universidade federal de mato grosso programa … · movimentos sociais@internet e sua dimensÃo...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO LINHA DE PESQUISA: MOVIMENTOS SOCIAIS, POLÍTICA E EDUCAÇÃO POPULAR GRUPO DE PESQUISA EM MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO MAURELIO MENEZES MOVIMENTOS SOCIAIS@INTERNET E SUA DIMENSÃO EDUCATIVA Cuiabá MT Julho 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

LINHA DE PESQUISA: MOVIMENTOS SOCIAIS, POLTICA E EDUCAO

POPULAR

GRUPO DE PESQUISA EM MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAO

MAURELIO MENEZES

MOVIMENTOS SOCIAIS@INTERNET

E SUA DIMENSO EDUCATIVA

Cuiab MT Julho 2015

MAURELIO MENEZES

MOVIMENTOS SOCIAIS@INTERNET

E SUA DIMENSO EDUCATIVA

Verso final da Tese apresentada a banca de avaliao no Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal de Mato

Grosso, como requisito final para a obteno do ttulo de Doutor em Educao na Linha de Pesquisa

Movimentos Sociais, Poltica e Educao Popular.

Orientadora: Professora Doutora

Artemis Augusta Mota Torres

Cuiab MT Julho 2015

Dados Internacionais de Catalogao na Fonte.

Ficha catalogrfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a)

autor(a).

Permitida a reproduo parcial ou total, desde que citada a fonte.

M543m MENEZES, MAURELIO.MOVIMENTOS SOIAIS@INTERNET E SUA

DIMENSO EDUCATIVA / MAURELIO MENEZES. -- 2015174 f. : il. color. ; 30 cm.

Orientador: ARTEMS AUGUGUSTA MOTA TORRES.Tese (doutorado) - Universidade Federal de Mato

Grosso, Instituto de Educao, Programa de Ps-Graduaoem Educao, Cuiab, 2015.

Inclui bibliografia.

1. EDUCAO. 2. MOVIMENTOS SOCIAIS. 3.MANIFESTAES PBLICAS. 4. INTERNET. I. Ttulo.

Gaia e Caio, frutos que se transformaram no oxignio de minha vida, que

tm me ensinado a ser pai e me transformar num Ser Humano melhor...

Sheila, companheira de infindveis momentos...

AGRADECIMENTOS

Professora Doutora Eugnia Coelho Paredes, que primeiro me recebeu

neste caminho para o doutoramento, todavia se viu obrigada a afastar-se do

PPGE, para o qual tanto contribuiu.

Aos Professores Doutores Michele Sato, Katia Morosov, Nicanor Palhares e

Luiz Augusto Passos, que acrescentaram luz ao caminho que me propus a

trilhar.

Professora Mestre Maria Benicio Rodrigues, in memoriam, que fez parte da

Banca do concurso por meio do qual ingressei na UFMT, h 19 anos, e que

reencontrei primeiro no Conselho Superior de Ensino e Pesquisa da UFMT e

depois no Grupo de Pesquisa em Movimentos Sociais e Educao (GPMSE),

pelos momentos de estudo e pela lucidez com que sempre esteve presente em

nossas vidas.

Aos colegas do GPMSE, Solange Pereira, Lola Campos, Rosa Botosso,

Mabel Strebel e Elismar Bezerra Arruda, que j estavam trilhando este

caminho quando cheguei e que muito me ajudaram a conviver com os tericos

que o grupo toma por base para desenvolver seus estudos.

Aos meus colegas do Departamento de Comunicao Social, que permitiram

o afastamento de minhas atividades didticas por dois anos para que eu

pudesse melhor e mais me dedicar aos estudos que levaram confeco desta

tese de doutoramento.

Professora Mestre Lyssa Gonalves Costa pela reviso das normas da

ABNT e ortogrfica.

A minha famlia que sempre esteve ao meu lado, renovando minhas foras

para esta caminhada e, s vezes, participando concretamente dela.

A todos que direta ou indiretamente fizeram parte dela, contribuindo para que

esta caminhada se dirigisse para um desfecho.

AGRADECIMENTOS ESPECIAIS

Professora Doutora Artemis Augusta Mota Torres,

pela pacincia no trato com um profissional de outra rea...

pela amizade construda ao longo do processo de elaborao deste estudo...

pela disponibilidade sempre presente nos momentos de angstia...

pela parceria que fez dela mais que uma orientadora desta tese.

Aos Professores Doutores Henrique Antoun, Luiz Augusto Passos, Marion

Machado Cunha, Maria das Graas Martins da Silva, Mrcia Cristina

Machado Pasuch e Katia Morosov Alonso, pela gentileza em aceitar

participar desta banca e pelos conhecimentos acrescidos a pesquisa, tornando-

a mais robusta e com vises multifacetadas de vida e da prpria histria.

A tecnologia no determina a ao social, mas permite um tipo de organizao

que sem a internet no existiria.

Manuel Castells (Revista poca, 11/10/2013)

RESUMO

Este texto apresenta resultados de uma pesquisa em que se pretendeu compreender a dimenso educativa de um fenmeno surgido nos dois ltimos anos, os movimentos sociais virtuais, assim chamados por se utilizarem da internet como instrumento de mobilizao. Para isso, foram analisados diversos movimentos que se enquadram neste perfil e, principalmente, o movimento que ficou conhecido como Primavera rabe e a srie de manifestaes no Brasil em 2013, aqui adjetivada como Outono-Inverno Brasileiro. Serviu, como ponto de partida, a viso do pensador marxista italiano Antnio Gramsci (1891-1937) sobre a educao como promotora de emancipao das massas. Os instrumentos metodolgicos utilizados foram a observao participante nas manifestaes realizadas em Mato Grosso, o acompanhamento do noticirio local e nacional sobre as demais, ocorridas em outros estados, acompanhamento do noticirio internacional sobre a Primavera rabe entrevistas alm de pesquisa bibliogrfica e documental sobre ambas as manifestaes. A pesquisa bibliogrfica e documental tomou por base um trplice temrio: A) os escritos do e sobre o filsofo italiano publicados ou reproduzidos por meios impressos e digitais, B) os escritos sobre os movimentos sociais desde os anos 1920 quando se restringiam aos movimentos proletrio e partidrio, passando pelos anos 1960 quando ganharam mais espao como estudo acadmicos at os dias de hoje; C) os escritos sobre internet/movimentos sociais virtuais, assim denominados por utilizarem intensamente como ferramenta de mobilizao as mdias sociais. A investigao sobre os movimentos tomou, tambm, por base entrevistas e artigos acadmicos e jornalsticos, alm de pesquisa realizadas por universidades, Institutos e Agencias nacionais e internacionais. Conforme mostraram os resultados da pesquisa mesmo antes dos movimentos sociais aqui focalizados, a internet j servira como meio de mobilizao e indignao. Contudo, hoje, tanto a Primavera rabe quanto as manifestaes do Outono-Inverno Brasileiro indicaram, claramente, a fora mobilizadora das redes internuticas, o que leva a consideraes sobre a potencial fora organizativa dos movimentos sociais virtuais. Palavras-chave: Educao. Movimentos sociais. Manifestaes pblicas. Internet.

ABSTRACT

This paper presents results of a survey in which it was intended to understand the educational dimension of a phenomenon emerged in the last two years, virtual social movements, so-called because they use the internet as a mobilization tool. For this, we analyzed various movements that fit this profile, and especially the movement that became known as the Arab Spring and the series of demonstrations in Brazil in 2013, this adjective as "Fall-Winter Brazilian". He served as a starting point, the view of the Italian Marxist thinker Antonio Gramsci (1891-1937) on education as a promoter of emancipation of the masses. The methodological instruments used were participant observation in the demonstrations held in Mato Grosso, the monitoring of local and national news about the other, occurred in other states, monitoring of international news about the Arab Spring interviews as well as bibliographic and documentary research on both manifestations. The bibliographical and documentary research was based on a threefold agenda: A) the writings of and about the Italian philosopher published or reproduced by print and digital media, B) the writings on the social movements since the 1920s when it restricted the proletarian movement and party, through the 1960s when they won more space as academic study to the present day; C) the writings on internet / virtual social movements, so-called because they use intensively as mobilization tool social media. Research on the movement took also based on interviews and academic and journalistic articles, in addition to research conducted by universities, institutes and national and international agencies. As shown search results even before the social movements focused here, the Internet has served as a means of mobilization and indignation. Today, however, both the Arab Spring as the manifestations of the Fall-Winter Brazilian indicate clearly the driving force of internutics networks, which leads to consideration of the potential organizational strength of virtual social movements. Keywords: Education. Social movements. Public manifestations. Internet.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Autoimolao de Mohamed Bouazizi. ............................................... 11

Figura 2. Khaled Saeed morto. ......................................................................... 11

Figura 3. Confronto entre policiais e estudantes pelo Passe Livre. .................. 12

Figura 4. Manifestao em Vitria 02/06/2011. ................................................ 92

Figura 5. Bouazizi ao vivo e se autoimolando. ............................................... 101

Figura 6. Khaled Saeed vivo e morto. ............................................................ 102

Figura 7. Manifestao em So Paulo 20/06/2013. ........................................ 117

Figura 8. Manifestao na Av. Getlio Vargas Rio de Janeiro 20/06/2013. 122

Figura 9. O protesto em Cuiab 20/06/2013. ................................................. 125

Figura 10. Manifestao em Cuiab 20/06/2013. ........................................... 131

Figura 11. Estudantes do curso de Direito da UFMT se preparando para a

passeata. ........................................................................................................ 132

Figura 12. Fechamento da Via Dutra no dia 20/06/2013. ............................... 133

LISTA DE SIGLAS

ANDEPOL - Associao Nacional dos Delegados de Polcia

ANPR Associao Nacional dos Procuradores da Repblica

CSFA Conselho Superior das Foras Armadas

EZLN - Exrcito Zapatista de Libertao Nacional

FAPESP Fundao de Amparo Pesquisa de So Paulo

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

IFES Instituies Federais de Ensino Superior

GPMSE Grupo de Pesquisa em Movimentos Sociais e Educao

LNCC Laboratrio Nacional de Computao Cientifica

MAB Movimento dos Atingidos por Barragens

MIDIA NINJA Mdia Narrativas Independentes, Jornalismo e Ao

MPL Movimento pelo Passe Livre

MTST Movimento dos Trabalhadores Sem Teto

MSN Microsoft Network Messenger

MST Movimento dos Trabalhadores Sem Terra

NASA Agncia Espacial Norte Americana

NMS Novos Movimentos Sociais

ONG Organizao No Governamental

PSI Partido Socialista Italiano

PCI Partido Comunista Italiano

PEC Proposta de Emenda Constitucional

PEC 37 Proposta de Emenda Constitucional 37

RPN Rede Nacional de Ensino e Pesquisa

TIC Tecnologia de Informao e Comunicao

TTs Trending Topics

UFF Universidade Federal Fluminense

UFMT Universidade Federal de Mato Grosso

UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro

UFRRJ Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

SUMRIO 1. APRESENTAO ................................................................................ 11 2. INTRODUO ...................................................................................... 23 CAPTULO I SOBRE A EMANCIPAO DAS MASSAS ............................................... 31

