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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA MESTRADO ACADÊMICO EM GEOGRAFIA KARLA MARIA DA SILVA ALMEIDA ARTE E GEOGRAFIA: A ANÁLISE DA PAISAGEM LITORÂNEA EM RAIMUNDO CELA FORTALEZA-CEARÁ 2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

MESTRADO ACADÊMICO EM GEOGRAFIA

KARLA MARIA DA SILVA ALMEIDA

ARTE E GEOGRAFIA: A ANÁLISE DA PAISAGEM LITORÂNEA EM RAIMUNDO CELA

FORTALEZA-CEARÁ

2016

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KARLA MARIA DA SILVA ALMEIDA

ARTE E GEOGRAFIA: A ANÁLISE DA PAISAGEM LITORÂNEA EM RAIMUNDO CELA

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Geografia do Programa de Pós-Graduação em Geografia do Centro de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Geografia. Área de Concentração: Análise Geoambiental e Ordenação do Território nas Regiões Semiáridas e Litorâneas. Orientador: Prof.º Dr. Otávio José Lemos Costa.

FORTALEZA-CEARÁ 2016

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3

KARLA MARIA DA SILVA ALMEIDA

ARTE E GEOGRAFIA: A ANÁLISE DA PAISAGEM LITORÂNEA EM RAIMUNDO CELA

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Geografia do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial para à obtenção do título de Mestre em Geografia. Área de Concentração: Análise Geoambiental e Ordenação do Território nas Regiões Semiáridas e Litorâneas.

Aprovada em: 02 de setembro de 2016.

BANCA EXAMINADORA

4

RESUMO

A presente dissertação propõe analisar a paisagem litorânea captada através

do olhar do artista cearense Raimundo Brandão Cela, desenvolvida através de

suas obras no período entre 1929-1941. Por meio de uma leitura embasada na

iconografia da paisagem, estabeleceremos assim, a possibilidade de

efetivarmos um diálogo entre a geografia e a arte. A partir do viés centralizado

nas artes visuais, especificamente na pintura, apresentamos uma alternativa

voltada para o estudo da paisagem.Para a construção do arcabouço teórico

que fundamenta as discussões concernentes da paisagem apreendida por

Cela, e a sua representação pictórica, buscamos esteio nas concepções de

autores os quais abordam a temática da paisagem sob a ótica geográfica

cultural, admitindo a interdisciplinaridade com a arte, como uma forma para

expressar as percepções geográficas. Deste modo, almejamos a compreensão

da obra de Cela na qual caracteriza-se como um registro geográfico e cultural

de um período vivido pelo pintor na cidade de Camocim, no Ceará. A

paisagem em Cela transpassa o campo da objetividade, associado às

descrições dos objetos e das formas distribuídas em Camocim. Desta maneira,

assenta-se uma tessitura simbólica conduzindo-nos a compreender a paisagem

elaborada pelo pintor, como um fenômeno vivido. Neste contexto, a leitura das

obras de Cela escolhidas para esta pesquisa, norteada pelo conceito de

paisagem, nos revela a dimensão das experiências ocorridas no lugar que

significou um palco de manifestações na vida do artista. Com o seu olhar e

sensibilidade o pintor elege a paisagem litorânea que é constituída por seus

personagens, pelascores, movimentos, sabores, texturas, odores e sons, como

sendo aquela que representa socioespacialmente o litoral cearense, não de

maneira aleatória, mas é uma seleção justificada a partir de uma existência

envolvida na paisagem de Camocim. Portanto, neste trabalho dissertativo a

arte emerge como uma extensão das percepções do artista para com o seu

mundo, a experiência na paisagem de Camocim é então traduzida no âmbito

da representação artística, evocando as vivências socioespacias do artista.

Palavras-chave: Geografia cultural. Paisagem litorânea. Arte. Raimundo cela.

5

ABSTRACT

This thesis aims to analyze the coastal landscape captured through the eyes of

the Ceará artist Raimundo Brandão Cela, developed through his work in the

period 1929-1941. Through a reading based on the iconography of the

landscape, and will establish the possibility of making a dialogue between

geography and art. From the bias centered on the visual arts, specifically in

painting, we present an alternative focused on the study of the landscape. For

the construction of the theoretical structure framework that bases the

discussions concerning the landscape learned by Cela, and its pictorial

representation, we seek the authors' conceptions which approach the theme of

the landscape from the geographic cultural perspective, admitting

interdisciplinarity with art, as a way to express the geographical perceptions.

Thus,we aim at understanding Cela’s work in which it is characterized as a

geographic and cultural record of a period lived by the painter in the city of

Camocim, Ceará. The landscape in Cela crosses the field of objectivity,

associated with the descriptions of objects and forms distributed in Camocim .In

this way, a symbolic texture is established, leading us to understand the

landscape elaborated by the painter, as a lived phenomenon. In this context,

the reading of Cela’s work chosen for this research, guided by the concept of

landscape, reveals to us the dimension of the experiences that took place in the

place that meant a stage of manifestations in the life of the artist. With his look

and sensitivity, the painter chooses the coastal landscape that is constituted by

his characters, by the colors, movements, flavors, textures, odors and sounds,

as the one that represents socio-spatially the coast of Ceará, not in a random

way, but is a selection justified from an existence involved in the Camocim

landscape. Therefore, in this dissertative work, art emerges as an extension of

the artist's perceptions towards his world, the experience in the landscape of

Camocim is then translated into the scope of artistic representation, evoking the

artist's socio-spatial experiences.

Keywords: Cultural geography. Coastal landscape.Art. Raimundo cela.

6

LISTA DE FIGURAS

Figura 1- Último diálogo de Sócrates...........................................................67 Figura 2- Mapa de localização de Camocim.................................................75 Figura 3- Praia em Camocim..........................................................................80 Figura 4- O Porto de Camocim......................................................................85

Figura 5- Saída da Oficina .............................................................................91 Figura 6- Procissão em Camocim.................................................................98 Figura 7- Jangada rolando para o mar.......................................................105

7

SUMÁRIO

1 2

2.1

2.2

2.3

2.4

3

4

4.1

4.2

5

INTRODUÇÃO............................................................................. A DIMENSÃO DA PAISAGEM NA PERSPECTIVA DA FENOMENOLOGIA......................................................................

ARTE E GEOGRAFIA ................................................................. PAISAGEM E GEOGRAFIA.........................................................

PAISAGEM E GEOGRAFIA CULTURAL.....................................

PAISAGEM E FENOMENOLOGIA...............................................

A ICONOGRAFIA DA PAISAGEM..............................................

A PAISAGEM LITORÂNEA EM RAIMUNDO CELA...................

A PERCEPÇÃO DO OLHAR EM RAIMUNDO CELA.................. PAISAGEMLITORÂNEA, DE CAMOCIM: VIVÊNCIA E

SIMBOLISMO................................................................................ CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................... REFERÊNCIAS............................................................................. APÊNDICE....................................................................................

APÊNDICE A ENTREVISA APLICADA AOS MORADORES

MAIS ANTIGOS DE CAMOCIM/CE-OUTUBRO-2015.............

8

16

16

25

29

46

53

63

63

69

113

118

124

125

8

1 INTRODUÇÃO

A presente pesquisa almeja, através do conceito de paisagem

geográfica, realizar o entendimento da obra pictórica do artista cearense

Raimundo Cela, o qual traz, em suas telas, o litoral como o tema de maior

expressão. Assim, a linguagem utilizada pelo pintor, bem como as suas

expressões, permite-nos uma leitura da paisagem, quando esta, por sua vez,

encontra-se ancorada na interdisciplinaridade. O diálogo entre as diversas

áreas do conhecimento, inclusive a Geografia, subsidia-nos nas possibilidades

de compreendermos as novas perspectivas de interpretação do espaço, no

qual estamos inseridos.

Raimundo Brandão Cela, pintor cearense, filho de pai espanhol e

mãe natural de Sobral, no ano de 1894, José Maria Cela Mosqueira, espanhol,

mecânico de profissão, funcionário da Estrada de Ferro de Sobral, foi

transferido de Sobral para Camocim. Lá estabeleceu residência com sua

esposa, Maria Carolina Brandão Cela, sobralense e professora, sua filha,

Manuela Cela, e os filhos, Raimundo Cela e Fernando Cela. A mudança

encontra-se situada no período de construção e de ampliação do sistema

ferroviário brasileiro e cearense, o qual ocorreu na segunda metade do XIX.

Com a transferência de seu pai, Cela passa a residir em Camocim,

pois a cidade ganhara grande importância econômica, porque seu porto

destacou-se como escoadouro de mercadorias. É neste cenário de

desenvolvimento econômico que Cela passa a viver alguns anos de sua vida.

Passando a olhar e a ver os personagens, os quais compunham a vida da

cidade de Camocim, Cela passa a pintar pessoas simples, entretanto,

participantes da composição da paisagem litorânea: jangadeiros, rendeiras,

estivadores e trabalhadores portuários. O pintor em destaque elaborou

aproximadamente quarenta e três obras, no período entre 1916 a

1954,incluindo telas, desenhos e aquarelas.

O entendimento da imagem pictórica como um canal, o qual nos

permite a compreensão da paisagem, ainda apresenta-se como um obstáculo

desafiador para os estudos geográficos. Nesta perspectiva, na qual a paisagem

é tomada como objeto central, a presente pesquisa pretende analisar a obra de

9

Raimundo Cela, pois, ao percorrermos a sua produção pictórica direcionada

sob o ângulo geográfico, deparamo-nos com as possibilidades de

apreendermos a experiência da paisagem, a qual é vivida e registrada por Cela

em sua obra, onde encontramos o litoral de Camocim, recortado através da

paleta do pintor, configurando como cenário as manifestações humanas e

naturais. Desta forma o ato de olhar a paisagem litorânea irá corresponder ao

enigma da visão, ao passo que este sentido tanto foi como ainda permanece

na postura de elemento basilar na constituição do fazer geográfico.

Raimundo Cela retratou as paisagens referenciadas no litoral e

sertão do Ceará, correspondendo ao período que vai do início do século XX até

meados do mesmo. Salientamos que o recorte escolhido para a presente

pesquisa é a obra pictórica do pintor em destaque. Dessa maneira, lendo nas

entrelinhas e ultrapassando as barreiras do mundo visível, almejamos

apreender a essência e o dinamismo presentes na obra de Raimundo Cela.

A arte é uma atividade inerente ao homem envolvendo o universo

dos sentidos e das percepções. Em tal perspectiva, uma análise geográfica das

obras de arte torna-se útil para conduzir-nos a uma reflexão concentrada no

campo da sensibilidade e percepções, concernentes ao mundo o qual nos

invade constantemente, por meio das cores, dos sons, dos cheiros, dos

sabores e texturas,elementos estes que estabelecem um diálogo entre o artista

e o mundo. Dessa maneira, a Geografia ao olhar a arte, revela a dimensão das

experiências do artista no espaço geográfico, resgatando os valores simbólicos

os quais assentam-se a partir da matéria, rompendo com a dualidade sujeito e

objeto, harmonizando as externalidades com as subjetividades.

A importância dos estudos sobre as artes (englobamos todas as

manifestações artísticas) nos revelam um novo ângulo de observação do ser

humano como mundo. Buscar compreender os significados de um espaço

socialmente construído, e seus movimentos através do campo da sensibilidade,

esclarecem as transformações no curso da humanidade, por meio da sua

dimensão histórica.

A arte é uma atividade exclusiva do ser humano, logo, os adornos

utilizados pelo homem pré-histórico, as pinturas rupestres, monumentos

esculpidos há milhares de anos, quadros, arquiteturas de diversos tipos e de

épocas diferentes, são representações humanas,as quais possuem um valor

10

sentimental, e em algumas vezes quando se tratando de desenhos de animais

ou pessoas, são carregados de uma significação sobrenatural, possuidores de

poderes mágicos. Observamos este fato na arte rupestre, na qual o homem

primitivo nutria a seguinte ideia: ao atirar flechassem determinado animal

pintado nas paredes das cavernas, lhe permitiria capturar o próprio animal no

momento da caça.

Podemos pensar a arte como um meio de exibição para revelar um

universo subjetivo, ou seja, próprio de cada indivíduo. Barbosa (2000, p.72)

afirma que “Adentrar no terreno da arte como possibilidade de inquirir/decifrar o

mundo construído/construtor dos sujeitos sociais, significa tomar as

representações como artifício de construção de nossas leituras e reflexões

sobre o espaço geográfico”. A arte constitui-se como um conduto através do

qual o homem elabora as suas representações bem como possibilita a sua

externalização. Destarte,o campo da arte,apresenta-se com a potencialidade

de comunicar e registrar as leituras realizadas acerca do espaço no qual

estamos inseridos.Em tais leituras, interpretamos os movimentos e as formas

constituintes do espaço geográfico no qual encontramo-nos situados bem como

participando e promovendo o seu dinamismo, portanto,ao decodificarmos o

mundo ao nosso redor, atribuímos significações às referências materiais

localizadas ao alcance do homem. Os objetos, os fatos bem como as conexões

que as pessoas realizam umas com as outras, irão constituir um mosaico de

significados no imaginário do homem ofertando a compreensão acerca mundo.

Através do ato de olhar a arte, como um registro espacial,

almejamos um embasamento teórico-metodológico, para adentrarmos no

mundo das representações e significados.Ressaltamos o papel da Geografia

Cultural, como um subcampo da Geografia capaz de descobrir, decodificar o

real e através de uma decodificação, nos permite a compreensão de uma

trama de motivações as quais são estabelecidas pelo binômio- Arte e

Geografia. Cada imagem que observamos nos transmite sentimentos,

sensações e desperta em cada indivíduo um olhar diferenciado. Desse modo,

na presente pesquisa, analisaremos sob a ótica do olhar geográfico, a obra de

Raimundo Cela.

GOMES (2008) salienta a respeito da Geografia Cultural

renovada,que, tal abordagem trouxe várias mudanças no campo

11

epistemológico da disciplina nos últimos anos. Dessa forma, o autor segue

esclarecendo a ocorrência de uma ampliação na abordagem teórico-

metodológica, como também nos temas e conteúdos de pesquisa. Essa nova

abordagem geográfica cultural permite a incorporação de temáticas ainda

pouco exploradas por alguns, pinturas, fotografias, danças, músicas, “temas

que, no passado recente, eram considerados completamente estranhos a esse

domínio disciplinar e por isso tratados como não adequados de aí figurar

(GOMES, 2008, p.186).” Estes temas englobam o mundo vivido e o espaço das

representações, em meio aos objetos e formas, cores e dimensões, as quais

expõem o espaço geográfico com seus movimentos singulares. Na

subjetividade, encontramos o sentido para o mundo material o qual nos

contorna, compreendemos assim que a paisagem pode ser lida e interpretada

de múltiplas maneiras, sendo cada experiência válida e de grande importância.

Na perspectiva metodológica, associaremos à fenomenologia no

contexto de uma iconografia da paisagem. Tal abordagem apóia-se no

historiador de arte Erwin Panofsky (2004), sendo utilizado por geógrafos que

buscam um estudo mais aguçado a respeito das representações da paisagem

(COSGROVE e JACKSON, 2003). A obra de Raimundo Cela é uma

representação artística,portanto, através do método iconográfico/iconológico,

objetivamos desvendar o significado por trás das formas.

Para a presente pesquisa, consideramos necessário um

aprofundamento na produção bibliográfica no âmbito da Geografia Cultural,

especificamente autores os que abrangem em seus estudos o conceito de

paisagem. As visitas ao Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará

(MAUC),no qual se encontra a obra de Raimundo Cela, participaram da

estruturação da pesquisa, além de consultas às bibliografias, artigos, teses,

dissertações que aprofundam questões pertinentes à temática da pesquisa.

O Método fenomenológico será associado à iconografia; objetivamos

assim, realizar uma análise iconológica. A Fenomenologia oferece a

possibilidade de restabelecer o contato entre o sujeito e o objeto (opondo-se ao

pensamento positivista). Reconhecida como uma das mais notáveis

manifestações do século XIX, a Fenomenologia formulada por Husserl tem

exercido forte influência no pensamento cientifico contemporâneo. Outros

autores como Merleau-Ponty, Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre também

12

contribuíram para o desenvolvimento dessa corrente de pensamento. Santaella

(2012) salienta que o método em debate não é exato, ocupa-se dos fenômenos

vividos da consciência.Para a Fenomenologia, consciência e objeto não são

entidades separadas, existindo uma correlação.O interesse para a

fenomenologia não se direciona para o mundo que existe fora de nós, mas sim

como o mesmo se realiza para cada indivíduo, ou seja, o fenômeno vivido.

Assim, a Fenomenologia prioriza a indissocialização da relação sujeito-objeto.

Seguindo com os procedimentos metodológicos, propomos no

primeiro momento o entendimento do conceito de paisagem, desde as suas

matrizes, as quais apresentam esteio na Geografia Cultural tradicional, até o

momento presente. Dessa forma, discutiremos as suas incorporações teóricas,

para melhor compreensão da dinâmica e importância do conceito em destaque.

Na etapa posterior investigaremos acerca da vida e obra de

Raimundo Cela, pois a paisagem segundo o olhar do mesmo é o nosso objeto

de estudo. Dessa forma, buscamos através de levantamento bibliográfico,

penetrar em sua história de vida pessoal (vivências e influências), e profissional

(estilo e técnica) com o objetivo de conhecer o universo no qual seus quadros

foram produzidos, e também o contexto histórico, social, econômico, cultural de

sua época.

Posteriormente iremos contextualizar o “lócus” de ambiência vivida

pelo artista, o município de Camocim, bem como as influências culturais

locais,as quais conduziram o artista em seu processo de formação. Para isso

serão realizados levantamentos bibliográficos acerca de Camocim, objetivando

dessa maneira conhecer o universo social e cultural no qual Raimundo Cela

concebeu suas telas.

Os estudos realizados através da chamada Geografia Cultural

renovada vem buscando revelar as entrelinhas que se assentam na sociedade,

no tempo e no espaço, com o objetivo de compreender a profundidade da

relação do sujeito com a paisagem e com o lugar. Tal postura exige

investigação aprofundada, para desenvolver uma reflexão contínua por parte

do geógrafo, acerca das manifestações artísticas,as quais desenrolam uma teia

de significados com cores e formas passíveis de infindáveis interpretações.

A paisagem retratada pelo artista é capaz de apreender o dinamismo

do espaço geográfico, dessa forma a arte é um registro espacial. Em tal

13

perspectiva, a relevância da presente pesquisa, baseia-se na interpretação da

obra artística pictórica de Raimundo Cela,a qual transmite uma visão da

organização sócio-espacial de uma sociedade que passava por

transformações, em sua política, economia e cultura. Procurando desvendar o

além do visível, a Geografia da percepção procura o sentido das formas que se

apresentam nas obras de Cela, pois as manifestações presentes

contextualizam elementos que expressam uma dada paisagem cultural do

Ceará.

A arte é um meio de apreensão do mundo que nos circunda, sendo

utilizada para compreensão da dinâmica sociocultural e histórica. Quando

associada à paisagem, torna-se possível entender processos estruturadores da

sociedade no decorrer do tempo e do espaço. A paisagem selecionada e

captada pelo olhar do artista em destaque, serve ao entendimento cultural da

paisagem, mostrando-se como um elemento que integra o imaginário, a

subjetividade, as sensações, e ações projetadas no espaço. A paisagem na

obra de Raimundo Cela comporta interpretações múltiplas, no entanto o

enfoque da presente pesquisa é o contexto geográfico cultural, para

desvendarmos as camadas de significados os quais representam sócio-

espacialmente o Ceará.

A pintura orienta-nos a descobrir, explorar, analisar, ver, sentirbem

como narrar, as camadas de experiências e também os segredos das

permanências e mudanças culturais marcantes na paisagem. Em meio aos

questionamentos a respeito da paisagem litorânea cearense, surgem as

seguintes indagações: de que forma a análise da obra de Raimundo Cela nos

permite adentrar na essência da paisagem de Camocim e apreendermos seu

dinamismo sociocultural ? Qual o significado geográfico cultural da paisagem

segundo o pintor em destaque que recai sobre as matrizes culturais litorâneas

de Camocim? De que maneira Geografia e Arte aparecem imbricadas em sua

obra?

Na perspectiva geográfica cultural, elegemos como objetivo geral:

compreender a paisagem litorânea presente na obra de Raimundo Cela

composta no período entre 1929-1941, no sentido de apreender

espacialidades. Posteriormente escolhemos os seguintes objetivos específicos:

14

1)Perceber a vivência do artista em relação ao espaço representado

através da paisagem retratada nas telas; 2) Identificar, através do olhar

geográfico, a relação entre a arte de Cela e o dinamismo espacial do período;

3)Compreender o significado da paisagem cultural a partir da obra de

Raimundo Cela, especificando as espacialidades e atores sociais que

contextualizam o dinamismo dessa paisagem.

No segundo capítulo intitulado: “A dimensão da paisagem na

perspectiva da fenomenologia”, iniciamos problematizando a relação existente

entre a Arte e Geografia, associando ambas na perspectiva da paisagem.

Seguimos estudando o conceito de paisagem geográfica, especificamente sob

a ótica da Geografia Cultural. Objetivamos desta forma, trazer para o centro do

debate, as modificações ocorridas neste conceito, desde a sua matriz

morfológica positivista até alcançar a contemporaneidade. Procedendo assim,

compreenderemos o seu presente, sem negligenciarmos o seu passado bem

como a relevância do mesmo. Seguimos discutindo a paisagem no período

denominado de pós-1970, no qual a “virada cultural” abre novas perspectivas

no que diz respeito às representações, percepções, a significação da paisagem

e a sua imaterialidade.

Destarte, almejando assentar um diálogo teórico para o primeiro

capítulo, buscamos as contribuições de autores como:Berque (1998), Besse

(2006),Besse (2014), Claval (2002), Claval (2012), Corrêa (2006), Corrêa

(2003), Corrêa (2001), Corrêa (2011), Cosgrove (1998), Cosgrove (2003),

Cosgrove (2008), Cosgrove e Jackson (2003), Cosgrove (2012), Daniels

(2004), Duncan (2012), Gomes (2003), Gomes (2008), Hissa (2002), Holzer

(2010), Holzer (2012), Meira (2000), Meinig (2003), Moraes (1989), Moraes

(1996), Moreira (1994), Merleau-Ponty (1999), Merleau-Ponty (2004),Pallasmaa

(2013),Prette (2008), Sauer(2012),e Wagner e Mikessell (2003).

O capítulo terceiro traz o título: “A iconografia da paisagem”, neste

tópico discutiremos a respeito do modelo iconográfico/iconológico proposto por

Erwin Panofsky. Assim, através do referido método almeja-se a delineação do

entendimento das obras de arte elaboradas por Raimundo Cela.

No quarto capítulo, “A paisagem litorânea em Raimundo Cela”,

seguiremos com o estudo de algumas das obras do pintor cearense em

destaque, para através do conceito de paisagem explorarmos as vivências

15

litorâneas de Cela, bem como apreendermos o dinamismo do litoral capturado

nos seus trabalhos. De forma constante retrocedemos aos capítulos anteriores,

ambicionando fundar um diálogo com os autores que constituem a nossa base

teórica.

16

2 A DIMENSÃO DA PAISAGEM NA PERSPECTIVA DA FENOMENOLOGIA

O presente capítulo propõe tratar dos conceitos de Arte e Geografia

e posteriormente abordara paisagem sob o viés da fenomenologia. Dessa

forma será realizada a delimitação teórica que servirá como esteio para o

estudo. Serão discutidas as transformações de ambos conceitos e as

incorporações de novas propostas teóricas e metodológicas para seu melhor

entendimento. Entendemos que a tríade paisagem-geografia-arte, delineia-se

como uma forma de representação nas várias perspectivas pelas quais

conformam uma espacialidade. Os estudos que envolvem a temática da arte e

da geografia irão centrar sua abordagem nas perspectivas de

socioespacialidades, sobretudo quando estas se objetivam pela paisagem. Tais

abordagens obtêm relevância nas discussões sobre a investigação e

entendimento das espacialidades, uma vez que, entendemos que a visualidade

contida na arte nos leva a tecer relações com outras áreas do conhecimento.

Portanto, a paisagem evoca intencionalidades nas quais colocam os homens

como agentes produtores de sentido (CLAVAL, 2012).

Assim a dimensão cultural na qual se problematizará a paisagem

serádirecionada àobra do pintor cearense Raimundo Cela. As cenas escolhidas

e capturadas pelo olhar do pintor, servem para a compreensão cultural da

paisagem litorânea em Camocim ao apresentar-se como elemento da cultura

pelo qual agrega o imaginário das representações, sentimentos e ações

desenhadas no espaço geográfico.

2.1 ARTE E GEOGRAFIA

A Era Moderna desencadeou vibrações, as quais abalaram o

alicerce das artes visuais. Diversas foram as metamorfoses no âmbito das

convenções artísticas. Embora deparemo-nos com uma diversidade de artes

visuais (pintura, xilogravura, grafite, fotografia, colagens etc.), percebem-se o

surgimento de algumas questões, as quais transcendem o quadro quantitativo

de manifestações nas artes visuais, com seus materiais e formas variadas no

período moderno.

17

Para além do plano técnico que marca cada estilo artístico,

ressaltamos as mudanças ocorridas no sentido da política, das ideologias, no

plano econômico, nas ciências, gerando um desdobramento das trilhas

metodológicas constitutivas do campo da arte, bem como a abertura de novos

diálogos, instaurando uma interdisciplinaridade. Destacam-se neste aspecto

as ciências cognitivas, por exemplo, a psicanálise, a psicologia e a filosofia.

Com o destaque para a cognição, outros ramos interessar-se-ão pela arte

como uma marca das atividades humanas eivada de intencionalidade. Em tal

perspectiva, observamos o despertar da ciência geográfica para o universo

das representações artísticas (MEIRA, 2000).

Diante das alterações ocorridas no período Moderno, vemos a

criação de um elo entre a arte e as ciências dos significados, as quais

inserem no fazer artístico a perspectiva da imaginação. Esta é,atualmente,

considerada um dos sustentáculos da produção artística, como também para

a sua compreensão. Destarte, com o novo cenário na arte no qual a

imaginação é uma protagonista, Meira (2000) explana que

Nos tempos modernos, com a dissolução progressiva dos marcos referenciais herdados do passado e com o consecutivo declínio das tradições, o espaço imaginário passa a adquirir uma importância fundamental na história da arte. O que define o mundo imaginário como universo é a consciência frente à realidade: ela é motivadora de interpretações e transformações do real (MEIRA, 2000, p.101).

As novas perspectivas envolvendo as análises da paisagem

pictórica, constituem-se juntamente com uma diversidade de representações

culturais, um temário estabelecido de estudos geográficos referentes à

modernidade e aos seus respectivos efeitos sobre o mundo, como: as

identidades nacionais, desigualdades sociais, as conseqüências da

industrialização, a poluição das águas e as catástrofes ambientais,

decorrentes do uso sem regras dos recursos naturais.

O despertar do interesse da ciência geográfica pelo domínio

artístico, emerge dos questionamentos referentes à interdisciplinaridade da

cultura, e do significado da paisagem nas áreas das ciências humanas. Deste

modo, objetiva-se um cruzamento científico eivado de originalidade com a

paisagem, a qual caracteriza-se como um gênero relevante na arte

18

contemporânea, bem como uma fonte de discussões acerca de problemas os

quais dizem respeito às espacialidades (DANIELS, 2005).

Durante as últimas décadas, os estudos da paisagem em Geografia

Cultural, apresentaram-se constantemente imbricados com as artes visuais,

estabelecendo desta maneira a interface na qual entrelaçam-se a arte e a

geografia. As transformações teóricas e metodológicas ocorridas neste ramo

geográfico, permitiram a expansão do temário nas pesquisas, nas quais as

diversas representações da paisagem e o seu debate, obtiveram espaço em

veículos de comunicação. Tais discussões concentraram a paisagem como

um sujeito, na pintura e na fotografia, enfocando a sua dimensão material

decorativa. Tomemos como exemplo os jardins, estes constituem-se como

objeto decorativo, o qual traz em suas formas, um tempo histórico eivado de

simbolismos, intencionalidades e igualmente de significados. As formas

simbólicas espaciais também destacam-se no corpo das paisagens, pois

esculturas e casarões, como a arte de rua e os murais apresentam um lugar

específico na paisagem (DANIELS, 2005).

Os novos estudos abrangentes do binômio geografia e arte,

evidenciaram as particularidades de distintos gêneros de arte da paisagem,

os quais agem como sendo comunicadores do espaço e do mundo. Verifica-

se o nascimento de um universo de significados, oriundos nos limites tanto

internos como externos, ou seja, há uma relação entre o espaço externo das

obras de arte: lugares retratados e as suas respectivas localizações. No que

concerne ao âmbito interno de uma obra de arte, apresentam-se as projeções

espaciais revelando maneiras diferentes de ver, igualmente incluem-se os

vínculos afetivos com as figuras elaboradas, com as paisagem captadas,

como os lugares onde os artistas produzem seus trabalhos eas relações de

identidade estabelecidas, entre esses trabalhos e os seres humanos

consumidores de tais obras (DANIELS, 2005).

