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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Instituto de Geociências e Ciências Exatas Câmpus de Rio Claro JAMUR ANDRE VENTURIN A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA NO BRASIL DA PERSPECTIVA DO DISCURSO DE PESQUISADORES Tese de doutorado apresentada ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Câmpus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, como parte dos requisitos para a obtenção do título de doutor. Orientadora: Profª. Dr a . Maria Aparecida Viggiani Bicudo. RIO CLARO 2015

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

    JLIO DE MESQUITA FILHO

    Instituto de Geocincias e Cincias Exatas

    Cmpus de Rio Claro

    JAMUR ANDRE VENTURIN

    A EDUCAO MATEMTICA NO BRASIL DA PERSPECTIVA DO DISCURSO DE

    PESQUISADORES

    Tese de doutorado apresentada ao Instituto de

    Geocincias e Cincias Exatas do Cmpus de Rio

    Claro, da Universidade Estadual Paulista Jlio de

    Mesquita Filho, como parte dos requisitos para a

    obteno do ttulo de doutor.

    Orientadora: Prof. Dra. Maria Aparecida

    Viggiani Bicudo.

    RIO CLARO

    2015

  • Venturin, Jamur Andre A educao matemtica no Brasil da perspectiva do discurso depesquisadores / Jamur Andre Venturin. - Rio Claro, 2015 541 f. : il., quadros

    Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Instituto deGeocincias e Cincias Exatas Orientador: Maria Aparecida Viggiani Bicudo

    1. Matemtica Estudo e ensino. 2. Fenomenologia. 3. Metapesquisa.4. Professor de Matemtica. I. Ttulo.

    510.07V469e

    Ficha Catalogrfica elaborada pela STATI - Biblioteca da UNESPCampus de Rio Claro/SP

  • JAMUR ANDRE VENTURIN

    A EDUCAO MATEMTICA NO BRASIL DA PERSPECTIVA DO DISCURSO DE

    PESQUISADORES

    Tese de doutorado apresentada ao Instituto de

    Geocincias e Cincias Exatas do Cmpus de Rio

    Claro, da Universidade Estadual Paulista Jlio de

    Mesquita Filho, como parte dos requisitos para a

    obteno do ttulo de doutor.

    Orientadora: Prof. Dra. Maria Aparecida

    Viggiani Bicudo.

    Comisso Examinadora

    Prof(a). Dr(a). Maria Aparecida Viggiani Bicudo - Orientador(a)

    IGCE/UNESP/Rio Claro (SP)

    Prof. Dr. Antnio Joaquim Severino

    UNINOVE/So Paulo (SP)

    Prof. Dr. Carlos Roberto Vianna

    UFPR/Curitiba (PR)

    Prof. Dr. Nilson Jos Machado

    FE/USP/So Paulo (SP)

    Prof. Dr. Roger Miarka

    IGCE/UNESP/Rio Claro (SP)

    Resultado: Aprovado

    Rio Claro, 24 de agosto de 2015

  • Dedico este trabalho aos meus pais Adilo e Edite

  • AGRADECIMENTOS

    Nesta trajetria, agradeo ao meu pai Adilo Venturin, minha me Edite Leocadia Lora

    Venturin e ao meu irmo Jorge. O incentivo deles deu-me nimo para desenvolver o trabalho.

    Agradeo professora Dra. Maria Aparecida Viggiani Bicudo, pela orientao, e por estar

    presente em toda a trajetria de estudo e de pesquisa.

    Agradeo aos professores do Curso de Licenciatura em Matemtica da Universidade Federal

    do Tocantins (UFT).

    Agradeo Universidade Federal do Tocantins pelo apoio financeiro e incentivo para a

    realizao do doutorado.

    Agradeo aos professores pesquisadores que, gentilmente, concederam as entrevistas para a

    realizao dessa pesquisa.

    Agradeo banca de exame de qualificao e de defesa pelas consideraes tericas

    apontadas no trabalho.

    Agradeo ao Alessandro, pelo dilogo e por socializar sua experincia e

    conhecimento em Filosofia.

    Agradeo ao Flvio, pela longa jornada de estudos, de discusses e de teorizaes sobre a

    fenomenologia husserliana.

    Agradeo ao Renato e ao Gustavo, pelo estudo e discusses sobre Heidegger.

    Agradeo ao grupo de estudos em Fenomenologia e Educao Matemtica (FEM) pelas

    discusses e leituras realizadas.

    Agradeo Marli, Anderson (kochym), Flvio, Tas, Rose, Jesaas, Ana Paula, Roger,

    Dbora, Maria, Rosa, Bruna, Luciane e Orlando, pelos momentos em que dialogamos e/ou

    estudamos Fenomenologia em Rio Claro.

    Agradeo tambm aos familiares e amigos que estiveram presentes no movimento de pesquisa

    e aos amigos dos longos passeios de bicicleta e das confraternizaes realizadas em Rio

    Claro.

    Agradeo aos alunos da Universidade Federal do Tocantins que participaram do grupo de

    estudo em Educao Matemtica e Fenomenologia. O dilogo, com eles, impulsionou-me a

    compreender ideias inicias em Fenomenologia.

    Agradeo ao Programa de Ps-graduao em Educao Matemtica da Universidade Estadual

    Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP), Cmpus de Rio Claro pela oportunidade de cursar

    o doutorado.

    Agradeo aos funcionrios da biblioteca e do Departamento de Matemtica da UNESP pelas

    informaes e pelos auxlios tcnicos.

    Agradeo Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP) pelo apoio

    financeiro concedido a esta pesquisa.

  • RESUMO

    Este trabalho tem como foco de pesquisa a Educao Matemtica por ns interrogada com a

    indagao: O que os pesquisadores em Educao Matemtica, no Brasil, dizem da Educao

    Matemtica?. O objetivo o de buscar compreender o significado de Educao Matemtica

    nos seus diferentes modos de se presentificar nos discursos de pesquisadores que atuam no

    Brasil, focando essa rea de investigao e tendo por meta delinear um estilo. Para constituir

    os dados da pesquisa, foram entrevistados os professores pesquisadores, que atuam no Brasil,

    que foram referenciados no III SIPEM. A Fenomenologia husserliana o solo filosfico

    assumido para a realizao da investigao. A anlise de dados consistiu-se em dois momentos:

    a Ideogrfica e a Nomottica. No primeiro, so articuladas as unidades de significado a partir

    do discurso de cada sujeito significativo, constitudas luz da interrogao. No segundo,

    reunimos as unidades de significado, buscando as convergncias; esse o momento em que nos

    direcionamos do individual para ncleos de ideias mais abrangentes a qual denominamos de

    Ncleos de Significado, que dizem da Educao Matemtica, do que ela est sendo e indicando

    linhas que avanam para o seu vir-a-ser. Nesse movimento, constitumos os Ncleos de

    Significado: 1) A Produo Cientfica em/na Educao Matemtica; 2) A compreenso de/em

    Educao Matemtica; 3) Educao Matemtica e Matemtica; 4) A Prtica do Professor de

    Matemtica; 5) A Formao do Educador Matemtico. Estes ncleos de significado foram

    interpretados e teorizados.

    Palavras-chave: Educao Matemtica; Matemtica; Fenomenologia; Metapesquisa;

    Professor de Matemtica.

  • ABSTRACT

    This study focuses on Mathematics Education, which begs the question of the following

    inquiry: What do Mathematics Education researchers have to say about Mathematics

    Education in Brazil?. The objective is to understand the meaning of Mathematics Education in

    the different ways that it presents itself to researchers speeches in Brazil, focusing in this field

    of study and trying to outline a style for it. The research data were obtained by interviewing

    teachers and researches, who work in Brazil and were referenced in III SIPEM. The Husserlian

    Phenomenology is the philosophical method used for this investigation. The data analysis

    consisted of two moments: the Ideographic analysis and the Nomothetic analysis. In the first

    one, the meaning units were broken up into the speech of each significant individual, established

    by the interrogation. In the second moment, we gathered the meaning units, looking for

    convergences; this is the moment when we directed ourselves from the individual notion to a

    core of more comprehensive ideas, which were referred to as Meaning Cores, explaining what

    Mathematics Education is now and indicating what it could be in the future. This way, we

    created the following Meaning Cores: 1) The Scientific Production in Mathematics Education;

    2) The understanding of/in Mathematics Education; 3) Mathematics Education and

    Mathematics; 4) The Practices of a Mathematics Teacher; 5) The Mathematics Teacher

    Training. These Meaning Cores were interpreted and theorized.

    Keywords: Mathematics Education; Mathematics; Phenomenology; MetaResearch;

    Mathematics Teacher.

  • SUMRIO

    CAPTULO I ..........................................................................................................10

    VIDA EM MOVIMENTO ........................................................................................ 10

    1.1 Possibilidade de compreender rastros de vivncias de outrem ............................. 16

    1.2 Da organizao do texto da tese ............................................................................ 17

    CAPTULO II ......................................................................................................... 19

    FENOMENOLOGIA: INTRODUZINDO SENTIDOS E SIGNIFICADOS .......................... 19

    2.1 A matematizao da natureza ................................................................................ 20

    2.2 Apresentao do campo de percepo .................................................................. 24

    2.3 O sentido do indagado: ir coisa mesma .............................................................. 27

    2.4 Buscando expor conceitos nucleares fenomenologia .......................................... 29

    2.4.1 Mundo-vida e intencionalidade .......................................................................................30

    2.4.2 Da Epoch subjetividade ...............................................................................................31

    2.4.3 Da subjetividade-intersubjetividade a caminho da objetividade ......................................34

    2.4.4 Compreenso de sentido e de significado para a pesquisa ..............................................38

    CAPTULO III ........................................................................................................ 41

    O TEMA DE PESQUISA: EDUCAO MATEMTICA ............................................... 41

    3.1 Por que este tema de pesquisa se mantm? ....................................................... 44

    3.2 A expanso do campo de percepo segundo a literatura estudada ....................... 76

    CAPTULO IV ........................................................................................................ 79

    EFETUANDO A INVESTIGAO SEGUNDO A VISO FENOMENOLGICA ............... 79

    4.1 Em busca de procedimentos de pesquisa ............................................................... 79

    4.2 Realidade e conhecimento ..................................................................................... 81

    4.3 O movimento de pesquisa em fenomenologia ....................................................... 83

    4.3.1 A possibilidade da descrio ............................................................................................85

    4.3.2 Indcios de sentido com a voz fenomenolgica ................................................................89

    4.4 Da interrogao e o que a interrogao interroga ................................................. 91

    4.5 Procedimentos de investigao ............................................................................. 92

  • CAPTULO V ......................................................................................................... 95

    O MOVIMENTO DE DESCREVER, EXPOR E ANALISAR O FENMENO PERCEBIDO .. 95

    5.1 A transcrio das entrevistas ................................................................................. 95

    5.2 Da anlise ideogrfica e a explicitao das Unidades de Significado .................... 96

    5.3 Da Anlise Nomottica: convergncia das Unidades de Significado ................ 447

    CAPTULO VI ...................................................................................................... 469

    O QUE EXPRESSAM OS NCLEOS DE SIGNIFICADO ............................................ 469

    6.1 Ncleo de Significado 1- A Produo Cientfica em/na Educao Matemtica .. 470

    6.2 Ncleo de Significado 2 A Compreenso de/em Educao Matemtica .......... 485

    6.3 Ncleo de Significado 3 - Educao Matemtica e Matemtica .......................... 496

    6.4 Ncleo de Significado 4 A Prtica do Professor de Matemtica ...................... 504

    6.5 Ncleo de Significado 5 A Formao do Educador Matemtico ...................... 517

    CAPTULO VII ..................................................................................................... 525

    EM DIREO A UMA SNTESE COMPREENSIVA A UMA METACOMPREENSO DO

    FENMENO INVESTIGADO ..................................................................................... 525

    REFERNCIAS ..................................................................................................... 537

  • 10

    O Espinoza de um lado epistemlogo, mas sem dvida nenhuma

    um libertrio; algum que pensa a liberdade em um alto nvel, porque nada

    para ele se conquistar nesta natureza se no houver liberdade, ou seja,

    nada se conquistar se este oceano que varrido pelos ventos contrrios

    no passar a produzir as suas prprias ondas.

