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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Salvador 2016

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    Salvador

    2016

  • ELISEU SANTOS FERREIRA SILVA

    ROUBOS E SALTEADORES NO TEMPO DA ABOLIO (Cachoeira, dcada de 1880)

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Histria Social da Universidade Federal da Bahia,

    como requisito parcial para obteno do grau de Mestre

    em Histria, sob orientao da Prof. Dr. Wlamyra

    Ribeiro de Albuquerque.

    Salvador

    2016

  • FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DA FFCH - UFBA

    _____________________________________________________________________________

    Silva, Eliseu Santos Ferreira

    S586 Roubos e salteadores no tempo da abolio (Cachoeira, dcada de 1880) / Eliseu

    Santos Ferreira Silva. Salvador, 2016.

    177 f. : il.

    Orientadora: Prof. Dr. Wlamyra Ribeiro de Albuquerque

    Dissertao (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e

    Cincias Humanas. Salvador, 2016.

    1. Bandidos e salteadores - Histria. 2. Roubo Histria. 3. Cachoeira (BA)

    Histria. I. Albuquerque, Wlamyra Ribeiro de. II. Universidade Federal da Bahia.

    III. Ttulo.

    CDD 981.42

    ____________________________________________________________________________

  • FOLHA DE APROVAO

    ELISEU SANTOS FERREIRA SILVA

    ROUBOS E SALTEADORES NO TEMPO DA ABOLIO

    (CACHOEIRA, DCADA DE 1880)

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Histria Social da Universidade Federal da Bahia,

    como requisito parcial para obteno do grau de Mestre

    em Histria, sob orientao da Prof. Dr. Wlamyra

    Ribeiro de Albuquerque.

    Aprovada em ____de__________de 2016

    BANCA EXAMINADORA

    Professora Doutora Wlamyra Ribeiro de Albuquerque Orientadora

    Universidade Federal da Bahia

    Professora Doutora Iacy Maia Mata

    Universidade Federal da Bahia

    Professor Doutor Walter Fraga Filho

    Universidade Federal do Recncavo da Bahia

  • Para meus pais, Ivete Magali e Ednilson Manuel (In memoriam), por tudo.

  • AGRADECIMENTOS

    Pesquisa algo extenuante e cansativo. Sem ajuda seria impossvel dar conta de tanta

    demanda. Esse espao, alm de demonstrar gratido, para pedir desculpas pelas chatices e

    recluses. Enfim, agradecer preciso.

    Primeiramente agradeo ao povo cachoeirano. Desde 2010, quando fui estudar na

    Universidade Federal do Recncavo da Bahia (UFRB), em Cachoeira, fiquei fascinado por

    essa cidade. Seu povo hospitaleiro anima cada dia os forasteiros, como eu. De forma alguma

    essa pesquisa pode no ser vista como retorno ou presente cidade ou a seus filhos (os que

    nasceram nela).

    Agradeo muito aos trabalhadores brasileiros por, atravs da CAPES, terem

    financiado o desenvolvimento da dissertao, permitindo que eu pudesse dedicar-me

    exclusivamente pesquisa. Para tanto, contei com a pacincia e generosidade dos

    funcionrios e estagirios do Arquivo Pblico do Estado da Bahia: Pedro, Elza, Ccero, Jeane,

    Larissa, Jessica, Maria, dona Marlene e Reinaldo (Rei). No posso esquecer-me daquele que

    conhece o arquivo to bem quanto sua palma da mo: Urano, sou muito grato por ter me

    ajudado muitas vezes a encontrar vrios documentos, agradeo tambm pelas conversas e

    andanas. Gratido tambm a Gilvan, funcionrio da Ps-Graduao em Histria da UFBA,

    pela disposio, disponibilidade e pacincia em resolver questes burocrticas facilitando

    sempre. Grato aos que intermediaram meu acesso s fontes em outras instituies: seu

    Fernando, no Instituto Geogrfico e Histrico da Bahia; seu Carlos, na Biblioteca Pblica do

    Estado da Bahia; Osias, no Arquivo Municipal de So Flix; Fernando, dona Jacy, dona Rita,

    dona Anglica e dona Bety, do Arquivo Regional de Cachoeira.

    Aos amigos, peo desculpa se esquecer de algum. Esse espao nfimo para tantos

    nomes. Grato aos camaradas da graduao: Samyr Uhuru, Jos Carlos, Luiz Gabriel e Lus

    Antnio. Sem vocs a sobrevivncia durante os quatro anos seria mais difcil. Ao pessoal da

    Casa de Estudantes Ademir Fernando. Grato aos amigos e colegas que tive a oportunidade de

    conhecer no mestrado. Companheiros de boas discusses no R.U. (restaurante universitrio):

    Alexandre, Antnio, Rosngela, Danielle, Aline, Thiago, Luana, Ricardo, Alfredo, Tatiane,

    Ailton, Kalina, Nilceanne, Emily, Alan Cerqueira, Marcelo e Tania. Em especial meu

    camarada alagoano, Moiss, Jucimar, Raul e Alan Passos, amigos e companheiros de

    angstias, que leram partes dessa pesquisa ainda em estgio embrionrio. Ainda devo

    mencionar o colega de tema Antnio Hertes, obrigado por ler parte inicial dessa dissertao e

  • propor sugestes. A Clssio Santana pelas dicas sobre aspectos da histria de Cachoeira.

    Cacau Nascimento por ter cedido algumas imagens. Igor Gomes muitssimo obrigado. Sua

    predisposio em ajudar e sua generosidade nunca esquecerei. Sou muito grato a voc por ter

    deixado sua biblioteca disposio.

    Na vida acadmica o encontro com professores bons mudam nossos caminhos. Tive a

    honra de ter convivido com alguns deles. Aos mestres que mudaram e potencializaram minha

    trajetria acadmica na Universidade Federal do Recncavo da Bahia, devo mencionar:

    Walter Fraga Filho, que primeiro me ensinou a arte da pesquisa e a importncia de estudar

    trajetrias. Tive o privilgio e o prazer de t-lo na banca de defesa da dissertao. Sou

    imensamente agradecido pelos elogios e sugestes, espero ter dado conta; Antnio Liberac

    Cardoso Simes Pires, por ter me concedido uma bolsa de iniciao cientfica que me

    possibilitou comear essa pesquisa. Sua orientao sempre animadora deixava a dificuldade

    esmorecer. Agradeo muito por seu estmulo e ateno Liberac. Seria complicadssimo

    engrenar nos estudos histricos sem ter conhecido esses grandes mestres. Sou imensamente

    grato Elciene Azevedo por ter sido a primeira a ler meus rabiscos do projeto mesmo sem me

    conhecer, continue assim para alegria dos futuros historiadores. Na Universidade Federal da

    Bahia tive o prazer e a honra de conhecer e ter tido aula com o professor Joo Jos Reis. Sua

    simplicidade e ensinamentos me ajudaram grandiosamente a ser um leitor mais atento e ter

    mais cuidados com a escrita. Agradeo tambm a todos integrantes da linha de pesquisa

    Escravido e Inveno da Liberdade, que nas reunies e discusses de textos acabam

    ajudando muito aqueles que ouvem atentamente as recomendaes.

    Agradeo aos professores Antonio Luigi Negro e Iacy Maia Mata pelas questes

    apresentadas na banca de qualificao sugerindo e apontando caminhos possveis a seguir na

    pesquisa. Grato pela ateno da leitura e observaes feitas no texto. Iacy Mata tambm fez

    parte da banca de defesa e ainda sugeriu o ttulo desta dissertao. Agradeo intensamente

    pelos elogios e crticas, sem dvida o amadurecimento desse texto no seria possvel sem as

    observaes certeiras de Iacy Mata.

    Agradecer a Wlamyra Albuquerque ser difcil. Minha admirao enorme e a

    gratido difcil de expressar. Sua intimidade com a pesquisa algo fenomenal. Desde o

    primeiro encontro me deu um norte. Sua pacincia com meus desacertos, felicidade nos meus

    achados e rigor profissional fizeram brotar motivaes e empolgaes nesse trabalho. Credito

    meus xitos a voc e assumo todos os erros e equvocos aqui. Meu muitssimo obrigado.

    Saiba que foi um privilgio ter nessa jornada a sua orientao e amizade. Espero ao menos

    parcialmente ter correspondido altura o seu esforo e ateno.

  • Por fim, mas no menos importante, agradeo aos meus. Gratido s pessoas amadas e

    queridas que me incentivaram, apoiaram, motivaram e sempre acreditaram em mim. Todos

    meus esforos dedicarei a mainha (Ivete Magali). Obrigado por tudo. Voc abdicou de

    vrias coisas em prol de cuidar de mim e de meu irmo, Elias, a quem tambm sou sempre

    grato por ter sempre me ajudado quando pde e quando no podia tambm; a meu pai

    Ednilson Manuel (in memoriam) por ter sempre me falado para estudar, criando artifcios para

    isso (muitos deles no to brandos); a minha pequena sapeca, Ana Sofia, minha filha, por ter

    me mostrado desde sua chegada que a vida pode ser mais colorida e amena; e a Patrcia por

    ter sido minha incentivadora em tudo, alm de ter me dado o maior tesouro (nossa filha), alm

    disso, me atura por longo tempo e suporta minhas chatices e decepes, tambm por ter lido e

    sugerido mudanas em muitas passagens deste trabalho, minha grande interlocutora

    forada. Minha gratido a todos vocs imensurvel.

  • Dissimulados, ladres, sem dvida; seus

    pequenos furtos assinalam o comeo de uma

    resistncia ainda desorganizada.

    (Jean-Paul Sartre, 1979).

  • SILVA, Eliseu Santos Ferreira. Roubos e salteadores no tempo da abolio (Cachoeira,

    dcada de 1880). Dissertao (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de

    Filosofia e Cincias Humanas. Salvador, 2016.

    RESUMO

    Esta dissertao tem por objetivo analisar prticas relativas aos furtos e roubo no termo de

    Cachoeira durante a dcada de 1880, localidade de grande importncia econmica durante o

    sculo XIX, situada s margens do rio Paraguau no Recncavo da provncia da Bahia.

    Objetivamos, alm disso, compreender algumas prticas e sujeitos envolvidos em furto e

    roubo no termo de Cachoeira, bem como o combate a esse tipo de infrao no tempo da

    abolio. O recorte cronolgico corresponde a um perodo de grandes transformaes no

    campo social (desmonte do escravismo), econmico e poltico (Repblica), diz respeito

    tambm a um aumento populacional devido a oportunidades de emprego nas obras pblicas e

    os retirantes fugindo da grande seca de 1888. Ademais, tambm objetivo identificar redes de

    sociabilidades de sujeitos, que de maneiras diversas, se associaram a furtos e roubos. Para

    entender melhor a organizao desses sujeitos e seus modos de viver, seguiremos o grupo

    liderado por Baslio Ferreira, conhecido como Baslio Ganhador, que atuou ao longo da

    dcada de 1880. Atravs da anlise da documentao jurdica e policial correspondncias

    entre autoridades (policiais, judicirias e administrativas), peridicos, cdigos e posturas

    municipais, relatrios de presidentes de provncia, atas do legislativo provincial, buscamos

    compreender as atitudes tomadas por esses rgos envolvidos no combate aos delitos e defesa

    da propriedade e as estratgias de sobrevivncia e resistncia desenvolvidas pelos indivduos

    indiciados como ladres.

