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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ PAULO RENATO CAVALCANTI DE OLIVEIRA TRÊS PERSPECTIVAS SOBRE O HABEAS CORPUS: A DOUTRINA CLÁSSICA; A DOUTRINA MODERNA E A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NOS ANOS DE 2012, 2013 E 2014

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ

PAULO RENATO CAVALCANTI DE OLIVEIRA

TRÊS PERSPECTIVAS SOBRE O HABEAS CORPUS: A DOUTRINA CLÁSSICA; A DOUTRINA MODERNA E A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL

FEDERAL NOS ANOS DE 2012, 2013 E 2014

Rio de Janeiro2016

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PAULO RENATO CAVALCANTI DE OLIVEIRA

TRÊS PERSPECTIVAS SOBRE O HABEAS CORPUS: A DOUTRINA CLÁSSICA; A DOUTRINA MODERNA E A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL

FEDERAL NOS ANOS DE 2012, 2013 E 2014

Dissertação apresentada à Universidade Estácio de Sá, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito

ORIETADOR: Professor Doutor Marcello Raposo Ciotota

CO-ORIENTADORA: Professora Doutora Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva

Rio de Janeiro

2016

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DEDICATÓRIA

Dedico esse trabalho primeiramente a Deus, e a minha mãe Therezinha de Jesus Cavalcanti de Oliveira, pessoas sem as quais nada nessa vida teria sido possível realizar.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Profº Doutor Marcelo Raposo Ciotola, pela paciência na

leitura e correção do texto, bem como pelo auxílio dado quanto a metodologia, e pela

indicação do rumo a seguir na elaboração da dissertação, pelos aconselhamentos e

indicação de autores, cuja leitura tiveram grande relevância e muito enriqueceram o

trabalho.

A minha co-orientadora, Profª Doutora Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva

pelo incentivo e pelos ensinamentos relativos à forma e modo de pesquisa, e pela excelente

sugestão do título e estrutura da dissertação.

Ao Professor Doutor Lenio Streck a quem devo o primeiro esboço dos capítulos

da dissertação, que com muita paciência e boa vontade, sugeriu uma organização ainda que

não sido observada no todo, pelo menos parte do trabalho teve inspiração naquelas

sugestões primevas.

Ao Profº Doutor Saulo Bichara Mendonça por aceitar participar da banca, e

pelo envio de material, que em muito contribuiu para formar o pensamento que norteou a

pesquisa realizada.

Ao meu pai Renato Sergio Nogueira de Oliveira, pelo auxílio na leitura e

correção de todo o texto da dissertação, chamando atenção de eventuais descontinuidades

de pensamento.

Ao Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos em Direito, Cidadania, Processo e

Discurso (NEDCPD-PPGD/UNESA-RJ), lugar onde por meio da socialização e troca de

ideias, as noções de como se elaborar uma pesquisa em Direito começaram a se formar.

Aos Colegas Evandro Pereira Guimarães Ferreira Gomes e Eugeniusz Costa

Lopes da Cruz pelo incentivo e auxílio dado quando do momento da seleção para

ingresso no Mestrado, uma série de dúvidas e incerteza permeavam meus pensamentos.

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RESUMO

Essa dissertação buscou verificar a relevância da ação de habeas corpus para o

ordenamento jurídico brasileiro ao longo da história do Brasil, bem como a sua inter-

relação com os eventos políticos que se sucederam. Para tanto, foi buscar no pensamento de

juristas como Rui Barbosa, Pedro Lessa, Pontes de Miranda, Hélio Tornaghi, Magalhaes

Noronha, Heleno Claudio Fragoso, dentre outros que se dedicaram às letras jurídicas no

curso do século XX, a forma pela o instituto era compreendido na doutrina clássica.

Posteriormente o trabalho procurou fazer uma incursão profunda no instituto do habeas

corpus nos dias de hoje, afim de compreender os seus contornos técnicos, para, por meio da

diversidade com relação ao pensamento clássico, tentar entender a sua real aplicabilidade e

eficácia prática. Por fim, a dissertação penetra na jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal, por meio de uma análise estatística, quantitativa e qualitativa das decisões

publicada nas compilações de informativos de jurisprudência nos anos de 2012, 2013 e

2014, com o intuito de aferir, por meio de uma análise semiolinguística do discurso, a

compatibilidade de jurisprudência defensiva refratária aos habeas corpus substitutivos de

recurso, com o princípio do efetivo acesso à justiça e o Estado Democrático de Direito.

Sem perder de vista a tradição libertária da função jurisdicional brasileira, a dissertação

procurou desenvolver uma análise crítica da decisão proferida pelo Ministro Marco Aurélio

Mello no HC 109956 em 07 de agosto de 2012. A compilação de dados estatísticos teve

como base os anos de 2012, 2013 e 2014, exatamente porque a decisão do Ministro Marco

Aurélio Mello representou um divisor de águas, no que tange o habeas corpus substitutivo.

Palavras-chave: Habeas corpus. Pensamento clássico. Pensamento moderno. Jurisprudência

do Supremo Tribunal Federal. Princípio do acesso à justiça. Estado Democrático de Direito.

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ABSTRACT

This dissertation aims to evaluate the relevance of habeas corpus action to the Brazilian

legal system throughout the history of Brazil, and its interrelation with the political events

that followed. To that end, we look at the thought of lawyers such as Rui Barbosa, Pedro

Lessa, Miranda Bridges, Hélio Tornaghi, Magalhaes Noronha, Heleno Claudio Fragoso,

among others who have dedicated themselves to legal letters in the course of the twentieth

century, the way in the institute was understood in the classical doctrine. Later work sought

to make a deep incursion into habeas corpus Institute today, in order to understand its

technical contours, for, through the diversity of the classical thought, try to understand their

real applicability and practical effectiveness. Finally, the dissertation penetrates the

jurisprudence of the Supreme Court, by a statistical, quantitative and qualitative analysis of

the decisions published in the jurisprudence of informational compilations of the years

2012, 2013 and 2014, in order to assess through one semiolinguistics discourse analysis,

refractory defensive jurisprudence compatibility to habeas corpus substitute feature, with

the principle of effective access to justice and the democratic rule of law. Without losing

sight of the libertarian tradition of the Brazilian judicial function, the dissertation sought to

develop a critical analysis of the decision by Minister Marco Aurélio Mello in HC 109,956

on August 07, 2012. The compilation of statistical data was based on the years 2012, 2013

and 2014, precisely because the decision of Minister Marco Aurélio Mello was a

watershed, with respect habeas corpus substitute.

Keywords: Habeas corpus. Classical thought. Modern thought. Decisions by the Supreme

Court. Principle of access to justice. Democratic state.

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SUMÁRIO

Capítulo I- Introdução ------------------------------------------------------------------------ 1

Capitulo II - O pensamento Clássico

1- Breve Histórico ----------------------------------------------------------------------------- 5

2 - O habeas Corpus no Brasil --------------------------------------------------------------- 7

Capítulo III – O pensamento moderno: uma perspectiva doutrinária

1 – Legitimidade ativa ----------------------------------------------------------------------- 44

2 – O paciente --------------------------------------------------------------------------------- 46

3 – Autoridade coatora ----------------------------------------------------------------------- 49

4 – Natureza jurídica do habeas corpus------------------------------------------------- 50

5 – Espécies de habeas corpus ------------------------------------------------------------- 53

6 – Competência para julgar o habeas corpus ------------------------------------------ 56

7 – Cabimento da ação ----------------------------------------------------------------------- 58

8 – Procedimento em Juízo ------------------------------------------------------------------ 77

9 – Fungibilidade entre a ação de habeas corpus e a revisão criminal ----------------- 80

10 – Competência recursal ------------------------------------------------------------------ 82

11 – O habeas corpus substitutivo --------------------------------------------------------- 85

Capítulo IV – A jurisprudência no Supremo Tribunal Federal nos anos de 2012, 2013 e 20014

1 – Levantamento estatístico --------------------------------------------------------------- 90

2 – A jurisprudência defensiva e o habeas corpus ------------------------------------- 95

3 – A liberdade de ir e vir e os mecanismos de filtragem ----------------------------- 108

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Capítulo V – Conclusão ------------------------------------------------------------------------ 112

Referências bibliográficas --------------------------------------------------------------------- 117

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O HABEAS CORPUS

Capítulo I – INTRODUÇÃO

No Brasil, desde o tempo do Império, salvo em períodos em que ocorreram

governos autoritários, sempre houve a tradição de, em respeito ao direito de livre

locomoção, aceitar a utilização da ação de habeas corpus em substituição dos recursos

previstos em lei. Na praxe processual esse tipo de mecanismo tornou-se cristalizado, como

uma forma célere e eficaz, para proteger as pessoas de arbitrariedades praticadas pelo

Estado, possibilitando o controle judicial dos atos praticados pelos agentes do Estado.

O Supremo Tribunal Federal, no mês de agosto de 2012, mudou o seu

posicionamento jurisprudencial com relação aos habeas corpus substitutivos de recurso

ordinário, a partir da decisão do Ministro Marco Aurélio Mello no HC 109956, passando a

não mais conhecer dessa modalidade de ação, criando uma jurisprudência defensiva, com a

única finalidade de evitar uma sobrecarga de trabalho. No entanto, em alguns casos

considerados urgentes, os Ministros promovem a concessão da ordem de ofício.

A mudança do posicionamento jurisprudencial na Corte Constitucional

brasileira provocou, pelo menos para mim, uma série de indagações, a respeito dos

motivos, gerando uma especial curiosidade frente ao princípio do acesso à justiça,

especialmente em razão da tradição libertária que o Poder Judiciário brasileiro sempre

ostentou, aceitando como válida a via do habeas corpus substitutivo.

O presente trabalho objetiva analisar a ação de habeas corpus no Brasil, para:

tentar entender os motivos que levaram os Ministros do Supremo Tribunal Federal a adotar

um posicionamento tão refratário com relação aos habeas corpus substitutivos de recurso

verificar eventuais inconsistências no pensamento desenvolvido pelos Ministros; bem como

eventuais efeitos prejudiciais à liberdade de ir e vir para as pessoas no território brasileiro.

A dissertação foi desenvolvida em cinco capítulos, sendo o primeiro a

introdução e o último a conclusão. Nos três capítulos intermediários, onde efetivamente as

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ideias são desenvolvidas, buscou-se fazer uma análise detalhada do instituto do habeas

corpus no Brasil, por meio de um método dedutivo e comparativo, onde o instituto foi

observado não só pelo ponto de vista histórico, mas também pelo ponto de vista técnico

jurídico, não deixando, no entanto, de fazer uma análise jurisprudencial das decisões acerca

do habeas corpus substitutivo, especialmente no âmbito do Supremo Tribunal Federal,

tendo sido utilizado também, como instrumento, o método estatístico quantitativo.

O capítulo dois buscou desenvolver um estudo histórico do instituto do habeas

corpus para tentar compreender a variação que a ação sofreu ao longo da história política

brasileira, objetivando constatar como o instituto evoluiu, verificando também as eventuais

alterações ocorridas por conta das crises políticas que se desenvolveram no cenário

nacional. A importância desse capítulo, que dialoga com a obra clássica de Pontes de

Miranda – História e Prática do Habeas Corpus, é possibilitar uma visão ampla da ação de

habeas corpus, bem como o pensamento clássico dos juristas brasileiros. Permite observar,

também, como era o tratamento dado ao habeas corpus ante as diversas correntes

ideológicas que estiveram no comando do Poder Executivo, e como a liberdade de

locomoção foi tratada ao longo da história do Brasil. O próprio conceito de liberdade sofreu

alterações ao longo da história, em razão das peculiaridades sociais de cada época, assim

como o direito de liberdade, igualmente a ação de habeas corpus, seu principal recurso de

defesa, experimentou variações ao longo do tempo.

O habeas corpus, em sendo uma ação ou um recurso, conforme o pensamento

de alguns doutrinadores, possibilita, por meio do seu estudo histórico, observar toda a

evolução teórica doutrinária que permeou o estudo jurídico clássico no Brasil, passando,

desde uma legitimidade ativa restrita, por questões ligadas à cidadania, pela discussão

relativa à amplitude do direito de liberdade possível de ser resguardado pela via do habeas

corpus, até chegar aos contornos que o instituto apresenta nos dias de hoje.

O capítulo três faz uma análise do pensamento moderno a respeito da ação de

habeas corpus, com suas peculiaridades técnicas após a Constituição da República

Federativa do Brasil de 1988. O trabalho buscou na doutrina moderna, explorar as

divergências doutrinárias a respeito do instituto, a fim de melhor poder compreende-lo na

atualidade, bem como observar os pensamentos predominantes, para delinear o atual

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conceito do direito de liberdade, as possibilidades da sua proteção pela via judicial, bem

como a forma pela qual a ação de habeas corpus se insere nesse contexto.

A compreensão do pensamento moderno a respeito do habeas corpus permite

fazer uma comparação com o pensamento clássico, possibilitando, dessa maneira, um

melhor entendimento do instituto. Observando-se os seus contornos atuais, em confronto

com a sua sistemática do passado, é possível, não por meio da similaridade, mas pela

diferença, entender a real finalidade, amplitude e eficácia que o habeas corpus efetivamente

tem ou deveria ter nos dias de hoje. Além disso, por meio do estudo comparado, é possível

também compreender mais profundamente as mudanças ocorridas no seio da sociedade,

suas peculiaridades e evolução, bem como os seus reflexos no pensamento jurídico

brasileiro. Não há meio melhor para se compreender o presente, que não seja o de se

conhecer o passado.

No quarto capítulo do trabalho foi realizada uma análise estatística

jurisprudencial das decisões proferidas em ações de habeas corpus no Supremo Tribunal

Federal nos anos de 2012, 2013 e 2014. Os dados foram extraídos da compilação de

informativos do site do Supremo Tribunal Federal. Cumpre ressaltar que nessas

compilações de informativos não estão descritos todos os habeas corpus decididos no ano

pela Corte Constitucional brasileira, mas eles trazem uma amostragem considerável, que

permite uma observação geral das ações decidida Supremo Tribunal Federal, em

determinado período de tempo, possibilitando a obtenção de dados interessantes, que

viabilizam uma observação ampla, para se chegar a conclusões quantitativas e qualitativas

quanto às decisões proferidas no Supremo Tribunal Federal, pelo menos no que diz respeito

ao período de tempo relativo à coleta de dados.

O capítulo quatro do trabalho dialoga, principalmente, com parte da obra de

Patrick Charaudeau, com o livro de Eugeniusz Cruz e com o pensamento de Lênio Streck.

O primeiro autor foi utilizado na análise semiolinguística da decisão de 2012, proferida

pelo Ministro Marco Aurélio Mello no paradigmático HC 109956, marco inaugural da

mudança de posicionamento jurisprudencial no Supremo Tribunal Federal, onde procurou-

se observar o dito e o não dito na decisão, para fazer uma análise do conteúdo do discurso

utilizado na fundamentação em comparação com o sistema adotado no estado democrático

de direito. O segundo autor trouxe como contribuição à ideia da existência de resquícios

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autoritários no estado democrático de direito, demonstrando que, apesar da Constituição da

República Federativa do Brasil de 1988 inaugurar um novo ordenamento jurídico, fundado

em valores democráticos, antigas práticas autoritárias, continuaram a existir, conforme é

possível se observar em diversos episódios ocorridos após a promulgação da carta

constitucional de 1988. O terceiro autor contribuiu na fundamentação da necessidade dos

juízes decidirem com base nos princípios constitucionais e não conforme o livre

convencimento das suas consciências, além de ter servido de base para o desenvolvimento

da reflexão quantos à necessidade da existência de mecanismos de filtragem processual

eficazes para garantir o direito de ir e vir das pessoas nas diversas instâncias do Poder

Judiciário.

O desconforto causado pela mudança de posicionamento jurisprudencial no

Supremo Tribunal Federal, com relação ao habeas corpus substitutivo, provocou uma série

de questionamentos, instigando a realização da pesquisa desenvolvida nesse trabalho. Para

tentar solucionar esses questionamentos, um amplo estudo do habeas corpus, enquanto

instituto jurídico, foi elaborado, procurando compreender sua real finalidade e eficácia,

desde as suas raízes históricas, para entender no que consiste o direito de liberdade, qual a

sua importância para os valores democráticos, e como o Estado se posiciona na defesa

desse direito.

O problema central da pesquisa girou em torno das seguintes questões: O não

conhecimento do habeas corpus substitutivo de recurso ordinário viola de alguma maneira o

princípio do acesso à justiça? A criação de uma jurisprudência defensiva no âmbito do

Supremo Tribunal Federal, somente para evitar uma sobrecarga de trabalho, encontra

consonância com os valores do estado democrático de direito? Haveria alguma forma eficaz

de assegurar a liberdade de locomoção das pessoas no território Brasileiro, sem provocar

uma sobrecarga nos tribunais superiores?

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Capitulo II – O PENSAMENTO CLÁSSICO

1 BREVE HISTÓRICO

O Direito Romano lançou as bases jurídicas para a construção do Direito

ocidental. Nele não havia uma ação denominada Habeas Corpus, porém, alguns autores,

como por exemplo Thiago Botino do Amaral1, vislumbram uma existência implícita do

chamado Remédio Heróico no interdictum de homine libero exhibendo, cuja finalidade, em

Roma, era permitir a qualquer cidadão reclamar a exibição do homem livre detido

ilegalmente.

Os interditos eram institutos do direito pré-clássico ou pré-justiniano, que

podiam ser utilizados para por fim a conflitos entre cidadãos. Na Roma antiga, os

Interditos ou Interdicta consistiam em ordens dadas pelo pretor, fundadas no seu poder de

império. Uma das partes litigantes solicitava o interdito ao pretor, que o concedia ou não2.

Os interditos eram classificados em: proibitórios, restituitórios e exibitórios. O interdito

proibitório apresentava a finalidade de garantir uma obrigação de não fazer, o restituitório,

uma obrigação de dar, e o interdito exibitório uma obrigação de fazer, mais

especificamente, a obrigação de exibir alguma coisa, ou alguém, ao magistrado.

O interdictum de homine libero exhibendo apresentava, no direito romano,

características de procedimento civil, e não penal. Ele tinha a finalidade específica de

garantir a posse, colocando em liberdade um homem livre detido por outro, sem justo

motivo, ou para fazer apresentar o escravo de uma pessoa detido indevidamente por outra

pessoa.

O Habeas Corpus como instituto utilizado para garantir o direito de liberdade

contra os abusos estatais, talvez, pela natureza de Direito Civil, que apresentava o

interdictum de homine libero exhibendo, para a maioria dos autores, tem sua origem não em

1 AMARAL. Thiago Botino. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Editora Revista dos Tribunais. 20012 CRETELLA JUNIOR. José. Curso de Direito Romano, 20ª edição, Editora Forense. 1996

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Roma, mas por volta de 1.215, na Magna Carta Libertatum, imposta pelo clero e pelos

barões à João I, Rei da Inglaterra.

Na Inglaterra, no período da idade média, o rei João I, denominado

João Sem Terra, em razão de não ter sido contemplado com terras, deixadas por seu pai, o

rei Henrique II. acostumado com as facilidades da vida na corte, passou a adotar um

comportamento extremamente despótico, cobrando impostos escorchantes e efetuando uma

série de prisões arbitrárias. Os barões3, proprietários de terra à época, e o Clero impuseram

à João Sem Terra a chamada Magna Carta Libertatum para coibir os abusos praticados.

Nela fizeram inserir uma ação para garantir o direito de liberdade. Os efeitos da Magna

Carta Libertatum, no entanto, tiveram pouca duração, tendo em vista que foi revogada pelo

rei João I, em agosto de 1.215. É bem verdade que, em 1216, subiu ao trono, o rei Henrique

III, filho de João Sem Terra, fazendo restabelecer a Maga Carta Libertatum, porém as

violações arbitrárias ao direito de liberdade continuaram.

No Século XVII a ambição de liberdade do povo inglês4 retoma força, no

reinado de Carlos I, tendo inicio com a Petiton of Rigths. No ano de 1679, já no reinado de

Carlos II, fez-se inserir o interdictum de homine libero exhibendo, para garantir o direito de

liberdade das pessoas acusadas de crime. No ano de 1816, o Habeas Corpus Act foi

ampliado, para garantir o direito de liberdade das pessoas, também, contra prisões ilegais

por parte do Estado, e, inclusive, contra atos de particulares

Da Inglaterra a ação de habeas corpus foi levada pelos colonos para os Estados

Unidos da América. É verdade que na Constituição americana, bem como em suas

emendas, não há menção expressa ao writ, o texto tutela, de forma aberta, o direito de

3 Os barões, ao contrário do que se pode imaginar, não representavam a nobreza da época, mas eram os cavaleiros, que acompanharam o rei Ricardo I, mais conhecido, como Ricardo Coração de Leão, irmão mais velho do rei João I, às Cruzadas na Terra Santa. Eles receberam, como recompensa, terras isentas de impostos, chamadas Baronias, daí decorre o nome barão.4 Os ingleses sempre foram muito ciosos da liberdade física. Pensam mesmo que os atentados à vida, e à propriedade são menos perigosos e prejudiciais ao bem geral do que a menor violência ou coação à liberdade física do indivíduo. Matar um cidadão, confiscar seus bens ou destruí-los, sem acusação, sem processo, sempre seria ato de insigne despotismo; mas a notoriedade do delito levaria ao seio de todo o povo o grito de alarma contra a tirania iminente. Dir-se-á que o mesmo acontece nos constrangimentos no ir e vir? Absolutamente não. A encarceração de uma pessoa, argumentam eles, é arma menos pública. É violência, secreta, ignorada, invisível, portanto, mais grave e mais perigosa do que qualquer outra.

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liberdade na 5ª emenda5 ao utilizar a palavra liberty, porém, na prática, ele sempre foi

utilizado em terras americanas, com base no direito costumeiro trazido da Inglaterra.

O habeas corpus a partir de suas origens remotas difundiu-se para quase todas

as legislações ocidentais, devido à importância essencial que o direito de ir e vir tem para as

pessoas, que segundo a concepção clássica seria um direito natural do homem, inerente à

sua condição, ou seja, ser livre para ir e vir por toda a parte.

Apesar de não haver acordo quanto à origem do habeas corpus6, o certo é que a

luta do homem pelo direito de livre locomoção perde-se retroativamente na linha da história

da humanidade.

2 O HABEAS CORPUS NO BRASIL

No Brasil, enquanto colônia, não existia o habeas corpus, propriamente dito.

Utilizava-se nas Ordenações Do Reino de Portugal ( Afonsinas, Manuelinas e Filipinas) do

Interdito de Homine Libero Exhiendo, para garantir o direito de Liberdade.

O habeas corpus – Remédio Heroico - foi introduzido no ordenamento

jurídico brasileiro em 1832, no Código de Processo Criminal, tendo ingressado, como

norma constitucional expressa, na Constituição Republicana de 1891.

A Constituição Política do Império do Brazil de 1824 não fazia menção ao

habeas corpus, porém, no art. 179, inciso 8º, estabelecia que: “Ninguém poderá ser preso

sem culpa formada, exceto nos casos declarados em lei; e nestes, dentro de vinte e quatro

5 Amendment V. No person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamous crime, unless on a presentment or indictment of a Grand Jury, except in cases arising in the land or naval forces, or in the Militia, when in actual service in time of War or public danger; nor shall any person be subject for the same offence to be twice put in jeopardy of life or limb; nor shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself, nor be deprived of life, liberty, or property, without due process of law; nor shall private property be taken for public use, without just compensation.Consulta feita em 09/09/2015, disponível em http://www.archives.gov/exhibits/charters/bill_of_rights_transcript.html#text6 Aury Lopes Junior no seu livro Direito Processual Penal, entende que o antecedente histórico do habeas corpus estaria no Direito espanhol, com o recurso de manifestación de personas do Reino de Aragão, datado de 1428 a 1592, cuja finalidade era permitir que o detido fosse transferido do cárcere, para um regime similar ao da liberdade provisória atual, e para prevenir ou reprimir as prisões ilegais cometidas por qualquer autoridade.

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horas, contadas da entrada na prisão, sendo em cidades, vilas ou outras povoações próximas

aos lugares da residência do juiz, e nos lugares remotos dentro de um prazo razoável que a

lei marcará atenta a extensão do território, o juiz por uma nota por ele assinada fará constar

ao réu o motivo da prisão, o nome do seu acusador e o das testemunhas, havendo-as.7”

O deputado José de Alencar, em 1870, no entanto, dizia: “...alguns pensam que

o habeas-corpus data do Código do Processo (1832); minha opinião é contrária. Entendo

que, embora caiba aos autores do Código do Processo a glória de terem compreendido e

tratado de desenvolver o pensamento constitucional, o habeas-corpus está incluído, está

implícito na Constituição, quando ela decretou a independência dos poderes e quando deu

ao Poder Judiciário o direito exclusivo de conhecer de tudo quanto entende a

inviolabilidade penal”8

Pontes de Miranda analisando o direito de liberdade em terras brasileiras, vê no

Decreto nº 23 de maio de 1821, referendado pelo Conde dos Arcos, logo após a partida de

Don João VI para Portugal, o primeiro marco histórico das liberdades no Brasil, sendo por

ele denominada de “nossa Magna Carta”. Nessa época havia a ação de desconstrangimento,

aplicável como meio para se formular o pedido de soltura, das pessoas presas de forma

ilegal.

O habeas corpus que, no entanto, recebeu a sua primeira regulamentação legal

na Lei 29 de 29 de novembro de 1832, representou uma reação liberal, ainda no tempo da

Regência9. A necessidade da sua regulamentação tem crucial importância, em que pese os

argumentos do deputado José de Alencar10 e da existência da ação de desconstrangimento,

7 O texto do art. 189, inciso 8º da constituição do império que data de 1824, atualmente, mantém-se quase intacto no Código de Processo Penal. O art. 306, com redação dada pela lei 11.449 de 15 de janeiro de 2007 que, curiosamente, foi apontada como uma evolução legislativa, inseriu, no parágrafo primeiro, o prazo de vinte e quatro horas para a comunicação da prisão ao juiz, e no parágrafo segundo a entrega, no mesmo prazo, da nota de culpa informando ao preso os motivos da prisão, o nome do condutor e das testemunhas. Haja vista que, no texto original do Código de Processo Penal de 1941, não havia prazo para a comunicação da prisão8 De MIRANDA. Pontes. História e Prática do Habeas Corpus (Direito Constitucional e processual comparado). Tomo I. 7ª edição Editor Borsoi, 19729 Período de Regência, ou Regencial compreende o decênio entre 1831 e 1841, ele se inicia com a abdicação de Dom Pedro I, imperador até então, em favor de seu filho Pedro de Alcantara, que contava 6 anos de idade, esse período se encerra com o golpe da maioridade, quando Dom Pedro II, ainda com 15 anos, assume o trono. Diz-se golpe da maioridade, porque a Constituição estabelecia que a assunção ao trono só poderia se dar ao príncipe com 18 anos completos. O período Regencial é composto por quatro regência: Provisória Trina, Permanente trina, Uma do Padre Feijó, Uma de Araújo Lima.

10 José Martinano de Alencar nasceu em 1º de maio de 1829, no município de Messejana, no Estado do Ceará, a família transferiu-se para o Rio de Janeiro, que à época era a capital do Império do Brasil. Formou-se na Faculdade de Direito do Estado de São Paulo, Foi Deputado Estadual no Estado do Ceará, no ano de 1860,

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porque, onde não há uma regulamentação do procedimento de habeas corpus, não tem

como haver garantia segura e eficaz para a liberdade de ir e vir.

No entender de Pontes de Miranda11 a fonte do habeas corpus, conforme foi

concebido no Código de Processo Criminal do Império, é o “ Habeas Corpus Acts” de 1679

e 1816. Representava para o ordenamento jurídico brasileiro, uma evolução enorme, no

sentido de garantir o direito de permanecer, de andar, de ir de um lado a outro12 conforme

se referia Pontes de Miranda13, entretanto, a utilização do habeas corpus estava limitada aos

brasileiro, homens, não abrangia os estrangeiros, nem as mulheres, porque o texto legal

conferia legitimidade ativa aos cidadão, ou seja, pessoa no exercício dos direitos políticos,

conforme pode-se observar do artigo 340 da Lei nº 29 de 1932

“ Art. 340. Todo o cidadão que entender, que elle ou outrem soffre uma prisão

ou constrangimento illegal, em sua liberdade, tem direito de pedir uma ordem de - Habeas-

Corpus - em seu favor”

A questão relativa aos estrangeiros foi solucionada pela Lei nº 2.033 de 20 de

setembro de 1871 quando estabeleceu no artigo 18, § 8 que: “Não é vedado ao estrangeiro

requerer para si ordem de habeas corpus”

O problema relativo às mulheres, contudo, revelou-se um pouco mais delicado,

porque estas só passaram a ter direito ao voto de forma ampla, e, portanto, a condição de

cidadãs em 1932. Pela intepretação literal do Código de Processo Criminal do Império, a

mulher não poderia defender sua liberdade por meio do habeas corpus, na medida em que

se encontrava excluída da legitimidade ativa, não podendo, dessa maneira, impetrar o

habeas corpus, nem para si, nem para outrem. A doutrina da época, no entanto, de cunho

liberal, defendia a possibilidade da mulher impetrar ordem de habeas corpus, desde que o

fizesse para defender a si ou a seu marido.

tornou-se Ministro da Justiça no ano de 1868, tendo permanecido no cargo até 1870. Escritor profícuo, foi autor de diversos livros, tais como: Cinco Minutos, O Guarani, Lucíola, Iracema, O Tronco do Ipê, etc. Morreu no Rio de Janeiro em 12 de dezembro de 1877.11 Idem item 8. Página 13312 Ius manendi, ambulandi, eundi, ultro citroque13 Helio Tornaghi, no seu livro Curso de Processo Penal, critica a expressão normalmente utilizada por Pontes de Miranda. Afirma o autor: “Há quem fale em liberdade de ir, ficar e vir, mas quem é livre de ir, é livre de não ir, isto é, de ficar. Ser livre é poder fazer ou não fazer. Não há pois, necessidade de referência expressa ao ficar.

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10

A questão dos direitos de gênero, especialmente das mulheres ainda hoje

merece uma especial atenção, porém, à época do Código Criminal de 1832, a situação das

mulheres na sociedade apresentava uma maior complexidade.

No Brasil do século XIX, a mulher era um ser submisso ao pátrio poder ou ao

poder do marido,. Ela era classificada como um sujeito incapaz do ponto de vista jurídico.

Suas atividades, via de regra, deveriam se circunscrever aos limites do lar e aos afazeres

domésticos, cuidando do pai, enquanto solteira, da prole e do marido após o casamento. As

mulheres não podiam praticar livremente os atos da vida civil. Não podiam votar. O pai e o

marido estavam autorizados a castigar moderadamente a mulher que descumprisse suas

obrigações, inclusive de natureza sexual, como nos casos dos deveres matrimoniais.

Mateus Rodrigues de Oliveira Michelon e Carlos Daniel Rodrigues de Oliveira,

no artigo Cidadania das mulheres, imigrantes e o direito dos escravos no século XI14, citam

Lafayete Rodriges Pereira, um importante jurista da época, cujas palavras refletem, de

forma clara, a condição da mulher ao tempo do Código de Processo Criminal de 1832.

o marido tinha o direito de exigir obediência de sua mulher. Estava obrigada a moldar seus sentimentos aos dele em tudo o que fosse “honesto e justo”. Diante a lei, a mulher estava permanentemente num estado de menoridade.

É bem verdade que havia exceções, mulheres que se dedicavam ao trabalho fora

do lar, como por exemplo as escravas, as amas de leite, as empregadas domésticas, e

também no comércio e na indústria, via de regra na condição de serviçais, havia, ainda,

mulheres cultas, com formação liberal, que lutavam por seus direitos15, porém, essa

condição não representava a regra geral da sociedade brasileira do século XIX.

Não é objeto, nem pretensão deste trabalho esgotar a análise da condição das

mulheres no Brasil ao tempo da Constituição de 1824 e do Código de Processo Criminal de

1832, entretanto, torna-se importante fazer uma breve exposição, para permitir entender a

legitimidade das mulheres nos casos do habeas corpus, e, até porque não, para permitir

uma reflexão atual do que representava ser mulher naquele tempo.14 Apud.Consultado em 20/09/1015, disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/cidadania-das-mulheres-imigrantes-e-os-direitos-dos-escravos-no-s%C3%A9culo-xix15 A luta das mulheres pelo direito à cidadania, cumpre ressaltar, tem inicio na Inglaterra, no ano de 1897 com a União Nacional pelo Sulfrágio Feminino fundada por Millicent Fawcett. A Nova Zelandia foi o primeiro país a garantir o direito de votos à mulheres no ano de 1893. No Brasil a luta feminina pelo direito ao voto tem precedentes em 1927, com Celina Guimarães Viana e com Mietta Santiago, que no ano de 1928 conquistou o direito de votar, por meio de uma Mandado de Segurança

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O voto no Brasil, da Constituição de 1824, era censitário, somente os homens,

maiores de 25 anos, salvo se fossem casados ou oficiais militares, e os maiores de 21 anos

Bachareis formados ou clérigos de ordem sacra, desde que possuíssem renda líquida anual

de pelo menos duzentos mil reis por bens de raiz, indústria, comércio ou emprego16 é que

estariam aptos para votar ou serem eleitos. Dessa maneira a maior parte da população

brasileira ficava excluída da vida política brasileira. A Constituição da República dos

Estados Unidos do Brasil de 189117 melhorou um pouco a situação, acabando com o voto

censitário, e incluindo mais pessoas com capacidade política, ativa e passiva, porém, em

nada melhorou a situação das mulheres, que somente no ano de 1932 conquistaram o

direito ao voto.

16  A Cosntituição de 1824 estabelecia a capacidade política nos artigos 92, 93 e 94.Art. 92. São excluidos de votar nas Assembléas Parochiaes I. Os menores de vinte e cinco annos, nos quaes se não comprehendem os casados, e Officiaes Militares, que forem maiores de vinte e um annos, os Bachares Formados, e Clerigos de Ordens Sacras.II. Os filhos familias, que estiverem na companhia de seus pais, salvo se servirem Officios publicos.III. Os criados de servir, em cuja classe não entram os Guarda livros, e primeiros caixeiros das casas de commercio, os Criados da Casa Imperial, que não forem de galão branco, e os administradores das fazendas ruraes, e fabricas IV. Os Religiosos, e quaesquer, que vivam em Communidade claustral. V. Os que não tiverem de renda liquida annual cem mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou Empregos. Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Provincia todos, os que podem votar na Assembléa Parochial. Exceptuam-se. Os que não tiverem de renda liquida annual duzentos mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou emprego.II. Os Libertos.III. Os criminosos pronunciados em queréla, ou devassa.

17 Art 69 –“ São cidadãos brasileiros:1º) os nascidos no Brasil, ainda que de pai estrangeiro, não, residindo este a serviço de sua nação ;2º) os filhos de pai brasileiro e os ilegítimos de mãe brasileira, nascidos em país estrangeiro, se estabelecerem domicílio na República; 3º) os filhos de pai brasileiro, que estiver em outro país ao serviço da República, embora nela não venham domiciliar-se; 4º) os estrangeiros, que achando-se no Brasil aos 15 de novembro de 1889, não declararem, dentro em seis meses depois de entrar em vigor a Constituição, o ânimo de conservar a nacionalidade de origem; 5º) os estrangeiros que possuírem bens imóveis no Brasil e forem casados com brasileiros ou tiverem filhos brasileiros contanto que residam no Brasil, salvo se manifestarem a intenção de não mudar de nacionalidade; 6º) os estrangeiros por outro modo naturalizados. Art 70 - São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei. § 1º - Não podem alistar-se eleitores para as eleições federais ou para as dos Estados: 1º) os mendigos; 2º) os analfabetos; 3º) as praças de pré, excetuados os alunos das escolas militares de ensino superior;”

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A utilização do termo cidadão no artigo 340 do Código Criminal do Império

acarretava sérias complicações, pois retirava a legitimidade ativa para uma série de pessoas,

que ficavam vulneráveis a todo tipo de arbitrariedades por ilegalidade ou abuso de poder,

não podendo se socorrer do amparo estatal para garantir suas liberdades, especialmente a

relativa ao direito de ir e vir.

O estrangeiro homem, curiosamente, teve a sua legitimidade ativa para o

habeas corpus reconhecida no ano de 1871, mas as mulheres brasileiras continuaram

invisíveis aos olhos da lei, submetidas a uma condição submissa, dependendo de

interpretações doutrinárias e jurisprudenciais que, eventualmente, reconhecessem para elas

a possibilidade de impetrar habeas corpus, e mais, só poderiam fazer para defender a si ou

ao marido. Resta, porém, uma dúvida; em uma sociedade cuja visão era de uma mulher

reclusa e limitada aos afazeres do lar, poderiam as mulheres se utilizar da proteção estatal,

via habeas corpus, para livrarem-se dos grilhões de um pai ou de um marido que as

impedissem de livremente se locomover fora do lar?

Certamente não, até poderiam ser beneficiadas por uma ordem de habeas

corpus, desde que mantivessem a condição de submissão, pois dependeriam da

benevolência de algum homem para impetrar a ação em seu favor.

O Código de Processo Criminal do Império, se por um lado restringiu a

legitimidade ativa para a propositura da ação de habeas corpus, por outro lado, não

estabeleceu recurso para a decisão em sede de habeas corpus, ela era definitiva e

irrecorrível. No ano de 1841, contudo, ocorreu uma mudança legislativa, prevendo a

existência de um recurso de ofício, da decisão concessiva da ordem.

