universidade estadual do cearÁ centro de estudos...

105
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA MESTRADO ACADÊMICO EM SOCIOLOGIA FILIPE PESSOA CAMELO “GASTRONOMIA” REGIONAL CRIATIVA: O CASO DO CENTRO DAS TAPIOQUEIRAS FORTALEZA CEARÁ 2017

Upload: others

Post on 27-Jun-2020

2 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

MESTRADO ACADÊMICO EM SOCIOLOGIA

FILIPE PESSOA CAMELO

“GASTRONOMIA” REGIONAL CRIATIVA: O

CASO DO CENTRO DAS TAPIOQUEIRAS

FORTALEZA – CEARÁ

2017

Page 2: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

FILIPE PESSOA CAMELO

“GASTRONOMIA” REGIONAL CRIATIVA: O

CASO DO CENTRO DAS TAPIOQUEIRAS

Dissertação apresentada ao Curso de

Mestrado Acadêmico em Sociologia do

Programa de Pós-Graduação em

Sociologia do Centro de Estudos Sociais

Aplicados da Universidade Estadual do

Ceará como requisito parcial à obtenção

do título de mestre em Sociologia. Área de

Concentração: Sociologia.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Kadma Marques

Rodrigues.

FORTALEZA – CEARÁ

2017

Page 3: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

Universidade Estadual do Ceará

Sistema de Bibliotecas

CAMELO, Filipe Pessoa.

“Gastronomia” Regional Cearense: O Caso do Centro das Tapioqueiras.

[recurso eletrônico] / Filipe Pessoa Camelo. – 2017. 1 CD-ROM: il. ; 4 ¾ pol.

CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho acadêmico

com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm x 7 mm).

Dissertação (mestrado acadêmico) – Universidade Estadual do Ceará,

Centro de Estudos Sociais Aplicados, Mestrado Acadêmico em Sociologia,

Fortaleza, 2017.

Área de concentração: Sociologia.

Orientação: Profª. Ph.D. Kadma Marques Rodrigues.

1. Gastronomia. 2. Cultura Alimentar. 3. Criatividade. 4. Tapioca. I. Título.

Page 4: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm
Page 5: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm
Page 6: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

À Deus.

Page 7: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

AGRADECIMENTOS

A Deus, a Jesus e ao Espírito Santo por estarem comigo a cada momento da minha vida.

Nos momento de acertos e de erros, sempre colocando aos meus olhos o melhor que há

por vir. Amo vocês!

A minha esposa, Katiane Camelo. Obrigado pelos dias e noites de muita compreensão,

parceria e por cada palavra que tem me feito crescer espiritual e profissionalmente. Amo-

te!

A meu pai, minha mãe e meu irmão, uma família abençoada. Grato pelo amor e auxílio

diário.

Ao meu sogro e minha sogra. Agradeço pela ajuda nos momentos que necessitei.

Aos professores do Mestrado Acadêmico em Sociologia da Universidade Estadual do

Ceará (UECE). Sou grato pelos ensinamentos tanto durante as aulas quanto nos momentos

informais.

Aos meus e as minhas colegas de turma do Mestrado Acadêmico em Sociologia da

Universidade Estadual do Ceará (UECE). Obrigado pelo companheirismo.

Ao Programa de Educação Tutorial – PET da Sociologia, da Universidade Estadual do

Ceará (UECE), por ter proporcionado inúmeras oportunidades para o meu

desenvolvimento acadêmico.

A minha orientadora Prof.ª Dr.ª Kadma Marques Rodrigues. Durante estes dois anos, tem

compartilhado comigo suas experiências acadêmicas, mostrando-se uma socióloga

criativa, ativa e responsável. Deixo o meu “muito obrigado” por sua atenção, paciência e

amizade.

À Profª. Drª. Maria Lucia Bueno Ramos, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Agradeço os direcionamentos teóricos colocados em minha qualificação, pois foram

imprescindíveis para a conclusão dessa pesquisa.

À Profª. Drª. Gerciane Maria da Costa Oliveira, da Universidade Federal Rural do Semi-

Árido (UFERSA). Grato por participar da minha banca de qualificação ampliando as

reflexões e os estudos.

Page 8: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

Às professoras doutoras Raquel Azevedo, Manuela Barros e Gustava Bezerril do curso de

graduação em Ciências Sociais da UECE. Obrigado por seus ensinamentos.

Ao professor Gerson Augusto de Oliveira Junior do Curso de Graduação em Ciências

Sociais da UECE. Minha caminhada acadêmica começou com seus ensinos. Serei sempre

grato.

Às secretárias do curso do Mestrado, Cristina e Luciana, que sempre me ajudaram

facilitando a resolução dos problemas acadêmicos. Obrigado também pelas conversas

agradáveis e alegres.

Às tapioqueiras Núbia, Valdênia e Leonícia do CETARME por partilharem de suas

experiências profissionais e de vida, contribuindo, assim, para o processo de construção

desse trabalho.

Ao tapioqueiro Reginaldo do CETARME pelas conversas agradáveis e por compartilhar

seus ensinamentos a respeito de seu ofício.

A todas(os) aquelas(es) do CETARME que participaram desta pesquisa direta e

indiretamente. Admiro a força de vontade e a busca constante por melhorias em suas

condições de trabalho.

À Eveline Tabosa, do SEBRAE. Obrigado pela recepção amigável e por aceitar ceder

uma entrevista para nossa pesquisa.

Ao Fernando, da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS) do Estado do

Ceará, responsável pela Coordenadoria de Empreendedorismo, que foi muito solícito.

Grato!

Aos meus irmãos em fé da Igreja do Evangelho Quadrangular do João Paulo II. Obrigado

por suas orações.

Aos meus amigos Filipe Pinheiro, Reginaldo, Alesson, David e Danny. Nossas conversas

possibilitaram meus avanços no trabalho de campo e em minhas reflexões.

Aos integrantes do Observatório Cearense da Cultura Alimentar (OCCA) e do Grupo de

Estudo Sociologia da Arte e da Cultura. Conheço-os há pouco tempo, mas as trocas de

ideias a cada reunião têm me proporcionado um avanço intelectual.

Page 9: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

“A tradição (alimentar) nada mais é

que uma invenção bem sucedida”.

(Massimo Montanari)

Page 10: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

RESUMO

Esta pesquisa tem como escopo principal analisar a relação entre produção, criatividade e

comercialização das tapiocas, a partir do Centro das Tapioqueiras e do Artesanato de

Messejana (CETARME), em Fortaleza/Ceará. Neste lugar, pode ser saboreada uma tapioca

tradicional, regada à receptividade das(os) tapioqueiras(os), à apreciação do próprio local, da

escuta de histórias do dia a dia e da oposição entre a tradição no modo de fazer esta comida e

suas modificações ao longo do tempo. Entretanto, este cenário configura aspectos relacionados

não somente às especificidades da culinária tradicional e popular, mas a “diversificação” das

tapiocas, do atendimento, dos produtos e utensílios utilizados, dos discursos a respeito do

valor desse espaço. Assim, por meio de informações colhidas durante minha observação

participante, a articulação desta dupla tendência parece propiciar a emergência de um

elemento que atualmente tem adquirido notoriedade em âmbito mundial: a criatividade como

fator que agrega valor a um produto. A partir desta perspectiva, e apesar desses sujeitos

estarem inseridos em um contexto mundial de massificação e de internacionalização da

cultura, da industrialização dos alimentos, da padronização das comidas (principalmente para

atender ao consumidor turista), da mercantilização dos serviços alimentares (formalização dos

estabelecimentos informais), é possível afirmar que eles têm elaborado invenções alternativas

e atuais dos modos humanos de estar no mundo. Com uma abordagem de tipo etnográfica,

foram realizadas observações, escutas e entrevistas informais com os sujeitos considerados

fundamentais no entendimento do objeto deste estudo. Deste modo, dentre os 26 boxes que

compõem o Centro das Tapioqueiras, foram escolhidos somente quatro. Portanto, esta

situação revela que, apesar dos embates que emergem no contato entre diferentes repertórios

culturais e agentes com trajetórias de vida díspares, os agentes têm demonstrado

potencialidades criativas graças aos vários conhecimentos que aprenderam nos cursos de

profissionalização.

Palavras-Chave: Gastronomia Regional. Cultura Alimentar. Criatividade. Tapioca.

Page 11: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

RÉSUMÉ

Cette recherche a comme la marque principale pour analyser la relation parmi la production, la

créativité et la commercialisation des tapiocas, commençant du Centro das Tapioqueiras e do

Artesanato de Messejana (CETARME) dans Fortaleza, Ceará. En cet place, un tapioca

traditionnel peut être savouré, arrosé à la réceptivité des le tapioqueiras, à l'appréciation du

propre place, de l'il/elle écoute des histoires de jour après jour et de l'opposition parmi la

tradition comme faire cette nourriture et leurs modifications le long du temps. Cependant, ce

paysage configure des aspects liés non seulement aux spécificités de la cuisine traditionnelle et

populaire, mais "à la diversification" des tapiocas, du service, des produits et des ustensiles

utilisés, des discours quant à la valeur de cet espace. Comme ceci, par des informations

cueillies pendant mon observation de participant, l'articulation de cette tendance de couple

semble pacifier le cas d'urgence d'un élément qui a maintenant acquis la gloire dans la mesure

mondiale: la créativité comme le facteur qui rejoint la valeur à un produit. Commençant de ce

point de vue et malgré ces sujets ils être inséré dans un contexte mondial de massification et de

l'internationalisation de la culture, de l'industrialisation des produits alimentaires, de la

standardisation des produits alimentaires (principalement pour aider le touriste grand public

consommateurs, du mercantilizaç ã o des alimentaires (formalization des établissements

informels) des services, il est possible d'affirmer qu'ils ont élaboré les inventions alternatives

et actuelles des manières humaines d'être dans le monde. Avec une approche de type

etnografique, les observations ont été accomplies, vous écoutez et des entretiens informels

avec les sujets ont considéré fondamental dans la compréhension de l'objet de cette étude. De

cette façon, parmi les 26 boîtes que composez le Centre de Tapioqueiras, ils ont été choisis

seulement quatre. Donc, cette situation, révèle que malgré les collisions qui apparaissent dans

le contact entre des répertoires culturels différents et des agents avec des chemins de vie

disparates, les agents ont démontré des potentialités créatives grâce à plusieurs connaissance

qui a appris dans les cours de professionnalisation.

Mots-Clés: Gastronomie Régionale. Culture Alimentaire. Créativité. Tapioca.

Page 12: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura1- Modelo para preparação da Tapioca Tradicional .................................................... 48

Figura 2- Fachada do CETARME ............................................................................................. 60

Figura 3- Xícaras do CETARME .............................................................................................. 62

Figura 4- Primeiro e segundo estacionamentos. ........................................................................ 63

Figura 5- Capa dos Cardápios “Recanto do Sertão” e “Silvia Helena” ................................. 66

Figura 6- Interior dos Cardápios. .............................................................................................. 66

Figura 7- Capa dos Cardápios “Tia Neuma e “Recanto do Sertão” ...................................... 68

Figura 8- Apostila “Apreender a empreender” ........................................................................ 83

Figura 9- CETARME – forno a lenha....................................................................................... 88

Page 13: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

A.T. Antigas Tapioqueiras

ATP Associação das Tapioqueiras da Paupina

CENTEC Centro de Ensino Tecnológico

CETARME Centro das Tapioqueiras e do Artesanato de Messejana

CT Centro das Tapioqueiras

EMLURB Empresa Municipal de Limpeza e Urbanização

MTUR Ministério do Turismo

PNT Plano Nacional de Turismo

PNMT Programa Nacional de Municipalização do Turismo

PRODETUR-NE Programa de Ação para o Desenvolvimento do Turismo no Nordeste

PRONATEC Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego

SEBRAE Serviço Brasileiro às Micro e Pequenas Empresas

SETAS Secretaria do Trabalho e Ação Social

SETUR Secretaria Estadual de Turismo

STDS Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social

UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura

Page 14: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................15

2 O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DO “CENTRO DAS TAPIOQUEIRAS”:

SÍNTESE SÓCIO-HISTÓRICA...............................................................................19

2.1 AS FACES DA PESQUISA: MÉTODO E FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA..........28

3 O CENTRO DAS TAPIOQUEIRAS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO

ALIMENTAR.............................................................................................................37

3.1 GASTRONOMIA OU CULINÁRIA: É PRECISO ENCAIXAR O CETARME?.....42

3.2 CRIATIVIDADE E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO: AS POSSIBILIDADES

INOVADORAS NO CETARME................................................................................47

4 OLHANDO, OUVINDO E COMENDO: PROCESSO DE PRODUÇÃO E

COMERCIALIZAÇÃO DAS TAPIOQUEIRAS....................................................60

4.1 DENTRO DOS BOXES: UM PROCESSO COLETIVO............................................70

4.2 DOIS PERMISSIONÁRIOS E SUAS RELAÇÕES COM A CRIATIVIDADE........77

5 RELAÇÃO ENTRE PERMISSIONÁRIAS E GOVERNO DO ESTADO DO

CEARÁ........................................................................................................................87

5.1 PROMOVENDO O EMPREENDEDORISMO INDIVIDUAL: INTERVENÇÕES DO

SEBRAE NO CENTRO DAS TAPIOQUEIRAS......................................................94

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................98

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................100

Page 15: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

15

1 INTRODUÇÃO

Embora saciar necessidades fisiológicas da ingestão diária de proteínas, sais

minerais, lipídios e vitaminas seja condição vital para a sobrevivência humana, é preciso

considerar que, como seres socializados, não fazemos isto “genericamente” (BARBOSA;

CAMPBELL, 2006), mas sim por razões que vão para além da nutrição do organismo. A

depender dos diferentes segmentos sociais, o ato de se alimentar pode se converter em rituais,

em que se come por prazer para evocar a lembrança de pessoas e de lugares, para acumular

novas experiências gustativas, afirmar identidades étnicas ou nacionais, celebrar acordos,

distinguir-se socialmente, experimentar algo criativo e/ou inovador, ou fortalecer laços sociais.

Enfim, a participação em determinada cultura alimentar manifesta realidades históricas,

territoriais, sociais, econômicas e políticas específicas, revelando que a alimentação humana é

inseparável da dimensão simbólica.

Neste sentido, a preferência pelo consumo de tapioca – comida cuja origem

encontra-se na alimentação de povos nativos do Brasil (CASCUDO, 2011) e que se acha

presente no cardápio de vários estados, inclusive no Ceará – leva muitos apreciadores a se

dirigirem ao Centro das Tapioqueiras e do Artesanato de Messejana (CETARME)1. Com a

finalidade explícita de comê-la, os consumidores não só acalmam o imperativo da fome, mas

também reforçam a potência de disposições sociais e culturais incorporadas. Neste lugar, pode

ser saboreada uma tapioca tradicional2, regada à receptividade das(os) tapioqueiras(os)

3, à

apreciação do próprio local, da escuta de histórias do dia a dia e da oposição entre a tradição no

modo de fazer esta comida e suas modificações ao longo do tempo.

Este cenário, entretanto, configura aspectos relacionados não somente às

especificidades da culinária tradicional-popular, mas a “diversificação” das tapiocas, do

atendimento, dos produtos e utensílios utilizados, dos discursos a respeito do valor desse espaço.

1 Localizado no Km 10 da CE-040. Bairro de Messejana, em Fortaleza, Ceará

2 Para a tapioqueira/permissionária N. (boxe Tapioqueira da Xuxa), a tapioca tradicional é aquela de origem

indígena: massa grossa, em formato redondo e com coco. Seu processo é explicado mais adiante. 3 O termo “tapioqueira” pode significar tanto o local quanto à função exercida pelas pessoas que preparam e

comercializam as tapiocas. Deste modo, de acordo com a tapioqueira N. (Boxe Tapioqueira da Xuxa) e o tapioqueiro

R. (Boxe Silvia Helena/Reginaldo), ser “tapioqueira(o)” é aquela pessoa que cuida de tudo no boxe e que tem o

ofício de fazer e de vender tapiocas há muito tempo. Portanto, a partir deste ponto de vista, quando esta palavra for

utilizada em um sentido geral, estar-se-á trabalhando com os sujeitos que são remanescentes das “antigas

tapioqueiras” e com aqueles que estão desde o início do CETARME.

Page 16: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

16

Assim, por meio de informações colhidas durante minha observação participante

(CAVALCANTE; AZEVEDO, 2014), a articulação desta dupla tendência parece propiciar a

emergência de um elemento que atualmente tem adquirido notoriedade em âmbito mundial: a

criatividade como fator que agrega valor aos produtos. Além do mais, está inserido em um

contexto onde as escolhas turísticas não são feitas apenas pelos aspectos tangíveis

(infraestrutura, transporte, hospedagem e alimentação), mas também pelos elementos intangíveis

(lazer, entretenimento, novas experiências, conhecimento da cultura local, criatividade,

emoções, sabores etc.). Isto põe em evidência que a dimensão simbólica dos produtos

oferecidos, e especialmente o contato com a gastronomia regional de uma sociedade, tem sido

valorizada pelo consumo turístico (SAMPAIO, 2009).

Nesta perspectiva, apesar de esses sujeitos estarem inseridos em um contexto

mundial de massificação e de internacionalização da cultura, da industrialização dos alimentos,

da padronização das comidas (principalmente para atender ao consumidor turista), da

mercantilização dos serviços alimentares (formalização dos estabelecimentos informais),

entendo que eles têm elaborado “invenções alternativas e atuais dos modos humanos de estar no

mundo” (GONÇALVES, 2011, p.141). Ou seja, apesar da nostalgia evocada pelas(os)

tapioqueiras(os) – em relação ao antigo local de trabalho – muito daquilo que é feito por ela(es)

e suas(eus) funcionárias(os) ganhou outros formatos: a maneira de molhar a goma de mandioca;

a escolha dos insumos utilizados; o trabalho em família, organizado em consonância com as

normas estabelecidas pelo Governo do Estado do Ceará e pelo SEBRAE; e a racionalização do

próprio negócio, de maneira a atender às exigências sanitárias.

Diante desse contexto, indago-me: tentativas de distinção configuram-se por meio de

relações de cooperação e/ou de conflito entre esses sujeitos? Por quais modos se manifestaria a

criatividade como elemento de diferenciação? Seria a criatividade um recurso para atrair clientes

ou uma disposição incorporada e associada à gastronomia tradicional-popular em um contexto

de economia criativa?

Sendo assim, esta pesquisa tem como escopo principal analisar a relação entre

produção, criatividade e comercialização das tapiocas, a partir do Centro das Tapioqueiras e do

Artesanato de Messejana (CETARME), em Fortaleza/Ceará. Para tanto, objetivos

complementares foram traçados: a) identificar os diferentes papéis desempenhados pelos agentes

institucionais (STDS e SETUR – CE) envolvidos diretamente no processo de manutenção e

Page 17: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

17

promoção do CETARME como produto turístico, especificamente o gastronômico; b) analisar

como o Turismo e a “Gastronomia” regional cearense são representados a partir de documentos

oficiais e por meio dos canais midiáticos em âmbito nacional e no Estado do Ceará (Planos

Nacionais e Estaduais de Turismo, Leis nacionais e estaduais, informações propagadas pela

mídia – impressa e/ou via internet – e entre outros); c) pesquisar os diversos aspectos do

trabalho das(os) tapioqueiras(os), a fim de apreender quais elementos colaboram para o

desenvolvimento de uma “gastronomia” regional criativa no Ceará.

Com uma abordagem aproximativa, tenho observado, ouvido e conversado com

alguns sujeitos que parecem ser fundamentais no entendimento do meu objetivo. Deste modo,

dentre os 26 boxes que compõem o Centro das Tapioqueiras, escolhi somente quatro. São eles:

Recanto do Sertão; Tia Neuma; Tapiocaria da Xuxa; e Silvia Helena/Reginaldo (estes dois

boxes são do mesmo permissionário).

O processo de seleção dos boxes se deu pela receptividade das(os)

permissionárias(os), pelo fato de um deles ser gerido pela presidente da Associação das

Tapioqueiras da Paupina (ATP) – tem uma relação mais próxima com as instituições privadas e

públicas –, pela boa quantidade de clientes e por se preocuparem, de alguma forma, com a

criação de novas estratégias para tornar seu trabalho mais atrativo para o cliente. Logo, sempre

que possível, inseri-me no cotidiano (com algumas interrupções) dessas(es) tapioqueiras(os)

para melhor apreender a produção e a comercialização das tapiocas e entender de que maneira a

criatividade é uma ferramenta utilizada por aqueles sujeitos.

Os principais lugares desta pesquisa são os boxes. Estes, observados de frente,

geralmente revelam a presença de chapa a gás – onde se fazem as tapiocas –, geladeira, freezer,

fogão, armário, e boa parte das paredes é revestida de cerâmicas. No local onde ficam os

clientes, há mesas e cadeiras, ambas de plástico e da cor branca. Sobre aquelas, um “pano” (na

verdade é de plástico) com o desenho de grãos de café em várias cores, o símbolo do

CETARME e da empresa Santa Clara, além dos utensílios utilizados pelos clientes (recipientes

de plásticos contendo talheres – facas, garfos e colheres de chá – e açúcar, porta-guardanapos,

garrafas de café na cor branca e xícaras na cor branca – estes três com a marca da Santa Clara –,

além de adoçante). As cadeiras, em parte, são revestidas por panos, com cores a depender do

boxe (verde “limão”, roxo, azul marinho, vermelho, verde), além do nome boxes e da marca

Page 18: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

18

Santa Clara (empresa de café que é “parceria”4 do CETARME). Em sua maioria, as(os)

permissionárias(os) possuem em torno de quatro funcionárias(os) (duas ou dois atendentes,

um(a) que faz as tapiocas na chapa – chapista/cozinheira – e um(a) que faz a limpeza do local).

Nos finais de semana, acrescentam-se mais duas atendentes.

O presente trabalho está dividido em quatro capítulos. No primeiro, acham-se a

apresentação, o contexto histórico de constituição do CETARME e a fundamentação teórica-

metodológica da dissertação. Em seguida, no segundo, faço um panorama da alimentação no

âmbito globalizado e, mais propriamente, sua imbricação com a economia criativa. Já no

terceiro, analiso meu objeto de estudo com base naquilo que apreendi em trabalho de campo.

Por fim, destaco as relações estabelecidas entre permissionárias(os) e governo do Estado do

Ceará e SEBRAE.

4 De acordo com o tapioqueiro/permissionário R., esta empresa é uma parceira por entender as dificuldades

enfrentadas no Centro das Tapioqueiras. Assim, existe um contrato entre Associação das Tapioqueiras e Santa Clara.

Page 19: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

19

2 O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DO “CENTRO DAS TAPIOQUEIRAS”:

SÍNTESE SÓCIO-HISTÓRICA

O Centro das Tapioqueiras e do Artesanato de Messejana (CETARME) pode ser

compreendido como consequência das políticas públicas do Governo do Estado do Ceará

voltadas para o desenvolvimento do setor turístico no final da década de 1990. Porém, interessa

apreender a elaboração desse lugar como fruto da relação entre agentes públicos e privados a

partir das reivindicações das(os) tapioqueiras(os) tomadas como fio condutor.

A fim de melhor entender como isto ocorreu é preciso saber como o turismo passou

a ser valorizado no âmbito das políticas governamentais, tanto no Brasil quanto no Ceará. Deste

modo, evidencio um período histórico específico, de 1930 ao início do século XXI, pois se trata

do pano de fundo para a constituição do CETARME. E, em seguida, explano a respeito dos

impactos atuais que o mercado do turismo tem causado sobre as práticas culinárias daqueles

produtores e vendedores de tapioca.

Desta sorte, no Brasil, o interesse do poder público pelo turismo emergiu a partir da

década de 1930. Naquele contexto, uma das primeiras ações governamentais foi a criação da

Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR), em 1966, com o objetivo de planejar ações para

este setor. Todavia, conforme assinala Carvalho (2000), naquele período, a agenda

governamental brasileira não incluía o turismo em suas políticas prioritárias. Apenas com a

Constituição Brasileira de 19885 é que esse setor passou a ser visto como elemento relevante na

economia do país.

Assim, durante o governo do ex-presidente Collor de Mello (1990-1992), houve a

reestruturação da EMBRATUR e, por meio do Decreto 448, de fevereiro de 1992, tentou-se

equacionar problemas relativos à renda nacional também a partir do desenvolvimento do

turismo. Para tanto, foram estabelecidas diretrizes para que isto ocorresse. Dentre estas, destaca-

se a prática do turismo como forma de valorização e preservação do patrimônio natural e

cultural do país (CARVALHO, 2000). Neste sentido, o turismo passou a ser percebido como

ferramenta necessária para manter e enaltecer os aspectos culturais e históricos brasileiros. Quer

dizer, este setor passou a integrar o engajamento governamental em divulgar, manter e elevar

5 Art. 180. Cap. I. Título VII: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios promoverão e incentivarão o

turismo como fator de desenvolvimento social e econômico” (BRASIL, 2012, p.110).

Page 20: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

20

elementos simbólicos que fazem parte da vida de cada grupo social nacional (museus, prédios

históricos, “gastronomias” regionais entre outros), convertendo-os também em mercadoria.

A partir disto, pode-se perceber o entendimento dos representantes do Estado de que

as culturas (em suas diversas matrizes) podem contribuir para o desenvolvimento da economia

brasileira. Assim, as florestas, as praias, o mar, as montanhas, enfim, as “belezas” naturais não

são os únicos elementos disponíveis para se conhecer o Brasil. As comidas, as músicas, as

danças, os artesanatos, os prédios históricos, isto é, os aspectos construídos social e

culturalmente também são meios de imersão na realidade dos lugares visitados.

Portanto, o turismo passa a ser considerado como um dos caminhos de “proteção”,

propaganda, “valorização” e até mesmo de inovação das culturas regionais e populares6. Isto

parece ter reverberado, dez anos depois, na maneira como o governo cearense modelou o

processo de qualificação do ofício das(os) tapioqueiras(os), aproximando as práticas de preparo

da tapioca e o consumo alimentar dos turistas. Isto será explicado pormenorizadamente mais

adiante.

Devido à instabilidade política do referido momento histórico nacional, esses

objetivos não foram concretizados no tempo estabelecido. Foi o sucessor do Presidente

Fernando Collor de Melo, Itamar Franco (1992-1995), quem deu andamento às metas do

governo anterior. Para tanto, em seu mandato, foi elaborado o Plano Nacional de

Municipalização do Turismo (PNMT). A proposta deste era “fomentar o desenvolvimento

turístico sustentável nos municípios, com base na sustentabilidade econômica, social, ambiental,

cultural e política” (EMBRATUR apud BRUSADIN, 2005). Todavia, foi somente no governo

seguinte que esta seria executada.

Baseados em “pressupostos desenvolvimentistas” (BRUSADIN, 2005) – estabilizar

a economia, financiar o desenvolvimento e a reforma do Estado, tornar este mais competitivo,

moderno e eficaz, além de reduzir as desigualdades sociais e espaciais – e no escopo de

fortalecer social e economicamente o turismo brasileiro, foi nos dois mandatos de Fernando

Henrique Cardoso na Presidência da República (1994-1998/1999-2002) que se organizou e se

efetuou o Plano Nacional de Municipalização do Turismo (PNMT)7 e o Plano Nacional de

6 Isto nos remete à construção do Centro das Tapioqueiras e do Artesanato de Messejana (CETARME), visto que se

trata de lugar de “ordenação” e “controle” de uma culinária tradicional de base popular, ou seja, mulheres e homens

de classe social pobre que preparavam tapiocas a partir de um conhecimento adquirido hereditariamente. 7 Por falta de comunicação entre governos Federal e Municipal, e também por oposições políticas, esse plano não

deu os frutos desejados.

Page 21: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

21

Turismo (PNT). Ambos foram alicerçados na meta estratégica de descentralizar as ações

concernentes a esse setor, isto é, os governantes dos Estados, dos Municípios e do

Distrito Federal teriam “autonomia” para selecionar aquilo que seria atrativo turístico

concernente à sua localidade.

No Estado do Ceará, desde a década de 1970, alguns lugares despontaram como

destinos turísticos: ressalta-se a praia de Canoa Quebrada, na cidade de Aracati (IPETURIS,

2011). Todavia, pelo Brasil, a imagem que se tinha do território cearense estava relacionada à

seca e à miséria – por motivos tanto naturais quanto sociais. Em virtude disto, a partir da

segunda metade dos anos de 1980, ações governamentais tiveram como escopo mudar esta

representação. Dentre estas, ampla propaganda governamental, pelos meios de comunicação

(televisão, jornais impressos, guias turísticos), foi feita em prol desta alteração. Assim, a

primeira iniciativa foi eleger as praias cearenses como atrativos turísticos. O critério de escolha

se fundamenta no fato de que, no Ceará, os períodos chuvosos são curtos. Por conseguinte,

praticamente todas as atividades empreendidas pelo governo cearense, neste sentido, foram

direcionadas às regiões litorâneas.

