-
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
Salvador
2016
-
ELISEU SANTOS FERREIRA SILVA
ROUBOS E SALTEADORES NO TEMPO DA ABOLIO (Cachoeira, dcada de 1880)
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Histria Social da Universidade Federal da Bahia,
como requisito parcial para obteno do grau de Mestre
em Histria, sob orientao da Prof. Dr. Wlamyra
Ribeiro de Albuquerque.
Salvador
2016
-
FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DA FFCH - UFBA
_____________________________________________________________________________
Silva, Eliseu Santos Ferreira
S586 Roubos e salteadores no tempo da abolio (Cachoeira, dcada de 1880) / Eliseu
Santos Ferreira Silva. Salvador, 2016.
177 f. : il.
Orientadora: Prof. Dr. Wlamyra Ribeiro de Albuquerque
Dissertao (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e
Cincias Humanas. Salvador, 2016.
1. Bandidos e salteadores - Histria. 2. Roubo Histria. 3. Cachoeira (BA)
Histria. I. Albuquerque, Wlamyra Ribeiro de. II. Universidade Federal da Bahia.
III. Ttulo.
CDD 981.42
____________________________________________________________________________
-
FOLHA DE APROVAO
ELISEU SANTOS FERREIRA SILVA
ROUBOS E SALTEADORES NO TEMPO DA ABOLIO
(CACHOEIRA, DCADA DE 1880)
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Histria Social da Universidade Federal da Bahia,
como requisito parcial para obteno do grau de Mestre
em Histria, sob orientao da Prof. Dr. Wlamyra
Ribeiro de Albuquerque.
Aprovada em ____de__________de 2016
BANCA EXAMINADORA
Professora Doutora Wlamyra Ribeiro de Albuquerque Orientadora
Universidade Federal da Bahia
Professora Doutora Iacy Maia Mata
Universidade Federal da Bahia
Professor Doutor Walter Fraga Filho
Universidade Federal do Recncavo da Bahia
-
Para meus pais, Ivete Magali e Ednilson Manuel (In memoriam), por tudo.
-
AGRADECIMENTOS
Pesquisa algo extenuante e cansativo. Sem ajuda seria impossvel dar conta de tanta
demanda. Esse espao, alm de demonstrar gratido, para pedir desculpas pelas chatices e
recluses. Enfim, agradecer preciso.
Primeiramente agradeo ao povo cachoeirano. Desde 2010, quando fui estudar na
Universidade Federal do Recncavo da Bahia (UFRB), em Cachoeira, fiquei fascinado por
essa cidade. Seu povo hospitaleiro anima cada dia os forasteiros, como eu. De forma alguma
essa pesquisa pode no ser vista como retorno ou presente cidade ou a seus filhos (os que
nasceram nela).
Agradeo muito aos trabalhadores brasileiros por, atravs da CAPES, terem
financiado o desenvolvimento da dissertao, permitindo que eu pudesse dedicar-me
exclusivamente pesquisa. Para tanto, contei com a pacincia e generosidade dos
funcionrios e estagirios do Arquivo Pblico do Estado da Bahia: Pedro, Elza, Ccero, Jeane,
Larissa, Jessica, Maria, dona Marlene e Reinaldo (Rei). No posso esquecer-me daquele que
conhece o arquivo to bem quanto sua palma da mo: Urano, sou muito grato por ter me
ajudado muitas vezes a encontrar vrios documentos, agradeo tambm pelas conversas e
andanas. Gratido tambm a Gilvan, funcionrio da Ps-Graduao em Histria da UFBA,
pela disposio, disponibilidade e pacincia em resolver questes burocrticas facilitando
sempre. Grato aos que intermediaram meu acesso s fontes em outras instituies: seu
Fernando, no Instituto Geogrfico e Histrico da Bahia; seu Carlos, na Biblioteca Pblica do
Estado da Bahia; Osias, no Arquivo Municipal de So Flix; Fernando, dona Jacy, dona Rita,
dona Anglica e dona Bety, do Arquivo Regional de Cachoeira.
Aos amigos, peo desculpa se esquecer de algum. Esse espao nfimo para tantos
nomes. Grato aos camaradas da graduao: Samyr Uhuru, Jos Carlos, Luiz Gabriel e Lus
Antnio. Sem vocs a sobrevivncia durante os quatro anos seria mais difcil. Ao pessoal da
Casa de Estudantes Ademir Fernando. Grato aos amigos e colegas que tive a oportunidade de
conhecer no mestrado. Companheiros de boas discusses no R.U. (restaurante universitrio):
Alexandre, Antnio, Rosngela, Danielle, Aline, Thiago, Luana, Ricardo, Alfredo, Tatiane,
Ailton, Kalina, Nilceanne, Emily, Alan Cerqueira, Marcelo e Tania. Em especial meu
camarada alagoano, Moiss, Jucimar, Raul e Alan Passos, amigos e companheiros de
angstias, que leram partes dessa pesquisa ainda em estgio embrionrio. Ainda devo
mencionar o colega de tema Antnio Hertes, obrigado por ler parte inicial dessa dissertao e
-
propor sugestes. A Clssio Santana pelas dicas sobre aspectos da histria de Cachoeira.
Cacau Nascimento por ter cedido algumas imagens. Igor Gomes muitssimo obrigado. Sua
predisposio em ajudar e sua generosidade nunca esquecerei. Sou muito grato a voc por ter
deixado sua biblioteca disposio.
Na vida acadmica o encontro com professores bons mudam nossos caminhos. Tive a
honra de ter convivido com alguns deles. Aos mestres que mudaram e potencializaram minha
trajetria acadmica na Universidade Federal do Recncavo da Bahia, devo mencionar:
Walter Fraga Filho, que primeiro me ensinou a arte da pesquisa e a importncia de estudar
trajetrias. Tive o privilgio e o prazer de t-lo na banca de defesa da dissertao. Sou
imensamente agradecido pelos elogios e sugestes, espero ter dado conta; Antnio Liberac
Cardoso Simes Pires, por ter me concedido uma bolsa de iniciao cientfica que me
possibilitou comear essa pesquisa. Sua orientao sempre animadora deixava a dificuldade
esmorecer. Agradeo muito por seu estmulo e ateno Liberac. Seria complicadssimo
engrenar nos estudos histricos sem ter conhecido esses grandes mestres. Sou imensamente
grato Elciene Azevedo por ter sido a primeira a ler meus rabiscos do projeto mesmo sem me
conhecer, continue assim para alegria dos futuros historiadores. Na Universidade Federal da
Bahia tive o prazer e a honra de conhecer e ter tido aula com o professor Joo Jos Reis. Sua
simplicidade e ensinamentos me ajudaram grandiosamente a ser um leitor mais atento e ter
mais cuidados com a escrita. Agradeo tambm a todos integrantes da linha de pesquisa
Escravido e Inveno da Liberdade, que nas reunies e discusses de textos acabam
ajudando muito aqueles que ouvem atentamente as recomendaes.
Agradeo aos professores Antonio Luigi Negro e Iacy Maia Mata pelas questes
apresentadas na banca de qualificao sugerindo e apontando caminhos possveis a seguir na
pesquisa. Grato pela ateno da leitura e observaes feitas no texto. Iacy Mata tambm fez
parte da banca de defesa e ainda sugeriu o ttulo desta dissertao. Agradeo intensamente
pelos elogios e crticas, sem dvida o amadurecimento desse texto no seria possvel sem as
observaes certeiras de Iacy Mata.
Agradecer a Wlamyra Albuquerque ser difcil. Minha admirao enorme e a
gratido difcil de expressar. Sua intimidade com a pesquisa algo fenomenal. Desde o
primeiro encontro me deu um norte. Sua pacincia com meus desacertos, felicidade nos meus
achados e rigor profissional fizeram brotar motivaes e empolgaes nesse trabalho. Credito
meus xitos a voc e assumo todos os erros e equvocos aqui. Meu muitssimo obrigado.
Saiba que foi um privilgio ter nessa jornada a sua orientao e amizade. Espero ao menos
parcialmente ter correspondido altura o seu esforo e ateno.
-
Por fim, mas no menos importante, agradeo aos meus. Gratido s pessoas amadas e
queridas que me incentivaram, apoiaram, motivaram e sempre acreditaram em mim. Todos
meus esforos dedicarei a mainha (Ivete Magali). Obrigado por tudo. Voc abdicou de
vrias coisas em prol de cuidar de mim e de meu irmo, Elias, a quem tambm sou sempre
grato por ter sempre me ajudado quando pde e quando no podia tambm; a meu pai
Ednilson Manuel (in memoriam) por ter sempre me falado para estudar, criando artifcios para
isso (muitos deles no to brandos); a minha pequena sapeca, Ana Sofia, minha filha, por ter
me mostrado desde sua chegada que a vida pode ser mais colorida e amena; e a Patrcia por
ter sido minha incentivadora em tudo, alm de ter me dado o maior tesouro (nossa filha), alm
disso, me atura por longo tempo e suporta minhas chatices e decepes, tambm por ter lido e
sugerido mudanas em muitas passagens deste trabalho, minha grande interlocutora
forada. Minha gratido a todos vocs imensurvel.
-
Dissimulados, ladres, sem dvida; seus
pequenos furtos assinalam o comeo de uma
resistncia ainda desorganizada.
(Jean-Paul Sartre, 1979).
-
SILVA, Eliseu Santos Ferreira. Roubos e salteadores no tempo da abolio (Cachoeira,
dcada de 1880). Dissertao (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de
Filosofia e Cincias Humanas. Salvador, 2016.
RESUMO
Esta dissertao tem por objetivo analisar prticas relativas aos furtos e roubo no termo de
Cachoeira durante a dcada de 1880, localidade de grande importncia econmica durante o
sculo XIX, situada s margens do rio Paraguau no Recncavo da provncia da Bahia.
Objetivamos, alm disso, compreender algumas prticas e sujeitos envolvidos em furto e
roubo no termo de Cachoeira, bem como o combate a esse tipo de infrao no tempo da
abolio. O recorte cronolgico corresponde a um perodo de grandes transformaes no
campo social (desmonte do escravismo), econmico e poltico (Repblica), diz respeito
tambm a um aumento populacional devido a oportunidades de emprego nas obras pblicas e
os retirantes fugindo da grande seca de 1888. Ademais, tambm objetivo identificar redes de
sociabilidades de sujeitos, que de maneiras diversas, se associaram a furtos e roubos. Para
entender melhor a organizao desses sujeitos e seus modos de viver, seguiremos o grupo
liderado por Baslio Ferreira, conhecido como Baslio Ganhador, que atuou ao longo da
dcada de 1880. Atravs da anlise da documentao jurdica e policial correspondncias
entre autoridades (policiais, judicirias e administrativas), peridicos, cdigos e posturas
municipais, relatrios de presidentes de provncia, atas do legislativo provincial, buscamos
compreender as atitudes tomadas por esses rgos envolvidos no combate aos delitos e defesa
da propriedade e as estratgias de sobrevivncia e resistncia desenvolvidas pelos indivduos
indiciados como ladres.
