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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
MESTRADO ACADÊMICO EM GEOGRAFIA
KARLA MARIA DA SILVA ALMEIDA
ARTE E GEOGRAFIA: A ANÁLISE DA PAISAGEM LITORÂNEA EM RAIMUNDO CELA
FORTALEZA-CEARÁ
2016
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KARLA MARIA DA SILVA ALMEIDA
ARTE E GEOGRAFIA: A ANÁLISE DA PAISAGEM LITORÂNEA EM RAIMUNDO CELA
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Geografia do Programa de Pós-Graduação em Geografia do Centro de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Geografia. Área de Concentração: Análise Geoambiental e Ordenação do Território nas Regiões Semiáridas e Litorâneas. Orientador: Prof.º Dr. Otávio José Lemos Costa.
FORTALEZA-CEARÁ 2016
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KARLA MARIA DA SILVA ALMEIDA
ARTE E GEOGRAFIA: A ANÁLISE DA PAISAGEM LITORÂNEA EM RAIMUNDO CELA
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Geografia do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial para à obtenção do título de Mestre em Geografia. Área de Concentração: Análise Geoambiental e Ordenação do Território nas Regiões Semiáridas e Litorâneas.
Aprovada em: 02 de setembro de 2016.
BANCA EXAMINADORA
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RESUMO
A presente dissertação propõe analisar a paisagem litorânea captada através
do olhar do artista cearense Raimundo Brandão Cela, desenvolvida através de
suas obras no período entre 1929-1941. Por meio de uma leitura embasada na
iconografia da paisagem, estabeleceremos assim, a possibilidade de
efetivarmos um diálogo entre a geografia e a arte. A partir do viés centralizado
nas artes visuais, especificamente na pintura, apresentamos uma alternativa
voltada para o estudo da paisagem.Para a construção do arcabouço teórico
que fundamenta as discussões concernentes da paisagem apreendida por
Cela, e a sua representação pictórica, buscamos esteio nas concepções de
autores os quais abordam a temática da paisagem sob a ótica geográfica
cultural, admitindo a interdisciplinaridade com a arte, como uma forma para
expressar as percepções geográficas. Deste modo, almejamos a compreensão
da obra de Cela na qual caracteriza-se como um registro geográfico e cultural
de um período vivido pelo pintor na cidade de Camocim, no Ceará. A
paisagem em Cela transpassa o campo da objetividade, associado às
descrições dos objetos e das formas distribuídas em Camocim. Desta maneira,
assenta-se uma tessitura simbólica conduzindo-nos a compreender a paisagem
elaborada pelo pintor, como um fenômeno vivido. Neste contexto, a leitura das
obras de Cela escolhidas para esta pesquisa, norteada pelo conceito de
paisagem, nos revela a dimensão das experiências ocorridas no lugar que
significou um palco de manifestações na vida do artista. Com o seu olhar e
sensibilidade o pintor elege a paisagem litorânea que é constituída por seus
personagens, pelascores, movimentos, sabores, texturas, odores e sons, como
sendo aquela que representa socioespacialmente o litoral cearense, não de
maneira aleatória, mas é uma seleção justificada a partir de uma existência
envolvida na paisagem de Camocim. Portanto, neste trabalho dissertativo a
arte emerge como uma extensão das percepções do artista para com o seu
mundo, a experiência na paisagem de Camocim é então traduzida no âmbito
da representação artística, evocando as vivências socioespacias do artista.
Palavras-chave: Geografia cultural. Paisagem litorânea. Arte. Raimundo cela.
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ABSTRACT
This thesis aims to analyze the coastal landscape captured through the eyes of
the Ceará artist Raimundo Brandão Cela, developed through his work in the
period 1929-1941. Through a reading based on the iconography of the
landscape, and will establish the possibility of making a dialogue between
geography and art. From the bias centered on the visual arts, specifically in
painting, we present an alternative focused on the study of the landscape. For
the construction of the theoretical structure framework that bases the
discussions concerning the landscape learned by Cela, and its pictorial
representation, we seek the authors' conceptions which approach the theme of
the landscape from the geographic cultural perspective, admitting
interdisciplinarity with art, as a way to express the geographical perceptions.
Thus,we aim at understanding Cela’s work in which it is characterized as a
geographic and cultural record of a period lived by the painter in the city of
Camocim, Ceará. The landscape in Cela crosses the field of objectivity,
associated with the descriptions of objects and forms distributed in Camocim .In
this way, a symbolic texture is established, leading us to understand the
landscape elaborated by the painter, as a lived phenomenon. In this context,
the reading of Cela’s work chosen for this research, guided by the concept of
landscape, reveals to us the dimension of the experiences that took place in the
place that meant a stage of manifestations in the life of the artist. With his look
and sensitivity, the painter chooses the coastal landscape that is constituted by
his characters, by the colors, movements, flavors, textures, odors and sounds,
as the one that represents socio-spatially the coast of Ceará, not in a random
way, but is a selection justified from an existence involved in the Camocim
landscape. Therefore, in this dissertative work, art emerges as an extension of
the artist's perceptions towards his world, the experience in the landscape of
Camocim is then translated into the scope of artistic representation, evoking the
artist's socio-spatial experiences.
Keywords: Cultural geography. Coastal landscape.Art. Raimundo cela.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1- Último diálogo de Sócrates...........................................................67 Figura 2- Mapa de localização de Camocim.................................................75 Figura 3- Praia em Camocim..........................................................................80 Figura 4- O Porto de Camocim......................................................................85
Figura 5- Saída da Oficina .............................................................................91 Figura 6- Procissão em Camocim.................................................................98 Figura 7- Jangada rolando para o mar.......................................................105
7
SUMÁRIO
1 2
2.1
2.2
2.3
2.4
3
4
4.1
4.2
5
INTRODUÇÃO............................................................................. A DIMENSÃO DA PAISAGEM NA PERSPECTIVA DA FENOMENOLOGIA......................................................................
ARTE E GEOGRAFIA ................................................................. PAISAGEM E GEOGRAFIA.........................................................
PAISAGEM E GEOGRAFIA CULTURAL.....................................
PAISAGEM E FENOMENOLOGIA...............................................
A ICONOGRAFIA DA PAISAGEM..............................................
A PAISAGEM LITORÂNEA EM RAIMUNDO CELA...................
A PERCEPÇÃO DO OLHAR EM RAIMUNDO CELA.................. PAISAGEMLITORÂNEA, DE CAMOCIM: VIVÊNCIA E
SIMBOLISMO................................................................................ CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................... REFERÊNCIAS............................................................................. APÊNDICE....................................................................................
APÊNDICE A ENTREVISA APLICADA AOS MORADORES
MAIS ANTIGOS DE CAMOCIM/CE-OUTUBRO-2015.............
8
16
16
25
29
46
53
63
63
69
113
118
124
125
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1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa almeja, através do conceito de paisagem
geográfica, realizar o entendimento da obra pictórica do artista cearense
Raimundo Cela, o qual traz, em suas telas, o litoral como o tema de maior
expressão. Assim, a linguagem utilizada pelo pintor, bem como as suas
expressões, permite-nos uma leitura da paisagem, quando esta, por sua vez,
encontra-se ancorada na interdisciplinaridade. O diálogo entre as diversas
áreas do conhecimento, inclusive a Geografia, subsidia-nos nas possibilidades
de compreendermos as novas perspectivas de interpretação do espaço, no
qual estamos inseridos.
Raimundo Brandão Cela, pintor cearense, filho de pai espanhol e
mãe natural de Sobral, no ano de 1894, José Maria Cela Mosqueira, espanhol,
mecânico de profissão, funcionário da Estrada de Ferro de Sobral, foi
transferido de Sobral para Camocim. Lá estabeleceu residência com sua
esposa, Maria Carolina Brandão Cela, sobralense e professora, sua filha,
Manuela Cela, e os filhos, Raimundo Cela e Fernando Cela. A mudança
encontra-se situada no período de construção e de ampliação do sistema
ferroviário brasileiro e cearense, o qual ocorreu na segunda metade do XIX.
Com a transferência de seu pai, Cela passa a residir em Camocim,
pois a cidade ganhara grande importância econômica, porque seu porto
destacou-se como escoadouro de mercadorias. É neste cenário de
desenvolvimento econômico que Cela passa a viver alguns anos de sua vida.
Passando a olhar e a ver os personagens, os quais compunham a vida da
cidade de Camocim, Cela passa a pintar pessoas simples, entretanto,
participantes da composição da paisagem litorânea: jangadeiros, rendeiras,
estivadores e trabalhadores portuários. O pintor em destaque elaborou
aproximadamente quarenta e três obras, no período entre 1916 a
1954,incluindo telas, desenhos e aquarelas.
O entendimento da imagem pictórica como um canal, o qual nos
permite a compreensão da paisagem, ainda apresenta-se como um obstáculo
desafiador para os estudos geográficos. Nesta perspectiva, na qual a paisagem
é tomada como objeto central, a presente pesquisa pretende analisar a obra de
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Raimundo Cela, pois, ao percorrermos a sua produção pictórica direcionada
sob o ângulo geográfico, deparamo-nos com as possibilidades de
apreendermos a experiência da paisagem, a qual é vivida e registrada por Cela
em sua obra, onde encontramos o litoral de Camocim, recortado através da
paleta do pintor, configurando como cenário as manifestações humanas e
naturais. Desta forma o ato de olhar a paisagem litorânea irá corresponder ao
enigma da visão, ao passo que este sentido tanto foi como ainda permanece
na postura de elemento basilar na constituição do fazer geográfico.
Raimundo Cela retratou as paisagens referenciadas no litoral e
sertão do Ceará, correspondendo ao período que vai do início do século XX até
meados do mesmo. Salientamos que o recorte escolhido para a presente
pesquisa é a obra pictórica do pintor em destaque. Dessa maneira, lendo nas
entrelinhas e ultrapassando as barreiras do mundo visível, almejamos
apreender a essência e o dinamismo presentes na obra de Raimundo Cela.
A arte é uma atividade inerente ao homem envolvendo o universo
dos sentidos e das percepções. Em tal perspectiva, uma análise geográfica das
obras de arte torna-se útil para conduzir-nos a uma reflexão concentrada no
campo da sensibilidade e percepções, concernentes ao mundo o qual nos
invade constantemente, por meio das cores, dos sons, dos cheiros, dos
sabores e texturas,elementos estes que estabelecem um diálogo entre o artista
e o mundo. Dessa maneira, a Geografia ao olhar a arte, revela a dimensão das
experiências do artista no espaço geográfico, resgatando os valores simbólicos
os quais assentam-se a partir da matéria, rompendo com a dualidade sujeito e
objeto, harmonizando as externalidades com as subjetividades.
A importância dos estudos sobre as artes (englobamos todas as
manifestações artísticas) nos revelam um novo ângulo de observação do ser
humano como mundo. Buscar compreender os significados de um espaço
socialmente construído, e seus movimentos através do campo da sensibilidade,
esclarecem as transformações no curso da humanidade, por meio da sua
dimensão histórica.
A arte é uma atividade exclusiva do ser humano, logo, os adornos
utilizados pelo homem pré-histórico, as pinturas rupestres, monumentos
esculpidos há milhares de anos, quadros, arquiteturas de diversos tipos e de
épocas diferentes, são representações humanas,as quais possuem um valor
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sentimental, e em algumas vezes quando se tratando de desenhos de animais
ou pessoas, são carregados de uma significação sobrenatural, possuidores de
poderes mágicos. Observamos este fato na arte rupestre, na qual o homem
primitivo nutria a seguinte ideia: ao atirar flechassem determinado animal
pintado nas paredes das cavernas, lhe permitiria capturar o próprio animal no
momento da caça.
Podemos pensar a arte como um meio de exibição para revelar um
universo subjetivo, ou seja, próprio de cada indivíduo. Barbosa (2000, p.72)
afirma que “Adentrar no terreno da arte como possibilidade de inquirir/decifrar o
mundo construído/construtor dos sujeitos sociais, significa tomar as
representações como artifício de construção de nossas leituras e reflexões
sobre o espaço geográfico”. A arte constitui-se como um conduto através do
qual o homem elabora as suas representações bem como possibilita a sua
externalização. Destarte,o campo da arte,apresenta-se com a potencialidade
de comunicar e registrar as leituras realizadas acerca do espaço no qual
estamos inseridos.Em tais leituras, interpretamos os movimentos e as formas
constituintes do espaço geográfico no qual encontramo-nos situados bem como
participando e promovendo o seu dinamismo, portanto,ao decodificarmos o
mundo ao nosso redor, atribuímos significações às referências materiais
localizadas ao alcance do homem. Os objetos, os fatos bem como as conexões
que as pessoas realizam umas com as outras, irão constituir um mosaico de
significados no imaginário do homem ofertando a compreensão acerca mundo.
Através do ato de olhar a arte, como um registro espacial,
almejamos um embasamento teórico-metodológico, para adentrarmos no
mundo das representações e significados.Ressaltamos o papel da Geografia
Cultural, como um subcampo da Geografia capaz de descobrir, decodificar o
real e através de uma decodificação, nos permite a compreensão de uma
trama de motivações as quais são estabelecidas pelo binômio- Arte e
Geografia. Cada imagem que observamos nos transmite sentimentos,
sensações e desperta em cada indivíduo um olhar diferenciado. Desse modo,
na presente pesquisa, analisaremos sob a ótica do olhar geográfico, a obra de
Raimundo Cela.
GOMES (2008) salienta a respeito da Geografia Cultural
renovada,que, tal abordagem trouxe várias mudanças no campo
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epistemológico da disciplina nos últimos anos. Dessa forma, o autor segue
esclarecendo a ocorrência de uma ampliação na abordagem teórico-
metodológica, como também nos temas e conteúdos de pesquisa. Essa nova
abordagem geográfica cultural permite a incorporação de temáticas ainda
pouco exploradas por alguns, pinturas, fotografias, danças, músicas, “temas
que, no passado recente, eram considerados completamente estranhos a esse
domínio disciplinar e por isso tratados como não adequados de aí figurar
(GOMES, 2008, p.186).” Estes temas englobam o mundo vivido e o espaço das
representações, em meio aos objetos e formas, cores e dimensões, as quais
expõem o espaço geográfico com seus movimentos singulares. Na
subjetividade, encontramos o sentido para o mundo material o qual nos
contorna, compreendemos assim que a paisagem pode ser lida e interpretada
de múltiplas maneiras, sendo cada experiência válida e de grande importância.
Na perspectiva metodológica, associaremos à fenomenologia no
contexto de uma iconografia da paisagem. Tal abordagem apóia-se no
historiador de arte Erwin Panofsky (2004), sendo utilizado por geógrafos que
buscam um estudo mais aguçado a respeito das representações da paisagem
(COSGROVE e JACKSON, 2003). A obra de Raimundo Cela é uma
representação artística,portanto, através do método iconográfico/iconológico,
objetivamos desvendar o significado por trás das formas.
Para a presente pesquisa, consideramos necessário um
aprofundamento na produção bibliográfica no âmbito da Geografia Cultural,
especificamente autores os que abrangem em seus estudos o conceito de
paisagem. As visitas ao Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará
(MAUC),no qual se encontra a obra de Raimundo Cela, participaram da
estruturação da pesquisa, além de consultas às bibliografias, artigos, teses,
dissertações que aprofundam questões pertinentes à temática da pesquisa.
O Método fenomenológico será associado à iconografia; objetivamos
assim, realizar uma análise iconológica. A Fenomenologia oferece a
possibilidade de restabelecer o contato entre o sujeito e o objeto (opondo-se ao
pensamento positivista). Reconhecida como uma das mais notáveis
manifestações do século XIX, a Fenomenologia formulada por Husserl tem
exercido forte influência no pensamento cientifico contemporâneo. Outros
autores como Merleau-Ponty, Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre também
12
contribuíram para o desenvolvimento dessa corrente de pensamento. Santaella
(2012) salienta que o método em debate não é exato, ocupa-se dos fenômenos
vividos da consciência.Para a Fenomenologia, consciência e objeto não são
entidades separadas, existindo uma correlação.O interesse para a
fenomenologia não se direciona para o mundo que existe fora de nós, mas sim
como o mesmo se realiza para cada indivíduo, ou seja, o fenômeno vivido.
Assim, a Fenomenologia prioriza a indissocialização da relação sujeito-objeto.
Seguindo com os procedimentos metodológicos, propomos no
primeiro momento o entendimento do conceito de paisagem, desde as suas
matrizes, as quais apresentam esteio na Geografia Cultural tradicional, até o
momento presente. Dessa forma, discutiremos as suas incorporações teóricas,
para melhor compreensão da dinâmica e importância do conceito em destaque.
Na etapa posterior investigaremos acerca da vida e obra de
Raimundo Cela, pois a paisagem segundo o olhar do mesmo é o nosso objeto
de estudo. Dessa forma, buscamos através de levantamento bibliográfico,
penetrar em sua história de vida pessoal (vivências e influências), e profissional
(estilo e técnica) com o objetivo de conhecer o universo no qual seus quadros
foram produzidos, e também o contexto histórico, social, econômico, cultural de
sua época.
Posteriormente iremos contextualizar o “lócus” de ambiência vivida
pelo artista, o município de Camocim, bem como as influências culturais
locais,as quais conduziram o artista em seu processo de formação. Para isso
serão realizados levantamentos bibliográficos acerca de Camocim, objetivando
dessa maneira conhecer o universo social e cultural no qual Raimundo Cela
concebeu suas telas.
Os estudos realizados através da chamada Geografia Cultural
renovada vem buscando revelar as entrelinhas que se assentam na sociedade,
no tempo e no espaço, com o objetivo de compreender a profundidade da
relação do sujeito com a paisagem e com o lugar. Tal postura exige
investigação aprofundada, para desenvolver uma reflexão contínua por parte
do geógrafo, acerca das manifestações artísticas,as quais desenrolam uma teia
de significados com cores e formas passíveis de infindáveis interpretações.
A paisagem retratada pelo artista é capaz de apreender o dinamismo
do espaço geográfico, dessa forma a arte é um registro espacial. Em tal
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perspectiva, a relevância da presente pesquisa, baseia-se na interpretação da
obra artística pictórica de Raimundo Cela,a qual transmite uma visão da
organização sócio-espacial de uma sociedade que passava por
transformações, em sua política, economia e cultura. Procurando desvendar o
além do visível, a Geografia da percepção procura o sentido das formas que se
apresentam nas obras de Cela, pois as manifestações presentes
contextualizam elementos que expressam uma dada paisagem cultural do
Ceará.
A arte é um meio de apreensão do mundo que nos circunda, sendo
utilizada para compreensão da dinâmica sociocultural e histórica. Quando
associada à paisagem, torna-se possível entender processos estruturadores da
sociedade no decorrer do tempo e do espaço. A paisagem selecionada e
captada pelo olhar do artista em destaque, serve ao entendimento cultural da
paisagem, mostrando-se como um elemento que integra o imaginário, a
subjetividade, as sensações, e ações projetadas no espaço. A paisagem na
obra de Raimundo Cela comporta interpretações múltiplas, no entanto o
enfoque da presente pesquisa é o contexto geográfico cultural, para
desvendarmos as camadas de significados os quais representam sócio-
espacialmente o Ceará.
A pintura orienta-nos a descobrir, explorar, analisar, ver, sentirbem
como narrar, as camadas de experiências e também os segredos das
permanências e mudanças culturais marcantes na paisagem. Em meio aos
questionamentos a respeito da paisagem litorânea cearense, surgem as
seguintes indagações: de que forma a análise da obra de Raimundo Cela nos
permite adentrar na essência da paisagem de Camocim e apreendermos seu
dinamismo sociocultural ? Qual o significado geográfico cultural da paisagem
segundo o pintor em destaque que recai sobre as matrizes culturais litorâneas
de Camocim? De que maneira Geografia e Arte aparecem imbricadas em sua
obra?
Na perspectiva geográfica cultural, elegemos como objetivo geral:
compreender a paisagem litorânea presente na obra de Raimundo Cela
composta no período entre 1929-1941, no sentido de apreender
espacialidades. Posteriormente escolhemos os seguintes objetivos específicos:
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1)Perceber a vivência do artista em relação ao espaço representado
através da paisagem retratada nas telas; 2) Identificar, através do olhar
geográfico, a relação entre a arte de Cela e o dinamismo espacial do período;
3)Compreender o significado da paisagem cultural a partir da obra de
Raimundo Cela, especificando as espacialidades e atores sociais que
contextualizam o dinamismo dessa paisagem.
No segundo capítulo intitulado: “A dimensão da paisagem na
perspectiva da fenomenologia”, iniciamos problematizando a relação existente
entre a Arte e Geografia, associando ambas na perspectiva da paisagem.
Seguimos estudando o conceito de paisagem geográfica, especificamente sob
a ótica da Geografia Cultural. Objetivamos desta forma, trazer para o centro do
debate, as modificações ocorridas neste conceito, desde a sua matriz
morfológica positivista até alcançar a contemporaneidade. Procedendo assim,
compreenderemos o seu presente, sem negligenciarmos o seu passado bem
como a relevância do mesmo. Seguimos discutindo a paisagem no período
denominado de pós-1970, no qual a “virada cultural” abre novas perspectivas
no que diz respeito às representações, percepções, a significação da paisagem
e a sua imaterialidade.
Destarte, almejando assentar um diálogo teórico para o primeiro
capítulo, buscamos as contribuições de autores como:Berque (1998), Besse
(2006),Besse (2014), Claval (2002), Claval (2012), Corrêa (2006), Corrêa
(2003), Corrêa (2001), Corrêa (2011), Cosgrove (1998), Cosgrove (2003),
Cosgrove (2008), Cosgrove e Jackson (2003), Cosgrove (2012), Daniels
(2004), Duncan (2012), Gomes (2003), Gomes (2008), Hissa (2002), Holzer
(2010), Holzer (2012), Meira (2000), Meinig (2003), Moraes (1989), Moraes
(1996), Moreira (1994), Merleau-Ponty (1999), Merleau-Ponty (2004),Pallasmaa
(2013),Prette (2008), Sauer(2012),e Wagner e Mikessell (2003).
O capítulo terceiro traz o título: “A iconografia da paisagem”, neste
tópico discutiremos a respeito do modelo iconográfico/iconológico proposto por
Erwin Panofsky. Assim, através do referido método almeja-se a delineação do
entendimento das obras de arte elaboradas por Raimundo Cela.
No quarto capítulo, “A paisagem litorânea em Raimundo Cela”,
seguiremos com o estudo de algumas das obras do pintor cearense em
destaque, para através do conceito de paisagem explorarmos as vivências
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litorâneas de Cela, bem como apreendermos o dinamismo do litoral capturado
nos seus trabalhos. De forma constante retrocedemos aos capítulos anteriores,
ambicionando fundar um diálogo com os autores que constituem a nossa base
teórica.
16
2 A DIMENSÃO DA PAISAGEM NA PERSPECTIVA DA FENOMENOLOGIA
O presente capítulo propõe tratar dos conceitos de Arte e Geografia
e posteriormente abordara paisagem sob o viés da fenomenologia. Dessa
forma será realizada a delimitação teórica que servirá como esteio para o
estudo. Serão discutidas as transformações de ambos conceitos e as
incorporações de novas propostas teóricas e metodológicas para seu melhor
entendimento. Entendemos que a tríade paisagem-geografia-arte, delineia-se
como uma forma de representação nas várias perspectivas pelas quais
conformam uma espacialidade. Os estudos que envolvem a temática da arte e
da geografia irão centrar sua abordagem nas perspectivas de
socioespacialidades, sobretudo quando estas se objetivam pela paisagem. Tais
abordagens obtêm relevância nas discussões sobre a investigação e
entendimento das espacialidades, uma vez que, entendemos que a visualidade
contida na arte nos leva a tecer relações com outras áreas do conhecimento.
Portanto, a paisagem evoca intencionalidades nas quais colocam os homens
como agentes produtores de sentido (CLAVAL, 2012).
Assim a dimensão cultural na qual se problematizará a paisagem
serádirecionada àobra do pintor cearense Raimundo Cela. As cenas escolhidas
e capturadas pelo olhar do pintor, servem para a compreensão cultural da
paisagem litorânea em Camocim ao apresentar-se como elemento da cultura
pelo qual agrega o imaginário das representações, sentimentos e ações
desenhadas no espaço geográfico.
2.1 ARTE E GEOGRAFIA
A Era Moderna desencadeou vibrações, as quais abalaram o
alicerce das artes visuais. Diversas foram as metamorfoses no âmbito das
convenções artísticas. Embora deparemo-nos com uma diversidade de artes
visuais (pintura, xilogravura, grafite, fotografia, colagens etc.), percebem-se o
surgimento de algumas questões, as quais transcendem o quadro quantitativo
de manifestações nas artes visuais, com seus materiais e formas variadas no
período moderno.
17
Para além do plano técnico que marca cada estilo artístico,
ressaltamos as mudanças ocorridas no sentido da política, das ideologias, no
plano econômico, nas ciências, gerando um desdobramento das trilhas
metodológicas constitutivas do campo da arte, bem como a abertura de novos
diálogos, instaurando uma interdisciplinaridade. Destacam-se neste aspecto
as ciências cognitivas, por exemplo, a psicanálise, a psicologia e a filosofia.
Com o destaque para a cognição, outros ramos interessar-se-ão pela arte
como uma marca das atividades humanas eivada de intencionalidade. Em tal
perspectiva, observamos o despertar da ciência geográfica para o universo
das representações artísticas (MEIRA, 2000).
Diante das alterações ocorridas no período Moderno, vemos a
criação de um elo entre a arte e as ciências dos significados, as quais
inserem no fazer artístico a perspectiva da imaginação. Esta é,atualmente,
considerada um dos sustentáculos da produção artística, como também para
a sua compreensão. Destarte, com o novo cenário na arte no qual a
imaginação é uma protagonista, Meira (2000) explana que
Nos tempos modernos, com a dissolução progressiva dos marcos referenciais herdados do passado e com o consecutivo declínio das tradições, o espaço imaginário passa a adquirir uma importância fundamental na história da arte. O que define o mundo imaginário como universo é a consciência frente à realidade: ela é motivadora de interpretações e transformações do real (MEIRA, 2000, p.101).
As novas perspectivas envolvendo as análises da paisagem
pictórica, constituem-se juntamente com uma diversidade de representações
culturais, um temário estabelecido de estudos geográficos referentes à
modernidade e aos seus respectivos efeitos sobre o mundo, como: as
identidades nacionais, desigualdades sociais, as conseqüências da
industrialização, a poluição das águas e as catástrofes ambientais,
decorrentes do uso sem regras dos recursos naturais.
O despertar do interesse da ciência geográfica pelo domínio
artístico, emerge dos questionamentos referentes à interdisciplinaridade da
cultura, e do significado da paisagem nas áreas das ciências humanas. Deste
modo, objetiva-se um cruzamento científico eivado de originalidade com a
paisagem, a qual caracteriza-se como um gênero relevante na arte
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contemporânea, bem como uma fonte de discussões acerca de problemas os
quais dizem respeito às espacialidades (DANIELS, 2005).
Durante as últimas décadas, os estudos da paisagem em Geografia
Cultural, apresentaram-se constantemente imbricados com as artes visuais,
estabelecendo desta maneira a interface na qual entrelaçam-se a arte e a
geografia. As transformações teóricas e metodológicas ocorridas neste ramo
geográfico, permitiram a expansão do temário nas pesquisas, nas quais as
diversas representações da paisagem e o seu debate, obtiveram espaço em
veículos de comunicação. Tais discussões concentraram a paisagem como
um sujeito, na pintura e na fotografia, enfocando a sua dimensão material
decorativa. Tomemos como exemplo os jardins, estes constituem-se como
objeto decorativo, o qual traz em suas formas, um tempo histórico eivado de
simbolismos, intencionalidades e igualmente de significados. As formas
simbólicas espaciais também destacam-se no corpo das paisagens, pois
esculturas e casarões, como a arte de rua e os murais apresentam um lugar
específico na paisagem (DANIELS, 2005).
Os novos estudos abrangentes do binômio geografia e arte,
evidenciaram as particularidades de distintos gêneros de arte da paisagem,
os quais agem como sendo comunicadores do espaço e do mundo. Verifica-
se o nascimento de um universo de significados, oriundos nos limites tanto
internos como externos, ou seja, há uma relação entre o espaço externo das
obras de arte: lugares retratados e as suas respectivas localizações. No que
concerne ao âmbito interno de uma obra de arte, apresentam-se as projeções
espaciais revelando maneiras diferentes de ver, igualmente incluem-se os
vínculos afetivos com as figuras elaboradas, com as paisagem captadas,
como os lugares onde os artistas produzem seus trabalhos eas relações de
identidade estabelecidas, entre esses trabalhos e os seres humanos
consumidores de tais obras (DANIELS, 2005).
As representações artísticas, sendo estas pictóricas ou não, como
os mapas, esculturas, pinturas, edificações com valor artístico-cultural,
expedem significados como autênticos mapas reveladores, conduzindo-nos a
reflexão à respeito do dinamismo socioespacial do período no qual
determinada obra foi edificada, permitindo-nos assim compreender através da
arte diversas situações econômicas, políticas, sociais do período histórico que
19
a obra encontra-se envolta. Assim, o ato de representar o mundo por meio de
inúmeras formas desde a pré-história até o momento contemporâneo, pode
ser apreendida em suas esferas espaciais mais singulares. Portanto,
semelhante aos conhecimentos que possuímos sobre as civilizações, egípcia,
grega, romana, bizantina entre outras, a arte é identificada como uma forma
de entender a organização dessas sociedades antigas, possuindo a
capacidade de congregar valores e sentimentos e fatos de um povo. São
ofertadas as condições de tomarmos consciência de transformações por
variados ângulos, através da paisagem artística: as eclosões ideológicas, as
mudanças de paradigmas morais, regimes políticos os quais modificaram o
espaço em escala mundial (COSGROVE, 2003).
