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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Ciências Sociais
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Daniel Mandur Thomaz
Sob a regência do medo: imprensa, poder e rebelião escrava na Corte
Imperial, 1835
Rio de Janeiro
2009
CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/ CCS/A
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação. _____________________________________ ___________________________ Assinatura Data
T465 Thomaz, Daniel Mandur.
Sob a regência do medo: imprensa, o poder e rebelião escrava na Corte Imperial, 1835/ Daniel Mandur Thomaz. - 2009.
144 f.
Orientadora: Marilene Rosa Nogueira da Silva. Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Bibliografia.
1. Escravidão – Brasil - Teses. 2. Imprensa – Brasil – História – 1831-
1840 – Teses. 3. Negros – Condições sociais – 1831-1841 – Teses. 4. Medo – Teses. I. Marilene Rosa Nogueira da. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.
CDU 981”1831/1840”
Daniel Mandur Thomaz
Sob a regência do medo: imprensa, poder e rebelião escrava na corte imperial, 1835
Dissertação apresentada, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-
Graduação em História, da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro Área de concentração: História Política.
Orientadora: Profª. Drª. Marilene Rosa Nogueira da Silva
Rio de Janeiro
2009
Daniel Mandur Thomaz
Sob a regência do medo: imprensa, poder e rebelião escrava na Corte Imperial, 1835
Dissertação apresentada, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-
Graduação em História, da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro Área de concentração: História Política.
Aprovada em 5 de Maio de 2009.
Banca Examinadora:
________________________________________________ Profª. Drª. Marilene Rosa Nogueira da Silva (Orientadora) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ ________________________________________________ Profª. Drª. Magda Maria Jaolino Torres Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ ________________________________________________ Profª. Drª. Márcia de Almeida Gonçalves Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ
Rio de Janeiro
2009
a João Alberto Thomaz, in memorian.
Sei que o passado foi grandioso e que o futuro será grandioso, E sei que ambos, curiosamente se fundem no presente, (...)
Walt Whitman
AGRADECIMENTOS
Os corredores da universidade são repletos de memórias afetivas. Neles muitas
lembranças me ocorrem: os amigos que fiz ao longo dos anos, os bons livros que me
instigaram, a mistura do cheiro de café com o som das vozes em fervorosas discussões que
duravam tardes a fio. Sou profundamente agradecido a todos os professores com os quais
tive a oportunidade de discutir e aprender. Sou também grato a todos os colegas que
comigo conviveram e cujas conversas foram fundamentais: polemizando ou concordando
com meu ponto de vista, sempre dentro do espírito do bom combate intelectual. Esses anos
foram frutuosos e me enriqueceram muito, sobretudo, como ser humano.
Para além dos muros da Universidade, também tive pessoas que me ajudaram, com
palavras e gestos, com carinho e sabedoria. Tive poucos mas seletos amigos que me
acompanham desde minha tenra idade e que também passaram pela universidade. Nossas
discussões verborrágicas também ajudaram a construir quem sou.
Agradeço profundamente a Dona Edila Thomaz, que foi amiga, cúmplice e mãe.
Aos tios e incentivadores Edy e Remco. Aos três mosqueteiros: Hugo, João e Tiago, pela
amizade incondicional. A Miago Krugnuts, pelas longas conversas sobre lógica. A
Stephany, pela amizade e presença constante. A Renata, por me confortar nas horas
difíceis. A Lya, pela doçura, carinho e incentivo.
Gostaria de agradecer a Alda Heizer, que foi a primeira pessoa a ler esse projeto e a
incentivá-lo. Aos colegas do LEDDES, pelas boas e agradáveis discussões. E, sobretudo, a
professora Marilene Rosa, que com sua mistura de vigor intelectual e carinho maternal, foi
não só uma orientadora maravilhosa, mas tornou-se cúmplice e amiga.
Enfim, dedico esse trabalho a meu pai, que não está mais entre nós. Ele ensinou-me
a amar o conhecimento e a cultivar a retidão.
RESUMO
THOMAZ, Daniel Mandur. Sob a regência do medo: imprensa, poder e rebelião escrava na Corte Imperial, 1835. 2009. 144 f. Dissertação ( Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
Esse trabalho estuda o medo de levantes escravos através de discursos e políticas públicas publicadas na imprensa do Rio de Janeiro. Seu objetivo é analisar, através do tema do medo, as discussões sobre a escravidão no período regencial do Brasil (1831-1840). A repercussão na imprensa do Rio de Janeiro do levante Malê, ocorrido na Bahia em 1835, gerou uma ambiência de medo e paranóia capaz de legitimar ações violentas e arbitrárias contra toda a população negra. A constatação crassa da capacidade estratégica envolvida na articulação da revolta causou uma fissura no discurso que interditava ao negro a capacidade intelectual. A hipótese principal é de que o grande medo que varreu 1835, determinando medidas jurídicas, políticas e policiais, foi fruto desse fenômeno, cujo efeito será a construção de uma ambiência de medo e paranóia generalizada, que chamaremos de zona de tensão permanente. Essa zona de tensão possibilitou a apropriação do medo por diferentes tendências políticas. O medo produziu efeitos heurísticos, na medida em gerou discursos que buscavam nomear as ameaças à sociedade e apontar medidas cabíveis para saná-las. Além disso, o medo produziu efeitos políticos, na medida em que gerou políticas públicas para desarmar o perigo de levantes na Corte. Em última análise, o discurso que defendia a vinda de colonos europeus tornou-se generalizado. Essa medida, defendida como fórmula para acabar com a escravidão, é entendida como forma de postergar a abolição e garantir a continuidade do lucrativo comércio de escravos.
Palavras chave: Rebelião escrava. Imprensa. Regência.
ABSTRACT
The present work studies the fear of slave uprising through discourses and public politics published in Rio de Janeiro’s press. It aims to analyze, through the thematic of fear, the discussions about slavery in the Regency period in Brazil (1831-1840). The repercussion in the press, regarding the Malê uprising which occurred in Bahia in the year of 1835, generated an ambience of fear and paranoia capable of giving legitimacy to violent and arbitrary actions against the whole of the black population. The violent verification of the strategic capacity involved in the organization of the revolt caused a rupture in the discourse that interdicted intellectual capacity to the black population. The main hypothesis is that the great fear that swapped 1835, implementing juridical, political and suppression-surveillance measures, was a result of this phenomenon, which was effective in the construction of an environment of generalized fear and paranoia that will henceforth be called permanent tension zone. This tension zone made possible the usage of fear by different political tendencies. Fear produced heuristic effects, creating discourses intended, in accordance to its political intentions, to name the threats to society and point suitable measures to quell them. On top of that, fear produced political effects, in the sense that it created public policies to disarm the danger of insurrection in the Court. Lastly, the discourse that supported the coming of European colonists became generalized. This measure, supported as a means to end slavery, is understood as a way to delay its abolition and to guarantee the continuation of the profitable slave market.
Keywords: Slave uprising. Press. Regency
SUMÁRIO INTRODUÇÃO..............................................................................................9
1 TERROR E POLÍTICA: O MEDO COMO EFEITO DE PODER.......14 1.1 Heurística e política: os efeitos do medo....................................................19
1.2 Os caminhos do medo: Uma discussão historiográfica............................24
2 IMPRENSA, LIBERALISMO E ESCRAVIDÃO: A CIDADE QUE ACOLHE AS NOTÍCIAS...........................................................................32 2.1 Rio de Janeiro: A cidade que acolhe as notícias.......................................44 3 REPERCUSSÃO E MEDO: O PARADOXO DE CASSANDRA..........54 4 ZONA DE TENSÃO PERMANENTE: O MEDO DEIXA MARCAS
PROFUNDAS...............................................................................................79 4.1 O medo e seus efeitos...................................................................................95 5 MEDO E COLONIZAÇÃO: A RETÓRICA DA CONSERVAÇÃO...113 6 CONCLUSÃO............................................................................................134 REFERÊNCIAS.........................................................................................137
INTRODUÇÃO
Morava na rua de D.Manuel. Uma das suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender seus passos até aquele recinto da cidade. (...) Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um primo, quando ouvi um barulho muito grande, e logo depois um ajuntamento. Parece que eles feriram também a um sujeito que passava, e que entrou por um daqueles becos; mas eu só vi a esse senhor, que atravessava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por ele, meteu-lhe o punhal.
Machado de Assis, A causa secreta
No trecho do conto de Machado de Assis que abre essa introdução é possível notar
uma cena bastante ilustrativa. Trata-se de um empregado do Arsenal de Guerra ferido por
uma malta de capoeiras. O protagonista, Garcia, que presencia os cuidados e tratamentos
prestados a vítima, residia na rua de D. Manuel, próxima do teatro de S. Januário. Região
que a noite era um tanto inóspita com seus becos e ruas escuras, cheia de perigos
escondidos nas sombras, que guardavam capoeiras e “vadios”: “Só os mais intrépidos
ousavam estender seus passos até aquele recinto da cidade”. A estória do médico sádico,
com quem Garcia se depara e trava uma estranha aproximação, é mais um enredo brilhante
do “bruxo do Cosme Velho”. Esse conto serve como elemento de reflexão sobre a questão
do medo e da violência que se desdobram pelas ruas da cidade, articulando uma relação
intrínseca entre a urbes e as formas de sociabilidade que nela se constroem no século XIX.
