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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Faculdade de Educação Programa de Pós-Graduação em Educação Doutorado em Educação Na procura de um curso: currículo-formação de professores - Educação Infantil Identidade(s) em (des)construção (?) por Rita de Cássia Prazeres Frangella Tese apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Educação à Comissão Julgadora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro sob a orientação da Profª. Dra. Elizabeth Fernandes de Macedo Rio de Janeiro, dezembro de 2006 Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Faculdade de Educação Programa de Pós-Graduação em Educação

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades

Faculdade de Educação Programa de Pós-Graduação em Educação

Doutorado em Educação

Na procura de um curso: currículo-formação de professores - Educação Infantil

Identidade(s) em (des)construção (?)

por

Rita de Cássia Prazeres Frangella

Tese apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Educação à Comissão Julgadora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro sob a orientação da Profª. Dra. Elizabeth Fernandes de Macedo

Rio de Janeiro, dezembro de 2006

Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades

Faculdade de Educação Programa de Pós-Graduação em Educação

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Doutorado em Educação

Na procura de um curso: currículo-formação de professores - Educação Infantil

Identidade(s) em (des)construção (?)

por

Rita de Cássia Prazeres Frangella

Banca Examinadora:

____________________________________________________________ Professora Doutora Elizabeth Fernandes de Macedo (orientadora)

_______________________________________________________________ Professora Doutora Alice Casimiro Lopes (UERJ)

_______________________________________________________________ Professora Doutora Rita Marisa Ribes Pereira (UERJ)

________________________________________________________________ Professora Doutora Sonia Kramer

_______________________________________________________________ Professora Doutora Vera Maria Ferrão Candau ( PUC-Rio)

Rio de Janeiro, dezembro de 2006

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A vida só é possível se reinventada (Cecília Meireles) Aos que me ajudam a reinventar cotidianamente a vida À Vera, Rosário e Ermelinda, pais e avó, força que se constrói na experiência do amor constante e incondicional; Ao Marcelo, companheiro nessa trajetória, com quem construo novos caminhos....

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Agradecimentos

Gastei uma hora pensando em um verso que a pena não quer escrever. No entanto ele está cá dentro

inquieto, vivo. Ele está cá dentro e não quer sair.

Mas a poesia deste momento inunda minha vida inteira.

Carlos Drummond de Andrade

A minha família pelo apoio em todos os momentos, A Elizabeth Macedo, pelo olhar desafiante e ao mesmo tempo companheiro, pela presença forte que generosamente se doa e compartilha da ansiedade que a escrita provoca; A Débora Barreiros, irmã de alma, que temperou com amizade e carinho a feitura desse trabalho; As amigas de jornada, Cláudia Hernandez, Jonê Baião, Jacqueline Moraes, companheiras nos desafios da vida (não só acadêmica) e que no trabalho diário, compartilhamos alegrias, prazeres e sonhos... Ao grupo de pesquisa “Currículo: sujeitos, conhecimento e cultura” com quem compartilho a incompletude que me põe em movimento, que me faz pensar; A Sonia Kramer, por, há muitos anos ter me convidado a “entrar” na educação infantil e com quem compartilho desde então esse projeto As/aos companheiras/os de trabalho no Curso de Pós-graduação em Educação Infantil na PUC-Rio e nas parcerias nos cursos junto a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro pelo diálogo constante, ajudando-me a dar corpo às idéias desenvolvidas ao longo desse trabalho; As colegas de trabalho no Departamento de Ensino Fundamental do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira da Universidade do Estado do Rio de Janeiro com quem busco construir coletivamente uma educação em que a diferença se faça presente; A Bonnie Axer e Alcione Correia, bolsista de iniciação científica que auxiliaram no trabalho árduo de pesquisa com empenho, compromisso e disponibilidade; Aos companheiros de estudo ao longo do Doutorado, alguns amigos para além dele como Maria Lúcia Mello, interlocutores que ajudam a pôr as idéias sob suspeita,

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À banca examinadora, professoras Alice Lopes, Rita Marisa Ribes Pereira, Vera Candau e Sonia Kramer pela participação nesse momento e disponibilidade, A Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro pelo apoio financeiro nos meses iniciais do curso e ao Programa de Capacitação Docente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro pela possibilidade de permitir um tempo maior de dedicação à pesquisa, Aos meus alunos/as, crianças e professoras, pela contribuição inestimável, por darem sentido à pesquisa.

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Resumo O estudo interroga as relações entre currículo e identidade no contexto de um curso de formação de professores de educação infantil. Desenvolve-se a partir de uma questão central: é possível falar em uma identidade profissional na contemporaneidade? A pesquisa discute essas relações tendo como horizonte o entendimento do currículo como produção cultural, como espaço de enunciação em que se dá a negociação entre identidades múltiplas e ambivalentes. O diálogo com autores como Stuart Hall, Homi Bhabha orienta a defesa da condição híbrida e desterritorializada da identidade. Do ponto de vista da política de currículo, os trabalhos de Stephen Ball sobre o ciclo de políticas subsidiam a análise empreendida. Nesse sentido, a pesquisa foca alguns discursos que circulam no contexto de influências, especialmente aqueles enunciados por agentes acadêmicos e sociais voltados para a formação de professores e de educadores infantis. São destacados a Associação Nacional pela Formação de Professores, as publicações organizadas pela Coordenação Geral de Educação Infantil do Ministério da Educação e Movimento Interfóruns de Educação Infantil como esferas nas quais se dá o debate e a produção de discursos que orientam e mobilizam ações em torno da formação de professores. Para tanto, recorre-se à análise documental das produções de cunho institucional, relacionadas à produção individual de sujeitos envolvidos nesses fóruns e no debate sobre a formação de professores. Num segundo movimento, o estudo se estende ao contexto de formulação do currículo de Pedagogia, habilitação Educação Infantil, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, por ser uma das primeiras graduações com foco na formação de professores para esse nível de ensino. Além da análise dos documentos que permitem buscar reescrever a dinamicidade do processo de elaboração curricular, foram realizadas entrevistas com professores e ex-alunos que vivenciaram a construção do currículo. Concluo que a docência como eixo articulador do currículo, desloca a questão da idéia de perfil profissional para a identidade, mas acaba por propor uma outra totalização, não mais centrada na atuação profissional, mas na identidade. Palavras-chave: currículo – identidade – formação de professores – diferença – cultura

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Abstract The study questions the relations between curriculum and identity in the context of a teacher education program in Early Childhood. The study develops from a central question: is it possible to speak of professional identity these days? The research discusses these relations having as central basis the understanding of the curriculum as cultural production and a place for negotiation between multiple and ambivalent identities. In the dialogue with authors such as Stuart Hall, Homi Bhabha orientates the defense of the hybrid identity condition. From the point of view of the curriculum politics, Stephen Ball’s works about the cycle of politics subsidize the undertaken analysis. In this way, the research focuses on some speeches that circulate in the context of academic and social agents directed towards teacher education in early childhood. We focus on the Associação Nacional de Formação pela Professores, the publications organized by the Coordenação Geral de Educação Infantil (COEDI) in the Ministry of Education and the Movimento Interfóruns de Educação Infantil (MIEIB) as spheres in which occurs the debate and production of speeches that orientate and mobilize actions that involve the teacher education programs. For that matter, we analyze documental works of institutional nature related to the individual production of people involved in these forums and on the debate about teacher education. On another moment, the study extends itself in the context of the formulation of Pedagogy curriculum, Early Childhood Education habilitation, of the Universidade do Estado do Rio de Janeiro for being one of the firsts to have an undergraduate program focusing on teacher education for this level of teaching. Besides the analyses of documents that allow us to look for and rewrite the dynamics of the process of curriculum elaboration, there are also interviews with teachers and former students who went through the process of building the curriculum. I conclude that teachers as an articulator axle of the curriculum, take away the idea of a professional identity profile, but proposes another idea, not centered around the professional performance, but on the identity itself. Key words: curriculum – identity – teacher education – difference – culture

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Sumário

A escrita da história ou a História da escrita .................................................................10 Capítulo 1 – Interrogando a identidade: o que me permite dizer o que eu sou eu?........23

1.1 Identidade e Cultura: uma abordagem histórica...........................................28

1.2 Cultura e identidade como prática discursiva: uma questão de enunciação .48 Capítulo 2 – Produção curricular na formação de professores: contextos que se cruzam.............................................................................................................................61 2.1 – Formação em debate: disputas em torno de uma identidade profissional..67 Capítulo 3 – Confluências, articulações e influências: na pauta de discussões a formação do educador infantil.......................................................................................................100 3.1 – Em debate: Educação Infantil como questão política ..............................102 Capítulo 4 – “À procura de um curso”: o currículo de Pedagogia e sua construção.....130 4.1 – Rota do mapa ...........................................................................................136 4.2 – Produção do currículo como produção de cultura ...................................141 4.3 – Docência e a mudança de eixo articulador – do perfil profissional à identidade.......................................................................................................................160 4.4 – Docência e identidade na Educação Infantil ............................................184 Considerações finais/parciais........................................................................................197 Referências Bibliográficas............................................................................................202 Anexos..........................................................................................................................216

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Noções

Entre mim e mim, há vastidões bastantes para a navegação dos meus desejos afligidos.

Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos. Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que

a atinge.

Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza, só recolho o gosto infinito das respostas que não se

encontram.

Virei-me sobre a minha própria existência, e contemplei-a Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,

e este abandono para além da felicidade e da beleza.

Ó meu Deus, isto é a minha alma: qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e

precário, como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e

inúmera...

Cecília Meireles

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A escrita da História ou da história dessa escrita A primeira página... Dar início a ela significa o fim de uma jornada para que

outra se inicie: da escrituração do trabalho à leitura deste, reescrita pelos olhos do leitor.

Cabe-me nesse momento apresentar, narrar às maneiras de fazer e dizer (Certeau, 2001)

que fui construindo ao longo da experiência da pesquisa.

Mas não desejo só apresentar o trabalho, ouso propor o convite. Faço-o contando

com a parceria de companheiros que sempre estiveram presentes nesta caminhada:

Em Ercília, para estabelecer as ligações que orientam a vida da cidade os habitantes estendem fios entre as arestas das casas, brancos ou pretos ou cinzas ou pretos-e-brancos, de acordo com as relações de parentesco, troca, autoridade, representação. Quando os fios são tantos que não se pode mais atravessar, os habitantes vão embora: as casas são desmontadas, restam

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universitária, também foram acompanhados de exigências que não constavam do

programa de exames do vestibular. Escolhas, opção ao não pelo currículo novo,

participação em assembléias.

Mal tinha saído do curso normal em seus moldes tradicionais, numa instituição

também tradicional, e de repente era chamada a opinar sobre a formação que desejaria

ter? Se no primeiro momento parecia inusitado, hoje vejo que esse processo deixou

marcas indeléveis. Ia às reuniões como bicho acuado, olhos atentos, meio assustados,

mas inquietos, queria poder captar tudo e às vezes me surpreendia ouvindo a minha

própria voz. Opção feita: estava constituída a primeira turma do currículo novo na

Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

A nossa opção foi feita na transição do primeiro para o segundo período, pois o

primeiro já tinha sido oferecido aos alunos que ingressaram por meio do vestibular

ainda nos moldes do currículo antigo, mas habilmente montado para que, caso

optássemos pelo novo, nada impedisse o rumo das mudanças. Hoje questiono como se

deu essa opção. Envolvemo-nos no processo, fomos contaminados pelos anseios,

desejos e possibilidades vislumbradas com e pelo currículo novo.

A graduação foi marcada por anos em que tivemos que reafirmar e lutar muito

por essa opção: monografia, estágio produtivo, manifestações dos alunos; conquistas e

derrotas. Contudo, percebo a importância dessa história e não procuraria reescrevê-la de

outra forma. Foi vivida intensamente e me permitiu romper com tantos silêncios.

Fiz descobertas ao longo do curso: sobre a vida acadêmica, sobre a Pedagogia,

sobre a profissão de professora e sobre mais uma opção, essa anterior ao curso, mas que

se consolida nele: educadora infantil. Sempre fui aluna-trabalhadora (da graduação à

pós-graduação). Sou professora, e a formação em Pedagogia, a trajetória acadêmica

sempre se deram concomitantemente ao exercício da docência. A marca do ser

professora sempre foi forte e ressaltada a todo o momento, principalmente no que firmo

meu compromisso: o trabalho com crianças de 0 a 6 anos.

Passos (2006) relata a fala de uma criança sobre como se deu sua aprendizagem

numa escola de jongo: “aprendi do pé da Érica”. Eu aprendi no olho, na mão, no pé de

Éricas, Felipes, Anas, Marias, Pedros e com tantos outros que o chão da escola era

espaço caro e passei a defendê-lo com muito empenho. Defesa que se dava na atuação,

na presença, na valorização da educação infantil que ressoava nas/das aprendizagens de

outro espaço: a universidade.

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Nesse cruzamento fui tornando-me professora, reconhecendo-me como tal, ainda

que sempre tivesse a sensação de incompletude e inacabamento que por vezes

estranhava não perceber em outras professoras como eu. Entretanto, nunca hesitei em

afirmar: sou professora.

Meu compromisso me levou a percorrer, na graduação, caminhos em direção à

“habilitação” em educação infantil. E meu desejo de me afirmar professora se

encontrava também com um curso que o tempo todo marcava essa nossa condição: são

professores. Contudo, havia uma docência adjetivada – não se tratava de ser professor,

mas era a definição de ser professor de um determinado modo que se fazia presente.

Político, crítico, atuante, mediador... Tantos nomes que definiam como ser, como agir.

Além das definições, havia uma preocupação com a formação do pesquisador. Fazer

pesquisa era fundamental!

Assim segui, com definições precisas e muitas inquietações que me

aproximaram da pesquisa. A pós-graduação e a atuação como pesquisadora3 se uniam à

docência e me puseram a discutir a alfabetização e a formação dos sujeitos na e pela

linguagem. Aos problemas-respostas que achei-descobri-criei juntaram-se o

questionamento sobre meu próprio trabalho, agora como formadora de professores e

colocaram no meu campo de visão o currículo, num momento de discussão de diretrizes

curriculares para a formação de professores, proliferação e fortalecimento dos institutos

superiores de educação e questionamento do curso normal. Essa era a intenção na

primeira aproximação com o currículo, mas que foi sendo redimensionada; à medida

que aprofundava os estudos na área, percebia a trama complexa e mais ampla que se dá

ao problematizarmos o currículo.

Nessa trajetória de estudos com o currículo enveredei pela História do Currículo

entendendo que

não se trata de uma abordagem historicizante, em que se pretenda ver o currículo num desenvolvimento linear e contínuo, como se este processo se desse a partir de uma direção evolutiva constante, entendendo o currículo como uma construção histórica que se fez a partir de determinada premissa específica e única,

Ou seja, os estudos históricos focalizam o currículo como um fazer-se que não se dá de forma linear e supostamente neutra, mas é marcado pela dinâmica das relações sociais onde está envolvido, relações que o atravessam, sendo este

3 Concluí a graduação em dez/1994 e em ago./95 iniciei a pós-graduação lato-sensu em Educação Infantil na PUC-Rio e, em seguida me inseri no grupo de pesquisa “Cultura, modernidade e linguagem”, coordenado por Sonia Kramer, como bolsista de aperfeiçoamento pelo CNPq.

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organizado, então, a partir de visões de mundo privilegiadas, em detrimento de outras, o que aponta para o currículo como campo de lutas que não podem deixar de serem consideradas.” (Frangella, 2002, p.14-15).

Desta forma, fui construindo o entendimento de que fazer um estudo histórico

não se resumia a fazer apenas a descrição de uma seqüência de ações, mas compreender

o processo que as engendra, história como interrogação das ações; tratava-se de

interrogar para compreender como e por que as ações vão se deslocando, os

deslizamentos que fazem com que o movimento em si gere novas ações e significados.

Assim, fui construindo o entendimento da possibilidade de estudos históricos

como sendo de encontro não com o dado, mas com o movimento, com a trajetória

incerta, da construção dos significados que vão orientando e constituindo práticas.

Larrosa (1999) ajuda-me a explicar esse entendimento quando diz que acredita que:

(...) o texto do passado não sirva para a confirmação e consolidação da imagem convencional e auto-satisfeita que esses discursos produzem de nós mesmos e de nosso mundo, mas para sua crítica e seu questionamento. (…) Para que essa experiência do passado seja possível, o sujeito da experiência – o historiador ou leitor – deve ser um sujeito desconforme e inquieto. Esse sujeito é o que vai do presente ao passado, mas arrastando consigo sua desconformidade, ou seja, evitando toda relação de continuação. E é também, o que vem do passado ao presente, mas para interrompê-lo e colocá-lo em questão. (p. 135-6)

Assumindo a historicidade como questão, o envolvimento com o estudo do fazer

curricular vai assumindo outros enfoques. Na trajetória de pesquisa o entrelaçamento da

história com a cultura foi dando o contorno do que passo a compreender como

currículo. A visão do currículo como produção dada e de cunho técnico abrevia e

subestima sua condição de prática cultural entendê-lo assim implica observar que sua

elaboração se dá na articulação de dimensões outras que os critérios baseados

exclusivamente na cientificidade e conhecimento, mas é engendrado num jogo político

multidimensional.

O delineamento deste projeto de trabalho filia-se primeiramente a essa

concepção. Desejava estudar a produção curricular, cruzando com formação de

professores, especificamente de educação infantil. Mas... A história pela história?

Como? O que questiono nesta história?

Questões que se encontram com os estudos que fui desenvolvendo no grupo de

pesquisa “Currículo: sujeitos, conhecimento e cultura”. Encontro com a teoria. Autores

como Stuart Hall, Homi Bhabha, Edward Said, Boaventura Souza Santos trazem outro

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entendimento às questões da cultura, identidade, formação, num contexto de mudança e

globalização. Bhabha (2001) apresenta:

A diversidade cultural é um objeto epistemológico – a cultura como objeto de conhecimento empírico – enquanto a diferença cultural é o processo da enunciação da cultura como “conhecível”, legítimo, adequado à construção de sistemas de identificação cultural. Se a diversidade é uma categoria da ética, estética ou etnologia comparativas, a diferença cultural é um processo de significação através do qual afirmações da cultura ou sobre a cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força, referência, aplicabilidade e capacidade.

O autor, na discussão sobre a enunciação da diferença, ainda coloca em questão

a alteridade dentro da identidade (p. 86), redimensionando a compreensão da identidade

como híbrido, pois a alteridade a que se refere implica que a constituição híbrida não

funciona apagando as diferenças, mas como irrupção, uma identificação ambivalente

que lança sobre essa produção a incerteza do significado cultural; dessa forma, mantém

sempre o confronto com o duplo, o intraduzível.

Concomitante a esses estudos, na prática como professora formadora de

professores me defrontava cotidianamente com impasses vividos nas escolas,

principalmente de educação infantil do município do Rio de Janeiro4, nas falas das

minhas alunas-professoras em momentos de discussão, que inicialmente tinham um

olhar tão endurecido para as crianças e suas famílias. “Parece até que as famílias

querem se livrar das crianças; a comunidade é pobre, então eles...” Eles, os outros, a

diferença. Ao longo das aulas buscávamos discutir “o direito à diferença e à igualdade;

preconceitos e cotidiano escolar; as crianças e os adultos como sujeitos da cultura; que

diferença não é deficiência e como a escola e os/as professores/as lidam com as

diferenças” 5 e, envolvida nessa discussão e diante o impacto das falas que muitas vezes

desqualificavam esse outro, ainda que por vezes ele fosse tão próximo das professoras, a

questão da diferença e da identidade foram se tornando a questão mobilizadora. A

associação da temática da identidade à diferença se faz porque via que, na fala das

minhas alunas, muito do que criticavam passava pela diferenciação do lugar que

assumiam para falar: como professoras. Ainda que se mobilizassem a discutir os direitos

das crianças, esses direitos não se sobrepunham ao olhar de reprovação e por vezes

repúdio.

4 Participei, como professora, do curso de extensão oferecido pela PUC-Rio, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, para coordenadores, diretores (2002) e professores (2002, 2004, 2006) de educação infantil da rede. 5 Fragmentos do planejamento do curso “A criança e a cultura”. ( Módulo 1- A criança e a cultura; as crianças e as culturas e o cotidiano da educação Infantil) (Kramer, S, et all, 2004)

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Nesse diálogo teoria-prática fui construindo possibilidades de interrogar a

história que pretendia investigar. O investimento na análise da formação de professores

e, dentro dela a de educadores infantis, se punha a partir do questionamento da

construção desse ser professora que fixa o sujeito num lugar e que o distancia do outro.

Ser professor, identidade, que identidade?

O diálogo com os autores citados vai informando e formando a questão-

problema. A relação com a teoria vai se desenhando então como forma de diálogo com

a educação e não um falar sobre que, em muitos momentos, apresenta-se como fala

desencarnada, trata-se de exercício de reflexão crítica que interroga as implicações que

levam a teoria a uma capacidade de gerar conhecimento e questionamentos, que dota a

análise da realidade de uma dimensão significativa-existencial.

Esse outro olhar para a teoria revela uma outra faceta que antes parece oculta:

intencionalidade. Em geral, a teoria é vista como forma de objetivação, como percepção

sistemática da realidade. Contudo, ao estabelecer o papel ela representa nesse intrincado

jogo de saberes, é possível percebê-la como um processo de significação, sempre

possível e não absoluto, que, em função da significação, intencionaliza a prática. Diante

disso, cabe a questão: o que a teoria me permite ver? Sob que condições ela me permite

ver ou não? De que forma ela intencionaliza a minha prática?

Enraizada na cultura, entendendo-a como prática de enunciação, aproximo essa

compreensão do fazer curricular entendendo-o como processo de elaboração cultural na

medida em que é espaço discursivo de produção-recriação-contestação-afirmação de

significados que dotam as práticas cotidianas de sentido. Assim, o currículo não é só

expressão de intenções, mas se trata da manifestação dessas intenções, que se

estabelecem no embate político, nas negociações possíveis, em vitórias parciais que vão

sendo conquistadas no processo de discussão. Assim, diferentemente da idéia de

fechamento e determinação, o currículo se revela como parcialidade, mutabilidade,

criação e dinamismo.

Assim, esse movimento de inventariar o caminho construído explicita escolhas.

Sua re-construção é fundamental para a compreensão dos movimentos que agora

precisam ser redimensionados. Percebo que a construção da investigação faz um

caminho subjetivo (o que expus no memorial), que se trança na história das relações

sociais e práticas culturais em que o sujeito se insere, mas em que não se limita; na

medida em que dá sentido-significado à realidade, vai construindo uma forma de

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mediação com a mesma, mediação com e através do conhecimento, o que vai

delineando objetivos e práticas.

A partir da construção de uma trajetória de pesquisas-estudos, passo a definir os

contornos da pesquisa. Trata-se de uma pesquisa que, no campo do currículo,

especificamente da formação de professores, põe-se a interrogar a construção da

identidade questionando se é possível empreender tal tarefa.

A produção curricular na área da formação de professores desenvolvida nas

décadas de 1980-90 na Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de

Janeiro se desenvolveu num contexto de profunda inquietação/revisão em torno da

busca da criação de modelos de formação que rompessem com um modelo tecnicista e

autoritário. Nesse processo, foi possível perceber que uma das questões orientadoras

dessas formulações, constituindo-se parâmetro de produção curricular, tratava-se da

identidade docente. Essa questão parece-me central no processo de produção do

currículo. A leitura dos primeiros documentos sobre o currículo evidenciava que o

desenho curricular tinha como ponto de articulação e para o qual se voltavam os

objetivos de formação o delineamento de uma identidade docente. Sendo assim, o que

se destacava nesse currículo e que era mostrado como marca diferencial: a formação

desse profissional, superando a fragmentação imposta pelas habilitações que formavam

os técnicos em educação. Visava-se à formação do educador completo, sendo esta bem

caracterizada na definição de posturas que deveriam ser assumidas por esses sujeitos

como profissionais.

Os discursos de identidade presentes na produção curricular relacionam-se com

um projeto de profissionalização docente. A defesa pelo estatuto profissional reclama a

definição de uma identidade que, ao caracterizar o docente, forneça elementos de

identificação e, assim, de pertença a um grupo definido. Para tanto, uma identidade é

defendida e perpassa as práticas curriculares. Busco discutir as relações entre currículo e

identidade, analisando como a identidade docente a partir desses modelos é defendida

como horizonte de formação.

Nesse questionamento, dedico especial atenção à formação de educadores

infantis. Ao romper com os modelos centrados na atividade profissional dos técnicos em

educação para priorizar a formação de um educador de forma ampla e teoricamente

consistente, o curso de Pedagogia fá-la criando também “habilitações” voltadas para a

atuação em segmentos específicos, dentre eles a Educação Infantil. Tendo em vista que

o movimento se deu na direção da construção de uma identidade docente, que pudesse

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localizar esse sujeito como profissional e assim valorizá-lo, configurá-lo, cabe

questionar como se deu isso. Que identidade é essa?

Minha questão advém da minha experiência -inquietação: que identidade é essa

e sobre o que se erige, a ponto de ter construído um discurso de engajamento e

posicionamento do docente como profissional, na reafirmação cotidiana do seu trabalho

como qualificado, mas que ao mesmo tempo subordina a diferença, hierarquiza-a

transformando em desigualdade? Há uma identidade docente? Como definir uma

identidade? Como se coloca a articulação de tantas identidades no espaço da escola de

formação tendo que ser rearticuladas na identidade docente? Pode o professor com sua

identidade definida a partir da fixação de um modelo de identificação dialogar com

tantas identidades que entram na escola, com as identidades de seus alunos? Ao se

definir uma identidade profissional, como se dá a negociação na produção identitária,

tendo em vista que os sujeitos-formandos têm múltiplos pertencimentos que não só o

que se estabelecem a partir do pertencimento a um grupo profissional? Diversidade ou

diferença, o que rege a negociação das identidades? Identidade e cultura que elos são

esses?

Ao propor o questionamento da identidade, argumento que a identidade como

fechamento torna-se dispositivo de exclusão e transforma a diferença em desigualdade,

na medida em que a rejeita ao fixar uma determinada posição de sujeito. Defendo o

entendimento da identidade como híbrida e performática, que se constrói a partir de

ações discursivas que se dão na fronteira e na negociação e reinscrevem a identidade,

não sendo mais evidente a determinação, e sim fluida, que reconhece, negocia e co-

habita com/na diferença.

A interrogação a partir da enunciação da diferença permite a problematização da

identidade. A construção identitária passa pela elaboração de sistemas simbólicos e

discursivos que propiciam elementos de identificação dos sujeitos. Ao ressaltar a

dimensão discursiva e cultural da produção identitária é possível articular aí a

interrogação do currículo como instância produtora de identidade a partir do

entendimento deste como prática cultural. As discussões que interrogam a elaboração

curricular permitem que se pense no currículo com entre-lugar, como espaço de

negociação e ambivalência, fronteira na qual se encontram e dialogam diferentes

culturas.

Se num primeiro momento a intenção era de fazer um estudo histórico acerca do

processo de elaboração curricular, as questões levantadas articulam outras dimensões ao

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estudo. Inclusive provocam em mim estranhamento, que como diz Bhabha (2001) “é

condição das iniciações interculturais. Estar estranho ao lar não é estar sem casa” (p.29);

o estranhamento é provocativo porque revela ambivalência, “a problemática não

continuísta que dramatiza” (p.31). O momento da ambivalência traz, pela negação, a

abertura dos interstícios. Meu estranhamento se dava justamente naquilo que

implicitamente negava: ao problematizar a identidade docente estaria eu defendendo

então a falta de parâmetros que pudessem orientar essa formação? E a especificidade da

educação infantil, a tão necessária, que continuo considerando assim, formação do

educador infantil a partir dessa especificidade? Defendo então a não-identidade e

desconstruo a especificidade da ação/formação do educador? Eu como educadora

também sempre projetei nos objetivos e desdobramentos dos cursos-aulas que planejava

o que considerava como importante na postura do educador. Criticar a identidade

docente não seria justamente negar e ser contraditória com o que defendia e fazia até

então? Significa então a impossibilidade de um projeto de formação? Não é o que

defendo ao longo do trabalho, pois penso que isso também seria criar uma generalização

descomprometida que esvaziaria de sentido a ação formadora.

Fenda aberta, eu também me punha na fronteira de uma trajetória até então

construída a partir dessa definição que agora questionava. E é nesse espaço de

enunciação da diferença que reside a possibilidade de intervenção, de abertura do

terceiro espaço de enunciação que na cisão expõe a superação do binarismo, ainda que

veja isso a partir do meu próprio questionamento. O que sustento como argumentação é

o nem um nem outro (Bhabha, 2001) como possibilidade de elaboração identitária:

entendo que essa é uma construção fluida e híbrida que precisa permitir que evitemos a

“política da polaridade e (possamos) emergir como os outros de nós mesmos”.(p.69) O

que significaria dizer que as discussões devem se dar na fronteira e na negociação e que

decisões tomadas – ainda que no terreno do indecidível - sejam assumidas como

provisórias na luta política cotidiana..

Assim, proponho-me a narrar essa história, no entendimento do que Benjamin

(1993) fala sobre a narrativa. Não se trata de reviver o passado considerando que

“articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como ele foi de fato.

Significa apropriar-se de uma reminiscência tal como ela relampeja no momento do

perigo.” (p.224), ou seja, ao invés de encerrar o passado numa interpretação definitiva,

reafirmar a abertura de sentido é dar visibilidade ao seu caráter inacabado. Ele pode e

deve ser contado de outra forma, esta é a tarefa que se impõe: dar-lhe outro sentido.

19

Se o desafio é dar outro sentido, faço-o a partir do entendimento de que analiso

uma política curricular e como tal deve ser compreendida em suas múltiplas dimensões,

em suas facetas de elaboração-ação. Recorro então ao diálogo com Stephen Ball (1992;

1997; 1998), que tem fornecido elementos que podem orientar o estudo de políticas

curriculares, assumindo-as como texto e discurso, entendendo-as como processos e

produtos. Ao enfocar a política como processo é possível cruzar com o que Mouffe

(2003) diz ao diferenciar política e político, afirmando que o último trata das questões

que envolvem a deliberação no contexto do processo de luta/ações de poder. O político

se refere não apenas a ações de controle e determinação, o que diz se referir a política,

mas à discussão em torno dos significados de que se dotam as práticas. Assim, o

político seria o caráter processual que se desenvolve num espaço em que há luta de

poder.

Ao propor que se investigue o processo político, Ball amplia o próprio

significado de política curricular não mais centralizando suas análises na dimensão ora

da produção, ora da implementação; o que propõe é uma análise que interligue as

diferentes dimensões, ou, como chama, contextos de produção curricular. Assim, neste

estudo, busco compreender a elaboração da proposta curricular a partir da análise dos

múltiplos contextos, num movimento entre os diferentes contextos que não são vistos

como hierarquizados, mas que se influenciam mutuamente. Ball (1997) apresenta os

contextos de influência e sugere a necessidade de investigar o contexto de estratégias

políticas: as atividades sociais e políticas que entram na arena de lutas e alianças na

produção de uma política. Destaco assim, nesta investigação, a análise desses contextos

de influência no estudo da produção da ANFOPE (Associação Nacional de Formação de

Profissionais da Educação), das produções dos seminários sobre Educação Infantil

20

elaboração. Há conceitos que passam de um contexto ao outro, mas os discursos

produzidos nessas esferas são circunscritos por fatores contextuais. Assim, volto-me

também para o contexto da produção do texto da política, focando o processo de

elaboração do currículo na UERJ. No caso deste estudo e pelas características do

processo, que foi construído com a participação dos alunos e ao longo da sua

implantação, faço inferências sobre o contexto da prática, na hibridização da produção

do texto da política reconstruído na sua prática.

Para tanto, a partir de quadro conceitual híbrido e ambivalente, recorro ao

diálogo com os autores pós-coloniais combinando-os às estratégias de pesquisa de

cunho etnográfico. A pesquisa empírica se dá a partir da análise documental e de

entrevistas realizadas com os sujeitos que vivenciaram a produção curricular na UERJ.

No que tange aos documentos há duas frentes de trabalho que não são

dicotômicas nem opostas: o levantamento e estudo de documentos relativos aos

contextos de influências - ANFOPE, MIEIB, COEDI - e os textos acadêmicos

desenvolvidos por sujeitos participantes desses movimentos ou que sobre eles

tematizam; e a pesquisa nos arquivos da UERJ, seja na própria Faculdade de Educação

ou em outras instâncias da universidade. Os documentos, de naturezas distintas, foram

tratados como discursos e também examinada sua ressonância nos discursos

curriculares. Na análise dos documentos busco as marcas da construção de um discurso

de mudança na compreensão do que é ser professor, um discurso que desloca o debate e

foco de atenção da organização de um trabalho de formação a partir da definição de

tarefas características de atuação profissional – de um perfil profissional – à tessitura de

uma concepção de identidade docente, de definição não apenas de modos de atuação,

mas dos fundamentos de uma atuação possível, demarcando quem é o sujeito que as

desenvolve. Na fala de uma das entrevistadas:

Eu acho absolutamente desnecessária qualquer habilitação. Se a formação for sólida, você está preparado para atuar, seja na empresa, seja em qualquer outra área da educação, aí sim dando continuidade a seus estudos (professora Regina.)

Formação sólida que permite livre trânsito em diferentes áreas da educação –

essa solidez se configura na definição de uma identidade como docente, como

fundamento de atuação que congrega e forma um eu coletivo definido. É esse o foco de

análise: compreender, na leitura dos textos, como essa concepção foi sendo construída e

o que representa essa ruptura e mudança de eixo de trabalho – da especificidade

(habilitação) à totalidade (docência), do perfil profissional à identidade.

21

A retomada das produções do que identifico como contexto de influência é

fundamental para compreender que esses discursos-deslizamentos não se produzem

isoladamente na elaboração do texto da política, nem são tampouco reflexos de um

discurso produzido em outra esfera, mas dão visibilidade ao processo de elaboração de

concepções que vão se alinhando e compondo, como um mosaico, essas formulações.

Evidenciam também o protagonismo de sujeitos que atravessam os diferentes espaços,

que têm como cenário de atuação tanto os contextos de influência como também os de

produção do texto da política, e assim exercem uma outra influência. Nesse sentido, é

interessante perceber como a elaboração de políticas curriculares se desenvolve a partir

de negociações e acordos políticos.

Se na análise do processo como um todo destaca-se também a atuação individual

de alguns sujeitos, a escuta deles se torna elemento de articulação para o entendimento

do processo. Assim, faço também entrevistas com professores, alunos e ex-alunos

envolvidos na elaboração curricular. Esse foi um momento tenso de localização das

pessoas, de lidar inclusive com recusas.

Pauto-me nas entrevistas na possibilidade de construção de um espaço dialógico

em que a narrativa pessoal possa se entrelaçar a temática abordada. As entrevistas, com

um roteiro semi-estruturado a priori, foram gravadas e transcritas. Uma questão que

vale ressaltar é que, na busca da construção desse espaço, não houve preocupação de

confrontar as falas às informações dos textos de forma a observar a veracidade dos

relatos ou aos escritos. Buscou-se cruzá-los e pô-los em diálogo construindo a partir daí

novos textos e estes, a partir da perspectiva individual, projetam e analisam o coletivo.

E, a partir da problematização apresentada e das maneiras de fazer para buscar

compreender os caminhos da identidade, fui construindo a arquitetura deste trabalho:

inicio discutindo os conceitos com os quais opero na investigação – cultura, diferença e

identidade, explorando os significados deles e estabelecendo a base teórica para as

argumentações que faço.

No segundo e terceiro capítulos dedico-me à pesquisa e à análise dos contextos

de influência. Esses dois capítulos podem ser entendidos como um movimento de

trabalho (subdividido por questões de organização) que visa perceber as articulações em

torno da mudança de foco de trabalho na formação de professores e a elaboração de um

discurso de defesa da identidade docente. A tomada dos textos da ANFOPE, do MIEIB

e da COEDI permitem a compreensão da complexidade do multifacetado processo de

elaboração de políticas curriculares, enfatizando a importância na estrutura dos

22

discursos na medida em que a forma como as palavras são ditas, num processo de

criação, produzem novos sentidos e formas de inteligibilidade.

O esforço de trazer a análise textual como elemento integrante da análise das

relações entre currículo e identidade ressalta o caráter construtivo da linguagem em

relação à identidade, que explicita as relações de poder envolvidas na demarcação do

lugar ocupado pelos indivíduos, como funcionam e os processos de mudança em

questão, fornecendo elementos para a ampliação das análises dos processos de

mudança, destacando que a análise de uma prática social necessita a ampliação e a

observação de suas múltiplas e complexas dimensões, dentre elas a discursiva.

Perceber os movimentos desses processos de mudanças, as tênues cadeias

significativas que vão se formando e como são formadas, permite-nos a construção de

um espaço dialógico de análise que nos enfrentamentos e contradições, incita a pôr o

texto da política em uma moldura ampliada.

Sendo assim, no quarto capítulo investigo o processo de elaboração do

currículo vivenciado na Faculdade de Educação da UERJ, considerando as influências

que o perpassam e indagando como a identidade é pensada e conforma o currículo

produzido. Analiso a centralidade da identidade nessa elaboração e como isso se

materializa e se desdobra no desenho curricular. Aqui faço um movimento duplo;

entendimento da docência amplificada desenvolvida e, paralelamente, a especificação

desta na configuração do educador infantil, numa identidade duplamente adjetivada.

Na análise desse processo estudo não só o texto da política, mas dialogo com a

visão dos sujeitos que viveram o processo e a percepção que ex-alunos e professores

têm de como isso se deu na prática, o que implica entender como essa proposta é

reescrita no cotidiano.

Assim, apresento o acabamento provisório que dei ao trabalho, na certeza de que

outras formas de organização são possíveis. Convido o leitor para que, da sua

observação a partir de um lugar diferente, possa dar outros sentidos a este texto, que dê

continuidade a uma conversação/negociação contínua.

A objetividade da pesquisa em Ciência social está sempre entre aspas: é a aspiração à teoria, mas como tal é algo que pára antes da prática teórica. Toda pesquisa é teorizada, mas não é teoria com T maiúsculo: a teoria é a atividade de teorizar, de continuar pensando, em vez do ponto final da produção de um modelo teórico último (Hall, 2003, p. 377).

23

Capítulo I :

Interrogando a identidade: que me permite dizer o que sou?

Formação de professores em pauta. Tema novo? Decerto que não! A questão da

formação de professores é tema dos mais recorrentes no cenário educacional brasileiro,

tendo em vista as condições objetivas de trabalho, as tantas transformações que vivemos

e as necessidades prementes da escola brasileira que se apresentam como obstáculos

para a construção de uma educação que se aproxime dos anseios por qualidade e

desenvolvimento. Nesse meio, a formação acaba sendo ponto de convergência e tensão:

muitas das pesquisas desenvolvidas, se não têm como tema a formação a ela remetem

em suas considerações – há que se fazer mudanças profundas e estruturais na formação

de professores; as alterações propostas têm quase sempre a mesma trajetória, passam

pela formação.

Paralelamente a isso tantas pesquisas têm se dedicado a investigar as

complexidades que envolvem a docência em seus múltiplos aspectos: história,

identidade, cultura, trajetória de atuação... A pessoa do professor vem sendo ressaltada

como central nas investigações; desconsiderá-lo como pessoa pode incorrer na

elaboração de uma análise superficial. Nóvoa afirma (1992,p. 17):

as opções que cada um de nós tem de fazer como professor (...) cruzam a nossa maneira de ser com a nossa maneira de ensinar e desvendam na nossa maneira de ensinar a nossa maneira de ser. é impossível separar o eu profissional do eu pessoal

Se é impossível separar o eu profissional do eu pessoal como tangenciar a

construção de uma identidade docente? Onde fica o eu pessoal na elaboração de um eu

profissional? O que me permite dizer quem sou?

Mais que especulação, a interrogação é provocativa: o que sou? Professora! E

só? Melhor definindo os termos: como sou professora? Que sujeito eu sou? É possível

definir-me de forma absoluta, ainda que pondo em destaque o eu profissional?

Assim, diante dessas questões, encontro minha via de entrada na discussão sobre

os professores e sua formação: que sujeito é esse que se busca formar? Como as

questões de identidade circulam na formação?

Se, como argumenta Caldeira (2000, p.2):

a identidade profissional docente não é algo que pode ser adquirido de forma definitiva e externa. Ela é movediça e constitui-se num processo de

24

construção-desconstrução-reconstrução permanente, pois cada lugar e cada tempo demandam redefinições na identidade desse profissional. Trata-se, assim, de um processo de produção do sujeito historicamente situado.

Para discutir a questão encaminho o debate para o campo do currículo,

entendendo como artefato cultural em que se processam escolhas, negociações e

disputas em torno de um projeto de formação, assumindo-o como constructo

sociocultural o que “significa que ele é colocado na moldura mais ampla de suas

determinações sociais, de sua história, de sua produção contextual.” (Silva, 1996, p.83),

um fazer-se que não se dá de forma linear, homogênea e supostamente neutra, mas se

marca pela dinâmica das relações sociais em que está envolvido, relações que o

atravessam, o que aponta para o currículo como campo de lutas que não podem deixar

de serem consideradas.

Não é possível perder de vista que o currículo, como artefato cultural, se

estrutura e organiza a partir de uma concepção de cultura/conhecimento que é

valorizada. Tendo em vista que estas são produções humanas, sócio-históricas, culturais,

o currículo representa e produz cultura, e, assim, os sujeitos praticantes dele. Mas cabe a

discussão: qual cultura? Culturas? Unicidade ou pluralidade de idéias e práticas? Mais:

diferenças?

A compreensão do currículo como cultura é a linha que articula este estudo.

Falar de cultura implica uma ampliação do seu próprio conceito para além da idéia de

conjunto organizado de saberes produzidos pela humanidade, o que permite vislumbrar

a imagem de um grupo organizado, consensual, linear em sua progressão e articulação.

Pôr a cultura no foco das discussões segue uma linha de contestação de sua concepção

problematizando-a e argüindo-a como campo de conflitos e disputas, um território

amplo e diverso que precisa ser entendido como tal. Sendo assim, a noção de cultura

que perpassa o trabalho se alinha a estudos culturais e pós-coloniais que focalizam a

cultura como formas de ser/estar de sujeitos que articulam as múltiplas dimensões

destes e que se expressam e configuram subjetivamente a partir dessa formação.

Assim, o entendimento da cultura como tal se cruza com a noção de currículo

antevendo-o como artefato cultural, focalizando-o, assim, como processo de elaboração,

marcado por conflitos e tensões, mas que neles se negociam sentidos para as práticas

cotidianas, saberes e fazeres que se organizam no currículo. O que se põe em questão é

um entendimento outro diferente das acepções clássicas que confundem currículo e

conhecimento (Macedo, 2005), que entende que a cultura se expressaria através do

25

currículo - o que se veria nele e a partir dele seria o produto da cultura. O currículo

como cultura vislumbra-o como produção, considerando a cultura um processo

contínuo, ambíguo, de negociação de sentidos, produzindo nas decisões curriculares

discursos, espaços de enunciação de saberes, culturas.

Ao trazer a cultura para o foco da cena e da forma como é entendida, alia-se a

essa discussão a idéia da diferença. É nessa questão que se centra este trabalho – o

currículo como cultura no horizonte da diferença. Se é compreendido que a cultura é

produção de sentidos e que estes não são únicos e lineares mas fruto de embates em

diferentes grupos em busca de espaço de legitimação de suas formas de enunciação, a

diferença cultural é posta como idéia central a ser discutida.

Para aproximar essa questão dos dilemas do cotidiano exemplifico: muitas vezes

discutimos a distância ou desconsideração pela cultura do aluno no/pelo currículo7. No

entanto, também sabemos e muitas vezes defendemos aguerridamente que não se trata

de substituir uma cultura por outra, mas cabe o diálogo entre essas culturas diferentes.

Aí reside o desafio – diálogo que não seja redução ao mesmo - que traz em si a

exigência do enfrentamento das diferenças. Além disso, entendendo o currículo como

prática cultural e não como objeto coisificado e estático, a “cultura do aluno” desenha

fronteiras no currículo, entre - lugares de discussão, onde a diferença está presente,

ainda que haja o esforço para apagá-la e reduzi-la.

Essa é a questão que move esta investigação: o não-apagamento da diferença,

pondo o currículo no campo da cultura. O currículo como produção cultural trata-se de

uma construção híbrida, que traz as marcas da presença de diferentes culturas em

negociação. Entender esse processo e dedicar-se a ele é pensar nas possibilidades de se

narrar que os sujeitos, no fazer curricular, constroem. Num tempo incerto, líquido

(Bauman, 1998), em que as identidades são postas em cheque, como pode o sujeito

narrar-se? Que identidades se constroem no fazer curricular?

O desafio de ...

entender o currículo como híbrido cultural pode facilitar a construção de uma política da diferença. No espaço-tempo de fronteira habitado pelos saberes homogêneos do iluminismo e do mercado e pelas culturas locais, a diferença não pode deixar de existir. Ela se insinua na tensão entre os enunciados e os processos de enunciação dentro dos quais esses enunciados

7 È possível aqui citar vários estudos realizados. Desde de Paulo Freire (1998), a idéia da anulação da experiência do aluno para que este incorpore a cultura hegemônica preconizada na escola vem sendo denunciada. Hoje é podemos citar vários trabalhos que reconhecem e procuram achar estratégias que considerem essa questão, principalmente aqueles que se voltam para o cotidiano escolar. Ver, por exemplo, coletânea organizada por Oliveira (2001)

26

ganham significados, portanto, na ambivalência, no entre-lugar habitado pelas culturas que não se excluem nem se assimilam umas às outras. Viver nesse espaço-tempo de fronteira nos obriga, como professores e alunos, a lidar com a diferença, buscando negociá-la. O currículo passa a ser, assim, um lugar-tempo em que os sistemas de referência culturais são confrontados com a sua insuficiência pela negociação com o “outro”, com a diferença. Um lugar-tempo em que as culturas presentes precisam co-existir, em que as diferenças precisam ser traduzidas. Uma tradução sempre impossível, mas que transforma todas as culturas particulares ao obrigá-las a negociar no horizonte mais amplo das experiências homogeneizantes. A exigência da tradução cultural no espaço-tempo do currículo é também a possibilidade de se pensar uma nova agência para a tarefa educacional (Macedo, 2006, p.14).

Enfrentando o questionamento e a exigência de repensar a tarefa educacional,

este estudo objetiva investigar as relações entre identidade e currículo no campo da

formação de professores. Entendendo a identidade como elaboração que se dá no

contexto sociocultural em que estamos inseridos e que isso se dá de forma relacional e

intersubjetiva, o currículo como espaço de diálogo e negociação em torno dos sentidos

dados à formação traz para o seu desenvolvimento relações de alteridade que balizam a

formulação de identidades. A projeção de sujeitos formados a partir deste ou daquele

currículo elenca parâmetros para o ser e sua atuação, delimitando suas possibilidades de

diálogo, além de determinar quem é o outro, o reverso do que se projeta. Assim, se

identidade pode ser vista como forma de posicionamento dos sujeitos frente ao mundo,

remetendo ao self, é preciso também contextualizá-la. Não há como pensar em trajetória

linear e autodeterminada, num momento em que identidade parece desenraizada de

contextos coletivos, num movimento errático de um sujeito isolado em medos e

conflitos pessoais, ensimesmados. (Bauman, 1998;2001)

Pensar o currículo como produtor de identidade significa também pensar o que

se projeta como sujeito a ser formado. No contexto atual, acredito que discutir

identidade se dá no diálogo com alteridades, na busca pelo reconhecimento de uma

outridade (Skliar,2002) que não signifique a busca pelo mesmo, mas a possibilidade da

formação de um sujeito sensível que possa se colocar no lugar do outro, que amplie sua

visão de forma a compreender as diferenças sem querer aniquilá-las, mas reconhecê-las

como limite de discussão e exigência de enfrentamento e produção.

Remeto aqui às imagens do cinema, que podem tornar fecundas e explícitas as

relações pretendidas/defendidas. Nascido em bordéis (2005) narra a história da inglesa

interessada em fazer um documentário sobre os bordéis na Índia. Seu interesse em

capturar os cheiros, cores, vozes e sentidos daquele lugar eram incompletos sempre,

27

fora a repulsa que sofria. Ela passa a viver lá e, no diálogo com as crianças, começa a se

misturar e tentar compreender esse outro mundo. Para isso, precisa ver o que eles viam.

A estratégia que ela utiliza é a realização de oficinas de fotografia com as crianças: dá

máquinas a elas e as ensina a tirar fotos. O que vê se dá a partir dos olhos das crianças.

Sua máquina e sua técnica eram sempre insuficientes. As crianças traduzem com suas

imagens o cotidiano em que vivem, ainda que haja a incompletude na tradução, que as

fronteiras estejam lá, as foto-grafias, escrevem pela luz o espaço da alteridade e do

diálogo, do enfrentamento e da negociação, o entre-lugar.

Poderia ser o currículo esse espaço de negociação, trazendo “fotos” diferentes

que ali pudessem ser negociadas implicando um sujeito que permite ver com os olhos

do outro, sem se anular. Seria então o espaço da performatividade o movimento de

identidade?

Essas interrogações encaminham as buscas que faço ao longo deste estudo e

diante daquilo que elejo como objeto de trabalho: discuto a construção de um projeto de

formação de professores que se erige a partir do trabalho de construção de uma

identidade docente. A centralidade da formulação dessa identidade se faz evidente na

definição de elementos que caracterizam o professor, delineando um perfil profissional,

o que remete à projeção de uma identidade. A investigação se concentra na análise de

como esse processo se dá na formulação curricular, entendendo que esta propicia a

construção de identidades, estabelecendo limites e possibilidades de atuação na

formação desses sujeitos. Orienta o caminho a ser percorrido e, nas presenças e

ausências perceptíveis em sua produção-formulação, cria elementos de identificação. O

estudo visa analisar o processo de elaboração de uma política curricular e como nele vão

se articulando elementos que buscam organizar, gestar e gerir identidades específicas.

Ao argumentar que é necessário pensar nas articulações entre currículo e

identidade, ponho sob suspeita a fixidez dos sentidos postos a formação de professores,

alicerçando uma identidade essencializada, e defendo que o entendimento do currículo

como cultura no campo da formação de professores é condição sine qua non para a

busca de relações de alteridade no cotidiano escolar, uma vez que esse sujeito-aluno-

professor em formação precisa ser entendido como sujeito portador/produtor de cultura

e, quando formado a partir de uma visão essencializada do ser professor, pode ser

levado ao entendimento da identidade cultural como única e homogeneizada, o que

concorre para o apagamento da diferença, do diálogo e da negociação na escola, no

29

propósito de compreendê-las, podendo, a partir daí, situar e clarificar a problematização

que trago ao estudo.

Apesar das diferentes abordagens do conceito de identidade e a relação com a

cultura, o que se destaca é que todas se desenvolvem a partir da idéia de sujeito como

unidade de análise (Signorini, 1998), para o qual se dirigem diferentes projetos de

regulação/emancipação (Santos, 2000).

A recuperação do desenvolvimento dessa idéia revela as

desconstruções/recontextualizações desses projetos, permitindo seu questionamento e

suas possibilidades de discussão. Assim é possível acompanhar o desenvolvimento da

idéia de identidade como fechamento, unicidade à transformação da identidade em

subjetividade, hoje em foco em tantas discussões e, como ressalta Santos (2000), o

retorno à identidade, num contexto multicultural.

A fé iluminista na razão como mãe de todas as virtudes desenha o cenário para

as formulações sobre o sujeito moderno. Herdeira da idéia religiosa de conversão como

caminho para algo melhor, para outro estágio diferenciado qualitativamente, a razão é

vista como caminho para o progresso e, então, para uma sociedade melhor. Para isso, os

sujeitos que compõem essa sociedade têm como representação essencial a busca pela

verdade, a descoberta da realidade via razão para a construção dessa sociedade.

Desse modo, o que se delineia como concepção de identidade é um sujeito

unificado pela razão, autocentrado, autônomo, ativo, que, na busca pela verdade, se

descobre e se regula; autônomo na condição de ser o que é.

Vale ressaltar que a idéia central que caracteriza a Modernidade não se dá só

pela racionalização, mas também pela emergência do sujeito. A identidade é associada à

subjetividade, compreendendo esta não só como elementos que caracterizam o sujeito

mas como desenvolvimento do eu, que remete à idéia da consciência do sujeito auto-

regulado. Assim, a subjetividade é vista como reflexividade que permite ao sujeito se

produzir no rompimento do coletivo; essa busca consciente leva o sujeito ao

reconhecimento do bem comum, revertido no sujeito coletivo que é o Estado. A

identidade, como elaboração do projeto de Modernidade, se constrói a partir do binômio

indivíduo e Estado, num contexto em que o projeto moderno se funde ao

desenvolvimento do capitalismo. A representação de um sujeito universal disciplinado

pela razão e autodisciplinado se cruza com os princípios reguladores do Estado, numa

concepção de identidade abstrata e descontextualizada; ou seja, esse sujeito universal se

constrói no rompimento das comunitas medievais e na força conferida à busca racional

30

e individual dos sujeitos, o que se faz paralelo à elaboração de um outro sujeito: o

Estado9.

Santos (2000), ao historicizar e buscar compreender a construção da identidade

na Modernidade, diz que:

o paradigma da modernidade é um projeto sócio-cultural muito amplo, prenhe de contradições e de potencialidades que, na sua matriz, aspira a um equilíbrio entre a regulação social e a emancipação social. A trajectória social deste paradigma não é linear, mas o que mais profundamente a caracteriza é o processo histórico da progressiva absorção ou colapso da emancipação na regulação e, portanto, da conversão perversa das energias emancipatórias em energias regulatórias (p. 137).