Palavras-chaves: Roubos e furtos. Salteadores. Autoridades cachoeiranas. Cachoeira, Bahia
Final do sculo XIX.
-
ABSTRACT
This paper aims to examine practices related to theft and robbery in Cachoeira term during the
1880s, city of great economic importance in the nineteenth century, situated on the River
Paraguau in the Bahia province of Recncavo. We aim also to understand some practices and
individuals involved in theft and robbery in Cachoeira term and combat this type of offense at
the time of abolition. The chronological cut corresponds to a period of great change in the
social field (dismantling of slavery), economic and political (Republic) relates also to a
population increase due to employment opportunities in public works and refugees fleeing the
great drought of 1888. Moreover, it is also to identify networks of sociability of individuals
who in different ways were associated with theft and robbery. To better understand the
organization of these individuals and their ways of living, we will follow the group led by
Baslio Ferreira, known as Baslio Ganhador, who served throughout the 1880s. Through
the analysis of legal documentation and correspondence between police authorities (police,
judicial and administrative), periodicals, codes and municipal ordinances, provincial
presidents reports, the provincial legislative acts, we seek to understand the actions taken by
these agencies involved in the fight against crime and defense of property and survival and
resistance strategies developed by indicted individuals as thieves.
Keywords: Robbery and theft. Robbers. Cachoeira authorities. Cachoeira, Bahia 19th
.
century.
-
LISTA DE ABREVIATURAS
APEB Arquivo Pblico do Estado da Bahia
APMSF Arquivo Pblico Municipal de So Flix
ARC Arquivo Regional de Cachoeira
BPEBa Biblioteca Pblica do Estado da Bahia
FHC Family History Center
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
IGHBa Instituto Geogrfico e Histrico da Bahia
BNDital Biblioteca Nacional Digital
-
LISTA DE MAPAS, ILUSTRAES, TABELAS E QUADRO
Mapas
MAPA 1 MUNICPIOS E FREGUESIAS DO RECNCAVO EM MEADOS DO SCULO XIX. ........................................... 28 MAPA 2 CARTA DA CIDADE DE CACHOEIRA E SO FLIX. ................................................................................ 104 MAPA 3 MAPA DA CIDADE DE CACHOEIRA COM DESTAQUE PARA A ZONA DA RECUADA. ................................. 131
Ilustraes
FIGURA 1 PONTE DOM PEDRO II LIGANDO A CIDADES DE CACHOEIRA A SO FLIX, S/D. ................................... 33 FIGURA 2 PORTO DE SO FLIX, S/D.................................................................................................................... 33 FIGURA 3 CASA DE CMARA E CADEIA DE CACHOEIRA, S/D. .............................................................................. 40 FIGURA 4 JOAQUIM IGNCIO TOSTA (1856-1919). .............................................................................................. 61 FIGURA 5 LADEIRA DO MONTE AINDA, S/D. ......................................................................................................... 69 FIGURA 6 RUA DAS LOJAS, ATUAL RUY BARBOSA. CARTO POSTAL, 1904. ..................................................... 105 FIGURA 7 RUA DAS FLORES. CARTO POSTAL COLORIDO, S/D. ......................................................................... 124 FIGURA 8 SANTA CASA DE MISERICRDIA DE CACHOEIRA, 1905. .................................................................... 143
Tabelas
TABELA 1 FURTOS E ROUBOS ANO ................................................................................................................... 45 TABELA 2 OCUPAES DOS SUSPEITOS, 1880-1900 ............................................................................................ 98 TABELA 3 NATURALIDADE DOS INDICIADOS POR FURTO E ROUBO, 1880-1900.................................................. 100 TABELA 4 BENS SUBTRADOS, 1880-1900 ......................................................................................................... 101 TABELA 5 FURTOS E ROUBOS REGIO (SEDE E FREGUESIAS), 1880-1900 ....................................................... 102 TABELA 6 FURTOS E ROUBOS LOCAIS ALVOS, 1880-1900............................................................................... 106
Quadro
QUADRO 1 CRONOLOGIA DOS PRINCIPAIS CRIMES ENVOLVENDO O GRUPO DE BASLIO...................................... 125
file:///C:/Users/Zeu/Desktop/29%20ago%2016%20verso%20final.docx%23_Toc460600426
-
SUMRIO
Agradecimentos .......................................................................................................................... v Resumo ...................................................................................................................................... ix Abstract ....................................................................................................................................... x Lista de abreviaturas .................................................................................................................. xi
Lista de mapas, ilustraes, tabelas e quadro ........................................................................... xii Introduo ................................................................................................................................. 14 Captulo 1: O teatro de grandes desgraas ............................................................................ 29
Princpio do fim: prises e recrutamentos ......................................................................... 36
Maus hbitos que possui: criminalizao e vadiagem ...................................................... 50
Que o crime seja esmagado, e o direito de propriedade garantido .................................... 59
Captulo 2: Grandes desejos, realidades distintas: ladres, roubos e furtos no termo de
Cachoeira .................................................................................................................................. 74 Larpios de toda a espcie, os ladres vulgarmente conhecidos ....................................... 77
Indicadores sociais dos indiciados ........................................................................................ 96
Bens, alvos e locais ............................................................................................................. 100
Negra nag gosta muito de ouro: receptadores/as ........................................................... 106
Captulo 3: Baslio Ferreira e sua companhia de salteadores.............................................. 111
O clebre salteador Baslio .............................................................................................. 113
A um co danado, todos a ele, ou a eles ........................................................................... 119
Composio social e organizao da quadrilha de salteadores chefiada por Baslio ...... 127
Priso de um salteador ..................................................................................................... 138
Consideraes finais ( guisa de desfecho) ............................................................................ 145
Fontes ..................................................................................................................................... 148 Bibliografia: artigos, livros, dissertaes e teses .................................................................... 156
Anexos .................................................................................................................................... 170
-
14
INTRODUO
Noite do dia 24 de dezembro de 1887, um sbado, o fazendeiro Jos Joaquim de
Almeida e sua esposa, proprietrios e moradores da fazenda Coqueiros, se preparavam para
irem missa de Natal na capela das Laranjeiras, freguesia de Muritiba. Mas, inesperadamente
o senhor sentiu um incomodo e sugeriu a sua senhora que fosse missa sem ele. Ela, a
senhora, seguiu com as amigas e um squito de criadas, ficando Jos Joaquim quase
sozinho em casa. Por volta das 2 horas da madrugada, quando ele j estava dormindo em seu
quarto trancado por dentro, acordou espantado quando algum acendeu o candeeiro. O
sujeito apagara imediatamente o candeeiro quando viu o senhor na cama, mas Jos Joaquim
conseguiu identificar o ladro. Tratava-se de Pedro Laranjeiras, seu escravo fugido h cerca
de sete meses, que agora invadia o seu quarto com um faco em punho.1
Pedro Laranjeiras no se intimidou ao ver o ex-senhor. Dera diversos panos [golpes
com a lateral do faco] e pequenos furos no corpo do senhor. Provavelmente, o senhor reagiu
e Pedro o agrediu na tentativa de conseguir levar os bas. Ele conseguiu levar quatro bas
contendo dinheiro, colares de prata e roupas. Pedro no estava s, e pelo visto sabia que
aquele Natal seria um momento oportuno para efetuar o roubo. O mal estar, o incomodo
repentino de Jos Joaquim, provavelmente, no estava em seus planos. Segundo os escravos
do senhor Jos, Pedro havia prometido a vir passar a noite de Natal com Luzia. Sua
companheira Luzia era escrava do mesmo senhor de Pedro e com ele tinha uma filha de
alguns meses de nascida. Talvez por essa razo Pedro Laranjeiras evitasse matar o senhor,
alm de acentuar sua pena, caso fosse preso, atenuaria a possibilidade de voltar a ver seus
entes queridos.
Aps o infortnio, o senhor Jos Joaquim passou a procurar Pedro Laranjeira. Passada
a humilhao e o risco de morte, aps o feriado natalino, no dia 26 de dezembro quatro
escravos do fazendeiro Jos Joaquim de Almeida foram interrogados pelo subdelegado
Manuel Jos de Andrade. O primeiro interrogado foi o velho escravo Nicolau, trabalhador da
1 Arquivo Pblico do Estado da Bahia (doravante APEB), Processos-crime de furto em que ru Pedro
Laranjeira (e outros), 27/1128/03 (1888), f. 34 v. A ortografia foi atualizada, respeitando, porm, a estrutura
sinttica. Sobre escravos fugidos que viam no roubo a possibilidade e alternativa urgente de suprir suas
necessidades bsicas, ver Luiz Carlos Soares, O 'povo de Cam' na capital do Brasil: a escravido urbana no Rio
de Janeiro do sculo XIX. Rio de Janeiro: Faperj; 7Letras. 2007; Carlos Aguirre, Cimarronaje, bandolerismo y
desintegracin esclavista: Lima, 18211854. In: Carlos Aguirre e Charles Walker (orgs.), Bandoleros, abigeos
y montoneros: criminalidad y violencia en el Per, siglos XVIII-XX. Lima: Instituto de Apoyo Agrario, 1990.
-
15
lavoura, maior de 50 anos, natural da vila de Camiso [atual Ipir]. Nicolau contou que,
antes do roubo, viu Pedro e Leandro do domnio de Leopoldino Alves da Silveira, na
fazenda de seu senhor s escondidas. Perguntado onde Leandro e outros dois escravos
suspeitos residiam, tem ouvido dizer que residem em companhia de um senhor Carig na
Bahia [Salvador] que [era] protetor de escravos fugidos respondeu Nicolau.2
Eduardo Carig foi rbula e jornalista, atuou energicamente no abolicionismo baiano,
ele agenciou no s a moo de centenas de aes de liberdade mas tambm peitou
poderosas famlias baianas para defender os interesses dos escravos.3 Conhecido pela sua
atuao abolicionista, Eduardo Carig era temido por diversos senhores de escravos e foi
exaltado, pela sua atuao, pelos abolicionistas e correligionrios.
