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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO - PPCIR A INTRODUÇÃO DA DEVOÇÃO A SANTO ANTÔNIO EM JUIZ DE FORA: DO MORRO DA BOIADA A VILA DO PARAIBUNA (1741-1850) Dissertação apresentada ao programa de Pós- Graduação em Ciência da Religião, como requisito parcial para à obtenção do título de Mestre em Ciência da Religião. Por: ANTÔNIO CARLOS LEMOS FERREIRA. Orientador: Prof° Dr. Volney José Berkenbrock. Juiz de Fora 2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO -

PPCIR

A INTRODUÇÃO DA DEVOÇÃO A SANTO ANTÔNIO EM JUIZ DE

FORA: DO MORRO DA BOIADA A VILA DO PARAIBUNA

(1741-1850)

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, como requisito parcial para à obtenção do título de Mestre em Ciência da Religião. Por: ANTÔNIO CARLOS LEMOS FERREIRA. Orientador: Prof° Dr. Volney José Berkenbrock.

Juiz de Fora

2006

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Dissertação defendida e aprovada em 30 de agosto de 2006 pela banca constituída por:

Presidente: Prof° Dr. Faustino Teixeira Universidade Federal de Juiz de Fora

Titular: Profª Dr. Renata de Castro Menezes Universidade Federal do Rio de Janeiro - Museu Nacional

Orientador: Prof° Dr. Volney José Berkenbrock Universidade Federal de Juiz de Fora

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Ao Deus desconhecido...

Para o Luã e a Isis.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a minha família. Especialmente sou grato à minha mulher, companheira,

guerreira, que viveu junto comigo as demoras deste processo. Pela paciência e

solidariedade nos momentos mais tênues, e pela presença sempre firme neles todos.

Agradeço ao Departamento de Ciências da Religião, na pessoa do Professor

Faustino Teixeira, pelo incentivo manifesto, desde quando minhas aspirações eram ainda

embrionárias, tendo participado da banca de qualificação, apresentando valiosas

contribuições.

Agradeço à professora Vitória Peres, in memoriam, pelo rigor acadêmico com que

nos norteou, dissipando as evasivas da trajetória.

Agradeço à professora Renata Menezes, por sua contribuição acadêmica, que

dinamizou minha compreensão a respeito do Santo Antônio e da religiosidade urbana.

Também lhe sou grato, por aceitar meu convite para avaliar este texto.

Sou especialmente grato ao professor Volney José Berkembrok, que aceitou o

desafio de orientar esta pesquisa, sobre seu confrade ilustre (Santo Antônio), quando de sua

chegada nesta querida cidade de Juiz de Fora.

Ao Professor Henrique pelos toques, as dicas, informações, opiniões e fontes

apresentadas, em relação a história de Juiz de Fora. A Professora Elione Guimarães. Jovem

doutora, por todo o apoio logístico, e pelas palavras de incentivo, coragem e esperança, que

retira com simplicidade, do seu manancial de doçura.

Ao Marco Geógrafo. Ouvido sempre disponível. Referência atual para quem quiser

ir ao tema Caminho Novo na região.

Ao Vanderlei Tomaz, 'tropeiro High Tech' do Caminho Novo, pela gentileza e

disponibilidade. Também pelo material inédito de Biancoville.

Ao "Biel" que me falou pela primeira vez sobre o Santo Fujão de Juiz de Fora.

Agradeço à Escola Municipal Santa Cândida e a Escola Municipal Dante Jaime

Brochado, com as quais dividi esta pesquisa de mestrado.

Aos alunos queridos, pelos olhinhos faiscantes quando lhes apresentamos o tema.

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Ao Bairro Santo Antônio, bairro de canto, lugar querido, Morro da Boiada, onde

nasceu Juiz de Fora. Ali pulsa a alegria de ter sido o ‘primeiro sorriso da cidade’ e a dor de

uma 'imagem' perdida. Meu carinho e dedicação.

Ao Professor Paulo Quiossa e a Professora Sônia pela solicitude, disponibilidade,

gentileza e apoio em todas as horas.

Ao Professor Adson e a colega Cristiane, pelos primeiros passos no departamento.

A Professora Mabel Salgado, que me abriu os arquivos do Centro de Memória da

Igreja Católica em Juiz de Fora, o que ajudou a dar corpo ao texto.

Ao Padre Viana (Pároco da Catedral) pela solicitude com que me deu acesso a

imagem do Santo Antônio Fujão.

A professora Soraya pelo livro do Lima Bastos. Ele foi o "Início desta pesquisa".

A Doracy, colega de turma, através da qual homenageio as colegas de grupo de

estudo e intervalos, nos quais continuávamos o assunto das aulas.

Aos meus colegas de turma, com os quais compartilhei as dores e alegrias da feitura

deste texto de pesquisa.

Aos amigos, ‘tô’ voltando para as rodas de samba...

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SUMÁRIO

ÍNDICE DE ANEXOS........................................................................................................07

INTRODUÇÃO...................................................................................................................10

1- O CATOLICISMO POPULAR TRADICIONAL......................................................17 1.1. Os elementos constitutivos do Catolicismo Popular Tradicional..................................18 1.2. A devoção aos Santos no Catolicismo Popular Tradicional..........................................24 1.3. A autonomia relativa do catolicismo Popular Tradicional.............................................31

2. A INTRODUÇÃO DA DEVOÇÃO A SANTO ANTÔNIO NA REGIÃO DE JUIZ DE FORA.............................................................................................................................41 2.1. O Catolicismo Popular Tradicional e a devoção a Santo Antônio na região do Morro da Boiada...................................................................................................................................43 2.2. As principais capelas dedicadas a Santo Antônio no Vale do Paraibuna à beira do Caminho Novo......................................................................................................................54 2.3. Sinais da institucionalização da devoção a Santo Antônio na Vila do Paraibuna...............................................................................................................................73

3. A CONSOLIDAÇÃO DA DEVOÇÃO A SANTO ANTÔNIO EM JUIZ DE FORA...................................................................................................................................82 3.1. A formação da freguesia de Santo Antônio do Paraibuna............................................84 3.2. A transferência da imagem de Santo Antônio para a Igreja Matriz que recebeu seu nome......................................................................................................................................90 3.3. A devoção a Santo Antônio institucionalizada como a mais abrangente do Catolicismo, na cidade de Juiz de Fora....................................................................................................106

CONCLUSÃO...................................................................................................................112

FONTES E BIBLIOGRAFIA..........................................................................................114

ANEXOS............................................................................................................................118

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ÍNDICE DE ANEXOS

1- Mapa de Juiz de Fora – Henrique Halfeld -1853............................................................119 2- Casa em que morou o “Juiz de Fora” Início do séc. XX................................................120 3- Petição de Antônio Vidal, 1741.................................................................................... .121 4- Resposta do Pároco da freguesia de Nossa Senhora da Glória..................................... .123 5- Santo Antônio Fujão 1. Imagem na Sacristia da Catedral Metropolitana de Juiz de Fora - 2005.....................................................................................................................124 6- Santo Antônio Fujão 2. Imagem na Sacristia da Catedral Metropolitana de Juiz de Fora -2005......................................................................................................................125 7- Primeira capela de Santo Antônio em Juiz de Fora na margem direita do Rio Paraibuna, 1847................................................................................................................................... .126 8- Catedral de Juiz de Fora - Ano 2000..............................................................................126 9- Projeto para a Catedral de Juiz de Fora - início do séc. XX...........................................127 10- Litogravura de Biancoville, P. Santo Antônio de Lisboa, protetor da cidade de Juiz de Fora - 2ª metade do séc. XIX..............................................................................................128 11- Seminário Arquidiocesano de Juiz de Fora dedicado a Santo Antônio década de 50.........................................................................................................................................129 12- Tapete vermelho para o Santo Fujão. Salão anexo da Catedral Metropolitana de Juiz de Fora -2005...........................................................................................................................130 13- Missa de lançamento da pedra fundamental de uma capela no Alto do Bairro Santo Antônio, início de 2006.......................................................................................................131

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RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo desenvolver uma investigação em torno da

introdução da devoção a Santo Antônio na cidade, que se processa através da abertura de

um caminho com melhores condições para escoamento do ouro no alvorecer do século

XVIII. Coube ao Bandeirante Garcia Paes, a empreitada de alargar uma antiga picada

indígena, transformando-a em uma estrada melhor para a passagem de tropeiros,

tornando a viagem mais segura e mais curta. Facilitando o controle régio.

O projeto obteve sucesso, foi criado o Caminho Novo. A expedição passou pela

região do Morro da Boiada, onde existiu uma capelinha, difusora da devoção a Santo

Antônio nas margens do Paraibuna e à beira do Caminho Novo (margem esquerda do rio

sentido sul-Norte). Oficialmente, em 1741 será formalizado o pedido do fazendeiro

Antônio Vidal, para erigir uma capela em suas terras, em honra de Santo Antônio. Uma

Segunda capela foi solicitada pelo Fazendeiro Antônio Dias Tostes em 1815 e

autorizada em 1821. Foi mantida a dedicação a Santo Antônio. Em 1836, o engenheiro

germânico Guilherme Halfeld, veio para o local e demarcou o terreno para a terceira

capela, Matriz de Santo Antônio, requisitada em 1844 e autorizada em 1850. Futura

Catedral Metropolitana. Para lá foi levada a imagem do Santo que segundo a lenda,

fugia na calada da noite e voltava para seu lugar de origem. Episódio conhecido como o

“Santo Antônio Fujão”

Pretendemos responder como o Catolicismo Popular Tradicional transmitiu um

legado devocional tão forte ao Santo, que o transformou no elemento agregador da

fundação da cidade.

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ABSTRACT

The present work has for objective develop an inquiry about the introduction of the

devotion to Saint Antonio in town, which processes trough the opening of a road with

better conditions for draining gold in the dawn of the 18° century. The bandeirante Garcia

Paes was who transformed a rustic indigenous way into a large and better road to the

passage of tropeiros, making the trips become more short and secure. Facilitating the royal

control.

The project was a success, there was created the Caminho Novo. The expedition

passed for the region of the Morro da Boiada, where existed a little chapel, diffuser of the

devotion to Santo Antonio in the edges of Paraibuna and near of the Caminho Novo, (left

edge of the river, south-north direction). Officially, in 1741 the order of the farmer Antonio

Vidal, to erect a chapel in his lands in honor to Saint Antonio, will be authorized. The

farmer Antonio Dias Tostes will request a second chapel in 1815 and its construction will

be authorized in 1821. The devotion to Saint Antonio was kept. In 1836 the German

engineer Guilherme Halfeld comes to the place and demarcates the land for the third

chapel, Matrix of Saint Antonio, requested in 1844 and authorized in 1850. Future

metropolitan’s cathedral. According to the legend, the saint’s image was taken there, ran

away in the dead of the night and toward to its place of origin. This episode was known as

“Santo Antonio fujão” (Santo Antonio habitual runaway).

We intend to answer how the traditional popular Catholicism transmited a so strong

devotional legacy to the Saint that had transformed him in the aggregator element of the

foundation of the city.

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INTRODUÇÃO

O objetivo geral desta pesquisa está calcado na tentativa de demonstrar como a

devoção a Santo Antônio chega na região de Juiz de Fora e como ela vai paulatinamente

galgando espaços, institucionalizados ou não, a ponto de se tornar a devoção mais importante

do catolicismo local, participando, inclusive, como elemento agregador do processo de

fundação da cidade, emprestando-lhe o aspecto devocional em torno de sua imagem, como

amálgama religiosa catalisadora desse empreendimento.

A proposta é estudar as questões apresentadas para o período de 1741-1850. O marco

inicial corresponde à primeira petição oficialmente documentada da ereção de uma capela à

beira do Caminho Novo, às margens do Paraibuna, futuramente cidade de Juiz de Fora, feita

pelo fazendeiro Antônio Vidal. O marco final corresponde à elevação do distrito de Santo

Antônio do Paraibuna à categoria de Vila e, por força da mesma lei, elevada à categoria de

paróquia, também dedicada a Santo Antônio.

Resguardadas as devidas proporções, este trabalho busca se inserir num vazio

historiográfico, espaço deixado em aberto pela tentativa iniciada pelo Revmº Pe. Henrique

Oswaldo, interrompida com seu falecimento. Esse esforço teve prosseguimento através das

pesquisas do professor Riolando Azzi que descreveu os passos da igreja de Juiz de Fora no

período de 1850 para frente, onde começa o processo de Romanização do clero Juizforano.

Tema, aliás, detidamente estudado pela pesquisadora Mabel Salgado.

Os marcos temporais desta pesquisa encontram-se deveras dilatados, entretanto, o

fizemos porque são balizas necessárias ao ancoramento do trabalho, por se tratar de uma

incursão em um período, que pode ser chamado de proto-urbanização de Juiz de Fora.

Propomos ao leitor, certa generosidade no olhar, haja vista, que na medida do avanço para

dentro do passado — por exemplo, as sesmarias no Brasil colônia, o sertão, as matas — o

espaço e o tempo são muito alongados. As distâncias que estão sendo equacionadas no

período estudado, não devem ser analisadas como elas estão, no presente momento. Há que

se levar em conta, que na região delimitada, as áreas de matas e os sertões (desertões) são

imensos acidentes geográficos que desafiam o "caminhante". No dizer de Guimarães Rosa,

“O sertão está em toda a parte; o sertão está dentro da gente”. 1

O fio condutor desta pesquisa peregrina em paralelo com o chamado Caminho Novo

dos Campos Gerais. Trata-se de uma antiga picada indígena, alargada pelo bandeirante Garcia

1 ROSA João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1986.

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Paes, com o objetivo de melhorar o transporte de tropas carregadas com ouro e gêneros,

tornando a viagem mais segura, mais curta e facilitando o controle régio. Em seu percurso, em

lombo de burros, dentro das bruacas, nos corações e mentes dos caminheiros, que pela estrada

trafegaram ou nela se fixaram, teve lugar o processo de gestação de uma devoção católica

santorial dedicada a Santo Antônio.

O Santo Antônio foi o primeiro Santo cultuado na região, onde se estabeleceu em

seguida a cidade de Juiz de Fora. O nosso contato com o Santo advém dos tempos de criança,

devido ao nome homônimo. Oriundo de família muito católica, notadamente por causa da

avó, uma matriarca fervorosa, que dentre outros, cultuava Santo Antônio em seu panteão, esse

envolvimento aprofundou-se quando do ingresso, posterior à adolescência, na vida da igreja,

de forma mais sistemática. Tendo pertencido por seis anos aos quadros da Ordem

Franciscana, província de Minas Gerais, surgiu a oportunidade de estar mais próximo da

trajetória do Santo.

As fontes basilares da pesquisa foram os relatos dos cientistas viajantes que

trafegaram pela região, a documentação do Arquivo Ultramarino, os relatórios dos presidentes

da Província de Minas Gerais, a produção bibliográfica relativa ao tema e os debates

publicados em jornais e textos afins em torno da “querela das capelas”.

A dissertação está dividida em três capítulos: Inicialmente apresentamos um Breve

relato histórico sobre Santo Antônio. Trabalhamos com fontes produzidas a partir de

inspirações e motivações diversas. Tomamos como base os escritos de um frade franciscano,

um casal da ordem terceira, e uma antropóloga, leiga. A seguir, no capítulo intitulado O

Catolicismo Popular Tradicional, apresentamos, em linhas gerais, um panorama do

catolicismo no Brasil, como sendo herança lusitana densamente difundida junto à população.

Neste catolicismo, duas variantes se apresentam: uma pertencente ao domínio popular e a

outra institucional. Argumentamos que em determinados momentos eles se entrecruzam, às

vezes se sobrepõem, num processo dinâmico e dialético de autonomia relativa e

institucionalização.

No segundo capítulo, A introdução da devoção a Santo Antônio na região de Juiz

de Fora, discutimos o ingresso de uma religiosidade católica, inicialmente popular e

itinerante, instalada no início, em uma capelinha tosca no Morro da Boiada, que

progressivamente vai se institucionalizando em outras capelas maiores e igrejas, na medida

em que a comunidade local avança em direção à planície. Até que em 1850 torna-se o orago

da Matriz.

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O capítulo três intitula-se A consolidação da devoção a Santo Antônio em Juiz de

Fora. Nele abordamos o processo da formação da freguesia de Santo Antônio do Paraibuna e

a transferência da devoção, através da imagem do Santo do Morro da Boiada (margem

esquerda do rio), para a Vila do Paraibuna (margem direita). Neste capítulo discutimos o

episódio do Santo Fujão e a legitimação da devoção a Santo Antônio, como sendo a mais

abrangente do catolicismo local.

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SANTO ANTÔNIO: UM BREVE RELATO HISTÓRICO

Neste texto de apresentação, procuramos descrever um pouco da Hagiografia do

Santo, de forma sucinta, tendo em vista o objetivo geral do trabalho. De acordo com a

antropóloga Renata Menezes, cujo trabalho produzido no ano de 2004, analisa a dinâmica e a

sociabilidade das pessoas em torno de um convento devotado a Santo Antônio no Rio de

Janeiro, a vida de Santo Antônio traz divergências entre as biografias e talvez isto se deva ao

caráter precário das fontes primárias.1

Quanto ao local de nascimento do Santo não se tem dúvidas. Terá sido na bela cidade

de Lisboa em Portugal. O menino, primogênito de uma família nobre e rica, tendo recebido o

nome de Fernando Martim (Martins) de Bulhões ou somente Fernando de Bulhões, floresce

no seio de uma família tradicional, católica, medieval, que ansiava produzir em seu meio,

como tantas outras, um santo de cada família nobre. Exatamente no momento em que hoje

conhecemos como sendo "o século místico", período de grande obscurantismo cultural e

religioso, em que surgem dentro da Igreja Católica quatro expressivos santos: Bernardo de

Clairvaux, Francisco de Assis, Domingos de Guzman e Antônio de Pádua ou de Lisboa.2

O ano de nascimento, e o dia 15 de agosto, não podem ser igualmente confirmados

como sendo tão certos quanto o local, mas, de acordo com o "Liber Miraculorum" (Livro dos

Milagres), consta que sua morte ocorreu aos 36 anos de idade, em 1231. Daí o nascimento ser

em 1195. Mas, pesquisas realizadas muito recentemente por ocasião do aniversário de

oitocentos anos de nascimento, revelam através dos vestígios, que o ano mais provável para a

datação seja entre os anos de 1188 e o ano de 1190.3

Os relatos sobre a infância são muito escassos, e não raro, na ausência do dado, se

impõe a lenda. É comum nas vidas de santos um esforço para traçar a santificação desde a

mais tenra idade. Com Fernando não será diferente. Teria sido coroinha, estudado bem

próximo à sua casa junto a catedral da cidade. No ano de 1210, com 15 anos ingressou na

Ordem dos Cônegos Regulares de Santo Agostinho, no Mosteiro de São Vicente de Fora.

Com a finalidade de concluir seus estudos obteve transferência de Lisboa em torno de 1212,

para o mosteiro de Santa Cruz, que possuía uma das mais importantes bibliotecas da Europa,

1 KRUS, L. & CALDEIRA, A. O oitavo centenário do nascimento de Santo Antônio. Lisboa: CTT Correios de Portugal, 1995:7. Apud MENEZES, Renata de Castro. A dinâmica do sagrado: rituais, sociabilidade e santidade num convento do Rio de Janeiro. Relume Dumará: Núcleo de Antropologia da Política/UFRJ, 2004. P.149. 2 GALVÃO, Carmen S. Machado. & GALVÃO, Antônio Mesquita. Santo Antônio: A realidade e o Mito. Petrópolis: Vozes, 1996. P. 15,16. 3 KRUS & CALDEIRA, Apud MENEZES, Renata de Castro, p. 165.

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onde pôde esmerar sua educação e ainda mais, encontrar-se-ia com os principais estudiosos e

pregadores de renome do seu tempo, uma vez que Coimbra era a capital do reino português,

centro de poder e erudição.4

Ordenado sacerdote ainda entre os agostinianos, o futuro pregador continua seus

estudos. Como descreve um cronista,

Fernando continuou os estudos e foi se especializando, sobretudo nas sagradas escrituras de que ele tanto gostava. Lendo hoje os seus "sermões", percebe-se a sua grande profundidade e familiaridade com a Bíblia Sagrada. Graças também, é claro, a esses anos passados em severos estudos sob os arcos manoelinos do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. 5

A Europa vivia um período de transição. Agora o século XIII, vislumbra a fase da

reflexão dialética, o surgimento de novas elaborações teológicas, as universidades e o

confronto de idéias, marcadamente influenciada pelo pensamento lógico aristotélico. No

campo da política eclodem as Cruzadas, as peregrinações aos lugares santos e uma crescente

urbanização. Ainda no bojo dessa efervescência, o fortalecimento do poder papal e posterior

proibição do aristotelismo.

No ano de 1220, o jovem padre estabeleceu contatos com os frades franciscanos que

viviam numa ermida adaptada na periferia de sua atual cidade, no convento de Santo Antônio

dos Olivais. Parece que a mendicância dos frades itinerantes o atraiu mais que a segurança da

vida monástica. "Eram homens que não se destacavam pelo saber teológico ou profano, e que

também não faziam pregações buriladas para impressionar as pessoas: todos os irmãos devem

pregar pelo exemplo." 6 (Sermão sobre as virtudes franciscanas). Ainda no mesmo ano, ao

contemplar nos ataúdes os despojos de cinco frades, trazidos pelo irmão do rei, (Berardo,

Pedro, Oto, Adjuto e Acúrsio) decapitados no Marrocos pelos Muçulmanos, Fernando toma a

decisão de entrar para a ordem dos frades menores. Após meses de espera e incertezas, recebe

autorização dos superiores para trocar de Ordem. E, trocando não só as vestimentas (hábito);

agora usando o marrom dos frades menores, troca também de nome; e de Fernando passa a se

chamar Frei Antônio dos Olivares. Tendo nos olhos, fixos, a possibilidade do martírio.

Conhecedor do árabe, segunda língua falada em Lisboa, parte para as missões

possivelmente em 1220, com grandes chances de êxito, devido ao conhecimento da língua. Na 4 Idem. P. 150. 5 MONTEIRO, Frei Geraldo. Santo Antônio: Vamos conhecer a vida de um grande santo. Ed. O mensageiro de Santo Antônio, Gráfica, Cromoprint. Santo André, SP.1995. P. 08.

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pior das hipóteses, será recolhido pela glória do martírio, propagando o Santo Evangelho. Mas

o destino, ou a Graça Divina, mudaram seus planos. Acometido logo na chegada, de uma

doença chamada Hidropisia, foi obrigado a retornar à Europa. Entretanto, ventos contrários

acabaram por levar-lhe até as costas da Sicília, fato que mais tarde, segundo ele mesmo

comentara, o levou a conhecer pessoalmente São Francisco, sendo por ele recebido na Ordem,

tendo dele obtido a incumbência de ensinar aos frades a teologia.

Tendo continuado na "Itália", recolhido num convento dedicado aos jejuns e a oração

no intuito da purificação, lavava louça e limpava o chão. Por ocasião de uma ordenação

sacerdotal, diante da presença do cardeal e da recusa de outros pregadores fazerem o sermão,

foi chamado para fazê-lo, uma vez, que do lavador de louça não se notaria grande vexame.

E apesar de sua insegurança e temor diante da novidade (Rossi, 1998:10), a genialidade do sermonista se revelou, surpreendendo a todos os presentes. Desde então sua fama começou a se espalhar e multidões passaram a acorrer para ouvi-lo falar. 7

Devido às suas habilidades oratórias foi designado para pregar na França, entre ou até

mesmo contra, as heresias dos Cátaros, Valdenses e Abigenses. Foi por este motivo que ficou

conhecido como o "Martelo dos Hereges" e "Arca do Testamento", pelo Papa Gregório IX.

Segundo a Legenda Assídua (A mais antiga biografia de Santo Antônio), ele teria se esgotado

tanto na pregação da quaresma de 1231, que agravou seu estado de saúde.

Pregando, ensinando, ouvindo as confissões, acontecia freqüentemente que chegava ao crepúsculo sem ter feito nenhuma refeição. Milhares de pessoas acorriam de toda parte, para ouvir os seus sermões e, naturalmente, todos, à pinha, juntava-se para se confessarem a ele. (...) Horas e horas de atendimento sacramental até se reduzir a um farrapo pelo cansaço; alimentação irregular, pouco repouso, saúde precária desde os meses passados em Marrocos: não temos de nos espantar se, vivendo desta maneira, a irmã morte o tenha atingido aos 36 anos de idade. (Gamboso, s/d: 9).8

6 GALVÃO, Carmen S. Machado. & GALVÃO, Antônio Mesquita. Santo Antônio: A realidade e o Mito. Petrópolis: Vozes, 1996. P. 19. 7 MENEZES, Renata de Castro. A dinâmica do sagrado: rituais, sociabilidade e santidade num convento do Rio de Janeiro. Relume Dumará: Núcleo de Antropologia da Política/UFRJ, 2004. P.151. 8 GAMBOSO, V. Vida de Santo Antônio. Santo André: O mensageiro de Santo Antônio, s/d. Apud MENEZES, Renata de Castro. Op. Cit, p. 151.

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Antônio morreu a caminho de Pádua, numa Sexta feira, dia treze de junho de 1231,

aos 36 anos, no convento de Aracela. Foi enterrado na terça feira seguinte, que passou a ser o

dia da semana dedicado a ele. 9

As referências aos milagres, as diversas características que o Santo foi adquirindo ao

longo de sua larga trajetória, sobretudo depois de sua chegada ao Brasil e particularmente na

região a ser estudada, o altiplano do Médio Paraibuna, desdobramento mineiro da bacia do

Vale do Paraíba, pretendemos desenvolver um pouco mais, no segundo capitulo, a presença

marcante dele, subindo e descendo, como devoção de tropeiros, padroeiro de fazendeiros nas

margens do Rio Paraibuna ao longo do Caminho Novo.

Antes de entrarmos nas questões propriamente regionais, faremos deste primeiro

capítulo, um espaço onde apresentaremos uma discussão acerca de um tipo específico de

catolicismo. Ele serviu de arcabouço teórico e prático, para a implementação e posterior

sustentação de uma religiosidade popular tradicional, pré-urbana, itinerante e periférica.

Através desse tipo de religiosidade resistente aos chamados constantes da Romanização, teve

origem uma devoção junto a um Santo católico, intrinsecamente arraigada, no ontem e no

hoje, da população desta urbs tão secularizada desde os primórdios, como supomos ser o caso

da cidade de Juiz de Fora.

9 GALVÃO, Carmen S. Machado. & GALVÃO, Antônio Mesquita. Santo Antônio: A realidade e o Mito. Petrópolis: Vozes, 1996. P. 22.

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CAPÍTULO 1 - O CATOLICISMO POPULAR TRADICIONAL

Santo Antônio é milagroso, mas, santo traidor Santo Antônio amarra negro pr evar pro seu senhor. a l (Dornas Filho. 1972)

Os estudos elaborados sobre a religiosidade popular no Brasil têm recebido variados

enfoques. Inicialmente, predominou o olhar romântico, marcado pela intenção conservadora

do folclorismo. Depois, emergiu um outro mais relacionado com as formulações sociais e

políticas. E a crise das grandes teorias das ciências humanas produziu uma abordagem mais

pluralista e empírica buscando-se observar com mais acuidade as práticas devocionais.

Embora não seja objetivo deste capítulo discutir a delicada questão da delimitação dos termos

catolicismo e popular, necessário se faz apresentarmos alguma discussão introdutória sobre

esta temática.

Lançamos mão de dois teólogos para ajudar a conceituar o termo catolicismo.

Posteriormente, outros autores serão solicitados, para entendermos como se podem aproximar

os dois termos. De acordo com Libânio, "podemos dizer que catolicismo é aquele sistema de

doutrina e prática moral-religiosas que aqueles que se dizem católicos, membros da Igreja

Católica, reconhecem como catolicismo. Ainda segundo ele, o termo é polissêmico.10

Segundo o teólogo Leonardo Boff "O catolicismo não é somente uma grandeza teológica

como concretização do evangelho no tempo. É também uma realidade histórica, política

sociológica e religiosa, passível de ser analisada a partir das diferentes razões formais."11 O

pesquisador Pedro Ribeiro de Oliveira chega a conceituar o termo a partir do componente

desviante que o popular lhe introduz.

O catolicismo é uma religião que se incorpora numa instituição específica, a Igreja Católica, que é sua portadora por excelência. O catolicismo popular, portanto, deve ser encarado como um desvio em relação ao que é oficialmente proposto pela Igreja sem, entretanto, constituir-se em outro sistema religioso. 12

10 LIBÂNIO. João Batista, Critério de Autenticidade do Cristianismo. In: Revista eclesiástica brasileira. Vol. 36. Petrópolis: Vozes, 1976. P. 55. 11 BOFF. Leonardo, Catolicismo Popular : Que é Catolicismo?. In: Revista eclesiástica brasileira. Vol. 36. Petrópolis: Vozes, 1976. P. 19.

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Já Riolando Azzi ressalta a dificuldade encontrada em conceituar o termo:

Catolicismo Popular: expressão ampla, complexa e ainda não muito delimitada. Não é muito fácil, de fato, estabelecer os marcos divisórios entre o que é o catolicismo oficial e o popular, entre o que ainda é catolicismo ou já simplesmente sincretismo religioso. 13

Este debate iniciado na década de setenta, tido como de difícil definição à época,

deverá ser mais bem conhecido nos anos noventa e nos anos dois mil; tendo como base uma

perspectiva relacional, desenvolvida pelo Cehila-Br.14 A redefinição do conceito de popular

para uma nova perspectiva relacional abre um grande leque de temas a serem investigados. As

devoções são tão "híbridas" 15 quanto as culturas.

1.1- Os elementos constitutivos do Catolicismo Popular Tradicional

Em seu capítulo primeiro do livro publicado em 2004, Riolando Azzi apresenta a

construção da nação Lusitana através da Teologia do Reino Católico, como sendo fruto da

Cristandade. Uma revigoração de um determinado modelo de Igreja que perpassou toda a

Idade Média, e que tem suas origens no Século IV, período em que o Imperador Romano

Constantino tomou para si o governo de Roma, a defesa e a promotoria da nova religião

nascente.

Na base dessa perspectiva teológica estava a arraigada convicção de que o trono de Portugal constituía uma verdadeira criação divina com a finalidade análoga de difusão da fé católica; ao mesmo tempo, segundo essa mesma teologia, ocorrera também a escolha dos lusitanos como objeto de predileção celeste.(...) Assim como no Antigo Testamento Deus manifestara sua escolha pelo povo judeu, a partir de fins da Idade Média o novo povo de Deus vinha a ser a nação lusitana, designada agora como uma nova Cristandade.16

12 OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de. A mesa da Palavra. In: Revista Eclesiástica brasileira. Vol. 36, fasc.141, Petrópolis: Vozes, 1976. 13 AZZI, Riolando. Elementos para a história do Catolicismo popular. In: Revista Eclesiástica Brasileira. Vol. 36. Petrópolis: Vozes, 1976. P. 95. 14 Segundo Eduardo Gusmão em resumo entitulado Cehila Devoções do Brasil, um estudo está sendo elaborado no ano de 2005, tendo como base a história cultural, dividido em três fases: grupos regionais dedicados ao tema, simpósios regionais, dedicados a apresentação de propostas e debate. E a conclusão será com apresentação dos trabalhos num simpósio nacional do CEHILA-BR, no segundo semestre de 2006 em São Paulo. Sendo que os trabalhos mais relevantes resultarão num livro. http://www.cehila-brasil.com.br/detalhe.aspx?A=38&C=129. 15 CANCLINI, Nestor. Culturas híbridas. São Paulo: EDUSP, 1993. 16 AZZI, Riolando. A Teologia Católica na Formação da sociedade Colonial Brasileira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. P. 15-24. Cristandade: A cristandade significa, portanto, a realização do reino de Cristo sobre a

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O formato de cristianismo que será praticado no Brasil, desde os primeiros anos de

nossa história e que se estenderá nela até a proclamação da república veio junto com Pedro

Álvares Cabral nas caravelas. Portugal naquele momento era um reino que se fortalecia como

a primeira nação centralizada, após a Reconquista. Segundo Aquino as naus que partiam do

porto traziam os padres cuja função principal era administrar a observância dos requisitos da

cristandade e a dilatação da fé. Funcionavam como capelães, médicos das almas, enfermeiros,

vigias de tipos proibidos de lazer, controladores de blasfêmias e censores de livros

desonestos.17 O primeiro ato relevante que recebe destaque no encontro de dois mundos na

"Terra dos Brasis" citado pelo cronista da esquadra real, foi exatamente, o ato litúrgico da

celebração da primeira missa em terras dos índios e que a partir daquele momento, sem que

eles entendessem, passaria a se integrar ao domínios do Reino de Portugal.

Ao Domingo de pascoela18pela manhã determinou o Capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu.(Coroa Vermelha) Mandou a todos os capitães que se aprestassem nos batéis e foram com ele. E assim foi feito. Mandou naquele ilhéu armar um espervel,19 e dentro dele um altar mui bem corrigido. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual foi dita pelo padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.20

O catolicismo está sendo transplantado para o novo mundo de forma lenta, mas vem

conjunturalmente com tudo o que se fará aqui. É um dos aspectos fundamentais da cultura

lusa daquele momento. O professor Ênio José do departamento de pós graduação em Ciências

da Religião da PUC/SP, chamou atenção, que na virada do milênio, um estudo histórico

passou despercebido pelo menos do grande público, trata-se de uma visão da natureza na

América portuguesa sob a versão dos jesuítas.

terra. É, pois, a partir de uma idéia emanada da própria fonte divina que a cristandade assume a sua concretude terrestre. (Azzi, 1987) p.56. 17 AQUINO, Rubim dos Santos Leão de... [et al.] Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais. Rio de janeiro: Record, 1999. P. 241-2. 18 Pascoela: A festa que se celebra no Domingo Seguinte ao da Páscoa. 19 Esperavel: Equivalente ao Pálio ou Carramanchão, ou seja, uma cobertura para proteção contra o sol. 20 PEREIRA, Paulo Roberto. Org. Os três únicos testemunhos do Descobrimento do Brasil. Carta de Pero Vaz de Caminha, Carta de Mestre João Faras, Relação do Piloto Anônimo. Rio de Janeiro: RJ. Editora Nova Aguilar, S.A. 1999. P. 41.

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Após a expulsão do paraíso, a humanidade continuou sonhando com a possibilidade de voltar a ele, não sendo encontrado no território europeu, o paraíso foi procurado na Índia e em seguida na América. Na expressão de Sérgio Buarque de Holanda viveu-se, naquele período, uma psicose de um paraíso terreal. As descobertas marítimas possibilitavam fundir a propagação da fé cristã com a busca de riquezas e com valores do humanismo renascentista que surgia. Os jesuítas “navegantes da fé por terras desconhecidas”, compartilhavam dessa mentalidade e dessa movimentação. Diante da pluralidade simbólica e cultural do novo mundo deixavam transparecer uma visão da natureza ora perto do Paraíso, ora perto do inferno. 21

Somente a partir da realização do Concílio de Trento na Europa é que catequese e zelo

missionário passariam a ser pontos essenciais da igreja católica, principalmente entre Portugal

e Espanha, em função de suas realidades imperiais. O padre Antônio Vieira sintetiza a

questão:

Os outros homens, por intuição divina têm só obrigação de ser católicos: o português tem obrigação de ser católico e de ser apostólico. Os outros cristãos têm obrigação de crer a fé: o português tem obrigação de a crer e mais de a propagar.22

Contudo, o professor Riolando Azzi demonstra que apesar dos esforços

jesuíticos nos primeiros séculos da colônia, o modelo tridentino não alcançou grandes

resultados. O modelo de catolicismo que vingará entre nós será um catolicismo de

estado, que identifica a igreja com o Império Cristão,

desse modo, a formação católica da sociedade brasileira continuou sendo realizada inspirando-se numa tradição teológica medieval, e tendo como base a noção de Cristandade, com a qual passou a ser identificado o reino lusitano: Estado e Igreja eram apresentados como instituições que deveriam permanecer unidas. (...) Essa Cristandade é transferida para o território brasileiro a partir do século XVI.23

De acordo com Antônio Clerton Cordeiro, este tipo de catolicismo, trazido por

portugueses advindos das camadas mais pobres da população começou a penetrar no Brasil a

partir da colonização. É comumente chamado de catolicismo tradicional popular. Teve

presença significativa nas áreas da zona rural, em terras camponesas. Na colônia, havia

21 ASSUNÇÃO, Paulo de. A terra dos Brasis. A natureza da América Portuguesa vista pelos primeiros Jesuítas (1549-1596). São Paulo: Annablume, 2001. P.35. Apud BRITO, Ênio José da Costa. A terra dos Brasis:A natureza da América Portuguesa vista pelos Jesuítas. Resenha. Revista de Estudos da religião – Rever, São Paulo:PUC, http://www.pucsp.br/rever/resenha/assuncao01.htm. 22 AQUINO, Rubim dos Santos Leão de... [et al.] Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais. Rio de janeiro: Record, 1999. P. 243. 23 AZZI, Riolando. A Teologia Católica na Formação da sociedade Colonial Brasileira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. P. 08.

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poucas cidades e com pequena população. Não tinha ligações com o poder político, nem se

beneficiava de auxílios econômicos. Era praticado por portugueses pobres, alguns pequenos

proprietários, índios destribalizados, ex-escravos e, sobretudo, mestiços. O catolicismo

popular, pode ter tido grande influência de religiosos europeus mal formados que eram

mandados para cá e para catequizarem criavam meios um tanto diferentes do catolicismo

europeu da época.