Isso não se sucedeu de maneira isolada do que estava acontecendo no mundo. Pois,

com o advento da globalização, para que um lugar se converta em atrativo turístico competitivo,

os agentes públicos devem buscar, nas particularidades deste território, algo que estimule o

consumo dos turistas. Para tanto, o foco sobre as suas singularidades culturais, sociais e naturais

se torna a principal via. Partindo desta compreensão, a primeira tentativa de ressignificação do

Ceará, sob a perspectiva naturalística – de um lugar seco e miserável para belo e próspero –

destacou as singularidades das praias cearenses. Porém, esta conversão abriu o caminho para

que manifestações de cunho cultural e social pudessem ser valorizadas.

No âmbito desta mudança e em consonância com o que estava sendo feito na esfera

nacional, em meio ao terceiro mandato de Tasso Jereissati (1998-2002) como governador do

Estado do Ceará, o setor do turismo cearense deu um salto qualitativo em termos de

estruturação. Em conformidade com aquilo que estava sendo planejado pelo governo federal,

foram executadas três ações na década de 1990: a criação da Secretaria de Turismo do Ceará

(SETUR), o Plano de Desenvolvimento Sustentável do Ceará (1995-1998)8 e o Programa de

8O Plano de Desenvolvimento Sustentável do Ceará, para tornar o turismo cearense mais atrativo, objetivou uma

ampla campanha publicitária que estimulasse a mudança do imaginário social construído que representava o Estado –

associado à seca e à miséria (LIMA, 2012).

Page 22: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

22

Ação para o Desenvolvimento do Turismo no Nordeste (PRODETUR-NE). Deste modo, a

articulação entre tais ações foi tornar o turismo cearense competitivo tanto entre os outros

Estados brasileiros como internacionalmente. Para tanto, algumas obras foram realizadas com

este fim: a construção do Aeroporto Internacional Pinto Martins, além de "rodovias

estruturantes" que facilitaram a ligação de Fortaleza (capital cearense) às cidades do litoral

Leste e Oeste (LIMA, 2012).

No mesmo período, especificamente no ano de 1999, em virtude do Programa

Rodoviário de Integração Social do Estado do Ceará II (Programa Ceará II)9, a malha rodoviária

estadual foi ampliada e reformulada, possibilitando, assim, a ligação entre todas as regiões do

Ceará e o aumento do fluxo da produção interna e das matérias-primas para o parque industrial

cearense. E, atendendo as demandas do turismo doméstico e internacional, a Rodovia CE-040

foi duplicada para facilitar o acesso às praias do litoral Leste. Desta maneira, as pessoas

interessadas em visitar esta região teriam duas alternativas saindo da capital do Estado: seguir

por este novo trajeto ou se deslocar pela Avenida Barão de Aquiraz (antiga rota)10

. Entretanto,

frente à intensificação do tráfego de automóveis no novo itinerário, ficou claro que esta

intervenção acarretou um impacto negativo sobre os rendimentos financeiros nos pequenos

comércios que ocupavam a antiga rota, incluindo as(os) tapioqueiras(os) que trabalhavam

naquela Avenida.

Sendo a produção e a comercialização de tapiocas tradicionais (formato redondo,

grossa em espessura e misturada com coco ralado) a principal fonte de renda de muitas(os)

tapioqueiras(os) há mais de 50 anos, estas(es) reivindicaram do Governo do Estado do Ceará

alguma solução para o problema do decréscimo nas vendas (BEZERRA, 2005). Porém,

enquanto não obtinham uma providência efetiva do poder público, elas(es) colocavam placas e

faixas na rodovia recém-ampliada (CE-040) indicando a existência de seus estabelecimentos à

beira da Avenida Barão de Aquiraz. Neste local, as(os) tapioqueiras(os) trabalhavam em casas

feitas com tijolos, ladeadas por fornos à lenha para a preparação das tapiocas.

Como resultado deste contexto de tensões, no ano de 2001, o governador Tasso

Jereissati autorizou a ordem de serviço para a elaboração de um espaço destinado a abrigar a

9 O “Programa Ceará II” teve financiamento externo (Banco Interamericano de Desenvolvimento-BID e Banco

Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social-BNDE) e interno (recursos públicos). Aliás, esse programa

esteve estruturado nos critérios exigidos por essas instituições privadas nos contratos de empréstimos (BEZERRA,

2005). 10

Localizada no bairro Paupina, subdistrito do Bairro de Messejana, em Fortaleza, Ceará.

Page 23: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

23

atividade produtiva das(os) tapioqueiras(os). Essa ação culminou na construção do Centro das

Tapioqueiras e do Artesanato de Messejana (CETARME) e, consequentemente, na mudança

das(os) tapioqueiras(os) para este novo endereço, localizado no km 10 da CE-040. Apesar

disso, essa transferência não aconteceu do dia para a noite. De acordo com uma das

tapioqueiras dessa época,

foi um pouco difícil a gente conseguir isso aqui. Quando eu pensava que estava muito

bem lá, fizeram essa avenida CE-040. Ai nós tivemos que... interditô, interditô! Num

tinha mais nada! Entraram muita gente em depressão, desespero e eu disse ‘eu num

vou ficar calada não[...]. Aí comecei a botar faixa, placas aqui na avenida né?! Mas, o

pessoal do DERT arrancava. Fiz uma faixa bem grande. Chamei oito tapioqueiros,

porque lá era umas dez. Chamei umas donas de tapioqueira lá, umas oito. Inclusive até

esse meu filho tava também. Aí vamo colocar uma faixa. Aí na faixa eu coloquei:

‘Pedimos ao DERT retorno pras nossas tapioqueira”, [...]. Quando eu vim colocar essa

faixa aqui, o primeiro carro que vinha era do DERT. Aí eu digo ‘Vá-la meu Deus,

vamo fechar essa faixa dipressa’. Aí enrolei, eles: ‘o que é que tem nessa faixa?’. Aí

eu disse: ‘o jeito é abrir, vamo abrir essa faixa’. Quando ele viu, um olhou para o

outro... só que eu não sabia que aquela faixa tinha tanta utilidade. Não sabia. Pensei

que era só um aviso, pedindo compaixão [risos], né?! Mas, não! Não foi assim! Mas,

eu não sabia. Aí, com muita peleja, eles foram ir diretamente ao Governo do Estado e

lá disseram que a gente não ia ficar calado, né?! (Tapioqueira N.)

Foi um período de negociações políticas com a finalidade de solucionar o

decréscimo nas vendas de tapiocas. Mas, neste ínterim, fatos relevantes aconteceram para

modificar os comportamentos e as maneiras de pensar das(os) tapioqueiras(os) em relação à sua

prática culinária. Um, dentre os fatores mais proeminentes, foi a oferta de cursos de

qualificação profissional, ministrados pelo Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas do

Ceará (SEBRAE) e pelo Centro de Ensino Tecnológico (CENTEC), que passaram a ser pré-

requisitos para as(os) tapioqueiras(os) que quisessem ter a permissão do governo do estado para

utilizar os boxes nesse novo espaço.

Os conteúdos lecionados nos cursos referiam-se aos aspectos técnicos da culinária,

à eficiência energética em micro e pequenas empresas, ao empreendedorismo, ao

associativismo, ao cooperativismo, à qualidade no atendimento e à etiqueta. Estas matérias

reconfiguraram a forma como esses sujeitos praticavam e pensavam o próprio trabalho11

. De

acordo com Bezerra (2005), até mesmo o estilo de vida delas(es) foi alterado por consequência

da nova realidade: a intenção do poder público foi ajustá-los aos padrões do consumo turístico 11

Para Bezerra (2005), o que antes era resolvido no espaço privado da família, passou a levar em conta outros

sujeitos e tendo que prestar contas à ATP e ao Estado.

Page 24: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

24

nacional e internacional.

Por conseguinte, o CETARME foi inaugurado em 9 de janeiro de 2002. Foi feita

uma solenidade, com a presença do então governador do Estado do Ceará – Tasso Jereissati – de

deputados e vereadores ligados à região da grande Messejana, das(os) permissionárias(os), além

de outras pessoas ligadas a estes. Assim, foi entregue uma estrutura física constituía de 26 boxes

(22 para as(os) tapioqueiras(os) e quatro para lanchonetes), um pequeno espaço para a venda de

artesanato (inaugurado pouco tempo depois), vagas para estacionamento de veículos (carros,

motos e ônibus), banheiros, sala de reunião, 22 “despensas” e um pequeno jardim12

.

Vale ressaltar que a divisão desses boxes foi feita pelos agentes da Secretaria do

Trabalho e Ação Social (SETAS), por meio de sorteio aleatório entre as(os) 26

permissionárias(os)13

. Mas, apenas algumas(uns) tapioqueiras(os) poderiam participar, ou seja,

somente aquelas(es) integrantes da Associação das Tapioqueiras da Paupina (ATP)14

que

participaram dos cursos de qualificação profissional. Durante uma entrevista informal com a

permissionária do boxe “Tapioca da Xuxa”, ela afirmou que essa etapa definiu não somente um

boxe para cada tapioqueira(o), mas também demarcou aquelas(es) que teriam mais facilidade

para receber os clientes – devido à própria estrutura física do local15

.

Com o passar dos anos, tanto o quadro do turismo, em âmbito internacional,

brasileiro e cearense, quanto o contexto do próprio CETARME se modificaram. No que tange

àquele, desde o ano de 2002 até o ano de 2016 – durante os dois mandatos de Luís Inácio Lula

da Silva e passando pelos mandados de Dilma Rousseff, ambos na presidência da República do

Brasil – o turismo foi se aproximando, de maneira intensiva, das manifestações culturais, em

especial das gastronômicas, consideradas potencialmente criativas.

No último ano do governo Lula, por meio do documento “Turismo Cultural:

Orientações Básicas” (MTUR, 2010), abordou-se o potencial que o “turismo gastronômico”

poderia ter. Entendido como um segmento do turismo que tem surgido com o papel de criar

12

A Empresa Municipal de Limpeza e Urbanização (EMLURB) da Prefeitura de Fortaleza-CE executou uma ação

para “revitalizar” o jardim deste espaço no ano de 2011. Foram colocadas plantas nativas, ornamentais, aromáticas

e medicinais. (Em: http://www.opovo.com.br/app/fortaleza/2011/02/28/noticiafortaleza,2108190/centro-das-

tapiocas-ganha-projeto-de-paisagismo.shtml). 13

Tapioqueiras(os) que conseguiram permissão para obter um boxe neste espaço. 14

Regimento elaborado por duas agentes da SETAS para direcionar aquilo que é permitido ou não às(os)

permissionárias(os) fazerem no interior do CETARME. 15

A questão da estrutura física do CETARME, como elemento gerador de conflitos, pode ser mais bem entendida

em Bezerra (2005).

Page 25: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

25

novos destinos turísticos, ele possibilita ao visitante experimentar a culinária típica do local

visitado. O interesse nesse segmento está relacionado às mudanças ocorridas nos padrões de

consumo alimentar deste tipo de público. Quer dizer, não somente os aspectos tangíveis, mas

também os intangíveis passam a ser mais valorizados no consumo turístico.

Com o advento do Governo Dilma (2010-2016), a valoração das dimensões

regionais da cultura traduziu-se em ações que incentivavam o segmento turístico a saborear

“gastronomias” locais, incrementando, assim, o referido turismo gastronômico. Isto está em

consonância com o escopo de "estimular processos que resultem na criação e na qualificação de

produtos turísticos que caracterizem a regionalidade, genuinidade e identidade cultural do povo

brasileiro" (MTUR, 2013, p.97). Deste modo, algumas ações, mesmo que timidamente,

contribuíram para a concretização desta proposta. De acordo com informações contidas no site

Ministério do Turismo em relação ao interesse deste pelas gastronomias regionais, no ano de

2012, o “Grupo de Turismo Gastronômico” (GTG) tinha como propósito incrementar ações

neste setor por meio do investimento em educação e pesquisa sobre a gastronomia brasileira.

Ainda no referido ano, o MTUR apontou ainda que “a gastronomia é um dos itens

com maior aprovação entre os visitantes estrangeiros: havendo cerca de 90% de satisfação. Isso

prova que o turismo gastronômico está presente tanto nas opções de lazer quanto nos negócios”

(MTUR, 2014). Já no ano de 2013, ressaltou-se o crescimento dos gastos dos turistas com

alimentação e, em especial, a participação deles em festivais gastronômicos pelo Brasil. Ficou

atrás somente do setor de transportes. No ano posterior, enfatizou-se a avaliação positiva da

gastronomia brasileira pelos turistas internacionais durante a Copa do Mundo da FIFA 2014.

No ano de 2015, as gastronomias regionais foram discutidas como potencialidades

para o desenvolvimento do turismo brasileiro. Desta maneira, atualmente, a

Gastronomia e os meios de hospedagem são dois grandes pilares do turismo brasileiro

– e correspondem a cerca de 60% da força de trabalho do setor, de acordo com o

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Na última década, a valorização da

culinária regional fez surgir centenas de festivais gastronômicos pelo país e criou um

novo nicho de mercado: o turismo gastronômico. Da mesma forma, o avanço do

número de turistas pelo país – foram mais de 200 milhões de viagens no ano passado –

multiplicou os meios de hospedagem (MTUR, 2015).

Deste modo, recentemente, em julho de 2015, foi aberta uma Chamada Pública para

selecionar propostas que valorizassem a gastronomia regional como fator diferencial de

Page 26: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

26

competitividade (a inovação como principal estratégia) em termos de destino turístico. A

proposta priorizava os 214 municípios inseridos no PRONATEC-Turismo. Cada cidade deveria

elaborar propostas que estivessem de acordo com o objetivo de divulgar suas comidas regionais

como produto turístico diferenciado, competitivo e inovador. Sendo o recurso financeiro de três

milhões, cada contemplado receberia trezentos mil para a execução do seu projeto. Deste modo,

sintetizando as diretrizes estabelecidas, este documento tinha como principal meta a valorização

e a inovação das “gastronomias” regionais.

Dentre os Estados, os Municípios vencedores desta Chamada Pública foram: a

Secretaria de Estado de Turismo do Distrito Federal/DF; Município de Foz do Iguaçu/PR;

Município de Paranaguá/PR; Município de Natal/RN; Município de Gramado/RS; Empresa

Municipal de Turismo de Belo Horizonte/Belotur/MG; Município de Corumbá/MS; Prefeitura

Diamantina/MG; Município de Vitória/ES; Município de Araranguá/SC. O estado do Ceará

ficou fora do universo dos contemplados. Já em relação aos estados beneficiados, destaca-se o

pioneirismo de Minas Gerais como um dos principais incentivadores do turismo gastronômico

no país. Pois, além de ter sido selecionado pelo Ministério do Turismo, sua Assembleia

Legislativa, no mês de novembro do ano de 2015, aprovou o Projeto de Lei 1.618/15. Este tinha

como objetivo incentivar o poder público a formular políticas públicas que valorizassem a

gastronomia mineira de forma sustentável, incentivando o turismo gastronômico.

No que diz respeito às novas maneiras de se lidar com as comidas regionais, a

capital do Estado do Pará/Belém, apesar de não estar entre os “beneficiados” pelo MTUR, no

mês de dezembro de 2015, foi nomeada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a

Ciência e a Cultura (UNESCO) como “cidade criativa da gastronomia”16

. Isto foi fruto da

prefeitura da cidade em articulação com instituições privadas que têm como finalidade promover

a gastronomia paraense como referência internacional.

Portanto, estas iniciativas recentes mostram que o tema alimentação não tem sido

pensado somente em uma perspectiva nutricional ou atrelada ao problema social da fome –

embora o Governo Federal, na gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tenha assumido a

campanha FOME ZERO.

16

“Atualmente, a rede de cidades criativas é composta por 116 cidades em todo o mundo e em sete segmentos da

indústria criativa: literatura, cinema, música, artesanato e arte popular, design, artes e gastronomia. Além de Belém,

outras duas cidades brasileiras entraram na lista: Santos, na categoria Filmes; e Salvador, por sua música”. (Site

G1.Globo.com, em 03/03/2016).

Page 27: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

27

Encarada também como um fator de desenvolvimento econômico, social e cultural, a

gastronomia acha-se no cerne de aspectos simbólicos. Mas, no Ceará, os agentes da Secretaria

do Turismo (SETUR) ainda não têm elaborado políticas públicas tendo como foco as

“gastronomias” cearenses. Na verdade, eles têm somente a função de divulgação da arte

culinária, complementando, assim, o principal produto turístico do Estado do Ceará: as praias.

No tocante às mudanças ocorridas no CETARME desde 2002, tenho apreendido

que, apesar de todas essas ações terem como função promover a padronização de

procedimentos, mediante normas estipuladas pelo regimento da Associação das(os)

Tapioquerias(os) da Paupina17

e pelo poder público, sem desprezar a influência do setor privado,

o qual também contribui para isso, há certa “autonomia” nas ações das(os) permissionárias(os).

Isto pode ser manifesto na decoração dos boxes, nos cardápios, na forma de abordar os clientes e

no modo de preparo e apresentação das comidas. Ou seja, elas(es) tentam se diferenciar

umas(uns) das outras(os)18

.

Um exemplo disto é a feitura da “tapioca tradicional com queijo” (goma de

mandioca tipo grossa com coco e queijo coalho). No boxe Tia Neuma, a tapioca é redonda,

grossa e sobre ela o queijo – assado na chapa. Já no boxe Silvia Helena, ocorre um processo

diferente. Sobre esta escrevi: “Hoje comi a tapioca tradicional com queijo, mas de um jeito que

nunca havia visto. O queijo veio no meio de duas tapiocas, em forma retangular, lembrando o

formato de um sanduíche.” (Diário de Campo, 17/02/2016).

Sendo assim, o saber culinário tradicional e popular dessas(es) tapioqueiras(os) não

desapareceu diante disto. Não obstante, parece ter acontecido uma articulação entre este

conhecimento e as perspectivas relacionadas à Gastronomia (as diversas formas de combinação

dos ingredientes, a preocupação com a estética do prato, a maneira como o ambiente está

organizado e o modo de tratar os clientes), à racionalização (cálculo e anotação de tudo aquilo

que diz respeito à preparação da tapioca), à mercantilização (torná-los empreendedores,

competitivos entre si e criativos) e à segurança alimentar (higiene e manipulação de alimentos).

Neste sentido, tenho como hipótese: foi criada uma “gastronomia” regional de base

tradicional- popular que potencializa as(os) tapioqueiras(os) a agir e a pensar de maneira a

17

Documento este elaborado tanto pelos agentes do Governo do Estado do Ceará quanto pelas(os) tapioqueiras(os). 18

O ritmo de trabalho que era determinado de acordo com a necessidade de cada um tornou-se baseado pelas

imposições do mercado internacional: acelerado, normatizado e padronizado (BEZERRA, 2005). Mas, de acordo

com minhas observações, não há uma unicidade no preparo das tapiocas.

Page 28: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

28

valorizar a criatividade, haja vista que os cardápios não ficam reduzidos à tapioca tradicional

com café. Porém, com o advento da tapioca fina com recheio, várias são as possibilidades de

sabores e modos de preparo.

Diante do consumo crescente de comidas típicas com características criativas, qual

seria a influência desse novo padrão alimentar, que valoriza as comidas regionais de maneira

inovadora e criativa, sobre as práticas culinárias das(os) tapioqueiras(os) do CETARME?

2.1 AS FACES DA PESQUISA

Desde minha inserção no campo acadêmico, tenho ouvido orientações a respeito da

importância do esclarecimento teórico-metodológico que o pesquisador deve apresentar na

construção do seu texto. Não deve somente abordar os métodos e as teorias que fundamentam o

trabalho, mas também deve expor os caminhos – objetivos e subjetivos – que ele próprio tem

percorrido. Como lembra Favret-Saada (2005), o cientista social não deixa de afetar e ser

afetado por aquilo que estuda, principalmente quando se trata de uma pesquisa que exija o

estabelecimento de uma relação com outros agentes sociais. Para isto, faço a seguir uma

explanação sobre minha inserção no âmbito da investigação que me propus a realizar.

Antes de tudo, estruturo este capítulo em quatro faces: 1) em primeiro lugar, arrisco-

me na apresentação de mim mesmo: tanto em relação aos meus primeiros passos como

sociólogo como meu interesse pela sociologia e antropologia da alimentação; 2) posteriormente,

falo das minhas inserções e observações no CETARME, expondo as dificuldades do início do

trabalho de campo e, do mesmo modo, as vantagens que tenho encontrado em mim mesmo para

que o trabalho flua de maneira proveitosa; 3) em seguida, exponho como se desenvolveu minha

relação com os sujeitos da pesquisa, não só com as(os) tapioqueiras(os), mas, igualmente, com

agentes do serviço público e privado; 4) por fim, apresento os instrumentos, as técnicas e minhas

fundamentações teóricas.

A primeira face. Não tenho nenhuma referência familiar no que diz respeito à

produção científica e aos esforços que esta exige. Deste modo, minha maneira de pensar

cientificamente, sob a perspectiva sociológica, foi sendo elaborada na própria universidade.

Page 29: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

29

Sendo assim, foi no decorrer da graduação em Ciências Sociais e, especificamente

na elaboração de minha monografia, que me deparei com o interesse pela alimentação como

objeto socioantropológico. Deste modo, seguindo a trilha de Mauss (2003), quando este aponta

para o entendimento dos fatos sociais em sua totalidade, venho constantemente me debruçando

sobre os diversos aspectos desse tema – sociais, culturais, históricos, políticos e econômicos –

com a finalidade de compreender melhor as diversas ramificações desse elemento vital para a

vida humana. É neste sentido que procurei investigar a relação entre prática, comercialização e

criatividade no CETARME. Quer dizer, se a tradição ainda perpassa pela preparação das

tapiocas, a criação passa a compor estes processos a ponto de ser um elemento que, atualmente,

agrega valor (cultural, econômico, social e histórico) a essa comida.

Segunda face. Minhas idas ao CETARME, tanto como consumidor quanto como

pesquisador, foram repletas de desafios pessoais e profissionais. De um lado, a adaptação a um

“novo” campo empírico (estudara alimentação na Graduação, mas a partir do consumo da

merenda escolar). Isto acarretou uma aproximação mais lenta do universo social das(os)

tapioqueiras(os). E de outro, o esforço intelectual a fim de apreender e compreender os fatos que

remetem às práticas culinárias nos boxes pesquisados na maior abrangência e particularidade

possível. Sobre isto, remeto-me à questão da “imaginação sociológica” (MILLS, 1982). Uma

atitude reflexiva que todo cientista social deve ter com o objetivo de enxergar um determinado

fato social em sua totalidade.

Desta sorte, o método etnográfico balizou toda minha incursão em campo. Assim,

percebi que era vital estar constantemente próximo de meus interlocutores – tapioqueiras(os) –

seja observando-as(os) ou conversando com elas(eles). O intento maior desta pesquisa era,

sobretudo, obter informações concernentes às práticas e discursos relacionados à preparação e à

comercialização das tapiocas.

A terceira face. Como foi dito acima, o desafio de aproximação, estar por perto e

poder conversar, foi sendo superado a cada incursão em campo. Deste modo, meu contato com

as(os) tapioqueiras(os) e com os agentes do poder público caminhou bem. Foi um processo de

familiarização tanto minha em relação a elas(es) quanto destas(es) no que concerne a mim.

Aproximei-me daquelas(es) tapioqueiras(os) que transpareceram maior receptividade e que

gostavam de conversar. Deixei aquelas(es) que eram mais reservadas(os) para um momento

posterior. Foi uma escolha estratégica, tanto para facilitar meu caminhar na pesquisa quanto para

Page 30: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

30

elas(es) irem me conhecendo melhor.

A respeito das opções envolvidas em todo processo de pesquisa, dentre os 26 boxes

que compõem o “Centro das Tapioqueiras”, foram escolhidos somente quatro. O número

reduzido se dá justamente pela abordagem metodológica verticalizada que empreguei. Deste

modo, trabalhar com todas(os) tapioqueiras(os) exigiria mais tempo e um processo de confiança

que um pesquisador, que realiza um estudo de cunho etnográfico, necessita e que demandaria

uma convivência mais longa. Mesmo assim, estudar quatro boxes requereu cautela e muito

esforço. Porém, aos poucos, galguei degraus neste quesito: fazer a minha própria tapioca com a

ajuda da(o) permissionária(o), conversar com esta(e) de maneira descontraída, ficar sentado em

algum lugar observando sem “ninguém se incomodar” são exemplos.

Por fim, a quarta face. Esta pesquisa tem caráter qualitativo e, especificamente, com

uma abordagem do tipo “etnográfica”. Deste modo, fiz observações, escutas e entrevistas

informais, tanto com os sujeitos considerados fundamentais no entendimento do objeto deste

estudo quanto com pessoas que participam do cotidiano do CETARME. E destas técnicas,

utilizei caderneta e diário de campo, câmera fotográfica e gravador de áudio para registrar aquilo

que era pertinente para o objetivo do estudo em cada dia de investigação.

As aspas, logo acima, na palavra etnográfica, foram postas para indicar que não fiz

um trabalho etnográfico como o próprio método exige (GEERTZ, 1989; LAPLANTINE,

2003)19

, pois esse empreendimento exigiria um convívio cotidiano e constante com o grupo

social por mim pesquisado, para que eu pudesse obter informações volumosas, tanto de natureza

quantitativa quanto qualitativa, além de subsídios para a elaboração de uma “descrição densa”,

isto é, a construção de uma análise interpretativa que se entendesse como esforço intelectual de

apreensão da realidade pesquisada. Portanto, desde já coloco que a minha postura “etnográfica”

se configura como um primeiro esforço de aproximação.

A escolha dessa perspectiva teórico-metodológica reside no emprego (dentro do

possível) de técnicas provenientes da “prática etnográfica”: observação participante, um olhar e

um ouvir microssociológicos, uma escrita descritiva para além da mera narração e que

“privilegie” o ponto de vista das pessoas pesquisadas. Deste modo, a abordagem do tipo

etnográfica possibilita a apreensão de informações/dados fundamentais para a compreensão de

19

Para ambos os antropólogos, a principal característica de uma pesquisa etnográfica é ser fundamentalmente

microssociológica. Trata-se de colocar uma lupa sobre a realidade social que se estuda. Portanto, é um olhar

direcionado e atento ao cotidiano das(os) tapioqueiras(os) no CETARME.

Page 31: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

31

comportamentos e de discursos relativos à elaboração das tapiocas.

Isto ocorre na observação e na escuta dos conteúdos e das maneiras de falar e de

agir. E, mais propriamente, na participação (o mais regular e próximo possível) do dia a dia

desses sujeitos no CETARME. Logo, trata-se de assimilar os elementos simbólicos que

estruturam a lógica cotidiana desses sujeitos no momento de preparar e de servir as tapiocas.

Como complemento, entrevistas semiestruturadas foram realizadas. Elas são

utilizadas, geralmente, em pesquisas de caráter qualitativo para possibilitar a tomada dos

discursos dos pesquisados. São perguntas relacionadas ao objetivo da minha investigação,

deixando o entrevistado falar sobre os assuntos por mim interpelados. Porém, nos intervalos

entre uma pergunta e outra, abordei outros assuntos (sobre a situação política atual, por

exemplo) no intuito de descontrair essa “conversa com finalidade”. Mas, além destas interações

mais específicas, conversei de modo mais informal com outros funcionários do CETARME e

de cada boxe pesquisado.

Não posso deixar de apontar a importância do Diário de Campo no andamento deste

estudo. Após cada incursão em campo, no CETARME ou em outra instituição, fiz gravações em

áudio ou digitei no computador minhas “experiências etnográficas”. Isto me permitiu

autocríticas sobre minha postura como pesquisador, reformulações de estratégias para melhor

interação com as(os) tapioqueiras(os), e, diante do que foi visto e ouvido, propiciou-me ainda

uma articulação com a teoria que fundamentou a investigação. Logo, não foi somente um

registro puro e simples do que acontecia.

Quanto à fundamentação teórica, interpretar os comportamentos e os discursos

empreendidos pelas(os) tapioqueiras(os) no CETARME exigiu a compreensão de que as

maneiras20

de preparar e de oferecer as tapiocas (tradicionais e finas com recheio) são

governadas pelos valores e pelas regras sociais advindas de determinado contexto sociocultural

não estático. Deste modo, baseando-me em Geertz (1989), entendo que esses agentes sociais

fazem parte de uma rede de significados, criada pela própria sociedade e pelo grupo social ao

qual pertencem, para guiá-los no seu modo de ser e de ver o mundo (LARAIA, 1997). É uma

herança social acumulada e reproduzida, cotidianamente, de forma dinâmica (MORIN, 2007;

SANTOS, 1994). Portanto, o conceito de cultura é utilizado como um instrumento para analisar

20

Apesar das(os) tapioqueiras(os) seguirem um padrão de produção e de comercialização das tapiocas, cada um(a)

tem suas particularidades “gastronômicas”. Isto é, comer uma tapioca fina, recheada com carne sol e queijo, é

singular em estética e sabor a depender do boxe.

Page 32: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

32

a atuação dos sujeitos pesquisados.