Nicolau estava na fazenda no dia do roubo e, por isso, tentou demonstrar sua inocncia
perante o subdelegado dando informaes circunstanciadas sobre os procurados, talvez como
forma de resistncia, um discurso pblico.4 Nicolau disse que tinha toda convico que foi
seu parceiro Pedro Laranjeiras o autor do roubo. Segundo esse depoente, Pedro sempre
estava presente na fazenda do seu senhor, onde tem uma amsia de nome Luzia, tambm
escrava do mesmo senhor, a quem lhe consta haver prometido a vir passar a noite do Natal
com ela.5
Pedro Laranjeira havia fugido do domnio do seu ex-senhor, apesar disso, esteve
presente por perto. A historiografia brasileira j demonstrou a complexidade no universo das
fugas de escravos, contrapondo interpretaes reducionistas que viam essas tomadas de
2 APEB, Processos-crime: 27/1128/03 (1888), ff. 15-16. Segundo Jailton Lima Brito, A Abolio na Bahia: uma
histria poltica, 1870-1888. Salvador, CEB, 2003, p. 248, Salvador foi esconderijo de escravos fugidos
oriundos de toda provncia devido a ao de abolicionista. Sobre as motivaes para a fuga de escravos em
outras localidades fora da provncia baiana, ver, dentre outros, Flvio dos Santos Gomes, Jogando a rede,
revendo as malhas: fugas e fugitivos no Brasil escravista. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 1, 1996, p. 67-93;
Marcus de Carvalho, Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo. Recife, 1822-1850. Recife, Ed. Universitria,
1998; Geosiane Mendes Machado, Com vistas liberdade: fugas escravas e estratgias de insero social do
fugido nos ltimos decnios do sculo XIX em Minas Gerais. Dissertao de Mestrado. Belo Horizonte:
FAFICH/UFMG, 2010; Ana Caroline de Rezende Costa, Fugas de escravos na Comarca do Rio das Mortes,
primeira metade do sculo XIX. Dissertao de Mestrado. So Joo del-Rei: Universidade Federal de So Joo
del-Rei, Departamento de Cincias Sociais, 2013. 3 Ricardo Tadeu Caires Silva, Caminhos e descaminhos da abolio. Escravos, senhores e direitos nas ltimas
dcadas da escravido (Bahia, 1850-1888). Tese (Doutorado em Histria). Curitiba: UFPR/SCHLA, 2007, p.
247. 4 De acordo com James Scott, Los Dominados y el Arte de la Resistencia. Mexico, D.F: Ediciones Era, 2000, nas
relaes de poder e subordinao so gerados pontos de encontro entre poderosos e governados. Nos espaos de
encontro so exibidos discursos pblicos sendo manifestados o que os poderosos querem ouvir, reforando a
aparncia de sua prpria subordinao. J nos espaos invisveis do poder, existe um mundo de conhecimento
clandestino pertencente experincia da resistncia silenciosa, insubordinao sutil, e um discurso oculto. 5 APEB, Processos-crime, 27/1128/03 (1888), f. 15. Sobre fugas e relaes afetivas entre escravos na Bahia, ver
Isabel Cristina Ferreira dos Reis. Uma negra que fugio, e consta que j tem dous filhos: fuga e famlia entre
escravos na Bahia, Afro-sia, 23 (2000), p. 29-48.
-
16
conscincia e resistncia como simples negao ao sistema escravista.6 As fugas
representaram, durante o regime de escravocrata brasileiro, uma das principais formas de
resistncia e negociao dos escravos.7 Segundo os estudiosos da escravido, os escravos no
fugiam apenas para conquistar a liberdade. Havia aqueles que buscavam melhorar sua
condio no trabalho ou pressionar seu senhor a atender suas reivindicaes. Tambm, os
escravos fugiam para no realizar trabalhos dispendiosos, escapar de castigos extremos e
ameaas de morte. Tambm fugiam para festejos, encontros com amigos e familiares, e
obviamente, se livrar dos rigores da escravido.8
No foi possvel saber qual motivo especfico da fuga de Pedro, no entanto sua deciso
no deve ter sido fcil. Sua escapada foi individual, contudo, mesmo fugas individuais no
foram atos solitrios e autnomos, como j foi dito pelo historiador Flvio Gomes.9 Em
alguns casos a famlia dava todo apoio. Outro aspecto interessante no caso de Pedro foi a
vontade de no fugir pra longe. Mesmo assim, Pedro Laranjeira preferiu no distanciar-se da
fazenda Coqueiros, pois no quis romper seus vnculos de amizade, familiar e ao local onde
estava integrado.
No mesmo dia do depoimento de Nicolau, a escrava Luzia, 22 anos, natural da vila de
Camiso, trabalhadora da lavoura, seria interrogada. Ao prestar informaes sobre o roubo,
Luzia reafirmou as informaes dos outros escravos inquiridos a respeito da sua relao com
Pedro. Segundo Luzia, os escravos que acompanhavam seu amsio eram Jos Mathias e
outro parceiro que andam fugidos e mais dois outros pertencentes a Leopoldino Alves, de
nomes Leandro e Antonio, que so companheiros e amigos de Pedro. O subdelegado
insistia em saber se Pedro Laranjeira havia passado quela noite com ela, a mesma negou.10
O
6 Ver, por exemplo, Marcus de Carvalho, Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo..., principalmente os
captulos 12 e 13, respectivamente Um nome para a liberdade e A escolha de um senhor; Sandra Lauderdale
Graham, Proteo e Obedincia: criadas e seus padres no Rio de Janeiro. 1860 1910. So Paulo, Companhia
das Letras, 1992; Robert W. Slenes, Na senzala uma flor: esperanas e recordaes na formao da famlia
escrava. Brasil sudeste sculo XIX. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999; Eduardo Silva, Fugas, revoltas e
quilombos: os limites da negociao. In: Joo Jos Reis e Eduardo Silva (orgs.), Negociao e Conflito. A
Resistncia Negra no Brasil. So Paulo, Cia. das Letras, 1989, p. 62-78. 7 Sobre a estratgia escrava na fuga, ver Joo Jos Reis e Eduardo Silva (orgs.), Negociao e Conflito...; Joo
Jos Reis, Rebelio escrava no Brasil: e histria do levante dos mals em 1835. So Paulo: Companhia das
Letras, 2003. 8 Jailton Lima Brito, A Abolio na Bahia..., p. 26.
9 Flvio dos S. Gomes, Jogando a rede, revendo as malhas...
10 APEB, Processos-crime: 27/1128/03, ff. 19-20.
-
17
depoimento da escrava crioula Luzia revela formas cotidianas de resistncia.11
Interrogada
pelo subdelegado sobre quem lhe dera uma moeda de ouro de vinte mil ris e uma cdula de
vinte cinco mil ris e uma pea de renda e seis voltas de colar de ouro encontrados em sua
casa, Luzia respondeu que o dinheiro h muitos dias havia tirado de sua senhora. J o
colar de ouro, segundo Luzia, foi da furtino de Josepha de Tal [sic], escrava do mesmo
senhor (Josepha no aparece no processo). Em relao renda, disse que foi comprada no
italiano de nome Domingos.12
As tiradas e furtines eram pequenos furtos, faziam parte das transgresses
cotidianas dos escravizados em diversos lugares onde vigorou o sistema escravista. Talvez o
objetivo dessas furtines de Luzia fosse o de ajudar na compra de sua prpria alforria e o
butim conseguido por Pedro na casa de Jos Joaquim ajudasse nesse objetivo. Alm disso,
Luzia foi atilada em no aludir origem dos pertences como presentes de seu amado. Os
pequenos furtos dos escravos facilmente eram contornados pelos senhores, no era preciso
acessar a polcia, por duas razes, primeiro: estratgias paternalistas, para o senhor no perder
mais escravos sob seu domnio teria que fazer concesses e perdes; e segundo: apesar da
11
Sobre o conceito de resistncia cotidiana, ver James C. Scott, Explorao normal, resistncia normal. Rev.
Bras. Cinc. Polt. no. 5 Braslia Jan./July 2011, p. 217-243. Para esse autor, formas cotidianas de resistncia,
expressam a prosaica, mas constante, luta entre o campesinato e aqueles que procuram extrair-lhe trabalho,
alimentos, impostos, rendas e juros. A maioria das formas assumidas por essa luta no chegam a ser exatamente
a de uma confrontao coletiva. Para Scott, a luta cotidiana constantemente travada, e muitas vezes silenciosa,
neste caso, as armas ordinrias dos grupos relativamente desprovidos de poder: relutncia, dissimulao, falsa
submisso, pequenos furtos, simulao de ignorncia, difamao, provocao de incndios, sabotagem, e assim
por diante. Ver, tambm, do mesmo autor, Weapons of the weak: everyday forms of peasant resistance. New
Haven: Yale University Press, 1985. A obra dos historiadores Joo Jos Reis e Eduardo Silva (orgs.),
Negociao e Conflito..., hoje em dia j considerado um clssico sobre a temtica da escravido, leitura
indispensvel para aqueles interessados nas discusses sobre o tema da resistncia escrava. Para um balano
sobre o tema da resistncia escrava no Brasil, ver Marcos de Carvalho, Resistncia escrava no Brasil: razes e
roteiros de algumas discusses recentes. In: X Congresso da ALADAA (Associao Latino-Americana de
Estudos da frica e sia), 2001, Rio de Janeiro. Anais do X Congresso da Associao Latino-Americana de
Estudos da frica e sia. Rio de Janeiro: Educam - Editora da Universidade Cndido Mendes, 2001, v. 1, p. 73-
81. 12
APEB, Processos-crime: 27/1128/03 (1887), f. 20.
-
18
iminncia do trmino do elemento servil, recorrendo polcia para resoluo de casos
midos de furtos, sem dvida os senhores colocariam sua j ruda autoridade em xeque.13
Voltemos ento ao caso e seu desfecho. No primeiro dia de janeiro de 1888, o jornal O
Americano noticiou sobre o roubo em que Pedro foi acusado: [...] chega-nos a notcia de ter
sido arrombada e saqueada a casa de residncia do Sr. Jos Joaquim de Almeida, em sua
fazenda sita na freguesia da Muritiba, cujo roubo atinge a avultada quantia. Essa notcia
tambm informava outros roubos em fazendas da regio. Havia a suspeita dos jornalistas
destes roubos terem sido efetuados por uma quadrilha maior de trinta larpios.14
O dia 3 de janeiro de 1888 foi a data escolhida para os depoimentos das testemunhas.
O primeiro a prestar depoimentos a Manuel Jos de Andrade, subdelegado em exerccio, foi
Clementino Theodoro Leite, 32 anos, casado, que vivia da lavoura. Ao ser perguntado sobre o
fato, informou que sabia por ouvir dizer, que na noite de Natal havia acontecido um roubo
na casa do cidado Jos Joaquim de Almeida. A testemunha disse que o roubo fora
praticado por escravos da casa, de conscincia com Baslio e P de Rodo. Baslio e P de
Rodo eram os mesmos suspeitos de integrarem a quadrilha citada pelo peridico O
Americano. Aps essa declarao, a autoridade policial quis saber se Baslio e P de Rodo
andavam por aquela localidade, Ignorava, e nem ouviu dizer respondeu Clementino.