Na dimensão da arte contemporânea, a paisagem é uma maneira de
ver a realidade, espaços habitados os quais são percebidos constantemente
pelos sentidos. Assim, antes de transpor quaisquer cenas para as suas
respectivas telas, o artista imagina, redesenha, realiza associações com
outros lugares, encarnando desta maneira “sistemas estéticos, morais, que a
paisagem deve pretensamente refletir” (BESSE, 2014, p. 14).A imaginação
diversas vezes é negligenciada, sendo considerada como um ato corriqueiro,
sem qualquer espécie de reflexão ou relevância bem como envolvida em
depreciação. Porém, a imaginação requer uma atenção elevada, no que diz
respeito à atividade artística e apreensão dos movimentos e cores os quais
rodeiam o ser humano (PALLASMAA, 2013). A importância da imaginação
encontra-se em nossos atos do presente, e nas projeções as quais
concretizarão as ações do futuro. Destarte, imaginar não resume-se à mera
qualidade simplista de “ sonhar acordado - ela pode ser considerada a base
da nossa própria humanidade (PALLASMAA, 2013, p.10).” A atividade em
tela, permite uma abertura do ser humano para as experiências perceptivas
dos fenômenos existentes no mundo. Na ausência do ato da imaginação, não
haveria os planejamentos, as percepções, as sensações e os sentimentos;
tomemos por exemplo a empatia diante dos nossos semelhantes.Portanto,
realizamos escolhas e edificamos a nossa visão do espaço e construímos as
visões singulares das paisagens. Logo, as imagens habitantes da mente do
ser humano individual ou coletivo, são produtos da imaginação, configuram-se
como elementos basilares no ordenamento referente aimagem mental e na
20
transformação da paisagem material. Consequentemente, sem a imaginação
a atividade artística tornar-se-ia inviável (PALLASMAA, 2013).
Perante a linhagem do universo sensível, corroboramos com
Cosgrove (2003), quando o mesmo ressalta que
A imaginação é, assim, intimamente ligada à arte humana e que encontra expressão na esfera de cada um dos sentidos: na música ouvida, na cozinha saboreada, nos movimentos corporais, perfumes cheirados e representações gráficas que apelam para o olho (COSGROVE, 2003, p.253)
O pintor instaura uma relação com o seu meio natural, o qual
desencadeia as percepções, e os sentimentos, pois o artista é contornado por
um universo de cores, movimentos, texturas, sons, odores e sabores, os quais
atribuem sentido e valorizam a paisagem. Destarte, o pintor encontra-se
inserido em uma paisagem, com os elementos participantes da sua
composição, por exemplo, as edificações, as pessoas, os lagos, mares, as
planícies, os utensílios, e logo ultrapassa o primeiro nível morfológico,
conformando camadas sensíveis constituídas por subjetividades.
No processo de criação artística da paisagem, a imaginação
constitui-se como um dos pilares no processo de ressignificação, pois permite a
formação de “imagens que não existem anteriormente no mundo material de
seu criador (COSGROVE, 2003, p.253).” Tal postura dialoga com a abordagem
realizada por Besse (2014), ao definir a paisagem como uma realidade da
mente humana, encaixando-se como uma maneira de interpretar o mundo,
uma forma de pensamento, a dimensão imaterial da vida humana. Desta
maneira, a paisagem mental é construída por meio dos múltiplos olhares do ser
humano para o seu mundo exterior.
Representada em telas, em fotografias, nos textos literários bem
como nas músicas, a paisagem é uma análise, uma pensamento acerca do
mundo o qual se desnuda diante do olhar do artista, porém a mesma, não
isola-se em tal perspectiva, é simultaneamente uma marca do ser humano
sobre a Terra. “Ela é sempre, por essência uma expressão humana, um
discurso, uma imagem, seja ela individual ou coletiva, seja ela encarnada em
uma tela, em papel ou no solo (BESSE, 2014, p. 14)”, comunicando-nos a
21
respeito do comportamento e das organizações socioespaciais de
determinadas comunidades e de suas respectivas inscrições na
superfície.Desta maneira, a paisagem é um conjunto de valores, vozes e
igualmente de códigos culturais.
Cosgrove (2008, p.15) ao explorar o campo visual geográfico,
salienta a importância da “pré-experiência” de trabalho no mundo “viabilizado”
por meio da “imaginação”, e por sua forma mais característica de expressão: a
criação de imagens. Desta forma, tal atividade caracteriza-se, como sendo vital
a todos os seres humanos, auxiliando-nos a estabelecer um elo de
compreensão entre o ser humano e o mundo. Assim, as percepções espaciais
enraízam-se na mente do artista, o qual através da imaginação configurará
novos contornos, formas, modelos, dimensões, ainda não existentes no mundo
material. Consequentemente, este conjunto de elementos pré-existem para o
artista. Observamos que Raimundo Cela pré-definia e organizava na sua
mente as suas obras, com a matéria-prima extraída das suas experiências
referenciadas no mundo material circundante.
Diante desta associação íntima, assentada entre a matéria e os
sentimentos que caracterizam a gênese da paisagem, Besse (2014) ressalta a
importância de conectarmos o mundo físico, remodelado constantemente pela
a atividade humana, com a face imaterial, ou seja, os valores atribuídos pelos
homens às formas, como: as casas, os moinhos, as plantações, técnicas para
o plantio e colheita, estradas, bem como as formas naturais eivadas de
simbolismo, partindo do trabalho e das relações sociais estabelecidas pelas
comunidades. Besse (2014) afirma ainda que
É verdade que a paisagem também é uma maneira de ver e imaginar o mundo. Mas é primeiramente uma realidade objetiva, material, produzida pelos homens. Toda paisagem é cultural, não necessariamente por ser vista por uma cultura, mas essencialmente por ter sido produzida dentro de um conjunto de práticas (econômicas, políticas, sociais), e segundo valores que, de certa forma ela simboliza (BESSE, 2014, p.30).
As experiências oriundas do universo material, no qual o artista está
inserido, podem ser partilhadas com os seus semelhantes, entretanto são
singulares, pertencendo ao pintor, o sujeito responsável por adaptar essa
22
mesma experiência, criando novos fenômenos ofertando um significado ímpar
à paisagem representada.
A paisagem transmite um caráter polissêmico, suscitando inúmeras
discussões em diversas áreas do conhecimento, as quais elaboram de acordo
com as suas especificidades, o seu constructo teórico-metodológico, voltando
a sua atenção às questões referentes a esse conceito. Assim originam-se as
novas perspectivas dos estudos da paisagem, conduzindo a uma
convergência teórica, ou uma distinção radical nas formas de interpretação
das paisagens. Nesta perspectiva Besse (2014, p.11) abordando a ótica
polissêmica, introduz o debate estabelecido perante o conceito de paisagem,
salientando a existência de uma plasticidade paisagística, quando revela-nos
que a mesma não constitui-se um objeto exclusivo do “paisagista”, do
“arquiteto”, ou “jardineiro”, porém participa da área de abrangência científica
das ciências sociais como a Geografia, a Antropologia, a Sociologia, a
Literatura, a História da Arte, a Filosofia, e igualmente as Artes visuais, todas
elas integram o conjunto das ciências estudiosas da paisagem.
Besse (2014), concebendo “Cinco portas da paisagem”, explora
maneiras diferentes de compreendermos o lance de vista situado diante dos
nossos olhos, aproximando-se, portanto, da visão cunhada por Meinig (2003),
que analisa “Dez versões da mesma cena”, centralizando seu estudo na
esfera subjetiva da paisagem. Ambos os autores explicam o construto da
paisagem a partir das experiências que o ser humano extrai da sua vivência,
sustentando assim, uma discussão capaz de transpassar os limites fundados
pelas formas físicas, adentrando na experiência do ser humano sobre o
espaço por ele habitado e ao mesmo tempo percebido. Compreendemos
deste modo que, esses olhares acerca do visual não se isolam em um
universo fechado, de maneira unilateral, ao contrário, partes aparentemente
desconexas entrelaçam-se no pensamento paisagístico contemporâneo, não
sobrepujando-se uns aos outros, mas, realizam correlações, que permitem a
potencialização do seu significado.
A paisagem não restringe-se ao plano físico-material, existe a
essência percebida e sentida por quem apreende as suas formas. Um
complexo fluxo de códigos culturais, elaborados pelo ser humano no decorrer
da sua vida tanto individual, como coletiva, constroem o sentido das
23
paisagens. Nesta perspectiva, Cosgrove (2008), diante das questões
assentadas sob o binômio geografia e arte, salienta a importância das
representações, como sendo nascedouros das investigações geográficas, e
não meramente reproduções miméticas do espaço circundante. Neste ângulo,
em que convergem a Geografia, a Arte e as representações da paisagem, o
autor revela-nos que
A inscrição geográfica é, simultaneamente, material e imaginativa, moldando paisagens fisicas da terra de acordo com as intenções humanas: tanto as exigências da existência prática e visões da qualidade de vida. Representações geográficas - nas formas de mapas, textos e imagens pictóricas de diversos tipos- eo olhar das próprias paisagens não são meramente traços ou fontes, de maior ou menor valor para a investigação desinteressada pela ciência geográfica. Elas são, elementos constitutivos ativos na definição de práticas sociais e espaciais e os ambientes que nós ocupamos. Interpretação de paisagens concretas ou através de imagens e textos como testemunho da ação humana é uma contribuição honrosa para a geografia cultural para fazer em direção às metas de conhecer o mundo e compreender a nós mesmos das humanidades: para a investigação da vida(2008, p.15).
“A obra-de-arte, o texto visual é um sistema de elementos gráficos e
pictóricos (sinais visuais) possuidores de um significado (sentido) em um dado
contexto histórico-cultural”(PRETTE, 2008, p.10). As paisagens que o artista
decide pôr em tela, entalhar, esculpir, moldar, apresentam uma bagagem de
sentimentos, percepções, pensamentos e são passíveis de uma interpretação
geográfica. “Um artista é um ator geográfico quando transforma uma tela num
território que reflete as concepções espaciais de uma época, tanto do ponto
de vista material, como do ponto de vista simbólico (HUFTY, 2001, p.127). As
obras que alcançam os dias atuais admitem que apreendamos qual a forma
de pensar, organizar o espaço, agir e viver de um determinado povo.
A Geografia incorporou no período pós-1970, novas bases teórico-
metodológicas para seus estudos espaciais. Neste momento, os geógrafos
atentam para debater o universo das representações sociais em suas
variadas expressões. Atentando para novas formas de olhar, a arte passa a
ser vista como um campo a ser explorado repleto de significados. A carga
imaterial do espaço até então negligenciada, ganha atenção e destaque.
Diante da renovação a geografia volta o seu olhar para a experiência do
sujeito como um objeto de conhecimento espacial, por conseguinte os
24
geógrafos compreendem que “a palavra chave é significado, expresso nas
expressões telas de significados, magmas de significados e mapas de
significados, esta última adequando-se nitidamente à perspectiva geográfica”
(JACKSON, 1989 apud CORRÊA,2003, p.13).
A paisagem citadina captada através da lente fotográfica, ou
representada sob a forma de textos literários, as paisagens imaginárias,
paisagens naturais, sonoras, dominantes ou excluídas, paisagem que é
marca e matriz de maneira simultânea, são apenas algumas entre outras
infinitas faces que esse conceito é capaz de exibir. Percebemos diversas
formas de olhar a paisagem, algumas delas abrangendo graus de
subjetividade ou objetividade variados mediante ao seu método de estudo.
O conceito de paisagem apresenta uma carga histórica complexa,
como um elemento ordenador e condutor de compreensões da realidade
geográfica. Desse modo, a natureza plástica (objetiva e subjetiva) da
paisagem, serve como orientação para o entendimento do elenco material de
formas palpáveis em uma área geográfica escolhida. Logo, as representações
como textos literários, fotografias, obras de arte revelam outra dimensão a
qual envolve espaços de memórias, dos desejos, da imaginação, e dos
sentidos (COSGROVE, 2003).
Diante do olhar da geografia cultural renovada, novas dimensões da
paisagem foram e continuam em permanente processo de descoberta. Assim,
a expansão teórica-metodológica, bem como conceitual, adentraram no
universo da paisagem, desencadearam novos objetos de pesquisas
enfocando a compreensão da conjectura espacial, assentada sobre a relação
do ser humano com seu meio (COSGROVE, 2003).
Embora a paisagem possa ser criada ou representada, o seu valor
exibe profundidade a respeito do espaço geográfico, pois ao utilizarmos
representações artísticas da paisagem para a percepção da realidade, não
significa que aquela seja “intelectualmente superficial ou insignificante como
um objeto de estudo geográfico e reflexão” (COSGROVE, 2003, p. 254).
Portanto, o lance de vista observado pelo olhar do ser humano, não restringe-
se a um simples conjunto das formas passivas inertes dispostas sobre a
superfície terrestre. Consequentemente, ver e transformar são atos
complementares, os quais associam-se intima e ativamente, exercendo
25
influências sobre o desenvolvimento da percepção, auxiliando ao ser humano
na modificação do seu habitat, tornando visíveis as suas marca singulares.
Determinadas obras são frutos da criatividade humana revelando
assim, muito sobre a organização socioespacial de diversas civilizações; logo
uma representação pictórica, uma escrita sobre o papel, filmes, registros
rupestres são meios de capazes de exibir significados que, diferentes grupos
humanos atribuíram às espaços e aos lugares. Consequentemente partindo
da decodificação de determinada obra de arte (seja pictórica, cinematográfica
entre outras) é possível realizar uma ligação entre essas múltiplas formas de
representação e as mensagens transmitidas (DANIELS e JACKSON, 1987
apud COSGROVE e JACKSON,1987).
2.2 PAISAGEM E GEOGRAFIA
O espaço geográfico mostra-se aos nossos olhos pelas mais
diferentes formas, adquirindo um caráter multifacetado. Para sua compreensão
é necessário observar seus variados ângulos, seja o território, a região, a
paisagem ou o lugar. Cada conceito chave possui suas características próprias
que objetivam o ângulo pelo qual a sociedade está sendo dimensionada
trazendo ao debate as transformações que a humanidade realiza sobre a
superfície da terra. Tal postura confere à Geografia, uma autonomia no âmbito
das ciências sociais para estudar as relações que os homens estabelecem
entre si as quais modelam e remodelam o espaço geográfico (CORRÊA, 2006,
p.16).
Moreira (1994, p. 15) esclarece que “a geografia é um saber tão
antigo quanto à própria história dos homens”. Perante o exposto pelo autor
observa-se que, o conhecimento geográfico surgiu há milênios, e muitas vezes
relacionado ao conhecimento da natureza, podemos exemplificar através do
modo de vida dos mesopotâmicos e dos egípcios que estudavam o
posicionamento do sol, a direção dos ventos, o movimento das águas fluviais
entre outros elementos que compunham a paisagem natural. A observação
constituía-se como o principal meio para tentar aplacar as intempéries naturais
pelas quais o ser humano viu-se obrigado a conviver e controlar. Desde o
homem pré-histórico até os dias atuais, o olhar se configura como porta
26
principal para a percepção e ordenamento do mundo no qual o ser humano
está inserido.Assim, elegemos a visão como sentido construtor do pensar
geográfico eivado de contemplação e entendimento, tal sentido é acolhido
como o início dos questionamentos que acompanham a sociedade no curso de
sua história, o sentido problematizador da realidade.
Ler a paisagem é um processo que faz parte da rotina de qualquer
sociedade. Das eras mais longínquas até o período contemporâneo, as
comunidades refletem sobre a ocupação e a edificação do espaço geográfico.
Tal reflexão baseia-se nas necessidades cotidianas do ser humano, por
exemplo, encontrar um lugar com condições estáveis para a sua sobrevivência.
Destarte, o ser humano estabelecerá relações com o meio que o abriga, pois
para a construção de seu habitat são incluídas: as “projeções, pré-ideações,
avaliações”, as quais,de acordo com Moraes (1996, p.02), caracterizam-se
como formas de percepção do espaço.
A partir da observação da paisagem, o ser humano produz as
condições de sobrevivência, ou seja,plantações, criações, casas e cercas eram
erguidas e distribuídas de forma organizada no espaço, portanto, passava-se
de um quadro de caos para algo coerente, o mistério da natureza que agia
sobre o mundo vai ganhar uma explicação acompanhada de organização, o
olhar permite contemplar e explicar fatos tanto naturais quanto sociais,
contudo, firmamos em tal perspectiva que o olhar sempre esteve presente na
percepção do mundo.
A partir do século XIX, com a sistematização da geografia, inicia-se
o processo pelo qual se delineia de forma descritiva o conhecimento do mundo.
A investigação geográfica possuía o intuito de explorar as riquezas e conhecer
os diferentes modos de vida da época. Através da apreciação de Humboldt em
seus desbravamentos, descrevia-se diferentes tipos vegetações, bacias
hidrográficas, formas de relevo, tipos de climas, entre outros elementos que
compunham a paisagem natural. Neste contexto, delineado por uma
perspectiva naturalista,Moraes (1989) chama atenção para a importância e
complexidade do olhar geográfico nos estudos iniciais da relação homem-
paisagem-natureza e explana que:
27
O método da Geografia, segundo Humboldt, parte da observação da paisagem. Essa contemplação da natureza transmite uma sensação ao sujeito, que encontra correspondência com suas representações interiores. O sujeito, pela observação filtrada por sua subjetividade, “percebe” o todo seus encadeamentos. (MORAES, 1989, p. 115)
Assim o autor ressalta a destreza que acompanhava Humboldtna
filtragem diante das diversas paisagens postas diante de seus olhos por meio
de sua subjetividade e percepção, por mais que os estudos do naturalista em
debate englobassem o mundo físico, o sujeito que descreve e transmite uma
mensagem que chega até nós, elabora associações por meio das lembranças
da vida de quem descreve ou vindas de outras viagens.
A expressão “olhar geográfico” não carece de ser interpretada como
sendo uma expressão metafórica, pois, contemplar através da visão faz parte
da tradição e tem fundamento epistemológico. Podemos tomar como exemplo
a obra “Cosmos” elaborada por Humboldt através de seus relatos em
expedições ao redor do mundo, contudo, o ato de ver se faz presente na
evolução do pensamento geográfico. Percebemos que o olhar corresponde a
uma qualidade específica e relevante na constituição do ser geógrafo,
participando de sua formação e investigação do mundo. Os relatos dos
primeiros geógrafos aventureiros, exploradores anunciavam de maneira vívida,
sagaz e detalhada as formações humanas, até então desconhecidas e através
de suas particularidades almejavam explicar as relações que as formas
presentes nas paisagens estabeleciam entre si.
Torna-se necessário, portanto, uma compreensão do termo
“paisagem” para que possamos contextualizar perspectivas que nortearão as
relações sujeito-espaço, uma vez que a paisagem objetiva-se como forma
primeira naquelas relações.
Claval (2004), em seu texto “A paisagem dos geógrafos”, traz a
evolução do termo paisagem, ressaltando as modificações pelas quais o
vocábulo sofreu com o passar dos anos e as adaptações linguísticas que
alguns países realizaram e que transformaram o conceito; assim temos
inicialmente oriunda do holandês landskip, o alemão constrói o landschaft e o
inglês landscape para a tradução do novo termo holandês.
O termo paisagem, sob a denominação “landskip”, surge nos Países
Baixos. Seus primórdios estão enraizados na pintura aplicada a quadros nos
28
quais se representava um pedaço da natureza percebida a partir de um
enquadramento; a pintura, que por sua vez era elaborada,tinha por finalidade
representar a natureza tal qual se apresentasse ao globo ocular do indivíduo.
Temos a predominância da mimética como paradigma na elaboração das
paisagens pictóricas. Claval (2004, p. 245) estabelece que “no início dos anos
1420, em Florença, Brunelleschi descobre (ou redescobre) as leis da
perspectiva.” Nesse período,a paisagem ainda se configura como algo que se
observa por meio das janelas das salas, tal momento permitia o artista captar
um fragmento da natureza que se revelava aos seus olhos. A pintura no
período Quattrocento baseada na perspectiva, expandiu-se pela Itália e Europa
permitindo um salto na representação da realidade em que, casas, rios,
colinas, temas bíblicos, campos entre outros ganharam mais naturalidade.
Nesse contexto, podemos chamar a paisagem desse período de
“janela externa”, ou seja, o construto pictórico da paisagem exibia o objetivo de
copiar fielmente a cena vista em seus detalhes. Desse modo, ressaltamos que
a mesma era relevante devido ao seu domínio físico e material. Assim, a arte
contribuiu para o nascimento da paisagem, contudo, a ciência geográfica irá
permitir que tal conceito fosse ampliado, enriquecido, e desdobrado, sofrendo
profundas metamorfoses, as quais nos permitem vislumbrar outras dimensões
da realidade passíveis de interpretações geográficas.
Na ciência geográfica,o conceito de paisagem não é recente, muito
embora a Geografia tenha desprezado durante certo período a ênfase subjetiva
e simbólica da paisagem. A negligência da perspectiva imaterial da paisagem é
associada ao positivismo e logo depois ao positivismo lógico. No primeiro
momento, a ciência geográfica é marcada profundamente pelo paradigma
positivista. No segundo momento, a Geografia assentou suas bases no
chamado positivismo lógico.
O positivismo marca o pensamento geográfico tradicional com seu
caráter descritivo, sintético e a-histórico. A Geografia clássica encontra no
positivismo sua base teórico-metodológica para erigir seus estudos iniciais a
respeito da paisagem; essas análises eram reduzidas ao domínio das
aparências do fenômeno. Dessa forma, para a corrente em discussão, a figura
do pesquisador é limitada a de um simples observador, o qual descrevia os
fatos referentes ao espaço geográfico catalogando e enumerando elementos
29
tanto naturais quanto sociais. Posteriormente, surge outro paradigma: a
Geografia teorética e quantitativa, a qual tem seu apogeu durante o pós-
Segunda Guerra Mundial. Conhecida também por corrente Neopositivista, ou
New Geography, a corrente em debate propôs a transformação nas bases
teórico-metodológicas da Geografia, almejando superar o antigo paradigma
positivista. Para alcançar esse objetivo, os geógrafos adotaram a matemática
pelo seu caráter exato, e a consideravam como verdadeira linguagem
científica. Os geógrafos vinculados à Nova Geografia adotaram um conjunto de
modelos matemáticos e estatísticos, buscando através de tais métodos explicar
os fenômenos referentes ao espaço geográfico. Para a New Geography, era de
fundamental importância o emprego dos modelos matemáticos, entre eles: os
padrões geométricos, as matrizes, modelos probabilísticos, classificatórios e
descritivos, culminando novamente na descrição e quantificação dos
fenômenos espaciais (MOREIRA, 1994).
Após a Segunda Guerra, o cenário mundial transforma-se, trazendo
consigo profundas mudanças na ciência e na tecnologia, dessa forma, a
Geografia não estava imune a uma metamorfose. Moreira (1994, p. 43) expõe
que o aparato tecnológico que “surge principalmente nos Estados Unidos na
década de 60” permitiu que a Geografia se tornasse uma ciência
profundamente aplicada à mensuração dos fenômenos, ou seja, a utilização da
ciência matemática e da cibernética para a compreensão da sociedade; a
paisagem nesse período não é interpretada em sua perspectiva imaterial,
poisno referido período o desenvolvimento e uso da estatística por parte dos
geógrafos enfatizava a descrição numérica dos fenômenos, posteriormente,
novas posturas científicas surgem trazendo renovação e os antigos paradigmas
são superados ou incorporam novas ideias.
2.3 PAISAGEM E GEOGRAFIA CULTURAL
Discorreremos brevemente a respeito do percurso acerca do trajeto
que o conceito de cultura realizou desde sua matriz tradicional até as novas
incorporações teóricas e metodológicas no período pós-1970 para com isso,
buscaremos uma melhor assimilação do conceito de paisagem.
30
A Geografia Cultural é um subcampo da Geografia, apresentando
um rico e vasto campo de pesquisas. No entanto, a postura tradicional marcada
pela leitura objetiva e empírica da realidade negligenciou durante algum tempo
a incorporação de uma nova postura que surgiria na ciência geográfica. Burgess (1978) mostra que influenciados pelo determinismo
geográfico, os pioneiros nos estudos de Geografia Cultural consideravam os
fenômenos culturais como sendo um fruto dos “fatores geográficos”, entre os
mesmos podemos ressaltar: latitude, longitude, calor, frio entre outros fatores
que os geógrafos culturais acreditavam influenciar tanto nos aspectos materiais
quanto imateriais(COSGROVE, 1983).
Corrêa (2001),ao se referir à Escola de Berkeley, mostra que sua
produção acadêmica no período de 1925 a 1975tem como expoente o geógrafo
Carl Ortwin Sauer, criador e máximo expoente dessa escola, promovendo o
avanço do pensar geográfico no que concerne aos temas de pesquisas:
paisagem natural e cultural, ecologia cultural, áreas culturais, estudos de
paisagens do passado buscando a compreensão do presente, abordando os
novos desdobramentos teórico-metodológicos. Sauer deixou um legado rico e
amplo no que diz respeito à produção acadêmica e um desbravamento teórico,
que atualmente estão presentes nos debates geográficos, servindo como
esteio para aqueles que buscam realizar uma abordagem pautada na
perspectiva cultural do espaço.
A partir do clássico “A Morfologia da Paisagem” publicado no ano de
1925, Sauer corrobora que a paisagem é constituída por uma área de formas
naturais e culturais, agindo simultaneamente e realizando associações de
interdependência. No referido texto,Sauer pensa nas inter-relações
morfológicas expressas na união homem-natureza, ratificando que ao geógrafo
cultural cabe estar atento aos questionamentos pertinentes à morfologia
paisagem. Em seu texto, Sauer organiza as paisagens em dois tipos: as
naturais e as culturais. As primeiras seriam as paisagens originais, ou seja,
ainda não modificadas pela intervenção humana, posteriormente Sauer enfoca
sua abordagem na paisagem cultural, a qual seria um produto da atuação de
uma determinada comunidade sobre uma área natural. Adotemos como
exemplo as terras cultivadas que servirão como testemunhas da presença de
elementos artificiais na paisagem. Ao mesmo tempo, encontraremos outros
31
objetos que destacam a ação humana sobre a superfície terrestre: estradas,
técnicas, habitações, moinhos, cercas, muros e estábulos distribuídos na
paisagem. Observamos que a divisão das formas caracteriza-se como um
processo basilar para a determinação da relevância da paisagem, do mesmo
modo serve como esteio para traçar o caráter dessas comunidades.
Corrêa (2010) destaca que o conceito de cultura aceito pelos
sauerianos, encontra suas raízes na antropologia norte-americana, aqui
ressaltamos a influência de Alfred Kroeber sobre Sauer e seus discípulos. Na
antropologia norte-americana, originou-se até o período de 1950 um
determinismo cultural, ou seja, a cultura era a força determinante para as ações
do ser humano sobre a paisagem. A Escola de Berkeley adotou o conceito de
cultura oriundo da antropologia cultural, contudo,nessa perspectiva, a cultura é
considerada uma entidade supra-orgânica, ou seja, constituía-se com um grau
independente da realidade externa em sua totalidade aos indivíduos.
Duncan (1980) enfatiza que a cultura era vista como uma entidade
que pairava sobre os homens, algo com um nível elevado e independente que
direcionava as ações dos sujeitos, estes encontravam-se em um plano
orgânico de acordo com as considerações de Sauer. A cultura era o agente e o
ser humano um mero vetor, ou seja, mensageiro sem autonomia de tal
entidade. Os geógrafos adeptos da chamada geografia cultural tradicional
desconsideraram outras explicações para a constituição e transformação das
paisagens; a cultura era a força que norteava as ações do ser humano sobre a
superfície terrestre. Outros aspectos como as interações internas nas
sociedades, os sentimentos, os significados atribuídos por meio do trabalho
humano eram negligenciados (CORRÊA, 2001).
A concepção de cultura para os adeptos da Escola de Berkeley
estava estreitamente associada à exteriorização do sujeito. Desta forma a
identidade do grupo se daria através do processo de “internalização” e
canalização da cultura, estes realizavam-se de forma “condicionante”, de
acordo com Corrêa (2001, p. 26). Assim, originavam-se os costumes que eram
assimilados como cultura,conduzindo desta maneira a uma “homogeneidade
cultural”, garantindo poucas mudanças e ausência de conflitos internos; por
exemplo as lutas de classes e o debate a respeito da estratificação social.
Compreendemos que o ser humano não era considerado como produtor de
32
cultura e agente atuante na metamorfose das paisagens, estando assentado
em segundo plano.
Sauer, elegendo o método morfológico, buscava alcançar uma
descrição exaustiva das paisagens e torna relevante este assunto ao ratificar
que: O estudo geográfico ainda começa assim. A descrição de fatos observados origina, por ordem predeterminada, um agrupamento preliminar do material. Essa descrição sistemática relaciona-se aos propósitos da relação morfológica e realmente é o começo da síntese morfológica (SAUER, 1925, p.196).