O autor considera que a esfera da regulação assenta-se sobre os princípios do

Estado, do mercado e da comunidade e a esfera da emancipação, sobre os princípios das

racionalidades moral-prática, cognitivo-instrumental e estético-expressiva. Explica que

houve um desequilíbrio entre a regulação e a emancipação a partir do fortalecimento do

Estado, o que gera desequilíbrio também entre os princípios de cada esfera. Decorre daí

o primado da regulação sobre a emancipação e a supravalorização da racionalidade

cognitivo-instrumental da ciência e técnica, secundarizando os outros princípios. Esse

processo não é linear; ao contrário, se dá numa dinâmica complexa, mas que promove a

construção de uma subjetividade descontextualizada e abstrata, atrelada à racionalidade

científica. Ou seja, há uma elaboração que remete a uma referência identitária.

Dessa forma, fica evidente que a análise do sujeito racional da Modernidade

exige a compreensão do processo, sob pena de reducionismos, como alerta Touraine

(1994) ao criticar a visão da Modernidade associada somente à racionalização,

encobrindo a ênfase dada ao sujeito individual, tendo como princípios a liberdade e a

responsabilidade, não alcançando, assim, a temática do sujeito. Seu argumento alinha-se

à análise de Santos (2000), ao afirmar que o que caracteriza a Modernidade é o

afastamento e a polarização entre subjetividade e racionalização.

Bauman (1998), ao tratar da identidade na Modernidade, diz que

o projeto moderno prometia libertar o indivíduo da identidade herdada. Não tomou, porém, uma firme posição contra a identidade como tal, contra se ter uma identidade, mesmo uma sólida, exuberante e imutável identidade. Só transformou a identidade, que era uma questão de atribuição em realização –

9 Santos (2000), como outros autores, refere-se à identidade moderna como subjetividade. Não é objetivo deste estudo buscar diferenciar os conceitos, uma vez que seus usos não são precisos e únicos. Faço a ressalva para indicar que concentro meus esforços na discussão da identidade.

31

fazendo dela, assim, uma tarefa individual e da responsabilidade do indivíduo (p. 30).

Contudo, esse projeto individual de autotransformação era tangenciado por um

projeto coletivo comum, num mundo em busca da ordem alcançada e vista como

homogênea, estável e duradoura. Esse mundo ordenado, que estrutura o Estado,

constitui as disposições legítimas que dão suporte à construção identitária. A estrutura

estatal sustenta essa construção, garantindo um cenário estável, fixo para a construção

identitária, permitindo que esta seja racionalmente planejada e objetificada. Esse cenário

não só sustenta como resiste a essa construção.

Santos (2000), ao discutir tal ponto, destaca o processo de interpenetração da

Modernidade com o capitalismo como fator preponderante para tal construção, ainda

que não seja este o único a compor tal dinâmica. O autor destaca, entretanto, um

momento que considera significativo para a compreensão da acepção de sujeito que se

constrói. Cita e contextualiza a queda de Granada em 1492, que (antecedendo a viagem

de Colombo e o período das grandes navegações portuguesas) precede a formulação de

princípios que legitimam a submissão absoluta de outros povos, do outro bárbaro a ser

dominado, como foram os etnocídios ameríndio e africano. Ao apresentar a queda de

Granada como exemplo, marca a interrupção de um contexto de tolerância e

convivência de cristãos, judeus e mouros nos termos que usa, “num acto de pilhagem

política e religiosa” que estabelece uma nova ordem de práticas que regulam as ações e

consciências.

Nesse processo, vê-se a construção da identidade do outro, o que legitima a

dominação por este se afastar das concepções hegemônicas do projeto moderno:

indivíduo e Estado. O outro não é indivíduo por diferir do indivíduo moderno;

desconhecedor do Estado, também não tem identidade estatal. Santos (2000) alerta que

não é possível estabelecer um traço contínuo nem relação casuística entre o

desenvolvimento da idéia de outro na Modernidade e os processos de colonização, pois

estes não se desenvolveram de forma linear e sincronizada. Contudo, perceber as

relações entre esses movimentos sociais costura idéias que facilitam a compreensão

desses processos e os nexos com a educação. Vê-se, nesse movimento, o rompimento da

aceitação de uma pluralidade da época pré-moderna, em que a identidade é vista como

herdada, como atribuição, para a compreensão da identidade como projeto. O outro

antes aceito passa a ser visto como estranho, anormal. Ainda que a pluralidade aceita se

32

desse por crença na imutabilidade da identidade, na medida em que, como os autores

apontam, há polarização entre racionalização e identidade e a exacerbação das

qualidades de auto-regulação, há esforço para a construção de uma identidade que seja

universalmente reconhecida, que se submeta às premissas do mundo ordenado que o

Estado constrói.

A elaboração do outro, não-indivíduo, exacerba a idéia de um sujeito universal,

racional e, portanto, evoluído. Essa concepção se sustenta na figura do homem europeu,

que, em contraponto com o outro “descoberto”, é racional, educado. Aí se acha o ponto

de fusão: o caminho para essa evolução é a educação, que, em consonância com o

projeto moderno, se ocupa de assim formá-los. Educação como caminho para a

ordenação que se dá pela disciplinarização dos saberes, experiências e histórias do

homem; pela cultura.

Sacristán (1999), discutindo o projeto moderno e seu legado para a educação,

cita Kant (1991, p. 38):

Pela educação, o homem deverá ser então: a- Disciplinado. Disciplinar é tratar de impedir que a animalidade se estenda à

humanidade, tanto no homem individual como no homem social. Então, a disciplina é meramente submissão da barbárie.

b- Cultivado. A cultura compreende a instrução e o ensino. Proporciona a habilidade, que é a posse de uma faculdade pela qual são alcançados todos os fins propostos.

c- É preciso, também, tornar o homem prudente, adaptado à sociedade humana, para que seja querido e tenha influência. Aqui corresponde uma espécie de ensino que se chama civilidade.

d- É preciso implantar a moralização. O homem não só deve ser hábil para todos os fins, mas também ter um critério de acordo com o qual seja capaz de escolher somente os bons.

Percebe-se que é definida como meta da educação a formação do sujeito

moderno, visto como civilizado, disciplinado, culto, cidadão; metas que se sustentam

numa idéia de universalidade e igualdade para todos. Um sujeito unitário e autônomo

que tem no poder da razão o centro de sua identidade, que se aprimora e se configura na

medida em que alcança a autodeterminação.

Dessa forma, a identidade assume características essencialistas quando se

naturaliza o sujeito. O processo de educação o leva a ser o que é mediante o ponto

destacado por Kant como faculdade pela qual são alcançados todos os fins propostos: a

cultura.

Fica patente que a discussão da identidade, seja na retomada do projeto moderno

seja nas preocupações contemporâneas, precisa se dar no diálogo com a cultura, uma

33

vez que esta é compreendida como alicerce da sociedade, elemento fundador, que se

não for herdado pode ser adquirido de forma a garantir unidade e articulação. É a

cultura, é no acesso a ela que o sujeito se insere e passa a fazer parte de um grupo

social. Contudo, o que acompanhamos é a construção de um ideário de cultura superior,

unificada em torno da produção de um determinado grupo que passa a legitimar seus

valores como sendo os corretos e válidos. Por isso, Santos (2000), ao trazer a queda de

Granada e o que esta representou em termos de cisão de convivência de diferentes

tradições que negociavam e se recontextualizavam, fornece pistas não só para a

construção moderna do outro mas para o fortalecimento do domínio do uno, da cultura

universalizada, homogênea, descontextualizada. O que ele destaca nesse processo

histórico é interrupção de um espaço intersubjetivo de construção do eu transfigurado na

busca individual-racional dos sujeitos. A estreita relação com a educação se baseia em

sua visão de meio pelo qual a concepção moderna de sujeito e cultura é constituída e

difundida. A educação vista como meio de atingir o progresso individual e social se faz

a partir da reprodução e da transmissão do legado cultural. Trata-se da cultura entendida

como acervo das produções humanas, que recupera o passado e o objetifica. Sacristán

(1999, p. 153) ressalta:

A concepção moderna de cultura deixa para a educação duas idéias-força fundamentais: a primeira, a de que a cultura é algo objetivo, externo a cada ser humano, que representa “o melhor de sua história” e, por isso, vale a pena que continue a ser reproduzida; a segunda, a de que o indivíduo dignifica-se e aperfeiçoa-se com a apropriação deste legado.

É nesse sentido que a cultura permite o progresso, que eleva o homem à

condição de culto. É resultado do melhor da produção humana, e, pelo seu caráter

transformador, deve valer para todos, erigindo-se como cultura humana, universal e

homogênea, impondo-se sobre diferentes sujeitos.

Assim, a concepção de um sujeito racional e universal se entrelaça com a idéia

de uma cultura superior, unificada, externa, objetificada, estável e naturalizada, e que

tem a educação como veículo e local de manutenção e reprodução. A relação cultura-

escola-identidade vai se estreitando e consolidando na medida em que é conferido à

educação o papel de transmissão de uma tradição cultural. Sacristán (1999, p.159) diz:

No pacto da modernidade, a educação é um instrumento de liberação das visões estreitas, da irracionalidade, do desconhecimento e das limitações da família e da comunidade de origem. Por isso, é o instrumento para o êxito de uma aristocracia leiga e racional desligada de qualquer outra hierarquização e limite. A escola, com sua implantação, supera e rompe o cerco da cultura local.

34

Esse autor faz uma leitura do projeto moderno de educação como incompleto,

passando pelo desafio de enfrentar as críticas e os embates que trazem à tona questões

que precisam ser revistas e recontextualizadas; contudo, desse legado há promessa não

cumprida que ainda pode ser retomada: a universalização da educação – o que

necessariamente não implica educação universalizada. Trazendo indagações e

enfrentando os paradoxos do próprio legado moderno, Sacristán (1999) afirma que o

muito não realizado ainda vale o esforço de tentar cumprir essas promessas. Contudo,

salienta que, sem dúvida, as revisões e recontextualizações são necessárias para a

releitura dessas propostas, mas é preciso estar atento ao risco de cair num vazio de

orientações, de falta de referências, citando rumos que considera inadequados, que, já

tomados, precisam ser reconduzidos.

O grande questionamento que se faz, provocador de rupturas no projeto

moderno, dá-se a partir de outros referenciais, surgidos principalmente na chamada

virada lingüística e que abalaram as certezas, desestabilizando as metanarrativas, as

concepções fundacionais deste projeto. Em relação ao objeto desta tese, incidem

principalmente em dois pontos: a concepção de educação e de sujeito. Questiona-se a

idéia de centramento do sujeito e de uma perspectiva universalizada que leva à

emancipação. Aqui há a necessidade de uma maior explicitação desse movimento:

quando se trata da questão da crítica aos valores positivistas herdados do iluminismo

alude-se, em geral, às formulações pós-estruturalistas. No entanto, é possível perceber

essas marcas já nos princípios estruturalistas que emergem e se consolidam a partir da

década de 1950 com a virada lingüística.

O estruturalismo se desenvolve a partir das análises lingüísticas de Saussure que,

ao propor a compreensão do significado e do significante como elementos lingüísticos

diversos que se organizam a partir de uma relação binária, constituindo um sistema

(estruturas) de significados, cria base para um modelo científico de análise nas ciências

sociais, elaborando uma sistema de referências que seria apropriado em outras áreas

(Antropologia, Psicologia, etc.) que se dedicam a analisar as estruturas sociais que

sustentam as formações/transformações nos/dos sujeitos. Assim, já para estruturalismo a

problemática do sujeito e sua formulação é cara, dando ênfase a questões como

identidade e diferença.

O pós-estruturalismo se erige no combate ao paradigma cientificista proposto e

“adota uma posição antifundacional em termos epistemológicos e enfatiza um certo

35

perspectivismo em questão de interpretação”.(Peters, 2000, p.39) A crítica e a ruptura

do pós-estruturalismo em relação ao estruturalismo estão na crença deste em estruturas

universais da mente humana.

Peters (2000), em estudo que analisa as diferenças entre pós-modernismo e pós-

estruturalismo, argumenta que, entre estruturalismo e pós-estruturalismo, há

aproximações e diferenças. Das aproximações é possível ressaltar a postura de crítica

contundente ao positivismo, a valorização da linguagem. Das diferenças, o pós-

estruturalismo enfatiza a pluralidade de interpretações, o afastamento de formas de

fundacionalismo, além disso, o próprio conceito de diferença e a análise do poder como

prática discursiva são aprofundados.

Contudo, ainda que aqui se busque com essa explicitação historicizar a trajetória

(descontínua) do pensamento ocidental e apresentar as matrizes teóricas que discutem o

tema, é preciso estar atento ao fato que

há diferentes modos de integração, transformação, combinação, distorção, apropriação, que tornam difícil delimitar movimentos em identidades classificáveis. Essa multiplicidade não pode ser reduzida a uma ordem tabular – fixa e estável – por causa das diferenças por um lado, entre as diversas tradições culturais e, por outro, por causa da abertura de espaços entre as disciplinas (Peters, 2000, p. 83).

É preciso, orienta o autor, entender estruturalismo/pós-estruturalismo como

movimentos do pensamento que escapam de uma definição homogênea e têm se

reconfigurado a partir de “negociações” teóricas. Lopes (2005) alude à recorrente

configuração híbrida nas formulações teóricas que têm orientado a pesquisa sobre

políticas curriculares, o que vem gerando tensões no desenvolvimento desses estudos.

A autora argumenta que é preciso pensar na produtividade dessas associações

teóricas tendo como parâmetro a “análise do objeto de pesquisa a ser construído e dos

conceitos a serem considerados na construção desse objeto (p.53).” Apoiando-me nas

conclusões da autora, que afirma que o mundo que não pode mais ser compreendido em

elementos binários, penso que um sectarismo teórico traria também um binarismo

improdutivo ao estudo. Isso não significa que todo e qualquer conceito seja válido ou

pertinente (sob pena de um entendimento do hibridismo de forma celebratória e

esvaziada), mas que, de acordo com os questionamentos acerca do problema estudado,

as diferentes formulações teóricas são chamadas não a se justaporem ou se alinharem

simplesmente mas na difícil articulação dialógica, na negociação de sentidos possíveis à

sua compreensão.

36

Assim, as diferentes formulações teóricas, como movimentos de pensamento

trazem, são uma força que desestabiliza e questiona os pilares da Ciência Moderna.

Santos (2000) afirma que esse impulso questionador faz parte do momento em que

vivemos, de radical revisão do paradigma epistemológico da Ciência Moderna, com um

olhar diferenciado para tais questões, que conduzem a novos processos de

recontextualização de práticas sociais e das identidades. Assim, as concepções

epistemológicas apresentam novas-outras orientações para compreensão e exame das

identidades. Contudo, é preciso articular a questão epistemológica à dimensão política.

Esse processo de revisão da compreensão da identidade se dá num contexto atravessado

por processos de globalização/mundialização.

A retomada dos processos de globalização vivenciados nas últimas décadas é

fundamental para a compreensão das formas de conceber a identidade na

contemporaneidade, uma vez que trazem/exigem novas formas de compreensão

subjetiva do mundo pelos sujeitos.

Esse processo marca-se principalmente pela desregulação e pelo

enfraquecimento da soberania estatal – pelo enfraquecimento do sujeito coletivo –,

tendo agora os princípios de mercado como reguladores. Estes passam por um processo

de transnacionalização/mundialização, o que se pode observar na explosão de empresas

mundiais. A disseminação da idéia de mercado em posição antagônica ao Estado se dá

como categoria central para o encaminhamento de um processo abrangente de

reorganização política e social, em que os rearranjos que a supremacia do mercado

impõe são aceitos como necessidades intrínsecas ao processo, sem a viabilização de

uma possibilidade outra de intervenção.

Poderíamos dizer que se trata da (re)construção do discurso liberal/empresarial

redefinindo as esferas sociais, políticas, econômicas, sendo estas regidas pelas regras do

mercado e da livre iniciativa, com a mínima – ou mesmo sem - intervenção estatal

(Boron, 1994). Dentro dessa perspectiva, as discussões são deslocadas: deixam de ser

públicas e coletivas e passam ao foro individual, da livre escolha e da competitividade

de mercado. O cidadão transforma-se em cliente-consumidor, agente econômico

destituído de uma condição de participação político-social.

Essa dinâmica não se dá apenas na esfera econômica, mas interliga e se sustenta

a partir de outros fatores: o avanço tecnológico e a nova configuração dos espaços-

tempos a partir do desenvolvimento das redes de comunicação que fragmentam as

fronteiras, que alargam o fluxo de informações e que permitem que estas não sejam

37

locais, mas de âmbito e gestão globais. Pode-se perceber que há a formação de uma rede

de ideologia global centrada no mercado, numa generalização de padrões mundiais de

consumo, desejo e produção.

A ideologia de consumo cria terreno para a quebra de laços coletivos, numa

valorização do individualismo e da imediaticidade para satisfazer os desejos de

consumo. Aliado a isso, vive-se sob o signo da flexibilidade, que permite a adaptação às

exigências desse contexto de fluxo contínuo e ininterruptas mudanças. Bauman (1998)

nomeia esse tempo como “de incertezas”. Ao estabelecer o consumo como linha mestra,

e entendendo-o como ação individual, os sujeitos consumidores são muitas vezes

opostos. A regulação pelo mercado e a flexibilização de forma a atendê-lo fragiliza os

elos coletivos e a soberania do Estado – se antes havia uma ordem a ser perseguida e

alcançada, hoje esse sujeito coletivo não fornece estrutura às ações humanas; ao

contrário, dobra-se diante delas.

A destemporalização do espaço social, como o autor define, quebra a

compreensão do tempo-espaço estável, fixo, sob o qual era possível fazer uma trajetória

que seguisse uma direção única de progresso e desenvolvimento. As estruturas fixas

davam suporte à construção da identidade como trajetória e com um sentido; hoje se

vive de forma errática, não há para frente nem para trás, mas movimento.

O mundo construído de objetos duráveis foi substituído pelo de produtos disponíveis projetados para imediata obsolescência. Num mundo como esse, as identidades podem ser adotadas e descartadas como uma troca de roupa. O horror da nova situação é que todo trabalho de construção pode mostrar-se inútil; e o fascínio da nova situação, por outro lado, se acha no fato de não estar comprometida por experiências passadas, de nunca ser irrevogavelmente anulada, sempre “mantendo” as opções abertas (Bauman, 1998, p. 112-13).

A visão de mundo posta implica formas de vivê-lo e de estar nele. Nesse ponto,

a compreensão da identidade é marcada pelos movimentos da contemporaneidade. O

mundo que muitos chamam de pós-moderno10 trilha caminhos diferenciados que, no que

tange à identidade, pode ser visto como de questionamento e redefinição, não em busca

de um modelo que oriente a construção identitária, mas de flexibilização desta, de

percepção de sua fluidez, contestando a própria idéia de construção de uma identidade.

Bauman (1998, p. 114) afirma que o “eixo da estratégia da vida pós-moderna não é

10 Há autores que afirmam ser este um tempo de crise da modernidade ou modernidade tardia; ao enveredar pelo caminho da pós-modernidade, busco dialogar com os autores que privilegio em meu estudo.

38

fazer a identidade deter-se – mas evitar que ela se fixe”. Dito dessa forma, ficam

evidenciados a fluidez e o movimento; não se concebe a identidade centrada num

núcleo racional, o que se contrapõe à idéia de identidade como essência, mas a

multidimensionalidade da identidade, que se refere às múltiplas e distintas posições que

os sujeitos concomitantemente ocupam.

A desestruturação do tempo-espaço que fornecia o terreno firme para a

construção da identidade se perde, apagando a linha reta da trajetória dessa construção,

substituindo-a por um emaranhado de possibilidades de traçado. Movimento e

flexibilidade, presente contínuo, um mundo inteiro de possibilidades: ambigüidades que

fazem os tempos atuais de incertezas, que desestabilizam e questionam a compreensão

da identidade.

Acerca desse tempo de incertezas e de como estas são vividas pelos sujeitos,

projetando novas formas de pensar a identidade, podemos citar os trabalhos de Senett

(2000) e Dejours (1999). O primeiro desenvolve uma reflexão que, ao se aproximar da

experiência concreta dos indivíduos, recupera os movimentos do novo capitalismo e

como estes se refletem na construção/corrosão do caráter pessoal do trabalhador. O

autor apresenta como as características distintivas do capitalismo atual implicam

mudanças que não se limitam à dimensão objetiva do trabalho, mas têm seus reflexos

ampliados na dimensão subjetiva dele. A busca de flexibilidade, a repulsa à rotina, a

ilusória descentralização do poder, a importância do binômio gerenciamento/eficiência e

as novas maneiras de organizar o tempo afetam a vida emocional, em que a

instabilidade existente pretende ser normal.

Dejours (1999), em outro estudo que recorre a temática semelhante, analisando o

processo de transformações qualitativas na nova ordem do trabalho, centra a

investigação nas relações entre trabalho, sofrimento e prazer, procurando compreender

as motivações subjetivas que fazem com que se desenvolva uma tolerância às injustiças

que se enraízam no cotidiano das instituições, o que o autor chama de banalização da

injustiça social, recorrendo às formulações de Hannah Arendt. Investiga a

psicodinâmica do trabalho, buscando compreender o processo que dissocia a

adversidade à injustiça e que cria condições para que se tornem banais estratégias que

fragilizam o sujeito, infringindo-lhe o sofrimento. O autor observa como o sistema

neoliberal engendra, através de mecanismos de submissão e do surgimento do medo

enquanto elemento que se infiltra na própria estrutura do trabalho, formas diferenciadas

de vivência subjetiva que negam o sofrimento no trabalho, levando a um processo de

39

intolerância afetiva que não permite o reconhecimento do sofrimento de outros sujeitos.

As mudanças analisadas explicitam como a nova ordem econômica se desdobra em

outras esferas da vida social.

A globalização da economia se dá também na globalização da cultura ou no

reconhecimento das formas distintas que pluralizam a cultura. O que a caracteriza não é

a referência; não se distingue o autor, mas marcam-se seus consumidores. Num tempo

globalizado, com as redes de comunicação e informação cada vez mais avançadas,

reestruturando tempo e espaço, vive-se também a mercadorização da cultura (Bauman,

1998) e a idéia de comunidade que transcende o contexto local devido aos laços

transnacionais. Essa é outra situação que gera a incerteza a que Bauman se refere: não

há agora pontos de referência onde se ancorar para fazer da identidade construção

duradoura e segura. A globalização incita à constatação da multirreferencialidade como

fato, o que antes era combatido. Vários repertórios, tradições são desterritorializados,

transitam livremente e à escolha dos sujeitos.

Assim, o cenário contemporâneo expõe a impossibilidade de pensar a cultura

como construção ordenada, que permita o reconhecimento universal dos sujeitos. Ao

contrário, sua fluidez se faz nítida ao trazer outras formas de elaboração dos sujeitos.

Em sua heterogeneidade, as culturas colocam sob suspeita a identidade calcada na

originalidade e na pureza. É possível estabelecer o que é original de uma cultura? Se a

marca da mercantilização cultural põe sob foco não a autoria, mas os usos e consumos,

como definir a cultura? O que se percebe é o intenso movimento entre culturas, que, ao

se relacionarem, se produzem e articulam diferentes significados. Esse processo torna

inquestionável a idéia de um único sistema de significação e produção de saberes e

experiências, que chamamos de cultura, mas dá visibilidade a várias culturas que hoje se

relacionam e se desenvolvem nas relações que estabelecem.

Se fluidez e indeterminação são características desse processo, o fluxo cultural

constrói cenários híbridos. A idéia de hibridismo pode ser fecunda na análise da

identidade, uma vez que o mundo globalizado que desterritorializa, que põe em

evidência a heterogeneidade/pluralidade de sujeitos e tradições, problematiza a

construção das identidades – que em contextos globalizados também são híbridas.

Canclini (1997) colabora para a compreensão da constituição híbrida das identidades.

Defende que estas precisam ser problematizadas a partir de sua inserção nos processos

de globalização.

40

O autor distingue três processos, vistos como chaves de interpretação para

explicar processo de hibridização: o descolecionar, a

desterritorialização/reterritorialização e a expansão dos gêneros impuros. Tratando da

desterritorialização/reterritorialização, explica que há dois processos: a perda da relação

natural da cultura com os territórios geográficos e sociais e, ao mesmo tempo, certas

relocalizações territoriais relativas, parciais das velhas e novas produções simbólicas

(Canclini, 1990, p. 309).

Ou seja, as definições estáticas, que se identificam por se relacionarem

diretamente com o dado específico, perdem-se na fluidez do intercâmbio com diferentes

produções. O deslocamento do específico-fixo vai ao encontro da reelaboração,

relocalizando-o em novo contexto, desvencilhando-se das relações iniciais que, mesmo

presentes, não ocupam lugar central. Originam um espaço não mais autêntico, puro, mas

de co-participação, compondo um espaço híbrido. Acompanhando Dussel (1998):

a hibridização supõe tanto um processo de tradução que põe estas novas experiências e direções em relação com as que já estavam disponíveis previamente; e de um mesmo modo que um palimpsesto encontramos rastros de escrituras prévias nos discursos híbridos há também sentidos e articulações prévias que formam parte de sua textura (p.135).

As mediações estabelecidas permitem que os significados dados sejam

negociados e não apenas transpostos diretamente, aplicando-se e sobrepondo-se a um

outro campo que não o seu originário; a negociação exige reelaboração desses sentidos.

Dessa forma, o significado não é apenas comunicado, mas sua comunicação incita a

produção de um novo sentido. Assim, nestes processos, não se substituem, subtraem-se

ou enfatizam-se significados ou partes deles, mas estes se transformam em outros, o que

convida à reflexão: existe autenticidade? Qual é o válido diante de construções

múltiplas? Canclini (1996) encaminha a reflexão:

Em princípio, não há razão para pensar que um uso seja mais ou menos legítimo que outro. Com todo direito cada grupo social troca significações e usos. Isto pode ser examinado também desde a teoria da comunicação, porque estamos falando da circulação de bens, mensagens, significados, da passagem de uma instância a outra, de um grupo ao outro, no qual se comunicam significados que são recebidos, processados e recodificados (p.37).

A constituição da identidade enquanto híbrido não é um processo único, mas

desdobra-se em significados que explicitamente denotam diferentes posições e

tendências, na medida em que se atenta para o fato de que os grupos participam desse

41

processo de formas distintas, falando a partir de diferentes lugares, indicando

construções plurais, ainda que entre elas haja ora interseções, ora contraposições, senão

a incidência concomitante de interseções e contraposições, o que não os reduz a um

único.

A questão em discussão é a compreensão da complexidade do processo que

mescla tradições e idéias distintas, que, apropriando-se de um dado conhecimento e

acolhendo-o sob sentidos diferentes, impelem a reorganização e a remodelação do

próprio, construindo um objeto híbrido. Os processos de hibridação cultural analisados

por Canclini apontam para a fluidez que quebra fronteiras absolutizadas que

demarcariam territórios fechados e hierarquizados. A tenacidade da reflexão de Canclini

sugere a constituição de gêneros que mesclam diferentes idéias, que perdem a referência

exclusiva a uma dada tradição, desafiando-a na medida em que a altera, articulando

novas construções.

Pode-se então afirmar que a construção de identidades híbridas desafia a

concepção da identidade como essência, inclusive a possibilidade de construção de uma

identidade. A hibridização gera uma produção que poderia ser vista como simulacro, na

acepção do termo que Bauman (1998) faz. Se a identidade como essência e projeto se

alicerça sob a busca ordenada e racionalizada, a visão de uma identidade híbrida

enfatiza o caráter multidimensional, relacional e contextual da identidade. Não mais é

possível pensar a identidade como porto seguro, mas como espaço ambivalente,

construído a partir de processos que a tornam “impura”.

Também Martin-Barbero discute a identidade a partir da análise das produções

culturais na América Latina e as trajetórias de modernidade nesse contexto,

apresentando-a como descentramento. O autor opõe-se à idéia de uma identidade

cultural essencialista, defendendo que a identidade cultural latino-americana é uma

mestiçagem, numa análise que coteja identidade cultural e cultura de massa. Afirma a

identidade mestiça como fruto de operações híbridas que rearticulam as fronteiras

simbólicas, focalizando suas análises nas mediações e não nos meios (Escosteguy,

2001). Propõe uma memória sem território, uma desterritorialização. A idéia de

mestiçagem proposta pelo autor aproxima-se das formulações de Canclini.

Como a mestiçagem, a diáspora, num contexto de globalização, tem configurado

novas identidades culturais. Os grandes fluxos migratórios transnacionais trazem uma

outra realidade que faz com que a tensão local-global / nação-identidade seja revista.

42

A diáspora pode ser percebida como um des-locamento, em que as

possibilidades de pertencimento são difusas. Stuart Hall (2003) teoriza a partir da sua

experiência e da análise da situação vivida por caribenhos na Grã-Bretanha. Explica a

experiência dessas pessoas, que se sentem unidas a uma tradição histórica herdada, a

mitos fundadores que os atam a um núcleo cultural que os identifica como caribenhos,

mas, como escreve o autor, “em Barbados senti maior aproximação com a Inglaterra”

(p. 33), o que explicita uma dupla inscrição, que faz com que a identificação como

caribenho seja insuficiente, incompleta.

Se o conceito fechado de diáspora pode levar à idéia de binarismo, a fala de Hall

assinala que a diáspora não funciona dessa forma, mas revela a co-presença, numa

reapropriação dialógica. Narrando sua condição de “estrangeiro familiar”, Hall (2003, p.

415) escreve:

Tendo sido preparado pela educação colonial, eu conhecia a Inglaterra de dentro. Mas eu não sou nem nunca serei um inglês. Conheço intimamente os dois lugares, mas não pertenço completamente a nenhum deles. E esta é exatamente a experiência diaspórica, longe o suficiente para experimentar o sentimento de exílio e perda, perto o suficiente para entender o enigma de uma “chegada” sempre adiada.

Assim, a experiência diaspórica faz sentido na tradução que a reelabora em

formas híbridas, impuras; numa dupla inscrição cultural. Entendendo a identidade dessa

forma, contesta-se sua percepção como fixa, adquirida pelo nascimento, herdada por

filiação. Gilroy (2001) discute a experiência diaspórica no Atlântico negro trazendo

outra possibilidade de repensar esta experiência. Argumenta que a escravidão traz uma

experiência fundante para os negros, o que cria solidariedade, mas não é possível

reduzi-los a um grupo com uma identidade, uma vez que passam pela reelaboração da

experiência comum em formulações híbridas, ainda que com afinidades que não podem

ser reduzidas a uma só ou numa tradição herdada. Evidencia a cultura como produção e

acentua assim as operações de tradução. Dessa forma, o autor propõe e defende uma

concepção de identidade que é fruto de uma articulação híbrida em que se cruzam

diferentes práticas culturais, num processo nunca completo.

O que se percebe é que o mundo contemporâneo vive sob novas formas de

organização do tempo-espaço que trazem também novas formas de significação. Os

novos fenômenos sociais, políticos, econômicos e culturais se desenvolvem nesse

terreno propício e reclamam mudanças. Vê-se nesses movimentos a indissociabilidade

entre as formas de pensamento e as práticas sociais (Veiga-Neto, 2002). Essas práticas

43

se constituem pela e na cultura, esfera produzida e em que se produzem tais

transformações. Seria esse o mal-estar da pós-modernidade? Diante

44

O autor, ao destacar a concepção de tradução/negociação, o faz na perspectiva de

que esta pode significar um outro lugar cultural e político de enfrentamento, ao trazer a

possibilidade de articulação de elementos contraditórios, numa construção que não é

nem um nem outro, mas um híbrido. Ressalta que a contribuição da negociação é criar e

estabelecer o entre-lugar.

Numa crítica ácida à questão da diferença relacionando-a à tradução, Bhabha

sugere que essa tradução seja vista como outra forma de argumentação

A cultura só emerge como um problema ou uma problemática no ponto em que há uma perda de significado na contestação e articulação da vida cotidiana entre classes, gêneros, raças, nações. Todavia, a realidade do limite ou do texto-limite da cultura é raramente teorizada fora das bem-intencionadas polêmicas moralistas contra o preconceito e o estereótipo ou da asserção generalizadora do racismo individual ou institucional – isso descreve o efeito e não a estrutura do problema. A necessidade de pensar o limite da cultura como um problema da enunciação da diferença cultural é rejeitado (p. 63).

Bhabha concentra-se no processo enunciativo da diferença, que precisa ser

problematizado. Há uma ambivalência em que o sentido do enunciado nunca é

transparente. O autor diz que “o pacto da interpretação nunca é simplesmente um ato de

comunicação entre eu e o você designados no enunciado. A produção de sentido requer

que esses dois lugares sejam mobilizados na passagem por um terceiro espaço” (p. 66).

Esse espaço seria o entre-lugar, que, como temporalidade disjuntiva, opera a partir de

processos de negociação/tradução. A compreensão desse processo possibilita o

entendimento da identidade como híbrida, tornando impensáveis a pureza, a

originalidade e os sectarismos. Trata-se da diferença como temporalidade descontínua,

intertextual.

Essas formulações em torno da identidade se dão enraizadas no terreno da

cultura, uma vez que ela “ela está perpassada por todas as práticas sociais e constitui a

soma dos inter-relacionamentos das mesmas” (Hall, 2003, p. 136).

Os inter-relacionamentos incitam negociações que provocam rupturas, criando

campos de significação na articulação-desarticulação-(re)articulação de enunciados que

evidenciam e deslocam a diferença. É nesse processo que a identidade se torna

movediça, na possibilidade do entre-lugar identitário.

A argumentação em defesa da identidade assim entendida se assenta na

perspectiva de compreensão da identidade como construção dialógica. Vista como

45

fluida e não fixa, a identidade permite/exige a experiência da alteridade. Said (2003),

em texto que relata sua experiência “entre mundos”, relata:

Toda a minha educação foi anglocêntrica – tanto é verdade que eu sabia muito mais sobre a história e geografia britânica e até indiana (matérias obrigatórias) do que sobre a história e a geografia do mundo árabe. Mas, embora ensinado a acreditar e pensar como um escolar inglês, também fui treinado a compreender que eu era um estranho, um outro não-europeu, educado por meus superiores para conhecer meu lugar e não aspirar a ser inglês. A linha que separava Nós de Eles era a lingüística, cultural, racial e étnica (p. 305).

O que a narrativa de Said suscita e interroga é a visão da identidade como

determinação, fixada e ancorada em uma história dada e imutável. Assim, sem filiações

precisas, o que não se enquadra é o outro a ser negado. Fica evidente a polarização entre

as identidades estabelecidas na fala de Said. Essa polarização exclui e hierarquiza os

diferentes sujeitos – nós e eles –, justificando e fundamentando a negação.

Pensar a identidade no entre-lugar é posicioná-la na fronteira, rompendo com a

polarização sem, contudo, incorrer no apagamento das diferenças, o que é feito numa

concepção de sujeito universal. Trata-se de, na fronteira, buscar criar o espaço de

negociação, de interação entre elementos ditos “antagônicos”. Bhabha (2001) revela que

a concepção de negociação ou tradução que propõe se distancia da idéia de superação

dialética. Discute que a idéia de superação dialética também contém em si a concepção

de possibilidade de redução das diferenças a uma elaboração única. Defende a presença

incômoda e sempre questionadora da diferença, que não pode ser reduzida a uma

síntese. A permanência da diferença é que garante a possibilidade de movimento, do

porvir. Aqui é possível conceber a questão da identidade quando compreendida como

plural e movediça, numa elaboração dialógica, que se dá no espaço intersubjetivo, o

terceiro espaço que seria o entre-lugar, interstício onde os sujeitos, a partir de seus

múltiplos posicionamentos, se inter-relacionam. Trata-se do espaço de circulação de

significados que são reelaborados na e pela diferença. Sobre esse espaço que

desestabiliza e problematiza, rearticulando temporalidades, Bhabha (2001) fala:

O ir e vir do poço da escada, o movimento temporal e a passagem que ele propicia evita que as identidades a cada extremidade dela se estabeleçam em polaridades primordiais. Essa passagem intersticial entre identificações fixas abre a possibilidade de um hibridismo cultural que acolhe a diferença sem uma hierarquia suposta ou imposta (p. 53).

47

A performatividade, segundo Friedman (2002), constitui uma forma de

"citacionalidade", ou seja, uma repetição ou reiteração de normas. Entretanto, “falar da

performatividade" sugere também entendê-la como entre-lugar, onde é possível viajar

até o outro, habitá-lo, mas não se transformar no outro. Tal conceito se articula com os

trabalhados até aqui, pois permite deslocar a evidência da identidade como descrição –

como aquilo que é – para a idéia de vir a ser, concebendo assim uma nova concepção de

identidade como movimento e transformação.

Essa formulação de identidade permite romper com a clausura de posições

sectárias para a construção de um contexto dialógico que não apaga, mas tem sua

diferença na produtividade. Scliar (2002) fala sobre as relações de alteridade na

construção de uma pedagogia e diz que a busca da mesmice nos faz incorrer numa dupla

negação: a negação da existência do outro e a negação de que esta possa ter ocorrido. A

questão incômoda a ser enfrentada é como considerar o outro em sua diferença e não na

diversidade, como alerta o autor, mencionando a confusão que se faz entre os termos. A

busca por uma pedagogia da diferença se faz necessária na busca de outras relações,

espacialidades, temporalidades e imagens do/com o outro, na compreensão de outras

formas de identidade.

Isso leva ao questionamento da produção da identidade e diferença e como estas

permeiam o currículo, tendo em vista que a ênfase na pluralidade e diversidade cultural

sem relação ao conceito de diferença desloca toda uma concepção de identidade que co-

habita e circula nos diferentes espaços, apontando para uma fixidez e padronização de

modelos, de conhecimentos, de sujeitos projetados no currículo.

A articulação das idéias de hibridização, tradução, negociação e

performatividade compõe um mosaico de entendimento para as formulações identitárias

que defendo. Como performatividade, a identidade não pode ser vista como horizonte a

ser alcançado, mas como produção contínua, mutável que na incomensurabilidade da

tradução, impele à negociação de sentidos que são reapropriados e ressignificados de

modos diferentes por sujeitos diferentes, sem que necessariamente se faça, do outro,

espelho. Ao defender essa concepção, penso ser crucial atentar que a performatividade

como posicionalidade permite que os sujeitos postos na fronteira possam posicionar-se

diante de outros entendendo-os como tais: diferentes, não diversos; diálogo que não é

tolerância apenas, mas compreensão de que os enunciados desse sujeitos se elaboram e

reconstituem de forma outra e que o encontro possível se dá em outro lugar, que não é

de submissão nem de hierarquização: trata-se do entre-lugar da enunciação ambivalente.

48

1.2 - Cultura e identidade como prática discursiva: uma questão de enunciação

Ao tratar da identidade e cultura cabe destacar a compreensão da cultura como

prática discursiva e de enunciação. Entendendo a enunciação como sendo mais que a

fala de alguém, mas como espaço de elaboração de sentidos que se dá em meio às

relações estabelecidas entre os sujeitos, podemos inferir que a cultura é uma questão de

enunciação, pois estamos tratando da prática de significações. As diferentes ações

cotidianas que são desenvolvidas por sujeitos e têm significados partilhados por grupos

configuram-se como relações culturais. As significações construídas são produzidas no

âmbito da cultura e nesse terreno que operam. A cultura como enunciação é a

consideração que os sujeitos e os significados das práticas são elaborados na medida em

que são mencionados, posicionados e representados discursivamente. Conceber a

cultura como enunciação é abalar a concepção do cultural como tradição, sistema

estável, modelo. Entendendo também a tradição como uma forma de enunciação, trata-

se de não antevê-la como única possível, mas desestabilizá-la ao expor que o ato da

enunciação é atravessado pela diferença no processo da linguagem, diferença que é

fundamental para a produção de sentidos. Sendo assim, os significados culturais não são

unitários e homogêneos. A aproximação da cultura às questões de linguagem revela

operações que se dão na elaboração de significados/sentidos e relações. Bhabha (2001)

explica que a produção de sentidos não se dá como simples ato de comunicação entre eu

e outro, mas esses lugares de enunciação são mobilizados na passagem por um outro

espaço que é o das condições da linguagem e da enunciação enquanto ação performática

e/ou institucional que pode ser inconsciente. Essa dinâmica revela uma fissura,

ambivalência que revela que não há um significado nem contexto mimético que

subjazem a enunciação. Assim,

é apenas quando compreendemos que todas as afirmações e sistemas culturais são construídos nesse espaço contraditório e ambivalente da enunciação que começamos a compreender porque as reivindicações hierárquicas de originalidade ou “pureza” inerentes às culturas são insustentáveis, mesmo antes de recorremos a instâncias históricas empíricas que demonstram seu hibridismo (p.67).

Dessa forma, a cultura como enunciação é o reconhecimento do espaço da

enunciação como cisão, o que articula a discussão da produção da cultura aos conceitos

de diálogo e da ressignificação/reapropriação/reconstrução de sentidos elaborados pelos

49

sujeitos. Pondo a discussão no campo da linguagem parto da premissa que a noção de

linguagem está vinculada à noção do sujeito. O sujeito modifica a linguagem e é

modificado pela linguagem; é nas conversas mais informais ou nas reflexões mais

profundas, é no aparente monólogo, mas que se faz com o exterior, com um outro, ainda

que idealizado, que nos tornamos sujeitos produtores de cultura. Assim, é na relação

intersubjetiva que se constitui a linguagem - na qual também nos constituímos. O outro

é fundamental para a construção do conhecimento, inclusive pelo conhecimento de si

próprio. As relações de alteridade estabelecidas são fundamentais à medida que a

palavra dita pode ter uma réplica produzindo tensões que exigem negociação, confronto,

consenso, diálogo...

O entendimento do signo como arena de confronto em torno do

significado/sentido pressupõe negociação, articulação na constituição do que Bakthin

chama de auditório social. Assim, sugere o caráter dinâmico e dialógico da linguagem

como espaço formativo onde não há “nem um nem outro”, mas um espaço dialógico de

desarticulação/articulação e não de substituição da linguagem. O embate gerado, as

50

identidades sociais, construindo discursivamente representações e mediações que

elaboram e orientam o posicionamento dos indivíduos.

Hall (2003), na percepção da fecundidade das idéias de Bakthin em diálogo com

os Estudos Culturais, comenta que

o dialógico enfatiza os termos variáveis do antagonismo, a interseção de diferentes valências no terreno discursivo, em vez das bifurcações da dialética. O diálogo expõe rigorosamente a falta de garantia de uma lógica ou lei para o jogo da significação, os posicionamentos infinitamente variáveis dos locais de enunciação, em contraste com as posições dadas do antagonismo de classe concebidas de forma clássica. A noção de articulação/desarticulação interrompe o maniqueísmo ou a rigidez binária da lógica da luta de classe, em sua concepção clássica, como figura arquetípica da transformação (p. 235).

Assim, o que se pode afirmar é que a formulação identitária, como produção

cultural se faz na e pela linguagem; como Bhabha (2001) afirma, a identidade se

constrói na cultura como ato de enunciação. Bakthin (2004) explica o que seria

enunciação: como ato de fala (verbal ou não) se coloca na moldura de que

a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua (p.123)

E ressalta:

na realidade toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém como pelo fato de que se dirige a alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. (...) A situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior a estrutura da enunciação (p.113)

Ao tratar dessa forma a questão, Bakthin explicita a condição da palavra como

mais que uma representação da realidade exterior, como arena de luta em que se produz

uma realidade não só exterior, mas principalmente interior na medida em que é sobre o

espaço discursivo que se constrói a rede de significações que orienta a elaboração do

discurso interior. Enfatizar essas relações é focalizar o caráter construtivo da linguagem

em relação à identidade, que explicita as relações de poder envolvidas na demarcação

do lugar ocupado pelos indivíduos, como funcionam e os processos de mudança em

questão. No dizer de Bakthin (2004, p. 41).

a palavra penetra literalmente em todas as relações entre os indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político, etc. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É, portanto

51

claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo aquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. (...) A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais.

Referindo-se à elaboração da consciência, o autor afirma que a expressão

externa, os diferentes enunciados têm uma ação reversiva, agindo sobre a atividade

mental que busca elementos e formas de adaptação que façam com que os enunciados

próprios do sujeito sejam possíveis no enquadramento da moldura social, dos

enunciados coletivos. Assim, se

através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e interlocutor (p.113).

O ato de enunciação estabelece o espaço discursivo que não é nem de um nem

de outro; é uma zona fronteiriça de negociação.

A enunciação só pertence ao sujeito individual como ato fisiológico; Bakthin

(2004) afirma que a materialização da palavra como signo torna a questão da

propriedade complexa já que a estrutura da enunciação se enraíza no social. Dessa

forma, vislumbra-se que as enunciações são artefatos culturais, produzidas

culturalmente e que reciprocamente produzem cultura.

Pensar a cultura como enunciação esclarece a dinâmica de produção dos

discursos identitários. Com base em Bakthin, é possível afirmar que a enunciação

organiza a consciência individual, sendo produzida na tensão da atividade mental

coletiva e atividade mental para si.

Entendendo a identidade como projeção – ponte que se lança entre eu e o outro,

fica a interrogação de como discutir com os termos dessa proposição. Eu e outro desta

forma estabelecidos sugerem a polarização de forças. O próprio Bakthin argumenta

sobre isso ao colocar a interação socioverbal como realidade fundamental da linguagem.

Não se trata de trabalhar com posições abstratas nem com conflitos dicotômicos;

Bakhtin busca a unidade dos contrários pela síntese dialética: o dialogismo.

Bhabha amplia a discussão quando trata da questão da diferença. Impossível

retirar a ponte e fundar uma síntese. O diálogo proposto por Bakthin se põe, a partir de

Bhabha, como tempo e o lugar da negociação, da tradução, postas no campo da

52

diferença. A problematização que o autor traz apresenta o diálogo compreendendo o

enfrentamento necessário que exige pensar a negociação como diálogo inacabado, em

que os termos produzidos não se limitam à criação de um sentido único a ser partilhado,

se assim fosse, não se consideraria a enunciação da cultura na perspectiva da diferença e

sim da diversidade, “onde o outro texto continua sempre sendo o horizonte exegético da

diferença, nunca o agente ativo da articulação” (Bhabha, 2001, p. 59).

Evidenciar a diferença como tal sem buscar a redução de um sistema de

referências comuns significa a assunção de uma outra temporalidade para enunciação.

Apropriando-me da imagem da ponte lançada por Bakthin, se a diferença se apresenta

no ato da enunciação cultural, no estabelecimento de fronteiras, ou nas margens da

ponte, onde se colocar? Se para Bakthin superar o binarismo se dá pelo diálogo numa

síntese que retira a ponte e aproxima as margens, Bhabha sugere pensar sobre o que a

ponte se coloca. Que fosso é esse que ela permite atravessar? O lugar da enunciação

“atravessa a ponte” é atravessado pela diferença das/nas fronteiras que cria um espaço

de ambivalência dos significados, um terceiro espaço de enunciação que desafia a noção

de identidade absoluta. Nele o “nem um nem outro” abre espaço para formulações

híbridas produzidas no diálogo com as diferenças.

Bhabha (2001, p. 67-8) diz:

É o Terceiro espaço, que embora em si irrepresentável, constitui as condições discursivas da enunciação que garantem que o significado e os símbolos da cultura não tenham unidade ou fixidez primordial e que até os mesmos signos possam ser apropriados, traduzidos, re-historicizados e lidos de outro modo.

O desafio de compreender e se comprometer com essa formulação traz o

entendimento das discussões de identidade a partir da defesa desta como produção

híbrida, costurada no terceiro espaço de enunciação. Entendendo a identidade como

enunciação, como posicionamento discursivo do indivíduo é possível entender como

esta elaboração territorializa os sujeitos, demarcando seu lugar na enunciação da

cultura, construindo-o.

O discurso mesmo é um operador que constitui ou modifica tanto o sujeito quanto o objeto da enunciação, neste caso, o que conta como experiência de si. È inserindo-se no discurso, aprendendo as regras de sua gramática, de seu vocabulário e de sua sintaxe, participando dessas práticas de descrição e redescrição de si mesma que a pessoa se constitui e transforma sua subjetividade ( Larrosa, 2000, p. 68).

53

Assim, como incita Bhabha (2001, p. 81) “o que se interroga não é simplesmente

a imagem da pessoa, mas o lugar discursivo e disciplinar de onde as questões de

identidade são estratégica e institucionalmente colocadas”.

Essas questões iluminam a interrogação que faço acerca da identidade, sugerindo

que a compreensão da elaboração do discurso identitário docente precisa ser

compreendido na rasura na cultura como enunciação. Sua explicitação está além da

combinação de saberes especializados e pedagógicos, mas articulam múltiplas

dimensões que carecem aprofundamento. Neste estudo, ao afirmar que a construção

identitária perpassa e se constrói no e pelo currículo, é preciso buscar as conexões entre

identidade e currículo, localizando-os no terreno da cultura.

Num sentido amplo, o currículo é entendido como tudo aquilo que se desenvolve

no cotidiano escolar e o compõe, envolvendo alunos, professores e outros atores

envolvidos nesse processo. Contudo, para além dessa visão generalista é preciso

compreender que concepção de currículo está em pauta, pois esta permeia e indica

possíveis caminhos investigativos.

A idéia de que currículo é tudo que envolve e é envolvido no cotidiano escolar

reduz o currículo ao conjunto de atividades que se desenvolvem dentro da escola, numa

concepção que (se é que esta é possível de fato) sugere uma dicotomia entre a escola e o

contexto em que ela se insere.

Entendido dessa forma, reduzido às disposições escolares internas, o currículo

desvincula-se do seu contexto social. Tal visão perpassa a história da Educação desde a

Antigüidade Clássica em que a educação diferenciada entre as camadas da população

distanciava-as das questões cotidianas tendo seu ápice na Idade Média nas escolas dos

bispados e mosteiros, onde a educação se pautava em conhecimentos quase que

ensimesmados. (Manacorda, 1992; Hébrad, 1990) No entanto, o reconhecimento de que

o currículo é atravessado por questões de ordem sociocultural e que se constitui a partir

do enfrentamento de diferentes visões de mundo não permite por si só um alargamento

dos estudos curriculares. Onde se originam esses conflitos? Que conflitos são esses?

Assume-se então o currículo como construção sociocultural, um fazer-se que não

se dá de forma linear, homogênea e supostamente neutra, mas marca-se pela dinâmica

das relações sociais em que está envolvido, relações que o atravessam, sendo este

organizado então a partir de visões de mundo privilegiadas em detrimento de outras, o

que aponta para o currículo como campo de lutas que não podem deixar de ser

consideradas.

54

Diante de tais questionamentos, percebe-se que chegar a uma definição precisa

do que é currículo trata-se de uma tarefa difícil tendo em vista a ambigüidade e

elasticidade que permite que se abrigue sob o currículo questões de natureza diversas.

Em verdade, a dificuldade de definir o currículo relaciona-se com ao fato de a escola

cumprir diferentes fins educativos que se traduzem em projetos educacionais-currículos

diversos. Sacristán (1998, p. 127) ressalta:

A evolução do tratamento dos problemas curriculares conduz ao dilatamento dos significados que compreende para moldar o que se pretende na educação (projeto), como organizá-lo dentro da escola (organização, desenvolvimento), mas também para refletir melhor os fenômenos curriculares tal como ocorrem realmente no ensino (prática) que se realiza nas condições concretas.

Defende então que essas múltiplas faces da questão fazem com que o

pensamento curricular que tem se desenvolvido para ser entendido deva trazer à

discussão os contextos nos quais se elabora, que questões são priorizadas, o que faz com

que o currículo seja representado diferentemente à luz de diferentes correntes de

pensamento. O autor apresenta quatro vertentes para entender a realidade que se

organizam em torno de interrogações que atribuem significado ao currículo: o que

ensinar, o que se deseja ensinar e realmente o que se ensina, abrangência das estratégias

e métodos de ensino, como o currículo se processa – realidade estanque ou processo em

desenvolvimento. Da escolha feita diante de tais interrogações dependerá a

compreensão e elaboração da realidade. Sendo assim, que diretriz assumir para a análise

curricular? Sacristán (1998) alerta:

Para entender o currículo real é preciso esclarecer os âmbitos práticos em que é elaborado e desenvolvido, pois do contrário, estaríamos falando de um objeto reificado à margem da realidade (p.129).

Trata-se de discutir o que é considerado relevante dentro do currículo. As teorias

curriculares buscam modelos explicativos tomando como objetos de estudo os

problemas que se fazem presentes no campo. As teorias se diferenciam pelo interesse

que priorizam em sua análise.

O currículo pode ser entendido como soma de exigências escolares, numa clara

influência de uma tradição acadêmica que valoriza sobretudo a seleção dos conteúdos a

serem ensinados, uma seleção da cultura que deve ser transmitida na escola.

Pode-se também ver o currículo tendo como base às experiências dos alunos

num enfoque que privilegia a dimensão psicopedagógica dos processos em relevância.

Numa outra direção, o currículo é compreendido como questão de gestão

55

administrativa, em que se sobrepõem princípios de eficácia, controle e racionalidade,

tratando o currículo como objeto a ser manipulado. Fruto das contribuições críticas,

num esquema que pretende o diálogo entre diferentes contextos, o currículo pode ser

compreendido a partir de uma concepção dialética entre teoria-prática.

A partir das diferentes teorizações curriculares, fica patente a dificuldade de se

buscar uma definição única de currículo. As diferentes construções se estruturam a

partir de diferentes marcos conceituais, concretizam diversos significados. Circulando

entre as diferentes conceituações, busco aportes numa perspectiva que assume um

enfoque processual em que o currículo é concebido como invenção, artefato cultural,

fruto de escolhas que desvelam os conflitos e consensos que operam diversos

mecanismos em seu desenvolvimento. Assim, cabe pôr em evidência os contextos que

condicionam essa construção e através dela se expressam e ganham significado.

Ainda que sob pena de uma conceitualização complexa, ampla, imprecisa, a

compreensão do currículo sob um enfoque processual evita cortes abruptos que

dicotomizam o que foi previsto nos documentos e a ação cotidiana, dando visibilidade a

um processo de continuidade-descontinuidade entre intenções-realizações. Vê-se o

currículo como território de interações entre contextos diversos, num intrincado

processo social que entrecruza contexto social, econômico, político e cultural que dão

significado e concretizam o currículo.