Talvez a matria do peridico tenha induzido Clementino a pensar na associao desses
roubos.15
13
Pequenos furtos e apropriaes de elementos das classes proprietrias fazem parte da resistncia cotidiana dos
grupos subalternos. A bibliografia que trata sobre a criminalidade escrava, no contexto brasileiro, bem vasta,
ver, por exemplo, Leila Mezan Algranti, O feitor Ausente: estudos sobre a escravido urbana no Rio de Janeiro
1808-1822. Petrpolis, RJ: Vozes, 1988; Marcos Luiz Bretas, O Crime na Historiografia brasileira: uma reviso
da pesquisa recente. Boletim informativo Bibliogrfico de Cincias Sociais, Rio de Janeiro, 1991; Adriana
Pereira Campos, Crime e Escravido: Uma interpretao alternativa. In: Jos Murilo de Carvalho (org.) Nao
e cidadania no Imprio: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007, p. 207-236. A autora faz
um breve balano sobre os estudos que abordaram a criminalidade escrava na historiografia brasileira; Ricardo
Alexandre Ferreira, Crimes em comum: escravido e liberdade sob a pena do Estado Imperial brasileiro. So
Paulo: Editora Unesp, 2011; Slvia Hunold Lara, Campos da violncia: escravos e senhores na Capitnia do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; Maria Helena P. T. Machado, Crime e Escravido: trabalho, luta
e resistncia nas lavouras paulistas 1830-1888. So Paulo: Brasiliense, 1987; Cesar Mucio Silva, Processos-
Crime: Escravido e Violncia em Botucatu. So Paulo. Alameda, 2004; Maria Cristina Cortez Wissenbach,
Sonhos africanos e vivncias ladinas: escravos e forros em So Paulo (1850-1880). So Paulo: HUCITEC,
1998; Mara Chinelatto Alves, Cativeiros em conflito: crimes e comunidades escravas em Campinas (1850-
1888). Tese em Histria Social Universidade de So Paulo, 2015. Sobre algumas formas de luta e
transgresses cotidianas no regime escravocrata brasileiro, ver, dentre outros, Joo Jos Reis, Rebelio escrava
no Brasil: e histria do levante dos mals em 1835. So Paulo: Companhia das Letras, 2003; Sidney Chalhoub,
Vises da liberdade: uma historia das ultimas dcadas da escravido na corte. So Paulo: Companhia das
Letras, 1996. 14
O Americano, 1 jan. 1888, p. 2. Roubo. 15
APEB, Processos-crime: 27/1128/03 (1887), f. 24 v. O clebre Baslio personagem destacado no terceiro
captulo desse trabalho.
-
19
Outros testemunhos se repetiram. Algumas testemunhas informaram por ouvir dizer
que Pedro Laranjeira, esteve com Baslio na regio. Portanto, testemunhas e autoridades
policiais acreditavam na suspeita de salteadores e abolicionistas influenciassem os escravos
no roubo a casa de Jos Joaquim. Para esses depoentes, Pedro e seus parceiros seriam
estimulados a cometerem esse delito por influncia externa. Talvez o prprio Jos Joaquim e
o subdelegado quisessem acreditar que os escravos agiram induzidos por outrem. Segundo
Walter Fraga Filho, a maioria das autoridades da poca [dcada de 1880], subestimavam a
capacidade dos escravos de engendrar conscientemente suas prprias aes. O escravo
Nicolau foi o nico a informar sobre uma possvel influncia de abolicionistas no roubo. Ao
dizer que os parceiros de Pedro foram acoitados por Eduardo Carig, Nicolau talvez
estivesse reproduzindo a fala do seu senhor, contudo, no de estranhar que populares
tambm pensassem o mesmo a respeito de atitude extremas tomada pelos escravos.16
Uma testemunha informou que no dia 31 de dezembro de 1887, o inspetor de
quarteiro, Jos de Tal, havia dito a ele que Pedro Laranjeira estava prximo ao local do
roubo. Voltara para companhia dos seus parceiros e familiares. Findado o processo no ms de
agosto de 1888, sem as prises dos acusados. Para a felicidade de Pedro Laranjeira, sua
amsia e sua filha que tinha alguns meses de nascida, aps esse ano no seriam mais
obrigados a comemorarem o Natal e o Ano-Bom s escondidas.17
Esse episdio representativo para demonstrar sobre o contexto de temores
reverberados pelo desmantelamento do escravismo. Queixas de acoitadores; de recrutamentos
de escravos fugidos para fazerem parte de quadrilhas de salteadores ou formarem quilombos,
fizeram parte da agenda policial at os ltimos anos da escravido oficializada. Alm disso,
demonstra aspectos que no encerram no ato. Alm de escravos, veremos nessa dissertao
outros sujeitos recorrendo prtica do roubo por diversas motivaes.
16
Walter Fraga Filho, Encruzilhadas da liberdade: histrias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910).
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006, p. 79. Em abril de 1888, o senhor de escravos Egas Moniz Barreto de
Arago, proprietrio dos engenhos Cassarangongo e Maracangalha, em so Francisco do Conde, informou ao
baro de Cotegipe que havia encontrado nas senzalas alguns panfletos, assinados por abolicionistas de So Flix
e Cachoeira, incitando os escravos s fugas afirmando que a escravido era um roubo. Sobre essa informao e o
papel de abolicionistas na Bahia, ver Walter Fraga Filho, op. cit. p. 114; Jailton Lima Brito, A Abolio na
Bahia..., p. 154; Jac dos Santos Souza, Vozes da abolio: escravido e liberdade na imprensa abolicionista
cachoeirana (1887 1889). Dissertao de Mestrado. Santo Antnio de Jesus, Uneb, 2010, p. 24. Sobre os
temores dos senhores de escravos em outras regies, ver, dentre outros, Clia Maria Marinho de Azevedo, Onda
negra, medo branco: o negro no imaginrio das elites sculo XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 201,
com a proximidade da abolio, segundo essa autora, as fazendas cafeeiras do Sudeste foram atacadas pelo
discurso abolicionista, estimulando o incitamento dos escravos; ver tambm, Maria Helena Machado, O plano e
o pnico: os movimentos sociais na dcada da Abolio. So Paulo: Ed. UFRJ: EDUSP, 1994. 17
APEB, Processos-crime: 27/1128/03 (1887), ff. 19-20 v., 24 v. Segundo o escritor, folclorista e memorialista
Mello Moraes Filho, Festas e Tradies Populares do Brasil. Braslia: Senado Federal, Conselho Editorial,
2002, p. 31, no dia 31 de dezembro os escravos ganhavam festas, tinham folga, divertiam-se tambm.
Disponvel em: . Acesso em: 25 dez. 2015.
-
20
O tema - Roubos e furtos, algumas interpretaes na historiografia
brasileira
A historiadora Maria Helena T. Machado, em estudo j clssico sobre o tema da
criminalidade escrava, em Campinas e Taubat durante o sculo XIX, analisou formas de
resistncia e estratgias de sobrevivncia de escravos. Segundo essa autora, a prtica de furtos
e roubos nessa regio significava, para os cativos, uma suplementao a uma economia
independente.18
Segundo a interpretao de Maria Helena Machado, os desvios da produo
agrcola [...] desvendam diferentes aspectos da organizao do trabalho escravo nas lavouras
paulistas bem como se apresentam enquanto atos de consciente resistncia dominao
senhorial.19
Os roubos e furtos perpetrados por escravizados correspondiam s estratgias de
sobrevivncia e acumulao, conforme apontou a autora. Para isso, ela recorreu ao conceito
de crime social, como ato de consciente resistncia ao sistema de dominao material e
ideolgico, expressando as concepes das camadas dominadas a respeito do justo e do
injusto e da importncia de seu papel na construo da sociedade.20
Seguindo a mesma perspectiva de anlise historiogrfica em seu livro Campos da
Violncia, Silvia H. Lara analisou processos e registros de prises como uma possibilidade de
alcanar as experincias vividas pelos indivduos escravizados e a agncia desses. Mesmo
fazendo uma ressalva na introduo sobre os cuidados metodolgicos ao trabalhar com a fonte
criminal, Silvia H. Lara escarafunchou e mergulhou nos autos na certeza de encontrar
fragmentos do vivido.21
Ao coletar 31 processos referentes a furtos e cruzando com 55
registros de prises, a autora notou tambm que existiam diferenas entre essas duas
instncias sobre o controle social. Esta evidncia sugere, segundo Silvia Lara, que os crimes
de furtos podiam ser solucionados nos mbitos das fazendas e, quando sobressassem esses
ambientes, o senhor poderia facilmente pagar os objetos ou animais furtados pelo escravo s
vtimas. Cabe aqui uma ateno, sejam elas estatsticas de prises ou processos criminais,
dificilmente pode se chegar a um denominador comum sobre a criminalidade e o nvel de
18
Ver Maria Helena P. T. Machado, op. cit. p. 39, para compreender os significados histricos dos crimes contra
a propriedade, esta autora analisou dezoito processos criminais, sendo nove referentes a roubos/furtos de
produtos agrcolas e nove de objetos ou dinheiro. 19
Ibidem, p. 125. 20
Ibidem, p. 24-5. 21
Alguns autores posteriormente criticaram o uso de tais fontes para uma aproximao do real. Ou seja, ao invs
de achar o acontecido e/ou sua extenso como as tramas cotidianas, o que se poderia extrair da documentao
era, apenas, quem a produziu e para quais propsitos. Ver, por exemplo, Mariza Corra, Morte em famlia
representaes jurdicas de papis sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983; Carlos Antonio Costa Ribeiro, Cor e
criminalidade estudo e anlise da justia no Rio de Janeiro (1900-1930). Rio de Janeiro: UFRJ, 1995; Yvonne
Maggie, Medo do feitio: relaes entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.
-
21
violncia, seja ela urbana ou rural. possvel enxergar a ponta do ice berg, mas como j foi
dito, a inteno dessas autoras foi analisar os crimes como local privilegiado para resgatar
aspectos do cotidiano e compreenderem a resistncia escrava de forma ampla, encarando os
crimes de furtos, roubos, fugas, abortos, agresses fsicas, homicdios, rebelio e suicdio
como situaes-limites.22
Essas autoras influenciaram outros estudos sobre a escravido a partir da tica
transgressiva da criminalidade. O trabalho de Maria Cristina Cortez Wissenbach segue nessa
senda. Ao analisar a escravido urbana em So Paulo nos anos de 1850 a 1880, utilizando um
arcabouo terico marxista, Wissenbach buscou o sentido social dos crimes, entendendo-os
como aes inconformadas dos sujeitos escravizados. Logo no primeiro captulo, O sentido
social do crime e da criminalidade escrava, a autora designou um tpico, em seu livro, para
discutir A indisciplina das mos escravas: roubos e furtos.23
Wissenbach encontrou nos
autos 35 rus indiciados em crimes contra propriedade 37% cometeram roubos, 51% furtos
e 11% estelionato. Apesar da variao dos objetos subtrados e das categorizaes feitas pelas
autoridades judicirias, a autora demonstrou que existia um denominador comum nesses
crimes. Nas palavras dela tais aes envolviam aspectos da sobrevivncia dos escravos uma
vez que se apresentavam relacionados apropriao de pequenos produtos ou quantidade.
