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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE MEDICINA UNIVERSIDADE DE FORTALEZA DOUTORADO EM SAÚDE COLETIVA (ASSOCIAÇÃO AMPLA UECE/UFC/UNIFOR) Vanira Matos Pessoa ECOLOGIA DE SABERES NA TESSITURA DE UM PENSAMENTO EM SAÚDE NO SERTÃO: DO CONHECIMENTO REGULAÇÃO ÀS PRÁTICAS EMANCIPATÓRIAS NA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA FORTALEZA 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEAR

CENTRO DE CINCIAS DA SADE

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR

FACULDADE DE MEDICINA

UNIVERSIDADE DE FORTALEZA

DOUTORADO EM SADE COLETIVA

(ASSOCIAO AMPLA UECE/UFC/UNIFOR)

Vanira Matos Pessoa

ECOLOGIA DE SABERES NA TESSITURA DE UM PENSAMENTO EM SADE NO SERTO: DO CONHECIMENTO REGULAO S PRTICAS EMANCIPATRIAS

NA ESTRATGIA SADE DA FAMLIA

FORTALEZA

2015

Vanira Matos Pessoa

ECOLOGIA DE SABERES NA TESSITURA DE UM PENSAMENTO EM SADE NO SERTO: DO CONHECIMENTO REGULAO S PRTICAS EMANCIPATRIAS

NA ESTRATGIA SADE DA FAMLIA

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva da Universidade Federal do Cear, como requisito parcial obteno do ttulo de doutora em Sade Coletiva. rea de concentrao: polticas, gesto e avaliao em sade.

Orientadora: Prof. Dra. Raquel Maria Rigotto.

FORTALEZA

2015

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao Universidade Federal do Cear Biblioteca de Cincias da Sade

P568e Pessoa, Vanira Matos.

Ecologia de saberes na tessitura de um pensamento em sade no serto: do conhecimento regulao s prticas emancipatrias na estratgia sada da famlia/ Vanira Matos Pessoa. 2015.

309 f. : il.

Tese (Doutorado) Associao ampla Universidade Estadual do Cear/Universidade Federal do Cear/Universidade de Fortaleza. Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva, Fortaleza, 2015.

rea de concentrao: Polticas, Gesto e Avaliao em Sade. Orientao: Profa. Dra. Raquel Maria Rigotto.

1. Estratgia Sade da Famlia. 2. Determinao de Necessidades de Cuidados de Sade. 3. Ateno Primria Sade. 4. Sade Rural. 5. Metodologia. I. Ttulo.

CDD 362.1

Vanira Matos Pessoa

ECOLOGIA DE SABERES NA TESSITURA DE UM PENSAMENTO EM SADE NO SERTO: DO CONHECIMENTO REGULAO S PRTICAS EMANCIPATRIAS

NA ESTRATGIA SADE DA FAMLIA

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva da Universidade Federal do Cear, como requisito parcial obteno do ttulo de doutora em Sade Coletiva. rea de concentrao: polticas, gesto e avaliao em sade.

Aprovada em: 31/08/2015.

A Maya, minha filha querida e ao Fernando, meu amado esposo, que me permitiram

vivenciar o amor, de forma intensa e diferente - a maior experincia amorosa desta

existncia.

Aos meus pais Vicente e Maria Antnia (In memoriam) que me ensinaram a ser forte

e ter coragem de lutar pelos meus sonhos.

Aos meus queridos irmos e irms, que me permitiram exercitar a convivncia fraterna

com a diferena e com a diversidade.

Aos sertanejos e sertanejas, homens, mulheres, jovens, crianas e idosos do

semirido que encontrei nas andanas da vida.

Aos meus amigos e minhas amigas que me ensinam a ser, a viver e a percorrer os

caminhos da vida...

A minha querida professora e orientadora Raquel Rigotto que sempre confiou no meu

saber e ensinou-me a crtica amorosa, encorajando-me a seguir na carreira

acadmica.

Aos trabalhadores da sade (agentes comunitrios de sade, enfermeiros, tcnicos

de enfermagem, parteiras, cirurgies-dentistas, tcnicos de sade bucal, mdicos,

auxiliares administrativos, motoristas, vigilantes) com quem compartilhei diversos

momentos de troca de saberes e experincias significativas para a minha formao

profissional.

Aos trabalhadores e trabalhadoras das equipes sade da famlia onde atuei, pelo

compartilhamento do trabalho com vistas melhoria da sade do povo e pela profunda

amizade tecida nos encontros e desencontros do labor na sade no serto do Cear.

Gracias a la vida

Gracias a la vida que me ha dado tanto Me dio dos luceros que cuando los abro

Perfecto distingo lo negro del blanco Y en el alto cielo su fondo estrellado

Y en las multitudes el hombre que yo amo

Gracias a la vida que me ha dado tanto Me ha dado el odo que en todo su ancho

Graba noche y dia, grillos y canarios Martillos, turbinas, ladridos, chubascos

Y la voz tan tierna de mi bien amado

Gracias a la vida que me ha dado tanto Me ha dado el sonido y el abecedario

Con l, las palabras que pienso y declaro Madre, amigo, hermano

Y luz alumbrando la ruta del alma del que estoy amando

Gracias a la vida que me ha dado tanto Me ha dado la marcha de mis pies cansados

Con ellos anduve ciudades y charcos Playas y desiertos, montaas y llanos

Y la casa tuya, tu calle y tu patio

Gracias a la vida que me ha dado tanto Me dio el corazn que agita su marco

Cuando miro el fruto del cerebro humano Cuando miro el bueno tan lejos del malo Cuando miro el fondo de tus ojos claros

Gracias a la vida que me ha dado tanto

Me ha dado la risa y me ha dado el llanto As yo distingo dicha de quebranto

Los dos materiales que forman mi canto Y el canto de ustedes que es el mismo canto

Y el canto de todos que es mi propio canto

Mercedes Sosa

http://letras.mus.br/mercedes-sosa/

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ABS Ateno Bsica Sade ABRASCO Associao Brasileira de Sade Coletiva ACS Agente Comunitrio de Sade ADECE Agncia de Desenvolvimento Econmico do Cear APS Ateno Primria Sade CAPES Coordenadoria de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel

Superior

CEBES Centro Brasileiro de Estudos em Sade CEREST Centro de Referncia em Sade do Trabalhador CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e

Tecnolgico

CNS Conselho Nacional de Sade CONASS Conselho Nacional dos Secretrios Estaduais de Sade CONASEMS Conselho Nacional dos Secretrios Municipais de Sade COPAS Coordenadoria de Polticas e Ateno Sade CTACS Curso Tcnico de Agente Comunitrio de Sade ESP/CE Escola de Sade Pblica do Cear ESF Estratgia Sade da Famlia eqESF Equipe da Estratgia Sade da Famlia ESFVSS Escola de Sade da Famlia Visconde de Saboya de Sobral FIOCRUZ Fundao Oswaldo Cruz IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IPECE Instituto de Pesquisa Estratgica Econmica do Cear MS Ministrio da Sade MST Movimento dos Trabalhadores sem Terra NUAST Ncleo de Ateno Sade do Trabalhador OBTEIA Observatrio da Poltica Nacional de Sade Integral das

Populaes do Campo, Floresta e guas Teias de saberes e

Prticas

OMS Organizao Mundial da Sade ONG Organizao No Governamental

OPAS Organizao Pan-Americana da Sade PAC Programa de Acelerao do Crescimento PIB Produto Interno Bruto PSF Programa Sade da Famlia PNAB Poltica Nacional de Ateno Bsica PNSTT Poltica Nacional de Sade do Trabalhador e da Trabalhadora PNSIPCFA Poltica Nacional de Sade Integral das Populaes do

Campo, Florestas e guas

RMSF Residncia Multiprofissional em Sade da Famlia SAMS Sistema de Assistncia Mdico Supletiva SUCAM Superintendncia de Campanha de Sade Pblica SUS Sistema nico de Sade TRAMAS Ncleo Trabalho Meio Ambiente e Sade UBSF Unidade Bsica de Sade da Famlia UNICEF Fundo das Naes Unidas para a Infncia UFC Universidade Federal do Cear VBP Valor Bruto da Produo

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Lio de Canto, tela a leo de Adriano Santori, pintor nordestino................................................................................ 16

Figura 2 Fotografia Vaqueiro do fotgrafo brasileiro Araqum Alcntara................................................................................ 35

Figura 3 Fotografias agrupadas de atividades de pesquisa de campo em Luanda/Angola e Quixer/Cear/Brasil............................. 52

Figura 4 Tela Guerra e Paz do pintor brasileiro, Cndido Portinari................................................................................... 67

Figura 5 Abaporu. Pintura da brasileira Tarsila do Amaral................... 128 Figura 6 Fotografia registrando a beleza da caatinga no serto

cearense. Forquilha/Cear, 2014............................................ 133

Figura 7 Fotografia do mandacaru no serto cearense. Tau, 2014. 134 Figura 8 Distribuio espacial dos municpios do semirido segundo a

densidade demogrfica, 2012.................................................. 135

Figura 9 Fotografia do aude em perodo de estiagem no serto dos Inhamuns. 2014........................................................................ 137

Figura 10 Fotografia de atividade de pesquisa de campo com a equipe sade da famlia na unidade bsica de sade beneficiada com

o Programa Mais Mdicos numa comunidade rural, em

Morrinhos/Cear. 2015.............................................. 142

Figura 11 Curva de segurana alimentar no semirido............................ 143 Figura 12 Fotografia de atividade de pesquisa com a comunidade rural

remanescente de quilombo no serto cearense. Tau/ Cear,

2014.......................................................................................... 144

Figura 13 Fotografia registrando a morte violenta no campo em Tau, Cear. 2014............................................................................. 146

Figura 14 Fotografia registrando a exuberncia da natureza e os caminhos de Assar/Cear, 2000........................................... 149

Figura 15 Fotografia do serto onde sero explorados urnio e fosfato j com placa proibitiva da caa e da

pesca......................................................................................... 153

Figura 16 Fotografia da caatinga cearense no perodo da seca. 2014.... 158 Figura 17 Fotografia de roda de conversa familiar sob a sombra da

cajarana. Guaribas, Catunda/Cear, 2011............................... 161

Figura 18 Fotografia do lugar dos meus pais, no serto das Guaribas, Catunda/Cear........................................................................ 162

Figura 19 Quadro com as atividades desenvolvidas, por pessoas com mais de 10 anos, como trabalho principal, residentes em

comunidades rurais do Cear, em 2010.................................. 164

Figura 20 Desenho do planeta terra em convivncia saudvel sociedade/natureza.................................................................. 169