    Palavras-chaves: Roubos e furtos. Salteadores. Autoridades cachoeiranas. Cachoeira, Bahia

    Final do sculo XIX.

  • ABSTRACT

    This paper aims to examine practices related to theft and robbery in Cachoeira term during the

    1880s, city of great economic importance in the nineteenth century, situated on the River

    Paraguau in the Bahia province of Recncavo. We aim also to understand some practices and

    individuals involved in theft and robbery in Cachoeira term and combat this type of offense at

    the time of abolition. The chronological cut corresponds to a period of great change in the

    social field (dismantling of slavery), economic and political (Republic) relates also to a

    population increase due to employment opportunities in public works and refugees fleeing the

    great drought of 1888. Moreover, it is also to identify networks of sociability of individuals

    who in different ways were associated with theft and robbery. To better understand the

    organization of these individuals and their ways of living, we will follow the group led by

    Baslio Ferreira, known as Baslio Ganhador, who served throughout the 1880s. Through

    the analysis of legal documentation and correspondence between police authorities (police,

    judicial and administrative), periodicals, codes and municipal ordinances, provincial

    presidents reports, the provincial legislative acts, we seek to understand the actions taken by

    these agencies involved in the fight against crime and defense of property and survival and

    resistance strategies developed by indicted individuals as thieves.

    Keywords: Robbery and theft. Robbers. Cachoeira authorities. Cachoeira, Bahia 19th

    .

    century.

  • LISTA DE ABREVIATURAS

    APEB Arquivo Pblico do Estado da Bahia

    APMSF Arquivo Pblico Municipal de So Flix

    ARC Arquivo Regional de Cachoeira

    BPEBa Biblioteca Pblica do Estado da Bahia

    FHC Family History Center

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IGHBa Instituto Geogrfico e Histrico da Bahia

    BNDital Biblioteca Nacional Digital

  • LISTA DE MAPAS, ILUSTRAES, TABELAS E QUADRO

    Mapas

    MAPA 1 MUNICPIOS E FREGUESIAS DO RECNCAVO EM MEADOS DO SCULO XIX. ........................................... 28 MAPA 2 CARTA DA CIDADE DE CACHOEIRA E SO FLIX. ................................................................................ 104 MAPA 3 MAPA DA CIDADE DE CACHOEIRA COM DESTAQUE PARA A ZONA DA RECUADA. ................................. 131

    Ilustraes

    FIGURA 1 PONTE DOM PEDRO II LIGANDO A CIDADES DE CACHOEIRA A SO FLIX, S/D. ................................... 33 FIGURA 2 PORTO DE SO FLIX, S/D.................................................................................................................... 33 FIGURA 3 CASA DE CMARA E CADEIA DE CACHOEIRA, S/D. .............................................................................. 40 FIGURA 4 JOAQUIM IGNCIO TOSTA (1856-1919). .............................................................................................. 61 FIGURA 5 LADEIRA DO MONTE AINDA, S/D. ......................................................................................................... 69 FIGURA 6 RUA DAS LOJAS, ATUAL RUY BARBOSA. CARTO POSTAL, 1904. ..................................................... 105 FIGURA 7 RUA DAS FLORES. CARTO POSTAL COLORIDO, S/D. ......................................................................... 124 FIGURA 8 SANTA CASA DE MISERICRDIA DE CACHOEIRA, 1905. .................................................................... 143

    Tabelas

    TABELA 1 FURTOS E ROUBOS ANO ................................................................................................................... 45 TABELA 2 OCUPAES DOS SUSPEITOS, 1880-1900 ............................................................................................ 98 TABELA 3 NATURALIDADE DOS INDICIADOS POR FURTO E ROUBO, 1880-1900.................................................. 100 TABELA 4 BENS SUBTRADOS, 1880-1900 ......................................................................................................... 101 TABELA 5 FURTOS E ROUBOS REGIO (SEDE E FREGUESIAS), 1880-1900 ....................................................... 102 TABELA 6 FURTOS E ROUBOS LOCAIS ALVOS, 1880-1900............................................................................... 106

    Quadro

    QUADRO 1 CRONOLOGIA DOS PRINCIPAIS CRIMES ENVOLVENDO O GRUPO DE BASLIO...................................... 125

    file:///C:/Users/Zeu/Desktop/29%20ago%2016%20verso%20final.docx%23_Toc460600426

  • SUMRIO

    Agradecimentos .......................................................................................................................... v Resumo ...................................................................................................................................... ix Abstract ....................................................................................................................................... x Lista de abreviaturas .................................................................................................................. xi

    Lista de mapas, ilustraes, tabelas e quadro ........................................................................... xii Introduo ................................................................................................................................. 14 Captulo 1: O teatro de grandes desgraas ............................................................................ 29

    Princpio do fim: prises e recrutamentos ......................................................................... 36

    Maus hbitos que possui: criminalizao e vadiagem ...................................................... 50

    Que o crime seja esmagado, e o direito de propriedade garantido .................................... 59

    Captulo 2: Grandes desejos, realidades distintas: ladres, roubos e furtos no termo de

    Cachoeira .................................................................................................................................. 74 Larpios de toda a espcie, os ladres vulgarmente conhecidos ....................................... 77

    Indicadores sociais dos indiciados ........................................................................................ 96

    Bens, alvos e locais ............................................................................................................. 100

    Negra nag gosta muito de ouro: receptadores/as ........................................................... 106

    Captulo 3: Baslio Ferreira e sua companhia de salteadores.............................................. 111

    O clebre salteador Baslio .............................................................................................. 113

    A um co danado, todos a ele, ou a eles ........................................................................... 119

    Composio social e organizao da quadrilha de salteadores chefiada por Baslio ...... 127

    Priso de um salteador ..................................................................................................... 138

    Consideraes finais ( guisa de desfecho) ............................................................................ 145

    Fontes ..................................................................................................................................... 148 Bibliografia: artigos, livros, dissertaes e teses .................................................................... 156

    Anexos .................................................................................................................................... 170

  • 14

    INTRODUO

    Noite do dia 24 de dezembro de 1887, um sbado, o fazendeiro Jos Joaquim de

    Almeida e sua esposa, proprietrios e moradores da fazenda Coqueiros, se preparavam para

    irem missa de Natal na capela das Laranjeiras, freguesia de Muritiba. Mas, inesperadamente

    o senhor sentiu um incomodo e sugeriu a sua senhora que fosse missa sem ele. Ela, a

    senhora, seguiu com as amigas e um squito de criadas, ficando Jos Joaquim quase

    sozinho em casa. Por volta das 2 horas da madrugada, quando ele j estava dormindo em seu

    quarto trancado por dentro, acordou espantado quando algum acendeu o candeeiro. O

    sujeito apagara imediatamente o candeeiro quando viu o senhor na cama, mas Jos Joaquim

    conseguiu identificar o ladro. Tratava-se de Pedro Laranjeiras, seu escravo fugido h cerca

    de sete meses, que agora invadia o seu quarto com um faco em punho.1

    Pedro Laranjeiras no se intimidou ao ver o ex-senhor. Dera diversos panos [golpes

    com a lateral do faco] e pequenos furos no corpo do senhor. Provavelmente, o senhor reagiu

    e Pedro o agrediu na tentativa de conseguir levar os bas. Ele conseguiu levar quatro bas

    contendo dinheiro, colares de prata e roupas. Pedro no estava s, e pelo visto sabia que

    aquele Natal seria um momento oportuno para efetuar o roubo. O mal estar, o incomodo

    repentino de Jos Joaquim, provavelmente, no estava em seus planos. Segundo os escravos

    do senhor Jos, Pedro havia prometido a vir passar a noite de Natal com Luzia. Sua

    companheira Luzia era escrava do mesmo senhor de Pedro e com ele tinha uma filha de

    alguns meses de nascida. Talvez por essa razo Pedro Laranjeiras evitasse matar o senhor,

    alm de acentuar sua pena, caso fosse preso, atenuaria a possibilidade de voltar a ver seus

    entes queridos.

    Aps o infortnio, o senhor Jos Joaquim passou a procurar Pedro Laranjeira. Passada

    a humilhao e o risco de morte, aps o feriado natalino, no dia 26 de dezembro quatro

    escravos do fazendeiro Jos Joaquim de Almeida foram interrogados pelo subdelegado

    Manuel Jos de Andrade. O primeiro interrogado foi o velho escravo Nicolau, trabalhador da

    1 Arquivo Pblico do Estado da Bahia (doravante APEB), Processos-crime de furto em que ru Pedro

    Laranjeira (e outros), 27/1128/03 (1888), f. 34 v. A ortografia foi atualizada, respeitando, porm, a estrutura

    sinttica. Sobre escravos fugidos que viam no roubo a possibilidade e alternativa urgente de suprir suas

    necessidades bsicas, ver Luiz Carlos Soares, O 'povo de Cam' na capital do Brasil: a escravido urbana no Rio

    de Janeiro do sculo XIX. Rio de Janeiro: Faperj; 7Letras. 2007; Carlos Aguirre, Cimarronaje, bandolerismo y

    desintegracin esclavista: Lima, 18211854. In: Carlos Aguirre e Charles Walker (orgs.), Bandoleros, abigeos

    y montoneros: criminalidad y violencia en el Per, siglos XVIII-XX. Lima: Instituto de Apoyo Agrario, 1990.

  • 15

    lavoura, maior de 50 anos, natural da vila de Camiso [atual Ipir]. Nicolau contou que,

    antes do roubo, viu Pedro e Leandro do domnio de Leopoldino Alves da Silveira, na

    fazenda de seu senhor s escondidas. Perguntado onde Leandro e outros dois escravos

    suspeitos residiam, tem ouvido dizer que residem em companhia de um senhor Carig na

    Bahia [Salvador] que [era] protetor de escravos fugidos respondeu Nicolau.2

    Eduardo Carig foi rbula e jornalista, atuou energicamente no abolicionismo baiano,

    ele agenciou no s a moo de centenas de aes de liberdade mas tambm peitou

    poderosas famlias baianas para defender os interesses dos escravos.3 Conhecido pela sua

    atuao abolicionista, Eduardo Carig era temido por diversos senhores de escravos e foi

    exaltado, pela sua atuao, pelos abolicionistas e correligionrios.