1.1 A elevao cultural das massas .............................................................. 37 1.2 A educao como meio de elevao cultural das massas ...................... 39 1.3 A Revoluo passiva do fascismo e a escola de Gramsci ...................... 45 1.4 Trs conceitos de Gramsci aplicveis educao ................................. 49

1.4.1 Hegemonia ....................................................................................... 51 1.4.2 Subalternidade .................................................................................. 55 1.4.3 Guerra de Movimento e Guerra de Posio ..................................... 60

CAPTULO II A DIMENSO EDUCATIVA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS ....................... 64

2.1 Movimentos sociais tradicionais: uma forma de educao ................... 73 2.1.1 Um recorte no MST ........................................................................... 76

2.2 Os movimentos sociais virtuais ............................................................... 78 2.2.1 A Revoluo das Panelas ................................................................. 87 2.2.2 Los Indignados, da Espanha ............................................................ 88 2.2.3 Occupy Wall Street ........................................................................... 90 2.2.4 A vitria em Vitria, no Brasil ............................................................ 92

2.3 A internet como instrumento de indignao pblica ................................ 96 2.4 A internet como meio de veiculao de lutas em favor da educao ...... 97

CAPTULO III A PRIMAVERA RABE E O OUTONO-INVERNO BRASILEIRO ............... 99

3.1 Primavera rabe ................................................................................... 100 3.2 O Outono-Inverno brasileiro .................................................................. 107

3.2.1 As Manifestaes em Cuiab ......................................................... 125 3.2.2 Afinal, o que queriam aqueles manifestantes? ............................... 130

3.3 Pesquisas sobre a Mobilizao Via Internet ......................................... 138 3.4 O Olhar de Especialistas ....................................................................... 142

CONSIDERAES FINAIS .................................................................... 157 REFERNCIAS ...................................................................................... 164

a) Bibliogrficas ...................................................................................... 164 b) Webgrficas ........................................................................................ 169

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1. APRESENTAO

Tnis, Tunsia, 17 de dezembro de 2010.

Figura 1. Autoimolao de Mohamed Bouazizi. Fonte: .

Cansado de ser achacado por policiais, Mohamed Bouazizi, o vendedor

ambulante de frutas, tentou registrar uma queixa na sede do governo regional.

Impedido de entrar no prdio, o ambulante tomou uma deciso trgica: praticou a

autoimolao ateando fogo ao prprio corpo.

Sidi Gaber, Alexandria, Egito, 06 de junho de 2010.

Figura 2. Khaled Saeed morto. Fonte: .

Khaled Mohamed Saeed, um jovem apaixonado por computadores e que

estudara Programao de Dados nos Estados Unidos, estava num Ciber Caf

quando dois policiais entraram e comearam a agredi-lo. A brutalidade continuou do

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lado de fora, onde Saeed foi espancado at a morte diante de uma multido atnita.

Um mdico tentou se aproximar, mas foi impedido pelos policiais. Quando os

policiais pararam de agredi-lo, permitiram que ele fosse levado at um hospital, onde

j chegou morto.

So Paulo, So Paulo, Brasil, 06 de junho de 2013.

Figura 3. Confronto entre policiais e estudantes pelo Passe Livre. Fonte: Acervo pessoal do autor.

Milhares de estudantes vo s ruas para protestar contra o reajuste na tarifa

dos transportes pblicos e exigir passe livre para os estudantes paulistanos. A

Polcia Militar reprime os protestos com bombas de gs lacrimogneo e de efeito

moral, cavalaria e balas de borracha.

Trs momentos diferentes, em trs pases igualmente distintos, com reaes

semelhantes do poder institudo, que provocaram ondas de protesto que, em

nmero de manifestantes, nunca haviam acontecido nesses pases.

Na Tunsia, a morte de Bouazizi teve, como consequncia, uma srie de

manifestaes e provocou a queda do ditador Zine El-Abidine Ben Ali, que estava no

poder h 24 anos. A vitria popular dos tunisianos funcionou como um estopim para

a chamada Primavera rabe, a onda revolucionria e de manifestaes contra

governos despticos e que, como consequncia de um efeito domin, atingiu outros

17 pases do Norte da frica e Oriente Mdio.

No Egito, a reao violncia dos dois agentes policiais evoluiu para

protestos contra o autoritarismo do governo de Hosni Mubarak, o qual estava no

poder h 30 anos, e teve seu principal momento no dia 1 de fevereiro de 2011

quando um milho de pessoas, de acordo com a rede de TV rabe Al Jazeera,

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tomaram a Praa Tahir, no Cairo, e levaram, 11 dias depois, renncia do ento

presidente.

No Brasil, a reao fora usada pela polcia contra os manifestantes, em

sua maioria estudantes ligados ao coletivo Movimento pelo Passe Livre (MPL), teve

como consequncia a maior onda de manifestaes na histria recente do pas, com

protestos quase dirios em todas as capitais estaduais, na maioria das cidades de

grande e mdio porte e em dezenas de cidades de pequeno porte. Brasileiros

residentes em outros pases tambm protestaram em cidades como Toronto, Nova

Iorque, Lisboa, Londres, Los Angeles, Roma, Paris, entre outras.

Nessas manifestaes, as Mdias Sociais, especialmente o Facebook, foram, de

acordo com estudiosos, fundamentais por no estarem submetidas ao controle

hegemnico de governos e grupos de poder. o que Castells (2013) chama de

meios de autocomunicao de massa. Autocomunicao porque traz autonomia

na emisso de mensagens, na seleo da recepo das mensagens, nas

organizaes das redes sociais prprias. De massa porque atinge um nmero

potencialmente incalculvel de indivduos.

No caso do Brasil, as anlises ainda so recentes, mas estudiosos, entre eles

Levy (2013), Castells (2013), Gohn (2013), Gerbaudo (2013), lembram que os atos

eram organizados e convocados pelas Mdias Sociais. Castells o mais incisivo,

afirmando que os novos movimentos sociais se estruturam na Internet. De acordo

com ele,

Antes, se estavam descontentes, a nica coisa que podiam fazer era ir diretamente para uma manifestao de massa, organizada por partidos e sindicatos, que logo negociavam em nome das pessoas. Mas agora, a capacidade de auto-organizao espontnea. Isso novo e isso so as redes sociais. E o virtual sempre acaba no espao pblico. Essa a novidade. Sem depender das organizaes, a sociedade tem a capacidade de se organizar, debater e intervir no espao pblico (CASTELLS, 2013b, s/p.).

importante lembrar aqui que o que Castells chama de novos movimentos

sociais no se confunde com outros assim designados anteriormente, como o

feminista, ambiental e o pacifista, surgidos a partir dos anos 1960 e que se

apresentavam como alternativos em relao aos tradicionais movimentos sindicais e

partidrios. O sentido dado aos novos movimentos sociais por Castells tambm foi

usado por Gohn (2013, p. 62-63).

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J no caso da Primavera rabe, a pesquisa realizada pela Washington

University analisou cerca de trs milhes de mensagens ligadas ao movimento. A

concluso foi que, embora no tenham provocado a revoluo em si, Twitter,

Facebook, Youtube e blogs, nessa ordem, deram aos protestos a velocidade

suficiente para culminar na queda dos ditadores Zine Ben Ali, na Tunsia, em janeiro,

e Hosni Mubarak, no Egito, em fevereiro, alm de mudanas em outros dezesseis

pases do Oriente Mdio e Norte da frica.

Embora haja aparentes controvrsias, apresentadas neste estudo sobre a

capacidade e a importncia das mdias sociais, especialmente no que se

convencionou chamar de Primavera rabe (numa aluso Primavera de Praga,

perodo em que Alexander Dubcek tentou conceder ao cidado direitos adicionais

aos que lhe eram permitidos pela ento Unio Sovitica), para este pesquisador fica

claro, tomando por base os movimentos aqui analisados, o papel relevante das

mdias sociais, especialmente na mobilizao das pessoas e no debate, pela rede

mundial, dos temas que levavam s manifestaes.

Elevao cultural das massas. Hegemonia. Educao. Movimentos sociais.

Temas (embora nem sempre explicitamente) utilizados e reunidos pelo filsofo e

poltico italiano, fundador dos partidos Socialista e Comunista da Itlia, Antnio

Gramsci (1891-1947) ganham uma nova possibilidade de anlise nos dias de hoje

com as variaes apresentadas pela internet, arma utilizada pelos movimentos

sociais, como os que ficaram conhecidos por Primavera rabe. Esta mesma arma

foi utilizada nas manifestaes no Brasil, que denomino como Outono-Inverno

Brasileiro e que a pesquisadora Maria da Gloria Gohn (2013), num primeiro

momento, chamou de "Movimento dos Indignados das Praas, Ruas e

Avenidas. Essas manifestaes tiraram o cidado do estado de alienao,

contestando a imagem de apatia do brasileiro.

Somente por este aspecto, o tema merece ser pesquisado, porque introduz,

na agenda dos movimentos sociais, novos protagonistas, especialmente jovens que

viviam enclausurados na internet/mdias sociais, onde debatiam e apresentavam

suas demandas. E, embora haja controvrsias sobre a real importncia da internet

no sucesso das manifestaes realizadas em todo o mundo, vale lembrar o que

afirma Vesce, ela mesma utilizando a internet:

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Trata-se da mdia mais descentralizada existente atualmente e justamente por esse motivo passa a ser tambm a mdia mais ameaadora para os grupos hegemnicos, tanto poltica como economicamente. As pessoas podem dizer o que quiserem por meio da internet, conversar com quem desejarem, oferecer servios que considerarem convenientes (VESCE, 2011, s/p.).