As representações artísticas, sendo estas pictóricas ou não, como

os mapas, esculturas, pinturas, edificações com valor artístico-cultural,

expedem significados como autênticos mapas reveladores, conduzindo-nos a

reflexão à respeito do dinamismo socioespacial do período no qual

determinada obra foi edificada, permitindo-nos assim compreender através da

arte diversas situações econômicas, políticas, sociais do período histórico que

19

a obra encontra-se envolta. Assim, o ato de representar o mundo por meio de

inúmeras formas desde a pré-história até o momento contemporâneo, pode

ser apreendida em suas esferas espaciais mais singulares. Portanto,

semelhante aos conhecimentos que possuímos sobre as civilizações, egípcia,

grega, romana, bizantina entre outras, a arte é identificada como uma forma

de entender a organização dessas sociedades antigas, possuindo a

capacidade de congregar valores e sentimentos e fatos de um povo. São

ofertadas as condições de tomarmos consciência de transformações por

variados ângulos, através da paisagem artística: as eclosões ideológicas, as

mudanças de paradigmas morais, regimes políticos os quais modificaram o

espaço em escala mundial (COSGROVE, 2003).

Na dimensão da arte contemporânea, a paisagem é uma maneira de

ver a realidade, espaços habitados os quais são percebidos constantemente

pelos sentidos. Assim, antes de transpor quaisquer cenas para as suas

respectivas telas, o artista imagina, redesenha, realiza associações com

outros lugares, encarnando desta maneira “sistemas estéticos, morais, que a

paisagem deve pretensamente refletir” (BESSE, 2014, p. 14).A imaginação

diversas vezes é negligenciada, sendo considerada como um ato corriqueiro,

sem qualquer espécie de reflexão ou relevância bem como envolvida em

depreciação. Porém, a imaginação requer uma atenção elevada, no que diz

respeito à atividade artística e apreensão dos movimentos e cores os quais

rodeiam o ser humano (PALLASMAA, 2013). A importância da imaginação

encontra-se em nossos atos do presente, e nas projeções as quais

concretizarão as ações do futuro. Destarte, imaginar não resume-se à mera

qualidade simplista de “ sonhar acordado - ela pode ser considerada a base

da nossa própria humanidade (PALLASMAA, 2013, p.10).” A atividade em

tela, permite uma abertura do ser humano para as experiências perceptivas

dos fenômenos existentes no mundo. Na ausência do ato da imaginação, não

haveria os planejamentos, as percepções, as sensações e os sentimentos;

tomemos por exemplo a empatia diante dos nossos semelhantes.Portanto,

realizamos escolhas e edificamos a nossa visão do espaço e construímos as

visões singulares das paisagens. Logo, as imagens habitantes da mente do

ser humano individual ou coletivo, são produtos da imaginação, configuram-se

como elementos basilares no ordenamento referente aimagem mental e na

20

transformação da paisagem material. Consequentemente, sem a imaginação

a atividade artística tornar-se-ia inviável (PALLASMAA, 2013).

Perante a linhagem do universo sensível, corroboramos com

Cosgrove (2003), quando o mesmo ressalta que

A imaginação é, assim, intimamente ligada à arte humana e que encontra expressão na esfera de cada um dos sentidos: na música ouvida, na cozinha saboreada, nos movimentos corporais, perfumes cheirados e representações gráficas que apelam para o olho (COSGROVE, 2003, p.253)

O pintor instaura uma relação com o seu meio natural, o qual

desencadeia as percepções, e os sentimentos, pois o artista é contornado por

um universo de cores, movimentos, texturas, sons, odores e sabores, os quais

atribuem sentido e valorizam a paisagem. Destarte, o pintor encontra-se

inserido em uma paisagem, com os elementos participantes da sua

composição, por exemplo, as edificações, as pessoas, os lagos, mares, as

planícies, os utensílios, e logo ultrapassa o primeiro nível morfológico,

conformando camadas sensíveis constituídas por subjetividades.

No processo de criação artística da paisagem, a imaginação

constitui-se como um dos pilares no processo de ressignificação, pois permite a

formação de “imagens que não existem anteriormente no mundo material de

seu criador (COSGROVE, 2003, p.253).” Tal postura dialoga com a abordagem

realizada por Besse (2014), ao definir a paisagem como uma realidade da

mente humana, encaixando-se como uma maneira de interpretar o mundo,

uma forma de pensamento, a dimensão imaterial da vida humana. Desta

maneira, a paisagem mental é construída por meio dos múltiplos olhares do ser

humano para o seu mundo exterior.

Representada em telas, em fotografias, nos textos literários bem

como nas músicas, a paisagem é uma análise, uma pensamento acerca do

mundo o qual se desnuda diante do olhar do artista, porém a mesma, não

isola-se em tal perspectiva, é simultaneamente uma marca do ser humano

sobre a Terra. “Ela é sempre, por essência uma expressão humana, um

discurso, uma imagem, seja ela individual ou coletiva, seja ela encarnada em

uma tela, em papel ou no solo (BESSE, 2014, p. 14)”, comunicando-nos a

21

respeito do comportamento e das organizações socioespaciais de

determinadas comunidades e de suas respectivas inscrições na

superfície.Desta maneira, a paisagem é um conjunto de valores, vozes e

igualmente de códigos culturais.

Cosgrove (2008, p.15) ao explorar o campo visual geográfico,

salienta a importância da “pré-experiência” de trabalho no mundo “viabilizado”

por meio da “imaginação”, e por sua forma mais característica de expressão: a

criação de imagens. Desta forma, tal atividade caracteriza-se, como sendo vital

a todos os seres humanos, auxiliando-nos a estabelecer um elo de

compreensão entre o ser humano e o mundo. Assim, as percepções espaciais

enraízam-se na mente do artista, o qual através da imaginação configurará

novos contornos, formas, modelos, dimensões, ainda não existentes no mundo

material. Consequentemente, este conjunto de elementos pré-existem para o

artista. Observamos que Raimundo Cela pré-definia e organizava na sua

mente as suas obras, com a matéria-prima extraída das suas experiências

referenciadas no mundo material circundante.

Diante desta associação íntima, assentada entre a matéria e os

sentimentos que caracterizam a gênese da paisagem, Besse (2014) ressalta a

importância de conectarmos o mundo físico, remodelado constantemente pela

a atividade humana, com a face imaterial, ou seja, os valores atribuídos pelos

homens às formas, como: as casas, os moinhos, as plantações, técnicas para

o plantio e colheita, estradas, bem como as formas naturais eivadas de

simbolismo, partindo do trabalho e das relações sociais estabelecidas pelas

comunidades. Besse (2014) afirma ainda que

É verdade que a paisagem também é uma maneira de ver e imaginar o mundo. Mas é primeiramente uma realidade objetiva, material, produzida pelos homens. Toda paisagem é cultural, não necessariamente por ser vista por uma cultura, mas essencialmente por ter sido produzida dentro de um conjunto de práticas (econômicas, políticas, sociais), e segundo valores que, de certa forma ela simboliza (BESSE, 2014, p.30).

As experiências oriundas do universo material, no qual o artista está

inserido, podem ser partilhadas com os seus semelhantes, entretanto são

singulares, pertencendo ao pintor, o sujeito responsável por adaptar essa

22

mesma experiência, criando novos fenômenos ofertando um significado ímpar

à paisagem representada.

A paisagem transmite um caráter polissêmico, suscitando inúmeras

discussões em diversas áreas do conhecimento, as quais elaboram de acordo

com as suas especificidades, o seu constructo teórico-metodológico, voltando

a sua atenção às questões referentes a esse conceito. Assim originam-se as

novas perspectivas dos estudos da paisagem, conduzindo a uma

convergência teórica, ou uma distinção radical nas formas de interpretação

das paisagens. Nesta perspectiva Besse (2014, p.11) abordando a ótica

polissêmica, introduz o debate estabelecido perante o conceito de paisagem,

salientando a existência de uma plasticidade paisagística, quando revela-nos

que a mesma não constitui-se um objeto exclusivo do “paisagista”, do

“arquiteto”, ou “jardineiro”, porém participa da área de abrangência científica

das ciências sociais como a Geografia, a Antropologia, a Sociologia, a

Literatura, a História da Arte, a Filosofia, e igualmente as Artes visuais, todas

elas integram o conjunto das ciências estudiosas da paisagem.

Besse (2014), concebendo “Cinco portas da paisagem”, explora

maneiras diferentes de compreendermos o lance de vista situado diante dos

nossos olhos, aproximando-se, portanto, da visão cunhada por Meinig (2003),

que analisa “Dez versões da mesma cena”, centralizando seu estudo na

esfera subjetiva da paisagem. Ambos os autores explicam o construto da

paisagem a partir das experiências que o ser humano extrai da sua vivência,

sustentando assim, uma discussão capaz de transpassar os limites fundados

pelas formas físicas, adentrando na experiência do ser humano sobre o

espaço por ele habitado e ao mesmo tempo percebido. Compreendemos

deste modo que, esses olhares acerca do visual não se isolam em um

universo fechado, de maneira unilateral, ao contrário, partes aparentemente

desconexas entrelaçam-se no pensamento paisagístico contemporâneo, não

sobrepujando-se uns aos outros, mas, realizam correlações, que permitem a

potencialização do seu significado.

A paisagem não restringe-se ao plano físico-material, existe a

essência percebida e sentida por quem apreende as suas formas. Um

complexo fluxo de códigos culturais, elaborados pelo ser humano no decorrer

da sua vida tanto individual, como coletiva, constroem o sentido das

23

paisagens. Nesta perspectiva, Cosgrove (2008), diante das questões

assentadas sob o binômio geografia e arte, salienta a importância das

representações, como sendo nascedouros das investigações geográficas, e

não meramente reproduções miméticas do espaço circundante. Neste ângulo,

em que convergem a Geografia, a Arte e as representações da paisagem, o

autor revela-nos que

A inscrição geográfica é, simultaneamente, material e imaginativa, moldando paisagens fisicas da terra de acordo com as intenções humanas: tanto as exigências da existência prática e visões da qualidade de vida. Representações geográficas - nas formas de mapas, textos e imagens pictóricas de diversos tipos- eo olhar das próprias paisagens não são meramente traços ou fontes, de maior ou menor valor para a investigação desinteressada pela ciência geográfica. Elas são, elementos constitutivos ativos na definição de práticas sociais e espaciais e os ambientes que nós ocupamos. Interpretação de paisagens concretas ou através de imagens e textos como testemunho da ação humana é uma contribuição honrosa para a geografia cultural para fazer em direção às metas de conhecer o mundo e compreender a nós mesmos das humanidades: para a investigação da vida(2008, p.15).

“A obra-de-arte, o texto visual é um sistema de elementos gráficos e

pictóricos (sinais visuais) possuidores de um significado (sentido) em um dado

contexto histórico-cultural”(PRETTE, 2008, p.10). As paisagens que o artista

decide pôr em tela, entalhar, esculpir, moldar, apresentam uma bagagem de

sentimentos, percepções, pensamentos e são passíveis de uma interpretação

geográfica. “Um artista é um ator geográfico quando transforma uma tela num

território que reflete as concepções espaciais de uma época, tanto do ponto

de vista material, como do ponto de vista simbólico (HUFTY, 2001, p.127). As

obras que alcançam os dias atuais admitem que apreendamos qual a forma

de pensar, organizar o espaço, agir e viver de um determinado povo.

A Geografia incorporou no período pós-1970, novas bases teórico-

metodológicas para seus estudos espaciais. Neste momento, os geógrafos

atentam para debater o universo das representações sociais em suas

variadas expressões. Atentando para novas formas de olhar, a arte passa a

ser vista como um campo a ser explorado repleto de significados. A carga

imaterial do espaço até então negligenciada, ganha atenção e destaque.

Diante da renovação a geografia volta o seu olhar para a experiência do

sujeito como um objeto de conhecimento espacial, por conseguinte os

24

geógrafos compreendem que “a palavra chave é significado, expresso nas

expressões telas de significados, magmas de significados e mapas de

significados, esta última adequando-se nitidamente à perspectiva geográfica”

(JACKSON, 1989 apud CORRÊA,2003, p.13).

A paisagem citadina captada através da lente fotográfica, ou

representada sob a forma de textos literários, as paisagens imaginárias,

paisagens naturais, sonoras, dominantes ou excluídas, paisagem que é

marca e matriz de maneira simultânea, são apenas algumas entre outras

infinitas faces que esse conceito é capaz de exibir. Percebemos diversas

formas de olhar a paisagem, algumas delas abrangendo graus de

subjetividade ou objetividade variados mediante ao seu método de estudo.

O conceito de paisagem apresenta uma carga histórica complexa,

como um elemento ordenador e condutor de compreensões da realidade

geográfica. Desse modo, a natureza plástica (objetiva e subjetiva) da

paisagem, serve como orientação para o entendimento do elenco material de

formas palpáveis em uma área geográfica escolhida. Logo, as representações

como textos literários, fotografias, obras de arte revelam outra dimensão a

qual envolve espaços de memórias, dos desejos, da imaginação, e dos

sentidos (COSGROVE, 2003).

Diante do olhar da geografia cultural renovada, novas dimensões da

paisagem foram e continuam em permanente processo de descoberta. Assim,

a expansão teórica-metodológica, bem como conceitual, adentraram no

universo da paisagem, desencadearam novos objetos de pesquisas

enfocando a compreensão da conjectura espacial, assentada sobre a relação

do ser humano com seu meio (COSGROVE, 2003).

Embora a paisagem possa ser criada ou representada, o seu valor

exibe profundidade a respeito do espaço geográfico, pois ao utilizarmos

representações artísticas da paisagem para a percepção da realidade, não

significa que aquela seja “intelectualmente superficial ou insignificante como

um objeto de estudo geográfico e reflexão” (COSGROVE, 2003, p. 254).

Portanto, o lance de vista observado pelo olhar do ser humano, não restringe-

se a um simples conjunto das formas passivas inertes dispostas sobre a

superfície terrestre. Consequentemente, ver e transformar são atos

complementares, os quais associam-se intima e ativamente, exercendo

25

influências sobre o desenvolvimento da percepção, auxiliando ao ser humano

na modificação do seu habitat, tornando visíveis as suas marca singulares.

Determinadas obras são frutos da criatividade humana revelando

assim, muito sobre a organização socioespacial de diversas civilizações; logo

uma representação pictórica, uma escrita sobre o papel, filmes, registros

rupestres são meios de capazes de exibir significados que, diferentes grupos

humanos atribuíram às espaços e aos lugares. Consequentemente partindo

da decodificação de determinada obra de arte (seja pictórica, cinematográfica

entre outras) é possível realizar uma ligação entre essas múltiplas formas de

representação e as mensagens transmitidas (DANIELS e JACKSON, 1987

apud COSGROVE e JACKSON,1987).

2.2 PAISAGEM E GEOGRAFIA

O espaço geográfico mostra-se aos nossos olhos pelas mais

diferentes formas, adquirindo um caráter multifacetado. Para sua compreensão

é necessário observar seus variados ângulos, seja o território, a região, a

paisagem ou o lugar. Cada conceito chave possui suas características próprias

que objetivam o ângulo pelo qual a sociedade está sendo dimensionada

trazendo ao debate as transformações que a humanidade realiza sobre a

superfície da terra. Tal postura confere à Geografia, uma autonomia no âmbito

das ciências sociais para estudar as relações que os homens estabelecem

entre si as quais modelam e remodelam o espaço geográfico (CORRÊA, 2006,

p.16).

Moreira (1994, p. 15) esclarece que “a geografia é um saber tão

antigo quanto à própria história dos homens”. Perante o exposto pelo autor

observa-se que, o conhecimento geográfico surgiu há milênios, e muitas vezes

relacionado ao conhecimento da natureza, podemos exemplificar através do

modo de vida dos mesopotâmicos e dos egípcios que estudavam o

posicionamento do sol, a direção dos ventos, o movimento das águas fluviais

entre outros elementos que compunham a paisagem natural. A observação

constituía-se como o principal meio para tentar aplacar as intempéries naturais

pelas quais o ser humano viu-se obrigado a conviver e controlar. Desde o

homem pré-histórico até os dias atuais, o olhar se configura como porta

26

principal para a percepção e ordenamento do mundo no qual o ser humano

está inserido.Assim, elegemos a visão como sentido construtor do pensar

geográfico eivado de contemplação e entendimento, tal sentido é acolhido

como o início dos questionamentos que acompanham a sociedade no curso de

sua história, o sentido problematizador da realidade.

Ler a paisagem é um processo que faz parte da rotina de qualquer

sociedade. Das eras mais longínquas até o período contemporâneo, as

comunidades refletem sobre a ocupação e a edificação do espaço geográfico.

Tal reflexão baseia-se nas necessidades cotidianas do ser humano, por

exemplo, encontrar um lugar com condições estáveis para a sua sobrevivência.

Destarte, o ser humano estabelecerá relações com o meio que o abriga, pois

para a construção de seu habitat são incluídas: as “projeções, pré-ideações,

avaliações”, as quais,de acordo com Moraes (1996, p.02), caracterizam-se

como formas de percepção do espaço.

A partir da observação da paisagem, o ser humano produz as

condições de sobrevivência, ou seja,plantações, criações, casas e cercas eram

erguidas e distribuídas de forma organizada no espaço, portanto, passava-se

de um quadro de caos para algo coerente, o mistério da natureza que agia

sobre o mundo vai ganhar uma explicação acompanhada de organização, o

olhar permite contemplar e explicar fatos tanto naturais quanto sociais,

contudo, firmamos em tal perspectiva que o olhar sempre esteve presente na

percepção do mundo.

A partir do século XIX, com a sistematização da geografia, inicia-se

o processo pelo qual se delineia de forma descritiva o conhecimento do mundo.

A investigação geográfica possuía o intuito de explorar as riquezas e conhecer

os diferentes modos de vida da época. Através da apreciação de Humboldt em

seus desbravamentos, descrevia-se diferentes tipos vegetações, bacias

hidrográficas, formas de relevo, tipos de climas, entre outros elementos que

compunham a paisagem natural. Neste contexto, delineado por uma

perspectiva naturalista,Moraes (1989) chama atenção para a importância e

complexidade do olhar geográfico nos estudos iniciais da relação homem-

paisagem-natureza e explana que:

27

O método da Geografia, segundo Humboldt, parte da observação da paisagem. Essa contemplação da natureza transmite uma sensação ao sujeito, que encontra correspondência com suas representações interiores. O sujeito, pela observação filtrada por sua subjetividade, “percebe” o todo seus encadeamentos. (MORAES, 1989, p. 115)

Assim o autor ressalta a destreza que acompanhava Humboldtna

filtragem diante das diversas paisagens postas diante de seus olhos por meio

de sua subjetividade e percepção, por mais que os estudos do naturalista em

debate englobassem o mundo físico, o sujeito que descreve e transmite uma

mensagem que chega até nós, elabora associações por meio das lembranças

da vida de quem descreve ou vindas de outras viagens.

A expressão “olhar geográfico” não carece de ser interpretada como

sendo uma expressão metafórica, pois, contemplar através da visão faz parte

da tradição e tem fundamento epistemológico. Podemos tomar como exemplo

a obra “Cosmos” elaborada por Humboldt através de seus relatos em

expedições ao redor do mundo, contudo, o ato de ver se faz presente na

evolução do pensamento geográfico. Percebemos que o olhar corresponde a

uma qualidade específica e relevante na constituição do ser geógrafo,

participando de sua formação e investigação do mundo. Os relatos dos

primeiros geógrafos aventureiros, exploradores anunciavam de maneira vívida,

sagaz e detalhada as formações humanas, até então desconhecidas e através

de suas particularidades almejavam explicar as relações que as formas

presentes nas paisagens estabeleciam entre si.

Torna-se necessário, portanto, uma compreensão do termo

“paisagem” para que possamos contextualizar perspectivas que nortearão as

relações sujeito-espaço, uma vez que a paisagem objetiva-se como forma

primeira naquelas relações.

Claval (2004), em seu texto “A paisagem dos geógrafos”, traz a

evolução do termo paisagem, ressaltando as modificações pelas quais o

vocábulo sofreu com o passar dos anos e as adaptações linguísticas que

alguns países realizaram e que transformaram o conceito; assim temos

inicialmente oriunda do holandês landskip, o alemão constrói o landschaft e o

inglês landscape para a tradução do novo termo holandês.

O termo paisagem, sob a denominação “landskip”, surge nos Países

Baixos. Seus primórdios estão enraizados na pintura aplicada a quadros nos

28

quais se representava um pedaço da natureza percebida a partir de um

enquadramento; a pintura, que por sua vez era elaborada,tinha por finalidade

representar a natureza tal qual se apresentasse ao globo ocular do indivíduo.

Temos a predominância da mimética como paradigma na elaboração das

paisagens pictóricas. Claval (2004, p. 245) estabelece que “no início dos anos

1420, em Florença, Brunelleschi descobre (ou redescobre) as leis da

perspectiva.” Nesse período,a paisagem ainda se configura como algo que se

observa por meio das janelas das salas, tal momento permitia o artista captar

um fragmento da natureza que se revelava aos seus olhos. A pintura no

período Quattrocento baseada na perspectiva, expandiu-se pela Itália e Europa

permitindo um salto na representação da realidade em que, casas, rios,

colinas, temas bíblicos, campos entre outros ganharam mais naturalidade.

Nesse contexto, podemos chamar a paisagem desse período de

“janela externa”, ou seja, o construto pictórico da paisagem exibia o objetivo de

copiar fielmente a cena vista em seus detalhes. Desse modo, ressaltamos que

a mesma era relevante devido ao seu domínio físico e material. Assim, a arte

contribuiu para o nascimento da paisagem, contudo, a ciência geográfica irá

permitir que tal conceito fosse ampliado, enriquecido, e desdobrado, sofrendo

profundas metamorfoses, as quais nos permitem vislumbrar outras dimensões

da realidade passíveis de interpretações geográficas.

Na ciência geográfica,o conceito de paisagem não é recente, muito

embora a Geografia tenha desprezado durante certo período a ênfase subjetiva

e simbólica da paisagem. A negligência da perspectiva imaterial da paisagem é

associada ao positivismo e logo depois ao positivismo lógico. No primeiro

momento, a ciência geográfica é marcada profundamente pelo paradigma

positivista. No segundo momento, a Geografia assentou suas bases no

chamado positivismo lógico.

O positivismo marca o pensamento geográfico tradicional com seu

caráter descritivo, sintético e a-histórico. A Geografia clássica encontra no

positivismo sua base teórico-metodológica para erigir seus estudos iniciais a

respeito da paisagem; essas análises eram reduzidas ao domínio das

aparências do fenômeno. Dessa forma, para a corrente em discussão, a figura

do pesquisador é limitada a de um simples observador, o qual descrevia os

fatos referentes ao espaço geográfico catalogando e enumerando elementos

29

tanto naturais quanto sociais. Posteriormente, surge outro paradigma: a

Geografia teorética e quantitativa, a qual tem seu apogeu durante o pós-

Segunda Guerra Mundial. Conhecida também por corrente Neopositivista, ou

New Geography, a corrente em debate propôs a transformação nas bases

teórico-metodológicas da Geografia, almejando superar o antigo paradigma

positivista. Para alcançar esse objetivo, os geógrafos adotaram a matemática

pelo seu caráter exato, e a consideravam como verdadeira linguagem

científica. Os geógrafos vinculados à Nova Geografia adotaram um conjunto de

modelos matemáticos e estatísticos, buscando através de tais métodos explicar

os fenômenos referentes ao espaço geográfico. Para a New Geography, era de

fundamental importância o emprego dos modelos matemáticos, entre eles: os

padrões geométricos, as matrizes, modelos probabilísticos, classificatórios e

descritivos, culminando novamente na descrição e quantificação dos

fenômenos espaciais (MOREIRA, 1994).

Após a Segunda Guerra, o cenário mundial transforma-se, trazendo

consigo profundas mudanças na ciência e na tecnologia, dessa forma, a

Geografia não estava imune a uma metamorfose. Moreira (1994, p. 43) expõe

que o aparato tecnológico que “surge principalmente nos Estados Unidos na

década de 60” permitiu que a Geografia se tornasse uma ciência

profundamente aplicada à mensuração dos fenômenos, ou seja, a utilização da

ciência matemática e da cibernética para a compreensão da sociedade; a

paisagem nesse período não é interpretada em sua perspectiva imaterial,

poisno referido período o desenvolvimento e uso da estatística por parte dos

geógrafos enfatizava a descrição numérica dos fenômenos, posteriormente,

novas posturas científicas surgem trazendo renovação e os antigos paradigmas

são superados ou incorporam novas ideias.

2.3 PAISAGEM E GEOGRAFIA CULTURAL

Discorreremos brevemente a respeito do percurso acerca do trajeto

que o conceito de cultura realizou desde sua matriz tradicional até as novas

incorporações teóricas e metodológicas no período pós-1970 para com isso,

buscaremos uma melhor assimilação do conceito de paisagem.

30

A Geografia Cultural é um subcampo da Geografia, apresentando

um rico e vasto campo de pesquisas. No entanto, a postura tradicional marcada

pela leitura objetiva e empírica da realidade negligenciou durante algum tempo

a incorporação de uma nova postura que surgiria na ciência geográfica. Burgess (1978) mostra que influenciados pelo determinismo

geográfico, os pioneiros nos estudos de Geografia Cultural consideravam os

fenômenos culturais como sendo um fruto dos “fatores geográficos”, entre os

mesmos podemos ressaltar: latitude, longitude, calor, frio entre outros fatores

que os geógrafos culturais acreditavam influenciar tanto nos aspectos materiais

quanto imateriais(COSGROVE, 1983).

Corrêa (2001),ao se referir à Escola de Berkeley, mostra que sua

produção acadêmica no período de 1925 a 1975tem como expoente o geógrafo

Carl Ortwin Sauer, criador e máximo expoente dessa escola, promovendo o

avanço do pensar geográfico no que concerne aos temas de pesquisas:

paisagem natural e cultural, ecologia cultural, áreas culturais, estudos de

paisagens do passado buscando a compreensão do presente, abordando os

novos desdobramentos teórico-metodológicos. Sauer deixou um legado rico e

amplo no que diz respeito à produção acadêmica e um desbravamento teórico,

que atualmente estão presentes nos debates geográficos, servindo como

esteio para aqueles que buscam realizar uma abordagem pautada na

perspectiva cultural do espaço.

A partir do clássico “A Morfologia da Paisagem” publicado no ano de

1925, Sauer corrobora que a paisagem é constituída por uma área de formas

naturais e culturais, agindo simultaneamente e realizando associações de

interdependência. No referido texto,Sauer pensa nas inter-relações

morfológicas expressas na união homem-natureza, ratificando que ao geógrafo

cultural cabe estar atento aos questionamentos pertinentes à morfologia

paisagem. Em seu texto, Sauer organiza as paisagens em dois tipos: as

naturais e as culturais. As primeiras seriam as paisagens originais, ou seja,

ainda não modificadas pela intervenção humana, posteriormente Sauer enfoca

sua abordagem na paisagem cultural, a qual seria um produto da atuação de

uma determinada comunidade sobre uma área natural. Adotemos como

exemplo as terras cultivadas que servirão como testemunhas da presença de

elementos artificiais na paisagem. Ao mesmo tempo, encontraremos outros

31

objetos que destacam a ação humana sobre a superfície terrestre: estradas,

técnicas, habitações, moinhos, cercas, muros e estábulos distribuídos na

paisagem. Observamos que a divisão das formas caracteriza-se como um

processo basilar para a determinação da relevância da paisagem, do mesmo

modo serve como esteio para traçar o caráter dessas comunidades.

Corrêa (2010) destaca que o conceito de cultura aceito pelos

sauerianos, encontra suas raízes na antropologia norte-americana, aqui

ressaltamos a influência de Alfred Kroeber sobre Sauer e seus discípulos. Na

antropologia norte-americana, originou-se até o período de 1950 um

determinismo cultural, ou seja, a cultura era a força determinante para as ações

do ser humano sobre a paisagem. A Escola de Berkeley adotou o conceito de

cultura oriundo da antropologia cultural, contudo,nessa perspectiva, a cultura é

considerada uma entidade supra-orgânica, ou seja, constituía-se com um grau

independente da realidade externa em sua totalidade aos indivíduos.

Duncan (1980) enfatiza que a cultura era vista como uma entidade

que pairava sobre os homens, algo com um nível elevado e independente que

direcionava as ações dos sujeitos, estes encontravam-se em um plano

orgânico de acordo com as considerações de Sauer. A cultura era o agente e o

ser humano um mero vetor, ou seja, mensageiro sem autonomia de tal

entidade. Os geógrafos adeptos da chamada geografia cultural tradicional

desconsideraram outras explicações para a constituição e transformação das

paisagens; a cultura era a força que norteava as ações do ser humano sobre a

superfície terrestre. Outros aspectos como as interações internas nas

sociedades, os sentimentos, os significados atribuídos por meio do trabalho

humano eram negligenciados (CORRÊA, 2001).

A concepção de cultura para os adeptos da Escola de Berkeley

estava estreitamente associada à exteriorização do sujeito. Desta forma a

identidade do grupo se daria através do processo de “internalização” e

canalização da cultura, estes realizavam-se de forma “condicionante”, de

acordo com Corrêa (2001, p. 26). Assim, originavam-se os costumes que eram

assimilados como cultura,conduzindo desta maneira a uma “homogeneidade

cultural”, garantindo poucas mudanças e ausência de conflitos internos; por

exemplo as lutas de classes e o debate a respeito da estratificação social.

Compreendemos que o ser humano não era considerado como produtor de

32

cultura e agente atuante na metamorfose das paisagens, estando assentado

em segundo plano.

