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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
PAULO DIVINO RIBEIRO DA CRUZ
A INFLUÊNCIA DO RACISMO NA EDUCAÇÃO MATO-GROSSENSE
NA TRANSIÇÃO DO SÉCULO XIX AO XX
CUIABÁ-MT 2009
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
PAULO DIVINO RIBEIRO DA CRUZ
A INFLUÊNCIA DO RACISMO NA EDUCAÇÃO MATO-GROSSENSE
NA TRANSIÇÃO DO SÉCULO XIX AO XX
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação na Área de Concentração Educação, Cultura e Sociedade, Linha de Pesquisa História da Educação e Memória.
Orientador: Professor Doutor Nicanor Palhares Sá
CUIABÁ-MT 2009
C955i Cruz, Paulo Divino Ribeiro da. A influência do racismo na educação Mato-grossense na Transição do século XIX ao XX. / Paulo Divino Ribeiro da Cruz. – Cuiabá (MT): O Autor, 2009. 172 p.; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação.
Orientador: Profº. Dr. Nicanor Palhares Sá. Inclui bibliografia.
1. História da Educação. 2. Racismo. 3. Primeira República. 4. Mato Grosso. I. Título.
CDU: 37:817.2
Para Sebastiana Ribeiro da Cruz, minha mãe. Com sua fé inabalável na vida fez-me Mestre Na arte de viver sem medo e lutar sem maldade. À memória de meu pai, Viviano de Oliveira.
Agradeço a Deus pelo milagre de existir e por ter alcançado este patamar. Á minha mãe, Sebastiana, meus irmãos e irmãs: Geraldina, Ironi, Lourenço, Luis, Irani, Marinalva, Regina e a todos os seus, por nunca ter faltado apoio e confiança para levar adiante esta empreitada. Á Ivonete Costa Vila, companheira de muitas lutas e vitórias, sem a ajuda de quem não teria começado, persistido e concluído esta tarefa. Aos amigos-camaradas de ontem, hoje e sempre: Manoel Mota, Pepeu, Kleber, Sílvio, Carlos e Clóvis Rocha, Ronaldo, Janice, Magna, Fred, Julião, Nick, Roseli, Suelme, Eliete, Nara, Miranda, Janete, Chaparral, João Negrão, Sandra, Cosme, Lis Adna, Lis Andreia, Amarildo, Lane, Rose, Formigão, Luiza, Alain, José Rodrigues, Denilson, Joelma, Claudinei, Afrânio, Wagner Lemos, Gilson, Joana, Osmar, Armando, Elói, Waltinho (in memorian), Bolinha (in memorian), Joaquim, Donizete, Lúcia, Mário, Sidnei, especialmente ao irmão-camarada Brás Rubson e ao amigo-irmão-compradre Emanuel Santana e os seus, porque cada um, à sua maneira, colocou sua parte nesta obra coletiva. Aos alunos e professores do GEM – Grupo de Pesquisa em História da Educação e Memória, especialmente ao Prof. Dr. Nicanor Palhares Sá, Prof. Dr. Lourenço Ocuni Cá e também às Profª Drª Maria Aparecida de Matos, Márcia dos Santos Ferreira, Isis de Sousa Longo, Elizabeth Madureira Siqueira, com vocês aprendi a caminhar “sobre os ombros de gigantes”. Aos funcionários das Instituições de Pesquisa: Arquivo Público, Casa Barão de Melgaço, Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional, Biblioteca Estevão de Mendonça, Biblioteca Central da UFMT, Instituto de Memória da Assembléia Legislativa, pelo acesso aos documentos que subsidiam esta pesquisa. Ao Professor Laércio Pulzato (in memorian) e aos professores do Curso de História da UFMT-Rondonópolis: Flávio Nascimento, Paulo Isaac, Ivanildo José, Adilson José Francisco, Luci Leia, Laci Maria Alves, Jocenaide Rosseto, Plínio Feix, Maria Elsa, Ney Iared, Cristiane Amaral, Otávio Canavarros e Jovam Vilela. À Capes, pela Bolsa de Estudos que possibilitou a dedicação á pesquisa. Aos colegas e organizadores do Curso XI Fábrica de Idéias, especialmente à Priscila, Tao, Noelma e Núbia. Também aos Professores: Lívio Sansone, Ângela Figueiredo, Jamile Borges, Maria do Rosário, Cláudio Pereira, Ramón Grosfoguel, Boaventura de Souza Santos, Angela Davis, Gina Dent, Deborah Posel, Peter Geschiere, Henrique Dussel e Severino N`Goenha.
O Temor do Senhor é o princípio do conhecimento;
os loucos desprezam a sabedoria e a instrução.
Provérbios 1,7
RESUMO
Esta Dissertação de Mestrado analisa a influência do racismo na educação mato-grossense na transição do século XIX para o XX. Tendo como ferramentas de análise os conceitos de Eurocentrismo, Colonialidade do poder e Racismo Epistemológico, além das contribuições de Bourdieu e Foucault, investigo a forma como as concepções racistas européias influenciaram o campo educacional e a instrução pública primária em Mato Grosso, além de condicionarem a constituição da percepção social de povo e de nação, influenciando instituições de pesquisa e de ensino, principalmente as escolas primárias. Demonstro que o racismo epistemológico foi usado como instrumento ideológico e cultural para que as instituições educacionais se silenciassem sobre os processos de escolarização de negros, pardos e brancos pobres ao mesmo tempo em que elaboravam estratégias de dominação desses grupos populacionais. Explico que em mato Grosso a elite dirigente partiu de uma visão racista da realidade para criar um sistema escolar indutor de um processo civilizatório discriminatório em relação a negros, pardos e brancos pobres ao distinguir o conhecimento europeu ocidental como categoria superior em detrimento de todas as outras formas de produção de conhecimento. Analiso os desdobramentos das políticas públicas educacionais e das concepções educacionais das elites letradas sobre a instrução pública primária mato-grossense, na transição do século XIX para o XX, mais precisamente na Primeira República, de 1889 – 1930. Averiguo de que forma a instrução publica primária incorporou os conceitos raciais presentes no projeto político republicano das elites que definiu as concepções de povo e nação, e como elas interferiram no acesso e na permanência de negros, pardos e brancos pobres na instrução pública primária. Palavras-chave: História da Educação, Racismo, Primeira República
ABSTRACT
This Dissertação de Mestrado analyzes the influence of racism in the education weeds-grossense in the transistion of century XIX for the XX. Having as analysis tools the concepts of Eurocentrismo, Colonialidade of the power and Epistemológico Racism, beyond the contributions of Bourdieu and Foucault, I investigate the form as the European racist conceptions had influenced the educational field and primary the public instruction in Mato Grosso, beyond conditioning the constitution of the social perception of people and nation, influencing education and research institutions, mainly the primary schools. I demonstrate that epistemológico racism was used as ideological and cultural instrument so that the educational institutions if silenced on the processes of escolarização of blacks, poor mediums brown and whites at the same time where strategies of domination of these population groups elaborated. I explain that in Mato Grosso the leading elite left of a racist vision of the reality to create an inductive pertaining to school system of a discriminatory civilizatório process in relation the poor blacks, mediums brown and whites when distinguishing the European knowledge occidental person as superior category in detriment from all the other forms of knowledge production. I analyze the unfoldings of educational the public politics and the educational conceptions of the elites scholars on the public instruction primary weeds-grossense, in the transistion of century XIX for the XX, more necessarily in the First Republic, of 1889 - 1930. I inquire of that it forms the instruction publishes primary incorporated the racial concepts gifts in the project republican politician of the elites who defined the conceptions of people and nation, and as they had intervened with the access and the permanence of blacks, poor mediums brown and whites in primary the public instruction. Keywords: History of the Education, Racism, First Republic
SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 11 2 - COLONIALIDADE, EUROCENTRISMO E RACISMO EPISTEMOLÓGICO .............................................................................. 31
2.1 – COLONIALIDADE E EUROCENTRISMO .................................................... 31 2.2 – O RACISMO ESPISTEMOLÓGICO ............................................................... 47
3 - A EPISTEMOLOGIA RACISTA DA EDUCAÇÃO REPUBLICANA ................................................................................... 61
3.1 – RAÇA E CIVILIZAÇÃO EM MATO GROSSO ............................................. 61 3.2 – AS CONCEPÇÕES DE EDUCAÇÃO E DE ESCOLA NOS DISCURSOS DAS ELITES .............................................................................................................. 74 3.3 – ACESSO E PERMANÊNCIA NA ESCOLA PRIMÁRIA ............................... 97
4 – PRÁTICAS RACISTAS E SILÊNCIO OFICIAL ............................................ 113
4.1 – A PRESENÇA AUSENTE E O SILÊNCIO OFICIAL .................................. 113 4.2 – MORALISMO, HIGIENISMO E SANITARISMO: O BIOPODER RACISTA ........................................................................................ 136
5 - CONSIDERACOES FINAIS ............................................................................... 160 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 168
INTRODUÇÃO
Esta Dissertação de Mestrado é parte de um esforço coletivo do GEM - Grupo
de Pesquisa História da Educação e Memória, que no ano de 2007 iniciou uma
investigação sobre a educação dos negros no final do Império e início da República, em
Mato Grosso. Incluindo esta, duas outras Dissertações sobre a temática serão defendidas
no início de 2009.
Partindo do Pensamento Crítico de Fronteira apresento uma reflexão teórica
sobre a Colonialidade do poder, o Eurocentrismo e o Racismo Epistemológico como
partes fundamentais da educação escolar durante o período da Primeira República. É
uma tentativa de identificar os valores culturais eurocêntricos dentro da concepção
educacional nos discursos das elites letradas mato-grossenses sobre a educação formal.
Além disso, almejo demonstrar que o Racismo também esteve relacionado a
práticas de cunho moralista, higienista e sanitarista no âmbito da organização do ensino,
dos conteúdos pedagógicos e no controle dos alunos. Faço também uma discussão sobre
a forma como as concepções culturais identificadas com o eurocentrismo condicionaram
uma visão racista e preconceituosa em relação aos mato-grossenses, principalmente os
negros, pardos e brancos pobres.
Para realizar essa reflexão teórica sobre o papel do racismo na constituição do
campo educacional, uso também como instrumentos de análise os conceitos de
Violência Simbólica, Habitus, Capital Cultural, Campo Cultural e da Escola como
reprodução das desigualdades sociais, Bourdieu (2005) e de Economia do Castigo,
Assujeitamento, Disciplina e Biopoder, Foucault (1994).
Os conceitos foram usados para realização de uma análise documental em fontes
primárias consultadas nas seguintes instituições: Arquivo Público do Estado de Mato
Grosso, Casa Barão de Melgaço, Biblioteca Pública Estevão de Mendonça, Arquivos do
NDIHR – Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional da UFMT,
Biblioteca Central e Setorial do IE da UFMT, Arquivo do Grupo de Pesquisa História
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da Educação e Memória, Biblioteca do Liceu Cuiabano e Arquivo da Assembleia
Legislativa de Mato Grosso.
Nesses locais, pesquisei Relatórios de Diretores da Instrução, Mensagens de
Presidentes da Província, Legislação Educacional do Império e início da República,
livros e jornais do período. Essas fontes documentais foram confrontadas com os
conceitos de Colonialidade do poder, Racismo Epistemológico, além de conceitos de
Bourdieu (2005) e Foucault (1987).
Os documentos – notícias de jornais do período, Relatórios de Diretores da
Instrução e de Presidentes (depois Governadores) do Estado, não são apresentados para
discutir as especificidades do processo educacional em Mato Grosso, mas apenas para
exemplificar a discussão teórica. Os recortes de jornais são analisados como notícias,
sendo que não realizei uma pesquisa específica sobre as características de cada um dos
jornais ou ainda sobre o papel da imprensa mato-grossense do período.
Esta Dissertação não propõe um estudo exaustivo sobre todas as formas de
racismo constatadas historicamente em todas as épocas e lugares. Raça e racismo são
conceitos bastante controvertidos dos quais se pode deduzir inúmeras interpretações.
Para Ellis Cashmore (2000) esta é uma palavra usada com vários sentidos:
Até o final da década de 1960, a maioria dos dicionários e manuais a definiam como doutrina, dogma, ideologia ou conjunto de crenças. O elemento essencial dessa doutrina era que a “raça” determinava a cultura, e dela derivavam as alegações de superioridade racial. (...) Um terceiro uso do termo pode ser encontrado nas obras acadêmicas. Diz-se que a expansão do capitalismo no Novo Mundo necessitou da exploração da mão-de-obra africana. A exploração poderia ser mais efetiva se a mão-de-obra negra pudesse ser tratada como um bem; para tanto, criou-se todo um complexo para facilitar isso. As crenças a respeito da inferioridade dos negros podem ser adequadamente compreendidas apenas como parte de uma nova criação histórica que nos séculos subseqüentes foi modificada justamente com a estrutura econômica. O nome desse complexo é racismo. (CASHMORE, 2000, p. 458) (grifos meus)
De acordo com Cashmore (2000), o racismo tanto pode se referir a um conjunto
de crenças, idéias, doutrinas ou dogmas; quanto de práticas e atitudes, sendo que o
elemento essencial é a percepção/afirmação social de que a raça determina a cultura. É
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preciso, pois, que “raça” se refira a certos atributos físicos e que esses atributos
determinem a cultura.
É preciso também que se parta do pressuposto de que a humandidade esteja
dividida em grupos unidos por atributos físicos que os distinguam entre “superiores” e
“inferiores”, sendo esses mesmos atributos os que condicionam a existência de culturas
“superiores” e “inferiores”, o que por sua vez explicaria e justificaria a dominação e a
exploração – até mesmo o extermínio – de um grupo por outros.
Note-se que Cashmore (2000) relaciona o racismo à crença na inferioridade
racial dos negros em relação aos brancos, articulada com a expansão européia capitalista
no Novo Mundo, o que evidentemente não significa que esta seja a única forma possível
nem que o racismo seja simplesmente um dos efeitos da dominação econômica.
De fato, o racismo de brancos contra negros não é a única forma de racismo
possível nem a única que se manifestou na história da humanidade. No entanto, o tipo
de racismo a que me refiro doravante é exclusivamente o racismo dos povos brancos
europeus contra os povos negros africanos, principalmente a forma como se manifesta
na educação escolar do Brasil durante a Primeira República.
Cashmore (2000) destaca também que o conceito de racismo está intimamente
ligado ao de raça, sendo que ambos os conceitos são mais usados com base na
construção histórica verificada a partir do século XIX:
A observação de que apenas no século XIX a idéia de “raça” passou a significar uma classificação tipológica das espécies humanas (asseverando que as características biológicas determinavam as características culturais e psicológicas) sugeriu a eles que “racismo” seria o nome certo para identificar a doutrina inicialmente desenvolvida em meados do século XIX que alegava ter caráter científico. Como conceito, portanto, o racismo distinguiria as reivindicações e argumentos que asseveram explicitamente que as características biológicas das pessoas são sinais de suas características psicológicas e culturais. (CASHMORE, 2000, p. 460) (grifo meu)
A idéia de que a raça humana pudesse ser dividida em grupos distintos baseados
em diferenças biológicas sempre esteve presente nas sociedades, mas foi no período
compreendido entre o final do século XIX e o início do século XX que tal idéia ganhou
o status de disciplina científica. Por essa época o pensamento científico e na esteira dele
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a autoridade social dos cientistas hegemonizou a cultura ocidental de tal forma que
passou a justificar cientificamente as desigualdades sociais então existentes.
É somente a partir da segunda metade do século XX que a ciência deixou de ser
usada para se fundamentar a existência de raças humanas. Até os nossos dias persiste o
senso comum – e até a ideologia de alguns cientistas – de que possam existir raças
humanas. De acordo com Nascimento (2002),
O racismo é uma crença infundada na existência de raças na espécie humana atual (homo sapiens sapiens) e na superioridade de uma(s) raça(s) sobre uma ou mais raças. O Projeto Genoma Humano e a CELERA Co. retiraram a base para a procura de uma diferença biológica apregoada pelos racistas que buscavam comprovar, avidamente, assim, uma(s) diferença(s) congênita(s) para hierarquizar as “raças” humanas. Sequer existem raças na espécie humana e sendo assim o racismo perde qualquer sustentação biológica e psicológica. As diferenças sociais existentes entre os seres humanos não tem nenhum fundamento, apoio ou sustentáculo natural. As desigualdades étnicas são devidas às formas distintas de injustiças e opressões sociais existentes nas nossas sociedades. Os seres humanos nascem iguais em capacidade e potencialidades; as formações sociais concretas os tornam desiguais para a preservação de interesses e privilégios dos ricos e poderosos, de seus aliados e apaniguados, inconscientes na maior parte dos casos, e dos remediados, interessados na manutenção exclusiva do status quo. (NASCIMENTO, 2002, p. 174)
Partindo-se de Cashmore (2000) e também de Nascimento (2002), pode-se
afirmar que o racismo é uma estrutura de dominação baseada na afirmação teórica e
prática do pressuposto da existência de raças humanas e de uma hierarquia entre elas.
Tanto a cultura quanto a biologia são interpretadas com base nesse pressuposto e as
diferenças e desigualdades entre as supostas raças humanas é que explicariam as
diferenças e desigualdades sociais, culturais e econômicas.
Por outro lado, o uso da expressão “raça” pode não se referir necessariamente a
uma visão racista de mundo e/ou de homem. Geralmente quando o conceito de raça está
relacionado com supostas diferenças biológicas no nível da espécie o objetivo é argüir
uma justificativa pseudo-científica para as desigualdades sociais. Por outro lado, este
conceito também pode estar relacionado a necessidade de se distinguir histórica e
socialmente um determinado grupo humano, ou seja, a raça pode ter uma conotação
histórica e social não necessariamente ligada à supostas diferenças e/ou desigualdades
biológicas.
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Um dos efeitos da apropriação científica do conceito de raça, ocorrido na esteira
da consolidação social da ciência moderna, foi o de que a “raça” passou a ser
identificada com as ciências biológicas e da natureza, que historicamente são mais
antigas e consolidadas que as ciências sociais e humanas.
Disso decorreu que o conceito de raça, apropriado pela medicina e biologia,
partia do pressuposto da existência de diferenças biológicas fundamentais, no nível da
espécie. Por isso, todo esforço dessas disciplinas científicas foi no sentido de provar a
existência dessas diferenças, dessas desigualdades biológicas fundamentais: as “raças
humanas” seriam diferentes e desiguais entre si como se fossem espécies diferentes.
Um conceito que sempre aparece relacionado com a idéia de raça é o
“racialismo”. Racialismo quer dizer, grosso modo, certa maneira de se organizar a
sociedade a partir das raças que compõem essa sociedade, ou ainda uma forma de se
investigar a realidade social que leva em conta os aspectos raciais. Como raça pode ser
tomada em seu sentido histórico e social, Racialismo não significa necessariamente
racismo.
Se raça e racismo são conceitos altamente controvertidos, a discussão tende a
acirrar com relação ao conceito de racialismo. Este tem uma forte conotação vinculada
ao racismo científico que permeou as disciplinas científicas durante os séculos XIX e
XX e influenciaram políticas racialistas racistas na Alemanha nazista, e a eugenia norte-
americana.
Como um conceito fundado nas ciências biológicas, o racialismo parte do
pressuposto da existência biológica de raças humanas e, portanto, advoga que tais
distinções devem ser estabelecidas na legislação a fim de que cada raça siga sua lógica
de “evolução” separada uma das outras.
Por outro lado, quando se parte do conceito de raça como uma construção
histórica e social, o racialismo postula a necessidade de se incluir o quesito cor nas
pesquisas sobre a população e nas instituições que atendem às demandas de educação,
saúde e outras pendências públicas, como forma de subsidiar a ação governamental no
atendimento a cada um dos setores raciais da população.
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Não é uma discussão meramente semântica, trata-se sempre de uma escolha
teórica e metodológica com implicações políticas e sociais, pois a adoção de um
conceito de racialismo, seja o fundado na raça como atributo biológico, seja como
construção histórica e social, redundará na opção por duas concepções de políticas
públicas totalmente diferentes: políticas públicas universalistas, vinculadas ao
pensamento “republicano” e na igualdade jurídica; ou políticas de Ações Afirmativas,
como as reivindicadas pelos movimentos negros.
Seja como for, o racialismo pode ser um indicador de racismo, mas pode ser
também uma forma de se combater as hierarquias raciais. Por outro lado, a inexistência
de racialismo não quer dizer necessariamente a inexistência de racismo. Tudo depende
da forma como tais conceitos são construídos histórica e socialmente em cada uma das
sociedades humanas.
Por exemplo: desde o início da colonização européia na África do Sul até o fim
do regime denominado “Apartheid”, a classe dominante daquele país, composta
exclusivamente por brancos, utilizava-se do racialismo racista como uma política de
Estado. Além de partir de um pressuposto racista, ou seja, não apenas considerava que
todos os seres humanos eram racialmente desiguais, como também a organização do
sistema do Apartheid dava-se com base em um levantamento, realizado em todo o país,
que visava classificar todos os habitantes do lugar de acordo com a raça a qual
pertenciam.
De acordo com Posel (2001), essa classificação foi realizada a partir de uma
espécie de “censo”, quando investigadores contratados pelo Estado visitaram todos os
domicílios do país classificando os indivíduos de acordo com a cor da pele, a língua, a
religião, os hábitos alimentares e outros aspectos que poderiam revelar a raça a qual
pertenciam esses indivíduos.
O país foi mobilizado, tendo a sociedade, através do Estado, criado inúmeras
formas de classificação racial a partir da qual o Apartheid constitui-se como uma
sociedade explicitamente racialista e racista. Racialista porque a base de dados era de
ordem racial, racista porque raça possuía uma conotação biológica e se pressupunha a
superioridade de uns sobre outros.
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Embora o regime do Apartheid se baseasse numa série de leis que regulavam as
hierarquias sociais entre os agrupamentos negros e os brancos, a Lei de Registro
Populacional (1950) pode ser considerada como a mais importante delas, pois nela se
baseou todo o regime. Essa lei requeria que todos os cidadãos se registrassem como
negros, brancos ou mestiços.
Posel (2001) afirma que entre os brancos pobres, que haviam passado por um
processo de miscigenação com os negros antes da aprovação da lei, havia um medo de
ser confundido com os negros, o que implicaria na sua exclusão do sistema de
supremacia branca. Por outro lado, a autora afirma que essa prática de classificação
racial subseqüente a aprovação da lei nunca se apresentou como objetiva ou científica.
As diferenças entre os grupos raciais eram fundadas na observação empírica cotidiana e
não foram realizadas por especialistas.
Os classificadores eram pessoas comuns, cujos grupos, chamados de "equipes
cruas", eram oriundos dos extratos mais baixos da população branca pobre. Posel
Justifica a adoção dessa estratégia explicando que o sistema do Apartheid, para ser
implantado, exigia uma classificação muito rápida de milhões de pessoas. Por outro
lado, de acordo com ela, poucas pessoas contestaram esse sistema de classificação
racialista.
Isso se justificava porque o modelo de classificação posto em vigor ia de
encontro ao que o senso comum proclamava como uma verdade racial. Embora o
sistema se baseasse na dominação de uma minoria branca sobre uma maioria negra, as
práticas racialistas se adequavam à auto-declaração. Ou seja, não havia grandes
diferenças entre as classificações realizadas pelas "equipes cruas" e a auto-classificação
adotada pela população.
Com o final do Apartheid, os grupos que antes eram dominantes a partir do
racialismo racista passaram a argumentar que o Estado não deveria mais usar uma base
de dados baseada no conceito de raça para se organizar as políticas sociais. O
argumento era o de que, uma vez provada a inexistência de raças e o sistema não mais
era racista, então não se haveria necessidade de se declarar a raça dos indivíduos, pois
todos passavam a ser iguais.
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A ampla maioria da população, representada pelo CNA – Congresso Nacional
Africano e pelos movimentos ligados aos povos negros entendeu de uma forma
diferente daquela proposta pelos brancos que haviam dominado. A perspectiva deles era
a de que fosse usada a mesma linguagem de dados do Apartheid para verificar se a vida
dos negros sofreria alterações no pós-regime.
Para eles, o fim do racialismo, isto é, da classificação das pessoas em brancos e
negros significaria simplesmente a impossibilidade de se investigar as condições sociais
nas quais viviam cada um desses grupos provocando a cristalização das relações de
poder, garantindo a manutenção da hierarquia racial vigente à época do Apartheid.
Por isso o entendimento foi o de que o sistema de classificação racial, o
racialismo deveria ser usado como um instrumento para que o Estado e a sociedade
investissem em políticas públicas que visassem tornar a sociedade mais equânime.
Assim, adotou-se um sistema racialista não-racista, já que o sistema de identificação
racial foi mantido, sem a conotação biológica, como forma de se partir das condições
econômicas e sociais criadas pelo antigo sistema para se superar as enormes diferenças
existentes entre os grupos negros e brancos.
É por isso que o racialismo não significa necessariamente racismo. São dois
conceitos distintos, que andam juntos, mas não são idênticos. O fato de que a história
quase sempre apresente um sistema racista apoiado em medidas racialistas serve para
aumentar essa confusão entre os dois conceitos. Mas é evidente que quando se parte de
um conceito de raça com conotação histórica e social pode-se investigar a realidade
histórica e social dos grupos raciais que compõem uma determinada sociedade e assim
subsidiar tanto a luta dos segmentos dominados quanto a adoção de políticas públicas
que visam minorar ou extinguir as diferenças entre eles.
O exemplo sul-africano demonstra que se uma sociedade é historicamente
estruturada de forma racializada, os dados que permitem essa estruturação podem ser
usados no sentido de se promover a derrocada do sistema racista. O que não deixa de ser
paradoxal, pois em certa medida a redefinição do papel social de cada uma das raças e o
uso de terminologias racialistas pode ser lido como um reforço na noção do senso
comum sobre a existência de raças. Por outro lado, a superação do racismo como
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hierarquia social não pode ser alcançada senão com um enfrentamento direto do
fenômeno, isto é, com o reconhecimento da sua existência.
Uma situação inversa aquela da África do Sul pós-Apartheid está em vigor no
Brasil atual. Aqui, desde a emergência do poder republicano inexistem medidas
racialistas oficiais, mas o racismo é a principal hierarquia existente entre os grupos
sociais. Como produto de sua própria evolução histórica, aqui não se verificou o
estabelecimento de uma sociedade oficialmente racializada, sendo que na
contemporaneidade não se verifica uma diferenciação social fundada na racialização
oficial. No entanto, o racismo foi um fator preponderante na nossa formação sócio-
econômica e ainda continua em plena atividade na construção das hierarquias sociais.
Além disso, se durante o período de formação das atuais hierarquias – a
passagem do século XIX para o XX – as elites balizaram suas políticas públicas e de
formatação do Estado Nacional no pressuposto da superioridade racial dos brancos
sobre os negros e os indígenas, pois partiam das idéias do racismo científico. Na
atualidade essas mesmas hierarquias são mantidas através da negação da existência de
raças: como oficialmente não existem raças, as políticas públicas são universalistas e em
momento algum buscam o atendimento das especificidades dos grupos raciais,
considerados inexistentes.
Por isso a luta dos povos negros tem consistido inicialmente num esforço para
que o Estado e a sociedade reconheçam oficialmente a existência das desigualdades
raciais, permitindo e incentivando que suas instituições partam do conceito de raça
como construção histórica e social para investigar a realidade dos diversos grupos
raciais que compõem o povo brasileiro e em seguida adotem mecanismos de promoção
da igualdade racial.
Encontra-se em tramitação no Congresso Nacional, desde 2003, o Estatuto da
Igualdade Racial, uma proposta de intervenção governamental cujo objetivo é o de
promover a igualdade econômica e social entre os grupos raciais que compõem a
sociedade brasileira.
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Um dos principais argumentos usados por aqueles que se opõem a implantação
do Estatuto é o de que sua aprovação oficializaria ou criaria um país dividido em raças.
Como partem do pressuposto de que inexistem desigualdades entre os grupos raciais ou
da afirmação da não existência do racismo no Brasil, a solução, para estas pessoas, seria
a adoção de políticas públicas “republicanas” ou “universais”, que atendessem
indistintamente todos os brasileiros pobres e não apenas aqueles de pele negra.
Os que defendem a aprovação do Estatuto, por sua vez, argumentam que as raças
são uma realidade histórica e social e que o Brasil foi e é um país racista, sendo as
condições sócio-econômicas diferenciadas nas quais vivem brancos e negros a prova
disso. Assim, o vetor “raça” poderia e deveria ser usado primeiramente para que o
Estado, através de suas instituições de pesquisa, analisasse a real situação de cada um
dos grupos raciais e com base nesses dados passasse a investir os recursos públicos com
objetivo de diminuir ou até de acabar com as desigualdades raciais vigentes.
Um desses investimentos, e que vem sendo realizado de forma autônoma por
algumas Universidades públicas são as chamadas “cotas raciais”, quando um percentual
de vagas é reservado para ser disputado apenas pelos que se declaram negros ou pardos.
Além disso, algumas instituições avançaram para o apoio a esses estudantes cotistas
com bolsas de permanência, auxílio alimentação e acompanhamento, para que eles
estejam em condições de igualdade com os brancos na disputa pelos melhores espaços
dentro das universidades.
Isto demonstra mais uma vez que racialismo e racismo não são conceitos
idênticos e que o racialismo pode ser usado num sentido não-racista, ou melhor,
demonstra que o combate ao racismo deve começar pelo reconhecimento da sua
existência, pelo desvelamento das formas como ele se manifesta, da maneira como
historicamente ele se constituiu em uma importante hierarquia social.
Retornando à discussão sobre o conceito de raça, a perspectiva epistemológica
das ciências naturais exerceu uma pressão muito forte na formação da perspectiva
epistemológica das ciências humanas e sociais, forçando essas últimas a adotarem
parâmetros de validação usados pelas primeiras. O conceito de raça nasceu e se
desenvolveu sob esse prisma.
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E por isso, quando, a partir de meados do século XX as ciências biológicas e
naturais, principalmente a engenharia genética contemporânea, começam a demolir os
argumentos científicos sobre a existência de raças humanas, a certeza da inexistência de
raças passa a ser usada como argumento pelos que defendiam a existência de raças para
que se mantivesse a hierarquia entre as raças e se evitasse a adoção de mecanismos
sociais de equalização das diferenças entre os diversos grupos.
Contemporaneamente, os estudiosos do assunto adotam um conceito de raça que
se relaciona com a sociedade e com a história: embora a raça seja um conceito biológico
superado, o racismo permanece atual em todos os sentidos e por isso o conceito de raça
como uma construção histórica e social continua sendo usado a fim de que se possa
investigar a trajetória de cada um dos grupos que compõe a sociedade e demonstrar que
o racismo continua existindo.
As raízes do racismo não estão nas diferenças genéticas, mas na percepção social
das diferenças fenotípicas que são social e historicamente interpretadas como
desigualdades e usadas para justificar a imposição e/ou a continuidade de um sistema de
domínio de um grupo social por outro. Embora as raças humanas nunca tivessem
existido do ponto de vista biológico/genético, as raças possuem uma existência social e
histórica a partir do conflito estabelecido entre grupos humanos portadores de
características fenotípicas diferentes.
Outro aspecto que merece ser citado é o de que muitos estudiosos do assunto
tratam em termos de “relações raciais” para se designar a forma como os grupos raciais
se comportam, como se houvesse uma horizontalidade entre os mesmos. Figueiredo e
Grosfoguel (2007) chamam a atenção para o fato de que:
O campo de estudos conhecidos como “estudos das relações raciais” no Brasil constitui o objeto de conhecimento historicamente produzido por acadêmicos brancos cuja epistemologia baseia-se no estudo sobre negros, por isso mesmo, a noção de estudos sobre as “relações raciais” mantém o mito de uma horizontalidade entre os grupos racialmente diferenciados. Julgamos ser mais adequado falarmos de “hierarquias raciais” já que enfatizaríamos a verticalidade das relações sobre a suposta horizontalidade expressa na definição “estudos das relações raciais”. (FIGUEIREDO; GROSFOGUEL, 2007, p. 36) (grifo dos autores).
21
Com isto pretendo reafirmar que esta Dissertação não é um estudo
“descomprometido”, mas, ao contrário, se coloca na perspectiva epistemológica dos
pesquisadores negros que estudam as condições históricas e sociais de formação do
povo negro no Brasil. É uma pesquisa científica objetiva na medida em que documentos
históricos são interpretados por uma teoria e uma metodologia científicas. Mas não tem
a pretensão de argüir uma suposta neutralidade: todo esforço deste trabalho é o de se
colocar na perspectiva epistemológica dos racialmente dominados.
Uma crítica interessante aos pressupostos do universalismo europeu – que se
fundamenta na neutralidade científica – é realizada por Santos (2008). De acordo com
este autor o conhecimento científico é antes de tudo uma produção social cuja
objetividade não pode ser confundida com neutralidade. Ele parte da idéia de que o
paradigma científico dominante enquanto modelo de racionalidade do qual se origina as
ciências modernas é um produto da revolução científica ocorrida no século XVI e por
isso carrega todas as influências do projeto colonizador europeu verificado a partir de
então.
Embora Santos (2008) sublinhe a importância histórica do nascimento de tal
paradigma, argumenta que esse tipo de racionalidade é substancialmente totalitário. Isto
porque, de acordo com ele, a racionalidade moderna tem como um de seus pressupostos
mais importantes exatamente a desqualificação automática de todas as outras
racionalidades, negando qualquer forma de saber que não siga as regras da
racionalidade ocidental, estipuladas como verdades inquestionáveis:
Sendo um modelo global, a nova racionalidade científica é também um modelo totalitário, na medida em que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que não se pautam pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas. Esta é a sua característica fundamental e a que melhor simboliza a ruptura do novo paradigma científico com os que o precederam. (SANTOS, 2008, p. 21)
De acordo com Santos (2008), cientistas e filósofos que ajudaram a dar forma e
conteúdo a esse paradigma científico dominante possuíam uma atitude mental, uma
visão de mundo, que se consubstanciava, ao mesmo tempo, em uma arrogância e uma
confiança epistemológica e que se traduzia em uma luta contínua contra toda a
autoridade e dogmatismo da ciência aristotélica medieval:
22
Cientes de que o que os separava do saber aristotélico e medieval ainda dominante não é apenas nem tanto uma melhor observação dos fatos como sobretudo uma nova visão do mundo e da vida, os protagonistas do novo paradigma conduzem uma luta apaixonada contra todas as formas de dogmatismo e de autoridade. (SANTOS, 2008, pp. 23-24)
Talvez isso possa explicar a necessidade de que tais filósofos e cientistas
fizessem uso de uma razão totalitária, já que o pode contra o qual lutavam era ainda
mais totalitário. A leitura que Grosfoguel (2008, 2008b) faz desse movimento é a de que
a autoridade científica de Aristóteles e da Igreja Católica foram derrotadas pelo
paradigma científico moderno não quando este destruiu todas as formas de autoridade,
mas quando ocupou o lugar epistêmico da autoridade científica dominante.
Como explicarei adiante, Grosfoguel (2008, 2008b) afiram que Descartes
substituiu a figura de Deus, ocupando com sua epistemologia a autoridade que dele
derivava. O importante é ressaltar que os pressupostos que fundam todos os paradigmas
científicos são concebidos no quadro das relações sociais determinadas social e
historicamente e realizadas por sujeitos históricos e sociais, o que implica que a ciência
não pode estar desvinculada de tais determinações.
Por isso parto do pressuposto de que toda ciência ou filosofia tem conotação
política. E de que a pior de todas essas conotações é quando a filosofia ou a ciência se
apresenta como neutra, desprovida de cor partidária, de vinculação com classe ou grupo
social. Outro exemplo de como o surgimento da filosófica está condicionado pelas
contradições da sociedade onde emerge é dado pela Filosofia Africana.
N’Goenha (1993), afirma que a Filosofia Africana toma o partido do povo
negro, é uma filosofia política e não nega isso. De acordo com ele, enquanto as
tradições filosóficas ocidentais invariavelmente escondem suas vinculações sociais, a
filosofia africana prega o desvelamento das condições sociais de dominação dos povos
africanos:
Na origem da reflexão filosófica africana, está portanto a necessidade de afirmar uma humanidade negada. Todas as correntes e linhas de pensamento que prepararam o nascimento de uma consciência africana, que se quer especificamente filosófica, têm isto em comum: todos eles se dedicaram a reabilitar o homem negro e a sua histórica. O objetivo era, assim por dizer, libertar o negro do papel de objeto da história. (N’GOENHA, 1993, p. 111)
23
Por isso, contrariamente aos postulados da filosofia e da ciência ocidental,
N’Goenha (1993) desenvolve o raciocínio de que o papel da filosofia é o de desvelar as
condições históricas e sociais que negam a humanidade dos povos africanos,
possibilitando assim a sua libertação:
O filósofo é um homem que procura explicar-se a si mesmo e a sua época, o sentido da vida, o destino do homem, e as suas possibilidades de realiza-lo; ele tenta formular os sonhos e as esperanças mais altas da sua comunidade e da comunidade humana em geral e levar esta última a tomar consciência; ele tenta abrir ao homem a via em direção dele mesmo, isto é, em direção da comunidade e da individualidade. (N’GOENHA, 1993, p. 117)
Sendo assim, a tentativa de se explicar racionalmente a emergência do racismo e
das teorias científicas que o fundamentam, deve levar em conta que tanto a
racionalidade quanto a ciência são histórica e socialmente produzidas e que, portanto,
podem ser e efetivamente foram usadas como reforço às hierarquias raciais surgidas nos
processos históricos das mais diversas civilizações.
O racismo pode ser compreendido como uma maneira de identificação de grupo
social, sendo usado: para a defesa de um determinado território, ou para justificar o seu
domínio por um determinado grupo social; para regular o acesso e/ou o controle aos
meios de produção ou às fontes de energia; para justificar e permitir a manutenção de
uma determinada forma de organização social.
Pode ser ainda um método de investigação, teoria, epistemologia, ou explicação
do mundo, da sociedade e da vida; como teoria populacional/sexual, o que permite a
intervenção na formação/continuidade histórica de uma determinada população ou povo
e ainda como forma de regular as instituições familiares e os intercâmbios sexuais.
De acordo com Moore (2007), sempre que o racismo emergiu na História da
humanidade, pode ser identificado como um processo caracterizado por três aspectos
distintos, porém convergentes e articulados: a percepção social das diferenças
civilizatórias e culturais como sendo diferenças fenotípicas; a transferência do conflito
concreto para a esfera da simbologia; e o estabelecimento de uma ordem social fundada
em uma hierarquia racial. Esquematicamente, essas três dinâmicas sempre se
apresentariam da seguinte forma:
24
a) o processamento simbológico pelo qual a coletividade, convertida em grupo dominante, secreta uma consciência grupal para a rejeição de uma alteridade especificamente fenotípica, com a finalidade de exercitar uma dominação grupal permanente sobre essa última; a) a organização da sociedade numa ordem sistêmica, segundo um critério especificamente fenotípico, para exercer uma gestão monopolista dos recursos globais, de modo a excluir o grupo dominado e subalternizado; c) a elaboração de estruturas intelectuais normativas (ideologias) especificamente destinadas a: primeiro, regulamentar as relações entre dominados e dominantes; segundo, inculcar um sentimento permanente de derrota no segmento subalternizado; e terceiro, criar uma convicção narcisística de inquestionável superioridade permanente e invulnerabilidade no setor dominante (MOORE, 2007, pp. 247-248).
Segundo este autor, o estabelecimento dessa ordem pigmentocrática implica
numa situação social na qual todas as diferenciações da cor da pele, textura do cabelo,
forma dos lábios e do nariz são usadas para que se determine o status coletivo e
individual das pessoas na sociedade. Como tal ordem é também fenotipofóbica, isto é,
parte do pressuposto que determinados fenótipos são indesejáveis a subalternização dos
dominados confere ao seu fenótipo todos os atributos negativos.
Ele afirma que sociedades como o Brasil se caracterizam por ser um sistema
pigmentocrático fenotipofóbico, ou seja, na mesma medida em que as posições sócio-
econômicas são mediadas pelas características do fenótipo, o fenótipo negro é
identificado com todos os valores negativos, possibilitando assim o domínio dos
brancos sobre os negros.
Por outro lado, em sociedades desse tipo, a pigmentocracia é obtida, sobretudo
através da miscigenação forçada onde as mulheres negras são submetidas aos homens
brancos, o que afasta qualquer ilação a respeito da miscigenação dar origem e suporte a
qualquer “democracia racial”:
Neste tipo de formação as diferenciações de fenótipo e de cor são obtidas mediante uma política deliberada de cruzamentos incessantes, de caráter eugênico, entre o segmento dominado e o segmento dominante. Trata-se sempre de uma miscigenação vertical e unilateral, imposta ideológica e culturalmente pelo segmento dominador. Nesse contexto de “compulsoriedade eugênica”, a miscigenação desempenha uma função normativa central. (...) A política de miscigenação, por via de cooptação racial, faz emergir, permanentemente, setores fenotipicamente diferenciados na população. Por força da disseminação de ideologias de superioridade racial, estes “mestiços” tenderão a gravitar em torno do pólo social e racialmente dominante. Conseqüentemente, esses novos fenotipicamente intermediários tendem a reforçar os dispositivos de dominação postos em prática pelo segmento que ocupa a posição superior. De forma automática, a
25
ordem pigmentocrática, outorga privilégios racializados de toda ordem aos setores “intermediários”, provocando o desligamento desses setores cooptados da população conquistada. Geralmente, esses “mestiços” recusam às alianças, julgadas socialmente improdutivas, com o segmento fragilizado do qual emergiram. Assim, ao se identificar e relacionar quase exclusivamente com o segmento sóciorracial dominante, tanto psicológica como social e biologicamente, essas novas “populações fenotípicas” reforçam a ordem sistêmica prevalecente. (MOORE, 2007, pp. 260-261) (sublinhado do autor).
Com relação às diversas tipologias racistas pigmentocráticas, ele postula que no
Brasil e nos outros países da América Latina vigora o “modelo ibero-americano”,
surgido originalmente no século VIII no Oriente Médio de onde passou à Península
Ibérica através da expansão árabe omíada, tendo chegado ao Novo Mundo com a
colonização deste por Espanha e Portugal a partir do século XVI:
A ordem de castas não existem na América Latina, a exemplo do que acontece na Índia, onde são religiosamente normatizadas pelo hinduísmo. Mas, tanto na Índia quanto na América Latina, a sociedade está funcionalmente hierarquizada segundo critérios eminentemente raciológicos baseados no rank, na cor e no fenótipo. Com efeito, em toda a América “Latina”, encontramo-nos diante de uma realidade pigmentocrática sem castas, na qual a classe social, a linhagem, a estirpe ou raça – na sua definição social e histórica – confundem-se com as diferenciações e gradações fenotípicas. (MOORE, 2007, p. 272) (destaques do autor).