Até o ano de 1871 só havia previsão legal da utilização do habeas corpus para

prisão ilegal, pois só era considerado como constrangimento o cerceamento da liberdade

pela prisão. A Lei 2.033 introduz no Brasil o que hoje é denominado habeas corpus

preventivo. O habeas corpus, nesse contexto, passou a resguardar as pessoas não só do

efetivo cerceamento da liberdade física de ir e vir, como também das ameaças a esse

direito, quando no artigo 18, §1º estabeleceu: “Tem lugar o pedido de habeas-corpus

quando o impetrante não tenha chegado a sofrer o constrangimento corporal, mas se veja

dele ameaçado”

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13

No ano de 1889 aconteceu a proclamação da república no Campo de Santana,

na cidade do Rio de Janeiro. Foi liderada pelo Marechal Manuel Deodoro da Fonseca18

que, não muito seguro do que estava fazendo, comandou as tropas que depuseram o

imperador Pedro II. O Marechal Deodoro da Fonseca era amigo pessoal do imperador e

tinha ideias monarquistas. Até hoje muito se discute se a República no Brasil foi fruto da

vontade popular19, ou se seria mais um dos golpes militares que tanto permearam a história

política brasileira. Seja como for, fato é que a República se instalou de forma definitiva,

inicialmente regulamentada pelo Decreto nº 1 de 15 de novembro de 1889. No ano de 1891

foi promulgada a primeira Constituição republicana no Brasil – Constituição da República

dos Estados Unidos do Brasil de 1891.

Até a constituição de 1934 não havia no Brasil outra ação destinada a tutelar

direitos constitucionais: tal fato fez surgir uma grande discussão, tendo como protagonistas

18 Manuel Deodoro da Fonseca Nasceu em 5 de agosto de 1827 na Vila de Alagoas da Lagoa do Sul No ano de 1843 matriculou-se no Colégio Militar do Rio de Janeiro, e ingressou na carreira militar, como tenente no ano de 1848. Tendo participado de diversas campanhas, inclusive da Guerra do Paraguai. Em 15 de novembro de 1889 proclamou a República no Brasil, tendo se tornado o primeiro presidente a exercer o cargo. Morreu no município de Barra Mansa no ano de 1892.19 Aristides Lobo, no dia 15 de novembro de 1889, publicou no Diário Popular uma matéria, intitulada Cartas do Rio, e ao se referir à proclamação da República, escreveu: “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada. Era um fenômeno digno de ver-se. O entusiasmo veio depois, veio mesmo lentamente, quebrando o enleio dos espíritos.” Consulta feita em 17/09/2015, disponível em: http://www.franklinmartins.com.br/estacao_historia_artigo.php?titulo=o-povo-assistiu-aquilo-bestializado-artigo-de-aristides-lobo-1889

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principais Pedro Lessa20 e Rui Barbosa21, sobre o alcance da utilização do chamado

Remédio Heróico. Surgiu, então, a chamada Teoria Brasileira do Habeas Corpus.

O Art. 72, § 22 da Constituição de 1891 possuía um texto aberto, permitindo

uma ampla possibilidade de interpretação.

Dar-se-á o Habeas Corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em eminente perigo de

sofrer violência, ou coação por ilegalidade, ou abuso de poder.

Devido à inexistência de outros remédios constitucionais céleres, sob a égide da

Constituição de 1891, ocorreu que o habeas corpus passou a ser utilizado para finalidades

outras, não restritas ao cerceamento de liberdade por questões penais, tais como: para

garantir a posse de políticos eleitos, para garantir o exercício de funções públicas, ou o

exercício de atividades profissionais privadas. O cerne da discussão era a necessidade da

existência de direito líquido e certo.

20 Pedro Augusto Lessa nasceu em 25 de setembro de 1859 na cidade do Serro, província de Minas Gerais, e faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 25 de julho de 1921. Recebeu o Grau de Bacharel pela Faculdade de Direito do Estado de São Paulo no ano de 1883. Iniciou a vida pública nomeado para o cargo de secretário da Relação em São Paulo, no ano de 1885. No ano de 1888 prestou concurso e foi aprovado, com a melhor classificação, tendo sido nomeado como Lente Substituto da Faculdade de Direito do Estado de São Paulo no ano de 1891, no mesmo ano foi nomeado chefe da polícia do Estado de São Paulo e, posteriormente, eleito Deputado para o Congresso Constituinte do Estado de São Paulo. Abandonou a vida política e passou a dedicar-se à advocacia e ao Magistério, tendo dado nova orientação para o estudo de Filosofia do Direito no Brasil. Em 20 de novembro de 1907 foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal federal, pelo presidente Afonso Pena. Foi também, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Brasileira de Letras. Consulta feita em 01/10/2015, disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/ministro/verMinistro.asp?periodo=stf&id=11321 Rui Barbosa nasceu na cidade de Salvador, Bahia, em 5 de novembro de 1849 e faleceu na cidade de Petrópolis, no Estado do Rio de Janeiro em 1º março de 1923. Iniciou o curso de Direito na Faculdade de Direito da cidade de Recife, no ano de 1866, tendo se graduado Bacharel em Direito do Largo de São Francisco na cidade de São Paulo. A transferência deu-se porque Rui Barbosa, enquanto estudante na Faculdade de Direito de Recife participou da associação acadêmica abolicionista, ato que gerou sério desentendimento com um professor. Ingressou no Parlamento do império no ano de 1878, não tendo conseguido se reeleger, passou a escrever em jornais, tornando-se redator chefe do Diário de Notícias. Durante o primeiro governo republicano do marechal Deodoro da Fonseca, Rui Barbosa foi Ministro da Fazenda, tendo prestado importante auxílio na elaboração da Constituição de 1891, foi, também, o principal responsável pela crise do encilhamento, estopim para grave crise econômica na Primeira República. O principal motivo desta foi a emissão descontrolada de moeda pelo governo e ações sem lastro pelas empresas criadas nesse período, que provocou alta inflação e especulação financeira. Em 1893 assumiu a direção do Jornal do Brasil, onde fazia forte oposição ao governo do Marechal Floriano Peixoto, No ano de 1985 foi eleito para o Senado, porém, em razão do Movimento Revolta da Armada, mesmo não tendo ele participação direta, foi obrigado a exilar-se na Inglaterra. Volta do exílio, ainda no ano de 1985 e luta pela anistia do punidos pelo Presidente Floriano Peixoto. No ano de 1907, durante o governo de Afonso Pena, Rui Barbosa foi nomeado para representar o Brasil da Conferência de Haia, tendo recebido o epíteto de “A Agia de Haia”. Candidatou-se à Presidência da República no ano de 1909, tendo sido derrotado pelo Marechal Hermes da Fonseca. Foi membro e presidente da Academia Brasileira de Letras.

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Rui Barbosa e outros, como menciona Pontes de Miranda,22 interpretaram o

texto constitucional no sentido de ampliar a aplicação do Remédio Heroico para situações

de natureza não penal, ou seja, para proteger todo e qualquer direito, e não exigindo a

liquidez e certeza do direito, eles defendiam a possibilidade da discussão de mérito em sede

de habeas corpus, conforme se observa no discurso proferido por Rui Barbosa em 22 de

janeiro de 1915:

cabendo competência ao tribunal, ainda artificialmente, quando questões políticas

se revestirem de forma judicial é do mesmo modo competente para conhecer, em tais casos, o

habeas-corpus.

Na verdade, o advogado e senador Rui Barbosa fazia uma interpretação do

termo liberdade de forma ampla, como faziam, os franceses na Declaração dos Direitos do

Homen do Cidadão de 1789.

Na França não havia, na época da Revolução Francesa, uma distinção clara dos

diversos tipos de liberdade, como ocorria na Inglaterra, em que se diferenciavam as

liberdades, de locomoção, de propriedade, de pensamento. Para os franceses de 1789, assim

como na Constituição Americana de 1787, o termo liberdade aparece de forma abstrata, e

aberta, incluindo todos os tipos de liberdade existentes.

Rui Barbosa também concebia o conceito de liberdade de forma aberta,

conforme se observa de outro trecho do seu discurso de 22 de janeiro de 1915:

A questão resolve-se pela evidência literal dos textos. Se a Constituição de 1891 pretendesse manter no Brasil com os mesmos limites dessa garantia durante o Império, a Constituição teria procedido em relação ao habeas-corpus como precedeu relativamente à instituição do júri. A respeito do júri diz formalmente o texto constitucional: “É mantida a instituição do júri.” Procedeu assim a Constituição de 1891? Não. Foi mais além. Definiu-o, enunciando que se daria o habeas-corpus sempre que alguém sofresse ou se achasse em iminente perigo de sofrer violência ou coação, por ilegalidade, ou abuso de poder. Não falou em prisão, nem em constrangimento corporal. Não se aludiu a liberdade física, nem se deixa vislumbrar, sequer sob a nitidez das palavras, ideia de preferência, de restrição, de demarcamento. Falou-se em geral, amplamente, indeterminadamente, absolutamente, em coação e violência; de modo que, onde quer que surja, onde quer que se manifeste a violência ou a

22 Idem item 7

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coação, por um desses meios, aí está estabelecido o caso constitucional do habeas-corpus.

Dessa maneira, para Rui Barbosa, o habeas corpus teria cabimento para tutelar

todo e qualquer direito de liberdade, e não só a liberdade de locomoção. Ao poder

judiciário cabia proteger qualquer direito de liberdade, sempre que demandado via ação de

habeas corpus, analisando o mérito de forma ampla, como seria feito em toda e qualquer

ação, não se exigindo a pretérita liquidez e certeza do direito.

Pedro Lessa, enquanto Ministro do STF, discordava em parte da posição

adotada por Rui Barbosa. Ele fazia uma distinção entre o Habeas Corpus destinado a coibir

prisões ilegais de natureza penal, daquele destinado a tutelar outros direitos, neste último

caso o direito deveria ser juridicamente indiscutível, ou seja, líquido e certo, além de estar

de alguma forma interligado com o direito de locomoção. Nesse sentido manifestou-se da

seguinte forma:

Ainda que não haja prisão nem ameaça de prisão, autoriza o uso do habeas-corpus. Sempre que o indivíduo precise da liberdade física para exercer qualquer direito, devemos garantir essa liberdade contra as violências já feitas ou apenas receadas, mas envolver no processo do habeas-corpus questão acêrca de um direito qualquer que se pretende exercer, mas que é contestado com razões que devam ser apreciadas com as garantias processuais, ou um direito qualquer que só pode ser examinado e garantido por outro tribunal, ou por outra autoridade, ou por outra corporação, é ofender princípios inconcussos e correntes de direito pátrio. Não está confia à discrição, ao arbítrio dos juízes, a aplicação dos recursos judiciais, ao ponto de poder aplica-los a hipóteses completamente diversas para que foram criados e consagrados pelas leis

Pedro Lessa e Rui Barbosa divergiam com relação à amplitude de aplicação do

habeas corpus. Rui Barbosa defendia o direito de liberdade de forma ampla, conforme

concebido pelos franceses do século XVIII, ele entendia que o “Remédio Heroico” não

deveria encontrar limites, podendo tutelar qualquer espécie de liberdade, além, das

relacionadas com o direito de ir e vir, além disso, se fosse necessário, admitia a dilação

probatória para o julgamento do mérito da causa, em sede de habeas corpus. Pedro Lessa,

por sua vez, aceitava a utilização do habeas corpus para tutelar outras liberdades, desde que

envolvesse o direito de ir e vir. Além disso, exigia certeza e liquidez do direito como

condição para a utilização do habeas corpus.

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O pensamento de Rui Barbosa; quanto à amplitude do habeas corpus, restou

vencido tanto na doutrina, como na jurisprudência. Pontes de Miranda, Helio Tornaghi,

Magalhães Noronha, e, por fim, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal adotaram

um entendimento mais restrito, quanto a amplitude e os requisitos para a utilização do writ.

Pontes de Miranda refutava completamente a posição defendida por Rui

Barbosa, era o seu entendimento mais próximo da posição defendida por Pedro Lessa, na

medida em que que Pontes de Miranda concebia o habeas corpus como um remédio para

tutelar apenas o direito de ir, ficar e vir, sendo necessária a existência de direito líquido e

certo. Entendia ele que não caberia dilação probatória na ação de habeas corpus, conforme

se pode perceber de seus escritos: “Só nos sofismas desabusados a trica e o subjetivismo

impertinentes podem ver nas expressões “liberdade pessoal”, protegida pelo habeas-

corpus, outro significado mais amplo que o de liberdade física”

Pontes de Miranda em diversas passagens do seu livro História e Prática do

Habeas-Corpus, demonstra completa divergência com o pensamento liberal defendido por

Rui Barbosa:

Escrevemos na 1ª edição, divergindo das decisões do Supremo Tribunal, a opinião do Senador Rui Barbos, a quem mais deve o nosso direito constitucional, S Exª. Define a liberdade qual a entenderam os franceses e a entendem ainda hoje quantos não escaparam à grande inundação libertária do fim do século XVIII [...] Como se vê a doutrina é liberalíssima, mas, na prática, excluído, como foi, o requisito de liquidez, os seus efeitos poderiam ser anárquicos , uma vez que nem todo país frui da serenidade moral do grande jurista que a pregou. Assim, conta a opinião extrema da interpretação extrapolante ficamos nós

Direito líquido pode ser definido como aquele que pode ser demonstrado de

plano, ou seja, de forma imediata, mediante prova pré-constituída, sem a necessidade de

dilação probatória. Trata-se de direito manifesto na sua existência, delimitado na sua

extensão e apto a ser exercitado no momento da impetração23, ou seja, a prova da existência

do direito deve acompanhar a petição, sob pena de indeferimento pelo juiz.

O termo direito líquido e certo causa certa polemica entre os doutrinadores, pois

há o entendimento de que o direito sempre seria líquido e certo, os fatos é que poderiam ter

ou não essa característica, tendo em vista que o direito está previsto na lei, não havendo

dúvidas sobre ele, salvo discussões relativas a eventual inconstitucionalidade da lei, porém,

23 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15ª Edição. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011

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ao entrar em vigor, em princípio, o direito é válido, o que faz dele líquido e certo. Os fatos

por vezes podem apresentar-se claramente protegidos pela lei, outras vezes necessitam uma

certa dilação de provas para demonstrar o perfeito amparo legal.

Rui Barbosa, tendo como base o entendimento amplo do alcance do habeas

corpus, defendia que ele sempre seria a via adequada para proteger toda e qualquer espécie

de liberdade, que de algum modo estivesse ameaçada ou violada, e que o Poder Judiciário

não poderia se furtar a apreciar qualquer provocação que envolvesse os direitos de

liberdade, em razão da especial relevância desse bem para toda a sociedade, ainda que fosse

necessária uma análise mais aprofundada de provas, para que o juiz pudesse julgar o mérito

Pedro Lessa e Pontes de Miranda divergiam do pensamento de Rui Barbosa.

Eles entendiam que o habeas corpus, pela sua própria natureza consistia em um remédio

que objetivava proteger liberdades em que o direito de ir e vir estivesse de alguma forma

ameaçado ou violado, sendo, portanto, imprescindível com a celeridade. A produção de

provas no curso do processo de habeas corpus seria, por conseguinte, incompatível com a

celeridade necessária, razão pela qual as provas deveriam, obrigatoriamente, acompanhar a

petição inicial. Para que o juiz pudesse decidir de plano sobre o mérito do habeas corpus.

Rui Barbosa, não via nenhum óbice na ocorrência de dilação probatória em

sede de habeas corpus, pois as liberdades sempre seriam meritórias da análise do Poder

Judiciário. Pedro Lessa e Pontes de Miranda sustentavam que as liberdades, especialmente

a de ir e vir, poderiam, em determinadas situações, exigir uma dilação probatória para

serem demonstradas adequadamente, porém, nesses casos, ela deveria ser protegida pela via

das ações ordinárias, em que o juiz iria poder dispor de tempo para formar a sua convicção.

O habeas corpus teria cabimento exclusivamente para situações urgentes, em que a tutela

jurisdicional necessitasse ser célere, sob pena de pleno perecimento do direito de livre

locomoção, para tanto, a prova pré-constituída se faz condição essencial à petição inicial da

ação de habeas corpus a qual necessita trazer consigo os elementos de prova capazes de não

só demonstrar que o direito tem aplicação à situação fática apresentada, mas também a

urgência da intervenção judicial, para proteger a liberdade ambulatorial.

Pontes de Miranda entendia que a liquidez, ao invés de ser fim, seria o ponto de

partida do habeas corpus, uma controvérsia que não poderia por ele ser dirimida. Esta

necessariamente deveria ser objeto de procedimento comum, porque o habeas corpus não se

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presta para tutelar um direito, mas sim assegurar o possuidor de um direito, livrando-o de

coação ou violência à liberdade de ir, ficar e vir, praticados com ilegalidade ou abuso de

poder. A posição defendida por Pedro Lessa e Pontes de Miranda foi seguidas pelo

entendimento de diversos outros autores de Direito Processual Penal, que ao filiarem-se a

corrente restritiva, aproximam o pensamento da posição adotada pelos ingleses, acabando

por refutar o pensamento de Rui Barbosa, mais próximo do entendimento adotado pelos

franceses.

Magalhães Noronha,24 ao tratar do habeas corpus no seu livro Curso de Direito

Processual Penal, faz citação direta a Pontes de Miranda, se filiando ao seu posicionamento

quanto à amplitude do “Remédio Heróico”. A respeito escreveu25: “Em nosso próprio

país, procurou ampliar-se a extensão do habeas corpus, levando-a a tutelar direitos

outros que não o jus libertatis, mas o Código não se filiou a essa corrente, como se vê

do art. 64726.”

O professor Magalhães Noronha, apesar de mencionar expressamente filiação à

posição de Pontes de Miranda, ele escreveu o seu livro em um momento muito posterior ao

da discussão que ensejou a chamada Teoria Brasileira do Habeas Corpus, a fundamentação

dada pelo autor cita o artigo 647 do Código de Processo Penal, cuja elaboração data de

1941, portanto, com uma diferença aproximadamente de trinta anos. À época dos debates

travados entre Rui Barbosa e Pedro Lessa ainda estava em vigor o Código de Processo

Criminal de 1832, cuja regulamentação do habeas corpus encontrava-se nos artigos 340 a

355. Em que pese o irretocável saber jurídico do professor Magalhães Noronha, não há

como fazer uma fundamentação confiável de questões pretéritas, com argumentos de

legislação futura, pelo simples fato de não refletir com exatidão a situação jurídica da

24 Edgar Magalhães Noronha nasceu em Batatais, em 10 de janeiro de 1906, tendo falecido no ano de 1982. Formou-se pela Faculdade de Direito do Estado de São Paulo no ano de 1931. Ingressou no Ministério Público do Estado de São Paulo em 23 de setembro de 1931, onde exerceu o cargo de Procurador Geral de Justiça do Estado de são Paulo, em substituição. Aposentou-se do Ministério Público no ano de 1961. Foi professor de Direito Penal Militar no Curso de Formação e Aperfeiçoamento de Oficiais da Força Pública e professor de Direito Penal nas Faculdades de Direito da Universidade Mackenzie e de Sorocaba, é autor de manuais de direito penal e de processo penal. Há notícias de que suas obras completas encontram-se, também, na biblioteca da Universidade de Harvard. Consulta feita em 01/10/2015. Disponível em: http://www.revistajustitia.com.br/revistas/z0x2xw.pdf25 NORONHA. E. Magalhães, 1906-1982. Curso de direito processual penal. 27ª edição. Atualizada por Adalberto José Q. T. de Camargo Aranha – São Paulo. Saraiva, 199926 Artigo 647 do CPP. Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal, na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar

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época. Na verdade, o Código de Processo Penal de 1941 é herdeiro direto27 da chamada

Teoria Brasileira do Habeas Corpus, elaborado, exatamente, para dirimir a controvérsia

existente.

Helio Tornaghi28 se posicionou pela interpretação restritiva; no seu livro Curso

de Processo Penal. O autor apresenta uma abordagem histórica do instituto do habeas

corpus, mencionando a interpretação ampla e, ao final. demonstra o seu entendimento:

Esse texto foi interpretado de maneira amplíssima e, talvez por faltar um remédio como o mandado de segurança, os tribunais repararam por meio de habeas corpus os atentados atuais e iminentes contra a liberdade em qualquer de suas formas. A corrente que sustentava ser o habeas corpus remédio apenas contra a violação da liberdade de ir e vir, ficou vencida por aquela outra, que arrimando-se no caráter evolutivo do Direito designava o habeas corpus das peias de sua contextura original. E invocando os dizeres da Constituição, sustentava ser ele remédio contra qualquer” violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder”.

O entendimento correto acabaria por triunfar: o habeas corpus é remédio contra qualquer violência, ilegalidade ou abuso de poder que fira algum direito desde que atinja o de locomoção29....

O professor Hélio Tornaghi faz a interpretação consoante às regras da época;

não menciona expressamente Pontes de Miranda, nem Rui Barbosa, mas dá a entender que

o seu posicionamento filia-se à corrente de pensamento menos ampliativa, que realmente

acabou por triunfar, tanto na doutrina como na jurisprudência, especialmente no Supremo

Tribunal Federal

27 Pontes de Miranda no seu livro História e Prática do Habeas Corpus, Tomo I, página 233 esclarece a situação: “Devido à corrente interpretativa que Rui Barbosa e outros juristas pretendiam fazer vitoriosa, com habeas-corpus políticos, travou-se a luta entre os que abstraiam de qualquer fim que se ligasse ao direito de ir, ficar e vir, acentuando que qualquer exame de direito-fim, excluiria o habeas-corpus, e os que entendiam que a justiça não podia deixar de examinar o caso que se lhe submetesse. A tese reacionária e a antítese liberal fizeram explodir a mais memorável contenda jurídica constitucional do Brasil. Mais: da América Latina. Muito devemos nós, Brasileiros, em nossa cultura jurídica, a esse choque do primeiro quartel do século. Foi experiência in vivo, em torno de simples conceitos: liberdades no plural; liberdade pessoal, liberdade física, direito-condição, direito-fim. Sem aquelas discussões não teríamos, mais tarde, a técnica legislativa constitucional de que se valeram os constituintes de 1934 e de 1946. Não teríamos resistido à rasoura mediocrizante, libertícia , de outros momentos.” – grifo nosso.28 Helio Tornaghi nasceu em 1915 e faleceu na cidade do Rio de janeiro em 2004. Foi professor catedrático da Faculdade Nacional de Direito, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo conquistado a cátedra no ano de 1945, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas. Foi autor do anteprojeto do Código de Processo Penal, encomendado pelo governo brasileiro em 1962. Cumpre ressaltar que o referido código nunca entrou em vigor, e autor de diversos livros de Processo Penal e Direito Penal.29 TORNAGHI. Hélio, 1915 – 2004. Curso de processo penal, 9ª edição. São Paulo Editora Saraiva 1995

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A Suprema Corte do Brasil, diante do texto do art. 72,§ 22 da Constituição de

189130, adotou o entendimento de que o Habeas Corpus não se restringia para garantir o

direito de liberdade nos casos de prisão ilegal, tendo cabimento também para garantir

outros direitos, desde que o direito de ir e vir estivesse de alguma forma relacionado. Nas

duas primeiras décadas do século XX o habeas corpus foi utilizado para diversas

finalidades31, entre elas, para garantir a posse em cargos públicos e mandatos eletivos.

No dia 24 de janeiro de 1920 o Supremo Tribunal Federal concedeu ordem de

habeas corpus em favor dos pacientes Ermidio Braz dos Santos e Luiz Fabriz para que

esses exercessem as funções de vereador no município de Guarará, Estado de Minas

Gerais.32 Na verdade admitia-se, de um modo geral, a utilização do habeas corpus para

garantir o exercício de mandados eletivos, quando a pessoa regularmente diplomado pela

autoridade competente encontrava algum obstáculo para tomar posse ou adentrar à casa

legislativa. Cumpre ressaltar, no entanto, que nessa época ainda não havia Justiça Eleitoral,

razão pela qual a análise dos habeas corpus em casos eleitorais ficava a cargo da Justiça

Federal e do Supremo Tribunal Federal.

Não só vereadores se valeram do “Remédio Heroico”, como também membros

de assembleias estaduais, governadores, etc. Como exemplo clássico tem-se o HC 3.13733,

de 1912 cujo relator foi o Ministro Epitácio Pessoa, no qual Rui Barbosa e Mhetodio

Coelho impetraram o habeas corpus em favor de diversos políticos do Estado da Bahia. O

problema tem inicio quando da renúncia do Governador do Estado. O segundo substituto

legal assume o governo, tendo em vista que o primeiro substituto encontrava-se impedido.

Assim que assumiu o governo, o segundo substituto expede decreto convocando

30 O Artigo 72 caput da Constituição de 1891 estabelecia: “A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes”. O parágrafo 22 tratava especificamente do habeas corpus, da seguinte forma “Dar-se-ha o habeas-corpus sempre que o individuo soffrer ou se achar em imminente perigo de sofrer violencia, ou coacção, por illegalidade, ou abuso de poder.”. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1824-1899/constituicao-35081-24-fevereiro-1891-532699-publicacaooriginal-15017-pl.html. Consulta feita em 29/11/201531 Para uma maior compreensão da utilização do habeas corpus no Brasil, é interessante a consulta da página do Supremo Tribunal Federal, relativa aos julgamentos históricos. Nem todos foram utilizados neste trabalho, porque fugiria por demasiado ao seu objeto. A página dos julgamentos históricos do Supremo Tribunal Federal está disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=sobreStfConhecaStfJulgamentoHistorico&pagina=principal32 Idem item 833 Inteiro teor da decisão proferida no HC 3.137 disponível em : http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfConhecaStfJulgamentoHistorico/anexo/HC3137.pdf. Consulta feita em 08/10/2015

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Assembleia Geral que deveria se reunir na cidade de Jequié, porque não havia condições de

segurança na capital. Uma parte dos congressistas insurge-se contra o decreto e obtém

ordem do juiz federal para reunirem-se em local próprio. A partir desse momento uma forte

dissidência se inicia entre dois grupos de congressistas. O Juiz Federal requisita, ao então

Presidente da República Marechal Hermes da Fonseca, o envio de tropas federais, no que

foi atendido. O Governador em exercício, se recusou a retirar as forças locais, fato que

provocou intenso bombardeio na cidade, provocando a destruição de alguns prédios

públicos. O Governador, sob coação, renuncia e refugia-se em um consulado.34 O Supremo

Tribunal Federal, por maioria, decidiu por declarar prejudicado o habeas corpus35

O Marechal Hermes da Fonseca termina o seu mandado no ano de 1914,

política do café com leite continua sustentando a República Velha, tendo como presidentes

Venceslau Brás, Rodrigues Alves, que veio a falecer antes de tomar posse, assumindo o

cargo Delfim Moreira que era o vice-presidente eleito. Epitácio Pessoa sucede Delfim

Moreira, e no ano de 1922 é eleito Artur Bernardes como presidente do Brasil.

Nos anos de 1922 a 1924 ocorreram uma série de rebeliões e conspirações

armadas, elas ocorreram em diversos Estados e refletiam o descontentamento de jovens

oficiais das forças armadas. Na verdade, o descontentamento dos jovens oficiais das Forças

Armadas com a política das oligarquias que dominavam o governo no Brasil teve inicio no

ano de 1920, eles defendiam reformas na estrutura do poder, tais como: o voto secreto e o

fim do voto de cabresto36. Foi o denominado movimento tenentista que refletia o

enfraquecimento da política desenvolvida pela República Velha. O movimento eclode com

maior força no ano de 1922, na cidade do Rio de Janeiro, com a chamada Revolta dos 18 do

Forte, cujo objetivo era depor o então presidente eleito, Artur Bernardes. Depois desta

outras rebeliões ocorreram em São Paulo e no Rio Grande do Sul. No ano de 1925 percorria

o interior do Brasil a Coluna de Luiz Carlos Prestes. Essa atmosfera de revolta teve uma

consequência direta sobre o habeas corpus, que até então era utilizado de forma ampla,

34 Consulta feita em 08/10/2015, disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=sobreStfConhecaStfJulgamentoHistorico&pagina=hc313735 Decidiram por não conhecer do HC 3.137 os Ministros H. do Espírito Santo, P. Epitácio Pessoa, relator Godofredo Cunha Oliveira Figueiredo M. Espínola Leoni Ramos, votam vencidos pela concessão da ordem os Ministros Pedro Lessa, Canuto Saraiva, Amaro Cavalcanti, Manuel Murtinho e Oliveira Ribeiro36 Voto de cabresto era um sistema de controle político. No Brasil, no inicio do século XX, o voto era aberto e os eleitores eram pressionados, pelos “coronéis”, oligarquia agrária, a votarem nos candidatos apoiados por eles. Os “coronéis” faziam a fiscalização dos votos por meio de seus “jagunços”, ou seja, pessoas armadas que prestam serviço paramilitar, intimidando e coagindo as pessoas, nesse caso, a votar.

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para assegurar todos os direitos, que de alguma forma envolvessem o direito de locomoção,

como direitos políticos, a posse em cargos públicos etc.

O debate a respeito da amplitude do habeas corpus perdurou até a revisão

constitucional de 1925 e 1926. A Emenda Constitucional nº 3 de setembro de 1926 alterou

o texto do artigo 72, § 22 da Carta Constitucional de 189137, especificando que o habeas

corpus só teria cabimento para proteger o direito de locomoção. Porém, nem mesmo a

alteração feita no artigo 72,§ 22 da carta constitucional de 1891 foi capaz de afastar a

utilização do habeas corpus para questões políticas. Somente com a inserção do parágrafo

5º no artigo 60 da Constituição de 1891,38 por Emenda Constitucional, em 3 de setembro de

1926, ficou afastado qualquer recurso ao Poder Judiciário das questões políticas.

Prevaleceu o triunfo dos antiliberais cuja inspiração vinha das ditaduras europeias, que

causou imensa angústia no cenário político brasileiro, parecia que todas as portas

encontravam-se fechadas, inviabilizando a defesa contra os arbítrios do Poder Executivo.

O Presidente da República, Artur Bernardes39, como forma de manter as

prerrogativas do governo e da oligarquia agrária do Brasil, para enfrentar as rebeliões que

eclodiam por toda parte no território nacional, decretou estado de sítio, que perdurou por

todo o seu mandato, essa foi a razão da necessidade de restringir os recursos judiciais,

inclusive a ação de habeas corpus, a fim de fazer prevalecer os atos do Poder Executivo,

excluindo qualquer forma de controle por parte do Poder Judiciário. Não havia remédio

capaz de evitar as arbitrariedades e as ilegalidades. Toda sorte de abuso do poder se

legitimou.

No ano de 1926, ainda em pleno estado de sitio, como um resto de luz no meio

das trevas, surge o projeto de Gudesteu Pires criando o Mandado de Segurança40, para 37 Artigo 72, § 22 da Constituição de 1891, com alteração da emenda constitucional nº 3. Dar-se-ha o habeas-corpus sempre que alguém soffrer ou se achar em imminente perigo de soffrer violencia por meio de prisão ou constrangimento illegal em sua liberdade de locomoção38 Artigo 60, §5º da Constituição de 1891.  Nenhum recurso judiciario é permittido, para a justiça federal ou local, contra a intervenção nos Estados, a declaração do estado de sitio e a verificação de poderes, o reconhecimento, a posse, a legitimidade e a perda de mandato dos membros do Poder Legislativo ou Executivo, federal ou estadual; assim como, na vigencia do estado de sitio, não poderão os tribunaes conhecer dos actos praticados em virtude delle pelo Poder Legislativo ou Executivo. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm. Consulta deita em 12/10/201539 Artur da Silva Bernardes nasceu em viçosa em 8 de agosto de 1875, formou-se na Faculdade Livre de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Iniciou a carreira política como vereador, no ano de 1906, foi deputado eleito pelo Estado de Minas Gerais por duas vezes 1909 a 1910 e 1915 a 1917. Foi presidente do Estado de Minas gerais nos anos de 1918 a 1922, e veio a tornar-se o 12º Presidente da República do Brasil, eleito em 1º março de 1922 com 466.877 votos40 Idem item 8

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permitir a defesa de liberdades outras distintas das de locomoção, que, em razão das

alterações na Carta Constitucional, ficaram desprotegidas por completo. O projeto por

razões óbvias não logrou êxito, diante do recrudecimento das práticas antiliberais.

O ano de 1930 encerra a chamada República Velha. O mundo nessa época

passou por uma séria crise econômica, em grande parte impulsionada pela quebra da Bolsa

de Nova Iorque. O Brasil, que neste período tinha uma economia basicamente agrária,

fundada, eminentemente, na exportação do café, era o sustentáculo da denominada política

do café com leite, base da então República Velha; esta alternava o centro do poder

executivo federal entre Minas e São Paulo, mas, no entanto, já se encontrava bastante

desgastada.

Washington Luís41 foi eleito presidente do Brasil, em 1º de março de 1926 e, no

inicio de 1929, quando do fim do seu mandato, indicou para concorrer às eleições, como

seu sucessor, Júlio Prestes42 que recebeu o apoio de 17 estados da federação, porém, os

Estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba negaram apoio ao candidato

indicado pela presidência da república. Realizadas as eleições, Júlio Prestes foi eleito tendo

perdido as eleições o então candidato Getúlio Vargas. A oposição indignada com a vitória

do candidato governista, alega fraude nas eleições. No dia 03 de outubro de 1930 tem inicio

a revolução no Rio Grande do Sul, recebendo adesões de militares nos Estado do Paraná,

Minas Gerais e Paraíba. Em 24 de novembro de 1930, o presidente Washington Luís é

deposto e Júlio Prestes impedido de tomar posse, tendo sido exilado para a Europa, até

1934.

No dia 24 de novembro de 1930, assume o poder uma junta militar composta

pelo General Augusto Tasso Fragoso, pelo Almirante José Isaías de Noronha e pelo

41 Washington Luís Pereira de Sousa nasceu em 26 de outubro de 1869, no município de Macaé, no Estado do Rio de Janeiro. Estudou como aluno interno no Colégio Pedro II, e formou-se pela Faculdade de Direito do Estado de São Paulo, no ano de 1891. Foi nomeado Promotor Público no município de Barra Mansa, tendo renunciado para seguir a carreira da advocacia, na cidade de Batatais. Iniciou a carreira política como vereador no 1897, elegendo-se posteriormente Deputado Estadual, nos anos de 1904 a 1905 e 1912 a 1913. Foi eleito Prefeito da cidade de São Paulo 1914 a 1919, tendo chegado a presidência do estado, onde permaneceu de 1920 a 1924. No ano de 1926 tornou-se o 13º Presidente da República eleito. Morreu na cidade de São Paulo em 4 de agosto de 1957.42 Júlio Prestes de Albuquerque nasceu a cidade de Itapetininga em 15 de março de 1882. Formou-se pela Faculdade de Direito do Estado de São Paulo no ano de 1906. Foi Deputado Federal por duas vezes, 1924 a 1926 e 1927 a 1929. No Ano de 1927 deixa a Câmara dos deputados, para assumir a Presidência do Estado de São Paulo. Foi eleito Presidente da República no ano de 1929 com 1.091.709 votos, porém, não pode tomar posse em razão do Golpe Militar de 1930, ficou exilado na Europa até 1934, quando então retornou ao Brasil. Faleceu na cidade de São Paulo em 9 de fevereiro de 1946.

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General João de Deus Mena Barreto. A junta militar governou por 10 dias e, no dia 03 de

novembro de 1930, passou o poder para o chefe do Governo Provisório, Getúlio Vargas43,

que governava por meio de decretos, todos com força de lei.

Os anos de 1930 a 1932 foram caracterizados pela prática de uma série de atos

autoritários, perpetrados por comissões secretas. A liberdade desaparecera e o habeas

corpus apesar de possuir previsão legal, na prática só era utilizado para casos em que não se

fazia necessário, garantia somente os restos de liberdade que restavam, diante da crise

política e jurídica que se instalara. As comissões secretas, formadas, em grande parte por

advogados, que se auto intitulavam liberais, na prática baixavam decretos caracterizados

como antiliberais e antidemocráticos, colocando por terra todos os princípios e direitos, que

asseguravam as liberdades democráticas existentes até então. O povo do Estado de São

Paulo, no ano de 1932, se revolta contra os atos autoritários e impulsionado pela

insatisfação da derrota do candidato paulista à presidência da república, bem como com a

restrição imposta pelo governo provisório, que impediu a posse do presidente do \estado,

atualmente chamado governador, promove a revolução constitucionalista. Apesar da

derrota das tropas de São Paulo, como consequência direta desse movimento, instala-se

uma assembleia nacional constituinte, e elabora a Constituição da República dos Estados

Unidos do Brasil de 1934, de contorno mais democrático.

O habeas corpus, com a Constituição de 1934, retoma a sua eficácia natural,

para proteger a liberdade de locomoção das pessoas. Há, no entanto, uma alteração com a

carta constitucional de 1934, a Justiça Eleitoral foi criada e passa ter a competência para

conhecer e julgar todas as demandas relacionadas a questões políticas, tirando da Justiça

Federal a competência para julgar os habeas corpus relacionados com posse e manutenção

de cargos eletivos.