Sauer, elegendo o método morfológico, buscava alcançar uma

descrição exaustiva das paisagens e torna relevante este assunto ao ratificar

que: O estudo geográfico ainda começa assim. A descrição de fatos observados origina, por ordem predeterminada, um agrupamento preliminar do material. Essa descrição sistemática relaciona-se aos propósitos da relação morfológica e realmente é o começo da síntese morfológica (SAUER, 1925, p.196).

Seus estudos orbitavam em torno da relação forma/conteúdo

considerando as paisagens como sendo um descobrir puramente visual físico:

casas, cercas, ferramentas, vestuário, técnicas de plantação, utensílios,

portanto, a geografia cultural praticada no inicio do século XX exibia um forte

laço com a Etnografia culminando na denominada Etnogeografia, em que

prevalecia a densa descrição das paisagens. Ressaltamos a importância do

olhar físico sobre as paisagens em estudo sejam em áreas urbanas rurais.

Observar uma pintura, ou a imagem cinematográfica, ou até mesmo o velho ato

de ver pela janela da sala, é o despertar para o conhecimento do mundo que

nos rodeia, consideramos o olhar o ponto de partida para aprofundarmos as

camadas de significados.

A mudança das paisagens naturais ocorreria sob a determinação da

cultura,sendo assim as ações humanas seriam expressas por meio da

paisagem cultural, onde a natureza constitui-se como alicerce para tais

atividades. Posterior ao trabalho humano, o resultado será a paisagem cultural

atuando como mostruáriodo impacto da ação do ser humano sobre a face da

Terra. Costumes e crenças não compunham as inquietações dos geógrafos

ligados à Escola de Berkeley, no entanto a análise das marcas do homem

sobre as paisagens definia o centro de sua abordagem (SAUER, 1925).

Com seu dinamismo próprio, a Geografia Cultural vem discutindo e

se renovando, partindo de suas dúvidas e aspirações as quais tornam salutar

um breve retrospecto as suas origens. Contudo, o retorno ao passado da

Geografia Cultural tradicional se faz necessário porque é possível encontrar

respostas para questionamentos atuais, e assim promover o dinamismo o qual

estimula reflexões ajudando a pensar em uma nova Geografia Cultural.

33

Mitchell (2000 apud CORRÊA 2003) nos diz que o processo de

renovação se fez no contexto da cultura, a denominada “virada cultural”. O

autor esclarece ainda que na década de 1980, um conjunto de mudanças em

escala mundial ressalta a dimensão cultural dos processos em ação. São

apontadas estas transformações:

[...] as mudanças na esfera econômica, o fim da denominada Guerra Fria, a ampliação dos fluxos migratórios da periferia para os países centrais, o movimento ecológico, novas formas de ativismo social e a crescente consciência da necessidade de novos modos de se construir e entender a realidade, até então calcada no racionalismo moderno, no raciocínio científico e na celebração da técnica. (CORRÊA, 2003, p. 12)

Esses fatos inauguram uma nova maneira de se enxergar a

realidade contribuindo para a renovação do pensamento geográfico cultural no

qual o próprio conceito de cultura metamorfoseou-se, absorvendo métodos de

abordagem que até então eram desconhecidos entre os geógrafos. O

quantitativismo e o materialismo não mais respondiam às indagações que

surgiam e também não resolviam questões que a denominada geografia

cultural tradicional deixara pendentes. Associamos essas transformações a

uma atmosfera intelectual contestadora e libertária com os grupos da chamada

contracultura. Um novo desdobramento da Geografia iniciava-se fazendo um

forte convite à subjetividade e à sensibilidade geográfica. Transpondo as

barreiras da tradição objetiva e empírica, novos olhares geográficos estavam

emergindo agora com enfoque na dimensão simbólica do espaço geográfico.

A inserção de temas não utilizados por parte dos geógrafos culturais

clássicos, por exemplo, a leitura dos significados dos espaços e das obras de

arte, é um dos indicativos claros de que uma mudança atingiu a geografia

cultural, a mudança na linguagem representa a constituição de objetos e temas

completamente diversos dos antigos focos de investigações geográficas. Áreas

da ciência dialogam, formando intensas conexões para análise da nova agenda

de pesquisa, desta maneira a literatura, a música, a arte e as percepções dos

lugares são temáticas agora passíveis de interpretação geográfica. Os

geógrafos culturais lançam o olhar para integrar outras esferas do

conhecimento para a compreensão tanto da realidade como também de seus

respectivos objetos de estudos; nas artes visuais destacamos as contribuições

34

de Ernest Gombrich e Erwin Panofsky ambos no âmbito da História da Arte, e

ressaltamos o segundo autor devido as suas reflexões metodológicas acerca

do método Iconografia da Paisagem (DUNCAN, 2000).

Cosgrove (2000) diz que, os geógrafos culturais apesar de algumas

diferenças teóricas e metodológicas dividem o objetivo comum de descrever e

entender as relações entre a vida humana coletiva e o mundo natural, além

disso buscam interpretar as transformações elaboradas por nossa existência

no universo da natureza e, acima de tudo, os significados que a cultura atribui à

existência humana, do mesmo, modo almejam entender a relação entre a

experiência e com o mundo natural.

Anterior ao processo de mudanças na chamada Geografia Cultural,

a compreensão do conceito de paisagem apresentava-se de forma distinta não

incorporando o campo das representações subjetivas do sujeito. Durante a

primeira metade do século XX, as paisagens exerceram uma função importante

na Geografia Cultural, no entanto, a essência de seus estudos estava baseada

em duas compreensões: a concepção funcional e a arqueológica. As duas

apresentam uma perspectiva físico-material do conceito em discussão. Na

primeira concepção, a paisagem era apreendida “como reflexo do

funcionamento social, cultural e econômico da sociedade” de acordo com

Claval (2002, p. 22), ou seja, como determinado povo imprimia sua expressão

característica sobre a superfície terrestre, por meio das casas, do vestuário,

das técnicas para modificar a natureza, plantações entre outros elementos. Na

segunda concepção, observa-se a ênfase no passado, pois a paisagem não

refletia o presente, mas o seu funcionamento passado as sucessões de

diferentes períodos históricos sendo dotadas de valor explicativo.

A paisagem, negligenciada pela New Geography, é resgatada pela

geografia cultural renovada. Esta abordagem centraliza os seus estudos nas

experiências espaciais baseando-se nas filosofias dos significados como a

fenomenologia e a hermenêutica. Dessa forma, a paisagem e o lugar tornam-

se conceitos valiosos para a ciência geográfica carregados de sentidos e

experiências. O temário da cultura na geografia encontra-se ampliado, tendo

em vista que determinados assuntos que antes pareciam estranhos tornam-se

alvos de investigações geográficas. Adotemos como exemplos as

manifestações religiosas, as percepções dos lugares, as formas simbólicas

35

espaciais, igualmente destacamos o patrimônio cultural tanto material quanto

imaterial. O lugar e a paisagem transformam-se em conceitos bem próximos os

quais se complementam em uma afinidade construtiva, norteando os processos

de compreensão da dinâmica do mundo vivido. Em ambos os conceitos surgea

perspectiva simbólica, na qual residem o movimento e o sentir (CORRÊA,

2006).

O lugar pode vir a ser paisagem e esta potencialmente domina o

lugar: dos sonhos, dos medos, da fantasia e da imaginação sendo assim diante

de tal imbricação vemos que o espaço geográfico é uno e múltiplo. A geografia

ao aderir à carga fenomenológica em seu aporte teórico-metodologico admite

que o ponto de partida para o conhecimento espacial seja o sujeito “eu” o qual

explica o mundo através de sua experiência. Tuan(1983) colaborou com a

expansão do horizonte humanista contemplando em seus estudos os aspectos

da subjetividade humana e conectando a dimensão afetiva dos seres humanos

ao meio ambiente ocupado por eles. O lugar tornou-se um pólo de investigação

por parte dos geógrafos humanistas e culturais debruçando-se para desvendar

seu significado.

Tuan (1983) aprofunda o conceito-chave que se entrelaça com o

desenvolvimento da vertente humanística na geografia, o lugar. Na mesma

obra, o autor mostra as diferenças e os aspectos complementares existentes

entre o Espaço e o Lugar destacando a seguinte acepção: “O espaço fechado

e humanizado é lugar. Comparado com o espaço o lugar é um centro calmo de

valores estabelecido. Os seres humanos necessitam de espaço e

lugar”(TUAN,1983,p.61). O espaço significa liberdade e movimento, mostra-se

amplo e basilar para a vida do ser humano como igualmente para suas

relações sociais, econômicas políticas entre outras inúmeras que se

desenvolvem no espaço geográfico, todavia, o existir humano não pode ser

avaliado através da camada dogmática materialista e objetiva, a aventura que

homem realiza para produção do espaço geográfico é constituída igualmente

pelos sons, pelas cores, cheiros, sabores, familiaridade e sentimentos.

Os espaços públicos por exemplo, a praça, a rua, o bairro, a velha

casa e o lar, como da mesma forma os espaços privados, tomemos como

exemplo os shoppingcenteres que podem vir a se tornarem lugares visto que,

nesses espaços humanizados laços de convivência e segurança são

36

estabelecidos, partindo da intimidade de suas experiências será tecida uma

afável rede de sentimentos, mostrando assim as variadas escalas onde o lugar

pode brotar (TUAN, 1983). Na perspectiva dos vínculos emocionais entre os

seres humanos,o autor faz a seguinte explanação:

Na doença, os adultos também conhecem a fragilidade e a dependência. Uma pessoa doente, protegida pela familiaridade de sua casa e confortada pela presença daqueles que ama, sabe bem o que significa o cuidado carinhoso. Os lugares íntimos são lugares onde encontramos carinho, onde nossas necessidades fundamentais são consideradas e merecem atençãosem espalhafato. (TUAN, 1983, p. 152)

Por meio das reflexões de Tuan, o lugar agrega a experiência vivida

dos sujeitos como maneira de conformação da realidade. A identidade do lugar

será configurada por meio da combinação entre o contato com o espaço de

vivência e a observação associada à identificação com seus movimentos de tal

espaço, o qual metamorfoseia-se em lugar representando um centro de

significado. Tomemos como exemplo a casa e o lar, os quais podem adquirir

profundo significado emocional para os indivíduos que se relacionam e

estabelecem laços de afeto, o amor e o apego pela casa por parte de seus

moradores será resultado de sua experiência e aproximação.

O conceito de paisagem é caro aos geógrafos culturais que

procuram compreender o espaço como uma teia de relações materiais,

imateriais, econômicas, políticas e simbólicas. Para alcançar o patamar

elevado que ocupa atualmente, o conceito de paisagem sofreu modificações,

pois como qualquer outro conceito carece de permanente atualização e

revisão. Fazendo parte da tradição geográfica, a paisagem constitui-se como

ferramenta basilar de apreensão do dinamismo espacial. Compreende-se que é

imprescindível desvelar como o imaginário a respeito da natureza é

decodificado em valores envolvidos em uma atmosfera simbólica, tendo em

vista que as práticas sociais não podem ser interpretadas pela rasa camada da

objetividade. Adentrar no universo representacional da paisagem, significa

entender o espaço tanto por meio da perspectiva visível, quanto por meio que

delineiam a dimensão mítica dos lugares, desta forma a paisagem exibe

fundamental papel na relação onde transitam: sentimentos espaciais e

imagens.

37

Vista de diferentes formas, a paisagem apresenta significados

múltiplos, por exemplo, na arquitetura, na geografia e nas artes visuais o

significado de paisagem se apresenta de forma diferenciada. Cada ramo do

conhecimento define a paisagem de acordo com seu objeto de estudo e seus

objetivos.

Podemos perceber que o conceito de paisagem veio

metamorfoseando-se ao longo do tempo. Domingues (2001, p. 65) nos revela

que “mudam-se os tempos, mudam-se as sociedades e, com elas, as

paisagens”. O dinamismo diferenciado das relações sociais em momentos

distintos é o elemento central na discussão do referido autor sobre o conceito

de paisagem. Procedendo dessa maneira,deparamo-nos com as

singularidades de uma determinada sociedade em um determinado período.

Elementos como as casas, os edifícios, as fachadas que mostram a opulência

e a imponência de uma classe social são apenas alguns subsídios para a

interpretação de um momento passado que incorporou o novo trazendo

consigo uma organização política, econômica e social.

A respeito do valor que a paisagem possui de conservar continuas

relações sociais que se estabelecem, Santos nos diz que:

A paisagem deve ser pensada paralelamente às condições políticas, econômicas e também culturais. Desvendar essa dinâmica social é fundamental: as paisagens nosrestituem todo um cabedal histórico de técnicas, cuja era relevam; mas elas não mostram todos os dados, que nem sempre são visíveis. (SANTOS, 2008, p. 75)

O que vemos são formas de períodos passados que se articulam e

coexistem,sobrepõem-se fazendo da paisagem algo que não é estático, mas

nos revela bastante acerca dos ciclos econômicos trazendo vestígios.

O desenvolvimento da paisagem cultural se realiza com o passar

dos tempos configurando-se sobre diferentes camadas temporais e históricas

as quais se sobrepõem no espaço, assim, dificilmente deparamo-nos com

paisagens culturais que sejam absoluto fruto do trabalho de comunidades

recentes, ao contrário, o desenvolvimento de uma paisagem é um processo

qual exige trabalho acrescido envolvido em processos históricos e sucessões

de tempos.O processo de constituição de uma paisagem é um processo lento

não sendo elaborada em um único período, porém, é constituída por

38

acréscimos e substituições. Dessa forma, uma paisagem é uma escrita sobre

outra exibindo incontáveis camadas de objetos, cores, dimensões, valores

morais e crenças, sendo diferentes entre si formando heranças que se

articulam em diversificados momentos. O acúmulo de trabalho consente a

elaboração e deposição das formas no espaço demandando décadas ou até

milênios de atividade humana, em que todas as civilizações trabalharam sobre

o legado de outras atuando sobre a matéria já criada e elaborando novas

formas (WAGNER E MIKESELL, 1962).

A paisagem age como um depósito capaz de fornecer registros

sobre a sociedade que a moldou e remodelou, por exemplo: estradas, edifícios,

plantações, indústrias, parques entre outras inúmeras formas que são criadas

pelo homem. É válido ressaltar que existe a necessidade de inserção da

paisagem cultural em seu contexto histórico para que a mesma seja

interpretada de maneira apropriada.

Penetrando no domínio que ultrapassa o mundo visível, a paisagem

vem apresentando diversos significados e pode ser lida de diversas formas

apresentando caráter polivocal. Os distintos olhares e leituras quando

associados aos processos temporais que se sucedem trazem a vida, e o

movimento da paisagem. Meinig (2003, p. 35) explica que “qualquer paisagem

é composta não apenas por aquilo que está à frente de nossos olhos, mas

também por aquilo que se esconde em nossas mentes”. Diante do exposto,

apreendemos que tal conceito ultrapassa o campo da visão, ou seja, é extra-

visível a partir de tudo o que nossa mente é capaz de armazenar e interpretar,

os conhecimentos passados de geração em geração, os costumes de cada

povo são elementos guardados pela memória de cada um, resultando na

formação de uma paisagem imaterial ultrapassando a objetividade.

A discussão sobre os aspectos imateriais da paisagem tem obtido

destaque no âmbito acadêmico, oferecendo novo vigor às questões ligadas aos

valores simbólicos dos lugares e das paisagens humanas. Compreendemos

que a relevância da paisagem delineia uma realidade que pode ser interpretada

por todos os seres humanos independente de classe social, gênero ou idade,

pois é resultado da atividade da imaginação de cada ser humano, em tal

processo a subjetividade direcionará o olhar do sujeito para o mundo, fato este

que enriquece a paisagem dando-lhe sentido e significado construído tal qual

39

ordenador (não determinante) de suas ações cotidianas de maneira conexa e

coerente.

Ao mencionar o significado da paisagem, Cosgrove (2000) nos fala de

novos significados para a compreensão do espaço geográfico realizando

importante atividade na elaboração de mundos de significados, entretanto tal

trabalho não é propriedade exclusiva dos sentidos tampouco apenas do

intelecto, o ato de imaginar não se resume a total produção ou reprodução de

imagens e dados oriundos do mundo externo, informações e imagens sofrem

metamorfoses as quais arquitetam novos significados para o mundo no qual

encontramos inseridos. O potencial interpretativo humano é inesgotável no que

toca a construção e reconstrução de significados enriquecendo o debate

acerca da paisagem.

COSGROVE (1993) ressalta que de acordo com as atividades e

crenças humanas a paisagem pode ser interpretada de diferentes formas

devido a sua faceta multidimensional sendo vista como “paisagem de

consumo”, por outro ângulo vem a ser teatro, mapa, ou texto, destarte,

aceitamos que o conceito em tela é uma construção pessoal que não se funda

excepcionalmente a partir da matéria resultante do trabalho humano é, contudo

forma simbólica eivada de valores (CORRÊA, 2011).

A Geografia continuamente demonstrou interesse pela temática da

paisagem, inicialmente como palco para a descrição material de seus

componentes, tal conceito era tomado como expressão que refletia a ação do

homem sobre a natureza, esta interpretação das paisagens ocorria a partir da

fixidez dos objetos distribuídos no espaço de acordo com determinado recorte.

A humanidade composta por diversas culturas apropria-se da matéria e lhe

oferta significação, introduzindo, dessa maneira, novas dimensões para a

compreensão da paisagem. Destacamos, assim, a perspectiva imaterial,a qual

permite que o conceito em debate seja algo que transcenda o aspecto visível

palpável que edifica a paisagem. Encontramos no trajeto espacial elementos

simbólicos que irão delinear e participar ativamente da vida da paisagem e

consequentemente da vida humana. Sobre o ordenamento da paisagem,

Cosgrove reforça:

A paisagem sempre esteve intimamente ligada, na geografia humana, com a cultura, com a idéia de formas visíveis sobre a superfície da

40

terra e com a sua composição. A paisagem, de fato, é uma “maneira de ver”, uma maneira de compor e harmonizar o mundo externo em uma “cena”, em uma unidade visual. (COSGROVE, 1998, p. 98)

Admitimos que a imaginação permite as atribuições à paisagem,

constituída por objetos visíveis oferecendo a cena visualizada os mais diversos

e válidos significados. Comumente, olhamos para uma mesma direção e

visualizarmos os mesmos elementos que compõem o meio físico, porém,

dificilmente apreenderemos a mesma essência da paisagem diante de nós. As

experiências do cotidiano são únicas para cada um, é algo individual sendo

fundamental para o estudo da percepção.

A vida pessoal, a memória e a construção do espaço para cada

indivíduo são elementos essenciais no processo de percepção da paisagem,

nesse contexto, Meinig (2003) revela-nos os múltiplos olhares a respeito da

paisagem os quais nos conduzem ao caráter polissêmico que a mesma

apresenta. A polissemia indica que a paisagem pode ser concebida como:

natureza, habitat, artefato, sistema, problema, riqueza, ideologia, história,

lugar e estética. Meinig (2003) explica-nos algumas das possibilidades de

olhar a paisagem, entretanto, encontramos a paisagem como estética

densamente relacionada com a visão da arte. Nesse sentido, Meinig

compreende que:

No gênero da pintura da paisagem, podemos encontrar exemplos que expressam muitas das visões discutidas da paisagem: o poder e a majestade da natureza, a marca da história sobre a terra, o caráter detalhado dos lugares. Cada uma delas representa uma cuidadosa seleção feita pelo artista. (MEINIG, 2003, p. 44)

Dessa maneira, ao selecionar paisagens para ser representado pela

pintura, o artista é um grande comunicador, que através da escolha minuciosa

tenta retratar um momento. Durante o processo de elaboração de sua obra, o

artista apropria-se de uma linguagem própria, que se encontra em cada

época, em cada sociedade e envolvida em um universo sociocultural.

Observamos que a manifestação artística (e aqui ressaltamos a pintura) é

capaz de revelar o espaço geográfico, posto que o artista cumpre com êxito a

função de engenheiro da imaginação ao apreender os dados sensoriais que

sua visão, olfato,paladar, audição e tato captam e reinterpretá-los. O artista

41

não elabora uma cópia fiel da realidade em suas telas, ao contrário, cria uma

nova paisagem com um novo significado sendo essa uma nova forma de ver

e ordenar o mundo, um ponto de vista novo e próprio: a do sujeito observador.

A paisagem pictórica não mostra neutralidade, ao contrário emana a

intencionalidade do artista que direciona a criação.

Toda pintura é um ponto de vista que liberta o universo interior do

homem, tecendo,assim, uma maneira de ver e representar o mundo que nos

cerca, constituindo um olhar ímpar voltado para a paisagem na qual estamos

inseridos. Ao visitarmos museus ou galerias de arte, percebemos uma trama

arquitetada por aqueles que souberam representar o real e que almejavam

através das mais variadas técnicas, revelar aos outros o seu universo criativo,

para isso dedicaram-se à pintura, à fotografia, ao entalhamento, à escultura

como formas de apreender sentimentos e experiências espaciais.

Concordamos com Cosgrove (1998, p.99) quando afirma que “a

paisagem está intimamente ligada a uma nova maneira de ver o mundo”,o

artista vê,imagina e oferta um novo significado recriando lugares

correlacionando às paisagens real-simbólica-imaginária. Podemos constatar

este fato nas obras de arte,pois a partir da leitura e contemplação da natureza

o artista cria uma nova realidade com novas percepções, muitas vezes

emanados de sua mente criativa. Desse modo, a arte é um produto no qual

encontramos enraizados sentimentos espaciais. Percebemos isso ao analisar

a obra de Raimundo Cela que retratou a paisagem litorânea cearense,e que

mostra espacialidades através de cores vibrantes, traduzindo sua afeição pela

paisagem do lugar retratado na paisagem litorânea presente na maioria de

suas telas.

A paisagem como pintura é um tema que atravessa milênios de

história, pois a arte é algo inerente ao ser humano, diante de tal perspectiva

Strickland realiza a seguinte explanação:

Durante milhares de anos, acompanhando a ascensão e a queda de cada civilização, essas três formas de arte - pintura, escultura e arquitetura – encarnaram as ambições, os sonhos e os valores da cultura. Embora os primeiros artistas fossem anônimos, muito do que sabemos sobre as sociedades antigas vem da arte que nos legaram. (STRICKLAND, 1999, p. 02)

42

A paisagem artística é vista como uma ferramenta na qual podemos

refletir acerca do espaço geográfico nas quais suas tramas complexas

envolvem o cenário real e imaginário. Estes por sua vez ganham sentido

quando são postas lado a lado permitindo o entendimento a respeito das

representações da paisagem. Constatamos, portanto, que de acordo com

suas diferenças e vivências o sujeito capta e organiza o íntimo da paisagem e

dá movimento à cena vista.

Cosgrove (1998) concebe que a geografia permite escapar bastante

do significado existente na paisagem humana procurando diminuí-la a uma

impressão a qual se distancia do sujeito, predominando a dimensão

materialista representadas pelas forças econômicas e demográficas, as quais

tornaram-se focos recorrentes nas pesquisas geográficas.

O estudo das manifestações artísticas dentre as quais destacamos:

as cinematográficas, literárias e pictóricas como “expressão intencional

humana”, que é edificada por meio de variadas camadas de significados, ainda

soa estranho para muitos, esta postura faz permanecer uma disposição que

restringe a paisagem a uma “impressão impessoal de forças demográficas e

econômicas”. A capacidade interpretativa humana aplicada a paisagem parece

ainda desprezada ou negada, consequentemente, ao negligenciá-la deixamos

de encontrar as essências do mundo que criamos e transformamos a todo

instante(COSGROVE,1998, p.97).

Augustin Berque destaca-se, ao considerar a paisagem como um

dado que ultrapassa o nível morfológico e apresentando sentido, vida e

dinamismo próprio,aponta também, elementos da problemática para uma

geografia cultural. Berque (1998) revela que a simultaneidade da paisagem,

uma vez que este conceito pode ser dimensionado enquanto marca e matriz,

sincronicamente duas dimensões que coexistem sem anularem as forças de

cada uma,estabelecendo a relação de complementaridade, visibilidade e

significação, objetividade e subjetividade,compondo, assim, a dialética da

paisagem. É preciso compreender a paisagem de dois modos: por um lado ela é vista por um olhar, apreendida por uma consciência, valorizada por uma experiência, julgada (e eventualmente reproduzida) por uma estética e uma moral, gerada por uma política, etc. e, por outro lado, ela é matriz, ou seja, determina

43

em contrapartida, esse olhar, essa consciência essa experiência, essa estética e essa moral, essa política etc. (BERQUE,1998, p. 86)

A paisagem como “marca”na concepção de Berque (1998) expressa

a apropriação e transformação material da sociedade sobre a natureza. Uma

marca cultural que é presente e passado, impressa sobre a superfície terrestre

conforma a escrita de uma sociedade que é apreendida por meio da

percepção, podendo ser descrita e quantificada. Afirmar que a paisagem é

matriz significa que a mesma lança uma dimensão simbólica participando dos

esquemas de reconhecimento e pertencimento na paisagem na qual os

processos psicológicos e físicos constroem seu significado. A superfície

terrestre está coberta por marcas culturais passadas e presentes que servem

de orientação simbólica para a sociedade que a concebe. A paisagem é matriz

quando assume presença nos esquemas de determinação na experiência, no

olhar, no juízo moral e estético;portanto, paisagem e sujeito encontram-se co-

integrados na intrínseca relação na qual o homem atua sobre a paisagem e

esta assume poder sobre o sujeito.

A paisagem na arte pode ser pensada simultaneamente como marca

e matriz, existindo uma forte imbricação entre sujeito-objeto e que constitui uma

via dupla, na qual é uma das características peculiares da arte, ou seja, a

relação do artista com o mundo o qual ele pertence. O artista se expressa a

partir da cores, dos movimentos, sabores e anseios, elementos estes que

fazem parte de sua vida, compondo, por meio de seus objetos de trabalho:

tintas, pincéis, telas, paletas, texturas,tornando visível uma marca ao mesmo

tempo que será matriz porque irá compor uma tessitura imaterial, que expressa

a sua concepção de mundo. Compreendemos que a obra de arte não se

constitui como um arranjo totalmente fechado e arquitetado em única dimensão

confinada em si, ou seja, não se resume à relação simplista da arte pela arte,

mas funda inter-relações com os aspectos físicos, históricos, geográficos e

simbólicos que encontram-se presentes na paisagem.

Sendo a paisagem um conceito fundamental e expresso na

Geografia Cultural, podemos perceber que aquele conceito considera os

sentimentos e idéias de um indivíduo ou um grupo, pois expressa a experiência

vivida. “Todas as paisagens possuem significados simbólicos porque são o

44

produto da apropriação e transformação do meio ambiente pelo homem”

(COSGROVE,1998, p.108). Na matéria que é modificada pelo indivíduo

existem as formas específicas de como os significados, os movimentos

corporais realizados por determinado grupo em cerimônias, danças,encontram-

se impregnados de processos mentais, permitindo interpretar tal relação como

uma articulação entre o imaginário e o real. Do mesmo modo, as paisagens

naturais contem seu simbolismo, tomemos por exemplo o Monte Fuji ou como

também é conhecido, Santuário Monte Fuji, trata-se de um dos principais

símbolos do Japão que é associado à morada de Deus, tal forma geológica,

além de exibir beleza natural, revela o significado espiritual para os adeptos do

Xintoísmo, religião nascida no Japão a milhares de anos.

Ressaltamos que o presente trabalho apresenta uma abordagem

embasada na Geografia Cultural renovada, que confere uma ampliação das

bases epistemológicas desenvolvidas pela Geografia Cultural clássica. Os

temas de pesquisa também passam por algumas mudanças, pois além de

questões tradicionais como: paisagem cultural, história da cultura no espaço,

áreas culturais e a ecologia cultural, uma nova agenda de estudos que antes

era embrionária, passa por um desdobramento. São temáticas da focam na

espacialidade da religião, da cultura popular, das identidades culturais, dos

conflitos culturais, bem como a leitura a respeito do espaço geográfico inserido

nas obras literárias, na pintura, no cinema, do mesmo modo na música. A

postura teórico-metodológica marca a renovação da Geografia Cultural,

baseada nas filosofias dos significados, por exemplo, a Fenomenologia,

buscando compreender a experiência vivida e o significado que o ser humano

atribui a sua existência.

Corrêa apresenta as facetas simbólicas e funcionais da paisagem

explanando que: Em realidade a paisagem é, de um lado o resultado de uma determinada cultura que a modelou e, de outro, constitui-se em uma matriz cultural. Como resultado a paisagem é uma “vitrine permanente de todo o saber”, expressando a cultura em seus diversos aspectos, possuindo uma faceta funcional outra simbólica. (CORRÊA, 1995, p. 04)

Dessa maneira, a compreensão da paisagem é concebida como um

produto da cultura e revela seus traços de acordo com a política, religião,

45

economia e outros elementos a caracterizam e por sua vez está distribuída na

superfície terrestre. A expressão funcional da cultura é identificada em suas

formas, manifestações e em sua estética. Entretanto, a paisagem não é apenas

uma forma material, mas exerce o papel de matriz, ou seja, vem revelando a

mesma como algo capaz de transmitir, reproduzir e perpetuar valores sociais,

conhecimento e crenças. A paisagem com sua face simbólica é eivada de

signos e significados, possui essa faceta simbólica porque é resultado da ação

dos indivíduos que apropriam-se da natureza e a transformam. Ao modificar a

natureza, o homem torna impressa sua marca por meio de linguagens e

símbolos.