O leigo ocupa papel central; o especialista, papel secundário. Há uma perda relativa da

importância do sacramental frente ao devocional. Verifica-se uma manipulação do sagrado

com finalidades pragmáticas; por consequência, é sensível uma diferença entre religião e

magia. A religião importa uma transcendência; a magia conota imanência. Enfim, releva notar

o caráter protetor da religiosidade popular. Ela visa a solução prática dos problemas do

cotidiano. Oferece uma segurança adicional frente ao esforço material.24

A primeira grande formulação sistemática produzida entre nós brasileiros a respeito do

tema, foi obtida através de um amplo debate travado na década de setenta, e teve o ano de

1976 como marco. O esforço foi coroado através de uma publicação feita pela editora Vozes,

trazendo ao grande público os resultados desse esforço que ainda hoje é fonte de referência.

Entre os debatedores é importante destacar o trabalho de Riolando Azzi, que naquela

oportunidade apresentou uma tipificação interessante onde destaca o contraponto entre dois

tipos de catolicismo.25 "A formação religiosa do Brasil de modo geral, foi influenciada por

dois tipos de catolicismo distintos e contrapostos: um catolicismo tradicional e um

catolicismo renovado."26

O catolicismo renovado surgiu a partir do Concílio de Trento e defendia basicamente a

manutenção da hierarquia católica sobre os leigos, a prática dos sacramentos pelos clérigos e a

aceitação das doutrinas postuladas pelos teólogos da igreja. Suas características podem ser

resumidas em cinco aspectos: é sacramental, clerical, individual, tridentino e romano.27 Por

outro lado, o catolicismo tradicional é aquele produzido pelos leigos, é externo, de práticas

cotidianas, e de pouca vivência sacramental. Relaciona-se muito com um "conjuntos de

24CORDEIRO, Antônio Clerton. O catolicismo Popular no Brasil. In: http://www.ejesus.com.br/home/exibir.asp?arquivo=4292. 25 Em recente dissertação apresentada ao PPCIR-UFJF. sobre a Irmandade do Santíssimo Sacramento na catedral de Juiz de Fora, produzida pelo criterioso pesquisador Paulo Quiossa, o professor Riolando que compôs a banca examinadora, chamou-nos a atenção argumentando que este trabalho é sempre muito citado, sempre associado ao seu nome, entretanto, pouco atualizado, tendo em vista, outros esforços por ele mesmo produzidos posteriormente, nesse campo. 26 AZZI, Riolando. Elementos para a história do Cristianismo popular. In: Revista eclesiástica brasileira. Vol.36. Petrópolis: Vozes, 1976, P. 95. 27 Ibidem, p. 103.

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costumes religiosos consagrados por uma vivência rotineira"28 e mantém uma conotação forte

do catolicismo pré-tridentino.

Um estudo minucioso elaborado por Jonh Bossy sobre a cristandade ocidental, aponta

importantes características que ajudam a entender o termo. O autor não define o que é

catolicismo tradicional, mas descreve um cristianismo de práticas cotidianas exteriores e com

poucos indícios de piedade interior. O culto aos santos já existia como manifestação usual da

população europeia. Os oragos eram os protetores particulares dos indivíduos, das Irmandades

e até das cidades, havendo, pois, uma grande relação de intimidade, manifesta sobretudo, no

culto, nas festas, procissões e rezas. O clero, insipiente, principalmente nos locais mais

afastados dos centros urbanos, praticamente impossibilitava a prática e a vivência dos

sacramentos. Não raro, esta experiência se fazia acompanhar de rituais com significados

pagãos. Neste caso, padres e bispos, poderiam ser considerados desnecessários pela maioria

da população no que diz respeito a condução deste catolicismo.29

Riolando Azzi, caracteriza o Catolicismo tradicional, a partir de cinco pressupostos

principais: "é luso-brasileiro, leigo, medieval, social e familiar".31 É luso-brasileiro, porque as

instituições religiosas portuguesas foram transplantadas para o Brasil, conforme tentamos

demonstrar acima, através da Cia de Jesus dos padres jesuítas, atuando como espírito

reformador dos leigos nas Irmandades. Estes elementos oficiais e populares trazidos da

metrópole, receberam novos contornos na medida em que avança a evolução histórica da

colônia. É leigo, no tocante as práticas cotidianas. É através deste aspecto que vão se

introduzir as devoções, construções de oratórios e ermidas, surgindo num grande impulso a

fundação de Irmandades, para a promoção de culto. É medieval, pois, replica no Brasil uma

religiosidade nascida na Idade Média e tradicionalmente vivida em Portugal. É social, porque

o catolicismo praticado aqui entre nós estava marcadamente apoiado na vida da sociedade. A

vida pública estava impregnada de manifestações do ideal religioso. Finalmente é uma

religião com acentuado cunho familiar, já que em cada moradia estava presente um santo

protetor, um oratório ou, até mesmo, uma capela, muito comum nas fazendas.32 No dizer de

Gilberto Freire, a família tem sido desde o século XVI a grande unidade de colonização no

28 OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção e caridade: Irmandades religiosas no Rio de Janeiro imperial (1840-1889). Dissertação de (Mestrado em História) - Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói: 1995, p.41. 29 BOSSY, Jonh. A Cristandade no Ocidente (1400-1700). (Trad. Maria Amélia Silva Melo). Lisboa: Edições 70, 1985, p. 92. 31 AZZI, Riolando. Op. Cit. p. 95. 32 Ibidem, p. 96- 103.

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Brasil. Ela se apresenta como sendo a instituição colonial mais poderosa da América,

desbancando o indivíduo, as Companhias de Comércio e até mesmo o Estado.33

Para finalizar, uma última abordagem conceitual sobre o uso dos termos tradicional e

popular. Para tanto, fizemos uso de um trabalho entregue ao departamento de Ciência da

Religião PPCIR, no ano de 2004. Versando sobre Irmandades religiosas em Minas Gerais e

especificamente em Juiz de Fora. Ao analisar a irmandade do Santíssimo Sacramento da

Matriz de Santo Antônio, o historiador Paulo Quiossa dedicou seu esforço na busca da

conceituação e uso do termo adequado para tratar este tipo de catolicismo, ao longo da sua

dissertação.

Porque usar a definição de catolicismo tradicional e não popular neste trabalho? A resposta não é complicada, mas não significa que a idéia de "tradicional" seja desprovido de problemas. Mesmo sendo um conceito consagrado na historiografia, percebemos que o termo "popular" sofreu e ainda sofre um desgaste diante do uso contínuo para referir-se a "povo". O próprio conceito "povo" traz complicadores em sua percepção, uma vez que a expressão sugere um pluralismo de sentido que poderia prejudicar nossa análise. Dessa forma a noção de "popular" pode ter uma significação ampla, referindo-se a aquilo que é do próprio povo ou feito para ele; ainda, algo que tem a simpatia do povo; e mais, democrático vulgar, trivial, ordinário. Azzi qualifica o conceito "Catolicismo Popular" como uma "expressão ampla, complexa e ainda não muito delimitada" Peter Burke, em seu estudo sobre a cultura popular na Idade Moderna, destacou sua imprecisão e a dificuldade de delimitá-lo. A adoção do termo "popular", portanto, não seria a melhor opção para nós, pois correríamos o risco de cair em uma análise por decerto ambígua. Preferimos pois adotar neste trabalho a noção de "Catolicismo Tradicional". "Tradicional" aqui com um significado bem preciso, apontando para o nosso objeto de análise e referindo-se ao conjunto de práticas religiosas anteriores ao Concílio de Trento, mas que foram transferidas para o Brasil colonial, imperial e até hoje se manifesta na religiosidade praticada pelos leigos.34

Feito isso, torna-se necessário o distanciamento do caminho utilizado pelo colega

supra citado. Lançamos mão destes dois conceitos, aproximando-os como o fez Antônio

Clerton Cordeiro35em seu artigo sobre o Catolicismo Popular no Brasil, onde usa o termo

"Catolicismo Popular Tradicional", ou ainda, como também o faz, Alberto Bekhäuser, 36

juntando os termos na busca de uma saída possível, para este debate conceitual acima

apresentado. Daqui para adiante, onde forem uma referência textual de um autor, será

33 FREIRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo: 1950, p. 117-123. 34 QUIOSSA, Paulo Sérgio. Mistério da fé: A Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz de Santo Antônio de Juiz de Fora. (1854 -1962). Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião) Instituto de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora: 2004, p.47. 35 Ver nota 24. 36 BEKHAUSER, Alberto. Santo Antônio através de suas imagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, p. 22.

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reproduzido como tal. De forma original, sem alteração. Onde os termos forem usados ao

longo do trabalho, será exposto conjuntamente. Ou seja: Catolicismo Popular Tradicional.

1.2- A devoção aos Santos no Catolicismo Popular Tradicional.

Ao falarmos de devoção37 é necessário lembrar que ela se manifesta dentro de um

universo maior, o do catolicismo, e dentro dele, no da religiosidade mais especificamente da

religiosidade popular tradicional. Entretanto, retrataremos aqui, primeiro a versão oficial da

igreja institucional, para depois contrapor a versão menos institucionalizada.

A Igreja acolheu o chamado à santidade contido na mensagem do Novo Testamento.

Mas o fez quase que exclusivamente com a praxe do culto dos santos. No campo da reflexão

tal chamado foi percebido na melhor das hipóteses pela ascética, que se perguntava no campo

pastoral sobre a atuação na vida e se servia para isto das lendas dos santos. O culto aos santos

foi por muito tempo uma coisa tão óbvia na igreja que o seu magistério não sentiu a

necessidade de se pronunciar sobre ele.

Os teólogos nunca se interessaram verdadeiramente pelos santos. Os manuais e as sumas teológicas da escolástica não conhecem um tratado "De Sanctis" e nem mesmo um "De Culto Sanctorum", como, no entanto foi elaborado pelos discípulos neo-escolásticos. Tomás de Aquino fala dos santos somente no contexto da sua doutrina sobre a oração. Quando seus discípulos se dispuseram a completar a Summa Theologiae desde o comentário até às Sentenças, elaboraram dentro da escatologia uma espécie de teologia dos santos; eles eram naturalmente somente os bem-aventurados "na pátria" e, além disso, a única coisa que interessava eram as suas condições no céu. 38

Qual o sentido e o lugar dos santos na vida da igreja? Pergunta o liturgista e ex-acessor

da CNBB, Alberto Beckhäuser num pequeno manual de devoção a Santo Antônio, e ele

mesmo responde: O Concílio Vaticano II procurou recuperar a centralidade do mistério de

37 DEVOÇÃO: A Igreja distingue a devoção como sentimento religioso, e as devoções que são exercícios de piedade, desprovidos de caráter litúrgico, e que obedecem a costumes locais e por vezes foram fixados em livros. Enquanto a primeira pode acompanhar todos os momentos da vida humana, as segundas estão vinculadas às tradições populares dos países cristãos. A Igreja católica assinala quatro pontos fundamentais para as devoções: 1) São devoções indispensáveis, que não podem ser descartadas: Trindade, Verbo Encarnado, Paixão de Cristo, Eucaristia, Virgem Maria e Santos anjos; 2) Recomendam-se devoções particulares como mediações concretas que favorecem o culto divino e a santificação do homem; 3) Aprova-se certo tipo de devoção à própria Igreja como corpo de Cristo e Templo do Espírito Santo; 4) Excluem-se devoções inoportunas, exageradas e inadaptadas à vida da fé. (SCHLESINGER, Hugo & PORTO, Humberto. Dicionário Enciclopédico das Religiões. V. I. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 818). 38 BEINERT, Wolfgang. O Culto aos santos hoje. Estudo Teológico pastoral. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 39 e p. 50.

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Cristo no ano litúrgico, inclusive reformando o Calendário dos Santos. Por outro lado, situa o

culto mariano e dos santos dentro do mistério de Cristo. Sobre o culto aos santos em geral o

concílio diz:

No correr do ano a Igreja inseriu ainda as memórias dos mártires e dos outros santos, que, conduzidos à perfeição pela multiforme graça de Deus e recompensados com a salvação eterna, cantam nos céus o perfeito louvor de Deus e intercedem em nosso favor. Pois nos natalícios dos santos prega o mistério pascal vivido pelos santos que com Cristo sofreram e foram glorificados e propõe seu exemplo aos fiéis, para que atraia por Cristo todos ao Pai e por seus méritos impetre os benefícios de Deus (SC, n.104).39

Ainda baseado nesse mesmo autor, sabemos que os santos revelam o mistério de

Cristo e nele introduzem. Parece que inicialmente, este culto não fora bem entendido, e talvez

por isso mesmo, de certa forma, foi colocado de lado, por causa de uma interpretação e

aplicação equivocadas. Num segundo momento, a partir dos anos setenta, do século XX, o

valor e seu sentido começaram a ser revalorizados e recolocados em seu devido lugar. Neste

culto aos santos podemos identificar e distinguir três aspectos: O louvor e a ação de graças a

Deus, admirável nos seus santos; em seguida, os santos modelos a serem imitados no

seguimento de Cristo e finalmente: a intercessão dos santos.40 Entretanto, apesar de

significativas e importantes afirmações do Concílio Vaticano II até agora nada mudou sobre

este ponto, até mesmo os tratados de dogmática que aparecem, sucessivamente ignoram mais

ou menos completamente o tema.41 Esta insegurança é eloqüente. Porque demonstra que não é

possível fazer a junção de uma teologia dos santos com apenas um tema da dogmática e que

seria necessário falar dele em muitos pontos, o que por si só afasta a dúvida de que se trate de

um tema marginal. E acrescenta: "daí a reflexão sobre os santos permanece por isso uma

necessidade urgente, hoje como outrora." 42

Desde os primeiros séculos da igreja católica, o culto dos santos referencia ao culto a

Deus. Deus é admirável nos seus santos. Beckhäuser demonstra que para falar sobre o plano

de Deus através dos santos, a reflexão teológica se utiliza de um linguajar de luta, de vitória e

de recompensa, que é um legado vindo diretamente do ambiente em que nasceu a Igreja; o

Império Romano. A linguagem foi adaptada para relatar os martírios ali sofridos e se aplica

também aos santos. Quando um general era enviado (missão) em campanha contra um

inimigo, ou para conquistar novas terras, (combate) caso se sagrasse vencedor, receberia as 39 BEKHAUSER, Alberto. Santo Antônio através de suas imagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, p. 16. 40 Ibidem, p. 17 41 Beinert, Op. Cit. p. 52.

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glórias do triunfo. Ao retornar a Roma, era entronizado em procissão solene pela via sacra

(caminho sagrado) que conduzia ao capitólio, passava por debaixo do Arco do Triunfo, feito

especialmente para esta celebração. O vencedor era carregado em carro aberto puxado por

cavalos brancos, após cruzar o arco era solenemente coroado com louros e lhe era entregue

nas mãos a palma da vitoria. Esta coroa e a palma é que simbolizavam o poder e a glória

alcançados para o Império pelo novo divus (divino) que a partir de então, por ser vitorioso,

passava a ser digno de participar da glória dos Deuses.43

No final da solenidade, este "Vir Dei” (varão divino) administrava a partilha dos

despojos da guerra, e alimentos eram distribuídos para o povo. Vale ressaltar que todo este

cortejo, era cuidadosamente planejado para a participação do povo de Roma inclusive os mais

pobres, e tinha um claro intuito de funcionar como um paliativo para as graves distorções

sociais que a estrutura de poder do império não dava conta de solucionar. Esta política romana

passou para a história com o intrigante nome de Panis et Circences, erroneamente traduzida

como "Pão e Circo", e mais sugestiva fica quando lhe identificamos o real sentido: Pão e

Palhaços.

Cada santo, cada santa, revela uma determinada faceta do evangelho ou do mistério de

Cristo, dele dando testemunho. Os santos são: manifestação do mistério de Cristo, modelos

evangélicos a serem imitados, mediadores junto a Deus.44 Importante ressaltar este último

aspecto, também oriundo de culturas antigas, que de certa forma viram o cristianismo nascer e

sem dúvida nele influenciaram. Esta influência é melhor observada naqueles aspectos que

dizem mais respeito ao povo simples. O liturgista Bekhäuser nos auxilia quando afirma que

este é o aspecto mais questionado e até combatido, inclusive pelos nossos irmãos protestantes

e pentecostais, e até lhes dá razão nalgumas vezes por ser controvertida a compreensão dessa

mediação. E acrescenta:

esta mediação faz parte da cultura do Catolicismo tradicional popular (termo do autor) herdada de Portugal, e por que não dizer dos povos Celtas, e presente na história do povo brasileiro. Inclusive no seu passado vivido na opressão, ele aprendeu a buscar mediadores para chegar ao senhor, ao patrão, ao coronel, ao grande pai. Como Deus lhes parecia por demais distante, inclusive Jesus Cristo, também no seu relacionamento com o Deus Altíssimo, e Santo, ele apela para os mediadores, os intercessores, os patronos mais próximos como intermediários, como Nossa Senhora e os Santos. Basta lembrar aqui a festa dos padroeiros no catolicismo popular tradicional.45

42 Ibidem, p. 53. 43 BEKHÄUSER, Op. Cit. p. 18. 44 Ibidem, p. 20. 45 Ibidem, p. 22-23.

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Introduzindo aqui um viés produzido pelo trabalho de Pedro Ribeiro, podemos

compreender melhor como funciona esta dinâmica devocional, através do enfoque menos

institucionalizado Não podemos entender a piedade popular, se não levarmos em conta a

concepção elaborada pelas pessoas do povo a respeito da figura dos santos. Eles não se

reduzem somente aos santos canonizados pela igreja. "A concepção popular de santo é muito

mais abrangente do que a noção canônica." Até porque diz ele:

Os santos são pessoas. Isto é, seres individuais, dotados de liberdade, vontade, qualidades próprias, e uma biografia. Que habitam o céu, estando junto de Deus, e por isso tem poderes sobrenaturais. Porém, os santos não são apenas habitantes do céu; eles se fazem presentes na terra através de suas imagens, que são mais do que simples representação dos santos, pois agir sobre a imagem equivale a agir sobre a própria pessoa do santo. Segundo uma crença registrada no Nordeste, o corpo do santo vai para Roma, onde vira imagem, da qual são tiradas as cópias para os devotos. Por isso, a imagem deve ser tratada com todo o respeito. Não se diz de uma imagem que ela é 'comprada' ou 'vendida', mas sim que ela é 'trocada', embora seja trocada por dinheiro. E as imagens mais antigas são em geral as mais valorizadas, porque enquanto se sabe que as novas são feitas, as antigas são achadas. É justamente porque se acredita que a imagem concretiza realmente a pessoa do santo, que ela é objeto de culto ⎯ forma pela qual o devoto mostra ao santo seu apreço, seu carinho, seu amor ⎯ é objeto de invocação ⎯ é à imagem que o fiel se dirige para pedir ao santo proteção, favores e graças ⎯ e também objeto de punição ⎯ sendo castigada a imagem do santo que deixa de proteger os seus devotos.46

Na piedade popular aos santos, a psicologia da linguagem do relacionamento segue

outro esquema. Segundo Beckhäuser, quando uma pessoa se dirige diretamente ao santo, e lhe

pede uma graça, se observarmos isso de uma perspectiva antropomórfica, funciona

perfeitamente. Na medida em que a pessoa se dirige com fé e confiança, as maravilhas da

graça são lembradas diante de Deus Onisciente. Podemos dizer que o relacionamento se

processa desta maneira: "o fiel se dirige ao santo que, por sua vez, se dirige a Deus; Deus

atende ao santo que por sua vez, concede a bênção ou a graça ao fiel. O santo é o mediador de

forma muito personalizada e atual".47 Ou desta forma esquemática: "fiel > santo > Deus >

santo > fiel. Desta forma as maravilhas se tornam presentes pela mediação dos santos. É a

mediação do santo no mistério do culto memorial". Conforme acabamos de exemplificar,

segundo o autor, "O que o povo entende do culto dos santos e cultiva com fé é certamente esta

modalidade em que se dirige diretamente ao santo".48

46 OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de. A mesa da Palavra. In: Revista Eclesiástica brasileira. Vol. 43, fasc.172, Petrópolis: Vozes, 1983, p. 912-913. 47 BEKHÄUSER, Op. Cit. p. 24. 48 Ibidem, p. 24.

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A maneira mais simples de se prestar culto a um santo é oferecer-lhe um dom. Não

necessitando ser este dom material, coisa, objeto, como pode ser também algo mais simbólico,

como por exemplo, uma oração. Entretanto, sabemos que as ofertas mais comuns a serem

feitas para os santos são enfeites e velas. Este tipo de doação é feito em função da decoração

da imagem do santo, são mimos que lhe são doados no intuito de lhe fornecer agrado. No

mais das vezes são flores, fitas coloridas, flores de papel e até mesmo coroa e jóias. Vale

lembrar que boa parte das pessoas que se devotam aos santos são mulheres, ou pelo menos

são elas que se mostram mais em público praticando atos de devoção ou pelo menos os

exterioriza. Talvez seja por isso mesmo que além do que já foi descrito acima, adornem

também a imagem acrescentando, vasos de flores, bibelôs, estampas coloridas e retratos.

Esta maneira simples de prestar culto aos seus santos normalmente é feita de maneira

privada e doméstica. Um cantinho da casa fica reservado para esta especificidade, e a imagem

ou as imagens, ficam num pequeno oratório, normalmente de madeira que funciona como

nicho (lugar sagrado) cujo objetivo é ser reverenciado. Cabe ressaltar também que este tipo de

catolicismo com este tipo de devoção, antecede o advento do rádio e da televisão que

definitivamente lhes roubaram o lugar de destaque, principalmente a televisão. Talvez seja,

porque ela trabalhe diretamente com imagens, presentificando-as, substituindo assim, a

imagem do santo.

Outro aspecto a ser destacado é o costume popular de dar esmolas. Com as velas

ainda acesas e ao final da recitação das orações, antes de ir embora é comum que se dê

alguma esmola para o santo. Alguns trocados, moedas, que atendem a um objetivo prático que

cabe ao dono da casa ou a pessoa que cuida da imagem, de destinar esta importância sempre

em torno do culto. Quer seja comprando novos enfeites, velas, manutenção e limpeza ou ainda

sendo empregada na caridade feita em nome do santo distribuída aos pobres. Podendo ser

destinada também à irmandade que promove anualmente a festa em honra deste santo.

É preciso demonstrar ainda que o dom de algum objeto acontece por ocasião das

promessas. "A promessa é um trato feito com o santo, tendo por finalidade obter para o

promitente, um favor considerado como graça sobrenatural".49 A promessa precisa ser feita

com total confiança no poder do santo, caso contrário, o santo pode não atender o que lhe foi

pedido e o devoto ainda fica lhe devendo o prometido. Na relação devocional, a promessa

constitui em algo de fundamental importância e precisa ser cumprida. O devoto não deve ficar

em dívida com o santo porque, da próxima vez que precisar, pode não ser atendido; pior: o

santo poderá mudar de idéia e retirar a graça concedida ou até castigar. A punição pode ser

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dura como, por exemplo, perder o descanso eterno, até que alguém da família ou outra pessoa

cumpra a promessa e resgate a dívida. Por outro lado, ao santo cabe cumprir com a sua parte

concedendo a graça suplicada. Em não havendo retorno por parte do santo dispensando as

graças e fazendo sua devida mediação o suplicante, gente do povo, as vezes chega até a lhe

imputar castigos e represálias.

Continuando a seguir a pista deixada por Ribeiro, "as graças que podem ser

solicitadas aos santos por meio de promessas, bem como as formas de pagamento são

variadíssimas".49 E de acordo com seu raciocínio, não existem nem modelos nem padrões

rígidos e fixados que determinem qual a relação entre a graça pedida e o dom a ser feito ao

santo. Mas, ele mesmo indica que há certa equivalência entre elas. Graças mais difíceis, dom

mais sacrificado. Graças mais fáceis, sacrifícios mais suaves. Dentre as 'formas de pagamento'

podemos destacar várias. Romarias, ex-votos50 carregar pedras, vestir-se de forma especial,

pedir esmola, fazer as vezes de festeiro ou folião na festa do santo (por período curto, ou por

toda a vida), deixar crescer o cabelo de um filho, difundir a devoção, levantar um cruzeiro,

erigir uma capela, fazer uma festa, contribuir com grande quantia nela, publicar a graça

alcançada, varrer a igreja, promover reza, entre outros.

"As orações são o gesto típico do culto aos santos".51A tradição popular as distingue

entre duas categorias: as rezas mansas e as rezas bravas. Sendo que as primeiras são

destinadas ao louvor a Deus e aos santos. E as últimas, são tidas como mais pesadas, evocam

proteção, fórmulas mágicas, sobrenaturais e lidam com todo tipo de encantamento. Segundo

Ribeiro, elas não se enquadram no culto aos santos. Isto por causa de suas características

mágicas.

O sinal da cruz tem sido a forma de oração mais comum de todas e também a mais

simples. Normalmente é usado par iniciar ou concluir uma reza. Muito usadas também são o

Pai-Nosso, a Ave-Maria, o Salve-Rainha, o Glória-ao-Pai. Podendo ser recitadas à qualquer

hora do dia ou da noite, a condição necessária para a oração, é o desejo do devoto de colocar-

se em relação com o santo ao qual quer dirigir-se. Os extremos do dia são tidos como

49 OLIVEIRA, Op. Cit. p. 914. 49 Ibidem, p.914. 50 Ex - Votos: O termo "ex-voto" que quer dizer "por um voto alcançado". A prática de depositar ex-votos em santuários é tão antiga quanto a história da humanidade e é observada em diferentes culturas. Os ex-votos mais comuns são as esculturas de parafina e madeira da parte do corpo curada. No Brasil, foram os portugueses que introduziram a prática de depositar ex-votos nas igrejas. As promessas ligadas à saúde do corpo são as mais freqüentes. Elas geralmente não envolvem apenas o indivíduo e o santo, mas também os familiares, que funcionam como ajudantes ou acompanhantes no pagamento das promessas. Ver CORDEIRO, Antônio Clerton, op. Cit. 51 OLIVEIRA, Op. Cit. p. 916.

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momentos fortes para a feitura da oração. O meio dia também é tido como uma hora propícia.

Já no caso da Virgem Maria a hora ideal é seis da tarde. Entretanto, não há limites rígidos de

local, hora ou data para sua realização. Levando em conta o caráter pessoal da oração, cada

fiel fala com o santo de maneira bem livre e imediata.

Com relação a postura, também segue aos padrões já assinalados sobre a oração,

podendo ser feita em pé, ajoelhado, sentado, não importa. Importa sim é que o ato de rezar

demonstre uma atitude respeitosa diante do santo. As rezas não seguem uma especificidade

em relação ao que deva ser dedicado para cada santo. Também se pode observar aqui, certa

liberdade em relação ao que é ofertado a cada um deles. Embora saibamos que alguns deles

têm determinadas orações que lhes são mais comuns ou tidas como mais agradáveis a ele, o

que de fato mais importa é o conteúdo da reza, se ela é feita com fé.

Releva também nesse aspecto, observar que o povo normalmente dispensa a presença

de um mediador, que oficia o contato entre ele e o santo, nas rezas ou celebrações. Repito

aqui a célebre e muito repetida citação de Carlos Rodrigues Brandão, numa intuição e

observação geniais quando ele ao analisar o catolicismo popular tradicional, na pequena

comunidade de Itapira, recolheu os dizeres de D. Geralda que dizia, a exemplo do que

estamos tentando ilustrar, que ela raramente "ocupa padre"52 durante o ano. E que aos poucos

vai compondo o seu próprio "mapa do sagrado" 53 com o qual o povo de maneira muito sábia

e intuitiva toca pra frente sua vida cotidiana, repleta de dificuldades e alegrias, permeadas de

celebrações.

Propositalmente, foram omitidos alguns outros aspectos componentes desse tipo de

devoção, por exemplo: os três níveis propostos por Pedro Ribeiro na análise do catolicismo

popular tradicional, principalmente quando se trata do âmbito rural; onde se destacam os

santuários a nível regional, as capelas de beira de estrada a nível local, e os oratórios à nível

mais familiar. Foi dado maior grifo no aspecto oratório nesta parte do trabalho, porque é mais

íntimo e privado. Posteriormente, no capítulo segundo, será esmiuçado um pouco mais o

aspecto capelas, visto, que tem assento central dentro do mesmo, como um todo. E não será

abordado o aspecto santuário, por distanciar demais deste objetivo.

52 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os Deuses do Povo. São Paulo: Brasiliense, 1980, p. 124. 53 Idem, Ibidem. p. 126.

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1.3- A Autonomia Relativa do Catolicismo Popular Tradicional.

Neste tópico é importante demonstrar, que existe certa autonomia do catolicismo com

o qual estamos trabalhando, bem como, possibilitar ao leitor uma compreensão de que esta

autonomia se constitui à partir do catolicismo institucional e mais especificamente, à partir do

processo reformador ultramontano e romanizador54do catolicismo brasileiro, iniciado na

segunda metade do século dezenove e nas duas primeiras décadas do século vinte.

Naquele momento Pedro Ribeiro dizia com certo receio que este processo

comumente chamado de Romanização, parece estar relacionado ao movimento de reforma da

Igreja Católica na Europa que culminou com a centralização do seu governo pela Santa Sé.55

Podendo ser vista também sobre um enfoque sociológico, como sendo um processo de

estruturação do país com bases no sistema agrário-exportador que teve espaço após a

Independência do Brasil. Mas, o próprio autor nos exorta a permanecermos no nível do campo

religioso, propriamente dito. Relembra brevemente a situação da Igreja Católica no Brasil no

século dezenove, chama atenção para que se perceba o cunho reformador desse processo, e

finalmente, apresenta três aspectos que lhe parecem fundamentais para compreendê-los.56

1- O regime de Padroado57 fazia de padres e bispos funcionários públicos (...)

dependentes, de direito e de fato, do Governo Imperial.

54 ROMANIZAÇÃO: A romanização pode ser entendida, em termos gerais, como um movimento reformador da prática católica no século XIX, principalmente na segunda metade, que buscava retomar as determinações do Concílio de Trento, sacralizar os locais de culto, moralizar o clero, reforçar a estrutura hierárquica da Igreja e diminuir o poder dos leigos organizados nas Irmandades. O pensamento ultramontano, acompanhando de perto os princípios romanizadores, defendia os princípios da Igreja e condenava o pensamento liberal moderno em todas as suas dimensões. (GOMES, Francisco José da Silva. Lê Projet de neo-chretienté dans lê diocèse do Rio de Janeiro. Toulouse: Université de Toulouse, 1991, p. 444 – tese de doutorado.) (p.312) - ROMANIZAÇÃO II “A romanização é um processo de reformas religiosas iniciado há mais de cem anos na Europa, durante o pontificado de Pio IX (1846-1878) e que visava implantar, no mundo todo, o mesmo modelo de catolicismo: o modelo romano”. Cf. Pedro A. Ribeiro de OLIVEIRA. “Religiões Populares”. Curso de verão – Ano II, p. 120. 55 OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de. Catolicismo Popular e Romanização do Catolicismo Brasileiro. In: Revista Eclesiástica Brasileira. Vol. 36, fasc. 141 Petrópolis: Vozes, 1976, p.131. 56 OLIVEIRA, Op. Cit. p. 132. 57PADROADO: Na legislação canônica, o direito de conferir benefícios eclesiásticos. Fundamentalmente, significa o direito de protetor, adquirido pelo benfeitor que fundou ou dotou uma igreja. O direito de Padroado, ligado ao Grão-Mestrado da Ordem de Cristo (sucedâneo ibérico dos antigos Templários), foi concedido ao rei Dom João I, de Portugal, pelo Papa Bonifácio IX, pela Bula Eximiae Vestrae Devotionis, no dia 1º de agosto de 1481. Consistia nas seguintes prerrogativas que, subseqüentemente, foram sendo cedidas pelo papa aos que detinha em suas mãos tal privilégio: a) o direito de apresentação dos candidatos a ocupantes de cargos da hierarquia eclesiástica, como o de bispos, por exemplo: o rei os apresentava e o papa era livre de nomeá-los ou não; b) o direito de apor o Placet (também se empregava o termo Exequatur) aos documentos e atos da Santa Sé; c)o direito de aceitar recursos contra decisões dos bispos e d)o direito de cobrar do povo católico os dízimos e, em contrapartida, a obrigação de pagar em salário (Côngrua) aos bispos e vigários, além do dever de proteção às ordens religiosas. No Brasil, havia duas ordens de padroado: o rei, para a apresentação dos bispos, e o da Ordem de Cristo, para apresentação dos benefícios, com ou sem cura. O governo brasileiro, depois da independência,

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2- As Ordens Religiosas tradicionais (jesuítas, franciscanos, beneditinos e carmelitas),

espinha dorsal da igreja no Império, estavam em franca decadência. Restritas no ingresso de

noviços. Os bispos ao invés de contar com estas ordens religiosas na pastoral reformadora,

tinham que reformá-las.

3- Clero em estado deplorável do ponto de vista eclesiástico (...). Alguns padres

praticavam simonia, viviam em concubinato, dedicavam-se a atividades comerciais ou

políticas, eram relapsos em relação ao sacerdócio. Inclusive, podiam desrespeitar as sanções

episcopais pelo recurso ao Imperador, que tinha efeito suspensivo, minando assim a

autoridade episcopal.58

Diante desse quadro sombrio e desafiador, os bispos reformadores pautaram as suas

ações nos seguintes pontos:

1- Dedicaram-se mais aos assuntos internos da Igreja, não assumindo cargos na

política imperial conforme havia feito seus predecessores.

2- Procuraram trazer da Europa, para ajudarem na empreitada da reforma da Igreja,

para servirem de apoio, novas ordens religiosas, padres missionários e irmãs de

caridade.

3- Criaram os Seminários fechados, rigoristas, através dos quais, só seria facultado o

ingresso no sacerdócio, a quem por eles tivesse passado. Vemos ali uma tentativa

clara de formar padres com um espírito clerical, com intensa vida espiritual,

afastado dos interesses políticos e familiares, e que se dedicassem exclusivamente

aos serviços religiosos.59

Ainda de acordo com Pedro Oliveira, através dessas medidas estes Bispos

Reformadores,

criaram as bases para o exercício de sua autoridade religiosa. "Com o tempo, (...) Foi formado no Brasil um novo clero diocesano separado do 'mundo', isto é, mais dependente do Bispo e da Igreja do que de suas famílias de origem e do poder político local. É sobre esse clero piedoso e moralmente irrepreensível, formado nos seminários rigoristas, que se vai assentar a autoridade episcopal. Porém, para que este clero tivesse de fato autoridade

solicitou da Santa Sé o direito de conceder padroado, através de concordata. A Bula de 1827 concedeu à coroa brasileira os mesmos direitos que tinha Portugal, isto é, o padroado secular da coroa, quanto às catedrais, e ao eclesiástico da Ordem de Cristo, para os benefícios. Semente de 1843 em diante é que o padroado foi afirmado como um direito do Estado. A República, com a separação da Igreja do Estado, liquidou com Padroado. FONTE: SCHLESINGER, Hugo & PORTO, Humberto. Dicionário Enciclopédico das Religiões. V. II. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 1963 – 1964 58 Ibidem, p. 132. 59 Idem, Ibidem, p.133.

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sobre os leigos também era necessário que os leigos também passassem por uma reforma.60

O autor trabalhado nos autoriza a dizer que as informações obtidas sobre as atividades

religiosas processadas na colônia, no processo anterior a romanização, distinguem em duas

modalidades as atividades religiosas dos leigos: as irmandades e confrarias, e as lideranças

leigas. As irmandades podem ser distintas em duas: irmandades de Misericórdia e outras com

fins devocionais e cultuais.61 O objetivo principal dessas instituições era o culto ao santo

patrono. Segundo o autor "não tinham estatutos ou diretoria, mas seguiam normas tradicionais

que atribuíam a cada membro deveres e direitos no grupo."62 Em relação as confrarias chama

atenção para três de suas características.

1- Diretoria nas mãos dos leigos. Mesa provedora, eleita pelos confrades, deliberativa

sobre todos os negócios da irmandade. Ao capelão era reservada uma função

exclusivamente religiosa. Ele era contratado pela mesa provedora, podendo ser

renovado ou não.

2- Após a aprovação dos estatutos das entidades, pela autoridade eclesiástica, ou pelo

Rei, elas passavam a ser autônomas e isoladas. Não havia nenhum órgão de

coordenação das irmandades.

3- O brilho das cerimônias e procissões dependia das irmandades. A única função do

sacerdote nas festas religiosas, era oficiar a missa solene e atender aos pedidos de

sacramentos. Toda a organização corria por conta delas.

São denominadas lideranças leigas pelo autor, as pessoas que ocupavam uma posição

de destaque nas atividades religiosas, devido a sua atuação ou vocação. Não precisavam

pertencer a uma irmandade. Também não precisavam ser reconhecidas institucionalmente. As

lideranças leigas institucionais são ermitães e sacristães cuja função era reunir o povo para as

rezas, dirigir o culto e responsabilizar-se pela guarda da capela. Funcionavam como uma

espécie de diáconos ou ministros leigos (atuais) sem autorização para ministrar sacramentos.

60 Idem, Ibidem, p.133. 61 Importantes trabalhos foram produzidos no Brasil sobre a temática das Irmandades Religiosas. Cf. BORGES, Célia A. R. M. Devoção branca de homens negros: as Irmandades do Rosário em Minas Gerais no séc. XVIII. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, UFF, Niterói: 1998. SCARRANO, Julita. Devoção e escravidão. A irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no Século XVIII. 2. ed. São Paulo: Nacional, 1978.; BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder. Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986. 62 OLIVEIRA, Op. Cit. p. 135.

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O outro tipo de liderança, as não institucionais eram constituídas por homens que se

dedicavam à vida ascética. Levavam vida de penitência e oração, viviam de esmolas,

abrigavam-se em ermidas, isolados do mundo, sozinhos ou em pequenos grupos.