Na investigação do CETARME, lugar por excelência alimentar, tomo como

referência Braga (2004), à luz da perspectiva anterior, para entender que cultura alimentar pode

ser abordada como um sistema simbólico na medida em que indivíduos que compõem esse

espaço conferem sentidos, classificações, valores e normas às preparações e às comercializações

das tapiocas. Desta maneira, estes elementos influenciam na determinação do que é ou não

comestível e onde, com quem, como, quando, por que, por quem e quanto se deve comer. Por

conseguinte, seleciona-se aquilo que está de acordo com as regras sociais e culturais

interiorizadas/aprendidas.

Esta perspectiva se refere à dicotomia entre simbólico/cultura e fisiológico/natureza

que pode ser evidenciada na distinção entre alimento e comida. Para DaMatta (2001), aquele é

algo universal e que se aplica a todos os seres humanos, independentemente de que lugar ocupe

neste mundo. É genérico, pois todos têm que ingerir os nutrientes oriundos dos alimentos –

proteínas, vitaminas, sais minerais, água – para manter-se vivo. E são diversas as possibilidades

do ser humano conseguir prover o organismo com estes elementos, pois, como é um ser onívoro,

tem a capacidade de comer de tudo, tanto de origem animal como de origem vegetal.

Tendo em vista que os seres humanos são governados por suas culturas alimentares,

essa imposição fisiológica não implica “comer de tudo”. Escolhe-se o que se deve comer a partir

de classificações – bom/ruim, quente/frio, familiar/estranho, cru/cozido, mole/duro, feio/belo,

cheiroso/malcheiroso etc. Desta forma, dá-se origem à noção de comida. Assim, uma maçã

colhida da árvore e lavada com água já se configura um alimento valorizado simbolicamente

(Idem, 2001). Além disso, também pode ser fabricada pelo ser humano – uma das características

que o diferencia dos outros animais (MONTANARI, 2008). Isto quer dizer que nós somos os

únicos seres vivos que podem produzir comidas que não estão postas na natureza. É um

construto sociocultural em que, a depender do grupo social, da época histórica e dos interesses

econômicos e políticos, existem várias formas de prepará-la e de consumi-la.

Um exemplo disto é a tapioca. No CETARME, especificamente no boxe

“Tapioqueira da Xuxa”, o processo de feitura da tapioca tradicional começa com a compra dos

ingredientes: goma de mandioca grossa (da marca “Prata”, ou mistura-se com a da marca

“Juriti”, o importante é que ela seja “caroçuda”); coco seco (de preferência vindo de coqueiros

da praia, por conta do “aroma”); sal a gosto e água. Primeiramente, molha-se a goma – o ponto

Page 33: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

33

certo somente a permissionária sabe, disse-nos que é um de seus segredos – mistura-se com as

mãos e depois deixa essa combinação “descansar” até ela ficar com uma consistência dura. Em

seguida, manualmente, ela faz passar a goma por uma peneira grande. A goma, assim preparada,

é então guardada em recipientes de plástico dentro da geladeira. Posteriormente, por alguns

minutos, ela aquece a chapa a gás, colocando aros em formato de círculo sobre esta. A seguir,

uma das mãos em formato de colher serve de medida para mergulhar no recipiente de plástico,

emergindo cheia de goma. A partir deste momento, dá-se o processo de “cozimento” da goma.

Com a ajuda de uma espátula, vira-se a tapioca o quanto for necessário até ela ficar com a cor e

a consistência exata: macia. Posteriormente, colocam-se as tapiocas grossas em pequenos sacos

plásticos transparentes em um recipiente de isopor em cima de uma mesa. Por fim, podem ser

comidas do modo como saíram da chapa, banhadas com leite de coco, com queijo assado –

colocado em cima e em baixo delas – com ovos, com leite condensado ou com chocolate.

A preparação da tapioca fina é semelhante. Nesta, usa-se a goma de mandioca fina

(da marca “Juriti”), sal a gosto e água. O que diferencia o preparo é o tamanho da peneira

utilizada para peneirar a goma depois que ela é molhada, bem como o momento de levá-la à

chapa. É um método semelhante, no entanto, o resultado final é diferente, pois se terá uma

tapioca fina, redonda ou comprida (o formato é de acordo com a preferência de quem faz) que,

para a tapioqueira N., tem que ficar “crocante”. Todavia, o principal elemento acha-se durante o

feitio desta tapioca, quando se insere o principal atrativo do Centro das Tapioqueiras: a

variedade do recheio. A partir deste elemento, podem-se elaborar centenas de combinações:

tapioca com carne de sol e queijo, com carne de sol e requeijão, com carne de sol e nata, com

frango e catupiry, com frango e carne de sol, com bacalhau, com caranguejo, com camarão, com

sardinha, com banana e canela, com chocolate e queijo, com geleia de pimenta e queijo, com

doce de leite, com coco e rapadura, com chocolate e morango e outras. Assim preparadas, as

tapiocas não devem ser servidas de qualquer maneira. Afinal, a preocupação com a estética e a

organização da comida no prato constituiu parte bastante enfatizada durante os cursos de

culinária.

No que concerne à utilização do termo “popular” relacionado às práticas

“gastronômicas”, tive a intenção de situar o acervo histórico, social e cultural da tapioca no

Centro das Tapioqueiras. Isto é, na classe social desprovida de grandes recursos financeiros,

cujos conhecimentos culinários são aprendidos de forma artesanal e hereditário e o ritmo de

Page 34: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

34

trabalho é feito em família e ditado por esta, assim como a simplicidade dos estabelecimentos

(tapiocaria), a homogeneidade do cardápio e a informalidade e a relação social entre

tapioqueiras(os) e clientes. Apoiado nisso, fundamento-me em Canclini (1989), quando este diz

que a palavra cultura sempre esteve associada à história dos excluídos, assim como sua

utilização, nas Ciências Sociais, estava relacionada à dicotomia modernidade/tradição,

erudito/popular e hegemônico/subalterno. E também no historiador francês Roger Chartier

(1995), em que este afirma que além do conceito de cultura popular ser utilizado para descrever

tudo que está fora do que é erudito, ele tem sido abordado, tanto por historiadores, sociólogos e

antropólogos, a partir de duas visões: a) como sistema simbólico coerente e autônomo; b) e

como dependente e carente em relação à cultura dos dominantes. A primeira se refere a uma

lógica interna independente das influências externas. E a segunda diz respeito à sua submissão

aos aspectos da cultura legítima.

É importante frisar que numa relação entre cultura dominante e cultura dominada, as

imposições daquela não excluem elementos particulares desta. Mesmo diante de um contexto

mundial de massificação e de internacionalização da cultura, da industrialização dos alimentos,

da padronização das comidas (principalmente para atender ao consumidor turista), da

mercantilização dos serviços alimentares (formalização dos estabelecimentos informais), o

contato de uma tradição com aspectos de um momento presente não significa dizer que houve o

“falecimento” de uma cultura (GONÇALVEZ, 2011). Logo, é mais viável se pensar que há

ressignificação das antigas práticas. Ocorrem mudanças, mas estas se mantêm com outros

formatos.

Apesar das modificações sofridas diante das imposições estabelecidas pelo Governo

Estadual do Ceará, principalmente durante os cursos de qualificação, as práticas culinárias e

outros elementos da “vida antiga” das(os) tapioqueiras(os) ganharam outras “roupagens” ou

mesmo ficaram adormecidos. Ou seja, o aprendizado de aspectos relacionados à Gastronomia

construiu um modo diferente de fazer e de representar tanto o próprio trabalho quanto as

tapiocas. E isto remete a uma questão: por que se denomina determinado tipo de tapioca como

comida tradicional21

?

Tomando como referência a realidade do CETARME, emprego este termo

relacionando-o à afirmação de Montanari (2008) quando diz que “a tradição não passa de uma 21

Preparada com goma de mandioca, possui formato redondo, grossa em espessura e misturada com coco ralado.

Vinculada às(aos) tapioqueiras(os) que ficavam na Avenida Barão de Aquiraz.

Page 35: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

35

invenção bem sucedida” (p.27). E, de acordo com Lima (2007), a tapioca, a partir do referido

espaço, passou a posição de comida tradicional por conta da ação legitimadora do poder público.

Ou seja, antes do ano de 2002, não havia preocupação em descrevê-la como tal. E, segundo

notícias de jornais e conversas informais com os sujeitos desta pesquisa, elementos como a

história dos índios Potiguara, no Bairro Paupina, e a transmissão do saber culinário, passado de

geração a geração, pesam na constituição dessa tapioca como “tradicional”. Consequentemente,

este termo foi estabelecido para se diferenciar do outro modelo ensinado: tapioca fina com

recheio.

Em relação à criatividade, diante de um cenário em que muitos países têm buscado

alternativas para alavancar suas economias, além das indústrias tradicionais, os fatores relativos

aos conhecimentos criativos têm se destacado. Ou seja, o capital intelectual é colocado como

principal matéria-prima do século XXI, haja vista as formulações de políticas públicas nesta

nova perspectiva: que incentivam principalmente o empreendedorismo e a promoção de bens e

serviços culturais (FERNANDEZ e SERRA, 2012). Desta maneira, o Centro das

Tapioqueiras pode ser incluído neste contexto, pois, como um produto turístico que tem como

foco tornar as tapioqueiras(os) qualificadas(os) em seus serviços e empreendedores, a

criatividade surge como possibilidade para ser utilizada como elemento decisivo na produção e

na comercialização de tapiocas.

Apesar de vários aspectos padronizados no CETARME, cada boxe tem suas

especificidades, tais como: as cores dos utensílios, o formato do cardápio, a organização do

estabelecimento, a vestimenta dos funcionários, a origem dos produtos alimentícios utilizados, o

modo como servem os clientes e os diferentes tipos de tapiocas. Dentre os boxes que estou

investigando, os sabores das tapiocas, tanto tradicionais como finas, têm suas particularidades –

seca ou mole, pouco sal ou muito sal, muito coco ou pouco coco, quente ou fria – e a

apresentação da comida sempre é diferente, nunca fica idêntico. Talvez, ao invés de criativo, eu

pudesse falar em inovador – aquilo que já existe e é fabricado de outra maneira. Por exemplo, o

caso da tapioca fina com recheio de nutella com morango, pensada pelo permissionário R., e a

tapioca da Xuxa feita pela Tapioqueira N. poderiam se enquadrar neste ponto de vista: ambas

foram formuladas por eles, mantendo o mesmo formato e preparo da tapioca, mudando apenas o

recheio, mas tendo como objetivo agradar os clientes. Entretanto, sempre que algum cliente pede

algo que não está no cardápio, essas(es) tapioqueiras(os) procuram fazer a vontade dele,

Page 36: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

36

facilitando, assim, o surgimento de uma nova maneira de se fazer a própria tapioca: outro

formato, nova maneira de molhar a goma e de armazená-la etc. Sendo assim, o vocábulo

“criatividade” norteou meu olhar em campo.

Por fim, saliento que as aspas adotadas no título deste trabalho revelam a

complexidade estabelecida por uma aproximação entre o universo da gastronomia (como

conhecimento estruturado e hierarquicamente institucionalizado) e aquele representado pela

culinária (prática cumulativa intergeracional), sobretudo quando assentada sobre uma base

tradicional popular e étnica, a exemplo da preparação da tapioca. Assim, o CETARME ilustra

exemplarmente a tensão que marca a relação que se estabelece entre diferentes universos –

aquele das chamadas culturas popular e elaborada, da culinária e da gastronomia, dos

sentimentos de perda e dos ganhos obtidos pela inserção em outro patamar de produção –

enquanto as(os) tapioqueiras(os) seguem modelando, diariamente, um conhecimento aprendido

com lastro na tradição a partir de novas sociabilidades, lógicas mercantis e gostos alimentares no

que concerne à preparação e à oferta das tapiocas.

Page 37: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

37

3 O CENTRO DAS TAPIOQUEIRAS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO

ALIMENTAR

Sentado no boxe Tapiocaria da Xuxa, chamei a atendente: “por favor, quero uma

tapioca tradicional com chocolate e, para beber, coca-cola”. Ao receber meu pedido, refleti:

como a tapioca chegou ao ponto de ser misturada ao chocolate, tendo refrigerante como

acompanhamento?

Meu pedido não se trata de algo ocasional ou mesmo inusitado, ao contrário,

encontra- se no âmbito de um campo de possíveis aberto por um movimento planetário de

transformação social, cultural, político, econômico, geográfico e temporal. Esse movimento

pode ser denominado de “Globalização”. Talvez seja sensato começar explicitando este

conceito, já que interliga tudo aquilo que será trabalhado ao longo deste texto.

Não se fala aqui de fenômeno recente, mas que progride conjuntamente com o

processo de modernização (HALL, 2006; MORIN, 2001). Deste modo, antes de apontar sobre

qual ponto de vista assento esse termo, a retomada de sua marcha histórica, no mundo ocidental,

é significativa para alcançar sua compreensão da maneira como eu a abordo. A retomada pode,

portanto, ser dividida em duas etapas: a partir do século XVI, com a expansão marítima e a

conquista das Américas; e sua intensificação no período pós-Segunda Guerra Mundial, ou seja,

até os dias de hoje.

Os contatos entre europeus e “povos nativos”, desde o período colonial, além de

terem evidenciado processos de dominação daqueles sobre estes, ocasionaram também

contínuas trocas culturais. A comercialização de ingredientes e de alimentos advindos da Índia,

das nações africanas e dos grupos ameríndios nas sociedades europeias, assim como aquilo que

compunha a alimentação destas entre aquelas, caracteriza bem o início da maior interação entre

os povos do mundo.

Exemplo desse estágio pode ser encontrado em uma passagem da obra História da

Alimentação no Brasil (CASCUDO, 2011). Nela, o autor toma a carta de Pero Vaz de Caminha,

datada de 1500, e faz uma síntese do contato de dois indígenas com a “ementa portuguesa”22

:

22

As aspas são para frisar que aquilo que está exposto na obra como o repertório alimentar português, entre os

séculos XVI e XVIII, foi selecionado pelo autor tendo em vista suas preferências metodológicas e os materiais

coletados em sua pesquisa. Portanto, não abrange a totalidade da cultura alimentar portuguesa do referido período.

Page 38: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

38

“Deram-lhes ali de comer; pão e peixe cozido, confeito, fartéis, mel e figos assados.

Não quiseram comer quase nada daquilo; se alguma coisa provaram, logo a lançavam

fora. [...]. Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram

nada, nem quiseram mais. [...]. Pão de trigo, vinho de uvas, massa d’ovos, taça de

vidro, as condições do peixe cozido, eram revelações. O mel seria de abelhas. Ou

açúcar da Madeira”. (Idem, p. 73-74)

Essa primeira aproximação com comidas e bebidas diferentes daquelas que eles

aprenderam a gostar remete ao início das permutas planetárias que avançaram desde então.

Ilustra rejeições decorrentes da dureza valorativa da cultura alimentar apreendida que, aos

poucos, vai sendo amolecida em virtude das constantes relações estabelecidas entre nativos e

europeus.

Já o segundo período é definido por Morin (2001) como o século da globalização,

que tem sido fortemente vivenciado pelas pessoas em todo o mundo. Alguns fatos históricos

podem facilitar a percepção disso: os avanços nos transportes, nos meios de comunicação de

massa, nas ciências e nas tecnologias; no número crescente de pessoas viajando para fora de

suas regiões (turismo internacional); os acordos políticos sendo feitos, levando em consideração

consequências mundiais; e a ampliação das trocas econômicas entre diferentes países. Isto

fortalece a seguinte asserção: isso conduz à “interdependência cada vez maior entre diferentes

povos, regiões e países do mundo à medida que as relações sociais e econômicas se estendem ao

redor do mundo” (GIDDENS, 1991, p.795).

Stuart Hall (2006) valida essa afirmação, pois a encara como um processo que gera

mudanças em escala planetária. Ultrapassa fronteiras nacionais e locais, interliga as pessoas, as

coletividades e instituições em uma nova realidade, produzindo-se, assim, uma nova

combinação de espaço-tempo e de economia, cultura política e de relações sociais.

A globalização, sendo um fenômeno complexo, justamente por suscitar grande

controvérsia, será por nós entendida como a intensificação das relações sociais em escala

mundial (GIDDENS, 1991), ou mesmo a “unificação mundial” (MORIN, 2001). As duas

perspectivas se casam na medida em que tratam da estreiteza dos laços entre as pessoas e das

trocas materiais e imateriais entre as sociedades.

Desde o final dos anos de 1970 até os dias de hoje, essa integração global, tanto em

ritmo como em impacto, passou a ser muito mais intensiva e ininterrupta. Conectamo-nos, via

internet, uns com os outros e trocamos informações e experiências instantaneamente, podemos

Page 39: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

39

viajar para outros países com mais acessibilidade e rapidez, produzimos, consumimos e

comercializamos produtos alimentícios em escala mundial, isto é, unificamo-nos ao mesmo

tempo em que compartilhamos nossas particularidades.

Maior interação entre sujeitos de diferentes sociedades, ao longo desses anos,

possibilitou o contato com diversas culturas e com tudo aquilo que eles possuem. Nos

supermercados, podemos encontrar grande variedade de frutas, de legumes, de verduras, de

pães, de queijos, de carnes, de vinhos, de cervejas, de sucos etc., o que era muito diferente há 40

anos. Muitos desses produtos são desterritorializados, sendo vendidos longe do local onde foram

produzidos: é o caso da goma de mandioca, comercializada fora do Brasil.

As grandes empresas multinacionais têm se mostrado como os principais atores

dessa movimentação. Sendo assim,

nunca, no âmbito da história, um comedor teve acesso a tal diversidade alimentar como

agora no Ocidente. Os progressos dos agronegócios no nível das técnicas de

conservação, de acondicionamento, de transporte, reduzem consideravelmente a

pressão do nicho ecológico. Agora, os mercados não racionam mais em âmbito

nacional. As empresas agroalimentares transnacionais distribuem em todo o planeta

carnes e peixes congelados, conservas enlatadas, queijos, Coca-Cola, ketchup,

hambúrguer, pizza... (POULAIN, 2013, p.27)

Essa variedade de alimentos, ao mesmo tempo em que se expande, é acompanhada

por um processo de homogeneização. Inicia-se com a higienização – contribuindo com a

diminuição de doenças – passando pelos elementos sinestésicos – cor, sabor, aroma e textura –

até chegar aos significados ligados às comidas e às maneiras de comer. Essa similitude tem

como finalidade o consumo daquilo que é produzido.

A rede de restaurantes, de estilo fastfood, McDonald’s, é um exemplo bem concreto

desse modelo de empresa que investe globalmente em um tipo de alimentação homogênea. Seus

hambúrgueres, com formato, sabor e ingredientes, são preparados de forma praticamente

idêntica para serem consumidos em qualquer um dos seus estabelecimentos, seja no Brasil ou no

Japão, come-se o “mesmo”23

Mc Lanche Feliz.

Outro agente importante nessa padronização alimentar é o turismo internacional.

Quando as pessoas viajam para lugares nunca antes visitados, um dos meios de conhecê-los é

23

As aspas evidenciam que há diferenças quanto à preparação dessa comida, a depender do contexto sociocultural.

Page 40: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

40

por meio das comidas regionais. Deste modo, a fim de tornar essas viagens mais atrativas, ações

são empreendidas no intuito de adaptar essas comidas locais a um gosto que seja reconhecido e

aceito por sujeitos dos mais diferentes lugares do mundo. É justamente o que ocorreu no Centro

das Tapioqueiras de Messejana: cursos profissionalizantes foram ministrados com o escopo de

modelar a produção e a venda de tapiocas aos gostos alimentares das mais diferentes pessoas.

Isto pode ser percebido nos diferentes recheios e nas maneiras de apresentar a tapioca no prato.

É preciso salientar, no entanto, que esse processo de homogeneização alimentar não

se sucede sem os devidos ajustes culturais. Tomo o caso da inserção do McDonald’s, no

território francês, nos anos de 1970:

O próprio McDonald’s, que aparece como uma caricatura da homogeneização, tem de

colocar em prática estratégias de microdiversificação para adaptar-se aos gostos dos

mercados locais. A estratégia de partida dessa cadeia de restaurantes rápidos, de

inspiração ‘marketing da oferta’, considerou sua oferta – ou seja, sua gama de produtos

que resultou de uma organização bastante sofisticada –, como imutável, estabelecendo

como objetivo próprio eliminar os obstáculos para sua aceitação ao apostar na

comunicação. Entretanto, em face da resistência dos mercados, pouco a pouco, uma

série de modificações da oferta foi introduzida para adaptá-la aos hábitos locais [...].

(POULAIN, 2013, p.29).

É preciso ainda destacar o fato de que a introdução de um novo modelo alimentar

depende dos elementos socioculturais de determinado lugar. Na França, nesse referido período,

houve uma resistência ao tipo de cardápio promovido por essa empresa. Em sua história, mesmo

antes da Revolução de 1879, esse país manteve uma ligação estreita com a alimentação. Sua

gastronomia faz parte da construção identitária do seu povo. Sendo assim, houve inclusão de

cerveja e do tipo carne Royal ao menu do McDonald’s francês. No caso brasileiro, o Centro das

Tapioqueiras de Messejana pode ser tomado como um possível exemplo: a “resistência” não foi

em relação à incorporação de novos ingredientes à tapioca, mas nas transformações das práticas

culinárias das(os) tapioqueiras(os).

Compreender as particularidades de cada lugar permite um olhar mais atencioso

diante do seguinte questionamento: a promoção da diversidade e da homogeneização alimentar

faz com que as especificidades regionais/locais desapareçam? Se for este o caso, os

conhecimentos e práticas tradicionais, construídos e aprendidos pelas(os) tapioqueiras(os) das

Antigas Tapioqueiras, “sumiriam” após os cursos profissionalizantes.

Page 41: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

41

Entendo que os hábitos alimentares, por mais maleáveis que possam ser, tendo em

vista que eles são fruto de trocas entre culturas alimentares, possuem uma estrutura rígida

(CASCUDO, 2011), isto é, os significados e as práticas alimentares não são facilmente

“extintos”. Assim, as trocas e a homogeneização dos elementos culturais, presencial e

virtualmente, não promovem o aniquilamento destes em um curto espaço de tempo. E, durante

esse período de transformações, podem agenciar a valorização e o fortalecimento das

particularidades regionais (POULAIN, 2013).

Diante disso, o CETARME não pôs fim aos saberes concernentes à produção e à

venda das tapiocas relacionados às “Antigas Tapioqueiras”. Ao contrário, ocorre tanto o

reconhecimento dessa comida como pertencente à cultura alimentar cearense e brasileira como a

invenção de um novo modelo de cozinha feita pelas(os) tapioqueiras(os) da Paupina, fruto do

entrecruzamento de conhecimento e práticas culinárias.

A partir daqui, para melhor compreender como está se desenrolando concretamente

o processo de globalização, é preciso pôr em evidência a relação entre o “global” e o “local”. E

para tratar disto, uso o termo “glocalização” (GIDDENS, 2009). Este neologismo se refere à

“mistura de processos globalizantes e contextos locais que leva muitas vezes ao fortalecimento,

ao invés da diminuição, de culturas locais e regionais” (idem, p.795). Por exemplo, comidas

relacionadas a determinado lugar são postas em destaque a fim de “combater”, ou mesmo

“associar”, a dinâmica da padronização dos gostos imposta pelas indústrias alimentícias. Logo, o

CETARME, longe de ser símbolo de aculturação, originou um modelo de cocção e serviço de

tapiocas que possibilita a integração de conhecimentos locais e internacionais.

Mesmo presente nas culturas alimentares de muitos brasileiros, desde os tempos

coloniais, existem os que não apreciam a tapioca. Logo, se dentro do próprio lugar de origem,

ela pode ser rejeitada, que dirá das pessoas que não a possuem em seu repertório alimentar e

nem sequer a conhecem. Portanto, para torná-la culturalmente acessível, modificou-se tanto seu

modo de preparação quanto a maneira de servi-la. Então, a ideia de recheá-la pode ser

considerada como o principal fator para pensar o CETARME como uma via de acesso a novas

possibilidades da “gastronomia regional” cearense.

O CETARME desponta aqui como um espaço concebido e construído em um

contexto de intensa globalização econômica, cultural, social e política. É um dos equipamentos

do Governo do Estado do Ceará para atrair turistas estrangeiros para as praias cearenses. Desse

Page 42: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

42

modo, tratou-se de aproximar os turistas da prática de consumo das tapiocas recheadas e de

habituar as(os) tapioqueiras(os) com outro modo de preparar e de comercializar esta comida,

familiarizando, assim, diferentes povos com aquilo que lhes era “exótico”, originalmente

estranho às culturas em questão.

A globalização parece não se efetivar como uma tendência inexorável que levaria à

destruição de práticas locais (HALL, 2006). Porém, no que concerne ao objeto deste estudo, ela

produziu novos significados e modos de se preparar a tapioca e também apontou certa perda de

autonomia do gerenciamento dos sentidos (BAUMAN, 1999). Isto é, as ações e os significados

dos sujeitos sociais não são mais governados exclusivamente por questões de determinado

espaço. Assim, além das tensões estabelecidas entre as práticas e os conhecimentos culinários de

outrora, bem como do conteúdo aprendido nos cursos profissionalizantes, acontece

subordinação, em grande medida, aos ditames do mercado de serviço internacional. Exemplos

disto: a passagem do forno a lenha para a chapa a gás; inovações no preparo e no serviço das

tapiocas a fim de dar praticidade; alterações em muitos boxes por conta das necessidades

cotidianas; e introdução de outras comidas – sanduíches, cuscuz, pratos regionais, doces,

salgados etc.

Em virtude dessa interdependência em relação ao mercado turístico mundial, aos

conhecimentos da Gastronomia, aos meios de comunicação de massa, à indústria alimentícia e

às decisões políticas, é possível apontar que o Centro das Tapioqueiras simboliza um processo

de mestiçagem cultural24

. Isso significa dizer que as mudanças ocorridas ao longo de 15 anos,

nas atividades culinárias de muitas(os) tapioqueiras(os) da Paupina, têm resultado “na criação de

novos modelos originais” (POULAIN, 2013, p. 42), que não se opõem frontalmente ao saber

tradicional-popular. Veremos isso mais à frente.

3.1 GASTRONOMIA OU CULINÁRIA: É PRECISO ENCAIXAR O CETARME?

O Centro das Tapioqueiras (C.T.) é caracterizado, de acordo com a Secretaria de

Turismo do Ceará (SETUR), como “polo gastronômico” e uma das referências da “gastronomia

regional” desse Estado. Diante disso, surgem os seguintes questionamentos: Por qual motivo a

24

Refere-se à noção créolité réunionnaise utilizada por Jean Pierre Poulain (2013).

Page 43: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

43

palavra “gastronomia” é empregada? É pelo fato de estar relacionada a aspectos da cozinha

erudita francesa? Por que ligá-la à dimensão internacional? Por que não associá-la ao termo

“culinária”?

Com a finalidade de tratar de forma mais profunda esses questionamentos, este

tópico apresenta as seguintes etapas: a) explanação do termo “gastronomia” atrelado ao contexto

francês25

; b) relação desta palavra com a globalização e o turismo internacional; e c) nascimento

de “novas cozinhas”, “novas gastronomias”.

O surgimento da palavra "gastronomia" data do século XVII no contexto europeu e,

especificamente, na sociedade francesa. Desde seu aparecimento, ela está vinculada aos escritos

de juristas e filósofos na tentativa de estabelecer as normas do "comedor". Dentre esses sujeitos,

Brillat-Savarin é destacado como o primeiro a encarar a alimentação para além dos seus

benefícios fisiológicos.

Para esse jurista francês, a Gastronomia é uma ciência da alimentação, mas que se

une aos elementos sinestésicos e hedonistas da vida humana (SAVARIN, 2010). Com isso, ele

enfatiza que o ato de alimentar-se transcende o nutricional e põe em destaque os desejos e a

imaginação. E, além disso, compara a racionalidade e a sistematização científica com o estado

de prazer e de contemplação característico das artes (NASCIMENTO, 2007).

A história do vocábulo tem acompanhado o desenvolvimento da sociedade francesa,

que vem mudando desde os tempos da aristocracia, da revolução de 1789, da industrialização,

da modernização e da globalização. Essa cozinha tem participado ativamente na construção e

resistência da identidade cultural desse país. Por conseguinte, questões de mudança e de

inovação são abordadas com cautela e envoltas em intenso debate. Posso citar a tensão entre

defensores das cozinhas de terroir e das cozinhas internacionais no final da década de 1990:

Os primeiros se colocam na defesa da ‘arte culinária francesa’, considerada o objeto

dos ataques da indústria agroalimentícia, controlada pelas grandes empresas

internacionais de origem americana, e censuram os segundos por sacrificar o

patrimônio gastronômico francês, tanto clássico como regional. Por detrás da

mundialização da alimentação, aparece um medo de neocolonialismo americano. Os

segundos lembram que a cozinha francesa foi construída a partir de influências

múltiplas e que não deixou de fazer empréstimos de produtos ou de técnicas ao longo

de toda sua história, sem, contudo, perder sua identidade (POULAIN, 2013, p.36).

25

Esta escolha está imbricada com influência da Gastronomia francesa em âmbito mundial, principalmente depois

dos anos de 1980 (BUENO, 2013).