Seus estudos orbitavam em torno da relação forma/conteúdo
considerando as paisagens como sendo um descobrir puramente visual físico:
casas, cercas, ferramentas, vestuário, técnicas de plantação, utensílios,
portanto, a geografia cultural praticada no inicio do século XX exibia um forte
laço com a Etnografia culminando na denominada Etnogeografia, em que
prevalecia a densa descrição das paisagens. Ressaltamos a importância do
olhar físico sobre as paisagens em estudo sejam em áreas urbanas rurais.
Observar uma pintura, ou a imagem cinematográfica, ou até mesmo o velho ato
de ver pela janela da sala, é o despertar para o conhecimento do mundo que
nos rodeia, consideramos o olhar o ponto de partida para aprofundarmos as
camadas de significados.
A mudança das paisagens naturais ocorreria sob a determinação da
cultura,sendo assim as ações humanas seriam expressas por meio da
paisagem cultural, onde a natureza constitui-se como alicerce para tais
atividades. Posterior ao trabalho humano, o resultado será a paisagem cultural
atuando como mostruáriodo impacto da ação do ser humano sobre a face da
Terra. Costumes e crenças não compunham as inquietações dos geógrafos
ligados à Escola de Berkeley, no entanto a análise das marcas do homem
sobre as paisagens definia o centro de sua abordagem (SAUER, 1925).
Com seu dinamismo próprio, a Geografia Cultural vem discutindo e
se renovando, partindo de suas dúvidas e aspirações as quais tornam salutar
um breve retrospecto as suas origens. Contudo, o retorno ao passado da
Geografia Cultural tradicional se faz necessário porque é possível encontrar
respostas para questionamentos atuais, e assim promover o dinamismo o qual
estimula reflexões ajudando a pensar em uma nova Geografia Cultural.
33
Mitchell (2000 apud CORRÊA 2003) nos diz que o processo de
renovação se fez no contexto da cultura, a denominada “virada cultural”. O
autor esclarece ainda que na década de 1980, um conjunto de mudanças em
escala mundial ressalta a dimensão cultural dos processos em ação. São
apontadas estas transformações:
[...] as mudanças na esfera econômica, o fim da denominada Guerra Fria, a ampliação dos fluxos migratórios da periferia para os países centrais, o movimento ecológico, novas formas de ativismo social e a crescente consciência da necessidade de novos modos de se construir e entender a realidade, até então calcada no racionalismo moderno, no raciocínio científico e na celebração da técnica. (CORRÊA, 2003, p. 12)
Esses fatos inauguram uma nova maneira de se enxergar a
realidade contribuindo para a renovação do pensamento geográfico cultural no
qual o próprio conceito de cultura metamorfoseou-se, absorvendo métodos de
abordagem que até então eram desconhecidos entre os geógrafos. O
quantitativismo e o materialismo não mais respondiam às indagações que
surgiam e também não resolviam questões que a denominada geografia
cultural tradicional deixara pendentes. Associamos essas transformações a
uma atmosfera intelectual contestadora e libertária com os grupos da chamada
contracultura. Um novo desdobramento da Geografia iniciava-se fazendo um
forte convite à subjetividade e à sensibilidade geográfica. Transpondo as
barreiras da tradição objetiva e empírica, novos olhares geográficos estavam
emergindo agora com enfoque na dimensão simbólica do espaço geográfico.
A inserção de temas não utilizados por parte dos geógrafos culturais
clássicos, por exemplo, a leitura dos significados dos espaços e das obras de
arte, é um dos indicativos claros de que uma mudança atingiu a geografia
cultural, a mudança na linguagem representa a constituição de objetos e temas
completamente diversos dos antigos focos de investigações geográficas. Áreas
da ciência dialogam, formando intensas conexões para análise da nova agenda
de pesquisa, desta maneira a literatura, a música, a arte e as percepções dos
lugares são temáticas agora passíveis de interpretação geográfica. Os
geógrafos culturais lançam o olhar para integrar outras esferas do
conhecimento para a compreensão tanto da realidade como também de seus
respectivos objetos de estudos; nas artes visuais destacamos as contribuições
34
de Ernest Gombrich e Erwin Panofsky ambos no âmbito da História da Arte, e
ressaltamos o segundo autor devido as suas reflexões metodológicas acerca
do método Iconografia da Paisagem (DUNCAN, 2000).
Cosgrove (2000) diz que, os geógrafos culturais apesar de algumas
diferenças teóricas e metodológicas dividem o objetivo comum de descrever e
entender as relações entre a vida humana coletiva e o mundo natural, além
disso buscam interpretar as transformações elaboradas por nossa existência
no universo da natureza e, acima de tudo, os significados que a cultura atribui à
existência humana, do mesmo, modo almejam entender a relação entre a
experiência e com o mundo natural.
Anterior ao processo de mudanças na chamada Geografia Cultural,
a compreensão do conceito de paisagem apresentava-se de forma distinta não
incorporando o campo das representações subjetivas do sujeito. Durante a
primeira metade do século XX, as paisagens exerceram uma função importante
na Geografia Cultural, no entanto, a essência de seus estudos estava baseada
em duas compreensões: a concepção funcional e a arqueológica. As duas
apresentam uma perspectiva físico-material do conceito em discussão. Na
primeira concepção, a paisagem era apreendida “como reflexo do
funcionamento social, cultural e econômico da sociedade” de acordo com
Claval (2002, p. 22), ou seja, como determinado povo imprimia sua expressão
característica sobre a superfície terrestre, por meio das casas, do vestuário,
das técnicas para modificar a natureza, plantações entre outros elementos. Na
segunda concepção, observa-se a ênfase no passado, pois a paisagem não
refletia o presente, mas o seu funcionamento passado as sucessões de
diferentes períodos históricos sendo dotadas de valor explicativo.
A paisagem, negligenciada pela New Geography, é resgatada pela
geografia cultural renovada. Esta abordagem centraliza os seus estudos nas
experiências espaciais baseando-se nas filosofias dos significados como a
fenomenologia e a hermenêutica. Dessa forma, a paisagem e o lugar tornam-
se conceitos valiosos para a ciência geográfica carregados de sentidos e
experiências. O temário da cultura na geografia encontra-se ampliado, tendo
em vista que determinados assuntos que antes pareciam estranhos tornam-se
alvos de investigações geográficas. Adotemos como exemplos as
manifestações religiosas, as percepções dos lugares, as formas simbólicas
35
espaciais, igualmente destacamos o patrimônio cultural tanto material quanto
imaterial. O lugar e a paisagem transformam-se em conceitos bem próximos os
quais se complementam em uma afinidade construtiva, norteando os processos
de compreensão da dinâmica do mundo vivido. Em ambos os conceitos surgea
perspectiva simbólica, na qual residem o movimento e o sentir (CORRÊA,
2006).
O lugar pode vir a ser paisagem e esta potencialmente domina o
lugar: dos sonhos, dos medos, da fantasia e da imaginação sendo assim diante
de tal imbricação vemos que o espaço geográfico é uno e múltiplo. A geografia
ao aderir à carga fenomenológica em seu aporte teórico-metodologico admite
que o ponto de partida para o conhecimento espacial seja o sujeito “eu” o qual
explica o mundo através de sua experiência. Tuan(1983) colaborou com a
expansão do horizonte humanista contemplando em seus estudos os aspectos
da subjetividade humana e conectando a dimensão afetiva dos seres humanos
ao meio ambiente ocupado por eles. O lugar tornou-se um pólo de investigação
por parte dos geógrafos humanistas e culturais debruçando-se para desvendar
seu significado.
Tuan (1983) aprofunda o conceito-chave que se entrelaça com o
desenvolvimento da vertente humanística na geografia, o lugar. Na mesma
obra, o autor mostra as diferenças e os aspectos complementares existentes
entre o Espaço e o Lugar destacando a seguinte acepção: “O espaço fechado
e humanizado é lugar. Comparado com o espaço o lugar é um centro calmo de
valores estabelecido. Os seres humanos necessitam de espaço e
lugar”(TUAN,1983,p.61). O espaço significa liberdade e movimento, mostra-se
amplo e basilar para a vida do ser humano como igualmente para suas
relações sociais, econômicas políticas entre outras inúmeras que se
desenvolvem no espaço geográfico, todavia, o existir humano não pode ser
avaliado através da camada dogmática materialista e objetiva, a aventura que
homem realiza para produção do espaço geográfico é constituída igualmente
pelos sons, pelas cores, cheiros, sabores, familiaridade e sentimentos.
Os espaços públicos por exemplo, a praça, a rua, o bairro, a velha
casa e o lar, como da mesma forma os espaços privados, tomemos como
exemplo os shoppingcenteres que podem vir a se tornarem lugares visto que,
nesses espaços humanizados laços de convivência e segurança são
36
estabelecidos, partindo da intimidade de suas experiências será tecida uma
afável rede de sentimentos, mostrando assim as variadas escalas onde o lugar
pode brotar (TUAN, 1983). Na perspectiva dos vínculos emocionais entre os
seres humanos,o autor faz a seguinte explanação:
Na doença, os adultos também conhecem a fragilidade e a dependência. Uma pessoa doente, protegida pela familiaridade de sua casa e confortada pela presença daqueles que ama, sabe bem o que significa o cuidado carinhoso. Os lugares íntimos são lugares onde encontramos carinho, onde nossas necessidades fundamentais são consideradas e merecem atençãosem espalhafato. (TUAN, 1983, p. 152)
Por meio das reflexões de Tuan, o lugar agrega a experiência vivida
dos sujeitos como maneira de conformação da realidade. A identidade do lugar
será configurada por meio da combinação entre o contato com o espaço de
vivência e a observação associada à identificação com seus movimentos de tal
espaço, o qual metamorfoseia-se em lugar representando um centro de
significado. Tomemos como exemplo a casa e o lar, os quais podem adquirir
profundo significado emocional para os indivíduos que se relacionam e
estabelecem laços de afeto, o amor e o apego pela casa por parte de seus
moradores será resultado de sua experiência e aproximação.
O conceito de paisagem é caro aos geógrafos culturais que
procuram compreender o espaço como uma teia de relações materiais,
imateriais, econômicas, políticas e simbólicas. Para alcançar o patamar
elevado que ocupa atualmente, o conceito de paisagem sofreu modificações,
pois como qualquer outro conceito carece de permanente atualização e
revisão. Fazendo parte da tradição geográfica, a paisagem constitui-se como
ferramenta basilar de apreensão do dinamismo espacial. Compreende-se que é
imprescindível desvelar como o imaginário a respeito da natureza é
decodificado em valores envolvidos em uma atmosfera simbólica, tendo em
vista que as práticas sociais não podem ser interpretadas pela rasa camada da
objetividade. Adentrar no universo representacional da paisagem, significa
entender o espaço tanto por meio da perspectiva visível, quanto por meio que
delineiam a dimensão mítica dos lugares, desta forma a paisagem exibe
fundamental papel na relação onde transitam: sentimentos espaciais e
imagens.
37
Vista de diferentes formas, a paisagem apresenta significados
múltiplos, por exemplo, na arquitetura, na geografia e nas artes visuais o
significado de paisagem se apresenta de forma diferenciada. Cada ramo do
conhecimento define a paisagem de acordo com seu objeto de estudo e seus
objetivos.
Podemos perceber que o conceito de paisagem veio
metamorfoseando-se ao longo do tempo. Domingues (2001, p. 65) nos revela
que “mudam-se os tempos, mudam-se as sociedades e, com elas, as
paisagens”. O dinamismo diferenciado das relações sociais em momentos
distintos é o elemento central na discussão do referido autor sobre o conceito
de paisagem. Procedendo dessa maneira,deparamo-nos com as
singularidades de uma determinada sociedade em um determinado período.
Elementos como as casas, os edifícios, as fachadas que mostram a opulência
e a imponência de uma classe social são apenas alguns subsídios para a
interpretação de um momento passado que incorporou o novo trazendo
consigo uma organização política, econômica e social.
A respeito do valor que a paisagem possui de conservar continuas
relações sociais que se estabelecem, Santos nos diz que:
A paisagem deve ser pensada paralelamente às condições políticas, econômicas e também culturais. Desvendar essa dinâmica social é fundamental: as paisagens nosrestituem todo um cabedal histórico de técnicas, cuja era relevam; mas elas não mostram todos os dados, que nem sempre são visíveis. (SANTOS, 2008, p. 75)
O que vemos são formas de períodos passados que se articulam e
coexistem,sobrepõem-se fazendo da paisagem algo que não é estático, mas
nos revela bastante acerca dos ciclos econômicos trazendo vestígios.
O desenvolvimento da paisagem cultural se realiza com o passar
dos tempos configurando-se sobre diferentes camadas temporais e históricas
as quais se sobrepõem no espaço, assim, dificilmente deparamo-nos com
paisagens culturais que sejam absoluto fruto do trabalho de comunidades
recentes, ao contrário, o desenvolvimento de uma paisagem é um processo
qual exige trabalho acrescido envolvido em processos históricos e sucessões
de tempos.O processo de constituição de uma paisagem é um processo lento
não sendo elaborada em um único período, porém, é constituída por
38
acréscimos e substituições. Dessa forma, uma paisagem é uma escrita sobre
outra exibindo incontáveis camadas de objetos, cores, dimensões, valores
morais e crenças, sendo diferentes entre si formando heranças que se
articulam em diversificados momentos. O acúmulo de trabalho consente a
elaboração e deposição das formas no espaço demandando décadas ou até
milênios de atividade humana, em que todas as civilizações trabalharam sobre
o legado de outras atuando sobre a matéria já criada e elaborando novas
formas (WAGNER E MIKESELL, 1962).
A paisagem age como um depósito capaz de fornecer registros
sobre a sociedade que a moldou e remodelou, por exemplo: estradas, edifícios,
plantações, indústrias, parques entre outras inúmeras formas que são criadas
pelo homem. É válido ressaltar que existe a necessidade de inserção da
paisagem cultural em seu contexto histórico para que a mesma seja
interpretada de maneira apropriada.
Penetrando no domínio que ultrapassa o mundo visível, a paisagem
vem apresentando diversos significados e pode ser lida de diversas formas
apresentando caráter polivocal. Os distintos olhares e leituras quando
associados aos processos temporais que se sucedem trazem a vida, e o
movimento da paisagem. Meinig (2003, p. 35) explica que “qualquer paisagem
é composta não apenas por aquilo que está à frente de nossos olhos, mas
também por aquilo que se esconde em nossas mentes”. Diante do exposto,
apreendemos que tal conceito ultrapassa o campo da visão, ou seja, é extra-
visível a partir de tudo o que nossa mente é capaz de armazenar e interpretar,
os conhecimentos passados de geração em geração, os costumes de cada
povo são elementos guardados pela memória de cada um, resultando na
formação de uma paisagem imaterial ultrapassando a objetividade.
A discussão sobre os aspectos imateriais da paisagem tem obtido
destaque no âmbito acadêmico, oferecendo novo vigor às questões ligadas aos
valores simbólicos dos lugares e das paisagens humanas. Compreendemos
que a relevância da paisagem delineia uma realidade que pode ser interpretada
por todos os seres humanos independente de classe social, gênero ou idade,
pois é resultado da atividade da imaginação de cada ser humano, em tal
processo a subjetividade direcionará o olhar do sujeito para o mundo, fato este
que enriquece a paisagem dando-lhe sentido e significado construído tal qual
39
ordenador (não determinante) de suas ações cotidianas de maneira conexa e
coerente.
Ao mencionar o significado da paisagem, Cosgrove (2000) nos fala de
novos significados para a compreensão do espaço geográfico realizando
importante atividade na elaboração de mundos de significados, entretanto tal
trabalho não é propriedade exclusiva dos sentidos tampouco apenas do
intelecto, o ato de imaginar não se resume a total produção ou reprodução de
imagens e dados oriundos do mundo externo, informações e imagens sofrem
metamorfoses as quais arquitetam novos significados para o mundo no qual
encontramos inseridos. O potencial interpretativo humano é inesgotável no que
toca a construção e reconstrução de significados enriquecendo o debate
acerca da paisagem.
COSGROVE (1993) ressalta que de acordo com as atividades e
crenças humanas a paisagem pode ser interpretada de diferentes formas
devido a sua faceta multidimensional sendo vista como “paisagem de
consumo”, por outro ângulo vem a ser teatro, mapa, ou texto, destarte,
aceitamos que o conceito em tela é uma construção pessoal que não se funda
excepcionalmente a partir da matéria resultante do trabalho humano é, contudo
forma simbólica eivada de valores (CORRÊA, 2011).
A Geografia continuamente demonstrou interesse pela temática da
paisagem, inicialmente como palco para a descrição material de seus
componentes, tal conceito era tomado como expressão que refletia a ação do
homem sobre a natureza, esta interpretação das paisagens ocorria a partir da
fixidez dos objetos distribuídos no espaço de acordo com determinado recorte.
A humanidade composta por diversas culturas apropria-se da matéria e lhe
oferta significação, introduzindo, dessa maneira, novas dimensões para a
compreensão da paisagem. Destacamos, assim, a perspectiva imaterial,a qual
permite que o conceito em debate seja algo que transcenda o aspecto visível
palpável que edifica a paisagem. Encontramos no trajeto espacial elementos
simbólicos que irão delinear e participar ativamente da vida da paisagem e
consequentemente da vida humana. Sobre o ordenamento da paisagem,
Cosgrove reforça:
A paisagem sempre esteve intimamente ligada, na geografia humana, com a cultura, com a idéia de formas visíveis sobre a superfície da
40
terra e com a sua composição. A paisagem, de fato, é uma “maneira de ver”, uma maneira de compor e harmonizar o mundo externo em uma “cena”, em uma unidade visual. (COSGROVE, 1998, p. 98)
Admitimos que a imaginação permite as atribuições à paisagem,
constituída por objetos visíveis oferecendo a cena visualizada os mais diversos
e válidos significados. Comumente, olhamos para uma mesma direção e
visualizarmos os mesmos elementos que compõem o meio físico, porém,
dificilmente apreenderemos a mesma essência da paisagem diante de nós. As
experiências do cotidiano são únicas para cada um, é algo individual sendo
fundamental para o estudo da percepção.
A vida pessoal, a memória e a construção do espaço para cada
indivíduo são elementos essenciais no processo de percepção da paisagem,
nesse contexto, Meinig (2003) revela-nos os múltiplos olhares a respeito da
paisagem os quais nos conduzem ao caráter polissêmico que a mesma
apresenta. A polissemia indica que a paisagem pode ser concebida como:
natureza, habitat, artefato, sistema, problema, riqueza, ideologia, história,
lugar e estética. Meinig (2003) explica-nos algumas das possibilidades de
olhar a paisagem, entretanto, encontramos a paisagem como estética
densamente relacionada com a visão da arte. Nesse sentido, Meinig
compreende que:
No gênero da pintura da paisagem, podemos encontrar exemplos que expressam muitas das visões discutidas da paisagem: o poder e a majestade da natureza, a marca da história sobre a terra, o caráter detalhado dos lugares. Cada uma delas representa uma cuidadosa seleção feita pelo artista. (MEINIG, 2003, p. 44)
Dessa maneira, ao selecionar paisagens para ser representado pela
pintura, o artista é um grande comunicador, que através da escolha minuciosa
tenta retratar um momento. Durante o processo de elaboração de sua obra, o
artista apropria-se de uma linguagem própria, que se encontra em cada
época, em cada sociedade e envolvida em um universo sociocultural.
Observamos que a manifestação artística (e aqui ressaltamos a pintura) é
capaz de revelar o espaço geográfico, posto que o artista cumpre com êxito a
função de engenheiro da imaginação ao apreender os dados sensoriais que
sua visão, olfato,paladar, audição e tato captam e reinterpretá-los. O artista
41
não elabora uma cópia fiel da realidade em suas telas, ao contrário, cria uma
nova paisagem com um novo significado sendo essa uma nova forma de ver
e ordenar o mundo, um ponto de vista novo e próprio: a do sujeito observador.
A paisagem pictórica não mostra neutralidade, ao contrário emana a
intencionalidade do artista que direciona a criação.
Toda pintura é um ponto de vista que liberta o universo interior do
homem, tecendo,assim, uma maneira de ver e representar o mundo que nos
cerca, constituindo um olhar ímpar voltado para a paisagem na qual estamos
inseridos. Ao visitarmos museus ou galerias de arte, percebemos uma trama
arquitetada por aqueles que souberam representar o real e que almejavam
através das mais variadas técnicas, revelar aos outros o seu universo criativo,
para isso dedicaram-se à pintura, à fotografia, ao entalhamento, à escultura
como formas de apreender sentimentos e experiências espaciais.
Concordamos com Cosgrove (1998, p.99) quando afirma que “a
paisagem está intimamente ligada a uma nova maneira de ver o mundo”,o
artista vê,imagina e oferta um novo significado recriando lugares
correlacionando às paisagens real-simbólica-imaginária. Podemos constatar
este fato nas obras de arte,pois a partir da leitura e contemplação da natureza
o artista cria uma nova realidade com novas percepções, muitas vezes
emanados de sua mente criativa. Desse modo, a arte é um produto no qual
encontramos enraizados sentimentos espaciais. Percebemos isso ao analisar
a obra de Raimundo Cela que retratou a paisagem litorânea cearense,e que
mostra espacialidades através de cores vibrantes, traduzindo sua afeição pela
paisagem do lugar retratado na paisagem litorânea presente na maioria de
suas telas.
A paisagem como pintura é um tema que atravessa milênios de
história, pois a arte é algo inerente ao ser humano, diante de tal perspectiva
Strickland realiza a seguinte explanação:
Durante milhares de anos, acompanhando a ascensão e a queda de cada civilização, essas três formas de arte - pintura, escultura e arquitetura – encarnaram as ambições, os sonhos e os valores da cultura. Embora os primeiros artistas fossem anônimos, muito do que sabemos sobre as sociedades antigas vem da arte que nos legaram. (STRICKLAND, 1999, p. 02)
42
A paisagem artística é vista como uma ferramenta na qual podemos
refletir acerca do espaço geográfico nas quais suas tramas complexas
envolvem o cenário real e imaginário. Estes por sua vez ganham sentido
quando são postas lado a lado permitindo o entendimento a respeito das
representações da paisagem. Constatamos, portanto, que de acordo com
suas diferenças e vivências o sujeito capta e organiza o íntimo da paisagem e
dá movimento à cena vista.
Cosgrove (1998) concebe que a geografia permite escapar bastante
do significado existente na paisagem humana procurando diminuí-la a uma
impressão a qual se distancia do sujeito, predominando a dimensão
materialista representadas pelas forças econômicas e demográficas, as quais
tornaram-se focos recorrentes nas pesquisas geográficas.
O estudo das manifestações artísticas dentre as quais destacamos:
as cinematográficas, literárias e pictóricas como “expressão intencional
humana”, que é edificada por meio de variadas camadas de significados, ainda
soa estranho para muitos, esta postura faz permanecer uma disposição que
restringe a paisagem a uma “impressão impessoal de forças demográficas e
econômicas”. A capacidade interpretativa humana aplicada a paisagem parece
ainda desprezada ou negada, consequentemente, ao negligenciá-la deixamos
de encontrar as essências do mundo que criamos e transformamos a todo
instante(COSGROVE,1998, p.97).
Augustin Berque destaca-se, ao considerar a paisagem como um
dado que ultrapassa o nível morfológico e apresentando sentido, vida e
dinamismo próprio,aponta também, elementos da problemática para uma
geografia cultural. Berque (1998) revela que a simultaneidade da paisagem,
uma vez que este conceito pode ser dimensionado enquanto marca e matriz,
sincronicamente duas dimensões que coexistem sem anularem as forças de
cada uma,estabelecendo a relação de complementaridade, visibilidade e
significação, objetividade e subjetividade,compondo, assim, a dialética da
paisagem. É preciso compreender a paisagem de dois modos: por um lado ela é vista por um olhar, apreendida por uma consciência, valorizada por uma experiência, julgada (e eventualmente reproduzida) por uma estética e uma moral, gerada por uma política, etc. e, por outro lado, ela é matriz, ou seja, determina
43
em contrapartida, esse olhar, essa consciência essa experiência, essa estética e essa moral, essa política etc. (BERQUE,1998, p. 86)
A paisagem como “marca”na concepção de Berque (1998) expressa
a apropriação e transformação material da sociedade sobre a natureza. Uma
marca cultural que é presente e passado, impressa sobre a superfície terrestre
conforma a escrita de uma sociedade que é apreendida por meio da
percepção, podendo ser descrita e quantificada. Afirmar que a paisagem é
matriz significa que a mesma lança uma dimensão simbólica participando dos
esquemas de reconhecimento e pertencimento na paisagem na qual os
processos psicológicos e físicos constroem seu significado. A superfície
terrestre está coberta por marcas culturais passadas e presentes que servem
de orientação simbólica para a sociedade que a concebe. A paisagem é matriz
quando assume presença nos esquemas de determinação na experiência, no
olhar, no juízo moral e estético;portanto, paisagem e sujeito encontram-se co-
integrados na intrínseca relação na qual o homem atua sobre a paisagem e
esta assume poder sobre o sujeito.
A paisagem na arte pode ser pensada simultaneamente como marca
e matriz, existindo uma forte imbricação entre sujeito-objeto e que constitui uma
via dupla, na qual é uma das características peculiares da arte, ou seja, a
relação do artista com o mundo o qual ele pertence. O artista se expressa a
partir da cores, dos movimentos, sabores e anseios, elementos estes que
fazem parte de sua vida, compondo, por meio de seus objetos de trabalho:
tintas, pincéis, telas, paletas, texturas,tornando visível uma marca ao mesmo
tempo que será matriz porque irá compor uma tessitura imaterial, que expressa
a sua concepção de mundo. Compreendemos que a obra de arte não se
constitui como um arranjo totalmente fechado e arquitetado em única dimensão
confinada em si, ou seja, não se resume à relação simplista da arte pela arte,
mas funda inter-relações com os aspectos físicos, históricos, geográficos e
simbólicos que encontram-se presentes na paisagem.
Sendo a paisagem um conceito fundamental e expresso na
Geografia Cultural, podemos perceber que aquele conceito considera os
sentimentos e idéias de um indivíduo ou um grupo, pois expressa a experiência
vivida. “Todas as paisagens possuem significados simbólicos porque são o
44
produto da apropriação e transformação do meio ambiente pelo homem”
(COSGROVE,1998, p.108). Na matéria que é modificada pelo indivíduo
existem as formas específicas de como os significados, os movimentos
corporais realizados por determinado grupo em cerimônias, danças,encontram-
se impregnados de processos mentais, permitindo interpretar tal relação como
uma articulação entre o imaginário e o real. Do mesmo modo, as paisagens
naturais contem seu simbolismo, tomemos por exemplo o Monte Fuji ou como
também é conhecido, Santuário Monte Fuji, trata-se de um dos principais
símbolos do Japão que é associado à morada de Deus, tal forma geológica,
além de exibir beleza natural, revela o significado espiritual para os adeptos do
Xintoísmo, religião nascida no Japão a milhares de anos.
Ressaltamos que o presente trabalho apresenta uma abordagem
embasada na Geografia Cultural renovada, que confere uma ampliação das
bases epistemológicas desenvolvidas pela Geografia Cultural clássica. Os
temas de pesquisa também passam por algumas mudanças, pois além de
questões tradicionais como: paisagem cultural, história da cultura no espaço,
áreas culturais e a ecologia cultural, uma nova agenda de estudos que antes
era embrionária, passa por um desdobramento. São temáticas da focam na
espacialidade da religião, da cultura popular, das identidades culturais, dos
conflitos culturais, bem como a leitura a respeito do espaço geográfico inserido
nas obras literárias, na pintura, no cinema, do mesmo modo na música. A
postura teórico-metodológica marca a renovação da Geografia Cultural,
baseada nas filosofias dos significados, por exemplo, a Fenomenologia,
buscando compreender a experiência vivida e o significado que o ser humano
atribui a sua existência.
Corrêa apresenta as facetas simbólicas e funcionais da paisagem
explanando que: Em realidade a paisagem é, de um lado o resultado de uma determinada cultura que a modelou e, de outro, constitui-se em uma matriz cultural. Como resultado a paisagem é uma “vitrine permanente de todo o saber”, expressando a cultura em seus diversos aspectos, possuindo uma faceta funcional outra simbólica. (CORRÊA, 1995, p. 04)
Dessa maneira, a compreensão da paisagem é concebida como um
produto da cultura e revela seus traços de acordo com a política, religião,
45
economia e outros elementos a caracterizam e por sua vez está distribuída na
superfície terrestre. A expressão funcional da cultura é identificada em suas
formas, manifestações e em sua estética. Entretanto, a paisagem não é apenas
uma forma material, mas exerce o papel de matriz, ou seja, vem revelando a
mesma como algo capaz de transmitir, reproduzir e perpetuar valores sociais,
conhecimento e crenças. A paisagem com sua face simbólica é eivada de
signos e significados, possui essa faceta simbólica porque é resultado da ação
dos indivíduos que apropriam-se da natureza e a transformam. Ao modificar a
natureza, o homem torna impressa sua marca por meio de linguagens e
símbolos.