Os sentidos (aqui destacamos o papel da visão como porta para a

compreensão da paisagem) tornam possível a decodificação da paisagem. Os

sentidos são intermediários entre o que é externo e interno. Permitem que a

paisagem seja revelada em seus aspectos mais íntimos transpassando dessa

forma o campo do palpável e alcançando características imateriais. A paisagem

enquanto fruto da mente humana, revela o que está oculto partindo da visão

como o sentido inicial de captação dos múltiplos movimentos espaciais.

Nesse sentido, Hissa (2002, p.184) segue buscando revelar o

sentido implícito do espaço que, apresenta-se com dinamismo que é

apreendido com a observação.

[...] compreender a essência do espaço é preciso dirigir o olhar às suas origens, rediscutindo a natureza da observação. Uma metáfora? Ainda assim, não se perde o objetivo da tarefa: conhecer. A poesia também está contida naquilo que não pode ser visto. Descobrir o que não está à mostra é não se contentar apenas com o que está evidente (considerando que a evidencia possa, ela também, ser uma insinuação falsa, deslocadora). Descobrir o que não se põe aos olhos é construir a poesia do que está á mostra: é qualificar a invisibilidade do visível. É buscar a origem e a natureza do que se coloca disponível, e cobri-lo de palavras e significados. (HISSA, 2002, p.184)

O ato de compreender a imaterialidade do espaço é um exercício

específico de observação e da percepção. Qualificar o invisível é transpor as

aparências não se limitando ao simples fato de descrever, pois dessa maneira

chegamos a uma realidade incompleta. Compreendemos que apenas a

essência é reveladora, acarretando a gênese do movimento e apresentando o

que na maioria das vezes está camuflado de maneira proposital para confundir,

46

ou seja, a paisagem sempre encontra-se envolvida em uma atmosfera

ideológica.

O ato de olhar fragmenta-se em numerosos pontos de vistas que

são legíveis a cada indivíduo fazendo da paisagem um fenômeno vivido

semeado na imaginação durante a história de vida cada sujeito. Sendo assim

o que é invisível passa a ser visível. Acerca das diferentes visões sobre a

paisagem, Claval (2004) explana que o geógrafo não se limita apenas a

paisagem objetiva. Têm a atenção voltada para a maneira de como a

paisagem está envolta de sentido, investida de afetividade por aqueles que a

habitam ou que a desvendam; sendo assim, a heterogeneidade da paisagem

surge em sua morfologia representada por: cores, ondulações, arquiteturas,

volumes. O decorrer da existência de cada ser humano define aquilo que

vemos e o que somos, consequentemente influenciam nosso ver sobre o

espaço. Diferentes formas de educação, religiões, o status social que o

individuo ocupa, cidades conquistadas e desenvolvidas de diferentes formas,

desigualdades econômicas e sociais são elementos que proporcionam forte

influência na percepção da paisagem fazendo da mesma uma tessitura de

significados.

O artista plástico, o poeta, o músico entre outros, buscam abordar

temas que fazem parte da vida humana. Nesse sentido, Cosgrove (1998) nos

revela alguns temas que são comumente apresentados através da arte, seja a

pintura, o teatro, ou poesia,temáticas as quais envolvem: a vida, a dor, as

conquistas, a transformação de cidades, o progresso a guerra entre outros são

assuntos que evocam um contexto histórico, podendo ser simples ou

complexo.

2.4 PAISAGEM E FENOMENOLOGIA

Retomamos no presente tópico o pensamento de Merleau-Ponty

sobre a experiência corpórea mediante o mundo dos sentidos. Nesta

perspectiva, admite-se que a percepção está intimamente conectada a

experiência do corpo. No entendimento fenomenológico da percepção, à

captação dos sentidos realiza-se por meio do corpo, uma expressão criadora a

partir dos diferentes olhares sobre o mundo. Merleau-Ponty (2004) realiza uma

47

análise dedicada à sartes visuais para entender o olhar do pintor para com o

mundo que lhe rodeia, partindo da experiência que o artista extrai de suas

relações, bem além dos contornos que compõem as telas de arte, realizando,

assim, uma meditação sobre a invisibilidade da paisagem e natureza da obra

de arte as quais olhamos ao mesmo tempo em que somos observados pelas

mesmas, Merleau-Pontyanseia desvelar o mistério da visibilidade.

A visão retoma seu poder fundamental de manifestar, de mostrar mais que ela mesma. E, já que nos é dito que basta um pouco de tinta para fazer ver florestas e tempestades, cumpre que ela tenha seu imaginário. (MERLEAU-PONTY, 2004, p.40)

Como já mencionamos, o conceito pelo qual exploramos a obra de

Raimundo Cela, a paisagem, realizou um longo percurso desde seu surgimento

até os dias atuais passando por uma intensa reconceituação e ganhando mais

uma acepção que transcende toda sua morfologia. Assim, delineia-se a

dimensão simbólica da paisagem erigida a partir das percepções que o sujeito

emite em relação ao seu entorno. Portanto, buscamos na Fenomenologia

esteio para a compreensão da paisagem,que se efetiva na obra de Raimundo

Cela, o qual retratou o universo litorâneo do município de Camocim,

apresentando por meio de suas telas uma paisagem eivada de inúmeras

marcas culturais,as quais individualizam os povos que vivem do mar.

Temos,assim,formas e objetos representados por casas, jangadas, utensílios

para pesca, além de gestos corporais captados pelo artista,nas quais incluímos

seus personagens compõem ofertam o dinamismo da paisagem em suas telas.

As essências dos fenômenos podem ser infindáveis, pois variam de

acordo com as significações que o homem será capaz de produzir. Por meio da

nossa percepção, lembranças, pensamentos, fantasias e imaginação é que as

significações nos ofertam. A espacialidade faz parte da condição do ser

humano, já este se inscreve no espaço geográfico e o habita. O mundo vivido é

construído pela multiplicidade de experiências do sujeito não cabendo medidas

ou cálculos, ocorrendo um distanciamento das grandezas morfológicas

mediante um aprofundamento dos fenômenos da consciência humana

(HOLZER, 2010).

48

Embora neste trabalho elejamos o olhar como principal sentido para

apreensão da paisagem, outros sentidos, por exemplo, como o tato e a audição

também levam o sujeito a apreender a essência da paisagem. Os deficientes

visuais, por exemplo, aguçam outros sentidos para se orientarem e perceberem

os movimentos espaciais (HISSA, 2002). Não percebemos a paisagem

exclusivamente a partir de arranjos espaciais ou outras formas de mensuração

e conhecimento das mesmas. A descrição é apenas o início para o mergulho a

partir do olhar físico almejando a significação da paisagem. A Fenomenologia

permitiu uma nova abertura para o entendimento da paisagem ao torná-la

fluida, maleável, com acréscimo de movimentos para quem a habita e se deixa

habitar pela mesma.

Besse (2006, p. 79) nos fala que “a paisagem é sinônimo de

ausência de objetivação”, ou seja, a coexistência sujeito-objeto onde o primeiro

não somente observa passivamente, mas atua mediante as formas da

paisagem tornando-a sua propriedade. Portanto, antes de ser matéria

configura-se partindo dos sentimentos e valores transformando-se em

liberdade para o sujeito,compreendemos que a paisagem descende do

sentimento.

A paisagem significa participação mais do que distanciamento, proximidade mais do que elevação, opacidade mais que vista panorâmica. A paisagem por ser ausência de totalização, é antes de mais nada a experiência da proximidade das coisas.(BESSE, 2006, p. 80)

Os contornos que encontramos diante de nossos olhos são apenas

trilhas que nos levam para algo maior do que a linha do horizonte encerra.

Imersos na paisagem, não marcamos coordenadas geográficas, e nem

carecemos de mapas ou cartas para orientação porque a paisagem será a

realidade e o sentido da experiência associada à manifestação simbólica,

originando a produção de sentidos do mundo que não se reduz a uma simples

fixidez de objetos sem dinâmica relacional. Diante da importância do tema

paisagem e Fenomenologia, Collot (2013) revela um novo ângulo para a

descoberta do conceito em estudo, caracterizando como um campo abrangente

e complexo, amplo porque envolve uma construção baseada na compreensão

de mundo calcada na subjetividade do homem o que internaliza a paisagem.

49

Por definição, a paisagem é um espaço percebido, ligado a um ponto de vista: é uma extensão de uma região [de um país] que se oferece ao olhar de um observador [...]. De fato, a noção de paisagem envolve pelo menos três componentes, unidos numa relação complexa: um local, um olhar e uma imagem. (COLLOT, 2013, p.17)

Inicialmente as teorias exploratórias da paisagem enfatizavam o

primeiro e o último elemento da relação citada, tendo, portanto, o local e a

imagem em contraponto ao segundo componente, o olhar. O local exibia como

destaque na criação da paisagem sendo considerado molde pelo qual a arte

devia reproduzir e narrar de forma leal, de acordo com o entendimento que

possuíam da mimésis. Os modernos aspiraram à inversão dessa hierarquia

rejeitando a imitação, disseminando uma nova perspectiva no constructo da

paisagem (CARTAXO, 2012).Também incluímos os sentimentos dos escritores,

músicos e igualmente dos fotógrafos face ao entendimento da paisagem. O

segundo elemento da tríade supracitada ganha relevância porque promove o

pensamento reflexivo do homem mediante o espaço e o tempo e cultura. O

artista que antes somente manuseava e descrevia paisagens com a paleta e o

pincel passa a projetar seu interior na própria obra nos dando acesso ao

universo de interpretações.

O ponto de vista é a contribuição de quem olha a paisagem e

desliza sobre a mesma, assim o elemento vital para qualquer cena é o olhar de

cada um, que permitirá percorrer o que outros olhos não apreendem na

paisagem. Configurando-se como um dado imaterial, a paisagem será um

modo pessoal de compreensão da realidade e torná-la familiar significa que o

sujeito se reconhece na mesma, instituindo e construindo realidades no

espaço. Paisagem e sujeito são correlatos, transgredindo a noção sujeito e

objeto estabelecido pelo paradigma positivista e assumindo inúmeros valores

da afetividade humana.

A renúncia da mimética por parte dos artistas vai conferir um novo

significado para a pintura,pela qual caminha para além da simples substituição

de objetos. Implanta-se assim, uma maneira reflexiva para compreender e

observar o mundo, pois a ressignificação da arte possibilita a inauguração de

uma nova realidade para o mundo, onde o olhar do artista é considerado

criativo, inventando e reinventando paisagens, transcendendo a própria obra.

50

As pontuações fenomenológicas abrangem estudos que concernem

os fenômenos afetivos e cognitivos e também da análise da consciência em

variados níveis,nos quais exemplificamos com: a percepção dos lugares e da

paisagem em seus diferentes níveis, como por exemplo: lugares sagrados e a

paisagem literária, enfatizamos o uso da corrente filosófica em debate sobre o

domínio da estética bem como o significado da arte para a existência do ser

humano, ainda assim não esgotamos a gama de objetos que surgiram

possuindo na Fenomenologia seu sustentáculo teórico-metodológico.

É válido retomar que a fenomenologia almeja explicitar as

experiências vividasas quais trazemos do real, sendo que “à volta as coisas

mesmas” é explorá-las sob a ótica da significação. Partindo desse norte,

procura-se compreender as composições do nosso ser no mundo.

Procedendo na vereda da consciência, a Fenomenologia descortina que o ser

humano quanto ser pensante realiza sobre a superfície da Terra.

A visão do pintor não é mais o olhar posto para fora, relação meramente físico-óptica com o mundo. O mundo não está mais diante dele por representação: é antes o pintor que nasce nas coisas como por concentração e vinda a si do visível, e o quadro finalmente só se relaciona com o que quer que seja entre as coisas empíricas sob a condição de ser primeiramente “autofigurativo.” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 44)

Diante do exposto pelo autor, compreendemos a pintura como uma

atividade que exige inicialmente técnica, utensílios e determinados

conhecimentos acerca do enquadramento, dos efeitos causados pela luz e

sombra, medidas e entendimento a respeito das escalas de tonalidades das

cores. Um quadro é compreendido também sob o seu aspecto imaterial,como

um produto do olhar vívido bem como criativo do pintor. A representação por

sinos revela um fragmento da obra, a sua interpretação, ultrapassa os limites

estabelecidos por contornos e objetos presentes na tela. Entendemos um

quadro como um renascimento inacabado do artista. Deparamos coma

verdade do pintor, traduzida por meio da sua pintura, pois a arte possibilita a

edificação de um elo entre a experiência de quem cria a obra e os

espectadores, os quais a recebem interpretando-a através do olhar. Destarte,

nas linhas contorcidas, vibrantes, nos rostos desfigurados, nas paisagens as

51

quais o significado não se apresenta de maneira explicita, somos convidados

a enxergar a verdade bem como a face do artista na obra.

Inúmeras vezes ao percorrermos uma obra de arte somos

conduzidos a refletir sobre o sentido não tão claro por traz daquilo que vemos.

Habituados a decodificar o quadro em si, negligenciamos a intencionalidade

de quem o elaborou, pois o olhar do pintor está diretamente ligado a tela

através da intensidade dos traços e da escolha das cores usadas na

composição da obra.

Simples ou refinada, a técnica irá refletir o dinamismo do espaço no

qual foi criada, adotemos como exemplo as vanguardas que propunham a

liberdade criativa reflexo da modernidade. A técnica pode agir como indicador

de mudanças culturais, a relação estabelecida entre sociedade e meio

ambiente, transformações políticas, científicas bem como a mutação dos

valores morais de uma comunidade. O movimento Impressionista, o Cubismo,

o Futurismo, o Expressionismo, entre outros, trazem sua mensagem

portadora de singularidade espacial, permitindo-nos apreender o espaço

geográfico por meio da obra de arte.

Merleau-Ponty (2004) elabora um ensaio estético que trata da vida e

obra do pintor Paul Cézanne, realizando um diálogo entre a arte do referido

pintor e sua vida permeada de angústias, as quais serão refletidas em seus

quadros. Cézanne revela uma nova maneira de pintar, buscando nas cores,

na embriagues das sensações e nas deformações a singularidade de sua

obra. A pintura é a extensão do corpo de quem a elabora, no entanto o que é

delineado sobre a tela irá provocar percepções em outros corpos. No ensaio a

arte se distancia da imitação, do bom gosto da arte tradicional, e da diversão.

Dessa forma, ao vermos a obra de Cézanne percebemos a vibração das

cores e encontramos seres oriundos de sua mente turbulenta resultado de

sua vida solitária e angustiada, traduzindo nas telas seu próprio mundo de

maneira radical.

Corpo e percepção estão inter-relacionados de forma que por meio

do primeiro e dos sentidos o artista conhece e prende o dinamismo do mundo,

em uma relação espacial o corpo vai adquirir um caráter poroso tendo em

vista que a experiência perceptiva é ao mesmo tempo corpórea. De acordo

com Ponty (1999, p. 308):

52

A percepção sinestésica é a regra, e, se não percebemos isso, é porque o saber científico desloca a experiência e porque desaprendemos a ver, a ouvir e, em geral, a sentir, para deduzir de nossa organização corporal e do mundo tal como o concebe o físico que devemos ver, ouvir e sentir.

Penetrar no universo da arte, nos permite explorar uma visão

diferenciada do ser humano no mundo bem como do tempo. No ensaio que

PONTY (2004) realiza a respeito da obra de Cézanne por meio da reflexão

fenomenológica, apreendemos um deslocamento para o campo das várias

possibilidades de exploração da arte que aponta para a compreensão do ser

no mundo, destaca-se, assim, a experiência do sensível como reflexão

corporal, “a pintura foi seu mundo e sua maneira de existir”, afirma PONTY

(2004, p.125). Na abordagem fenomenológica, a vivência com a realidade do

corpo como também a experiência dos sentidos ganham destaque e

configuram-se como o foco da abordagem em debate.

53

3 A ICONOGRAFIA DA PAISAGEM

Neste capítulo, discorreremos acerca do método o qual julgamos

mais adequado para os estudos das obras de arte: a Iconografia da

paisagem. Os procedimentos iconográficos originarão o esteio para

compreendermos a mensagem geográfica presente na obra de Raimundo

Cela.Dessa forma, as obras-de-arte apresentam-se como textos que surgem

codificados por meio dos símbolos os quais são carregados de significados e

são compreendidos pelos indivíduos a partir de determinados conhecimentos

a respeito da cultura na qual a obra foi criada.

O método da iconografia da paisagem apóia-se no historiador de

arte Erwin Panofsky (2004). É utilizado por geógrafos que buscam um estudo

mais aguçado a respeito das representações da paisagem (COSGROVE e

JACKSON, 2003). A arte, com seus desenhos, formas, cores e figuras

geométricas, constitui-se como um vasto campo para a pesquisa geográfica.

A iconografia da paisagem almeja a leitura das mensagens que os signos

trazem.

A grande parte dos estudos geográficos baseados nas artes visuais,

iniciados nos anos 1980, foram realizados a partir de “metodologias

interpretativas de análise”, especialmente as “iconográfica e

etnográfica”(DANIELS, 2004, p. 442). Dessa forma, estabeleceram-se

conexões envolvendo geógrafos acadêmicos e artistas empenhados a

retrabalharem os estudos de arte da paisagem como uma atividade de

criação a qual se define em permutas entre a composição das obras de arte e

seus significados (DANIELS, 2004).

A iconografia integra um ramo da história da arte, englobando a

descrição das imagens com também mensagens nas obras de arte,

abrangendo estudos do imagético, como as pinturas, os retratos e as

estátuas. Assim, corroboramos com Panofsky (2004, p. 53) ao explanar

acercado método, portanto, “ao fazer este trabalho, a iconografia é de auxílio

incalculável para o estabelecimento de datas, origens e, às vezes a

autenticidade; e fornece as bases necessárias para quaisquer interpretações

ulteriores.” De tal modo, o método referido exige três etapas metodológicas

fundamentais para a compreensão do seu significado essencial. Dessa

54

maneira, no primeiro nível denominado pré-iconográfico encontra-se o

significado que é apreendido de maneira clara. O tema primário ou natural

subdivide-se em factual e expressional, o primeiro subtema é obtido por meio

da identificação das formas puras, pois ao visualizar uma obra o olho humano

registra suas primeiras impressões assimilando as formas e as cores, objetos,

animais, pessoas e quaisquer elementos que constituem as obras,

estabelecendo um conhecimento prévio das mesmas. O significado

expressional emerge posteriormente indicando qualidades de expressões

psicológicas que as formas naturais nos transmitem, por exemplo, a dor, a

alegria, tristeza, ou angustia, tranqüilidade, da mesma forma uma atmosfera

de expressões vibrantes ou uma áurea serena presente em uma paisagem

(PANOFSKY, 2004). Perante o conjunto de significados iniciais da obra de

arte, Panofsky explana que

o mundo das formas puras assim reconhecidas como portadoras de significados primários ou naturais pode ser chamados de mundo dos - motivos artísticos. Uma enumeração desses motivos constituiria uma descrição pré-iconográfica de uma obra de arte (2004, p. 50).

Se tomarmos a obra, “A Última Ceia”, de Leonardo da Vinci como

exemplo, e a observarmos a luz do primeiro nível pré-iconográfico, a obra

seria percebida como uma pintura na qual treze homens estão sentados à

mesa fazendo uma refeição. Logo, percebemos que no primeiro plano

metodológico abordado carecemos de um grau básico de entendimento para

a compreensão da obra, desprovido de qualquer contextualização histórico-

cultural.

O tema secundário ou convencional constitui-se como o passo

ulterior na abordagem metodológica no estudo das artes visuais. Na presente

etapa, unem-se os motivos artísticos com assuntos e conceitos, ou seja, é

então realizada a iconografia propriamente dita. Dessa maneira,

estabelecemos uma correlação entre os objetos presentes em determinada

obra, combinações das partes que edificam o corpo da mesma, as quais

Panofsky (2004, p. 51) denomina de “estórias e alegorias.” Posteriormente, o

terceiro passo é aquele no qual a obra de arte é contextualizada

historicamente mostrando, de acordo com Panofsky (2004, p. 52), “a atitude

55

básica de um período, classe social, crença religiosa, ou filosófica qualificados

por uma personalidade e condensado numa obra.” Entretanto, o presente

nível metodológico de análise exige para a compreensão da obra, associar-se

a outros métodos para alcançar uma interpretação mais aguçada e profunda

dos objetos. Almeja-se, assim, por meio de outro método interpretativo

(logos), integrar-se à significação da obra transpassando o exame preliminar

restrito a morfologia e a estética. Classificar e descrever o período histórico,

no qual a obra foi concebida e, igualmente, identificar as formas e as relações

estabelecidas entre os objetos, são princípios basilares para o encontro com

os valores simbólicos ocultos em qualquer obra particularizando a mesma

(PANOFSKY, 2004).

A iconografia nos permite construir o esteio para que ultrapassemos

o plano descritivo, adentrando na significação que a obra emana. Dessa

forma, o método em debate considera apenas uma das dimensões

participantes do constructo da obra de arte, ou seja, a descrição, considerada

fundamental quando almeja-se a compreensão do conteúdo imaterial contido

na obra de arte.

No terceiro ponto, o qual se refere à orientação metodológica da

pesquisa, será concebida a iconologia, que, de acordo com Panofsky (2004,

p. 54), consiste na retirada do isolamento a iconografia, e posteriormente

associando-a

Em qualquer outro método histórico, psicológico ou crítico, que tentemos usar para resolver o enigma da esfinge. Pois se o sufixo “grafia” denota algo descritivo, assim também o sufixo “logia” – derivado do logos, que quer dizer “pensamento”, “razão”-denota algo interpretativo.

Para nossa pesquisa, lançaremos o olhar sobre a iconografia como

procedimento metodológico inicial, familiarizando-nos com a obra do pintor

Raimundo Cela, pois percebemos que qualquer interpretação que transpasse

o nível visual exige primeiramente uma aprofundada descrição das suas

formas. Assim, buscando um estudo iconológico, utilizaremos a iconografia

contextualizada na Fenomenologia da percepção, é permitido compreender a

dimensão imaterial e da experiência, fundamentais no constructo da essência

contida na obra pictórica de Raimundo Cela. A Fenomenologia da percepção

56

avança nos estudos da vivência humana, adentrando na experiência da

consciência realizada acerca do mundo que nos circunda.

A integração da iconografia com a fenomenologia, no terceiro nível

proposto por Panofsky, possibilita-nos a percepção do olhar de Raimundo

Cela, voltado para as paisagens por ele produzidas. Nessa perspectiva,

utilizaremos fatos relevantes da vida de Cela, embasados na biografia do

artista, explorada no capítulo 4. As explanações biográficas do autor Firmeza

(1988; 2004) nos fornecerão os alicerces para estabelecermos uma relação

com a obra, e compreendemos o artista como um ser-no-mundo, integrando a

sua existência às espacialidades retratadas na tela.

Ressaltamos o estudo de campo como uma etapa basilar na

compreensão do olhar de Raimundo Cela para o litoral, pois, no referido

momento visitamos os locais retratados pelo artista, e conversamos com

alguns moradores a respeito de Camocim, bem como acerca da vida do

pintor, quando o mesmo residia na cidade.

A cada obra, o pintor revela-nos o desenvolvimento de Camocim,

elaborando paisagens fundamentais na história da cidade. Portanto, para o

entendimento da obra pictórica de Raimundo Cela, contextualizaremos o

local, a data bem como os significados presentes nos trabalhos do artista. Na

sequência analisaremos as pinturas, a partir do conceito de paisagem sob o

olhar da Geografia Cultural.

Gomes (2003) considera a arte como um elemento norteador para

os estudos de cunho geográfico humanístico, principalmente para aqueles

geógrafos que almejam uma leitura mais aprofundada das culturas existentes.

Assim, nas palavras do autor,

Para chegar a uma verdadeira interpretação das culturas, em sua inscrição espacial, o geógrafo deve ser capaz de reunir o maior número de elementos possíveis que tratam dos valores, das significações e das associações construídas por um grupo social. A arte é, em geral, considerada como o meio mais livre e mais espontâneo deste tipo de manifestação. Aquilo que a ciência não chega a reconhecer, devido os limites impostos pelo método, a arte o consegue por um meio não racional. Assim da mesma maneira que os românticos, que consideravam a poesia e a literatura como o berço dos valores humanos, os humanistas consideram a arte como o elemento de mediação entre a vida e o universo das representações (GOMES, 2003, p. 314).

57

Nesse contexto, percebemos as interfaces possíveis entre as

esferas da arte e da espacialidade. A paisagem geográfica evoca a realidade

através de metáforas ou representações a partir de morfologias. O olhar de

Raimundo Cela para o litoral, por exemplo, constitui uma intervenção da

percepção, na qual a paisagem ai representada, corresponde ao clássico

binômio natureza e sociedade.

Na dimensão da proximidade do corpo com a paisagem,

observamos as interfaces possíveis entre as esferas da arte e a geográfica.

Dessa forma, o corpo obtém relevância caracterizando-se como instrumento

para nossa experiência perceptiva, sendo assim, o sujeito transforma-se em

objeto de conhecimento do mundo, devido a tal capacidade de interpretação é

válido ressaltar que a fenomenologia é um método de pesquisa e também

uma maneira de pensar. Em ambos os casos, a capacidade da consciência é

eleita como um fator indispensável, central, na apreensão do mundo, porque

lançar o olhar para a percepção oriunda das experiências do ser no mundo, é

considerada etapa metodológica basilar, a qual nos fornece esteio para

promovermos a ruptura instalada na oposição sujeito e objeto. Nessa

perspectiva, o espaço vivido é o espaço da significação e dos sentimentos,

enfatizando, assim,a vivencia do homem diante do mundo, resgatando uma

dimensão desprezada pelo racionalismo científico e exaltação das técnicas

(LENCIONI, 2003).

Perante a experiência do ser-no-mundo, Chauí elege a

Fenomenologia como uma corrente que:

Descreve essências constituídas pela intencionalidade da consciência, que é doadora de sentido à realidade. A consciência constitui as significações, assumindo atitudes diferentes cada qual com seu campo específico, sua atitude e finalidade próprias (1996, p.314).

Logo, para assentar uma análise orientada por meio da

Fenomenologia, faz-se necessário uma trilha metodológica que admita

técnicas que possibilitem ao pesquisador a compreensão da experiência do

sujeito, por exemplo: a observação de campo seja participativa ou não

participativa, aplicação de questionários e entrevistas, registros fotográficos,

também são congregados aos vídeos e depoimentos. Destarte,procedendo de

58

tal maneira o individuo é incorporado em todo o processo de construção do

conhecimento,tornando-se claras as vivências íntimas do sujeito, seus

eventos e sentimentos únicos, permeados por singularidade, em aversão aos

estudos de aparência e eventos gerais (PEREIRA, 2003).

Observamos que a iconologia nos acende um universo de

significações e relações oriundas das obras de arte, manifestando a essência

do pintor dedicado em elaborar sua obra, desvelando o mundo puramente

visível, exprimindo assim por meio de sua técnica, paletas e telas

experiências únicas, sentimentos e percepções espaciais criando e recriando

o enigma da visão. Assim, percebemos que a obra de arte não se resume a

mera aplicação de técnicas buscando um produto final, logo, é algo exigente

de uma reflexão corporal profunda do artista, ao passo que a obra de arte é

uma extensão do corpo e da experiência humana. Chauí encara o ser

humano como uma consciência enraizada em um corpo, este transcende o

objeto natural e narrado pelas ciências biológicas, entretanto, somos um

corpo, o qual tanto é “habitado” quanto é “animado por uma consciência”.

Compreendemos, assim, que o mundo e nossa estadia nele não se resume a

um simples conjunto de fatos ou coisas estudadas sob a luz das relações de

causa e efeito. Dessa forma, para além da razão e da matéria, existe

O mundo como lugar onde vivemos com os outros e rodeados pelas coisas: mundo qualitativo de cores, sons, odores, figuras, fisionomias, obstáculos, caminhos; mundo afetivo das pessoas, lugares, lembranças, promessas, esperanças, conflitos, lutas.(CHAUÍ, 2010, p.268)

Diante a explanação da autora, apreende-se que a consciência do

sujeito apresentada a respeito do mundo é mais latente do que podemos

imaginar, transpassa o plano racional, porque é uma fonte envolta de

intencionalidade, sendo assim, o olhar do homem acerca do mundo é um ato

pelo qual ele o experiência, o imagina, cria, o modifica, atribuindo-lhe sentido

e compreensão. O mundo percebido é parte do sujeito, logo, não é edificado

exclusivamente partindo de dados brutos mensuráveis, ao contrário, é tecida

uma singela rede de significações construídas a todo instante. Concebendo a

noção de que o mundo é arena de vivências abertas, Merleau-Ponty (1999,

p.18) diz que

59

O mundo fenomenológico não é o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de uma nas outras; ele é portanto inseparável da subjetividade e da intersubjetividade.