"Perambulando pelo interior, rezavam benziam, batizavam, casavam e curavam, sendo tidos

como homens santos pelo povo, para quem sua reza equivalia uma Missa, mas,

freqüentemente sofrendo oposição por parte do clero."63

Sobre o mesmo tema vale registrar o importante trabalho de Douglas Teixeira

Monteiro: Os Errantes do Novo Século, quando analisou o interessante diálogo entre o Frei

Rogério Neuhaus e o Beato João Maria (O monge), ocorrida em 1897, na região serrana de

Santa Catarina, comumente denominada de Contestado. O frade já vinha se queixando do

"indiferentismo religioso", pois, "só quando havia festa, o povo acorria, mas abstraindo de

raras exceções ⎯ não para rezar, mas para se divertir." Outro ponto importante dos reclames

do frade, são alguns "desvios" praticados pelo monge que chegava a invadir domínios

exclusivos do sacerdote. Mas, emblemáticas mesmo são as frases, fragmento do diálogo, que

Monteiro chama de a expressão sintética da pretensão de autonomia desse tipo de catolicismo:

"A minha reza vale tanto quanto uma missa!" ao que o frade retruca discordando

peremptoriamente, afirmando contra: "Pois na missa, Jesus Cristo vem descendo sobre o

altar", entretanto, o monge não se dá por vencido e reafirma: "para aqui também vem."

Apontando para a sua caixinha (oratório portátil).64 O diálogo ainda continua, o monge acaba

cedendo, mas o desfecho já é historicamente conhecido. João Maria descamba para a luta

armada com seu povo em defesa da terra. Devido ao grande confronto de interesses, o local é

arrasado pelas forças do exército. Uma empresa multinacional atravessará a região, vitoriosa

em suas ambições escoadas sobre os trilhos de uma estrada de ferro.

Esta temática já havia ganhado espaço nas reflexões de alguns teóricos do catolicismo

antes mesmo do grande debate da REB, 36 acontecer, vejamos como Antônio Rolim nos

apresenta a inquietação:

As festas religiosas, as procissões, as solenidades dos santos padroeiros, as associações e irmandades religiosas, mesmo o tipo de sermões, tudo isto constitui uma teia complicada, misto de religião e de cultura local, através da qual a sociedade impõe suas normas aos comportamentos religiosos.” (...) Convém ressaltar que, dentro de um catolicismo acentuadamente leigo, a

63 Idem, Ibidem. p. 136. 64 MONTEIRO, Douglas Teixeira. Os errantes do Novo Século. Um estudo sobre o surto milenarista do contestado. São Paulo: Ed. Duas Cidades, 1974. P. 88-89.

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sensibilidade eclesiástica facilmente se encontrava desajustada, entrando em atrito com esse catolicismo social.65

Outra maneira de abordar o mesmo tema é observar como Cartaxo Rolim o abordara,

também naquele debate amplamente utilizado neste capítulo, desta vez, na REB. 36, 1976.

"Os santos, entre os quais o povo coloca também Jesus Cristo, o Espírito Santo, manifesta a

presença de um tipo especial de poder, um poder extraterreno, na vida do povo".66 Ou ainda,

"Assim é o povo que faz seu santo. Por mais que a Igreja apareça na frente com o seu

calendário, santo milagreiro é santo do povo. Nem precisa pedir permissão à Igreja para criar

o seu santo".67

Mais um pouco dessa parcial autonomia é observada quando o autor descreve a

maneira como o povo simples lida com estes poderes e mistérios.

Santo que o povo venera nem sempre é aquele que a igreja apresenta. Também aqui é o povo que ainda faz o seu santo, escolhendo entre muitos propostos pela Igreja. (...) Santo que o povo cria tem a festa que o povo lhe dá. O calor e o entusiasmo que imprime às festas de padroeiro um colorido humano, impregnado de costumes e modos populares, vêm do povo. (...) Santo que o povo cria e festeja está nos lugares que o povo escolhe. Os centros de romaria quero dizer, o lugar do santuário, principalmente a casa e o local dos ex-votos, tornam-se lugares santos para o povo, lugares dele, onde se sentem à vontade, porque o povo os faz como focos irradiadores de poder sagrado.68

Vale ressaltar, que a citação nesse momento, de trechos desse autor, torna-se mais

adequada, para conferir sentido e ajudar na exposição do tema autonomia, por julgá-lo de

mais difícil exemplificação.

No interior desse debate, Rolim indica uma questão que o preocupava à época no

âmbito da pastoral. "O que mudar no catolicismo popular, o que conservar nele" e acrescenta:

"O corte de uma forma devocional ou o seu controle não significa que se atingiu o que lhe é

subjacente." Ainda segundo ele, a intervenção da autoridade eclesiástica nas práticas

religiosas do povo, ocorrem denotando o interesse da Igreja em guardar sua unidade de

crenças.

65 ROLIM, Antônio. Em torno da religiosidade no Brasil. Revista Eclesiástica Brasileira. Vol. 25, 1965, p.101. 66ROLIM, Francisco Cartaxo. Condicionamentos Sociais do Catolicismo Popular. In: Revista Eclesiástica Brasileira. Vol. 36, fasc. 141 Petrópolis: Vozes, 1976, p. 159. 67 Idem, Ibidem, p. 160. 68 Idem, Ibidem, p. 160. 67 ROLIM, Op. Cit. p. 169.

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Entretanto, este sentido de autoridade sob forma de controle ou de tolerância manifesta uma distância entre os dirigentes eclesiásticos, seus auxiliares leigos, e o povo. Esta distância permite uma ação autoritária mais do que compreensão dos fatos. Investido de poder e tendo estudado teologia, o padre é quem manda em sua paróquia e sabe onde e quando corrigir. Entretanto, seus esquemas de pensamento não são os esquemas de pensamento religioso do povo.69

Para ele a intimidade entre os fiéis e os santos é tão grande que chega a existir uma

"aproximação estreita, uma quase familiaridade." Os problemas vividos no dia-dia são

apresentados ao padroeiro de forma concreta, como gente da casa, no nível vivencial,

cotidiano. De modo que se sobrepõem os interesses imediatos do suplicante, e se ocultam algo

de maior profundidade. Esta intimidade ao qual o autor descreve, é tão capilarizada que se

processa de uma maneira, distante de outras mediações e, sobretudo as institucionais.

Diríamos que os santos penetram na vida dos que os veneram, misturando-se com seus problemas, suas necessidades mais urgentes, nos negócios na vida familiar, nos casamento nos amores. E tudo isto, sem cerimônia, sem se precisar de apresentação, sem intermediário. Tudo se passa entre o santo e seu devoto.70

Segundo Pedro Ribeiro, a variedade de elementos simbólicos utilizados na devoção

aos santos extrapola em muito os cânones da liturgia oficial, entretanto, eles não são gestos

por demais antagônicos a ela. Estas formas populares de devoção refletem uma cultura

popular. São formas de expressão. As diferenças devem ser atribuídas às diferenças de classe

social, e de culturas. Não como desvios. "Tanto assim, que o povo sente-se perfeitamente

dentro da Igreja Católica, sem atribuir ao culto aos santos uma conotação de contestação

religiosa". O autor ainda reforça: "não se trata de um culto paralelo ao culto oficial, (...) trata-

se, sim, de um culto onde a liberdade expressiva dos devotos não fica limitada ao código da

liturgia oficial.71

Este processo de autonomia relativa do catolicismo popular tradicional, foi

amplamente demonstrado pelo Teólogo Faustino Teixeira, professor do departamento de

Ciência da Religião da UFJF. No primeiro capítulo de sua tese de doutoramento, onde

abordou o tema dando-lhe a seguinte estrutura: duas formas dinâmicas, uma interna e outra

externa. Um âmbito urbano e outro rural. Sendo que no nível rural desta análise do

"catolicismo tradicional popular" ele ainda subdivide em três, os níveis para facilitar a análise

69 ROLIM, Op. Cit. p. 169. 70 Ibidem, p. 159. 71 OLIVEIRA, Op. Cit. p. 918.

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e a compreensão. Nível regional, nível local e por último nível doméstico. No trecho a seguir,

entendemos que o autor faz uma síntese desse processo de autonomia:

Resumindo, pode-se dizer que as comunidades eclesiais de base possibilitaram a nova emergência de um catolicismo de base leiga. Neste sentido a "História desabrocha novamente não mais com o nome de 'capelinhas de beira de estrada com seus capelães' mas com o nome de 'comunidades de base com seus dirigentes', novamente leigos e escolhidos pelo povo." Nas comunidades eclesiais de base recupera-se ⎯ sob novos moldes ⎯ uma experiência de catolicismo onde o leigo pode assumir uma posição ativa na comunidade religiosa.72

Os leigos que paulatinamente foram perdendo espaço no interior do campo religioso,

por causa de uma forte pressão, e por uma eficaz ofensiva da instituição católica através da

Romanização, eclodem de um processo de encubamento, que se processou entre nós,

principalmente à partir da Segunda metade do Século dezenove, dentro das chamadas CEBS.

A religião do povo trazia tudo isso para dentro da Igreja. Exercia uma crítica muito forte ao

mundo e suas estruturas. A religião, que estava a serviço da opressão durante muitos séculos,

começou a ser mais popular. Deus é dos pobres. A prática religiosa inclui uma vida voltada

para o irmão. Esta mensagem brotava da religiosidade do povo e foi confirmada através de

muitas declarações oficiais da hierarquia.

Trazendo essa discussão mais para perto do nosso contexto atual e também procurando

dar-lhe um desfecho, comentamos um artigo que foi escrito por André Luiz da Silva,

professor de Antropologia da Universidade de Taubaté. Segundo ele, existem muitos estudos

que versam sobre o catolicismo e a Igreja Católica. Porém, há dificuldades para destacar nesta

bibliografia, estudos voltados de forma específica para a religiosidade propriamente dita.

Desde Procópio Camargo, na década de sessenta, fala-se muito do catolicismo, mas enquanto

instituição: Igreja em relação com o Estado, o Poder ou a Política. Cresce a dificuldade

quando o assunto se volta para as devoções populares.73

72 TEIXEIRA, Faustino Luis Couto. A gênese das CEBS no Brasil: elementos explicativos. São Paulo: Ed. Paulinas, 1988. p. 31. 73 SILVA, André Luís da. Faces de Maria: catolicismo, conflito simbólico e identidade. Um estudo sobre a devoção a Nossa Senhora de Shoenstatt na cidade de Ubatuba. São Paulo: PUC-SP, 2003. (Dissertação de Mestrado, Programa de Ciências da Religião, 2003. p. 01). - Devoções Populares no Brasil: Contextualizando Algumas Obras das Ciências Sociais. Este trabalho é uma versão ligeiramente modificada de um tópico do segundo capítulo da dissertação de mestrado em ciências da religião, "Faces de Maria: catolicismo, conflito simbólico e identidade", defendida pelo autor em março de 2003 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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Através das análises de Carlos A. Steil, passamos a conceber que o social e o religioso

não são consensuais, levando em conta o que é ambíguo e contraditório. Onde se privilegia as

tensões e o social é visto como um drama, um campo de força em luta.74

Analisando, assim, uma tese na área de Sociologia da Religião (Oliveira, 1985) ao lado de

outras três teses de Antropologia (Brandão, 1986; Maués, 1995; Steil, 1996) observamos que

esses quatro trabalhos abordam as relações entre o catolicismo erudito e o popular, e

consideram o campo do catolicismo popular como o espaço de re-significação da Religião

católica oficial. Entretanto, no âmbito específico das relações entre a esfera oficial e popular,

há um deslocamento na compreensão destas relações para a direção que interpreta estas re-

significações e re-apropriações de símbolos e representações como um movimento recíproco

ou um fenômeno de mão dupla, conforme a sugestão do conceito de circularidade, cuja

ênfase encontra-se nos fenômenos de interação entre a cultura do povo e a das elites. 75

Segundo André Luís da Silva, no Brasil a Religião, enquanto uma esfera ainda

importante de produção de sentido, é a esfera em que o “saber local” e popular encontram as

maiores brechas para agir. Além disso, os estudos como o de Brandão (1986) e de Zaluar

(1983), entre outros trabalhos sobre o catolicismo popular, se destacam, 76 pois,

tiveram a virtude de contribuir para a superação do reducionismo inerente à Sociologia dos discursos institucionais dos anos 70, permitindo um entendimento da Religião em seus próprios termos e ampliando o modo de compreender as relações entre mundo religioso e política...77

Percebemos nitidamente através deste capítulo que houve um grande avanço na

consciência e na análise macro-sociais da religião dando forte ênfase nas funções sociais da

moral da Igreja Católica no Brasil. No entendimento de Pedro Ribeiro "um poderoso aparelho

de hegemonia"78 Entretanto, este modelo ainda não é suficiente para nos fazer perceber as

complexas relações e mútuas influências que se processam entre o modo de vida e a

concepção religiosa do mundo.

74 STEIL, Carlos Alberto. O sertão das romarias: Um estudo antropológico sobre o santuário de Bom Jesus da Lapa - Bahia. Petrópolis: Vozes, 1996. 75 SILVA, André Luís da. Op. Cit. p. 04. 76 Idem, Ibidem. p. 05. 77 MONTERO, Paula. Religiões e dilemas da sociedade brasileira. In: BARROS, S. M. P. de (org.). O que ler na ciência social Brasileira. (1970-1995). V. 1. São Paulo: Anpocs: Capes, 1999. P. 361.

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Na maioria dos casos as ações romanizadoras foram ressemantizadas pelo povo, que no contexto das condições do regime do padroado, já era habituado a formar suas concepções religiosas fora do espaço de ação do clero.79

De acordo com o teólogo Faustino Teixeira na introdução da revista sobre religião da

Unisinos, nas últimas décadas o campo religioso vem sofrendo processos de reconfiguração,

com transformações, novidades e rupturas que hoje já não são consideradas habituais. Tendo

como referência os números apresentados no senso 2000, o professor destaca a acentuada

perda de hegemonia do catolicismo.80 Nessa edição também expõem seus trabalhos, dois

outros autores que abordam o tema catolicismo e meios populares dos quais destacamos

trechos do trabalho de Carlos Rodrigues Brandão, autor já consagrado dentro dos estudos

sobre religião e Edimilson Pereira, pesquisador do departamento de letras da UFJF, atuando

como professor convidado no PPCIR, nesta mesma instituição.

Brandão ressalta que o catolicismo que vimos chamando de catolicismo popular

tradicional é parte integrante de uma religião de grandes contrastes entre seus professantes, e

que carrega apesar de tudo uma grande tolerância, que no cotidiano é sentido como:

... uma rara religião que, em suas muitas faces, permite que você seja uma forma de presença nela, mesmo quando você acha que já não é mais dela. Não é que haja religiões demais dentro do catolicismo. Ele é uma religião em que Deus pode ter muitos rostos. Bem mais do que os três das pessoas da Santíssima Trindade. É uma religião que acolhe formas diversas e até opostas de ser dela.(...) incorpora-se polissemicamente às várias culturas e às várias situações dos culturais mundos em que existe. (...) Isto a que damos o nome de "catolicismo" envolve uma das mais abertas e generosas religiões de nosso tempo. (...) só é possível se ser católico não se sendo integralmente católico.81

O professor Edimilson Pereira apresenta o catolicismo popular tradicional como sendo

um fator de resistência do povo e denomina-o como sendo catolicismo santorial, e destaca o

aspecto de ressignificação.

Se, por um lado, a migração de pessoas do interior para as cidades, a ruptura de laços familiares e a interferência dos meios de comunicação de massa atuam como possíveis diluidores do catolicismo santorial, por outro lado, estimulam os devotos dessa tendência a adotarem práticas e discursos auto-referenciais. Nas relações de interação e conflito com outras vivências do sagrado, o devoto reinaugura os seus vínculos com

78 OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Religião e dominação de Classe: gênese estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985. P. 274. 79 Idem, Ibidem. p. 274. 80 www.unisinos.br/ihu p.06. 81 www.unisinos.br/ihu p.72.

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os santos e redefine o seu papel no grupo. (...) trata-se, enfim, de experimentar a fé nos santos como uma atitude que marca o trânsito do devoto entre uma realidade local e as demais instâncias da sociedade da globalização. Talvez, por isso, crise não seja a expressão mais pertinente para se abordar o catolicismo santorial, pois o que está em jogo não é apenas a questão de perda ou ganho de certa vivência do sagrado mas também a percepção das possibilidades que este oferece ao devoto para compreender o mundo.82

Como vimos o catolicismo popular tradicional se vincula ao catolicismo como um

todo, não devendo ser encarado apenas pelo viés da forma desviante, embora tangencial. Deve

ser compreendido melhor em oposição ao processo de renovação Ultramontano. Eclodiu

novamente após o Concílio Vaticano II juntamente com os movimentos populares. Releva

justificar o pouco adensamento nas questões atuais do tema, haja vista, a necessidade de

delimitar o debate sobre a devoção a Santo Antônio na região do Vale do Paraíba sendo

levada em direção às cabeceiras de seu afluente mineiro Paraibuna, no decurso de um período

de cem anos, que vai do fim da primeira metade do século dezoito até a primeira metade do

século dezenove, respectivamente. Final do período Colonial e início do Império.

82 www.unisinos.br/ihu p.78.

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CAPÍTULO 2 - A INTRODUÇÃO DA DEVOÇÃO A SANTO

ANTÔNIO NA REGIÃO DE JUIZ DE FORA.

“Da minha aldeia vejo quanto de terra se pode ver no Universo...Por isso minha aldeia é tão grande quanto outra terra qualquer”.

(Fernando Pessoa)

“Canta a sua aldeia” (Tolstoi)

A devoção a Santo Antônio no Brasil se consolida dentro dos marcos temporais

delimitados neste trabalho, séculos XVII-XVIII. Vale dizer que a devoção que está sendo

analisada e a cidade que em torno dela se aglutina nasceram exatamente no período de maior

efervescência da presença de Santo Antônio entre nós Brasileiros. "O teólogo Antônio Vieira

atestava que já nos primeiros anos do século XVII Santo Antônio era invocado na colônia

como santo casamenteiro" 1

O autor afirma que Santo Antônio é o mais popular de todos os santos portugueses:

empresta seu nome a vilas, cidades (como ocorreu em Juiz de Fora) pessoas e até acidentes

geográficos. Ressalta também que apesar de o matrimônio não ter sido muito prestigiado pelo

catolicismo medieval, no que diz respeito ao componente sexuado, a tradição popular tratou

de revestir essa celebração de sacralidade, mas, preservando nela a dimensão erótica. Segundo

ele "algumas figuras de santos, passaram a ter na mente do povo a missão específica de

promover os casamentos, e até mesmo de avivar a paixão sexual."2 Enquanto a instituição

hierarquizada valorizava o aspecto espiritual do matrimônio, e destituía qualquer caráter

sagrado da relação sexual, a tradição popular ressacralizava a dimensão sexual dos

casamentos, tão importantes na antiguidade, através da invocação aos santos. E Santo Antônio

é um deles.

Sua festa é celebrada no mês de junho, contrapondo antigas celebrações agrárias e da

fertilidade, recolhidas por Teófilo Braga. É ele quem cita tópicos de antigas canções populares

de Lisboa e do Algarve, como estes versos:

Como explicar plausivelmente o caráter galhofeiro, desenvolto, em que o santo influi nos casamentos, e as cantigas lúgubres e quase obscenas com que o povo

1 AZZI, Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colonial brasileira. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2004. p .172. 2 Idem, p. 168.

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invoca esse tipo ascético do primitivo claustro franciscano? [...] o absurdo tem a razão de ser; os cultos clitorianos, sempre orgiásticos, como persistiram entre os povos da Europa; a Igreja santificou algumas dessas práticas inextinguíveis, transportando-as para suas lendas piedosas. Dá-se com Santo Antônio essa apropriação dos vestígios dos cultos fálicos de uma extinta religião ctônica. [...] Santo Antônio é brejeiro/e alguma coisa mais./ faz chorar as raparigas/ E andarem sempre aos ais.3

Outro importante aspecto que podemos demonstrar é o que Riolando Azzi assinalou

como sendo a Teologia da Guerra. Segundo ele a teologia católica medieval dedicou especial

atenção a este objeto de reflexão.

A guerra é fundamentalmente a negação do pluralismo humano em termos políticos, econômicos, culturais e religiosos. A guerra é o esforço por eliminar a tensão e o conflito provenientes dos entrelaçamentos dos interesses humanos, mediante a destruição dos opositores.4

Santo Antônio também está inserido totalmente nessa prática. O Frei Manoel Calado

constrói uma verdadeira teologia da história, quando chega a afirmar que as vitórias obtidas

pelos combatentes da fé, ou por aqueles que pertencem ao "povo de Deus" são conquistas

obtidas por mediação divina direta, e não de forças militares.5

Enquanto o capitão negro Henrique Dias celebrava a proteção de Nossa Senhora do Rosário, os lusos enalteciam a assistência dada por Santo Antônio ao chefe das tropas de João Fernandes Vieira. Na luta contra os holandeses, Santo Antônio aprece em determinada circunstância exortando o chefe luso a fim de que não esmoreça em seu espírito bélico quando, fatigado da peleja, queria entregar-se ao repouso.6

Ainda a título de ilustração, importa apresentar um terceiro aspecto que o professor

Riolando Azzi assinala a respeito do Santo Antônio, na segunda parte do seu livro de 2004, no

capítulo sobre a Teologia do Povo Eleito. O santo das coisas perdidas. Segundo o autor, em

termos de intercessão e proteção junto de Deus, não há dúvidas que Santo Antônio goza do

maior prestígio na sociedade colonial. Isto se deve principalmente a dois fatores: Por ter

pertencido à ordem franciscana e serem os frades os primeiros evangelizadores dessas terras;

e talvez o mais importante deles, por ser português de nascimento. Então, além de

casamenteiro, patrono de guerreiros, será também santo 'achador' de objetos perdidos. "Na

3 Teófilo Braga. História da poesia popular portuguesa. Lisboa Veja, 1987, p. 142-143. Apud AZZI, Riolando. 171. 4 AZZI, Op. Cit. P.127. 5 Idem, p. 135. 6 Idem, p. 137.

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realidade, a proteção de Santo Antônio acabou sendo invocada nas mais diversas

circunstâncias pela população colonial." Vejamos como o Padre Vieira apresenta um elenco

destas petições, em um sermão, que segundo o professor Azzi, chega a ser jocoso:

Se vos adoece filho, Santo Antônio; / se vos foge um escravo: Santo Antônio; / se mandais a encomenda: Santo Antônio: / se esperais o retorno: Santo Antônio; / se requereis o despacho: Santo Antônio; / se aguardais a sentença: Santo Antônio; / se perdeis a menor miudeza da casa: Santo Antônio; / e talvez, se quereis os bens alheios: Santo Antônio!7

2.1. O Catolicismo Popular Tradicional e a devoção a Santo Antônio na região do

Morro da Boiada.

A introdução de uma imagem dedicada a Santo Antônio, na região do Vale do

Paraibuna, nas proximidades de onde mais tarde surgiria a cidade de Juiz de Fora, a devoção

que surge em seu redor, e a institucionalização dessa devoção, tornam-se objeto de estudo,

pois, trata-se de um aspecto do Catolicismo Popular Tradicional, com importância

fundamental para a fundação da cidade. Desde o final do século passado e início deste século

XXI, estamos presenciando um despertar da pesquisa histórica, sobre a religiosidade nesta

cidade. Entretanto, o período de estudo em questão, (a introdução da devoção a Santo Antônio

em Juiz de Fora) permanece no âmbito do domínio popular, sustentado por argumentações

verbais com grandes lacunas documentais, necessitando de uma investigação acadêmica

analítica.

Em razão do padroado, do número limitado de dioceses das longas vacâncias de bispos, da escassez de prelados para atender toda a amplitude do território brasileiro, como também da pouca aplicação no Brasil das normas do concílio de Trento, Ter-se-á aqui um catolicismo predominantemente leigo. Grande parte das iniciativas religiosas eram leigas. Na introdução de certas devoções, na construção de oratórios e ermidas para o culto da imagem venerada, como na organização das confrarias e irmandades, tiveram os leigos um papel singular. A parte devocional representava um campo relativamente autônomo, sob a responsabilidade e promoção dos leigos.8

7 HOONAERT, Eduardo. História da Igreja no Brasil - Primeira Época. Petrópolis, Vozes, 1983, p. 351, Apud, AZZI, Op. Cit. p. 264. 8 TEIXEIRA, Faustino Luis Couto. A gênese das CEBS no Brasil: elementos explicativos. São Paulo: Ed. Paulinas, 1988. p. 16,17.

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Por intermédio dessa pesquisa, observamos que o catolicismo popular tradicional teve

seu desenvolvimento no Vale do Paraíba, principalmente na região de São Paulo. É de lá que

vêm os Bandeirantes que toparam com as terras das minas do ouro e de lá trouxeram sua

religiosidade. 9 Embora o rio Paraibuna seja tributário do Paraíba alcançando-o somente no

estado do Rio de Janeiro, Juiz de Fora pertence à mesma bacia hidrográfica, e naquele

momento, as distâncias não se faziam sentir da mesma forma como para nós hoje se

apresentam. A cidade partilha de uma mesma cultura, inclusive religiosa, devido a esta

ligação geográfica ancestral. Estudos que comprovam esta afirmação podem ser obtidos

através do trabalho de pesquisadores da região de Taubaté e Lorena no Vale do Paraíba em

São Paulo.10

Nossa ancestralidade era ensinada seguindo tradição oral (inclusive nas escolas) da

seguinte maneira: Juiz de Fora iniciara como povoado agrícola às margens do Rio Paraibuna,

ao longo do Caminho Novo. A dedicação do patronato religioso a Santo Antônio teria

advindo do seguinte fato, por ocasião do alargamento da picada indígena, procedido por

Garcia Paes, este bandeirante que vindo de Paraíba do Sul, onde tinha suas roças, sua enorme

gleba de terras e até uma alfândega, teria saído da porta da Igreja de Santo Antônio, paróquia

com o mesmo nome, próxima ao lugar chamado Werneck. Segundo esta tradição oral, Garcia

levantou uma bandeira contratando aventureiros para proceder ao alargamento do que será

depois o Caminho Novo. O bandeirante sendo português teria trazido como padroeiro de sua

bandeira uma imagem de Santo Antônio, e na ocasião de sua passagem por este lugar teria

deixado numa capelinha de beira do caminho a referida imagem, que daí então deu origem ao

povoado da Boiada e posteriormente ao nicho ancestral que é tão caro à história da cidade.

Entretanto, a maior parte desta exposição acima não se sustenta sobre nenhuma forma

documental. Por isso, propomos que toda vez que nos referirmos à presença de Santo Antônio

em Juiz de Fora, estaremos falando de uma devoção também de beira de estrada, só que

documentada com petição oficial feita à Diocese do Rio de Janeiro, sede do Bispado a qual

estava submetida naquele momento, haja vista, que a criação do Bispado de Mariana só

ocorreria em 1745, no mesmo ano que o de São Paulo. Trata-se da Capela solicitada por

Antônio Vidal, rico fazendeiro, que radicado na região com sua família e sendo cristão,

institui entre nós esta devoção sobre a qual trataremos com mais detalhes posteriormente, no

item, 2.2.

9 SODERO Toledo, F. Caminhos do Ouro. In: Portal Vale do Paraíba - http://www.valedoparaiba.com/terragente/artigos/art0012000.html., quarta-feira, 14 de setembro de 2005, 12:05:38. 10 SODERO Toledo, F. Op. Cit.

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Com base nos trabalhos realizados por diversos pesquisadores do IHGJF. (Instituto

Histórico e Geográfico de Juiz de Fora), que produziu um caloroso e até acirrado debate

acerca do tema da fundação da cidade na década de 80, nos trabalhos de pesquisa mais

recentes, que muito nos nortearam, produzidos pelos pesquisadores do AHJF. (Arquivo

Histórico de Juiz de Fora), bem como pelo Núcleo de História Regional da UFJF, e do

CEHILA-JF, sugerimos, que a devoção a Santo Antônio teria chegado à região, por força da

ação exploratória metalista, impetrada por paulistas, frente aos sertões em busca de um outro

El Dourado, por ocasião da abertura dos Sertões do leste, região citada nos documentos

régios, como sendo Áreas Proibidas dos Sertões do Leste.

À procura do ouro e pedras preciosas, seguiram os bandeirantes, desde os primórdios da história colonial, rumo ao interior. Da Bahia da Guanabara teria saído , em abril de 1531 , a primeira expedição a tocar as Matas das Minas Gerais. Calógeras tentou reconstituir-lhe o roteiro, e Derby admitiu a possibilidade da entrada. Eram quatro portugueses a explorar o sertão da costa do Rio de Janeiro. Conta-nos Pero Lopes de Souza, em seu diário, que eles, durante sessenta dias, andaram cento e quinze léguas pela terra, sessenta e cinco delas por montanhas e cinqüenta por um campo muito grande. Basílio de Magalhães duvidara de que apenas quatro homens pudessem aventurar-se a tão profundo embrenhamento. Impossível, porém nunca seria que, transposta a serra dos Órgãos houvessem os desbravadores vadeado o Paraíba, pisando a terra mineira.11

Este nome Sertões do Leste, dado à região é devido a grande quantidade de índios,

não catequizados e não 'civilizados', que resistindo a ocupação de suas terras no litoral

Fluminense, aos poucos, acabaram sendo expulsos, mediante a superioridade das armas do

invasor e da falta de imunidade ás suas doenças, sendo obrigados por isso a se embrenharam

nas matas densas e mais altas, da serra do Mar e da Mantiqueira, ocupando toda essa área e

resistindo enquanto puderam. Os índios, principalmente os Tamoios e Cataguás provocaram,

dessa forma, um bloqueio, mantendo a região fechada desde o 'descobrimento' até o início do

século dezoito. Grandes partes dos documentos régios da época mandam que se evite os

'Sertões do Leste' ou as 'Matas do Leste', sem, contudo explicitar o porque de enfática

proibição. Esta intrigante interdição veio a tona a partir de estudos realizados, como por

exemplo este do pesquisador Paulo Mercadante supra citado.

Para se alcançar as Minas Gerais havia três principais meios através de estradas que

conduziam ao seu interior, que na verdade seguiam os caminhos ancestrais ditados pela 11 CALÓGERAS, Pandiá. As Minas do Brasil e Sua Legislação ⎯ Geologia Econômica do Brasil, tomo I, págs. 17 e 19. Orvile Derby, em Revista do Instituto Histórico de São Paulo, V, pág. 241. Basílio de Magalhães,

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natureza: o Caminho dos Currais do Sertão para a Bahia, margeando o rio São Francisco, ao

Norte. O Caminho Velho que fazia a ligação do rio das Mortes e o arraial de Vila Rica aos

portos de Parati e Santos, a Oeste. E o Caminho Novo para o Rio de Janeiro, passando pelos

rios Paraibuna, Irajá, e Iguaçú, ao Sul. Foi neste último caminho que trabalhou

influentemente, o filho do bandeirante Fernão Dias Paes, o português Garcia Rodrigues Paes,

que promoveu uma missão exploratória: uma Bandeira (expedição particular) com o objetivo

de construir um caminho com melhores condições de trânsito, passando por dentro dessas

proibidas áreas. Garcia melhorou os antigos caminhos indígenas já existentes no lugar. Não

devemos perder de vista o fato de que os nativos se deslocavam em constantes migrações

internas, em virtude de serem nômades, ou semi-nômades. Em relação ao desbravador

importa destacar uma breve biografia:

LEME, Garcia Rodrigues Pais natural de São Paulo; faleceu em 1738; filho de Fernão Dias Pais de Maria Garcia Betim (filha de Garcia Rodrigues Velho); casou-se com a prima Maria Antônia Pinheiro da Fonseca, com quem teve quatro filhos. Acompanhou seu pai na jornada em busca das esmeraldas do Sabarabuçu (1674-1681). Em 1783, recebeu a patente de capitaõ-mor e partiu, três anos mais tarde, da vila de São Paulo em direção a Minas, onde descobriu ouro nas ribeiras da serra do Sabarabuçu. Em 1698, abriu uma picada para o Rio de Janeiro, conhecida com o tempo como Caminho dos Cataguases ou como Caminho Novo. Entre 1701 e 1704, pôde contar com a ajuda da Coroa nas despesas com a construção do caminho depois valeu-se do apoio de seu cunhado Domingos Rodrigues da Fonseca Leme. Em 1702, era nomeado guarda-mor das minas, também recebeu o privilégio de controlar as passagens dos rios Paraíba e Paraibuna; em 1709, obteve a guarda-moria vitalícia por cinco gerações; em 1710, esteve na Corte e recebeu o hábito da ordem de Cristo; colaborou com a sustentação das tropas dos governadores em diversas ocasiões; em 1718, recebeu quatro sesmarias e mais quatro para seus filhos, além disso, recebeu da coroa a tença anual de 5.000 cruzados; em Minas, estabeleceu-se em São Sebastião do Rio Abaixo.12

Este influente Bandeirante, obtém concessão da Coroa Real e procede a abertura, ou o

alargamento, da antiga picada indígena para facilitar o trânsito de tropas de burro, que

transitavam carregadas com ouro quando desciam para a capital, ou com víveres e sal na

subida para a província, destinados ao abastecimento das populações mineradoras e ao gado

bovino. Estes caminhos eram acompanhados de roças, de milho, mandioca e feijão, que

garantiam aos passantes, e aos animais o sustento, e afastava o assombro da fome que, como

Expansão Geográfica do Brasil até Fins do Século XVII, Rio, 1915, pág. 9. In: MERCADANTE, Paulo. Os Sertões do Leste, Estudo de uma Região: A Mata Mineira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973, p.15. 12 FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil. São Paulo: Comissão do IV Centenário de São Paulo, 1953. p. 209-211. VASCONCELOS, Diogo de. História antiga de Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1904. p. 154-157. In.: CCM, p. 44.

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sabemos, foi muito comum no início do povoamento nas terras das Minas dos Gerais.13 Todo

este esforço fora também empreendido, com a clara função de encurtar as viagens em até

quinze dias, favorecendo assim o escoamento do ouro das Minas, até o porto na província do

Rio de Janeiro, com mais segurança e melhor controle régio, evitando o contrabando. Este

caminho seria posteriormente denominado "Caminho Novo dos Campos Gerais”, descrito

pelo primeiro historiador juizforano Albino Esteves,14 citando o viajante, cientista, naturalista

e padre, André João Antonil, nascido em São Paulo, entre os anos 1670-1680, descendente de

italianos. É considerado o primeiro dos cientistas viajantes a passar por esta via, visto que, seu

livro (Cultura e Opulência do Brasil pelas Minas do Ouro) fora escrito nos albores do século

XVIII, e impresso no ano de 1711, sendo para nós importante relato histórico.

(...) Do Rio Paraybuna fazem duas jornadas à roça do contraste Simão Pereira, e o pouso da primeira é no matto. Da roça do Simão Pereira se vai à Matias Barboza: e dahi à roça de Antônio de Araújo: e desta à roça do capitão José de Souza: donde se passa à roça do alcaide Mór, Thomé Corrêa: e deste á de Manoel Araújo. E em todas estas jornadas se vai sempre pela vizinhança do Paraybuna. Da roça do dito Manoel Araújo, se vai a outra roçinha do mesmo. Desta roçinha se passa à primeira roça do Snr. Bispo: e dahi à Segunda do dito. Da Segunda roça do Snr. Bispo fazem uma jornada pequena, à Borda do Campo, à roça do Coronel Domingos Rodrigues da Fonseca. 15

Paulo Mercadante, diz, que à orla do Paraibuna vão brotando localidades. Em 1714, D.

Brás Baltazar dividiu a capitania em quatro comarcas: Vila Rica de Ouro Preto, Vila Real de

Sabará, Rio das Mortes, e por fim a do Serro Frio. Juiz de Fora pertencia a terceira; a do Rio

Das Mortes, que circunscrevia toda a enorme extensão desde o rio Paraopeba e Congonhas

rumo ao sul, até o rio Paraibuna (Serra da Mantiqueira, região limítrofe entre as capitanias do

Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. A região é montanhosa, tem clima ameno. Flora

rica em plantas medicinais, mata generosa em madeiras de lei, cedro, braúna e jacarandá.

Fauna composta por veados, capivaras, pacas e porcos-do-mato.16

13 SOUZA, Mello e Laura de. Desclassificados do ouro. A pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982. 14 Trata-se do Jornalista, cirurgião dentista, poeta e escritor Fluminense, natural de Sapucaia, que radicado na cidade, já na primeira metade do século XX, foi um dos fundadores da Casa Espírita, 1919, e da Academia Mineira de Letras. Estimulado pelo presidente da Câmara Municipal Dr. Oscar Vidal Barbosa Lage, produziu o Álbum do Município de Juiz de Fora, em 1915. Esta obra de cunho positivista é seguramente o roteiro inicial e mais firme, segundo alguns autores, para a historiografia da Cidade. 15 ESTEVES Albino. Álbum do Município de Juiz de Fora. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte: 1915. p. 16. 16 Sinopse Estatística do Município de Juiz de Fora, Rio, IBGE, pág. 28.

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Já se tentara também dar começo à catequese naqueles sítios, no primórdio do século XVIII, com a criação, por Carta Régia de D. João V, da freguesia de São Manoel dos Rios Pomba e Peixe, subordinada ao bispado de São Sebastião do Rio de Janeiro. 17

Também naquelas margens ficavam as sesmarias, com a função precípua de dar

pouso e suprimento aos viajantes, e ao comprido da grande via, iam surgindo, Furnas, Casas

Fortes para segurança das riquezas, bem como Capelas para oração.

Numa delas, obtida em 1709, por Domingos Gonçalves Ramos, na atual cidade de Santos Dumont, então despontou um agrupamento com casario disperso, futuro arraial de João Gomes, nome de um lavrador adquirente. Nas terras apareceram ranchos onde os viajantes do Caminho Novo se abrigavam. Próximo, cresceu lavoura e criação. Levanta-se, mais tarde, a primitiva capela de São Miguel e Almas, cuja construção deve-se talvez ao velho João Gomes.18 A capela, à margem do Caminho, é dedicada a São Miguel e Almas, protetores invocados dos Bandeirantes na perigosa travessia da Mantiqueira.19

Segundo Lima Bastos, 20 é dado por certo que dois anos depois de iniciada a abertura

do caminho, fora estabelecido o primeiro núcleo de povoamento da região, (anterior à fazenda

do Juiz de Fora) denominado de "Rocinha" (antiga fazenda da Tapera e atual bairro de Stª

Terezinha) ainda segundo o autor, nesse momento, Garcia Paes se encontra em situação

precária, sem recursos financeiros e com poucos escravos devido a muitas fugas sertão

adentro. Neste contexto, em 08 de julho de 1703, escreve ao governador D. Álvaro pedindo

que se informe a Sua Majestade os destinos do feito. Obtendo resposta favorável, Sua

Majestade agradece o esforço encetado em carta de 14 de julho de 1709. E não para por aí.