Este estudo se justifica, igualmente, porque Gramsci, mesmo sensvel ao

avano tecnolgico que se anunciava nos Estados Unidos, no previu, e nem tinha

como o fazer, o surgimento desses novos meios de comunicao muito mais

modernos e que disporiam de tecnologia infinitamente superior ao jornal impresso

que ele conheceu antes e depois de ser preso. Para ele, entretanto, o homem, que

surgiria transformado, deveria estar preparado para isso. Como afirma Semeraro,

[...] o intelectual orgnico popular, para Gramsci, deve alcanar as fronteiras mais avanadas da tecnologia sem nunca perder a referncia s lutas hegemnicas de sua classe. Por outro lado, tambm, para no estagnar em um marxismo dogmatizado necessrio promover sua traducibilidade para um tempo como o nosso que se depara com outras feies de sociedade, com o surgimento de novos atores polticos [...] (SEMERARO, 2006, p. 145).

Os eventos que se transformaram em tema desta pesquisa esto ainda em

construo e, por essa razo, o que aqui se apresenta no tem a inteno de ser a

palavra final sobre o efetivo papel das mdias sociais no seu desenvolvimento.

O objetivo aqui foi compreender a importncia e a evoluo do uso das novas

mdias sociais na organizao e potencializao de movimentos sociais ou de

manifestaes de rua, que surgiram nos ltimos anos, e se tal uso vem reforando

neles uma dimenso educativa a tal ponto de provocar o que Gramsci definia como

elevao cultural das massas, nica forma realmente capaz, de acordo com ele, de

conduzir transformao da sociedade.

Para Nogueira (2013, p. 199), na medida em que as novas tecnologias digitais

promovem uma revoluo na comunicao e, por extenso, nos processos de

formao de opinio e na dinmica democrtica [estamos] Estamos em um claro

momento de antes e depois.

A adoo de Gramsci (2006), como ponto partida para se alcanar este

objetivo, deve-se ao fato de ele, pela histria de vida e pela militncia poltica, ter

colocado, como condio para transformao da sociedade, a elevao cultural das

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massas, o que deixou claro ao afirmar que a filosofia da prxis exigia o contato entre

intelectuais e os simples.

Se ela [a filosofia da prxis] afirma a exigncia do contato entre os intelectuais e os simples no para limitar a atividade cientfica para manter a unidade no nvel inferior das massas, mas justamente para forjar um bloco intelectual-moral que torne politicamente possvel um progresso intelectual da massa e no apenas de pequenos grupos de intelectuais (GRAMSCI, 2006, p. 103).

Este pensamento do filsofo sardo refora a ideia segundo a qual todo grupo

social tem seus prprios intelectuais orgnicos. Para Gramsci, qualquer um deve ter

condies de alcanar o mais alto ponto do conhecimento crtico. Assim

entendendo, fez duras crticas escola que, seletiva e tendenciosamente, busca

atender s classes dirigentes para que estas continuassem a ser dirigentes.

Uma lembrana das manifestaes das quais participei ou das informaes

que obtive ao longo da vida, como militante e como profissional de jornalismo, no

me trouxe nada parecido ao ocorrido tanto no Brasil quanto no exterior,

especialmente em termos de quantidade, mesmo considerando o aumento

populacional. A reunio de milhes de manifestantes nos eventos, aqui tomados

como exemplo, uma consequncia das novas tecnologias? O poder de

mobilizao e transformao de mentalidades proporcionado pelo uso de redes

interativas de comunicao distribuda, como referem Antoun e Malini (2013), pode

levar a uma elevao cultural de quem interage por meio desse arsenal tecnolgico?

Responder a questes como estas fazem parte do objetivo desta pesquisa.

Mas no apenas isto. O objetivo , igualmente, a partir de estudiosos do

tema e de pesquisas realizadas sobre movimentos, como a Primavera rabe e o

Outono-Inverno Brasileiro, compreender a presente dimenso educativa nas

interaes que fazem os sujeitos participantes destes movimentos.

Nesta investigao dos movimentos sociais dos dias de hoje, que, por

utilizarem intensivamente a internet como meio de mobilizao, livremente chamo de

Virtuais, entendo a educao num sentido amplo, ou seja, como todas as aes que

o sujeito, individualmente ou participando de grupos, pratica no sentido de formao

e elevao de sua conscincia, que podem lev-lo a sair do estado de alienao. E

a fica claro que no me refiro apenas educao formal, aquela que vem das

escolas, institutos, universidades etc. Compreendo, como a maioria quase absoluta

17

dos autores a quem recorri, que a educao transformadora pode nascer, tambm,

fora destes espaos e, inclusive, nos movimentos sociais, como veremos ao longo

deste trabalho.

H na produo intelectual de Gramsci conceitos como hegemonia,

subalternidade e guerra de movimento/guerra de posio, que podem ser aplicados

educao. Sobre eles me deterei no Item 1.4, porque acredito que so

fundamentais para se entender como a educao pode ser utilizada como

instrumento para a transformao da sociedade. Apresentando estes conceitos,

Gramsci analisou os motivos que teriam levado ao fracasso a tentativa de revoluo

em pases ocidentais, como a Alemanha, a Inglaterra, a Frana e a prpria Itlia.

A pesquisa foi dividida em trs etapas. Na primeira foi desenvolvido um

levantamento e reviso bibliogrfica na biografia e na literatura de e sobre Antnio

Gramsci, levantamento este capaz de embasar o que Gramsci chamou de reforma

intelectual e moral das massas e que pretendo cotejar com a dimenso educativa

que acredito existir nos movimentos sociais virtuais. Este levantamento o que

Lakatos e Marconi (2003, p. 174) definem como sendo uma fonte de coleta de

dados e documentos, escritos ou no, constituindo o que se chama de fonte

primria.

Gramsci jamais publicou um livro, mas deixou uma das mais densas

produes intelectuais do sculo passado. Nosella (2010, p. 31) se diz convencido

de que, para se ter um maior rigor histrico sobre o pensamento de Gramsci,

urgente, sobretudo, publicar-se no Brasil, pelo menos uma ampla, ordenada e

comentada antologia dos escritos anteriores ao crcere (dos quais quase nada

temos). Contudo, pude recorrer s antologias, reconhecidamente valiosas,

publicadas em outros idiomas e traduzidas para o portugus, sendo postadas em

portais que se propem a reunir o pensamento de e sobre Gramsci, como Gramsci

e o Brasil1 e o Centro Gramsci di Educazione2.

Os textos anteriores ao crcere foram selecionados e lidos, especialmente, na

internet. A maioria destes textos foi publicada em peridicos, como Avanti!, rgo

oficial do Partido Socialista Italiano (PSI) e LOrdine Nuovo, revista criada por

Gramsci e outros intelectuais como Togliatti, Tasca e Torracini, com o objetivo de ser

1 Disponvel em: . 2 Disponvel em: .

http://www.gramsci.org/http://www.centrogramsci.it/riviste/riviste.htm

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uma resenha semanal da cultura socialista. Todos os volumes originais da revista

LOrdine Nuovo podem ser encontrados no portal Centro Gramsci de Educazione,

citado acima. Gramsci foi seu Secretrio de Redao e alguns destes artigos esto

reunidos nos dois volumes de Escritos Polticos, publicados no Brasil pela Editora

Civilizao Brasileira, em 2004.

Em Cadernos do Crcere, Gramsci expe suas teorias, resultados de um

mundo vivido e percebido por meio das leituras que fez. Em Cartas do Crcere

esto exemplos das teorias que desenvolveu. Para alguns estudiosos, como Lpre

(2001, p. 85), nas Cartas que Gramsci se desnuda, mostra sua praticidade e o

quanto estava consciente [...] das terrveis dificuldades da construo de uma

sociedade que teria que ser completamente diferente daquilo que ele havia vivido

at ento.

Gramsci enxergava, na conscientizao poltica, a principal forma de se

conseguir a elevao cultural das massas. Ao se referir nova estrutura de LOrdine

Nuovo, props uma forma de torn-lo independente economicamente e de fazer com

que os mais velhos dessem sua contribuio no tipo de escola que, para ele, poderia

ter papel importante nesta elevao cultural, uma escola na qual, de acordo com ele,

os elementos mais antigos e mais prticos devem ser os instrutores nestas escolas,

fazendo com que os mais jovens partilhem a experincia deles, contribuindo para

elevar o nvel poltico da massa (GRAMSCI, 2004, p. 251).

Paralelamente a esta reviso bibliogrfica e dando um salto no tempo, foram

realizadas leituras sobre e com anlises dos movimentos sociais virtuais (Primavera

rabe, manifestaes no Brasil e em alguns pases do mundo). Tanto uma quanto

as outras contm aspectos que se correlacionam com o que teorizou Gramsci antes

e depois de ser preso. Entre eles, a teoria da guerra de movimento (ataque frontal

ao poder) e da guerra de posio (batalhas com o objetivo de se conquistar o

consenso e com ele a hegemonia), conceitos que Gramsci utilizara para analisar os

motivos que levaram ao fracasso a tentativa de revoluo em pases ocidentais,

como a Alemanha, a Inglaterra, a Frana e a prpria Itlia. Gramsci estabeleceu

uma correlao

[...] entre guerra de movimento e revoluo permanente por um lado e entre guerra de posio e conquista da hegemonia civil por outro: A chave da guerra de posio [...] reside precisamente na conquista da

19

hegemonia, da direo poltica, do consenso (COUTINHO, 1981, p. 105).

A queda de sucessivos governos no Oriente Mdio e a reao do poder

pblico no Brasil ( poca das manifestaes no Brasil, o Secretrio Geral da

Presidncia da Repblica, Gilberto Carvalho, afirmou no sabemos com quem

dialogar) parecem ser consequncia do que Gramsci chamou de crise da

hegemonia, assim definida pelo pensador italiano:

Se a classe dominante perdeu o consenso, ou seja, no mais dirigente, porm unicamente dominante, detentora da pura fora coercitiva, isso significa precisamente que as grandes massas se separaram das ideologias tradicionais, que no creem mais no que antes acreditavam, etc. A crise consiste precisamente no fato que o velho morre o novo no pode nascer (GRAMSCI apud COUTINHO,

1981, p. 108).

Gramsci queria dizer que no era necessrio se chegar ao poder para ser

dirigente, para se ter influncia no Estado e na sociedade; era indispensvel,

todavia, ter o consenso. Se analisarmos a situao da classe subalterna, ela

conseguiu direcionar e concretizar vrios de seus interesses desde Gramsci. Mas

estas conquistas no foram suficientes para se mudar radicalmente a estrutura do

poder. Gramsci (2002, p. 195) afirmara que era necessrio o velho morrer para

nascer o novo (ou o velho se transformar em novo). No caso, o velho morreu, mas o

novo no conseguiu nascer.