    Nicolau estava na fazenda no dia do roubo e, por isso, tentou demonstrar sua inocncia

    perante o subdelegado dando informaes circunstanciadas sobre os procurados, talvez como

    forma de resistncia, um discurso pblico.4 Nicolau disse que tinha toda convico que foi

    seu parceiro Pedro Laranjeiras o autor do roubo. Segundo esse depoente, Pedro sempre

    estava presente na fazenda do seu senhor, onde tem uma amsia de nome Luzia, tambm

    escrava do mesmo senhor, a quem lhe consta haver prometido a vir passar a noite do Natal

    com ela.5

    Pedro Laranjeira havia fugido do domnio do seu ex-senhor, apesar disso, esteve

    presente por perto. A historiografia brasileira j demonstrou a complexidade no universo das

    fugas de escravos, contrapondo interpretaes reducionistas que viam essas tomadas de

    2 APEB, Processos-crime: 27/1128/03 (1888), ff. 15-16. Segundo Jailton Lima Brito, A Abolio na Bahia: uma

    histria poltica, 1870-1888. Salvador, CEB, 2003, p. 248, Salvador foi esconderijo de escravos fugidos

    oriundos de toda provncia devido a ao de abolicionista. Sobre as motivaes para a fuga de escravos em

    outras localidades fora da provncia baiana, ver, dentre outros, Flvio dos Santos Gomes, Jogando a rede,

    revendo as malhas: fugas e fugitivos no Brasil escravista. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 1, 1996, p. 67-93;

    Marcus de Carvalho, Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo. Recife, 1822-1850. Recife, Ed. Universitria,

    1998; Geosiane Mendes Machado, Com vistas liberdade: fugas escravas e estratgias de insero social do

    fugido nos ltimos decnios do sculo XIX em Minas Gerais. Dissertao de Mestrado. Belo Horizonte:

    FAFICH/UFMG, 2010; Ana Caroline de Rezende Costa, Fugas de escravos na Comarca do Rio das Mortes,

    primeira metade do sculo XIX. Dissertao de Mestrado. So Joo del-Rei: Universidade Federal de So Joo

    del-Rei, Departamento de Cincias Sociais, 2013. 3 Ricardo Tadeu Caires Silva, Caminhos e descaminhos da abolio. Escravos, senhores e direitos nas ltimas

    dcadas da escravido (Bahia, 1850-1888). Tese (Doutorado em Histria). Curitiba: UFPR/SCHLA, 2007, p.

    247. 4 De acordo com James Scott, Los Dominados y el Arte de la Resistencia. Mexico, D.F: Ediciones Era, 2000, nas

    relaes de poder e subordinao so gerados pontos de encontro entre poderosos e governados. Nos espaos de

    encontro so exibidos discursos pblicos sendo manifestados o que os poderosos querem ouvir, reforando a

    aparncia de sua prpria subordinao. J nos espaos invisveis do poder, existe um mundo de conhecimento

    clandestino pertencente experincia da resistncia silenciosa, insubordinao sutil, e um discurso oculto. 5 APEB, Processos-crime, 27/1128/03 (1888), f. 15. Sobre fugas e relaes afetivas entre escravos na Bahia, ver

    Isabel Cristina Ferreira dos Reis. Uma negra que fugio, e consta que j tem dous filhos: fuga e famlia entre

    escravos na Bahia, Afro-sia, 23 (2000), p. 29-48.

  • 16

    conscincia e resistncia como simples negao ao sistema escravista.6 As fugas

    representaram, durante o regime de escravocrata brasileiro, uma das principais formas de

    resistncia e negociao dos escravos.7 Segundo os estudiosos da escravido, os escravos no

    fugiam apenas para conquistar a liberdade. Havia aqueles que buscavam melhorar sua

    condio no trabalho ou pressionar seu senhor a atender suas reivindicaes. Tambm, os

    escravos fugiam para no realizar trabalhos dispendiosos, escapar de castigos extremos e

    ameaas de morte. Tambm fugiam para festejos, encontros com amigos e familiares, e

    obviamente, se livrar dos rigores da escravido.8

    No foi possvel saber qual motivo especfico da fuga de Pedro, no entanto sua deciso

    no deve ter sido fcil. Sua escapada foi individual, contudo, mesmo fugas individuais no

    foram atos solitrios e autnomos, como j foi dito pelo historiador Flvio Gomes.9 Em

    alguns casos a famlia dava todo apoio. Outro aspecto interessante no caso de Pedro foi a

    vontade de no fugir pra longe. Mesmo assim, Pedro Laranjeira preferiu no distanciar-se da

    fazenda Coqueiros, pois no quis romper seus vnculos de amizade, familiar e ao local onde

    estava integrado.

    No mesmo dia do depoimento de Nicolau, a escrava Luzia, 22 anos, natural da vila de

    Camiso, trabalhadora da lavoura, seria interrogada. Ao prestar informaes sobre o roubo,

    Luzia reafirmou as informaes dos outros escravos inquiridos a respeito da sua relao com

    Pedro. Segundo Luzia, os escravos que acompanhavam seu amsio eram Jos Mathias e

    outro parceiro que andam fugidos e mais dois outros pertencentes a Leopoldino Alves, de

    nomes Leandro e Antonio, que so companheiros e amigos de Pedro. O subdelegado

    insistia em saber se Pedro Laranjeira havia passado quela noite com ela, a mesma negou.10

    O

    6 Ver, por exemplo, Marcus de Carvalho, Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo..., principalmente os

    captulos 12 e 13, respectivamente Um nome para a liberdade e A escolha de um senhor; Sandra Lauderdale

    Graham, Proteo e Obedincia: criadas e seus padres no Rio de Janeiro. 1860 1910. So Paulo, Companhia

    das Letras, 1992; Robert W. Slenes, Na senzala uma flor: esperanas e recordaes na formao da famlia

    escrava. Brasil sudeste sculo XIX. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999; Eduardo Silva, Fugas, revoltas e

    quilombos: os limites da negociao. In: Joo Jos Reis e Eduardo Silva (orgs.), Negociao e Conflito. A

    Resistncia Negra no Brasil. So Paulo, Cia. das Letras, 1989, p. 62-78. 7 Sobre a estratgia escrava na fuga, ver Joo Jos Reis e Eduardo Silva (orgs.), Negociao e Conflito...; Joo

    Jos Reis, Rebelio escrava no Brasil: e histria do levante dos mals em 1835. So Paulo: Companhia das

    Letras, 2003. 8 Jailton Lima Brito, A Abolio na Bahia..., p. 26.

    9 Flvio dos S. Gomes, Jogando a rede, revendo as malhas...

    10 APEB, Processos-crime: 27/1128/03, ff. 19-20.

  • 17

    depoimento da escrava crioula Luzia revela formas cotidianas de resistncia.11

    Interrogada

    pelo subdelegado sobre quem lhe dera uma moeda de ouro de vinte mil ris e uma cdula de

    vinte cinco mil ris e uma pea de renda e seis voltas de colar de ouro encontrados em sua

    casa, Luzia respondeu que o dinheiro h muitos dias havia tirado de sua senhora. J o

    colar de ouro, segundo Luzia, foi da furtino de Josepha de Tal [sic], escrava do mesmo

    senhor (Josepha no aparece no processo). Em relao renda, disse que foi comprada no

    italiano de nome Domingos.12

    As tiradas e furtines eram pequenos furtos, faziam parte das transgresses

    cotidianas dos escravizados em diversos lugares onde vigorou o sistema escravista. Talvez o

    objetivo dessas furtines de Luzia fosse o de ajudar na compra de sua prpria alforria e o

    butim conseguido por Pedro na casa de Jos Joaquim ajudasse nesse objetivo. Alm disso,

    Luzia foi atilada em no aludir origem dos pertences como presentes de seu amado. Os

    pequenos furtos dos escravos facilmente eram contornados pelos senhores, no era preciso

    acessar a polcia, por duas razes, primeiro: estratgias paternalistas, para o senhor no perder

    mais escravos sob seu domnio teria que fazer concesses e perdes; e segundo: apesar da

    11

    Sobre o conceito de resistncia cotidiana, ver James C. Scott, Explorao normal, resistncia normal. Rev.

    Bras. Cinc. Polt. no. 5 Braslia Jan./July 2011, p. 217-243. Para esse autor, formas cotidianas de resistncia,

    expressam a prosaica, mas constante, luta entre o campesinato e aqueles que procuram extrair-lhe trabalho,

    alimentos, impostos, rendas e juros. A maioria das formas assumidas por essa luta no chegam a ser exatamente

    a de uma confrontao coletiva. Para Scott, a luta cotidiana constantemente travada, e muitas vezes silenciosa,

    neste caso, as armas ordinrias dos grupos relativamente desprovidos de poder: relutncia, dissimulao, falsa

    submisso, pequenos furtos, simulao de ignorncia, difamao, provocao de incndios, sabotagem, e assim

    por diante. Ver, tambm, do mesmo autor, Weapons of the weak: everyday forms of peasant resistance. New

    Haven: Yale University Press, 1985. A obra dos historiadores Joo Jos Reis e Eduardo Silva (orgs.),

    Negociao e Conflito..., hoje em dia j considerado um clssico sobre a temtica da escravido, leitura

    indispensvel para aqueles interessados nas discusses sobre o tema da resistncia escrava. Para um balano

    sobre o tema da resistncia escrava no Brasil, ver Marcos de Carvalho, Resistncia escrava no Brasil: razes e

    roteiros de algumas discusses recentes. In: X Congresso da ALADAA (Associao Latino-Americana de

    Estudos da frica e sia), 2001, Rio de Janeiro. Anais do X Congresso da Associao Latino-Americana de

    Estudos da frica e sia. Rio de Janeiro: Educam - Editora da Universidade Cndido Mendes, 2001, v. 1, p. 73-

    81. 12

    APEB, Processos-crime: 27/1128/03 (1887), f. 20.

  • 18

    iminncia do trmino do elemento servil, recorrendo polcia para resoluo de casos

    midos de furtos, sem dvida os senhores colocariam sua j ruda autoridade em xeque.13

    Voltemos ento ao caso e seu desfecho. No primeiro dia de janeiro de 1888, o jornal O

    Americano noticiou sobre o roubo em que Pedro foi acusado: [...] chega-nos a notcia de ter

    sido arrombada e saqueada a casa de residncia do Sr. Jos Joaquim de Almeida, em sua

    fazenda sita na freguesia da Muritiba, cujo roubo atinge a avultada quantia. Essa notcia

    tambm informava outros roubos em fazendas da regio. Havia a suspeita dos jornalistas

    destes roubos terem sido efetuados por uma quadrilha maior de trinta larpios.14

    O dia 3 de janeiro de 1888 foi a data escolhida para os depoimentos das testemunhas.

    O primeiro a prestar depoimentos a Manuel Jos de Andrade, subdelegado em exerccio, foi

    Clementino Theodoro Leite, 32 anos, casado, que vivia da lavoura. Ao ser perguntado sobre o

    fato, informou que sabia por ouvir dizer, que na noite de Natal havia acontecido um roubo

    na casa do cidado Jos Joaquim de Almeida. A testemunha disse que o roubo fora

    praticado por escravos da casa, de conscincia com Baslio e P de Rodo. Baslio e P de

    Rodo eram os mesmos suspeitos de integrarem a quadrilha citada pelo peridico O

    Americano. Aps essa declarao, a autoridade policial quis saber se Baslio e P de Rodo

    andavam por aquela localidade, Ignorava, e nem ouviu dizer respondeu Clementino.