Apesar de reservar apenas cinco pargrafos para analisar esses delitos, Wissenbach sofistica
sua anlise ao perceber que muitos crimes poderiam corroborar com apropriaes simblicas;
como o roubo de um par de botinas, objeto estritamente pertencente ao mundo dos brancos.24
Em pesquisa sobre a escravido no alto serto da Bahia, durante 1830 a 1888, Maria
de Ftima Novais Pires, no livro Crime na Cor, analisou diversos documentos: relatos de
viajantes, processos-crime, posturas municipais, inventrios, livros de registros casamentos e
batismos, livros de registro de compra e vendas de escravos, livros de registro de cartas de
liberdade e jornais. Sobre os processos criminais. Ftima Pires utilizou 113 no total, dos quais
apenas cinco foram de crimes de furto/roubo. Sua importncia ao estudar esses processos foi
resgatar, tambm, experincias de escravos e forros em uma localidade pouco estudada. Esta
autora privilegiou a anlise qualitativa dos processos, identificando diferenas nos tratos do
sistema jurdico sobre delitos cometidos por escravos e/ou forros nas vilas/cidades de Rio de
Contas e Caetit, ao qual, segundo ela, existiu uma insistente condio de suspeita e vigilncia
sobre as vidas dos escravos por parte dos aparatos policiais e jurdicos daquela regio.
22
Slvia Hunold Lara, Campos da violncia..., p. 273-93. 23
Maria Cristina Cortez Wissenbach, Sonhos africanos e vivncias ladinas..., p 51. 24
Ibidem, p 51.
-
22
Ancorada no aporte terico thompsiano, Ftima Pires analisou formas de resistncia e
estratgias de sobrevivncia, observando os crimes como um produto de demandas histrico-
sociais, preocupando-se em buscar nas entrelinhas o no dito inseridos nos discursos.25
Desse modo, a anlise sobre os processos histricos no corresponde em entender o nvel de
violncia no regime escravista, ela buscou na fonte a voz dos subalternizados, suas
demandas e anseios. Assim, a autora utiliza os processos-crime como palco privilegiado para
entender as experincias dos escravos em suas configuraes de espao e tempo.
Maria de Ftima chama a ateno para outra dimenso da fonte criminal, diz respeito
preocupao em identificar o no falado nos autos, o que silencia, que no aparece, aquilo
que no est no campo do visvel. Ou seja, para essa autora, nas fontes criminais possvel
verificar motivaes dos delitos, pessoas envolvidas, lugares de sociabilidades, etc. Desse
modo, importante estar atento sobre os discursos que so estabelecidos e forjados por quem
produz a documentao e as formas de manipular as evidncias no intuito de criminalizar,
sobretudo os sujeitos subalternizados e marginalizados.26
Com essa lente de anlise que
Maria de Ftima interpretou os crimes de furtos e roubos em sua pesquisa, privilegiando os
casos particulares como frestas da realidade, no como o real.
Em estudo recente sobre as relaes sociais entre vaqueiros e fazendeiros em
Jeremoabo, serto da Bahia, em finais do sculo XIX, Joana Medrado analisou o cotidiano de
disputas internas nas fazendas. A partir dos autos criminais entre 1880 a 1900 (um total de
vinte e cinco processos de furto), a autora adentrou no universo cotidiano das relaes de
poder entre fazendeiros e vaqueiros. Segundo Medrado, os mesmos processos podem nos
ajudar a identificar o perfil social de personagens importantes no contexto, como os
fazendeiros, vaqueiros, criadores e lavradores.27
Para essa autora, os episdios inseridos nos
processos podem coadunar com a teia de relaes conflituosas nos mbitos de trabalho que
chegavam a situaes limites. Na interpretao de Joana Medrado, esses delitos contra a
propriedade demonstravam uma mirade de significaes: estratgias de liberdade, defesa de
direitos costumeiros e busca pela sobrevivncia. Os furtos trabalhados no estudo dessa autora
muitas vezes foram praticados como uma forma de compensar a roa estragada alm de ser
uma espcie de represlia ao fazendeiro. Nesse sentido, Joana Medrado deu um salto de
25
Ver Maria de Ftima Novaes, O crime na cor: escravos e forros no alto serto da Bahia (1830-1888). So
Paulo: Annablume/Fapesp, 2003, p. 29-30. 26
Ibidem, p. 22-3. 27
Joana Medrado, Terra de vaqueiros: ralaes de trabalho e cultura poltica no serto da Bahia, 1880-1900.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012, p. 85.
-
23
qualidade na anlise dos processos criminais, pois percebeu que os acusados como ladres de
animais no estavam imbudos e motivados apenas pela fome ou carncia material.28
A corrente da Histria Social contribuiu de forma substancial no que tange a
produo terica internacional sobre o crime na Inglaterra do sculo XVIII.29
Essa
produo, sobretudo, teve como marco duas grandes obras. Foram elas o estudo de Edward
Thompson sobre a caa clandestina e a Lei Negra em Senhores & Caadores, e a obra
coletiva Albions fatal tree: crime and society in eighteenth-century England, editada por
Peter Linebaugh, E. P. Thompson e Douglas Hay.30
Esses autores preteriam termos abstratos
como crime, optando analisar certas formas de delitos, como a caa clandestina,
contrabando e pirataria, dentre outras. Para Peter Linebaugh, na medida em que tais
estudiosos mergulham mais profundamente no tema do crime, do por si descobrindo crimes
sociais em tipos de crime h muito familiares aos estudantes do banditismo. Ao rejeitar
conceitos universais, esses autores valorizavam conhecimento do contexto social
imprescindvel para o estudo do crime social. Uma percepo mais apurada das conjunturas
histricas ajuda na interpretao de caractersticas que fogem das anlises baseadas a partir de
conceitos universais e interpretaes mais abrangentes.31
Os registros judiciais so como uma janela para resgatar aspectos do cotidiano dos
envolvidos. Assim como outros documentos, devemos manter sempre algumas suspeitas. O
processo criminal conduz o historiador, em primeira instncia ao crime, e desde a sua
remontagem, no quadro das tenses scias que o geraram e na multiplicidade de eventos que
o qualificaram como ato social.32
Alm dos processos criminais, analisamos outros
documentos de naturezas diversas. Os peridicos locais, as correspondncias enviadas e
recebidas pelas autoridades policiais cachoeirana permitiram vislumbrar aspectos do cotidiano
dos envolvidos em crimes de furto e roubo, assim como o universo da represso e combate
aos considerados criminosos. Tambm foram analisadas atas do legislativo baiano e os
relatrios de presidentes da provncia da Bahia abrangendo todo o perodo em estudo. Outros
documentos foram tambm utilizados: cdigos e posturas, recenseamentos e decretos. Como
28
Ibidem, p. 101. 29
Peter Linebaugh, Crime e Industrializao: a Gr-Bretanha no sculo XVIII. In: Paulo Srgio Pinheiro
(org.). Crime, Violncia e Poder. So Paulo: ed. Brasiliense, 1983, p. 106. 30
Douglas Hay, Peter Linebaugh e E. P. Thompson (orgs.), Albions fatal tree: crime and society in eighteenth-
century England. New York: Pantheon, 1975. 31
Peter Linebaugh, Crime e Industrializao..., p. 107-8; Para o entendimento dos conceitos histricos levando
em considerao sua temporalidade e diversificao de significados, ver Reinhart Koselleck, Uma histria dos
conceitos: problemas tericos e prticas. Estudos Histricos, vol. 5, n. 10, 1992, p. 134-146. 32
Maria Helena Machado, Crime e Escravido..., p. 23.
-
24
disse Joo Reis, a histria dos dominados vinha tona pela pena dos escrives de polcia.33
Ou seja, a histria dos grupos subalternos surge das penas dos dominantes. No dilogo dessas
fontes com a bibliografia procuramos compreender e analisar o cotidiano do roubo em
Cachoeira nas duas dcadas finais do sculo XIX e seus desdobramentos no campo social
perpassados pelo fim do escravismo e a proclamao da Repblica. O resultado vem dividido
e descrito em trs captulos que apresentamos a seguir.
No primeiro captulo, intitulado O teatro de grandes desgraas, tem como objetivos:
analisar as mudanas na economia, questo da abolio, secas, e, sobretudo, as consequncias
das transformaes urbanas, que acarretaram vrias preocupaes das elites cachoeiranas
com o que denominavam de crimes. Com o grande transito de migrantes oriundos de vrios
lugares que aventuravam trabalhar nessas obras pblicas (construes das linhas frreas,
ponte dom Pedro II, iluminao pblica, cemitrio, e do novo cais na dcada de 1890) ou nas
inmeras fbricas, os atentados propriedade estiveram no palco das queixas de jornais,
autoridades policiais e polticos locais.
O segundo captulo tem como ttulo Grandes desejos, realidades distintas: ladres,
roubos e furtos no termo de Cachoeira, destaca as principais modalidades de roubo e furto
ocorridos em Cachoeira durantes as duas dcadas finais do sculo XIX que surgiram com
mais frequncia nas fontes consultadas. Embora o objetivo deste captulo seja identificar as
formas mais recorrentes da atividade delitiva, tambm analisamos algumas motivaes dos
indivduos envolvidos nesses roubos, furtos e arrombamentos.
No Captulo 2 trazemos dados quantitativos sobre os indiciados por delitos de roubo,
furtos e arrombamentos, vislumbrando em nmeros as classificaes sociais dos envolvidos
nos processo, somando 101 rus. Muitos desses sujeitos eram trabalhadores com maior
mobilidade fsica com ocupaes mveis, no cais e nas obras pblicas espalhadas pela
cidade cachoeirana. Para tanto, retiramos informaes encontradas nos processos criminais
existentes para o termo cachoeirano entre 1880 e 1900, totalizando 59 processos, sendo oito
desses incompletos, apenas com inquritos e autos de perguntas (encontrados em meio
documentao policial). Extramos dessa documentao dados referentes ocupao, idade,
cor, estatuto scio/jurdico e naturalidade. Em seguida, verificamos quem eram os
compradores interessados nos objetos subtrados, os locais e alvos mais requisitados para a
prtica do roubo. A inteno visualizar o emaranhado das relaes sociais desses sujeitos,
observando que os roubos e furtos alm suprir necessidades bsicas de sobrevivncia e
33
Joo Jos Reis, Rebelio escrava no Brasil, a histria do levante dos mals..., p. 10.