Figura 21 Fotografia de moradias, sendo duas casas de barro e duas de tijolos, Aracatiau/Sobral/Cear, 2003................................ 178

Figura 22 Fotografia registrando encontro com parteira tradicional. Tau/Cear, 2014.................................................. 180

Figura 23 Fotografia registrando a casa visitada, a beleza e isolamento do lugar. Assar, 2010............................................................. 182

Figura 24 Fotografia de vacinao infantil em domiclio em comunidade rural. Assar, 2000.................................................................. 183

Figura 25 Fotografia de atividade educativa na praa central. Aracatiau/Sobral/Cear, 2003................................................ 185

Figura 26 Fotografias agrupadas de atividade de educao permanente da equipe sade da famlia. Assar/Cear, 2000 e Campos

Sales/Cear, 2001.................................................................... 188

Figura 27 Fotografia de visita domiciliar e reconhecimento do territrio, abrindo cancela e seguindo em frente, andando a p com o

motorista da equipe. Assar/Cear, 2000................................ 200

Figura 28 Fotografia de uma roda de conversa com Boaventura de Sousa Santos no Seminrio de Metodologias da Ecologia de

Saberes. Quintela/Portugal, 2014............................................ 217

Figura 29 Fotografia registrando aproximao com a educao popular e os ensinamentos de Paulo Freire. Fortaleza/Cear,

2007.......................................................................................... 226

Figura 30 Fotografia de atividade de pesquisa de campo, registrando uma conversa com os agentes comunitrios de sade.

Cacuaco/ Angola, 2010........................................................... 247

Figura 31 Fotografia com participantes do Ncleo Tramas na ocasio da defesa de dissertao de mestrado em sade pblica,

registrando o ingresso oficial na cincia. Fortaleza/Cear,

2010......................................................................................... 248

Figura 32 Fotografia dos sujeitos constituintes do grupo de pesquisa ao realizando atividades de pesquisa. Quixer/Cear,

2009.......................................................................................... 250

Figura 33 Fotografias registrando atividades de pesquisa de campo comunidades urbanas na periferia de Luanda.

Zambizanga/Cacuaco/Angola, 2010, 2012.............................. 253

Figura 34 Fotografia de mulher angolana trabalhando com os filhos em volta de si. Zambizanga/Angola, 2010..................................... 254

Figura 35 Esquema sntese das tcnicas de pesquisa e mtodos de pesquisa que experienciei de 2008 a 2015.............................. 257

Figura 36 Fotografia do juazeiro, rvore da caatinga nordestina............. 285

RESUMO

Aborda a sade humana como direito vida e a poltica social como resultante da luta

poltica da sociedade ante o Estado com vistas a reduzir iniquidades em sade.

Apresenta a cincia e o trabalho na sade coletiva, enfocando a relao com o sistema

pblico de sade, especialmente na estratgia sade da famlia (ESF) com base numa

contra epistemologia a ecologia de saberes. Objetiva sistematizar a construo de

uma compreenso de sade humana e de necessidades de sade, ancorada nas

experincias nos servios de sade, no ensino e na pesquisa, em dilogo com a

complexidade e a ecologia de saberes, considerando o contexto do serto semirido,

com vistas s prticas/conhecimentos emancipatrios na ESF. A pesquisa foi

constituda adotando-se: o ensaio narrativo ou autobiogrfico, que apresenta um

conhecimento experiencial; a filiao a uma epistemologia e a uma metodologia, que

articula a pluralidade de conhecimentos para alm do cientfico, que a ecologia de

saberes; a interpretao crtica do modelo de ateno ESF em articulao com a

dimenso territorial rural do campo/serto do semirido cearense. Elabora um

conhecimento/saber utilizando mltiplos conhecimentos, saberes e linguagens, tais,

como: a msica, a poesia, a literatura, a fotografia e a pintura, que se integram ao

conhecimento formal, tcnico, cientfico, poltico e constitui a identidade e a expresso

de um Ser humano (pessoa-sertaneja-profissional da sade-pesquisadora) e de suas

prticas de cuidado em sade. Defende que processos geradores de sade, para

alm dos processos intervenientes na sade, institudo pelo Estado, por meio dos

servios de sade, so produzidos numa interao com a sociedade no contexto

histrico, poltico, social, cultural e econmico. Explicita que o trabalho na ESF requer

criatividade, autonomia e a participao como eixos centrais para fortalecer uma viso

de sade e de prticas de sade, que integra o indivduo-famlia-comunidade com o

profissional da sade-equipe-territrio. Afirma, portanto, que a concretizao da ESF

como modelo de ateno sade requer o reconhecimento: do processo de

vulnerabilizao socioambiental; do territrio; da promoo da sade; e da

intersetorialidade como essenciais para responder as necessidades de sade e

implantar o cuidado em sade a indivduos, famlias, comunidades, territrio. Concebe

a necessidade de uma contra epistemologia para gestar conhecimentos/prticas

emancipatrias na sade articulando a pesquisa-comunidade-servio-ensino. Sugere

que o cuidado em sade de cidados sos ou doentes na ESF requer a tecer um novo

conhecimento: interconhecimento, ou o conhecimento emancipatrio em sade.

Prope a ecologia de saberes como uma epistemologia para entretecer o

interconhecimento, maturado no cho firme da experincia, articulado a cultura e a

identidade, com vistas a construir uma ponte para transitar para um momento novo,

que rene a cincia, a poltica e a tcnica em prol da superao do modelo

hegemnico na sade nos territrios/comunidades/famlias.

Palavras chave: Estratgia Sade da Famlia. Determinao de Necessidades de Cuidados de Sade. Ateno Primria Sade. Sade Rural. Metodologia.

ABSTRACT

Addresses human health and right to life and social policy as a result of the political

struggle of society against the state in order to reduce health inequities. It presents

science and work in public health, focusing on the relationship with the public health

system, especially in the family health strategy (FHS) on the basis against

epistemology - the knowledge of ecology. Aims to systematize the construction of an

understanding of human health and health needs, anchored in the experiences in

health care, teaching and research, in dialogue with the complexity and the ecology of

knowledge, considering the interior of semi-arid environment, with a view practices /

emancipatory knowledge in the FHS. The research was made by adopting: the

narrative or autobiographical essay that presents an experiential knowledge;

membership in an epistemology and a methodology that articulates the plurality of

knowledge beyond the science, which is the knowledge of ecology; the critical

interpretation of the FHS care model in conjunction with the rural territorial dimension

of field / backwoods of Cear semiarid region. Prepare a knowledge / know using

multiple skills, knowledge and languages, such as: music, poetry, literature,

photography and painting, that integrate with formal knowledge, technical, scientific,

political and constitutes the identity and expression of a human being (person-

hinterland-professional health-researcher) and their health care practices. Argues that

health generating processes, in addition to the processes involved in health,

established by the State, by means of health services, are produced in interaction with

society in historical context, political, social, cultural and economic. Spells that work in

the FHS requires creativity, autonomy and participation as central pillars for

strengthening a vision of health and health practices, integrating the individual-family-

community with health care-team-territory. States, therefore, that the implementation

of the FHS as health care model requires recognition: the environmental

vulnerabilization process; planning; health promotion; and intersectoral approach as

essential to meet the health needs and deploy health care to individuals, families,

communities, territory. Sees the need for a counter epistemology to gestate knowledge

/ emancipatory practices in health articulating the research-community-service-

education. Suggests that the health care of healthy people or patients in the FHS

requires to weave a new acquaintance: interconhecimento, or emancipatory

knowledge in health. Proposes the ecology of knowledge as epistemology to weave

the interconhecimento, matured in the solid ground of experience, articulate culture

and identity, in order to build a bridge to transition to a new time, which brings together

science, policy and technical for the sake of overcoming the hegemonic model in health

in the territories / communities / families.

Key - words: Family Health Strategy. Needs Assessment. Primary Health Care. Rural Health. Methodology.

SUMRIO

1 PREMBULO.......................................................................................... 16 1.1 A autoria e os conceitos e temas abordados na escrita deste texto: histria e trajetrias percorridas para o nascimento desta tese............................................................................................................. 20 PARTE I DELINEAMENTO METODOLGICO: ENTRELAANDO E TECENDO CONEXES COM VISTAS AO CONHECIMENTO EMANCIPAO.......................................................................................... 35 Seo 1: Inquietaes, indagaes e crticas acerca do mtodo cientfico..................................................................................................... 35 Seo 2: Autobiografia como um passo rumo ao conhecimento emancipatrio............................................................................................ 43 PARTE II DO DIREITO A VIDA E A SADE AO DESENVOLVIMENTO ECONMICO COMO EXPRESSO DAS CONTRADIES E LUTAS POLTICAS E DEMOCRTICAS NO BRASIL.......................................... 56 Seo 1: O direito vida como primazia para a humanidade: desafios e possibilidades no contexto do desenvolvimento capitalista.................................................................................................... 56 Seo 2: Reflexes sobre o sistema nico de sade como direito universal, integral e equnime a sade da populao brasileira no contexto de disputas e mercantilizao da sade................................. 67 Seo 3: A relao sade e desenvolvimento no programa de acelerao do crescimento da sade (pac sade) no Brasil.............. 87 Seo 4: Aproximaes conceituais com as necessidades humanas e de sade na poltica pblica de sade.................................................. 98 Seo 5: A Promoo da sade como campo de prtica social na ESF numa perspectiva crtica: notas para reflexo.............................. 116 PARTE III O SERTO: UM LUGAR DE VIVER E TRABALHAR NA ESTRATGIA SADE DA FAMLIA COM COMUNIDADES RURAIS/CAMPONESAS............................................................................. 128

Seo 1: O contexto do serto onde vivi e aprendi a atuar na sade da famlia: caractersticas gerais entrelaadas determinao social da sade...................................................................................................... 128 Seo 2: As razes crianceiras sertanejas e a experincia de cuidar na estratgia sade da famlia a partir das memrias dos tempos idos.............................................................................................................. 157 1.1 Alguns aspectos do processo de trabalho e das prticas de cuidado na Estratgia Sade da Famlia................................................ 168 PARTE IV A DESCOBERTA DA CINCIA E DA EPISTEMOLOGIA: LAOS E RUPTURAS NECESSRIAS NA ABORDAGEM DO CUIDADO EM SADE................................................................................ 202 Seo 1: Aproximaes com o pensamento complexo e a ecologia de saberes: uma necessidade, um desafio e uma possibilidade para a atuao crtica na sade. 202 1.1 As primeiras aproximaes com a cincia e o paradigma emergente................................................................................................... 205 1.2 Os paradoxos entre o servio de sade e a academia: em busca de uma atuao integrada e articulada na pesquisa em sade coletiva........................................................................................................ 217 1.3 A ruptura com o pensamento clssico gestada nas prticas em sade no SUS e a defesa da contra epistemologia na sade coletiva. 237 1.4 Os contextos territoriais locais e globais de iniquidades como afirmao da necessidade da produo de conhecimento cientfico solidrio na sade...................................................................................... 245 1.5 Abordagem da sade na ESF necessita da contra epistemologia para a concretizao de um modelo de ateno sade emancipatrio............................................................................................. 260 1.6 O pensamento ps-abissal pode produzir conhecimento solidrio e conduzir a ao transformadora na ESF.............................. 277 PARTE V SNTESE E CONSIDERAES SOBRE AS POSSIBILIDADES DA ECOLOGIA DE SABERES NAS PRTICAS EMANCIPATRIAS NA ESF NO SERTO................................................ 285 REFERNCIAS........................................................................................... 303

16

1 PREMBULO

Harmonia, criao, beleza, sabedoria, escuta entre silncios e cantos de gente e de pssaro.