O enredo do conto machadiano acima citado poderia muito bem ser transposto para
o Rio de Janeiro desse início de século XXI, sem grandes prejuízos para a ambientação de
suspense, perigo e incerteza nas ruas e becos. É claro que do século XIX para cá, a cidade
se transformou assombrosamente. Ganhou novos contornos e dimensões, marcados pelas
experiências sociais e demográficas dos habitantes, assim como pelas inúmeras
intervenções do Estado e dos governantes, que buscaram quase sempre atuar na construção
dos espaços urbanos, ora criando monumentos representativos da história e dos projetos
políticos que se queriam implantar, ora monumentalizando as relações de poder e de
sociabilidade dos habitantes, através da revitalização de praças e ruas.
É preciso dizer que se analiso os medos do passado, o faço com os olhos cheios dos
medos do presente. Impossível ser diferente, já que é a partir do presente que os
documentos são problematizados e que as linhas da trama são construídas. Se as
experiências cotidianas do historiador são elementos para a sua análise do passado, como
propunha Marc Bloch, viver no Rio de Janeiro desse início de século XXI, foi sem dúvida a
inspiração decisiva para debruçar-me sobre esse objeto. Além do temor em relação a
violência urbana, o medo em geral tem sido um sentimento influente na vida
contemporânea, participando de seus inúmeros aspectos.
No plano individual, o medo é um mecanismo de sobrevivência essencial à
existência humana, enquanto alerta capaz de adequar o corpo a situações de perigo,
preparando nossos reflexos para o combate ou para a fuga. No entanto, no âmbito da psique
o medo pode tornar-se patológico, dando lugar a fobias e síndromes, o que o transforma de
um elemento salutar e imprescindível à sobrevivência em algo paralisante. Como
fenômeno coletivo, é capaz de inflamar os ânimos e gerar uma ambiência de excitação que
possibilite pânicos sociais, levantes em massa e revoltas populares. Fenômeno psico-
fisiológico, no âmbito individual, fenômeno sócio-político, no âmbito coletivo, o medo
parece permear essas diferentes dimensões da vida do homem. Não seria diferente no
campo das mais diversas atividades que ele empreende em sua vida social.
No campo da economia, por exemplo, o medo pode gerar especulação e
movimentos bruscos de mercado, capazes de fomentar a fuga de capitais e a veloz
desvalorização de papéis que, do dia para a noite, podem acarretar em falência de empresas
e instituições financeiras. Assim, o medo em economia pode significar negócios levados à
repentina bancarrota, desestabilização de mercados e risco para países e investidores. A
tentativa de racionalização desse medo levou experts a produzir “previsões” sobre certas
movimentações. Esses avaliadores internacionais - uma espécie de “economista-
futurólogo” - tentam, muitas vezes em vão, analisar elementos de mercado em diversos
países, alertando investidores para o chamado “risco-país”, na busca incessante por
proteger seus capitais e garantir a racionalização desses investimentos. É preciso manter
uma saudável desconfiança em relação a tais previsões, já que muitas vezes elas têm razões
mais políticas do que efetivamente econômicas, ou baseiam-se na má-fé mais do que na
análise do mercado. No entanto, essa tentativa de racionalizar o medo prevendo suas
manifestações e “administrando” seus efeitos, é também observável no âmbito político.
A idéia de racionalização política do medo está presente em inúmeras ações
governamentais e em suas políticas públicas, que visam de alguma forma manobras de
Estado no sentido de evitar manifestações capazes de gerar desestabilização política e
social. A relação íntima entre medo e política não é ignorada pelo pensamento erudito,
constituindo a base argumentativa de alguns estudiosos de teoria política. Nesse sentido,
existe uma longa tradição ligando o pensamento de Thomas Hobbes ao tema do medo. No
caso hobbesiano, por exemplo, o medo assume um potencial político tão intenso, que é
considerado o princípio fundador e mantenedor do Estado. No campo da ética o medo
também possui seus teóricos. Para além do juízo moral que polariza o medo ora como vício
da covardia, ora como virtude da cautela, essa paixão foi estudada pelo filósofo Hans Jonas
como fundamento de seu “princípio-responsabilidade”, quando o medo terá importância
ética central para o combate de ameaças a integridade humana.
No entanto, o que interessa ao presente trabalho é o medo em perspectiva histórica.
O ano de 1835 foi problematizado como ano-chave para a compreensão do período
Regencial e para a análise do medo que esteve presente de forma tão avassaladora na
década de 1830. Esse ano é seguinte ao Ato Adicional de 1834, que garantiu maiores
liberdades provinciais e descentralização administrativa, expondo a vitória do Parlamento
sobre o poder Executivo. Aliás, a Regência foi marcada justamente pela vacância do poder
executivo e caracterizada como um período de hibernação do princípio monárquico no
Brasil, uma “experiência republicana”, como prefeririam alguns autores, a separar o
Primeiro Reinado (1822-1831) e o Segundo (1840-1889). Além disso, 1835 foi um dos
anos mais conturbados da década de 1830, marcado pelas revoltas que inundaram inúmeras
partes do Brasil, de Norte a Sul, dos Cabanos sublevados na província do Pará em Janeiro
até os Farrapos do Rio Grande do Sul no final do ano.
No entanto, o levante dos escravos Malês, ocorrido na madrugada do dia 24 para 25
de janeiro de 1835 na Bahia, teve repercussão tão poderosa na imprensa da Corte que o
medo decorrente dessas notícias produziu efeitos políticos, jurídicos e policiais. Como um
levante negro que durou apenas algumas horas pode ter tido um eco tão grande na
sociedade? Quais foram as marcas deixadas por esse medo? Quais as discussões e debates
que ele suscitou? Enfim, o que foi essa ambiência de medo de longa duração, como ela se
constituiu e como produziu seus efeitos?
Para tentar responder a essas questões busquei na imprensa do período a
materialidade do medo e da insegurança, analisando os debates no jornal e as políticas
públicas de segurança nele publicadas. Para tanto o ano de 1835 foi analisado dia após dia
nas folhas do Jornal do Commercio. Recorri também a outros jornais e a alguns
documentos oficiais, mas concentrei desde o início minhas investigações no Jornal do
Commercio por constatar que, devido a sua “aparente neutralidade”, os processos de
materialização de relações de poder estavam postos de forma mais contundente do que nos
periódicos que costumavam alardear suas tendências políticas. Afinal, quando uma
interpretação quer se apresentar como “neutra” ela engendra regimes de verdade e saberes-
poder mais eficientes. Assim, analisei os números diários desse jornal do ano de 1835, num
procedimento de varredura. Dessa forma pude notar como as notícias ganhavam peso e
dramaticidade dia após dia. O medo, tanto nos debates como nas medidas policiais e
jurídicas, ganhava materialidade diária na letra impressa do Jornal do Commercio.
As considerações de ordem mais teórica sobre o medo foram discutidas no primeiro
capítulo, intitulado “Terror e Política: o medo como efeito e os efeitos do medo” e serão
acompanhadas de uma breve discussão historiográfica sobre o tema.
No segundo capítulo “A cidade que acolhe as notícias: Imprensa, política e
escravidão na Corte” analisei a escravidão urbana e sua relação com o Rio de Janeiro e seus
espaços públicos, destacando a produção e distribuição de impressos de cunho político que
conformaram os debates sobre o Estado Nacional Monárquico. Esse período é marcado por
intenso hibridismo, que imprimiu novos sentidos a termos como constituição, povo, pátria e
liberalismo, sem abandonar práticas marcadas por concepções absolutistas e tradicionais.
Nesse momento, imprensa e política estavam intimamente ligadas, já que seria nos
periódicos que os projetos de poder em embate ganham visibilidade. Assim, além de
descrever a ambiência histórica que caracterizará 1835, destaco a principal fonte primária
utilizada nesse trabalho: o Jornal do Commercio. A partir disso, analiso a relação desse
periódico com a fase ainda inicial da mídia impressa no Brasil, trazendo à tona seus
editores, sua história e tendências políticas de sua linha editorial.
Em “Repercussão e medo: o paradoxo de Cassandra”, que é o terceiro capítulo,
tratei do período inicial da repercussão do Levante Malê no Rio de Janeiro. A partir dessa
repercussão fiz uma breve análise da revolta ocorrida na Bahia e de como ela se propagou
rapidamente. Procurei discutir também a lembrança do Haiti como exemplo fundamental
para amplificar ainda mais o medo de que levantes ocorressem na Corte. Após a
repercussão do Levante Male, a Assembléia Provincial do Rio de Janeiro passou a produzir
um discurso alarmista e catastrófico a fim de evitar que levantes negros como o que
ocorrera na Bahia se manifestassem no Rio de Janeiro. Como Cassandra, personagem
mítico da sacerdotisa que profetiza a infelicidade e a queda de Tróia, a Assembléia
Provincial se encontrava numa situação paradoxal de predizer algo que julgava estar por vir
e que esperava que não se realizasse. O “cassandrismo” passa a estar na ordem do dia.
Mas, se levantes negros na Bahia e no Rio de Janeiro não eram exatamente uma
novidade na década de 1830, porque o afloramento de uma onda tão intensa de medo se deu
em 1835? No quarto capítulo, intitulado “Zona de Tensão Permanente: o medo deixa
marcas profundas”, busquei responder a essa pergunta com a noção de Zona de Tensão
Permanente. Essa noção refere-se à ambiência de medo e insegurança que caracterizou o
ano de 1835 e produziu efeitos jurídicos e políticos não apenas imediatos, como mais
vigilância e punição, mas também duradouros, como no caso da legislação criminal.