Page 44: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

44

Este debate aconteceu em um lugar onde a alimentação não é vinculada somente à

saúde, mas também à política, à cultura, além de ser encarada como construto de relações

sociais. Demonstra a relevância do assunto frente a outras questões da vida em sociedade.

Em se tratando da "gastronomia brasileira", houve influência dos colonizadores

portugueses, escravos africanos e nativos (CASCUDO, 2011; DÓRIA, 2014; NASCIMENTO,

2007). Os hábitos alimentares destas três etnias deram origem à cultura alimentar do Brasil.

Porém, é preciso fazer ressalvas quanto a esta formulação. Aquilo que foi compartilhado ou

imposto pelos colonizadores, o que os escravos negros conseguiram trazer (possivelmente

somente seus conhecimentos) e comungado pelos ameríndios não configuravam tudo aquilo que

compunha as culturas alimentares de cada um desses povos. Elas são fruto de miscigenações

culturais que, ao longo dos séculos, outras nações também contribuíram.

Dentre estas, a França tem atuado sobre a configuração das cozinhas das elites

brasileiras há bastante tempo (NASCIMENTO, 2007). Durante o século XX, as transformações

ocorridas na gastronomia francesa – a nouvelle cuisine (reformulação dos procedimentos

culinários), fusion cuisine (mistura de vários modelos) e cuisine de terroir (valorização dos

produtos e das receitas regionais) – têm impactado, seja em dimensão macro ou micro, nas

práticas e nos significados alimentares dos brasileiros, sobretudo a última modificação.

A utilização dos insumos e das receitas locais foi adaptada às técnicas da cozinha

erudita, requintada. Porém, isso não aconteceu de modo espontâneo. Sua causa se dá pelo

contraponto feito à globalização e à industrialização dos alimentos, representando, assim, um

risco à identidade alimentar dos franceses. A saída foi enfeitar e tornar atrativos os produtos

regionais (POULAIN, 2013). E, nesta situação, o turismo teve um papel atuante:

No início dos anos 1980, no centro do que se denominava na época nouvelle cuisine – a

nova cozinha –, o movimento toma amplitude e se expande. Sob o impulso de guias

como Gault et Millau, que concede lauriers du terroir – honrarias regionais, ou o

Champérard, a quem se deve a expressão nouvelle cuisine de terroir – nova cozinha

regional, os grandes cozinheiros profissionais falam abertamente, com ardor, sobre o

tema da 'cozinha regional'. (idem, p.31)

A chegada dessa cuisine de terroir no Brasil, por meio de chefs franceses, fez-se

pela rede de hotelaria. O objetivo foi de atender tanto as necessidades do consumidor interno,

quanto àquelas do turista vindo do exterior – ansioso pela sofisticação alimentar (BUENO,

Page 45: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

45

2013). Entretanto, isto se configurava em determinada classe social:

O aumento do poder aquisitivo da classe média brasileira e a popularização das viagens

internacionais foram responsáveis por um novo perfil de consumidor – mais culto,

informado e aberto para experiências inovadoras –, que respaldou o desenvolvimento

de uma cultura gastronômica no país alimentada pelas tradições locais. (Idem, p.11)

Seguindo o que foi dito, uma das formas atuais de entender o que seja “gastronomia”

é verificar sua posição no âmbito alimentar. Sendo assim:

Distingamos em primeiro lugar alimentação e gastronomia. A gastronomia é uma

estetização da cozinha e das maneiras à mesa, uma virada hedonista dos fins biológicos

da alimentação, esta atividade muito amplamente cercada por regras sociais e no

exercício da qual somos condenados várias vezes por dia. Se todas as culturas

apresentam formas de estetização da alimentação, raras são as que a colocaram num

grau de sofisticação atingido pela gastronomia francesa. (POULAIN, 2013, p.209)

Uma diferenciação precisa ser analisada: entre “gastronomia”, “culinária” e

“cozinha”. A distinção é sutil: a primeira consiste na combinação de vários elementos, tais como

a sofisticação, a criatividade, a arte, a preocupação com a qualidade dos produtos; a segunda é

reportada à praticidade, à técnica do ato de cozinhar; e a terceira é utilizada para se referir a

ambas.

Este último é dividido por Montanari (2004) entre cozinha oral e cozinha escrita. Na

primeira, os saberes e as técnicas de preparação das comidas são aprendidos e ensinados por

meio de socializações informais. Ou seja, é por meio da fala e da observação das pessoas mais

velhas para as mais jovens que esses conhecimentos são partilhados. Já na segunda, tudo é

registrado em papel de maneira mais sistemática e racional. Pode ser encontrada em livros de

receitas. Esta característica possibilita sua perpetuação ao longo da história em detrimento

daquela – dependente das pessoas que a praticam.

Considerando o contexto desta pesquisa, para a SETUR-CE, os três termos são

utilizados para exprimir a mesma ideia: as comidas regionais/internacionais e as técnicas para a

preparação destas. Em documento recente, esse órgão afirma a respeito da capital cearense:

Fortaleza é a porta de entrada para todas as delícias que o Ceará tem a oferecer. A

pedida é mesclar ingredientes e criar pratos simplesmente ímpares que variam da

gastronomia do sertão à culinária tipicamente praiana, marcada por peixes e frutos do

Page 46: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

46

mar. Nas noites de quinta-feira, comer caranguejo na Praia do Futuro é o programa

tradicional dos fortalezenses que o turista adotou. No bairro da Varjota, Polo

Gastronômico da cidade, a culinária ganha uma mistura de sabores típicos e

internacionais em restaurantes bem cearenses que oferecem peixe, lagosta e camarão

em combinações irresistíveis. Há também opções de pratos japoneses, portugueses,

árabes, chineses, franceses e italianos, como as pizzas, que ganham cobertura de carne-

de-sol e caranguejo. Como sobremesa, nada melhor que um delicioso sorvete feito de

frutas regionais como caju, seriguela, cajá, graviola e sapoti servidos nas sorveterias da

Avenida Beira Mar. (SETUR, 2015)

Em uma mesma frase, utiliza-se “gastronomia” para aludir às comidas da região

sertaneja e “culinária” para falar de pratos das localidades situadas no litoral. Parece não haver

uma distinção clara da parte dos agentes políticos no emprego desses termos que povoam o texto

oficial, como as palavras genéricas que fazem referência às comidas consideradas regionais e

tradicionais cearenses.

Como objeto de estudo sociológico, embora o Centro das Tapioqueiras seja

associado ao termo gastronomia, o caráter problemático do emprego deste termo exigiu a adoção

de aspas, pois, por um lado, ele é acionado de forma imprecisa pelos agentes públicos; e por

outro, não é sequer empregado pelas pessoas pesquisadas no que diz respeito à designação do

próprio trabalho.

A partir deste viés, apesar das(os) tapioqueiras(os) serem constantemente

influenciadas(os) a se adaptarem aos padrões de produção e de serviço do turismo internacional,

elas(eles) – as(os) mais ligados à história das “antigas tapioqueiras” – parecem ainda se valer

das “velhas” maneiras de comprar, preparar e servir as tapiocas. Elas(eles) reconhecem não ser

mais como anteriormente, e sabem que outro modelo de “cozinha” tem sido elaborado.

Isto advém de mudanças de ordem prática e simbólica. Destaco o ato de prezar pela

aparência e singularidade da tapioca. Cada um dos boxes apresenta, em seu cardápio, uma ou

mais tapiocas consideradas particulares. Levando em conta algumas diferenças no preparo desta

comida, de boxe para boxe, as(os) tapioqueiras(os) parecem se apropriar de novas informações

para produzir algo alternativo, podendo estas virem de diversos meios: televisão, revistas,

conversas, cursos, internet etc.

No que concerne ao objeto deste estudo, o uso do vocábulo gastronomia passar a

expressar, a partir deste momento, uma mesclagem entre a “cozinha oral” das tapioqueiras e a

“cozinha escrita” advinda dos cursos de qualificação.

Page 47: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

47

3.2 CRIATIVIDADE E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO: AS POSSIBILIDADES

INOVADORAS NO CETARME

Na virada do século XX para o XXI, a indústria e a agricultura, nos países

desenvolvidos, mostraram-se não ser mais a pedra angular de suas economias. A intensa

globalização da economia, os avanços científicos e tecnológicos, a escolarização em massa, a

melhoria na qualidade de vida (principalmente financeira), o maior desenvolvimento nos

transportes e nos meios de comunicação, tudo sendo muito intenso e contínuo desde 1980

(DEMASI, 2003), inclinaram esses países para a valorização dos aspectos intangíveis

provenientes da mente humana (GIDDENS, 2012).

O conhecimento e suas potencialidades criativas têm ganhado relevância frente aos

trabalhos que usam somente da força dos braços. O mundo contemporâneo tem exigido

flexibilidade e adaptabilidade às rápidas mudanças, geralmente causadas pelas necessidades do

mercado consumidor. Sendo assim, as ideias têm agregado valor econômico às mercadorias e

gerado novos bens e formas de serviço.

O economista Richard Florida (2011) aponta esse cenário sendo constituído, nos

Estados Unidos da América, já na década de 1990. De acordo com ele, determinados atores

sociais, ligados às classes média e alta, ao utilizarem a criatividade como principal meio de

trabalho, passaram a contribuir gradativamente e mais fortemente com a economia

estadunidense. Denominada de “classe criativa”, esta tem como principais profissionais: os

cientistas, os engenheiros, os arquitetos, os educadores, os artistas e aqueles que trabalham na

solução de problemas complexos (negócios, leis e saúde).

A criatividade passou a ganhar relevância nas “sociedades pós-industriais”. Desta

sorte,

Valores como a estética, a subjetividade, a feminilidade, a vitalidade, a flexibilidade, a

descentralização e a motivação ganharam terreno em relação à racionalidade, à

padronização, à produção em série, à massificação, ao controle, ao gigantismo e à

centralização, aspectos privilegiados ao longo de todo o período precedente da

sociedade industrial. (DEMASI, 2003, p.14)

Esses aspectos se entrecruzam e dão forma a novas maneiras de trabalho, de

produção, de distribuição e de consumo de produtos advindos da junção entre elementos

Page 48: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

48

provenientes da era industrial e pós-industrial. Um exemplo é a preocupação estética com a

preparação das comidas industrializadas ou não. Isto é evidente tanto nas embalagens quanto na

própria comida.

Quando se trata de preparações realizadas em restaurantes, em estabelecimentos

especializados no serviço alimentar, a questão estética normalmente é colocada em relevo.

Pontos como o “belo” e o “feio” são postos em destaque para atrair os consumidores.

No que diz respeito ao presente estudo, a valorização daquilo que é intangível está

inculcada no próprio ato de preparação das tapiocas. Segundo o tapioqueiro R., o cliente come

primeiro com os olhos, depois ele come a tapioca. Quer dizer, o ato de comer é precedido pela

avaliação visual. Portanto, regularmente a clientela do CETARME concebe este tipo de

consumo de forma depurada, pois leva em consideração a aparência da comida como indicativo

de um bom prato.

A partir disso, penso na gastronomia francesa, mais especificamente no

embelezamento dos pratos – característica que a acompanha desde sua formação. Contudo,

durante as duas últimas décadas do século XX, dentre as inúmeras influências exteriores por

conta de uma intensa internacionalização da alimentação, a estética japonesa kaiseki26

modificou

o modo francês de montagem dos pratos. Isso significa dizer que o aspecto simbólico é

fundamental na alimentação humana, e muito mais em um mundo que intensifica, a cada dia, as

trocas culturais entre diferentes sociedades.

As comidas provenientes da gastronomia têm, em sua constituição, a “originalidade”

como um elemento característico. Existe a preocupação com a introdução de novos insumos,

modos de preparo, equipamentos, utensílios, e o uso de temperos com a finalidade de apresentar

originalidade, tanto em sabor quanto em aparência.

Disponibilizar recursos e informações possibilita que isso aconteça. Porém, é

necessário que as pessoas tenham uma “disposição cultural” (DE MASI, 2003) para reconhecer,

pôr em prática aquilo que aprenderam e saber usar o que têm em mãos. Para tanto, é preciso um

processo de aprendizagem capaz de incutir valores e atitudes destinadas a formular e a converter

novas ideias em mercadorias. A respeito disso, Flórida (2011) fala em “ethos criativo”:

Todos os membros da classe criativa – sejam eles artistas ou engenheiros, músicos ou

cientistas da computação – compartilham o mesmo ethos criativo, que valoriza a

26

A estética alimentar kaiseki preza pela meticulosidade e bela apresentação dos pratos.

Page 49: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

49

criatividade, a individualidade, as diferenças e o mérito. Para esses indivíduos, todos os

aspectos e todas as manifestações da criatividade – tecnológicas, culturais e

econômicas – estão interligados e são inseparáveis. (idem, p.8)

Embora as considerações de Flórida almejem uma formulação universalizante, a

descrição do modus operandi, que conduz os comportamentos e os pensamentos em direção a

manifestações criativas, constitui-se como um caso particular porque se refere ao contexto

estadunidense estudado por ele. Contudo, comparativamente, tais considerações dão suporte na

tentativa de compreender de que modo específico as(os) tapioqueiras(os) do CETARME

expressam seus conhecimentos, por quais caminhos acumularam o saber que foi sendo

construído e como este se converte em práticas nos dias de hoje.

Sendo assim, no processo de constituição do CETARME, a finalidade de adaptar as

práticas e os saberes culinários e gerenciais das(os) tapioqueiras(os), de cada boxe, ao modelo

do mercado turístico internacional levou órgãos privados e públicos a investirem em cursos

profissionalizantes para que esses sujeitos pudessem se adequar a outros modelos de

atendimento, de trabalho cooperado, de culinária, de gestão do próprio negócio, de higiene e de

manipulação dos alimentos. Tais agentes, públicos e privados, apresentaram novos materiais e

novos conteúdos com o objetivo de moldar este ofício a determinado público consumidor: o

turista estrangeiro. Em suma, era preciso promover uma transformação no próprio estilo de vida

e de trabalho dessas pessoas.

Tem-se ensinado às(aos) permissionárias(os) outro modo de cocção das tapiocas

tradicionais:

Page 50: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

50

Figura 1: Modelo para preparação da Tapioca Tradicional

(Fonte: autor, 2016)

Este tipo de preparação se assemelha àquela já praticada pelas(os) tapioqueiras(os),

porém, de maneira sistemática, objetiva e racionalizada. Calcula-se a quantidade de goma de

mandioca, de recheio, quais recursos utilizar (fonte de calor) e a porção de sal necessária à

preparação de cada tapioca. O preço final da tapioca, no cardápio, é influenciado tanto pelo

valor de cada insumo quanto pelo modo de preparo.

Em relação ao enfoque da pesquisa, é preciso lembrar que esta pretende apreender a

dinâmica entre os diversos sujeitos que concorrem para que o Centro das Tapioqueiras exista.

Desta feita, o que é colocado em destaque no processo de criação/inovação na produção e na

comercialização das tapiocas são as mútuas influências dos vários atores que participam do

CETARME – tapioqueiras(os)/permissionárias(os); chapistas; atendentes; cozinheiras; pessoa

responsável pelo caixa; faxineiros; vigilantes; representantes comerciais; clientes; familiares;

funcionários do governo do Estado do Ceará e de empresas privadas – além dos fatores externos,

como economia, política, cultura, sociedade, meio ambiente, entre outros. Portanto, é na

apreensão de elementos coletivos que este trabalho busca apreender a valorização de processos

criativos como novidade no contexto analisado27

.

27

Essa posição metodológica parte das leituras de De Masi (2003), “Criatividade e grupos criativos”, e Howard

Becker (2010), “Mundos da Arte”.

Page 51: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

51

O vocábulo criatividade é geralmente empregado para designar a feitura de algo

“original”, seja um objeto, uma técnica, uma estratégia ou um regimento interno. De todo modo,

os momentos de criação ou elaboração inovadora fizeram-se presentes ao longo de toda a

história da humanidade. E uma das formas de percebermos isto é na maneira como os seres

sociais lidam com a natureza a partir de suas culturas – estas mesmas podem ser consideradas

como criações humanas. Montanari (2004) exemplifica essa ação criadora com a agricultura: “A

perspectiva mental dos antigos colocou a agricultura como o momento de ruptura e inovação,

como o salto decisivo que constrói o homem “civil”, separando-o da natureza, ou seja, do

mundo dos animais e dos “homens selvagens” [...]” (idem, p.22).

O surgimento de novas técnicas de caça, de pesca e de plantação revolucionou a

maneira como tais sujeitos viviam, além de contribuir para o desenvolvimento dos grupos

sociais posteriores. Isso demonstra que o ato “criativo” é subjacente à história da humanidade.

Outro exemplo é a fabricação do pão:

Na região mediterrânea – a área do trigo –, é o pão que desenvolve essa fundamental

função simbólica [passagem do estado de natureza para a cultura], além de nutricional:

o pão não existe na natureza, e somente os homens sabem fazê-lo, tendo elaborado uma

sofisticada tecnologia que prevê (desde o cultivo do grão até a preparação do produto

final) uma série de operações complexas, fruto de longas experiências e reflexões.

(Idem, p.26)

E, apesar de o historiador italiano delegar a uma mulher específica a exclusividade

da criação do pão, é razoável considerar que sua ação somente foi possível graças ao

intercruzamento de vários outros atores: os plantadores, colhedores e distribuidores de trigo e da

cevada (provavelmente uma só pessoa fizesse estas três funções); os fabricantes dos utensílios

necessários para a preparação dessa comida; e a pessoa que lhe ensinara as técnicas e os

conhecimentos culinários. Sendo assim, tratou-se mais de uma criação coletiva do que

propriamente de uma única pessoa. Isso não quer dizer que inexistam as “genialidades”

individuais, porém, somente o trabalho de síntese feito por eles não seria suficiente para explicar

a perpetuação da novidade, sua difusão e sucessivas reconfigurações no tempo.

No caso da tapioca, ocorre um processo semelhante. Com base nos escritos

históricos acerca dessa comida (CASCUDO, 2011; DÓRIA, 2014), ela está incluída nas culturas

alimentares de quase todos os povos nativos do Brasil. No entanto, saber ao certo sua origem,

Page 52: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

52

não é possível. É de conhecimento público que esses povos plantavam, colhiam e processavam a

mandioca (alimento utilizado para a feitura da tapioca), gerando, assim, a goma (farinha de cor

branca e de textura fina). Historicamente, diversos sujeitos concorriam para a feitura das

tapiocas, entre homens, mulheres e crianças. Comparando ao que ocorre no CETARME, trata-se

igualmente de uma atividade coletiva.

Com o passar dos anos e das transformações subsequentes, a tapioca passou a ser

preparada de maneira diferente. Com o advento da globalização alimentar, tornamo-nos muito

mais dependentes uns dos outros para podermos comer. E isto reverbera no Centro das

Tapioqueiras: a formulação de um novo modelo de tapioca ou de novas combinações está

conectada a uma “rede de cooperação” (BECKER, 2010).

Grande parte dos estudos acerca da criatividade, ou da inventividade, estão

vinculados à Psicologia e à Psicanálise. O foco recai sobre o indivíduo e sua personalidade e

capacidade neural. Contudo, no que tange à abordagem sociológica, o objetivo acha-se voltado

para as atividades praticadas por um grupo de pessoas e pela influência de fatores exógenos –

economia, cultura, sociabilidades, ambientes. Em conjunto, tais fatores conformam as “ações

criativas”.

De Masi (2003) fala em “criatividade social”, ou seja, algo que é criado para e pelos

indivíduos em sociedade. Ele dá exemplos: Constituições; Estatutos Municipais; Emendas,

Códigos e Regulamentos Urbanos; Leis; etc. Isso promove, de acordo com esse autor, a criação

de novas formas de sociabilidade e, a partir disso, pode ocorrer a “criatividade organizacional”:

formulação de relações sociais inventadas no negócio, na escola, no partido, no restaurante e,

neste caso, no Centro das Tapioqueiras.

A elaboração da Associação das Tapioqueiras da Paupina (ATP) pode ser

vislumbrada como a criação de uma nova forma de relação social. Sua constituição foi resultado

de ações empreendidas por vários atores sociais: funcionários do SEBRAE e do Governo do

Estado do Ceará; além das(os) tapioqueiras(os). Porém, neste caso, os primeiros impuseram aos

segundos a formulação e a participação nessa associação. Segundo a Tapioqueira N.: não

sabíamos de nada, foram os profissionais do SEBRAE que ensinaram tudo pra gente. Mas, de

acordo com os relatos que colhi de outros funcionários, esse período foi marcado por muitos

conflitos envolvendo esses agentes sociais, o que comprova a ideia de que se trata de um

processo de criação coletiva.

Page 53: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

53

Não se pode descartar a possibilidade de essa situação ganhar uma versão oficial,

elaborada pelo poder público, que simboliza o “ponto de vista dos pontos de vista”

(BOURDIEU, 2014). A difusão desta versão ocorre, então, mediante um movimento de cima

para baixo, como uma imposição para quem se destinou a ser permissionária(o). Entretanto, esta

pesquisa também busca enfatizar o papel das(os) tapioqueiras(os) no estabelecimento das regras

e das normas que regem as atividades no CETARME. Consequentemente, os ditames dos

agentes oficiais caminham paralelamente aos discursos e práticas das(os) permissionárias(os) em

relação ao trabalho que fazem, havendo, assim, momentos tanto de convergência quanto de

tensão.

Esse regimento foi redigido levando em consideração as práticas relacionadas às

“Antigas Tapioqueiras”, tanto para legitimá-las por escrito quanto para transformá-las. Entre

elas, há a questão da vestimenta, do modo de atender o cliente, dos utensílios a serem utilizados,

do horário de funcionamento, do que poderia ou não ser vendido, da maneira de conservar a

tapiocaria etc. Ocorreram alterações cuja finalidade era o enquadramento das(os)

permissionárias(os) àquilo que o Governo do Estado e o SEBRAE afirmavam ser a maneira

correta de produzir e comercializar tapiocas. Portanto, a orientação que passa a prevalecer é que

cada um deve seguir o que for estabelecido pela Associação. As preferências individuais devem

estar em conformidade com o regulamento e com as decisões tomadas em grupo entre as(os)

permissionárias(os).

Mediante o que foi exposto, fica evidente que a ATP não vem seguindo à risca o

Regimento Interno. Diante disso, adaptações foram feitas ao longo dos anos em função do

arbítrio de cada permissionária(o): as vestimentas não são mais padronizadas; nos boxes das

tapiocarias, foram acrescentados vários equipamentos; não existem lanchonetes; não se tem o

controle da rotatividade dos automóveis nos dois estacionamentos; entre os horários de

funcionamento, 5h às 22h, cada boxe abre e fecha a depender do movimento de clientes. Estes

são alguns pontos que sofreram alterações. Porém, por mais que haja “curvas” nos

comportamentos das pessoas que trabalham no Centro das Tapioqueiras, a maneira como elas se

relacionam é diferente, ou mesmo nova, em comparação ao que era vivenciado pelas “Antigas

Tapioqueiras”.

Uma questão precisa ser esclarecida: neste contexto, o que pode ser entendido por

“criação” e por "inovação”? Domenico De Masi (2003) afirma que o primeiro termo é definido

Page 54: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

54

como novo produto, algo que não existia, enquanto que o segundo remete à modificação, ao

aperfeiçoamento, à ressignificação de um produto já existente. Porém, é preciso salientar que

esse sociólogo trabalha em um contexto no qual há uma discrepância explícita entre o que é

“novo” e o que é “modificado”.

O “novo”, vocábulo ligado à noção de criatividade, refere-se ao que não existia, a

exemplo do sistema operacional Windows, do Modelo T da Ford, da Lei da Gravidade, de uma

sinfonia, de uma comida, de um aparelho celular etc. Além disso, promove uma ruptura com

modelos e padrões já estabelecidos. No âmbito da alimentação humana, a gastronomia francesa

pode ser encarada como uma criação de um novo modo de comer, de representar, de preparar,

de apresentar as comidas e a ligação entre arte, ciência e alimento (SAVARIN, 1995). Sendo

assim, ela estabeleceu um novo formato de cozinha na França, contribuindo até para a

construção da identidade francesa (POULAIN, 2013).

A “inovação” é uma mudança produzida em algo já existente. Desta maneira,

acompanhando o exemplo acima, adaptações têm sido introduzidas na própria gastronomia

francesa. Como mencionado anteriormente, a primeira delas foi após o século XIX, com a

incorporação dos produtos regionais/camponeses aos conhecimentos gastronômicos eruditos. E

a segunda, já no final do século XX, foi o estabelecimento de contatos mais intensos com

cozinhas de outros lugares, o que alterou significativamente essa gastronomia.

No que tange ao que foi e é produzido no Centro das Tapioqueiras, o limite entre o

novo e o modificado é tênue, pois ora posso compreender a feitura das tapiocas como algo

original, ora como algo adaptado à sistematização e à racionalização provindas das exigências

do mercado turístico internacional. Tomo a preparação das tapiocas finas com recheio, ela pode

ser encarada tanto como novidade como transformação. A preparação de uma tapioca fina,

contendo recheios dos mais variados tipos, foi algo “novo” para as(os) tapioqueiras(os) da

Paupina. Antes de 2002, trabalhavam com a tapioca “tradicional”.

Alguns tapioqueiros e tapioqueiras não quiseram participar dos cursos de culinária

promovidos pelo CENTEC, alegando que já sabiam fazer tapioca. Mesmo nesta perspectiva,

podemos dizer que a “tapioca fina com recheio” era uma situação nova para elas(es), ao mesmo

tempo em que se tratava da utilização diferente de uma comida já conhecida.

Discute-se se a criatividade é competência somente da habilidade de uma única

pessoa ou se ela é desenvolvida a partir de determinadas condições socioculturais. De Masi

Page 55: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

55

(2003) trabalha com a noção de “ação coletiva”, isto é, uma criação é resultado da atividade de

vários atores sociais em cooperação. E, dentre estes, os “gênios” se inserem. Esse ponto de vista

pode ser complementado com a perspectiva de Becker (2010), no livro “Mundos da Arte”: os

atores sociais que participam do funcionamento de determinado mundo da arte (música, pintura,

artes plásticas etc.) concorrem para que a obra seja produzida, distribuída e comercializada.

Alguns fatores exógenos têm impactos sobre a constituição da criatividade nas

“sociedades pós-industriais”, são eles: o progresso científico e tecnológico, o desenvolvimento

das ciências organizacionais, a globalização, a difusão da cultura escolástica, a difusão dos

meios de comunicação de massa e dos meios de transporte, o crescimento demográfico, o

prolongamento do tempo médio de vida, as lutas de classe, as lutas de liberação, o

aperfeiçoamento das democracias e do respeito às diferenças sociais (DE MASI, 2003;

FLORIDA, 2011). Tais pontos têm influenciado na construção de novas dinâmicas sociais e

culturais, em especial, de acordo com os estudos dos dois referidos autores, nos países

desenvolvido, ricos.

O processo de criação é abordado nesta pesquisa como atividade advinda de um

grupo de pessoas, não rejeitando, no entanto, o ponto de vista psicológico e psicanalista em que

o escopo recai sobre o indivíduo. Porém, esta dissertação destaca o conjunto das

“personalidades criativas” (DE MASI, 2003). Sendo assim, corroboro com a ideia de que os

momentos de criação e de inovação no Centro das Tapioqueiras são o resultado da

interdependência entre os vários atores com compõem este espaço.

É preciso salientar que não há um único “mundo” onde ocorra, com exclusividade, a

criatividade. Apontada como advinda da ciência, da arte e da economia, pode ser apreendida em

todas as esferas da vida social. Na perspectiva sociológica, o caráter organizacional é destacado,

ou seja, a produção coletiva de novas sociabilidades, novos saberes e práticas.

A respeito do método empregado para o estudo sobre a criatividade social, De Masi

(2003) diz que

Meu estudo é voltado, sobretudo, a entender quais são as características

organizacionais dos grupos que demonstram grande genialidade criativa. Procurei

analisar a gênese, o percurso, a difusão e a concretização das ideias produzidas por

equipes organizacionais ad hoc para exprimir o máximo a sua própria criatividade.

Portanto, um subsídio precioso à compreensão desses processos pode ser fornecido

pela sociologia do trabalho e da organização. (Idem, p.540)

Page 56: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

56

A partir disso, De Masi divide o processo criativo nas seguintes fases: a) pesquisa

pura, refere-se ao momento de liberdade criativa; b) pesquisa aplicada, apela para o

conhecimento de especialistas; c) tomada de decisão, é ligada aos dirigentes da empresa; d)

desenvolvimento, compete ao grupo de pessoas engajadas na elaboração de um planejamento

estratégico; e) produção, trata da divisão do trabalho; e f) colonização e uso, aborda a operação

de publicidade e de consumo. Tais etapas se referem ao mundo científico e empresarial,

podendo, segundo o autor, estarem relacionadas ao processo criativo no mundo artístico. Porém,

ele salienta a necessidade de contextualização para modelar cada percurso de pesquisa.

