uma noccedilatildeo de justiccedila que ultrapassa a efemeridade

das circunstacircncias e das conveniecircncias

Agrave rhḗsis retoricamente bem acabada de Caacutelicles Soacutecrates sem detenccedila evoca a

alma como a instacircncia na qual os seus efeitos se manifestam A psykheacute eacute a origem e o fim

do loacutegos Este por sua vez eacute um meio pelo qual os movimentos psiacutequicos interatuam e

influenciam-se mutuamente engendrando inteligecircncia ou ilusatildeo miriacuteades de afetos

significaccedilotildees ou perplexidades Se a alma fosse de ouro (khryacutesen) Caacutelicles seria o liacutethos a

82 icirc

(Goacutergias 485e06-a03)

121

pedra de toque abrasiva que prova a preciosidade Assim como a pedra de toque prova o

ouro agrave alma prova o loacutegos

Agrave ordenaccedilatildeo da rhḗsis segue raacutepida a sutileza da eironeiacutea Baacutesanos eacute

simultaneamente a pedra de toque que prova o ouro e a interrogaccedilatildeo sob tortura ndash a forma

mais brutal e desumanizadora de violecircncia e de manifestaccedilatildeo de poder83

A exortaccedilatildeo

retoacuterica de Caacutelicles eacute pedra de toque ou tortura Olympiodoro observa que a metaacutefora

ressalta o papel de teste do eacutelenkhos assim como uma pedra friccionada agrave outra provoca a

faiacutesca que se torna chama uma dificuldade friccionada agrave outra se torna a causa da

descoberta Assim como a pedra prova o ouro a pureza da alma eacute provada pela dureza do

caraacuteter de Caacutelicles (OLYMPIODORUS 1998 p 194)

O emprego irocircnico da ambiguidade enseja o estabelecimento de condiccedilotildees

diretrizes Para provar (basanieicircn) suficientemente se uma alma vive retamente ou natildeo eacute

preciso trecircs qualidades o saber (episteacuteme) a benevolecircncia (eunoacuteia) e a franqueza

(parrhēsiacutea)84

Tais condiccedilotildees satildeo determinaccedilotildees da alma e se contrapotildeem discursivamente

agrave divisatildeo bipolar postulada por Caacutelicles entre phyacutesis e noacutemos A questatildeo da valoraccedilatildeo das

accedilotildees pressupotildee a esfera psiacutequica e essa triparticcedilatildeo (triacutea) de determinaccedilotildees psiacutequicas

83

Michael Gagarin (1996 p 1) mostra que a tortura era praacutetica corrente na democracia ateniense como

instrumento juriacutedico usado nos tribunais Uma norma bem conhecida sustenta que na maioria dos casos os testemunhos dos escravos soacute eram admissiacuteveis no tribunal se eles fossem levados sob tortura e nos discursos

forenses de sobrevivecircncia os oradores frequentemente descrevem as regras que regem e enaltecem

a praacutetica como a mais eficaz e ateacute mesmo ldquomais democraacuteticardquo (Lycurg 129) Era um toacutepos que a informaccedilatildeo

mediante era preferiacutevel ao depoimento de testemunhas livres Sendo assim um orador afirma

(Dem 3037) Certamente vocecircs (jurados) consideram como a prova mais precisa de todas em

ambos os casos privado e puacuteblico e quando escravos e pessoas livres estiverem ambas disponiacuteveis e vocecircs

precisarem descobrir algum fato sob investigaccedilatildeo natildeo usem o testemunho das pessoas livres mas sujeitem

os escravos ao dessa forma procurem descobrir a verdade E isso eacute bem razoaacutevel senhores do

juacuteri pois vocecircs sabem muito bem que no passado algumas testemunhas pareceram depor falsamente

enquanto ningueacutem que se sujeitou ao comprovadamente jamais falou falsamente sob 84

(Goacutergias 487a)

122

aponta ao mesmo tempo para um modo de unificaccedilatildeo e um modo de dissociaccedilatildeo ou de

fragmentaccedilatildeo

34 Parrhēsiacutea e Epithymiacutea

Polos ndash Por quecirc Natildeo me eacute permitido falar o quanto eu quiser

Soacutecrates ndash Terriacutevel sofrimento terias oacute excelente se desde tua

chegada a Atenas a cidade da Heacutelade onde a liberdade de falar eacute a

maior tu fosses o uacutenico homem que tivesse essa falta de sorte

Goacutergias 461d85

A liberdade da fala reflete o igualitarismo ateniense e a expectativa de que o

cidadatildeo se engaja na assembleacuteia mediante o discurso aberto A participaccedilatildeo direta na vida

ciacutevica pressupotildee a fala consonante com o pensamento de quem a profere A parrhēsiacutea

constitui-se na abertura do discurso que revela o pensamento de quem fala Qualquer

expediente que ofusque o pensamento como a retoacuterica86

denota a prevalecircncia dos

interesses particulares em detrimento do bem-estar da cidade

Nesse sentido a parrhēsiacutea aparece inicialmente como a fala aberta que revela o

pensamento e as verdadeiras crenccedilas do proferidor A parrhēsiacutea eacute a fala que desvela e

revela eacute o tipo de discurso mediante o qual o cidadatildeo da democracia ateniense se engaja

com igualdade junto aos demais concidadatildeos na assembleacuteia deliberativa para expor sem

impedimentos o seu pensamento Na democracia do Vordm seacuteculo as principais caracteriacutesticas

da parrhēsiacutea praacutetica distintiva da democracia de Atenas como observa Arlene

Saxonhouse satildeo i) a ousadia corajosa da praacutetica que envolve o risco de afrontar os

85 ΠΩΛOS Τί δέ νὐθ ἐμέζηαη κνη ιέγεηλ ὁπόζα ἂλ βνύιωκαη

ΣΩKRATES Δεηλὰ κεληἂλ πάζνηο ὦ βέιηηζηε εἰ Ἀζήλαδε ἀθηθόκελνο νὗ ηῆο Ἑιιάδνο πιείζηε

ἐζηὶλ ἐμνπζία ηνῦ ιέγεηλ ἔπεηηα ζὺ ἐληαῦζα ηνύηνπ κόλνο ἀηπρήζαηο 86 No seu trabalho acerca da liberdade da fala na democracia ateniense Arlene Saxonhouse afirma que a

parrhēsiacutea se opotildee mais do que suporta a praacutetica da retoacuterica que obscurece e distorce a verdade em favor do

benefiacutecio individual O verdadeiro falante parresiaacutestico repudia a arte da retoacuterica A retoacuterica com seu

objetivo de enganar natildeo eacute uma expressatildeo de parrhēsiacutea mas sua perversatildeo () O contraste entre a retoacuterica

e a parrhēsiacutea eacute um tropo familiar que perpassa as falas dos oradores do quarto seacuteculo A retoacuterica de acordo

com suas proacuteprias promessas obstrui a praacutetica da parrhēsiacutea e mina o papel da liberdade da fala como uma

atividade que procura a verdade no regime democraacutetico (2008 p 92)

123

princiacutepios legais e cultos ciacutevicos e ii) o aspecto de desvelamento envolvido na praacutetica que

simultaneamente expotildee os verdadeiros pensamentos do interlocutor e sua resistecircncia a

ocultar a verdade por causa da coerccedilatildeo decorrente do olhar puacuteblico da vergonha coletiva

(SAXONHOUSE 2008 p 87)

A retoacuterica aparece como teacutecnica que promete a liberdade entre os homens e o poder

sobre o outro na cidade87

o poder de dominar o olhar coletivo mediante a persuasatildeo ndash

encantaccedilatildeo dos loacutegoi A retoacuterica eacute a dyacutenamis de dominaccedilatildeo das grandes massas (en toicircs

plḗthesin Goacutergias 457a06) Seu ensino intrinsecamente voltado para o espetaacuteculo na

assembleacuteia natildeo requer nem o conhecimento nem a verdade mas o poder de mobilizar os

afetos e suscitar a persuasatildeo A potecircncia da retoacuterica eacute a potecircncia da ocultaccedilatildeo da ilusatildeo e

da elisatildeo aos impedimentos derivados do olhar coletivo Trata-se de um procedimento

discursivo que suprime a necessidade da verdade e torna a vergonha ineficaz pelo poder

encantatoacuterio da persuasatildeo No Goacutergias a parrhēsiacutea aparece como condiccedilatildeo epistecircmica do

discurso investigativo Fala do desvelamento e da abertura ao olhar a parrhēsiacutea se opotildee

encobrimento retoacuterico assim como a igualdade se opotildee agrave dominaccedilatildeo e agrave usurpaccedilatildeo e assim

como a instruccedilatildeo (maacutethesis) se opotildee agrave crenccedila (piacutestis Goacutergias 454d)

Goacutergias e Polos se contradisseram por causa da indiscriccedilatildeo elecircntica de Soacutecrates que

desnudou crenccedilas e princiacutepios de accedilatildeo cujo papel no acircmbito do jogo poliacutetico deveriam

permanecer ocultas Goacutergias e Polos foram refutados por causa da vergonha que os impediu

de usar a fala aberta da qual os atenienses se orgulham88

Estrangeiros eles satildeo

87 κὲλ ἐιεπζεξίαο αὐηνῖο ηνῖο ἀλζξώπνηο ἅκα δὲ ηνῦ ἄιιωλ ἄξρεηλ ἐλ ηῇ αὑηνῦ πόιεη Goacutergias (452d07) 88

ηὼ δὲ μέλω ηώδε Γνξγίαο ηε θαὶ Πῶινο ζνθὼ κὲλ θαὶ θίιω ἐζηὸλ ἐκώ ἐλδεεζηέξω δὲ

παξξεζίαο θαὶ αἰζρπληεξνηέξω κᾶιινλ ηνῦ δένληνο πῶο γὰξ νὔ ὥ γε εἰο ηνζνῦηνλ αἰζρύλεο ἐιειύζαηνλ ὥζηε δηὰ ηὸ αἰζρύλεζζαη ηνικᾷ ἑθάηεξνο αὐηῶλ αὐηὸο αὑηῷ ἐλαληία ιέγεηλ ἐλαληίνλ

πνιιῶλ ἀλζξώπωλ θαὶ ηαῦηα πεξὶ ηῶλ κεγίζηωλ

124

considerados saacutebios e amigos mas ao mesmo tempo deficientes de parrhēsiacutea e

excessivamente envergonhados Satildeo carentes de liberdade no falar e plenos de vergonha A

vergonha que sofrem eacute tatildeo grande que os impede de ter audaacutecia ambos se contradizem sem

poder contraditar a multidatildeo dos homens acerca de questotildees que para Soacutecrates satildeo as

maiores Ao contraacuterio do cidadatildeo ateniense tiacutepico os estrangeiros Goacutergias e Polos

suportam excessiva vergonha mas natildeo suportam a firmeza da palavra e de seus verdadeiros

pensamentos Mas ao contraacuterio de Goacutergias e Polos Caacutelicles eacute ateniense e pode falar

livremente (parrhēsiaacutezdesthai) sem se envergonhar (megrave aiskhyacutenesthai Goacutergias 487d05)

Todavia a parrhēsiacutea praticada nas assembleacuteias puacuteblicas atenienses pressupotildee a fala aberta

entre iguais iacutesoi ao passo que Caacutelicles eacute apologista da excelecircncia dos melhores dentre

desiguais Em que difere o livre-falar de Caacutelicles e a parrhēsiacutea isonocircmica ateniense Quais

satildeo as determinaccedilotildees que operam as distinccedilotildees entre franquezas antagocircnicas

A parrhēsiacutea aparece no Laacuteques ligada agrave questatildeo da consonacircncia entre o discurso e o

gecircnero de vida de quem o profere Jaacute no iniacutecio do proacutelogo Lisiacutemaco estabelece o falar

francamente89

como condiccedilatildeo preacutevia agrave discussatildeo que teraacute iniacutecio Os conselhos mais

importantes exigem consonacircncia entre o pensamento e opiniatildeo ao contraacuterio daqueles que

buscam conformar o discurso agrave opiniatildeo da maioria (Laques 178b01-03)

A questatildeo do cuidado (epimeacuteleia) necessaacuterio para que os filhos se tornem excelentes

(aacuteristoi) reclama a franqueza muacutetua (parresiasoacutemetha) no falar90

(Laques 179c01) A

consonacircncia entre discurso e pensamento eacute condiccedilatildeo sine qua non para o aconselhamento

conjunto (symbouleuacuteomai) acerca de questotildees importantes A deliberaccedilatildeo acerca do melhor

Goacutergias 486a06-487b05 89

(Laacuteques 178a04) 90 Emlyn-Jones interpreta o desejo de Lisiacutemaco em ser franco como uma exposiccedilatildeo de si proacuteprio ao potencial

ridiacuteculo e sacrifiacutecio do prestiacutegio social por fazer a revelaccedilatildeo da incompetecircncia paterna Essa exposiccedilatildeo ao

ridiacuteculo seria uma demonstraccedilatildeo praacutetica do seu desejo reiterado de cooperaccedilatildeo (1999 p 126)

125

pressupotildee natildeo somente o conhecimento daquilo que vai ser ensinado (maacutethēma) e de seus

efeitos mas a comunhatildeo (koinōniacutea) de fins que suscita um discurso veraz sobre o cuidado a

ser dado aos filhos (Laacuteques 179e)

O cuidado (epimeleacuteia) se opotildee agrave libertinagem dos que chegam agrave adolescecircncia e

fazem o que querem91

A preocupaccedilatildeo com o cuidado para com os filhos configura um

conflito dos valores proacuteprios agraves atividades da democracia ateniense do V seacuteculo a

dedicaccedilatildeo agraves atividades puacuteblicas dos homens bem reputados implica em negligenciar a

educaccedilatildeo dos proacuteprios filhos As belas accedilotildees empreendidas pelos eudoacutekimoi tanto na

guerra como na paz na ocupaccedilatildeo das coisas dos aliados e da polis (179c) engendram

como contrapartida a corrupccedilatildeo da aristeiacutea das geraccedilotildees subsequentes em razatildeo do

descuidar (ameleicircn) Filhos de pais nobres e bons Lisiacutemaco e Meleacutesias envergonham-se

(hypaiskhynoacutemethaacute) diante dos proacuteprios filhos por natildeo terem accedilotildees valorosas a narrar O

descuido implica uma vida de moleza (tryacutephan) cuja consequecircncia eacute a licenciosidade92

A

dedicaccedilatildeo agraves coisas dos outros (tōn aacutellōn praacutegmata eacutepratton) implica a ameleiacutea

negligecircncia que torna a vida poliacutetica incompatiacutevel com a excelecircncia e a nobreza que

configura o homem bem reputado (179d) O cuidado epimeleacuteia e terapecircutica exigidos

pela excelecircncia se opotildeem agrave ameleiacutea e agrave vergonha A encenaccedilatildeo dramaacutetica sugere que a

democracia aristocraacutetica ateniense carrega em seu bojo a vergonha que emerge da

incompatibilidade interna de seus valores

O proacutelogo do Laacuteques encena a oposiccedilatildeo entre tipos de comunhotildees excludentes O

cuidado com as praacuteticas poliacuteticas exige a comunhatildeo com a maioria e consequentemente

um gecircnero de discurso que se pauta pela opiniatildeo dos muitos em detrimento do pensamento

91 179a06-07 92 Sobre Lisiacutemaco e Meleacutesias personagens do Laacuteques ver introduccedilatildeo de L A Dorion (PLATON 1997 p

15-20)

126

O cuidado com os filhos exige a comunhatildeo e a atenccedilatildeo simultacircnea de todos os pais e

reclama um gecircnero de discurso inteiramente consonante com o pensamento (Laques 180b)

Essa consonacircncia constitui a franqueza muacutetua (parrēsiaacutezomai) que possibilita o bom

conselho Haacute pois ao mesmo tempo um viacutenculo entre o falar franco e o pensamento que

lhe corresponde e um viacutenculo da licenciosidade no falar com os desejos da maioria Satildeo

tipos opostos de franqueza A franqueza muacutetua que instaura a comunhatildeo do bom conselho

mediante o confiar (pisteuacuteesthai 180b06) se opotildee agrave fala livre empregada nas atividades

poliacuteticas

A comunhatildeo gera a veracidade a veracidade gera a boa reputaccedilatildeo (181b08) e a

confianccedila a confianccedila gera a maior benevolecircncia (eunouacutestaton 181b08) e a benevolecircncia

manteacutem salva a amizade A encenaccedilatildeo dramaacutetica do proacutelogo do Laacutequesingressa

simultaneamente a conexatildeo entre o cuidado com o eacutethos e a investigaccedilatildeo das maiores

questotildees e entre a parrhēsiacutea a eunoacuteia e a episteacuteme A comunhatildeo dos pais em torno da

finalidade comum da formaccedilatildeo e da excelecircncia abarca a competecircncia no ensino a

franqueza muacutetua a benevolecircncia e a amizade ndash condiccedilotildees epistecircmicas da investigaccedilatildeo

