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0 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E CULTURA CONTEMPORÂNEAS ANA CAROLINA LIMA SANTOS A PRODUÇÃO DE SENTIDOS NA IMAGEM FOTOGRÁFICA: O CASO DA FOTO-ILUSTRAÇÃO NO JORNALISMO DE REVISTA Salvador 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE COMUNICAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

E CULTURA CONTEMPORÂNEAS

ANA CAROLINA LIMA SANTOS

A PRODUÇÃO DE SENTIDOS NA IMAGEM FOTOGRÁFICA: O CASO DA FOTO-ILUSTRAÇÃO NO JORNALISMO DE REVISTA

Salvador

2009

1

ANA CAROLINA LIMA SANTOS

A PRODUÇÃO DE SENTIDOS NA IMAGEM FOTOGRÁFICA: O CASO DA FOTO-ILUSTRAÇÃO NO JORNALISMO DE REVISTA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas, da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, como requisito para obtenção do título de mestre.

Orientador: Prof. Dr. Benjamim Picado.

Salvador

2009

2

Sistema de Bibliotecas - UFBA

Santos, Ana Carolina Lima. A produção de sentidos na imagem fotográfica : o caso da foto-ilustração no jornalismo de revista / Ana Carolina Lima Santos. - 2009. 102 f. : il.

Orientador: Profº Dr. Benjamim Picado. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Comunicação, Salvador, 2009. 1. Fotografia. 2. Fotojornalismo. 3. Jornalismo. 4. Veja (Revista). I. Picado, Benjamim. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Comunicação. III. Título.

CDD - 070.49 CDU - 77.044

3

AGRADECIMENTOS

Ao CNPq, pela possibilidade de dedicação exclusiva até (quase) o final desse projeto;

Ao professor e orientador Benjamim Picado, por toda paciência e dedicação durante todas as etapas da pesquisa;

Aos ‘benjaminicos’, pela companhia às terças/sextas, que tanto me ajudaram a lançar novos olhares sobre o meu trabalho. Em especial, a Gustavo pelos palpites e empréstimos de livros;

Aos colegas de curso, sobretudo aos ‘novos baianos’. A Jamil, Edna e Lia, em especial, pelas pequenas (e às vezes grandes) loucuras de cada dia, que garantiram minha saúde mental ao longo dos últimos dois anos;

Ao casal querido, Najara e Dimmy, por ter praticamente me adotado na época das pendengas, me dando casa, comida e colo. Em especial a Ná, pelas palavras – ao vivo, por telefone, por e-mail e às vezes até por telepatia;

Aos amigos aracajuanos, sobretudo à ‘get along gang’ e aos agregados sub18, pela amizade de sempre, mesmo quando decorada de saudade. A Piva, em especial, por ter dividido comigo, além de skyys, as angustias de fimzinho de mestrado;

À minha família, por todo o apoio de hoje e de sempre. Em especial ao meu pai (que, não canso nunca de dizer, foi e ainda é o maior responsável por tudo que faço e sou) e à minha mãe, que merecem tão mais que um simples “muito obrigada”.

4

“Não uma imagem justa, justo uma imagem”.

Jean-Luc Godard

5

RESUMO

Nos últimos anos, a fotografia de imprensa tem encontrado usos e funções que, distanciando-se da dimensão testemunhal e documental da qual se vale o fotojornalismo tradicional, abrem espaço para admissão de novas possibilidades para a representação visual. É o caso das ilustrações fotográficas ou foto-ilustrações, definidas como fotografias produzidas e/ou montadas para acompanhar as matérias. O presente trabalho tenta avançar no entendimento de tal tipo fotográfico, delineando-o em suas principais características. Nesse sentido, explora-se a idéia de que a foto-ilustração se configura em uma dimensão retórica, como uma maneira de viabilizar argumentos de ordem analítica e opinativa; correlato visual dos gêneros da análise e da opinião. Para se firmar como tal, a ilustração fotográfica faz uso de uma série de estratégias de construção de sentido pouco comuns no jornalismo, a exemplo do estatuto ficcional, do efeito cômico e do caráter metafórico – todas elas funcionando para instituir um conceito de base que se correlaciona ao regime de informação próprio ao jornalismo de revista, em especial da revista Veja (eleita como corpus de análise desta pesquisa).

PALAVRAS CHAVE

Fotografia; fotojornalismo; foto-ilustração; jornalismo interpretativo e opinativo; jornalismo de revista; Veja.

6

ABSTRACT

In the past few years, press photograph has found new uses and functions. Giving up of being a certification or a document of reality as traditional photojournalism intends to be, those images point out other possibilities of visual representation. This is the matter with photographic illustrations or photo-illustrations, which are defined as photographs produced and/or assembled to be placed next to news. This paper attempts to advance the understanding of such photographs, outlining it in its main features. In this sense, it explores the idea that photo-illustration is configured with an rhetorical purpose, as a way to enable visual argumentation; like a correlate of visual genres of analysis and opinion. To sign as such, the photographic illustration makes use of a number of unusual strategies, like the fictional status, the comic effect and the metaphorical character – all working to establish a basic concept for providing analysis and views that go together with the means used by magazine journalism, in special used by Veja magazine (corpus of this research).

KEY WORDS

Photography; photojournalism; photo-illustration; interpretative and analytical journalism; magazine journalism; Veja.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1. Revista Veja de 18 de fevereiro de 2004. Fonte: www.veja.abril.com.br

/acervodigital. Acesso em 27 de fevereiro de 2009...............................................13

Figura 2. Veja de 11 de outubro de 2006. Fonte: www.veja.abril.com.br/acervo

digital. Acesso em 27 de fevereiro de 2009...........................................................13

Figura 3. Fotografia de Robert Capa, 1944. Fonte: www.photographyhistory.blogs

pot.com. Acesso em 27 de fevereiro de 2009........................................................29

Figura 4. Fotografia de Nick Ut, 1972. Fonte: www.photographyhistory.blogs

pot.com. Acesso em 27 de fevereiro de 2009........................................................31

Figura 5. Fotografia de Eddie Adams, 1968. Fonte: www.photographyhistory.

blogspot.com. Acesso em 27 de fevereiro de 2009................................................33

Figura 6. Fotografia de Kevin Carter, 1994. Fonte: www.worldpressphoto.org.

Acesso em 27 de fevereiro de 2009.......................................................................34

Figura 7. Fotografia de Michael Wells, 1980. Fonte: www.worldpressphoto.org.

Acesso em 27 de fevereiro de 2009.......................................................................34

Figura 8. Fotografia de Erno Schneider, 1961. Fonte: www.imagesvision.blogspos

pot.com. Acesso em 27 de fevereiro de 2009........................................................35

Figura 9. Revista Veja de 17 de outubro de 2007. Fonte: www.veja.abril.com.br

/acervodigital. Acesso em 27 de fevereiro de 2009...............................................38

8

Figura 10. Revista Veja de 15 de agosto de 2007. Fonte: www.veja.abril.com.br

/acervodigital. Acesso em 27 de fevereiro de 2009...............................................39

Figura 11. Revista Veja de 7 de dezembro de 2005. www.veja.abril.com.br

/acervodigital. Acesso 01 mar 2009.......................................................................43

Figura 12. Revista Veja de 25 de agosto de 2004. Fonte: www.veja.abril.com.br

/acervodigital. Acesso em 27 de fevereiro de 2009...............................................45

Figura 13. Revista Veja de 3 de março de 2004. Fonte: www.veja.abril.com.br

/acervodigital. Acesso em 27 de fevereiro de 2009...............................................46

Figura 14. Fotografia de Steven Meisel, 2008. Fonte: www.olgasherer.blogspot.

com. Acesso em 27 de fevereiro de 2009..............................................................53

Figura 15. Revista Veja de 28 de julho de 2004. Fonte: www.veja.abril.com.br

/acervodigital. Acesso em 27 de fevereiro de 2009...............................................55

Figura 16. Revista Veja de 14 de dezembro de 2005. Fonte: www.veja.abril.com.

br/acervodigital. Acesso em 27 de fevereiro de 2009............................................58

Figura 17. Fotomontagem de Raoul Hausmann, 1920. Fonte: www.photography

history.blogspot.com. Acesso em 27 de fevereiro de 2009....................................62

Figura 18. Fotomontagem de John Heartfield, 1932. Fonte: www.photography

history.blogspot.com. Acesso em 27 de fevereiro de 2009....................................64

9

Figura 19. Fotomontagem de Pedro Meyer, 1987/1993. Fonte: www.pedromeyer.

com. Acesso em 27 de fevereiro de 2009..............................................................65

Figura 20. Fotomontagem de Pedro Meyer, 1991/1991. Fonte: www.pedromeyer.

com. Acesso em 27 de fevereiro de 2009..............................................................67

Figura 21. Revista Veja de 5 de julho de 2006. Fonte: www.veja.abril.com.br/

acervodigital. Acesso em 27 de fevereiro de 2009................................................73

Figura 22. Desenho de Elias Silveira, 2007. Fonte: www.eliassilveira.blog.

uol.com.br. Acesso em 27 de fevereiro de 2009...................................................74

Figura 23. Revista Veja de 30 de agosto de 2005. Fonte: www.veja.abril.com.br/

acervodigital. Acesso em 27 de fevereiro de 2009................................................77

Figura 24. Revista Veja de 16 de setembro de 2007. Fonte: www.veja.abril.com.

br/acervodigital. Acesso em 27 de fevereiro de 2009............................................80

Figura 25. Revista Veja de 1° de dezembro de 2004. Fonte: www.veja.abril.com.

br/acervodigital. Acesso em 27 de fevereiro de 2009............................................84

Figura 26. Revista Veja de 5 de outubro de 2005. Fonte: www.veja.abril.com.br/

acervodigital. Acesso em 27 de fevereiro de 2009................................................86

Figura 27. Revista Veja de 2 de março de 2005. Fonte: www.veja.abril.com.br

/acervodigital. Acesso em 27 de fevereiro de 2009...............................................90

10

Figura 28. Revista Veja de 31 de agosto de 2005. Fonte: www.veja.abril.com.br

/acervodigital. Acesso em 27 de fevereiro de 2009...............................................90

Figura 29. Capas diversas da revista Veja. 28 de abril de 2004, 23 de fevereiro de

2005, 11 de maio de 2005, 10 de maio de 2006, 29 de novembro de 2006, 8 de

agosto de 2007, respectivamente. Fonte: www.veja.abril.com.br/acervodigital.

Acesso em 27 de fevereiro de 2009.......................................................................94

11

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....................................................................................................12

1. FOTOGRAFIA, FOTOJORNALISMO E FOTO-ILUSTRAÇÃO............22

1.1. Testemunho e apropriação discursiva no fotojornalismo................................26

1.2. A especificidade da ilustração fotográfica......................................................36

1.2. Produção e pós-produção na foto-ilustração...................................................44

2. REALIDADES E FICÇÕES NA ILUSTRAÇÃO FOTOGRÁFICA..........49

2.1. A trama fotográfica.........................................................................................52

2. 2. A fantasia lúdica compartilhada.....................................................................59

2.3. Outras fotografias ficcionais...........................................................................62

3. A PRODUÇÃO DE SENTIDO NA FOTO-ILUSTRAÇÃO........................69

3.1. O efeito cômico...............................................................................................71

3.2. O caráter metafórico........................................................................................81

3.3. As figuras retóricas.........................................................................................84

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................93

BIBLIOGRAFIA..................................................................................................97

12

INTRODUÇÃO

A priori, a palavra ‘fotografia’ indica exclusivamente o produto de uma

técnica ou de um processo fotoquímico, sem trazer pistas sobre funções ou

prescrições de leitura. Por conta disso, para um entendimento mais completo

acerca da imagem fotográfica, é necessário tomá-la sob a perspectiva dos seus

regimes específicos de funcionamento, ou seja, observando os diferentes

contextos, objetivos e estratégias comunicacionais às quais atende.

A delimitação da atividade do fotojornalismo, embora ainda englobe

imagens muito distintas, pode ser um primeiro passo nessa direção. Por

fotojornalismo, abrange-se toda a “realização de fotografias informativas,

interpretativas, documentais ou ‘ilustrativas’ para a imprensa ou outros projetos

editoriais ligados à produção de informação de atualidade” (SOUSA, 2000, p. 12).

A fotografia é concebida, pois, como um recurso de mediação visual que, em

articulação com o texto verbal, busca gerar conhecimentos e esclarecimentos

sobre a realidade.

Em tal sentido, tradicionalmente, o fotojornalismo exerce uma função

bastante específica: ele permite ao espectador ver, através de imagens, um evento

que efetivamente aconteceu na dimensão factual. Assim, reinstaurando essa

ocorrência real no momento da recepção, a fotografia jornalística funciona como

uma espécie de experiência de mundo emprestada. Pode-se dizer, nesse ponto, que

a fotografia se configura como um correlato visual da notícia, isto é, servindo para

apresentar ou descrever visualmente os acontecimentos aos quais se refere.

José Marques de Melo situa a fotografia entre os gêneros informacionais

do jornalismo, classificando-a como notícia ou reportagem (quando consegue,

sozinha, transmitir uma informação ou narrar um acontecimento) ou como

complemento da notícia (quando se articula com o texto na transmissão da

informação, em regimes predominantemente verbais).

Entendemos que não é o código em si que caracteriza um gênero jornalístico e sim o conjunto das circunstancias que determinam o relato que a instituição jornalística difunde para o seu público. Então, a fotografia ou o desenho são perfeitamente identificáveis como notícias, complemento da notícia ou como reportagens (MELO, 2003, p. 61).

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Entretanto, ainda que tal conceituação seja capaz de abarcar a maior parte

das fotografias jornalísticas, há casos em que a imagem funciona de outro modo.

É o que acontece na foto-ilustração ou ilustração fotográfica. A ilustração

fotográfica é um tipo de fotografia comumente encontrado na imprensa, que não

se configura como uma captura do real, sendo, ao contrário, produzido em estúdio

e/ou posteriormente montado e manipulado para acompanhar as matérias

jornalísticas (figuras 1 e 2, respectivamente) (SOUSA, 2004).

Figura 1. Veja de 18 de fevereiro de 2004.

Figura 2. Veja de 11 de outubro de 2006.

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Efetivamente, por não ser uma simples implicação existencial de uma

realidade exterior e nem buscar um ajustamento com essa dimensão factual, a

foto-ilustração não pode ser pensada a partir das balizas de uma experiência de

mundo emprestada, de caráter apresentativo e descritivo. Para além da

apresentação ou da descrição, a ilustração fotográfica é melhor explicada quando

concebida como a materialização visual de um conceito por meio do qual o tema

noticiado se torna compreensível segundo uma posição ou ponto de vista

defendido na matéria.

Assim, ao acompanhar uma determinada matéria jornalística, a foto-

ilustração funciona como um modo de ilustrar visualmente aquilo que é exposto

no texto; esclarecendo, elucidando ou comentando as idéias desenvolvidas

verbalmente. “[...] Llamamos ‘ilustrativas’ por aplicar los requisitos

fundamentales de esta función: auxiliar a la mejor comprensión de un objeto, idea

o concepto establecido de antemano”1 (BAEZA, 2001a, p. 166). A ilustração

fotográfica serve, pois, a uma finalidade explicativa, por vezes analítica ou

opinativa – que, em conjunto com o texto, funciona como uma interpretação ou

argumentação acerca do real.

Nesse sentido, a foto-ilustração estabelece com o regime da informação

uma relação diferente daquela tradicionalmente instituída pelo fotojornalismo: ela

está menos ligado a uma função informacional de apresentação dos

acontecimentos do que a uma possibilidade de explicá-los, sedimentando análises,

juízos e opiniões acerca dos fatos noticiados, fazendo da imagem apenas um meio

para criar uma ‘nova realidade’ que, ficcional, se refere ao mundo real na medida

em que serve como exemplificação de um determinado conceito que ajuda a

elucidá-la.

Na edição de 18 de fevereiro de 2004 da Veja (figura 1), para

exemplificar uma argumentação que é construída na matéria “A tirania

adolescente”, faz-se uso de uma ilustração fotográfica. Nela, é possível ver um

tênis, hiperbolicamente dimensionado, que aparece prestes a esmagar um homem

e uma mulher. Com ajuda das primeiras linhas do texto da reportagem, a imagem

1 “Chamamo-las ‘ilustrativas’ por atender os requisitos fundamentais dessa função: auxiliar a melhor compreensão de um objeto, idéia ou conceito estabelecido de antemão” (tradução livre).

15

ganha um significado específico: trata-se de um filho adolescente que, por conta

da falta de limites dos pais, torna-se um tirano a impor sobre eles suas vontades. A

imagem, concretizando visualmente esse conceito, ajuda a ilustrar e a explicar o

assunto tratado, sob a perspectiva defendida pela matéria.

É o que acontece também na Veja de 11 de outubro de 2006 (figura 2).

Ao apresentar um mapeamento de algumas declarações do candidato-presidente

Lula sobre os mais diversos assuntos, a revista pontua uma contradição: num

primeiro momento, Lula se mostra arrogante e maledicente e, depois, aparece bom

e pacifista. Nesse caso, a reportagem aponta que “com opiniões que mudam ao

sabor dos ventos eleitorais, o candidato-presidente deixa os brasileiros em dúvida”

– explicitando que Lula não tem um posicionamento e caráter bem definidos.

Visualmente, essa idéia é construída a partir de fotomontagens em que o rosto do

político aparece sobre os desenhos de um anjo e de um diabo; marcando, através

da imagem, a opinião que a revista sustenta.

Aliás, por tal característica interpretativa e/ou opinativa, a foto-ilustração

aparece bastante vinculada a um tipo específico de veículo: as revistas de

informação. Tais revistas, normalmente com periodicidade semanal, distinguem-

se de outras publicações noticiosas pelo fato de desempenharem mais

marcadamente um papel que ultrapassa a simples transmissão de notícias. Sem o

aperto do prazo de fechamento e sem o compromisso urgente com a atualidade da

cobertura diária, essas revistas acabam primando pelas extrapolações de natureza

analítica e opinativa.

Por conta disso, as revistas de informação costumam trazer, além do

relato dos fatos, sua análise, reflexão, apreciação e julgamento. Uma boa

reportagem de revista é, portanto, aquela em que a informação, essência do

jornalismo, não aparece sozinha, mas vem acompanhada de outros elementos que

a permitem “desamarrar o fio dos eventos, oferecer ângulos de visão da situação,

complementando com históricos, depoimentos, dados estatísticos, documentário

fotográfico, enquadramentos ideológicos e prognósticos” (BOAS, 1996, p. 78).

16

Desse modo, tem-se no jornalismo de revista a possibilidade de um

enfoque analítico e opinativo explicitamente declarado2. A construção do produto

noticioso passa, então, por uma peneira informativa e ideológica, filtrando o

produto jornalístico de modo que ele se adéqüe à linha editorial da revista – isto é,

a uma certa visão de mundo sustentada pela empresa (MELO, 2003). Fala-se, com

isso, em uma tomada de posição, em uma intervenção da direção ideológica dos

fluxos informativos, no sentido de que a informação vem acrescida de orientações

e atribuições de valor claramente assumidas.

Exatamente em função disso, a revista de informação mantém um

relacionamento muito específico com o seu público-alvo. Mais do que

genericamente falar para a sociedade, a revista mantém um diálogo de

proximidade com o seu leitor. Marília Scalzo, ao tratar da especificidade do

jornalismo de revista, aponta nessa segmentação e proximidade com o público o

principal elemento diferenciador desse tipo de veículo. Nesse aspecto, a autora

alega a existência de um encontro entre um editor e um leitor, a partir do qual se

estabelece um vínculo de identidades que permite ao jornalista expor suas

opiniões como se dissesse ‘você, leitor, aceita esse posicionamento, porque nós

pertencemos ao mesmo grupo, somos iguais e compartilhamos dos mesmos

valores’ (SCALZO, 2004).

A ilustração fotográfica, nesse contexto, também vai ser perpassada por

essa lógica. Ao concretizar na imagem análises e opiniões, a partir da

representação visual de um determinado conceito que serve como interpretação ou

argumentação acerca do real, a foto-ilustração parece pressupor uma espécie de

cumplicidade entre jornalista/editor/revista e o seu leitor. Tal cumplicidade, além

2 A divisão do jornalismo em três categorias diferentes (a informação, a informação ampliada e a opinião expressa) surge da necessidade sociopolítica de demarcar limites claros entre descrição e versão dos fatos. Os jornalismos informativo e interpretativo encontram-se vinculados à informação, mas diferenciam-se por um se situar no plano do acontecimento e o outro buscar interpretações que relacionem o acontecimento a antecedentes, contextos e significados indiretos, como informação ampliada. O jornalismo opinativo, por sua vez, lida com o acontecimento comentado e avaliado em argumentações demonstrativas que interferem na direção ideológica dos fluxos informativos. O jornalismo das revistas de informação se configura como uma mistura entre interpretação e opinião. Ele não deve, no entanto, ser concebido como a mera emissão de opiniões pessoais, mas como uma argumentação construída com base em dados e análises que a legitime enquanto expressão jornalística compromissada com os ideais que perpassam essa atividade (MEDINA, 1988; MELO, 2003).

17

de garantir o próprio entendimento da fotografia, torna-se imprescindível para a

aceitação da análise e da opinião nela materializada3.

Esse caráter condicional do entendimento e da aceitação das

considerações, avaliações e juízos expressos pela ilustração fotográfica indicam

também uma necessidade de redundância ou re-afirmação de um conhecimento ou

opinião prévia, como se funcionasse enquanto assentadora de opiniões formadas –

ecoando visões de mundo que não apenas já estão presente na revista, mas no

universo ideológico do próprio grupo ao qual ela se dirige.