A compreensão do currículo real exige transcender o que está manifesto nos

documentos, nos guias curriculares tendo em vista que o currículo prescrito expressa

desejos e intenções que não necessariamente retratam a realidade. A articulação com a

prática é o desafio do currículo: concretizar valores eleitos como orientadores da

prática. A assunção de uma perspectiva processual incide justamente nesse ponto

permitindo o questionamento e investigação desse processo: como as idéias e valores

selecionados se transformam em práticas e como estas também já estão presentes nas

idéias e valores selecionados.

Para analisar o processo, desvelam-se como pontos de apoio diferentes

instâncias que, se isoladamente não são o currículo real quando postas em relação, tendo

em vista que não se realizam de forma independente, expressam de diferentes formas o

currículo e ao se entrecruzarem o constituem e inferem a ele significação. Trata-se de

vislumbrar os documentos oficiais, livros-textos, planos que as escolas fazem, tarefas de

aprendizagem que constituem o chamado currículo em ação e as avaliações que o

valorizam.

57

O currículo escolar é um lugar de circulação das narrativas, mas, sobretudo, é um lugar privilegiado dos processos de subjetivação, da socialização dirigida controlada. É em grande parte à escola que tem sido atribuída a competência de concretizar um projeto de indivíduo para um projeto de sociedade.

Dessa forma, a autora apresenta o currículo como território de embate em torno

da fabricação/consolidação de identidades, uma vez que o currículo orientado pelas

relações de poder que o atravessam se institui como espaço de representações, pois

demarca –discursivamente – lugares ocupados pelos sujeitos, num processo de

diferenciação entre o eu e o outro narrado. Assim, há toda uma rede conceitual que

sustenta os discursos e as práticas que produzem significados com e pelos quais os

sujeitos se identificam e buscam ocupar posições. Nesse sentido, há um processo pelo

qual as experiências vividas são selecionadas, ressignificadas, informando e formando

os indivíduos.

O entendimento do currículo como esfera de produção cultural retoma e

reconfigura a questão já assinalada pela teoria crítica: não é o que e como se ensina que

estão em jogo, mas quais conhecimentos são considerados válidos. Problematizar a

fabricação de identidades nas produções curriculares faz com que haja necessidade de

examinar a questão acrescentando: que grupos consideram válidos os conhecimentos?

Que outros são narrados e representados no currículo? Que embates, enfrentamentos e

diálogos são possíveis? Como incita Hall (1997), trata-se de inquirir sobre as formas de

regulação presentes no currículo.

Ao apresentar o currículo como prática cultural, assumo que a linha mestra de

desenvolvimento do estudo se assenta na compreensão do currículo como tal, o que

difere da acepção do currículo como seleção cultural. Aceitar a idéia de seleção de

cultura e conhecimento leva à visão da cultura como unidade estável e fixa, conjunto do

qual se extraem e selecionam as questões, os conceitos, os saberes que devem ser

ensinados, transmitidos, perpetuados na escola. Sem querer negar a seleção presente na

prática educacional, entendo-a como parte da dinâmica cultural, da cultura enquanto

prática vivida, ação seletiva que integra o processo que nega ou dá visibilidade ao que

se produz. Isso significa tomar distância da concepção de que há o mundo da cultura

apresentado pela escola, sendo assim dois mundos separados, conectados pela via da

seleção e transmissão, mas entender que quando se faz escola, educação, se faz cultura.

Na escola se pratica cultura, criam-se artefatos culturais, acepção que se assenta na

idéia de cultura não como conjunto harmônico de produções humanas transmitidas e

58

preservadas ao longo das gerações. Ainda que esta concepção também veja a cultura

como plural, ela se organiza a partir da busca do homogêneo e nega as produções que

estão fora dessa seleção. A defesa por uma cultura no plural diferencia-se pela

perspectiva da pluralidade como diferença e esta como força criadora. Aí talvez residam

a dificuldade e o desafio da assunção dessa perspectiva que explicita a complexidade do

conceito de cultura e sua conexão com o currículo.

As leituras de Bhabha (2001), Hall (1998, 2003) e outros autores que tem centrado

seus estudos no campo da cultura permitem interpelar o currículo como artefato cultural,

produtor de identidades; no caso deste estudo, focando as identidades docentes, pode

propiciar a problematização desse processo. Assumir a cultura como plural implica um

currículo que dirige suas ações para “as dinâmicas das diferenças e as experiências

inquietantes da alteridade” (Corazza, 2002, p. 106).

A articulação desses estudos com uma análise da linguagem permite a

compreensão do movimento em que se dá a formulação de identidades, num amálgama

de significações que são negociadas-traduzidas-dialogadas. A identidade pode ser vista

como forma de enunciação do sujeito e que se dá num espaço de ambivalência de

discursos e práticas. Percebo que o desafio do trabalho com os autores pós-coloniais no

campo do currículo não se trata de pensar em como aplicá-los na análise curricular, mas

pensar em como eles me permitem compreender o currículo a partir de então. Qual seria

a relação entre currículo e diáspora, por exemplo? Pensar em aplicação parece não

alterar formulações de currículo como as antes apresentadas. Pensar com os conceitos

que esses autores nos apresentam pode modificar as concepções de currículo até então

postas.

Assim, penso o currículo como prática discursiva no qual há

articulação/produção de significados/sentidos, ou seja, o currículo é espaço de

elaboração de um discurso que orienta a prática. Ainda que esse discurso não seja

construído de forma plena e acabada, ele institui os sentidos atribuídos às ações,

fomenta e torna possíveis desejos e projeções de trabalho. Como discurso, elabora,

concorre, constrange, amplia os conceitos-chave em torno dos quais gravita a produção

na educação.

O currículo, assim, é o movimento da linguagem, são palavras e suas réplicas

construindo sujeitos e práticas. A linguagem não é algo pronto, dado e acabado; “os

sujeitos não adquirem sua língua materna; é nela e por meio dela que ocorre o primeiro

despertar da consciência” (Bakhtin, 2004 p. 108). Fazendo uma analogia com o

59

currículo, este também não nasce pronto e acabado, traz em si a dimensão do fazer-se

continuamente a partir da ação dos múltiplos agentes que nele se articulam, exige

diálogo e negociação, assim a elaboração curricular pode ser entendida como campo de

construção de linguagem.

Retomando Bakthin, que diz que os enunciados que pronunciamos não são só

nossos mas construídos nas redes coletivas de significação, na cultura, é preciso

entender que o currículo como cultura, como produção ambivalente, produz formas de

ser/saber/fazer que não se limitam à reprodução de sistemas de signos já dados.

Penso o currículo como espaço de criação cultural. Diferentemente das formulações

clássicas em torno da seleção cultural, se o currículo seleciona conhecimento escolar,

cultura não se presta à seleção somente, mesmo que essa seja a intenção, essa se

transforma em produção.

O currículo é o campo de discussão produções culturais de diferentes naturezas. A

produção do currículo traz em si a produção de discursos e concepções de mundo que

articulam tradições e saberes, reconfigurando-os e recriando-os. Sendo assim, como

espaço de diálogo e discussão, põe também em relação culturas que são valorizadas,

compreendidas de formas diferentes, produzindo sentidos sobre essa relação,

confirmando ou questionando estereótipos, grupos culturais, sujeitos e saberes. Nesse

sentido, currículo não se implanta, não se aplica: se produz de forma contínua e nessa

produção tem efeitos sobre as práticas sociais.

Nas relações que se estabelecem, nas decisões curriculares tomadas, os

significados/sentidos que se produzem dialogam com sujeitos implicando sua dimensão

individual, sua elaboração como sujeito, ou seja, as identidades, constituindo-se como

campo de formação identitária.

Se nos construímos na e pela linguagem e entendendo o currículo como campo

discursivo e de produção de linguagem, a produção curricular incita a produção

identitária. Entendendo a identidade como elaboração que se dá no contexto

sociocultural em que estamos inseridos nas práticas cotidianas e que se dá

principalmente de forma relacional e intersubjetiva, o currículo como espaço de diálogo

e negociação em torno dos sentidos dados à formação traz para seu desenvolvimento

relações de alteridade que balizam a formulação de identidades. A projeção de sujeitos

formados a partir deste ou daquele currículo elenca parâmetros para o ser e sua atuação,

delimitando suas possibilidades de diálogo, além de determinar quem é o outro, o

reverso do que se projeta. Assim, se a identidade pode ser vista como forma de

61

Capítulo II: Produção curricular na formação de professores: contextos que se cruzam

O tema das políticas curriculares tem figurado como questão central dos estudos

desenvolvidos no campo do currículo nos últimos anos. Essa relevância se liga ao

momento sócio-político-cultural vivido nos últimos anos, que se pautou pelo discurso

em torno da necessidade de reformas educacionais de clara influência neoliberal, que

trouxeram marcas a essa reforma. Dentre as estratégias efetivas para alcançar a

qualidade na educação, as reformas desdobram-se também na área curricular.

No Brasil essa foi uma realidade vivida intensamente, assim como em outros

países que viveram a implantação de reformas curriculares que se pautaram pela

determinação de orientações de âmbito nacional e introdução de temas transversais

como inovação (Candau, 1999; Sacristán, 2000). Tendo em vista o contexto de reforma

curricular que figura como objeto de análise, vale ressaltar que é preciso considerar que

o estudo da política curricular não pode ser visto como determinação administrativa

somente, objeto atemporal. Como construção social, traz as marcas do seu tempo que

permitem o jogo interno que o molda de determinada forma, que estabelece uma

organização complexa que lhe confere estabilidade e o sustenta. Assim, a política

curricular visa desenhar a rota de desenvolvimento da prática curricular num

determinado tempo-espaço.

Sacristán (2000) busca definir política curricular como

um aspecto específico da política educativa que estabelece a forma de selecionar, ordenar e mudar o currículo dentro do sistema educativo, tornando claro o poder e a autonomia que diferentes agentes têm sobre ele intervindo, dessa forma, na distribuição do conhecimento dentro do sistema escolar e incidindo na prática educativa, enquanto apresenta o currículo a seus consumidores, ordena seus conteúdos e códigos de diferente tipo (109).

Assim entendida, poderíamos dizer que a política curricular manifesta

disposições gerais sobre o sistema de ensino no intuito de regulação e modelação dos

currículos praticados. A partir disso, é possível afirmar que a política curricular tem

uma função reguladora proeminente, sendo uma forma de governo do sistema

educacional que atinge diretamente o currículo e os aspectos desse sistema. Pode ser

compreendida também como uma forma de intervenção na prática curricular,

interrompendo, alterando o curso através de determinações e condicionamentos.

62

A análise da política curricular exige um cuidadoso alinhamento do elemento

político ao administrativo. Não se pode compreender a política curricular de forma

simplista, como meio de ordenação do sistema educativo ou mera validação. Tampouco

é possível vislumbrar somente os interesses das instâncias políticas. Torna-se necessário

ter como perspectiva a combinação dos diferentes elementos, como eles se articulam de

forma a estabelecerem mecanismos de intervenção-regulação.

Tendo em vista a multiplicidade de questões que envolvem a política curricular,

Sacristán (2000) sugere a observação de diferentes aspectos na sua

elaboração/disposição: as formas de regulação que a perpassam, a estrutura das decisões

na regulação, aspectos sob os quais o controle incide, mecanismos de regulação e

políticas de inovação. Há de se observar também o processo de produção da política,

considerando que mesmo que, na esteira da definição de Sacristán, a compreendamos

como disposição geral que se caracteriza principalmente pela função reguladora sobre a

organização do sistema de ensino, isso não implica que sua produção se dê apenas na

esfera administrativa e política.

Ball (1997), em texto que discute o que são políticas curriculares, interroga o

próprio significado de política. Afirma que, em geral, os estudos se dedicam à política

ora focalizando extensivamente a produção da política, ora sua implementação, como se

essas fossem direções distintas, sem cruzamento. Essa dicotomia acarreta uma visão

fragmentada, que implica uma perspectiva reducionista de análise. O que o autor propõe

como direção para o desenvolvimento de estudos que abarquem ou se aproximem da

complexidade das políticas é uma perspectiva que associe tanto a produção quanto a

implementação das políticas, concebendo-as como processo, considerando também seus

efeitos e produtos. Assim, define política como

uma economia de poder, um conjunto de tecnologias e práticas que são realizadas ou não em espaços locais. Políticas são tanto textos e ações, palavras e obras que são executadas bem como as intencionadas (p.10).

Seguindo essa linha, o autor ainda argumenta a favor da compreensão da política

como texto e como discurso, considerando o texto como as representações, propostas e

intervenções nas práticas, que redistribuem e reestruturam relações, o que se articula à

política como discurso, compreendendo-a como esfera de produção de conhecimentos,

efeitos que fornecem a moldura de interpretação das políticas. Ao defender essa

perspectiva, o autor afirma que pode se efetuar uma análise que supere os binarismos

antes apresentados, problematizando tanto as políticas – enquanto texto – como seus

63

efeitos. Assim, as políticas curriculares precisam ser consideradas no âmbito de um

ciclo político, produzidas na confluência de diferentes contextos: o da política, das

influências e da prática, que não têm seus significados fixos, mas nesse processo de

reinterpretação pelos diferentes sujeitos/dimensões, gera práticas diversas (Ball, 1998).

Discutir políticas implica caminhar e buscar compreender a relação entre esses

diferentes contextos na produção das políticas curriculares. O contexto de influências

refere-se ao plano ideológico, elaborando conceitos centrais para a construção do

discurso que sustenta a política. O contexto de produção dos textos da política refere-se

à própria representação da política a partir de documentos e propostas que são

codificados e apresentados. Ainda que haja todo um investimento no “controle” da

leitura correta dos textos, é impossível prever e controlar os efeitos da política, o que

envolve interpretação e recontextualização por parte dos leitores, realizada num

contexto diverso da produção da política, o que remete ao contexto da prática. É na

interseção desses diferentes contextos que a política se configura, o que evidencia seu

caráter processual.

Ball (1998), ao apresentar a proposta de modelo analítico de políticas

curriculares, mostra o seguinte diagrama:

64

Pode-se perceber também que os contextos se hibridizam e o que denominamos

contexto de influência, destacado como ponto a ser analisado nesta seção, também se

constitui parte do que entendemos como a própria produção da política curricular.

Assim põe-se o desafio de compreender e entender os diferentes documentos como

discursos sobre a formação, marco de enunciação e elaboração de significados sobre a

docência e sua constituição como também fragmentos da própria política que na

articulação com outros elementos vai se desenhando e ganhando forma.

A dupla inscrição desses textos/discursos sugere a ambivalência dos significados

produzidos e suas recontextualizações como movimentos híbridos que os reinscrevem

em novos/outros contextos, o que explicita a produção curricular como movimento,

como produção inacabada e que como processo político, no sentido atribuído por

Mouffe (2003), de campo de contestação e relações/atos de poder que sugere um

Contexto de produção da política

65

processo contínuo de construção de hegemonias transitórias, um espaço discursivo

ambivalente (Bhabha, 2001).

Nesse sentido, rever esses discursos implica o enredamento nos diferentes, e

destaco a diferença por entender que esses discursos são performáticos, se hibridizam e

se configuram ora como influências ora como a própria definição da política, e por

vezes até como estratégia política, de forma a reconduzir o processo nos atos de poder

que se expressam na elaboração do discurso sobre a formação do educador.

O diálogo com os autores apresentados fundamenta e oferece parâmetros para

nortear as análises empreendidas. Ao focalizar o estudo da formulação curricular na

formação de professores a partir do estudo de caso do currículo de Pedagogia da UERJ,

é preciso considerar que sua análise exige a tomada da complexidade desse processo, no

cruzamento dos diferentes contextos de produção curricular. Entendendo que não é

possível dicotomizar política e prática curricular, mas que estas se constroem de forma

recíproca e articulada, a tomada dessa experiência não apresenta uma prática isolada,

mas uma prática política de elaboração curricular, fruto de intensas negociações que se

deram na esfera administrativa, institucional e dos movimentos sociais.

Nesse sentido, é fundamental compreender as redes de significados e práticas

que foram sendo tecidas, como sugere Ball (1998), evidenciando o jogo de trocas entre

os diferentes contextos que compõem este ciclo de produção curricular.

Partindo desse princípio, de que a produção curricular envolve diferentes

contextos de produção, a análise das propostas para a formação de professores exige a

compreensão não só da proposta em si, mas das suas condições de produção. Para tanto,

a retomada dos discursos sobre a formação de professores no contexto das décadas de

1980-90 se faz imprescindível para a percepção da trajetória da construção sociocultural

do currículo.

Essa retomada não busca fazer uma genealogia que mostre origens e

conseqüências de atos passados, o que exigiria que as trocas entre as pessoas se dessem

em fila indiana, num determinismo absoluto, mas se dá atenta ao alerta de que “nunca

um fenômeno histórico se explica plenamente fora do estudo do seu momento” (Bloch,

1997, p. 94) Sem a pretensão de explicar plenamente, só colocando na moldura de seu

tempo, é que será possível compreender e não julgar as formulações feitas, buscando

apreender os sentidos destas.

66

A intenção de buscar esses contextos de influência exige um movimento duplo,

que articule diferentes questões relativas à elaboração curricular: trata-se de discutir a

formação de professores e também a especificidade da educação infantil.

As discussões no campo da formação de professores remetem ao debate num

contexto amplo, das modificações no cenário político e social brasileiro, envolvendo

aspectos que visam caracterizar processos de recolocação dos professores nesse novo

horizonte que se apresenta.

A discussão no campo da educação infantil passa por movimentos diferenciados.

Se no caso da profissão docente o tema em debate é o posicionamento dos sujeitos

numa nova realidade, na educação infantil passa primeiro pela conquista e legitimação

de um espaço próprio e nele a discussão pela docência vem como elemento que compõe

esse mosaico e não com a centralidade que se vê no movimento dos educadores.

A especificidade da educação infantil e a busca por esse reconhecimento

deslizam para a reivindicação de uma formação que contemple a educação infantil como

etapa reconhecida da educação e a especificidade figura como requisito que exige que

haja a formação do professor como profissional. Nesse ponto, os discursos se fundem e

acham ponto de contato e luta comum: o reconhecimento dos educadores como

profissionais da educação, numa valorização que tem também como estratégia a

distinção graças a uma formação consolidada.

Para fins de organização deste estudo, principalmente devido ao volume de

materiais analisados, apresento primeiramente a discussão no campo da formação de

professores focalizando o movimento de educadores no período de 1980/90; no

capítulo seguinte faço movimento semelhante focalizando o contexto de discussão da

educação infantil.

Alerto que a divisão deve-se meramente a questões organizacionais, pois

compreendo que polarizar os movimentos e isolá-los como movimentos fechados,

destacados e distanciados um do outro é abrir mão da possibilidade de percepção das

articulações entre eles. Entendo-os como movimentos que, em alguns momentos, se

hibridizam e constroem solidariedades entre as reivindicações que fazem; contudo, há

também espaços intersticiais que se estabelecem, dando margem a negociações e

conflitos, entre-lugares em que os discursos sobre a formação de educadores se re-

elaboram.

67

2.1 - Formação em debate: disputas em torno de uma identidade profissional

Discutir os rumos tomados na formação de professores exige a retomada dos

contraditórios e complexos movimentos que marcam a trajetória da formação de

professores no País. No contexto das décadas de 1980/90, destacou-se o movimento de

profissionais da educação, inserido numa luta que se instaurou num momento de

reestruturação política e social no Brasil, em que foi possível discutir inclusive a

desvalorização que o profissional da educação e sua formação vinham sofrendo e que,

segundo alguns autores, se expressou na LDB 5692/71 (Brzezinski, 2002; 2004).

O movimento de redemocratização iniciado nos anos de 1980 tirou da

clandestinidade os debates e discussões em torno da vida sociopolítica brasileira e

impulsionou novas formas de organização da população em diferentes setores. A volta

de exilados e a possibilidade – ainda que vigiada – de ter voz se expressaram nas

diferentes ações em que a sociedade civil se engajou. Num contexto de muitas lutas -

anistia, direito ao voto, reivindicações sindicais, fundação de partidos políticos,

movimentos comunitários, entre outros – a educação figura como um dos motes de

discussão dos grupos que ora se organizavam.

Nesse período, os debates em torno das propostas de formação de professores

foram intensos e produziram posições diversas. Uma questão que ganhou destaque no

contexto das mudanças e discussões foi a referência a uma identidade de Pedagogia, da

formação de professores, a sua importância desta e o investimento na construção de

elementos que pudessem garantir uma identidade para o curso de formação de

professores. Assim, foi de suma importância retomar as questões que envolveram os

rumos da formação de professores no Brasil nas décadas de 1980/90. Compreender esse

contexto é pensar em que terreno se enraíza e desdobra a trajetória investigada, bem

como buscar articular aspectos macro e micro da reforma curricular em foco.

O movimento dos educadores, como expressão da luta dos docentes e

envolvimento no contexto vivenciado na época, se organizou a partir de seu

envolvimento no processo de reforma dos cursos de formação de professores. A

mobilização docente se deu em reação a propostas encaminhadas que desconsideravam

o contexto de participação que se (re)iniciava. Essas propostas podem ser sinteticamente

apresentadas: tratava-se principalmente das indicações 67/1975 e 70/1976, relatadas por

Valnir Chagas no Conselho Federal de Educação, que dispunham sobre a formação

pedagógica das licenciaturas, da formação de professores e da formação em nível

68

superior do professor das séries iniciais. Os pareceres em questão propunham, baseados

na afirmação da falta de especificidade do curso de Pedagogia, que a formação

pedagógica fosse feita nos institutos de conteúdos específicos, fortalecendo as

licenciaturas. A Pedagogia se destinaria à formação dos professores das séries iniciais.

A formação do professor das disciplinas pedagógicas não é considerada, uma vez que

tenderia a desaparecer gradativamente, o que significaria, a médio e longo prazo, a

extinção da escola normal e do curso de Pedagogia. Brzezinski (2004, p. 220) assim

resume as indicações contidas nesses pareceres, que compunham o Sistema Chagas:

• A formação do especialista deveria ser feita em qualquer licenciatura; • A formação do especialista seria feita sobre uma base de formação

docente; • A formação do especialista seria precedida de comprovada experiência

de magistério; • A formação do especialista poderia ser feita em habilitação polivalente, a

qual englobaria a administração escolar, a orientação educacional e a supervisão escolar;

• A formação do especialista poderia ser feita também em nível de pós-graduação;

• A formação do professor para as séries iniciais de escolarização deveria ser feita em nível superior;

• As especializações fundamentais preconizadas pela lei 5692/71 deveriam permanecer em nível de pós-graduação;

• Seria possível diversificar as habilitações nas instituições e instâncias formadoras, ampliando o leque de ofertas também preconizadas por essa lei;

• A médio e longo prazo a habilitação magistério das disciplinas pedagógicas do 2o. Grau deveria ser extinta.

Foi na resistência dos encaminhamentos do CFE e na arbitrariedade na tomada de

decisões que se fomentaram e desenvolveram as bases do movimento de professores. A

mobilização se dava em torno das reformulações que descaracterizavam e ameaçavam a

existência do curso de Pedagogia. As medidas propostas pelo CFE nas décadas de 1970 se

desdobravam a partir do argumento da falta de especificidade, ou, de outra forma, de

identidade do curso de pedagogia, o que Brzezinski (2004) afirma se sustentar na

tendência brasileira de centrar o curso numa perspectiva estritamente profissionalizante.

O descontentamento dos educadores com as propostas de Chagas se devia ao fato

de, paulatinamente, ser prevista a extinção tanto do curso normal como da Pedagogia,

uma vez que os especialistas se formariam a partir de suas licenciaturas nos próprios

Institutos específicos e a formação de professores de 1ª. a 4ª. séries se daria em nível

superior, descaracterizando também, dessa forma, um corpo de conhecimentos específicos

que não se resumiria a métodos e técnicas de ensino. Enquanto a Pedagogia continuasse a

69

ser vista como campo de aplicação de outras Ciências, esvaziaria de sentido sua prática,

abrindo espaço para a perpetuação de um modelo tecnicista de formação. Mais que

formação de recursos humanos para a Educação, ansiava-se pela formação ampla de

educador. A falta de especificidade, ou identidade, termo mencionado várias vezes nos

documentos e textos que analisavam a época, é uma questão que se desdobra da própria

história do curso, da sua criação (Frangella, 2002) e que passa por sucessivas

regulamentações/reformulações que o destituem de sentido, caracterizando-o como

desprovido de identidade e conteúdo próprios, o que, assinala Brzezinski (2004), se

desdobra na tendência de centrar a Pedagogia na profissionalização, no campo da prática,

secundarizando os estudos epistemológicos.

O que se percebe é que o mote das lutas polariza posições e concepções da

Pedagogia: por um lado compreendendo-a como centrada na docência; por outro, como

campo de formação de especialistas, numa disputa que rivaliza licenciatura e bacharelado

e busca achar o tom do que seria o pedagogo. A problemática em torno da qual se

organizou o movimento dos profissionais da Educação frente às propostas de Chagas se

deu na defesa da especificidade dos conhecimentos pedagógicos, que nos institutos

específicos se esgarçaria e descaracterizaria. Sendo assim, os fundamentos teóricos e

metodológicos do processo pedagógico são amplos e complexos e a luta pela docência

como fundamentação comum passa a figurar como possibilidade de resistência e luta, o

que se revela também nas ações empreendidas para a constituição do movimento

enquanto expressão de um corpo coletivo.

A discussão em torno da formação de professores nas décadas de 1980/90 não

pôde prescindir do exame das discussões desenvolvidas no seio do movimento de

educadores, tendo em vista que esse foi o espaço de mobilização, interlocução e

enfrentamento das disposições legais que buscaram conformar a formação de

professores. O encaminhamento das ações do movimento de educadores, em suas

diferentes fases – como Comitê Nacional, como Comissão Nacional e como Associação

(Brzezinski, 2004) – permitiu o avanço e o desenvolvimento de estudos, debates e

proposições para o curso de formação de professores, instituindo outros sentidos para

essa prática. A defesa da formação centrada na docência foi alvo da criação/mobilização

de entidades como a ANFOPE, que nos últimos anos vem se consolidando como fórum

de debates sobre a formação docente e luta na defesa do que entende como princípios

básicos que asseguram a qualidade dessa formação. Na esteira desse movimento, foram

elaboradas novas diretrizes curriculares para os cursos superiores no País, em diálogo

70

com as novas possibilidades de atuação na sociedade. A abertura política se traduziu na

ansiada e tão adiada discussão sobre a escolha autônoma dos rumos de atuação na

educação. Assim, considerar a produção que se deu na e pela ANFOPE é de suma

importância.

Decerto a compreensão da trajetória da discussão da formação docente é maior e

mais complexa do que o recorte que trago aqui. Centro minhas análises na discussão do

ideário defendido pela ANFOPE e os debates suscitados a partir disso por considerar

que essas discussões alicerçaram as experiências curriculares que se desenvolveram em

diferentes universidades brasileiras, dentre elas as do curso de Pedagogia da UERJ, foco

deste estudo.

Para tanto, tenho também como campo de pesquisa o site da Associação

(www.lite.fae.unicamp.br/anfope), no qual são divulgados boletins, informes, atas e

cartas, produzidas em sua maioria nas reuniões anuais e nos encontros promovidos pela

entidade, além de documentos e decretos, resoluções do CNE que são divulgados e

discutidos pela Associação. Focalizo os oito documentos finais dos encontros anuais

promovidos pela ANFOPE disponibilizados no site11. A leitura desses textos, tomados

como artefatos culturais, tem como pressuposto que eles são uma prática discursiva e

que precisam ser analisados considerando simultaneamente aspectos relacionados à sua

forma e ao seu significado (Fairclough, 2001). A análise textual, concentrando-se na

elaboração do texto, em sua textura, pode fornecer elementos para a ampliação das

análises dos processos de mudança, destacando que a análise de uma prática social

necessita a ampliação e a observação de suas múltiplas e complexas dimensões, dentre

elas a discursiva.

O esforço de trazer a análise textual como elemento integrante da análise das

relações entre currículo e identidade ressalta e ratifica o que já foi apresentado

anteriormente: o caráter discursivo da cultura e do currículo, entendendo que sua

elaboração se dá no entrecruzamento de discursos, como atos de enunciação que

produzem significados, considerando que aspectos centrais da linguagem integram a

dinâmica de constituição de processos socioculturais como força produtiva.

O foco das análises empreendidas não se limita aos documentos próprios da

Associação, mas procura considerar também a produção acadêmica sobre a formação de

professores do sujeitos envolvidos na ANFOPE, o que pode proporcionar a

11 Pesquisa realizada em janeiro de 2005.

71

compreensão do contexto de desenvolvimento da experiência curricular que investigo,

bem como permitir antever as matrizes teóricas que orientaram essas formulações.

Sendo assim, busca entrelaçar a análise dos textos assinados pela ANFOPE com a

produção acadêmica na área.

Essa análise se relaciona com o que Ball (1997) assevera ao apresentar os

contextos de produção de políticas curriculares, investigando as atividades sociais e

políticas que entram no espaço de lutas e alianças na produção de uma política. Assim,

pensar os textos da ANFOPE como parte desse processo entre diferentes contextos é

tomá-los na análise do texto e discurso sobre e na formação docente, num movimento

entre os diferentes contextos que não são vistos como hierarquizados, mas que se

influenciam mutuamente. Os textos da ANFOPE dialogam com as diferentes produções,

e esta é uma interação que se dá num contexto discursivo que articula, restringe,

possibilita recontextualizações dessa produção.

As teses defendidas pela ANFOPE ganharam força, influenciando mudanças

curriculares em algumas universidades. Ainda que seja refutado por um grupo

significativo de educadores (Libâneo, 2000; Pimenta, 1996), o ideário da ANFOPE

participa de mudanças significativas que se desdobraram a partir das mudanças nas

ordens do discurso que provocavam. Como explica Fairclough (2001, p. 128):

À medida que os produtores e os intérpretes combinam convenções discursivas, códigos e elementos inovadores estão, sem dúvida, produzindo cumulativamente mudanças estruturais nas ordens de discurso: estão desarticulando ordens de discurso existentes e rearticulando novas ordens de discurso, novas hegemonias discursivas.

O movimento se empenhou na organização do coletivo como força articuladora

que nesse processo ganhava visibilidade, o que encaminhava para conquistas e

alargamento do campo de atuação-participação. Percebe-se que, nos anos iniciais, a

questão que congregava e impulsionava a discussão no movimento era a questão da

identidade, que acabou se configurando como categoria central tanto na organização do

movimento como nas defesas que fazia.

A assinatura coletiva – marca que destaco na escolha dos textos analisados –

evidenciava, nas relações entre discurso e constituição de sujeitos, uma tentativa de

firmar uma identidade da própria entidade, um eu coletivo que se estruturava. Isso se

evidenciava com mais intensidade nos primeiros textos dos quatro primeiros encontros

da (ainda) comissão pela reformulação de cursos de formação de educadores. O

Documento de Belo Horizonte, como é conhecido o documento final do I Encontro

72

Nacional, lançou as bases da luta, enfatizando que fala em nome dos educadores

reunidos.

Percebe-se nessa leitura que o eu coletivo se constrói nas relações intertextuais

estabelecidas no discurso. No que tange à constituição da própria identidade da

associação nascente, os documentos posteriores ao primeiro encontro se iniciavam

retomando a trajetória do movimento, historicizando a luta em que estavam envolvidos

e enfatizando assim sua importância, reafirmando as bases do movimento e, ao repeti-la,

reinvestindo-a de força. O documento do IV Encontro é significativo para esta

discussão: nele se retoma a trajetória histórica do movimento, e essa tarefa foi feita com

a retomada e a análise dos textos de encontros que o precederam, como neste trecho do

documento do III Encontro, que versa sobre o papel da Comissão:

a) viabilizar a unidade do movimento articulando a compreensão das questões nacionais, regionais e locais, bem como suas relações específicas; b) estimular a organização do movimento a nível estadual e regional; c) articular-se com as entidades, sem perder a perspectiva da especificidade do movimento; d) manter-se atualizada com relação às experiências de formação do educador, veicular informações e propor avanços quando oportunos” (Goiânia, 1986 apud IV Encontro).

A função anunciada se consubstancia numa estrutura textual que se torna marca

a partir do documento do IV Encontro: os documentos das reuniões da ANFOPE

iniciavam-se com a apresentação dos estados participantes, dos participantes do

encontro, nomeando-os, das entidades presentes e dos responsáveis pelos comitês

regionais. Isso mostra sutilmente a força do movimento que se faz nacional, respaldando

também suas propostas. Tratava-se de dar visibilidade às funções do papel da comissão,

apresentadas como sendo representativas da articulação e congregação de diferentes

grupos.

A construção de uma identidade do movimento não pode ser vista como

secundária na discussão sobre a identidade projetada para os professores e para o curso

de formação e defendida na luta da Associação. A configuração como Associação

Nacional legitima e fortalece o movimento no qual estão engajados e a forma como se

definem tem relação com as reivindicações que fazem.

Considero significativo que todo esse movimento tenha sido deflagrado, como

apontam Brzezinski (2004) e Silva (1999), a partir da participação em discussões sobre

os cursos de formação, em processos de reformulação curricular. Isso se deu porque o

que estava em jogo era um projeto de formação que se estabelecia a partir do sujeito que

73

se projetava – que professor é esse. As reformas curriculares propunham não só nova

organização do ensino e do currículo, mas uma nova gestão de saberes, de fazeres do

professor, afirmações que se propagavam instituindo formas de governabilidade dos

sujeitos envolvidos nesse processo.

Nenhum processo de obtenção de hegemonia política pode dispensar uma transformação radical dos significados das categorias, dos conceitos, dos discursos através dos quais a realidade adquire sentido e pode ser nomeada. A transformação do campo semântico não é apenas condição para o estabelecimento dessa hegemonia, ele é parte integral da transformação (Silva, 1994, p. 167).

Assim, ao se formar o professor, não está sendo apresentado a ele apenas um

cabedal de conhecimentos que serão utilizados como ferramentas de trabalho, mas essa

formação tem uma dimensão subjetiva à medida que orienta opções, estabelece valores

e institui a ordem do certo e do errado. Impregna de sentidos as práticas a serem

desenvolvidas, sendo esses sentidos articulados aos modelos tidos como válidos num

dado contexto. A busca pelos elementos que conformem uma representação do sujeito

se dá em torno da produção curricular. Dessa forma, há um investimento a erigir:

descrever quem é o professor, uma prática de significação que possa contribuir no

contexto de mudanças almejadas.

O Movimento Nacional de Educadores se consolidou e se unificou por ocasião

do V Encontro Nacional, com a criação da Associação Nacional de Formação dos

Profissionais da Educação – a ANFOPE, em 1990, gerindo uma concepção de base

comum nacional para a formação.

O discurso da ANFOPE articula-se em torno de quatro propostas, orientadas

pelo princípio de formar o educador no professor (Nonato e Silva, 2002). São elas: a

docência como base comum da formação do educador; o desdobramento da base

comum em três dimensões: epistemológica, política e profissional; a dos eixos

curriculares organizados a partir de conceitos centrais; a valorização de conhecimentos

específicos, pedagógicos e integradores.

Esse ideário se estabelece num campo de luta em torno da afirmação-contestação

da identidade docente e da identidade do curso de Pedagogia. Vê-se claramente como a

questão da identidade é problemática e como se revela na conturbada busca por uma

definição da identidade da Pedagogia. Esse é um ponto de discussão que não é

consensual e desperta discussões no âmbito da própria Associação e entre os pares

acadêmicos em outros contextos.

75

escola, investindo todos de poder de ação em termos equivalentes, distribuindo poder e

propondo relações horizontais. Libâneo (2006), discutindo o contexto atual, ao fazer um

histórico do movimento dos educadores, denuncia essa concepção como introdutória de

uma visão sociologizante dos currículos de Pedagogia que preconizou a valorização dos

aspectos socioeconômicos da educação eclipsando a própria especificidade pedagógica

da escola.

Percebem-se também, nas teses defendidas pela ANFOPE, a influência e o

diálogo com autores que têm voltado sua produção para as questões relativas ao

trabalho, profissão e formação de professores, dando ênfase na figura do professor não

mais como executor de propostas e pacotes pedagógicos de cunho tecnicista, mas

sujeito que, a partir de uma formação que lhe forneça conhecimentos fundamentais à

sua prática, possa articulá-los de forma autônoma e consciente.

Schon (1992) dispõe sobre a importância desse caráter reflexivo do saber

docente, propondo a formação de um professor reflexivo. Os momentos de

enfrentamento de diferentes situações, a interação com alunos e professores, a prática

cotidiana do trabalho escolar são momentos de aprendizagem que incidem tanto na

atuação como no desenvolvimento de uma identidade profissional, assumindo assim que

esses professores são sujeitos e que esses “valores, ideologias e princípios

estruturadores dão significado às histórias, às culturas e às subjetividades definidoras

das atividades diárias dos educadores” (Giroux, 1997, apud Dias da Silva, 1994, p. 43).

Alguns estudos nessa linha (Cavaco, 1995; Sacristán, 1995) apontam que o ofício do

professor o faz se comprometer com determinadas práticas e discursos que se constroem

a partir de uma complexa teia de relações que não se estabelecem apenas dentro do

espaço escolar, reduzido a aspectos exclusivamente didáticos: têm implicações sócio-

históricas-culturais.

Tardif et al (1991) argumentam em estudo sobre os saberes docentes que

“formação nos saberes e produção dos saberes constituem, em conseqüência, dois

pólos complementares e inseparáveis” (p. 218). Dessa forma, o autor critica o que

chama de visão fabril de saberes, sob a qual se assentaria a maioria das instituições

universitárias que demarcam o saber docente como baseado na competência técnica de

transmissão de conhecimentos elaborados por outrem. Os docentes estabelecem, assim,

uma relação de exterioridade com os próprios saberes pedagógicos, numa relação

problemática com os saberes da formação profissional.

76

Nessa trilha teórica, vemos a valorização dos saberes da experiência, aqueles

formulados na prática cotidiana e que recontextualizam e articulam os saberes

curriculares, disciplinares e pedagógicos. Esses saberes da prática, tomados como

núcleo dos saberes docentes, poderiam promover uma relação de interioridade com os

saberes rumo a um novo profissionalismo. O autor, ao trazer essa elaboração, enfatiza

que isso implica considerar o próprio docente também um formador, na partilha de

saberes com os pares nos estágios e no quadro das diversas associações profissionais.

Ao referir-se a isso diz:

Esse empreendimento enquanto estratégia de profissionalização do corpo docente demanda a instituição de uma verdadeira colaboração entre professores(as), corpos universitários de formadores e responsáveis pelo sistema educacional. Os saberes da experiência passarão a ser reconhecidos a partir do momento em que o(a)s professor(a)s manifestarem suas próprias idéias sobre os saberes curriculares, das disciplinas e, sobretudo, sobre sua própria formação profissional. Será preciso outra reforma do ensino para finalmente vermos os responsáveis pelas faculdades de educação e os formadores universitários dirigirem-se à escola do(a)s professore(a)s profissionais para aprender como ensinar e o que é o ensino? (Tardif et al, 1991, p. 232).

A idéia expressa corrobora com a percepção e valorização da participação dos

docentes na definição dos rumos da sua formação, dialogando a partir de sua

experiência cotidiana. Tal percepção não só valoriza os saberes da prática como, de

forma sutil, indica que a elaboração de conhecimentos e valores orientadores da

profissão deveriam ser gestados pelos próprios professores, o que se pode perceber na

luta do movimento nacional de professores, que pleiteia o direito à participação nas

definições para os cursos de formação.

Em busca dessas definições, a questão da base comum nacional é amplam

77

I) Quanto aos cursos de formação de educadores, as instituições deverão ter liberdade para propor e desenvolver experiências pedagógicas a partir de uma base comum nacional (...). L) Todas as licenciaturas (Pedagogia e demais licenciaturas) deverão ter uma base comum: são todos professores. A docência constitui a base da identidade profissional de todo educador. M) O educador, como profissional, é aquele que: * domina determinado conteúdo técnico, científico e pedagógico que traduz o compromisso ético-político com os interesses da maioria da população brasileira; * é capaz de perceber as relações existentes entre as atividades educacionais e a totalidade das relações sociais, econômicas, políticas e culturais em que o processo educacional ocorre, sendo capaz de atuar como agente de transformação da realidade em que se insere, assumindo, assim, seu compromisso histórico. N) A teoria e a prática devem ser consideradas o núcleo integrador da formação do educador, posto que devem ser trabalhadas de forma a constituírem unidade indissociável, sem perder de vista o contexto social brasileiro. (I Encontro Nacional, 1983).

Compreendendo que os encaminhamentos dados à questão acontecem após um

momento de silêncio e apagamento da autonomia dos sujeitos, com um regime de

regulação autoritário e totalitário, a busca por elementos que possam erigir identidade

expressa o desejo de redefinição das posições dos sujeitos na prática social; neste caso,

do professor. Nóvoa (1997, p. 15) afirma que “a identidade é um lugar de lutas e

conflitos e um espaço de construção da maneira de ser e estar na profissão”. A

centralidade que adquire identidade na articulação do movimento de educadores

relaciona-se à busca de identificar o ser professor naquele momento, o que passa

também por lutas em torno da identidade do movimento, em busca da legitimidade de

ser representativo dos anseios dos profissionais da educação. Então, as lutas e conflitos

vivenciados nesse momento giram em torno da identidade, na demarcação do espaço do

professor e do curso que o forma.

Assim, torna-se relevante pensar a identidade adjetivada – docente – como

construção específica que diferencia e normaliza os sujeitos que constituem esse grupo.

Rajagopalan (2002, p. 86) diz que “só se têm identidades quando há quem as

reivindiquem com empenho e fervor contínuos”.

Assim, a identidade como princípio é reforçada e retomada nos documentos

subseqüentes, sendo matriz da problematização feita e das reivindicações docentes. Ela

se dá de forma atrelada à defesa da base comum nacional, que se mantém como objetivo

de mobilização do movimento. Essa questão é retomada em outros encontros nacionais

com o objetivo de, apurando-a e debatendo as questões conceituais e operacionais que a

78

envolvem, fosse enfrentado o impasse, viabilizando instrumentos de orientação nas

proposições do movimento. Em outro encontro, após a retomada da história dos debates,

é assim apresentada:

a) A base comum nacional tem sua ancoragem principal em uma concepção de educador sócio-histórica, na forma definida pelo movimento de reformulação dos cursos de formação de educadores.

b) A base comum nacional poderá ser pensada em termos de eixos curriculares em torno dos quais se articulará um corpo de conhecimento selecionado em função de uma concepção sócio-histórica de educador e das necessidades de compreensão do fenômeno educacional, norteado por tais eixos curriculares.

c) São propostos os seguintes eixos curriculares intimamente relacionados entre si: I. Relação educação-sociedade; II. Conteúdo, método e material didático; III. Escola e os profissionais do ensino; IV. Relação teoria-prática pedagógica. A proposição destes eixos não deve ser entendida como algo acabado, devendo ser possível a colocação de novos eixos. Também é necessário que se especifique os que foram apresentados.

d) A base comum nacional não deve ser confundida com currículo mínimo ou como elenco de disciplinas.

e) A base comum nacional será articulada com a realidade regional e local.

f) A viabilização da base comum nacional na forma de eixos curriculares implica rever a atual estrutura fragmentária das instituições de ensino, garantindo maior interdisciplinaridade e trabalho coletivo.

g) É preciso avançar na proposição de mecanismos de definição e articulação da base comum nacional (IV Encontro Nacional, 1989).

A proposição feita trazia em si o embate às propostas do CFE, quando afirma

que o aprofundamento da questão não pretende estabelecer um currículo mínimo nem

um elenco de disciplinas, e a atenção dada à sua elaboração – que contou com a

participação de pesquisadores na área de currículo convidados a debater no III Encontro

Nacional, em 1988 (Brzezinski, 2004) - sugere que a preocupação com a definição

dessa base está assentada na preocupação com a definição do ser educador, com a

definição de um corpo de conhecimentos específicos que identifique os sujeitos desse

processo. Brzezinski (2004, p. 180), ao dissertar sobre o assunto, escreve:

sob o ponto de vista político, [a base comum nacional] representa um instrumento de luta, porquanto se centra na formação do professor que, consciente de sua profissão, mobiliza-se para o reconhecimento da categoria e exige que o Estado (como maior agência contratante) estabeleça padrões adequados de valorização social e econômica da profissão.

As proposições feitas e a ênfase na formação de um professor que compreenda o

fenômeno educacional em sua complexidade e relações se fazem tendo em vista o

79

exercício do magistério em novas bases. Contudo, para alcançar tal feito o caminho

trilhado é a definição de uma identidade para os professores: a identidade de educador.

Detenho-me em um aspecto que considero também importante na investigação

realizada: o significado/sentido das palavras.

Como produtores, estamos diante de escolhas sobre como usar uma palavra, e como intérpretes sempre nos confrontamos com decisões sobre como interpretar as escolhas que os produtores fizeram (que valores atribuir a elas). Essas escolhas e decisões não são de natureza puramente individual: os significados são questões que são variáveis socialmente e socialmente contestadas, e facetas de processos sociais e culturais mais amplos (Fairclough, 2002, p. 230).

Considerando que os significados/sentidos não são dados de uma vez por todas

nem são absolutos, o autor argumenta que, quando palavras estão envolvidas em

processo de contestação e mudança, seu significado é desestabilizado, instável,

provocando mudanças no interior do significado potencial da palavra. Vejo esse

processo como de ressignificação da palavra, que na plenitude de sua dimensão

polissêmica possibilita irromper outros significados que, articulados a outras dimensões,

provocam a re-ordenação dos discursos.

Nos diferentes documentos dos encontros notam-se o acento diferenciado e o

aparecimento da palavra educador nas discussões sobre a formação.

Quanto aos cursos de formação de educadores, as instituições deverão ter liberdade para propor e desenvolver experiências pedagógicas a partir de uma base comum nacional. (...) h) Todos os cursos de formação do educador deverão ter uma base comum: são todos professores. A docência constitui a base da identidade profissional de todo educador. i) A teoria e a prática devem ser consideradas o núcleo integrador da formação do educador, posto que devem ser trabalhadas de forma a constituírem unidade indissociável, sem perder de vista o contexto social brasileiro. j) Os cursos de formação do educador deverão ser estruturados de forma a propiciar o trabalho interdisciplinar e a iniciação científica no campo da pesquisa em educação. Estes são alguns princípios centrais do movimento afirmados e reafirmados ao longo de dez anos de debates (ANFOPE, VI Encontro Nacional, 1992, p. 8).

Destaco essa passagem justamente porque, como afirma o documento, esse

encontro busca ser o que “encerra período de reorganização e abre um novo: o da

consolidação da ANFOPE como entidade nacional responsável pela articulação do

debate em torno da questão da formação do educador” (ANFOPE, 1992, p. 6). Para tanto,

enfatiza a formação do educador, ressaltando quem é o educador e o que o caracteriza.

Ludke (2000, p. 74) fala sobre essa formulação e as suas diferentes interpretações,

80

alertando que “a distinção entre professor e educador aparece para alguns dicotômica, se

não antagônica”.

A ênfase na figura do educador cria subliminarmente um confronto entre a visão

que se defende – de uma formação ampla, voltada para o compromisso com a educação

brasileira em momento de reconstrução social – em contraponto à figura do professor

formado até então. Assim, marca-se no texto que a defesa pela formação de professores

concentra seus esforços na formação de outro professor, projetando características e

princípios para a formação que encaminha e contribui para a construção de um ethos do

profissional da educação.

A discussão referenda a contestação e discussão em torno das habilitações – em

vigor a partir da LDB 5692/71, que propõe a formação do especialista em educação

(supervisores, orientadores e administradores) secundarizando a docência. O movimento

se opõe a essa formação, defendendo a docência. É preciso ressaltar que a busca por

elos coletivos permite uma ação mais vigorosa dos educadores frente às ações

arbitrárias do governo. Juntamente com o desejo de uma caracterização como

profissionais da educação com traços fortes e marcantes que os identificasse como

sujeitos de direito nesse embate, a figura do educador alimenta as ações da ANFOPE.

Na década de1980/90, em reuniões gerais, se dá a adesão ao movimento de supervisores

e orientadores educacionais, antes organizados em entidades próprias. Não sem

embates, mas por vontade da grande maioria de forças regionais, as Associações de

Supervisores e Orientadores Educacionais se extinguem, passando seus membros e

fazer parte da ANFOPE como profissionais da educação, reiterando a defesa dos

postulados desta.

Contudo, as posições da ANFOPE são discutidas e combatidas, ainda que os

textos da Associação e de autores ligados ao movimento as apresentem como

representativas dos educadores, numa expressão de totalidade que apaga as

divergências.

O ponto central do embate está na defesa da docência como base da formação.

Como esta é a fundamentação da base comum nacional proposta para o curso de

Pedagogia, a polêmica gira em torno da identidade do curso, dos sujeitos neles

formados e dos saberes dessa formação.

Libâneo (1996, 1998, 1999, 2000,2006) discute as idéias defendidas pela

ANFOPE que centralizam na docência a identidade do curso de Pedagogia e do

pedagogo. Refuta essa posição diferenciando o docente do pedagogo strictu sensu,

81

como chama o profissional a ser formado, distinguindo-o a partir da explicitação das

diferenças entre o trabalho pedagógico e o trabalho docente. Sustenta seus argumentos

na demonstração que faz da necessidade da atuação de profissionais da educação em

funções não diretamente docentes. Defende que, por questões conceituais, a Pedagogia

pode abranger a docência, mas não pode reduzir-se a tal aspecto, ressaltando que outras

funções exercidas pelo pedagogo não necessitam nem têm argumentos teóricos sólidos

que justifiquem ter como pré-requisito a docência.

Com base nisso, aponta como equivocado o encaminhamento dado pelo

movimento de educadores que supervaloriza o curso de Pedagogia, a idéia de base

nacional, ao invés de dedicar-se à análise dos saberes que este difunde. Em obra que

discute o próprio curso, o autor, na apresentação do estudo, expõe o conflito ao assumir:

Tenho, pois, discordâncias bastante pontuais em relação às teses defendidas atualmente pela ANFOPE e julgo-me no direito de explicitá-las, como venho fazendo há quase 10 anos. Minhas causas, como sei que são as dos associados da ANFOPE, são de natureza pública: a educação para todos, a melhoria da formação do professorado, a melhoria da gestão e supervisão das escolas e da organização do trabalho pedagógico. Mas democracia pressupõe posições diferentes, o debate de idéias. Democracia nunca foi sinônimo de concordância; ninguém é menos democrata por discordar de pontos de vista de organizações ou entidades (Libâneo, 2000, p. 5).

Assim, ainda que não revelados, os embates se travam no âmbito da própria

associação. Ao enfatizarem a assinatura coletiva, seus documentos apresentam o ideário

defendido como assumido por todos, numa produção consensual.

Libâneo (2000) relata que apresentou no Encontro Nacional de 1992, o primeiro

do movimento como Associação, uma proposta de organização institucional: haveria dois

cursos ligados à faculdade de educação: um que formaria o pedagogo e outro que

formaria o docente. A estrutura curricular seria composta por uma base comum e uma

parte específica referente à atuação profissional, seja de pedagogo ou docente. Contudo,

observa que:

A proposta foi discutida naquele encontro, mas não votada, com a justificativa dos organizadores de que não se ajustava aos princípios historicamente definidos pelo movimento de reformulação dos cursos de formação de educadores (p. 36).

Evidencia-se uma minimização das divergências que existem no seio do

movimento. O texto final do encontro relata que foram apresentadas diferentes

propostas, mas narra a tomada de decisão como um movimento consensual, apagando

os movimentos e vozes dissonantes que se faziam presentes. O embate centra-se

83

Isso resulta, na visão desses autores, na sobrecarga sobre o currículo de

disciplinas ligadas à formação de professores e na diminuição de disciplinas teóricas,

não produzindo mudanças efetivas na formação, a não ser a sua descaracterização.

O debate não se localiza apenas no momento da formulação da proposta, mas se

estende ao longo da trajetória de debates em torno do tema como, por exemplo, no

âmbito da comissão formada pelo MEC para elaboração de elementos orientadores para

as diretrizes curriculares para a formação de professores. Faziam parte dessa comissão

os professores José Carlos Libâneo, Selma Pimenta, Helena Freitas, Antônio Joaquim

Severino e Luís Carlos Menezes.

Nessa ocasião, Libâneo e Pimenta (1999) apresentaram voto em separado

expondo suas propostas, entre elas a retomada da proposta já feita por Libâneo, de

existência de dois cursos distintos ligados às faculdades de Educação. Afirmaram que as

propostas da ANFOPE traziam como conseqüências:

• A identificação de estudos sistemáticos de pedagogia com a licenciatura (formação de professores para as séries iniciais do ensino fundamental) e, por conseguinte, redução da formação de qualquer tipo de educador à formação docente;

• A descaracterização do campo teórico-investigativo da Pedagogia e das Ciências da Educação, eliminando da Universidade os estudos sistemáticos do campo científico da educação e a possibilidade de pesquisa específica e de exercício profissional do pedagogo, o que leva ao esvaziamento da teoria pedagógica, acentuando o desprestígio acadêmico da pedagogia como campo científico;

• Eliminação/descaracterização do processo de formação do especialista em Pedagogia (pedagogo scritu sensu), subsumindo o especialista (diretor de escola, coordenador pedagógico, planejador educacional, pesquisador em educação etc.) no docente;

• Identificação entre o campo epistemológico e o campo profissional, como se as dificuldades naquele campo levassem ipso facto à crise do outro;

• Segregação do processo de formação de professores de 1a. à 4a. em relação às demais licenciaturas (p. 247).