    Por Claudio Ulpiano

    CAPTULO I

    VIDA EM MOVIMENTO

    As experincias que me impulsionaram a pesquisar Educao Matemtica

    movimentaram-me e mostram um pouco de como estou sendo atualmente1. Poderia questionar

    o que sou? Ou como sou? O o qu e o como so duas aberturas que explicitam modos de como

    me vejo e o que vejo de mim.2 Poderia ir por outro caminho e descrev-los sem me preocupar

    com o o qu e com o como. Poderia, apenas, expressar: eu estou estudando educao

    matemtica por acidente.3

    Afinal, o que impulsionou, consideravelmente, a escolha deste tema de pesquisa seria:

    a curiosidade, o trabalho acadmico, o gosto por Matemtica, o trabalho como funileiro, o jogo

    de xadrez, a sala de aula, as viagens, o Curso de Edificaes, as leituras de revista em

    quadrinhos, as reprovaes? Nesse caso, eu estaria sendo movido por uma viso bastante

    pragmatista sobre as razes que me conduzem a investigar um tema. Debruando-me sobre o

    percurso vivenciado, vejo o movimento contextual da academia solicitando-me um ttulo de

    doutor para cumprir a funo de pesquisador. Percebo, ainda, que outros temas, que dialogam

    1 Escrevo na primeira pessoa do singular quando me refiro as experincias por mim vivenciadas e na primeira

    pessoa do plural quando busco outros autores para compor o texto.

    As citaes diretas no texto esto sendo marcadas em itlico e no entre aspas como em geral so apresentadas

    nos trabalhos acadmicos. As indicaes do autor, ano e pgina da obra referenciada esto em notas de rodap. As

    marcaes que os autores fazem em seus textos esto sublinhadas.

    Da tese fazem parte todas as entrevistas e suas anlises, fazendo com que o seu volume fique grande, ou seja, com

    muitas pginas. Entretanto, essa uma deciso assumida com a orientadora que entende que desse modo so salvos

    os dados de pesquisa, como se fosse um banco de dados, disponveis a outros pesquisadores, alm de ser crucial

    para o desenrolar do pensamento articulador que acompanha toda a investigao. 2 Essas indagaes abrem perspectivas para que eu possa fazer a crtica, a anlise e a reflexividade do que se

    destaca com as experincias vivenciadas. 3 Observo que escrevo Educao Matemtica, com as primeiras letras maisculas, para dizer do campo de

    investigao e educao matemtica, com as primeiras letras minsculas para dizer do que se est fazendo, sem

    tematizar esse assunto.

  • 11

    com o exposto, tambm me puseram em movimento de busca. Compreendo que so aqueles

    que esto vinculados s atividades acadmicas e que apontam para a estrutura da Matemtica,

    para a possibilidade de existirem outros modos de produo desse conhecimento, praticado no

    cotidiano das pessoas em suas comunidades; para o modo pelo qual a Matemtica abordada

    na sala de aula; para a interrogao: por que Matemtica; para como a Educao Matemtica

    est se mostrando enquanto campo de pesquisa e de prtica profissional. Dou-me conta de que

    esses contextos de vivncias profissionais e pessoais anunciaram tramas que se enrolam na vida

    vivida.

    Percebo que as tramas apontadas ainda no do conta de expressar, em totalidade, toda

    a trama que me impeliu a seguir o caminho para estudar Educao Matemtica. Entendo que

    algumas das experincias citadas so vestgios do vivenciado e com eles que me identifico e

    abro um campo para pesquisa.

    Pensando assim e colocando-me na posio de responder indagao de como a

    Educao Matemtica est se mostrando procuro focar esse projeto que se destacou com minha

    vivncia, indicando que a deciso assumida buscar compreender os modos pelos quais a

    Educao Matemtica est sendo vista segundo o discurso de pesquisadores que atuam no

    Brasil4. Portanto, a pedra angular para tomar a deciso de tematizar Educao Matemtica se

    deu no contexto em que vivencio experincias junto aos outros e com a oportunidade de estudar,

    de aprender a pensar e a pesquisar bem como de avanar junto a educadores matemticos.

    Dou-me conta, com este movimento de busca por compreenso, que intenciono

    realizar uma investigao que abranja: o pensar, o querer entender, o explicitar a Educao

    Matemtica, vendo-a em devir.

    A esto o impulso e as motivaes para escolha feita. Assim percebo.

    x..........x..........x

    Os contextos anunciados at aqui mostram algumas marcas e, quando as destaco dizem

    de mim e do tema que trago junto fala. H outras vivncias que me impulsionam a tomar

    decises, que me levam a pensar e agir no fluxo vivido que so complexas de descrev-las. No

    d para expressar e descrever as mincias de como somos. O ser humano complexo. Penso

    no haver modo completo para dizer dele: toda tentativa de completude j , em sua origem,

    um projeto fracassado. Somos devir. Temos possibilidades. Pensamos, em filosofia, em

    4 No 4 captulo explicitamos, com pormenores, quem so esses pesquisadores e como os destacamos enquanto

    sujeitos significativos para o desenvolvimento da pesquisa.

  • 12

    conceitos filosficos para expressar as atividades mundanas, porm, no determinsticos,

    portanto, abertos e, por isso, em movimento de serem compreendidos.

    Os outros aspectos de vivncia complementam/no complementam o que sou (em

    movimento): a educao dos meus pais, a escola, a religio, o sinal de trnsito5, a sociedade

    etc.; ainda assim o que foi tecido at aqui, no determinante no sentido de que continuarei a

    fazer o que estou fazendo hoje. A vida apresenta-se em campo de percepo6 com horizonte

    em expanso. Clama ateno, dizendo: o horizonte tende a se deslocar de maneira que a linha

    que demarca o at onde vai minha viso se movimenta para mais longe, medida que a clareza

    vai se fazendo para aquele que olha interrogativamente. Desse modo, o horizonte se evidencia

    como abertura de possibilidades quando nos dispomos a avanar, indo alm do que a est.

    Avanar traz como marcas: criar novas possibilidades de compreenses, o que no significa,

    necessariamente, afirmaes positivas e objetivas sobre o compreendido.

    Imbricadas neste movimento esto as leituras em Educao Matemtica, em

    Fenomenologia, em Filosofia, em Literatura, os dilogos com os pares, o grupo de estudo e o

    questionamento do sentido das coisas permitiram-me expressar uma compreenso de mundo.

    O que se mostra7, mostra-se a algum que interroga o que v e que percebe o que se mostra de

    uma perspectiva. Se me afasto ou aproximo-me, h outras nuanas do percebido, outras

    atuaes para o sentido. E assim o percebido destaca-se em perfis.

    Mergulhando nesse movimento e tendo as indagaes formuladas presentes, entendo

    que o que ser exposto com a pesquisa o que compreendi nessa experincia vivida e que faz

    sentido para mim8, embora no seja fruto de um pensar abstrato e solitrio, mas sempre em

    processo de constituio em que estou com os outros em dilogo na realidade mundana.

    Esta postura converge com a da Fenomenologia. Entendo-a como uma abertura

    leitura de mundo e ao modo de compreend-lo. Para Bicudo (2010) um aspecto que caracteriza

    fenomenologia a busca pelo sentido do mundo-vida, na medida em que, pelo olhar

    interrogador, destacamos figuras dessa totalidade, visando compreend-las. Buscar o sentido

    do que me inquieta, entendo esta afirmao como um lema que abre para uma compreenso

    inicial de fenomenologia, visto que indaguei o prprio sentido de Fenomenologia, das ideias

    conceituais fenomenolgicas, no me valendo apenas de conceitos referenciados na elaborao

    5 Esse aspecto do cotidiano vivido muito importante para mim, pois como sou daltnico, em algumas situaes,

    um problema distinguir o passe, a ateno e o pare. 6 Observo que os conceitos em destaque sero retomados e explicitados no decorrer do captulo concernente

    fenomenologia. 7 Aqui estou expondo a ideia de fenmeno, como compreendido pela fenomenologia. 8 importante que se entenda, desde j, que no me assumo de modo solipsista, mas busco pelos sentidos que o

    mundo faz para mim ao estar com os outros.

  • 13

    deste texto. Com esta abertura, estou afirmando que no me ative a um estudo exegtico de

    alguns temas e de conceitos fenomenolgicos presentes na obra de Husserl, colaboradores e

    autores que trabalham com fenomenologia, mas os estudei, analisando-os e interpretando-os no

    mbito do horizonte de minha visada.

    Isso por dois motivos.

    O primeiro: diz do meu entendimento em Husserl, por ser um leitor iniciante, mais do

    que isso e, principalmente, por estar em movimento de ser. Compreendo que certos aspectos de

    sua filosofia fenomenolgica vo sendo aclarados medida que se aprofundam aos estudos.

    Com esse cuidado, trouxe para o dilogo com a fenomenologia husserliana outros estudiosos

    em Husserl.

    O segundo motivo: Husserl faz filosofia fenomenolgica pura9. Ele visou rigor e

    cientificidade produo do pensar filosfico, o que, conforme explicita, exercita mediante a

    postura e procedimentos fenomenolgicos. Como a atividade que realizo a de valer-me de

    aspectos, ou de conceitos, da filosofia fenomenolgica para dialogar com a pesquisa que estou

    realizando, focando a interrogao que me movimenta, o modo de proceder na constituio de

    dados para pesquisa, bem como, o processo de produo do texto, dou-me conta de que

    investigo em educao matemtica, no fazendo, portanto, filosofia husserliana pura, mas

    filosofia fenomenolgica e vivenciada em educao matemtica. Isto quer dizer que sou eu,

    sujeito encarnado, que persigo o sentido, estando situado e ciente do que se mostra no mbito

    de afirmaes j formuladas em juzos e avaliadas, quando as escolho e as explicito com o meu

    modo de ver o mundo, articulando-o com ideias de outros estudiosos.