Os sentidos (aqui destacamos o papel da visão como porta para a
compreensão da paisagem) tornam possível a decodificação da paisagem. Os
sentidos são intermediários entre o que é externo e interno. Permitem que a
paisagem seja revelada em seus aspectos mais íntimos transpassando dessa
forma o campo do palpável e alcançando características imateriais. A paisagem
enquanto fruto da mente humana, revela o que está oculto partindo da visão
como o sentido inicial de captação dos múltiplos movimentos espaciais.
Nesse sentido, Hissa (2002, p.184) segue buscando revelar o
sentido implícito do espaço que, apresenta-se com dinamismo que é
apreendido com a observação.
[...] compreender a essência do espaço é preciso dirigir o olhar às suas origens, rediscutindo a natureza da observação. Uma metáfora? Ainda assim, não se perde o objetivo da tarefa: conhecer. A poesia também está contida naquilo que não pode ser visto. Descobrir o que não está à mostra é não se contentar apenas com o que está evidente (considerando que a evidencia possa, ela também, ser uma insinuação falsa, deslocadora). Descobrir o que não se põe aos olhos é construir a poesia do que está á mostra: é qualificar a invisibilidade do visível. É buscar a origem e a natureza do que se coloca disponível, e cobri-lo de palavras e significados. (HISSA, 2002, p.184)
O ato de compreender a imaterialidade do espaço é um exercício
específico de observação e da percepção. Qualificar o invisível é transpor as
aparências não se limitando ao simples fato de descrever, pois dessa maneira
chegamos a uma realidade incompleta. Compreendemos que apenas a
essência é reveladora, acarretando a gênese do movimento e apresentando o
que na maioria das vezes está camuflado de maneira proposital para confundir,
46
ou seja, a paisagem sempre encontra-se envolvida em uma atmosfera
ideológica.
O ato de olhar fragmenta-se em numerosos pontos de vistas que
são legíveis a cada indivíduo fazendo da paisagem um fenômeno vivido
semeado na imaginação durante a história de vida cada sujeito. Sendo assim
o que é invisível passa a ser visível. Acerca das diferentes visões sobre a
paisagem, Claval (2004) explana que o geógrafo não se limita apenas a
paisagem objetiva. Têm a atenção voltada para a maneira de como a
paisagem está envolta de sentido, investida de afetividade por aqueles que a
habitam ou que a desvendam; sendo assim, a heterogeneidade da paisagem
surge em sua morfologia representada por: cores, ondulações, arquiteturas,
volumes. O decorrer da existência de cada ser humano define aquilo que
vemos e o que somos, consequentemente influenciam nosso ver sobre o
espaço. Diferentes formas de educação, religiões, o status social que o
individuo ocupa, cidades conquistadas e desenvolvidas de diferentes formas,
desigualdades econômicas e sociais são elementos que proporcionam forte
influência na percepção da paisagem fazendo da mesma uma tessitura de
significados.
O artista plástico, o poeta, o músico entre outros, buscam abordar
temas que fazem parte da vida humana. Nesse sentido, Cosgrove (1998) nos
revela alguns temas que são comumente apresentados através da arte, seja a
pintura, o teatro, ou poesia,temáticas as quais envolvem: a vida, a dor, as
conquistas, a transformação de cidades, o progresso a guerra entre outros são
assuntos que evocam um contexto histórico, podendo ser simples ou
complexo.
2.4 PAISAGEM E FENOMENOLOGIA
Retomamos no presente tópico o pensamento de Merleau-Ponty
sobre a experiência corpórea mediante o mundo dos sentidos. Nesta
perspectiva, admite-se que a percepção está intimamente conectada a
experiência do corpo. No entendimento fenomenológico da percepção, à
captação dos sentidos realiza-se por meio do corpo, uma expressão criadora a
partir dos diferentes olhares sobre o mundo. Merleau-Ponty (2004) realiza uma
47
análise dedicada à sartes visuais para entender o olhar do pintor para com o
mundo que lhe rodeia, partindo da experiência que o artista extrai de suas
relações, bem além dos contornos que compõem as telas de arte, realizando,
assim, uma meditação sobre a invisibilidade da paisagem e natureza da obra
de arte as quais olhamos ao mesmo tempo em que somos observados pelas
mesmas, Merleau-Pontyanseia desvelar o mistério da visibilidade.
A visão retoma seu poder fundamental de manifestar, de mostrar mais que ela mesma. E, já que nos é dito que basta um pouco de tinta para fazer ver florestas e tempestades, cumpre que ela tenha seu imaginário. (MERLEAU-PONTY, 2004, p.40)
Como já mencionamos, o conceito pelo qual exploramos a obra de
Raimundo Cela, a paisagem, realizou um longo percurso desde seu surgimento
até os dias atuais passando por uma intensa reconceituação e ganhando mais
uma acepção que transcende toda sua morfologia. Assim, delineia-se a
dimensão simbólica da paisagem erigida a partir das percepções que o sujeito
emite em relação ao seu entorno. Portanto, buscamos na Fenomenologia
esteio para a compreensão da paisagem,que se efetiva na obra de Raimundo
Cela, o qual retratou o universo litorâneo do município de Camocim,
apresentando por meio de suas telas uma paisagem eivada de inúmeras
marcas culturais,as quais individualizam os povos que vivem do mar.
Temos,assim,formas e objetos representados por casas, jangadas, utensílios
para pesca, além de gestos corporais captados pelo artista,nas quais incluímos
seus personagens compõem ofertam o dinamismo da paisagem em suas telas.
As essências dos fenômenos podem ser infindáveis, pois variam de
acordo com as significações que o homem será capaz de produzir. Por meio da
nossa percepção, lembranças, pensamentos, fantasias e imaginação é que as
significações nos ofertam. A espacialidade faz parte da condição do ser
humano, já este se inscreve no espaço geográfico e o habita. O mundo vivido é
construído pela multiplicidade de experiências do sujeito não cabendo medidas
ou cálculos, ocorrendo um distanciamento das grandezas morfológicas
mediante um aprofundamento dos fenômenos da consciência humana
(HOLZER, 2010).
48
Embora neste trabalho elejamos o olhar como principal sentido para
apreensão da paisagem, outros sentidos, por exemplo, como o tato e a audição
também levam o sujeito a apreender a essência da paisagem. Os deficientes
visuais, por exemplo, aguçam outros sentidos para se orientarem e perceberem
os movimentos espaciais (HISSA, 2002). Não percebemos a paisagem
exclusivamente a partir de arranjos espaciais ou outras formas de mensuração
e conhecimento das mesmas. A descrição é apenas o início para o mergulho a
partir do olhar físico almejando a significação da paisagem. A Fenomenologia
permitiu uma nova abertura para o entendimento da paisagem ao torná-la
fluida, maleável, com acréscimo de movimentos para quem a habita e se deixa
habitar pela mesma.
Besse (2006, p. 79) nos fala que “a paisagem é sinônimo de
ausência de objetivação”, ou seja, a coexistência sujeito-objeto onde o primeiro
não somente observa passivamente, mas atua mediante as formas da
paisagem tornando-a sua propriedade. Portanto, antes de ser matéria
configura-se partindo dos sentimentos e valores transformando-se em
liberdade para o sujeito,compreendemos que a paisagem descende do
sentimento.
A paisagem significa participação mais do que distanciamento, proximidade mais do que elevação, opacidade mais que vista panorâmica. A paisagem por ser ausência de totalização, é antes de mais nada a experiência da proximidade das coisas.(BESSE, 2006, p. 80)
Os contornos que encontramos diante de nossos olhos são apenas
trilhas que nos levam para algo maior do que a linha do horizonte encerra.
Imersos na paisagem, não marcamos coordenadas geográficas, e nem
carecemos de mapas ou cartas para orientação porque a paisagem será a
realidade e o sentido da experiência associada à manifestação simbólica,
originando a produção de sentidos do mundo que não se reduz a uma simples
fixidez de objetos sem dinâmica relacional. Diante da importância do tema
paisagem e Fenomenologia, Collot (2013) revela um novo ângulo para a
descoberta do conceito em estudo, caracterizando como um campo abrangente
e complexo, amplo porque envolve uma construção baseada na compreensão
de mundo calcada na subjetividade do homem o que internaliza a paisagem.
49
Por definição, a paisagem é um espaço percebido, ligado a um ponto de vista: é uma extensão de uma região [de um país] que se oferece ao olhar de um observador [...]. De fato, a noção de paisagem envolve pelo menos três componentes, unidos numa relação complexa: um local, um olhar e uma imagem. (COLLOT, 2013, p.17)
Inicialmente as teorias exploratórias da paisagem enfatizavam o
primeiro e o último elemento da relação citada, tendo, portanto, o local e a
imagem em contraponto ao segundo componente, o olhar. O local exibia como
destaque na criação da paisagem sendo considerado molde pelo qual a arte
devia reproduzir e narrar de forma leal, de acordo com o entendimento que
possuíam da mimésis. Os modernos aspiraram à inversão dessa hierarquia
rejeitando a imitação, disseminando uma nova perspectiva no constructo da
paisagem (CARTAXO, 2012).Também incluímos os sentimentos dos escritores,
músicos e igualmente dos fotógrafos face ao entendimento da paisagem. O
segundo elemento da tríade supracitada ganha relevância porque promove o
pensamento reflexivo do homem mediante o espaço e o tempo e cultura. O
artista que antes somente manuseava e descrevia paisagens com a paleta e o
pincel passa a projetar seu interior na própria obra nos dando acesso ao
universo de interpretações.
O ponto de vista é a contribuição de quem olha a paisagem e
desliza sobre a mesma, assim o elemento vital para qualquer cena é o olhar de
cada um, que permitirá percorrer o que outros olhos não apreendem na
paisagem. Configurando-se como um dado imaterial, a paisagem será um
modo pessoal de compreensão da realidade e torná-la familiar significa que o
sujeito se reconhece na mesma, instituindo e construindo realidades no
espaço. Paisagem e sujeito são correlatos, transgredindo a noção sujeito e
objeto estabelecido pelo paradigma positivista e assumindo inúmeros valores
da afetividade humana.
A renúncia da mimética por parte dos artistas vai conferir um novo
significado para a pintura,pela qual caminha para além da simples substituição
de objetos. Implanta-se assim, uma maneira reflexiva para compreender e
observar o mundo, pois a ressignificação da arte possibilita a inauguração de
uma nova realidade para o mundo, onde o olhar do artista é considerado
criativo, inventando e reinventando paisagens, transcendendo a própria obra.
50
As pontuações fenomenológicas abrangem estudos que concernem
os fenômenos afetivos e cognitivos e também da análise da consciência em
variados níveis,nos quais exemplificamos com: a percepção dos lugares e da
paisagem em seus diferentes níveis, como por exemplo: lugares sagrados e a
paisagem literária, enfatizamos o uso da corrente filosófica em debate sobre o
domínio da estética bem como o significado da arte para a existência do ser
humano, ainda assim não esgotamos a gama de objetos que surgiram
possuindo na Fenomenologia seu sustentáculo teórico-metodológico.
É válido retomar que a fenomenologia almeja explicitar as
experiências vividasas quais trazemos do real, sendo que “à volta as coisas
mesmas” é explorá-las sob a ótica da significação. Partindo desse norte,
procura-se compreender as composições do nosso ser no mundo.
Procedendo na vereda da consciência, a Fenomenologia descortina que o ser
humano quanto ser pensante realiza sobre a superfície da Terra.
A visão do pintor não é mais o olhar posto para fora, relação meramente físico-óptica com o mundo. O mundo não está mais diante dele por representação: é antes o pintor que nasce nas coisas como por concentração e vinda a si do visível, e o quadro finalmente só se relaciona com o que quer que seja entre as coisas empíricas sob a condição de ser primeiramente “autofigurativo.” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 44)
Diante do exposto pelo autor, compreendemos a pintura como uma
atividade que exige inicialmente técnica, utensílios e determinados
conhecimentos acerca do enquadramento, dos efeitos causados pela luz e
sombra, medidas e entendimento a respeito das escalas de tonalidades das
cores. Um quadro é compreendido também sob o seu aspecto imaterial,como
um produto do olhar vívido bem como criativo do pintor. A representação por
sinos revela um fragmento da obra, a sua interpretação, ultrapassa os limites
estabelecidos por contornos e objetos presentes na tela. Entendemos um
quadro como um renascimento inacabado do artista. Deparamos coma
verdade do pintor, traduzida por meio da sua pintura, pois a arte possibilita a
edificação de um elo entre a experiência de quem cria a obra e os
espectadores, os quais a recebem interpretando-a através do olhar. Destarte,
nas linhas contorcidas, vibrantes, nos rostos desfigurados, nas paisagens as
51
quais o significado não se apresenta de maneira explicita, somos convidados
a enxergar a verdade bem como a face do artista na obra.
Inúmeras vezes ao percorrermos uma obra de arte somos
conduzidos a refletir sobre o sentido não tão claro por traz daquilo que vemos.
Habituados a decodificar o quadro em si, negligenciamos a intencionalidade
de quem o elaborou, pois o olhar do pintor está diretamente ligado a tela
através da intensidade dos traços e da escolha das cores usadas na
composição da obra.
Simples ou refinada, a técnica irá refletir o dinamismo do espaço no
qual foi criada, adotemos como exemplo as vanguardas que propunham a
liberdade criativa reflexo da modernidade. A técnica pode agir como indicador
de mudanças culturais, a relação estabelecida entre sociedade e meio
ambiente, transformações políticas, científicas bem como a mutação dos
valores morais de uma comunidade. O movimento Impressionista, o Cubismo,
o Futurismo, o Expressionismo, entre outros, trazem sua mensagem
portadora de singularidade espacial, permitindo-nos apreender o espaço
geográfico por meio da obra de arte.
Merleau-Ponty (2004) elabora um ensaio estético que trata da vida e
obra do pintor Paul Cézanne, realizando um diálogo entre a arte do referido
pintor e sua vida permeada de angústias, as quais serão refletidas em seus
quadros. Cézanne revela uma nova maneira de pintar, buscando nas cores,
na embriagues das sensações e nas deformações a singularidade de sua
obra. A pintura é a extensão do corpo de quem a elabora, no entanto o que é
delineado sobre a tela irá provocar percepções em outros corpos. No ensaio a
arte se distancia da imitação, do bom gosto da arte tradicional, e da diversão.
Dessa forma, ao vermos a obra de Cézanne percebemos a vibração das
cores e encontramos seres oriundos de sua mente turbulenta resultado de
sua vida solitária e angustiada, traduzindo nas telas seu próprio mundo de
maneira radical.
Corpo e percepção estão inter-relacionados de forma que por meio
do primeiro e dos sentidos o artista conhece e prende o dinamismo do mundo,
em uma relação espacial o corpo vai adquirir um caráter poroso tendo em
vista que a experiência perceptiva é ao mesmo tempo corpórea. De acordo
com Ponty (1999, p. 308):
52
A percepção sinestésica é a regra, e, se não percebemos isso, é porque o saber científico desloca a experiência e porque desaprendemos a ver, a ouvir e, em geral, a sentir, para deduzir de nossa organização corporal e do mundo tal como o concebe o físico que devemos ver, ouvir e sentir.
Penetrar no universo da arte, nos permite explorar uma visão
diferenciada do ser humano no mundo bem como do tempo. No ensaio que
PONTY (2004) realiza a respeito da obra de Cézanne por meio da reflexão
fenomenológica, apreendemos um deslocamento para o campo das várias
possibilidades de exploração da arte que aponta para a compreensão do ser
no mundo, destaca-se, assim, a experiência do sensível como reflexão
corporal, “a pintura foi seu mundo e sua maneira de existir”, afirma PONTY
(2004, p.125). Na abordagem fenomenológica, a vivência com a realidade do
corpo como também a experiência dos sentidos ganham destaque e
configuram-se como o foco da abordagem em debate.
53
3 A ICONOGRAFIA DA PAISAGEM
Neste capítulo, discorreremos acerca do método o qual julgamos
mais adequado para os estudos das obras de arte: a Iconografia da
paisagem. Os procedimentos iconográficos originarão o esteio para
compreendermos a mensagem geográfica presente na obra de Raimundo
Cela.Dessa forma, as obras-de-arte apresentam-se como textos que surgem
codificados por meio dos símbolos os quais são carregados de significados e
são compreendidos pelos indivíduos a partir de determinados conhecimentos
a respeito da cultura na qual a obra foi criada.
O método da iconografia da paisagem apóia-se no historiador de
arte Erwin Panofsky (2004). É utilizado por geógrafos que buscam um estudo
mais aguçado a respeito das representações da paisagem (COSGROVE e
JACKSON, 2003). A arte, com seus desenhos, formas, cores e figuras
geométricas, constitui-se como um vasto campo para a pesquisa geográfica.
A iconografia da paisagem almeja a leitura das mensagens que os signos
trazem.
A grande parte dos estudos geográficos baseados nas artes visuais,
iniciados nos anos 1980, foram realizados a partir de “metodologias
interpretativas de análise”, especialmente as “iconográfica e
etnográfica”(DANIELS, 2004, p. 442). Dessa forma, estabeleceram-se
conexões envolvendo geógrafos acadêmicos e artistas empenhados a
retrabalharem os estudos de arte da paisagem como uma atividade de
criação a qual se define em permutas entre a composição das obras de arte e
seus significados (DANIELS, 2004).
A iconografia integra um ramo da história da arte, englobando a
descrição das imagens com também mensagens nas obras de arte,
abrangendo estudos do imagético, como as pinturas, os retratos e as
estátuas. Assim, corroboramos com Panofsky (2004, p. 53) ao explanar
acercado método, portanto, “ao fazer este trabalho, a iconografia é de auxílio
incalculável para o estabelecimento de datas, origens e, às vezes a
autenticidade; e fornece as bases necessárias para quaisquer interpretações
ulteriores.” De tal modo, o método referido exige três etapas metodológicas
fundamentais para a compreensão do seu significado essencial. Dessa
54
maneira, no primeiro nível denominado pré-iconográfico encontra-se o
significado que é apreendido de maneira clara. O tema primário ou natural
subdivide-se em factual e expressional, o primeiro subtema é obtido por meio
da identificação das formas puras, pois ao visualizar uma obra o olho humano
registra suas primeiras impressões assimilando as formas e as cores, objetos,
animais, pessoas e quaisquer elementos que constituem as obras,
estabelecendo um conhecimento prévio das mesmas. O significado
expressional emerge posteriormente indicando qualidades de expressões
psicológicas que as formas naturais nos transmitem, por exemplo, a dor, a
alegria, tristeza, ou angustia, tranqüilidade, da mesma forma uma atmosfera
de expressões vibrantes ou uma áurea serena presente em uma paisagem
(PANOFSKY, 2004). Perante o conjunto de significados iniciais da obra de
arte, Panofsky explana que
o mundo das formas puras assim reconhecidas como portadoras de significados primários ou naturais pode ser chamados de mundo dos - motivos artísticos. Uma enumeração desses motivos constituiria uma descrição pré-iconográfica de uma obra de arte (2004, p. 50).
Se tomarmos a obra, “A Última Ceia”, de Leonardo da Vinci como
exemplo, e a observarmos a luz do primeiro nível pré-iconográfico, a obra
seria percebida como uma pintura na qual treze homens estão sentados à
mesa fazendo uma refeição. Logo, percebemos que no primeiro plano
metodológico abordado carecemos de um grau básico de entendimento para
a compreensão da obra, desprovido de qualquer contextualização histórico-
cultural.
O tema secundário ou convencional constitui-se como o passo
ulterior na abordagem metodológica no estudo das artes visuais. Na presente
etapa, unem-se os motivos artísticos com assuntos e conceitos, ou seja, é
então realizada a iconografia propriamente dita. Dessa maneira,
estabelecemos uma correlação entre os objetos presentes em determinada
obra, combinações das partes que edificam o corpo da mesma, as quais
Panofsky (2004, p. 51) denomina de “estórias e alegorias.” Posteriormente, o
terceiro passo é aquele no qual a obra de arte é contextualizada
historicamente mostrando, de acordo com Panofsky (2004, p. 52), “a atitude
55
básica de um período, classe social, crença religiosa, ou filosófica qualificados
por uma personalidade e condensado numa obra.” Entretanto, o presente
nível metodológico de análise exige para a compreensão da obra, associar-se
a outros métodos para alcançar uma interpretação mais aguçada e profunda
dos objetos. Almeja-se, assim, por meio de outro método interpretativo
(logos), integrar-se à significação da obra transpassando o exame preliminar
restrito a morfologia e a estética. Classificar e descrever o período histórico,
no qual a obra foi concebida e, igualmente, identificar as formas e as relações
estabelecidas entre os objetos, são princípios basilares para o encontro com
os valores simbólicos ocultos em qualquer obra particularizando a mesma
(PANOFSKY, 2004).
A iconografia nos permite construir o esteio para que ultrapassemos
o plano descritivo, adentrando na significação que a obra emana. Dessa
forma, o método em debate considera apenas uma das dimensões
participantes do constructo da obra de arte, ou seja, a descrição, considerada
fundamental quando almeja-se a compreensão do conteúdo imaterial contido
na obra de arte.
No terceiro ponto, o qual se refere à orientação metodológica da
pesquisa, será concebida a iconologia, que, de acordo com Panofsky (2004,
p. 54), consiste na retirada do isolamento a iconografia, e posteriormente
associando-a
Em qualquer outro método histórico, psicológico ou crítico, que tentemos usar para resolver o enigma da esfinge. Pois se o sufixo “grafia” denota algo descritivo, assim também o sufixo “logia” – derivado do logos, que quer dizer “pensamento”, “razão”-denota algo interpretativo.
Para nossa pesquisa, lançaremos o olhar sobre a iconografia como
procedimento metodológico inicial, familiarizando-nos com a obra do pintor
Raimundo Cela, pois percebemos que qualquer interpretação que transpasse
o nível visual exige primeiramente uma aprofundada descrição das suas
formas. Assim, buscando um estudo iconológico, utilizaremos a iconografia
contextualizada na Fenomenologia da percepção, é permitido compreender a
dimensão imaterial e da experiência, fundamentais no constructo da essência
contida na obra pictórica de Raimundo Cela. A Fenomenologia da percepção
56
avança nos estudos da vivência humana, adentrando na experiência da
consciência realizada acerca do mundo que nos circunda.
A integração da iconografia com a fenomenologia, no terceiro nível
proposto por Panofsky, possibilita-nos a percepção do olhar de Raimundo
Cela, voltado para as paisagens por ele produzidas. Nessa perspectiva,
utilizaremos fatos relevantes da vida de Cela, embasados na biografia do
artista, explorada no capítulo 4. As explanações biográficas do autor Firmeza
(1988; 2004) nos fornecerão os alicerces para estabelecermos uma relação
com a obra, e compreendemos o artista como um ser-no-mundo, integrando a
sua existência às espacialidades retratadas na tela.
Ressaltamos o estudo de campo como uma etapa basilar na
compreensão do olhar de Raimundo Cela para o litoral, pois, no referido
momento visitamos os locais retratados pelo artista, e conversamos com
alguns moradores a respeito de Camocim, bem como acerca da vida do
pintor, quando o mesmo residia na cidade.
A cada obra, o pintor revela-nos o desenvolvimento de Camocim,
elaborando paisagens fundamentais na história da cidade. Portanto, para o
entendimento da obra pictórica de Raimundo Cela, contextualizaremos o
local, a data bem como os significados presentes nos trabalhos do artista. Na
sequência analisaremos as pinturas, a partir do conceito de paisagem sob o
olhar da Geografia Cultural.
Gomes (2003) considera a arte como um elemento norteador para
os estudos de cunho geográfico humanístico, principalmente para aqueles
geógrafos que almejam uma leitura mais aprofundada das culturas existentes.
Assim, nas palavras do autor,
Para chegar a uma verdadeira interpretação das culturas, em sua inscrição espacial, o geógrafo deve ser capaz de reunir o maior número de elementos possíveis que tratam dos valores, das significações e das associações construídas por um grupo social. A arte é, em geral, considerada como o meio mais livre e mais espontâneo deste tipo de manifestação. Aquilo que a ciência não chega a reconhecer, devido os limites impostos pelo método, a arte o consegue por um meio não racional. Assim da mesma maneira que os românticos, que consideravam a poesia e a literatura como o berço dos valores humanos, os humanistas consideram a arte como o elemento de mediação entre a vida e o universo das representações (GOMES, 2003, p. 314).
57
Nesse contexto, percebemos as interfaces possíveis entre as
esferas da arte e da espacialidade. A paisagem geográfica evoca a realidade
através de metáforas ou representações a partir de morfologias. O olhar de
Raimundo Cela para o litoral, por exemplo, constitui uma intervenção da
percepção, na qual a paisagem ai representada, corresponde ao clássico
binômio natureza e sociedade.
Na dimensão da proximidade do corpo com a paisagem,
observamos as interfaces possíveis entre as esferas da arte e a geográfica.
Dessa forma, o corpo obtém relevância caracterizando-se como instrumento
para nossa experiência perceptiva, sendo assim, o sujeito transforma-se em
objeto de conhecimento do mundo, devido a tal capacidade de interpretação é
válido ressaltar que a fenomenologia é um método de pesquisa e também
uma maneira de pensar. Em ambos os casos, a capacidade da consciência é
eleita como um fator indispensável, central, na apreensão do mundo, porque
lançar o olhar para a percepção oriunda das experiências do ser no mundo, é
considerada etapa metodológica basilar, a qual nos fornece esteio para
promovermos a ruptura instalada na oposição sujeito e objeto. Nessa
perspectiva, o espaço vivido é o espaço da significação e dos sentimentos,
enfatizando, assim,a vivencia do homem diante do mundo, resgatando uma
dimensão desprezada pelo racionalismo científico e exaltação das técnicas
(LENCIONI, 2003).
Perante a experiência do ser-no-mundo, Chauí elege a
Fenomenologia como uma corrente que:
Descreve essências constituídas pela intencionalidade da consciência, que é doadora de sentido à realidade. A consciência constitui as significações, assumindo atitudes diferentes cada qual com seu campo específico, sua atitude e finalidade próprias (1996, p.314).
Logo, para assentar uma análise orientada por meio da
Fenomenologia, faz-se necessário uma trilha metodológica que admita
técnicas que possibilitem ao pesquisador a compreensão da experiência do
sujeito, por exemplo: a observação de campo seja participativa ou não
participativa, aplicação de questionários e entrevistas, registros fotográficos,
também são congregados aos vídeos e depoimentos. Destarte,procedendo de
58
tal maneira o individuo é incorporado em todo o processo de construção do
conhecimento,tornando-se claras as vivências íntimas do sujeito, seus
eventos e sentimentos únicos, permeados por singularidade, em aversão aos
estudos de aparência e eventos gerais (PEREIRA, 2003).
Observamos que a iconologia nos acende um universo de
significações e relações oriundas das obras de arte, manifestando a essência
do pintor dedicado em elaborar sua obra, desvelando o mundo puramente
visível, exprimindo assim por meio de sua técnica, paletas e telas
experiências únicas, sentimentos e percepções espaciais criando e recriando
o enigma da visão. Assim, percebemos que a obra de arte não se resume a
mera aplicação de técnicas buscando um produto final, logo, é algo exigente
de uma reflexão corporal profunda do artista, ao passo que a obra de arte é
uma extensão do corpo e da experiência humana. Chauí encara o ser
humano como uma consciência enraizada em um corpo, este transcende o
objeto natural e narrado pelas ciências biológicas, entretanto, somos um
corpo, o qual tanto é “habitado” quanto é “animado por uma consciência”.
Compreendemos, assim, que o mundo e nossa estadia nele não se resume a
um simples conjunto de fatos ou coisas estudadas sob a luz das relações de
causa e efeito. Dessa forma, para além da razão e da matéria, existe
O mundo como lugar onde vivemos com os outros e rodeados pelas coisas: mundo qualitativo de cores, sons, odores, figuras, fisionomias, obstáculos, caminhos; mundo afetivo das pessoas, lugares, lembranças, promessas, esperanças, conflitos, lutas.(CHAUÍ, 2010, p.268)
Diante a explanação da autora, apreende-se que a consciência do
sujeito apresentada a respeito do mundo é mais latente do que podemos
imaginar, transpassa o plano racional, porque é uma fonte envolta de
intencionalidade, sendo assim, o olhar do homem acerca do mundo é um ato
pelo qual ele o experiência, o imagina, cria, o modifica, atribuindo-lhe sentido
e compreensão. O mundo percebido é parte do sujeito, logo, não é edificado
exclusivamente partindo de dados brutos mensuráveis, ao contrário, é tecida
uma singela rede de significações construídas a todo instante. Concebendo a
noção de que o mundo é arena de vivências abertas, Merleau-Ponty (1999,
p.18) diz que
59
O mundo fenomenológico não é o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de uma nas outras; ele é portanto inseparável da subjetividade e da intersubjetividade.