Assim, alinhando-se à linha editorial da revista e ao universo do seu

público alvo, a foto-ilustração acaba funcionando como um auxílio visual para

melhor expressar determinadas idéias e pontos de vista por eles defendidos:

conectada ao texto, complementando o discurso verbal e sendo por ele

complementada, ela é capaz de tornar mais compreensível e convincente aquilo

que se comunica.

É nesse ponto que a ilustração fotográfica se delineia como recurso

retórico, no sentido de que se trata de um modo de elaboração de significações

que visa obter um efeito determinado em seu público. Aí se esquematiza também

a importância da foto-ilustração como imagem de uso jornalístico que, num

contexto já acentuadamente ideológico como é o da revista, ajuda a induzir ou a

reforçar uma determinada leitura de mundo.

Entretanto, apesar disso, tal tipo fotográfico tem sido relegado nos

estudos dessa área. Na verdade, no estado atual da bibliografia sobre o assunto, a

ilustração fotográfica carece de um embasamento teórico. Os poucos autores que

dedicam alguma atenção a ela, como Jorge Pedro Sousa (2000 e 2004), Pepe

Baeza (2001a e 2001b) e Kenneth Kobré (2004), definem a foto-ilustração de

acordo com categorias que se aproximam mais do campo profissional do que a

3 Embora a produção e a aceitação de sentidos estejam, nesse caso, dependentes de um vínculo de identidades; jornalisticamente, essa relação é justificada com a noção de ‘contrato de leitura’, segundo o qual o jornalista pode garantir a adesão de seus interlocutores ao tipo de jogo comunicativo que propõe. Nesse sentido, talvez mais importante do que compartilhar identidades seja constituir uma compatibilidade entre as intencionalidades do comunicador e os reconhecimentos de tais intenções da parte do receptor. É exatamente a partir dos paralelos estabelecidos entre esses dois pólos que os sentidos da comunicação podem ser construídos e legitimados (MOTTA, 2004).

18

conceitos eminentemente teóricos, sem se preocupar em fundamentá-la em

alicerces conceituais consistentes.

A rigor, não há trabalho de conceituação sobre a ilustração fotográfica,

mas apenas algumas observações acerca do seu emprego. Jorge Pedro Sousa e

Kenneth Kobré, por exemplo, apresentam-se na discussão acerca da foto-

ilustração ao tentar mapearem os gêneros fotojornalísticos de acordo com as

categorias baseadas em tradição de manuais e concursos fotográficos – com

objetivo essencialmente prático, como ressalva Sousa (2004). Assim, os autores

trabalham muito mais no intuito de prescrever os usos e técnicas aos quais a

ilustração fotográfica pode recorrer no âmbito da atividade jornalística.

No caso de Pepe Baeza, parece haver um esforço, ainda que insuficiente,

de propor uma conceituação da foto-ilustração. O alcance que ele propõe ao

conceito, para abranger não apenas a informação, mas também a opinião e a

persuasão pela imagem, parece ser a principal contribuição desse autor para o

tema. No entanto, ele não dá indicações de como operam esses regimes,

mantendo-se, dessa forma, numa superficialidade perigosa.

É tomando esse estágio de reflexão sobre o fenômeno que o presente

trabalho se empenha na intenção de organizar um conjunto de questões teóricas

que, ao dar conta de tais fotografias, permita entendê-las em suas especificidades.

Mais do que isso, busca-se estabelecer a ilustração fotográfica como uma forma

expressiva com características e contribuições específicas para a atividade

jornalística, em especial para o jornalismo empreendido pelas revistas de

informação.

Para isso, a dissertação se divide em três partes. A primeira, intitulada

“Fotografia, fotojornalismo e foto-ilustração” faz um mapeamento introdutório da

discussão sobre a fotografia, dando especial atenção à passagem de uma

teorização centrada na noção de dispositivo para uma que dê conta da imagem

fotográfica não mais como uma simples implicação existencial de uma realidade

exterior, mediada pela câmera. Nesse sentido, a noção de iconicidade é trabalhada

como guia para o entendimento da capacidade de representação da fotografia.

Abandona-se, portanto, a idéia da fotografia como ‘espelho do real’, para entendê-

la como um produto calcado em códigos e convenções.

19

Por conta disso, ainda nessa primeira parte, avalia-se quais os impactos

que essa mudança de perspectiva acarreta no âmbito do fotojornalismo. Parte-se,

assim, da idéia de testemunho (como experiência de mundo emprestada pela

fotografia, relativa a uma certa complementaridade entre imagem e leitura) até a

de uma apropriação discursiva da imagem fotográfica (na qual a fotografia

funciona na produção de um efeito de discurso sobre a realidade). Tem-se, assim,

um entendimento de que, bem como o texto verbal, a fotografia jornalística

funciona como uma forma expressiva por meio da qual é possível produzir sentido

sobre o mundo.

Nessa mesma linha, a foto-ilustração é tomada como um tipo específico

de fotografia jornalística, entendido como uma modelação particular desse

fenômeno que é próprio à linguagem fotojornalística. Enquanto modelação

particular, a ilustração fotográfica vai funcionar muito especificamente. Toca-se,

nesse ponto, na conceituação da foto-ilustração como um correlato visual de

análises e opiniões, estabelecidas na imagem a partir da representação de um

determinado conceito de base que serve como interpretação ou argumentação

acerca do real.

Por esse caminho, chega-se a uma importante constatação: a capacidade

da ilustração fotográfica de mediar fatos e acontecimentos se relaciona a

existência desse conceito de base. Assim, a fim de prosseguir com o percurso,

parte-se para a análise dos modos de representação aos quais ela recorre para isso.

O primeiro e talvez mais importante deles, um certo estatuto ficcional que é

identificado nessas imagens, ocupa toda a segunda parte do trabalho, “Realidades

e ficções”. Nela, sobretudo a partir das contribuições de Boris Kossoy (2002),

Jean-Marie Schaeffer (1999) e Nelson Goodman (2002), a ficção vai ser entendida

como um recurso legítimo do qual a foto-ilustração se vale para concretizar essas

idéias e conceitos em uma espécie de tradução livre da realidade que toma o

factual apenas como ponto de partida para extrapolações analíticas e opinativas.

Por fim, na última parte, para além da ficção, são identificadas outras

características da ilustração fotográfica, ou melhor, da “Produção de sentido na

foto-ilustração”. As idéias de um efeito cômico e de um caráter metafórico dessas

imagens são trabalhadas a fim de contribuir para a ficção em seu papel de

operador cognitivo e também no sentido de estabelecer uma relação de

20

cumplicidade com o leitor. Para isso, recorre-se as proposições de autores como

Isabel Ermida (2002), Viollete Morin (1973), Ernst Kris e Ernst Gombrich (1938)

no primeiro caso e Max Black (1993), George Lakoff e Mark Johnson (1980) e

Elisabeth El Reafaie (2003) no segundo.

Todas essas questões, no decorrer do trabalho, apresentam-se

relacionadas a constatações realizadas a partir de análises de um corpus de

ilustrações fotográficas veiculadas pela revista Veja. Embora o uso da foto-

ilustração não seja exclusivo a esse semanário, a opção por trabalhar com uma

única revista é justificada pelo entendimento de que a ilustração fotográfica,

embora se vincule fundamentalmente às diferenças de natureza editorial, não têm

sua compreensão global influenciada por tais diferenças – que certamente se

manifestariam no confronto com outras publicações, mas não a ponto de alterar a

essência do fenômeno.

De fato, em um mapeamento precedente (SANTOS, 2006), a comparação

entre a Veja e a Istoé demonstrou uma paridade na utilização da foto-ilustração:

elas aparecem com a mesma freqüência, com o mesmo destaque e nas mesmas

seções em ambas as revistas. De uma forma geral, as ilustrações fotográficas de

uma e de outra também lançam mão dos mesmos recursos, operando de maneiras

similares no desempenho de suas funções.

Assim sendo, a escolha pela Veja norteia-se pelo fato de a publicação ser

considerada a revista mais importante do Brasil. Ela é a revista de informação de

maior circulação do país e a quarta do mundo, com uma média de 1.094.093

exemplares por edição – sendo seguida no mercado editorial brasileiro pela Época

e pela Istoé, com aproximadamente 417.787 e 344.205 cópias, respectivamente4.

A desproporção entre as tiragens dessas publicações dimensiona o valor da Veja

entre os semanários nacionais.

Por tais motivos, julga-se apropriada a eleição da Veja para o estudo da

foto-ilustração. Foram examinadas as duzentos e seis edições da revista lançadas

entre 2004 e 2007, nas quais se buscou identificar as foto-ilustrações. A partir

delas, foi possível observar a recorrência de aspectos que evidenciassem as suas

4 Dados referentes à circulação de janeiro a dezembro de 2007, obtidos em pesquisas realizadas pelo Instituto Verificador de Circulação e divulgadas no site da Associação Nacional dos Editores de Revistas: www.aner.org.br. Acesso em 10 de agosto de 2008.

21

peculiaridades, de modo a estabelecer categorias para a correta compreensão de

tal fenômeno. As imagens aqui apresentadas são justamente aquelas consideradas

mais representativas, escolhidas intencionalmente por terem sido julgadas

detentoras de particularidades que melhor exemplificam as ilustrações

fotográficas como um todo e os pontos discutidos em específico.

22

1. FOTOGRAFIA, FOTOJORNALISMO E FOTO-ILUSTRAÇÃO

Os estudos acerca da representação fotográfica, em sua maioria, buscam

como norte o que se pode chamar de teorias do dispositivo5, ou seja, aquelas

teorias que colocam como elemento fundamental de suas proposições o fato de a

fotografia ser fruto de um processo que funciona por meio da impregnação

mecânica de um referente. Nessa linha, autores como Roland Barthes (1998),

Philippe Dubois (1993) e Jean-Marie Schaeffer (1996) (para citar apenas os

nomes mais conhecidos) exploram a imagem fotográfica a partir da influência

determinante que exerce o seu dispositivo.

Em tal sentido, chama-se atenção para o fato de que a fotografia é

resultado de uma interação puramente material, como uma causalidade física da

realidade, intermediada pela mecanicidade do dispositivo. Por conta disso,

enquanto impressão, a fotografia é tomada como uma emanação literal do

referente, com o qual mantém um vínculo especial. A imagem fotográfica torna-

se, portanto, inseparável da sua referência: sem intervenções se pondo entre uma e

outra, a fotografia implica uma relação direta e exata com a realidade a que se

refere.

Sob tal perspectiva, a fotografia se correlaciona a alguns princípios que

realçam a sua especificidade como representação. Entre eles, destaca-se a

singularidade (se é impressão, a fotografia vai ser impressão de um único

referente), o poder de atestação (se ela necessita de tal referente para existir, a sua

própria existência vai remeter a ele, comprovando, testemunhando ou

certificando-o) e a capacidade de designação (se atesta, a fotografia também vai

designar de maneira demonstrativa e sinalética, indicando o tal referente).

Portanto, “vinculada por sua gênese à unicidade de uma situação

referencial, atestando-a e designando-a, seu efeito geral será implicar plenamente

o próprio sujeito na experiência, no experimentado do processo fotográfico”

5 Para evitar ambigüidades, é importante destacar que a idéia de dispositivo não diz respeito a uma abordagem foucaultiana ou estruturalista do termo. Aqui, recorre-se à palavra ‘dispositivo’ para se referir ao conjunto de meios técnicos a partir do qual a fotografia é realizada. Trata-se, portanto, de uma maneira de reafirmar a acepção da fotografia como imagem técnica, na qual o automatismo do equipamento fotográfico se configura como elemento central para a sua caracterização.

23

(DUBOIS, 1993, p. 78). Em conseqüência disso, o entendimento da fotografia

passa necessariamente pela relação imagem-realidade, tomada como decisiva na

constituição do seu estatuto comunicacional.

Diz-se, assim, que a materialidade de impressão da imagem fotográfica,

fundada pelo dispositivo, torna-se essencial para o entendimento de toda e

qualquer experiência que se possa ter a partir da fotografia. Isso porque a natureza

de impressão resulta em um estatuto pragmático bastante específico: a recepção

fotográfica passa a se abalizar na confiança de que ela sempre traz o seu referente

colado em si. Tem-se, então, de um lado, a materialidade da impressão e, do

outro, seu correlato semiótico, o índice6.

No entanto, em paralelo ao tipo de formulação proposta por esses

autores, o aspecto indicial da fotografia tem sido questionado como explicação do

funcionamento da imagem fotográfica. Discute-se que, independente da sua

indexicalidade, a fotografia funciona a partir do acionamento de um código

icônico, isto é, na medida em que é possível reconhecer nela formas de objetos e

de arranjos considerados ‘a mesma coisa’ daquelas memorizados a partir da

realidade – tal qual acontece nas demais imagens figurativas. É possível, portanto,

conceber que a significação da fotografia não precisa estar tão condicionada a

uma teoria do dispositivo e/ou a postulação de sua indexicalidade.

Assim sendo, ainda que se assuma a imagem fotográfica em seu aspecto

indicial; do ponto de vista do espectador, ela opera a partir da percepção de

presença do referente que é capaz de proporcionar. Esse sentido de presença não

transcende a fotografia (para buscar sua gênese técnica), mas se dá a partir do que

6 Essa nomenclatura refere-se à classificação peirceana do signo, em particular aquela que se obtém da relação do signo com seu objeto ou referente, isto é, do modo como o signo estabelece um determinado tipo de relação com os fenômenos de maneira a servir de mediador a eles. Nessa categorização, três são os tipos possíveis de signos. De forma bastante resumida e simplificadora, tem-se que: 1) no ícone, a relação estabelecida entre eles é da ordem da semelhança. Ao possuir uma qualidade que se assemelha à qualidade do seu objeto, o signo consegue, por meio de uma cadeia associativa de similaridades, sugeri-lo. Essa sugestão se dá, portanto, em virtude de características próprias do signo, características que o objeto igualmente possui; 2) no índice, por sua vez, essa relação se fundamenta em uma conexão existencial, isto é, de uma contigüidade física entre signo e objeto. É através dessa conexão, ao se apropriar de uma parte do referente ou ser realmente afetado por ele, que os índices indicam seus objetos; 3) no símbolo, finalmente, a relação não é nem de similaridade ou analogia nem de ligação factual com o seu referente, mas liga-se a ele apenas por convenção ou pacto coletivo. Somente ao ser regido por uma lei o símbolo pode representar alguma coisa (PEIRCE, 1999).

24

se vê na imagem propriamente dita, ou seja, no que se coloca nela como

capacidade perceptiva.

L’indicialité de la photographie est son renvoi à lá realité qu’elle est censée enregistrer, au fait que cet enregistrement mécanique nous restitue une empreinte de son référent; elle est ce sur quoi nous nous appuyons pour effectuer l’inférence de la représentation à un référent réel. La présence, quant à elle, c’est-à-dire le sentiment plus ou moins passager que ce que l’on voit maintenant, à savoir l’image, est en soi réel, est de l’orde de l’iconocitié, et la photographie peut nous procurer ce sentiment dans la mesure où elle est un signe analogique qui représente son objet par resemblance, par analogie à l’égard de ses qualités perceptives, et qu’il suffit de disposer du signe pour avoir l’impresion de voir la scène elle-même, de la revoir ou de l’anteciper7 (CHATEAU, 1997, p. 105).

Por meio dessa outra abordagem, a preocupação com a relação de

contigüidade física entre fotografia e referente cede espaço para indagações acerca

da capacidade que a imagem fotográfica possui de reproduzir ao nível da

aparência, se não todas, pelo menos algumas das propriedades daquilo que

representa (MORRIS apud ECO, 1997).

É exatamente nessa discussão que melhor se configura a interrogação

sobre o modo como se dá a representação fotográfica. Nela, mais do que chamar

em causa um vínculo existencial entre imagem-referente, o que liga a fotografia à

realidade que representa é a possibilidade de a imagem se radicar em

determinados códigos de reconhecimento e convenções gráficas que propiciem

aos receptores condições de percepção similares àquelas da experiência real ou,

em outras palavras, que adquiram o mesmo ‘significado’ do que representam.

A relação entre imagem e realidade é, pois, colocada sob outro viés;

ultrapassando a idéia de implicação direta para chegar à de analogia (como

proporcionalidade ou igualdade de relações entre os termos de dois sistemas)

(ABBAGNANO, 2000). Nesse sentido, a fotografia funciona a partir da

7 “A indexicalidade da fotografia é sua remissão à realidade que ela presumidamente registra, pelo fato de que esse registro mecânico nos restitui seu referente; ela é aquilo sobre o que nos apoiamos para efetuar a inferência da representação a um referente real. A presença, ou seja, o sentimento mais ou menos passageiro que conservamos, a saber: a imagem, é o real em si mesmo, é da ordem da iconicidade, e a fotografia pode nos fornecer esse sentimento na medida em que é um signo analógico que representa seu objeto por semelhança, por analogia a suas qualidades perceptivas, e suficientemente capaz para dispor do signo a impressão de ver a cena nela mesmo, de revê-la ou antecipá-la” (tradução livre).

25

constituição e do reconhecimento de formas relacionais que permitem estabelecer

proporções, correspondências e equivalências com aquelas oferecidas na

percepção direta da realidade. “Se com alguma coisa tem o signo icônico

propriedades em comum, será não com o objeto, mas com o modelo perceptivo do

objeto” (ECO, 1997, p. 111-112).

Ao retirar do caráter indicial da fotografia a determinação do seu poder

representativo, relativiza-se também a força do seu dispositivo. A fotografia não é

mais encarada como um produto do mero automatismo do dispositivo ou um

simples registro de algo que já é previamente dado pela realidade factual. A

imagem fotográfica não simplesmente ‘se liga’ a uma realidade externa, mas é

construída internamente através da maneira como se configura o mundo visual na

bidimensionalidade da sua superfície, de modo a garantir a sua iconicidade, isto é,

a sua capacidade de evocar uma sensação de presença do próprio referente.

Ao assumir, então, a existência de uma organização intencional dos

componentes da imagem, o fotógrafo sai do papel passivo de mero acionador de

um dispositivo para assumir posição ativa: ele vai à realidade para descobrir nela

o modo, a perspectiva ou o ponto de vista que julgue ser mais adequado para se

reportar a ela. A fotografia se configura, assim, como uma forma de escrita e de

expressão visual da realidade.

Por essa acepção, assimila-se para o campo da fotografia algo que já

havia sido pontuado nos estudos da representação pictórica. Em Arte e ilusão,

Ernst Gombrich chama atenção para o fato de que um quadro nunca é uma réplica

do que se vê na realidade (ainda que uma certa ‘impressão de realidade’ seja nele

essencial): para construir imagens aptas a representar a realidade, a pintura recorre

a um esquema, ou seja, a convenções que guiam o seu código imitativo

(GOMBRICH, 2007).

A despeito do automatismo do seu dispositivo, a imagem fotográfica

também nasce de um processo de construção do real, perpassado por códigos e

convenções. Então, tanto no caso da imagem pictórica quanto da fotográfica, a

representação só é possível quando viabiliza uma transposição ou transformação

das qualidades do objeto ou da cena real para o seu conteúdo representacional por

meio de propriedades visuais específicas.

26

Assim, a capacidade de representação da fotografia também se encontra

ligada à maneira como o fotógrafo traduz na imagem, na organização dos seus

elementos constituintes, um modo de recriar a realidade. Em tal sentido, pode-se

até mesmo conceber certo senso de assinatura na fotografia, recolocando como

expressão de uma intenção configuradora aspectos anteriormente tratados apenas

como mecânicos ou causais.

A questão das modalidades de fatura (operação da luz de forma a atribuir

plasticidade à imagem) e a geometria do enquadramento (organização do espaço e

dos elementos nele dispostos para suscitar um efeito dramático) são alguns dos

aspectos que podem ser destacado como artifícios através dos quais os fotógrafos

constroem modos específicos de expressar visualmente a realidade, organizando-a

a partir deles8. É na própria maneira de mobilizar as propriedades visuais da

representação que se encontra a explicação sobre como a fotografia pode se

remeter a algo além dela mesma.

1.1. Testemunho e apropriação discursiva no fotojornalismo

Ao partir do pressuposto de que a fotografia não é a simples implicação

existencial de uma realidade exterior, é preciso avaliar quais os impactos que tal

conjectura acarreta no âmbito do fotojornalismo, atividade em que a produção de

imagens traz por essência um compromisso com o factual.

Rejeita-se, de antemão, os argumentos que nessa área funcionam como

reprodução das teorias do dispositivo, ou seja, que explicam o emprego da

imagem fotográfica no jornalismo exclusivamente pelo seu caráter indicial. De

acordo com tal concepção, a fotografia se coligaria à proposta de mediação do

jornalismo por ser balizada como impregnação de um real, reproduzindo-o

8 Essa questão é trabalhada por uma série de artigos que analisam um certo segmento da iconografia de Henri Cartier-Bresson e Pierre Verger, buscando nele provas empíricas para essa tese. Em tais artigos, procura-se identificar nos aspectos expressionais, dramáticos e plásticos das imagens desses fotógrafos chaves para a compreensão do seu caráter representacional (PICADO, SCHNEIDER e SENNA, 2009). Constata-se, assim, como esses fotógrafos retratam pessoas (MANO e PINHEIRO, 2008) e situações (SANTOS e PICADO, 2008) por meio de artifícios que são próprios aos seus modos de representar a realidade – confirmando nos materiais empíricos a idéia de que a representação fotográfica pode ser livre de uma a relação de implicação existencial da imagem, derivada do automatismo do dispositivo fotográfico.

27

objetivamente em uma correspondência rigorosa entre realidade e imagem.

Creditada como índice do real, a imagem fotográfica conseguiria apenas assim

restituir no momento da recepção sua situação real originária, servindo de

testemunho e de demonstrativo dela.