Na compreensão da percepção diante da obra de arte, o corpo do

artista sofre metamorfoses, não caracterizando-se apenas como um conjunto

de ossos e tecidos visíveis a outros seres, tampouco massa ou receptáculo

para o espírito, o corpo é movimento envolvido em dinamicidade expressional

recriadora e doadora de sentido, portanto, a reflexão corporal do ser humano

estabelece a sua maneira de ser e estar no mundo. O corpo não se resume a

mero objeto situado, no tempo e no espaço,é antes o primeiro canal de

comunicação com os outros sujeitos, desde o momento no qual nascemos,

pois nossos gestos exibem quem somos e o que sentimos, logo antes de ser

matéria, o homem é criatura que sente e experimenta o espaço (MERLEAU-

PONTY, 1999). O autor realiza uma reflexão a respeito do corpo e da

consciência, indicando a indissociabilidade entre ambos e complementa

diante de tal fato que

O mundo é inseparável do sujeito, que não é senão projeto do mundo, mas de um mundo que ele mesmo projeta. O sujeito é ser-no-mundo, e o mundo permanece subjetivo, já que sua textura e suas articulações são desenhadas pelo movimento de transcendência do sujeito. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 576)

Quando o pintor elabora a sua obra, ele cria novamente uma

tessitura de formas, atribuindo-lhe sentido de acordo com sua forma de ver o

mundo e seus movimentos. Assim, a arte e a fenomenologia estabelecem um

elo intenso, pois observamos que o corpo do artista é permeado por

intencionalidade, na qual vislumbra-se um novo horizonte na criação e a partir

desta abertura os gestos, as cores, os olhares, e igualmente os sons se

entrelaçam, originando novas imagens. Logo, a consciência do artista

transforma-se na consciência do próprio corpo do artista, a sua expressão de

ser no mundo. Acionar um diálogo entre Arte e Fenomenologia significa

negligenciar toda e qualquer separação existente entre na relação sujeito e

objeto; entre corpo e consciência, percepção e intelecto como também

60

significado e formas presentes na composição da obra, pois esta exprime o

sopro vital do artista (CHAUÍ, 2010).

A arte se manifesta acompanhando as inquietações de variadas

ocasiões da historia da humanidade. Revelam-se os anseios, as experiências,

reivindicações, e quebra de paradigmas estéticos. Diante do domínio visual, a

arte também nos possibilita exercitarmos o olhar geográfico. A presente

pesquisa não busca revelar a arte como o caminho, mas se advoga que a

mesma pode ser uma abertura para o conhecimento dos movimentos da

paisagem. Hissa (2002, p.184) nos fala sobre a função do geógrafo diante do

visível,afirmando nessa perspectiva que “quem é geógrafo diz a tradição,

sabe abrir os olhos e ver.” Compreendemos com a afirmação do autor que, é

tarefa do geógrafo não se limitar as aparências, sendo necessária a

interpretação do jogo de signos existente diante de nossos olhos, dos valores

e representações os quais participam da configuração do espaço geográfico.

Em uma perspectiva socioespacial, a Geografia Cultural renovada

indica novas possibilidades, apresentando novas temáticas as quais

inauguram uma nova dimensão da paisagem, do território e do lugar,

apontando os estudos da arte delineados pela pintura, cinema, fotografia

entre outros. Deparamo-nos, dessa forma, com temas originais e igualmente

estranhos ao domínio geográfico que passaram a compor uma nova agenda

de pesquisa para dos geógrafos nos últimos anos. Dadas as novas

formatações de recortes e objetos de estudos, não podemos perder de vista

determinadas marcas que singularizam a essência geográfica das pesquisas.

Assim, diante da relevância existente em conservar as características do

trabalho geográfico, Gomes (2008, p. 188) elucida que

Essas marcas são obtidas essencialmente pela importância explicativa que atribuímos à localização relacional que se estabelece entre as coisas e as pessoas. Queremos dizer que uma analise geográfica deve preservar como prioridade a observação da relação que, por ventura, exista nos fenômenos entre a localização e as significações.

Na busca pela significação dos fenômenos geográficos, as imagens

desempenham um papel relevante nos estudos dos acontecimentos

espaciais, ao apresentarem-se como instrumentos para a reflexão acerca da

61

ordem espacial bem como a sua acepção. Assim, a função da imagem para

muitos limita-se a mera substituição do real por uma representação.

Tomemos como exemplos: as fotografias, as pinturas, os filmes entre outras,

isto significa dizer que para tal postura, as representações configuram-se

como cópias fidedignas do mundo real. No entanto, essa noção acerca das

representações corresponde àquela estabelecida pelo positivismo, no qual o

fenômeno apresentava-se diretamente ao pesquisador, sendo assim,

buscavam-se dados e informações a partir de uma transcrição possuidora de

um valor real e absoluto. Esta maneira de ler a realidade transformou-se em

alvo de contestações, afirmando que as representações não refletem o

mundo de forma perfeita e idêntica, elas o criam. Conduzida a um ponto

extremo ocorrerá a inversão completa dos termos da relação

real/representação, na qual o primeiro termo passa a ser o produto da

imaginação humana, pois o conhecimento e definição que trazemos a

respeito do que é real, de fato são subjetivos, edificados por meio da

consciência humana (GOMES, 2008).

As representações são verdadeiras leituras realizadas pelo ser

humano acerca da sociedade e do período no qual vive, estabelecendo,

assim, experiências com seus semelhantes conferindo significado ao meio

natural, dessa forma

As representações criam seus temas, seus quadros próprios, carregados de tintas de cada momento e embebidos nos contextos de cada lugar ou grupo social. As representações expressam escolhas a partir de princípios de significações que lhes são próprios e também transitórios, ambíguos polimorfos ou como gostamos de dizer atualmente, complexos (GOMES, 2008, p. 193).

Os estudos sobre a paisagem na arte constituem-se como um foco

para as pesquisas em Geografia Cultural, compondo o universo de

representações analisadas por geógrafos nas investigações dos fenômenos

da paisagem. Esta, por sua vez, não se restringe a simples relação material

delimitada através da visão, mas é considerada como um objeto eivado de

complexidade que exige capacidade de compreensão, para entendermos de

quais maneiras, ela codifica as dimensões da experiência perceptiva

62

geográfica e imagética do ser humano (COSGROVE, 1993 apud DANIELS,

2004).

O pintor da arte contemporânea obtém uma nova postura ao

abandonar a noção de superioridade agindo como um mero organizador,

ordenador nas representações. Observamos neste ângulo contemporâneo a

interação entre a arte e o sensível, na qual o corpo não mais se isola

silenciosamente abafando seus sentidos, mas agora este mesmo corpo é

transportado para as obras, havendo uma ruptura na separação artista-obra.

Existe no ser humano uma potencialidade criativa infindável, a qual

lhe é inerente e ao mesmo tempo relativa aos acontecimentos do cotidiano,

materializando-se através das ferramentas utilizadas para a modificação do

meio natural e das relações estabelecidas com as outras pessoas. No sentido

de ordenar o mosaico de sentimentos e objetos, que fazem parte do seu

habitat, o homem cria as representações, pois a subjetividade do mesmo é

algo incalculável e igualmente eivado de significação. A partir da

imaterialidade(mas que encontra sua base no espaço físico), o ser humano

acrescenta valor ao meio que o circunda, logo as representações e desde já

ressaltamos as artísticas, são construídas por camadas de significados,

muitas vezes geográficos que aguardam o desvelamento da experiência

espacial vivida pelo artista (RIVERA, 2013).

Observamos, desse modo, a relevância em articularmos o conceito de

paisagem cultural que manifesta-se nas conjecturas de uma ferramenta

imagética, a obra pictórica de Raimundo Cela. A Geografia descobre e

interpreta o mundo construído pela sociedade, almejando desta maneira

adentrar no sentido das manifestações humanas ocorridas e percebidas no

espaço geográfico, ressalta-se, desse modo, a capacidade que a obra de arte

exibe em espelhar a dimensão da experiência humana sobre a superfície da

terra.

63

4 A PAISAGEM LITORÂNEA EM RAIMUNDO CELA

Neste capítulo, propomos a exploração da paisagem litorânea

captada por Raimundo Cela. Foram escolhidas algumas das telas criadas

pelo pintor em destaque, para que, norteados através do conceito de

paisagem, compreendamos as espacialidades apreendidas através do olhar

perceptivo de Cela. Discorreremos acerca do processo de formação histórica

do município de Camocim, para auxiliar-nos no embasamento da captação do

dinamismo presente na obra de Cela, e assim articularmos a paisagem e a

vivência litorânea.

A paisagem litorânea em Raimundo Cela é ocerne da presente

dissertação. Portanto,para falarmos do litoral, julgamos ser relevante observar

a relação existente entre o homem e o mar. Desde os primórdios da

humanidade, os seres humanos tiveram uma extrema relação com o mar.

Não apenas na dimensão ecológica, mas, também na esfera

cultural.Procedendo assim, almejamos exibir uma análise,a qual apresente

uma capacidade de abrangência mais ampla, tendo em vista a dimensão

material, a qual nos servirá como uma entrada, para apreendermos

posteriormente, os significados do litoral filtrados por Raimundo Cela.

4.1 A PERCEPÇÃO DO OLHAR EM RAIMUNDO CELA

A água é um elemento fundamental no dinamismo do espaço

geográfico, pois, a ausência dos mares ou das nascentes lacustres,

proporcionaria a extinção da vida, este fato refletir-se-ia nas configurações das

paisagens, as quais transmitiriam a tristeza e o sofrimento. Os oceanos são

fatores de relevância ecológica, (é válido ressaltar o estoque de espécies

alimentares, habitantes nos oceanos, bem como para o regulamento do clima

global), econômica, política, proporcionam lazer e servem ao mesmo tempo

como via para transportes. Nos locais por onde as águas demarcam o seu

território, emana a beleza, o verde e a vida, apreciada nas plantas e nos

vegetais, transformando os lugares (DARDEL, 2011).

Um amplo número de tecnologias foi desenvolvido, objetivando a

exploração mais aguçada dos oceanos, assim, prontamente, a física, a

64

matemática, a química dentre outras áreas do conhecimento, edificam as

bases para o desbravamento, bem como para a compreensão da

complexidade dos oceanos. Além dos benefícios materiais provindos dos

oceanos, a imensidão do mar também fornece-nos outra dimensão

concernente aos sentimentos, que encantam e inspiram vários artistas, os

quais permanecem olhando além dos aspectos visíveis, percebendo e

registrando nas suas obras,a vibração de cores intensas e vivas expressando

os seus respectivos significados. Nessa perspectiva, as paisagens percebidas

e sentidas cotidianamente, conduzem os poetas, músicos, fotógrafos,

pintores, dançarinos, cineastas, atores, escultores e incluímos também os

amadores, a cantarem das mais diversas formas as suas visões a respeito do

cenário do litoral, permeados de experiências e paixões pela paisagem que

movimenta- se diante do seu olhar (DARDEL, 2011).

O mar inspirou muitos artistas a resguardarem nas suas obras de

arte as riquezas presentes no ambiente litorâneo. Assim, o ato de olhar para o

oceano admite a transcendência humana diante da paisagem,na qual

comunica-se com o artista, por meio dos sons emitidos através do ir e vir das

ondas, das variações das marés as quais transformam temporariamente a

paisagem edas atividades cotidianas exercida pelos seus habitantes. Assim,

reside na paisagem litorânea uma perspectiva simbólica que são denotadas por

suas nuances as quais denunciam elementos significativos e singularizam o

espaço do litoral.Esses elementos estabelecem um diálogo,direcionado ao

olhar do artista, o qual empenha-se sobre o trabalho de aprendê-la. Inserido no

universo de olhares atentos para a temática marítima, Raimundo Cela, foi um

pintor, que destacou-se por desenvolver uma percepção das águas do mar que

banham Camocim. Também é lembrado por traduzir através de sua arte, os

componentes de uma paisagem na qual traz como moldura e agente

modelador, o mar. O artista pintou a bravura e o labor de homens,pelos quais

têm o oceano como a sua fonte de sobrevivência.

Raimundo Cela era filho primogênito, nasceu no dia 19 de julho do

ano de 1890, na cidade de Sobral, Ceará. Não viveu na sua terra natal por

muito tempo; este fato deve-se ao seu deslocamento aos quatro anos de idade

para Camocim. A motivação da mudança para a referida cidade foi a profissão

de seu pai, José Maria Cela Mosquera, mecânico de profissão, trabalhando

65

para a empresa responsável para realizar a implantação da via férrea em

Camocim. O seio familiar permitiu o desenvolvimento do futuro pintor de

maneira confortável, qualificando-o para a vida artística. Nessa perspectiva,

tinha como referência intelectual a sua mãe, Carolina Brandão Cela, pois, a

mesma exercia a profissão de professora, direcionando os primeiros anos de

estudo em sua própria residência. Portanto, no âmbito familiar, Raimundo Cela

estava cercado de referencias,que seriam a base para o seu futuro artístico

(FIRMEZA, 2004).

Em Camocim, a sua nova morada, o clima era suave devido à brisa

marítima que inundava a cidade, diferenciando-se assim de Sobral onde o calor

era intenso. Destarte, Sobral foi o berço no qual o pintor nasceu, e Camocim a

terra acolhedora, permitindo-lhe dar os primeiros passos para além do âmbito

de sua vivência litorânea, onde era cercado por uma paisagem que configura-

se como um fenômeno único. Firmeza (2004) apresenta-nos uma parte do

cenário natural e inspirador para Raimundo Cela, no início da sua caminhada

para o desbravamento do mundo encontrado além da linha azul do oceano

As praias bonitas com seus recantos e ilhas, os barcos insinuando viagens longínquas, sonhos, desejos e o porto tentando com seu movimento na chegada e saída dos barcos. O horizonte abria-se para tudo. O caminho se fazia, se mostrava por todos os lados. Camocim aconteceu na sua vida (FIRMEZA, 2004, p.18).

Cela convivia com aquela paisagem litorânea, aproveitando a

favorável condição familiar e financeira. Foi nesse ambiente no qual Raimundo

Cela cresceu. Ao completar dezesseis anos, deixa Camocim para ir morar em

Fortaleza, com o intuito de estudar e seguir a carreira artística. A respeito

dessa nova fase na vida de Cela, Firmeza (2004)nos informa

Camocim distava de Fortaleza 373 quilômetros, mas o desejo, a vontade e o objetivo encurtam o caminho e nossa capital o esperava, e ele a queria para os estudos mais avançados, necessários aos seus objetivos e os objetivos que o pai desejava, engenheiro, enquanto ele pretendia ser artista plástico. Por qualquer caminho chegaria a Fortaleza. Assim em nome de todos os objetivos, Cela prepara a viagem e, em 1906, com dezesseis anos e uma adolescência bem preparada, desloca-se para a capital do Ceará, onde chegou, viu e venceu (FIRMEZA, 2004, p.18).

66

Fortaleza embora detentora do título de capital, ainda permanecia

resguardando características rurais, que conviviam com a atmosfera da

modernidade emergente, responsável pela nova modelagem da cidade. Cela

ao chegar deparou-se com boas condições oferecidas como: o transporte

ferroviário e marítimo, avenidas, bonde puxado por tração animal, repartições

públicas, instituições de ensino como o Liceu do Ceará e a Faculdade de

Direito, iluminação pública e o teatro José de Alencar. Ressaltamos a presença

do Liceu, porque, foi nesse estabelecimento de ensino que Raimundo Cela

concluiu o ensino básico, para posteriormente dedicar-se ao nível superior na

Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro. No ano de 1910,o futuro

artista viaja com destino ao Rio de Janeiro, ingressando simultaneamente no

curso de engenharia na Politécnica e na Escola de Belas Artes para estudar

pintura. Cela foi um aluno sempre dedicado,obtinha destaque nas atividades

realizadas bem como nas disciplinas cursadas (FIRMEZA, 1988).

É válido relembrarmos que o estilo neoclássico também denominado

de acadêmico, reivindicava os princípios da boa arte, eivada de orientações

acadêmicas, inclinando-se fortemente para resgatar os valores da Antiguidade

Clássica (LITTLE, 2010). Na época em que Raimundo Cela ingressou na arte,

o neoclassicismo predominava no Brasil, encontrando espaço amplo,

principalmente na Escola de Artes no Rio de Janeiro. Nesse cenário tradicional,

Cela recebe a formação norteadora a qual guiaria a sua vida artística,

desenvolvendo o seu talento. Apesar do Neoclassicismo predominar, algumas

transformações ocorreram e foram sentidas nas composições das obras de

artistas brasileiros, uma abertura incidiu na elaboração das representações,

constituindo progressos referentes às temáticas, sobretudo as clássicas.Estas

gradativamente cederam espaço para um campo diversificado de temas mais

populares, próximos do cotidiano do povo, transmitindo uma realidade mais

intensa.Diversos artistas aderiram a uma nova postura no âmbito artístico,

concernente à renovação, por exemplo, novos temas, técnicas mais modernas,

distintos materiais, e diferentes locais para a sua produção. Exemplificamos

este fato com os pintores impressionistas que aboliram a postura tradicional de

pintura no ateliê, produzindo as suas telas ao ar livre. Dessa maneira,

estabelece-se, então, o diálogo entre antigos e novos estilos, incorporando ou

excluindo valores (FIRMEZA, 1988).

67

A tela “Último diálogo de Sócrates” (figura 1) edificada sob os

padrões estabelecidos pela arte acadêmica, rendeu a Cela o prêmio viagem ao

exterior, obtido no Salão Nacional de Belas Artes no ano de 1917, que

desfrutou de três anos na Europa, em especial, na França, país no qual Cela

passaria dificuldades financeiras bem como de saúde. A tentativa de conseguir

o seu próprio ateliê fracassou, e recusando-se a permanecer no quarto do

hotel, Cela resolve fazer diversas visitas ao museu de Londres, e de algumas

cidades da Bélgica e Holanda. Atentando sempre para a expansão de seus

horizontes de pintor, Cela acreditava que o contato com novos pintores e obras

seria rico momento de aprendizado (FIRMEZA, 2004).

Figura 1 – Último diálogo de Sócrates-1917

Fonte: CD-ROM Raimundo Cela 1890-1954, elaborado por Galeria Pinakotheke Multiart, 2004.

68

A rigidez do inverno parisiense abalou a saúde de Cela, porém,

diante dos empecilhos encontrados como, a saúde fragilizada, o pouco dinheiro

recebido como pensionista e a escassa alimentação, o artista não desistiu e

finalmente adquiriu um ateliê em um lugar no qual a paisagem era bonita, e o

clima agradável. Seu novo local de trabalho distanciava-se cinquenta minutos

de bonde de Paris. No ano de 1922, a saúde do pintor revela sinais de

esgotamento, sentindo as fortes conseqüências da sua estadia frenética,

repleta de dificuldades em Paris. Uma gripe no início do referido ano deixa o

pintor bastante debilitado, pois, não se alimentava de forma satisfatória para

manter o seu corpo saudável. A permanência em Paris foi conturbada, e a

gripe não se constituiu como único problema a abater as forças de Cela. No

ano de1922,de acordo com Firmeza (2004),

Em março, ao sair para um compromisso, sentiu que a dor de cabeça que começara a sentir em casa estava aumentando. Uma dor incômoda do lado esquerdo, entre o ouvido e o olho [...]. Levado ao hospital,foi diagnosticada uma pequena hemorragia, pelo rompimento de um vaso sanguíneo, na meninge cerebral. A causa do problema era a fadiga mental e o remédio o repouso de alguns meses. Quanto ao distúrbio ocular, também foi considerado conseqüência do estado geral da saúde e desapareceria com a normalização do organismo como um todo. (FIRMEZA, 2004, p. 27)

O repouso reforçado foi o melhor medicamento prescrito pelos

médicos a Raimundo Cela, infelizmente, as suas atividades precisaram de uma

interrupção, porque o seu corpo e a sua mente sinalizavam um estado de

debilidade, reflexos do trabalho incessante em um país distante, longe de sua

família. Homem forte e perseverante, Raimundo Cela não se rendeu ao

desânimo daquela situação desconfortável, recuperou-se do derrame e feliz

segue para Dampierre já conhecida por Cela, nas proximidades de Paris.

O ano de 1922 caracteriza-se como um período de relevância na

trajetória artística de Cela.Uma mudança, a qual iluminaria a má fase vivida

pelo pintor em destaque, foi o ano da aceitação das suas obras que o mesmo

enviou para o Salão de Paris, “uma paisagem e duas águas-fortes, feitas no sul

da França, estas obras não só foram aceitas e ele considerado um mestre,

como elogiado por vários dos melhores jornais de Paris” (FIRMEZA, 2004,

p.27). O “Salon” era rígido na seleção do elenco das obras de arte, primando

por qualidade e talento dos artistas participantes desse evento, o qual era

69

responsável pela ascensão ou decadência da carreira de muitos, ou seja, a

aceitação no “Salon” era sinônimo de êxito, logo, a rejeição significava que a

obra não obedecia às boas regras da arte acadêmica, sendo elaborada fora

dos moldes da tradição.

Cela enquadrava-se nos padrões estabelecidos pelo rigor

acadêmico, sendo considerado um artista de elevado valor exponencial por

jornais importantes da época, projetando o seu nome no âmbito da arte.

Próximo a estabilizar a sua carreira internacional, desfrutando da fama de

mestre confirmada pelo êxito no “Salon”, Cela retorna ao Brasil. Esse fato

deve-se ao seu problema de saúde obrigando-o a voltar. Recusando-se a fixar-

se no Rio de Janeiro, o seu destino escolhido foi Camocim, local tranquilo onde

Cela estava próximo a sua família, recebendo apoio para recuperar-se

totalmente do derrame sofrido.

4.2 PAISAGEM LITORÂNEA, DE CAMOCIM: VIVÊNCIA E SIMBOLISMO

Nos anos vividos em Camocim, após o seu retorno ao Brasil, a

natureza era a nascente inspiradora, orientando a arte de Raimundo Cela,

fornecendo-lhe o tema litorâneo, como verifica na figura 3 “Praia em Camocim”.

As relações estabelecidas entre o homem e a natureza, em suas telas originam

um contraste, no qual percebe as lutas diárias de pessoas nas suas profissões

desafiadoras,e que estão associadas à beleza dos movimentos nos quais

expressam a vida da paisagem.Assim, observamos o afloramento da produção

do pintor,no qual lançou o seu olhar sobre os temas relacionados à vida

litorânea.

Raimundo Cela na sua jornada artística, não confinou-se à postura

rígida do universo neoclássico, sobretudo após a sua viagem a Europa,

Firmeza (2004) explica-nos a respeito da incorporação de novos aspectos em

sua pintura

Permaneceu nos princípios adquiridos do academicismo dentro de sua estrutura técnica, mas percebeu e aceitou as nuances novas que se apresentavam, a visão renovada que a vida lhe oferecia, a percepção reavivada do seu meio de origem que o atingiu em seu retorno ao Brasil, e aproveitou todo esse oferecimento, utilizando o que pode em seu trabalho de arte (FIRMEZA, 1988, p.27).

70

Os temas mitológicos e as figuras greco-romanas eivadas de

sobriedade e equilíbrio, correspondentes ao neoclassicismo, cederam lugar

sutilmente a uma variedade de conteúdos, os quais passavam a representar o

povo brasileiro em sua realidade, com cores mais enérgicas integrantes do

cenário renovado, no qual a arte brasileira estava adentrando.

Em 1938, Cela volta ao cenário artístico nacional plenamente,

recuperado, faz novamente o trajeto de saída, partindo de Camocim

destinando-se a Fortaleza junto com a sua família. A sua capacitação e círculo

de relacionamentos, promoveram a admissão do pintor como professor do

Colégio Militar. Apesar de exercer a docência, continuou pintando em seu

ateliê, um espaço cedido pelo colégio e, assim, conciliava o trabalho e a sua

paixão pela arte.No início da sua carreira, realizou poucas exposições,

entretanto, a obtenção do prêmio da viagem ao exterior,permitiu a Cela

explorar horizontes desconhecidos da sua própria criatividade, elevando a sua

produção tanto nos anos pelos quais passou em Camocim, como no tempo

vivido em Fortaleza. Ambas as ocasiões serviram como esteio para os seus

temas, bem como para elevarem o numero das suas exposições.

A Sociedade Cearense de Artes Plásticas – SCAP– caracterizou-se

como uma associação produto dos empenhos do pintor natural do Rio de

Janeiro,MárioBaratta, em nortear os talentos da arte cearense. A referida

instituição apresentou grande importância no palco da pintura cearense,

servindo como um marco na renovação da pintura no Ceará, e ressaltamos a

sua presença na vida de Raimundo Cela. Nos anos antecessores de 1941, os

artistas do Ceará não possuíam um suporte que lhes fosse próprio o qual

servisse como uma coordenação, em que debatessem as suas ideias, os seus

projetos, bem como atuasse na solução de empecilhos emergentes no caminho

artístico (FIRMEZA,1983).

Antes da fundação da SCAP, os ateliês dos pintores Delfino Silva e

Francisco Ávila funcionavam como locais de reuniões entre os artistas. Mário

Baratta, ao passar na frente do ateliê de Ávila, resolveu entrar ampliando o seu

círculo de amizades com os pintores encontrados no recinto. Mário gerou

conexões com os outros pintores e levando os artistas a refletirem sobre um

caminho mais produtivo para a assim elevar a sua arte (FIRMEZA,1983).

71

Nessa perspectiva dos diálogos fundados entre os pintores emerge a SCAP, a

qual inicialmente mantinha o nome de Centro Cultural de Belas Artes, um

núcleo destinado a prática de atividades artísticas como a pintura e o desenho.

Acerca do nascimento da referida sociedade, Firmeza (1983) explica-nos que

Finalmente em conseqüência dessa reunião de motivos, propósitos, interesses, e entusiasmo unânime, funda-se no dia 30 de junho de 1941 primeira entidade de artes do Ceará para a qual foi adotado o nome de Centro Cultural de Belas Artes. Do acontecimento participaram além dos artistas jovens alguns dos mais velhos (FIRMEZA, 1983, p.13)

No mesmo ano o centro Cultural de Belas Artes passaria por uma

transformação em seu nome, passando a se chamar SCAP. Mário Baratta não

frequentara cursos tradicionais de pinturas ou desenho, sem mestre algum ele

mesmo guiava os seus estudos de forma autêntica, sempre vislumbrando o

horizonte do futuro. Era um homem inquieto, pensante e desbravador de

talentos, sob este ângulo da sua personalidade enérgica, a primeira atitude

tomada entre outras pelo mesmo, foi lançar Raimundo Cela na esfera artística

fortalezense no período no qual Cela regressara da Europa por ocasião do seu

prêmio de viagem ao exterior. Nesse momento, Cela era considerado morto por

parte dos críticos de arte, o seu nome havia sumido de cena, pois não sabiam

mais notícias a respeito do mesmo, onde ele estava residindo ou se ainda

permanecia produzindo.

Baratta convidou Raimundo Cela para tornar-se membro da

comissão responsável por elaborar os estatutos. Observamos que o talento de

Cela, bem como o seu prestígio no âmbito artístico, auxiliou aos artistas da

SCAP em momentos difíceis, sobretudo no aspecto financeiro, como elucida

Firmeza (1983)

Quando a SCAP quis realizar um empreendimento para o qual havia a necessidade de algum dinheiro, Mestre Cela ofereceu um quadro de sua autoria para ser rifado - um admirável barco que foi para as mãos do Dr. Andrade Furtado, então Secretário do Interior e da Justiça, que subescrevera dois números da rifa fora o sorteado (FIRMEZA, 1983, p.106)

No ano de 1940, iniciava a sua participação nas exposições

coletivas, individuais e também recebia encomendas. No ano seguinte, Cela

72

juntamente com outros artistas, participa da fundação do Centro Cultural de

Belas Artes. Expôs as suas obras em Fortaleza com louvor e admiração, e o

seu esforço foi respeitado por parte de todos. Dessa maneira, a ausência de

Cela foi superada. Acerca desse novo momento na vidado pintor, Firmeza

(2004) afirma que

Tendo exposto poucas vezes no Rio de Janeiro, em 1916 e 1917, e em Paris, em 1922, Cela quebrava, neste início da década de 1940, um jejum de exposições que durou vinte e um anos, considerando que sua primeira participação em Fortaleza, tenha sido no primeiro salão de abril, em 1943 e daí uma mostra individual na Casa Juvenal Galeno, seguindo-se outra exposição coletiva no Terceiro Salão Cearense de Pintura, em 1944 e, no mesmo ano, na exposição Pintura de Guerra, era homenageado pelos expositores em catálogo com a reprodução de um catálogo seu. (FIRMEZA, 2004, p. 31)

Firmeza segue complementando ainda que Raimundo Cela

O artista dos jangadeiros passou a expor nos salões organizados por Mário Baratta, quadros que faziam a delícia dos expectadores pela grandeza dos temas, segurança das pinceladas e rico, exuberante admirável emprego das tintas. (FIRMEZA,1983, p. 126)

Em 1944, Cela abandona o ensino do Colégio Militar, ingressando

no corpo docente da Escola de Agronomia do Ceará. Nesse momento,

transfere o seu ateliê para o Foyerdo Teatro José de Alencar, seguindo com o

vigor do seu labor artístico.Sempre generoso para com aqueles jovens

ansiosos por uma oportunidade de orientação, não se negava a prestar auxílio,

àquelas pessoas que lhe pediam ajuda. Sempre disposto para descobrir algum

talento que buscasse a sua experiência.

Raimundo Cela era um viajante com disposição para realizar os

seus sonhos, e tinha sempre a arte como bússola nesta incessante busca.

Partindo novamente, o pintor deixa a capital cearense em 1945 com destino a

Niterói no Rio de Janeiro.