Em outra carta de 14 de novembro de 1718, procede a concessão de quatro sesmarias, sendo

uma para cada um dos seus quatro filhos. 21

A sesmaria ou "datta" cedida à filha de Garcia, D. Antônia Tereza Maria Paes, esposa do Alcaide-Mor Thomé Corrêa Vasques, constitui precisamente, a área em que se

17 MERCADANTE, Paulo. Os Sertões do Leste, Estudo de uma Região: A Mata Mineira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973, p.15. 18 Múcio de Abreu e Lima, "Origem da cidade de Santos Dumont", O Sol, 13-2-1948. Santos Dumont. Célia Cortes de Figueiredo, Murta, Santos Dumont, IBGE, 1967. O Sol, edição de 11 de maio de 1947. "O Centenário da Cidade de Santos Dumont", em O Diário, belo Horizonte, 23 de setembro, de 1947. Diogo de Vasconcelos, Belo Horizonte, 1904, Pág. 259. In: MERCADANTE, Paulo. Os Sertões do Leste, Estudo de uma Região: A Mata Mineira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973, p.38 19 MERCADANTE, Paulo. Op. Cit. p.38. 20 BASTOS, Wilson de Lima. Caminho Novo: A Espinha Dorsal de Minas, Juiz de Fora: Funalfa edições, 2004. p. 14. 21 Percebe-se claramente aqui a desconsideração com o nativo, pois as terras são consideradas sem dono. Cabe a quem as recebem, cultivar a terra, abrir roças, impetrar trabalho escravo, introduzir criações, incentivar o povoamento e aumento populacional.

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localizou o centro do povoamento, mais um século e meio depois "Vila de Santo Antônio do Paraibuna" e, pouco tempo mais Cidade do Juiz de Fora. 22

Sobre o mesmo assunto podemos ver o que nos diz Jair Lessa23 em relação às

sesmarias. Como já foi dito, sua finalidade era ocupação, povoamento e produção de

alimentos nessas terras devolutas. Seu uso não era gratuito. O dono pagava tributos. Não era

obrigado a morar nela. Tinha que indicar se tinha posse de escravos (meio de sustento e mão

de obra). Podia encarregá-la a subalternos. Obrigava-se a manterem limpos, e atalhar os

caminhos, e a fazer pontes. Em caso de nela haver, ouro, prata, madeira de lei ou especiarias,

a propriedade seria regida por um estatuto especial. Para o nosso estudo os sesmeiros mais

importantes foram os que aqui se alojaram entre 1708 e 1710. São eles: O contraste Simão

Pereira, Matias Barbosa, Antônio de Araujo, José de Souza Fragozo, João de Oliveira, e

Thomé Correia Vasquez. (genro de Garcia Paes) Sendo deste último, a sesmaria mais

importante para a história de Juiz de Fora.

O primeiro cidadão a possuir terras ao longo do Caminho Novo em nossa região foi o

contraste24 Simão Pereira. Note bem, para efeito de melhor perceber as distâncias, estas eram

terras limítrofes de províncias, e já faziam parte das propriedades que compunham as

proximidades de Juiz de Fora.

Simão Pereira de Sá, bacharel residente no Rio de Janeiro, dizia-se "o primeiro povoador do Caminho e o primeiro que nele fundou roças". Embora não tenhamos conseguido localizar documentação autorizativa, verificamos sua presença anteriormente ao ano de 1708. As terras supostas de sua propriedade ocupavam uma região enorme. Deveriam atingir além da área demarcada no ano de 1716, também as terras que foram concedidas a Antônio de Araujo (dos Santos) e Matias Barbosa. (...) Simão Pereira, "para evitar demandas com vizinhos" requereu e obteve despacho favorável, a 31 de setembro de 1716, de confirmação de propriedade e demarcação de suas terras.25

O lugarejo acabou ficando com o nome do dono e fundador. Foi lá a sede da primeira

paróquia à qual estávamos ligados. Foi de lá que veio boa parte da documentação eclesial que

sustenta esta dissertação, que hoje se encontra a disposição para consulta pública no Centro de

Memória da Igreja Católica da Arquidiocese de Juiz de Fora. A sede do Centro Funciona

22 BASTOS, Op. Cit. p. 15. (Grifos do autor). 23 LESSA, Jair. Juiz de Fora e seus pioneiros, Juiz de fora: Gráfica da UFJF, 1985. p. 21-22. 24 Este nome contraste, deve-se ao ofício exercido pelo referido sesmeiro. Tendo se instalado em lugar estratégico da província, fazia ali a aplicação de uma técnica na Ganga que os garimpeiros lhe traziam para saber se a terra e o lugar onde estavam atuando, era propício ou não ao garimpo do ouro, adiantando-lhes as possibilidades de acerto. Serviço sobre o qual cobrava tributo. 25 LESSA, Jair. Op. Cit. p. 24.

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atualmente no prédio do Seminário Arquidiocesano de Santo Antônio. Esta paróquia esteve

dividida por pendência jurídico-eclesiástica entre as dioceses de Mariana e a do Rio de

Janeiro. Devido a este fato, parte da documentação daquela paróquia fora destinada para a

Mitra Diocesana daquele Bispado. Entretanto, cabe ressaltar, segundo Lima Bastos, a atual

cidade de Simão Pereira não corresponde ao sítio que foi a sede do primitivo povoado e da

primeira paróquia.26 Ainda segundo o mesmo autor é importante transcrever o depoimento de

Waldemar de Almeida Barbosa a respeito da criação da referida paróquia.

No sítio de Simão Pereira, foi criada a freguesia de Nossa Senhora da Glória, em 1718. Cônego Trindade cita dois documentos que confirmam a criação da freguesia de Nossa Senhora da Glória, em 1718, 'na fazenda que foi de Simão Pereira e Estrada Geral do Rio de Janeiro'. Foi tornada coletiva pelo alvará de 1752. Em meados do século passado, o lugar deveria achar-se em franca decadência. Lei de 31 de maio de 1850 transferiu a sede da freguesia para a capela de Juiz de fora. Foi restaurada a paróquia pela lei nº 576, de 05 de maio de 1852. Perdeu definitivamente a regalia de paróquia, com a lei nº 858 de 14 de maio de 1858, que transferiu a sede para o povoado denominado Rancharia, e com a denominação de São Pedro de Alcântara.27

Lima Bastos comenta igualmente, porém em outra fonte, a localização da paróquia

de Simão Pereira tendo por base o relato de viagem do naturalista Saint- Hilaire:

A igreja quase isolada foi construída a pouca distância do caminho no meio de uma pequena plataforma e atrás, eleva-se um morro, cujo cume é coroado de matas virgens e cuja encosta, outrora cultivada, não oferece mais do que arbustos. A paróquia que tem por sede esta igreja se estende numa distância de dez léguas portuguesas, desde o paraibuna até o lugar chamado Juiz de Fora. (4. Segundo Pizarro, a paróquia de Simão Pereira faz parte do termo de Barbacena; compreende mais de 2460 pessoas, e traz propriamente o nome de Nossa Senhora da Glória do Caminho Novo, ou de N.S. da Conceição. Diz o mesmo autor que Simão Pereira está situado a 21°, 52' de latitude, a 45° e 1/2 de Mariana e a 35 3/2 do Rio de Janeiro- Mem. hist. Vol. VIII, p. 2ª, pág. 203.28

Sobre o mesmo tema, utilizando como fonte o trabalho do padre Maximiliano de

Oliveira, devemos destacar, duas das mais antigas paróquias da nossa região:

26 BASTOS, Wilson de Lima. Caminho Novo: A Espinha Dorsal de Minas, Juiz de Fora: Funalfa edições, 2004. p. 60. 27 BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte: 1971. p. 501. 28 BASTOS, Wilson de Lima. Caminho Novo — Juiz de Fora. Juiz de Fora: Edições Paraibuna, 1993. p. 44. (Grifos do autor).

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D. Frei Manoel da Cruz, o primeiro bispo de Mariana e de todas as Minas Gerais, logo após sua posse, visitou pessoalmente toda a sua vastíssima diocese e conheceu as necessidades espirituais de todas as povoações. Dessas visitas pastorais, o que resultou pelo que nos toca, referente a nossa região, foi a criação do Curato de N. Senhora da Conceição de Ibitipoca Em agosto de 1750, desmembrado da freguesia da borda do Campo e a criação da freguesia de N. Senhora da Glória de Simão Pereira, em 1752, também desmembrada da borda do Campo. A esta última, i. é, a Simão Pereira que esteve sujeita toda a região do Paraibuna e do rio do Peixe, durante quase um século. 29

O professor Lima Bastos destacou da crônica de viagem de Saint-Hilaire o seguinte

trecho sobre a paróquia de Chapéu D'Uvas, também denominada Nossa Senhora da Assunção

do Engenho do Mato, que é a primeira paróquia da região de Juiz de Fora.

Confinada ao norte com a de Barbacena e começando ao sul na habitação de Juiz de Fora, é limitada desse lado pela paróquia de Simão Pereira (12. Encontra-se em Pizarro, a paróquia de N. S. da Assumpção etc., indicada como fazendo parte do termo de Barbacena, e situada sobre o caminho do Rio de Janeiro, a 56 léguas desta última cidade e 35 1/2 de Mariana (Mem. hist. Vol. VI-II, p. segunda, p. 203. Julguei que esta paróquia não pudesse ser outra que a de Chapéu D'Uvas.30

Temos falado até aqui que a devoção a Santo Antônio é devoção popular no início da

povoação, e que depois vai se tornando representante também de outras camadas da

população. Pretendemos deixar isto mais claro posteriormente, importa agora frisar o caráter

popular da devoção em sua chegada. Importa, igualmente, demonstrar o trânsito, a intensa

migração que fará da região além de uma passagem, uma parada importante neste Caminho

Novo. Mais importante que isso ainda, é demonstrar como ao longo desta passagem, desse

caminho, a religiosidade se fez presente, e ela era dedicada a Santo Antônio.

De olho no ouro ⎯ disse Simão Pereira Machado ⎯ "viu-se em breve transplantado meio Portugal a este empório já célebre por todo mundo". E logo atrás vieram os ciganos e os mascates. Afinal, a nova estrada reduzira a longa viagem de mais de três meses primitiva, em uma excursão de menos de um mês.31

Existe uma questão que tem relevante importância nesta parte do estudo, porque foi

processo histórico colonial. Trata-se da presença do negro, assunto sobre o qual não

29 OLIVEIRA, Maximiliano F.; Sinais de Igreja no Juiz de Fora. Traços históricos, Juiz de Fora: Tomo I , 2ª edição, 1976. p.22. (Grifos do autor). 30 BASTOS, Wilson de Lima. Caminho Novo — Juiz de Fora. Juiz de Fora: Edições Paraibuna, 1993. p. 44. (Grifos do autor). 31 LESSA, Jair. Juiz de Fora e seus Pioneiros, Juiz de Fora: Gráfica da UFJF, 1985.p. 19. (A questão da redução da distancia é questionável nesses parâmetros. Mas a afirmação é do autor) Grifo meu.

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abordaremos devido a especificidade do recorte trabalhado. Entretanto, uma dentre as muitas

contribuições legadas por grupos e mais grupos de negros trazidos à força ao Brasil, é o

aspecto religioso, e dentro dele o sincretismo. Este aspecto cultural provocado pela mistura de

etnias ocorrida no país, em nossa região também se fez sentir em ampla escala.

O nível de pluralização verificado no campo religioso mineiro foi, pelo menos até meados do século XX, bem menor que o de outros estados brasileiros. O sincretismo (afro-católico ou católico-indígena) nunca se desenvolveu em Minas no mesmo nível e com a mesma intensidade que – para citar um exemplo cômodo - na Bahia. (...) Neste sentido, o mito de Minas como “o estado mais católico do Brasil” teve a sua dose de verdade.32

Entretanto, não vamos nos ater nesta análise, por fugir do nosso objetivo, e por saber

das dificuldades que apresenta ao pesquisador, no que diz respeito a encontrar suas chaves de

interpretação no campo religioso atual.33 Portanto, faremos apenas registros de sua presença

na região estudada, como tributária de elementos constitutivos da religiosidade popular

analisada.

O que herdamos dos portugueses foi enriquecido com a contribuição legada pelos negros e pelos índios, formando um complexo cultural e social que é a mais autêntica fonte das nossas raízes brasileiras, somente superada pela influência européia. Neste sentido o catolicismo popular é também uma forma ou instrumento para se conhecer a própria cultura popular. 34

O padre Antonil será pioneiro na percepção da necessidade do afrouxamento dos

controles sociais sobre os negros cativos e a permissão para que se irrompam manifestações

sincréticas. Diz ele: "Negar-lhes totalmente os seus folguedos, que são o único alívio do seu

cativeiro, é querê-los desconsolados e melancólicos, de pouca vida e saúde." 35 Uma nação

que baseou sua mão de obra no braço escravo, e mais, fez uso demorado dessa mão de obra

está "fadada ao sincretismo religioso". 36 Laura de Mello e Souza argumenta que, tendo sido

32 MATA, Sérgio da. Chão de Deus: Catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais, Brasil. Séculos XVIII-XIX. Berlim: Wiss. Verl., 2002. p. 81 33 Pierre Sanchis "Religiões, Religião... Alguns problemas do sincretismo no campo religioso brasileiro" in Sanchis, P. (org) Fiéis e Cidadãos - percursos de sincretismo no Brasil, Rio de Janeiro, EdUERJ, 2001. 34 CESAR, Waldo. O que é "Popular" no Catolicismo Popular. In: Revista Eclesiástica Brasileira. Vol. 36.fasc. 141, Petrópolis: Vozes, 1976, p. 17. 35 ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. Belo Horizonte – Rio de Janeiro: Editora Itatiaia. (Coleção reconquista do Brasil, vol 70). 1997. p. 161. 36 BASTIDE, Roger. Les religions africaines au Brésil ⎯ Vers une sociologie des interpretations de civilisations, Paris, PUF, 1960, p. 260.

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retirados à força de suas aldeias, impedidos de recriar aqui o "ambiente ecológico" 37donde

hauria sua religiosidade e suas divindades, porém muito próximos do sistema mítico

originário, os negros recompuseram suas crenças da forma que puderam. Vejamos como

exemplo: como é que poderia estes miseráveis invocar fecundidade para as mulheres, se o

rebento do seu ventre nasceria escravo? Por que solicitar boas colheitas se o fruto desse suor

beneficiaria os brancos, iria para o comércio externo e não para a subsistência?

Mais valia pedir-lhes a seca, as epidemias destruidoras de plantações, pois colheitas abundantes acabariam se traduzindo em mais trabalho para o escravo, mais fadiga, mais miséria. (...) A primeira seleção operada no seio da religião africana colocaria de lado as divindades protetoras da agricultura, valorizando, em contrapartida, as da guerra ⎯ Ogum ⎯ , da justiça ⎯ Xangô ⎯ , da vingança ⎯ Exu. 38

Concluindo com as palavras de Laura de Melo e Souza:

Eivado de pragmatismos e de "imperfeições", conforme se viu acima, o catolicismo de origem européia continuaria, na colônia, a se mesclar com elementos estranhos a ele, multifacetados muitas vezes, como a própria religião africana transmigrada. Ainda no primeiro século de vida. A colônia veria proliferarem em seu solo as Santidades sincréticas, misturas de práticas indígenas e católicas. 39

Ou ainda,

O caráter marcadamente lusitano da religião e da cultura do povo mineiro tem suas raízes na corrida do ouro setecentista. Calcula-se entre 8.000 e 10.000 o número de aventureiros que embarcavam anualmente do Reino para as Minas. 40

Não é de se estranhar que tendo boa parte desse contingente passado por esta região,

deixasse aqui também algumas marcas influentes no âmbito da religiosidade. O que queremos

dizer com isso, é que além dos elementos indígenas e negros havia sem dúvida a presença de

aspectos da religião judaica (principalmente através de cristãos novos) presente na formação

religiosa desta região.

Traços católicos, negros, indígenas e judaicos misturaram-se pois na colônia, tecendo uma religião sincrética e especificamente colonial.(...) aqui tolerou-se e se incentivou

37 SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Cia das Letras, 1986. p. 94. 38 BASTIDE, Roger. Op. Cit. p. 91. 39 SOUZA, Laura de Mello e.op. cit. p. 94 -95. 40 MATA, Sérgio da. Op. Cit. p. 81.

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o sincretismo quando necessário mantendo-o nos limites do possível. A especificidade da religião católica praticada na colônia ⎯ o culto dos santos, o número excessivo de capelas, o aspecto teatral da religião, o que se convencionou chamar de "exterioridade" e de "ignorância religiosa" ⎯ escandalizou os viajantes estrangeiros que por aqui passavam, Diziam eles, sobretudo os anglo-saxões e protestantes que os brasileiros de cor estavam desvirtuando o cristianismo, fazendo dele uma mistura de imoralidade e cerimônias burlescas. 41

Depois de ter procedido esta descrição, retornamos ao ponto de maior destaque para o

próximo item. Esperamos ter feito a contextualização dos personagens em movimento pelo

caminho, bem como ter-lhes dado uma oportunidade de cuidar da alma como convém a todo

bom cristão, mesmo estando em trânsito. Pretendemos, pois, demonstrar a presença marcante

de Santo Antônio como mediador popular entre seus fiéis e suas crenças, e a divindade, neste

espaço determinado da província aurífera; portal Sul das Minas Gerais.

2.2. As principais capelas dedicadas a Santo Antônio no Vale do Paraibuna à

beira do Caminho Novo.

Os registros documentais fidedignos sobre Minas surgiram ainda no primeiro século

da ocupação da capitania (Grão Pará) por iniciativa pioneira do primeiro Ouvidor-Geral

designado para a região o Senhor Caetano da Costa Matoso. Foi por sua empresa, que se fez

recolher os primeiros relatos transmitidos oralmente, sobre a ocupação do lugar, ainda no

século XVII. Consta desse importante códice, o relato das primeiras capelas da Capitania das

Minas Gerais, Comarca do Rio das Mortes que segue abaixo conforme consta do original:

Compreende esta comarca as igrejas dos dois caminhos, Velho e Novo, que são reputadas por minas, e assim em primeiro lugar se falará delas. Importa aqui neste momento, a descrição apenas do Caminho Novo que vai do Rio de Janeiro: 1- A capela de Nossa Senhora da Glória, na roça de Simão Pereira, capelão padre Antônio Garcia da Rosa. 2- A igreja de Nossa Senhora da assunção do Engenho, anual, pároco o padre Caetano Lopes de Lima.42

3- A igreja de Nossa senhora da Piedade, anual, Vigário o padre José de Freitas.

41 SOUZA, Laura de Mello e. op. Cit. p. 99 - 100. 42 Trata-se da primeira capela propriamente dita, situada dentro da região da futura Paróquia de Santo Antônio, posteriormente desmembrada de Simão Pereira, atual, Arquidiocese de Juiz de Fora. Conforme já citamos anteriormente, esta vem a ser exatamente, a vetusta igreja de Nossa Senhora da Assunção do Engenho do Mato (Chapéu D'uvas). CAPELA: Igreja de dimensões reduzidas. É canonicamente erigida como oratório público, semipúblico ou privado de acordo com a sua destinação. SCHLESINGER, Hugo & PORTO, Humberto. Dicionário Enciclopédico das Religiões. V. I. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 501.

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Estas são as igrejas dos dois caminhos, que não são reputadas por de Minas. Seguem as que são da dita comarca do Rio das Mortes. 4- A igreja de Nossa Senhora da Conceição de Aiuruoca, anual, vigário o padre José Matol. 5- A igreja de Nossa Senhora do Pilar da vila de São João del-Rey, colada, encomendado o doutor Manoel da Costa Coutinho. 6- A igreja de Santo Antônio da Vila de São José, colada, vigário o padre José Nogueira Ferraz. 7- A igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Prados, anual, vigário o padre Manoel da Encarnação Justiniano. 8- A igreja de Santo Antônio de Itaverava, anual, vigário o padre João Ferreira Ribeiro. É vigário da vara deste distrito o sobrinho doutor Manuel da Costa Coutinho.43

Segundo o autor Sérgio da Mata, a maior parte das cidades mineiras comprova o poder

sociogenético da religião. Ele presta justa homenagem a mestres como o Cônego Trindade,

Zoroastro Vianna Passos, Sylvio de Vasconcelos, Augusto de Lima Júnior e Waldemar

Almeida Barbosa, tendo em vista que isso não lhes passou despercebido. Todos eles ressaltam

que a construção de uma capela foi o ponto de partida de muitíssimas das nossas povoações. 44

Este é também o caso de Juiz de Fora.

(...) É a partir do século XVIII, quando a descoberta das minas provoca grandes correntes migratórias de aventureiros portugueses e brasileiros em direção ás Minas Gerais, que o número de ermidas ganha maior importância.45

As primeiras impressões de um viajante penetrando o lugar, bem como o primeiro

relato sobre uma capela nessa região, estão registradas pelo historiador de Juiz de Fora,

Albino Esteves "a primeira capela que se tem notícia em nossa região é a capela do morro da

Boiada, transmitida por Saint Hilaire em Viagens às províncias do Rio de Janeiro e de Minas

Gerais". Escutemos o autor.

A impressão de Saint-Hilaire, assignalada em suas Voyagens dans les provinces de Rio de Janeiro et de Minas Geraes, dá para o caso, um delicado sabor evocativo, deixando, ao mesmo tempo, finalmente copiando o quadrinho bucólico então

43 Fundação João Pinheiro, Centro de Estudo Históricos e Culturais, 2002 (Coleção Mineriana – Série Clássicos); Códice Costa Matoso. Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das minas na América que fez o doutor Caetano da Costa Matoso sendo ouvidor geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em fevereiro de 1749 & vários papéis. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudo Históricos e Culturais, 2002 (Coleção Mineriana – Série Obras de Referência). Coordenação Geral: FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida e CAMPOS, Maria Verônica. P. 817. PS.: As iniciais em letras minúsculas, os nomes próprios igualmente assim citados, foram transcritos conforme a fonte. 44 RHEMA. Revista de Filosofia e Teologia do Instituto Teológico Arquidiocesano Santo Antônio. Juiz de Fora: ITASA, v. 4, nº 16, 1998. P.18. 45 TEIXEIRA, Faustino Luis Couto. A gênese das CEBS no Brasil: elementos explicativos. São Paulo: Ed. Paulinas, 1988. p. 41.

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observado pelos que iam da Côrte a Ouro Preto. Diz Saint-Hilaire: (...) A uma légoa e três quartos do Marmelo, encontra-se a pousada do Juiz de Fóra, nome que sem dúvida, provém do cargo que ocupava seu primeiro proprietário. Da venda de Juiz de Fóra tem-se deante dos olhos encantadora paizagem. Esta venda é construída na extremidade de um grande pasto, cercado de colinas por todos os lados. O Parahybuna corre junto ao caminho; há um pequeno córrego que nelle se lança, depois de atravessar a estrada e, sobre o córrego, uma ponte construídade de madeira, de effeito muito pittoresco: junto della uma cruz. Mais longe vê-se uma capela abandonada e as ruínas de um engenho de assucar. Junto da venda um grande rancho, e bem perto um paiol para milho. ( Saint-Hilaire. Viagens nas províncias do Rio de Janeiro e de Minas Gerais ⎯1816 a 1817). 46

Note bem o leitor, que ingressamos em terreno pantanoso. Passamos a adentrar o

perigoso campo das interpretações e o escasso domínio da historiografia documental em

relação a memória religiosa da cidade de Juiz de fora. Albino Esteves escreveu em 1915, e é

considerado também pelos pares de agora uma sólida fonte para o argumento posto. Todavia,

a questão da capela ancestral permanece a nos desfiar como em seu tempo. Há controvérsias

no que diz respeito a sua localização, principalmente porque não há vestígios evidentes. Mas,

o autor prossegue com as considerações propugnadas pelo ilustre viajante. Devemos salientar

que naquele momento em que Albino Esteves escreveu, sua preocupação maior era em

elucidar o nome do futuro município e o porquê deste epíteto de "Juiz de Fora", problema que

na verdade só foi solucionado anos mais tarde, na década de oitenta, pelo pesquisador

Alexandre Miranda Delgado. "Em 1816, como se vê já Saint-Hilaire dizia que o nome

pousada era, 'sem dúvida' proveniente do cargo que ocupava o seu primeiro proprietário." 47

O que de fato nos inquieta e que talvez não incomodasse naquele momento o ínclito

escritor, é a situação geográfica da capela original no Morro da Boiada, "Ah! Poético Morro

da Boiada, que embeleza a história dos nossos primórdios!" 48 e a alegação de que este lugar é

o atual bairro de Santo Antônio, na região Leste da cidade. Talvez, devido a maior

proximidade com moradores antigos do local e a memória oral ainda muito recente, nosso

primeiro historiador não tenha sentido a necessidade de se distanciar do aspecto nativo e

registrá-lo com maior isenção e rigor. Sem querer entrar no debate acirrado, que se disputou

também na década de oitenta no IHGJF, a tradição oral remete o nicho ancestral para este

lugar (Bairro de Santo Antônio) ainda hoje.

Entretanto, devemos assinalar que trabalhando neste sítio há nove anos, como

professor de história em uma Escola Municipal de primeira a oitava séries do ensino 46 ESTEVES, Albino. Álbum do município de Juiz de Fora. Belo Horizonte: Imprensa oficial do estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1913. p.p.45-46. (Grifo do Autor). 47 Idem, Ibidem. No terceiro capítulo abordaremos com mais detalhes a origem de Juiz de Fora e dos nomes da localidade.

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fundamental, afirmamos com pesar, que não podemos, na atual conjuntura, insistir que seja

este o ponto fulcral. Pelo contrário, há controvérsias. Inclusive baseadas em alguma

documentação, também indicando o contrário. Portanto, sem querer inicialmente entrar na

polêmica questão da querela das capelas, 49 reconhecemos, que acabamos de reabri-la.

Porém, não insistiremos nesse tema. Não neste recorte.

Embora reconheça o fator histórico e a importância da datação correta e devidamente

documentada, este aspecto está incluído no trabalho para demonstrar que há um vazio

historiográfico em torno dessa devoção, e que precisa ser enfrentado por ser relevante,

sobretudo, por se tratar da introdução da religiosidade católica, santorial, nos primórdios da

fundação de Juiz de Fora.

A capela em questão foi segundo o historiador Jair Lessa, uma capela dedicada a

Santo Antônio, que foi solicitada pelo fazendeiro Antônio Vidal, Pai do inconfidente

Domingos Vidal, em 20 de outubro 1741 (cópia do documento em anexo) e inaugurada em

1744. Conforme o original, o pedido se justifica devido a distância de até seis léguas, que a

sua família precisa deslocar-se para ouvir missa na igreja mais próxima, que é a paróquia de

Nossa Senhora da Glória de Simão Pereira. Com um agravante, o período das águas que torna

a viagem ainda mais penosa.50 Esta carta veio a luz pelas mãos do pesquisador e poeta,

Revmº padre Henrique Oswaldo Fraga de Azevedo,51 que a encontrou no arquivo nacional,

juntamente com outros documentos concernentes a jurisdição eclesiástica do período ancestral

dessa cidade.

Diz Antônio Vidal homem casado morador na freguesia de Nossa senhora da Glória, Caminho Novo das Minas, que ele suplicante mora em distância de seis léguas de sua Igreja Matriz, ficando a maior parte do tempo sem ouvir missa e a sua família, por

48 LESSA, Jair. Juiz de Fora e seus Pioneiros, Juiz de Fora: Gráfica da UFJF, 1985.p. 47. 49 Trata-se de um acirrado debate, trazido a público, inclusive através dos jornais locais, que aconteceu no final da década de setenta e início dos anos oitenta, (século XX) e que teve como palco o Instituto Histórico e Geográfico de Juiz de Fora, que opôs principalmente alguns de seus confrades, por ocasião da publicação do livro de Paulino de Oliveira, História de Juiz de Fora, que sustentou a tese que não era o Bairro Santo Antônio o local do referido morro. E mais, sustentava que a capela ancestral teria sido edificada à margem direita do Rio Paraibuna. Nesta mesma direção também segue Alexandre Delgado, que de posse de documentos, sustenta esta posição. Em posição divergente a esta afirmação, levantaram-se Sinval Santiago e Wilson de Lima Bastos que defenderam contra, também baseados em documentos, inclusive em publicação mais recente e póstuma, deste último, reafirmando, a veracidade do Morro da Boiada ser no lugar chamado Medeiros, (atual Bairro do Retiro) e vizinho do também atual Bairro de Santo Antônio. Sempre à margem esquerda do Paraibuna. Segundo o comentário de orelhas do livro, realizado pelo jornalista Wilson Cid, esta obra é conclusiva sobre a questão. 50 LESSA, Jair. Juiz de Fora e seus Pioneiros, Juiz de Fora: Gráfica da UFJF, 1985. p.49. 51 O professor, pesquisador e poeta, Henrique Oswaldo Fraga de Azevedo, foi padre da arquidiocese de Juiz de Fora, bacharel em teologia, e especialista em Estudo Comparado das Religiões. Começou a escrever "Evolução do Catolicismo em Juiz de Fora. (1741/1925)", tendo feito muitas pesquisas nesse intuito. Dois, dos capítulos desta importante pesquisa, estão publicados na revista RHEMA, do Seminário Arquidiocesano de Santo Antônio do qual, aliás, fora reitor no início da década de 80.

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causa da distância e dos máus caminhos e, por evitar o sobredito, e devoção que tem a Santo Antônio, quer erigir na sua fazenda uma capela com a invocação do dito Santo na qual possa satisfazer os preceitos de assistir missa e a sua família algumas vezes que tem, e o grande número de passageiros que continuamente andam por aquele Caminho, porém como não pode fazer sem licença, Pede a V. Excelência Reverendíssima faça mandar passar provimento para erigir a dita Capela, assinando-lhe o Reverendo Pároco do lugar e feita que seja no material para escritura de dote na forma da Constituição e com ela se recorrera a V. Ex.ª licença para nela celebrarem. (assinatura ilegível). 52

No verso do mesmo documento pode-se ler a seguinte resposta feita pelo procurador

da Mitra:

Exmo.º Ilm.º Senhor: ⎯ Deve-se remeter este Registro ao Pároco da freguesia para que pessoalmente vá ao lugar onde o suplicante quer edificar a capela, e lhe determine o sítio que fique separada das casas, e com passagem, informando da inutilidade que há, contanto que não fique em lugar deserto, e juntar o suplicante escritura de dote perfeito ao menos de seis mil réis em cada ano, imposto em propriedade rendosa, na qual por ser casado terá a assinatura de sua mulher hipotecando-a especialmente para para v. Ex.ª Revmª. De mandar passar Provisão de ereção sem embargo do que determinará o que o for mais justo. Rio ... de outubro de 1741. ⎯ Procurador da Mitra, Luíz Teixeira de Magalhães.53

Outro documento da mesma remessa traz o parecer do pároco da freguesia de nossa

Senhora da Glória, responsável em primeira instância, pela análise do pedido.

Exm.º e Ilm.º Sr. ⎯ não há dúvida que o suplicante é último morador desta freguesia da qual distam mais de seis léguas, e caminhos trabalhosos principalmente em tempo das águas, que para ouvir a missa são necessários dois dias. Também é exato que a capela que o suplicante quer erigir é necessária e útil, e não só para ele e sua família, mas também para os vizinhos, e passageiros de que é muito freqüentado por ser ele quase o único por onde se comunicam todas as minas. Porém, indo ao lugar para lhe assinar o sítio, não acho outro mais acomodado que junto as casas de sua vivenda, com as outras juntas a elas, mas com uma só parte do caminho, livre de todo o uso e comunicação doméstica, e não há na paragem outro, por serem todo matos e montes e onde tenha outro mais acomodado é de outra parte de uma (ilegível) a Paraibuna que é necessário passá-lo em canoa, e além disto dito Rio enche por ser a dita parte toda de água e capim. Que o suplicante me parece merecedor de graça que implora da inata piedade de V. Exm.ª e Revm.ª, que mais fará o que for servido. ⎯ Freguesia de nossa Senhora da Glória do Caminho Das Minas, ......de setembro de 1741. Beija os pés de V. Exm.ª e Revm.ª, seu menor súdito e ...... O Vigário, Antônio Gomes da Rosa. Aos vinte dias de do mês de dezembro de mil setecentos e quarenta e um fiz esta com vista ao Dr. e Rvd.º Procurador da Mitra, de que fiz este termo, eu José, T. marques ajudante dela.

52 CENTRO DE MEMÓRIA DA IGREJA CATÓLICA. Pasta Paroquial/ Igreja Matriz de Santo Antônio/ Juiz de Fora - MG. O documento está reproduzido na Revista do Instituto Geográfico de Juiz de Fora, ano IX -nº 9 fev. de 1995. p. 36. 53 idem.

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Com vista ⎯ 800 Exm.º e Rvm.º Senhor, ⎯ Não tendo dúvida mande V. Excia. Rvm.ª para se edificar a Capela, no lugar adonde assinalou o Rvd.º vigário da Freguesia. ⎯ Procurador da Mitra, Luis Teixeira de Magalhães. ⎯ Aos vinte e dois dias do mês de dezembro mil setecentos e quarenta e um. Escritura do dote de patrimônio de uma capela por invocação de Santo Antônio que fazem Antônio Vidal e sua mulher Teresa Maria de Jesus na sua fazenda do Juiz de Fora, por seu procurador e obrigação.54

A título de elucidação convém localizar de quem estamos falando. De acordo com

Lima Bastos55 a Biografia do ibérico Antônio Vidal é a seguinte: nasceu de pai com o mesmo

nome Antônio Vidal e D. Ana de Campos. Era da freguesia de Mamede, termo de Monterei.

Português por parte de mãe e espanhol da parte do pai. "A tradição, todavia que vem do

Caminho Novo dos Campos Gerais, considera-o português."56 Natural de região tão

estritamente fronteiriça foi Antônio, nascido de um lado e batizado do outro. Transferiu-se

para o Brasil, estabeleceu-se na região do Caminho Novo, em torno de 1735-38, contraiu

núpcias em Matias Barbosa, com moça brasileira, nascida em Irajá (Rio de Janeiro). Segundo

registro de Múcio de Abreu no jornal local de Juiz de Fora (Diário Mercantil de 05/05/1945) o

casal era tetravô do Duque de Caxias e proprietários da Fazenda dos Marmelos. Em 1751 fora

nomeado capitão de uma Companhia de 50 soldados de infantaria e seus auxiliares, os

ordenanças à pé. Tiradentes intitulava-os pedestres. Faleceu no dia 30 de dezembro de 1765,

apenas quatro anos após o nascimento do filho caçula, Domingos Vidal, que viria a ser o

médico, representante da região, entre os inconfidentes. "Foi sepultado na capela que

construíra em homenagem a Santo Antônio." 57

Para dar uma dimensão mais exata da questão em torno da primeira capela e para

torná-la histórica, devo explicitar duas peças importantes, (no caso pessoas) do debate

jornalístico do qual citei acima. O pesquisador Alexandre Delgado58 fez importantes

descobertas historiográficas no Arquivo Histórico Nacional e no Arquivo da Torre do Tombo

em Portugal. Analisando os mesmos documentos, o também pesquisador Sinval Santiago

54 idem. 55 BASTOS, Wilson de Lima. Caminho Novo: A espinha dorsal de Minas Gerais, Juiz de Fora: Funalfa edições, 2004. p. 77. 56 Idem. 57BASTOS, Wilson de Lima. Op, Cit. p. 77 e LESSA, Jair. Juiz de Fora e seus Pioneiros, Juiz de Fora: Gráfica da UFJF, 1985.p. 30-49. 58 Trata-se do pesquisador da história de Juiz de Fora que atualmente reside em Portugal e que conseguiu desvendar o enigma que havia em torno do nome de Juiz de Fora, bem como, quem de fato teria sido o magistrado, que ocupara o cargo historicamente, pondo fim em um longo período de especulações. Usando de seu prestigio e ilustração o respeitado historiador toma posição favorável a localização da capela na margem direita do Paraibuna, sempre se baseando em documentos, desta feita, usando o peso de sua influência para interpretá-los.

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escrevendo para um jornal da cidade explicita algumas fontes históricas e tira delas diferentes

conclusões.