Na compreensão da percepção diante da obra de arte, o corpo do
artista sofre metamorfoses, não caracterizando-se apenas como um conjunto
de ossos e tecidos visíveis a outros seres, tampouco massa ou receptáculo
para o espírito, o corpo é movimento envolvido em dinamicidade expressional
recriadora e doadora de sentido, portanto, a reflexão corporal do ser humano
estabelece a sua maneira de ser e estar no mundo. O corpo não se resume a
mero objeto situado, no tempo e no espaço,é antes o primeiro canal de
comunicação com os outros sujeitos, desde o momento no qual nascemos,
pois nossos gestos exibem quem somos e o que sentimos, logo antes de ser
matéria, o homem é criatura que sente e experimenta o espaço (MERLEAU-
PONTY, 1999). O autor realiza uma reflexão a respeito do corpo e da
consciência, indicando a indissociabilidade entre ambos e complementa
diante de tal fato que
O mundo é inseparável do sujeito, que não é senão projeto do mundo, mas de um mundo que ele mesmo projeta. O sujeito é ser-no-mundo, e o mundo permanece subjetivo, já que sua textura e suas articulações são desenhadas pelo movimento de transcendência do sujeito. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 576)
Quando o pintor elabora a sua obra, ele cria novamente uma
tessitura de formas, atribuindo-lhe sentido de acordo com sua forma de ver o
mundo e seus movimentos. Assim, a arte e a fenomenologia estabelecem um
elo intenso, pois observamos que o corpo do artista é permeado por
intencionalidade, na qual vislumbra-se um novo horizonte na criação e a partir
desta abertura os gestos, as cores, os olhares, e igualmente os sons se
entrelaçam, originando novas imagens. Logo, a consciência do artista
transforma-se na consciência do próprio corpo do artista, a sua expressão de
ser no mundo. Acionar um diálogo entre Arte e Fenomenologia significa
negligenciar toda e qualquer separação existente entre na relação sujeito e
objeto; entre corpo e consciência, percepção e intelecto como também
60
significado e formas presentes na composição da obra, pois esta exprime o
sopro vital do artista (CHAUÍ, 2010).
A arte se manifesta acompanhando as inquietações de variadas
ocasiões da historia da humanidade. Revelam-se os anseios, as experiências,
reivindicações, e quebra de paradigmas estéticos. Diante do domínio visual, a
arte também nos possibilita exercitarmos o olhar geográfico. A presente
pesquisa não busca revelar a arte como o caminho, mas se advoga que a
mesma pode ser uma abertura para o conhecimento dos movimentos da
paisagem. Hissa (2002, p.184) nos fala sobre a função do geógrafo diante do
visível,afirmando nessa perspectiva que “quem é geógrafo diz a tradição,
sabe abrir os olhos e ver.” Compreendemos com a afirmação do autor que, é
tarefa do geógrafo não se limitar as aparências, sendo necessária a
interpretação do jogo de signos existente diante de nossos olhos, dos valores
e representações os quais participam da configuração do espaço geográfico.
Em uma perspectiva socioespacial, a Geografia Cultural renovada
indica novas possibilidades, apresentando novas temáticas as quais
inauguram uma nova dimensão da paisagem, do território e do lugar,
apontando os estudos da arte delineados pela pintura, cinema, fotografia
entre outros. Deparamo-nos, dessa forma, com temas originais e igualmente
estranhos ao domínio geográfico que passaram a compor uma nova agenda
de pesquisa para dos geógrafos nos últimos anos. Dadas as novas
formatações de recortes e objetos de estudos, não podemos perder de vista
determinadas marcas que singularizam a essência geográfica das pesquisas.
Assim, diante da relevância existente em conservar as características do
trabalho geográfico, Gomes (2008, p. 188) elucida que
Essas marcas são obtidas essencialmente pela importância explicativa que atribuímos à localização relacional que se estabelece entre as coisas e as pessoas. Queremos dizer que uma analise geográfica deve preservar como prioridade a observação da relação que, por ventura, exista nos fenômenos entre a localização e as significações.
Na busca pela significação dos fenômenos geográficos, as imagens
desempenham um papel relevante nos estudos dos acontecimentos
espaciais, ao apresentarem-se como instrumentos para a reflexão acerca da
61
ordem espacial bem como a sua acepção. Assim, a função da imagem para
muitos limita-se a mera substituição do real por uma representação.
Tomemos como exemplos: as fotografias, as pinturas, os filmes entre outras,
isto significa dizer que para tal postura, as representações configuram-se
como cópias fidedignas do mundo real. No entanto, essa noção acerca das
representações corresponde àquela estabelecida pelo positivismo, no qual o
fenômeno apresentava-se diretamente ao pesquisador, sendo assim,
buscavam-se dados e informações a partir de uma transcrição possuidora de
um valor real e absoluto. Esta maneira de ler a realidade transformou-se em
alvo de contestações, afirmando que as representações não refletem o
mundo de forma perfeita e idêntica, elas o criam. Conduzida a um ponto
extremo ocorrerá a inversão completa dos termos da relação
real/representação, na qual o primeiro termo passa a ser o produto da
imaginação humana, pois o conhecimento e definição que trazemos a
respeito do que é real, de fato são subjetivos, edificados por meio da
consciência humana (GOMES, 2008).
As representações são verdadeiras leituras realizadas pelo ser
humano acerca da sociedade e do período no qual vive, estabelecendo,
assim, experiências com seus semelhantes conferindo significado ao meio
natural, dessa forma
As representações criam seus temas, seus quadros próprios, carregados de tintas de cada momento e embebidos nos contextos de cada lugar ou grupo social. As representações expressam escolhas a partir de princípios de significações que lhes são próprios e também transitórios, ambíguos polimorfos ou como gostamos de dizer atualmente, complexos (GOMES, 2008, p. 193).
Os estudos sobre a paisagem na arte constituem-se como um foco
para as pesquisas em Geografia Cultural, compondo o universo de
representações analisadas por geógrafos nas investigações dos fenômenos
da paisagem. Esta, por sua vez, não se restringe a simples relação material
delimitada através da visão, mas é considerada como um objeto eivado de
complexidade que exige capacidade de compreensão, para entendermos de
quais maneiras, ela codifica as dimensões da experiência perceptiva
62
geográfica e imagética do ser humano (COSGROVE, 1993 apud DANIELS,
2004).
O pintor da arte contemporânea obtém uma nova postura ao
abandonar a noção de superioridade agindo como um mero organizador,
ordenador nas representações. Observamos neste ângulo contemporâneo a
interação entre a arte e o sensível, na qual o corpo não mais se isola
silenciosamente abafando seus sentidos, mas agora este mesmo corpo é
transportado para as obras, havendo uma ruptura na separação artista-obra.
Existe no ser humano uma potencialidade criativa infindável, a qual
lhe é inerente e ao mesmo tempo relativa aos acontecimentos do cotidiano,
materializando-se através das ferramentas utilizadas para a modificação do
meio natural e das relações estabelecidas com as outras pessoas. No sentido
de ordenar o mosaico de sentimentos e objetos, que fazem parte do seu
habitat, o homem cria as representações, pois a subjetividade do mesmo é
algo incalculável e igualmente eivado de significação. A partir da
imaterialidade(mas que encontra sua base no espaço físico), o ser humano
acrescenta valor ao meio que o circunda, logo as representações e desde já
ressaltamos as artísticas, são construídas por camadas de significados,
muitas vezes geográficos que aguardam o desvelamento da experiência
espacial vivida pelo artista (RIVERA, 2013).
Observamos, desse modo, a relevância em articularmos o conceito de
paisagem cultural que manifesta-se nas conjecturas de uma ferramenta
imagética, a obra pictórica de Raimundo Cela. A Geografia descobre e
interpreta o mundo construído pela sociedade, almejando desta maneira
adentrar no sentido das manifestações humanas ocorridas e percebidas no
espaço geográfico, ressalta-se, desse modo, a capacidade que a obra de arte
exibe em espelhar a dimensão da experiência humana sobre a superfície da
terra.
63
4 A PAISAGEM LITORÂNEA EM RAIMUNDO CELA
Neste capítulo, propomos a exploração da paisagem litorânea
captada por Raimundo Cela. Foram escolhidas algumas das telas criadas
pelo pintor em destaque, para que, norteados através do conceito de
paisagem, compreendamos as espacialidades apreendidas através do olhar
perceptivo de Cela. Discorreremos acerca do processo de formação histórica
do município de Camocim, para auxiliar-nos no embasamento da captação do
dinamismo presente na obra de Cela, e assim articularmos a paisagem e a
vivência litorânea.
A paisagem litorânea em Raimundo Cela é ocerne da presente
dissertação. Portanto,para falarmos do litoral, julgamos ser relevante observar
a relação existente entre o homem e o mar. Desde os primórdios da
humanidade, os seres humanos tiveram uma extrema relação com o mar.
Não apenas na dimensão ecológica, mas, também na esfera
cultural.Procedendo assim, almejamos exibir uma análise,a qual apresente
uma capacidade de abrangência mais ampla, tendo em vista a dimensão
material, a qual nos servirá como uma entrada, para apreendermos
posteriormente, os significados do litoral filtrados por Raimundo Cela.
4.1 A PERCEPÇÃO DO OLHAR EM RAIMUNDO CELA
A água é um elemento fundamental no dinamismo do espaço
geográfico, pois, a ausência dos mares ou das nascentes lacustres,
proporcionaria a extinção da vida, este fato refletir-se-ia nas configurações das
paisagens, as quais transmitiriam a tristeza e o sofrimento. Os oceanos são
fatores de relevância ecológica, (é válido ressaltar o estoque de espécies
alimentares, habitantes nos oceanos, bem como para o regulamento do clima
global), econômica, política, proporcionam lazer e servem ao mesmo tempo
como via para transportes. Nos locais por onde as águas demarcam o seu
território, emana a beleza, o verde e a vida, apreciada nas plantas e nos
vegetais, transformando os lugares (DARDEL, 2011).
Um amplo número de tecnologias foi desenvolvido, objetivando a
exploração mais aguçada dos oceanos, assim, prontamente, a física, a
64
matemática, a química dentre outras áreas do conhecimento, edificam as
bases para o desbravamento, bem como para a compreensão da
complexidade dos oceanos. Além dos benefícios materiais provindos dos
oceanos, a imensidão do mar também fornece-nos outra dimensão
concernente aos sentimentos, que encantam e inspiram vários artistas, os
quais permanecem olhando além dos aspectos visíveis, percebendo e
registrando nas suas obras,a vibração de cores intensas e vivas expressando
os seus respectivos significados. Nessa perspectiva, as paisagens percebidas
e sentidas cotidianamente, conduzem os poetas, músicos, fotógrafos,
pintores, dançarinos, cineastas, atores, escultores e incluímos também os
amadores, a cantarem das mais diversas formas as suas visões a respeito do
cenário do litoral, permeados de experiências e paixões pela paisagem que
movimenta- se diante do seu olhar (DARDEL, 2011).
O mar inspirou muitos artistas a resguardarem nas suas obras de
arte as riquezas presentes no ambiente litorâneo. Assim, o ato de olhar para o
oceano admite a transcendência humana diante da paisagem,na qual
comunica-se com o artista, por meio dos sons emitidos através do ir e vir das
ondas, das variações das marés as quais transformam temporariamente a
paisagem edas atividades cotidianas exercida pelos seus habitantes. Assim,
reside na paisagem litorânea uma perspectiva simbólica que são denotadas por
suas nuances as quais denunciam elementos significativos e singularizam o
espaço do litoral.Esses elementos estabelecem um diálogo,direcionado ao
olhar do artista, o qual empenha-se sobre o trabalho de aprendê-la. Inserido no
universo de olhares atentos para a temática marítima, Raimundo Cela, foi um
pintor, que destacou-se por desenvolver uma percepção das águas do mar que
banham Camocim. Também é lembrado por traduzir através de sua arte, os
componentes de uma paisagem na qual traz como moldura e agente
modelador, o mar. O artista pintou a bravura e o labor de homens,pelos quais
têm o oceano como a sua fonte de sobrevivência.
Raimundo Cela era filho primogênito, nasceu no dia 19 de julho do
ano de 1890, na cidade de Sobral, Ceará. Não viveu na sua terra natal por
muito tempo; este fato deve-se ao seu deslocamento aos quatro anos de idade
para Camocim. A motivação da mudança para a referida cidade foi a profissão
de seu pai, José Maria Cela Mosquera, mecânico de profissão, trabalhando
65
para a empresa responsável para realizar a implantação da via férrea em
Camocim. O seio familiar permitiu o desenvolvimento do futuro pintor de
maneira confortável, qualificando-o para a vida artística. Nessa perspectiva,
tinha como referência intelectual a sua mãe, Carolina Brandão Cela, pois, a
mesma exercia a profissão de professora, direcionando os primeiros anos de
estudo em sua própria residência. Portanto, no âmbito familiar, Raimundo Cela
estava cercado de referencias,que seriam a base para o seu futuro artístico
(FIRMEZA, 2004).
Em Camocim, a sua nova morada, o clima era suave devido à brisa
marítima que inundava a cidade, diferenciando-se assim de Sobral onde o calor
era intenso. Destarte, Sobral foi o berço no qual o pintor nasceu, e Camocim a
terra acolhedora, permitindo-lhe dar os primeiros passos para além do âmbito
de sua vivência litorânea, onde era cercado por uma paisagem que configura-
se como um fenômeno único. Firmeza (2004) apresenta-nos uma parte do
cenário natural e inspirador para Raimundo Cela, no início da sua caminhada
para o desbravamento do mundo encontrado além da linha azul do oceano
As praias bonitas com seus recantos e ilhas, os barcos insinuando viagens longínquas, sonhos, desejos e o porto tentando com seu movimento na chegada e saída dos barcos. O horizonte abria-se para tudo. O caminho se fazia, se mostrava por todos os lados. Camocim aconteceu na sua vida (FIRMEZA, 2004, p.18).
Cela convivia com aquela paisagem litorânea, aproveitando a
favorável condição familiar e financeira. Foi nesse ambiente no qual Raimundo
Cela cresceu. Ao completar dezesseis anos, deixa Camocim para ir morar em
Fortaleza, com o intuito de estudar e seguir a carreira artística. A respeito
dessa nova fase na vida de Cela, Firmeza (2004)nos informa
Camocim distava de Fortaleza 373 quilômetros, mas o desejo, a vontade e o objetivo encurtam o caminho e nossa capital o esperava, e ele a queria para os estudos mais avançados, necessários aos seus objetivos e os objetivos que o pai desejava, engenheiro, enquanto ele pretendia ser artista plástico. Por qualquer caminho chegaria a Fortaleza. Assim em nome de todos os objetivos, Cela prepara a viagem e, em 1906, com dezesseis anos e uma adolescência bem preparada, desloca-se para a capital do Ceará, onde chegou, viu e venceu (FIRMEZA, 2004, p.18).
66
Fortaleza embora detentora do título de capital, ainda permanecia
resguardando características rurais, que conviviam com a atmosfera da
modernidade emergente, responsável pela nova modelagem da cidade. Cela
ao chegar deparou-se com boas condições oferecidas como: o transporte
ferroviário e marítimo, avenidas, bonde puxado por tração animal, repartições
públicas, instituições de ensino como o Liceu do Ceará e a Faculdade de
Direito, iluminação pública e o teatro José de Alencar. Ressaltamos a presença
do Liceu, porque, foi nesse estabelecimento de ensino que Raimundo Cela
concluiu o ensino básico, para posteriormente dedicar-se ao nível superior na
Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro. No ano de 1910,o futuro
artista viaja com destino ao Rio de Janeiro, ingressando simultaneamente no
curso de engenharia na Politécnica e na Escola de Belas Artes para estudar
pintura. Cela foi um aluno sempre dedicado,obtinha destaque nas atividades
realizadas bem como nas disciplinas cursadas (FIRMEZA, 1988).
É válido relembrarmos que o estilo neoclássico também denominado
de acadêmico, reivindicava os princípios da boa arte, eivada de orientações
acadêmicas, inclinando-se fortemente para resgatar os valores da Antiguidade
Clássica (LITTLE, 2010). Na época em que Raimundo Cela ingressou na arte,
o neoclassicismo predominava no Brasil, encontrando espaço amplo,
principalmente na Escola de Artes no Rio de Janeiro. Nesse cenário tradicional,
Cela recebe a formação norteadora a qual guiaria a sua vida artística,
desenvolvendo o seu talento. Apesar do Neoclassicismo predominar, algumas
transformações ocorreram e foram sentidas nas composições das obras de
artistas brasileiros, uma abertura incidiu na elaboração das representações,
constituindo progressos referentes às temáticas, sobretudo as clássicas.Estas
gradativamente cederam espaço para um campo diversificado de temas mais
populares, próximos do cotidiano do povo, transmitindo uma realidade mais
intensa.Diversos artistas aderiram a uma nova postura no âmbito artístico,
concernente à renovação, por exemplo, novos temas, técnicas mais modernas,
distintos materiais, e diferentes locais para a sua produção. Exemplificamos
este fato com os pintores impressionistas que aboliram a postura tradicional de
pintura no ateliê, produzindo as suas telas ao ar livre. Dessa maneira,
estabelece-se, então, o diálogo entre antigos e novos estilos, incorporando ou
excluindo valores (FIRMEZA, 1988).
67
A tela “Último diálogo de Sócrates” (figura 1) edificada sob os
padrões estabelecidos pela arte acadêmica, rendeu a Cela o prêmio viagem ao
exterior, obtido no Salão Nacional de Belas Artes no ano de 1917, que
desfrutou de três anos na Europa, em especial, na França, país no qual Cela
passaria dificuldades financeiras bem como de saúde. A tentativa de conseguir
o seu próprio ateliê fracassou, e recusando-se a permanecer no quarto do
hotel, Cela resolve fazer diversas visitas ao museu de Londres, e de algumas
cidades da Bélgica e Holanda. Atentando sempre para a expansão de seus
horizontes de pintor, Cela acreditava que o contato com novos pintores e obras
seria rico momento de aprendizado (FIRMEZA, 2004).
Figura 1 – Último diálogo de Sócrates-1917
Fonte: CD-ROM Raimundo Cela 1890-1954, elaborado por Galeria Pinakotheke Multiart, 2004.
68
A rigidez do inverno parisiense abalou a saúde de Cela, porém,
diante dos empecilhos encontrados como, a saúde fragilizada, o pouco dinheiro
recebido como pensionista e a escassa alimentação, o artista não desistiu e
finalmente adquiriu um ateliê em um lugar no qual a paisagem era bonita, e o
clima agradável. Seu novo local de trabalho distanciava-se cinquenta minutos
de bonde de Paris. No ano de 1922, a saúde do pintor revela sinais de
esgotamento, sentindo as fortes conseqüências da sua estadia frenética,
repleta de dificuldades em Paris. Uma gripe no início do referido ano deixa o
pintor bastante debilitado, pois, não se alimentava de forma satisfatória para
manter o seu corpo saudável. A permanência em Paris foi conturbada, e a
gripe não se constituiu como único problema a abater as forças de Cela. No
ano de1922,de acordo com Firmeza (2004),
Em março, ao sair para um compromisso, sentiu que a dor de cabeça que começara a sentir em casa estava aumentando. Uma dor incômoda do lado esquerdo, entre o ouvido e o olho [...]. Levado ao hospital,foi diagnosticada uma pequena hemorragia, pelo rompimento de um vaso sanguíneo, na meninge cerebral. A causa do problema era a fadiga mental e o remédio o repouso de alguns meses. Quanto ao distúrbio ocular, também foi considerado conseqüência do estado geral da saúde e desapareceria com a normalização do organismo como um todo. (FIRMEZA, 2004, p. 27)
O repouso reforçado foi o melhor medicamento prescrito pelos
médicos a Raimundo Cela, infelizmente, as suas atividades precisaram de uma
interrupção, porque o seu corpo e a sua mente sinalizavam um estado de
debilidade, reflexos do trabalho incessante em um país distante, longe de sua
família. Homem forte e perseverante, Raimundo Cela não se rendeu ao
desânimo daquela situação desconfortável, recuperou-se do derrame e feliz
segue para Dampierre já conhecida por Cela, nas proximidades de Paris.
O ano de 1922 caracteriza-se como um período de relevância na
trajetória artística de Cela.Uma mudança, a qual iluminaria a má fase vivida
pelo pintor em destaque, foi o ano da aceitação das suas obras que o mesmo
enviou para o Salão de Paris, “uma paisagem e duas águas-fortes, feitas no sul
da França, estas obras não só foram aceitas e ele considerado um mestre,
como elogiado por vários dos melhores jornais de Paris” (FIRMEZA, 2004,
p.27). O “Salon” era rígido na seleção do elenco das obras de arte, primando
por qualidade e talento dos artistas participantes desse evento, o qual era
69
responsável pela ascensão ou decadência da carreira de muitos, ou seja, a
aceitação no “Salon” era sinônimo de êxito, logo, a rejeição significava que a
obra não obedecia às boas regras da arte acadêmica, sendo elaborada fora
dos moldes da tradição.
Cela enquadrava-se nos padrões estabelecidos pelo rigor
acadêmico, sendo considerado um artista de elevado valor exponencial por
jornais importantes da época, projetando o seu nome no âmbito da arte.
Próximo a estabilizar a sua carreira internacional, desfrutando da fama de
mestre confirmada pelo êxito no “Salon”, Cela retorna ao Brasil. Esse fato
deve-se ao seu problema de saúde obrigando-o a voltar. Recusando-se a fixar-
se no Rio de Janeiro, o seu destino escolhido foi Camocim, local tranquilo onde
Cela estava próximo a sua família, recebendo apoio para recuperar-se
totalmente do derrame sofrido.
4.2 PAISAGEM LITORÂNEA, DE CAMOCIM: VIVÊNCIA E SIMBOLISMO
Nos anos vividos em Camocim, após o seu retorno ao Brasil, a
natureza era a nascente inspiradora, orientando a arte de Raimundo Cela,
fornecendo-lhe o tema litorâneo, como verifica na figura 3 “Praia em Camocim”.
As relações estabelecidas entre o homem e a natureza, em suas telas originam
um contraste, no qual percebe as lutas diárias de pessoas nas suas profissões
desafiadoras,e que estão associadas à beleza dos movimentos nos quais
expressam a vida da paisagem.Assim, observamos o afloramento da produção
do pintor,no qual lançou o seu olhar sobre os temas relacionados à vida
litorânea.
Raimundo Cela na sua jornada artística, não confinou-se à postura
rígida do universo neoclássico, sobretudo após a sua viagem a Europa,
Firmeza (2004) explica-nos a respeito da incorporação de novos aspectos em
sua pintura
Permaneceu nos princípios adquiridos do academicismo dentro de sua estrutura técnica, mas percebeu e aceitou as nuances novas que se apresentavam, a visão renovada que a vida lhe oferecia, a percepção reavivada do seu meio de origem que o atingiu em seu retorno ao Brasil, e aproveitou todo esse oferecimento, utilizando o que pode em seu trabalho de arte (FIRMEZA, 1988, p.27).
70
Os temas mitológicos e as figuras greco-romanas eivadas de
sobriedade e equilíbrio, correspondentes ao neoclassicismo, cederam lugar
sutilmente a uma variedade de conteúdos, os quais passavam a representar o
povo brasileiro em sua realidade, com cores mais enérgicas integrantes do
cenário renovado, no qual a arte brasileira estava adentrando.
Em 1938, Cela volta ao cenário artístico nacional plenamente,
recuperado, faz novamente o trajeto de saída, partindo de Camocim
destinando-se a Fortaleza junto com a sua família. A sua capacitação e círculo
de relacionamentos, promoveram a admissão do pintor como professor do
Colégio Militar. Apesar de exercer a docência, continuou pintando em seu
ateliê, um espaço cedido pelo colégio e, assim, conciliava o trabalho e a sua
paixão pela arte.No início da sua carreira, realizou poucas exposições,
entretanto, a obtenção do prêmio da viagem ao exterior,permitiu a Cela
explorar horizontes desconhecidos da sua própria criatividade, elevando a sua
produção tanto nos anos pelos quais passou em Camocim, como no tempo
vivido em Fortaleza. Ambas as ocasiões serviram como esteio para os seus
temas, bem como para elevarem o numero das suas exposições.
A Sociedade Cearense de Artes Plásticas – SCAP– caracterizou-se
como uma associação produto dos empenhos do pintor natural do Rio de
Janeiro,MárioBaratta, em nortear os talentos da arte cearense. A referida
instituição apresentou grande importância no palco da pintura cearense,
servindo como um marco na renovação da pintura no Ceará, e ressaltamos a
sua presença na vida de Raimundo Cela. Nos anos antecessores de 1941, os
artistas do Ceará não possuíam um suporte que lhes fosse próprio o qual
servisse como uma coordenação, em que debatessem as suas ideias, os seus
projetos, bem como atuasse na solução de empecilhos emergentes no caminho
artístico (FIRMEZA,1983).
Antes da fundação da SCAP, os ateliês dos pintores Delfino Silva e
Francisco Ávila funcionavam como locais de reuniões entre os artistas. Mário
Baratta, ao passar na frente do ateliê de Ávila, resolveu entrar ampliando o seu
círculo de amizades com os pintores encontrados no recinto. Mário gerou
conexões com os outros pintores e levando os artistas a refletirem sobre um
caminho mais produtivo para a assim elevar a sua arte (FIRMEZA,1983).
71
Nessa perspectiva dos diálogos fundados entre os pintores emerge a SCAP, a
qual inicialmente mantinha o nome de Centro Cultural de Belas Artes, um
núcleo destinado a prática de atividades artísticas como a pintura e o desenho.
Acerca do nascimento da referida sociedade, Firmeza (1983) explica-nos que
Finalmente em conseqüência dessa reunião de motivos, propósitos, interesses, e entusiasmo unânime, funda-se no dia 30 de junho de 1941 primeira entidade de artes do Ceará para a qual foi adotado o nome de Centro Cultural de Belas Artes. Do acontecimento participaram além dos artistas jovens alguns dos mais velhos (FIRMEZA, 1983, p.13)
No mesmo ano o centro Cultural de Belas Artes passaria por uma
transformação em seu nome, passando a se chamar SCAP. Mário Baratta não
frequentara cursos tradicionais de pinturas ou desenho, sem mestre algum ele
mesmo guiava os seus estudos de forma autêntica, sempre vislumbrando o
horizonte do futuro. Era um homem inquieto, pensante e desbravador de
talentos, sob este ângulo da sua personalidade enérgica, a primeira atitude
tomada entre outras pelo mesmo, foi lançar Raimundo Cela na esfera artística
fortalezense no período no qual Cela regressara da Europa por ocasião do seu
prêmio de viagem ao exterior. Nesse momento, Cela era considerado morto por
parte dos críticos de arte, o seu nome havia sumido de cena, pois não sabiam
mais notícias a respeito do mesmo, onde ele estava residindo ou se ainda
permanecia produzindo.
Baratta convidou Raimundo Cela para tornar-se membro da
comissão responsável por elaborar os estatutos. Observamos que o talento de
Cela, bem como o seu prestígio no âmbito artístico, auxiliou aos artistas da
SCAP em momentos difíceis, sobretudo no aspecto financeiro, como elucida
Firmeza (1983)
Quando a SCAP quis realizar um empreendimento para o qual havia a necessidade de algum dinheiro, Mestre Cela ofereceu um quadro de sua autoria para ser rifado - um admirável barco que foi para as mãos do Dr. Andrade Furtado, então Secretário do Interior e da Justiça, que subescrevera dois números da rifa fora o sorteado (FIRMEZA, 1983, p.106)
No ano de 1940, iniciava a sua participação nas exposições
coletivas, individuais e também recebia encomendas. No ano seguinte, Cela
72
juntamente com outros artistas, participa da fundação do Centro Cultural de
Belas Artes. Expôs as suas obras em Fortaleza com louvor e admiração, e o
seu esforço foi respeitado por parte de todos. Dessa maneira, a ausência de
Cela foi superada. Acerca desse novo momento na vidado pintor, Firmeza
(2004) afirma que
Tendo exposto poucas vezes no Rio de Janeiro, em 1916 e 1917, e em Paris, em 1922, Cela quebrava, neste início da década de 1940, um jejum de exposições que durou vinte e um anos, considerando que sua primeira participação em Fortaleza, tenha sido no primeiro salão de abril, em 1943 e daí uma mostra individual na Casa Juvenal Galeno, seguindo-se outra exposição coletiva no Terceiro Salão Cearense de Pintura, em 1944 e, no mesmo ano, na exposição Pintura de Guerra, era homenageado pelos expositores em catálogo com a reprodução de um catálogo seu. (FIRMEZA, 2004, p. 31)
Firmeza segue complementando ainda que Raimundo Cela
O artista dos jangadeiros passou a expor nos salões organizados por Mário Baratta, quadros que faziam a delícia dos expectadores pela grandeza dos temas, segurança das pinceladas e rico, exuberante admirável emprego das tintas. (FIRMEZA,1983, p. 126)
Em 1944, Cela abandona o ensino do Colégio Militar, ingressando
no corpo docente da Escola de Agronomia do Ceará. Nesse momento,
transfere o seu ateliê para o Foyerdo Teatro José de Alencar, seguindo com o
vigor do seu labor artístico.Sempre generoso para com aqueles jovens
ansiosos por uma oportunidade de orientação, não se negava a prestar auxílio,
àquelas pessoas que lhe pediam ajuda. Sempre disposto para descobrir algum
talento que buscasse a sua experiência.
Raimundo Cela era um viajante com disposição para realizar os
seus sonhos, e tinha sempre a arte como bússola nesta incessante busca.
Partindo novamente, o pintor deixa a capital cearense em 1945 com destino a
Niterói no Rio de Janeiro.
O Rio de Janeiro acolhe o artista pela segunda vez, neste retorno,
destacamos a Escola Nacional de Belas Artes, a qual ocupou um espaço de
relevância na formação artística de Raimundo Cela, lugar onde recebeu apoio
e admiração de amigos e professores. Nessa perspectiva, em 1945 realiza uma
exposição individual no Museu Nacional de Belas Artes.