Por outro lado, baseado nas pesquisas do cientista senegalês Cheikh Anta Diop
(1991), Moore afirma que antes da entrada em cena das classes sociais, a sociedade
cindia-se em castas, raças, grupos raciais antagônicos. Em outras palavras, ele sugere
que a divisão por raça antecede a divisão por classe:
Nas relações históricas e sociais entre os povos, o único fator que intervém, ao início, é o do fenótipo; a saber, a aparência física e, conseqüentemente, aquelas diferenças que possam existir neste nível. (...) As leis sobre a luta de classes, tal como definidas pelo materialismo histórico, se aplicam unicamente após o fato de uma sociedade, através da violência, ter sido homogeneizada etnicamente. O materialismo histórico, nas suas análises, ignora praticamente os períodos de lutas bestiais darwinianas que aconteceram antigamente. Isso é lamentável, considerando que a maioria das nações contemporâneas passou por essa fase e que, contrariamente ao que pensava Engels, se trata de uma generalidade e não de uma exceção (...) Os autores que tratam da violência, mas sem ter a coragem de escavar esses níveis primários, onde a violência bestial é praticada em um plano coletivo, e onde todo um grupo humano se organiza, não para subjugar outro grupo, mas para exterminá-lo, completamente, se engajam, conscientemente ou não, em uma operação de pura metafísica, destinada a sublimar essas questões com o fim de aparecer sob um ângulo exclusivamente filosófico. No transcurso da história, cada vez que dois grupos humanos têm-se confrontado em torno à posse de um espaço econômico vital, a menor diferença étnica tem sido amplificada e servido, temporariamente, para estabelecer demarcações
26
políticas e sociais focadas nas diferenças de aparência física, de língua, de religião ou de modos e costumes. (DIOP, 1991, p. 124-125, Apud MOORE, 2007, pp. 161-162 ).
Como se observa, de acordo com o raciocínio de Diop, a amplificação das
diferenças étnicas como motivação ou justificativa para o confronto na disputa por
recursos antagonizam dois grupos. No entanto, isso não quer dizer que um ou os dois
grupos não possuam internamente diferenças de classe. Por isso não se trata de inquirir
se a classe é anterior à raça, ou o contrário; mas de observar que, ao contrário da classe,
o critério de raça permite uma homogeneização do grupo, unificando-o em torno de um
objetivo cujos resultados implicam num benefício coletivo.
Importa, pois, explicar a afirmação de Moore de que as leis da luta de classes se
aplicam somente em sociedades que já estão homogeneizadas etnicamente, ou seja,
apenas em sociedades pós-raciais. Somente a partir daqui pode-se compreender a
perspectiva defendida por Moore e compartilhada pelo Pensamento Crítico de Fronteira
de que o racismo é um dos elementos fundadores do capitalismo moderno e não um dos
seus produtos ideológicos, como afirmam alguns estudiosos.
A função social da ideologia e das práticas de branqueamento através da
Instrução Pública Primária parece então ter sido a forma como as elites dominantes
encontraram para que seus ideais de purificação racial fossem expressos em termos da
necessidade de se ampliar a rede escolar. Por outro lado, a ideologia do branqueamento
se constitui em um dos pilares do racismo no Brasil.
Oracy Nogueira (1985) observa com propriedade que no Brasil o racismo
assume uma feição e um conteúdo diverso daquele que caracteriza as nações européias e
principalmente os Estados Unidos. Fazendo um quadro de referência com as “relações
raciais” nos Estados Unidos, Nogueira esclarece que enquanto no Brasil estruturou-se o
“preconceito de marca”, ou seja, fundado na percepção da cor da pele, nos Estados
Unidos existe o “preconceito de origem”, que remete à ascendência biológica do
indivíduo, independentemente da cor de sua pele.
Por isso, segundo ele, “Dir-se-ia que o preconceito, tal como existe no Brasil, cai
abaixo do limiar de percepção de quem formou sua personalidade na atmosfera cultural
27
dos Estados Unidos.” (1985, p. 72-93). Mais que isso, acrescente-se que o preconceito
racial no Brasil caracteriza-se, sobretudo por quase sempre cair abaixo da capacidade de
percepção de qualquer indivíduo, seja ele branco ou negro, uma vez que suas
manifestações tendem a ser escamoteadas, negadas enfaticamente ou simplesmente
caracterizadas como de fundo econômico e não “racial”.
Ocorre que na Europa e nos Estados Unidos, parte-se sempre da ideologia da
pureza da raça para se afirmar a necessidade de se segregar a população negra ou
aquelas populações que são consideradas um perigo à suposta pureza da raça. Assim,
essa pureza é garantida organizando-se a sociedade de forma a não permitir o mínimo
contato – principalmente o intercâmbio sexual do homem negro com a mulher branca –
entre as raças, daí as políticas públicas em todos os setores – administração pública,
habitação, trabalho, lazer, educação e relações familiares – para obstaculizar ao máximo
o contato entre indivíduos de duas raças diferentes.
Nesses países o racismo emerge como segregação racial, alcançando, inclusive a
forma jurídica, fundada no princípio de “igualdade em separado”. No Brasil, entretanto,
nunca prosperaram formas explícitas de segregação racial. Aqui, mesmo as elites nunca
foram consideradas nem se consideraram puras, do ponto de vista europeu de pureza
dada a enorme evidência do processo de miscigenação ocorrido ao longo da história.
Um dos teóricos racistas que mais influenciaram os pensadores e intelectuais
brasileiros, assim como as elites nacionais, foi o francês Joseph-Arthur de Gobineau
(1816-1882) e o seu Ensaio Sobre a Desigualdade das Raças Humanas (1853-1855).
Essa doutrina propunha três pontos principais: a existência de raças humanas, a
explicação dos processos sociais e históricos pela teoria das raças e a existência de uma
raça superior. De acordo com ele, em linhas gerais, as características das raças eram as
seguintes:
28
Raça/Características
NEGRA AMARELA BRANCA
Intelecto Débil Medíocre Vigoroso Propensões animais Muito fortes Moderadas Fortes Moral Latente Desenvolvida Altamente
desenvolvida
Gobineau defendia também a idéia de que cada raça tinha seu lugar específico na
história e que cada uma seguia uma linha de desenvolvimento separado de todas as
outras. A pior coisa para Gobineau era o cruzamento entre as raças, pois levava a
degeneração das raças puras e produziam indivíduos degenerados, que herdavam as
piores características das raças que se cruzavam. Ele foi ministro da delegação
diplomática da França no Brasil entre 1869-1870, ocasião em que pode “aprimorar”
suas teorias racistas. Eis algumas de suas opiniões sobre o Brasil:
Excetuando a família imperial, todos aqui são mais ou menos mulatos e passam a vida com um palito nos cabelos e um cigarro atrás da orelha. O Rio é uma cidade grande e bonita, mas são os estrangeiros que fazem tudo por aqui. Os brasileiros evitam mover uma palha para fazer qualquer coisa de útil, até mesmo para se afogarem. (RAEDERS, 1996, p. 32)
E também:
uma população toda mulata, com sangue viciado, espírito viciado e feia de meter medo. Nenhum brasileiro é de sangue puro; as combinações dos casamentos entre brancos, indígenas e negros multiplicam-se a tal ponto que os matizes da carnação são inúmeros,e tudo isso produziu, nas classes baixas e nas altas, uma degenerescência do mais triste aspecto (RAEDERS, 1996, p. 39)
E ainda:
Já não existe nenhuma família brasileira que não tenha sangue negro e índio nas veias; o resultado são compleições raquíticas que, se nem sempre repugnantes, são sempre desagradáveis aos olhos.As melhores famílias tem cruzamentos com negros e índios. Estes produzem criaturas particularmente repugnantes, de um vermelho acobreado... a Imperatriz tem três damas de honra: uma marrom, outra chocolate-claro, e a terceira, violeta. (RAEDERS, 1996, p. 40)
E finalmente, comparando os brasileiros a um bando de macacos:
29
Simbá, o marujo, conseguindo chegar à margem do rio, avistou montanhas cobertas de bosques compactos e, no meio de um vale, uma bela e grande cidade cujos monumentos lhe pareceram numerosos e imponentes. Ele se dirige até a cidade, e qual não é a sua surpresa quando percebe que a multidão de gente, que de longe pareceia povoar as ruas, era, na verdade, uma multidão de macacos! Havia grandes e pequenos, novos e velhos; mas todos eram macacos extremamente feios, fazendo caretas atrozes e circulando de um lado para outro, uns apressados, outros não; todos lúgubres. Depois de muito andar a esmo de um lado para outro, Simbá chegou, enfim, ao alto de um bairro, onde avistou um grande palácio que julgou ser o do rei desse povo; e, entrando nos palácios onde os macacos que passeavam nada fizeram para prendê-lo, penetrou nos apartamentos, e depois de atravessar várias galerias teve uma agradável surpresa, ao ouvir o som de uma voz humana; e, de fato, dirigindo-se para o lado de onde vinha a voz, entrou numa sala e viu, finalmente um homem! E este homem lia o Alcoroão. De modo que não apenas encontrara um ser de sua espécie, mas um ser com quem podia se entender. Suponho, madrinha, que com a aguda inteligência que a distingue... você adivinhou que Simbá estava no Brasil, que os macacos eram os brasileiros e que o rei era o imperador. (RAEDERS, 1996, p. 33)
As elites brasileiras contemporâneas a Gobineau não ignoravam que o que ele
expressava, já que o pensamento dele era um senso comum em toda a Europa, cujos
habitantes se arvoravam do direito sagrado de conquistar o mundo como uma
decorrência da sua “superioridade racial” fundada justamente na sua suposta “pureza
racial”.
No Brasil as teorias de Gobineau e de outros racistas famosos, foram adaptadas
levando-se em conta a miscigenação racial, que após certo período em que era
identificada como causa do atraso, passou a ser encarada como um fator positivo, pois
garantiria uma “democracia racial”, principalmente quando estava em curso um
processo de branqueamento, destinado a mitigar ou até mesmo a fazer desaparecer as
influências negras e indígenas da população.
Por isso o racismo teve necessariamente que manifestar-se em termos de um
“ranqueamento” no qual a cor da pele e os atributos do fenótipo são usados para
categorização dos indivíduos em uma escala de valores onde o branco situa-se no topo e
o negro na base, sendo o lugar social, econômico e cultural de cada indivíduo
determinado em termos desse índice de branquitude.
30
2 - COLONIALIDADE, EUROCENTRISMO E RACISMO EPISTEMOLÓGICO
2.1 – COLONIALIDADE E EUROCENTRISMO
O conceito de Colonialidade fixa-se na perspectiva do Pensamento Crítico de
Fronteira e é uma das ferramentas de análise que o sociólogo peruano Aníbal Quijano se
utiliza para criticar o atual padrão de poder mundial dentro do qual se insere a América
Latina. Colonialidade do poder se refere então a uma situação na qual a sociedade
permanece colonial em suas relações de poder, mesmo após o processo de
descolonização política formal e o estabelecimento de nações independentes, como o
ocorrido com a América Latina e o Brasil a partir do século XIX.
Assim, a colonialidade do poder e o colonialismo devem ser vistos como
momentos de um mesmo processo histórico. A grande distinção entre o conceito de
Colonialidade e os outros que analisam o mesmo fenômeno é que para Quijano a
característica fundamental desse padrão de poder é a idéia de raça contida no
Eurocentrismo:
Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população mundial de acordo com a idéia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo. (QUIJANO 2005) (grifo do autor)
Quijano considera que a Colonização do Novo Mundo foi desde o princípio o
estabelecimento de hierarquias econômicas, sociais e culturais, organizadas a partir da
noção de raça. O homem branco europeu paulatinamente impôs o seu modo de vida às
populações conquistadas integrando as mesmas de forma subordinada num sistema-
mundo fundado na hierarquia internacional do trabalho caracterizada pela submissão
dos povos indígenas e africanos conquistados aos conceitos e valores europeus.
Para ele, o racismo moderno só tem sentido a partir da colonização das
Américas. Desde o primeiro instante, atributos como a cor da pele, cabelos, nariz e boca
31
foram interpretados por espanhóis, portugueses e outros europeus como desigualdades
raciais, como provas materiais da existência de raças humanas não apenas diferentes,
mas fundamentalmente desiguais.
Como as relações sociais decorrentes da conquista e da colonização se
estruturaram a partir da percepção de que se tratava do contato entre raças diferentes e
desiguais, deram origem a novas identidades históricas para europeus e colonizados
então categorizados a partir de sua suposta raça:
A idéia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhecida antes da América. Talvez se tenha originado como referência às diferenças fenotípicas entre conquistadores e conquistados, mas o que importa é que desde muito cedo foi construída como referência a supostas estruturas biológicas diferenciais entre esses grupos. A formação de relações sociais fundadas nessa idéia, produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma conotação racial. (QUIJANO, 2005) (grifos do autor)
A emergência deste novo padrão de poder mundial está relacionada com a
colonização européia do Novo Mundo. A chegada do homem branco europeu a este espaço
geográfico habitado por outros homens que a primeira vista se distinguiam dos
colonizadores pela cor da pele e por outros atributos físicos provocou a distinção através da
idéia de raça. Ao mesmo tempo, a colonização possibilitou ao capitalismo nascente articular
em torno de si todas as outras formas de controle do trabalho até então existentes,
assumindo a condição hegemônica no controle mundial do trabalho:
A América constitui-se como o primeiro espaço/tempo de um padrão de poder de vocação mundial e, desse modo e por isso, como a primeira id-entidade da modernidade. (...) Por um lado, a codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados na idéia de raça, ou seja, uma supostamente distinta estrutura biológica que situava a uns em situação natural de inferioridade em relação a outros. (...) Nessas bases, conseqüentemente, foi classificada a população da América, e mais tarde do mundo, nesse novo padrão de poder. Por outro lado, a articulação de todas as formas históricas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, em torno do capital e do mercado mundial. (QUIJANO, 2005) (grifo do autor)
O efeito dessas duas formas de se organizar e pensar a sociedade mundial foi o
estabelecimento de uma hierarquia internacional do trabalho organizada a partir do
32
pertencimento a uma determinada raça, sendo os europeus colocados no topo e os não-
europeus na base desse sistema. Além disso, uma vez que o capitalismo se constituiu
como a forma hegemônica de controle do trabalho, passou a ser uma referência em
termos de organização para todas as outras formas coetâneas de controle: sendo a raça
superior, os europeus reservaram para si o trabalho assalariado e relegaram aos outros
formas consideradas menos desenvolvidas, como a servidão e a escravidão.
Consequentemente o português, espanhol ou europeu passa a pensar em termos
de superioridade/inferioridade, bom/mau, belo/feio, cristão/pagão, culto/inculto,
civilizado/bárbaro; reservando para si mesmo os atributos positivos e impingido ao
conquistado os atributos negativos que passam a justificar a necessidade de sua
submissão.
Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população. Com o tempo, os colonizadores codificaram como cor os traços fenotípicos dos colonizados e a assumiram como a característica emblemática da categoria racial. Essa codificação foi inicialmente estabelecida, provavelmente, na área britânico-americana. Os negros eram ali não apenas os explorados mais importantes, já que a parte principal da economia dependia de seu trabalho. Eram, sobretudo, a raça colonizada mais importante, já que os índios não formavam parte dessa sociedade colonial. Em conseqüência, os dominantes chamaram a si mesmos de brancos. (QUIJANO, 2005)
A consolidação, nos séculos XVII, XVIII e XIX das hierarquias fundadoras do
colonialismo é o próprio aprofundamento e intensificação desse “estranhamento”
inicial, dessa noção de que se tratavam de raças humanas distintas e desiguais, da
certeza empírica de que o europeu estava destinado pela natureza a dominar todas as
outras raças.
A partir do momento em que o contato inicial ganhou volume e profundidade,
intensificou-se a percepção da diferença interpretada como desigualdade. Os outros, os
conquistados não diferiam apenas na cor da pele ou nas formas do corpo, viviam e
pensavam de forma diferente, suas sociedades se organizavam de forma diferente, com
valores diferentes, com diferentes formas de religião, sexualidade, economia, cultura e
cosmologia.
33
Enquanto na Grécia e Roma antigas os escravos dificilmente poderiam ser
identificados simplesmente a partir da cor da pele, a Europa moderna escravizou
indígenas e africanos negros, cujos atributos físicos por si mesmos estabeleciam
diferenças visíveis. Aliás, para o modo de pensar europeu, caracterizado pela dualidade,
brancos e negros estiveram, desde o princípio da colonização, irremediavelmente em
franca oposição.
A interpretação dessas diferenças em termos de desigualdades raciais pode ser
atestada em todos os textos importantes relacionados à empresa colonial, bem como na
forma como se processaram as relações entre europeus, indígenas e africanos, podendo
ser considerada como racismo na medida em que aspectos da aparência física foram
usados para explicar características relacionadas com a cultura, economia, sexualidade e
sociedade.
Quijano afirma também que ao regular as relações sociais de dominação na
América colonial a partir da idéia de raça e ao estender esse mesmo padrão de poder no
seu relacionamento posterior com outras partes do mundo, os europeus teriam
condicionado a criação de uma perspectiva epistemológica de mundo na qual a Europa
se coloca no centro do mundo:
Na América, a idéia de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista. A posterior constituição da Europa como nova id-entidade depois da América e a expansão do colonialismo europeu ao resto do mundo conduziram à elaboração da perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com ela à elaboração teórica da idéia de raça como naturalização dessas relações coloniais de dominação entre europeus e não-europeus. (QUIJANO, 2005)
Essa forma de relacionamento entre as pessoas e entre os grupos sociais permitiu
aos europeus classificar a população mundial a partir da idéia de raça. E mais que isso. Os
europeus concebiam a si mesmos como sendo a raça superior o que colocava todos os
outros povos em uma condição natural de inferioridade da qual nunca poderiam escapar.
Ao mesmo tempo em que a Europa organizava a população mundial em uma
hierarquia internacional do trabalho fundada na idéia de raça na qual ela mesma era
colocada no topo, a idéia de raça permitia também distribuir a população mundial em outros
34
campos da atividade humana, inclusive no campo de produção científico-cultural e nas
relações sexuais, por exemplo.
Historicamente, isso significou uma nova maneira de legitimar as já antigas idéias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados. Desde então demonstrou ser o mais eficaz e durável instrumento de dominação social universal, pois dele passou a depender outro igualmente universal, no entanto mais antigo, o intersexual ou de gênero: os povos conquistados e dominados foram postos numa situação natural de inferioridade, e conseqüentemente também seus traços fenotípicos, bem como suas descobertas mentais e culturais. Desse modo, raça converteu-se no primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade. Em outras palavras, no modo básico de classificação social universal da população mundial. (QUIJANO, 2005)
Uma boa maneira de se exemplificar como essa hierarquia internacional do
trabalho se configurava na prática cotidiana de colonizadores e colonizados é lembrar a
forma como no Brasil se processou a transição do trabalho escravo para o trabalho
assalariado. Ela foi realizada como mudança da mão-de-obra negra para a mão-de-obra
branca, já que cada raça estava “naturalmente” identificada com uma forma determinada
de trabalho.
Quijano argumenta que isso decorre da forma como estava estabelecida a
hierarquia do trabalho tanto em termos mundiais quanto na conjuntura interna de cada
país. Em linhas gerais os indígenas foram reduzidos à condição de servos, os negros
escravizados, os brancos nascidos nas colônias poderiam realizar trabalhos assalariados
e os considerados nobres ocupavam o topo da cadeia, que era representado pelos cargos
de alto escalão na administração colonial:
Desse modo, impôs-se uma sistemática divisão racial do trabalho. Na área hispânica, a Coroa de Castela logo decidiu pelo fim da escravidão dos índios, para impedir seu total extermínio. Assim, foram confinados na estrutura da servidão. (...) Em alguns casos, a nobreza indígena, uma reduzida minoria, foi eximida da servidão e recebeu um tratamento especial, devido a seus papéis como intermediária com a raça dominante, e lhe foi também permitido participar de alguns dos ofícios nos quais eram empregados os espanhóis que não pertenciam à nobreza. Por outro lado, os negros foram reduzidos à escravidão. Os espanhóis e os portugueses, como raça dominante, podiam receber salários, ser comerciantes independentes, artesãos independentes ou agricultores independentes, em suma, produtores independentes de mercadorias. Não obstante, apenas os nobres podiam ocupar os médios e altos postos da administração colonial, civil ou militar. (QUIJANO, 2005)
35
Com o processo de independência o que ocorreu foi um deslocamento para os
brancos nascidos nas colônias que assumiram a condução do processo histórico de
seus respectivos países. Nesse contexto, os não-brancos continuavam nos mesmos
patamares que sempre haviam vivido, daí o princípio da Colonialidade: os países se
tornam independentes e as sociedades permanecem coloniais, isto é, hierarquizadas a
partir da idéia de raça. Essa classificação racista do trabalho foi a norma geral em todo
o mundo colonial e permaneceu intocável durante o período.
Quijano explica que o sucesso dessa nova maneira de se classificar as pessoas
e os grupos teria levado os europeus a “exportarem” a fórmula para todos os lugares
em que estabeleciam colônias. Foi criada uma forma de controle do trabalho que se
adaptava a cada raça que se desejava controlar. O controle do trabalho através do
assalariamento ou do capital era reservado aos europeus, que através do capitalismo
articulavam todas as outras formas de controle e reservavam para si mesmos a linha de
frente do sistema, ou seja, apropriavam-se da riqueza produzida.
Nos lugares onde a colonização ainda não havia exterminado completamente
os habitantes originais – já chamados de índios – estes eram controlados através de um
sistema de servidão. Já os negros eram simplesmente reduzidos à condição de
escravos. Para Quijano, esta forma da classificação não teria construído apenas uma
hierarquia internacional do trabalho em benefício dos europeus, mas também criado
novas identidades para os europeus e para todos os povos do mundo. Identidades
fundadas na idéia de raça que estavam hierarquizadas, tendo os europeus no topo da
pirâmide.
No curso da expansão mundial da dominação colonial por parte da mesma raça dominante –os brancos (ou do século XVIII em diante, os europeus)– foi imposto o mesmo critério de classificação social a toda a população mundial em escala global. Conseqüentemente, novas identidades históricas e sociais foram produzidas: amarelos e azeitonados (ou oliváceos) somaram-se a brancos, índios, negros e mestiços. Essa distribuição racista de novas identidades sociais foi combinada, tal como havia sido tão exitosamente logrado na América, com uma distribuição racista do trabalho e das formas de exploração do capitalismo colonial. Isso se expressou, sobretudo, numa quase exclusiva associação da branquitude social com o salário e logicamente com os postos de mando da administração colonial. Assim, cada forma de controle do trabalho esteve articulada com uma raça particular. Conseqüentemente, o controle de uma forma específica de trabalho podia ser ao mesmo tempo um controle de um grupo específico de gente dominada. Uma nova tecnologia de dominação/exploração, neste caso raça/trabalho,
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articulou-se de maneira que aparecesse como naturalmente associada, o que, até o momento, tem sido excepcionalmente bem-sucedido. (QUIJANO, 2005)
O que também é expresso da seguinte forma:
A classificação racial da população e a velha associação das novas identidades raciais dos colonizados com as formas de controle não pago, não assalariado, do trabalho, desenvolveu entre os europeus ou brancos a específica percepção de que o trabalho pago era privilégio dos brancos. A inferioridade racial dos colonizados implicava que não eram dignos do pagamento de salário. Estavam naturalmente obrigados a trabalhar em benefício de seus amos. Não é muito difícil encontrar, ainda hoje, essa mesma atitude entre os terratenentes brancos de qualquer lugar do mundo. E o menor salário das raças inferiores pelo mesmo trabalho dos brancos, nos atuais centros capitalistas, não poderia ser, tampouco, explicado sem recorrer-se à classificação social racista da população do mundo. (QUIJANO, 2005)
Nos países colonizados a hierarquia do trabalho localizava cada um na produção
de acordo com a raça e em termos mundiais essa mesma linha de pensamento fazia com
que o centro do processo produtivo mundial fosse deslocado para a Europa, que passou
a ser considerada como o centro do mundo:
Essa colonialidade do controle do trabalho determinou a distribuição geográfica de cada uma das formas integradas no capitalismo mundial. Em outras palavras, determinou a geografia social do capitalismo: o capital, na relação social de controle do trabalho assalariado, era o eixo em torno do qual se articulavam todas as demais formas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos. Isso o tornava dominante sobre todas elas e dava caráter capitalista ao conjunto de tal estrutura de controle do trabalho. Mas ao mesmo tempo, essa relação social específica foi geograficamente concentrada na Europa, sobretudo, e socialmente entre os europeus em todo o mundo do capitalismo. E nessa medida e dessa maneira, a Europa e o europeu se constituíram no centro do mundo capitalista. (QUIJANO, 2005)
Esse movimento de se colocar no centro do mundo capitalista foi acompanhado
por outro análogo através do qual a Europa impõe seu domínio cultural sobre as outras
regiões do planeta redefinindo sua identidade histórica e redefinindo a identidade
histórica de cada uma das regiões que passava a dominar:
Já em sua condição de centro do capitalismo mundial, a Europa não somente tinha o controle do mercado mundial, mas pôde impor seu domínio colonial sobre todas as regiões e populações do planeta, incorporando-as ao “sistema-mundo” que assim se constituía, e a seu padrão específico de poder. Para tais regiões e populações, isso implicou um processo de re-identificação histórica, pois da Europa foram-lhes atribuídas novas identidades geoculturais. Desse modo, depois da América e da Europa, foram
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estabelecidas África, Ásia e eventualmente Oceania. (QUIJANO, 2005)
Em síntese, isso quer dizer que o atual padrão mundial da Colonialidade do
poder sobre o qual repousa a força da Europa e dos europeus não diz respeito apenas a
sua centralidade em termos de sistema econômico capitalista, mas também à capacidade
de re-identificar historicamente cada uma das regiões do planeta com quem estabelece
suas relações de domínio.
É por isso que o conceito de Colonialidade do poder não pode ser separado do
conceito de Colonialidade do saber, já que uma das implicações imediatas da
conformação desse tipo de padrão de poder é exatamente o de repousar em uma visão
de mundo racista de acordo com a qual a Europa se situa em uma região privilegiada em
termos de produção cultural:
Com efeito, todas as experiências, histórias, recursos e produtos culturais terminaram também articulados numa só ordem cultural global em torno da hegemonia européia ou ocidental. Em outras palavras, como parte do novo padrão de poder mundial, a Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção do conhecimento. (QUIJANO, 2005)
A Colonialidade dos saberes a que se refere Quijano e que está sempre
acompanhada da Colonialidade do poder resultou de um processo que tem atravessado
séculos de história mundial e o seu efeito mais importante na estrutura dos processos
culturais da América Latina e de outras partes do mundo é o de que os sentidos do
mundo e da vida, os problemas econômicos, políticos, sociais, sexuais, enfim toda a
percepção cognitiva da realidade tem sido colocada em termos dessa centralidade
européia.
Isso só foi possível, de acordo com Quijano, por que a Colonialidade implicou
primeiramente na destruição dos conhecimentos, das formas culturais e de percepção da
realidade que eram produzidos pelos povos americanos e africanos à época da
colonização. Além disso, as próprias formas sociais através dos quais esses
conhecimentos e culturas eram produzidas foram reprimidas; forçando aos colonizados
a assimilação da cultura dos dominadores na mesma medida em que esta se
demonstrasse útil para atingir os objetivos da dominação:
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Em primeiro lugar, expropriaram as populações colonizadas –entre seus descobrimentos culturais– aqueles que resultavam mais aptos para o desenvolvimento do capitalismo e em benefício do centro europeu. Em segundo lugar, reprimiram tanto como puderam, ou seja, em variáveis medidas de acordo com os casos, as formas de produção de conhecimento dos colonizados, seus padrões de produção de sentidos, seu universo simbólico, seus padrões de expressão e de objetivação da subjetividade. (...) Em terceiro lugar, forçaram –também em medidas variáveis em cada caso– os colonizados a aprender parcialmente a cultura dos dominadores em tudo que fosse útil para a reprodução da dominação, seja no campo da atividade material, tecnológica, como da subjetiva, especialmente religiosa. (...) Todo esse acidentado processo implicou no longo prazo uma colonização das perspectivas cognitivas, dos modos de produzir ou outorgar sentido aos resultados da experiência material ou intersubjetiva, do imaginário, do universo de relações intersubjetivas do mundo; em suma, da cultura. (QUIJANO, 2005) (grifo meu)
Para fugir do padrão comparativo entre as relações raciais no Brasil e nos
Estados Unidos, e ainda como forma de ilustrar como as idéias de superioridade racial e
cultural dos europeus se manifesta no ambiente escolar transformando-o em uma
agência de embranquecimento e de “civilização”, cito algumas passagens retiradas de
um estudo recente realizado por Lourenço Ocuni Cá (2008) “A Constituição da Política
do Currículo na Guiné-Bissau e o Mundo Globalizado”. 1
De acordo com esse pesquisador, o campo educacional e as escolas primárias
foram usados pelos colonizadores portugueses como forma de domínio ideológico-
cultural disseminando conceitos e valores semelhantes àqueles que usados pelas escolas
brasileiras de instrução pública primária durante o período final do Império e Primeira
República. Ele explica que:
A política vigente na África no decorrer da colonização portuguesa focava-se em dois aspectos: em primeiro lugar, havia certo paralelismo em relação aos objetivos e aos meios oficialmente proclamados entre os séculos XVI e XIX, pelos quais a tese oficial defendia que a população africana estava a assimilar de boa vontade a civilização portuguesa. Nesse sentido, eram invocados objetivos civilizadores, alcançados, sobretudo por intermédio da religião, a fim de se mascararem interesses econômicos e políticos. De outra forma, nunca se permitiu que a educação fosse além de um nível mínimo, muito
1 A Guiné-Bissau é um país localizado na costa ocidental de África, estendendo-se, no litoral, desde o Cabo Roxo até a ponta Cagete. Faz fronteira, a norte, com o Senegal, a este e sudeste com a Guiné e a sul e oeste com o Oceano Atlântico. Além do território continental, o país integra ainda cerca de oitenta ilhas que constituem o arquipélago dos Bijagós, separado do Continente pelos canais do rio Geba, Pedro Álvares, Bolama e Canhabaque.Foi uma colónia de Portugal, desde o século XV até à sua independência, em 1974. O primeiro navegador e explorador português a chegar à Guiné-Bissau foi Álvaro Fernandes em 1446. A vila de Bissau foi fundada em 1697, como fortificação militar e entreposto de tráfico negreiro, que mais tarde viria a ser elevada a cidade, e a capital da Guiné-Bissau após sua independência. Faz parte da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), Nações Unidas, PALOP e União Africana. http://pt.wikipedia.org/wiki/Guin%C3%A9-Bissau
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baixo por sinal, a fim de que não se pusessem em xeque as prerrogativas conquistadas. Assim, uma pequeníssima elite africana era, então, educada com uma única finalidade: apoiar a hegemonia portuguesa e servir de mediadora entre a administração colonial e a população autóctone. (CÁ, 2008, p. 36)
Assim como no Brasil, a ideologia da superioridade européia – nesse caso
portuguesa – era afirmada, sobretudo em termos de superioridade da civilização, sendo
a educação a principal forma que assumia essa ideologia. A importância estratégica da
instrução pública é que através dela era garantida a existência e reprodução dessa
pequena elite nativa que fazia a interface entre Portugal e o povo da Guiné-Bissau. Por
outro lado, nessas condições, o domínio seria assegurado se e apenas se a educação
fosse mantida no nível da instrução pública primária e ainda assim acessível apenas a
uma parcela ínfima da população.
Havia, evidentemente, a questão do assimilado, que vetava aos guineenses o acesso à educação. Os africanos por toda parte podiam ser nativos (filhos da própria terra), mas a assimilação podia emancipá-los. Era esse o meio pelo qual o incivilizado, isto é, o nativo podia juntar-se às fileiras dos oficialmente classificados como civilizados, segundo estes critérios: falar português, ter bom caráter e das qualidades necessárias para o exercício dos direitos privados e públicos do cidadão português; cumprir o serviço militar; e ter pelo menos 18 anos de idade. Qualquer africano que preenchesse esses requisitos podia usufruir dos direitos severamente reservados aos portugueses. (CÁ, 2008, p. 39)
O critério principal para que um guineense de então pudesse ser considerado um
cidadão apto ao exercício de todos os direitos era simplesmente o de assimilar o nível
mais básico da civilização européia através da instrução pública primária, o que de
forma alguma poderia ser realizado sem que essa instrução se identificasse com um
procedimento de aculturação, de negação dos valores ancestrais. Além disso:
A existência de critérios de bom caráter tornava evidente que, em qualquer caso determinado, a assimilação dependia da boa aceitação da administração colonial. Contudo, o que determinava na escolha e/ou seleção formal para a assimilação era o nível educacional que a população africana estava submetida (Cá, 2005, p. 33-34). Na Guiné, segmento de não-civilizados contava, em 1950, com 502.457 indivíduos, contra um grupo civilizado de 1.498 pessoas, representando um índice de 0,29% do total populacional. Na acepção de Anderson (1966, p. 73-74), esses números eram exagerados, considerando-se que as mulheres e filhos dos assimilados podiam requerer assimilação semi-automaticamente, sem satisfazer os requisitos educacionais e outros exigidos ao marido. Para o estudioso, a estatística precisa do número de assimilados na Guiné era de 500 pessoas, apenas 0,1%. (CÁ, 2008, p. 39)
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Essa quantidade irrisória de pessoas as quais o governo colonial português
concedia o título de assimilado parece ser garantida, sobretudo com a exigência paralela
de que tais pessoas assimilassem mais que os parcos conhecimentos da instrução
pública primária, os valores culturais do ocidente europeu:
De modo geral, para o africano ser considerado civilizado, precisava rejeitar totalmente a sua herança cultural e aceitar a cultura lusíada, com isso se garantindo que apenas um número pequeníssimo de guineenses tivesse acesso às limitadas e bem controladas instituições civilizadoras. Igualmente, as implicações racistas ocorriam de maneira explícita na política de assimilação, as quais, portanto, não escamoteavam a importância do seu aspecto econômico, tendo, além disso, facilitado e legitimado enormemente a exploração implacável dos indígenas não-civilizados, os gentios. (CÁ, 2008, p. 40)
A instrução realçava o seu papel de transmissora de valores culturais tidos como
superiores, mais que de conhecimentos científicos. Era a capacidade de assimilação
desses valores europeus que se constituía em possibilidade para os indivíduos de
ascensão social, diferenciando-os dos que não podiam, queriam ou suportavam os
rigores do processo.
Do que certamente pode-se estabelecer um paralelo com os objetivos da
educação e da instrução pública primária em Mato Grosso e no Brasil no século XIX e
XX. Embora aqui a instrução pública primária estivesse aberta à participação de todos
que a desejassem, sua função principal também era a de servir de correia de transmissão
para os valores culturais e educacionais europeus, então considerados superiores porque
decorrentes de uma civilização superior.
De acordo com Cá, essa política de assimilação era abertamente racista porque
apenas os africanos eram obrigados a se submeterem a ela:
Embora haja várias fontes que explicitem as condições para se chegar à categoria de assimilado na Guiné, a visão do nativo a esse respeito era explícita e inequivocadamente racista: ele defendia que a assimilação era destinada apenas a pessoas de raça negra. Logo, não havia nativos de raça branca, e nenhum colono precisava provar ter bom caráter para ascender à cidadania portuguesa, ou passar pelo crivo do critério educacional, já que existiam colonos analfabetos. Sendo analfabeto e/ou semi-alfabetizado, o colono branco simbolizava a civilização, daí, portanto, o tratamento diferenciado em relação ao indígena de igual situação. (CÁ, 2008, p. 40)
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O que mais uma vez reforça a visão racista do conceito de civilização, já que
mesmo não possuindo a instrução pública primária, o português era considerado
civilizado apenas por ser português. Seguindo essa linha de raciocínio, Quijano afirma
que ao afirmar-se como centro do moderno sistema-mundo os europeus desenvolveram
de uma forma muito peculiar um fenômeno comum a todos os povos: o etnocentrismo.
A peculiaridade a que ele se refere diz respeito ao fato do etnocentrismo europeu
estar associado à dominação racial da América e do mundo pela Europa. A ligação entre
esses dois fenômenos é que levou os europeus a formarem sobre si mesmos um sentido
de que não apenas eram superiores a todos os demais povos do mundo, como eram
naturalmente superiores, ou seja, sua superioridade era expressa em termos de
pertencimento a uma raça – biológica – superior.
A racionalização cultural dessa perspectiva européia se traduziu em uma nova
forma da Europa ver a si mesma e ao mundo do ponto de vista de uma História
Universal na qual a Europa representa a culminação de um processo evolutivo e os
outros povos são colocados em uma outra linha de desenvolvimento diferente,
historicamente situados em um eterno passado do qual jamais poderiam escapar:
(...) os europeus geraram uma nova perspectiva temporal da história e re-situaram os povos colonizados, bem como a suas respectivas histórias e culturas, no passado de uma trajetória histórica cuja culminação era a Europa (...) não numa mesma linha de continuidade com os europeus, mas em outra categoria naturalmente diferente. Os povos colonizados eram raças inferiores e –portanto– anteriores aos europeus. (QUIJANO, 2005) (grifos do autor)
De acordo com Quijano, foi a situação de preponderância em termos mundiais
que colocou a Europa em condições de elaborar a racionalidade que se chama
eurocentrismo. Esta forma de pensar a realidade, características dos povos europeus,
fundamenta-se em duas idéias chaves que estão interligadas: a primeira é o
evolucionismo, de acordo com o qual a Europa representa o resultado de uma
evolução que parte do estado de natureza e culmina com sua própria civilização.
A segunda idéia nuclear é que a Europa passa a atribuir um sentido racial (no
sentido biológico) às diferenças que existentes entre si e o mundo. Ele afirma que
todas as relações entre europeus e não europeus passam, desde a emergência da
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modernidade capitalista ocidental, a ser reguladas com base nessa “perspectiva
binária, dualista, de conhecimento, peculiar ao eurocentrismo, impôs-se como
mundialmente hegemônica no mesmo fluxo da expansão do domínio colonial da
Europa sobre o mundo”:
Não seria possível explicar de outro modo, satisfatoriamente em todo caso, a elaboração do eurocentrismo como perspectiva hegemônica de conhecimento, da versão eurocêntrica da modernidade e seus dois principais mitos fundacionais: um, a idéia-imagem da história da civilização humana como uma trajetória que parte de um estado de natureza e culmina na Europa. E dois, outorgar sentido às diferenças entre Europa e não-Europa como diferenças de natureza (racial) e não de história do poder. (QUIJANO, 2005)
As implicações epistemológicas dessa forma de pensar o mundo e a realidade
são bem conhecidas em todo o mundo, embora a maior parte das pessoas a tenha
assimilado a ponto de encará-la como “natural”.
Talvez um dos exemplos mais trágicos da aplicação dessa epistemologia
ocidental baseada no eurocentrismo é o fato de que a partir do século XIX e por boa
parte do século XX ela tenha embasado um pensamento que se pretendia e se afirmava
científico que passou a investigar os seres humanos partindo da premissa que a
humanidade se dividia em raças humanas e que essas diferenças eram a base das
desigualdades sociais.
Para a historiografia dos mais diversos países e no âmbito da História Mundial,
a implicação principal foi a de que a Europa passou a se situar historicamente na
culminação de uma trajetória evolutiva que partia do chamado “estado de natureza”
até atingir a modernidade.
Ao mesmo tempo em que os europeus passavam a se considerar como a etapa
final dessa evolução, como os modernos da História da humanidade, o fato de
atribuírem aos outros povos uma categoria ao mesmo tempo inferior e anterior a si
mesmos fez com que todos os outros povos do mundo fossem historicamente situados
no passado da História humana.
Esse resultado da história do poder colonial teve duas implicações decisivas. A primeira é óbvia: todos aqueles povos foram despojados de suas próprias e
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singulares identidades históricas. A segunda é, talvez, menos óbvia, mas não é menos decisiva: sua nova identidade racial, colonial e negativa, implicava o despojo de seu lugar na história da produção cultural da humanidade. Daí em diante não seriam nada mais que raças inferiores, capazes somente de produzir culturas inferiores. Implicava também sua relocalização no novo tempo histórico constituído com a América primeiro e com a Europa depois: desse momento em diante passaram a ser o passado. Em outras palavras, o padrão de poder baseado na colonialidade implicava também um padrão cognitivo, uma nova perspectiva de conhecimento dentro da qual o não-europeu era o passado e desse modo inferior, sempre primitivo. (QUIJANO, 2005)
Quijano postula que essa forma de pensar tornou-se hegemônica ao mesmo
tempo em que a Europa impunha sua hegemonia sobre todo o mundo.
A elaboração intelectual do processo de modernidade produziu uma perspectiva de conhecimento e um modo de produzir conhecimento que demonstram o caráter do padrão mundial de poder: colonial/moderno, capitalista e eurocentrado. Essa perspectiva e modo concreto de produzir conhecimento se reconhecem como eurocentrismo. (QUIJANO, 2005)
E também:
Como já foi apontado, o mito fundacional da versão eurocêntrica da modernidade é a idéia do estado de natureza como ponto de partida do curso civilizatório cuja culminação é a civilização européia ou ocidental. Desse mito se origina a especificamente eurocêntrica perspectiva evolucionista, de movimento e de mudança unilinear e unidirecional da história humana. Tal mito foi associado com a classificação racial da população do mundo. Essa associação produziu uma visão na qual se amalgamam, paradoxalmente, evolucionismo e dualismo. (QUIJANO, 2005)
De acordo com Quijano, o dualismo que aparece como um dos eixos centrais do
eurocentrismo tem origem no esforço de Descartes que teria elaborado seu pensamento
a partir desses pressupostos.
Com Descartes o que sucede é a mutação da antiga abordagem dualista sobre o “corpo” e o “não-corpo”. O que era uma co-presença permanente de ambos os elementos em cada etapa do ser humano, em Descartes se converte numa radical separação entre “razão/sujeito” e “corpo”. (...) Desse ponto de vista o ser humano é, por excelência, um ser dotado de “razão”, e esse dom se concebe como localizado exclusivamente na alma. Assim o “corpo”, por definição incapaz de raciocinar, não tem nada a ver com a razão/sujeito. (...) Deste modo, na racionalidade eurocêntrica o “corpo” foi fixado como “objeto” de conhecimento, fora do entorno do “sujeito/razão”. (QUIJANO, 2005)
A leitura que Quijano faz dessa separação entre a razão localizada na alma e
o corpo tornado um objeto é que tal pensamento propiciou aos europeus
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considerarem a si mesmos como racionais e por isso mesmo superiores, relegando os
outros povos a uma condição de inferioridade, pois como não possuíam razão,
poderiam ser tomados como um “objeto de estudo”.