Em artigo publicado no Diário Mercantil de 30 de julho de 1982, o

pesquisador do arquivo Histórico Sinval Santiago59 reitera que a primeira referência ao

povoado da Boiada aparece no "precioso e raríssimo livro Itinerário do Rio ao Grão Pará." De

autoria do coronel Cunha Matos. Neste mesmo artigo de jornal Sinval nos apresenta o que ele

mesmo chama de evidências da existência da Capela da Boiada, vejamos:

O bispo de Mariana, Dom Frei José da Santíssima Trindade, ao visitar a freguesia de Simão Pereira, em 1824, ali deixou lavrado de seu próprio punho o seguinte provimento: "população, 2460 almas. Capelas Curadas: São Francisco de Paula, São Mateus e Santo Antônio das Boiadas"(Juiz de Fora). (...) a 06 de março de 1825, é o Cônego inconfidente Manoel Rodrigues da Costa quem comunica àquele ilustre prelado (na qualidade de seu representante), Ter inspecionado a Capela da Boiada em fins do ano anterior, achando tudo digno de louvor se bem que a construção ainda não estivesse terminada. (...) o sítio da Boiada vem citado à margem esquerda do Paraibuna e junto ao Caminho Novo vem citado no diário da segunda viagem de D. Pedro I a Minas, em 1834, informa D. Frei José da Santíssima Trindade a existência de "uma capela no lugar das Boiadas, do orago de Santo Antônio, ereta no ano de 1822." (...) Finalmente, A lei provincial mineira, nº 174, de 06 de abril de 1839, endossa tudo quanto acima ficou dito, ao estabelecer novas divisas entre os distritos de Simão Pereira e o de Juiz de Fora ou da Boiada. (...) no auto de partilha entre os herdeiros de D. Maria do Sacramento, datado de 14 de agosto de 1837, existente no cartório do 1º Ofício da comarca de Juiz de Fora, consta das fls. 54 e 55, em prosseguimento arrolamento dos bens que couberam ao viuvo, o já então capitão Antônio Dias Tostes, (...) "e assim haverá o mesmo viuvo para seo pagamento hum rancho de tropas, cazas, de vivendas e huma morada de cazas tudo coberto de telhas na paragem denominada Boiada," etc. monsenhor Júlio de Paula Dias Bicalho, secretário do Bispado de Mariana (...) notabilizou-se como pesquisador e de assuntos relacionados com a história e o levantamento patrimonial daquela diocese. (...) Era o braço direito de D. Benevides. No Arquivo da Cúria Metropolitana Local, entre os papéis procedentes de Mariana, em 1925, existe um documento de sua autoria do seguinte teor: "o Reverendíssimo Vigário Dr. Venâncio Café informou-me que a primitiva capela de Santo Antônio de Juiz de Fora era a um légua, no lugar denominado Santo Antônio da Boiada em localidade hoje pertencente aos herdeiros do Sr. Barão de Juiz de Fora. Apontamento tomado em 16 de maio de 1893 em Juiz de Fora, pelo Monsenhor Júlio Bicalho."60

59 Trata-se do pesquisador, membro do IGHJF (Instituto Histórico e Geográfico de Juiz de Fora) militar reformado, que dedicou seus dias de aposentadoria a buscar elucidação para algumas incógnitas da história da cidade. Fez importantes pesquisas em Belo Horizonte (Arquivo Público Mineiro) em Mariana (arquivo Diocesano) e no Rio de Janeiro (Arquivo Nacional e Biblioteca Nacional). Dono de um humor fino e irônico, bem como de um temperamento esquentado, conforme deixa transparecer através dos artigos de jornais, que dele pude pesquisar. 60 ARQUIVO HISTÓRICO DE JUIZ DE FORA. Fundo Alfredo Costa. Notas Históricas/recortes de Jornais diversos, s/d.

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Com base nas argumentações acima e acreditando na existência do orago, passamos

a dar ciência do mais instigante de todos os documentos que tivemos acesso até agora. É um

artigo montado como coletânea, com base em várias fontes documentais, também escrito e

publicado pelo pesquisador Sinval Santiago, nele fica delineado um pouco do seu caráter seco

e direto, bem como seu senso de humor irônico. O artigo foi publicado em data diferente

daquele anteriormente citado, mas ainda no mesmo jornal. Citamos a parte que mais interessa

ao presente trabalho. Vamos a ele:

A existência do povoado, da capela de sobrado e de um cemitério no Morro da Boiada, no século passado, não padece mais dúvida, tal a exuberância de documentos oficiais elucidativos da magna questão. (...) Muito recentemente o Sr. Antônio Severo do Amaral ao proceder a uma escavação num terreno de sua propriedade, sito nos fundos das casas 21 e 31, da rua nº 1, no Bairro Santo Antônio, deparou, logo no início dos trabalhos com a ossada de alguns cadáveres. O serviço foi logo interrompido ante o inusitado encontro de alças de caixões, tíbias, crânios, úmeros e maxilares, dignos da musa inspiradora do saudoso poeta Augusto dos Anjos. Estivemos no local não só naquela como em outras ocasiões e pudemos constatar ali a existência de velhíssimos alicerces, visíveis á flor da terra. Não há nenhum exagero em acreditarmos seja aquele o lugar exato onde existiram a capela e o cemitério das Boiadas. O terreno é particular e ninguém mais ali construiu, pelo menos até ontem.61

O pesquisador Wilson de Lima Bastos, em sua última obra, postumamente publicada,

Caminho Novo: Espinha Dorsal de Minas Gerais afirma que não há dúvidas sobre o local e

a data da Fundação desse nicho ancestral, situando-a em 1747, nas proximidades da residência

Vidal, onde já havia a formação de um povoado por nome Medeiros, lá onde se falava em

morro da Boiada, "registrado pelo brigadeiro Cunha Mattos como Boiadeiro, área ocupada

pelo populoso bairro de Santo Antônio." 62

Lima Bastos busca refúgio no relato onde todos os estudiosos do tema convergem;

segundo ele, minucioso e claro, para respaldar suas afirmações. Talvez por ser detalhado em

termos de horário, as anotações do viageiro Brigadeiro Cunha Matos, figurem como sendo a

melhor e mais fidedigna fonte sobre o tema. O viajante passou por estas terras em torno de

1819.

Ás 10 horas e 35 minutos avistei o Rio Paraibuna correndo placidamente pela mesma várzea que lhe serve de leito. Ás 11 horas e 25 minutos passei pelo Ribeirão dos Arrependidos, e logo adiante pelo Rancho do Toste. Ás 11horas e 3/4 cheguei ao Rancho do Boiadeiro, junto ao qual existe a capela de Santo Antônio que se está reedificando numa bela posição. Adiante desse rancho fica o do Marmelo, que é muito

61 Idem. 62 BASTOS, Wilson de Lima. Caminho Novo: A espinha dorsal de Minas Gerais, Juiz de Fora: Funalfa edições, 2004. p. 113.

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espaçoso e bem conservado. Aos 40 minutos depois do meio-dia apeei-me no Rancho do Juiz de Fora, contíguo ao Paraibuna: é bom pouso e a venda está abastecida melhor do que outras desta estrada.63

E assevera o que já fora transcrito acima através de Sinval Santiago, dando-lhe

testemunho e confirmação sobre a existência de um achado antigo lá no Morro da Boiada,

(Bairro Santo Antônio), sítio sobre o qual voltamos a investigar no presente momento, com

interesse, através de pesquisa. Eis o que nos diz:

(...) como se percebe, já com quarenta anos de Caminho Novo, ainda era mui pouco habitadas extensas áreas. A capela foi então edificada, não havendo dúvidas de que era na margem esquerda do Rio Paraibuna, no local onde hoje se estende o Bairro Santo Antônio e onde, alguns anos atrás foram os alicerces de um velho e abandonado templo, com marcas de um cemitério anexo, tendo sido encontrados ossos humanos em remoções de terra.64

Também merece destaque especial uma citação de Jair Lessa sobre as celebrações

religiosas realizadas na capela de Santo Antônio da Boiada.

O batismo feito em 28/04/1822. Pelos dois padres Cerqueira Leite (José, vigário de Simão Pereira e seu parente João Marciano ⎯ um dos chefes da revolta de Santa Luzia) da menininha Cândida, filha "patrono da capela", que seria a Segunda esposa do engenheiro Halfeld. De fins de 1822 a começos de 1824, procedeu na capela, ofícios religiosos o padre Lourenço Gonçalves Lage.65

Na mesa linha de demonstração do uso da ancestral capela, está o documento que vem

a público neste presente trabalho que foi encontrado pelo pesquisador, professor Henrique de

Lacerda, que o encontrou no arquivo histórico de Barbacena no ano de 2004, e teve a

transcrição procedida pela professora Dr. Elione Guimarães também do mesmo arquivo.

Revendo o livro em que se descrevem os casamentos celebrados nesta freguesia a fl. 288 do mesmo lá se acha um assento deste teor = Aos treze de Novembro de mil oitocentos e trinta e nove pela uma e meia hora da tarde receberão em Matrimônio por palavras de presença Antônio Gonçalves da Costa filho legítimo de Francisco Gonçalves da Costa já falecido, e de Eufrásia de Cássia de Jesus nascido e batizado nesta Freguesia de N. S. da Assumpção, e de presente morador na Aplicação de S. Antônio da Boiada, filial da Freguesia de Simão Pereira, e Maria Franca Pires filha legítima de Francisco Garcia de Matos e de Anna Francisca Pires nascida e batizada nesta Freguesia depois de proclamados e dispensados legalmente do impedimento de consangüinidade em 2º grau de linha tranversal igual, por serem Primos co-irmãos, e

63 BASTOS, Wilson de Lima. Caminho Novo — Juiz de Fora. Juiz de Fora: Edições Paraibuna, 1993. p. 86. 64 Idem, p. 78. 65 LESSA, Jair. Juiz de Fora e seus Pioneiros, Juiz de Fora: Gráfica da UFJF, 1985.P.52.

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lhes dei as bênçãos nupciais na [presença] do R.R e Sr. Com Trid., sendo testemunhas além de muitas outras, Franco Antônio Correia e Joaquim Garcia de Matos, do que para constar fiz este assento em o dia, ora supra. Manoel da Silveira Gato. Nada mais continha e do mencionado Lº o extraie ao mesmo me reporto e afirmo infide Paróquia Engenho do Mato 11 de Dezembro de 1843 Vigº Manuel da Silveira Gato. Reconheço verdadeira a letra e sinal supra Barbacena 15 de abril de 1844 [ileg.] Maptise Pinto de Souza66

A Segunda capela também citada pelo historiador Jair Lessa, foi construída por um

outro fazendeiro, Antônio Dias Tostes, em sua propriedade. Também dedicada a Santo

Antônio, requerida a 11 de dezembro de 1815, e autorizada pelo príncipe regente D. João e

pelo Bispo de Mariana, em 13 de novembro de 1821. Neste ponto novamente retorna a

diversidade, pois se não há conformidade na primeira, aí uma empurra a outra. O historiador

da cidade escreveu em seu livro já citado da seguinte maneira:

Vejamos agora o que supomos ser a segunda capela. A construída por Antônio Dias Tostes (Pai), em seus terrenos. (...) Antônio Dias requereu, a 11 de dezembro de 1815, licença para erigir um capela e um cemitério, tendo recebido autorização de Mariana, em 13 de novembro de 1821.67

Note bem leitor que Jair Lessa diz textualmente que "supomos ser" a segunda capela e

atente também para o fato de que a sede do bispado já está transferida do Rio de Janeiro, para

a cidade mineira de Mariana. Parece-nos, e dizemos a partir dos autores que contrapomos, que

trata-se da capela de Santo Antônio mandada erigir por Antônio Vidal em 1741, inaugurada

em 1744, entretanto, reedificada como diz Cunha Matos numa propriedade que neste

momento pertence aos Tostes. "Em 1824, o cônego Manuel Rodrigues da Costa, visitando a

paróquia a mando do Bispo de Mariana, relatou que a capela das 'Boiadas' estava em bom

estada, embora ainda não acabada."68

Segundo Lessa, "de fins de 1822 a começos de 1824, procedeu na capela, ofícios

religiosos, o padre Lourenço Gonçalves Lage." 69 e cita também alguns dos habitantes mais

ilustres da sociedade local da época que freqüentavam a capela entre os anos de 1822 a 1839.

Os Tostes, (citação do autor) Francisco Vidal, Francisco Viera de Toledo, alferes José Bastos

Pinto, Antônio Fialho, Geraldo Gonçalves Lage, capitão Pedro Teixeira de Carvalho, Mariano

66 ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL PROF. ALTAIR JOSE SAVASSI – PREFEITURA DE BARBACENA. Assento de casamento juntado ao Processo de Ação de Força Nova, caixa 14, documento s/n, nº de ordem 03, 841. 67 LESSA, Jair. Op. Cit. p. 51. 68 Idem, p. 52. 69 Idem., p. 51.

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Dutra, Maximiano Francisco Moreira, José Santiago, Vicente Rodrigues Pontes, Antônio

Corrêa da Guerra, Bento Rodrigues da Silva, Francisco Gomes da Silva, alferes José Antônio

Henriques, e Ludivino Dutra de Moraes.

O Imperador Pedro I esteve na província de Minas Gerais por duas vezes passando

pelo Caminho Novo. Na primeira em 1822, ainda Príncipe Regente. Em sua segunda viagem

o príncipe, agora transformado em Imperador, fez-se acompanhar de sua esposa a Imperatriz

Dona Amélia. Do roteiro de viagem extrai-se a seguinte informação da trajetória cumprida em

terras de Juiz de Fora :

Dia 08 de janeiro de 1831, No lugar da Boiada, "Chegaram suas Majestades Imperiais, com uma marcha demorada por causa do mau tempo e caminho, pelas nove horas à fazenda da viúva Medeiros. Tinha determinado passar aí o resto do dia; mas o desejo que teve Sua Majestade Imperial de adiantar a jornada, auxiliado com a frescura do tempo, o fez resolver a continuar; e saindo os nossos Senhores às 11 horas, chegaram à Boiada, às 2 1/4 da tarde caminhando nas duas o espaço de 4 léguas. Amanheceram hoje com saúde e saíram às 5 horas e 3/4".70

Vamos nos valer novamente dos apontamentos de Lima Bastos para situar melhor a

Família Dias Tostes na região, bem como descrever um grande empreendedor desde os

primeiros tempos da ocupação do lugar, que adquiria sesmarias e as desmembrava para

revenda demonstrando uma visão imobiliária notável. A história da incursão dos Dias Tostes

em Juiz de Fora, baseando-se nos estudos efetuados pelo Dr. Múcio de Abreu Lima, membro

do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, Juiz de Direito da Comarca de Juiz de

Fora

começa com Antônio Dias Tostes - Neto - como era chamado segundo documentos existentes em Barbacena, "o moço". É que desde o velho português Antônio Dias Tostes, natural da Ilha Terceira, bispado de Braga, e filho legítimo de Nicolau Dias e D. Maria Pacheco, em todas as gerações vêm se conservando o nome Antônio e daí, por certo, a necessidade de qualificativos que distingam este daquele. Transferindo-se para o Brasil, onde se fixou definitivamente, o velho português, que era casado com D. Luiza Soares Ribeiro, estabeleceu-se em Santa Rita de Ibitipoca, em 1745, Santa Rita pertencia à freguesia de Borda do Campo. Lá nasceram a primeira e a Segunda geração dos Dias Tostes. O da Segunda geração, conhecido em Barbacena, como "o moço", em Juiz de Fora passou a ser conhecido por Tenente Antônio Dias Tostes. Era o filho mais velho de numerosa família, pois que em número de doze irmãos, filhos de Antônio Dias Tostes, e D. Maria Francisca de Jesus, residentes em Santa Rita de Ibitipoca, Fazenda do Curralinho, tendo o pai falecido em 13 de novembro de 1807 e a mãe em 1820. Vindo para Juiz de Fora, o tenente Antônio Dias Tostes, tendo adquirido a tradicional fazenda do Retiro, passou a residir nela e a explora-la. Tratava-se de uma grande

70 Idem.

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propriedade composta por três sesmarias. Registra Múcio de Abreu Lima que, posteriormente, por escritura de 30 de junho de 1812, comprou do Cel. José Vidal Barbosa e sua mulher D. Rita Thereza de Jesus a Fazenda do Juiz de Fora, duas vezes maior que a do Retiro, pois que era constituída de seis sesmarias. A compra foi feita a preço de onze contos setecentos e setenta mil reis (11.770$000) Com a inclusão da Fazenda do Marmelo e vinte e cinco escravos. Antes, porém, adquirira a Fazenda do Alcaide-mor tornando-se, então, dono de incrível extensão de terras, latifundiário na mais alta acepção da palavra. A justo título, deve ser considerado como, talvez, o principal desbravador de Juiz de Fora .71

Sobre a família também deixou-nos registro o historiador Jair Lessa fazendo uma

interessante observação sobre a sucessão de Antônios, nesta promissora terra de Santo

Antônio. Vejamos,

Em 1798, já vemos Antônio Dias Tostes recebendo uma sesmaria em nossas paragens, entre as terras de João Alves de Araujo e as de Manoel Braz de Almeida. Em 1808, Antônio Dias Tostes adquire de Francisco Gonçalves Lage (irmão da esposa de Antônio Vidal), uma parte da fazenda do Marmelo. Era o numeroso clã dos Tostes que chegava e, pedaço a pedaço, ia ocupando os espaços deixados pela família Vidal. A um Antônio sucedia outro Antônio, nas terras de Santo Antônio...72

Para efeito de diálogo e contestação, vejamos como contra argumenta um outro

estudioso do tema, em relação a data de autorização da segunda capela, aqui a divergência

fica por conta do pesquisador Sinval Batista, que publicou em artigo do jornal Diário

Mercantil de Sexta feira, 12 de maio de 1982 (pag.2), que: "a segunda capela foi erigida entre

1821-1825, pelo tenente Antônio Dias Tostes no pequeno povoado de Santo Antônio".73

Neste ponto Jair Lessa se utiliza da citação do Brigadeiro Cunha Matos, citado

anteriormente, agora não mais para localizar o Morro da Boiada, mas sim, para demarcar a

existência da segunda capela, que segundo ele é ilustrada com fartura de detalhes pelo militar

que viajando a cavalo, foi registrando distancias em léguas e tempo em horas e minutos

minuciosamente ao passar pelo lugar. Julgamos não ser necessário repetir a citação tendo em

vista sua transcrição anterior e a explicação de que ela estava sendo reerguida, ou reedificada

conforme o original. O que releva destacar é que era devotada a Santo Antônio.

"Passemos à terceira capela:" assim diz Jair Lessa sob a companhia de quem devemos

permanecer para explicitar os aspectos mais relevantes do terceiro prédio religioso, que nos

captura a atenção naqueles momentos de formação da cidade de Juiz de Fora.

71 BASTOS, Wilson de Lima. Caminho Novo: A Espinha Dorsal de Minas, Juiz de Fora: Funalfa edições, 2004. p. 129. 72 LESSA, Jair. Op. Cit. p. 31. 73 BASTOS, Wilson de Lima. Caminho Novo: A espinha dorsal de Minas Gerais, Juiz de Fora: Funalfa edições, 2004. p.115.

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A 28 de março de 1844 conforme já relatamos ⎯ fora dada, pelo presidente de Província, aos "moradores do Juiz de Fora," licença para erigirem uma capela a ser dedicada a Santo Antônio. A autorização só foi assinada por Dom Antônio, bispo de Mariana a 12 de dezembro.74

Vejamos os documentos que constaram dos anexos para efeito de conferência. Sobre a

capela requerida por Tostes conseguimos ter acesso à petição que foi transcrita dos originais

pelo historiador José Eduardo Crochet.

⎯ Ilmo e Rem S. ⎯ Haja V. Sª de informar se os habitantes do Juiz de Fora, freguesia de Simão Pereira, cujo requerimento lhe testemunho, estão no caso de obterem a licença que pedem, para a ereção da capella de Santo Antônio. Deus guarde a V. Sª palácio do governo em Ouro Preto 4 de março de 1844. Francisco José Soares D'Andra (sic) Ilmº e Rm° Sr. Vigário Capitular do bispado de Mariana.75

Outro documento é o que segue:

Acusando [ilegível] o ofício de V. Exª datado de 4 do corrente, exigindo que eu informe aos habitantes de Juiz de Fora, cujo requerimento e foi transmittido, estão nas circunstâncias de obterem licença pª ereção de uma capella de Santo Antônio per-me (sic) infor [rasgo] a Vª. Sª. que os Supp es [rasgo] já des [rasgo] cipio na construção da capella, a qual se acha bastante adiantada, por isso os considero dignos da pretendida licença. V. Exª prever morada (sic) aqui foram resoida (sic) D. Gs. 10 de março, 11 ax 44.76

Segundo nosso balizador, Jair Lessa

é essa a capela que vemos localizada na planta feita pelo engenheiro Halfeld em 1844, limitando-se à esquerda com uma casa e terreno de Manuel Dias Tostes e à direita, com vasta área sem construções, que se sabe, pela divisão das terras em doze faixas longitudinais à Avenida, de acordo com o testamento de Tostes [pai], pertencia a Antônio Dias Tostes [filho]. Na ocasião, o terreno de propriedade da capela media apenas 57 metros e 20 centímetros, de frente para a Estrada Nova.77

Continuando na mesma companhia, nosso cronista ressalta que por ocasião da feitura

do testamento, datado de 20 de setembro de 1844, dona Maria Antônia Leal deixa sua 74 LESSA, Jair. Op. Cit. p. 52. 75 CENTRO DE MEMÓRIA DA IGREJA CATÓLICA DE JUIZ DE FORA. Pasta Paroquial/ Igreja Matriz Santo Antônio/ Juiz de Fora - MG. 76 Idem.

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aspiração de ser "sepultada no adro da capela de Santo Antônio da Boiada, onde foram

sepultados seus avós". E deixou "esmola para a capela nova do Juiz de Fora". O historiador

supõe que a primeira capela deve ser a da Fazenda do Retiro, e a segunda a da antiga Rua

Direita, atual Avenida Rio Branco. Foi nesta capela que ocorreu o batismo de Luiz (filho do

segundo matrimônio) do engenheiro Halfeld. Que segundo o pai, em comunicado a um outro

filho, este do primeiro casamento, nos fornece importante informação ao relatar o nome do

sacerdote que procedeu a celebração. O Batizado fora oficiado pelo Padre José Manoel.78

No livro sobre os traços históricos da igreja em Juiz de Fora, o Cônego Maximiliano

de Oliveira,79 nos traça uma importante informação sobre o que estamos tentando comprovar.

Segundo ele "o que é certo, é que em 1824, passou por aqui e por uma dessas capelas o

visitador diocesano Pe. Manoel Rodrigues da Costa". 80 Tendo vindo como preposto do Bispo

de Mariana, procedeu a visita canônica na paróquia de Simão Pereira e visitou também as

capelas filiais. Esteve presente em 11 de agosto de 1824 na paróquia de São Francisco de

Paula (Torreões) segundo consta nos livros do arquivo paroquial. Presente também esteve em

Simão Pereira, aos 20 de agosto do mesmo ano, onde lavrou de próprio punho, o termo de

visita, sendo vigário da freguesia o Pe. José de Cerqueira Leite. O cônego relata a seguinte

informação:

Depois dessas andanças o Pe. Visitador, que deve ter sentido a falta de um templo maior que atendesse ás necessidades espirituais do povo, os moradores do povoado que se estendia então pelas duas margens do rio Paraibuna, mais tarde, conseguiram local e terreno apropriado para uma nova igreja, ao longo da reta e nova via traçada pelo engenheiro Henrique Guilherme Fernando Halfeld e obtiveram do governo da província e da Cúria de Mariana faculdade e licença para a ereção da nova igreja.81

Do mesmo cronista extraímos este importante documento comprobatório,

Francisco José de Souza Soares d'Andrea, Fidalgo Cavaleiro, Grão Cruz da Ordem de Aviz, Oficial da Ordem do Cruzeiro, Tenente-General, Graduado, vogal do Conselho Supremo Militar, Comandante do Imperial Corpo de Engenheiros, Presidente da Província de Minas Gerais. Faço saber aos que esta provisão virem que, atendendo a representação dos moradores de Juiz de Fora, da Freguesia de Simão Pereira, Município da cidade de Barbacena, em que pediam licença para erigirem uma capela para ser dedicada a Santo Antônio, e usando da atribuição que me confere o artigo 1º da lei provincial nº 66, resolvi

77 LESSA, Jair. Op. Cit. p.52. 78 Idem. p. 52-53. 79 OLIVEIRA, Maximiliano F.; Sinais de Igreja no Juiz de Fora. Traços Históricos, Juiz de Fora: Tomo I, 2ª edição, 1976. p. 34. 80 Idem. 81 OLIVEIRA, Maximiliano F. Op. Cit. p. 34.

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conceder aos representantes licença para a dita ereção, ficando sujeita na parte religiosa à inspeção do Ordinário Diocesano, sem o que não se poderão celebrar na dita capela quaisquer atos de religião. Pelo que mandei passar a presente Provisão que se cumprirá como nela se contém, indo por assinada e selada com o selo das Armas do Império e será registrada nos livros da Secretaria do Governo e onde mais tocar. Pagarão de novos e velhos direitos gerais e provinciais quarenta e quatro mil e oitocentos réis e de emolumentos da Secretaria do Governo cinco mil e quatrocentos, como conta dos talões nº 42 - 424 e 425, firmados em 27 do corrente mês pelo agente coletor de impostos desta cidade, Carlos Benedito Monteiro a fez. Dada no Palácio do Governo, na Imperial Cidade de Ouro Preto, aos vinte e oito do mês de março de mil oitocentos e quarenta e quatro, vigésimo terceiro da Independência e do Império. O secretário da Província Herculano Pereira Pena a fiz escrever. Francisco José de Souza d'Andrea. Provisão pela qual v. Exª resolveu conceder licença para a ereção de uma capela dedicada a Santo Antônio, no distrito de Juiz de Fora, da freguesia de Simão Pereira, do Município de Barbacena, como se declara. Para V. Ex. ver Por despacho de S. Ex. de 12 de março, corrente ⎯ nº 145. Pág. 3$240 Corrêa S. Reis. Registrada a fls. 80 do Livr.° de Registros de Semelhantes. Secretaria do Governo em Ouro Preto, 29 de março de 1844. Antônio José de Pinto Leitão. Registre-se Mariana, 12 de dezembro de 1844. Antônio, Bispo de Mariana. Registrada à fls. 19 do livro 61 de Registro Geral que atualmente serve neste cartório da Câmara Episcopal. Leal Cidade de Mariana, 11 de janeiro de 1845. Felicíssimo José da Trindade.82

Participaram das obras da construção do novo templo nada menos que quatorze

ilustres cidadãos da elite Juizforana de então, indo desde o Barão de Juiz de Fora até quem

tenha trabalhado segundo consta, como voluntário, "se encarregou da construção

gratuitamente." 83 Segundo o Cônego Maximiliano, citando o Álbum do Município de Juiz de

Fora, de Albino Esteves,

este templo substituiria a antiga igrejinha e a iniciativa de sua construção foi tomada depois das primeiras missões pregadas na vila, pelos missionários capuchinhos Frei Francisco Nápoles Otranto e Frei Eugênio de Gênova.84

Mas aqui cabe uma observação que detectamos ao ler os originais do Álbum do

Município de Juiz de Fora de Albino Esteves. A substituição da qual ele fala, é por um

Templo de Duas Torres, que seria o sucedâneo na verdade, desta igrejinha que o Cônego está

falando. Aquela que não tem torre, é coberta de "lata" (folha de zinco), foi terminada em

82 OLIVEIRA, Maximiliano F. Op. Cit. p. 34 -35. 83 Idem, p. 37. 84 Idem. (Grifo meu).

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1847, e tem até uma fotografia que lhe confere veracidade. Entretanto, mesmo sendo nova,

havia ficado pequena desde o início, devido ao afluxo de fiéis, vindo de toda a região para as

missões, de acordo com a constatação dos próprios freis capuchinhos. Segundo o Cônego, a

notícia das missões é veraz, pois confere com o registro de missões pregadas pelos mesmos

frades na freguesia de S. Francisco de Paula, 1846. E continua,

O título da doação do terreno patrimonial dessa igreja, feito por Manoel Dias Tostes e Antônio Dias Tostes Júnior foi registrado no Cartório do 1º Ofício desta Comarca (Barbacena) de acusa um total de 450 palmos (mais ou menos cem metros) de testada da rua principal, até a serra e data de 5 de março de 1848. Nesse mesmo terreno doado à igreja, institui-se o primeiro cemitério da povoação e que só mais tarde, depois de vinte anos, foi mudado para outro local, ao lado da estrada nova "União e Indústria", e instalado no ano de 1864; a sua capela foi benta em 16 de novembro de 1864. Além do 1º capelão Pe. Joaquim Furtado de Mendonça exerceram funções religiosas na vila do Juiz de Fora os seguintes sacerdotes; P. José Manoel, P. Carlos José Teixeira, P. Joaquim Medina, e P. Antônio Justino do Nascimento. O Cônego Marciano Cerqueira Leite, irmão do Barão de S. João Nepomuceno, da mesma família do vigário de Simão Pereira, era político e chefe do Partido Liberal, encabeçou aqui a revolução de 1842.85

A título de confirmação, colocamos aqui o testemunho de Jair Lessa sobre o que seria

o terceiro orago, desta feita, na margem direita do Rio Paraibuna, e destinado brevemente, por

força das circunstâncias, a se transformar em Matriz.

A construção da capela de Santo Antônio ficou terminada em 1847 e existe uma fotografia dela. Grande sem torres, porta central com mais de quatro metros de altura, encimada por dois janelões e, no triângulo frontal da cumeeira um óculo de ventilação sendo arrematado por singela cruz de ferro. A foto é de propriedade do Museu Dom Justino e está assinada pelo então capelão, padre Joaquim Furtado de Mendonça. O padre Joaquim Furtado de Mendonça. Era vigário de Simão Pereira, foi vereador da nossa Câmara Municipal de 1853 e Juiz de Paz no ano de 1860.86

E continua:

Pouco tempo esteve a capela em uso, pois os moradores do local, ao verem que a Estrada Nova transformava-se, rapidamente, em arraial de uma só rua, porém muito larga e bonita e já com mais de dois quilômetros de extensão ⎯ e perceberam que os dois frades capuchinhos ⎯ Um chamado Gênova e o outro Nápoles ⎯ em missão religiosa atraíram uma multidão circunvizinha que não coube no aparentemente grande templo, porém sem capacidade suficiente para atender a religiosidade

85 Idem, p. 37. 86 LESSA, Jair. Op. Cit. p.53.

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existente, entusiasmados, resolveram iniciar a construção de uma igreja maior, o que foi logo iniciado, atrás da capela. 87

E por fim ironiza,

Começara o tradicional "faz-e-desmancha" juizforano, que não parou até hoje. A parte urbana da cidade, menos que centenária-e-meia, já teve de duas a três e até quatro construções superpostas sobre os mesmos terrenos assim não há pesquisador que aguente!88

Fazendo coro com a indignação de Jair Lessa devemos acrescentar que o dito "faz-e-

desmancha" termo interessante que ele nos empresta, segundo consta neste trabalho teria

iniciado lá atrás, quando Sant-Hilaire passou por aqui em 1816 e viu a famosa capelinha em

ruínas e posteriormente uma outra sendo reerguida. Depois das capelas, de ontem e de hoje, a

lição não foi aprendida. Tivemos o casarão do Juiz de Fora posto abaixo, por motivos

obscuros. Uma vez que ele era nosso testamento erguido de Portal das Minas Gerais pelo

quadrante Sul, isso próximo de nós, na década de quarenta. Portanto, esta mentalidade fez

história.

Finalmente, a quarta capela dedicada da mesma forma a Santo Antônio, é citada com

fartura de detalhes por vários dos cronistas da cidade, mas continuaremos nesse momento nos

balizando em Jair Lessa. No capítulo terceiro, trabalharemos este último templo, lançando

mão do apoio deles. Segundo Lessa, quem liderou o movimento para a edificação do novo

templo teria sido o riquíssimo fazendeiro José Ribeiro de Rezende, dono da Fazenda Fortaleza

que pertenceu a Antônio Dias Tostes (pai), em 1843, para onde teria levado um grupo enorme

de trabalhadores composto de seiscentos escravos. Ele mesmo Jair Lessa, cita Wilson de Lima

Bastos como credor da construção por força de José Ribeiro, mas escreve que não conseguiu

obter a confirmação dessa informação. 89 Outros grandes nomes compuseram a comissão de

construção da nova igreja, por exemplo: Martiniano Peixoto ⎯ primeiro secretário da Câmara

Municipal ⎯ , Josué Antônio de Queiroz, boticário, em cuja residência aconteciam as

reuniões da comissão, Anacleto José Sampaio ⎯, professor (secretário), José Damaso da

Costa, (tesoureiro), que atuou como procurador de Antônio Dias Tostes e Valentim Gomes

Tolentino. Estiveram presentes à primeira reunião o capelão Furtado de Mendonça, Joaquim

Pedro Teixeira de Carvalho e Joaquim de Lima Rocha, sendo que esse último colaborador, fez

87 Idem, p. 55. 88 Idem, p. 55. 89 LESSA, Jair. Op. p.55.

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uma polpuda doação de duzentos mil réis, e encarregou-se da construção, gratuitamente.

Entretanto, "Não ficamos sabendo se era extensiva à mão-de-obra operária."90

Este mesmo autor afirma que as doações de terreno para o patrimônio da igreja são

confusas e mal determinadas e que se repete muito a imprecisa medida do alqueire. O Cônego

Júlio Bicalho atesta que o patrimônio era constituído por "um trapézio que leva dois alqueires

de planta; e vai da frente da Rua Direita com seus fundos até a Serra."91 Noutro momento, o

mesmo religioso, informa ao Sr. Bispo em 1885, que a área total do patrimônio era de 72.000

metros quadrados.

Tomando-se um dos dados que forneceu: 652 metros lineares partindo da casa do Vigário Tiago ⎯ poderia o patrimônio ⎯ na época ⎯ ser calculado em 64.548 metros quadrados, considerando-se como sendo de 99 metros lineares a largura do terreno ⎯ 260 palmos doados por Eufrásia 140 por Manoel Dias e 50 Antônio Dias (entre as ruas do Espírito Santo e Fernando Lobo).92

E continua:

No relatório solicitado pela Câmara de 1853 a Josué Antônio Queiroz, informou esse nosso primeiro farmacêutico, que o terreno de propriedade da igreja estava "com fundos ainda a medir-se e sem estarem ocupados." O que vale dizer ser uma floresta toda aquela área.93

Esta nova igreja deverá funcionar como filial da Matriz de Simão Pereira segundo

Lessa, e o primeiro responsável por seus ofícios será o padre Joaquim Furtado de Mendonça

já mencionado anteriormente, por ser vigário daquela, e por ser o Capelão da velha freguesia,

será também o dirigente da nova, enquanto dura sua construção.

Em março de 1848, Manoel Dias Tostes ⎯ Juiz de paz e pai do futuro Barão de São Marcelino, então um menino de quinze anos de idade ⎯ ao ver que a igreja de Juiz de Fora se está adiantando na sua construção, resolveu, para que ela fosse ficar em meio a uma praça ajardinada, com casas decentes que fossem ser construídas ao redor, doar uma faixa lateral ao terreno já existente, faixa com 140 palmos de frente para a futura avenida, indo terminar nas fraldas do morro (então chamado Serra). Como se vê, já cuidavam da urbanização do arraial, pretendendo-se que o centro fosse em torno da primeira igreja construída.94

90 Idem, p.56. 91 Idem. 92 Idem , p.57. 93 Idem. 94 Idem, p.56.

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Em consonância com o mesmo autor, após o término da construção do templo, teve

início a instalação do primeiro cemitério da vila. Cabe ressaltar, que é possível de se cogitar

que já houvera tido sepultamentos na capela velha que antecedeu esta nova. A necrópole

recebeu cristãos defuntos por aproximadamente vinte anos. Para finalizar, examinemos um

relato interessante do mesmo autor sobre o templo.

Não conseguimos localizar a data em que foi erguido um enorme e alto paredão de pedra ⎯ de cerca de 5 a 6 metros de altura ⎯ fronteiro á atual avenida e virando para os lados das ruas Espírito Santo e Fernando Lobo, nivelando a parte superior do pátio da igreja, onde se armam barraquinhas e existia um famoso lago com chafariz. Tal paredão só foi demolido quando era presidente da Câmara o dr. Antônio Carlos Ribeiro de Andrada. Suas pedras deram para calçar diversas ruas e ainda, com a venda de parte pôde a Câmara de então construir o jardim fronteiro e suas alamedas, na bela forma com que hoje se apresenta. Relatou o fotógrafo Braz Xavier Bastos que residindo na Rua de São João mandou buscar uma carroça de terra bonita e fértil aparência, que a Câmara, após demolido o paredão, estava doando para a confecção de aterros e hortas. Ao colher o primeiro pé de alface, sua esposa chamou-o, assustada, pois junto às raízes vinham diversos dentes humanos.95

Encaminhando para o desfecho dessa parte do presente trabalho de pesquisa, Lessa

relata que nos fundos da igreja, nos terrenos onde hoje existe a Praça do Cruzeiro, instalou-se

um correio de casas simples, muitas das quais existentes quando da feitura daquele seu livro

na década de oitenta, teve a função caridosa de "abrigar gratuitamente viúvas e carentes." 96 e

diz também, que depois da abertura da rua que leva o nome do patrono, a propriedade

eclesiástica ficou dividida ao meio, exatamente pelo logradouro que também carrega a

influência do nome de Santo Antônio. E termina:

A 31 de maio de 1850, pela lei provincial nº 472, foi o arraial elevado à categoria de Vila, com o nome de "Santo Antônio do Paraibuna." desmembrada da paróquia da antiga sede, nossa quarta capela foi elevada à dignidade de Matriz. 97

E de posse de um humor fino e não menos irônico que Sinval Santiago, do qual

falamos anteriormente, e com o qual confabulava no Instituto Histórico e Geográfico de Juiz

de Fora como confrade, comenta Jair Lessa como se deu, a seu ver, esta transferência.

Quando o arraial desligou-se de Barbacena e foi elevado à categoria de Vila possuía apenas 500 habitantes. E Simão Pereira que, era a dona da paróquia, passou a ter que

95 Idem, p. 57. 96 Idem, p. 57. 97 LESSA, Jair. Op. Cit. p.58.

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pedir a bênção a ela, que recebeu, ainda, Chapéu de Uva por espórtula. Vejam como são as coisas! As tão decantadas e seculares Chapéu de Uva e Simão Pereira, sempre citadas pelos viajantes nacionais e internacionais: "⎯ No caminho para Barbacena, pernoitamos em um rancho sujo, próximo de uma capelinha de taipa, num tal de morro da boiada (coitado!) que fica entre Simão Pereira e Chapéu de Uva," ⎯ agora tinham que indagar da Vila de Santo Antônio a que horas deveriam fechar a porta da igreja, quantas missas haveria por semana, em que dias haveria crismas e quantas vezes podiam bater o sino em suas solenidades. Já era bocado de progresso, Barbacena que pusesse as barbas de molho... e Ouro Preto também. Melancolicamente, havia perdido seu tradicional nome! Porém ainda o recuperará. Verão!98

Desta forma esperamos ter documentado devidamente, conforme havíamos proposto,

os primeiros passos da trajetória de uma devoção católica, importante na formação da

identidade da cidade, bem como, termos descrito o processo de instalação da devoção através

de símbolos visíveis, (templos religiosos) de dimensões e funções diversas, que ao longo do

período de quase três séculos vem compondo o modo de ser da população não somente dos

cristãos católicos, mas influenciando de maneira abrangente todo juizforano, cujo

pertencimento, perpassa por entre os intrincados desdobramentos de sua paulatina

institucionalização.