No caso do Brasil, as queixas foram contra quem detinha o poder poltico,

independentemente de qual partido poltico estivesse no poder, em ltima anlise,

pela criao e implantao de polticas pblicas que atendessem aos cidados de

forma mais ampla possvel. Lembrando Hannah Arendt,

o poder s efetivado enquanto a palavra e o ato no se divorciam, quando as palavras no so vazias e os atos no so brutais, quando as palavras no so empregadas para velar intenes, mas para revelar realidades, e os atos no so usados para violar e destruir, mas para criar relaes e novas realidades (ARENDT, 2001, p. 212).

No caso dos pases do Oriente Mdio, a predominncia do Estado-coero

exigiu a guerra de movimento para a derrubada do poder e a internet, por meio das

20

mdias sociais, teria sido de fundamental importncia, pois fora usada para convocar

as manifestaes que, alm de divulgar a necessidade de uma guerra de

movimento, chamou a ateno do mundo no apenas para o que estava

acontecendo, mas pelo que se estava lutando nesses pases. Como escrito acima,

h controvrsias sobre a importncia da internet na Primavera rabe, as quais sero

expostas ao longo deste relatrio. Numa segunda etapa da pesquisa, foram

desenvolvidas entrevistas, tais como definidas por Paredes:

A entrevista , para muito alm da oportunidade de recolher ideias, opinies, depoimentos e testemunhos, um contrito e devotado mergulho no outro [...] uma conversa entre duas pessoas, uma das quais tem objetivos definidos. Um deles capturar o que a outra pessoa tem a dizer (PAREDES, 2005, p. 132).

Estas entrevistas foram realizadas com atores das manifestaes, em Cuiab

e Rio de Janeiro, para uma anlise de fatos ligados educao, movimentos sociais

e internet, reunindo, ao final, olhares que se completassem, inclusive com

argumentos que exercessem funo de contraditrio.

A ideia foi de que essas entrevistas propiciassem uma leitura da ao dos

movimentos sociais virtuais como processo educativo nos dias de hoje, sua

interlocuo com teorias de Gramsci e, sobretudo, sua apropriao das modernas

tecnologias. Porque, como lembra Semeraro (2006, p. 144-145), [...] as novas

ferramentas disposio dos intelectuais no devem ser menosprezadas, com a

ressalva que o prprio Semeraro faz, referindo-se a Gramsci: a de que embora fosse

aberto ao novo, o pensador italiano no o aceitava acriticamente e indicava que o

trabalhador nunca deveria perder de vista as lutas hegemnicas de sua classe.

Durante uma das manifestaes em Cuiab, contra a aprovao da PEC 37,

uma proposta de emenda constitucional que pretendia retirar do Ministrio Pblico o

poder de investigao, tambm foram feitas sondagens, definidas por Chizzotti como

[...] tipo de pesquisa que visa obter dados mensurveis de uma amostra finita de indivduos, a partir de uma populao pr-definida. [...] A sondagem utilizada, sobretudo [...] para identificar interesses e opinies atuais de parcelas de uma populao (CHIZZOTTI, 2001, p. 63).

Nesta sondagem, foram ouvidos 50 sujeitos, uma amostra escolhida por

convenincia, como prev Bortolossi (2012). De acordo com ele, amostragem por

21

convenincia aquela em que a seleo dos sujeitos que sero entrevistados feita

seguindo o que mais fcil ou barato para o pesquisador, que no tem, assim,

preocupao em obter uma amostra representativa. O objetivo era tentar captar o

nvel de conhecimento sobre o tema da manifestao, a nica que teve

organizadores definidos, e como eles chegaram a este nvel de conhecimento.

Igualmente, foram utilizados extratos de memria da histria de vida deste

autor que exerce o jornalismo h 40 anos, vinte dos quais passados no Rio de

Janeiro, frente ou participando de equipes das principais redes de TV do pas,

exercendo cargos como reprter de poltica e economia dos jornais Tribuna da

Imprensa e O Fluminense, Editor Internacional da TV Studios, Diretor do programa

Canal Livre na Rede Bandeirantes, Editor Nacional do Jornal da Manchete,

Chefe de Redao da TV Educativa, Editor Especial do TJ Brasil no SBT, Editor de

Texto na Rede Globo e, em Mato Grosso, Chefe de Redao da TV Gazeta e Editor

Chefe na TV Centro Amrica, afiliada da Rede Globo, e que, anteriormente, a partir

do final dos anos sessenta do sculo passado, participou da luta contra a ditadura e

a tirania que se instalara no Brasil alguns anos antes e, posteriormente, pela Anistia

Ampla, Geral e Irrestrita, alm dos movimentos surgidos na dcada de 1980, como

as Diretas J.

Utilizou-se, ainda, como instrumento metodolgico, a observao participante

que, de acordo com Oliveira (2010, p. 23), o instrumento que mais fornece

detalhes ao pesquisador, por basear-se na descrio e utilizar-se de todos os

sentidos humanos. interessante, igualmente, lembrar aqui o que afirmam Ldke e

Andr (1986, p. 28) sobre a observao participante: uma estratgia que envolve,

pois, no s a observao direta, mas todo um conjunto de tcnicas metodolgicas

pressupondo um grande envolvimento do pesquisador na situao estudada.

Durante todas as manifestaes realizadas em Cuiab e Vrzea Grande,

observei atentamente as reaes dos protagonistas, tanto os que estavam na rua,

quanto os que se encontravam nos edifcios e respondiam a gritos como Quem

apoia, pisca! (imediatamente as luzes dos apartamentos comeavam a piscar),

como tambm atentei para o tipo e idade das pessoas que ali estavam, tendo

conversado informalmente com algumas delas: jovens em grupo, trs geraes de

uma mesma famlia. A descrio destas observaes encontra-se, principalmente,

no subitem Afinal quem eram aqueles manifestantes? .

22

Ao final, na terceira fase desta investigao, apresento o que foram os dois

principais movimentos utilizados, como objeto de estudo nesta pesquisa, a

Primavera rabe e o Outono-Inverno Brasileiro, com anlises de quem os viveu ou

estudou e minhas observaes, no que diz respeito s realizadas em Cuiab e

Vrzea Grande, das quais participei, alm de pesquisas e levantamentos feitos e

divulgadas poca e outra ainda indita. Encerrando esta terceira fase, apresento o

olhar de sete jornalistas e acadmicos que se debruaram sobre o tema aqui

proposto e a quem, por este motivo, chamo de especialistas. Em O Olhar dos

Especialistas, encontrar-se-o pontos de vistas nem sempre concordantes de

estudiosos brasileiros e estrangeiros sobre as manifestaes no Norte da frica e

Oriente Mdio e as brasileiras. O critrio para escolha levou em considerao,

principalmente, a proximidade de cada um deles com o tema aqui proposto. Procurei

retirar, de cada um, seus pontos de vista independentemente de que fossem

conflitantes ou semelhantes, objetivando, assim, ao final se ter um panorama geral

dos estudos at aquele momento empreendidos no apenas dos movimentos

sociais virtuais, mas, principalmente, de suas eventuais consequncias.

O resultado deste estudo o que ser apresentado nas prximas pginas.

23

2. INTRODUO

Dos tempos de Gramsci, quando os movimentos sociais se restringiam ao

Movimento Operrio e ao Movimento Poltico Partidrio, passaram-se quase cem

anos, um sculo de histrias, teorias, algumas contrastantes e muitas idas e vindas.

A escolha de Gramsci, como ponto de partida, para a pesquisa se deve ao fato de

ele ver a elevao cultural das massas como elemento chave da transformao da

sociedade, elevao esta que deveria ser precedida por uma reforma intelectual e

moral desta prpria sociedade. Cinquenta anos depois, quando os movimentos

sociais ganharam espao na Academia como objeto de estudo cientfico, e 80 anos

depois, quando a internet comeou a demonstrar a possibilidade de uma dimenso

educativa que parecia inexistir nela, oportuno indagar sobre o significado desse

poder de reformar e de gerar conscincia poltica, dada a fora deste novo

instrumento, inimaginvel na poca do pensador italiano.

H, nas interaes produzidas na internet, uma dimenso educativa, o que

por si s no suficiente para se alcanar a transformao da sociedade, mas pode

ser um facilitador para isso. Caso entendamos a transformao da sociedade,

como Gramsci, que h quase cem anos pensava: resultado de um processo rduo

de conquista da hegemonia por parte de um de grupo explorado que tem por

objetivo a criao de uma sociedade completamente distinta daquela em que vivia.

Um dos elementos importantes para isso seria a organizao popular e a interao

via internet teria condies, hoje, de proporcionar isso. Nos movimentos e

manifestaes aqui estudados e nos quais ela foi amplamente utilizada, a

organizao popular foi mais rpida e, de acordo com autores como Castells (2013),

mais efetiva.

Quando Gramsci fala em transformao da sociedade, est tomando por base

emprica a Itlia dos trinta primeiros anos do sculo passado na qual viveu e militou

e, por base terica, a radical crtica iniciada por Marx relativa sociedade capitalista.

Em todo caso, vlido se fazer uma releitura de sua viso, avaliar a sua pertinncia

com a devida e necessria traduo em contextos histricos e movimentos sociais

de tipos to diversos.

Para o pensador sardo, a transformao radical da sociedade apresenta-se

como a consequente substituio de um sistema econmico, o capitalismo, por

outro, o socialismo, e deve implicar um longo processo de luta ideolgica e poltica.

24

A Reforma Intelectual e Moral da Sociedade, seria o coroamento de todo este

movimento [...] dialetizado no contraste entre cultura popular e alta cultura

(GRAMSCI, 2011, p. 37).

A transformao da sociedade resultaria de um longo processo de construo

hegemnica em que tem lugar intensos debates e embates sociais sobre uma nova

viso de mundo. Nos dias de hoje, em que pese sua capacidade de manipulao, a

internet via mdias sociais , especialmente por ter se transformado num imenso

transferidor de contedo, numa rede interativa de comunicao distribuda, se

apresenta como um ambiente capaz de facilitar este embate.

poca em que Gramsci viveu e militou, os movimentos sociais se resumiam

ao sindical e ao partidrio e a mdia, impressa. Nos dias de hoje, os movimentos

sociais so incontveis e tm sua atuao facilitada pelos novos tipos de mdia que

surgiram desde os anos 20 do sculo passado.

No se torna necessrio apresentar a histria dos movimentos sociais, pois

ela j est contada por meio de uma extensa bibliografia na qual se destacam

autores como Maria da Gloria Gohn, Alain Touraine, Roseli Salete Caldart, Ilse

Scherer-Warren, Manuel Castells, Giovanni Semeraro, entre muitos outros.