No quinto e último capítulo, “Medo e Colonização: a retórica da conservação”, foi
analisada a idéia de colonização como solução para o problema da escravidão e saída para a
ameaça de levantes negros. Procurei levantar as críticas mais eloqüentes sobre o trabalho
escravo em circulação no Brasil naquele momento para compreender como elas
influenciaram o debate em questão. A colonização aparecia nesse momento mais como uma
forma de conservar a escravidão do que de substituí-la. Ou seja, as inúmeras medidas
incentivadoras da vinda de colonos que inundarão a Corte no fim de 1835 não resolviam
definitivamente a questão da escravidão, mas sugeriam formas de tornar o escravismo mais
seguro para o homem branco nos trópicos. 1 TERROR E POLÍTICA: O MEDO COMO EFEITO DE PODER.
Medo é a coisa de que mais medo tenho no mundo Montaigne.1
Ao observar no Jornal do Commercio que o ano de 1835 tinha sido especialmente
tenso devido a uma grande onda de medo que varreu a Corte, a busca por compreender esse
fenômeno e seus efeitos na sociedade e no sistema escravista levou-me a buscar uma teoria
e um método capazes de descrevê-lo e analisá-lo historicamente. A partir de então uma
pergunta passou a assombrar-me: Como se constituem os medos sociais? A tentativa de
formular uma resposta a essa pergunta me conduziu, através das fontes, até a seguinte
afirmação: Onde houver relações de poder haverá medo. Isso não responde diretamente a
pergunta, mas orienta a pesquisa que visa respondê-la num âmbito particular: o do medo no
período regencial. Essa afirmação refere-se, sobretudo, aos medos nascidos quando se
instala uma sensação de impotência diante de uma ameaça coletiva. A percepção do perigo,
entretanto, é justamente o que possibilitará a mobilização de mecanismos para combatê-lo.
Será Hobbes o primeiro a teorizar sobre a relação entre medo e política. Ele aponta
para o medo como a base da sociedade, da política e da constituição do Estado. No trabalho
intitulado “Do cidadão”, ele anuncia como novidade de sua filosofia a idéia de que a
própria origem da sociedade humana deve ser reputada ao medo recíproco ( o mutuo metu )
entre os homens e não, como pensado até então, pela boa vontade recíproca ( a mutua
benevolentia). Dessa forma, o medo não apenas associa os homens, que buscam se
organizar para melhor proteger-se de possíveis perigos, mas também é ele que dá
sustentação as relações contratuais em que consistem os vínculos civis. O medo é como a
base do pensamento de Hobbes sobre a política, sendo ao mesmo tempo o cimento e os
tijolos da vida em sociedade. Ou seja, é por medo que somos levados a construir vínculos
sociais e, ao mesmo tempo, se não fosse o medo, através de um poder coercitivo capaz de 1Montaigne, Michel de. Ensaios. Trad. Sérgio Milliet. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1972. Cap.XVIII – Do Medo. p.46
constranger os homens ao cumprimento dos “contratos”, tal associação não teria validade
alguma. Isso significa dizer que, apesar de ser encarado como uma paixão negativa, o medo
é considerado por Hobbes como algo “administrável” no âmbito político. Mais do que isso,
seria o medo algo essencial para a construção e manutenção da autoridade do Estado
absoluto.2 Para ele, o homem, enquanto homini lupus3, só pode conseguir a paz e a
constituição de um estado civil pelo contrato social, mediante o qual os homens renunciam
a sua liberdade em favor do soberano. Assim, a política é entendida como uma criação dos
homens, e por conseqüência, o Estado é resultado de um acordo entre indivíduos.
Como contraponto a idéia de Hobbes, os leitores de Rousseau ponderariam que se
faz sentido supor que os homens instituíram as leis e os governos por medo, como faz
Hobbes, é apenas como uma etapa no caminho da constituição do despotismo e das práticas
arbitrárias de governo, já que “a força não cria direito e não confere moralidade aos seus
efeitos”4.Não se trata aqui, obviamente, de endossar as proposições hobbesianas, mas de
tentar avaliar, numa interface da História com a Teoria Política, as relações sempre
perigosas, sobretudo quando promíscuas, entre o medo e a política.
Vale lembrar que a noção hobbesiana de poder está relacionada à idéia de força,
entendida como algo que pode ser agregado e mesmo acumulado. Para Hobbes, “ter servos
é poder e ter amigos é poder, porque poder são forças unidas”5. Nesse sentido, como pontua
Limongi, a dinâmica da guerra descrita por Hobbes é tal que o medo do dano que o outro
pode causar numa situação de guerra se desenvolve a partir de uma perspectiva bastante
trágica, já que desse medo nasce a inclinação para a aquisição de poder e mais poder que,
gerando no outro a mesma disposição, culmina na guerra. É justamente esse estado de
guerra de todos contra todos que, segundo Hobbes, fundará a necessidade de um Estado
soberano capaz de regular as relações sociais através de leis, mas também da punição
àqueles que descumprirem o contrato. O que equivaleria dizer que o medo fundamenta a
necessidade do Estado absoluto.
2 Ver: LIMONGI, Maria Isabel. A racionalização do medo na política. In: NOVAES, Adauto (org.). Ensaios sobre o medo. São Paulo: Editora Senac São Paulo: Edições Sesc SP, 2007. P.135-152. 3 Referência à célebre expressão hobbesiana “homo homini lupus”, ou, o homem é o lobo do homem. 4 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Trad. de Lourdes Santos Machado, Coleção Os Pensadores, parte 1, capítulo 3. São Paulo Abril Cultural, 1978. 5 HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. J.P.Monteiro e M.B.N. da Silva, Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
Entretanto, bem mais interessante do que essa noção cumulativa de poder (“poder
são forças unidas”) seria a noção relacional de poder, tal qual nos apresenta Michel
Foucault. A noção foucaultiana de poder amplia o horizonte de possibilidades desse termo.
Nessa perspectiva relacional, o poder é entendido como algo que se exerce em rede, não
estando localizado, ou cristalizado. Para Foucault, o poder “não está localizado, jamais está
entre as mãos de alguns, como uma riqueza ou um bem. Ninguém é alvo inerte ou
consentidor do poder, são sempre seus intermediários.” 6 A idéia de poder como relação de
força aparece na perspectiva foucaultiana orientado para o âmbito das formas de sujeição,
para o âmbito das conexões e utilizações dos sistemas locais dessa sujeição e, enfim, para o
âmbito dos dispositivos de saber. Assim, Foucault chega a argumentar diretamente contra a
perspectiva hobbesiana: “É preciso estudar o poder fora do modelo do Leviatã, fora do
campo delimitado pela soberania jurídica e pela instituição do Estado; trata-se de analisa-lo
a partir das técnicas e táticas de dominação.”7
Embora a noção de poder em Hobbes seja contestada, é inegável a sua contribuição
para o tema da relação entre medo e política ou, num olhar mais direcionado, das relações
entre medo e poder. Ao aplicar aos argumentos de Hobbes, acerca da relação entre medo e
sociedade, a noção de poder defendida por Foucault, teríamos uma sutil ampliação da
perspectiva hobbesiana. Ou seja, se o medo do dano que o outro indivíduo pode causar
desencadeia a necessidade do contrato e de um macro-poder regulador (o Estado), seria
possível argumentar, em decorrência disso, que é justamente na teia dessas relações que o
medo se instala. O medo pode ser encarado, nessa perspectiva, como fruto das relações de
poder e, portanto, como um efeito direto dessas relações. Isso equivale a dizer que, se o
Estado se constitui através do medo é porque, antes disso, o medo se constituiu na teia de
relações de poder interpessoais. Não mais o medo como fundador do poder, mas sim como
efeito das relações de poder. Essa inversão na relação medo-poder é possível devido ao
sentido ampliado que a noção de poder tem na perspectiva foucaultiana. Surge assim a
possibilidade de trabalhar o medo como um efeito de poder. Nessa articulação, proponho o
estudo das relações de poder materializadas nos discursos sobre o medo.
6 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collêge de France (1975-1976). trad. de Maria E. Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.35 7 Idem, Ibidem. P.33
No entanto, como efeito de poder, o medo é heterogêneo. Pode ser um mecanismo
de sujeição, pode ser uma tática de resistência. Os medos sociais são sintomas das
desigualdades, são efeitos colaterais das formas de sujeição dos corpos, práticas e saberes
de determinados grupos sociais. Podem aparecer nas elites também como um sintoma de
que a excessiva hierarquização das relações de poder produziu resistência e enfrentamento
desse sistema. A diferença não deve gerar medo, a desigualdade sim. Quando a “ordem”
reguladora de um determinado sistema de relações de força parece ameaçada por tentativas
de rearranjo desse estado de coisas, os medos sociais afloram. Quando o equilíbrio das
relações de poder entre os grupos sociais é desestabilizado pelo afloramento de saberes e
práticas de resistência que contestam as hierarquias e privilégios constituídos
historicamente, o alarme do medo é disparado entre as elites. Esse sentimento aparece
então como capaz de catalisar contra-medidas de força, que visam restabelecer, renovar ou
reforçar as relações de poder existentes antes da percepção da ameaça. Não há medo sem
poder justamente porque sem relações de força não há ameaça.
Assim, embora a teoria política de Thomas Hobbes ponha o medo como a causa
primeira da associação entre os homens, da concessão de poder ao Estado e da regulação da
vida civil através de contratos, os medos sociais parecem passiveis de análise mais
profunda apenas quando levamos em conta suas raízes nas relações de força hierarquizadas
e desiguais entre os diferentes grupos que compõe a sociedade. Essas diferenças e
hierarquias, que são visíveis nos seus aspectos econômicos, culturais e políticos, ganharão
interessante materialidade nos discursos publicados na imprensa e nas políticas públicas de
Estado. Eis ai onde o medo torna-se material, reunido em sua dispersão, apresentado com
toda a sua força corrosiva e desestabilizadora.