Talvez o exemplo mais característico dessa racionalização seja a
Antropologia que nos seus primórdios era usada pelos europeus com objetivo de
estudar “os outros”. Outro aspecto importante da teoria de Quijano é que para ele a
idéia de raça não tem servido apenas para construir uma hierarquia internacional do
trabalho e um modo de pensar eurocêntrico. Além disso, a idéia de raça teria sido
central na própria constituição dos Estados nacionais, não apenas na Europa, mas em
todo o mundo colonizado pelos europeus.
Na Europa o processo que levou à formação de estruturas de poder configuradas como Estado-nação, iniciou-se com a emergência de alguns poucos núcleos políticos que conquistaram seu espaço de dominação e se impuseram aos diversos e heterogêneos povos e identidades que o habitavam. (...) Em alguns casos particulares, como na Espanha que se constituía sobre a base da América e de seus enormes e gratuitos recursos, o processo incluiu a expulsão de alguns grupos, como os muçulmanos e judeus, considerados como estrangeiros indesejáveis. Esta foi a primeira experiência de limpeza étnica no período moderno, seguida pela imposição dessa peculiar instituição chamada “certificado de limpeza de sangue”. (QUIJANO, 2005)
Há, segundo ele, um processo simultâneo. Por um lado, a centralização política
européia na forma dos Estados nacionais é comparável a um processo de colonização
interna da forma como ele descreve acima. Por outro e articulado com o primeiro,
ocorre um processo de colonização imperial ou externa de povos não apenas diferentes
mas habitantes de outros territórios não contíguos com a Europa.
Como o processo de homogeneização dos membros das sociedades americanas
ocorreu sob hegemonia da Europa e com base em pressupostos eurocêntricos, a
tendência, de acordo com Quijano, foi a de eliminação massiva de grupos populacionais
inteiros que não se identificavam fisicamente com os europeus, ao mesmo tempo em
que se promovia uma massiva imigração colonial européia.
Ele afirma que os países do Cone Sul latino-americano construíram seus Estados
nacionais não a partir de um processo de descolonização das relações sociais, de
democratização do capital e de extensão da cidadania para todos os membros da
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sociedade, mas pela exclusão de uma parte da população (índios, negros e pardos):
Nesses países, ao começar a Independência, principalmente aqueles que foram demográfica e territorialmente extensos em princípios do século XIX, aproximadamente um pouco mais de 90% do total da população era de negros, índios e mestiços. Contudo, em todos estes países, durante o processo de organização dos novos Estados, a tais raças foi negada toda possível participação nas decisões sobre a organização social e política. (…) No caso do Brasil, os negros não eram nada além de escravos e a maioria dos índios constituía-se de povos da Amazônia, sendo desta maneira estrangeiros para o novo Estado. (QUIJANO, 2005)
Assim, ele observa que em tais sociedades a dominação colonial se fundava sobre
a exploração de negros, índios e pardos, por isso a construção do Estado nacional que
partiu da exclusão dessas categorias sociais não poderia ser considerada nacional – no
sentido de abranger todos os membros da sociedade -, menos ainda democrática; o que
configurava uma situação de aparente paradoxo: os Estados formalizaram suas
independências e as sociedades permaneciam coloniais.
De modo que não havia nenhum terreno de interesses comuns entre brancos e não brancos, e, conseqüentemente, nenhum interesse nacional comum a todos eles. Por isso, do ponto de vista dos dominadores, seus interesses sociais estiveram muito mais próximos dos interesses de seus pares europeus, e por isso estiveram sempre inclinados a seguir os interesses da burguesia européia. Eram, pois, dependentes. (QUIJANO, 2005)
No Brasil a Independência não significou a emergência de uma República, que
seria estabelecida mais de sessenta anos depois. O Império manteve intactas as
estruturas de dominação e estas pouco seriam afetadas com a passagem para o poder
republicano.
Por tudo isso, a colonialidade do poder estabelecida sobre a idéia de raça deve ser admitida como um fator básico na questão nacional e do Estado-nação. O problema é, contudo, que na América Latina a perspectiva eurocêntrica foi adotada pelos grupos dominantes como própria e levou-os a impor o modelo europeu de formação do Estado-nação para estruturas de poder organizadas em torno de relações coloniais. Assim, ainda nos encontramos hoje num labirinto em que o Minotauro é sempre visível, mas sem nenhuma Ariadne para mostrar-nos a ansiada saída. (QUIJANO, 2005)
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2.2 – O RACISMO ESPISTEMOLÓGICO
O racismo na sua modalidade epistemológica é um tipo de racismo que permeia
e condiciona a produção de conhecimento, está em conexão com todas as outras formas
de práticas e teorias racistas e com as outras formas de submissão, domínio e exploração
que chegam às Américas a partir do início do colonialismo europeu. O uso desse
conceito como ferramenta de análise também é parte do Pensamento Crítico de
Fronteira.
Quijano (2005) relaciona a imposição de um padrão de poder colonial a uma
racionalidade no processo de produção de conhecimento que seria uma parte integrante
do processo histórico das sociedades. Grosfoguel (2008, 2008b), elabora sua análise
nessa mesma linha de pensamento, com uma ênfase especial na epistemologia.
Grosfoguel também parte do pressuposto de que a escalada global do
colonialismo a partir de 1492 permitiu a construção de uma hierarquia de valores
envolvendo todas as categorias sociais articuladas numa ideologia racista em que o
ocidente europeu é colocado no ápice da “evolução”, do “progresso” e da “civilização”.
Enquanto Quijano concebe o eurocentrismo como prática econômica e visão de
mundo, Grosfoguel enfatiza o caráter central da visão de mundo, da epistemologia como
organizadora dessa realidade que permanece intacta em sua substância racista desde o
início do colonialismo europeu até a contemporaneidade.
O que diferencia os conceitos de eurocentrismo, proposto por Quijano, e o de
Racismo Epistemológico, defendido por Grosfoguel; é que enquanto aquele se refere
tanto a uma centralidade econômica quanto cultural, este enfatiza o caráter central da
visão de mundo, da epistemologia.
De acordo com Grosfoguel é precisamente a afirmação de que o ocidente é
capaz de produzir ciência e conhecimento neutros, objetivos e universais que se
constitui na base fundamental do próprio colonialismo, porque este torna-se possível a
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partir da concepção, de que o homem branco europeu tem direito de vida e morte sobre
todos os povos do planeta devido a sua superioridade racial.
Assim como Quijano, Grosfoguel (2008b, pp. 123-124) afirma que essa
percepção social da existência de raças organiza a população mundial de acordo com
uma ordem hierárquica de povos superiores e inferiores, funcionando como um
princípio organizador da hierarquia internacional do trabalho.
De acordo com ele, a existência de uma forma particular de racismo vinculada
ao processo de produção de conhecimento, ciência e cultura é, também, uma forma de
estabelecer uma hierarquia entre os povos e pessoas que são capazes de produzir
conhecimento, ciência e cultura; aqueles que são capazes de assimilar o produzido e os
que simplesmente não são civilizáveis, ou seja, não são e não serão capazes de assimilar
“progresso” e “civilização”.
Este paradigma de organização da população mundial segundo uma ordem
hierárquica de povos superiores e inferiores também é válido para a organização das
populações dos mais diversos países, tomados individualmente. Isso quer dizer que,
internamente todos os países também contam com populações que são “superiores” e
“inferiores”, devendo os primeiros dominar e explorar os segundos por força da própria
lei natural e em “benefício” dos inferiores.
No Brasil na passagem do século XIX ao XX, quando o país está redefinindo sua
própria identidade, o “problema da raça” é a dificuldade mais candente a ser resolvida.
Era necessário que as inteligências nacionais fossem capazes de elaborar uma teoria
social sobre o Brasil que permitisse integrar a população sem comprometer as
hierarquias sociais herdadas do período colonial e que ao mesmo tempo garantisse a sua
submissão a um comando único, a um Estado Nacional.
Grosfoguel (2008) diz que coube a René Descartes a sistematização dessa
concepção universalista ocidental. Ele lembra que a cosmologia ocidental do século
XVII tinha autoridade para definir o que era ou não verdade, uma autoridade derivada
diretamente de Deus. Em seguida, ele explica que essa cosmologia foi confrontada com
o pensamento científico nascente de tal forma que Descartes fundou seu pensamento
48
fora dos marcos da Igreja Católica, mas ao mesmo tempo substituindo a noção de Deus,
do “Olho de Deus” pelo seu Cogito, ergo Sun.
Este ‘Eu’ não foi inventado por Descartes. O que ele fez, segundo Grosfoguel,
foi colocar o ‘Eu’ universal como fundador do pensamento, fora das mãos de Deus,
secularizando a epistemologia cristã, que tem a pretensão de se originar do “Olho de
Deus”:
René Descartes, fundador da filosofia ocidental moderna, inaugura um novo momento na história do pensamento do Ocidente. Descartes substitui Deus, fundamento do conhecimento na teopolítica do conhecimento da Europa da Idade Média, pelo Homem (ocidental), fundamento do conhecimento na Europa dos tempos modernos. Todos os atributos de Deus são agora extrapolados para o Homem (ocidental). Essa Verdade universal que está para além do tempo e do espaço, o acesso privilegiado às leis do universo, e a capacidade de produzir conhecimento e teorias científicas, tudo isto está agora situado na mente do Homem ocidental. O ego-cogito cartesiano (“Penso, logo existo”) é o fundamento das ciências modernas ocidentais. (GROSFOGUEL, 2008b, p. 120)
Note-se como a produção de uma epistemologia racista ocorre num contexto de
formação e afirmação de todas as outras hierarquias de domínio e exploração que
compõem o mundo ocidental moderno.
O período em que a epistemologia européia ocidental se consolida como
paradigma científico dominante é também o mesmo no qual a religião, a filosofia, a
economia, a política, a sexualidade e a raça européia assumem a condição de valores
dominantes em seus respectivos campos, e todos esses conceitos estão presentes na
formação da “Verdade Universal” da qual o Homem Ocidental é ao mesmo tempo
criador e portador.
Além disso, é importante realçar o alcance da citação acima: “é o fundamento
das ciências modernas ocidentais”. Não se trata apenas de apontar o papel das
disciplinas científicas tais como a Antropologia, a Medicina, a Biologia, a Geografia e
tantas outras que cumpriram o papel de referendar com autoridade de ciência uma visão
racista de mundo.
Embora o racismo científico dos séculos XIX e XX presente nas disciplinas
citadas acima tenha sido derrotado em todas as suas pretensões, a visão de mundo
49
eurocêntrica que é idêntica ao racismo epistemológico permanece operando na sua
função de permitir a hierarquia do trabalho e do conhecimento entre povos europeus e
não-europeus.
Portanto, trata-se de analisar a perspectiva ocidental que se considera como
única fonte de conhecimento, de verdade, de cultura, de civilização e que está nos
fundamentos do modo de pensar ocidental, nos fundamentos das ciências ocidentais,
sobretudo nos processos de produção e disseminação de conhecimento e cultura, como
sendo uma forma invisível de racismo posto que se constitui em uma visão de mundo,
uma forma de pensar que está na base das disciplinas científicas.
Sabe-se que a Epistemologia trata dos problemas filosóficos relacionados ao
conhecimento. Ela discute a origem, a estrutura, os métodos e a validade do
conhecimento, dai ser conhecida também como Filosofia da Ciência.
A sua importância capital é ainda mais realçada em momentos históricos – como
o aqui estudado – quando as ciências estão em processo de elaboração dos seus
paradigmas, isto é, quando as ciências se encontram no seu nascedouro, no momento
em que definem sua estrutura formal, os métodos que a norteiam e, portanto, quando
estão elaborando os seus próprios pressupostos de validação, de afirmação daquilo que
entendem como sendo uma verdade científica.
É por isso que Grosfoguel considera a epistemologia européia ocidental como
parte integrante do projeto colonial de dominação e exploração que começa a partir da
colonização das Américas pela Europa: para ele, o nascimento do projeto colonizador e
o nascimento do projeto epistemológico são análogos e estão intrinsecamente
articulados.
A ciência européia ocidental se funda nos mitos de que o conhecimento
produzido a partir daquele espaço-tempo específico são universais, objetivos e neutros;
ao mesmo tempo em que desqualifica antecipadamente todas as outras formas até então
existentes de se produzir o conhecimento, a ciência, e a verdade. Esta é a justificativa
ideológica para a ampliação e manutenção do domínio e da exploração nos outros
campos da realidade social.
50
Destacando que esse ponto de vista epistemológico tende a reduzir objetividade
à neutralidade, confundindo os dois conceitos em um só, de maneira que a objetividade
científica somente seja possível em termos de neutralidade do conhecimento produzido
ou ainda neutralidade nos processos de produção do conhecimento.
Essa suposta isenção, por sua vez é uma característica do pensamento científico
europeu ocidental, que passa a condição de universal; sendo que todas as outras
possibilidades epistemológicas são tratadas como “essencialismos”, isto é produtos de
uma realidade étnico-racial particular e que não podem aspirar à universalidade.
Ao transferir os atributos do “Olho de Deus” para o seu ‘Eu” abstrato e secular,
Descartes realizou, segundo Grosfoguel, o mais importante, ambicioso e terrível
movimento epistemológico, transferiu os atributos divinos de se produzir
conhecimentos fora do tempo e do espaço para o seu ‘Eu” universal, se tornando assim
capaz de produzir conhecimento fora do espaço e do tempo, válido para todas as épocas
e lugares.
Isto permitiu ao homem branco europeu ocidental esconder a sua posição de
poder, a posição de poder do seu próprio corpo a partir do qual se produzia
conhecimento. Para Grosfoguel, trata-se de uma forma de produzir conhecimento
abstraindo o lugar de poder de quem fala em nome da Ciência. É o mito da neutralidade
da Ciência. A partir de Descartes o homem branco europeu ocidental passa a ocupar o
lugar e a autoridade de Deus na produção do conhecimento científico.
Importante frisar que essa capacidade de produzir um conhecimento de tipo
superior é, desde então, uma atribuição exclusiva do homem branco ocidental e/ou de
quem ocupa o seu lugar epistêmico. Essa desvinculação entre o lugar social e o lugar
epistêmico permite, além do mascaramento da posição social de quem fala, a
possibilidade de que o lugar epistêmico de produção de conhecimento seja ocupado por
alguém que não seja necessariamente um europeu ocidental.
Assumindo a condição privilegiada nos processos de produção da verdade
científica, o homem branco europeu ocidental e as ciências por ele praticadas assumem
a autoridade social antes usada pela Igreja Católica. Daí a sensação de que a ciência se
51
transforma em uma nova religião e os seus intérpretes autorizados – os cientistas -
passam a ser socialmente investidos do poder de regular as relações sociais de produção
de conhecimento e interferir na organização social.
Por todos esses motivos, a perspectiva epistêmica ocidental pode ser – e
invariavelmente tem sido – usada para a produção de conhecimento por sujeitos
situados no lado oprimido da diferença, ou seja, o que confere versatilidade a essa
perspectiva epistemológica é o fato de que através dela os dominados e explorados
adotam o ponto de vista epistemológico de quem os explora e domina:
Eis que se torna importante distinguir “lugar epistémico” e “lugar social”. O facto de alguém se situar socialmente no lado oprimido das relações de poder não significa automaticamente que pense epistemicamente a partir de um lugar epistémico subalterno. Justamente, o êxito do sistema-mundo colonial/moderno reside em levar os sujeitos socialmente situados no lado oprimido da diferença colonial a pensar epistemicamente como aqueles que se encontram em posições dominantes. (GROSFOGUEL, 2008b, p. 119) (grifo meu)
Descartes produziu esse conhecimento dual, separando o corpo da mente, a
mente da natureza, a sociedade e o homem. Ao colocar a mente como aquilo que flutua
no ar, como se fosse Deus, produziu um tipo de conhecimento universalmente válido,
pois que não está preso a nenhum corpo, não está submetido a nenhum
condicionamento social ou humano e por isso mesmo válido para tudo e para todos
indistintamente.
Conseguintemente, para Grosfoguel, essa separação cartesiana permite a
universalização do ponto de vista epistemológico europeu: se a mente está presa ao
corpo, ao espaço e ao tempo então não pode produzir um conhecimento universal,
produz apenas um conhecimento parcial, local, com valor relativo ao seu lugar no
espaço, no tempo e no mundo.
Ao criar um dualismo entre mente e corpo e entre mente e natureza, Descartes conseguiu proclamar um conhecimento não-situado, universal, visto pelos olhos de Deus. A isto o filósofo colombiano Santiago Castro-Gomez chamou a perspectiva do “ponto zero” das filosofias eurocêntricas (Castro-Gomez, 2003). O “ponto zero” é o ponto de vista que se esconde e, escondendo-se, se coloca para lá de qualquer ponto de vista, ou seja, é o ponto de vista que se representa como não tendo um ponto de vista. É esta visão através do olhar de deus que esconde sempre a sua perspectiva local e concreta sob um universalismo abstracto. A filosofia ocidental privilegia a
52
“egopolítica do conhecimento” em desfavor da “geopolítica do conhecimento” e da “corpo-política do conhecimento”. Em termos históricos, isto permitiu ao homem ocidental (esta referência ao sexo masculino é usada intencionalmente) representar o seu conhecimento como o único capaz de alcançar uma consciência universal, bem como dispensar o conhecimento não-ocidental por ser particularístico e, portanto, incapaz de alcançar a universalidade. (GROSFOGUEL, 2008b, p. 120)
Note-se que o movimento de atribuir valor universal ao conhecimento europeu é
o mesmo de arrogar um valor relativo aos outros tipos de conhecimento. Descartes não
considera como conhecimento cientificamente válido e verdadeiro senão aquele
produzido a partir da Europa ocidental e que se torna então o único em condições de
explicar o mundo e a vida.
Nessas condições, segundo Grosfoguel, se estabelece um solipcismo, um diálogo
interno em que esse ‘Eu” pode atingir uma verdade universal através de uma conversa
consigo mesmo sem ter condições de dialogar com outras com outras formas de
conhecimento.
Por conseguinte, a epistemologia que o ocidente europeu impôs ao mundo é
antes de tudo uma estratégia de dominação viabilizada através de uma relação de poder
hierarquizada. Não é uma relação horizontal, onde os conceitos culturais distintos se
esforçam para encontrar traduções não redutíveis, é uma hierarquia de conhecimento
que subordina todos aqueles com quem a Europa se relaciona:
Esta estratégia epistémica tem sido crucial para os desenhos – ou desígnios – globais do Ocidente. Ao esconder o lugar do sujeito da enunciação, a dominação e a expansão coloniais europeias/euro-americanas conseguiram construir por todo o globo uma hierarquia de conhecimento superior e inferior e, consequentemente, de povos superiores e inferiores. Passamos da caracterização de “povos sem escrita” do século XVI, para a dos “povos sem história” dos séculos XVIII e XIX, “povos sem desenvolvimento” do século XX e, mais recentemente, “povos sem democracia” do século XXI. Passámos dos “direitos dos povos” do século XVI (o debate Sepúlveda versus de las Casas na escola de Salamanca em meados do século XVI), para os “direitos do homem” do século XVIII (filósofos iluministas), para os recentes “direitos humanos” do século XX. Todos estes fazem parte de desenhos globais, articulados simultaneamente com a produção e a reprodução de uma divisão internacional do trabalho feita segundo um centro e uma periferia, que por sua vez coincide com a hierarquia étnico-racial global estabelecida entre europeus e não-europeus. (GROSFOGUEL, 2008b, p. 120)
Grosfoguel afirma também que a máxima cartesiana “Penso, logo existo” é a
própria arrogância de se substituir Deus na produção do conhecimento. Mas isso ainda
53
não é tudo, já que para ele esse pensamento foi antecipado em 150 anos pelo
“Conquisto, logo existo”. Assim, o pensamento fundador do ocidente é um
“pensamento imperial” que vai ser usado durante a expansão colonial européia para
argumentação de que o conhecimento europeu é superior a todas as outras formas de
conhecimento e que por isso mesmo tem o direito sagrado de escravizar e conquistar
milhões de pessoas.
Um importante aspecto desenvolvido por Grosfoguel (2008, 2008b) e que tem
merecido atenção por parte da maioria dos pesquisadores que se colocam na Perspectiva
do Pensamento Crítico de Fronteira é o de não separar arbitrariamente o campo de
produção da economia do campo de produção do conhecimento.
Isto porque mesmo as análises mais conseqüentes do projeto da modernidade
européia tendem a fazer essa separação ora subordinando a produção de conhecimento
como uma “conseqüência”, um “reflexo” das “condições materiais”, ora fazendo uma
leitura culturalista do campo econômico:
Segundo este ponto de vista, o sistema-mundo capitalista seria essencialmente um sistema económico que determina o comportamento dos principais actores sociais através da lógica económica da obtenção de lucro, manifestando-se na extracção de excedentes e na incessante acumulação de capital à escala mundial. Além disso, o conceito de capitalismo subjacente a esta perspectiva privilegia as relações económicas sobre as relações sociais. Por conseguinte, a transformação das relações de produção origina uma nova estrutura de classes típica do capitalismo, em contraste com outros sistemas sociais e outras formas de dominação. A análise de classes e as transformações estruturais no âmbito económico são privilegiadas em relação a outras relações de poder. (GROSFOGUEL, 2008b, p. 121)
A esta forma de conceber o projeto colonial europeu, Grosfoguel e os estudiosos
da Perspectiva Pós-Colonial contrapõem a afirmação de que o projeto colonial não foi
determinado pelas hierarquias econômicas em detrimento de todas as outras hierarquias.
A colonização das Américas foi desde o princípio um projeto articulado onde todas as
hierarquias se combinaram formando um sistema-mundo mais articulado do que a
concepção que se baseia unicamente nas relações econômicas.
Para Grosfoguel, esse sistema-mundo é ao mesmo tempo:
54
a) Uma hierarquia internacional do trabalho que privilegia europeus
brancos em detrimento de outras raças no mundo inteiro;
b) Um sistema de Estados-nações controlados por homens brancos
europeus ou por pessoas que ocupam o lugar epistêmico desses homens brancos
europeus;
c) Uma hierarquia racial global na qual os homens brancos dominam
e exploram as outras raças, principalmente negros e indígenas;
d) Uma hierarquia masculina e heterossexual global;
e) A supremacia global do cristianismo em detrimento de todas as
outras religiões;
f) A supremacia das línguas européias nos processos de produção e
difusão de conhecimento e cultura:
Por isso mesmo, o Racismo Epistemológico não pode ser entendido como uma
das “conseqüências” do Colonialismo, nem a forma de pensar a realidade como um
“reflexo” da realidade. O Racismo Epistemológico é parte integrante do projeto
colonial, assim como outras formas de racismo são indissociáveis da hierarquia
internacional do trabalho. O racismo hierarquiza a sociedade. O racismo epistemológico
hierarquiza o conhecimento.
Eis então a origem, a forma de funcionamento e as implicações sociais do
Racismo Epistemológico: é uma forma de hierarquia étnico-racial estabelecida por
europeus e que se articula com as outras hierarquias de dominação do sistema-mundo.
Grosfoguel (2008) lembra que embora Descartes tivesse a pretensão de estar
produzindo um conhecimento universal, um conhecimento universalmente válido
diretamente do “Olho de Deus”, o único verdadeiro e científico, o único sem qualquer
vinculação com um determinado lugar, tempo ou ser humano; ele falava de um ponto de
55
vista de uma época específica, de uma classe específica, de uma raça específica e com
interesses específicos:
Descartes fala a partir de Amsterdã. Em um momento histórico em que essa cidade é o centro político e militar do mundo ocidental. Ele propõe que somente os homens brancos europeus são dotados de capacidade de raciocínio. Isso significa a inauguração de um novo momento na tradição ocidental de pensamento que reivindica a exclusividade na produção da teoria, da filosofia, da cultura e da ciência. Todas as outras filosofias e formas de conhecimento são a partir de então consideradas particulares, produzidas a partir de um local específico e, portanto, sem validade universal. O cartesianismo é a quintessência do pensamento colonial. (GROSFOGUEL, 2008)
Em meados do século XVII a Holanda, mais precisamente Amsterdã era o centro
de um sistema global de domínio. A arrogância de Descartes consistiu em retirar Deus
do centro do processo de produção do conhecimento e em seu lugar colocar a figura do
homem branco europeu. Do homem branco europeu especificamente. Uma mulher
branca européia não tinha acesso ao ‘Eu’ cartesiano. Homens e mulheres brancos não-
europeus não tinham acesso ao ‘Eu’ cartesiano. Homens e mulheres não-brancos
também não pertenciam ao ‘Eu’ cartesiano.
Segundo a análise de Grosfoguel, o sistema global no qual moramos e vivemos é
ocidental/ocidentalizado e está fundado sobre a epistemologia cartesiana. Seguimos
reproduzindo essa desigualdade fundadora. A reprodução dessa desigualdade é realizada
a partir da afirmação da lógica de domínio como pressuposto para o estabelecimento em
todas as partes do mundo daquele modo de vida característico do ocidente europeu,
sendo a evolução histórica desse modo de pensar acompanhada e articulada com a
evolução do sistema-mundo em seu conjunto, de forma que cada um dos seus aspectos
reafirma e possibilita a reafirmação do outro.
Uma vez que se origina a partir de um ponto de vista de Deus, universal, sem particularidades, completamente neutro, essa epistemologia está pairando acima da História, fora do espaço e do tempo, acima das particularidades; é por isso que o ocidente está autorizado a te matar para seu próprio benefício: cristianiza-te, ou te mato; civiliza-te, ou te mato; desenvolve-te, ou te mato; democratiza-te, ou te mato; assim pode ser resumida a evolução do pensamento ocidental desde o início da colonização até os dias atuais. (GROSFOGUEL, 2008)
Grosfoguel explica que todas as epistemologias são particulares. As tradições de
pensamento pensam a partir de suas particularidades e não possuem a pretensão da
56
universalidade. Somente a tradição ocidental tem a pretensão da universalidade objetiva
e neutra. De acordo com ele, esta é a perspectiva do homem branco ocidental. O
racismo epistemológico. O homem branco europeu não mais necessita de Deus porque
ele mesmo ocupou o lugar até então ocupado por Deus.
Mas essa hierarquia de valores não existe apenas no ocidente e não é exercida
apenas por homens brancos ocidentais. Essa hierarquia de valores existe atualmente em
todos os lugares e pode ser assumida por qualquer pessoa. Por isso, em um determinado
lugar não-ocidental, um homem não-branco e não-ocidental pode ocupar o lugar
análogo ao do homem branco ocidental e cumprir o seu papel específico, o seu papel na
hierarquia local.
Esta é a forma como o poder branco europeu se reproduz, fazendo com que
todos, mesmo os não-ocidentais, reproduzam a lógica ocidental de dominação,
(Grosfoguel, 2008). O universalismo europeu é cartesiano, uma partícula de
conhecimento elaborada dentro de um contexto histórico específico e por homens que
possuíam interesses específicos, mas que se impôs como dominante para todo o mundo.
Simplificando, Grosfoguel afirma que o projeto de colonização inaugurado em
1492 e ainda em curso é também o projeto de implantação de uma epistemologia
colonial em cujo fundamento está a idéia de superioridade racial do europeu ocidental
sobre todos os povos do mundo.
O Racismo Epistemológico deve ser entendido então como uma forma particular
de epistemologia que parte do pressuposto de que o conhecimento científico universal,
neutro e objetivo se origina a partir da prática dos cientistas europeus e norte-
americanos ou de outros cientistas em outras partes do mundo e que se colocam nessa
perspectiva.
O Racismo Epistemológico é parte integrante do conhecimento moderno. Ao
estar presente no processo que resultou na implantação e expansão da escola moderna,
ele cumpre o papel de validar todas as formas de conhecimento produzidas e
reproduzidas por esta escola, ao mesmo tempo em que exclui do campo educacional, do
campo de produção e reprodução de conhecimento todas as outras epistemologias.
57
Um dos aspectos do Racismo Epistemológico que mais enfaticamente recebe a
crítica dos Estudos Pós-Coloniais é o fato da epistemologia européia ocidental se basear
no mito da neutralidade do pensamento científico, na idéia de que é possível, ou melhor,
de que é altamente desejável que a Ciência se torne imune às interferências subjetivas,
que seja neutra.
Por exemplo: se ao falar alguém disser “Eu como homem negro”, “Eu como
homem branco”, “Eu como mulher negra”, “Eu como mulher branca”, então é
automaticamente desqualificado do ponto de vista do processo de produção do
conhecimento, pois estaria falando a partir de sua subjetividade, a partir da parcialidade
do seu lugar existencial; não estaria fazendo Ciência, já que não estaria sendo neutro e
objetivo.
Por outro lado, se alguém diz: “objetivamente”, “cientificamente”, então o lugar
social de onde essa pessoa fala fica totalmente encoberto, o conhecimento passa a ser
considerado neutro, objetivo, o único com valor científico, com critério de verdade
universal. Disso subentende-se que a produção do conhecimento deve ser neutra para
alcançar a objetividade e para aspirar à universalidade.
Mas ocorre que a neutralidade se transforma em um mito na medida em que a
produção de conhecimento ou qualquer outro tipo de produção pressupõe a existência
de indivíduos concretos que possuem cor, classe, gênero, subjetividades e interesses
vinculados à experiência corporal do conhecimento de cada um e de cada grupo social.
Por isso, o Pensamento Crítico de Fronteira propõe que se inicie um processo de
descolonização das ciências sociais, das universidades, a partir do conhecimento e do
desvelamento da geopolítica e do corpo político do conhecimento. O que o Pensamento
Crítico de Fronteira faz é afirmar que todo conhecimento é produzido a partir de um
indivíduo, a partir de um grupo de indivíduos localizados no espaço e no tempo,
historicamente situados em uma condição particular de raça, gênero e classe.
(Grosfoguel, 2008)
O corpo político do conhecimento situa o conhecimento em um corpo que por
sua vez está situado em um espaço de poder. E todo conhecimento humano é produzido
58
a partir de um corpo humano que se situa em um espaço de poder. O Racismo
Epistemológico se baseia no mito da neutralidade e universalidade do conhecimento.
Por isso, para a Educação Republicana adota desde o seu princípio a idéia de que
a Escola deve ser neutra e de que sua função seria a de veicular conceitos universais,
quando na verdade trata-se da imposição de um tipo particular de pensamento
universalista, que não faz outra coisa senão universalizar um determinado ponto de
vista.
Por isso, durante o período de construção da identidade nacional moderna, que é
também o da expansão e consolidação de uma rede educacional em âmbito nacional, as
melhores inteligências da Nação estão focadas no problema de se “Civilizar” o país.
Pretende-se que através da educação formal e de massas o povo brasileiro seja salvo do
seu destino de barbárie e selvageria: a Educação é sempre “a mola propulsora”, o
elemento principal no projeto de construção de uma Nação, de um país e de um povo,
de acordo com os modelos de Nação, país e povo importados da Europa e dos Estados
Unidos.
Qual é então a conexão entre o Racismo Epistemológico e o nascimento e
expansão da Escola na Primeira República? Esta pergunta pode ser respondida
lembrando a afirmação de que o êxito do projeto colonizador europeu consiste
basicamente em tornar possível “os sujeitos socialmente situados no lado oprimido da
diferença colonial a pensar epistemicamente como aqueles que se encontram em
posições dominantes” (Grosfoguel 2008b, p. 119).
Essa possibilidade de ampliar o raio de ação do pensamento epistêmico ocidental
se fez presente durante o período de construção da identidade nacional contemporânea,
que é também o da expansão e consolidação de uma rede educacional em âmbito
nacional e o período no qual os pensadores do Brasil e da Educação estão focados no
problema de se “Civilizar” o país.
Por isso, para se entender o papel da educação escolar no processo de formação
do Brasil contemporâneo é necessário partir do Pensamento Crítico de Fronteira que
59
demonstra o caráter racista dos conceitos de “civilização”, “progresso” e de “cultura”
que cabia a Educação e a Escola disseminarem na população.
60
3 - A EPISTEMOLOGIA RACISTA DA EDUCAÇÃO REPUBLICANA
3.1 – RAÇA E CIVILIZAÇÃO EM MATO GROSSO
A tarefa de “civilizar” o país estava sendo desenvolvida pelas elites brasileiras
como um dos seus maiores desafios e foi incorporada pelas elites locais em Mato
Grosso com um grande esforço, já que as condições enfrentadas eram ainda mais
adversas que nos estados do Sul e Sudeste. Se nessas regiões a condição geográfica de
periferia dos grandes centros mundiais e a composição racial da população eram
desafios enfrentados através do branqueamento e da imigração européia; em Mato
Grosso – periferia da periferia – o desafio era ainda maior.
De acordo com o Recenseamento de 1890, a composição racial da população de
Mato era de 29,83% de brancos, 14,89 de caboclos, 41,42 de mestiços e 13,86% de
pretos2. É nesse quadro de inferioridade numérica, mas hegemonia política, social,
econômica e cultural que se deve analisar o esforço das elites mato-grossenses em
alcançar os postulados de “desenvolvimento”, “progresso” e “civilização” que então
faziam parte do seu universo cultural.
Estava em curso um processo de adequação das hierarquias sociais tendo em
vista o objetivo dos grupos dominantes em estabelecer um Estado nacional nos moldes
do paradigma eurocêntrico. Por isso o esforço central seria o de confirmar o poder nas
mãos da elite racial dominante, em detrimento de todos os outros grupos sociais.
A Colonialidade do poder em termos de afirmação de um Estado nacional iria se
manifestar de uma forma muito específica nas regiões tradicionalmente marginalizadas
de países periféricos.
2 Fonte: Brasil, 1922, p. 278.
61
Quijano (2005) demonstra que na Europa a formação dos Estados nacionais
ocorreu a partir da conquista da hegemônica de um grupo racial/social sobre todos os
outros que habitavam um determinado território. Ao mesmo tempo, esses grupos
hegemônicos impunham os seus interesses, já transformados em interesses nacionais,
em interesses coletivos dos países que então colonizava.
Dentro de cada um desses países ocorreu um movimento que se assemelhou ao
processo de colonização interna verificada na Europa. As regiões desses países
consideradas “mais desenvolvidas” tendiam a impor a sua dominação sobre todas as
outras regiões, configurando uma desigualdade regional e racial interna que expressava
a hierarquia das populações.
Por isso, as elites letradas mato-grossenses tinham a sensação de ser duplamente
colonizadas: em relação à Europa e aos Estados Unidos e em relação às elites dos
Estados centrais através dos quais era realizado o intercâmbio com o exterior. A simples
adesão aos postulados científicos e aos paradigmas do “desenvolvimento” e do
“progresso” não era suficiente para viabilizá-los, dadas às condições sócio-econômicas
que limitavam a ação transformadora.
Isto porque sendo um estado marginal no conjunto da Federação, Mato Grosso
não dispunha dos mesmos instrumentos usados, como por exemplo, por São Paulo e Rio
de Janeiro para financiar seu desenvolvimento o econômico, a imigração européia e
também a edificação de instituições que servissem de apoio aos seus projetos.
Do ponto de vista cultural, especificamente das concepções de Educação escolar,
essas eram buscadas em Estados como Rio de Janeiro, enquanto este era a Capital do
Império e depois São Paulo, quando este passa a ser uma referência econômica, social e
cultural para todo o Brasil.
Mato Grosso não possuía apenas uma das menores populações do país. Era uma
população majoritariamente parda, negra, indígena e branca pobre. A elite era
dominante apenas em termos regionais, já que sua força política e econômica não podia
ser comparada às elites dominantes no âmbito nacional.
62
De acordo com Siqueira (2000) a composição social e econômica do grupo que
poderia ser considerado como elite dominante em Mato Grosso era a seguinte:
(...) os dirigentes político-administrativos: Presidentes da Província, seus assessores, Deputados, Magistrados, o segmento ligado à burocracia provincial e municipal, os profissionais liberais e os grandes proprietários e comerciantes. (SIQUEIRA, 2000, p. 89)
Esse pequeno agrupamento que governava Mato Grosso e ditava as regras de
comportamento, as normas de conduta e a cultura buscava seus exemplos no Exterior ou
nos grandes centros brasileiros. No período posterior à Guerra com o Paraguai, as
idéias, os conceitos culturais e científicos dominantes no Brasil e no exterior passaram a
circular mais intensamente, o que era realizado principalmente com a edição de jornais e
periódicos.
Estes, além de servirem como meios de divulgação das idéias podiam ser
considerados, no dizer de Bourdieu, “estruturas estruturantes”, uma vez que
expressavam também as relações de poder entre as elites e destas com o conjunto da
população.
Com a abertura da navegação pelo rio Paraguai, com conexão direta com as repúblicas platinas e com o litoral brasileiro, a circulação de idéias em Mato Grosso se intensificou, tendo sido esse movimento responsável pelo aumento das atividades ligadas aos meios de comunicação escritos, especialmente os jornais, que constituíram o grande palco do debate político, da propaganda e da veiculação cultural. (SIQUEIRA, 2000, pp. 89-90)
Pode-se dizer que essa elite dominante, composta basicamente por descendentes
de portugueses miscigenados com indígenas e com negros, possuía uma visão de mundo
e um universo cultural altamente influenciado pelas idéias de raça e de superioridade
racial que moldavam o pensamento das elites brasileiras.
Deve-se considerar também que se trata de elites geográfica e politicamente
localizadas na periferia da periferia. De acordo com os pressupostos da Colonialidade,
as elites de cada país da América Latina firmavam sua hegemonia na perspectiva da
Colonialidade do poder, ou seja, se constituíam em meros agentes do poder central
europeu.
63
Internamente essa hegemonia deveria naturalmente se expressar como
dominação de um setor das elites, aquele que estivesse em condições de expressar
dentro de cada país a Colonialidade do poder. As elites mato-grossenses não eram
apenas marginais na relação com a Europa e os Estados Unidos, mas realizavam esse
contato por intermédio e subordinadas aos interesses das elites brasileiras localizadas
principalmente na capital da República e em São Paulo.
Mais que nas regiões centrais do Brasil, em Mato Grosso o movimento que
culmina com a expansão/reforma educacional e implantação dos Grupos Escolares, das
Escolas Reunidas e das Escolas Isoladas parte de um substrato cultural profundamente
estruturado a partir da percepção social dos agrupamentos dominantes.
Isso quer dizer que esta elite tendia a reproduzir localmente os mesmos
paradigmas culturais de pertencimento a uma determinada “raça superior” e de que a
população indígena, negra, parda e branca pobre era o principal entrave ao “progresso”
ao “desenvolvimento” e à “civilização”.
Em uma região que só recentemente veio a ser considerada como uma parte
integrante dos mercados da região Sudeste, os conceitos de superioridade/inferioridade
racial, de “progresso” e “civilização” contavam com o reforço das próprias condições
geográficas, materiais e culturais em quais viviam os mato-grossenses.
Aqui se configurou uma espécie de “colonialidade interna”, pois se os membros
das elites brasileiras do Sul e Sudeste eram educados na Europa, onde “bebiam uma
cultura superior”, os locais deviam se contentar em aprofundar seus estudos no Rio de
Janeiro ou em São Paulo.
Embora o grosso da população se compusesse de negros, indígenas e uma
mistura heterogênea e diversificada de mestiços, os conceitos de Escola, e Educação
estavam orientados no sentido de negar a capacidade da população local de produzir
cultura e civilização, já que estes conceitos eram os de supremacia européia.
Segundo Galetti (2000), no período entre o final do século XIX e início do
século XX, Mato Grosso estava na rota privilegiada dos viajantes europeus e norte-
64
americanos, então interessados em explorar, conhecer e relatar aos seus contemporâneos
a realidade natural e humana de uma região que era considerada em sua maior parte
“inexplorada”:
Daí em diante, sobretudo entre a segunda metade do século XIX e os primeiros anos do XX, o movimento de estrangeiros em terras de Mato Grosso foi uma constante. Naturalistas, etnólogos, geólogos, aventureiros interessados em fazer fortuna ou explorar o exótico eles se revezaram no esforço de tornar conhecida esta parte do Brasil, sobre a qual, não se cansavam de repetir, pouco ou nada se sabia. (GALETTI, 2000, p. 84)
Esses viajantes atribuíam uma identidade, um caráter à terra e às populações que
estava diretamente vinculado a forma como viam o mundo. Como o pensamento
corrente do europeu e do norte-americano tendia a interpretar a realidade em termos de
raças, consideravam seus próprios valores como decorrentes de sua condição de raça
superior e avaliavam o que viam em Mato Grosso como sendo uma prova material da
inferioridade racial das populações nativas:
A localização geográfica de Mato Grosso, no coração da América do Sul, como frisou o alemão Kark von den Steinen, acrescentando que ali era o próprio confim do mundo, favorecia de imediato a imagem de um lugar isolado. (...) Uma vez em Mato Grosso, a atenção dos viajantes se volta para as enormes proporções de seu território. Segunda maior província do Brasil, no período imperial, e segundo maior estado da República, perdia apenas para o Amazonas em área territorial. (...) Mostrar a grandeza territorial de Mato Grosso era também uma forma de provocar o assombro dos leitores europeus. (GALETTI, 2000, p. 86-89) (grifo da autora)
E também:
Imensidão que parecia ainda mais exagerada quando relacionada à população, ínfima e praticamente concentrada em duas ou três cidades. (...) Em Moutinho, cuja obra contou com inúmeros documentos oficiais da presidência da Província, a população chega a no máximo 65.000 habitantes, dos quais 24.000 são indígenas. Vinte anos mais tarde, Karl von dein Steinen fazia menção a 70.000 habitantes, dos quais os mesmos 24.000 corresponderiam à população indígena. (GALETTI, 2000, pp. 90)
As populações e da geografia de Mato Grosso eram considerados do ponto de
vista científico da época, fundado nas idéias de superioridade racial do homem branco
europeu sobre todos os outros povos do mundo, mais ainda em relação ao mato-
grossense, habitante dos confins do mundo. É por isso que o viajante europeu ou norte-
americano olha Mato Grosso e suas populações a partir do seu ponto de vista particular
65
que não é outro senão o olhar do “superior” sobre o “inferior”, do “civilizado” sobre o
“bárbaro”.