-
25
consumo, poderiam representar, em alguns casos, formas de retaliaes, um ajuste de contas.
Veremos que grande parte dos alvos foram fazendas e casas de comrcio, mas antes de
cairmos em romantismos, atribuindo certa conscincia de classe aos ladres, que os levavam a
atacar principalmente os antagnicos sociais, devemos ter alguns cuidados. Uma razo
bvia, nesses locais certamente encontrariam bens valiosos; joias, animais, alm de dinheiro e
outros objetos e roupas. Houve tambm casos de roubos e furtos contra pessoas de menos
poder aquisitivo, contudo, provvel que muitos no chegassem a constituir um processo,
devido tambm ao valor dos objetos subtrados. No entanto, existiu a preferncia por vtimas
poderosas, no sendo as exclusivas para os ataques.
Ainda nesse captulo analisamos todos os processos criminais, pertencentes comarca
de Cachoeira, encontrados no Arquivo Pblico do Estado da Bahia, embora a catalogao do
arquivo no corresponder s divises judiciais e administrativas do perodo em estudo.
Apenas os processos de Maragogipe e So Felipe (talvez por no integrarem, na poca, ao
municpio cachoeirano) se encontram separadamente dos de Cachoeira, no arquivo. As
freguesias de So Gonalo dos Campos e Curralinho (atual Castro Alves) foram elevadas
categoria de vila em 1880 e 1884, respectivamente, mas continuaram integrando a comarca de
cachoeirana durante a dcada de 1880, por essa razo, os processos desse perodo esto
catalogados junto documentao judiciria de Cachoeira. Em 1890 a freguesia de So Flix
emancipou-se, tornando sede de comarca passando a jurisdicionar algumas freguesias antes
pertencentes Cachoeira. Desse modo, os processos de So Flix (oito), Muritiba, Outeiro
Redondo e Cruz das Almas, a partir do ano de 1890, esto arquivados com o nome de So
Flix no arquivo. Toda documentao para a base estatstica se encontra no setor
judicirio/crime e alguns inquritos inseridos na documentao policial do setor colonial.
Trabalhamos com um conjunto de acusados e sentenciados por participar em crimes de furto,
roubo e arrombamento na cidade de Cachoeira e suas freguesias entre 1880 a 1900. Alm dos
processos catalogados com essas trs categorias citadas, perscrutamos outros na inteno de
encontrar mais casos de roubo. Por exemplo, alguns processos de resistncia priso,
apelao, translado, denncia e habeas corpus. No utilizamos os jornais por se tratar de uma
fonte pouco confivel e com parcas informaes a respeito dos implicados nesse tipo de
delito. Como toda amostra, esta no est livre de erros. No obstante, serve para uma
aproximao das tendncias relativas ao roubo no termo cachoeirano durante a dcada da
abolio.
Baslio Ferreira e sua companhia de salteadores o ttulo do terceiro e ltimo
captulo desta pesquisa. Diferente do segundo captulo, nesse veremos indivduos que no
-
26
estavam dispostos a permanecerem em trabalhos vigiados e viam no banditismo uma
possibilidade de subsistncia. Aqui veremos o roubo como meio de vida. Neste sentido,
procuramos mostrar atravs da trajetria do clebre salteador, o afamado Baslio Ferreira,
conhecido por Baslio Ganhador, chefe de um grupo de ladres que executou diversos roubos,
furtos e extorses por cerca de seis anos (1881-1887), o cotidiano desses sujeitos e suas
maneiras de subsistir. Suas atuaes na prtica delitiva ocorreram, em sua maioria, no termo
de Cachoeira e regies circunvizinhas. O mundo de Baslio e de seus scios e
companheiros, assim como suas formas de viver atravs do banditismo o objetivo principal
desse captulo. Baslio Ferreira, antes de ser considerado fora da lei, foi aguadeiro
trabalhando no porto da cidade de Cachoeira. Ele constitui e chefiou um grupo de salteadores
em que alguns integrantes faziam parte por tempo parcial concomitante a outros ofcios e
ocupaes. O termo salteador era atribudo queles integrantes de quadrilhas, um
diferenciador dos simples larpios. Geralmente eles assaltavam em estradas e fazendas,
diferindo dos simples roubos. Esse vocabulrio tinha como objetivo magnificar as aes
desses grupos os tornando potenciais inimigos a serem combatidos. Em seu grupo permitiu a
entrada de escravos fugidos, o que sem dvida mais se adequava ao queixume das autoridades
e da imprensa como zombar das vtimas. A partir da sua experincia procuramos observar
as relaes sociais que eram tecidas no universo dos ladres; as redes de relacionamentos,
interesses e favores e a composio social dos integrantes.
Alguns autores interpretam o banditismo social como uma resposta rebelde contra
opresso. Entre as mltiplas formas de expresso contrria aos dominantes, o roubo social
seria, ento, sua figura mais cotidiana.34
O bandido social seria aquele comprometido
com uma causa nobre. Para Eric Hobsbawm, os bandidos sociais no seriam confundidos com
criminosos comuns, tornam-se foras da lei e so movidos carreira do crime por sentimentos
de justia e igualdade. Buscam conservar os laos comunitrios ameaados pelos avanos do
capitalismo, pela soberania do poder estatal ou por senhores feudal. Muitos desses bandidos
sociais eram vistos como heris pela sociedade qual faziam parte e contavam com todo apoio
34
Conferir em Carmen Vivanco Lara, Bandolerismo colonial peruano, 17601810, caracterizacon de una respuesta popular y causas econmicas. In: Carlos Aguirre e Charles Walker (orgs.), Bandoleros, abigeos y
montoneros: criminalidad y violencia en el Per, siglos XVIII- XX. Lima: Instituto de Apoyo Agrario, 1990, p.
44. As tradues so todas de nossa autoria; Alguns pesquisadores importantes no estudo do banditismo so,
dentre muitos outros, Anton Blok, The Peasant and the Brigand: Social Banditry Reconsidered. Comparative
Studies. In: Society and History, v. 14, n. 4, Sep. 1972, p. 494-503; Eric Hobsbawm, Bandidos. So Paulo: Paz e
Terra, 2010; Richard W. Slatta, Bandidos: the varieties of latin America banditry. United States of America:
Greenwood, 1987, p. 191-200; Peter Singelmenn, Political structure and Social Banditry, in Northeast Brazil.
In: Journal of Latin American Studies. Cambridge: Cambridge University Press, v. 7, part 1, May 1975, p. 59-
83; Gilbertt Joseseph, On the trail of Latin American Bandits: A reexamination of Peasant Resistance. In:
Latin American Research Review. New Mexico: University of New Mexico, v. XXV, n. 3, 1990, p. 7-53.
-
27
dos oprimidos. Alguns estudiosos do banditismo social criticaram Hobsbawm pelas
generalizaes em suas anlises, preferindo diminuir a lente para entender cada caso.
Criticaram tambm as fontes por ele utilizadas, muitas delas baseadas em mitos que
positivavam a imagem do bandido.35
Outros questionamentos foram feitos ao modelo de Hobsbawm, mas sua contribuio
aos estudos sobre banditismo, em suas variadas manifestaes, indispensvel. Apesar de no
ser regra geral, o banditismo social carrega um protesto inconsciente embutido atrelado a
um recorte de classe.36
Outros autores questionaram a respeito das motivaes dos bandidos.
Segundo Richard Slatta, muitos indivduos envolvidos na bandidagem eram movidos por
desespero e realidades econmicas difceis. Desse modo, Slatta discordaria da ideia
reducionista e simplista que os bandidos, estudados por Hobsbawm estivessem dispostos a
corrigir algumas injustias sociais ou que defendiam os pobres ou sua economia moral
frente aos avanos do capitalismo.
No caso de Baslio Ferreira e seus companheiros, por ns pesquisado, veremos que
eles tambm roubavam populares, contudo, aparentemente sua preferncia eram os ricos,
obviamente.37
Veremos nesse captulo que esses bandidos buscavam uma sada individual
para seus problemas materiais e a solidariedade se resumia a pessoas prximas ao grupo.
Muitas vezes reproduziam valores pertencentes aos grupos dominantes, ao contrrio de
questionar o poder, acabavam exercendo as hierarquias e instrumentos de dominao sobre os
populares.
Esperamos mostrar para o leitor os limites e possibilidades nas anlises dos roubos e
furtos, assim como as motivaes dos envolvidos nessas prticas, seja de maneira casual ou
permanente, no termo de Cachoeira nas dcadas finais do sculo XIX.
35
Para uma reviso dos estudos sobre o banditismo social e as crticas feitas ao modelo de Eric Hobsbawm,
ver Norberto O. Ferreras, Bandoleiros, cangaceiros e matreiros: Reviso da historiografia sobre o banditismo
social na Amrica Latina. Histria [online]. 2003, vol. 22, n. 2, 2001, p. 211-26. Disponvel em: . Acesso em: 12 de set. 2015; Armando Moreno Sandoval, El
bandolerismo social revisitado. El caso del Norte del Tolima (Colombia). In: Colombia Historelo. Revista de
Historia Regional y Local. ISSN: 2145-132X ed: Universidad Nacional De Colombia Seccional Medellin v. 4
fasc. N/A, 2012, p. 271-309. 36
Luiz Bernardo Perics, Os cangaceiros: ensaio de interpretao histrica. So Paulo: Boitempo, 2010, p. 30. 37
Para a crtica a Hobsbawm, ver Richard W. Slatta, Eric J. Hobsbawms Social Bandit: A Critique and
Revision. A contracorriente: A Journal on Social History and Literature in Latin America, v. 1, n. 2, Spring
2004, p. 22-30, p. 29. Disponvel em: . Acesso em:
13 de set. 2015.
http://www.ncsu.edu/acontracorriente/spring_04/Slatta.pdf
-
28
.
Mapa 1 Municpios e freguesias do Recncavo em meados do sculo XIX.
Fonte: Bart J. Barickman. Um contraponto baiano: acar, fumo, mandioca e escravido no. Recncavo, 1780-
1860. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2003, p. 40 destaque nosso para o termo de Cachoeira at 1880.