2.3. Sinais da Institucionalização da devoção a Santo Antônio na Vila do

Paraibuna.

Através do conceito de Catolicismo Popular Tradicional trabalhado por alguns autores

já apresentados anteriormente no primeiro capítulo, passamos a analisar a devoção a Santo

Antônio, num outro movimento diverso da instalação, mas que lhe é conseqüente, ou seja:

importa investigar neste item o momento em que começam a surgir os sinais da

institucionalização, como sendo um elemento de grande significado, talvez, fundamental, para

o ajuntamento e posterior fixação dos primeiros habitantes na região, como fator de relevância

na produção de sentido religioso, agregador de pessoas anônimas e influentes, que ao

transitarem pelo Caminho Novo possibilitaram a fundação da cidade de Juiz de Fora.

98 Idem. Observe-se que quando Jair Lessa ressalta o 'coitado', está fazendo uma citação do viajante francês Auguste de Saint-Hilaire, em sua passagem pela região, já citado no trabalho. Neste ponto fica bem destacado o bairrismo que é bem próprio do cidadão juizforano. O autor revela como o espírito de ufanismo da época se afirma sobre os antigos rivais e ainda rivaliza com a capital da então província de Minas Gerais, a Vila Rica, que mais tarde passou a se chamar Ouro Preto. Ao demonstrar a pretensão que ostentava em função do estrondoso crescimento, a promissora vila e cidade, que chegou a ser cogitada para substituir a capital do recém formado, Estado de Minas Gerais, depois da proclamação da República, antes de se criar Belo Horizonte, aliás, fonte de uma posterior querela.

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Para tanto, lançamos mão de um trabalho recente e inédito nos estudos históricos na

região. Trata-se de um ensaio elaborado pela professora Elione Silva Guimarães que vem a

ser uma micro-análise de um objeto pouco estudado e que promete influenciar bastante nas

publicações futuras, devido a densidade, aprofundamento e ineditismo. O trabalho versa sobre

a concentração e movimentação de tropeiros na região da Mata Mineira, com foco no embrião

de povoamento que posteriormente formaria o arraial do Paraibuna e posteriormente a cidade

de Juiz de Fora. Queremos colocar dentro dos corações, mentes e nas bruacas carregadas de

ouro e víveres, desses tropeiros, a religiosidade que transitava pelo lugar, para que possamos

demonstrar em dois momentos, que ela era dedicada a Santo Antônio.99 Neste item também

faremos a discussão com o marco teórico, trabalhando o pensamento do antropólogo Cliford

Geertz principalmente através da obra "a interpretação das culturas" onde o autor nos ajudará

a perceber os laços sócio-culturais que se fizeram entre os habitantes dessa região em torno da

devoção a Santo Antônio e possibilitaram a formação da cidade.100

Passamos a descrever um pouco o homem, que é o objeto de discussão neste item,

apenas para contextualizar o tema. Baseado na pesquisa descrita podemos afirmar, que o

tropeiro da região estudada não é um homem sempre pobre e sem posses. Pelo fato de possuir

uma tropa, já denota o contrário, uma vez que ela é um patrimônio considerável. É também,

um homem bem articulado, tem boas relações com os fazendeiros de um modo geral.

Em Minas Gerais, pelas suas condições topográficas, cada bom animal era capaz de carregar “entre 8 e 10 arrobas, excepcionalmente 12”, de quinze quilos cada arroba. Gastava-se em torno de 30 dias para percorrer uma distância de aproximadamente 300 quilômetros. Alcir Lenharo informa que as tropas utilizavam a mão-de-obra escrava, principalmente as empresas mineiras, que chegavam a ter cativos à frente, exercendo a função de tropeiros. Stanley Stein comenta que 20% da força de trabalho produtiva e efetiva dos escravos das fazendas eram deslocados dos trabalhos do campo para

99 GUIMARÃES, Elione Silva. Tropas e tropeiros nas Minas Gerais oitocentistas: Francisco Garcia de Mattos - um tropeiro na Zona da Mata Mineira. In: Anais do VI Congresso Brasileiro de História Econômica e 7ª Conferência Internacional de História de Empresas. Conservatória, 2005. De acordo com a autora esta comunicação tem um duplo objetivo. O primeiro é apresentar os resultados parciais de uma pesquisa, concluída a título de tese de doutoramento, defendida na Universidade Federal Fluminense em agosto de 2004.1 A tese em questão trata de leis, direitos e justiças em relação aos afrodescendentes e parte significativa dela foi elaborada a partir de uma perspectiva de microanálise, quando segui a trajetória de um grupo de indivíduos que viveram nas terras do tropeiro Francisco Garcia de Mattos — a Fazenda da Boa Vista, em Juiz de Fora Minas Gerais. Acompanhei o grupo por um período de cem anos (1828-1928), do nascimento do escravo e futuro arrieiro Balbino ao falecimento de seu primogênito, o liberto Manoel Balbino de Mattos, que foi senhor de homens e de muitas terras. Para compreender as relações estabelecidas entre o grupo que habitava a Boa Vista — no caso em apreço formado por senhores de terras e de homens, cativos, libertos e homens livres pobres — necessário se fez uma incursão pelo universo das tropas e dos tropeiros na Minas Gerais do século XIX. Todavia, por não ser este o foco da tese, muitas questões que então se manifestaram ficaram aguardando para serem oportunamente discutidas. É este, portando, o segundo objetivo da comunicação, apresentar algumas notas a respeito da pesquisa a que ora me dedico: Tropas e tropeiros na Minas Gerais oitocentista. 100 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1978.

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trabalharem como tropeiros e que geralmente eram escolhidos os melhores homens. Estudos realizados a partir do censo de 1831/32 comprovam a expressiva participação de cativos nas tropas mineiras (30,3%), realizando os árduos serviços cotidianos de condução e cuidado dos animais — não os exigindo para além de suas forças, precavendo-os das ervas venenosas —, carregamento e descarregamento das mercadorias — zelo com cargas e valores — e todo tipo de tarefa, incluindo o preparo dos alimentos. Os pesados serviços da lida exigiam uma força-de-trabalho jovem e disposição para uma vida itinerante. A maior parte do tempo de um componente de tropa era passado nas estradas em longos e difíceis percursos. Os pesquisadores destacam que eram os tropeiros homens delgados, de grandes passadas, rudes, fortes e destemidos. As bibliografias sobre os tropeiros os identificam como indivíduos heróicos, leais e honestos, preocupando-se pouco em discutir sua inserção na sociedade mais ampla. Observo que a expressão “tropeiro” foi amplamente utilizada em Juiz de Fora como uma especialização de cativos. Pedro Nava também informa que “dava-se o nome de tropeiro não só aos camaradas que conduziam as tropas, como aos que as exploravam como donos”. Negros, mulatos ou brancos, os tropeiros cedo se acostumavam às longas caminhadas. Após a árdua jornada, os tropeiros paravam para o descanso em um rancho à beira da estrada. Os animais eram descarregados, as mercadorias ordenadas, raspavam-se a poeira e o suor das bestas, que depois eram alimentadas e soltas para pastar e rolar, alongando-se. Os animais feridos eram tratados, outros eram ferrados, as cangalhas eram reguladas e os cravos das ferraduras ajustados. Enquanto isto, outros camaradas buscavam lenha e armavam os tripés para o preparo da alimentação dos homens. Ao cair da noite os animais eram recolhidos para outro pasto e colocava-se aos seus pescoços uma sacola com milho para complementar a alimentação. Havia então um momento para a socialização e a confraternização, em que os tropeiros das diversas caravanas se reuniam para relatar suas viagens e aventuras, e quando o luar escorria pela quebrada e deslizava, prateando as frondes, [o tropeiro] tomava da viola e cantava suas modinhas ternas, soluçadoras, de intensa doçura sertaneja. E pela madrugada alta, com o primeiro frescor do alvorecer, a tropa partia e partiam os caminheiros. Esta longa descrição das estradas e das condições de viagens e transportes de cargas pelo Caminho Novo, assim como a exposição da composição humana e material da tropa, se fez necessária para compor e dimensionar as considerações sobre as tropas e os tropeiros na Minas Gerais oitocentista, destacadamente na Zona da Mata e particularmente em Juiz de Fora.101

Para ilustrar esta presença e inserção em Juiz de Fora e para demonstrar o nível de

pertencimento desses tropeiros a um segmento social elevado, apresentamos outro trecho do

estudo citado, usando Pedro Nava, memorialista de grande projeção nacional, que tendo

passado seus primeiros anos de infância na cidade e tendo nela vivido em três períodos

distintos, descreve-se um aficionado pela vida cotidiana do povoado, e através destas suas

memórias temos uma importante chave de entendimento do período que estamos

descrevendo, porque ele próprio era descendente ao mesmo turno, de dois destes importantes

segmentos sociais que participaram ativamente na formação do espírito empreendedor que

formou esta coletividade. Descendia diretamente do engenheiro Halfeld e da família Tostes

grandes fazendeiros, e também era

101 GUIMARÃES, Elione Silva, op. cit.

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neto do tropeiro Luís da Cunha, lembra que além da gatunagem e das dificuldades em vencer os obstáculos naturais, os tropeiros enfrentavam, ainda, conflitos com os senhores do solo, que cobravam uma espécie de pedaticum aos que atravessavam suas terras. Segundo Nava, na região de Juiz de Fora os dois principais exploradores eram “um Mirandão e certo Belisarinho. Quem lhes atravessava as terras estava torrado. O esganado do ão deixava apenas um pouco para o guloso do inho. Na subida, vice-versa na descida”.102

Ainda sobre esta importante função de viajantes ambulantes e transportadores de

mercadorias na região, o estudo da professora traz outro importante episódio ocorrido,

envolvendo tropeiros e o entorno do Morro de Medeiros, no qual descreve como era

acidentado, perigoso e necessário pedir ajuda sobrenatural como proteção, que nesse

momento, advinha de um catolicismo, no caso de tropeiros, muito popular. E acrescentamos,

santorial. Confira.

Eschwege passou por experiência deste tipo, quando sua comitiva cruzou com uma boiada formada por algumas centenas de cabeças... Só conseguimos sob grandes esforços mantê-la a distância da entrada do nosso caminho, tocando-a para o lado, para a velha estrada esburacada. O aperto era tão grande no meio da boiada que os bois pulavam para os rochedos que estavam diretamente acima de nossas cabeças, ameaçando de cair sobre nós. O estrondo e o bramido do rio, a densa e escura floresta, em ambos os lados, o berreiro dos bois, os chamados ininterruptos dos vaqueiros, o perigosíssimo lugar em que estávamos, tudo isso faz parte daquelas cenas que costumam causar uma arrepiante e indelével impressão.103

Em outro momento de suas andanças, em uma de suas muitas viagens pelo Caminho

Novo passando pela região, o Barão de Eschwege contratado pela Coroa, como Coronel do

Real Corpo Português de Engenharia, demonstra em suas anotações um vasto domínio de

Geografia Física e Geologia, deixou relatado a seguinte informação:

Junto ao morro de Medeiros, que se eleva a mais de 2000 mil pés, o quartzo granuloso é coberto de espessa camada de terra vegetal, e o caminho é tão íngreme que no tempo chuvoso os animais aí escorregam como em uma montanha russa, sendo preciso para firmarem os pés na subida se lhes cavarem como que degraus de uma escada, pelo que dão os tropeiros graças a Deus quando chegam ao alto e, para afugentarem o demônio, de cada vez aí plantam uma cruz de madeira, contando-se por isto centenas dessas cruzes no alto do morro.104

102 idem. 103 ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Jornal do Brasil, 1811-1817, op. cit., p. 238. 104 BASTOS, Wilson de Lima. Caminho Novo — Juiz de Fora. Juiz de Fora: Edições Paraibuna, 1993. p. 25.

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Sobre este percurso, que Eschwege fala no texto na região de Marmelos, já discutimos

anteriormente sua localização e voltamos a citá-lo por motivo da justificação de tropeiros

transitando na área e carregando uma religiosidade, que preparamos para demonstrar. E em

relação ao local do encontro dele com a boiada, e o topo do morro onde se chantavam cruzes

com um nítido sentimento de alívio e gratidão, vale sugerir um questionamento: estas

descrições não ajudam a reafirmar o local do enigmático Morro da Boiada? E não fazem o

mesmo com a capela homônima? Não será por causa dessas cruzes que o povo, os mais

antigos, ainda hoje reportam ao local um cemitério? Riolando Azzi faz um comentário a respeito de cruzes na beira de estradas. Para isso,

usa a afirmação de Cartaxo Rolim de que a crença em almas penadas é uma herança

portuguesa de sobrevivência céltica. E cita outro autor, Alceu Maynard Araujo que reproduz

informações de um tropeiro da região do Vale do Paraíba dizendo que é comum na região

"plantar" uma cruz pelas almas num claro sentido de se proteger delas, ou seja:

A cruz é para marcar o lugar onde houve um desastre ou assassinato, assinalando o ponto onde morreu alguém. É colocada uma cruz, por que o "capeta" não chega onde ela está; ele foge dela. [...] quando um pessoa, por causa de uma briga, morre, a alma dela fica ali ao redor do lugar onde foi assassinada, e para que ele (o diabo) não a carregue pros infernos, põe-se a cruz.105

Descrevemos no capítulo primeiro no ítem 1.2, na discussão sobre a devoção aos

santos no catolicismo popular tradicional, que em determinadas situações limites, o santo

popular em caso de não atendimento de um pedido, podia até ser castigado. Ilustramos este

episódio com uma citação de Pedro Ribeiro de Oliveira, e voltamos a incluí-la no texto para

melhor descrevermos esta pratica na região, junto aos tropeiros que transitavam pelo Caminho

Novo. "É à imagem que o fiel se dirige para pedir ao santo proteção, favores e graças ⎯ e

também objeto de punição ⎯ sendo castigada a imagem do santo que deixa de proteger os

seus devotos."106 No documento analisado, não foi um caso de deixar de proteger, mas sim de

ajudar a achar coisas perdidas, que dentre as muitas funções do Santo Antônio lhe imputaram

também mais esta. Desta vez, será comentada pelo teólogo e historiador Riolando Azzi

citando parte de um sermão do padre Vieira da seguinte maneira,

105 ARAUJO, Alceu Maynard. Folclore nacional . Vol. 3, 2º edição. São Paulo: 1967. p. 10-11. Apud AZZI, Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colonial brasileira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. p. 298. 106 OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de. A mesa da Palavra. In: Revista Eclesiástica Brasileira. Vol. 43, fasc.172, Petrópolis: Vozes, 1983, p. 912.

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Já assinalei anteriormente o fato de ser Santo Antônio incluído, seja no rol dos santos guerreiros, como entre os santos casamenteiros; além disso, uma de suas especialidades mais enfatizadas na sociedade colonial era a presteza em achar os objetos perdidos(...) se perdeis a menor miudeza da casa: Santo Antônio.107

O Barão de Eschwege em uma de suas viagens legou-nos um pequeno relato que

ilustra bem o que estamos procurando demonstrar a respeito da presença de uma religiosidade

popular viva e circulante na vida dos transeuntes do Caminho Novo. Quando da viagem entre

o Rio de Janeiro e Ouro Preto, na localidade de Sumidouro, (próximo de Três Rios) nas

proximidades do rio Piabanha, alguns animais (mulas) haviam sumido, então o autor comenta:

Como os animais demoravam a voltar, o tropeiro pegou uma imagem de Santo Antônio e amarrou-a com um cabresto junto ao marco de uma porta, assegurando-se de que agora o Santo iria trazê-los de volta. E antes de cair a noite meus homens apareceram com os animais. O Santo foi desamarrado, ganhando como recompensa um vintém de cobre.108

Outro viajante que também deixou registro semelhante onde aparece o aspecto

devocional direcionado a Santo Antônio como sendo um santo popular na região foi Saint-

Hilaire, desta feita pedindo proteção e também ajuda para procurar animais perdidos. Quando

de sua segunda viagem a São Paulo (1822), passou pelo sul de Minas e na região de Ibitipoca,

notou a devoção de Santo Antônio nas proximidades:

Corre o rio do Sal com rapidez numa barroca estreita e, em vários lugares, rochedos a pique o margeiam. Num deles, de cor esbranquiçada, ficam inúmeras manchas pretas formadas, tanto quanto pude avaliar, por expansões liquenóides. Lembra uma e bastante a figura de um eremita embuçado no hábito, e segurando um livro. Dele fizeram um Santo Antônio que é objeto de veneração em toda a zona. Todos quantos perderam animais na serra vão rezar o terço diante da imagem e os encontram infalivelmente; outros há que, em romaria e de vela empunho, visitam o rochedo onde está representado o santo e ali fazem penitência.109 Quando o autor voltava das Minas para o Rio de Janeiro, após deixar Barbacena,

região dos campos, passou por Batalha (atual município de Antônio Carlos) vindo em direção

à João Gomes (Santos Dumont), Pedro Alves (Ewbank da Câmara - divisa com Santos

107 HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja no Brasil - Primeira Época. Petrópolis, Vozes, 1983, p. 351. Apud AZZI, Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colonial brasileira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. p. 264. 108 ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig Von. Jornal do Brasil, 1811-1817 ou Relatos diversos do Brasil, coletados durante expedições científicas. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais. Coleção Mineiriana. 2002. p. 225. (Grifo meu). 109 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda Viagem a São Paulo e quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 202, p. 38.(grifo meu)

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Dumont) e Juiz de Fora, penetrando em região coberta por frondosas matas virgens, nesta

ocasião, registrou

Quando, próximo de Batalha, deixamos a região das pastagens herbáceas, meu tropeiro despediu-se humorísticamente do 'João do Campo' e dirigiu preces à Virgem e a Santo Antônio para obter a graça de atravessar sem dificuldades as florestas, 'João do Campo' é um ser imaginário representativo das regiões descobertas. Quando se entra dos campos é em casa de 'João do Campo' que se entra, e, quando o viajante dorme ao relento é 'João do Campo' que o hospeda.110 .

Ainda hoje, naquele entorno, se fala em 'João do Campo', que é conhecida como uma

grande cobra que corre atrás das pessoas, mas sem oferecer perigo.

Até onde as fontes possibilitaram conduzir esta parte da pesquisa e obter documentos,

pudemos encontrar estas citações que presentificam o Santo popularizado na picada de Garcia

Paes pelo menos em três momentos e locais distintos. O primeiro na entrada da região mais ao

sul e outro mais ao norte tendo como base a subida para as minas de ouro, na Vila Rica. O

trecho que fala sobre o Santo Antônio em Ibitipoca foi também destacado, por se tratar da

região onde morava a influente família Tostes antes de se erradicar em Juiz de Fora.

Acreditamos que aqui haja uma importante chave de leitura para futuras pesquisas.

Feito isso, esperamos ter possibilitado a quem lê, uma caminhada pela ancestralidade

da via que hoje está sendo chamada de Estrada Real,111 fazendo com que neste lugar também

faça pousada o leitor, à exemplo do que fizera no passado o santo, que aos poucos foi se

instalando no Caminho, no Povoado, no Arraial, na Vila e depois Cidade do Juiz de Fora,

fincando aqui as raízes de uma relação duradoura com o lugar que lhe dedicou o espaço de

maior destaque entre todos os outros santos católicos, sendo a sua celebração mais concorrida

110 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975. p. 119. (Grifo meu). 111 O governo do Estado de Minas Gerais criou uma marca e um marketing em torno de algumas estradas e caminhos históricos de Minas, e incluiu neste roteiro o Caminho Velho e o Caminho Novo. Sendo que a revitalização e o incremento desta última é que nos diz respeito mais de perto. Tendo como objetivo principal restaurar-lhe o brilho através do incentivo ao turismo, inclusive internacional, tentando atrair o turista para a região divulgando em catálogos de viagens dentro e fora do país as possibilidades do percurso nesta via. Tenta-se fazer uma alusão, menos religiosa, mais secularizada, (típica de Juiz de Fora) com o caminho espanhol de Santiago de Compostela, haja vista, que como aquele, o percurso é saudável, ecológico e pode ser transposto como caminhada a pé, neste caso menos como penitência e mais pelo espírito de aventura. Para tanto foram instalados marcos com o mapa do trajeto e indicações da localidade onde se encontra o viajante. Estes blocos funcionam como balizadores e buscam reproduzir as antigas marcas de pedra que divisavam sesmarias no Brasil Colônia. Aquelas foram produzidas a partir de um bloco único de granito ligeiramente retangular, ou quadrado, cumprido, e gravado em baixo relevo com uma Cruz de Malta que era o símbolo do Reino de Portugal. Estas estão sendo construídas de concreto fundido, com um designer arrojado e têm o formato triangular remetendo à bandeira que os inconfidentes propuseram para o país caso seu movimento fosse vitorioso. Este triângulo figura gravado em vermelho no centro da bandeira do Estado. Uma destas marcas modernas está colocada exatamente na entrada do populoso Bairro Santo Antônio, procurando resgatar e remeter um pouco da história para este povoado ancestral.

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que a da Virgem Maria, em qualquer que sejam seus atributos. É o que pretendemos

demonstrar a seguir.

A devoção a Santo Antônio em Juiz de Fora deve ser analisada como um fenômeno

religioso, como um processo cultural, de um povoado que aos poucos vai conferindo sentido e

atribuindo significado a uma imagem de madeira, introduzida aqui pelo imigrante e

proprietário de terras Antônio Vidal. Esta primeira capela lentamente vai agregando um grupo

de pessoas para o povoado e vai lhe conferindo uma identidade, que têm ancestrais e

descendentes. Com o objetivo de refletir sobre essa temática, a análise de Clifford Geertz nos

ajuda a entender a religião como uma construção cultural. Contribui também para

compreender o papel desempenhado por uma imagem de Santo Antônio, com o conjunto de

símbolos que lhe dão suporte, na afirmação de códigos culturais, e delimitação de sua

identidade. Geertz citando Max Weber nos revela que "o homem é um animal amarrado a

teias de significado que ele mesmo teceu (...) e a cultura consiste em estruturas de significado

socialmente estabelecidas." 112 Dela dependendo para sua convivência no seio de um grupo no

estabelecimento de relações, práticas religiosas e produção da vida.113 Assim tais estruturas se

solidificam ao longo do processo de convivência e construção da identidade do grupo. A

cultura, portanto, consiste nesse emaranhado de relações, por ele assumido e descrito como

teias. Exatamente onde o homem religioso exerce suas crenças, seus cultos e seus ritos, no

dizer dele mesmo,

O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios abaixo tentam demonstrar, é essencialmente semiótico.(...)não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, a procura do significado.(...) a cultura consiste em estruturas de significado socialmente estabelecidas, nos termos das quais as pessoas fazem certas coisas como sinais de conspiração e se aliam ou percebem insultos e respondem a eles...114

Um padrão de significados transmitidos historicamente, incorporado em símbolos, uns

sistemas de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os

homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em

relação à vida. As formas simbólicas são, portanto, o meio de comunicação que inicialmente

estes primeiros habitantes, da localidade chamada Boiada, transmitem ao longo de sua

112 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1978, pp.15-23. 113 Ibidem, p. 15 114 Idem, p. 15 - 23.

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história. Suas atividades constituem em uma rede de trocas de significados importantes para a

vida do povoado.

Esta concepção de Geertz fundamentada numa interpretação cultural nos possibilita

entender o fenômeno da religião, a partir das trocas simbólicas, estabelecidas no seio dessa

comunidade nascente, que motivam as pessoas ao relacionamento. As pessoas utilizam-se de

símbolos herdados e depois transmitidos através de suas relações. Sendo assim o símbolo é a

chave para uma compreensão do fenômeno cultural, compreendido aqui de forma bastante

ampliada, como sendo parte de tudo que circunda a convivência humana. Tudo aquilo que

produz algum significado para quem transmite e para quem recebe é um símbolo é uma

marca: os gestos corporais, a linguagem, o culto, o rito, as festas, e a religião. Para ele religião

é:

Um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas.115

A partir do pensamento do autor e das formas de cultura por ele definidas,

assimiladas nesse trabalho como referência, percebemos uma articulação através da ação

social ou do fluxo de comportamento. "Pois os símbolos sagrados funcionam para sintetizar o

ethos de um povo ⎯ o tom, o caráter, e a qualidade de sua vida seu estilo e disposições

morais e estéticos. ⎯ e sua visão de mundo." 116 Levando a descobrir uma imensidão de

significados para a vida cotidiana das pessoas. Os signos formadores da religião foram

elementos motivadores na elaboração de conceitos e valores comportamentais pessoais e

sociais. Dessa maneira estamos tentando dizer, ancorado no pensamento do autor, que a

devoção estudada, a construção de capelas, contribuiu para estabelecer elos de solidariedade

entre os primeiros habitantes do lugar, e que foram se tornando fiéis e devotos do santo, tendo

em vista que todos eram necessariamente, ou oficialmente, católicos por força das

circunstâncias. Essa crença e o ritual produziam uma visão de mundo e um ethos do grupo,

que ao "representar um tipo de vida idealmente adaptado ao estado de coisas atual que a visão

de mundo descreve" 117 foram surgindo com sendo os agregadores de pessoas em torno da

imagem de Santo Antônio, e produziram uma espécie de código de possibilidade, que sustenta

a convivência e a arregimentação de bases e forças para a construção do povoado que 115 Idem, p. 104 -105. 116 Idem, p. 103. 117 Idem, p. 104

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rapidamente se transfere para a margem direita do rio e forma uma cidade, que emancipado,

virá a ser: A Vila do Santo Antônio do Paraibuna onde vários logradouros levam o seu nome

como deferência e homenagem. Queremos destacar que toda essa amálgama é religiosa, leva a

textura da devoção a Santo Antônio como elemento agregador, e sugerimos dizer: fundador

dessa coletividade.

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CAPÍTULO 3. A CONSOLIDAÇÃO DA DEVOÇÃO A SANTO

ANTÔNIO EM JUIZ DE FORA.

Nascemos nas mesmas casas, tivemos os mesmos retratos E a mesma folhinha de Mariana nas paredes,(...) os mesmos registros de santos, para impedir os mesmos demônios e as mesmas avantesmas da noite de Minas. (Pedro Nava - Baú de Ossos, p. 97)

As fontes estão silentes. Na preparação deste terceiro capítulo temos que equacionar

esta difícil situação, principalmente com relação às fontes primárias que não foram tão

reveladoras quando nós esperávamos. Sérgio da Mata1 dizendo a respeito da cidade brasileira,

afirma que a geografia se ressente da ausência do aspecto religioso, tanto quanto a

historiografia se ressente da ausência das origens. Nesse momento, nos ressentimos dos dois.

É curioso observar, que quanto mais se aproxima da fundação da Matriz de Santo Antônio e

da fundação da Vila, no final da década de 1850, não encontramos documentos que atestem

sua justificação. Mesmo tendo visitado os arquivos, igrejas, bibliotecas e museus que

poderiam dar acesso ao tema dentro e fora da cidade não foi possível identificá-los. 2 Desta

feita temos que argumentar em torno dos documentos já apresentados e apoiar-nos nas fontes

secundárias que estão vindo à tona aqui e acolá, nestas incursões junto aos colegas

pesquisadores, que entre uma conversa e outra, deixaram transparecer um ou outro argumento

passível de documentação sobre o tema.

Manuseando um pequeno livreto de Ataliba Nogueira que trata da vida de Santo

Antônio e sua inserção profunda na vida do povo brasileiro, pudemos confirmar o que

apresentamos no início do primeiro capítulo em relação as origens do culto entre nós

brasileiros. O autor assevera: Veio com os navegantes portugueses, sua vida foi reproduzida e

associada ao esforço das Grandes Navegações, quando da penetração no interior durante a

abertura dos "caminhos para os sertões, Santo Antônio foi acompanhando e abençoando

1 MATA, Sérgio da. Chão de Deus: Catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais, Brasil. Séculos XVIII-XIX. Berlim: Wiss. Verl., 2002. p. 18. 2 As possibilidades de documentação disponíveis foram se escasseando na medida em que fomos aproximando do marco final da pesquisa, ano de 1850. A Câmara foi instalada nesse mesmo momento por força da mesma lei. Os jornais de Barbacena, que poderiam dar conta do período segundo afirmação da arquivista responsável pelo arquivo histórico daquela cidade, não fazem referências ao período estudado. O arquivo Eclesiástico de Mariana também consultado na pessoa responsável pelo acervo, nos informou desfavoravelmente quanto a esta documentação. No arquivo Nacional e na Biblioteca Nacional entre os documentos que estão digitalizados, não obtivemos sucesso. O primeiro jornal a circular no local será 'O Pharol' datado de (1870-76). A documentação da catedral metropolitana disponível é posterior ao recorte proposto, o Livro de Tombo existente data de 1900.

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nossos avoengos,(...) rara a família que não conte os Antônio às dezenas, nos campos e

montes, onde não há casas, quantas vezes Santo Antônio tem a sua."3 e descreve também a

capilaridade desta devoção popular dizendo que "essa devoção traduz bem um dos aspectos

da nossa unidade psíquica"4

Partindo desse pressuposto podemos sugerir que a fé católica seja mais ampla do que

a instituição Igreja Católica, na construção desse tecido social analisado. Um catolicismo

marcadamente devocional, santorial; Catolicismo Popular Tradicional, conforme optamos por

descrevê-lo ao longo desse trabalho, onde observamos a presença de muita imagem e pouco

celebrante, muita devoção com pouca instituição. Marcadamente expressão não só da fé do

povo que o pratica como também expressão de sua cultura, essa modalidade de catolicismo

era transmitido por força dos ensinamentos dos pais, principalmente das mães, e por extensão

ia passando de geração em geração.

As famílias tinham seus santos protetores. De acordo com Azzi, as imagens eram

colocadas num nicho ou num pequeno oratório, muitas vezes na sala de visitas.5 Nas casas

mais abastadas um quarto ficava reservado para este fim. Nos engenhos e nas fazendas,

erguia-se uma capela para que se pudesse prestar culto a esses santos de família. Outro

costume muito observado era de dar às crianças o nome do santo do dia de seu nascimento, ou

ainda o nome do santo de devoção particular dos pais. As crianças eram impulsionadas desde

cedo a invocar a proteção dos anjos e dos santos.

Entretanto, o Santo Antônio do Morro da Boiada não permaneceu santo só do povo

miúdo, aliás, como vimos ele nunca fora nesta região santo apenas popular. Pelo contrário, é

uma devoção, cambiante e talvez por isso aglutinadora. Esteve sempre presente no local,

transitando entre os tropeiros, solicitado pelos fazendeiros, todos muito poderosos, conforme

pudemos demonstrar nas petições, confecções e alocação das capelas. Além disso, cabe

ressaltar, que o povo simples, via de regra, analfabeto, não escreve sua história, e o que fica

são relatos e fragmentos de sua religiosidade, suas crenças, de forma prática, baseada na

narrativa, na oralidade, acoplada à vida cotidiana como procuramos demonstrar no capítulo

primeiro. Esse povo tido por simples, faz alguns arranjos com seu santo, onde projeta sobre o

protetor e amigo, suas aspirações, vontades, anseios e até mesmo frustrações, fazendo dessas

relações o substrato cultural que sustenta a vida e compõe o dia a dia.

3 NOGUEIRA, Ataliba. Santo Antônio na Tradição Brasileira. Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, São Paulo: 1933. p .15. 4 Idem. 5 AZZI, Riolando. Sob o Báculo Episcopal – A Igreja Católica em Juiz de Fora, (1850-1950). Juiz de Fora, templo gráfica e editora ltda. 2000. p. 24.

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3.1. A formação da Freguesia de Santo Antônio do Paraibuna

Com o intuito de compreender as raízes históricas da cidade que abrigou a devoção

estudada, mergulhamos no alvorecer da Princesa de Minas, título carinhoso dado

posteriormente à cidade de Juiz de Fora. Tradicionalmente remetida em sua ancestralidade aos

Sertões do Leste, compreendendo nesta área a atual Zona da Mata Mineira, que por sua vez

passou a existir por força da ação mineradora tendo sido iniciada por estar às margens do

Caminho Novo, que conheceu sua ocupação definitiva quando ocorre o ocaso do ouro na

região das minas. Com o declínio da mineração, depois de 1805, teve início a concessão de

sesmarias a famílias tradicionais ligadas ao Império. Pouco tempo depois com o aporte da

Família Real e sua Corte na Colônia, a situação começa a mudar.

O professor Wilson de Lima Bastos relatou numa comunicação de sua autoria

elaborada para apresentação no VI simpósio de História do Vale do Paraíba, ocorrido em Juiz

de Fora, em Julho de 1982, que no ano de 1817, houve uma importante reunião com o

Príncipe Regente D. João VI, que convocara ao palácio grandes proprietários de terras, onde,

apresentando-lhes uma semente pouco conhecida, inculta em nosso solo, convidou-os, ou

melhor, "estimulou-os," ao cultivo da planta ensinando-lhes uma técnica, e distribuiu pacotes

de sementes vindas de Moçambique aos presentes.6 Esta planta era o café. Seu cultivo será

largamente praticado no Vale do Paraíba Fluminense e atinge em pouco tempo os contrafortes

do Paraibuna. Por iniciativa do Coronel Inácio Nogueira da Gama que esteve presente a esta

importante reunião, dela tão atentamente participara, que seguiu a risca a advertência real e

com a aplicação de técnicas inovadoras testados na lendária Fazenda de São Mateus, como o

plantio de mudas em viveiros e transplante das mesmas para lavoura somente quando

crescidas, obteve um inédito sucesso. Conseguiu no período de apenas vinte e dois anos um

cafezal com cerca de quatrocentos mil pés, produzindo a nova fonte de riqueza que levaria o

povoado a despontar no cenário nacional e internacional, como pólo produtor da rubiácea,

ponto de partida para o processo de desenvolvimento da região e grande convite ao comércio.

No ano de 1836 o governo de Minas incumbiu o engenheiro germânico, Henrique

Guilherme Halfeld, de introduzir melhorias na estrada que fazia a ligação entre Vila Rica e

Paraibuna.7 Esta obra vai produzir na região o trecho denominado Variante do Caminho

6 BASTOS, Wilson de Lima. Caminho Novo — Juiz de Fora. Juiz de Fora: Edições Paraibuna, 1993. p. 17-18. 7 Note bem o leitor, que esta localidade denominada Paraibuna é o local da divisa entre os estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Onde havia uma alfândega por nome registro do Paraibuna. O prédio ainda resiste à ação do tempo e avança sem reformas até hoje, esperando uma boa ação de pessoas ou instituições que se sensibilizem de sua importância histórica para a região.

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Novo. Esta é a via que Pedro Nava, parafraseando Eça de Queiroz, descreve da seguinte

maneira,

Eu sou um pobre homem do Caminho Novo das Minas Gerais. Se não exatamente da picada de Garcia Rodrigues, ao menos da variante aberta pelo velho Halfeld e que na rua pelo arraial do Paraibuna, tomou o nome de Rua Principal e ficou sendo depois a Rua Direita da Cidade de Juiz de Fora. Nasci nesta rua, no número 179...8

Esta rua deu origem a atual Avenida Rio Branco, uma das maiores avenidas em linha

reta do país. Este é o berço onde nascerá a Vila do Santo Antônio do Paraibuna. É também o

local onde está localizada a imponente catedral de Juiz de Fora dedicada a Santo Antônio. As

obras do engenheiro alemão trouxeram como conseqüência, o abandono do Morro da Boiada,

o que obrigou seus moradores a se deslocarem para o novo trecho do caminho acompanhando

Antônio Dias Tostes, o fazendeiro dono das terras onde moravam para o local denominado

atualmente de Alto dos Passos. Este povoado expandiu-se muito depressa, segundo Lessa,

"nascia do nada, rapidamente progredia."9O grande afluxo de população gera a necessidade de

urbanização. Em outros pontos da Zona da Mata, bem como nos arredores do crescente

povoado, o café passou a ser largamente cultivado. De acordo com uma observação de Vanda

Arantes, ao final da década de cinqüenta, as doações de sesmarias são interrompidas pela Lei

de Terras de 1850.10 Entretanto, os mineiros de outros lugares do centro do estado continuarão

chegando para trabalhar nas atividades subsidiárias do café. O surto de crescimento foi tão

grande que incentivou também muitos empreendedores a investirem na futura vila os seus

capitais. É interessante observar que aqui estamos falando da Vila usando o nome oficial de

época, Santo Antônio do Paraibuna,11 porque: Juiz de Fora desmembrou-se de Barbacena que sua vez, originou-se de São João Del Rei; este gerou-se do desmembramento de Vila Rica, um dos três primeiros municípios criados no estado, em 1711. Juiz de Fora surge, portanto, na linha genealógica na 4ª geração de municípios mineiros, resultante do 3º desmembramento

8 NAVA, Pedro. Baú de Ossos (Memórias/1). 3ª edição. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio Editora, 1974. p. 13. 9 LESSA, Jair. Juiz de Fora e seus Pioneiros, Juiz de Fora: Gráfica da UFJF, 1985.P.48. 10 VALLE, Vanda Arantes do. A secularização da sociedade brasileira. Texto para discussão apresentado pelo professor Afonso H. Botti na V Jornada de Educação Municipal – Juiz de Fora rumo aos 150 anos, 1999. 11 Por razões culturais, afetivas, próprias do povo do lugar, e também semelhança postal com a cidade de Paraibuna, este nome foi retrocedido mais tarde para Santo Antônio do Juiz de Fora e finalmente permanecendo como hoje está: apenas, Juiz de Fora.