A Teoria Brasileira do Habeas Corpus teve razão de ser até o advento da

Constituição de 1934, quando surgiu o Mandado de Segurança com a finalidade de tutelar

todos os direitos líquidos e certos que não estivessem relacionados ao direito de ir e vir. O

habeas corpus foi mantido para tutelar o direito de liberdade contra prisões ilegais, situação 43 Getúlio Dornelles Vargas nasceu na cidade de São Borja em 19 de abril de 1882. Ingressou nas Forças Armadas como soldado no ano de 1898, permanecendo nas forças armadas até 1902, tendo dado baixa com o posto de Sargento. Formou-se Pela faculdade Livre de Direito de Porto Alegre em 1907. Foi Deputado Estadual nos anos de 1909, 1913 e 1917, e Deputado Federal nos anos de 1924 a 1926. No ano de 1930 torna-se Chefe do Governo Provisório, permanecendo como chefe do Poder Executivo até 1945. Em 31 de janeiro de 1951 foi eleito Presidente da República, permanecendo no cargo até a sua morte em 24 de agosto de 1954.

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que, de certa forma, perdura até os dias atuais. Prevaleceu a corrente de pensamento

liderada por Pedro Lessa e defendida também por Pontes de Miranda. Restaram vencidos os

pensamentos mais autoritários, que afastavam por completo a eficácia prática do habeas

corpus, bem como o entendimento da eficácia ampla do “Remédio Heróico” defendido por

Rui Barbosa e outros. É o fim da chamada Teoria Brasileira de Habeas Corpus, as correntes

de pensamento existentes no Brasil do inicio do século XX se digladiaram, prevalecendo a

posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal. A discussão a respeito do habeas corpus

travada por Pedro Lessa e Rui Barbosa, porém, não foi estéril, deixou, como saldo, a

criação de mais uma ação constitucional para a tutela de liberdades no território brasileiro.

O mandado de segurança adquiriu existência constitucional no artigo 113, item

33 da Constituição de 1934,44 tinha a finalidade de assegurar direitos diversos, distintos do

direito ambulatorial, desde que possuísse, como características, a certeza e a

incontestabilidade. O mandado de segurança surge em 1934 sem possuir um procedimento

próprio, ele deveria observar as regras previstas para o procedimento do habeas corpus.

Somente no ano de 1951 a Lei 1533 regulamenta e estabelece um procedimento específico

para o mandado de segurança. A previsão constitucional de duas ações para tutelar as

liberdades em muito aprimorou o ordenamento jurídico brasileiro, demonstrando de modo

inequívoco a relevância que o direito de liberdade de um forma ampla representa para o

povo brasileiro.

O habeas corpus para questões políticas continuou a existir, porém, sob a égide

da Constituição de 1934, a competência passou da justiça federal para a então criada justiça

eleitoral, e o mandado de segurança passou a ser a ação adequada para proteger todos os

demais direitos líquidos e certos, que não fossem amparados pelo habeas corpus, ou seja,

que não envolvessem o direito de ir e vir de forma restrita.

As liberdades democráticas, bem como a Constituição de 1934, tiveram vida

curta. A carta constitucional de 1934 estabelecia em seu artigo 52 que o mandato do

Presidente da República seria de quatro anos, ficando vedada a reeleição, somente permitia

44 Artigo 113 da Constituição dos Estados Unidos do Brasil: “ A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: item 33; Dar-se-á mandado de segurança para defesa do direito, certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade. O processo será o mesmo do habeas corpus, devendo ser sempre ouvida a pessoa de direito público interessada. O mandado não prejudica as ações petitórias competentes.” Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao34.htm. Consulta feita em: 08/11/2015

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nova candidatura ao cargo após decorridos, no mínimo, quatro anos, após o término de

exercício da função.

No ano de 1937 os movimentos antidemocráticos, insatisfeitos com a virada

que a Constituição de 1934 dera no país, passaram a utilizar como forma de argumento o

alarma de uma possível revolução comunista no Brasil, impulsionada por uma série de

levantes que ocorreram no ano de 1935 no Rio de Janeiro e em Natal. No dia 30 de

setembro de 1937 foi divulgado o chamado Plano Cohen45, cujo objetivo era forjar uma

ação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas para apoiar a tomada do poder pelos

comunistas da Aliança Nacional Libertadora – ANL.

Getúlio Vargas, que não intencionava deixar a presidência da república, se

valeu da situação de instabilidade criada e deu um golpe, instalando a ditadura do Estado

Novo, e outorgando a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937, denominada

Constituição Polaca, porque elaborada por Francisco Campos, que teve como inspiração a

Constituição Polonesa de 1935.

A Carta Constitucional de 1937 estava longe de proteger a liberdade física e as

demais liberdades em geral. O artigo 122, inciso 16, previa a ação de habeas corpus como

meio adequado para proteger o direito de ir e vir das pessoas, quando violado, ou ameaçado

por violência ou ilegalidade, salvo em casos de transgressões disciplinares. Aparentemente,

ao tempo da ditadura do Estado Novo, pelo menos a liberdade física parecia protegida e

resguardada, podendo qualquer pessoa recorrer ao poder judiciário para salvaguardar o seu

direito de ir e vir, porém, a ação de habeas corpus, era, nesse tempo, apenas um texto

vazio, destituído de eficácia prática, um engodo, uma falácia. Porque essa mesma Carta

Constitucional, no artigo 170, excluía da apreciação do Poder Judiciário todos os atos

praticados pelo Estado durante o Estado de Guerra e o estado de emergência. O artigo 186

da Constituição de 1937 declara instalado o estado de emergência. Dessa maneira a

previsão do artigo 122, inciso 16 tornou-se letra morta, pois apesar de haver previsão

expressa do cabimento do habeas corpus, o Poder Judiciário não podia deles apreciar, em

razão do Estado de Emergência, conforme foi o entendimento de dois Ministros do

45 Plano Cohen era um suposto plano para transformar o Brasil em uma República Socialista. Ele foi divulgado em 30 de setembro de 1937, pelo então chefe do Estado Maior das Forças Armadas, General Gois Monteiro. Posteriormente descobriu-se que o chamado Plano Cohen, era uma farsa, houvera sido redigido pelo então Capitão do Exército Olímpio Morão Filho.

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Supremo Tribunal Federal.46Posteriormente, no dia 31 de agosto de 1942, o Presidente

Getúlio Vargas, fez expedir o Decreto nº 10352 revogando da Carta Constitucional de 1937

a previsão do habeas corpus.

Durante o Estado Novo, sob a vigência da Constituição Outorgada de 1937, o

Processo Penal Brasileiro passa por uma profunda transformação com a elaboração do

Código de Processo Penal, no ano de 1941, Código este que permanece em vigor até os dias

de hoje. O Código de Processo Penal de 1941 é chamado por alguns autores de Código

Rocco, em razão da inspiração dos seus autores, retirada do Código italiano de 1930,

elaborado na época em que Benedito Mussolini estava no poder. Não há como se olvidar da

origem autoritária do Código de Processo Penal de 1941, ele mantinha a estrutura

inquisitiva do processo, com a possibilidade, inclusive, do Juiz iniciar a ação penal,

especialmente nos casos de contravenção, conforme era possível se observar do artigo 531

do Código de Processo Penal, antes da reforma47 operada pela Lei 11.719 de 20 de junho de

2008.

O sistema inquisitivo apesar se sua característica secreta, e de não assegurar de

forma plena a defesa dos acusados, em razão da concentração nas mãos do julgador, as

funções de acusar e julgar, trouxe para o habeas corpus, curiosamente, uma vantagem,

representada pela possibilidade da concessão da ordem de ofício. No sistema acusatório

puro a função e acusar e de julgar inexoravelmente estão em pessoas diferentes, assim

sendo não seria concebível, que o juiz atuasse de ofício, porque em sendo o habeas corpus

uma ação, tal possibilidade ficaria afastada, exigindo-se pedido da parte interessada, porém,

a concessão de ofício da ordem de habeas corpus continua a existir até os dias de hoje,

quiçá, uma herança benéfica do sistema acusatório.

O Brasil, após a declaração de independência, em 1822, apesar de terem

ocorrido diversas alterações pontuais nas leis processuais penais, teve basicamente dois

códigos de processo penal com aplicação em todo território nacional, o Código de Processo

Criminal de 1832 e o Código de Processo Penal de 1941, leis nacionais48, ressalva seja feita

46 Os Ministros Bento de Faria e Barros Barreto no habeas corpus 28.313 do Estado da Bahia defenderam a exclusão geral da apreciação de habeas corpus em razão da decretação do Estado de Emergência.47 Artigo 531 do Código de Processo Penal, antes da alteração realizada pela Lei 11.719/08: “ O processo das contravenções terá forma sumária, iniciando-se pelo auto de prisão em flagrante ou mediante portaria expedida pela autoridade policial ou pelo juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público.”48 Lei nacional é aquela que se aplica para todos em todo o território brasileiro, difere de Lei Federal, que é a utilizada para regulamentar entidades, bens e serviços da União.

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para o período republicano anterior a 1941, em que alguns Estados da Federação

elaboraram Códigos de Processo Penal próprios, como é o caso dos Estados Rio de Janeiro,

Maranhão, Rio Grande do Sul, Amazonas, dentre outros49

O Código de Processo Penal de 1941, de qualquer forma, trouxe algumas

vantagens para a proteção do direito ambulatorial das pessoas, com relação ao que havia no

Código de Processo Criminal de 1832; este regulamentava a ação de habeas corpus em 16

artigos, enquanto que o Código de 1941 estabeleceu 21 artigos de regulamentação. A partir

de 1941, a legitimidade ativa passou a ser ampla, contemplando de forma clara as mulheres,

bem como todas as demais pessoas que estivessem no território brasileiro sem os entraves,

que durante o século XIX algumas pessoas sofreram para poder propor a ação de habeas

corpus por conta da questão da cidadania. Os estrangeiros, e até pessoas jurídicas puderam

se valer da ação de habeas corpus, quando no artigo 654 do Código de Processo Penal 1941

o legislador estabeleceu que “O habeas corpus poderá ser impetrado por qualquer pessoa,”

ampliando sobremaneira a legitimidade ativa para propor a ação de habeas corpus. Além

disso, ficou expresso a possibilidade da utilização do habeas corpus preventivo, e não

apenas o liberatório, como ocorria em 1832. As regras de fixação de competência ficaram

mais precisas no texto de 1941, e o mais relevante, diante da urgência da medida, ficou

estabelecida a previsão de prioridade de tramitação, conforme se observa do artigo 649 do

código de 1941.

A maior dificuldade que enfrentava a ação de habeas corpus não era a falta de

regulamentação, esta existia, tanto na carta Constitucional de 1937, até a sua revogação no

ano de 1942, como no Código de Processo Penal de 1941. A questão era superar as

dificuldades impostas pela ditadura do Estado Novo, que perdurou até 29 de outubro de

1945. Nesse período, de 1937 a 1945, apesar da regulamentação legal e constitucional, a

princípio, protegendo o direito de ir e vir das pessoas, inúmeras arbitrariedades e

ilegalidades foram perpetradas pelo Estado, de forma impune. O Poder Judiciário, apesar de

existente, tinha a sua atuação diminuída e mitigada, por conta da Carta Constitucional de

1937, que concentrava uma parcela maior de poder nas mãos do chefe Poder Executivo. O

habeas Corpus existia, bem como o Poder Judiciário, faltava, no entanto, eficácia plena,

49 Breves considerações sobre a história do processo penal e habeas corpus. Gisele Leite. Fonte: Artigo publicado em 18 de outubro de 2015 na revista Âmbito Jurídico. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7816, consulta feita em 18/10/2015

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para que o “Remédio Heroico” pudesse enfrentar as arbitrariedades do Estado Novo50. Os

pedidos eram feitos, porém, invariavelmente, negados. Contra a força não há

argumentos.

O Estado Novo durou até outubro de 1945, quando Getúlio Vargas foi retirado

do poder pelas mesmas forças que o colocaram na chefia do Governo Provisório no ano de

1930, os militares. O governo autoritário de Getúlio Vargas perdurou por quinze anos,

apoiado em ideais antidemocráticos, populistas, e em parte pelo alarma causado pela

Segunda Guerra Mundial. Tratava-se de um período em que o mundo passava por um sério

conflito armado. O governo ditatorial de Getúlio Vargas, apesar de simpatizar com os

ideais totalitários e antidemocráticos, que prevaleciam em um dos lados do conflito, relutou

bastante em tomar partido na chamada segunda guerra mundial, onde de um lado estavam o

Japão, e os regimes nazista da Alemanha e fascista da Itália e do outro lado quase a

totalidade dos demais países do mundo. Ela se iniciou em 1939, e o governo de Getulio

Vargas, somente no ano de 1942, impulsionado pelo naufrágio de cinco navios mercantes

brasileiros, além de alguns barcos pesqueiros, supostamente vítimas de ataques perpetrados

por submarinos alemães, decidiu ceder e apoiar os países cujos ideais eram antitotalitários

É curioso notar que um único evento histórico, a Segunda Guerra Mundial, foi

ao mesmo tempo sustentáculo e pivô da queda do Estado Novo. Apesar de o governo

brasileiro, a partir de 1942, ter tentado se mostra aparentemente mais democrático,

promovendo uma série de reformas sociais, especialmente para a classe trabalhadora,

estabelecendo a Consolidação das Leis do Trabalho e a Justiça do Trabalho, não conseguiu

resistir aos ideais democráticos que tomaram força no país, depois de 194351, especialmente

com o fim da guerra e com o retorno dos brasileiros que nela lutaram para defender a

democracia contra o totalitarismo nazifacista. A situação do governo de Getúlio Vargas

50 Inúmeros são os casos relatados na literatura de barbáries praticadas no Brasil durante o período compreendido entre 1937 e 1945, como, por exemplo, os descritos no livro Memórias do Cárcere do autor Graciliano Ramos.51 No ano de 1943 a União Nacional dos Estudantes promoveu uma serie de passeatas contra o nazi-fascismo. Em Minas Gerais movimentos civis também se manifestaram contra o regime ditatorial brasileiro, no chamado “Manifesto dos Mineiros”.

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tornou-se insustentável, a despeito das inúmeras manobras52 tentadas para manter-se no

poder.

No dia 29 de outubro de 1945 os militares e a oposição se unem e, por meio de

um golpe de Estado, retiram Getúlio Vargas do poder. Assume a presidência José

Linhares53, então Presidente do Supremo Tribunal Federal. As eleições presidenciais e para

a Assembleia Nacional Constituinte ocorreram em dezembro de 1945. Em 31 de janeiro de

1946 tomaram posse o Presidente da República, General Eurico Gaspar Dutra54, eleito com

3.251.407 votos, representando 55,39% do eleitorado, e a Assembleia Nacional

Constituinte55 que era composta pelo PSD- Partido Social Democrático, com cerca de 54%

dos votos, pela UDN- União Democrática Nacional, com cerca de 26% dos votos, pelo

PTB- Partido Trabalhista Brasileiro eleito com cerca de 7,5% dos votos e pelo PCB-Partido

Comunista Brasileiro que obteve cerca de 5% dos votos56.

A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946 foi promulgada em 18 de

setembro de 1946, e publicada no Diário Oficial de 19 de setembro de 1946, promovendo o

retorno do estado democrático. O habeas corpus teve previsão expressa no artigo 141, § 23

52 No ano de 1944, no mês de fevereiro, o governo de Getúlio Vargas, tentando romper com o isolamento político, baixou a Lei Constitucional nº 9 estabelecendo eleições para 90 dias após a sua entrada em vigor. Além disso o Código Eleitoral cuja origem é de 1932, foi reeditado por Decreto, a denominada Lei Agamenon, de 28 de maio de 1945, tendo em vista que a Constituição de 1937 extinguira o Código Eleitoral, bem como a Justiça Eleitoral. As eleições para presidência da república e para o parlamento seriam realizadas em 2 de dezembro de 1945 e Getúlio Vargas poderia concorrer à reeleição. Em maio de 1946 seriam realizadas as eleições para os governos e assembleias estaduais.53 José Linhares nasceu em Baturié, Estado do Cerará no dia 28 de janeiro de 1886, em 1903 matriculou-se na faculdade de medicina, posteriormente abandonou os estudos de medicina, vindo a se matricular na Faculdade de Direito de Recife formado em Direito no ano de 1908. Transferiu-se para o Distrito Federal onde prestou concurso e foi classificado por duas vezes foi nomeado, em 19 de janeiro de 1913 Juiz da 2ª Pretoria Criminal, transferido para a 7ª Pretoria Cível, veio atuar posteriormente na 1ª Vara Cível e 5ª Vara Criminal. Em 30 de março de 1931 foi nomeado Desembargador no Distrito Federal – Rio de Janeiro. Após a Revolução de 1930, em 16 de dezembro de 1937 ingressou como Ministro no Supremo Tribunal Federal. Exerceu a presidência da república, convocado pelos militares em 30 de outubro de 1945, garantiu as eleições e permaneceu no cargo até 31 de janeiro de 1946. Faleceu em caxambu em 26 de janeiro de 1957.54 Eurico Gaspar Dutra nasceu em Cuiabá, Estado do Mato Grosso no dia 18 de maio de 1883. No ano de 1903ingressou na vida militar na Escola Preparatória e Tática do rio Pardo, no Rio Grande do Sul. Ele não participou da Revolução de 1930, porém, em 1935 comandou a repressão à intentona comunista no Rio de Janeiro, Natal e Recife. Foi nomeado por Getúlio Vargas Ministro da Guerra, em 5 de dezembro de 1936, sendo um dos articuladores da participação do Brasil na 2ª Guerra Mundial junto aos aliados Estados Unidos da América, Inglaterra, Rússia, etc. no dia 31 de janeiro de 1946 foi eleito Presidente da República tendo exercido regularmente o cargo até 31 de janeiro de 195155 Getúlio Vargas, apesar de ter sido deposto da chefia do Poder Executivo, foi eleito Senador por duas legendas o PSD e o PTB, e participou da Assembleia Nacional Constituinte, como representante do Rio Grande do Sul, tendo exercido a legislatura de 1946 a 1949. Fonte: FGVCPDOC disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas2/biografias/getulio_vargas Consulta feira em: 22/10/201556 Dados eleitorais obtidos no site do Tribunal Superior Eleitoral. Consulta feira em 22/10/2015. Disponível em: http://www.tse.jus.br/jurisprudencia/julgados-historicos/assembleia-constituinte-1946.

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Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer

violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de

poder. Nas transgressões disciplinares, não cabe o habeas corpus. A Constituição de

1946, com relação ao habeas corpus, repete basicamente o texto das constituições

anteriores, porém, não traz as mesmas restrições imposta no artigo 122, inciso 16 da

Constituição de 1937, que afastava por completo a apreciação de certos atos pelo poder

judiciário. A regularidade democrática no Brasil fez com que a aplicação e eficácia do

habeas corpus voltasse a normalidade, tutelando de forma ordinária o direito de ir e vir das

pessoas naturais em geral, homens e mulheres, nacionais ou estrangeiros. As questões

políticas, que por vários anos permearam as discussões a respeito do habeas corpus, com a

atuação regular da Justiça Eleitoral, também deixaram de ter maior relevância, porém,

havia uma situação que ainda gerava uma certa dúvida e debate com relação à aplicação do

“Remédio Heroico”, tratava-se do sistema constitucional de crise, ou seja, a decretação de

Estado de Sitio, e restrições à direitos e garantias constitucionais.

A Constituição de 1946, no artigo 206 tratava da decretação do estado de sítio

que poderia ocorrer em caso de guerra externa ou em caso de comoção intestina grave, e a

Lei que decretasse o estado de sítio deveria especificar quais garantias constitucionais

permaneceriam em vigor, conforme o artigo 207 da carta constitucional de 1946.

O estado de sítio deveria ser decretado pelo Congresso Nacional,

excepcionalmente, o Chefe do Executivo poderia fazê-lo nos períodos de intervalo das

sessões legislativas, conforme se observa dos artigos 207 e 208 da Constituição de 1946. O

artigo 209 da Carta Constitucional de 1946 estabelecia, ainda, as medidas excepcionais que

poderiam ser tomadas pelo sistema constitucional de crises, na época as medidas cabíveis

seriam: obrigação de permanência em localidade determinada; detenção em edifício não

destinado a réus de crimes comuns; desterro57 para qualquer localidade, povoada e salubre,

do território nacional. A Constituição admitia, ainda, que o Presidente da República

adotasse outras medidas, tais como: a censura de correspondência ou de publicidade,

inclusive a de radiodifusão, cinema e teatro; a suspensão da liberdade de reunião, inclusive

57 Desterro e banimento ou exílio são situações distintas. A pena de banimento, que consiste em obrigar uma pessoa a sair do pais, estava vedada no artigo 141, § 31 da Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946. O desterro consistia no envio de uma pessoa para um determinado local no território nacional, diverso do local de seu domicílio, contudo, a localidade para onde a pessoa seria levada em desterro, deveria ser povoada e salubre.

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a exercida no interior das associações; a busca e apreensão em domicílio; a suspensão do

exercício do cargo ou função a funcionário público ou empregado de autarquia, de entidade

de economia mista ou de empresa concessionária de serviço público; a intervenção nas

empresas de serviços públicos.

O estado de sítio integra o chamado sistema constitucional de crises, que

importa em um conjunto de normas constitucionais, norteadas pelos princípios da

necessidade e temporariedade, cuja finalidade é a manutenção e o restabelecimento da

normalidade constitucional. Na Constituição de 1946 as medidas excepcionais que

poderiam ser impostas pelo Estado, e que compunham o sistema constitucional de crises à

época, encontravam previsão no artigo 209. Uma série de direitos poderiam ser restringidos

ou suprimidos, por exceção, durante a vigência do estado de sítio, porém, o habeas corpus

não ficaria suspenso58, ele era um dos remédios constitucionais que serviriam exatamente

para controlar a legalidade dos atos praticados pelo Poder Executivo. As leis ordinárias até

poderiam ficar afastadas temporariamente durante o estado De sítio, porém, a observância

estrita das medidas previstas no artigo 209 da Constituição de 1946 se fazia obrigatória, e o

remédio hábil para promover o controle e a observância das regras constitucionais quanto

ao estado de sítio, não só as medidas restritivas, mas o próprio procedimento de decretação

do estado de sítio, bem como a regularidade das medidas excepcionais era o habeas corpus.

Era por meio dele que seria possível levar eventuais inconstitucionalidades e excessos na

execução das medidas para controle a apreciação do Poder Judiciário.

O presidente Eurico Gaspar Dutra governou até 31 de janeiro de 1951 e não

necessitou decretar ou pedir ao Congresso a decretação de estado de sítio. O mesmo

ocorreu com seu sucessor Getúlio Vargas eleito Presidente da República, pelo Partido

Trabalhista Brasileiro, com 3.849.040 votos representando um total de 48,73% dos votos.

Tomou posse em 31 de janeiro de 1951 e apesar de enfrentar uma séria crise política e

econômica, também não decretou nem pediu ao Congresso a decretação do estado de sítio.

No ano de 1955, mais precisamente no dia 25 de novembro, o então Presidente da

República Nereu Ramos59 decretou Estado de Sitio. Getúlio Vargas, que após ser deposto 58 Idem item 859 Nereu de Oliveira Ramos nasceu em Lages, Estado de Santa Catarina, em 3 de setembro de 1888. Formou-se em Direito no ano de 1909 pela Faculdade de São Paulo, era filho de Vital Ramos, Governador de Santa Catarina. Ingressou na vida política como Deputado Estadual no ano de 1910. Eleito Deputado Federal no ano de 1930, sendo posteriormente Governador de Santa Catarina, e Senador. Assumiu a presidência da república em 1º de novembro de 1955, após a o suicídio de Getúlio Vargas, e o afastamento do então Vice-Presidente

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no ano de 1945 voltou a ser eleito Presidente da República em 1951, permanecendo na

chefia do Poder executivo até 1954 quando suicidou-se devido a uma série de instabilidades

políticas, econômicas, além de forte pressão exercida pelos militares. Em seu lugar assumiu

a Presidência da República o vice-presidente João Augusto Fernandes Café Filho60 que teve

um governo curto e bastante conturbado devido à crise político-econômica que se instalara

no Brasil. Em novembro de 1955, Café Filho foi afastado da presidência da república por

motivos de saúde, sendo sucedido no cargo por Carlos Coimbra da Luz, então presidente da

Câmara dos deputados, que permaneceu como chefe do executivo federal por 4 dias, de 8

de novembro de 1955 até 11 de novembro do mesmo ano, tendo sido afastado por um

movimento militar liderado pelo General Henrique Lott. Nereu de Oliveira Ramos então

primeiro presidente do Senado assume a presidência da república e, no dia 25 de novembro

de 1955, decreta o Estado de Sitio, pela Lei nº 2.654.

O artigo 2º, parágrafo único da Lei 2.654/55 estabelecia: “A suspensão do

habeas corpus restringe-se aos atos praticados por autoridades federais e a do mandado de

segurança aos emanados do Presidente da República, dos Ministros de Estado, do

Congresso Nacional e do executor do estado de sítio.” O chefe do executivo federal,

pressionado pelos militares, à época liderados pelo general Henrique Lott, então Ministro

da Guerra, ao decretar o estado de sítio, tentou fazer com que os atos praticados pelo Poder

Executivo, pelo Poder Legislativo, e do executor do estado de sítio ficassem imunes ao

controle judicial, suspendendo todas as ações que possibilitassem a efetivação de uma

tutela de urgência por parte do Poder judiciário. O Brasil, porém, vivia um período de

regularidade democrática e, por força do artigo 206 da Constituição de 1946 cabia ao

Congresso Nacional decretar o estado de sítio, e caso ele fosse decretado pelo Presidente da

República durante o intervalo das sessões legislativas, 0 Presidente do Senado deveria

convocar o Congresso Nacional para reunir-se num prazo de quinze dias, conforme

estabelecido no artigo 208 e seu parágrafo único da Carta Constitucional de 1946. Dessa

Café Filho. Permaneceu como chefe do executivo federal até 31 de janeiro de 1956, vindo a falecer em São José dos Pinhais em 16 de junho de 1958.60 João Augusto Fernandes Café Filho Nasceu na cidade de Natal, Estado do Rio Grande no Norte, em 3 de fevereiro de 1899. Formou-se em Direito, mas atuou, principalmente, como jornalista. Ingressou na vida política como Deputado Federal no ano de 1935, e compôs a chapa de Getúlio Vargas, como vice-presidente. Por imposição do então Governador do Estado de São Paulo Ademar de Barros. Assumiu a presidência da República, após o suicídio de Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954, tendo se afastado da presidência em 8 de novembro de 1955, por motivos de saúde. Faleceu no Rio de Janeiro em 20 de fevereiro de 1970.

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maneira, o estado de sítio decretado no dia 25 de novembro de 1955, se submeteu ao

controle por parte do Poder Legislativo, conforme a determinação constitucional, e a

Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados rejeitou a proposta e revogou

na íntegra o artigo 2º da Lei 2.654/55, mantendo, dessa maneira, intacto o controle

jurisdicional de todos os atos praticados durante a vigência do estado de sítio61.

As constituições consistem no instrumento que institui e fundamenta uma

ordem jurídica, ela pode ser democrática, caso traga em seu âmago o consenso do povo,

titular do poder constituinte originário, hipótese na qual será promulgada a carta

constitucional, com base na vontade do povo. Os regimes autoritários, na tentativa de

aparentar alguma legitimidade, por vezes se autolimitam, elaborando uma constituição,

porém, nela não há o consenso popular, razão pela qual não pode ser chamada de

constituição democrática. Consiste em uma mera regulamentação que o ditador impões,

outorgando uma carta constitucional, conforme ocorreu no ano de 1937, com a denominada

“Constituição Polaca” ou seja, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937. A

Carta Constitucional do Brasil de 1946 trazia o consenso popular, foi elaborada por uma

Assembleia Nacional Constituinte eleita livremente pelo povo. O Congresso Nacional, ao

afastar o artigo 2º da Lei nº 2.654/55, nada mais fez do que observar estritamente a ordem

constitucional, porque mesmo durante a aplicação dos sistemas constitucionais de crise a

Constituição não se suspende, não sendo lícito portanto que um dos poderes constituídos,

como por exemplo o Poder Legislativo ou o Poder Executivo, suspenda os dispositivos do

documento fundante, que lhe deu existência.

No ano de 1956, ainda na vigência do estado de sítio decretado em 1955, tomou

posse o Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira,62 que exerceu regularmente o seu 61 Idem item 862 Juscelino Kubitschek de Oliveira nasceu em Diamantina, Estado de Minas Gerais em 12 de setembro de 1902. Formou-se em medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais no ano de 1930, tendo ingressado nos quadros Polícia Militar de Minas Gerais como médico no ano de 1931. No ano de 1932, durante a Revolução Constitucionalista, foi convocado como médico, para atuar junto às tropas mineiras que combatiam contra as tropas paulistas. No ano de 1933 entrou para a vida política como chefe de gabinete do Governador de Minas Gerais, Benedito Valadares, nomeado por Getúlio Vargas para o cargo, após a morte do então Governador Olegário Maciel. No ano de 1934 torna-se o Deputado Federal mais votado no Estado de Minas Gerais, exercendo o cargo até o fechamento do Congresso em 10 de novembro de 1937. Em 940 ele é nomeado prefeito de Belo Horizonte, pelo então Governador de Minas Gerais Benedito Valadares. Em 2 de dezembro de 1945 foi eleito novamente Deputado Federal pelo Estado de Minas gerais, integrando a Assembléia Nacional Constituinte, que elaborou a Constituição de 1946. No ano de 1951 assumiu o Governo de Minas Gerais, e em 3 de outubro de 1955 elegeu-se Presidente da República, exercendo regularmente o mandato até 31 de janeiro de 1961. No ano de 1964 foi acusado, pelos militares, de corrupção e apoio ao movimento comunista, a partir de então passou por um exílio voluntário até março de 1967 quando voltou

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mandato até 1961, quando foi sucedido pelo presidente eleito Jânio da Silva Quadros. Jânio

Quadros63, como presidente, tomou uma série de medidas controvertidas, dentre elas

algumas que desagradaram profundamente os militares e determinados segmentos

conservadores da sociedade brasileira.64Não há ao certo um consenso sobre os reais motivos

que levaram a renúncia do então presidente Jânio Quadros no dia 25 de agosto de 1961. Há

quem entenda ter sido uma tentativa de golpe, outros afirmam ter sido a pressão dos

militares e dos setores conservadores da sociedade,65fato é que, com a renúncia do

Presidente da República, a situação política brasileira, tornou-se tensa e conflituosa, pois

quem deveria assumir o cargo era o então vice-presidente João Belchior Marques Goulart66.

No dia 8 de setembro de 1961 João Goulart toma posse como Presidente da

República, mas não antes de uma manobra política para retirar-lhe uma série de poderes.

definitivamente para o Brasil, unindo-se a Carlos Lacerda e João Goulart em uma frente ampla de oposição ao governo militar. Faleceu em 22 de agosto de 1976, no município de Resende, em decorrência de um acidente automobilístico.63 Jânio da Silva Quadros nasceu no município de Campo Grande Estado do Mato Grosso, em 25 de janeiro de 1917. Formou-se pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo no ano de 1939, atuando como advogado e professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. No ano de 1947 ingressa para a vida política elegendo-se suplente de Vereador no município de São Paulo. Assumiu o mandato tendo exercido entre 1948 a 1950. Em 1951 tornou-se Deputado Estadual permanecendo o cargo até 1953. Elegeu-se Prefeito do município de São Paulo no ano de 1953 e posteriormente, Governador do estado de São Paulo no ano de 1955. Em 1958 elegeu-se Deputado federal pelo Estado do Paraná, viajou para o exterior e não participou de nenhuma sessão do Congresso. Ao retornar inicia os preparativos para a campanha presidencial, tendo sido eleito Presidente da República em 3 de outubro de 1960. Tomou posse em 31 de janeiro de 1961, vindo a renunciar em 25 de agosto de 1961, teve os direitos políticos cassado pelo regime militar em 10 de abril de 1964 e foi preso em julho de 1968 por fazer uma série de declarações na imprensa. Recuperou os direitos políticos em 1974. No ano de 1986, com apoio dos segmentos mais conservadores da sociedade Paulista elegeu-se Prefeito do Município de São Paulo, tendo exercido o cargo até 1988. Jânio Quadros faleceu em São Paulo no dia 16 de fevereiro de 1992.64 O Presidente Jânio Quadros reestabelecera relações diplomáticas com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e com a China, Logo em seguida, condenou a invasão da Baia dos Porcos pelos Estados Unidos da América, e causou ainda mais constrangimento quando decidiu condecorar Ernesto Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul.65 Não foi de autoria de Jânio Quadros, mas a imprensa brasileira da época publicou; “Forças ocultas levaram à renúncia do Presidente.”66 João Belchior Marques Goulart nasceu no município de São Borja, Estado do Rio Grande do Sul em 1º de março de 1919. Formou-se na Faculdade de Direito de Porto Alegre no ano de 1939, porém, não exerceu a advocacia. Retornou para sua cidade dedicando-se à pecuária, que era a fonte e sustento da sua família. Ele ingressa na carreira política ingressando no PTB, em razão de um convite feito por Getúlio Vargas. Foi eleito para Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul em 1946. No ano de 1941 tornou-se Deputado Federal eleito pelo Rio Grande do Sul. Em 1953 Getúlio Vargas nomeia Joao Goulart Ministro do Trabalho, e no ano de 1960 foi eleito vice-presidente na chapa liderada por Jânio Quadros, com a renúncia do presidente ele era o sucessor imediato, nos termos da Constituição de 1946. No dia 8 de setembro de 18961 João Goulart assume a presidência da república a despeito da forte resistência oposta pelos setores mais conservadores da sociedade, porém, com os poderes reduzidos, pois no dias antes, em 2 de setembro de 1961 o Congresso Nacional havia implantado o sistema parlamentarista de governo. Em março de 1964 foi deposto e teve os seus direitos políticos cassado no dia 10 de abril. Faleceu no exílio no dia 6 de dezembro de 1976, no município Mercedes Corrientes, na Argentina.

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João Goulart sofria uma forte rejeição por parte das camadas mais conservadoras da

sociedade. No próprio Congresso Nacional alguns Deputados eram abertamente contra a

posse de João Goulart, para contemporizar a crise política que se instalara no Brasil, o

Congresso propôs a instalação de um sistema parlamentarista, por meio da Emenda

Constitucional nº 4 de 1961 que foi aprovada dias antes de João Goulart poder tomar posse,

no dia 2 de setembro de 1961. O Primeiro Ministro nomeado foi Tancredo Neves,67 além

dele, mais duas pessoas exerceram o cargo de primeiro ministro entre setembro de 1961 e

1962, Francisco de Paula Brochado da Rocha68 e Hermes Lima69. A emenda constitucional

nº 4 de 196170, também chamada de Ato Institucional, por força do seu artigo 20,

estabelecia no artigo 25 a realização de um plebiscito que deveria ser realizado nove meses

antes do término do período presidencial, para, por meio de uma consulta popular, decidir

67 Tancredo Neves nasceu em São João Del Rei, Estado de Minas Gerais em 4 de março de 1910, formou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Ingressou na política em 1935 eleito vereador na cidade de São João Del Rei. No ano de 1937 foi preso, após o advento do Estado novo, e teve seu mandado de vereador cassado. Voltou à advocacia, atuando como Promotor Público. Em 1947 foi eleito Deputado Estadual e em 1950 foi eleito Deputado Federal. Exerceu o cargo de Ministro da Fazenda e Ministro da Justiça e Negócios Interiores, no governo de Getúlio Vargas, a partir de 1953. No ano de 1954 foi eleito Deputado Federal, por mais uma vez. No ano de 1961 assumiu como Primeiro Ministro, na solução dada para permitir a posse de João Goulart como Presidente da República. Foi deputado Federal entre 1963 a 1979. Governador de Minas Gerais entre 1983 e 1984. No segundo semestre de 1984 candidatou-se a Presidente da República, vindo a ser eleito de forma indireta no ano de 1985. Faleceu em 21 de abril d 1985 sem exercer o cargo de Presidente da República68 Francisco de Paula Brochado da Rocha nasceu na cidade de Porto Alegre, Estado do Rio Grande do Sul em 8 de agosto de 1910, ainda como estudante participou da Revolução d 1930. Formou-se na Faculdade de Direito de Porto Alegre no ano de 1932, local onde mais tarde veio a lecionar Direito Constitucional, como Professor Catedrático. Foi Procurador do município de Porto Alegre, e Deputado Estadual nos anos de 1947 a 1951. Exerceu o cargo de secretário de Estado no Governo de Leonel Brizola, no Rio Grande do Sul e participou ativamente da Campanha da Legalidade, cuja finalidade era garantir a ordem constitucional e a posse de João Goulart. Exerceu o cargo de Primeiro Ministro entre 12 de julho de 1962 e 18 de setembro de 1962. Faleceu na cidade de Porto Alegre, poucos dias após deixar de ser Primeiro Ministro, em 26 de setembro de 1962.69 Hermes Lima nasceu no município de Livramento do Brumado, no Estado da Bahia. Formou-se em Direito no ano de 1924 pela Faculdade de Direito da Bahia, no mesmo ano elegeu-se Deputado Estadual. No ano de 1926 mudou-se para São Paulo tendo lecionado a disciplina de Direito Constitucional, como Livre Docente, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. No ano de 1935 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde exerceu o cargo de Diretor da Faculdade de Direto do Distrito Federal, atual UFRJ e professor da disciplina de Introdução à Ciência do Direito. Participou da Fundação da UDN – União Democrática Nacional, tendo se elegido por essa legenda Deputado Federal Constituinte no ano de 1947. Participou ainda da fundação do Partido Socialista Brasileiro em 1947, mas no ano de 1950 passou a integrar o Partido Trabalhista Brasileiro. Com a crise provocada pela renúncia do Presidente Jânio Quadros, tornou-se Primeiro Ministro no período compreendido entre 18 de setembro de 1962 e 24 de janeiro de 1963. Após o plebiscito pela volta do regime presidencialista Hermes Lima tornou-se Ministro das Relações Exteriores no Governo do Presidente João Goulart. Em 11 de julho de 1963 foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, em 16 de janeiro de 1969 foi aposentado com base no Ato Institucional nº 5. Faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 10 de outubro de 1978.70 Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/1960-1969/emendaconstitucional-4-2-setembro-1961-349692-publicacaooriginal-1-pl.html. Consulta feita em 29/11/2015

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sobre a manutenção do regime presidencialista. De acordo com a Emenda Constitucional nº

4 de 1961 o plebiscito deveria se realizar no ano de 1965. O presidente João Goulart, com o

apoio de setores da esquerda, inclusive nas forças armadas, conseguiu aprovar no

Congresso a Lei Complementar nº 2 de 16 de setembro de 196271 antecipando o plebiscito

para 6 de janeiro de 1963. Realizado o plebiscito o povo, com mais de 80% dos votos

decidiu pelo o retorno ao sistema presidencialista. No dia 23/01/1963 foi publicada a

Emenda Constitucional nº 672 revogando a Emenda nº 4 e restabelecendo o sistema

presidencialista no Brasil.