O Rio de Janeiro acolhe o artista pela segunda vez, neste retorno,

destacamos a Escola Nacional de Belas Artes, a qual ocupou um espaço de

relevância na formação artística de Raimundo Cela, lugar onde recebeu apoio

e admiração de amigos e professores. Nessa perspectiva, em 1945 realiza uma

exposição individual no Museu Nacional de Belas Artes.

73

Em 6 de novembro de 1954, Raimundo Cela falece vítima de

câncer,no Rio de Janeiro, mas o seu legado continua vivo para aqueles que

buscam conhecer as suas obras. Objetivando resguardar os seus trabalhos, o

Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (MAUC), em 1979, inaugura

a Sala Especial Raimundo Cela, homenageando o artista com um acervo

amplo, em que estão presentes desenhos envolvendo os estudos do artista,e

os seus trabalhos finalizados. No referido museu, encontra-se a herança de

Cela, o traço mais marcante no seu labor pictórico, o litoral vivificado por meio

do seu olhar, das suas tintas e das suas percepções.

As classificações estabelecidas sobre o universo artístico são

relevantes para o entendimento das obras, logo, a pintura de Cela como as

realizadas pelos demais pintores, também é alvo das classificações. O seu

temperamento sóbrio, introspectivo, isolado e recolhido, auxiliou-o a trabalhar

em um estado sereno, para então planejar o nascimento dos seus estudos os

quais serviriam de subsídio para as telas. Procedendo dessa forma tradicional,

o pintor tornava-se imune ao caráter efêmero da moda, construindo assim, a

sua autêntica postura perante o universo de estilos pictóricos. Cela negava-se

a se incluir nas tendências modernas, as quais influenciavam na arte

brasileira.Todavia, o pintor atentou para a sua própria criação e observou a

necessidade de uma revisão, mas,sempre buscando manter os seus valores

norteados pela tradição neoclássica (TEIXEIRA,2004).

Aparentemente de composição simples, a obra de Raimundo Cela,

revela características complexas, agregando importância à sua obra, como por

exemplo, a inventividade do artista presente nos temas pelos quais

representam a paisagem de Camocim, captando o dinamismo espacial de um

ambiente rústico, porém, eivado de significados. Cela era um artista que

pertencia à família dos “lineares”, pois, a linha e o equilíbrio bem como o hábito

do desenho são elementos presentes e fundamentais para a elaboração das

suas telas. Embora as linhas apresentem papel de destaque na obra do pintor,

este incorpora nos seus trabalhos as manchas de tinta, as quais recordam a

obras dos pintores impressionistas e expressionistas. A respeito das técnicas

utilizadas por Cela para alcançar os seus objetivos, Teixeira (2004) explana

74

Na pintura de Raimundo Cela, a linha mesmo preponderante, não apaga o caráter pictórico ou de manchas do artista. Em suas composições, a cor, tratada como mancha constrói um verdadeiro equilíbrio entre essas duas tendências. (TEIXEIRA, 2004, p.27)

Há, dessa forma, uma mescla entre a tendência acadêmica

marcante, na estruturação das suas obras, e, simultaneamente, a emoção

presente nas manchas de cores vívidas, emergindo para acionar a vida da

paisagem litorânea, captada por Raimundo Cela, ressaltando o ambiente no

qual viveu. Sempre trabalhando no seu ateliê (uma prática recorrente entre os

adeptos do academicismo), usava telas industrializadas de origem européia e

suporte de madeira compensada, dominava a arte do desenho, da aquarela e

da pintura a óleo, elaborando cada etapa do trabalho cuidadosamente, atento

para todos os seus detalhes. Os seus estudos eram feitos à lápis ou a carvão,

treinando exaustivamente, executava-os com segurança, procedendo desta

maneira Cela objetivava evitar improvisos em sua obra. Os esboços eram

fracionados e acompanharam Raimundo Cela na edificação da sua pintura,

serviam como base para ele aplicar a tinta diretamente na tela.

Situado a 379 km de Fortaleza, o município de Camocim localiza-se

no extremo Norte do Ceará, limitando-se com o Oceano Atlântico, o qual é o

destino final do rio Coreaú, constituindo o porto de Camocim, ao Sul, limita-se

com o município de Granja, a Leste, Jijoca de Jericoacoara e Bela Cruz, e a

Oeste, Barroquinha.

75

Figura 2 – Mapa de localização de Camocim

Fonte:Elaboração do mapa: Diego Silva Salvador, Agosto/2016.

A ocupação do Ceará foi um processo ocorrido tardiamente; este

fato é percebido no exame comparativo com o restante da parcela do território

nordestino. A pecuária, sob a sua faceta extensiva, consolidou-se como uma

atividade econômica relevante, a qual promoveu dinamismo intenso ao

espaço geográfico do Ceará, sobretudo nas áreas sertanejas, as quais

materializaram-se como os focos da referida atividade (PINHEIRO, 2000).

A concessão de sesmarias proporcionou o início da interiorização do

Siará, como também das disputas por terras pertencentes aos índios, os

quais sofreram o processo de expulsão, bem como o extermínio das tribos

que representavam um empecilho para o homem invasor. No decorrer desse

confronto, foram pulverizadas as relações afetivas, criadas entre os nativos e

o seu meio natural. Para os indígenas, a natureza possui um valor que não se

aproxima da lógica mercantil, estabelecida pelos portugueses, logo, a terra

76

para os nativos, “era um espaço de liberdade e da possibilidade de viver sem

serem constrangidos pelos brancos” (PINHEIRO, 2000, p.24). Porém, o

objetivo supremo dos portugueses pautava-se em transformar a terra em um

produto, capaz de originar lucros orientados por uma lógica mercantil.

Destarte, as visões de mundo eram antagônicas, e a superioridade técnica

dos armamentos associada à utilização da pólvora, extinguiu parte

considerável das tribos habitantes do Siará. As suas terras interioranas foram,

então, utilizadas para a pecuária e produção dos seus derivados, tomemos

como exemplos a carne do sol e o couro.

As fazendas de gado exibem um papel relevante no

desenvolvimento do Siará Grande, dessa forma, através das mesmas, os

vales dos rios Jaguaribe, Acaraú e Coreaú, tornaram-se áreas pioneiras no

processo de colonização do Ceará. Nos caminhos de gado, originaram-se os

povoados e a vilas, atreladas ao desenvolvimento da economia, as vilas

multiplicaram-se, ampliando as suas funções. Nessa perspectiva, os lugares

para descanso e trocas de mercadorias formaram núcleos de povoamento, os

quais seguiram realizando operações administrativas, religiosas, econômicas

e militares. De acordo com Souza (2007), ao catolicismo deve-se parte da

organização das vilas do Siará. Assim, acerca do poder da religião católica, a

autora explana

Os pequenos centros locais, se formavam pela aglutinação da população em torno de uma capela, em terras doadas por um fazendeiro. Os núcleos populacionais do Ceará evoluíram para a condição de cidade quando encontravam facilidades para se tornarem centro de trocas de mercadorias. Dentre eles, os que tiveram maior projeção foram os mais favorecidos em sua projeção geográfica, com relação aos eixos de comércio ou as áreas de produção regional. (SOUZA, 2007, p. 19)

O gado criado no Ceará era destinado para as feiras de Olinda,

Igaraçu, Goiana e Recife, porém, o extenso trajeto realizado pelas boiadas

penalizava o gado, conduzindo-o, dessa forma, ao emagrecimento e à morte,

ocasionando altos prejuízos para os seus respectivos donos. Nesse contexto,

as estradas emergiram associadas ao processo econômico para suprir as

necessidades, tanto aquelas carências locais, quanto daqueles que estavam

apenas de passagem. Em tal perspectiva, dentre as estradas as quais

77

originaram-se durante o ciclo do gado, obteve destaque a Estrada Geral do

Jaguaribe, pois, através da mesma as mercadorias adentravam no Ceará,

para posteriormente serem distribuídas, destinando-se aos seus núcleos de

povoamento (SOUZA,2007).

Nos parágrafos acima, buscamos de forma breve, expor como a

economia nascente do Siará organizava-se nas proximidades dos rios,

irradiando a produção da época para os demais povoados e vilas,

principalmente através do transporte fluvial, o qual se constituiu durante

algum tempo como principal veículo para o transporte de mercadorias, de

pessoas e para a movimentação de ideias. Sob essa esfera de agentes

dinamizadores do espaço, encontra-se inserido o porto de Camocim. Embora

a sua exploração tenha iniciado em um período de crises climáticas, quando

as secas de 1777-1778, 1790-1793 impulsionavam os empecilhos iniciais, os

quais conduziram as criações do gado cearense a uma decadência, o porto

funcionou como uma porta para o embarque de gêneros agrícolas e da carne

de charque, ainda produzida no período da sua instalação (GIRÃO, 1994).

A ocupação do município em destaque assemelha-se com outras

regiões litorâneas do Brasil, pois, o interesse na colonização indígena

conduziu os franceses, os holandeses e portugueses, a travarem lutas,

visando o controle bem como a exploração das tribos, as quais habitavam no

litoral de Camocim. De origem tupi, a palavra Camocim significa: “vaso onde

enterravam os indígenas, os corpos dos mortos e que servia-lhes de túmulo”

(MONTEIRO,1984, p. 117). A Carta Foral de 11 de março de 1535 indica o marco referencial, no

qual constitui-se o município de Camocim. As terras foram cedidas por D.

João III,João Cardoso de Barros. Assim, o espaço físico das terras doadas,

totalizava 75 léguas da costa, calculadas da ponta dos mangues verde

(Maranhão) até o rio da Cruz (Camocim), trazendo a denominação de Terra

de Jericoacoara (MONTEIRO, 1984).

A ocupação das terras de Camocim assemelha-se com a parcela

restante do “Siará Grande”, ou seja, não despertaram interesse. Os primeiros

homens brancos que chegaram a terras cearenses, foram os aventureiros e

piratas, estes por sua vez não almejavam a colonização e exploração

78

(GIRÃO,1994). Diversos obstáculos impediam o conhecimento e a penetração

das terras do Siará, nessa perspectiva, Girão (1994) explana Não há dúvidas de que fatores de ordem político-econômica vêm se juntar aos obstáculos citados na historiografia tradicional, como causadores do atraso da colonização desta donatária, onde aparece a aridez do clima, a agressividade do nativo e as correntes aéreas e marítimas da costa nordestina, dificultando a navegação na maior parte do ano, resultando de tudo isso que somente depois de cem anos do descobrimento cabralinohaja começado a penetração do Ceará. (GIRÃO, 1994, p.25)

Sob esse contexto, os donatários das terras de Camocim não

almejavam ocupá-las, conduzindo esta região litorânea ao posto de reserva

territorial, para futuras explorações em um momento julgado benéfico, visando

à lucratividade. O desbravador português natural dos Açores, Pero Coelho,

estabeleceu o primeiro contato com as terras camocinenses, partindo no dia

10 de agosto de 1603 da foz do rio Jaguaribe, destinando-se ao porto de

Camocim, chegando no dia 19 de janeiro de 1604. No entanto, a topografia do

lugar não agradou aquele explorador. Desse modo, logo abandonou a região

recém desbravada, que posteriormente foi trocada pela área denominada

“Ponta da Jericoacoara”, também chamada de “Buraco das Tartarugas”,

assim batizada devido à facilidade em coletar frutas e obterem a caça

(MONTEIRO, 1984).

A família Gabriel, oriunda de Tutóia, foi a primeira a habitar

Camocim, Gabriel Rodrigues da Rocha chegou em 1792 acompanhado por

sua esposa e seus dois filhos, Joaquim Gabriel e José Gabriel. A referida

família iniciou o processo de exploração daquele ancoradouro, beneficiado

por suas qualidades naturais, o qual, durante um determinado período,

significou prosperidade para a população habitante de Camocim, bem como

para a sua área de abrangência. Assim, o patriarca da família objetivava

exercer as suas habilidades como técnico de barra, acelerando o

conhecimento acerca do porto e igualmente a sua exploração. Instalado em

terras camocinenses Gabriel Rocha, procriou mais alguns descendentes,

entre eles, Luiz Gabriel, o qual se tornou ilustre devido as suas aptidões

portuárias, substituindo o seu pai e transformando o porto de Camocim em

um ponto acessível para qualquer navio, inclusive para aqueles de grande

porte (MONTEIRO, 1984). A cidade litorânea em discussão foi erguida às

79

margens do seu porto natural, por onde chegavam diversas mercadorias que

seriam vendidas nos estabelecimentos da cidade, consequentemente, o

equipamento em debate foi essencial para o nascimento de Camocim, para a

sua edificação bem como para o funcionamento da ferrovia, alimentando o

dinamismo espacial do período.

Retratando um dia ensolarado, a tela “Praia em Camocim” (figura 3)

foi elaborada após a chegada de Cela ao Brasil, na ocasião de seu

estabelecimento em Fortaleza. Na figura, encontramos a atmosfera serena da

praia mencionada, antes das modificações, proporcionadas pelo passar dos

anos. Na tela o artista captou o mar calmo adormecido, permitindo, assim, o

deslizar dos barcos, inseriu algumas casas situadas na avenida beira-mar,

apresentando distintas dimensões, todas edificadas próximas à faixa de praia,

estimulando a intimidade entre os habitantes da praia com o oceano. As

fachadas exibem cores claras, saltam, nessa perspectiva, o branco

posteriormente destacam-se as nuances terrosas. Observamos na obra a

atmosfera rústica de uma cidade sustentada economicamente por meio da

pesca artesanal. Os tons claros proporcionam um dia ensolarado na praia, é

válido ressaltar a maneira como Cela emprega os tons de cores vivas,

permitindo uma elevada luminosidade nos seus trabalhos.

80

Figura 3- Praia em Camocim-1939

Fonte: CD-ROM Raimundo Cela 1890-1954, elaborado por Galeria PinakothekeMultiart,

2004.

81

O olhar de Raimundo Cela voltado para a praia presente na sua

obra, nos mostra a dimensão de um lugar considerado o marco inicial para

Camocim. Sendo, portanto, o ponto de partida para o seu processo de

expansão, como também foi relevante na vida do pintor.Este, quando criança,

percorria as ruas da cidade para a realização das suas atividades cotidianas,

deslocar-se para a escola, passear em família, visitar amigos, fundando, assim,

vínculos com aquele universo litorâneo circundante, o qual se abria diante dos

olhos de Cela.

Assim, os outros sentidos também agiram na integração de Cela

com aquele ambiente, a praia não foi exclusivamente apreendida por meio da

visão, todavia, há uma conexão na qual é edificada entre os demais sentidos,

proporcionando ao pintor recordar o tempo da sua estadia diante do mar.

Percebendo o sabor do sal transmitido através da maresia apreciando o

perfume característico emanado pelas águas, sentindo e ouvindo o barulho das

ondas. Nessa perspectiva da experiência do artista para com a paisagem

mediada pelos sentidos, retornamos ao pensamento de Besse (2006),no qual o

autor fala da paisagem como uma unidade entre o mundo externo e interno,

este fato significa a apropriação do mundo objetivo o qual é metamorfoseado a

partir das relações cotidianas, com as pessoas bem como com os lugares. Na

compreensão de Besse (2006)

A paisagem significa participação mais do que distanciamento, proximidade mais do que elevação, opacidade mais do que vista panorâmica. A paisagem por ser ausência de totalização, é antes de mais nada a experiência da proximidade das coisas (BESSE, 2006, p.80)

Dessa maneira, na arte elaborada por Cela, captamos a dimensão

de uma vivência integrada ao espaço litorâneo, constituindo uma

paisagemque foi o berço do pintor desde sua infância. Assim, ao retratar as

formas presentes à beira-mar, o artista atentou para a relevância de uma

paisagem simplesque emana a partir das suas formas e cores,

asexperiências, sobretudo da infância, e da adolescência envolvida por uma

brisa marítima que consoante às ruas da cidade elaboraram uma aura

inspiradora para o pintor. Sua criação artística foi o palco de uma parcela da

existência do artista antes da sua viagem ao exterior, e igualmente no período

82

posterior da sua chegada, dois momentos áureos na jornada artística de

Raimundo Cela,impulsionadores para o amadurecimento da sua arte.

O trabalho em discussão admite um retorno do artista às suas

lembranças engendradas na paisagem, delineada sob a face da estética,

constituindo assim um conjunto de emoções vividas e distintas, sentimentos

felizes ou tristes, saudades; as suas aspirações nos âmbitos profissionais e

pessoais, com as quais Cela depara-se, devido às mesmas, encontrarem-se

imbricadas na obra. A “Praia de Camocim” possui um fragmento significativo

no caminho percorrido pelo pintor, obtendo vida configura-se como um

espelho capaz de refletir as expressões íntimas do artista.

Salientamos a presença das explanações de Besse (2014),

trabalhadas no primeiro capítulo, e que são relevantes para a compreensão

da paisagem em Raimundo Cela. Assim, consideramos pertinente a inserção

do referido autor, juntamente com outros para embasarmos as nossas

contribuições no presente capítulo.

Na concepção de Besse (2014), a natureza é responsável por

fornecer à sociedade, os meios para a criação de novas paisagens e, também

para a sua remodelagem, são elementos trabalhados pelo ser humano como,

os solos férteis para o plantio, a madeira para a construção de seus barcos,

minerais voltados para as edificações das casas, entre outros elementos

naturais de uma lista ampla. A ordenação da matéria é inscrita a partir dos

valores culturais da comunidade, a qual deixa a sua marca impressa sobre a

superfície terrestre (BESSE, 2014). Da natureza litorânea provêmos pilares

para a criação da paisagem, definindo os traçados e as formas pelas quais

singularizam Camocim. Representadas, pela pesca, pelas redes, pelos barcos

com as velas encontrados na sua obra,e que são frutos da dinamicidade

estabelecida entre o homem e o seu ambiente litorâneo.

A paisagem do litoral de Camocim resguarda os costumes da

pesca,uma atividade que além de econômica, integra o universo dos hábitos

do lugar.Nesse contexto, ocorre o cotidiano dos pescadores que falam sobre

o dia da pesca, a realização da limpeza dos bastardos (como são chamados

as embarcações mais simples) e a preparação com os suprimentos para o

embarque durante a madrugada.Na época de Raimundo Cela, tal trabalho era

83

realizado de maneira simples, através de redes com bastante esforço por

partedos pescadores.

Os lugares íntimos para o sujeito podem ser numerosos e diversos,

trazem as características pessoais de cada individuo, mediante as suas

experiências sobre a superfície da Terra. O sentimento de pertencimento

encontra-se armazenado no seio do homem, guardado nas suas memórias as

quais são de difícil externalização, porém, não impossível, através dos

símbolos (TUAN, 1983). A paisagem exibe a propriedade de congregar o

valor de pertencimento do pintor, quando o mesmo examina o seu trabalho,

juntamente com sua memória, não deixando de retratar os atos cotidianos das

comunidades pesqueiras. Nesse sentido, é pertinente um retrospecto as

palavras de Corrêa (1995) quando o autor nos informa que

Em realidade a paisagem é, de um lado o resultado de uma determinada cultura que a modelou e, de outro, constitui-se em uma matriz cultural. Como resultado a paisagem é uma “vitrine permanente de todo saber”, expressando a cultura em seus diversos aspectos, possuindo uma faceta funcional outra simbólica. (CORRÊA, 1995, p.04)

Na paisagem litorânea de Cela, localiza-se o local de partida e

chegada das embarcações com as suas velas, encontrados na areia,

embaladas por ventos e inquietude das ondas. Estes se apresentam como se

dialogassem com aqueles indivíduos que passam diariamente, e as percebem

como um componente fundamental para a veemência da paisagem.Assim, é

apreendido na paisagem do pintor um vínculo,o qual se assenta entre o mar e

a vida das pessoas e que sobrevivem dele. Portanto, além de percebermos a

dimensão afetiva entre o mar e a terra, são compreendidas relações

englobando a economia de Camocim. A obra de Cela caracteriza-se como

uma vitrine cultural por demonstrar-nos como os habitantes de Camocim

vivem, adequando-se aos ritmos do universo abrasado pelo mar, explicitando

na paisagem as suas relações fundadas com a natureza.

Na figura 9, vemos a obra intitulada “O Porto de Camocim”. Esse

quadro foi realizado após a chegada de Cela ao Brasil, no período de seu

retorno da Europa. Diferindo-se do trabalho “Último diálogo de Sócrates”, o

qual exibe cores escuras,emanando uma atmosfera sóbria e acadêmica, a

84

obra em discussão,inseri-se em uma perspectiva distinta,em que a conexão

constante entre a luz e a cor,edifica uma tessitura peculiar de Cela.

As águas calmas presentes na tela são o destino final do rio Coreaú,

fundando o porto natural da cidade de Camocim. Sob um dia claro de céu

azul e com algumas nuvens, os galpões localizados no centro da tela

destacam-se por suas dimensões e também pelas cores empregadas por

Cela. As variações de amarelo nas paredes e as nuances terrosas nos

telhados, contrastando com o azul e o branco do céu, atraem a atenção no

momento da observação do referido trabalho. Distante do ritmo frenético do

porto, Cela vinculou na sua obra, quatro pequenas embarcações,

características de Camocim, todas elaboradas em cores escuras. Três dos

mencionados barcos encontram-se estacionados na areia clara da praia,

como se descansassem, apreciando a brisa. Deslizando sobre as águas

tranquilas, vemos a quarta embarcação ocupada por um tripulante, o qual não

realiza esforços para deslocar-se, apenas segue o fluxo das águas.

Os navios soltando a fumaça cinzenta, anunciam que embora

enfrentando problemas para as suas atividades em declínio, sobretudo, pela

ausência da dragagem, o porto ainda estava vivo, servindo à cidade,

promovendo o dinamismo a paisagem apreendida por Raimundo Cela.

85

Figura 4- O porto de Camocim-1939

Fonte: CD-ROM Raimundo Cela 1890-1954, elaborado por Galeria PinakothekeMultiart, 2004.

86

Besse(2014) explana a respeito da capacidade do ser humano de

moldar a natureza, criando formas contidas no espaço geográfico a partir das

suas carências e ambições, resultando na paisagem,a qual encontra-se ativa,

agindo e influenciando nas novas projeções. Portanto, a respeito deste

movimento cíclico, Besse (2014) assinala

Da China à Europa Ocidental, como em todas as partes do mundo, os homens se tornam gravadores, escultores ou modeladores. Mal tocam a terra ou, ao contrário, transformam-na radicalmente, em função das possibilidades de um material natural que é mais ou menos favorável, mais ou menos “plástico”, mas também em função dos seus modos de produção e dos ideais espirituais e morais que acalentam. A aparência da paisagem traduz essa atitude cultural variável da humanidade em relação aos meios naturais nos quais lhe coube viver. (BESSE, 2014, p.35).

Raimundo Cela compreendeu a importância do porto, explorado

inicialmente com a instalação da família Gabriel em Camocim. Esta, por sua

vez, ao tocarem a terra camocinense, transformaram-na em um local

próspero e em um ponto de comunicação com o restante do mundo, a partir

dos elementos dispostos na natureza. Cela apresenta-nos uma paisagem

portuária, e que caracteriza-se como um vetor responsável pelo início do

processo de povoamento de Camocim, servindo como um terminal para o

transporte de cargas e pessoas, distribuindo por meio de seus navios de

estrutura rústica, produtos a serem comercializados: gêneros agrícolas,

artigos para a decoração, vestuário, mobília, porcelana, principalmente

destinados, às famílias mais ilustres. O fluxo de saída para suprir as

necessidades de outros estados, era igualmente constante. As atividades

comerciais dependiam da agilidade do porto, o qual exerceu importância para

o crescimento do aglomerado em debate, criando, assim, as bases sólidas

para o seu desenvolvimento e posteriormente, a elevação do status de

povoado a condição de vila, em seguida a obtenção do título de cidade.

Esse local de escoamento não significou simplesmente uma

ferramenta útil para a economia. Na concepção de Cela, o porto serviu como

uma fonte de inspiração para as viagens do artista, convidando-o

constantemente ao desbravamento do mundo, através da chegada e partida

dos vapores, como aqueles apreendidos pelo artista na sua obra. Cela, diante

87

do seu próprio trabalho, compreende o porto como uma abertura para a

concretização dos seus anseios, pois, também foi um passageiro ingressando

aos dezesseis anos de idade a bordo de um vapor, o qual inicialmente o

levaria a Fortaleza, onde o artista iniciava um aprofundamento nos seus

estudos.

Cela, ao olhar a sua tela, percebe o porto, a partir de uma

perspectiva que vai além da sua dimensão puramente econômica, pois, para

alguns, tal local serviria exclusivamente para as trocas comerciais, para a

entrada e saída de produtos, representando a movimentação das riquezas

camocinenses. O porto também era visto por outras pessoas como um lugar

fétido bem como precário. Todavia, Cela o compreende de uma forma

distinta, norteado pelas experiências positivas adquiridas nas suas viagens.

Este sentido que é delineado pela experiência do olhar de Cela, direcionado a

paisagem portuária, remete-nos às reflexões de Meinig (2003) ao explanar a

respeito de observações múltiplas da paisagem, pois, diversas pessoas

transitavam nas adjacências do porto, viam os mesmos objetos distribuídos

sobre um fragmento de terra, entretanto, apresentavam percepções

diferenciadas para um mesmo local, pautadas na experiência de cada um.

Dessa forma, o autor elucida que “qualquer paisagem é composta

não apenas por aquilo que está à frente de nossos olhos, mas também por

aquilo que se esconde em nossas mentes (MEINIG, 2003, p. 35). Os navios,

observados por Cela deslizando sobre a linha do horizonte, parecem não ter

fim, dialogavam com o pintor a partir das suas dimensões imponentes,

indicando destinos e novas paisagens pelas as quais o artista não poderia

imaginar. Os sons dos apitos, a fumaça escura lançada naquele lugar,

convocavamo pintor para adentrar em terras diferentes da sua. Essa

perspectiva conduz-nos às reflexões de Merleau-Ponty (2004), a respeito do

significado da tela de arte, o qual se encontra em estado de aprisionamento,

pois, o quadro permanece em tal condição para os demais seres

humanos,devido o fato de não fazermos da pintura um meio para

comunicarmo-nos com o mundo, dessa maneira, para o olhar do pintor, o

quadro constitui um elo de vida, transformando-se em algo transcendente ao

plano da matéria, a qual compõe o quadro, como o tecido da tela, a madeira

útil para o suporte e as tintas depositadas na superfície do trabalho. A

88

libertação do significado da obra, emerge quando iniciamos o processo de

vivência da pintura, estabelecendo um diálogo mais profundo com a mesma,

o artista,então, exibe-se como o detentor verdadeiro do significado da obra

(MERLEAU-PONTY, 2004).

A linha do horizonte delineia-se até onde a visão é capaz de

alcançar, porém, seria somente possível cruzá-la e saber o que existe por trás

da mesma, com a partida de Raimundo Cela. Na obra, o artista representa as

experiências adquiridas nas suas viagens com a figura de um porto simples,

sem tecnologias avançadas, mas, com o movimento próprio das suas formas,

chamava o pintor para lançar-se na imensidão do mar. Cortando as águas do

oceano atlântico, o artista partiu de Camocim com destino a Fortaleza,

posteriormente Rio de Janeiro, depois chegou à França, desfrutando do seu

prêmio obtido na Escola Nacional de Belas Artes.

O pintor ao olhar a paisagem litorânea de Camocim, sente

congregar as lembranças guardadas no seu íntimo de vários lugares, bem

como de outros portos pelos quais passou: “Dakar, Las Palmas, Lisboa, San

Sebastian e Bordeaux constam este itinerário” (FIRMEZA, 2004, p.25).

Raimundo Cela teceu uma longa jornada para aperfeiçoar a sua

arte,percorrendo seu trajeto de navio em navio, passando de porto em porto,

fotografava com os olhos todas paisagens as quais atravessava, debruçando-

se tanto mental como fisicamente para compreender a sua nova realidade.

Percebemos a existência do relacionamento de Cela com o porto,

considerando-o relevante na sua trilha de vida; assim, com a sua paleta e os

seus pinceis capturou-a estendendo para a tela os sentimentos procedentes

de uma vida de viagens, sobretudo, possuindo o porto camocinense como um

lugar de partida e de retorno. Camocim por meio do seu porto localizado no

rio Coreaú, interagia com o mundo, mas, o seu dinamismo sofreu um

comprometimento conduzido pela invasão natural de sedimentos no seu

canal, este fato associado, sobretudo com a ausência de dragagens

constantes, serviram como obstáculos para a entrada dos navios. Muitos

pedidos foram enviados às autoridades, solicitando a dragagem do porto,

entretanto, a chegada da ferrovia modifica a importância do equipamento,

colocando-o em uma posição rebaixada em relação ao transporte dos

passageiros, pois o trajeto das viagens tornou-se menos cansativo, sendo

89

realizado por meio do trem ou de ônibus. A seca de 1931 a 1932 foi um fator

que levou o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, a iniciar a

construção da BR-116 e 222, a primeira rodovia que ligava Salvador a

Fortaleza, a segunda estabelecia a conexão entre Fortaleza e Teresina.

Assim, as estradas de rodagem para os ônibus, realizavam trajetos mais

rápidos, tanto para o transporte de cargas como para o de passageiros. Os

navios estavam evitando o porto de Camocim, o dinamismo foi então

reduzido, não havendo mais o fluxo intenso de pessoas e mercadorias a

serem transportadas como antes. Logo, a praticidade no embarque por trem

ou ônibus, substituiu o deslocamento realizado por meios de navios, devido à

rapidez e o conforto ofertados. A linha ferroviária posteriormente entrou em

decadência, seguida da desativação do ramal em 1977, originando a saída

das famílias camocinenses para Fortaleza, objetivando trabalho, e o

estabelecimento das suas residências (MONTEIRO, 1984).