Ao retomar a história de um jornal francês, o L’illustration, entre 1843 e

1914, para tentar entender como a fotografia passa de suporte iconográfico

eventual para tornar-se o principal modo de ilustração da imprensa, Thierry

Gervais constata que nem mesmo a origem da utilização da fotografia na imprensa

tem a ver com esse vínculo especial. De acordo com o autor, o julgamento de que

o fato de a fotografia ser uma impressão teria adequado-a com perfeição aos ideais

de imparcialidade jornalística é um ponto de vista moderno que não encontra

respaldo no passado.

Na verdade, a escolha da fotografia como principal forma de ilustração

da imprensa se deu em parte como uma maneira de livrar os jornais do trabalhoso

processo manual do desenho. Ela não se destacava, então, em virtude de um

suposto ideal de informação visual, mas, como qualquer outro tipo de imagem,

por ser um modo mais acessível de se transmitir informações. Apenas

posteriormente a fotografia jornalística passou a ser exaltada por causa de uma

suposta objetividade indicial – como estratégia de legitimação da nova técnica

(GERVAIS, 2007).

Não se nega, com isso, que a crença no caráter indicial da imagem

fotográfica confere a ela um status especial no que diz respeito à sua capacidade

de se reportar à realidade. Contudo, não se pode supor que esse fator seja

exclusivo (ou mais importante) para conceber o poder jornalístico da fotografia,

deixando de lado os aspectos expressionais, dramáticos e plásticos que estão

igualmente envolvidos no processo de construção e compreensão de uma imagem

fotográfica. Do contrário, julgar-se-ia que toda e qualquer imagem fotográfica

seria igualmente capaz de servir como apoio visual ao discurso reportativo, o que

já se provou infundado (PICADO, 2006).

O poder de mediação da fotografia não está, pois, depositado na natureza

determinante do dispositivo, nem no seu caráter de emanação literal do mundo

factual, com o qual mantém esse vínculo distintivo. Afinal, as fotografias não são

“[...] simples émanations de la réalité, des simulacres ou pétites images émises par

28

le choses [....], mais des objets construits entretenant avec la réalité des relations

compliquées”9 (MICHAUD, 2002, p. 111).

Nesse sentido, a fotografia só é capaz de ser apropriada pela atividade

jornalística, como expressão visual da realidade, na medida em que é

iconicamente construída a partir de propriedades que são capazes de instalar uma

sensação de presença do referente no momento da recepção, de tornar os

espectadores participantes da cena retratada. Ela se consolida como uma forma de

testemunho ao passo em que consegue não apenas reproduzir o visível, mas fazê-

lo articulando uma certa complementaridade entre temporalidades (a da imagem e

a da recepção) ou, dito de outra forma, imprimindo ao icônico um caráter de

experiência emprestada que se realiza no momento da leitura.

Entretanto, indo além da mera reinstauração do acontecimento, essa

experiência de testemunho desenvolve ainda uma dimensão dramática ou poética:

ele é capaz de evocar, pelo forte sentido de presença com o qual a mensagem

icônica se impõe à compreensão, emoções semelhantes àquelas que se estariam

implicadas na experiência direta. Esse aspecto, já observado por Gombrich na

análise de pinturas clássicas, independe do dispositivo fotográfico, mas está

exclusivamente relacionado a esse “princípio do olhar testemunhal” que a imagem

fotográfica também é capaz de desencadear.

The purpose for which they developed the eye-witness principle was, as I have tried to argue, essentially dramatic [...] Mark that in conveying this experience of the eye-witness the image serves a dual purpose – it shows us what happened out there, but also, by implication, what happened or would have happened to us, both physically and emotionally10 (GOMBRICH, 1982, p. 253-254).

Nesse sentido, a imagem que melhor realiza esse duplo propósito são

aquelas que conseguem evidenciar a realidade que retrata, como seu ícone mais

expressivo. O ideal bressoniano de fotojornalismo, sintetizado na idéia de

9 “[...] simples emanações da realidade, simulacros ou pequenas imagens emitidas pelas coisas [...], mas objetos construídos a partir de relações complexas da realidade” (tradução livre). 10 “O propósito do princípio do olhar testemunhal é, como eu tentei argumentar, essencialmente dramático. Note que, no arranjo dessa experiência do olhar testemunhal, a imagem serve a um duplo propósito – ela nos mostra o que aconteceu lá fora, mas também, por implicação, o que poderia ter ocorrido a nós, física e emocionalmente” (tradução livre).

29

momento decisivo, se fundamenta aí. Entendido como o instante em que os

elementos visuais do mundo real assumem uma determinada configuração que

torna visível a essência dos acontecimentos em curso (CARTIER-BRESSON,

1952), o momento decisivo pode ser rendido e visualmente estabelecido na

imagem, permitindo-a representar a realidade de um modo significativo. Com

isso, a fotografia não apenas noticia um fato, mas é capaz de despertar os mais

diferentes sentimentos e atitudes acerca dele, servindo também como instrumento

de comoção.

Essa concepção de fotografia jornalística, quando bem realizada, dá

origem àquilo que se chama de “imagem-monumento” (LAVOIE, 2001), ou seja,

uma imagem capaz de tocar o público, se impregnar na memória coletiva e

perpetuar o conteúdo da sua representação. Nesses casos, mais do que índice ou

ícone, a fotografia se reveste de uma função simbólica. “Aquela fotografia de

Capa [figura 3] não é mais tomada de impressão de um soldado ao desembarcar

na Normandia [...]: ela se torna o emblema, o símbolo da guerra, sua auto-

revelação visual” (SCHAEFFER, 1996, p. 133-134).

Figura 3. Robert Capa, 1944.

Nesse sentido, a imagem fotográfica é capaz de ir além do papel de

testemunho. Em tal contexto, a imagem é normalmente tomada como uma espécie

30

de prova empírica, afiançando a verdade das afirmações verbalmente veiculadas:

ao ser articulada com uma mensagem para-icônica, a fotografia autentica-a. A

fotografia é, então, chamada em causa não apenas no sentido de garantir a

designação da realidade que referencia ou uma comoção acerca dela, mas, por

fazer isso, serve também para aumentar a força persuasiva da mensagem que

passa a ser por ela validada.

Na verdade, a legitimação do verbal pelo visual se dá na medida em que

o público pressupõe existir entre eles uma identificação veraz. Para além desse

pressuposto, de que há veracidade na ligação sugerida entre texto e imagem, não

há nada que faça com que a fotografia autentique com propriedade um

determinado discurso verbal – há, no máximo, indícios de compatibilidade

possível entre um e o outro.

Em outras palavras, o receptor sabe que a imagem deve corresponder a uma situação de remissão precisa, mas esse conhecimento que enuncia a condição de possibilidade da relação de emissão funciona impropriamente como responsável pela veracidade de uma remissão específica. Enquanto a questão da verdade deveria ser colocada em relação ao que o discurso afirma sobre o que a imagem mostra (portanto, como tema sobre as relações existentes entre o que é mostrado e o que é afirmado), a norma do testemunho identifica o dito com o mostrado, isto é, postula a veracidade intrínseca do dito desde que ele acompanhe o mostrado (Ibidem, p. 126-127).

Todavia, como prova empírica, a fotografia não está simplesmente

submetida ao verbal, já que serve ela mesma de instrumento de caracterização,

qualificação e tipificação da realidade. A fotografia assume, pois, um certo efeito

de discurso, moldando visualmente um certo posicionamento discursivo. Tal

efeito consiste exatamente nessa capacidade de a fotografia de se constituir como

uma modalidade do dizer e, então, dar forma a uma enunciação (VERÓN, 2004).

Sobre isso, é preciso ressaltar: aplicar à imagem o conceito de

enunciação ou modalidade do dizer não implica articulá-la como subordinada ao

regime lingüístico. O discurso enunciativo é aqui entendido em sentido ampliado,

de maneira a abranger substâncias ou matérias significantes distintas, como a

própria fotografia. Assim, ao assumir a imagem fotográfica como produtora de

enunciação, concebe-se que ela, por si só, é capaz de desencadear significados a

31

partir do modo como configura na imagem uma apresentação e uma descrição do

real.

A fotografia estabelece-se, portanto, como uma espécie de postulado

comunicacional, manifestação de um ‘querer dizer’. Assume-se a existência de

uma estratégia de comunicação em que a imagem fotográfica funciona como

mostração, isto é, fixa idéias e conceitos ao representar um ponto de vista sobre o

real (SCHAEFFER, 1996). Nesse tipo de uso da fotografia, a imagem se torna

ainda menos ligada a uma referencialidade restrita: a representação é tomada

apenas como um meio para estabelecer significados que se fundam no forte

sentido de presença da imagem, mas que ultrapassam o que é meramente

percebido na cena. Trata-se, pois, da “exteriorização simbólica de uma

intencionalidade expressiva” (Ibidem, 1996, p. 135).

Figura 4. Nick Ut, 1972.

Essa fotografia (figura 4), um clássico do fotojornalismo, é capaz de

exemplificar tal questão. Na imagem captada pelas lentes do fotógrafo Nick Ut em

1972 durante a Guerra do Vietnã, registrou-se o momento posterior à explosão de

uma bomba de napalm, jogada como parte do ataque americano contra o distrito

vietcongue de Trang Bang. Nela, é possível perceber algumas crianças que correm

em direção à câmera, no sentido contrário a uma nuvem de fumaça que se vê ao

32

longe. Quase no centro da foto, destaca-se uma menina nua e com o corpo

queimado, que parece gritar de dor.

Jornalisticamente, o emprego dessa fotografia, vai ser marcado

primeiramente pela noção de testemunho. Tem-se, portanto, que a imagem serve

para possibilitar a percepção de um acontecimento que acorreu factualmente e que

é restaurado pela sua configuração icônica no momento da recepção. Dessa forma,

a fotografia funciona como uma ilustração visual do relato que se faz na notícia.

Marca-se, então, seu caráter de prova empírica, como se dissesse: ‘A imagem

comprova que o relato que se faz sobre esse ataque é verdadeiro’.

Contudo, mais do que um simples relato, ao se impor como uma

experiência emprestada, como se o espectador se colocasse diante da ocorrência

factual, essa fotografia é capaz de comover. Pela força e pelo impacto do visual e

pela violência que a cena representa, ela consegue chocar, sensibilizar e até

mesmo arrancar lágrimas. É também por tal motivo, que a imagem consegue se

monumentalizar, ultrapassando a apresentação ou descrição de um único instante

para enunciar um sentido outro. Nesse caso, a imagem agrega argumentos do tipo

‘Veja, através dessa foto, a que ponto chegou a guerra: crianças estão sofrendo por

causa dela’.

Constatações dessa natureza são realizadas por Susan Sontag no livro

Diante da dor dos outros. Nele, Sontag faz uma análise acerca dos usos e funções

que exercem as representações visuais de guerra. Dentre os vários pontos

levantados nessa obra, destaca-se a idéia de que, embora as fotografias possam

servir como uma ‘experiência (emprestada) de guerra’, elas não conseguem

efetivamente dimensionar ou substituir a experiência real; o que, para alguns,

acaba criando espectadores insensíveis ao sofrimento alheio. Entretanto,

discordando disso, a autora chama atenção para o fato de que isso não é um

problema da representação, mas do próprio ato de ver. “As imagens têm sido

criticadas por representarem um modo de ver o sofrimento à distância, como se

existisse algum outro modo de ver. Porém, ver de perto – sem mediação de uma

imagem – ainda é apenas ver” (SONTAG, 2003, p. 98).

Sobre isso, Sontag acredita que as imagens de guerra servem para

ampliar o conhecimento e a consciência das barbaridades cometidas. Aliás,

historicamente, muitas fotografias de guerra funcionaram nesse sentido. O

33

instantâneo de Nick Ut, por exemplo, ajudou na consolidação de uma opinião

pública contrária à Guerra do Vietnã, que passou a exigir a retirada das tropas

norte-americanas do local. A repercussão da fotografia como emblema da

atrocidade daquela guerra foi tão forte que alguns chegam a apontá-la como um

dos fatores responsáveis pela antecipação do fim do conflito. E isso se fez

possível exatamente por esse efeito de discurso que, concretizando uma

mensagem específica, dimensiona a fotografia para um campo expressivo.

O mesmo pode ser dito de outras imagens realizadas em contexto de

guerra. A fotografia de Eddie Adams (figura 5), também feita durante a Guerra do

Vietnã, talvez seja outro caso bastante conhecido.

Figura 5. Eddie Adams, 1968.

Nela, capturou-se o instante precedente à execução de um prisioneiro

vietnamita: tem-se o executor aparentemente frio, com uma arma a mirar um

jovem que é visto com uma expressão de horror, mãos atadas e sem possibilidade

de defesa. Por conta disso, a imagem foi veiculada como um exemplo das

atrocidades cometidas no Vietnã, servindo também como fator responsável pela

sedimentação de uma opinião pública favorável à retirada das tropas americanas

do vietcongue.

34

Saindo do contexto de guerra, é possível apontar outras fotografias que

exercem uma exteriorização simbólica a partir da sua capacidade testemunhal. As

questões da fome e da intervenção humanitária nos países do Terceiro Mundo

concentram exemplos paradigmáticos. A fotografia de Kevin Carter (figura 6) é

clássica nesse sentido. Nela, vê-se uma menina, quase morta de fome, que se

arrasta em direção a um centro de alimentação (montado pelas Nações Unidas, no

Sudão) enquanto era espreitada por um abutre. A imagem foi tomada como uma

imagem-monumento da situação da fome e da pobreza africana.

Figura 6. Kevin Carter, 1994.

Figura 7. Michael Wells, 1980.

35

Como imagem-monumento, mais simplesmente do que apresentar o real,

se impregnar na memória coletiva e perpetuar o conteúdo da sua representação,

esse tipo de fotografia pode evocar posicionamentos específicos acerca da

situação. É o mesmo caso da fotografia de Michael Wells (figura 7). A partir da

justaposição das mãos de um missionário e de uma criança ugandense vítima da

fome, sugerindo uma contraposição cruel entre a normalidade de uma e a magreza

da outra, a imagem parece fixar uma intencionalidade expressiva, pontuando a

importância da intervenção humanitária em países do Terceiro Mundo – tanto que

serviu, durante muito tempo, como campanha para angariar fundos para essa

causa.

Para além desse tipo de experiência de choque, mas com uso e função

semelhante, podem ser apontadas fotografias de caráter político. É o caso de uma

fotografia realizada por Erno Schneider e publicada pelo Jornal do Brasil em

1961 (figura 8).

Figura 8. Erno Schneider, 1961.

36

A fotografia mostra o então presidente do Brasil, Jânio Quadros, flagrado

numa posição inusitada, na qual chamam atenção os seus pés enviesados. A

fotografia, instantâneo obtido pouco antes da renúncia presidencial, foi apropriada

discursivamente para definir a personalidade do político e simbolizar uma falta de

rumos que marcava a sua atuação política.

Tal fotografia, por sintetizar em uma única imagem uma leitura possível

da realidade, torna-se seu ícone expressivo. Ao exprimir a realidade tão

significativamente, a fotografia instaura um efeito de discurso: materializa

sentidos, fazendo-se vê-los visualmente. Essa imagem se configura, assim, como

“une prise direct de la réalité, mais avec l’intention cependant d’ordenner celle-ci

(par le contrôle des paramètres de la prise de vue) de manière à produire l’effect

recherché11” (LAVOIE, 2001, p. 143).

Esse tipo de entendimento sobre a natureza da representação fotográfica

pode melhor explicar o regime de funcionamento do fotojornalismo clássico e

contemporâneo, como se pode observar a partir dos exemplos elencados. Todas

essas imagens não apenas testemunham um determinado acontecimento, mas

também servem como apropriação discursiva, caracterizando, qualificando e

tipificando a realidade a partir do assentamento de um determinado ponto de vista.

1.2. A especificidade da ilustração fotográfica

O fotojornalismo, como até aqui esboçado, se caracteriza pela

apropriação discursiva de fotografias que capturam no mundo factual imagens

capazes de sintetizar a essência do assunto que se noticia12. Entretanto, a foto-

ilustração, embora também possa ser assinalada por essa intenção de se configurar

11 “Uma captura direta da realidade, mas com a intenção de ordená-la (pelo controle dos parâmetros do ponto de vista) de maneira a produzir o efeito procurado” (tradução livre). 12 Esse delineamento do jornalismo fotográfico nos limites de uma imagem com intenções testemunhais dá conta, é preciso assumir, de apenas uma parcela do que se configura como fotojornalismo. A diversidade e a evolução histórica de gêneros fotojornalísticos acabam por revelar fotografias com outros tipos de usos e funções, como as imagens de interesses narrativo, pictográfico ou decorativo. Aqui, optou-se por partir dessa concepção restrita por entendê-la como o tipo que melhor representa toda a atividade fotojornalística – permitindo, pois, estabelecer as comparações necessárias entre um cânone jornalístico e a foto-ilustração.

37

como síntese ou um discurso visual acerca do real, não é uma captura direta, um

flagrante ou uma re-apresentação da realidade.

Ao contrário, a ilustração fotográfica é definida pela sua própria natureza

de artifício. Ela é, pois, caracterizada como uma fotografia produzida em estúdio

e/ou posteriormente montada e manipulada de tal maneira que seja capaz de

acompanhar as matérias jornalísticas (SOUSA, 2004). Mais precisamente, a foto-

ilustração é um tipo de representação que ‘forja’ um momento decisivo,

construindo uma mensagem icônica que, apesar de não corresponder a uma

situação de remissão precisa do factual, busca representá-lo a partir de

determinado conceito.

Percebe-se, a partir dessa definição preliminar, que, por oposição à

genuinidade da fotografia jornalística tradicional, a ilustração fotográfica não está,

em absoluto, comprometida com a reinstauração de uma dimensão factual, a partir

da qual se noticia um determinado evento. Nela não há, de fato, uma intenção de

servir à finalidade testemunhal de instaurar uma experiência perceptiva similar

àquela que se teria num contato direto com a realidade.

Trata-se, portanto, de um tipo de fotografia que se distancia da idéia de

recorte do real para trabalhar com a criação de realidades próprias, operando como

uma espécie de ficção13 – que passa a ser apreendida como um meio de viabilizar

em uma única imagem idéias difíceis de serem comunicadas, estabelecendo-as

visualmente como exemplificação demonstrativa daquilo que se argumenta.

“Photo illustrations work best when used to communicate concepts, feeling and

the intangibles for which a literal picture is not always possible”14 (KOBRÉ,

2004, p. 174).

Na Veja de 17 de outubro de 2007 (figura 9) tem-se um exemplo disso.

Ao falar sobre a posição de destaque que o capital espanhol assume no mercado

brasileiro, sobretudo em função da compra do segundo maior banco privado do

país e da privatização de rodovias federais, ambas realizadas por empresas

13 Essa questão será devidamente trabalhada no segundo capítulo. Por hora, faz-se necessário apenas estabelecer como ficcional um tipo de fotografia que cria em si uma fantasia que tem o real somente como ‘deixa’ para materializar idéias e conceitos. 14 “Foto-ilustrações funcionam melhor quando usadas para comunicar conceitos, sentimentos e outras coisas intangíveis, que a imagem literal nem sempre pode comunicar” (tradução livre).

38

espanholas, a reportagem caracteriza tais manobras como dignas da destreza de

um toureiro – figura tradicionalmente associada à Espanha. Nesse sentido, para

trabalhar plasticamente essa idéia, difícil de ser comunicada por uma fotografia

testemunhal, arquiteta-se uma realidade fictícia em que um sujeito, usando as

vestes de um toureiro, dá um ‘olé’ sob uma chuva de dinheiro.

Figura 9. Veja de 17 de outubro de 2007.

Na condição de ilustração, mais do que simplesmente exercer um papel de

mero coadjuvante, ornamento ou enfeite do texto verbal, a imagem ajuda a

construir um conceito que metaforicamente explica o que está sendo esclarecido

pela reportagem. Isso se dá na medida em que, estabelecendo visualmente uma

determinada idéia, a fotografia é capaz de servir como uma exemplificação

demonstrativa daquilo que se argumenta.

Função semelhante pode ser observada na ilustração fotográfica que

acompanha a matéria de capa da Veja de 15 de agosto de 2007 (figura 10). Nela,

vê-se uma tesoura que parece picotar alguns papéis de modo que eles acabam

ganhando a forma de uma algema. Sobreposta à imagem, o título da reportagem

estabelece a primeira idéia, “Frágil como papel”. O subtítulo, mais embaixo,

continua: “A justiça brasileira é incapaz de manter presos assassinos confessos e

corruptos. Na origem da impunidade está a própria lei”.

39

Dessa forma, através do auxílio verbal, a fotografia ganha sentido.

Concretiza-se, com isso, a análise que é destrinchada na matéria, exemplificando

visualmente a fragilidade que é apontada na execução da lei – e que plasticamente

aparece reforçado pela ironia de que, de fato, a lei é apenas (no) papel.

Figura 10. Veja de 15 de agosto de 2007.

De tal maneira, percebe-se que a ilustração fotográfica se impõe

enquanto estrutura significativa, isto é, como suporte para um significado. A foto-

ilustração passa, pois, a ser demarcada pela existência de um postulado

comunicacional ou de uma mostração, segundo os quais as idéias por ela

veiculadas são capazes de representar um ponto de vista sobre o real.

Essa característica, já identificada também no tipo tradicional do

fotojornalismo e, em certa medida, originária da fotografia, aparece na ilustração

fotográfica de maneira singular. Nela, diferentemente do que acontece nas demais

fotografias jornalísticas, a mostração é a principal (senão a única) estratégia

comunicacional, uma vez que a imagem é destituída do caráter de implicação

existencial ou de ajustamento com a realidade dos fatos e, por conseqüência, de

um valor testemunhal de experiência emprestada de mundo.