    Os juzos efetuados so as evidncias das experincias vividas objetivadas em

    proposies escritas ou faladas. na ao de expressar uma palavra que se estiliza o devir das

    coisas. A escolha vem estilizada com a grafia de minha vida e assim, no movimento de expor a

    compreenso, eu promulgo um juzo. Por isso, busco escrever e compreender alguns conceitos

    fenomenolgicos na perspectiva de realizar pesquisa, corroborando a viso de Merleau-Ponty,

    9 Para Ales Bello (2004) a fenomenologia tomada em si mesma. A mesma autora afirma que o aspecto que

    interessa fenomenologia husserliana essa anlise do interior do sujeito e dos sujeitos humanos.(2004, p. 97).

    Husserl tem preocupaes em explicitar o modo pelo qual o ser humano evidencia o sentido das coisas deste

    mundo. Para tanto, faz uma anlise psicolgica fenomenolgica da constituio da subjetividade, porm vai alm

    deste aspecto e expe sua compreenso da constituio da intersubjetividade e objetividade, como ser visto ainda

    neste trabalho. Este tema ser tratado no decorrer do texto, dialogando com Merleau-Ponty, Bicudo, Ales Bello e

    outros autores, quando expressaremos nossa compreenso fenomenolgica; e assim anunciaremos como estamos

    dizendo da radicalidade, por exemplo, no movimento de epoch.

    Destaco ainda a importncia do estudo realizado em Fenomenologia com o colega de grupo Flvio de Souza

    Coelho para a compreenso de conceitos fenomenolgicos tratados nesse trabalho.

  • 14

    para quem o mundo no aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; estou aberto ao mundo,

    comunico-me indubitavelmente com ele, no o possuo, ele inesgotvel.10

    Merleau-Ponty parece dizer o bvio: mundo aquilo que eu vivo. Mas, o bvio perde

    o tom de obviedade quando o tematizamos. Portanto, viver o mundo solicita ao. A ao

    estar em movimento, em curso, vivenciando experincias. A vivncia da vida exposta no

    contexto da prpria vivncia. Isto parece redundante, mas no ; nem circularidade. Isso quer

    dizer que o sujeito est consciente do que experienciou e pode retom-lo, tematiz-lo,

    abandon-lo, avanando em seu movimento de compreenso. A vivncia11 alimenta e constitui

    a realidade mundana. Ela a impulsiona. Em fenomenologia a realidade no dada

    positivamente. A realidade vai sendo tecida no movimento de busca do sentido das coisas que

    se destacam com as vivncias vividas, na acolhida do percebido pela conscincia em cujos atos

    ele articulado j engendrando a expresso dessa articulao mediante a linguagem e a

    respectiva comunicao, em partilhamento com os cossujeitos daquele que vivencia. Nessa rede

    de co-compreenses e expresses, a realidade do mundo-vida vai sendo constituda

    historicamente.

    Poderia expressar vivncia como as aes efetuadas em um contexto cultural, poltico,

    social que expe, para o outro, cossujeito com quem estou e com quem dialogo as experincias.

    Nas vivncias, potencializo prticas e experiencio as coisas mundanas. Vivncia parece se

    misturar com a vida12, portanto, vai alm de constituio, um modo de avanar. As vivncias

    esto amalgamadas em um campo de percepo. Nele est o outro ser humano e natureza em

    geral.

    Nessa perspectiva, a afirmao de Merleau-Ponty o mundo no aquilo que eu penso,

    mas aquilo que eu vivo pe em movimento e d vida Fenomenologia, aos seus conceitos e,

    agora, novas aberturas so elaboradas com a viso de mundo deste pesquisador e estudioso que

    me ponho a pesquisar.

    10 MERLEAU-PONTY, 2006, p. 14. 11 GADAMER (2012), dialogando com outros pensadores, trata o conceito de vivncia junto com a arte. A arte

    vivencial significa, em princpio, que a arte origina-se da vivncia e dela expresso. (2012, p. 117). Sobre o

    tema arte, o professor de filosofia Claudio Ulpiano (1997) expressa: so objetivos exclusivos da arte tocar nos

    afetos e no perceptos, ou seja, alterar nossos afetos e alterar nossos perceptos (transcrio de trecho do vdeo,

    1997). A arte, nesse sentido, a abertura para o novo.

    Em Gadamer (2012) a motivao do surgimento da palavra vivncia (Erlebnis) na lngua alem uma formao

    secundria da palavra vivenciar (Erleben), que tornou-se comum na dcada de setenta do sculo XIX e aparece

    numa carta de Hegel, porm h outras ocorrncias isoladas nos anos de 30 e 40. Vivenciar quer dizer [...] ainda

    estar vivo, quando algo acontece[...]. O vivenciado (das Erlebte) sempre o que ns mesmos vivenciamos (das

    Selbsterlebte) (GADAMER, 2012, p.105, destaques do autor); tambm, o contedo que vivenciamos que [...]

    ganha durao, peso e importncia [...] (p. 105), afirma o autor. 12 GADAMER, 2012.

  • 15

    Este um entendimento de mundo para dizer das coisas mundanas. Certamente outras

    leituras e experincias podem me levar a outros modos de expor coisas mundanas, realidade e

    conhecimento.

    Valer-me de ideias da Filosofia fenomenolgica para pratic-la em pesquisa ou

    articul-la com a Filosofia da Educao Matemtica e s atividades mundanas, entender que

    estou e sou formado social, cultural e politicamente. Nesta formao crio julgamento, gosto,

    desejo, expectativa, que me pem em modos distintos de ateno com os aspectos focados dos

    sentidos que se destacam no curso das investigaes.

    Nesse curso, a ao solicita estar atento ao que se movimenta em meu campo de

    percepo. Estar atento uma atividade complexa, que desafia o sujeito da ao, porque o

    questionamento das coisas exige abertura espiritual do pesquisador, exige sua ateno ao

    fenmeno de pesquisa. o eu, tomado em sua subjetividade13 com o outro, entendendo que o

    eu tem experincias prprias, possui um solo histrico que comum aos seres viventes, mas

    busca um sentido, o qual se faz ao ser no mundo-vida em que esto os outros, humanos ou no,

    portanto, tambm seu companheiro. O mundo-vida diz da totalidade do solo histrico, poltico

    e social em que estamos sendo. Portanto, vivemos em uma comunidade14, unida por valores e

    modos de compreender a si, ao mundo e vida; em uma sociedade15, organizada de acordo com

    posies polticas e ideolgicas de seus cidados; e sempre estamos em movimento sendo,

    trazendo consigo o outro, a comunidade, a sociedade com os conflitos e com os diferentes

    interesses polticos, religiosos e culturais que modificam a sociedade e a comunidade.

    Esse modo de ver o mundo leva-me a entender realidade e conhecimento estando

    entrelaados e sendo tecidos no contexto vivido e, ao explicitar entendimento do percebido

    nesse contexto vivido, o que se mostra so aspectos, caractersticas, e no a coisa, ela mesma.

    O que se mostra aponta para... (o percebido, o compreendido, o experienciado) em um solo

    comum a cossujeitos e, por isso, pode haver dilogo em um mesmo horizonte de compreenso.

    A compreenso do percebido articulada pelos sujeitos e se mantm pela linguagem, quando

    13 A subjetividade e uma totalidade complexa que, de acordo Ales Bello (2006) ao referir-se a Husserl, abrange

    o fisiolgico (sensaes e percepes), o psicolgico e o espiritual (entendido esprito como a dimenso do juzo). 14 Husserl e Stein acreditam que a organizao que respeita a pessoa se chama comunidade. A comunidade

    caracterizada pelo fato de os seus membros assumirem responsabilidades recprocas. Cada membro considera

    sua liberdade, assim como tambm quer a liberdade do outro e, a partir da, verificam qual o projeto conjunto.

    O projeto pode ser til para a comunidade, mas deve ser til tambm para cada membro. (ALES BELLO, 2006,

    p. 73, destaque do autor). 15

    Fazemos parte de organizaes que aparentemente no so, mas poderiam se tornar comunidades, por exemplo,

    um grupo de alunos de uma mesma sala de aula. A associao existe um vnculo fsico, corporal, mas aquelas

    pessoas formaram esse vnculo por acaso. O termo sociedade descreve esse tipo de grupo, uma vez que os

    membros esto ali por uma finalidade comum. No entanto, se eles forem capazes de estabelecer vnculos psquicos

    e espirituais, podero tornar-se uma comunidade. (ALES BELLO, 2006, p. 75, destaque do autor).

  • 16

    h encontro entre seus campos de compreenso. Entendo que o que est sendo compartilhado

    ganha outros sentidos e significados no curso das vivncias, portanto, apontando para... outras

    compreenses sempre em movimento de constituio.

    Com o acima escrito exponho-me: como me eduquei e educaram-me, como estou me

    vendo e ao mundo; portanto, pesquisa.

    1.1 Possibilidade de compreender rastros de vivncias de outrem16

    A verdadeira filosofia reaprender a ver o mundo e nesse sentido uma

    histria narrada pode significar o mundo com tanta profundidade quanto

    um tratado de filosofia.

    Por Meleau-Ponty

    Expressar como o conhecimento produzido, como a cincia humana, natural, a

    filosofia, a poltica dizem do mundo e como as pessoas entendem mundo ou expem aspectos

    do devir das coisas mundanas uma tarefa complexa, lanando-me em um profundo e

    desagradvel labirinto. A trilha, que escolho percorrer, para expressar o que destaco como

    educao matemtica sinaliza em linguagens gramaticais, descritivas, com cores, formas,

    estilos e traos as marcas histrico-culturais, temporal e espacialmente presentificadas.

    Quando busco o sentido das coisas, entendo que elas esto enlaadas com intensidades

    que variam de acordo com o que focado, em um curso contnuo em espao e tempo. Este

    caminho que torna presentes as marcas histricas-culturais-polticas, algumas mantidas pela

    tradio, outras escondidas espera de narradores, outras perdidas, outras destrudas quase por

    completo, outras a serem criadas, cujos contornos e efeitos so misturados no encontro do ver

    com o visto17 e, ao tatear algumas dessas marcas, impulsionado por uma indagao, histria

    vivida e o desejo de avanar, percebo que faz sentido dizer o que est sendo visto dos estilos e

    formas, do que evidencio e que comunica uma compreenso do percebido, declarado, agora,

    em outra linguagem textual.