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na linha de Ordem. (...) Portanto Barbacena é o município mãe de Santo Antônio do Paraibuna antigo topônimo de Juiz de Fora.12

Em busca da melhor compreensão do processo de urbanização que se processou na

cidade estudada, destacamos o trabalho de Sérgio da Mata que clareou-nos no sentido de não

utilizar o complicado conceito de Pré-História para pesquisar os primórdios de uma localidade

ou região, e sim trabalhá-lo com um substituto denominado Proto-urbanização.13 No capítulo

anterior fizemos uma citação onde argumentamos, que a construção de uma capela foi o ponto

de partida de muitíssimas das nossas povoações mineiras.14 E, lançamos mão dela novamente

a título de esclarecimento, pois ajuda a entender bem o processo de formação da identidade de

Juiz de Fora como uma construção coletiva de subjetividades que se agrupam, vindas de

várias partes e que precisam de um ponto que lhes dê sustentação, funcionando como

catalisador. "É a capela que tem um arraial não o contrário."15 Neste caso, a religiosidade se

apresenta, através do Catolicismo, das Capelas e do Santo Antônio.

O pesquisador Da Mata analisando as Constituições do Arcebispado da Bahia (livro

IV, XIX, 692)16 demonstra que elas definiam em seis mil réis anuais o dote mínimo (o

patrimônio) para que um bispo autorizasse ou desse provisão para a ereção de uma capela.

Era esta quantia que possibilitaria à mesma se manter com a devida decência. Contudo, criar

um patrimônio significava, no mais das vezes, dotar a capela (já pronta ou a construir) de

certa sustentabilidade, que por sua vez advinha de uma porção de terreno cujo aforamento

seria arrecadado em seu benefício. As pessoas que quisessem construir dentro desta área ou

nas proximidades da capela, pagariam uma taxa anual ao fabriqueiro designado, que por sua

vez se encarregaria de administrar os bens do santo e reformar o templo sempre que

necessário. Em torno da capela iam surgindo as primeiras moradias e, aos poucos, crescia o

arraial. 17 Vejamos esta citação:

Augusto de Lima Júnior, explica-nos que “arraial é o conjunto de casas que se forma em torno das igrejas e onde acorrem os fiéis para as solenidades religiosas e encontros comerciais.” Tanto o arraial português quanto o mineiro podem ser classificados como

12 COSTA, Joaquim Ribeiro. Toponímia de Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado, 1970. p.92-93. 13 MATA, Sérgio da. Chão de Deus: Op. Cit. p. 175. 14 MATA, Sérgio da. "O sagrado e as formas elementares do espaço urbano mineiro (séculos XVIII – XIX)." In: Revista Rhema. Revista de Filosofia e Teologia do Instituto Teológico Arquidiocesano Santo Antônio. Juiz de Fora: ITASA, v. 4, nº 16, 1998. p. 18. 15 MATA, Sérgio da. Chão de Deus: Op. Cit. p. 265. 16 RHEMA. Op. Cit. p. 18. 17 Idem.

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espaços sagrados, com a possível diferença de que enquanto a sazonalidade é típica do primeiro, a maior fixação é a marca do segundo. 18

Da Mata faz uma observação, que ajuda a entender o processo aqui estudado, quando

ocorre o crescimento do arraial, e ele se torna sede paroquial, e novas capelas começam a

surgir. Em seu entendimento este aumento segue a dois fatores básicos:

O orago da matriz, que na gênese do arraial simbolizava a unidade de todo o grupo, tem de dividir esta função com outros oragos à medida em que o núcleo se estabiliza e cresce em população.(...)Ao mesmo tempo, a complexidade crescente da estrutura social do embrião de cidade pode também se manifestar por meio da progressiva organização de distintos grupos organizados segundo critérios sociais, étnicos e –last but not least – religiosos: as irmandades.19

Ele não entra na discussão da participação das irmandades no processo de criação de

arraiais e vilas, devido a grande produção em torno do assunto e por fugir do foco ao qual se

propunha, procederemos da mesma forma, por concordância plena. No caso de Juiz de Fora

tomamos este procedimento por medida, com tranqüilidade, porque o assunto em questão, foi

recentemente estudado e esta pesquisa gerou um livro, que é referência dentro do tema. Trata-

se do livro Mistério da Fé: a Irmandade do Santíssimo Sacramento da Matriz de Santo

Antônio de Juiz de Fora 1854 - 1962. Obra do historiador Paulo Quiossa que produziu uma

importante análise da primeira e mais influente irmandade fundada na cidade. Esta associação

de leigos, conduzirá por intermédio dos seus irmãos e membros, em geral muito influentes

política e economicamente, boa parte do processo de crescimento da nascente e progressiva

cidade. 20

O arraial que vai gestar a vila e depois a cidade na várzea, à direita do Paraibuna tem

no café o seu suporte econômico. O café fez fortunas no local. Dentre elas está a de José

Antônio da Silva Pinto o Barão de Bertioga, que segundo Lessa nasceu em 1785.21 Ostentava

o título de "Guarda Mor" na cidade de Simão Pereira, vereador em Barbacena no ano de 1833,

18 LIMA JR, Augusto de. As primeiras vilas do ouro. Belo Horizonte: Santa Maria, 1962, p. 34.(Grifos do autor). Sobre o arraial português supra citado, vejamos o que diz Pierre Sanchis. Esta velha palavra portuguesa que, na origem, designava um acampamento militar, tornou-se hoje em dia, em Portugal, a concretização e o símbolo privilegiado da festa popular e singularmente da festa de romaria. O arraial é o prado, o campo plantado de árvores, o entroncamento de caminhos, a avenida ou a praça que a festa anexou; é também o ajuntamento que aí se forma, a densidade social que aí se cria, o povo que aí se comprime, o "nós" gratuíto que aí se instala; é enfim o conjunto de actividades que aí se desenrolam. In: SANCHIS, Pierre. Arraial: Festa de um Povo. As romarias portuguesas. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2ª edição, 1992. P. 142. 19 MATA, Sérgio da. Chão de Deus: Op. Cit. p. 200. 20 QUIOSSA, Paulo Sérgio. Mistério da fé: a irmandade do Santíssimo Sacramento da Matriz de Santo Antônio de Juiz de Fora (1854-1962) - Juiz de Fora, MG: FUNALFA Edições, 2006. 21 LESSA, Jair. Juiz de Fora e seus Pioneiros, Juiz de Fora: Gráfica da UFJF, 1985. p. 95-100.

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detentor do cobiçado título de Comendador da Ordem da Rosa e da Imperial Ordem de Cristo.

Barão da Bertioga em 1861. Casado com Maria José Miquelina da Silva, não teve filhos.

Faleceu em 1870, foi sepultado juntamente com a esposa na capela que fundara no Alto dos

Passos. O jornalista Inácio da Gama, segundo Lessa, ressalta que "Bertioga foi um dos

primeiros que acreditaram no nosso futuro."22 Lessa reporta-se a ele como um "esquecido"

entre os "fundadores" da cidade. Todavia, conclui que ele deixou através de cartas, a

impressão de ser um homem bom, humilde e triste. Era proprietário da fazenda Soledade, nas

proximidades de Simão Pereira, uma das maiores da região. Foi o fundador da atual Santa

Casa de Misericórdia. Fundou também a irmandade de Nosso Senhor dos Passos um ano

depois de fundada a Irmandade do Santíssimo Sacramento. Quando adquiriu as terras que o

capitão Antônio Dias Tostes (filho) recebera por herança, incluso no negócio havia uma

capela que de acordo com a escritura era chamada de igreja do Senhor dos Passos. Em anexo

e como arraial, havia o terreno onde estava construída, por doação da senhora D. Francelina.

Esta documentação data de dois de abril de 1852. A capela foi totalmente

reconstruída pelo Barão e oito anos depois estava em pleno funcionamento. Segundo Miriam

Travassos que pesquisou sobre a Santa Casa de Misericórdia, "Tanto a capela quanto o

sobrado devem ter sido construídos entre 1832 e 1840".23 Azzi argumenta que: "o núcleo

populacional do Alto do Passos começara a se expandir em direção à várzea. Esses moradores

passaram a sentir a necessidade de ter também a sua capela de devoção, em modo análogo ao

do Alto Dos Passos."24No entanto Jair Lessa argumenta que: "no tempo da planta do Halfeld,

(1844), não havia igreja no local." Temos aí uma questão a ser melhor interpretada. Ou seja: a

Vila de Santo Antônio do Paraibuna na margem direita do rio foi formada a partir do Alto dos

Passos? O povoado do Morro da Boiada, inclusive os pobres, quando deixa a margem

esquerda do Paraibuna para a "Cidade dos Ricos"25foi morar na "aprazível colina"26do Alto

dos Passos? Estas questões deveremos ver mais adiante no item seguinte onde analisaremos

mais detidamente os passos de origem desta cidade, e a mudança de arraiais. Bem como o

curioso episódio da transferência da imagem de Santo Antônio, que ficou conhecida como o

Santo Fujão.

22 Idem, p.100. 23 AZZI, Riolando. Sob o Báculo Episcopal. Op. Cit. p. 35. Apud. TRAVASSOS, Miriam. Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora - Uma reportagem para a História, Juiz de Fora, 1993, p. 27. 24 AZZI, Idem. p. 41. 25 LESSA, 48. 26 Idem, 64.

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3. 2. A transferência da imagem de Santo Antônio para a igreja Matriz que

recebeu seu nome.

A escolha do local onde estará situada uma cidade na observação de Fustel de

Coulanges é "coisa grave e da qual se crê depender o destino do povo, sempre é deixada à

decisão dos deuses."27No Brasil, não foi possível a intercessão de deuses no plural, devido a

evolução das crenças ao longo do tempo e também por força do monoteísmo cristão. Ainda

que tivéssemos na base desta formação as culturas indígena e negra muito porosas a este tipo

de politeísmo. Mas de qualquer forma, deixa entrever o caráter numinoso desta realização.

Queremos aproximar esta constatação, para junto do objeto estudado, fazendo-o colidir com a

fundação do Arraial de Santo Antônio do Paraibuna tentando estabelecer com o "Santo

fundador" um paralelo. Na mesma linha de raciocínio continuo alinhavando idéias para

justificá-la seguindo ao lado do pensamento de Sérgio Da Mata quando afirma "sem qualquer

receio de violentar os fatos que a religião foi uma das forças que produziu cidades."28

Até agora trazemos a narrativa da fundação do povoado ou da Vila do Paraibuna,

concordando com o lugar comum que afirma que as fundações congêneres estavam todas

ligadas de uma maneira ou de outra ao processo da mineração. Entretanto, o autor citado

como referência, argumenta que a gênese e a dinâmica de inúmeros dos antigos arraiais

mineiros foi um processo deflagrado menos pela mineração que pela religião. E considera um

reducionismo levar-se em conta somente razões econômicas, como por exemplo, a busca pelo

ouro como motivo de agregação. Para ele a religião também teria sido um "poderoso fator

centrípeto" de fixação da população num determinado local. 29

O espaço social do culto coletivo é o espaço público. Devemos afirmar que

concordamos com ele quando diz que:

O arraial que se forma a partir de uma capela e seu patrimônio em terras oferece um modelo diferente a ser seguido às margens de um local de mineração. Grosso modo, poderíamos dizer que o tipo humano predominante no primeiro é o "homo religiosus", enquanto que o tipo que prevalece no segundo é o "homo ludens". O arraial minerador vive em função das lavras; o arraial surgido num patrimônio tem na capela o seu ponto de rotação.30

27 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. Lá cité antique. Paris: Hachette, s/d. (1898), p. 153.Apud MATA, Sérgio da. Chão de Deus: Op. Cit. p. 19. 28 Idem,191. 29 MATA, Sérgio da. "O sagrado e as formas elementares do espaço urbano mineiro (séculos XVIII – XIX)."In Revista Rhema. Revista de Filosofia e Teologia do Instituto Teológico Arquidiocesano Santo Antônio. Juiz de Fora: ITASA, v. 4, nº 16, 1998. p. 17.

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Importa nesse momento discutir, o "ponto de rotação", arraial de Santo Antônio do

Paraibuna, que recebeu este nome em função do Santo que já estava presente na vida do lugar

bem como do rio que lhe empresta o leito para assentamento. "O nome inicial teria sido Santo

Antônio do Morro da Boiada do Paraibuna. E, por contração ficou conhecida como o Arraial

do Santo Antônio do Paraibuna"31 Fundado em 31de maio de 1850. Segundo Mônica Ribeiro

o termo Juiz de Fora, sugere dúvidas a respeito da sua origem. "Na verdade, o Juiz de Fora era

um magistrado, do tempo colonial, nomeado pela Coroa Portuguesa, para atuar onde não

havia Juiz de Direito." 32 Ela argumenta no sentido de que "alguns estudos indicam que um

Juiz de Fora esteve de passagem na região e hospedou-se por algum tempo numa fazenda e

que, mais tarde, próximo a ela, surgiria o povoado de Santo Antônio do Paraibuna."33Já o

professor Carlos Alberto Botti elucida melhor a questão, salientando que o governo do Rio de

Janeiro cuja jurisdição alcançava o centro das Minas, procedeu doação de terras aos

funcionários mais próximos, e na região da cidade em questão, uma destas propriedades

coube a José Antônio secretário do governo que jamais esteve na região e "portanto, não

tomou posse efetiva. Mas, como juridicamente lhe pertencia, vendeu-a a Bustamante e Sá,

magistrado aposentado da carreira jurídica no cargo de Juiz de Fora."34O juiz ali residiu com a

família na fazenda. O casarão que resistiu até 1942, serviu de ponto de referência para

freqüentadores do Caminho Novo possuindo algumas vendas. E acrescenta,

Os moradores dos povoados próximos ao Caminho Novo, ao longo das margens do Rio Paraibuna, iam ali fazer compras, nas imediações da fazenda de Bustamante Sá. Ao irem às compras, essas pessoas diziam ir ao Juiz de Fora. Impõe-se a tradição oral de toda essa região: os vários povoados passaram a ser chamados de Santo Antônio do Paraibuna do Juiz de Fora.35

30 Idem, 266. 31 BOTTI, Carlos Roberto Hargreaves. (Coord.). Cia Mineira de Eletricidade. B.H. Editado pela Cemig, 1994. (Projeto Memória). p. 19. 32 OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Juiz de Fora: Vivendo a história.- Juiz de Fora: Núcleo de História Regional da UFJF / Editora da UFJF, 1994. p. 18-19. 33 Idem. 34 BOTTI, Carlos Alberto Hargreaves (Coord.). Companhia Mineira de Eletricidade. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora. Belo Horizonte: Companhia Energética de Minas Gerais, 1994, p. 20. Segundo se pode apurar, o cargo jurídico de Juiz de Fora foi trazido para as colônias americanas pelos colonizadores portugueses e espanhóis. A tradição ibérica assimilou essa função jurídica dos mouros, invasores da Península Ibérica, durante a Idade Média Ocidental. Os árabes, por sua vez, tomaram esse cargo jurídico das antigas Alexandrias. Nas Alexandrias, Alexandre, O Grande, da Macedônia, institui essa função para que o juiz das Alexandrias, morando fora da comunidade urbana, pudesse julgar com isenção de pessoa.35 Idem, p. 20.

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Jair Lessa reporta a Alexandre Delgado a adjetivação de "cuidadoso historiador" e lhe

atribui o mérito de "desvendador" do nome do juiz de fora que deu o nome à cidade sem

contudo, nunca ter aqui legislado.36 De fato, merece o reconhecimento. Delgado conseguiu

localizar nos arquivos da igreja da Candelária no Rio de Janeiro, o testamento do Alcaide

Tomé Corrêa Vasques, onde solicitava em intenção de sua alma a celebração de três mil

missas. Nesse documento o Alcaide cita o seu concunhado, Manuel de Sá Figueiredo, que por

sua vez era irmão do juiz de fora do Rio de Janeiro, Luís Fortes Bustamante e Sá.

Segundo o pesquisador a partir de 1718, este nome aparece em um mapa, e no ano

seguinte como locativo em documento assinado pelo conde de Assumar, em 1º de agosto

daquele ano, determinando que se providenciem suprimentos em todas as localidades ao

longo do Caminho, para abastecer a viagem das tropas dos Dragões (militares a cavalo) que

vieram de Portugal. Jair Lessa comenta a respeito do Dr. Luís Fortes Bustamante e Sá, pois

fora nomeado juiz de fora da cidade do Rio de Janeiro, na data de 18 de março de 1711. "Era

fidalgo português, prestigiado, audacioso, bravo, auto-suficiente"37 Funcionou como

intermediário entre o governo e as forças corsárias durante a ocupação francesa no Rio de

Janeiro. Em 1713 aposentou-se e comprou segundo Lessa uma sesmaria de João de Oliveira38

e não de José Antônio conforme descreveu Botti, citado acima. Nela construiu provavelmente

entre os anos de 1713 a 1728, o sobradão que seria a sede da legendária fazenda que

emprestou o nome de referência para toda uma geração de viajantes e que o tempo tratou de

imortalizar. Existem fotos da frente e dos fundos desse imponente testemunho da história

local.

Valente que era em 1722 o nobre entra em atrito com o vizinho, sargento-mor José de

Souza Fragoso e portando armas comanda a invasão das terras do Marmelo, (próximo a

histórica Usina Hidrelétrica). Em razão do ocorrido, "Já tendo tido problemas com a justiça

em 1716" 39 foi expulso de Minas pelo rei de Portugal a pedido do governador da província.

"Daí em diante seu nome desapareceu da história local" 40 Ressurgindo somente na década de

1980 pelas mãos de Alexandre Delgado, através do qual ficamos sabendo, que o juiz volta a

reaparecer na data de 06 de novembro de 1728 vendendo a fazenda de Juiz de Fora a seu

genro, Roberto Carr Ribeiro. Jair Lessa credita a ele, Bustamante, "numerosa família, toda ela

36 LESSA, Op. Cit. p. 28. 37 Idem, p. 27. 38 Idem. p. 26. 39 Idem. p. 27. 40 Idem.

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gente de grande valor pessoal e público. E o nome esfíngico." 41Quanto ao Genro supra

citado, foi quem vendeu dez anos mais tarde, em 1738, aquela fazenda para o comerciante

Antônio Vidal que por sua vez, foi quem trouxe o Santo Antônio oficialmente para este lugar.

Recorremos novamente aos relatos dos viajantes dos quais nos socorremos da escassez

das fontes para ir fechando foco em direção do assunto que é mais relevante. Neste sentido

lançamos mão do pequeno, mas referencial volume do professor Wilson de Lima Bastos que

reuniu e comentou as informações de doze viajantes naturalistas, cientistas, além de sua

Majestade o Imperador D. Pedro I, cujas anotações tenham feito sobre a região alguma

citação. Colocaremos aspas nas citações extraídas dos comentários elaborados pelo

historiador Lima Bastos destacando observações por ele elaboradas. De antemão pedimos

desculpas ao leitor pelo abuso das repetições de alguns logradouros. Não os omitimos por

fidelidade as parcas fontes. Vamos a elas:

Da viagem de Antonil, primeiro cientista documentado a cruzar aquele caminho logo

nos seus primórdios, destacamos a seguinte informação: "preocupado com o ouro e riquezas

minerais, limitou-se a registrar, no trecho que viria a ser ocupado por 'Santo Antônio do

Paraibuna', apenas algumas roças."42 O Barão de Eschwege, engenheiro de mineralogia pela

região, que transitou em 1803 e preocupou-se com a composição geológica, as vezes comenta

a vegetação. Pouco se interessou pelas questões culturais, antropológicas, e econômicas. "Até

aquela época a fazenda do Juiz de Fora era um prédio isolado no verdejante vale, um marco

do Caminho Novo, à margem esquerda do Rio Paraibuna." 43 Tendo passado pela região em

1809, quase um século depois de Antonil, coube a John Malwe fazer alguns registros muito

desfavoráveis, ressaltando a indolência e o desleixo da gente do lugar por ele chamado

Madeiras, que pela descrição deve ser Medeiros. "Ao que tudo indica, ainda não havia o

povoado mais denso que deu origem à Vila de Santo Antônio do Paraibuna, mas mencionou a

Fazenda de Juiz de Fora, sem maiores detalhes." 44 E continua,

Ainda naquela época (1810) apenas contava o povoado com o Caminho Novo, isto é a Picada de Garcia Paes. Só a partir de 1837 é que se iniciou a construção da Estrada do Paraibuna, cujo contrato firmado pelo engenheiro Henrique Guilherme Fernando Halfeld e a província de Minas Gerais, pela lei provincial nº 81, data de 13 de abril de 1837. A partir daí é que se iniciou o povoamento no outro lado do Rio Paraibuna, que constitui hoje a grande e bela área da Cidade de Juiz de Fora.45

41 Idem. 42 BASTOS, Wilson de Lima. Caminho Novo — Juiz de Fora. Juiz de Fora: Edições Paraibuna, 1993. p.22. 43 idem, p. 28. 44 Idem, 32.

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Sabe-se a respeito de John Luccock pouca coisa além das referencias deixadas por

viajantes contemporâneos dele. Era comerciante inglês, esteve no Brasil durante dez anos,

passando pela região em 1817. Fez Várias anotações incompletas ou contendo erros, o que

levou Jair Lessa afirmar que "era surdo, a custo do que entendia mal o que lhe diziam

refletindo isso em suas anotações..."46 Segundo Lima Bastos é dele (Luccoch) o seguinte

registro que releva citar: "Juiz de Fora contém uma capelinha e umas poucas casitas

miseráveis"47 O comentário de Bastos sobre Johnn Emanoel Pohl testemunha que era um

médico, mineralogista e botânico, que integrou uma missão exploratória por incentivo da

imperatriz D. Leopoldina ao interior do Brasil. Passa por Chapéu D'uvas48 ou Engenho do

Mato onde há uma pequena igreja (primeira Igreja Matriz desta Zona da Mata) rodeada por

treze casas. "No que se refere ao presente estudo, até 1820, a antiga Santo Antônio do

Paraibuna estava reduzida à fazenda do Juiz de Fora e o caminho dos viajantes era pela

margem esquerda do Rio Paraibuna." 49 Auguste de Saint Hilaire, famoso naturalista francês,

fez a respeito do lugar um relato minucioso e rico de observações. Segundo Bastos,

uma peça de alto valor literário e científico"(...) Atravessa o Paraibuna por barco,(...) passa pelo Morro dos Arrependidos, confirmando as cruzes fincadas no cume do Morro e registra a seguir, o rancho do Marmelo, a uma légua e três quartos do qual se encontra 'a morada do Juiz de Fora', em cujo trajeto passa por uma Capela abandonada.50

O também naturalista e médico alemão Barão de Langsdorf foi companheiro de

viagem de Sant Hilaire. Entretanto,"o interesse do Barão eram as áreas de minérios, a estas se

referindo os seus registros..."51 Raimundo José da Cunha Mattos era oficial do exército

português e do brasileiro também. Escritor produziu diversos registros de viagem que hoje são

pontos de referência para a história local. Não vamos nos ater na abordagem do seu trabalho,

porque dele nos servimos fartamente para ilustrar e documentar o segundo capítulo, quando

discutia as capelas na região. Importa ressaltar além da descrição recheada de detalhes, que

seus registros são rigidamente acompanhados de datação diária, distância assinalada em

45 Idem, (Grifo do autor). 46 Idem, p. 33. 47 Idem. 48 A igreja atual de Chapéu D'uvas, (Paula Lima) é de 1911. Foi reformada em 1937. Sobre ela existem fotos antes da reforma em poder do pesquisador Vanderlei Tomás. A respeito do nome Chapéu D'uvas é corruptela de Chapetuvas, significando Xá, ver; Pé, caminho; Uva, água parada; que significa em linguagem indígena: caminho visto ou aberto no pântano. VASCONCELOS, Diogo de. História Média das Minas Gerais. Editora Itatiaia ltda.:Belo Horizonte, 1999. 49 Idem, p.39. 50 idem, p. 52. 51 Idem, p. 54.

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léguas, e o tempo, obviamente, em horas e minutos. Talvez isto de deva a instrução militar

disciplinada por ele adquirida. Segundo Bastos,

Dos cientistas viajantes até aqui indicados é Cunha Mattos o primeiro a referir-se às cruzes ao mesmo tempo em que tenta descobrir o motivo de sua presença e de numerosas pedras para o alto do morro levadas, assim como o porque de tal prática.(...) É um dos mais completos, com registros que são marcos, naquela altura do século XIX, para esclarecimentos de diversos pontos controvertidos do passado.52

Em relação à viagem empreendida por Suas Magestades Imperiais D. Pedro I e D.

Amélia, que passaram pela região em 1831, Bastos assevera: "Conquanto não se trate de

cientista-viajante, interessa sobremaneira ao presente estudo em se tratando do cunho oficial,

cujos registros têm a garantia do poder de então."53 Esta viagem, assim como a anterior, foi

devidamente utilizada e comentada. Por isso omitimos novo comentário, não obstante, o

brilho dos viajantes. Charles Bunbury naturalista inglês entrou na região no dia 28 de maio de

1835. Pernoitou no dia seguinte na fazenda de José Vidal, no dia 30, declarou ter sido muito

bem recebido na Fazenda da Estiva. Bastos comenta,

Ora ainda não existia a Estrada do Paraibuna, cujo contrato firmado entre a Província e o Engenheiro Henrique Guilherme Fernando Halfeld fora assinado a 13 de abril de 1837. (lei provincial nº 81). Então como é fácil de perceber, ainda não existia o povoado no lado direto do Rio Paraibuna, mas apenas o do outro isto é, Fazenda do Juiz de Fora. Fox Bunbury foi um dos últimos viajantes cientistas, senão o último a transitar pelos altos do Morro dos Marmelos.54

Herman Burmeinster, médico e naturalista Prussiano, passou pela região em 1850.

Descendo da serra da Mantiqueira, (sentido Norte-Sul) ainda Vila de Santo Antônio do

Paraibuna. Note bem o ainda, pois, o viajante passa no arraial exatamente no dia, mês e ano

em que entra em vigor a lei que cria o Município de Santo Antônio do Paraibuna. Note

também o leitor, que é o próprio viajante quem diz que:

o povoado, do jeito em que o via, era de origem recente.(...) nascera porque os habitantes da aldeia mais antiga, situada no lado norte e próximo do Paraibuna a uma altitude de 2.040 pés, deslocaram-se para o lado sul do rio, a uma distância de meia hora, quando a nova estrada tomou esse rumo.55

52 Idem. p.58-59. 53 Idem. p. 60. 54 Idem. p. 64. 55 Idem. p. 67.

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Sobre esta importante viagem, Lima Bastos teceu o seguinte comentário:

Está claro que se referia a estrada aberta pelo engenheiro Henrique Guilherme Fernando Halfeld, a cujas margens foram edificados sobrados e casas menores, sendo esta a razão de ser da futura Rua Direita, a belíssima atual Avenida Barão do Rio Branco.(...) e registra após passar o povoado, os primeiros cafezais no vale ao pé da Mantiqueira.56

Outros dois importantes naturalistas transitaram pela região, por causa disso constam

da listagem elaborada por Lima Bastos. São eles Richard Burton e Luiz Agassiz. O primeiro

era cidadão inglês e viajava pelo mundo todo a serviço da Companhia das Índias, passou pelo

município em 1867 e observou grande efervecência e desenvolvimento. Juiz de Fora já

gozava do status de cidade a onze anos e de município a dezessete. A importância de suas

anotações deve-se principalmente, ao contraste assinalado no tempo ente ele e o último

viajante. Burton faz um comentário sobre a igreja Matriz que está sendo erguida, e descreve

alguns pontos da festa do padroeiro que ocorria no dia, (13 de junho). Lima Bastos altera o

humor quando comenta a arrogância do inglês que segundo ele "achou defeito em tudo." 57

Sobre o médico e naturalista suíço Luiz Agassiz, em sua segunda viagem ao Brasil, passou

pela cidade em 1865, ciceroneado por Mariano Procópio, como, aliás, também ocorreu com

Burton. Mariano estava em franca disputa com Halfeld e se impunha no cenário de então.

Sobre sua viagem e para esta pesquisa importa o que Bastos destacou: "já não se tratava mais

da Vila de Santo Antônio do Paraibuna, mas da cidade do Paraibuna, que fôra instalada no

dia 07 de setembro de 1856, pelo Comendador Francisco de Paula Lima."58 Agassiz eminente

cientista, fez pouca conta do aspecto religioso. Não citou nada.

Elaboramos esta retrospectiva na esperança de propiciar ao leitor uma espécie de

roteiro, que ao mesmo tempo é um convite e um guia, para quem venha se adentrar nessa

discussão, ou até mesmo, por considerá-la balizadora. Procedendo dessa forma, sabendo como

ocorreu a transferência de arraial de um lado para o outro, do Rio Paraibuna. Percebe-se

também como este fato importa para a vida desta cidade de Juiz de Fora. Importa, sobretudo,

de maneira relevante, acompanhar o trânsito "Santantoniano" por entre os momentos

derradeiros da influência do sobradão do Juiz de Fora, e seu reinado por sobre toda a margem

esquerda do rio, e a ascensão da influência de outras torres e outros sobrados na outra

margem.

56 Idem. 57 Idem. p. 77. 58 idem. p. 83.

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Entretanto, falta analisar mais detidamente um aspecto típico da cultura e da

religiosidade popular, ocorrido em Juiz de Fora quando da transferência do eixo populacional

da margem esquerda para a direita do Rio Paraibuna.59 Trata-se do episódio registrado na

memória da população local como o Santo Fujão.

Jair Lessa relembra que em Juiz de Fora o Caminho Novo percorreu sempre apenas a

margem esquerda do rio e que a maior dificuldade do desbravador na região, foi vencer o

alagadiço de mais de vinte e quatro quilômetros devido às águas do Paraibuna. Para fugir do

lamaçal, o bandeirante cortou o caminho a meia-encosta, nos atuais bairros Costa Carvalho,

Vitorino Braga, e Santa Terezinha. "O rio também chamado de Rio Barro, era então muito

largo, sinuoso e profundo."60 Sobre a margem direita, ou, o outro lado do rio, até aquele

momento pouco explorado, Jair Lessa escreve com lirismo para enlevo do leitor receptivo e

orgulho do morador local.

Do lado onde está hoje a parte maior e mais rica da cidade, não havia habitações nem passagens, apenas, visível ao longe, do outro lado do rio, fechando o horizonte, o altaneiro e bonito morro de grandes, lisas e úmidas pedras negras e musguentas ⎯ gigantesco leão adormecido de verde juba e ancas delicadamente sinuosas com a parte mais alta a 260 metros de altura ⎯ sombreando cedo miasmenta várzea de quinze quilômetros de comprimento, coberta e cercada por exuberante floresta tropical prenhe de palmeiras bambuzais, pés de amoras e taboas, habitat de miríades de colossais capivaras, sapos, macacos, e barulhentas maitacas. Alguns bandos dessas aves, desafiando o progresso, ainda avoaçam em rápidas curvas pelos nossos céus, nas épocas apropriadas. O resto da bicharada extinguiu-se, inclusive os peixes do rio Paraibuna.61

Sobre a mesma margem direita, ou mesmo ajuntando as duas, recorremos ao filho

ilustre, que o Caminho Novo produziu, reconhecidamente um grande memorialista de renome

nacional, para recompor o cenário onde homens e mulheres agruparam-se produzindo uma

cidade inteiramente nova, dedicada, no entanto a uma devoção antiga de santo católico, que

nela foi coagido a ficar. Estamos falando de Pedro Nava e dele recortamos o seguinte trecho:

Aquela brisa do vale do Paraibuna trouxe uma nuvem de pólen do Registro de Matias Barbosa, outra de Santo Antônio da Boiada. Elas caíram sobre as flores da roça do Alcaide-Mor - que frutificaram Bota-n-Água, Milheiros, Outra-Banda, Alto dos Passos - Juiz de Fora. O rio era tortuoso, barrento, águas propícias ao afogamento de

59 Parahybuna é um nome de origem indígena [que] significa (Para-hy-una) rio de águas escuras. (...) devida a decomposição das matérias húmicas pelas alcalis. Tem sua origem na Serrada Mantiqueira. A água do rio Paraybuna é potável, principalmente depois de ser conservada em quietação dentro de bilhas. É de cor levemente amarelada, sem cheiro nem sabor, tendo em suspensão argila corada pelo oxydo ferrico e detritos vegetaes. ESTEVES, Albino. Álbum do Município de Juiz de Fora. Belo Horizonte: imprensa oficial, 1915, p. 150. 60 LESSA, Op. Cit. p. 20-21. 61 Idem, p. 20.

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meninos, ao suicídio das moças seduzidas e das escravas judiadas do Visconde Monte Mário. Suas margens e pontes mal-assombradas gemiam feio com o vento noturno. Nesse tempo ele não tinha fundo e levantava-se qual serpe furiosa, querendo estrangular em seus líquidos anéis a cidade em pânico, que fugia Morro do Imperador acima.62

Noutro ponto, o dono desta ilustre pena juizforana, descreveu com delicadeza

algumas partes da margem direita, que outrora foram alvo de críticas desferidas, por

exemplo, pelo exigente viajante Richard Burton que em seu primeiro contato com o trecho

recente da Variante do Caminho Novo creditou-lhe: "simples rua larga - empoeirada ou

barrenta)" que anos mais tarde Nava referenciava dizendo que:

além de dar assim leste e oeste para a escolha do destino, a Rua Direita é a reta onde cabem todas as ruas de Juiz de Fora. Entre o Largo do Riachuelo e o Alto dos Passos,(...) É assim que podemos dividir Juiz de Fora, não apenas nas duas direções da Rua Direita, mais ainda nos dois mundos da Rua Direita. Sua separação é dada pela Rua Halfeld. A rua Halfeld desce como um rio, do Morro do Imperador, e vai desaguar na Praça da Estação.63

No quarto capítulo do livro "Chão de Deus" 64 o autor já citado Sérgio da Mata faz

rigoroso e detalhado estudo a respeito de sagas e mitos de origem, na tentativa de dar estatuto

de rigor a esse tipo de narrativa, retirando-as do desencorajado âmbito do discurso mítico

creditando-lhes papel especial como porta de entrada nos saberes apropriado pelas classes

populares. Todo esse esforço vem no sentido de compreender o processo de formação dos

embriões de cidades iniciados por arraiais a partir de uma capela, muito comuns nas várias

regiões de Minas no século dezoito e início do dezenove. Segundo ele, o historiador equipado

com seu aparato teorico-metodológico elabora projeções, analisa documentos, consulta

gráficos e inquire as fontes. No entanto, o homem do povo também se pergunta a respeito. E

em meio a estas indagações de forma bem peculiar, elabora suas respostas. "Estas respostas

eventualmente constituem um corpo de narrativa,s que se pode classificar como sagas ou

mitos de origem."65

No período que está sendo analisado, Juiz de Fora também teve seu processo de

apropriação mítica elaborado pelo povo. A manifestação do episódio ocorreu justamente no

momento da transição do povoado da Boiada para a Vila do Paraibuna. Foi comentado sob

62 NAVA, Pedro. Baú de Ossos (Memórias/1). 3ª edição. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio Editora, 1974. p. 189. 63 Idem. p. 14. 64 MATA, Sérgio da. Chão de Deus: Op. Cit. 65 Idem. p. 221-232.

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diversos ângulos e por diferentes cronistas da cidade, Vejamos o registro mais antigo (1915),

feito pelo respeitado jornalista e historiador Albino Esteves,

Estava escripto que a cidade moderna e próspera que hora se encontra ás margens do Paraybuna, não se contentaria como recanto da Boiada; ei-la transferida da pousada para a várzea que o sobrado de Juiz de Fora , solitário espiava, como uma esphinge, esperando o milagre de se tornar centro de actividade o que até então era baldio e cheio de lagoas de águas esverdinhentas.(...) Os habitantes da Boiada passaram-se, pois, se bem que pesarosos, para onde os chamara os interesses de sua rotineira existência, e, uma, a uma as casas do velho povoado, foram cahindo, até que o mattagal e o tempo se encarregassem de apagar os vestígios d'aquelle recanto outróra tão querido e procurado. A última recordação do povoado da Boiada, foi a viagem de Santo Antônio do Morro da Boiada, conduzido processionalmente de sua capelinha para a várzea e que durante muitos annos se encontrou no oratório do finado padre João Roussin, devendo estar em poder de seus herdeiros. E a propósito da transladação da imagem de Santo Antônio, narravam os do tempo e a tradição nos trouxe a pittoresca fuga do santo, do altar em sua nova egreja na várzea, para o velho povoado da serra da Boiada... é que o povo simples e ingênuo, não queria abandonar, sem uma espécies de protesto, o antigo campo de suas luctas.66

Sobre o tema escreveu também, o historiador da cidade que é muito solicitado, Paulino

de Oliveira, de cujo trabalho nos distanciamos, devido a polêmica criada em torno de seus

escritos, principalmente os artigos de jornal da década de oitenta, trabalhados no segundo

capítulo, em que afloraram as inquietações sobre as origens da cidade e para os quais não

apresentara argumentos necessariamente embasados para sustentar o debate. Igualmente, ao

preterir o trabalho de Oliveira me identifiquei com outros autores daquele momento histórico,

como por exemplo, Lima Bastos e Jair Lessa autores amplamente solicitados na feitura dessa

pesquisa. A preferência deve-se inicialmente ao fato de terem eles publicado além de artigos,

livros sobre a cidade. Professores acadêmicos que eram, enfrentaram o desafio de investigar o

período antes da fundação, apoiados menos na tradição e mais na documentação. Argumento

este que para a pesquisa, serviu largamente como referência. Também Riolando Azzi fez

breve menção ao assunto e o incluiu na obra que escreveu sobre a religiosidade católica em

Juiz de Fora. O livro foi elaborado para as comemorações dos cento e cinqüenta anos da

cidade.