O encerramento das atividades do porto, associado ao fechamento

do ramal Camocim-Sobral, proporcionou a derrocada da economia

camocinense, os impactos socioeconômicos logo foram ocorrendo, sendo

perceptíveis no cotidiano da vila: comércios declaram falência, desempregos,

bem como a saída das fábricas igualmente prejudicaram e estagnaram o

desenvolvimento de Camocim (SANTOS, 2008).

Retratando o final de mais uma tarde de trabalho, na oficina

ferroviária de Camocim, a figura 10 traz-nos um período no qual a estação e a

oficina co-existiam de maneira anexada, pois, a manutenção dos trens era uma

atividade fundamental para a segurança da estação e também dos

passageiros. A obra “Saída da Oficina” apresenta-se com algumas cores

sóbrias como, o marrom, o preto e o cinza, revelando,assim, uma face

cansativa do trabalho braçal, realizado pelos mecânicos aos sons de

incontáveis marteladas nas peças,ao mesmo tempo no qual o aroma do óleo

embriagante, utilizado para a limpeza e troca das peças, penetrava em toda a

oficina. Embora Raimundo Cela tenha captado mais um simples dia de labor, o

pintor preocupou-se em ofertar a obra uma atmosfera iluminada, apreendida na

parte superior da tela proporcionando mais alegria e vivificando a sua obra.

Assim, identificamos as cores, amarelo e branco, responsáveis por

ascenderem um facho de luz na vegetação do prédio. Associados à luz o pintor

90

inseriu galhos frondosos, verdejantes e em movimento os quais estão nítidos

na tela, irradiando mais vigor para o trabalho de Cela, permitindo a obra um

toque de ventilação, ressaltamos que a referida oficina situa-se nas

proximidades da praia.

Observamos no centro do quadro um operário portando o seu

casaco de maneira mais despojada, sinalizando o término do período de

trabalho, semelhante ao companheiro. Outro homem realiza o mesmo gesto,

identificado próximo à margem direita da tela. A oficina era o local de trabalho

de José Maria, pai de Raimundo Cela, apreendemos, assim, que o labor

ferroviário do pai fez parte da vida do pintor desde a sua infância, período no

qual toda a família Cela foi obrigada a abandonar a sua terra, Sobral, para viver

em Camocim, estabelecendo nova residência e contemplando um novo

universo, o qual se diferenciava profundamente do vivido anteriormente.

Na perspectiva da presente paisagem elaborada por Raimundo

Cela, torna-se pertinente o resgate do pensamento de Berque (1998), no que

concerne aos conceitos de marca e matriz presentes nas paisagens.A

primeira concepção nos remete ao jogo de formas materiais passíveis de

descrições, dispostas e edificadas sobre a superfície da terra,através das

técnicas voltadas para o trabalho das sociedades. Esse universo de formas é

captado pelo sentido da visão do pintor, o qual compreende que a paisagem

não se encontra inerte no tempo e no espaço de maneira passiva, ao

contrário, participa ativamente dos esquemas da percepção dos indivíduos, os

quais a circundam e a vivenciam(BERQUE, 1998).

91

Figura 5- Saída da oficina-1929

Fonte: CD-ROM Raimundo Cela 1890-1954, elaborado por Galeria Pinakotheke Multiart, 2004.

Percebemos, portanto, a tela “Saída da oficina”, como uma “marca”,

pois, a mesma foi um produto de uma formação social engendrada em

Camocim configurando uma paisagem elaborada. De maneira simultânea,

exibe a natureza de “matriz”, porque exerce influência sobre o jogo de olhares,

no qual Raimundo Cela volta-se para o universo das suas experiências diante

de tal paisagem.

A saída da oficina era o momento mais aguardado por Celinha,

assim, o pintor era chamado afetuosamente por seu pai. Nas cartas enviadas

pelo artista durante a sua estadia na França, Cela mesmo não vendo José

92

Maria, primeiramente pedia ao pai a sua bênção e posteriormente contava-lhe

como estava vivendo, longe do seio familiar, revelando a saudade de casa, os

empecilhos com os quais deparava-se, os êxitos, o desânimo que abatia-lhe,

bem como os fracassos, mas, sobretudo, Cela não escondia o amor devotado

ao pai, seu primeiro mestre, e posteriormente aos demais membros da família

(FIRMEZA,2004). Oficina e estação complementavam-se, apenas ressaltando

que a primeira não manteria as suas atividades sem a presença da segunda,

logo, o prédio sediava ambas as atividades e hoje tal local, ainda encontra-se

com a suas bases materiais conservadas, preservando o mesmo modelo de

fachada do período da obra de Raimundo Cela, porém, agora abrigando

algumas funções político-administrativas de Camocim.

Cela capturou uma paisagem na qual encontramos os atores

participantes do impulso dinâmico, promotor de crescimento para Camocim. Os

responsáveis pelo ritmo da oficina foram aqueles homens como o pai de

Raimundo Cela, empenhados no trabalho muitas vezes cansativo,exigente de

tempo e suor, almejando o sustento da família e conservando a beleza rítmica

da paisagem. Antes de tomar a sua paleta de cores, os pincéis, tela e os

demais instrumentos de trabalho, para retratar seu trabalho artístico, Cela já

habitava na paisagem, conhecendo cada detalhe antes de transformar a obra

de arte em uma extensão da sua experiência.

Retomando o pensamento de Besse (2014),em que o autor explana

a respeito do fato das paisagens habitarem primeiramente no cerne do ser

humano, antes de serem externalizadas

A paisagem fala-nos dos homens, dos seus olhares e dos seus valores, e não propriamente do mundo exterior. Na realidade, só haveria paisagens interiores, mesmo se essa interioridade se traduz e se inscreve no mundo exterior (BESSE, 2014, 13)

Na tela “Saída da oficina”percebemos, a extensão de uma

experiência de vida, sobretudo da sua feliz relação com o seu pai, o qual era a

maior referência para Cela. Percebemos, portanto, que há então uma

paisagem criada em consonância com um vínculo familiar. Esse laço norteou

Raimundo Cela em diversas esferas da sua caminhada, tanto como engenheiro

como quanto pintor. A oficina para Cela não era apenas um lugar, há uma

93

singularidade na presente paisagem, uma vez que, era desses portões nos

finais das tarde, que José Maria retornava para casa onde Cela o aguardava

ansiosamente após mais um dia de trabalho. As relações de Cela com a

paisagem nos leva ao que nos diz Cosgrove (1998),quando explana a respeito

das representações da paisagem através da pintura, da poesia ou do teatro.

Os temas mais poderosos são os que abordam os laços entre a vida humana, amor e sentimento e os ritmos invariáveis do mundo natural: a passagem das estações, o ciclo de nascimento, crescimento, reprodução e morte, deterioração e renascimento, e o reflexo do imaginado sentimentos e emoções humanas no aspecto das formas naturas. Assim a paisagem é um conceito unicamente valioso para a geografia efetivamente humana (COSGROVE, 1998, p.100).

Ao traçar o esboço na tela e empenhar-se atenciosamente na

escolha dos tons das tintas para compor a obra em destaque, Raimundo Cela

compreendia a dimensão da experiência,com os momentos da presença do pai

em sua vida, como também os momentos nos quais José Maria encontrava-se

um pouco distante, devido o seu labor.Todavia, esta separação cotidiana, era

rompida com o final do período de trabalho. Além dos contornos os quais

compõe os corpos dos operários na tela, dos trajes, das janelas do prédio,

percebemos outros elementos no trabalho, como o odor da fumaça presente na

oficina, lançadas através do movimento de ida e vinda dos trens, o aroma do

óleo típico da manutenção das locomotivas, são igualmente sentidos nesta

paisagem apreendida através dos dados sensíveis.

Observamos a relevância do tato, da audição, do paladar, da visão e

do olfato na construção dos significados presente na paisagem, pois, os

sentidos promovem a intimidade de cada sujeito no seu meio habitado,

compondo um universo de significados, os quais podem ser comunicados aos

demais seres humanos, porém, são intransferíveis, perante este aspecto.

Estimamos como necessário voltarmos à atenção para as concepções de

Merleau-Ponty (1999), acerca da intersecção do homem com as suas emoções

e de ambos para com o mundo exterior, o qual o invade desde o momento do

seu nascimento

O mundo é inseparável do sujeito, não senão projeto do mundo, mas de um mundo que ele mesmo projeta. O sujeito é ser-no-mundo e o mundo permanece subjetivo, já que sua textura e suas articulações

94

são desenhadas pelo movimento de transcendência do sujeito (MERLEAU-PONTY, 1999, p.576)

A paisagem é desvelada através de uma experiência na qual

Raimundo Cela vivenciou em Camocim .A sua produção artística, brota e

emana a essência de uma relação do pintor com o mundo, e que concebe as

relações de afetividade. Aqui são retratadas suas memórias da infância,

sentimentos de alegria, brincadeiras com o pai e em família bem como o

esperado encontro de todas as tardes, quando seu pai saía da oficina

ferroviária. Berque (1998, p. 86), nas suas explorações sobre a paisagem

geográfica, engendra um entendimento assentado sobre a co-integração entre

a “paisagem e o sujeito”, vemos, assim, nessa relação, o mundo sensível da

paisagem experiência da pelo artista, a qual transpassa as quantificações, pois,

é o lugar no qual Cela estabeleceu afinidades imateriais, como o seu círculo de

amizades e momentos especiais em família.

A paisagem em Raimundo Cela funciona como uma fonte da qual

brota a vida do pintor, transformada em pintura constituindo um vínculo com

Camocim e com as suas respectivas emoções. Podemos, assim, compreender

estas marcas de vida, quando voltamos à atenção para a leitura das

entrelinhas, de fatos que não estão presentes na construção o seu significado.

Raimundo Cela percebeu a paisagem em um período no qual a

oficina e a estação ferroviária ainda encontravam-se exercendo as suas

atividades de transporte de cargas e passageiros. O pintor era um homem

atento às modificações espaciais ocorridas na cidade, pois, constantemente

realizava viagens, sempre indo e vindo, sabia da importância dos

equipamentos para a melhoria da estrutura da cidade,e como esses

equipamentos modernos seriam influentes no crescimento de Camocim. Nessa

perspectiva, a oficina anexada à estação, constituiu-se como uma forma

espacial importante para as relações entre as pessoas, os seus negócios e

comércios, basilares para a economia e política da cidade.

O cotidiano de Camocim metamorfoseou-se, quando o Governo

Imperial em 3 de outubro do ano de 1857, autorizou a construção da estrada

de ferro, a mesma partia de Camocim até Ipu. Em 19 de junho, a rede

ferroviária recebeu uma ampliação obtendo mais um ramal, é então

construído o trecho Camocim-Sobral, este por sua vez, transformou a

95

estrutura urbana de Camocim. A chegada do navio trazendo os responsáveis

pela construção da estrada de ferro é citada por Monteiro (1984), e se iniciava

a concretização do sonho de crescimento para aquele lugar. Segundo o autor

À tarde do dia 24 de julho do mesmo ano, os habitantes de Camocim foram agradavelmente surpreendidos com a entrada no porto do vapor “Guará”, conduzindo a ilustre comissão de engenheiros encarregados dos trabalhos da estrada referida. A população camocinense recebeu a comissão aludida com grande demonstração de alegria e, em face da deficiência de domicílios, algumas famílias cederamos seus, para abrigar os engenheiros e foram morar em palhoças. A 5 de agosto de 1878 tiveram início os estudos para a construção da estrada de ferro. (MONTEIRO, 1984, p. 118)

A chegada do ramal Camocim-Sobral concedeu dinamismo,

originando novos serviços ao povoado. A estrada de ferro inseriu-se no

contexto da cultura do algodão, a qual ocorreu na segunda metade do século

XIX, desencadeando mudanças no sistema de transportes, interligando as

localidades as quais os trilhos da rede ferroviária atravessavam.

O crescimento da indústria têxtil na economia inglesa, aliada ao

progresso técnico proporcionado pela Revolução Industrial e a guerra da

secessão, são fatores que elevam o algodão para uma posição de destaque,

pois, a necessidade dessa matéria-prima cresce de forma intensa. Assim, o

século XIX originou uma metamorfose nas relações socioeconômicas. Diante

do fato, no início do período supracitado,o cultivo do algodão no Ceará obtém

relevância, ampliando-se em direção ao interior do estado.

Construída por empresas estrangeiras, a via férrea conectava os

principais produtores de algodão do estado, escoando a sua produção para os

portos, no entanto, o crescimento da cultura algodoeira não extinguiu a

pecuária, realizada de forma extensiva, ambas as atividades coexistiram,

exibindo proeminência na economia do Ceará, erguendo,assim,as bases para

o crescimento das cidades e a sua organização sócio-espacial(SILVA, 1994).

A ferrovia foi um vetor para a modernização de Camocim, sob esse

ângulo da chegada de um novo período, Santos (2008) revela-nos outros

equipamentos que emergiram de maneira anexada à atividade ferroviária,

afirmando que

96

Uma série de melhoramentos chega com o trem: o telégrafo, a mesa de rendas, fábricas de cigarro, sabão e beneficiamento de algodão, posto médico, farmácia, construção da Igreja Matriz, elevação da vila em cidade (1889), cinemas, jornais, dentre outros. A própria ferrovia toma iniciativas, inserindo muitos jovens na aprendizagem de diversos ofícios em suas oficinas e fundando escolas formais em vários pontos do trajeto da estrada. (SANTOS, 2008, p. 122)

Observamos a imersão de Camocim em um universo moderno, se

compararmos ao seu passado no qual prevalecia à atividade portuária, pois,

além do acesso às informações locais os habitantes também tomavam

conhecimento dos fatos mundiais. A vinda da ferrovia proporcionou conquistas

para a vila, a qual, posteriormente, viu-se elevada à condição de cidade,

passando a desfrutar de um período áureo, eivado de progressos materiais.

Exemplifiquemos com os novos prédios, as escolas e a admissão de

funcionários para trabalhos, tanto administrativos como para mão-de-obra nas

construções espalhadas pela vila. A locomotiva sinalizava o rompimento com a

lentidão do passado, selando um novo pacto com os valores vindos de fora

através dos meios de comunicação instalados em Camocim.

A gênese da conexão Sobral-Fortaleza por meio da via férrea,

promoveu o enfraquecimento dos movimentos de entrada e saída de

mercadorias através de Camocim, pois, a produção de Sobral e das suas

adjacências, não careciam mais transitarem por meio do porto, para chegarem

ao seu destino. Esse fato conduziu à debilitação do ramal Sobral-Camocim,

intensificando o anseio da sua desativação, por parte da Rede de Viação

Cearense. Em 1960, as oficinas como aquela retratada por Raimundo Cela,

sofreram o processo de abandono, o governo declarava a existência de

empecilhos financeiros, para a manutenção do ramal Sobral-Camocim, e

também alegara que o custo benefício oferecido pelo transporte rodoviário, era

vantajoso. Assim, o momento próspero sofreu interrupções (MONTEIRO, 1984)

Em 24 de agosto de 1977, foi decretado o fim do mencionado ramal.

Com a sua ausência, Camocim retrocedeu economicamente, como já

mencionamos no estudo da paisagem sobre o porto da cidade (figura 4). O

desemprego elevou-se, e muitas relações comerciais estabelecidas findaram,

adotemos como exemplos, a indústria salineira, e as vendas da produção de

gêneros agrícolas entraram em decadência. Sob esse ângulo, os fretes

97

realizados agora através do transporte rodoviário, mantinham altos preços,

prejudicando os produtores de Camocim bem como de outras localidades

próximas, as quais beneficiavam-se com a presença do ramal antes da sua

extinção (SANTOS, 2008).

Retratando outro aspecto do cotidiano em Camocim, Cela irá

produzir a obra “Procissão em Camocim,” (figura 6). Nessa obra, encontramos

uma antiga tradição da religião católica representada pelo rito da procissão. A

obra em destaque apresenta a luz como um ponto a ser ressaltado, pois as

cores suaves escolhidas pelo artista realizam a iluminação da aquarela em

debate. Tratando-se de um tema religioso, Cela opta por usar tons mais claros

representando a serenidade devocional, portanto, participam ativamente da

composição deste trabalho as cores, branca, o marfim, e o cinza, depositados

com sutileza, oferecendo ao trabalho uma atmosfera desobriedade. O pintor

para compor a presente paisagem emprega as cores e os tons de maneira fiel,

debruçando-se sobre o anseio de capturar os detalhes da procissão, desde o

horário da caminhada, aos desenhos dos trajes e dos acessórios carregados,

por aqueles indivíduos que se encontram a serviço da igreja católica.

O pintor traça as formas do prédio da igreja de maneira linear e

precisa, diante do mesmo, verificamos duas filas, as quais são distribuídas de

maneira igual, uma a esquerda outra a direita, ambas formadas por homens

trajando roupas pretas com um tipo de colete cobrindo os

ombros.Apreendemos que são roupas especiais utilizadas em solenidades da

igreja, e carregam nas mãos um cajado significando a presença do Bom

Pastor.Esses indivíduos pertencem a Irmandade do Santíssimo Sacramento de

Camocim, uma associação composta por leigos católicos. No centro da pintura,

há um homem solitário, porém, encontra-se em um lugar de destaque

convidando os nossos olhares a voltarem-se para ele, este, por sua

vez,anuncia a passagem da procissão.

Posterior a Irmandade do Santíssimo Sacramento, o pintor inseriu

dois grupos de freiras, alinhadas em duas filas semelhantes ao grupo dos

homens. As religiosas usam hábitos claros, cabeças e braços cobertos e

postura séria. Na parte central, deparamo-nos com a figura do sacerdote, o

qual ocupa um lugar de relevância nas procissões, é acompanhado por dois

acólitos, um a direita e o outro a esquerda. O pintor traça na aquarela um

98

pequeno grupo oriundo da Irmandade do Santíssimo Sacramento, os quais

parecem escoltar o cortejo central, solenizando a caminha religiosa.

Figura 6-Procissão em Camocim-1940

Fonte: CD-ROM Raimundo Cela 1890-1954, elaborado por Galeria Pinakotheke Multiart, 2004.

O artista captou a hierarquia da procissão de maneira leal. Embora a

Irmandade posicione-se na frente, vemos os mesmos localizados nas laterais e

o homem no centro da aquarela com a cruz, sinaliza a passagem do

cortejo.Seguindo a hierarquia católica, destaca-se o grupo central onde vemos

o sacerdote, próximo a ele o pintor deposita a imagem de Jesus, e por último a

multidão. Ao visualizarmos o conjunto da obra e o posicionamento de todos,

compreendemos que Raimundo Cela optou por pintar a procissão em sua fase

inicial, quando saía das proximidades da igreja. No lado direito do trabalho

vemos algumas pessoas de costas, outras aguardando a o início da

caminhada.

99

Observamos, disposto na porta principal da igreja, uma imagem de

braços abertos, vestido com uma túnica branca e com uma faixa vermelha

sobre o seu ombro esquerdo. É uma imagem ícone do temário exposto pelo

pintor, em uma posição, abençoando desta maneira os seus fiéis seguidores

camocinenses. Nessa perspectiva, percebemos o propósito de Raimundo Cela,

apresentar Jesus como a figura central da sua obra. Ao analisarmos a obra,

apreende-se a existência de um laço entre a procissão, e importância do mar

para os habitantes de Camocim, pois a figura de Jesus nesta obra apresenta a

denominação de Bom Jesus dos Navegantes, portanto, há um elo estabelecido

entre o santo e a fonte de vida de Camocim. Bom Jesus dos Navegantes é o

padroeiro da cidade na qual Cela cresceu e viveu com a sua família, e a igreja

matriz traz o nome do Bom Jesus.

No ano de 1880, sob a responsabilidade do engenheiro José Privat,

que também orientou a construção da Estrada de ferro, Camocim viu os

alicerces de sua antiga capela serem construídos, foram seguidos fielmente, a

planta, associada aos direcionamentos técnicos do mencionado profissional.

Após dois anos, a paróquia de Camocim foi oficialmente criada e iniciou-se a

edificação da igreja matriz, agora sob os norteamentos técnicos do engenheiro

Beltrão Pereira, este trabalhou erguendo algumas partes do templo, como a

“fachada, arcadas, e paredes laterais da nave principal da futura matriz”

(MONTEIRO, 1984, p. 119). Na perspectiva administrativa religiosa, o primeiro

pároco de Camocim foi o padre Leandro Teixeira Pequeno. Em 1883, a referida

paróquia foi anexada a de Granja e o vigário Leandro Teixeira sofreu

transferência para a mesma, fato este que promoveu a paralisação dos

trabalhos concernentes à construção da igreja. As tentativas para a edificação

do templo não cessaram, logo, no ano de 1905, o padre João Teixeira de

Abreu, morador em Camocim, tomou a decisão de continuar as obras para a

elevação da matriz, no entanto, ocorreram alguns empecilhos para o reinicio

dos trabalhos, devido ao fim da comissão, a qual direcionava as decisões

organizando a obra, pois, João Teixeira foi transferido para Fortaleza. Esse

acontecimento norteou novamente um período de paralisação nos serviços.

A antiga estrutura inacabada erguida pelos padres Leandro Teixeira

Pequeno e João Teixeira desabou, devido à exposição a presença desgastante

do sol e igualmente pela ação das chuvas. Associado a esse quadro

100

trágico,ressaltamos o estado no qual as paredes encontravam-se, não

apresentavam estrutura satisfatória para a sustentação do teto.No ano

posterior a 1905, houve a retomada nos trabalhos para a continuação da igreja

matriz, neste momento, sob a coordenação do novo pároco José Augusto da

Silva, empenhado para dar seguimento aos serviços do templo sagrado.

Apesar dos obstáculos que foram surgindo com o passar das décadas, adiando

a finalização da igreja matriz de Camocim, o mencionado sacerdote católico,

lançou-se na complexa missão de erguer desde as bases, um templo

confortável bem como elegante. Em 1919, a igreja matriz do Bom Jesus dos

Navegantes estava finalmente pronta, a sua inauguração foi realizada por D.

José Tupinambá Frota,quando ocupava o cargo de arcebispo de Sobral.

O olhar de Cela para a sua obra de cunho religioso desvela uma

fração integrante do âmbito da personalidade do artista, pois, o catolicismo

influenciou muito em sua postura séria, honesta, eivada de humildade, seus

pais seguiam um padrão rígido de educação. Desde criança, participava das

celebrações eucarísticas, acompanhado da sua família, sempre zelando pela

integridade do filho “Celinha”. Os norteamentos éticos absorvidos de seu pai,

José Maria e sua mãe Maria Carolina, despertaram no artista características

nobres, como a extrema obediência aos valores da família, sobretudo aqueles

valores transferidos através do desígnio paterno.

A vivência em uma atmosfera religiosa na família é perceptível na

paisagem apreendida por Raimundo Cela, quando o pintor direciona o seu

olhar para os símbolos presentes na paisagem, mergulhando em sua própria

essência, a qual é emanada através da sua arte, traduzindo os seus

sentimentos acompanhados pelas lembranças das missas aos domingos com a

sua família.

Perante a experiência de Raimundo Cela com o seu trabalho, torna-

se compreensível que a paisagem apresente as suas próprias características,

exibindo assim o seu espaço o qual é único, singular, não exibindo uma faceta

espetacularizada ou como um espaço traçado unicamente através da

capacidade intelectual, ao contrário, a paisagem ultrapassa o universo das

linhas métricas. Além das quantificações e da racionalização, a paisagem é a

maneira do ser humano compreender e descrever os movimentos do mundo, a

partir do seu corpo e estadia sobre a superfície terrestre (BESSE, 2014).

101

Destarte, a paisagem compõe-se como o equilíbrio entre o mundo dos objetos

associados aos sentidos, ambos estimulam interações nas quais completam-se

mutuamente, ofertando os significados às ações do homem.Raimundo Cela

representou na pintura uma temática religiosa característica do litoral de

Camocim, apreendendo os movimentos da procissão,e que se integraram a

existência do pintor.

O olhar para a paisagem em Raimundo Cela para a “Procissão em

Camocim ”estabelece-se a partir do mundo material, o qual fornece os temas,

as cores, revelando ao artista os contornos e as dimensões, como também é

encontrada residindo no âmago do pintor, envolvido nos olhares diários

lançados para as práticas religiosas católicas predominantes na sua terra

litorânea. Observando a paisagem elaborada por Raimundo Cela,

compreendemos a emanação do olhar do pintor acerca do espaço onde o

mesmo vivenciou aquele mundo, deste modo, partindo de uma visualidade na

qual interagem a geografia e a arte.Percebemos que o artista no seu trabalho

tece uma geografia vivida. Assim, a paisagem constitui-se como um registro

das suas relações afetivas assentadas na obra, revelando o seu saber a

respeito do espaço.

A procissão em Camocim, representada por Cela, constitui uma

tessitura de significados,e que, estão presentes na obra do artista. O vigor na

obra de Cela emerge de sua própria existência cotidiana, expressando o seu

olhar a respeito do mundo, consequentemente, o pintor e a sua obra são

universos edificantes de um laço inseparável, assim “a visão do pintor é um

nascimento continuado” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 26).Conversando em

pesquisa de campo com alguns moradores de Camocim, estes nos informaram

que Cela participava da caminhada e da procissão de maneira ativa, através

dos seus passos juntamente com a multidão de fiéis, com orações de

agradecimento, súplicas bem como cânticos próprios daquele ritual cristão.

Ressaltamos que a paisagem estudada através da ótica geográfica

cultural, não emerge como uma análise a qual se caracteriza por apresentar

uma postura subjetivista radical, mas, assenta-se em um encadeamento com o

mundo objetivo exterior ao pintor, sob esse ângulo, o artista é um ser presente

no mundo atuando sobre o mesmo.

102

Na esfera das conexões objetivas e subjetivas, pensamos a

paisagem artística de Cela, como uma atividade codificadora do espaço por ele

vivenciado. Na obra “Procissão em Camocim”, há a conformação de duas

geografias, a primeira insurge do universo da matéria, e que compôs o

cotidiano do pintor na cidade de Camocim. Consoante à primeira Geografia há

uma segunda,conferindo aos lugares e aos seres,as suas especificidades.

Ambas são concepções oriundas de Besse (2014), em que o autor detalha

sobre as questões pertinentes a uma Geografia vivida:

Um saber mais íntimo, sem dúvida, mais misterioso, que é dificilmente traduzível, dificilmente transmissível nas cadeias de um discurso público e geral. Um saber que traz, efetivamente, uma inteligência diária do mundo e do espaço, uma familiaridade baseada no uso. É uma geografia vivida tanto quanto pensada. É, antes de tudo, uma maneira de estar no mundo, uma experiência e um uso que se desdobram no espaço. Mas isso não significa que esse saber não possa ser dito. (BESSE, 2014, p.188)

Analisando a obra de Cela,percebemos,a partir da mesma, a

existência de caminhos para o ser humano apresentar ao público os seus

sentimentos de difícil externalização por vias convencionais, neste âmbito a

arte configura-se como uma alternativa na apresentação do indizível, acerca

das vivências carregadas e das reflexões as quais habitam no seio do

artista.Assim, a pintura de Raimundo Cela explora as especificidades do sujeito

no mundo, portanto, a sua obra explicita a forma pela qual o pintor alcança a

sua figuração de estar no mundo.

Na procissão em Camocim apreendemos uma igreja disposta na

praça da cidade, atraindo a atenção daqueles indivíduos transeuntes os quais

observam a sua imponência, dialogando com a mesma. Desde os primeiros

religiosos, concebemos a existência de um dinamismo na paisagem

camocinense, devido aos trabalhos para a construção e finalização do templo

santo, bem como a expectativa por parte da população em ganhar o seu

santuário católico central, pois, a cidade não dispunha de uma igreja matriz e

um padroeiro. A instituição de um patrono com o nome de Bom Jesus dos

Navegantes origina a identidade de muitos habitantes de Camocim. Na

aquarela, não é possível visualizarmos os primeiros párocos, todavia, na

exploração do trabalho de Cela, compreendemos que para construir um templo

103

do porte da matriz camocinense foram exigidos trabalho e tempo. Rosendhal

(2012) explana a respeito do ordenamento da procissão, revelando que cada

fragmento do cortejo exibe o seu respectivo significado, localizado na dimensão

espacial, fato este que transforma o cortejo sagrado em uma manifestação

simbólica na paisagem. Nessa perspectiva,

A procissão é considerada um cortejo religioso público, de forma ordenada em alas, do qual participam especialistas do sagrado e fiéis, no qual entoam preces e a imagem de uma ou mais entidades sacras vinculadas ao tempo sagrado da celebração é conduzida. A procissão destina-se a exprimir a exteriorizar a identidade religiosa da comunidade envolvida. (ROSENDHAL, 2012, p.90)

Além da figura dos padres, surgem também associados a eles,

outros atores dinamizadores que fazem parte da trama. São pessoas que pela

tradição cumprem o ritual católico que devotam seu olhar ao Bom Jesus dos

Navegantes. Os fiéis rogam ao santo protetor um ano de pesca frutífera, pois, o

nome do santo envolve a principal atividade que mobiliza a cidade de

Camocim, especialmente neste período no qual obra foi criada, além de revelar

o cotidiano dos pescadores que é bem retratado na obra de Cela.