    Assim, o texto que produzo e comunico com esta pesquisa cria meu rastro neste

    labirinto que estranhamente se autoconfigura e, assim, no se deixa aprisionar; o seu

    funcionamento como o de um organismo que se expande e cria cdigos que nos

    16 Observo que os captulos so numerados com os algarismos romanos e os subtpicos com os indo-arbicos. 17 Ver-visto diz do movimento noesis-noema, como descrito na fenomenologia husserliana.

  • 17

    orientam/desorientam cada vez que pensamos abarc-los; j no mais nem o mesmo labirinto.

    E, nele, agora, h uma nova possibilidade de movimentar-me, de tatear, de olhar, e de dizer

    outras coisas com essa pesquisa.

    Esse ponto de vista deixa transparecer a dificuldade sentida em relao s escolhas

    assumidas, junto com as possibilidades do que a est para fazer pesquisa e compreender os

    rastros deixados por outros.

    Percebo-me em movimento e nele minha viso de mundo vai se constituindo,

    revelando-se e se escondendo.

    1.2 Da organizao do texto da tese

    Para esclarecer o leitor o modo pelo qual este texto est organizado, apresentamos a

    seguir os captulos que compem esta tese.

    No captulo II, explicitamos nossa compreenso de Fenomenologia e de como nos

    valemos de conceitos nucleares a esse campo filosfico para desenvolver a investigao. Assim,

    tematizamos epoch, subjetividade, intersubjetividade, objetividade, mundo-vida,

    intencionalidade, por exemplo.

    No captulo III, descrevemos a Educao Matemtica segundo a literatura publicada

    na rea. Este captulo no entendido como fundamentao terica. Ns o interpretamos como

    a possibilidade de evidenciar perspectivas da historicidade da Educao Matemtica.

    No captulo IV, anunciamos o modo pelo qual elaboramos os procedimentos

    metodolgicos levando em conta a postura fenomenolgica assumida na pesquisa.

    Explicitamos, ainda, a interrogao e o objetivo da investigao, bem como os sujeitos

    significativos que foram entrevistados para a constituio dos dados da pesquisa.

    No captulo V, apresentamos a transcrio das entrevistas realizadas e relatamos os

    pormenores do procedimento de transcrio. Nesta seo, realizamos a anlise Ideogrfica e a

    Nomottica. No primeiro movimento de anlise, articulamos as unidades de significado. Estas

    expressam nossa compreenso/interpretao do fenmeno de pesquisa. No segundo

    movimento, direcionamo-nos para a reunio das unidades de significados, efetuando suas

    convergncias. Com este procedimento, constitumos os ncleos de significado.

  • 18

    No captulo VI, realizamos o movimento de teorizao do que se evidenciou do

    fenmeno de pesquisa, isto , tematizamos os ncleos de significados, anunciando

    compreenses do tema inquirido.

    No captulo VII, apresentamos uma sntese compreensiva do movimento de teorizao

    e nos direcionamos a uma metacompreenso, dizendo do modo pelo qual estamos

    compreendendo/interpretando o que foi dito de Educao Matemtica, da perspectiva do

    discurso de professores pesquisadores.

  • 19

    CAPTULO II

    FENOMENOLOGIA: INTRODUZINDO SENTIDOS E SIGNIFICADOS

    Ao buscar compreender o que os pesquisadores em Educao Matemtica, no Brasil,

    dizem da Educao Matemtica?, caminhando no movimento investigativo de modo

    fenomenolgico, entendemos ser importante explicitar ideias nucleares ao pensar e ao proceder

    fenomenolgico, destacando, inclusive aquelas importantes Educao Matemtica. Para tanto,

    mostrou-se-nos significativo retomar o dito na literatura estudada para dizer de constituio do

    conhecimento, de concepo de subjetividade, intersubjetividade e objetividade, que vai

    trazendo, junto, o modo de compreender a historicidade do mundo-vida.

    Por que Fenomenologia?

    Assumir a postura fenomenolgica na pesquisa expressar uma viso de mundo aberta

    para... Essa postura apresenta-se continuadamente no contexto profissional do pesquisador e

    nas atividades vividas cotidianamente. uma atitude que solicita ateno com as coisas que

    esto no campo de percepo, no as tomando como verdades apodticas, mas compreendendo

    que, o que a est pode ser entendido subjetivamente e constitudo intersubjetivamente com o

    outro. , portanto, uma viso de mundo aberta para... Nessa pesquisa, por exemplo, a postura

    fenomenolgica destaca-se no mbito da elaborao da tese e pode ser entendida ao expormos:

    os motivos que nos conduziram a nos debruarmos nela, tematizando Educao Matemtica;

    os modos pelos quais apresentamos a interrogao, ao se constiturem os dados da pesquisa e

    como foram analisados e interpretados. Entendemos que a postura fenomenolgica faz sentido

    e se mantm nesta pesquisa, visto que uma possibilidade de ouvir o outro e de expressar

    aspectos da regio inquirida, levando em conta as experincias vivenciadas pelas pessoas.

    Embora nosso foco de estudo seja a obra de Husserl que tem uma data, a qual pode ser

    pensada no perodo que abrange de 1900 a 1938 (este o ano de seu falecimento), o que pode

    sugerir que o ali tratado seja especfico desse momento por ele vivido, as questes e crticas

    sobre cincia ali apresentadas, ainda so atuais. Isso se evidencia na obra de Capra intitulada O

    Ponto de Mutao: a Cincia, a Sociedade e a Cultura, datada de sua primeira edio em 1982.

    Nela o autor pormenoriza o modo pelo qual a cincia ocidental se valeu de mtodos

    mecanicistas na biologia e na medicina,18 por exemplo.

    18

    No decorrer de toda a histria da cincia ocidental, o desenvolvimento da biologia caminhou de mos dadas

    com o da medicina. Por conseguinte, natural que, uma vez estabelecida firmemente em biologia a concepo

    mecanicista da vida, ela dominasse tambm as atitudes dos mdicos em relao sade e doena. A influncia

  • 20

    Destacamos neste item uma discusso da matematizao da natureza, tomando por

    ponto o texto publicado por Husserl na dcada 1930 e que explicita o modo pelo qual ele

    compreende a cincia Matemtica e a constituio do conhecimento matemtico, e com ele

    dialogamos trazendo, tambm, autores que esclarecem as questes postas em nosso dilogo.

    Entendemos que essa discusso significativa tanto para a Matemtica quanto para a

    Educao Matemtica.

    A descrio que segue no abrangente nem totalizante; vemos a descrio como

    apontamentos, como vestgios de uma verso de histria narrada e registrada em documentos.

    2.1 A matematizao da natureza

    A descrio dos objetos presentes na natureza era uma ao efetuada pelos antigos

    gregos. A matemtica emprica herdada dos egpcios e dos babilnios no os satisfazia como

    garantia de verdade. Para eles, as afirmaes matemticas precisavam ser demonstradas pela

    razo.19 Os Elementos de Euclides atestam essa afirmao. Nele podemos encontrar o

    pensamento matemtico grego organizado segundo regras dedutivas desenvolvidas pelos

    matemticos gregos.20

    Na idade moderna, com Galileu, a ideia de espao herdada dos antigos gregos

    entendida como espao geometrizado, idealizado e, agora, pode ser tratado com maior preciso

    do que anteriormente isso devido ao prprio desenvolvimento da cincia natural; a ideia de

    matematizar a continuidade (movimento, formao) torna-se possvel, visto que Galileu viveu

    em um contexto cientfico que estava em apoteose busca pelo determinismo cientfico. Era a

    poca do Renascimento, quando se perseguiam explicaes racionais do pr-cientfico

    sustentadas pela matemtica. Ele, como pesquisador da natureza, estabeleceu um mtodo, na

    cincia fsica, que serviu como ferramental sofisticado para medir, por exemplo, velocidades e

    aceleraes que, expressas matematicamente por meio de frmulas, efetivamente apontava uma

    medio cada vez mais exata. A arte de medir, afirma Husserl (2012), no era uma arte pronta,

    acabada, ao contrrio, era um [...] mtodo de melhorar sempre novamente o seu mtodo [...]21,

    do paradigma cartesiano sobre o pensamento mdico resultou no chamado modelo biomdico, que constitui o

    alicerce conceitual da moderna medicina cientfica. O corpo humano considerado uma mquina que pode ser

    analisada em termos de suas peas; a doena vista como um mau funcionamento dos mecanismos biolgicos,

    que so estudados do ponto de vista da biologia celular e molecular; o papel dos mdicos intervir, fsica ou

    quimicamente, para consertar o defeito no funcionamento de um especfico mecanismo enguiado. (CAPRA,

    2006, p. 116). 19 BICUDO, 2004. 20 BICUDO, 2004. 21 HUSSERL, 2012, p. 32, destaques do autor.

  • 21

    com a inveno de meios tcnicos instrumentais. Deste modo, [...] toda a medio recebe o

    sentido de uma aproximao a um polo, decerto inalcanvel, mas ideal idntico, a saber, de

    aproximao a uma configurao determinada das idealidades matemticas ou uma das

    configuraes a elas pertencentes22.

    Husserl (2012) afirma que o processo de medio fornece frmulas numricas, neste

    caso, gerais. Ou seja, as frmulas exprimem manifestamente conexes causais gerais, leis da

    natureza, leis de dependncias reais sob a forma de dependncias funcionais de valores

    numricos23. Com esse mtodo para expressar medidas pode-se compreender que tanto a

    natureza quanto os corpos que nela se movimentam podem ser experienciveis e descritos

    matematicamente24. Para Husserl

    A fsica galilaica assenta sobre esta concepo da natureza, pela qual a ideia

    cientfica, h muito pr-dada, de uma regulao universal dos

    acontecimentos do mundo e, em especial, dos acontecimentos fsicos, assume

    um sentido essencialmente novo (precisamente o sentido de que a natureza

    est sujeita a leis incondicionalmente gerais e exatas (leis causais), leis que

    fazem da natureza infinita um universo calculvel).25

    Assim, na poca de Galileu o modo de compreender espao e tempo firmou-se na

    explicao Matemtica de espao geometrizado. O mundo geometrizado, com espao e tempo

    entendidos matematicamente, permite ao matemtico descrever os eventos ocorridos: a

    natureza pode ser cotejada em forma de linguagem matemtica. Este um dos aspectos do

    fisicalismo galilaico: a matematizao da natureza. Os fenmenos so mensurados. Tempo e

    espao ho de ser quantificveis. As qualidades percebidas pelos sentidos humanos so

    explicitamente excludas, por no ser possvel mensur-las. Ao homem coube apenas ser o

    expectador e o realizador do espetculo; entretanto, isola-se do evento, o qual assistido de

    longe. Ele no parte do fenmeno que ele mesmo narra. Uma contradio? Para Ferraz (2004)

    Galileu compreendia no ser possvel matematizar o gosto, a cor, o cheiro. Estava preocupado

    com a matematizao do que fosse possvel escrutinar, efetuando, portanto, um modelo cuja

    forma era expressa em uma estrutura com linguagem matemtica.