Entretanto, sem referenciar-se direta e literalmente ao mundo factual, a

foto-ilustração funciona como uma espécie de concretização de uma imagem

40

mental. Por imagem mental, entende-se aqui um tipo de construção que a

imaginação é capaz de edificar após ouvir ou ler alguma coisa, dando às palavras

formas e características emprestadas da visão, como uma “impressão dupla de

visualização e semelhança com a realidade” (JOLY, 1996, p. 20).

Assim, ao transpor para uma imagem concreta construtos mentais que

poderiam advir da leitura da matéria que acompanha, a foto-ilustração vai

igualmente funcionar ao nível da analogia, isto é, a partir do reconhecimento de

formas relacionais que permitam estabelecer um paralelismo qualitativo com

aquelas oferecidas na percepção direta da realidade. Assim, ainda que seja

reconhecida como uma fotografia ficcional, a ilustração fotográfica se baseia em

princípios semelhantes ao da fotografia tradicional, mas apenas para exemplificar

uma interpretação ou argumentação acerca do que é noticiado.

Nesse sentido, a ilustração fotográfica consegue fazer ver concretamente

aquilo que o texto só consegue evocar indiretamente; servindo, pois, como a

materialização de uma impressão ou imagem mental que se cria a partir do texto

da reportagem – e reforçando as análises e opiniões nele desenvolvidas na medida

em que as tornam mais exemplares e memoráveis do que quando colocadas

apenas em palavras.

A foto-ilustração funciona, portanto, como um recurso à imagem com o

intuito de exemplificar ficcionalmente os argumentos defendidos, isto é, de torná-

los mostrativos. O que é expresso na foto-ilustração funciona como re-afirmação

daquilo que está sendo defendido pela matéria, assentando opiniões e visões de

mundo em imagens ‘vivas’.

Para tanto, a ilustração fotográfica é quase sempre caracterizada por

transposições visuais de um universo textual de base, oferecido e semanticamente

determinado pelo discurso reportativo. Essa transposição, usualmente baseada na

concretização de uma espécie de imagem mental cuja significação é facilmente

reconhecível, permite que o leitor possa também ver o que lê.

Ao analisar a estratégia comunicacional da mostração, embora não faça

referência às foto-ilustrações, Jean-Marie Scaheffer observa essa característica

que tão bem se aplica à ilustração fotográfica. O autor observa que

41

[...] para poder ser a manifestação de uma intenção hermenêutica precisa, a imagem deve ser legível e, para ser legível, ela não deve fazer nada mais do que reproduzir os significados visuais estereotipados que sejam reconhecíveis [...] Quanto à apresentação autotélica e à mostração expressiva, ambas dão lugar a processos hermenêuticos estáveis, mas é porque seu significado já existe no princípio da imagem e esta se limita a reproduzir sinais de reconhecimento. O receptor não decodifica uma mensagem, reconhece um estereótipo, um significado convencional ligado às transposições visuais de certos topo semânticos, existindo, portanto, independentemente da sua realização fotográfica presente (SCHAEFFER, 1996, p. 137-138).

Dessa maneira, mesmo se desligando de uma função testemunhal

estritamente informativa, a foto-ilustração é capaz de funcionar como um discurso

jornalisticamente pertinente. Isso porque a ilustração fotográfica vai se configurar

na afirmação de idéias verbalmente trabalhadas, fazendo da imagem um apoio

visual para a significação que o discurso jornalístico sustenta. Tem-se, a partir da

forma como a representação visual é construída, o estabelecimento de sentidos

propositalmente concebidos e realizados para atender uma finalidade específica,

uma intenção determinada pelo contexto jornalístico no qual se insere. A foto-

ilustração funciona, então, como parte de uma estratégia retórica do discurso

jornalístico.

Nesses termos, a ilustração fotográfica se distancia de um caráter de

apresentação e descrição dos fatos para aproximar-se do estabelecimento de

análises ou opiniões sobre ele, a partir dos quais a realidade pode ser esclarecida,

elucidada, comentada e, então, melhor explicada. Esse tipo de utilização da foto-

ilustração é, portanto, marcada por uma relação com o regime da informação que

a aproxima dos gêneros ditos interpretativos e opinativos do jornalismo, tornando-

se base da foto-análise e da foto-opinião. A ilustração fotográfica traz análises que

tentam esclarecer uma ou outra dimensão da realidade que não é percebida tão

claramente e traz julgamentos que visam formar opinião – funções do jornalismo

interpretativo e opinativo, respectivamente.

Em tal ponto, se a fotografia jornalística tradicional (nos moldes do ideal

bressoniano) é pensada como um correlato visual da notícia, a foto-ilustração

pode ser identificada como um correspondente dos gêneros da análise e da

opinião. Como uma espécie de ‘imagem editorial’, a ilustração fotográfica

funciona de maneira similar aos textos analíticos e opinativos, nos quais são

42

expressos interpretações, juízos de valor e julgamentos com o objetivo de orientar

a visão e a conduta do público.

Forçando uma comparação com formas textuais já bem demarcadas, é

possível dizer que a foto-ilustração assemelha-se ao comentário. O comentário,

enquanto gênero opinativo, traz os fatos mostrados para além das exterioridades,

de modo a desvendar tramas que, ancoradas no poder informativo do jornalismo,

servem para facilitar o entendimento da realidade que é retratada. Assim, na foto-

ilustração, a mistura de elementos de documentação da conjuntura, de julgamento

valorativo do problema e de crítica da situação, delineia-a como um comentário

visual acerca do real.

Ao traçar esse tipo de comparação, pode-se agregar à ilustração

fotográfica outro elemento que a distancia das fotografias jornalísticas de natureza

testemunhal: uma diferenciação temporal. Estabelecida em uma base de análise e

apreciação de uma situação, a foto-ilustração não faz referência a um fato ou

momento em específico (como ocorre na foto-testemunho), mas a uma conjuntura.

Isso se relaciona diretamente ao próprio caráter de ‘sedimento’ que perpassa a

utilização da ilustração fotográfica, isto é, pelo fato de servir para sedimentar

juízos e opiniões sobre as situações noticiadas.

É o que acontece na imagem que acompanha a reportagem “O partido da

toga é um risco” (figura 11), da edição de 7 de dezembro de 2005 da Veja.

Disposta em parte das duas páginas que comportam a matéria, a fotografia

consiste em uma montagem na qual é possível identificar os rostos de três

personagens posicionados por detrás de uma roleta com dois elementos: de um

lado, uma toga identificada pelo vocábulo “juiz” e, do outro, um terno e uma

gravata identificados pela palavra “político”. Essa roleta dá a possibilidade de

‘vestir’ cada um dos indivíduos com qualquer uma das roupas aí dispostas. Mas,

no momento capturado na representação, ninguém está assim vestido, já que os

rostos aparecem no meio termo entre os dois extremos. À direita, uma mão segura

tal roleta de maneira a dar a impressão de controlá-la.

43

Figura 11. Veja de 7 de dezembro de 2005.

Ao lado da imagem, aparece uma legenda: “De sentença e urna: Maurício

Corrêa, que vivia de olho no governo do DF, Francisco Rezek, que saiu e voltou,

e Jobim: repúdio”. Tal escrito já acrescenta algumas informações à fotografia. Em

primeiro lugar, ele identifica os personagens retratados (dois ex e o então

presidente do Supremo Tribunal Federal). Além disso, ele estabelece com a

imagem uma relação metonímica entre os termos “juiz” e “sentença” e “político”

e “urna”, reforçando a idéia transmitida.

Com esse reforço, a legenda, que aparece como coeficiente de segurança

para assegurar a compreensão da imagem, começa a dar mais clareza a ela. Na

relação com a legenda, deixa-se entender que os três personagens transitam entre

os cargos de juiz e político. O título, o subtítulo e a matéria confirmam tal exame,

quando se referem ao fato de que, mesmo desempenhando funções de

magistrados, os três sujeitos mantêm ambições políticas.

De tal modo, a foto-ilustração ganha uma significação opinativa.

Metaforicamente através da montagem da roleta em posição intermediária, a

fotografia conota a existência de um “juiz político” – como consta verbalmente na

própria imagem, já que não existe uma separação efetiva das palavras.

O posicionamento opinativo também se faz presente no título, com o qual

a ilustração fotográfica dialoga. “O partido da toga é um risco”, assegura. A

44

mesma afirmativa é esboçada em todo o texto, no qual a ligação entre o Superior

Tribunal Federal e a política partidária é apresentada como negativa, baseando-se

no argumento de que o papel de juiz do primeiro pressupõe distanciamento e

imparcialidade das atividades exercidas na segunda.

O espectro intencional dessa imagem é, pois, convencer o leitor a tomar

para si tal opinião. Nessa acepção, a mão que segura a roleta ganha sentido.

Exprimindo sempre a idéia de domínio ativo sobre a situação (CHEVALIER e

GHEERBRANT, 1998), a mão parece indicar como real a possibilidade de

controlar a direção para a qual a roleta será girada ou de deixá-la do jeito em que

se encontra. Em uma combinação entre sinédoque e antonomásia, a existência da

mão aí posicionada parece exigir que o receptor resolva a indecisão em aberta na

roleta. Pode-se dizer, assim, que essa foto-ilustração deixa tal questão em aberto

para que seja prontamente respondida pelo escrito.

De uma maneira geral, é exatamente assim que funciona a ilustração

fotográfica: em conjunto com o texto, ela estabelece significados moldados de

acordo com um determinado direcionamento ideológico da informação. Isso se

faz possível porque a foto-ilustração constrói uma imagem intencionalmente

arquitetada para estabelecer idéias e conceitos que interpreta e argumenta o

assunto noticiado, que marca um posicionamento ou um juízo acerca dele.

1.3. Produção e pós-produção na foto-ilustração

Para realizar essas funções que lhes são próprias, a ilustração fotográfica

passa por processos de construção que envolvem uma série de operações de

produção e pós-produção. Essas técnicas, embora variadas, podem ser agrupadas

em dois procedimentos mais recorrentes.

O primeiro deles consiste na fabricação de fotografias em estúdio, nas

quais são escolhidos com cuidado os elementos de cena, a pose e a atitude das

personagens-modelos. Em tais casos, ao contrário das fotografias instantâneas

tradicionais, em que o real é contido em sua integridade espaço-temporal no

momento preciso em que acontece, a foto-ilustração opera a partir de uma

representação teatral. Na maioria dos casos, um determinado personagem é

45

construído, servindo para generalizar, simbolizar e/ou caracterizar um

determinado tipo (‘o casal’, ‘o homem’, ‘o cidadão brasileiro’, ‘o político’, ‘o

corrupto’, etc.) ou uma determinada situação.

Figura 12. Veja de 25 de agosto de 2004.

Na imagem da reportagem da Veja de 25 de agosto de 2004 (figura 12),

por exemplo, uma modelo interpreta um personagem, com pose e atitude

previamente concebida para representar “pessoas que souberam como fortalecer

seu eu profundo” – para usar os termos empregados na matéria, que conta

justamente a história de vida de algumas delas para mostrar como os indivíduos

podem construir uma sólida estrutura mental e emocional, mesmo diante dos

obstáculos impostos pela vida pós-moderna.

O segundo procedimento ocorre com a recuperação de fotografias de

arquivo ou banco de imagens, as quais são submetidas a reenquadramentos,

retoques, realçamento de detalhes, inclusão ou supressão de elementos, inserção

de desenhos, mistura de imagens e outras manipulações. Dessa forma, no

momento de pós-produção, a ilustração fotográfica também retira da fotografia a

sua condição de apreensão instantânea e, igualmente, distancia-se da

representação do real em sua integridade. Nesses casos, normalmente a foto-

ilustração toma um sujeito singular, uma figura pública, tipificando e/ou

46

caracterizando-o de determinada forma ou de acordo com uma situação específica.

É o caso fotomontagem publicada pela Veja em uma matéria da edição de 3 de

março de 2006 (figura 13).

Figura 13. Veja de 3 de março de 2004.

Sob o título de “O ministro que encolheu”, a imagem é composta por

duas fotografias diferentes, do presidente Lula e do então ministro José Dirceu,

compostas de modo a mostrar Lula observando Dirceu, que encolhe cada vez

mais. Dirceu é, pois, caracterizado como alguém diminuto (sobretudo aos olhos

do presidente), em consonância com a análise que é feita na reportagem. No texto,

argumenta-se que, por conta dos escândalos de corrupção que envolviam Dirceu,

o governo acabou diminuindo a ‘estatura política’ do ministro, o que é

metaforicamente representado na imagem.

De um modo ou do outro, por meio dessas táticas, a ilustração fotográfica

cria um momento decisivo que, mesmo fictício, serve para exemplificar

ficcionalmente uma leitura do mundo. Assim, ela passa a ser apropriada

discursivamente, em uma forma próxima da argumentação retórica. Dessa

maneira, ainda que proponha uma aproximação do factual, a ilustração fotográfica

não pode ser encaixada na concepção que toma a fotografia em um entendimento

restrito de compromisso com o real. Ao contrário, a foto-ilustração se impõe como

47

um tipo de imagem que vai de encontro à tradição documental da fotografia,

rompendo com esse modo de representação tradicional para permitir à imprensa

explorar outras potencialidades expressivas (analíticas e opinativas) da imagem

fotográfica.

Ese acceso de la fotografía a la ‘cúspide’ de la expresión visual facilita sin duda su aceptación como mensaje complementario a esa otra ‘cúspide’ tácitamente reconocida que en el periodismo escrito representan los géneros de opinión puros, y que hasta ahora habían buscado siempre la ‘buena compañía’ del dibujo o de la pintura como tipos de imágenes equivalentes a su ‘excelencia’15 (BAEZA, 2001, p. 166-167).

É exatamente por conta dessa questão que o emprego da ilustração

fotográfica se torna controverso. O próprio Pepe Baeza, ainda que defenda a

possibilidade de utilização jornalística de foto-ilustrações, faz algumas ressalvas

em relação a isso. Contaminado por um moralismo sobre as obrigações e

compromissos do fotojornalismo com as noções de credibilidade e veracidade

(que parece derivar de uma concepção ingênua de fotografia), o autor critica os

hibridismos entre diferentes tipos de imagens historicamente definidos, sobretudo

as grandes áreas da fotografia de imprensa e fotografia publicitária.

Nesse ponto, Baeza acusa a existência de imagens que fazem uso de

estratégias da estética tradicional para aproveitar-se da credibilidade da evidência

documental instalada pela fotografia jornalística clássica e manipular significados

a fim de atender a finalidades discursivas e persuasivas. Para ele, esse hibridismo

“favorece la delicuescencia de los usos e objetivos, variados y reconocibles, de los

diferentes tipos de imágenes en un concepto unitarista y propenso a la

manipulación”16 (Ibidem, p. 18).

No entanto, essa tese parece se equivocar em pelo menos três pontos.

Primeiramente, ao chamar em causa uma certa ‘pureza’ da fotografia testemunhal,

15 “Essa aproximação da fotografia ao ‘ápice’ da expressão visual facilita sem dúvida a sua aceitação como mensagem complementar a esse outro ‘ápice’ tacitamente conhecido que no jornalismo escrito representam os gêneros puros de opinião, e que até agora haviam buscado sempre a ‘boa companhia’ do desenho ou da pintura como tipos de imagens equivalentes a sua ‘excelência’” (tradução livre). 16 “Favorece a dispersão dos usos e objetivos, variados e reconhecíveis, dos diferentes tipos de imagens em um conceito unitarista e propenso a manipulação” (tradução livre).

48

deixa-se de levar em conta que toda imagem fotográfica é perpassada por um

processo de construção – ou, colocando de outra forma, esquece-se que as

fotografias, mesmo aquelas obtidas de modo direto no mundo factual, não são

emanações da realidade.

Em segundo lugar, ainda que seja guiado em termos de apresentação e

descrição, o fotojornalismo já opera uma apropriação discursiva dessas imagens

que a toma como recurso persuasivo que guia uma determinada interpretação da

realidade. Pelo modo como é construída (as escolhas sobre ângulo,

enquadramento, luz, lente e velocidade do obturador) e pelo modo como é

apresentada (legendas, destaque e relação com outros elementos da página), a

fotografia de testemunho também caracteriza, qualifica e tipifica a realidade.

Por fim, a inferência de que as estratégias de construção da foto-

ilustração estejam em acordo com aquelas da estética do testemunho não parece

encontrar respaldo nos materiais empíricos. O que se vê, na prática, são

fotografias que se distanciam da idéia de recorte do real para trabalhar com a

criação de realidades próprias, operando como uma espécie de ficção – que passa

a ser apreendida como um meio de viabilizar em uma única imagem idéias difíceis

de serem representadas, ilustrando e exemplificando-as visualmente.

Nesse sentido, diz-se que a produção e a disseminação de idéias,

conceitos, análises e opiniões, isto é, de conhecimentos sobre o real, passa por um

processo de deslocamento de relevância que sai das questões de veracidade e

credibilidade do registro único pregado pelo ideal bressoniano do instante

decisivo para pôr ênfase na construção de significados pela encenação, pela

montagem e pela decorrente ficcionalidade da imagem17 (FOGLIANO e

CAMARGO, 2008).

17 O deslocamento de relevância de que falam Fernando Fogliano e Denise Camargo não se refere diretamente à questão da ficcionalidade da ilustração fotográfica. Os autores tratam, na verdade, da mudança proporcionada pelas tecnologias digitais da fotografia. Nessa direção, apontam-se novas formas expressivas que surgem a partir da superação de algumas limitações realistas existentes no âmbito da fotografia fotoquímica e que destituem a imagem fotográfica da composição perfeita em um quadro, da referencialidade restrita ao real, do realismo inerente ao registro fotográfico convencional e da sua função documental – como igualmente acontece na foto-ilustração.

49

2. REALIDADES E FICÇÕES NA ILUSTRAÇÃO FOTOGRÁFICA

Um importante passo para a identificação da especificidade da foto-

ilustração parece vir à tona ao analisá-la sob o viés do estatuto ficcional que é nela

empreendido. Essa ficcionalidade aqui posta em evidência não tem a ver com

aquela que Platão aponta como presente em toda e qualquer representação

pictórica (e que pode ser estendida à fotográfica). “Chez Platon, [...] um tableau

figurative serait une fiction du simple fait qu’il est une imitation (une

représentation analogique) de la réalité”18 (SCHAEFFER, 1999, p. 17).

Indo além, a ficção caracterizada na ilustração fotográfica diz respeito ao

estabelecimento de uma fantasia lúdica, isto é, à composição de um universo

imaginário que ‘falseia’ a realidade com vista a engrenar uma espécie de faz-de-

conta, mas sem jamais pretender ser tomado enquanto real (Ibidem). A foto-

ilustração, por tal motivo, não se mostra como documento de uma determinada

realidade, como um ‘isso-foi’19. Assim, em termos funcionais, a ilustração

fotográfica fica desprovida de um caráter de testemunho, como argumentado

anteriormente.

Ao invés, ela se impõe como uma construção cujo efeito almejado parece

ser menos o de um apelo para interpretá-la como uma experiência de mundo

emprestada do que o de um convite para o compartilhamento de uma fantasia que

a possibilita suspender temporariamente o efeito do real para materializar

ficcionalmente idéias e conceitos sobre esse o mundo. A foto-ilustração se

destitui, portanto, da relação original e testemunhal com o factual que é

normalmente característica da fotografia para ser construída na ostentação da

encenação, da manipulação e da ficção, tomadas em função de um objetivo

comunicacional específico.

18 “Em Platão, [...] um quadro figurativo seria uma ficção pelo simples fato de que ele é sempre uma imitação (uma representação análoga) da realidade” (tradução livre). 19 O termo “isso-foi”, cunhado por Roland Barthes, demonstra a idéia de que a fotografia, por ter um referente que precisa ser necessariamente real e posto diante da objetiva, prova a presença do que é representado em um certo momento do passado. “O que vejo [em um foto] não é uma lembrança, uma imaginação, uma reconstituição [...], mas o real no estado passado: a um só tempo, o passado e o real” (BARTHES, 1998, p. 124).

50

Nesse sentido, o caráter ficcional da ilustração fotográfica é empreendido

como parte de uma estratégia retórica, servindo a um propósito argumentativo: a

partir do compartilhamento de uma fantasia, como uma concretização de uma

imagem mental, a foto-ilustração faz da imagem uma espécie exemplificação

ficcional das análises e opiniões destrinchadas no texto. O objetivo

comunicacional da ficção visual no âmbito do fotojornalismo não é, portanto, o de

instituir um ‘mundo possível’, mas o de funcionar como exemplificação

demonstrativa dos argumentos defendidos pela matéria que acompanha.

De todo modo, mesmo servindo como exemplificação, a utilização da

ilustração fotográfica para se reportar à realidade torna fundamental a aceitação de

que a ficção é um recurso legítimo para tal tarefa, sobretudo no interior de regimes

discursivos mais comprometidos com um certo conceito de realidade, como é o

caso do jornalismo. No livro Modos de fazer mundos, publicado originalmente em

1987, Nelson Goodman já assinalava tal concepção. Ainda que não tenham se

referido especificamente ao jornalismo ou à fotografia – e muito menos às foto-

ilustrações –, as idéias defendidas pelo autor podem ser tomadas com tal intuito,

adequando-se a ele.

Na verdade, Goodman parte do pressuposto nominalista de que não se

pode alegar a existência de um mundo sem fazer referência aos modos de

descrevê-lo ou representá-lo para sugerir que as descrições e as representações

confundem-se com o próprio mundo na medida em que se configuram como as

únicas formas de se ter acesso a ele. Confinado a essas versões-de-mundo, todo e

qualquer conhecimento é relativizado à forma através da qual elas são construídas

(GOODMAN, 1995).

Acredita-se, então, que muitas são as maneiras de se referenciar à

realidade de forma a torná-la cognoscível, a exemplo do que fazem a ciência e a

arte. Dessa forma, o autor defende que todas essas versões podem ser eficazes no

alargamento da compreensão do mundo desde que atendam a critérios de correção

e pertinência. A ficção, igualmente, se dispõe ao exercício de tal tarefa.