Será em Michel Foucault, que não chega a trabalhar a questão do medo diretamente,
que recolho os apontamentos mais interessantes sobre o estudo do poder e de seus
mecanismos e táticas de sujeição. Assim, a análise do medo e de seus efeitos surge como
uma oportunidade interessante de estudar o poder em sua manifestação mais terrível.
Analisando os medos sociais de determinado período é possível apontar as relações de
força e os projetos políticos em embate nesse momento.
Foucault defende que os discursos devem ser tratados como conjuntos de
acontecimentos discursivos. Nesse sentido, o que se propõe tratar não são as representações
que podem haver por de trás do discurso, mas sim esses discursos como “séries regulares e
distintas de acontecimentos”. O discurso entendido não como representação mas como um
acontecimento é “capaz de introduzir na raiz mesma do pensamento o acaso, o descontínuo
e a materialidade” 8. É possível buscar nesse discurso um “conjunto crítico” 9, onde se
procura cercar as formas da exclusão, da limitação, da apropriação e mostrar como se
formaram, para responder a que necessidades.
Dessa forma, as investigações sobre o discurso do medo fariam parte de um artifício
tático para empreender uma análise das relações de poder e dos projetos políticos em jogo
no ano de 1835. Para nortear essas análises, reatualizo algumas precauções metodológicas
apontadas por Foucault para o estudo das relações de poder. Empreendi a sistematização
dessas precauções nos seguintes princípios:
Capilaridade. O poder não deve ser apreendido em seu centro, mas em seus
últimos lineamentos, “onde ele se torna capilar”10. Esse princípio defende a análise dirigida
para onde o poder investe-se nas técnicas e fornece instrumentos de intervenções materiais.
Foucault aponta para uma análise do poder que leve em conta aspectos não formais e que
ultrapasse o âmbito jurídico.
Exterioridade. Esse princípio defende um estudo voltado para a face externa do
poder, em contato com o objeto desse poder, ou seja, em seu campo de aplicação e no ponto
em que se implanta, produzindo seus efeitos. Isso implicaria estudar o poder na “altura dos
procedimentos de sujeição”11, nos procedimentos contínuos que sujeitam os corpos,
dirigem os gestos, regem os comportamentos.
Circularidade. “O poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles12”. Assim, o
poder se exerce em rede, funcionando em cadeia, não estando localizado aqui ou ali, não
estando nas mãos de alguém, como uma riqueza ou um bem. “Ninguém é alvo inerte ou
consentidor do poder, são sempre seus intermediários.”
Ascendência. “Todos nós temos poder no corpo”13. Esse princípio defende que é
preciso fazer uma “análise ascendente do poder”, ou seja, partir dos mecanismos 8 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Edições Loyola: São Paulo, 1996. p. 67. 9 Idem, Ibidem. P.73. 10 FOUCAULT, Michel. . Em defesa da sociedade: curso no Collêge de France (1975-1976). trad. de Maria E. Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.32. 11 Idem, Ibidem. P.33. 12 Idem, Ibidem. P.35. 13 Idem, Ibidem. P.36.
infinitesimais, que possuem sua própria história, seu trajeto, sua técnica e tática, e depois
ver como esses mecanismos de poder, que tem sua solidez, sua tecnologia própria, são
investidos, colonizados e utilizados por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de
dominação global. Ressaltando assim as técnicas de poder, o lucro econômico ou utilidade
política que delas derivam, compreendendo como esses mecanismos acabam por integrar o
todo, fazendo parte do conjunto.
Instrumentalização. “O poder, quando se exerce em seus mecanismos finos não
pode fazê-lo sem a formação, organização, e sem por em circulação um saber, ou melhor,
aparelhos de saber”14. Esse princípio propõe analisar os instrumentos efetivos de formação
e acúmulo de saber, métodos de observação, técnicas de registro, procedimentos de
investigação, pesquisa e interpretação.
Assim, é com a noção de poder defendida por Michel Foucault e com as precauções
metodológicas por ele apontadas que caminho por esse objeto com o intuito de responder a
pergunta que se colocou no início desse capítulo. Dessa forma pretendo estudar o medo
como fenômeno que se constitui no jogo das relações de poder. Essa noção irá auxiliar o
estudo do medo como fenômeno social. No entanto, para compreender as marcas que, por
sua vez, o medo deixa nas esferas jurídicas, políticas e policiais, busco novas ferramentas,
novos instrumentos para perceber como o medo produz materialidade.
1.1 -Heurística e política: os efeitos do medo
Quando atinge materialidade no discurso e nas medidas de Estado, o medo também
produzirá seus efeitos e deixará suas marcas, que são justamente o refluxo de violência
repressiva e as medidas jurídicas destinadas a conservar a “ordem”, ou as “coisas nos seus
devidos lugares”, leia-se: as relações de poder desiguais e as formas de sujeição inalteradas.
O medo se instala como efeito de poder e, a partir daí, ganha materialidade suficiente para
produzir seus próprios efeitos. São eles de duas naturezas: efeitos heurísticos e efeitos
políticos, ambos intimamente relacionados. Dessa forma, o medo apresenta-se sob dois
aspectos principais: ele é um princípio de conhecimento e um princípio de prática,
14 Idem, Ibidem. P.39.
sobretudo, um princípio de prática política. Assim é atribuída ao medo uma eficácia
heurística e uma eficácia política.
O filósofo Hans Jonas apresentou em seu livro O Princípio responsabilidade15 um
possível uso heurístico do medo, extraindo de tal idéia um princípio ético para lidar com
ameaças futuras, das quais seria um dever ético antecipar, evitando futuros danos à
sociedade. Esse pensador se mostra profundamente desconfiado em relação ao
desenvolvimento tecnológico contemporâneo. As promessas imprecisas da tecnologia
podem dissimular os perigos inerentes de um modo de avanço dos poderes técnicos que
Jonas teme que não possamos controlar ou gerenciar. Segundo a lógica quase
esquizofrênica de Hans Jonas, não seria apenas a má utilização do poder tecnológico, mas
sua própria boa utilização que encerraria o mais intenso dos perigos. Sua grande
preocupação é então revelar esses perigos contidos no desenvolvimento técnico. Dessa
forma ele tratará a heurística do medo como um instrumento de conhecimento capaz de
revelar perigos através do procedimento de nomeação e representação de ameaças,
ressaltando o valor do que está ameaçado. Nesse sentido, o medo provocado por uma
ameaça real é entendido como algo instrutivo. Assim,
[...] é somente a previsão de uma deformação do homem que nos fornece o conceito de homem que é preciso precaver, e temos a necessidade da ameaça contra a imagem do homem e de tipos totalmente específicos de ameaça, para nos assegurarmos de uma imagem verdadeira do homem, graças ao pavor que emana dessa ameaça.16
O medo é instrutivo na medida em que mobiliza o pensamento e a ação daqueles
capazes de antecipar tal ameaça para lidar com as possíveis situações de risco no futuro.
Além disso, o potencial heurístico do medo estaria justamente na capacidade de ressaltar
fatores de risco imperceptíveis de outro modo. Como sugere Jonas, quando “(...)o perigo é
desconhecido, ignoramos o que deve ser protegido”.17
Assim como Foucault aponta para a positividade do poder, como produtor de
saberes e regimes de verdade, o medo para Hans Jonas também produz positividade, ou
saberes, através de seu princípio heurístico. No entanto, é justamente nesse ponto que o
15JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto/ Editora PUC-Rio, 2006. 16Idem, Ibidem. p 49. 17 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto/ Editora PUC-Rio, 2006. p49.
pensamento desse autor assume uma dimensão bastante perigosa, ao afirmar então que “o
malum [o mal ] imaginado deve assumir o papel do malum experimentado”18. Aqui, Jonas
passa a argumentar que, já que o “mal” ou o perigo a ser antecipado pode não ter nenhuma
analogia com situações de medo já experimentadas, o medo dessa ameaça ganha a
legitimidade de algo concreto, passando então a ser representado como algo certo, cujos
esforços para ser evitado não devem ser poupados. Ou seja, Jonas acaba por legitimar ações
que podem ser arbitrárias, de incitação e representação do medo através de perigos que,
pelo fato de serem futuros, só existem como um mal imaginado. Na realidade, o que Jonas
acaba por destacar é o dever moral de suscitar sentimentos para reforçar a eficácia concreta
das antecipações dos perigos. Nesse sentido, seria necessário “mobilizar um temor”
adequado à representação do que se deve temer. Assim Bernard Seve define esse ponto do
pensamento de Jonas:
O dever de se representar o mal ainda desconhecido e não experimentado é acompanhado do dever de se fundir na própria representação. O medo é um motivo racional que deve se tornar um móvel sensível. Dito de outra maneira, a antecipação da ameaça dá apenas uma representação, em si, inerte. O elemento do sentimento, que faz do medo uma paixão enérgica e produtiva, deve ser produzido a partir da representação[...]19
Dessa forma, em Jonas, o papel “prático” do medo, e portanto a racionalização
desse medo, tem como função representar a ameaça ainda não experimentada. Os
desdobramento de tal administração do medo não poderiam deixar de ser pensados no
campo político. Se ao proceder a antecipação racional de um perigo, um indivíduo deve
sustentar o dever ético de representar para os outros o mal por eles ignorado, e esse é o
cerne do chamado “princípio-responsabilidade”, de que modo isso seria construído, digo,
de que modo tal representação do perigo futuro seria possível? A resposta de Jonas parece
assustadora: deve-se então impor o medo correspondente a ameaça, ou seja, para Jonas
“podemos, e até devemos, compensar essa ausência do mal [no presente], moldando um
medo ad hoc.”20
Assim, caberia a quem, além de um governo, tal possibilidade de mobilização
através do medo? Jonas evoca a idéia de uma “tirania do bem”, segundo Bernard Seves, 18 Idem, Ibidem. P.50. 19 SEVE, Bernard. O medo como procedimento heurístico e como instrumento de persuasão em Hans Jonas. In: NOVAES, Adauto (org.). Ensaios sobre o medo. São Paulo: Editora Senac São Paulo: Edições Sesc SP, 2007 P.174 20Idem, Ibidem. P.180.