O presidente João Goulart ao retomar os plenos poderes como chefe do Poder

Executivo promoveu uma série de reformas, algumas delas, no entanto, desagradaram aos

setores mais conservadores da sociedade e, em especial, aos militares. No dia 31 de março

de 1964 inicia-se um golpe militar, que tem como ponto culminante 1 de abril de 1964 com

o Presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli73 declarando vago o cargo de

Presidente da República. No dia 11 de abril de 1964 o Congresso Nacional ratifica a

indicação do Ministro da guerra para tomar posse como Presidente da República, e no dia

15 de 1bril de 1964 toma posse o General Humberto de Alencar Castelo Branco74 como

Presidente da República. Para dar legalidade ao Governo os militares modificaram a

Constituição de 1946 fazendo inserir 4 atos Institucionais. O Ato Institucional nº 4 confere 71 Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/leicom/1960-1969/leicomplementar-2-16-setembro-1962-541565-publicacaooriginal-46776-pl.html. Consulta realizada em 29/11/201572 Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/1960-1969/emendaconstitucional-6-23-janeiro-1963-363624-publicacaooriginal-1-pl.html. Consulta realizada em 29/11/201573 Pascoal Ranieri Mazzilli nasceu no município de Caconde, no Estado de São Paulo em 27 de abril de 1910. Iniciou os estudos de Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no ano de 1930 mas formou-se pela Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, no ano de 1940. Participou da Revolução de 1930 ao lado dos paulistas. Exerceu diversos cargos públicos, e elegeu-se Deputado Federal por diversas vezes, tendo exercido o mandato de 1949 a 1966. Como Presidente da câmara dos Deputados exerceu interinamente a presidência da república por duas vezes, de 25 de agosto a 8 de setembro de 1961, entre a renúncia de Jânio Quadros e a posse de João Goulart e logo após ao Golpe de 1964, de 2 a 15 de abril de 1964, quando entregou o cargo ao General Humberto Alencar Castelo Branco. Ranieri Mazzilli, como presidente da Câmara dos Deputados foi o responsável por declarar vaga a presidência da república, durante o governo de João Goulart. Faleceu em 21 de abril de 1975 no município de São Paulo. 74 Humberto de Alencar Castelo Branco nasceu em Fortaleza, Estado do Ceará em 20 de setembro de 1897. Iniciou a carreira militar na Escola Militar do Rio Pardo, no Rio Grande do Sul, tendo ingressado na Escola Militar de Realengo no ano de 1918, participou, como tenente da Revolução de 1930, e foi chefe da seção de operações da Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial. No ano de 1963 foi nomeado pelo presidente João Goulart Chefe do Estado Maior do Exército, sendo também um dos principais líderes do Golpe militar de 1964. Assumiu a presidência da república eleito de forma indireta pelo Congresso Nacional tomou posse em 15 de abril de 1954, seu mandato, deveria durar até 31 de janeiro de 1966, conforme determinava a Constituição de 1946, ainda em vigor, porém, as eleições foram suspensas e seu mandato durou até 15 de março de 1967. Faleceu em Fortaleza, no Estado do Ceará no dia 18 de julho de 1967, em um acidente aéreo.

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ao Congresso Nacional, já com os Congressistas da oposição afastados, a função de

Assembleia Nacional Constituinte. No dia 24 de janeiro de 1967 foi outorgada a

Constituição da República Federativa do Brasil, que entrou em vigor em 15 de março de

1967.

O artigo 150, § 2075 da Constituição de 1967 estabelecia de forma expressa o

habeas corpus no título IV, dentre os Direitos e Garantias Individuais, conforme já

estabelecia a Constituição de 1946. A Constituição de 1967 também regulamentava o

sistema constitucional de crises, prevendo a possibilidade da decretação do estado de sítio

pelo Presidente da República nos casos de grave perturbação da ordem, ou em casos de

guerra, conforme o artigo 152 da Constituição de 1967. O parágrafo segundo desse artigo

estabelecia as medidas excepcionais que poderiam ser tomadas. A Constituição de 1967, no

entanto, não afastava por completo a utilização do habeas corpus durante a vigência do

estado de sítio, conforme se observa do seu artigo 156: “A inobservância de qualquer das

prescrições relativas ao estado de sitio tornará ilegal a coação e permitirá ao paciente

recorrer ao Poder Judiciário.” Contudo, o regime autoritário ainda iria se aprofundar

enormemente nos anos de 1968 e 1969, com a edição de mais 13 Atos Institucionais. A

redução nas liberdades democráticas, refletiram diretamente na liberdade de ir e vir das

pessoas no território brasileiro, uma série de medidas extremas foram tomadas, o habeas

corpus, instrumento legal essencial, para garantir essa liberdade de ir e vir, apesar de conter

previsão expressa na Carta Constitucional de 1967, sofreu uma forte restrição da sua

aplicação, especialmente nos Atos Institucionais nº 5 e 6. O Ato Institucional nº 5 afastou

por completo a utilização do habeas corpus para determinados crimes, conforme se observa

do texto do artigo 10: “Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes

políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia

popular.” O Ato Institucional nº 6 acabou com a possibilidade de se levar ao Supremo

Tribunal Federal a análise de violações ao direito de ir e vir pela via do habeas corpus

substitutivo, que consistia em uma antiga tradição do ordenamento jurídico brasileiro,

limitando a análise dos habeas corpus impetrados nas instâncias ordinárias pela via do 75 Artigo 150 da Constituição de 1967.  A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: Parágrafo 20:  Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Nas transgressões disciplinares não caberá habeas Corpus. Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao67.htm. Consulta feira e, 02¹11/2015

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Recurso Ordinário, conforme se observa do artigo 114, II, a, cuja redação limitava a

competência do Supremo Tribunal Federal76.

Durante o período compreendido entre os anos de 1964 a 1978, os militares

procuraram afastar de toda forma o princípio da reserva da jurisdição, pelo qual nenhuma

lesão ou ameaça de lesão pode ser afastada da apreciação do Poder Judiciário.

Invariavelmente eles faziam inserir nas normas que editavam, para conferir aspecto de

legalidade ao Regime Militar, um artigo afastando os seus atos da apreciação do Poder

Judiciário, é o que se observa nos Atos Institucionais nº 1, artigo 4º; nº 2, artigo 19; nº 3,

artigo 6º; nº 5, artigo 11, nº 6, artigo 4º; nº 7, artigo 9º, nº 11, artigo 7º; nº 12, artigo 5º; nº

13, artigo 2º, nº 14, artigo 3º, nº 15, artigo 4º; nº 16, artigo 8º, e nº 17, artigo 4º.77 Durante o

tempo que durou o Regime Militar, uma série de prisões ocorreram. A pena de banimento

tinha previsão constitucional, por no do Ato Institucional nº 13, e nenhum desses atos

poderiam ser objeto de julgamento pelo Poder Judiciário, nem pela via da ação ordinária,

nem por meio do habeas corpus, cujo cabimento estava afastado expressamente. O Poder

Judiciário existia, assim como o Poder Legislativo, mas apenas figurativamente, pois o

poder estava concentrado nas mãos do Poder Executivo, que governava com mão de ferro,

impune e sem nenhuma, ou quase nenhuma forma de controle. O Brasil, segundo a

Constituição vigente, a de 1967, era uma República Federativa, porém, os princípios

basilares nos quais as Repúblicas se fundamentam, como, por exemplo, divisão harmônica

dos Poderes, existiam somente no papel.78 Qualquer análise, mesmo que superficial dos

Atos Institucionais baixados pelos governos militares, deixa óbvio que não havia uma

divisão harmônica e mutuo controle dos atos praticados pelas Funções do Estado. A

democracia também só existia no papel, o artigo 1º, § 1º da Constituição de 1967

estabelecia: “Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido”. As eleições, porém,

76 "Art. 114 -   Compete ao Supremo Tribunal Federal: II - julgar, em recurso ordinário: a) os habeas corpus decididos, em única ou última instância, pelos Tribunais locais ou federais, quando denegatória a decisão, não podendo o recurso ser substituído por pedido originário. Disponível em: http://www.planalto.gov.br//CCIVIL_03/AIT/ait-06-69.htm. Consulta feita em 02/11/2015

77 Fonte: http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-historica/atos-institucionais, consulta feita em 02/11/201578 Artigo 6º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. São Poderes da União, independentes e harmônicos, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao67.htm. Consulta feita em: 02/11/2015

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não eram tão livres assim, a oposição estava presa ou encontrava-se no exílio. Foram anos

complicados para a democracia e para o Brasil, já então denominado não mais Estados

Unidos, mas República Federativa.

Heleno Cláudio Fragoso79 esclarece que, embora, a utilização do habeas corpus

contra atos praticados pelo Estado estivesse suspensa, por força do Ato Institucional nº 5,

os advogados insistiram na utilização do “Remédio Heroico”. Sabiam de antemão que a

ordem seria negada no mérito, porém, no entanto, ele consistia em um remédio eficaz para

poder se identificar o local onde uma pessoa encontrava-se detida. Nos obscuros anos do

Regime Militar, as pessoas eram presas sem ordem judicial e em estabelecimentos militares

ou similares. Os amigos e familiares nem sempre sabiam ao certo o paradeiro da pessoa

detida. Os advogados, nesses casos, impetravam um habeas corpus, porque o juiz ao

requisitar informações às autoridades do Estado, conseguia identifica o local da prisão80.

Os Atos Institucionais foram revogados com a promulgação da Emenda

Constitucional nº 11, que entrou em vigor em 31 de dezembro de 1978, elabora no governo

do então Presidente o General Ernesto Beckmann Geisel.81 Dentre outras medidas,

restaurou o habeas corpus. Os rigores do regime antidemocrático começavam a se esmaecer

e as portas para a abertura democrática começavam a se abrir. No ano de 1979, já no

79 Heleno Cláudio Fragoso nasceu no município de Nova Iguaçu, Estado do Rio de Janeiro, em 5 de fevereiro de 1926. Formou-se pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro no ano de 1951. Foi advogado criminalista, tendo realizado a defesa de diversos presos políticos durante o Regime Militar e professor de Direito Penal na Universidade Federal do Rio de Janeiro, durante a década de 1960, até ser afastado do cargo por ordem da Ditadura Militar. Posteriormente foi professor de Direito Penal na Universidade Candido Mendes e na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 18 de maio de 1985.80 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Advocacia da liberdade: a defesa nos processos políticos. Rio de Janeiro Editora Forense, 1984.81 Ernesto Beckmann Geisel nasceu no município de Bento Gonçalves, no Estado do Rio Grande do Sul no dia 03 de agosto de 1907. Iniciou a carreira militar em 1921 ao ingressar para o Colégio Militar de Porto Alegre, formou-se na Escola Militar de Realengo em 1928. Participou de ações militares na Revolução de 1930 e 1932 tendo combatido a tropa de São Paulo. No ano de 1964 foi nomeado Chefe da Casa Militar pelo presidente Castelo Branco, tendo sido nomeado em 1967 Ministro do Superior Tribunal Militar. Em 18 de abril de 1978 foi lançado candidato à presidência da república pela ARENA – Aliança Renovadora Nacional, vencendo em eleição indireta o outro candidato Ulysses Guimarães do MDB – Movimento Democrático Brasileiro. No dia 15 de março de 1974 tomou posse como Presidente da República permanecendo no cargo até 15 de março de 1979. Faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 12 de setembro de 1996.

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Governo do General João Figueiredo82 Foi sancionada a Lei de Anistia, Lei 6.683/79 e

aprovada a reforma política restabelecendo o pluralismo partidário.

As décadas de 60 de 70 do século XX foram anos de luta, em que parte da

sociedade brasileira mais uma vez resistiu aos avanços dos ideais antidemocráticas, muito

foram presos, outros foram exilados e até mortos. No ano de 1984 eclodiu o chamado

Movimento das “Diretas Já”, que defendia eleições diretas para Presidente da República. A

Emenda Constitucional do então Deputado Dante de Oliveira,83 que propunha a realização

de eleições diretas para Presidente da República não obteve aprovação no Congresso,

Tendo se inicio, então, a campanha para eleição indireta à presidência da república. As

eleições foram vencias por Tancredo Neves, tendo como vice-presidente José Sarney84, este

com a morte de Tancredo Neves em 21 de abril de 1985, assume a presidência da república.

No ano de 1986, mais precisamente no mês de novembro foi realizada eleições

para formar a Assembleia Nacional Constituinte, que foi instalada em 1º de fevereiro de

82 João Baptista de Oliveira Figueiredo nasceu no município do Rio de Janeiro em 15 de janeiro de 1918, no estão Distrito Federal, Iniciou a carreira militar no Colégio Militar de Porto Alegre, tendo se transferido posteriormente para o Colégio Militar do Rio de Janeiro. Formou-se em 1937 na Escola Militar de Realengo. Em 1961 trabalhou no Governo Jânio Quadros Integrando o Conselho de Segurança Nacional. Participou ativamente do movimento que apoiou o Golpe de 1964. Venceu as eleições indiretas para presidência da república pela ARENA, no dia 15 de outubro de 1978, vencendo o candidato do MDB, General Euler Bentes Monteiro. Tomou posse no dia 15 de março de 1979, tendo permanecido no cargo até 15 de março de 1985. Faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 24 de dezembro de 1999.83 Dante Martins de Oliveira nasceu no município de Cuiabá, Estado do Mato Grosso no dia 6 de fevereiro de 1952. Formou-se em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Rio de Janeiro no ano de 1976. Ele integrou o MR-8 Movimento Revolucionário 8 de outubro, assim denominado para homenagear a morte de Ernesto Che Guervara, morto nesse dia pelo exército boliviano no ano de 1967. Dante de Oliveira ingressou na carreira política como Deputado Estadual pelo PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro, no ano de 1978, quando apresentou em 1982 Emenda à Constituição propondo eleições diretas para a presidência da república. Em 15 de novembro de 1985 foi eleito Prefeito de Cuiabá, em 1986 assumiu o Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário, no governo do Presidente José Sarney, exerceu, posteriormente os cargos de Prefeito de Cuiabá, pela segunda vez, e Governador do Estado do Mato Grosso. Faleceu na cidade de Cuiabá no dia 6 de julho de 2006.84 José Sarney Nasceu em 24 de abril de 1930, no município de Pinheiro no Estado do Maranhão e foi batizado com o nome José de Ribamar Ferreira de Araújo Costa. Formou-se em Direito pela Universidade Federal do Maranhão no ano de 1953, tendo ingressado, como escritor para a Academia Maranhense de Letras. Iniciou a carreira política filiando-se ao PSD, mas somente conseguiu a primeira eleição em 1955 como Deputado Estadual, transferiu-se para a UDN tendo conseguido se eleger Deputado Federal em 1958 e em 1962. Foi Governador do Maranhão no ano de 1965. Com a extinção dos partidos políticos pelo Ato Institucional nº 2, onde permaneceu por 20 anos, nesse período elegeu-se por duas vezes Senador. No ano de 1984 passou a integrar os quadros do PMDB e integrou a chapa com Tancredo Neves, com Vice-Presidente, logrando se eleger de forma indireta. Assumiu interinamente a presidência da república em 15 de março de 1985 tendo em vista a impossibilidade do Presidente tomar posse por questões de saúde. Com a morte do Presidente Tancredo Neves, José Sarney assume em 21 de abril de 1985 definitivamente a presidência da república permanecendo no cargo até 15 de março de 1990, Após deixar a presidência da república foi eleito Senador pelo PMDB do estado do Amapá nos anos de 1990, 1998 e 2006.

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1987, ao final dos trabalhos foi promulgada a atual Constituição, a Constituição da

República Federativa do Brasil de 1988, de contornos democráticos, tendo como

fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do

trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político. A sociedade brasileira, mais uma vez,

após avanços e retrocessos, alternâncias de ideologias, retoma o caminho democrático,

abrindo espaço para uma série de conquistas no plano político e social. A Constituição de

1988 possibilitou que garantias individuais e coletivas alcançassem status de direitos

fundamentais ampliando o rol dos denominados novos direitos.85

O direito de liberdade passou a ser garantido de forma ampla, instituído como

direito e garantia fundamental, no artigo 5º da Carta Constitucional de 1988. A liberdade de

locomoção no território nacional, passa a ser assegurado, sem restrições em tempo de paz

no artigo 5º, inciso XV da Constituição de 1988, e o habeas corpus, enquanto ação

constitucional, retoma a sua amplitude e verdadeira vocação libertária, sinalizando, como

um farol que ilumina a estrada de valores democráticos que ele indelevelmente representa.

Não há que se olvidar da necessidade premente da existência de previsão da

ação de Habeas Corpus no texto constitucional, inclusive como cláusula pétrea, conforme

se observa das lições do Professor Alcino Pinto Falcão86

a garantia do habeas corpus tem um característico que a distingue das demais: é

bem antiga mas não envelhece. Continua sempre atual e os povos que a não possuem não são

livres, não gozam de liberdade individual, que fica dependente do Poder Executivo e não da

apreciação obrigatória, nos casos de prisão, por parte do juiz competente.

85 CATHARINA,Alexandre de Castro. Movimentos Sociais: e a construção dos precedentes judiciais. Curitiba. Editora Juruá, 201586 FALCÃO, Alcino Pinto. Comentários à Constituição. Rio de Janeiro: Editora Freitas Bastos, 1990.

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O preço da liberdade é a eterna vigilância,87 A sociedade brasileira precisa estar

sempre atenta para que não retornem os ideais antidemocráticos, que por tantas vezes

permeou a história desse pais. Não deve e nem pode abrir mão dos direitos inerentes à

dignidade das pessoas, dentre eles, talvez, o mais relevante é o de poder livremente se

locomover, por onde bem aprouver, e para assegurar esse direito, o habeas corpus, criação

inglesa do século XIII, ainda é a arma mais eficaz.

CAPÍTULO III – O PENSAMENTO MODERNO: UMA PERSPECTIVA

DOUTRINÁRIA E LEGISLATIVA

Atualmente a ação de Habeas Corpus tem previsão no art. 5º, LXVIII da

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – CRFB/88. “ Conceder-se-á

Habeas Corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência, ou

coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.” Denominando-

se Habeas Corpus liberatório, para os casos de violência ao direito de ir e vir e preventivo,

nos casos em que há apenas ameaça ao direito ambulatorial de alguém.

87 "O preço da liberdade é a vigilância eterna." The price of freedom is eternal vigilance. The Jefferson

Bible - Página 12, Thomas Jefferson, Percival L. Everett. Akashic Books, 2004, ISBN 1888451629, 9781888451627 - 120 páginas

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A regulamentação do Instituto encontra previsão legal no Capítulo X do Título

II, no livro III do Código de Processo Penal - CPP. O legislador do Código de 1941 inseriu,

infelizmente, o Habeas Corpus no capítulo dos recursos, apesar de poder se considerar o

Remédio Heróico com recurso lato senso, pois objetiva impugnar decisões, tecnicamente,

ele não é um recurso strito senso que pode ser conceituado como forma de revisão de uma

decisão dentro de um processo. No Habeas Corpus forma-se uma nova relação jurídica de

direito processual, consistindo, portanto em uma nova ação, ação autônoma de impugnação.

O direito de liberdade é o bem mais relevante que qualquer pessoa pode ter,

depois do direito à vida, nada podendo suplantá-lo, em razão disso, quis o legislador que

qualquer pessoa pudesse impetrar ordem de Habeas Corpus, não exigindo nenhuma

capacidade especial, conforme se observa do art. 654, caput do CPP. Assim sendo, o

Remédio Heroico possui natureza jurídica de ação penal popular, de índole constitucional.

Ação porque é um direito subjetivo público abstrato e autônomo das pessoas, penal, porque

utiliza como instrumento o Código de Processo Penal, e de índole constitucional, devido à

existência de previsão expressa no texto da carta constitucional.

1 Legitimidade ativa

A legitimidade para a propositura da ação de Habeas Corpus, é conferida a

qualquer pessoa natural ou jurídica, nacional ou estrangeira. Aquele que propõe a ação de

habeas corpus recebe a denominação de Impetrante.

Pessoa natural é o ser humano que ao nascer com vida88, adquire direitos e

obrigações. Dentre os direitos está o direito de ação, podendo, portanto impetrar ordem de

Habeas Corpus.

88 A personalidade jurídica e a capacidade ordinária, para ser parte em uma ação em Juízo surge com o nascimento com vida, conforme artigo 2º do Código Civil, porém, a lei protege os interesses daqueles que estão em gestação.

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Pessoa jurídica89 é um aglomerado de pessoas reunidas entre si, por interesses

diversos, que após a regular constituição, a lei confere direitos e obrigações.

Nacional é aquele que nasce vinculado a um determinado Estado, seja pelo

critério sanguíneo ou territorial90, bem como a pessoa que por vontade própria requer

naturalização.

Estrangeira são pessoas vinculadas a um Estado diferente do qual ela está

exercendo direitos ou obrigações.

Dessa maneira, pode-se dizer que a legitimidade para propor a ação de habeas

corpus, no Brasil, é ampla, e universalizante, porque qualquer indivíduo, sem qualquer

forma de distinção, quanto a raça, origem, sexo ou grau de instrução, até mesmo a própria

pessoa que tem o seu direito ambulatorial, ameaçado ou violado, pode provocar a atuação

da função jurisdicional do Estado, no intuito de restaurar a legalidade e o status libertatis.

No Brasil a legitimidade para propor a ação de habeas corpus não exige

nenhuma condição especial, como por exemplo capacidade postulatória91, qualquer pessoa

que estiver sofrendo, ou souber de que alguém está sofrendo uma ameaça, ou lesão no seu

direito de ir e vir, por ilegalidade ou abuso de poder, pode informar o fato ao Estado, para

que sejam adotadas medidas, a fim de restaurar de forma célere e eficaz o direito de

liberdade.

Duas são as finalidades da legitimidade ampla para a ação de habeas corpus,

por um lado objetiva garantir que as pessoas naturais possam viver livremente no território

brasileiro, por outro lado, possibilita controlar e coibir eventuais ilegalidades cometidas

contra o direito ambulatorial.

89 A natureza jurídica das pessoas jurídicas gera um certo conflito, existindo três posicionamentos básicos: o da ficção jurídica na qual a pessoa jurídica consiste em uma criação artificial, produto da técnica jurídica, sem uma existência social, possuindo somente existência ideal; A teoria orgânica ou da realidade objetiva confere uma existência social às pessoas jurídicas, que possuiriam, um corpus cuja finalidade é administra e manter a sociedade em contato com o mundo social e um animus consistente na vontade dos sócios em manterem-se associados; e a teoria da realidade técnica que reconhece a realidade social das pessoas jurídicas, porém, a sua personalidade decorre da técnica jurídica.90 Dois critérios básicos são utilizados para determinar a nacionalidade de uma pessoa natural. O ius sanguinis que leva em consideração a hereditariedade transmitida ao indivíduo por seus ancestrais, e o is soli no qual a nacionalidade é atribuída em razão do lugar, ou seja, do território do pais onde a pessoa nasceu.91 A capacidade postulatória é uma condição inerente à alguns profissionais do Direito, e consiste na aptidão para peticionar ao poder judiciário, na defesa de direito próprio ou alheio, para tanto, via de regra, torna-se necessário, além de formação específica, graduação na faculdade de Direito, a regular inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil.

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Tamanha é a preocupação do Estado brasileiro com a liberdade de ir e vir, que

apesar do texto constitucional, art. 133 da CRFB/8892 determinar que o advogado é

indispensável para a administração da justiça, excepcionalmente, no caso da ação de habeas

corpus essa exigência é dispensada, ampliando sobremaneira o acesso direto das pessoas à

função jurisdicional do estado.

2 O Paciente

O Paciente é qualquer pessoa natural, nacional ou estrangeira, que de alguma

maneira, venha a ter o seu direito ambulatorial ameaçado ou violado, por ilegalidade ou

abuso de poder, no território brasileiro. Não sendo admitida qualquer espécie de

discriminação quanto à nacionalidade ou convicções ideológicas, religiosas ou filosóficas.

O entendimento amplamente majoritário é de que somente as pessoas naturais

podem figurar como paciente na ação de Habeas Corpus, porque são elas as detentoras do

direito de livre locomoção.

Há, no entanto, uma espécie de Habeas Corpus cuja finalidade é fazer extinguir

uma ação penal.

O artigo 225, §3º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e a

lei 9.605/98, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas de condutas e atividade

lesivas ao meio ambiente, no artigo terceiro, trouxeram, para o ordenamento jurídico

brasileiro, a possibilidade de pessoa jurídica ser sujeito ativo de crime ambiental.

A questão sobre as pessoas jurídicas praticarem crime ambiental acarretou

grande discussão na doutrina e na jurisprudência, tendo em vista que, crime, pelo conceito

analítico, consiste em uma conduta humana voluntária, típica ilícita e culpável.

De um lado, os partidários da chamada teoria da ficção93 jurídica de Saviny, na

qual as pessoas jurídicas são totalmente incapazes de manifestar vontade, razão pela qual,

societas delinquere non potest94. Dessa maneira, se as sociedades empresárias não são

capazes de emitir vontade, também não podem ter o dolo de praticar uma conduta. O tipo

92 Artigo 133 da Constituição da República Federativa do Brasil. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.

93 Ver item 794 As sociedades não podem dar errado, ou seja delinquir.

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doloso exige o preenchimento de dois elementos: o cognitivo, ou seja, saber o que se está

fazendo, e o volitivo,que é ter vontade de praticar a conduta.

Do outro lado há os partidários da teoria da realidade ou organicista de Otto

Gierke, onde as pessoas jurídicas, apesar de surgirem da affecio societatis, que representa a

livre manifestação dos sócios em constituí-la, possuem uma personalidade real e, com isso,

são capazes de ter vontade própria diversa da dos sócios que a constituíram, razão pela qual

admite-se que as pessoas jurídicas possam vir a praticar condutas consideradas crime,

enquanto tipificadas em lei penal.

O entendimento majoritário, tanto na dogmática, como na jurisprudência dos

Tribunais, é de que não há nenhum óbice para a aplicação do art. 225,§3º da Constituição

de 1988 e do artigo 3º da lei 9.605/98, e as pessoas jurídicas podem sim praticar crimes

ambientais.

A posição mais aceita é a de que as pessoas jurídicas poderão passar a integrar

o pólo passivo em processos penais. Diante dessa situação surge a questão, é possível se

utilizar da ação de Habeas Corpus para trancar um processo em que figure um pessoa

jurídica no pólo passivo da ação penal?

O Ministro Ricardo Lewandowski foi relator do HC 92.921-4/BA de 19 de

agosto de 2008, onde figurou, como impetrante e paciente, a sociedade empresária Cortume

Campelo S/A. Tratava-se de um Habeas Corpus substitutivo, de outro impetrado e

denegado pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça.

O Ministro Relator se manifestou da seguinte forma:

PENAL. PROCESSUAL PENAL. CRIME AMBIENTAL. HABEAS CORPUS PARA TUTELAR PESSOA JURÍDICA ACUSADA EM AÇÃO PENAL. ADMISSIBILIDADE. INÉPCIA DA DENÚNCIA: INOCORRÊNCIA. DENÚNCIA QUE RELATOU a SUPOSTA AÇÃO CRIMINOSA DOS AGENTES, EM VÍNCULO DIRETO COM A PESSOA JURÍDICA CO-ACUSADA. CARACTERÍSTICA INTERESTADUAL DO RIO POLUÍDO QUE NÃO AFASTA DE TODO A COMPETÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA E BIS IN IDEM. INOCORRÊNCIA. EXCEPCIONALIDADE DA ORDEM DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ORDEM DENEGADA.

I - Responsabilidade penal da pessoa jurídica, para ser aplicada, exige alargamento de alguns conceitos tradicionalmente empregados na seara criminal, a exemplo da culpabilidade, estendendo-se a elas também as medidas assecuratórias, como o habeas corpus.

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II - Writ que deve ser havido como instrumento hábil para proteger pessoa jurídica contra ilegalidades ou abuso de poder quando figurar como co-ré em ação penal que apura a prática de delitos ambientais, para os quais é cominada pena privativa de liberdade.

III - Em crimes societários, a denúncia deve pormenorizar a ação dos denunciados no quanto possível. Não impede a ampla defesa, entretanto, quando se evidencia o vínculo dos denunciados com a ação da empresa denunciada.

IV - Ministério Público Estadual que também é competente para desencadear ação penal por crime ambiental, mesmo no caso de curso d'água transfronteiriços.

V - Em crimes ambientais, o cumprimento do Termo de Ajustamento de Conduta, com conseqüente extinção de punibilidade, não pode servir de salvo-conduto para que o agente volte a poluir.

VI - O trancamento de ação penal, por via de habeas corpus, é medida excepcional, que somente pode ser concretizada quando o fato narrado evidentemente não constituir crime, estiver extinta a punibilidade, for manifesta a ilegitimidade de parte ou faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal.

VII - Ordem denegada.

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, por maioria dos votos, deliberou, no julgamento da ação de habeas Corpus, em questão, pela exclusão da pessoa jurídica, quer qualificada como impetrante, quer como paciente, vencido o Ministro Relator. No mérito, por unanimidade, o Habeas Corpus foi indeferido.

Ainda que a maior parte da jurisprudência, tanto do Supremo Tribunal Federal, bem como do Superior Tribunal de Justiça, não aceite, atualmente, a inserção das pessoas jurídicas como pacientes em ações de Habeas Corpus, tendo uma vez que elas não exercem o direito de locomoção. A posição adotada pelo Ministro Ricardo Lewandowski representa um importante precedente. Demonstra a necessidade de se disponibilizar mecanismos processuais hábeis à proteger as pessoas jurídicas, quando integrarem o pólo passivo de uma ação penal, estando esta, eivada de manifesta ilegalidade.

As ilegalidades e os vícios processuais não podem prosperar sem a devida correção, sob pena de restar violado o princípio constitucional do devido processo legal. O processo penal, em si, acarreta às pessoas, tanto naturais como jurídicas um enorme prejuízo, restringindo a prática de uma série de direitos, como por exemplo tomar posse em cargos públicos e participar de licitações públicas.

Razão pela qual, ainda que não seja cabível a ação de Habeas Corpus para extinguir uma ação penal proposta em face de pessoa jurídica por crime ambiental, é necessária a existência de alguma medida de urgência hábil a corrigir a ilegalidade. Quiçá o Mandado de segurança, tendo em vista que, à semelhança do Habeas Corpus também admite a concessão de medida liminar, possibilitando assim, um controle antecipado dos atos processuais.

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3 Autoridade coatora

A legitimidade passiva é de quem lesiona ou ameaça o direito de locomoção de

alguém, por ilegalidade ou abuso de poder. Normalmente são agentes públicos, porém a

doutrina e a jurisprudência brasileira, admitem, também, particulares, pessoas naturais ou

jurídicas, não ligadas à administração pública, sendo todos que estejam nessa condição

denominados autoridade coatora.

O particular, como legitimado passivo, gera, por parte da doutrina, alguma

divergência. Alguns sustentam que faltaria interesse de agir ao legitimado ativo, quando a

pessoa que praticasse a ameaça ou a lesão ao direito ambulatorial de alguém fosse

particular, pois este, ao tomar tal atitude, pratica uma conduta humana voluntária, típica

ilícita e culpável, podendo, portanto, ser considerada crime, bastando comunicar o fato à

polícia para fazer cessar a coação ou a ilegalidade.

A maior parte dos autores, bem como a jurisprudência, tendem a aceitar a

utilização do Habeas Corpus contra ato de particular, sob o argumento de que o legislador

constituinte originário não restringiu, no art. 5º LXVII da CRFB/88, a sua utilização apenas

contra atos de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições

do poder público, conforme ocorre no Mandado de Segurança, art. 5º, LXIX da CRFB/88.

O exemplo clássico da utilização do Habeas Corpus contra ato de particular

ocorre quando alguém, acometido de alguma enfermidade, tem a necessidade de internação

em hospital particular, e este, após o pleno restabelecimento da pessoa, nega seu direito de

retorno para casa, enquanto não forem pagas as despesas médicas. A primeira posição

doutrinária sustenta que os familiares da pessoa retida no hospital deveria procurar a

polícia, para que esta restaure a liberdade da pessoa, tendo em vista que cercear a liberdade

de ir e vir de alguém, constitui crime de sequestro e cárcere privado, tipificado no artigo

148 do Código Penal. Porém, predomina o entendimento de que os familiares poderiam se

socorrer da função jurisdicional do Estado, impetrando um Habeas Corpus, a fim de

restaurar o satatus libertatis da pessoa internada.

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A dogmática brasileira, conforme é possível observar, sempre deu, à ação de

habeas corpus uma interpretação ampla e abrangente, permitindo a propositura da ação

contra ato de autoridade pública, bem como de particular, por ser ela o remédio mais célere

e eficaz para garantir a liberdade de locomoção das pessoas naturais no território brasileiro.

Célere, porque as ações de Habeas Corpus, pelo menos no Brasil, permitem a concessão de

medida liminar e possuem preferência para entrar em pauta para julgamento. Eficaz, porque

não exige capacidade postulatória, ou seja, a ação pode ser apresentada à função

jurisdicional do Estado por qualquer pessoa, inclusive pelo próprio Paciente. Além disso, o

Habeas Corpus não exige o recolhimento de custas judiciais, representando, portanto, o

meio mais amplo e democrático para o acesso à justiça no Brasil, conforme defendido por

Mauro Cappelletti95

4 Natureza Jurídica do Habeas Corpus

O Habeas Corpus é uma ação autônoma de impugnação, conforme já

mencionado. É uma ação penal popular de natureza constitucional. No Código de Processo

Penal ela encontra-se inserida, indevidamente, no título dos recursos. Estes consistem na

revisão de uma decisão dentro da relação jurídica originária, a qual ensejou ao início do

processo, enquanto que o Habeas Corpus faz surgir uma nova relação jurídica,

configurando, portanto, uma ação autônoma.

A doutrina brasileira diverge quanto à classificação das ações no que diz

respeito à espécie de provimento jurisdicional, ou seja, a espécie de decisão proferida ao

final do procedimento. Alguns autores fazem uma classificação em três espécies, outros em

cinco espécies.

Alexandre de Freitas Câmara96 sustenta existirem três espécies de ações, quando

se trata de tutela jurisdicional, são elas: a) ação meramente declaratória, cujo provimento

final irá declarar a existência ou não de uma relação jurídica; b) ação constitutiva, onde o

provimento final fará constituir ou desconstituir uma relação jurídica e c) a ação

95 CAPPELLETTI Mauro e GARTH Bryant. Acesso à Justiça. Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre. Reimpressão 2002. “ A expressão acesso à justiça serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico. Primeiro o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo ele deve produzir resultados que seja individual e socialmente justos.” 96 CAMARA Alexandre de Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 6ª edição Editora Lumen Juiris, 2001

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condenatória, na qual o provimento jurisdicional irá impor ao réu uma obrigação de dar,

fazer ou não fazer.

Autores, como Olvídio Baptista da Silva97 e Pontes de Miranda98, tendo como

base as lições do jurista alemão Küttner, defendem uma classificação quinaria dos

provimentos jurisdicionais e, por conseguinte, das ações. A classificação quinaria, além das

já mencionadas ações declaratórias, constitutivas e condenatórias, insere, ainda, outras

duas: ações mandamentais, onde o juiz expede uma ordem a ser cumprida pelo demandado,

e as ações executivas lato senso, cuja sentença pode ser executada de plano, não exigindo

nenhum outro tipo de procedimento.

A doutrina processual penal utiliza mais comumente a classificação subjetiva

das ações penais, em que a diferenciação ocorre, basicamente, em função da legitimidade

ativa, havendo uma divisão em ações penais públicas e privadas.

Fernando da Costa Tourinho Filho99 menciona que no seu livro, citando José

Frederico Marques, que alguns autores, no Brasil, influenciados pela classificação adotada

no processo civil, a utilizam também para classificar as ações penais.

Não há um posicionamento único quanto à natureza do provimento

jurisdicional nas ações de Habeas Corpus. Dependendo da espécie de decisão, a natureza

jurídica pode ser declaratória ou constitutiva.100, bem como há o entendimento de que se

trata de um provimento mandameltal.