Os modos de vida, as experiências e fazeres culturais das populações mato-
grossenses eram encarados como uma expressão da sua inferioridade racial e as
condições geográficas vistas como uma das causas desse “atraso” e dessa “barbárie”,
conforme explica Galetti:
Ocorre que a densidade populacional era, então, um dos índices usualmente aceitos para medir-se o progresso de um país e, de certa forma, articulava-se com a maior ou menor capacidade que este demonstrava para conquistar a natureza aos desígnios da civilização. Quanto mais um país transformava seus terrenos incultos em lavouras, pastos e cidades, incrementando sua população, mais culto e civilizado era considerado. Um exemplo desse tipo de percepção pode ser vista na obra de Augusto Comte, cujas idéias tiveram grande repercussão no mundo europeu e nas Américas. Em sua análise da dinâmica social, Comte atribui à condensação da população num determinado espaço um dos fatores primordiais do progresso e da civilização considerando, por oposição, que numa população restrita e rarefeita, as forças intelectuais e morais necessárias ao progresso mantinham-se em sua subalternidade primitiva. (GALETTI, 2000, p. 91)
A partir de uma perspectiva epistemológica fundada no racismo, o conceito de
civilização é estabelecido para se adequar à civilização européia colocada no ápice do
processo evolutivo. A prova material e cultural desse índice superior de civilização era
exatamente a capacidade da sociedade européia submeter à natureza, transformando-a,
ou melhor incorporando-a ao processo produtivo.
Este pode ser usado como um exemplo da forma como o pensamento
eurocêntrico – com seus dois eixos: evolucionismo e dualismo – se expressava em
termos práticos no contato do homem branco europeu com povos que eles
consideravam inferiores. A Europa havia “domado” a natureza, ou seja, incorporado
vastas áreas naturais ao sistema capitalista provando assim a sua superioridade técnica,
cultural e científica. Era o “ápice da evolução humana”.
Mato Grosso representava o outro extremo dessa evolução; ou seja, de acordo
com os conceitos ocidentais de civilização e de progresso, Mato Grosso simplesmente
não podia ser considerado como um local civilizado e sua população só remotamente
poderia aspirar a condição humana:
66
As diferenças entre as extensas planícies bem cultivadas com cereais, mas pouco povoadas, e as populosas regiões cultivadas quase como um jardim são efeito da civilização. A densidade populacional produz não somente continuidade e certeza de um forte crescimento mas também um imediato progresso da civilização (...) O aumento e a consolidação da população estão na mais estreita correlação com o desenvolvimento da civilização: a uma população escassa e espalhada sobre uma região extensa corresponde um civilização de ordem inferior, enquanto nos antigos e modernos centros de civilização temos massas de população muito compactas. (RATZEL, F. Le razze umane. Apud GALETTI, 2000, p. 92)
É preciso relembrar que o eurocentrismo e o racismo epistemológico vinculam
os conceitos de progresso e civilização apenas às realizações dos povos europeu e norte-
americano, de forma que o grande obstáculo para Mato Grosso não era necessariamente
a baixa densidade populacional, mas a composição racial da população.
Isso não deixava para o estado nenhuma alternativa que não fosse a simples
colonização por parte de europeus emigrados, ou, na pior das hipóteses, por brancos de
outros Estados do país, estes sim, os verdadeiros promotores do progresso e da
civilização os únicos que poderiam cumprir o papel de desenvolvimento.
Pelo último paquete recebemos dos Agentes gerais da dita empresa do Rio de Janeiro os Senhores Pastorino & Silva a seguinte circular, acompanhada de outra e de um termo de contrato aos senhores fazendeiros que quiserem mandar vir colonos para as suas fazendas. (...) Eis a circular: ‘Rio de Janeiro, 9 de Agosto de 1887. - Constituídos em sociedade mercantil para a introdução em larga escala de colonos - agricultores provenientes da Europa a que, será destinado importante papel no desenvolvimento da enorme riqueza agrícola neste fertilíssimo solo, substituindo nele o elemento escravo, que é uma sombra, pelo braço livre, que é uma aurora, (...) Jornal “A Tribuna”, nº 102 20 de outubro de 1887, p. 3 (grifo meu)
Aqui pretendo destacar não a comparação entre o número de imigrantes que veio
para Mato Grosso e a quantidade que se dirigiu para os estados da região Sudeste e Sul,
mas a forma como as elites viam esses imigrantes. O que está em discussão é a
formação local das estruturas de poder que configurariam o Estado-nação e a
participação de cada um dos grupos raciais da população nesse processo.
É preciso lembrar da afirmação de Quijano (2005): “a colonialidade do poder
estabelecida sobre a idéia de raça deve ser admitida como um fator básico na questão
nacional e do Estado-nação”. Além disso, também estava em curso uma nova
configuração da hierarquia do trabalho fundada na idéia de raça.
67
De acordo com essa concepção o controle do trabalho através do assalariamento
estava histórica e socialmente identificado com o homem branco europeu, da mesma
forma que o controle do trabalho escravo se identificava com o homem negro. Por isso a
imigração européia para Mato Grosso não é aqui vislumbrada do ponto de vista
numérico, fazendo-se uma comparação com a quantidade de imigrantes recebidos por
outros locais, mas do ponto de vista das expectativas sociais, de como efetivamente
esses eram vistos, com quais valores eram imediatamente identificados.
Galetti cita também o deslumbramento dos viajantes europeus e norte-
americanos diante das paisagens naturais encontradas em Mato Grosso e que serviam
para reforçar a forma estereotipada como esses viajantes viam o povo e a região:
Deixemos de divagações e sejamos mais práticos. Que abismo existe entre a poesia e a realidade (...) O que nos fascina é o que vemos, uma ou mais vezes, como turistas, porquanto só a idéia de viver aqui já sentimos horror. Com efeito as colônias humanas, ou melhor, inhumanas, estabelecidas por estes lugares são raras e podem-se contar a dedos (isto em todo sentido da expressão) ( STEINEN, Karl von dein.O Brasil central: expedição em 1884 para exploração do rio Xingu. São Paulo, 1942, p. 23 apud GALETTI, 2000, p. 95)
Steinen não apenas declara que as comunidades são muito raras dispersas num
grande espaço geográfico, ele não admite que essas colônias sejam compostas por seres
humanos, visão essa que decore do racismo pelo qual ele interpretava a realidade. Essa
oposição entre "poesia e realidade" mencionada por Steinen é, de acordo com Galetti,
uma constante nas imagens sugeridas pelos viajantes que passam por Mato Grosso no
período.
A poesia, para esses viajantes era a parte natural da região, as paisagens, a flora
e a fauna, a beleza natural e a diversidade das espécies que maravilhavam os olhares
estrangeiros. A realidade que se opunha a essa poesia era relacionada com a população.
Dessa forma se percebe que, para os viajantes, a única parte irrecuperável era o povo
que habitava a região.
Com relação às diversas etnias indígenas a percepção mudava de acordo com a
capacidade e/ou o interesse dos indígenas em se aproximarem do que era considerado
"civilizado"; mas de forma geral a presença de uma grande população indígena era
68
considerada como um dos mais sérios entraves ao progresso e a civilização, conforme se
lamenta Moutinho:
Esta raça que tem até hoje só praticado continuas depredações, e para cujo castigo a necessidade tem aconselhado o emprego da força, será ainda de muito proveito à província, logo que um sério estudo a respeito, resolva os meios precisos à sua catechese e aldeamento. (MOUTINHO, 1869, p. 134)
Moutinho sugere o uso da força combinado com os efeitos da catequese e do
aldeamento sobre uma população que é considerada um entrave ao progresso, mas que
pode contribuir para ele, desde que seja devidamente enquadrada dentro daquilo que era
considerado como uma maneira correta de se viver. O que também é destacado por
Galetti:
Em que pesem as diferenças de índole que a maior parte dos viajantes assinala em suas referências aos índios, é importante ressaltar que, implícita ou explicitamente, todos consideram que, cedo ou tarde, eles tendem a se transformar em seres civilizados. A perspectiva evolucionista é aqui evidente. O índio, por "selvagem" que seja, representa um momento na história da civilização, cujo avanço tem-se como inexorável. Diante dele, esse viajante, que se vê como representante do estágio mais avançado dessa evolução, dificilmente pode escapar do sentimento de superioridade, misturado às vezes a uma indisfarçável repugnância, ou a uma certa indulgencia. (GALETTI, 2000, p. 109)
De acordo com a autora, o que se dizia dos indígenas na maior parte das vezes se
estendia aos negros, pardos e outros segmentos não-brancos da população:
Uma imagem que quase nada perde de sua força quando se recorre as representações sobre o segmento não-indígena da população mato-grossense. Ao contrário, elas só contribuem para reforçá-la. Submetida as mesmas lentes do "olhar civilizado", embaçadas por referenciais assentados em teorias racistas, aparentadas ao darwinismo social, esta população não-indígena torna-se um elemento central na caracterização de Mato Grosso como um espaço pouco "civilizado" (...) Em decorrência desta mistura racial, em que preponderam o índio e o africano, considerados como raças inferiores, o mato-grossense, como anuncia o trecho transcrito acima, será visto, em geral, como indolente, preguiçoso, pouco afeito a hábitos, costumes e propensões psicológicas característicos do homem civilizado. (GALETTI, 2000, pp. 111-112) (grifo meu)
O olhar do homem branco europeu não deixava dúvidas quanto a considerar a
mistura racial do povo mato-grossense como sendo a razão principal de sua tendência
inata à “barbárie”, o que era apresentado sempre em contraste com a Europa, morada
das “raças superiores”:
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Talvez vocês já tenham tido oportunidade de escutar pessoas se lastimarem da degeneração de nossas raças européias (...). Deixem menosprezar estes descontentes pois, é certo que após uma visita a Mato Grosso eles se regozijariam de pertencer à nossa raça (...) Imaginem vocês, pessoas de tez uniformemente pálida e doentia, preguiçosas, atingidas por uma espécie de languidez indolente que formarão uma imagem do aspecto físico dos habitantes de Mato Grosso (...) Não, esta raça é muito feia. Apesar do pó de arroz e dor fortes perfumes utilizados com frenesi pelas mulheres (...) elas em nada são comparáveis às nossas companheiras (NIJS, Ferdinand. Apud GALETTI, 2000, pp. 112-113)
Sob todos os aspectos os mato-grossenses eram considerados inaptos, pois em
suma careciam das qualidades necessárias ao homem civilizado:
Indolência, inação, inapetência, não importa se vistos como atributos da raça ou resposta aos estímulos do meio, com destaque para a abundância e o clima tropical, identificavam grande parte dos mato-grossenses como indivíduos que careciam de qualidades essenciais, consideradas típicas do homem civilizado, tais como a disposição para o trabalho, o desejo de acumular bens, a ambição de progredir. (GALETTI, 2000, p. 118)
Essa visão estereotipada e racista veiculada por praticamente todos os viajantes
era compartilhada pela elite mato-grossense. Na medida em que ocupavam o lugar
epistêmico do homem branco europeu os membros dessa elite letrada compartilhavam
dos mesmos ideais e valores culturais.
Paradoxalmente assimilavam e reproduziam uma visão de mundo de acordo com
a qual estavam colocados na escala mais baixa do processo evolutivo. Por isso mesmo
só poderiam veicular tais conceitos se pudessem se colocar na perspectiva dominante,
sendo intermediários entre a cultura superior e as raças inferiores.
Se por um lado, essa elite sentia um desconforto muito grande por habitar um
território tão remoto e tão desacostumado à civilização, por outro, se confortava por
considerar a si mesma como a parte "saudável" da população. Assim, a elite não só
afirmava sua origem portuguesa e, portanto, européia, se esforçando em compartilhar
com os valores culturais identificáveis com a Europa, mas ao mesmo tempo manifestava
um profundo desprezo por tudo que pudesse lembrar a existência de costumes e valores
indígenas e/ou africanos:
Um sentimento muito peculiar, que em momento algum vimos manifestar-se entre os brasileiros identificados com o litoral civilizado, apesar de suas preocupações diante da situação deste pedaço da pátria e, muito menos entre
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os estrangeiros: um profundo mal estar cultural face à condição de filhos desta terra que, apesar de seu imenso potencial, continuava tão distante do progresso e da civilização. (...) Um sentimento que se fazia acompanhar de angustia e preocupação quanto ao futuro que estaria reservado a Mato Grosso, de indignação e revolta face às apreciações negativas que denegriam a imagem da região e de seus habitantes, mas também, em larga medida, do reconhecimento de que boa parte destas apreciações eram verdadeiras. Enredados nessa ambigüidade, os nativos tiveram dificuldades em representar a si próprios e a sua terra natal de forma a contrapor-se, efetivamente, aos elementos de barbárie com os quais eram identificados. Dificuldades que resultavam, em parte, da adesão dos nativos aos mesmos paradigmas que presidiam as apreciações dos estrangeiros. De fato, uma parcela significativa dos mato-grossenses letrados esteve muito bem sintonizada com as idéias cientificistas, positivistas e darwinistas-sociais que circulavam no Rio de Janeiro e São Paulo, principais centros culturais do país, como alias ocorria nos demais estados situados fora desse eixo. (GALETTI, 2000, pp. 246-247) (grifo da autora)
Na citação acima se pode ver a forma como o Racismo Epistemológico opera. É
exatamente no momento em que aqueles que estão no lado oprimido da diferença
colonial começam a pensar como os que estão no lado opressor dessa diferença que essa
modalidade de racismo alcança condições de atuação. Assim, as elites mato-grossenses
buscavam assumir a posição de poder do homem branco europeu ocidental,
transformando-se em subordinados na relação com a Europa e com as elites brasileiras,
mas subordinadores na relação com a população local.
A idéia de que a população mato-grossense tinha características raciais indesejáveis e perniciosas ao avanço da civilização, apesar de descender dos intrépidos bandeirantes, foi amplamente defendida pelos dirigentes e intelectuais cuiabanos que, obviamente, procuravam se diferenciar, quanto às suas próprias qualidades, do conjunto da população. Em 1919, quando um novo projeto de ferrovia entre São Paulo e Cuiabá estava sendo cogitado pelo governo do estado, um jornal local saudava os grandes benefícios do novo empreendimento com a seguinte colocação: uma transformação radical vai operar-se no nosso organismo político e social, e o sangue novo do imigrante virá em socorro de nossa raça que degenera pela falta de cruzamento.( GALETTI, 2000, p. 256) (grifo meu)
A solução para todos os problemas do atraso científico, cultural e econômico era
a mesma já adotada com sucesso pelos estados do sul e sudeste: a imigração estrangeira:
Identificados com as manifestações letradas e outras vinculadas ao patrimônio da cultura ocidental, os aspectos culturais foram bastante valorizados pelos mato-grossenses nas comparações como os demais estados da federação, sendo vistos como índices fundamentais de civilização. Assim, aquelas que levassem em conta os aspectos econômicos não raro faziam referencia aos ganhos culturais, vistos como um resultado do progresso material. Neste último campo, Mato Grosso deveria adorar as mesmas soluções que em estados do sul e sudeste tinham dado tão bons resultados,
71
como as ferrovias e a entrada de imigrantes europeus. (GALETTI,2000, p. 255)
Do ponto de vista cultural, a solução encontrada era a adesão aos valores da
civilização européia, ou seja, a importação de valores e conceitos culturais considerados
superiores.
Mas, como essas concepções permeadas de racismo se articulam com o
pensamento social sobre a educação e com a construção das primeiras redes de escolas
públicas que ocorrem praticamente no mesmo momento histórico? Ocorre que além da
imigração, das linhas férreas, da navegação e outros melhoramentos, a idéia de que
Mato Grosso poderia se desenvolver também estava fortemente vinculada a opinião de
que a Educação poderia funcionar como um indutor desse desenvolvimento cultural.
Evidentemente, sendo um modelo educacional idealizado, conduzido e
implantado pelas elites a partir do Estado, esse movimento ganha força com a
proclamação da República quando a necessidade de reafirmação do Estado surge
combinada com uma ampla discussão sobre "progresso", "civilização", "povo", "nação",
conceitos esses que estavam, conforme já foi demonstrado, fundamentados nas idéias de
superioridade racial:
No momento de constituição do Estado brasileiro, a nação deveria surgir coesa, minimamente uniforme e composta por um povo que, pelo menos em sua base, estivesse unido por signos de identidade. Estes sinais tinham por base o universo da escrita e estavam consubstanciados no corpo normativo responsável pela regência da nova nação. Essa pretendida homogeneidade tinha contra si a diversidade sócio-econômica do conjunto da sociedade brasileira: uma rala camada dominante composta por proprietários de escravos e de terras, homens em geral, ou seus filhos, possuidores de nível superior, engajada na política e nas elevadas esferas administrativas do Estado, elementos, enfim, que detinham o poderio econômico e que, conseqüentemente, gozavam de regalias políticas. (SIQUEIRA, 2000, p. 31)
O fato que importa aqui é que a uniformidade e a identidade buscadas e
esperadas dependiam basicamente do “universo da escrita”, ou seja, dependia da
disseminação de valores culturais, de produção de conhecimento, o que implicava
necessariamente em uma educação escolar condizente com essas aspirações. É nesse
momento que o Racismo Epistemológico se articula com a educação das massas e com
a escola moderna nascente.
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Presa aos valores culturais e aos conceitos de “civilização” e de “progresso”
derivados diretamente das teorias racistas européias e norte-americanas, a elite mato-
grossense também adere ao pensamento corrente de que somente através da Educação
essa população poderia aspirar ao desenvolvimento econômico. Social e cultural.
Por conseguinte, a noção de Educação e de Escola adotada e implantada por essa
mesma elite teria necessariamente que permanecer devedora dessas concepções racistas.
As elites mato-grossenses operavam com um conceito de civilização originado
de padrões europeus para os quais a Escola e a Educação ocupavam um lugar central, na
medida em que permitiriam exercer uma influência sobre a população.
Ocorre que as relações sociais no período ocorriam determinadas pelo
pensamento racista europeu e norte-americano, de forma que as trocas simbólicas entre
pessoas e grupos sociais tenham sido norteadas por valores e conceitos profundamente
estruturados a partir da percepção social de pertencimento a uma determinada “raça”.
Assim, a participação de cada um no processo civilizatório em curso e
conseqüentemente a forma como a Escola iria receber e tratar cada um desses
indivíduos estava condicionada por valores essencialmente racistas. Embora a maioria
absoluta do povo fosse constituída por pessoas descendentes de africanos, indígenas e
pardos desses grupos com brancos, a escola iria tratá-los do ponto de vista da afirmação
de uma cultura, de um conjunto de valores que se pretendia construído exclusivamente
por brancos.
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3.2 – AS CONCEPÇÕES DE EDUCAÇÃO E DE ESCOLA NOS DISCURSOS
DAS ELITES
O debate político em torno das concepções educacionais e escolares
republicanas muitas vezes se confunde com aquele praticado durante os anos finais do
Império. Muitos quadros da elite que deu suporte político ao Império permaneceram
ocupando cargos e postos no novo regime. Além disso, é do conhecimento da maior
parte dos historiadores o fato de que a transição da Monarquia para a República não
significou uma alteração substancial nas relações políticas então existentes entre os mais
diversos segmentos sociais.
Assim como em outras partes do Brasil, também em Mato Grosso ocorreram
inúmeras revoltas e também disputas entre os diversos setores das elites que disputavam
a hegemonia do processo republicano em curso. Mas isso não significa que o padrão de
relacionamento do poder político tenha sofrido uma alteração substancial.
Em outras palavras, tanto a implantação da República quanto a Abolição da
escravatura não foram processos conduzidos por forças populares e democráticas que
culminaram com algo parecido com uma revolução social. Uma vez passado os
primeiros anos, a tendência foi de acomodação, tanto internamente, tendo um
determinado setor das elites conseguido a hegemonia, quanto no relacionamento das
elites com o restante das outras categorias sociais.
Em Mato Grosso a notícia da proclamação da República chegou somente no mês
de dezembro, embora em agosto de 1888 houvesse sido fundado o “Partido
Republicano” e o movimento contasse inclusive com um jornal, “O Republicano”.
Segundo Siqueira (2002, p. 155), em Mato Grosso havia se formado duas grandes
oligarquias: uma no Norte, capitaneada pelos produtores de açúcar e outra no Sul,
representada pelo poder dos grandes pecuaristas e ervateiros. Essas duas oligarquias
estavam, segundo a autora, concentradas em diversas famílias cuja luta pelo poder
definiram os destinos políticos do Estado durante toda a Primeira República.
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Dada a instabilidade constante, de 1889 até 1930, Mato Grosso teve trinta e
cinco governantes, além de duas juntas governativas. De dezembro de 1889 até maio de
1892, por exemplo, o governo foi ocupado por cinco pessoas. Houve governantes que
ficaram muitos anos, mas a maioria tendia a se equilibrar muito debilmente no
intrincado jogo dos interesses políticos locais, combinado com a política vigente no país
que já foi resumida como “Política dos Governadores” e “República do Café-com-
leite”, além do fenômeno do “Coronelismo”, que vigorou em todo o país na Primeira
República.
Por todos esses motivos, o serviço público estadual caminhava na mesma
direção e no mesmo ritmo das idas e vindas da política. Há, em diversos dos Relatórios
que os Presidentes do Estado enviavam a Assembleia Legislativa, queixas – sempre
contra o governo anterior – sobre o desleixo com que a maioria dos professores e
demais funcionários tratavam o ensino público.
A maioria destes profissionais era simplesmente nomeada pelo Presidente, ou
por alguma autoridade a quem deviam obediência política. Uma troca de governo
significava invariavelmente uma troca de quase todos os funcionários que este havia
nomeado. Em suma, os cargos de professor ou professora, inspetor, diretor da instrução
ou amanuense quase sempre eram ocupados por pessoas protegidas ou apadrinhadas
pelos chefes políticos, de forma que a Educação em geral sofria dos mesmos males que
a política.
De qualquer forma, não se poderia entender bem o quadro de referência da
Primeira República, sem começar alguns anos antes de sua proclamação, inclusive
porque os ideais presentes nas concepções de Educação que vigoraram nos últimos anos
do Império sobreviveram com uma roupagem moderna e tentaram ser implantados
durante a Primeira República.
Um documento que expressa bem a mentalidade social sobre o papel da
Educação e da concepção educacional do período é um opúsculo organizado por
Siqueira e Sá (2001) e que reúne os “Discursos pronunciados por ocasião da
inauguração do Liceu Cuiabano em 1880”. Siqueira e Sá começam explicando que o
século XIX foi o momento definidor dos rumos da Educação nacional, período em que
75
o setor ganharia a estrutura e a organização adequadas ao projeto que então era pensado
para um Brasil independente e moderno.
De fato, este é o período da descolonização política e econômica formal e de
colonialidade do poder e do saber em todos os países da América Latina, inclusive do
Brasil. O Liceu Cuiabano foi a primeira escola pública a oferecer um curso secundário
em Mato Grosso. Antes disso, o Estado fornecia apenas o ensino primário (elementar e
complementar), sendo que o prosseguimento dos estudos era um luxo ao qual não tinha
acesso a maioria da população. Conforme explicam Siqueira e Sá (2001):
(...) logo que terminasse o curso primário (elementar e complementar), seguindo para as províncias litorâneas, com especial preferência para o Rio de Janeiro, capital do Império e local onde proliferavam os estabelecimentos de ensino secundário. Após os três anos iniciais de estudo, os jovens tentavam ingressar nas Faculdades e, somente depois de formados, regressavam, muitos deles, à sua terra natal. Com isso, somente as famílias mais abastadas tinham condições de investir na formação escolar de seus filhos, despendendo quantias significativas para mantê-los longe de casa. (SIQUEIRA; SÁ, 2001, p. 8)
Tendo em vista todas as dificuldades apresentadas acima, era de se esperar que a
inauguração de uma escola pública destinada ao ensino secundário se transformasse em
um evento de grandes proporções, pois acenava para a possibilidade real de que a partir
de então os jovens da Província pudessem prosseguir seus estudos pelo menos até um
segundo nível.
Talvez por isso o fato tenha mobilizado praticamente toda a elite letrada
cuiabana, sendo a própria instalação do Liceu programada através da Lei Provincial 536
de 3 de dezembro de 1879, que previa uma cerimônia realizada “sob a assistência de
todos os chefes de repartição, pessoas gradas da Capital e funcionários da Instrução
pública” (Idem, 2001, p. 15)
É por isso que a fala das autoridades presentes pode revelar o pensamento médio
das elites em termos de Educação Pública. E pode ajudar a compreender qual seria a
concepção de Educação presente no imaginário dessa elite. E em que medida essa
concepção poderia estar vinculada a uma determinada visão de mundo, ao
eurocentrismo e especialmente ao Racismo Epistemológico.
76
Na solenidade de inauguração do Liceu Cuiabano, em sete de março de 1880,
Dormevil José dos Santos Malhado, então Diretor Geral da Instrução Primária e
Secundária afirmou que a Escola e a Educação pública eram “o mais poderoso agente
do progresso de um povo” e uma “verdadeira reforma social” (Ibidem, 2001, p.19).
A análise desse discurso revela as conexões que se faziam entre a Educação e o
processo de assujeitamento do indivíduo pelo Estado. Não havia nenhuma dúvida, para
ele, que o progresso e o desenvolvimento econômico, social e cultural da Província e do
país dependiam da disseminação dos conhecimentos escolares por toda a sociedade.
Colocando a Educação na base da ilustração de um país, ele argumentava que
“ela obriga o homem ao cumprimento do dever e o dever fielmente cumprido abre o
espírito à verdade, visto como ambos são da mesma família, imutáveis, universais,
eternos” (Ibidem, p. 20).
A noção de cidadania estava vinculada não tanto ao exercício dos direitos, mas
ao reto cumprimento dos deveres, pois estes seriam idênticos à verdade: “imutáveis,
universais e eternos”. Ao mesmo tempo ele assinala o caráter de promoção social então
reservado à Educação, já que ela poderia contribuir para “nivelar pobres e ricos,
dependendo apenas esse nivelamento da igualdade de aptidão intelectual” (Ibidem, p.
20).
O conceito de Educação estava intrinsecamente relacionado com a prosperidade
econômica individual, com a possibilidade de ascensão social. Além disso, poderia
indicar uma visão de que a disseminação da Educação resultaria numa diminuição da
desigualdade econômica, de acordo com as capacidades individuais de cada um.
Mas é quando ele avalia de forma geral o Regulamento Educacional de 1880,
(Ibidem, pp. 20-23) que ele revela a idéia que se tinha sobre a função social da escola.
Sobre o ensino obrigatório, ele afirma que se trata nada mais que uma “legítima
proteção que, com proveito próprio, o poder público dispensa à infância abandonada à
ignorância e à ameaça de perder-se na senda do vício e do crime”.
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A obrigatoriedade do ensino não é pensada em termos do que poderia resultar
em benefício dos educandos, nem tanto dos seus efeitos culturais no conjunto da
sociedade, mas como uma forma do Estado garantir a sua própria proteção contra “os
vícios e os crimes”. Aqui o Diretor da Instrução faz um eco com uma das linhas do
pensamento racial dominante, que tendia a criminalizar a pobreza e o analfabetismo. A
idéia era de que os crimes tinham como explicação a “falta de cultura” do povo. E é
ainda mais enfático na defesa do ensino obrigatório quando afirma:
Não se suponha que há constrangimento legal na instrução obrigatória; o pai de família tem liberdade de dar educação a seu filho como e onde lhe convier; que o mande à escola pública, que escolha a aula particular, que prefira o ensino doméstico, livremente o pode fazer, cumprindo assim a missão que lhe foi dada com a paternidade, não pela lei, porém por Deus. (Ibidem, 2001, p. 21)
Ou seja, a instrução pública obrigatória é mais que um imperativo legal, é um
dever para com Deus. Nota-se uma tensão entre o poder do Estado, que começa a se
insinuar através da Escola e o pátrio poder, isto é o poder que os pais de família
possuíam sobre seus filhos. Por isso o discurso procura não criar um confronto aberto
com esse poder, mas procura concilia-lo a obrigatoriedade oferecendo uma série de
alternativas para que a lei pudesse ser cumprida.
Mais adiante, ele explica a manutenção da necessidade da escola sob autoridade
religiosa dizendo que “quem educa o homem é a religião pela autoridade que tem em
correção de vícios e reformação dos costumes”. Sobre a instrução mista dirigida pela
mulher – uma inovação do Regulamento – ele ressalta que a mulher “alcança pela
brandura, e quebra com afetos a rigidez de paixões fogosas”, além de desenvolver
“entre os jovens condiscípulos os mais nobres e elevados sentimentos”.
Outra inovação do Regulamento, a instrução primária nas cadeias das cidades, é
justificada como uma forma de “melhorar a sorte de infelizes vítimas expiatórias de
suas próprias paixões”. A introdução das aulas noturnas, por sua vez, possibilitaria “aos
que buscam o pão cotidiano por meio de rudes trabalhos”, “cultivar a sua inteligência e
beber em boa fonte as regras da moral, que são um freio contra as más paixões”.
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Em toda essa argumentação o que se percebe é um enfoque no caráter corretivo
e repressor da Educação, a sua função de enquadramento e assujeitamento do indivíduo
pelo Estado, ou ainda de reprodução das desigualdades pré-existentes na medida em que
à Escola ficaria reservada a função de moldar o caráter, mais que disseminar
conhecimentos.
Uma fala relevante é a do então professor Antonio Correa da Costa. Na
inauguração do Liceu ele fala como um simples docente, mas ele governará o Estado
entre agosto de 1895 e setembro de 1897 e depois disso novamente de novembro de
1897 até janeiro de 1898.
Além do fato de representar o discurso social de um membro da elite intelectual
do final do Império, se reveste de importância porque é o pensamento de um quadro que
irá desempenhar um papel político importante na República que viria em menos de uma
década. Diz o educador:
Senhores, se a inauguração de um estabelecimento material como uma fábrica, via férrea e qualquer outro tipo que não exista no país é motivo para público regojizo, deve sê-lo, como muito bem disse Mr. Zevort, e será sempre considerado como um evento feliz, quase como um fato memorável, porque, depois do ensino doméstico, que em família o homem recebe, vem o da escola, que é a preparação para a vida. (...) Os pais de família sem separar-se dos seus filhos poderão agora dar-lhes educação mais sólida e mais adequada às suas próprias aspirações, a nossos costumes e às necessidades de uma sociedade em progresso. (Ibidem, 2001, p. 25)
A Educação escolar é comparada ao progresso material advindo da
industrialização que começava a ensaiar os primeiros passos no Brasil. Tem importância
fundamental também para a continuidade do ensino recebido na família; mas é a
identificação com o progresso e com o desenvolvimento que são as características dessa
concepção de Educação e de Escola então defendidas pelo professor.
O desenvolvimento e o progresso a que ele se refere estão inteiramente
identificados com os ideais europeus e norte-americanos, conforme palavras do próprio
Antonio:
O que disse Pelletam é uma verdade incontestável – ‘lê monde marche’. O século XIX pode ser denominado – o século das luzes, da liberdade e talvez mesmo que da – igualdade, pelo menos no que diz respeito à Europa e
79
América. As ciências e as artes tem andado um grande caminho, e a elas é que devemos o gozo das descobertas havidas ultimamente, e o desenvolvimento do comércio, veículo de congraçamento dos povos; assim pois vemos que cada geração transmite à geração seguinte o tesouro comum de idéias e ciências que aumenta-se sempre com as descobertas de cada século. (Ibidem, 2001, p. 26) (grifo do autor)
Assim se expressou o futuro Presidente do Estado. Para outro orador no evento,
Manuel Maria Metelo, a criação de escolas e a disseminação da educação nas camadas
sociais tanto poderiam ser maneiras se preparar as revoluções violentas como formas de
se manter a estabilidade das instituições:
Senhores, a escola é como um grão de areia que faz as mais altas montanhas, mas é também como a fagulha que ateia os mais pavorosos incêndios; infiltrando por todas as camadas sociais e esclarecendo em todos os espíritos a noção dos direitos e deveres de cada um, ela prepara o futuro, assegurando a estabilidade das instituições, ou acumula pouco a pouco nos horizontes os vapores que mais tarde se transformam nessas tormentas que se chamam revoluções. (Ibidem, p. 34)
A única forma de evitar que a escola se transformasse em um problema social
seria colocá-la sob a direção pedagógica de bons professores. Nesse ponto o orador
remete a um dos principais problemas que serão levantados por Diretores da Instrução e
pelos Presidentes, que é a falta de profissionais qualificados:
Quereis verdadeiramente que a sociedade caminhe segura pela senda da civilização? Quereis elevar o nível moral do país até a altura em que se acham outros povos? Pois bem! Não basta criar escolas, é necessário colocar à frente delas professores hábeis, é necessário não consentir nessa farsa revoltante de contratarem-se professores analfabetos, somente para depois ter um pretexto para exonerações acintosas, que mancham indelevelmente qualquer administração. (Ibidem, p. 34)
Essa falta de profissionais qualificados para o exercício do magistério quase
sempre tentará ser resolvida com a implantação de um “Curso Normal”, que por sua vez
dependeria da contratação de professores estrangeiros, que eram a referência em termos
educacionais, ou de profissionais do Rio de Janeiro e São Paulo, mais próximos das
condições financeiras de Mato Grosso.
De qualquer forma, pode-se considerar que a Colonialidade dos saberes entrava
também por essa porta, já que os profissionais contratados para efetivar as Reformas
traziam e tentavam implantar métodos e uma organização fundada no mesmo paradigma
eurocêntrico. Consequentemente, não há como deixar de perceber a vinculação entre a
80
Escola e a Civilização. Mas não qualquer civilização e sim aquela que corresponde “ao
nível moral” de “outros povos”, que logicamente não outros seriam senão os da Europa.
Mas é com Augusto Fleury, outra autoridade que usou da fala na solenidade de
inauguração, que a identificação entre progresso, Civilização e Educação está bem
articulada, pois para ele “No século em que vivemos, a instrução é uma condição não só
de riqueza e de progresso, como de prosperidade e de vida de todos os povos que
pretendem os foros de civilizados”. Ele destaca bem o que era no entendimento das
elites a função social da instrução pública. Ele concebe a instrução pública nos seguintes
termos:
É preciso que o Estado zele o mais importante de todos os interesses sociais – o interesse da instrução pública; cumpre-lhe fazê-la efetiva e disseminada. É o melhor meio de manter a ordem pública e o respeito às leis. Suprimi a escola, diz um grande escritor, e só vos ficarão dois meios de repressão: a prisão e o cadafalso. Seria o domínio do terror. (Ibidem, 2001, p. 30)
Não poderia ter sido mais explícito e contundente. A Educação é o mais
importante dos interesses sociais porque ela é antes de tudo um meio de repressão, sem
o qual resta apenas a prisão e o cadafalso. E ele prossegue dizendo:
É um fato demonstrado pela estatística a íntima conexão entre a ignorância e a criminalidade: esta diminui à proporção que se difundem as luzes. E de mais em um regime representativo a instrução sobreleva de importância: ela garante o livre exercício dos direitos políticos nos comícios populares; faz conhecer aos cidadãos os seus deveres e os seus direitos, a fim de que saibam cumpri-los e faze-los respeitar: sé com sua disseminação por todas as camadas da sociedade, haverá desenvolvimento moral e intelectual das massas; condição sem a qual jamais as livres instituições poderão produzir todos os seus frutos. (Ibidem, 2001, p. 30)
Embora ainda não se trate efetivamente de um regime democrático – era uma
monarquia parlamentar -, já se vislumbrava que a estabilidade das instituições deveria
repousar sobre a alfabetização popular. Há uma vinculação específica entre a
criminalidade, a pobreza e a ignorância. Este é um pensamento corrente na época. Tanto
que ele não aparecerá apenas nos discursos dos professores, mas também na fala de
alguns presidentes da Província (depois Estado) e em diversas matérias veiculadas pelos
jornais da época.
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As falas contidas nesses jornais refletem uma preocupação das elites letradas
para com a Educação de massas. Essa preocupação estava no bojo de um movimento
mais amplo que buscava implantar no Brasil os pressupostos do desenvolvimento
europeu e norte-americano e tinha na Educação a principal forma de veicular seus
conceitos e valores.
O próprio movimento que culminou com a proclamação da República ancorava-
se em um conjunto de aspirações sociais que iam desde a necessidade de um novo
governo, passando pela abolição da escravatura, imigração européia e ampliação da
Educação.
Tudo isso convergindo no sentido de que o Brasil viesse a ingressar no rol das
“nações civilizadas”, pois além de ser o único país americano a ser governado por um
Rei, era também o único da região – e um dos únicos do mundo – a manter de pé as
instituições econômicas e sociais do escravismo.
Esse movimento de idéias, embora circunscrito aos círculos das elites letradas,
frequentemente se expressava nas páginas dos Jornais principalmente em Cuiabá, mas
também em Corumbá e Cáceres. Nessas três cidades, de acordo com Siqueira (2002, p.
132), a partir da segunda metade do século XIX, houve um grande incremento na
circulação de idéias através da imprensa escrita.
Esse movimento era representado pela edição de diversos jornais, ligados a
grupos políticos, sociais e culturais e também por jornais recebidos de outras cidades do
país. Calháo (1994) afirma que foram identificados “aproximadamente 349 títulos de
periódicos que circularam nos séculos XIX e XX, formando um acervo de 17.077
números de edições relativas ao período de 1847-1969, sendo a maioria no período
anterior a 1930”
Os trechos apresentados abaixo são de uma matéria, não assinada, publicada
pelo “Jornal Athleta” 3, em 1884:
3 “O Athletla – Jornal Imparcial” – impresso pela “Typografia do povo”, circulou em Cuiabá apenas durante o ano de 1884.
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“Instrui, illustrai o povo dizem todos os socialistas sinceros e tereis constituído uma nova sociedade, melhorar-se-hão os costumes, baixará o thermometro das estatísticas criminaes e augmentarão de modo maravilhoso os milagres da indústria”. Incontestavelmente a instrucção no mundo moral realiza o portentoso anhelo de Archimedes em relação ao mundo phisico. Com tal ponto de apoio a formilanda alavanca da sciência muda sem revoluções, dispensando cataclysmas, sempre ruinosas, a face actual da socieadade. (...) A maioria dos crimes engendram-se nos recessos trevosos da ignorância e da bruteza do analphabeto; ahi estão os relatórios das prisões em auxílio das estatísticas judiciárias para convencer de que são de que são de analphabetos duas terças partes dos condenados por nossos tribunaes criminaes. E não há sanção bastante grave, pena bastante dura e rigorosa que tanto faça quanto as vinte e cinco letras do alphabeto. O homem que lê, o homem que estuda acostuma-se insensivelmente a obedecer a razão e mais facilmente resiste aos brutaes e doudos ímpetos das paixões. ATHLETA – Jornal Imparcial-, ANNO I Nº 4, 27 de maio de 1884, p. 1
Não há nenhuma dúvida, para o autor da matéria, de que a instrução pública é
um instrumento eficaz para se combater a criminalidade, já que os próprios números
indicavam essa estreita relação entre analfabetismo e crime. Muitas passagens da
matéria guardam uma semelhança com o discurso pronunciado por Dormevil José dos
Santos Malhado quatro anos antes na inauguração do Liceu Cuiabano.
As elites letradas viam na Educação um instrumento de controle e coerção
social, uma forma de fazer com que o povo saísse do seu estado de ignorância que tanto
atrapalhava o progresso do estado e da nação. Isso se deve ao fato de que essa elite
letrada tinha acesso e se guiava pelos mesmos ideais de civilização e de progresso que
estavam em vigor no país. Além disso, a Educação é, durante o período, a forma como
essas idéias circulam no interior da sociedade.
Em todos esses discursos, a Educação e a Escola são concebidas por termos
como “preparação para a vida”, “necessidades do progresso”, “progresso científico e
artístico”, “direitos e deveres”, “estabilidade das instituições”, “meio de progresso”,
“evita a prisão e o cadafalso”, “diminui a criminalidade”, “garante o exercício dos
direitos políticos”, “dissemina a civilização” e “eleva o nível moral das massas”.
Educação e Escola aparecem na convergência do mundo trabalho, do
desenvolvimento social e cultural, da civilização das massas; enfim são a pedra de
toque de todas as transformações exigidas e almejadas socialmente e que vão ser
incorporadas como projeto de poder pela elite dominante. Fato observado por Reis e Sá:
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Dentro desse processo civilizador, a escola foi apresentada como detentora do papel central, traduzindo um movimento que repercutiu em todas as instâncias da sociedade. (...) As primeiras décadas do século XX foram cruciais para o Brasil definir sua nacionalidade. Os discursos giravam em torno dos processos de (re) construção da nação sob novos paradigmas. Pretendia-se lançar mão de um projeto que desse impulso à escolarização da sociedade no sentido de “educá-la”, pelo menos no que entendiam as elites brasileira e mato-grossense, para garantir uma pátria mais ordeira, progressista e essencialmente “civilizada”. (REIS; SÁ, 2006, p. 13)
Essa civilização a que se referem Reis e Sá era para as elites da época
identificada com os padrões europeus e norte-americanos. Na opinião dos governantes,
por exemplo, a disseminação da Educação para o povo poderia realizar o milagre de
tornar o Brasil um país comparável aos da Europa.
É por isso que todas as reformas educacionais empreendidas por esses
governantes a partir do final do Império e por toda a Primeira República vão perseguir
esse ideal civilizador. O trecho abaixo é do Barão de Maracajú, presidente da Província,
criador da reforma educacional que implantou o Liceu Cuiabano e estabeleceu o ensino
obrigatório e outras inovações citadas nas falas da inauguração daquela escola:
Convencido da urgência de tais medidas e da transformação miraculosa que a instrução opera em um povo, pelos exemplos que apresentam em nosso século, especialmente, a Prússia, Suíça e Estados Unidos, (...) Apresento-vos, com o presente relatório, o Regulamento (...) criando o referido Liceu e reformando o ensino, espero que o aproveis. (...) estabeleci o ensino livre e a instrução obrigatória, esta, porém, para que seja real, depende de meios com os quais espero que me habilitareis, bem como para ocorrer à outras despesas ali criadas (...) (MATO GROSSO, 1880b, p. 26)
De acordo com Siqueira e Sá (2001), o Presidente Francisco José Cardoso Junior
(1871-1873) já havia tentado implantar uma reforma que estabelecia o ensino
obrigatório, escolas nas cadeias e aulas noturnas, sendo que “essa tentativa, no entanto,
foi infrutífera, uma vez que as escolas noturnas não conseguiram manter seu
funcionamento regular por falta de alunos” (SIQUEIRA; Sá, 2001, p. 7).
Tanto as reformas que se tentavam implantar quanto a concepção de Educação
imbricada nas mesmas estavam eivadas de um ponto de vista eurocentrado. O exemplo
sempre citado e sempre perseguido não é outro senão dos países da Europa e os Estados
Unidos, conforme o próprio Barão assinala acima.