”um tipo de conspiração no topo em vista do bem”21. Tal tipo de posição só poderia servir
para legitimar governos autoritários e sem nenhum respeito pelos cidadãos a quem deveria
representar. A idéia de que o medo suscitado pelos governantes serve para fazer com que
sejam aceitas modificações impostas com base na preocupação com o futuro, chega mesmo
a soar como um insulto generalizado a inteligência dos membros da sociedade. Nesse
sentido, concordo plenamente com a crítica formalizada por Seves:
A eficácia de tal política supõe que a avaliação das ameaças escapa do debate público: a menor dúvida com relação às bases das medidas restritivas seria fatal. Uma tal concepção é, também, incompatível com o princípio representativo-pluralista de nossas sociedades.22
A possibilidade do uso político do medo, não tem desdobramentos apenas no campo
da representação política mas também no campo das políticas pública, por exemplo, na área
da saúde. Nesse contexto, que seria propriamente o que Jonas aponta, o medo não teria
como fim a manipulação grosseira e tirânica dos governados pelos governantes, mais sim
um papel afirmativo no que diz respeito ao uso do medo. O medo nesse caso não seria para
legitimar a tirania, mas simplesmente para “influenciar” os membros da sociedade a mudar
hábitos nocivos. Por exemplo, Seves levanta o caso das políticas públicas de saúde, como
nos casos das campanhas anti-tabaco ou anti-álcool, que muitas vezes lançam mão de
imagens chocantes para inibir o consumo de tais substâncias. Nesses casos, trata-se de
influenciar o comportamento dos indivíduos sem limitar a sua liberdade, de incitá-los a
modificar seus hábitos potencialmente perigosos. Entretanto, é inevitável uma atitude de
constante suspeita frente a esse tipo de ação.
É preciso fazer justiça a Jonas, ressaltando que seu posicionamento não é
deliberadamente a favor do uso indiscriminado do medo como política de Estado. No
entanto, os possíveis desdobramentos de seu pensamento para a legitimação de ações
arbitrárias por parte do Estado não deixa de ser, por si só, uma perspectiva aterradora. Para
Seves, “Jonas considera certamente o medo como uma ferramenta política de segunda
linha, como uma ferramenta que seria melhor poder deixar de lado. A ferramenta política
de primeira linha seria, se não o entusiasmo, ao menos a aceitação de uma certa
moderação.”23 21Idem, Ibidem. P. 182. 22Idem, Ibidem. P.182. 23Idem, Ibidem. P.185.
Voltado para o campo do atual avanço tecnológico, Jonas defende que o medo pode
ser de grande utilidade, já que nos impulsionaria a enfrentar um perigo. A heurística do
medo seria então um método preconizado por ele para renovar os fundamentos da ética e
para revelar os valores a serem preservados. Segundo Nathalie Frogneux, “tal medo que
busca determinar e precisar valores, merece ser qualificado de heurístico, já que nos
fornece um saber, um saber ideal e filosófico, o saber teórico dos princípios éticos.”24 No
entanto, o medo em Jonas, como um método a ser “escrupulosamente aplicado”, suscita o
que Frogneux avaliará como o “paradoxo de Cassandra”. Personagem mítico da
sacerdotisa que profetiza a infelicidade, a queda de Tróia, mas cujo conhecimento do perigo
e da verdade é inaudível a seus concidadãos, que a repelem como “inútil Cassandra”, ou
denunciam como os “gritos de Cassandra” os gritos de “vão infelicidade” que teriam por
único efeito espalhar o medo na cidade. Assim define Nathalie Frogneux , o paradoxo de
Cassandra:
Como Cassandra, Jonas se encontra numa situação paradoxal de ordenar uma responsabilidade pelo futuro, predizendo algo que estará por vir e que, espera ele, não acontecerá. Resignado a fracassar no plano metafísico, a fim de obter sucesso no plano da ética, ele aceita o paradoxo do profeta cuja profecia é necessariamente falsa. Sua heurística do medo o leva assim, a profetizar o pior com o objetivo de evitá-lo. A partir daí, de duas uma: ou a profecia como ato performático causa seu efeito e a catástrofe é evitada invalidando a profecia, ou a profecia fracassa enquanto aviso, não produzindo nenhum efeito e se tornando verdade.25
Ao propor um uso heurístico do medo voltado pra o futuro, para a prevenção de
ameaças, Jonas não parece estar criando nenhum procedimento novo, mas apenas
sistematizando procedimentos utilizados como forma de lidar socialmente e políticamente
com o medo: a projeção de soluções baseadas no potencial heurístico do medo e sua
“administração” política.
A análise do potencial heurístico e político enriquecem o estudo das reações ao
medo em perspectiva histórica, na medida em que ressaltam que o medo também produz
positividade. O medo mimetiza alguns aspectos das manifestações materiais do poder,
gerando punição e controle, mas também saberes e regimes de verdade. Os efeitos
24 Nathalie Frogneux é professora de antropologia filosófica no Instituto Superior de Filosofia da Universidade Católica de Louvain (Bélgica). Ver: FROGNEUX, Nathalie. O medo como virtude de substituição. In: Novaes, Adauto (org.). Ensaios sobre o medo. Trad. de Marcelo Gomes. São Paulo: Editora Senac São Paulo: Edições Sesc SP, 2007. p.190. 25Idem, Ibidem p.201.
heurísticos e políticos do medo serão ferramentas importantes para entender as reações
sociais e políticas ao medo no Período Regencial e as marcas que esse medo deixará no
âmbito jurídico e policial.
Não se trata de supervalorizar as possibilidades e usos históricos do medo, ou
construir um conhecimento histórico exclusivamente baseado nessa paixão, mas sim de
usar esse medo como uma forma de materialização de uma série de tensões e embates que
estariam se dando em determinada sociedade em determinado tempo histórico. Perceber o
potencial heurístico do medo é atentar para as soluções propostas para saná-lo. Esses
antídotos contra a insegurança produzem medidas que materializam as relações de poder
vigentes. Heurística e política estarão, no caso do medo, intimamente vinculadas, já que as
medidas a fim de “administrar” esse sentimento ocultam sempre projetos de poder.
1.2 - OS CAMINHOS DO MEDO: uma discussão historiográfica.
No campo da historiografia, o tema do medo está ligado intimamente a noção de
“mentalidade” e tem como exemplos clássicos as obras de George Lefebvre e de Jean
Delumeau.
No livro “O grande medo de 1789”, Lefebvre analisa os levantes camponeses no
início do processo revolucionário francês, articulados a alguns medos coletivos como o
medo da fome, dos motins, de manifestações anti-revolucionárias, entre outros. Lefebvre
argumenta no sentido de tornar evidente como as ameaças sentidas ou experimentadas
pelos camponeses franceses puderam motivar medos e reações capazes de gerar pânicos
coletivos, revoltas e difusão de boatos e rumores que acabavam por amplificar a atmosfera
de medo. Preocupado com a história social, o autor irá associá-la a necessidade de se
compreender o “conteúdo mental” das classes populares. Enfatiza assim a importância da
mentalidade coletiva, utilizando elementos de psicologia social para tentar explorar tais
conteúdos mentais.
Francisco Falcon, na introdução a edição brasileira de O grande medo de 178926,
destaca que Lefebvre estava convencido que a conexão entre causa e efeito no plano da
história social vinculava-se intimamente à mentalidade coletiva. Essa obra inauguradora e
seminal escrita em 1932, influenciará perceptivelmente o trabalho de inúmeros
historiadores ligados a noção de mentalidade. A influência do trabalho de Lefebvre é
notória, sobretudo, em Jean Delumeau, que também usará a noção de mentalidade para
tratar do tema do medo em perspectiva histórica, usando também elementos de psicologia
social.
Outro historiador seminal, Lucien Febvre já havia apontado para a importância de se
considerar temas como o amor, a morte, a piedade, a crueldade e a alegria no conjunto de
problematizações a serem abordadas pelos historiadores, defendendo a possibilidade e a
validade de pesquisas sobre a “utensilagem mental” no contexto de uma história social,
onde se buscava enfatizar narrativas que valorizassem os sentimentos dos agentes sociais.
O trabalho de Delumeau intitulado A História do Medo no Ocidente se inscreve na
idéia de uma história das mentalidades, seguindo os caminhos da École des Annales, com
bastante influência das concepções de Marc Bloch e, como já citado, com evidente
articulação com os caminhos trilhados por Geoges Lefebvre. Nos fundadores da revista dos
Annales encontram-se os marcos iniciais das reflexões que caracterizaram novos objetos de
estudo e novas metodologias para a escrita do conhecimento histórico.