A obra representada pela figura 6, “Jangada rolando para o mar”,é

um óleo sobre tela. A atividade pesqueira é o tema em destaque. Semelhante

as demais obras de Cela analisadas na presente dissertação, as cores

envolvidas na luz estão presentes. Esses dois elementos são fiéis à realidade

litorânea, na qual desenvolve-se a pesca sob a luz do sol. No centro da

obra,visualizamos uma embarcação de madeira na sua cor original, empurrada

por seis homens,transmitindo os sentimentos de força e determinação.

Observamos quatro indivíduos com calças e blusas apropriadas para a

atividade, entre eles, três destacam-se por usarem o típico chapéu de palha

com abas largas, um acessório simples, porém, importante para a proteção

solar, durante o extenso período permanecido em alto mar. O artista segue

preenchendo o espaço da tela, inserindo dois indivíduos trajados de forma mais

despojada, um a direita e o outro a esquerda da obra.

A embarcação rústica é uma jangada composta por alguns

elementos básicos, bem como fundamentais para o êxito do trabalho, e

igualmente para a segurança dos jangadeiros, por exemplo, a vela. No canto

104

direito da jangada, o pintor anexa ao conjunto um cesto denominado samburá,

na cor marrom exibindo uma tonalidade escura, a sua entrada está posicionada

para baixo, pois, é no referido utensílio onde o pescado será armazenado.

Raimundo Cela capturou uma paisagem litorânea apresentando uma

atividade antiga, característica das regiões banhadas na costa nordestina

sobretudo no Ceará, lugar este onde a profissão de jangadeiro ainda resiste

com o passar dos tempos.Nessa perspectiva, o artista posiciona a embarcação

no seu momento de partida para o mar, preocupando-se com os detalhes dos

corpos dos pescadores, principalmente no que concerne a força braçal,

depositada no ato de empurrar o peso da jangada, pois, a maioria deles

debruça-se incansavelmente para deslocarem o seu meio de trabalho. A

posição das pernas transmite a noção de peso intenso, oriundo do esforço

realizado sobre a embarcação, Cela é cuidadoso ao elaborar os pormenores

contidos na paisagem, as mãos sobre a madeira, as cordas e as dobras das

calças. Esses detalhes foram observados através da sensibilidade artística de

Cela, compreendendo que a simplicidade e a força do labor diário daqueles

indivíduos, integram à paisagem litorânea.

105

Figura 7- Jangada rolando para o mar-1941

Fonte: CD-ROM Raimundo Cela 1890-1954, elaborado por Galeria Pinakotheke Multiart, 2004.

Os jangadeiros conformaram a paisagem típica do litoral do nordeste

do Brasil. Praticando a pesca em mar aberto,mostrando um vasto

conhecimento a respeito do mundo da navegação, aprendem com o cotidiano a

interpretarem os significados emitidos pela natureza,estabelecendo,assim,um

elo íntimo com o mundo natural no qual se encontram inseridos. Há, desta

106

maneira, uma conexão baseada nas percepções diárias, na observação

profunda, nos olhares, nos cheiros, nos sons emitidos pelos ventos presentes

na paisagem, almejando, assim, mapear de forma sensível, mas eficaz, a

diversidade dos indivíduos que vivem neste ambiente litorâneo. Os jangadeiros

comprovam com sua lida diária, uma interação concernente ao universo das

espécies encontradas no mar, aprendendo desde muito cedo, a desvendarem

as singularidades inerentes ao mar, fato que enseja o sucesso das suas

atividades. Seguem descobrindo as áreas nas quais determinadas espécies

são encontradas, portam o conhecimento dos períodos de migração do

pescado, compreendendo os costumes alimentares dos peixes, tanto aqueles

naturais da superfície como também os das profundezas.

A pesca utilizando canoas ou balsas de madeira, com a presença de

velas ou não, é uma atividade de eras longínquas, semelhante à caça e a

agricultura, é realizada desde os períodos pré-históricos, nos quais o homem

objetivava manter a sua subsistência através das águas. Existem vestígios da

atividade pesqueira distribuídos por diversas áreas do globo a partir dos

depósitos arqueológicos, como por exemplo, a pinturas rupestres, mostrando

cenas da referida prática nos tempos primitivos, os murais elaborados pelos

egípcios, e ressaltar as narrativas oriundas da Antiga Grécia, expondo a

importância da pesca para a economia e da sua utilidade na alimentação

destes povos (FARTHING, 2011).

Em terras brasileiras a pesca nas embarcações de madeira,

similares àquelas construídas nas demais partes do mundo, também ocupa o

status de antiga, existindo registros da atividade na Carta de Pero Vaz de

Caminha, na qual o mesmo relatou a existência da pesca em balsas rústicas,

largamente utilizadas pelos nativos, denominadas de almadias. Estas

precederam as conhecidas jangadas, eram construídas a partir de um tronco

único de árvore no sentido retilíneo, em movimentos semelhantes aos de

escavação, a madeira era então cavada (CASCUDO, 2012). A jangada com a

vela como é conhecida popularmente, emerge do intercâmbio assentado entre

os grupos indígenas, os quais em sua maioria eram excelentes pescadores,

usando as almadias, e os colonizadores foram os responsáveis por aperfeiçoar

este meio de pesca com as velas, melhorando o seu desempenho.

107

A navegação integra uma parte da gênese e da organização das

comunidades primitivas,estas, com o decorrer dos séculos, transformaram-se

em civilizações antigas,pois, a sua solidificação serviu por base para as

sociedades modernas, portanto,na perspectiva da relevância do uso das

jangadas primitivas, como um veiculo para a exploração da Terra, Cascudo

(2012) assinala

A Jangada é que, mesmo sem nome consagrador recebera sua menção de existência etnográfica na terra do Brasil. Toda a gente se esquece de informar a Jangada do direito de ter algum orgulho. Nenhuma embarcação é mais antiga. A Jangada bem se podia afirmar aristocrática porque tem uma hereditariedade fixada. Antes dela o homem teria apenas o pavor olhando a água corrente ou pancada do mar em praia neolítica. Há trinta mil anos que a jangada existe com a mesma finalidade dos nossos dias atuais e sempre muito parecida com a fundadora de sua raça. Ela e o Carro de Boi são realmente totens de todos os veículos marítimos e terrestres espalhados nos territórios do mundo (CASCUDO, 2012, p. 41)

Os veículos marítimos estruturalmente rudimentares serviram ao

homem, como um importante meio de transporte no processo de expansão,

para o conhecimento de novas terras, ampliando a interação entre os lugares.

Os navios atuais resultam do aperfeiçoamento, acompanhado pelas inovações

voltadas para o universo da navegação, exemplificamos com os navios

movidos a vapor, posteriormente evoluídos para outros tipos ainda mais

resistentes, orientados por uma aparelhagem extremamente científica e

tecnológica. Observamos um processo de melhoramento

gradativo,concernente aos meios de transportes e trabalho marítimo, são

metamorfoses inseridas lentamente, apartir das descobertas ocorridas.

A paisagem litorânea na obra de Cela foi elaborada na cidade de

Fortaleza,quando o artista ali residia. A obra reúne em seu íntimo, o olhar

profundo, em relação à terra em que passou parte de sua vida. O exercício

elaborado por Cela ao observar o movimento das pequenas embarcações,

acompanhando o labor diário dos pescadores, tanto em Camocim como em

Fortaleza, pois, mesmo distante do lugar em que viveu, a paisagem litorânea

permanece presente no seu olhar, constituindo assim,mais uma obra na qual a

vida emanada da pelo mar, torna-se protagonista. Na presente pesquisa, observamos uma comunhão entre o

pensamento de Hissa (2002),com aquele delineado por Meinig (2003), quando

108

ambos os autores nos falam acerca da pluralidade do olhar, partindo

primeiramente do ponto de vista material externo ao homem. Asimagens

alcançadas e capturadas pela retina são interpretadas a partir das experiências

carregadas no âmago do individuo, portanto, norteados pela compreensão dos

autores, percebemos que o olhar do pintor para a sua obra,mostra-nos a esfera

de uma existência na qual foi estabelecida uma tessitura afetuosa com todo o

ambiente natural, desfrutado durante as fases da vida de Cela.

Na concepção de Dardel (2011), o homem através do seu trabalho

cotidiano é um agente atuante que transforma as paisagens para o seu

benefício, imprimindo nas mesmas as marcas da cultura que a modelou,

portanto, modifica o meio natural e simultaneamente integra-se com o seu

mundo circundante. Acerca dessa tessitura, na qual entrelaçam-se o homem, o

trabalho e a paisagem, Dardel (2011) assinala que

A paisagem não é, em sua essência, feita para se olhar, mas a inserção do homem no mundo, lugar de um combate pela vida, manifestação de seu ser com os outros, base para o seu ser social [...]. A paisagem pressupõe uma presença do homem, mesmo lá onde toma forma de ausência. Ela fala de um mundo onde o homem realiza sua existência como presença circunspeta e atarefada. (DARDEL, 2011, p. 32)

Diante do pensamento de Dardel (2011), compreendemos que o

artista ao retratar a paisagem do labor dos jangadeiros, desconstrói a

classificação romântica do homem habitante do litoral, vivendo e se integrando

serenamente com o seu meio natural, ao contrário, a jangada rolando para o

mar,observadabem como sentida pelo artista,explicita a figura do jangadeiro

como um individuo singular, com as suas habilidades próprias e de espírito

solidário,para com aqueles os quais convivem. Cela ao observar os

pormenores da paisagem, como a vela aguardando o momento para ser

finalmente içada, as roupas utilizadas pelos pescadores e a força da luta diária,

deposita por meio de sua paleta e pincéis, o significado da sua vida em

Camocim e em Fortaleza, ambas envolvidas pelo contexto da paisagem

litorânea apresentando seus personagens através da arte, mostrando a

coragem e o vigor humano.

A bravura foi um ângulo constantemente percebido pelo artista, e

respeitado pelo mesmo, ao ser apreendida e homenageada através do toque

109

sensível de Cela. O pintor com a sua personalidade introspectiva, humilde e

culta, filtra por meio dos seus sentidos as cenas reveladas aos seus olhos

diariamente, apreendendo desta maneira, as qualidades insubstituíveis para a

sobrevivência daqueles homens, cuja vida é posta em risco dia-a-dia. Cela

percebe que as tradições e os conhecimentos acumulados, a partir da

experiência referente aquela vida árdua, são carregadas e transmitidas de

geração a geração, em rodas de conversas entre os pescadores e os seus

filhos sucessores de seus pais. O pintor através da sua paisagem delineia

imprimindo o seu olhar acurado a respeito do labor marítimo diário, assim, na

tela em discussão, Cela apresenta-nos a sua compreensão concernente a luta

do jangadeiro aparentemente incansável, capaz de enfrentar a fúria das ondas,

retirando o seu sustento, muitos ao desafiarem a morte não retornam para a

terra.

As obras de Cela são em grande parte pinturas dedicadas ao estilo

de vida litorâneo,expresso na obra “Jangada rolando para o mar”, pois, ao

posicionar a embarcação no momento da partida, o artista mostra-nos a

dimensão de uma dependência, assentada diante da relação homem e

natureza.O primeiro elemento desta relação é o homem, empenhado sobre a

missão de transformar os materiais presentes na natureza, ao seu

favor,edificando as bases para a sua sobrevivência. Desde a extração da

madeira para a construção das jangadas, e casas erguidas manualmente, até a

palha usada para montar o telhado das residências, o pescador adapta-se,

almejando contornar as condições impostas pela natureza, podemos assim ver

esta adequação figurada na obra de Raimundo Cela.

Ao estudarmos os traços constituintes da personalidade de Cela,

deparamo-nos com a prática constante do silêncio, uma postura comum ao

artista no seu período de trabalho. Tal exercício introspectivo também é

verificado na saga dos jangadeiros, quando se localizam em alto mar, no seu

período de trabalho, portanto, observamos a existência de uma similaridade

firmada entre o artista criador e a paisagem por ele captada.

Distribuído sobre a superfície terrestre, há um universo de

profissões, exigentes para o seu desenvolvimento uma intensa força física,

como os homens operários nas áreas de mineração. Outros serviços não

solicitam a utilização de dispêndio físico, como, por exemplo, as atividades

110

profissionais de um arquiteto,se compararmos com as práticas de um

minerador. Ambos os indivíduos ao exercerem as suas respectivas atividades

de trabalho diariamente, são aceitáveis conversas entre os companheiros, bem

como o ato de cantar ou escutar músicas, são gestos normais. Não ao

pescador. Este tem o silêncio como o seu companheiro de labor cotidiano,

sempre atento aos movimentos das ondas, nas quais ora a jangada desliza,

ora sofre a violência implacável do mar. Estese revela ao pescador, como um

amigo estável e outras vezes é um inimigo ardiloso. O silêncio obtém o seu

significado a partir das experiências do jangadeiro como mar, um terreno no

qual a cautela é fundamental, devido a sua inconstância, além deste fato, as

conversas acompanhadas de gritos e assobios resultariam na fuga dos peixes,

ocasionando uma pesca improdutiva (CASCUDO, 2012).

O pequeno grupo de pescadores deslocando a jangada para o mar,

resgata as concepções de Cosgrove (1998), acerca das paisagens excluídas,

estas deparam-se com o desprezo da sociedade na qual encontram-se

inseridas, atraindo olhares diversos,classificando-as como desnecessárias,

portadoras de uma inutilidade e incapazes de conferir algum tipo de dinamismo

aos lugares. Nesta perspectiva as paisagens excluídas não despertavam

interesse ao âmbito cientifico,rejeitando a esfera dos significados produzidos a

partir das mesmas. Perante o delineamento de Cosgrove (1998), observamos

na paisagem em tela à ampliação do debate concernente a dimensão dos

significados, bem como dos símbolos criados a partir das apropriações diárias

dos grupos avaliados como excluídos, como aquele agrupamento retratado

pelo pintor, o qual juntamente com outros, atuam na produção do espaço

litorâneo,promovendo dinamismo a partir das suas intervenções na natureza,

para a sua sobrevivência (COSGROVE, 1998).

Observamos a relevância de resgatarmos as explicações de Meinig

(2003), relativas à polissemia emanada por meio da paisagem, especialmente

quando o referido autor, discute a mesma como natureza,ressaltando a

integração entre o homem e o seu meio natural. Ele segue,então,explicando-

nos que

Os padrões básicos da paisagem, os traçados de campos, pastagens e bosques, de propriedades rurais e de aldeias, o plano das cidades e dos subúrbios, todos revelam seleção consciente de solos e de

111

encostas, de elevações e de exposição à instalação de sítios e de rotas, que são fornecidos em principio pela natureza. Até mesmo as formas, cores, texturas e outras qualidades das coisas, das cercas, dos edifícios, das árvores e das flores, dos animais e dos pássaros refletem uma seleção humana da grande prodigalidade terrestre e de seu retrabalho, retreinamento, rearranjo, até atingir as formas desejáveis. E o próprio homem de muitas maneiras, na sua dieta e em seu vestuário, nos emblemas e nos rituais, em seu trabalho e lazer diário, que revelam suas adaptações, frequentemente tênues e inconscientes, à natureza (MEINIG, p.37, 2003).

Norteados por Meinig (2003), entendemos a ocorrência de um

processo metamórfico sofrido pela natureza litorânea, primeiro através do

olhar, e posteriormente agem as mãos dos pescadores habitantes dessas

áreas, os quais continuamente extraem a sua sobrevivência dia após dia, sob

esse ângulo, a arte de Cela em destaque revela-nos uma esfera concernente

às interações entre o homem e o mar. Os jangadeiros iguais aos demais seres

humanos, possuem as suas necessidades básicas como, a alimentação, o

lazer e a habitação, carências estas supridas através do trabalho, portanto,

olhamos o dinamismo da paisagem de Cela, a partir do entendimento das

formas, bem como dos atores sociais inseridos na paisagem em tela, a jangada

e o pescador, o homem com o mar.

O ato de habitar a paisagem ultrapassa as quantificações

estabelecidas pelas regras, pois, a abertura do universo dos sentidos revela

uma faceta mais profunda no que concerne ao significado da paisagem,

sobretudo para aqueles indivíduos os quais cotidianamente integram-se com a

mesma extraindo o seu sustento. O diálogo com a paisagem através dos sons,

das cores, das texturas, dos cheiros, e dos sabores, auxilia o ser humano a

pensar na sua condição de integrante fundamental para a vida da paisagem, e

neste processo a sensibilidade cria o esteio para a conexão entre a paisagem e

o homem o qual é um ser no mundo eivado de percepções (KOZEL,

2012).Raimundo Cela, através do seu olhar, exprime a essência do ato de

habitar no litoral. Elementos sensitivos como o cheiro do mar, os sons do vento

indicando a chegada de tempestades, o tato utilizado para sentir as asperezas

da madeira ao construírem as suas jangadas, são atos manifestados na

paisagem.

A obra de Cela eleva o pescador para além do posto de mero

habitante passivo, mas como um ser integrante,agindo constantemente como

112

um vetor das transformações ocorridas na paisagem natural, a qual após a

apropriação humana imprime visual e imaterialmente os seus símbolos, e

significados torna-se em uma paisagem cultural. Sob esse ângulo,somos

consoantes ao que afirma Costa (2003), “as paisagens excluídas, que muitas

vezes são marginalizadas por não conterem um aspecto estético que as

justifiquem como tal, também trazem com elas um forte poder simbólico”

(COSTA, 2003, p.33). Os materiais selecionados na natureza litorânea estão

impregnados pelos seus significados, cada elemento é relevante ao olhar do

pescador, a sua habitação à partir do barro amassado, sustentado por uma

estrutura feita de troncos de carnaúba, e com o teto coberto por palhas de

coqueiros, é a sua proteção, lar, o seu abrigo, refúgio, a sua segurança contra

as intempéries naturais. É, portanto, o regaço onde os seus filhos nascem, e

são criados nas proximidades do mar, aprendendo desde a sua infância a

enfrentarem o ritmo das águas. A madeira coletada é cuidadosamente

trabalhada, lapidando-a na construção do seu veículo de trabalho, a jangada,

até a mesma atingir as dimensões apropriadas para finalmente ser posta no

mar.

Embora o olhar seja um ato detalhista,trazendo diversos dos

significados escondidos nas formas da paisagem, como vimos em Meinig

(2003), existe ainda o risco do olhar caracterizar-se como um ato superficial,

não encontrando o cerne das questões problemáticas,geradoras de

determinadas paisagens. Dessa forma, ocorre a impossibilidade de

compreensão dos pilares das paisagens, as quais revelam-se diariamente aos

olhos do homem, de forma mais aguçada. Os objetos diversificados

visualizados nas paisagens belas e agradáveis, todavia, camuflam os conflitos

travados responsáveis por sua composição (HISSA, 2002).

113

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente dissertação debruçou-se em apresentar apenas uma,

das inúmeras possibilidades voltadas para o estudo da paisagem, partindo do

viés das artes visuais com o enfoque na pintura. A obra do pintor Raimundo

Brandão Cela, ao nosso olhar, constitui-se como um registro de

época,compreendendo um documentário cultural e geográfico da paisagem

litorânea de Camocim, lugar que abrigou o pintor na sua infância, e

adolescência bem como na sua fase madura. Cela homenageou na maioria

das suas obras, a bravura e o cotidiano humilde dos habitantes inseridos

naquelas paisagens conferindo-as de um dinamismo simbólico que é

proporcionado pela presença dos sons, dos cheiros e das cores.

O mar capturado por Cela assemelha-se a uma orquestra natural,

comos sons produzidos, através das oscilações das marés, do ir e vir

incessante das ondas, marcando na paisagem a força da natureza a qual é

alvo de dominação por parte dos homens. Apesar da luta humana em domar a

natureza litorânea, são muitas as tentativas frustradas, pois, diversas vezes as

embarcações viram com a violência das ondas, e o jangadeiro percebe que

deve obediência à natureza, logo, para não perecer anseia diariamente

estabelecer um vínculo de respeito para com o oceano. O artista por meio das

cores vivas como, por exemplo, do azul, vermelho, amarelo inseridos nas telas

em distintos tons, e sempre com um toque de branco com a proposta de

iluminar os seus trabalhos, convida ao espectador para mergulhar no universo

das percepções emanadas por suas paisagens.

Ao estudarmos a vida de Raimundo Cela, observamos que este

revelou uma vivência profunda do lugar no qual vivenciou uma paisagem

natural. O nome de Cela ao ser mencionado remete-nos às paisagens do

estado do Ceará, não àquela paisagem relacionada à seca, ou a fome, mas,

uma face cearense com os seus mares bravios, bem como mostrando as

atividades ligadas aos mesmos. A obra de Cela mostra-nos uma fuga da ideia

romântica do habitante do espaço litorâneo como aquele o qual vive

harmoniosamente com os ciclos da natureza com ausência dos conflitos.

Ao seguirmos com a pesquisa,questionamo-nos: como um artista de

formação acadêmica,detentor de um arcabouço técnico clássico, empenha-se

114

em elaborar obras nas quais obtêm destaque os humildes habitantes

esquecidos do litoral? Um questionamento simples, porém, vemos relevância

no mesmo. Com a realização deste trabalho dissertativo, encontramos a

resposta para a pergunta formulada anteriormente. Entendemos a partir da

seleção de algumas obras de Cela, que a valorização de qualquer paisagem,

seja a mesma, simples ou sofisticada, é oriunda da experiência e das vivências

ocorridas nos lugares.

Para Raimundo Cela, a paisagem litorânea de Camocim presente

em sua obra, significou um palco no âmbito da sua vida, no qual uma tessitura

de sentimentos e percepções desenrolaram-se. Assim, a partir da perspectiva

de uma paisagem elaborada por um artista, vemos a seletividade do pintor, em

depositar nas suas respectivas obras, não apenas os seus temas, os desenhos

e as tintas, mas, elementos os quais envolvem a esfera imaterial e que também

participa da constituição dos seus trabalhos. Assim, compreendemos a obra,

como uma extensão da atmosfera perceptiva do pintor para com o seu mundo,

o sentimento vivenciado na paisagem de Camocim e que traduz-se na

perspectiva da representação artística.

Cada imagem apreende as percepções de Cela, embora este fosse

um artista acadêmico por seus temas mitológicos e sóbrios, sobretudo no início

da sua carreira e, pelo hábito comum entre os acadêmicos,que consiste em

realizar os estudos, esboçando incansavelmente o desenho antes da aplicação

das cores, o artista, por meio do seu trabalho ratifica que a sociedade de

Camocim o envolve e o pintor participa da mesma. Verificamos este fato a

partir das obras apresentadas nesta dissertação: “Praia em Camocim”, “Porto

de Camocim”, “Saída da oficina”, “Procissão em Camocim” e o cotidiano latente

dos jangadeiros, presente na obra, “Jangada rolando para o mar”. Paisagens

de uma geografia litorânea do Ceará foram retratadas, através do olhar artístico

de Cela, o qual transpassa a mera beleza visual.

Sabemos da existência dos diversos cenários naturais do Ceará,

localizados do litoral ao sertão. O pintor em destaque, captura uma fração de

tais paisagens, as quais representam sócio espacialmente o Ceará. As

paisagens foram então reconhecidas pelo artista,sendo eleitas não de maneira

aleatória, mas, as escolhas são justificadas a partir de uma vida pautada na

existência de Raimundo Cela, envolvida na paisagem de Camocim.

115

Observamos assim, que a paisagem na arte coaduna os sentimentos da vida

humana, estes por sua vez, circundam a imagem, desta maneira o viés da

percepção geográfica, oferta-nos a possibilidade de estudarmos a obra de arte,

para além da esfera histórica, realizando assim um percurso pelo universo dos

significados, os quais são motivadores da elaboração das obras e igualmente

dão vida aos trabalhos.

Raimundo Cela pinta a sua realidade de maneira fiel,revelando em

cada obra o mundo natural o qual rodeava-lhe. Quando usamos a palavra

natural, referimo-nos às formas e dimensões reais, sem a atitude de

interferência por parte do pintor na cena, criando elementos os quais são

fantasiosos. Na presente dissertação, percebemos um artista destemido,

elaborando obras com graça, expressividade, configurando uma geografia da

paisagem viva, carregando a beleza de cada local representado. Não se deixou

conduzir totalmente por uma postura rigorosa, imposta por parte das

instituições, nem desligou-se dos princípios acadêmicos, encontrando, assim,

um equilíbrio entre a academia e a sua própria maneira de expressar-se.

Cela obteve sucesso fora do Brasil, ao expor no Salon na França,

todavia, este acontecimento não fomentou um aprisionamento para a sua

criatividade, a nosso ver ocorreu o contrário, a estadia do pintor na Europa,

permeou a sua áurea artística com uma renovação, a qual é compreendida

quando observamos nos seus trabalhos as cores luminosas, o movimento,

tantos detalhes e leveza.

As questões relacionadas à geografia associadas com a arte são

apreendidas quando lemos os mapas das percepções, os quais nos orientam

no entendimento da esfera imaterial do espaço geográfico. Aqui, observamos a

potencialidade exibida por parte da arte em resguardar os significados,

principalmente ao estudarmos a iconologia e vemos, assim, a relevância da

existência do pintor, uma estadia sobre a superfície da terra repleta de

sensibilidade, eivada de sentimentos.

A paisagem na pintura é passível de investigações geográficas,

apresentando o funcionamento dos lugares, envolvidos nos seus respectivos

contextos históricos,trazendo ao debate as particularidades econômicas,

políticas, culturais e o dinamismo da sociedade na qual as representações

foram elaboradas, por este motivo falamos de investigações.A pintura

116

caracteriza-se como uma atividade pura, diferenciando-se da

fotografia.Referimo-nos ao sentido técnico, por exemplo, o artista realiza a

seleção das cores, dos tons os quais julga mais adequados para o trabalho e

elabora um esboço. A fotografia envolve algumas tecnologias, por mais simples

que sejam,atuam no congelamento de determinada paisagem. É importante

ressaltarmos que a atividade fotográfica,semelhante à pintura, conecta-se com

o universo das percepções do fotógrafo, estamos apenas comparando à

composição técnica de ambas as atividades artísticas.

A visão na maioria das vezes, é o sentido pioneiro no processo de

captação da paisagem apreendendo as suas formas, assim vemos o mundo,

no qual estamos inseridos, para no momento posterior assentarmos o nosso

olhar a respeito dos seus contornos. Em tal perspectiva, o ato de olhar

configura-se como algo subjetivo, partindo da experiência de vida dos

indivíduos. Cada homem ou mulher habitante da superfície terrestre apresenta

a capacidade de expor visões diferentes, metamorfoseando a paisagem,

ratificando-a como um fenômeno vivido,permeado por uma polissemia.

Observamos com o desenvolvimento desta dissertação, as possibilidades

encontradas pelo homem para partilhar com os seus semelhantes a sua visão

a respeito da paisagem, e a pintura constitui-se como uma opção neste campo

de estudos da paisagem. O ato de olhar é subjetivo residindo na mente

humana, a qual seleciona e carrega determinados símbolos, ofertando a

dinamicidade bem como os significados, pois, a cosmovisão do ser humano

responsável por produzir o sentido da paisagem.

A presente pesquisa se propôs aquecer as discussões no âmbito da

interdisciplinaridade, especificamente na esfera geográfica associada ao

estudo da arte pictórica. O corpo do artista no mundo, tanto vivencia como é

capaz de apreender as socioespacialidades, lendo e capturando-as nos seus

trabalhos. Portanto, na paisagem de Raimundo Cela, obtivemos a visão e o

olhar sobre a organização socioespacial camocinense, a qual se originou no

espaço litorânea, como discutimos na figura 4, intitulada “Porto de Camocim”,

cada obra traçada pela mão do artista engloba um fragmento de Camocim.

No decorrer deste trabalho, podemos entender que a Geografia

Cultural, na sua esfera renovada, de forma atenta, propõe-se a desbravar

terrenos pouco explorados, tomando posse de temas até então considerados

117

estranhos a compreensão de muitos. Um temário marginal observado sem

relevância ou sem utilidade prática, como alguns indivíduos acadêmicos ou não

consideram. Nesse conjunto de discussões, destacamos o domínio da arte

pictórica possuindo em vista algumas questões referentes à esfera dos

significados presentes na paisagem. Tal conceito adquire a configuração do

sentir, do olhar, dos sabores, dos saberes e das lembranças, logo, a paisagem

habita no cerne do homem.

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APÊNDICE

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APÊNDICE A ENTREVISA APLICADA AOS MORADORES MAIS ANTIGOS DE CAMOCIM/CE-OUTUBRO-2015

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ –UECE CENTRO DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA –CCT PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA –ProPGeo

MESTRADO ACADÊMICO EM GEOGRAFIA

TÍTULO DA PESQUISA: “ARTE E GEOGRAFIA: A ANÁLISE DA PAISAGEM LITORÂNEA EM RAIMUNDO CELA.”

1) Você conheceu Raimundo Cela?

2) Raimundo Cela tinha irmãos e quantos?

3) Qual a localização da casa na qual Cela morou?

4) Qual a profissão de Cela em Camocim?

5) Onde fica a usina elétrica aonde o artista trabalhou?

6) O pintor tinhafilhos?

7) Como era a personalidade do pintor?

8) Cela interagia com os outros moradores de Camocim?

9) Raimundo Cela era católico?

10) Apesar de possuir um ateliê o artista era visto pintando fora do mesmo?