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Embora quase sempre essas idéias reformistas ficassem no papel, eram
arduamente defendidas pela elite como sendo a redenção do Estado. No Relatório
apresentado ao Presidente da Província, o então Diretor Geral da Instrução Pública,
Dormevil José dos Santos Malhado, reafirma a conexão entre a Educação do povo e a
diminuição da criminalidade:
O preparo da mocidade para a realização das grandes esperanças do país é o pensar constante do nosso ilustrado Monarca. (...) é a idéia fixa de muitos estadistas notáveis; é o pomo de ouro dos partidos militantes. (...) Abrir escolas é fechar cadeias, disse um sábio pensador; o valor de uma Nação está na razão direta do volume de sua inteligência, declarou Frederico o Grande; a ciência escreveu Cossino Rodolfi, é a mãe dessas virtudes fortes, generosas, amáveis, que são a honra, e fazem o poder e prosperidade dos povos. (...) um espírito totalmente inculto, se não é um instrumento inútil, é, às vezes, o agente infeliz dos mais funestos resultados. A história negra dos crimes é a biografia do ignorante. (MATO GROSSO, 1882b, s/p) (grifo do autor)
E ainda:
O filho tem direito incontestável à educação, e o pai o dever indeclinável de promovê-la e torná-la uma realidade. Desde que não trata dessa obrigação, o poder público deve intervir; a ele cumpre manter e garantir o império do direito ou o cumprimento do dever, como condição essencial à prosperidade comum e à justiça social. O cidadão que priva seu semelhante da vida física é punido; não o deve ser menos o que não cuida de esclarecer o espírito da criança que Deus ou a sociedade confiou-lhe, e deixa perecer no embrutecimento e cegueira completa a sua razão. (MATO GROSSO, 1882b, s/p)
Oito anos antes disso, o jornal cuiabano “O Liberal” 4 avalia a situação da
instrução pública de Mato Grosso, discorrendo sobre a indiferença que impera na
realidade daquela região do Império:
É infelizmente triste e desanimador o estado de abatimento e indiferença que se nora na maior parte dos espíritos em nosso país para com as letras. Nele, pouco são os que procuram saber. Parece que o pão intelectual é um alimento desnecessário, que todos já estão educados, que ninguém precisa de instrução! (...) E o país cego pela falta de instrução, embalado como crianças pelo som de falsos cânticos não antevê o futuro grandioso que lhe está preparado pela Província! (...) A instrução perece, a lavoura e a agricultura definham, e o passo para o grande dia da regeneração retarda-se! O que faz o governo e os seus delegados nas províncias, que não olham para o engrandecimento desta Nação, fadada para altos destinos, a cujo leme estão a testa? (Jornal O Liberal, 10 de fevereiro de 1874)
4 “O Liberal – Jornal oficial, político e noticioso”, circulou em Cuiabá nos anos 1871-1873/1879-1881-1882.
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O desânimo do autor da matéria acima pode ser explicado quando se lê um outro
texto, no mesmo Jornal, datado do ano seguinte. Nele, “J.M.” faz eco ao pensamento de
que através da Educação todos os males, principalmente os crimes, serão superados:
Procurai a fonte de todos os males, a origem das discórdias, o percurso da desgraça e encontrais sempre a ignorância. Da mesma forma que a noite e a imagem da morte, assim como o dia o espelho da vida, ela e a imagem do crime, como a educação o espelho da virtude. A instrução é a alma da civilização, e tanto mais nos convencemos desta verdade quanto mais nos instruímos. (...) Ante a luz fulgurante da instrução desaparecem todas as iniqüidade, todos os fanatismos, todas as injustiças e crime se confunde, a perversidade se abate, o vício se aniquila. J.M. (Jornal O Liberal, 10 de junho de 1875, s/p).
De acordo com matéria do Jornal “O Porvir” 5, em junho de 1877, a instrução é
nada menos que “o farol da civilização e o único motor capaz de por o povo ao abrigo
das más interpretações legais, que, de ordinário, revertem em prejuízo dos ignorantes”.
Além disso, ela também é a base da nação e o abrigo do homem, conforme outra edição:
A instrução é o pão divino que cabe em partilha a todos os homens e é nela onde se firma a base de uma nação. Toda a nação em que reina a instrução, cada dia aperfeiçoa-se consideravelmente, para o maior grau de adiantamento; e pelas outras que caminham muito lentamente, admirada e respeitada. O homem instruído encontra abrigo em toda e qualquer paragem: sua vida e lisonjeira, dócil, sublime e santa; enquanto o homem abrutado, que ignora a sociedade em que vive, o lugar em que nasceu e a historia pátria, parece que a terra se lhe levanta, e sua vida e factual, insípida e péssima; e vem a ser tarde ou cedo malfadada. (Jornal “O Porvir” 1º de janeiro de 1878, s/p)
Interessante notar que o discurso sobre a instrução pública quase sempre é
acompanhado com um discurso semelhante sobre o trabalho, já que a esfera da
produção material também estava sendo modificada a partir de pressupostos
semelhantes aos que se buscava implantar na Educação. No Jornal “A Tribuna” 6:
O Estudo e o Trabalho: A estes grandes motores do progresso deve a humanidade uma parte de suas mais arriscadas empresas. Por meio deles se tem desenvolvido e aperfeiçoados os cometimentos e invenções que hão dado a marcha dos séculos poderosos elementos para a perfectibilidade universal. São o estudo e o trabalho auxiliares necessários aos povos, pois desvendam os mais recônditos segredos da ciência, elevam as artes e todos os ramos de indústrias, fazendo raiar a evolução nos tempos modernos. Sem eles, o gênero humano estacionário em face do desconhecido apresentaria as idades
5 “O Porvir – periódico noticioso, recreativo e literário” impresso pela “Typografia d’O Porvir”, circulou em Cuiabá nos anos 1877-1878. 6 “A Tribuna”, circulou em Cuiabá de 1885 até 1890.
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uma cena de decadência, um espetáculo de ruínas. Ass.: “Revocata de Mello”. (Jornal A Tribuna, nº70, 10 de março de 1887, p. 3-4)
O discurso das matérias jornalisticas segue na mesma linha que a fala das
autoridades constituidas, o que expressa uma ligação entre os que escreviam e os que
comandavam, quando essas atividades não eram realizadas pelas mesmas pessoas. Além
disso, há uma linha de continuidade nesse pensamento que começa no final do Império
e segue pela República. Assim se expressa o Diretor Geral da Instrução Pública, José
Estevão Correa, em seu Relatório ao Presidente do Estado de Mato Grosso, Antônio
Corrêa da Costa:
Congratulo-me pois e tanto mais sinceramente com V. Exa., por sua conquista quanto estou profundamente convencido de que no regime das democracias, a instrução popular e só ela, constitui a força que aumenta e garante as liberdades públicas; só ela se revela como sendo a diamantina estrela que alumia o caminho do porvir às sociedades que passam; só ela enfim se manifesta como o agente único e poderoso capaz de encaminhar os povos para a realização de seus grandes e alevantados destinos! (MATO GROSSO, 1898, p. 10)
A Educação pública é vista como o meio através do qual o indivíduo se
identifica com os interesses do Estado, que na maior parte das falas se confunde com o
interesse social. Configura-se um quadro no qual a Instrução Pública é o veículo de
propagação dos valores culturais da civilização européia, dos valores liberais-burgueses
de democracia e participação política, enfim ela é o esteio do Estado e da Nação.
A maior parte dos Relatórios dos Diretores da Instrução e também dos
Presidentes do Estado contém passagens explícitas, como as acima, das quais se possa
deduzir a concepção educacional de quem os escreveu. Além disso revelam que as elites
mato-grossenses estavam atentas às discussões filosóficas sobre a Educação praticada
na Europa e nos Estados Unidos.
Isso reforça a sensação de que as falas representam um pensamento que estava
bem consilidado no imaginários dessas pessoas. Um exemplo disso é o Relatório
Apresentado à Assembleia Legislativa pelo Presidente da Província João José Pedrosa
em outubro de 1879.
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Na parte destinada à Instrução Pública, o Presidente começa fazendo a defesa de
contratações temporárias de professores. Uma vez que estes recebiam uma remuneração
menor que aqueles qualificados como “profissionais idôneos”, isto é, que apresentavam
as condições necessárias ao exercício do magistério, o Estado podia com essas
contratações oferecer ensino a uma clientela maior.
Em seguida ele cita o exemplo da “grande República Americana” para fazer uma
apologia ao ensino misto: “E diz Mr. Buisson (Rapport sur l’ insttrucion primaire a l’
Exposition universelle de Philadelphie), que este systema é favorável tanto aos meninos
como as meninas”. E acrescenta, citando Mr. Buisson:
“Os meninos adquirem maneiras mais brandas, menos grosseiras, menos turbulentas; e as meninas ganhão na seriedade, no recato, na assiduidade ao trabalho: habituados ambos a viverem juntos, lado a lado, não correm mais perigos que os irmaos e as irmãs, na família”. (MATO GROSSO, 1879, pp. 135-136)
Mas em seguida ele admite que esse sistema não poderia ser implantado em
Mato Grosso:
A sociedade americana, porém, como reconhece o escriptor a que me referi, é algum tanto original: ella repousa, não theorica, mas praticamente, sobre o princípio da igualdade dos sexos. (...) É preciso, sem dúvida, não transplantar para um outro povo instituições que não se accommodem com a sua vida íntima, diversa da nação de titãs do progresso. (MATO GROSSO, 1879, p. 137)
E retorna novamente à defesa do ensino misto, sugerindo que essa é uma
necessidade para todos aqueles que desejam acompanhar a “marcha da civilização”:
Mas, o que também é verdade é que os povos que desejão acompanhar os que marchão na vanguarda da civilização, despem-se de seus falsos preconceitos, modificão um pouco os seus hábitos, para que estes não se transformem em outras tantas barreiras aos grandes melhoramentos que cumpre-lhes emprehender. (MATO GROSSO, 1879, p. 137)
A elite letrada, ou pelo menos a parte que governava a Província tinha
intimidade com as teorias e com as práticas dos países europeus e dos Estados Unidos.
Por outro lado esses mesmos países eram sempre a referência em termos de civilização
e de progresso. Por isso, a necessidade para todos os povos, pelo menos os que
desejassem “acompanhar a marcha da civilização”, de renunciar aos seus hábitos
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culturais, aos seus valores já que estes eram barreiras aos “melhoramentos do
progresso”.
Mais adiante, o Presidente demonstra que os interesses econômicos do Estado,
assim como os da Educação seriam beneficiados com tal medida:
Seria mais fácil encontrar professores habilitados para trinta ou quarenta cadeiras do que para o duplo dellas; e mais facil ainda seria também aproveirar as vocações para o magistério – quando a remuneração pudesse ser maior, em virtude da reducção do numero das escolas, sendo estas communs aos dois sexos. (MATO GROSSO, 1879, pp. 137-138)
Mais adiante, ele faz a defesa do ensino obrigatório revelando porque o mesmo
deve ser instituido:
A obrigatoriedade do ensino, embora combatida por muitos, tem sido bem aceita em grande parte da Europa e na américa, com os mais significativos resultados em favor de sua adopção. (...) Para mim não pode soffer séria contestação o direito que tem o Estado de decretar a obrigatoriedade do ensino: vai n’isso uma condição imprescindível de prosperidade social, uma arma poderosa, única efficaz, para elle livrar-se dos perigos que podem ameaçar a ordem e a tranquilidade pública. (MATO GROSSO, 1879, p. 139)
O Relatório do Presidente João José Pedrosa é um dos mais completos em todos
os sentidos. Apenas a seção destinada à Instrução Pública ocupa quinze páginas, de um
total de 170 abordando todos os aspectos da adminstração pública.
A exemplo do Relatório acima, todos os documentos nos quais o autor se propõe
a dissertar sobre os benefícios e a importância da Educação e da Escola,
invariavelmente, pode-se perceber uma unanimidade na defesa de medidas já
implantadas na Europa ou nos Estados Unidos ou ainda em locais como São Paulo ou
Rio de Janeiro. Em seguida, apresento trechos da fala de Antonio Pedro Alves de
Barros, que governou o Estado de agosto de 1900 até o mesmo mês de 1903:
O primeiro dever dos nossos magistrados e dos chefes da nossa república é subordinar tudo a esse interesse supremo. Em nossos paízes e em nossos dias ninguém é benemérito do título de homem de Estado, si a educação prática do povo não tem o primeiro lugar no seu programma. (...) E alguém já disse com razão que o único meio de salvar a nova geração brazileira; a geração de nossos filhos, do contágio da lepra moral que lavra o paiz é educal-a. educal-a physcamente para se ter homens fortes; moralmente para se ter homens honestos; intellectualmente, para se ter homens ilustrados. Educal-a
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convenientemente para se ter grandes homens. (MATO GROSSO, 1901, pp. 9-10)
De acordo com o pensamento de Antonio Pedro Alves de Barros, anunciado
acima, não apenas o Estado de Mato Grosso, mas todo o país padecia de um grande mal,
que ele qualifica como “lepra moral”. A única forma de livrar o país dessa moléstia
seria investir na educação do povo, “o primeiro dever”. A fala é do início do século
XX, mas conforme estou demonstrando, é característica de todo o período que começa
ainda no Império e atravessa boa parte da República.
Caetano Manoel de Faria e Albuquerque, que presidiu o Estado de agosto de
1915 a fevereiro de 1917 repete as mesmas idéias, concordando com todas as outras
observações anteriores, de que a Educação é a chave para a transformação social, a
estabilidade dos governos e a maneira para se alcançar o progresso e a civilização que
tanto se ansiava:
Questão fundamental e primordial na vida dos governos que de factos são livres, gânglio vital das nações modernas, “pão do espírito”, como a chamaram, a instrucção pública é problema posto em equação por todos os governos que o procuram resolver da melhor maneira, como uma das suas maiores obrigações, embora não seja propriamente uma função do Estado ou que lhe seja essencial, visto que já vae um tanto desacreditada essa figura do estado-professor. Entre o fetichismo, porém, do estado professor e o estado indifferente ao ensino popular, existe um meio termo, que deve consultar o interesse nacional, principalmente no tocante a instrucção publica primária, cujo destino ético-social é preparar o cidadão para a boa comprehensão dos seus direitos e cumprimento de seus deveres, como membro da communidade, ao mesmo tempo que tornando-o mais apto para as lutas e imprevisto da vida real. (MATO GROSSO, 1916, p. 53)
Embora o presidente seja uma voz dissonante no que diz respeito às
responsabilidades do Estado para com a Educação, não deixa dúvidas que ela é de suma
importância para todas as “nações modernas”. Aliás, percebe-se nas falas dos Relatórios
e nas matérias dos jornais essa identificação entre o índice de alfabetização e a idéia de
“modernidade”.
Parece-me que à medida que a República ia se consolidando e se multiplicavam
as experiências eleitorais – ainda que limitadas -, os homens de Estado e as elites
letradas passam a dar mais ênfase no aspecto político-eleitoral da Educação escolar,
principalmente da Instrução Pública.
90
Talvez pelo fato de que o direito de voto era então restrito aos alfabetizados e
sendo estes uma minoria “num mar de analfabetos”, o exercício da cidadania política
achava-se comprometido. Além disso, a Educação não era vista apenas como uma
correia de transmissão dos seus ideais governamentais. Havia uma identificação
automática entre a escolarização e o processo civilizatório.
No manifesto que dirigi aos meus concidadãos nas vésperas de ferir-se o pleito eleitoral para sucessão presidencial, affirmei que é dever inilludivel do Estado promover e auxiliar com toda a solicitude a educação e instrução do povo, facilitando-lhe os meios de adquirir os conhecimentos indispensáveis a boa prática do governo republicano e ao conveniente exercício de sua liberdade e dos seus direitos e deveres como homem e como cidadão. (...) volvi minha acurada attenção, procurando melhor apparelhar os nossos elementos de combate contra o grande mal do analphabetismo, que ainda avassalla a maior parte da nossa população, impedindo-a de concorrer de modo mais directo e efficaz para a solução dos vários assumptos que se prendem a prosperidade do Estado. (MATO GROSSO, 1912, p. 25)
Por isso, nota-se nas falas dos Presidentes do Estado, principalmente a partir do
início do século XX uma preocupação expressa de se alfabetizar para se garantir a
participação política. Conforme já foi notado por outros pesquisadores o mesmo ocorria
em praticamente todo o país. Em 1923, o então Presidente do Estado, Pedro Celestino
Correa da Costa disse, em sua Mensagem à Assembleia Legislativa:
Nenhum progresso é possível sob o ponto de vista material, moral e social sem a diffusão do ensino útil pela massa popular. A instrucção que dever ser ministrada pelas escolas abrange noções de conhecimentos necessários à formação de cidadãos aptos a vida prática e a colaboração para o progresso da sociedade em que vivem. Sem esse preparo não poderá haver organização política efficiente a vitalidade e a segurança do paiz, e emquanto esse problema não for convenientemente resolvido nos Estados, limitada que se acha as grandes cidades, ao passo que nas populações ruraes a ignorância e o analphabetismo conservam a grande maioria dos nossos patrícios no desconforto e na miséria orgânica. (MATO GROSSO, 1923, pp. 34-35)
Parece claro que o conceito de Educação adotado pelas escolas identifica-se com
o projeto de poder das elites dominantes. Para esse projeto de poder não se tratava
somente do que a Educação poderia oferecer à clientela das escolas em termos de
rudimentos das ciências, das linguagens e da cultura letrada.
Para o projeto de Nação, de país de principalmente de povo, que estava sendo
gestado e implantado pelas elites dominantes, a Educação deveria se constituir antes de
91
tudo em uma forma de se permitir moldar o povo de acordo com os paradigmas
importados da Europa e dos Estados Unidos.
A centralidade da Educação se explica pelo fato de que nenhuma outra
instituição social poderia a esta altura alcançar os mais distantes lugares, os mais
amplos públicos e penetrar no passado, no presente e no futuro, implantando o projeto
nacional de longo prazo de moldar um novo povo e uma nova sociedade.
Disso tinha conhecimento todos aqueles que compunham a elite letrada, uma vez
que eles estavam a par do “desenvolvimento” e do “progresso”, da verdadeira
“civilização” cujos exemplos podiam ser lidos nos livros, nos jornais, nos depoimentos
daqueles que haviam sido testemunha das maravilhas européias e norte-americanas.
Conforme publica o “Jornal O Republicano” 7, em 1895:
Raciocinemos: qual o serviço cuja importância assumindo as proporções de um apostolado, pode ser equiparado aquelle que se presta ao interesse moral das sociedades, dissipando as trevas do presente e rasgando-lhe esplendidos horisontes na estrada do porvir? Nenhum! Variadissimos casos há em que se coopera para o progresso material dos Estados, mas por mais efficazes que pareçam, elles só abrangem um espaço relativamente inferior, ao passo que a instrucção, comprehendida e liberalisada segundo a consciência – como deve ser – produz sempre immensos resultados, isto é; prepara o homem para a família, a família para a sociedade, e a sociedade para a comunhão dos povos livres. (Jornal O Republicano, 1895, p. 4).
Nos trechos de Relatórios e matérias jornalísticas apresentadas acima, a
instrução popular é identificada com a construção de uma nova sociedade, na qual os
costumes estão melhorados, as estatísticas criminais baixas e o desenvolvimento
industrial assegurado.
“O portentoso anhelo de Archimedes em relação ao mundo físico”: Arquimedes
descobriu o príncipio da alavanca e a ele é atribuída a citação: "Dêem-me uma alavanca
e um ponto de apoio e eu moverei o mundo". Espera-se que ela seja a alavanca, o
instrumento com o qual o mundo poderá ser radicalmente transformado. De acordo com
o pensamento corrente na época, pelo menos para as elites, ela é o remédio e a solução
para todos os males sociais.
7 “Jornal O Republicano” – Circulou em Cuiabá nos anos 1895-1899.
92
Pode-se afirmar, então, que nesta concepção de Educação e do papel social da
Escola está presente o Racismo Epistemológico na medida em que os padrões culturais
que serão veiculados pela Escola e o conceito de Educação com a qual ela trabalhará
são buscados nos exemplos da Europa e dos Estados Unidos. Não se deve esquecer que
a Colonialidade dos saberes pressupõe e acompanha a Colonialidade do poder.
O período de transição do qual falo é exatamente o de construção do Brasil
moderno, quando as hierarquias sociais presentes durante todo o período
Colonial/Imperial estão sendo substituidas por novas relações de poder, mas com o
mesmo conteúdo de subordinação da população aos interesses das elites governantes,
sendo estas por sua vez subordinadas às antigas metrópoles européias.
É por isso que nesses discursos sobre a Educação e a Escola está implícita a
percerpção de que o povo, os iletrados, são pessoas sem a dimensão cultural necessária
à “civilização”. Sendo assim, a instrução pública é nada mais que a disseminação dos
conceitos e valores da “civilização adiantada”, pois através desse processo é que se
espera que o progresso e o desenvolvimento sejam atingidos.
Essa pretensa superioridade da forma de conhecimento tipicamente ocidental,
produzida no bojo do processo colonizador e reafirmada no processo de redefinição do
conceito social de Nação e de povo é o que Grosfoguel define como Racismo
Epistemológico, “a forma mais invisível e importante de racismo, pois ele está na base,
na própria fundação do racismo sócio-econômico”.
Como conseqüência da forma aparentemente despretensiosa de se atribuir
valores as mais variadas formas de conhecimento, os seres que produzem qualquer
espécie de conhecimento não-ocidental passaram automaticamente a ser considerados
como irracionais, pois o conhecimento ocidental é considerado como a única forma
válida de se raciocinar.
As comunidades não-ocidentais foram excluídas do processo de produção do
conhecimento científico, do processo de constituição de uma determinada verdade e
também não puderam se posicionar, senão de forma subalterna, no sistema de produção,
nos outros campos do sistema de produção da vida.
93
A Educação da Primeira República foi constituida a partir de uma visão
eurocêntrica e a escola que dela derivou nasceu afirmando o mito da neutralidade, de
que não possuiam cor, classe, raça ou gênero. Porém, quem passou pela educação
formal pública foi submetido a um processo de enquadramento na perspectiva
epistemológica ocidental cuja finalidade central era a de negar a sua identidade, negar a
validade da sua cultura e da sua capacidade de produzir ciência e conhecimento.
As elites brasileiras e mato-grossenses foram peças importantes no
estabelecimento de uma hierarquia global através do qual o conhecimento ocidental foi
privilegiado como uma categoria superior em detrimento de todas as outras modalidades
de produção de conhecimento.
O homem da elite mato-grossense ocupa o lugar epistemológico do homem
branco europeu e o modelo de Educação e de Escola que ele defende é o da escola
branca européia. Foi a existência desse tipo de racismo que permiti às elites dirigentes
defender e implantar um projeto educacional em âmbito nacional que estivesse
vinculado aos seus anseios e necessidades de manutenção das hierarquias.
Mais importante que mudar, era necessário que a mudança ocorresse sem
traumas ou alterações no ordenamento social. Assim como a abolição não havia alterado
substancialmente o poder econômico da elite proprietária, a república não poderia
alterar a balança do poder, fazendo com que este viesse a pender para o lado das classes
populares.
Nesse contexto, a Colonialidade do saber ou o Racismo Epistemológico operou
da seguinte forma:
• Concebeu os sentidos cognitivos do mundo e da vida em termos
de centralidade européia, ou seja, a própria concepção de mundo foi realizada a
partir da ideologia do eurocentrismo;
• Destruiu todas as formas culturais e de percepção da realidade
que fugia ao padrão estabelecido pelo eurocentrismo;
94
• Reprimiu todas as forças sociais, formas de relacionamento e
manifestações através das quais a cultura do oprimido pudesse ser produzida ou
reproduzida;
• Submeteu os oprimidos a uma hierarquia de produção e
reprodução de novas formas de saber identificadas com a Europa, ou seja,
obrigou-os a assimilação da cultura européia.
Ao longo prazo esses procedimentos configuram uma nova realidade social,
cultural e econômica para os colonizadores e colonizados, pois toda realidade material
ou subjetiva passou a ser concebida apenas nos termos estabelecidos. Sendo assim, a
Escola do final do Império e início da República veiculou, antes de tudo, uma Educação
cujo pressuposto central se baseava no Racismo Epistemológico.
Essa epistemologia colonial e racista não era outra coisa senão os sentidos
cognitivos do mundo e da vida concebidos a partir do eurocentrismo:
• A educação escolar republicana não considera como válidos
senão os conhecimentos e valores culturais europeus, tidos como superiores;
• As heranças culturais nas quais as crianças negras, pardas e
pobres haviam sido socializadas no seio de suas famílias eram negadas e
reprimidas como não válidas, como inferiores;
• Os alunos eram submetidos a uma disciplina escolar que os
hierarquizava e os obrigava a assimilação dos valores culturais considerados
civilizados;
O resultado dessa passagem pelo sistema de ensino deve ter sido exatamente a
assimilação de um programa homogêneo de pensamento, de conduta e de valores
europeus. Tanto os critérios que passaram a definir a concepção social da educação,
como as características da Escola nascente foram estabelecidos a partir dos interesses de
raça e classe das elites mato-grossense e brasileira, cujos valores se aproximavam mais
95
da Europa e dos Estados Unidos que do conjunto populacional do país ao qual
pertenciam.
96
3.3 – ACESSO E PERMANÊNCIA NA ESCOLA PRIMÁRIA
O segundo aspecto sob o qual desejo abordar a Educação e a Escola Primária do
período é quanto as reais condições de acesso e de permanência da população infantil
nas escolas primárias. Apenas o discurso sobre a concepção de Educação não diz muita
coisa, pois nenhum dirigente político ou educador menosprezou a importância da
Educação e da Escola.
Entretanto, entre os belos ideais de civilização e de progresso que se esperavam
ser trazidos pela Educação e a realidade do “chão da escola” havia um terreno muito
largo, muitas vezes um abismo quase intransponível. Os mesmos relatórios que
fornecem pistas sobre a concepção de Educação então reinante também trazem dados
valiosos sobre a situação da instrução pública primária.
Devido à grande importância que a Educação tinha no terreno dos discursos, as
preocupações se concentravam na ampliação da rede de escolar. Havia uma inquietação
em fazer valer a aplicação do ensino público primário obrigatório que havia sido
aprovado pela primeira vez em 1871.
Além disso, os Relatórios e Mensagens apontam outras preocupações
igualmente importantes: é recorrente a reclamação por parte dos Diretores da Instrução
e também dos Presidentes contra a falta de professores qualificados. Uma vez que não
havia escolas de ensino secundário que pudessem prepará-los, a maioria era autodidata.
Além disso, por muito tempo, não houve um método unificado, nem construções
escolares apropriadas.
Acrescentando-se a isso, Mato Grosso possuía o segundo maior território entre
todas as Províncias (Depois Estados) e uma população muito disseminada, o que
praticamente tornava impossível ao governo manter uma presença constante em todas as
localidades habitadas.
Contra as investidas dos governantes também pesava o fato de que se tratava de
uma das regiões mais pobres do país, com uma economia fundada no extrativismo
97
vegetal e na criação de gado, produtos que não podiam disputar os grandes mercados
devido às enormes distâncias e a quase inexistente rede de transportes. Com isso o
volume de recursos destinados à Educação deveria ser irrisório.
De acordo com Almeida (2000), em 1871, a Província de Mato Grosso aplicava
na instrução pública primária um montante de 22.760.000 Reis, de uma receita total de
264.099.840 Reis, o que correspondia a uma proporção de 1/11. Na comparação com as
outras Províncias, Mato Grosso era a que menos investia seguido de perto pelo
Amazonas que aplicava apenas 1/10.
As províncias que então mais investiam na instrução pública primária eram
Minas Gerais, Santa Catarina e Paraíba, cada uma com 1/4, seguidas de Alagoas, Ceará,
Espírito Santo, Rio Grande do Norte e São Paulo, com 1/5 cada. Esse baixo
investimento na instrução pública primária é atestado pela maior parte dos Diretores
Gerais da Instrução e também pelos Presidentes da Província durante todo o período do
Império, situação essa que pouco muda com o advento da República.
Segundo o Relatório apresentado à Assembleia Legislativa pelo Presidente da
Província em 1874, esse era o principal problema que deveria ser resolvido, já que “o
estado financeiro da província não tem melhorado consideravelmente” (Mato Grosso,
1874, s/p).
Nesse mesmo Relatório, José de Miranda da Silva Reis, Presidente da Província,
argumentava: “as escolas são os templos onde os filhos dos ricos e dos pobres, dos
sábios e dos ignorantes, vão buscar o alimento do espírito e receber em seus corações
tenros e juvenis a semente da sã moral, da boa educação e do amor ao trabalho” (Mato
Grosso, 1874, s/p).
Os discursos grandiloqüentes sobre a instrução pública primária, aliados a
aprovação de Regulamentos que nunca eram aplicados se justapõe a essas reclamações
sobre a falta de condições financeiras para que se resolvessem os problemas do setor.
Esta é uma constante em todos os Relatórios estudados. Em 1878, o então Presidente da
Província, João José Pedrosa, falava à Assembleia Legislativa e se lamentava da
98
situação da instrução pública primária, observando principalmente a incapacidade que o
Estado possuía em manter nas escolas todas as crianças:
Olhando para o mapa das matrículas, vê-se que, tomada uma quinta parte da população como escolar, isto é, nas condições de freqüentar a escola, e confrontada com o número de alunos matriculados (1.288 para 60.000 alunos), há cerca de 9/10 da mesma população que vive na ignorância, analfabeta. E não é tudo: se porventura a décima parte da mocidade efetivamente recebesse instrução, Mato Grosso não seria talvez a mais atrasada das províncias do Império, porque algumas outras, em melhores condições que ela, lhe disputariam o lugar. Mas, desgraçadamente, calculo eu, pois ainda não pude obter informações precisas, pouco mais de metade dos alunos matriculados freqüentam as respectivas escolas! E assim temos, pois, que pouco mais de uma vigésima parte da mocidade recebe instrução! (MATO GROSSO, 1878, p. 44)
Do que se pode inferir que o problema era realmente grave. Primeiro porque
apenas um décimo das crianças em idade escolar estavam matriculadas nas escolas
públicas, uma cobertura muito baixa. Além disso, dessa quantidade ínfima apenas a
metade efetivamente freqüentava essas escolas.
Daí a sensação, para o Presidente, de que a baixa freqüência dos alunos às
escolas era um dos principais motivos para que Mato Grosso figurasse como uma das
Províncias mais atrasadas do Império. As escolas eram de fato escassas para a
quantidade de crianças em idade escolar e as que existiam não eram freqüentadas o
tempo todo por todos aqueles que poderiam fazê-lo. Por isso, ele entendia que a
situação poderia ser mudada com a introdução do ensino obrigatório.
Em tese, sou apologista da escola obrigatória, mantido o ensino livre, porque tenho para mim, adaptando a opinião de notáveis escritores, que a obrigação de aprender, embora com o direito de receber o ensino por este ou aquele sistema, deste ou daquele mestre, diplomado ou não, uma vez que mereça a confiança desse tutor nato que Deus a todos dá - o pai. (MATO GROSSO, 1878, p. 44)
Mas em seguida admite que essa medida dificilmente poderia ser adotada:
Mas, a obrigatoriedade da escola não pode, na prática, deixar de sofrer certas restrições determinadas pelos princípios de justiça e pelas condições especiais de cada povo. Assim, o pai pobre, que não tem recursos para vestir decentemente seus filhos, nem para ministrar-lhes livros e mais utensis indispensáveis, não pode ser compelido a mandá-los à escola, sem que o Estado de incumba de fornecer-lhes a roupa e mais objetos precisos. Às municipalidades ou à província deve caber esse nobre encargo. Desde que, porém, nem as Câmaras nem a província dispõem dos meios para ocorrer à toda despesa que tal encargo acarreta, impossível se torna a obrigação
99
imposta aos pais proletários, sempre numerosos, de mandarem seus filhos à escola. (MATO GROSSO, 1878, p. 45) (grifo meu)
Note-se como a falta de condições materiais da maior parte das famílias era o
principal empecilho para que seus filhos freqüentassem as escolas, o que vem de
encontro a suspeita de que, para os alunos negros essas dificuldades financeiras e
materiais deveriam ser ainda maiores.
Como a maior parte dos documentos simplesmente se silencia sobre a cor dos
alunos e alunas e considerando as condições de miserabilidade na qual deveriam viver a
maior parte dos negros e pardos, pode-se inferir que eles são categorizados como
pobres. Independentemente da cor, a fala do Presidente da Província é enfática: ele não
deixa dúvidas quanto as principais dificuldades enfrentadas pelo ensino público.
De um lado, o estado simplesmente não possuía os recursos financeiros,
materiais e humanos para fazer frente à demanda: faltavam professores qualificados,
prédios escolares apropriados, materiais escolares e outros utensílios; por outro, a maior
parte da clientela – os pobres – também não estavam em condições de adquirir esses
insumos básicos. No ano seguinte a esse Relatório, João José Pedrosa enviava suas
queixas à Assembleia Legislativa, quase que repetindo tudo o que no ano anterior já
havia mencionado:
Ainda é bem contristador este atraso que estamos quanto à propagação da instrução. A obrigatoriedade do ensino, embora combatida por muitos, tem sido bem aceita em grande parte da Europa e na América, com os mais significativos resultados em favor da sua adoção. (...) Para mim não pode sofrer séria contestação o direito que tem o Estado de decretar a obrigatoriedade do ensino: vai nisso uma condição imprescindível de prosperidade social, uma arma poderosa, única eficaz, para ele livrar-se dos perigos que podem ameaçar a ordem e tranqüilidade pública. (...) O ensino obrigatório não é outra coisa mais do que a legítima proteção que, com proveito próprio, o poder público dispensa à infância abandonada à ignorância e ameaçada de perder-se na senda do vício e do crime. (MATO GROSSO, 1879)
Como bom homem de Estado, o Presidente fala em proveito do próprio governo
e revela certa tensão: a defesa do ensino obrigatório parecia contrastar com os interesses
das famílias que não desejavam ver seus filhos tutelados pelo Estado. Pode-se entender
isso porque em quase todos os discursos em defesa da instrução obrigatória esta é feita
de forma enfática, como se contasse com uma grande resistência.
100
Além disso, nota-se que, a exemplo das concepções educacionais que sempre
são vinculadas ao modelo dos países europeus, também a defesa do ensino obrigatório é
feita em termos de comparação com os países europeus que já o haviam implantado.
Dormevil dos Santos Malhado, Diretor Geral da Instrução Pública em 1880
assim se reportava ao Presidente do Estado: “No novo Regulamento tudo foi previsto;
não foi omitida idéia alguma das que, nos países cultos, tem contribuído para
desenvolvimento e progresso da instrução”. E fazia a seguinte defesa do ensino primário
obrigatório:
Os povos modernos têm-se ocupado constantemente da instrução que alumia o espírito, porque conheceram que não se imprimem na consciência do homem regras do bem viver sem lhe esclarecer a inteligência, ampliar-lhe as idéias, instruí-lo enfim. (...) Mas, para aqueles que o esquecem, ou por ignorância ou capricho não o cumprem, criou-se leis para coagi-los a esse dever, originando-se daí a instrução obrigatória. (...) Porém ao que se nega cumprir este dever imposto pelas leis divinas, defraudando a sociedade e roubando-lhe um membro provavelmente útil, a lei impõe penas, que devem ser tanto mais severas, quanto maior for a rebeldia do pai ou educador desnaturado. A necessidade da instrução obrigatória brevemente vai ser demonstrada àqueles que ficarem privados do exercício de seus direitos políticos por não saberem assinar seus nomes. (MATO GROSSO, 1880c, s/p) (grifo do autor)
É sabido ser um fato comum durante o Império o de que muitos eleitores não
soubessem assinar o próprio nome, já que o critério para votar e ser votada era o
econômico e não o letramento. Por isso, as palavras do Diretor da Instrução ganham
ares de profecia, já que ele fala alguns anos antes da implantação da República, quando
então o direito de voto seria restrito aos alfabetizados.
Além disso, essa passagem reforça a sensação de que havia, no período, certa
resistência à implantação da medida, que não se devia necessariamente à falta de
recursos por parte do Estado. Talvez porque o contexto histórico no qual ocorre esse
discurso seja o de prevalência dos valores da sociedade tradicional.
Essa resistência não era outra coisa senão um dos pólos da tensão entre a elite,
portadora de valores culturais identificados com a Europa e a população pobre, para
quem esses valores culturais quase nada significavam a não ser que iam numa direção
oposta ao estilo de vida ao qual estavam acostumados.
101
Para a população pobre que vivia do trabalho braçal nas cidades ou no campo a
posse de conhecimentos escolares não deveria ser o item mais valorizado, além do que a
sua conquista implicaria necessariamente em retirar os filhos do trabalho para enviá-los
à escola.
Essas crianças eram oriundas dos extratos subalternos da população e seus pais
alijados de qualquer participação política, impedidos de ascensão econômica e social e
submetidos a uma economia agrária e latifundiária. Os conhecimentos e as habilidades
oferecidas pelas escolas primárias não deviam possuir qualquer relação com o universo
social e cultural, com o estilo de vida e a mentalidade dessas populações, conforme
observa Leite (1970):
Em simples escolas isoladas, perdidas nos sertões, os mestres ensinam o valor e o método de conversão da moeda inglesa para crianças que não passaram ainda, no seu meio, das formas mais rudimentares do escambo. (LEITE, 1970, p. 116)
O que permite entender que, além das dificuldades constantemente alegadas
pelos governantes, havia muitos problemas para as famílias de crianças negras, pardas e
pobres para manter as crianças na instrução pública primária. As dificuldades e a
resistência à inserção no projeto educacional das elites devem ser vistas no contexto
maior da resistência das populações marginalizadas ao processo de implantação do
trabalho assalariado e, conseqüentemente, ao enquadramento de negros, pardos e
brancos pobres ao projeto de “modernização” e “civilização” então em curso no Brasil.
Segundo Kerche (2000) a disponibilidade de terras férteis, a caça abundante e a
extrema piscosidade dos rios, contribuíram para que ex-escravos, negros, pardos livres e
brancos pobres não fossem compelidos ao trabalho assalariado, adotando um estilo de
vida característico de populações ribeirinhas ou de pequenos produtores.
Como o trabalho manual, na visão do homem livre é coisa de escravo, ele prefere trabalhar autonomamente para garantir sua sobrevivência, sem se submeter a um trabalho organizado. Além disso, no contexto social onde esse homem pobre e livre vive, ele não acumula bens, a sua sobrevivência exige o mínimo necessário e, assim, os curtos e, às vezes, forçados momentos de labuta eram espaçados por prolongados períodos de descanso, dando-lhes a pecha de preguiçosos e indolentes. (KERCHE, 2000, p. 83)
102
Como não se pode separar arbitrariamente a forma como se produz as condições
de vida, isto é, o âmbito econômico da vida das formas culturais como se vive essa vida,
os homens livres e pobres – qualquer que seja sua cor – expressavam um universo
cultural oposto ao pregado pela elite dominante.
Por isso não se pode desconsiderar que entre as estratégias adotadas por negros,
pardos e brancos pobres para não se adequarem aos ritmos, conceitos, valores e
normatização da vida imposta pelo trabalho assalariado, estava a resistência ao
enquadramento no projeto cultural da instrução pública primária.
De acordo com Siqueira (2000), o período histórico é caracterizado pela
emergência de uma série de medidas que tinham o objetivo de disciplinar a população,
notadamente a mais pobre. Além dos regulamentos e leis que tipificavam a
“vagabundagem” como um crime, compelindo as populações pobres ao trabalho
assalariado, as escolas também foram usadas como instrumentos de coação de
enquadramento das novas gerações à modernidade capitalista que se desejava ver
implantada.
Para ela, havia de fato uma resistência por parte da população que não desejava
ser compelida a instruir-se em escolas cujos códigos culturais eram referentes aos
padrões das elites e nada diziam a respeito de sua própria cultura e vivência:
Conclamar a população para instruir e educar-se não se apresentava como uma tarefa fácil, uma vez que pela falta de consonância entre o universo cultural das elites e aquele da população pobre fazia com que esta última rejeitasse os estabelecimentos de ensino. (...) Essa resistência, no entanto, foi quebrada durante o processo histórico, pois inicialmente imposta pelo governo, no século XIX, a instrução pública acabou por se tornar uma reivindicação das classes populares, no século XX. Partindo do pressuposto de que a instrução era o única caminho para Mato Grosso conseguir alterar seu estágio civilizatório, passando da "barbárie" à civilização, necessário se fazia "meter" na escola essa população pobre. (SIQUEIRA, 2000, p. 88) (grifo meu)
Contudo, antes que essa resistência fosse quebrada pelo processo histórico, cabia
aos governantes insistir na proposta mesmo sabendo de antemão que não poderiam
executá-la. Conforme outro Relatório, agora do Presidente da Província José Maria de
Alencastro:
103
A obrigatoriedade do ensino já é na província um preceito legal, mas não tem passado de uma teoria escrita para simples advertência aos pais de família pelo grave erro que cometem condenando a prole à ignorância. (...) Poucos são os países da Europa nos quais ele não se acha adotado; e a Alemanha que o iniciou e empregou como um meio de alcançar o lugar de honra que ocupa no velho continente, deve a essa medida o seu admirável desenvolvimento. (...) Levanta-se, porém, uma dificuldade à execução da medida em questão: é a escassez de meios nos cofres municipais e provincial para ocorrer à conseqüente despesa com roupa para os alunos notoriamente pobres. (MATO GROSSO, 1882, p. 19)
Da mesma maneira em que a defesa do ensino obrigatório é realizada
enfaticamente, o próprio proponente revela o que de fato impedia a realização da
proposta: a falta de recursos nos cofres do Estado para fazer frente às demandas da
população infantil pobre. E em 1884, outro Presidente e os mesmos problemas: o
governante se lamenta que, de acordo com informações do Diretor da Instrução, as
escolas localizadas no interior do Estado sofrem com a baixa freqüência do alunado:
Parece-me, porém, à vista do que observou o Diretor e se acha consignado no seu relatório, que outro tanto não acontece nas localidades do interior, cujas escolas são pela maior parte pouco freqüentadas, principalmente as das simples povoações. Facilmente se compreende a razão deste fato. Homens que vivem de pequena lavoura, trabalhando com seus próprios braços, porque em geral não os podem ter pagos, aproveitam aqueles habitantes o serviço dos filhos, desde que estes atingem a idade escolar, fazendo-lhes partilhar os rudes labores a que vivem entregues, pouco se lhes dando de cometer a gravíssima falta de os deixarem crescer na ignorância a mais completa. (MATO GROSSO, 1884, p. 56) (grifo meu)
As condições materiais nas quais vivia a maior parte da população eram o grande
empecilho para a aplicação do ensino obrigatório. Ele destaca um aspecto muito
importante e que geralmente é esquecido quando da análise das condições que os filhos
das famílias pobres enfrentam para freqüentar escolas.