-
29
CAPTULO 1
O teatro de grandes desgraas
Trabalha o bandido, trabalha o rprobo, trabalha o corsrio, trabalha o gatuno, e
mais do que a probidade, a honradez, a virtude trabalham aqueles, mas todos
trabalham.1
Cachoeira foi uma das regies mais importantes da economia aucareira do Brasil,
desde os tempos coloniais at meados do sculo XIX. Localizada margem esquerda do rio
Paraguau a cidade de Cachoeira integra o Recncavo baiano.2 O acar e o fumo eram seus
principais produtos econmicos, por conta disso havia grande quantidade de engenhos e,
desse modo, um nmero grande de escravizados at as vsperas da abolio. Alm do
tabaco e da cana o cultivo da mandioca foi um importante empreendimento agrcola da
regio.3 Outra caracterstica considervel era seu porto (segundo em importncia econmica
da Bahia escravista), pelo qual passavam as mercadorias que vinham do interior abastecer a
capital atravs da navegao a vapor implantada nas primeiras dcadas do sculo XIX. Ao
1 Slio Boccanera, Almanach do Dirio de Noticias, 1882, f. 37.
2 Seu processo de colonizao remete ao incio do sculo XVII, quando foi ocupada por Gaspar Rodrigues
Adorno. Os grupos indgenas foram totalmente exterminados. Sua criao data de 1693, como freguesia de
Nossa Senhora do Rosrio da Cachoeira. J em 1698 foi elevada categoria de vila, com o nome Nossa Senhora
do Rosrio do Porto da Cachoeira. 3 Sobre os momentos finais da escravido no Recncavo, a economia e o declinio da exportao de acar, ver
Bert J. Barickman, At a vspera: o trabalho escravo e a produo de acar nos engenhos do Recncavo
Baiano (1850-1881). Afro-sia, 21/22 (1998-1999), p. 177-238. Sobre a economia do fumo e da mandioca, ver,
do mesmo autor, Um contraponto baiano: acar, fumo, mandioca e escravido no Recncavo, 1780-1860. Rio
de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2003; ver tambm, Silvio Humberto P. Cunha, Um retrato fiel da Bahia:
sociedade-racismo-economia na transio para o trabalho livre no Recncavo Aucareiro, 1871-1902. Tese
(Doutorado em Histria), Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004. Para os anos finais da
escravido e o ps-abolio, ver Walter Fraga Filho, Encruzilhadas da liberdade: histrias de escravos e libertos
na Bahia (1870-1910). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006; Sobre o Recncavo aucareiro, ver,
especialmente, Stuart B. Schwartz, Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835.
So Paulo: Companhia das Letras, 1988.
-
30
longo do sculo XIX a cidade se consolidava como entreposto comercial entre Salvador e o
interior do Brasil.4
O Recenseamento do Imprio de 1872, o primeiro censo do Brasil, registrou 88.180
habitantes no termo de Cachoeira.5 Em 1882, o abolicionista baiano, Eduardo Carig enaltecia
a segunda cidade da Provncia, j pela sua prosperidade; a 84 km. da capital, sobre a margem
esquerda do rio Paraguau, com 20.000 habitantes. Sobre a quantidade de pessoas
escravizadas, as estatsticas informavam 15.347 de habitantes nessa condio. Nas dcadas
seguintes, houve o aumento do nmero de residentes, contando 110.235 habitantes em 1890.6
No censo de 1890, a cidade de Cachoeira tinha 35.546 habitantes e, em 1900, um total de
45.199.7 Um crescimento substancial nas ltimas dcadas do sculo XIX. No recenseamento
de 1872 atribuiu-se a parquia central de Cachoeira uma populao de 9.270 habitantes, j em
1890 ela aumentaria para 12.607, enquanto a vizinha So Flix expandiu de 3.205 para 4.358
durante o mesmo perodo.8
Ainda segundo Eduardo Carig, a cidade era emprio do comrcio do Serto da
Provncia e estao das estradas de ferro Comarca das Lavras Diamantinas e cidade da
Feira de Santana.9 Alm do comrcio aquecido, durante a dcada de 1880, havia em
4 Joo Jos Reis, Magia Jeje na Bahia: a Invaso do Calundu do Pasto de Cachoeira, 1785. Revista Brasileira
de Histria, So Paulo, v. 8, n. 16, p. 57-81, mar./ago. 1988, p. 63-6. O termo correspondia a uma
circunscrio geogrfica, poltico-administrativa e jurdica. No primeiro sculo de existncia da vila, seu termo
contava com uma imensa regio geogrfica que abarcava mais de trinta atuais municpios, dentre eles Feira de
Santana, emancipada em 1832. Por causa das participaes decisivas nas lutas de independncia do Brasil, em
1823, lhe foi concedida o ttulo de heroica e, em 1837, a ento vila de Nossa Senhora do Rosrio do Porto da
Cachoeira foi elevada categoria de Cidade. Antes mesmo de ser elevada cidade, a vila era o mais importante
centro de negcios e comrcio do Recncavo baiano. Segundo Joo Jos Reis, nos finais do sculo XVIII,
Cachoeira era o segundo ncleo populacional da Bahia, com cerca de 4.000 habitantes em 1775 e 5.000 em
1804. Esse mesmo autor informou que, em 1826, a Cmara local estimava que a vila contasse com 6.000
habitantes, e um total de 60.000 por todo termo. 5 Recenseamento do Brazil em 1872 (Bahia). Disponvel em: . Acesso em: 20 de jan. 2015. 6 Inclu a cidade de So Flix e a vila de So Gonalo dos Campos por fazerem parte da contagem no
Recenseamento de 1872, sendo a populao geral delas: 39.079 e 22.814, respectivamente. Sobre o depoimento
de Eduardo Carig, alm de outras transcries de depoimentos de cronistas, ver Pedro Celestino da Silva,
Datas e tradies cachoeiranas. In: Anais do Arquivo Pblico da Bahia, vol. XXIX, 1943, p. 356. 7 Republica dos Estados Unidos do Brazil. Synopse do recenseamento de 31 de dezembro de 1900: = prcis du recensement du 31 dcembre 1900. Disponvel em: . Acesso
em: 12 de jan. 2015. 8 Desses, em 1872, 972 homens e 687 mulheres (brancos), 2.100 homens e 2.964 mulheres (pardos), 435 homens
e 994 mulheres (pretos) e 19 homens e 25 mulheres (caboclos). Os escravos totalizam 1.124, a saber, 195
homens e 241 mulheres (pretos), e 311 homens e 377 mulheres (pardos). Nota-se uma populao
majoritariamente de pessoas no brancas. Sobre a composio tnica de Cachoeira e So Flix, ver Fayette
Wimberly, op. cit. p. 74-89. Sobre os dados estatsticos, ver em Recenseamento do Brazil em 1872 (Bahia).
Disponvel em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv25477_v3_ba.pdf=>. Acesso em: 20 de jan.
2015; Recenseamento de 31 de dezembro de 1890. Rio de Janeiro: Oficina de Estatstica, 1898. Disponvel em:
. Acesso em: 20 de jan. 2015; Aristides Augusto Milton, Ephemerides
Cachoeiranas. Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia, 1979, p. 409-10. 9 Pedro Celestino da Silva, Datas e tradies cachoeiranas..., p. 357.
-
31
Cachoeira importantes fbricas de charutos e de tecidos. Sem dvida, assim como as vizinhas
Santo Amaro e Nazar, alm da capital Salvador, Cachoeira atraia um contingente de
trabalhadores procura de oportunidade longe das fazendas e engenhos, em um contexto de
mudanas sociais e polticas importantes como as leis emancipacionistas, mas tambm de
crise econmica e seca.10
Segundo Barickman, Cachoeira foi um grande entreposto comercial
e sua zona rural produzia fumo (alm de outros j ditos) que era comercializado em grande
escala. J a partir do final da dcada de 1880, predominou uma recesso econmica em toda
provncia, ocasionando uma aguda carestia de alimentos, como a farinha e a carne seca, e
crise na produo e comercializao da cana de acar. O Recncavo foi destino de inmeros
retirantes do serto da Bahia e de outras localidades do Nordeste depois da grande seca de
1888.11
A partir da dcada de 1870 o fluxo de migrantes aumentou. Alm das oportunidades
de trabalho no porto, houve nesse contexto as construes das linhas frreas, a construo da
ponte dom Pedro II sobre o rio Paraguau na dcada de 1880, e a construo de um novo cais
na dcada de 1890.12
Essa movimentao de trabalhadores refletiu no aumento geral da
populao e nas queixas do corpo de Polcia e nos peridicos locais sobre o aumento da
criminalidade. O discurso de aumento da populao cachoeirana tambm justificava os
pedidos de aumento da fora policial que foram frequentes ao longo da dcada de 1880. No
campo social, o perodo ps 1870 cercado por diversas tenses ocorridas na cidade e no
campo. Tornavam-se mais evidentes o temor branco e o racismo, o medo dos escravos
pleitearem sua liberdade no tribunal, a presena de africanos e seus descendentes no
movimento abolicionista e o uso da violncia em diversos ambientes.13
Podemos perceber os impactos das mudanas populacionais na cidade a partir das
10
Para o grande fluxo de migrantes em Cachoeira nesse perodo, ver Walter Fraga Filho, Encruzilhadas da
liberdade..., p. 328. 11
Sobre as secas na Bahia, ver Graciela Rodrigues Gonalves, As secas na Bahia no sculo XIX (sociedade e
poltica). Dissertao (mestrado em Histria), Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, Programa de Ps
Graduao em Histria, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2000. Em relao carestia de alimentos
durante o perodo republicano, ver Mrio Augusto da Silva Santos, A Repblica do povo: sobrevivncia e tenso.
Salvador: EDUFBA, 2001. 12
Ver Fayette Wimberly, The Expansion of Afro-Bahian Religious Practices in Nineteenth-Century
Cachoeira. In: Hendrik Kraay (org.), Afro-Brazilian Culture and Politics: Bahia, 1790s to 1990s. New York:
M. E. Sharpe, 1998, p. 74-89. 13
Dale Graden, Abolio na Bahia atravs dos processos da justia. Clio/Revista de Pesquisa Histrica
(Recife), 11. (1988), p. 87-93; Elciene Azevedo, O Direito dos Escravos. Lutas jurdicas e abolicionismo na
Provncia de So Paulo. Campinas: Editora da UNICAMP, 2010; Ricardo Tadeu Cares Silva, Os escravos vo
Justia: a resistncia escrava atravs das aes de liberdade. Dissertao de Mestrado, Universidade Federal
da Bahia, 2000; Jos Pereira de Santana Neto, Falsas verdades, boas desculpas. As juntas de classificao e o
Fundo de Emancipao. In: Gabriela dos Reis Sampaio; Lisa Earl Castillo; Wlamyra Albuquerque (orgs.),
Barganhas e querelas da escravido: trfico, alforria e liberdade (sculos XVIII e XIX). Salvador: Editora da
Universidade Federal da Bahia (EDUFBA), 2014.