Delumeau divide sua história do medo em dois grandes blocos: os medos da maioria
e os medos da cultura dirigente. O medo do mar, dos fantasmas, da noite, o medo da peste
e das sedições foram inventariados nessa primeira parte do trabalho de Delumeau. Na
segunda parte, o autor traçará uma relação entre o medo e a cultura dirigente, mergulhando
nos medos escatológicos e no nascimento do mundo moderno, num período em que a
cultura cristã se sentia ameaçada pela Peste Negra, pela guerra dos cem anos, pelo avanço
turco, pelo Cisma, pelas cruzadas e etc. Delumeau chama atenção para a difusão dos medos
na imprensa, no teatro religioso, nas gravuras ou pregações nas igrejas. Para ele há uma
relação entre as ondas de difusão e as campanhas repressão e perseguição.
Ele faz uma distinção entre medos espontâneos e medos nomeados, ou seja, entre as
ameaças genéricas como tempestades, doenças, fantasmas e a morte por um lado e, por 26 LEFEBVRE, Georges. O grande medo de 1789: os camponeses e a Revolução Francesa. Trad. Carlos Eduardo Castro Leal; prefacio de Fancisco José Calazans Falcon. Rio de Janeiro: Campus, 1979
outro, ameaças identificadas e classificadas por determinados grupos, como a Igreja, a fim
de garantir a manutenção e a perpetuação de seus lugares de mando e intervenção, assim
como sua posição de destaque numa sociedade organizada hierarquicamente. Através dessa
separação entre medos espontâneos, trabalhada na primeira parte do livro, e medos
nomeados, trabalhada especialmente na segunda, o autor encaminhou uma análise que
viabilizou o estudo das relações entre medo e poder. Para tanto, utiliza procedimentos de
psicologia social, inferindo para o campo da coletividade reações individuais, dialogando
até com elementos de fisiologia sobre os efeitos do medo, sobretudo quando se trata de
relacionar o medo à ocorrência de sedições. Segundo Delumeau, as “evocações da
fisiologia individual sem dúvida não são inúteis para compreender os fenômenos
coletivos”27. Apesar de chegar a resultado interessantes, tal procedimento metodológico é
bastante arriscado, já que ao operar a “transposição do singular ao plural”, nas palavras do
autor, o perigo de incorrer em generalizações grosseiras é muito grande Esse tipo de
procedimento, que persegue a idéia de um estudo das “mentalidades” em constante diálogo
com elementos de psicologia social, não está entre as escolhas metodológicas do presente
trabalho.
Para além desse eixo vinculado às mentalidades, aponto outros estudos que
focalizam as relações entre política e medo. Nesse outro momento da historiografia estão os
trabalhos diretamente voltados para o contexto da história do Brasil. Alguns deles tratam
mais especificamente da questão da escravidão, formando uma interface com a
historiografia sobre o medo, como é o caso do livro Histórias de Quilombolas, de Flávio
Gomes, e O medo na cidade do Rio de Janeiro, de Vera Malaguti. Discuto também o
trabalho de Márcia Gonçalves, que faz o inventario dos medos sociais especificamente no
período regencial brasileiro.
Na dissertação de mestrado defendida na UFF no ano de 1995, intitulada Ânimos
Temoratos: uma leitura dos medos sociais na Corte no tempo das Regências, Márcia
Gonçalves lança mão da diferenciação proposta por Delumeau entre medos espontâneos e
medos nomeados, utilizando-se, sobretudo, dessa segunda categoria para tentar reconstruir
uma série de experiências históricas no recorte temporal da Regência e no recorte espacial
da cidade do Rio de Janeiro. No primeiro capítulo desse trabalho, Gonçalves fará um
27 DELUMEAU, Jean. A História do Medo no Ocidente. São Paulo: Companhia da Letras. 1989. p. 29
inventário dos medos sociais que compunham a ambiência da Corte na década de 1830,
chamando a atenção para a percepção de um clima de constante ameaça devido a
instabilidade política e social. Assim, o medo de haitianismos, dialogará com medos de
manifestações ou “desordens” políticas, criminalidade e ameaça constante de epidemias.
Sobre a questão da criminalidade nas ruas da cidade, destacará três categorias ou tipos de
crimes que permearão o espaço urbano da Corte. Esses crimes são percebidos como um
atentado direto a manutenção da tranqüilidade no seio da chamada “boa sociedade”,
entendida como a elite política composta pelos cidadãos ativos e, portanto, por proprietários
de terras das camadas mais abastadas da sociedade. Os chamados “crimes públicos” se
caracterizariam como conspirações, rebeliões, sedições, insurreições, resistências, fugas de
presos e desobediências às autoridades, segundo descritas pelo Código Criminal do
Império. Além disso, se contariam ainda os “crimes particulares”, referindo-se aos delitos
contra a segurança e a vida da pessoa, a segurança da honra e, sobretudo, a segurança da
propriedade, destacando os “furtos da Rua do Ouvidor, possivelmente realizados por uma
canalha boemiana”.28 Por fim, entre os chamados “crimes policiais” contava-se as ofensas
contra a religião, a moral e bons costumes, a organização de sociedades secretas, a
realização de ajuntamentos ilícitos, a utilização de armas de defesa, o uso indevido da
imprensa e a prática de vadiagem. Numa ambiência onde se misturam cometas,
enfermidades, crimes e revoltas, Márcia Gonçalves irá traçar um panorama dos medos
sociais do período.
Para além disso, o trabalho buscará mostrar como a abdicação será o estopim para
as tensões entre diferentes projetos políticos que irão se enfrentar, lançando mão da
nomeação de alguns medos para legitimar o projeto que buscará associar as idéias de ordem
e progresso, na perspectiva de defender a conservação como elemento central da política
imperial. Assim, a estratégia de estímulo a identificação de ameaças foi administrada de
forma a cultivar certos medos, de modo a fragilizar os adversários da moderação
conservadora. Nesse clima de acirramento de conflitos políticos, a tática de nomeação dos
medos, sobretudo o medo da “anarquia e das desordens”, foi usada, sobretudo, nas disputas
pós-abdicação entre moderados e exaltados e no período pós 1834 entre a ala mais
28 GONÇALVES, Márcia de Almeida. Ânimos Temoratos: Uma leitura dos medos sociais na Corte no tempo das Regências. Dissertação de Mestrado em História. UFF, 1995. p.47.
progressista do grupo moderado e a ala mais conservadora, associada aos adeptos do
chamado Regresso. Nesse sentido, teria sido essa ala mais conservadora a que mais
habilmente usou tal estratégia de nomeação de medos como forma de defender uma maior
centralização política através de propostas de reforma ao Ato Adicional de 1834.
Além da nomeação de medos específicos, a perspectiva do medo enquanto atitude
cautelar necessária a implantação da noção de ordem será defendida pelos regressistas,
emblematizados na figura de Bernardo Pereira de Vasconcelos. Utilizando fontes como
relatórios médicos, discursos políticos e, sobretudo, jornais, Gonçalves emprega as
categoria de “mundo do governo”, “mundo do trabalho” e “mundo da desordem”,
defendidas por Ilmar de Mattos no clássico O tempo Saquarema. Dialogando com Chartier
através da noção de “equilíbrio de tensões” para tratar dos embates políticos que
caracterizam o período regencial, a autora articulará essa noção com as considerações de
Mannheim sobre o pensamento conservador e sua difusão. É preciso ressaltar o rigor e o
pioneirismo desse trabalho, ao aplicar o estudo do tema do medo à História do Brasil e ao
período regencial.
Flávio Gomes constrói uma interface entre o problema do medo e as questões
referentes à resistência negra. Ele problematiza as relações sociais e formas de
sociabilidades sob o escravismo, buscando apontar a complexa interação que inclui
enfrentamentos e conflitos nos “mundos da escravidão”, tentando compreender as
transformações históricas no regime escravista a partir dos quilombos e das comunidades
de senzalas. Nas obra “Histórias de Quilombolas”29, o autor analisa uma vasta
documentação policial, constituída de correspondências e ofícios trocados pelas diversas
autoridades policiais da Província do Rio de Janeiro, para trabalhar essas comunidades
negras analisando as economias, organizações sociais e ações de enfrentamento. Busca,
num diálogo constante com a perspectiva thompsoniana, compreender os mundos criados
pelos quilombolas e as transformações nas relações entre senhores e escravos. O segundo
capítulo discute a insurreição ocorrida na região de Vassouras em 1838, quando inúmeros
cativos fogem para o interior da floresta com o objetivo de formar quilombos. Assim, em
“A cor do medo: políticas, senhores e escravos, F.Gomes aponta para a relação entre os
“medos brancos” e as ondas de violência e racialização da repressão policial, reconhecendo 29GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de Quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. Ed rev. e ampl.. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
o ano de 1835 e o levante Malê como o grande afloramento desse tipo de medo, que
inflamará a imaginação das classes senhoriais amplificando a repercussão do levante
ocorrido em 1838. As articulações entre a temática do medo e a historiografia sobre
escravidão e resistência negra são de grande interesse para o trabalho que aqui se busca
desenvolver.
A historiografia sobre resistência escrava, sobretudo a partir dos anos 80, tem dado
enorme importância às transgressões cotidianas, aos pequenos atos de rebeldia, às fugas
temporárias, aos furtos perpetrados pelos negros, às alianças circunstanciais ou não com
outros membros das camadas subordinadas, às festividades, as tentativas de preservação de
arranjos familiares e demais grupos de convivência, problematizando a coisificação do
escravo. A cultura negra e seu universo simbólico tem sido estudados com grande êxito por
parte da historiografia contemporânea.