Freitas (1999) rebate as críticas ao movimento ao afirmar que a oposição que se

faz e a discordância ao projeto defendido mantêm a dicotomia e a fragmentação na

formação de profissionais da educação. Diz:

Ao estabelecer o curso que o curso de Pedagogia formará os especialistas separadamente da docência, retomando as já superadas habilitações, a regulamentação do CNE contraria o movimento real, a produção teórica na área e a própria LDB, que estabelece, em seu artigo 67, a experiência docente como pré-requisito para o exercício das demais funções do magistério. Com isso, retorna agora, em um patamar mais elaborado, a figura do pedagogo especialista, em oposição à concepção de profissional da

84

educação, educador de caráter amplo que tem na docência, no trabalho pedagógico, a base de sua formação e identidade profissional. Essa concepção de pedagogo strictu sensu, superada tanto pela produção teórica da área quanto pela prática democrática da organização do trabalho pedagógico nas escolas públicas, articula-se à concepção do professor tarefeiro, formado com ênfase nos conteúdos específicos (p. 27).

Os argumentos de Freitas se assentam principalmente na força do movimento,

que em âmbito nacional tem assumido o papel de interlocutor e debatedor de propostas

de formação. A ANFOPE também reafirma sua posição:

Os cursos de Pedagogia constituíram-se, na trajetória dos últimos 10 anos, como um curso de graduação plena que é licenciatura e bacharelado, com projeto pedagógico próprio, responsável pela formação de profissionais da educação, professores e “especialistas” para a educação básica, comprometidos com a educação crítica com bases sólidas, voltada para a formação humana; 1. Na trajetória dos cursos de Pedagogia nos últimos 10 anos, a formação

de professores passou a constituir o núcleo comum obrigatório do curso em várias IES, no entendimento de que a docência é a base da formação;

2. Superou-se, portanto, o entendimento da docência enquanto habilitação, entendendo-a como base da formação do especialista, na compreensão do trabalho pedagógico escolar como totalidade que pode e deve ser apreendida no processo de formação, independente das determinações existentes no exercício profissional;

3. Esta concepção foi incorporada pelas diretrizes curriculares para o curso de Pedagogia, construídas em amplo processo de discussão, que estabelecem que a docência é a base da formação do pedagogo, respondendo ao desenvolvimento dos estudos teóricos e das práticas das instituições de ensino superior e escolar nos últimos 10 anos, no entendimento de que não é possível separar teoria e prática, pensar e fazer, conteúdo e forma, no processo de formação profissional (ANFOPE, X Encontro Nacional, 2000, p. 31).

Os textos constituem-se em arena de luta política que se consubstancia nas

formulações de propostas curriculares. Assim, as proposições feitas e discutidas

encaminham possibilidades de práticas curriculares que desenham o mapa de

poderes/relações/saberes produzidos nos embates pela e na formação de professores.

Nesse sentido, enfatiza-se ainda mais a problemática da elaboração curricular como

central no entendimento das complexas relações entre poder/saber/subjetividades,

vendo-as como prática discursiva, de significação. Moreira (1995) e Pacheco (2003)

entre outros se referem à elaboração de Giroux de autoridade textual como forma de

legitimação de determinadas concepções e dos mecanismos que são arregimentados

para garantia de sua compreensão. Assim, na leitura dos embates em torno de diferentes

concepções de formação pode-se abordar a questão curricular analisando a autoridade

textual que legitima determinados discursos. Acompanhar essa construção também

85

revela a dinâmica e os atores curriculares envolvidos na gestão de projetos de formação,

em um contexto de disputas entre saber/poder.

Assim, a questão da identidade do curso e dos sujeitos a serem formados é foco

de disputas, notadamente em torno das representações do ser educador. Parafraseando

Moreira e Silva (1995), as formulações são um território de identidades contestadas nos

currículos propostos. Analisar os embates travados explicita a dinâmica da prática

discursiva que constrói a “autoridade textual”, estabelecendo uma política de

identidades.

A discussão sobre a formação de professores liga-se à idéia de profissionalização

docente, o que se torna evidente a partir do documento de 1992. Cria-se uma cadeia de

significados interessantes que organizam sentidos, fazendo-os convergir numa prática

discursiva que entrelaça e põe em relação de complementaridade o educador-

profissional de educação, num processo de profissionalização e mudança. A estrutura

temática favorece essa interpretação. Fairclough (2001, p. 227), quando se refere ao

tema, diz que este:

é o ponto de partida do(a) produtor do texto numa oração e geralmente corresponde ao que pode ser considerado (o que não significa que realmente seja) informação dada, isto é, informação já conhecida ou estabelecida para os produtores e intérpretes do texto.

O que se percebe na forma como se estrutura o texto é que o “ser educador” –

profissional da educação – é uma questão consensual e que a luta do movimento é fazer

desse pressuposto dado assumido na realidade.

A busca pela definição do que é ser professor num dado momento, no contexto

do estabelecimento de parâmetros para sua formação, revela uma faceta do movimento

e da discussão em curso: o magistério como profissão. Essa é uma marca ressaltada

inclusive no nome da Associação que se forma – Profissionais da Educação.

Em texto que discute os caminhos da profissão docente, Ludke e Boing (2004)

dão pistas sobre a importância da temática para a compreensão dos rumos percorridos

nos últimos anos. Com base nas contribuições de Bourdoncle, os autores apresentam a

dificuldade de conceituação em torno do termo profissão e procuram salientar

elementos que possam caracterizar uma profissão ou grupo profissional. Entre eles

destacam-se: uma base de conhecimentos gerais e sistematizados, um interesse geral

acima dos próprios interesses, um código de ética controlado pelos próprios pares,

honorários como contraprestação de um serviço. Ainda enumeram como características

ter um ideal de serviço e um saber especializado (p. 1161-2).

86

Destacar a questão da profissão docente é crucial para a compreensão de um dos

motes do movimento dos educadores, que não só lutam pelo estabelecimento de

parâmetros e concepções de formação, como também inscrevem a luta num processo de

constituição e valorização da profissão docente. Para tal, precisa-se de formas de auto-

regulação que passam pela definição de uma base comum nacional, pelo

estabelecimento de que saber esse sujeito detém.

Ludke (2000), ao questionar os diferentes aspectos que envolvem a ocupação de

educador e sua profissionalização, ressalta elementos que encaminham para a definição

do profissional, e entre eles estão as entidades profissionais. Diz:

Trata-se da contribuição das associações profissionais para a organização da ocupação como profissão. É inegável a importância desse fator para o amadurecimento do grupo enquanto profissionais. Há uma dimensão social que extrapola o exercício individual de qualquer ocupação e que só se desenvolve no contato e na discussão de problemas comuns entre grupos profissionais (p. 83).

É significativo cotejar a questão da identidade com a profissionalização dos

professores. Trata-se de articular problemas complexos que se constroem enquanto

questão/direcionamento de ações. A questão da ocupação de professor não é uma

temática simples nem consensual; a partir dela se desdobram discussões para a

compreensão do ser professor e da construção de uma profissão docente, o que envolve

a retomada de conceitos complexos relacionados à profissão e à sua relação com a

docência.

Ao propor o modelo de análise da história da profissionalização, Nóvoa (1995)

destaca duas dimensões sob as quais esta se desenvolve: a construção de um corpo de

conhecimentos e um conjunto de normas e valores. Essas duas dimensões configuram o

campo de disputas em torno da identidade do curso.

Nóvoa (1991; 1995), ao tematizar a gênese e o desenvolvimento da profissão

docente, destaca a ambigüidade sob a qual se constituiu o estatuto dos docentes. Refaz o

percurso histórico da profissão, destacando que a partir do século XVIII há, aliada à

descoberta da infância e da preocupação educativa, a formação de Estados docentes, em

que a educação exerce papel significativo. Nesse contexto, a função docente se

desenvolve, mas de forma “subsidiária e não especializada” (p. 119). Isso porque o

ensino representa ocupação secundária, entregue a leigos e principalmente a religiosos,

que ativamente constroem um corpo de normas, valores e saberes que podemos analisar

como sendo elaborados de “fora” do mundo dos docentes. Isso evidencia como, ao

87

contrário de outros grupos profissionais, os docentes não elaboraram de forma própria e

autônoma o estatuto de saberes e regras coletivas, o que interfere na constituição da

profissão, uma vez que o que a caracteriza são habilidades específicas que permitem o

controle e responsabilidade sobre a atuação, a partir da autogestão do grupo. Com a

profissão docente não se percebe esse movimento: ela sempre foi atravessada e regulada

por instituições e agentes externos que faziam o papel de mediadores na sua

constituição.

O autor ressalta que a compreensão da gênese da profissão docente é muitas

vezes erroneamente creditada à emergência de sistemas de ensino do Estado. Contudo,

nessa época já havia grupos que se dedicavam à docência como ocupação principal. O

sistema estatal promove uma homogeneização que confere a esse grupo uma forma de

corpo profissional que não se constitui por uma concepção corporativa, mas pela

unificação estatal que, ao estabelecer formas de seleção e controle, também lhe permite

autonomia e independência frente à Igreja, agora como funcionários do Estado.

Evidencia-se que:

A profissionalização não é um processo que se produz de modo endógeno. Assim, a história da profissão docente é indissociável do lugar que seus membros ocupam nas relações de produção e do papel que eles jogam na manutenção da ordem social. Os docentes não vão somente responder a uma necessidade social de educação, mas também criá-la (Nóvoa, 1991, p. 123).

Uma etapa fundamental nesse processo de profissionalização se localiza no

desenvolvimento de uma formação institucionalizada que permite maior controle e

definição de um corpo de saberes especializados. O autor enfatiza que a evolução do

estatuto dos docentes está diretamente ligada ao desenvolvimento e à afirmação das

escolas normais, possibilitando a substituição do mestre leigo pelo novo professor, o

que, como assinala o autor, numa perspectiva sociológica evidencia rupturas, mas

também continuidades.

Contudo, as mudanças agudizam a ambigüidade do estatuto docente no século

XIX, uma vez que o professor tem dificuldade de se inserir socialmente, não se

identificando como burguês, como intelectual ou como artesão. Esse isolamento faz

emergir ou torna necessária a emergência de uma identidade docente, constituída

primeiramente a partir da solidariedade do corpo docente. Criam-se assim condições

para a organização das primeiras associações profissionais. Nóvoa (1991, p.127) afirma

que:

88

a emergência deste ator corporativo constitui a última etapa do processo de profissionalização da atividade docente, na medida em que corresponde à tomada de consciência do corpo docente de seus próprios interesses enquanto grupo profissional.

Propõe então, como modelo de análise do processo histórico de

profissionalização do professorado, que sejam consideradas quatro etapas, que são:

magistério como ocupação principal; estabelecimento do suporte legal para seu

exercício; criação de instituições formadoras; e constituição de associações

profissionais. Dialogando com a análise de Nóvoa fica evidenciado como a força do

coletivo docente tem papel preponderante na constituição da profissionalidade do

magistério. Em suas formulações, ressalta que dois pontos são cruciais para o

desenvolvimento profissional: um corpo de normas elaborado pelo próprio grupo e os

saberes específicos. Sobre os últimos, dedica especial atenção e desenvolve vários

estudos (Nóvoa, 1992; 1995). O autor discute que este é um ponto complexo na história

da profissionalização dos professores. A relação com o saber é polêmica e a busca por

compreendê-lo e discuti-lo tem se feito da especificidade da ação docente.

Esta é uma perspectiva que influenciou muitas das elaborações teóricas que nos

últimos anos têm focalizado a questão da formação docente. A idéia de que os saberes

docentes se compõem de múltiplos saberes que, articulados, se organizam num saber

específico, característico de sua profissão, é constatada em diferentes estudos. A relação

que os docentes estabelecem com os saberes é a chave de entrada também para o

entendimento da entrada na profissão e a identificação coletiva. A concepção de que o

trabalho docente não é um objeto externo posto à observação, mas uma atividade que se

desenvolve e que na elaboração desse trabalho saberes são mobilizados e construídos,

pois são transformados e vão ganhando significação, faz emergir a importância da

análise da constituição dos saberes docentes. Nóvoa, ao se dedicar ao estudo sócio-

histórico do desenvolvimento da profissão, articula e argumenta quanto à relevância de

considerar a dimensão dos saberes do professor como questão a ser analisada e tomada

como referência no desenvolvimento da profissão do professor, inclusive com vistas à

análise das estratégias de adesão a um corpo coletivo como parte da construção de uma

identidade profissional.

A complexidade envolvida nessa questão revela as disputas em torno da

identidade. Se postas como ordenação, representação de forma cristalizada, na qual o

sujeito se reconhece e identifica, correm-se riscos, no dizer de Gatti (1996):

89

Traduzir componentes desta identidade por considerá-los importantes para qualquer ação junto aos professores, temos de ter presente o espírito que estamos correndo o risco de homogeneizar o que é plural.(p.89)

A autora ressalta a condição contraditória que enfrentamos: também é necessário

estabelecer esses componentes para que seja possível fazer projeções e

encaminhamentos de ações. Contudo, o risco de “simplificar o que é múltiplo” existe.

O que podemos questionar é o fato de que nessa disputa há a projeção de uma

identidade, posta em vários momentos como consensual, respaldada pela força do

movimento coletivo. Entretanto, ao fazer o fechamento das concepções em torno de

elementos fundamentais absolutos, a possibilidade de perceber a complexidade, os

elementos e a dinâmica de produção identitária também é reduzida. Ainda que seja

defendida a idéia de uma formação calcada no compromisso político, numa visão ampla

do fenômeno educacional, a identidade projetada se dá numa visão de elementos

justapostos, num mosaico identitário porém fixo, reduzindo o que é plural. A identidade

precisa ser vista como um caleidoscópio que, dependendo do movimento feito,

reorganiza seus elementos em outras configurações, o que pressupõe o entendimento de

que não há identidades fixas, tomadas como verdadeiras ou ideais, mas identidades em

movimento.

Seja por parte da ANFOPE ou dos seus críticos há a projeção uma identidade

fixa. A disputa por essa identidade a e luta por ela, reforçam uma perspectiva de

mudança

curricular direcionada pelas concepções que defende. No caso da ANFOPE, sob a idéia

da defesa e valorização da profissão, há o estabelecimento de parâmetros do ser/formar

professor.

O que esse processo evidencia e as análises do texto incitam a pensar é sobre a

constituição da ANFOPE como agência de discussão e constituição de parâmetros para

a formação do educador. Articulado ao processo de constituição da própria entidade e

legitimação do movimento se dá a projeção de uma identidade social dos educadores, a

despeito das múltiplas identidades do pedagogo e do professor. O papel da ANFOPE é

assumido de forma explícita quando um dos documentos afirma que

No que se refere à dinâmica que tem marcado os encontros nacionais, registra-se que ela consiste de aprofundamento de temas sobre a formação dos profissionais da educação. Busca-se, portanto, uma construção coletiva de determinado referencial teórico que sustente as propostas de formação de profissionais da educação, na tentativa de organizar o pensamento brasileiro sobre essa formação, ao mesmo tempo que são avaliadas as experiências de

90

reformulações dos cursos que formam professores (ANFOPE, VIII Encontro, 1996, p. 15).

A tentativa de organizar o pensamento brasileiro sobre essa formação implica

também a tentativa de estabelecimento da base nacional comum e a definição de

parâmetros a serem adotados em consonância com os princípios defendidos. Isso se dá

principalmente nas discussões sobre a formulação curricular e, nesse campo, a

ANFOPE assume a posição de fórum de discussão e formulação de diretrizes para esse

fim.

Está expresso também no Documento Final do VII Encontro Nacional que “à medida que se aprofundam os estudos sobre os princípios norteadores do movimento, foi explicitando-se o conceito de base comum nacional” (p. 17), passando a ser entendida como referência para o processo de elaboração e desenvolvimento dos currículos, ou seja, como sustentação epistemológica das propostas curriculares em cada instituição. A partir daí, decorreriam as especificidades metodológicas de acordo com as diferentes experiências de cada curso. Consolidou-se, com isso, uma nova concepção de currículo para além de seu sentido convencional de elenco de disciplinas ou de conjunto seqüencial de conteúdos, fortalecendo os pressupostos teórico-epistemológicos da base comum nacional (ANFOPE, VIII Encontro, 1996, p. 17).

Nas discussões feitas nos últimos anos sobre as proposições acerca da

reformulação de currículos de formação de professores, a ANFOPE tem tido sua

atuação voltada para reafirmar seus princípios como quando da discussão sobre as

Diretrizes Nacionais Curriculares, ponto de debate do X Encontro (2000):

Quanto à organização curricular dos cursos de formação, retomamos aqui os princípios formulados pelo movimento, presentes no Documento Final do X Encontro e presentes no Documento Norteador do GT Licenciaturas: 1. Os Cursos de Formação dos Profissionais da Educação devem orientar-se pelos seguintes princípios: * a formação para a vida humana, forma de manifestação da educação unilateral dos homens; * a docência como base da formação profissional; * o trabalho pedagógico como foco formativo; * a sólida formação teórica em todas as atividades curriculares; * a ampla formação cultural; * a criação de experiências curriculares que permitam o contato dos alunos com a realidade da escola básica, desde o início do curso; * a incorporação da pesquisa como princípio de formação; * a possibilidade de vivência, pelos alunos, de formas de gestão democrática; * o desenvolvimento do compromisso social e político da docência; * a reflexão sobre a formação do professor e sobre suas condições de trabalho; * a avaliação permanente dos cursos de formação dos profissionais da educação como parte integrante das atividades curriculares e entendidas

91

como responsabilidade coletiva a ser conduzida à luz do projeto político-pedagógico de cada curso em questão; * o conhecimento das possibilidades do trabalho docente nos vários contextos e áreas do campo educacional (ANFOPE, X Encontro, 2000, p. 37).

Evidencia-se o papel ativo da ANFOPE na formulação de currículos nas últimas

décadas e sua posição como agência de fomento e apoio a experiências curriculares

inovadoras, alternativas e que corporificam os princípios defendidos.

É possível registrar que a preocupação com a formulação curricular se dá em

diálogo com a preocupação de garantir a formação de educadores que assumissem a

posição de sujeito defendido e desejado. A presença-formação desse novo sujeito

permitiria caminhar rumo às mudanças necessárias para a reconstrução da educação

brasileira. A ênfase no currículo não significa tão somente a preocupação com a

organização e a definição de conhecimentos necessários a essa formação, mas evidencia

a relação entre a gestão do conhecimento e as apropriações subjetivas que os indivíduos

envolvidos nesse processo deles o fazem, ou seja, “como as identidades sociais ou os

eus associados a domínios e instituições específicas são redefinidos e reconstituídos”

(Fairclough, 2000, p. 175-6). Esse processo de constituição se dá na e pela prática

discursiva como dimensão da prática social.

O papel da ANFOPE como gestora/articuladora da produção curricular se

evidencia em vários dos documentos analisados. Trago, a título de exemplo, um que

considero significativo: o texto do VI Encontro Nacional. Nele há uma seção em que é

narrado o movimento da ANFOPE em torno da elaboração de uma pauta para a

produção curricular. Relata-se a produção de grupos de trabalho que produzem

propostas de eixos curriculares. Cotejando essas produções, a Associação define suas

indicações.

Estes são elementos para uma "pauta mínima" que deve nortear a ação de reformulação dos cursos de formação do educador em geral. Tais parâmetros deverão estimular o aparecimento de novas formas e novos conteúdos curriculares no cotidiano das instituições que preparam o profissional da educação. É de vital importância, para o movimento, dispor destes parâmetros mínimos. Como durante o V Encontro Nacional não houve tempo para se elaborar uma síntese das posições, ela é apresentada agora. Não se pretendeu, aqui, rediscutir tais parâmetros, mas apresentar uma síntese na qual a maioria das posições do V Encontro estivesse basicamente contemplada (ANFOPE, VI Encontro Nacional, 1992).

Fica explícito que a Associação não só assume o papel de mediadora nas

discussões em torno da reformulação dos cursos, mas advoga para si a função de

92

elaboração de diretrizes para essa tarefa. As proposições que faz evidenciam que a

produção curricular se faz na interação entre diferentes contextos. A ANFOPE assume

um papel não só de mediadora de discussões em torno das propostas feitas mas também

como espaço de produção curricular. A identidade defendida para o educador fixa os

elementos dessa formação e traz uma perspectiva de mudança curricular direcionada.

Não se trata apenas de uma ação reativa – as formulações e defesas da entidade podem

ser vistas como ações de produção –, que, envolvendo o confronto de idéias e

concepções, articulam e propõem mudanças e práticas. Ao fazer o fechamento das

concepções em torno de elementos fundamentais absolutos, a possibilidade de perceber

a complexidade, os elementos e a dinâmica de produção identitária também é reduzida.

Ainda que seja defendida a idéia de uma formação calcada no compromisso político,

numa visão ampla do fenômeno educacional, a identidade projetada se dá numa visão de

elementos justapostos, num mosaico identitário, porém fixo, reduzindo o que é plural.

Em nenhum momento as análises empreendidas visaram fazer um julgamento da

posição/atuação da ANFOPE. A questão central é pôr em evidência a complexa

dinâmica da produção curricular, entendendo o discurso produzido pela entidade não só

como reflexo dos discursos realizados em outras instâncias, mas do movimento de

articulação-desarticulação-(re)articulação destes no que tange à problemática do

currículo para a formação de professores.

Diante disso, cabe o questionamento e a investigação acerca das identidades

docentes e como estas foram reelaboradas ao longo da trajetória de experiências

curriculares de formação de professores. Considerando o lastro de influência do

discurso produzido/defendido pela ANFOPE, cabe a interpelação dos sentidos que

foram postos na formação e como a questão da identidade docente é pensada nesse

contexto. Entre o múltiplo e o absoluto, que identidade se defende? Como a questão da

diferença é vista no currículo? Perspectivada como? Formação, docência, cultura,

diferença e identidade; que relações são tecidas entre/com esses aspectos fundamentais?

A identidade vista como estratégia política do movimento de profissionais da

educação incita o paradoxo identitário que pode ser vislumbrado nessa discussão. Se a

defesa por um perfil profissional pode ser entendida como estratégia de

defesa/valorização do educador como profissional, funcionando como elemento num

processo de profissionalização, o fechamento da identidade docente traz em si a idéia de

identidade como essência. Assentada sobre a racionalidade que submete o sujeito à

construção universal, à homogeneização e padronização de saberes e ações, a diferença

93

é vista como estranheza, anomalia que podia ser reduzida ou isolada. O diferente seria

aquele que não se encaixaria no perfil identitário defendido. É possível a formulação de

um parâmetro absoluto de ação? Como o professor formado de tal forma encara a

produção identitária e a cultura produzida no cotidiano escolar?

Pensar nesses paradoxos traz também a própria constituição da identidade gerida

e centralizada como questão. Se o arranjo coletivo enfrenta o individualismo, a

superação deste por uma individualidade coletiva é vista como estratégia de

desenvolvimento profissional. A organização coletiva prevê uma gestão interna de

saberes, de autoregulação da profissão pelos próprios professores, em busca do

exercício da autonomia. A oscilação, ou, melhor dizendo, as tensões que essas mesmas

estratégias trazem precisam ser examinadas. Quanto à autonomia, Contreras (2002)

alerta sobre autonomia ilusória. Um perfil identitário centrado no conhecimento

pedagógico pode incorrer numa prática reprodutiva, reduzindo a deliberação por parte

do docente a um conjunto de regras e habilidades a serem seguidas.

Hargreaves (1998) em estudo que analisa as mudanças enfrentadas pelos

professores em tempos de tensão modernidade/pós-modernidade, considera que a

colegialidade e a colaboração, estratégias muito discutidas em seu estudo, podem ser

uma forma de co-opção, sem se configurar efetivamente como organização e gestão

partilhada.

A essa discussão o autor traz a recorrência de uma perspectiva cultural de análise

das relações humanas. Ressalta os problemas que essa perspectiva traz, mas entende a

questão cultural como de organização de um determinado grupo, nesse caso

profissional.

Da profissionalização à absolutização, há uma tensão que precisa ser enfrentada.

Seria esse o preço que a profissionalização reclama, o essencialismo da identidade

docente? Ao se cristalizar o perfil profissional, expulsam-se a negociação e a identidade

como movimento?

Assim, há necessidade de buscar compreender como os sujeitos se constituem

habitando formas de significação apresentadas por elaborações diversas, apresentadas

por diferentes atores, porém tomadas como produções culturais, narrando e analisando o

discurso das culturas vividas, como sugere Giroux (1997).

Esse é ainda um campo que reclama a realização de pesquisas. André et al

(1999), em estudo que investiga o estado do conhecimento sobre a formação de

professores na década de 1990, revelam que os temas identidade e profissionalização

94

docente são pouco explorados pelas pesquisas, apesar de nos últimos anos emergir

como problemática a ser investigada. Revelam ainda que o assunto é tratado ainda de

forma tímida nas pesquisas discentes (dissertações e teses), mas nos artigos divulgados

nos periódicos na área o tema já é debatido com maior ênfase, focalizando as condições

de trabalho e socialização, a organização política sindical e as políticas educacionais.

Ainda informam que a maioria dos estudos se detém na formação inicial,

principalmente os cursos normais e cursos de licenciatura, demonstrando a escassez de

estudos sobre os cursos de Pedagogia. O mesmo pode ser observado nos trabalhos

apresentados no GT de Formação de professores na ANPEd. A pouca atenção dada ao

curso de Pedagogia expõe uma contradição na própria discussão travada nos diferentes

estudos sobre identidade e profissionalização e nos encaminhamentos feitos pelo

movimento de educadores. As autoras alertam ainda que o estudo que realizaram

permite visualizar que há

uma significativa preocupação com o preparo do professor para atuar nas séries iniciais do ensino fundamental. Permite ainda evidenciar o silêncio quase total em relação à formação do professor para o ensino superior, para a educação de jovens e adultos, para o ensino técnico e rural, para atuar nos movimentos sociais e com crianças em situação de risco (p. 309).

Seguindo ainda a indicação de que “as diversas fontes analisadas mostram um

excesso de discursos sobre o tema da formação docente e uma escassez de dados

empíricos para referenciar práticas e políticas educacionais”, é possível argumentar que

a temática da identidade precisa se dar articulada a discussões sobre a formação tomada

de experiências concretas desenvolvidas como objeto de estudo. É nesse campo,

ocupando esse espaço, que encaminho este estudo.

Identidade e profissionalidade têm se apresentado como temas que se

interpenetram na análise da questão docente, na medida em que ao qualificar e buscar as

múltiplas dimensões da ação docente também se fala sobre a percepção que estes

sujeitos constroem para sua atuação, como se identificam no exercício do magistério.

Alguns estudos têm se dedicado à análise da organização docente. Viana (2001), em

trabalho que analisa a produção acadêmica da análise da organização docente na

realidade paulista, discorre sobre a importância da análise dos movimentos de ação

coletiva. Contudo, seu estudo revela que as pesquisas têm focalizado prioritariamente

(no universo pesquisado pela autora) as organizações sindicais que se permitem discutir

os caminhos da profissionalização, mas não dão conta das múltiplas dimensões destes.

95

Alguns estudos vêm se dedicando à análise do processo de profissionalização.

Destaco o de Costa (1995) que em sua tese de doutorado, volta-se à discussão de

questões relativas ao profissionalismo, questionando se o professor é trabalhador ou

profissional. A autora dedica-se ao minucioso estudo acerca das elaborações teóricas

sobre o profissionalismo, paralelo ao processo de investigação na escola. Defende a

possibilidade de construções particulares do profissionalismo; um novo

profissionalismo que se recompõe conforme diferentes circunstâncias. Ao apresentar

seu estudo, a autora ressalta a importância de estar discutindo o trabalho docente, tema

ainda incipiente nas investigações em curso no País. Questiona o fato de o trabalho

docente se tornar um tema que fica submetido à discussão de formação de professores,

prática pedagógica ou educação e trabalho.

Outros referenciais teóricos têm fundamentado a discussão sobre a profissão

docente. Os aportes da Sociologia das profissões têm sido recorrentes. Dubar (1997)

desenvolve um estudo amplo sobre a socialização profissional. Inicia examinando as

diferentes abordagens do processo de socialização – a Psicologia piagetiana, a

Antropologia cultural, a noção de incorporação do habitus e da construção social.

Argumenta que a construção de identidades sociais é marcada pela dualidade do que

chama transação objetiva e subjetiva, num processo dialógico.

Esta negociação identitária constitui um processo comunicacional complexo, irredutível a uma etiquetagem autoritária de identidades predefinidas na base de trajetórias individuais. Implica fazer da qualidade das relações com o outro um critério e um desafio importante da dinâmica das identidades. Pressupõe, nomeadamente, uma redefinição dos critérios, mas também das condições de identidades e de competências associadas às identidades oferecidas (Dubar, 1997, p. 108).

Com isso, diz que é impossível reduzir as identidades a uma harmonia plena das

duas esferas, reduzindo um pólo ao outro. São dois processos distintos e autônomos:

ambos recorreriam a um mecanismo de tipificação que implica a “existência de tipos

identitários, isto é, de um número limitado de modelos socialmente significativos para

realizar combinações coerentes de identificações fragmentárias” (p. 110).

Nesse processo duplo, o autor afirma que as identidades são construídas no

processo relacional (para o outro; objetivo); necessariamente não fixa as identidades

para si (subjetiva). Assim, as identidades se constroem nesse imbricado jogo que

inclusive suscita a dúvida quanto à própria noção de identidade. As categorias sociais

que fornecem elementos para as tipificações não garantem a identidade, esta se dá na

96

articulação entre a identidade herdada, a identidade adquirida na socialização primária e

as identidades possíveis (profissionais) que se relacionam com as categorias sociais.

Defende então que a prioridade da análise sociológica é “localizar os movimentos que

afetam os modelos sociais de identificação, isto é, os tipos identitários pertinentes” (p.

111).

O autor define esse processo dizendo que a identidade se dá num processo

biográfico – construção da identidade para si – ao longo dos anos e a partir de categorias

sociais oferecidas pelas instituições sociais que as definem. No processo relacional, a

construção da identidade para outros se efetiva num dado momento, num espaço

determinado, nas relações principalmente de trabalho. Ressalta a importância de

observar a questão geracional. Tanguy (s/d) corrobora essa idéia ao discutir a

necessidade de considerar que gerações diferentes têm horizontes também diferentes,

que são confrontados/negociados na configuração identitária. Sobre isso, Dubar afirma:

A identidade social não é transmitida por uma geração à seguinte, ela é construída por cada geração precedente, mas também através das estratégias identitárias desenroladas nas instituições que os indivíduos atravessam e para cuja transformação real eles contribuem. Esta construção identitária adquire importância particular no campo de trabalho, do emprego e da formação que ganhou uma forte legitimidade para o reconhecimento da identidade social e para a atribuição do estatuto social. (p. 118).

A partir daí investiga e discute os diferentes paradigmas sociológicos de análise

das profissões, revisando desde os primeiros estudos, as abordagens funcionalistas e

interacionistas. Tematiza sobre a própria sociologia das profissões em sua trajetória de

ampliação do problema a ser investigado.

Tocarei em um aspecto destacado pelo autor, que dialoga com a pesquisa em

desenvolvimento. Dubar discute a possibilidade de modelos que caracterizem a relação

entre as competências exigidas e as adquiridas pelos sujeitos, também entre a ocupação

e a formação. Para debater esse tópico, o autor traz as elaborações de Rivard (1986) e

Moore (1969), e, articulando-os, apresenta os três espaços de identificação e as figuras

ideal-típicas e os modelos de valorização atrelados a cada um deles. São eles: o artífice

com a valorização ligada ao resultado e a identificação a um posto ocupado; o oficial,

com a valorização pela função e a identificação com um estatuto; e o físico, com a

valorização pela formação e a identificação relacionada à disciplina.

Sobre o último, ressalta que a unidade de definição é a especialidade, ou seja, a

competência adquirida pela formação de saberes, tendo como estratégia profissional a

97

acumulação de saberes e a luta pela manutenção da especialidade da formação. É

possível questionar se esse não seria o modelo que permite a discussão no caso dos

professores. Esses modelos de qualificação precisam ser pensados a partir de sistemas

de relações profissionais. O autor conclui que isso implica a articulação de três

processos para construção conjunta da profissionalidade dos indivíduos: a formação, o

sistema de empregos e o reconhecimento das competências.

Ele analisa e traz questões sobre a sociologia do trabalho, afirmando que as

identidades profissionais se definem na interseção de três campos: trabalho, emprego e

formação, sendo entendida como uma configuração e uma dinâmica que sofrem

mudanças significativas em resposta às mudanças do próprio trabalho e emprego. Em

síntese, o autor delineia suas conclusões sobre a formação de identidades

socioprofissionais apresentando um quadro com os processos identitários típicos,

afirmando que o espaço social das identidades articula a esfera do trabalho e de fora do

trabalho, no cruzamento de espaços e tempos distintos, em que também se cruzam

diferentes dinâmicas de interação objetiva e subjetiva. A configuração identitária se dá

nesses espaços-tempos associados a um tipo de saber que a estrutura através de

processos de socialização diversos e complexos. Enfim:

as identidades sociais e profissionais típicas não são nem expressões psicológicas de personalidades individuais nem produtos de estruturas ou de políticas econômicas que se impõem a partir de cima, elas são construções sociais que implicam interação entre trajetórias individuais e sistemas de emprego, sistemas de trabalho e sistemas de formação. Produtos sempre precários, se bem que muito construídos no processo de socialização, estas identidades constituem formas sociais de construção das individualidades, em cada geração, em cada sociedade (p. 239).

O autor incita à reflexão de que as identidades profissionais não são estáticas

nem imputadas aos sujeitos pelas instituições, mas que são fruto de uma trajetória que

exige negociações entre o relacional e o biográfico. Permite ainda refletir sobre a

dimensão discursiva desse processo, quando discorre sobre a identidade para si e para o

outro, destacando que o processo relacional se dá na linguagem, nas interações

cotidianas, num movimento intra/intersubjetivo.

Assim, as identidades são atribuídas, mas também construídas; tratando-se de

identidades profissionais, é preciso compreender que discuti-las não significa reduzi-las

ao campo do trabalho; elas se formam de modo amplo, em processos de socialização

diversos. Daí entendê-las como sociais. Em entrevista recente, Dubar (2000) disse:

99

defronta com deslocamentos e disjunções, ambivalência que politiza e desestabiliza o

essencialismo.

Considerando o currículo como texto cultural e de poder em que são negociadas

as identidades, experiências, saberes, trajetórias, o direcionamento do trabalho volta-se

para interpelar a elaboração curricular, em como esta dialoga com a identidade

defendida e como articula ou não as múltiplas identidades presentes, o que implica

questionar a concepção de diferença e cultura que se produz.

100

Capítulo III:

Confluências, articulações e influências: na pauta de discussões a formação do

educador infantil.

Até aqui pudemos acompanhar e refazer o percurso de debates e ações em torno

da formação de professores que foram constituindo a matriz de elaboração da proposta

curricular focalizada. O debate em torno da identidade projetada se polariza e tensiona

na dicotomia especialista–educador.

O delineamento de uma identidade centrada na docência, valorizando no

professor os elementos que o caracterizariam como professor crítico e politicamente

ativo se articula a esferas específicas de discussão, num campo de tensões e

confluências que se estendem na busca de definições de identidades de educadores em

segmentos específicos, como o caso dos educadores infantis.

Neste estudo, que analisa a inserção da formação do educador infantil no curso

de graduação em Pedagogia e interroga a identidade projetada nesse curso, que tem

explicitada a ênfase no delineamento de uma identidade profissional, cabe questionar

como se articulou a formação do professor de educação infantil no contexto de pesquisa

focalizada interrogando como esta se relaciona com a ampla discussão feita no campo

da formação docente. Tal questionamento permite entender como os contextos de

influência se constituem e exercem pressão na elaboração de políticas curriculares,

tendo como direcionamento metodológico a proposta de Ball (1998).

A pesquisa pelos caminhos das discussões no campo da educação infantil exige

buscar os nexos de um contexto de influências amplo e diversificado. A luta pelo

reconhecimento dos educadores como profissionais da educação e o envolvimento nas

discussões sobre os parâmetros de formação docente se apresentam como estratégia

política e abre o lastro de influências que participam da formulação de reformas

curriculares diversas, tal como a analisada nesse estudo. Ao focar especificamente a

formação do educador infantil, temos acesso a um discurso que se inicia gestado por

orientações semelhantes à discussão ampla desenvolvida no seio da ANFOPE. A

mobilização de educadores e pesquisadores ligados à educação infantil se dá em tempo

sincronizado, atuando e discutindo desde idos de 1988, quando da Assembléia Nacional

Constituinte, participando de movimentos que acompanham a formulação da LDB que

seria promulgada apenas em 1996.

101

A partir de então, a observada organização sistemática que vemos surgir no

movimento nacional de educadores, com a criação da ANFOPE e a unificação de várias

entidades de profissionais da educação, também se desdobra em campos específicos: os

sujeitos envolvidos com a educação infantil também vão se organizando, primeiramente

em instâncias regionais e, posteriormente, em 2000, num contexto nacional com o

Movimento Interfóruns de Educação Infantil – MIEIB.

Assim, ao envolver-me na pesquisa, buscando reconstruir os discursos que

compõem e exercem influência na produção curricular, destaco as ações/organizações

dos sujeitos/profissionais de educação infantil que se empenharam intensamente durante

a década de 1980-90 na busca de uma educação infantil de qualidade e na defesa da

formação específica para aqueles que trabalhassem com as crianças pequenas. Penso ser

importante ressaltar um momento que considero marco para a organização dos

profissionais de educação infantil e momento fecundo de debates que permitiu o

delineamento de um desenho para a formação que reconhecesse o educador infantil

como profissional e o mesmo tempo assim o posicionasse no contexto educacional: as

reuniões promovidas pela Coordenação Geral de Educação Infantil do Ministério da

Educação que se deram a partir de 1990. Nelas buscava-se deliberar sobre os

fundamentos que permitissem a definição de uma política nacional de educação infantil

e, por conseguinte, da formação do educador infantil.

Como destaca Ball, o entendimento das políticas curriculares como texto e

discurso ampliam a noção da formulação do currículo como prescrição ou como

determinação unilateral de esferas administrativas: assim, na esteira dessa elaboração,

tanto no caso da ANFOPE como no caso dos documentos produzidos pelo COEDI, esse

contexto de influência elabora discursos políticos e estruturam idéias que balizam

formulações para as propostas curriculares, forjando matrizes conceituais que, se não

apropriadas na íntegra, têm preservado nas propostas seus conceitos centrais.

Vale mencionar que, mesmo acentuando o papel do COEDI nessa discussão,

destacar o MIEIB como esfera organizada dos profissionais da educação infantil

evidencia a dinamicidade do modelo analítico proposto por Ball, uma vez que não

podemos entender os contextos de influências como esferas dicotomizadas, estanques e

fixadas num movimento/instituição. Essas influências também se recompõem, no bojo

do jogo político em que estão inseridas, como no caso do MIEIB, que entendo como

campo de influência reconfigurado, desdobramento da articulação iniciada nos

encontros promovidos pelo COEDI e que permitem aproximação e busca de espaço para

102

a discussão das questões específicas relativas à Educação Infantil. A desmobilização do

COEDI teve como resposta a ação de grupos/sujeitos que, na esfera local se

reorganizaram para retomar nacionalmente, como se dava no COEDI, as discussões,

agora tendo como fórum o MIEIB. Tanto que os sujeitos que participaram ativamente

dos debates no COEDI eram também aqueles que tinham papel de destaque na

organização dos fóruns estaduais de Educação Infantil e no MIEIB.

Ainda que os fóruns e o MIEB datem de um momento posterior às formulações

curriculares analisadas, considero-os discursos deslocados temporalmente, organizados

como discurso coletivo, mas que mesmo antes se fazem presente, ainda que de forma

diferente, e sua organização se deu concomitantemente à produção curricular.

Esse deslocamento temporal é produtivo no sentido de podermos fazer

inferências sobre a produção curricular e o ciclo político de formulação. Ao falarmos de

contextos de influências, num primeiro momento pode parecer que nos referimos aos

discursos prontos, formulados anteriormente e que exercem influência, numa relação

simplista de causa e conseqüência. A organização do MIEIB pode ser vista como outra

faceta de produção de políticas curriculares que se dá de forma entrelaçada, sem

dicotomias de tempos ou de modo linear. A relação entre diferentes contextos produz

não só o texto da política, mas traz modos de reorganização para os diferentes

contextos: práticas que se resignificam, discursos reconstruídos, efeitos das políticas que

põem o ciclo em movimento, numa hibridização das diferentes esferas da produção

curricular que evidencia a dinâmica desse processo. Assim, se a retomada dos encontros

e documentos do COEDI podem ser entendidos como contexto de influência da

produção/discursos sobre a Educação Infantil a organização do MIEIB traz a dupla

inscrição de ser ora contexto de influência e produção de discursos ora o próprio

contexto da prática em que esses discursos são recontextualizados.

3.1 – Em debate: educação infantil como questão política.

Ainda que este trabalho faça um recorte temporal, delimitando a pesquisa aos

anos de 1980/1990, retomo o panorama de debates em torno da educação infantil a

partir da década de 1970, por considerar que nela começaram a se articular movimentos

e a gestar idéias importantes para a constituição da educação infantil como questão

política. De forma sintética, é possível perceber os caminhos e descaminhos dessa

história. A trajetória histórica das ações voltadas para a infância delineia o contorno da

103

problemática: diversos estudos (Kulhmann Jr., 2000, 1998; Leite Filho, 2001; Oliveira,

2002) mostram nitidamente a secundarização das discussões referentes à educação

infantil, ficando esta relegada a cumprir uma função de adequação das crianças à

realidade escolar que enfrentariam. A idéia de uma etapa que antecede e prepara para a

escolarização se fez presente em diferentes momentos. Com base em Mouffe (2003), é

possível pensar que a educação infantil se constituía de práticas que visavam organizar e

dotar de certa ordem o atendimento de crianças pequenas.

Ao colocar a educação infantil como questão que se dá no campo político,

demarcando que isto aconteceu principalmente a partir da década de 1970, enfatizo que

até então tivemos práticas fragmentadas e esparsas: a problematização da educação

infantil trouxe à tona o debate político – entendendo-o como espaço discursivo de

conflitos e disputas, de poder e antagonismo e que busca no confronto delinear uma

posição determinada que dote de sentido as práticas em curso. Mesmo diante desse

posicionamento, a luta não cessa porque há disputas acerca da

manutenção/reformulação/superação dos sentidos que foram assumidos como legítimos.

No caso da educação infantil, a História narra ações fragmentadas que não se

articulam como sendo desdobramentos de concepções sobre a criança e sua educação.

Se era preciso atendê-las que se fizesse então, o que se deu sob forte marca

assistencialista.

As décadas de 1970 e 1980 marcaram-se pela visibilidade da educação das

crianças no terreno político. O embate por diferentes projetos trouxe o debate não só

para a disputa por ações distintas, como também por pressupostos diferentes para essas,

instaurando o debate político. O que se viu nesse momento foram trajetórias paralelas: o

acirramento da visão assistencialista, com a profusão de programas de educação

compensatória, paralelos a discussões que reivindicavam que as ações da educação

infantil estivessem voltadas para os aspectos cognitivos, emocionais das crianças, sob

influência dos estudos no campo da Psicologia; que em muitos momentos ficavam

restritas à rede particular de ensino pré-escolar, em plena expansão à época. Tratava-se

de um momento de discursos distintos, difusos, que em termos de políticas públicas,

continuavam marcados com a perspectiva compensatória, período preparatório à

educação obrigatória fundamental, com ações predominantemente ligadas à idéia de

assistência social, e não de cunho educacional. O embate entre a ênfase assistencialista e

a educativa, junto aos movimentos sociais que sinalizavam o aumento de demanda pela

educação pré-escolar, associado ao momento de luta pela redemocratização, jogou luz

104

sobre as tensões que atravessavam o campo e estabeleceu uma trajetória de expansão do

atendimento à infância. A rede de creches comunitárias começou a surgir por força da

articulação de movimentos sociais organizados. O período de questionamento e

redirecionamento político se estende à discussão sobre possibilidades, limites e alcances

da educação das crianças pequenas, propondo uma função pedagógica às instituições de

educação infantil, em diálogo profundo com novos estudos no campo do

desenvolvimento infantil e aprendizagem que incitam à construção de uma outra

concepção de criança, um debate que vem acompanhando e impulsionando as ações no

campo da educação infantil.

Com a Constituição Federal de 1988, a criança adquiriu direito à Educação de 0

a 6 anos, tendo como paradigma uma criança cidadã, ou seja, como sujeito de direitos,

produtora e produzida pela cultura, e com especificidades da infância, desvinculando-se

da idéia que a destacava apenas como preparação para a vida adulta.

Essa conquista refletiu os movimentos vividos, a luta da sociedade civil que

reivindica a especificidade da infância e assim também da educação e que impôs ao

Estado o dever de oferecer educação infantil; é preciso ter clareza que não se tratava de

uma mudança no campo legislativo, mas engendrada no seio dos movimentos sociais,

que passaram a discutir a educação infantil, lutando pela definição e ampliação de

atendimento – que não se resume à quantidade de crianças atendidas, mas afetava

também a qualidade dos projetos em questão. A composição da Assembléia Constituinte

foi mote do desenvolvimento de muitas discussões que se travaram com o intuito de

garantir a participação na formulação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação,

assegurando legitimidade e visibilidade para a educação infantil.

No contexto do Estado do Rio de Janeiro especificamente, isso se deu com a

ação das associações de moradores e centros comunitários que denunciaram a falta de

acesso à educação das crianças pequenas e além de reivindicarem, fundaram escolas

comunitárias em periferias e bairros proletários. A questão da educação se cruzava com

reivindicações trabalhistas. Em 1979, foi criada a Secretaria Municipal de

Desenvolvimento Social (SMDS) que nesse momento se aproximou dos movimentos

comunitários, num projeto de urbanização das comunidades carentes, assumindo ações

na área da educação, o que significava atuar junto às iniciativas dos grupos de

moradores no tocante à educação pré-escolar. (Tiriba,1992)

Esse movimento não significou apenas apoio às ações existentes, mas a

articulação de um projeto de escolas comunitárias que se ampliou e constituiu uma rede

105

de creches ampla e complexa. A participação dos diferentes segmentos – comunidade,

educadores, assessores – alargou a esfera de reivindicações: do acesso e quantidade à

qualidade desse atendimento. A retórica da participação (Tiriba, 1992) mais uma vez,

como no que se percebia em outros contextos de luta no campo da educação, inclusive

na ANFOPE, forte elemento no cenário político dos anos 1980, também congregava os

atores da educação infantil em torno das discussões sobre avanços e conquistas para a

educação das crianças de 0 a 6 anos.

A ambigüidade poderia ser a marca do momento, pois destacava onde os

avanços no discurso sobre a educação não alcançavam o mesmo ritmo das ações na

educação infantil. Dentre as questões a serem revistas, a formação de professores

despontava como tópico fundamental. A construção de uma educação infantil como

direito da criança, centrada em sua própria especificidade, requer também um professor

que compreenda essa especificidade.

Sendo assim, vemos que o movimento que num primeiro momento se

organizava para reivindicar o direito a educação infantil e a garantia de atendimento das

crianças pequenas como direito destas, calcado em pesquisas que traziam um outro

olhar para a infância, se desdobrou e deslizou para a questão da formação de professores

para esta etapa da educação.

É o debate sobre a formação dos sujeitos que trabalham com as crianças que será

focalizado aqui. Percebe-se numa leitura geral dos diferentes documentos e textos que a

primeira questão a ser enfrentada é o reconhecimento desses sujeitos como profissionais

da educação. Marcada por uma história assistencialista, a educação infantil foi sendo

estruturada a partir do trabalho de mulheres que, a partir do apelo maternal, dedicavam-

se à tarefa de cuidar de crianças. O embate cuidar/educar, ainda tão forte nas discussões

no campo, é enfrentado de forma a superar a fronteira até então tão rígida, de que a pré-

escola e a creche cuidam e a escola é que desenvolve o trabalho formal visando o

desenvolvimento da criança. Se muitos dos sujeitos que trabalhavam com as crianças,

principalmente em creches, não tinham uma formação específica advogar uma educação

de qualidade exigia formação adequada que duplamente poderia ser vista como

estratégia de profissionalização.

Contudo, não basta a formação para o reconhecimento como profissional diante

da desvalorização da atividade educadora junto a crianças pequenas. A atenção dada à

especificidade da infância faz com que uma formação docente que atenda a isso seja

fundamental. Entretanto, isso foi se costurando nos discursos na busca de uma

106

identidade como docente, uma identidade específica que paradoxalmente integrasse os

educadores infantis ao corpo coletivo de profissionais da educação, mas que ao mesmo

tempo o diferenciasse pela especificidade da identidade; uma fissura includente. Ações

que se dão na discussão sobre a definição de um perfil profissional, de uma modelização

da identidade.

Buscando entender a dinâmica dessa projeção identitária em diálogo com

Bhabha, que o faz a partir da analítica do desejo, é possível entender que a busca por

uma identidade específica dentro de outra já também especificada – educador infantil a

partir da identidade docente – responde à condição de existência enquanto ser, o que se

dá em relação a uma alteridade, em relação ao lugar do outro, da posse desse lugar, que

nesse caso se configura no reconhecimento como professor, o que acontece num espaço

ambivalente, de cisão, em que “ser diferente daqueles que são diferentes faz de você o

mesmo” (p.76) pondo então a identidade como trabalho e não como profecia; um

trabalho de construção de uma imagem. O que cabe questionar é o enquadramento, a

fixação, a identidade como visão totalizante e totalitária a partir da própria condição de

sujeito/alteridade destes.

É a partir dos rastros desse movimento de especificação do ser docente da

educação infantil, do delineamento do contorno externo de ser outro/igual que se pode

compreender e questionar a dinâmica identitária.

A LDB de 1996 representa um marco nessa discussão: reconhece a educação

infantil como direito, dever do Estado e como parte integrante do sistema educacional,

ampliando o conceito de educação básica e trazendo outras implicações para o trabalho

pedagógico com as crianças pequenas, dispondo também sobre a formação daqueles que

atuam junto a essa etapa da educação básica. Assim, nesse contexto, as implicações para

a formação-atuação dos professores de educação infantil exigem a discussão de

parâmetros para o ser professor de educação infantil.

A questão do professor de educação infantil adquire centralidade tanto pela

qualidade que se persegue para o trabalho com crianças pequenas quanto pelo

reconhecimento da educação infantil como etapa da educação básica, cruzando com

novas exigências e deliberações para a formação de professores.

Tendo em vista essa profunda transformação no campo, advoga-se uma nova

identidade para o educador de educação infantil. Em pesquisa que visava apreender os

significados construídos por trabalhadoras em relação ao trabalho que desenvolvem na

educação infantil acompanhando um projeto de formação continuada de trabalhadores

107

de creches comunitárias de Belo Horizonte, Silva (2001) salienta que a necessidade de

investigar a construção de identidades profissionais das educadoras de educação infantil

é fundamental nesse momento de redefinição de modelos de atuação para a educação

infantil, atentando que as identidades sociais se constituem em meio às relações sociais,

num jogo dialético de identificação-diferenciação, e nesse processo vão se

estabelecendo delimitações para as funções da educadora. Também Oliveira (2002)

ressalta a centralidade da formação de professores nesse momento, quando trata do

percurso da história da educação infantil:

Esses pontos, contudo, estão ainda longe de representar uma transformação das práticas didáticas em curso nas creches e pré-escolas. Uma nova trajetória orientada ao seu aperfeiçoamento, por intermédio da formação e aperfeiçoamento dos educadores, apresenta-se para ser coletivamente trilhada (p. 119).

As metas desejadas precisam ser discutidas nesse processo de sentidos

negociáveis historicamente que refletem diferentes critérios para definir qualidade da

educação infantil. São metas oscilantes, enraizadas numa história marcada pela visão

higienista e por condicionantes político-sociais desiguais.

Na década de 1990 a força de um modelo interacionista14 se fez presente,

indicando o delineamento de uma outra concepção de escola, infância e aprendizagem.

De um espaço de guarda e cuidado, a escola de educação infantil é vista hoje como

espaço de interações com múltiplas linguagens entre múltiplos sujeitos – criança-adulto,

criança-criança. É nesse contexto e nas relações que estabelecem com seu entorno que

as crianças vão se constituindo enquanto sujeitos autônomos e reflexivos. Diante de tais

assertivas, a escola de educação infantil vai assumindo outra função social diante do

entendimento de uma outra representação da criança e do seu processo de

desenvolvimento. É da competência do professor propiciar esse espaço de interação,

oferecendo diferentes experiências às crianças. Entretanto, quem é esse professor? De

que espaço de diálogo e de construção de ações para elaboração de propostas

pedagógicas para a educação infantil o educador participa?

14 Aqui se faz referência à introdução e à assunção de perspectivas centradas nas teorias de Piaget e Vygotsky. Vale lembrar também a relevância da discussão de uma perspectiva construtivista na alfabetização com a valorização dos estudos sobre a psicogênese da língua escrita desenvolvido por Emília Ferreiro e Ana Teberosky. Na discussão que fazem, as autoras destacam que a construção da escrita se inicia muito antes do ingresso da criança no ensino fundamental, ressaltando a importância das interações que a criança faz com o mundo que a cerca e enfatizando a capacidade da criança em elaborar hipóteses sobre a escrita, destacando sua ação cognitiva.

108

A intensificação do debate acerca da formação do educador infantil se deu no

bojo do movimento que participou da formulação da LDB (ainda que com perdas

significativas no texto final da lei). Contraditoriamente, a LDB legitimou as iniciativas

nesse campo e corroborou com as formulações que têm orientado as ações atuais

fundamentadas numa concepção sociocultural da criança, mas a questão da formação

docente do educador infantil ainda permanece incipiente. Defende-se a necessidade de

um profissional específico para o trabalho com a criança; mas no que se pautaria essa

formação? Não se trata da transferência de modelos, isso seria um retrocesso:

estabelecer o ensino fundamental enquanto parâmetro de atuação para educação infantil

seria desconsiderar sua especificidade que também parece relegada nas diretrizes

curriculares para a formação de professores da educação infantil e educação básica

(1998). Machado (2000), ao discutir a questão, alerta que:

Reivindicar uma formação específica para os profissionais não pode significar, portanto, um preparo para copiar o modelo da escola de ensino fundamental, mas sim para captar as especificidades do trabalho com crianças de 0 a 6 anos, solidificando uma história que ainda engatinha mesmo nos países mais evoluídos social e economicamente que o nosso (p. 199).