Passarinho e gente aprendem a ser juntos cantores do mundo ..., mas que mundo cantaremos?

Gritos e silncios de seres que sentem a dor e a alegria ao som da melodia de um mundo de sons que por ora no quero escutar...

Desejo ouvir a msica do vento, o som da natureza, as batidas dos coraes. Lugar de onde ecoam ensinamentos, dvidas e esperanas.

No ao rudo dos tempos modernos.

Vanira

Figura 1: Lio de Canto, tela a leo de Adriano Santori, pintor nordestino.

Fonte: Disponvel no google imagens.

17

O texto escrito nas prximas pginas traz uma pluralidade de linguagens,

talvez seja um sincretismo do ponto de vista da forma de escrever, como tambm do

que est escrito. Como na tela Lio de Canto o texto apresenta uma reflexo sobre

quem ensina e aprende a partir do lugar de aprendiz. Afinal quem nos d a lio e

como d e o que fazemos com ela!

Escrevi do lugar de sujeito aprendente, como fala Josso (2002), acerca de

processos de formao humana e de conhecimento. Ento um texto que percorre

os limites e as fronteiras do conhecimento de sujeito aprendente que sou! Neste

sentido as palavras que usei podem no ser as mais adequadas, contudo

considerando a lio que aprendi com Manoel de Barros, e que valorizo muito que diz

assim no poema Cabeludinho

Aprendi nessas frias a brincar de palavras mais do que trabalhar com elas. Comecei a no gostar de palavra engavetada. Aquela que no pode mudar de lugar. Aprendi a gostar mais das palavras pelo que elas entoam do que elas informam.

Trecho do Poema de Manoel de Barros.

Semeei as palavras no branco da tela do computador, desengavetando-as

das memrias numa brincadeira cientfica. Se no fosse por ter lido Manoel de Barros,

eu no teria coragem de utilizar a palavra brincadeira nesta tese! Ento uso as

palavras como se estivesse semeando as sementes na terra, desta forma nem sempre

se sabe ao certo, em que tempo e como nascer, at que estgio chegar a se

desenvolver.

Sei que o nascimento do texto escrito depende de diversas dimenses

relacionadas ao autor, ao contexto da vida pessoal, profissional e poltica, ao tempo,

as normas, aos mtodos, ao conhecimento cientfico admito que apresento um texto

inacabado e incompleto...

Com efeito, as mudanas e as transformaes do ato criativo da escrita

hoje interferem muito na produo do texto acadmico. Outrora eu desenhava as

letras para vir a formar uma palavra, em tempos atuais a letra existe a um clique e j

se foi rapidamente uma palavra, j pronta, sem desenhos do autor, sem sua marca,

mas algo igual na forma de escrita, padronizada! Restar-me-ia, portanto a

18

possibilidade de ousar no contedo? Teria coragem para isso? Parece-me que se

simplificou o ato de escrever e, consequentemente o ato de refletir.

Mas, a reflexo, a inquietao, a dvida, a incerteza, a curiosidade, sempre

estiveram muito presentes no meu processo de aprendizagem, como tambm na

minha vida laboral nesta trajetria de 16 anos dedicados sade pblica no Cear.

Estas caractersticas me desafiaram a buscar outros horizontes em tempos passados,

e, constantemente, no presente, me colocam em permanente tenso na criao desta

tese.

Esta parte do texto d conhecimento ao leitor mais do autor do que da sua

obra, de certa forma, apresentando uma marca desta tese que ser a

autorreflexividade.

A autorreflexividade qual fao referncia nesta tese tem muita

ressonncia no pensamento do socilogo portugus Boaventura de Sousa Santos. O

autor afirma que prprio da natureza da ecologia de saberes constituir-se atravs

de perguntas constantes e respostas incompletas. (2010, p. 66). A ecologia de

saberes na viso do autor capacita-nos para uma viso mais abrangente daquilo que

conhecemos, bem como do que desconhecemos, e tambm nos previne para que,

aquilo que no sabemos ignorncia nossa, no ignorncia em geral. (SANTOS,

2010, p.66).

Quero expor com isto que meu texto ser entrecortado de

questionamentos, e devo admitir, que a maioria deles sem respostas formuladas, ou

seja, num profundo exerccio de autorreflexividade como sugere Boaventura, uma

caracterstica do conhecimento prudente, na perspectiva da ecologia de saberes.

Refora Santos (2010), que a ecologia de saberes requer uma vigilncia

epistemolgica, num exerccio de autorreflexividade, considerando a participao

solidria na construo de um futuro pessoal e coletivo, sem nunca ter a certeza de

no repetir os erros cometidos no passado.

Por outro lado, Boaventura de Sousa Santos somente em 2014 publicou o

seu texto Ao espelho As relaes pessoais com o mundo a que chamamos

identidade: ser ou no ser quem imagino que sou nas favelas do Rio de Janeiro, que

o captulo 2 do livro: O direito dos oprimidos, ou seja, 40 anos aps a sua elaborao.

O referido captulo trata da autobiografia do autor.

19

Apesar do tempo distante entre a escrita e a publicao possvel do

manuscrito somente agora recente, percebo que h uma abertura da cincia na

atualidade para outras formas de produzir cincia, como tambm reconheo os

desafios e limites a que me exponho ao propor este tipo de estudo na academia.

Entendo, todavia, que este processo de elaborao cientfica est sempre

sujeito a crticas e a refutao, e, de forma alguma, se consubstancia como uma

verdade, mas como uma leitura da realidade, que se alicera na experincia auto

interpretada e reelaborada luz do que h de terico-conceitual que o autor capaz

de apreender.

Considerando o exposto, este prembulo visa a apresentar um pouco do

processo criativo que me envolve na produo destes escritos. Neste tpico, de forma

breve, apresento as categorias colocadas em debate neste texto, abordando de forma

esquemtica e resumida a inteno do meu percurso, destacando os aportes tericos

metodolgicos que sero utilizados, e as justificativas e os porqus destas

aproximaes conceituais.

Na continuidade apresento um pouco da minha reflexo, enquanto pessoa,

profissional da sade, pesquisadora do Sistema nico de Sade (SUS), vinculada

Fundao Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) situando-me no contexto da sade coletiva,

entremeada ao mundo das prticas de sade na Estratgia Sade da Famlia (ESF),

lugar de onde nasceram muitas das minhas ideias, desafios, inquietaes e

indignaes com a poltica de sade brasileira e com a cincia moderna.

Assumo, portanto, ao apresentar esta autorreflexividade, uma postura tica

e poltica com os pressupostos da reforma sanitria e com um iderio de sade,

centrado na noo de direito humano incontestvel, reconhecendo, portanto, o

necessrio embate cotidiano na defesa da vida digna, em que: o nascimento, o

crescimento, o desenvolvimento, o envelhecimento e a morte humana sejam

considerados dentro de uma perspectiva crtica dos processos fincados na justia

social, com a recomendao de tratar desigual os desiguais.

Estou ciente da necessidade dos pesquisadores da sade coletiva

comprometidos com o SUS perceberem que a excluso social sempre produto de

relaes de poder desiguais, como tambm reconhecerem o princpio da igualdade e

da diferena, simultaneamente, com intuito de redistribuio dos recursos materiais,

20

sociais, polticos, culturais e simblicos na sociedade, conforme dito por Santos

(2010).

1.1 A autoria e os conceitos e temas abordados na escrita deste texto: histria e trajetrias percorridas para o nascimento desta tese.

Esta tese assenta-se na premissa de deixar-me conduzir na aventura do

conhecimento pela curiosidade, por uma vontade de saber, por uma necessidade do

meu ser! A sua germinao se inicia rompendo os alicerces da mente que cria,

desafiando-a ir a um novo lugar, respirar outro ar, beber em outras fontes de gua.

Como semente enterrada, sentir o calor e a umidade da terra, deixar-se morrer,

transformar-se em outro ser, agora, talvez, j um arbusto, mas ainda ansioso por

conhecer por meio das suas razes, das suas folhas o que que lhe esquenta,

alimenta e nutre..., ou seja, o que lhe faz saudvel e vivo sade e cuidados em

sade?

Enfim, deixar-se enlevar de forma reflexiva nos escritos desconhecidos dos

sbios, dos cientistas, dos poetas, dos pintores e criar, produzir e inscrever outro ser

- eu, e um fruto - uma tese: cincia e conscincia da responsabilidade de ser sujeito

do conhecimento imerso na vida! Com o entendimento de que fundamental

possibilitar o acesso terra frtil para que as sementes possam nascer criativamente,

para que o ser que se pensa, que formula, que cria caminhos e conceitos explicativos

e orientadores do mundo da vida, incorpore o mundo da vida na sua ao criativa!

Sentindo-me assim, como semente, acalentada pelo calor da terra frtil que vou

desenvolver esse texto, criar esta tese, como inacabada, incompleta e inconclusa

um estado entre semente e fruto, aceitando que os nascimentos so rupturas, so

transformaes, so mudanas, so renovaes - reinveno da vida pela vida.

Neste processo reflexivo me pergunto to cansada do tempo, mas to

desejosa do novo: Que hora essa de escrita de uma tese de doutorado? Hora de

criar? Inventar? Reviver? Relembrar? Ressignificar aprendizados? Semear novos

conceitos, ideias e prticas? Enfim, gestar e parir uma tese para que e para quem?