Esse ponto de vista ainda remete à noção de “impulso para inovar” (p.554). Esta

motivação pode advir de vários estímulos: acaso; insucesso; mercado; fornecedores; parceiros;

genialidade do empreendedor; necessidades; desejos incubados; e outros. Dependendo do

momento social, cultural, político e econômico de determinada sociedade ou grupo social,

podem emergir tais impulsos para ações inovadores.

No caso das(os) tapioqueiras(os) do Centro das Tapioqueiras, posso elencar alguns

fatores que podem provocar motivações inovadoras: exigências do turismo internacional; a

globalização da alimentação; a difusão dos preceitos da economia criativa; os saberes da

Gastronomia; necessidades surgidas pelo dia a dia; e conhecimentos ligados ao

empreendedorismo.

Acerca desses pontos, o primeiro diz respeito às políticas públicas voltadas para o

mercado do turismo e às exigências que este impõe às localidades que investem nesta área. No

Ceará, a construção e a ampliação de rodovias estaduais, bem como o marketing do litoral

cearense, interferem, sobremaneira, na dinâmica do CETARME, principalmente no que tange a

formulações de estratégias para atrair consumidores por meio da atualização dos cardápios, da

divulgação do boxe pela internet, da fabricação de cartões de visita.

O segundo refere-se à globalização entre diversas culturas e o turismo. E isto, no

âmbito deste estudo, da intensa e incessante troca de informações acerca das culturas

alimentares. Para Bueno (2013), graças ao “desenvolvimento de um sistema de comunicação-

mundo, responsável pela construção de uma nova base material da qual a vida – social,

econômica, cultural e política –, em diferentes regiões do planeta, passa a evoluir num

movimento de conexão crescente” (p.9). Deste modo, a fusão deste ponto com a difusão dos

preceitos da economia criativa, mediante a intensificação de trocas de bens e significados entre

Page 57: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

57

diferentes sociedades, possibilita o aparecimento de práticas culturais inovadoras voltadas para a

alimentação. Aliás, as incessantes viagens pelo mundo de turistas que desejam conhecer outros

lugares, além do seu, influenciam no aumento dessa permutação sociocultural.

Os saberes da “gastronomia regional” constituem a terceira influência. Aprender a

preparar e apresentar as comidas locais, em articulação com as regras e valores gastronômicos,

tem propiciado atitudes que visam à criação de outros modos de fazer as tapiocas. Um dos

elementos mais evidentes disso é a preocupação com a estética (leia-se, montagem e aparência

do prato) e as combinações entre os diversos recheios que podem vir a compor a tapioca (fina ou

tradicional).

Necessidades que surgem cotidianamente, eu coloco como a quarta influência para

motivações criativas e inovadoras. Seja na parte estrutural, seja na organizacional ou

envolvendo as comidas e as bebidas, no Centro das Tapioqueiras, essas necessidades surgem

para atrair clientes. A formulação de estratégias, em sua maioria, parte das(os) permissionárias

(os), mas sempre levando em consideração a participação de seus familiares e funcionários que

trabalham em seus respectivos boxes.

Outro ponto que, de maneira consciente, tem relevância no “impulso criativo” ou

inovador é a ideia promovida pelo SEBRAE de as(os) tapioqueiras(os) do CETARME se

esforçarem para se tornarem “empreendedoras(res) individuais”. Para adquirir esta posição

social, ainda hoje esses profissionais participam de cursos profissionalizantes. Nestes cursos,

eles(elas) aprendem novos conhecimentos que podem contribuir na elaboração de estratégias

com a finalidade de melhorar tudo aquilo que se refere ao próprio negócio.

Em entrevista com E.T. (interlocutora do SEBRAE), ela disse o seguinte: fazer

destes sujeitos “empreendedores”, é colocá-los na formalidade comercial e social. É instruí-los

com novos conhecimentos voltados ao setor de serviços, garantindo, assim, linhas de crédito

junto aos bancos públicos e privados (ela enfatizou o Credamigo, do Banco do Nordeste), além

dos benefícios relativos à seguridade social advindos do pagamento de impostos, como a

aposentadoria.

A Secretaria de Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS), por meio da

coordenadoria de empreendedorismo, iria promover um curso de qualificação, no ano de 2015,

para as(os) tapioqueiras(os) do CETARME. O objetivo seria aperfeiçoá-las(os) no que diz

respeito ao conhecimento para ser “um(a) empreendedor(a)”. Ele seria dividido em treze

Page 58: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

58

módulos, dentre os quais destacamos os seguintes assuntos: “Empreendedorismo: o que é um

empreendedor, como ser um empreendedor, oportunidades e desafios”; “Inovação e

Oportunidades para os Microempreendedores”; e “Economia Criativa”. Estes iriam viabilizar o

gerenciamento de um pequeno negócio, de maneira sistemática e mais racionalizada,

incentivando a cooperação entre as pessoas e dando relevância às atitudes inovadoras e criativas.

Essa ação governamental não foi concretizada, pois as (os) tapioqueiras (os)

preferiram articular uma reforma estrutural no Centro. Porém, apesar de algumas reuniões entre

representantes da STDS, da ATP e das (os) artesãs (ãos) não houve acordo quanto aos três

projetos elaborados pela Secretaria. Portanto, o impasse permanece.

O módulo “Economia Criativa” se assemelha àquilo que De Masi (2003) expõe

acerca do processo criativo nas grandes empresas e como é analisado pelas pesquisas nesta área.

A criatividade é empregada em etapas: preparação; investigação, transformação, incubação,

iluminação, verificação e implementação (OSTERNE, 2013). Entretanto, a originalidade surge

no limiar deste percurso, mais precisamente na fase de “iluminação”, após o aprendizado de

novos conhecimentos.

O material acima foi tomado como exemplo já que não foi possível ter acesso aos

materiais utilizados nos cursos de qualificação destinados as(os) tapioqueiras(os) do

CETARME, com exceção de alguns documentos disponibilizados para fotografia por parte da

tapioqueira N..

O empreendedorismo, como atividade socioeconômica, está relacionado à

“impaciência contagiosa de enriquecer, substituir, modificar e inovar continuamente os

processos e produtos, a sua venda e o seu uso, é o próprio coração do capitalismo, com o seu

espírito empreendedor e sua competitividade, a sua opulência e a sua alienação” (DE MASI,

2003, p. 554). Os comportamentos e os discursos das pessoas observadas e contatadas não

apresentam estritamente esse modelo de ação empreendedora. Contudo, características como

“substituir”, “modificar” e “inovar” estão constantemente presentes, de uma maneira ou de

outra, no modo de gerenciar as relações sociais e a produção de comidas dentro dos boxes.

Desta maneira, encontra-se em cena o estabelecimento de relações entre práticas culinárias

tradicionais e práticas empreendedoras.

Destaco aqui que, desses contatos, emergem atitudes conscientes – sabendo o que se

faz – e/ou inconscientes daquilo que podemos denominar de uma “‘gastronomia’ regional

Page 59: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

59

criativa” de base tradicional-popular. A confluência dos dois elementos descritos concorre para

o funcionamento do CETARME, diferente do que ocorria nas “antigas tapioqueiras”, e se

modifica a cada intervenção feita, tanto externa quanto interna.

Page 60: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

60

4 OLHANDO, OUVINDO E COMENDO: PROCESSO DE PRODUÇÃO E

COMERCIALIZAÇÃO DAS TAPIOCAS

Durante minhas idas ao CETARME, pude apreender muito em relação ao processo28

e dinamismo29

que concorrem para produção e venda das tapiocas. Deste modo, utilizo a

perspectiva de Roberto Cardoso de Oliveira, em sua obra O trabalho do antropólogo (2000),

quando nos diz que a visão e a audição são elementos fundamentais em uma pesquisa de campo

de cunho etnográfico. Porém, acrescento outros fatores sinestésicos: o olfato e o paladar. Estes

se constituíram recursos chave de investigação, pois, de forma recorrente, fui introduzido no

campo pelo aroma e degustação das tapiocas nos boxes investigados.

Trabalhei in loco, simultaneamente, com um olhar de longe e um olhar de perto30

.

Aquele se refere ao esforço de captar os comportamentos das pessoas e o espaço físico de

maneira distante e com menor interferência do pesquisador. Quanto ao segundo, diz respeito à

atitude de estar mais próximo dos agentes sociais que constituem o CETARME, principalmente

aqueles que se interessaram pela pesquisa. Saliento que não abordo essas duas perspectivas em

momentos estanques, mas paralelamente e de modo complementar. Decisão esta tomada durante

as incursões em campo na medida em que aquilo que apreendia a distância se confirmava ou

divergia do que estava próximo.

Quanto ao ouvir, trato em uma abordagem mais aproximada. Oliveira (idem) define

este momento como aquele em que as vozes dos sujeitos pesquisados são captadas e levadas em

consideração, significando dizer que as categorias nativas são postas em destaque. Seguindo

este preceito, ouvi não somente as pessoas que foram selecionadas, mas também aqueles que

circulam no dia a dia do CETARME.

Já o “cheirar” e o “comer”, estes, sim, vivenciei exclusivamente nos boxes. Essa

ferramenta sensório-analítica possibilitou a apreensão de convergências e discrepâncias em

torno das tapiocas: os tipos de ingredientes, as texturas, os sabores (doce/salgado, quente/frio),

28

A noção de processo aqui utilizada advém de Howard Becker (2010), na medida em que “nada acontece de uma

vez, de que tudo acontece por etapas, primeiro isto, depois aquilo, e que isso nunca pára. [...]. A análise sociológica

consiste em descobrir, passo-a-passo, quem fez o quê, como é que coordenaram a actividade e quais os seus

resultados” (p.11). Partindo desta compreensão, as ações criativas dentro dos boxes são encaradas como

constitutivas de sucessivas etapas e por diferentes atores sociais agindo em conjunto. 29

Esse “dinamismo” corrobora com a ideia de processo social, pensando a sociedade como flexível em seu espaço e tempo (WISE, 1977). Portanto, as práticas e os discursos concernentes às tapiocas, no contexto do CETARME, têm sofrido mudanças provenientes da globalização e da indústria do turismo. 30

Referência ao trabalho “De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana” (MAGNANI, 2002).

Page 61: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

61

as várias combinações, as maneiras de comê-las, os tipos de bebida que melhor acompanham

determinadas tapiocas (com recheio ou não) etc. Enfim, estes foram aspectos que me auxiliaram

na captação de informações acerca do processo de cocção e de serviço dessa comida.

Realizei aqui uma descrição do material coletado e não somente o relato puro e

simples do que foi observado, a fim de analisá-lo de maneira densa (GEERTZ, 1989). Desta

forma, segui as seguintes etapas: primeiramente, abordei a estrutura física e os comportamentos

das pessoas; em seguida, considerei conversas formais e informais; e, por último, descrevi

minhas observações acerca das tapiocas que comi. Para tanto, fiz uso dos diários de campo e de

fotografias produzidos ao longo do processo de pesquisa.

Meu percurso em direção ao CETARME era geralmente feito a pé, mas, quando eu

precisava sair mais cedo, ia de carro. Saia de casa às 6h30min, do bairro de Messejana, e seguia

pela CE-040 até o meu destino – Centro das Tapioqueiras. Nesse entremeio, observava

elementos que costuravam meu entendimento sobre os sujeitos pesquisados: o grande fluxo de

carros nos dois sentidos (Litoral Leste - Fortaleza/Fortaleza - Litoral Leste), duas placas de

indicação, um ponto de venda de tapiocas à beira da pista em uma rua paralela a CE-040, o

restaurante/churrascaria Tempero da Tia Lúcia e, ao redor do campo de pesquisa, terrenos

“desocupados” com vasta vegetação.

A logística de acesso ao espaço pesquisado foi executada para receber clientes com

seus respectivos meios de transporte motorizados (carro, moto, ônibus e vans de viagem), ou

seja, não há outras modalidades de chegada, como paradas de ônibus públicos ou passarelas. As

placas de indicação se referem ao “Centro das Tapioqueiras”, quer dizer, não fazem referência

ao artesanato. A pequena tapiocaria me faz lembrar a situação de algumas/alguns

tapioqueiras(os), anterior ao CETARME, e incita-me a pensar as criações e as ressignificações a

partir deste espaço. No que tange à churrascaria, atento para a dimensão da comida regional. E

quanto aos terrenos “abandonados”, este ponto emergiu durante as conversas com alguns

permissionários como uma das reclamações mais recorrentes entre esses sujeitos. Para eles, os

terrenos poderiam ter sido aproveitados durante a fase de construção para que houvesse um

estacionamento bem mais amplo.

Chegando ao CETARME, sentava em um dos boxes destinados ao artesanato. Deste

lugar, tinha uma visão panorâmica do que acontecia em cada tapiocaria. Anotava tudo o que me

parecia pertinente sobre: a fachada dos boxes; o fluxo de carros; a dimensão dos dois

Page 62: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

62

estacionamentos; as divisões, as decorações e as cores dos estabelecimentos; os modos de agir

dos clientes, dos funcionários e das(os) tapioqueiras(os)/permissionárias(os); o tempo de

permanência no local, o horário de entrada e de saída dos consumidores; e a estrutura física

externa do CETARME (aquela que dá vistas para a CE-040).

Entendendo que nada é concretizado por intermédio de apenas um fator/ator

(BECKER, 2010), mas, ao contrário, relações de interdependência se estabelecem entre os

vários aspectos e pessoas para constituir a realidade desse referido lugar, cada informação se

tornou significativa para a compreensão dos processos que conduziram a essa elaboração

coletiva.

Em primeiro lugar, destaco uma indagação que me surgia de forma recorrente

quando avistava o lugar investigado: como se estabelece a relação entre as(os) tapioqueiras(os),

os agentes oficiais do Governo do Estado do Ceará e os funcionários da empresa Santa Clara?

Esta inquietação emergiu a partir da visão do totem que figura na fachada do CETARME:

Figura 2: Fachada do CETARME

(Fonte: Autor, 2016)

Por que os tamanhos das logomarcas são diferenciados? Quem definiu a ordem de

importância na qual elas aparecem (imaginando a sequência convencional de leitura de cima

para baixo)? Por que se privilegiou a marca Santa Clara (preenchendo mais de 2/3 da placa) em

detrimento daquela do CETARME? Feito deste modo, o totem interfere na decisão dos

consumidores de entrar neste lugar? E, sobretudo, o que esta hierarquia revela da dinâmica de

produção/comercialização de tapiocas neste local? Segundo “Tia Neuma”, uma das funcionárias

Page 63: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

63

da Tapiocaria, a placa foi uma iniciativa da empresa Santa Clara, em acordo com a Associação

das Tapioqueiras da Paupina (ATP), para fazer a publicidade do local (17/02/2016). Sem que

os citados questionamentos devam, necessariamente, converter-se em respostas, sua formulação

conduziu-me à consideração da influência substancial destes dois atores sobre aquilo que

acontece no Centro a partir das falas das pessoas que integram este campo empírico.

De acordo com a tapioqueira N., a parceria31

com a empresa Santa Clara se

estabeleceu quando ela, como a primeira presidente da ATP, foi incumbida de encomendar as

placas e o nome de fantasia32

de todos os boxes:

Botei a mão na cabeça aí disse ‘agora, agora me pegou. Como é que eu vou fazer meu

Deus? Já todo mundo sem trabalhar, tudo sem dinheiro... E foi na época que a gente

tava parada viu?! Já tava parada! Tinham pessoas ali que só viviam daquilo ali, né?! Aí

eu digo ‘pronto, e agora?!’. Mas, assim mesmo eu fui atrás das placas! Num tinha

condição, muito cara! Eu queria uma coisa bonita e luminosa. Aí eu tive que pegar o

nome dessas pessoas pra colocar nas faixa, das placas. Aí eu digo: ‘E agora o quê que

eu faço?’. Quando eu tava pensando, chegou o carro com o nome Santa Clara. Eu digo:

‘é por aqui!’. Aí fui logo! Ele foi logo perguntando se eu queria fazer um contrato,

entrar em patrocínio, né?!, com eles. Eu digo ‘é agora!’. Ganhei as placa tudim! As

placas tudo luminosa, a coisa mais linda! Com o nome fantasia de todo mundo! Só o

que eu achei difícil aqui foi isso aí. Aí ficou muito bom, até hoje Santa Clara está com

a gente. Tem as festas que eles fazem: natal. Ajuda, faz aquelas festinha. Dá aquelas

lembrancinha. Né?! Café ele facilita! Tem um mês aí que eles trazem o café. [ENTÃO

ESSA RELAÇÃO COM A SANTA CLARA É DESDE O COMEÇO?] Antes da gente

vir pra cá! Antes de vir pra cá eu já tinha arranjado eles... (risos)... aí, lá mesmo eu

distribuindo garrafa de café, xícara pro povo. Era toalha de mesa. E até hoje, tá com 14

anos que a gente tá aqui. E lá, eu trabalhei mais de 15 anos. Lá era muito bom também!

(Tapioqueira N.)

Durante esse período de transição, a empresa Santa Clara surgiu como mais um ator

na configuração do CETARME. Sua marca, seus produtos e, sobretudo, seus interesses estão

presentes cotidianamente tanto na estrutura espacial quanto naquilo que as(os) tapioqueiras(os)

fazem e pensam sobre o próprio trabalho. Estes aspectos aparecem na decoração de todos os

boxes – placa de identificação, panos que cobrem as cadeiras, alguns enfeites –, nos utensílios

utilizados – pano de mesa, garrafa de café, porta guardanapos, xícaras, camisas dos

funcionários, cardápios – e no café servido aos clientes.

Essa “omnipresença” pode ser percebida, a partir da utilização de dois tipos de

xícaras:

31

A palavra “parceria” é empregada pelas pessoas pesquisadas para se referirem às articulações feitas com a

empresa Santa Clara e com o SEBRAE. Geralmente, quando fazem o uso desse vocábulo, usam-no: “parceiro

forte”. Isto é, auxilia na solução de problemas – principalmente estruturais – diante da ausência de intervenções do

Governo do Estado do Ceará. 32

O nome referente ao boxe.

Page 64: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

64

Figura 3: Xícaras do CETARME

(Fonte: Autor, 2015) (Fonte: Autor, 2015)

A empresa Santa Clara passou a fabricar essas xícaras após acordo firmado com

a Associação das Tapioqueiras da Paupina (ATP). A primeira xícara é utilizada frequentemente

em detrimento da segunda, que não é mais produzida. O motivo, de acordo com algumas

pessoas que conversei, é que esta tinha um custo maior, tendo em vista que era distribuída

exclusivamente para o CETARME. Para o tapioqueiro R., a xícara que possui o desenho de duas

pessoas sentadas comendo tapioca e tomando café – subentende-se – “tinha mais serventia”

(Tapioqueiro R.), já que divulgava mais diretamente o local onde trabalha.

A partir disso, ponderei que há certa tensão na relação entre esses dois atores,

Empresa Santa Clara e Tapioqueiras(os) do CETAMRE. Aquele simboliza uma posição de

dominação a partir do momento em que, de certo modo, impõe a utilização exclusiva de seus

utensílios e produtos alimentares em todas as tapiocarias. Já as(os) permissionárias(os), em

virtude das necessidades que se apresentam no cotidiano, usam aquilo que está à disposição.

Vale ressaltar que a segunda xícara e as garrafas de café sem logomarcas ainda são usadas, no

entanto, a marca de café não tem sido alterada33

.

Outro ponto que interfere na dinâmica do lugar é aquele presente nos

estacionamentos.

33

É apresentado aqui o ponto de vista das(os) tapioqueiras(os) que tivemos mais contato. No que concerne à

empresa Santa Clara, não tivemos retorno quanto à possibilidade de possíveis entrevistas.

Page 65: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

65

Figura 4: Primeiro e Segundo estacionamentos

(Fonte: autor, 2015) (Fonte: autor, 2015)

As duas fotos acima foram tiradas no horário da manhã, por volta de sete horas, por

isso há pouca quantidade de carros. No entanto, elas ilustram bem a estrutura do referido local,

que atende aos propósitos da pesquisa. O principal ponto a considerar é que a parte da frente

comporta duas vagas para a maioria dos boxes. Alguns não as possuem por uma questão

decorrente do projeto inicial. Já a parte de trás, foi construída para receber ônibus e veículos de

grande porte. Para as(os) permissionárias(os) e funcionárias(os) com os quais tive contato, esse

espaço destinado aos automóveis é insuficiente para a demanda dos consumidores.

Elas(eles) imputam então a “culpa” aos engenheiros e arquitetos que formularam e

executaram o projeto estrutural. Uma das permissionárias afirmou: “deviam ter nos ouvido. Lá

nas Tapioqueira Velha era muito ônibus, muito carro. Aqui, do jeito que tá, não cabe a metade

do que passava lá” (Tapioqueira N.). O projeto é apontado então como uma ação

governamental de “cima para baixo”, por ter sido formulado sem levar em conta a dinâmica

própria dessas(es) tapioqueiras(os) da Paupina. Em curto prazo, o Governo parecia ter

“resolvido” o problema do decréscimo nas vendas. Contudo, hoje elas(es) atribuem a baixa

frequência de clientes a uma limitação espacial permanente.

A partir da observação daquele lugar e de tudo o que ouvi, considero que a questão

do estacionamento me remete a outra indagação: o posicionamento de todos os boxes. Muitos

destes estabelecimentos não ficam tão visíveis para quem chega de automóvel. Estaciona-se e, a

partir desse local, escolhe-se em qual boxe entrar. Geralmente os clientes vão àqueles que ficam

de frente para a vaga onde estacionaram. Têm aqueles que já frequentam determinado lugar,

mas, mesmo assim, até estes tentam deixar o carro próximo do boxe de sua preferência.

Page 66: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

66

Para enfrentar esse problema, cada tapioqueira(o) dá sua característica ao lugar que

administra. Sendo formado por 26 (vinte e seis) boxes, todos buscam se diferenciar uns dos

outros, seja no quesito comida, na decoração, nos utensílios utilizados, nos equipamentos, nos

comportamentos dos funcionários, nas vestimentas destes, além do modo como trabalham.

Essas particularidades são condicionadas por normas estabelecidas pela ATP e pelo

Governo do Estado do Ceará. Deste modo, surgem elementos novos em consonância com as

convenções34

que todo boxe deve seguir. Vejamos alguns pontos do regulamento da ATP35

:

Art. 5. – O horário de funcionamento do CETARME para entrada e saída dos

permissionários será o seguinte: - Entrada: a partir das 5 horas e 30 minutos - Saída: no

máximo às 22 horas;

Art. 7 – Durante as horas em que o CETARME esteja aberto ao acesso dos

permissionários e do público em geral, o ingresso, a permanência e a circulação em

suas dependências estarão sujeitas à fiscalização por parte da Comissão Disciplinar,

que deverá fazer cumprir as seguintes normas: [...]; h) Diligenciar pela preservação do

projeto arquitetônico original (fachada e pintura) dos boxes; Art. 9. – Os associados da

ATP e da Associação de Artesãos, na condição de permissionários do CETARME

deverão atender as seguintes normas de apresentação e uso dos boxes: [...]; c) O boxe

destinado a venda de tapioca poderá utilizar mesa de madeira para suporte do isopor

para acondicionamento das tapiocas; d) O boxe destinado a venda de tapioca poderá

conter no seu interior somente os seguintes equipamentos: fogão a gás e geladeira;

Art. 13. – Em relação aos produtos a serem produzidos e/ou revendidos nos boxes fica

assim estabelecido que: a) Em hipótese alguma será permitida a venda de qualquer tipo

de bebida alcoólica, a exceção de cerveja em lata; b) A comercialização da cerveja em

lata é restrita aos boxes de lanchonetes; c) Aos boxes de tapiocas serão permitidas a

produção e comercialização dos seguintes produtos: tapioca, bolos, cocadas, água de

coco, água mineral, refrigerante, café, petas, sequilhos; (CETARME. In: BEZERRA,

2005).

Esses elementos concorrem para a padronização do estabelecimento, das práticas e

dos discursos concernentes ao gerenciamento dos trabalhos. Essas exigências foram

estabelecidas no início do CETARME, porém, foram se reformulando ao longo dos anos, haja

vista a necessidade de obter um número crescente de clientes. Um exemplo de tais

reformulações foi uma alteração feita na estrutura física:

Fizeram isso aqui, uma barraquinha só daqui pra acolá. Não fizeram isso aqui

[cobertura com telha], deixou aberto aqui. Aí, os meus clientes, todos os meus clientes

34

“Convenção” é um termo empregado tendo como referência os estudos de Howard Becker em “Mundo das

Artes” (2010). 35

Em virtude de não ter tido acesso a esse documento, utilizo aqui o que está presente na dissertação de Celina

Bezerra (2005).

Page 67: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

67

ficavam na chuva e no sol. E não tinha condições. Inventei de fazer um toldo bem

grande. Mas, eu quase apanhava! Porque eu fiz esse toldo. Porque os clientes vinha

procurar onde tava melhor. Na sombra, sem chuva. Mas, eu fiz pra que as pessoas

entendesse que não podíamos trabalhar daquela maneira. Aí chamaram o pessoal do

SEBRAE, até uma psicóloga venho no meio. Antes delas começarem o assunto, eu

comecei logo né?! Eu disse ‘gente eu fiz isso aqui talvez sem pensar, que se tivesse

feito isso aqui na hora do ar livre eu colocava, na hora né?! do sol e da chuva, tirava’

mas, nem todos aqui iam fazer. Não iam. Aí eu, contei minha história todinha que eu

não tinha feito só pra mim. Tinha feito para os clientes. Que não tinham acreditado

nisso aqui. Isso aqui era muito pequeno. Sei que me deram um cartão, se precisasse

podia ligar. Foi num instante, fizeram isso aqui todim. Botaram uns toldo que com

pouco tempo se rasgava. Chamei o pessoal da Santa Clara e disse ‘olha, vocês botem

de telha, porque se quebrar uma telha a gente coloca! Vocês tão tendo prejuízo’.

Pegaram e fizeram de telha. Tá aí, todo mundo na sombra. (Tapioqueira N.)

Tais alterações também ocorrem nas decorações dos boxes. De longe, notei as

diferenças: nas vestimentas dos funcionários, na utilização de brinquedos (pula-pula, o mais

comum) que existe em algumas tapiocarias; nas cores (nos panos das cadeiras, nos cardápios e

nos utensílios utilizados); e na maneira como cada funcionário tenta chamar atenção do cliente.

São alguns pontos que podem concorrer para novas práticas no que diz respeito à

comercialização das tapiocas, influenciando, assim, no seu consumo.

A respeito do último ponto, a abordagem feita aos clientes ocorre por meio das

expressões “seja bem-vindo, pode entrar!”, tendo sempre em mãos o cardápio. Todavia, este tipo

de atendimento padronizado acontece com algumas diferenças: o modo como se fala, como se

utiliza o corpo, como entrega o menu ao cliente, e como este é tratado enquanto espera o pedido.

Os cursos de qualificação tiveram o papel de enquadrar os serviços dos boxes a

determinadas regras, especificamente aquelas voltadas para o turismo internacional. Contudo,

trata-se de um local em que o modo de se produzir e servir tapiocas, provenientes das A.T.,

ainda predomina. Desse modo, a tradição culinária destes se entrecruza com as novas

informações, configurando, assim, uma “gastronomia” regional e tradicional própria e criativa.

Outro fator que classifica cada tapiocaria como única é o cardápio. Toda(o)

permissionária(o) estabelece a estética do seu menu – plastificação, cores, formato das letras,

ilustrações, fotos, informações adicionais – e a ordem das comidas e das bebidas. Seguem

abaixo dois exemplos:

Page 68: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

68

Figura 5: Capa dos Cardápios “Recanto do Sertão” e “Silvia Helena”

(Fonte: autor, 2016) (Fonte: autor, 2016)

O cardápio da tapiocaria Recanto do Sertão apresenta elementos visuais de ligação

com a região nordestina: a cor amarela (relacionando-se com o sol e o calor); a cor verde (a

vegetação própria da caatinga); e a tapioca fina com carne de sol e queijo (representando a

comida característica do CETARME). No que concerne ao outro cardápio, da Silvia Helena,

esta faz uso de cores que remetem ao universo rústico (de palha ou de madeira, sendo queimado

em um forno a lenha, como eles faziam anteriormente). Tudo dá oportunidade à diferenciação,

inclusive as páginas seguintes:

Figura 6: Interior dos Cardápios

(Fonte: autor, 2016) (Fonte: autor, 2016)

Page 69: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

69

Os dois se assemelham com relação aos preços e aos tipos de combinações feitas

com as tapiocas finas. Estas convenções são acordadas pelas(os) permissionárias(os) durante as

reuniões da ATP. Para o tapioqueiro R., na proporção em que os preços dos mantimentos sobem

também é elevado o preço das tapiocas (22/06/2016). Tudo é feito com o conhecimento de

todos. Pode haver uma pequena variação de preço em um mesmo tipo de prato, por exemplo, a

tapioca fina com creme de frango e catupiry, na figura 1, custa dez reais; na figura 2, já custa 12

reais. Todavia, não deve ser uma diferença exorbitante.