    Galileu estudou as qualidades, ou propriedades dos corpos, que poderiam ser descritas

    em linguagem matemtica. Por exemplo, estudou o tempo e a velocidade de um corpo lanado

    no espao, at atingir o solo e se props a escrever isso com exatido. Na fsica mecnica, ns

    22 HUSSERL, 2012, p. 32 23 HUSSERL, 2012, p. 32. 24 Cf. VENTURIN, 2007. 25 HUSSERL, 2012, p. 279.

  • 22

    herdamos tempo e espao dados separadamente, visto que o espao percorrido est em funo

    do tempo.

    O tempo e o espao so cnones para expressar a forma. Tempo e espao so herdados

    na modernidade com a seguinte configurao: o tempo marca o evento ocorrido no espao;

    no espao que se calcula o evento. A realidade passa a ser dada; ela previsvel, calculada. A

    natureza matematizada. Esse modo de proceder com a cincia sustenta alguns aspectos da

    postura filosfica de Descartes.26

    Descartes se vale de ideias de outros filsofos, matemticos, e anuncia um mtodo,

    que assegura certeza e verdade, para a cincia em geral. O mtodo cartesiano publicado na

    obra Discurso do Mtodo e um dos aspectos que o explicita o Cogito, ergo sum Penso, logo

    existo. Descartes coloca em destaque as coisas desse mundo. Quando o faz desse modo, o que

    est em suspenso (e Descartes pe tudo em suspenso) colocado junto com a dvida.27 Ela

    o ponto crucial para ele dizer Cogito, ergo sum. A nica certeza que havia era que ele existia

    como um ser pensante. O restante dos juzos versava apenas sobre coisas duvidosas. Com esse

    modo de proceder, isto , o pensar em si, conforme ele aponta, a alma privilegiada. A razo28

    o cerne de sua filosofia. O corpo apenas matria. Corpo e alma passam a ser entendidos

    como entes separados.

    Uma perspectiva da filosofia cartesiana a separao de corpo e alma; o dualismo

    cartesiano. O ego, a coisa pensante, separado do corpo, a coisa extensa. A coisa pensante, a

    partir do ego, produziria conhecimento verdadeiro, universal, no sujeito dvida, ou ao erro.

    Nessa perspectiva, as coisas deste mundo, para dizer delas e estabelecer as verdades, so

    verificadas dedutivamente, da mesma maneira como a deduo realizada em Matemtica; esse

    procedimento poderia ser aplicado a toda espcie de cincia. O homem comparado e

    26 Na obra cartesiana Trait du monde, Descartes tambm adotaria praticamente as mesmas concepes

    cientficas de Galileu, a principal que a terra se move. Descartes, em uma carta a Mersenne, segundo Kaugroker,

    se diz to contrariado com a condenao de Galileu que pensara em queimar seus escritos ou no permitir que

    ningum os vejam e que, se a tese de Galileu estiver errada, ento todo o seu sistema filosfico tambm estaria,

    pois possvel provar a sua Filosofia a partir desse pressuposto. O Trait du Monde s foi publicado depois de

    sua morte, mas boa parte das idias do tratado foram coligidas no Discurso, especialmente nesta quinta parte,

    onde escreve sobre as leis do movimento, segundo a qual, Deus criou uma matria, uma extenso geomtrica e

    por isso matematizvel, isto , Deus estabeleceu certas regras Matemticas no mundo material que podem ser

    descritas ou explicadas matematicamente, a noo mecanicista do mundo. (VAZ, 2007, p. 142). 27 Descartes introduz essa dvida metdica [duvidar de todos os juzos], porque pensa que os juzos que absorveu

    de outros esto contaminados por preconceitos. Aps adotar essa dvida universal, ele seguir aceitando como

    verdadeiros somente os juzos que ele mesmo pode justificar, conformes ao mtodo que ele desenvolveu.

    (SOKOLOWSKI, 2010, p. 63). 28 O racionalismo cartesiano foi colocado em crise pela filosofia contempornea e inclusive criticado por Husserl,

    que afirma a importncia da razo, mas no se trata de uma razo absoluta. O conceito de razo cartesiano

    contendo idias inatas no tem lugar no esquema terico de Husserl. Como, segundo Descartes, as idias so

    contidas dentro da razo (eu, mundo, e Deus), isso induz a pensar que tudo existe dentro do sujeito e daqui deriva

    a noo de centralidade do sujeito. (ALES BELLO, 2004, p. 97, n. 50).

  • 23

    entendido, a partir da separao corpo e alma, como uma mquina. Essa maneira de pensar foi

    herdada pelo ocidente nas cincias humanas, exatas e biolgicas.29

    O mtodo de Descartes posto para cincia em geral, simplificadamente, consiste em

    iniciar a verificao do objeto para, assim, admiti-lo como verdadeiro. Sendo verdadeiro, para

    analis-lo, divide-o em partes, tantas quantas forem necessrias, de modo que cada parte seja

    o menos complexa possvel, e as sintetiza das mais simples s mais complexas; posteriormente,

    enumera as partes que constituem o que est sendo resolvido para ter certeza de que nada ficou

    para trs.30 Hoje, esse mtodo, conforme entendemos, utilizado nas cincias exatas em geral,

    bem como nas da natureza e nas humanas. Nas cincias que cuidam do corpo humano h modos

    operantes de tratar o ser humano a partir do dualismo cartesiano com a separao de corpo e

    alma. Essa conduta pode ser um dos rastros seguidos pela medicina ocidental. Haja vista que

    um especialista, um ortopedista, por exemplo, analisar o local onde o indivduo apresenta

    sintomas de alterao funcional do corpo somtico e o diagnstico pautado em dados que so

    fornecidos, parte por parte, em uma ressonncia, ultrassom ou raio-x com exames de sangue

    etc.; a h possibilidades de dizer o que houve localmente. O tratamento do corpo, e

    localmente, no com a alma e o corpo entendidos como uma unidade. Esse ponto de vista do

    dualismo cartesiano leva-nos a dizer do homem como aquilo que pode ser verificvel.

    No campo da Matemtica e da Filosofia cartesiana entendemos que elas marcaram o

    estilo, a forma e os tons daqueles que escolheram trilhar pelo rastro cartesiano. Descartes, por

    exemplo, algebriza a geometria permitindo efetuar atos generalizadores aos objetos

    matemticos; por conseguinte, uma figura poderia ser descrita em uma linguagem algbrica.

    O conhecimento racional cartesiano de conceber as coisas deste mundo como uma

    mquina, construdo com linguagem matemtica. A possibilidade de descrever o movimento

    de um corpo, em uma equao matemtica, o modo pelo qual, por exemplo, Issac Newton

    operou e criou o seu clculo diferencial e integral. Esse autor um personagem que se valeu

    das ferramentas disponibilizada pelos matemticos anteriores, em especial o modelo

    mecanicista de mundo e criou novos resultados, entre eles o clculo diferencial que permite

    descrever o movimento dos corpos; no caminho que percorreu esto as marcas histricas

    gravadas ao menos por cartesianos e galilaicos.

    Newton compreendeu os mtodos algbricos de Descartes; estabeleceu a relao de

    diferenciao e de integrao como operaes inversas31; deu o salto cientfico para descrever

    29 CAPRA, 2006. 30 Cf. DESCARTES, 2009. (Segunda parte do Discurso do Mtodo). 31 BARON, 1985.

  • 24

    o movimento dos corpos na Terra, e no sistema solar; entre outros estudos32. Anunciamos

    Newton, pois com o clculo efetivado, problemas que envolvem movimento de corpos na

    natureza so solucionados. A cincia natural avana, e com ela fica ainda mais em evidncia a

    certeza de que a natureza pode ser descrita e controlada como o funcionamento de uma

    mquina33. A cincia natural neste momento constri um caminho que se intensifica, estilizando

    o mundo ocidental com a possibilidade do determinismo cientfico.

    2.2 Apresentao do campo de percepo

    Saber bem que quem somos no conosco, que o que pensamos

    ou sentimos sempre uma traduo, que o que queremos o no

    quisemos, nem porventura algum quis saber tudo isto a cada

    minuto, sentir tudo isto em cada sentimento, no ser isto ser

    estrangeiro na prpria alma, exilado nas prprias sensaes?

    Por Fernando Pessoa

    O caminho percorrido nos mostrou que h uma histria ocidental contada/registrada,

    cujos resqucios conduzem a explicaes a respeito do homem tomado em partes, separado em

    corpo e alma, como sujeito determinado.

    Escolhemos outra trajetria ao valermo-nos de autores que tratam de Fenomenologia.

    Entendemos que h outros modos de dizer de homem, conhecimento e mundo de perspectivas

    diferentes daquelas cartesianas. Explicitaremos o que est fazendo sentido para mim, at ento,

    assumindo uma postura fenomenolgica.

    Um modo de expor fenomenologia e que pode se tornar compreensvel no apenas

    teorizando-a, mas explicitando uma viso de mundo, de como as coisas se mostram e descrev-

    las no horizonte de vivncias cotidianas. Por esse motivo, as leituras realizadas em

    fenomenologia nos orientam a expressar aberturas para os conceitos fenomenolgicos, tambm,

    segundo a experincia vivida.

    Iniciamos o dilogo com Ales Bello (2006), descrevendo o modo pelo qual expe as

    dimenses do ser humano, abordado por Husserl em suas obras, como corpo, psique e esprito34.

    32 CAPRA, 2006. 33 CAPRA, 2006. 34 Segundo Ales Bello (2006, p.39) [...] o termo alma era usado para indicar tudo aquilo que no era corpo.

    Normalmente se diz, ento, corpo e alma. Husserl e seus discpulos analisam a alma em duas partes: [...] psquico

    e esprito.

  • 25

    Estas dimenses so possibilidades de entender e de expressar a complexidade humana.

    Assumimos essa explicitao, pois um modo de nos compreendermos como ser humano.

    Assim, esse caminho ser feito e anunciaremos as dimenses corpo, psique e esprito que, ao

    explicit-las, pela escrita parecero separadas, porm, como Ales Bello (2006) afirma, elas

    esto estritamente imbricadas, articuladas, juntas.

    Neste ponto transparece a restrio e a abertura da linguagem escrita. A linguagem

    transporta sentidos e significados que se foram fazendo na temporalidade das vivncias havidas

    e, ao mesmo tempo, ela no d conta de descrever o que o pensar de um sujeito, em um dado

    momento, articula nos atos de sua conscincia ao se ocupar de suas vivncias; e diz mais do

    que se quer, pois traz consigo mais sentidos. As palavras que grafamos trazem as experincias

    mundanas, carregam ambiguidades de significados que o mundo faz para ns. Somos

    linguagem e formados de/na/com linguagem em vivncias. A linguagem escrita apenas um

    dos modos de expresso, de presentificao; tentando, quase tenuemente, dizer de um tema.