O provimento terá natureza declaratória, quando a concessão da ordem em

Habeas Corpus for para excluir o indiciamento, ou trancar uma ação penal, reconhecendo

falta de justa causa, ou seja, falta de indícios de autoria, ou da prática de uma infração

penal, por outro lado, nas hipóteses em que ocorre a desconstituição de uma sentença

condenatória com transito em julgado, a natureza do provimento será constitutivo negativo,

ou desconstitutivo.

Cumpre ressaltar, no entanto, as ponderações feitas por Daniel Guimarães

Zveibil em seu artigo Considerações sober a “nova” vedação do habeas corpus substitutivo

97 DA SILVA,. Olvídio Baptista. Curso de Processo Civil, Vol I, 6ª edição. Também adotam a classificação quinaria Ada Pellegrini Grinover, no livroTutela Jurisdicional nas Obrigações de fazer e Não fazer, e Kazuo Watanabe no livro Código de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto.98 MIRANDA Pontes. Comentários ao Código de Processo Civil de 1939. Rio de Janeiro. Editora Forense, 195899 FILHO Fernando da Costa Tourinho Processo Penal 18ª edição, Vol. I. Editora Saraiva, 1997100 RANGEL Paulo. Direito Processual Penal. 12ª edição. Editora Lumen Iuris, 2007

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de recursos101. O autor aponta o que ele denomina de “Anomalias”, que estariam a dificultar

a harmonização do instituto do habeas corpus ao sistema das ações. Tais “anomalias

seriam: a possibilidade da utilização de um habeas corpus concomitantemente à via

recursal, recurso de apelação; a possibilidade do habeas corpus vencer a coisa julgada,

permitindo a interposição de mais de um habeas corpus pelo mesmo fundamento; a ampla

legitimidade ativa para a utilização do habeas corpus, etc.

Daniel Guimarães Zveibil meciona Helio Tornaghi como não se sentindo

totalmente à vontade para dar ao habeas corpus uma natureza de ação, e Pontes de Miranda,

que mesmo considerando o habeas corpus uma ação mandamental, deixa transparecer uma

certa ambivalência no seu posicionamento, porque, por vezes classifica o habeas corpus,

como tendo natureza de “remédio (processual) mandamental”102

O autor do artigo menciona o estudo do Professor José Ignácio Botelho de

Mesquista, sobre a natureza jurídica do mandado de segurança, e ajusta a natureza jurídica

do habeas corpus à tese desenvolvida para o mandado de segurança, conferindo-lhe

natureza político-administrativa afim de garantir-lhe a mais ampla eficácia, evitando com

que ele venha a se tornar inútil à defesa das liberdades, pela aplicação do sistema das ações,

que fatalmente poderá acarretar a redução do seu âmbito de atuação, conforme tem

ocorrido, pela vedação do habeas corpus substitutivo de recursos ordinário, bem como pela

aplicação da súmula 691 do Supremo Tribunal Federal103.

Daniel Guimarães Zveibil conclui seu pensamento destacando a necessidade de

retirar o habeas corpus do sistema das ações.

Quando afirmamos a natureza político-administrativa do habeas corpus, em

primeiro lugar não queremos dizer com tal afirmação que o habeas corpus deva ser instrumento

de manipulação partidária(...) O sentido preciso que pretendemos empregar a esta natureza

político-administrativa do habeas corpus é tão-só destacar que o remédio heroico não deve

pertencer ao sistema de ações, na medida em que há diversas situações em que os elementos e

101 ZVEIBIL. Daniel Guimarães. Considerações sobre a “nova”vedação do habeas corpus substitutivo de recurso. Tribuna Virtual. Ibccrim. Ano 1, 3ª edição, abril de 2013. Consultado em 17/07/2015. Disponível em: http://www.tribunavirtualibccrim.org.br/artigo/15-Consideracoes-sobre-a-%E2%80%9Cnova%E2%80%9D-vedacao-do-habeas-corpus-substitutivo-de-recurso102 Idem item 16103 Súmula 691 do STF. Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do relator, que em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar.

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categorias deste sistema implicam a diminuição drástica da efetividade do habeas corpus,

podendo até mesmo torna-lo completamente inútil.104

Apesar da brilhante tese combativa do autor, que além de Mestre em Direito, é

também Defensor Público no Estado de São Paulo, tentar por meio da alteração da natureza

jurídica do habeas corpus, manter-lhe a plena eficácia, cumpre reconhecer, que a maior

parte dos autores processualistas penais, dão ao habeas corpus a natureza de ação autônoma

de impugnação

5 Espécies de Habeas Corpus

O art 5º, LXVIII da CRFB/88 estabelece a possibilidade da utilização da ação

de Habeas Corpus para tutelar o direito ambulatorial das pessoas, quando houver lesão ou

ameaça de lesão. Daí surge a necessidade da existência de duas espécies básicas de Habeas

Corpus, a fim de realizar o comando estabelecido no texto da Constituição.

Habeas Corpus Preventivo. Ele tem a finalidade de resguardar a ameaça ao

direito de ir e vir das pessoas no território brasileiro, prevenindo a prática de ilegalidades ou

abuso de poder, com relação ao direito ambulatorial. A ordem de Habeas Corpus irá se

exteriorizar em um Salvo Conduto, que será entregue ao paciente. Caso ele venha a sofrer

qualquer ameaça de constrangimento ao seu direito de ir e vir, deverá apresentar, a quem o

faça, a tutela exarada pela função jurisdicional do estado.

Habeas Corpus Liberatório. É também chamado de Habeas Corpus repressivo,

por alguns autores105, a sua finalidade é restaurar a liberdade de ir e vir de alguém, nas

hipóteses em que já se consumou a violação. A ordem irá se exteriorizar em um alvará de

soltura, que deverá ser imediatamente cumprido pela autoridade coatora. Haja vista que no

Brasil, a regra é a liberdade, só cabendo o cerceamento desta em flagrante delito ou por

ordem escrita de autoridade judiciária, Art. 5º LXI da CRFB/88.

104 Idem item 16. Página 44105 CAPEZ Fernando. Curso de Processo Penal. 19ª edição Editora Saraiva, 2012

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O habeas corpus, via de regra, é uma medida de caráter individual, preservando

o direito ambulatorial de uma determinada pessoa natural que esteja com esse direito

ameaçado ou lesionado. A Constituição de 1988 não previu de forma expressa a

possibilidade da utilização do habeas corpus para promover a tutela coletiva, conforme

ocorre com o mandado de segurança coletivo, no Art. 5º, LXX da CRFB/88, ação popular,

Art. 5º, LXXIII da CRFB/88 e ação civil pública, Art. 129, III da CRFB/88.

Há, no entanto, posicionamento doutrinário favorável ao cabimento do habeas

corpus coletivo, apesar da omissão legislativa, devido inobservância por parte do Estado do

cumprimento de deveres mínimos relativo a dignidade das pessoas, especialmente, àquelas

que se encontram sob sua guarda, em estabelecimentos prisionais, ou têm seu direito

fundamental de locomoção ameaçado por arbitrariedades de agentes públicos

A tutela coletiva, promovida por meio das ações coletivas, tem por finalidade

garantir o acesso à justiça de um número maior de pessoas de forma mais eficaz, e com um

mínimo de atos, garantindo economia processual e segurança jurídica, na medida em que a

decisão judicial irá abranger o coletivo, não se perdendo amiúde em decisões isoladas, que

eventualmente podem apresentar contradições e colidências.

A doutrina processual civil classifica os interesses transindividuais ou

metaindividuais, ou seja, o interesse coletivo, basicamente em três espécies: interesses

difusos, nos quais um número indeterminado de pessoas, encontram-se interligadas por

uma mesma situação fática, são interesses indivisíveis que somente admitem uma fruição

coletiva, sendo, portanto indeterminado, como por exemplo o meio ambiente; interesses

coletivos que são indivisíveis, mas possuem destinatários determináveis, a lesão afeta um

grupo determinado de pessoas , ou uma classe de pessoas que mantém um vínculo comum,

por meio de uma mesma relação jurídica com a parte contrária, e por fim os interesses

individuais homogêneos, que apresentam uma certa divergência quanto a sua inclusão

dentre os interesses metaindividuais, porque consistem em interesses próprios de cada

pessoa, e portanto divisíveis, passíveis de tutela individual, mas que em razão do interesse

social podem ser tutelados coletivamente, com a finalidade específica de obter uma maior

efetividade na reparação do direito violado.

A tutela coletiva por meio do habeas corpus, apesar de pouco usual, não é

novidade no ordenamento jurídico brasileiro, na realidade, foi utilizada inicialmente no

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tempo do império para tutelar o direito de liberdade de escravos livres106, mais

recentemente foi utilizado, na forma preventiva para garantir o direito de trabalho aos

flanelinhas107, o direito de ir e vir de crianças e adolescentes contra toque de recolher

imposto por juíza da Vara da Infância e Juventude108, e para garantir o direito à progressão

de regime de pessoas presas de forma inadequada109, bem como, para garantir o direito de

manifestação em passeatas, esses são apenas alguns exemplos de possibilidade da aplicação

da tutela coletiva, pela via da ação de habeas corpus.

O entendimento sobre o cabimento ou não do habeas corpus coletivo, longe está

de ser pacífico, na realidade a jurisprudência tem se mostrado refratária a utilização do

heroico remédio para garantir interesses transindividuais no do âmbito penal110, contudo, a

posição conservadora da jurisprudência nacional atualmente, com relação a tutela coletiva

por meio do habeas corpus, não condiz em nada condiz com a tradição libertária do

pensamento jurídico brasileiro, não contribuindo para compor alguns conflitos referentes ao

direito de ir e vir, conforme se observa do parecer dado por Geraldo Prado:

Sim. O habeas corpus coletivo é conhecido no direito brasileiro desde o Império.

A não determinação do coletivo beneficiário da proteção da liberdade de locomoção, a

depender das circunstâncias de cada caso, não constitui óbice ao exame do mérito no processo

de habeas corpus. O que é indispensável é a determinação da hipótese de ameaça ou violação à

liberdade de locomoção que em concreto guarde pertinência com o referido coletivo de

pessoas.111

A complexidade das relações sociais, bem como a heterogeneidade de

pensamentos existentes na modernidade, exige uma melhor reflexão quanto a utilização de

instrumentos jurídicos capazes de proteger não só o indivíduo, mas também, os grupos

sociais de forma efetiva, permitindo um acesso célere e eficaz à justiça, como forma de

mediar os conflitos inerentes às relações sociais complexas.

106 PRADO. Geraldo. Parecer sobre o Habeas Corpus Coletivo Impetrado a favor dos “flanelinha”. Consulta em 16/07/2015. Disponível em: http://emporiododireito.jusbrasil.com.br/noticias/184035504/parecer-do-prof-geraldo-prado-sobre-o-habeas-corpus-coletivo-impetrado-em-favor-dos-flanelinhas107 Idem item 17108 Notícias Ibccrim, consultado em 16/07/2015. Disponível em: http://www.ibccrim.org.br/noticia/13834-Habeas-Corpus-coletivos-contra-toque-de-recolher-de-crianas-e-adolescentes109 Medida Cautelar no habeas corpus 119753 – São Paulo. Relator Min Luiz Fux. Consultado em 16/07/2015. Disponível em: www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.asp?id=180796851...110 Jurisprudência JusBrasil, consulta feita em 17/07/2015. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=HABEAS+CORPUS+COLETIVO111 Idem item 17

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6 Competência para julgar a ação de Habeas Corpus

A competência para o julgamento das ações de habeas corpus é determinada

com base na autoridade coatora. Seria o órgão jurisdicional com competência para julgar a

autoridade coatora, assim sendo, quando esta possuir foro privilegiado pela prerrogativa de

função deve se observar essa regra de fixação de competência no momento de propor a

ação.

Nas hipóteses em que a ameaça ou lesão ao direito de ir e vir for perpetrada por

autoridade policial, ou seja, delegado de polícia, ou particular, a competência para julgar o

Habeas Corpos será de um órgão jurisdicional de primeira instância da justiça comum

federal ou estadual. De outra forma, nas hipóteses em que a autoridade coatora possuir foro

privilegiado pela prerrogativa de função, este deve ser observado obrigatoriamente, sob

pena de nulidade por incompetência do Juízo.

Assim sendo, quando a ameaça de lesão ou lesão ao direito ambulatorial provir

de Juiz de primeira instância, a competência será do Tribunal de Justiça ou do Tribunal

Regional Federal, sendo este a autoridade coatora, a competência será do Superior Tribunal

de Justiça, Por fim, a competência será do Supremo Tribunal Federal, quando a coação for

praticada por Ministro de um dos Tribunais Superiores.

Há, contudo, uma questão conflituosa com relação à ação de habeas corpus,

trata-se da competência, nos Juizados Especiais Criminais.

Não há maiores problemas em se verificar a competência, quando a autoridade

coatora é o Juiz do Juizado, nessa situação, a competência para o julgamento do habeas

corpus é da Turma Recursal112 que é o órgão jurisdicional imediatamente superior, porém,

quando a autoridade coatora é a Tuma Recursal, surge uma certa obscuridade no que diz

respeito à competência para o julgamento do Habeas Copus.

Inicialmente o entendimento com relação à competência para o Julgamento de

habeas corpus contra decisão de Turma Recursal, indicava o Supremo Tribunal Federal,

112 Turma Recursal, é um órgão colegiado de segundo grau que analisa os recursos das decisões proferidas no primeiro grau de jurisdição, conforme o artigo 82 da Lei 9.099/95. Ela é composta por três juízes de Juizados Especiais Criminais, curiosamente, apesar da Turma Recursal exercer o segundo grau de jurisdição, ela pertence a primeira instância do Tribunal.

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como sendo o órgão com competência, tendo em vista que, em princípio, os Juizados

especiais, não estariam subordinados diretamente ao tribunal de Justiça.

Nesse sentido era o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que fez editar

o verbete da súmula 690 : “Compete ao Supremo Tribunal Federal o julgamento de habeas

corpus contra decisão de turma recursal dos juizados especiais criminais.”

No ano de 2006, no entanto, houve uma mudança no entendimento no Supremo

Tribunal, tendo sido cancelada a súmula 690, conforme é possível se observar, em diversos

julgamentos.

EMENTA: Habeas corpus: incompetência do Supremo Tribunal para conhecer originariamente de habeas corpus no qual se imputa coação a Juiz de primeiro grau e a Promotor de Justiça que oficia perante Juizado Especial Criminal (CF, art. 102, I, i). II. Habeas corpus: conforme o entendimento firmado a partir do julgamento do HC 86.834 (Pl, 23.6.06, Marco Aurélio, Inf., 437), que implicou o cancelamento da Súmula 690, compete ao Tribunal de Justiça julgar habeas corpus contra ato de Turma Recursal dos Juizados Especiais do Estado.113

Dessa maneira, atualmente, apesar de ter sido controvertida a questão da competência para o julgamento das ações de habeas corpus, em que fosse a Turma Recursal a autoridade coatora, predomina o entendimento jurisprudencial, de que o órgão com competência é o Tribunal de Justiça do Estado, ao qual a Turma Recursal pertence.

7 Cabimento da ação

O art. 648 do Código de Processo Penal estabelece, em seus incisos, as

hipóteses em que a ação de Habeas Corpus tem cabimento, considerando os atos como

sendo coação ilegal.

O primeiro inciso trata da falta de justa causa. A justa causa, no processo penal,

consiste na existência de indícios de autoria, e da prática de uma infração penal, ou seja, um

suporte probatório mínimo, para que um procedimento investigatórios, leia-se inquérito

113HC 90905 AgR/SP. Ministro Relator Sepúlveda Pertence, primeira turma, 10/04/2007. Provimento negado por decisão unânime. http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28HC+86%2E834%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/qdq227u

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policial, seja instaurado, ou uma ação penal seja proposta. É fundamental a existência de

justa causa. Sem ela o procedimento, seja administrativo investigatório, ou judicial

configura coação ilegal.

A falta de justa causa ensejará o pedido de arquivamento de um inquérito

policial114, na medida em que a referida ausência provocará a rejeição da petição inicial da

ação penal, Denúncia, nos casos de ação penal pública, Queixa-Crime, nos casos de ação

penal privada, conforme se observa do art. 395, III do Código de Processo Penal. Ora, se a

ausência de justa causa irá acarretar o não recebimento da petição inicial, não há porque o

Ministério Público oferecer a Denúncia, devendo, portanto, requer o arquivamento do

procedimento pré-processual, isto é, do Inquérito Policial.

A natureza jurídica da justa causa é uma questão um tanto tormentosa na

dogmática brasileira, não havendo um consenso entre os doutrinadores.

Inicialmente, à guisa de esclarecimento, para facilitar a compreensão, cumpre

elucidar o que representam as chamadas condições da ação, ou melhor as condições para o

legítimo exercício do direito de ação.

Ação é, antes de mais nada, um direito. O direito de invocar, do Estado, a

prestação jurisdicional. Diversas são as teorias sobre o direito de ação, porém, atualmente,

tende a prevalecer o entendimento da ação como um direito subjetivo público,abstrato e

autônomo. Em razão disso, como um direito em si não apresenta condições, o mais

adequado é denominar as condições como sendo para o exercício legítimo do direito de

ação ou requisitos do provimento final115

As condições para o legítimo exercício do direito de ação, segundo o

entendimento majoritário, trazido do Direito Processo Civil, dividem-se em condições

genéricas e específicas, estas no processo penal recebem a denominação de condição de

procedibilidade.

Genéricas são consideradas, como condição, a legitimidade, o interesse de agir,

e a possibilidade jurídica do pedido, segundo as lições de Enrico Tullio Liebman

114 LIMA Marcellus Polastri. Manual de Processo Penal. 4ª edição Editora Lumen Iuris, 2009115 Idem item 5

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Parte legítima, ou seja a legitimidade ad causam, segundo Vicente Greco

Filho116, que cita Alfredo Buzaid seriam os sujeitos da relação jurídica de direito

processual:

Legitimidade. Refere-se às partes, sendo denominadas, também, legitimação para agir ou na expressão latina legitimatio ad causam. A legitimidade, no dizer da Alfredo Buzaid, conforme já referido(Cap. I, 8.2) é a pertinência subjetiva da ação, isto é, a regularidade do poder de demandar de determinada pessoa sobre determinado objeto. A cada um de nós não é permitido propor ações sobre todas as lides que ocorrem no mundo. Em regra, somente podem demandar aqueles que forem sujeitos da relação jurídica de direito material trazida a juízo.

No processo penal, os interesses em conflito são o direito de punir do Estado, e

o direito de liberdade. Dessa maneira, o titular primeiro do direito material é o Estado,

sendo, portanto, o legitimado ativo que exercita o direito de ação por meio do Ministério

Publico nas ações penais públicas, e no caso das ações penais privadas.117 O Estado, tendo

em vista a disponibilidade do bem jurídico tutelado, confere, via de regra, à vitima, seu

representante legal, nos casos de incapacidade para os atos da vida jurídica, ou sucessores,

cônjuge, ascendente, descendente e irmão, nos casos de morte ou declaração de ausência

por sentença, a legitimidade extraordinária, salvo nas ações penais privadas

personalíssimas, em que a legitimidade ad causam pertence somente ao ofendido.

Do outro lado, o titular do direito de liberdade e o suposto autor do delito,

sendo, dessa maneira, o legitimado passivo, tendo em vista que, normalmente, um processo

é composto por dois pólos, o ativo e o passivo.

É interessante ressaltar o cruzamento subjetivo que envolve o direito material e

o direito processual. O sujeito ativo do delito é o legitimado passivo do processo, enquanto

que o sujeito passivo formal ou material, do crime, é o legitimado ativo do processo.

O interesse de agir apresenta, como fundamento, o binômio necessidade-

utilidade. Necessidade da intervenção da função jurisdicional do Estado e utilidade jurídica.

A necessidade encontra íntima relação com o princípio nulla poena sine judicio.

Nas medida em que o ordenamento jurídico brasileiro, via de regra, repudia a autotutela

para solucionar as questões relacionadas ao direito penal, por esse motivo não há como se 116 FILHO Vicente Greco. Manual de Processo Penal 8ª edição. Editora saraiva, 2010117 No anteprojeto do novo código de processo penal, não haverá mais a legitimidade extraordinária das ações penais exclusivamente privada e personalíssima, subsistindo somente na ação penal privada subsidiária da pública

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sancionar a violação de um bem juridicamente tutelado pelo direito penal, que não seja por

meio da intervenção da função jurisdicional do estado. Qualquer tentativa de autotutela,

fora das hipóteses permitidas em lei, importará na prática de outro delito.

Utilidade, do ponto de vista técnico processual consiste na vantagem que o

provimento jurisdicional terá para legitimado.

A possibilidade jurídica do pedido no processo civil, é verificada quando a

pretensão exarada em juízo não encontra vedação expressa em lei. No processo penal, no

entanto, o pedido será juridicamente possível, quando atender à previsão em abstrato da

prática de uma conduta delituosa, tendo em vista que, consoante ao estabelecido no art 5º,

XXIX da CRFB/88: não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia

cominação legal.

Toda e qualquer ação, seja ela da jurisdição penal ou civil, deve observar as

condições genéricas para o legítimo exercício do direito de ação, ou requisitos do

provimento final.118 Algumas ações, além destas condições necessitam observar algumas

outras condições, chamadas específicas, que, no processo penal, são denominadas

condições de procedibilidade, como por exemplo a representação e a requisição do Ministro

da Justiça, nos crimes de ação penal pública condicionada.

Feitos esses esclarecimentos, torna-se possível retomar a questão da natureza

jurídica da justa causa, que, conforme já foi mencionado, provoca muita divergência entre

os doutrinadores do processo penal.

Frederico Marques119 e Vicente Greco Filho120 defendem que a justa causa

importa em uma condição genérica para o legítimo exercício do direito da ação penal,

estando incluída no interesse de agir, porque estaria dentro do chamado fumus boni iuris, ou

seja fumaça do bom direito, ou plausibilidade das alegações. Havendo ausência de suporte

probatório mínimo, a atuação da função jurisdicional do Estado seria desnecessária, pois o

provimento jurisdicional, dela decorrente, iria se configurar totalmente inútil. A

necessidade e a utilidade integram o binômio fundamental do interesse de agir, em assim

sendo, se a falta de suporte probatório mínimo torna inútil o provimento jurisdicional, não

há que se falar em interesse na provocação da função jurisdicional, por parte do legitimado.

118 Idem item 5119 MARQUES José Frederico. Estudos de Direito Processual Penal. Editora Forense, 1960120 Idem item 12

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Ada Pellegrini Grinover121, assim como Frederico Marques e Vicente Greco

Filho, entende que a justa causa compõe o chamado fumus boni iuris, porém, ela diverge

dos dois outros autores, no que diz respeito à natureza jurídica da justa causa. Para Ada

Pellegrini, o fumus boni iuris seria uma questão de mérito. A sua ausência importaria na

improcedência do pedido por ausência de provas.

Afrânio Silva Jardim122 defende que, além das três condições genéricas, a justa

causa seria mais uma, ou seja, uma quarta condição genérica para o legítimo exercício do

direito de ação penal, conforme se observa do texto a seguir:

Para o regular exercício do direito de ação penal exige-se a legitimidade das partes, o interesse de agir, a possibilidade jurídica do pedido e a justa causa (suporte probatório mínimo que deve lastrear toda e qualquer acusação penal). São as chamadas condições da ação que, na realidade, não são condições para a existência do direito de agir, mas condições para seu regular exercício [.....] Como vimos três condições que classicamente se apresentam no processo civil, acrescentamos uma quarta: a justa causa

Para Afrânio Silva Jardim se faz necessário demonstrar, antes de mais nada, que

a propositura da ação penal não é temerária, já que o simples fato de responder a uma ação

penal, traz uma série de constrangimentos para o legitimado passivo123, atingindo sua

dignidade. Em razão disso, faz-se necessária a demonstração clara da existência de um

suporte mínimo probatório, consistente em indícios suficientes de autoria e provas da

existência de uma infração penal, para que uma ação possa ser proposta.

A grande maioria dos autores em processo penal aceita a utilização das

condições para o legítimo exercício do direito de ação, conforme preconizado no direito

processual civil, no entanto, essa aceitação não se apresenta de forma unânime, porque

Aury Lopes Junior124 entende ser inadequada para ser utilizada no processo, devendo este

121 GRINOVER Ada Pellegrini. As condições da ação penal: uma tentativa de revisão. Editora José Bushatsky, 1977122 JARDIM Afrânio Silva. Direito Processual Penal. 11ª edição Editora Forense, 2007123 O simples fato de uma pessoa responder a uma ação penal, faz com que apareçam anotações tanto na sua folha de antecedentes criminais, como no cartório de distribuição, apesar de, em princípio não configurar a reincidência, que importa na prática de um novo crime, após o trânsito em julgado de uma sentença condenatória por outro crime, nem maus antecedentes, porque estes exigem no mínimo que a pessoa tenha sido condenada, ainda que antes do trânsito em julgado, a anotação da propositura da ação pode acarretar a impossibilidade da pessoa participar de certames públicos, ou até interferir negativamente na realização de um negócio jurídico.124 JUNIOR Aury Lopes. Direito Processual Penal. 9ª edição. Editora Saraiva, 2012

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buscar condições da ação próprias, mais adequadas à realidade processualística penal

brasileira.

É o que se pode inferir das críticas realizadas por Aury Lopes Junior:

Na verdade, o que se verifica é uma indevida expansão dos conceitos do processo civil para (ilusoriamente) atender à especificidade do processo penal.

Em suma, o que se percebe claramente é a inadequação dessas categorias do processo civil, cabendo-nos, então, encontrar dentro do próprio processo penal suas condições da ação[....]125

Para Aury Lopes Junior, as condições para o legítimo exercício do direito de

ação, no processo penal, deveriam ser: prática de fato aparentemente criminoso (fumus boni

iuris), punibilidade concreta, legitimidade de parte e justa causa.

Aury Lopes Junior e Afrânio Silva Jardim discordam quanto a quase todos os

elementos que compõem os requisitos para o provimento final, porém ambos inserem a

justa causa como uma quarta condição, independente das demais, mas, as coincidências

param nesse ponto, porque, também com relação à compreensão do que seja justa causa,

Aury Lopes Junior diverge dos demais autores.

A justa causa, no entender de Aury Lopes, consiste em uma “condição de

garantia contra o uso abusivo do poder de acusar.” Ela está relacionada a dois fatores: a

existência de indícios razoáveis de autoria e materialidade e a uma forma de controle do

caráter fragmentário da intervenção penal.

A existência de indícios razoáveis de autoria e de materialidade exige que a

acusação possua elementos probatórios mínimos, extraídos do inquérito policial, que

justifiquem o recebimento da petição inicial (denúncia126 ou queixa-crime127). A propositura

de uma ação penal representa sempre um grande constrangimento para a pessoa que integra

o pólo passivo da ação, assumindo a condição de réu. Assim sendo, caso os elementos

probatórios colhidos no inquérito policial não sejam suficientes, cabe ao juiz rejeitar a

acusação, sob pena de permitir a estigmatização social de uma pessoa.

Adverte ainda Aury Lopes Junior: não há que se confundir justa causa com o

fumus comissi delicti ou fumus boni iuris. Este representa a plausibilidade aparente da

125 Idem item 19126 Denúncia, tecnicamente é a denominação dada para a petição inicial que deflagra a ação pena pública127 Queixa-Crime é o nome da petição inicial que inicia a ação penal privada

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alegação da prática de uma conduta típica, ilícita e culpável, enquanto que aquela recai

sobre a existência de elementos probatórios da autoria e da materialidade.

O outro fator que integraria a justa causa, proporcionando o controle do caráter

fragmentário da intervenção penal, está inter-relacionado com o princípio da

fragmentariedade que norteia o Direito Penal.

Cezar Roberto Bitencourt128 sustenta que: “a fragmentariedade do Direito Penal

é um corolário do princípio da intervenção mínima e da reserva legal.” Nesse sentido, o

Direito Penal deve tutelar somente os valores mais relevantes e imprescindíveis para a

sociedade, daí o caráter fragmentário do Direito Penal. Ele não deve tutelar todos os bens

existentes na sociedade, mas somente os de maior relevância. É exatamente desse

entendimento que emerge o princípio da insignificância ou bagatela, considerando atípicas

as condutas que lesionam bens disponíveis de pequeno valor.

Para Aury Lopes Junior, a justa causa vai além do suporte probatório mínimo

necessário para a propositura de uma ação penal, conforme defende a maior parte dos

autores que escrevem sobre direito processual penal, ela deve propiciar, também, a

filtragem do controle jurisdicional, para não permitir o dispêndio do grande custo que o

processo penal representa, quando a conduta praticada não observar o caráter fragmentário

do Direito Penal.

O inciso II do artigo 648 do Código de Processo Penal considera ilegal a coação

quando alguém ficar preso mais tempo do que a lei estabelece. No Brasil, a regra é a

liberdade, trata-se do bem maior que qualquer pessoa possui depois da própria vida. A

Constituição de 1988, no caput do artigo 5º, garante a todos esse direito, por esse motivo o

encarceramento das pessoas deve ocorrer apenas por exceção.

Dois são os gêneros de prisão. A prisão pena, que ocorre após o trânsito em

julgado da sentença penal condenatória, consistindo na sanção penal, e a prisão cautelar ou

provisória, cujo cabimento ocorre antes do trânsito em julgado da sentença penal

condenatória e tem a finalidade básica de garantir a eficácia de um procedimento penal.

A prisão pena, por consistir na sanção penal, deve observar o princípio da

reserva legal, estabelecido no artigo 5º, XXXIX da CRFB/88 e no artigo 1

128 BITENCORT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 17ª edição Editora Saraiva, 2012

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º do Código Penal: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena, sem

prévia cominação legal.”. O juiz, ao fixar a sanção penal, deve, dentre outros princípios,

observar, estritamente, os limites estabelecidos em abstrato, na lei penal.

Diante disso, a manutenção da prisão pena, além do tempo fixado na sentença,

consiste, sem dúvida, em constrangimento ilegal, tanto que provoca a responsabilização

civil do estado conforme prescrito no artigo 5º, LXXV da CRFB/88. “O Estado

indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do

tempo fixado na sentença.”

Três são os sistemas prisionais básicos. O sistema pensilvânico ou da Filadélfia,

também denominado de sistema celular, que data de 1790, no qual o condenado fica

recolhido em uma cela, não podendo trabalhar, nem ter contato com as demais pessoas,

esse sistema objetiva estimular o arrependimento do preso, pela leitura da Bíblia e pelo

isolamento para reflexão. As críticas a esse sistema foram grandes, porque além de ser

extremamente severo, impossibilitava a readaptação social do condenado. As críticas

efetuadas ao sistema da Filadélfia, fizeram surgir, por volta de 1818, o sistema Auburn, no

Estado de Nova York, menos rigoroso, do que o anterior, porque permitia o trabalho do

preso, durante o dia, inicialmente de forma individual, dentro da cela, e posteriormente, em

grupo, com um período de isolamento noturno. O terceiro, sistema, chamado de

progressivo, surgiu na Inglaterra, por volta do século XIX, ele estabelecia uma forma

progressiva de cumprimento da pena em três etapas, na primeira o condenado ficava

completamente isolado dos demais presos, cumprindo a reprimenda no interior de uma cela,

no segundo, permitia-se que o condenado já pudesse trabalhar, em conjunto com os demais

presos, iniciando a sua ressocialização, mas ainda havendo um período de recolhimento

noturno à cela, e por fim, na terceira etapa, era concedido ao condenado o livramento

condicional, para que ele pudesse se reinserir no seio da sociedade.

O procedimento adotado no Brasil, para a execução das prisões pena, tem

previsão na Lei 7.210/84, a chamada Lei de Execuções Penais - LEP. Trata-se de um

sistema progressivo e regressivo, não completamente idêntico ao sistema progressivo inglês

porque, apesar de prever três espécies de regime de cumprimento de pena, progredindo o

condenado de um regime mais gravoso, para regimes menos gravosos, estabelece, também,

a possibilidade de regressão de regime, nos casos de falta grave, além desse fato, o

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livramento condicional, não representa, necessariamente, o último estágio do sistema de

cumprimento da pena.

No sistema brasileiro os regimes de cumprimento da pena são: o fechado, o

semi-aberto e o aberto, devendo o condenado iniciar no regime mais gravoso e progredir

para o menos gravoso, conforme o artigo 112 da Lei 7.210/84129. Contudo, o artigo 5º,

XLVI da CRFB/88 estabeleceu o princípio da individualização das penas130, assim, de

acordo com o comportamento do preso, eventualmente, ele poderá, ao invés de progredir,

vir a regredir de um regime mais benéfico, para um menos benéfico, de acordo com o seu

comportamento carcerário, conforme estabelecido no artigo 118 da Lei 7.210/84131.

O ordenamento jurídico brasileiro adotou, basicamente, três espécies de prisão

pena, ou seja, de pena privativa de liberdade: reclusão, detenção e prisão simples.

As penas de reclusão e detenção apresentam algumas diferenças, especialmente

no que diz respeito ao regime inicial para o cumprimento da pena. A pena de reclusão

poderá iniciar no regime fechado, no semi-aberto ou no aberto, enquanto que a pena de

detenção terá inicio nos regimes semi-aberto ou aberto, não cabendo o regime fechado.

A prisão simples tem cabimento somente para as contravenções penais e,

atualmente, raramente tem aplicabilidade, em razão das contravenções penais serem

consideradas infrações de menor potencial ofensivo, incidindo em todas as medidas

despenalizadoras da Lei 9.099/95, inclusive na possibilidade da substituição da prisão

simples por pena restritiva de direito. Em teoria, a prisão simples deveria ser cumprida,

inicialmente, no regime semi aberto ou aberto, sem rigor penitenciário, em estabelecimento

especial, devendo o condenado ficar separado dos demais presos condenados à reclusão ou

detenção, conforme artigo 6º do Decreto Lei 3.688/41.

O Brasil adotou, como sistema legislativo, a metodologia descritiva da conduta

delituosa, tipificando as condutas com elementos objetivos, subjetivos e, por vezes,

normativos em um preceito chamado primário, estabelecendo também a sanção penal,

129 A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva, com a transferência para o regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão.130 Artigo 5º, XLVI da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “ A lei regulará a individualização das penas, e adotará dentre outras, as seguinte: a) privação ou restrição de liberdade; b) de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos”131 A execução da pena privativa de liberdade ficará sujeita à forma regressiva, com a transferência para qualquer dos regimes mais reigorosos.......

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porém, esta fica discriminada na lei em um outro preceito denominado secundário ou

sancionatório .

As penas previstas são basicamente de três espécies: privativas de liberdade,

restritivas de direito e pecuniárias. O legislador adotou como metodologia, especialmente

com relação às penas privativas de liberdade, a previsão de um patamar mínimo e um

patamar máximo em abstrato, para cada conduta tipificada.

O juiz, ao condenar o acusado, deverá estabelecer a espécie de sanção penal,

para tanto, via de regra, ele utiliza o sistema trifásico, cuja criação é atribuída a Nelson

Hungria. Na primeira fase o juiz poderá aplicar as circunstâncias judiciais do artigo 59 do

Código Penal - CP, sem poder ultrapassar os patamares máximo e mínimo. Na segunda fase

serão observadas as circunstâncias agravantes e atenuantes132, ficando o juiz limitado pelos

patamares máximo e mínimo da pena cominada em abstrato. Na terceira fase o juiz fixará a

pena em concreto, observando as causas de aumento e de diminuição de pena133, sendo

possível, nesta fase, o juiz ultrapassar os patamares da pena fixada em abstrato no tipo

penal.

Fixada a pena em concreto, havendo condenação por mais de uma infração

penal, será procedida a unificação das penas, com a soma de todas as condenações. O total

obtido servirá para o cálculo dos benefícios, tais como progressão de regime, e livramento

condicional.

Há um falso entendimento com relação à redação do artigo 75 do CP134 no que

diz respeito ao prazo máximo de 30 anos. Por conta deste equívoco, há um entendimento

minoritário, de que todos os benefícios deveriam ser calculados tendo como base o prazo de

30 anos.

Na realidade, o tempo máximo de encarceramento é que, em princípio, não

poderia ultrapassar os 30 anos, porque, efetivamente, isso até pode acontecer, se o

132 A palavra circunstância, deriva do termo em latim circunstare cujo significado era estar em volta. Assim, circunstâncias agravantes e atenuantes, são fatos que também compões a conduta delituosa, mas não encontra previsão no tipo que descreve a conduta, elas se caracterizam na lei, por não haver uma previsão expressa da quantidade de pena que será aumentada ou diminuída. Uma parte da doutrina menciona um quantum de 1/6 da pena, por analogia à regra da progressão de regime, outros mencionam o prudente arbítreo do juiz como critério para aumentar ou diminuir a pena pelas circunstâncias.133 Causas de aumento e diminuição de pena, são situações previstas na lei, que fazem aumentar ou diminuir a pena atribuída para uma pessoa que pratica um delito, elas são caracterizadas por haver previsão expressa, na lei, do percentual de aumento ou de diminuição.134 O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 30 (trinta) anos.

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condenado vier a praticar algum delito após a unificação, pois o tempo de pena cumprido é

desconsiderado, fazendo-se uma nova unificação, assim sendo, é possível o condenado ficar

mais de 30 anos preso, conforme se observa do artigo 75,§ 2º do CP135

A Lei 7.210/84 estabelece os procedimentos que deverão ser utilizados, em

Juízo, para que o condenado tenha o direito à progressão de regime: livramento

condicional, e fim do cumprimento da pena reconhecido. Para tanto, o condenado, por meio

de um advogado, deverá fazer requerimento ao juiz da Vara de Execuções Penais. Nas

hipóteses de indeferimento do pedido, adequada seria a via recursal, por meio do recurso de

agravo, ou recursos para os tribunais superiores.