A formação dos profissionais da educação infantil encontrava-se numa

encruzilhada: que caminho trilhar – uma postura que advogava questões próprias, a

transferência de modelos da escola fundamental ou uma articulação entre questões

próprias num contexto amplo da educação básica?

O debate sobre o perfil do profissional da educação não pode ser visto único e

exclusivamente tendo como lente as disposições legais postas com a promulgação da

LDB. Contudo, na medida em que ela discorre sobre a educação infantil, traz

conseqüências para o perfil do profissional desse nível, o que não se resolve com a

estruturação escolar dessa etapa se a especificidade da educação infantil não for

reconhecida.

Kramer (2002) afirma que é preciso enfrentar os paradoxos da formação de

professores e da própria educação infantil, em que “ganha-se muitas vezes no discurso,

perdendo, contudo, nas ações concretas (p. 118)”. As alterações que vêm possibilitando a

conquista de espaço para a educação infantil não se deram com a promulgação da LDB.

A busca pela trajetória dessa discussão nos leva a localizar nas ações do próprio

MEC, através da Coordenação Geral de Educação Infantil (COEDI), nos anos de 1994-

98, um espaço de debate e formulação de propostas para a formação profícua e

109

significativa para a elaboração de sentidos sobre a mesma. O MEC desenvolveu uma

série de ações que ampliaram as discussões no campo da educação infantil procurando

articular uma Política Nacional de Educação Infantil

por meio de promoção de encontros, pesquisas e publicações, (exercendo) importante papel de articulação de uma política nacional que garantisse os direitos da população até 6 anos a uma educação de qualidade em creches e pré-escolas (Oliveira, 2002, p. 117),

As ações do COEDI destacavam-se pelo intenso debate que promoviam entre

diferentes segmentos que lutavam em defesa da educação infantil. Outro ponto a

destacar é que todas as publicações – cadernos15 produzidos a partir de encontros e

seminários promovidos pelo COEDI – tinham como interlocutor privilegiado o

profissional da educação infantil, reconhecendo-o enquanto tal. A estruturação de uma

política de educação infantil fazia-se discutindo e propondo um direcionamento a partir

das especificidades da educação infantil articuladas a uma política de recursos humanos

que visasse à formação do professor da educação infantil (Caderno COEDI: Por uma

Política de Formação do Profissional da Educação Infantil, 1994).

O primeiro dos documentos (1993) elaborados pelo MEC constituiu a base da

proposta e se desdobrou na especificação em outros, num aprofundamento das questões.

Iniciou expondo a situação na qual se encontrava a educação infantil. Dentre os pontos

destacados estava a desvalorização e a falta de formação especial dos profissionais que

atuam na área. A partir daí, apresentava diretrizes gerais para a EI, sendo estas

pedagógicas, e diretrizes para uma política de recursos humanos em consonância com

os princípios explicativos, uma vez que se “exige que o adulto que atua na área seja

reconhecido como profissional” (1993, p. 19).

Dentre as propostas, priorizava-se a definição de quem é o profissional de

educação infantil, a necessidade de sua valorização não só como garantia de formação,

mas a melhoria das condições de trabalho, plano de carreira e remuneração; a

implementação de formas regulares de formação e especialização e formação inicial em

nível médio e superior, que deve ter em seu currículo conteúdos específicos.

Assim, esse documento definiu uma série de ações prioritárias, dentre elas a

promoção da formação e valorização dos profissionais de educação infantil. Diz: 15 São seis as publicações do Coedi: Política de Educação Infantil (1993), Por uma Política de Formação do Profissional da Educação Infantil (1994), Educação Infantil no Brasil: situação atual (1994), Critérios para um Atendimento em Creches e Pré-Escolas que Respeite os Direitos Fundamentais das Crianças (1995), Proposta pedagógica e Currículo da Educação Infantil: um Diagnóstico e a Construção de uma Metodologia de Análise (1996), Subsídios para Elaboração de Diretrizes e Normas para a Educação Infantil (1998).

110

Faz-se necessário intensificar ações voltadas para a estruturação de processos de formação inicial e continuadas dos profissionais de educação infantil. Isto exige a articulação, coordenada pelo MEC – através das Secretarias de Educação Fundamental (SEF) e de Ensino Superior (SESU) – entre as instâncias que prestam esse serviço, as agências formadoras e as representações desses profissionais. É fundamental o envolvimento das universidades nesse processo (p. 25).

A discussão sobre a educação infantil, na esteira das produções acadêmicas,

revela que a atenção dedicada às construções teóricas sobre a educação infantil permite

e alimenta a discussão em busca de reconhecimento e conquistas na área. Em pesquisa

que analisa a produção sobre o tema no Brasil, tomando como objeto de estudo os

trabalhos produzidos na área de educação e também os apresentados em fóruns

representativos, Rocha (1999) destaca que “a produção analisada revelou construções

teóricas permitindo a identificação de um conjunto de regularidades e peculiaridades”.

(p.134).

Assim, é significativo perceber o papel das universidades e centros de pesquisa

como participantes das discussões e lutas pela e na educação infantil, alargando as

reivindicações não só centradas na perspectiva da criança como sujeito mas também na

compreensão dos diferentes aspectos envolvidos em seu desenvolvimento e formação,

assentando-se numa percepção da criança como criadora, considerando o contexto

sócio-político-cultural. Os questionamentos e o conhecimento produzidos se inserem

numa realidade dinâmica em que a busca por propostas críticas se dá revisando as

práticas vigentes.

Focalizando o período de 1980, recorro a Kramer (2004), que, analisando a

produção da Fundação Carlos Chagas, permite traçar um panorama representativo das

pesquisas desenvolvidas. A autora, ao refazer o percurso da instituição, organiza sua

análise delimitando-o pelas décadas. Observa que, na década de 1980, há uma grande

produção – 30 artigos nos Cadernos de Pesquisa16 – que reflete a efervescência do

momento. A maioria dos artigos se volta para o contexto político e as políticas públicas,

o que também reflete as discussões travadas no âmbito geral da educação. A dimensão

política ressaltada na década de 1980 continua a predominar nos 22 artigos publicados

16 A autora faz o levantamento e analisa outras produções da Fundação Carlos Chagas e de seus pesquisadores. Contudo, cito apenas os Cadernos de Pesquisa por ser uma revista da área de ampla divulgação e conceituação, estando em posição de destaque entre as diferentes publicações no País.

111

na década de 1990. Entretanto, sinaliza para a ausência de pesquisas e artigos que

focalizem a formação de professores.

A presença da universidade reclamada nos documentos é respondida pelas

pesquisas, mas não bastam. O envolvimento da universidade é solicitada também na

formação desses profissionais. As pesquisas consubstanciam o argumento de uma

formação específica, mas que ainda carece de um delineamento. Fica evidente que há

uma busca pela identidade profissional dos que atuam na área, que se dá também por

conta das disparidades vivenciadas: a educação infantil conta com professores formados

em nível médio, superior (números mínimos) e com pessoas que não têm formação

específica ou sequer escolaridade fundamental completa.

A referência ao papel da universidade nesses documentos revela um aspecto da

constituição desses contextos de influência: a universidade se destaca em muitos

momentos na definição das matrizes e concepções que organizam propostas; contudo

isso não se dá pela via institucional, mas pela atuação de seus professores/pesquisadores

organizados em grupos/coletivos de trabalho que se desvinculam das funções

universitárias e constituem movimentos sociais híbridos, articulando questões

profissionais aos anseios da população. Não é na condição somente de professores

universitários que os sujeitos se fazem ouvir – ainda que essa condição também os

permita ter voz, mas como profissionais da educação, arrolando aí uma trajetória de

inserção como profissionais da escola básica, como educadores dos diferentes níveis.

Isso cria uma filiação dupla que dá respaldo às afirmações que fazem, encurtando a tão

citada distância teoria-prática. Se estamos falando que em muitos momentos, o discurso

pela formação constitui uma estratégia de profissionalização: essa forma de articulação

revela-se uma tática no jogo do poder, na acepção dada por Certeau (1999) de que são

procedimentos que valem da pertinência que dão ao tempo – às circunstâncias que o instante preciso de uma intervenção transforma em situação favorável, à rapidez de movimentos que mudam a organização do espaço, às relações entre momentos sucessivos de um “golpe”, aos cruzamentos possíveis de durações e ritmos heterogêneos etc.

o que permite entender que as táticas, enquanto astúcia dos praticantes se valem da

“hábil utilização do tempo, das ocasiões que apresenta e também dos jogos que introduz

nas fundações de um poder.” (p.102)

Se as táticas são ações hábeis na ordem estabelecida, essa presença incerta da

universidade se dá como mobilidade no espaço da discussão sobre a formação, mas que

visa construir nesse espaço a definição da universidade como lugar da formação.

112

(Certeau, 1999) Assim, se as propostas de formação têm grande abrangência - ações de

formação continuada, inicial, em serviço - todas associam formação com valorização, na

possibilidade de instituir um estatuto profissional do educador de educação infantil

tornando-se um movimento no espaço disperso para a definição de um lugar próprio e

definido.

Em 1994, o COEDI organizou um encontro técnico focalizando a temática da

formação. Nele foram apresentadas reflexões e propostas de pesquisadores ligados ao

campo. Barreto (1994) na apresentação enfatizou a importância das discussões, tendo em

vista que a definição de uma política de formação é fundamental para o estabelecimento

de uma política de educação infantil.

Kramer (1994), em seu texto, aborda questões que precisam ser repensadas para

o dimensionamento dessas políticas e faz uma análise crítica delas. Destaco a avaliação

que faz do documento inicial das propostas para educação infantil, em que é prevista a

existência de cursos emergenciais para os profissionais da educação infantil já em

atuação.

A autora afirma que esses cursos redundam em melhorias na carreira

profissional e propõe uma diretriz política que tenha seu eixo colocado na formação

permanente para os profissionais que já estão em serviço, aliada a uma política que

articule em médio prazo a formação com a carreira (1994, p. 23).

A autora incita à reflexão sobre a questão da profissionalização. Se pudermos

afirmar, em diálogo com diversos autores, que a formação específica é uma das

dimensões/etapas da profissionalização, fica claro que não se atinge a profissionalização

somente via formação. Há uma série de questões que compõem essa dinâmica, e a

profissionalização é uma questão a ser discutida.

Contreras (2002) discute essa questão submetendo-a à análise dos paradoxos que

a envolvem. Traz a idéia de que profissionalização ou profissionalidade está associada à

autonomia do próprio trabalho e junto a isso discute a idéia de proletarização e do

semiprofissional. Sobre a proletarização, diz que ela representa a perda das condições de

trabalho, o que aproxima os docentes da classe operária, remetendo ao modelo

taylorista, que concebe a racionalização do trabalho e da gestão, transpondo-os à prática

docente. Ainda que destacando as ambigüidades da retórica do profissionalismo, o autor

ressalta que há possibilidades positivas na busca da profissionalidade, mencionando

suas dimensões: a obrigação moral, o compromisso com a comunidade e a competência

profissional. A ênfase na questão da profissionalização é recorrente nas discussões sobre

113

os professores, e a formação é vista como meio de alcançá-la. A contribuição de

Contreras para as noções que envolvem essa questão nos permite questionar se essa

ênfase não se faz como movimento de ruptura com a proletarização dada. No contexto

da educação infantil, poderia permitir a discussão da assunção do adulto que trabalha

com a criança como educador.

Kramer (1994) também propõe que a política educacional seja vista no contexto

de uma política cultural, o que exige considerar a multiplicidade de caminhos para essa

construção. Salienta que, com esse alerta, não visa

minimizar a importância de se delinear no nível de uma política ampla, diretrizes curriculares para a formação dos profissionais de Educação Infantil. Mas penso que é preciso relativizar a sua eficácia e repito – ainda uma vez: é urgente garantir condições em que se concretizem múltiplas saídas. Pluralidade não significa ecletismo, democracia supõe diversidade, mas exige também a unidade de objetivos, para que a qualidade das ações seja conquistada por todos (p.26).

A autora propõe, então, que o currículo seja sustentado por três pilares –

conhecimentos científicos (tanto os básicos como os específicos), conhecimentos

profissionais e seu desenvolvimento e saberes culturais, tendo como eixo norteador a

prática aliada à reflexão crítica. Percebe-se a ênfase na questão da profissionalização, o

que poderia sugerir a conquista da autonomia profissional dos educadores infantis.

Contudo, vale ressaltar que a perspectiva de ampliação e desenvolvimento da dimensão

cultural é que implica real valorização profissional na tomada do sujeito como produtor

de cultura. Destaca-se que, no bojo de uma discussão marcada pela profissionalização

ao enfatizar a importância de uma formação cultural abre-se espaço para discutir a

produção identitária como produção cultural. Ainda que a menção à questão exija um

aprofundamento maior, inclusive no esclarecimento de que acepção se dá à cultura aqui,

se expressa a inscrição cultural como rasura na/da identidade. Seria essa a possibilidade

de visibilidade da fronteira e do entre-lugar da negociação?

Cabe ainda destacar que, ao reconhecer as diferenças e propor como eixo

“valores e saberes culturais dos profissionais, produzidos a partir de sua classe social;

sua história de vida, etnia, religião, sexo e do trabalho concreto que realiza” (p. 27), a

autora traz um encaminhamento que antevê a necessidade de consideração dos

múltiplos pertencimentos do sujeito, que não podem ser reduzidos a um único aspecto,

abrindo espaço para um diálogo com as diferenças, vendo a formulação curricular como

ação/prática cultural. Essa é uma dimensão pouco valorizada nas propostas

114

encaminhadas nas décadas de 1980/90. Pode-se dizer, inclusive nas disputas/ações de

poder que definem os discursos, que esse ponto é eclipsado pela profissionalização

entendida como sólida fundamentação teórico–técnica. É nesse ponto que se dá a

problematização que é objeto deste estudo: um forte apelo à formação teórica que

perfaça um perfil identitário sólido que permita que este educador ocupe o lugar de

profissional sugere o fechamento da identidade. O que fica de fora? A dimensão

cultural, o entendimento da ação docente como produção cultural, que se trava nesse

campo, fixa o sujeito que tem seus múltiplos pertencimentos apagados. Uma formação

sólida, um currículo que visa à profissionalização coloniza os sujeitos?

A questão em voga é que conhecimentos os profissionais devem ter. Ainda que

seja salientada a importância de considerar o contexto em que se dão as práticas, há um

silenciamento acerca da diferença. Saber que há diferenças não significa

necessariamente trabalhar com desenvolver uma pedagogia da/com a diferença.

Tolerância? Superação? Diálogo? O que rege essa relação?

Campos (1994), no mesmo encontro, discute que pensar a formação exige

relacioná-la com os objetivos propostos para a educação infantil. Ao fazer essa

consideração, traz ao debate um tópico complexo para a compreensão do fazer

pedagógico da educação infantil: a tensão cuidar x educar. Expõe que essas

características têm marcado uma identidade dupla na prática da educação infantil que

reflete nos seus profissionais, em geral numa cisão entre quem cuida – monitoras,

pajens, recreadoras, com ações identificadas como domésticas, com baixos salários e

pouca qualificação –; e educa – professoras, numa ação educacional. Apresenta

exemplo de práticas adotadas em diferentes cidades brasileiras e de outros países em

que há divisão do trabalho, ficando a criança em alguns momentos envolvida em ações

ora de cuidados ora de educação desenvolvidas por diferentes profissionais. Diante da

situação relatada, defende uma visão integrada da educação infantil, com os diferentes

profissionais necessitando de

um novo tipo de formação, baseado numa concepção integrada de desenvolvimento e Educação Infantil, que não hierarquize atividades de cuidado e educação e não as segmente em espaços, horários e responsabilidades profissionais diferentes (p. 37).

Oliveira (1999) destaca o papel das universidades no desenvolvimento dos

profissionais de educação infantil. Afirma que a universidade deve e precisa se

comprometer com a escola normal para a habilitação multidisciplinar do enorme

115

contingente de educadores leigos que atuam na educação infantil, de forma a atender à

diversidade de situações vividas no País.

Contudo, apresenta o movimento de expansão da procura pela formação em

nível superior, citando os vários cursos já existentes. Indica que isso desenha um

panorama de grande avanço no campo, mas para que seja mudança efetiva, marca

qualitativa de avanço, se faz premente a integração pesquisa-formação, que exige da

universidade responder ao “inalienável compromisso com a investigação científica” (p.

68).

Entretanto, a formação na universidade, ainda que de represente o desejo de

avanços e reconhecimentos, vem sendo discutida com mais atenção, explicitando a

complexidade desse processo. Kishimoto (2002) denuncia que, se a presença da

universidade na tarefa de formação é solicitada, a existência de cursos amorfos, sem

diferenciação, incita práticas de escolarização na educação infantil, uma vez que

prioriza o ensino fundamental. Há falta de clareza do perfil profissional, o que se revela

na configuração curricular, num desencontro da educação infantil com a Pedagogia.

Ainda que ressalte que “atribuir à formação pedagógica estatuto científico, aliando a

investigação e formação parece ser o caminho para a construção do novo perfil

profissional (p. 111)”, defende que esta pondere a especificidade da educação infantil.

Essa defesa também é feita por Campos (1999), que recomenda que haja uma

especialização por faixa etária de aluno, opondo-se à formação generalista que engloba

a mesma proposta para professores de educação infantil e ensino fundamental. Propõe

que haja um currículo com uma parte de conhecimentos básicos e outra de disciplinas

específicas, de forma a atender os diferentes tipos de alunos.

Formosinho (2002) entra na discussão sobre a formação de professores na

universidade revelando a tensão entre a cultura universitária, que tradicionalmente

prima pela lógica acadêmica, e a formação de professores, que precisaria ser submetida

a outra lógica. O autor alerta para o risco de universitarização ou academização, nos

termos do autor, da formação. Aponta a contradição que atravessa essa problemática ao

defender que a universidade desempenhe papel central na formação do profissional

reflexivo; no entanto, uma formação teórica afastada da prática é inadequada. Fala que

essa submissão à lógica tradicional da universidade se dá em diferentes dimensões:

orgânicas, curriculares e pedagógicas. Ainda que tal processo tenha trilhado esse

caminho em quase todas as Universidades, destaca que

116

a universidade ao formar educadores de infância deve fomentar um espírito de investigação para a resolução dos problemas profissionais e uma autonomia profissional, individual e coletiva, que se traduzem em competências e atitudes relevantes para a vida, dos contextos profissionais e organizacionais em que decorre a ação educativa (p. 181).

Kramer (1994) apresenta uma síntese das diversas contribuições apresentadas no

encontro e enumera recomendações sobre questões a serem discutidas e pontos-chave a

serem considerados na formulação de uma política nacional dos profissionais de

educação infantil, que são: formação entendida como direito; condições que viabilizem

a produção de conhecimento, concepção, implantação e avaliação de estratégias

curriculares para creches e pré-escolas; explicitação das fontes de financiamento

possíveis; realização de um diagnóstico sobre os profissionais de educação infantil e das

agências formadoras; delineamento do tipo de profissional da educação infantil de que

se necessita; superação do caráter emergencial das estratégias de formação; formulação

de critérios para apoio técnico e financeiro dos governos; sistematização e divulgação

de ações de formação de nível médio e supletivo; criação de condições para a

qualificação dos profissionais que já atuam e que não possuem a qualificação mínima;

sistematização e divulgação de propostas e experiências significativas na área; incentivo

à produção e disseminação de pesquisas; realização de levantamento junto a

universidades e instituições de ensino superior que mantêm habilitações em nível de 3o.

grau e especializações na área de educação infantil; articulação da política de formação

de profissionais à política de leitura e a projetos culturais (p. 72-76, grifos meus).

Essas sugestões orientam-se por princípios que fundamentam a discussão. Nesse

sentido, sobre a formação dos profissionais é posto que o eixo norteador das propostas

tenha como referencial a realidade da educação infantil. O que se percebe é que neste

momento a questão da formação é tangenciada pela própria busca da consolidação da

educação infantil como campo específico da Educação; o tipo de profissional desejado

articula-se à especificidade da área.

Como pensar na formação de professores para educação infantil; o que se

propõe? Um novo olhar que não pode significar aniquilação da experiência adquirida,

mas um novo que se enraíza no velho, um diálogo inevitável. No alerta de Cruz (1996):

Ao se pensar na formação do educador infantil, é preciso ter claro quão difíceis são essas mudanças, quantos estereótipos é preciso abandonar, o grau de ansiedade que isso pode levantar a intensidade das resistências que é necessário superar (p. 86).

118

Kishimoto (1999), em texto que refaz a trajetória histórica do curso de

Pedagogia demonstrando o papel que este teve na formação do educador infantil,

argumenta que a criação dos institutos superiores desqualifica a formação ao dissociar

formação profissional de formação universitária. Elenca os pontos em que baseia suas

críticas, realçando que o curso também desrespeita toda uma trajetória de mobilização

no campo da formação e da educação infantil.

A retomada das discussões se deu principalmente tendo os fóruns estaduais de

educação infantil e o Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (MIEIB)

como esfera de mobilização, intervenção e discussão que possibilite trilhar caminhos

rumo à efetiva melhoria na qualidade de atendimento à primeira infância.

A análise da produção do MIEIB e de fóruns estaduais torna-se relevante por

permitir traçar a história da construção dos discursos que engendram a política

curricular analisada, que traz para o âmbito do ensino superior a formação do educador

infantil. Os fóruns estaduais de educação infantil, especificamente o do Rio de Janeiro,

são constituídos por grupos que, de certa forma, vinham tendo uma atuação significativa

desde a década de 1980 e se congregam. As discussões coletivas, ainda que iniciadas em

data posterior à da formulação e implementação da política curricular, resgatam sentidos

e discussões que dela são representativos. Assim, o deslocamento temporal não

descaracteriza a ação dos fóruns e do MIEIB como grupo/discurso que exerce influência

nessa produção.

O material que analiso é de natureza diversa: atas de encontros, textos,

correspondências, planejamentos de ação, relatórios, textos que têm vinculação explícita

com o MIEIB que acompanham a trajetória de atuação até 2005, data da pesquisa que

realizei.18

O MIEIB se constituiu como tal em 1999, a partir da articulação de fóruns

estaduais (na época sete) de modo a fortalecer as ações deles na luta pela Educação

Infantil, projetando posições no plano nacional, tendo a primeira reunião acontecido

durante a realização da 22ª. Reunião Anual da ANPEd em Caxambu, 2002 (Machado,

2003; Nunes, 2003). Tem como princípios básicos compartilhados a luta pela efetiva

garantia de acesso à Educação Infantil de qualidade e o desenvolvimento da área.

Define critérios norteadores das ações, e entre eles figuram:

18 A pesquisa realizada contou com valorosa colaboração da professora Maria Fernanda Rezende Nunes (UNI-RIO), que durante os anos iniciais do MIEIB foi integrante do grupo gestor do movimento e a quem agradeço a disponibilidade e a sensibilidade com a pesquisa desenvolvida. Além disso, até 2004 a Secretaria Executiva do MIEIB funcionava no Rio de Janeiro, em parceria com a OMEP.

119

• a implementação de projetos de formação inicial e continuada dos profissionais de Educação Infantil visando à sua qualificação específica e ampla, contemplando-se temas de formação com abrangência compatível com a complexidade do campo;

• a constituição, a delimitação e a regulamentação do campo de atuação e de formação dos profissionais de Educação Infantil;

• a inclusão, na política nacional de formação de professores, da especificidade dessa formação para atuação com as crianças de 0 a 6 anos (MIEIB, 2000).

Inicialmente a atuação do MIEIB como fórum de debate focalizou a idéia de

ampliação dessa rede de parceria e discussão, fomentando a criação de fóruns estaduais

nas unidades da federação que ainda não dispunham de um.19 Essa ação se dava

concomitantemente à realização de encontros nacionais com temáticas variadas, o que

também fortalecia o movimento na medida em que permitia a interação entre membros

e dá visibilidade à atuação do grupo, o que é fundamental para a construção de um

corpo coletivo. Essas reuniões não se destinavam somente à discussão de ações do

MIEIB junto a órgãos públicos ou envolvimento em mobilizações de diferentes ordens.

É preciso ressaltar o MIEIB também como espaço de produção/divulgação de

conhecimentos. As reuniões promovidas giravam em torno dessa temática, contando

com a colaboração de pesquisadores, profissionais e gestores da educação infantil que

compartilham e apresentam trabalhos que possam ser desencadeadores de discussões

teóricas. O investimento nessas discussões pode ser visto de forma dupla: por um lado,

como construção de um discurso em bases comuns, afinando as concepções que

orientam as ações dos diferentes fóruns estaduais, dando coesão e coerência ao

movimento. Por outro lado, podemos perceber essas ações como rompendo com a

desmobilização do poder público e autogerindo um sistema de formação dos sujeitos

militantes na área da educação infantil, o que pode também dizer que esse conhecimento

gerado e gestado pelo grupo os instrumentaliza, dotando-os de poder – simbólico – e

legitimado para os enfrentamentos na discussão de políticas públicas. Essa é uma ação

que conta com especial atenção do grupo gestor e que, nos anos iniciais, é assim

desenvolvida:

Debates com vistas ao afinamento de concepções; Sistematização e divulgação de informações:

• Ações realizadas em 2000:Realização de seminários e/ou mesas redondas nas reuniões nacionais do MIEIB e nos congressos. Temas abordados: projeto MIEIB (Carapicuíba e todas as outras); integração das creches nos sistemas de ensino, regulamentação e formação dos profissionais de

19 MIEIB. Relatório MIEIB -2001. Rio de Janeiro (mimeo)

120

educação infantil (Curitiba e Fortaleza); agenda para candidatos às eleições municipais e Portaria do MTPAS (Rio de Janeiro); relação assistência/educação (Caxambu);Censo da Educação Infantil (Lindóia). Documentos produzidos: 5 Comunicados da Secretaria Executiva; Orientações para Constituição de novos Fóruns de Educação Infantil; Orientações para Pauta de Reivindicações junto aos candidatos às eleições municipais; Projeto MIEIB 2000 (versão 1999 e versão 2000); Projeto MIEIB 2001- minuta preliminar; Projeto e balanço MIEIB para o MEC.

• Ações realizadas em 2001: Realização de seminários e/ou mesas redondas nas reuniões nacionais do MIEIB. Temas abordados: projeto MIEIB; integração das creches nos sistemas de ensino, regulamentação e formação dos profissionais de educação infantil (Campo Grande, Olinda e Caxambu); relação assistência/educação (Campo Grande) (Porto Alegre). Documentos produzidos: Comunicados da Secretaria Executiva; Projeto MIEIB 2001; Relatório MIEIB para Fundação Orsa Lançamento da publicação Escritos Preliminares contendo artigos de 14 Fóruns de Educação Infantil em versão preliminar em Porto Alegre (RS/out.) ( MIEIB, 2001).20

A questão da formação dos próprios membros é destacada em outros momentos,

ressaltando o MIEIB como espaço de trocas, formação e ampliação que congrega

profissionais envolvidos na educação infantil. Chama atenção a constituição diversa do

grupo, sem que isso inviabilize a participação dos sujeitos nas diferentes discussões, que

vai de pesquisadores e professores universitários a educadoras de creches comunitárias.

Assim, se revela na participação dos integrantes dos fóruns o compromisso político

alardeado pelo MIEIB como espaço de luta pelo acesso a todos à educação infantil.

O Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil - MIEIB tem se configurado como uma estratégia prioritária para que professores, pesquisadores, profissionais e militantes da educação infantil possam desenvolver uma atuação transformadora frente às contradições do mundo social. Este espaço e os espaços criados pelos fóruns, sem dúvida, constituem-se em recusa à submissão ao lugar comum para todos os envolvidos na difícil arte de fazer história da infância através da educação (Nunes, 2003:15).

As relações de poder não aparecem nos documentos como um atravessamento na

constituição dos grupos. Os sujeitos citados têm filiações diversas, ainda que a

composição do grupo gestor se dê majoritariamente por sujeitos com ligações com a

universidade.

A constituição do MIEIB como espaço de troca e articulação se evidencia na

extensa e rica correspondência entre os diferentes fóruns estaduais, que compartilham

questões e contam com a participação destes para o desenvolvimento das lutas em que

20 MIEIB-SECRETARIA EXECUTIVA. Ações realizadas em 2000/2001. Rio de Janeiro, mar/2002.

121

se engajam. Alves (1999; 2001), ao trazer em suas pesquisas a idéia da tessitura de

redes de conhecimento, apresenta um processo que explica a dinâmica do MIEIB. Como

a autora alerta, redes não são produtos, mas processos que se desgatam e

paradoxalmente são sempre desencadeados; continuamente em movimento, expressam a

idéia de compartilhamento de significados/saberes, que, num processo complexo e

multidimensional, permite que os sujeitos elaborem formas de agir ou táticas; histórias e

práticas que são partilhadas, mas que não são uniformes e idênticas, carregam as marcas

dos praticantes dessa/nessa rede.

Poderíamos entender o MIEIB como uma rede de conhecimetos que de forma

tênue envolve os praticantes da educação infantil, permitindo a eles não só “decifrar o

pergaminho da sua história” (Alves, 1999) mas também reescrevê-lo? A forma de

articulação que se vê projetada nas correspondências e ações partilhadas, se não deixa

capturar a totalidade desse movimento, dá visibilidade a nichos dessa rede.

Uma rede que se expande e se reconfigura nos seus movimentos. Como espaço

de luta e discussão, o MIEIB foi se constituindo como fórum que articula as ações

desenvolvidas em âmbito nacional, tornando-se interlocutor de esferas públicas nas

negociações com a esfera legislativa e executiva dos governos municipais, estaduais e

federal, buscando articulação com campanhas que congregam outras associações,

grupos de expressão, constituindo-se como espaço reconhecido no cenário nacional, o

que se vê, por exemplo na Carta enviada à Comissão de Educação da Câmara de

Deputados:

O Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil - MIEIB, que congrega fóruns e comissões estaduais, regionais e municipais de defesa da Educação Infantil das várias unidades da federação (...), em apoio à Campanha Nacional pelo Direito à Educação na sua luta pela conquista e consolidação do Estado de Direito e pela elucidação da importância do Plano Nacional de Educação, como instrumento concreto de elaboração de diretrizes e metas para a política educacional do País, vem manifestar seu repúdio aos vetos presidenciais ao referido Plano, especialmente o que se refere ao compromisso de o Brasil investir 7% do seu PIB em Educação, até o final do período abrangido por aquele instrumento de política (MIEIB, 2001).21

A visibilidade da atuação do MIEIB pode ser aferida na carta-compromisso do

então candidato Luiz Inácio Lula da Silva em 2002, em que afirmava que, se eleito,

reconhecia o movimento como interlocutor na formulação de políticas para a infância.22

21 MIEIB. Carta a Câmara de Deputados. Rio de Janeiro, 7 de agosto de 2001. 22 Carta ao MIEB. São Paulo, 2002

122

A menção a essa carta não significa só por esse fato o entendimento do MIEIB como

contexto de influência, contudo mostra como o movimento vai sendo reconhecido como

corpo coletivo organizado em prol de ações que se refiram a educação infantil. Como

tal, vão tecendo nas discussões que fazem concepções que vão sendo postas como

orientadoras das ações.

Isso se percebe pelo foco de ação do MIEIB: as políticas públicas para a

infância, exigindo a garantia de acesso e qualidade e figurando como ponto fundamental

dessa discussão a questão da formação docente. Em diversos documentos e moções

assinadas pelo fórum, a questão da formação é vista como item de garantia de qualidade

na educação infantil, como se observa nesta moção ao MEC sobre os encaminhamentos

do Plano Nacional de Educação:

Tendo em vista o grande número de professores de Educação Infantil que não possuem sequer a formação mínima exigida para o exercício de seu trabalho junto à criança de 0 a 6 anos em creches e pré-escolas, é incoerente que o MEC invista apenas na formação continuada de professores da Educação Pré-Escolar, em detrimento de investir na cooperação técnica e financeira a ações, projetos e programas que visem à habilitação dos professores no âmbito global da Educação Infantil (MIEIB, 2001).23

A temática da formação se cruza com a questão do reconhecimento da

especificidade da educação infantil, movendo-se para a própria identidade desta etapa no contexto educacional amplo. Tanto assim que a identidade de educadores de educação infantil emerge como problemática de discussão, entendendo a identidade como pertencimento a um grupo específico.

Recentemente, uma publicação do MIEIB que reúne textos dos fóruns de

diferentes24 estados revela a preocupação com a questão docente. Dos 13 estados

representados, 425 dedicam-se às discussões sobre a formação, sendo que dois26

destacam a questão da identidade dos professores.

Um dos trabalhos dedica-se à temática da identidade da própria educação

infantil, retomando o que já foi citado por Campos (1999): a educação infantil, sob o

signo de uma identidade dupla, busca encontrar-se. Nesse processo dinâmico, há então

uma identidade em construção caracterizada pela incompletude e tangenciada pela

proposta norteadora do trabalho com as crianças.

Isso passa pela assunção da educação infantil como direito da criança,

reconhecida como etapa da educação básica. Uma conquista ainda em construção e que

23 MIEIB. Carta aberta de Olinda. Olinda/PE, 2001. 24 Hoje são ao todo 16 fóruns estaduais (incluindo DF). 25 Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Rio Grande do Sul e São Paulo. 26 Pernambuco e Rio Grande do Sul.

123

tem como um dos pontos a serem destacados a política de formação do profissional.

Ressalta-se a necessidade de revisão das práticas formadoras, focalizando também a

escola normal, uma vez que esta é o requisito mínimo necessário para atuação, segundo

a LDB, e também diante do quadro atual da educação infantil, que conta ainda com um

grande número de professores leigos, principalmente atuando em creches, o que

perpetua uma origem diferenciada, que se desdobra na concepção fragmentada que

constrói o paralelismo entre os binômios creche/cuidado x educação/pré-escola.

Acentua-se também, nos diferentes textos, a necessidade de pensar a formação em

serviço.

Percebe-se que a discussão atenta para fatores que revelam que a busca por um

perfil do profissional de educação infantil se apresenta como meta. Essa definição

orientaria a formulação de propostas de formação, no sentido de estabelecer os saberes

necessários à prática desejada.

O professor necessita de algumas habilidades, tais como: • Diagnosticar – avaliar as necessidades e o potencial das crianças; • Construir – adequar sua prática docente às necessidades teórico-práticas da educação para a primeira infância; • Gerenciar – criar ambiente propício à aprendizagem, desenvolvendo e permitindo atividades interessantes e dinâmicas; • Aconselhar – orientar e apoiar emocionalmente as crianças, ajudando-as a adquirir habilidades de socialização; • Decidir – ter clareza do que se quer em relação à educação infantil e tomar decisões quando necessário (Fórum de Mato Grosso do Sul, 2002, p. 54).

Isso se dá no diálogo com outros textos, inclusive o da LDB, que em seu Artigo

13 registra:

Os docentes incumbir-se-ão de: I- participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; II- elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; III- zelar pela aprendizagem do aluno; IV- estabelecer estratégias de recuperação para os alunos de menor rendimento; V- ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidos, além de participar integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento profissional; VI- colaborar com as atividades de articulação da escola com as famílias e a comunidade.

Elencam-se saberes que marcam o posicionamento desse sujeito como

profissional dotado de conhecimentos teóricos. Trata-se o docente como sujeito

124

epistêmico. Contudo, suas trajetórias culturais - por exemplo a condição de gênero, um

atravessamento na constituição do magistério da educação infantil - são deixadas de

lado. Questiono: se há a busca por um profissional comprometido com o trabalho que

faz, reconhecendo a criança como sujeito, outro com quem dialoga, como fazê-lo se sua

condição de outro não é considerada? A relevância dos aspectos cognitivos se não pode

ser minimizada também não pode sobrepujar a articulação com as

multidimensionalidade do sujeito.

O Fórum Paulista (2002), ao discutir a questão, remetendo inclusive à própria

LDB, também delineia um perfil de profissional para a educação infantil, indo além ao

inferir também sobre os conhecimentos necessários a esse profissional. Diz:

O professor de educação infantil é um especialista no acompanhamento dos processos, envolvendo crianças muito pequenas em um ambiente coletivo e diverso do familiar. Desta re-análise decorrem temas a serem enfocados no campo da Pedagogia, das diferentes linguagens, da Filosofia, Sociologia, Antropologia e Psicologia, da História e da legislação (p. 102).

O que se vê é que na busca da especificidade/identidade da educação infantil se

erigem também os contornos de uma concepção de seu profissional. Defende-se com

afinco a urgente reorganização do curso de formação, de modo a garantir uma formação

específica, voltada para as necessidades e características das crianças de 0 a 6 anos.

Contudo, as indicações feitas para a reformulação dos cursos não focalizam uma

questão fundamental: que criança é essa? Na definição de um perfil profissional, a todo

momento fala-se da especificidade da infância, mas posta como uma massa amorfa.

Toda infância é a mesma? Desenraizar a infância da sua condição histórica de

existência, reafirmando sua especificidade com base no desenvolvimento

sociocognitivo, afasta o comprometimento também desejado para o atendimento de

qualidade. Nesse sentido, esse apagamento refere-se ao apagamento das fronteiras

culturais de enunciação que permitem a construção de sentidos que são partilhados e/ou

disputados coletivamente. Se se deseja uma educação infantil que trate a criança como

sujeito é preciso pensá-la enquanto sujeito cultural, na formação de alteridades.

São relatadas experiências de diferentes estados que contam com cursos em

universidades públicas e privadas com habilitação em educação infantil. Enfatiza-se que

há uma expansão nesse nível de ensino, destacando a importância da participação da

universidade nesse contexto, com o investimento não só na formação dos profissionais,

mas com pesquisas sobre a educação infantil e nas parcerias com secretarias municipais,

125

estaduais e outras instituições. Dessa forma, O MIEIB figura também como espaço de

discussão da formação de professores, no cruzamento de campos de saber no contexto

educacional.

A presença do MIEIB nas discussões sobre a formação de professores tem se

estendido a outros fóruns. A rede formada tem buscado conexões e intersecções com

outros movimentos parceiros nas reivindicações pela formação de professores desejada,

o que pode ser visto por sua crescente participação enquanto sujeito coletivo na ANPEd,

e, como exemplo, no Congresso Estadual Paulista de Formação de Professores.

A ANPEd foi o lugar encontrado para a articulação do grupo em 1999 (22ª.

Reunião Anual), e desde então tem ocupado espaço no tempo dedicado às reuniões das

associações. Também no GT 7 (Educação da criança de 0 a 6 anos), a participação vem

sendo crescente, e assim desejada, para marcar a presença do MIEIB enquanto tal, ainda

que dos membros do GT muitos sejam militantes nos diferentes fóruns estaduais: há a

participação de membros do MIEIB coordenando sessões sendo indicadas sua filiação

ao MIEIB ou como no relato das atividades deste na ANPEd que cita:

É preciso ainda relatar o lançamento do livro do MIEIB durante a sessão conjunta de lançamentos de livros por diferentes editoras. Juntamente com nossa colega Ordália, representando o Fórum do MS, o MIEIB marcou presença, desta vez em meio a uma comunidade eminentemente acadêmica que cada vez mais reconhece a importância desse movimento no cenário nacional. (Relato da III Reunião Extraordinária do MIEIB na ANPEd Caxambu – 30/09 A 03/10 de 2003)27

A participação e a visibilidade na esfera acadêmica podem ser vistas como um

desejo do movimento. A organização de seminários próprios e outros relacionados

como o COPEDI – Congresso Paulista de Educação Infantil – tem se configurado como

espaço de troca e formulação de conhecimento, dando ao MIEIB uma face que não se

restringe à militância, mas se filia a uma dimensão acadêmica valorizada, que a

credencia a estar pleiteando a posição de interlocutor das/nas formulações de políticas

públicas que se referem à infância. Nesse sentido, a discussão da formação de

professores se dá nesse contexto: os estudos e a intensa produção dos membros do

grupo dão base para argumentações que fazem em torno do tema, pois se trata de uma

posição consolidada não só na ação, mas na reflexão-na-ação, como defende Schon

(1992) em suas formulações sobre a constituição dos saberes docentes. Percebe-se que a

força do MIEIB também se alicerça nessa concepção de que os professores

27 MACHADO, Maria Lucia. Relato da III Reunião Extraordinária do MIEIB na ANPEd Caxambu – 30/09 A 03/10 de 2003. São Paulo, out./2003.

126

desenvolvem e constroem saberes específicos sobre a prática que desenvolvem. Assim,

ao reclamarem a posição de mediadores dessa discussão, os membros do MIEIB

reivindicam assumirem o papel de protagonistas da história da/na educação infantil,

sendo capazes de, resignificando suas práticas, terem autonomia na determinação dos

rumos de sua tarefa.

O reconhecimento na esfera acadêmica seria estratégia de legitimação do papel

de interlocutor no campo da educação infantil? O estreitamento da relação com a

Academia parece contraditório, na medida em que muitos dos seus membros são

pesquisadores reconhecidos, mas, dada a diversidade na constituição do grupo, ainda

precisaria de aval acadêmico? De que lugar fala ou pretende falar o MIEIB? Acredito

que esta é uma tensão constitutiva: militância ou academicismo? A busca por identidade

que reconheça múltipla e movediça é questão do movimento. Nem um nem outro; como

construir um discurso ambivalente, que deslize em diferentes posicionamentos?

Essa questão parece guardar semelhanças com a discussão que se faz sobre a

formação de professores, num transbordar ou borrar as fronteiras desse tema: a

definição profissional tão discutida tem como duplo - imagem refletida, o próprio

movimento.

As discussões sobre a formação têm se ampliado para além do reconhecimento

da necessária formação dos profissionais que trabalham com as crianças pequenas, mas

também sobre como e em que bases deve se dar essa formação. A atenção voltada para

o tema se expressa não somente no livro citado como produção coletiva do MIEIB, mas

também pela forma como em fóruns correlatos, esse tema vem sendo abordado.

Nos trabalhos apresentados na ANPEd entre 2000 e 2005 pode-se ver crescente

preocupação com a temática. Foram apresentados 12 trabalhos, que não se limitam a

discutir a formação inicial: abordam formação continuada, parâmetros de qualidade e/ou

saberes abordados nessa formação e concepções de professores em formação. Contudo,

a discussão fica circunscrita ao GT de educação de crianças de 0 a 6 anos, não havendo

ocorrências de temas afins no GT de formação de professores, currículo, história e

políticas públicas.

Entendo que a discussão sobre a formação de educadores de educação infantil

não se restringe àqueles que atuam na área, mas, como etapa da educação básica,

merece atenção maior e a congregação de esforços para alavancar ações e políticas

públicas nessa esfera. A busca por parcerias é justificável e necessária. Assim, vemos o

MIEIB mais uma vez como articulador dessa aproximação.

127

Como exemplo, pode-se citar a forte presença do MIEIB no Congresso Estadual

Paulista de Formação de Professores, em 2001, em que se inaugura o GT dedicado à

educação infantil.28 O eixo temático abordado nesse ano foi: Identidades, Formações e

Carreiras de Profissionais de Educação Infantil.

A própria enunciação do eixo de trabalho anuncia com clareza o mote que

mobiliza a discussão em torno da educação infantil: a) a questão da identidade é ponto

de tensão, apregoa-se a necessária especificidade do trabalho com as crianças pequenas;

entretanto a própria faixa etária atendida pela educação infantil parece descaracterizar a

função docente, tensão educar/maternar traz implicações para identificação dos adultos

que trabalham com crianças como educadores – então crecheiras, recreadoras, tias,

aparecem como figuras que ainda disputam e clamam por reconhecimento; b) diante da

especificidade, de que formação se necessita? Como a formação pode consolidar um

corpus de conhecimentos que se configure como profissional-pedagógico, sem com isso

acarretar a importação de modelos de outros níveis de ensino?; c) a carreira como tema

traz em si a idéia de reconhecimento como profissional, o que implicaria o

entendimento de que o trabalho com a criança pequena, ainda que envolva o binômio

educar-cuidar é eminentemente pedagógico e deve ser realizado por docentes.

Destaca-se a discussão que se organiza em torno do sentido de profissionalidade

do educador infantil, entendendo que

O sentido de profissionalidade do(a) professor de Educação Infantil é tecido na extensão de suas vivências pessoais e prática profissional e pelas concepções e representações, historicamente construídas, de infância, educação e práticas institucionais, voltadas à criança de 0 a 6 anos. Revela-se na pluralidade de identidades, o que sustenta este eixo: a reflexão sobre as modalidades, as propostas de formação (inicial e continuada) e os possíveis traçados de carreira no contexto de uma nova concepção de Educação Infantil, tendo em conta documentos legais, as vicissitudes das práticas atuais, as pesquisas realizadas e, por conseguinte, as inovações na área (Pinazza, 2003, p. 1).

Fica patente o alargamento de concepção de profissional, buscando um sentido

de profissionalidade que atente para a pluralidade de identidades. Contudo, ainda há a

busca do sentido, a idéia de pluralidade se liga às modalidades e a natureza formativa

dos cursos de formação. Há também o questionamento sobre o aligeiramento da

formação, como se baixa escolaridade dos educadores infantis se justificasse por se

tratar precisamente de crianças pequenas. A defesa de uma formação específica se

28 Agradeço a colaboração da professora Marli André (USP) que gentilmente me forneceu os anais dos Congressos Paulistas de Formação de professores realizados em 2001 e 2003.

128

incorpora como estratégia para o desenvolvimento e reconhecimento profissional. Tanto

que, nas sínteses desse encontro, são indicados os pontos debatidos:

• A defesa da formação universitária para professores de Educação Infantil em curso de Pedagogia, que tenha por princípio a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, garantindo-se consistência teórico-prática. Entretanto, faz-se necessária a observância da legislação em vigor que determina a formação específica mínima em nível médio – modalidade Normal, para todo o profissional que trabalha diretamente com a criança pequena;

• A defesa de um curso de Pedagogia que garanta uma formação integral e abrangente do professor, contemplando as diferentes áreas de conhecimento, de forma a superar o modelo de habilitações e/ou de programas aligeirados, que fragmentam a formação docente; (Pinazza, 2003)29

Evidencia-se nas conclusões do grupo a tendência notada nos diferentes fóruns

de defesa da formação de professores (como ANFOPE): reitera-se a necessidade de

formação de um educador de forma ampla e contextualizada, que rompa com

fragmentações e habilitações, concentrando-se na construção da figura do educador,

diferenciadamente marcado. Contudo, parece contraditória a intensa defesa da

especificidade da formação. Novo paradoxo?

O que se percebe, no chamamento recorrente à universidade para participar

dessa formação, é que esta pode e deve ser o lócus privilegiado para a definição dessa

identidade tão proclamada como necessária ao educador infantil. A valorização do papel

da universidade como campo de produção de conhecimentos se associa à concepção de

que uma sólida formação teórica pode contribuir para consolidar a posição dos

educadores infantis como profissionais da educação. Sendo assim, a formação

universitária, ainda que com ressalvas para a atenção à especificidade da infância, é

valorizada e necessária para atingir essa meta: a formação com base em conhecimentos

científicos para o delineamento de um perfil profissional.

O chamamento foi atendido por algumas instituições, dentre elas a Universidade

do Estado do Rio de Janeiro, que em sua reformulação curricular assume a defesa pela

formação do docente nos cursos de Pedagogia, e nele destaca a formação de educadores

infantis. Traz em sua proposta um desenho curricular balizado pela centralidade da

docência e a atenção dada à especificidade dessa ação em algumas áreas, como a

educação infantil, educação de jovens e adultos e educação especial.

29 PINAZZA, Mônica. Relatório de trabalhos do GT Educação Infantil no VII Congresso Paulista de Formação de professores. São Paulo, set/2003 (Arquivo MIEIB).

129

Focalizamos a educação infantil e a articulação com esses contextos de

influência, contextos de articulação de discursos que fundam concepções sobre a

formação; como esses discursos ressoam no currículo? A busca por identidade se dá na

universidade. Cabe a ela conferir o estatuto de educador. Sendo assim, é perceptível a

noção de que o currículo opera sobre as identidades projetando-as, conformando-as,

definindo-as. Nesse sentido, que perfil profissional se delineia no currículo?

Paradoxalmente, como um currículo que opta pela formação do docente generalista

pode especializar um conhecimento, uma identidade de docente de EI? São perguntas

que levam a minha bússola a apontar para a Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

130

Capítulo IV “À procura de um curso”: O currículo de Pedagogia e sua construção Se até aqui busquei traçar o mapa da viagem, organizando referenciais,

preparando a bagagem e estudando o terreno da empreitada, nesta seção trago a

trajetória percorrida, os percalços do caminho e os desafios da jornada.

Toda viagem é uma aposta: que paisagens surgirão à vista do viajante? A priori,

buscamos conhecer o lugar da viagem, elegemos os pontos que serão visitados e

mesmos estes revelam facetas surpreendentes a serem apreciadas.

Outros viajantes já revelaram suas experiências e descobertas nesse processo e

ajudaram-me a pensá-lo:

Única testemunha do meu horizonte, comemorei sentado, quieto, com a boca cheia, a minha maior conquista: partir. Ainda que minha viagem durasse um único e mísero dia. Parti para minha mais longa travessia; mesmo que ela só durasse esse único dia, eu havia escapado do maior perigo da viagem, da forma mais terrível de naufrágio: não partir. Não estava partindo para uma viagem sem fim, vagando como um navio errante, um Mary Celeste abandonado e sem rumo ao sabor dos ventos e oceanos. Tinha um lugar preciso pra alcançar e um tempo certo para lá ficar, mas sabia que só quando retornasse, exatamente para o mesmo pedaço de areia que acabava de deixar, terminaria a viagem. Gozado, estava a menos de um dia de distância do meu objetivo e a mais de um ano e meio de viagem dele (Klink, 1992, p.42).

Ao trazer a imagem do viajante, afasto-me do turista e aproximo-me do

expedicionário. Não é o flauner de Baudelaire (1997) que passeia entre os bulevares e

ao conhecer uma obra, afirma já conhecer todo o museu, mas o questionador que busca

pistas, diálogos para construir sua trajetória

Na manhã do dia 20 de julho, o Paratii entrou afinal no pack, a formidável extensão de gelo flutuante sem fim, da Groelândia ao estreito de Bering, da Sibéria ao Alasca, num só mar congelado. Uma estranha impressão de liberdade condicional. Canais se abrindo e fechando entre imensas placas de gelo que podem prender um barco por algumas horas – ou até o verão seguinte. Sempre um novo canal à frente, fui seguindo para o norte enquanto era possível, às vezes fazendo um pequeno estrago nas pontas de gelo que não podia evitar, ou quando errava, batendo na proa, subindo um pouco e voltando para trás (...). Navegação nervosa. Emocionante. Surpreendente. Um exercício permanente de tomada de decisões. “Para que lado ir?” Dúzias e dúzias de becos sem saída, de onde era preciso retornar, ou canais estreitos demais onde deveria aguardar (Klink, 1992, p.208).

Caminhada que é marcada por incertezas e escolhas, por opções do pesquisador,

sendo que estas não são aleatórias, mas construídas, calculadas em várias cartas de

131

navegação até que seu mapa seja composto e permita definir rota, escolher lugares de

ancoragens. O que ficará da viagem é a memória construída, fruto do trabalho de

compreender os sentidos dos lugares/documentos, reconstruí-los, com a clareza que o

mapa traçado não aponta para um baú com verdades prontas, mas traça o rumo do

trabalho de construção (inacabada) da história, de um trabalho, ainda que pese nele a

ambivalência de sentidos, objetivo na sua busca.

A aproximação de terra é sempre um momento tenso, especialmente a de um cabo como Boa Esperança. Navios do mundo todo em trânsito entre Atlântico e Índico passam rente ao cabo e um veleiro, quando atravessa esse corredor, necessita tantos cuidados quanto um carrinho de sorvetes para cruzar, em São Paulo, a Avenida Paulista fora da faixa. Entrou um ventinho. Que virou um ventão. Como um aviso para lembrar que uma travessia não termina em qualquer lugar, mas num ponto preciso, escolhido e alcançado. E, enquanto não se toca esse ponto, travessia nenhuma existe (Klink, 1992, p. 185).

No início minha bússola apontava com clareza para a UERJ – se o objetivo deste

trabalho focaliza o currículo do curso de Pedagogia, a Faculdade de Educação parece

ser o porto seguro onde atracar e dar início à exploração.

Contudo, se a obviedade é duvidosa na produção de uma pesquisa e coloca sob

suspeita sua articulação e profundidade, essa foi uma questão que já de início estava

superada e impunha desafios. A rota linear que antes imaginei foi desmontada pelo

processo de procura. Se o processo que investigo sugestivamente foi nomeado, em idos

de 1987/88, de “À procura de um curso”30, coloco-me, algumas décadas após, também à

procura desse curso. Debruço-me novamente sobre mapas e reconstruo a rota, agora não

mais linear, mas com desvios, achados, desencontros e retomadas.

Alves (2001), em texto que discute aspectos metodológicos sobre a pesquisa

no/do cotidiano, fala do desafio de decifrar o pergaminho destacando quatro aspectos

que julga importantes para compreender o que isso implica: o sentimento de mundo, que

exige o mergulho com todos os sentidos no que se deseja estudar; a compreensão do

limite daquilo que inicialmente é dado como apoio, referência, virando de ponta cabeça

essa perspectiva; a complexidade da realidade, que sugere beber em todas as fontes e a

procura de uma outra escrita, que literatize a ciência.

Os argumentos da autora sustentam a afirmação de que suas narrativas são feitas

pela narradora praticante, que se permite deixar suas marcas nas histórias que conta,

30 A reformulação do currículo de Pedagogia foi nomeada pela equipe gestora assim. Esse nome marcou o processo e foi como ficou conhecido esse movimento e assim mencionado várias vezes nas entrevistas. Mais adiante apresento com mais detalhes.

132

desmistificando a idéia de objetividade da pesquisa, mas que, colocando-se como

sujeito, redimensiona esse aspecto, atenta à mudança de rota, “de assunto, de tom,

mesmo de forma, pode-se passar da afirmação à negação, da afirmação ao

questionamento” (p.36).