    Mesmo com as dificuldades antevistas, esse exerccio leva a refletir, a imaginar e a pensar em

    possibilidades de dilogo.

    Retomando a complexidade do ser humano, passaremos a expor as respectivas

    dimenses mencionadas. O corpo a dimenso compreendida em atos corpreos. Estes so

    instintos em geral, o sentir fome ou sede, por exemplo. Com a corporeidade percebemos as

    coisas neste mundo, dizemos das coisas mundanas com ela. O mundo se anuncia pelos sentidos

    encarnados no corpo somtico: olfato, viso, paladar, tato e audio. Mesmo estes sentidos no

    esto separados; h sinestesias35 que os articulam. O outro aspecto que diz da complexidade

    humana refere-se s reaes em geral. Na psique, e nessa dimenso humana, compreendida

    em atos psquicos, que pulsa a fora vital de reaes como beber, comer; com a psique

    expressamos, tambm, afetos, emoes, medo. Na psique, no h a avaliao, o ato inferir.

    Segundo Bicudo (2010), quando focamos os atos psquicos, temos o momento de darmo-nos

    conta de..., este movimento entendido na dimenso humana, como esprito. So atos

    espirituais: a reflexo, a deciso, a avaliao ou a capacidade de emitir juzo; enfim, aqueles

    que estabelecem relaes entre dois sentidos percebidos, por exemplo.

    35 Em Husserl [...] o corpo somtico, que no falta jamais ao campo perceptivo, com os seus rgos de

    percepo correspondentes (olhos, mos, ouvidos etc.). Estes desempenham aqui, conscientemente, um papel

    constante e, com efeito, funcionam no ver, no ouvir etc., em conjunto com a mobilidade egoica que lhes pertence,

    a chamada cinestesia. Todas as sinestesias, todo o eu movo, o eu fao, esto interligados na unidade

    universal, onde a paralisao sinestsica um modo do eu fao.(HUSSERL, 2012, p. 85-86).

  • 26

    Estas dimenses atuam juntas nas possibilidades de expressar as vivncias

    transcendentais36 do ser humano do que temos conscincia da a complexidade ao trat-las,

    mesmo com o intuito de exemplific-las, uma a uma. As vivncias, em Husserl, so entendidas

    como: reflexo, imaginao, lembrana, execuo de atividades, fantasia.37 So aes

    manifestadas no dia a dia, quer dizer, h momentos de refletir sobre, de lembrar, de exercer

    atividades.

    As vivncias anunciam um modo da dimenso humana. Devemos estar atentos para

    no generalizar estas vivncias, visto que se manifestam com intensidade diferente quando

    pensadas em outra cultura, diz Ales Bello (2004): por exemplo, uma cultura que foca sua

    ateno no corpo, ter modos distintos de autoentendimento e mtuo entendimento. Quando

    Ales Bello afirma outra cultura, no precisamos projetar uma comunidade distante da realidade

    prxima. Pelo contrrio, a cultura escolar, a cultura acadmica e a cultura da roa solicitariam

    modos e intensidades diferentes dos atos que expomos ao mobilizarem objetos em seu

    cotidiano.

    Somos diferentes38.

    Esses temas aqui tratados se entrelaam, no decorrer do texto, com outros conceitos

    significativos da Fenomenologia. Por isso, na tentativa de evidenciar seus desdobramentos,

    buscamos compreender as coisas desse mundo numa atitude natural e na atitude

    fenomenolgica. Indagamo-nos, ento: onde nos leva essa busca e deparamo-nos com dois

    aspectos importantes a essas atitudes: o fenmeno e o fato.

    As descries desses temas tm por alvo expor um rastro que revelam marcas. Marcas

    essas que anunciam nosso modo de pensar.

    36 Segundo Ales Bello O transcendental aquilo que faz parte da subjetividade, prprio do sujeito, no deriva

    de fora; ao passo que transcendente o que est alm do sujeito [...]. O conceito husserliano de estrutura

    transcendental o ponto fundamentalmente novo na fenomenologia. Para Husserl, a estrutura transcendental a

    estrutura dos atos entendidos como vivncias, de modo que a estrutura transcendental composta por vivncias

    das quais ns temos conscincia. (2004, p. 49-50, destaques do autor). 37 ALES BELLO, 2004. 38 Somos diferentes! Uma discusso particular: poderia pensar que por ser daltnico percebo coisas diferentes de

    pessoas que no so daltnicas, mas no apenas o motivo de no enxergar as cores que outras pessoas veem que

    me d perspectiva diferente. Enxergo cores que para mim so cores vistas, entendo-me em devir, como um sujeito

    qualquer. Da minha perspectiva, o que vejo no problema. O problema atribudo pelos outros: assim a diferena

    discriminatria, que se transforma, em geral, em preconceito, criada. Isto , o mundo estruturado para pessoas

    que veem cores e tonalidades que no percebo, ou as vejo, com outras cores e nuanas. Ser diferente deveria ser

    entendido como cada um de ns com possibilidades em devir. Somos todos diferentes no modo de entender e de

    refletir sobre as coisas. O tema diferena pode ser discutido enquanto mecanismo de rejeio, excluso, por

    exemplo, como ocorre na Educao. Entendo que os valores so estabelecidos cultural e historicamente e formam

    nossos juzos. Os juzos so as avaliaes que realizamos. Os nossos valores, ento, se sustentam em juzos prvios.

    Portanto, ao escolher ou comparar nos valemos do juzo que pode estar reproduzindo os valores das estruturas

    sociais que definem o que normalidade, por exemplo. Da olhar-se para o outro e dizer o que ele deveria ter para

    ser igual ao que est posto; o outro olhado pela falta, visto como inferior. Esta prtica derradeira para a

    manuteno do status quo do dominador que diz o que as coisas mundanas devem ser e ter, e como ser.

  • 27

    2.3 O sentido do indagado: ir coisa mesma

    Um aspecto que diz da Fenomenologia e evidencia o seu mago [...] a busca do

    sentido que as coisas que esto nossa volta, no horizonte do mundo-vida, fazem para ns39.

    Quando buscamos o sentido de alguma coisa, isso se revela nas experincias vivenciadas, em

    que o fazer, o lidar com o que dado, no cotidiano, so questionados. O estado de perplexidade

    leva-nos a querer clarificar o que nos inquieta; por isso, interrogamos o que se destacou da

    realidade vivida. Ao assumir uma atitude de indagao no nos contentamos, simplesmente,

    com o visto ou o efetuado, tomado como um fato dado, mas buscamos compreender para alm

    do que a est. Essa a atitude fenomenolgica.

    Dizemos que ao buscar pelo sentido de... vamos s coisas mesmas com a inteno de

    indagar o que isto que preocupa, ou seja, o que pe em movimento de pensar reflexivamente.

    Merleau-Ponty (2006) entende que este movimento de

    Retornar s coisas mesmas retornar a este mundo anterior ao conhecimento

    do qual o conhecimento sempre fala, em relao ao qual toda determinao

    cientfica abstrata, significativa e dependente, como a geografia em relao

    paisagem primeiramente ns aprendemos o que uma floresta, um prado

    ou um riacho40.

    Outro exemplo, em consonncia com o de Merleau-Ponty, est no mbito da

    Matemtica. O que se apresenta nos rastros histricos da cincia Matemtica ou mesmo pelo

    conhecimento matemtico, praticado no dia a dia, como a operao com nmeros, por exemplo,

    j no seria mais o suficiente. Essa atitude revela que ao focar um fato e no movimento de o

    sujeito voltar-se a..., olha-o, contempla-o, coloca-o em destaque, no mais como um fato, mas

    sim como uma inquietao. Coloca-se em posio de buscar um sentido para o que o inquiriu,

    o afetou. Assumir a postura de buscar pelo sentido das coisas e, por outro lado, valer-se delas

    como fato so duas atitudes diferentes. Olhar para o objeto como um fato dado, , por exemplo,

    trabalhar com nmeros reais sem indagar o que um nmero. Neste caso, aceita-se, por

    exemplo, como legitimador de nmero o que a Matemtica diz de nmero. O significado est

    dado, objetivamente, ao sujeito pela Matemtica no uso e no emprego de propriedades e

    definies. Esse significado posto, positivamente, diferente de buscar e de avanar em direo

    de outros sentidos que podem se manifestar, ainda no claros, para o sujeito. Essa atitude de

    39BICUDO, 2010, p. 26. 40MERLEAU-PONTY, 2006, p. 4., destaque do autor.

  • 28

    buscar o sentido de nmero movida pelo esprito que [...] existe, na espao-temporalidade, a

    onde est o seu corpo somtico, e a partir da ele vive e atua no mundo, o universo do ente

    espao-temporal41.

    O movimento de buscar compreender nmero, nas experincias vividas, um modo

    de a fenomenologia expressar a possibilidade da constituio de conhecimento com o pr-

    predicativo. Segundo Santos (2013), pr-predicativo refere-se a um conhecimento no

    tematizado em termos de predicaes objetivas, ainda que possa vir a se desdobrar subjetiva e

    intersubjetivamente, por meio de diferentes atos42. um conhecimento pr-terico, afirma

    Santos (2013), ou no tematizado, por isso, abrem-se outras possibilidades no campo de

    percepo que podem assumir outros sentidos e significados para o olhar indagador que poder

    expressar outros modos de compreenso para nmero segundo suas experincias vividas.