73
Em 6 de novembro de 1954, Raimundo Cela falece vítima de
câncer,no Rio de Janeiro, mas o seu legado continua vivo para aqueles que
buscam conhecer as suas obras. Objetivando resguardar os seus trabalhos, o
Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (MAUC), em 1979, inaugura
a Sala Especial Raimundo Cela, homenageando o artista com um acervo
amplo, em que estão presentes desenhos envolvendo os estudos do artista,e
os seus trabalhos finalizados. No referido museu, encontra-se a herança de
Cela, o traço mais marcante no seu labor pictórico, o litoral vivificado por meio
do seu olhar, das suas tintas e das suas percepções.
As classificações estabelecidas sobre o universo artístico são
relevantes para o entendimento das obras, logo, a pintura de Cela como as
realizadas pelos demais pintores, também é alvo das classificações. O seu
temperamento sóbrio, introspectivo, isolado e recolhido, auxiliou-o a trabalhar
em um estado sereno, para então planejar o nascimento dos seus estudos os
quais serviriam de subsídio para as telas. Procedendo dessa forma tradicional,
o pintor tornava-se imune ao caráter efêmero da moda, construindo assim, a
sua autêntica postura perante o universo de estilos pictóricos. Cela negava-se
a se incluir nas tendências modernas, as quais influenciavam na arte
brasileira.Todavia, o pintor atentou para a sua própria criação e observou a
necessidade de uma revisão, mas,sempre buscando manter os seus valores
norteados pela tradição neoclássica (TEIXEIRA,2004).
Aparentemente de composição simples, a obra de Raimundo Cela,
revela características complexas, agregando importância à sua obra, como por
exemplo, a inventividade do artista presente nos temas pelos quais
representam a paisagem de Camocim, captando o dinamismo espacial de um
ambiente rústico, porém, eivado de significados. Cela era um artista que
pertencia à família dos “lineares”, pois, a linha e o equilíbrio bem como o hábito
do desenho são elementos presentes e fundamentais para a elaboração das
suas telas. Embora as linhas apresentem papel de destaque na obra do pintor,
este incorpora nos seus trabalhos as manchas de tinta, as quais recordam a
obras dos pintores impressionistas e expressionistas. A respeito das técnicas
utilizadas por Cela para alcançar os seus objetivos, Teixeira (2004) explana
74
Na pintura de Raimundo Cela, a linha mesmo preponderante, não apaga o caráter pictórico ou de manchas do artista. Em suas composições, a cor, tratada como mancha constrói um verdadeiro equilíbrio entre essas duas tendências. (TEIXEIRA, 2004, p.27)
Há, dessa forma, uma mescla entre a tendência acadêmica
marcante, na estruturação das suas obras, e, simultaneamente, a emoção
presente nas manchas de cores vívidas, emergindo para acionar a vida da
paisagem litorânea, captada por Raimundo Cela, ressaltando o ambiente no
qual viveu. Sempre trabalhando no seu ateliê (uma prática recorrente entre os
adeptos do academicismo), usava telas industrializadas de origem européia e
suporte de madeira compensada, dominava a arte do desenho, da aquarela e
da pintura a óleo, elaborando cada etapa do trabalho cuidadosamente, atento
para todos os seus detalhes. Os seus estudos eram feitos à lápis ou a carvão,
treinando exaustivamente, executava-os com segurança, procedendo desta
maneira Cela objetivava evitar improvisos em sua obra. Os esboços eram
fracionados e acompanharam Raimundo Cela na edificação da sua pintura,
serviam como base para ele aplicar a tinta diretamente na tela.
Situado a 379 km de Fortaleza, o município de Camocim localiza-se
no extremo Norte do Ceará, limitando-se com o Oceano Atlântico, o qual é o
destino final do rio Coreaú, constituindo o porto de Camocim, ao Sul, limita-se
com o município de Granja, a Leste, Jijoca de Jericoacoara e Bela Cruz, e a
Oeste, Barroquinha.
75
Figura 2 – Mapa de localização de Camocim
Fonte:Elaboração do mapa: Diego Silva Salvador, Agosto/2016.
A ocupação do Ceará foi um processo ocorrido tardiamente; este
fato é percebido no exame comparativo com o restante da parcela do território
nordestino. A pecuária, sob a sua faceta extensiva, consolidou-se como uma
atividade econômica relevante, a qual promoveu dinamismo intenso ao
espaço geográfico do Ceará, sobretudo nas áreas sertanejas, as quais
materializaram-se como os focos da referida atividade (PINHEIRO, 2000).
A concessão de sesmarias proporcionou o início da interiorização do
Siará, como também das disputas por terras pertencentes aos índios, os
quais sofreram o processo de expulsão, bem como o extermínio das tribos
que representavam um empecilho para o homem invasor. No decorrer desse
confronto, foram pulverizadas as relações afetivas, criadas entre os nativos e
o seu meio natural. Para os indígenas, a natureza possui um valor que não se
aproxima da lógica mercantil, estabelecida pelos portugueses, logo, a terra
76
para os nativos, “era um espaço de liberdade e da possibilidade de viver sem
serem constrangidos pelos brancos” (PINHEIRO, 2000, p.24). Porém, o
objetivo supremo dos portugueses pautava-se em transformar a terra em um
produto, capaz de originar lucros orientados por uma lógica mercantil.
Destarte, as visões de mundo eram antagônicas, e a superioridade técnica
dos armamentos associada à utilização da pólvora, extinguiu parte
considerável das tribos habitantes do Siará. As suas terras interioranas foram,
então, utilizadas para a pecuária e produção dos seus derivados, tomemos
como exemplos a carne do sol e o couro.
As fazendas de gado exibem um papel relevante no
desenvolvimento do Siará Grande, dessa forma, através das mesmas, os
vales dos rios Jaguaribe, Acaraú e Coreaú, tornaram-se áreas pioneiras no
processo de colonização do Ceará. Nos caminhos de gado, originaram-se os
povoados e a vilas, atreladas ao desenvolvimento da economia, as vilas
multiplicaram-se, ampliando as suas funções. Nessa perspectiva, os lugares
para descanso e trocas de mercadorias formaram núcleos de povoamento, os
quais seguiram realizando operações administrativas, religiosas, econômicas
e militares. De acordo com Souza (2007), ao catolicismo deve-se parte da
organização das vilas do Siará. Assim, acerca do poder da religião católica, a
autora explana
Os pequenos centros locais, se formavam pela aglutinação da população em torno de uma capela, em terras doadas por um fazendeiro. Os núcleos populacionais do Ceará evoluíram para a condição de cidade quando encontravam facilidades para se tornarem centro de trocas de mercadorias. Dentre eles, os que tiveram maior projeção foram os mais favorecidos em sua projeção geográfica, com relação aos eixos de comércio ou as áreas de produção regional. (SOUZA, 2007, p. 19)
O gado criado no Ceará era destinado para as feiras de Olinda,
Igaraçu, Goiana e Recife, porém, o extenso trajeto realizado pelas boiadas
penalizava o gado, conduzindo-o, dessa forma, ao emagrecimento e à morte,
ocasionando altos prejuízos para os seus respectivos donos. Nesse contexto,
as estradas emergiram associadas ao processo econômico para suprir as
necessidades, tanto aquelas carências locais, quanto daqueles que estavam
apenas de passagem. Em tal perspectiva, dentre as estradas as quais
77
originaram-se durante o ciclo do gado, obteve destaque a Estrada Geral do
Jaguaribe, pois, através da mesma as mercadorias adentravam no Ceará,
para posteriormente serem distribuídas, destinando-se aos seus núcleos de
povoamento (SOUZA,2007).
Nos parágrafos acima, buscamos de forma breve, expor como a
economia nascente do Siará organizava-se nas proximidades dos rios,
irradiando a produção da época para os demais povoados e vilas,
principalmente através do transporte fluvial, o qual se constituiu durante
algum tempo como principal veículo para o transporte de mercadorias, de
pessoas e para a movimentação de ideias. Sob essa esfera de agentes
dinamizadores do espaço, encontra-se inserido o porto de Camocim. Embora
a sua exploração tenha iniciado em um período de crises climáticas, quando
as secas de 1777-1778, 1790-1793 impulsionavam os empecilhos iniciais, os
quais conduziram as criações do gado cearense a uma decadência, o porto
funcionou como uma porta para o embarque de gêneros agrícolas e da carne
de charque, ainda produzida no período da sua instalação (GIRÃO, 1994).
A ocupação do município em destaque assemelha-se com outras
regiões litorâneas do Brasil, pois, o interesse na colonização indígena
conduziu os franceses, os holandeses e portugueses, a travarem lutas,
visando o controle bem como a exploração das tribos, as quais habitavam no
litoral de Camocim. De origem tupi, a palavra Camocim significa: “vaso onde
enterravam os indígenas, os corpos dos mortos e que servia-lhes de túmulo”
(MONTEIRO,1984, p. 117). A Carta Foral de 11 de março de 1535 indica o marco referencial, no
qual constitui-se o município de Camocim. As terras foram cedidas por D.
João III,João Cardoso de Barros. Assim, o espaço físico das terras doadas,
totalizava 75 léguas da costa, calculadas da ponta dos mangues verde
(Maranhão) até o rio da Cruz (Camocim), trazendo a denominação de Terra
de Jericoacoara (MONTEIRO, 1984).
A ocupação das terras de Camocim assemelha-se com a parcela
restante do “Siará Grande”, ou seja, não despertaram interesse. Os primeiros
homens brancos que chegaram a terras cearenses, foram os aventureiros e
piratas, estes por sua vez não almejavam a colonização e exploração
78
(GIRÃO,1994). Diversos obstáculos impediam o conhecimento e a penetração
das terras do Siará, nessa perspectiva, Girão (1994) explana Não há dúvidas de que fatores de ordem político-econômica vêm se juntar aos obstáculos citados na historiografia tradicional, como causadores do atraso da colonização desta donatária, onde aparece a aridez do clima, a agressividade do nativo e as correntes aéreas e marítimas da costa nordestina, dificultando a navegação na maior parte do ano, resultando de tudo isso que somente depois de cem anos do descobrimento cabralinohaja começado a penetração do Ceará. (GIRÃO, 1994, p.25)
Sob esse contexto, os donatários das terras de Camocim não
almejavam ocupá-las, conduzindo esta região litorânea ao posto de reserva
territorial, para futuras explorações em um momento julgado benéfico, visando
à lucratividade. O desbravador português natural dos Açores, Pero Coelho,
estabeleceu o primeiro contato com as terras camocinenses, partindo no dia
10 de agosto de 1603 da foz do rio Jaguaribe, destinando-se ao porto de
Camocim, chegando no dia 19 de janeiro de 1604. No entanto, a topografia do
lugar não agradou aquele explorador. Desse modo, logo abandonou a região
recém desbravada, que posteriormente foi trocada pela área denominada
“Ponta da Jericoacoara”, também chamada de “Buraco das Tartarugas”,
assim batizada devido à facilidade em coletar frutas e obterem a caça
(MONTEIRO, 1984).
A família Gabriel, oriunda de Tutóia, foi a primeira a habitar
Camocim, Gabriel Rodrigues da Rocha chegou em 1792 acompanhado por
sua esposa e seus dois filhos, Joaquim Gabriel e José Gabriel. A referida
família iniciou o processo de exploração daquele ancoradouro, beneficiado
por suas qualidades naturais, o qual, durante um determinado período,
significou prosperidade para a população habitante de Camocim, bem como
para a sua área de abrangência. Assim, o patriarca da família objetivava
exercer as suas habilidades como técnico de barra, acelerando o
conhecimento acerca do porto e igualmente a sua exploração. Instalado em
terras camocinenses Gabriel Rocha, procriou mais alguns descendentes,
entre eles, Luiz Gabriel, o qual se tornou ilustre devido as suas aptidões
portuárias, substituindo o seu pai e transformando o porto de Camocim em
um ponto acessível para qualquer navio, inclusive para aqueles de grande
porte (MONTEIRO, 1984). A cidade litorânea em discussão foi erguida às
79
margens do seu porto natural, por onde chegavam diversas mercadorias que
seriam vendidas nos estabelecimentos da cidade, consequentemente, o
equipamento em debate foi essencial para o nascimento de Camocim, para a
sua edificação bem como para o funcionamento da ferrovia, alimentando o
dinamismo espacial do período.
Retratando um dia ensolarado, a tela “Praia em Camocim” (figura 3)
foi elaborada após a chegada de Cela ao Brasil, na ocasião de seu
estabelecimento em Fortaleza. Na figura, encontramos a atmosfera serena da
praia mencionada, antes das modificações, proporcionadas pelo passar dos
anos. Na tela o artista captou o mar calmo adormecido, permitindo, assim, o
deslizar dos barcos, inseriu algumas casas situadas na avenida beira-mar,
apresentando distintas dimensões, todas edificadas próximas à faixa de praia,
estimulando a intimidade entre os habitantes da praia com o oceano. As
fachadas exibem cores claras, saltam, nessa perspectiva, o branco
posteriormente destacam-se as nuances terrosas. Observamos na obra a
atmosfera rústica de uma cidade sustentada economicamente por meio da
pesca artesanal. Os tons claros proporcionam um dia ensolarado na praia, é
válido ressaltar a maneira como Cela emprega os tons de cores vivas,
permitindo uma elevada luminosidade nos seus trabalhos.
80
Figura 3- Praia em Camocim-1939
Fonte: CD-ROM Raimundo Cela 1890-1954, elaborado por Galeria PinakothekeMultiart,
2004.
81
O olhar de Raimundo Cela voltado para a praia presente na sua
obra, nos mostra a dimensão de um lugar considerado o marco inicial para
Camocim. Sendo, portanto, o ponto de partida para o seu processo de
expansão, como também foi relevante na vida do pintor.Este, quando criança,
percorria as ruas da cidade para a realização das suas atividades cotidianas,
deslocar-se para a escola, passear em família, visitar amigos, fundando, assim,
vínculos com aquele universo litorâneo circundante, o qual se abria diante dos
olhos de Cela.
Assim, os outros sentidos também agiram na integração de Cela
com aquele ambiente, a praia não foi exclusivamente apreendida por meio da
visão, todavia, há uma conexão na qual é edificada entre os demais sentidos,
proporcionando ao pintor recordar o tempo da sua estadia diante do mar.
Percebendo o sabor do sal transmitido através da maresia apreciando o
perfume característico emanado pelas águas, sentindo e ouvindo o barulho das
ondas. Nessa perspectiva da experiência do artista para com a paisagem
mediada pelos sentidos, retornamos ao pensamento de Besse (2006),no qual o
autor fala da paisagem como uma unidade entre o mundo externo e interno,
este fato significa a apropriação do mundo objetivo o qual é metamorfoseado a
partir das relações cotidianas, com as pessoas bem como com os lugares. Na
compreensão de Besse (2006)
A paisagem significa participação mais do que distanciamento, proximidade mais do que elevação, opacidade mais do que vista panorâmica. A paisagem por ser ausência de totalização, é antes de mais nada a experiência da proximidade das coisas (BESSE, 2006, p.80)
Dessa maneira, na arte elaborada por Cela, captamos a dimensão
de uma vivência integrada ao espaço litorâneo, constituindo uma
paisagemque foi o berço do pintor desde sua infância. Assim, ao retratar as
formas presentes à beira-mar, o artista atentou para a relevância de uma
paisagem simplesque emana a partir das suas formas e cores,
asexperiências, sobretudo da infância, e da adolescência envolvida por uma
brisa marítima que consoante às ruas da cidade elaboraram uma aura
inspiradora para o pintor. Sua criação artística foi o palco de uma parcela da
existência do artista antes da sua viagem ao exterior, e igualmente no período
82
posterior da sua chegada, dois momentos áureos na jornada artística de
Raimundo Cela,impulsionadores para o amadurecimento da sua arte.
O trabalho em discussão admite um retorno do artista às suas
lembranças engendradas na paisagem, delineada sob a face da estética,
constituindo assim um conjunto de emoções vividas e distintas, sentimentos
felizes ou tristes, saudades; as suas aspirações nos âmbitos profissionais e
pessoais, com as quais Cela depara-se, devido às mesmas, encontrarem-se
imbricadas na obra. A “Praia de Camocim” possui um fragmento significativo
no caminho percorrido pelo pintor, obtendo vida configura-se como um
espelho capaz de refletir as expressões íntimas do artista.
Salientamos a presença das explanações de Besse (2014),
trabalhadas no primeiro capítulo, e que são relevantes para a compreensão
da paisagem em Raimundo Cela. Assim, consideramos pertinente a inserção
do referido autor, juntamente com outros para embasarmos as nossas
contribuições no presente capítulo.
Na concepção de Besse (2014), a natureza é responsável por
fornecer à sociedade, os meios para a criação de novas paisagens e, também
para a sua remodelagem, são elementos trabalhados pelo ser humano como,
os solos férteis para o plantio, a madeira para a construção de seus barcos,
minerais voltados para as edificações das casas, entre outros elementos
naturais de uma lista ampla. A ordenação da matéria é inscrita a partir dos
valores culturais da comunidade, a qual deixa a sua marca impressa sobre a
superfície terrestre (BESSE, 2014). Da natureza litorânea provêmos pilares
para a criação da paisagem, definindo os traçados e as formas pelas quais
singularizam Camocim. Representadas, pela pesca, pelas redes, pelos barcos
com as velas encontrados na sua obra,e que são frutos da dinamicidade
estabelecida entre o homem e o seu ambiente litorâneo.
A paisagem do litoral de Camocim resguarda os costumes da
pesca,uma atividade que além de econômica, integra o universo dos hábitos
do lugar.Nesse contexto, ocorre o cotidiano dos pescadores que falam sobre
o dia da pesca, a realização da limpeza dos bastardos (como são chamados
as embarcações mais simples) e a preparação com os suprimentos para o
embarque durante a madrugada.Na época de Raimundo Cela, tal trabalho era
83
realizado de maneira simples, através de redes com bastante esforço por
partedos pescadores.
Os lugares íntimos para o sujeito podem ser numerosos e diversos,
trazem as características pessoais de cada individuo, mediante as suas
experiências sobre a superfície da Terra. O sentimento de pertencimento
encontra-se armazenado no seio do homem, guardado nas suas memórias as
quais são de difícil externalização, porém, não impossível, através dos
símbolos (TUAN, 1983). A paisagem exibe a propriedade de congregar o
valor de pertencimento do pintor, quando o mesmo examina o seu trabalho,
juntamente com sua memória, não deixando de retratar os atos cotidianos das
comunidades pesqueiras. Nesse sentido, é pertinente um retrospecto as
palavras de Corrêa (1995) quando o autor nos informa que
Em realidade a paisagem é, de um lado o resultado de uma determinada cultura que a modelou e, de outro, constitui-se em uma matriz cultural. Como resultado a paisagem é uma “vitrine permanente de todo saber”, expressando a cultura em seus diversos aspectos, possuindo uma faceta funcional outra simbólica. (CORRÊA, 1995, p.04)
Na paisagem litorânea de Cela, localiza-se o local de partida e
chegada das embarcações com as suas velas, encontrados na areia,
embaladas por ventos e inquietude das ondas. Estes se apresentam como se
dialogassem com aqueles indivíduos que passam diariamente, e as percebem
como um componente fundamental para a veemência da paisagem.Assim, é
apreendido na paisagem do pintor um vínculo,o qual se assenta entre o mar e
a vida das pessoas e que sobrevivem dele. Portanto, além de percebermos a
dimensão afetiva entre o mar e a terra, são compreendidas relações
englobando a economia de Camocim. A obra de Cela caracteriza-se como
uma vitrine cultural por demonstrar-nos como os habitantes de Camocim
vivem, adequando-se aos ritmos do universo abrasado pelo mar, explicitando
na paisagem as suas relações fundadas com a natureza.
Na figura 9, vemos a obra intitulada “O Porto de Camocim”. Esse
quadro foi realizado após a chegada de Cela ao Brasil, no período de seu
retorno da Europa. Diferindo-se do trabalho “Último diálogo de Sócrates”, o
qual exibe cores escuras,emanando uma atmosfera sóbria e acadêmica, a
84
obra em discussão,inseri-se em uma perspectiva distinta,em que a conexão
constante entre a luz e a cor,edifica uma tessitura peculiar de Cela.
As águas calmas presentes na tela são o destino final do rio Coreaú,
fundando o porto natural da cidade de Camocim. Sob um dia claro de céu
azul e com algumas nuvens, os galpões localizados no centro da tela
destacam-se por suas dimensões e também pelas cores empregadas por
Cela. As variações de amarelo nas paredes e as nuances terrosas nos
telhados, contrastando com o azul e o branco do céu, atraem a atenção no
momento da observação do referido trabalho. Distante do ritmo frenético do
porto, Cela vinculou na sua obra, quatro pequenas embarcações,
características de Camocim, todas elaboradas em cores escuras. Três dos
mencionados barcos encontram-se estacionados na areia clara da praia,
como se descansassem, apreciando a brisa. Deslizando sobre as águas
tranquilas, vemos a quarta embarcação ocupada por um tripulante, o qual não
realiza esforços para deslocar-se, apenas segue o fluxo das águas.
Os navios soltando a fumaça cinzenta, anunciam que embora
enfrentando problemas para as suas atividades em declínio, sobretudo, pela
ausência da dragagem, o porto ainda estava vivo, servindo à cidade,
promovendo o dinamismo a paisagem apreendida por Raimundo Cela.
85
Figura 4- O porto de Camocim-1939
Fonte: CD-ROM Raimundo Cela 1890-1954, elaborado por Galeria PinakothekeMultiart, 2004.
86
Besse(2014) explana a respeito da capacidade do ser humano de
moldar a natureza, criando formas contidas no espaço geográfico a partir das
suas carências e ambições, resultando na paisagem,a qual encontra-se ativa,
agindo e influenciando nas novas projeções. Portanto, a respeito deste
movimento cíclico, Besse (2014) assinala
Da China à Europa Ocidental, como em todas as partes do mundo, os homens se tornam gravadores, escultores ou modeladores. Mal tocam a terra ou, ao contrário, transformam-na radicalmente, em função das possibilidades de um material natural que é mais ou menos favorável, mais ou menos “plástico”, mas também em função dos seus modos de produção e dos ideais espirituais e morais que acalentam. A aparência da paisagem traduz essa atitude cultural variável da humanidade em relação aos meios naturais nos quais lhe coube viver. (BESSE, 2014, p.35).
Raimundo Cela compreendeu a importância do porto, explorado
inicialmente com a instalação da família Gabriel em Camocim. Esta, por sua
vez, ao tocarem a terra camocinense, transformaram-na em um local
próspero e em um ponto de comunicação com o restante do mundo, a partir
dos elementos dispostos na natureza. Cela apresenta-nos uma paisagem
portuária, e que caracteriza-se como um vetor responsável pelo início do
processo de povoamento de Camocim, servindo como um terminal para o
transporte de cargas e pessoas, distribuindo por meio de seus navios de
estrutura rústica, produtos a serem comercializados: gêneros agrícolas,
artigos para a decoração, vestuário, mobília, porcelana, principalmente
destinados, às famílias mais ilustres. O fluxo de saída para suprir as
necessidades de outros estados, era igualmente constante. As atividades
comerciais dependiam da agilidade do porto, o qual exerceu importância para
o crescimento do aglomerado em debate, criando, assim, as bases sólidas
para o seu desenvolvimento e posteriormente, a elevação do status de
povoado a condição de vila, em seguida a obtenção do título de cidade.
Esse local de escoamento não significou simplesmente uma
ferramenta útil para a economia. Na concepção de Cela, o porto serviu como
uma fonte de inspiração para as viagens do artista, convidando-o
constantemente ao desbravamento do mundo, através da chegada e partida
dos vapores, como aqueles apreendidos pelo artista na sua obra. Cela, diante
87
do seu próprio trabalho, compreende o porto como uma abertura para a
concretização dos seus anseios, pois, também foi um passageiro ingressando
aos dezesseis anos de idade a bordo de um vapor, o qual inicialmente o
levaria a Fortaleza, onde o artista iniciava um aprofundamento nos seus
estudos.
Cela, ao olhar a sua tela, percebe o porto, a partir de uma
perspectiva que vai além da sua dimensão puramente econômica, pois, para
alguns, tal local serviria exclusivamente para as trocas comerciais, para a
entrada e saída de produtos, representando a movimentação das riquezas
camocinenses. O porto também era visto por outras pessoas como um lugar
fétido bem como precário. Todavia, Cela o compreende de uma forma
distinta, norteado pelas experiências positivas adquiridas nas suas viagens.
Este sentido que é delineado pela experiência do olhar de Cela, direcionado a
paisagem portuária, remete-nos às reflexões de Meinig (2003) ao explanar a
respeito de observações múltiplas da paisagem, pois, diversas pessoas
transitavam nas adjacências do porto, viam os mesmos objetos distribuídos
sobre um fragmento de terra, entretanto, apresentavam percepções
diferenciadas para um mesmo local, pautadas na experiência de cada um.
Dessa forma, o autor elucida que “qualquer paisagem é composta
não apenas por aquilo que está à frente de nossos olhos, mas também por
aquilo que se esconde em nossas mentes (MEINIG, 2003, p. 35). Os navios,
observados por Cela deslizando sobre a linha do horizonte, parecem não ter
fim, dialogavam com o pintor a partir das suas dimensões imponentes,
indicando destinos e novas paisagens pelas as quais o artista não poderia
imaginar. Os sons dos apitos, a fumaça escura lançada naquele lugar,
convocavamo pintor para adentrar em terras diferentes da sua. Essa
perspectiva conduz-nos às reflexões de Merleau-Ponty (2004), a respeito do
significado da tela de arte, o qual se encontra em estado de aprisionamento,
pois, o quadro permanece em tal condição para os demais seres
humanos,devido o fato de não fazermos da pintura um meio para
comunicarmo-nos com o mundo, dessa maneira, para o olhar do pintor, o
quadro constitui um elo de vida, transformando-se em algo transcendente ao
plano da matéria, a qual compõe o quadro, como o tecido da tela, a madeira
útil para o suporte e as tintas depositadas na superfície do trabalho. A
88
libertação do significado da obra, emerge quando iniciamos o processo de
vivência da pintura, estabelecendo um diálogo mais profundo com a mesma,
o artista,então, exibe-se como o detentor verdadeiro do significado da obra
(MERLEAU-PONTY, 2004).
A linha do horizonte delineia-se até onde a visão é capaz de
alcançar, porém, seria somente possível cruzá-la e saber o que existe por trás
da mesma, com a partida de Raimundo Cela. Na obra, o artista representa as
experiências adquiridas nas suas viagens com a figura de um porto simples,
sem tecnologias avançadas, mas, com o movimento próprio das suas formas,
chamava o pintor para lançar-se na imensidão do mar. Cortando as águas do
oceano atlântico, o artista partiu de Camocim com destino a Fortaleza,
posteriormente Rio de Janeiro, depois chegou à França, desfrutando do seu
prêmio obtido na Escola Nacional de Belas Artes.
O pintor ao olhar a paisagem litorânea de Camocim, sente
congregar as lembranças guardadas no seu íntimo de vários lugares, bem
como de outros portos pelos quais passou: “Dakar, Las Palmas, Lisboa, San
Sebastian e Bordeaux constam este itinerário” (FIRMEZA, 2004, p.25).
Raimundo Cela teceu uma longa jornada para aperfeiçoar a sua
arte,percorrendo seu trajeto de navio em navio, passando de porto em porto,
fotografava com os olhos todas paisagens as quais atravessava, debruçando-
se tanto mental como fisicamente para compreender a sua nova realidade.
Percebemos a existência do relacionamento de Cela com o porto,
considerando-o relevante na sua trilha de vida; assim, com a sua paleta e os
seus pinceis capturou-a estendendo para a tela os sentimentos procedentes
de uma vida de viagens, sobretudo, possuindo o porto camocinense como um
lugar de partida e de retorno. Camocim por meio do seu porto localizado no
rio Coreaú, interagia com o mundo, mas, o seu dinamismo sofreu um
comprometimento conduzido pela invasão natural de sedimentos no seu
canal, este fato associado, sobretudo com a ausência de dragagens
constantes, serviram como obstáculos para a entrada dos navios. Muitos
pedidos foram enviados às autoridades, solicitando a dragagem do porto,
entretanto, a chegada da ferrovia modifica a importância do equipamento,
colocando-o em uma posição rebaixada em relação ao transporte dos
passageiros, pois o trajeto das viagens tornou-se menos cansativo, sendo
89
realizado por meio do trem ou de ônibus. A seca de 1931 a 1932 foi um fator
que levou o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, a iniciar a
construção da BR-116 e 222, a primeira rodovia que ligava Salvador a
Fortaleza, a segunda estabelecia a conexão entre Fortaleza e Teresina.
Assim, as estradas de rodagem para os ônibus, realizavam trajetos mais
rápidos, tanto para o transporte de cargas como para o de passageiros. Os
navios estavam evitando o porto de Camocim, o dinamismo foi então
reduzido, não havendo mais o fluxo intenso de pessoas e mercadorias a
serem transportadas como antes. Logo, a praticidade no embarque por trem
ou ônibus, substituiu o deslocamento realizado por meios de navios, devido à
rapidez e o conforto ofertados. A linha ferroviária posteriormente entrou em
decadência, seguida da desativação do ramal em 1977, originando a saída
das famílias camocinenses para Fortaleza, objetivando trabalho, e o
estabelecimento das suas residências (MONTEIRO, 1984).