A padronização não encerra as peculiaridades. Aliás, estas podem advir tanto de

quem faz parte das tapiocarias quanto dos clientes. Cito dois casos: o primeiro se refere à

tapioca fina, com nutella e morango, produzida e comercializada no boxe Silvia Helena; e o

segundo da tapioca fina com alho e ovo, feita no boxe Tapiocaria da Xuxa. Naquele, a criação

não passou somente pelo crivo do permissionário, mas também teve influência de outros

sujeitos. E a decisão de inseri-la no cardápio passou por vários momentos. Quer dizer, sua ideia

foi sendo objetivada por etapas (apreensão de novas informações, experiências, demonstração

para os funcionários, para os clientes e, por fim, a implementação no cardápio) e por meio da

opinião dos vários atores que compõem o boxe que ele gerencia.

Diante das informações que o tapioqueiro R. me concedeu, sua trajetória de vida tem

possibilitado ações que objetivam a criação de estratégias para a produção e a comercialização

de tapiocas, bem como outros tipos de comida, além de estar apto para resolver problemas que

ocorrem no dia a dia. Deste modo, elenco alguns fatores que o auxiliam: as diversas

modalidades de trabalho pelos quais passou; os conhecimentos adquiridos durante os cursos

profissionalizantes ministrados pelo SEBRAE; aquilo que aprendeu durante os anos em que está

no CETARME; dentre outras experiências de vida.

O segundo caso, não foi ideia da tapioqueira N. Mas, de um cliente que pediu algo

de seu gosto e que não estava no cardápio. Por meio do público consumidor, houve a

formulação desse tipo de tapioca. Percebi, assim, que outros atores podem concorrer para a

criação de algo que não existia até então no cardápio (para além das comidas e bebidas

preestabelecidas).

Outro elemento que me chamou a atenção foi a cor de cada boxe. Elas qualificam

cada um: azul marinho (Silvia Helena); Roxo (Tia Neuma); Verde escuro (Recanto do Sertão);

Verde claro (Tapioqueira da Xuxa), entre outros. A procura pela distinção parece ter sido feita

Page 70: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

70

pela escolha das(os) próprias(os) permissionárias(os), haja vista que as cores se repetem em

outros boxes, mas nada que cause discordâncias profundas. Na verdade, isso faz referência à

marca de cada lugar. Tanto é que, até nos cardápios e nos utensílios postos à mesa, tais cores são

utilizadas. As figuras, a seguir, ilustram isto:

Figura 7: Capa dos Cardápios “Tia Neuma e “Recanto do Sertão”

(Fonte: autor, 2016) (Fonte: autor, 2016)

Sendo assim, os aspectos apresentados se revelam como fruto de ações coletivas, ou

seja, vários fatores e atores sociais concorrem para a dinâmica “gastronômica” de diferenciação

no Centro das Tapioqueiras, principalmente para o surgimento de ações criativas ou inovadoras.

4.1 DENTRO DOS BOXES: UM PROCESSO COLETIVO

Sete horas da manhã, horário que costumava chegar ao Centro, adentrava no boxe

Tia Neuma. A atendente tinha o hábito de estar sentada em uma das mesas conversando com a

permissionária. Uma vez ou outra, encontrava as duas na mesa comendo pão com café. Chegava

nesse espaço não somente na posição de pesquisador, pois o papel de cliente me parecia facilitar

a formação de uma relação de confiança com a elas.

Dando “bom dia”, sentava em uma das mesas próximas ao local onde ficava a

tapioqueira e pedia tapioca tradicional com queijo. A escolha teve o objetivo de saber como

esse prato era preparado e servido, para fazer uma comparação entre este e os outros boxes

pesquisados. Além disso, apreender como a tapioca tem se modificado com o passar do tempo,

já que a permissionária remonta às Antigas Tapioqueiras.

Page 71: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

71

Havia três pessoas trabalhando juntas na maior parte do dia:

tapioqueira/permissionária, a atendente – acrescenta mais uma ou duas, de acordo com as

necessidades – e a cozinheira. São mulheres, com idades diferentes e que se relacionam de

maneira muito próxima. Elas podem fazer as funções umas das outras, mesmo com pouca

técnica. É o caso da atendente fazendo tapioca ou outra comida, sendo esta função da

permissionária, que possui conhecimento e técnica referentes a esses papéis.

Da mesa, conseguia observar somente uma parte da preparação: o momento em que

o queijo coalho (ralado) é colocado sobre a tapioca36

. E pelo que pude apreender, a depender de

quem a fizesse, a quantidade e o modo como o queijo é disposto sobre a tapioca, bem como o

tempo necessário para que seja assado, modificam o sabor e a aparência da comida. Logo,

demandam habilidades que somente a permissionária e a cozinheira detêm com segurança.

Todas elas cooperam para que essa comida venha a ser preparada e servida, a

começar pela tapioqueira. Esta tem as seguintes incumbências: administra as finanças e o

funcionamento do boxe; seleciona e compra os produtos alimentícios necessários para feitura

das comidas; prepara e serve as tapiocas e outros tipos de comida e bebidas. O principal papel

da tapioqueira, no entanto, é administrar e organizar sua tapiocaria.

Quem deve estar diretamente ligada às comidas e às bebidas é a cozinheira. A

apreensão desta denominação surgiu durante uma conversa informal com a permissionária, que

me explicava o cotidiano de seu boxe. A cozinheira, por exemplo, tem as seguintes funções:

molhar e peneirar a goma de mandioca, fazer as tapiocas (tradicional e fina), ralar o queijo e

preparar o café (com e sem açúcar), preparar o cuscuz, limpar a cozinha37

etc.

Dentro do boxe, as comidas são preparadas em dois lugares distintos: o forno e a

cozinha. O forno ainda possui parte de sua estrutura, porém, as tapiocas são feitas numa chapa a

gás. A cozinha é utilizada para a feitura das outras comidas e bebidas, a partir de vários

utensílios: fogão a gás, liquidificador, panelas, garrafas e talheres. E, em cada tapiocaria do

Centro, esses dois espaços são utilizados de modo particular.

E quanto à atendente, sua tarefa específica é atender os clientes. Quando necessário,

também toma a posição de cozinheira. Embora, em alguns momentos, ela tenha preparado meus

36

Sem retomar o processo de produção, já descrito no primeiro capítulo, salientamos aqui a cooperação entre essas

mulheres para que esse prato seja servido aos clientes. 37

Esse vocábulo se refere a um determinado espaço dentro da tapiocaria. Essa explicação se faz necessária, pois,

durante o texto, iremos abordá-lo com outra conotação: conhecimento e técnica alimentar.

Page 72: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

72

pedidos e demonstrasse conhecer os passos para a feitura das tapiocas, logo revelou pouca

perícia técnica na realização destas.

Em virtude dos poucos clientes, na maioria dos dias em que estive presente, elas

conversavam muito entre si e com os funcionários do boxe vizinho. Sempre com comentários a

respeito do que estavam vendo no facebook e/ou algo que acontecera no Centro no dia anterior.

Tudo parecia funcionar em ritmo lento, conforme as necessidades do momento.

No mesmo corredor do referido boxe, podia avistar o “Recanto do Sertão”. Este

boxe foi aquele em que eu menos estive presente. A razão para isto foi a atenção dada com mais

ênfase aos dois boxes que abordarei a seguir. As informações coletadas, ainda que divergentes

em termos de profundidade, foram de grande valia para as considerações acerca de meus

objetivos.

Nessa segunda tapiocaria, quem me atendeu foi a permissionária entregando-me o

cardápio e dando “bom dia”. Para fins de comparação, também pedi tapioca tradicional com

queijo. A tapioca foi retirada de uma caixa de isopor e passada ao chapista. Este é o sujeito

encarregado de preparar as tapiocas. No intervalo de cinco minutos, meu pedido foi posto diante

de mim: sobre a mesa, em um prato de vidro, ao lado de uma faca e de um garfo.

Enquanto comia, notei que se tratava do único boxe que ainda utilizava tanto o forno

a lenha quanto à chapa a gás. De acordo com a permissionária, a opção de manter o forno, tal

qual foi concebido, era de caráter estético e também para manter o sabor característico da

tapioca. A opção levou-me à seguinte pergunta: quais atores e fatores condicionam a

permanência de determinados elementos e o abandono de outros?

No CETARME, o forno a lenha tem sido representado tanto pela SETUR-CE quanto

pelos meios de comunicação como um elemento rústico e tradicional da “gastronomia regional”

cearense (O POVO, 2015; SEBRAE, 2015; SETUR, 2015). Ele tem as seguintes características:

feito de tijolo tipo branco, retangular; sua cor lembra a madeira; seu formato, no Centro,

assemelha-se à letra “L”; na parte horizontal há um compartimento no qual se coloca a lenha e,

acima dele, há dois suportes de metal que servem para preparar as tapiocas; e na parte vertical,

encontra-se a chaminé. Nos outros boxes, esta composição foi modificada ou completamente

retirada, sendo que a maioria das tapiocarias mantém apenas a parte horizontal.

Já a chapa a gás tem representado um contraponto ao modelo do forno a lenha. Nada

de rústico ou de algo que lembre o que era feito nas Antigas Tapioqueiras. Sua caracterização

Page 73: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

73

geralmente parte dos seguintes aspectos: composto de alumínio e de ferro, de cor cinza; possui

forma retangular, tendo uma estrutura de metal para a produção das tapiocas – nesta tem

orifícios que são utilizados na retirada do excesso de goma de mandioca; e é ligado ao botijão de

gás por meio de um cano de plástico. Todos os boxes possuem esse mesmo modelo, tanto os que

têm somente uma chapa quanto àqueles que apresentam mais de uma.

As escolhas e as decisões concernentes à utilização de um ou de outro recurso

técnico são influenciadas por questões internas e externas. Creio que uma das tapioqueiras

manteve ambos em funcionamento por motivos estéticos e culinários. Outras usam a chapa,

deixando parte da estrutura do forno a lenha, a fim de manter vínculos com a imagem do lugar

tradicional. E há aquelas que não o destruíram, apenas mudaram a aparência do forno a lenha

por certo comodismo em relação ao projeto inicial. Além disso, por conta dos boxes serem

muito próximos uns dos outros, o fator segurança também motivou tais mudanças.

Ações exógenas de dimensões micro e macro concorreram, sobremaneira, para a

efetivação dessas transformações. Isso vai desde o pagamento de imposto sobre a lenha

utilizada38

até os impactos da industrialização e globalização da alimentação. Neste contexto, as

alterações de âmbito técnico nos serviços de alimentação fora de casa, priorizando uma

produção e um atendimento rápido e prático (POULAIN, 2013), podem ser encaradas como

propulsoras das referidas escolhas.

Deste modo, revela-se mais um aspecto da permanência de práticas culinárias

relacionadas às Antigas Tapioqueiras. São costumes que ainda sobrevivem às novas

informações, técnicas e conhecimentos culinários/gastronômicos, além do contato com outras

esferas da sociedade, a exemplo daquela mantida pelo Governo do Estado do Ceará. Esse

fenômeno contribui para a compreensão das possibilidades criativas subjacentes à produção e à

comercialização desse equipamento cultural.

Percebo que no Recanto do Sertão existem mais funcionários em comparação com o

boxe Tia Neuma. Segundo a permissionária, em uma entrevista informal (sem gravação em

áudio), isso se dá em virtude de maior movimentação de clientes. Dessa forma, além da

tapioqueira, há dois atendentes (um rapaz e uma moça), um chapista39

(responsável pela feitura

38

Os permissionários da tapiocaria “Silvia Helena” e da “Tia Neuma”, afirmaram-nos que agentes do IBAMA

foram até o CETARME alertar sobre essa imposição. 39

Função relacionada à pessoa que tem a responsabilidade de preparar as tapiocas na chapa a gás.

Page 74: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

74

das tapiocas), uma cozinheira e outras pessoas que ajudam na manutenção do local. Sempre que

necessário, acrescentam-se mais funcionários em virtude da quantidade de consumidores.

O número de sujeitos influencia no maior ou menor estabelecimento de posto.

Assim, a relação pessoa/função se torna mais estreita. Além disso, cotidianamente, surgem

situações em que alguém atua sobre o papel de outrem. É o caso da permissionária que exerce

diversos encargos: gerenciamento, organização, preparação das comidas, limpeza e atendimento

aos clientes. Ela me disse: tem momentos que é preciso atender os clientes, limpar as mesas,

fazer tapioca... depende muito do movimento (Diário de Campo, 17/06/2016).

Saindo desse boxe, dirigi-me para a “Tapiocaria da Xuxa”. A situação se tornou bem

diferente, em termos de qualidade no contato com os sujeitos pesquisados. Consegui, no que

tange às entrevistas, maior abertura e apreensão de informações. A princípio, este

esclarecimento não atribuiu nada de negativo aos dois boxes acima descritos. É certo que

precisei de um tempo maior de contato com essas pessoas para que pudesse “ganhar” sua

confiança. Esse é um aspecto necessário quando se trata de uma pesquisa social em que o

objetivo do trabalho de campo é permitir a aproximação do pesquisador da realidade sobre a

qual investiga.

Assim como nos outros boxes, pedi tapioca tradicional com queijo. Notei que o

procedimento é o mesmo, a tapioca é retirada de um recipiente de isopor envolta em um saco

plástico transparente. Porém, a discrepância está na maneira como o queijo é utilizado. Este é

posto tanto na parte de cima como na de baixo, sendo a feitura atribuída à chapista/cozinheira.

A permissionária utilizou essas duas expressões se referindo à mulher que preparava a tapioca

solicitada.

Tomei a decisão de pedir o mesmo tipo de tapioca. O objetivo era notar como ela era

feita e se havia variação de técnicas e de sabor entre os boxes pesquisados; até mesmo em cada

um deles. Essa maneira de trabalhar foi escolhida a partir de minhas próprias experiências como

consumidor e dos argumentos expostos por clientes que consomem no Centro das Tapioqueiras.

Geralmente, participavam de meu pedido uma atendente e a chapista. Aquela pegava

a tapioca tradicional e entregava a esta que, por sua vez, retirava da geladeira uma bacia de

plástico contendo queijo coalho ralado. Uma das diferenças em relação aos outros boxes é que

este ingrediente é posto tanto na parte de cima quanto em baixo da tapioca, contribuindo para

realçar ainda mais o sabor do queijo.

Page 75: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

75

O número de pessoas não é muito diferente do “Recanto do Sertão”. Tem-se a

permissionária, esta tem uma filha que também se encarrega do gerenciamento, uma

chapista/cozinheira, dois atendentes – uma moça e um rapaz – e mais uma ou duas pessoas que

ajudam na manutenção do local. Entretanto, saliento que, diferentemente dos anteriores, grande

parte dos funcionários tem a mesma origem familiar da tapioqueira.

A forma de organização me leva a refletir sobre a continuação de algumas práticas

oriundas da A.T.. Uma delas é a conjugação da vida familiar/doméstica com a produção e a

venda das tapiocas (BEZERRA, 2005). Pai, mãe, irmãs, irmãos, avós, avôs, tios, tias, entre

outros, cumpriam suas tarefas de acordo com aquilo que era estabelecido entre eles mesmos, ou

seja, baseado em conhecimentos e técnicas herdados de geração em geração e de maneira

autônoma. Desse ponto de vista, o funcionamento das tapiocarias se movimentava por normas e

valores tradicionais e populares.

Com o advento do CETARME, houve a mudança desse padrão organizacional.

Predominantemente privado, foi posto num processo de qualificação para ser modelado àquilo

que o poder público exigia dos serviços alimentares cujo objetivo era atender aos turistas

(estrangeiros ou domésticos). Assim, por meios dos mais variados cursos, a relação

casa/trabalho passou a dar lugar ao trabalho/negócio.

Desta sorte, na terceira tapiocaria estudada, percebi que houve assimilação das

regras estabelecidas por aqueles que conceberam o CETARME e da dinâmica do mercado

turístico. Todavia, a permissionária direciona todos os trabalhos de acordo com o cotidiano do

boxe: “Bom, aqui a gente abre cinco e meia da manhã até dez horas da noite. Nove, dependendo

do movimento. Só nas férias, na alta estação, que a gente tem uma venda melhor, uma renda

melhor - julho e janeiro. São 100% melhor. Porque vem muito turista! Tem muito turista.”

(Tapioqueira N.).

As prioridades, os modos de perceber e administrar a própria atividade, as práticas

culinárias, a vida privada, tudo isso foi alterado nas etapas de preparação para a inserção no

Centro. E as transformações ainda continuam, pois a cada intervenção externa modifica-se o

sistema de funcionamento das tapiocarias. No capítulo quatro, este tema será abordado, tomando

como exemplo as(os) tapioqueiras(os) na posição de empreendedores.

Já na tapiocaria Silvia Helena, encontrei uma situação peculiar em relação às

demais. Seu permissionário, assim como a do Recanto do Sertão, não tem uma trajetória de

Page 76: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

76

vida ligada à A.T. Mas ele demonstra ter incorporado com mais vivacidade os ditames

provenientes dos cursos profissionalizantes. Suas ações e seus discursos são voltados para o

aperfeiçoamento da produção e do serviço do seu empreendimento.

Rapaz, a gente mora aqui! Eu costumo dizer que a gente vai em casa só passear.

Durante esses quase 15 anos, que a gente tá aqui, a gente tem o prazer de ir em casa.

Mas, não vai na casa toda. Sala, quarto, quarto, sala, entre no carro e vem trabalhar de

novo. E porque a gente tá aqui quase todo tempo, a gente tem a facilidade de tá vendo

as coisas. Hoje ainda nós estamos, AINDA, quase que tudo no natural, no manual.

AINDA! Mas, há muito tempo que já pede um programa, um acompanhamento direto

de fiscalização. Comigo e com os freezers dos recheios Há muito tempo que me pede

“quantas tapiocas tu faz com uma saca de goma?”, “quantas tapiocas tu faz com 100 kg

de carne de sol?”, e o fato é que as coisas vão acontecendo. A gente inicia ninguém

trabalhava com carteira assinada, hoje todo mundo tem sua carteira assinada. Hoje todo

mundo que vai sair tem seu aviso prévio. Hoje todo mundo que sai recebe sua

indenização com férias, 13º, fundo de garantia, com PIS, tudo que te direito. Hoje a

gente já tem um contador que trabalha pra gente, trazendo a burocracia dos órgãos de

serviço estadual, municipal ou federal. E hoje a gente é uma empresa que, que hoje a

gente pode dizer “conceituada”! [Então você enquadra como “empreendedor

individual, segundo o SEBRAE?] Não porque a gente subiu mais uns degrausim. Um

empreendedor individual, ele tem um limite para trabalhar até 60 mil anual e ele tem o

direito de assinar a carteira de um funcionário só. Micro, que é o nosso, a gente tem o

direito de assinar quantas carteiras houver necessidade. Hoje, nós temos 11 pessoas

com carteira assinada com a gente. E a gente tem um limite de 1 milhão e 600 mil reais

para trabalhar por ano. Então, existe uma diferença grande. E a margem de imposto

também é outra. Mas, já tamo enquadrado no simples. Desde 2008 ou 2009.

(Tapioqueiro R.)

O arranjo estabelecido para a divisão do trabalho é mais delimitado. Com

permissionário/tapioqueiro, caixa, atendentes, chapista, cozinheira e auxiliares de limpeza, seu

boxe funciona a partir da execução de cada uma destas funções, todas interconectadas e

realizadas pelo seu respectivo agente.

Para exemplificar, assim como nas outras tapiocarias pesquisadas, tomava a posição

de cliente e pedia tapioca tradicional com queijo. Primeiramente, uma atendente me

disponibilizava cardápio. Depois que fazia o pedido, ela se dirigia até o chapista e o informava

sobre aquilo que eu queria. Em seguida, este pegava uma tapioca grossa em um recipiente de

isopor ao lado do forno, tirava-a do saco plástico transparente e esquentava a comida na chapa.

Por fim, era-me entregue em um prato de vidro.

Sempre comia um tipo de tapioca tradicional diferente daquela que os outros boxes

servem. Normalmente, eram retangulares e continham queijo entre as duas porções de tapioca,

muito semelhante a um sanduíche. Somente depois descobri que eles também trabalhavam com

o formato redondo. Porém, não indaguei de pronto a respeito dessa discrepância, pois queria

Page 77: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

77

entender, a priori, como as ações desses sujeitos eram desenvolvidas.

Durante minhas primeiras incursões, além do que observava a respeito da prática

culinária, as movimentações acerca da administração dos produtos alimentícios mostraram que

outros atores sociais coparticipavam do processo de produção e de comercialização das tapiocas.

A demonstração disso começa na compra do queijo, pois quem produz e comercializa esta

mercadoria influencia na cadeia de produção das tapiocas recheadas com queijo. De acordo com

o permissionário, a qualidade do queijo pode mudar substancialmente o sabor da tapioca. Ele

diz que tudo é feito para satisfação do cliente (Diário de campo, 21/06/2016).

A depender da trajetória de vida das(os) permissionárias(os), principalmente como

tapioqueiras(os), as dinâmicas e formas de organização serão sempre particulares nos seus

respectivos boxes. Pude notar que a velocidade com que as atividades são realizadas, por quem

é efetuada, o que é utilizado, como é feita a montagem dos cardápios, interfere, sobremaneira,

na qualidade dos produtos, principalmente naquilo que enxerguei como o motor de

possibilidades criativas: a interdependência entre os papéis que cada um exerce.

4.2 DOIS PERMISSIONÁRIOS E SUAS RELAÇÕES COM A CRIATIVIDADE

A cooperação entre os sujeitos contribui para a produção de tapiocas, isto é, as ações

realizadas durante as atividades dentro de seus respectivos boxes auxiliam na elaboração de

ideias sobre a produção de novas tapiocas. Sendo assim, os dois tipos de tapiocas, tradicional e

fina, ambas podendo levar recheio ou não, são colocadas por nós como principal fator de

possibilidades criativas no âmbito da alimentação.

O recheio é o ponto de partida para possíveis inovações ou criações. Mesmo

aparentando ser a tapioca o cerne do ato de comer, as escolhas produtivas e comerciais são

efetuadas a partir do que deve acompanhá-la, em razão da gama de recheios disponíveis. A

primeira vista, parece tratar-se de um elemento secundário, um simples acompanhamento da

tapioca. Contudo, no contexto do CETARME, ganha notoriedade por ter mais de 100 variações.

É o caso da tapioca fina com nutella e morango, elaborada pelo permissionário do

box Silvia Helena a partir de uma experiência com o acompanhamento:

Eu sou o tipo da pessoa assim: vou com a minha família pra pizzaria... eu não como só

tapioca, eu como pizza, como salgado, como tudo... quando vou com minha família pra

Page 78: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

78

uma pizzaria, eu chego lá, eu fico namorando com o cardápio. E tem alguma coisa no

cardápio da pizza que me desperta pra trazer pra tapioca. Vou no supermercado,

compro o recheio e faço o teste. Eu mesmo sou o primeiro a degustar. Eu sou o cobaia.

E depois que passa no teste por mim e pelos funcionários que trabalham aqui comigo,

os colaboradores, ai bota no cardápio, vai pra mesa e é show! Como pro exemplo, o

último tchan, o último lançamento da gente aqui, nutella com morango... [pausa].

Então, o que eu vi na pizzaria, pizza de chocolate com morango. Eu trouxe pra cá, deu

certo! Ai, de repente, a nutella surgiu na televisão. Eu disse: opa! Corri no

supermercado, comprei um potinho de nutella. Ai eu fiz a comparação da de chocolate

e da nutella, têm sabores diferentes. Então, se existe sabores diferentes, bota no

cardápio também nutella com morango. A criançada caiu em cima, a juventude caiu em

cima, as pessoas de idade caíram em cima, e hoje ela é conhecida aqui como a “tapioca

do amor”. Dividida no meio, porque ela é uma tapioca diferenciada porque a pessoa

não pede pra comer sozinho. Pede e divide. Depois que come a salgada, queijo com

carne de sol, ai pede uma nutella com morango, divide no meio. Ai os dois vão

saborear. Eles já pedem que a gente já leve dividida. (Tapioqueiro R.)

Noto que o entrevistado acima teve como fundamento a apreensão de vários tipos de

informações e de conexões entre os sujeitos que compõem seu ambiente familiar e de trabalho.

Os conhecimentos dos cursos profissionalizantes, os meios de comunicação, a observação do

que produzem os outros locais, a atenção a opiniões pessoais, como da família, dos funcionários

e dos clientes, são aspectos que pude apreender desse processo de inovação/criação.

Partindo do que foi citado por este permissionário, elenco os seguintes elementos de

acordo com os objetivos da pesquisa: a) trajetória de vida familiar e profissional; b) participação

nos cursos profissionalizantes; c) formação como tapioqueiro, cotidianamente, no Centro; d)

apreensão de informações a partir de outras variantes; e) interdependência de outros sujeitos; e

f) o ponto de vista do cliente.

Proveniente do Estado do Piauí, Brasil, as experiências alimentares do tapioqueiro

R. eram somente na posição social de comensal. Ele me contou, durante entrevista, que Lidava

com tapioca somente com a boca (22/06/2016). Aliás, antes do CETARME, suas ocupações

profissionais envolviam tarefas totalmente distintas da dinâmica da cozinha.

Eu já conhecia tapioca desde quando eu nasci, que a gente [familiares] foi criado no

interior. A gente nasceu [leia-se criado] em casa de farinha. E lá se fazia, depois da

farinhada, as tapiocas. Aquela tapioca caseira, diferenciada dessa daqui. O “beiju”

chamado. Lá na nossa região, a gente conhece mais como beiju. E pra mim foi um

desafio muito grande, porque antes eu trabalhava como vendedor externo. Eu vendia

panela, de porta em porta. É a história do galego, chamado aqui no Ceará. E eu aceitar

trabalhar numa atividade que era desconhecida pra mim. Mas, eu fui pedindo ajuda!

Aqui são 26 boxes, e ai eu fazia amizade e chamava um, chamava outro, e perguntava

como era e ia me dizendo, me mostrando, outro fazia pra me ver... e eu terminei

aprendendo. (Tapioqueiro R.)

Page 79: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

79

Saindo do âmbito da alimentação doméstica para aquela feita fora de casa, ele

adaptou aquilo que aprendera durante seus anos de trabalho autônomo à possibilidade de se

tornar “tapioqueiro”. O esforço de estar a todo o momento tentando ganhar a confiança de seus

clientes, promovendo a atratividade dos produtos que vendia, ainda influencia aquilo que ele

vem realizando em sua tapiocaria.

Isso demonstra que os processos de socialização são dinâmicos, intermitentes e

atuam por vários caminhos ao longo da trajetória de vida dos agentes sociais (DARMON,

2015). Os conhecimentos e as práticas aprendidas durante esse fenômeno têm possibilitado ao

permissionário estar municiado para possíveis transformações “gastronômicas” no seu boxe.

Esse ponto de vista só confirma o que evidenciei no segundo capítulo: a ação criativa ou

inovadora tem como um de seus aportes os percursos de vida pessoal e profissional dos agentes

sociais (DE MASI, 2003). Portanto, estar atento ao que os agentes viveram, onde e como

trabalhavam, auxilia na compreensão do que podem fazer hoje em dia.

No que diz respeito aos cursos profissionalizantes, ele afirma que:

Nós tivemos a felicidade de ser acompanhados por essa “luz divina” chamada

SEBRAE. Eu costumo dizer que tudo que ele toca vira ouro. Se assim vice quiser dar

continuidade. E nós tivemos a felicidade deles virem aqui no Centro das Tapioqueiras e

fazer cursos diversos com a gente. E um desses cursos que nos ajuda até hoje e vai nos

ajudar pro resto das nossas vidas, enquanto a gente trabalhar nesse segmento de

tapioca, foi trabalhar com tapioca recheada. Porque até então, a gente conhecia mais a

tapioca tradicional. Era só tradicional com queijo, com leite condensado, só a

tradicional no leite do coco. E ai o SEBRAE veio aqui e nos fascinou com essa ideia de

trabalhar com tapiocas finas e recheadas. E daí, então a tapioca tradicional se

distanciou. Ela vende, ainda é a tapioca mais vendida e mais pedida. [...] Curso de

atendimento, culinária, como manusear a fécula pra trabalhar com essa tapioca fina,

curso de manipulação... então, foi cursos diversos. A única pessoa que chegou leigo

aqui no assunto aqui, foi eu. A única pessoa que realmente não sabia trabalhar com

tapioca era eu. Eu só sabia trabalhar com ela na boca. E pra mim, foi de uma valia

muito grande. E pra quem já conhecia, pra quem já trabalhar com tapioca há muito

tempo, no início eles rejeitaram. No início o SEBRAE chegou dizendo “vamos ensinar

vocês a fazer tapioca”. Ora mais, teve muita gente que disse assim: “tem 80 anos que

trabalho com tapioca, tenho 30 anos, tenho 40 anos, tenho 25 anos que trabalho com

tapioca, eu aprender a fazer tapioca? Que conversa é essa?”. E muitos deles, dos 26

aqui, uns 8 a 9 num foi pro curso não. “Vou fazer o que lá, aprender a fazer tapioca? Eu

nasci em cima de tapioca!”. E ai, depois, no meio do curso, eles perceberam que tava

perdendo muita coisa que tem que ter um toque a mais. Tudo na vida, a cada dia de

passa, a gente aprende um pouco mais. Ai eles entenderam isso ai, e correram pra

dentro da sala e foram trabalhar junto com a gente. Aprender a fazer tapioca. Os

profissionais de tapioca foram aprender a fazer tapioca. E eu, que não sabia, tava lá

desde o início aprendendo tudo que me passavam e guardando até hoje, botando em

prática. (Tapioqueiro R.)