Há uma discussão com relação ao cabimento do Habeas Corpus, nessas

situações, em que tendo o condenado direito aos benefícios da Lei 7.210/84, o juiz indefere,

tendo em vista haver cerceamento do direito de ir e vir.

Atualmente, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal não

têm admitido a utilização do Remédio Heróico, em substituição de recurso, admitindo,

somente, em casos de decisão teratológica a concessão da ordem de ofício.

HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO. FURTO QUALIFICADO TENTADO. RESFURTIVA.VALOR SUPERIOR AO SALÁRIO MÍNIMO. RECONHECIMENTO DO PRIVILÉGIO DOARTIGO 155, § 2°, DO CP. IMPOSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL.

1. O Superior Tribunal de Justiça, na esteira do que vem decidindoO Supremo Tribunal Federal, não admite que o remédio constitucionalseja utilizado em substituição ao recurso próprio (apelação, agravoem execução, recurso especial), tampouco à revisão criminal,ressalvadas as situações em que, à vista da flagrante ilegalidadedo ato apontado como coator, em prejuízo da liberdade do(a) paciente,seja cogente a concessão, de ofício, da ordem de habeas corpus.136

O entendimento das cortes superiores em não conhecer as ações de habeas

corpus, quando exista recurso previsto em lei, pode ter como fundamento o estabelecido na

Lei 12.016/09, que regulamenta o mandado de segurança, cuja natureza jurídica, também é

de ação autônoma de impugnação.

135 Sobrevindo condenação por fato posterior ao inicio do cumprimento da pena, far-se-á nova unificação, desprezando-se, para esse fim o período de pena já cumprido.136 Habeas Corpus 132422/SP. Ministro Relator Rogério Schietti Cruz. Sexta Turma, julgamento 18/06/2016. Habeas Corpus não conhecido por unanimidade. http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=habeas+corpus+na+execu%E7%E3o+penal&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO

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É bem verdade que em determinados casos os Tribunais concedem a ordem de

ofício, porém, há uma questão que merece maiores reflexões, porque o habeas corpus, ao

contrário dos recursos, não exige capacidade postulatória, nem o pagamento de custas

judiciais, facilitando sobremaneira o acesso à justiça das pessoas no território nacional

No que diz respeito à prisão cautelar, como ela ocorre antes do trânsito em

julgado da sentença penal condenatória, não há que se cogitar no cabimento de recurso, em

princípio, restando como única via processual adequada para corrigir eventuais

ilegalidades, com relação ao excesso de prazo da prisão, a ação de Habeas Corpus.

A prisão cautelar, enquanto gênero, comporta basicamente duas espécies, a

prisão temporária e a prisão preventiva, na medida em que a prisão em flagrante, após a sua

comunicação o juiz, este, dentre outras medidas, pode converter a prisão em flagrante em

prisão preventiva. A prisão por pronúncia, nada mais é do que uma prisão preventiva

decretada no momento da decisão de pronúncia ao final da primeira fase do procedimento

do Tribunal do Júri, assim como, ao prolatar a sentença, o juiz, caso estejam presentes os

pressupostos e requisitos da prisão preventiva, pode negar ao réu o direito de apelar em

liberdade.

Atualmente somente a prisão temporária, cuja finalidade é garantir a eficácia de

um inquérito policial, possui prazo estabelecido, de forma expressa, na lei. Cinco dias

prorrogáveis por mais cinco dias, como regra geral, art 2º da lei 7.960/89, trinta dias

prorrogáveis por mais trinta dias, nos casos de crimes hediondos e crimes equiparados a

hediondo, art 2º, § 4º da lei 8.72/90.

A prisão preventiva, ainda não tem o prazo previsto em lei. O anteprojeto do

CPP, que tramita no Congresso, irá estabelecer prazo para a prisão preventiva, mas, por ora,

este ainda não existe em lei A doutrina e a jurisprudência entendem que a prisão preventiva

deve ter uma duração razoável, necessária para garantir o procedimento, para tanto, o prazo

da prisão preventiva deve corresponder à soma dos prazos do procedimento que ela

objetiva preservar, não sendo lícito, portanto, uma delonga injustificada com sacrifício da

liberdade do acusado, até porque, todos, no território brasileiro, têm direito à duração

razoável do processo, conforme o artigo 5º, LXXVIII da CRFB/88.

Um Estado, que se pretende verdadeiramente democrático e de direito, não

pode deixar de se preocupar com o direito de liberdade das pessoas, (sob pena de abrir as

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portas para a arbitrariedade e o autoritarismo), seja fazendo o controle da legalidade das

prisões de ofício, seja conferindo às pessoas o direito de acesso à justiça por meio das ações

judiciais.

O artigo 648, III do CPP, estabelece a possibilidade da utilização da ação de

Habeas Corpus, quando a coação for praticada por pessoa sem competência para fazê-lo.

O termo competência deve ser interpretado de forma ampla, e não apenas como o âmbito

onde um órgão jurisdicional exerce validamente a jurisdição do Estado. Claro, a coação

será ilegal, quando um órgão jurisdicional atuar fora do seu âmbito de competência,

permitindo a utilização do Habeas Corpus liberatório, quando a lesão ao direito de ir e vir já

estiver consumada, bem como o Habeas Corpus preventivo, quando a lesão estiver em vias

de ocorrer, como por exemplo, o Habeas Corpus para extinguir a ação penal.

É possível, também, que a coação ocorra na via administrativa, como é o caso

das prisões disciplinares. Questão do cabimento da ação de Habeas Corpus, para controlar

as prisões disciplinares, por vezes gera alguma dúvida, em razão do disposto no artigo

142,§2º da CRFB/88137.

O Brasil, no ano de 1988, promulgou uma constituição formal, escrita,

dogmática, rígida, analítica, dita liberal, conforme se observa do art. 3º inciso I da

CRFB/88138, no entanto, quando trata das faltas disciplinares de seus agentes, o legislador

constituinte originário parece ter esquecido dos valores fundamentais estabelecidos por ele

mesmo.

O art. 5º LXI da CRFB/88 estabeleceu a possibilidade de prisão disciplinar,

porém, o legislador constituinte originário, curiosamente, sem observar o direito das

pessoas contra o arbítrio na violação ao direito de liberdade, e até por que não dizer, o

princípio da dignidade da pessoa humana, fundamental, na forma do art. 1º III, da carta

constitucional de 1988, estabeleceu o não cabimento da utilização da ação de Habeas

Corpus, para o caso de prisões disciplinares, conforme se observa do art. 142, § 2º da

CRFB/88.

Há uma inegável contradição axiológica no texto constitucional. Por um lado os

representantes do povo, reunidos em assembleia geral constituinte, garantiram a dignidade

137 Artigo 142, § 2º da CRFB/88. “Não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares.”138 O artigo 3º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece o que constituem os objetivos fundamentais da república, no inciso I prevê a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

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da pessoa humana, art. 1º III da CRFB/ 88 e o direito de liberdade das pessoas, arts. 3º , I e

5º , caput, ambos da carta constitucional de 1988, por outro lado, deixaram a sorte dos

militares ao arbítrio dos seus superiores hierárquicos, no art. 142, § 2º da CRFB/88

A solução do conflito axiológico referente à prisões disciplinares seria

facilmente solucionado se no Brasil, se tivesse adotado a Teoria das Normas

Constitucionais Inconstitucionais, do professor Otto Bachof139.

O professor Otto Bachof sustentava, na sua teoria, a possibilidade de haver uma

norma elaborada pelo legislador constituinte originário que fosse tida como

inconstitucional. Para o professor Bachof, haveria uma hierarquia entre as normas

constitucionais, sendo os direitos e as garantias hierarquicamente superiores às demais

normas constitucionais.

Dessa maneira, se fosse possível adotar a Teoria das Normas Constitucionais

Inconstitucionais, a questão da vedação da utilização da ação de Habeas Corpus em caso de

prisão disciplinar seria simples, como o direito de liberdade, está no art. 5º da CRFB/88 e a

referida vedação no art. 142 do mesmo diploma constitucional, em sendo o primeiro um

direito e garantia constitucional, e o segundo não, bastaria que a Corte guardiã da

constituição declarasse, com efeitos erga omnes a inconstitucionalidade do art. 142, § 2º da

CRFB/88.

O Brasil adotou o princípio da cedência recíproca em que todas as normas

constitucionais, emanadas do poder constituinte originário possuem a mesma hierarquia,

não havendo norma constitucional inconstitucional.

Dessa maneira, a solução é harmonizar as normas, princípios e regras que

garantem a dignidade da pessoa humana e o direito de liberdade, com a vedação da

utilização do Habeas Corpus nas hipóteses de prisão disciplinar, a fim de evitar o arbítrio

despótico de alguns superiores hierárquicos.

A solução adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro para o conflito de

normas constitucionais é a utilização do chamado princípio da proporcionalidade ou, como

querem alguns autores, princípio da razoabilidade140.

139 BACHOF. Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Coimbra: Almedina, 1994. 140 O princípio da proporcionalidade, no direito alemão, decorre do princípio do estado democrático de direito, e exige a observância de três requisitos, ou sub-princípios: necessidade, adequação e ponderação.

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O princípio da proporcionalidade soluciona os conflitos de normas

constitucionais avaliando os valores das normas, diante de casos concretos, fazendo

preponderar uma norma e relativizando outra diante da situação fática e dos valores que

sejam mais relevantes para essa determinada situação.

Assim sendo, deve-se ponderar a vedação da utilização do Habeas Corpus nas

prisões disciplinares no art. 142,§ 2º da CRFB/88, em confronto com o direito

constitucional de liberdade das pessoas.

Conforme já exposto, o direito de liberdade é o bem mais relevante que

qualquer pessoa pode ter depois da própria vida. É bem verdade que a manutenção da

ordem e da disciplina nas corporações militares é essencial para a manutenção do próprio

Estado, no entanto, ponderando-se os valores, não há como se deixar de reconhecer a

preponderância do direito de liberdade com relação aos interesses intrínsecos do Estado.

A discussão com relação ao cabimento de Habeas Corpus para prisões

disciplinares no Brasil é antiga, já debatida desde o tempo de Pontes de Miranda.

A vida militar tem como fundamento básico a hierarquia e a disciplina, sendo o

poder disciplinar um ato discricionário do administrador público.

A administração pública possui basicamente duas espécies de atos, os

discricionários, que estando dentro do mérito administrativo encontram-se informados por

um juízo de conveniência e oportunidade do administrador público, e os vinculados, que

necessitam, obrigatoriamente observar os requisitos estabelecidos em lei.

Os atos administrativos, no entanto, possuem cinco elementos básicos para sua

validade: competência, finalidade forma motivo e objeto.

Competência – Melhor seria dizer atribuição, pois competência, tecnicamente é

o âmbito dentro do qual um órgão jurisdicional exerce validamente a jurisdição do Estado,

porém, para que os atos administrativo sejam válidos quem o pratica deve atuar dentro dos

limites legais estabelecidos como de sua atribuição.

Finalidade – A pratica de todo e qualquer ato tem sempre como objetivo a

consecução de uma finalidade. No caso dos atos administrativos, estes devem observar o

interesse público, sendo este a sua finalidade última.

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Forma – Os atos administrativos devem observar uma forma prescrita ou não

defesa em lei, via de regra são escritos, eventualmente, poderão apresentar-se de forma

verbal, traduzindo comandos do administrador público.

Motivo – É a situação fática que deflagra a manifestação da administração

pública, para a prática do ato.

Objeto – É o objetivo imediato da vontade exteriorizada pelo ato, devendo

restringir-se à licitude e possibilidade.

O poder disciplinar, apesar de ser discricionário no âmbito do mérito

administrativo, deve observar, obrigatoriamente os elementos de validade dos atos

administrativos.

O debate doutrinário com relação à possibilidade da concessão de ordem de

Habeas Corpus nas prisões disciplinares passa inexoravelmente pela questão do âmbito de

atuação da função jurisdicional do Estado dentro da administração pública.

Alguns doutrinadores defendem a interpretação literal do art. 142§ 2º da

CRFB/88, sustentando o não cabimento do Habeas Corpus, porque, em sendo a hierarquia

e disciplina fundamentos básicos da vida militar, o Estado Juiz não poderia intervir, haja

vista estar dentro do mérito administrativo, ou seja, no âmbito do juízo de conveniência e

oportunidade do superior hierárquico. A intervenção da função jurisdicional do Estado

nessas hipóteses, importaria em quebra da hierarquia, causando um sério risco para a

organização e controle das forças militares, trazendo sérios riscos para o próprio Estado e

para a sociedade.

A maior parte da doutrina, no entanto, inspirada em Pontes de Miranda,

concorda com a primeira posição no sentido de estar o poder disciplinar dentro do mérito

administrativo, envolvendo um juízo de conveniência e oportunidade do administrador

público, superior hierárquico, no caso em análise. Concorda também que não é lícito à

função jurisdicional do Estado adentrar ao mérito administrativo, porém, é possível que

aos órgãos jurisdicionais controlem a legalidade dos atos administrativos por meio da

verificação do respeito ao seus elementos intrínsecos.

Dessa maneira seria lícita a concessão da ordem de Habeas Corpus nos casos

de prisão disciplinar, quando esta não observar os elementos de validade dos atos

administrativos. A doutrina elenca algumas hipóteses em que a ordem poderia ser deferida.

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A primeira hipótese é quando a pessoa que determinar a prisão disciplinar não

possua atribuição hierárquica para tanto. Estaria inobservado o elemento competência.

Outra situação ocorre quando o fato punido não consistir em infração

disciplinar, pois haveria defeito quanto aos elementos finalidade e motivo do ato

administrativo disciplinar.

Além disso, cumpre ressaltar, os atos administrativos devem observar uma

forma que esteja de acordo com o ordenamento jurídico, sendo certo, que o art. 5º LV da

CRFB/88, garante aos litigantes em geral, seja em processo judicial ou administrativo, o

direito ao contraditório e à ampla defesa. Dessa maneira também caberia a concessão de

ordem de Habeas Corpus, se quando na prisão disciplinar não fosse dado ao subordinado

os direitos estabelecidos no Art. 5º LV da CRFB/88

O inciso IV do artigo 648 do CPP prevê o cabimento da ação de Habeas Corpus

quando o motivo que autorizou a coação houver terminado. Por certo, nenhum tipo de

coação ao direito de ir e vir pode existir validamente, sem uma causa autorizada em lei.

Dessa maneira, se existindo uma causa legal autorizadora do cerceamento da liberdade de

alguém, o desaparecimento dessa causa, torna o ato ilegal. A liberdade do indivíduo deveria

ter sido prontamente restabelecida. Caso não ocorra, será cabível a impetração de um

Habeas Corpus, para relaxar a prisão, diante da evidente ilegalidade, conforme se observa

do artigo 5º, LXV da CRFB/88.

O artigo 648, V do CPP, estabelece a possibilidade de se utilizar do Habeas

Corpus nas hipóteses de cabimento da liberdade provisória com fiança. No Brasil a regra é

a liberdade, consistindo a sua supressão uma exceção que só deve ocorrer quando houver

estrita necessidade. O artigo 5º, LXVI da CRFB/88 deixa claro que nas hipótese em que a

lei estabeleça a possibilidade da concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, a

pessoa não deverá ser levada à prisão.

Liberdade provisória, no ordenamento jurídico brasileiro, existe de duas

espécies, com e sem fiança, conforme é possível se observar tanto do texto da carta

constitucional de 1988, como do Código de Processo Penal. Ela é um sucedâneo da prisão

provisória, uma medida de contra cautela141, ou, como sustentam alguns autores, uma

141 JUNIOR Aury Lopes. Direiro Processial Penal. 9ª edição Editora Saraiva, 2012, no mesmo sentido Paulo Rangel

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verdadeira medida cautelar142, cujo objetivo é permitir que o preso em flagrante, possa

responder ao processo em liberdade.

Atualmente, o artigo 310 do CPP, com redação dada pela lei 12.403/11, o juiz,

ao receber o auto de prisão em flagrante, deverá: relaxar a prisão, se ela for ilegal; converter

a prisão em flagrante em prisão preventiva, se não forem suficientes as medidas cautelares

diversas da prisão; ou conceder liberdade provisória, com ou sem fiança, nos casos de

legalidade da prisão em flagrante.

A liberdade provisória sem fiança conforme o artigo 321 do CPP, tem

cabimento nas hipóteses em que não estão presentes os pressupostos que autorizam a prisão

preventiva, ou seja o fumus boni iuris, ou fumus comissi delicti, consistente em indícios

suficientes de autoria e provas da existência de uma infração, penal, conforme o artig0 312

do CPP, parte final, e o periculim in mora ou periculum libertatis, que são a garantia da

ordem pública, a garantia da ordem econômica, a conveniência da instrução criminal, e para

assegurar a aplicação da lei pena, conforme artigo 312 do CPP primeira parte. Cabe

também a liberdade provisória sem fiança quando o juiz verificar que existem indícios de

ter o acusado agido acobertado por uma das excludentes da ilicitude, tendo em vista que,

nessas situações, a decretação da prisão preventiva encontra-se vedada por força do artigo

314 do CPP.

A fiança, para alguns autores, tem natureza jurídica de caução real143, pois seria

uma garantia dada em espécie, além do que, essa é a denominação dada no artigo 330, §2º

do CPP. Porém, há o entendimento de que a sua natureza jurídica é de garantia real144,

tendo em vista a possibilidade de se utilizar, além de dinheiro, pedras e metais preciosos,

títulos da dívida pública, bem como hipoteca inscrita em primeiro lugar, e imóveis,

conforme estabelece o artigo 330 do CPP

O cabimento da liberdade provisória com fiança, inicialmente se dá em sede de

Delegacia de Policia. A autoridade policial, ou seja, o delegado de polícia, pode arbitrar

fiança nos crimes com pena máxima em abstrato que não seja superior a quatro anos, de

142 OLIVEIRA, Eugenio Pacelli. Curso de Direito Processual Penal. 16ª edição Editora Atlas, 2012, no mesmo sentido. Fernado Capez, Marcellus Polastri Lima143 RANGEL. Paulo. Direito Processual Penal. 12ª edição Editora Lumen Iuris, 2007, no mesmo sentido Aury Lopes Junior e Fernando capez144 FILHO. Fernando da Costa Tourinho. Manual de Processo Penal. 13ª edição Editora Saraiva, 2009

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acordo com o artigo 322, caput, do CPP. Nas demais hipótese, a fiança somente pode ser

concedida por autoridade judiciária.

O Juiz de direito para arbitrar a fiança, deverá observar, a contrario senso, os

artigos 323 e 324 do CPP, na medida em que eles estabelecem as situações, em que a fiança

não poderá ser concedida.

No que diz respeito ao valor a ser dado em garantia, tanto o juiz como o

delegado de polícia, deverão observar o artigo 325 do CPP, se bem que o fator

preponderante será a condição econômica do preso, pois o valor arbitrado poderá ser

reduzido em até dois terços, aumentado em até mil vezes, cabendo, inclusive a isenção do

pagamento do valor arbitrado, nas hipóteses de hipossuficiência material, conforme o artigo

350 do CPP.

Assim sendo, todas as vezes que uma pessoa for presa, e a lei permitir o

arbitramento da fiança, esta deverá ser concedida. Caso não o seja, a prisão será tida como

coação ilegal, hábil a ser combatida pela via do remédio heróico.

No inciso VI do artigo 648 do CPP, está prevista a possibilidade da utilização

da ação de habeas Corpus, quando o processo for manifestamente nulo.

Nulidade é a sanção de ineficácia de um ato processual em razão da sua

atipicidade, isto representa dizer que, a realização de uma ato processual, com

inobservância do que está estabelecido em lei, poderá gerar a ausência de produção de

efeitos.

Os atos jurídicos, normalmente são analisados em três esferas, a da existência, a

da validade e da eficácia.

A existência está ligada a presença de elementos constitutivos mínimos, os

denominados pressupostos de existência do processo, que são: órgão jurisdicional, partes

que possam figurar no processo, e demanda.

A validade está relacionada com os pressupostos de desenvolvimento válido do

processo, consistente na competência e imparcialidade do órgão jurisdicional, capacidade

para ser parte, para estar em juízo, e capacidade postulatória, e por fim a regularidade e o

ineditismo da demanda.

A eficácia, por sua vez, está relacionada com a aptidão de um ato processual,

para produzir seu regulares feitos

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A doutrina no terreno das nulidades, costuma fazer uma divisão entre nulidade

absoluta e nulidade relativa. A identificação, dessas duas espécies de nulidade, é questão

bastante espinhosa, que por vezes, provoca, uma série de divergências entre os autores.

Absoluta seria a nulidade em que o vício do ato processual recaísse sobre

norma de interesse público, violando norma de caráter constitucional.

Na nulidade relativa a atipicidade do ato processual, recai sobre normas

dispositivas de interesse da parte.

No processo penal vigora o princípio do “pás de nullitè sans grief”, porque via

de regra um ato não será declarado nulo, se não houver prejuízo. Na nulidade absoluta,

como a violação recai sobre norma de interesse público, normalmente de natureza

constitucional, o prejuízo pode ser presumido, por outro lado, nas nulidades relativas, como

prepondera o interesse das partes, o prejuízo necessita ser provado.

Cabe ao juiz reconhecer de ofício as nulidades absolutas, devendo as partes

alegarem tempestivamente as nulidades relativas. Provada ou presumida um procedimento

não pode prosseguir de forma válida, quando eivado de nulidade, caso isso ocorra o

ordenamento jurídico brasileiro, admite a utilização do Habeas Corpus, como remédio

eficaz, para fazer corrigir essas eventuais atipicidades dos atos processuais.

Por fim, O Código de Processo Penal, no artigo 648, inciso VII, admite o

cabimento da utilização do Habeas Corpus, quando a punibilidade estiver extinta. O artigos

107 do Código Penal, com redação dada pela Lei 7209/84, descreve exemplificativamente,

as causas extintivas da punibilidade. O rol não é taxativo, porque outras causas há na parte

geral do Código Penal, como por exemplo o perdão judicial nos crimes de homicídio e

lesões corporais culposas.

Na contingência da ocorrência de uma conduta voluntária, típica, ilícita e

culpável, surge para o Estado o direito de punir, ou seja, o is puniendi, após o cumprimento

do devido processo legal, provada a prática da infração penal, e sua autoria, têm-se como

conseqüência a aplicação de uma sanção penal, a pena. Contudo, ocorrendo uma das

situações, que ensejam a extinção da punibilidade, o que acaba, não é o direito de ação

propriamente dito, mas sim o direito do Estado em exercer o seu direito de punir.

Tal entendimento é possível de se observar da manifestação do Ministro

Francisco Campos, ao ser referir às causas extintivas da punibilidade, estabelecidas no

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artigo 108, da antiga parte geral do Código Penal145 “ O que se extingue, antes de tudo, nos

casos enumerados no artigo 108 do projeto, é o próprio direito de punir por parte do

Estado.”

Não mais existindo o direito de punir do estado, não há porque haver

persecução penal, nem tão pouco sanção penal, portanto, a manutenção de um processo

penal, a coação configurar-se-á ilegal, admitindo Habeas Corpus preventivo.

8 Procedimento em Juízo

Inicialmente cumpre mencionar que processo e procedimento, apesar de inter-

relacionados, são conceitos distintos. Processo consiste em uma relação jurídica que se

desenvolve por meio de um procedimento em contraditório. O procedimento, por sua vez, é

um conjunto de atos ordenados e encadeados visando, à uma finalidade, finalidade esta que

irá determinar a natureza jurídica do procedimento.

O Habeas Corpus, como toda e qualquer ação se inicia pela apresentação da

petição inicial, por inexigir capacidade postulatória, em princípio a petição inicial não

necessita de uma maior formalidade. Recentemente foi noticiado a propositura de uma ação

de Habeas Corpus, perante o Superior Tribunal de Justiça, redigido em lençol.

Nesta quarta-feira (21), o STJ (Superior Tribunal de Justiça) recebeu seu primeiro habeas corpus escrito em um lençol. Redigido por um detento do Ceará, o documento foi encaminhado à Corte pela ouvidora da OAB-CE, Wanha Rocha. Segundo o STJ, as peças foram digitalizadas e passaram a tramitar como qualquer outro processo.146

Normalmente, quando o Habeas Corpus é impetrado por advogado, como este

possui um conhecimento técnico jurídico, uma regularidade de forma é observada, apesar,

de não ser um requisito obrigatório.

145 Exposição de motivos do Código Penal de 1940.146 Noticia veiculada no site http://jornal.jurid.com.br/materias/noticias/stj-recebe-pedido-habeas-corpus-redigido-em-lencol

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A petição de Habeas Corpus, quando apresentada observando a regularidade

formal, deve indicar o órgão jurisdicional a que será endereçada, o nome do impetrante, do

paciente e da autoridade coatora, os fatos e o pedido.

A petição inicial deverá trazer, também, os documentos que comprovam o fato

alegado, tendo em vista que o Habeas Corpus exige prova pré constituída, pois não se

admite dilação probatória, salvo quando os documentos estejam na posse de autoridade

pública, tendo em vista que o julgador irá requisitar informações da autoridade coatora,

conforme artigo 662 do CPP.

Distribuída a petição inicial ela será digitalizada, e processada por meio do

processo eletrônico.

Uma questão sui generis diz respeito à possibilidade da concessão de liminar

em Habeas Corpus, porque o Código de Processo Penal não faz previsão expressa. A

doutrina e a jurisprudência, amplamente majoritárias entendem ser perfeitamente possível a

concessão da medida liminar em sede de Habeas Corpus, utilizando pro analogia a lei de

mandado de segurança.

Fernando da Costa Tourinho Filho147, esclareceu o assunto, sempre de forma

muito elegante, como lhe é peculiar:

Uma das mais belas criações da nossa jurisprudência foi a da liminar em pedido de Habeas Corpus, assegurando de maneira eficaz o direito de liberdade. No habeas corpus, que recebeu o n. 41.296, em favor do Governador de Goiás, Mauro Borges, o relator, Sua Excelência o Ministro Gonçalves de Oliveira, então Presidente do STF, como naquele dia não havia sessão no Tribunal, concedeu liminar aduzindo: “Se no mandado de segurança pode o Relator conceder liminar, até em casos de interessas patrimoniais, não se compreenderia que, em casos em que está em jogo a liberdade individual, ou as liberdades públicas, a liminar no habeas corpus preventivo, não pudesse ser concedida. Este é um dos primeiros, senão o primeiro caso de liminar em habeas corpus.

Nada mais há, a não ser concordar plenamente com a magistral explicação do

professor Tourinho Filho.

Distribuída a ação, ela passa a tramitar com prioridade para julgamento,

conforme o artigo 664 do CPP.

147 FILHO. Fernando da Costa Tourinho. Manual de Processo Penal. 9ª edição Editora Saraiva, 1997

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O impetrante poderá fazer sustentação oral, porém, há um peculiaridade que

traz alguma dificuldade, é o fato de não haver intimação da data da sessão de julgamento,

por conta da urgência na prioridade de tramitação.

Há decisões anulando o julgamento de habeas corpus, nas hipóteses em que o

impetrante não tenha sido intimado, especialmente, quando há expresso requerimento para

a sustentação oral.

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA. ART. 5º, LIV E LV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. PEDIDO DA DEFESA PARA REALIZAR SUSTENTAÇÃO ORAL. COMUNICAÇÃO DA DATA DE JULGAMENTO. AUSÊNCIA DE PREVISÃO NORMATIVA. INFORMAÇÃO DISPONIBILIZADA APENAS NOS MEIOS INFORMATIZADOS DAQUELA CORTE. NECESSIDADE DE QUE A CIENTIFICAÇÃO COM ANTECEDÊNCIA MÍNIMA DE QUARENTA E OITO. EXIGÊNCIA QUE DECORRE DO PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.

Os autores que defendem a exigência de intimação do impetrante, para a sessão

de julgamento a fim de permitir a sustentação oral, baseiam sua alegações nos princípios

constitucionais do contraditório e da ampla defesa. O problema desse entendimento, está no

verbete as súmula 431 do STF “ É nulo o julgamento de recurso criminal, na segunda

instância, sem previa intimação ou publicação da pauta, salvo em habeas corpus”

Ainda assim, apesar do entendimento sumulado pelo STF, há quem defenda a

necessidade da revisão da súmula148, a fim de assegurar o contraditório em sede de habeas

corpus, por meio da sustentação oral.

A ação de habeas corpus, com ou sem a concessão da medida liminar, será

julgada no mérito, podendo haver a concessão da ordem, com a confirmação da medida

liminar, se ele tiver sido concedida, ou a denegação da ordem, com eventual cassação da

medida liminar.

9 Fungibilidade entre aa ação de habeas corpus e a revisão criminal.

148 Idem item 25

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Na doutrina é possível se encontra o entendimento de que haveria uma

fungibilidade149 entre as ações autônomas de impugnação de habeas corpus e de revisão

criminal, especialmente quando, após o trânsito em julgado, 150o condenado estiver com a

sua liberdade cerceada, devido à possibilidade da obtenção da medida liminar em sede de

habeas corpus.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça - STJ admitia a fungibilidade

entre a ação de Habeas Corpus e a Revisão Criminal, porém, atualmente, essa mesma

jurisprudência, evoluiu, não mais admitindo a utilização do Habeas Corpus em substituição

da Revisão Criminal, entretanto, diante a especial relevância, que o direito de liberdade tem

para o ordenamento jurídico brasileiro, diante do estado democrático de direito, e do

princípio da dignidade da pessoa humana. Os Ministros do STJ convencionaram analisar as

alegações, e dependendo da situação, conceder a ordem de ofício.

AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. WRIT SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. NÃO CONHECIMENTO. OFENSA AOPRINCÍPIO DA COLEGIALIDADE. INOCORRÊNCIA. CONTRABANDO DE MERCADORIAFALSIFICADA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA.PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. PRECEDENTES. AGRAVOREGIMENTAL IMPROVIDO.I. Nos termos do art. 38 da Lei n. 8.038/1990, combinado com o art.557, caput, do Código de Processo Civil, e, ainda, os arts. 3º, doCódigo de Processo Penal, e 34, inciso XVIII, do Regimento Internodeste Tribunal, é possível, em matéria criminal, que o Relator, pormeio de decisão monocrática, negue seguimento a recurso ou a pedidomanifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou emconfronto com súmula ou jurisprudência dominante da respectivaCorteou Tribunal Superior. Precedentes.II - Acompanhando o entendimento firmado pela 1ª Turma do SupremoTribunal Federal, nos autos do Habeas Corpus n. 109.956, derelatoria do Excelentíssimo Ministro Marco Aurélio, a 5ª TurmadesteSuperior Tribunal de Justiça passou a adotar orientação no sentidode não mais admitir o uso do writ como substitutivo de recursoordinário, previsto nos arts. 105, II, a, da Constituição daRepública e 30 da Lei n. 8.038/1990, sob pena de frustrar aceleridade e desvirtuar a essência desse instrumentoconstitucional.III - O entendimento desta Corte evoluiu para não mais se admitir omanejo do habeas corpus em substituição ao recurso próprio, bemassim como sucedâneo de revisão criminal. Precedentes.IV - A despeito da impossibilidade de conhecimento do writ,convencionou-se analisar as alegações apresentadas, de forma

149 No conceito jurídico, fungibilidade significa substituição, no caso de ações, seria a possibilidade de duas ações substituírem-se mutuamente, alcançando, ao final, o mesmo resultado prático e jurídico.150 Idem item 25

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fundamentada, a fim de apreciar a necessidade de concessão daordem,de ofício151

O Supremo Tribunal Federal adotou o mesmo entendimento que o Superior

Tribunal de Justiça, no que diz respeito à possibilidade da fungibilidade entre as ações de

Habeas Corpus e Revisão Criminal, concedendo, entretanto a ordem de ofício, quando

houver manifesta ilegalidade.

Embargos de declaração no agravo regimental em habeas corpus. Impetração dirigida contra condenação transitada em julgado em 2012. Inexistência dos pressupostos de embargabilidade. Embargos desprovidos. 1. Os embargos de declaração não se prestam à rediscussão dos juízos fáticos e dos entendimentos teóricos que hajam se formado no julgamento de mérito. 2. A não admissão de habeas corpus impetrado em substituição à ação de revisão criminal está alinhada a orientação de ambas as Turmas do Supremo Tribunal Federal. 3. No caso, inexiste ilegalidade flagrante capaz de justificar a ordem de ofício, tendo em vista que o enquadramento dos fatos à norma penal decorreu da constatação de que a conduta dos agentes foi conscientemente dirigida a atingir mais de um patrimônio. Não sendo possível ao Supremo Tribunal Federal substituir-se às instâncias ordinárias para requalificar os fatos. Embargos de declaração desprovidos.152

É dever do julgador controlar a legalidade das prisões, assim sendo, mesmo

com o entendimento atual nas cortes superiores, da não admissão da fungibilidade entre as

ações de Habeas Corpus e de Revisão Criminal, não há que se falar em prejuízo, tendo em

vista o entendimento majoritário, no sentido da possibilidade da concessão da ordem de

ofício.

10 Competência Recursal

151 Agravo Regimental no Habeas Corpus, nº 2012/0035286-2. Ministra Relatora Regina Helena Costa. Quinta Turma. Julgamento 18/06/2014. http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=revis%E3o+criminal+e+habeas+corpus&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO

152 Embargos de Declaração no Agravo Regimental No Habeas Corpus. Ministro Relator Roberto Barroso. Primeira Turma. Julgamento 29/04/2014 http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28revis%E3o+criminal+e+habeas+corpus%29&pagina=2&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl

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Os recursos podem ser conceituados, como sendo a revisão de uma decisão

dentro do próprio processo, ou seja, dentro da relação jurídica processual originária, que se

desenvolve por meio de um procedimento em contraditório.

Os recursos se diferenciam de uma ação autônoma de impugnação, porque, em

princípio, nesta se forma uma nova relação jurídica de direito processual.

No caso da ação de habeas corpus, o cabimento do recurso dependerá de uma

série de fatores, como por exemplo, o órgão que prolatou a decisão, a natureza dessa

decisão, se concessiva, ou denegatória.

A competência para o julgamento da ação de habeas corpus, conforme já

mencionado, irá variar conforme a autoridade coatora, e os recursos se diferenciarão de

acordo com o órgão jurisdicional que prolatar a decisão na ação de habeas corpus.

Inicialmente, cumpre mencionar, que as ações de habeas corpus, quando o juiz,

na decisão, concede a ordem, esta fica sujeita ao reexame necessário, conforme pode se

observar do artigo 574, I do CPP. O duplo grau de jurisdição obrigatório, ou reexame

necessário é chamado, por alguns, de forma tecnicamente equivocada, de recurso de ofício.

Um recurso não pode ser interposto de ofício pelo juiz, em primeiro lugar porque, no

sistema acusatório a jurisdição não se processa de ofício153, em razão da necessária

separação entre as partes e o órgão julgador, devendo esse ser provocado, em razão do

princípio da inércia ou da iniciativa das partes.

Além do óbice de caráter principiológico, também, a interposição de um

recurso de ofício pelo juiz, o faria carecer de pressupostos recursais, que constituem os

requisitos mínimos de admissibilidade dos recursos.

Os pressupostos recursais podem ser divididos em dois gêneros, os subjetivos e

os objetivos.

Os subjetivos dizem respeito às partes que interpõem o recurso, verificando

legitimidade e interesse recursal.

Legitimado para utilizar a via recursal, em princípio são as pessoas que

integraram a relação jurídica de direito processual, em princípio, porque o artigo 598 do

CPP autoriza o réu, seu representante legal, nos casos de incapacidade, ou sucessores,

cônjuge, ascendente, descendente ou irmão, nos casos de morte ou declaração de ausência

153 Jurisdictio ne procedat ex officio, consiste em um adágio latino, que enuncia a impossibilidade da função jurisdicional do Estado ser provocada por atuação espontânea do julgador

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por sentença, a interpor recurso, nas ações penais públicas, quando o Ministério Público

não o faça no prazo legal. O artigo do CPP menciona, “ ainda que não tenham se habilitado,

como assistente da acusação”, afirmação, que parece ser dispensável ou paradoxal, porque

se o réu tiver se habilitado como assistente da acusação, ele teria integrado a relação

jurídica de direito processual, e estaria, automaticamente legitimado para interpor o recurso.

O interesse recursal tem relação direta com a sucumbência, entendendo- se esta

como sendo a não obtenção no todo ou em parte da pretensão deduzida em juízo, ou seja,

tem interesse em recorrer todo aquele que, sendo legitimado, pode, por meio do recurso

obter uma situação jurídica mais vantajosa.

Os pressupostos objetivos apresentam relação, com o próprio recurso em si,

consistindo, em cabimento, adequação, tempestividade, regularidade formal, e inexistência

de fatos impeditivos ou extintivos.

O juiz que concede a ordem de habeas corpus, ainda que esteja integrando a

relação jurídica de direito processual, carece de interesse de agir, na medida, em que não há

que se falar em sucumbência para o juiz, dessa maneira, tratar o reexame necessário, como

sendo a interposição de um recurso de ofício, tecnicamente, representa um verdadeiro

absurdo.

O duplo grau de jurisdição ou reexame necessário, na verdade consiste em uma

condição de eficácia de uma decisão154, ao ser proferida, se adequadamente, observado os

pressupostos de existência de desenvolvimento válido do processo, a decisão tem existência

e validade, porém, necessita do reexame por um outro órgão jurisdicional, para que possa

ganhar efetividade prática, ou seja, eficácia.