Para rememorar esta histria em linhas gerais, utilizar-se- especialmente o

estudo de Maria da Glria Marcondes Gohn, intitulado Novas teorias dos

movimentos sociais, que teve publicada, por Edies Loyola, sua quarta edio

revista e ampliada, em 2012. A escolha se deveu ao fato de ser ela

reconhecidamente uma das principais estudiosas do tema. De acordo com Gohn, h

trs correntes que estudam os movimentos sociais ao longo dos sculos: A histrico

estrutural, a culturalista / identitria e a institucional / organizacional /

comportamentalista.

Na primeira, esto referenciadas s ideias de Marx, Gramsci, Lefebvre, Rosa

de Luxemburgo e Lnin, entre outros. Na segunda, segue-se o pensamento de

filsofos e cientistas sociais como Kant, Nietzsche, Hegel, os tericos da Escola de

Frankfurt, Adorno, Horkheimer, Marcuse, Habermas e Neumann. J na terceira

corrente, que se desenvolveu basicamente nos Estados Unidos, adotam-se os

olhares de Smelser, Wilkinson e Banks.

Gohn (2012, p. 31-32) identifica, tambm, a construo de teorias

contemporneas sobre os movimentos sociais, surgidas, especialmente, na Europa,

a partir dos anos 60 e 70 do sculo passado, aos quais se costuma nominar como

25

Novos Movimentos Sociais (NMS). Nessas teorias, a autora destaca trabalhos de

Castells e Borja, fomentadores dos movimentos de cidados/moradores. Ela se

refere, tambm, a estudiosos como Touraine, que em anos anteriores havia se

debruado sobre o movimento operrio, mas que depois estudou os estudantes, os

terroristas, os grupos de solidariedade, os movimentos latino-americanos, os

movimentos de jovens na Frana (atualmente estuda os movimentos das mulheres).

No final dos anos 70 e, principalmente, no incio dos anos 80 do sculo

passado, com a fuga nos ento chamados pases do Terceiro Mundo (hoje so os

Emergentes) do homem do campo para a cidade surgiram os movimentos

urbanos especialmente na Amrica Latina. Sobre esta fase, de acordo com Gohn

(2012), destacam-se os estudos, em 1987, de Scherer-Warren e Krischke, os quais

consideram que esses movimentos realizaram uma revoluo no cotidiano.

Ademais, leva-se em considerao Machado da Silva e Ribeiro (1985), Valladares e

Boschi (1981), Barreiro (1992), Singer e Brant (1981), entre outros.

Foi nessa poca que surgiram na Europa os movimentos ecolgicos,

antinucleares, pela paz, de estudantes e pelas mulheres. De acordo com Gohn,

Chegamos, portanto aos anos de 1980 com um panorama mundial das formas de manifestaes dos movimentos sociais bastante alterado. Progressivamente as lutas armadas na sia, na Amrica Latina e na frica e o prprio movimento operrio, todos fortemente estruturados segundo a problemtica do antagonismo entre as classes sociais, deram lugar a outras problemticas sociais enquanto eixos centralizadores das lutas sociais (GOHN, 2012, p. 32-33).

Aqui bom lembrar que esses movimentos surgiram e evoluram sem o poder

da internet para sua mobilizao, uma vez que nesta poca ela era usada apenas

como uma forma de comunicao militar e que somente em 1988 foi criado, por

iniciativa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Fundao de

Amparo Pesquisa de So Paulo (FAPESP), o Laboratrio Nacional de

Computao Cientifica (LNCC). No ano seguinte, o ministrio da Cincia e

Tecnologia, recm-criado, inaugurou a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RPN),

que interligou universidades em 11 estados. Comercialmente, a internet chegou ao

Brasil em dezembro de 1994 para uma parte da populao, de uma forma elitizada.

Os primeiros computadores comercializados aqui eram os velhos 286, que

chegavam a custar o equivalente a 5 mil dlares.

26

E foi nos anos 1990 que surgiram novos estudos sobre um tipo de

organizao que estivera em segundo plano nos grandes momentos dos

movimentos sociais em todo o mundo: as Organizaes No Governamentais

(ONGs). Alguns autores, que estudaram as ONGs, tentaram, sempre de acordo com

Gohn, desqualificar os movimentos sociais nomeando-os como uma manifestao

de grupos do passado (Idem, p. 34).

Igualmente, no final dos anos 1990 e incio do sculo XXI, surgiram novos

estudos para explicar a teoria dos movimentos sociais como a teoria do

reconhecimento social. A destacam-se os trabalhos do portugus Boaventura de

Souza Santos, especialmente em A crtica da razo indolente: contra o desperdcio

da experincia, no qual ele qualifica os movimentos sociais como sujeitos tambm

presentes no Estado. Ele se baseia em questes como o multiculturalismo e [...] o

progressivo deslocamento na nfase de suas pesquisas para os movimentos sociais

[...] e as novas gramticas do poder (GOHN, 2012, p. 38). A partir da, ele passou a

ser referncia obrigatria para quem teorizava ou lutava pela anti ou

alterglobalizao.

Fernndez Buey, em suas anlises sobre os movimentos sociais alternativos

no mundo contemporneo, valoriza o fenmeno conhecido por Movimento dos

Movimentos, que no Frum Mundial de 2001, em Porto Alegre, passou a se chamar

movimento antiglobalizao e que posteriormente preferiu llamarse a si mismo

alterglobalizador o altermundialista (FERNNDEZ BUEY, 2007, p. 21).

Fernndez Buey relembra a extrema velocidade com que cresceu este

movimento em seus primeiros anos e Torres afirma que esta capacidade

agregadora [do movimento altergobalizador] tem levado a questionamentos sobre

ser o movimento o sujeito coletivo que vem substituir os partidos polticos na tarefa

de delineamento e de conduo de um projeto alternativo para a sociedade [...]

(TORRES, 2013, p. 110).

Esta hiptese, entretanto, de acordo com Torres (2013), apresenta

fragilidades, especialmente, para estudiosos que se vinculam tradio marxista.

Para reforar seu ponto de vista, ela remete a Atilio Boron (2011), o qual assevera

que, tanto para a conquista do poder poltico quanto para a construo de uma nova

sociedade, necessria a criao de um novo bloco histrico hegemonicamente

formado pelas camadas mais avanadas das classes e camadas populares.

27

Fernndez Buey afirma que o movimento alterglobalizador tem vrios

sintomas que trazem em si a esperana. Entre eles est

[...] el crecimiento de la conciencia de que, para hacer frente a los peores efectos de la globalizacin neoliberal, hay que superar la atomizacin de los otros movimientos sociales alternativos y su dimensin nacional-estatal para establecer una estrategia global de actuaciones tambin en un mbito mundial. Es en este sentido en el que el movimiento alterglobalizador se estructura como un movimiento de movimientos, como una red de redes conectadas en distintos mbitos geogrficos3 (FERNNDEZ BUEY, 2007, p. 25).

Assim, Fernndez Buey teoriza sobre o movimento alterglobalizador,

apontando para uma conexo entre movimentos diferentes que se desenvolvem em

locais geograficamente diferentes. Da, pode se concluir que, tomando a internet

como meio, poder-se-ia criar um novo bloco histrico que assumiria determinadas

bandeiras de luta.

A internet poderia ter, sob esta perspectiva, um papel importante pelo seu

aspecto de velocidade nas mobilizaes, pela capacidade de, por meio das mdias

sociais, colocar em debate posicionamentos contrrios, pela enorme capacidade de

transferncia de contedos que possui e pela sua capacidade de alcanar pessoas

que dela se utilizam em distintos locais por mais distantes que estejam

geograficamente.

Antes do movimento alterglobalizao, nos anos 90, comearam a surgir

estudos que colocavam a internet no centro das discusses. O espanhol Manuel

Castells e o francs Pirre Levy so os principais formuladores destas novas

propostas de anlise. Castells e alguns outros autores passaram a se dedicar

sociedade em rede (este foi, inclusive, o ttulo do primeiro livro de uma trilogia que

Castells escreveu sobre o assunto, A Era da informao, economia, sociedade e

cultura). De acordo com Picolotto (2007), Castells traz em sua teoria uma

concepo marxista da sociedade, refez seu pensamento sobre os movimentos

sociais, desenvolvido no final dos anos 60 e incio dos anos 70 do sculo passado.

Para isso, ele argumentou sobre a existncia de processos que no estavam

3 Traduo minha: [...] o crescimento da conscincia de que, para fazer frente aos piores efeitos da globalizao

neoliberal, precisa superar a atomizao de outros movimentos sociais alternativos e sua dimenso nacional-estatal para estabelecer uma estratgia global de atuaes tambm no mbito mundial. neste sentido que o movimento alterglobalizador se estrutura como um movimento de movimentos, como uma rede de redes conectadas em distintos espaos geogrficos.

28

interligados e que convergiam hoje em: a revoluo das tecnologias de informao e

comunicao (TIC), a crise econmica, tanto do capitalismo quanto do estatismo, e o

surgimento de movimentos sociais e culturais.

Levy (2013, s/p.), antes mesmo das manifestaes mundo afora com

mobilizao via redes virtuais, j defendia a ideia de que os movimentos sociais

poderiam se organizar pela internet e desafiar o sistema poltico, qual fosse ele.

Para o filsofo francs, a irradiao de sentidos e ideologias fugiu completamente do

controle do poder hegemnico. a partir da que ele criou o conceito de

ciberespao, como sendo um local de prtica de comunicao interativa, recproca,

comunitria e intercomunitria, como horizonte do mundo virtual vivo, heterogneo

no qual o ser humano pode participar e contribuir (LEVY, 1999, p. 126). Essa quase

premonio de Levy se concretizaria anos depois com alguns movimentos que sero

mostrados aqui, como o Zapatista, no Mxico, a Guerra das Panelas, na Finlndia,

etc.

O surgimento das mdias sociais deu uma nova dinmica aos movimentos

sociais. A primeira delas foi o antigo e-mail, que ainda persiste, mas que em seu

incio no passava de um instrumento para se trocarem cartas entre amigos e

parentes, logo se percebeu que poderia ser utilizado para outros fins, como

distribuio de contedo, pautas para veculos de comunicao e at para

convocao para assembleias, reunies e manifestaes. A pesquisadora brasileira

Ivana Bentes de Oliveira analisa de forma crtica a internet e as mdias sociais. De

acordo com ela,

[,,,] durante algum tempo acreditamos que as redes sociais enterrariam revistas como a Veja, pois com uma mdia-multido as denncias seriais e campanhas podem ser desconstrudas com a velocidade e sagacidade dos muitos. Mas as redes tambm podem produzir e reproduzir o mesmo discurso de dio, racismo, intolerncia (BENTES, 2014, s/p.).