Page 80: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

80

Fiz referência ao empreendedorismo como uma das características que se destaca

entre aqueles que estão envolvidas em projetos criativos (DE MASI, 2003). E no referido caso,

o enfoque recai sobre as atividades realizadas pelo SEBRAE. Tendo o intuito de tornar as(os)

permissionárias(os) do Centro em empreendedores individuais, a promoção dessa perspectiva

tem agenciado um modo de administrar a tapiocaria mais dinâmico e atento às mudanças.

Portanto, aquilo que foi passado por meio dessa perspectiva exige que o “empreendedor” se

renove intermitentemente (ESCARLATE, 2010), a fim de atrair clientes cada vez mais ansiosos

por novidades.

Ele aprendeu saberes e práticas culinárias tradicionais relativas às(aos)

tapioqueiras(os) da A.T. da Paupina de maneira informal,

Hoje eu solto um sorriso largo quando eu me lembro disso daí, mas no início foi

doloroso. A gente jogou muita goma no mato, a gente perdeu muito coco, a gente

perdeu muita tapioca, porque a gente molhava a goma e ia lá pra fazer a tapioca e num

dava certo. Tava molhada demais. Ai voltava pra cá [parte da cozinha], botava mais

goma, ficava seca demais. E ficava nesse impasse. Até que um dia eu alcancei o ponto

x de fazer o ponto da massa, de fazer a tapioca. Ai pronto, de lá pra cá num teve

sofrimento. Teve muito trabalho. (Tapioqueiro R.)

A incorporação dessa culinária tradicional redirecionou sua posição profissional, não

somente como permissionário, mas também como tapioqueiro. E isso não ocorreu de qualquer

maneira e num espaço de tempo curto. Ao longo dos anos ele aprendeu com as tapioqueiras

advindas da Avenida Barão de Aquiraz a preparar a goma de mandioca – ou seja, saber molhar,

peneirar, conservar, escolher o melhor tipo e ter indicação de quem deve comprar – e as

tapiocas.

Em meio às necessidades diárias, mesclam-se os conhecimentos adquiridos de

maneira formal (cursos de qualificação) e informal (saberes e práticas das(os) tapioqueiras(os)).

São momentos em que um se sobrepõe ao outro, mas que podem provocar o surgimento de

novas receitas, técnicas de cocção, de gerenciamento e de atendimento.

Aqui, retomo o exemplo da tapioca recheada com nutella e morango, descrita

anteriormente. Mas o que ressalto agora é a necessidade percebida pelo permissionário de

apresentar uma comida nova aos seus clientes. A forma de pensar está diretamente ligada à

Page 81: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

81

satisfação deste diante do serviço e do que será consumido. Outras fontes também contribuem

significativamente para que esse modo de pensar seja aceito. Duas delas foram citadas pelo

permissionário: a propaganda de televisão e o cardápio de uma pizzaria. No entanto, a maneira

como ele manejou as informações passadas por estes meios é parte substancial no que tentamos

compreender. A confluência dos vários elementos que perpassam as atividades desse

tapioqueiro permitem fagulhas de ações inovadores e criativas.

As interferências de uma globalização alimentar, cada vez mais intensas e

incessantes, facilitam as trocas culturais pelos mais diversos meios de comunicação,

principalmente quando se trata do serviço de uma alimentação fora de casa calcada no

atendimento aos turistas. No entanto, esse serviço vem sofrendo transformações técnicas para

melhor suprir as novas necessidades da sociedade contemporânea (POULAIN, 2013). Assim, a

formulação de novas comidas ou variações destas sofre influência do que ocorre fora do espaço

sociocultural dos atores sociais que atuam diretamente para que isso aconteça.

Outro ponto que deve ser levado em consideração é aquele da cooperação

estabelecida entre os diversos sujeitos que compõem o boxe Silvia Helena. A opinião e o modo

como as(os) suas(seus) funcionárias(os) agem possibilita a concretização ou o descarte de ideias

formuladas pelo tapioqueiro. De acordo com ele, “hoje todas as pessoas que vem trabalhar

comigo aprendem comigo. E no decorrer do tempo eles vão passando para os outros. Mas, num

trabalho aqui com nenhum profissional. Eu gosto de trabalhar com pessoas que querem

aprender. Se torna mais fácil” (Tapioqueiro R.).

A articulação entre os funcionários remete-me à ideia de “rede de cooperação”

(BECKER, 2010). Segundo esta perspectiva, os vários atores que compõem dado mundo

contribuem, sobremaneira, para a produção e a distribuição de determinado produto. Longe de

ser uma relação sem conflitos, eles conseguem estabelecer as mais variadas intervenções, de

maneira flexível, dirigindo-as para um mesmo ponto.

Sob esta ótica, foi fundamental perceber, na minha análise, que a referida tapiocaria

busca a articulação do trabalho em grupo, nada é feito por uma única pessoa. Mesmo havendo

uma hierarquia estabelecida, tendo o tapioqueiro no topo, os demais atores são considerados

como peças importantes no funcionamento deste estabelecimento.

Justamente sob esse aspecto, posso inserir outro ator que influencia na produção e na

comercialização das tapiocas no boxe Silvia Helena: o cliente/comensal. Sobre isso, a visão do

Page 82: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

82

permissionário é a seguinte:

Eu costumo dizer que o freguês ele primeiro come com os olhos. Aí, depois que ele

come com os olhos, é que ele vai perceber se o que ele tá comendo com os olhos tem

mesmo sabor com o paladar dele. Rapaz eu vivo de um aprendizado sem fim. Eu adoro

sugestão, eu adoro crítica. A crítica me ajuda a crescer e a sugestão me ajuda a criar.

Então, eu gosto tudo que vem do cliente. Tudo que vem do cliente é bem-vindo. É

porque é assim, hoje o atendente tá habituado a trabalhar com o paladar do cliente. O

que é o “paladar do cliente”? Eu tenho aqui uma tapioca de carne de sol com queijo, no

cardápio, aí o cliente chega e diz assim: “eu queria queijo, carne do sol, ovo e

requeijão, tem?”. Aí o quê que o atendente passa pra esse cliente: “Não tem no

cardápio, mas eu faço a sua tapioca agora!”. Aí vem no forneiro, diz como é que o

cliente tá querendo a tapioca dele, a tapioca é feita e o cliente sai daqui morto de

satisfeito. A gente costuma dizer que o cliente pegue ele [cardápio] vire ele, derrame

tudo que tem na mesa, tudo que é recheio na mesa e faça a montagem de sua tapioca. O

importante é ele sair daqui contente. (Tapioqueiro R.)

O Centro recebe uma diversidade de clientes – locais, regionais, nacionais e

internacionais. Não se tem controle das características desses visitantes, contudo, as(os)

tapioqueiras(os) estão em contato diário com diferentes gostos alimentares, e lidar com essa

variedade, exige um movimento duplo: manter a tradição da tapioca ao mesmo tempo em que se

pode ajustá-la as mais diferentes preferências gustativas.

A partir disso, entendo que, no boxe Silvia Helena, não existem “perdas” definitivas,

pois as tradições culinárias aprendidas sãos mescladas com novos ingredientes a fim de agradar

o paladar do cliente. Já no caso da Tapiocaria da Xuxa, por conta da trajetória profissional da

permissionária como tapioqueira, sua situação difere da do boxe Silvia Helena, pois questões

como a “criatividade” são apresentadas com outras conotações. Isso fica claro na afirmação

proferida pela permissionária: Criar pra quê? Eu tenho mais de cem sabores de tapioca

(Tapioqueira N.).

Durante minhas observações e entrevistas, apreendi que a presença da mudança é

distinta daquela encontrada no discurso do permissionário R.. Desse modo, analiso essa situação

sob vários aspectos: a) trajetória de vida; b) sua constituição como tapioqueira; c) participação

nos cursos profissionalizantes; d) maneira de apreender informações externas; e)

interdependência em relação aos seus funcionários; e f) seu ponto de vista sobre o cliente. São

pontos praticamente iguais que utilizo para constituir o entendimento do processo criativo no

boxe Silvia Helena.

A Tapioqueira N. nunca esteve diretamente ligada ao fazer do tapioqueiro. Seus

Page 83: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

83

primeiros contatos com esse universo se deram na infância. Assim como o tapioqueiro R., de

modo indireto, antes como comensal. Entretanto, foi na família de seu primeiro marido que ela

se iniciou nessa profissão. Quer dizer, ela tomou a decisão de ingressar no trabalho de produzir e

de comercializar tapiocas:

Desde aquele momento, que eu comecei fazer tapioca, eu tinha uns 33 anos. Vendo a

minha sogra fazendo tapioca, eu achei que aquele fluxo de carro e aquela renda dava

muito. Meu marido, na época, trabalhava como gerente de uma construção, de material

de construção, e evitei de fazer uma tapioqueria né?! De montar uma tapioqueria pra

mim. Vixe, foi muito difícil. Muito difícil, porque ele não queria. Mas, aí eu consegui

dinheiro emprestado e montei minha tapioqueria. Quando ele viu que aquilo ali dava,

que aquilo ali dava bastante, era muito, tinha muito fluxo de carro vindo na litoral leste,

todos passavam na frente. Então, a gente tinha um movimento muito grande. Era

somente aquela tapioca tradicional redondinha com coco. (Tapioqueira N.)

Sua tapiocaria foi construída nas “Antigas Tapioqueiras”, estabelecimento edificado

a base de tijolo e cimento, muito próximo a casa dela. Predominava o trabalho em família, os

utensílios utilizados para preparação e consumo das tapiocas não levavam a sofisticação de uma

gastronomia erudita e a relação com os clientes tendia ao âmbito do privado (BEZERRA, 2005).

Por um período de 20 anos, ela aprendeu e ensinou essencialmente o ofício de

tapioqueira na família, como: escolher o melhor tipo de goma de mandioca; a quantidade ideal

de água tanto para molhar como para peneirar a goma; o modo de fazer as tapiocas; habilidades

para atender os clientes, enfim, saberes e fazeres transmitidos de maneira informal. Não havia

receita totalmente fixa ou prescrições por escrito.

O contexto acima se assemelha àquele que Montanari (2008) expõe para classificar

o que vem a ser uma cozinha oral. Esta é descrita como pertencente à classe camponesa

europeia nos tempos e nos lugares onde não havia a transcrição das receitas. Embora

representem situações díspares daquelas que acontecem nas classes aristocráticas do

mesocontinente, o autor define o registro gráfico de todos os procedimentos, desde a cocção ao

consumo das comidas, como elemento promotor da cozinha escrita, que posso dizer fundadora

da Gastronomia francesa.

No caso desta pesquisa, as mudanças que ocorriam estavam, fundamentalmente,

ligadas às necessidades diárias da própria tapiocaria. Uma delas, comumente praticada pelas

demais que compunham as Antigas Tapioqueiras da Paupina, foi a utilização do fundo da lata de

Page 84: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

84

goiabada como forma de mediação para a feitura das tapiocas. A culinária tradicional e popular

praticada por aquelas mulheres não tinha a preocupação em relação às inovações.

O tratamento despendido neste trabalho sobre as noções de culinária, tradicional e

popular, refere-se principalmente àquelas práticas da A.T: as técnicas e os conhecimentos na

preparação de tapiocas pelas(os) tapioqueira (os) da Paupina há mais de 50 anos. E que estas(es)

comungavam uma situação financeira não abastada, pois moravam na periferia de Fortaleza em

que os preços das tapiocas eram baixos.

Sobre o termo culinária, não se tem uma definição científica concisa no âmbito da

sociologia da alimentação. Sendo assim, utilizo o que Poulain (2013) e Dória (2014) dizem a

respeito: conhecimento prático de preparar comidas. Desse modo, são as técnicas empregadas

para o processo de cocção das tapiocas. A respeito disto, o aspecto mais apontado e relevante

para os sujeitos entrevistados é o procedimento de “molhar a goma de mandioca”. Já que sem a

execução e o conhecimento adequados não se faz uma “boa tapioca”.

Já a noção de tradição, adoto-a na perspectiva de que as práticas e os saberes

considerados tradicionais são inventados (MONTANARI, 2008; HOBSBWAN; RANGER,

1997). Desse modo, são construtos sociais suscetíveis às mudanças do tempo e do espaço.

Sendo assim, no presente estudo, o Centro das Tapioqueiras tanto agrega uma carga tradicional

advinda das A.T.’s como é considerado – principalmente pelo governo do Estado do Ceará –

como espaço tradicional da gastronomia cearense.

E, por último, o vocábulo “popular” é abordado, neste caso, sob o ponto de vista

contrário ao vocábulo “erudito”. Distinção esta que causa controvérsia, pois se tende a

caracterizar aquele com base em tudo o que este não é (CHARTIER, 1992), e que se refere às

classes sociais pobres (SANTOS, 1994). Contudo, mesmo frágil, auxilia-me na análise do que

“é” feito no Centro das Tapioqueiras: uma “gastronomia” regional de base tradicional popular.

A participação das(os) tapioqueiras(os) nos cursos profissionalizantes modificou o

modelo tradicional de produção e comercialização das tapiocas (BEZERRA, 2005). Fazendo

parte desse grupo, a tapioqueira N., apesar de ter resistido no começo, por achar que estavam

tentando ensiná-la a fazer algo que ela própria já sabia, cedeu a esta condição de adaptação.

Seu modo de administrar e produzir as tapiocas mudou. Do mesmo modo que o

permissionário R., ela teve que acompanhar aquilo que os poderes público e privado entendiam

como setor de serviços alimentícios, como este devia proceder, a fim de melhor atender os

Page 85: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

85

clientes, em especial, os turistas. Desse modo, tudo aquilo que aprendera ganhou uma nova

dimensão. Não posso afirmar que todas as suas características como tapioqueira continuam ou

que sua culinária se “perdeu”, porém, muito daquilo que era praticado e conhecido, hoje

coexiste com novos conteúdos.

Embora não tenha tido acesso às primeiras apostilas utilizadas, ela disponibilizou

para a pesquisa um dos últimos materiais trabalhados pelo SEBRAE no CETARME. A

finalidade do documento é conformar os participantes ao empreendedorismo:

Figura 8: Apostila “Apreender a empreender”

(Fonte: autor, 2016)

O estudo parte de um curso de qualificação a distância cujo objetivo é melhorar o

gerenciamento de uma empresa. Esse material ensina como o empreendedor deve administrar

seu processo de autoaprendizagem. Isto é, ele é ensinado e motivado a buscar e organizar novos

conhecimentos por conta própria, a fim de se adaptar às mudanças ocorridas no mercado. Posso

pensar, com base nos “grupos criativos” estudados por De Masi (2003), que investimentos na

aquisição desses conhecimentos também possibilitaram aos sujeitos de minha pesquisa

caminhos em direção às criações e às inovações.

Na Tapiocaria da Xuxa, isso acontece de maneira esporádica. Talvez pelo fato de

estar muito vinculada ao que realizava na A.T.. A permissionária não se preocupa em modificar

o serviço e as comidas do seu boxe. Aqui, faz-se um contraponto entre a Tapiocaria da Xuxa e o

Page 86: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

86

que é realizado pelo tapioqueiro R., no boxe Silvia Helena, sempre inquieto, no desejo de atrair

a atenção dos clientes por meio de novidades.

Quanto à dinâmica entre os sujeitos que compõem a tapiocaria da Xuxa, esta se

diferencia da anterior pelo fato de ter menos funcionários e por alguns deles serem parentes da

permissionária. Esta segunda característica a vincula, mais fortemente, aos hábitos concernente

à A.T. Sendo assim, apesar do Centro ter propiciado uma formalização das relações sociais, com

a separação entre o local de trabalho e a casa (BEZERRA, 2005), ainda assim as relações de

parentesco ajudam a constituir o referido boxe.

No que se refere ao ponto de vista da permissionária em relação aos clientes, ela

afirma que são eles que contribuem para a elaboração de novas tapiocas. “A tapioca geleia de

pimenta foi criada por mim. Quer dizer, quando a pessoa vem de fora, que fala, aí eu já... Nunca

mais eu fiz, nunca mais veio ninguém pra me dar uma ideia. Aí essa de geleia de pimenta com

queijo. A tapioca da Xuxa foi eu mesma quem criei.” (Tapioqueira N.). Neste boxe, as

possibilidades criativas e inovadoras são geradas levando em conta o gosto alimentar destes

atores. Portanto, o foco principal se dá na contribuição dos próprios consumidores. Eles podem

pedir recheios que não estão no cardápio, como é o caso da tapioca Romeu e Julieta. Assim, se a

permissionária gostou do modelo elaborado por um de seus clientes, este é logo introduzido no

menu de sua tapiocaria.

A tapioca da Xuxa foi uma criação dessa permissionária. Esta contém inúmeros

ingredientes: carne de sol, queijo, bacon, calabresa, tomate e orégano. A concepção, segunda a

tapioqueira, não foi meticulosa e nem intencional. A criação surgiu de uma inspiração casual,

com o intento de colocar tudo aquilo que ela própria gosta em uma tapioca fina. Entretanto,

compreendo que se trata de uma prática culinária reformulada pelos cursos de qualificação.

Quer dizer, apropriou-se, mesmo que de maneira não consciente, de dois esquemas relacionados

à gastronomia: a estética e a reelaboração de comidas já conhecidas.

O único objetivo era preparar as tapiocas tradicionais e vendê-las. E tudo em

conformidade com aquilo que aprendera com a sua sogra. Todavia, a partir do CETARME, o

conhecimento que a tapioqueira N. possuía foi articulado a outros saberes: gastronômico,

empresarial, segurança alimentar, associativismo etc. Ou seja, com esse processo de

miscigenação cultural (POULAIN, 2013), originou-se algo inovador: uma “gastronomia”

regional criativa, de base tradicional e popular.

Page 87: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

87

5 RELAÇÃO ENTRE PERMISSIONÁRIAS(OS) E GOVERNO DO ESTADO DO

CEARÁ

A pesquisa de campo subsidiou a compreensão de que os contatos estabelecidos

entre as(os) permissionárias(os) do CETARME com agentes do governo Estado do Ceará são

movidos por alternâncias entre tempos de conflito e de calmaria. Ou seja, ora aqueles

expressam publicamente, via jornais impressos e televisivos, sua indignação frente ao abandono

do Centro pelo poder público, ora parece tudo estar resolvido. Contudo, as queixas estão

latentes, parecendo aguardar as circunstâncias e as pessoas propícias para emergirem

novamente.

Assim, tentando entender como isso acontece e de que modo influencia na produção

e comercialização de tapiocas, este capítulo trata especificamente da relação entre as(os)

permissionárias(os) e as ações empreendidas ou não pela Secretaria do Trabalho e

Desenvolvimento Social (STDS) e a Secretaria de Turismo (SETUR), ambas do Estado do

Ceará. Para tanto, o capítulo estrutura-se em três momentos: a) condição de permissionárias(os);

b) estrutura física do Centro; e c) CETARME como ponto turístico da “gastronomia regional”

cearense.

Deste modo, aponto que minhas referências empíricas estão fundamentadas nas falas

do permissionário R. e da permissionária N.. Os demais discursos, tanto das(os) outras(os)

permissionárias(os) quanto do coordenador de empreendedorismo da STDS, serão expostos por

meio dos diários de campo40

. Aliás, ainda trabalho com aquilo que é dito pela Secretaria de

Turismo (SETUR) do Estado do Ceará a respeito do meu objeto de pesquisa por meio de sua

página na internet.

Já disse anteriormente que as(os) tapioqueiras(os) pesquisadas(os) são abordadas(os)

neste trabalho também como permissionárias(os), isto é, sujeitos que detêm a permissão de

utilizar um boxe no CETARME. E acrescento: tal condição é formalizada por um “termo de

comodato”41

, documento que oficializa essas pessoas a gerenciar uma tapiocaria neste espaço.

Portanto, o local onde trabalham “não é delas(es)”, mas trata-se de um equipamento turístico do

40

Algumas entrevistas não puderem ser gravadas por decisão dos próprios pesquisados, deixando-me como opção

anotar em papel seus discursos. Desta maneira, usando o recurso das anotações em blocos de nota e de memórias,

fiz as transcrições um turno depois. Portanto, coloco suas afirmações por meio dos meus diários de campo. 41

Não tive acesso a esse documento.

Page 88: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

88

Estado do Ceará.

A maneira como isto ocorre é controversa desde os primeiros anos de

funcionamento do Centro. Após o ano de 2002, a prática de aluguel ou de venda de tapiocarias

para outras pessoas, até mesmo para as(os) permissionária (os) ao lado, tem sido recorrente. Na

maioria dos casos, o motivo da desistência é a dificuldade de manter financeiramente o

estabelecimento.

Diante dessas mudanças, elenco três tipos de permissionárias(os): as(os) que advêm

das Antigas Tapioqueiras; as(os) que entraram e aquelas que entram no Centro após sua

inauguração. Esta divisão tem sua relevância quando o assunto é a identidade de

“tapioqueira(o)”, a relação dos novatos com a ATP e como os agentes da Secretaria do Trabalho

e Desenvolvimento Social (STDS) do Estado do Ceará têm interpretado essa situação de

permuta.

Dentre os sujeitos provenientes das Tapioqueiras da Paupina, localizadas na

Avenida Barão de Aquiraz, que ganharam a permissão de ocupar um boxe no CETARME,

poucos são os que permanecem. Entre as 26 tapiocarias deste local, apenas oito são gerenciadas

por essas pessoas – ou por seus familiares. As demais são inseridas nos outros dois tipos de

permissionárias(os). As tapiocarias “Tia Neuma” e “da Xuxa” são dois exemplos desses

remanescentes. A primeira é administrada pela permissionária V., passando a esta posição em

virtude de problemas de saúde de sua mãe – Neuma, tapioqueira da Paupina. Já a segunda é

dirigida pela N. (já mencionada anteriormente).

A transição para o Centro das Tapioqueiras modificou o estilo de vida e a prática

culinária dessas pessoas (BEZERRA, 2005). De um ambiente que correlacionava casa/trabalho,

passaram para um lugar onde estes dois elementos andam “separados”. Quer dizer, as relações

familiares não preponderam na dinâmica de todo boxe. Contudo, de uma maneira ou de outra,

ainda persistem.

A lógica predominante não é mais do âmbito privado, das relações de vizinhança,

onde as decisões e a produção de tapioca eram executadas com base nas relações familiares. As

determinações passam agora pela esfera pública, ou seja, os crivos dos agentes do governo e de

empresas privadas que influenciam na organização das tapiocarias do CETARME.

Quanto aos que ingressaram no Centro das Tapioqueiras logo após a construção

deste, a posição de “permissionária(o)” ganha outra conotação. Trata-se agora de pessoas que

Page 89: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

89

não tinham a prática de fazer e de vender tapiocas. Melhor dizendo, entre aqueles que

permanecem, houve na necessidade de aprender o ofício de tapioqueira(o) ao mesmo tempo em

que eram instruídos a obedecer às normas estabelecidas no Regimento da ATP.

Exponho aqui dois destes casos: o tapioqueiro R., no boxe Silvia Helena; e a

tapioqueira L., no boxe Recanto do Sertão. Apesar de terem trajetórias de vida distintas, ambos

se enquadram na condição acima. Ao longo dos anos, eles tiveram que aprender a fazer tapioca,

assim como se encaixar ao modelo de comercialização já estabelecido com as(os)

permissionárias(os) que tivessem mais acessibilidade. E, no período da pesquisa, observo que se

tratam dos dois estabelecimentos que mais recebem clientes.

Nesse caso, eles estão mais preocupados em inovar seus produtos e reformular o

modo de atendimento, diferentemente daqueles que ainda têm suas raízes nas Antigas

Tapioqueiras. Eles ainda não têm uma constante preocupação com a criação de outros modelos

de tapioca ou de outras maneiras de chamar a atenção dos consumidores.

No que diz respeito àqueles que têm adentrado no Centro recentemente, sua relação

com a ATP é em certa medida conflituosa. Com pouco tempo nesse espaço, as regras e os

costumes já estabelecidos entre os demais ainda não são conhecidos, e, se são, não foram

colocados em prática.

Quanto às condições físicas do CETARME, já apontei alguns elementos no capítulo

anterior, tais como: problemas na cobertura e nos estacionamentos. Esses dois fatores já

resultaram em reclamações pelos meios de comunicação – jornais impressos. A principal

palavra que expressa essa relação é “abandono”. Alguns sujeitos do Centro divergem sobre a

maneira de lidar com a situação, porém há consenso quanto à falta de auxílio por parte do poder

público.

Os agentes colocam a situação sobre dois pontos: por um lado, a construção e a

organização do CETARME foram grandes benefícios governamentais; por outro, aquilo que foi

realizado e que eventualmente se executa não está de acordo com as reais necessidades deste

local. Assim, são recorrentes as expressões de decepção em relação às intervenções dos últimos

governos estaduais do Ceará, já que são poucas ou inexistem.

A última informação que tive a respeito desse assunto foi a de que havia a

elaboração um projeto, pela coordenadoria de empreendedorismo da STDS, para a reforma do

Centro. Foram planejados dois modelos de intervenção, porém não houve consenso entre os

Page 90: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

90

sujeitos – tapioqueiras(os), artesãs(ãos) e agentes públicos.

Os discursos desses atores sociais são marcados ora por consensos, ora por conflitos,

a depender das circunstâncias apresentadas. Quando a situação exprime possíveis vantagens

para outrem, lançam-se artifícios para que não haja perda daquilo que já é possuído. Por meio de

negociações, tenta-se chegar a um consenso, havendo benefícios para todas as partes.

Entretanto, nas etapas concernentes ao referido projeto, têm acontecido tensões entre

representantes das(os) tapioqueiras(os) e das(os) artesãs(ãos). Desse modo, diante dos impasses,

o projeto ainda não foi finalizado até o presente momento.

A Secretaria de Turismo do Estado do Ceará (SETUR) mantém uma relação com o

Centro das Tapioqueiras apenas de publicidade. A única ação investida é a exposição deste

espaço como atrativo turístico por meio de sua página na internet:

Figura 9: CETARME – forno a lenha

(Fonte: SETUR, 17/12/2015)

Apresenta-se esse espaço a partir do “rústico”, do “regional”, do “tradicional” e da

“diversidade”. Contudo, depois de 12 anos, após a publicação dessa fotografia, vários aspectos

foram modificados. Um deles é a utilização da chapa a gás em detrimento do forno a lenha e a

própria prática culinária desses sujeitos. Desse modo, a partir desse informativo, pode-se

conceber que o lugar e as pessoas ainda são os mesmos. Entretanto, sendo as(os)

tapioqueiras(os) seres socioculturais, suas práticas e discursos não são fixos como uma “atitude

imóvel” perpétua (PASQUIER, 2005). As alterações ocorrem, embora não seja do dia para a

noite, mas, certamente, a estrutura do CETARME e as pessoas que o compõem modificam-se de

acordo com as circunstâncias sociais que lhe são dadas.

Page 91: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

91

Esse conteúdo sobre o Centro das Tapioqueiras está inserido no link “turismo

cultural”, especificamente relacionado à “Gastronomia”. Vejamos as representações da SETUR

em torno do primeiro ponto:

Movido pela busca de informações, o turista agrega os novos conhecimentos à

interação com outras pessoas, comunidades e lugares. Motivados pela curiosidade

sobre costumes e tradições, turistas do mundo inteiro procuram a identidade cultural de

cada lugar que visitam. No Ceará, o elo entre o passado e o presente, o contato e a

convivência com o legado cultural abrem perspectivas para a valorização e

revitalização do patrimônio, do revigoramento das tradições, da redescoberta de bens

culturais materiais e imateriais, muitas vezes abafadas pela concepção moderna. Todas

as regiões possuem um rico acervo cultural representado pela arte, tradição e memória.

(SETUR, 2015)

Antes de analisar este discurso e de que modo ele interfere na dinâmica do

CETARME, faz-se necessário retomar o entendimento daquilo que é definido como cultura.

Desse modo, alguns elementos são apontados: “costumes”, “tradições”, “identidade”,

“patrimônio”, “arte” e “memória”. Todos devidamente relacionados a um determinado lugar e

tempo. Logo, “cultura” mobiliza a compreensão de tudo aquilo que pode identificar uma

sociedade.