Laacuteques admite que sua atitude diante dos loacutegoi eacute dupla a saber que ora eacute tomado de

paixatildeo ora eacute tido como homem que os detesta Seu amor pelos discursos eacute condicionado

pelo fato de haver uma harmonia entre o homem e seu discurso homem que em funccedilatildeo

dessa harmonia eacute ldquoverdadeiramente umrdquo (188c) e ldquomuacutesico completordquo natildeo por tocar

instrumentos que divertem mas por acordar suas palavras (loacutegoi) com seus atos (erga) sua

proacutepria vida Os discursos bem falados que natildeo estatildeo em consonacircncia com o modo de vida

devem ser detestados Soacutecrates poderia se permitir belos discursos e falar com toda

franqueza (parrhēsiacuteas) pois seus atos eram suficientemente provados (189a) A

incompatibilidade entre o modo de vida e o discurso entre os erga e os loacutegoi indica uma

127

fragmentaccedilatildeo no acircmbito da alma Soacute eacute verdadeiramente ldquoumrdquo aquele que harmoniza seu

loacutegos com os seus atos que em uacuteltima instacircncia derivam de seus desejos

Em outras passagens a parrhēsiacutea aparece ligada aos apetites No Banquete apoacutes o

veemente desabafo em que Alcibiacuteades confessa seu amor eroacutetico por Soacutecrates diante de

todos os circunstantes ldquotodos riram da sua franqueza (parrhēsiacuteas) por parecer que ele

ainda era apaixonado de Soacutecratesrdquo (Banquete 222c) Na Repuacuteblica apoacutes a associaccedilatildeo da

origem do governo democraacutetico com a revolta da pobreza as caracteriacutesticas da polis

democraacutetica satildeo identificadas com a liberdade licenccedila de se fazer o que se desejar93

e

franqueza de falar (parrhēsiacutea) que permitem que cada um possa ter um gecircnero de vida

particular segundo sua proacutepria fantasia A polis democraacutetica eacute caracterizada pela

multiplicidade dispersatildeo de prazeres (hedeiacutea) pela anarquia (aacutenarkhos) e variabilidade

(poikiacutele) O homem democraacutetico eacute dominado pelos apetites (aphrodisiacuteon) desejos

supeacuterfluos que natildeo produzem nenhum bem e prejudicam simultaneamente o corpo a

alma o discernimento e a temperanccedila (558c-559d) A parrhēsiacutea eacute nesse contexto o loacutegos

licencioso que exprime o predomiacutenio dos apetites No Fedro a distinccedilatildeo entre o desejo de

prazeres e a aspiraccedilatildeo ao melhor determina tendecircncias psiacutequicas que ldquoora se acordam ora

se combatemrdquo (237b) O descomedimento caracteriza o predomiacutenio do desejo que arrasta

em direccedilatildeo aos prazeres e aquele que eacute dominado pelo desejo e escravo dos prazeres

(238e) procura obter do amado o maior prazer possiacutevel ao preccedilo dos maiores prejuiacutezos para

o corpo e para a alma O ciuacuteme e a inveja incitam no homem dominado pelo apetite uma

vigilacircncia tiracircnica que se expressa em censuras insuportaacuteveis e infamantes ldquose o amante se

embriaga e fala com uma franqueza (parrhēsiacutea) grosseira e impudenterdquo (240a) Mais uma

vez a parrhēsiacutea aparece num contexto em que se discorre sobre a escravizaccedilatildeo aos apetites

93 (Repuacuteblica 557b)

128

e um discurso licencioso que lhes corresponde No livro X das Leis a parrhēsiacutea eacute associada

ao discurso licencioso em relaccedilatildeo aos deuses proferido pelos iacutempios cuja caracteriacutestica eacute a

incapacidade de dominar o prazer e a dor (908c) De maneira geral a parrhēsiacutea eacute

relacionada ao discurso desimpedido sem peias impulsionado pelo apetite pelo vinho ou

excesso de liberdade (Leis 649b 806d 829d-e)

No Goacutergias a parrhēsiacutea eacute mencionada na ambiguidade irocircnica com que Soacutecrates

alude ao mesmo tempo ao livre curso dos apetites de Caacutelicles que engendram a violecircncia

do seu loacutegos e a qualidade psiacutequica pela qual a investigaccedilatildeo dialeacutetica assimilada ao exame

da alma pode chegar a bom termo A franqueza eacute a garantia pela qual o assentimento do

interlocutor a uma tese expressa sem dissimulaccedilatildeo sua crenccedila e sua opiniatildeo mas eacute

tambeacutem um indicativo de que certa ordenaccedilatildeo psiacutequica transpotildee seu movimento proacuteprio

para o loacutegos O discurso sem peias reproduz de modo direto a trama que entretece os afetos

neste princiacutepio de movimento e inteligecircncia que eacute a psykheacute (Fedro 245d)

Caacutelicles independentemente da questatildeo de sua historicidade congrega e personifica

uma ordenaccedilatildeo de valores tiacutepica Ele eacute como afirma Jaeger a encarnaccedilatildeo perfeita de um

tipo de homem o adulador (JAEGER 1995 p 682) Tal como Soacutecrates e as grandes

personagens que protagonizam um papel de primeiro plano nos diaacutelogos Caacutelicles torna-se

um mito pois adquire a atemporalidade e a exemplaridade dos tipos psiacutequicos que soacute o

mito pode abarcar (DIXSAUT 2001 p 157-161) Eacute justamente a atemporalidade miacutetica

que faz com que o tipo psiacutequico personificado por Caacutelicles possa ser revivido em todas as

eacutepocas como um tipo de homem

Muito se tem discutido se a personagem de Caacutelicles esconde uma adaptaccedilatildeo

platocircnica de uma ou mais figuras histoacutericas da alta aristocracia de seu tempo (CANTO

1993 p 38-39) ou se a viacutevida imagem que Platatildeo faz do oponente de Soacutecrates trai um

129

ldquoconflito que se passa dentro de uma soacute menterdquo conflito que faria de Caacutelicles um ldquoretrato

do eu rejeitado de Platatildeordquo (GUTHRIE 1995 p 102-103) mas que seria tambeacutem integrado

a ele mediante a expressatildeo de ldquosincero interesse pela seguranccedila de Soacutecratesrdquo (DODDS

2002 A p 13) Werner Jaeger afirma que Platatildeo se deu ao trabalho de ldquocompreender

Caacutelicles antes de subjugaacute-lordquo e talvez tenha sentido ldquono seu natural essa acircnsia irreprimiacutevel

de poder com poder suficiente para em Caacutelicles atacar uma parte de seu proacuteprio eurdquo

(JAEGER 1995 p 666)

Que Platatildeo tenha tido a inteligecircncia das fiacutembrias da afetividade humana mais

perversa o demonstram a eloquumlecircncia e brilhantismo das falas antoloacutegicas de suas

personagens Mas no Laacuteques a incompatibilidade estabelecida entre o discurso e as accedilotildees

indica que a questatildeo dos valores implica a harmonia ou o conflito na instacircncia da proacutepria

psykheacute No Goacutergias a mesma concepccedilatildeo se repete eacute preferiacutevel tocar uma lira mal afinada

ou dirigir mal um coro ou ainda natildeo estar de acordo com a maioria do que natildeo estar em

consonacircncia consigo mesmo e contradizer-se (482c) A distinccedilatildeo socraacutetica de uma

triparticcedilatildeo de determinaccedilotildees psiacutequicas sugere que o problema da ordenaccedilatildeo dos valores

remete sobretudo para o modo como satildeo ordenadas certas instacircncias da psykheacute A

triparticcedilatildeo de qualidades implica uma triparticcedilatildeo funcional Eacute o conflito e a desarmonia da

proacutepria psykheacute que determina a incompatibilidade entre os valores professados e o discurso

de um lado e as accedilotildees de outro

Que o Goacutergias retrata um conflito entre modos de vida e valores opostos o atestam

os combates eriacutesticos das personagens e o seu mito de julgamento final Mas Platatildeo foi

muito aleacutem de divisar um conflito entre seus valores e aspiraccedilotildees ocultas A espantosa e

imortal vivacidade da personagem ndash que talvez tenha feito a mais mordaz e impactante

130

apologia do poder e do apetite de todos os tempos ndash constitui o principal testemunho de que

Platatildeo estaacute advertido de que na psykheacute de cada homem vive um Caacutelicles

A bela terapecircutica da alma (kalocircs tetherapeucircstai tegraven psykheacuten) pressupotildee que o

assentimento agraves opiniotildees da alma (psykheacute doxaacutezei) seja tomado como princiacutepio

verdadeiro94

Para que se examine a questatildeo do que eacute justo e por conseguinte do melhor

modo de vida eacute preciso que se examine a constituiccedilatildeo psiacutequica a partir das opiniotildees Mas

para isso eacute preciso que se tenha a determinaccedilatildeo preacutevia da benevolecircncia (eunoacuteia)

A eunoacuteia aparece no Protaacutegoras95

como determinaccedilatildeo proacutepria dos amigos que

entretecircm discussatildeo Apoacutes exortar Soacutecrates para que natildeo abandone sua discussatildeo com

94

Callicles natildeo tenciona assentir equivocadamente por causa de estupidez embaraccedilo ou insinceridade Sua

franqueza assegura que ele defenda firmemente sua posiccedilatildeo anti-convencional Assim Soacutecrates parece

exagerar quando demanda que tudo aquilo que for aceito de comum acordo seja verdadeirohellip Ainda que ele o prenda atraveacutes de sua concordacircncia o que garante a verdade das conclusotildees (IRWIN 2003 p 102) Dodds

por sua vez observa que a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates tem sido tipicamente vista como sinal do valor excessivo

que Platatildeo atribui ao meacutetodo do eacutelenkhos A acidentalidade e a particularidade da opiniatildeo do interlocutor

implicaria um bdquodefeito‟ e inferioridade do eacutelenkhos (Robinson) em relaccedilatildeo agrave axiomaacutetica universal de

Aristoacuteteles (DODDS 2002 p 279-280) Todavia como o proacuteprio Irwin admite Platatildeo natildeo vecirc a posiccedilatildeo de

Caacutelicles como sendo a de um excecircntrico com um ponto de vista extremamente radical da justiccedila

convencional Trata-se simplesmente de uma declaraccedilatildeo convincente de pontos de vista atraentes para

muitos contemporacircneos de Soacutecrates e Platatildeo A concepccedilatildeo de uma virtude e de uma boa pessoa que eacute focada

no poder individual na riqueza e no status eacute bem estabelecida no pensamento eacutetico Grego e coexiste

problematicamente com a concepccedilatildeo de virtude vinculada agraves outras obrigaccedilotildees concernentes agrave justiccedila (ibid p

103)rdquo A identificaccedilatildeo das teses assumidas pelo interlocutor com a verdade natildeo constitui exagero nem do ponto de

vista da dialeacutetica socraacutetica nem do ponto de vista da retoacuterica Caacutelicles representa natildeo somente uma corrente

de pensamento que configura uma concepccedilatildeo de virtude e justiccedila proacuteprias ao pensamento grego de entatildeo mas

encarna certos valores e tipifica um tipo de caraacuteter que exerce um papel decisivo no jogo poliacutetico ateniense

Por mais absurdas que possam ser as teses assumidas como ldquoverdaderdquo o tratamento do eacutelenkhos possui o

objetivo justamente de conduzir o raciociacutenio ateacute as uacuteltimas consequecircncias dos postulados assumidos Teses

verdadeiras natildeo podem implicar conclusotildees contraditoacuterias e absurdas A refutaccedilatildeo frequentemente se faz

pelo absurdo ou incompatibilidade das conclusotildees com um acordo inicial em torno de algum postulado A

incompatibilidade denuncia mais um conflito entre valores e gecircnero de vida do que propriamente de

proposiccedilotildees contraditoacuterias Como nota Charles Kahn o eacutelenkhos eacute mais uma maneira de testar o modo de

vida do que de testar proposiccedilotildees (KAHN 1996 p 98 133) Ademais do ponto de vista retoacuterico natildeo existe adesatildeo e por conseguinte persuasatildeo sem o assentimento e o

acordo em torno de teses que demarcam o ponto de partida do arrazoado De qualquer maneira o acordo em

torno de opiniotildees deve ser tomado como se fosse uma verdade A dialeacutetica socraacutetica eacute sempre hipoteacutetica em

seu iniacutecio 95 Hiacutepias de Elis estabelece no Protaacutegoras a mesma distinccedilatildeo entre phyacutesis e noacutemos que eacute empregada no

argumento de Caacutelicles Mas ao contraacuterio da distinccedilatildeo estabelecida no Goacutergias para Hiacutepias os semelhantes

satildeo iguais por natureza e as leis satildeo as causas pelas quais se estabelece uma desigualdade arbitraacuteria entre os

homens Ver KERFERD 2003 189-221

131

Protaacutegoras Proacutedico opera a distinccedilatildeo entre ldquodiscutirrdquo (amphisbetheicircn) e ldquodisputarrdquo

(eriacutezein)

As pessoas presentes a semelhantes discussotildees devem ouvir

imparcialmente as duas partes natildeo poreacutem de modo igual o que

natildeo eacute a mesma coisa ambos devem ser ouvidos com a mesma

atenccedilatildeo mas natildeo podemos conceder aos dois igual interesse

poreacutem maior ao que se revelar mais saacutebio e menor ao de menor

preparo Eu tambeacutem Soacutecrates e Protaacutegoras peccedilo que vos mostreis

mais condescendentes cada um poderaacute dissentir (amphisbetheicircn)

da opiniatildeo do outro poreacutem sem brigar (eriacutezein) Entre amigos pode

haver discussatildeo com simpatia (benevolecircncia bdquoeunoacuteia‟) soacute brigam

adversaacuterios e inimigos

(Protaacutegoras 337a-b)

A disposiccedilatildeo amistosa eacute diretiva na dialeacutetica visto que o questionamento capcioso

natildeo visa agrave busca da verdade mas sobrelevar ao adversaacuterio (Meacutenon 75c-d) Na Repuacuteblica a

eunoacuteia designa a disposiccedilatildeo amistosa que se contrapotildee agrave hostilidade e agrave cupidez que leva agraves

dissensotildees e conflitos de gregos contra gregos A benevolecircncia impede o despojamento das

armas dos cadaacuteveres (Rep V 470a) e constitui o desiacutegnio amistoso de Glauco quando este

se propotildee a defender Soacutecrates da ira dos adversaacuterios diante da estranheza provocada pela

tese de que a cidade natildeo pode ser feliz a menos que o Rei seja Filoacutesofo (474a) No Teeteto

a benevolecircncia eacute a atitude socraacutetica associada agrave expurgaccedilatildeo das falsas opiniotildees mediante a

eroacutetesis (Teeteto 151c) O efeito da dialeacutetica eacute analogicamente um partejamento da alma

que pode trazer agrave luz tanto fetos saudaacuteveis como imagens que devem ser rejeitadas A

atitude de hostilidade de alguns causada pela refutaccedilatildeo se contrapotildee agrave benevolecircncia que

constitui o princiacutepio operador do procedimento cataacutertico dialeacutetico O desejo da verdade eacute o

princiacutepio de accedilatildeo que constitui a dialeacutetica e o desejo do bem eacute o princiacutepio de accedilatildeo de sua

aplicaccedilatildeo praacutetica Assim como nenhum deus eacute hostil aos homens Soacutecrates possui a

atribuiccedilatildeo divina de natildeo fazer concessatildeo agrave falsidade e de natildeo enfraquecer o brilho da

132

verdade (Teeteto 151d) A operaccedilatildeo dialeacutetica eacute impulsionada por benevolecircncia em

oposiccedilatildeo agrave malevolecircncia No Fedro a benevolecircncia designa a manifestaccedilatildeo praacutetica em

relaccedilatildeo ao amado do Eros divino que se infunde no amante Tal manifestaccedilatildeo permite que

o amado se decirc conta da superioridade acima de qualquer comparaccedilatildeo do amor eroacutetico que

supera todos os afetos reunidos que se lhe possam devotar (255b)

Em todos esses contextos a benevolecircncia configura uma disposiccedilatildeo e uma funccedilatildeo

psiacutequica conciliatoacuteria entre instacircncias que de outra maneira estariam em conflito Trata-se

efetivamente de uma mediaccedilatildeo que promove o acordo que harmoniza reconcilia que

opera amistosamente promovendo o bem trata-se de uma funccedilatildeo que determina um modo

pelo qual se instaura a therapeacuteia psykheacute funccedilatildeo que pressupotildee um saber preacutevio um noucircs

que eacute a inteligecircncia do bem

No Goacutergias a eunoacuteia eacute sobretudo exigecircncia para o exame da alma e por

conseguinte exigecircncia para o bom andamento da investigaccedilatildeo discursiva A eriacutestica se

contrapotildee agrave dialeacutetica assim como a alma dissociada e fragmentada por conflitos se

contrapotildee agrave alma harmocircnica e unificada A eunoacuteia assegura que o desejo seja orientado na

direccedilatildeo da episteacuteme Ela eacute a funccedilatildeo mediadora entre o Eros e a inteligecircncia a funccedilatildeo que

permite que um se sobreponha ao outro fecundando-se mutuamente para gerar os belos

discursos Mas eacute tambeacutem a disposiccedilatildeo altruiacutesta a interaccedilatildeo que faz com que o Filoacutesofo

autecircntico seja antes de tudo o amigo que faz com que dialeacutetica e philiacutea se pressuponham e

que o Filoacutesofo veja-se no amigo como num espelho (Fedro 255d)