Essa discusso muito antiga quando se trata de jornalismo. E quem se

defronta com ela quase sempre se defronta com a seguinte questo: exatamente por

ser ela, a internet, uma mdia multido dela fazem uso sujeitos capazes de

reproduzir o que Bentes definiu como dio jornalismo. H, ainda, especialmente

nos meios acadmicos, muitas desconfianas em relao s mdias sociais e a

interao que ela proporciona, mas particularmente, no acredito que em algum

29

momento as mdias sociais tenham sido pensadas como algo que poderia servir a

este ou aquele tipo de propsito. At porque, em frente dos teclados, h internautas

com pontos de vista que no so contrrios ou conflitantes, da mesma forma que h

os que o so e, tanto num caso como noutro, no cedem necessariamente a

presses ou a manipulaes. Bentes, ao prefaciar obra de Antoun e Malini,

reconhece que

Estamos vendo surgir nas ruas uma multido capaz de se autogovernar a partir de aes e proposies policntricas distribudas, atravessadas por poderes e potncias muitas vezes em violento conflito, mas que constituem [...]uma esfera pblica em rede, autnoma em relao aos poderes [...], miditicos e polticos tradicionais e que emergiu e se espalhou num processo de contaminao virtica e afetiva [...]. Processos disruptivos, capazes de passar, de forma inesperada, de um medo ou euforia difusos a uma manifestao massiva, produzida por contagio e processos distributivos do que Felix Guattari chamou de heterogneses (BENTES, 2013b, p. 16).

Parece claro que mesmo quem, em algum momento, sentiu uma certa

decepo com a capacidade de mudanas que as mdias sociais poderiam provocar,

rendeu-se ao fato de sua consequncia, detectada em pesquisas aqui apresentadas,

nas manifestaes de rua no apenas no Brasil, mas tambm no exterior sempre

com a ressalva que foram manifestaes diferentes, em pases com realidade

poltica e social igualmente diferente. Bentes (2014) aponta o caminho a ser seguido

como forma de se combater o dio jornalismo:

[...] preciso fazer o embate com uma direita anacrnica que acha que estamos esquerda demais e para uma esquerda que acha que ainda estamos muito direita e que est tudo dominado. preciso uma virada de imaginrio para sair desses dualismos e qualificar a palavra mgica mudana que atravessou todos os partidos e candidatos com sentidos distintos (BENTES, 2014, s/p.).

Algumas manifestaes, nas quais a internet foi fundamental como

instrumento de mobilizao, marcaram o Brasil e o mundo nos ltimos anos. No se

trata aqui de analisar o resultado destas manifestaes, at porque este um

processo muito recente e, por isso, inconcluso; mas sim os fatos que aparentam

mostrar a construo dos motivos da manifestao, ou seja, da construo

educativa da mobilizao, porque quando multides foram s ruas aqui e no exterior

30

estavam conscientes do que queriam e essa conscincia foi formada em boa parte

por causa da interao via mdias sociais.

Estudiosos afirmam, categoricamente, que existe uma dimenso pedaggica

nestas manifestaes (LESSA, 2013 s/p.), que elas vieram para ficar porque a

internet a voz das ruas e o que for postado nela estar sempre disposio para

quem quiser analisar o que ela significava (CASTELLS, 2013). Scherer Warren

(2012, p. 21) afirma que os movimentos sociais precisam ser redefinidos porque

com a globalizao e a informatizao da sociedade [...] muitas das explicaes

paradigmticas necessitam revises face emergncia de novos sujeitos sociais,

novas formas de articulao e organizao [...].

Assim, se verdade que no se pode, ainda, classificar eventos, assim como

Primavera rabe, Outono-Inverno Brasileiro, Occupy Wall Street, entre outros,

enquanto movimentos sociais (eles se enquadrariam mais no conceito de ao

coletiva), no h como negar que tais eventos, potencializados pela internet,

trouxeram consequncias, positivas e negativas, e que, provavelmente, a mais

positiva seja o fato de que na internet assuntos de interesse nacional, relevantes por

si ss, vieram tona, foram e continuam sendo debatidos. E, no caso do Brasil,

provocaram mudanas, tais como a supresso da pauta do Congresso da PEC 37 e

a reunio da presidente Dilma Rousseff com prefeitos e governadores para debater

medidas que melhorassem transportes, sade e educao. Pautas que foram

constantes nas manifestaes de rua no pas, alm da suspenso ou reduo em

vrias cidades e capitais das tarifas do transporte coletivo.

Afinal, com toda a evoluo das formas de mobilizao e evoluo da

tecnologia, diga-se de passagem, antevistas por Gramsci, como essas aes

coletivas que para autores como Castells (2013) so movimentos sociais

contemporneos podem agir no sentido de construir o pensamento crtico que o

pensador italiano propunha? Para responder esta pergunta, oportuno conhecer o

pensamento de Gramsci, especialmente no que se refere emancipao das

massas, j que ele defendia o pensamento segundo o qual era impossvel uma

transformao da sociedade se no fosse antecedida por uma mudana de

mentalidade. o que veremos a seguir.

31

CAPTULO I

SOBRE A EMANCIPAO DAS MASSAS

Para o filsofo italiano Antnio Gramsci, a transformao da sociedade

somente seria possvel se fosse precedida de uma reforma moral e intelectual das

massas,

[...] o que significa de resto criar o terreno para um novo desenvolvimento da vontade coletiva nacional popular no sentido da realizao de uma forma superior e total da sociedade moderna (GRAMSCI, 2012, p. 18).

Em outras palavras, e ele retorna a este tema em vrios momentos de sua

produo no crcere, especialmente no Vol. 1 dos Cadernos (p.126; 233; 320; 362).

Para Gramsci, no haveria transformao da sociedade se ela no viesse precedida

por uma mudana de mentalidade. Por este motivo, dei a este captulo o ttulo

acima. No captulo apresento, igualmente, em subitens no apenas o que seja esta

elevao cultural das massas, mas o papel que a educao, entendida, repito, de

uma forma ampla, como j definida aqui, procurando mostrar como o pensamento

do pensador sardo se mante atual at os dias de hoje. Caminho, tambm, pelo

conceito que Gramsci tinha de Escola, especialmente em sua ligao com a

Educao na forma como a conceituo aqui, concordando com a maioria dos autores

a quem recorri, ou seja, que ela um instrumento fundamental para a reforma

intelectual e moral que estaria na base da transformao da sociedade. E fao este

caminho porque acredito que, por mais que este objetivo ainda esteja longe de ser

alcanado, a internet possa se transformar num importante instrumento na

realizao desta mudana de mentalidade.

Desta forma, antes de se referir a Gramsci e a conceitos que ele criou ou

aperfeioou, importante lembrar que ele viveu num perodo em que, embora tenha

antevisto alguns dos fatos que marcariam o mundo dcadas depois, nem se

imaginava o que viria pela frente em termos de inovaes tecnolgicas e tantas

outras mudanas no mundo. Contra Gramsci havia tambm o fato de ter ficado, em

sua poca mais produtiva, preso pelo fascismo, o que lhe impedia de manter

diretamente alguns embates e de ter acesso a livros e a correspondncia que lhe

interessassem, porque na priso, em Turim,

32

[...] percebia o vazio que existia ao redor de si pela ausncia de relaes com o mundo ou por sua extrema precariedade. [...] mesmo quando escrevia ou recebia cartas a linguagem tinha que ser extremamente clara para no levantar suspeita dos censores da priso em relao a alguma palavra ou frase que soasse misteriosa para eles [...] (LPRE, 2001, p. 143).

No demais afirmar, como o fez Santucci (1998), na introduo de Para la

reforma moral e intelectual, que contm textos de Gramsci, organizados por

Fernndez Buey, em 1988, que houve dois Gramscis: o militante comunista, que

somente descobriu o que significavam as palavras de Marx trs anos antes de ser

preso pela polcia fascista, e o outro, o estudioso que passou dez anos nos crceres

fascistas, perodo no qual se voltou, como se fosse um compromisso, a fazer

reflexes sobre os temas que o Gramsci militante defendera. E, historicamente, pela

sua anteviso, deve-se fazer justia a ele, especialmente quando se aprofunda na

necessidade de uma reforma intelectual e moral, da qual participem as camadas

mais populares da sociedade, o que fora impedido pelo poder hegemnico na poca

em que ele viveu e o nos dias de hoje pois, como lembra Santucci,

[] no es preciso recordar que en Occidente en fechas recientes, se han instalados poderosos laboratorios de manipulacin poltica, basados en el control de los medios de informacin y comunicacin social. Cabe afirmar incluso que se han convertido ms que nunca en factores decisivos para el ejercicio de la hegemona y la captura del consenso4 (SANTUCCI, 1988, p. 17-18).

O prprio Gramsci faz uma advertncia sobre seus escritos no crcere, no

incio do Caderno 11, contido no Volume 1 dos Cadernos do Crcere, editado pela

Civilizao Brasileira, sob superviso de Carlos Nelson Coutinho (2006). Nesta

advertncia, o pensador sardo se refere a sua produo quando preso, o que

demonstra sua preocupao de que toda ideia pode e deve ser revista a qualquer

momento:

As notas contidas neste caderno, como nos demais, foram escritas ao correr da pena, como rpidos apontamentos para ajudar a

4 Traduo minha: [...] no preciso recordar que no Ocidente em datas recentes tem se instalado poderosos

laboratrios de manipulao poltica baseados no controle dos meios de informao e comunicao social. Cabe afirmar, inclusive, que eles tm se convertido mais que nunca em fatores decisivos para o exerccio da hegemonia e da conquista do consenso.

33

memria. Todas devem ser revistas e verificadas minuciosamente, j que certamente contm inexatides, falsas aproximaes, anacronismos. Escritas sem ter presentes os livros a que se referem, possvel que, depois da verificao, tenham que ser radicalmente corrigidas, precisamente porque o contrrio do que foi escrito que verdadeiro (GRAMSCI, 2006, p. 85).

Ao explicar como organizou a edio brasileira dos Cadernos do Crcere

(utilizando-se da edio de Togliatti e de Gerratana, de sugestes de outros

gramscianos como Giovanni Francionni e dos manuscritos de Gramsci), Carlos

Nelson Coutinho escreveu [...] temos a esperana que esta nova edio brasileira

dos Cadernos provoque no leitor, seja ele exigente ou iniciante a certeza de que

est diante de uma das mais lucidas reflexes de nosso tempo (GRAMSCI, 2006,

p. 44).