Estes primrdios de um modo de nascer me envolvem na tessitura do texto que ora

escrevo, pensando, repensando, sistematizando, reelaborando o que sei, o que

aprendi, o que quero saber.

21

Acredito que, metaforicamente falando como sujeito das ideias, que utiliza

a imaginao e a criatividade, disponho de asas saudveis, apesar da imaturidade

intelectual que reconheo ser parte de mim. Espero alar novos voos, enveredar por

caminhos desconhecidos, incorporando outros elementos para costurar as teorias, as

metodologias, as poesias e tecer novos saberes e prticas neste texto que aflora

desse mergulho em mim e em leituras significativas para a minha constituio como

intelectual do campo da sade coletiva.

Preciso, portanto, de forma persistente e coerente com o meu estado de

pssaro de asas ainda imaturas, que segue os conselhos e orientaes da me e do

pai, j mestres na arte de voar, assumir que tenho, mesmo neste estgio, algo para

dizer aos cientistas, ser autora. Este texto ser em toda a sua elaborao um voo de

um aprendiz da arte de voar, mas com a convico de que preciso ir a outros lugares

e respirar outros ares para se falar de sade e vida na contemporaneidade.

Com efeito, reconheo que como enfermeira, dialogar com autores a

exemplo de Boaventura de Sousa Santos traz inquietudes e descobertas, mais

incertezas e dvidas do que certezas. Reconhecendo isto, e visando dar os passos

inicias nesta aventura, resgato dois conceitos importantes para minha trajetria de

pesquisadora, escritora, autora. Primeiramente o conceito de autor, e em segundo o

conceito de sujeito individual.

A noo de autor se funde em um amlgama, com os conceitos de

iniciativa, autonomia, criatividade, autoridade, autenticidade e originalidade, conforme

destaca Santos (2009). Autor o conceito que subjaz organizao do domnio

artstico e literrio da modernidade, e, tambm est relacionado com a noo,

igualmente moderna, de sujeito individual (SANTOS, 2009).

Destaca o autor que:

Estes dois conceitos representam a descontinuidade entre o mundo medieval e o novo mundo do Renascimento e dos descobrimentos, o absurdo de reduzir o novo conhecimento s semelhanas ou analogias com as tipologias inertes estabelecidas pelo conhecimento anterior. (SANTOS, 2009, p.76).

O conceito de autoria desenvolveu-se, sobretudo no domnio artstico e

literrio, particularmente a partir do Romantismo, sendo o autor entendido como: o

oposto da vida quotidiana e vulgar, o criador autnomo capaz de inventar novos

mundos culturais libertos do contexto material circundante. (SANTOS, 2009, p. 76).

22

O conceito de sujeito autnomo se desenvolveu sobre o pilar da regulao,

como cidado e como agente de mercado e, em ambos os casos, como microunidade

na criao quotidiana e normal da nova ordem das coisas. (SANTOS, 2009, p. 77).

Considero tambm importante frisar o conceito de autonomia em relao

aos dois conceitos referidos. A autonomia do sujeito est baseada [...] no

desempenho de aes normativamente reguladas de acordo com os contextos, as

limitaes e as possibilidades criadas pela repetio de aes anteriores

semelhantes. (SANTOS, 2009, p. 77). J a autonomia do autor est assentada na

diferena irredutvel entre a ao e as condies do seu desempenho. Estes dois tipos

de autonomia so ambos precrios na viso de Santos (2009), embora o sejam por

razes distintas. Refora Santos: a autonomia do sujeito corre o risco de no se

distinguir das condies que a tornam possvel (alienao); a autonomia do autor corre

o risco de se tornar irrelevante quando separada das condies que a tornam possvel

(marginalizao). (SANTOS, 2009, p. 77).

Com efeito, reconheo que tenho o desafio de me colocar como autora e

autnoma na produo do conhecimento sem me deslocar do contexto, que tambm,

significa uma tentativa de libertao do colonialismo, e caminhar na direo de um

conhecimento emancipatrio, conforme entendimento e proposto por Santos e que

ser abordado mais adiante.

Destaco o ensinamento de Edgar Morin (2000), que faz a defesa de que a

falsa racionalidade, ou racionalidade abstrata e unidimensional leva ao no pensar.

Este no pensar, , pois, na minha viso extremamente grave para quem atua como

cientista e como profissional de sade. O autor afirma que hoje, o conhecimento dos

problemas-chave do mundo, aponta que o contexto de todo conhecimento poltico,

econmico, antropolgico, ecolgico constitui o prprio mundo, sendo, portanto, um

problema universal para todo cidado: como adquirir a possibilidade de articular e

organizar as informaes sobre o mundo e sugere como caminho uma reforma do pensamento, como dito nas suas palavras:

[...] quanto mais os problemas se tornam multidimensionais, tanto mais existe a incapacidade de pensar na sua multidimensionalidade. Quanto mais progride a crise, mais progride a incapacidade de se pensar na crise. Quanto mais os problemas se tornam planetrios, mais eles se tornam impensveis. Incapaz de visualizar o contexto planetrio, a inteligncia cega torna-se inconsciente e irresponsvel. Da ento damo-nos conta de que um problema-chave, que complementar a um pensamento que separa por um pensamento que rene. Complexus significa originariamente aquilo que tecido em conjunto. O pensamento complexo um

23

pensamento que procura ao mesmo tempo distinguir (mas no disjuntar) e reunir. (MORIN, 2000, p. 209, grifo nosso).

Busco o pensamento complexo para me apoiar no sentido de estabelecer

um esforo em reunir aspectos diferentes na produo do conhecimento

emancipatrio. Apoio-me, portanto, no s nas teorias e metodologias, mas,

sobretudo, na relao humana estabelecida com diversas pessoas ao longo de minha

trajetria de vida profissional, que me propiciaram um saber que desejo expor nesta

tese. Empreendo um esforo para reconhecer a contribuio valiosa de diversos

processos, alicerando o meu entendimento na mediao entre o lido, o escrito e o

vivido, para que eu possa cunhar no papel os fundamentos dos temas em debate

nesta tese. Eu, ser humano, capaz de interagir e propiciar o afloramento de dimenses

necessrias para a sade que ora defendo na minha prtica.

As minhas reflexes baseiam-se, portanto, em perguntas e

questionamentos nascidos da inquietude vivida no SUS, enquanto profissional e

pesquisadora da sade coletiva, na interface com os campos da: produo-ambiente-

sade e a relao destes com o territrio da vida, objeto de interveno e prticas da

ateno primria sade (APS), no contexto do modelo de ateno denominado

Estratgia Sade da Famlia.

Destaco, primeiramente, que, atualmente, o Ministrio da Sade ao referir-

se ateno primria sade tem adotado a seguinte terminologia: ateno bsica

sade (ABS) que, conforme a Poltica Nacional de Ateno Bsica (PNAB), publicada

em 2012, caracteriza-se como:

A ateno bsica caracteriza-se por um conjunto de aes de sade, no mbito individual e coletivo, que abrange a promoo e a proteo da sade, a preveno de agravos, o diagnstico, o tratamento, a reabilitao, a reduo de danos e a manuteno da sade com o objetivo de desenvolver uma ateno integral que impacte na situao de sade e autonomia das pessoas e nos determinantes e condicionantes de sade das coletividades. (BRASIL, 2012, p. 19, grifo nosso).

No referido documento a ESF apresentada pelo Ministrio da Sade

(MS), Conselho Nacional dos Secretrios Estaduais de Sade (Conass) e Conselho

Nacional dos Secretrios Municipais de Sade (Conasems) como a proposta para

reorganizao da ABS, conforme pode ser lido abaixo:

24

A Estratgia Sade da Famlia visa reorganizao da ateno bsica no Pas [...] como estratgia de expanso, qualificao e consolidao da ateno bsica por favorecer uma reorientao do processo de trabalho com maior potencial de aprofundar os princpios, diretrizes e fundamentos da ateno bsica, de ampliar a resolutividade e impacto na situao de sade das pessoas e coletividades, alm de propiciar uma importante relao custo-efetividade. (BRASIL, 2012, p. 54, grifo nosso).

Pretendo elucidar ao longo desta tese - como um processo que se constitui

na descoberta e ou releituras de intelectuais da sade coletiva na interao com a

ecologia de saberes e a complexidade o tema prticas emancipatrias na Estratgia

Sade da Famlia no contexto da sade coletiva.

A experincia na ESF me oportunizou uma compreenso de sade e de

necessidades de sade ancoradas numa abordagem de cuidado centrada no

territrio/comunidades/famlias/indivduos como essenciais para a minha

compreenso e defesa de uma poltica de sade, que colabore com uma reorientao

do modelo assistencial.

Diversos aspectos so parte integrante da minha leitura acerca do referido

tema. Entre estes, um aspecto central, que devo considerar a minha identidade de

lugar. Neste sentido ao fazer referncia sade, o fao, a partir de um territrio-

lugar, denominado serto, parte do semirido cearense, o que tambm

denominado de campo, em outras terminologias. Lugar de nascimento e de atuao

profissional, lugar para onde vou, ora como cidad e profissional de sade da ESF e

agora, tambm, como pesquisadora da sade coletiva...

Estou inserida no cenrio poltico-social do meu Pas, como servidora

pblica federal, no cargo de pesquisadora em sade pblica, comprometida com uma

sade centrada nos anseios da sociedade, e, sobretudo dos mais vulnerveis, em

especial das populaes rurais/camponesas moradoras do serto nordestino. Como

dizia o poeta cantador Luiz Gonzaga o serto das mui sria dos home trabaiad.

Destaco que tenho uma compreenso de sade prxima da orientao de

Gis (2008) que diz:

[...] os profissionais de sade precisam compreender a sade do pobre dentro de uma lgica social desumanizadora, numa realidade social que, tambm, apresenta potencial transformador, capaz de levar a populao a superar a ideologia da submisso e resignao e sua prpria identidade de oprimido e explorado. (GIS, 2008, p. 107).

Comungo do pensamento do autor que recomenda a cumplicidade e o

companheirismo do setor sade na luta com vistas transformao de realidades

25

excludentes e desumanizadoras. Percebo um esforo de Gis (2008) em destacar o

contexto de insero social, cultural e histrica, o que dialoga com Santos (2010) ao

defender o direito do oprimido dentro da contra epistemologia proposta pelo autor.