    Talvez a matria do peridico tenha induzido Clementino a pensar na associao desses

    roubos.15

    13

    Pequenos furtos e apropriaes de elementos das classes proprietrias fazem parte da resistncia cotidiana dos

    grupos subalternos. A bibliografia que trata sobre a criminalidade escrava, no contexto brasileiro, bem vasta,

    ver, por exemplo, Leila Mezan Algranti, O feitor Ausente: estudos sobre a escravido urbana no Rio de Janeiro

    1808-1822. Petrpolis, RJ: Vozes, 1988; Marcos Luiz Bretas, O Crime na Historiografia brasileira: uma reviso

    da pesquisa recente. Boletim informativo Bibliogrfico de Cincias Sociais, Rio de Janeiro, 1991; Adriana

    Pereira Campos, Crime e Escravido: Uma interpretao alternativa. In: Jos Murilo de Carvalho (org.) Nao

    e cidadania no Imprio: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007, p. 207-236. A autora faz

    um breve balano sobre os estudos que abordaram a criminalidade escrava na historiografia brasileira; Ricardo

    Alexandre Ferreira, Crimes em comum: escravido e liberdade sob a pena do Estado Imperial brasileiro. So

    Paulo: Editora Unesp, 2011; Slvia Hunold Lara, Campos da violncia: escravos e senhores na Capitnia do Rio

    de Janeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; Maria Helena P. T. Machado, Crime e Escravido: trabalho, luta

    e resistncia nas lavouras paulistas 1830-1888. So Paulo: Brasiliense, 1987; Cesar Mucio Silva, Processos-

    Crime: Escravido e Violncia em Botucatu. So Paulo. Alameda, 2004; Maria Cristina Cortez Wissenbach,

    Sonhos africanos e vivncias ladinas: escravos e forros em So Paulo (1850-1880). So Paulo: HUCITEC,

    1998; Mara Chinelatto Alves, Cativeiros em conflito: crimes e comunidades escravas em Campinas (1850-

    1888). Tese em Histria Social Universidade de So Paulo, 2015. Sobre algumas formas de luta e

    transgresses cotidianas no regime escravocrata brasileiro, ver, dentre outros, Joo Jos Reis, Rebelio escrava

    no Brasil: e histria do levante dos mals em 1835. So Paulo: Companhia das Letras, 2003; Sidney Chalhoub,

    Vises da liberdade: uma historia das ultimas dcadas da escravido na corte. So Paulo: Companhia das

    Letras, 1996. 14

    O Americano, 1 jan. 1888, p. 2. Roubo. 15

    APEB, Processos-crime: 27/1128/03 (1887), f. 24 v. O clebre Baslio personagem destacado no terceiro

    captulo desse trabalho.

  • 19

    Outros testemunhos se repetiram. Algumas testemunhas informaram por ouvir dizer

    que Pedro Laranjeira, esteve com Baslio na regio. Portanto, testemunhas e autoridades

    policiais acreditavam na suspeita de salteadores e abolicionistas influenciassem os escravos

    no roubo a casa de Jos Joaquim. Para esses depoentes, Pedro e seus parceiros seriam

    estimulados a cometerem esse delito por influncia externa. Talvez o prprio Jos Joaquim e

    o subdelegado quisessem acreditar que os escravos agiram induzidos por outrem. Segundo

    Walter Fraga Filho, a maioria das autoridades da poca [dcada de 1880], subestimavam a

    capacidade dos escravos de engendrar conscientemente suas prprias aes. O escravo

    Nicolau foi o nico a informar sobre uma possvel influncia de abolicionistas no roubo. Ao

    dizer que os parceiros de Pedro foram acoitados por Eduardo Carig, Nicolau talvez

    estivesse reproduzindo a fala do seu senhor, contudo, no de estranhar que populares

    tambm pensassem o mesmo a respeito de atitude extremas tomada pelos escravos.16

    Uma testemunha informou que no dia 31 de dezembro de 1887, o inspetor de

    quarteiro, Jos de Tal, havia dito a ele que Pedro Laranjeira estava prximo ao local do

    roubo. Voltara para companhia dos seus parceiros e familiares. Findado o processo no ms de

    agosto de 1888, sem as prises dos acusados. Para a felicidade de Pedro Laranjeira, sua

    amsia e sua filha que tinha alguns meses de nascida, aps esse ano no seriam mais

    obrigados a comemorarem o Natal e o Ano-Bom s escondidas.17

    Esse episdio representativo para demonstrar sobre o contexto de temores

    reverberados pelo desmantelamento do escravismo. Queixas de acoitadores; de recrutamentos

    de escravos fugidos para fazerem parte de quadrilhas de salteadores ou formarem quilombos,

    fizeram parte da agenda policial at os ltimos anos da escravido oficializada. Alm disso,

    demonstra aspectos que no encerram no ato. Alm de escravos, veremos nessa dissertao

    outros sujeitos recorrendo prtica do roubo por diversas motivaes.

    16

    Walter Fraga Filho, Encruzilhadas da liberdade: histrias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910).

    Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006, p. 79. Em abril de 1888, o senhor de escravos Egas Moniz Barreto de

    Arago, proprietrio dos engenhos Cassarangongo e Maracangalha, em so Francisco do Conde, informou ao

    baro de Cotegipe que havia encontrado nas senzalas alguns panfletos, assinados por abolicionistas de So Flix

    e Cachoeira, incitando os escravos s fugas afirmando que a escravido era um roubo. Sobre essa informao e o

    papel de abolicionistas na Bahia, ver Walter Fraga Filho, op. cit. p. 114; Jailton Lima Brito, A Abolio na

    Bahia..., p. 154; Jac dos Santos Souza, Vozes da abolio: escravido e liberdade na imprensa abolicionista

    cachoeirana (1887 1889). Dissertao de Mestrado. Santo Antnio de Jesus, Uneb, 2010, p. 24. Sobre os

    temores dos senhores de escravos em outras regies, ver, dentre outros, Clia Maria Marinho de Azevedo, Onda

    negra, medo branco: o negro no imaginrio das elites sculo XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 201,

    com a proximidade da abolio, segundo essa autora, as fazendas cafeeiras do Sudeste foram atacadas pelo

    discurso abolicionista, estimulando o incitamento dos escravos; ver tambm, Maria Helena Machado, O plano e

    o pnico: os movimentos sociais na dcada da Abolio. So Paulo: Ed. UFRJ: EDUSP, 1994. 17

    APEB, Processos-crime: 27/1128/03 (1887), ff. 19-20 v., 24 v. Segundo o escritor, folclorista e memorialista

    Mello Moraes Filho, Festas e Tradies Populares do Brasil. Braslia: Senado Federal, Conselho Editorial,

    2002, p. 31, no dia 31 de dezembro os escravos ganhavam festas, tinham folga, divertiam-se tambm.

    Disponvel em: . Acesso em: 25 dez. 2015.

  • 20

    O tema - Roubos e furtos, algumas interpretaes na historiografia

    brasileira

    A historiadora Maria Helena T. Machado, em estudo j clssico sobre o tema da

    criminalidade escrava, em Campinas e Taubat durante o sculo XIX, analisou formas de

    resistncia e estratgias de sobrevivncia de escravos. Segundo essa autora, a prtica de furtos

    e roubos nessa regio significava, para os cativos, uma suplementao a uma economia

    independente.18

    Segundo a interpretao de Maria Helena Machado, os desvios da produo

    agrcola [...] desvendam diferentes aspectos da organizao do trabalho escravo nas lavouras

    paulistas bem como se apresentam enquanto atos de consciente resistncia dominao

    senhorial.19

    Os roubos e furtos perpetrados por escravizados correspondiam s estratgias de

    sobrevivncia e acumulao, conforme apontou a autora. Para isso, ela recorreu ao conceito

    de crime social, como ato de consciente resistncia ao sistema de dominao material e

    ideolgico, expressando as concepes das camadas dominadas a respeito do justo e do

    injusto e da importncia de seu papel na construo da sociedade.20

    Seguindo a mesma perspectiva de anlise historiogrfica em seu livro Campos da

    Violncia, Silvia H. Lara analisou processos e registros de prises como uma possibilidade de

    alcanar as experincias vividas pelos indivduos escravizados e a agncia desses. Mesmo

    fazendo uma ressalva na introduo sobre os cuidados metodolgicos ao trabalhar com a fonte

    criminal, Silvia H. Lara escarafunchou e mergulhou nos autos na certeza de encontrar

    fragmentos do vivido.21

    Ao coletar 31 processos referentes a furtos e cruzando com 55

    registros de prises, a autora notou tambm que existiam diferenas entre essas duas

    instncias sobre o controle social. Esta evidncia sugere, segundo Silvia Lara, que os crimes

    de furtos podiam ser solucionados nos mbitos das fazendas e, quando sobressassem esses

    ambientes, o senhor poderia facilmente pagar os objetos ou animais furtados pelo escravo s

    vtimas. Cabe aqui uma ateno, sejam elas estatsticas de prises ou processos criminais,

    dificilmente pode se chegar a um denominador comum sobre a criminalidade e o nvel de

    18

    Ver Maria Helena P. T. Machado, op. cit. p. 39, para compreender os significados histricos dos crimes contra

    a propriedade, esta autora analisou dezoito processos criminais, sendo nove referentes a roubos/furtos de

    produtos agrcolas e nove de objetos ou dinheiro. 19

    Ibidem, p. 125. 20

    Ibidem, p. 24-5. 21

    Alguns autores posteriormente criticaram o uso de tais fontes para uma aproximao do real. Ou seja, ao invs

    de achar o acontecido e/ou sua extenso como as tramas cotidianas, o que se poderia extrair da documentao

    era, apenas, quem a produziu e para quais propsitos. Ver, por exemplo, Mariza Corra, Morte em famlia

    representaes jurdicas de papis sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983; Carlos Antonio Costa Ribeiro, Cor e

    criminalidade estudo e anlise da justia no Rio de Janeiro (1900-1930). Rio de Janeiro: UFRJ, 1995; Yvonne

    Maggie, Medo do feitio: relaes entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.

  • 21

    violncia, seja ela urbana ou rural. possvel enxergar a ponta do ice berg, mas como j foi

    dito, a inteno dessas autoras foi analisar os crimes como local privilegiado para resgatar

    aspectos do cotidiano e compreenderem a resistncia escrava de forma ampla, encarando os

    crimes de furtos, roubos, fugas, abortos, agresses fsicas, homicdios, rebelio e suicdio

    como situaes-limites.22

    Essas autoras influenciaram outros estudos sobre a escravido a partir da tica

    transgressiva da criminalidade. O trabalho de Maria Cristina Cortez Wissenbach segue nessa

    senda. Ao analisar a escravido urbana em So Paulo nos anos de 1850 a 1880, utilizando um

    arcabouo terico marxista, Wissenbach buscou o sentido social dos crimes, entendendo-os

    como aes inconformadas dos sujeitos escravizados. Logo no primeiro captulo, O sentido

    social do crime e da criminalidade escrava, a autora designou um tpico, em seu livro, para

    discutir A indisciplina das mos escravas: roubos e furtos.23

    Wissenbach encontrou nos

    autos 35 rus indiciados em crimes contra propriedade 37% cometeram roubos, 51% furtos

    e 11% estelionato. Apesar da variao dos objetos subtrados e das categorizaes feitas pelas

    autoridades judicirias, a autora demonstrou que existia um denominador comum nesses

    crimes. Nas palavras dela tais aes envolviam aspectos da sobrevivncia dos escravos uma

    vez que se apresentavam relacionados apropriao de pequenos produtos ou quantidade.