Sobre o discurso popular, destacamos um trecho do pesquisador Lima Bastos quando

escreve sobre o mesmo episódio acrescentando um comentário próprio sobre a lenda que dali

surgiu. O professor reporta ao comentário original de Esteves, pois os termos usados e a

análise elaborada remontam para a mesma fonte. Segundo ele, "corre uma lenda" muito

interessante, precisamente no momento em que a cidade estava prestes a se tornar sede do

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extenso município do Paraibuna, no ano de 1850. Para melhor explicitar o fato ele insere a

citação do viajante Burmeister sobre o qual já fizemos referência acima. Daquele texto ele

destaca,

vimos numa grande planície, a aldeia de Juiz de Fora com uma longa fila de casas e uma grande igreja de duas torres situada para o lado da encosta. (...) A igreja, de madeira, ainda estava em construção, mormente as torres, que já tinham telhado mas sem nenhum parede ainda. Surpreendi-me ao ver que o telhado era de zinco."67

A este comentário do viajante, ele Lima Bastos acrescenta:

Para a referida igreja foi transladada, da primeira capela do outro lado do Rio Paraibuna, a veneranda imagem de Santo Antônio, da devoção de Antônio Vidal. Certamente foi em procissão, com o ritual piedoso da época. Ocorreu, porém que, na manhã seguinte, a imagem havia desaparecido, uma vez que voltara para o antigo abrigo. Vox populi vox Dei.68

O historiador Lima Bastos no livro publicado postumamente, acreditava que tinha

nas mãos uma das chaves de interpretação do caso. Atribuindo à imagem uma "paternidade"

para o santo, que se revela falseada, pois, não comprovada cientificamente. Ou seja: resvala

ele também, e incorre no mesmo erro que nos colegas apontava. Que nos sirva de exemplo;

porque todos nós historiadores, ao penetrarmos na seara das devoções populares ou nos

domínios da oralidade, trabalhando nele por muito tempo, corremos o risco de nos tornamos

nativos, e na tentativa de conhecer o objeto, de dominá-lo, somos novamente traídos pelo

excesso de proximidade, pela falta de distanciamento. Vejamos o que disse:

Antônio Vidal, ao mesmo tempo em que esperava para erigir a capela, tinha já em seu poder a imagem do orago - Santo Antônio de Pádua, que é o mesmo de Lisboa. Tal imagem permaneceu à devoção na capela histórica até que foi transladada para o definitivo templo, sob o mesmo orago. Algumas vezes reedificado e transformado definitivamente na suntuosa Catedral Metropolitana 69

É importante destacar a luz dessa citação, aproveitando-lhe a complexidade, para

ressaltar quão espinhoso é o problema e a dificuldade em afirmar alguma coisa dentro do

tema proposto. Aqui reaparece a exiguidade das fontes. Da mesma forma, que é complicado 66 ESTEVES Albino. Op. Cit., . p. 5, (grifos do autor) 67BASTOS, Wilson de Lima. Caminho Novo — Juiz de Fora. Juiz de Fora: Edições Paraibuna, 1993. p. 86. Sobre o mesmo assunto Ver, Sinval Santiago no artigo de Jornal entitulado Orígens da Catedral I e II. Datados respectivamente de 11e15 /04/82, documentos sob a guarda do AHJF, Fundo Alfredo Costa. Notas Históricas / Recortes de Jornal. 68 Idem. p. 87. (Grifo do autor). 69 BASTOS, Wilson de Lima. Caminho Novo: A espinha dorsal de Minas Gerais, Juiz de Fora: Funalfa edições, 2004. p. 117. (Grifo meu).

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fazer o que fez Lima Bastos acima, permanece também difícil responder a questão que ele

julgava ter resolvido. Ou seja: qual é a origem da imagem de madeira do orago que hoje

devociona a cidade? Por outro lado, a imagem que está na Catedral Metropolitana não

apresenta características de imagem setecentista. Ainda não é seguro afirmar qualquer coisa

sobre qual é o perímetro urbano dentro da qual esta imagem de Santo Antônio transitara.

Existem dúvidas se a imagem foi transladada da primeira Matriz que rapidamente ficou

pequena, para a segunda Matriz que se tornou Catedral, ou se ela foi transportada do Morro da

Boiada para a Matriz - Catedral, transitando assim, de uma margem para outra do Paraibuna.

Deixamos para discutir por último a contribuição do jornalista e escritor Lindolfo

Gomes. Nem de longe isso significa que o trabalho dele seja menos importante, que o de

outros autores na intrincada montagem desse mosaico. Pelo contrário, aficcionado pelos

assuntos locais, era muito profícuo em contribuições literárias para a cidade de Juiz de Fora

conforme atestam os anais da sua época. Foi dele a iniciativa de recolher e registrar por

escrito, a versão aqui utilizada da Lenda do Santo Fujão. No nosso entendimento um legado

poderoso para a memória da cidade de Juiz de Fora. Vamos a ela:

Lá no Morro da Boiada, onde era antigamente o arraial de Santo Antônio, que existia antes de se fundar Juiz de Fora, havia uma capelinha do santo e um cemitério. Quando a população do Morro desprezou o local e veio cá para a vargem, onde está agora a cidade, trouxeram em procissão a imagem para o oratório do vigário, mas, qual! a imagem voltou para a sua capelinha. Tornaram a trazer o santo, mas ele tornou a voltar. Era mesmo uma teima sem remédio. . . Santo Antônio da Boiada era milagroso deveras, e o povo tinha com ele muita devoção! Valha-me, Santo Antônio da Boiada! E estava logo tudo arranjado, desde que fosse para bem, que para mal não há santo que ajude . O Morro da Boiada de primeiro era também habitado por uma quadrilha de salteadores e ganhou fama de perigoso e assombrado. Dizem que tem lá um china seco, que aparece fora de horas aos viajantes. Às vezes passam correndo bolas de fogo, galinhas de todas as cores, inté verdes, com seus pintinhos da mesma forma; topam-se fantasmas que vão crescendo, crescendo por essas alturas a riba, e cruzes de fogo, que aparecem e desaparecem não se sabe como. Ih! Quem vai de noite no Morro da Boiada. Tem muito que ver e contar. Mas quem é que se atreve a passar ali à meia-noite? Só se tiver oração das almas benditas que então sim!70

Esse tipo de narrativa não é de todo estranha para nós brasileiros, ao contrário, ela é

mais comum do que parece. Os pescadores do vale do Paraíba no século XVIII lançaram suas

redes e nela emergiu uma imagem de Nossa Senhora sem cabeça. Lançaram novamente as

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redes e a cabeça pertencente à imagem veio à tona. Em sua homenagem constroem um altar,

os fiéis recolhem graças ao seu redor, uma capela é edificada. A fama se espalha, as curas e os

milagres fazem dela uma devoção nacional. Ergue-se um santuário que acolhe os romeiros do

país inteiro. Esta é a "lenda" de Nossa Senhora Aparecida, a Padroeira do Brasil.71 Assim

como esta existem outras como a do Bom Jesus do Matozinhos, do Bom Jesus da Lapa , do

São Gonçalo do Amarante, e por aí vai uma infinidade. Segundo Azzi "essa narrativa de

imagens que voltavam aos primitivos lugares em que eram cultuadas era muito comum na

sociedade colonial." 72

Antes de concluir esta parte do trabalho precisamos responder algumas questões que

foram levantadas para não deixar o leitor confuso. Não temos a pretensão de esgotar o assunto

visto que, apesar de discutir amplamente com as fontes, conforme já dissemos, elas não

elucidaram tudo. Será preciso mais tempo, vasculhar outros acervos, a fim de construir

respostas melhor balizadas. Queremos responder aos questionamentos levantados através do

texto da lenda do Santo Fujão, usando-o como âncora, fazendo intertexto. Vejamos o que é

possível fazer agora. A primeira questão que levantamos neste capítulo foi: A Vila do

Paraibuna se formou a partir do Alto dos Passos? Respondemos: Logo após a abertura da

Nova Estrada do Paraibuna (1836-1838),

teve início o segundo impulso para a formação da nova cidade a partir de um arraial, no Alto dos Passos, que, num período de 10 anos, foi elevado à categoria de Vila (31/05/1850) com o nome de Santo Antônio do Paraibuna, abrigando, então, cerca de 600 famílias.73

Encontramos outra menção neste sentido, feita em um importante depoimento escrito

para a semana comercial, pelo major Ignácio Gama, que escreveu o seguinte:

Li, ouvi, de alguém, cujo nome foge-me à memória, que o crescimento dos povoados faz-se do sul para o norte, invariavelmente. (...) devo nestas notas particularizar Juiz de Fora como um exemplo em seu abono. Em verdade foi na graciosa colina que mais tarde se denominou Alto dos Passos, a fundação dos primeiros elementos da futura cidade mineira.74

70 GOMES, Lindolfo. Contos Populares Brasileiros. Edições Melhoramentos, 3ª edição. São Paulo: 1965. p. 173 -174. Contada por um caboclo velho, antigo morador de Juiz de Fora. Onde é muito vulgar esta lenda, entremeada de diversos episódios. 71 MATA, Sérgio da. Chão de Deus: Op. Cit. p. 221. 72 AZZI, Riolando. Sob o Báculo Episcopal – A Igreja Católica em Juiz de Fora, (1850-1950). Juiz de Fora, tempo gráfica e editora ltda. 2000. p. 41. 73 BESSA, Ana Paula Bartolomeu et. alli. Dicionário Escolar: Juiz de Fora passado & presente. Juiz de Fora: Governo de Juiz de Fora – Secretaria Municipal de Educação, Secretaria Municipal de Governo, Instituto de Pesquisa e Planejamento; Belo Horizonte: Editora Acervo Cultural, 2000, p. 38. 74 ESTEVES Albino. Op. Cit. p. 159.

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O segundo questionamento aventado indaga sobre a situação do povo pobre, no

momento da transferência do arraial do Morro da Boiada para o outro lado do rio. A pergunta

é se eles também foram morar lá?

Os habitantes da Boiada passaram-se, pois, se bem que pesarosos, para onde os chamara os interesses de sua rotineira existência, e, uma, a uma as casas do velho povoado, foram cahindo, até que o mattagal e o tempo se encarregassem de apagar os vestígios d'aquelle recanto outróra tão querido e procurado75

A obra de Albino Esteves de 1915 é um marco para a historiografia da cidade de Juiz

de Fora. Lastreou conforme já dissemos antes, o rumo de boa parte das afirmações que se

fizeram depois dele, para bem ou para mal. Vejamos por exemplo, esta avaliação feita por Jair

Lessa "é comum citar-se como causa preponderante na formação da cidade, uma repentina

migração em massa de antigos moradores do Morro da Boiada, não é verdade." Noutro ponto

mais adiante ele acrescenta, contestando Esteves,

Lamentamos se o resultado da nossa pesquisa vier a empanar a poética afirmação de que a mudança total da população do simpático povoado, para a margem direita do rio tenha sido a causa do nascimento da nossa cidade. ⎯ Ao contrário, os moradores de lá como também outras pessoas espalhadas por aí ⎯ vieram atraídos pela "cidade dos ricos" que, nascia do nada, rapidamente progredia. Era, em sua maioria, gente desprovida de recursos procurando mudar-se para mais perto de uma promissora povoação, com a finalidade de fazer dinheiro. Cita-se até um aglomerado (...) e que, dizem transformou-se na Rua do Capim (cobertas de sapé – hoje, rua Moraes e Castro) Tendo em vista que o nome do tenente Antônio Dias esteve estreitamente ligado ao topônimo Boiadeiro, é lícito supor-se que ao mudar-se com armas e bagagens, de Retiro para a Graminha, tenha sido seguido por toda aquela gente humilde que devia ser, de uma maneira ou outra, dependente dele.76

Sobressai das fontes a confirmação que de fato a população pobre migrou para o

outro lado da cidade, mas não fica claro sob que condições, porque o mesmo Albino Esteves

deixou registrado que o povo mudou-se, conforme já demonstramos, entretanto, queremos

ressaltar através do mesmo trecho de Esteves que a migração não foi tão passiva. Vejamos,

E a propósito da transladação da imagem de Santo Antônio, narravam os do tempo e a tradição nos trouxe a pittoresca fuga do santo, do altar em sua nova egreja na várzea, para o velho povoado da serra da Boiada... é que o povo simples e ingênuo, não queria abandonar, sem uma espécies de protesto, o antigo campo de suas luctas77

75 Idem, p. 51 76 LESSA, Op. Cit. p. 48. 77 Idem. p. 51.

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Esse campo de lutas do qual ele fala no nosso entendimento, aparece como resistência

no âmbito religioso. Consideramo-lo como um bastião privilegiado. Ali a cultura popular

pode colocar suas expressões mais autênticas. E por causa disso insistimos nesse ponto.

Queremos acrescentar que a transmigração do povo de um lugar para o outro, nos leva a supor

que não se processou de maneira tão tranqüila, conforme passa despercebida na historiografia

tradicional. Isto se manifesta de forma aberta e franca na omissão que aquela parcela de povo

apresentou como fator de negociação. Ou seja, não aceitando entregar o "seu" Santo Antônio

Padroeiro, para que ele se tornasse o Santo Padroeiro de toda uma cidade nascente, até porque

esta nova cidade, segundo Lessa, era "cidade dos ricos". Egoísmo do povo da Boiada?

Pensamos que não! Pois aí está embutida uma disputa que é própria da luta de classes.

Interessante é que dos dois lados, estão atuando concomitantes os mesmos fatores. E o

aspecto religioso, através do Santo Antônio, está bem no meio da disputa.

Por outro ângulo, vejamos uma abordagem elaborada pelas pesquisadoras Eliane

Corrêa e Simone Silva que acrescenta a este trabalho mais informações. As autoras afirmam

que a partir da análise comparativa de duas daquelas petições, "a ereção de capelas nesse

momento advinha de um interesse particular."78 ou ainda,

...em 1844 organiza-se uma comissão formada por membros das classes mais abastadas, para a ereção de uma capela em devoção a Santo Antônio. Eles doaram as terras não só para a construção da mesma, como também cederam terrenos circundantes para que o "povo fiel" pudesse construir suas casas, com a condição de que não se fizessem "casas de capim," dando preferências àqueles que tivessem contribuído com as maiores quantias para a construção da igreja. 79

Jair Lessa também fala sobre este herbária via da seguinte maneira: "cita-se até um

aglomerado que se desenvolveu fora dos limites da nascente cidade, para além das doze faixas

pertencentes aos Tostes filhos e que, dizem, transformou-se na Rua do Capim." Note bem o

leitor, que a referida via ficava além do perímetro de terras particulares dos Tostes herdeiros.

Como ressalta o documento das pesquisadoras; a capela tinha arraial. Mas estava restrito a

quem tivesse posses. E elas estavam demarcadas através de imposições eclesiásticas,80 e

78 CORRÊA, Eliane Machado. e SILVA, Simone Santos de. A religiosidade nas origens do espaço urbano em Juizforano: petições e despachos para a ereção de capelas em devoção a Santo Antônio. In PEREIRA, Mabel Salgado e MIRANDA, Beatriz V. Dias (ors.). Memórias Eclesiásticas: documentos comentados. Juiz de Fora: Editora da UFJF - Centro de Memória da Igreja de Juiz de Fora - Cehila/Brasil Núcleo Minas Gerais, 2000. p. 29. 79 Idem . 80 Ver RHEMA. Op. Cit. p. 18.

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seculares. Atente também prezado leitor, estamos tratando de assuntos que distam mais de

trinta anos, do final da legislação, que permitia no país a exploração de mão de obra escrava.

Ela era abundante na região por força da lavoura cafeeira.81 Aliás, era o período de intenso

"tráfico interno."82 Existem estudos minuciosamente elaborados para a análise da escravidão

na região neste período, que comprovam o fato. Baseado nisso, encontramos razões que

justificariam a resistência. Estes fatores dão outro significado ao Santo Fujão.

A terceira questão, levantada foi colocada da seguinte maneira: qual é a origem da

imagem? A pergunta sobre a referência da imagem de Santo Antônio que se encontra bem

guardada, "custodiada e vigiada," na sacristia da Catedral Metropolitana, pode ser respondida

da seguinte maneira: É uma imagem de madeira, com aproximadamente um metro de altura,

esculpida como se vestisse o tradicional hábito marrom da ordem franciscana, com as duas

mãos estendidas levemente para frente, pouco acima da cintura. Na mão esquerda carrega o

volume de um livro que alude ser o novo testamento, ou missal, ou um livro de sermões,

supomos, devido a pouca espessura. Sobre o livro, assentado, uma imagem do menino Jesus.

(Quando da ocasião da nossa visita, nos dias 13 e 14 de junho de 2005). O menino estava

pelado, como se fosse um anjinho. Em sua mão direita estava um buquê móvel de lírio de

plástico. A imagem tem um rostinho de criança os olhos arregalados, um aspecto bonito.

Consta de uma plaqueta afixada na parte inferior à frente que foi restaurada em 1962 pelo

artista plástico Tuffi Assad. É uma linda peça do artesanato santoral que até o presente

momento, de forma documentada, não é possível dizer nada sobre sua procedência. O que

podemos adiantar é que as evidências apontam no sentido de que ela não seja a imagem que

pertenceu ao antigo comerciante e fazendeiro Antônio Vidal cuja alocação no Morro da

Boiada legou à cidade sua primeira devoção. Parece-nos mais provável, que ela tenha mais

relação com outro fazendeiro, o tenente Dias Tostes, entretanto, para dar corpo a esta

afirmação serão necessárias mais algumas pesquisas. (citar o Douglas)

81 Dentre outros ver: ANDRADE, Rômulo Garcia de Limites impostos pela escravidão à comunidade escrava e seus vínculos de parentesco: Zona da Mata de Minas Gerais, século XIX. Tese de Doutoramento. São Paulo: USP, 1995; LACERDA, Antônio Henrique. Os padrões das alforrias em Juiz de Fora, um município cafeeiro em expansão (Zona da Mata de Minas Gerais, 1844-88). Dissertação de Mestrado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2001. MACHADO, Cláudio Heleno. Tráfico interno de escravos estabelecidos na direção de um município da região cafeeira de Minas Gerais: Juiz de Fora, na Zona da Mata (segunda metade do século XIX). Monografia do Curso de Especialização em História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF, 1998; GUIMARÃES, Elione Silva. Múltiplos viveres de afrodescendentes na escravidão e no pós emancipação: família, trabalho, terra e conflito (Juiz de Fora-MG, 1828-1928). São Paulo: Annablume; Juiz de Fora: Funalfa, 2006. 82 Sobre o tráfico de escravos para a região ver: ANDRADE, Rômulo, op. Cit e MACHADO, Cláudio Heleno, op. Cit.

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Passemos direto a quarta e última das indagações que levantamos, no intuito de

fornecer ao leitor um roteiro para acompanhar os passos dessa pesquisa, neste caminho

reconhecidamente sinuoso, menos pelo tema abordado, mais pela exiguidade das fontes, que

poderiam ter ajudado a diminuir a aridez do percurso. Aproveitamos esta questão para

concluirmos a análise da lenda do Santo Fujão. A pergunta é: em qual perímetro urbano

ocorreu o translado do Santo? Entre as Matrizes (velha e a nova), ou entre a capela da Boiada

e a Matriz-Catedral? Esta questão foi suscitada com muita ênfase durante o debate ao qual nos

referimos no capítulo segundo, como sendo a querela das capelas.83 Houve confusão, porque

naquele debate aventou-se a possibilidade, de ser o Morro da Boiada, localizado onde hoje se

encontra a Praça do Cruzeiro (Fundos da atual Catedral). Sendo assim, teria saído dali, para

ali mesmo, a brevíssima procissão que transportou o Santo Fujão. Entretanto, baseado na

análise das fontes consultadas, ancorado nos autores citados, de acordo com os relatos dos

viajantes apresentados, devemos concluir dizendo que optamos pela posição defendida por

Albino Esteves, Lima Bastos e Jair Lessa que reiteram a existência da capela de Santo

Antônio no Morro da Boiada. E confirmam, ainda, que lidando com este episódio em seu

aspecto meramente lendário, a imagem teria saído daquele sítio para a Matriz-Catedral e não

de outro lugar.

3.3. A devoção a Santo Antônio, institucionalizada como a mais abrangente do

catolicismo, na cidade de Juiz de Fora.

Propositadamente deixamos para fazer a análise do último trecho da lenda do Santo

Fujão dentro desse item. Queremos argumentar sobre a possibilidade de deslocar o foco de

tratamento desta lenda, agregando valor a ela, transformando-a numa Saga de Fundação,

onde o Santo Antônio ocuparia um lugar central como sendo o Santo Co-Fufundador da

Cidade de Juiz de Fora.

Queremos render homenagens ao professor Wilson de Lima Bastos porque foi dele a

decisão de não deixar este instigante assunto permanecer preso e isolado no âmbito mítico no

seu sentido pejorativo. Foi o primeiro, senão o único que teve a coragem de se aventurar mais

além dos domínios desta lenda. Ele transpôs a citação do fato, criou um pequeno opúsculo

83 Ver citação nº 49. Capítulo 2.

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intitulado Folclore no setor Religião84 e ali deixa entrever como era importante para ele

investigar um pouco mais aquele acontecimento, deixado de lado por causa do aspecto

lendário e, portanto, alijado da academia, distante das ciências.

Voltemos ao relato do episódio no qual a imagem de madeira sai em procissão de seu

nicho inicial e vai para o altar da Matriz, que em breve será a Catedral Metropolitana e sede

da Arquidiocese de Juiz de Fora. Estamos considerando este fato como sendo o ápice da

institucionalização da devoção a Santo Antônio em Juiz de Fora.

Quando saiu do nicho ancestral e foi levado em procissão do Morro da Boiada para a

Igreja Matriz, que também ostentava o seu nome, Santo Antônio foi escoltado, festejado,

aclamado, segundo Bastos com:

fé e civismo, foi entronizada no altar de honra a imagem veneranda. Na calada da noite perdida no mistério insondável, porém, volta a imagem ao antigo abrigo. Descoberta a façanha, nova procissão solene para, no dia seguinte, novo impacto com o retorno do santo. Não se tratava de fenômeno de bilocação, atribuído ao Santo de Lisboa, mas do não querer sair de onde se encontrava desde a sua presença no povoado. Daí passou a imagem a ser procurada em romaria até que, vigiada, custodiada dia e noite adaptou-se à nova situação. 85

Procuramos demonstrar acima, que o fenômeno da fuga não era desconhecido,

principalmente em Minas no final do século dezoito e início do século dezenove. O que não

era conhecido foi a solução peculiar encontrada para dar desfecho ao caso. Ao invés de seguir

o costume de todos os outros lugares onde o fenômeno da aparição aconteceu, por este Brasil

afora, Juiz de Fora inaugurou uma nova modalidade original de devoção dentro do

Catolicismo Popular Tradicional: Prendeu o Santo. Depois de muito vigiada, custodiada, dia e

noite, conforme diz o texto, o Santo Antônio não teve alternativa, senão, conformar-se com a

nova situação de culto oferecida. Aceitou a condição que as autoridades da época, gentilmente

falando, lhe "propuseram." Mudou em definitivo. E ficou no centro do arraial, para ver se

ajudava as pessoas a aceitarem a fundação da futura cidade no novo local.

Recorremos, para encerrar este capítulo, ao pesquisador Sérgio da Mata pela última

vez. Já lhe fizemos menção acima ao iniciar a interpretação do Santo Fujão e dissemos do

referencial trabalho que elaborou no sentido de compreender, de forma diferenciada, este tipo

de narrativa. Vamos nos socorrer do seu texto, retirando dele alguns argumentos que

consideramos elucidativos, para analisar na prática, o caso específico desta cidade mineira, 84 BASTOS, Wilson de Lima. Folclore no Setor Religião em Juiz de Fora. O Santo Antônio Fujão. Juiz de Fora: Ed. Paraibuna, 1973. p. 10-14. 85 Idem. p. 10.

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situada no tempo, na segunda metade do século dezenove, precisamente alocada no recorte

temporal, para o qual o texto de Da Mata foi elaborado. A análise que ele faz desse tipo de

narrativa nos interessou muito. Estamos tomando-a como referência. Entretanto, não

entraremos na discussão teórico-metodológica encontrada ali, devido à natureza deste nosso

trabalho e para não parecermos repetitivos.

"Numa perspectiva objetivista, narrativas deste tipo não merecem crédito algum da

parte do historiador. Ninguém interessado em reconstruir a realidade histórica deveria se

servir de lendas." 86 Estas seriam as palavras de qualquer historiador minimamente sério.

Entretanto, continua, este "rigorismo cientificista tem sido criticado."87 Ele faz menção ao

escritos de André Jolles que escrevera sobre a saga e afirma que o mesmo pode ser atribuído à

lenda, ou seja: não devemos ser levados a pensar que "a saga simplesmente não existiria, ou

que ela constituiria apenas uma espécie de tímida pré-condição da própria história"88da Mata

explica que sabidamente a historiografia contemporânea toma para si uma posição bem menos

ortodoxa. Pois, gêneros como a saga e mito, proporcionam uma via privilegiada de se chegar

à mentalidade de uma época e aos estilos de pensamento de uma determinada camada social

num dado período histórico.89

Ele insiste que toda saga, todo mito, traz consigo uma parcela considerável de verdade,

e em função disso não deve ser desconsiderada pelo historiador. "O fundamental aqui é

perceber, que para a mentalidade popular, tais narrativas são de fato verdadeiras."90 E

prossegue,

O homem comum na Minas antiga é um homo religiosus. A idéia de “acaso” lhe é estranha: todo evento sensível, todo fenômeno, encontra no invisível a sua justificação. Ele ignora (ou simplesmente recusa) a rígida separação entre sagrado e profano de que tanto fala a religião oficial. Em seu universo o extra-cotidiano faz parte do cotidiano.91

Na Minas colonial e na América Latina de um modo geral, segundo ele, o imaginário

popular está cheio de narrativas relativas a aparições como a de Nossa Senhora Aparecida, por

exemplo. E parte significativa delas tem a ver com a construção de capelas e a gênese de

86 MATA, Sérgio da. Chão de Deus: Catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais, Brasil. Séculos XVIII-XIX. Berlim: Wiss. Verl., 2002. p. 221. 87 Idem. 88 JOLLES, André. Einfache Formen. Tubingen: Niemeyer, 1974 (1930), p. 64. Apud MATA, Sérgio da. Chão de Deus: Catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais, Brasil. Séculos XVIII-XIX. Berlim: Wiss. Verl., 2002. p. 221. 89 MATA, Sérgio da. Chão de Deus: Op. Cit. p. 222. 90 Idem. 91 Idem. (Grifos do Autor).

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arraiais. Sendo assim, continua. "Ora, diante desse tipo de fonte, a questão que se coloca não é

mais 'como surgiu a cidade', mas como o povo concebe a origem da cidade."92

Seguindo seus passos, surge uma proposta interessante para se proceder à análise desse

material. É preciso abrir mão da palavra "lenda" visto que em nosso país o seu uso está

diretamente associado à idéia de "deturpação do real" e propõe, que em lugar desse termo

empreguemos em conformidade com quem já elaborou diversos estudos sistemáticos nessa

área, a saber - os folcloristas - o sucedâneo do termo: saga.93 Insiste na possibilidade que tem

a saga ao inverso do que sugere o senso comum, elas possuem, um gradiente de

possibilidades, de

dimensões e motivos que podem variar ao infinito (...) Saga é uma denominação abrangente para uma infinidade de sub-gêneros de narrativa popular que têm em comum o fato de colocarem no centro da ação não propriamente o homem em si, mas o extraordinário. Pelo menos naqueles contextos sociais ainda não afetados pela técnica e ciência modernas, a saga é percebida como a expressão inequívoca de um fator realmente acontecido. (...) donde se conclui que o estudo das sagas se confunde, em grande medida, com o estudo da religião popular.94

O autor acrescenta e nos apresenta três tipos básicos de sagas. Vamos citá-las sem

comentar o conteúdo, apenas para efeito de apresentação: sagas demonológicas, sagas

históricas e sagas de origem.95

Segundo ele, esta apresentação é só esquemática tendo em vista que na prática elas

mesclam elementos de todos os três tipos ideais. Não devendo ser usadas rigidamente como

forma de diferenciação e que para a análise dos arraiais mineiros no período recortado, elas

tencionam dotar de alguma inteligibilidade o material pesquisado.96 Esta última, merece

maior destaque, pois tem a ver com o objeto estudado. Segundo o autor, sagas de origem são

aquelas com as quais o interesse seja explicar um determinado fenômeno ou uma

manifestação da natureza. "Uma tradução para o termo Ursprungssage seja: talvez, mito de

origem." 97

92 Idem. 93 No francês e no inglês usam-se os derivados da forma latina legenda (legende, legend). Embora a palavra exista em português o seu uso não se consagrou nem mesmo entre os pesquisadores brasileiros e lusitanos. A melhor solução nos parece ser "saga" uma vez que esse termo encontrou uma aplicação bem mais precisa no âmbito da folclorística alemã. Ver: MATA, Sérgio da. Chão de Deus: Op. Cit. p. 222. 94 Idem. p. 223. 95 Idem. 96 Idem. 97 Idem

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Com esta frase desejamos terminar: "A cidade não é algo 'natural.' Sua formação deve,

portanto, ser explicada."98

Os personagens que participaram de uma empreitada dessas, obviamente são homens e

mulheres, que existiram e a memória coletiva reputa a eles um ato heróico devido ao esforço

da fundação. Entretanto, necessário se faz explicar a origem da cidade, conforme diz a frase

acima: "Um fenômeno que os homens por si só não seriam capazes de produzir. O que estas

sagas parecem querer nos dizer é que, sem a decisiva intervenção do sagrado, o embrião de

cidade jamais teria existido." 99

Quando aconteceu a fundação da Vila do Paraibuna na margem direita do rio, no dia

31 de maio de 1850, a circunscrição geográfica do novo aldeamento era em redor da capela,

que se elevou a categoria de Matriz, dedicada a Santo Antônio. Entretanto, ela não nasceu

como "arraial," ao redor da capela de devoção a Santo Antônio. Ela nasceu profana,

secularizada.100 Certamente, ela não exige, e talvez, nem caberia nesse tipo de análise. No

nosso ponto de vista, a cidade nascente com personalidade "mundana" inserida num mundo

religioso, (Minas do início do XIX), estava fora de lugar. Então fez buscar no outro lado do

rio o fundamento, a hierofania necessária para justificar, para dar sentido, produzir sentido,

nesta nova fundação; que até aquele momento, estava sem fundamento, sobretudo religioso.

Por isso, é que o Santo Antônio do Morro da Boiada, peregrinou com festa para a margem

direita do Rio Paraibuna, e de lá nunca mais voltou.

O nome do Santo Antônio, na cidade estudada está gravado peremptoriamente. A

devoção que sua imagem presentifica é tão capilarizada, que salta aos olhos. Alcança os dias

de hoje. Nenhum outro santo católico no lugar lhe tem comparação. Está colocado em nome

de rua no centro da cidade, anexa à Catedral. A própria Catedral Metropolitana leva o seu

nome. A casa de formação do clero diocesano, (seminário), também o reverencia. O bairro

que surgiu muito mais tarde no lugar de onde fora intimado a se mudar, leva o seu nome. Foi

homenageado pela população daquele bairro através, do enredo da sua Escola de Samba na

virada do milênio. Tem sido solicitado, através da sua festa comemorativa na semana do dia

treze de junho, pelo povo local, como um fator de resgate da alegria, da solidariedade e da boa

convivência, visando agregar a comunidade, propiciando diversão sadia e segura, reduzindo

98 Idem. 99 Idem. 100 Estamos tratando como secularização: “o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos”. Ver. BERGER, Peter L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulinas, 1985. p. 119.

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animosidades e fugindo da violência. Funciona como um catalisador poderoso para aquela

comunidade, que novamente se apropria de sua história em torno do Santo e do nome Boiada,

e reconta com orgulho seu pertencimento.

Por fim, nos últimos anos, depois da virada do século e milênio, vinha sendo exposto

de novo para a apreciação da coletividade juizforana, sempre muito envolto numa aura de

mistério e evasivas por parte de seus guardiães. No ano de 2005, no dia da sua festa, tivemos

nosso último encontro: foi numa segunda feira à noite, fazia frio, como normalmente faz no

mês das festas juninas. Em meio a uma exposição, com muitos quadros e artigos religiosos

alusivos à data, no centro, chamando a atenção, estava ele. Foi colocado em cima de uma

mesa coberta com toalha de feltro verde, num amplo salão de mármore, anexo da Catedral,

diante de um extenso tapete vermelho. Em redor estavam os seus fiéis devotos. Em cada novo

grupo que se ajuntava em torno de sua imagem, iam surgindo lembranças de histórias

diferentes, que ouviram contar... Sobre o Santo Fujão.

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CONCLUSÃO

Através da análise do Catolicismo Popular Tradicional, pudemos ter acesso ao mundo

inteiramente idiossincrático do culto aos santos. Nele pudemos avaliar seus elementos

constitutivos, sua riqueza, bem como, uma dinâmica interna e a autonomia relativa que

assume vez por outra, diante da instituição. Vimos que foi gestado no Vale do Paraíba, do

qual é tributário o Paraibuna. Que por pertencimento à mesma bacia hidrográfica, serviu como

porta de entrada desse tipo de catolicismo e devoção na região estudada.

Pudemos observar que a cidade e o período escolhido como recorte, está intimamente

ligado à abertura de uma estrada. Juiz de Fora nasce à beira de uma "estrada." Indígena nas

origens, alargada depois para uso de tropeiros, empreendida pelo bandeirante paulista, Garcia

Rodrigues Paes, denominada Caminho Novo. Ela é referencial, pois, a cidade tem sua

identidade atravessada desde os primórdios, pelo estigma de vias. E perdura até hoje. Sua

viabilidade sócio-econômica e cultual advém boa parte desse fato.

Parece pouco provável que ao proceder a abertura da Variante do Caminho Novo o

engenheiro Halfeld pudesse ter consciência da dimensão daquele ato sobre a população que

habitava na margem esquerda do Paraibuna. Menos condição ainda devia ter para avaliar o

impacto específico sobre o povoado do Morro da Boiada. Ao fazê-lo, decretava a morte do

lendário povoado.

Entretanto, a mesma análise não lhe deve ser creditada quando alguns anos depois,

compõe a elite citadina que fundou as igrejas Matriz e depois, Catedral. Ela acelerou a morte

do Morro da Boiada. Digo isso, porque ao proceder a retirada da imagem de madeira,

dedicada a Santo Antônio, que devocionava o lugar, esvaziou duplamente a sua população, e

o fez, para referenciar outro lugar, ou seja: a cidade nascente na outra margem do rio. De um

lado, retirou-lhes a fundamentação religiosa, que lhes garantia a proteção do orago, e do outro

a sustentação econômica. A partir daí, vale dizer que o Santo Antônio Fujão de Juiz de Fora

não deve ser apresentado nem revisitado apenas como um fato isolado, ou como uma simples

lenda. É uma "saga" de fundação. O episódio ali narrado guarda intacta uma senha. Se

detidamente analisado, demonstra um processo de expropriação do mais forte contra o mais

desprotegido, que só contava, dentro de um modelo de Catolicismo Popular Tradicional, com

o seu Santo Padroeiro, que de resto, pouco pôde operar para socorrê-lo, numa sociedade

originariamente secularizante.

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Pelo visto o processo de Romanização que se julgava iniciar na cidade de Juiz de Fora

somente após a morte do "velho" Vigário Tiago em 12 de março de 1890, dá sinais dos

rudimentos de sua presença muito mais cedo do que imaginávamos.

Acreditamos que este trabalho trás relevância para a academia, pois trata de um

assunto muito conhecido na cidade Juiz de Fora, a devoção a Santo Antônio. No entanto,

pouco explorado. Diríamos que do ponto de vista da religião e do catolicismo, com viés

elaborado a partir da devoção popular e no tocante ao período remoto, que ele aborda, é

inédito.

A pesquisa foi realizada na esperança de que esta contribuição venha somar-se aos

demais trabalhos realizados por colegas, que se preocupam com o resgate de religiosidades,

histórias e memórias em âmbito regional.

Para encerrar este texto, devemos dizer que será preciso esperar mais tempo, até que

outros arquivos se abram, e que outros documentos venham trazer luzes para preencher as

lacunas e inquietações, que por ora ficam sem resposta definitiva em relação às questões aqui

levantadas. Os Códices Costa Matoso relativo ao século dezoito, os documentos da Casa dos

Contos em Ouro Preto, bem como o Arquivo Ultramarino relativo à Capitania do Rio de

Janeiro e Minas Gerais, os Documentos da Biblioteca Nacional e os Códices do Arquivo da

Torre do Tombo em Portugal, ainda estão, em parte, por serem pesquisados sob este viés.

Portanto, permanece o desejo de continuarmos buscando a solução do problema, na certeza de

que o trabalho de garimpeiro de informações já está em curso, por nosso intermédio, e através

de vários colegas que pesquisam com afinco, mas, sob outra ótica, a história de Juiz de Fora.

Será assim, que através do cruzamento de informações, assemelhado à cata de pedra miúda,

batendo bateia na "ganga bruta" dos arquivos, buscando “ouro de aluvião documental”, que

esta empreitada se tornará possível. Mesmo estando a quilômetros de distância da região

mineradora, somos mineiros e como tal religiosos, inconfidentes, conspiradores, inquietos,

sonhadores, perscrutadores. Existe um dito popular na linguagem do garimpo que ilustra bem

isto: "um dia a pedra aparece." Trabalhamos com esperança.

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FONTES

ARQUIVO HISTÓRICO DE JUIZ DE FORA. Fundo Alfredo Costa. Notas Históricas/recortes de Jornais diversos, s/d. ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL PROF. ALTAIR JOSE SAVASSI – PREFEITURA DE BARBACENA. Assento de casamento juntado ao Processo de Ação de Força Nova, caixa 14, documento s/n, nº de ordem 03, 841. CENTRO DE MEMÓRIA DA IGREJA CATÓLICA. Pasta Paroquial/ Igreja Matriz de Santo Antônio/ Juiz de Fora - MG.

BIBLIOGRAFIA

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