Esta contra epistemologia evidenciada tambm por Morin (2000) dialoga,

no meu entendimento, com o debate necessrio sade coletiva no contexto de

prticas do SUS. Estes autores, na minha viso trazem uma abertura para a

compreenso dos problemas contemporneos, que podem auxiliar o meu percurso.

Reflito, considerando o exposto: que pode ser dito sobre sade, a partir de

uma identidade de lugar, de uma trajetria de vida, de uma atuao profissional, de

uma luta por direito social, de uma utopia que subsidie prticas emancipatrias na

ESF? Ouso dizer que o meu entendimento de sade individual e coletiva passa pelas

interaes de todos esses recortes.

Coloco esta questo porque tenciono caminhar num sentido de ruptura com

um modelo de pensamento centrado na excluso radical, que se materializa hoje no

pensamento e nas prticas modernas ocidentais (SANTOS, 2010). Conforme dito por

Boaventura o pensamento abissal tem como caracterstica fundamental a impossibilidade da copresena dos dois lados da linha abissal, ou seja, alm do norte global s h inexistncia, invisibilidade, ausncia no dialtica (SANTOS, 2010).

E em aluso ao campo do conhecimento, o pensamento abissal consiste

na concesso cincia moderna do monoplio da distino universal entre o

verdadeiro e o falso. (SANTOS, 2010, p.33). O autor destaca ainda que o carter

exclusivo deste monoplio est no cerne da disputa epistemolgica moderna entre as

formas cientficas e no cientficas de verdade (SANTOS, 2010).

Nesta perspectiva os conhecimentos populares, leigos, plebeus,

camponeses, ou indgenas do outro lado da linha desaparecem como conhecimentos

relevantes ou comensurveis por se encontrarem alm do verdadeiro ou falso. Deste

lado da linha representado pelo Sul Global no h conhecimento real, o que existem

so as crenas, opinies, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou subjetivos,

que, na melhor das hipteses, podem tornar-se matria-prima para inquirio

cientifica (SANTOS, 2010, p. 34).

Visualizo nas palavras de Boaventura um chamamento, enquanto

pesquisadora social em sade, para uma necessria aproximao epistemolgica

com as epistemologias que se assentem em princpios, que acatam o saber para alm

26

da cincia moderna. Boaventura de Sousa Santos destaca que a expresso

Epistemologias do Sul uma metfora do sofrimento, da excluso e do silenciamento

dos povos e das culturas que, ao longo da Histria foram dominados pelo capitalismo

e colonialismo.

Estas epistemologias so um conjunto de intervenes epistemolgicas

que denunciam a supresso dos saberes ocorrida ao longo dos ltimos sculos, pela

norma epistemolgica dominante. As epistemologias do sul valorizam os saberes que

resistiram com xito e as reflexes produzidas por estes saberes e investigam as

condies de um dilogo horizontal entre os diversos conhecimentos. Nesta

perspectiva, o autor prope a ecologia de saberes, que se concretiza nesse dilogo

entre os saberes (SANTOS, 2010).

Neste texto trago esta perspectiva como sujeito que cria a partir deste

dilogo, e no somente a partir do que est circunscrito ao modelo de cincia

hegemnico. A partir do dito e tecendo aproximaes com o contexto do semirido,

questiono: como o entendimento de sade no campo, no lugar denominado serto?

Que aspectos simblicos, culturais, histricos, polticos e econmicos condicionam a

representao de ser saudvel? O que viver bem para os camponeses/sertanejos?

Como as comunidades tradicionais do campo/serto que praticam relaes de

trabalho e convivem com as incertezas decorrentes da relao estabelecida com a

natureza concebem a sade e viver bem? Estas questes estavam contidas no meu

processo de cuidar destas populaes, como enfermeira na ESF, e, considero que

compreend-las ajudaria muito no meu processo de trabalho. Portanto, abordo estes

aspectos de forma transversal, considerando-os necessrios para se avanar em

termos de uma proposio terica relativa s prticas emancipatrias na ESF.

Reconheo o socilogo Boaventura de Sousa Santos, como um dos mais

importantes da lngua portuguesa e que, conforme alertam os autores Freitas e Porto

(2011) o seu pensamento ainda carece de um aprofundamento nas questes

concretas do campo da sade, seja comprovando a validade de seus pressupostos,

seja indagando sobre os seus limites. Entendo, portanto que estou buscando nesta

formao acadmica, aportes tericos para colaborar com a criao de novos

processos e prticas no campo da sade coletiva que tenham ressonncia no SUS,

especialmente na Ateno Bsica Sade (ABS) no modelo de ateno ESF.

27

Comungo do pensamento de Santos (2010) que sugere situar uma

perspectiva epistemolgica na experincia social do Sul-global, no imperial,

confrontando a monocultura da cincia moderna com uma ecologia de saberes. Neste

sentido, Santos (2010) sugere que reconhecer a pluralidade de conhecimentos heterogneos e em interaes sustentveis e as dinmicas entre eles sem comprometer sua autonomia, tomando como base que conhecimento interconhecimento fundamental e eu acredito que isto traz novas possibilidades para a sade coletiva, e para o debate de prticas de cuidado sade humana.

Opto por uma escolha complexa e busco tambm os ensinamentos de

Edgar Morin para trilhar esta trajetria desconhecida, que produzir cincia, como um

saber de complementaridade, de uma teoria relacionada a uma prtica, de

experincias e conceitos que se chocaram ou se reafirmaram quando imersos na vida.

A reforma do pensamento uma necessidade democrtica e histrica

fundamental segundo Morin (2010). O autor coloca como maior desafio do

pensamento contemporneo, pensar a complexidade, tendo em vista, que isto sugere

a necessidade de uma reforma no nosso modo de pensar ou do pensamento, pois os

pilares da cincia clssica (ordem, separabilidade, razo) apresentam-se insuficientes

para a abordagem dos problemas complexos (MORIN, 2000). Destaca que formar

cidados com capacidade de enfrentar os problemas de sua poca frear o

enfraquecimento democrtico suscitado na poltica, pela expanso da autoridade dos

experts, considerados os especialistas de toda ordem, que promovem a restrio

progressiva da competncia dos cidados (MORIN, 2010).

Refora, ainda, que o desenvolvimento de uma democracia cognitiva s

possvel com uma organizao do saber: e esta pede uma reforma do pensamento

que permita ligar o que est isolado, possibilitando o renascimento de uma nova

maneira do ser humano, da natureza, do cosmo, da realidade (MORIN, 2010).

Acredito, portanto, que os ensinamentos da ecologia de saberes e da

complexidade podem me auxiliar teoricamente com vistas a deflagrar novas reflexes

sobre as ideias de promoo, determinao, necessidades de sade no contexto de

prticas SUS (ESF) e no contexto acadmico sade coletiva (pesquisa).

Almeida Filho (2011) afirma que:

[...] o objeto sade por definio complexo, contextualizado, congruente como o neossistemismo tpico das novas aberturas paradigmticas,

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sugerindo a predominncia de uma lgica mltipla e plural, que no se expressa de maneira codificada, mas possvel de ser reconhecida por seus efeitos. (p. 114).

Fao a ressalva, que abordarei o tema sade no como objeto conforme

explicitado em um captulo mais adiante, mas compreendendo-o como um estado do

Ser, que no dado, comprado, apropriado, mas gestado pelo Ser numa mediao

entre o organismo humano e sua autoproduo e deste com os seres humanos, entre

estes e o ambiente entrelaadas com as demais caractersticas referidas por Almeida

Filho (2011). Portanto, abordo o tema da sade com o olhar de outros campos de

saberes para (re)pens-lo.

Particularmente exemplifico que no Brasil, por ocasio das eleies

presidenciais o tema sade, foi recorrente no processo poltico, em que o povo

brasileiro, reconheceu a sade como uma ao importante, e tambm como a

principal reivindicao e ou demanda atual e concreta para o Estado brasileiro.

A sociedade se mobilizou reivindicando algumas aes do Estado como

segurana pblica, educao, combate corrupo e sade pblica. Ressalto,

contudo, que os debates polticos eleitoreiros dedicaram suas propostas a sade

pblica centrada no assistencialismo especializado, com forte apelo mdico, numa

perspectiva de reafirmao do modelo mdico assistencial hegemnico.

Impossvel, portanto, no me inserir neste debate, tendo em vista, a minha

atuao como defensora de uma poltica pblica de sade, tendo como referncia a

luta e a conquista de direitos humanos sociedade que sobrevive margem do

sistema capitalista.

Apoio-me nesse sentido, numa trajetria de atuao profissional dedicada

ao SUS orientada pelos princpios da universalidade, integralidade, equidade e

participao social, atuando em distintos territrios rurais do Cear, ora na ateno

sade, na gesto de servios de sade, em processos de ensino-aprendizagem e na

pesquisa.

Destaco que nos ltimos oito anos, tenho me dedicado pesquisa e ao

ensino em sade-ambiente-trabalho no contexto da APS, com foco nas necessidades de sade nos contextos rurais. Estes aspectos servem como um eixo orientador da busca de uma compreenso do momento histrico presente, como

tambm uma tentativa de tecer aproximaes com os novos paradigmas que possam

auxiliar no campo terico, epistemolgico e metodolgico a desenvolver processos

29

geradores de sade para alm dos processos intervenientes na sade, institudo pelo

Estado, por meio dos servios de sade numa interao com a sociedade no contexto

histrico, poltico, social e cultural.

Este percurso permitiu-me deparar com diversas questes que me

impulsionaram a indagar: que contribuies podem trazer os pensamentos da

complexidade e da ecologia de saberes para processos geradores de sade?

Entendo que processos geradores de sade requerem prticas de sade

emancipatrias. Considerando que as populaes so alvo das prticas de sade

hegemnicas autoritrias e normativas, reconheo no campo da sade coletiva o

desafio a tecer um percurso que, no meu imaginrio, pode ser relevante para uma

nova prtica, em especial na ESF.

Estou num processo de iniciao, imaginao, inveno de um modo de

pensar que articule saberes e prticas, tendo como referncia novas epistemologias,

referidas no paradigma emergente que possam trazer contribuies sade coletiva

lugar da minha atuao no mbito acadmico.