    Apesar de reservar apenas cinco pargrafos para analisar esses delitos, Wissenbach sofistica

    sua anlise ao perceber que muitos crimes poderiam corroborar com apropriaes simblicas;

    como o roubo de um par de botinas, objeto estritamente pertencente ao mundo dos brancos.24

    Em pesquisa sobre a escravido no alto serto da Bahia, durante 1830 a 1888, Maria

    de Ftima Novais Pires, no livro Crime na Cor, analisou diversos documentos: relatos de

    viajantes, processos-crime, posturas municipais, inventrios, livros de registros casamentos e

    batismos, livros de registro de compra e vendas de escravos, livros de registro de cartas de

    liberdade e jornais. Sobre os processos criminais. Ftima Pires utilizou 113 no total, dos quais

    apenas cinco foram de crimes de furto/roubo. Sua importncia ao estudar esses processos foi

    resgatar, tambm, experincias de escravos e forros em uma localidade pouco estudada. Esta

    autora privilegiou a anlise qualitativa dos processos, identificando diferenas nos tratos do

    sistema jurdico sobre delitos cometidos por escravos e/ou forros nas vilas/cidades de Rio de

    Contas e Caetit, ao qual, segundo ela, existiu uma insistente condio de suspeita e vigilncia

    sobre as vidas dos escravos por parte dos aparatos policiais e jurdicos daquela regio.

    22

    Slvia Hunold Lara, Campos da violncia..., p. 273-93. 23

    Maria Cristina Cortez Wissenbach, Sonhos africanos e vivncias ladinas..., p 51. 24

    Ibidem, p 51.

  • 22

    Ancorada no aporte terico thompsiano, Ftima Pires analisou formas de resistncia e

    estratgias de sobrevivncia, observando os crimes como um produto de demandas histrico-

    sociais, preocupando-se em buscar nas entrelinhas o no dito inseridos nos discursos.25

    Desse modo, a anlise sobre os processos histricos no corresponde em entender o nvel de

    violncia no regime escravista, ela buscou na fonte a voz dos subalternizados, suas

    demandas e anseios. Assim, a autora utiliza os processos-crime como palco privilegiado para

    entender as experincias dos escravos em suas configuraes de espao e tempo.

    Maria de Ftima chama a ateno para outra dimenso da fonte criminal, diz respeito

    preocupao em identificar o no falado nos autos, o que silencia, que no aparece, aquilo

    que no est no campo do visvel. Ou seja, para essa autora, nas fontes criminais possvel

    verificar motivaes dos delitos, pessoas envolvidas, lugares de sociabilidades, etc. Desse

    modo, importante estar atento sobre os discursos que so estabelecidos e forjados por quem

    produz a documentao e as formas de manipular as evidncias no intuito de criminalizar,

    sobretudo os sujeitos subalternizados e marginalizados.26

    Com essa lente de anlise que

    Maria de Ftima interpretou os crimes de furtos e roubos em sua pesquisa, privilegiando os

    casos particulares como frestas da realidade, no como o real.

    Em estudo recente sobre as relaes sociais entre vaqueiros e fazendeiros em

    Jeremoabo, serto da Bahia, em finais do sculo XIX, Joana Medrado analisou o cotidiano de

    disputas internas nas fazendas. A partir dos autos criminais entre 1880 a 1900 (um total de

    vinte e cinco processos de furto), a autora adentrou no universo cotidiano das relaes de

    poder entre fazendeiros e vaqueiros. Segundo Medrado, os mesmos processos podem nos

    ajudar a identificar o perfil social de personagens importantes no contexto, como os

    fazendeiros, vaqueiros, criadores e lavradores.27

    Para essa autora, os episdios inseridos nos

    processos podem coadunar com a teia de relaes conflituosas nos mbitos de trabalho que

    chegavam a situaes limites. Na interpretao de Joana Medrado, esses delitos contra a

    propriedade demonstravam uma mirade de significaes: estratgias de liberdade, defesa de

    direitos costumeiros e busca pela sobrevivncia. Os furtos trabalhados no estudo dessa autora

    muitas vezes foram praticados como uma forma de compensar a roa estragada alm de ser

    uma espcie de represlia ao fazendeiro. Nesse sentido, Joana Medrado deu um salto de

    25

    Ver Maria de Ftima Novaes, O crime na cor: escravos e forros no alto serto da Bahia (1830-1888). So

    Paulo: Annablume/Fapesp, 2003, p. 29-30. 26

    Ibidem, p. 22-3. 27

    Joana Medrado, Terra de vaqueiros: ralaes de trabalho e cultura poltica no serto da Bahia, 1880-1900.

    Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012, p. 85.

  • 23

    qualidade na anlise dos processos criminais, pois percebeu que os acusados como ladres de

    animais no estavam imbudos e motivados apenas pela fome ou carncia material.28

    A corrente da Histria Social contribuiu de forma substancial no que tange a

    produo terica internacional sobre o crime na Inglaterra do sculo XVIII.29

    Essa

    produo, sobretudo, teve como marco duas grandes obras. Foram elas o estudo de Edward

    Thompson sobre a caa clandestina e a Lei Negra em Senhores & Caadores, e a obra

    coletiva Albions fatal tree: crime and society in eighteenth-century England, editada por

    Peter Linebaugh, E. P. Thompson e Douglas Hay.30

    Esses autores preteriam termos abstratos

    como crime, optando analisar certas formas de delitos, como a caa clandestina,

    contrabando e pirataria, dentre outras. Para Peter Linebaugh, na medida em que tais

    estudiosos mergulham mais profundamente no tema do crime, do por si descobrindo crimes

    sociais em tipos de crime h muito familiares aos estudantes do banditismo. Ao rejeitar

    conceitos universais, esses autores valorizavam conhecimento do contexto social

    imprescindvel para o estudo do crime social. Uma percepo mais apurada das conjunturas

    histricas ajuda na interpretao de caractersticas que fogem das anlises baseadas a partir de

    conceitos universais e interpretaes mais abrangentes.31

    Os registros judiciais so como uma janela para resgatar aspectos do cotidiano dos

    envolvidos. Assim como outros documentos, devemos manter sempre algumas suspeitas. O

    processo criminal conduz o historiador, em primeira instncia ao crime, e desde a sua

    remontagem, no quadro das tenses scias que o geraram e na multiplicidade de eventos que

    o qualificaram como ato social.32

    Alm dos processos criminais, analisamos outros

    documentos de naturezas diversas. Os peridicos locais, as correspondncias enviadas e

    recebidas pelas autoridades policiais cachoeirana permitiram vislumbrar aspectos do cotidiano

    dos envolvidos em crimes de furto e roubo, assim como o universo da represso e combate

    aos considerados criminosos. Tambm foram analisadas atas do legislativo baiano e os

    relatrios de presidentes da provncia da Bahia abrangendo todo o perodo em estudo. Outros

    documentos foram tambm utilizados: cdigos e posturas, recenseamentos e decretos. Como

    28

    Ibidem, p. 101. 29

    Peter Linebaugh, Crime e Industrializao: a Gr-Bretanha no sculo XVIII. In: Paulo Srgio Pinheiro

    (org.). Crime, Violncia e Poder. So Paulo: ed. Brasiliense, 1983, p. 106. 30

    Douglas Hay, Peter Linebaugh e E. P. Thompson (orgs.), Albions fatal tree: crime and society in eighteenth-

    century England. New York: Pantheon, 1975. 31

    Peter Linebaugh, Crime e Industrializao..., p. 107-8; Para o entendimento dos conceitos histricos levando

    em considerao sua temporalidade e diversificao de significados, ver Reinhart Koselleck, Uma histria dos

    conceitos: problemas tericos e prticas. Estudos Histricos, vol. 5, n. 10, 1992, p. 134-146. 32

    Maria Helena Machado, Crime e Escravido..., p. 23.

  • 24

    disse Joo Reis, a histria dos dominados vinha tona pela pena dos escrives de polcia.33

    Ou seja, a histria dos grupos subalternos surge das penas dos dominantes. No dilogo dessas

    fontes com a bibliografia procuramos compreender e analisar o cotidiano do roubo em

    Cachoeira nas duas dcadas finais do sculo XIX e seus desdobramentos no campo social

    perpassados pelo fim do escravismo e a proclamao da Repblica. O resultado vem dividido

    e descrito em trs captulos que apresentamos a seguir.

    No primeiro captulo, intitulado O teatro de grandes desgraas, tem como objetivos:

    analisar as mudanas na economia, questo da abolio, secas, e, sobretudo, as consequncias

    das transformaes urbanas, que acarretaram vrias preocupaes das elites cachoeiranas

    com o que denominavam de crimes. Com o grande transito de migrantes oriundos de vrios

    lugares que aventuravam trabalhar nessas obras pblicas (construes das linhas frreas,

    ponte dom Pedro II, iluminao pblica, cemitrio, e do novo cais na dcada de 1890) ou nas

    inmeras fbricas, os atentados propriedade estiveram no palco das queixas de jornais,

    autoridades policiais e polticos locais.

    O segundo captulo tem como ttulo Grandes desejos, realidades distintas: ladres,

    roubos e furtos no termo de Cachoeira, destaca as principais modalidades de roubo e furto

    ocorridos em Cachoeira durantes as duas dcadas finais do sculo XIX que surgiram com

    mais frequncia nas fontes consultadas. Embora o objetivo deste captulo seja identificar as

    formas mais recorrentes da atividade delitiva, tambm analisamos algumas motivaes dos

    indivduos envolvidos nesses roubos, furtos e arrombamentos.

    No Captulo 2 trazemos dados quantitativos sobre os indiciados por delitos de roubo,

    furtos e arrombamentos, vislumbrando em nmeros as classificaes sociais dos envolvidos

    nos processo, somando 101 rus. Muitos desses sujeitos eram trabalhadores com maior

    mobilidade fsica com ocupaes mveis, no cais e nas obras pblicas espalhadas pela

    cidade cachoeirana. Para tanto, retiramos informaes encontradas nos processos criminais

    existentes para o termo cachoeirano entre 1880 e 1900, totalizando 59 processos, sendo oito

    desses incompletos, apenas com inquritos e autos de perguntas (encontrados em meio

    documentao policial). Extramos dessa documentao dados referentes ocupao, idade,

    cor, estatuto scio/jurdico e naturalidade. Em seguida, verificamos quem eram os

    compradores interessados nos objetos subtrados, os locais e alvos mais requisitados para a

    prtica do roubo. A inteno visualizar o emaranhado das relaes sociais desses sujeitos,

    observando que os roubos e furtos alm suprir necessidades bsicas de sobrevivncia e

    33

    Joo Jos Reis, Rebelio escrava no Brasil, a histria do levante dos mals..., p. 10.