Assim, sendo, os recursos de uma perspectiva técnica, serão sempre atos

voluntários, devendo a parte observar o órgão com competência para rever a decisão

proferida.

Quando o órgão que julgou a ação de habeas corpus, integrar a primeira

instância, seja a decisão concessiva ou denegatória, o recurso adequado, de acordo com o

artigo 581, X do CPP é o recurso em sentido estrito.

No caso de ser negado provimento no recurso em sentido estrito, se for por

maioria, ainda é cabível os embargos infringentes e de nulidade, conforme o artigo 609 do

154 FILHO Fernando da Costa. Processo Penal, 9ª edição, Volume 4. Editora Saraiva, 1997

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CPP, não sendo essa a hipótese, resta, como única via processual os recursos especial para

o Superior Tribunal de Justiça ou o Recurso Extraordinário para o supremo Tribunal

Federal, porém, nos recursos para os tribunais superiores, há uma limitação, quanto a

matéria, que pode ser objeto de impugnação, pois não cabe mais a discussão de fato, sendo

possível somente discutir matéria de direito, violação do ordenamento jurídico, ou seja,

normas infraconstitucionais, no caso do recurso especial, e violação de normas

constitucionais, no recursos extraordinário.

Os chamados recursos extraordinários lato senso, que apresentam como

espécies o recurso especial e o recurso extraordinário, limitam enormemente o âmbito de

discussão da matéria, cuja origem era um habeas corpus, porque não mais será possível

haver apreciação de provas, e de fatos, além disso, os referidos recursos não apresentam

efeito suspensivo, que permitiria suspender a eficácia da decisão combatida na ação de

habeas corpus.

O recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal, além da limitação

com relação à matéria objeto de impugnação, que restringe-se a violação da carta

constitucional, exige, também, como pressuposto de admissibilidade, a existência de

repercussão geral, ou seja, um interesse amplo da matéria apreciada.

A Constituição de 1988 prevê a possibilidade da utilização dos recursos

ordinários constitucionais, para impugnar decisões que negam a concessão de ordem em

habeas corpus, porém, o cabimento desses recursos também mostra-se restrito, porque o

recurso ordinário constitucional para o Superior Tribunal de Justiça, requer denegação da

ordem, eu única ou última instância proferida nos Tribunais de Justiça, ou nos Tribunais

Regionais Federais, conforme se observa do artigo 105, II, a da CRFB/88.

O recurso ordinário constitucional para o Supremo Tribunal Federal é mais

limitado ainda, tendo em vista, que só terá cabimento, quando a denegação da ordem em

ação de habeas corpus ocorrer em única instância no Superior Tribunal de Justiça,

conforme artigo 102,II, a da CRFB/88, deixando, portanto, de reexaminar, todas as

decisões denegatórias, proveniente de instâncias inferiores.

A via recursal, embora hábil para se fazer o reexame de decisões judiciais, ela

exige a observância de algumas formalidades, como por exemplo a necessidade de

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capacidade postulatória, e do pagamento de custas recursais, incluindo, por por vezes o

porte de remessa e de retorno.

Dessa maneira, uma pessoa que tenha tido o seu direito de locomoção

ameaçado, ou violado, e que tenha utilizado a via da ação de habeas corpus inicialmente,

terá, obrigatoriamente, que contratar um advogado, e, além de ter que arcar com o custo dos

honorários advocatícios, terá também, de suportar o pagamento das custas recursais.

Há uma outra opção, nos casos de hiposuficiência material consistente em obter

o patrocínio da Defensoria Pública, órgão de reconhecida capacidade técnica, porém muito

sobrecarregado de trabalho, devido a enorme desigualdade sócio-econômica, que permeia a

sociedade brasileira.

11 O Habeas Corpus Substitutivo

O habeas corpus substitutivo recebe essa denominação, porque substitui um

outro impetrado anteriormente. Ele apresenta como fundamento a competência determinada

com base na autoridade coatora. Todas as vezes que um habeas corpus tem a ordem

denegada, transforma a pessoa que negou a ordem em autoridade coatora, abrindo caminho

para a propositura de nova ação de habeas corpus perante um novo órgão com competência.

É bem verdade, que para as decisões que negam a ordem em habeas corpus,

existem, recursos previstos em lei. O Recurso em Sentido Estrito, quando a ordem é

denegada, em primeiro grau, na primeira instância. O Recurso Ordinário Constitucional

para o Superior Tribunal de Justiça, quando a ordem não é concedida em primeiro ou

último grau de jurisdição na segunda instância, ou seja, nos Tribunais de Justiça, ou

Tribunais Regionais Federais.

A via recursal ordinária, apesar de existente, se encerra no Superior Tribunal de

Justiça, tendo em vista, que não cabe Recurso Ordinário Constitucional para O Supremo

Tribunal Federal, quando a ação de habeas corpus se origina na primeira instância ou nos

Tribunais de Justiça, ou Tribunais Regionais Federais, porque, conforme o artigo 102, II, a

da Constituição da República federativa do Brasil de 1988, só tem cabimento o Recurso

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Ordinário para o Supremo Tribunal, nas hipóteses em que a ordem é denegada

originariamente no Superior Tribunal de Justiça.

A possibilidade da utilização da via da ação autônoma de impugnação, por

meio do habeas corpus substitutivo, ao invés da via recursal adequada, sempre foi aceita na

doutrina e na jurisprudência, desde o tempo do Brasil império, sem grandes dissenções de

pensamento. Consistia em um meio célere e eficaz de buscar a proteção do direito de

liberdade das pessoas naturais.

Até o ano de 2012, o Supremo Tribunal Federal admitia a utilização do chamado habeas corpus substitutivo, a partir de 7 de agosto de 2012, no HC 109956, o entendimento da corte mudou e passou a não mais admitir essa espécie de habeas corpus, nas hipóteses em que haja previsão legal para a utilização da via recursal. O Superior Tribunal de Justiça também adotou posição semelhante, não conhecendo dos habeas corpus substitutivos, quando for cabível o Recurso Ordinário Constitucional ou o Recurso Especial.

A mudança no posicionamento dos Tribunais Superiores se deu, em grande parte, devido ao grande volume de processos, provocado pela utilização, recorrente, da via da ação autônoma de impugnação, ou seja, pela utilização dos habeas corpus substitutivos. Os tribunais superiores, em especial o Supremo Tribunal Federal, aparentemente mudou seu posicionamento jurisprudencial, em razão de um excesso de trabalho, passando a adotar, como forma de resguardo a chamada jurisprudência defensiva, obstando o acesso das pessoas à prestação jurisdicional. No Supremo Tribunal a mudança de entendimento teve inicio na primeira turma, conforme é possível se observar do volto do Ministro Marco Aurélio Mello.

07/08/2012 PRIMEIRA TURMA

HABEAS CORPUS 109.956 PARANÁ

V O T O

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR) – Inicialmente, aponto a existência de pronunciamento de Colegiado indeferindo a ordem. Consigno a óptica sobre a inadequação do habeas corpus quando o caso sugere recurso ordinário constitucional.A Carta Federal encerra como garantia maior essa ação nobre voltada a preservar a liberdade de ir e vir do cidadão – o habeas corpus. Vale dizer, sofrendo alguém ou se achando ameaçado de

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sofrer violência ou coação à liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder, cabe manusear o instrumental, fazendo-o no tocante à competência originária de órgão julgador.

Em época na qual não havia a sobrecarga de processos hoje notada – praticamente inviabilizando, em tempo hábil, a jurisdição –, passou-se a admitir o denominado habeas substitutivo do recurso ordinário constitucional previsto contra decisão judicial a implicar o indeferimento da ordem. Com isso, atualmente, tanto o Supremo quanto o Superior Tribunal de Justiça estão às voltas com um grande número de habeas corpus – este Tribunal recebeu, no primeiro semestre de 2012, 2.181 habeas e 108 recursos ordinários e aquele, 16.372 habeas e 1.475 recursos ordinários. Raras exceções, não se trata de impetrações passíveis de serem enquadradas como originárias, mas de medidas intentadas a partir de construção jurisprudencial.O Direito é orgânico e dinâmico e contém princípios, expressões e vocábulos com sentido próprio. A definição do alcance da Carta da Republica há de fazer-se de forma integrativa, mas também considerada a regra de hermenêutica e aplicação do Direito que é a sistemática. O habeas corpus substitutivo do recurso ordinário, além de não estar abrangido pela garantia constante do inciso LXVIII do artigo 5º do Diploma Maior, não existindo sequer previsão legal, enfraquece este último documento, tornando o desnecessário no que, nos artigos 102, inciso II, alínea a, e Supremo Tribunal Federal Voto-MIN.MARCOAURÉLIO155 (grifo nosso)

A posição adotada pela ampla maioria dos ministros da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, foi levada para análise em plenário no habeas corpus 113.198 Piauí cujo relator e o Ministro Dias Toffoli, que persiste no entendimento quanto ao cabimento dos habeas corpus substitutivos156. O entendimento adotado pela 1ª Turma do STF tem provocado uma série de reações negativas na comunidade jurídica, com críticas veementes e constantes, ao posicionamento refratário à utilização ampla do habeas corpus, como remédio hábil a garantir o direito de liberdade das pessoas em todas as instâncias.

O uso da jurisprudência defensiva pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal objetivando diminuir o excesso de trabalho, de certa forma restaura, uma situação que existia no Brasil, durante o regime militar, 1964 a 1985, que, com a edição dos Ato Institucional nº 5 de 13 de dezembro de 1968 e posteriormente com o Ato Institucional nº 6 de 1º de fevereiro de 1969, alteraram a Constituição de 1967 limitando a utilização do habeas corpus no território nacional, e os poderes do Supremo Tribunal Federal, não permitindo o conhecimento de habeas corpus substitutivos.

O Ato Institucional nº 5 fez uma profunda modificação no ordenamento jurídico brasileiro, a fim de tentar tornar não legítimos, mas pelo menos legais, os atos perpetrados pelo governo autoritário que se instalara. Dentre essas alterações tem-se a supressão de garantias individuais, e a vedação da utilização de habeas corpus para a pratica de determinados crimes, bem como o afastamento do controle jurisdicional de

155 Consulta feita em 27/07/2015. Disponível em: http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22379023/habeas-corpus-hc-109956-pr-stf/inteiro-teor-110663951156 Toffoli defende que Supremo aceite HC substitutivo. Direito a Liberdade. Conjur. 19 de dezembro de 2013. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-dez-19/toffoli-stf-nao-rejeitar-hc-substitutivo-devido-sobrecarga, e http://s.conjur.com.br/dl/voto-toffoli-hc-substitutivo.pdf., e http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6873134 Consulta feita em 17/05/2015

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qualquer ato praticado pela administração pública, que estivessem em consonância com o referido Ato.

 Art. 10 - Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.

         Art. 11 - Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos.

         Art. 12 - O presente Ato Institucional entra em vigor nesta data, revogadas as disposições em contrário.

         Brasília, 13 de dezembro de 1968; 147º da Independência e 80º da República.157

O Ato Institucional nº 6 ampliou as disposições do Ato Institucional nº 5 e vedou a utilização do habeas corpus substitutivo de recurso ordinário, prática libertária comum no Brasil desde o tempo do império158 conforme se observa do texto estabelecido no art 114, II, a do referido Ato

 Art. 1º - Os dispositivos da Constituição de 24 de janeiro de 1967 adiante indicados, passam a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 113 - O Supremo Tribunal Federal, com sede na Capital da União e jurisdição em todo o território nacional, compõe-se de 11 (onze) Ministros.

§ 1º - Os Ministros serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal, dentre brasileiros natos, maiores de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada.

§ 2º - Os Ministros serão, nos crimes de responsabilidade, processados e julgados pelo Senado Federal."

"Art. 114 -   Compete ao Supremo Tribunal Federal:

II - julgar, em recurso ordinário:157 Texto Original extraído do Ato Institucional nº 5 de 13 de dezembro de 1968. Disponível em: http://www.planalto.gov.br//CCIVIL_03/AIT/ait-05-68.htm.158 Lei nº 29 de novembro de 1832 – Código de Processo Criminal.  Art. 340. Todo o cidadão que entender, que elle ou outrem soffre uma prisão ou constrangimento illegal, em sua liberdade, tem direito de pedir uma ordem de - Habeas-Corpus - em seu favor [...] Art. 342. Qualquer Juiz de Direito, ou Juizes Municipaes, ou Tribunal de Justiça dentro dos limites da sua jurisdicção, á vista de uma tal petição, tem obrigação de mandar, e fazer passar dentro de duas horas a ordem de - Habeas-Corpus - salvo constando evidentemente, que a parte nem póde obter fiança, nem por outra alguma maneira ser alliviada da prisão.[...] Consulta feita em 27/07/2015, disponível em : http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM-29-11-1832.htm

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a) os habeas corpus decididos, em única ou última instância, pelos Tribunais locais ou federais, quando denegatória a decisão, não podendo o recurso ser substituído por pedido originário;159(grifo nosso)

O cerceamento de eventuais Ações, como o habeas corpus, cuja a finalidade era garantir o controle, por parte do poder judiciário, de atos que atingissem o direito de ir e vir, durante o Regime Militar, bem como a redução do âmbito de atuação da função jurisdicional do Estado, não causa estranheza devido à natureza autoritária dos governos que se seguiram naquela época, porém, surpreendente é a Corte Constitucional, se impor uma autolimitação, por entendimento jurisprudencial, em pleno vigor do Estado Democrático de Direito, somente para evitar o excesso ou sobrecarga de trabalho.

É bem verdade que os Ministros do Supremo Tribunal Federal, quando consideram grave a violação ao direito ambulatorial, apensar de não conhecerem do habeas corpus, em razão do seu caráter substitutivo de recurso, concedem a ordem de ofício, tutelando, dessa maneira, o direito de liberdade. Contudo, a solução dada por meio da concessão da ordem de ofício, não garante a efetiva segurança jurídica que o direito de ir e vir das pessoas necessita, tendo em vista que, nos casos de concessão de ofício, é realizada a devida fundamentação, porém, quando o habeas corpus não é conhecido, e a ordem não é concedida de ofício, a fundamentação restringe-se aos motivos do não conhecimento da ação, não fazendo menção às razões pelas quais a ordem não foi concedida de ofício.

O não conhecimento do habeas corpus substitutivo, quando da não concessão da ordem de ofício, deveria vir acompanhado de uma fundamentação exauriente e esclarecedora dos motivos pelos quais o cerceamento ou a ameaça ao direito de liberdade configura-se em consonância com o ordenamento jurídico. Tal fato não ocorre, permitindo a sensação de insegurança jurídica no seio da sociedade.

Infelizmente, o posicionamento atual do Supremo Tribunal Federal, com relação aos habeas corpus substitutivos, representa um perigoso retrocesso para as garantias democráticas, especialmente, no que diz respeito ao livre acesso à justiça, célere e eficaz, deixando, de certa maneira, ao desamparo o bem mais relevante que as pessoas naturais possuem, depois da própria vida. Não há notícias, na história do Brasil, de tamanho retrocesso, salvo, em épocas de regimes ditatoriais. Lamentável!

159Texto original extraído do Ato Institucional nº 6 de 1º de fevereiro de 1969. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-06-69.htm. Consulta feita em 17/05/2015

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Capítulo IV - A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NOS ANOS DE 2012, 2013 E 2014

1 – Levantamento de dados estatístico

O ano de 2012, especialmente a partir do mês de agosto representou uma

grande mudança para a ação de habeas corpus, particilarmente os impetrados em

substituição a recursos.

Tomando como base os informativos de jurisprudência o Supremo Tribunal

Federal, mesmo sendo eles apenas um recorte, uma amostra de todas as ações decididas

pelo Supremo Tribunal Federal em um determinado ano, é possível ter uma ideia, do

volume de trabalho na Corte Constitucional durante esse período de tempo. Analisando os

dados absolutos, que englobam as competências penal, da justiça militar, da infância e

juventude, do direito constitucional, do direito eleitoral, etc, pode-se perceber que, no ano

de 2012, foram julgados 126 habeas corpus, no ano de 2013, primeiro ano após a mudança

efetivada pela aplicação da jurisprudência defensiva, foram decididos cerca de 99 habeas

corpus, e no ano de 2014 esse número caiu para 64160. Aparentemente, pelo menos nos anos

analisados, a jurisprudência defensiva teve o condão de reduzir consideravelmente o

número de ações de habeas corpus postas para julgamento.

160 Dados obtidos no site do Supremo Tribunal Federal. Consulta feita em 18/12/2015. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=publicacaoInformativoTema

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2012 2013 2014 Categoria 4

126

99

64

Total de habeas decididos

Série 1 Série 2 Série 3

A observação dos dados estatísticos permite concluir, pelo menos com base nos

informativos de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal analisados que, do ano de

2012 para o ano de 2013 ocorreu uma redução de 21,42% nas decisões em ações de habeas

corpus no Supremo Tribunal Federal, e em 2014 constata-se uma redução de 35,35% em

relação ao ano de 2013 e de 49,21% em relação ao ano de 2012. Os dados estatísticos

demonstram, claramente, a queda vertiginosa do número de ações de habeas corpus

julgados no Supremo Tribunal Federal, nos anos de 2013 e 2014.

A análise dos dados estatísticos permite, também, diferenciar a carga de

trabalho por competência. No ano de 2012 os habeas corpus impetrados, tratando de

matéria de direito penal e processual penal foram 108, na competência da justiça militar 15,

2 tratando da matéria relativa à infância e juventude e 1 de direito constitucional, onde se

discutiu o direito à sustentação oral, em sede de Correição Parcial no âmbito do Superior

Tribunal Militar.

Sustentação oral em correição parcial e prerrogativa da DPU A 2ª Turma concedeu parcialmente habeas corpus a fim de garantir à defesa o direito de apresentar razões escritas e de realizar sustentação oral na ocasião do julgamento de correição parcial proposta, no STM, em desfavor do paciente. No caso, o feito fora promovido naquele tribunal com o objetivo de desconstituir sentença proferida por Conselho Permanente de Justiça, o qual julgara

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extinta, sem resolução de mérito, ação penal em que o réu seria processado pela suposta prática do crime de deserção. O pleito da Defensoria Pública da União — de que fosse intimada da data da apreciação da correição parcial com a finalidade de proferir sustentação oral — fora indeferido pelo tribunal a quo, mediante a justificativa de que o procedimento não teria sido suscitado por nenhuma das partes do processo, mas sim pelo juiz-auditor corregedor. A impetração sustentava ofensa ao contraditório e à ampla defesa e requeria que fosse: a) concedida vista dos autos à instituição para apresentação de razões escritas, porquanto o feito teria o intuito de desconstituir sentença favorável ao paciente; b) deferida a oportunidade de defender oralmente suas razões quando do julgamento da correição em tela; e c) assegurado a membro da DPU o exercício de sua prerrogativa legal de sentar-se no mesmo plano do Ministério Público (Lei Complementar 80/94, art. 4º,§ 7º). Verificou-se que o direito de sustentar oralmente nas correições parciais adviria do próprio regimento interno do órgão em questão, pelo que deveria ter sido franqueado à defesa. Citou-se jurisprudência do STF segundo a qual deveria ser atendido o pedido explícito da instituição de defender oralmente suas razões. Com relação ao requerimento de sentar-se no mesmo plano do parquet, denegou-se a ordem. Explicou-se que a matéria não poderia ser apreciada, porque não relativa ao risco aparente à liberdade de locomoção, de modo a justificar sua arguição pela via estreita do writ. Precedente citado: HC 112839/RJ (DJe de 17.9.2012). HC 112516/RJ, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 11.9.2012. (HC-112516)161

No ano de 2013 os habeas corpus decididos em matéria penal e processual

penal perfizeram um total de 87, na competência da Justiça Militar foram 10, além destes

teve 1 na competência da infância e Juventude, e 1 na competência da justiça eleitoral, onde

se discutiu deserção por falta de pagamento do valor devido pelas fotocópias para formação

do traslado no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral.

Ação penal pública e preparo. A deserção por falta de pagamento do valor devido pelas fotocópias para formação do traslado, quando se trate de ação penal pública, traduz rigor formal excessivo, por impossibilitar o exercício da ampla defesa. Com base nessa orientação, a 1ª Turma concedeu habeas corpus para afastar a deserção por ausência de preparo e determinar que o Tribunal Superior Eleitoral julgue o recurso do paciente. No caso, o Tribunal Regional Eleitoral o condenara pela prática do crime de transporte irregular de eleitores no dia eleição (Lei 6.091/74, artigos 10 e 11, c/c o art. 302 do Código Eleitoral). A defesa interpusera recurso especial e, ante a inadmissão, agravo de instrumento o qual fora desprovido por falta de pagamento do valor devido a título de fotocópias para formação do traslado (Código Eleitoral, art. 279, § 7º). Asseverou-se que haveria previsão legal no sentido de que a deserção se configuraria apenas quando se tratasse de ação penal privada (CPP: “Art. 806 ... § 2º A falta do pagamento das custas, nos prazos fixados em lei, ou marcados pelo juiz, importará renúncia à diligência requerida ou deserção do recurso interposto”), e não de ação penal pública, como na espécie. HC 116840/MT, rel. Min. Luiz Fux, 15.10.2013. (HC-116840)162

161 Dados obtidos no site do Supremo Tribunal Federal. Consulta feita em 18/12/2015. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoInformativoTema/anexo/Compilacao_Informativo_mensal_2012_2.pdf162 Dados obtidos no site do Supremo Tribunal Federal. Consulta feita em 18/12/2015. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoInformativoTema/anexo/

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No ano de 2014, último ano em que foi feita a coleta de dados para este

trabalho, foi possível observar que de um total de 64 habeas corpus impetrados, 51 foram

na competência penal e processual penal, 8 na competência da justiça militar, 4 tratando de

matéria relativa à infância e juventude e 1 na competência do processo civil, onde foi

discutido questão de tempestividade em Agravo Regimental no âmbito do Superior

Tribunal de Justiça:

Diário da Justiça eletrônico e disponibilização. A 1ª Turma denegou habeas corpus em que se sustentava a tempestividade de agravo regimental interposto no STJ, ao argumento de que aquela Corte teria antecipado o dies a quo do prazo recursal, o que afrontaria a Lei 11.419/2006 (Art. 4º ... § 4º. Os prazos processuais terão início no primeiro dia útil que seguir ao considerado como data da publicação). A Turma asseverou que a expressão disponibilização contida no § 3º do art. 4º da Lei 11.419/2006 (§ 3º. Considera-se como data da publicação o primeiro dia útil seguinte ao da disponibilização da informação no Diário da Justiça eletrônico) indicaria a data em que o ato fora divulgado às partes no Diário da Justiça eletrônico. Destacou que o sítio do STJ permitiria pesquisa pela data de publicação e pela data de disponibilização. Apontou que a decisão questionada fora disponibilizada no DJe de 24.9.2013 e publicada em 25.9.2013 (terça-feira). Aduziu que o prazo recursal de cinco dias começara a transcorrer em 26.9.2013 (quarta-feira) e cessara em 30.9.2013 (segunda-feira), sendo o agravo protocolizado em 1º.10.2013 intempestivo. HC 120478/SP, rel. Min. Roberto Barroso, 11.3.2014. (HC-120478)163

Compilacao_Informativo_mensal_2013.pdf163 Dados obtidos no site do Supremo Tribunal Federal. Consulta feita em 18/12/2015. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoInformativoTema/anexo/Compilacao_Informativo_mensal_2014.pdf

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2012 2013 2014 Categoria 4

108

87

51

1510 8

2 14

1 0 00 1 00 0 1

Número de habeas corpus por competência

Dir. Penal Jus Militar Infa InfânciaDir Cosnt Eleitoral Proc. Civil

A análise dos dados estatísticos permite ainda perceber que a maior parte da

demanda de ações de habeas corpus no Supremo Tribunal Federal se concentram na

matéria penal e processual penal. No ano de 2012 representou 87,71% dos habeas corpus

impetrados, tendo restado para a competência da justiça militar 11,90%, 1,58% para

questões relativas à infância e juventude e 0,79% para questão de direito constitucional. No

ano de 2013 a matéria penal e processual penal representou um 87,88% dos habeas corpus

decididos, tendo a competência da justiça militar ficado com 10,10% dos habeas corpus

decididos, a infância e juventude e a competência da justiça eleitoral, com 1,01% das

demandas. No ano de 2014, a análise observa que: 79,69% dos habeas corpus decididos no

Supremo Tribunal Federal trataram da matéria de direito penal e de direito processual

penal; a justiça militar foi responsável por 12,5% das demandas, a infância e juventude

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6,25%, e o processo civil 1,56% do total de ações de habeas corpus decididos no Supremo

Tribunal Federal.

Diferenciando-se os habeas corpus, por competência, é possível se observar

uma diversidade de números ao longo dos anos analisados, sendo que a matéria de direito

penal e de direito processual penal apresentam especial preponderância com relação às

demais competências. Algumas exceções puderam ser observadas na utilização do habeas

corpus em matéria de direito constitucional, de direito eleitoral, e até em matéria de direito

processual civil, mas estes são exceções. Há ainda um número considerável de ação de

habeas corpus na competência da justiça militar e na competência da infância e juventude,

porém, nada que se compare com a utilização ordinária no direito penal.

O efeito da redução de ações de habeas corpus julgados no Supremo Tribunal

Federal, por conta da jurisprudência defensiva, atinge diretamente as pessoas comuns, ou

seja, aquelas que supostamente praticaram crimes, que, por vezes, são as que mais

necessitam da intervenção do Poder Judiciário. Além disso, essas decisões reverberam por

toda a sociedade, na medida em que podem ser utilizadas, como argumento de autoridade164

para fundamentar outras decisões.

2 – A jurisprudência defensiva e o habeas corpus

Os posicionamentos adotados pelo Supremo Tribunal Federal possuem uma

grande relevância e repercussão no ordenamento jurídico brasileiro, servindo de base para a

interpretação jurisprudencial, em grande parte devido ao conteúdo político das decisões

proferidas pela suprema corte do Brasil.

164 Argumento de autoridade (ab autoritatem) - é o argumento que se vale da lição de uma pessoa conhecida, um especialista em determinada área, ele serve para dar credibilidade a uma afirmação feita. As citações de doutrina e jurisprudência são os exemplos claros de argumento de autoridade, elas tem a finalidade de convencer o interlocutor de que a colocação feita é verdadeira.

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O entendimento de que as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal

tem um caráter político ocorre porque elas revelam uma capacidade de imposição coercitiva

da vontade do Estado Juiz. Nesse sentido está o pensamento de Rafael Mario Iorio Filho:

Em outras palavras, em um primeiro plano de compreensão, as decisões do Supremo Tribunal Federal são políticas por sempre envolverem processos de escolha de posicionamentos quanto à limitação ou atuação do poder do Estado.165

Rafael Mario Iorio Filho faz um estudo das decisões do Supremo Tribunal

Federal com relação à intervenção federal, utilizando como base a Teoria da Análise

Semiolinguística do Discurso de Patrick Charaudeau166, que sustenta, resumidamente, para

o discurso político, a existência de um “contrato de comunicação” em que um indivíduo

ocupa a posição de locutor e o outro de receptor do discurso, ocorrendo uma interrelação

entre os agentes, que de certa forma esperam um determinado comportamento e

conhecimentos preexistentes, uns dos outros.

Fernanda Duarte e Rafael Mario Iorio Filho, ao analisarem a questão da

igualdade jurídica e a imunidade parlamentar, esclarecem a metodologia da análise do

discurso:

A metodologia proposta por Charaudeau situa-se na moldura da chamada Teoria Semiolinguística do discurso, pois se alinha a uma tradição de estudo dos gêneros deliberativos e da persuasão codificados pela retórica aristotélica. Parte-se de uma problemática da organização geral dos discursos, fundamentando-se em um projeto de influência do EU sobre o TU em uma situação dada , e para qual existe um contrato de comunicação implícito de interação social. A perspectiva de Charaudeau associa os seguintes fatores: a) a análise da situação – aborda os gêneros do discurso associados às práticas sociais, consideradas na estrutura das forças simbólicas (habitus) estabelecidas e reproduzidas no campo de poder no qual situa-se o estatuto de cada autor; b) o discurso performatizado – o discurso e o estatuto do autor são reproduzidos consciente e/ou inconscientemente pelo locutor na enunciação do que é dito; c) a semilolimguística – o texto produzido é resultado de processos em que os sujeitos comunicantes se relacionam em ação de influência sobre o TU perpassando diversas finalidades e situações comunicativas.167

165 IORIO FILHO. Rafael Mario. Uma questão da cidadania: O papel do Supremo Tribunal Federal na intervenção federal. Editora CRV, Curitiba, 2014.166 CHARAUDEAU. Patrick. O Discurso Político 2ª edição. tradução Fabiana Komesu e Dilson Ferreira da Cruz. Editora Contexto, 1ª reimpressão. São Paulo. 2013.167 DUARTE. Fernanda e IORIO FILHO. Rafael Mario. Artigo Supremo Tribunal Federal: uma proposta de análise jurisprudencial- a igualdade jurídica e a imunidade parlamentar. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/bh/fernanda_duarte.pdf. Consulta feita em 21/12/2015

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Charaudeau correlaciona o discurso político com poder político, porque o

governo usa da palavra e do argumento de autoridade para convencer as pessoas da

validade de seus programas. Nesse sentido afirma o autor:

O governo da palavra não é tudo na política, mas a política não pode agir sem a palavra: a palavra intervém no espaço de discussão para que seja definido o ideal dos fins e os meios da ação política; a palavra intervém no espaço de ação para que sejam organizadas e coordenadas a distribuição das tarefas e a promulgação das leis, regras e decisões de todas as ordens; a palavra intervém no espaço de persuasão para que a instância política possa convencer a instância cidadã dos fundamentos de seu programa.168

Patrick Charaudeau complementa seu raciocínio demonstrando que a palavra,

no discurso político, é utilizada como forma de dominação das pessoas na sociedade,

forçando-as à submissão, citando o entendimento de Max Weber o autor afirma:

Logo diz, de um lado Weber (para quem o poder político está diretamente ligado à dominação e à violência, por meio do Estado que, tendo força de dominação, impõe sua autoridade sob aparência de legalidade e obriga os homens a saberem-se dominados, portanto, a submeterem-se.169

A repercussão das decisões do Supremo Tribunal Federal possuem uma

especial relevância porque, enquanto discurso político, a influência que o EU, representado

pelo Supremo Tribunal Federal exerce sobre o TU, representado pela sociedade em geral,

impondo a autoridade de seu discurso e das suas decisões, reverbera por toda a sociedade e,

em especial, no âmbito jurídico, habituado a usar essas decisões como argumento de

autoridade na interpretação das leis. Dessa maneira, quando é adotada uma jurisprudência

defensiva, na corte constitucional brasileira, esta traz consequências que atingem, de um

modo geral, direta ou indiretamente todas as pessoas, em especial, no caso da ação de

habeas corpus, particularmente, a questão se torna ainda mais preocupante, tendo em vista

que, em última análise, o que está sendo vulnerado é próprio direito de ir e vir de todas as

pessoas naturais no território brasileiro.

168 Idem item 160169 Idem item 160

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A jurisprudência defensiva não é causa, ela é uma consequência de um grande

número de decisões conflitantes, que, por sua vez, decorrem da subjetividade dos

julgadores na hora de tomarem suas decisões, fato que acaba provocando uma sobrecarga

de trabalho nos Tribunais Superiores. O artigo 155 do Código de Processo Penal estabelece

que os juízes irão formar a sua convicção pela livre apreciação das provas produzidas em

contraditório judicial. Estabelecendo, portanto, o sistema do livre convencimento motivado.

A consequência da adoção desse sistema é possibilitar, em algumas situações, o que Lênio

Streck denomina de solipsismo judicial170, ou seja, os juízes decidindo conforme a

consciência, sem observar, por vezes, os princípios constitucionais norteadores do Estado

Democrático de Direito.

O Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, este

especialmente, por ser a corte constitucional, cuja competência principal deveria ser fazer o

controle de constitucionalidade, sofrem uma grande pressão em razão da enorme

proliferação de ações, em grande parte provocadas em razão da própria ineficiência do

Estado em apresentar soluções satisfatórias para as necessidades públicas. Aliado ao

aumento do número de ações judiciais, que corrobora para o aumento da demanda nos

tribunais superiores, as decisões judiciais díspares, fundadas não nos valores democráticos,

mas sim na subjetividade dos juízes.

Como defesa os tribunais passam a adotar estratégias objetivando diminuir, ou

restringir o número de demandas, a fim de viabilizar o próprio funcionamento eficaz do

tribunal, para suas competências ordinárias. Isso é feito, por meio da exigência de

prequestionamento, repercussão geral, e pela edição de súmulas vinculantes.

O prequestionamento é um pressuposto recursal objetivo, os recursos nos

tribunais superiores só são conhecidos se a matéria tiver sido discutida expressamente em

um tribunal estadual, ou em um tribunal federal. Ausente esse pressuposto o recurso não

será nem conhecido.

A repercussão geral é também um pressuposto recursal consiste na existência,

ou não, de questão relevante do ponto de vista econômico, político, social, ou jurídico, que

170 STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – as garantias processuais penais?. 4ª edição. Editora Livraria do Advogado. Porto Alegre. 2012

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ultrapassem os interesses subjetivos das partes. Assim, a repercussão geral refere-se à

necessidade de que a matéria impugnada no recurso apresente a qualidade de fazer com que

parcela representativa de um determinado grupo de pessoas possa experimentar, ainda que

de forma indireta, a influência da decisão tomada no recurso.

A repercussão geral e o prequestionamento são dois pressupostos, ou requisitos

de admissibilidade recursal, que devem ser analisados em conjunto, porque a matéria

prequestionada será exatamente a matéria que será alvo da análise da repercussão geral.

Os dois requisitos de admissibilidade representam um importante instrumento

no desafogamento de recursos no Supremo Tribunal Federal, reduzindo as demandas

recursais em até 70%171, porém, o uso destes filtros deve ser feito com uma certa cautela. A

sua utilização deles deve observar padrões mínimos de coerência, não pode ter um caráter

universalizante nem tão pouco servir de instrumento para obstacular a análise de

determinadas matérias, afastando, por meio do argumento de autoridade, o direito do

jurisdicionado ao acesso de revisão da constitucionalidade de uma decisão proferida.

Outro valoroso mecanismo importante para reduzir as demandas recursais,

especialmente no âmbito do Supremo Tribunal Federal, são as súmulas vinculantes, estas

consistem em uma espécie de súmula de jurisprudência, de observância obrigatória, que

impedem os juízes, de instâncias inferiores, decidirem de maneira diferente do

entendimento pacificado no Supremo Tribunal Federal.

Até 7 de agosto de 2012, com a decisão do relator, Ministro Marco Aurélio

Melo, no HC 109956, era comum a utilização da via da ação autônoma de impugnação, por

meio do habeas corpus, que iam se substituindo, na medida em que a ordem ia sendo

negada, tornando o órgão jurisdicional autoridade coatora, até chegar ao Supremo Tribunal

Federal. Por certo, que devido a subjetividade dos julgadores, que utilizam a filosofia da

consciência para decidirem e, por vezes, com fundamentações inadequadas, os habeas

corpus substitutivos sobrecarregaram as pautas de julgamento dos tribunais superiores,

causando atraso no julgamento de outras ações e recursos, em razão da prioridade de

tramitação que caracteriza a ação de habeas corpus.

171 STRECK Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 4ª edição. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo. 2014.

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Os tribunais superiores, como forma de defesa, passaram a rejeitar as ações de

habeas corpus substitutivos, quando a lei estabelecesse, como adequada a via recursal, tal

determinação é clara no que diz respeito a ação de mandado de segurança. Por força do

artigo 5º, II da Lei 12016/ 09172, porém, tal vedação não se repete para a ação de habeas

corpus no Código de Processo Penal, e a utilização subsidiária da Lei do Mandado de

Segurança, para restringir uma garantia constitucional, estaria contrariando frontalmente

toda a sistemática das garantias constitucionais, que admitem somente uma interpretação

ampliativa, jamais uma interpretação restritiva.

Até mesmo a utilização do princípio da proporcionalidade defendido por Robret

Alexy173 com base na jurisprudência e filosofia dos valores174, torna duvidoso o

posicionamento adotado pelos tribunais superiores, especialmente, o Supremo Tribunal

Federal, até porque, o procedimento defendido por Alexy serve para resolver uma colisão

em abstrato de princípios constitucionais. A sua tese não envolve uma escolha direta175. O

direito de liberdade, em sendo um bem de maior valor, consagrado em todos os Estados

verdadeiramente democráticos, a sobrecarga de trabalho, sem menosprezar a relevância das

demais ações de competência da Corte Constitucional brasileira, não seria um valor capaz

de superar o direito de liberdade, fazendo com que a proteção deste direito pudesse ser

relegado a um segundo plano, ou ao plano das vias recursais.

Os recursos, mesmo assegurando de certa forma o acesso à justiça, não o fazem

de maneira mais eficaz do que a ação de habeas corpus, na medida em que exigem o

pagamento de custas e o patrocínio de um advogado, tendo em vista que, nas vias recursais,

não se dispensa a capacidade postulatória.