O rico percurso traçado por trabalhos pioneiros como os de João José Reis30 e
Sidney Chalhoub31 realçou enormemente a dimensão do esforço cotidiano de luta, da árdua
rotina constitutiva da vida de homens e mulheres expostos e surrados em praça pública e
traficados quase como um material inerte. É preciso lembrar que nos anos oitenta e início
dos noventa a historiografia da escravidão no Brasil, ou parte significativa dela, buscava o
escravo como sujeito. Os quilombolas analisados por Flávio Gomes32, por exemplo,
deixaram de ser fugitivos de um sistema escravista para tornarem-se combatentes de um
outro tipo de liberdade. Surgiram dali homens com histórias de vida próprias e memórias de
lutas coletivas. A influência thompsoniana neste tipo de estudo tornou-se evidente. Ela unia
a história da escravidão àquela referente aos estudos sobre as relações e processo de
trabalho livre no Brasil. Para esta historiografia, os escravos e quilombolas eram indivíduos
com personalidade e problemas pessoais, mas também faziam-se classe em diferentes
contextos, especialmente quando imbuídos de um espírito de luta herdado e partilhado por
experiências vindas de um presente ou de um passado em comum. As lutas pela liberdade
ganharam outros ares, ampliando-se dentro de um universo em que muitos escravos
desejavam ser ou tornar-se livres, vivendo sobre si e tendo quem os servissem. Ser livre era,
30 REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: A História do Levante dos Malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 31 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. São Paulo: Companhia das Letras. 1996. 32FLORY, Thomas. Judge and Jury in Imperial Brazil, 1808-1871: Social Control and Political Stability in the New State. Austin/Londres: University of Texas Press, 1981.
em suma, ter propriedades, fossem elas um terreno ou um escravo, a liberdade estava
contida, portanto, seja nas rebeliões e fugas escravas, seja na solidariedade étnico-religiosa,
que extrapolava, em muito, as fronteiras da relação senhor/escravo.
A historiografia dos anos 90 sobre resistência escrava tem dado enorme importância
às transgressões cotidianas, aos pequenos atos de rebeldia, às fugas temporárias, aos furtos
perpetrados pelos negros, aos “derriços e algazarras”, às alianças circunstanciais ou não
com outros membros das camadas subordinadas, às festividades, as tentativas de
preservação de arranjos familiares e demais grupos de convivência, enfim, às expressões de
humanidade dos cativos que sempre se repetiam por mais que os senhores tentassem
reduzi-los à condição de coisas.
Já Vera Malaguti, no livro O medo na cidade do Rio de Janeiro, propõe uma análise
comparativa entre o medo causado pelo levante Male de 1835 e o medo branco dos
“arrastões” ocorridos no Rio de Janeiro no início da década de 1990. Com a tese de que a
difusão do medo do caos e da desordem tem “sempre servido para detonar estratégias de
neutralização e disciplinamento planejado das massas empobrecidas”.33 O que Malaguti
pretende é trabalhar numa perspectiva diacrônica, em dois tempos, uma história do medo na
corte imperial e uma onda contemporânea de pânico na cidade, buscando traçar as rupturas
e permanências nos medos de ontem e de hoje. Para tanto, utiliza registros oficiais e jornais
para ambas as temporalidades. Assim, pretende contribuir para questionar “o caráter
autoritário das estratégias de controle social no Brasil, ainda hoje”.34 Como hipótese
central, a autora trabalha a idéia de que a “hegemonia conservadora” na nossa formação
cultural trabalha a difusão do medo como mecanismo indutor e justificador de políticas
autoritárias de controle social.
Nesse sentido, o medo torna-se um fator de tomadas de posições estratégicas seja no
campo econômico, político ou social, defendendo que “historicamente, esse medo vem
sendo trabalhado desde o modelo colonial escravista e na formação de uma República que
incorpora excluindo, com forte viés autoritário”.35 O que Malaguti acaba por fazer é elevar
a níveis astronômicos, e as vezes até paranóicos, a estratégia de nomeação dos medos como
33 Malaguti Batista, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p.20. 34Idem, Ibidem. P.23. 35Idem, Ibidem. P.25.
tática de legitimação de projetos políticos. A idéia de um “espetáculo de horror” que seria
“ardilosamente construído” e com a possibilidade de um “pacto sinistro” entre as “forças
conservadoras” e a “grande mídia no Rio de Janeiro”. Dessa forma, Malaguti acaba
hiperbolizando a consciência histórica dos sujeitos envolvidos na trama analisada, como se
esses indivíduos soubessem de antemão todos os efeitos provocados por suas ações.
Munidos de um maquiavelismo quase premonitório, os “pactos sinistros” acabam ganhando
uma dimensão simplista e caricata. O trabalho também possui alguns anacronismos, como
por exemplo o de traçar uma trajetória linear entre as revoltas escravas no século XIX e os
arrastões cariocas na década de 1990.
Embora os objetivos desse trabalho sejam bastante interessantes, parece que a
autora não conseguiu plenamente a realização do empreendimento proposto. Outro ponto
de conflito a ser destacado seria o excessivo ecletismo teórico, que leva Malaguti a
trabalhar com noções de viés marxista de pensadores como Baktin, Gramsci, Terry
Eagleton, além de noções de Bourdieu, e misturá-las, sem nenhuma tentativa de articulação,
com noções do pensamento pós-estruturalista de Derrida, Jean Baudrillard e Michel
Foucault. Essa salada epistemológica aparece em inúmeras citações, por vezes
descontextualizadas, que ao invés de servirem para enriquecer a perspectiva teórica do
trabalho, acabam por desorientá-la.
Após o comentário dos principais eixos de interpretação sobre o medo, assumo aqui
a perspectiva que propõe a articulação íntima entre medo, relações de poder e nomeação
dos medos como forma de legitimação de projetos políticos. A noção de medo como efeito
de poder é uma forma de humanizar os sujeitos históricos envolvidos na trama que analiso,
já que esses agentes não nomeiam os medos como se não participassem dessa ambiência de
perigo e ameaça. O medo como efeito de poder é fruto da busca por analisar o que estava
em jogo no período das Regências, momento em que certamente a elite política temia
abalos nas hierarquias sociais historicamente constituídas, seja através de projetos políticos
que propusessem mudanças profundas seja através de manifestações que pusessem em risco
a noção de ordem defendida por uma parcela dessa elite.
2 IMPRENSA, LIBERALISMO E ESCRAVIDÃO: A CIDADE QUE ACOLHE AS
NOTÍCIAS
(...) a palavra foi sempre uma reforma; falada na tribuna é prodigiosa, é criadora, mas é o monólogo; escrita no livro, é ainda criadora, é ainda prodigiosa, mas é ainda o monólogo; esculpida no jornal, é prodigiosa e criadora, mas não é o monólogo, é a discussão. E o que é a discussão? A sentença de morte de todo estatus quo, de todos os falsos princípios dominantes. Desde que uma coisa é trazida à discussão, não tem legitimidade evidente, e nesse caso o choque da argumentação é uma probabilidade de quebra. Ora, a discussão, que é a feição mais especial, o cunho mais vivo do jornal, é o que não convém exatamente à organização desigual e sinuosa da sociedade.
(Machado de Assis - A Reforma pelo Jornal)36
“Houve uma coisa que fez tremer as aristocracias, mais do que os movimentos
populares: foi o jornal”. Assim Machado de Assis começa a crônica intitulada A Reforma
36 MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994.
pelo Jornal. Apesar de posterior à temporalidade que nos interessa, essa crônica revela uma
análise brilhante da imprensa na primeira metade de século XIX, mostrando seu conteúdo
crítico e, sobretudo, a politização que a imprensa é capaz de engendrar nesse momento.
O século XIX nasceu em meio ao embate entre Antigo Regime e Luzes, ou no
âmbito das disputas entre tradição e idéias de renovação, emblematizadas pelo ideário
liberal. Esse embate envolveu a dimensão sócio-econômica e, sobretudo, a difusão de uma
nova concepção de mundo em termos políticos e intelectuais. O liberalismo, que em suas
raízes se articula ao desenvolvimento do capitalismo e à crise da sociedade senhorial, teve
seus princípios básicos estampados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
promulgada em 27 de agosto de 1789. Nessa espécie de cartilha do liberalismo político,
eram consagrados os princípios do governo representativo, da primazia das leis e da
soberania da nação. Assim, assegurava-se aos cidadãos as liberdades individuais e o direito
a propriedade.
Nesse sentido, a Declaração de 1789 postulava que todos os cidadãos tinham o
direito de participar na formulação de certos preceitos fundamentais, obrigatórios para
manter a ordem e o desenvolvimento da comunidade.
No início do século XIX a Europa encontrava-se ainda atormentada pela turbulência
do impacto da Revolução Francesa e das guerras napoleônicas. As concepções políticas
liberais, vitoriosas na Inglaterra desde o século XVII e reafirmadas pela Revolução
Francesa, ganhavam terreno e difundiam-se amplamente, representando uma resistência
considerável em relação às idéias de restauração das forças tradicionais. Mesmo com a
intensa perseguição dos censores régios, algumas obras típicas da Ilustração francesa,
contendo idéias “perigosas” e “revolucionárias”, penetravam no mundo colonial tanto antes
como depois de 180837.
A transferência da Corte portuguesa em 1808, fugindo da invasão napoleônica,
trouxe também boa parte do aparato administrativo português. A criação de um aparelho
burocrático e a consequente formação de quadros para compo-lo irá suscitar o aparecimento
de setores urbanos que dinamizarão as relações de sociabilidade no Rio de Janeiro.