Reconheo, primeiramente, o meu limite neste campo, mas tambm o

esforo empreendido na tessitura de novas sinergias. Ao que me parece no h

dissenso sobre o que sade coletiva e suas bases pelo conjunto de autores do

campo. Vale destacar a contribuio de Porto, Rocha e Finamore (2014) que

apresentam uma viso crtica e histrica da construo da sade coletiva. Segundo

os autores a redemocratizao do Pas caminhou pari passu com o movimento

sanitarista, com a criao da Abrasco e do SUS. Reconhecem, contudo que, h por

vezes veladamente, resistncias e crticas ao modelo da medicina social

latinoamericana, sem destruir os pilares do campo da Sade Coletiva e do SUS

(PORTO; ROCHA; FINAMORE, 2014).

Os autores defendem que as tenses entre os polos estrutural crtico e

biomdico tendem a se diluir por uma convivncia acrtica e reforam que a crescente

especializao do campo, bem como a sua legitimao acadmica na CAPES e as

discusses especficas como financiamento e mecanismos de gesto do SUS,

formaram uma agenda que pouco contribuiu para revitalizar os referenciais crticos e

as prticas criativas que fundaram a Sade Coletiva (PORTO; ROCHA; FINAMORE,

2014).

30

Neste contexto, principalmente nas ltimas trs dcadas houve o

reconhecimento da crise socioambiental e dos riscos ecolgicos globais e ressurgiram

ou emergiram os movimentos sociais que trouxeram novas bandeiras e sujeitos

polticos luta social tais como: enfrentamento de questes de gnero e sexualidade,

tnicas, contra o racismo e o machismo, pela reforma agrria, direito cidade, dentre

outros (PORTO; ROCHA; FINAMORE, 2014).

A sade coletiva no se encontra imune s crises institucionais da

sociedade contempornea e a sade pblica institucionalizada continua refm da

regulao, enfrentando a crise entre mais mercado, mais Estado ou mais comunidade.

Vale salientar que neste contexto a sade coletiva est aberta a novos paradigmas

em uma luta contra hegemnica a favor da emancipao (PAIM; ALMEIDA FILHO,

2000, 2014).

A sade coletiva consiste num campo de conhecimento que estuda os fatos

da sade e doena humanos na populao brasileira como processo social

investigando a dinmica das doenas na sociedade como fluxos de reproduo social.

Busca compreender, desta forma, as prticas de sade na sua articulao com as

demais prticas sociais, analisando as formas com que a sociedade identifica suas

necessidades e problemas de sade, na inteno de explic-los e enfrent-los, por

meio da constituio, organizao e sustentao de um campo social especfico

(ALMEIDA FILHO, 2011).

Almeida-Filho e Paim (2014) afirmam que a Sade Coletiva, enquanto

campo cientifico: [...] pode reforar os paradigmas disciplinares hegemnicos, reproduzindo uma cincia normal subordinada s polticas de publicao de peridicos internacionais e ao mainstream da Sade Pblica mundial, ou enfrentar novos problemas, questes e desafios de investigao a partir da articulao de seus eixos estruturantes em uma perspectiva inovadora, interdisciplinar ou transdisciplinar. (p. 45, 2014).

Estes autores reforam ainda que:

A sade coletiva caudatrio de outros territrios de ao humana organizada, como mbitos da prtica social das Polticas Pblicas e da Sade Ambiental, de ao tecnolgica da clnica, definido-a enquanto Ateno Sade Individual, bem como campos disciplinares da Matemtica/Estatstica e das Cincias Humanas e Sociais. (PAIM; ALMEIDA FILHO, 2014, p. 44).

31

A sade coletiva consubstancia-se de prticas transdisciplinares,

multiprofissionais, interinstitucionais e transetoriais, sendo essencial sua participao

ativa na transio epistemolgica, comeando por se contrapor radicalmente ao paradigma mecanicista e individualizador hegemnico no campo (ALMEIDA FILHO,

PAIM, 2014).

Esta tese est vinculada ao Programa de Doutorado em Sade Coletiva na

rea de concentrao de Poltica e Gesto em Sade e visa a ser crtica sade

coletiva, no em termos de discuti-la teoricamente, porm na apresentao deste

produto - tese - numa vertente contra hegemnica do ponto de vista epistemolgico,

metodolgico e cientifico no mbito da sade coletiva. Situa-se, portanto, nesta

perspectiva de exercitar esta participao ativa na transio epistemolgica que

concordo ser necessria sade coletiva, e, consequentemente a mim, como sujeito

que se soma na construo deste campo.

Considero oportuno ressaltar tambm o pensamento de Fleury-Teixeira e

Bronzo (2010) quando salientam que [...] o aspecto central de objetividade no

conhecimento cientfico jamais pode ser confundido com a neutralidade poltica ou

irresponsabilidade social na prtica cientfica [...] (p.43), reconhecendo que o

direcionamento das pesquisas e sua aplicao so coisas um tanto distintas do

momento cognitivo propriamente dito (FLEURY-TEIXEIRA; BRONZO, 2010).

Quero em consonncia com o exposto tecer uma aproximao com os

ensinamentos de um dos pensadores das epistemologias do sul, em especial, a

ecologia de saberes e da complexidade e discutir como estes apontam subsdios para

os enfrentamentos necessrios efetivao do direito sade como expressa a

Constituio Federal brasileira.

Concordo com Santos (2010) de que a injustia social global est intimamente ligada injustia cognitiva global, sendo essencial, portanto, que a luta pela justia social seja tambm uma luta pela justia cognitiva global. E como recomenda Santos (2010), esta luta exige um novo pensamento, um

pensamento ps abissal e como dito por Edgar Morin uma reforma do pensamento,

um pensamento complexo.

Ambos os autores citados acima defendem a ruptura da relao sujeito-

objeto, que nesta tese teve como base para tal o mtodo autobiogrfico. Josso (2010) afirma que o mtodo das narrativas de vida torna-se [...] um suporte para a

32

tomada de conscincia do sentido da sua formao atual em sua trajetria, das

exigncias e das margens de manobra presentes no agir e no pensar atuais do

estudante. (JOSSO, 2010, p. 130). A autora ensina que a narrativa visa em primeira

instncia a [...] uma perspectiva sociopoltica, oferecendo uma oportunidade de

reapropriao do desenvolvimento pessoal e sociocultural. (JOSSO, 2010, p. 134).

Alm disso, possibilita enriquecer o discurso descritivo-interpretativo do autor,

estudante em processo de formao, sendo fundamental que se aceite a ideia de que:

[...] o conhecimento o fruto de uma tomada de conscincia da dimenso histrica da formao do humano, enquanto este cria uma cultura que organiza e, portanto transforma suas condies fsico-biolgicas de sobrevivncia, a elaborao dos saberes constitutivos desse conhecimento no poderia realizar-se num pseudodistanciamento da vida concreta, mas bem ao contrrio, deve inscrever-se no centro desta, para que a compreenso e explicao sejam uma emergncia dela, e informando, transforme a cotidianidade. (JOSSO, 2010, p. 103, grifo nosso).

Concluo esta parte, portanto, apostando no desafio de centrar meu esforo

interpretativo acerca dos temas expostos nesta tese na colaborao da proposio

deste pensamento. Espero (re)conhecer o potencial do paradigma emergente, mais

especialmente a ecologia de saberes e trazer esta reflexo no mbito da sade

coletiva, a partir da experincia na ESF/SUS.

O texto foi organizado em partes que se entrelaam na tentativa de dar

clareza a esta elaborao terica por meio de uma forma no convencional adotada

nas teses acadmicas, mas com um rigor e um apreo pela qualidade dos escritos

com vistas a facilitar a sua leitura.

Percorri um caminho que dialoga com a minha prtica, com a experincia

na sade e a necessidade de conhecer, aprofundar conceitos e propor novas

perspectivas sade coletiva, em especial a ESF, por meio de uma ecologia de

saberes. Esta ecologia de saberes teve como passos essenciais a narrativa

autobiogrfica e a anlise crtica dos referenciais tericos do tema em foco em dilogo

com o pensamento do paradigma emergente.

Em relao s partes, primeiramente este prembulo que aponta

brevemente os conceitos que permeiam a tese. Na sequncia a primeira parte

propriamente dita, em que situo os itinerrios, as veredas e os percursos percorridos

em termos metodolgicos para elaborao desta tese, que tem como marca central

33

ancorar-se numa metodologia instigante e crtica das produes acadmicas,

procurando tecer um texto que na sua essncia seja uma ecologia de saberes.

Em seguida a segunda parte, que aborda os principais aspectos da poltica

de sade brasileira em tempos atuais. Apresento o SUS, entrelaado s noes de

direito vida e sade, perpassando pelo tema do desenvolvimento no Estado

capitalista. Trago tambm o tema das necessidades de sade e da promoo da

sade por considerar estes eixos centrais para uma prtica emancipatria na ESF,

expondo a defesa de uma abordagem crtica, para avanar numa leitura de

necessidades de sade territorializadas com o intuito de efetivamente realizar aes

promotoras de sade nos territrios.

Na terceira parte adentro ao serto cearense entremeando o contexto

territorial do semirido, ou seja, o campo/serto, que constitui a minha identidade de

lugar, e, portanto, de cuidar do humano, como parte integrante do processo de

trabalho na ESF. Explicito minhas percepes acerca da prtica no servio de sade,

resgatando as lembranas que esto vivas na memria, a partir das minhas

interrogaes de pesquisa e do processo que vivi que resultou na minha atuao atual

na pesquisa em sade coletiva.

Estas partes entrelaam um universo conceitual da determinao social da

sade, dos territrios vulnerabilizados com a experincia no servio de sade e na

pesquisa, com vistas a tecer reflexes crticas sobre o modelo de ateno e elucidar

elementos no pensamento de Boaventura de Sousa Santos que subsidiam

teoricamente, epistemologicamente e metodologicamente uma abordagem do modelo

de ateno em sade prioritrio no SUS, que a ESF, ainda que no hegemnico

para reorientar o cuidado e as prticas de sade.

Na quarta parte evidencio a epistemologia e a cincia de forma

autorreflexiva e autobiogrfica, em dilogo com as mltiplas dimenses que

favoreceram a minha aproximao com a cincia com conscincia de Edgar Morin e

a contraepistemologia de Boaventura, em especial a ecologia de saberes. Estas

dimenses relacionam-se ao conhecimento humano gestado na experincia da vida,

numa perspectiva que se contrape monocultura do saber e reconhece a pluralidade

de aprendizagens (saberes) constitudas a partir de uma identidade cultural, da

insero nos processos educativos/formativos, como educanda e educadora.

34

Estes pensamentos e experincias que conformaram a ecologia de saberes

que exponho ao longo da tese serviram de base para a proposio da quinta parte,

que sintetiza pontos crticos das prticas de sade na Estratgia Sade da Famlia.