A ficção, quer escrita, pintada ou representada, não se aplica de modo verdadeiro a diáfanos mundos possíveis nem a nada, mas sim, ainda que de modo metafórico, a mundos reais (...) A ficção opera nos mundos reais de modo muito semelhante à não ficção. Cervantes, Bosch e Goya, não menos

51

que Boswell, Newton e Darwin, tomam, desfazem, refazem e retomam mundos familiares, remodelando-os de modos admiráveis e por vezes recônditas mas finalmente reconhecíveis – isto é, re-conhecíveis (Ibidem, p. 155-156).

Por essa perspectiva, ao autenticar o uso da ficção, julgando-a capaz de

tornar re-conhecíveis fatos e acontecimentos do mundo factual, a ilustração

fotográfica se insere numa lógica de representação que, ao invés de se afirmar

numa suposta conexão especial com a realidade, arquiteta-se a partir da ficção, da

encenação, da manipulação e, por vezes, do afastamento de concepções realistas

da imagem. Tudo isso passa, pois, a ser entendido como subsídios utilizados para

ilustrar idéias e opiniões acerca do que é noticiado, exemplificando-as

visualmente.

Assim, sob a regência de uma proposta de interpretação da realidade, a

foto-ilustração faz da ficção um recurso de certa forma relacionado ao real, na

medida em que permite à imagem dar forma aos fatos e fenômenos tratados a

partir de determinadas idéias e opiniões que se tem sobre eles. Esse entendimento

é essencial para a apreensão da ilustração fotográfica uma vez que, para ser

apropriada como manifestação fotojornalística, ela não pode perder de vista uma

certa capacidade de remissão ao real. Aliás, é justamente tal deferência aos limites

do factual que permite à ilustração fotográfica se encaixar no contrato social que

rege o jornalismo.

Contudo, no tocante a ela, esse contrato parece pressupor uma

flexibilidade. A exigência de objetividade e de literalidade, tão estritamente

estabelecida em outros casos, cede lugar a uma variação contratual. Se,

normalmente, o jornalismo busca garantir adesão através de uma valorização do

referente que o põe como um mediador discreto, pretensamente objetivo e

imparcial; nesses casos, ao contrário ele vai se assumir como sujeito que exprime

significados – e isso se faz como parte da sua proposta de gerar conhecimentos

(MOTTA, 2004).

Assim, ao explorar uma dimensão ficcional, a foto-ilustração cria uma

suspensão do efeito fotográfico de testemunho. De tal forma, para entendê-la, o

receptor precisa guiar-se segundo os novos limites de contrato que são

estabelecidos. Isso implica, por tal entendimento, a avocação de uma nova forma

52

de percepção da imagem fotográfica. O leitor, portanto, não deve buscar

literalidades para preencher o caráter testemunhal com a qual a fotografia

jornalística está normalmente acostumada a lidar. Ao invés da procura por uma re-

apresentação da realidade objetivamente manifesta, o leitor é levado a aceitar o

grau de ficcionalidade construída na ilustração fotográfica, apreendendo-a não

simplesmente como índice da realidade, mas simbólica e metaforicamente

(realizando os critérios de correção a que Goodman se refere).

2.1. A trama fotográfica

Para entender melhor como, a partir da ficção, a ilustração fotográfica

contribui para uma função de mediação do real, é preciso buscar os modos de

construção ficcional operados pela fotografia. Assim procede Boris Kossoy, na

obra Realidades e ficções na trama fotográfica. Nesse livro, o autor aponta nas

fotografias em geral a existência de uma “realidade própria” (realidade interna ou

segunda realidade) – que é a realidade da representação, o modo como o fato é

mobilizado nos limites bidimensionais da imagem. A essa realidade, liga-se a

“realidade externa”, dimensão fotograficamente invisível e fisicamente inacessível

que se confunde com a realidade primeira que a originou, isto é, com a realidade

factual propriamente dita.

O assunto uma vez representado na imagem é um novo real: interpretado e idealizado, em outras palavras, ideologizado. É óbvio que estamos diante de uma nova realidade, a da imagem fotográfica, que há muito chamei de segunda realidade [...], elo material de ligação ao passado que tomamos como referência, como documento de um dado tema da dimensão da vida, isto é, em sua primeira realidade. A primeira realidade, a do fato passado em sua ocorrência espacial e temporal, vê-se, assim, “substituída”, tornada signo expressivo (KOSSOY, 2002, p. 43).

Entretanto, ainda que essa substituição seja corriqueiramente efetuada,

por serem distintas, essas duas realidades não devem ser tomadas uma pela outra.

Se mesmo num instantâneo fotográfico, a imagem é vista como um processo de

interpretação e idealização (ou seja, de construção e não mero registro do seu

53

referente), há ainda ocorrências em que esse caráter de distinção entre primeira e

segunda realidade vai ser reforçado.

Nesses casos, a realidade da representação, que chega aos olhos por meio

da fotografia, diz respeito a uma realidade primeira que já é dramatizada ou

estetizada a fim de melhor se adequar ao objetivo a que se propõe. Trata-se,

portanto, daquelas fotografias em que um aspecto pictórico se faz marcante: ao

contrário do que normalmente acontece no instantâneo fotográfico, ela opera a

partir da figuração, modelo e objeto dissociados.

Kossoy destaca como exemplo as fotografias de moda. Ao tomar uma

personagem-modelo encenando uma determinada representação teatral num

cenário criado, esse tipo de fotografia dramatiza sua realidade primeira, que só

existe enquanto ficção representada.

Não se quer, com isso, levantar questionamentos acerca da existência ou

ocorrência do que é representado, posto que, para ser fotografado, ele precisa ser

de alguma forma real – mesmo que previamente produzido em estúdio e/ou

posteriormente montado e manipulado. Por exemplo, a imagem captada pelo

fotógrafo Steven Meisel e utilizada como campanha publicitária da grife Lanvin

(figura 14) dependeu da real existência de uma modelo que vestisse tal roupa e

posasse de tal maneira.

Figura 14. Steven Meisel, 2008.

54

Todavia, ainda que a situação apresentada realmente tenha se constituído

no espaço e no tempo; na dimensão factual, tal qual apresentando na

representação, ela só existe como ficção: a modelo, na verdade, encarnava uma

fantasia. Só que, na realidade da representação, ao contrário, essa fantasia

estabelecida passa do fictício ao estado de realidade concreta. Assim, encenando e

insinuando fantasias, a fotografia de moda cria em si um mundo que tem o real

apenas como ‘deixa’ para materializar em uma imagem idéias ou conceitos.

A criação deste mundo irreal no estúdio ou fora dele (a coreografia estudada, a iluminação dramática criando uma atmosfera determinada, a representação teatral das personagens-modelos em suas poses e atitudes) não esgota em si mesma, visa propagar um conceito. Pretende-se, naturalmente, a concretização material da idéia (Ibidem, p. 53).

O que se faz, então, é construir através da fotografia uma realidade

primeira ficcional, possível e plausível que, por meio de uma ‘impressão de

realidade’20, seja capaz de chamar o receptor não de modo a fazê-lo crer no que é

encenado, mas envolvendo-o nessa fantasia. Assim, o funcionamento dessas

representações pressupõe a existência de uma espécie de pacto ficcional, no qual o

receptor aceita imergir na realidade criada, no mundo que lhe é apresentado

visualmente para, a partir dele, acessar as idéias e conceitos então agregados.

Apesar de se referir somente às fotos publicitárias de moda, as

proposições defendidas por Kossoy podem ser aplicadas ao caso da foto-

ilustração. Na verdade, o caráter ficcional do qual se vale Kossoy não é exclusivo

ao tipo de representação que ele analisa. Jean-Marie Schaeffer, ao discorrer sobre

os fundamentos da ficção no livro Porquoi la ficction?, aponta a existência de

outras experiências similares. Segundo o filósofo, a condição para o

20 Trata-se de um tipo de representação fotográfica em que a situação, os personagens, os elementos cênicos, a iluminação, a montagem, a composição da imagem e outros elementos constitutivos se articulam para criar um mundo coerente e verossímil. Por verossímil, entende-se aquilo que se assemelha à verdade, mesmo sem pretensão de ser verdadeiro (ABBAGNANO, 2000) – englobando tudo o que é plausível nos limites daquele imaginário específico, podendo, assim, se aplicar igualmente a situações absurdas que lidam com mundos possíveis e realidades próprias.

55

estabelecimento da representação visual ficcional é exatamente a de uma fantasia

lúdica compartilhada (SCHAEFFER, 1999), como também pressupõe Kossoy21.

Torna-se possível, portanto, admitir o caráter ficcional da ilustração

fotográfica. Ao veicular uma realidade primeira ficcional apresentada como

realidade concreta na representação, a foto-ilustração convida o espectador a

participar de um faz-de-conta que a possibilita partilhar os sentidos pretendidos.

Dessa maneira, é ao se aceitar o pacto de ficcionalidade que a função de

mostração da fotografia é efetivada: através de um novo real ficcional que revela

determinados estados de fatos, a imagem permite acessar as idéias e conceitos a

ele relacionados.

Figura 15. Veja de 28 de julho de 2004.

Tomando como exemplo essa reportagem de capa da revista Veja de 28

de julho de 2004 (figura 15), fica mais fácil explicar como isso acontece. Na

matéria, é possível ver, ocupando toda a página da esquerda, a fotografia de um

21 A adoção desses dois autores como base conceitual para o entendimento da dimensão ficcional da foto-ilustração deve ser acompanhada de uma ressalva: no caso deles, ao se ocuparem de manifestações publicitárias e artísticas, a ficção é pensada em termos de fruição desinteressada e, assim, de adesão estética completa. A ficção é, então, um fim em si mesma. Isso não acontece, em absoluto, na ilustração fotográfica. Nela, a ficção é apenas um meio para a construção de uma idéia, de uma argumentação que tem incidência na interpretação de uma realidade factual específica.

56

homem que olha com surpresa metade de uma cédula de cem reais rasgada em sua

mão. No canto direito da página seguinte, a outra metade da nota aparece embaixo

da pata de um animal que não é enquadrado na imagem.

Essa foto-ilustração não é o registro de uma ocorrência que efetivamente

tomou lugar no mundo factual. O modelo aparece aí como uma personagem

fotografada em uma pose teatral, representando uma situação que só existe

factualmente enquanto ficção. Trata-se, portanto, de uma realidade primeira

ficcional que é apresentada como realidade concreta na representação. Por conta

disso, sua leitura não é mais guiada pela instantaneidade da imagem ou pela

crença na re-apresentação de um mundo factual, mas deve ser decifrada em seu

caráter ficcional, pela fantasia lúdica que é nela empreendida.

Em tal sentido, a interpretação da foto-ilustração depende de uma série

de elementos. Na fotografia em questão, o homem, em evidência, é o primeiro

elemento a ser destacado, chamando a atenção pela sua fisionomia. A testa

franzida, os olhos esbugalhados e a boca escancarada parecem traduzir um estado

de espírito interior. Esses elementos funcionam, pois, como expressão sintomática

de que o homem está atônito.

O olhar do indivíduo, desviado para o objeto que ele segura entre os

dedos, exerce ainda outros papéis. O primeiro deles é o de um apagamento das

marcas de enunciação que é efetuada no modo como são dispostos os elementos

da imagem. Parecendo ter sido casualmente fotografado num momento em que

manifestava um sentimento espontâneo, o sujeito é colocado de tal forma que

parece fazer esquecer que é personagem de uma representação teatral. Isso

porque, por não olhar a câmera de frente, omite-se a presença externa de um

observador, possibilitando a manutenção do pacto ficcional que é estabelecido na

fotografia.

Além disso, o olhar serve como condutor do percurso de leitura da

imagem, direcionando a atenção para o objeto que mira. A cédula parece

evidenciar o motivo da admiração demonstrada pelo homem: ele se dá conta,

surpreso, de que falta um pedaço da nota que carrega, sendo que o restante dela se

encontra embaixo da pata de um animal cuja presença parece desconhecer.

57

É interessante reparar que essa segunda parte da cédula, se comparada à

primeira, está um pouco superdimensionada na representação. O recurso da

exageração ressalta o fato de que o dinheiro não foi rasgado em metades iguais,

servindo para dar ênfase à mensagem que está sendo construída.

Embora o sentido da ilustração fotográfica já esteja até aí bem delineado

a partir da ficção visualmente construída, alguns elementos verbais aparecem para

assegurar os significados pretendidos. Sobreposto à figura do homem, o título da

matéria aparece em letras graúdas: “Sobra pouco dinheiro...”. Tal afirmação

confirma a idéia iconicamente modelada de que a perplexidade percebida na

fisionomia do homem tem a ver com o fato de ele estar apenas com uma parte da

cédula.

A explicação da causa que motiva esse fato, tal qual no registro visual, só

aparece na outra página, acima da pata. Em uma tarja preta, lê-se o restante do

título “... porque o governo fica com quase tudo”, juntamente com a apresentação

de um cálculo que tem como conclusão: “a soma do que a família [com uma renda

mensal de 5.000 reais] paga de impostos mais os gastos para custear os serviços

que o Estado sonega fica em 3.284 ou 65,7% da renda familiar”.

A partir dessa informação, a interpretação da imagem se torna mais

evidente. O homem, por antonomásia visual, fica caracterizado não como um

indivíduo qualquer, mas é tomado como representante de todos os contribuintes

do país. A pata, que até então não tinha sido identificada, é deduzida

metonimicamente como sendo um leão. Essa associação ocorre por meio do

acionamento de uma bagagem cultural que tem esse animal como símbolo do

programa de imposto de renda da Receita Federal, associação literalizada na

imagem. Assim sendo, o significado da representação torna-se completo,

exemplificando ficcionalmente a análise destrinchada na matéria.

Um outro registro verbal aparece, com menor relevo, no canto superior

esquerdo. Apesar de estar localizado num ponto de tensão da página, o subtítulo

“A sociedade ganhou um round da luta contra o excesso de impostos. Agora é

preciso brigar para reduzir o tamanho do Estado” não é tão realçado em razão do

seu tamanho reduzido em relação aos demais elementos da composição. Além

disso, a função por ele desempenhada liga-se menos ao esclarecimento do sentido

58

dado pela ilustração fotográfica do que a especificação dos desdobramentos do

tema da reportagem, instigando a sua leitura.

De todo modo, a idéia visualmente trabalhada nessa foto-ilustração diz

respeito a uma interpretação da realidade factual que toma o brasileiro como uma

vítima do excesso de tributos e contribuições, vendo a sua renda mensal ser dele

tomada por um governo que sequer cumpre o que é esperado no que diz respeito à

garantia de educação, saúde e segurança – tal qual é apresentado na reportagem. E

isso só é possível através da criação da fantasia desse mundo irreal, concretizado

imageticamente para funcionar como mostração da argumentação construída.

O mesmo acontece nas ilustrações fotográficas em que a encenação se dá

a partir da recuperação de fotografias de arquivo para serem manipuladas.

Exemplo disso pode ser apontado na matéria da edição de 14 de dezembro de

2005 da Veja (figura 16). Nela, uma foto de José Alencar, vice-presidente do

Brasil, é recuperada e submetida a um processo de texturização que acaba dando

ao seu rosto um aspecto de madeira.

Figura 16. Veja de 14 de dezembro de 2005.

Dessa maneira, através da dramatização ou estetização da realidade

primeira, Alencar passa a ser tipificado e caracterizado como um ‘cara-de-pau’,

como aponta a reportagem ao explicitar uma contradição entre o discurso do vice

59

(feroz crítico dos juros do Banco Central) e a prática da empresa da qual é dono

(responsável pelos constantes aumentos dos juros).

É importante, nesse ponto, ponderar que a foto-ilustração não faz parecer

ser o que não é. Não se busca, por exemplo, induzir a uma interpretação

literalizada, segundo a qual Alencar seria verdadeiramente tomado como um

homem de madeira. A ficção da ilustração fotográfica não tem a pretensão de ser

válida enquanto literalidade, mas apenas de exemplificar visualmente um

argumento (nesse caso, de que Alencar é ‘cara-de-pau’), valendo-se, para isso, de

recursos e estratégias próprias à fantasia visual.

2.2. A fantasia lúdica compartilhada

Tal qual qualificada no caso da ilustração fotográfica, a ficção traz

atrelada a ela algumas condições básicas. De acordo com Schaeffer, existem pelo

menos três noções ou condições básicas que fundamentam o estatuto ficcional: a

similitude (relação de identidade global com aquilo que representa), a imitação

(re-instalação parcial ou total do representado) e a fantasia lúdica (construto que

‘falseia’ a realidade através da criação de um universo imaginário que não é

tomado como aquele que representa) (SCHAEFFER, 1999).

As representações visuais, ao se aproveitarem de uma relação entre os

esquemas de percepção e de representação visuais, já operam por natureza dentro

dos limites da similitude e da imitação – que lhes garantem a imersão mimética,

sua força como representação. Entretanto, ainda que se alegue, a partir disso, que

toda representação visual é ficcional, falta a elas uma condição basilar para a

constituição de uma ficção no sentido próprio do termo, que é o estabelecimento

de uma fantasia. Assim,

Ce qui distingue les usages fictionnels des représentations visuelles mimétiques de leurs usages non fictionnels est l’existence d’un cadre pragmatique de feintise partagée et le fait que nous accédons à la modélisation à travers cette variante spécifique de l’immersion mimétique qu’est l’immersion fictionnelle. Une représentation mimétique n’est donc

60

fictionnelle que pour autant qu’elle remplit ces deux conditions22 (Ibidem, p. 290).

Nesse sentido, concebe-se que uma representação visual só é tomada

como ficcional ao passo em que funciona como dispositivo mimético capaz de

possibilitar o acesso a um universo que se assenta em um faz-de-conta. É

precisamente nesse ponto que se caracteriza a ficcionalidade da foto-ilustração: a

sua realidade primeira já se configura como uma fantasia encenada e/ou

manipulada que é apenas transposta em termos icônicos para a realidade da

representação, concretizando fotograficamente tal fantasia como um modo de dar

acesso aos sentidos relacionados a esse universo e, por tabela, à realidade a que se

refere.

De todo modo, para funcionar dessa maneira, a fantasia que aí se

estabelece precisa ser entendida como tal. O estatuto ficcional deve aparecer,

portanto, expresso na imagem através de pistas que a demarquem como um

mundo calcado na ficção. Essas pistas podem ser de pelo menos duas ordens:

para-textual (isto é, pistas encontradas fora da fotografia, mas que orientem seu

modo de interpretação) e formal (pistas localizadas no próprio modo de

construção da imagem).

No caso da foto-ilustração, o para-texto pode ser uma legenda que

explicitamente pontua a ficcionalidade da imagem ou a indicação de que se trata

de uma fotomontagem que muitas vezes aparece junto aos créditos da fotografia.

Em termos formais, a ficção pode ser demarcada pela própria artificialidade ou

impossibilidade da situação representada.

Revisitando os dois casos anteriores (figuras 15 e 16), percebe-se que

elas se adéquam a essa exigência de explicitação do seu caráter ficcional: no

primeiro, pela artificialidade da representação e, no segundo, pela impossibilidade

do que se retrata. Além disso, nos dois casos, as imagens aparecem acompanhadas

de uma indicação (ainda que em letras miúdas): “montagem sobre fotos de...”.

22 “O que distingue os usos ficcionais das representações visuais miméticas de seus usos não-ficcionais é a existência de um contexto pragmático de fantasia compartilhada e o fato de que nós as alcançamos através daquela variante específica da imersão mimética que é a imersão ficcional. Uma representação mimética não é ficcional se não satisfizer essas duas condições” (tradução livre).

61

Ao tornar explícita que aquela representação não é um recorte da

realidade factual, a ilustração fotográfica se põe como recurso para veicular idéias

e conceitos acerca do que é noticiado. Isso porque, nela, evidencia-se que o que se

mostra não corresponde literalmente ao que se quer significar. Nesse sentido, a

ficção não quer enganar ou fazer crer naquilo que não é.

Marcada como ficcional, a foto-ilustração não se estabelece como um

simulacro, ou seja, como algo que se passa por real. Não se quer, com ela, obter

interpretações literais do que é retratado, mas, sim, criar um universo imaginário

que permita ao espectador, a partir de um acordo ficcional subentendido na

recepção, imergir naquela ficção de modo a compartilhar sua fantasia como uma

exemplificação demonstrativa das idéias e conceitos sustentados pelo discurso

jornalístico.

Obviamente, a idéia de envolvimento, de imersão, de adesão e de

aceitação do espectador no universo do ficcional é sempre limitada. Se a ficção

não é um fim em si mesma, mas um meio a partir do qual se pode concretizar o

correlato de um argumento ou exemplificá-lo; igualmente, a adesão do espectador

não é o objetivo último, mas apenas um caminho para auxiliar no entendimento do

ponto de vista defendido.

Nesse sentido, não há uma adesão total. A fantasia é mantida apenas ao

possibilitar o reconhecimento de um determinado conceito – assimiláveis,

portanto, em um contexto extra-ficcional. Tem-se, por exemplo, uma assimilação

do tipo: o brasileiro é uma vítima do excesso de tributos e contribuições (figura

15) ou José Alencar é um ‘cara-de-pau’ (figura 16).

É dessa maneira que a foto-ilustração se mostra como recurso

jornalisticamente pertinente. Através da ficção, a ilustração fotográfica obtém

imagens que, incorporadas ao discurso jornalístico, ajudam a melhor expressar

determinadas idéias e pontos de vista, concretizando ou exemplificando-os

visualmente. Assim, em relação à ordem do discurso enunciativo, a foto-ilustração

é construída e manipulada em busca de uma ‘fecundidade expressiva’ (COSTA,

1990) que reforça os argumentos que são estabelecidos em uma dimensão

opinativa do jornalismo de revista.