Para estas famílias os filhos são importante fonte de renda, pois desde cedo são
socializados no trabalho. No caso das famílias da zona rural isto deveria ser um sério
impedimento para que elas pudessem freqüentar a escola, já que seus pais não podiam
dispensar sua ajuda.
Não se deve atribuir à baixa freqüência a simples falta de condições financeiras.
Este deve ter sido um fator de peso, mas o choque entre a cultura letrada que era
veiculada pelas escolas e a cultura tradicional praticada pelas populações mais pobres
deve ter influenciado no comportamento dos pais de família.
104
Em praticamente todos os Relatórios consultados há uma reclamação contra os
principais problemas que entravavam a instrução pública primária: falta de professores
qualificados, população dispersa sobre um grande território, falta de condições
financeiras, ausência de um método unificado, falta de material didático, falta de
fiscalização e não raras queixas sobre falta de empenho de pais ou responsáveis em
manter as crianças nas poucas escolas existentes.
Todas essas condições adversas eram ainda mais agravadas pelos efeitos do Ato
Adicional de 1834, através do qual o Império delegou às Assembleias Legislativas
provinciais o direito de legislar sobre a instrução pública, o que na prática transferia ao
poder local a responsabilidade pela abertura e manutenção do ensino público primário.
O advento da República não mudou esse quadro, pois sua legislação também outorgou
aos Estados a mesma responsabilidade.
Em 1877, estatísticas apresentadas pelo Diretor Geral da Instrução
contabilizavam 24 escolas públicas, com o total de 1.375 crianças, para uma população
estimada em 60.000 habitantes. Devido à falta de sistemática e de continuidade nas
informações que eram repassadas pelos Diretores Gerais da Instrução, bem como a falta
de procedimentos organizados na coleta de informações, os dados do período por vezes
são contraditórios.
Por isso, não foi possível aferir a quantidade das crianças que efetivamente
freqüentavam essas escolas e nem a eficácia do ensino, mas no cruzamento com dados
do Recenseamento de 1872, de acordo com Siqueira (2000, p. 58), revela que nas duas
paróquias da Capital, “servindo de amostragem para toda a província, dos seus 16.212
habitantes, apenas 427 eram alfabetizados, e 15.685 eram analfabetos.” Um alfabetizado
para cada grupo aproximado de 38 pessoas.
Muitos Presidentes e Diretores argumentavam que um dos óbices à implantação
do ensino obrigatório era a falta de números confiáveis sobre a população infantil que se
desejava atingir. Essa falta de dados era admitida até mesmo pelos que deviam gerá-los,
conforme pode ser visto a seguir em um Relatório do Diretor da Instrução do ano de
1892, vinte anos depois daquele recenseamento de 1872:
105
Sinto ver-me obrigado a dizer que o ensino público no nosso Estado acha-se numa situação pouco lisonjeira. Qual a situação do ensino público no Estado de Mato Grosso em agosto de 1892? Para responder cabalmente a esta pergunta escasseiam os dados estatísticos e estamos reduzidos a basear-nos sobre diversos pontos em presunções, que aliás parecem justas. Sabe-se apenas o número de alunos matriculados e o número dos freqüentes pelos mapas mensais dos professores, mapas que na consciência de todos são de pouca significação. A relação entre alfabetos e analfabetos é a única base segura para verificar os progressos e resultados alcançados, essa relação absolutamente desconhecemo-la. (MATO GROSSO, 1892, p. 1)
Mas, o Bacharel João Pedro Gardés, que então respondia pela Diretoria Geral da
Instrução, não se limita a admitir a “situação pouco lisonjeira” do ensino público. Além
de explicar que não possuía dados confiáveis, devido a essa mesma situação, ele
também elenca uma série de fatores que eram os responsáveis pela má situação do
ensino público.
A primeira causa era o que ele qualificava como uma “indiferença pública pelos
interesses do ensino”, já que “Os interesses presentes, imediatos, e o partidarismo
prendem de tal modo a atenção pública que deixam pouco lugar para as preocupações
da instrução da mocidade”. Ele cita: “A segunda causa é determinada pela instabilidade
da legislação”, acrescida de outra instabilidade: “A mobilidade da Diretoria”.
Ele também alega a instabilidade do professorado, o que era agravado com a
pouca habilitação. Esses dois fatores estavam, na opinião do Diretor, intrinsecamente
relacionados: as poucas pessoas que possuíam habilitação necessária para o exercício do
magistério não viam nos salários pagos um grande atrativo, o que fazia com que a
carreira fosse procurada apenas pelos menos aptos.
Havia também, segundo Gardés, a falta de inspeção regular, o que deixava as
escolas nas mãos dos professores sem que o Estado estivesse em condições de fiscalizar
o funcionamento dessas escolas. Isso ocorria por que: “esse cargo é gratuito e seu
exercício rouba tempo necessário para outras ocupações, donde resulta os inspetores
raramente visitarem as escolas e contentarem se em passar o atestado de freqüência do
professor quando este lhe apresenta o mapa mensal da escola”. Gardés cita também a
falta de mobílias e utensílios escolares:
Não há oficial alguma por habilidoso que seja, que possa executar qualquer trabalho sem as ferramentas necessárias, Ora as escolas estão numa nudez
106
deplorável, algumas da Capital tiveram anos atrás, sua mobília (p.8) escolar, porém hoje restam apenas destroços e tanto na Capital como fora dela, as escolas estão inteiramente desprovidas do material necessário para o ensino; o que torna em parte desaproveitados os sacrifícios pecuniários que o estudo faz para a Instrução. (MATO GROSSO, 1892, p.3)
Por outro lado, a pobreza da maior parte da população infantil também é um dos
fatores que Gardés cita em seu relatório:
A maior parte dos pais e educadores, ao matricularem os meninos nas escolas declaram obrigar-se a fornecer os misteres escolares necessários; mas realmente muitos faltam a essa obrigação e mandam os meninos às escolas sem causa alguma, de modo que o professor mesmo pela necessidade de poder fazer os exercícios, vê-se obrigado a distribuir indistintamente papel, penas tinta e livros, quando os têm, e como muitas vezes não os têm, os exercícios vão-se fazendo mancamente. (MATO GROSSO, 1892, p. 4)
No ano seguinte, Manoel José Murtinho, Presidente do Estado, envia a
Assembleia Legislativa uma mensagem com praticamente as mesmas observações sobre
a impossibilidade de adoção do ensino obrigatório:
Até o presente ainda não se poude começar a por em prática o salutar princípio da obrigatoriedade da instrucção primária, consagrado na Constituição do Estado e estabelecido no citado regulamento. Com a população disseminada, como a temos, torna-se mui penosa, senão impossível, em diversas localidades, a frequencia regular das escolas publicas pelas crianças que necessitão de ensino; e em taes condições, tornar obrigatório indistinctamente seria uma rematada iniqüidade. (...) Mas, de uma outra condição depende também a obrigatoriedade do ensino, pois para que as crianças freqüentem a escola é indispensável que se forneça as que forem indigentes roupa e utencilios, cujas despesas deverão correr por conta do fundo escolar. (MATO GROSSO, 1893, pp. 13-14)
E em 1895, o Diretor da Instrução faz as mesmas observações que o Presidente,
dizendo também que o Recenseamento sobre o qual se basearia o ensino obrigatório não
tinha sido realizado por conta de resistências da população à medida:
Devo dizer-vos que foram grandes os obstáculos a vencer para lograr realidades, dito recenseamento; pois que quase geralmente os serventuários incumbidos da distribuição e arrecadação das listas foram mal recebidas por suporem muito tratar-se da criação e lançamento de um novo imposto de capitação. Assim é que por este motivo o serviço retardado e a apuração por fazer-se. (MATO GROSSO, 1895, s/p)
Essa situação de calamidade na qual vivia, ou melhor, sobrevivia o ensino
público primário continuaria por todo o período da Primeira República, conforme pode
ser observado nos Relatórios de Presidentes de Estado e de Diretores da Instrução.
107
Em 1907:
Este é um dos ramos do serviço que mais estão reclamando a attenção do poder público, para levantar-se do profundo abatimento em que há muito se acha; ou antes é o que mais está exigindo os cuidados da administração superior, attenta a sua decisiva importância para o futuro do Estado, que está sendo compromettido pela deplorável decadência em que elle tem ido. (MATO GROSSO, 1907, p. 17)
Em 1909:
Nenhum ramo do serviço público está reclamando mais esforços e o cuidado da parte da administração, para sair do seu estado actual, que é bem pouco satisfatório, do que a nossa instrucção pública. (...) Para que, porém a instrucção progrida, se dissemine por todas as camadas, habilitando o povo para a escolha intelligente dos seus governos no regimen democrático, para o conhecimento e a defesa dos seus direitos e para a luta pela vida, é preciso proporcionar-lhes mestres e educadores. (MATO GROSSO, 1909, p. 12)
Em 1915:
Apesar do empenho e do carinho com tenho encarado este magno assumpto da publica administração, dando-lhe o desenvolvimento consoante as necessidade da instrucção popular e compatível com o nosso meio e com os nossos recursos, ainda, em muitas das nossas cidades e povoações, continuam as nossas escolas sem casas próprias ao seu regular funcionamento. Tratando de estatística escolar, diz o Sr. Director da Instrucção que ainda lhe coube desta vez enfrentar com embaraços mais ou menos sérios, para organisar os quadros da matricula e freqüência de todos os Institutos públicos e particulare da Instrucção Primaria do Estado. (MATO GROSSO, 1915, p. 16)
No ano seguinte, o Presidente do estado, Caetano Manoel de Faria e
Albuquerque, fazia um apelo e uma denuncia veemente contra o estado do ensino
público, que era agravado, segundo ele, pelo fato que as municipalidades não investiam
no setor, deixando ao Estado a tarefa. Além disso, os dados que ele apresenta sobre a
quantidade de crianças que então freqüentavam as escolas não deixa dúvidas sobre essa
incapacidade estatal em atender todas elas:
É verdadeiramente lamentável a maneira pela qual as municipalidades se desinteressam do ensino primário; entre aquellas que o descuram merece seja citada a desta capital, que não custeia nenhuma escola pública! (...) admitindo o algarismo de 220 mil almas para a nossa população e tomando a 10ª parte ou sejam 22 mil crianças em edade escolar, de 7 a 12 annos, e o numero das que freqüentam as escolas, isto é, 7.000, conclue-se que apenas um terço da nossa infância recebe instrucção! (MATO GROSSO, 1916, p. 55)
108
O Bispo Dom Francisco de Aquino Correa, que governo o Estado de janeiro de
1918 até o mesmo mês de 1922 também acrescentou suas observações sobre o ensino
público:
(...)Entretanto, a não ser nesta capital, quão longe ainda estamos de ter convenientemente apparelhada a nossa organização escolar! Nem são pequenas as dificuldades que nos antolham, e podem talvez resumir-se nas seguintes: extensão enorme do território do Estado, população muito disseminada, escassez de meios fáceis de communicação, falta de pessoal habilitado e disposto a sujeitar-se, com módicos vencimentos, a vida do interior, insufficiencia da receita pública, pouco ou nenhum concurso da parte dos municípios e, finalmente, fiscalização quasi nulla. (MATO GROSSO, 1920, p. 32)
Observe-se que os obstáculos apresentados por Dom Aquino são praticamente os
mesmos que já foram apresentados pelo Diretor Geral da Instrução, Dormevil José dos
Santos em 1892: um território muito grande, população dispersa, falta de meios de
comunicação, inexistência de fiscalização permanente, falta de professores qualificados
e nenhum apoio dos municípios.
Este era o quadro da instrução pública primária na Primeira República. A
situação era tal que em 1929, o então Presidente do Estado, confessava em um dos seus
Relatórios à Assembleia Legislativa:
Não basta fornecer o mestre: indispensável se torna a roupa, o livro e, muitas vezes, o pão e o medicamento. Os estabelecimentos de ensino primário são na maioria freqüentados por uma população desprovida de recursos. A assiduidade do alumno não depende somente de sua vontade, senão também das possibilidades econômicas dos seus paes. (MATO GROSSO, 1929, pp. 86-89)
As informações levantadas nos Relatórios apresentam indícios seguros de que a
República não trouxe uma mudança substancial no quadro educacional verificado nos
últimos anos do Império, e os governantes, impedidos que eram pelas escassas
condições financeiras, quando muito se limitavam a instituir novos regulamentos,
criando leis que logo caiam no esquecimento ou eram suplantadas por outras igualmente
inócuas.
Embora expansão da rede escolar e a conseqüente superação do analfabetismo
fossem vistos como pressupostos não apenas para que o estado se desenvolvesse, mas
109
também como garantia de maior participação popular no processo político, os
sucessivos governos estaduais desde o final do Império até o término da Primeira
República não estiveram em condições de transformar seus ideais em realidade.
Conforme Jacomeli, (1998):
No que diz respeito à educação em Mato Grosso, afirma-se que, com o advento da República, esta não fugia da regra brasileira. De início, deve-se observar que as estruturas educacionais mato-grossenses, nas duas primeiras décadas da Primeira República, eram as mesmas herdadas do período imperial. Suas características podem ser resumidas através dos seguintes pontos: falta de professores habilitados, inexistência de cursos de formação de professores, reduzido atendimento às crianças em idade escolar, necessidade de inspeção escolar efetiva, estrutura física improvisada para a instalação de escolas, juntamente com a escassez de equipamentos e de materiais didáticos etc. (JACOMELI, 1998, p. 48)
Mato Grosso era um estado marginal no contexto da economia nacional, onde a
concentração de riquezas e de poder era ainda maior e localizada em uma elite ainda
mais reduzida. O que era agravado pela quase total ausência de recursos que pudessem
ser investidos na instrução pública primária.
Conforme pode ser visto nos trechos de Relatórios apresentados acima, quase
todas as dificuldades enfrentadas pelo Estado e também pela maioria das famílias cujas
crianças estavam em idade escolar podiam ser resumidas na falta de condições
econômicas. Para Jacomeli, isso era uma conseqüência de uma crise histórica que
começara com a decadência das minas de ouro e diamantes:
Um primeiro aspecto acentuado é que Mato Grosso alcançou o século XIX em plena decadência material. A economia mineradora, que criou grandes riquezas no início do século XVIII, sofreu uma queda constante a partir de 1723. (...) A crise da mineração gerou uma grave situação para a economia mato-grossense, pois não existia alternativa para substituição do ouro por qualquer outra mercadoria de exportação. As longas distâncias entre Mato Grosso e os principais centros econômicos consumidores do Império impediram a exportação de seus produtos, tais como o açúcar, o fumo, o algodão, a mandioca, o gado e outros. (JACOMELI, 1998, pp. 47-48)
E ainda:
Era esse o quadro econômico de Mato Grosso quando ocorreu a Guerra do Paraguai. Durante o conflito se agravou ainda mais a situação de miséria em que se encontrava a região. Além da exigüidade de recursos financeiros, somaram-se os efeitos destrutivos das armas e, principalmente as conseqüências de uma epidemia de varíola. (JACOMELI, 1998, p. 50)
110
O estado somente começaria a ver alguma recuperação financeira com o final do
conflito, que possibilitou a volta da navegação no Rio Paraguai. Este período é o da
existência das grandes casas de comércio e posteriormente das empresas ligadas ao
capital financeiro internacional, que exploravam principalmente a erva mate, a borracha
e a criação de gado. Essa concentração de riqueza tinha como base a concentração
fundiária, o que por sua vez deu origem a uma concentração de poder político nas mãos
dos “coronéis”.
Todos os esforços para se mudar o quadro da instrução pública primária em
Mato Grosso se concentravam na afirmação de um discurso sobre a sua importância, o
que era insistentemente realizado pelas elites letradas que cotidianamente publicavam
nos jornais locais artigos sobre a importância da educação e da instrução pública. Além
disso, o setor das elites que estava no governo se limitava a criar Regulamentos, numa
tentativa de mudar a realidade através da mudança da legislação:
Nos anos de 1873, 1880 e 1889, reformas foram empreendidas com a intenção de incrementar a instrução pública. Mas as iniciativas esbarravam sempre nas mesmas limitações apontadas pelas autoridades da Província: falta de professores, de inspetores, de verbas, de prédios escolares, atc. (JACOMELI, 1998, p. 60)
Esse quadro quase nada mudaria com o advento da República:
Estabelecida a República, o poder político em Mato Grosso, como em todas as demais regiões brasileiras, se manteve atrelado ao jugo dos coronéis. Mato Grosso não fugia à regra brasileira: a influência sem limites dos coronéis era exercida em todos os setores da sociedade. (...) Enfatize-se que as forças políticas em Mato Grosso estiveram, nesse período, divididas entre Antonio (Totó) Paes de Barros, proprietário da usina de açúcar Itaici, então a mais moderna da região; Generoso Ponce, comerciante em Corumbá e líder político da burguesia comercial mato-grossense e a família Murtinho, ligados ao capital financeiro pelo controle do Banco Rio e Mato Grosso e da Companhia Mate-Laranjeira (exploração de erva-mate) que ora apoiava Totó Paes de Barros, ora apoiava Generoso Ponce. Dessa forma, durante quase toda a Primeira República, os sucessivos governos e as sucessivas lutas armadas tinham por trás esses coronéis. (JACOMELI, 1998, p. 64)
Conforme informava o Presidente do Estado, em 1916, apenas um terço das
crianças em idade escolar estavam efetivamente recebendo a instrução. Dentro desse
contexto, qual era exatamente o lugar das crianças negras e pardas nas políticas e
reformas educacionais que movimentaram a sociedade mato-grossense do final do
Império até os primeiros anos da República?
111
Ao examinar os documentos apresentados, é possível identificar, no bojo das
discussões sobre a educação, uma preocupação institucional com a instrução pública das
crianças negras e pardas? Estas são as questões que tentarei responder no próximo
Capítulo.
112
4 – PRÁTICAS RACISTAS E SILÊNCIO OFICIAL
4.1 – A PRESENÇA AUSENTE E O SILÊNCIO OFICIAL
Pesquisas realizadas em outros Estados sobre a trajetória educacional da
população negra nos primeiros anos da República apontam negros e pardos letrados
ocupando funções na esfera do trabalho privado, nas artes, no funcionalismo público e
em outros setores. Além disso, há vários exemplos de experiências realizadas por
organizações como Irmandades e assemelhadas que visavam à alfabetização de negros.
Isso indica que muitos negros conseguiram ter acesso à Educação antes da
Abolição da escravatura. Por outro lado, essas pesquisas também demonstram uma
quantidade significativa de crianças negras e pardas recebendo a instrução pública
primária nos primeiros anos da República.
No entanto, a maior parte das pesquisas sobre os processos de escolarização dos
negros tem esbarrado na dificuldade em se encontrar evidências materiais – documentos
– que atestem essa situação. Cunha (1999, p. 71) diz que existe no país um vasto
material sobre a Educação no final do século XIX, mas que “pouco ou nada se fala da
presença do aluno negro na escola, uma vez que este era proibido de freqüentar a escola,
por ter a condição de escravo”.
E em seguida afirma: “os livros de história da educação só se prendem ao fato do
escravo não receber a educação, mas em nada se referem à presença do negro na escola
no final de tal proibição.” Cunha (1999, p. 71).
Cunha Junior e Natividade (2003) chamam atenção para um fato comum: jornais
publicando anúncios dando conta de negros fugidos, informando que muitos deles
sabiam ler e escrever, o que confirma a suposição de essas pessoas contavam com apoio
de Irmandades ou usavam outros meios para alcançar o domínio da leitura e da escrita.
113
O impedimento por conta da condição escrava ou negra não foi suficiente para
evitar que negros escravizados, negros e pardos livres tivessem acesso a algum tipo de
Educação.
Silva (2002) investigou a existência de uma escola particular para crianças
negras e pardas mantida por um professor negro no Rio de Janeiro em pleno século
XIX. Como este, não é raro o exemplo de negros libertos, de pardos ou até mesmo de
escravos que conseguiam burlar os mecanismos oficiais e sociais.
Enquanto perdurou a escravidão, o impedimento legal da freqüência de escravos
à Escola, somado à escassez de professores e instituições dedicadas à instrução pública
primária funcionaram como um anteparo poderoso a quaisquer pretensões dos negros
escravizados em penetrar no universo do letramento e da leitura.
Por isso é que a maioria dos documentos pesquisados denuncia a prática comum,
em todo o Império, de impedir o acesso de escravos à escola. Por outro lado, exatamente
essa interdição legal pode e tem sido usada como fonte de documentos relativos à
situação educacional dos negros, pelo menos do ponto de vista institucional.
Com a Abolição, colocou-se o problema de que as fontes documentais deixaram
de se referir à cor ou a raça das crianças alunas de escolas primárias. Além disso, a
Abolição foi um projeto homogeneizado pelas elites dominantes, não tendo sido
acompanhada da inserção do negro no contexto da produção ou do exercício dos
direitos sociais:
Assim, percebemos que o discurso oficial e a prática demonstram que os governantes queriam fazer reformas sem mudar as estruturas internas e garantir a ordem e o progresso, adequando a esta sociedade essa nova camada de ex-escravos. (CUNHA, 1999, pp. 71-72)
Isso fez com que o acesso à Educação escolar dependesse basicamente das
condições sócio-econômicas de cada indivíduo em particular, pois a freqüência nas
escolas dependeria que a família estivesse em condições de financiar os estudos e ainda
não necessitasse do trabalho da criança.
114
Além disso, a permanência e progressão dentro da escola seriam condicionadas
pela capacidade do aluno em assimilar uma cultura diferente e contrária à sua,
dificuldade que tenderia a aumentar dada a possível pressão de outros alunos,
professores e da própria estrutura da escola preparada para “embranquecer” e “civilizar”
seus alunos.
Fonseca (2007, p. 11-50) apresenta uma discussão interessante sobre o negro na
historiografia educacional brasileira e demonstra que em Minas Gerais não foram
estabelecidos obstáculos para inserção de negros e pardos nas escolas que ofereciam
instrução pública primária, no período pós-abolição.
Em outro artigo, Fonseca (2006) traça um perfil racial das escolas mineiras no
século XIX e demonstra que naquele estado crianças negras e pardas estavam presentes
de forma significativa nas escolas das primeiras letras, contrariando a noção de que
esses grupos raciais poderiam ter sido impedidos de freqüentar essas instituições de
ensino no período.
A superioridade numérica de negros e pardos, assim como a enorme quantidade
de negros livres circulando por todos os espaços sociais é um dos fatores apontados pelo
autor para explicar essa situação. Isso pode indicar que processo de subalternização do
negro no final do século XIX e início do século XX, no âmbito da educação formal, não
foi realizado por uma política de segregação racial.
Após a Abolição as escolas não podiam oficializar a distinção entre seus alunos.
Ninguém poderia ser oficialmente proibido de freqüentar uma escola pelo fato de ser
negro ou mestiço. Ao contrário de outros países, como por exemplo, África do Sul e
Estados Unidos, o Brasil não oficializou qualquer segregação racial.
Como a inexistência de segregação, não significou a inexistência de racismo,
este deve ter se manifestado tanto na configuração como a instituição escolar foi
concebida quanto nos seus mecanismos internos de funcionamento. Além disso, a
inexistência de segregação foi acompanhada da omissão na maioria dos documentos da
cor/raça dos alunos.
115
De acordo com Fonseca (2006, pp. 77-78), o perfil racial das escolas mineiras só
pode ser realizado com base em documentos que se referiam à cor/raça dos alunos até a
metade da década de 1830, pois “Em meados de 1835, a cor e a condição dos alunos
deixou de ser registrada e não encontramos, a partir daí, listas com estas informações”.
Ele infere que o registro da cor/raça dos alunos era uma prática espontânea dos
professores, que faziam isso “automaticamente”, já que esse era um comportamento
típico da sociedade hierarquizada a partir da raça/cor. No entanto,
Quando as listas passaram a ser padronizadas, os professores limitaram-se a responder às questões que lhes eram apresentadas, e elas se referiam, entre outras coisas, à freqüência, ao nível de desenvolvimento, e informavam quem eram os pais ou educadores das crianças. (FONSECA, 2006, p. 78)
É por isso que, de acordo com ele, a documentação referente à Instrução Pública
em Minas Gerais do século XIX não se refere diretamente à cor ou raça das crianças,
impedindo que o perfil racial das escolas nesse período seja traçado a partir de tal
documentação. Para superar essa dificuldade, ele sugere que “é preciso investigar a
questão levando em conta os dados sobre a população, avaliando se a superioridade
demográfica dos negros tinha impacto no público que freqüentava as escolas”.
(Fonseca, 2006, p. 79)
Na elaboração de seu trabalho, o procedimento foi o de investigar as listas
nominativas dos habitantes dos Distritos pesquisados. Estas listas contêm informações
sobre a condição social, econômica e educacional dos habitantes pesquisados, inclusive
crianças. Com isso ele foi capaz de inferir que as escolas mineiras do século XIX não
eram freqüentadas apenas por crianças brancas.
Embora essas pesquisas tenham indicado uma forte presença de crianças negras
e pardas em escolas primárias isso não pode dar ensejo a constatação de que estas
instituições pudessem ser democráticas ou isentas de racismo. Ele afirma que quando se
examinam documentos elaborados por professores em quais pode se inferir a cor/raça
dos alunos é perceptível a aplicação de tratamento hierarquizado a partir da raça:
Nas listas elaboradas pelos professores – às quais fizemos referência no momento em que construíamos a problemática investigada neste texto –
116
encontramos uma hierarquia dos grupos presentes na escola. Os professores tendiam a listar primeiro as crianças brancas, em seguida as pardas e, por fim, os crioulos, pretos e cabras. Este procedimento demonstra que a escola operava com uma hierarquia racial que conferia aos brancos um status maior. (FONSECA, 2006, pp. 91-92)
As conseqüências de longo prazo dessa hierarquia seria o estabelecimento de um
sistema de progressão que funcionava como um filtro racial: as crianças negras tendiam
a ficar retidas nos nível mais básico do qual apenas os mais “qualificados” do ponto de
vista da cultura oficial podiam escapar:
Outra dimensão que reafirma o preconceito racial na escola é o fato de que os negros eram maioria nas escolas de primeiras letras, mas nos níveis mais elevados do ensino os brancos predominavam. Este fato demonstra que havia um filtro no sistema educacional que dificultava o acesso dos negros aos níveis mais elevados do ensino. (FONSECA, 2006, pp. 91-92)
Ainda de acordo com Fonseca, esse filtro racial ao qual a escola das primeiras
letras recorria para selecionar os que deveriam seguir e os que ficariam retidos tinha
como base práticas e conceitos culturais eurocêntricos:
Esta predominância dos negros, conjugada com estes procedimentos hierárquicos típicos da sociedade racista do século XIX, nos leva a reinterpretar o caráter etnocêntrico dos procedimentos pedagógicos das escolas mineiras e brasileiras. Podemos dizer que o século XIX deu início a uma tradição que se tornou a marca da educação brasileira: práticas pedagógicas com um caráter fortemente disciplinar que visava infundir comportamentos tidos como adequados e desqualificar os sujeitos portadores de uma cultura diferenciada do modelo europeu. A experiência mineira aponta para o fato de que o caráter eurocêntrico da escola não se justifica pura e simplesmente por ter sido ela um espaço privilegiado dos brancos; ao contrário, nela circulava um outro grupo que era portador de uma cultura tida como “perigosa”, a qual buscava-se combater. (FONSECA, 2006, p. 92) (grifo meu)
Essas conclusões de Fonseca estão perfeitamente de acordo com tudo o que já
foi dito sobre a influência da epistemologia racista e do eurocentrismo na Instrução
Pública Primária. Em Mato Grosso a escola seria pensada e estruturada para cumprir um
papel semelhante. Mesmo levando-se em consideração as imprecisões dos
levantamentos populacionais realizados entre o final do Império e a Primeira República,
não se tem conhecimento de autor que afirma ser a população do Estado, nessa época,
predominantemente branca.
117
As informações levantadas junto aos Relatórios combinadas com as estatísticas
populacionais do período e trabalhos de outros historiadores e pesquisadores revelam
que a maior parte da população mato-grossense era e é negra e parda, desde o período
colonial até a contemporaneidade, por isso a maior parte das crianças deve,
necessariamente, pertencer aos mesmos grupos raciais.
O perfil racial das escolas primárias mato-grossenses na passagem do século
XIX para o XX talvez possa ser devidamente estabelecido a partir de procedimentos
semelhantes ao adotado por Fonseca (2006). Peraro (2005) compilou dados de dois
livros manuscritos localizados no Arquivo Público de Mato Grosso, datados de 1890,
denominados de “Quadro Geral da População Urbana do 1º Distrito da Capital” e
“Quadro Geral da Freguesia de São Gonçalo, 2º Distrito da Capital”.
De acordo com ela, embora não haja qualquer dúvida sobre a autenticidade e
veracidade das fontes, muitas informações possuem contrastes com aquelas
apresentadas pelos dados oficiais do Recenseamento de 1890, localizado na Biblioteca
Nacional. Além disso, ela afirma que “não há apresentação e nem mesmo data de
abertura, ou, aparentemente indicativo de pistas sobre a Instituição ou pessoa
responsável pelo levantamento dos dados da população”.
Ainda assim os dados são valiosos, pois contém informações sobre nome de
ruas, com seus respectivos habitantes discriminados segundo nome, idade, profissão,
raça, estado civil, religião, nacionalidade, instrução, se freqüenta escola ou não e se
possui defeitos físicos.
As informações compiladas por Peraro (2005) sobre a população urbana de
Cuiabá em 1890 não deixa nenhuma dúvida quanto à cor ou raça da maioria das
pessoas. Na época a cidade estava dividida em dois Distritos, ou no dizer da época,
“Freguesias”. Os dados sobre a população da Sé indicam uma maior incidência da
população parda, com 51%, seguida da branca, com 30% e da preta, com 19%. Já na
freguesia de São Gonçalo a situação praticamente se repete: predomina a população
parda com 57%, seguida da branca, com 29% e da preta, com 14%.
118
Com relação à faixa etária das pessoas pesquisadas, os dados indicam uma
prevalência da população jovem nos dois Distritos. A população entre 1 e 10 anos é de
27% na Sé e de 31% em São Gonçalo. Entre 11 e 20 anos os percentuais são de 23% na
Sé e de 24% em São Gonçalo. Isso significa que a população entre 1 e 20 anos era de
50% na Sé e de 55% em São Gonçalo.
Dentre as pessoas que declararam saber ler e escrever, 44% responderam “Sim”
e 56% “Não” no Distrito da Sé. Do total de pesquisados no Distrito, 12% responderam
que freqüentavam a escola e 88% disseram não a mesma pergunta. Em São Gonçalo os
dados são aproximados: 43% afirmaram saber ler e 57% respondeu não. Mas para as
pessoas que freqüentavam a escola, os dados são bem maiores: 51% afirmaram que sim
e 49% não.
Não realizei um levantamento pormenorizado, ficha por ficha, já que são 305
folhas na Freguesia da Sé e 92 folhas na Freguesia de São Gonçalo, cada uma das folhas
com aproximadante 20 nomes contendo os itens relacionados acima. Uma amostragem
de 10 folhas – aproximadamente 200 pessoas - de cada uma das Freguesias demonstrou
a existência de diversas crianças negras e pardas em idade escolar - 7 e 14 anos – que
sabiam ler e estavam freqüentando escolas.
Embora não tenha realizado um levantamento detalhado para se confrontar o
número de crianças negras e pardas freqüentando escolas com o de crianças brancas na
mesma situação, a fim de saber qual seria a proporção racial dentro das escolas, os
dados apresentados por Peraro (2005) não deixam dúvidas quanto a existência de
crianças negras e pardas nas escolas públicas de Cuiabá entre o final do século XIX e o
início do XX.
Uma pesquisa específica, mas aprofundada, poderá dizer qual era a proporção, o
perfil racial dessas escolas em Cuiabá e, talvez, até no âmbito de Mato Grosso. Devo
ressalvar, entretanto que, não dispondo dos mesmos dados relacionados aos outros
municípios de Mato Grosso, posso apenas inferir que nestes a situação das crianças
negras e pardas fosse aproximada. De qualquer forma, os dados indicados por Peraro
(2005) mostram que a população considerada branca não ultrapassava 30% na cidade de
119
Cuiabá. Evidentemente que essa proporcionalidade talvez fosse a mesma em termos
estaduais.
Uma indicação nessa direção são os dados apresentados no pelo Diccionário
histórico, geográfico e etnológico do Brasil, já citado no início do Capítulo III desta
Dissertação. De acordo com o Recenseamento Brasileiro de 1890, Mato Grosso possuía
29,83 de brancos, 13,83% de pretos, 14,89 de caboclos e 41,42% de mestiços.
Outro fator que pode ser acrescentado em defesa da presença de crianças negras
e pardas nas escolas públicas primárias é que dadas às condições econômicas e sociais
dos grupos populacionais qualificados como pretos, caboclos e pardos, não há como
classifica-los senão como pobres.
E embora os Relatórios não mencionem especificamente a cor da clientela
escolar pode-se inferir a presença significativa de meninos e meninas negras e pardas
nas instituições escolares do período, já que esses documentos são unânimes em afirmar
que a ampla maioria das crianças matriculadas nessas instituições de ensino eram
pobres.
Essa presença maciça de crianças pobres nas instituições de instrução pública
primária parece ter sido comprovada pelos inúmeros exemplos citados no item anterior,
quando Diretores da Instrução e Presidentes, desde o final do Império até o início da
República não se cansam de explicar as razões da péssima situação do ensino.
Não é demais repetir a fala insuspeita do Presidente do Estado em 1929,
reclamando que “além de fornecer o mestre”, se tornava indispensável fornecer também
“a roupa, o livro, o pão e o medicamento”, pois os estabelecimentos de ensino primário
“são na maioria freqüentados por uma população desprovida de recursos”. (Mato
Grosso, 1929, pp. 86-89)
Por isso, a menos que aquele um terço8 da infância que estivesse efetivamente
freqüentando as escolas públicas fosse constituído exclusivamente por crianças brancas,
8Mato Grosso, 1916, p. 55
120
meninos e meninas negras seguramente estiveram presentes nessas escolas. Essa
presença leva ao seguinte questionamento: a que se deve o silêncio dos documentos
oficiais da Instrução Pública Primária sobre a raça/cor das crianças?
Os documentos oficiais que se referem à Instrução Pública Primária em Mato
Grosso – Relatórios de Presidentes de Província e de Diretores da Instrução – atestam o
impedimento do acesso de escravos à escola, mas raramente fazem menção à presença
ou impedimento de negros livres ou pardos nas escolas públicas primárias antes ou após
a escravidão.
Foram consultados documentos desde o final do Império até 1930 e, a exemplo
de outras localidades, os negros são citados apenas na condição de escravos, o que
impedia o seu acesso à instrução. Consultei também os livros de Atas do Conselho
Superior da Instrução Pública do Estado no mesmo período. Além dos jornais já citados
neste capítulo. Muitos documentos consultados não estão citados porque a idéia foi
traçar um panorama geral do período e não uma cronologia ano após ano.
Além disso, como muitos Presidentes e Diretores permaneceram por vários anos,
não percebi a necessidade de citar todos os Relatórios, ano após ano. Excetuando um
caso, os documentos republicanos consultados simplesmente não faz menção à presença
ou ausência de negros como alunos dessas instituições.
Por isso, a tentativa de responder a esses questionamentos foi realizada levando-
se em consideração principalmente as condições sociais, econômicas e culturais nas
quais vivia a população, donde pude intuir qual seria a vivência das populações negras e
pardas. Assim, além de discutir a presença de crianças negras nas instituições de ensino,
percebi ser ainda mais necessário abordar a questão do silêncio oficial sobre o processo
de escolarização dessas crianças.
A presença de crianças negras e pardas nas instituições educacionais pôde
atestada em um único documento em todo o período consultado. Trata-se do Relatório
121
apresentado pelo Diretor Geral da Instrução Pública, Alfredo José Vieira ao Presidente
da Província, Antônio Herculano de Sousa Bandeira em cinco de junho de 1889:
É necessário dotar-se às escolas de todos os meios precisos para que regularmente possam funcionar. Em vez de criar-se escolas com profusão, convém antes tê-las só nos centros populosos, mas dotados de professores habilitados e providas dos meios necessários para que o ensino primário seja conscientemente dado, e a Província não desprenda inutilmente as suas rendas. É também demasiadamente exíguo o subsídio destinado aos meninos pobres, principalmente agora que a população escolar tende a aumentar e é de necessidade indeclinável atender aos ingênuos e adultos, libertos pela lei de 13 de maio, hoje em pleno gozo de sua liberdade, sem os princípios de moral e religião, eivados dos vícios de cativeiro e no mais completo obscurantismo. Urge mais do que nunca uma boa distribuição das escolas e escolher-se os lugares em que mais convinha estabelecê-las. É problema que, ao meu ver, talvez não possa ser resolvido sem a criação de aulas noturnas, públicas ou particulares subvencionadas. (MATO GROSSO, 1889, p. 2) (grifo meu)
O Relatório apresentado acima faz coro com todos os outros já estudados: o
número de escolas destinadas à instrução pública primária não é o suficiente para
atender á demanda, mesmo nos centros mais populosos e as escolas existentes não
possuem os materiais e utensílios necessários aos processos de ensino-aprendizagem.
Nesse sentido o Diretor sugere que os investimentos sejam maximizados,
investindo-se em escolas nos centros mais populosos as quais seriam oferecidas todas as
condições para o seu funcionamento. A novidade em relação aos outros documentos é
que pela primeira vez – e talvez a única, no caso dos Relatórios e Mensagens – a
cobrança de mais recursos para as Escolas está diretamente relacionada com a entrada
de novos alunos que são, ao mesmo tempo, negros e pobres.
Dada as condições econômicas do estado e sua população, pode-se inferir
também que a maior parte dos negros recém libertos, assim como aqueles que há
haviam conquistado a liberdade antes do 13 de maio, eram caracterizados como pobres.
Além disso, estão claros no Relatório os objetivos e a função social da instrução pública
primária no momento em que o Diretor fala sobre a condição dos negros libertados:
“sem os princípios de moral e religião, eivados dos vícios de cativeiro e no mais
completo obscurantismo”.
122
A indicação para que se criem aulas noturnas, públicas ou particulares, pode
indicar, por sua vez, que tais aulas seriam destinadas a um público trabalhador que não
poderia freqüentar as aulas durante o dia. Por outro lado, esse suposto silêncio oficial
sobre os processos de escolarização das crianças negras não pode ser afirmado
simplesmente pela análise dos Relatórios de Diretores Gerais da Instrução e Mensagens
dos Presidentes da Província.
Pesquisas futuras poderão analisar este aspecto em maior profundidade,
considerando documentos gerados por professores, como Mapas e Relações de alunos
matriculados; ou ainda ofícios apresentados pelos Inspetores, nos quais poderá ser
investigado se esses documentos fazem menção à cor ou a raça dos alunos matriculados.
De qualquer forma, estou seguro de ter exposto um panorama geral tanto do pensamento
sobre as concepções de Educação e de Escola, quanto as reais condições do ensino
primário.
Por isso posso garantir que os documentos referentes à Educação consultados
não expressam objetivamente nenhuma forma de discriminação racial ou quesito de cor.
Esta não era uma prática comum, ou pelo menos esses dados não eram considerados
como sendo importantes por parte das autoridades superiores aos professores e
inspetores.
Isso pode ser inferido de documentos como os Regulamentos da Instrução
Pública do Estado de Mato Grosso de 1891, 1896, 1910 e 1927. Essa presença ausente
do quesito cor/raça nos documentos escolares contrasta inclusive com os parâmetros do
Recenseamento de 1890, tanto aquele realizado de forma autônoma pelo estado (Peraro,
2005), quanto o promovido pelo governo central.
Esses dois levantamentos populacionais consideraram a composição da
população a partir da raça dos indivíduos. Acrescentando que o critério não era o de
auto-declaração, como feito atualmente, mas pela categorização da autoridade
competente. A que se deve então o silêncio dos documentos educacionais com relação
ao quesito cor/raça?
123
A resposta é óbvia: a Escola não estava interessada em realçar as diferenças
raciais dos seus alunos, mas, ao contrário, o seu interesse era exatamente o de
homogeneizar todas as diferenças. O fato que desde sua concepção a Educação estivesse
orientada a disseminar valores eurocêntricos e de que a Escola tivesse a função central
de veicular esses conceitos como sendo universais levava a instituição a ignorar as
diferenças para que a ação pedagógica aparecesse neutra, desvinculada de qualquer
sistema de referência.
Pensamento esse que não era uma exclusividade da escola pública nascente, mas
uma importante linha de conduta na consolidação das instituições republicanas. Um
exemplo disso, que a primeira vista pode não ter nada a ver com a Educação ou com a
Escola, é o Hino da Proclamação da República, uma obra datada de 1890, música
composta por Leopoldo Américo Miguez e letra escrita por Joaquim de Medeiros e
Albuquerque. Sendo adotado como um dos símbolos máximos da República, o Hino é
representativo do pensamento republicano dominante. Diz em uma de suas estrofes:
Nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país... Hoje o rubro lampejo da aurora Acha irmãos, não tiranos hostis. Somos todos iguais! Ao futuro Saberemos, unidos, levar Nosso augusto estandarte que, puro, Brilha, ovante, da Pátria no altar! Liberdade! Liberdade!... (grifo meu)
Um aspecto importante é que interessava aos líderes da República nascente identifica-la
com tudo que dissesse respeito ao Brasil moderno. A Abolição, por exemplo, não
caminhou lado a lado com o movimento republicano. Ao contrário, um dos fatores que
comumente se atribui à queda da Monarquia é o de ter decretado o fim da escravidão.
Mas no Hino o fim da escravidão aparece identificado como sendo uma das
conquistas da República. Por outro lado, a escravidão havia sido abolida há apenas dois
anos e já figurava como coisa de um passado remoto, de “outrora”. Isso porque a
ideologia republicana não tinha interesse em realçar as grandes desigualdades sócio-
econômicas existentes entre a população negra, recém libertada e a elite branca
dominante.
No bojo das idéias e práticas da República havia o interesse em apagar as
diferenças de classe e de raça, pois estas eram as distinções que mais claramente
124
poderiam indicar a desigualdade social reinante. Do ponto de vista legal, objetivo da
República era o de homogeneizar, de anular as diferenças e instituir a igualdade
jurídica.