Compartilho com Alves a noção de complexidade que articula nos quatro

aspectos citados, o que exige um mosaico de ações que permitam o fazer a pesquisa sem

subestimá-la ou reduzi-la. Como sujeito dessa história que narro, busco pontos de apoio

que me permitam fazer relampejar às reminiscências (Benjamin, 1993) desse processo

Nele também há mudanças de rota, complexidades que precisam ser assumidas como

premissas e afirmações que se transformam em questionamentos. Ou seja, minha rota

certa em direção à Faculdade de Educação da UERJ, diante das dificuldades iniciais,

transformou-se em dúvida. Onde se dará a procura do curso?

O processo inicial de uma pesquisa empírica de cunho histórico se dá pelo árduo

período de recolha e procura de documentos. E nesse momento se põe em

questionamento a idéia de história/memória. O que é rememorável? O que se constitui

acervo das instituições educacionais? Pesquisadores da área da história da Educação

vêm se dedicando ao debate sobre o tema, o que se dá provocado pela dificuldade de

acesso a materiais que remontem à história. (Fávero, 2000; Peixoto, 2000; Freitas, 2000;

Vidal, 2000). O que as pesquisas têm revelado é que, apesar do investimento na área da

história, cotidianamente as instituições não se dedicam à tessitura de sua memória.

Peixoto (2000) relata que

na experiência de investigação, dois aspectos têm sobremaneira chamado atenção: o rápido descarte de material importante para a preservação da memória e a grande dispersão (junto à pouca organização) de dados, registros e documentos sobre história da educação (p.76).

Se entendermos que a História da educação é constituída de muitas histórias, da

memória individual que se entrelaça na história coletiva, a pouca atenção a esse aspecto

por parte de instituições educacionais coloca sob risco a própria concepção de história

defendida na Academia. Em se tratando de uma instituição de pesquisa, a dispersão ou

descarte de documentos, entendidos numa acepção ampliada, implica um descompasso

das práticas cotidianas com o compromisso de difusão, estímulo e criação que se dá pela

e na pesquisa.

Assim, a busca pelas fontes documentais trouxe à tona a perplexidade e

questionamentos que compartilho com os pesquisadores que fazem da história seu

ofício, como Fávero (2000) que, em relato sobre pesquisa que desenvolveu acerca da

133

Faculdade Nacional de Filosofia, revela que a memória coletiva não é dada; é uma

conquista. E que esta é ainda uma luta a ser travada na educação brasileira. É preciso

esclarecer que falo a partir da experiência vivida, mas tenho a percepção de que esta é

uma situação que se dá em várias outras instituições/realidades como relatam outros

pesquisadores e que os questionamentos que trago aqui podem ser mote de reflexão no

contexto institucional em que se dá a pesquisa, mas podem também ampliar a discussão

sobre a importância do trabalho de construção da memória das instituições/unidades; o

que penso que não se dá distante do próprio debate sobre a função de pesquisa da(s)

universidade(s).

Num primeiro momento, a busca pelos documentos e rastros da história do curso

trazia uma visão de História rememorada a partir dos documentos oficiais/legais.

Portarias, o projeto curricular aprovado pelos órgãos competentes e regulamentações

complementares fora facilmente achados. A visão legalizada da história se impunha.

Mas é o processo? O que permitiu que essa proposta se configurasse dessa forma e não

de outra? E os desafios e impasses, não existiram?

Le Goff (1996) traz a questão de que a história transforma o documento em

monumento, enquanto tudo aquilo que é capaz de trazer de volta o passado instala-se

como obra de perpetuação dessa recordação, criações deliberadamente construídas para

marcar algum acontecimento mantendo-o vivo. Essa construção não é aleatória: algo é

lembrado em detrimento de algo que é relegado a segundo plano, perpetrado por

relações de poder. Segundo Le Goff (1996, p. 548), “o documento é monumento.

Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou

involuntariamente – uma determinada imagem de si próprias.”

O que se argumenta é que a leitura de documentos precisa ser feita levando em

conta sua condição de monumento, analisando as condições de sua produção, escavando

as diversas camadas que o compõem indo além do lustroso verniz aparente. Cabe

também considerar sua presença enquanto legado histórico ou seu esquecimento

confinado em alguma estante/gaveta que o imobilizaram. O que as presenças e

ausências revelam apontam para as explicações construídas e validadas. Além disso, a

presença de documentos oficiais conta uma parte da história, sugerindo que o próprio

conceito de História fica confinado a essas disposições, reduzindo o passado a seu

próprio tempo.

Bloch (1997) ao explanar sobre as características do trabalho de observação

histórica diz:

134

O conhecimento dos fatos humanos no passado, o conhecimento da maior parte deles no presente, tem de ser um conhecimento por vestígios. Quer se trate de ossos emparedados nas muralhas da Síria, que de uma palavra cuja forma ou emprego revelam um costume, quer da relação escrita pela testemunha de uma cena antiga (ou recente), que entender por documentos se não “vestígios”, isto é, marca perceptível pelos sentidos, deixada pelo fenômeno impossível de captar em si mesmo? (p.107)

Ainda que a falta de elementos e a pouca atenção que o encontro com arquivos e

documentos revelam na preservação da memória/história, ainda assim, estes não me

forneceriam a História; trariam pistas, vestígios que cabe a mim, sujeito implicado nesta

narrativa, compor para reconstruí-la numa versão que cruza a multidimensionalidade

desse fazer. Os vestígios, ou como diria Ginzburg (1991), os indícios dessa trajetória

ganham visibilidade pelo trabalho de articulação e diálogo do pesquisador, mas não

trazem em si um História pronta a ser compilada.

Contudo, a falta de pistas para a procura de vestígios me faz retomar o que Alves

sugere, pondo em diálogo com a minha realidade: a complexidade da realidade não se

deixa apreender de uma só forma; no meu caso, beber em todas as fontes e virar de

ponta-cabeça minhas premissas teórico-empíricas são exigência não só de qualidade,

mas da própria possibilidade de narrar esta história.

Se pensava em atracar num porto seguro num primeiro momento, o desafio

estava em manter-me à deriva. Ao falar de deriva não sugiro que significa ir ao sabor do

vento, sopre ele para onde for, mas, em diálogo com Esteban (2003) baseada no

conceito de deriva apresentado por Maturana, entendo que se trata de:

seguir a direção possível no âmbito das interações efetivamente realizadas, dependendo da história de interações recorrentes que vai sendo constituída pelas coordenadas consensuais de conduta que se estabelecem quando os sujeitos interagem.

E continua...

A deriva apresenta uma evidência sobre como o/a pesquisador/a do cotidiano escolar faz escolhas que ajudam a dar sua ordem ao caos encontrado, a dirigir sua atenção para determinados eventos que se entrecruzam a tantos outros, a considerar umas informações mais significativas do que outras, a dialogar com alguns sujeitos e teorias e sequer se aproximar de outros e, portanto, a selecionar seus dados, organizá-los e interpretá-los. A seleção não é arbitrária e a interpretação vai se constituindo como análise possível na história de interações recorrentes do/a pesquisador/a. (p.203).

135

Assim, compartilhando dessa compreensão, a deriva explicita o processo de

trabalho, as complexidades em que são construídas visões parciais e possíveis naquele

contexto de interação, o que traz também a questão da tradução.

O desafio do pesquisador não está só nas escolhas que faz para a condução da

pesquisa, mas na articulação plausível e coerente destas. Não se trata apenas de ter um

aporte teórico que sustente suas afirmações, como a rede de um trapezista que o protege

da queda, mas da construção de um referencial teórico-metodológico que não só se

revele nas inferências e conclusões mas também se expresse na forma da pesquisa.

Se a história das interações demarca as análises possíveis, cabe ressaltar que

estas se constroem a partir do diálogo com e na diferença: o pesquisador, na tarefa

impossível da tradução, negocia sentidos com os vestígios que encontra. A seleção e a

ordenação dos dados se dão num campo de produção discursiva que põe em tensão a

visão do eu (pesquisador) e o outro na incomensurabilidade da tradução.

Isso desestabiliza o caráter de verdade conclusivo da pesquisa; trata-se da

produção de uma versão enviesada pelo sujeito que com ela dialoga, sem, contudo

perder de vista o necessário rigor do trabalho, o apuro no processo e o compromisso

com a história/narrativa produzida: provisória, incompleta, mas que traz em si a

possibilidade do diálogo, de expansão.

Bhabha (2001) em seus estudos argumenta que a elaboração do saber, ou de uma

verdade possível sobre algo não se dá descolada da sua forma de escrita, da sua

textualidade, o que se articula com a defesa que faz do evento discursivo como

fenômeno crucial a ser investigado entendendo a cultura na sua dimensão discursiva.

Um estudo que se faz partindo da premissa do currículo como cultura e esta como

prática enunciativa implica um deslocamento no próprio entendimento de como se dá a

elaboração do texto que precisa focalizar não só nas intenções e ações mas na atividade

de articulação humana. Sendo assim, exige a reflexão sobre o que Bhabha (2001, p.51)

propõe:

Quando falo de negociação em lugar de negação, quero transmitir uma temporalidade que torna possível conceber a articulação de elementos antagônicos ou contraditórios: uma dialética sem a emergência de uma História teleológica ou transcendente, situada além da forma prescritiva da leitura sintomática.

Ou seja, garantir uma leitura que considera a articulação, a negociação como

espaço de visibilidade de uma construção sempre híbrida em que os sentidos não são

transparentes, mas estão atravessados pela diferença. Qual diferença? Que negociações?

136

Há entre-lugar? Correndo o risco de, com tais questionamentos, coisificar ou reduzir a

problemática apresentada por Bhabha, entre outros, a opção teórico-metodológica exige

que se coloque sob suspeita a própria escrita que se constrói, argüindo-a a partir da

ambivalência e da negociação.

Então, assumo o desafio de falar do entre-lugar, afasto-me das certezas e navego

pelo mar instável da diferença e da tradução, escrita que se põe na fronteira, da

fronteira, escrita-fronteira.

4.1 – Rotas do mapa

A busca da reescrita e da narrativa da história tem seu percurso iniciado na

Faculdade de Educação, mas se expande a partir dela. Para poder compreender os

fragmentos que achei na FE-UERJ, recorri aos arquivos do Departamento de Orientação

Pedagógica (ligado à SR-1 – Sub-reitoria de Graduação)31. Ali encontrei todo o registro

do currículo aprovado tal como foi enviado ao Conselho Superior de Ensino e Pesquisa

(CESEPE), os pareceres de aprovação e alterações necessárias, as deliberações

complementares. Foram recolhidos também documentos recuperados de arquivos

pessoais32 e acesso ao material que faz parte do acervo do Centro Acadêmico de

Pedagogia (CA).

Além dos textos e documentos recolhidos, outra fonte foi fundamental para a

pesquisa: as entrevistas realizadas com os sujeitos envolvidos nesse processo. Foram 10

entrevistados, entre professores e ex-alunos que viveram o processo de elaboração

curricular, seja na fase de discussão e elaboração, seja na implantação do currículo.

As entrevistas realizadas foram entendidas como espaço-tempo de diálogo, em

que os ditos, os não-ditos, as entonações presentes no discurso de entrevistadora e

entrevistados vão construindo novos textos, cujos sentidos passam pela relação

estabelecida no confronto desses diferentes textos, construindo a intertextualidade.

31 Órgão que orienta e acompanha o estudante de graduação durante a sua permanência na universidade e atua junto às unidades de ensino, instrumentalizando-as nos procedimentos pedagógicos de sua competência. Agradeço a atenção e a disponibilidade de todos os servidores técnico-administrativos que atuam no setor e que sempre me deram acesso a toda a documentação de que dispunham e a Ondina Maria Meleiro Ferreira, diretora do DEP. Informações sobre o órgão estão disponíveis em http://www.sr1.uerj.br/

32 Foram consultados meus próprios arquivos pessoais (como estudante que participou das últimas discussões de elaboração do currículo), os arquivos pessoais de Clara (nome fictício), aluna de Pedagogia da UERJ no período de 1987-1990 e que, como membro do Centro Acadêmico, foi representante dos alunos nos grupos de estudos formados para a elaboração do currículo. A professora Bertha Valle também cedeu textos/vídeo e outros documentos, como levantamento de dados sobre alunos formandos.

137

No entanto, a relação dialógica estabelecida nesses momentos não se refere

somente às réplicas dos diálogos concretos estabelecidos entre nós. São relações de

sentido entre os enunciados expressos nas situações das entrevistas entre as muitas

vozes que perpassam o discurso do entrevistador e o discurso de cada um dos

professores e alunos entrevistados. Segundo Bakhtin (1992, p. 321), todo enunciado é

elaborado em função do ouvinte que tem um papel ativo na comunicação verbal.

Enquanto falo, sempre levo em conta o fundo perceptivo sobre o qual minha fala será recebida pelo destinatário: o grau de informação que ele tem da situação, seus conhecimentos especializados na área de determinada comunicação cultural, suas opiniões e suas convicções, seus preconceitos (do meu ponto de vista), suas simpatias e antipatias etc.

Na verdade, o enunciado só se concretiza (nasce, vive e morre) no processo de

interação verbal entre os participantes da enunciação, neste caso, entrevistador e

entrevistados. Estabelecer uma relação dialógica durante o processo de pesquisa e,

principalmente, quando da realização das entrevistas, ouvindo o ponto de vista do outro,

provoca no pesquisador reflexões sobre o próprio conhecimento. Trata-se de atravessar

o terreno da memória, o entre-lugar de ressignificação da história, onde o que é trazido à

tona não é tal e qual o que foi vivido. Em geral, a memória é vista equivocadamente

como uma coleção de fatos passados que automaticamente são armazenados naquilo

que chamamos memória, lembranças. Nem tudo se grava na memória: o que fica

gravado, não distingue os acontecimentos especiais dos corriqueiros, o que interessa é o

que nos toca e marca. Marcas/marcos se estabelecem a partir daquilo que permite a

criação de significado para o sujeito, momentos singulares, inaugurais. É preciso

compreender que a memória é construída num processo seletivo, não linear, contínuo,

no qual se pretende antes de tudo gerar/criar sentido.

Na tessitura da narrativa, o desencadear do processo de rememoração convida a

entrar na corrente da memória, o que não representa recuperar os acontecimentos tais

como eles se deram no passado e sim implica o encontro de uma construção subjetiva e

ressignificada do passado à medida que a evocação da memória traz à tona as marcas do

vivido, num processo seletivo pontuado não só por lembranças marcantes, mas também

por esquecimentos e silêncios, numa lógica de organização intimamente vinculada à

subjetividade. Assim, mais que mero acontecimento, o que a memória captura é o que

nos acontece, o que se relaciona com a nossa subjetividade.

A experiência está intimamente imbricada com a formação, se concretiza

quando o vivido ocorre em nós e sua ocorrência nos forma - transformando,

138

reformando, conformando, deformando, informando. Os tantos e sucessivos

acontecimentos cotidianos se constituem experiência quando não se encerram na sua

temporalidade imediata, mas perduram à medida que refletimos a partir dela,

experiência de, qualquer que seja o objeto da sua “ad-miração”, “re-ad-mirar” a “ad-

miração” que antes fez (Freire,1997), uma relação interior que possibilita a formação do

sujeito.

Nesse movimento, é preciso ter clareza de que as entrevistas não são materiais

que serão validados pelo confronto com outras fontes, mas trazem a perspectiva

individual que mostra a parcialidade da história, que vão se alinhando com outras na

construção de uma história coletiva. O narrar permite que essa memória individual se

relacione com uma memória coletiva, à medida que essa memória individual e singular

se constitui a partir da apropriação e mediatização do coletivo. Assim, é ressaltada a

dimensão política dessa narrativa, que permite se fazer ouvir não só a história oficial e

sim a narrativa desses sujeitos da história, na História, tendo em vista que o

conhecimento e a história não se fazem de forma linear. Trata-se do desafio de perceber

essas narrativas enquanto textos que se dão a ler e que lidos numa perspectiva crítica da

cultura, permitem a compreensão de que são construções dinâmicas, autoria que faz

ecoar as muitas vozes que o fizeram emergir e para o qual convergem na produção

social e coletiva do cotidiano.

As entrevistas trazem também o desafio de compreender os textos produzidos.

Numa discussão que toma a diferença como problema, trata-se também de tê-la como

categoria enunciativa (Bhabha, 2001). Buscar identificação absoluta/classificação das

falas/sujeitos para composição da história significaria fixar o lugar destes, num processo

de produção de estereótipos como base de uma normatividade. Vale então pensar as

falas como espaços intervalares, onde a interrogação deve incidir nos processos de

subjetivação e alteridade nesse processo.

Tendo isso em vista, diante do material recolhido (de diversas naturezas) se

apresentou o desafio: como organizá-los? Como agrupar os diferentes textos, questões,

perguntas e repostas? Que leituras são possíveis?

A busca por uma forma de organização do material exigiu sua leitura e releitura

como um conjunto e cada um em si, em sua singularidade. Os sentidos/significados que

se aproximavam e ora colidiam foram permitindo a elaboração de categorias de análise

que pudessem recompor os movimentos vividos.

139

Vale aqui ressaltar que numa leitura atenta dos documentos, sendo estes diversos

quanto aos seus objetivos, assinaturas e tipos textuais, busco perceber os campos de

força que o marcam, para compreender o processo de construção da reformulação

curricular. Fiz esse movimento procurando deter-me na escrita dos textos e dos sentidos

que tendem a reforçar. Assim, elegi a partir do que os textos me sugeriam questões

recorrentes nos documentos, a partir das marcas textuais deixadas nas repetições,

ênfases e recorrências de certas idéias-chave. Assim, como a criança desordeira de

Benjamim (1993) que “em cada pedra, cada flor constitui uma coleção única”, me pus a

fazer coleções buscando remontar possibilidades de entendimento que se atenham à

tensão totalidade e individualidade de cada enunciação.

Em diálogo com Kramer (2005), entendo que o trabalho de construção de

categorias:

Nem pode se dar como uma atividade a priori, baseada tão somente na teoria que fundamenta e orienta a investigação, tampouco pode se deixar guiar apenas pela empiria, pois o olhar do pesquisador está longe de ser um olhar desavisado, desinformado, desarmado. (...) Assim, transitando entre o que a teoria informa e o que emerge dos corpora (conjuntos de campos empíricos estudados), as categorias vão se constituindo enquanto o estudo teórico prossegue, e o pesquisador se deixa inquietar e surpreender pelos dados (p.35-6).

Assim, os dados a que aqui procuro dar sentido e fazer falar não se dão

absolutamente, mas são produções discursivas, enunciações elaboradas pelo pesquisador

no encontro com o outro. Outro momento do trabalho é a percepção da intertextualidade

dos diferentes discursos, que faz com que as categorias estejam imbricadas uma nas

outras; muitas vezes a organização em torno de um tema forte se desdobra e exige que

outra coleção se forme então, imbricações que revelam complexidades, ambigüidades,

produções híbridas.

Ball (1989) sugere, em seus estudos sobre a micropolítica da vida escolar, que o

momento de mudança política é apropriado para o desenvolvimento de estudos sobre ela

pois “leva a superfície os conflitos e diferenças subterrâneas que de outro modo seriam

silenciados ou ocultos na rotina cotidiana da vida escolar” (p.45), fazendo-os numa

perspectiva do conflito, o que permite compreender os processos de mudança como

políticos. Assim, o autor fornece elementos que podem orientar as análises do processo

investigado, em seus múltiplos e diferentes aspectos.

Se a categorização dos diferentes discursos e das relações percebidas entre eles

me permitiu fazer coleções, pô-las em diálogo na perspectiva de conflito me induz a um

140

movimento de descoleção (Canclini, 1998), de forma resgatar o movimento e

dinamicidade do processo. Assim, organizei a análise em torno de três eixos centrais,

campos de força, que permitem o desenvolvimento do trabalho investigativo tendo em

vista a tese defendida – a favor de identidades híbridas e performáticas que antevejam as

negociações que os professores precisam fazer cotidianamente, estando na fronteira

cultural, fazendo do currículo o entre-lugar em que diferença não seja escondida ou

negada, mas seja presença incômoda, provoque o diálogo, ainda que este não implique

totalização ou homogeneidade.

O entendimento da produção do currículo como produção de cultura salienta as

negociações que disputam e se hibridizam na formulação curricular, evidenciando sua

condição de processo político inacabado, em que há lutas por identificações e

construção de discurso. Quando remeto à negociação, apóio-me, como Bhabha (2001),

na compreensão desta como espaço em que significados são construídos

dialogicamente, uma vez que os sentidos não são transparentes e estáveis, retomando o

caráter discursivo da produção de sentidos. A diferença, as posições, a cultura são

enunciações - como unidades de comunicação discursiva que pressupõem a alternância

de sujeitos, o outro replicante (Bakthin, 1992) - que são postas em jogo e criam

movimentos de iteração. Sendo assim, o currículo como produção discursiva, enuncia

significados que são postos na arena de lutas em torno das significações para si, que

criam cultura.

Discuto a partir do envolvimento no processo de construção da proposta

curricular, a docência e a mudança de eixo articulador – do perfil profissional à

identidade em que argumento que o processo de mudança curricular impetrado na UERJ

se desenvolveu a partir do questionamento da ordenação até então vigente, que se

baseava numa lógica disciplinar organizada com base na projeção do perfil profissional

do egresso a partir das ações que se esperava que ele realizasse, encarando-as como

atuações específicas. As discussões postas em desenvolvimento no momento da

elaboração curricular suspeitam dessa organização, afirmando que fragmentam e

hierarquizam o trabalho na escola e, numa tentativa de reorganização, propõem uma

totalização, não mais centrada na atuação, mas tendo em vista uma identidade

profissional que, com uma base comum, permitiria a superação da fragmentação do

trabalho educativo. Assim, a identidade como essência ligaria, criaria uma solidariedade

entre os sujeitos envolvidos no fazer pedagógico; ainda que desempenhassem tarefas

diferentes, haveria características comuns. Essa mudança paradigmática é o centro da

141

problematização que sustenta este estudo: ao embasar a perspectiva formativa na

elaboração de uma identidade, os objetivos e parâmetros da formação se deslocam da

ação a ser realizada ao sujeito em si, implicando formas de subjetivação e identificação.

Estaria aí incorrendo na construção de estereótipos para a formação docente? Na

essencialização do ser professor?

Dentro dessa perspectiva, se interroga sobre a construção das novas habilitações

propostas para o currículo, especialmente a docência e identidade na educação infantil,

buscando entender como uma perspectiva identitária se desdobra no âmbito da

formação de educadores infantis e como o currículo se organiza para a construção dessa

identidade.

4.2 Produção do currículo como produção de cultura

Se a cultura como epistemologia se concentra na função e na intenção, então a cultura como enunciação se concentra na significação e na institucionalização; se o epistemológico tende para uma reflexão de seu referente ou objeto empírico, o enunciativo tenta repetidamente reinscrever e relocar a reivindicação política de prioridade e hierarquias culturais (alto/baixo, nosso/deles) na instituição social da atividade de significação. (Bhabha, 2001,p.248)

Bhabha (2001) afirma que sua passagem do cultural do epistemológico ao

enunciativo deve-se ao fato de instaurar um processo pelo qual o “outro” é sujeito de

sua história. Focalizar a cultura como enunciação é dar visibilidade a tensões,

antagonismos, articulações culturais em que a negociação é exigência e em que são

criados significados compartilhados em um dado tempo espaço, como significação

liminar.

Que tempo/espaço foi esse de elaboração do currículo da Pedagogia na UERJ?

Que negociações foram feitas, que enunciações proferidas, replicadas e relocadas? A

compreensão da elaboração curricular não pode prescindir da análise do contexto de

produção do texto político entendido não como esfera administrativa, em que só estão

em cena disposições acadêmicas, mas campo no qual se articulam aspectos da política

social, da macropolítica e das apropriações que são feitas dela.

Os rastros do processo de construção do currículo do curso de Pedagogia da

Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro exigem um

entrecruzar de tempos e espaços, como instiga Benjamin (1993). Inicia-se em 1988 e

142

atravessa, com ações-reações, a década de 1990, num contínuo fazer-se praticamente até

sua revisão e a reelaboração de um outro currículo em 2000.

Os ventos de mudança que sopram na Faculdade de Educação não são

exclusivos ou criação própria, mas se formam na corrente da sociedade brasileira que

vive o momento de redemocratização e abertura e nesse contexto, diversas instituições

se mobilizam procurando novos rumos para suas próprias ações. Isso se dá também na

UERJ, onde num movimento capitaneado por uma reitoria eleita por docentes, discentes

e funcionários técnico-administrativos pela primeira vez, em tempos de reconquista de

direitos políticos, há uma intensa mobilização de diferentes cursos para a revisão de

seus currículos.

O movimento UERJ NOS UNE33 promoveu a união de diferentes segmentos na

busca por essa revisão e também por rupturas. Das ações, a iniciativa e a força do

processo de revisão desencadeado se dão atreladas ao processo de eleição da direção da

faculdade, uma vez que fazia parte dos projetos anunciados na campanha para a eleição

pelo grupo que saiu vitorioso. Assim, num primeiro momento, as mudanças desejadas

são identificadas com um grupo específico e não como fruto de um consenso coletivo,

ainda que expressem a vontade de muitos, principalmente dos alunos que são

mobilizados a participar. Vê-se, dessa forma, que o processo se constrói na disputa de

poder entre diferentes grupos que representam posições ideológicas distintas. Ball

(1997) em investigação sobre o processo de mudança impetrado no Reino Unido,

discute que as mudanças curriculares precisam ser entendidas dentro de uma moldura

ampla que contextualize o terreno onde elas se desenvolvem e que este não representa

exclusivamente debates acadêmicos, teóricos, mas simboliza a disputa de poder e

representação entre diferentes grupos. Em torno de posições teóricas definidas

articulam-se de forma associada aspectos político-sociais de outra ordem. Goodson

(1999) também alerta para o fato de que a elaboração e a definição do currículo

envolvem aspectos sociopolíticos e disputas de ordem intelectual.

A eleição de uma diretoria que tem como mote de campanha a mudança

evidencia que esta é uma mudança que não se dá abruptamente nem de forma

impositiva, mas que foi desejada. Podemos ver as conquistas nesse processo como a

33 Na década de 1980 a UERJ viveu a primeira eleição direta para reitor. Havia duas chapas em disputa, sendo uma delas a UERJ NOS UNE, vencedora do pleito. A esse movimento eram ligados diferentes professores de várias unidades acadêmicas, em chapas para direção de unidade, que partilhavam das idéias defendidas pelo grupo maior. Essas informações foram recolhidas ao longo das entrevistas realizadas.

143

abertura para a exposição de idéias divergentes e a participação reclamada e exercida

144

Passos. Caminhos. Trajetórias em construção que precisam da presença e da

força do coletivo. Em vários momentos os documentos fazem alusão à participação dos

diferentes segmentos na elaboração da proposta curricular, sem fazer referências ao

contexto macropolítico da instituição. Ainda que seja fundamental considerar essa

participação, é evidente que o contexto institucional de mudança e renovação deu

subsídios para que tal movimento fosse deflagrado na Faculdade de Educação. Não

reconhecer esse processo seria isolar a força política do seu acontecimento. Os relatos

dos professores preenchem essa lacuna trazendo como pano fundo essa situação:

...há que se louvar o processo, chamava-se “à procura de um curso”, era o processo onde havia reuniões sistemáticas com alunos e professores que levaram a definir um perfil do curso aqui para a UERJ. Quais seriam as disciplinas? Quais seriam as cargas horárias? Então esse, não foi um processo de cima para baixo, um voluntarismo da direção em mudar por mudar, não; foram ouvidas as bases, é..., muitas vezes, é... sabe os alunos apresentavam, depois se levava ao corpo de professores, depois voltava para o colegiado discutir e aprovar, eu acho que a UERJ procedeu da maneira mais democrática possível à sua mudança. (Professora Miriam)

É importante também salientar que o mote para a mudança era localizado na

insatisfação dos diferentes segmentos com os rumos da educação brasileira. “Um

questionário aplicado a estudantes e professores em 1988, registrou grande insatisfação

por parte de todos” (Deliberação 022/91, p.1).

(...) esse era o sentimento da época, que a docência tem que ser o ponto de partida da pedagogia, não é possível, que não é louvável, que não é positivo, que você tenha um técnico que em tese é uma pessoa hierarquicamente superior ao professor dentro da escola, sem que ele seja primeiro de tudo um professor, então era isso que a gente estava defendendo, articulado com todo esse movimento. E por que isso era uma coisa mais defendida, eu acho pelos estudantes de pedagogia naquela época do que hoje? Porque naquela época o perfil mais forte ainda da pedagogia era de professores, a maioria das pessoas que fazia pedagogia, como a pedagogia não habilitava para o magistério, quer dizer, quem vinha fazer pedagogia já era professor. Hoje você tem no curso de pedagogia muita gente que não é professor, naquela época tinha menos. Então, quer dizer, esse movimento era o sentimento do estudante de pedagogia, para eu ser uma boa supervisora, uma boa orientadora, uma boa diretora, primeiro eu tinha que ser uma boa professora (Clara).

Contudo, é possível ver também a busca por uma adequação num cenário

educacional que busca aprender a conviver e trabalhar com as classes populares nas

escolas públicas, com o diferente. A fala da professora Bertha esclarece:

145

Eu comecei a observar os meus alunos de supervisão. Vinha aluna minha que era supervisora de sala de aula e perguntava: tem um aluno meu....o que eu faço? Agora me diz, se ela não sabe o que fazer com um aluno dela, como ela como supervisora pode orientar outras colegas dela?Para ser um bom supervisor, você precisa ser um bom professor. Então, se a gente estava lutando para que a formação de professores fosse do nível de graduação eu não podia manter o supervisor no segundo nível. Teria que ser na pós-graduação... Eu acho que por mais rico que seja um curso de pedagogia, se você não tiver... que a lei diz isso...que para qualquer função de magistério você tem que ter experiência docente que eu acho perfeito. Mas nos sistemas de ensino, você vê que estão fazendo concurso direto para orientador. São Paulo faz direto para diretor de escola e para supervisor também. Quer dizer, não tem uma boa prática. Como alguém pode ser diretor de escola se ele não sabe o que um professor sente na pele quando está com uma turma boa ou ruim? Ele se torna um burocrata. Ele vai ter tudo, bonito, limpinho, carimbo... tudo carimbado, tudo em ordem, tudo funciona...mas funciona o que os olhos vêem. Estar de fato na sala de aula com relação de aluno-professor e aluno-aluno. Será que o aluno está de fato aprendendo? Como está no projeto pedagógico da escola? Como é a avaliação dos alunos?O que fazer com o aluno que já vem com problemas do ano anterior e o professor só veio a se dar conta disso no final do ano? Só agora você reparou isso?E quando o professor de 5ª a 8ª reclama dos professores do primário? Como supervisor eu dizia: “você não é professor de Matemática? Então você ensina...” Mesmo quando ele dizia que não fazia parte do programa dele, eu argumentava... “Então passa a ser, não adianta você seguir em frente”. Então se o supervisor não tiver vivência em sala de aula... O processo de ensino-aprendizagem é uma via de mão dupla, se o aluno não aprende é porque você não ensinou isso fica claro na cabeça de um professor. Imagina jovens com 21,22 anos saindo com diploma de supervisor para supervisionar, exercer seu trabalho junto a professores com 15, 20 anos de experiência! (professora Regina)36

As dificuldades enfrentadas na escola de ensino fundamental acabam por

condicionar o tom das mudanças: era necessário dar a esse professor embasamento para

o desenvolvimento de um trabalho diferenciado. É preciso considerar que a mudança se

dá em seqüência a um momento de democratização de acesso à escola pública trazendo

para estas dificuldades de lidar com crianças com outra realidade. Estudos datados dos

fins dos anos 1970 e 1980 (Melo,1992; Romanelli, 1996) já discutiam a condição de

uma escola que provocada pelo estranhamento com o outro – diferente dos padrões até

então vigentes e estabelecidos, o encara como desigual. Uma educação igual para

desiguais? Tanto que a idéia de uma deficiência cultural por parte dos alunos vindos das

36 Os depoimentos da professora Regina foram extraídos da filmagem em vídeo de um encontro organizado pela professora Bertha Valle que em 2002, por conta de nova reformulação curricular na Faculdade de Educação, promove a mesa “Chega de saudade – encontro com ex-alunos”. Nesse vídeo, de mais de 2 horas de duração há a participação da professora, fazendo o relato da sua gestão e narrando o processo de elaboração curricular liderado por ela em 1988-1990.

146

camadas mais populares foi corrente e subsidiou políticas públicas dirigidas às crianças

(Kramer, 1992; Soares, 1991). Assim a via de superação dos problemas enfrentados e da

própria visão de deficiência se dá ao se vislumbrar uma formação mais abrangente e

aprofundada para o professor. A professora Miriam colabora com essa visão ao

esclarecer que os alunos participantes desse momento de elaboração curricular e que se

engajaram no movimento de mudança também eram em sua grande maioria,

professores. Ela diz:

(...) naquela época havia uma sintonia, uma relação muito significativa na sua formação com o que eu vinha buscar, então na sua grande maioria eram alunos, professores da rede pública ou particular interessados em dar continuidade em a seus estudos (...) eu estou dizendo que o perfil, de quem vem buscar a pedagogia hoje é diferente daquela época. Entrevistadora: Você acha que esse perfil de ser, a sua grande maioria já ser professores em atuação foi determinante também para... Miriam: Sem dúvida alguma! Apresentaram-se três coisas: primeiro eles já vinham com uma história de vida ligada à educação, segundo, na sua maioria escolheram pedagogia porque quiseram, muitos até, muitos alunos, eu me lembro de dois, três, ou mais, tiveram certos entraves familiares porque a pedagogia nunca foi a grande vitoriosa nas profissões, né?(...) e tinha um terceiro fator que era muito significativo, gostavam de estar estudando, gostavam de estar fazendo um curso, gostavam, sabe?

A consulta feita aos alunos se iniciou antes mesmo do processo de elaboração

curricular que se iniciou em 1988. Já em 1985 houve um primeiro movimento de

consulta aos alunos. Os resultados da pesquisa foram apresentados pelo professor

Castanho, responsável pela cadeira de Estatística Aplicada à Educação e que se

encarregou de tabular os dados e retomados em 1988 quando se iniciou o processo que

visa a elaboração curricular.37

A participação coletiva se evidenciou também em documentos preliminares que

apresentaram o trabalho dos diferentes grupos que participaram da discussão foram

assinados não só por professores, mas também por alunos, que integravam a comissão, a

partir da representação do Centro Acadêmico.

Houve reuniões, debates, diálogos, assembléias, votações, conflitos explicitados ou não, em que cada integrante desta Unidade experimentou a possibilidade de ser sujeito de um percurso político-educativo. (Apresentação – Deliberação no. 022/91).

37 Dados anexados ao texto de VALLE, B. O Curso de Pedagogia em suas diferentes versões e avaliações. Rio de Janeiro: UERJ/ EDU (cedido pela autora – arquivo pessoal).

147

Em outro documento, uma convocação para a participação nas atividades

programadas para se desenvolverem no período de maio a outubro de 1990, e que traz

um pequeno resumo das atividades até então realizadas também destaca o envolvimento

coletivo:

O movimento À PROCURA DE UM CURSO teve, na semana de 19 a 23 de março, um dos seus pontos altos, com boa participação de professores e estudantes nos grupos de trabalho que se formaram. Os registros de freqüência nos nove grupos que discutiram o curso de Pedagogia, no grupo sobre o curso de Educação Artística e no de estudos sobre as Licenciaturas apontam cerca de 80 professores e 220 estudantes participando dos trabalhos da semana (Comunicado aos Professores e Estudantes da FE/UERJ – 16/4/90).

A valorização da participação coletiva e a constante referência à condição de sujeito

ativo dos integrantes do processo de elaboração curricular se mostraram como marca

que remete ao contexto social vivido, em que a conquista de expressão tão ansiada pôde

se efetivar. Nota-se também que a condição de sujeito mobilizado e participante se

coaduna com a matriz teórica que orienta as formulações curriculares. Exige-se também

que mais que presença, haja o envolvimento daqueles que se apresentam nos diferentes

momentos de discussão:

Continuaremos registrando a freqüência dos participantes nos encontros promovidos: terá direito a voto, nas assembléias deliberativas, aqueles que tiverem colaborado no processo de construção das idéias (freqüência mínima de 50%). (Comunicado aos Professores e Estudantes da FE/UERJ – 16/4/90)

Contudo, percebe-se que a ênfase na coletividade e na participação dos diferentes

segmentos de alguma forma tenta mostrar que, ainda que houvesse conflitos, o consenso

foi uma conquista, tendo em vista o desejo de mudança. O pretenso consenso eclipsa as

fortes disputas internas que envolveram a produção do currículo - disputas em torno da

posição dos sujeitos, de poder e representação, de balizamento do currículo - inclusive

destitui o consenso do seu caráter contraditório, pois como defende Mouffe (2003), os

consensos são forçosamente conflitivos porque excluem algum aspecto para que possam

ser garantidos, são produzidos a partir de posicionamentos diferentes e conflitivos, e não

amostra de uma vontade geral homogênea.

Apenas nesse documento - Comunicado aos Professores e Estudantes da FE/UERJ

de 16/4/90 - são elencadas algumas divergências:

A leitura dos relatórios nos conduziu às seguintes conclusões:

148

A) a proposta original, submetida à apreciação dos grupos não foi suficientemente clara, deixando dúvidas que não chegaram a ser esclarecidas; (...) C) alguns grupos não se pronunciaram quanto à aceitação ou não dos princípios norteadores da proposta, um dos grupos se posicionou claramente desfavorável; D) a questão que mereceu predominante destaque nos relatórios da maioria dos grupos se refere à preservação ou não das habilitações; as propostas apresentadas são bastante diferentes: desde a sua extinção, até a dupla habilitação, passando pela sua conservação em nível de pós-graduação ou pela conservação das habilitações hoje existentes no curso de graduação(...) (p.1-2).

O comunicado é construído a partir do relatório-síntese das discussões

desenvolvidas por grupos de trabalho na análise das propostas preliminares. O que ele

evidencia é a disputa em torno da identidade projetada, ao destacar que o que foi

relevante foi a intensa discussão da manutenção ou não das habilitações, o que revela

que a grande questão em pauta era a defesa de uma ou outra forma de identificação:

uma identidade unificadora centrada na docência ou um perfil profissional centrado nas

especificações/habilitações. Esse ponto traz concepções diferenciadas para o

entendimento do currículo e trata da decisão a ser tomada: o que seria o princípio de

trabalho, elemento organizador da proposta?

Não havia na Faculdade de Educação nenhum registro desse processo

vivenciado coletivamente nos grupos de trabalho. A partir das entrevistas, seguindo as

pistas dadas pelos sujeitos com quem conversava, encontrei no Centro Acadêmico - que

teve papel atuante ao longo dessa etapa de discussão do currículo - os registros dos

grupos de trabalho de discussão da proposta preliminar elaborada e apresentada por um

grupo de professores e com representação dos alunos. Esse processo é desencadeado

pelo “grupo que se reúne às quartas-feiras”38 que iniciam os trabalhos de reelaboração

do curso a partir de questionamentos como:

Até que ponto nossos cursos promovem uma reflexão e análise crítica? De que modo podemos relacionar nosso currículo com a realidade da sociedade brasileira, nos seus mais agudos problemas? Como realizar as mudanças necessárias face à nova legislação educacional que se avizinha? Como relacionar teoria/prática, no sentido de considerar a experiência profissional e cultural que os alunos trazem? Como aprimorar a relação Faculdade de Educação/ C.A.p.? (Á procura de um curso – Contribuições ao debate. s/d. p.3)

38 Apresentação explicitada no texto, sem identificação precisa, mas que parece ser uma apresentação de uma posposta de discussão. Este texto tem autoria coletiva – professores nominalmente citados na capa, mas que no início do texto, contextualizam a organização do grupo e assim se denominam.

149

Aparece pela primeira vez a consideração à questão cultural e às experiências que os

sujeitos constroem em seus contextos e como eles podem ser articulados na FE.

Contudo, essa referência perde força e é eclipsada pela ênfase dada nos debates, à

questão da identidade profissional que oscila entre a defesa por uma formação ampla ou

o especialista.

A partir das discussões iniciais a versão preliminar é apresentada e posta em debate

num momento que, apesar dos conflitos e diferenças, foi um marco na FE: a primeira

semana de aulas do primeiro semestre de 1990 foi destinada à formação de grupos de

trabalho e à discussão da proposta envolvendo alunos e professores.

Os relatórios mostram o quanto o projeto foi discutido e trabalhado. Foram nove

relatórios dedicados à discussão da Pedagogia e dois relatórios que se dedicavam às

Licenciaturas e à Educação Artística. Centro-me naqueles nove relatórios sobre a

Pedagogia. Deles há dois que são assinados exclusivamente por professores.

Em todos eles foram ressaltadas a validade do processo de discussão e a satisfação

de perceber a possibilidade do debate, mas também referem-se ao pouco tempo e à

pouca informação para fazer um análise criteriosa, pedindo que esse momento se

estendesse por todo o ano.

A partir do texto distribuído pela direção os grupos organizavam seu trabalho que é

indicado como sendo o de avaliação e sugestões de alterações. Nos relatórios se vê que

a participação dos alunos era pontuada por um clima inicial de tensão e dúvida a partir

de questões como:

O novo currículo abrange as turmas já em curso? Como ficam as turmas de Orientação Educacional, Supervisão e Educação Especial? Seria a formação na área de Educação Infantil um substituto, a nível superior, do curso de formação de professores de 1ª. a 4ª. série e adicional? (grupo 1) Que tipo de profissional estará sendo formado a partir dessa proposta? Preparado para fazer o quê? (grupo 5) A formação do educador não deve ser limitada apenas ao Magistério (à sala de aula), por entender-se que o educador não é apenas professor; este profissional precisa ter certas competências que possibilitem ter visão mais ampla e profunda do mundo e da sociedade (grupo 8)39

Assim, há muitas dúvidas que são postas em pauta e que circulam voltadas à

validade, à abrangência e à definição dos sujeitos a serem formados pelo currículo.

Percebe-se que nos grupos em que há professores engajados na elaboração do currículo

(o que se evidencia no cruzamento da assinatura dos documentos de proposta curricular

39 Para melhor organização do material coletado numerei aleatoriamente os relatórios dos grupos de trabalho de 1 a 9.

150

e lista de presença nesses grupos), as dúvidas são debatidas e refletidas coletivamente,

fazendo com que neles o movimento se marque pelo envolvimento na discussão, na

elaboração de propostas e de engajamento e compromisso com as propostas.

Quando pensamos em educação numa visão dialética, entendemos que é no contato com o mundo e com os outros que o homem encontra meios para transformar a sociedade, transformando-se. Assim buscamos um educador capaz de atuar, compreender, criticar, denunciar, criar e anunciar o novo, exercendo integralmente sua função política (grupo 6). O educador deve ter uma formação humanística, ter conhecimento de planejamento e organização, conhecer recursos, métodos e técnicas variadas e, por fim, saber avaliar. O currículo deve ser elaborado de forma a possibilitar a formação deste profissional a nível teórico e prático. Destaca-se a preocupação de continuarmos preparando profissionais deficientes, que venham manter, por falta de um comportamento crítico o sistema de desigualdades vigente. É importante preparar o educador dentro de uma postura crítica (grupo 8).

Capitaneado pela gestão eleita em 1988, a elaboração do currículo envolveu

lutas que cruzam questões acadêmicas e de poder; tensões que se apresentam não só na

disputa ideológica, mas marcam o posicionamento de diferentes grupos na Faculdade. A

discussão entre os que defendem a especialização e a formação global do educador é

uma questão que merece atenção, é destacada num primeiro momento como grande

foco de embates. A formação de grupos se dá a partir do embate e polarização entre

especialistas x educadores.

Os relatórios dos grupos de trabalho mostram a hesitação dos alunos,

preocupados com a inserção do mercado de trabalho ou com a desqualificação do curso

superior que fazem no entendimento de que este poderia ter de ser um “curso normal”

ampliado. Contudo, é uma postura vacilante, que ao mesmo tempo em que faz essas

ressalvas, envolve-se no debate sobre o que o curso deve propor, que disciplinas e

diretrizes sustentariam esse processo. O que se percebe é que nas relações estabelecidas

há um embate de forças na composição feita. Antagonismos eram revelados o tempo

todo: ainda que nos documentos gerais do currículo isso não apareça, contudo, havia

disputas que eram travadas em vários campos e vão marcavam posturas opostas, como é

lido num relatório assinado apenas por professores:

Por fim, o grupo acha que a escola não é lugar de luta política por melhores condições de vida para a maioria da população. A escola de hoje está muito mais preocupada com as lutas político-partidárias de que realmente de cumprir com o seu papel – QUE É O DE FORMAM O HOMEM. Hoje os cargos são disputados por PARTIDOS e não por pessoas. Se a escola realmente cumprir com o seu papel, abandonando a luta política partidária dedicando-se a luta por uma melhor qualidade de ensino, como é seu dever –

151

certamente provocará um aumento de qualidade de vida e melhoria do nível econômico da população. (grupo 4)40

Há aqui, claramente, o equívoco entre a política partidária e o processo político de

discussão curricular, sendo desconsiderada a dimensão política da Pedagogia centrando-

a num fazer que justamente é combatido por um número significativo de docentes

envolvidos nesse processo. Indubitavelmente a elaboração de um currículo é um

processo político, uma vez que este é uma esfera de debates e disputas que suscitam

antagonismos em torno dos sentidos que tentam fazer predominantes. Mouffe (2003)

explica o equívoco ao distinguir o “político” da “política”, sendo essa entendida como

práticas, discursos, instituições que regulam as relações afetadas pelo político, este

como o embate, as tensões nos jogos de poder que são incitados e disputados. Assim,

destituir a escola e os fazeres a ela relacionados da sua dimensão de fazer político é

descaracterizá-la como espaço/tempo de relações sociais, em que o aspecto político é

inerente, tendo em vista o pluralismo que as pontua. E é esse pluralismo de idéias postas

em discussão e que exigem enfrentamento, disputa, exclusão que marca o processo de

produção curricular como político. Contudo, se a visão é equívoca também revela o tom

conflituoso do processo em questão e das disputas dentro dele. “A escola cumprir seu

papel” pode ser entendido como continuidade do trabalho em andamento, atentando

para a sua qualidade? A menção a isso não traz implicitamente a sugestão da mudança

proposta, a disputa em torno da identidade, como manobra política (distinta do embate

político)?

A professora Regina fala sobre isso:

A reformulação do curso de Pedagogia foi muito mais que simplesmente pensar: “vamos tirar essa disciplina e botar aquela, vamos tirar esse pré-requisito...” Foi muito mais... A gente começou a discutir qual a visão de mundo que a gente quer para o educador. Ter uma visão de mundo assumida pela instituição... Não é que todo mundo vai ter que seguir aquela mesma visão, mas a gente queria descobrir uma visão predominante, uma visão de mundo, para que daí a gente pudesse entender qual a visão de educador nós tínhamos, a Faculdade de Educação tinha e aí sim ficaria muito mais simples mudar o currículo, montar o programa que ia embasar cada um das disciplinas ...

E continua:

A falta de vivência democrática fazia com que as pessoas fugissem do debate, uma série de desavenças ou desafetos foram construídos ali porque havia discussão, eu acho de um jeito, outro achava de outro...

40 Grifos reproduzidos do texto original

152

Entretanto as discussões não foram sendo entendidas como disputas e construção de

hegemonias provisórias, como propõe Mouffe (1998), mas foram cristalizando posições

que tornaram a luta não só marcada pelo debate de idéias mas pela disputa de fixação de

saberes/poderes nesse contexto.

Nessa complexa arena de disputas o entendimento que se faz do jogo político, a

fixação do lugar ocupado pelos sujeitos a partir de suas crenças naturaliza a fronteira

dos grupos políticos de forma rígida. Do diálogo à disputa o que se percebe é a

construção de grupos de força que não são só adversários no campo das idéias, mas por

vezes posicionam-se como inimigos. Na luta pelos significados impressos ao currículo

em construção antagonismos acabam por estabelecer exclusões, consensos são

construídos e deixam de lado a posição de grupos minoritários naquele momento.

Contudo, entender que esse processo não pode ser visto como definitivo mas tem em si

a instabilidade da incessante negociação é importante para o desenvolvimento de um

processo democrático, tendo em vista que a democracia, a vivência dessa experiência

política tão ressentida, não é uma construção absoluta. Um processo que é mostrado

como sendo marcadamente democrático tem a dificuldade de articulação da

provisoriedade das construções que incita,

já que o desejo de alcançar um destino final só pode conduzir a eliminação do político e destruição da democracia. Em uma organização política democrática, os conflitos e os confrontos, antes de ser uma imperfeição, indicam que a democracia está viva e se encontra habitada pelo pluralismo” (Mouffe, 2003, p.49-50)

O entendimento desse pluralismo, que na teorização de Mouffe seria um pluralismo

agonístico, exige que se veja que a disputa se dá entre adversários e não inimigos, um

confronto entre adversários legítimos e não luta antagônica entre inimigos, o que cria

uma visão de polarização absoluta e impossibilidade de diálogo.

As lutas políticas e os antagonismos não foram construídos apenas na luta que se

travou em torno das significações do currículo, mas revelam e cruzam aspectos que Ball

e Bowe (1992) alertam que precisam ser considerados. As disputas no processo de

construção curricular envolvem as relações de poder que os diferentes grupos

têm/mantêm/perdem/conquistam. R., ao comentar o contexto da Faculdade de Educação

antes do processo que se deflagrou com a eleição para a direção, diz que “havia uma

visão autoritária encoberta por um paternalismo muito grande”. Então, quando se fala

de “À procura de um curso” é preciso entender a reforma curricular em seu sentido

153

amplo, como política nos princípios, gestão e diretrizes que perpassam e organizam o

cotidiano da faculdade.

Nesse cruzamento de aspectos políticos do processo, outra luta se travou entre o

grupo gestor e os professores que atuavam no Mestrado em Educação que, apesar de ser

parte da Faculdade de Educação, era até então distanciado do cotidiano da graduação.

Graduação/pós-graduação – seria essa tensão interna que se expressava no discurso

de crítica a fragmentação do trabalho educacional e que é combatido nos trabalhos de

elaboração do currículo? Conflitos assim percebidos:

Entrevistadora: R. foi considerada como uma pessoa que fez uma intervenção no mestrado...você meio que agora estava falando... Professora Sonia: Ela não foi considerada, ela fez.

O envolvimento dos professores do Mestrado com a graduação se tornou condição

que revelava comprometimento com a busca por qualidade pretendida. Ainda que

saibamos que a palavra qualidade se reveste de muitos e por vezes excludentes

significados (Frigotto, 1995), o entendimento de que essa qualidade também se daria a

partir da inserção desses docentes na graduação e da aproximação da pesquisa com o

ensino não é consensual. Isso se mostra de outras formas: a gestão que sucede à que

coordenou os trabalhos de estudos e formulação do currículo, a partir de 1992 e que

ficou encarregada da implementação dele, não representava necessariamente a

continuidade do processo, mas oposição.

Tem o fato do N. ter sido a chapa de oposição à R., quer dizer o N. era contra esse currículo, mas acho que, a gente tinha a impressão de que se ele fosse eleito que o currículo até não iria pra frente. (professora B) Foi uma experiência assim ímpar. Mas a implementação disso não foi fácil, exatamente porque como a toda a ação corresponde uma reação, e talvez nós não tenhamos sido muito hábeis na costura das relações daquele momento, as eleições para a direção apontaram logo a seguir, é para colocar na direção da faculdade um representante daquele grupo mais conservador e que tinha sido tão... resistente ao novo currículo! (professora Eloiza)

Contudo, quando se fala em oposição não significa que houvesse um grupo

organizado que fazia frente às propostas apresentadas; ao contrário, a oposição se dava

muito pelas mudanças postas em ação no cotidiano da faculdade, se o grupo não era

organizado, foi ao longo do processo que ele foi se constituindo, pelo antagonismo na

discussão curricular. Entretanto não é possível desconsiderar que a proposta apresentada

154

preliminarmente foi feita a partir de um coletivo, de um grupo já organizado a partir

também da inserção dos sujeitos participantes em outros fóruns que estavam discutindo

a formação e fazendo proposta para ela, grupos que organizavam discursos a favor de

uma identidade docente enfatizando vigorosamente a necessária atenção a ser dada ao

professor como profissional, tanto no caso do professor de modo geral, mas também nas

suas especificações, como no caso dos professores de educação infantil. Esses sujeitos

participaram também do “grupo que se reúne às quartas-feiras”, o que já evidencia a

força e a constituição de um coletivo em torno de princípios políticos a partir dos quais

se mobilizavam.

A gestão eleita em 1988 estabeleceu outro ritmo de trabalho para a Faculdade,

garantindo assim uma base de sustentação para as mudanças pretendidas: a participação

ativa e o apoio do corpo discente.