    No rastro do exposto, compreendemos que um fenmeno no um fato43. Fato, para

    Husserl, que, no incio do sculo 1900, foca a lgica e o discurso das cincias positivsticas,

    criticando-as, o que pode ser explicado, provado e escrutinado com mtodos postos por essas

    cincias.44 O fato dado pontualmente de modo objetivo. Sendo objetivamente dado, passvel

    de ser observado, mensurado, podendo ser expresso numericamente. Ele determinado no

    espao versus tempo, o que significa que no tomado em movimento de historicidade passvel

    41HUSSERL, 2012, p. 240. 42SANTOS, 2013, p. 13. 43O fato um conceito cannico nas cincias positivas e que se nota que nas cincias sociais de 1950, 60, para

    c elas tm criado uma certa zona densa em que termos so mencionados com significados diferentes como o fato,

    por exemplo, dizendo que ele poderia ser tomado como uma narrativa. Entretanto, narrativa um movimento de

    narrar que tem uma temporalidade implcita no discurso narrativo e que conta do que ocorreu em outros

    momentos em no aquele que a pessoa est narrando. (Orientao com a Profa. Maria Bicudo no dia 21 de janeiro

    de 2015). Outro modo de expor o significado de fato o mencionado pelo historiador Kith Jenkins, que assim se

    manifesta: Existiro coisas passadas que paream ser factualmente corretas? Em certo sentido, legtimo

    responder que sim. Sabemos, por exemplo, que a chamada Grande Guerra/Primeira Guerra Mundial ocorreu

    entre 1914 e 1918. Sabemos que Margaret Thatcher subiu ao poder em 1979. Se essas coisas so fatos ento

    conhecemos fatos. Entretanto, tais fatos, embora sejam importantes, so verdadeiros mas banais no mbito das

    questes mais amplas que os historiadores discutem. Isso porque eles no esto demasiado preocupados com os

    fatos descontnuos (os fatos individualizados), j que essa preocupao s cabe quela parte do discurso

    histrico que se chama crnica. No: os historiadores tm ambies, desejam descobrir no apenas o que

    aconteceu, mas tambm como e por que aconteceu e o que as coisas significavam e significam. [...] Assim, o que

    est em pauta nunca so os fatos de per si, mas o peso, a posio, a combinao e a importncia que eles trazem

    com referncia uns aos outros na elaborao de explicaes. (2007, p. 60). Jenkins no est preocupado com a

    marcao do fato em tempo e espao, mas, sim, busca compreender o que, por exemplo, motivou a Primeira Guerra

    Mundial, como e por que ela ocorreu. 44Esse discurso est presente na obra de Husserl intitulada A Ideia da Fenomenologia. Nela est exposto o mtodo

    fenomenolgico em Cinco Lies, tanto da reduo fenomenolgica quanto da constituio dos objetos pela

    conscincia; Husserl, inclusive, apresenta uma discusso sobre a atitude natural e a atitude fenomenolgica. Esses

    temas foram proferidos por Husserl de 26 de abril a 2 de maio no ano 1907 em Gotinga. Essas ideias percorrem o

    desenvolvimento do seu pensamento fenomenolgico. As informaes foram obtidas da nota do editor alemo

    Walter Biemel, presente na obra de Husserl. Esta verso foi publicada em 1947. (HUSSERL, 2008).

  • 29

    de ser contado ou narrado. Aquela primeira posio , no discurso husserliano, a atitude

    assumida pela cincia natural.45

    Por outro lado, no movimento de nos colocarmos atentos ao inquirido, caminhamos,

    lentamente, em direo a uma atitude fenomenolgica, como diz Sokolowski (2010). Nessa

    incurso o fenmeno o que se mostra ao olhar daquele que interroga; o manifesto, quando

    colocado em destaque. Em Husserl o que posto em epoch, o que se doa no movimento

    de correlao do ver-visto, que esse autor denomina como sntese noesis-noema.

    O fenmeno, assim, no mensurado ou comparado, nem pr-estabelecido. Fenmeno

    significa o que se mostra, o que aparece, o que se manifesta conscincia46, afirma Bicudo.

    Ele inquirido.47

    Entendemos a busca pelo sentido das coisas que esto nossa volta como um

    movimento que h de ser infinito em finitude humana, enquanto corporificado. Ele no se

    esgota. O prprio sentido, o que foi percebido, no expresso em completude no ato de dizer

    de... um modo de mostrar que o que anunciamos de... so percepes disso que tateamos,

    vemos e ouvimos.

    2.4 Buscando expor conceitos nucleares fenomenologia

    O objetivo desse subtpico compreender conceitos que, neste trabalho, mostram-se

    como importantes para compreender o movimento filosfico fenomenolgico em Husserl.

    Portanto, tematizamos mundo-vida, conscincia/intencionalidade, percepo, sentido, epoch

    (reduo), subjetividade-intersujetividade-objetividade entre outros conceitos necessrios para

    dialogar com estes mencionados.

    45 O pensamento natural, que actua com uma fecundidade ilimitada, e progride, em cincias sempre novas, de

    descoberta em descoberta, no tem nenhum ensejo para lanar a questo da possibilidade do conhecimento em

    geral. Sem dvida, como tudo o que ocorre no mundo, tambm o conhecimento se torna de certo modo para ele

    um problema; torna-se objeto de investigao natural. O conhecimento um [facto] da natureza, vivncia de

    seres orgnicos que conhecem, um factum psicolgico. Pode, como qualquer factum psicolgico, descrever-se

    segundo as suas espcies e formas de conexo e investigar-se nas suas relaes genticas. Por outro lado, o

    conhecimento , por essncia, conhecimento da objectalidade (Erkenntnis von Gegenstndlichkeit) e tal em

    virtude do sentido que lhe imanente, com o qual se refere objectualidade. O pensamento natural tambm j se

    ocupa destes aspectos. Transforma em objeto de investigao em universalidade formal, as leis apriorsticas que

    pertencem objectalidade como tal; surge assim uma gramtica pura e, nem estrato superior, uma lgica pura

    (um complexo ntegro de disciplinas graas s suas diversas delimitaes possveis) e, alm disso, brota uma

    lgica normativa e prtica como tcnica do pensamento e, sobretudo, do pensamento cientfico. (HUSSERL,

    2008, p. 39-40, destaques do autor). 46 BICUDO, 1999, p. 28. 47A filosofia fenomenolgica analtica, isto quer dizer que [...] no se parte dos princpios sumos derivando deles

    as consequncias, mas parte-se sempre do que se v, buscando compreender e descrever o dado (ALES BELLO,

    2004, p. 73). Entendemos que esse o cerne da escola fenomenolgica. o que Husserl expressa com a frase ir

    s coisas mesmas.

  • 30

    2.4.1 Mundo-vida e intencionalidade

    Na fenomenologia husserliana um conceito importante mundo-vida48. Para Husserl,

    o mundo o todo das coisas, das coisas, que, num duplo sentido (segundo o lugar no espao e

    o lugar no tempo), se distribuem localmente sob a forma espao-temporal do mundo, ele

    o todo dos onta espao-temporais49. J se constitui desde sempre como uma historicidade

    que carrega consigo o movimento da vida e de seu conhecimento.

    O mundo-vida uma totalidade em que esto as produes cientficas, histricas,

    culturais, quer dizer, trazendo em sua historicidade essas produes e sentidos e significados

    que tambm as constituem. Ele o solo das atividades humanas [...] para toda a prxis, tanto

    terica quanto extra-terica50. Ele est sempre em movimento de constituio, visto que ao nos

    lanarmos na busca pela compreenso do que a est no mundo, estando atento ao mundo,

    intencionalmente voltado a ele, podemos estabelecer relaes com o percebido e, agora, novos

    entes presentificam-se no mundo-vida.

    De acordo com Husserl no h uma [...] ideia universal finalstica mundo que [...].

    Mas este subjetivo e, para o homem, como sujeito para o mundo, vlido como ser na

    relatividade, e estes sujeitos vivem sempre com interesses, interesses instintivos mas tambm

    representados e volitivos [...]51. Gadamer (2012) afirma, convergindo com a ltima citao, que

    o conceito mundo-vida husserliano movimenta-se em constante relatividade de validez, ope-

    se ao objetivismo, no tendo a pretenso de ser entendido como mundo que . Destacamos que

    o mundo-vida em Husserl entendido como o mundo comum a todos os seres. Ele o solo em

    que vivemos com os outros, ser humano ou no.

    O movimento de nos voltarmos para..., estando atento a... o movimento intencional,

    quer dizer, estar consciente da realizao do ato52. Com isso, estamos nos dirigindo para o

    campo da conscincia, diz Bicudo (2010). De acordo com essa autora, a conscincia entendida

    como esse movimento de voltar-se para...53 Ela intencionalidade. como um ponto de

    48 Em Husserl o conceito Lebenswelt, ou mundo-vida, expressa o mundo com vida, e no apenas o mundo em si,

    entendido como j determinado objetivamente. 49 HUSSERL, 2012, p. 116. 50 HUSSERL, 2012, p. 116. 51 HUSSERL, 2012, p. 388. 52 BICUDO, 1999. 53 A conscincia est sendo compreendida como intencionalidade. O ato de voltar-se para... enlaa o percebido,

    do mesmo modo, voltar-se para... compreendido como o movimento do sujeito voltar-se para... a subjetividade,

    efetuando atos de reflexo.

  • 31

    convergncia das operaes humanas, que nos permite dizer o que estamos dizendo ou fazer o

    que estamos fazendo como seres humanos54.

    Para Husserl, vivemos [...] uma vida intencional, e a intencionalidade da forma

    originria , em ato, apontar, ter em vista e, tendo em vista, deter uma posse. A posse, como o

    que se tem em vista no apontar (no qual continuo a ser e permaneo), posse no apontar, na

    volio, num outro modo da mesma vontade55. Entendemos deter uma posse como o que se

    mostrou do fenmeno percebido, pois compreendemos a conscincia como estando aberta ao

    mundo, como projeto do mundo, e certos de que ela no o abarca nem o possui, afirma Merleau-

    Ponty (2006). Nessa perspectiva, Sokolowski (2010) menciona que fenomenologia no tem a

    pretenso de estabelecer a verdade, nem de negar as atividades desenvolvidas no cotidiano das

    pessoas. No faz juzo de uma experincia ser mais ou menos marcante, ou expressiva. No

    tem como objetivo dizer o que melhor. Ao assumir a atitude fenomenolgica, o sujeito volta-

    se para o indagado e expressa, destaca, aspectos do contexto em torno do tema que quer

    compreender segundo sua experincia vivida.

    2.4.2 Da Epoch subjetividade

    Vimos dissertando at o momento sobre mundo-vida, fenmeno e intencionalidade.

    Agora, explicitaremos como entendemos o movimento de estar atento a..., segundo a viso

    fenomenolgica.

    No movimento de estar a tento a... nos voltamos ao focado e o enlaamos com os atos

    de percepo possibilitados pelos sentidos. O que focado no est deslocado do mundo. H

    um fundo, um contexto, uma totalidade que o abarca. Essa questo ser exemplificada com a

    ideia de figura visada e totalidade quando intencionamos uma obra de arte. Ao contemplar um

    quadro e ao perceber os entornos que se destacam, analisando um dos tantos aspectos como as

    cores, as paisagens, as formas, as tcnicas, a histria, damo-nos conta que h inmeras

    possibilidades de falar da obra de arte. Podemos falar de todos eles, de modo comum, no sentido

    do como aparecem aos nossos sentidos e conversas primeiras ou podemos destacar um e

    aprofundar sentidos e significados que se revelam nessa busca. Cada vez que destacamos um

    dos aspectos percebidos, estes dizem algo desse todo.