A implacabilidade do eacutelenkhos socraacutetico no Goacutergias evidencia de maneira

inelutaacutevel que Caacutelicles natildeo eacute nem franco nem benevolente e nem tampouco ciente Isso

133

implica que Caacutelicles seja a imagem de uma fragmentaccedilatildeo psiacutequica96

Por outro lado o

movimento dramaacutetico do Goacutergias realccedila a figura de Soacutecrates reluzente como a imagem da

verdadeira franqueza da verdadeira benevolecircncia e da verdadeira paideacuteia (JAEGER 1995

p 671)

As questotildees de se saber qual eacute o tipo de homem que se deve ser e qual atividade

deve reclamar o primado da vida humana (Goacutergias 488a) natildeo podem ser respondidas no

plano dos interesses em conflito A questatildeo da justiccedila reivindica um paradigma que esteja

acima do plano das relaccedilotildees praacuteticas um modelo absoluto ao qual sejam reportados os erga

e os loacutegoi Tal paradigma natildeo pode ser circunscrito a uma esfera particular de tempo

cronoloacutegico e por isso a questatildeo do eacutethos e dos valores temporais deve ser aquilatada por

um modelo atemporal e absoluto que lhes sirva de norma e medida Mas o atemporal e o

que estaacute para aleacutem da reportaccedilatildeo muacutetua dos valores humanos que configuram a

mentalidade da cidade o modelo perenamente vaacutelido exige um discurso proacuteprio com

estruturas homoacutelogas agrave grandeza das noccedilotildees que ele pretende abarcar A esse discurso

Soacutecrates chama de um belo logos (kaloucirc loacutegos) que eacute tambeacutem um myacutethos

96 Olimpiodoro interpreta as personagens do diaacutelogo como personificaccedilotildees de tipos de caracteres Assim os

erros seriam cometidos por trecircs razotildees 1) uma opiniatildeo pervertida 2) por causa da ira 3) por causa do apetite

O caraacuteter mal orientado foi refutado nos argumentos com Goacutergias o caraacuteter irasciacutevel foi refutado com Polo e

o caraacuteter apetitivo deve ser refutado na figura de Caacutelicles (OLYMPIODORUS 1998 p 195)

134

35 ndash A retoacuterica da alma

No Goacutergias o recurso ao mito (que aparece em 492e ss) permite que a personagem

de Soacutecrates discorra filosoficamente sobre esferas que natildeo podem ser atestadas ou

verificadas A existecircncia da alma como instacircncia que congrega faculdades distintas e da

equaccedilatildeo somasema satildeo postulados atribuiacutedos a um engenhoso homem (kompsoacutes aneacuter)

Siciliano ou Itaacutelico Natildeo se trata de um filoacutesofo mas de um mitoacutelogo cuja identidade como

o demonstram Dodds (1986 p 297) Burkert (1972 p 248) e Huffman (1998 p 404 ss)

natildeo pode ser conhecida Segundo a alegoria da narrativa a alma eacute uma instacircncia complexa

e possui uma parte que eacute sede dos apetites (epithymiacuteai) e que em funccedilatildeo do seu

desregramento e da insaciabilidade eacute comparada a um tonel furado No mundo invisiacutevel o

Hades os miseraacuteveis satildeo os natildeo-iniciados eternamente condenados a encher toneacuteis furados

com crivos A alma dos irrefletidos seria como uma peneira que nada reteacutem por causa da

descrenccedila e do esquecimento (493b-d)

Por que Soacutecrates interrompe a linha argumentativa do eacutelenkhos com imagens que

ele mesmo reconhece como algo estranhas (ti aacutetopa) Qual a razatildeo do emprego em uma

argumentaccedilatildeo complexa com um interlocutor resistente e hostil de uma narrativa que o

proacuteprio Soacutecrates antecipa como impotente para persuadir Caacutelicles de que uma vida bem

ordenada eacute preferiacutevel agrave vida incontida e insaciaacutevel

A narrativa lanccedila matildeo de um acervo tradicional de crenccedilas que segundo Burkert

(1972 p 249) satildeo semelhantes aos escritos do papiro de Derveni Carl Huffman alega por

outro lado que a noccedilatildeo de uma alma que constitui a sede de todas as faculdades psiacutequicas e

do pensamento eacute posterior a Filolau de Croacutetona cuja concepccedilatildeo de alma eacute muito mais

restritiva Independentemente da fonte do mito seus elementos remontam ao que Vernant

(1987 p 89 ss) chama de ldquomisticismo gregordquo uma corrente de grupos fechados associados

135

a uma busca de imortalidade bem-aventurada obtida mediante a observaccedilatildeo de uma regra

de vida pura reservada aos iniciados

O uso filosoacutefico de um acervo miacutetico concerne a um estoque de crenccedilas que

moldam o quadro mental da cidade e representa segundo Brisson (1994 p 28) um

ldquoinventaacuterio indissociaacutevel de um sistema de valoresrdquo cuja importacircncia determina sua

conservaccedilatildeo em memoacuteria coletiva Mas eacute tambeacutem um meio que confere significaccedilatildeo para

a atitude socraacutetica que preceitua a regra de que eacute preferiacutevel sofrer injusticcedila a cometecirc-la

Atitude incompatiacutevel com a expectativa coletiva de se fazer bem aos amigos e mal aos

inimigos

A referecircncia recorrente a uma antiga tradiccedilatildeo que aparece no Feacutedon justifica a

inflexatildeo que o proacuteprio Platatildeo opera na homologia entre a Filosofia e a iniciaccedilatildeo esboccedilando

modos concorrentes de interpretar e re-significar um acervo de saberes potecircncias crenccedilas

afetos e imagens religiosas em uma transposiccedilatildeo determinante para a mentalidade de um

novo gecircnero de vida e um novo tipo de eacutethos A homologia entre o biacuteos dos cultos de

misteacuterio e suas correspondentes imagens miacuteticas exigidos para a iniciaccedilatildeo indica que a

significaccedilatildeo eacutetico-poliacutetica aportada pelo exerciacutecio filosoacutefico natildeo encontra referentes no

mundo fiacutesico mas somente num acervo compartilhado de crenccedilas e afetos que modelam os

quadros mentais de uma comunidade valores coletivos que configuram o psiquismo

norteador para as percepccedilotildees e o agir humanos (WINKELMAN 2010 p 14 ss)

Assim como na chamada antiga tradiccedilatildeo (palaiograves loacutegos - Feacutedon 70c) dos misteacuterios

haacute uma transmissatildeo iniciaacutetica para que os puros encontrem a bem-aventuranccedila no Hades na

Filosofia haacute o exerciacutecio cataacutertico da vida virtuosa e do pensamento depurado A pureza

ritual eacute assimilada aos raciociacutenios isolados das sensaccedilotildees corporais a alma raciocina mais

136

belamente quando despreza os sentidos e foge das sensaccedilotildees corporais e procura o mais

possiacutevel isolar-se em si mesma e tornar-se si mesma (dzēteicirc degrave autḗ kath‟autḗn giacutegnesthai)

Este isolamento da alma atraveacutes dos raciociacutenios (logiacutedzesthai) eacute correlato ao modo

de aquisiccedilatildeo do conhecimento e da manifestaccedilatildeo da realidade daquilo que ocupa o

pensamento A grandeza a sauacutede a forccedila e a realidade (tēs ousiacuteas) de todas as coisas e o

que cada uma delas eacute em si mesma exigem uma cataacutertica das sensaccedilotildees (taacutes aistheacutetaacute)

Somente o pensamento em si mesmo (autḗ tḗ diacircnoia) o pensamento sem mistura isolado

e sem comunhatildeo com o corpo pode sair agrave caccedila (epikheiroicirc thēreuacuteein thēreuacuteein tōn oacutentōn)

dos seres da verdade e da inteligecircncia purificada (phroacutenēsin) A purificaccedilatildeo anunciada por

um filoacutesofo genuiacuteno (Feacutedon 65b-67e) representa o sumaacuterio daquilo que jaacute representa uma

transposiccedilatildeo em relaccedilatildeo aos ritos purificatoacuterios das seitas de misteacuterio

Pierre Boyanceacute (1994 85-95) correlaciona esta ascese filosoacutefica a um acervo oacuterfico

cujo escopo seria a separaccedilatildeo dos elementos titacircnicos da psykheacute de sua parte divina O

discurso que Soacutecrates consigna a um anocircnimo descreve um caminho sagrado purificatoacuterio

uma trilha (atrapoacutes) que demarca o itineraacuterio da razatildeo e da investigaccedilatildeo O alvo da

investigaccedilatildeo eacute identificado com a verdade e seu princiacutepio de accedilatildeo com um apetite pela sua

posse (me pote ktēsōmetha hikanōs hougrave epithymoucircmen) Na prescriccedilatildeo iniciaacutetica do filoacutesofo

genuiacuteno haacute uma concepccedilatildeo quase material de que a alma estaacute dispersa como sopro nos

elementos corporais e que a sua mistura com o corpo engendra toda sorte de males e

impedimentos para a aquisiccedilatildeo da verdade e a caccedila aos seres A mistura da alma ao corpo

segue na esteira do mito de Dioniso Zagreu esquartejado e devorado pelos Titatildes Natildeo

obstante a trilha iniciaacutetica descrita no Feacutedon natildeo promove a separaccedilatildeo dos elementos

divinos do elemento corporal titacircnico mediante ritos purificatoacuterios Em vez disso a

exaltaccedilatildeo iniciaacutetica daacute lugar a um apetite pelo pensamento purificado a phroacutenesis Haacute uma

137

homologia entre o caminho sagrado dos ritos iniciaacuteticos e a trilha filosoacutefica Todavia o

alvo deste itineraacuterio natildeo eacute mais a pureza ritual mas a posse da verdade e o pensamento

isolado do corpo

A purificaccedilatildeo teleacutestica tem como finalidade a remoccedilatildeo das faltas do miasma que

determina o destino futuro apoacutes a morte Como afirma Vernant (1994 p 107) ldquoo miasma

se purifica sempre com uma lavagem mas tambeacutem bdquose consome‟ bdquoadormece‟ bdquose

dispersa‟ Eacute uma mancha e tambeacutem uma coisa que rouba um bdquopeso‟ uma bdquodoenccedila‟ uma

perturbaccedilatildeo bdquouma ferida‟ bdquoum sofrimento‟

O vocabulaacuterio indica que Platatildeo se apropria de uma tradiccedilatildeo filosoacutefica associada agraves

praacuteticas rituais de lustraccedilatildeo como os misteacuterios de Elecircusis e outras praacuteticas iniciaacuteticas

comodamente rotuladas de oacuterficas Assim como as faltas os crimes de sangue ou a

impiedade transmitem-se numa cadeia de impureza a purificaccedilatildeo estaacute relacionada agrave

transmissatildeo iniciaacutetica a ritos que suscitam a passagem de um estado para outro mais

elevado Essa transmissatildeo consolida todo um gecircnero de vida modelado por exerciacutecios

espirituais A iniciaccedilatildeo tal como o miasma pressupotildee uma cadeia de transmissatildeo que

remonta agrave antiga tradiccedilatildeo o princiacutepio e a fonte da pureza

No seu comentaacuterio agraves lacircminas de ouro oacuterficas Giovanni Carratelli observa que as

instruccedilotildees mortuaacuterias objetivam servir de guia para que a alma do iniciado seja liberta das

faltas mediante a iniciaccedilatildeo (myacuteēsis) Os ritos compreendem instruccedilotildees foacutermulas de

reconhecimento (syacutenthēma) ou palavras de passe o segredo provas dolorosas

(pathḗmatha) e a referecircncia constante a Mneacutemosyne personificaccedilatildeo divina da memoacuteria Haacute

o importante papel do guia o mystagogos na conduccedilatildeo de estatutos diversos entre os

recipiendaacuterios os Baacuteckhoi satildeo superiores aos myacutestai A palavra de passe ou a foacutermula de

reconhecimento pressupotildee o exerciacutecio menemocircnico que faculta o conhecimento da origem

138

divina anterior agrave vida terrestre As expiaccedilotildees e as lustraccedilotildees cataacuterticas suscitam a

prevalecircncia do elemento divino da alma Na lacircmina mortuaacuteria encontrada na necroacutepole de

Hipocircnio em uma tumba datada no fim do seacutec V encontram-se as instruccedilotildees

Tu iraacutes na morada bem construiacuteda de Hades agrave direita haacute uma

fonte

ao lado dela se ergue um cipreste branco

eacute laacute que descem as almas dos mortos e onde elas se refrescam

Desta fonte tu natildeo te aproximaraacutes

Mas mais adiante tu encontraraacutes uma aacutegua fria que corre

do lago de Mnemosyacutene acima dela se encontram guardas

Eles te interrogaratildeo em seguro discernimento

porque tu exploras as trevas de Hades obscuro

Dize bdquoEu sou filho da Terra e do Ceacuteu estrelado

Eu queimo de sede e desfaleccedilo Decirc-me raacutepido

De beber da aacutegua fria que vem do lago de Mnemosyacutene‟

E eles te interrogaratildeo pelo querer do rei ctocircnico

Eles te daratildeo de beber do lago de Mnemosyacutene

E tu quando tiveres bebido percorreraacutes a via sagrada

Sobre a qual tambeacutem os outros mystai e baacuteckhoi avanccedilam na

gloacuteria 97

(I A 1 9-11)

Como observa Radcliffe Edmonds (in CASADIO 2010 p 72 ss) as referecircncias a

Perseacutefone a Mnemosyacutene e a Dioniso tem levado os historiadores da religiatildeo grega a rotular

as instruccedilotildees iniciaacuteticas contidas nas lacircminas funeraacuterias de ouro como oacuterficas baacutequicas

egiacutepcias e pitagoacutericas ou ainda eleusinas Embora alguns editores correlacionem as

instruccedilotildees das lacircminas de ouro a uma katabasis que remontaria a um poema oacuterfico ou a um

livro dos mortos pitagoacuterigo Edmonds salienta que infortunadamente os textos

escatoloacutegicos satildeo excessivamente vagos para identificaacute-los precisamente com alguma

vertente religiosa

Muitos eruditos esforccedilam-se no sentido de encontrar um estema de influecircncias que

permita delimitar suas origens em certos contextos Mas as imagens miacuteticas e alusotildees ao

misticismo grego que aparecem em Platatildeo sugerem um emprego caleidoscoacutepico de

97 Traduccedilatildeo de Giovanni P Carratelli (2003 p 35)

139

elementos tradicionais que varia segundo o movimento de cada diaacutelogo Para o inteacuterprete

dos diaacutelogos o contexto eacute a suma tradicional das seitas de misteacuterio gregas

Para Giovanni Casadio se haacute uma fronteira ndash e isto estaacute aleacutem de questatildeo ndash que

demarca os limites entre Dionisismo (uma realidade concreta) e o Orfismo (uma realidade

muito mais nebulosa) noacutes somos incapazes de determinar precisamente onde esta fronteira

se encontra (CASADIO 2010 p 36-37) Mais do que estabelecer distinccedilotildees canocircnicas

entre dionisismo orfismo ou pitagorismo cumpre focar os esquemas invariantes de

pensamento nas seitas de misteacuterio e as homologias correspondentes que emergem no

movimento dramaacutetico-dialoacutegico dos mitos platocircnicos

A personificaccedilatildeo da memoacuteria relaciona-se com o rito de purificaccedilatildeo pela aacutegua que

permite o acesso agrave via sagrada A purificaccedilatildeo propiciada pela memoacuteria ressalta a primazia

do pensamento nocircus na experiecircncia iniciaacutetica que ascende o aspirante agrave alḗtheia A

foacutermula de reconhecimento eu sou filho da Terra e do Ceacuteu estrelado identifica o aspirante

com a estirpe divina e sugere sua purificaccedilatildeo ritual preacutevia ela serve como palavra de passe

que garante o acesso agrave divindade A katabasis descrita na lacircmina funeraacuteria alude ao

cumprimento de uma purificaccedilatildeo preacutevia pressuposta agrave prova da passagem e ao esforccedilo

vinculado a uma potecircncia psiacutequica personificada em Mnemosyacutene Platatildeo se apropria desse

acervo da antiga tradiccedilatildeo com a finalidade protreacuteptica de apresentar a Filosofia como um

exerciacutecio de morte e a kaacutetharsis como purificaccedilatildeo do pensamento