O encerramento das atividades do porto, associado ao fechamento
do ramal Camocim-Sobral, proporcionou a derrocada da economia
camocinense, os impactos socioeconômicos logo foram ocorrendo, sendo
perceptíveis no cotidiano da vila: comércios declaram falência, desempregos,
bem como a saída das fábricas igualmente prejudicaram e estagnaram o
desenvolvimento de Camocim (SANTOS, 2008).
Retratando o final de mais uma tarde de trabalho, na oficina
ferroviária de Camocim, a figura 10 traz-nos um período no qual a estação e a
oficina co-existiam de maneira anexada, pois, a manutenção dos trens era uma
atividade fundamental para a segurança da estação e também dos
passageiros. A obra “Saída da Oficina” apresenta-se com algumas cores
sóbrias como, o marrom, o preto e o cinza, revelando,assim, uma face
cansativa do trabalho braçal, realizado pelos mecânicos aos sons de
incontáveis marteladas nas peças,ao mesmo tempo no qual o aroma do óleo
embriagante, utilizado para a limpeza e troca das peças, penetrava em toda a
oficina. Embora Raimundo Cela tenha captado mais um simples dia de labor, o
pintor preocupou-se em ofertar a obra uma atmosfera iluminada, apreendida na
parte superior da tela proporcionando mais alegria e vivificando a sua obra.
Assim, identificamos as cores, amarelo e branco, responsáveis por
ascenderem um facho de luz na vegetação do prédio. Associados à luz o pintor
90
inseriu galhos frondosos, verdejantes e em movimento os quais estão nítidos
na tela, irradiando mais vigor para o trabalho de Cela, permitindo a obra um
toque de ventilação, ressaltamos que a referida oficina situa-se nas
proximidades da praia.
Observamos no centro do quadro um operário portando o seu
casaco de maneira mais despojada, sinalizando o término do período de
trabalho, semelhante ao companheiro. Outro homem realiza o mesmo gesto,
identificado próximo à margem direita da tela. A oficina era o local de trabalho
de José Maria, pai de Raimundo Cela, apreendemos, assim, que o labor
ferroviário do pai fez parte da vida do pintor desde a sua infância, período no
qual toda a família Cela foi obrigada a abandonar a sua terra, Sobral, para viver
em Camocim, estabelecendo nova residência e contemplando um novo
universo, o qual se diferenciava profundamente do vivido anteriormente.
Na perspectiva da presente paisagem elaborada por Raimundo
Cela, torna-se pertinente o resgate do pensamento de Berque (1998), no que
concerne aos conceitos de marca e matriz presentes nas paisagens.A
primeira concepção nos remete ao jogo de formas materiais passíveis de
descrições, dispostas e edificadas sobre a superfície da terra,através das
técnicas voltadas para o trabalho das sociedades. Esse universo de formas é
captado pelo sentido da visão do pintor, o qual compreende que a paisagem
não se encontra inerte no tempo e no espaço de maneira passiva, ao
contrário, participa ativamente dos esquemas da percepção dos indivíduos, os
quais a circundam e a vivenciam(BERQUE, 1998).
91
Figura 5- Saída da oficina-1929
Fonte: CD-ROM Raimundo Cela 1890-1954, elaborado por Galeria Pinakotheke Multiart, 2004.
Percebemos, portanto, a tela “Saída da oficina”, como uma “marca”,
pois, a mesma foi um produto de uma formação social engendrada em
Camocim configurando uma paisagem elaborada. De maneira simultânea,
exibe a natureza de “matriz”, porque exerce influência sobre o jogo de olhares,
no qual Raimundo Cela volta-se para o universo das suas experiências diante
de tal paisagem.
A saída da oficina era o momento mais aguardado por Celinha,
assim, o pintor era chamado afetuosamente por seu pai. Nas cartas enviadas
pelo artista durante a sua estadia na França, Cela mesmo não vendo José
92
Maria, primeiramente pedia ao pai a sua bênção e posteriormente contava-lhe
como estava vivendo, longe do seio familiar, revelando a saudade de casa, os
empecilhos com os quais deparava-se, os êxitos, o desânimo que abatia-lhe,
bem como os fracassos, mas, sobretudo, Cela não escondia o amor devotado
ao pai, seu primeiro mestre, e posteriormente aos demais membros da família
(FIRMEZA,2004). Oficina e estação complementavam-se, apenas ressaltando
que a primeira não manteria as suas atividades sem a presença da segunda,
logo, o prédio sediava ambas as atividades e hoje tal local, ainda encontra-se
com a suas bases materiais conservadas, preservando o mesmo modelo de
fachada do período da obra de Raimundo Cela, porém, agora abrigando
algumas funções político-administrativas de Camocim.
Cela capturou uma paisagem na qual encontramos os atores
participantes do impulso dinâmico, promotor de crescimento para Camocim. Os
responsáveis pelo ritmo da oficina foram aqueles homens como o pai de
Raimundo Cela, empenhados no trabalho muitas vezes cansativo,exigente de
tempo e suor, almejando o sustento da família e conservando a beleza rítmica
da paisagem. Antes de tomar a sua paleta de cores, os pincéis, tela e os
demais instrumentos de trabalho, para retratar seu trabalho artístico, Cela já
habitava na paisagem, conhecendo cada detalhe antes de transformar a obra
de arte em uma extensão da sua experiência.
Retomando o pensamento de Besse (2014),em que o autor explana
a respeito do fato das paisagens habitarem primeiramente no cerne do ser
humano, antes de serem externalizadas
A paisagem fala-nos dos homens, dos seus olhares e dos seus valores, e não propriamente do mundo exterior. Na realidade, só haveria paisagens interiores, mesmo se essa interioridade se traduz e se inscreve no mundo exterior (BESSE, 2014, 13)
Na tela “Saída da oficina”percebemos, a extensão de uma
experiência de vida, sobretudo da sua feliz relação com o seu pai, o qual era a
maior referência para Cela. Percebemos, portanto, que há então uma
paisagem criada em consonância com um vínculo familiar. Esse laço norteou
Raimundo Cela em diversas esferas da sua caminhada, tanto como engenheiro
como quanto pintor. A oficina para Cela não era apenas um lugar, há uma
93
singularidade na presente paisagem, uma vez que, era desses portões nos
finais das tarde, que José Maria retornava para casa onde Cela o aguardava
ansiosamente após mais um dia de trabalho. As relações de Cela com a
paisagem nos leva ao que nos diz Cosgrove (1998),quando explana a respeito
das representações da paisagem através da pintura, da poesia ou do teatro.
Os temas mais poderosos são os que abordam os laços entre a vida humana, amor e sentimento e os ritmos invariáveis do mundo natural: a passagem das estações, o ciclo de nascimento, crescimento, reprodução e morte, deterioração e renascimento, e o reflexo do imaginado sentimentos e emoções humanas no aspecto das formas naturas. Assim a paisagem é um conceito unicamente valioso para a geografia efetivamente humana (COSGROVE, 1998, p.100).
Ao traçar o esboço na tela e empenhar-se atenciosamente na
escolha dos tons das tintas para compor a obra em destaque, Raimundo Cela
compreendia a dimensão da experiência,com os momentos da presença do pai
em sua vida, como também os momentos nos quais José Maria encontrava-se
um pouco distante, devido o seu labor.Todavia, esta separação cotidiana, era
rompida com o final do período de trabalho. Além dos contornos os quais
compõe os corpos dos operários na tela, dos trajes, das janelas do prédio,
percebemos outros elementos no trabalho, como o odor da fumaça presente na
oficina, lançadas através do movimento de ida e vinda dos trens, o aroma do
óleo típico da manutenção das locomotivas, são igualmente sentidos nesta
paisagem apreendida através dos dados sensíveis.
Observamos a relevância do tato, da audição, do paladar, da visão e
do olfato na construção dos significados presente na paisagem, pois, os
sentidos promovem a intimidade de cada sujeito no seu meio habitado,
compondo um universo de significados, os quais podem ser comunicados aos
demais seres humanos, porém, são intransferíveis, perante este aspecto.
Estimamos como necessário voltarmos à atenção para as concepções de
Merleau-Ponty (1999), acerca da intersecção do homem com as suas emoções
e de ambos para com o mundo exterior, o qual o invade desde o momento do
seu nascimento
O mundo é inseparável do sujeito, não senão projeto do mundo, mas de um mundo que ele mesmo projeta. O sujeito é ser-no-mundo e o mundo permanece subjetivo, já que sua textura e suas articulações
94
são desenhadas pelo movimento de transcendência do sujeito (MERLEAU-PONTY, 1999, p.576)
A paisagem é desvelada através de uma experiência na qual
Raimundo Cela vivenciou em Camocim .A sua produção artística, brota e
emana a essência de uma relação do pintor com o mundo, e que concebe as
relações de afetividade. Aqui são retratadas suas memórias da infância,
sentimentos de alegria, brincadeiras com o pai e em família bem como o
esperado encontro de todas as tardes, quando seu pai saía da oficina
ferroviária. Berque (1998, p. 86), nas suas explorações sobre a paisagem
geográfica, engendra um entendimento assentado sobre a co-integração entre
a “paisagem e o sujeito”, vemos, assim, nessa relação, o mundo sensível da
paisagem experiência da pelo artista, a qual transpassa as quantificações, pois,
é o lugar no qual Cela estabeleceu afinidades imateriais, como o seu círculo de
amizades e momentos especiais em família.
A paisagem em Raimundo Cela funciona como uma fonte da qual
brota a vida do pintor, transformada em pintura constituindo um vínculo com
Camocim e com as suas respectivas emoções. Podemos, assim, compreender
estas marcas de vida, quando voltamos à atenção para a leitura das
entrelinhas, de fatos que não estão presentes na construção o seu significado.
Raimundo Cela percebeu a paisagem em um período no qual a
oficina e a estação ferroviária ainda encontravam-se exercendo as suas
atividades de transporte de cargas e passageiros. O pintor era um homem
atento às modificações espaciais ocorridas na cidade, pois, constantemente
realizava viagens, sempre indo e vindo, sabia da importância dos
equipamentos para a melhoria da estrutura da cidade,e como esses
equipamentos modernos seriam influentes no crescimento de Camocim. Nessa
perspectiva, a oficina anexada à estação, constituiu-se como uma forma
espacial importante para as relações entre as pessoas, os seus negócios e
comércios, basilares para a economia e política da cidade.
O cotidiano de Camocim metamorfoseou-se, quando o Governo
Imperial em 3 de outubro do ano de 1857, autorizou a construção da estrada
de ferro, a mesma partia de Camocim até Ipu. Em 19 de junho, a rede
ferroviária recebeu uma ampliação obtendo mais um ramal, é então
construído o trecho Camocim-Sobral, este por sua vez, transformou a
95
estrutura urbana de Camocim. A chegada do navio trazendo os responsáveis
pela construção da estrada de ferro é citada por Monteiro (1984), e se iniciava
a concretização do sonho de crescimento para aquele lugar. Segundo o autor
À tarde do dia 24 de julho do mesmo ano, os habitantes de Camocim foram agradavelmente surpreendidos com a entrada no porto do vapor “Guará”, conduzindo a ilustre comissão de engenheiros encarregados dos trabalhos da estrada referida. A população camocinense recebeu a comissão aludida com grande demonstração de alegria e, em face da deficiência de domicílios, algumas famílias cederamos seus, para abrigar os engenheiros e foram morar em palhoças. A 5 de agosto de 1878 tiveram início os estudos para a construção da estrada de ferro. (MONTEIRO, 1984, p. 118)
A chegada do ramal Camocim-Sobral concedeu dinamismo,
originando novos serviços ao povoado. A estrada de ferro inseriu-se no
contexto da cultura do algodão, a qual ocorreu na segunda metade do século
XIX, desencadeando mudanças no sistema de transportes, interligando as
localidades as quais os trilhos da rede ferroviária atravessavam.
O crescimento da indústria têxtil na economia inglesa, aliada ao
progresso técnico proporcionado pela Revolução Industrial e a guerra da
secessão, são fatores que elevam o algodão para uma posição de destaque,
pois, a necessidade dessa matéria-prima cresce de forma intensa. Assim, o
século XIX originou uma metamorfose nas relações socioeconômicas. Diante
do fato, no início do período supracitado,o cultivo do algodão no Ceará obtém
relevância, ampliando-se em direção ao interior do estado.
Construída por empresas estrangeiras, a via férrea conectava os
principais produtores de algodão do estado, escoando a sua produção para os
portos, no entanto, o crescimento da cultura algodoeira não extinguiu a
pecuária, realizada de forma extensiva, ambas as atividades coexistiram,
exibindo proeminência na economia do Ceará, erguendo,assim,as bases para
o crescimento das cidades e a sua organização sócio-espacial(SILVA, 1994).
A ferrovia foi um vetor para a modernização de Camocim, sob esse
ângulo da chegada de um novo período, Santos (2008) revela-nos outros
equipamentos que emergiram de maneira anexada à atividade ferroviária,
afirmando que
96
Uma série de melhoramentos chega com o trem: o telégrafo, a mesa de rendas, fábricas de cigarro, sabão e beneficiamento de algodão, posto médico, farmácia, construção da Igreja Matriz, elevação da vila em cidade (1889), cinemas, jornais, dentre outros. A própria ferrovia toma iniciativas, inserindo muitos jovens na aprendizagem de diversos ofícios em suas oficinas e fundando escolas formais em vários pontos do trajeto da estrada. (SANTOS, 2008, p. 122)
Observamos a imersão de Camocim em um universo moderno, se
compararmos ao seu passado no qual prevalecia à atividade portuária, pois,
além do acesso às informações locais os habitantes também tomavam
conhecimento dos fatos mundiais. A vinda da ferrovia proporcionou conquistas
para a vila, a qual, posteriormente, viu-se elevada à condição de cidade,
passando a desfrutar de um período áureo, eivado de progressos materiais.
Exemplifiquemos com os novos prédios, as escolas e a admissão de
funcionários para trabalhos, tanto administrativos como para mão-de-obra nas
construções espalhadas pela vila. A locomotiva sinalizava o rompimento com a
lentidão do passado, selando um novo pacto com os valores vindos de fora
através dos meios de comunicação instalados em Camocim.
A gênese da conexão Sobral-Fortaleza por meio da via férrea,
promoveu o enfraquecimento dos movimentos de entrada e saída de
mercadorias através de Camocim, pois, a produção de Sobral e das suas
adjacências, não careciam mais transitarem por meio do porto, para chegarem
ao seu destino. Esse fato conduziu à debilitação do ramal Sobral-Camocim,
intensificando o anseio da sua desativação, por parte da Rede de Viação
Cearense. Em 1960, as oficinas como aquela retratada por Raimundo Cela,
sofreram o processo de abandono, o governo declarava a existência de
empecilhos financeiros, para a manutenção do ramal Sobral-Camocim, e
também alegara que o custo benefício oferecido pelo transporte rodoviário, era
vantajoso. Assim, o momento próspero sofreu interrupções (MONTEIRO, 1984)
Em 24 de agosto de 1977, foi decretado o fim do mencionado ramal.
Com a sua ausência, Camocim retrocedeu economicamente, como já
mencionamos no estudo da paisagem sobre o porto da cidade (figura 4). O
desemprego elevou-se, e muitas relações comerciais estabelecidas findaram,
adotemos como exemplos, a indústria salineira, e as vendas da produção de
gêneros agrícolas entraram em decadência. Sob esse ângulo, os fretes
97
realizados agora através do transporte rodoviário, mantinham altos preços,
prejudicando os produtores de Camocim bem como de outras localidades
próximas, as quais beneficiavam-se com a presença do ramal antes da sua
extinção (SANTOS, 2008).
Retratando outro aspecto do cotidiano em Camocim, Cela irá
produzir a obra “Procissão em Camocim,” (figura 6). Nessa obra, encontramos
uma antiga tradição da religião católica representada pelo rito da procissão. A
obra em destaque apresenta a luz como um ponto a ser ressaltado, pois as
cores suaves escolhidas pelo artista realizam a iluminação da aquarela em
debate. Tratando-se de um tema religioso, Cela opta por usar tons mais claros
representando a serenidade devocional, portanto, participam ativamente da
composição deste trabalho as cores, branca, o marfim, e o cinza, depositados
com sutileza, oferecendo ao trabalho uma atmosfera desobriedade. O pintor
para compor a presente paisagem emprega as cores e os tons de maneira fiel,
debruçando-se sobre o anseio de capturar os detalhes da procissão, desde o
horário da caminhada, aos desenhos dos trajes e dos acessórios carregados,
por aqueles indivíduos que se encontram a serviço da igreja católica.
O pintor traça as formas do prédio da igreja de maneira linear e
precisa, diante do mesmo, verificamos duas filas, as quais são distribuídas de
maneira igual, uma a esquerda outra a direita, ambas formadas por homens
trajando roupas pretas com um tipo de colete cobrindo os
ombros.Apreendemos que são roupas especiais utilizadas em solenidades da
igreja, e carregam nas mãos um cajado significando a presença do Bom
Pastor.Esses indivíduos pertencem a Irmandade do Santíssimo Sacramento de
Camocim, uma associação composta por leigos católicos. No centro da pintura,
há um homem solitário, porém, encontra-se em um lugar de destaque
convidando os nossos olhares a voltarem-se para ele, este, por sua
vez,anuncia a passagem da procissão.
Posterior a Irmandade do Santíssimo Sacramento, o pintor inseriu
dois grupos de freiras, alinhadas em duas filas semelhantes ao grupo dos
homens. As religiosas usam hábitos claros, cabeças e braços cobertos e
postura séria. Na parte central, deparamo-nos com a figura do sacerdote, o
qual ocupa um lugar de relevância nas procissões, é acompanhado por dois
acólitos, um a direita e o outro a esquerda. O pintor traça na aquarela um
98
pequeno grupo oriundo da Irmandade do Santíssimo Sacramento, os quais
parecem escoltar o cortejo central, solenizando a caminha religiosa.
Figura 6-Procissão em Camocim-1940
Fonte: CD-ROM Raimundo Cela 1890-1954, elaborado por Galeria Pinakotheke Multiart, 2004.
O artista captou a hierarquia da procissão de maneira leal. Embora a
Irmandade posicione-se na frente, vemos os mesmos localizados nas laterais e
o homem no centro da aquarela com a cruz, sinaliza a passagem do
cortejo.Seguindo a hierarquia católica, destaca-se o grupo central onde vemos
o sacerdote, próximo a ele o pintor deposita a imagem de Jesus, e por último a
multidão. Ao visualizarmos o conjunto da obra e o posicionamento de todos,
compreendemos que Raimundo Cela optou por pintar a procissão em sua fase
inicial, quando saía das proximidades da igreja. No lado direito do trabalho
vemos algumas pessoas de costas, outras aguardando a o início da
caminhada.
99
Observamos, disposto na porta principal da igreja, uma imagem de
braços abertos, vestido com uma túnica branca e com uma faixa vermelha
sobre o seu ombro esquerdo. É uma imagem ícone do temário exposto pelo
pintor, em uma posição, abençoando desta maneira os seus fiéis seguidores
camocinenses. Nessa perspectiva, percebemos o propósito de Raimundo Cela,
apresentar Jesus como a figura central da sua obra. Ao analisarmos a obra,
apreende-se a existência de um laço entre a procissão, e importância do mar
para os habitantes de Camocim, pois a figura de Jesus nesta obra apresenta a
denominação de Bom Jesus dos Navegantes, portanto, há um elo estabelecido
entre o santo e a fonte de vida de Camocim. Bom Jesus dos Navegantes é o
padroeiro da cidade na qual Cela cresceu e viveu com a sua família, e a igreja
matriz traz o nome do Bom Jesus.
No ano de 1880, sob a responsabilidade do engenheiro José Privat,
que também orientou a construção da Estrada de ferro, Camocim viu os
alicerces de sua antiga capela serem construídos, foram seguidos fielmente, a
planta, associada aos direcionamentos técnicos do mencionado profissional.
Após dois anos, a paróquia de Camocim foi oficialmente criada e iniciou-se a
edificação da igreja matriz, agora sob os norteamentos técnicos do engenheiro
Beltrão Pereira, este trabalhou erguendo algumas partes do templo, como a
“fachada, arcadas, e paredes laterais da nave principal da futura matriz”
(MONTEIRO, 1984, p. 119). Na perspectiva administrativa religiosa, o primeiro
pároco de Camocim foi o padre Leandro Teixeira Pequeno. Em 1883, a referida
paróquia foi anexada a de Granja e o vigário Leandro Teixeira sofreu
transferência para a mesma, fato este que promoveu a paralisação dos
trabalhos concernentes à construção da igreja. As tentativas para a edificação
do templo não cessaram, logo, no ano de 1905, o padre João Teixeira de
Abreu, morador em Camocim, tomou a decisão de continuar as obras para a
elevação da matriz, no entanto, ocorreram alguns empecilhos para o reinicio
dos trabalhos, devido ao fim da comissão, a qual direcionava as decisões
organizando a obra, pois, João Teixeira foi transferido para Fortaleza. Esse
acontecimento norteou novamente um período de paralisação nos serviços.
A antiga estrutura inacabada erguida pelos padres Leandro Teixeira
Pequeno e João Teixeira desabou, devido à exposição a presença desgastante
do sol e igualmente pela ação das chuvas. Associado a esse quadro
100
trágico,ressaltamos o estado no qual as paredes encontravam-se, não
apresentavam estrutura satisfatória para a sustentação do teto.No ano
posterior a 1905, houve a retomada nos trabalhos para a continuação da igreja
matriz, neste momento, sob a coordenação do novo pároco José Augusto da
Silva, empenhado para dar seguimento aos serviços do templo sagrado.
Apesar dos obstáculos que foram surgindo com o passar das décadas, adiando
a finalização da igreja matriz de Camocim, o mencionado sacerdote católico,
lançou-se na complexa missão de erguer desde as bases, um templo
confortável bem como elegante. Em 1919, a igreja matriz do Bom Jesus dos
Navegantes estava finalmente pronta, a sua inauguração foi realizada por D.
José Tupinambá Frota,quando ocupava o cargo de arcebispo de Sobral.
O olhar de Cela para a sua obra de cunho religioso desvela uma
fração integrante do âmbito da personalidade do artista, pois, o catolicismo
influenciou muito em sua postura séria, honesta, eivada de humildade, seus
pais seguiam um padrão rígido de educação. Desde criança, participava das
celebrações eucarísticas, acompanhado da sua família, sempre zelando pela
integridade do filho “Celinha”. Os norteamentos éticos absorvidos de seu pai,
José Maria e sua mãe Maria Carolina, despertaram no artista características
nobres, como a extrema obediência aos valores da família, sobretudo aqueles
valores transferidos através do desígnio paterno.
A vivência em uma atmosfera religiosa na família é perceptível na
paisagem apreendida por Raimundo Cela, quando o pintor direciona o seu
olhar para os símbolos presentes na paisagem, mergulhando em sua própria
essência, a qual é emanada através da sua arte, traduzindo os seus
sentimentos acompanhados pelas lembranças das missas aos domingos com a
sua família.
Perante a experiência de Raimundo Cela com o seu trabalho, torna-
se compreensível que a paisagem apresente as suas próprias características,
exibindo assim o seu espaço o qual é único, singular, não exibindo uma faceta
espetacularizada ou como um espaço traçado unicamente através da
capacidade intelectual, ao contrário, a paisagem ultrapassa o universo das
linhas métricas. Além das quantificações e da racionalização, a paisagem é a
maneira do ser humano compreender e descrever os movimentos do mundo, a
partir do seu corpo e estadia sobre a superfície terrestre (BESSE, 2014).
101
Destarte, a paisagem compõe-se como o equilíbrio entre o mundo dos objetos
associados aos sentidos, ambos estimulam interações nas quais completam-se
mutuamente, ofertando os significados às ações do homem.Raimundo Cela
representou na pintura uma temática religiosa característica do litoral de
Camocim, apreendendo os movimentos da procissão,e que se integraram a
existência do pintor.
O olhar para a paisagem em Raimundo Cela para a “Procissão em
Camocim ”estabelece-se a partir do mundo material, o qual fornece os temas,
as cores, revelando ao artista os contornos e as dimensões, como também é
encontrada residindo no âmago do pintor, envolvido nos olhares diários
lançados para as práticas religiosas católicas predominantes na sua terra
litorânea. Observando a paisagem elaborada por Raimundo Cela,
compreendemos a emanação do olhar do pintor acerca do espaço onde o
mesmo vivenciou aquele mundo, deste modo, partindo de uma visualidade na
qual interagem a geografia e a arte.Percebemos que o artista no seu trabalho
tece uma geografia vivida. Assim, a paisagem constitui-se como um registro
das suas relações afetivas assentadas na obra, revelando o seu saber a
respeito do espaço.
A procissão em Camocim, representada por Cela, constitui uma
tessitura de significados,e que, estão presentes na obra do artista. O vigor na
obra de Cela emerge de sua própria existência cotidiana, expressando o seu
olhar a respeito do mundo, consequentemente, o pintor e a sua obra são
universos edificantes de um laço inseparável, assim “a visão do pintor é um
nascimento continuado” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 26).Conversando em
pesquisa de campo com alguns moradores de Camocim, estes nos informaram
que Cela participava da caminhada e da procissão de maneira ativa, através
dos seus passos juntamente com a multidão de fiéis, com orações de
agradecimento, súplicas bem como cânticos próprios daquele ritual cristão.
Ressaltamos que a paisagem estudada através da ótica geográfica
cultural, não emerge como uma análise a qual se caracteriza por apresentar
uma postura subjetivista radical, mas, assenta-se em um encadeamento com o
mundo objetivo exterior ao pintor, sob esse ângulo, o artista é um ser presente
no mundo atuando sobre o mesmo.
102
Na esfera das conexões objetivas e subjetivas, pensamos a
paisagem artística de Cela, como uma atividade codificadora do espaço por ele
vivenciado. Na obra “Procissão em Camocim”, há a conformação de duas
geografias, a primeira insurge do universo da matéria, e que compôs o
cotidiano do pintor na cidade de Camocim. Consoante à primeira Geografia há
uma segunda,conferindo aos lugares e aos seres,as suas especificidades.
Ambas são concepções oriundas de Besse (2014), em que o autor detalha
sobre as questões pertinentes a uma Geografia vivida:
Um saber mais íntimo, sem dúvida, mais misterioso, que é dificilmente traduzível, dificilmente transmissível nas cadeias de um discurso público e geral. Um saber que traz, efetivamente, uma inteligência diária do mundo e do espaço, uma familiaridade baseada no uso. É uma geografia vivida tanto quanto pensada. É, antes de tudo, uma maneira de estar no mundo, uma experiência e um uso que se desdobram no espaço. Mas isso não significa que esse saber não possa ser dito. (BESSE, 2014, p.188)
Analisando a obra de Cela,percebemos,a partir da mesma, a
existência de caminhos para o ser humano apresentar ao público os seus
sentimentos de difícil externalização por vias convencionais, neste âmbito a
arte configura-se como uma alternativa na apresentação do indizível, acerca
das vivências carregadas e das reflexões as quais habitam no seio do
artista.Assim, a pintura de Raimundo Cela explora as especificidades do sujeito
no mundo, portanto, a sua obra explicita a forma pela qual o pintor alcança a
sua figuração de estar no mundo.
Na procissão em Camocim apreendemos uma igreja disposta na
praça da cidade, atraindo a atenção daqueles indivíduos transeuntes os quais
observam a sua imponência, dialogando com a mesma. Desde os primeiros
religiosos, concebemos a existência de um dinamismo na paisagem
camocinense, devido aos trabalhos para a construção e finalização do templo
santo, bem como a expectativa por parte da população em ganhar o seu
santuário católico central, pois, a cidade não dispunha de uma igreja matriz e
um padroeiro. A instituição de um patrono com o nome de Bom Jesus dos
Navegantes origina a identidade de muitos habitantes de Camocim. Na
aquarela, não é possível visualizarmos os primeiros párocos, todavia, na
exploração do trabalho de Cela, compreendemos que para construir um templo
103
do porte da matriz camocinense foram exigidos trabalho e tempo. Rosendhal
(2012) explana a respeito do ordenamento da procissão, revelando que cada
fragmento do cortejo exibe o seu respectivo significado, localizado na dimensão
espacial, fato este que transforma o cortejo sagrado em uma manifestação
simbólica na paisagem. Nessa perspectiva,
A procissão é considerada um cortejo religioso público, de forma ordenada em alas, do qual participam especialistas do sagrado e fiéis, no qual entoam preces e a imagem de uma ou mais entidades sacras vinculadas ao tempo sagrado da celebração é conduzida. A procissão destina-se a exprimir a exteriorizar a identidade religiosa da comunidade envolvida. (ROSENDHAL, 2012, p.90)
Além da figura dos padres, surgem também associados a eles,
outros atores dinamizadores que fazem parte da trama. São pessoas que pela
tradição cumprem o ritual católico que devotam seu olhar ao Bom Jesus dos
Navegantes. Os fiéis rogam ao santo protetor um ano de pesca frutífera, pois, o
nome do santo envolve a principal atividade que mobiliza a cidade de
Camocim, especialmente neste período no qual obra foi criada, além de revelar
o cotidiano dos pescadores que é bem retratado na obra de Cela.