Sugiro para avanar no reconhecimento das necessidades de sade no contexto rural

e constituir uma viso de sade, que promova sade e prticas emancipatrias na

ESF a busca do interconhecimento, por meio do exerccio da ecologia de saberes.

35

PARTE I DELINEAMENTO METODOLGICO: ENTRELAANDO E TECENDO CONEXES COM VISTAS AO CONHECIMENTO EMANCIPAO

Seo 1: Inquietaes, indagaes e crticas acerca do mtodo cientfico.

Caminante

Caminante, son tus huellas el caminho y nada ms; Caminhante, no hay caminho, se hace caminho al andar.

Al andar se hace el caminho, e al volver la vista atrs se ve la senda que nunca se h de volver a pisar.

Caminhante, no hay caminho sino estelas em la mar.

Antonio Machado

Figura 2: Fotografia Vaqueiro do Fotgrafo brasileiro Araqum Alcntara.

Fonte: Disponvel no google imagens.

Inicio este captulo metodolgico, com a poesia de Antonio Machado -

caminhante -, e, tambm, com a fotografia vaqueiro, do fotgrafo Araqum Alcntara,

36

para explicitar que a minha reflexo acerca do mtodo cientfico, considera a

pluralidade de possibilidades no cientficas. Considero essencial na escrita desta

tese o reconhecimento das potencialidades das mltiplas linguagens, como formas de

expresso e de traduo de outros aspectos tambm integrantes da realidade que o

conhecimento cientfico tentar elucidar e explicar.

Reflito primeiramente, a partir da fotografia vaqueiro: quem guia? O

vaqueiro? Aonde sero levados o vaqueiro e o cavalo? O que mais essencial neste

movimento do vaqueiro e do cavalo? Chegar ao destino? Percorrer o caminho?

possvel uma alterao do trajeto desejado pelo vaqueiro se a natureza impuser o

inesperado - algo que faa o cavalo no seguir as rdeas, nem as esporas e seguir

um outro caminho, at mesmo sem o homem...

presumvel que o incerto, o imprevisto, esto presentes neste movimento,

que integra o caminho, o vaqueiro e o cavalo, e os desconhecidos e conhecidos, que

estaro beira, ou no meio do caminho, que podero ditar outros rumos e percursos

para o vaqueiro e para o cavalo. O fotgrafo, por exemplo, que registrou a beleza do

movimento deste momento, que pode dizer sobre tudo o que est expresso nesta

fotografia?

Aceitando e considerando as incertezas prprias dos caminhos como

ensina Antonio Machado procurei encontrar a forma de materializar nesta tese, um

percurso metodolgico, que integre elementos constitutivos da diversidade e da

complexidade, que, a meu ver uma exigncia das abordagens que se esforam no

sentido de ampliar a sua compreenso acerca da vida humana.

Preciso ter a clareza, de que a utilizao do mtodo cientfico objeto

inerente e desafiante de quem escreve luz da cincia. Exatamente, por isso, cabe o

uso de mtodo cientfico de forma crtica pelos cientistas, e no somente a mera

reproduo de seus mecanismos. Acredito que necessrio perceber as

inconsistncias, as incoerncias e lhes conferir certa tenso para que se renove e se

recrie o mtodo.

Santos (2009) afirma que a cincia moderna possibilitou a consagrao

como sujeito epistmico, contudo retirou o sujeito emprico, que por ser exterior,

tornou-se um objeto, sendo, portanto, a base desta cincia a distino dicotmica

entre sujeito e objeto.

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Destaca o autor que [...] a cincia moderna existe num equilbrio delicado,

entre a relativa ignorncia do objeto do conhecimento e a relativa ignorncia das condies de conhecimento que pode ser obtido sobre ele. (SANTOS, 2009, p. 82, grifo nosso). Refere, ainda, que a separao entre sujeito e objeto do conhecimento

se d, portanto, num processo de cumplicidades no reconhecidas (SANTOS, 2009).

Refora tambm, Santos (2009), que os mtodos cientficos so

consubstanciados, como argumentos cuja sequncia e a tcnica de apresentao so

da competncia do cientista, sendo, portanto, o conhecimento cientfico,

intrinsecamente pessoal. Tomando como base os ensinamentos de Michel Polanyi

(1962) e Paul Feyerabend (1982), Santos (2009) destaca que:

[...] os mtodos cientficos, tal como a filosofia da cincia os define, so um resumo rido e deturpador da utilizao concreta de mtodos feita por cientistas concretos. Os mtodos so ambguos, e o seu uso aceite apenas com base em muitas premissas de assentimento no seio da comunidade cientfica, as quais constituem a componente tcita do conhecimento. Pode, assim, concluir-se que a verdade cientfica uma verdade fiduciria baseada na determinao da credibilidade dos cientistas e da genuinidade das suas motivaes. (SANTOS, 2009, p.101, grifo nosso).

Com efeito, o autor evidencia como uso das metodologias da antropologia

cultural e social, de um lado foram articuladas, e, por outro lado com as metodologias

da sociologia, com vistas a harmonizar, em certa medida, a distino epistemolgica

entre sujeito e objeto. O autor afirma:

Na antropologia, a distncia emprica entre sujeito e objeto era enorme. O sujeito era o antroplogo, o europeu civilizado, o objeto era o povo primitivo ou selvagem. Neste caso, a distino, emprica e epistemolgica, entre o sujeito e objeto era to gritante que a distncia teve de ser encurtada atravs do uso de metodologias que obrigavam a uma maior intimidade com o objeto, nomeadamente o trabalho de campo etnogrfico e a observao participante. Na sociologia, pelo contrrio, era pequena ou mesmo nula a distncia emprica entre o sujeito e o objeto: eram cientistas civilizados a estudar seus concidados. Neste caso, a distino epistemolgica obrigou a que esta distncia fosse aumentada atravs do uso de metodologias de distanciamento: por exemplo, os mtodos quantitativos, o inqurito sociolgico, a anlise documental e a entrevistas estruturada. (SANTOS, 2009, p. 82).

O referido autor reexamina a distino entre sujeito e objeto de forma a

aprofundar o que esta ocasionou e refere que este processo reforou a distino entre

o humano e o no-humano epistemolgico, sendo que este ltimo pode ser tanto a

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natureza como a sociedade, conforme explicita Santos (2009). O autor propositor e

defensor de um conhecimento emancipao refora que:

Esta desumanizao do objeto foi crucial para consolidar uma concepo do conhecimento instrumental e regulatria, cuja forma do saber era a conquista do caos pela ordem. Do ponto de vista do conhecimento emancipatrio, a distino entre sujeito e objeto um ponto de partida nunca um de chegada. Corresponde ao momento da ignorncia, ou colonialismo, que nada mais nada menos do que a incapacidade de estabelecer relao com o outro a no ser transformando-o em objeto. O saber enquanto solidariedade visa substituir o objeto-para-o-sujeito pela reciprocidade entre sujeitos. (SANTOS, 2009, p.83, grifo nosso).

O autor assume uma postura tica de que no conhecimento emancipao

a unio e a integrao do pesquisador e objeto de estudo so aspectos relevantes e

presentes para se enfrentar os grandes desafios que esto postos para a humanidade.

Esta viso aproxima e redireciona o mtodo de forma radicalmente diferente do que

est em vigncia no paradigma hegemnico. Assume, portanto um compromisso com

uma cincia pautada na legitimidade do Ser humano e das suas criaes

comprometidas com a vida. O autor apresenta, neste sentido, assumidamente o

carter autobiogrfico na produo do conhecimento emancipao, como pode ser

lido nas suas palavras:

No paradigma emergente, o carter autobiogrfico do conhecimento-emancipao plenamente assumido: um conhecimento compreensivo e ntimo que no nos separe e antes nos una pessoalmente ao que estudamos. No se trata do espanto medieval perante uma realidade hostil possuda do sopro da divindade, mas antes da prudncia perante um mundo, que apesar de domesticado, nos mostra cada dia a precariedade do sentido da nossa vida, por mais segura que esta esteja quanto sobrevivncia, sendo certo que para a esmagadora maioria da populao mundial no o est. (SANTOS, 2009, p.84, grifo nosso).

O autor aprofunda o debate acerca do mtodo cientfico, apontando que:

A crtica do mtodo no pode ser feita sem uma crtica do estilo. Nem o estilo apenas o hbito, nem o mtodo apenas o monge. Ambos so as duas coisas. Contudo, a crtica do mtodo cientfico no tem sido igualada por uma crtica do estilo cientfico, quer quanto ao discurso, quer quanto ao comportamento e atitudes. Isto deve-se, provavelmente, ao facto de que a crtica da cincia tem sido feita, sobretudo, por cientistas que escrevem em revistas cientficas, normalmente com violaes do mtodo que com violaes do estilo. (SANTOS, 2014, p.125, grifo nosso).

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Estes aspectos aprofundados por Santos (2009; 2014) trazem uma leitura

histrica do estabelecimento da cincia moderna, e como se concretizou a sua

hegemonia, reconhecendo a necessidade de crtica e apontando novas

possibilidades, a exemplo do conhecimento emancipao. Destaca Santos (2014),

que desde o sculo XVII no continente europeu o discurso erudito tem travado uma [...] guerra santa contra o discurso potico e contra o seu dispositivo mais importante, a metfora. Da que pouca gente, hoje em dia, cultive metforas nos seus jardins. A uns faltam as sementes, a outros os utenslios; a maior parte no tem sequer jardins. (SANTOS, 2014, p.125).

O autor avana no seu pensamento postulando que a literatura e a cincia,

ambas transformam os fatos empricos em artefatos, apesar das construes se

darem de formas bem diferentes (SANTOS, 2014). Com efeito, destaca que: [...] essa diferena se baseia numa semelhana igualmente crucial, ou seja, no fato de tanto a literatura como a cincia possurem estruturas construtivas prprias para darem conta do mundo. Num perodo de transio paradigmtica faz todo o sentido acentuar (e clarificar) a semelhana em lugar da diferena. (SANTOS, 2014, p.107, grifo nosso).

Na tentativa de clarificar as semelhanas o autor apresenta como foram

desenvolvidos pela teoria literria e pela epistemologia os tipos ideais, entre aspas,

conforme escreve o autor, em ambas. A partir do exposto sustenta que a formao

cientfica descontnua tanto no momento em que ocorre, como no momento em que

recordada, e justamente por isso [...] qualquer texto escrito constitui sempre uma

ponte entre (pelo menos) dois tempos. (SANTOS, 2014, p.119). Precisamente [...]

uma ponte entre diferentes percepes, cuja relao entre si chamamos identidade.