A verdade a realidade da sabedoria da justiccedila da coragem

consistem sem duacutevida em uma purificaccedilatildeo de todas as coisas e o

proacuteprio pensamento (phroacutenēsis) natildeo eacute senatildeo um meio de

purificaccedilatildeo Haacute uma grande chance de que aqueles que

estabelecerem entre noacutes as iniciaccedilotildees natildeo tenham sido homens

fracos Mas a realidade dos seres deve ser oculta em enigmas

(ainiacutettesthai) quando eles dizem que ldquoaquele que chega no Hades

sem ter conhecido os misteacuterios sem ser iniciado aquele seraacute

140

deitado na lama mas aquele que foi purificado e iniciado uma vez

laacute chegando habitaraacute com os deuses De fato como dizem aqueles

que tratam das iniciaccedilotildees ldquonumerosos satildeo os portadores de tirso

(narthekophoacuteroi) raros os Baacutekkhoi

(Feacutedon 69b12-c2)

A distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os impuros e os puros de um lado e entre os myacutestai e

os baacutekkhoi de outro indica a tese protreacuteptica de apresentar a Filosofia como um exerciacutecio

iniciaacutetico de ascensatildeo ao princiacutepio uacuteltimo da realidade dos seres A purificaccedilatildeo eacute transposta

para a purificaccedilatildeo do pensamento e das virtudes por meio da phroacutenesis A homologia entre

o segredo e a realidade posta sob forma enigmaacutetica para evitar a apropriaccedilatildeo por aqueles

que natildeo passaram pelo longo exerciacutecio cataacutertico eacute mantida natildeo ser puro e se apossar do

que eacute puro e de fato eacute preciso temecirc-lo eacute algo interdito (ou themitoacuten Feacutedon 67b01)

Todavia a menccedilatildeo aos portadores de tirso e baacutekkhoi no Feacutedon suscita

controveacutersias A qual tradiccedilatildeo se refere o passo Quais satildeo os ritos e qual eacute o contexto que

suscita a analogia entre iniciaccedilatildeo aos misteacuterios e iniciaccedilatildeo filosoacutefica Ana J Cristoacutebal em

um instigante estudo acerca do campo semacircntico das expressotildees baacutekkhos e bakkheuacuteein

indica que os termos possuem significados diferentes entre os ciacuterculos reconhecidos como

oacuterficos e o culto a Dioniso Baacutekkos e baacutekkhoi satildeo denominaccedilotildees daqueles que passaram por

ritos purificatoacuterios ou extaacuteticos vinculados a Dioniso Tais ritos induzem a um estado

miacutestico de intensa afetividade decorrente da exaltaccedilatildeo e entusiasmo provocado pelo deus

Baacutekkos eacute o atributo de um seguidor de Dioniso Bakkhos O verbo bakkheuacuteein por outro

lado denota a possessatildeo divina e dentre todos os testemunhos somente Euriacutepides o

emprega no sentido de adoraccedilatildeo a Dioniso A accedilatildeo de bakkheuacuteein descreve

simultaneamente os afetos experimentados no transe delirante e a performance ritual que

envolve procissotildees carregar e agitar tirsos ornamentados gritos sacrificiais (eyoicirc) danccedila e

vinho (CASADIO 2010 p 46-60)

141

A terminologia empregada na inscriccedilatildeo da lacircmina de Hipocircnio evidencia que as

expressotildees myacutestai e baacutekkhoi pertencem a um acervo cultural comum de imagens que

configura o mesmo pano de fundo para a classe geral dos cultos de misteacuterio As instruccedilotildees

funeraacuterias evocam uma ascensatildeo iniciaacutetica na via sagrada para que o recipiendaacuterio seja

acolhido entre os bem-aventurados gloacuteria reservada aos puros que passaram pelas provas

Somente os puros possuem a potecircncia psiacutequica unificadora da memoacuteria condiccedilatildeo para o

proferimento da palavra de passe o syacutentema e o conhecimento da aleacutetheia reservado aos

baacutekkhoi mediante o inaudito ndash os apoacuterrheta Como salienta Boyanceacute as purificaccedilotildees

oacuterfico-pitagoacutericas referenciam-se no mito de Dioniso Zagreu desmembrado pelos Titatildes e

podem perfeitamente coexistir com rituais baacutequicos de livramento com hinos danccedilas

coros e a alegria extaacutetica as paidiaacute hēdonōn censuradas por Platatildeo como um tipo de

orfismo baacutequico

Eles produzem uma multidatildeo de livros de Museu e Orfeu filhos da

Lua e das Musas diz-se Eles regram seus sacrifiacutecios sob a

autoridade destes livros e fazem acreditar natildeo somente aos

particulares mas agrave cidade que se pode pelos sacrifiacutecios e jogos

prazerosos (paidiaacutes hēdonōn) ser absolvidos e purificados de seu

crime enquanto vivo e mesmo apoacutes sua morte Eles chamam

iniciaccedilotildees estes ritos (teletaacutes) que nos livram de males no outro

mundo e que natildeo se pode sacrificar sem esperar terriacuteveis supliacutecios

(Repuacuteblica 364 e ndash 365 a)

Boyanceacute assimila as teletai com os misteacuterios de Elecircusis Mas como evidencia a

exegese do comentador de Derveni a criacutetica agrave degeneraccedilatildeo do viacutenculo entre longas praacuteticas

de exerciacutecio espiritual e do papel da inteligecircncia na busca pela verdade com o segredo e a

transmissatildeo oral de uma sabedoria jaacute fazia parte da reflexatildeo filosoacutefica preacute-socraacutetica No

Teeteto (155e-156a) Platatildeo adverte en passant que o jovem olhe em derredor para que

natildeo aconteccedila que algum natildeo iniciado ouvisse o que era dito Este cuidado indica a

transposiccedilatildeo filosoacutefica do estatuto iniciaacutetico para a investigaccedilatildeo terapecircutica operada pela

142

Filosofia que exige a preparaccedilatildeo da alma A separaccedilatildeo dos elementos titacircnicos operada

pela encantaccedilatildeo musical e da harmonia de afetos coexiste com as praacuteticas cultuais de

exaltaccedilatildeo baacutequica dionisiacuteaca e com a ventura eleusina

A tensatildeo entre a multidatildeo dos portadores de tirso e os poucos bakkhoi sugere uma

gradaccedilatildeo entre narthēkophoacuteroi e iniciados No Goacutergias a oposiccedilatildeo entre os ininteligentes

natildeo-iniciados (anoḗtous amyacuteetous Goacutergias 493a07) e os myacutestai aponta para uma

polarizaccedilatildeo radical entre seres irrefletidos que se entregam aos apetites e aqueles que

buscam a proporccedilatildeo harmocircnica da alma

A tradiccedilatildeo pitagoacuterica vinculada a Alcmeacuteon de Croacutetona define a sauacutede como

isonomia e como mistura simeacutetrica de qualidades (tḗn syacutemmetron tōn poiōn kraacutesin) A

harmoniacutea resulta de um equiliacutebrio ao mesmo tempo espacial e temporal e nesse sentido haacute

uma equivalecircncia semacircntica kairoacutes-syacutemmetros o momento oportuno num arranjo

ordenado Kairoacutes symmetriacutea e eurythmiacutea configuram uma percepccedilatildeo refinada de

harmonia A noccedilatildeo de symmetriacutea se desdobra entre os preacute-socraacuteticos como proporccedilatildeo ou

uma identidade de relaccedilotildees A transposiccedilatildeo de semelhanccedila de relaccedilotildees se desdobra na

analogia identidade ou semelhanccedila de loacutegoi A funccedilatildeo da analogia consiste em remeter

uma multiplicidade de loacutegoi a uma unidade Funccedilatildeo unificadora a proporccedilatildeo geomeacutetrica e

a expressatildeo matemaacutetica da identidade de relaccedilotildees designam outro aspecto correlato da

harmonia a noccedilatildeo de mediania o meacuteson o meio-termo ndash mēsoacutetēs ndash que se estende para o

acircmbito da psykheacute como metreacutetica dos afetos A medida do tempo e o esforccedilo de conciliaccedilatildeo

entre o periacuteodo lunar e o solar engendram o problema matemaacutetico e geomeacutetrico da

comensurabilidade A harmocircnica pitagoacuterica conecta simultaneamente noccedilotildees qualitativas e

quantitativas temporais e espaciais ritmo e consonacircncia musical com o equiliacutebrio de

opostos no corpo na alma e na cidade (PERILLEacute 2005 p 24-65)

143

A menccedilatildeo ao Hades indica que os mitos escatoloacutegicos discorrem sobre o invisiacutevel

(Feacutedon 81c Craacutetilo 404b) sobre a natureza da alma seu destino futuro e seu papel na

economia cosmoloacutegica Em particular a passagem do Goacutergias postula o fato de que a alma

eacute complexa e que os apetites satildeo atributos psiacutequicos e natildeo corporais

Segundo Olimpiodoro o mito filosoacutefico eacute elaborado para que o invisiacutevel seja

inferido a partir do visiacutevel e aparente Como a alma natildeo eacute constituiacuteda somente pelo

pensamento mas tambeacutem pelos afetos e desejos o discurso deve ser multifacetado de

modo a corresponder a cada esfera psiacutequica Uma estrutura psiacutequica complexa exige uma

inteligecircncia complexa que por sua vez pressupotildee uma estrutura discursiva complexa

Conforme a tese claacutessica de Pierre Boyanceacute adotada pela maioria dos inteacuterpretes

que abordam os mitos platocircnicos o principal efeito da narrativa miacutetica eacute a ldquoencantaccedilatildeordquo

(epoidḗ) o efeito cataacutertico e terapecircutico irresistiacutevel do charme O mito filosoacutefico eacute o

discurso que expressa um pensar por imagens que eacute endereccedilado agrave parte afetiva da psykheacute

Em funccedilatildeo de sua accedilatildeo eficaz sobre os afetos o mito exerce uma accedilatildeo persuasiva que

consolida os postulados inverificaacuteveis que conferem significaccedilatildeo para as accedilotildees praacuteticas

A alegoria do tonel furado como nota Vernant eacute uma alusatildeo agrave condenaccedilatildeo infligida

agraves Danaides Segundo Apolodoro (II 1 5) na sua noite de nuacutepcias as filhas de Dacircnao em

colusatildeo com o pai decapitam seus maridos e primos filhos de Egito Por causa disso os

juiacutezes divinos condenaram-nas a encher eternamente toneacuteis furados no Hades

Carl Kereacutenyi alude ao fato de que o casamento eacute para os gregos um importante

teacutelos que demarca um rito de passagem (1998 p 46) As penas eternas indicam uma falta

vinculada agrave ausecircncia de teacutelos de completaccedilatildeo ou iniciaccedilatildeo

A iniciaccedilatildeo eacute transposta por Platatildeo em exerciacutecio filosoacutefico no esforccedilo que culmina

na phroacutenesis no pensamento puro que implica o isolamento psiacutequico No Goacutergias as

144

almas dos natildeo iniciados satildeo como toneacuteis furados que nada retecircm por descrenccedila e

esquecimento (493b) A ausecircncia de teacutelos eacute segundo Vernant (1990 p 146 ss)

indissociaacutevel do esquecimento que implica o ciclo do devir e da necessidade O

esquecimento representa a imersatildeo no eterno ciclo do tempo o eterno recomeccedilo a roda do

nascimento que faz com que a alma tome o breve instante da vida como se fosse totalidade

do tempo O mal supremo para a alma consiste em tomar a causa de um afeto violento

como se fosse a realidade mais verdadeira (Feacutedon 83c)

A transposiccedilatildeo filosoacutefica operada por Platatildeo insere o esquecimento e a memoacuteria

numa teoria do conhecimento que seraacute desenvolvida a partir do Meacutenon e do Feacutedon A

ameacuteleia ou ausecircncia de inquietaccedilatildeo configura o estado psiacutequico da vida voltada para os

apetites em detrimento da anaacutemenesis que suscita o exerciacutecio filosoacutefico que culmina na

inteligecircncia das verdades eternas A anaacutemenesis tende para o teacutelos que implica a visatildeo

unificada da totalidade do tempo pacircs khroacutenos

Na transposiccedilatildeo platocircnica meleacutete thanaacutetou eacute o exerciacutecio de morte mencionado no

Feacutedon pelo qual o pensamento puro eacute isolado da inconstacircncia do devir e da eterna

insaciabilidade dos apetites A menccedilatildeo breve do Goacutergias anuncia postulados ingressivos

que comporatildeo ao longo das obras centrais de Platatildeo uma visatildeo cosmoloacutegica unificada na

qual as questotildees eacuteticas satildeo abarcadas no domiacutenio mais amplo de uma epistemologia e

psicologia que por sua vez satildeo alicerccediladas numa ontologia

As imagens subsequentes correlacionam modos de vida excludentes com o

regramento e desregramento Um gecircnero de vida eacute representado por um homem que possui

toneacuteis repletos de conteuacutedos valiosos e que por isso natildeo se preocupa e se aquieta o outro eacute

representado por um homem cujos toneacuteis satildeo furados e que por isso eacute forccedilado agrave atividade

penosa de preenchecirc-los incessantemente O gecircnero de vida eacute determinado pela constituiccedilatildeo

145

psiacutequica que define um tipo de homem A alma temperante possui a inteligecircncia da ordem e

do regramento A inteligecircncia institui ordem naquilo que eacute desregrado A alma epitymeacutetica

eacute aquela inexoravelmente voltada para a repleccedilatildeo do vazio para o movimento sempre

renovado de uma saciedade que eacute continuamente relanccedilada na efemeridade do tempo

(DIXSAUT 2001 p 138) Desejo que nenhum recipiente pode conter esquecimento de

todo teacutelos o apetite eacute um estado penoso (Goacutergias 496d) que nunca se aquieta com a posse

do alvo desejado e que por isso reclama ausecircncia de limites

Por conseguinte mesmo que algueacutem seja de outro ponto de

vista na verdade aquele que realmente eacute tirano eacute realmente

escravo vive no cuacutemulo da bajulaccedilatildeo e da escravidatildeo e eacute adulador

dos maiores malfeitores Ele natildeo satisfaz de nenhum modo seus

desejos mas apareceria inteiramente desprovido de todas as coisas

e pobre se pudeacutessemos considerar a inteireza de sua alma Ele

extravasa de medo ao longo de toda a sua vida e eacute repleto de

sobressaltos e sofrimentos se de fato se assemelha agrave disposiccedilatildeo da

cidade que dirige

(Repuacuteblica 579e)98

Mas como pode se justificar a conexatildeo entre a inteligecircncia e o regramento Somente

a ordenaccedilatildeo e o regramento podem segundo Soacutecrates modelar uma visatildeo unificada que

vincula o ceacuteu a terra os deuses e os homens num conjunto articulado numa comunidade

cingida pela amizade ou amor da ordem (Goacutergias 507e-508a)

A lei universal que governa todas as esferas do kosmos que dirige ao mesmo

tempo o plano eacutetico-poliacutetico e a physis eacute a igualdade geomeacutetrica ndash todo-poderosa (mega

dyacutenatai) tanto entre os deuses como entre os homens O gecircnero de vida filosoacutefico norteia-se

pelo postulado de que haacute um princiacutepio unificador que cinge todo o kosmos o humano e o

divino segundo uma ordenaccedilatildeo matemaacutetica

98 Trad de Pierre Pachet (1993 p 466)

146

Walter Burkert (1972 78 n 156) Dodds (1959 339) Vlastos (1981 195 n 119) e

Irwin (1979) concordam que Platatildeo estaacute fazendo uma referecircncia direta a Arkhytas de

Tarento nas passagens em que satildeo mencionadas a geometria e a proporccedilatildeo no Goacutergias De

acordo com Carl Huffman um proeminente tema do final do pensamento do seacutec V aC

conecta a ambiccedilatildeo pleonexiacutea com o que eacute por natureza em contraste com o que eacute por

convenccedilatildeo Para Arkhytas a pleonexiacutea eacute a maior causa de discoacuterdia e instabilidade poliacutetica

do seu tempo A pleonexiacutea eacute associada com o abuso de poder tanto por um tirano quanto

por uma oligarquia rica Para combatecirc-la eacute necessaacuterio natildeo somente a lei mas a logistikeacute a

ciecircncia do caacutelculo e da geometria

No Goacutergias a pleonexiacutea de Caacutelices eacute explicada em termos da negligecircncia da

geometria e da igualdade geomeacutetrica No fragmento 3 (Stobeu e Jacircmblico) da ediccedilatildeo de