62

2.3. Outras fotografias ficcionais

O entendimento de como a ficção impulsiona novos sentidos à imagem e

ao discurso jornalístico é, certamente, essencial para a compreensão da

especificidade da ilustração fotográfica. No entanto, tal propriedade não deve ser

concebida como exclusiva a ela. Há, de fato, outros tipos de fotografia que

igualmente se destituem de uma relação original e testemunhal com o factual

(normalmente característica da imagem fotográfica) para expressar de outro modo

idéias e opiniões acerca da realidade.

É possível apontar, no campo da arte, a existência de antecedentes

históricos que se apóiam no mesmo artifício. As vanguardas artísticas do século

XX comportam alguns deles. Nessa época, a fotografia começou a ser tomada não

mais como uma simples arte representativa capaz de reproduzir e testemunhar o

real, mas passou a ser concebida como um meio, como um material que podia ser

posteriormente recortado, combinado e integrado a outros elementos de modo

atender finalidades estéticas, sociais e políticas.

Figura 17. Raoul Hausmann, 1920.

63

Em tal sentido, a fotomontagem merece um destaque especial. Definida

como uma “combinação de imagens fotográficas de diferentes proveniências”

(FABRIS, 2005, p. 99), a fotomontagem é uma técnica que, através da associação

de uma ou mais fotografias para gerar uma nova e única imagem, incorpora a

fotografia como recurso para a expressão gráfica.

As primeiras manifestações desse tipo surgem entre 1916 e 1917 com as

colagens dadaístas. Naquele contexto, a maior parte delas era realizada a partir da

integração entre fotografias, desenhos, papéis e tecidos que dava origem a

imagens desconcertantes e até mesmo incongruentes (figura 17), numa proposta

condizente com a atitude de negação do realismo e do convencionalismo pregada

pelo movimento dada. Nesse sentido, o dadaísmo tinha nas fotomontagens um

instrumento de crítica ao sistema tradicional de representação, subvertendo a

lógica do registro fotográfico através da utilização da própria técnica para propor

novas formas de percepção da realidade (Idem, 2003).

Contudo, para além dessa função, muitas vezes as fotomontagens eram

fincadas em objetivos sociais e políticos. Um dos exemplos mais contundentes

nessa área é John Heartfield, dadaísta alemão. Heartfield é precursor na utilização

da fotomontagem enquanto sátira sócio-política, sendo conhecido exatamente

pelos trabalhos em que empreendia releituras críticas acerca da conjuntura da

Alemanha Nazista. Para isso, o artista compunha cartazes e painéis nos quais as

relações que estabelecia entre fotografias, desenhos e textos exploravam o valor

mimético da fotografia, mas pondo-o a serviço de uma re-significação das

imagens utilizadas como base. É o que acontece na imagem intitulada “O sentido

da saudação hitleriana: o pequeno homem pede grandes donativos” (figura 18).

Trata-se de uma fotomontagem que tem como principal elemento de

composição um instantâneo no qual Adolf Hitler aparece com o braço levantado e

a mão levemente inclinada para trás. A essa fotografia, incorpora-se uma outra, de

modo compor uma imagem única em que, atrás do ditador, um homem de

tamanho desproporcionalmente maior e rosto desconhecido lhe entrega um maço

de cédulas.

64

Figura 18. John Heartfield, 1932.

O que Heartfield fez, nessa representação, foi uma paródia do lema

nazistas “Milhões estão atrás de mim”, dando a entender que os ‘milhões’ do

slogan repetidamente utilizado por Hitler não faz referência ao povo alemão, mas,

na verdade, aos milhões do capitalismo que sustenta e é sustentado pele regime

nazista. Assim como acontece na ilustração fotográfica, o sentido de tal

fotomontagem passa pelo empreendimento de uma fantasia, mas com a intenção

de configurar uma interpretação não-fantasiosa, extra-ficional. Nesse sentido, o

artista “recompõe a realidade atomizada nos recortes de acordo com uma lógica

nem sempre realista, mas nunca casual, para que suas próprias imagens possam

falar claramente da realidade política e social do próprio tempo” (Ibidem, p. 51-

52).

O mesmo princípio é explorado, em menor ou maior grau, e para atender

as mais variadas finalidades, por artistas de outros movimentos, como o

construtivismo, o surrealismo e a pop-art. Posteriormente, muitos dos recursos

explorados por essas vanguardas foram reapropriados pela publicidade para a

criação de peças que misturam fotografias, desenhos e outros grafismos para criar

65

imagens originais, impactantes, de alta qualidade estética e reação psicológica

apropriada aos fins mercadológicos que buscam cumprir. Igualmente, nela, faz-se

uso da ficção como meio de expressão de determinadas idéias e conceitos.

Com esse mesmo objetivo, mas seguindo um caminho diferente, está a

fotografia documental ficcional. O fotógrafo mexicano Pedro Meyer parece ser

paradigmático nesse sentido. Aos 73 anos, dos quais pelo menos cinqüenta deles

dedicados ao fazer fotográfico, Meyer é considerado um dos principais expoentes

da fotografia contemporânea. Após inúmeros trabalhos realizados nos parâmetros

da straight photography (assinalada pela rigidez e pelo controle técnico, sem

espaço para intervenções no laboratório ou na cópia), ele enveredou para o campo

das tecnologias digitais, mas sem mudar, no entanto, o foco do trabalho: suas

fotografias continuam sendo associadas ao exercício documental.

Figura 19. Pedro Meyer, 1987/1993.

A partir de 1995, ao publicar o projeto Verdades y ficciones: un viaje de

la fotografia documental a la digital, essa associação de Meyer com o

documentário tem sido questionada. Isso porque a maior parte das fotografias

então reproduzidas foram deliberadamente manipuladas. Através dos

procedimentos proporcionados pelas tecnologias digitais, as imagens originais

foram alteradas, combinadas e transformadas de tal modo a criar novos fundos,

66

novos enquadramentos, novas composições e, enfim, novas realidades visuais

(figura 19).

Nesse sentido, apesar de distanciar-se das noções de verdade,

objetividade e credibilidade que distingue os primeiros fotodocumentaristas,

Meyer se alinha a outra vertente documental. Desde 1950, uma parte da produção

fotográfica dessa área já se distanciava desse tripé pioneiro através da afirmação

da subjetividade e do simbolismo. Assim, apesar das peculiaridades que

atravessam o modo pelo qual Meyer constrói suas imagens, seu trabalho pode ser

tomado como modelação de um fenômeno que lhe é anterior.

Essa vertente, cunhando novas formas de expressão, pode ser abrangida

pelo termo documentário imaginário (LOMBARDI, 2007), cuja definição passa

pelo entendimento da fotografia como um espaço no qual se busca concretizar

valores, crenças, aspirações, desejos e receios do imaginário do documentarista

que a produz – caminho possível para desempenhar as funções de participação,

denúncia e representação da realidade, típicas ao exercício documental. Aí, podem

ser tomadas como exemplo as imagens de Michael Ackerman, Antonie D’Agata,

Eustáquio Neves, entre outros.

No caso de Meyer, é por meio dessa modelação própria que ele é capaz

de atender seus desígnios artísticos e documentais, nos quais as realidades então

criadas são percebidas como fruto de suas impressões ou imaginações, parecendo

melhor servir como um objeto ficcional que é criado para ilustrar vividamente

uma determinada idéia.

The use of digital technology, with which the majority of these images were made (modifying color, accenting the contrast or texture, integrating fragments of different origins), will scandalize the fundamentalists of traditional documentation. The spontaneous question in the minds of critics: why has an author, who for more than twenty years belonged to the cult of straight photography, suddenly converted to an opposite religion? Meyer’s response is always the same: he sees himself as a documentary photographer, in the sense that the interpretation of reality remains his main priority23 (FONTCUBERTA, 1995, p. 8-9).

23 “O uso da tecnologia digital, com a qual a maioria dessas imagens foi feita (modificando cores, acentuando contrastes ou texturas, integrando fragmentos de diferentes origens) escandalizarão os fundamentalistas da tradição documental. Uma questão espontânea surge nas mentes dos críticos: por que um autor, que por mais de vinte anos pertenceu ao culto da straigh photography, de repente se converte a uma religião oposta? A resposta de Meyer é sempre a mesma: ele se vê como

67

Com o estabelecimento dessas realidades visuais ficcionais, paradoxais e

irônicas, por meio de manipulações, o fotógrafo coloca tais recursos a serviço de

suas idéias, não mais dependendo do que ele mesmo chama de ‘sorte do instante

decisivo’. Mas, igualmente, as realidades visuais ficcionais são assimiláveis em

um contexto extra-ficcional, se aplicando efetivamente como uma interpretação de

mundo.

Nesse ponto, é importante destacar que todos esses processos de

construção são feitos às claras: em alguns casos, as fotografias montadas são

acompanhadas da descrição do procedimento realizado ou, quando não, pelo

menos da indicação de manipulação (que aparece também explicitada nas

legendas: as imagens alteradas são datadas duplamente, com a designação do ano

em que a fotografia foi originalmente captada e do ano em que ela foi

modificada).

Figura 20. Pedro Meyer, 1991/1991.

Além disso, se analisada com minúcia, pode-se perceber que as

manipulações não são indetectáveis. Na maioria das fotografias, por não haver

uma compatibilidade e um ajuste perfeitos de tom, luz, escala e perspectiva, as

um fotógrafo documental, no sentido de que a interpretação da realidade se mantém como sua principal prioridade” (tradução livre).

68

alterações são visíveis até mesmo para um olhar não treinado. Em outras

fotografias, as manipulações são ainda mais evidentes, posto que a composição é

propositalmente desprovida de quaisquer pretensões de ser percebida em seu

aspecto de recorte do real, representando realidades com ares de estranheza ou

surrealismo (figura 20).

É essa percepção que permite, pois, entender a ficção armada por Meyer

como um lugar distinto do mundo real; ainda que se refira a ele. Efetivamente, “o

poeta não procura representar o real, devendo a ele ser fiel; representa o plausível.

Não é o seu ofício representar no sentido de reapresentar um fato acontecido, mas

no sentido de simular o que é possível” (GOMES, 1996), mesmo que com toques

de absurdo. A realidade factual e a realidade da representação são intuídas como

essencialmente distintas – a esta se aceita o pacto de ficcionalidade que lhe

permite acessar àquela.

Esses exemplos, guardadas as especificidades de cada fenômeno, ajudam

a conceber a utilização de recursos do universo ficcional fora do contexto de

efeitos próprios à mera fantasia visual, isto é, com a instituição da fantasia visual

por finalidades distintas da fruição desinteressada ou da adesão estética completa.

Nesse sentido, o entendimento desses outros fenômenos corroboram para uma

compreensão acerca do poder de a ilustração fotográfica ser apropriada no

contexto jornalístico como instrumentação visual de argumentos, visando efeitos

de exemplificação retórica de idéias e conceitos assimiláveis de maneira extra-

ficcional.

69

3. A PRODUÇÃO DE SENTIDOS NA FOTO-ILUSTRAÇÃO

A compreensão dos modos de representação da ilustração fotográfica tem

no seu caráter ficcional um importante alicerce, até mesmo por repousar nela as

chaves para conceber como uma fotografia marcada pela noção de artifício pode

servir jornalisticamente para se reportar a análises e opiniões acerca do mundo.

Nesse sentido, diz-se que a ficção nela instaurada funciona como exemplificação

demonstrativa de um conceito de base que se impõe visualmente.

A idéia de um conceito de base que determina o entendimento do

significado da imagem se revela, pois, como um aspecto essencial da foto-

ilustração. É ele que constitui a interpretação da imagem e, mais do que isso, o

modo de compreensão do tema abordado na matéria: se o receptor compreende e

experiencia a realidade a partir da demarcação analítica e opinativa dada pela

foto-ilustração, há ainda, por parte dele, a tomada de conhecimento (e, pelo menos

temporariamente, a aceitação) de uma determinada percepção ideológica da

realidade que se apresenta.

No entanto, longe de ser a única categoria comum aos diferentes

exemplos desse tipo de imagem, outros recursos são freqüentemente mobilizados

na ilustração fotográfica. Dentre eles, duas estratégias de produção de sentidos

merecem destaque não apenas pela sua recorrência, mas também pelas

possibilidades de conceituação que se abrem a partir delas. Tratam-se da

comicidade e da metáfora, aqui entendidas como modos de construção de sentidos

que ajudam, a partir da ficção, a instaurar ou figurar plasticamente as idéias que

são arquitetadas na foto-ilustração.

Entretanto, tais estratégias não podem ser consideradas secundárias nesse

processo. Elas, na verdade, fazem parte de uma outra importante dimensão da

foto-ilustração que é a capacidade de estabelecer uma relação de cumplicidade ou

simpatia com o leitor, a partir da qual a foto-ilustração se autoriza a ‘falar com o

seu público’. Essa cumplicidade que é atribuída à ilustração fotográfica já havia

sido aqui identificada como imprescindível à natureza do jornalismo levado a

cabo pelas revistas de informação. Em tais veículos, o laço que se estabelece com

os leitores é da ordem de uma partilha de identidades, no sentido de que a revista

70

se dirige a um público que julga pertencer ao seu grupo e compartilhar das

mesmas visões de mundo (SCALZO, 2004).

No caso da foto-ilustração, para ser verdadeiramente aceito pelo receptor,

o conceito de base nela veiculado precisa de alguma forma ecoar uma visão de

mundo possível do leitor, reafirmando-a. Em tal sentido, esse tipo de imagem

funciona melhor se há, a priori, o estabelecimento de um vínculo entre emissor-

receptor – função a que serve, pois, essas estratégias. Assim, ao instituir um

conceito de base por meio de um efeito cômico ou um caráter metafórico, a

ilustração fotográfica de certa forma se aproxima do leitor: em um caso,

instalando um tom de gracejo e, no outro, de familiaridade – como será discutido

posteriormente.

Dessa maneira, a comicidade e a metáfora colaboram para uma aceitação

dos sentidos transmitidos a partir da ilustração fotográfica na medida em que

estabelece uma aproximação entre emissor e receptor. Trata-se, portanto, de um

procedimento tácito semelhante àquele já identificado por Marcia Benetti no que

diz respeito ao emprego da ironia como estratégia discursiva da revista Veja

(inclusive no que diz respeito a fotografias). A autora chama atenção para o fato

de que a ironia enquanto recurso jornalístico é abalizada, em termos de recepção,

em um processo de reconhecimento e compartilhamento de saberes que garante

uma cumplicidade entre os sujeitos envolvidos.

A força da ironia está sempre na construção de um campo de cumplicidade entre os sujeitos. No caso do jornalismo, entre jornalista e leitor. A lógica intersubjetiva que se estabelece coloca estes dois sujeitos em estado de mútuo reconhecimento. De forma aqui bastante redutora, seria algo como ‘somos semelhantes’. Eu, jornalista, me expresso de um modo determinado e você, leitor, é capaz de me compreender; nem todos seriam capazes de me compreender, mas você é meu parceiro. Eu, leitor, tenho as mesmas referências de mundo que você, jornalista; nem todos utilizam os mesmos mapas de significado, mas nós utilizamos os mesmos mapas e por isso somos parceiros (BENETTI, 2007, p. 6-7).

Bem como na ironia, a foto-ilustração depende dessa cumplicidade para

funcionar como representação. Sem ela, a imagem corre o risco não apenas de ser

incompreendida, mas, além disso, de ser reconhecida como uma linguagem não

autorizada à transmissão de informações jornalisticamente pertinentes. Nesse

71

sentido, a cumplicidade se torna essencial; do contrário, as extrapolações

analíticas e opinativas correm o risco de serem consideradas como excedentes da

atividade jornalística, uma vez que não respaldada pelo ideal, ainda que ilusório,

de objetividade jornalística.

Assim, é através dessas estratégias da comicidade e da metáfora como

uma forma de aproximação e de uma decorrente cumplicidade com o leitor que a

ilustração fotográfica é capaz de viabilizar idéias e conceitos que podem ser

tomados como ‘evidentes’ e ‘verdadeiros’ e, em conseqüência, válidos como

recursos utilizáveis no âmbito jornalístico.

3.1. O efeito cômico

Um dos traços recorrentes enquanto estratégia de aproximação da foto-

ilustração diz respeito ao teor humorístico que emerge com essas imagens.

Revisitando os exemplos até aqui utilizados, é possível perceber que quase todos

buscam, senão o riso, uma certa graça – sentimento cômico por excelência

(GOMES, 2004). O riso, o sorriso, o divertimento são entendidos, pois, como

manifestações possíveis de um efeito cômico que parece ser pretendido pelas

ilustrações fotográficas.

De um modo geral, os fenômenos humorísticos dessa natureza foram (e

ainda são) objetos de estudos de inúmeros psicólogos, lingüistas, filósofos, estetas

e críticos de arte. Por conta disso, essa temática é marcada por uma

heterogeneidade de aportes conceituais chamados em causa para a sua

compreensão. Dentre as teorias que surgem nesse contexto, uma delas parece ser

mais apropriada ao caso da ilustração fotográfica: a teoria da incongruência24.

Aristóteles, James Beattie, Immanuel Kant, Arthur Schopenhauer, Henri

Bergson e Paul McGhee são alguns dos autores que, a despeito das diferenças que

os separam, contribuíram de alguma forma para o desenvolvimento dessa teoria.

24 A teoria da hostilidade (o humor como zombaria) e a teoria da libertação (humor como forma de escape) também podem ser úteis ao entendimento da comicidade própria à foto-ilustração – tanto que o viés de zombaria será discutido em seguida. Entretanto, para uma aproximação inicial, a teoria da incongruência funciona melhor, posto que busca apontar a essência do fenômeno e não suas causas ou efeitos, como fazem, respectivamente, as teorias da hostilidade e da libertação.

72

A idéia da existência de contrastes entre um sentido esperado e o sentido

efetivamente encontrado (um sentido incongruente e aparentemente deslocado) é

o elemento que une esses teóricos em torno da teoria da incongruência (ERMIDA,

2002).

Nesse sentido, segundo tal concepção, o humor se dá quando elementos

díspares são coordenados de tal forma que resultam não em uma desorganização

ou incoerência completas, mas, sim, num efeito de surpresa.

Quando achamos graça a algo que ouvimos ou observamos, é porque a súbita percepção de uma incongruência nos obriga a refazer uma interpretação inicial errada e chegar a um sentido surpreendente que não supuséramos à partida. Daí que a noção de jogo seja freqüentemente associada a este processo de contínuo recomeço (Ibidem, p. X).

Ao analisar pequenas historietas cômicas, Violette Morin aponta

exatamente a conjunção de elementos aparentemente inconciliáveis como

principal estratégia da construção do humor. Conforme o exame por ela efetuado,

o humor é sempre deflagrado a partir de um disjuntor, isto é, de um elemento

polissêmico concreto sobre o qual a história ‘tropeça’ e se volta para seguir um

novo rumo, subvertendo o percurso de leitura, anulando as expectativas

anteriormente levantadas e dando a ela inesperadas direções (MORIN, 1973).

Pensando a foto-ilustração nesses termos, o humor nela observado quase

sempre passa pela combinação, numa mesma imagem, de elementos díspares.

Com isso, leva-se a cabo uma contradição de expectativas que faz com que a sua

interpretação oscile entre os sentidos possíveis e o sentido real, somente a partir

do qual se dissolve a inconsistência da representação que é percebida no primeiro

momento.

Para além desse mecanismo macroestrutural que permite inventariar o

cômico como gênero textual, o humor gráfico, no qual se insere a ilustração

fotográfica, se baseia em modos específicos. Existem, pois, algumas

características comuns às diferentes formas de humor gráfico, como a exageração,

a justaposição não usual e as relações irônicas. Além delas, a graça visual pode ser

alcançada por meio da repetição, da distorção e de outras espécies de

transformação e interferência da imagem (HELLER, 2002).

73

É interessante notar, nesse ponto, a correspondência entre alguns desses

recursos e os modos de fazer mundos de Nelson Goodman. Os processos de

construção de mundos listados por Goodman, que se refere aos modos pelos quais

os elementos são arranjados numa obra, são: composição ou decomposição

(separação ou junção de elementos distintos), enfatização (evidência dada a cada

um deles), ordenação (distribuição dos elementos), supressão (eliminação de

alguns aspectos deles) e deformação (reconfiguração ou modificação de

elementos) (GOODMAN, 1995).

Tais recursos apontados como humorísticos são, portanto, antes de

qualquer outra coisa, estratégias de construção de sentidos. Longe de serem

exclusivos a esse tipo, tais recursos configuram-se tão somente como ferramentas

passíveis de construir plasticamente uma intenção humorística – mesmo porque

esses recursos também podem ser aplicados ao design ‘sério’. Nessa perspectiva,

o que vai determinar efetivamente a comicidade é o mecanismo macroestrutural

da incongruência ou do paradoxo.

Assim, embora não dialoguem diretamente com as conjecturas de Morin,

essas idéias aproximam-se delas: as categorias pensadas pela autora encontram

paralelos nessas estratégias de humor gráfico. Isso porque, é ao fazer uso de tais

mecanismos, que a imagem consegue chegar a um sentido de incoerência ou

incongruência que permite a bifurcação interpretativa idealizada por Morin.

Figura 21. Veja de 5 de julho de 2006.

74

É o caso da ilustração fotográfica publicada na edição da Veja de 5 de

julho de 2006, na reportagem especial “Os santos do capitalismo” (figura 21).

Nela se vê, dispostos lado a lado, dois homens, devidamente identificados como

sendo Bill Gates e Warren Buffett, importantes empresários norte-americanos. No

entanto, embora tenha como elemento básico de constituição fotografias dos dois

indivíduos, a imagem é construída por meio de uma montagem.