Mas não era um grupo articulado, não era um grupo organizado, é (...) não era uma coisa de a gente chegar nas assembléias, por exemplo, e ter oposição, não era isso, entendeu? O descontentamento, eu acho que era mais um descontentamento (...),R. ela foi uma diretora que queria fazer mudanças grandes na educação e ela sabia que um aliado forte que ela precisava ter era o estudante, por quê? Porque a gente também tem que lembrar que era uma época que, professores que não eram concursados, a maioria deles(...) era comum você chegar na sala de aula para ter aula, o professor assinou o ponto, você ia na salas dos professores você via que ele assinou, na sala dos departamentos estava lá que ele assinou e ele não estava na sala, ele não ia para a sala; ou outras vezes o professor, era muitas vezes a gente chegava lá para ter aula e não tinha aula, coisas que eu sei que acontecem até hoje, mas assim, o que aconteceu? A R. deu voz aos estudantes, no sentido de dizer assim: “ se vocês reclamarem disso eu vou tomar providências”! “Eu preciso que vocês reclamem, que vocês digam que isso está acontecendo, mas se vocês disserem eu vou tomar providências”; então os estudantes passaram a ir à sala da direção para reclamar dos professores, e não foi uma, nem duas, nem três vezes, passou a ser uma prática. Então também muito da insatisfação que se tinha, era uma insatisfação política com essa diretora que estava dando muito poder aos estudantes, entendeu? Então assim, coisa que não acontecia antes, professor contratado ser mandado embora por movimento de aluno, a R. mandou embora professores por causa de movimentos de estudantes, mudança de professor porque, mandar embora não podia porque era professor efetivo da casa e tal, mas a chefia do departamento teve que tomar uma providências, (...) Então se havia insatisfeitos com a Regina, eles não estavam entre os estudantes, os insatisfeitos eram professores e eram professores que estavam com o seu poder diminuído!(Clara)

O que pode ser complementado por outro depoimento:

(...) politicamente quer dizer havia um compromisso de um grupo de professores que estavam ali com a questão de publicizar e tornar a educação menos burocrática e transparente, e eu me lembro que do ponto

155

de vista institucional da universidade (...) com certeza a R. liderava um certo pensamento, (...) um desejo de mudar a Faculdade de Educação. (professora Sonia)

E suas réplicas:

Que a participação dos alunos se faça de acordo com o período que estejam cursando – não concordamos com o fato de que alunos que estejam cursando ainda o Ciclo Básico participem de discussões sobre assuntos referentes aos currículos das Habilitações Profissionais. Sua participação deve ser proporcional à sua capacidade de opinar e julgar (grupo 4 – grifos meus).

A participação dos alunos é força motriz desse processo e em termos

quantitativos pesa pela eqüidade na contagem de votos nas assembléias. Assim, o desejo

de mudança se cruza com algo que é fundamental: a possibilidade de ser ouvido num

contexto que antes torna o aluno sujeito passivo do processo. Se antes ele sofria as

decisões tomadas por outros, a participação mobiliza pela idéia de não apagamento do

sujeito, ou como fala Maurício (ex-aluno):

A participação no nosso caso enquanto alunos na elaboração e vivência desse currículo fez com que nossa visão política da interferência no meio social fosse muito presente porque a gente viu dentro da faculdade que era possível ter uma interferência no currículo, nas relações ...

Ainda que, anos mais tarde, nas entrevistas isso seja ressignificado:

É mesmo... foi cooptado, eu acho que algumas pessoas talvez tivessem mais clareza política do que representava, aquele discurso era muito sedutor, de que o curso de Pedagogia precisava formar professor... Como assim? Como alguém pode ser orientador se ainda não foi professor, sem nunca ter pisado na sala de aula, assim uma coisa além de... Fazia parte de uma especialização e aí essa promessa de especialização também contou muito, tinha pessoas mais velhas que já davam aulas há muitos anos e queriam ser orientadores, supervisores e tal; essa promessa desse curso, dessa especialização também estava bem ...(Fátima)

Eu e os demais estudantes tínhamos muito poucas condições de avaliar assim com clareza isso, isso era mais uma coisa que vinha dos professores; aliás, de modo geral, a proposta era trazida pelos professores, eu nunca cheguei numa reunião, eu que fui a estudante que mais participou de tudo, eu jamais cheguei numa reunião dizendo:“ eu quero propor...”, a gente ficava mais a reboque dos professores mesmo, a gente tinha algumas linhas, algumas coisas em que a gente acreditava, mas isso vinha mais... , as propostas eram dos professores (Clara).

Assim, os alunos que são apresentados como desejosos por mudanças, ainda que

isso seja real, não tinham a explicitação do que mudar e se envolvem pela reivindicação

que fazem de participação. Enquanto grupo, compunham, junto com os professores que

propunham a mudança, um grupo/pensamento hegemônico que orientava a proposta,

156

ainda que a objetividade das escolhas feitas, que traz exclusões, pusesse em movimento

uma luta constante para a manutenção dessas idéias, num ciclo político em que os

significados não são dados de uma vez nem são estáveis, mas que estão sempre em luta.

O texto que abre o relatório de atividades desenvolvidas na gestão 1992-1995 - a

gestão seguinte àquela que formulou e implantou inicialmente o currículo e é formada

pelo grupo opositor a este - intitulado “Palavras Iniciais”, com assinatura do próprio

diretor implicitamente expôs esse contexto e constituição desses grupos:

A competitividade é um dos estímulos ao se buscar a melhoria da qualidade das nossas ações, em particular, nossas ações pedagógicas. Não a competitividade que busca a destruição de outras instituições e/ou pessoas, mas aquela que busca, na harmonia, a convivência que ao nos estimular para a competitividade também incentiva os outros a buscarem sua própria postura em face da melhoria da qualidade. Formam-se, assim, espirais que, ao ascenderem, se entrecruzam, mas não se interrompem em suas buscas para o alto, para a qualidade melhor possível nos diversos momentos da ação pedagógica. Quando nos encontramos face a face com qualquer situação competitiva devemos avaliar: - nosso oponente, pois o intercâmbio de atitudes e intenções nos indicam onde estamos, o que somos como devemos prosseguir; - nossa possibilidade de perdermos a competição, só assim atingiremos a vitória que não significa, como foi dito, a destruição do competidor. Nas atividades de um bom combate, o ato de vencer a competição sem luta demonstra alto grau de habilidade. Desse modo, o fundamental é confrontar a estratégia dos outros que competem com a gente (...). Afirmamos nossa melhoria da qualidade apoiando-nos nos nossos valores e saberes, no conhecimento das nossas atitudes e intenções e na permuta de tudo isto com nossos competidores. Prosseguimos, desse modo, ao encontro do nosso ômega, do nosso mutável ponto do que seja a melhor qualidade, indefinidamente, enquanto houver vontade política de bem servir a nossos alunos, à comunidade. Este relatório se refere ao período – 1992/1995 – onde buscamos concretizar O BOM COMBATE. (grifos originais)

O bom combate travado revela que o consenso que se vê nos documentos iniciais

não existia, mesmo que vitórias tenham sido conquistadas ainda que sem luta aparente.

Retomando Ball (1989), a forma como os conflitos são administrados traz as marcas dos

valores defendidos e abre uma porta de entrada à compreensão de configurações

híbridas, do que realmente se põe em jogo nas disputas analisadas.

Dessa forma, evidencia-se que propostas de reformulação curriculares não podem

ser entendidas como ação teórica/acadêmica, mas são processos eminentemente

políticos, que envolvem mais que a determinação de conteúdos e disciplinas, mas são

lutas por reconhecimento e espaço de atuação/ação/influência no cotidiano escolar, tal

157

como assinala Goodson (2001) ao estudar a construção do currículo inglês no século

XIX.

Isso se alinha a outro ponto de discussão apresentado na formulação do

currículo: trata da reorganização da Faculdade de Educação na sua estrutura, da

reorganização dos departamentos, que faz com que a reforma pretendida atinja não só a

montagem de uma grade de disciplinas, mas que incida na política interna da FE, na

representatividade que os diferentes grupos têm nela. Mais que uma questão acadêmica,

a opção por esta forma de organização preconiza uma disputa pela distribuição do poder

na escola. No âmbito da faculdade, essa luta de poder se expressa na reestruturação da

Faculdade de Educação, na proposta tensa de reorganização dos departamentos, de

forma a este ser coerente com a orientação do curso.

No sentido de melhor atender à estrutura curricular proposta no presente projeto, faz-se necessária uma reestruturação departamental. Impõe-se uma nova estrutura em que se tenha como referencial três grandes subconjuntos dos componentes curriculares (Fundamentação Científico-filosófica da Educação, Instrumentalização técnico-educacional e áreas de aprofundamento). Junto a esse referencial ainda se faz necessária a existência do Departamento de Educação Artística por ter um contorno bem distinto e devido ao fato de não existir ainda Instituto de Artes na universidade.

158

Começaram a aparecer o que Ball e Bowe (1992) observaram na pesquisa que

realizaram sobre a mudança curricular do Reino Unido na década de 1980: estratégias

de contenção, na tentativa de permanência da estrutura do currículo, uma operação de

agregação, acrescentando as propostas à estrutura vigente, o que na verdade revelava

tentativa de conformação e resistência à mudança. Os autores enfatizam a importância

da liderança nos departamentos para o seu engajamento no processo de mudança, sendo

este o articulador ou tradutor (no sentido proposta por Bhabha) desse processo,

estabelecendo um clima de diálogo com as idéias propostas antes que elas fossem

rechaçadas. Contudo, a questão exposta não se limita à compreensão ou não do texto

das propostas, mas envolvem atos de poder (Mouffe, 2003; Laclau, 1998). Ao propor a

reforma departamental, sugeria-se desterritorialização dos sujeitos-professores, o que

significaria trabalhar não mais no lugar seguro da lógica disciplinar, mas nas costuras

possíveis, na fronteira de áreas amplas e complexas. Laclau (1996 apud Hall 2003)

afirma que “(...) somente uma identidade conservadora, fechada em si mesma, poderia

experimentar a hibridização com uma perda (p.87)”. Assim, se o processo de construção

curricular se articulava e discutia a identidade do sujeito a formar ela também incidia

nas identidades dos sujeitos formadores, nos professores que viam sua localização

disciplinar posta em questão, desmantelando um perfil profissional delineado em função

desta.

A idéia de superação da lógica das habilitações – a divisão do trabalho na escola

- se vincula à concepção de educação que permeia o currículo proposto e orienta a sua

organização do mesmo. Antes os departamentos eram: Fundamentos da Educação,

Teoria e Prática da Orientação Educacional, Teoria e Prática da Supervisão

Educacional, Teoria e Prática da Administração, Teoria e Prática de Ensino e Educação

Artística. Via-se nessa estrutura a valorização das especializações, tendo como

centralidade do trabalho as habilitações oferecidas. O processo de

apresentação/definição do currículo registrado no DEP trata a questão desta maneira:

Nesse sentido, concebeu-se uma organização departamental que permitirá certa flexibilidade. No momento, por exemplo, se pensa na oferta de habilitações de magistério, em nível de graduação; mas a experiência do processo futuro irá confirmar ou não a pertinência dessa oferta. Em virtude disso, faz-se necessário ter uma visão departamental que possa dar margem a outras formas de ofertas. Não é desejável, seguindo esse raciocínio, se ter departamentos cujos nomes se restrinjam a habilitações, graus de ensino ou a tipo de licenciaturas. (...) Optou-se em conceber departamentos voltados,

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conjuntamente, para a formação do educador, desenvolvida através de processo dialético, em que surja a partir do pensar-agir.(...) Assim, prevêem-se três departamentos integrados por disciplinas relacionadas a três níveis de abrangência do conhecimento sobre educação. O primeiro departamento aglutinará disciplinas que participam de uma abordagem geral da Educação. Haverá um segundo departamento com disciplinas voltadas para as questões integradas do ensino e da pesquisa, com um nível intermediário de abrangência, em relação ao saber da educação. (...) Por último, se terá um terceiro departamento integrado para disciplinas voltadas para um nível específico de abrangência para as modalidades da Educação. (6.11 – Estrutura Departamental Prevista. In: Currículo de Pedagogia, 1991, p.208-9)

O que se percebe na redistribuição feita é que se procura concentrar, ainda que

definindo a abrangência de discussão das questões, a ação na formação de um educador

ampliada, múltipla e com base na docência, confirmando também a opção feita na

estrutura administrativa. Outras interrogações se desdobram na análise desse processo:

qual a aderência dos professores a esse projeto? Como fica a relação entre um saber

específico, uma área definida e um currículo que se compromete com fundamentos e a

totalidade?

A reestruturação departamental foi discutida amplamente e a ata do conselho41

departamental que aprova a mudança mostra que a luta se deu até o fim, pois na votação

final o Departamento de Administração votou contra a mudança. Foram tecidas

estratégias nesse processo, como a indicação da chefia dos novos departamentos, feita

nesse momento pela direção da unidade. Um grupo que também foi muito combativo

nas discussões sobre a mudança e relutou contra a sua efetivação ficou concentrado num

dos novos departamentos, sendo assegurada a esse mesmo grupo a chefia. Os

depoimentos relatam esse movimento e indicam que “o jogo feito pela direção42”

estabeleceu a continuidade dos trabalhos de elaboração do currículo e sua implantação.

Assim, os acordos políticos e as negociações tecidas no cotidiano garantiram o curso

das mudanças e na leitura dos documentos a visão de um processo movido pela vontade

coletiva e comprometimento é garantida, fabricada a partir desses acordos, o que mostra

sua condição de monumento (LêGoff,1996) desses. Os relatos nesse momento

articulados aos textos ampliam suas possibilidades de leitura, trazendo sentidos outros

diferentes daqueles que foram definidos como a serem rememorados.

41 Infelizmente, só tive acesso às atas de conselho departamental que, por exigência administrativa, estavam anexadas ao processo final encontrado no DEP e em deliberações complementares. A Faculdade de Educação me deu acesso a documentos de arquivo, mas entre eles não estavam as atas. 42 Relato de uma professora participante do processo de elaboração curricular. Entrevista gravada e transcrita complementada com anotações da entrevistadora. Aproprio-me da informação e a trago em meu próprio texto essa passagem.

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No que diz respeito à graduação (...) uma mudança curricular penso que talvez isso se relacionasse com a questão das relações de poder dentro do departamento, você sabe que currículo, estrutura, organização tem a ver com relação de poder, então não sei se era uma coisa exclusivamente própria do desenho curricular, mas eu acho que estava muito ligada a questão do departamento, então precisavam (...) ou seja, seria uma maneira de mexer nas instâncias do currículo estruturado e fora da faculdade de educação (professora Sonia)

A análise do processo político de construção da proposta curricular assinala a

condição do currículo como produção cultural e, nesse sentido, de lugar onde se travam

lutas em torno das identidades dos sujeitos. As disputas políticas e negociações que

envolveram a construção do currículo da Faculdade de Educação envolveram não só a

luta por poder, mas também por pertencimento e representação. As habilitações

demarcavam fronteiras rígidas de saber/poder e o lugar de cada um nesse cenário,

diferenciando-os; uma diferença que hierarquizava e que se bastava. O que se marca é

que se identidade se constrói no interior de relações que envolvem atos de poder, o que

é proposto opera de forma a estabelecer identidades que são postas em negociação num

horizonte ampliado e plural. Se as habilitações criam espaços fixos no contexto da

Faculdade de Educação, a formação generalista quebra essas barreiras e apresenta um

contexto heterogêneo, múltiplo e complexo no qual os sujeitos devem circular/negociar,

uma vez que se desnaturaliza a essencialização de determinados grupos. O risco é

romper com a essencialização do especialista para incorrer em novas formas de

fechamento (Hall, 2003).

4.3 - Docência e a mudança de eixo articulador – do perfil profissional à identidade

A partir da autocrítica feita no processo de avaliação do currículo vigente,

datado de 1977, em que se admite uma formação calcada na especialização e na

reprodução/manutenção social, é mencionada em vários momentos, a mudança marcada

na opção pela formação do educador.

Escolheu-se um outro caminho: a formação do educador como uma tarefa social, historicamente situada, comprometida com a maioria da população e com as questões relevantes da educação e da sociedade; um curso que possibilite a formação crítica e científica, a unidade teoria-prática como alternativa pedagógica, a denúncia dos problemas e que estimule a capacidade de propor mudanças. Optou-se por um curso de Licenciatura em Pedagogia capaz de responder às diferentes solicitações da prática educativa,

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voltado para o magistério em áreas necessárias à realidade educacional. (Deliberação 022/91, p.3)

Uma versão preliminar apresentada pelos grupos de trabalho intitula-se, não

aleatoriamente, mas fundando a marca a ser impressa nele: “A formação do educador:

proposta curricular.”

Nesta, são definidas as linhas gerais do curso; afirma-se que

a formação do professor assume papel importante no presente projeto. Através dessa formação, pretende-se contribuir para a inserção do professor na realidade social brasileira, valorizando o seu papel e proporcionando condições técnico-científico-filosóficas para a sua ação educativa (p.4).

Marcava-se inicialmente que o curso de pedagogia estava voltado para

o Magistério e Pesquisa em Educação. Essas duas linhas de curso deverão estar em constante articulação. Voltada para o Magistério e para a Pesquisa em Educação, a formação a ser promovida no curso configurar-se-á a partir de três instâncias: Fundamentação Científico-filosófica da Educação, Instrumentalização Técnico-educacional e áreas de aprofundamento (p.4-5).

A definição dos pilares de sustentação do curso demonstra a preocupação que,

sem desprezar a instrumentalização técnica, a necessidade de uma fundamentação

teórica que dê sentido a esta se torna fundamental. Se à crítica a formação proposta até

então se centra principalmente na ênfase em aspectos técnicos, caracterizando o

currículo como pragmático e tecnicista, produzido a partir da determinação das tarefas a

serem desenvolvidas pelos sujeitos e os saberes que devem ser formados para isso, o

que define seu perfil profissional, isso não implica que a dimensão técnica deva ser

superada ou descartada: o que se defende é que a superação entre a execução e

planejamento das ações educacionais aconteça a partir de uma formação ampliada do

educador, sendo este incumbido de organizar o processo educacional e portador de

conhecimentos que permitam sua atuação dessa forma. Uma formação calcada em

aspectos gerais que não definam o que o sujeito vai fazer, mas o que ele é, como ele se

posiciona, sua condição de sujeito, sua identidade.

O avanço na busca de uma proposta que não se erija a partir da polarização de

diferentes aspectos do trabalho educacional é patente e se alinha à perspectiva de

superação da fragmentação do trabalho escolar – ponto de atrito e principal crítica da

formação até então em vigor.

Então superação das habilitações nesse sentido, que não era mais o pedagogo ir para a escola como um burocrata, né, era ele estar indo para a escola como alguém que teria uma formação mais ampla, e para ter uma compreensão melhor para a escola. Agora eu não acho que os estudantes

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tinham clareza naquele momento, de que o que eles estavam fazendo era optar para que as habilitações acabassem né?! Era mais, talvez assim, ficar com uma formação que permitisse a eles trabalhar nos diferentes, nos diferentes espaços na escola, né, e não precisar ter uma habilitação específica para ser supervisor de ensino,nem uma habilitação específica para ser diretor da escola (Clara). Eu acho que isso a UERJ trouxe para mim, como uma posição crítica diante da, do que é ser professor: ser professor não é executar, mas também, criar. (Rosana)

A polêmica especialista x docente é o ponto de conflito. Nos estudos

preliminares a decisão por uma formação centrada na docência reflete o alinhamento à

ANFOPE e grupos que defendem a docência como base da identidade docente,

fundamento da formação do educador. Formar-se-ia o especialista no educador, o que

no caso da UERJ ficou assim estruturado:

A habilitação do especialista em Educação ocorrerá através de cursos de especialização (nível de pós-graduação, lato sensu). Esses cursos, com a duração mínima de 360 horas, serão destinados só aos licenciandos em Pedagogia. Cada curso será objeto de projeto específico, cabendo à Faculdade de Educação periodicamente definir os cursos a serem oferecidos de acordo com as demandas do sistema de ensino e com a procura por parte dos licenciados em Pedagogia. (p.5)

Essa parece ser outra resolução consensual, mas que também tem em si a marca

do conflito, até hoje uma tensão no que diz respeito ao trabalho nas escolas: pode o

professor realizar diferentes funções? Ou, como perguntaria Libâneo, (1999) todo o

trabalho pedagógico é marcado pela docência?

(...) eu vi que meus alunos não estão preparados para serem supervisoras. Ai somei com Regina para pensarmos sobre isso... (...) Administração e supervisão, nos fomos favoráveis a essa mudança... O pessoal da orientação educacional é que achava que devia continuar... Até porque orientação educacional é profissão (...) Mas supervisão..., nós bem que tentamos no meu tempo de presidente da associação de supervisores, por duas vezes nós tomamos na cabeça... A primeira vez foi no governo do Figueiredo, a Ester Ferraz era Ministra da Educação e negou o reconhecimento de supervisor como profissão; depois foi na gestão de Sarney, que o pessoal da área de educação era todo ligado a nós aprovou e o ministério ligado ao Social foi contra, dizendo que isso era divisão do trabalho... Hoje eu reconheço que eles tinham absoluta razão. Acho que foi ótimo a supervisão não ter se tornado uma profissão, não e uma profissão é um campo de atuação do Pedagogo ( professora Bertha) Eu particularmente que não concordo, mas isso é um ponto de vista meu, e eu não concordo por uma razão muito clara, eu acho que se você, eu acho que você forçosamente vai fazer isso, se você pegar uma história do curso de Pedagogia, desde sua implantação, em 1939, ele é um conjunto de mudanças muito significativas na história do pensamento brasileiro. (...) A

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tese que eu defendo é que se eu quiser me inserir, naquela época, se eu quisesse me inserir como professora, seja de português, seja de matemática, mesmo eu tendo os conhecimentos que eram a tônica que todo professor sabia orientar, sabia supervisionar, não precisava essa especificidade. Mesmo eu tendo esse conhecimento, se eu amanhã, ou naquela época, quisesse me candidatar a um concurso, eu não poderia, porque eu não fui formada para isso. Mas para a orientação e para supervisão, qualquer um pode fazer. Isso cria outro embate na discussão, não do só especialista e do generalista, eu não vejo assim, o orientador do aluno, o supervisor do professor, diretor do..., eu vejo todos, mas aí a especificidade, garantia naquela época a oportunidade de aprofundamento. Eu teria mais experiência, mais riqueza, mais material, e eu não trabalharia com uma especificidade apenas do indivíduo, mas de um todo (professora Miriam).

Esse embate em torno das habilitações retoma a questão que é posta como

central na elaboração do currículo:

Precisamos continuar nosso trabalho e algumas questões necessitam ser resolvidas antes que se discutam outras, ou seja, temos que ter clareza quanto ao referencial teórico que embasará nossas decisões. Discutir, por exemplo, as “habilitações” sem que se saiba com que tipo de ser humano e de sociedade estamos comprometidos se constituirá em debate estéril, já que destituído da profundidade necessária. Precisamos, antes de mais nada, optar por um caminho, ao responder questões tais: qual a nossa concepção de Educação? Como é o profissional que devemos formar? Qual é o papel do educador/professor? Qual é a Educação que assumimos como norteadora do nosso trabalho? (Comunicado aos Professores e Estudantes da FE/UERJ – 16/4/90)

Assim, a opção pelas habilitações – ou não - reafirma princípios norteadores. Ao

focalizar como objetivo a formação do educador em oposição clara às habilitações

vislumbra-se uma perspectiva do fenômeno educacional a partir da totalidade,

centralizando sua gestão na figura do professor. Os documentos finais mostram como

uma tendência clara na busca por um currículo de qualidade que se visa construir, os

relatos mostram o quão problemática o enfrentamento da questão. A professora Miriam

ainda relata:

Agora você vê que coisa interessante, era o auge dessa discussão e eu estava fazendo concurso para professora adjunta de orientação educacional. Eu acho que na realidade a própria instituição ainda não estava amadurecida o suficiente para saber que caminhos ela queria trilhar. Porque se de repente não lhe atendia mais essa disciplina, e eu dei durante muito tempo, muito tempo. (...) Então se aquilo já estava tão bem estruturada, porque abriu concurso para essa época?!

Tanto o é que, se esse é um marco que é destacado como quesito que distingue o

currículo como mostra de avanço no campo da educação, formação de qualidade é

assim vista como adequação a um momento político. Avanço, adequação, conformação?

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De alguma maneira a meu ver a Educação Infantil canalizou, seja por razões conjunturais, com vista política e distribuição do poder dentro da Faculdade de Educação, como outras áreas canalizaram (...) ela também canalizava porque ela é uma aspiração da sociedade, eu não sei te dizer também como é que isso vinha pelos alunos, porque como você sabe grande parte dos alunos era de professores, tinha muitos alunos professores... (professora Sonia)

Seria o currículo um avanço? Estaria à frente do seu tempo ou conformado a ele?

Os relatos dos ex-alunos, principalmente aqueles que participaram do Centro

Acadêmicos e de executivas de representação estudantil destacam como isso era

percebido num cenário maior. Maurício e Fátima destacam isso.

Era um curso muito pretensioso (...) porque muitas universidades mudaram seus currículos também, mas aquele currículo era muito pretensioso tudo o que acontecia (...) quem participava da executiva de Pedagogia, então a gente viajava o Brasil e contava né (...) quando a gente falava do currículo da UERJ ninguém acreditava, porque era muito diferente do currículo de todos os lugares do Brasil tinha uma ou outra universidade mais ousada com seu tipo de currículo, mas sem dúvida era um currículo muito ousado.(Fátima)

Que condicionantes marcam e influenciam o desenho curricular? Uma aluna que

participou ativamente do processo esclarece:

Mas eu acho que o movimento que se fazia na época era de superar esses papéis dentro da escola, entendeu? Quer dizer, não seriam mais esses cargos isolados, não seria mais um orientador, um supervisor, um diretor. Então, por isso eu digo que não dá para pensar a reforma do currículo, sem pensar no que estava acontecendo também no movimento sindical, quer dizer, na direção do SEPE o que a gente via? A própria associação dos supervisores do estado, a associação de orientadores do estado se fundiu com o sindicato, com que propósito? Para acabar com essa divisão social do trabalho dentro da escola?! Então a visão dos profissionais que atuavam na escola, que se organizavam através das suas associações era de superação disso. (Clara)

Contudo, a professora Miriam destaca que não vê o currículo proposto como

avanço e afirma:

Foi uma adequação, adaptação às demandas da época. Mais uma vez quero ressaltar que não foi uma mudança impositiva, de cima para baixo, foi muito refletida, discutida coletivamente, num espírito democrático. Foi ousado sim, um dos primeiros do Brasil, mas não foi um avanço, mas uma adaptação.

Creio que sua fala seja significativa por representar um grupo que na tensão

especialista/docente se posicionou de forma divergente daquela que diz ser a busca e a

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conquista coletivas. Limite rompido, o campo torna-se difuso, impreciso. De que lugar

falam então a “turma da Orientação Educacional ou da OE, da Supervisão e da

Administração”43? Como esses professores se alinham com a docência e diferentes

áreas de aprofundamento?

(...) Evidentemente a escolha se deu através de uma afinidade, de alguma, enfim, uma sintonia, como é que eu vou dar aula de algo que não tem a ver com a minha trajetória? E eu escolhi Jovens e Adultos, porque a minha área maior sempre foi a questão da juventude, já era enquanto orientadora educacional nas escolas trabalhando com juventude, então o adulto chegou assim, é... meio aproximado do jovem, mas eu enfim, eu me aproximei por uma certa logicidade, uma certa coerência do trabalho. Mas quem fez isso foram os próprios professores, procurando de acordo com o seu interesse, uns foram para a educação infantil né?! Outros foram lá, eu também poderia ter ido para o departamento que tinha de fundamentos da educação, né?! Uma vez que as disciplinas estavam ligadas às questões macro né, eu já tinha feito meu doutorado em Filosofia tal, mas eu persisti no jovem enquanto a questão mais da experiência, eu queria um trabalho que me sinalizasse mais para a prática, para as vivências, e não só uma fundamentação teórica, então foi por essa razão que eu procurei Jovens e Adultos, aí cada um basicamente foi para o seu... (professora Miriam)

A S. era do meu departamento, aí na reunião ela me chamou porque ns escolas eu trabalhava com Educação Infantil, eu gostava. (...)Quando eu dirigi escola eu formei a Educação Infantil a minha escola. Eu fiz duas salas especiais; todo lugar que eu ia visitava a Educação Infantil porque eu queria oferecer dois períodos de Educação Infantil na minha escola. Então a EI já me mobilizava. ( professora Terezinha.)

Assim, as mudanças se deram por afinidade, aproximações possíveis, interesses

sem que necessariamente fossem fruto de uma relação com a área ou compromisso com

a mudança implementada. A construção do novo se dá não só na proposta de formação

do educador, mas implica a reconstrução dos sujeitos envolvidos nele, o que mostra que

o conhecimento que circula nesse currículo quebra as tradições disciplinares até então

consolidadas e que subsidiam a organização curricular a partir da definição de um perfil

profissional. As relações entre a disciplinarização e a divisão técnica da função de

especialista são os eixos articuladores do currículo a serem superados na nova proposta.

Num contexto em que se pretende definir identidades e parâmetros para o ser

professor, aqueles que o fazem, que assumem a tarefa de formação de professor,

procuram também se definir. O processo cria um cenário de saberes e sujeitos

hibridizados.

43 Termo usado por uma professora entrevistada para falar sobre os professores. A recorrência do uso em sua fala e em outras sugere que esse termo era usado no cotidiano da Faculdade para definir os diferentes grupos disciplinares ligados às habilitações.

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O foco da formação do educador, unificado a partir de uma identidade docente,

concentrava-se também na visão de educador que se constrói: como sujeito ativo e

politicamente comprometido. Isso, no currículo é percebido com a ênfase dada a cada

área, não se trata de habilitações, mas ênfases como explica Bertha:

(...) outra diferença do curso de vocês, em todos os cursos de Pedagogia os quatro primeiros períodos iguais ... a escolha da habilitação é que parte pro quinto, nós não, nós colocamos do sexto pro sétimo (...)É que todo mundo tinha disciplina de educação de Jovens e Adultos como obrigatória, disciplina de Educação Infantil como obrigatória quer dizer...você até quando escolhia Educação Infantil... Foi essa a discussão que a gente teve, nós não vamos colocar as habilitações, nós não queríamos que fosse habilitação queríamos que fosse outro nome... Nós queríamos chamar ênfases. Mas isso parece que na ocasião não havia legislação que amparasse essa idéia... A gente queria que você fosse um pedagogo com ênfase em Educação Infantil e não uma habilitação Nós queríamos chamar de ênfase e não pôde teve que chamar habilitação, porque na verdade não é propriamente uma habilitação esse curso, porque durante seis períodos todo mundo tinha todas... ;o conhecimento de todas as áreas, educação especial era disciplina obrigatória, a diferença era só no estágio curricular, parte do estágio curricular, porque o estágio produtivo foi o primeiro momento

Há na leitura dos documentos e da análise do processo a preocupação em

demarcar de que lugar teórico se fala, indicando com ênfase que as idéias defendidas

articulam-se numa visão de mundo e conhecimento assentada sobre a premissa da luta

de classes e da necessidade de compromisso com a busca por uma eqüidade entre estas,

que possa reverter a condição de submissão das classes trabalhadoras.

Fica explicitado que o viés marxista orienta as formulações desenvolvidas,

focalizando a tomada de posição em favor das classes operárias, menos privilegiadas,

em geral à margem do poder decisório. Isso é claramente dito na deliberação de

aprovação do curso, na parte que define as concepções norteadoras do curso, que dizem:

A Faculdade de Educação assume uma proposta para formação do educador a partir de uma perspectiva de educação dialética.

A disputa ideológica foi marcante no início do processo:

Havia um grupo mais conservador e um grupo mais progressista, a gente estava no auge da discussão da teoria crítico social dos conteúdos, o modelo então, e um outro grupo de professores mais conservadores.(...) A gente tinha, do próprio grupo que defendeu, havia pessoas ligadas a movimentos de esquerda, mais fortemente estabelecidos, que é o caso do V., M., eu, e outras pessoas que eram bastante moderadas nessa postura. Então esse imaginário que se criou, não é absolutamente.... correspondente à realidade (professora Eloiza)

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enquanto ser político no sentido de se capacitar para a promoção do desenvolvimento de seres político. ( Apresentação) 44

Se o educador mobiliza a práxis social mais ampla, o professor situa-se no aqui e agora da escola e dos alunos; enquanto profissional, põe-se a frente com pessoas, compromete-se com elas, que já trazem uma experiência e um saber. Este conteúdo deverá, portanto, ser considerado e trabalhado pelo educador, na dialética de reconstituição de um novo saber, como expressão elaborada das necessidades sociais e do momento histórico. (GOMES, R. et all. A formação do educador: proposta curricular. RJ: UERJ/EDU, p.2)

No mesmo documento são delineados os princípios básicos orientadores das

ações desenvolvidas no e com o currículo em construção. Esses princípios reforçam

novamente a ênfase na busca por uma modalidade de ensino que eleve o professor da

condição de mero executor de tarefas, tal como é denunciado em muitos momentos e

em esferas diversas que não somente a Faculdade de Educação da UERJ, ao papel de

sujeito que gere de forma crítica esse processo, considerando a importância da sua

atuação para a superação das dificuldades encontradas.

Os princípios definidores das ações a serem desenvolvidas são, entre outros:

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O narrado é uma reconceitualização do passado a partir do momento presente

“passando a limpo” e reconstruindo um sentido para as práticas desenvolvidas, que

suscita questionamentos: a polarização de posições na disputa ideológica acirra os

embates/entraves percebidos na implementação do currículo, que se dá na gestão de um

grupo dito “conservador”? Seria o bom combate a resposta à falta de diálogo possível?

Que tipo de negociação houve nesse processo, ou ela não existiu?

A idéia do debate democrático, ressaltada a todo momento, e o apagamento da

história dos conflitos, só recuperada na fala daqueles que viveram o processo mostra a

dificuldade de articulação/negociação de sentidos. No caso deste estudo, entender os

movimentos da política – micropolítica institucional – torna-se importante não só pelo

processo em si, mas pelas marcas que imprime no currículo a respeito das possibilidades

de diálogo com a diferença, seja ela no campo das idéias ou não. Entendendo a

diferença como criação discursiva, mas que também se projeta materialmente, se

corporifica nas inserções sociais dos diferentes sujeitos, a forma como ela é tratada no

embate que organiza os parâmetros sob os quais se estrutura uma proposta política de

ensino afeta o modo como ela se desdobra no cotidiano. Múltiplos sentidos ou sentido

único para o sujeito a ser formado? O professor profissional que se ambiciona formar,

com forte aderência a um projeto político a favor das classes populares, tem sua

formação centrada na análise dos condicionantes sociais e atravessamentos políticos que

configuram a educação. Poder-se-ia defini-lo por seu engajamento sociopolítico. Mas

que discurso tem/teria esse sujeito? Luta e superação ou/e negociação, como se

caracterizaria o engajamento?

O e/ou rasurado nas discussões poderia se desdobrar na visão de uma luta de

posições antecipadamente definidas e que se dá tendo em vista a idéia de superação de

um quadro social, inversão? Onde cabe o diálogo?

A observação da predominância de aspectos sociológicos na definição dos

marcos balizadores da proposta, ressaltando o papel do professor como agente de

transformação e a busca dialética de outras possibilidades para o fazer pedagógico, se dá

em consonância com os discursos sobre a formação de professores no cenário nacional,

capitaneadas pela ANFOPE.

As influências da Associação são claramente explicitadas nas falas dos sujeitos

envolvidos:

A ANFOPE desde o início ...eu acho inclusive que o fato de eu ter participado sempre, tudo, foi contribuindo pra eu mudar a minha cabeça,

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(...)eu era presidente da associação de supervisores, justamente nesse período de ouro da democracia brasileira. Eu fui delegada do Estado do Rio, na criação do que é hoje a CNTE. Então a gente convivia muito com os colegas da CPB - Confederação de Professores do Brasil, com os colegas da FENASI – Federação Nacional dos Supervisores e os colegas da FENOI que era a Federação de Orientadores e aí quando chegou nesse período dos anos 80, nós começamos a discutir que você não tinha mais condições de ter essa separação dentro das escolas. Você tinha que ter um profissional com uma formação tão boa que ele saísse da sala de aula e fosse capaz de dirigir uma escola, de ser um coordenador pedagógico, tendo o “todo”...quer dizer eram discussões que a gente já fazia no âmbito da supervisão e SP é um estado que sempre foi discordante dessa visão, porque os supervisores de SP têm um plano de carreira específico, eles ganham mais que os professores, existe um concurso especifico. Na orientação educacional, era o Estado do Rio que era contra, os de SP apoiavam e ai houve no final dos anos de 88 e 89, começamos a discutir... aí a gente tinha os congressos..que foi no final dos anos 70 que a ditadura militar permitiu congressos, durante a ditadura não era permitido. Então a gente começou ter congresso, a se encontrar os Estados, começamos a discutir com os colegas de outros estados essas questões, tanto você vai ver que a ANPED é de 78, 79... A SBPC era a única entidade que a ditadura permitia que tivesse congressos nacionais todo o ano. Porque como a ditadura tinha aquela coisa do Brasil maravilha que vai crescer... o campo da ciência era estimulado.Mas a área das humanas, não participava da SBPC.(...) ( Professora Bertha) Paralelamente a esse movimento de trazer para dentro da escola uma pessoa que usasse todos aqueles conhecimentos em prol do aluno e da própria dinâmica da escola, aconteceu, ou aconteceram, movimentos externos; nós estávamos vivendo um período político bastante intenso, muito significativo, para a gente entender toda essa retomada de um novo modelo do curso de Pedagogia. Mas o que é muito incisivo nessa questão do currículo, é que, nesse momento, as associações dessas habilitações, elas foram pouco a pouco fechando, a orientação educacional fechou..., a FENOE - Federação Nacional de Orientação Educacional, em abril de 91, a supervisão também, a única que continuou foi a ANPAE – Associação Nacional, antigamente era de Profissionais de Administração Escolar, e hoje é Associação Nacional de Política e Administração Educacional. Com a fechada dessas associações, elas se aglutinaram junto à CNTE, Confederação Nacional de Trabalhadores da Educação, isto deu uma repercussão muito grande em termos dos especialistas, uma vez que, eles deixaram de existir oficialmente, porque os cursos passaram por redefinições muito significativas, e eles foram pouco a pouco sendo alocados a níveis de pós-graduação lato sensu, como foi aqui o caso da..., do curso oferecido pela UERJ a partir de 92 ( professora Miriam).

As falas mostram que há um contexto de influência que incide fortemente sobre

as formulações em curso. Na disputa na UERJ em defesa da perspectiva que se

pretendia para a formação de professores, os discursos internos refletiam e refratavam

(Bakthin, 2004) as relações conflituosas em meio à organização em torno da Associação

de professores e a crise vivida nas associações de especialistas que nesse momento

histórico, estavam definhando. Tal como num contexto mais amplo em que a ANFOPE

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ao defendia a docência como base da formação do profissional da educação e, por

decorrência, assumia o protagonismo na representação desses profissionais rivalizando e

opondo-se à formação do especialista, também na UERJ há a disputa entre a docência e

especialistas.

Isso se expressa claramente nos documentos preliminares dos grupos de trabalho

e na deliberação final do curso.

A Faculdade de Educação não esteve imune a toda a efervescência do movimento de reformulação dos cursos de formação do educador: alguns professores participaram de encontros regionais e nacionais e alguns encontros internos foram realizados. Um comprometimento significativo passa a ocorrer, entretanto, a partir de 1988, quando sistematicamente e institucionalmente trabalhou-se nessa tarefa sem interrupção. (p.2)

E ainda:

Cabe, finalmente, ressaltar que, em nível nacional, pouco há de inovador nesse caminho escolhido. Os documentos que registram os resultados dos encontros do movimento de reformulação dos cursos de formação do educador têm identificado a docência como base da identidade profissional do educador, apontando para área de aprofundamento (habilitação direcionada à educação pré-escolar, à alfabetização, à educação de jovens e adultos e à educação especial, além da tradicional área de magistério das matérias pedagógicas do 2º. Grau)

Assim, na busca das matrizes que delineiam as propostas apresentadas não é

possível desconsiderar que o contexto de influências (Ball, 1997) tem papel importante

nas escolhas feitas. Nesse caso, o diálogo com as propostas da ANFOPE é fortemente

percebido, não só nos diferentes escritos que mencionam o movimento de reformulação

de cursos e a criação da ANFOPE como nas falas daqueles que viveram o processo.

Além disso, integram os quadros da Faculdade de Educação da UERJ vários professores

que participavam ativamente das ações/discussões no âmbito da ANFOPE.

Porque havia pessoas que atuavam ali, que tinham uma interface, uma relação muito intensa e muito íntima com a ANFOPE. Eu vou ser muito sincera, eu acho que a ANFOPE tem feito mais em termos de avanços do que qualquer outra organização, (...) é... Tem sido uma força.( professora Eloiza)

O protagonismo observado n posição da ANFOPE no contexto nacional no que

tange à discussão sobre a formação de professores ressoou na UERJ com a forte

presença de lideranças que circulam nesses dois espaços, fazendo a aproximação das

idéias. Há vários professores que atuam em entidades profissionais que estão

envolvidas, em parceria, com a construção de uma representação única para os

profissionais de educação. No cruzamento de dados, são esses mesmos sujeitos que

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assinam as propostas preliminares do currículo e alguns participam também do grupo

que se reúne às quartas-feiras. Sem dúvida, esse é um dado que não pode ser

desconsiderado na análise do processo de produção curricular.

A visão prevalente, embora normalmente implícita, é que a política é algo que é “feito” para as pessoas. Como beneficiários de primeira ordem, “eles” “implementam” políticas; como beneficiários de segunda ordem, “eles” são afetados positiva ou negativamente pelas políticas.” (Ball,2006,p.28)

Dar visibilidade ao protagonismo de sujeitos nesse processo é poder entrar nos

meandros da micropolítica institucional: houve condições para que a proposta curricular

fosse desenvolvida assim e uma delas tem a ver com a presença forte de lideranças que

recuperam em seus posicionamentos discursos construídos em outras esferas,

considerados legítimos e articulam formas de ação política que permite relocalizá-los. O

que também não significa que as propostas são apenas efeitos de um discurso fundador,

mas negociam internamente sentidos possíveis, sendo reconstruídos.

O destaque feito à filiação ao discurso da ANFOPE é recorrente, pois o ideário

defendido pela associação é compartilhado no que se projeta no currículo – a formação

do educador centrada numa identidade profissional configurada pelo compromisso, pela

perspectiva de compreensão da totalidade do fenômeno social e pela luta que liberte a

classe operária da opressão das classes dirigentes.

Vários pontos observados no discurso da ANFOPE ressoam na proposta

elaborada pela Faculdade de Educação da UERJ como pontos de ancoragem à formação

do educador. Destaco-os como categoria de análise para poder aprofundá-los.

O que fica evidente é a idéia de formar um docente com amplo conhecimento e

que aprofundasse mais uma determinada área, mas caracterizado, sobretudo, como

docente e não como especialista. Essa idéia de um conhecimento que transite pelas

diferentes áreas é vista pelos alunos como um ponto alto do currículo, o que lhes dá um

conhecimento mais aprofundado e consistente.

Hoje eu sei que é uma formação excelente diante das pessoas que eu conheço que têm as quatro habilitações. É mais ampla, estruturada, com mais leitura, até pelo que a gente tem de acesso à cultura. (Renata)

As diferentes ênfases possibilitariam a formação do docente como agente de

mudança e capaz de articular os desafios da prática pedagógica, ainda que atuando

numa área específica. Diante de um currículo diferente, a apresentação dessas áreas ao

longo do currículo é também meio pelo qual os alunos fazem suas escolhas.

173

Por parte dos professores era a forma de garantir que apesar de centrar o trabalho

na formação do educador não incorressem numa nova compartimentalização do trabalho

na escola, fragmentando esse professor em formação.

Então quem nos cursos anteriores escolhia por uma habilitação não sabia a outra. Não tinha educação especial, era formação de professores para surdos e deficientes mentais. A discussão que os alunos fizeram foi a de que eles não saberiam nada da profissão do outro mesmo dentro do mesmo curso. Tinha um amigo que dava aulas em academia, não considerava aula, ele era formado em Educação Física...nós não tínhamos disciplinas eletivas...ele foi numa escola no Méier e deu aulas uma vez por semana e recebeu o certificado, por causa da declaração da escola de que ele prestou serviço. Discussões que levantamos sobre a questão do magistério comprovado dessa forma. Presenciei um caso em que a professora não estava se dando bem nas aulas de português e então o diretor deu a ela o cargo de supervisora, já que ela tinha o curso, então isso acontecia nas escolas. (professora Bertha)

A centralidade da docência em substituição a uma lógica profissional

disciplinarizada traz em seu bojo não só a mudança como fruto do envolvimento e

compromisso político-acadêmico com a busca por alternativas para a superação da

divisão social do trabalho na escola que hierarquizava e criava grupos distintos, opostos

de educadores e técnicos em educação. Várias dimensões que se entrelaçam e dentre

elas aspectos econômicos também incidem nessa questão – a empregabilidade do

profissional formado é levada em conta, ou, retomando o depoimento de M., para

professor sempre tem vaga, a demanda é maior.

Contudo, há que se pensar que nem sempre isso é real. A idéia de

empregabilidade é questionada e ainda hoje é um problema enfrentado pelos alunos

desse currículo, como conta Renata:

Não tem um concurso que eu possa fazer. (...) Além de não ter realização pessoal como pedagoga tem a questão salarial. Eu não posso fazer um concurso, estou pressa.

Isso também foi alvo de discussão e críticas internas ao próprio currículo:

Se você me perguntar: você achava na época, você era a favor de criar uma habilitação para Educação Infantil? Eu ia te dizer não!Eu me lembro que eu tinha levantado uma questão na época que era a seguinte: como essas pessoas vão conseguir se empregar? Porque não basta...; quando você pensa em currículo, não basta você fazer o desenho... Você tem que pensar como é que o campo real, o chão da escola, as redes públicas, particulares (...), como é que isso abarca e adiciona, eu me lembro que a gente fez e aí eu não sei (...) figura tradicional na UERJ, que sabia tudo de legislação (...) (...) era uma senhora que entendia tudo de legislação, e ela levantava isso sempre, então a gente às vezes ia lá discutir com a Secretaria de Educação que teria que abrir um concurso que aceite a Pedagogia e você sabe muito bem que até hoje é um problema (professora Sonia).

174

Mainardes (2006) em estudo que retoma a proposta metodológica de pesquisa

apresentada por Ball faz referências às análises que precisam também considerar os

efeitos das políticas curriculares e nesse sentido podemos inferir que nessa política

curricular os efeitos que se esperados ainda não foram alcançados. O reconhecimento da

atuação docente sendo específica em determinadas áreas não é considerada como tal.

No caso da Educação Infantil a pesquisa coordenada por Kramer (2001)45 indica como a

contratação de profissionais da educação infantil não tem respeitado essa especificidade,

pois o acesso por concurso público é feito tendo como referência a entrada no

magistério público como professor dos anos iniciais do ensino fundamental, sendo então

deslocados para a educação infantil, não tendo com isso também a garantia da

continuidade do trabalho e das equipes formadas para o trabalho na educação infantil.

Situação que se mantém: em 2006 vários municípios do Estado do Rio de Janeiro

fizeram concurso para professores, destes apenas um da Baixada Fluminense –

Mesquita – realizou provas específicas (para Educação Infantil e Educação de Jovens e

Adultos)

O currículo de Pedagogia discutido e aprovado nas diferentes instâncias da

universidade se organizou tendo como objetivo a formação do educador-pesquisador, a

partir de um estudo amplo que contemplasse a totalidade do fenômeno educacional.

A proposta rompeu com o modelo que historicamente foi erigido para a

formação dos profissionais da educação que tinham na universidade um campo de

especialização e diferenciação de suas funções dentro da escola. Ir à universidade era se

qualificar para desenvolver atividades pedagógicas sim, mas não como docentes.

Contudo, paradoxalmente reeditou no campo da Pedagogia o tão criticado modelo 3+1

que configurou e ainda configura alguns os currículos dos demais cursos de licenciatura.

Se nos idos dos anos 1940, na organização dos cursos de formação de professores na

universidade, pensava-se na Didática como elemento articulador, qual seria o elemento

articulador desse currículo? Haveria algo que construísse pontes entre uma primeira

etapa de formação ampla e as ênfases desse currículo?

Esse eixo articulador se edifica na docência como base. Há a busca por uma

formação sólida, consistente e centrada na docência. Assim, todos formados professores

optariam por uma área de atuação docente nos últimos períodos. Dessa forma, haveria

45 Os dados da pesquisa indicam que dos 54 municípios que responderam ao questionário proposto, 74,1% (40) não existe prova específica para a Educação Infantil. Esta só existe em 22,2% (12) e 3,7% (2) não souberam ou não responderam a este quesito.

175

uma formação básica ampliada que pudesse construir essa fundamentação comum,

alinhado aos princípios do curso de “preservação da idéia de totalidade, entendendo-se a

educação de forma integrada, resgatando-se a identidade das relações sociais”

(Deliberação022/91, p.5), visando uma articulação de saberes ampliados e superando a

fragmentação do trabalho no cotidiano das escolas. Assim se criaria no âmbito do curso

um direcionamento para a análise amplificada do fenômeno educativo sustentado por

uma postura crítica e reflexiva. A ênfase se põe nas relações de produção e no estudo do

momento sócio-histórico vivenciado. O eixo articulador na docência confere ao

currículo um diferencial e, como outras estratégias e ações que vão sendo desenvolvidas

no contexto brasileiro e de outras universidades, vê a formação na graduação como ação

de valorização e profissionalização do magistério. É a docência que se estabelece como

núcleo central do currículo, base identitária. A apresentação dos marcos teóricos

permite dizer que há a definição de parâmetros para o ser docente, qualificando-o e

propondo então no que consistiria essa identidade.

Ao fazer essa mudança de eixo articulador torna-se problemático pensar que há

uma identidade docente definida. Se ao curso cabe construir essa identidade, como há o

diálogo entre as identidades múltiplas que os sujeitos trazem e põem em jogo no fazer

curricular? Estaria sendo proposto um modelo agregacionista, que soma as tantas

diferenças agrupando-as em torno da docência? Isso incorreria na tolerância que

mascara a hierarquização, reduzindo as possibilidades de negociação.

Na leitura do fluxograma dos cursos pode se perceber a tônica das mudanças e o

qual entendimento que se faz da docência. O primeiro fluxograma traz a grade do curso

de Pedagogia vigente na década de 1980 e em seguida está o currículo proposto:

176

177

Como exemplo, está apenas a grade referente à habilitação Administração

escolar. Numa análise comparativa é possível perceber que no novo currículo proposto

há uma mudança de direção: a concentração de algumas disciplinas que no primeiro

currículo compõem o ciclo básico – os 4 primeiros períodos. Essas disciplinas são

ligadas aos Fundamentos da Educação, com atenção especial aos aspectos

biopsicológicos da Educação. Além disso, há vários pré-requisitos que determinam a

seqüência linear das disciplinas “amarrando” as possibilidades que os alunos têm de as

cursarem.

No currículo “novo”46 há a introdução de disciplinas com um peso maior nas

áreas ligadas a Filosofia e Sociologia. Outra percepção é de que nesse novo currículo as

disciplinas instrumentais, que antes se marcavam como centrais no currículo, a partir

dos períodos em que se dava a escolha pela habilitação, perdem força e é enfatizada a

fundamentação teórica consistente, que desse subsídios para a análise da realidade de

forma crítica, tal como se concebe nos marcos teóricos do curso. Isso se percebe, por

exemplo, na introdução de disciplinas como Filosofia Política e Educação Brasileira,

Educação e Trabalho em que se enfatizam a questão social e uma visão de mundo que

se orienta por uma perspectiva marxista, o que é corroborado na leitura das ementas das

disciplinas, como se pode observar:

Educação e Trabalho: Capitalismo, socialismo e trabalho. Modos de produção e forças produtivas. Relações entre educação, trabalho e sociedade. Visão crítica da teoria do capital humano. O trabalho como princípio educativo: politecnia e escola unitária. A educação do trabalhador. Legislação trabalhista e internacional: análise crítica. (Deliberação022/91, p.25)

A busca pela base comum centrada na docência se percebe também na inclusão

no ciclo básico de disciplinas referentes às diferentes ênfases do currículo que seriam

aprofundadas posteriormente no 7º. e 8º. períodos em que se dava a escolha pela

Educação Infantil, Educação de Jovens e Adultos, Educação especial e Magistério das

Disciplinas pedagógicas. Dessa forma, se asseguraria a compreensão do fenômeno

educativo em suas múltiplas questões, dando ao professor um conhecimento que

permitisse o diálogo amplo com a docência nos diferentes níveis. Isso sinaliza outra

ruptura com o currículo “antigo”: a tentativa de superação da fragmentação do grupo de

46 Uso por vezes o termo novo e antigo retomando a forma como os currículos em questão eram conhecidos e nomeados no cotidiano da Faculdade de Educação tanto por alunos como por professores. Esses termos reaparecem com freqüência nas entrevistas, o que me sugeriu a possibilidade de uso.

178

alunos e da falta de contato entre as discussões desenvolvidas, que eram percebidas

como quebra da unidade do curso:

Então, uma das críticas que os alunos faziam era isso, era que o currículo era de tal forma amarrado, né, que para eu voltar para fazer uma segunda habilitação eu levava no mínimo dois anos mais dentro da faculdade para conseguir levá-la, ao passo que se eu fizesse numa outra universidade, que o público sempre faz essas comparações com a particular, em três anos e meio eu levava as duas, eu levava magistério e supervisão ou magistério e orientação. Então eu fazia quatro anos de curso para sair com o magistério e se eu quisesse fazer orientação educacional eu tinha que levar mais de dois anos. Entrevistadora: Era muito fragmentado? Era, muito, é (...) você, a partir do quinto período, que era o momento que a gente se separava nas habilitações, você quase não fazia mais nada com seus colegas, as turmas ficavam todas muito pequeninhas. A minha turma era a turma de magistério, que tinha um grupo razoável, aí tinha uma turma de administração, uma turma de supervisão, uma turma de orientação, considerando que a turma original era de quarenta alunos, que depois eles aumentaram para sessenta a turma do vestibular, naquele momento ainda eram quarenta que entravam, quer dizer, as turmas ficavam muito pequenas, era coisa de, e educação especial ainda se dividia em DA (deficiente auditivo) e DM (deficiente mental), então a turma de DA, acho que da minha turma só tinham duas alunas, e DM deviam ter uns três ou quatro, quer dizer, a fragmentação era muito grande, eram muito poucos alunos em cada habilitação (Clara). É que todo mundo tinha disciplina de educação de Jovens e Adultos como obrigatória, disciplina de Educação Infantil como obrigatória quer dizer... Foi essa a discussão que a gente teve: nós não vamos colocar as habilitações, nós não queríamos que fosse habilitação queríamos que fosse outro nome...nós queríamos chamar ênfases. (...)Mas isso parece que na ocasião não havia legislação que amparasse essa idéia ...a gente queria que você fosse um Pedagogo com ênfase em Educação Infantil e não uma habilitação (...) porque na verdade não é propriamente uma habilitação esse curso, porque durante seis períodos todo mundo tinha todas...o conhecimento de todas as áreas, educação especial era disciplina obrigatória, a diferença era só no estágio curricular, parte do estágio curricular, porque o estágio produtivo foi o primeiro momento (professora Bertha)

Dessa forma, a articulação das diferentes áreas é elemento que pode ser visto

como balizador de uma identidade unificadora centrada na docência. A discussão das

“ênfases” salientava a análise de propostas de atuação e alternativas para tal, com base

no estudo da fundamentação teórica concernente e dos condicionantes sócio-históricos

que implicavam a configuração desta fase/etapa específica.