Huffman a igualdade que resulta do caacutelculo das proporccedilotildees como cura para a pleonexiacutea eacute

notavelmente paralela agrave do Goacutergias

Pois eacute necessaacuterio tornar-se ciente sendo insciente ou aprendendo

de um outro ou descobrindo por si mesmo Aprendendo a partir de

outro pertence a outro enquanto descobrindo por si mesmo

pertence a si mesmo Descoberta enquanto natildeo investigada eacute

difiacutecil e infrequumlente mas enquanto investigada faacutecil e frequumlente

mas se algueacutem natildeo sabe ltcomo calculargt (logiacutezdestai) eacute

impossiacutevel investigar

Uma vez que o caacutelculo foi descoberto impede a discoacuterdia e

aumenta a concoacuterdia Pois natildeo procuram ganacircncia desmedida

(pleonexiacutea) e igualdade existe uma vez que isto veio a ser Pois por

meio do caacutelculo (proporccedilatildeo) veremos reconciliaccedilatildeo em nossas

transaccedilotildees com os outros Por causa disso entatildeo o pobre recebe

do poderoso e o rico daacute para o necessitado ambos crendo que

haveraacute igualdade Isto serve como um cacircnon e um impedimento

para a injusticcedila Impede aqueles que sabem como calcular antes

que eles cometam injusticcedila persuadindo-os que eles natildeo poderatildeo

ficar ocultos sempre que eles aparecem para ele (o cacircnon) Impede

aqueles que natildeo sabem como calcular de cometer injusticcedila tendo

revelado a eles como injustos por meio dele (do caacutelculo) (STOBEUS IV 1139 IAMBLIKHUS Sobre a ciecircncia matemaacutetica

geral II 4410-17 apud HUFFMAN 2005 p 183)

147

O verbo pleonekteacuteō significa ter mais levar vantagem ter ganacircncia e o substantivo

pleonexiacuteaindica o iacutempeto depossuir mais do que o devido ambiccedilatildeo vantagem injusta

arrogacircncia Mas Platatildeo se apropria do viacutenculo estabelecido por Arkhytas entre a

organizaccedilatildeo poliacutetica e a matemaacutetica para promover uma generalizaccedilatildeo que ascende a uma

visatildeo unificada do kosmos e usa o termo ldquoigualdade geomeacutetricardquo num sentido muito mais

geral como equivalente a proporccedilatildeo ou regramento geomeacutetrico

A pleonexiacutea a negligecircncia do regramento geomeacutetrico que unifica o kosmos

constitui a fonte de todas as injusticcedilas A investigaccedilatildeo sobre a origem dos apetites e a

relaccedilatildeo destes com a inteligecircncia estabelece a alma como princiacutepio de accedilatildeo e causa da

justiccedila e da injusticcedila Ao postular um viacutenculo entre o domiacutenio da praacutexis e o da Natureza

pelo regramento geomeacutetrico Platatildeo estabelece o primado da alma como causa e da

inteligecircncia como condiccedilatildeo da kosmiacutea

O desenvolvimento da concepccedilatildeo de que a alma configura uma instacircncia complexa

cuja causalidade eacute intriacutenseca agrave natureza desejante estende o acervo conceptual pitagoacuterico

concernente agrave harmonia ao postulado fundamental de que a harmonia eacute uma inscriccedilatildeo a

posteriori de modalidades diversas de arranjo psiacutequico conferidas pelas proacuteprias escolhas

Em Platatildeo a alma eacute causa de sua proacutepria natureza e princiacutepio de harmonizaccedilatildeo

Essa subversatildeo nocional seraacute decisiva na causalidade platocircnica e no estabelecimento da

funccedilatildeo mediadora da alma entre o devir e a realidade inteligiacutevel

No Feacutedon Platatildeo inaugura a concepccedilatildeo de que uma harmonia de elementos

materiais pressupotildee a possibilidade de gradaccedilotildees diversas segundo o maior ou menor grau

de consonacircncia dos elementos Quanto maior for a combinaccedilatildeo maior seraacute a harmonia

148

Se a alma fosse uma harmonia de elementos materiais uma alma carregada de

viacutecios seria menos harmoniosa do que uma alma virtuosa e por conseguinte seria menos

alma o que natildeo pode ser admitido Em contrapartida se natildeo haacute uma alma que seja menos

alma que outra entatildeo natildeo haacute harmonia que seja mais intensa que outra ou seja uma

mesma harmonia natildeo pode participar ao mesmo tempo da harmonia e da ausecircncia de

harmonia Aleacutem disso a alma natildeo pode ter um estatuto secundaacuterio em relaccedilatildeo ao corpo A

alma natildeo deriva nem obedece aos processos corporais mas como sede da razatildeo regra pelo

domiacutenio dos desejos as necessidades corporais Como a alma natildeo segue aos impulsos

determinados pelos elementos em tensatildeo no corpo mas os domina e tem mestria sobre eles

a sua natureza eacute diferente das dos elementos do corpo e por isso a alma natildeo pode ser uma

harmonia ela possui harmonia Platatildeo transpotildee o conceito material de harmonia para a sua

concepccedilatildeo de consonacircncia e afinidade com o divino Essa transposiccedilatildeo enseja o argumento

de que a alma eacute princiacutepio de regramento e tende a assemelhar-se com as Formas

Toda a discussatildeo acerca das causas que daacute origem agrave concepccedilatildeo das Formas estaacute

calcada numa criacutetica a concepccedilotildees pitagoacutericas sobretudo as de Alcmeacuteon e de Filolau Haacute

causas necessaacuterias e causas uacuteltimas verdadeiras Os quatro elementos da physis e as

relaccedilotildees numeacutericas inteligiacuteveis satildeo necessaacuterios para a inteligecircncia mas natildeo se identificam

com o inteligiacutevel As verdadeiras causas satildeo as ldquocoisas em si mesmasrdquo ordenadas e

harmonizadas segundo o Bem O meio de inteligibilidade do kosmos eacute a phroacutenesis cuja

sede eacute a alma As relaccedilotildees numeacutericas indispensaacuteveis para a inteligibilidade natildeo satildeo

intriacutensecas agraves coisas nem a harmonia configura uma consonacircncia de coisas mas estatildeo no

acircmbito da psykheacute e constituem uma consonacircncia com as Formas causas fundamentais de

todas as coisas

149

36 Julgamento e nudez

O mito de julgamento do Goacutergias alude ao tempo primordial de Kroacutenos no qual a lei

da justa retribuiccedilatildeo foi instituiacuteda O destino futuro da alma depende da natureza de suas

accedilotildees pregressas A conexatildeo causal infrangiacutevel que rege ateacute mesmo os deuses estabelece a

correspondecircncia entre o estado psiacutequico e a praacutexis eacutetico-poliacutetica A bem-aventuranccedila ou os

sofrimentos a felicidade ou a infelicidade derivam dos princiacutepios da accedilatildeo O estado

caoacutetico representado pelo Taacutertaro prisatildeo das potecircncias coacutesmicas da violecircncia e da

desordem reflete a proacutepria natureza da alma Assim como haacute uma homologia estrutural

entre a alma do tirano e as disposiccedilotildees da cidade que governa haacute uma homologia entre a

desordem coacutesmica e a natureza psiacutequica do agente injusto

Todavia neste tempo primordial que remete ao primado do Intelecto noucircs os juiacutezes

vivos referenciavam seus criteacuterios no mesmo plano da vida e do devir e seus decretos eram

promulgados no proacuteprio tempo das accedilotildees submetidas a julgamento A auto-referecircncia dos

juiacutezos em que o vivo era a medida do vivo implicava o erro e a destinaccedilatildeo incompatiacutevel

com a natureza das almas Uma situaccedilatildeo impediente catastroacutefica eacute anunciada a ameaccedila agrave

validade universal da lei de Kroacutenos Zeus astucioso dentre todos os mediadores o mais

privilegiado diagnostica a causa do mal os julgamentos satildeo distorcidos pelas aparecircncias

das roupagens que ocultavam a verdadeira condiccedilatildeo das almas e interditavam a

perscrutaccedilatildeo de sua natureza pelo olhar

A justiccedila eacute recoberta pelas roupagens dos valores que norteiam a vida praacutetica e os

sinais visiacuteveis testemunhas oculares das sanccedilotildees que determinam os bens ndash o prazer as

riquezas e as honrarias ndash impedem o conhecimento da verdade Para que os julgamentos

possam se desprender dos sinais materiais e possam discernir segundo o melhor valor eacute

preciso referenciar a vida em outra coisa que natildeo seja ela mesma Todas as teacutecnicas

150

discursivas e persuasivas todos os signos de valores fundados na opiniatildeo coletiva satildeo

empregados para forcejar a adesatildeo dos juiacutezes a uma imagem ilusoacuteria de justiccedila

Os proacuteprios juiacutezes natildeo possuem outro acesso agrave investigaccedilatildeo que natildeo sejam

mediados pela falibilidade dos sentidos Diante do diagnoacutestico Zeus prescreve o

expediente astucioso que remediaraacute o mal

Primeiro eacute preciso diz Zeus que os homens cessem de

conhecer de antematildeo a hora da morte Pois agora eles sabem

em qual momento iratildeo morrer Ora eu acabo de dizer a

Prometeu para que lhes retire este conhecimento Em seguida

eacute necessaacuterio que os homens sejam julgados nus despojados

de tudo o que eles tecircm Eacute por isso que se lhes deve julgar

mortos E seus juiacutezes devem estar igualmente mortos nada

aleacutem daquilo que uma alma vecirc em outra alma Que desde o

momento da morte cada um esteja separado de todos os seus

proacuteximos que deixe sobre a terra todo este decoro ndash este eacute o

uacutenico meio para que o julgamento seja justo

(Goacutergias 523d-e)99

O expediente elucubrado por Zeus eacute poacutelo simeacutetrico ao expediente instrumental do

mito de Prometeu no Protaacutegoras A previsatildeo propiciada pela inteligecircncia utilitaacuteria

representada pelo fogo furtado deve ser retirada dos homens pelo filantropo Prometeu A

capacidade de engenho teacutecnico garante natildeo somente a provisatildeo e a compensaccedilatildeo para as

carecircncias humanas mas ocasionam a violecircncia e a injusticcedila endoacutegenas Se a vida do gecircnero

humano soacute pode ser assegurada pela inteligecircncia instrumental engenhosa a existecircncia da

comunidade poliacutetica depende da participaccedilatildeo no par aidoacutes-diacuteke sem a qual ocorre a

desumanizaccedilatildeo inevitaacutevel A retirada da capacidade projetiva implica uma divisatildeo no plano

cronoloacutegico em que se estabelece a consecuccedilatildeo entre accedilatildeo e consequecircncia A separaccedilatildeo

entre o tempo cronoloacutegico da vida e o tempo apoacutes a morte representa a dissociaccedilatildeo entre o

visiacutevel e manifesto e o invisiacutevel oculto

99 Trad de Monique Canto (PLATON 1993 p 304)

151

O corte radical impede a eficaacutecia dos signos exteriores de justiccedila mediados pelas

teacutecnicas do engano e da ilusatildeo Todos os recursos satildeo inelutavelmente abandonados todos

os apegos afetivos satildeo impotentes apoacutes a travessia A remissatildeo a paradigmas absolutos

exige o postulado de que a morte eacute a separaccedilatildeo entre o e a alma Eacute preciso crer na alma

separada e isolada para que se vislumbrem os paradigmas da vida de maior valor

A verdadeira natureza psiacutequica revela-se em funccedilatildeo de suas causas remotas e nada

pode violar a lei causal eacutetico-psiacutequica de Kroacutenos A nudez remove os sinais exteriores do

engano e inverte a relaccedilatildeo entre a ocultaccedilatildeo e a vergonha entre a exposiccedilatildeo e o juiacutezo A

vergonha natildeo depende mais da coerccedilatildeo do olhar coletivo das gestas reputaacuteveis e

censuraacuteveis que configuram os valores da cidade e os noacutemoi humanos A vergonha eacute o

afeto que revela a inadequaccedilatildeo da natureza psiacutequica com sua destinaccedilatildeo final afeto que

deixa de ser prospectivo e passa a ser retrospectivo acerca dos males que poderiam ser

evitados sem a tirania dos apetites

Na planiacutecie invisiacutevel em que as hierarquias da vida satildeo equalizadas no mesmo

meacutetron as foacutermulas de reconhecimento as palavras de passe e a memorizaccedilatildeo de

prescriccedilotildees rituais dos antigos cultos de misteacuterio satildeo transpostas pelo escrutiacutenio imediato

do ldquoolhar da almardquo que vecirc outra alma O discurso sagrado natildeo expressa a natureza proacutepria

do recipiendaacuterio e por isso o sentido enigmaacutetico do discurso polissecircmico perde a

finalidade Somente o olhar perscrutador desembaraccedilado de qualquer obstaacuteculo pode

apreender a verdade dos seres e determinar o loacutecus consonante a cada alma Os verdadeiros

baacutekkhoi natildeo satildeo os que declaram ser puros mas satildeo aqueles que puros resplandecem em

sua proacutepria natureza psiacutequica as ordenaccedilotildees da justiccedila efetivada em vida

A feiuacutera do debochado Tersites (Goacutergias 526e) a chaga do voluptuoso os conflitos

e sofrimentos do tirano apetitivo e as desmedidas dos natildeo-iniciados configuram uma nova

152

acepccedilatildeo da vergonha na qual o feio e o vergonhoso necessariamente implicam-se

mutuamente

No movimento da transposiccedilatildeo iniciaacutetica operado pelas imagens miacuteticas a

autecircntica hyponoacuteia consiste em apreender as grandes verdades que se ocultam subjacentes

aos signos aparentes O filoacutesofo eacute aquele que investiga o regramento coacutesmico e a proporccedilatildeo

geomeacutetrica e os aplica ao regramento dos princiacutepios de accedilatildeo e inteligibilidade da alma A

alma justa eacute a alma bem ordenada consonante com a harmonia coacutesmica (Goacutergias 507a)

Segundo Monique Dixsaut (2001 p 171-173) a uacutenica verdade que o filoacutesofo pode

crer eacute aquilo que o loacutegos lhe significa e natildeo a vida Este loacutegos indica que haacute uma maneira

de viver que eacute a melhor porque concede tempo agrave busca da verdade Todavia as imagens do

mito final apontam para o fato de que a cataacutertica elecircntica do loacutegos filosoacutefico possui a

eficaacutecia de desnudar o interlocutor de suas falsas ilusotildees e envergonhaacute-lo mediante a

contradiccedilatildeo entre as crenccedilas professadas e o gecircnero de vida efetivamente praticado Natildeo

obstante o loacutegos eacute inoperante diante da hostilidade da violecircncia e da ignoracircncia

(apaideusiacutea 527e) O discurso filosoacutefico natildeo assegura a salvaccedilatildeo diante de juiacutezes

desonestos e natildeo evitam o ridiacuteculo e a violecircncia

Mas o verdadeiro filoacutesofo eacute como o piloto cujo papel eacute simultaneamente o de

conduzir em seguranccedila os tripulantes os valores e a si mesmo ao bom porto (Goacutergias

511c-512a) Sua funccedilatildeo eacute a de preservar dos males as almas dos seus concidadatildeos Para

tanto eacute necessaacuteria a retoacuterica da alma que ultrapassa a significaccedilatildeo discursiva para

culminar na inteligecircncia da visatildeo direta de uma alma para outra Quando uma alma observa

outra sem qualquer das mediaccedilotildees sensiacuteveis ela compreende o modo como o tempo

devotado a certo gecircnero de vida que ela julgou digno de ser vivido a afetou e quais marcas

imprimiu em sua qualidade proacutepria (Goacutergias 524d)

153

Se os loacutegoi suscitam o refuacutegio e o mergulho na verdade dos seres (Feacutedon 99e) a

qualidade proacutepria da alma soacute eacute determinada pela instauraccedilatildeo praacutetica da justiccedila poliacutetica Para

exercitar o saber eacute preciso tambeacutem crer mas como dizia o exegeta de Derveni ainda que

se esteja vendo eacute impossiacutevel crer ou aprender sem que se leve em conta as coisas terriacuteveis

(deinaacute) do Hades Natildeo se pode exercitar o saber sem que este seja vivido pois mesmo as

melhores naturezas estatildeo sujeitas agrave perversatildeo do pior gecircnero de apetites Tais satildeo os

apetites que se manifestam em sonhos e suscitam repleccedilatildeo recocircndita daquele que possui

disposiccedilotildees doentias para empreender unir-se agrave proacutepria matildee a qualquer homem deus ou

besta e de manchar-se de qualquer crime por causa da demecircncia e da renuacutencia agrave vergonha

(Repuacuteblica 571d) Assim como a qualidade proacutepria de um ser artefato ou da alma natildeo

resulta do acaso mas do modo como cada um eacute regrado assim tambeacutem a qualidade proacutepria

da alma soacute pode regrar-se atraveacutes da consonacircncia com a proporccedilatildeo geomeacutetrica

indissociaacutevel da accedilatildeo virtuosa que muda as disposiccedilotildees da poacutelis (Goacutergias 506e)

Ao fim e ao cabo de todos os discursos eacute preciso prestar a maior atenccedilatildeo natildeo tanto

em evitar sofrer a injusticcedila mas em natildeo cometecirc-la Eacute necessaacuterio natildeo se aplicar em parecer

bom mas em secirc-lo verdadeiramente tanto em privado como em puacuteblico (Goacutergias 527b)

Nenhum mal pode sobrevir ao homem de bem se ele pratica a virtude (527d) nenhum

ultraje pode envergonhaacute-lo nenhum sofrimento corrompecirc-lo ndash a natildeo ser a possibilidade de

que ele mesmo pratique o mal Toda modalidade discursiva seja a retoacuterica seja o eacutelenkhos

deve servir para a perenidade do justo (527c)