Em primeiro lugar, os rostos estão dispostos sobre corpos que

provavelmente não pertencem a esses homens. Eles, incorporando um sistema de

gestualidade principalmente a partir do posicionamento das mãos, ligam

prontamente a imagem a esquemas de representações religiosas (figura 22). Além

disso, as auréolas acima das cabeças e o feixe de luz que emana dos troncos

reafirmam essa associação.

Figura 22. Elias Silveira, 2007.

A interpretação da ilustração fotográfica vincula-se, então, a hábitos

perceptivos decorrente do modo que figuras santificadas são tradicionalmente

representadas. Com isso, Gates e Buffett são tomados como santos.

Contudo, ao contrário do que se pode fazer crer num primeiro olhar, o

sentido da imagem tropeça em um disjuntor. Ao invés do coração, símbolo do

amor e da espiritualidade, o que deles emana luz é um cifrão, sinal utilizado para

expressar dinheiro e riqueza – normalmente pouco associados a valores cristãos.

75

Assim, através do sentido de ambigüidade que é causado pela combinação de

elementos díspares, um novo significado toma forma. Insinuando o inverso do que

aparenta a princípio, isto é, de que eles não são exatamente santos, um certo efeito

humorístico se instaura pela justaposição não usual e pela relação irônica daí

derivada.

A mesma contradição perpassa também os elementos verbais. No título,

associando duas palavras supostamente incompatíveis, brinca-se com a

incongruência entre santidade e capitalismo. Entretanto, parece encerrar-se aí o

tom irônico da matéria. O subtítulo (“A doação do investidor Warren Buffett à

fundação de Bill Gates é o maior exemplo de como o capitalismo americano

consegue não só gerar riquezas astronômicas, como também devolvê-las de forma

solidária e produtiva à sociedade”) já é desprovido dele.

Nesse sentido, é possível notar que, embora continue insistindo na

combinação de elementos díspares, o texto não se baseia no humor. Isso porque,

ao contrário do que acontece na imagem, ele não estabelece o elemento fantasioso

ou lúdico tido como pré-requisito para o efeito cômico – somente a partir do qual

se possibilita a percepção da incongruência como algo impossível e, portanto,

dotado de graça (MCGHEE apud ERMIDA, 2008).

Assim sendo, o texto liga-se a essa foto-ilustração muito mais para

explicar e resolver a própria inconsistência anteriormente colocada. Dessa

maneira, restabelecendo o nexo da representação, supera-se o efeito cômico então

criado, transmutando-o em meio cujo fim é a sátira. A comicidade passa, portanto,

a servir ao objetivo de apontar, criticar e censurar os defeitos, erros e vícios de

determinado caráter ou situação.

Essa dimensão de ‘arma’ a que serve o humor já tinha sido concebida,

pelo menos, desde Vladimir Propp. Em Comicidade e riso, ao abalizar a zombaria

como o único aspecto permanentemente ligado à esfera do cômico, o autor afirma

que o riso (considerado por ele a correlação imediata à comicidade) se dá quando

da manifestação de defeitos antes imperceptíveis. Nesse sentido, desvelando uma

fragilidade ou inconsistência do fenômeno representado através do humor, chama-

se atenção para a existência desses aspectos negativos, a partir das quais se “cria

ou reforça a reação de condenação, de inadmissibilidade, de não compactuação”

(PROPP, 1992, p. 211) com aquilo que é exposto.

76

É exatamente essa a dinâmica de funcionamento da caricatura: tomando e

dimensionando defeitos sutis, ela amplia-os a ponto de torná-los visíveis e,

portanto, julgáveis por todos. Por meio do exagero de um detalhe específico que

nela toma proporções gigantescas, apagando os demais elementos constitutivos do

que é posto à caricaturização, distorce-se deliberadamente a imagem de pessoas e

circunstâncias. No entanto, essa exageração só toma um viés humorístico ao fazer

parecer que o excesso levado a cabo não é o objetivo, mas apenas um meio para

tornar manifestos características que já existem de antemão (BERGSON, 1983).

Assim, entendida como um trocadilho visual nos quais as deformações

operadas ao nível da aspectualidade promovem o conhecimento de uma verdade

que de outra maneira não poderia ser visualmente apreendida (KRIS e

GOMBRICH, 1938), a caricatura traça, através do paralelo da aparência, uma

afinidade entre representação e realidade que vai para além das exterioridades.

Mais do que a obtenção de um caráter real, busca-se mostrar na imagem traços

que permitam entendê-la como equivalências metafóricas de estados efetivos.

Todas as descobertas artísticas são descobertas não de semelhanças, mas de equivalências que nos permitem ver a realidade em termos de uma imagem e uma imagem em termos de realidade. E essa equivalência não repousa tanto na semelhança dos elementos, como na identidade de reações a certos parentescos. Reagimos a um borrão branco na silhueta negra de um jarro como se fosse um ponto de luz. Reagimos à pêra com suas linhas entrecruzadas como se fosse a cabeça do Rei Luiz Felipe (GOMBRICH, 2007, p. 292).

O mesmo pode ser verificado em algumas ilustrações fotográficas. Ao

tentar, através do procedimento de deformação, assinalar um sentido segundo,

elas operam num terreno próximo ao da caricatura. A imagem da reportagem

intitulada “Dirceu, o ex-mestre dos disfarces” (figura 23), da edição da Veja do

dia 10 de agosto de 2005, é um exemplo disso. Preenchendo mais da metade da

segunda página da matéria, a ilustração fotográfica retrata o político José Dirceu

com uma estranha aparência. O rosto de Dirceu é de tal forma deformado que, ao

funcionar como disjuntor da representação, leva o espectador a associá-lo ao

Pinóquio, o boneco mentiroso da famosa história de Carlo Collodi.

77

Figura 23. Veja de 30 de agosto de 2005.

Essa foto-ilustração tem como elemento básico de constituição uma

fotografia de José Dirceu. Contudo, a imagem não se apresenta do mesmo modo

como foi originalmente fotografada. Submetida a manipulações digitais, a partir

das quais algumas de suas propriedades são deformadas, a imagem de Dirceu é

revestida por uma ‘máscara’. Embora não se perca todas as características

apreendidas pela foto original, uma nova configuração é dada: o rosto do político

apresenta-se agora revestido por uma textura desumanizada que remete a um

pedaço de madeira, no qual um galho se sobressai no lugar do seu nariz.

Essa reconfiguração parece ter sido intencionalmente construída para

acionar no receptor uma bagagem cultural que associa a representação do ex-

ministro à fabula do Pinóquio. Publicado originalmente em 1883 pelo italiano

Carlo Lorenzini, sob o pseudônimo de Carlo Collodi, tal narrativa alegórica

descreve as aventuras de um boneco de madeira que queria ser um garoto de

verdade. Na história original, o boneco, sem preocupar-se com o que é certo ou

errado, mas apenas procurando sua satisfação imediata, se envolve em inúmeras

confusões. Para sair-se delas, ele mente. Toda vez que mente, seu nariz cresce um

pouco.

Retratando Dirceu com um nariz de madeira crescido, tal qual o

Pinóquio, a ilustração fotográfica induz a uma interpretação que pressupõe que o

deputado, para estar assim, deve ter contado muitas mentiras. Dessa maneira, a

78

representação não sugere a literalidade de que ele seja um boneco de madeira, mas

aproxima-o do tipo de atitude que caracteriza o boneco da fábula. O efeito

alcançado diz respeito à atribuição ao político da falta de compromisso com

qualquer princípio, da ausência de dever e moral e da inexistência de ética que o

boneco da fábula conota.

Além disso, outros elementos da fotografia funcionam para o mesmo fim.

O olhar furtivo, a sobrancelha levemente arqueada e o sorriso malicioso dão a ele

um ar de leviandade que acaba por reforçar o sentido da aproximação entre o

caráter de Dirceu e o de Pinóquio. A coerência entre o efeito comparativo e essas

unidades visuais da imagem faz com que a ilustração fotográfica obtenha um

resultado que se apresenta integrado e harmonioso.

Se a informação arquitetada visualmente refere-se a uma interpretação

que atribui a Dirceu determinados predicativos, o texto verbal também trabalha no

intento de atingir resultados semelhantes, reforçando a idéia transmitida pela foto-

ilustração e sendo por ela reforçado. O primeiro elemento de destaque do registro

verbal é o título, que cumpre o papel de explicitar o assunto da matéria. “Dirceu, o

ex-mestre dos disfarces” comunica, de antemão, a noção de que a reportagem trata

de algum fato capaz de desmascarar o deputado. O subtítulo especifica: “Ex-

ministro depõe [no Conselho de Ética da Câmara], tenta enrolar os deputados [em

relação às denúncias que o envolvem], mas vê suas mentiras cair por terra em

tempo recorde”.

Nesse sentido, o texto exerce uma função de ancoragem em relação à

imagem. Na medida em que oferece informações que explicam, de maneira

resumida, o motivo de tal político estar sendo assim representado, ele a justifica e

a valida. As expressões “mestre dos disfarces”, “tenta enrolar” e “suas mentiras”

são centrais para esse entendimento. Outro título, do box que ocupa a parte

inferior das duas páginas da matéria, cumpre a mesma função, de modo mais

direto: “O deputado pinóquio: as declarações do ex-ministro José Dirceu, feitas no

depoimento dado na terça-feira passada ao Conselho de Ética da Câmara dos

Deputados, não se sustentaram por mais do que algumas horas”. A identificação

de Dirceu como um “deputado Pinóquio” elimina de vez quaisquer dúvidas que

ainda possam existir em relação ao significado visualmente construído.

79

No decorrer da matéria, é dado suporte a esse sentido. Mais do que isso,

ele parece tentar despertar valores morais e ideológicos do receptor. Promovendo

a assimilação do político através de suas mentiras e envolvendo a premissa de que

faltar à verdade é errado de acordo com os padrões éticos vigentes, a informação

arquitetada, visualmente e verbalmente, refere-se a uma interpretação dos fatos

que coloca Dirceu na posição de um contador de lorotas que deve ser por isso

recriminado.

Assim, o resultado de tal foto-ilustração parece basear-se não tanto no

fato de a imagem assemelhar-se a Dirceu ou ser uma fotografia efetiva do

deputado, mas, sim, na evocação de uma predisposição a encontrar equivalências

que assegurem a coerência do significado transmitido pela representação: reage-se

a foto-ilustração como se ela fosse uma figuração do verdadeiro caráter do

retratado. Nesse ponto, a distorção da imagem torna-se real. Ao mostrar um

indivíduo apropriadamente caricaturado, a ilustração fotográfica transforma-o aos

olhos do receptor, que passa a vê-lo a partir das características a ele atribuídas –

tal qual acontece quando se interpreta uma boa caricatura (KRIS e GOMBRICH,

1938).

Isso se dá também no que concerne às foto-ilustrações em que, ao invés

de satirizar um indivíduo em específico, toma-se uma situação como alvo das

críticas e censuras. A matéria “A second life do petismo” (figura 24), veiculada na

edição de 12 de setembro de 2007, exerce exatamente esse propósito por meio de

uma montagem que mistura desenhos e fotografias.

Embora seja considerada uma ilustração fotográfica, essa imagem faz uso

subsidiário da fotografia, servindo apenas para dar rosto às personagens que nela

aparecem, os políticos José Dirceu, Ciro Gomes, Lula e José Genuíno. Com

exceção dos semblantes desses sujeitos, a representação baseia-se,

primordialmente, em um desenho, no qual eles aparecem sobrepostos a corpos

desenhados que preenchem um cenário irreal.

Nele, tem-se uma construção arquitetônica e quatro sujeitos, organizados

numa composição que não respeita quaisquer princípios de realismo: os planos

surgem sob ângulos distintos, falta perspectiva aos indivíduos, as cabeças

aparecem desproporcionais aos corpos e as pessoas assumem disposições

impossíveis. Cria-se, portanto, uma ambientação surreal que, tão cheia de

80

disjuntores, se afasta da representação figurativa para estabelecer-se como uma

paródia da realidade.

Figura 24. Veja de 16 de setembro de 2007.

No topo da imagem, outro elemento aparece sutilmente, mas de modo a

direcionar a leitura. Trata-se de uma lista azul que é culturalmente identificada

como a barra de título típica a programas de computador. Todas essas unidades

visuais, assim construídas, levam o receptor a associar a representação a uma

realidade virtual, que serve como chave para a interpretação da paródia que se

executa por meio dela. O seu significado se faz completo por meio dos textos que

a acompanham.

O título da matéria soluciona em poucas palavras o entendimento da foto-

ilustração. “A second life do petismo” é categórico ao fixar seu sentido: “o Partido

dos Trabalhadores está vivendo um momento, digamos, Second Life, aquela

brincadeira da internet em que as pessoas criam para si mesmas avatares com as

qualidades que elas não possuem na vida real”, como diz o texto da reportagem.

O significado visualmente modelado, de uma realidade virtual, é

confirmado. O subtítulo vai além e explicita a justificativa de tal afirmação ao

expor que é “pelas idéias delirantes e pela tese de que o mensalão não existiu que

o congresso do PT parece coisa do mundo virtual”. O mesmo papel exerce a

81

legenda da imagem: “Numa realidade apenas virtual, o PT quer reestatizar

empresas privadas, acabar com o Senado e implantar o ‘socialismo sustentável’.

Na real, o objeto é ter mais poder”.

Na matéria, esse sentido é não apenas confirmado, mas também melhor

posicionado. Se a representação, a princípio, parece pôr-se como uma paródia da

realidade, a reportagem deixa claro que, efetivamente, a realidade tem sido

parodiada pelo próprio governo. O texto e a imagem, integrados, funcionam para

transmitir esse julgamento de que o PT “reinventa a realidade”, numa conotação

claramente irônica, satírica. Nesse ponto, igualmente, a distorção da imagem

torna-se real.

Esse aspecto último de sátira é um dado constante nas foto-ilustrações de

efeito cômico – parecendo confirmar, no que diz respeito a essas imagens, o juízo

de Propp segundo o qual a zombaria é o único elemento permanentemente ligado

ao humor. Nos exemplos trazidos, tomados como paradigmáticos, a instauração

da comicidade se dá a partir de recursos que buscam no impacto e na

universalidade da linguagem visual meios de atrair a atenção do receptor e

significar análises e opiniões com maior eficiência.

Desse modo, tal tipo de ilustração fotográfica toma os ares de

“comentários sociais velados pela ironia ou explicitamente opinativos pela sátira e

pelo sarcasmo” (FONSECA, 1999, p. 13). A exageração, a justaposição não usual

e as relações irônicas, empregadas de modo fantasioso ou lúdico em um sentido

de incongruência, são as principais estratégias encontradas para tanto. É a partir

delas, ao expressar conteúdos analíticos e opinativos através do apontamento

satírico que a foto-ilustração parece exigir daqueles que a tomam para leitura um

julgamento de crítica ou censura, reforçando mais uma vez a dimensão de ‘arma’

a que serve.

3.2. O caráter metafórico

Entre as estratégias das quais a ilustração fotográfica faz, o metaforismo

é outra que se destaca. Faz-se necessário, pois, partir para o entendimento do que

seja metáfora e de como ela opera nesses casos específicos. Não se pretende, com

82

isso, esgotar as definições de metáfora – objeto de estudos de uma longa tradição

filosófica e lingüística que não cabe ser aqui retomada. Entretanto, é preciso tecer

algumas considerações sobre ela para auxiliar no entendimento do caráter

metafórico da foto-ilustração.

De acordo com uma das primeiras definições dadas ao termo, metáfora é

toda e qualquer aplicação do nome de uma coisa à outra, podendo ocorrer entre

gêneros, espécies ou por simples analogia25 (ARISTÓTELES, 2004). Nessa

acepção, percebida como uma espécie de refinamento da oratória através da

substituição de uma palavra usual por uma mais incomum, a metáfora serve a fins

decorativos, com vista a efeitos poéticos e/ou retóricos.

Posteriormente, alguns autores começaram a conceber o recurso

metafórico para além dessa finalidade, apreendendo-o também como um

fenômeno cognitivo a partir do qual é possível gerar uma melhor compreensão da

realidade. Isso se faz possível na medida em que a idéia de metáfora enquanto

substituição nominal é superada pela noção de interação. Por metáfora, portanto,

denomina-se a co-relação estabelecida entre duas coisas (ou sistemas) em que a

segunda projeta sobre a primeira uma série de características e implicações

associadas que funciona como mediadora de uma analogia ou correspondência

estrutural que se faz possível entre elas (BLACK, 1993).

Em tal sentido, ao associar propriedades de um sistema ao outro, “the

essence of metaphor is understanding and experiencing one kind of thing in terms

of another”26 (LAKOFF e JOHNSON, 198, p. 5). Passa-se, pois, a idealizar a

metáfora como uma forma de estruturação do conhecimento de uma coisa em

função do de outra: ao transferir propriedades de uma para a outra, permite-se a

compreensão da primeira através do que se sabe sobre a segunda, estabelecendo-a

a partir de uma nova maneira de interpretação.

25 Essa definição engloba nos limites da metáfora outras figuras retóricas, a exemplo da sinédoque e metonímia (entendidas como espécies de metáforas). As definições que se seguiram a essa, no entanto, costumam explicar cada uma dessas figuras separadamente. Embora as três sejam caracterizadas como substituição de um termo por outro, a relação estabelecida entre os termos é diferenciada em cada caso: na metáfora, a relação se dá por analogia; na sinédoque, por extensão (parte pelo todo, espécie pelo gênero, singular pelo plural etc.), e na metonímia, por contigüidade (causa pelo efeito, continente pelo conteúdo, etc.). 26 “A essência da metáfora é compreender e experenciar um tipo de coisa em termos de outro” (tradução livre).

83

Segundo essa perspectiva, o metaforismo não se realiza apenas no nível

nominal, como se propôs primordialmente. A teoria da metáfora conceitual,

proposta com George Lakoff e Mark Johnson, avança no sentido de afirmar que a

metáfora é, por definição, a compreensão de um domínio conceitual através de

outro, mais familiar ou acessível. Assim sendo, a base do recurso metafórico se

situa fundamentalmente ao nível conceitual, sendo a projeção de características de

um nome para outro apenas uma das manifestações possíveis desses conceitos

metafóricos.

Abre-se, assim, a possibilidade de conceber a existência de metáforas

visuais como expressão de um conceito metafórico que subjaz e ganha forma na

representação.

The definition of a visual metaphor in terms of its underlying concept is consistent with the main tenets of conceptual metaphor theory, which is currently the dominant paradigm in the field of metaphor studies. Such a cognitive definition seems to me to be a good basis on which to try and begin to understand the nature of visual metaphor. Not only does it broaden considerably the scope of what might be considered visual metaphors, enabling analysts to explore the various shapes they can take in the different visual genres, it also makes it easier to compare and contrast verbal and visual forms of expressing the same metaphorical concept27 (EL REFAIE, 2003, p. 81).

Pensando as foto-ilustrações por essa perspectiva, percebe-se a

recorrência desse recurso. Por exemplo, as relações instituídas entre os

empresários e santos (figura 21), entre o político e Pinóquio (figura 23) e entre a

realidade e um jogo virtual (figura 24) funcionam como paralelo de um conceito

metafórico subentendo, a partir do qual é possível projetar atributos de um sistema

ao outro, predicando os primeiros com as características normalmente conferidas

aos segundos – indicando associações a partir das quais é possível fazer

compreensível o argumento que está sendo estabelecido na imagem.

27 “A definição da metáfora visual em termos de um conceito subjacente é consistente com os princípios fundamentais da teoria conceitual da metáfora, que é o paradigma corrente nesse campo de estudos. Tal definição cognitiva me parece ser uma boa base na qual é possível começar a entender a natureza da metáfora visual. Ela não apenas amplia consideravelmente o escopo do que pode ser considerado metáfora visual , possibilitando explorar-se as várias formas que ela pode assumir nos gêneros visuais, como também torna mais fácil o estabelecimento de comparações entre as formas verbais e visuais de expressar o mesmo conceito metafórico” (tradução livre).

84

Para tanto, a metáfora funciona sempre por meio da comparação entre

sistemas distintos que se assemelham em algum aspecto. É através da explicitação

dessa semelhança, ao fazer analogia entre as qualidades dos sistemas

relacionados, que esse conceito metafórico se manifesta. É o que acontece na

imagem publicada juntamente com a reportagem “O grande Natal de Lula” (figura

25), na Veja de 1° de dezembro de 2004.

Figura 25. Veja de 1° de dezembro de 2004.

Essa ilustração fotográfica consiste, obviamente, numa montagem.

Através da combinação de fotografias diferentes, obtém-se uma imagem

improvável ou inusitada, na qual o presidente do país é visto usando trajes de

Papai Noel, num trenó puxado por uma rena. Entretanto, percebida como

montagem, a foto-ilustração não tenta enganar ou fazer crer naquilo que não é: o

surgimento de sentidos que vão além do que é disposto na representação justifica

o seu emprego.

Assim, o verdadeiro sentido dessa ilustração fotográfica só pode ser

captado quando, ao fazer uma leitura imediata da mensagem, constata-se uma

impertinência em seu conteúdo. Se nenhuma significação pertinente advém da

literalidade do que é percebido na imagem, o receptor é levado a recusá-la em

favor de uma apreensão figurativa. Parte-se, então, para um trabalho interpretativo

85

que consiste em inferir um código que torne a fotografia aceitável, dissolvendo a

falsidade ou a falta de sentido que pode lhe ser conferido ao primeiro olhar –

como acontece na interpretação das diferentes manifestações da metáfora.

Realiza-se um apaixonante vaivém hermenêutico: pressupõe-se um código, que é verificado na comparação, saboreando antecipadamente suas transformações metafóricas; parte-se da comparação para inferir um código que a torne aceitável [...] Analisando melhor este processo por tentativa e erro percebemos que estamos diante de múltiplos movimentos inferenciais: hipótese (ou abdução), indução, dedução (ECO, 1991, p. 162).