  • 25

    consumo, poderiam representar, em alguns casos, formas de retaliaes, um ajuste de contas.

    Veremos que grande parte dos alvos foram fazendas e casas de comrcio, mas antes de

    cairmos em romantismos, atribuindo certa conscincia de classe aos ladres, que os levavam a

    atacar principalmente os antagnicos sociais, devemos ter alguns cuidados. Uma razo

    bvia, nesses locais certamente encontrariam bens valiosos; joias, animais, alm de dinheiro e

    outros objetos e roupas. Houve tambm casos de roubos e furtos contra pessoas de menos

    poder aquisitivo, contudo, provvel que muitos no chegassem a constituir um processo,

    devido tambm ao valor dos objetos subtrados. No entanto, existiu a preferncia por vtimas

    poderosas, no sendo as exclusivas para os ataques.

    Ainda nesse captulo analisamos todos os processos criminais, pertencentes comarca

    de Cachoeira, encontrados no Arquivo Pblico do Estado da Bahia, embora a catalogao do

    arquivo no corresponder s divises judiciais e administrativas do perodo em estudo.

    Apenas os processos de Maragogipe e So Felipe (talvez por no integrarem, na poca, ao

    municpio cachoeirano) se encontram separadamente dos de Cachoeira, no arquivo. As

    freguesias de So Gonalo dos Campos e Curralinho (atual Castro Alves) foram elevadas

    categoria de vila em 1880 e 1884, respectivamente, mas continuaram integrando a comarca de

    cachoeirana durante a dcada de 1880, por essa razo, os processos desse perodo esto

    catalogados junto documentao judiciria de Cachoeira. Em 1890 a freguesia de So Flix

    emancipou-se, tornando sede de comarca passando a jurisdicionar algumas freguesias antes

    pertencentes Cachoeira. Desse modo, os processos de So Flix (oito), Muritiba, Outeiro

    Redondo e Cruz das Almas, a partir do ano de 1890, esto arquivados com o nome de So

    Flix no arquivo. Toda documentao para a base estatstica se encontra no setor

    judicirio/crime e alguns inquritos inseridos na documentao policial do setor colonial.

    Trabalhamos com um conjunto de acusados e sentenciados por participar em crimes de furto,

    roubo e arrombamento na cidade de Cachoeira e suas freguesias entre 1880 a 1900. Alm dos

    processos catalogados com essas trs categorias citadas, perscrutamos outros na inteno de

    encontrar mais casos de roubo. Por exemplo, alguns processos de resistncia priso,

    apelao, translado, denncia e habeas corpus. No utilizamos os jornais por se tratar de uma

    fonte pouco confivel e com parcas informaes a respeito dos implicados nesse tipo de

    delito. Como toda amostra, esta no est livre de erros. No obstante, serve para uma

    aproximao das tendncias relativas ao roubo no termo cachoeirano durante a dcada da

    abolio.

    Baslio Ferreira e sua companhia de salteadores o ttulo do terceiro e ltimo

    captulo desta pesquisa. Diferente do segundo captulo, nesse veremos indivduos que no

  • 26

    estavam dispostos a permanecerem em trabalhos vigiados e viam no banditismo uma

    possibilidade de subsistncia. Aqui veremos o roubo como meio de vida. Neste sentido,

    procuramos mostrar atravs da trajetria do clebre salteador, o afamado Baslio Ferreira,

    conhecido por Baslio Ganhador, chefe de um grupo de ladres que executou diversos roubos,

    furtos e extorses por cerca de seis anos (1881-1887), o cotidiano desses sujeitos e suas

    maneiras de subsistir. Suas atuaes na prtica delitiva ocorreram, em sua maioria, no termo

    de Cachoeira e regies circunvizinhas. O mundo de Baslio e de seus scios e

    companheiros, assim como suas formas de viver atravs do banditismo o objetivo principal

    desse captulo. Baslio Ferreira, antes de ser considerado fora da lei, foi aguadeiro

    trabalhando no porto da cidade de Cachoeira. Ele constitui e chefiou um grupo de salteadores

    em que alguns integrantes faziam parte por tempo parcial concomitante a outros ofcios e

    ocupaes. O termo salteador era atribudo queles integrantes de quadrilhas, um

    diferenciador dos simples larpios. Geralmente eles assaltavam em estradas e fazendas,

    diferindo dos simples roubos. Esse vocabulrio tinha como objetivo magnificar as aes

    desses grupos os tornando potenciais inimigos a serem combatidos. Em seu grupo permitiu a

    entrada de escravos fugidos, o que sem dvida mais se adequava ao queixume das autoridades

    e da imprensa como zombar das vtimas. A partir da sua experincia procuramos observar

    as relaes sociais que eram tecidas no universo dos ladres; as redes de relacionamentos,

    interesses e favores e a composio social dos integrantes.

    Alguns autores interpretam o banditismo social como uma resposta rebelde contra

    opresso. Entre as mltiplas formas de expresso contrria aos dominantes, o roubo social

    seria, ento, sua figura mais cotidiana.34

    O bandido social seria aquele comprometido

    com uma causa nobre. Para Eric Hobsbawm, os bandidos sociais no seriam confundidos com

    criminosos comuns, tornam-se foras da lei e so movidos carreira do crime por sentimentos

    de justia e igualdade. Buscam conservar os laos comunitrios ameaados pelos avanos do

    capitalismo, pela soberania do poder estatal ou por senhores feudal. Muitos desses bandidos

    sociais eram vistos como heris pela sociedade qual faziam parte e contavam com todo apoio

    34

    Conferir em Carmen Vivanco Lara, Bandolerismo colonial peruano, 17601810, caracterizacon de una respuesta popular y causas econmicas. In: Carlos Aguirre e Charles Walker (orgs.), Bandoleros, abigeos y

    montoneros: criminalidad y violencia en el Per, siglos XVIII- XX. Lima: Instituto de Apoyo Agrario, 1990, p.

    44. As tradues so todas de nossa autoria; Alguns pesquisadores importantes no estudo do banditismo so,

    dentre muitos outros, Anton Blok, The Peasant and the Brigand: Social Banditry Reconsidered. Comparative

    Studies. In: Society and History, v. 14, n. 4, Sep. 1972, p. 494-503; Eric Hobsbawm, Bandidos. So Paulo: Paz e

    Terra, 2010; Richard W. Slatta, Bandidos: the varieties of latin America banditry. United States of America:

    Greenwood, 1987, p. 191-200; Peter Singelmenn, Political structure and Social Banditry, in Northeast Brazil.

    In: Journal of Latin American Studies. Cambridge: Cambridge University Press, v. 7, part 1, May 1975, p. 59-

    83; Gilbertt Joseseph, On the trail of Latin American Bandits: A reexamination of Peasant Resistance. In:

    Latin American Research Review. New Mexico: University of New Mexico, v. XXV, n. 3, 1990, p. 7-53.

  • 27

    dos oprimidos. Alguns estudiosos do banditismo social criticaram Hobsbawm pelas

    generalizaes em suas anlises, preferindo diminuir a lente para entender cada caso.

    Criticaram tambm as fontes por ele utilizadas, muitas delas baseadas em mitos que

    positivavam a imagem do bandido.35

    Outros questionamentos foram feitos ao modelo de Hobsbawm, mas sua contribuio

    aos estudos sobre banditismo, em suas variadas manifestaes, indispensvel. Apesar de no

    ser regra geral, o banditismo social carrega um protesto inconsciente embutido atrelado a

    um recorte de classe.36

    Outros autores questionaram a respeito das motivaes dos bandidos.

    Segundo Richard Slatta, muitos indivduos envolvidos na bandidagem eram movidos por

    desespero e realidades econmicas difceis. Desse modo, Slatta discordaria da ideia

    reducionista e simplista que os bandidos, estudados por Hobsbawm estivessem dispostos a

    corrigir algumas injustias sociais ou que defendiam os pobres ou sua economia moral

    frente aos avanos do capitalismo.

    No caso de Baslio Ferreira e seus companheiros, por ns pesquisado, veremos que

    eles tambm roubavam populares, contudo, aparentemente sua preferncia eram os ricos,

    obviamente.37

    Veremos nesse captulo que esses bandidos buscavam uma sada individual

    para seus problemas materiais e a solidariedade se resumia a pessoas prximas ao grupo.

    Muitas vezes reproduziam valores pertencentes aos grupos dominantes, ao contrrio de

    questionar o poder, acabavam exercendo as hierarquias e instrumentos de dominao sobre os

    populares.

    Esperamos mostrar para o leitor os limites e possibilidades nas anlises dos roubos e

    furtos, assim como as motivaes dos envolvidos nessas prticas, seja de maneira casual ou

    permanente, no termo de Cachoeira nas dcadas finais do sculo XIX.

    35

    Para uma reviso dos estudos sobre o banditismo social e as crticas feitas ao modelo de Eric Hobsbawm,

    ver Norberto O. Ferreras, Bandoleiros, cangaceiros e matreiros: Reviso da historiografia sobre o banditismo

    social na Amrica Latina. Histria [online]. 2003, vol. 22, n. 2, 2001, p. 211-26. Disponvel em: . Acesso em: 12 de set. 2015; Armando Moreno Sandoval, El

    bandolerismo social revisitado. El caso del Norte del Tolima (Colombia). In: Colombia Historelo. Revista de

    Historia Regional y Local. ISSN: 2145-132X ed: Universidad Nacional De Colombia Seccional Medellin v. 4

    fasc. N/A, 2012, p. 271-309. 36

    Luiz Bernardo Perics, Os cangaceiros: ensaio de interpretao histrica. So Paulo: Boitempo, 2010, p. 30. 37

    Para a crtica a Hobsbawm, ver Richard W. Slatta, Eric J. Hobsbawms Social Bandit: A Critique and

    Revision. A contracorriente: A Journal on Social History and Literature in Latin America, v. 1, n. 2, Spring

    2004, p. 22-30, p. 29. Disponvel em: . Acesso em:

    13 de set. 2015.

    http://www.ncsu.edu/acontracorriente/spring_04/Slatta.pdf

  • 28

    .

    Mapa 1 Municpios e freguesias do Recncavo em meados do sculo XIX.

    Fonte: Bart J. Barickman. Um contraponto baiano: acar, fumo, mandioca e escravido no. Recncavo, 1780-

    1860. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2003, p. 40 destaque nosso para o termo de Cachoeira at 1880.