Essa tendência a anular ou colocar num passado remoto as diferenças e
desigualdades existentes era uma forma de reafirmar o pensamento corrente de que
todos os brasileiros tinham os mesmos direitos e deveres e, portanto, as mesmas
oportunidades dentro da sociedade. Um exemplo disso é a fala de Oliveira Viana9:
Muito ao contrário do que acontece com os povos europeu e norte-americano, entre nós o problema das raças não apresenta, no ponto de vista político, nenhuma complexidade. Em nenhum paiz do mundo coexistem, em tamanha harmonia e sob tão profundo espírito de egualdade, os representantes de raças tão distintas. Homens de raça brancas, homens de raça vermelha, homens de raça negra, homens mestiços dessas três raças, todos têm aqui as mesmas opportunidades econômicas, as mesmas opportunidades sociaes, as mesmas opportunidades políticas. Está, por exemplo, ao alcance de todos a propriedade da terra. Francos a todos, os vários campos de trabalho, desde a lavra da terra às mais altas profissões. Quanto aos direitos políticos, não figura em nossas leis, entre as condições da sua investidura, o critério das raças. (VIANA, 1922, p. 277-290)
Vê-se que Viana compara as hierarquias raciais existentes no Brasil com aquelas
que, segundo sua visão, era uma realidade nos Estados Unidos e na Europa. As
diferenças eram a favor do Brasil, onde supostamente predominava a harmonia e a
igualdade entre “raças tão distintas”. Nisso ele é enfático: absolutamente todos os
brasileiros tinham as mesmas oportunidades econômicas, políticas e sociais.
Nota-se que a visão de Viana terminou por predominar no conjunto da
população brasileira naquilo que ficou conhecido como mito da “Democracia Racial”,
principalmente a partir de Gilberto Freyre em “Casa Grande e Senzala”. Por outro lado,
uma das facilidades da disseminação desse mito da igualdade econômica e social
fundada na igualdade jurídica fundamenta-se no fato de que o Brasil não tenha se
constituído como uma sociedade onde vigorou uma espécie de apartheid.
9 Francisco José de Oliveira Vianna, foi um professor, jurista, historiador e sociólogo brasileiro, um dos ideólogos da eugenia racial no Brasil. Combateu a vinda de imigrantes japoneses para o Brasil. Ficou notoriamente reconhecido pela autoria de frases como “os 200 milhões de hindus não valem o pequeno punhado de ingleses que os dominam” e “o japonês é como enxofre: insolúvel”. http://pt.wikipedia.org/wiki/Oliveira_Viana
125
As diferenças entre as raças não foram institucionalizadas pela legislação, apesar
desta ter sido uma proposta arduamente defendida por um setor da intelectualidade,
mais precisamente por Raimundo Nina Rodrigues. Este pensador chegou a defender a
adoção de dois códigos penais diferentes, um para ser aplicado à raça branca,
considerada superior e outro destinado aos negros e pardos, na visão dele, inferiores.
Não tendo havido essa separação institucional com base na raça, não havia
sentido para as escolas criarem qualquer espécie de separação institucional a partir dos
mesmos critérios. Por isso as escolas não racializaram a coleta de dados sobre a sua
clientela. O seu sistema interno de classificação era fundado na percepção de que todos,
apesar das diferenças que eram interpretadas como desigualdades, precisavam passar
pelo mesmo processo de socialização.
Este processo não era outro senão a uniformização do pensamento, da
linguagem, dos hábitos, das práticas e do universo cultural onde o critério principal era
o de se adequar aos moldes da civilização considerada superior: a Europa e os Estados
Unidos. Esse processo de homogeneização realizado pela Escola republicana guiava-se
por dois eixos que atuavam ao mesmo tempo:
Um de inclusão num universo cultural de valores referenciados pela Europa e
Estados Unidos, ou seja, valores culturais eurocêntricos; e outro critério de exclusão de
todos os outros valores que não atendessem ao primeiro critério. Isto porque a cultura
dita superior não iria operar nas crianças como em uma “tabula rasa”.
As crianças deveriam, antes de qualquer coisa, ser despojadas de suas
experiências individuais e coletivas, dos códigos culturais aprendidos na socialização
familiar, dos seus hábitos de linguagem, do comportamento adquirido e aceitar como
sua uma nova identidade imposta a partir de referenciais que não eram seus.
Daí em diante, todo o legado cultural do seu grupo, da sua ancestralidade
passava a ser encarado como uma cultura inferior, como uma manifestação negativa do
seu passado e, portanto, como uma incapacidade de adaptação. Por outro lado,
exatamente com base na igualdade jurídica, impedia-se qualquer tratamento que não
fosse aquele destinado a homogeneizar essas diferenças culturais.
126
Portanto, não havia uma necessidade de se categorizar as crianças como sendo
brancas, negras, azuis ou pardas: eram futuros cidadãos de um país onde reinava a mais
ampla e perfeita democracia racial e todos deveriam se submeter à mesma formação. De
acordo com Bourdieu (2005), não há nada mais característico das instituições
educacionais que o conceito de “uniforme”. A uniformização é a base da disciplina
escolar, é ela que distingue o aluno e por isso a Escola é a instituição ad hoc da
uniformização do pensamento, da linguagem, dos códigos de conduta, da cultura geral:
(...) do mesmo modo que a religião nas sociedades primitivas, a cultura escolar propicia aos indivíduos um corpo comum de categorias de pensamento que tornam possível a comunicação. (...) Na verdade, os indivíduos “programados”, quer dizer, dotados de um programa homogêneo de percepção, de pensamento e de ação, constituem o produto mais específico de um sistema de ensino. (...) o que os indivíduos devem a escola é sobretudo um repertório de lugares-comuns, não apenas um discurso e uma linguagem comuns, mas também terrenos de encontro e de acordos, problemas comuns e maneiras comuns de abordar tais problemas comuns. (BOURDIEU, 2005, pp. 202-207)
Acrescentando que essa “função de integração cultural ou lógica” que é a
característica básica da Escola, dos sistemas de ensino, está muito mais acentuada no
período estudado. Nessa passagem de séculos a integração era nacional um objetivo
perseguido freneticamente pelas elites.
Para que o Brasil viesse a ser considerado moderno, no padrão das nações ditas
“civilizadas”, deveria apresentar uma integração total: um povo, uma cultura, uma
linguagem, um território, um Estado, uma Nação. Além disso, é desnecessário repetir o
papel que a Escola exerceu nesse contexto.
É nesta perspectiva que proponho a análise dos documentos educacionais aqui
apresentados. Não pelo que eles dizem, mas pelo que escondem no eloqüente silêncio
de suas categorias. Eles nada dizem a respeito da cor/raça das crianças. Estas não são
negras, brancas ou pardas, simplesmente não possuem cor ou raça.
Isto porque este não é um quesito importante para a organização interna das
diferenças, ou melhor, é importante que os documentos se silenciem, pois da mesma
forma que a sociedade evitou um apartheid tangenciando as desigualdades e impedindo
127
que elas fossem institucionalizadas, a Escola da Primeira República evitou o confronto
aberto dissimulando as origens raciais de suas crianças.
Qualquer procedimento burocrático de identificação dessas diferenças poderia
evidenciar as desigualdades, assim como gerar uma demanda de atendimento das
especificidades culturais de cada um dos grupos e instituindo uma perspectiva
multicultural. Com isso, pode-se dizer que, no caso específico dos documentos aqui
apresentados, não houve um procedimento de racialização.
Houve um racismo não racialista, na medida em que o racismo não se
manifestou objetivamente na forma de classificação com base no critério cor/raça,
permanecendo invisível seja na forma do Racismo Epistemológico, das medidas
moralizantes, disciplinadoras, saneadoras higiênicas ou no bojo da pressuposição da
igualdade jurídica.
O pensamento republicano tem como uma de suas bases uma visão liberal-
burguesa, para a qual a afirmação da igualdade de direitos é a própria igualdade de fato.
Partindo do pressuposto de que “todos são iguais perante a lei” – um dos fundamentos
do chamado “Estado Democrático de Direito”, a igualdade legal é a argumentação para
negar-se a adoção de qualquer forma de promoção da igualdade racial em termos
objetivos.
Pretende-se então que as chamadas Ações Afirmativas ou Discriminações
Positivas, como o sistema de cotas raciais, se constitua em uma forma de negar a
igualdade jurídica, de forma que as desigualdades econômicas, políticas e sociais entre
os diversos grupos raciais sejam sempre desconsideradas em função da suposta
igualdade jurídica.
Esse pensamento “Republicano”, que se pretende laico, objetivo e isento afirma
a neutralidade das instituições sociais e do Estado, negando que o Estado e suas
instituições possuem classe, cor, raça, sexo e orientação sexual, servindo, portanto,
como formas estruturadas, institucionalizadas de racismo e de manutenção das
hierarquias entre as diversas raças que compõem o povo.
128
Essa função de homogeneização das diferenças econômicas, sociais, culturais e
raciais, porém, não poderia ter sido realizada de forma neutra ou desinteressada.
Qualquer homogeneidade nesse sentido só poderia ser realizada se e apenas se fosse
possível partir de um arbitrário comum a todos os elementos. Como se sabe, não há
efetivamente nenhuma forma de produção cultural que possa estar desvinculada de uma
situação concreta, de relações de poder no âmbito da economia, da sexualidade, da
religião, enfim de todas as hierarquias que compõem o sistema-mundo atual.
Entretanto, há uma forma de se conceber a realidade e de se propor problemas
que arroga para si a neutralidade e a universalidade do pensamento: o eurocentrismo. E
foi com base nos pressupostos eurocêntricos que a Escola do final do século XIX e
início do século XX passou a operar. Sendo assim, a sua suposta neutralidade que
embasou a sua função homogeneizante, na verdade se constituía em um arbitrário
cultural identificado com os valores europeus. Por isso, essa função de promover a
homogeneização foi realizada como uma função hierarquizadora das diferenças.
Se a hierarquia sócio-racial é comumente representada por uma pirâmide, a
“pirâmide social”, a função social da Escola deve ser imaginada como essa figura
invertida, isto é como um funil. Isto porque no confronto com o branco europeu, todos
os latino-americanos são considerados como pertencentes a uma raça inferior, devido à
proposição do eurocentrismo de valorizar a raça e os valores europeus em detrimento de
todos os outros povos.
É somente no contexto interno de cada país que as nuances de pele – raça -,
associadas ao capital e ao capital cultural irão hierarquizar internamente essas
diferenças. Assim, no âmbito da Escola Pública Primária, todas as crianças são
submetidas a um mesmo padrão cultural e de comportamento.
“Muitos são chamados, mas poucos são os escolhidos”. Ou seja, na sua porta de
entrada, a Escola Pública Primária não faz distinção de raça ou cor. Este não é de fato
um quesito importante para se efetivar a matrícula. Mas passa a fazer sentido com a
entrada e para a permanência de todas as crianças. Porque o critério de filtragem é
exatamente a capacidade de assimilação e adaptação aos padrões culturais e de
comportamento que a Escola assumiu como arbitrário cultural.
129
De acordo com esse padrão físico-cultural-econômico, os mais aptos a
progredirem, isto é, a passarem pelo complicado sistema de filtragem, deverão ser
naturalmente os que mais se aproximassem do padrão estabelecido. Os que
demonstrassem inadequação cultural, comportamental ou ainda que não apresentassem
as condições econômicas e sociais necessárias à sua permanência seriam gradualmente
excluídos, isto é, ficariam retidos no sistema de filtragem.
Este esquema parece corresponder perfeitamente à situação relatada por Fonseca
(2006) e também aos pressupostos do Racismo Epistemológico, da Colonialidade do
Saber e do Eurocentrismo. Sendo assim, poder-se-ia parafrasear Bourdieu (2005) e
afirmar que enquanto o racismo é uma forma de violência simbólica, a Escola tem a
função social de reproduzir as desigualdades raciais.
Por outro lado, muitos pesquisadores da História do Brasil e também da História
da Educação já evidenciaram que as instituições educacionais foram uma importante
frente de atuação para aqueles que desejavam moldar o povo brasileiro de acordo com
suas idéias racistas. D’Ávila (2006) afirma que “Os dirigentes da educação pública no
Brasil na primeira metade do século XX não impediram alunos de cor de freqüentarem
suas escolas.”:
Ao contrário, entre 1917 e 1945, eles se empenharam em uma série de expansões do sistema escolar e em projetos de reforma que visavam a tornar as escolas públicas acessíveis aos brasileiros pobres e não-brancos [...] Esses educadores buscavam “aperfeiçoar a raça” – criar uma “raça brasileira” saudável, culturalmente européia, em boa forma física e nacionalista. (...) Definiram as escolas como clínicas em que os males nacionais associados à mistura de raças poderiam ser curados. Suas crenças forneceram um poderoso motivo para a construção de escolas e moldaram a forma como essas escolas funcionariam. (D’ÁVILA, 2006, p. 21-22)
Relembrando que esse movimento pela criação de escolas, de um tipo particular
de escolas, destinadas, sobretudo a “melhoria da raça”, como fundamento do progresso
e do desenvolvimento, embora seja uma característica do período da Primeira
República, é produto de um senso comum cristalizado na consciência da sociedade e das
elites desde os primórdios do Império.
O racismo permitiu à elite dominante a possibilidade de integrar e hierarquizar
ao mesmo tempo, uma vez que as instituições escolares ocupam um espaço de
130
centralidade social, principalmente como disseminadoras da cultura dominante, elas
funcionavam com uma dupla lógica ampliação da capacidade de atendimento e
hierarquização das diferenças.
Na mesma medida em que ampliavam o seu raio de ação, sua capacidade de agir
sobre a sociedade, abrindo-se assim para a inclusão de negros, pardos e pobres;
categorizava esses indivíduos submetendo-os à sua própria hierarquia cultural, que
vinha a ser a ideologia da adaptação à civilização nos moldes europeus. Daí a
importância estratégica da instrução pública primária, por ser ela a “porta de entrada” do
sistema educacional e a única parte desse sistema que, de fato, era pensada em termos
de acessibilidade ao conjunto da população.
Do ponto de vista institucional, a ampliação da rede escolar primária era uma
forma de aumentar o poder de prospecção do Estado. Dada à necessidade de
homogeneizar as diferenças culturais e sendo a Educação o conteúdo e a Escola a
forma, era necessário que essa rede de escolas fosse estendida até o limite das
possibilidades. Sendo o ensino primário uma obrigação legal, nem mesmo a baixa
capacidade de atendimento ou as escassas possibilidades da população pobre poderiam
ser argüidas contra a sua execução.
O discurso higienista e sanitarista de que a população brasileira deveria ser
expurgada de sua parte podre e indesejável, desde que tal parte foi identificada com os
negros e pardos, passou a ser disseminado através da ação das instituições escolares. A
Escola pareceu atuar assim por meio de um movimento de fluxo e refluxo, de abertura e
de fechamento, que são na verdade etapas de um mesmo processo destinado,
primeiramente a ampliar seu raio de ação combinado com a afirmação de seu conteúdo
discricionário.
Ao incorporar os valores europeus e norte-americanos de civilização como
norma principal, a Escola republicana conferia à instrução pública primária um caráter
de total isenção diante do “fracasso escolar” no qual inevitavelmente iria naufragar a
maior parte do alunado negro e/ou pobre.
131
Como o sucesso escolar estava condicionado à capacidade de cada aluno em
assimilar os valores culturais do ocidente europeu, então considerados civilizados, todos
aqueles que superassem essas barreiras seriam então considerados civilizados e aptos a
se integrarem na estrutura social e/ou de continuarem dentro do sistema educacional
progredindo a series superiores.
O eventual sucesso do aluno negro, pardo ou pobre poderia ser apresentado
como uma prova – a mais evidente- da capacidade da instrução pública de regenerar a
raça. Por outro lado e ao mesmo tempo, todos aqueles que fracassassem no objetivo de
assimilar os mesmos postulados poderiam ser apresentados como incapazes, sendo,
portanto, a prova cabal de que nem todos afinal podiam ser civilizados. Assim, também
o fracasso poderia ser apresentado como prova evidente da superioridade desse processo
seletivo e de que os mais capazes poderiam ser afinal integrados.
Essa hipótese vem de encontro ao pensamento defendido por D’Ávila e outros
pesquisadores, de acordo com os quais a principal forma de discriminação racial nas
escolas dos primeiros anos da República não foi no sentido de se fechar aos negros,
pardos e pobres, mas de submetê-los a um processo de aculturação para que então
assimilassem a cultura européia considerada superior:
No imaginário social brasileiro é bastante arraigada a crença de que a população negra só tenha tido acesso à escola nos idos dos anos cinqüenta e sessenta do século XX. Explica-se esse acesso tardio devido ao restrito desenvolvimento do ensino público, mas também a certa “imprevidência” das famílias negras. (...) Não pesquisei especificamente o alunado negro nas escolas da Primeira República, mas tenho a hipótese de que em relação a eles também ocorreu um processo de branqueamento. Pelo menos no que se refere à possibilidade de ingressarem em escolas mais centrais ou, mesmo à possibilidade de realizar uma trajetória escolar de sucesso. (MÜLLER, 2008, p. 89)
Note-se que o projeto modernizador em curso sempre significou uma pressão
muito grande para que a instrução pública primária se transformasse na correia de
transmissão dos valores culturais dominantes na época. Uma vez que os conceitos de
progresso, desenvolvimento e cultura se referiam aos valores tipicamente ocidentais
adotados pelas elites locais, caberia à escola ampliar ao máximo o seu raio de ação,
visando a inclusão do maior contingente possível de pessoas.
132
Ao mesmo tempo, a escolarização primária passaria a funcionar como a porta de
entrada de um sistema escolar no qual o sucesso, a permanência e a progressão do aluno
estariam relacionados à sua capacidade de assimilar os arbitrários culturais
universalmente considerados válidos.
O sistema escolar irá inculcar universalmente uma cultura dominante
configurada como cultura nacional legítima. (Catani, 2007, p. 23). Essa cultura
dominante que passou a ser universalmente válida através dos bancos escolares e estava
imbricada pelas idéias racistas. Dessa forma, pode-se afirmar que o preconceito e a
discriminação no campo educacional não impediram o acesso de negros, pardos ou
brancos pobres às escolas públicas – pelo menos no que tange ao ensino primário -.
Esse sistema de idéias se expressou na adoção pela escola primária de um
conjunto de procedimentos e teorias, de valores e arbitrários culturais ocidentais brancos
e que se constituíam em última instância na imagem ideal daquilo que a escola e a
sociedade projetavam para o aluno, branco ou não.
Mato Grosso possuía uma população majoritariamente negra e parda, o que
dificultaria ou até mesmo impedia a implantação de um projeto educacional que visasse
a inclusão de amplas parcelas da população e, ao mesmo tempo, restringisse o acesso
desses grupos populacionais.
Por isso o racismo e a discriminação devem ser procurados na constituição do
sistema simbólico, do conjunto de idéias e conceitos que permeavam as instituições
educacionais, científicas e culturais, a fim de compreendermos como a ideologia do
racismo chegou até a escola pública primária.
A ampliação dos espaços escolares destinados à instrução pública primária deve
ser apreendida no âmbito da discussão sobre a formação racial do povo brasileiro, que
ocorre no contexto histórico da emergência da ordem republicana, que, por si mesmo,
implicava na necessidade de se redefinir o papel social da Educação.
Tendo como pressuposto a necessidade das elites dirigentes em transformar o
ambiente escolar em espaço institucional de propagação das suas idéias, de
133
uniformização do pensamento e da formação de uma consciência nacional condizente
com as aspirações de seu projeto de poder.
Estes eram devedores do pensamento europeu, que então “estava repleto de
concepções racistas difundidas em larga escala. Tanto nas ciências quanto nas artes, a
imagem do negro que é veiculada leva a crer em sua inferioridade inata e irremediável.”
Skidmore explica que o período estudado foi profícuo no debate sobre a formação do
povo brasileiro:
Quando comecei este livro, intencionava compor uma série de retratos de intelectuais brasileiros, todos eles, aliás, representantes dos anos que medeiam as décadas de 1870 a 1930. Vi logo para espanto meu, que embarcara num exame das principais correntes intelectuais da época. E, só aos poucos, compreendi que marchava para uma análise minuciosa do pensamento racial brasileiro. (SKIDMORE, 1976, p. 11)
Essas categorias de pensamento presentes no imaginário dos intelectuais
brasileiros irão se articular com a construção do sistema público de ensino na mesma
medida em que esses intelectuais serão responsáveis pela sedimentação do ideal da
instrução pública primária portadora de uma missão civilizadora, capaz de regenerar o
povo e transformar a nação.
Conforme explica D’Ávila (2006 p. 13-14): “Afrânio Peixoto, Anísio Teixeira e
Fernando Azevedo, foram intelectuais que, durante longas carreiras, influenciaram
instituições educacionais, intelectuais e científicas de formas marcantes.”. Skidmore
(1976) também denuncia esse mesmo movimento ao afirmar que:
Os chamados pioneiros educacionais do Brasil transformaram as escolas públicas emergentes em espaços em que séculos de suprematismo branco-europeu foram reescritos nas linguagens da ciência, do mérito e da modernidade. As escolas que eles criaram foram projetadas para imprimir sua visão de nação brasileira ideal, naquelas crianças sobretudo pobres e não-brancas que deveriam ser a substância daquele ideal. (SKIDMORE 1976, p. 24).
Assim, a instrução pública primária permitiu a imposição de uma ordem
epistemológica a partir e no interesse das elites, estabelecendo a partir daí o sentido
imediato da realidade para toda a sociedade, relegando às classes populares a essa
134
condição de conformismo lógico que permitiu a continuidade da dominação racial do
escravismo, mesmo após a sua extinção.
Nesse sentido, a instrução pública primária mato-grossense, parida na passagem
do escravismo para o trabalho livre, da monarquia para a república, e destinada a ser
uma importante instituição integradora – no sentido já usado acima –, não poderia
cumprir com rigor sua função social se não estivesse orientada, desde o nascedouro, a
organizar-se racialmente, com vistas a transmitir um conjunto de valores raciais e
racistas, destinados, por sua vez, a reproduzir a cultura da dominação e a “domesticação
dos dominados”.
135
4.2 – MORALISMO, HIGIENISMO E SANITARISMO: O BIOPODER
RACISTA
Foi visto que a emergência do ensino público primário na passagem do século
XIX para o XX ocorreu no bojo das concepções de modernidade, progresso,
desenvolvimento e civilização. Estes conceitos se edificavam no mito eurocêntrico da
superioridade racial e cultural dos povos europeus sobre todos os povos do mundo.
Mas o Racismo Epistemológico não é a única forma de racismo presente nas
sociedades nem nas instituições educacionais. Isso porque ele apenas condiciona o
processo de produção do conhecimento a partir da desqualificação antecipada de formas
de conhecimento não adequadas ao padrão europeu estabelecido.
Além dessa hierarquização a partir dos fundamentos filosóficos da Educação, a
Escola é também permeada por um conjunto de práticas cotidianas que selecionam e
classificam os indivíduos a partir de suas características físicas. Ou seja, além de se
fundar em uma epistemologia racista, a Escola incorpora os mesmos mecanismos de
seleção sócio-racial presentes no conjunto da sociedade.
A única forma de se organizar como uma instituição capaz de reproduzir as
desigualdades sociais, sejam quais forem essas desigualdades, é se a instituição escolar
for capaz de assumir como suas todas as categorias que realizam no âmbito da
sociedade a função de manter intactas as hierarquias.
É preciso considerar a enorme heterogeneidade na composição do público
infantil freqüentador dessas escolas. Não apenas do ponto de vista racial, mas
econômico, político, social, cultural, enfim sob todos os pontos de vista. Todas essas
crianças eram recebidas por uma instituição que as trataria “sem distinção de classes ou
origens”, isto é como se todas fossem iguais em seus mundos de referência e como se
todas elas pudessem assumir como seus os valores e regras que a partir de então
estariam submetidos.
136
E também que todas elas, ao adentrar nos recintos escolares, passavam a ser
submetidas a um processo de homogeneização, ou seja, eram recebidas por uma
instituição que tinha como objetivo transmitir normas de comportamento, idéias e
valores identificados com um mundo que, a rigor, não lhes pertencia.
Com o agravante de que tais regras, normas e valores já estabeleciam, de
antemão, quais seriam aquelas crianças que deveriam ser classificadas como
“vencedoras”, isto é aquelas cujas chances de progressão estariam garantidas e seriam
referendadas a cada passo, e aquelas que seriam simplesmente desqualificadas. Além
disso, esse processo de homogeneização não deve ser considerado apenas do ponto de
vista cultural. Pois entre as ideologias racistas que estavam em vigor na sociedade e
suas instituições, pode-se citar: o higienismo, o sanitarismo e a eugenia.
O que se infere dos documentos consultados é que as práticas higienistas,
sanitaristas e embranquecedoras que estavam sendo praticadas nos grandes centros do
país também haviam chegado a Mato Grosso. Ao mesmo tempo, apenas um dos
documentos consultados se refere explicitamente a presença de crianças negras nas
escolas públicas.
O que indica a prática de diversas formas de racismo institucional sem a
necessidade de que tais práticas fossem incorporadas aos documentos escritos na forma
de distinção através do quesito cor/raça.
Assim se configuraria uma situação paradoxal: ao mesmo tempo em que a
Escola funcionava como uma agência de saneamento, as autoridades não produziam
documentos que indicassem a existência de praticas racialistas. Isto configuraria a
naturalização das desigualdades.
Por exemplo, os Regulamentos da Instrução de 1891, 1896, 1910 e mais
explicitamente em 1927 estão cheios de conceitos oriundos das teorias e práticas
sanitaristas, mas em nenhuma parte se encontra referência à cor ou raça dos alunos. Por
isso se infere uma disposição da instituição escolar em ignorar esses dados, pelo menos
do ponto de vista oficial, já que a maior parte dos regulamentos contra práticas
137
consideradas imorais, anti-higiênicas ou fora do padrão sanitário irá incidir exatamente
sobre a população negra, mestiça e pobre.
Efetivamente, a distância entre os desqualificados pela medicina, pela higiene e
pelas normas sanitárias e os desqualificados pelas teorias racistas em voga no período é
praticamente nula. De acordo com Pinho (2007), essas melhorias pregadas pelos
higienistas se confundem com as teorias da seleção racial, que por sua vez seria:
Nada mais é do que o retrato do funcionamento do racismo, compreendido aqui não da forma simples e tradicional do ódio ou desprezo de uma raça por outra, mas sim como nos indica Foucault, como um mecanismo do Estado para efetivação do biopoder. (PINHO, 2007, p. 105)
No Regulamento de 1891, o aspecto que considero mais importante sobre essas
normas de condicionamento é sobre a Organização do Ensino, porque ele revela a forma
como ele está disposto, sua organização interna. Em seu Artigo 29º consta que “O
ensino primário será leigo, gratuito e obrigatório”. Mais adiante, o Artigo 38º diz que
“A matrícula escolar será feita pelo professor, no livro competente, com designação do
dia, mês e ano em que se verificar, nome, idade, naturalidade e filiação do
matriculando”.
Isso quer dizer que, para se atender ao disposto no Artigo 38º, não havia
qualquer necessidade de se mencionar a classe social, a cor ou a raça dos alunos. Por
outro lado, havia uma preocupação muito grande, expressa no próprio regulamento,
sobre a separação das turmas e escolas pelo sexo das crianças. Diz o Artigo 30º:
As escolas primárias serão dividias em três classes: Pertencem à 3ª classe, as escolas da capital, onde haverá para cada sexo tantas quantas forem necessárias; Pertencem à 2ª classe, as escolas das vilas ou cidades que forem sede de comarca, onde haverá pelo menos uma para cada sexo; Pertencem à 1ª classe, todas as outras escolas do Estado, só podendo haver uma em cada localidade, e nelas se ministrará o ensino a alunos de ambos os sexos, sob a regência de um só professor, que será de preferência, uma senhora. (...) Artigo 32º – Em todas as escolas do sexo feminino poderão ser admitidas crianças de outro sexo, de 6 a 10 anos de idade, mediante prévia autorização do Diretor Geral, sendo acomodadas de modo que fiquem completamente separadas pelo sexo. (MATO GROSSO, 1891, pp. 27-28)
O aspecto que desejo chamar atenção é exatamente o de que os critérios de
organização considerados mais relevantes tendem sempre a ser anunciados
138
explicitamente, de forma que os documentos gerados pela organização tenderão a
respeitar e se orientar por esse padrão estabelecido. No caso da divisão de escolas pelo
sexo, tendia a gerar documentos onde as escolas são categorizadas por sexo, já que está
também era a forma básica como estava organizado o ensino público primário no
âmbito da Reforma de 1891.
É um ensino concebido como obrigatório, universal, sem distinção de sexo,
classes nem de origem. O único conceito que não me parece claro é o “de origem”. Os
sinônimos mais próximos podem ser: ascendência, estirpe, família, genealogia,
linhagem, procedência, raiz, tronco, berço ou nascimento.
Considerando que o texto já faz menção à classe, não se trata de uma distinção
econômica. Deve-se supor, portanto, que entre as distinções importantes para que se
organizasse o ensino público primário não constasse qualquer menção á cor ou raça das
crianças a quem essas escolas estariam destinadas.
A insistência na divisão por sexos não era aleatória, mas permitia que a partir de
tal distinção as crianças fossem submetidas a um procedimento pedagógico que, ao
mesmo tempo universalizasse e homogeneizasse o conhecimento a partir de um núcleo
comum destinado a todos os alunos indistintamente, produzisse o efeito de
particularizar as diferenças de gênero preparando cada um deles para os papéis
previamente estabelecidos pela cultura dominante.
Por isso o Regulamento da Instrução Pública de 1891, no seu Artigo 29º dizia
que o ensino era leigo, gratuito e obrigatório, mas acrescentava no Parágrafo único:
O ensino primário compreenderá as seguintes matérias: Leitura de impressos e manuscritos; Caligrafia e escrita; Elementos de Gramática Portuguesa e composição em prosa; Elementos de Aritmética, compreendendo o sistema métrico decimal; Noções de Geografia, especialmente do Brasil; Noções de História do Brasil; Trabalhos de agulhas e de prendas domésticas, nas escolas do sexo feminino. (MATO GROSSO, 1891, p. 27) (grifo meu)
Assim, além de todas as matérias ensinadas nas escolas masculinas, nas
femininas deveriam ser ministrados os conhecimentos que então eram considerados
relevantes e necessários para que as mulheres cumprissem o papel social a elas
139
destinado pela sociedade machista. Por outro lado, é bom relembrar da defesa do ensino
misto feita ainda em 1879 pelo Presidente da Província. Naquela ocasião ele alertava
que para seguir a “marcha da civilização” seria necessário implantar medidas que
contrariavam os costumes estabelecidos, os “falsos preconceitos”.
Isso quer dizer que a implantação do ensino misto dependia basicamente de que
o Estado estivesse em condições de implantar uma medida claramente em desacordo
com a moral reinante. A divisão do ensino por sexos não atendia somente as
expectativas de que cada um dos sexos devia cumprir um papel diferente na sociedade,
mas também era considerada uma medida de acordo com os princípios da moral
estabelecida.
Apesar disso, o único documento em que encontrei uma defesa tão enfática e
aberta do ensino misto foi neste de 1879. Nos outros Relatórios e Mensagens não há
nada semelhante. Nem nos Regulamentos seguintes. Com o Regulamento de 1927, são
realizadas algumas alterações, mas os fundamentos dos Regulamentos anteriores
permanecem inalterados. O ensino público primário continua sendo obrigatório e
gratuito “a todas as crianças normais, analfabetas, de 7 a 12 anos, que residirem até 2
quilômetros de escola pública”. (Mato Grosso, 1927, p. 163)
Destacando que nos Regulamentos anteriores a obrigatoriedade era para as
crianças que residiam até 1 quilômetro da escola pública. As escolas primárias são
divididas em cinco categorias: escolas isoladas rurais; escolas isoladas urbanas; escolas
isoladas noturnas escolas reunidas e grupos escolares.
Até este ponto não há qualquer menção ao fato da distinção entre os sexos, mas
nos artigos referentes às matriculas, essa distinção aparece, pois é dito explicitamente
que: “Não serão matriculados (...) os meninos em classes femininas e as meninas em
classes masculinas”. (Mato Grosso, 1927, p. 192)
Essa preocupação em se manter a “boa moral” nas instituições públicas de
ensino não se expressava apenas na separação de escolas de meninas e escolas de
meninos – depois separação por classes ou por turnos -, mas também em outras normas
140
regulamentares cujo dispositivo visava, sobretudo um enquadramento das crianças na
sociedade disciplinar da qual a Escola era apenas uma pequena parte.
O Regulamento de 1891 prevê uma série de prêmios e de penas aos alunos, de
acordo com a gravidade da falta cometida ou dos sucessos alcançados, respectivamente.
Os prêmios, que iam desde o elogio em particular até a menção honrosa nos exames
gerais deviam, segundo a norma, “ser distribuídos com rigorosa justiça e descrição, a
fim de que possam produzir o resultado desejado – assiduidade, aplicação e
moralidade”. (Mato Grosso, 1891, p. 27).
Assim, se configura uma situação na qual o “bom comportamento”, ou seja, a
perfeita adequação à norma imposta funciona como um reforço positivo, pois ele é a
medida do sucesso escolar, da ascensão aos graus superiores e também do recebimento
de um bom tratamento por parte de professores e de toda a instituição escolar.
Por outro lado, como reforços negativos, figuram penas que iam desde a
“repreensão não injuriosa”, até a expulsão da escola, que era considerada a pena mais
grave, imposta somente “quando esgotados todos os outros meios de ação, o aluno
mostra-se rebelde, e sua presença na escola tornar-se prejudicial à boa ordem”.
Veja-se que o aluno seria excluido do ambiente escolar se demonstrasse
“rebeldia” e se sua presenção se tornasse prejudicial “à boa ordem”. A disciplina moral
era o imperativo mais forte a ser seguido pela instituição, já que com base nela seriam
distribuidos os prêmios e os castigos. No Regulamento de 1896, reserva-se um Capítulo
inteiro para se especificar “os deveres e direitos dos alunos”, especificamente os do
Liceu Cuiabano sobre quem recairiam as principais normas de comportamento.
Diz o Artigo 119º (Mato Grosso, 1896, p. 77): “Ficam sujeitos ao estrito
cumprimento do presente regulamento todos os alunos do Liceu Cuiabano”. Estes
estariam sujeitos a uma série de obrigações, envolvendo não apenas a sua estadia dentro
do recinto escolar como também a sua vida fora da instituição. São obrigações dos
alunos matriculados no Liceu Cuiabano (Mato Grosso, 1896, p. 78):
141
• Vestir-se com decência e apresentar-se na aula diariamente e à
hora marcada para os exercícios escolares;
• Portar-se durante as aulas com toda a atenção e respeito, nunca se
distraindo uns aos outros e obedecendo sempre, prontamente, às determinações
de seus lentes;
• Apresentar seus trabalhos escritos sem emendas ou borrões, nos
dias designados;
• Expor as lições já explicadas e estudadas, quando o professor
assim o determine;
• Mostrar-se sempre cortês e bem educado para com o Diretor e
professores, dentro e fora do estabelecimento, e respeitoso em qualquer parte
com os membros do magistério público;
• Tratar com delicadeza e urbanidade a todos os funcionários do
Liceu, bem como as pessoas estranhas que nele tiverem ingresso;
• Dispensar a todos os seus colegas em geral e a cada um em
particular, tratamento afetuoso e digno;
• Guardar o maior silêncio nos corredores, salas de espera e na
biblioteca.
Nota-se uma preocupação em sujeitar os alunos dentro daquilo que era então
considerado como a “boa educação”, não no sentido do aprendizado de conhecimentos
escolares, mas na assimilação dos valores culturais e comportamentais vigentes. As
regras de conduta e a moral deveriam se expressar desde a forma como o aluno deveria
manter-se limpo e asseado tanto no vestuário quanto nas lições demonstram que o mais
importante era evidenciar, pelo comportamento, uma plena aceitação e incorporação
desses valores culturais que a Escola cabia referendar e disseminar.
142
A disciplina não termina com aquilo que o aluno era obrigado a fazer dentro e
fora da escola, mas é completada com uma série de vedações expressas. De acordo com
o Artigo 120º (Mato Grosso, 1896, p. 78), era expressamente proibido ao aluno:
• Abandonar qualquer exercício antes de concluído;
• Retirar-se da aula antes de terminada a lição;
• Conservar-se de chapéu na cabeça dentro do estabelecimento;
• Fumar no interior do mesmo;
• Gritar, assobiar, fazer algazarra, ou dar vaias dentro ou nas
vizinhanças do edifício do Liceu;
• Formar grupos nas portas, em frente ou nas imediações do mesmo
edifício;
• Escrever, pintar, desenhar, gravar, riscar, ou por qualquer modo
sujar, estragar ou danificar o edifício ou seus móveis e utensílios; sendo
responsáveis pelos danos causados: o próprio aluno, se for maior, seu pai, tutor
ou educador, se for menor;
• Proferir palavras, fazer gestos, espalhar escritos ou impressos e
cometer enfim qualquer ato ofensivo à moral;
• Entregar-se a divertimentos prejudiciais, sob qualquer ponto de
vista, aos seus companheiros, ou a qualquer empregado ou visitante do
estabelecimento;
• Ameaçar ou ofender fisicamente a qualquer pessoa estranha ou
não, dentro ou nas proximidades do edifício do Liceu;
143
• Retirar qualquer objeto da biblioteca, secretaria, gabinete, aula e
sala de estudos, ainda que no propósito de restituí-lo no mesmo estado e dentro
de certo prazo.
O rigor na aplicação desses dispositivos deveria ser também observado pelos
professores, inspetores e demais autoridades encarregadas da execução das regras.
Qualquer aluno que as infligisse poderia como punição máxima, ser excluído
definitivamente do Liceu.
Antes de ser eliminado definitivamente, de acordo com a gravidade da falta, o
aluno poderia ser suspenso temporariamente nos casos seguintes: se formalmente
manifestasse qualquer ato de insubordinação, desobediência e desrespeito, se
demonstrasse desídia ou desleixo, tornando-se um mau exemplo para seus colegas ou se
ofendesse fisicamente qualquer pessoa estranha ou não ao estabelecimento dentro ou
fora dele. Seriam passíveis de punição com a exclusão definitiva as repetições de
qualquer um dos atos acima ou ainda (Mato Grosso, 1896, p. 78):
• Os escritos, desenhos, gravuras, etc., ofensivos à moral pública,
ou ao diretor, professores, alunos, empregados do Liceu ou quaisquer outros
funcionários públicos;
• As injúrias verbais ou escritas feitas às mesmas pessoas e
funcionários;
• Os atos de imoralidade praticados no estabelecimento ou em suas
adjacências;
• O fato de ter sido três vezes suspenso;
• A repetição de pugilatos dentro ou nas imediações do edifício do
Liceu.
Ainda de acordo com o Regulamento, os alunos que fossem submetidos à
eliminação temporária não poderiam entrar no estabelecimento enquanto perdurasse a
144
punição e os que fossem expulsos em definitivo não poderiam ser matriculados por três
anos em qualquer instituição de ensino mantida pelo Estado. A preocupação com a
manutenção da ordem, tanto dentro quanto fora da Escola, era complementada com uma
série de dispositivos regulamentares imbricados nas disciplinas escolares.
Na Escola Elementar, além da leitura corrente de impressos e manuscritos,
caligrafia e escrita, geografia e história do estado, estudo prático da língua materna, dos
chamados “exercícios de coisas”, da aritmética, os alunos deveriam aprender “Cultura
moral; comentário das narrativas dos livros de leitura e dos fatos da vida escolar”,
acrescentados de “costura simples nas aulas de meninas”.
Já na Escola Complementar esses conhecimentos seriam aprofundados, com
ênfase naqueles que eram considerados como adequados à boa formação moral dos
alunos e alunas. Estes aprenderiam, além de todas as matérias:
Educação cívica e moral; leitura e explicação da Constituição Federal e do Estado; economia doméstica; máximas morais; observações sobre fatos da vida escolar prática e da história; principais deveres do homem para com a humanidade, para com a pátria, para com os seus concidadãos, para com a família e para consigo mesmo; noções e exposições práticas da solidariedade social e humana; preceitos e regras de civilidade. Trabalhos de agulha, corte e feitio de roupa branca para criança, mulher e homem, nas escolas do sexo feminino. (MATO GROSSO, 1896, pp. 66-67)
Nota-se, portanto, que a Educação escolar republicana era antes de tudo uma
instituição disciplinar. Sua função principal era fazer com que as crianças aprendessem
a obedecer ao mesmo tempo em que recebessem os rudimentos do que era considerado
como sendo uma cultura superior, apta a conduzi-las à civilização. No Regulamento de
1910 permanecem as mesmas disposições em se premiar ou castigar, de acordo com o
comportamento da criança. E as autoridades introduziram um alerta:
Art. 26º – O professor, tanto na distribuição dos prêmios, como na aplicação dos castigos, deverá ter todo o cuidado em não baratear aqueles, afim de que possam servir de estimulo à assiduidade, conduta e moralidade dos alunos: bem como em não exceder-se nos castigos, para que possam produzir os bons resultados que são de esperar de sua prudente imposição. (MATO GROSSO, 1910, p. 123)
O que pode se chamar de “Economia do Castigo”. Todo esse regime disciplinar
é mantido, sem grandes alterações no Regulamento de 1927, por isso não vejo
145
necessidade de repetição. As normas disciplinares e regulamentares nos remetem às
relações de poder entre as crianças e destas com a sociedade, mas precisamente das
relações de poder que condicionavam e submetiam esses pequenos indivíduos, a partir
de seus próprios corpos, a um conjunto de relações que eram determinadas de forma
autoritária.
Tais regras permitiam a construção de uma realidade na qual os corpos das
crianças eram, ao mesmo tempo, vítimas e parte integrantes da estrutura destinadas a
dominá-las e submete-las. As regras de “bom comportamento”, de adequação ao padrão
que se esperava estabelecer estão em consonância com o pensamento racial da época de
acordo com o qual os crimes são considerados uma patologia.
Os eventuais desvios que fossem apresentados pelas crianças seriam encarados
por seus superiores como um mal a ser reparado. Por isso a preocupação em corrigir,
reeducar, curar, readaptar e só em último caso, quando a presença física do mal
ameaçasse o coletivo, de eliminá-lo totalmente do convívio, para evitar o contágio.
Com certeza essa perspectiva decorre das influências exercidas pelos teóricos
que naquela época procuravam explicar a sociedade comparando-a com um organismo
vivo: logo um crime era antes de tudo um desvio, uma patologia, uma doença que
ameaçava a sanidade do corpo social. Além disso, o que ocorre nessa passagem dos
séculos não é simplesmente uma mudança na forma como a sociedade passa a tratar o
crime ou uma mudança no que deve ser criminalizado.