(SANTOS, 2014, p. 119).

Estes ensinamentos de Boaventura de Sousa Santos me encorajam no

desenho metodolgico que desenvolvo nesta tese. Reconheo, de imediato, as

possveis e desejveis dificuldades de operacionalizar um desenho metodolgico

coerente com o paradigma emergente, como tambm a minha imaturidade na

pesquisa, que precisa percorrer aspectos relativos a autobiografia e a teoria a partir

de uma contra epistemologia. Contudo, o contexto no qual estou inserida e os temas

em questo nestes escritos clamam por uma perspectiva criativa em termos de

mtodo, exercitando uma prtica necessria como pesquisadora implicada na sade

coletiva.

Esta tese, por sua vez, no meu entendimento, busca uma prtica de

ecologia de saberes, enquanto uma contra epistemologia, que d possibilidades de

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integrao e interao empiria-teoria, com inovaes metodolgicas. No estou

teorizando sobre a ecologia de saberes, mas estou assumindo-a como o modo de

praticar cincia nesta tese.

Contudo necessrio dizer que isto s possvel para mim, porque adoto

como premissa o pensamento complexo. Acato a reforma do pensamento proposta

por Edgar Morin como subsdio para romper com uma forma de pensar que separa,

para uma forma de pensar que rene. Isto me ajuda a articular um pensamento que

percebe as possibilidades de integrao sujeito-objeto neste texto.

Reconheo, primeiramente, que necessrio escolher um recorte, que

deve ser suficientemente adequado para a produo de um texto cientfico, mas que

tenha abertura para uma interlocuo com outras linguagens. Delineei um trajeto de

pesquisa, e, constitu um esforo para avanar num percurso em direo ao fim, que,

de pronto no conhecido, mas que se constitui como uma imagem-objeto.

Identifico, contudo, alguns desafios: articular o conhecimento cientfico

adoo das mltiplas linguagens, a saber: fotografia, poesia, msica e pintura na

tessitura de um texto, que se esfora no sentido de romper com um estilo dito cientfico

para um estilo que se aproxime da ecologia de saberes; e o imbricamento destas

linguagens com a empiria, apresentada, a partir de uma narrativa, ou de um ensaio

narrativo, que coloca o autor numa hermenutica dialtica e temporal frente ao

cotidiano da prxis.

Destaco que estas linguagens fazem parte de um conhecimento que fui

aprendendo ao longo da minha trajetria de vida, que expressam um saber, que no

conseguiria ser explicitado no estilo do texto acadmico. Estas linguagens traduzem

um saber cultural, que foi se constituindo na identidade de pessoa-sertaneja.

Neste texto, portanto, entremeio a empiria que reconheo como

estruturante e fundante da ao de pesquisa, advinda de um ensaio narrativo, a um

debate terico-conceitual, consubstanciado em uma base epistemolgica, que o

pensamento de Boaventura de Sousa Santos.

Este processo de produo do conhecimento cientfico, sem abdicar da

beleza e da sabedoria proporcionada por outras formas de ver a realidade dialoga

com a crtica que tem sido pautada no mbito da sade coletiva, acerca da cincia

moderna e os seus limites. Um exemplo desta crtica a produo do Dossi Abrasco:

um alerta sobre os impactos dos agrotxicos na sade (2015), que, foi um dos livros

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mais vendidos da Abrasco e, est escrito nesta perspectiva de congregar diversos

esforos de pesquisadores e movimentos sociais na produo cientfica de uma nova

cincia, ou cincia engajada. No se trata de negar a contribuio da epidemiologia,

no campo da sade coletiva, mas de reconhecer outras contribuies metodolgicas.

A parte 3 intitulada: Agrotxicos, conhecimento cientfico e popular:

construindo a ecologia de saberes, apresenta uma viso crtica acerca da cincia

brasileira. Este livro foi elaborado por pesquisadores do tema sade-ambiente e

trabalho, que pesquisam principalmente os impactos dos agrotxicos sade humana

e movimentos sociais camponeses.

O referido documento afirma reconhecer no campo cientfico elementos do

produtivismo tayloristafordista. Relembra que Taylor constatou as dificuldades de

implantao do seu sistema de controle da produtividade no processo de trabalho,

porque os trabalhadores na poca se negaram a aceit-lo. Taylor, por sua vez adotou

como estratgia monetarizar a imposio, e experimentar na fbrica da Ford a

contratao de jovens trabalhadores, que seriam remunerados de acordo com a sua

produtividade, contabilizada em nmero de peas, auferida e comparada pelos

cronometristas - que ento podiam ir elevando os patamares, medida que a resposta

era favorvel (AUGUSTO et al., 2015).

O dossi abrasco de forma provocativa indaga aos pesquisadores:

poderamos ler em nosso contexto atual alguns indicadores de premiao

monetarizada da obedincia aos valores do sistema de avaliao, por exemplo,

atravs da bolsificao do trabalho docente (em tempos de bolsificao tambm da

pobreza em nosso pas)? Qual o impacto disto em nossa capacidade de reflexo, de

crtica e de contestao? Ou a resposta seria a subordinao? (AUGUSTO et al.,

2015). E, por fim refora:

Se os sujeitos acadmicos da produo do conhecimento so prejudicados, certamente tambm o a prpria produo: vale a pena abraar objetos de estudo complexos como a realidade? No mais prtico recortar, simplificar, reduzir? Os necessrios dilogos interdisciplinares no demandam um tempo de maturao prejudicial produtividade exigida, e no complicam o acesso s revistas cientficas? No melhor eleger estratgias de publicao que resultem num nmero maior de artigos, a despeito de desconfigurar a totalidade do objeto investigado? Estamos construindo uma fast-science, ferida por um pragmatismo que releva a fragmentao do conhecimento produzido, e tende a afast-lo cada vez mais da complexidade do real, reduzindo as possibilidades de que ele dialogue com os reais problemas da sociedade e venha a contribuir para melhor compreend-los ou ajudar a solucion-los. (AUGUSTO et al., 2015, p. 230).

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A meu ver, em se tratando de produo de conhecimento emancipatrio,

no se ganha com o produtivismo cientfico, sendo acertadamente incertos os

resultados desta lgica. Fulgura um paradoxo no campo da sade coletiva, que tem

como hegemonia, a epidemiologia, que est assentada na cincia clssica, onde se

coadunam distintas vises de mundo: por um lado o movimento sanitrio e o iderio

do sistema defendido pela sade coletiva, como movimento, que tem como princpios

a justia e equidade, trazendo para o SUS, o desafio de dialogar com temas

complexos da realidade em termos de prticas e de pesquisas; e por outro lado a

adeso atual poltica de produtividade cientfica, que regulamenta e normatiza a

produo cientfica em que so pontuados a relevncia do conhecimento produzido,

a depender do peridico onde tal estudo foi publicado.

Desconsidera-se, que o acesso a tais peridicos, por exemplo, muito mais

para os pesquisadores j reconhecidos, e, que jovens pesquisadores, que podem

inovar e produzir novos conhecimentos tem muito mais limites na concorrncia, sendo,

portanto, esta uma questo que remete a invisibilidade de um determinado grupo de

pesquisadores, que no interessa ao padro hegemnico.

Devo dizer que, alm de apresentar uma tese de doutorado, entre os meus

anseios, est o de contribuir com o Programa de Doutorado em Sade Coletiva, no

qual estou vinculada com um debate terico-metodolgico que tencione para novas

rupturas no modo de pensar e fazer sade.

Outro aspecto que me condicionou a buscar outras referncias terico-

metodolgicas relacionou-se minha curiosidade acadmica, como tambm busca

de me aproximar um pouco das cincias humanas e sociais, como a Educao e a

Sociologia. Isto, porque acredito que estes campos disciplinares podem ampliar

sobremaneira a minha atuao como pesquisadora na sade coletiva, que desenvolve

pesquisas voltadas para grupos populacionais vulnerabilizados.

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Seo 2: Autobiografia como um passo rumo ao conhecimento emancipatrio.

Entre as diversas possibilidades metodolgicas e os incontveis desafios

em dialogar com os mtodos advindos das cincias sociais e humanas, no mbito da

sade coletiva, optei pela autobiografia como um passo essencial na busca da

ecologia de saberes. Esta escolha est relacionada com a minha viso de que a

aprendizagem humana se d no cotidiano da vida pessoal e profissional, permeada

por uma necessidade de saber essencialmente humana.

O dilogo com Boaventura de Sousa Santos me auxilia na compreenso

do que significa autobiografia. Esta abordagem tem sido questionada na viso do

autor, devido relativa predominncia de elementos no ficcionais (empricos) nela.

(RENZA, 1977, p. 1 apud SANTOS, 2014). Com efeito a escolha metodolgica que

adoto relaciona-se necessidade de apreender novos mtodos, enquanto

pesquisadora, como tambm se assenta num saber consolidado na prtica, que

reconhece os limites de diversas perspectivas metodolgicas e tende a perscrutar

novas possibilidades para fazer cincia com compromisso tico e humano.

Explicita Santos (2014) que o estatuto cientfico da cincia social tem sido

discutido [...] devido relativa predominncia nela de elementos ficcionais (pessoais,

polticos, axiolgicos). (SANTOS, 2014, p.107). Conclui o autor, apontando que foi

deixado de fora, o que denomina de entidades mistas, onde estariam fundidos os

elementos literrios e cientficos. Neste sentido pondera:

possvel que uma dessas entidades mistas seja precisamente o ensaio autobiogrfico sobre a histria cientfica pessoal. A, na fronteira da fronteira, a amlgama de elementos pode atingir uma complexidade tal que acaba por constituir um tertium genus entre cincia e literatura. (SANTOS, 2014, p.107, grifo nosso).

Refere Santos (2014) do quo importante o desenvolvimento de [...] um

mtodo autobiogrfico nas cincias sociais como um meio para testar novas respostas

para questes comuns cincia e literatura. (SANTOS, 2014, p.107). Acredita

Santos (2014) que [...] o desenvolvimento desta linha autobiogrfica poderia conduzir emergncia de novos estilos de escrita, formas sincrticas/sintticas de expresso cientfica e literria. (p.107, grifo nosso).

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Defende que a auto inveno, nunca arbitrria, quando realizada de

forma autntica, consistindo numa reconstruo de uma memria diluda, em

sntese, a memria da memria (SAN