Em que pese a Advertncia de Gramsci, o ex-presidente da International

Gramsci Society Itlia, Giorgio Baratta, falecido em 2010, afirma que a leitura de

Gramsci tornou-se como uma bssola para procurar o fio entre passado, presente e

futuro. Ler Gramsci para ler a realidade (BARATTA, 2009, s/p.).

Uma das principais distines, entre o pensamento de Gramsci e de outros

marxistas, residia no fato de ele no acreditar na tomada do poder sem uma anterior

mudana das mentalidades. Importantes agentes dessa mudana seriam os

intelectuais e a educao. Coutinho (1981, p. 23) lembra que na atividade socialista,

desenvolvida por Gramsci at a Revoluo de Outubro, um lugar de excepcional

importncia cabe ao trabalho de educao, luta para preparar as condies

subjetivas da prxis revolucionria. Gramsci est convencido, como disse em janeiro

de 1916, que:

Cada revoluo foi precedida por um intenso trabalho de crtica, de penetrao cultural, de permeabilizao de ideias atravs de agregados de homens primeiro refratrios e somente virados para resolver dia a dia, hora a hora, o seu problema econmico e poltico, sem laos de solidariedade com os outros que se encontram nas mesmas condies (GRAMSCI, 1916b, p. 53).

Ao contrrio de outros pensadores, que se detiveram a estudar o pensamento

de Marx e que concentraram seus olhares na relao entre poltica e economia, o

pensador sardo, numa das cartas escritas no crcere, reconhece que s entendeu o

que Marx queria dizer quando manteve contato com trabalhadores em Turim.

Ademais, dirigiu seu pensamento para o papel da cultura e dos intelectuais nas

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transformaes histricas, at porque para ele a cultura, poltica e economia

constituem uma unidade indivisvel (FERRARI, 2002, s/p.). A nasce, inclusive, sua

proposta de educao, sobre a qual nos deteremos no momento especfico.

Baratta (2010, s/p.) tambm faz uma interessante reflexo sobre a

indissociabilidade, para Gramsci, de poltica, filosofia e educao. Ele relembra duas

frases escritas pelo pensador sardo no Caderno 12, Todos os homens so

intelectuais e Todos os homens so filsofos. Com isso, de acordo com Baratta,

est sendo preconizada a morte da filosofia e da intelectualidade, como conceitos

individuais, j que, como afirmou Gramsci, no existe, portanto, uma histria da

filosofia dos filsofos separada de uma histria civil mais ampla das concepes do

mundo, que envolve a filosofia dos no filsofos, tambm dos subalternos que

vivem margem da histria. Note-se, alis, que algo semelhante precisa ser

reclamado, de acordo com Gramsci, a propsito da diferena entre trabalho

intelectual e manual: este ltimo, segundo ele, diferente, mas no separado do

trabalho intelectual, no sentido de que em qualquer trabalho fsico, mesmo o mais

mecnico e degradado, existe um mnimo de qualificao tcnica, isto , um mnimo

de atividade intelectual criadora (GRAMSCI, 2006, p. 18).

Semeraro (2011, p. 143), interpretando essa reflexo de Gramsci, afirma que

para ele alm da poltica, economia, educao e filosofia, tambm a cultura, a vida

pessoal e social andam entrelaadas inseparavelmente, de modo que no seria

possvel compreender nenhum desses aspectos fora da relao dialtica que os

fecunda reciprocamente e da personalidade peculiar que os unifica sem

formalismos.

Trazendo para o Brasil estas reflexes, como veremos mais adiante, a

educao formal, aquela ministrada nas salas escolares, com frequncia se

apresenta como um espao de elevao cultural das massas porque tem sido

instrumentalizada, da mesma forma que a mdia para ser utilitarista no sentido de

reproduzir as diretrizes da classe dominante, ou seja, dos que detm nas mos o

capital e os meios de produo, e para manter o status quo, uma escola

instrumentalizada, pensada e voltada mais para os interesses mercadolgicos. Aqui

vale lembrar Mszros, para quem

[...] nunca demais salientar a importncia estratgica da concepo mais ampla de educao, expressa na frase a aprendizagem a

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nossa prpria vida [frase atribuda ao fsico Paracelso, falecido em 1541]. Pois muito do nosso processo contnuo de aprendizagem se situa, felizmente, fora das instituies formais. Felizmente, porque esses processos no podem ser manipulados e controlados de imediato pela estrutura educacional formal legalmente salvaguardada e sancionada [...] (MSZROS, 2012, p. 53).

Interpretando Mszros, no caso do Brasil, se verdade que houve avano

nos ltimos 15 anos na queda do analfabetismo, resultado de programas oficiais do

Ministrio da Educao e demonstrados em levantamento do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatstica (IBGE), publicado pelo jornal Folha de S. Paulo / Portal UOL5

(em 1996, a taxa era de 14,6% e, em 2012, chegou a 8,5%), tambm verdade que

a educao formal oferecida eficaz, primordialmente, como reguladora das

demandas da sociedade capitalista. Mas aqui importante lembrar a anlise de

Snyders (1977) para quem

Contra esta tentao [de deterministicamente abandonar o modelo de escola que regula as demandas do capitalismo] [...] se a escola, pelo peso da sociedade e tambm pela influncia da prpria carga, envereda pela opresso dos oprimidos, ela ao mesmo tempo um dos locais onde o combate existe, onde ele pode, de forma privilegiada, evoluir de tal maneira que os oprimidos adquiram lucidez e fora (SNYDERS, 1977, p. 405).

Assim, a escola seria apenas primordialmente reguladora das demandas do

capitalismo, mas no um feudo do sistema dominante e sim terreno de luta entre

este e a classe explorada ou, como afirma Snyders (1977, p. 105-106), o terreno

onde se defrontam as foras do progresso e as foras conservadoras. O que l se

passa reflete luta entre a explorao e a luta contra a explorao. Aqui, penso, cabe

mais uma vez relembrarmos a reforma intelectual e moral que preconizava

Gramsci, pois para ele:

[...] que significao tem o fato de uma concepo de mundo, que se enraza e se difunde desta maneira, tenha continuamente, momentos de renovao e de novo esplendor intelectual? [...] fala-se, frequentemente, que a no existncia, em certos pases de uma reforma religiosa a causa da regresso em todos os campos da vida civil e no se observa que precisamente a difuso da filosofia da prxis a grande reforma dos tempos modernos, a reforma

5 Disponvel em: .

http://educacao.uol.com.br/noticias/2013/09/27/analfabetismo-volta-a-crescer-no-brasil-apos-mais-de-15-anos-de-queda.htmhttp://educacao.uol.com.br/noticias/2013/09/27/analfabetismo-volta-a-crescer-no-brasil-apos-mais-de-15-anos-de-queda.htm

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intelectual e moral que se realiza em escala nacional e que o liberalismo conseguiu realizar apenas em pequenos estratos da populao (GRAMSCI, 2006, p. 362).

Por isso, o pensador sardo, um filsofo que queria entender o mundo para

transform-lo, defendia a criao de meios alternativos que no concorressem com

os instrumentais para se difundir a educao escolar, a qual interfere diretamente na

formao do cidado. Afinal, transformar a sociedade moral e intelectualmente

implica em transform-la materialmente, da o fato de Gramsci dar nfase elevao

das massas ao nvel que permitisse a conscientizao e organizao poltica de si

mesmas, pois reforma intelectual e moral significa, obrigatoriamente, reformar a

concepo de mundo que se tem, a maneira de agir e de se relacionar.

Neste sentido, as mdias sociais podem ser de grande utilidade, uma vez que

pela instantaneidade proporcionada pelo seu meio, a internet, podem criar um

ambiente que possibilite o que preconizava Gramsci. Mas torna-se necessrio que

se atente ao fato de que a internet da mesma forma que possui um vis educador

tem, ao mesmo tempo, outro no educador, ou deseducador.

inegvel que as mdias sociais no sejam prova da manipulao do

sistema dominante, pois o capitalismo que as utiliza, no dizer de Fernndez Buey,

como meio de intoxicao de massas (MENEZES, 2013). Mas no h como se

negar que as mdias sociais funcionam como um laboratrio das liberdades de

pensamento que podem se preservar justamente por causa de seu permanente fluxo

de informaes compartilhadas e no sujeitas a controle de governo e empresas. E

o poder de impacto social que possuem, demonstrado nos movimentos virtuais aqui

estudados, se apresenta como uma tendncia para o futuro, pois a cada dia mais a

sociedade acompanha a gesto pblica. As mudanas no dependem apenas da

evoluo da tecnologia, pois as rebelies apresentadas aqui tiveram suas razes

na explorao, opresso, humilhao, indignao, enfim descontentamento com o

momento ou com algo especfico que serviu de estopim para outras

questionamentos e reivindicaes. Mas no h como se negar o poder festa

ferramenta que j existe h mais de uma dcada, mas que s agora ganha uma

visibilidade mundial. E esse poder tem demonstrado sua capacidade de rever leis,

comportamentos e at de derrubar governos e mudar regimes, como ser

demonstrado no Captulo III desta pesquisa.

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1.1 A elevao cultural das massas

O cientista poltico Giacomo Marramao, um grande conhecedor de Gramsci e

dos desafios da esquerda no mundo, em entrevista ao Blog Literatura Clandestina

Revolucionria, afirma que as ideias sobre a elevao cultural do homem foi um dos

trs principais legados do pensador sardo para a histria. De acordo com ele, esses

trs legados seriam:

A noo de intelectual orgnico, tambm definida numa frmula simples e intensa: especialista + poltico. A ideia da democracia no s como sistema de regras e procedimentos, mas forma de relaes como a res publica de Maquiavel capaz de reunir num conjunto dinmico e vital uma pluralidade de sujeitos que interagem na base de mtuo reconhecimento. A perspectiva de um novo cosmopolitismo, capaz de promover a libertao dos indivduos atravs de uma prxis de transformao baseada no acrscimo de saber e de cincia (MARRAMAO, 2007, s/p.).

Gramsci argumentava que a escola, juntamente com os intelectuais, teria um

papel fundamental na elevao cultural das massas, se ela fosse estruturada de

forma que tivesse como alunos os filhos dos trabalhadores e dos burgueses tendo

todos igualmente acesso cultura das classes hegemnicas e se transformariam em

cidados plenos. Gramsci acreditava que a mudana s viria com uma revoluo

proletria, mas no acreditava que ela seria possvel se ela no fosse precedida por

uma revoluo na mentalidade. Este posicionamento est muito claro quando ele

afirma que:

[...] a filosofia da prxis no busca manter os simples na sua filosofia primitiva do senso comum, mas busca, ao contrrio, conduzi-los a uma concepo de vida superior [...] para forjar um bloco intelectual-moral que torne politicamente possvel um progresso intelectual de massa e no apenas de pequenos grupos intelectuais (GRAMSCI, 2006, p 103).