O que vai se demarcando como entendimento da formação profissional é o

conhecimento das vicissitudes da docência, a ação do professor em cada campo, não

180

aspecto apenas penaliza a análise, desfocando-a, encobrindo a requerida e necessária

articulação de conceitos que se relacionam e não são excludentes entre si. A questão

estrutural precisa ser considerada, mas a essencialização dela como categoria

explicativa pode incorrer num determinismo reducionista.

Isso nos leva a questionar inclusive que outro é esse por quem tanto se luta e

discute nesse currículo. Se há a preocupação com os trabalhadores e desfavorecidos,

serão estes um grupo homogêneo e consensual?

O que se discute é que visto dessa forma os diferentes grupos percebidos de

forma homogênea incitam a pensar em significados estáveis para esses grupos,

ignorando a “dupla inscrição”, os múltiplos pertencimentos, os entre-lugares de trânsito

e hibridização. Assim, entendendo as práticas culturais como fenômenos discursivos

que se produzem e são produzidos de forma relacional, há uma instabilidade de sentidos

que precisam ser examinados em sua condição performática. E assim, postas sob rasura,

buscar empreender análises que não evidenciem apenas pluralismo ou desigualdade,

mas sublinhem a diferença.

Não basta simplesmente se tornar consciente dos sistemas semióticos que produzem os signos da cultura e sua disseminação. De modo muito mais significativo nos defrontamos com o desafio de ler, no presente da performance cultural específica, os rastros de todos aqueles diversos discursos disciplinadores e instituições de saber que constituem a condição e os contextos da cultura (Bhabha, 2001, p.229).

O que se mostra no currículo é a construção de uma perspectiva de ser professor

delineada pelo engajamento e pelo ativismo político com vistas à superação das

desigualdades, como se percebe no que se define como concepção do curso:

Ressaltamos como questão central a formação do homem enquanto ser político, cuja consciência coletiva decorre das relações que se estabelecem na formação educativa e no contexto social do qual faz parte, uma vez que entendemos o homem como ser essencialmente ativo e que, pelo trabalho, domina as forças naturais, humaniza a natureza e se cria a si mesmo. Assim, a concepção dialética é, ao mesmo tempo, ponto de partida e ponto de chegada da formação do educador, desde que o futuro educador se desenvolva enquanto ser político no sentido de capacitar para a promoção do desenvolvimento de seres políticos. (Concepção do curso – Deliberação 022/91, p.5)

Chamou-me a atenção nos depoimentos algumas falas de ex-alunos sobre as

percepções que têm da formação que tiveram:

A Pedagogia me ensinou a militar. O que me marcou foi a militância. Isso eu aprendi aqui. (Vanessa)

181

A nossa turma aprendeu a refletir, aprendeu em poucos meses a nos mobilizar. (Carina)

Ainda que não veja a mobilização como um problema, ao contrário, o que

procuro discutir é o estabelecimento de parâmetros que vão sendo absolutizados na

construção da identidade docente. A mudança propõe que ser professor não se

caracterizaria pela competência técnica, mas pela consciência crítica e pela participação

política. Mas é possível definir parâmetros para isso? Há um fundamento preciso que

determine e assim posicione os sujeitos?

McCarthy (1994) aponta uma possibilidade de análise quando evoca o conceito

de assincronia enquanto abordagem que se afasta de proposições essencialistas. Propõe

que se perceba que cultura e identidade são produzidos num contexto complexo,

definido em matizes raciais, classistas e sexistas, entre outros, fluindo no embate dessas

forças identitárias, apontando a necessidade de se articular um quadro teórico de não-

sincronia. Essa abordagem permite que a construção de referencial de análise não se

sujeite a classificações funcionalistas que empobrecem e limitam as análises enquanto

tal. Sem compreender essa assincronia nas formulações identitárias ou atentar para a

performatividade da ação docente corre-se o risco de essencializar a identidade docente,

ainda que revestida do compromisso da luta e engajamento político, que dessa forma,

seria reduzido a uma acepção de que polariza emancipação/poder, cultura/ideologia, ou

seja, se articula a partir de binarismos e busca uma estabilização de sentidos que joga

para fora de si a sua própria condição política, como explica Laclau (1998, p.108):

Podemos, por certo, liberar algumas possibilidades sociais, mas só ao preço de reprimir outras. A relação entre poder e liberdade é de renegociações permanentes e de deslocamento de suas fronteiras comuns, ainda que os termos da equação permaneçam imóveis. A mais democrática das sociedades será a expressão das relações de poder, não uma total e gradual eliminação de poder.

Outra questão a ser analisada no currículo “novo” é a introdução e a atenção

dada à pesquisa, que se articula na busca por definição de parâmetros para a identidade

docente. Projeta-se com a inclusão da pesquisa uma perspectiva de formação do

professor pesquisador e reflexivo em diálogo com estudos que assim o apresentam

professor, sendo esta a condição/possibilidade de que ele seja sujeito da prática que

desenvolve, assumindo o protagonismo do cotidiano, rompendo com a divisão do

trabalho na escola que vê o professor como executor de tarefas. Sublinha-se assim, outra

forma de combate à lógica centrada no perfil técnico-profissional.

182

Nas primeiras discussões, a questão da pesquisa aparece na organização das

ênfases pretendidas que seriam, por exemplo, Magistério e Pesquisa em Educação

Infantil. Contudo, ainda que essa nomenclatura não tenha sido mantida, é ressaltado nos

documentos finais que a pesquisa tem importância igual ao Magistério, o que

consubstanciaria a intenção de constituir um fazer que tenha como base uma

fundamentação teórica consistente. Isso implica uma grande ruptura no contexto da

Faculdade de Educação, pois como relata a professora Regina

As pessoas que estavam envolvidas em pesquisa recebiam deboche de vários outros professores, inclusive da administração da universidade.

Isso era também percebido pelos alunos:

No segundo dia de trabalho o grupo colocou em questão a possibilidade de viabilização da proposta pelo fato de ser considerada a pesquisa uma área de concentração, já que nós da UERJ não temos uma tradição nesta área, nem possuímos pessoal suficientemente preparado para trabalhar com esse novo aspecto do currículo na medida em que a produção universitária atualmente é quase inexistente. Não haveria professores orientadores “suficientemente” preparados para tal tarefa. (grupo 8)

Vê-se o tamanho do desafio posto e também a sua dupla inscrição – ao mesmo

tempo em que se objetiva a formação de professores orientados por uma perspectiva

analítica, reflexiva e crítica a introdução da pesquisa não significa apenas a formação

dos discentes, mas desliza para a formação do corpo docente e da introdução da

pesquisa no cotidiano da faculdade, de forma a cumprir com suas funções não só de

ensino.

A pesquisa é privilegiada com a introdução de disciplinas não só de pesquisa em

Educação, mas com o Estágio Produtivo e da Monografia. Quanto ao Estágio produtivo

Regina conta:

Eu me inspirei... Foi na experiência cubana em que o aluno das escolas públicas e principalmente das universidades paga com seu trabalho, realizando algumas tarefas para a comunidade que paga para ele estar ali estudando numa universidade. Aqui ele vai participar da pesquisa de um professor, fazer algum trabalho numa área administrativa, participar de atividade de extensão...

O que é explicitado no projeto curricular que se objetiva é que “o estudante,

através desse tipo de estágio, terá oportunidade de vivenciar experiências nos campos

do ensino, pesquisa e extensão” (Deliberação 022/91, p.8).

Dessa forma, o envolvimento com a pesquisa era previsto desde o início do

curso, em atividades práticas que pudessem trazer para o cotidiano as atividades

183

relacionadas à pesquisa, o que rompe com a idéia da formação como apreensão de

conhecimentos, mas exige produção de conhecimentos e posicionamento na ação do

professor em formação.

Contudo, a implementação desses projetos, arrojados à época, foi sofrido e

exigiu que os alunos respondessem aos objetivos do curso: engajamento e mobilização:

Tinha uma pretensão, não tinha com relação à formação do pesquisador?! Eu acho isso positivo, que é quando a gente está lá no estágio produtivo acho que tinha uma outra disciplina que pensava nisso (..) não estou me lembrando. Mas por exemplo, isso foi um boicote no curso, isso não aconteceu como se esperava, assim como a monografia que era uma novidade porque muitos cursos não tinham isso como pré-requisito para a formação, para o término de curso, eles pensaram o professor com (...) não sei quantos orientandos, que tivesse um tempo “xis” determinado a cada um... Me lembro que o V. brigava e desabafava um pouco falando sobre isso comigo, isso tudo foi por água abaixo. Porque aí esse povo que eu não sei de onde saiu começou a pegar orientação, (...) eu me lembro de algumas pessoas da turma fazendo orientação no corredor da faculdade, lembro de gente completamente desorientada. (...) Imagina a Vera que acabou a monografia dela primeiro, o que ela ajudou de gente ali, não foi uma ou duas pessoas não, ela ajudou foi um monte, sentar e fazer essa orientação. Acho que eu dei muita sorte também por ter o (...) como orientador. (Fátima)

Assim, se os objetivos eram pretensiosos, a implementação do trabalho

enfrentou entraves burocráticos e disputas políticas que desconfiguraram a proposta

inicial que era de construir uma prática de inserção na educação de forma reflexiva. O

estágio produtivo a ser oferecido no quinto período, o que no caso de da primeira turma,

seria no primeiro semestre de 1993, começou a ser discutido nesse mesmo ano. Não

havia projetos e vagas para todos os alunos, o que foi resolvido através da manifestação

dos alunos que recorreram à Sub-reitoria de Graduação para a resolução do impasse. As

normas para o estágio produtivo só foram determinadas e aprovadas no Conselho

Departamental de 6 de outubro de 1993, havendo reduções e simplificações em sua

proposta original.

A monografia, vista no projeto como culminância da área de pesquisa, foi

descaracterizada da possibilidade de diálogo que poderia estabelecer entre o pesquisador

iniciante e o pesquisador experiente, pois enfrentava o mesmo problema observado para

a implementação do estágio produtivo.

As normas para elaboração de monografias considerava que este era um

“trabalho individual sobre o tema específico, fundamentada em investigação

184

bibliográfica” (Normas para elaboração de monografias do curso de Pedagogia,

1994,p.1)

Assim, via-se na monografia a possibilidade de articulação dos conhecimentos

desenvolvidos ao longo do curso, dando ao aluno o status de autor, sujeito do seu

processo; contudo, a falta de condições para realização desse trabalho que muitos alunos

enfrentaram comprometeu o que se esperava que fosse alcançado nesse curso.

4.4 - Docência e identidade na Educação Infantil

A Educação Infantil tem sido, ao longo dos anos de desenvolvimento do

currículo, a habilitação que mais forma professores, segundo levantamento realizado

pela Faculdade de Educação e pelo depoimento dos professores entrevistados.

Ao longo desses anos, a questão da Educação Infantil tem se consolidado como

foco de pesquisas e ações no campo da Educação. O currículo novo se antecipou à

promulgação da LDB, que 1996, incluiu a educação infantil como etapa da educação

básica e previa a formação de professores no ensino superior (ainda que mudanças

substanciais tenham sido implementadas posteriormente).

Em alguns estudos preliminares de formulação do currículo, a educação infantil

não era prevista como uma habilitação, mas era parte de uma proposta de habilitação em

Educação Inicial. Contudo, a Educação Infantil se destaca como problemática tendo em

vista o contexto de revisão de ações voltadas para as crianças e dos movimentos sociais

que lutam pelo direito da criança à educação de qualidade.

Talvez houvesse uma demanda social, havia na época uma coisa muito forte (...) 1985 foi o ano em que o MEC transferiu toda a rede do antigo Mobral para dentro das secretarias municipais de educação. Toda a rede de creches e pré-escolas foi para as secretarias de educação. O município do Rio de Janeiro foi o único em que a secretaria de educação que já era muito puxada, não aceitou, era mais de cem núcleos pré-escolares (...) e foi naqueles anos, havia sido criada essa idéia, (...) que a essa idéia assume as cento e tantas creches que passam a ser chamadas de creches comunitárias. A primeira creche comunitária foi ente 1979/80, (...), então eu digo que talvez, também a questão da pré-escola tenha tomado essa dimensão porque a UERJ tem forte ação popular, tem muita gente que é professor e tínhamos muitos alunos que transitavam nas creches comunitárias, mas essa turma especificamente (...) ela já talvez implicasse uma demanda e uma proximidade, porque eu não me lembro agora como é que eu cheguei nessa turma, provavelmente tinha algum aluno, ou alguns alunos que eram já da UERJ, que viam a disciplina a (...) aí esse currículo (...) conseguiu muito rapidamente absorver a expressão, uma coisa que era do ponto de vista (...) das lutas sociais da época eram muito importante(...) (Professora Sonia).

185

A atenção dedicada a Educação Infantil nesse currículo não pode ser

descontextualizada, tem a ver com a mobilização em torno do tema; no Rio de Janeiro

isso era intensamente vivido por conta da criação da rede de creches comunitárias, a

expansão da rede, do acesso e do pensar sobre Educação Infantil, problematizando a

visão que a limitava a função de guarda. Contexto que se cruzava com a mobilização em

torno da elaboração da LDB, do Estatuto da Criança e do Adolescente, entre outros.

Nesse momento, a discussão no campo da Educação Infantil se dá marcada pela

crítica a concepção de uma educação compensatória como forma de resposta à privação

cultural das camadas populares. A defesa que se fazia era que a pré-escola, mas que

ante-sala da escola, tinha funções específicas e de cunho pedagógico.

A defesa do pedagógico como marca ressoava na formulação do currículo. Se os

objetivos gerais do curso o vinculava a “luta política por melhores condições de vida

para a maioria da população e melhoria da qualidade da educação pública”. (Formação

do educador: proposta curricular, p.2), isso se fez pela busca de alternativas de

superação da idéia de educação compensatória, a partir da valorização do trabalho

educativo que se realizava na Educação Infantil, o que exigia também a formação de

educadores voltados para essa questão.

Desse modo, pode-se compreender a “ênfase” dada a Educação Infantil no

currículo como parte da luta política dos segmentos envolvidos com ela projetando, na

formação de professores, a valorização da pré-escola como espaço de trabalho educativo

específico.

Assim, se a demanda pedia a educação infantil, restrita no antigo currículo a uma

disciplina eletiva, isso também criava o problema de que não havia pessoas na área para

sua implementação. O que aconteceu foi à aproximação das temáticas. Contudo, como

foi destacado no que tange à formação de professores de forma geral, há também nas

discussões sobre a educação infantil o posicionamento de sujeitos que militavam na

área. A participação nas esferas de debate sobre a educação infantil é trazida com força,

contando com o apoio dos alunos, para o processo de implantação do currículo nesse

trânsito de sujeitos entre as diferentes instâncias.

Eu tinha um desafio de quando passou de uma disciplina para uma habilitação... Só tinha eu... E eu tinha como meta (...) as pessoas que são contratadas e quiserem vir, sejam bem-vindas, e algumas pessoas como a T. (...) uma pessoa que depois de toda uma trajetória se dispõe e abraça outra área (professora Sonia).

186

Desafio aceito, como S. conta “eu vi que tinha uma demanda, eu entrei nisso...

mergulhei de cabeça...” O mergulho trouxe sua presença forte e legitimada pela inserção

nas discussões sobre a Educação Infantil, num papel de liderança. Como já observado

nas discussões sobre a formação de professores de forma ampla, na Educação Infantil,

marca-se também o protagonismo dos sujeitos que, trazem para o processo de

elaboração do currículo, uma história de militância e envolvimento com a Educação

Infantil. Neste caso, o processo do currículo em questão, a assunção da Educação

Infantil como uma das habilitações revela sua condição de duplo (Bhabha, 2001): ao

mesmo tempo em que é espaço de militância, as conquistas na UERJ dão visibilidade a

luta e argumentos que fortalecem frentes de discussão em outros espaços, já que o

currículo da UERJ antecipa conquistas futuras, como as expressas parcialmente na LDB

promulgada em 1996.

Pode-se dizer que a Educação Infantil se constrói na habilidosa articulação e

negociação encabeçada pela professora S. ao estabelecer uma rede onde os saberes

dispersos, num contexto amplo e interdisciplinar, se organizam a partir da categoria

infância.

É a preocupação com a criança pequena, nas conexões possíveis no

entendimento do desenvolvimento da criança que agregava vários professores, de

diferentes áreas em torno do tema, dando consistência à proposta de ênfase no currículo

que se dedica à Educação Infantil.

E isso se mostra com força não nos dois últimos períodos, mas durante a parte

comum que destacava entre os outros aspectos estudados, a preocupação com a criança,

como exemplo, observemos a ementa de disciplina do ciclo básico:

Interação social do aluno: Interação-interlocução-adulto-criança, criança-criança no processo de co-construção do desenvolvimento e da aprendizagem. Acompanhamento do desenvolvimento e da aprendizagem nos programas de educação e saúde. Assessoria aos movimentos sociais organizados nas questões de desenvolvimento e educação da criança: a relação entre o saber científico e o saber popular, na perspectiva das classes populares. (Deliberação 022/91, p.27)

A educação infantil perpassa o currículo como um todo, no apuro e dedicação às

temáticas relacionadas à infância. Isso também explica a escolha maciça pela educação

infantil por parte dos alunos, como contam:

Embora se falasse que nós escolheríamos só no sétimo e oitavo que daria conta dessa habilitação, que não era para privilegiar nenhuma das habilitações eu acho que (...) os professores que deram as disciplinas

187

relacionadas(a infância) fizeram isso acontecer eu acho , eu tenho para mim que eram muito mais sedutores , isso era muito forte (...)Aprendia-se mesmo com aquelas pessoas, então assim, é claro que isso conta, um monte de gente escolheu educação infantil e isso foi um “problemaço” eu acho para a direção da faculdade. Eu me lembro... era um curso muito consistente com relação à educação infantil...sem contar da disciplina na questão do desenvolvimento, a gente vai pensar no J. também sempre com olhar para a infância. Então eu acho que eles eram muito fortes nesse curso, eu acho que era muito fácil a pessoa tomar esse caminho. ( Fátima) Eu escolhi educação infantil por causa da S., isso é claro assim, porque (...) eu já estava lá na Pedagogia e ela dava duas disciplinas: Alfa 1 e Alfa 2, alfabetização. E lendo os textos sobre educação infantil que eu resolvi fazer essa escolha. (Rosana) A Educação infantil foi privilegiada. Havia um curso dedicado a ela, não só no 7º. E 8º. Períodos, as disciplinas privilegiavam... Era um curso forte (professora Terezinha)

Como estes outros relatos pontuam que a escolha pela Educação Infantil se deu

motivada pela inserção da discussão sobre a infância ao longo do curso, ainda que esse

não fosse o objetivo. A presença de alguns professores foi marcante também, em

especial da professora citada por Rosana, tanto que facilmente os entrevistados citavam

por causa de “quem” escolheram a educação infantil.

No curso básico havia apenas uma disciplina que tratava especificamente da

Educação infantil, mas além das disciplinas que abordavam o desenvolvimento da

criança, há a introdução de disciplinas que abordam a construção da linguagem e

remetem diretamente ao processo vivenciado na infância, desde as primeiras

elaborações à alfabetização, que é assumida no currículo como questão fundamental.

Ao privilegiar discussões sobre a alfabetização o currículo mais uma vez

reafirma sua posição de comprometimento com as classes populares, tendo em vista que

o debate se dá numa época de questionamento dos altos índices de repetência e

ressignificação das práticas alfabetizadoras em busca da superação dessa situação, bem

como da emergência de paradigmas teóricos que enfatizam a condição da criança de

sujeito do processo de aprendizagem, construindo-o a partir de sua ação reflexiva.

Há a assunção da concepção de que como seres sociais imersos na linguagem, os

sujeitos estão sempre interagindo. E essa interação deve se dar com uma língua viva,

dinâmica, múltipla, cheia de sabores e saberes, que precisa ser provada, gostada,

sentida, vivida. Assim, aprende-se a ler lendo, a escrever escrevendo, sem simulação,

mas assumindo o papel de sujeito na/da/pela linguagem. Sugere-se o caráter dinâmico e

dialógico da linguagem como espaço formativo de desarticulação/articulação e não de

188

substituição da linguagem, evidenciando o papel da linguagem na formação do sujeito,

como processos produtivos que reconstroem continuamente a linguagem e os sujeitos.

A ênfase nas questões de linguagem, ampliando a noção da alfabetização como

entrada no mundo da escrita e na apropriação do código lingüístico, é ampliada pela

idéia da necessária formação de sujeitos leitores-escritores. Para tanto, essas afirmações

se sustentavam na premissa de que a linguagem escrita não é mera codificação da fala.

Muda-se o foco privilegiando uma criança ativa, capaz, envolvida na construção da

linguagem, uma tarefa que “se constitui de dimensões que vão muito além da

representação gráfica por meio de letras, dimensões que não ganham espaço na escola

como inscrever-se, ser sujeito que se produz e é produzido pela linguagem.” (Frangella,

2001).

A discussão sobre a linguagem e a alfabetização traz também como categoria

central a infância, ao tratar do desenvolvimento da linguagem, destacando os processos

que se desenrolam nessa fase, enfatizando a formação do sujeito. Toda essa atenção traz

para a área da Educação Infantil uma preocupação com a criança como sujeito e marca

o compromisso desse professor em formação, se alinha à defesa feita da militância do

professor, especificando-a, comprometendo-a com a infância. Cria-se uma estrutura na

qual a infância ganha visibilidade e se apresentam argumentos sólidos, teoricamente

fundamentados ressaltando a importância da atuação qualificada junto a essa faixa

etária.

O que fortemente é percebido na problematização e elaboração do currículo na

educação infantil é que se visava, ao qualificar a formação do professor, afirmar o

caráter pedagógico do trabalho com crianças pequenas para além da guarda e cuidado.

Kramer (2003) discute o tema é explica:

O adjetivo “pedagógico” significava – tal como o formulei – que a educação infantil (chamada, então, de pré-escola) tinha sim um papel frente à escola, um papel em relação à escolaridade como um todo.

E continua:

O trabalho pedagógico em educação infantil, da maneira como o entendo, não precisa ser feito sentado em carteiras; o que caracteriza o trabalho pedagógico é a experiência com o conhecimento científico e com a literatura, a música, a dança, o teatro, o cinema, a produção artística, histórica e cultural que se encontra nos museus, a arte. Esta visão do que é pedagógico ajuda a pensar um projeto que não se configura como escolar, feito apenas de e na sala de aula. O campo pedagógico é interdisciplinar, inclui as dimensões ética e estética. (p.59-60)

189

Seria essa base da identidade do educador infantil, o desenvolvimento de um

trabalho que colocasse em relevo a dimensão pedagógica da educação infantil?

Nos relatos de professores envolvidos com a Educação Infantil há o

questionamento da noção de uma identidade docente: “perfil profissional? O que é isso?

Nem sei definir. O que havia era um compromisso profissional” (professora S.).

Contudo, quando o “grupo da EI” defende e tem como objetivo o fortalecimento

do compromisso profissional, objetivando

a luta pela criança, não é peninha. Quem gosta de criança vai ser mãe, eu brincava. “Mas é a luta pela causa da criança e estar preocupada com a formação da criança, não como uma escola preparatória, mas pelo desenvolvimento da criança.” (professora Terezinha).

isso se alinha a uma perspectiva que foi defendida ao longo de todo o curso, da

identidade do professor como sujeito político e militante, corroborando para essa visão

de uma identidade fixa em determinado aspecto. Defendo e acho acertado que o

professor tenha como horizonte de formação sua posição/ação política, o engajamento

nas lutas que envolvem a educação: contudo questiono a absolutização dessa dimensão

do ser professor que, desarticulada ou orientada também por um único aspecto analisado

do fenômeno social, corre o risco de transmutar-se de engajamento em ativismo vazio,

ao entender diferença como desigualdade e que a luta para sua superação incorra na

homogeneização de práticas, sujeitos, saberes.

Além disso, as discussões desenvolvidas ao longo do curso corroboram a defesa

da formação de um profissional específico para a atuação na área, endossando a

importância por uma ação pedagógica junto à criança. Não basta cuidar, educar a

infância exige conhecimentos específicos e atenção ao processo de desenvolvimento

infantil para que as intervenções feitas possam propiciar a formação da criança. Ligam-

se as propostas de formação às discussões desenvolvidas em outras esferas que propõe

parâmetros para formação do educador infantil, na assunção da sua condição de

profissional, numa mudança de função: do maternal ao pedagógico.

Dessa forma, ainda que sem buscar a absolutização dos parâmetros do ser

professor, destacando o compromisso com a infância, a habilitação em Educação

Infantil acha também na centralidade da docência seu eixo identitário, diferenciando

assim os educadores infantis, qualificando-os como professores. Ao propor uma

formação na universidade e que as especificidades não fazem com que esses

190

profissionais se desloquem do coletivo de professores, há afirmação e luta pelo

reconhecimento do ato pedagógico junto à criança.

A identidade docente perpassando a “especialização em educação infantil”

assinala a condição profissional. Contudo, há riscos: não haveria também aí,

contraditoriamente a essencialização dessa identidade do educador infantil? A defesa da

atuação qualificada não cria um estereótipo docente que no caso da educação infantil,

traz como questão o impasse entre as funções de educar/cuidar, tão discutidas hoje, que

é ponto de tanta confusão no cotidiano? A pergunta que se faz é se cabe ao professor

cuidar, ou a distinção tão acentuada das ações de educar e cuidar não seriam efeitos

dessa ênfase numa identidade docente marcada pela ação pedagógica em oposição à

trajetória histórica de assistencialismo?

Contudo, a base da docência fica marcada pelo ciclo básico uma vez que a

estrutura pensada para o currículo estabelecia que os últimos períodos dedicados à

“habilitação” seriam compostos pelo Estágio Supervisionado e pela Monografia,

acrescida de disciplinas como Tópicos Especiais em Educação Infantil e mais duas

disciplinas que abordam o tema, como mostra o fluxograma:

191

As disciplinas pensadas para a habilitação em Educação Infantil privilegiavam

aspectos específicos do trabalho da criança, seja no seu desenvolvimento como na

organização do trabalho cotidiano. Chama atenção à introdução das disciplinas Tópicos

Especiais, fato que acontecia também nas outras habilitações. A ver:

Tópicos Especiais Em Educação Infantil I: Temas atuais sobre alternativas curriculares da educação infantil dentro de uma visão crítica. Tópicos Especiais em Educação Infantil II: Temas atuais ligados à literatura, ao jogo e ao brinquedo.

Destaca-se que as disciplinas pretendiam abarcar questões específicas de cada

área, buscando aprofundamento. No caso da educação Infantil, ao voltar-se para o

brincar, a literatura, os jogos indica a preocupação de superar o que intuitivamente era

visto como elemento que remete ao universo infantil, buscando fundamentar

teoricamente a sua compreensão/importância, tirando-os da banalização e dando clareza

da importância e dimensão do trabalho pedagógico com a criança.

Fica claro que o entendimento do pedagógico aqui, com as temáticas que são

privilegiadas, se afasta de uma compreensão didatizante e conteúdista; mais que ensinar

192

a criança, privilegia-se seu desenvolvimento, com a qual a docência qualificada se

compromete.

Tendo isso em vista, também se marca na proposta curricular a importância dada

à formação do profissional reflexivo. As disciplinas de Prática de Ensino, que concretiza

e define as “habilitações”, tem como parâmetro para a formação a “ação-reflexão-ação a

partir da realidade educacional” (Deliberação 022/91, p.32) Essa concepção, assentada

na perspectiva de um trabalho crítico a partir da reflexão constante, trazia a idéia de que

a reflexão sobre o trabalho alicerçado em bases teóricas e práticas consistentes, desse

rumo às mudanças desejadas. Assim, duplamente se define não só o professor, mas a

própria prática pedagógica na educação infantil, ao atrelar o saber teórico aos desafios

cotidianos e as possibilidades de sua alteração.

A ampliação do conhecimento sobre o universo da infância e das ações a ela

relacionadas potencializa a atuação do adulto junto à criança, enfatizando sua intenção

educativa, o que se dá com base em conhecimentos científicos. Assim, há uma estreita

ligação da própria habilitação com os significados dados ao currículo como um processo

geral. A identidade centrada na docência unifica a todos como profissionais da

educação. Essa identidade é marcada pelo engajamento fruto de um conhecimento

denso que mobiliza a ação dos sujeitos.

Observando esse aspecto, se destaca também outras frentes de trabalho

assumidas pela área de educação infantil. Cito uma: o projeto “Educação Infantil em

ação” que nos anos iniciais de implementação do currículo atuou diretamente no

trabalho em creches comunitárias em comunidades próximas à UERJ e que

integralizava atividades de estágio produtivo e pesquisa (com bolsistas de iniciação

científica). Assim, vão sendo construídas formas de intervenção no cotidiano da

Educação Infantil pela inserção das alunas/professoras, ampliando a esfera de alcance

das idéias debatidas no/pelo currículo. Na prática, na “ação-reflexão-ação” das

professoras em formação, atuando no contexto das creches comunitárias, construía-se

parâmetros de atuação. As observações feitas nesse contexto eram pistas do que

precisava ser superado:

Eu ia bastante à creche. Quando eu cheguei lá era trabalhinho mimeografado o dia inteiro (...) eu pedi para tirar os bercinhos e colocar colchonetes porque as crianças ficavam o dia inteiro no berço para não sujar, não podiam se mexer. (professora Terezinha)

Ainda que a inserção na prática buscasse fundamentar e alicerçar a mudança ao

mesmo tempo cria a fenda, distancia a universidade do cotidiano na busca pela

194

da contribuição que eu tive em alfabetização 1 e 2, a gente aprofundou muito mais a teoria, estudou muito mais e discutiu muito mais em alfabetização 1 e 2 do que propriamente na especialização. (Rosana) Eu acho que foi uma decepção essa habilitação...

Entrevistadora: Quando você chega no sétimo e no oitavo... Seria para afunilar, pra provocar, pra aprofundar; eu aprendi muito mais... Eu nem conto, eu nem conto esse ano porque eu não aprendi nada relevante (...) O curso anterior à essa especialização para mim ele deu muito mais conta da educação infantil... Foi uma decepção quando a gente fez o curso muito forte a discussão da infância que eu acho que era vai fazer essa especialização achando que vai aprofundar algumas coisas e você se da conta que às vezes você sabe muito mais (Fátima)

Tanto que o que marca na habilitação em Educação Infantil são as disciplinas

realizadas na parte básica deste. A concentração das atividades apenas no Estágio não

contempla a idéia de aprofundamento, até pela sensação de que as disciplinas acabam

por repetir o que já foi discutido. Cabe ressaltar que isso não é só fruto do planejamento

curricular, mas das condições de sua implementação:

(...) eu acho que a especialização aqui foi muito (...) mas também eu acho que essa direção foi muito pouco comprometida.(...) enfraqueceu (...)o currículo começou a perder força, a gente teve que começar a brigar por coisas que são obrigatórias, os professores que eram mais comprometidos acho que não agüentaram a pressão e vão embora, aí outras pessoas que estavam meio de molho, que participaram pouco começam a assumir essas habilitações, eu acho que foi um conjunto de coisas. Não acho que tenha sido só na educação infantil que tenha acontecido, entendeu?Eu acho que o curso, eu acho que esse curso começou bem... Estava pensando nisso outro dia nos professores do primeiro período... Se a gente for pensar, em como contribuiu contigo para dar uma base mais sólida (...) tinha o compromisso com aquela proposta de currículo, então a gente pega nesses primeiros períodos essa gente, eu acho que muito bem formada, eu acho muito preparada e engajada com o currículo só que daí pra frente ele vai, quando vai chegando o sexto período vão te encaminhando para o final e eu acho que vai perdendo a força e eu acho que houve muita retaliação, acho que muita retaliação. (...) Assim parece que a gente fez dois cursos.É incrível!(Fátima)

Dessa forma, as lutas políticas internas perpassam o desenvolvimento do

currículo dando outros rumos a ele. Uma questão considerada pelos alunos entrevistados

foi à presença de professores contratados em demasia e que no momento de introdução

de um currículo “novo” não tem relação com esse. Como diz Renata, “é cruel isso”,

não só com os alunos, mas também com os professores contratados que sofrem

Assim, algumas entrevistadas referem-se a parte diversificada do currículo que corresponderia as habilitações, como especialização.

195

exigências para além de suas possibilidades ou das condições que lhe são oferecidas.

Assim, a docência na Educação Infantil também é marcada e atravessada pelas

questões/confrontos de posição da gestão do currículo.

O ponto de discussão é como a identidade projetada marca os sujeitos. O risco

do estereótipo ou da essencialização do ser professor, pode ao invés de lançá-lo na ação,

e mobilizá-los, fixar seu lugar numa dada ordem que prejudique sua possibilidade de

atravessar fronteiras e negociar. A luta pela criança precisa vislumbrar que ...

a cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu “trabalho produtivo”. Depende de um conhecimento da tradição enquanto “o mesmo em mutação” e de um conjunto efetivo de genealogias. Mas o que esse “desvio através de seus passados” faz é nos capacitar, através da cultura, a nos produzir a nós mesmos de novo, através da cultura, a nos produzir a nós mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar. (Hall, 2003, p.44)

O diálogo com as diferenças é fundamental para o entendimento de que a luta

não é estabelecida a priori, mas exige que decisões sejam tomadas num terreno de

disputas onde os significados não são fixos, o que exigem a identificação como Laclau

(1998, p.117) ressalta: “se há necessidade de identificação, é porque não há identidade

em primeiro lugar.” Não uma identidade fixada e estável que posicione o sujeito num

lugar fixo de decisão. Sendo assim, a ênfase está no caráter polifônico das posições de

sujeito que são assumidas, que no diálogo com a diferença permita o deslocamento do

lugar fixo para o entre-lugar da fronteira, da indecidibilidade. Laclau (1998) argumenta

em favor da necessária desconstrução do sujeito ontológico.

Uma diferença a ser enfrentada no currículo é a questão do já ser professor ou

não e como isso traz questões para o trabalho desenvolvido, principalmente

considerando a busca pela construção do discurso pedagógico, uma diferença que se dá

em torno do saber.

O espaço da sala de aula (micro da universidade) muitas vezes é um espaço sagrado das Ciências, onde só se pode falar uma linguagem acadêmica, ignora-se o cotidiano do aluno, ignora-se que o aluno é trabalhador, explorado, participa ou não de várias organizações e experiências políticas (grupo 1)

196

Professores/não professores, teoria/prática, saberes e linguagens que são postos

como binários que polarizam posições, dicotomizando-as sem buscar as possibilidades

de articulação. Baixar a cabeça é assumir o lugar que lhe foi determinado numa ordem

já dada? O que se percebe é que as diferenças são justapostas; ainda que fossem

vislumbradas, isso não provocaria o deslocamento ou desterritorialização das

identidades. Mantém-se o lugar fixo da diferença.

Eu não sei em que mundo estou. Eu não me situo nesse mundo aqui e nem no mundo em que estou; meu pai, minha mãe... Eu penso diferente. (Renata)

O relato de Renata é fortemente marcado pela sua condição diaspórica, como

explica Hall (2003) quando fala sobre as migrações caribenhas na Grã-Bretanha e o

deslocamento que experimentam. O estar fora revela o anacronismo dessa situação que

se marca pela diferença de estar num lugar que não é seu.

O que o autor problematiza é o risco de um entendimento como conceito binário

de diáspora que marca o dentro/fora. A diáspora se marca na diferença, no trânsito por

um território de mestiçagem e hibridismo.

A prática desloca, desterritorializa, inscreve numa ordem que subverte fronteiras

estabelecidas não como exclusão, mas articulação híbrida. Esta seria a des-construção a

ser promovida. O nem um nem outro lugar, o deslizamento de significados que pode

entre-ver que o significado não é fixo, mas requer diálogo e polifonia, que não há um

lugar próprio, mas entre-lugares identitários.

197

Considerações finais/parciais

Em vez de ver a procura do conhecimento acadêmico como uma busca por coerção e controle sobre os outros, deveríamos considerar o conhecimento algo pelo qual devemos arriscar a identidade e então pensar na liberdade acadêmica como um convite a desistir da identidade na esperança de compreender e talvez até assumir mais de uma. Devemos ver a academia sempre como um lugar para viajar, sem dela nada possuir, mas sentindo-nos sempre em casa em qualquer lugar. (Said 2003, p.207)

Ao longo deste estudo, busquei questionar: há identidade docente? Como se

estrutura um trabalho calcado na idéia de identidade? No que consistiria essa

identidade? Ao explicitar que meu questionamento se desdobra a partir de minha

própria inquietação como professora diante das falas das minhas alunas, professoras em

formação, aponto as contradições que fazem com que lutem pela criança, mas que

também as distinguem ao ponto de provocar distância e repúdio.

Foi isso que me provocou. E é exatamente o sobre que destaco: pensa-se sobre a

criança, luta-se pela criança, fala-se sobre a criança, transforma-se a criança em outro

coisificado, objeto de mobilização; dessa forma, torna-se também o outro a ser repelido

que reapresenta minhas próprias faltas.

O embate-choque me levou a um processo de desconstrução: não só da minha

crença na identidade, mas também da minha própria identidade, singular e fechada, que

também precisava compreender e negociar com essas falas. Desconstrução: eu também

sou um sujeito cindido, fragmentado, que precisa se des-locar, circular nesses espaços

estranhos, não como estrangeira.

A partir daí começo a articular a defesa que faço: ao invés de uma identidade,

identidades ambivalentes, o que não significa não ter nenhuma referência ou

posicionamento, mas implica não tomá-los como definitivos e absolutos, mas que

permitam o trânsito, a negociação.

Assinalo que o terreno sobre o qual caminho é o da cultura e que não estou

sozinha nele. Hoje vários estudos têm se dedicado a debater, compreender a cultura no

entrelaçamento de várias questões. Pesquisas têm sido desenvolvidas abordando o

tema48, a universidade se volta para as questões relativas à cultura e à diferença.

48 Há possibilidade de citar várias pesquisas, teses e dissertações defendidas. Para sintetizar, destaco o trabalho encomendado apresentado na 29ª. Reunião Anual da ANPEd/2006, sob a coordenação de AMORIM, Antonio Carlos (UNICAMP) e PESSANHA, Eurize Caldas (UFMS) As potencialidades da centralidade da(s) cultura(s) para as investigações no campo do currículo. O trabalho encomendado

198

Momento oportuno ou a atenção é provocada pelo incômodo que hoje a universidade

enfrenta, com a adoção de políticas afirmativas, uma questão com que a escola básica já

se defronta há tempos?

Ao discutir a identidade pondo sob suspeita a fixação de um lugar para a

docência recorro a Bhabha (2001) na discussão que faz sobre as estratégias do discurso

colonial – o estereótipo. O autor investiga os processos de subjetivação provocados no

discurso do estereótipo afirmando que identificar as imagens produzidas é menos

produtivo que compreender como este mecanismo opera. Bhabha fala da ambivalência

do discurso do estereótipo, entre a fobia e o fetiche. Explica que se trata da percepção da

diferença e sua recusa, o que se dá na fixação, através da repetição contínua, que

procura substituir a falta.

No caso da identidade docente, é reiterado, a todo momento, que ser professor é

ser agente político consciente, crítico, militante, o que se dá a partir de um

conhecimento teórico consistente. Contudo, a afirmação/desejo de conhecimento cria

uma tensão com o reconhecimento da sua falta. E o que falta? Conhecimento? A teoria

apresentada na Academia e valorizada como o conhecimento se constrói com base não

só em conhecimentos científicos, mas como produção cultural, se enraíza numa

determinada concepção de cultura que hierarquiza e estabelece oposição; demarca

relações/posições de poder. No caso do ser professor, isso também fixa uma

determinada posição que obscurece as possibilidades de diálogos com as diferenças, de

forma a rasurar identificações absolutas.

Se o espaço da universidade é o do saber que provoca engajamento, como são

olhados os sujeitos que ali se formam? Sujeitos sem saber que mudam de condição após

circular nesse espaço? Que sentido se dá ao saber? Quando este se desvincula da

produção cultural cotidiana, se encerra no academicismo, abre a fenda intransponível

que regula baixa/alta cultura, conhecimento científico/saber popular, tantos

pertencimentos e identidades reduzidos e condensados na identidade docente, regulada

pelo saber.

Identidade ou estereótipo? Essa estereotipia também tem seu duplo na figura do

aluno, da construção do outro: eles, que não sou eu, mas que com uma presença

desconcertante evidenciam minhas faltas, um eu que nego e busco superar.

foi de natureza coletiva, houve a solicitação de que os grupos de pesquisa em currículo mandassem pequeno resumo de seus trabalhos. Houve a apresentação de 23 grupos de pesquisa.

199

A naturalização do lugar/posição de ser professor desmobiliza questionamentos

que poderiam criae espaços fronteiriços de discussão. Há que ser professor - e dessa

forma. Os porquês dessa afirmação se perdem na essencialização e criam também a

diferença negativa a ser “superada”. Nesse sentido, num contexto de fixidez, as

fronteiras são rígidas; mais que fronteiras, são polarização das margens sem que haja

atravessamento. Na construção do outro recusado pode se ver que ainda prevalece na

escola a lógica da substituição, da subordinação, da transformação do outro-diferente

por um outro-eu a partir da ação da escola. Diferença tratada como diversidade,

pluralismo que, tolerado, pode se transformar no mesmo.

O estereótipo não é uma simplificação porque é uma representação de uma dada realidade. É uma simplificação porque é uma forma presa, fixa de representação que, ao negar o jogo da diferença (que a negação através do outro permite), constitui um problema para a representação do sujeito em significações de relações psíquicas e sociais. ( Bhabha, 2001, p. 117)

É essa diferença reapresentada pelo outro que no discurso do estereótipo é

recusada. Posta assim, a fixação da identidade docente, conforma esta na unicidade, no

fechamento que impede a articulação de uma identidade híbrida.

Considerando o trabalho docente como uma tarefa eminentemente dialógica,

sempre aberta, como se dariam os termos desse diálogo? Como o outro seria

considerado? Questiono-me com Bhabha (2006) em sua conversação com Said: “com

quem conectar-se, como e como não?” (p. 25). Como criar, estar no entre-lugar? Ao

falar do entre-lugar, Bhabha sugere o entendimento de um espaço outro que, nem lá

nem cá, coloca-se como circulação, atravessamento. O que chamo de atravessamento é

o campo da negociação, e nele se dá a ação política.

Pensar um currículo que tenha como objetivo a formação de professores com

forte compromisso político, tendo em vista a constituição de uma ação política

democrática, mas que fixe e defina a identidade, apresentando-a como fechamento,

torna-se contraditório com a própria perspectiva que a informa, uma vez que a ação

política não é externa ao sujeito, nem se concentra em esferas estatais. A base marxista

percebida no curso analisado vê a ação docente como política na sua dimensão de

resistência e confronto, e a dimensão dialógica é minada pela tensão provocada a partir

dos binarismos sob os quais ela se constrói. Que rumo tomar, então?

Há uma profusão de questões que são colocadas como desafios à docência e que

têm contribuído para delinear modelos profissionais, (Ludke e Boing, 2006). São

conceitos, perspectivas epistemológicas que têm ajudado a caracterizar o trabalho

200

docente. Ao qualificar a ação docente, também atingem a percepção que os sujeitos

constroem para sua atuação, como se identificam no exercício do magistério. Nesse

sentido, a retomada dos discursos da ANFOPE, do COEDI e do MIEIB enfatiza a

importância na estrutura dos discursos na medida em que a forma como as palavras são

ditas, num processo de criação, produzem novos sentidos e novas formas de

inteligibilidade. A tomada desses textos permitem a compreensão da complexidade do

multifacetado processo de elaboração de políticas curriculares, a partir do diálogo com

as perspectivas que orientam e modelam ações sobre/com a formação docente,

focalizando o caráter construtivo da linguagem em relação à identidade, que explicita as

relações de poder envolvidas na demarcação do lugar ocupado pelos indivíduos, como

funcionam e os processos de mudança em questão. A busca pelo reconhecimento

enquanto profissional feito por essas instâncias se deu construindo discursos que

fixavam o lugar do professor e seus saberes.

A análise de uma prática social necessita a ampliação e observação de suas

múltiplas e complexas dimensões, dentre elas a discursiva; fica patente o entendimento

da prática discursiva como campo produtivo, mais que reflexo de transformações, como

participante delas. No dizer de Bakthin (2004, p. 41),

a palavra penetra literalmente em todas as relações entre os indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político, etc. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É, portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo aquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. (...) A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais.

Perceber as cadeias significativas que vão se formando e como são formadas, nos

permite a construção de um espaço dialógico de análise.

Morgado (2005) define as concepções sobre o trabalho docente concebendo-os

como profissional técnico, profissional reflexivo, intelectual crítico e professor da

contemporaneidade. Neles se vêem refletidos os estudos sobre questões relativas ao

trabalho. Ainda que importantes, as concepções de professor reflexivo, professor

pesquisador, intelectual crítico também foram surgindo como construções que têm se

posto como identidades construídas na complexidade. A idéia da identidade

profissional, ainda que alicerçada em conceitos que revisam e revigoram o fazer

201

docente, incorrem no risco de apresentarem a identidade como fechamento, focalizando

apenas uma das múltiplas, complexas e até conflitantes dimensões do fazer docente.

Costa (1995), que, em sua tese de doutorado, volta-se à discussão de questões

relativas ao profissionalismo, questionando se o professor é trabalhador ou profissional,

defende a possibilidade de construções particulares do profissionalismo; um novo

profissionalismo que se recompõe conforme diferentes circunstâncias. Morgado (2005)

ao apresentar a idéia de professor na contemporaneidade, explana sobre as

peculiaridades da pós-modernidade que perpassam e tramam o modo como vivemos,

defendendo que o esse professor “vê-se na contingência de assumir o papel de tradutor”

(p.70) Tradução possível com e nas diferenças, não mais apagadas ou escondidas.

Penso ser esta a via de desconstrução de uma identidade essencializada: pensá-la

como fluida, movediça requer pensar o diálogo com as diferenças na construção de uma

perspectiva de formação plural, numa concepção que signifique identidade como

híbrido inacabado. É possível articular a idéia de produção híbrida com a idéia de

tradução, pois a hibridização opera a partir da tradução. Bhabha (2001), ao falar da

tradução, deixa clara a idéia de irredutibilidade a um único significado. A concepção de

identidade híbrida antevê um processo de tradução que não significa a redução de

diferentes sentidos a um mesmo, mas a articulação que mantém a diferença numa

presença incômoda e ambígua.

E essa tradução precisa se dar no fazer curricular, no desafio de

superação da polarização política-cultura, compreendendo o currículo como pro

202

Bibliografia: ABBAGNANO, Nicola (2000) Dicionário de Filosofia. Porto Alegre: Martins Fontes, 4a. ed. ALVES, Nilda (org.) (1998) Formação de professores IN: Revista Brasileira de Educação. São Paulo: Editores Autores Associados- ANPEd, no.9, 1998.

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216

ANEXO

Trecho do documento síntese do VI Encontro Nacional da ANFOPE realizado em

Belo Horizonte, 1992

217

* gestão democrática da escola;

* compromisso social; e

* trabalho coletivo e interdisciplinar.

A terceira proposição tratou a questão da base comum nacional a partir da identificação

de uma idéia-força principal: fundamentação teórica de qualidade, aliada a um conjunto

de princípios norteadores. Sem querer fazer tábula rasa das diferenças de enfoque que

permeiam as propostas destes vários grupos, mas pensando na necessidade de apoiar o

trabalho concreto da reformulação dos cursos, propomos recuperar alguns aspectos da

produção do V Encontro Nacional. Esta recuperação pretende ser uma "pauta mínima" a

partir da qual as diferenças de enfoques poderão ser acrescidas, posteriormente, ao nível

das várias instituições de ensino.

I. As áreas temáticas ou eixos propostos para a base comum nacional abrangem todo e

qualquer curso destinado a formar o educador. Não devem ser entendidas como elenco

de disciplinas e constituem a formação fundamental que todo educador deve receber.

Mais que isso, elas sugerem, também, uma forma avançada para a organização

curricular, que supera a atual organização propedêutica dos nossos cursos, baseada na

separação entre o momento da teoria e o da prática. Esta proposição afeta, portanto,

simultaneamente o conteúdo e a forma de todos os cursos destinados a preparar o

educador (Licenciatura em Pedagogia, demais Licenciaturas específicas e Escola

Normal).

II. Consciente ou inconscientemente uma organização curricular é um grande “acordo

coletivo" sobre como produzir conhecimento. Este parece ser um avanço fundamental

apontado pelo V Encontro: conceber os cursos de formação do educador como

momentos de produção coletiva de conhecimento. Já não é suficiente reduzir esta

afirmação à formula "relação teoria/prática" já que a maneira de se conceber estas novas

relações entre teoria e prática implica em assumir uma postura diante da produção de

conhecimento. Historicamente, o movimento sempre apontou para a "indissociabilidade

entre teoria e prática", mas esta conclusão não penetrava a forma da organização

curricular. Vale a pena recuperar algumas explicitações que o V Encontro lançou sobre

esta questão:

a) Uma primeira característica tem a ver com a forma como se dá a produção de

conhecimento no interior dos cursos e não com a mera justaposição da teoria e prática

em uma grade curricular. Em geral tem sido defendido que a teoria e a prática devem

218

perpassar todo o curso de formação do educador e não ser restrita a uma disciplina (em

geral Prática de Ensino) e nem a um momento particular do currículo.

b) Também no caso das Licenciaturas específicas esta questão é algo que merece ser

estudado e assumido desde já. Quer nas Licenciaturas específicas, quer nos

Bacharelados correspondentes, que conduzem a diferentes profissões, deve-se ter a

preocupação com a relação teoria/prática. Não se ignora, no entanto, que novas formas

de organização curricular deverão ser criadas nas várias instâncias de formação e nisto

reside a força inovadora da sugestão de uma base comum nacional.

c) Uma segunda característica é a ênfase no trabalho pedagógico como articulador da

teoria e da prática. O trabalho pedagógico deve ser o grande organizador curricular,

como articulador privilegiado da teoria e da prática.

d) Uma terceira característica refere-se à pesquisa como meio de produção de

conhecimento e intervenção na prática social, prática esta que deve ser o ponto de

partida e de chegada, articulada a uma sólida fundamentação teórica, que permita

revelar-se no real e compreendê-lo teoricamente em busca da totalidade.

III. Todos os grupos de estudo do V Encontro foram unânimes quanto à importância de

uma formação teórica de qualidade no bojo das relações teoria/prática (produção

coletiva de conhecimento). É importante enfatizar este aspecto dada a tendência a se

transformar a formação do educador na preparação de um "prático". Nesta concepção, a

prática social é reduzida à dimensão de "resolver problemas concretos" o que dá um

caráter pragmatista e restrito à formação do profissional da educação. Recuperemos

alguns aspectos.

a) Faz parte do entendimento de "formação teórica de qualidade" o domínio dos

conteúdos a serem ensinados pela escola (matemática, química, física etc.).

b) Faz parte do entendimento de "formação teórica de qualidade" a recuperação da

importância do espaço para análise da educação enquanto disciplina, seus campos de

estudo, métodos de estudo e status epistemológico.

c) A formação teórica implica valorizar o aumento das relações entre as várias

disciplinas que capacitam o educador teoricamente (interdisciplinaridade) e sua

articulação com o fenômeno educativo, buscando capacitar o profissional para uma

análise crítica da sociedade brasileira e da realidade educacional em particular em um

trabalho necessariamente coletivo.

IV. Os elementos até aqui apontados (produção coletiva de conhecimento aliada à

formação teórica de qualidade) devem ser entendidos como um movimento instigador

219

da mobilidade intelectual e da organização do pensamento dos alunos e da prática

política que ultrapassa os limites da sala de aula e que são determinantes tanto para a

produção de conhecimento e do saber, bem como, para a formação da práxis dos

educandos.

V. Neste sentido, a base comum nacional deve enfatizar uma concepção sócio-histórica

do profissional da educação e da educação, contextualizando e estimulando a análise

política da educação, bem como das lutas históricas destes profissionais em articulação

com os movimentos sociais. É fundamental que a formação profissional passe pelo

compromisso social.

VI. O aparato escolar via de regra é autoritário e clientelista. O profissional deve

conhecer formas de gestão democrática para poder participar dela ou exigi-la onde não

haja. Por gestão democrática entende-se a superação do conhecimento de administração

enquanto técnica, na direção de um sentido mais amplo do significado social das

relações de poder que se reproduzem no cotidiano da escola, nas relações entre

profissionais, entre estes e os alunos, assim como na concepção e elaboração dos

conteúdos curriculares.

VII. As transformações curriculares devem abrir espaço para o trabalho coletivo e

interdisciplinar tanto entre alunos como entre professores. Agregamos, neste ponto, que

a avaliação permanente dos cursos de formação dos profissionais da educação deve ser

parte integrante das atividades curriculares e entendida como responsabilidade coletiva

a ser conduzida à luz do projeto político-pedagó-2( )-27p70(e)-6eonavintr,-6(i)-2(da)4( à)4(ve)4(m)-29(que)onstã.

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