    54 ALES BELLO, 2006, p. 45. 55 HUSSERL, 2012, p. 391.

  • 32

    Esse movimento de destacar a figura de seu fundo, ou seja, de explicitar o percebido,

    entendido como o ato de coloc-lo em suspenso, ou em epoch. A epoch em Husserl, o

    movimento de colocar em evidncia, tambm, a validade efetivada de verdades, teorias,

    definies, uso, fins daquilo que conhecido na atitude natural. Esse um ato intencional. Estar

    atento a... uma absteno da validade total do mundo com todas as validades l contidas,

    empricas, cognoscitivas, de todos os interesses, de todos os atos referentes ou a referir s

    coisas mundanas que, como tal, pertenceriam eles prprios ao mundo em sua validade56. No

    movimento de epoch, ou de reduo57, no quer dizer que as atividades mundanas sejam

    abandonadas. Ns continuamos em movimento com as validades das teorias e prticas. Ao

    colocar fora de circuito o inquirido, prosseguimos, incessantemente, experienciando atividades

    cotidianas, afirma Husserl (2012). Como j discorremos Husserl trata os conceitos

    fenomenolgicos em si, puramente, por isso da radicalidade58. Por outro lado, para ns, a

    epoch est sendo entendida como o cuidado para que os conceitos tericos ou prticos do que

    dito do fenmeno no conduzam deterministicamente o olhar inquiridor. Merleau-Ponty

    explicita uma compreenso sobre a reduo husserliana. Em suas palavras

    O maior ensinamento da reduo a impossibilidade de uma reduo

    completa. Husserl sempre volta a se interrogar sobre a possibilidade de uma

    reduo completa. Se fssemos o esprito absoluto, a reduo no seria

    problemtica. Mas porque, ao contrrio, ns estamos no mundo, j que mesmo

    nossas reflexes tm lugar no fluxo temporal que elas procuram captar

    (porque elas sich einstrmen, como diz Husserl), no existe pensamento que

    abarque todo o nosso pensamento59.

    Em nossos estudos, observamos que o tema reduo retomado constantemente na

    obra A Crise...60 Outra questo que corrobora a impossibilidade de uma reduo completa,

    expressa por Merleau-Ponty, a experincia de corpo prprio [...] como um ancoradouro em

    um mundo61. Para esse autor, o corpo prprio est no mundo assim como o corao no

    organismo; ele mantm o espetculo visvel continuamente em vida, anima-o e alimenta

    interiormente, forma com ele um sistema62.

    Com a exposio dos conceitos fenomenolgicos intencionalidade, epoch e o

    movimento de percepo, direcionamo-nos dimenso da subjetividade. Valer-nos-emos do

    modo pelo qual Ales Bello (2004) expe a reduo eidtica e a reduo transcendental com a

    56 HUSSERL, 2012, p. 390. 57 Estamos entendendo reduo como abertura para... 58 Sobre esse tema ver o Captulo I. 59 MERLEAU-PONTY, 2006, p. 10-11. 60 Cf. HUSSERL, 2012. Terceira Parte. 61 MERLEAU-PONTY, 2006, p. 200. 62MERLEAU-PONTY, 2006, p. 273.

  • 33

    inteno de destacar como o movimento da constituio da subjetividade em Husserl. Para

    essa autora a reduo eidtica o movimento na fenomenologia que visa explicitar a essncia

    do fenmeno percebido, ou o que se destaca do fenmeno. No primeiro movimento, temos o

    que se mostrou do percebido. Entendemos que neste movimento damos conta de expressar

    aspectos do fenmeno percebido. O que percebido, mostra-se, sempre segundo perspectivas

    vistas do corpo prprio. Ele o ponto zero em que estamos situados e orientados com a

    percepo experiencial para dizer do que se mostra63.

    O segundo movimento fenomenolgico a reduo transcendental, afirma Ales Bello

    (2004). Esse movimento pe em evidncia o que damos conta enquanto ser no mundo. Expor

    o transcendental, segundo Bicudo (2010), requer atos de reflexo em cujo movimento se rene

    o comum e se separa o diferente; exige snteses reflexivas que abrangem compreensivamente o

    que se mostrou com os atos de percepo. Com esses movimentos expomos a intuio

    essencial64. A intuio essencial o ver claro; uma evidncia do que foi articulado no

    momento da abstrao intencional do que comum, caractersticos nas diferentes experincias

    da intuio sensorial65. No compreendemos a intuio essencial como algo que deva ou possa

    ser atingido. Isso seria entender essncia numa perspectiva platnica, que a expe como uma

    ideia objetiva presente na realidade do mundo das ideias.

    Com esses movimentos, temos o percebido manifesto e o compreendido

    subjetivamente, quer dizer, trata-se do movimento transcendental realizado por/com atos

    reflexivos.

    Para Bicudo,

    A subjetividade no em si uma mnada fechada, tendo prontas

    potencialidades que aguardam atos para ser atualizadas. Ela se constitui no

    movimento de abertura ao mundo-vida, levando o percebido conscincia e

    operando os atos que avanam na dimenso da compreenso e dos atos de

    expresso66.

    A subjetividade no um absolutismo em si, como uma mnada, no mutvel; pelo

    contrrio, estando voltada para o mundo, d-se conta de seu pertencimento ao mundo e de que

    no o possui. Sendo assim, vivemos no mundo e o mundo no um objeto do qual possuo

    comigo a lei de constituio; ele o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e

    de todas as minhas percepes explcitas67.

    63 HUSSERL, 2012. 64 BICUDO, 1999. 65 As intuies sensoriais se do como evidncias direta percebidas no ato de percepo. 66 BICUDO, 2010, p. 35. 67 MERLEAU-PONTY, 2006, p. 6.

  • 34

    2.4.3 Da subjetividade-intersubjetividade a caminho da objetividade

    Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por cincia, eu o sei a partir de uma viso

    minha ou de uma experincia do mundo sem a qual os smbolos da cincia no poderiam dizer

    nada68. Iniciamos este subtpico citando Merleau-Ponty, por exemplificar o sentido da

    experincia vivida que permite conhecer e dizer das coisas percebidas. Essa afirmao de

    Merleau-Ponty essencial para compreendermos o modo pelo qual dialogamos e nos

    comunicamos com o outro, constituindo a intersubjetividade acerca do tematizado.

    Os atos perceptivos, descritos anteriormente, e os atos reflexivos realizados na reduo

    transcendental so os modos pelos quais o percebido se presentifica para o sujeito. A intuio

    essencial o ver claro, o que se compreendeu no movimento de percepo, que se manifestam

    ao nos lanarmos na busca do sentido do que indagamos. O sentido se manifesta na correlao

    sujeito-objeto, na sntese nosis-noema. Sokolowski (2010) especifica que noema69 o

    correlato da intencionalidade, o visto, o abarcado, o manifesto. Enquanto, que, noesis o ato

    intencional; de onde se percebe com... Entendemos que os atos de percepo so contnuos70;

    um olhar traz um aspecto do visto, outro olhar este aspecto continuamente mutvel, esvaziam-

    se, preenchem-se, sobrepem-se. Cada vez que nos voltamos s coisas mesmas, no curso

    incessante de percepo, destacamos perspectivas focadas, segundo o que se interroga. Para

    Merleau-Ponty o mundo fenomenolgico no o ser puro, mas o sentido que transparece na

    interseco de minhas experincias, e na interseco de minhas experincias com aquelas do

    outro, pela engrenagem de umas nas outras [...]71. nesta interseo de experincias que o

    sentido se manifesta e, assim, em todo ato de percepo h um horizonte (consciente) ao qual

    o visto est situado. Com o que se manifesta na correlao ver-visto possvel iniciar a

    68 MERLEAU-PONTY, 2006, p.3. 69 H de esclarecer que o noema, na atitude fenomenolgica, no um intermedirio, no tomado como sendo

    um ato psicolgico, epistemolgico ou semntico: o nome um momento (uma parte abstrata) na manifestao

    das coisas [...]. (SOKOLOWSKI, 2010, p. 70). O noema, para Sokolowski, no um elo entre a coisa e a

    subjetividade, o que se doa na percepo. 70 [...] a pura coisa da viso, o visvel da coisa , em primeiro lugar, a sua superfcie, e vejo esta no curso

    mutvel do ver, ora deste lado, ora daquele, percepcionando continuamente em lados sempre diversos. Neles,

    porm, expe-se para mim, numa sntese contnua, a superfcie; cada um dos lados conscientemente uma

    maneira de exposio dela. Est aqui implicado o seguinte: enquanto realmente dada, viso mais do que a coisa

    d. Tenho, seguramente, a certeza do ser desta coisa, a que simultaneamente pertencem todos os lados, e no modo

    pelo qual eu melhor a vejo. Cada lado d-me algo da coisa da viso. No curso continuamente mutvel do ver,

    o lado visto cessa justamente de ser ainda efetivamente visto, mas mantido e tomado em conjunto com os

    anteriores, que continuam a ser mantidos, e, assim, tomo conhecimento da coisa. (HUSSERL, 2012, p.128,

    destaques do autor). 71 MERLEAU-PONTY, 2006, p. 18.

  • 35

    descrio do percebido, uma vez que com a descrio inicia-se a formao/exposio/indicao

    dos aspectos percebidos, compreendidos, para o outro.

    Explicitar o compreendido ao outro, nas palavras de Husserl, constitui a ao de viver

    em relao mtua, um viver em comunidade. expressar ao outro o que compreendemos do

    percebido.

    O que expresso quando expresso em linguagem, articula a intuio essencial, o ver

    claro, o que foi compreendido pelo sujeito. Nesse movimento reunimos, separamos e

    destacamos aspectos do percebido e anunciamos a intuio essencial72. Para Husserl (2012) o

    que anunciamos em discurso diz do percebido e o apresenta como um ndice, ou seja,

    [...] a coisa que na sntese concordante da unificao se mostra, a cada vez de

    um lado, como esta nica, explicita o seu ser idntico nas suas propriedades

    (que se expem em diversas perspectivas). Em termos intencionais, cada uma,

    exatamente como isto a, como coisa, um ndice percepcionado das suas

    maneiras de apario, que se tornam discernveis (e, sua maneira,

    experienciveis) na orientao reflexiva do olhar73.

    Derrida faz um estudo em Husserl e afirma que todo discurso, enquanto empenhado

    em uma comunicao e enquanto manifesta vividos, opera como indicao74. Assim, o que est

    sendo percebido pode ser entendido como um ndice que indica, aponta para... Entendemos que

    ao explicitar em linguagem o significado compreendido que se manifesta na correlao ver-

    visto, ele carregado pelas palavras articuladas nas sentenas gramaticais e mostram-se como

    ndices eles apontam para... Os significados das palavras so expostos pelo sujeito. O

    sentido75 no manifesto por completo nas diferentes modalidades da linguagem. O sentido se

    faz apenas para o sujeito que percebe e o significado compartilhado. O sentido, ao ser expresso

    em linguagem inteligvel, de modo que o outro possa compreender o exposto, vai constituindo-

    se em um dilogo intersubjetivo. Essa exposio fruto de um movimento de expresso em que

    o sentido percebido pelo sujeito se faz presente, porm, agora, enunciado em palavras cujos

    significados j esto histrico-culturalmente presentes. Entendemos que as palavras no esto

    soltas no mundo. Elas so contextuais e possuem legitimaes distintas em contextos diferentes

    72 BICUDO, 2010. 73 HUSSERL, 2012, p. 139. 74 DERRIDA, 1