  • 29

    CAPTULO 1

    O teatro de grandes desgraas

    Trabalha o bandido, trabalha o rprobo, trabalha o corsrio, trabalha o gatuno, e

    mais do que a probidade, a honradez, a virtude trabalham aqueles, mas todos

    trabalham.1

    Cachoeira foi uma das regies mais importantes da economia aucareira do Brasil,

    desde os tempos coloniais at meados do sculo XIX. Localizada margem esquerda do rio

    Paraguau a cidade de Cachoeira integra o Recncavo baiano.2 O acar e o fumo eram seus

    principais produtos econmicos, por conta disso havia grande quantidade de engenhos e,

    desse modo, um nmero grande de escravizados at as vsperas da abolio. Alm do

    tabaco e da cana o cultivo da mandioca foi um importante empreendimento agrcola da

    regio.3 Outra caracterstica considervel era seu porto (segundo em importncia econmica

    da Bahia escravista), pelo qual passavam as mercadorias que vinham do interior abastecer a

    capital atravs da navegao a vapor implantada nas primeiras dcadas do sculo XIX. Ao

    1 Slio Boccanera, Almanach do Dirio de Noticias, 1882, f. 37.

    2 Seu processo de colonizao remete ao incio do sculo XVII, quando foi ocupada por Gaspar Rodrigues

    Adorno. Os grupos indgenas foram totalmente exterminados. Sua criao data de 1693, como freguesia de

    Nossa Senhora do Rosrio da Cachoeira. J em 1698 foi elevada categoria de vila, com o nome Nossa Senhora

    do Rosrio do Porto da Cachoeira. 3 Sobre os momentos finais da escravido no Recncavo, a economia e o declinio da exportao de acar, ver

    Bert J. Barickman, At a vspera: o trabalho escravo e a produo de acar nos engenhos do Recncavo

    Baiano (1850-1881). Afro-sia, 21/22 (1998-1999), p. 177-238. Sobre a economia do fumo e da mandioca, ver,

    do mesmo autor, Um contraponto baiano: acar, fumo, mandioca e escravido no Recncavo, 1780-1860. Rio

    de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2003; ver tambm, Silvio Humberto P. Cunha, Um retrato fiel da Bahia:

    sociedade-racismo-economia na transio para o trabalho livre no Recncavo Aucareiro, 1871-1902. Tese

    (Doutorado em Histria), Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004. Para os anos finais da

    escravido e o ps-abolio, ver Walter Fraga Filho, Encruzilhadas da liberdade: histrias de escravos e libertos

    na Bahia (1870-1910). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006; Sobre o Recncavo aucareiro, ver,

    especialmente, Stuart B. Schwartz, Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835.

    So Paulo: Companhia das Letras, 1988.

  • 30

    longo do sculo XIX a cidade se consolidava como entreposto comercial entre Salvador e o

    interior do Brasil.4

    O Recenseamento do Imprio de 1872, o primeiro censo do Brasil, registrou 88.180

    habitantes no termo de Cachoeira.5 Em 1882, o abolicionista baiano, Eduardo Carig enaltecia

    a segunda cidade da Provncia, j pela sua prosperidade; a 84 km. da capital, sobre a margem

    esquerda do rio Paraguau, com 20.000 habitantes. Sobre a quantidade de pessoas

    escravizadas, as estatsticas informavam 15.347 de habitantes nessa condio. Nas dcadas

    seguintes, houve o aumento do nmero de residentes, contando 110.235 habitantes em 1890.6

    No censo de 1890, a cidade de Cachoeira tinha 35.546 habitantes e, em 1900, um total de

    45.199.7 Um crescimento substancial nas ltimas dcadas do sculo XIX. No recenseamento

    de 1872 atribuiu-se a parquia central de Cachoeira uma populao de 9.270 habitantes, j em

    1890 ela aumentaria para 12.607, enquanto a vizinha So Flix expandiu de 3.205 para 4.358

    durante o mesmo perodo.8

    Ainda segundo Eduardo Carig, a cidade era emprio do comrcio do Serto da

    Provncia e estao das estradas de ferro Comarca das Lavras Diamantinas e cidade da

    Feira de Santana.9 Alm do comrcio aquecido, durante a dcada de 1880, havia em

    4 Joo Jos Reis, Magia Jeje na Bahia: a Invaso do Calundu do Pasto de Cachoeira, 1785. Revista Brasileira

    de Histria, So Paulo, v. 8, n. 16, p. 57-81, mar./ago. 1988, p. 63-6. O termo correspondia a uma

    circunscrio geogrfica, poltico-administrativa e jurdica. No primeiro sculo de existncia da vila, seu termo

    contava com uma imensa regio geogrfica que abarcava mais de trinta atuais municpios, dentre eles Feira de

    Santana, emancipada em 1832. Por causa das participaes decisivas nas lutas de independncia do Brasil, em

    1823, lhe foi concedida o ttulo de heroica e, em 1837, a ento vila de Nossa Senhora do Rosrio do Porto da

    Cachoeira foi elevada categoria de Cidade. Antes mesmo de ser elevada cidade, a vila era o mais importante

    centro de negcios e comrcio do Recncavo baiano. Segundo Joo Jos Reis, nos finais do sculo XVIII,

    Cachoeira era o segundo ncleo populacional da Bahia, com cerca de 4.000 habitantes em 1775 e 5.000 em

    1804. Esse mesmo autor informou que, em 1826, a Cmara local estimava que a vila contasse com 6.000

    habitantes, e um total de 60.000 por todo termo. 5 Recenseamento do Brazil em 1872 (Bahia). Disponvel em: . Acesso em: 20 de jan. 2015. 6 Inclu a cidade de So Flix e a vila de So Gonalo dos Campos por fazerem parte da contagem no

    Recenseamento de 1872, sendo a populao geral delas: 39.079 e 22.814, respectivamente. Sobre o depoimento

    de Eduardo Carig, alm de outras transcries de depoimentos de cronistas, ver Pedro Celestino da Silva,

    Datas e tradies cachoeiranas. In: Anais do Arquivo Pblico da Bahia, vol. XXIX, 1943, p. 356. 7 Republica dos Estados Unidos do Brazil. Synopse do recenseamento de 31 de dezembro de 1900: = prcis du recensement du 31 dcembre 1900. Disponvel em: . Acesso

    em: 12 de jan. 2015. 8 Desses, em 1872, 972 homens e 687 mulheres (brancos), 2.100 homens e 2.964 mulheres (pardos), 435 homens

    e 994 mulheres (pretos) e 19 homens e 25 mulheres (caboclos). Os escravos totalizam 1.124, a saber, 195

    homens e 241 mulheres (pretos), e 311 homens e 377 mulheres (pardos). Nota-se uma populao

    majoritariamente de pessoas no brancas. Sobre a composio tnica de Cachoeira e So Flix, ver Fayette

    Wimberly, op. cit. p. 74-89. Sobre os dados estatsticos, ver em Recenseamento do Brazil em 1872 (Bahia).

    Disponvel em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv25477_v3_ba.pdf=>. Acesso em: 20 de jan.

    2015; Recenseamento de 31 de dezembro de 1890. Rio de Janeiro: Oficina de Estatstica, 1898. Disponvel em:

    . Acesso em: 20 de jan. 2015; Aristides Augusto Milton, Ephemerides

    Cachoeiranas. Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia, 1979, p. 409-10. 9 Pedro Celestino da Silva, Datas e tradies cachoeiranas..., p. 357.

  • 31

    Cachoeira importantes fbricas de charutos e de tecidos. Sem dvida, assim como as vizinhas

    Santo Amaro e Nazar, alm da capital Salvador, Cachoeira atraia um contingente de

    trabalhadores procura de oportunidade longe das fazendas e engenhos, em um contexto de

    mudanas sociais e polticas importantes como as leis emancipacionistas, mas tambm de

    crise econmica e seca.10

    Segundo Barickman, Cachoeira foi um grande entreposto comercial

    e sua zona rural produzia fumo (alm de outros j ditos) que era comercializado em grande

    escala. J a partir do final da dcada de 1880, predominou uma recesso econmica em toda

    provncia, ocasionando uma aguda carestia de alimentos, como a farinha e a carne seca, e

    crise na produo e comercializao da cana de acar. O Recncavo foi destino de inmeros

    retirantes do serto da Bahia e de outras localidades do Nordeste depois da grande seca de

    1888.11

    A partir da dcada de 1870 o fluxo de migrantes aumentou. Alm das oportunidades

    de trabalho no porto, houve nesse contexto as construes das linhas frreas, a construo da

    ponte dom Pedro II sobre o rio Paraguau na dcada de 1880, e a construo de um novo cais

    na dcada de 1890.12

    Essa movimentao de trabalhadores refletiu no aumento geral da

    populao e nas queixas do corpo de Polcia e nos peridicos locais sobre o aumento da

    criminalidade. O discurso de aumento da populao cachoeirana tambm justificava os

    pedidos de aumento da fora policial que foram frequentes ao longo da dcada de 1880. No

    campo social, o perodo ps 1870 cercado por diversas tenses ocorridas na cidade e no

    campo. Tornavam-se mais evidentes o temor branco e o racismo, o medo dos escravos

    pleitearem sua liberdade no tribunal, a presena de africanos e seus descendentes no

    movimento abolicionista e o uso da violncia em diversos ambientes.13

    Podemos perceber os impactos das mudanas populacionais na cidade a partir das

    10

    Para o grande fluxo de migrantes em Cachoeira nesse perodo, ver Walter Fraga Filho, Encruzilhadas da

    liberdade..., p. 328. 11

    Sobre as secas na Bahia, ver Graciela Rodrigues Gonalves, As secas na Bahia no sculo XIX (sociedade e

    poltica). Dissertao (mestrado em Histria), Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, Programa de Ps

    Graduao em Histria, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2000. Em relao carestia de alimentos

    durante o perodo republicano, ver Mrio Augusto da Silva Santos, A Repblica do povo: sobrevivncia e tenso.

    Salvador: EDUFBA, 2001. 12

    Ver Fayette Wimberly, The Expansion of Afro-Bahian Religious Practices in Nineteenth-Century

    Cachoeira. In: Hendrik Kraay (org.), Afro-Brazilian Culture and Politics: Bahia, 1790s to 1990s. New York:

    M. E. Sharpe, 1998, p. 74-89. 13

    Dale Graden, Abolio na Bahia atravs dos processos da justia. Clio/Revista de Pesquisa Histrica

    (Recife), 11. (1988), p. 87-93; Elciene Azevedo, O Direito dos Escravos. Lutas jurdicas e abolicionismo na

    Provncia de So Paulo. Campinas: Editora da UNICAMP, 2010; Ricardo Tadeu Cares Silva, Os escravos vo

    Justia: a resistncia escrava atravs das aes de liberdade. Dissertao de Mestrado, Universidade Federal

    da Bahia, 2000; Jos Pereira de Santana Neto, Falsas verdades, boas desculpas. As juntas de classificao e o

    Fundo de Emancipao. In: Gabriela dos Reis Sampaio; Lisa Earl Castillo; Wlamyra Albuquerque (orgs.),

    Barganhas e querelas da escravido: trfico, alforria e liberdade (sculos XVIII e XIX). Salvador: Editora da

    Universidade Federal da Bahia (EDUFBA), 2014.