A obra representada pela figura 6, “Jangada rolando para o mar”,é
um óleo sobre tela. A atividade pesqueira é o tema em destaque. Semelhante
as demais obras de Cela analisadas na presente dissertação, as cores
envolvidas na luz estão presentes. Esses dois elementos são fiéis à realidade
litorânea, na qual desenvolve-se a pesca sob a luz do sol. No centro da
obra,visualizamos uma embarcação de madeira na sua cor original, empurrada
por seis homens,transmitindo os sentimentos de força e determinação.
Observamos quatro indivíduos com calças e blusas apropriadas para a
atividade, entre eles, três destacam-se por usarem o típico chapéu de palha
com abas largas, um acessório simples, porém, importante para a proteção
solar, durante o extenso período permanecido em alto mar. O artista segue
preenchendo o espaço da tela, inserindo dois indivíduos trajados de forma mais
despojada, um a direita e o outro a esquerda da obra.
A embarcação rústica é uma jangada composta por alguns
elementos básicos, bem como fundamentais para o êxito do trabalho, e
igualmente para a segurança dos jangadeiros, por exemplo, a vela. No canto
104
direito da jangada, o pintor anexa ao conjunto um cesto denominado samburá,
na cor marrom exibindo uma tonalidade escura, a sua entrada está posicionada
para baixo, pois, é no referido utensílio onde o pescado será armazenado.
Raimundo Cela capturou uma paisagem litorânea apresentando uma
atividade antiga, característica das regiões banhadas na costa nordestina
sobretudo no Ceará, lugar este onde a profissão de jangadeiro ainda resiste
com o passar dos tempos.Nessa perspectiva, o artista posiciona a embarcação
no seu momento de partida para o mar, preocupando-se com os detalhes dos
corpos dos pescadores, principalmente no que concerne a força braçal,
depositada no ato de empurrar o peso da jangada, pois, a maioria deles
debruça-se incansavelmente para deslocarem o seu meio de trabalho. A
posição das pernas transmite a noção de peso intenso, oriundo do esforço
realizado sobre a embarcação, Cela é cuidadoso ao elaborar os pormenores
contidos na paisagem, as mãos sobre a madeira, as cordas e as dobras das
calças. Esses detalhes foram observados através da sensibilidade artística de
Cela, compreendendo que a simplicidade e a força do labor diário daqueles
indivíduos, integram à paisagem litorânea.
105
Figura 7- Jangada rolando para o mar-1941
Fonte: CD-ROM Raimundo Cela 1890-1954, elaborado por Galeria Pinakotheke Multiart, 2004.
Os jangadeiros conformaram a paisagem típica do litoral do nordeste
do Brasil. Praticando a pesca em mar aberto,mostrando um vasto
conhecimento a respeito do mundo da navegação, aprendem com o cotidiano a
interpretarem os significados emitidos pela natureza,estabelecendo,assim,um
elo íntimo com o mundo natural no qual se encontram inseridos. Há, desta
106
maneira, uma conexão baseada nas percepções diárias, na observação
profunda, nos olhares, nos cheiros, nos sons emitidos pelos ventos presentes
na paisagem, almejando, assim, mapear de forma sensível, mas eficaz, a
diversidade dos indivíduos que vivem neste ambiente litorâneo. Os jangadeiros
comprovam com sua lida diária, uma interação concernente ao universo das
espécies encontradas no mar, aprendendo desde muito cedo, a desvendarem
as singularidades inerentes ao mar, fato que enseja o sucesso das suas
atividades. Seguem descobrindo as áreas nas quais determinadas espécies
são encontradas, portam o conhecimento dos períodos de migração do
pescado, compreendendo os costumes alimentares dos peixes, tanto aqueles
naturais da superfície como também os das profundezas.
A pesca utilizando canoas ou balsas de madeira, com a presença de
velas ou não, é uma atividade de eras longínquas, semelhante à caça e a
agricultura, é realizada desde os períodos pré-históricos, nos quais o homem
objetivava manter a sua subsistência através das águas. Existem vestígios da
atividade pesqueira distribuídos por diversas áreas do globo a partir dos
depósitos arqueológicos, como por exemplo, a pinturas rupestres, mostrando
cenas da referida prática nos tempos primitivos, os murais elaborados pelos
egípcios, e ressaltar as narrativas oriundas da Antiga Grécia, expondo a
importância da pesca para a economia e da sua utilidade na alimentação
destes povos (FARTHING, 2011).
Em terras brasileiras a pesca nas embarcações de madeira,
similares àquelas construídas nas demais partes do mundo, também ocupa o
status de antiga, existindo registros da atividade na Carta de Pero Vaz de
Caminha, na qual o mesmo relatou a existência da pesca em balsas rústicas,
largamente utilizadas pelos nativos, denominadas de almadias. Estas
precederam as conhecidas jangadas, eram construídas a partir de um tronco
único de árvore no sentido retilíneo, em movimentos semelhantes aos de
escavação, a madeira era então cavada (CASCUDO, 2012). A jangada com a
vela como é conhecida popularmente, emerge do intercâmbio assentado entre
os grupos indígenas, os quais em sua maioria eram excelentes pescadores,
usando as almadias, e os colonizadores foram os responsáveis por aperfeiçoar
este meio de pesca com as velas, melhorando o seu desempenho.
107
A navegação integra uma parte da gênese e da organização das
comunidades primitivas,estas, com o decorrer dos séculos, transformaram-se
em civilizações antigas,pois, a sua solidificação serviu por base para as
sociedades modernas, portanto,na perspectiva da relevância do uso das
jangadas primitivas, como um veiculo para a exploração da Terra, Cascudo
(2012) assinala
A Jangada é que, mesmo sem nome consagrador recebera sua menção de existência etnográfica na terra do Brasil. Toda a gente se esquece de informar a Jangada do direito de ter algum orgulho. Nenhuma embarcação é mais antiga. A Jangada bem se podia afirmar aristocrática porque tem uma hereditariedade fixada. Antes dela o homem teria apenas o pavor olhando a água corrente ou pancada do mar em praia neolítica. Há trinta mil anos que a jangada existe com a mesma finalidade dos nossos dias atuais e sempre muito parecida com a fundadora de sua raça. Ela e o Carro de Boi são realmente totens de todos os veículos marítimos e terrestres espalhados nos territórios do mundo (CASCUDO, 2012, p. 41)
Os veículos marítimos estruturalmente rudimentares serviram ao
homem, como um importante meio de transporte no processo de expansão,
para o conhecimento de novas terras, ampliando a interação entre os lugares.
Os navios atuais resultam do aperfeiçoamento, acompanhado pelas inovações
voltadas para o universo da navegação, exemplificamos com os navios
movidos a vapor, posteriormente evoluídos para outros tipos ainda mais
resistentes, orientados por uma aparelhagem extremamente científica e
tecnológica. Observamos um processo de melhoramento
gradativo,concernente aos meios de transportes e trabalho marítimo, são
metamorfoses inseridas lentamente, apartir das descobertas ocorridas.
A paisagem litorânea na obra de Cela foi elaborada na cidade de
Fortaleza,quando o artista ali residia. A obra reúne em seu íntimo, o olhar
profundo, em relação à terra em que passou parte de sua vida. O exercício
elaborado por Cela ao observar o movimento das pequenas embarcações,
acompanhando o labor diário dos pescadores, tanto em Camocim como em
Fortaleza, pois, mesmo distante do lugar em que viveu, a paisagem litorânea
permanece presente no seu olhar, constituindo assim,mais uma obra na qual a
vida emanada da pelo mar, torna-se protagonista. Na presente pesquisa, observamos uma comunhão entre o
pensamento de Hissa (2002),com aquele delineado por Meinig (2003), quando
108
ambos os autores nos falam acerca da pluralidade do olhar, partindo
primeiramente do ponto de vista material externo ao homem. Asimagens
alcançadas e capturadas pela retina são interpretadas a partir das experiências
carregadas no âmago do individuo, portanto, norteados pela compreensão dos
autores, percebemos que o olhar do pintor para a sua obra,mostra-nos a esfera
de uma existência na qual foi estabelecida uma tessitura afetuosa com todo o
ambiente natural, desfrutado durante as fases da vida de Cela.
Na concepção de Dardel (2011), o homem através do seu trabalho
cotidiano é um agente atuante que transforma as paisagens para o seu
benefício, imprimindo nas mesmas as marcas da cultura que a modelou,
portanto, modifica o meio natural e simultaneamente integra-se com o seu
mundo circundante. Acerca dessa tessitura, na qual entrelaçam-se o homem, o
trabalho e a paisagem, Dardel (2011) assinala que
A paisagem não é, em sua essência, feita para se olhar, mas a inserção do homem no mundo, lugar de um combate pela vida, manifestação de seu ser com os outros, base para o seu ser social [...]. A paisagem pressupõe uma presença do homem, mesmo lá onde toma forma de ausência. Ela fala de um mundo onde o homem realiza sua existência como presença circunspeta e atarefada. (DARDEL, 2011, p. 32)
Diante do pensamento de Dardel (2011), compreendemos que o
artista ao retratar a paisagem do labor dos jangadeiros, desconstrói a
classificação romântica do homem habitante do litoral, vivendo e se integrando
serenamente com o seu meio natural, ao contrário, a jangada rolando para o
mar,observadabem como sentida pelo artista,explicita a figura do jangadeiro
como um individuo singular, com as suas habilidades próprias e de espírito
solidário,para com aqueles os quais convivem. Cela ao observar os
pormenores da paisagem, como a vela aguardando o momento para ser
finalmente içada, as roupas utilizadas pelos pescadores e a força da luta diária,
deposita por meio de sua paleta e pincéis, o significado da sua vida em
Camocim e em Fortaleza, ambas envolvidas pelo contexto da paisagem
litorânea apresentando seus personagens através da arte, mostrando a
coragem e o vigor humano.
A bravura foi um ângulo constantemente percebido pelo artista, e
respeitado pelo mesmo, ao ser apreendida e homenageada através do toque
109
sensível de Cela. O pintor com a sua personalidade introspectiva, humilde e
culta, filtra por meio dos seus sentidos as cenas reveladas aos seus olhos
diariamente, apreendendo desta maneira, as qualidades insubstituíveis para a
sobrevivência daqueles homens, cuja vida é posta em risco dia-a-dia. Cela
percebe que as tradições e os conhecimentos acumulados, a partir da
experiência referente aquela vida árdua, são carregadas e transmitidas de
geração a geração, em rodas de conversas entre os pescadores e os seus
filhos sucessores de seus pais. O pintor através da sua paisagem delineia
imprimindo o seu olhar acurado a respeito do labor marítimo diário, assim, na
tela em discussão, Cela apresenta-nos a sua compreensão concernente a luta
do jangadeiro aparentemente incansável, capaz de enfrentar a fúria das ondas,
retirando o seu sustento, muitos ao desafiarem a morte não retornam para a
terra.
As obras de Cela são em grande parte pinturas dedicadas ao estilo
de vida litorâneo,expresso na obra “Jangada rolando para o mar”, pois, ao
posicionar a embarcação no momento da partida, o artista mostra-nos a
dimensão de uma dependência, assentada diante da relação homem e
natureza.O primeiro elemento desta relação é o homem, empenhado sobre a
missão de transformar os materiais presentes na natureza, ao seu
favor,edificando as bases para a sua sobrevivência. Desde a extração da
madeira para a construção das jangadas, e casas erguidas manualmente, até a
palha usada para montar o telhado das residências, o pescador adapta-se,
almejando contornar as condições impostas pela natureza, podemos assim ver
esta adequação figurada na obra de Raimundo Cela.
Ao estudarmos os traços constituintes da personalidade de Cela,
deparamo-nos com a prática constante do silêncio, uma postura comum ao
artista no seu período de trabalho. Tal exercício introspectivo também é
verificado na saga dos jangadeiros, quando se localizam em alto mar, no seu
período de trabalho, portanto, observamos a existência de uma similaridade
firmada entre o artista criador e a paisagem por ele captada.
Distribuído sobre a superfície terrestre, há um universo de
profissões, exigentes para o seu desenvolvimento uma intensa força física,
como os homens operários nas áreas de mineração. Outros serviços não
solicitam a utilização de dispêndio físico, como, por exemplo, as atividades
110
profissionais de um arquiteto,se compararmos com as práticas de um
minerador. Ambos os indivíduos ao exercerem as suas respectivas atividades
de trabalho diariamente, são aceitáveis conversas entre os companheiros, bem
como o ato de cantar ou escutar músicas, são gestos normais. Não ao
pescador. Este tem o silêncio como o seu companheiro de labor cotidiano,
sempre atento aos movimentos das ondas, nas quais ora a jangada desliza,
ora sofre a violência implacável do mar. Estese revela ao pescador, como um
amigo estável e outras vezes é um inimigo ardiloso. O silêncio obtém o seu
significado a partir das experiências do jangadeiro como mar, um terreno no
qual a cautela é fundamental, devido a sua inconstância, além deste fato, as
conversas acompanhadas de gritos e assobios resultariam na fuga dos peixes,
ocasionando uma pesca improdutiva (CASCUDO, 2012).
O pequeno grupo de pescadores deslocando a jangada para o mar,
resgata as concepções de Cosgrove (1998), acerca das paisagens excluídas,
estas deparam-se com o desprezo da sociedade na qual encontram-se
inseridas, atraindo olhares diversos,classificando-as como desnecessárias,
portadoras de uma inutilidade e incapazes de conferir algum tipo de dinamismo
aos lugares. Nesta perspectiva as paisagens excluídas não despertavam
interesse ao âmbito cientifico,rejeitando a esfera dos significados produzidos a
partir das mesmas. Perante o delineamento de Cosgrove (1998), observamos
na paisagem em tela à ampliação do debate concernente a dimensão dos
significados, bem como dos símbolos criados a partir das apropriações diárias
dos grupos avaliados como excluídos, como aquele agrupamento retratado
pelo pintor, o qual juntamente com outros, atuam na produção do espaço
litorâneo,promovendo dinamismo a partir das suas intervenções na natureza,
para a sua sobrevivência (COSGROVE, 1998).
Observamos a relevância de resgatarmos as explicações de Meinig
(2003), relativas à polissemia emanada por meio da paisagem, especialmente
quando o referido autor, discute a mesma como natureza,ressaltando a
integração entre o homem e o seu meio natural. Ele segue,então,explicando-
nos que
Os padrões básicos da paisagem, os traçados de campos, pastagens e bosques, de propriedades rurais e de aldeias, o plano das cidades e dos subúrbios, todos revelam seleção consciente de solos e de
111
encostas, de elevações e de exposição à instalação de sítios e de rotas, que são fornecidos em principio pela natureza. Até mesmo as formas, cores, texturas e outras qualidades das coisas, das cercas, dos edifícios, das árvores e das flores, dos animais e dos pássaros refletem uma seleção humana da grande prodigalidade terrestre e de seu retrabalho, retreinamento, rearranjo, até atingir as formas desejáveis. E o próprio homem de muitas maneiras, na sua dieta e em seu vestuário, nos emblemas e nos rituais, em seu trabalho e lazer diário, que revelam suas adaptações, frequentemente tênues e inconscientes, à natureza (MEINIG, p.37, 2003).
Norteados por Meinig (2003), entendemos a ocorrência de um
processo metamórfico sofrido pela natureza litorânea, primeiro através do
olhar, e posteriormente agem as mãos dos pescadores habitantes dessas
áreas, os quais continuamente extraem a sua sobrevivência dia após dia, sob
esse ângulo, a arte de Cela em destaque revela-nos uma esfera concernente
às interações entre o homem e o mar. Os jangadeiros iguais aos demais seres
humanos, possuem as suas necessidades básicas como, a alimentação, o
lazer e a habitação, carências estas supridas através do trabalho, portanto,
olhamos o dinamismo da paisagem de Cela, a partir do entendimento das
formas, bem como dos atores sociais inseridos na paisagem em tela, a jangada
e o pescador, o homem com o mar.
O ato de habitar a paisagem ultrapassa as quantificações
estabelecidas pelas regras, pois, a abertura do universo dos sentidos revela
uma faceta mais profunda no que concerne ao significado da paisagem,
sobretudo para aqueles indivíduos os quais cotidianamente integram-se com a
mesma extraindo o seu sustento. O diálogo com a paisagem através dos sons,
das cores, das texturas, dos cheiros, e dos sabores, auxilia o ser humano a
pensar na sua condição de integrante fundamental para a vida da paisagem, e
neste processo a sensibilidade cria o esteio para a conexão entre a paisagem e
o homem o qual é um ser no mundo eivado de percepções (KOZEL,
2012).Raimundo Cela, através do seu olhar, exprime a essência do ato de
habitar no litoral. Elementos sensitivos como o cheiro do mar, os sons do vento
indicando a chegada de tempestades, o tato utilizado para sentir as asperezas
da madeira ao construírem as suas jangadas, são atos manifestados na
paisagem.
A obra de Cela eleva o pescador para além do posto de mero
habitante passivo, mas como um ser integrante,agindo constantemente como
112
um vetor das transformações ocorridas na paisagem natural, a qual após a
apropriação humana imprime visual e imaterialmente os seus símbolos, e
significados torna-se em uma paisagem cultural. Sob esse ângulo,somos
consoantes ao que afirma Costa (2003), “as paisagens excluídas, que muitas
vezes são marginalizadas por não conterem um aspecto estético que as
justifiquem como tal, também trazem com elas um forte poder simbólico”
(COSTA, 2003, p.33). Os materiais selecionados na natureza litorânea estão
impregnados pelos seus significados, cada elemento é relevante ao olhar do
pescador, a sua habitação à partir do barro amassado, sustentado por uma
estrutura feita de troncos de carnaúba, e com o teto coberto por palhas de
coqueiros, é a sua proteção, lar, o seu abrigo, refúgio, a sua segurança contra
as intempéries naturais. É, portanto, o regaço onde os seus filhos nascem, e
são criados nas proximidades do mar, aprendendo desde a sua infância a
enfrentarem o ritmo das águas. A madeira coletada é cuidadosamente
trabalhada, lapidando-a na construção do seu veículo de trabalho, a jangada,
até a mesma atingir as dimensões apropriadas para finalmente ser posta no
mar.
Embora o olhar seja um ato detalhista,trazendo diversos dos
significados escondidos nas formas da paisagem, como vimos em Meinig
(2003), existe ainda o risco do olhar caracterizar-se como um ato superficial,
não encontrando o cerne das questões problemáticas,geradoras de
determinadas paisagens. Dessa forma, ocorre a impossibilidade de
compreensão dos pilares das paisagens, as quais revelam-se diariamente aos
olhos do homem, de forma mais aguçada. Os objetos diversificados
visualizados nas paisagens belas e agradáveis, todavia, camuflam os conflitos
travados responsáveis por sua composição (HISSA, 2002).
113
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente dissertação debruçou-se em apresentar apenas uma,
das inúmeras possibilidades voltadas para o estudo da paisagem, partindo do
viés das artes visuais com o enfoque na pintura. A obra do pintor Raimundo
Brandão Cela, ao nosso olhar, constitui-se como um registro de
época,compreendendo um documentário cultural e geográfico da paisagem
litorânea de Camocim, lugar que abrigou o pintor na sua infância, e
adolescência bem como na sua fase madura. Cela homenageou na maioria
das suas obras, a bravura e o cotidiano humilde dos habitantes inseridos
naquelas paisagens conferindo-as de um dinamismo simbólico que é
proporcionado pela presença dos sons, dos cheiros e das cores.
O mar capturado por Cela assemelha-se a uma orquestra natural,
comos sons produzidos, através das oscilações das marés, do ir e vir
incessante das ondas, marcando na paisagem a força da natureza a qual é
alvo de dominação por parte dos homens. Apesar da luta humana em domar a
natureza litorânea, são muitas as tentativas frustradas, pois, diversas vezes as
embarcações viram com a violência das ondas, e o jangadeiro percebe que
deve obediência à natureza, logo, para não perecer anseia diariamente
estabelecer um vínculo de respeito para com o oceano. O artista por meio das
cores vivas como, por exemplo, do azul, vermelho, amarelo inseridos nas telas
em distintos tons, e sempre com um toque de branco com a proposta de
iluminar os seus trabalhos, convida ao espectador para mergulhar no universo
das percepções emanadas por suas paisagens.
Ao estudarmos a vida de Raimundo Cela, observamos que este
revelou uma vivência profunda do lugar no qual vivenciou uma paisagem
natural. O nome de Cela ao ser mencionado remete-nos às paisagens do
estado do Ceará, não àquela paisagem relacionada à seca, ou a fome, mas,
uma face cearense com os seus mares bravios, bem como mostrando as
atividades ligadas aos mesmos. A obra de Cela mostra-nos uma fuga da ideia
romântica do habitante do espaço litorâneo como aquele o qual vive
harmoniosamente com os ciclos da natureza com ausência dos conflitos.
Ao seguirmos com a pesquisa,questionamo-nos: como um artista de
formação acadêmica,detentor de um arcabouço técnico clássico, empenha-se
114
em elaborar obras nas quais obtêm destaque os humildes habitantes
esquecidos do litoral? Um questionamento simples, porém, vemos relevância
no mesmo. Com a realização deste trabalho dissertativo, encontramos a
resposta para a pergunta formulada anteriormente. Entendemos a partir da
seleção de algumas obras de Cela, que a valorização de qualquer paisagem,
seja a mesma, simples ou sofisticada, é oriunda da experiência e das vivências
ocorridas nos lugares.
Para Raimundo Cela, a paisagem litorânea de Camocim presente
em sua obra, significou um palco no âmbito da sua vida, no qual uma tessitura
de sentimentos e percepções desenrolaram-se. Assim, a partir da perspectiva
de uma paisagem elaborada por um artista, vemos a seletividade do pintor, em
depositar nas suas respectivas obras, não apenas os seus temas, os desenhos
e as tintas, mas, elementos os quais envolvem a esfera imaterial e que também
participa da constituição dos seus trabalhos. Assim, compreendemos a obra,
como uma extensão da atmosfera perceptiva do pintor para com o seu mundo,
o sentimento vivenciado na paisagem de Camocim e que traduz-se na
perspectiva da representação artística.
Cada imagem apreende as percepções de Cela, embora este fosse
um artista acadêmico por seus temas mitológicos e sóbrios, sobretudo no início
da sua carreira e, pelo hábito comum entre os acadêmicos,que consiste em
realizar os estudos, esboçando incansavelmente o desenho antes da aplicação
das cores, o artista, por meio do seu trabalho ratifica que a sociedade de
Camocim o envolve e o pintor participa da mesma. Verificamos este fato a
partir das obras apresentadas nesta dissertação: “Praia em Camocim”, “Porto
de Camocim”, “Saída da oficina”, “Procissão em Camocim” e o cotidiano latente
dos jangadeiros, presente na obra, “Jangada rolando para o mar”. Paisagens
de uma geografia litorânea do Ceará foram retratadas, através do olhar artístico
de Cela, o qual transpassa a mera beleza visual.
Sabemos da existência dos diversos cenários naturais do Ceará,
localizados do litoral ao sertão. O pintor em destaque, captura uma fração de
tais paisagens, as quais representam sócio espacialmente o Ceará. As
paisagens foram então reconhecidas pelo artista,sendo eleitas não de maneira
aleatória, mas, as escolhas são justificadas a partir de uma vida pautada na
existência de Raimundo Cela, envolvida na paisagem de Camocim.
115
Observamos assim, que a paisagem na arte coaduna os sentimentos da vida
humana, estes por sua vez, circundam a imagem, desta maneira o viés da
percepção geográfica, oferta-nos a possibilidade de estudarmos a obra de arte,
para além da esfera histórica, realizando assim um percurso pelo universo dos
significados, os quais são motivadores da elaboração das obras e igualmente
dão vida aos trabalhos.
Raimundo Cela pinta a sua realidade de maneira fiel,revelando em
cada obra o mundo natural o qual rodeava-lhe. Quando usamos a palavra
natural, referimo-nos às formas e dimensões reais, sem a atitude de
interferência por parte do pintor na cena, criando elementos os quais são
fantasiosos. Na presente dissertação, percebemos um artista destemido,
elaborando obras com graça, expressividade, configurando uma geografia da
paisagem viva, carregando a beleza de cada local representado. Não se deixou
conduzir totalmente por uma postura rigorosa, imposta por parte das
instituições, nem desligou-se dos princípios acadêmicos, encontrando, assim,
um equilíbrio entre a academia e a sua própria maneira de expressar-se.
Cela obteve sucesso fora do Brasil, ao expor no Salon na França,
todavia, este acontecimento não fomentou um aprisionamento para a sua
criatividade, a nosso ver ocorreu o contrário, a estadia do pintor na Europa,
permeou a sua áurea artística com uma renovação, a qual é compreendida
quando observamos nos seus trabalhos as cores luminosas, o movimento,
tantos detalhes e leveza.
As questões relacionadas à geografia associadas com a arte são
apreendidas quando lemos os mapas das percepções, os quais nos orientam
no entendimento da esfera imaterial do espaço geográfico. Aqui, observamos a
potencialidade exibida por parte da arte em resguardar os significados,
principalmente ao estudarmos a iconologia e vemos, assim, a relevância da
existência do pintor, uma estadia sobre a superfície da terra repleta de
sensibilidade, eivada de sentimentos.
A paisagem na pintura é passível de investigações geográficas,
apresentando o funcionamento dos lugares, envolvidos nos seus respectivos
contextos históricos,trazendo ao debate as particularidades econômicas,
políticas, culturais e o dinamismo da sociedade na qual as representações
foram elaboradas, por este motivo falamos de investigações.A pintura
116
caracteriza-se como uma atividade pura, diferenciando-se da
fotografia.Referimo-nos ao sentido técnico, por exemplo, o artista realiza a
seleção das cores, dos tons os quais julga mais adequados para o trabalho e
elabora um esboço. A fotografia envolve algumas tecnologias, por mais simples
que sejam,atuam no congelamento de determinada paisagem. É importante
ressaltarmos que a atividade fotográfica,semelhante à pintura, conecta-se com
o universo das percepções do fotógrafo, estamos apenas comparando à
composição técnica de ambas as atividades artísticas.
A visão na maioria das vezes, é o sentido pioneiro no processo de
captação da paisagem apreendendo as suas formas, assim vemos o mundo,
no qual estamos inseridos, para no momento posterior assentarmos o nosso
olhar a respeito dos seus contornos. Em tal perspectiva, o ato de olhar
configura-se como algo subjetivo, partindo da experiência de vida dos
indivíduos. Cada homem ou mulher habitante da superfície terrestre apresenta
a capacidade de expor visões diferentes, metamorfoseando a paisagem,
ratificando-a como um fenômeno vivido,permeado por uma polissemia.
Observamos com o desenvolvimento desta dissertação, as possibilidades
encontradas pelo homem para partilhar com os seus semelhantes a sua visão
a respeito da paisagem, e a pintura constitui-se como uma opção neste campo
de estudos da paisagem. O ato de olhar é subjetivo residindo na mente
humana, a qual seleciona e carrega determinados símbolos, ofertando a
dinamicidade bem como os significados, pois, a cosmovisão do ser humano
responsável por produzir o sentido da paisagem.
A presente pesquisa se propôs aquecer as discussões no âmbito da
interdisciplinaridade, especificamente na esfera geográfica associada ao
estudo da arte pictórica. O corpo do artista no mundo, tanto vivencia como é
capaz de apreender as socioespacialidades, lendo e capturando-as nos seus
trabalhos. Portanto, na paisagem de Raimundo Cela, obtivemos a visão e o
olhar sobre a organização socioespacial camocinense, a qual se originou no
espaço litorânea, como discutimos na figura 4, intitulada “Porto de Camocim”,
cada obra traçada pela mão do artista engloba um fragmento de Camocim.
No decorrer deste trabalho, podemos entender que a Geografia
Cultural, na sua esfera renovada, de forma atenta, propõe-se a desbravar
terrenos pouco explorados, tomando posse de temas até então considerados
117
estranhos a compreensão de muitos. Um temário marginal observado sem
relevância ou sem utilidade prática, como alguns indivíduos acadêmicos ou não
consideram. Nesse conjunto de discussões, destacamos o domínio da arte
pictórica possuindo em vista algumas questões referentes à esfera dos
significados presentes na paisagem. Tal conceito adquire a configuração do
sentir, do olhar, dos sabores, dos saberes e das lembranças, logo, a paisagem
habita no cerne do homem.
118
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APÊNDICE A ENTREVISA APLICADA AOS MORADORES MAIS ANTIGOS DE CAMOCIM/CE-OUTUBRO-2015
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ –UECE CENTRO DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA –CCT PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA –ProPGeo
MESTRADO ACADÊMICO EM GEOGRAFIA
TÍTULO DA PESQUISA: “ARTE E GEOGRAFIA: A ANÁLISE DA PAISAGEM LITORÂNEA EM RAIMUNDO CELA.”
1) Você conheceu Raimundo Cela?
2) Raimundo Cela tinha irmãos e quantos?
3) Qual a localização da casa na qual Cela morou?
4) Qual a profissão de Cela em Camocim?
5) Onde fica a usina elétrica aonde o artista trabalhou?
6) O pintor tinhafilhos?
7) Como era a personalidade do pintor?
8) Cela interagia com os outros moradores de Camocim?
9) Raimundo Cela era católico?
10) Apesar de possuir um ateliê o artista era visto pintando fora do mesmo?