172 Art. 5o  da Lei 12016/09: Não se concederá mandado de segurança quando se tratar: I - de ato do qual caiba recurso administrativo com efeito suspensivo, independentemente de caução; II - de decisão judicial da qual caiba recurso com efeito suspensivo; III - de decisão judicial transitada em julgado.173 ALEXY,Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. 3ª edição. Editora Forense, Rio de Janeiro, 2013174 A Jurisprudência dos valores surgiu na Alemanha, com a finalidade de equalizar a constituição outorgada pelos aliados, no pós-guerra, 1949, com os valores do povo alemão. Decorre dessa situação a afirmação de que, na Alemanha daquela época, a justiça poderia ser distinta da lei. Assim a jurisprudência dos valores seria um mecanismo de abertura de uma legalidade extremamente fechada. (Lenio Streck: O que é isso – decido conforme a minha consciência? Editora livraria do advogado. 2013 Páginas 20 e 21) 175 STRECK, Lenio Luiz. O que é isto - decido conforme a minha consciência?. 4ª edição. Editora Livraria do Advogado. Porto Alegre. 2013, páginas 53 e 54

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No caso do Recurso Extraordinário, as restrições apresentam-se ainda de forma

mais gravosa, porque, além das exigências já mencionadas, a análise do mérito estará

sujeita ao prequestionamento e à presença de repercussão geral, dificultando ainda mais o

acesso direto à apreciação de eventuais ilegalidades que atinjam o direito de ir e vir de uma

pessoa, por parte do Supremo Tribunal Federal, possibilitando o prolongamento de

eventuais prisões, de forma inadequada, em detrimento da observância do princípio geral

do ordenamento jurídico brasileiro, que é a liberdade, estabelecida de forma expressa no

artigo V, incisos LXV e LXVI da Carta Constitucional de 1988.

Não há como se olvidar a necessidade intrínseca de tomar decisões na função

de julgar, contudo, tomar uma decisão, mesmo diante da dificuldade de um caso, não deve,

nem pode significar, escolher uma entre duas situações. O julgador deve desenvolver uma

atividade intelectual, utilizando, como base, as normas constitucionais, especialmente em

um Estado Democrático de Direito, para apresentar a resposta adequada para a situação

proposta,176 ou seja, a resposta constitucionalmente adequada.

Não é por meio de uma escolha simplista, de cercear a utilização do habeas

corpus substitutivo, que se soluciona a questão da sobrecarga nos tribunais superiores, é

preciso se buscar uma resposta adequada, que permita ao mesmo tempo tutelar o direito de

liberdade, sem inviabilizar os trabalhos nas cortes superiores. Torna-se, portanto, necessário

se encontra mecanismos adequados para a solução da questão, sem cercear o direito das

pessoas ao acesso à função jurisdicional do Estado, na defesa do seu direito de liberdade.

A decisão proferida pelo Ministro Marco Aurélio Mello no HC 109956 de 7 de

agosto de 2012, seguida por seus pares, traz à lembrança de triste época da história do

Brasil, em que as liberdades, bem como o acesso à justiça encontravam-se tolhidas por

forças antidemocráticas, não uma nem duas, mas pelo menos por três ou quatro vezes os

ideais democráticos do povo brasileiro foram cerceados, expurgados pelas mãos de ferro

dos que assumiram a chefia do Poder Executivo. A lembrança mais recente dessa espécie

de limitação remonta a 1968 e 1969, com a imposição dos Atos Institucionais número 5 e

número 6, que fizeram desaparecer qualquer pretensão de resguardo do direito de ir e vir

por meio da ação de habeas corpus.

176 DOWRKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. 3ª edição, Editora Martins Fontes, 2010

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A circunstância do Supremo Tribunal Federal ter adotado como forma de

jurisprudência defensiva o não conhecimento de ações de habeas corpus substitutivos de

recurso, restaurando, de forma institucional, uma situação existente ao tempo da Ditadura

Militar iniciada em 1964, possibilita maiores reflexões. Eugeniusz Costa Lopes da Cruz, ao

desenvolver seu estudo da justiça de transição pós Regime Militar, observou com

perspicácia a existência do que chamou de resquícios de autoritarismo nas práticas do

governo em pleno Estado Democrático de Direito. O autor chegou a essa conclusão

analisando a forma de atuação de alguns chefes do Poder Executivo, pós Constituição de

1988, que, frente a situações de conflito de cunho civil, ao invés de se utilizarem da força

policial, recorreram ao uso Forças Armadas, como meio de reprimir manifestações que se

valiam de recursos democráticos, tais como greve, para externar uma insatisfação legítima.

Nesse sentido são as palavras do autor:

Assim surge o alerta sobre os efeitos antidemocráticos que as práticas dessas categorias podem causar na estabilidade da cultura jurídica e política no Brasil. Sob esse prisma, percebe-se que prática de atos típicos de tempos de exceção ainda estão presentes no cotidiano do exercício do Poder estatal, especialmente nas ações relacionadas ao controle social, com sua inegável tendência arbitrária, no decurso da utilização de auxílio militar em situações que tipicamente deveria ser controladas por forças policiais, em uma coletividade em processo de cicatrização das feridas causas pelo autoritarismo.177

Eugeniusz Cruz atribui a existência de um resquício autoritário na cultura

jurídica e política do Brasil pós Constituição de 1988, em razão da forma pela qual o poder

constituinte originário se instalou em 1987, ele não observou nenhuma das formas

tradicionais de ruptura:

Em que pese a Constituição de 1988 tenha avançado em muitos sentidos, como no deslocamento do capítulo referente aos direitos fundamentais para a abertura do texto fundante, o Brasil deixou de avançar em alguns aspectos, em decorrência do fato de seu regime democrático ter sido pactuado entre a oposição consentida e o governo militar, não podendo, portanto, ser compreendida na chave clássica das constituições que sucedem movimentos revolucionários vitoriosos.178

177 CRUZ, Eugeniusz Costa Lopes da. Justiça de transição no Brasil: análise crítica da persecução penal dos agentes do regime militar. Editora Juruá. Curitiba. 2015178 Idem item 170

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O estudo dos resquícios autoritários na justiça de transição do Brasil, traz

elementos de reflexão interessantes, quanto à utilização por parte do Supremo Tribunal

Federal, de uma jurisprudência defensiva, que se vale como instrumento, a vedação da ação

de habeas corpus substitutivo de recurso, à semelhança do que foi imposto pelos Atos

Institucionais número 5 e, em especial, pelo ato Institucional número 6. É bem verdade que

a situação fática atual apresenta-se completamente diferente da que existia durante o

Regime Militar. Não há mais uma limitação exógena operada pelo Poder Executivo, mas

autolimitação efetivada pelo Próprio Supremo Tribunal Federal, com a finalidade de reduzir

o volume de trabalho, permitindo uma atuação mais eficaz no âmbito da sua competência

originária. Contudo, é no mínimo curioso, como os métodos se assemelham.

Patrick Charaudeau, no Prólogo do seu livro Discurso Político, menciona o uso

das máscaras. As pessoas, após fazerem o “contrato de comunicação,” desenvolvem o ato

de linguagem, e a máscara, ao invés de servir para esconder ou dissimular, apresenta-se

como a própria identidade de um interlocutor com relação ao outro, na medida em que essa

identidade nada mais representa do que uma imagem construída. O autor afirma ainda que

o lugar por excelência da utilização das máscaras é o discurso político. “O discurso

político é, por excelência, o lugar de um jogo de máscaras. Toda palavra pronunciada

no campo político deve ser tomada ao mesmo tempo pelo que ela diz e não diz.” 179

Eugeniusz Cruz no seu livro analisa, a bem da verdade, somente a atuação do

Poder Executivo usando das Forças Armadas para conte greves, tais como a da Polícia

Federal no ano de 1994, dos petroleiros em 1995, e menciona, ainda, o uso do Exército no

ano de 2008 para dar proteção à construção de algumas casas no morro da Providência, na

cidade do Rio de Janeiro. O autor não menciona resquícios do autoritarismo em decisões do

Supremo Tribunal Federal, porém, as decisões deste possuem um caráter eminentemente

político, na medida em que objetivam submeter à vontade das pessoas no território

brasileiro, devendo ser analisada, portanto, pelo 0 que foi dito e pelo o que não foi dito.

179 Idem item 160

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O Ministro Marco Aurélio Mello, no voto proferido no HC 109956, reconhece

o uso comum do habeas corpus substitutivo de recurso ordinário, ao afirmar: “Em época

na qual não havia a sobrecarga de processos hoje notada – praticamente

inviabilizando, em tempo hábil, a jurisdição –, passou-se a admitir o denominado

habeas substitutivo do recurso ordinário constitucional previsto contra decisão

judicial a implicar o indeferimento da ordem”180. Porém, o Ministro, posteriormente, se

vale do argumento de autoridade para dar uma interpretação que, segundo suas palavras,

seria integrativa e sistêmica, definindo o alcance da Carta Constitucional. Conclui o Exmo.

Ministro: “O habeas corpus substitutivo do recurso ordinário, além de não estar

abrangido pela garantia constante do inciso LXVIII do artigo 5º do Diploma Maior,

não existindo sequer previsão legal, enfraquece este último documento, tornando o

desnecessário no que, nos artigos 102, inciso II, alínea a, e.”181 Nas razões do voto foi

dito, de forma clara, que o uso do habeas corpus substitutivo de recurso ordinário sempre

foi prática recorrente e aceita no ordenamento jurídico brasileiro, não sendo, entretanto,

atualmente conhecido no âmbito do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de

Justiça, para evitar sobrecarga de trabalho. O que não foi dito é que a sua vedação ocorreu

somente em períodos de exceção, quando vigiam ideias antidemocráticas e autoritárias,

conforme se observa do texto do Ato Institucional nº 6: “"Art. 114 -   Compete ao

Supremo Tribunal Federal: II - julgar, em recurso ordinário: a) os habeas corpus

decididos, em única ou última instância, pelos Tribunais locais ou federais, quando

denegatória a decisão, não podendo o recurso ser substituído por pedido

originário.”182 O texto da Carta Constitucional de 1988 no artigo 102, alínea a, que se

referiu o Ministro Marco Aurélio Melo, não veda expressamente o habeas corpus

substitutivo de recurso ordinário, conforme ocorria com a Carta constitucional de 1967,

após a alteração feita pelo Ato Institucional nº 6. O texto atual estabelece: “Art. 102.

Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição,

cabendo-lhe: II - julgar, em recurso ordinário: a) o habeas corpus, o mandado de

segurança, o habeas data e o mandado de injunção decididos em única instância pelos

Tribunais Superiores, se denegatória a decisão.”

180 Idem item 153181 Idem item 153182 Idem Item 157

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A doutrina e na jurisprudência defendem que os direitos fundamentais, bem

como as normas garantidoras desses direitos, não admitem interpretação restritiva, somente

interpretação extensiva183, ora, o direito de locomoção no território nacional, bem como a

ação de habeas corpus, possuem previsão no artigo 5º da Constituição da República

Federativa do Brasil de 1988, configurando, portanto, um direito fundamental. Cabe, no

entanto, refletir quanto interpretação dada pelo Ministro Marco Aurélio Mello, no HC

109956, seria o não dito um resquício autoritário no voto proferido, fazendo reviver um

texto constitucional ultrapassado?

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 veio para romper

com o ordenamento jurídico existente até então, ainda que não tenha ocorrido uma ruptura

revolucionaria, não há como negar o rompimento, ainda que consentindo, com os valores e

regras jurídicas impostos pelo regime autoritário imposto dos governos militares no Brasil.

Dessa maneira, parece absurda e contraditória a interpretação dada pelos Ministros do

Supremo Tribunal Federal para a questão do habeas corpus substitutivo, ressalva seja feita

ao Ministro Dias Toffoli184, que vem decidindo, vencido, pelo seu caimento. Ora, se o

legislador constituinte originário rompeu com as regras jurídicas estabelecidas na Carta

Constitucional de 1967, e esta trazia expresso no artigo 114, II, a o não cabimento da

utilização de habeas corpus substitutivo de recurso ordinário, o silêncio do legislador

constituinte originário de 1988, só pode ser interpretado, de modo coerente, como sendo um

silêncio eloquente no sentido de admitir a referida medida, buscar qualquer outro sentido

para o texto do artigo 102, II, a da carta Constitucional de 1988, seria promover uma

espécie de repristinação da norma estabelecida na Constituição de 1967, bem como os

valores autoritários existentes até então. Qualquer intepretação, seja ela sistêmica ou

integrativa, para ser coerente com a Constituição de 1988 deve observar, obrigatoriamente,

183 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 7ª edição. Editora Saraiva. São Paulo. 2009184 Decisão: Após o voto do Ministro Dias Toffoli (Relator), conhecendo e denegando a ordem, e o voto do Ministro Roberto Barroso, que não conhecia do habeas corpus, pediu vista dos autos o Ministro Teori Zavascki. Ausentes, justificadamente, o Ministro Celso de Mello e, neste julgamento, o Ministro Marco Aurélio. Falaram, pela Defensoria Pública da União, o Dr. João Alberto Simões Pires Franco, Defensor Público, e, pelo Ministério Público Federal, o Dr. Rodrigo Janot Monteiro de Barros, Procurador-Geral da República. Presidência do Ministro Joaquim Barbosa. Plenário. HC. 113.198. Ministro Relator Dias Toffoli. 19.12.2013. Consulta realizada em 22/01/2016. Disponíve: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=113198&classe=HC&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M

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os valores democráticos estabelecidos pelo poder constituinte originário de 1988. Em que

pese a autoridade interpretativa dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, me parece que

vedar a utilização do habeas corpus substitutivo, representa manter no ordenamento jurídico

um resquício autoritário existente na Constituição da República Federativa do Brasil de

1967.

Levando-se em conta as regras estabelecidas pelo poder constituinte originário

de 1988, cumpre ressaltar que o artigo 5º, II da Carta Constitucional de 1988 estabelece:

“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.” O

artigo 102, II, a da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, corroborado

pelas leis infraconstitucionais não veda a utilização do habeas corpus substitutivo, como

bem observou o Ministro Marco Aurélio Mello no voto proferido no HC 109956, assim

sendo, não há razão explícita no ordenamento jurídico que obste a utilização do habeas

corpus em substituição ao recurso ordinário. A interpretação dada, em que pese a

autoridade do senhor Ministro, vai de encontro a princípios basilares do processo penal.

Tais como o princípio do favor rei, e do acesso à justiça.

O princípio do favor rei estabelece que a interpretação das normas processuais

penais deve ser feita sempre da forma que possibilite o maior benefício para o réu, havendo

lacunas, com duas ou mais interpretações possíveis, a escolha do julgador deverá sempre

ser aquela que traga maior benefício para o acusado. Nesse sentido, esclarece Paulo Rangel:

O princípio do favor rei é a expressão máxima dentro de um Estado Constitucionalmente Democrático, pois o operador do direito, deparando-se com uma norma que traga interpretações antagônicas, deve optar pela que atenda ao jus libertatis do acusado.185

A Carta Constitucional de 1988 não vedou expressamente a utilização do

habeas corpus substitutivo, conforme ocorreu com a Constituição da República Federativa

do Brasil de 1967, optou o legislador constituinte originário por um silêncio eloquente no

artigo 102, II, a da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, silêncio este

que deve ser interpretado à luz do próprio texto constitucional, na medida em que uma

pessoa não está obrigada a deixar de fazer, ou seja, deixar de manejar a ação de habeas

185 Idem item 98

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corpus em todas as instâncias, tendo em vista não existir expressa vedação legal. Além

disso, a regra interpretativa básica do processo penal, estabelece sempre a interpretação

mais benéfica para aquele que tem sua liberdade de ir e vir posta em risco pela ação do

estado, dessa maneira, diante do silêncio eloquente do legislador constituinte originário, no

que diz respeito ao habeas corpus substitutivo, a única intepretação cabível e coerente com

os valores democráticos estabelecidos pós Regime Militar seria pelo seu cabimento em toda

e qualquer instância.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,186 no seu artigo 5º,

XXXV, estabelece o princípio da inafastabilidade da jurisdição e fundamenta o princípio do

acesso à justiça no Brasil. É bem verdade que o termo acesso à justiça não se restringe

somente ao acesso das pessoas ao Poder Judiciário, envolve muito mais, abrangendo o

acesso a direitos socialmente justos. Mauro Cappelletti e Bryant Garth, no livro Acesso à

Justiça, fazem uma análise da evolução do acesso à justiça desde o estado liberal burguês

do século XVIII, no qual o acesso das pessoas era apenas formal, de um indivíduo propor

ou contestar uma ação, até o chamado “wefare state” ou estado social, no qual os direitos

meta ou transindividuais são preocupação e protegidos pelo Estado. Nesse sentido, os

autores na introdução do livro, se manifestaram:

A expressão “acesso à Justiça é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básica do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob o auspício do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos......187

No caso do não conhecimento dos habeas corpus substitutivos, o que resta

prejudicado é acesso formal das pessoas ao Poder Judiciário, na medida em que ficam

impossibilitadas de utilizarem de mais um recurso em sentido lato,188 na defesa da sua

186 Artigo 5º, XXXV da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.187 Idem item 95188 Recurso em sentido lato consiste em qualquer forma de defesa utilizada por uma pessoa para fazer valer o seu direito, dessa maneira, resposta à acusação, alegações finais, habeas corpus e mandado de segurança importariam em recurso. Recurso em sentido estrito consiste na revisão de uma decisão dentro da relação

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liberdade de ir e vir. Os Ministros, a exceção do Ministro Dias Toffoli, optaram por criar

uma jurisprudência com o intuito de apenas reduzir a carga de trabalho, que além de trazer

de volta uma restrição existente em período de exceção, possibilita, eventualmente, a

manutenção de prisão irregular no pais. Na defesa de uma redução do volume de trabalho,

os Ministros deram as costas para o direito constitucional de ir e vir, estabelecido na Carta

Constitucional de 1988, sem maiores cuidados com os fundamentos alegados, na medida

em que fazem reviver, em pleno estado democrático de direito, regra existente no período

da Ditadura Militar. A situação mostra-se extremamente grave, pois não representa o

simples afastamento do princípio do acesso à justiça, envolve, também, um fundamento que

revive norma existente em um período autoritário da história do Brasil.

3 – A liberdade de ir e vir e os mecanismos de filtragem

A jurisprudência defensiva e o excesso de trabalho no Supremo Tribunal

Federal, como já foi dito, não são causa, mas sim consequência, de inúmeras decisões

conflitantes no âmbito das instâncias inferiores. A solução da sobrecarga de trabalho nos

Tribunais Superiores passa, inevitavelmente, por uma mudança de atitude nas instâncias

inferiores. Não é restringindo o acesso das pessoas aos Tribunais Superiores, em especial

ao Supremo Tribunal Federal, que o problema será solucionado, pelo contrário, tal atitude

só faz agravar as disparidades existentes nas instâncias inferiores e aumentar a insatisfação

das pessoas com a prestação dada pela função jurisdicional do Estado. A utilização de

novos modelos de solução de conflito, que sejam céleres e eficazes nas instâncias

inferiores, por si só já teriam o condão de promover uma redução da procura de soluções

nos Tribunais Superiores, reduzindo sobremaneira a carga de trabalho, não sendo, portanto,

necessário, a instituição de restrições via jurisprudência defensiva.

Os Código de Processo Civil e de Processo Penal trazem mecanismos de

filtragem, que possibilitam impedir a proliferação de demandas inócuas que acabarão por

sobrecarregar a pauta de julgamento nos tribunais.

jurídica originária, por essa acepção, somente apelação, embargos infringentes e de nulidade, embargos de declaração seriam considerados recurso. Na verdade, o recurso em sentido estrito é uma espécie de recurso em sentido lato, na medida em que também importa em uma forma de defesa.

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No caso do processo penal, uma análise detalhada das Denúncias ou das

Queixas-Crime apresentadas, poderia ensejar a rejeição das mesmas, com base no artigo

395 do Código de Processo Penal189, evitando a movimentação de toda a máquina do Poder

Judiciário, de forma desnecessária, para ao final de todo um procedimento dispendioso e

desgastante, do ponto de vista psicológico, para o réu, se chegar a conclusão de que não

seria o caso da aplicação da lei penal. Nesse sentido é o entendimento do Professor Lenio

Streck190:

No campo do direito penal, há uma quantidade significativa de tipos penais que não foram sequer recepcionados pela Constituição (as contravenções penais, por exemplo, são incompatíveis com o princípio da secularização do direito, e da subsidiariedade). Como decorrência quotidianamente pequenos delitos e querelas sem lesividade social são desnecessariamente levados, aos milhares, através de recursos aos tribunais de segundo grau. A aplicação do princípio da insignificância, por si só, eliminaria uma quantidade razoável de processos e recursos criminais. A aplicação do princípio acusatório igualmente representaria avanço significativo na efetividade do processo penal. Além disso, uma análise criteriosa (garantista) das condições da ação, evitaria que um expressivo percentual de processos criminais iniciasse. Tudo com a estrita obediência do art. 93, IX da Constituição.

A questão não poderia ter sido tratada de forma mais adequada. Na verdade, um

grande número de ações penais surgem todos os dias, já fadadas ao insucesso, sequer

deveriam ter sido iniciadas, se uma análise mais criteriosa tivesse sido realizada, dessa

maneira, a máquina do judiciário não teria sido movimentada, evitando-se, por conseguinte,

um acumulo de trabalho em todas as instâncias judiciárias.

Outros mecanismos de filtragem, que merecem uma especial atenção no direito

penal, são as medidas alternativas, como a conciliação, a transação penal e a suspensão

condicional do processo. A utilização adequada dessas medidas, certamente, produziria

uma enorme redução de pressão de trabalhos nos órgãos do segundo grau de jurisdição.

189   Art. 395 do Código de Processo Penal.  A denúncia ou queixa será rejeitada quando: I - for manifestamente inepta; II - faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou  III - faltar justa causa para o exercício da ação penal. 

190 STRECK Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 4ª edição. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo. 2014, página 937.

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Além destes, no mês de fevereiro de 2015, o Conselho Nacional de Justiça, junto com o

Supremo Tribunal Federal, iniciou um programa no Tribunal de Justiça do Estado de São

Paulo para colocar em prática a chamada Audiência de Custódia, cuja finalidade é

possibilitar a apresentação de uma pessoa presa em flagrante, dentro do prazo de vinte

quatro horas, a juiz, para que este possa decidir sobre a manutenção ou não da prisão.

O Código de Processo Penal em vigor não prevê expressamente uma audiência

de custódia, está tem previsão no projeto para o novo Código de Processo Penal191 que está

em tramitação no Congresso Nacional. O Código de Processo Penal atual menciona

somente a comunicação da prisão em flagrante a um juiz no prazo de vinte quatro horas,

devendo este decidir se relaxa a prisão, aplica uma medida cautelar diversa da prisão,

concede liberdade provisória ou converte a prisão em flagrante em prisão preventiva, desde

que observados os requisitos legais. Não há menção da realização de uma audiência.

Contudo, já existe no ordenamento jurídico brasileiro previsão expressa para apresentação

do preso em flagrante a um juiz. A previsão está na Convenção Interamericana para

Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica, no artigo 7º, 5 do Decreto 678/92192 e

no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, no artigo 9º, 3 do Decreto 592/92.193

191 O artigo 306 do Projeto de Lei do Senado nº 554/2011 nos seus parágrafos estabelece: “parágrafo 1º 1º No prazo máximo de vinte e quatro horas após a prisão em flagrante, o preso será conduzido à presença do juiz para ser ouvido, com vistas às medidas previstas no art. 310 e para que se verifique se estão sendo respeitados seus direitos fundamentais, devendo a autoridade judicial tomar as medidas cabíveis para preservá-los e para apurar eventual violação. § 2º Na audiência de custódia de que trata o parágrafo 1º, o Juiz ouvirá o Ministério Público, que poderá, caso entenda necessária, requerer a prisão preventiva ou outra medida cautelar alternativa à prisão, em seguida ouvirá o preso e, após manifestação da defesa técnica, decidirá fundamentadamente, nos termos art. 310. § 3º A oitiva a que se refere parágrafo anterior será registrada em autos apartados, não poderá ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará, exclusivamente, sobre a legalidade e necessidade da prisão; a prevenção da ocorrência de tortura ou de maus-tratos; e os direitos assegurados ao preso e ao acusado. § 4º A apresentação do preso em juízo deverá ser acompanhada do auto de prisão em flagrante e da nota de culpa que lhe foi entregue, mediante recibo, assinada pela autoridade policial, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os nomes das testemunhas. § 5º A oitiva do preso em juízo sempre se dará na presença de seu advogado, ou, se não o tiver ou não o indicar, na de Defensor Público, e na do membro do Ministério Público, que poderão inquirir o preso sobre os temas previstos no parágrafo 3º, bem como se manifestar previamente à decisão judicial de que trata o art. 310 deste Código192 Artigo 7º, 5 do Decreto 678/98. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.193 Artigo 9º, 3 do Decreto 592/92.  Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e,

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Não há dúvida de que um tratado ou convecção internacional, uma vez referendado pelo

Congresso, passa a integrar o ordenamento jurídico brasileiro, como norma de observância

obrigatória em todo território nacional.

A aplicação correta dos mecanismos de filtragem, seja com a rejeição da

Denúncia ou Queixa, evitando uma demanda fadada ao fracasso, seja por acordo entre as

partes, ou com audiências de custódia evitando um encarceramento desnecessário, tanto no

primeiro grau de jurisdição, como nos órgãos incumbidos de promoverem a revisão das

decisões, com certeza, tem o condão de promover a redução da carga de trabalho que irá

repercutir nos Tribunais Superiores, não se fazendo necessária a adoção de medidas

extremas, como a rejeição liminar de todos os habeas corpus substitutivos. Estes podem e

devem conviver com outras medidas, hábeis a permitir o efetivo acesso das pessoas à

justiça, bem como a eficaz proteção da liberdade de ir e vir do ser humano, sem exarcebar,

em demasia, a carga de trabalho do Poder Judiciário.

Capitulo V – CONCLUSÃO

A concepção de liberdade nunca foi unívoca ao longo dos tempos, variou de

acordo com as sociedades, porém, os homens, sempre zelaram e lutaram por ela de diversas

maneiras, inclusive, por meio da intervenção judicial do Estado, desde de o interdictum de

homine libero exhibendo, na Roma antiga, passando pela Magna Carta Libertatum, e pelo “

Habeas Corpus Acts.” A liberdade sempre representou o bem mais valioso que as pessoas

possuíam. Gerras foram travadas, muito sangue foi vertido para a sua manutenção. No

Brasil Colônia, apesar de inexistir uma ação de habeas corpus propriamente dita, como na

Inglaterra e nos Estados Unidos da América, e mesmo diante do sistema inquisitivo e

extremamente fechado das Ordenações do Reino, havia um recurso para a defesa da

liberdade física das pessoas, era o interdictum de homine libero exhibendo. Somente no

se necessário for, para a execução da sentença.

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ano de 1832, por meio do Código de Processo Penal do Império, o Brasil passou a utilizar o

habeas corpus como meio para tutelar a liberdade, galgando status de norma constitucional

expressa, somente com o advento da Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1891,

desde de então, até os dias de hoje, a ação de habeas corpus sempre passou a ter previsão

constitucional, ressalva seja feita ao período compreendido entre 1942 e 1946, em que por

força do Decreto 10.358 houve revogação da previsão constitucional, ficando a sua

regulamentação somente por conta o Código de Processo Penal

O conceito de liberdade no Brasil, assim como ocorria no mundo, também não

se mostrou pacífico. Alguns juristas, como Rui Barbosa e outros, defendiam um

entendimento amplo do conceito de liberdade, seguindo a concepção francesa: sustentavam

o cabimento da ação de habeas corpus para defender todo e qualquer direito de liberdade.

Em posição diametralmente oposta encontravam-se Pontes de Miranda e Pedro Lessa, para

os quais a ação de habeas corpus só teria cabimento para defender a liberdade de ir, estar e

vir, adotando, portanto, a concepção inglesa, que diferenciava as espécies de liberdade, e

restringiam o “Habeas Corpus Act” para a tutela da liberdade ambulatorial das pessoas. Rui

Barbosa, Pedro Lessa e Pontes de Miranda divergiam também quanto a amplitude da ação

de habeas corpus, aquele defendia uma eficácia ampla, admitindo uma cognição exauriente

do mérito do direito, via ação de habeas corpus, enquanto que estes, entendiam ser

necessária a existência de um direito líquido e certo para embasar um pedido de habeas

corpus. Ao final, Rui Barbosa, a despeito da clareza e do brilhantismo de suas ideias, restou

vencido na contenda. Foi a chamada Teoria Brasileira do Habeas Corpus que dominou o

cerne das discussões jurídicas, quanto ao habeas corpus, nas duas primeiras décadas do

século XX. Atualmente, o debate travado entre Rui Barbosa e Pedro Lessa pode até parecer

de somenos importância, porém, o seu legado perdura até hoje. A Teoria Brasileira do

Habeas Corpus deixou reflexos no ordenamento jurídico brasileiro, na medida em fixou, de

forma definitiva, a finalidade da ação de habeas corpus.

O habeas corpus teve o seu âmbito de incidência estabelecido ainda sob a égide

da Constituição de 1891 com a reforma de 1926, por meio da emenda nº 3, quando o

legislador constituinte derivado fixou a incidência da ação de habeas corpus somente para

proteger a liberdade de locomoção, a sua eficácia prática, contudo, estava longe de se

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estabilizar. A história política do Brasil apresenta-se entrecortada, mesclando períodos

autoritários com períodos de regularidade democrática. Todas as vezes em que grupos com

ideais antidemocráticos assumiram o poder, o habeas corpus experimentou uma redução na

sua eficácia prática, tornando, por vezes, o texto constitucional relativo ao habeas corpus,

letra morta. Havia previsão da ação de habeas corpus, mas ela não poderia ser utilizada.

Assim ocorreu na Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937, que, inicialmente,

previu literalmente a ação de habeas corpus, mas vedou a sua utilização durante a vigência

de estado de emergência, sendo que o legislador Constituinte, por meio de uma manobra,

retirou a eficácia prática do habeas corpus, quando, ao final da Carta Constitucional de

1937, estabeleceu que ficava decretado estado de emergência, e por fim, promoveu a

própria revogação da previsão do texto constitucional. O mesmo se verificou na

Constituição de 1967, quando o Governo Militar, por meio do Ato Institucional nº 5, vedou

a utilização da ação de habeas corpus para determinados crimes, tais como: crimes

políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.

O estudo da ação de habeas corpus, ao longo da história do Brasil, indica que a

sua eficácia prática varia conforme os ideais que predominam no Poder Executivo. Ela

torna-se mais ampla durante os períodos de regularidade democrática. Já que os governos

autoritários costumam ser refratários a qualquer recurso que proteja a liberdade livre de

locomoção, a fim de poder preservar as ações do Estado, ainda que, por vezes, arbitrárias.

Dessa maneira, é possível se verificar que o habeas corpus pode ser utilizado como um

sinalizador, um farol, indicando o tipo de governo existente, na medida em que a sua

eficácia prática pode apontar a existência ou não de ideais que preservam a regularidade

democrática, ou que sendo à esta refratários, priorizem a mão de ferro do Estado. Em todos

os países verdadeiramente democráticos sempre há um meio judicial eficaz que tutela a

liberdade de ir e vir das pessoas. O Brasil não se mostra diferente, para nós o habeas corpus

é “Remédio Heroico,” que se levanta contra as arbitrariedades praticadas pelo Estado

contra a liberdade ambulatorial das pessoas, Daí surge a importância de se estar atento para

sua efetiva eficácia prática, se de fato pretende-se ter um Estado Democrático de Direito.

É bem verdade que em um Estado, cuja pretensão é de ser verdadeiramente

democrático, o acesso à justiça deve estar garantido da maneira mais ampla possível, e a via

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da ação de habeas corpus não pode, nem deve ser, o único meio hábil para tutelar a

liberdade de locomoção sob pena de, por existir um único caminho, tornar inviável uma

tutela eficaz do direito de liberdade. Outros mecanismos necessitam e devem ser

disponibilizados para que as pessoas possam buscar no Poder Judiciário um resguardo

efetivo contra eventuais arbitrariedades do Estado. O incremento de outras vias, como a

audiência de custódia, por exemplo, sem a menor sombra de dúvida, permite um controle

mais eficaz e célere das prisões em flagrante, garantindo o direito de ir e vir, ainda no

nascedouro, preservando-o de eventuais ilegalidades. As demais vias recursais fazem-se

necessária também, porque, quanto maiores forem as possibilidades de as pessoas buscarem

o resguardo da função jurisdicional do Estado, mais eficaz será a prestação jurisdicional. O

caminho para o verdadeiro e eficaz acesso à justiça está na ampliação dos meios que levam

à função jurisdicional. A mim me parece inadequada a obstrução de uma via, por meio de

uma jurisprudência defensiva, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, fazendo reviver

uma regra existente em um regime autoritário, com a finalidade única de promover

desobstrução das pautas e a redução do trabalho.

O Supremo Tribunal Federal é a última trincheira na qual uma pessoa pode

buscar o resguardo, pela via da prestação jurisdicional, para a manutenção do direito de

liberdade ambulatorial. A alegação de que a via recursal seria a mais adequada, não pode,

nem deve afastar a tradição libertária brasileira de admitir a utilização dos habeas corpus

substitutivos. Todas a vias processuais são válidas, e bem vindas, porém, ainda não

superam a via da ação de habeas corpus, tendo em vista as vantagens inequívocas que esta

ação proporciona, na medida em que qualquer pessoa, mesmo sem possuir conhecimento

técnico jurídico e habilitação específica pode dela se valer, sem precisar arcar com custas

judiciais, isso sem mencionar a celeridade que a via do habeas corpus proporciona, com a

possibilidade da medida liminar, bem superior à via recursal. Não se trata de refutar

qualquer mecanismo que possa vir a garantir o direito de ir e vir, mas assegurar que mais

um meio esteja à disposição da população, como garantia contra eventual violência estatal.

No Brasil as liberdades democráticas foram conquistadas pelo povo com muita

luta e sacrifício, por inúmeras vezes a sombra do autoritarismo e intolerância se abateu

sobre o país. Grupos interessados apenas na manutenção do poder e de privilégios, não

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hesitam em tentar submeter toda uma população aos seus caprichos frívolos. As instituições

democráticas, e o Poder Judiciário, em particular e especialmente, precisam e devem estar

atentos aos desmandos e a toda e qualquer manobra que tente, de alguma forma mitigar ou

subtrair as liberdades democráticas. Nenhuma forma de ditadura pode ou deve ser aceita,

porque, quando se instala, seja pelo argumento que for, o primeiro bem a deixar de existir é

a liberdade das pessoas comuns do povo. O grupo detentor do poder utiliza da retórica, da

força, ou de qualquer meio disponível para manter o seu poder e os seus privilégios. É

dever das pessoas de bom senso se oporem à possibilidade de um retorno de ideais

autoritários. A função jurisdicional do Estado sempre teve um papel de protagonismo e

relevância na luta pela manutenção das liberdades democráticas no Brasil; cabe aos

profissionais do Direito se empenharem para preservar todas as conquistas alcançadas, lutar

pela manutenção do acesso efetivo e célere à justiça, pois não há motivo algum que deva

restringir, seja por que razão for, qualquer via que possa permitir, ao comum do povo, levar

a sua questão ao conhecimento da função jurisdicional. A obstrução de qualquer via judicial

pode causar sérios problemas, na medida em que uma eventual lesão à direito pode ficar

escondida. É por essa razão que os ingleses sempre se preocuparam com a liberdade de

locomoção; diziam eles, que a lesão à integridade física, ou à vida, não se mostrava tão

grave, porque sempre, de alguma forma, ela seria exposta ao público, já a lesão ao direito

de ir e vir poderia ficar oculto indefinidamente. A manutenção das vias judiciais é crucial

para evitar o obscurantismo de lesões praticadas ao direito. Nesse sentido, a jurisprudência

defensiva do Tribunais Superiores, com a finalidade exclusiva de reduzir carga de trabalho,

torna-se um instrumento perigoso, capaz de manter às ocultas uma eventual lesão a direitos,

especialmente a liberdade de ir e vir que é mais vulnerável, pois uma pessoa pode ficar

oculta por anos, presa ilegalmente, sem que haja justo motivo. Não é crível que os senhores

Magistrados queiram se furtar ao trabalho e, para tanto, deixem ao desamparo indivíduos

que estejam sofrendo arbitrariedades por conta do Estado. É dever, e não faculdade. Cabe,

constitucionalmente, à função jurisdicional, o controle de legalidade dos atos praticados no

território brasileiro, por conta disso, todos os mecanismos precisam estar à disposição das

pessoas para que possam levar ao judiciário as suas questões, não devendo encontrar, para

tanto, nenhuma espécie de entrave de ordem processual, seja burocrático, seja

jurisprudencial. O entrave a que me refiro não se trata de questão de mérito, mas

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processual. As pessoas, segundo a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

tem o direito de levar as suas questões ao conhecimento do Poder Judiciário, uma

jurisprudência defensiva, de ordem processual, que retire esse direito, não me parece

condizente com os autênticos valores de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.

Thomas Jefferson, um dos pais fundadores dos Estados Unidos da América,

segundo diz a tradição, já afirmava: “o preço da liberdade é a eterna vigilância.”

Independentemente da corrente ideológica, não há como existir democracia sem liberdade,

e, em especial, a liberdade de ir e vir. Assim sendo, é preciso estar atento para a eficácia

prática do “Remédio Heroico”, porque ele é o sinalizador que irá apontar para as incursões

obscuras dos ideais antidemocráticos. Nesse sentido está a relevância da manutenção da via

do habeas corpus substitutivo, sem desmerecer as outras vias processuais, porque é ele o

caminho mais eficaz e célere para levar ao conhecimento dos Tribunais Superiores, e em

particular ao Supremo Tribunal Federal, última trincheira do Estado Democrático de

Direito, a ocorrência de eventuais arbitrariedades praticadas pelos agentes do Estado.

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