A partir desse processo dedutivo, estabelece-se uma analogia ou

correspondência estrutural entre Lula e Papai Noel. O sentido evocado nessa foto-

ilustração passa, pois, por um entendimento metafórico que transfere propriedades

de uma coisa à outra. Papai Noel, personagem associada à benevolência, à

generosidade e ao altruísmo, empresta ao presidente tais características que lhes

são próprias.

Auxiliada pelos elementos verbais de maior destaque na página (“O

grande natal de Lula”, título da matéria, e “Os indicadores econômicos de 2004”,

título do box que a acompanha), a imagem constrói visualmente um significado

que reforça a análise apresentada pelo texto: os bons índices econômicos, que faz

o Brasil prosperar, permitem “a Lula posar neste Natal como um Papai Noel com

o saco de presentes cheios de bondades”.

Dessa forma, ao representar Lula assim, associando-o a Papai Noel,

possibilita-se a compreensão da situação econômica por meio de termos que são

mais familiares ao receptor, relacionados à idéia de Natal. Nessa ocorrência, o

sentido que quer ser dado à representação passa pela configuração de um fato ou

acontecimento de modos a serem mais facilmente apreendidos através da

comparação estabelecida tanto pelo texto verbal quanto pela imagem.

O mesmo acontece na ilustração fotográfica que acompanha a

reportagem especial da Veja de 5 de outubro de 2005 (figura 26). Sob o título de

“Referendo da fumaça”, encontra-se uma ilustração fotográfica na qual um

homem aparece apontando para si mesmo uma arma que é formada a partir do seu

próprio dedo.

86

Figura 26. Veja de 5 de outubro de 2005.

No centro da fotografia e sem outros elementos que concorram em

atenção, a mão do sujeito se firma como unidade visual principal. A posição em

que ela é fotografada, com o punho fechado, polegar para cima e o indicador

como se mirasse um alvo, não é fortuita. Culturalmente codificado como sendo a

representação de um revólver, esse gesto reveste-se de uma dimensão

convencional, funcionando como símbolo de uma arma. Porém, a constituição da

mão como arma não pára por aí. Transmutado através da mesclagem de imagens,

o dedo indicador é efetivamente substituído pelo cano de um revólver.

Assim, a foto-ilustração estabelece seu primeiro significado: tem-se,

então, que o indivíduo aponta para si mesmo uma arma que é, na verdade, o seu

próprio dedo. A imagem, assim construída, expressa um pensamento metafórico

que ganha forma na representação, equivalente visual da metáfora ‘a mão do

homem é uma arma’.

A interpretação dessa metáfora não pára por aí, posto que a ilustração

fotográfica evoca outros elementos para completar seu sentido. O fundo da

composição, por exemplo, destaca-se como elemento icônico importante. Em

amarelo, ele desperta um repertório cultural que associa essa cor a valores como

de atenção e cautela, imprimindo um estado de alerta à representação.

87

Visualmente, constrói-se um sentimento de perigo, ponto comum entre os

componentes da imagem que se convertem em expectativa para a resolução da

metáfora da ‘mão-revólver’.

O rosto do homem, que aparece como alvo, é um desses componentes. A

testa franzida, a sobrancelha e os olhos apertados, a boca entreaberta e os dentes

cerrados estampam nele uma fisionomia transtornada, um ar de perturbação e

desespero. Olhando para a ‘mão-revólver’, ele exibe-a como explicação para o seu

transtorno, como se a sua expressão fisionômica fosse uma conseqüência da

percepção de que sua própria mão foi convertida numa arma da qual agora ele

mesmo é vítima. Uma segunda metáfora toma forma: ‘o cidadão é vítima’.

A partir dessas duas analogias ou correspondências estruturais

estabelecidas, há a projeção dos campos semânticos associados a ‘arma’ e a

‘vítima’, segundos sistemas da metáfora, que permitem entender os primeiros de

acordo com eles – principalmente, da noção de perigo.

Entretanto, por si sós, essas metáforas não arrematam o significado da

foto-ilustração. Os elementos verbais complementam-no. O título da matéria,

disposto logo no topo da composição, ajuda na contextualização da imagem ao

coligá-la a um assunto então em pauta, o referendo sobre o comércio de armas de

fogo. O subtítulo “7 razões para votar ‘não’ na consulta que pretende desarmar a

população e fortalecer o contrabando de armas e o arsenal dos bandidos” vai além.

Ele não apenas confirma o título na referência ao fato do qual trata, como demarca

o posicionamento que a revista assume. Sabe-se, assim, que a reportagem sustenta

uma opinião contrária à proposta de proibição da comercialização de armas.

Nesse ponto, o significado da fotografia se completa. Ao coligar-se ao

texto, que a ancora, ela implicitamente comunica a idéia de que está nas mãos do

cidadão decidir o resultado e as conseqüências do referendo. É interessante notar

que o dedo transmutado, o indicador, é exatamente aquele usado para apertar o

‘sim’ ou o ‘não’ da urna eletrônica. Se ele pode ser uma arma, a reportagem

aconselha as pessoas a usá-la ao seu favor. Ao cidadão compete o poder de votar

contra, de maneira a impedir que aquilo que é metaforicamente demonstrado na

foto se concretize, isto é, que ele se torne vítima de si mesmo. A imagem funciona

como uma espécie de alerta a dizer ‘cuidado, a maior vítima é você’.

88

Todos esses significados que surgem a partir de tal ilustração fotográfica

são possíveis pelos conceitos metafóricos nela literalizados28, que ajuda a explicar

a votação através de noções agregadas com as idéias de ‘arma’ e ‘vítima’. Não se

trata, portanto, de uma apresentação ou descrição neutra do assunto noticiado, mas

reflete uma opinião sobre ele. Há, portanto, o estabelecimento de uma

determinada percepção ideológica da realidade que se retrata. Ao entrar em

contato com a foto-ilustração, o espectador igualmente a compreende e a

experiencia assim.

Essa função cognoscitiva que se abre a partir daí sugere, então, que a

foto-ilustração se reveste de uma finalidade predicativa que, longe de ser uma

descrição neutra dos fatos e acontecimentos representados, está ligada a um

conjunto de valores. É através dele que são comunicadas análises e opiniões –

escopo a que serve as estratégias de construção de sentidos mobilizadas. Percebe-

se, portanto, que tal conceito é a essência da ilustração fotográfica; cabendo à

ficção, ao efeito cômico e ao caráter metafórico colaborarem para tal.

3.3. As figuras retóricas

Como aqui delineadas, a comicidade e a metáfora são estratégias de

construção de sentidos da foto-ilustração mobilizadas a fim de, por um lado,

estabelecer uma relação de cumplicidade ou simpatia com o seu público e, por

outro, contribuir com a ficção em seu papel de operador cognitivo; ambas funções

com objetivos retóricos.

Nos dois casos, a ilustração fotográfica é construída por meio de uma

série de operações de adição, supressão, substituição e intercâmbio que implicam

novas significações da imagem. Trata-se, portanto, de uma recorrência às figuras

retóricas. De acordo com Jacques Durand, em um estudo sobre a retórica visual na

publicidade, as figuras aparecem na imagem como transgressões fantasiosas de

uma norma (sobretudo de natureza física): “l’image, rhétorique dans sa lecture

28 Ainda que a relação mão-arma e cidadão-vítima possa ser pensada enquanto contigüidade, tipificando uma metonímia, essa imagem é classificada como metafórica em função da idéia de um conceito metafórico subjacente, que explica uma coisa em termos de outra.

89

immédiate, s’apparente au fantastique, au rêve, aux hallucinations: la méthaphore

devient métamorphose, la répétition déboublement, l’hyperbole gigantisme,

l’ellipse lévitation, etc29” (DURAND, 1970, p. 72).

Entretanto, tal qual já observado no caso da ficção, ao se estabelecer

humorística e metaforicamente, as figuras retóricas encontradas nas foto-

ilustrações também não são utilizadas em prol de uma interpretação fantasiosa da

realidade. Na verdade, esses procedimentos servem para estabelecer passagens

entre um nível de linguagem e outro, isto é, entre a linguagem literal e a figurada.

Assim, admite-se

[...] que la rhétorique met em jeu deux niveus de langage (le ‘language propre’ et le ‘language figuré’), et que la figure est une opération qui fait passer d’un niveau de langage à l’autre: c’est suposer que ce qui est dit de façon ‘figureé’ aurait pu ètre dit de façon plus direct, plus simples, plus neutre [....] Pour résumer le problème de façon paradoxale: nous sommes en présence de deux propositions, dont l’une est réelle mais n’a pas de sens (ou plutot: n’a pas le sens) et dont l’autre a un sens, mais n’existe pas30 (Ibidem, p. 70-71)

Nesse sentido, é possível dizer que é com a realização dessa passagem de

um nível para o outro que as figuras retóricas têm a capacidade de, mesmo

reforçando o contexto ficcional, permitir uma interpretação extra-ficcional da

ilustração fotografia em seus sentidos proposicionais, argumentativos.

Sem pretensão de oferecer uma lista descritiva ou explicitar o modo

como esses procedimentos são empregados na foto-ilustração, pode-se citar

alguns deles. A comicidade (como paradoxo ou ironia) e a metáfora são, eles

mesmos, figuras retóricas. Mas, além disso, para sua construção, recorre-se ainda

a outros recursos. É o caso da sinédoque e da metonímia (relação de implicação

entre a parte e o todo ou entre a causa e o efeito), da antonomásia (recorrência a

29 “A imagem retorizada, em sua leitura imediata, se aproxima do fantástico, do sonho, das alucinações: a metáfora se torna metamorfose, a repetição desdobramento, a hipérbole gigantismo, a elipse levitação, etc” (tradução livre). 30 “[...] que a retórica coloca em jogo dois níveis de linguagem (a ‘linguagem literal’ e a ‘linguagem figurada’), e que a figura é uma operação que faz passar de um nível de linguagem ao outro: é de se supor que aquilo que é dito de modo ‘figurado’ poderia ser dito de maneira mais direta, simples e neutra [...] Para resumir o problema de maneira paradoxal: nós estamos na presença de duas proposições, sendo que uma é real mas sem sentido (ou melhor: sem o sentido) e a outra tem sentido, mas não existe” (tradução livre).

90

um representante entendido como quantificador universal), da prosopopéia (dar

vida ou humanizar objetos inanimados), da hipérbole (aumento exagerado de

algum aspecto concreto ou abstrato apresentado na imagem), da epizeuxis

(repetição de um mesmo elemento), entre outras.

Na reportagem especial publicada na edição do dia 2 de março de 2005

da Veja (figura 27), exemplifica-se duas delas. Na imagem, em uma fotografia que

ocupa quase a totalidade das duas primeiras páginas da matéria, vê-se um homem

e uma mulher que pedalam para direções opostas a mesma bicicleta de assento

duplo.

Figura 27. Veja de 2 de março de 2005.

A significação da imagem se torna possível por meio de uma mistura de

epizeuxis e antonomásia. A epizeuxis ocorre através da técnica da redundância, na

qual a repetição de alguns elementos acaba destacando os dois indivíduos como

unidades idênticas: embora de um lado esteja um homem e do outro esteja uma

mulher, a imagem parece ter sido espelhada – o fundo mantém-se uniforme, as

metades da bicicleta são iguais, os dois indivíduos têm o mesmo tom de pele,

vestem roupas idênticas e encontram-se em poses similares.

91

Todavia, apesar de evidenciar a concordância entre as duas partes, a

composição ratifica também a existência de uma incoerência entre elas. Homem e

mulher são percebidos como elementos conflitantes, uma vez que cada um deles

mostra-se empenhado em pedalar para direções opostas, como é possível perceber

em suas expressões faciais e músculos contraídos. De tal forma, a ilustração

fotográfica parece efetuar um jogo de semelhanças e dessemelhanças que se

marcam entre homens e mulheres.

O sentido que aí se delineia diz respeito, portanto, à assunção de

igualdades e diferenças entre os gêneros masculino e feminino. O homem e a

mulher nela representados ganham, assim, um valor antonomásico. Os indivíduos

que aparecem na fotografia não são um homem e uma mulher quaisquer, mas são

tomados como representantes universais de todos os homens e todas as mulheres,

em seus aspectos similares e destoantes.

Nesse sentido, brincando visualmente com semelhanças e

dessemelhanças entre os gêneros, a imagem sugere metaforicamente a

interpretação de que homens e mulheres são “diferentes, mas unidos”, como

explicita o título. Com isso, explicita o título. Com isso, são construídas

visualmente algumas das idéias que a matéria destrincha, abrindo espaço para

falar das mais recentes explicações científicas para as igualdades e as diferenças

biológicas e sociais observadas entre homens e mulheres.

Partindo para outro exemplo, tem-se na reportagem de capa da edição da

Veja de 31 de agosto de 2005 (figura 28) uma mistura de prosopopéia,

antonomásia e sinédoque. Nela, um manequim de óculos, terno e gravata aparece

sendo estrategicamente arrumado por três mãos (a primeira está o maquiando, a

segunda coloca um maço de dinheiro em seu bolso e a terceira, por fim, lhe

empunha um microfone). Do jeito que é representado, o manequim parece

humanizar-se, embora não seja desprovido de ar inanimado que acaba se

agregando à imagem.

Acompanhada dos títulos externo e interno (“Político artificial” e “O

marketing e a corrupção”), a imagem ganha mais clareza: o manequim é dotado

de vida para representar, por meio de uma antonomásia subentendida, os

candidatos políticos. Entretanto, não se trata de um candidato político qualquer,

mas aqueles que, na escassez de atributos pessoais – simbolizada pelo estado

92

inanimado e ‘vazio’ que ainda é mantido pelo manequim –, obtém êxito político

ao recorrer à “hipervalorização do marketing”, representado na imagem pela

sinédoque mão-marqueteiro.

Figura 28. Veja de 31 de agosto de 2005.

Dessa maneira, viabiliza-se na imagem a análise feita pela matéria. Ao

tratar da realidade política atual, a reportagem aponta exatamente o poder que as

campanhas eleitorais vêm desempenhando nos últimos anos, ao ponto de

conseguir passar por cima da falta de conteúdo ou programa político dos

candidatos para explorar apenas qualidades ‘inventadas’ com o melhoramento de

suas imagens individuais – sentido pretendido pela foto-ilustração.

Esses são alguns dentre tantos exemplos de utilização desses recursos

que podem ser apontados nas ilustrações fotográficas. Eles ajudam não apenas a

conceber os modos de construção de sentidos da foto-ilustração, mas também

confirmam a relação que se estabelece entre ficcionalidade, efeito cômico e

caráter metafórico, de um lado, e, de outro, a função discursiva que eles exercem

no jornalismo. Essa relação ratifica-se, portanto, como sendo de ordem retórica:

tais estratégias configuram-se como procedimentos para a construção de uma

mensagem que visa guiar o leitor na interpretação dos assuntos noticiados, de

acordo com o que é sugerido no texto.

93

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Identificando e assinalando as principais características da foto-

ilustração, este trabalho tentou construir um arcabouço teórico capaz de colocar

luz sobre as particularidades desse tipo de fotografia. À simples noção de

fotografias produzidas e/ou montadas para ilustrar matérias jornalísticas, outras

conceituações foram agregadas; em geral no sentido de caracterizá-la como uma

imagem que, ao concretizar um determinado conceito acerca do assunto noticiado,

marca uma interpretação ou argumentação sobre ele.

Percebeu-se, com isso, que a ilustração fotográfica deixa de lado um

caráter informativo e descritivo, normalmente explorado pela função testemunhal

do fotojornalismo tradicional, para atender funções retóricas. Sem pretensão de

ser a reinstauração de uma dimensão factual a partir da qual se é possível noticiar

um fato, a foto-ilustração se estabelece a partir da criação de uma realidade que é

dramatizada ou estetizada para instaurar uma determinada fantasia. Essa fantasia,

entendida enquanto tal, possibilita materializar idéias e conceitos sobre o real,

como uma espécie de exemplificação ficcional das análises e opiniões

desenvolvidas na reportagem.

Dessa forma, assumindo uma dimensão ficcional, a ilustração fotográfica

se distancia de qualquer apelo para ser interpretada como uma experiência de

mundo emprestada para construir-se visualmente como correlato de um

posicionamento ou visão de mundo defendida pelo veículo; esclarecendo,

elucidando, comentando e melhor explicando o tema abordado sob o ponto de

vista de sua linha editorial.

Em tal ponto, a natureza do jornalismo de revista, analítico e opinativo,

torna-se essencial para o entendimento do modo como a foto-ilustração é

empregada. Isso porque a ilustração fotográfica é percebida como um recurso da

qual se faz uso para fazer ver concretamente aquilo que o texto já sugere (mas que

só consegue evocar indiretamente); servindo, assim, como a materialização

ficcional das idéias desenvolvidas na matéria de modo a torná-las mostrativas.

94

Aliás, é exatamente por tal motivo que esse tipo de fotografia se

populariza nas capas de revistas31 (figura 29). As capas, por se configurarem

como o primeiro contato do leitor com o produto jornalístico, são entendidas

como peças que devem causar impacto, despertar interesse, gerar expectativa e

angariar um maior apelo de venda. O apelo publicitário que subjaz a foto-

ilustração ocorre justamente em decorrência da sua capacidade de desenvolver

análises e opiniões de uma forma atraente, demarcando e reafirmando para o

mercado a linha editorial da revista – e, dessa forma, falando com o seu público.

Figura 29. Capas diversas da revista Veja.

Se, de uma forma geral, a ilustração fotográfica já faz uso de uma

linguagem que por muito se aproxima da publicidade (isto é, de uma imagem de

natureza retórica), essa característica é evidenciada ao pensá-la como elemento de

uma capa de revista. Isso não deve, contudo, ser entendido como um

31 Das revistas analisadas, 114 exemplares (55,3% ) tinham como imagem principal de capa uma foto-ilustração.

95

esmagamento da dimensão jornalística da foto-ilustração, uma vez que o caráter

publicitário nela contido ocorre justamente em função da sua capacidade de

desenvolver análises e opiniões de uma forma atraente, também adequada ao

jornalismo.

Nesse aspecto, a diferença entre a foto-ilustração e os tipos tradicionais

do fotojornalismo se faz mais tênue: nos dois casos, a imagem funciona como um

operador cognitivo, buscando cumprir as finalidades de esclarecimento,

elucidação, comentário, explicação, instrução e/ou transmissão de conhecimentos.

Não se trata, é preciso enfatizar, de advogar um fim comum no intuito de

equiparar a ilustração fotográfica a outras fotografias da tradição jornalística,

pretendendo-as idênticas. Assumi-la na condição de um operador cognitivo não

pressupõe identificá-la a partir de processos baseados nas noções de verdade,

objetividade ou credibilidade, nem mesmo nas de literalidade, como

costumeiramente faz a fotografia tradicional. Ao contrário, entender que existem

muitos modos através dos quais se pode referenciar a realidade de maneira a

torná-la cognoscível é uma etapa igualmente importante na configuração da

ilustração fotográfica em sua especificidade, uma vez que salienta a necessidade

de categorias para a sua correta compreensão.

Assim, se, por um lado, a foto-ilustração apela para dimensões distintas

ou se utiliza de artifícios pouco usuais à fotografia tradicional; por outro lado, ela

se coliga à função de mediatizar fatos e acontecimentos ou, mais especificamente,

idéias e opiniões a eles relacionados, por meio de imagens que apresentam

relações complexas com o real.

Entretanto, o que pode ser problemático – e que é preciso chamar atenção

– é a utilização indiscriminada desse tipo de imagem. Se, de fato, há fotografias

dos mais variados tipos, servindo aos mais variados usos e exercendo as mais

variadas funções, elas não precisam coexistir em promiscuidade. Misturar opinião

com informação, por exemplo, é um problema historicamente identificado (e em

parte resolvido) no âmbito verbal do jornalismo e que precisa também ser

observado no que diz respeito às fotografias. A elas, também deve valer a

determinação de que “os fatos são uma coisa, as opiniões e as interpretações da

mídia são uma outra, e a objetividade se mede pela manutenção escrupulosa da

fronteira entre uns e outras” (VERÓN, 2004, p. 170).

96

É, inclusive, nesse contexto que se justifica a presente dissertação. Trata-

se, portanto, de um estudo preliminar que ajuda a delimitar de uma forma mais

precisa os limites da ilustração fotográfica; trabalho a partir do qual novos estudos

podem encontrar os pressupostos conceituais necessários para desenvolver

formulações complementares acerca desse objeto. Enquanto primeiro passo, o

mais importante aqui foi estabelecer para a foto-ilustração parâmetros próprios

que permitam concebê-la como uma forma expressiva própria.

Nesse sentido, um encaminhamento possível para desdobramentos

posteriores acerca desse assunto deve continuar numa linha que possibilite

entendê-la sem as amarras do fetiche documental da fotografia jornalística, mas

em diálogo próximo com outras utilizações da imagem. Se a fotografia

primeiramente pareceu distanciar-se da pintura e do desenho, numa tentativa de

garantir a sua autonomia como novo meio; agora, já estabelecida, ela se abre a

novas explorações que a aproximam dessas outras formas expressivas. E não só

isso: esse movimento traz novas práticas, convenções e crenças que afetam o

modo de entender, fazer e ler as fotografias (SAVEDOFF, 2000).

Entendida como ficção e como manipulável, a ilustração fotográfica é um

exemplo disso. Ela não mais fundamenta a sua credibilidade na noção de ser uma

representação fiel do mundo. Ao contrário, os indivíduos acreditam nela ao passo

em que parece fazer sentido, isto é, ao passo em que a informação que municia for

condizente com a compreensão que estes sujeitos têm do mundo (KELLY e

NACE apud SOUSA, 2000) – e que, nesse caso, é posta diante dos olhos.

97

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