154

IV - NECESSIDADE E ESCOLHA

41 Imagens e causas no mito de Er

No espetaacuteculo de imagens narradas no mito de Er haacute uma proclamaccedilatildeo majestosa

de um Propheacutetes que em nome da virgem Laacutequesis anuncia a coexistecircncia simultacircnea de

noccedilotildees contraditoacuterias de um lado haacute a necessidade inelutaacutevel da ligaccedilatildeo de cada alma com

a vida de outro a radicalidade da escolha como fonte de virtude e imputabilidade

Como conciliar a necessidade inevitaacutevel do periacuteodo de nascimentos e mortes com a

escolha mais determinante Como conceber a sorte e a liberdade radical da escolha como

princiacutepios causais simultacircneos da natureza da psykheacute O inteacuterprete da Moira anuncia o

desconcerto da unificaccedilatildeo de poacutelos opostos entre o irrefragaacutevel e o indeterminado entre o

lote infaliacutevel e a autodeterminaccedilatildeo desejada

Logos da virgem Laacutequesis filha da Necessidade Almas efecircmeras

ireis iniciar novo periacuteodo de nascimentos na condiccedilatildeo mortal Natildeo

eacute um daiacutemon que vos escolheu a sorte sois voacutes que escolhestes

vosso daiacutemon O primeiro que a sorte designar escolheraacute primeiro

a vida agrave qual seraacute ligado em toda necessidade Pois virtude natildeo

tem deacutespota Segundo a honrar ou desonrar cada um a teraacute mais

ou menos Responsabilidade (aitiacutea heloumeacutenou) eacute de quem escolhe

O deus natildeo eacute responsaacutevel (theoacutes anaiacutetios) 100

Repuacuteblica X 617d06ndash617e05

Eacute um espetaacuteculo curioso observar de que maneira as diferentes almas escolhem suas

vidas nada mais lamentaacutevel ridiacuteculo e assombroso diz o panfiacutelio Er 101

A maioria eacute

guiada em suas escolhas pelos haacutebitos adquiridos em suas vidas anteriores haacutebitos que

100

Adoto traduccedilatildeo de Pierre Pachet com ligeiras modificaccedilotildees

Anaacutenkhes thygatrograves koacuteres Lakheacuteseos loacutegos Psykhaigrave epheacutemeroi arkhegrave aacutelles perioacutedou thnetoucirc geacutenous

thanatephoacuterou Oukh hymacircs daiacutemon leacutexetai hlrmymeicircs daiacutemona haireacutesesthe Procirctos drsquo hoacute lakhograven procirctos

haireiacutestho biacuteon hoacutei syneacutestai ex[ Anaacutenkhes Aretegrave degrave adeacutespoton hegraven timocircn kaigrave atimazon pleacuteon kaigrave eacutelatton

autecircs heacutekastos heacutexei Aitiacutea helomeacutenou theograves anaiacutetios 101 eleeineacuten te gaacuter ideicircn eicircnai kai geloiacutean kaigrave thaumasiacutean (Repuacuteblica X 620a 01-02)

155

acabam por condicionar uma homologia entre a natureza psiacutequica e o gecircnero de vida

Quando o gecircnero de vida estaacute em questatildeo emerge o primado da escolha

Sendo assim na travessia em que consiste a vida quais satildeo os meios e por quais

modos de viver poderemos conduzir a existecircncia da melhor forma possiacutevel ateacute o seu termo

Tal eacute a questatildeo crucial levantada pela imagem exemplar do Livro VII das Leis

Um construtor de navios no momento em que comeccedila a construccedilatildeo

do navio potildee em primeiro lugar a carena e esboccedila assim a

estrutura do navio Parece-me que eu faccedilo a mesma coisa quando

tentando distinguir a estrutura dos modos de vida em funccedilatildeo dos

caracteres das almas eu coloco realmente em lugar as carenas

destes modos de vida examinando por quais meios por quais

maneiras de viver conduziremos o melhor possiacutevel nossa existecircncia

ateacute o fim desta travessia que consiste a vida

Leis VII 803a-b

A questatildeo da investigaccedilatildeo da natureza da alma eacute explicitada a partir de uma

analogia o Estrangeiro de Atenas alvitra que assim como o construtor de navios inicia a

construccedilatildeo pela carena e esboccedila a estrutura do barco assim tambeacutem devemos tentar

estabelecer o delineamento dos esquemas de vida por meio dos gecircneros de almas102

O problema da indeterminaccedilatildeo do modo de vida conjuga-se com a questatildeo mais

fundamental do Goacutergias Qual eacute o melhor gecircnero de vida que eacute preciso ter103

A mais

fundamental de todas as questotildees da vida consiste em se determinar a natureza do proacuteprio

modo de viver Dentre toda a gama infinita de escolhas a vida filosoacutefica postula o princiacutepio

de que haacute uma hierarquia entre os afetos e uma escolha que eacute a melhor possiacutevel

Pois esta vida esta vida uacutenica seja ela longa ou curta eacute o que de

fato um homem verdadeiramente homem deve deixar de lado Natildeo

eacute a isso que ele deve devotar o amor de sua alma Ao contraacuterio no

que diz respeito a sua longevidade deve remeter-se somente ao

deus e crer somente no que dizem as mulheres que ningueacutem

poderia escapar ao seu lote Natildeo o que antes se deve procurar

102

tagrave tocircn biacuteon peiroacutemenos skheacutemata diasteacutesasthai katagrave tpoacutepous tougraves tocircn psykhoacuten (Leis VII 803a06-07) 103 oacutentina khreacute troacutepon zeacuten (Goacutergias500c03)

156

examinar eacute qual a maneira que se deve viver a vida para que ela

seja a melhor possiacutevel

Goacutergias 512 d-e

A vida esta vida uacutenica que equivale a uma travessia articula dois opostos

inseparaacuteveis a determinaccedilatildeo incontestaacutevel de uma longevidade que escapa ao poder

humano e o poder inalienaacutevel do modo como esta travessia seraacute feita Se a nenhum homem

cabe determinar a duraccedilatildeo da proacutepria vida a cada homem cabe decidir como iraacute viver a

vida que lhe cabe pois o viver eacute fruto de escolhas Se o gecircnero de vida eacute determinado pelas

escolhas o que delimita o acircmbito das escolhas por sua vez eacute a natureza uacuteltima dos desejos

e do caraacuteter Natildeo haacute escolha que natildeo seja resultante do movimento dos desejos A

orientaccedilatildeo dos desejos determina os valores os criteacuterios de discriminaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo

do preferiacutevel que por sua vez nortearatildeo o modo como a vida eacute vivida Esta orientaccedilatildeo

natural dos desejos eacute por conseguinte preacutevia agrave percepccedilatildeo da realidade vivida

O discernimento da estrutura psiacutequica pressupotildee por sua vez a distinccedilatildeo da

multiplicidade e da natureza dos desejos Trata-se de uma correspondecircncia biuniacutevoca em

que o pensamento discerne o desejo e o desejo se exprime num modo de vida Pensamento

desejos e modo de vida articulam-se numa relaccedilatildeo de implicaccedilotildees e consequecircncias muacutetuas

Pensamento e desejos acarretam consequecircncias inevitaacuteveis sobre o gecircnero de vida de modo

a urdir a trama que entrelaccedila necessidade e liberdade na tecedura que compotildee o viver

Todavia os patheacutemata da alma configuram impulsos agogecircs contraacuterios (Repuacuteblica

X 604 a-b) Quando num mesmo homem em relaccedilatildeo ao mesmo elemento e ao mesmo

tempo dois impulsos contraacuterios coexistem eacute necessaacuterio que haja nele duas partes104

Os impulsos antiteacuteticos da alma determinam accedilotildees opostas e por conseguinte

implicam a diversidade de partes jaacute que efeitos opostos natildeo podem provir da mesma causa

104 Enantiacuteas degrave agogecircs gignoacutemenes en toacutei anthroacutepoi peri to auto haacutema duacuteo phamegraven em autocirci anankaicircon

eicircnai

157

(Repuacuteblica IV 439bss) Tal postulado transpotildee para a esfera do psiquismo a

impossibilidade de que haja contradiccedilatildeo numa mesma instacircncia e num mesmo instante de

princiacutepios de accedilatildeo que fazem com que a psykheacute seja uma causa (REIS M D 2000 p

114) As pulsotildees conflitantes e opostas da psykheacute indicam a necessidade de sua

complexidade

Na complexidade de princiacutepios de accedilatildeo opostos a afliccedilatildeo ou os afetos violentos

impedem a alma de discernir o melhor aquilo que haacute de bem e mal (toucirc agathoucirc te kaigrave

kakoucirc) nas dificultosas sobrecargas (en taicircs xymphoraicircs) que sobrevecircm ao homem A

tristeza e a afliccedilatildeo uma vez dominantes fazem obstaacuteculo agrave inteligecircncia dos expedientes

(touacutetoi empodograven gignoacutemenon tograve lypeicircsthai) e por essa razatildeo nenhuma das coisas humanas

merece grande reverecircncia (ouacutete ti tocircn anthropiacutenon aacutexion ograven megaacuteles spoudecircs Repuacuteblica X

604b09-c03) A natureza da psykheacute eacute determinada pela similitude com sua ocupaccedilatildeo

ordinaacuteria (Feacutedon 82a) Por isso a experiecircncia de um prazer ou pena intensos suscitam o

mal supremo a psykheacute eacute conduzida a tomar o que causa o afeto mais intenso por aquilo

que possui a maior evidecircncia e a realidade mais verdadeira enquanto ele natildeo eacute nada

(Feacutedon 83c05-08) A realidade dos sofrimentos intensos eacute ilusoacuteria e o mais belo consiste

em manter a maior quietude diante deles (maacutelista hesykhiacutean aacutegein Repuacuteblica 604b09)

No Feacutedon (99b) Platatildeo distingue duas ordens de causas (i) as causas verdadeiras e

(ii) as causas sem as quais nenhuma causa seria causa As verdadeiras causas identificam-se

com o noucircs e exigem que se postule a faculdade psiacutequica da inteligecircncia discriminadora do

melhor (beacuteltiston) A complexidade de impulsos faz da psykheacute princiacutepio de movimento e

causa

Concluamos eacute princiacutepio de movimento aquilo que se move a si

mesmo Ora natildeo eacute possiacutevel nem que ele se anule nem que comece

a existir do contraacuterio o ceacuteu inteiro a geraccedilatildeo inteira vindo ao

158

ocaso tudo isso pararia e jamais se renovaria Uma vez posto em

movimento em um ponto de partida para sua existecircncia Agora que

eacute evidente a imortalidade daquilo que eacute movido por si mesmo natildeo

se faraacute escruacutepulo de afirmar que isto eacute a essecircncia da alma e que

esta eacute sua natureza De fato todo corpo que recebe de fora seu

movimento eacute um corpo inanimado Um corpo eacute animado ao

contraacuterio por algo de dentro e que tem em si mesmo o princiacutepio

uma vez que eacute nisto que consiste a natureza da alma

Fedro 245d

A essecircncia da noccedilatildeo agrave qual corresponde o nome alma eacute ser princiacutepio de movimento

Um princiacutepio natildeo pode ser engendrado visto que sua existecircncia nesse caso derivaria de

outra coisa Tudo o que eacute engendrado eacute necessariamente engendrado sob o efeito de uma

causa pois sem a intervenccedilatildeo de uma causa nada pode ser engendrado eis a relaccedilatildeo

necessaacuteria que a noccedilatildeo de princiacutepio de movimento expressa haacute um viacutenculo infaliacutevel entre

efeito e causa (Timeu 28a) O princiacutepio eacute aquilo cuja existecircncia eacute intriacutenseca a si mesmo

(ROBIN in Fedro p 83) Nesse sentido o movimento da alma a torna causa e princiacutepio

Em Platatildeo a alma eacute ao mesmo tempo movimento impulso e causa

Somente a inteligecircncia pode regrar o acaso pois a opiniatildeo a presciecircncia

(epimeacuteleia) o noucircs a arte e a lei satildeo anteriores aos elementos da Natureza (Leis X 892b)

A questatildeo do melhor (beacuteltiston) e das escolhas pressupotildee a configuraccedilatildeo psiacutequica e a

economia de seus impulsos Nesta economia os desejos determinam o alvo em que

terminam Todo desejo eacute orientado e aponta para um fim

No Goacutergias Soacutecrates afirma que de todos os preparativos humanos (paraskeuaigrave)

alguns visam somente o prazer e desconhecem o melhor e o pior outros conhecem o Bem e

o mal

Eu dizia se tu te lembras que haacute certos preparativos que querem

somente atingir o prazer e se ocupam somente disto numa

ignoracircncia total do que eacute melhor ou pior Mas existem outros que

conhecem o bem e o mal Goacutergias 500a

159

A questatildeo eacutetica da melhor escolha exige o plano epistemoloacutegico da distinccedilatildeo do

Bem e do melhor O conhecimento do Bem e do mal deve fundamentar a praacutexis eacutetico-

poliacutetica

Platatildeo subordina agraves escolhas a questatildeo ldquoqual o melhor gecircnero de vida que se deve

terrdquo Escolhas pressupotildeem desejos como impulsos para a accedilatildeo Neste sentido o psiquismo

eacute causa e por isso a Filosofia deve existir como Eros como orientaccedilatildeo natural do desejo

para o melhor Somente a inteligecircncia pode discriminar diferenccedilas e discernir o melhor

somente o movimento do pensamento apanaacutegio da psykheacute configura e inteligibilidade do

Bem (DIXSAUT 2001 p 130)

A escolha do alvo que eacute o fim do desejo determina simultaneamente os valores a

potecircncia do discurso e a realidade do real A realidade eacute determinada pelo modo como se

escolhe vecirc-la Instacircncia complexa a natureza psiacutequica determina o modo de inteligibilidade

pelo qual a realidade eacute apreendida

Mas para discorrer filosoficamente acerca de instacircncias que natildeo podem ser

justificadas logicamente Platatildeo emprega o registro da narrativa miacutetica As noccedilotildees

multiacutevocas que compotildeem a realidade e natildeo possuem justificaccedilatildeo loacutegica exigem a piacutestis

como consolidaccedilatildeo

42 ndash Mito e psykhḗ

Da ordem da mousikeacute os mitos platocircnicos esboccedilam mediante um pensar por

imagens um modelo de visualizaccedilatildeo de realidades inverificaacuteveis e satildeo endereccedilados aos

patheacutemata com a finalidade de consolidar uma crenccedila No Feacutedon (77e-78a) a encantaccedilatildeo

miacutetica (epoideacute) eacute reclamada como meio de afastar o medo crucial da morte O medo eacute um

iacutendice um signo de reconhecimento de que o corpo se manteacutem preponderante sobre o

160

pensamento (Feacutedon 68c) Do medo derivam as duacutevidas e as hesitaccedilotildees que paralisam as

accedilotildees humanas e impedem a atividade filosoacutefica

A encantaccedilatildeo miacutetica possui simultaneamente (i) a funccedilatildeo pedagoacutegica de esclarecer

e de propiciar a crenccedila e (ii) a funccedilatildeo epistemoloacutegica de engendrar noccedilotildees que natildeo possuem

referentes verificaacuteveis (NUNES SOBRINHO 2007 p 186 ss) Ademais como toda

estrutura musical a estrutura miacutetica implica ressonacircncias psiacutequicas haacute uma homologia

estrutural entre muacutesica mito e o psiquismo105

Os mitos platocircnicos fornecem modelos exemplares para o comportamento humano e

constituem um referencial que confere sentido e orientaccedilatildeo para as accedilotildees A estrutura

miacutetica possui uma homologia estrutural multiacutevoca e profunda com a estrutura do

psiquismo com a estrutura poliacutetica e com a estrutura de determinaccedilatildeo das realidades

Aleacutem disso a estrutura imageacutetica do mito suscita a partir de imagens familiares

visiacuteveis a inferecircncia de estruturas inevidentes106

Assim como o Ser estaacute para o devir

assim tambeacutem a verdade estaacute para a crenccedila afirma Timeu de Locri (Timeu 29c) A analogia

se estende para o plano das relaccedilotildees assim como se pode inferir o inteligiacutevel a partir de

relaccedilotildees invariantes observadas no devir assim tambeacutem se pode inferir a verdade a partir

das imagens que lhes servem de postulados

Narrativas miacuteticas filosoacuteficas possuem a pretensatildeo de tornar comunicaacutevel uma

realidade complexa Quando a complexidade eacute excessiva para ser abarcada pela

inteligecircncia o mito faz ver Os grandes mitos de julgamento operam a transposiccedilatildeo de

105 hoacutes philosophiacuteas megraven ouses megiacutestes mousikeacutes emoucirc degrave toucircto praacutettontos (Feacutedon 61a03) A Filosofia eacute a

mais alta muacutesica inextricaacutevel do pensamento puro (phroacutenesis) e da aspiraccedilatildeo agraves realidades mais verdadeiras