A intenção é fazer com que os turistas se sintam atraídos pelas diversas

manifestações culturais do Estado do Ceará. Nesse sentido, as “gastronomias” cearenses foram

postas como produtos turísticos. Esta concepção da SETUR-CE não está alheia àquilo que está

no âmbito nacional. A representação que o Ministério do Turismo brasileiro elaborou, no seu

último documento, promove a cultura como produto turístico:

Nos últimos anos, novos produtos turísticos culturais vêm ampliando a percepção das

possibilidades de interpretação e sentidos para os bens culturais do país, antes restrita

ao patrimônio edificado e a algumas festas tradicionais brasileiras. Assim, as diversas

combinações da cultura e do turismo configuram o segmento de Turismo Cultural, que

é marcado pela motivação do turista de se deslocar especialmente com a finalidade de

vivenciar os aspectos e situações que são peculiares da nossa cultura. (BRASIL, 2010)

O atual contexto do consumo turístico tem reivindicado novos atrativos. Para além

do patrimônio natural e “edificado” (prédios históricos), a inserção das “gastronomias”, das

músicas, das danças, das festas, dos artesanatos, entre outras manifestações culturais, tem como

objetivo atender à demanda de viajantes que têm reclamado por conhecer os aspectos sociais e

Page 92: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

92

culturais dos lugares que visitam (idem, 2010).

Abrem-se as portas, assim, para o chamado “turismo gastronômico”. Termo

relativamente recente que tem sido definido da seguinte maneira: “a visita a produtores

primários ou secundários de alimentos, participação em festivais gastronômicos e busca de

restaurantes ou lugares específicos onde a degustação de pratos e/ou a experimentação dos

atributos de uma região especializada na produção de alimentos é a razão principal para a

realização de uma viagem” (HALL; SHARPLES, 2003. In: SCHLÜTER; ELLUL, 2008).

Porém, no âmbito cearense, essa área alimentar tem sido um assessório para a rede de hotelaria e

estabelecimentos de serviço que se encontram à beira-mar. Logo, não há, ainda, atividades

planejadas pela SETUR-CE no que diz respeito às “gastronomias” regionais do Ceará.

Quanto ao termo “gastronomia”, no material coletado ao longo da pesquisa, não há

uma definição clara para sua utilização. Porém, a partir das descrições acerca das

“gastronomias”42

cearenses, elenco elementos gerais para compreender o emprego desse

vocábulo pela SETUR. Vejamos a seguinte tabela:

Tabela 1: “Gastronomias” cearenses relacionadas à determinada região e cidade

Gastronomias/Localidade Comidas Principais características

Fortaleza (região praiana)

Peixes, caranguejo, lagosta,

camarão, pizza com

ingredientes locais e

sovertes de frutas regionais;

Mistura de ingredientes regionais e

internacionais; ênfase na tradição;

Serras de Aratanha e de Baturité

(região serrana)

Fondue de carne e queijo,

doces, crepes, aguardentes,

licores, café ecológico,

tapiocas, cuscuz com carne

de sol;

Apresenta pratos de outras

nacionalidades influenciando e

coexistindo no menu regional;

Cariri (região sertaneja) Comidas à base de pequi

(fruta local); Destaca o que é produzido na

região;

Polo Jericoacoara (Taíba,

Flecheiras e Jericoacoara) (região

praiana)

Peixes, frutos do mar e comidas regionais; Enfatiza a tradição, o “típico”, os

pratos nacionais e internacionais;

Polo Canoa Quebrada

(Pindoretama, Canoa Quebrada e

Centro das Tapioqueiras43

) (região

praiana)

Peixes, caranguejo,

camarão, lagostas,

rapadura, cachaça artesanal

e tapiocas.

Realça a variedade de comidas

regionais e internacionais.

(Fonte: Elaboração do autor)

42

A colocação no plural assinala os vários tipos de “gastronomias” descritos pela SETUR no território cearense. 43

É colocado, logo após o polo de Jericoacoara, como lugar que pode ser visitado na volta do litoral Leste. Não é

incluso, especificamente, em nenhum dessas “gastronomias” apresentadas. Colocamos juntamente com o último por

conta do trajeto de acima descrito.

Page 93: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

93

As regiões praiana, sertaneja e serrana, a partir das respectivas cidades apresentadas,

são relacionadas com algumas comidas características de sua localidade. Mas, além disso,

apontam pratos tanto nacionais quanto internacionais. Neste quesito, a cidade de Fortaleza-CE é

descrita como o lugar que agrega esses três aspectos: estrangeiro, nacional e regional,

mesclando-os a depender do estabelecimento. Consequentemente, inclino-me a afirmar que os

vocábulos tradicional e regional, bem como “mistura” e “diversidade” contribuem para aquilo

que a SETUR-CE denomina de “gastronomia” cearense.

Os termos “tradicional” e “regional” são utilizados para caracterizar as comidas

produzidas e consumidas em território cearense e/ou brasileiro. E os vocábulos “diversidade” e

“mistura” são introduzidos a fim de ressaltar a variedade de opções alimentares tanto locais

quanto de outras sociedades; e a mesclagem realizada parte destes dois elementos, dando origem

a novos pratos.

A ideia de “processo de mesclagem cultural” (POULAIN, 2013) auxilia justamente

na construção temporária dessa definição. Assim, aplicada essa compreensão ao Centro das

Tapioqueiras, a partir dos boxes investigados, percebe-se imediatamente que há produção e

comercialização de comidas tradicionais, regionais e as que são fruto de mesclagens. Vejamos

as seguintes tabelas:

Tabela 2: Comidas apresentadas nas tapiocarias analisadas

Cardápio Tradicional/Regional Mesclagem

Tapiocas Tradicionais

Simples/tradicional: feita com

coco ralado;

Queijo; queijo assado; leite

condensado; ovo; chocolate; queijo e

chocolate; goiabada; doce de leite;

queijo e presunto; nata; manteiga;

carne de sol; frango; bacon; camarão;

Tapiocas Finas

Sem recheio

Ovos; queijo; presunto; carne do sol

com queijo; frango com catupiry;

bacon e requeijão; camarão e

catupiry; calabresa, queijo e ovos;

sardinha; carne moída, calabresa e

ovo; atum e queijo; bacalhau; carne de

caranguejo; coco e chocolate; banana e

canela; abacaxi, queijo e leite

condensado; nutella com morango;

maçã, leite condensado e canela etc.

Outras comidas

Cuscuz paulista;

panelada; feijoada;

caldo; canja; carneiro; paçoca; galinha caipira;

Cada uma das comidas descritas à

esquerda possuem suas Variações em cada cardápio;

Page 94: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

94

Bebidas

Café; cajuína caseira; sucos e

vitaminas de frutas locais

(cajá, caju, goiaba, laranja,

abacaxi etc.).

O café é a bebida com maior

diversidade de opções.

(Fonte: Elaboração do autor)

A “gastronomia” cearense é utilizada como atrativo cultural para atender ao público

turístico. Não há políticas públicas específicas para o desenvolvimento dessa área, o que

acontece, pontualmente, são eventos de festivais gastronômicos com a intenção de tornar o lugar

atrativo para visitantes. Portanto, não existem planos específicos, por parte da SETUR, para esse

setor no Ceará.

5.1 PROMOVENDO O EMPREENDEDORISMO INDIVIDUAL: INTERVENÇÕES DO

SEBRAE NO CENTRO DAS TAPIOQUEIRAS

De antemão, afirmo que, neste último ponto do trabalho, a questão do

empreendedorismo é associada à ação que o SEBRAE tem direcionado às(aos)

permissionárias(os) do Centro das Tapioqueiras como agente formador de empreendedores

individuais. Deste modo, apresento alguns elementos que têm influenciado nesta ação e como

as(os) tapioqueiras(os) têm lidado com a implantação “não coercitiva” dessa disposição.

Começo com o entendimento do SEBRAE a respeito do empreendedorismo

individual:

O empreendedor individual é aquele pequeninho (camelô, pipoqueiro etc.) que não

pode emitir uma nota fiscal. Aquele pequeninho que quando vai comprar um produto,

às vezes, tem dificuldade de comprar numa quantidade maior ou de um fornecedor com

um preço melhor. Porque não tem o CNPJ. Cabeleireiro tem produto que só pode

comprar se tiver CNPJ. Aí o cabeleireiro que é informal, ele vai pedir a alguém que

pode emitir a nota; geralmente cai na mão de um intermediário. Compra mais caro.

Eles, geralmente, não pagam o INSS como autônomo. Então, se ficar doente, se

engravidar, não tem nenhum benefício social. E o empreendedor individual veio

justamente pra atender a essa demanda. Então, ele pode faturar até 60 mil por ano. Se

ele for comércio ou indústria ele vai pagar 1 real de imposto por mês fixo. Todos os

impostos vão ser 1 real. Se for serviço, todos os impostos dele por mês vão ser 5 reais.

Ele não precisa declarar imposto de renda. Ele não precisa emitir nota fiscal, exceto se

ele for vender para uma pessoa jurídica. Pode ter um funcionário de carteira assinada. E

vai ter os benefícios do INSS, pagando apenas 5% do valor do salário mínimo. Então,

ele vai ter a seguridade social, ele vai poder ir no banco fazer empréstimo – linha de

crédito específico como empreendedor individual. Ele vai poder emitir uma nota fiscal,

se assim o cliente pedir. E, no final do ano, ele vai fazer uma declaração, assinar de

próprio punho dizendo que faturou até 60 mil/ano. Ele tem uma série de vantagens, de

Page 95: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

95

facilidades. Ele entra no site, preenche lá os campos, e na mesma hora sai o cartão do

CNPJ dele. É gratuito. E se ele for dar baixa, entra no site e dá baixa da empresa. O

empreendedor individual foi criado para facilitar, para estimular que esse pequenininho

se torne formalizado e ele possa crescer. E que no futuro ele possa se tornar um ME

(Microempresa) e assim por diante. (Interlocutora do SEBRAE, E.T.)

O objetivo, então, é formalizar o trabalhador autônomo para que este venha a pagar

impostos. A “facilidade” apresentada concerne a este sujeito a possibilidade de conseguir

empréstimos, aposentadoria e outros direitos trabalhistas. Contudo, foca-se no “pequeninho”,

sujeito que possui um negócio (comércio, indústria ou estabelecimento de serviço) de pequeno

porte. É promovido um discurso de “crescimento” econômico e de “segurança” social para que

esses pequenos empresários formalizem seu negócio.

No Centro das Tapioqueiras, essa intervenção se fez presente desde o processo de

adaptação das(os) tapioqueiras(os) até as novas condições de trabalho. Os cursos de capacitação

promovidos por essa empresa conduziram estes sujeitos a práticas e modos de pensar mais

sistemáticos e racionalizados. Quer dizer, apontaram um caminho para a formatação dessas

pessoas como empreendedores.

Vejamos como ocorreram essas primeiras ações no discurso do SEBRAE:

O SEBRAE fez uma intervenção com elas pra que elas já chegassem lá nos boxes de

uma maneira mais profissionalizada: a parte de atendimento, de higiene, de boas

práticas, de manipulação de alimentos... E na época nós fizemos alguns cursos com

elas. Palestras e tudo. Como administrar aquele negócio. Passado um tempo, o

SEBRAE sempre estava voltando e fazendo alguma intervenção na área de capacitação

com elas. Parou! Elas começaram a andar com suas próprias pernas. (Interlocutora do

SEBRAE, E.T.)

Dois pontos a serem ressaltados: a) o ensino de como administrar o próprio negócio;

e b) andar com as próprias pernas. O primeiro nos remete propriamente aos cursos, todavia

assinala a inserção de outra maneira de pensar. A partir do que foi apresentado, o conhecimento

das(os) tapioqueiras(os) era insuficiente ou inadequado para lidar com as novas circunstâncias

que passariam a enfrentar. Em um equipamento legitimamente definido como turístico e com as

exigências postuladas – um cardápio muito diversificado – o modo como essas pessoas

deveriam dirigir suas tapiocarias teriam que passar por mudanças.

Exemplo disso foi abordado no capítulo 3. O simples ato de pôr no papel todas as

etapas de produção da tapioca tradicional, como: estabelecer bons fornecedores; preocupar-se

Page 96: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

96

com a qualidade e a quantidade dos produtos comprados; buscar a medição exata da preparação

da comida; fazer o cálculo para estabelecer os preços nos cardápios e para administrar as

finanças do boxe; saber o modo como gerenciar os comportamentos dos funcionários; e fazer,

de maneira correta, a abordagem aos clientes etc, não quer dizer que essas características

estivessem ausentes nas Antigas Tapioqueiras, mas uma lógica específica de como conduzir um

estabelecimento de serviço alimentar foi imposta.

Essa etapa da constituição das(os) tapioqueiras(os) como das(os)permissionárias(os)

do CETARME não teve a intenção direta de fomentar ações criativas e/ou inovadoras por parte

destes sujeitos, tampouco nos cursos realizados nos anos posteriores. Um dos motivos é a

inserção desses novos permissionários no Centro para orientá-los sobre a necessidade de serem

instruídos para aquilo que se espera deles. Logo, segundo E.T. (interlocutora do SEBRAE): “a

gente sempre trabalha com eles o ponto básico: importância da cooperação; o atendimento; e a

parte de higiene e manipulação de alimentos. Sempre trabalha, a princípio, isso: a gestão do

negócio. Não adianta a gente enxertar muita coisa. Tem que dar sempre o primeiro passo. Pra

depois, levar outras coisas pra eles” (28/06/2016).

Chego, agora, ao segundo ponto. A expressão “andar com as próprias pernas” pode

ser interpretada como a independência das(os) permissionárias(os) do Centro em relação às

ações tanto do SEBRAE quanto do Governo do Estado, principalmente no que diz respeito aos

cursos de capacitação.

Um último esforço direto, até então, para formalizá-las(os) à posição de

“empreendedoras(es) individuais” e ensiná-las(os) um modelo de gerenciamento do próprio

negócio a fim de melhor atender às demandas dos turistas estrangeiros, aconteceu no ano que

antecedeu a Copa do Mundo de 2014, em que o Centro das Tapioqueiras recebeu o Programa

SEBRAE 201444

.

O Sebrae no Ceará começou a realizar um trabalho de preparação das tapioqueiras,

com foco no ambiente do mundial da Fifa. A iniciativa faz parte do programa Sebrae

2014 e tem como objetivo aumentar a competitividade do polo gastronômico da tapioca

por meio da capacitação dos proprietários dos boxes para uma gestão mais profissional

do negócios, com a realização de consultorias e treinamentos abordando temas como

atendimento ao cliente, boas práticas na manipulação de alimentos, gestão de pessoas e

gestão financeira, entre outros. (DIÁRIO DO NORDESTE, 26/05/2015)

44

O Programa SEBRAE 2014 teve seis eixos de atuação, são eles: Turismo, Economia Criativa, Têxtil e Vestuário,

Comércio Varejista, Agronegócios e Serviços em geral. O Centro das Tapioqueiras foi inserido neste último ponto

como “polo gastronômico”.

Page 97: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

97

E ainda,

O ponto de partida é o incentivo à formalização já que a grande maioria dos negócios

ainda é informal. Até hoje foram realizados dois encontros de sensibilização para a

apresentação da figura do Empreendedor Individual e as facilidades para legalizar o

negócio de quem fatura até R$ 60 mil por ano, bem como os benefícios previdenciários

e a possibilidade de contratar até um empregado com carteira assinada. Ainda este mês

está previsto um terceiro encontro, em que o Sebrae irá levar até o Centro das

Tapioqueiras toda a estrutura necessária para a formalização. (Idem.)

O escopo é torná-las(os) autônomas(os) na administração da tapiocaria, na produção

das comidas, bem como na resolução de conflitos e de problemas na estrutura física. Trata-se,

portanto, de uma relativa autonomia, ou seja, ao mesmo tempo em que essas pessoas têm a

possibilidade de criar estratégias e outros tipos de comida, elas estão – ou devem estar –

fundamentadas nas diretrizes estabelecidas durante essas aulas preparatórias.

Page 98: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

98

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os processos de preparação e de comercialização das tapiocas no CETARME estão

ligados à criatividade, ainda que de modo incipiente. Poucos são os sujeitos observados e

analisados que colocam este elemento como fundamental no cotidiano de seus respectivos

boxes. Dentre as tapioqueiras N. e V., percebi mais semelhanças que discrepâncias.

Entendo que elas mantêm uma relação muito estreita com as práticas culinárias e

organizacionais características das Antigas Tapioqueiras da Paupina. Em virtude disto, a

dimensão criativa apenas tangencia seus trabalhos, pois não há preocupação constante em

apresentar uma comida e/ou tipo de atendimento novo.

No que diz respeito à tapioqueira Leonícia, por não advir das A.T’s., sua forma de

gerenciar seu boxe orienta-se muito mais para os conteúdos transmitidos nos cursos

profissionalizantes. As mudanças elaboradas na estrutura física do estabelecimento e nos

utensílios, tanto para decoração quanto para o uso dos clientes, indica que sua intenção é

diferenciar-se das demais tapiocarias a partir de algum elemento novo.

Já o tapioqueiro R., associo-o a uma posição “oposta” às outras. Não digo que ele se

desvencilha radicalmente das outras, mas sua trajetória no Centro das Tapioqueiras parece

mostrar que é o mais afeito às práticas e discurso voltado às elaborações inovadoras e criativas.

Durante o período de pesquisa, a informação que colhi a respeito do modo como organiza seu

boxe leva-me a considerar que os aspectos tradicionais e de cunho popular relacionado às

Antigas Tapioqueiras da Paupina não têm tanta influência em seu trabalho. O que prepondera,

no seu caso, é atrair o cliente por meio de algo que não esteja no cardápio de nenhum outro

boxe.

Em conjunto, esses sujeitos agem mediante relações de cooperação como de

competição entre si. E é neste momento que percebo a manifestação das criatividades. Elas se

revelam nos produtos alimentícios comprados, nos cardápios, nas comidas, nas bebidas, na

forma de administrar o estabelecimento, nas relações estabelecidas com os funcionários, na

decoração, nos utensílios, nas cores, nas roupas utilizadas, entre outros elementos. No entanto,

as práticas e as intervenções que cada permissionário faz têm que levar em consideração os

acordos estabelecidos nas reuniões da ATP, para serem fundamentados no Regulamento desta

associação.

Page 99: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

99

A interpretação de que os elementos tradicionais se ligam ao que pode ser

considerado como novo desemboca na apreensão de que, no CETARME, se tem uma

“gastronomia” voltada para comidas regionais cearenses, como para outras localidades. Desse

modo, as aspas são para indicar que não faço comparação com a Gastronomia em seu sentido

clássico. O vocábulo somente possui elementos característicos desta, como por exemplo:

relaciono, na medida do possível, um permissionário ao chef de um restaurante. Ambos são

responsáveis por toda a dinâmica de seus estabelecimentos, desde a compra dos produtos

alimentares até o atendimento ao consumidor.

Sendo assim, inclino-me a considerar que, nesse local, ocorreu a agregação de vários

conhecimentos – alimentares e de cunho empreendedor – possibilitando a emergência de um

tipo específico e inovador de preparação alimentar. Hoje, ano de 2017, pode parecer que aquilo

que é elaborado no Centro das Tapioqueiras seja um modelo encontrado em qualquer lugar que

comercialize tapioca. Contudo, no momento de sua constituição – ano de 2002 – esse local foi

um dos primeiros do estado do Ceará a apresentar uma comida apreciada no repertório alimentar

dos cearenses, dos nordestinos e dos brasileiros, em nova roupagem, no intento de torná-la

atrativa, principalmente para o turista estrangeiro.

Por fim, considero que os elementos tradicionais concernentes à produção e à

comercialização das tapiocas persistem frente à suposta padronização imposta pelo mercado

turístico internacional e globalizado. Além disso, a formulação de práticas criativas configura

uma tensão entre aspectos do passado e construção de novos produtos e informações

provenientes do presente, porém, a finalidade é atrair clientes e “preservar” o significado da

culinária regional “autêntica” representada pelo Centro das Tapioqueiras no Ceará.

Entendo que este trabalho contribui para futuras reflexões acerca das mudanças que

ocorrem nas práticas culinárias e alimentares, sobretudo fora do âmbito doméstico. A incessante

globalização cultural, inclusive alimentar, e do turismo têm promovido modificações na forma

como produzimos e negociamos as comidas. Precisa-se pensar a respeito dos novos modelos

alimentares, frutos da mistura de práticas e de conhecimentos social e culturalmente distintos.

Page 100: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

100

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Lívia; CAMPBELL, Colin (Orgs.). Cultura, consumo e identidade. Rio de

Janeiro: Editora FGV, 2006.

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Ed., 1999.

BECKER, Howard. Mundos da Arte. Lisboa: Livros Horizonte, 2010.

BEZERRA, Celina Maria Torres Portugal. Dos passos de gazela de Iracema ao rastro da

capital: o cotidiano das (os) tapioqueiras (os) de Messejana-Fortaleza-CE. 2005. 257 f.

Dissertação (Mestrado Acadêmico em Geografia) – Curso de Mestrado Acadêmico em

Geografia, Centro de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2005.

BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

BRAGA, Vivian. Cultura alimentar: contribuição da antropologia da alimentação. Saúde em

Revista, Piracicaba, v. 6, n. 13, jul. 2004. p.37-44.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Câmara dos Deputados,

Edições Câmara, 2012.

. Turismo Cultural: Orientações Básicas. Brasília: Ministério do Turismo, 2010.

. Plano Nacional de Turismo: o turismo fazendo muito mais pelo Brasil 2013-2016.

Brasília: Ministério do Turismo, 2013.

BRUSADIN, Leandro Benedini. Estudo da avaliação do Programa Nacional de Municipalização

do Turismo – PNMT na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso. Revista

Hospitalidade, São Paulo, ano 2, n. 2, 2º semestre. 2005. p. 87-111.

Page 101: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

101

BUENO, Maria Lucia. Gastronomia e Sociedade de Consumo. Tradições culturais brasileiras e

estilos de vida na globalização cultural. In: REINHEIMER, Patrícia; SANT'ANNA, Sabrina

Parracho (Orgs.). Reflexões sobre cultura material. Rio de Janeiro: Folha Sêca, 2013. p. 89-

110.

CANCLINI, N. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp, 1989.

CARVALHO, Alan Francisco de. Políticas Públicas em Turismo no Brasil. Sociedade e Cultura:

Revista de Ciências Sociais, Universidade Federal de Goiás, v. 3, n. 1/2, jan./dez. 2000. p. 97-

109.

CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2011.

CAVALCANTE, G. B.; AZEVEDO, M. R. C. Observação Participante: O olhar que aproxima e

revela. In: ALVES, Giovanni; SANTOS, J. B. F. (Orgs.). Métodos e Técnicas de Pesquisa

sobre o Mundo do Trabalho. Bauru: Canal 6, 2014.

CHARTIER, Roger. “Cultura Popular”: revisando um conceito historiográfico. Revista Estudos

Históricos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 16. 1995. p. 179-192.

DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 2001. DARMON,

Muriel. La Socialisation. Paris: Armand Colin, 2010.

DE MASI, Domenico. Criatividade e Grupos Criativos. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.

DÓRIA, Carlos Alberto. Formação da Culinária Brasileira: escritos sobre a cozinha izoneira.

São Paulo: Três Estrelas, 2014.

ESCARLATE, Luiz Felipe de Araújo. Aprendendo a empreender: serviço. Brasília:

SEBRAE, 2010.

FERNANDEZ, Rafael Saad; SERRA, Neusa. Economia Criativa e Políticas Públicas: uma

contribuição ao debate. In: CONGRESSO INTERNACIONAL INTERDISCIPLINAR EM

SOCIAIS E HUMANIDADES. 1., 2012, Niterói, Anais... Rio de Janeiro: ANINTER-SH/

PPGSD-UFF, 2012. p.1-21.

Page 102: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

102

FLORIDA, Richard. A ascensão da classe criativa. Porto Alegre: L&PM, 2011.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora UNESP, 1991.

_________________. Sociologia. Porto Alegre: Penso, 2012.

GONÇALVES, J.R.S. Culturas populares: patrimônio e autenticidade. In: BOTELHO, André;

SCHWARCZ, Lilia Moritz (Orgs.). Agenda Brasileira: temas de uma sociedade em mudança.

São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p.134-141.

Governo do Estado do Ceará. Gastronomia. Disponível em:

<http://www.ceara.gov.br/gastronomia>. Acesso em: 17 dez. 2015.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

HALL, C. Michael; SHARPLES, Liz; SMITH, Angela. The consumption of experiences or the

experience of consumption? An introduction to the tourism of taste. In.: HALL, C. Michael

(Ed.) et al. Food Tourism Around the World: development, management and markets.

Oxford: Butterworth-Heinemann, 2003. p.314-335.

HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1997.

IANNI, Octávio (Org.). Homem e Sociedade. São Paulo: Ed. Nacional, 1977.

INSTITUTO DE PESQUISAS, ESTUDOS E CAPACITAÇÃO EM TURISMO (IPETURIS).

Estudos de mercado dos polos turísticos do PRODETUR nacional no Estado do Ceará. São

Paulo: 2011.

LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 2003.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Editor, 1997.

Page 103: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

103

LIMA, M. F.F. As tapioqueiras e a sua arte: mudanças e permanências no “Shopping das

Tapiocas”. 2007. Monografia (Graduação em Ciências Sociais) – Departamento de Ciências

Sociais, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2007.

____________. O Ceará e a emergência de uma cozinha regional. In: I SEMINÁRIO SOBRE

ALIMENTOS E MANIFESTAÇÕES CULTURAIS TRADICIONAIS, São Cristóvão, SE.

Anais... São Cristóvão, SE: Universidade Federal de Sergipe, 2012.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana.

Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 17, n. 49, junho, 2002. p. 11-29.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

MILLS, C. Wright. A Imaginação Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

Ministério do Turismo do Brasil. GASTRONOMIA brasileira é bem avaliada por

estrangeiros. Disponível em: <http://www.turismo.gov.br/%C3%BAltimas-

not%C3%ADcias/1866-gastronomia-brasileira-e-bem-avaliada-por-estrangeiros.html>. Acesso

em: 26 nov. 2015.

__________________________. VIAJAR para experimentar novos sabores. Disponível em:

<http://www.turismo.gov.br/%C3%BAltimas-not%C3%ADcias/5510-viajar- para-

experimentar-novos-sabores.html>. Acesso em: 27 nov. 2015.

MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Senac, 2008.

MORIN, Edgar. O Método 5: a humanidade da humanidade. Porto Alegre: Editora Sulina,

2007.

___________. As duas globalizações: complexidade e comunicação: uma pedagogia presente.

Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.

Page 104: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

104

NASCIMENTO, Angelina de Aragão Bulcão Soares. Comida: prazeres, gozos e transgressões.

Salvador: EDUFBA, 2007.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do antropólogo. São Paulo: Editora UNESP,

2000.

Centro das Tapioqueiras ganha projeto de paisagismo. O POVO, 28 fev. 2011. Disponível em:

<http://www.opovo.com.br/app/fortaleza/2011/02/28/noticiafortaleza,2108190/centro-das-

tapiocas-ganha-projeto-de-paisagismo.shtml>. Acesso em: 12 mai. 2015.

OSTERNE, Francisco José Wanderley. Economia Criativa. Fortaleza: ISEPAT, 2013.

PASQUIER, Dominique. La “culture populaire” à l'épreuve des débats sociologiques. Hermès,

La Revue, C.N.R.S. Editions, n. 42, 2005. p.60-69.

POULAIN, Jean Pierre. Sociologias da Alimentação: os comedores e o espaço social

alimentar. Florianópolis, UFSC: 2013.

SAMPAIO, Francisco. A gastronomia como produto turístico. Exedra: Revista Científica,

Número Temático – Turismo e Patrimônio, Coimbra, 2009. p. 119-134.

SANTOS, José Luiz dos. O que é Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

SAVARIN, Brillat. A Fisiologia do Gosto. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SEBRAE. Tapioqueiras se preparam para a Copa do Mundo. Disponível em:

http://www.sebrae2014.com.br/Sebrae2014/Not%C3%ADcias_2014/Tapioqueiras-se-preparam-

para-a-Copa-do-Mundo#.VVE4TvlViko. Acesso em: 11 mai. 2015.

Page 105: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/DISSERTAÇÃO_FILIPE_CAMELO… · com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm

105

SETUR-CE. Centro das Tapioqueiras do Eusébio. Disponível em:

http://www.setur.ce.gov.br/categoria3/turismo-cultural-1/centro-das-tapioqueiras-do-eusebio.

Acesso em: 17 dez. 2015.

SIQUEIRA, Paula. “Ser afetado”, de Jeanne Favret-Saada. Cadernos de Campo, São Paulo,

v.13, n. 13, 2005. p. 155-161.

SCHLÜTER, Regina G.; ELLUL, Daniela Thiel. Gastronomía y turismo en Argentina: Polo

gastronómico Tomás Jofré. PASOS: Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, v. 6, n. 2, 2008.

p. 249- 268.

TAPIOQUEIRAS de olho na Copa. Diário do Nordeste, Fortaleza, 14 jun. 2012. Turismo.

Disponível em: <http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/suplementos/tur/tapioqueiras-de-

olho-na-copa-1.141597>. Acesso em: 26 de jun. de 2015.

TAPIOQUEIRAS se preparam para a Copa do Mundo. Revista Pequenas Empresas e

Grandes Negócios. São Paulo, 2014. Disponível em:

<http://revistapegn.globo.com/Revista/Common/0,,ERT310324-17180,00.html>. Acesso em: 11 mai.

2015.

WISEL, Leopold Von. Processos de Interação Social. In: CARDOSO, Fernando Henrique;

IANNI, Octavio (org.). São Paulo: Ed. Nacional, 1977.