O que está em julgamento pela instituição escolar não é a capacidade de
aprendizagem dos seus alunos. A modernidade aponta para uma mudança no objeto
crime, naquilo que se refere a uma prática penal, passando a julgar as paixões, os
instintos, as anomalias, as enfermidades e as inadaptações.
E a Escola passa a ser a instituição que terá a função de corrigir todos esses
males do corpo social, uma vez que ela trabalhará com corpos que estão em processo de
formação, com crianças que, sendo salvas, corrigidas, serão transformadas em cidadãos
modelos, verdadeiras salvaguardas das instituições, dos poderes e do Estado, conforme
apregoavam as elites em seus discursos em favor da Educação popular.
146
A disciplina instituída pela Escola não tinha como objetivo simplesmente punir
uma infração, mas, sobretudo controlar as crianças, neutralizar o perigo real ou
imaginário, modificar suas intenções e estabelecer as garantias de que o seu
comportamento será enquadrado dentro das normas socialmente aceitas como
civilizadas.
Tratava-se da incorporação, pelas crianças, professores, diretores, porteiros,
amanuenses, inspetores e por toda a comunidade escolar – incluindo as famílias -, das
regras e dos preceitos da “civilidade”. Isto requeria a adoção de mecanismos sutis
através dos quais os corpos possam ser controlados a partir da alma. Disso dependeria a
adoção de uma verdadeira ciência da vigilância, do controle, da punição, da microfísica
do poder.
Exigem-lhe sinais. (...) sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. (...) Essa sujeição não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia; pode muito bem ser direta, física, usar a força contra a força, agir sobre elementos materiais sem no entanto ser violenta; pode ser calculada, organizada, tecnicamente pensada, pode ser sutil, não fazer uso de armas nem terror, e no entanto continuar a ser de ordem física.(FOUCAULT, 1987, pp. 25-26)
Foucault (1987) fala de um saber sobre o corpo que não pode ser compreendido
apenas como uma ciência do funcionamento do corpo, mas sim como uma tecnologia
política do corpo que se refina e se amplia na mesma medida em que aprofunda seus
conhecimentos, que se funde com o próprio corpo na medida em que torna possível o
seu uso como condição e meio de seu próprio controle e domínio. Essa tecnologia
política do corpo repousa sobretudo na arte e na técnica da disciplina. Uma palavra
ambígua, com variados significados, conforme o Dicionário Aurélio10:
[Do lat. disciplina.] S. f. Regime de ordem imposta ou livremente consentida; Ordem que convém ao funcionamento regular duma organização (militar, escolar, etc.); Relações de subordinação do aluno ao mestre ou ao instrutor; Observância de preceitos ou normas; Submissão a um regulamento; Qualquer ramo do conhecimento (artístico, científico, histórico, etc.); Ensino, instrução, educação; Conjunto de conhecimentos em cada cadeira dum estabelecimento de ensino; matéria de ensino.
10 Digital. Versão 3.0
147
Nas instituições escolares os significados de disciplina como submissão a um
regulamento e conjunto de conhecimentos estão perfeitamente articulados, como duas
pernas que se apoiam mutuamente numa caminhada. É por isso que Foucault (1987)
fala do aparecimento da arte e da tércnica do corpo, que não apenas aprofundam a
sujeição e aumentam as habilidades, mas sobretudo investem no estabelecimento de
uma relação onde o corpo se torna mais obediente na medida em que se torna útil e mas
útil a medida em que aumenta sua obediência:
Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma aptidão, uma capacidade que ela procura aumentar; e investe por outro lado a energia, a potencia que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentudada. (FOUCAULT, 1987, p. 119)
Esse poder disciplinador possuia uma lógica interna. Em primeiro lugar
precisava trabalhar a distribuição dos corpos no espaço, exigindo a cerca e o fechamento
para produzir a homogeneização. No interior desse espaço estrito a disciplina iria
trabalhar o quadriculamento, que é a colocação de um corpo e cada lugar e a
determinação de cada lugar para um corpo, organizando o espaço e os corpos de forma
análitica e intercambiável.
Para estabelecer o controle da atividade, a disciplina usava o horário,
controlando a atividade pelo controle estrito do tempo, uma herança das comunidades
monásticas; a disciplina elaborava temporalmente cada ato, decompondo-o em gestos e
movimentos e estabelecendo uma postura global em relação a cada gesto; ela promovia
uma articulação entre o corpo e o objeto, possibilitando a sua utilização exaustiva.
Ela também organizava as gêneses usando quatro processos: dividindo a duração
em segmentos, organizando a sequência de forma analítica, finalizando os segmentos
temporais com uma prova e estabelecendo séries. De acordo com Foucault, entre os
“recursos para o bom adestramento”, estão a vigilância hierárquica, a sanção
normalizadora e o exame. A vigilância hierárquica é parte do processo que decompoe o
poder de forma hierárquica permitindo que a própria vigilância seja vigiada.
148
Além disso, a sanção normalizadora, através da qual o sistema disciplinar passa
a funcionar como um pequeno mecanismo penal, onde os comportamentos podem ser
qualificados e passíveis de prêmios ou punições; e o exame, que é a combinação das
técnicas da hierarquia que vigia com a sanção que normaliza. Todo esse procedimento
disciplinatório é finalizado com o exame final:
Permite ao mestre, ao mesmo tempo em que transmite seu saber, levantar um campo de conhecimentos sobre seus alunos. Enquanto que a prova com que terminava um aprendizado nas tradição corporativa validava a aptidão adquirida – a obra-prima autenticava a transmissão de saber já feita – o exame é na escola uma constante troca de saberes: garante a passagem dos conhecimentos do mestre ao aluno, mas retira do aluno um saber destinado e reservado ao mestre. A escola torna-se o local de elaboração da pedagogia. (FOUCAULT, 1987, p. 155)
Dessa interessante leitura que Foucault faz da arte de vigiar e punir, talvez a
modelação dos “corpos dóceis” seja a que mais enfaticamente se aproxima do conjunto
de procedimentos, normas e condutas que se esperam de uma criança aluna da Instrução
Pública Primária nessa passagem de séculos.
É por isso que os procedimentos escolares são colocados por Foucault ao lado
daqueles realizados por outras instituições disciplinares, como os hospitais, exércitos e
prisões, locais onde a prática e a arte de controlar, corrigir, moldar e submeter o corpo
visa torna-lo parte integrante, o suporte instrumental do biopoder.
Dentro das condições históricas e sociais do Brasil na passagem do século XIX
para o XX esse instrumental do do biopoder passa a ser uma necessidade vital para a
continuidade do domínio e da submissão. O controle do corpo estava habituado a ser
realizado através da coação física simples, da violência aberta com a qual qualquer
senhor poderia tratar seus escravos negros ou agregados brancos pobres.
O princípio básico da escravidão é exatamente o de que o corpo do escravo
passa a ser propriedade do corpo do senhor de escravos. A garantia desse poder é a
violência física. Quando a escravidão entra no seu período de ocaso, de repente, esse
poder se vê subtraído de sua principal capacidade de controle.
149
Como efetivamente manter e aprofundar o controle sobre os corpos se eles não
podem mais ser tratados como coisas, objetos, mercadorias? Se o corpo está livre da
coação física, os instrumentos do biopoder precisam estar completamente associados a
este corpo livre de uma forma sutil para que ele realize os movimentos do domínio sem
a necessidade de se recorrer ao castigo físico.
É interessante notar que em todos os Regulamentos da Instrução Pública
Primária, ao lado das regras que expressavam os deveres e as proibições aos alunos
figurava a determinação explicita de ser “absolutamente proibido o castigo corporal, ou
qualquer outro que possa abater o brio à criança”.
Além de livrar o corpo do castigo físico, a disciplina não deseja “abater o brio da
criança”. O sentimento da dignidade não deveria ser destruído. Pois na verdade o que se
desejava era que esse sentimento fosse utilizado a favor, como um suporte para o
próprio poder:
A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis. A disciplina aumenta as forças do corpo em termos econômicos de utilidade e diminui essas mesmas forças em termos políticos de obediência. Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma aptidão, uma capacidade que ela procura aumentar e inverte por outro lado a energia a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. (FOUCAULT, 1987, p. 119)
Essa sistemática de controle do corpo a partir do estabelecimento de um
verdadeiro código de posturas e comportamentos está relacionada com a afirmação do
racismo na medida em que o corpo que se desejava controlar era o corpo negro. Além
disso, os Regulamentos tem o sentido estrito de regularizar uma situação pré-
estabelecida. Então eles expressariam as formas de aplicação prática dos procedimentos
de “civilização” dessas crianças.
Como o pressuposto dessa “civilização” é buscado nos arbitrários culturais
europeus, os Regulamentos caminham no sentido estrito de observar a aplicação
cotidiana desses arbitrários, constituindo-se assim em normalizadores da cultura
imposta. O controle dos corpos das crianças pela disciplina moral a elas aplicada era
completado com a adoção de uma série de medidas de ordem médica, higiênica e
sanitária que iriam sendo implantadas no decorrer dos primeiros anos da República.
150
De acordo com Santos (1985), as políticas públicas de saúde desempenharam
um papel de extrema relevância na discussão sobre a construção da nacionalidade
durante as primeiras décadas do século XX. Ele lembra que por volta de 1915 apenas os
grandes centros dos Estados mais importantes desenvolviam alguma espécie de política
voltada para a saúde pública, sendo que o restante do país permanecia esquecido. Essa
situação começaria a mudar radicalmente a partir de 1916:
É o ano da publicação, pelo Instituto Oswaldo Cruz, dos cadernos de viagem dos médicos Artur Neiva e Belissário Pena através de vários estados do nordeste e Goiás. A missão do Instituto, realizada em 1912, denunciou as péssimas condições de vida no interior do país. (SANTOS, 1985, p. 7)
Dois anos mais tarde, o médico Belissário Pena publicaria “Saneamento do
Brasil”, onde, de acordo com Santos, a questão sanitária aparece como um tema ainda
mais politizado do que no relatório anterior. Essa nova abordagem demonstrava que o
Brasil estava sendo assolado por diversas doenças como amarelão, doença de chagas,
malária, tuberculose, hanseníase e tantas outras.
Como a questão da composição racial do povo brasileiro ocupava certa
centralidade nas discussões entre os intelectuais, logo a questão de saúde pública veio a
ser concebida em termos raciais, inspirando esses mesmos pesquisadores a sugerir
medidas preventivas e curativas de cunho eugênico, higiênico, ou de “saneamento da
raça”. Logo esse pensamento iria se espalhar por toda a sociedade e pelo país afora,
conforme observa Schwarcz (1993):
Impedir a proliferação do mal e o surgimento de novos surtos era, por outro lado, função dos higienistas e saneadores, que, atuando na comunidade, procuravam educar e prevenir. Papéis apenas formalmente diversos, na maioria das vezes ocupados pelas mesmas personagens, coube aos pesquisadores, aos higienistas e saneadores a difícil empresa de diagnosticar e medicar o Brasil, esse país tão doente. (SCHWARCZ, 1993, pp. 223-224)
Essa preocupação em livrar o país das doenças existentes e impedir a
proliferação de novos casos irá aumentar gradativamente a partir do final do século
XIX, quando profissionais da medicina, sanitaristas e intelectuais do Rio de Janeiro e
São Paulo, principalmente, deslocam o eixo da discussão racial para o da saúde pública.
151
Para muitos não se tratava mais de discutir as raças e a composição racial do
povo, mas de investigar quais doenças e males estavam impedindo a formação de uma
“raça saudável”. Essas preocupações eram justificadas pela triste realidade, já que de
fato as doenças assolavam a população:
Em primeiro lugar no índice de mortalidade constava a tuberculose – a peste branca -, responsável por 15% das mortes no Rio de Janeiro. Seguiam-se, em ordem de grandeza, os casos de febre amarela, varíola, malária, cólera, beribéri, febre tifóide, sarampo, coqueluche, peste, lepra, escarlatina, os quais, todos juntos, representavam 42% do total de mortes registradas na cidade. (SCHWARCZ, 1994, p. 224)
Apesar dos números acima se referirem apenas à cidade do Rio de Janeiro, na
época Capital da República, no restante do país a situação não era diversa e em alguns
casos até pior, conforme mostrariam os relatórios médicos publicados a partir de 1916.
É por isso que nos anos iniciais da República houve uma preocupação muito grande por
parte de intelectuais e governantes em “sanear o Brasil”. A higiene pública e o
saneamento passaram à condição de política de Estado:
Os alvos são inúmeros: as igrejas, as escolas, os portos, os cemitérios, os locais públicos, as casas de moradia. Os hábitos deveriam ser moralizados, orientando-se os costumes alimentares e higiênicos, controlando-se o desvio e evitando-se a “degeneração”. (SCHWARCZ, 1994, p. 226)
A partir dessa intervenção sobre a sociedade, considerada doente, e as diversas
maneiras de se obter a cura, que os profissionais encarregados do saneamento, da
prevenção e da higiene pública passam a desfrutar de um enorme poder de regular as
relações sociais. Além disso, as escolas públicas paulatinamente passaram a ser
consideradas como o alvo preferencial desses saneadores da sociedade, uma vez que
nelas estava concentrado um grande volume de pessoas, crianças na sua imensa maioria,
sobre quem recairia a maior parte desses cuidados médicos, sanitários e higiênicos.
Segundo Pinho (2007), essa nova orientação governamental em se dedicar aos
cuidados médicos, higiênicos e sanitários da população enfrentou muitas dificuldades
para ser implantada em Mato Grosso. Ainda assim, “Nada que se compare, é claro, ao
episódio de repúdio à vacinação no Rio de Janeiro, no início do século XX, que ficou
conhecido como Revolta da Vacina”. (Pinho, 2007, p. 92). Ela explica que essas
152
dificuldades, muitas vezes eram superadas apenas com o auxílio de força policial, mas
que as doenças realmente assolavam a Capital:
O leque de endemias existentes em Cuiabá, no período compreendido entre 1890 e 1929, que as autoridades pretendiam eliminar, era consideravelmente variado: a temida varíola, a sífilis, a febre amarela, a tuberculose, a ancilostomíase, a gripe, entre outras. (PINHO, 2007, p. 94)
Além dessas doenças que assolavam a população, principalmente a mais pobre e
desprotegida – e por isso crianças negras e pardas -, do ponto de vista sanitário a Capital
era, de acordo com a autora, “um caldeirão de problemas”:
(...) principalmente se considerarmos a teoria dos miasmas, tão em voga à época. Nos relatórios produzidos pela Inspetoria de Higiene, as críticas versam, em sua maioria, sobre o grande número de buracos de tamanhos variados (...) e ainda sobre a recusa de parte da população em seguir o conselho do Inspetor de desinfetar as “águas servidas e putrefatas antes de terem saída para a rua”. (PINHO, 2007, p. 95)
Além disso, ela lembra as conexões entre as políticas de saúde e as instituições
educacionais, sendo estas sempre eleitas como alvos preferenciais da ação saneadora e
higienizadora:
Para proceder à vacinação, o saber médico agenciará outros dispositivos, sobretudo aqueles que mantêm uma relação mais estreita com determinados setores da população, como é o caso das escolas. A matrícula dos alunos na capital de Mato Grosso passa a ser condicionada à emissão de atestados assinados pelos professores informando se o aluno foi ou não vacinado e se era ou não portador de moléstia contagiosa. (PINHO, 2007, p. 98)
De fato, em Mato Grosso, esses idéias higienistas e saneadoras foram expressos
nos Regulamentos da Instrução Pública Primária de 1891, 1896, 1910 e 1927. Esses
Regulamentos continham artigos que promulgavam explicitamente a inadmissão nas
escolas públicas de alunos ou de professores que possuíssem alguma moléstia
contagiosa.
O Regulamento de 1891, por exemplo, dizia no Artigo 41º que a admissão nas
escolas públicas exigia ser vacinado e não sofrer de moléstia contagiosa ou repugnante.
(Mato Grosso, 1891, p. 29). No caso dos alunos a comprovação da situação saudável
deveria ser feita pelo pai, tutor ou protetor, que além de declarar a criança saudável,
deveria também declarar a sua naturalidade e filiação.
153
Para aqueles que desejassem concorrer aos cargos do magistério, além de
comprovar a maioridade, a isenção de crimes e a moralidade, também deviam provar
“Robustez necessária, provada por inspeção de saúde” (Mato Grosso, 1891, p. 29). Para
as mulheres, a comprovação implicava ainda: “Artigo 48º – As senhoras deverão
também exibir: se forem casadas, a certidão de casamento; se viúvas, a de óbito do
marido; se divorciadas, a sentença que julgou a separação”. (Mato Grosso, 1891, p. 29)
Aqui, fica implícito que as mulheres que vivessem em uma situação de
concubinato não poderiam exercer o magistério, pois o Regulamento exige
expressamente a apresentação da certidão de casamento. Porém não se pode afirmar
com toda segurança que este era realmente um impedimento.
Mais adiante, no Artigo 80º, o Regulamento isenta da obrigatoriedade do ensino
os menores de 7 anos e maiores de 14, os que provassem habilitação nas matérias do
ensino primário, os que recebessem instrução em casa de pais, tutores ou protetores, os
que fossem arrimo de família e os que tivessem “impedimento físico ou moral”. (Mato
Grosso, 1891, p. 32)
O Regulamento de 1896 praticamente repete as mesmas recomendações. Além
de figurar que a instrução não faria “distinção de “classes nem de origem”, impedia a
frequencia nas escolas de todos aqueles que “têm moléstia ou defeito físico que os inibe
de freqüentar a escola”. (Mato Grosso, 1896, p. 66)
Para os candidatos ao magistério, também permaneciam os impedimentos
anteriores, agora formulados da seguinte maneira: “Artigo 203º - Os candidatos, para
serem admitidos a inscrição deverão provar: 1º Maioridade legal, 2º Saúde regular, 3º
Vacinação, 4º Boa conduta moral e civil”. (Mato Grosso, 1896, p. 90). Em 1910 as
recomendações são novamente repetidas para os alunos e aprimoradas para os
pretendentes ao cargo de professor ou professora:
Art. 129º – Não poderão propor-se ao magistério público: § 1º – O que, em virtude de sentença por crime deprimente, houver perdido emprego em sentença federal ou estadual. § 2º – O que, por sentença em processo disciplinar, haja perdido cadeira do ensino público. § 3º – O que tiver sofrido condenação por crime contra a moralidade e bons costumes. § 4º – O que houver sido condenado por crime de homicídio, estelionato, roubo, bancarrota, furto, peculato ou falsidade. § 5º – O que sofrer moléstia ou
154
defeito físico que o inabilite para o magistério. (MATO GROSSO, 1910, p. 140)
O Regulamento de 1927 mostra uma influencia ainda maior das idéias e práticas
sanitaristas e higiênicas. Os impedimentos dos Regulamentos anteriores são mantidos e
alguns são aprimorados. Ao contrário dos anteriores, ele é mais específico e começa
abordando, na “Seção IV”, os prédios escolares. Isso demonstra que não bastava cuidar
das crianças, mas preparar o ambiente de acordo com as normas higiênicas e sanitárias.
O artigo 85 (Mato Grosso, 1927, p. 177) diz o que o governo “dará o maior
desenvolvimento à construção dos prédios escolares”. Para isso seriam adotadas as
seguintes medidas:
• Reforma dos próprios estaduais escolares, a fim de melhorar as suas
condições higiênico-pedagógicas;
• Construção de novos edifícios;
• Concessão, a título de auxílio, contribuições pecuniárias às populações
rurais e aos particulares que se propuserem a construir prédios escolares.
Além disso, esses novos prédios seriam construídos atendendo as condições de
capacidade, situação em relação ao solo e à vizinhança, ventilação, iluminação e
instalações sanitárias.
Outra novidade e que assinala a autoridade médica se sobrepondo à pedagógica
é que o Regulamento introduz a figura de um inspetor médico que poderia condenar
prédios escolares se “os julgar nocivos à saúde dos alunos e, em tais casos, a escola será
transferida, suprimida ou temporariamente fechada, para se proceder aos reparos
julgados necessários”.
Mais adiante, o Regulamento de 1927 continua tratando dos materiais,
mobiliários e livros escolares. De acordo com o artigo 88, os materiais e livros escolares
só poderiam ser adotados pelas escolas públicas do Estado após ser aprovados por uma
155
comissão composta pelo diretor geral do ensino, pelos inspetores gerais e por um
inspetor médico.
Esses livros seriam examinados do ponto de vista do estilo, do assunto e dos
materiais da obra (impressão, formato, qualidade e cor do papel). No exame do
mobiliário destinado aos alunos essa comissão observaria: a resistência, a estética, a
facilidade de asseio e as comodidades e proporções do material em relação às
proporções médias dos alunos.
Uma novidade importante, que deve ter sido introduzida para facilitar a
fiscalização com relação ao estado de saúde dos alunos é que este não mais dependeria
da comprovação assinada pelo pai ou responsável legal. Os pais continuariam a
comparecer para solicitar a matrícula, mas deveriam, pelo Regulamento, levar em sua
companhia os filhos que desejasse matricular.
A fiscalização seria realizada pelos funcionários incumbidos das matrículas, aos
quais seria lícito exigirem a certidão de idade ou o atestado médico, “quando o simples
aspecto do matriculando lhe inspire dúvidas acerca da sua idade ou das suas condições
de saúde”. (Mato Grosso, 1927, p. 191).
Além de todas essas preocupações, o Regulamento de 1927 inova ao criar a
“Assistência médico-escolar”. Embora não possa afirmar que tal assistência tenha sido
efetivada da forma como foi idealizada, é também uma indicação de que as idéias e
práticas de ordem das elites mato-grossenses alcançavam os Regulamentos escolares.
Essa assistência médico-escolar deveria, de acordo com o Regulamento, ser
realizada por um inspetor médico que seria livremente nomeado pelo Presidente do
Estado e incumbido de:
a) Vacinar e revacinar os professores, alunos e empregados das escolas;
b) Examinar se os prédios onde funcionam escolas públicas e particulares
satisfazem as condições higiênicas necessárias;
156
c) Tratar gratuitamente das principais doenças endêmicas, e das moléstias
de olhos, nariz, garganta e ouvido, os alunos das escolas públicas;
d) Aplicar, nas casas de ensino público e particular, as medidas profiláticas
que julgar necessárias;
e) Fazer parte da comissão do júri verificador da incapacidade para o
ensino;
f) Apresentar ao governo do Estado, por intermédio da Diretoria Geral da
Instrução Pública, em 31 de dezembro, um relatório dos trabalhos que tiver realizado no
ano anterior;
g) Registrar, em fichas especiais, os exames médicos procedidos nos alunos
dos estabelecimentos de ensino;
h) Transportar-se, quando necessário for, e por determinação do governo, de
uma localidade para outra, todas as vezes que o serviço sanitário das escolas assim o
exigir. (Mato Grosso, 1927, p. 206)
Esse conjunto de medidas que visavam o saneamento, a moralização e a
sanidade das instituições educacionais deve ser vislumbrado na perspectiva de um
movimento maior que envolvia toda a sociedade, passando inclusive pela reconstrução e
remodelação das grandes cidades assim como a criação de novas cidades totalmente
planejadas.
A reforma do espaço escolar e a adequação dos alunos, professores e
funcionários às normas de higiene, sanidade e moral faziam parte de uma reforma
maior, da reforma da própria sociedade que devia adequar-se aos pressupostos do
progresso e do desenvolvimento que se almeja atingir.
Ramos (2007) argumenta que as teorias que moldaram o espaço urbano, assim
como as metodologias que o estudaram partem de um enfoque de análise e de
interpretação de espaços projetados e configurados por grupos elitistas da sociedade. Os
157
espaços urbanos, resultados das concepções ocidentais de pensamento, possuem uma
estruturação, configuração e imagem de urbanização que são impostas pelas classes
dominantes.
Esta urbanização, no entanto, não se concilia com a organização dos “espaços
negros”, que estrutura tanto pela forma particular determinada pela cultura desta
população, como pela condição subalterna que a população negra é submetida ao longo
de séculos. (Ramos, 2007, p. 98)
A autora fala especificamente dos espaços negros nas regiões centrais das
grandes cidades que foram sendo desmantelados pelas reformas urbanas através das
quais os conceitos de higiene, segurança, saúde e urbanismo europeu foram implantados
a partir do final do século XIX.
Diante de novos processos produtivos em evidência como a industrialização, da eminência da abolição da escravatura e da imigração européia, as reformas urbanísticas foram introduzidas concomitantemente à formulação de um projeto nacional com objetivo de preparar o país para as idéias que surgiam com os novos modelos como o positivismo e o liberalismo, frente aos tradicionais padrões do catolicismo e da monarquia, dando suporte ao novo sistema político, a República. (RAMOS, 2007, pp. 106-107)
Não há como dissociar as reformas urbanísticas das reformas educacionais, uma
vez que estas também buscavam adequar o campo educacional aos mesmos propósitos.
A Escola era parte integrante da cidade e, sendo assim, também deveria adequar-se de
acordo com os mesmos pressupostos.
Este momento coincide com as discussões no Brasil das teorias raciais que justificavam a superioridade dos povos europeus sobre os demais povos e que, dentre outras conseqüências políticas, sociais e ideológicas, culminaram em medidas práticas de caráter médico-eugênico nas cidades. (RAMOS, 2007, p. 107)
Nesse sentido, as reformas educacionais realizadas pela República podem ser
analisadas tanto do ponto de vista do que significavam para o campo especificamente
educacional quanto para a simbologia da cidade como um todo e do país por extensão.
Coube aos educadores brasileiros, nesse momento, grande responsabilidade pela discussão do tema da modernidade e dos projetos políticos que lhe diziam respeito, a partir de certa visão de sociedade e de povo brasileiros. Ao
158
trabalhar nos maiores e mais importantes centros urbanos do país, liderando as famosas reformas de instrução publica, eles criaram não só a possibilidade de estruturar um campo de identificação dos educadores, mas, sobretudo, interferiram na ordenação simbólica das cidades, armando novas representações do urbano e do seu papel profissional dentro dele. (NUNES, 1994, p. 180)
Faria Filho (2003, p. 147) analisa a concepção e construção dos Grupos
Escolares como “verdadeiros templos do saber”, pois estas construções eram erguidas
para encarnar o espírito do moderno, da civilização, do progresso e do desenvolvimento.
Se pelo aspecto puramente urbanístico tinham esse significado simbólico, no conjunto
das disciplinas e na forma como estas seriam ensinadas também encarnam o espírito da
época, pois:
(...) punham em circulação o modelo definitivo da educação do século XIX: o das escolas seriadas. Apresentadas como prática e representação que permitiam aos republicanos romper com o passado imperial, os grupos escolares projetavam um futuro que na República o povo, reconciliado com a nação, plasmaria uma pátria ordeira e progressista. (FARIA FILHO, 2003, p. 147)
Encarregada de promover a homogeneização e a integração necessárias a essa
pátria “ordeira e progressista”. A Escola estava perfeitamente integrada á própria
cidade: tanto agia no sentido de civilizar, de limpar, higienizar, sanear e branquear sua
clientela, quanto contribuía para a higienização geral da sociedade através da sua ação
educativa ou do seu exemplo arquitetônico e urbanístico.
159
5 - CONSIDERACOES FINAIS
Embora sem encontrar uma grande aceitação nos meios acadêmicos, há no
Brasil uma corrente de opinião que procura sedimentar a idéia da inexistência de
conflitos raciais. Para estes pensadores, pesquisadores e estudiosos, nosso principal
problema como nação é a desigualdade econômica e social, já que estes aspectos não
podem ser ignorados por quem quer que seja.
Afirma-se que brancos pobres e negros seriam igualmente discriminados, teriam
dificuldades em acessar os serviços básicos de saúde e educação; perceberiam os
menores salários e estariam relegados a cumprir as funções relacionadas com o trabalho
braçal; fatores estes que implicariam na manutenção das desigualdades. Desse ponto de
vista, tais discriminações seriam, sobretudo econômicas e sociais, não decorrendo de
qualquer fundamento racial.
No limite, estes pesquisadores afirmam que os negros seriam discriminados por
serem historicamente os mais pobres e não por que a cor da pele os identificaria com os
que estiveram marcados pelo estigma do cativeiro; sendo o racismo, portanto, um
problema eventual e episódico, que não contribuiria para a desigualdade manifesta entre
brancos e negros, desigualdade esta que repetidamente tem sido constatada por
sucessivas pesquisas.
Por outro lado, exatamente com base nas pesquisas econômicas e sociais
realizadas a partir da década de 1980, por instituições como o Pnud – Programa das
Nações Unidas Para o Desenvolvimento, Dieese, Instituto Ethos e Ipea – Instituto de
Pesquisas Econômicas Aplicadas11, revelam a existência de várias formas de racismo
11 Relatório de Desenvolvimento Humano: Racismo, Pobreza e Violência. Brasília: PNUD Brasil – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2005. As Políticas Públicas e a Desigualdade Social no Brasil: 120 anos após a abolição/ Mario Theodoro (org.)Luciana Jaccoud, Rafael Osório, Sergei Soares. Brasília: Ipea, 2008. Escolaridade e Trabalho: desafios para a população negra nos mercados de trabalho metropolitanos. Estudos e Pesquisas, Ano 3, n. 37, São Paulo: Dieese, 2007. Desigualdades Raciais no Brasil: um balanço da intervenção governamental. Jaccoud, Luciana; Beghin, Nathalie. Brasília: Ipea, 2002. Desigualdades Raciais, racismo e políticas públicas: 120 anos após a abolição. Brasília: Ipea, 2008. Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e Suas Ações Afirmativas. São Paulo: Instituto Ethos, 2006.
160
engendrando uma abissal desigualdade econômica, política e social entre brancos e
negros.
As pesquisas realizadas pelas instituições acima demonstram que uma das
principais formas de racismo presente na sociedade brasileira refere-se às manifestações
ocorridas no interior das escolas e universidades, ou então diretamente relacionadas com
o processo de ensino-aprendizagem.
O racismo institucional presente nas hierarquias educacionais cumprem aqui um
duplo papel. Por um lado, transformam as instituições de pesquisa, universidades,
museus e escolas em locais regidos por normas e procedimentos epistemológicos
originados na noção de superioridade racial, contribuindo assim para a sedimentação e
disseminação das ideologias e culturas que justificam e se articulam com todas as
formas de dominação social. Por outro lado, essas instituições são responsáveis pela
reprodução social das desigualdades, pois nelas são reproduzidos os grupos e classes
que formam a sociedade.
Sucessivas pesquisas têm evidenciado que as populações negras sofrem um
duplo processo de discriminação em termos de Educação: primeiro porque as
estatísticas comprovam que o índice de analfabetismo entre os negros é muito superior
ao dos brancos, sendo o número de anos de estudos entre os negros também menor do
que da população branca.
Desde que a maioria absoluta das escolas e universidades despreza conteúdos
relacionados à história e à cultura da África e do negro brasileiro, eles são submetidos a
um sistema educacional preparado para negar sua história e cultura e assimilá-los à
sociedade branca. A partir do final dos anos 1980, porém, têm-se multiplicado a
quantidade de pesquisas realizadas por universidades brasileiras com foco no processo
histórico da população negra no Brasil.
Muitas dessas pesquisas se referem especificamente aos processos educacionais
pelos quais passam os negros e negras dentro das instituições de ensino. Embora nunca
Dossiê Assimetrias Raciais no Brasil. Belo Horizonte: Rede Feminista de Saúde, 2003.
161
tivesse acreditado ou professado um conhecimento “militante”, do tipo que se constitui
em uma espécie de “fundamentalismo”, sempre duvidei de todas as pretensões dos que
tentam “vender” a imagem de uma ciência neutra e objetiva.
A própria expressão “Ciências Humanas”, me parecia desprovida de propósito,
pois pessoalmente nunca fui capaz de conceber uma Ciência que não decorresse de uma
prática e uma teoria humana. O que pretendi demonstrar com a pesquisa que resultou
nesta Dissertação é que a raça se constitui em uma realidade social e histórica. Vista a
minha pele.
Ainda que do ponto de vista biológico não existam motivos para afirmar que a
humanidade esteja dividida em “raças”, a experiência histórica dos povos negros da
África e do mundo tem demonstrado que certos atributos da aparência dos indivíduos
são sistemática e socialmente percebidos como diferenças que justificam a implantação,
manutenção e continuidade das desigualdades econômicas, políticas e sociais.
O racismo, em qualquer das suas formas, faz com que os racistas realmente
vivam em uma condição social e econômica superior aos grupos humanos por eles
dominados e explorados. Por outro lado e ao mesmo tempo, esse sistema de idéias e
hierarquias que constitui o racismo não poderia operar se a maioria dos considerados
inferiores, não vivesse nem agisse como se de fato inferiores fossem.
Por mais terrível que isso possa parecer, nenhuma forma de dominação poderia
ter solução de continuidade não fosse a capacidade do sistema de domínio em recrutar
entre os dominados as bases e os fundamentos do próprio sistema de dominação. Não
pretendo com isso afirma que, no caso do Brasil, os negros sejam responsáveis pela
existência do racismo que os domina e explora.
Pretendi com essa pesquisa demonstrar que a escola pública primária em Mato
Grosso foi criada a partir de concepções racistas que negaram aos negros, pardos e
pobres a condição que nos caracteriza como seres humanos, que é a capacidade de
produzir cultura, a capacidade de imaginar e de sonhar. Ao submeter negros, pardos e
pobres a instituições educacionais construídas a partir da negação da sua cultura e do
162
seu modo de vida, o Estado contribui para o estabelecimento de uma situação da qual a
rigor somente agora começamos a sair.
Esta Dissertação de Mestrado se insere no esforço coletivo que tem sido
realizado por pesquisadores comprometidos com a verdade histórica, por movimentos
negros de todo o Brasil e do mundo e por todos aqueles que acreditam que as
instituições de ensino superior deste país necessitam resgatar a dívida histórica que
possuem com o povo negro brasileiro.
Por outro lado, não tive nem tenho a pretensão de originar um trabalho que
respondesse de forma definitiva os questionamentos propostos. Quando muito, pretendi
colocar a questão, chamar a atenção para uma dimensão da história que até o momento
não tem merecido a devida atenção da Academia. Até aqui tenho vindo “sobre os
ombros de gigantes”. Outros depois de mim farão mais. E melhor.
De acordo com Boaventura de Sousa Santos, “Todo conhecimento é
autoconhecimento” (Santos, 2008, p. 80). Sendo assim, considero que a perspectiva
teórico-metodológica usada para compor esta Dissertação seja um produto da própria
trajetória da pesquisa permeada por erros e acertos, mais erros que propriamente de
acertos.
Essa trajetória guarda também um sentido de persistência em descobrir um
referencial de análise que pudesse ser considerado adequado ao desvelamento das
múltiplas conexões entre as mudanças ocorridas no Brasil e no mundo a partir da
segunda metade do século XIX e os processos de escolarização de crianças negras,
pardas e pobres no mesmo período.
Isto porque entendo que a pesquisa cientifica não se constitui apenas na análise
de dados empíricos, mas também na busca por referenciais teóricos e metodológicos
que revelem sempre novas nuances e permitam leituras outras sobre fenômenos já
estudados anteriormente. Iniciei essa trajetória com um referencial fundado – como
sempre frisou meu Orientador, no “Marxismo ortodoxo”, já que as raízes da minha
163
formação acadêmica e militante estão ai localizadas. A esta altura, também procurei
incorporar os conceitos de Mészáros, Gramsci e Althusser12.
Essa linha inicialmente adotada logo demonstrou ser inadequada, uma vez que
tangenciava meu esforço em abordar os questionamentos propostos de uma forma
original ou ainda mostrava ser anacrônica. Graças às inúmeras discussões realizadas no
âmbito do GEM – Grupo de Pesquisa em História da Educação e Memória pude
aproveitar as contribuições de alunos e professores.
Bourdieu (2005) e Foucault (1987) foram autores então estudados e com base
neles cheguei a desenvolver uma linha de análise que culminou em algo próximo a um
“ensaio de Dissertação”. Considero o legado destes dois autores como sendo muito
importante para se compreender as estruturas e as relações de poder, bem como a
cultura e as formas institucionalizadas como esta é produzida, reproduzida e
transmitida. Nesse sentido, procurei compatibilizar os conceitos desses dois autores com
os de Colonialidade, Racismo Epistemológico e Eurocentrismo.
Foi sob impacto das idéias dos dois autores acima que participei do XI Fábrica
de Idéias – Curso Avançado em Estudos Étnicos e Raciais. 13 Durante todo mês de
agosto de 2008 integrei um grupo de pesquisadores bastante heterogêneo em sua
composição racial, social, teórica e regional. Ali tivemos um contato profundo com o
chamado “Pensamento crítico de fronteira” e com os conceitos que uso para
desenvolver esta Dissertação.
Não tenho a pretensão de estar apresentando uma contribuição única ou original
ao debate atualmente realizado no âmbito do GEM ou do Programa de Pós-Graduação
12 Mészáros, István. Para Além do Capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002; Gramsci, Antonio. Los intelectuales y la organizacion de la cultura. México: Juan Pablo Editor, 1975; Althusser, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1985. 13 Promovido pelo Programa Fábrica de Idéias da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, o curso visa contribuir para o treinamento de pesquisadores que estudam processos de racialização e formação de identidades étnicas. Ênfase especial é dada às relações branco-negro e à produção de culturas negras na América Latina, África e diáspora africana. O Curso adota uma perspectiva comparativa, explorando vários aspectos das relações raciais a partir do contato com a produção intelectual brasileira e internacional, e promove o intercâmbio de estudantes e professores de diversas regiões do Brasil e de outros países, sobretudo no eixo Sul-Sul.
164
em Educação. No entanto, entendo que os resultados aqui apresentados podem ser
vistos como um possível caminho a ser seguido por outros pesquisadores.
Como eu havia pesquisado esses documentos a partir do referencial teórico-
metodológico estabelecido no início da trajetória, a busca mostrou-se infrutífera: a
maior parte dos documentos educacionais do período não fazem menção à raça ou cor
das crianças. Foi somente a partir da mudança do eixo teórico que eu pude perceber o
discurso racial nas entrelinhas desse silêncio documental.
Como todo documento escrito é histórica e socialmente produzido, muitas vezes
os interesses de classes e grupos produzem documentos que tendem a silenciar sobre a
condição dos vencidos e explorados. Nesse sentido, muitas das conclusões a que
cheguei com esta pesquisa não decorrem necessariamente do que consta nos
documentos consultados, mas daquilo que eles não dizem sobre fenômenos que são
“públicos e notórios”.
Convém lembrar Foucault, para quem os documentos e as fontes históricas não
são papéis mortos, sem expressão nem vida. Ao contrário, são a própria trama das
relações de poder: a criação e preservação de qualquer documento pressupõe um
interesse social nessa conservação.
Sendo assim, a criação, preservação ou destruição é sempre uma escolha
determinada pelo jogo de forças dessas relações de poder. Enfim, qualquer um que
queira se aventurar pelos labirintos mofados dos arquivos públicos e particulares terá a
nítida sensação de que nenhuma pesquisa científica pode ser realizada senão
contrariando ou confirmando as relações de poder estabelecidas.
Os elementos que explicitam a discriminação, o preconceito e o racismo no
interior de instituições de instrução pública não estão necessariamente relacionados com
qualquer forma de discriminação racial oficial. É sabido que o Brasil foi muito eficiente
em construir um dos mais sofisticados sistemas racistas de todo o mundo.
A ausência de um regime de apartheid racial convive lado a lado com o
apartheid econômico, político e social: sucessivas pesquisas tem indicado que negros e
165
brancos vivem lado a lado em países opostos. A cor é um indicativo de raça e esta uma
forma de enquadrar o indivíduo nas múltiplas hierarquias que compõem o nosso
“sistema-mundo”.
Principalmente a partir da proclamação da República as políticas educacionais e
a composição das disciplinas passaram a funcionar de acordo com as regras do “Estado
de Direito”, que pressupõe a igualdade jurídica de todos e, portanto, o impedimento
legal de qualquer tipo de discriminação oficial.
Ao mesmo tempo, a Educação foi concebida como um dispositivo que iria
permitir “civilizar” o país de acordo com as concepções culturais européias. E a Escola
foi eleita como a instituição que levaria a cabo essa tarefa. Por isso, ao lado do silêncio
constrangedor dos documentos oficiais estão as práticas de cunho racista e
discriminatório que enquadraram crianças negras, pardas e pobres em um universo
cultural que em última instância significou a sua assimilação pela cultura dos
dominadores.
De acordo com DaMatta (1987, p. 69), a ideologia racista surgida no bojo do
complexo processo que foi a transição do século XIX para o XX, além de fornecer a
coesão social necessária ao estabelecimento de um projeto de nação, também se
constituiu numa poderosa força cultural que permitiu pensar o país, integrar idealmente
a sociedade e individualizar a cultura, formando ao longo dos anos um sistema
totalizado de idéias que interpenetra a maioria dos domínios explicativos da cultura.
Diga-se de passagem, que essa ideologia racista não teria conseguido alcançar
condições ótimas não fosse sua capacidade de transformar-se em instrumento nas mãos
dos educadores e reformadores da Educação que foram os construtores do moderno
sistema nacional de ensino básico.
Nesse sentido, o que procurei demonstrar é que, embora crianças negras tenham
estado presentes nas instituições públicas destinadas à instrução primária, sua presença
não é denotada nos documentos relativos ao ensino primário. Esse silêncio sobre a cor
(ou raça) dos alunos tentou ser apresentado como um indicativo da existência do
166
racismo na sua forma epistemológica, que considero como a forma invisível de racismo
presente no processo de produção do conhecimento.
Quijano (2005) fala que a Colonialidade do poder colocou-nos em um labirinto
onde o Minotauro é sempre visível, mas sem nenhuma Ariadne para nos mostrar a
saída. Mas quero fechar com trechos de uma música composta pelo único filósofo
brasileiro digno de nota: “Reformulation, rearrange the game you're in Let us start from
the begin with confidence you'll win that's the reason you were born”14.
Certamente que ninguém irá nos mostrar qualquer saída. Esta deverá ser
construída a partir das nossas experiências, dos nossos erros e dos nossos acertos. O
começo tem de ser então uma nova visão da vida e do mundo, uma nova perspectiva
epistemológica de acordo com a qual todo começo já é uma vitória.
14 “Reformulação, reorganize o jogo no qual você está, comece do princípio com a confiança de que você vai vencer, pois esta é a razão pela qual você nasceu”. – How Coud I Know, Raul Seixas.
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