No Timeu a alma participa da razatildeo da harmonia e do nuacutemero o que faz com que possa engendrar o melhor

dos seres que sempre satildeo autegrave degrave aoacuteratos meacuten logismoucirc degrave meteacutekhousa kaigrave harmonias pykheacute tocircn noetocircn aeiacute

te oacutenton hypograve toucirc ariacutestou ariacuteste genomeacutene tocircn genetheacutenton (37e06-a02) 106 With regard to nature and task of demiurge one must note that the invisible is inferred from the visible

and the incorporeal from the bodily (OLYMPIODORO 1998 p 290)

161

imagens familiares visualizaacuteveis para uma teia de relaccedilotildees invisiacuteveis que satildeo fundamentais

para a unificaccedilatildeo da experiecircncia humana muacuteltipla com uma cosmologia107

Como falar filosoficamente daquilo que eacute inverificaacutevel como a alma e a morte A

significaccedilatildeo aportada pelo mito filosoacutefico indica a possibilidade de transposiccedilatildeo de um

registro de realidade para outro de modo a se consolidar o primado e a inscriccedilatildeo da

inteligecircncia naquilo que eacute destituiacutedo de ordem (akosmiacutea) ou de regras naquilo que eacute

desregrado (akolasiacutea) Como diria Dixsaut toda ontologia eacute miacutetica e todo mito pode servir

como justificativa ontoloacutegica (DIXSAUT 2001 p 130) Por essa razatildeo quando a

argumentaccedilatildeo chega ao impasse e ao limite para natildeo se cair na misologia (Feacutedon 89d ss)

eacute preciso contar com a perspectiva dos discursos divinos para se afrontar o risco (kiacutendynos)

da travessia da vida (Feacutedon 85d) Para se evitar a misantropia eacute preciso compreender que a

bondade e a maldade completas satildeo raras e as misturas satildeo muitas108

Para se evitar a

misologia eacute preciso empregar todo o ardor em fazer o discurso parecer verdadeiro natildeo

para os que ouvem mas tatildeo somente para si mesmo (Feacutedon 89e-90a)

Como o plano da vida e do devir eacute o plano da mistura (metaxyacute) eacute preciso identificar

aquilo que no real soacute pode ser justificado miticamente Eis aiacute o belo risco da Filosofia

crer que a alma eacute imortal no pacircs kroacutenos eis o risco que deve correr aquele que crecirc que eacute

assim Pois este risco eacute belo (Feacutedon 114d)

107 Segundo Leacutevi-Strauss realidades demasiado complexas exigem para sua inteligibilidade uma reduccedilatildeo a

relaccedilotildees compreensiacuteveis mediante a busca de invariantes em suas relaccedilotildees internas As relaccedilotildees internas de

certo niacutevel de realidade satildeo suscetiacuteveis de aparecer a outros niacuteveis Nesse sentido eacute possiacutevel analisar no acircmbito do psiquismo relaccedilotildees que satildeo observadas na Natureza Os mitos possuem a funccedilatildeo de apresentar

mediante suas relaccedilotildees internas a inscriccedilatildeo de ordem numa aparente desordem A inscriccedilatildeo de ordem naquilo

que se apresenta caoacutetico implica precisamente a funccedilatildeo psiacutequica por excelecircncia e consolida a proacutepria noccedilatildeo

de significado O que significa significar Segundo Leacutevi-Strauss a significaccedilatildeo representa a possibilidade de

traduccedilatildeo ou transposiccedilatildeo de um registro de realidade para outro Por essa razatildeo os mitos platocircnicos satildeo

portadores de significaccedilatildeo pois traduzem para o acircmbito imageacutetico da narrativa noccedilotildees que satildeo somente

pensaacuteveis Sua operacionalidade eacute nesse aspecto dianoieacutetica (LEacuteVI-STRAUSS 1978 p 22 ss) 108 tougraves megraven khrestougraves kaigrave ponerougraves sphoacutedra oliacutegous eicircnai hekateacuterous tougraves degrave metaxỳ pleiacutestous

162

O mito propicia a ultrapassagem da condiccedilatildeo temporal e da ignoracircncia (apaideusiacutea)

que constituem o quinhatildeo de todo ser que se identifica a si mesmo e ao Real com sua

proacutepria situaccedilatildeo particular

43 - ER O DECRETO DE LAacuteQUESIS

A questatildeo da escolha do melhor gecircnero de vida eacute apresentada no mito de Er como

risco inerente agrave mistura em que consiste o breve instante que vai do nascimento ateacute a morte

O breve tempo que separa a infacircncia da velhice nada eacute em comparaccedilatildeo com a eternidade

A correta valoraccedilatildeo deve levar ser posta na perspectiva da totalidade do tempo paacutes kroacutenos

Que pode haver de grande em um intervalo que tempo tatildeo restrito Pois todo o intervalo

que separa a infacircncia da velhice eacute muito pouco em comparaccedilatildeo com a eternidade

(Repuacuteblica X 608c) Um ser imortal natildeo deve dedicar tanto esforccedilo por um tempo tatildeo curto

e negligenciar a eternidade109

A oposiccedilatildeo entre tempo da vida e a totalidade do tempo

indica a necessidade de uma re-valoraccedilatildeo dos valores humanos na perspectiva de um

paradigma atemporal

O espetaacuteculo narrado pelo panfiacutelio Er evoca uma estrutura coacutesmica tripartite as

almas encontram-se num prado (leimoacuten) lugar democircnico toacutepon tinaacute daimoacutenion

(Repuacuteblica X 614c) que media a regiatildeo superior do ceacuteu e a inferior da terra

Todo lugar nos mitos platocircnicos toda geografia e cosmologia do invisiacutevel

concernem ou agrave estrutura psiacutequica ou dizem respeito agrave estruturaccedilatildeo de planos de realidade

diversos A triparticcedilatildeo refere-se ao mesmo tempo agrave condiccedilatildeo psiacutequica e a estruturas de

109

Mas aquele de pensamento superior que contempla a totalidade do tempo e a totalidade do ser supotildees que

eacute capaz de ter em grande opiniatildeo a vida humana

bdquo´Hi oucircn hypaacuterkhei dianoiacuteai megalopreacutepeia kaigrave theoriacutea pantograves megraven khroacutenou paacuteses degrave ousiacuteas hoicircon te oiacuteei

touacutetoi mega ti dokecircin eicircnai tograven antroacutepinon biacuteon

Repuacuteblica VI 486a 09-10

163

realidades Natildeo eacute outra a razatildeo pela qual os tiranos como Ardieu satildeo arrastados e jogados

no Taacutertaro ndash imagem do caos turbulento Suas almas satildeo caoacuteticas e por si mesmas suscitam

a imagem da realidade que se lhes assemelha Por outro lado O Feacutedon apresenta uma

estrutura fisiograacutefica tripartite (109b-110a) que indica planos de realidade com

determinaccedilotildees variadas Haacute uma ldquoverdadeira terrardquo invisiacutevel mais pura cristalina e bela do

que a cavidade na qual habitam os homens A verdadeira Terra estaacute para a nossa

ldquocavidaderdquo assim como a nossa cavidade estaacute para as profundezas marinhas110

Haacute uma

simetria de proporccedilotildees entre planos com diferenccedilas de determinaccedilatildeo

Apoacutes haver passado sete dias no prado Er deveria partir no oitavo dia e chegar a um

lugar onde se estende do alto atraveacutes de todo o ceacuteu e da terra uma luz como uma coluna111

(phoacutes euthyacute hoicircon kiacuteona) muito semelhante ao arco iacuteris (maacutelista teacute igraveridi prospheacutere) mas

mais brilhante e mais pura (lampoacuteteron degrave kaigrave katharoacuteteron) Esta luz era uma cadeia que

prendia o ceacuteu (xyacutendesmon toucirc ouranoucirc) tal como as cordas de uma trirreme (Repuacuteblica

616b-c)

A mediaccedilatildeo entre planos de realidade distintos eacute representada pela imagem de uma

coluna de luz que encadeia o koacutesmos A cosmologia constitui o paradigma de toda

atividade criadora porque o Koacutesmos eacute o modelo divino de todo fazer O Koacutesmos eacute poieacutesis

divina e sua estrutura serve de paradigma para todo fazer que se pretende harmonioso

ordenado e ornado numa palavra cosmicizado (ELIADE 1978) Mas como atribuir um

sentido mais preciso agrave imagem da coluna de luz

110Autegraven degrave tegraven gecircn katharagraven em katharoacute keicircsthai toacutei ouranoacute en hoipeacuter esti tagrave aacutestra hoacuten degrave aitheacutera onomaacutezein

Feacutedon 109b0708 111

Hilda Richardson (1926 p 117 ss) defende a tese de que a coluna de luz envolve circularmente as

esferas coacutesmicas e simultaneamente atravessa o eixo central que passa pela terra Tal imagem teria filiaccedilatildeo

na concepccedilatildeo pitagoacuterica de que um ciacuterculo de fogo abarca o Koacutesmos

164

No Craacutetilo (408b) o nome de Iacuteris eacute associado agrave eiacuterein dizer e por isso ela eacute

mensageira112

No Teeteto (155d) Iacuteris eacute apresentada como filha de Thauacutemas

Pois este sentimento de se espantar eacute inteiramente de algueacutem que

ama o saber Natildeo haacute outro ponto de partida para a procura do

saber aleacutem deste e aquele que disse eacute nascida de Thaumas113

natildeo

esboccedilou mal sua genealogia

(Teeteto 155d)114

Como nota Narcy115

Iacuteris eacute mensageira portadora do Leacutegein e por conseguinte

constitui uma personificaccedilatildeo do papel mediador da Filosofia A busca pela sabedoria eacute a

atividade divina mais proacutepria e a mediaccedilatildeo entre o plano da divindade e o plano humano se

expressa pela imagem do arco-iacuteris ponte entre o ceacuteu e a terra116

Universal antropoloacutegico a

imagem da coluna ou pilastra que liga planos diversos de realidade o celeste e o terrestre

indica que o espaccedilo miacutetico possui um referencial absoluto um eixo coacutesmico aacutexis mundi117

112 Homens aquele que maquinou (emeacutesato) a palavra (eiacuterein) noacutes deveriacuteamos chamaacute-lo Eireacute-mecircs e presentemente crendo haver-lhe adornado o nome o chamamos Hermecircs Em todo caso Iacuteris foi

verdadeiramente chamada assim a partir de eirein (dizer) porque ela eacute mensageira

Trad DALMIER C in PLATON Cratyle 1998 113 Espanto agrave filha do Oceano de profundo fluir

desposou Ambarina Ela pariu ligeira Iacuteris

e Harpias de belos cabelos Procela e Aliacutegera

que a paacutessaros e rajadas de vento acompanham

com asas ligeiras pois no abismo do ar se lanccedilam

(HESIacuteODO Teogonia 265-269 Trad Torrano J 2003)

De Pontos et Gegrave naquirent Phorcos Thaumas Neacutereacutee Eurybia et Cegraveto De Thaumas et Electra naquirent

Iris et les Harpyes Aellocirc et Ocypeacutetegrave puis de Phorcos et de Cegraveto les Phorcides et les Gorgones dont nous

parlerons lorsque nous en seron agrave Perseacutee (APPOLODORE I 2 10 in CARRIEgraveRE MASSONIE 1991) 114 Trad NARCY M in PLATON Theacuteeacutetegravete 1995 115 Id nt 121 p 325 116 Chantraine afirma a possibilidade de que ityacutes e iacutetea arco ciacuterculo de arco sejam derivadas de Iacuteris

(CHANTRAINE 1999 p 469) 117

Proclo (2005 200 p 149) empreende uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica da passagem afirmando que a imagem

natildeo designa uma figura em forma de coluna mas consiste num sentido funcional de suporte firme e constante para os moacuteveis celestes A interpretaccedilatildeo alegoacuterica leva Proclo a rejeitar o pensamento de seus predecessores

segundo o qual a luz representa o eixo do mundo Embora Hilda Richardson (1926 p 115) confira um papel

estritamente poeacutetico ao mito sua interpretaccedilatildeo aventa a ausecircncia de dificuldades em correlacionar a luz e a

imagem da coluna com a noccedilatildeo matemaacutetica de um eixo coacutesmico It is hardly necessary to say that Plato quacirc

mathematician rightly conceived of the axis of the celestial sphere as na imaginary line and not as a material

body whether of light stuff or any other stuff But this is no real objection to his representing the axis

otherwise in a passage which is not scientific exposition but myth where he has a particular poetic and

imaginative purpose in view

165

que eacute o modelo exemplar que opera a mediaccedilatildeo entre o celeste e o terrestre entre o divino e

o plano do devir A noccedilatildeo de um eixo coacutesmico que vincula planos diversos eacute reforccedilada pelo

passo do Timeu

Quanto agrave terra nossa nutridora girando-a em torno do eixo que

atravessa o todo o deus a estabeleceu para ser guardiatilde e demiurga

da noite e do dia a primeira e a mais antiga das divindades

nascidas no interior do ceacuteu

Timeu 40b-c

Por que Platatildeo se vale de um rico acervo de imagens que aludem a um referencial

fora do devir e que implica uma evasatildeo do tempo humano cronoloacutegico No Feacutedon 96c-

97b Soacutecrates denuncia a perplexidade diante da tentativa de se aquilatar os particulares da

phyacutesis uns em relaccedilatildeo aos outros o que o leva a empreender o deucircteros ploucircs e empreender

a hipoacutetese das Formas No contexto do livro X da Repuacuteblica Soacutecrates aponta a contradiccedilatildeo

como condiccedilatildeo epistecircmica do devir

Os mesmos objetos parecem quebrados ou retos segundo se os

observa na aacutegua ou fora dela cocircncavos ou convexos segundo

outra ilusatildeo visual produzida pelas cores e eacute evidente que tudo isso

perturba nossa alma

Repuacuteblica X 602c

O socorro contra a ilusatildeo e a contradiccedilatildeo eacute o caacutelculo a medida e a pesagem de

modo que o que deve prevalecer eacute a faculdade da alma que lhes propicia (Repuacuteblica X

602d) O paradigma para estas operaccedilotildees da alma deve estar fora do plano do devir no

inteligiacutevel para escapar agrave contradiccedilatildeo Por essa razatildeo os mitos filosoacuteficos recorrentemente

aludem a um referencial absoluto que sirva de norma ao mesmo tempo para as accedilotildees

eacutetico-poliacuteticas e para a inteligibilidade da phyacutesis

Toda a estrutura coacutesmica representada pelo fuso da Necessidade gira nos joelhos

de Anaacutenkhe Brisson (1994 469-513) em sua anaacutelise de Anaacutenkhe vincula de maneira

166

geral a noccedilatildeo agrave causalidade e agrave explicaccedilatildeo causal118

No Timeu o princiacutepio geral da accedilatildeo

da necessidade eacute indicado no fato de que a geraccedilatildeo do Koacutesmos tem por princiacutepio uma

mistura de necessidade e razatildeo A razatildeo domina a necessidade persuadindo-a a orientar a

maior parte dos elementos do devir para o melhor O Koacutesmos eacute constituiacutedo pela vitoacuteria da

persuasatildeo sobre a necessidade configurando uma mistura

Haacute pois um elemento de resistecircncia agrave accedilatildeo ordenadora da inteligecircncia intriacutenseco agrave

constituiccedilatildeo coacutesmica Tal accedilatildeo faria da Necessidade pura uma causa errante

ontologicamente anterior ao Koacutesmos que implica a inexorabilidade da ausecircncia de

regramento e de inteligecircncia caracteriacutesticos da Khoacutera ou do meio espacial cujo movimento

eacute desarmocircnico e indeterminado A accedilatildeo da Necessidade neste plano indica o caraacuteter

randocircmico e desordenado inerente ao meio material Depois da constituiccedilatildeo do Koacutesmos

Anaacutenkhe permanece como ausecircncia de inteligecircncia resiacuteduo de resistecircncia agrave accedilatildeo de

determinaccedilatildeo ordenadora da razatildeo

No mito de Er Anaacutenkhe eacute matildee das Moiras e como tal potecircncia divina causal Na

estrutura imageacutetica apontar a causa implica em designar o genitor e a accedilatildeo de engendrar

Segundo Proclo no mito de Er Anaacutenkhe comanda o domiacutenio coacutesmico e preside o ciclo das

almas Mantenedora da ordem Anaacutenkhe vincula necessariamente os gecircneros de vida com as

118 Brisson identifica trecircs momentos distintos que caracterizam a necessidade (i) causa errante que configura

uma resistecircncia agrave accedilatildeo do Demiurgo (ii) causa coadjuvante que coopera com a razatildeo do Demiurgo e (iii)

causa segunda em relaccedilatildeo agrave alma do mundo O primeiro momento ocorre antes da modelaccedilatildeo proporcional

operada pelo Demiurgo (Timeu 56c) Trata-se da Necessidade como causa errante ou necessidade pura

anterior agrave formaccedilatildeo do Koacutesmos que se identifica com o movimento caoacutetico e ausecircncia de accedilatildeo racional No

segundo momento a Necessidade passa a cooperar com a razatildeo mediante a persuasatildeo e se torna causa coadjuvante Trata-se da razatildeo persuadindo a Necessidade Todavia nem a necessidade nem a razatildeo

desaparecem apoacutes a constituiccedilatildeo do Koacutesmos Sua influecircncia continua a se exercer em um terceiro estaacutegio o

demiurgo se retira e seus ajudantes terminam seu trabalho e a accedilatildeo da razatildeo se perpetua A razatildeo se manteacutem

no Koacutesmos atraveacutes de sua alma O seu corpo por outro lado eacute submetido agrave lei de necessidade que dirige a

geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo Essa lei implica uma cadeia causal infaliacutevel consequumlecircncia da figura da relaccedilatildeo e do

movimento proacuteprio de cada elemento A necessidade se torna uma causa segunda submetida agrave alma do

mundo de modo que a mistura entre razatildeo e necessidade eacute constitutiva do universo