-
32
queixas inseridas nos jornais. Em 8 de outubro de 1880, O Guarany, publicava um pedido
ao senhor delegado de So Flix, Rosalvo Menezes Fraga, para que nomeasse um inspetor
de quarteiro para o Curiachito, lugar onde, segundo o peridico, residia grande nmero
de garimpeiros e que dia e noite, embriagados, ofendem a moralidade pblica, e at praticam
crimes, a tudo se poder evitar havendo uma autoridade para garantia da lei, e respeito e
sossego das famlias. Esses garimpeiros eram na verdade os trabalhadores das ferrovias, que
instalavam, limpavam e faziam a manuteno das linhas. Segundo a antroploga Fayette
Wimberly, em estudo sobre o candombl em Cachoeira e So Flix no mesmo perodo, as
transformaes em ambas as cidades so ainda mais claramente reveladas na reao
apavorada de funcionrios locais que lutavam para controlar um nmero crescente de
trabalhadores de fbrica, e aqueles que trabalhavam em uma variedade de projetos de obras
pblicas entre 1870 e 1900.14
J Robrio S. Souza considera que esses indivduos estavam
em constante vigilncia e perseguio. Nas palavras desse autor, a expressiva quantidade de
trabalhadores nacionais e imigrantes reunida nas obras da estrada de ferro preocupava as
autoridades polticas e policiais.15
Sobre a queixa do peridico, muito provvel que a
ofensa moral fosse um samba, ou mesmo um culto aos orixs, alvos corriqueiros das
batidas policiais.16
14
Ver Fayette Wimberly, The Expansion of Afro-Bahian Religious Practices in Nineteenth-Century
Cachoeira..., p. 74. 15
Ver Robrio Santos Souza, Centenas de pessoas de diversas naes: os trabalhadores livres, libertos e
escravos da Bahia and San Francisco Railway Company. In: Gabriela dos Reis Sampaio; Lisa Earl Castillo;
Wlamyra Albuquerque (orgs.), Barganhas e querelas da escravido: trfico, alforria e liberdade (sculos XVIII
e XIX). Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia (EDUFBA), 2014, p. 272. 16
O Guarany, 8 out. 1880, p. 2. A Pedido. Sobre as perseguies aos adeptos do candombl em Cachoeira e as
estratgias de resistncia dos seus adeptos, ver Edmar Ferreira Santos, O poder dos candombls: perseguio e
resistncia no Recncavo da Bahia. Salvador, EDUFBA, 2009; ver tambm, Joo Jos Reis. Magia Jeje na
Bahia..., 1988.
-
33
Figura 1 Ponte Dom Pedro II ligando a cidades de Cachoeira a So Flix, s/d.
Fonte: Sterling Numismtica.
Figura 2 Porto de So Flix, s/d.
Fonte: Acervo do Arquivo Pblico Municipal de So Flix.
-
34
Em 14 de maro de 1889, prximo do aniversrio de um ano da abolio do elemento
servil, o subdelegado da freguesia de So Flix comunicou ao presidente da provncia:
Achando-me em dificuldade no exerccio de minhas funes no carter de autoridade policial desta
Freguesia devido a grande nmero de emigrantes famintos que diariamente aqui abundam e
procuram-me para os auxiliarem com agasalhos e trabalho onde possam tirar resultado para si e
suas pobres famlias que gemem e choram a falta de alimentao, sendo esta Freguesia no quadro
que atravessamos, testemunhas dos atos mais dolorosos e dignos de toda comiserao.
Completava:
Bem que, todos os habitantes desta Freguesia sejam humanitrios e no se poupem a prestar
auxlios a seus irmos que vagam pelas ruas esmolando o trabalho e o po da caridade, e jamais
tenho empregado todos os esforos para bem acomodar a estes emigrantes que aqui vem abrigar-se
em procura de auxlio, e nesta misso que de meu dever cumprir, tenho sido auxiliado por alguns
negociantes desta praa.
E como j estejam todos os recursos escassos, por no haver trabalho que possa acomodar a
nmero superior de duzentas pessoas que se acham nesta Freguesia, implorando o po para se
alimentarem.
Exmo. Senhor, com certeza seremos visitados por modstias epidmicas e pela fome devido a
escassez dos gneros alimentcios e a falta de recurso pecunirios para os oprimidos.17
Em resposta, o presidente da provncia, Manuel do Nascimento Machado Portela, comunicou
ao subdelegado que havia ordenado a Comisso Central desta Comarca para empregar estes
emigrantes em obras do Cemitrio. Por sua vez, o subdelegado informou ao presidente que
as obras do cemitrio so mais artsticas que de emprego comum, no podendo admitir mais
que um nmero suficiente e limitado de trabalhadores.
Em outra correspondncia, o subdelegado Reinero enfatizou suas queixas sobre os
emigrantes. Segundo ele,
Tenho-me dirigido a esta Presidncia por telegramas pedindo providncias urgentes para empregar
grande nmero de pessoas que tem afludo de diversos pontos para esta Freguesia que, na maior
desolao apresentam-se pedindo alimento e trabalho para se ocuparem, afim de no morrerem a
fome. Tenho que levar ao conhecimento de V. Ex. que esta Freguesia, se bem que industrial e
comercial, no pode suportar grande nmero de emigrantes, porque os habitantes profissionais
tambm esto passando pela desvantagem na reduo de salrio que no ajudam a manter-se
jamais na escassez e carestia dos gneros alimentcios.
Alm disso, Reinero queixou-se da ameaa de epidemias pelas inconclusas obras sanitrias.
Lembrando,
portanto a V. Ex. a vala e a concluso do cano da praa do Rosrio que j foi medida e orada
pelo Sr. D. Maciel, engenheiro Fiscal; cujas obras so as mais necessrias; pelo estado insalubre e
prejudicial a sade pblica por ser no centro comercial desta Freguesia, tanto maior quando nos
vemos ameaados pelo terrvel e aterrador hospede a febre amarela . Acrescendo mais que na
emergente circunstncia dos emigrantes poderem ser empregados no movimento de terra e
escavaes, trabalhos mais ou menos aproveitveis e uteis a esta Freguesia, e a eles que so
profissionais deste emprego.
17
APEB, Correspondncias recebidas dos subdelegados de Polcia (1844 1889), mao: 3006.
Correspondncia do subdelegado Reinero Ascendino da Silva para o presidente da provncia, Manuel do
Nascimento Machado Portela, 14 mar. 1889.
-
35
Insistia que
em considerao a que acabo de expor, espero com a mxima brevidade a providncia pedida para
que haja ordem e garantia ameaada pelo estado aterrador dos infelizes que no mais apertado
transe de sua vida podero no desespero da fome, cometer atos reprovados e criminosos.18
Fica evidente aqui que os queixumes do subdelegado foram recursos utilizados para
atender a um grupo especfico, a saber, os comerciantes locais. Para alm de suas
sensibilidades com os famintos, seu pedido almejava celeridade nas obras pblicas no
centro comercial. Alm disso, o subdelegado pretendia se isentar das queixas de falta de
atividade e vigilncia, transmitidas por peridicos locais, afirmando no ter tempo para
exercer sua autoridade policial. Reinero Ascendino comunicou ao presidente da provncia, de
forma alarmante, sobre as consequncias de no inserirem esses emigrantes nos canteiros de
obras urbanas. Portanto, lavava as mos diante da possibilidade desses infelizes
descambassem para, no desespero da fome, praticar atos reprovados e criminosos.19
De maneira alarmante o delegado Rosalvo Menezes Fraga comunicou ao chefe de
polcia, em julho de 1889, o grande fluxo de indivduos refugiados da seca. Segundo o
delegado, cerca de 300 flagelados estavam espalhados pelas ruas da cidade e seria necessrio
reforo policial para conter uma possvel ameaa contra o patrimnio pblico e privado.20
Trs meses depois do telegrama ao chefe de polcia, tentando aumentar o rigor na vigilncia
aos forasteiros, o delegado Rosalvo Menezes Fraga estabeleceu uma portaria. A portaria
exigia uma relao exata de todas as pessoas que estivessem hospedadas nos hotis ou
casa de pasto, como eram conhecidos estabelecimentos modestos onde serviam refeies,
lugares que abrigavam migrantes e viajantes. Para Rosalvo Fraga, seria da maior
convenincia que a polcia tenha exato conhecimento de todas as pessoas que transitam por
esta cidade [tambm a freguesia de So Flix] e que nela permanecem temporariamente.
Pouco mais de um ano da abolio, com o fluxo intenso de pessoas vindo para cidade, parece
que a polcia cachoeirana traava estratgias para prevenir crimes. A retrica da defesa da
propriedade era o vu que cobria a real preocupao das autoridades polticas e policiais,
18
APEB, Correspondncias recebidas dos subdelegados de Polcia (1844 1889), mao: 3006.
Correspondncia do subdelegado Reinero Ascendino da Silva para o presidente da provncia, Manuel do
Nascimento Machado Portela, 30 mar., 1889. 19
APEB, Correspondncias recebidas dos subdelegados de Polcia (1844 1889), mao: 3006. 20
APEB, Polcia/delegados (1885-1889), mao: 6227. Correspondncia do delegado Rosalvo Menezes Fraga
para o chefe de polcia, Domingos Rodrigues Guimares.
-
36
legitimando as tentativas de identificar para controlar os passos da populao urbana, dos
quais muitos eram libertos e retirantes.21
A cidade atraia aqueles que buscavam oportunidades no s para trabalhar, mendigar e
cuidar da sade na Santa Casa de Misericrdia, mas tambm na arte de roubar. Eram vrias
as motivaes para a prtica do roubo e do furto, como veremos oportunamente no segundo
captulo. Por exemplo, em um contexto no qual alguns indivduos rejeitados do servio
militar ou fugindo de servios pesados, muitos acabavam vendo no furto uma alternativa
vivel de sobrevivncia. Como foi o caso de Marcolino Alves Barbosa, ganhador, 21 anos,
solteiro, natural da vila de So Gonalo, morava em um quarto alugado na Rua dos Remdios,
acusado de roubar vrios objetos no ano de 1891 aps ter sido rejeitado como recruta do
batalho do exrcito pelo seu defeito fsico. Tambm existiam aqueles que buscavam
comprar suas alforrias e sonhavam com a liberdade (sua ou de um ente querido, como foi o
caso de Pedro Laranjeira, cuja saga foi narrada na introduo desta pesquisa), tentando somar
ao seu peclio a venda de objetos roubados, como o caso de Rodrigo da Fonseca (escravo),
que veremos mais adiante. Existiram queles que trabalhavam e enxergavam no furto uma
possibilidade de complementao da renda ou, em momentos crticos, como ajuste de contas.
So alguns exemplos que veremos aqui.
Princpio do fim: prises e recrutamentos
O Cdigo Criminal do Imprio de 1830 definia como furto Tirar a cousa alheia contra
a vontade de seu dono, para si, ou para outro (art. 257). J o roubo baseava na subtrao
fazendo violncia pessoa, ou s cousas (art. 269). No ano de 1890, com o advento da
Repblica, foi promulgado o Cdigo Penal. A diferena entre furto (art. 330) e roubo se
manteve, contudo, no tocante ao roubo (art. 357), a legislao republicana tratou de ampliar o
entendimento no que diziam a r