Para Gramsci a elevao cultural das massas assume grande importncia no

processo de luta pela hegemonia, porque a partir dela as massas poderiam se

libertar das classes dirigentes e tornarem-se elas, as massas, dirigentes. Afinal,

pode se sair da condio de subalternidade quando, pensava Gramsci, se elabora

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um novo tipo de economia, de sociedade, de Estado e de poltica, capazes de

desarticular a hegemonia da classe dominante.

Por isso, logo que foi preso, juntamente com alguns amigos, entre eles:

Brdiga, Conca e Sbaraglini, Gramsci criou uma escola para prisioneiros que, ao

mesmo tempo, alfabetizava e transmitia contedo dos nveis elementar, mdio e at

superior. Gramsci se encarregou da rea de Histria e Literatura, Brdiga, que fora

Secretrio Geral do Partido Comunista Italiano (PCI) antes de Gramsci, se

responsabilizou pela rea cientfica.

Logo ele percebeu o quanto seria difcil se conseguir algo no que ele mesmo

chamou de crculo infernal. Numa das primeiras cartas que enviou, depois de

preso, a sua cunhada, Tania, no dia 19 de dezembro de 1926, ele narrou com

detalhes o que era a vida dos prisioneiros comuns:

A mazzetta [dinheiro que lhes era pago pelo governo] gasta especialmente em vinhos; as refeies se reduzem a um pouco de massa com verdura e a um pouco de po; a desnutrio leva ao alcoolismo mais depravado em curtssimo espao de tempo. [...] so trancafiados em dormitrios especiais das cinco da tarde s sete da manh, separados dos que esto fora: jogam baralho, perdem algumas vezes a mazzetta de vrios dias e assim se veem presos num crculo infernal que dura at o infinito (GRAMSCI, 2005, p. 89).

Pouco tempo depois, ele foi transferido de Ustica, mas manteve contato por

meio de cartas com alguns dos companheiros que participavam do projeto da Escola

e, nestas cartas, aparecem alguns dos conceitos sobre educao e sua viso de

como deveria ser a relao professor aluno, levando-se sempre em conta o

ambiente em que viviam.

Em 4 de julho de 1927, respondendo uma carta de Berti (que na realidade

tratava-se de Ferrucio Parri, que organizara a fuga de Felippo Turati para a Frana),

Gramsci afirma que o tipo de escola e o tipo de professor que o ambiente (a priso

de Ustica) requeria somente poderia nascer do registro e da coordenao das

experincias de cada um. E completou: penso que a genialidade deve ser

enterrada e, ao contrrio, deve ser aplicado o mtodo das experincias mais

minuciosas e da autocritica mais desapaixonada (GRAMSCI, 2005, p. 167).

Gramsci insiste, portanto, na divulgao crtica da cultura geral, dando a ela a

mesma importncia que a organizada enciclopedicamente, porque para ele a mescla

das duas era a nica forma de se alcanar a elevao intelectual e moral que

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impediria, por exemplo, comportamentos comuns aos presos de Ustica e que ele

narrara na carta Tania. O objetivo de sua proposta pedaggica era que o grupo se

transformasse no educador dele prprio. Como ele escreveu no Caderno 11,

[...] criar uma nova cultura no significa apenas fazer individualmente descobertas originais; significa tambm, e sobretudo, difundir criticamente verdades j descobertas, socializ-las, por assim dizer; e, portanto, transform-las em bases de ao vitais, em elementos de coordenao e de ordem intelectual ou moral. O fato de que uma multido de homens seja levada a pensar coerentemente e de maneira unitria a realidade presente bem mais importante e original que a descoberta feita por um gnio de uma nova verdade que permanea como patrimnio de um grupo de intelectuais (GRAMSCI, 2006, p. 95-96).

A crtica que, mesmo antes de escrever esta tese, tenho feito universidade

que grande parte de sua produo intelectual fica entre seus muros. No h uma

aplicao sociedade. Para confirmar este pensamento basta um levantamento de

quantas dissertaes e teses, ou at mesmo trabalhos de concluso de curso, so

publicadas ou tem suas concluses socializadas, para utilizar um termo da citao

acima, com grupos de interesse para aquele tema. Aqui, torna-se importante

registrar um comentrio, feito durante uma das disciplinas do doutorado, pelo

professor doutor Luiz Augusto Passos, aos doutorandos que esto concluindo agora

sua caminhada: perguntem-se sempre o porqu e para quem vocs esto

pesquisando? .

1.2 A educao como meio de elevao cultural das massas

Gramsci somente amadureceu sua concepo de educao no perodo em

que esteve preso e quando produziu os Cadernos e as Cartas do Crcere. Mas bem

antes ele j havia se referido base de seus conceitos em artigos escritos,

especialmente para o jornal Avanti! , rgo oficial do Partido Socialista Italiano

(PSI), quando situou sua concepo de educao como momento de crescimento

intelectual e crtico.

No incio do sculo passado, Durkheim (1952, p. 25) afirmava que a palavra

educao tem sido muitas vezes empregada em sentido demasiadamente amplo,

para designar o conjunto de influncias que sobre a nossa inteligncia ou sobre a

nossa vontade exercem outros homens [...].

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Grande parte dos regimes totalitrios usaram, privilegiadamente, a educao

para exercer esse domnio. O fascismo, por exemplo, surgido alguns anos depois

da publicao de Durkheim, como manipulador de massas, a utilizou como

instrumento disseminador de suas ideias e a manuteno da ordem social e poltica

que lhe interessava. O programa do partido definia que a escola deve [...] promover

os melhores elementos de todas as classes para garantir a renovao das camadas

dirigentes (HORTA, 2008, p. 1). Embora em seu programa afirmasse isso, a histria

mostrou que no foi esta a verdade depois de conquistado o poder na Marcha

sobre Roma, em outubro de 1922, marcha que foi caracterizada, inclusive, como

um golpe de Estado, com Mussolini se transformando em um ditador que no tinha a

menor inteno de renovar as classes dirigentes.

Gramsci, no que Coutinho (1981) chama de obras da maturidade, Cartas e

Cadernos do Crcere, apresenta sua viso de educao, mas no faz uma nica

referncia a Durkheim, considerado o criador da sociologia moderna. Se em termos

de sociologia ambos tinham pensamentos at certo ponto conflitantes (SEMERARO,

2006, p. 27), o mesmo no acontecia quando se tratava da educao. At mesmo

quando parece haver discordncia, na essncia o pensamento de ambos o

mesmo, ou seja, a escola, para muito alm de ensinar tem que ter em seu contedo

uma dimenso pedaggica capaz de formar um sujeito crtico em relao sua

prpria realidade.

Durkheim (1952) afirma ser contra o pensamento de uma educao ideal, tal

como definida por Kant (educao igual desenvolvimento da perfeio) e James

Mill (educao fazer do indivduo um instrumento de felicidade para si mesmo e

para os outros). Para ele, defender essa posio significava no se v na educao

um conjunto de atividades e instituies, lentamente organizadas no tempo,

solidrias com todas as outras instituies sociais que a educao exprime ou reflete

[...] (1952, p. 27). Mas ao concluir seu pensamento, Durkheim afirma que as

instituies que a educao exprime no podem ser alteradas a no ser de uma

forma: com a mudana da estrutura da sociedade. Durkheim, no final do sculo XIX

e incio do XX, tinha conscincia de que a educao sempre fora desigual e variava

de casta para casta. De acordo com ele,

[...] a dos patrcios no era a mesma dos plebeus; a dos brmanes no era a dos sudras. [...] Na Idade Mdia, que diferena de cultura

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entre a dos pajens e a dos viles. [...]. Ainda hoje a educao varia com as classes sociais e com as regies. A da cidade no a do campo. A do burgus no a do operrio (DURKHEIM, 1952, p. 29-30).

, em outras palavras, o que viveu anos depois Gramsci e que o levou a

propor uma Escola Unitria, que tinha como ponto central o carter de formao do

indivduo, ou seja, algum com discernimento crtico sobre as informaes que

recebe e com capacidade para analis-las criticamente sem se deixar levar pelas

diferenas de intenes historicamente presentes na sociedade.

No Brasil, de acordo com Bello (2001), a histria da educao pode ser

contada como uma histria de rupturas. As rupturas identificadas por Bello, nos 500

anos da histria da Educao no Brasil, traziam implcitas igualmente o objetivo de

manuteno de uma ordem estabelecida pelas classes dominantes poca de cada

uma dessas rupturas. Estas rupturas podem ser identificadas, de acordo com ele,

em vrios momentos: com a chegada dos portugueses que trouxeram uma

educao tpica da Europa e repressiva para os padres dos povos originrios. Em

seguida, vieram os jesutas e uma nova ruptura se deu com a expulso destes, pelo

Marques de Pombal, que implantou um ensino disperso e fragmentado. Para ele, a

terceira ruptura se deu com a vinda da Famlia Real, quando foram criadas

condies para a corte, que a acompanhou, estudar. Foi neste perodo que foram

criados os Colgios Militares, o Jardim Botnico, ou seja, a educao continuou a

servir apenas aos interesses do estado. Com a proclamao da Repblica, no

houve nenhuma mudana substancial na educao. E nos anos seguintes at os

dias de hoje, de acordo com ele, a educao vem sendo pensada como um mtodo

de domnio, status e poder.

No Brasil, um dos principais tericos da educao a defender o pensamento

de escola, como princpio transformador, foi Paulo Freire. Apesar da importncia de

sua obra, ao morrer, em 1997, havia mais textos publicados no exterior do que aqui.

Entre estes textos havia a crtica educao bancria (FREIRE,1977, p. 66; 1979, p.

38) vigente nas escolas brasileiras, na qual o professor era caracterizado como um

depositrio do conhecimento e o aluno, algum que diria ou semanalmente fazia

retirada deste conhecimento. O ideal para ele que o encontro professor/aluno

fosse uma oportunidade de construo de conhecimento, o qual seria utilizado para

a transformao da sociedade.

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Francesc Ferrer (1859-1909) foi o criador da Escola Moderna, um movimento

que acabou ganhando o mundo e que se resumia no apoio dos trabalhadores

educao anticapitalista e antiestatal. A escola, para Ferrer, deveria ser um espao

de criao de homens e mulheres capazes de construir, destruir