167

escolhas e a necessidade inelutaacutevel de que cada alma seja ligada agrave vida corporal (Repuacuteblica

X 617e) Como potecircncia causal e matildee das Moiras Anaacutenkhe no contexto do mito de Er

representa a geraccedilatildeo da lei inflexiacutevel de retribuiccedilatildeo e implica a transferecircncia do estatuto

divino do noacutemos para as distribuidoras das sortes

Ela eacute a potecircncia regedora da ordem coacutesmica da manutenccedilatildeo de todas as coisas e do

lugar proacuteprio para cada elemento da phyacutesis e para as almas Sua accedilatildeo abarca a composiccedilatildeo

total do Koacutesmos e como afirma Proclo (que assimila Anaacutenkhe a Theacutemis) seu domiacutenio

soberano sobre todas as coisas no mundo implica uma ordem inevitaacutevel e uma guarda sem

remissatildeo

Potecircncia divina primordial a accedilatildeo de Anaacutenkhe alude ao fato de que a Repuacuteblica

coacutesmica jamais eacute subvertida e que o universo eacute guardado por meio de estatutos

indissoluacuteveis Ela eacute o garante da causalidade primordial e preside a ordem inerente ao

koacutesmos e arranjo dos seres vivos Atraveacutes das Moiras Anaacutenkhe preside todos os

movimentos celestes e os movimentos que configuram as accedilotildees praacuteticas Sua imagem

personifica a infalibilidade dos viacutenculos de arranjo harmocircnico que regem a phyacutesis e da

necessidade ineludiacutevel que vincula as escolhas e os gecircneros de vida com a condiccedilatildeo e a

natureza das almas Mas Anaacutenkhe implica tambeacutem a tyacutekhe como elemento fortuito

inelutaacutevel no Koacutesmos e inalienaacutevel agraves escolhas e agrave mistura dos paradigmas de vida

As Moiras satildeo as filhas de Anaacutenkhe Suas accedilotildees remetem para uma potecircncia

unificadora e uma causaccedilatildeo uacutenica Isso significa que haacute um viacutenculo causal que abarca

simultaneamente as conexotildees fiacutesicas e a tecedura dos destinos As Moiras satildeo mediadoras

entre os movimentos inelutaacuteveis dos ciacuterculos celestiais O fuso que liga as esferas celestes

mediante uma luz em linha reta como coluna phoacutes euthyacute hoicircon kiacuteona e sua accedilatildeo tanto

168

sobre as esferas como sobre os lotes de tipos de vida indica uma triparticcedilatildeo coacutesmica da

causalidade

Essa triparticcedilatildeo indica domiacutenios de causalidade diversos que satildeo abarcados por uma

causalidade universal e unificadora Causantes e causados diferem pelos traccedilos uno e

muacuteltiplo universal e particular inteligiacutevel e devir A unificaccedilatildeo eacute operada no domiacutenio da

causalidade inteligiacutevel Nenhum domiacutenio causal escapa a Anaacutenkhe As Moirai satildeo as

repartidoras das porccedilotildees relativas a cada ser porque elas mesmas satildeo partiacutecipes do domiacutenio

causal primordial de Anaacutenkhe

Em nome de Laacutequesis a filha da Necessidade o profeta proclama que a necessidade

eacute de viver mas a escolha cabe ao gecircnero de vida e esta escolha introduz taacutexis e noacutemos na

necessidade Guardiatilde do passado Laacutequesis eacute autora do decreto pois o passado eacute

determinante da configuraccedilatildeo presente e por isso mais compreensivo numa perspectiva

causal

Na distribuiccedilatildeo das vidas haacute uma mixoacuterdia de uma miriacuteade de elementos

miscigenados segundo a sorte e nos mais variados graus possiacuteveis (Repuacuteblica X 618b)

Mas eacute possiacutevel escolher a melhor vida em funccedilatildeo de um caacutelculo que permite o

discernimento das consequecircncias de cada uma destas misturas e de seus componentes

(Repuacuteblica X 618c-d) O mito de Er tal como ocorre no Feacutedon alude a um risco a um

perigo (Repuacuteblica X 618b) o de escolher mal um gecircnero de vida sem avaliar as

consequecircncias

O perigo tal como no Feacutedon indica a necessidade da encantaccedilatildeo da persuasatildeo que

mova os afetos e suscite a crenccedila de que haacute algo que remanesce apoacutes a morte de que haacute

algo para aleacutem da evidecircncia apontada pelo senso da maioria do fato bruto do apetite e de

que todo valor temporal deriva do amor agrave riqueza do amor ao poder e do amor ao prazer A

169

filosofia natildeo constitui garantia absoluta para a felicidade haacute um elemento fortuito

contingente inextrincaacutevel da tyacutekhe implicada por Anaacutenkhe eacute preciso que a sorte natildeo

designe os uacuteltimos lugares na hora da escolha As maacutes escolhas satildeo feitas por aqueles que

natildeo foram suficientemente treinados nos sofrimentos (aacutete poacutenon agymnaacutestous) Platatildeo

confere no mito de Er um valor positivo ao sofrimento como se fora um treinamento

Segundo Dixsaut (2001 p 177) para bem viver natildeo basta pensar e ter prazer na

atividade de pensar Ao pensamento leve eacute preciso acrescentar a forccedila de encaminhar

para o alto o lote de fardo pesado de desgraccedila e de infelicidade que eacute o lote de toda vida

jaacute que toda vida eacute uma mistura

Natildeo haacute vida sem mistura de alegria e dor felicidade e sofrimento Tudo ser vivo

tem seu lote misturado de felicidade e dores E no entanto a ascensatildeo da alma para o alto

pressupotildee um paacutethos o Eacuteros filosoacutefico

No Goacutergias (507e-508) Soacutecrates lembra um saacutebio que afirma que o ceacuteu a terra os

deuses e os homens satildeo vinculados por philiacutea119

respeito agrave kosmiacutea agrave sophrosyacutene e agrave

justiccedila e por essa razatildeo eles satildeo chamados Koacutesmos e natildeo akosmiacutea e akolasiacutea Todos os

planos de realidade satildeo mantidos juntos por philiacutea Haacute uma lei que cinge o universo uma

119 Canto afirma que a menccedilatildeo agrave philiacutea eacute uma referecircncia a Empeacutedocles em funccedilatildeo da importacircncia atribuiacuteda agrave

amizade como princiacutepio coacutesmico (M Canto in PLATON 1993 nt 189 p 347) Dodds por outro lado

observa que natildeo haacute nada que implique o fato de Platatildeo ter Empeacutedocles necessariamente em mente sobretudo

porque a doutrina da ldquoigualdade geomeacutetricardquo natildeo seria empedocleana A koinoiacutea indica a comunhatildeo condiccedilatildeo

necessaacuteria para a philiacutea ambos princiacutepios necessaacuterios para o governo tanto do Koacutesmos como das relaccedilotildees

poliacuteticas e pessoais Tais noccedilotildees satildeo firmemente aceitas como heranccedila pitagoacuterica Os pitagoacutericos teriam sido

os primeiros a chamar o universo Koacutesmos e certamente foram os primeiros a correlacionaacute-lo com leis

matemaacuteticas regradoras (E R Dodds in PLATO 1990 p 337)

Irwin por sua vez foca sua anaacutelise na explicitaccedilatildeo argumentativa da tese de que a comunhatildeo e a amizade satildeo preacute-condiccedilotildees para a virtude e distingue alguns problemas suscitados pelo argumento Soacutecrates argumenta se

A eacute amigo de B entatildeo deve haver comunhatildeo entre A e B Se B eacute intemperante entatildeo B natildeo pode ter

comunhatildeo e por conseguinte amizade com A Segundo Irwin a intemperanccedila de B natildeo implica

necessariamente sua incapacidade de ter amizade com A e tampouco a falta de amizade de A implica um

prejuiacutezo necessaacuterio para B (Irwin in PLATO 2004 nt 507e p 225) A pontualidade da anaacutelise

argumentativa nesse caso deixa na sombra a primazia fundamental estabelecida nas inuacutemeras passagens

correlatas que sugerem a homologia estrutural entre regramento cosmoloacutegico poliacutetico e psiacutequico A oposiccedilatildeo

entre kosmiacutea e akosmiacutea eacute congruente agrave oposiccedilatildeo entre sophrosyacutene e pleonexiacutea

170

lei que alude a um paacutethos e que se harmoniza com o regramento geomeacutetrico do Koacutesmos

Paacutethos e regramento matemaacutetico constituem um arranjo harmocircnico

Este arranjo eacute reafirmado no Timeu a modelaccedilatildeo do Koacutesmos manifesta um acordo

resultante da proporccedilatildeo geomeacutetrica e as relaccedilotildees instauradas por esta proporccedilatildeo lhe

conferem philiacutea de modo que tornado idecircntico a si mesmo ele natildeo pode ser dissolvido a

natildeo ser por aquele que estabeleceu seus viacutenculos (Timeu 32c) A menccedilatildeo agrave philiacutea indica

que os patheacutemata juntamente com relaccedilotildees geomeacutetricas invariantes satildeo constitutivos de

uma cosmogonia A inteligecircncia eacute indissociaacutevel dos desejos o inteligiacutevel indissociaacutevel da

inteligecircncia Os mitos filosoacuteficos possuem esse eixo invariante cuja distinccedilatildeo primordial

consiste no estabelecimento do primado da inteligecircncia como forccedila ordenadora e regradora

que suscita a unificaccedilatildeo de planos opostos e diacutespares o eacutetico-poliacutetico com o cosmoloacutegico o

fiacutesico com o psicoloacutegico a Natureza com a Lei

Mas inteligecircncia e as escolhas exigem prudecircncia e coragem para que se evite a

precipitaccedilatildeo A precipitaccedilatildeo eacute incompatiacutevel com o discernimento prudente propiciado pela

Filosofia Os sofrimentos satildeo ao mesmo tempo resultado da justa retribuiccedilatildeo a faltas

pregressas e uma exigecircncia paidecircutica trata-se de um exerciacutecio que faculta a maior

capacidade e o maior discernimento nas escolhas Como os sofrimentos satildeo uma partilha

comum de todas as almas todos os seres tecircm de passar por eles Eles fazem parte da

Necessidade Anaacutenkhe elemento intriacutenseco ao Koacutesmos e por isso satildeo agentes de

desenvolvimento Por constituiacuterem uma funccedilatildeo epistemoloacutegica os sofrimentos permitem

que as escolhas natildeo sejam precipitadas (Repuacuteblica X 619d)

Mesmo diante do desfavor da tyacutekhe aquele que se dedica ao estudo da Filosofia tem

mais chances segundo o que se diz em relaccedilatildeo ao Hades de viver mais feliz nesta vida e de

retornar atraveacutes da rota celeste (Repuacuteblica X 619e) Mas para isso eacute preciso vencer o

171

Grande Combate meacutegas agoacuten que se trata de se tornar bom ou mau e natildeo se deixar

arrastar pela gloacuteria pela riqueza e esquecer a justiccedila e a virtude

Disse tambeacutem grande eacute o combate oacute amigo Glauco um combate

maior do que se pensa o que se trata de tornar-se bom ou mau

Natildeo eacute preciso deixar-se arrastar nem pela gloacuteria nem pela riqueza

nem por nenhuma dignidade nem pela poesia mesma e

negligenciar a justiccedila e as outras virtudes120

Repuacuteblica X 608b 04-08

O grande combate consiste em escolher o genuiacuteno valor entre as coisas e saber que

os sofrimentos do tempo presente satildeo derrisoacuterios diante da totalidade do tempo e natildeo valem

muita coisa nem satildeo algo terriacutevel (Goacutergias 527d) O zecircnite da exortaccedilatildeo filosoacutefica consiste

em procurar contrariamente ao combate no qual todos se engajam o precircmio do mais belo

combate que existe121

a potecircncia (dyacutenamis) da alma cuja beleza eacute proporcional agrave gravidade

do mal a ser combatido122

A Filosofia propicia a phroacutenesis que permite a distinccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo de todos

os valores que se referem agrave vida e ao conhecimento Os males satildeo frequentemente

associados agrave dor sensiacutevel e aos afetos A Filosofia como gecircnero de vida virtuoso permite

viver a vida de maior valor e sair vitorioso do grande combate Todavia haacute sempre um

elemento de incerteza que remanesce e haacute a grandeza do risco Somente a encantaccedilatildeo

miacutetica e seu efeito crucial de afastar o medo permitem superar o fardo da mistura em que

consistem todos os lotes de vida Eacute preciso a crenccedila como condiccedilatildeo que suscita a coragem

para vencer a mistura de dores e prazeres

120 Meacutegas gaacuter eacutephen ho agoacuten oacute phiacutele Glauacutekon meacutegas oukh hoacutesos dokeicirc tograve khrestograven egrave kakograven geneacutesesthai

hoste ouacutete timecirci epartheacutenta ouacutete khreacutemasin ouacutete arkhecirci oudemiacirci oudeacute ge poietikecirci aacutexion amelecircsai

dikaiosyacutenes te kaigrave tecircs aacutelles aretecircis 121 kaigrave tograven agoacutena toucircton hograven egoacute phemi anti pantoacuten toacuten enthaacutede agoacutenon eicircnai

(Goacutergias 527e03-04) 122 hoacutes hekaacutestou kakoucirc meacutegethos peacutephyken houacutetoacute kaigrave kaacutellos toucirc dynatocircn eicircnai heacutekasta boetheicircn kaigrave aiskhyacutene

toucirc meacute

(Goacutergias 509c03-04)

172

A necessidade da vida implica a necessidade da mistura e a necessidade da

pluralidade de afetos Mas nem a dor nem a virtude possuem deacutespota Cabe a cada um ter

sophrosyacutene sobre os afetos proacuteprios que acompanham cada lote de dor e sensaccedilotildees A alma

discerne a realidade segundo a proacutepria constituiccedilatildeo de seus afetos Esta eacute grande

significaccedilatildeo da narrativa do deus marinho Glauco A exposiccedilatildeo continuada ao ambiente das

profundezas marinhas resultou na identificaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo de Glauco ao ambiente do seu

viver A incrustaccedilatildeo de algas conchas pedregulhos e a accedilatildeo das vagas acabaram por

desfigurar sua natureza primitiva ateacute que ele se tornasse mais semelhante a uma fera

Analogamente os males que se incrustam na alma acabam por desfiguraacute-la desumanizaacute-la

ateacute que se torne irreconheciacutevel na aparecircncia bestial (therioacute) que resulta da identificaccedilatildeo

com o ambiente do seu viver (Repuacuteblica X 611c-612a)

A alma pura e saacutebia discerne a realidade de modo diferente da alma impura A

noccedilatildeo de felicidade muda conforme a natureza psiacutequica A alma dotada de phroacutenesis

encontraraacute a felicidade no pensamento elevado na virtude na obra bela e ateacute no sofrimento

contingente que ela vecirc como aacuteskesis As aspiraccedilotildees humanas ligadas ao devir perturbam e

obscurecem o pensamento o que por sua vez traz uma proporccedilatildeo de desventuras

equivalente (Repuacuteblica X 619c a escolha do tirano)

Para quebrar os viacutenculos que prendem a psykheacute aos apetites eacute preciso a excisatildeo

ciruacutergica do sofrimento Os afetos engendrados pelo sofrimento desde que postos na

perspectiva da totalidade do tempo predispotildeem a inteligecircncia a apreender realidades natildeo

vistas e natildeo percebidas

Na medida em que se obscurece a realidade do devir abre-se a realidade do

pensamento purificado O filoacutesofo eacute aquele que a tudo tendo sofrido pode voltar-se para as

realidades mais verdadeiras Ele eacute o coroamento de um itineraacuterio de sofrimentos Em meio

173

agrave desordem dos modelos de vida ele pode como afirma Dixsaut (2001 p 178) inscrever

ordem no decreto e hierarquizar os modos de vida mediante a articulaccedilatildeo da inteligecircncia

com a Necessidade Por essa razatildeo o filoacutesofo pode converter o aparente caos da

multiplicidade em uma inteligecircncia segundo o paradigma da ordenaccedilatildeo coacutesmica

Nos grandes mitos de julgamento a inexorabilidade da justa retribuiccedilatildeo da praacutexis se

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infaliacutevel sejam aspectos diversos de uma mesma kosmiacutea

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