  • 32

    queixas inseridas nos jornais. Em 8 de outubro de 1880, O Guarany, publicava um pedido

    ao senhor delegado de So Flix, Rosalvo Menezes Fraga, para que nomeasse um inspetor

    de quarteiro para o Curiachito, lugar onde, segundo o peridico, residia grande nmero

    de garimpeiros e que dia e noite, embriagados, ofendem a moralidade pblica, e at praticam

    crimes, a tudo se poder evitar havendo uma autoridade para garantia da lei, e respeito e

    sossego das famlias. Esses garimpeiros eram na verdade os trabalhadores das ferrovias, que

    instalavam, limpavam e faziam a manuteno das linhas. Segundo a antroploga Fayette

    Wimberly, em estudo sobre o candombl em Cachoeira e So Flix no mesmo perodo, as

    transformaes em ambas as cidades so ainda mais claramente reveladas na reao

    apavorada de funcionrios locais que lutavam para controlar um nmero crescente de

    trabalhadores de fbrica, e aqueles que trabalhavam em uma variedade de projetos de obras

    pblicas entre 1870 e 1900.14

    J Robrio S. Souza considera que esses indivduos estavam

    em constante vigilncia e perseguio. Nas palavras desse autor, a expressiva quantidade de

    trabalhadores nacionais e imigrantes reunida nas obras da estrada de ferro preocupava as

    autoridades polticas e policiais.15

    Sobre a queixa do peridico, muito provvel que a

    ofensa moral fosse um samba, ou mesmo um culto aos orixs, alvos corriqueiros das

    batidas policiais.16

    14

    Ver Fayette Wimberly, The Expansion of Afro-Bahian Religious Practices in Nineteenth-Century

    Cachoeira..., p. 74. 15

    Ver Robrio Santos Souza, Centenas de pessoas de diversas naes: os trabalhadores livres, libertos e

    escravos da Bahia and San Francisco Railway Company. In: Gabriela dos Reis Sampaio; Lisa Earl Castillo;

    Wlamyra Albuquerque (orgs.), Barganhas e querelas da escravido: trfico, alforria e liberdade (sculos XVIII

    e XIX). Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia (EDUFBA), 2014, p. 272. 16

    O Guarany, 8 out. 1880, p. 2. A Pedido. Sobre as perseguies aos adeptos do candombl em Cachoeira e as

    estratgias de resistncia dos seus adeptos, ver Edmar Ferreira Santos, O poder dos candombls: perseguio e

    resistncia no Recncavo da Bahia. Salvador, EDUFBA, 2009; ver tambm, Joo Jos Reis. Magia Jeje na

    Bahia..., 1988.

  • 33

    Figura 1 Ponte Dom Pedro II ligando a cidades de Cachoeira a So Flix, s/d.

    Fonte: Sterling Numismtica.

    Figura 2 Porto de So Flix, s/d.

    Fonte: Acervo do Arquivo Pblico Municipal de So Flix.

  • 34

    Em 14 de maro de 1889, prximo do aniversrio de um ano da abolio do elemento

    servil, o subdelegado da freguesia de So Flix comunicou ao presidente da provncia:

    Achando-me em dificuldade no exerccio de minhas funes no carter de autoridade policial desta

    Freguesia devido a grande nmero de emigrantes famintos que diariamente aqui abundam e

    procuram-me para os auxiliarem com agasalhos e trabalho onde possam tirar resultado para si e

    suas pobres famlias que gemem e choram a falta de alimentao, sendo esta Freguesia no quadro

    que atravessamos, testemunhas dos atos mais dolorosos e dignos de toda comiserao.

    Completava:

    Bem que, todos os habitantes desta Freguesia sejam humanitrios e no se poupem a prestar

    auxlios a seus irmos que vagam pelas ruas esmolando o trabalho e o po da caridade, e jamais

    tenho empregado todos os esforos para bem acomodar a estes emigrantes que aqui vem abrigar-se

    em procura de auxlio, e nesta misso que de meu dever cumprir, tenho sido auxiliado por alguns

    negociantes desta praa.

    E como j estejam todos os recursos escassos, por no haver trabalho que possa acomodar a

    nmero superior de duzentas pessoas que se acham nesta Freguesia, implorando o po para se

    alimentarem.

    Exmo. Senhor, com certeza seremos visitados por modstias epidmicas e pela fome devido a

    escassez dos gneros alimentcios e a falta de recurso pecunirios para os oprimidos.17

    Em resposta, o presidente da provncia, Manuel do Nascimento Machado Portela, comunicou

    ao subdelegado que havia ordenado a Comisso Central desta Comarca para empregar estes

    emigrantes em obras do Cemitrio. Por sua vez, o subdelegado informou ao presidente que

    as obras do cemitrio so mais artsticas que de emprego comum, no podendo admitir mais

    que um nmero suficiente e limitado de trabalhadores.

    Em outra correspondncia, o subdelegado Reinero enfatizou suas queixas sobre os

    emigrantes. Segundo ele,

    Tenho-me dirigido a esta Presidncia por telegramas pedindo providncias urgentes para empregar

    grande nmero de pessoas que tem afludo de diversos pontos para esta Freguesia que, na maior

    desolao apresentam-se pedindo alimento e trabalho para se ocuparem, afim de no morrerem a

    fome. Tenho que levar ao conhecimento de V. Ex. que esta Freguesia, se bem que industrial e

    comercial, no pode suportar grande nmero de emigrantes, porque os habitantes profissionais

    tambm esto passando pela desvantagem na reduo de salrio que no ajudam a manter-se

    jamais na escassez e carestia dos gneros alimentcios.

    Alm disso, Reinero queixou-se da ameaa de epidemias pelas inconclusas obras sanitrias.

    Lembrando,

    portanto a V. Ex. a vala e a concluso do cano da praa do Rosrio que j foi medida e orada

    pelo Sr. D. Maciel, engenheiro Fiscal; cujas obras so as mais necessrias; pelo estado insalubre e

    prejudicial a sade pblica por ser no centro comercial desta Freguesia, tanto maior quando nos

    vemos ameaados pelo terrvel e aterrador hospede a febre amarela . Acrescendo mais que na

    emergente circunstncia dos emigrantes poderem ser empregados no movimento de terra e

    escavaes, trabalhos mais ou menos aproveitveis e uteis a esta Freguesia, e a eles que so

    profissionais deste emprego.

    17

    APEB, Correspondncias recebidas dos subdelegados de Polcia (1844 1889), mao: 3006.

    Correspondncia do subdelegado Reinero Ascendino da Silva para o presidente da provncia, Manuel do

    Nascimento Machado Portela, 14 mar. 1889.

  • 35

    Insistia que

    em considerao a que acabo de expor, espero com a mxima brevidade a providncia pedida para

    que haja ordem e garantia ameaada pelo estado aterrador dos infelizes que no mais apertado

    transe de sua vida podero no desespero da fome, cometer atos reprovados e criminosos.18

    Fica evidente aqui que os queixumes do subdelegado foram recursos utilizados para

    atender a um grupo especfico, a saber, os comerciantes locais. Para alm de suas

    sensibilidades com os famintos, seu pedido almejava celeridade nas obras pblicas no

    centro comercial. Alm disso, o subdelegado pretendia se isentar das queixas de falta de

    atividade e vigilncia, transmitidas por peridicos locais, afirmando no ter tempo para

    exercer sua autoridade policial. Reinero Ascendino comunicou ao presidente da provncia, de

    forma alarmante, sobre as consequncias de no inserirem esses emigrantes nos canteiros de

    obras urbanas. Portanto, lavava as mos diante da possibilidade desses infelizes

    descambassem para, no desespero da fome, praticar atos reprovados e criminosos.19

    De maneira alarmante o delegado Rosalvo Menezes Fraga comunicou ao chefe de

    polcia, em julho de 1889, o grande fluxo de indivduos refugiados da seca. Segundo o

    delegado, cerca de 300 flagelados estavam espalhados pelas ruas da cidade e seria necessrio

    reforo policial para conter uma possvel ameaa contra o patrimnio pblico e privado.20

    Trs meses depois do telegrama ao chefe de polcia, tentando aumentar o rigor na vigilncia

    aos forasteiros, o delegado Rosalvo Menezes Fraga estabeleceu uma portaria. A portaria

    exigia uma relao exata de todas as pessoas que estivessem hospedadas nos hotis ou

    casa de pasto, como eram conhecidos estabelecimentos modestos onde serviam refeies,

    lugares que abrigavam migrantes e viajantes. Para Rosalvo Fraga, seria da maior

    convenincia que a polcia tenha exato conhecimento de todas as pessoas que transitam por

    esta cidade [tambm a freguesia de So Flix] e que nela permanecem temporariamente.

    Pouco mais de um ano da abolio, com o fluxo intenso de pessoas vindo para cidade, parece

    que a polcia cachoeirana traava estratgias para prevenir crimes. A retrica da defesa da

    propriedade era o vu que cobria a real preocupao das autoridades polticas e policiais,

    18

    APEB, Correspondncias recebidas dos subdelegados de Polcia (1844 1889), mao: 3006.

    Correspondncia do subdelegado Reinero Ascendino da Silva para o presidente da provncia, Manuel do

    Nascimento Machado Portela, 30 mar., 1889. 19

    APEB, Correspondncias recebidas dos subdelegados de Polcia (1844 1889), mao: 3006. 20

    APEB, Polcia/delegados (1885-1889), mao: 6227. Correspondncia do delegado Rosalvo Menezes Fraga

    para o chefe de polcia, Domingos Rodrigues Guimares.

  • 36

    legitimando as tentativas de identificar para controlar os passos da populao urbana, dos

    quais muitos eram libertos e retirantes.21

    A cidade atraia aqueles que buscavam oportunidades no s para trabalhar, mendigar e

    cuidar da sade na Santa Casa de Misericrdia, mas tambm na arte de roubar. Eram vrias

    as motivaes para a prtica do roubo e do furto, como veremos oportunamente no segundo

    captulo. Por exemplo, em um contexto no qual alguns indivduos rejeitados do servio

    militar ou fugindo de servios pesados, muitos acabavam vendo no furto uma alternativa

    vivel de sobrevivncia. Como foi o caso de Marcolino Alves Barbosa, ganhador, 21 anos,

    solteiro, natural da vila de So Gonalo, morava em um quarto alugado na Rua dos Remdios,

    acusado de roubar vrios objetos no ano de 1891 aps ter sido rejeitado como recruta do

    batalho do exrcito pelo seu defeito fsico. Tambm existiam aqueles que buscavam

    comprar suas alforrias e sonhavam com a liberdade (sua ou de um ente querido, como foi o

    caso de Pedro Laranjeira, cuja saga foi narrada na introduo desta pesquisa), tentando somar

    ao seu peclio a venda de objetos roubados, como o caso de Rodrigo da Fonseca (escravo),

    que veremos mais adiante. Existiram queles que trabalhavam e enxergavam no furto uma

    possibilidade de complementao da renda ou, em momentos crticos, como ajuste de contas.

    So alguns exemplos que veremos aqui.

    Princpio do fim: prises e recrutamentos

    O Cdigo Criminal do Imprio de 1830 definia como furto Tirar a cousa alheia contra

    a vontade de seu dono, para si, ou para outro (art. 257). J o roubo baseava na subtrao

    fazendo violncia pessoa, ou s cousas (art. 269). No ano de 1890, com o advento da

    Repblica, foi promulgado o Cdigo Penal. A diferena entre furto (art. 330) e roubo se

    manteve, contudo, no tocante ao roubo (art. 357), a legislao republicana tratou de ampliar o

    entendimento no que diziam a r