Segundo Robert Moses Pechman, quando D.João VI chegou ao Rio, trouxe consigo não
apenas a chave para a abertura dos portos e a integração da colônia no mercado 37 Existem estudos, como o de E. Frieiro, de algumas dessas obras “proibidas” nas bibliotecas mineiras no fim do século XVIII. Ver: FRIEIRO. O diabo na livraria do cônego. Belo Horizonte: Itatiaia, 1957.
internacional, mas também a receita de uma nova sociedade que se instalaria em terras
cariocas. Assim, “D. João acomodaria aqui, com todos os rapapés e politesses ainda que
um tanto gastos, uma sociedade cortesã”.38 Pechman defende que com a chegada da Corte,
criar-se-á um ideal de civilidade, cortesia, honra, moral e vida pública. O enxerto
burocrático suscitou uma procura de moradias, serviços e bens diversos.
Chegam também mais africanos, dado que a baía de Guanabara convertera-se,
desde o final do século XVIII, no maior terminal negreiro da América. Embora a maioria
desses negros se destinasse à zona agrícola, um número crescente de escravos será retido
nos meios urbanos para atender à demanda de serviços, de forma que entre 1799 e 1821 a
percentagem de cativos no município salta de 35% para 46%39.
O desenvolvimento urbano é notório. Embora a maior proporção de escravos na
população tenha ocorrido em 1821, com 46%, a população escrava vai crescer junto com a
cidade até meados do século, quando cessou o influxo da África devido à lei anti-tráfico de
1850 e as medidas do Estado que se seguiram para evitar que essa lei fosse letra morta.
Junto com o aparelhamento burocrático, se dá o aparelhamento repressivo
institucionalizado, marcado pela criação da Guarda Real de Polícia em 1808 / 09.
No mesmo ano de 1808 surge também a Gazeta do Rio de Janeiro, jornal elaborado
como as gazetas do Antigo Regime existentes na Europa desde o século XVII. Funcionando
como porta-voz da Coroa, essas publicações de cunho oficial eram editadas com
autorização prévia. Entre 1813 e 1814 circulará pelo Rio de Janeiro O Patriota, periódico
impresso na Tipografia Real que, mesmo sem fazer críticas à Coroa e sem sustentar idéias
consideradas ousadas do ponto de vista político, terá vida curta.
Em agosto de 1820, emerge a revolução constitucionalista no Porto, fruto de um
movimento militar que defendia a Constituição e a “regeneração” política, substituindo as
práticas do Antigo Regime pelas do liberalismo, influenciada pela ótica das “mitigadas
Luzes” ibéricas. Era o início da agonia do Antigo Regime português. O fato da revolução
do Porto ter ganhado a adesão de províncias do Brasil, como Pará, Bahia e Rio de Janeiro,
fazem do ano de 1821 um momento de intensa pregação das idéias liberais e
38 PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002. 39 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida Privada e Ordem Privada no Império. In: _________________ (Org.). História da Vida Privada no Brasil, v. 2: Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p.14
constitucionalistas. A incorporação dessas idéias liberais, resultantes da revolução de 1820,
transcorreu sem muita dificuldades pelos componentes das elites do mundo brasileiro40, já
que a elite política e intelectual brasileira, em grande parte, havia passado pela
Universidade de Coimbra, onde houve um processo de relativa homegeinização desses
indivíduos, no que tange aos seus valores e padrões de comportamento41.
Com as revoluções constitucionalistas de 1820 em Portugal e na Espanha,
inspiradas no modelo liberal da Constituição de Cadíz (1812), começam a vir a baila
mudanças significativas nas estruturas políticas da Península Ibérica e nos seus domínios
ultra-marinos. Uma das primeiras medidas da Junta de Governo da revolução
constitucionalista do Porto foi decretar liberdade de imprensa, além da liberação da
circulação de publicações portuguesas fora de Portugal. Essas medidas tiveram reflexo
direto nas colônias e, sobretudo, no Brasil enquanto nova sede da Coroa portuguesa, posto
que D. João VI continuava instalado no Rio de Janeiro. O monarca assinará a 2 de março de
1821 um decreto suspendendo provisoriamente a censura prévia para a imprensa em geral.
No entanto, trata-se de uma decisão tardia, já que a livre circulação de impressos já se
tornara inevitável no Brasil naquele momento. O que se verifica em seguida não é uma
linha progressiva e ascendente de crescimento desta liberdade, já que a questão do controle
dessa atividade seguiria uma linha sinuosa. A relação íntima entre imprensa e política
marcará todo o século XIX.
O Brasil percorrerá um longo caminho até a sua autonomia, alcançada não quando
D.Pedro I desembanhou a espada às margens do Ipiranga e gritou “independência ou
morte” em 7 de setembro de 1822, mas quando a elite brasileira começou a cuidar de seus
próprios assuntos internos e a criar as instituições e os procedimentos da nacionalidade
independente. Durante o primeiro reinado, o clima era de instabilidade. A convocação da
Assembléia Constituinte, eleita no início de 1823, surge como um fracasso devido a uma
forte divergência entre os deputados brasileiros e o soberano, que exigia um poder pessoal
superior ao do Legislativo e do Judiciário. Como resultado desse embate a Assembléia é
dissolvida. A Constituição é outorgada pelo imperador em 1824. Contra essa decisão
40 Ver: NEVES,Lúcia Bastos P. Liberalismo político no Brasil: Idéias, Representações e Práticas (1820-1823). In: GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal; PRADO, Maria Emília (Orgs.). O liberalismo no Brasil imperial: origens, conceitos e prática. Rio de Janeiro: Revan: UERJ, 2001.p. 73-102 41 Ver: CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem: a elite política imperial. Teatro das sombras: política imperial. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Relume-Dumará, 1996.
rebelam-se algumas províncias do Nordeste, lideradas por Pernambuco. A revolta,
conhecida pelo nome de Confederação do Equador, uma clara demonstração da falta de
integração e de legitimidade política, é severamente reprimida pelas tropas imperiais. Além
disso, o clima geral é de tumulto e instabilidade, descontentamentos e sentimentos anti-
lusitanos.
No momento em questão ocorre uma transformação na natureza dos escritos e na
forma como sua circulação afeta a sociedade. Para Morel, essa transformação pode ser
entendia no quadro das rupturas com os tipos de comunicação que caracterizavam o espaço
público do Antigo Regime, como gazetas, pregões, exibição de cartazes impressos, leituras
coletivas e proclamações em voz alta, para um espaço público onde ganhavam terreno as
leituras privadas e individuais, onde tem lugar a construção de uma opinião de caráter mais
abstrato, fundamentada pela crítica de cada “cidadão-leitor”.42 É sobre esse tipo de
transformação, de um tipo de comunicação impressa do Antigo Regime para a imprensa
característica dessa modernidade política que se insinua na década de 1820 e 1830, que
parece fazer referência a crônica de Machado de Assis anteriormente citada. Claro está que
a primeira metade do século XIX pode ser caracterizada como um momento onde essas
duas formas irão coexistir, onde o arcaísmo e a modernidade política estarão em constante
confronto no espaço público.
Entre 1820 e 1822 ocorre uma verdadeira explosão de escritos impressos em
circulação no Rio de Janeiro de forma que, se em 1820 a cidade contava apenas com uma
publicação periódica, esse número salta para onze no ano seguinte, sem contar com o
grande afluxo de impressos não periódicos como panfletos, brochuras, manifestos,
proclamações e etc. O assunto preferido de tais impressos era sem dúvida a discussão sobre
a necessidade e a pertinência da permanência da família real portuguesa no Brasil, já que
uma das reivindicações mais veementes do movimento liberal do porto era seu retorno a
Portugal. É interessante perceber que, como ressalta Morel, “discutir publicamente, com
pontos de vista divergentes, que posição o rei deveria adotar, não era exatamente uma
atitude compatível com o exercício do poder absoluto do monarca.”43
42Ver: MOREL, Marco. As transformações no espaço público: imprensa, atores políticos e sociabilidades na Cidade Imperial, 1820-1840. São Paulo: Hucitec, 2005. p.205 43 Idem, Ibidem. p.206
O tema da independência, entendido como um ato de desobediência às autoridades
portuguesas representadas sobretudo pelas Cortes liberais, só aparece de forma clara nos
impressos no início de 1822. O que vemos antes disso é o surgimento de antagonismos que
irão se acentuar cada vez mais. Nesse momento, a noção de opinião pública entrará em
cena como instrumento de debates e fonte de legitimidade, como conceito fundamental da
já referida modernidade política que está em choque nesse ambiente com formas políticas
arcaicas típicas do ideário absolutista.44 O emprego da noção de opinião pública aponta
para a percepção de que uma transformação fundamental está em curso nesse contexto. Tal
mudança diz respeito a maneira de pensar a política, ou de pensar politicamente. Trata-se
de uma transferência do poder absoluto do monarca para a partilha desse poder com a
instância legitimadora do princípio monárquico, leia-se a opinião pública. Nesse momento
entrará em cena “sua Majestade a Opinião Pública”, como ironizava o jornal O Hospital
Fluminense em 1º de Abril de 1833. Ainda nesse sentido, Morel assim define o termo: “(...)
expressão repetida à exaustão durante alvorecer da modernidade política expressa nos
diversos liberalismos. A opinião como produto simbólico e abstrato, com força moral e
jurídica – soberana no reino da razão.”45
No Brasil, a expressão liberdade política parece ter aparecido e ganhado circulação,
sobretudo, ao longo ano de 1822, ainda em relação aos direitos que o povo deveria usufruir
em relação a sua antiga metrópole. Nesse momento, uma nova realidade se impunha,
instalando uma Monarquia Constitucional, em oposição ao Antigo Regime. Entretanto, o
principal esforço se dava no sentido de introduzir reformas, mais do que empreender
revoluções.
A lei de liberdade de imprensa, aprovada em agosto de 1821, gerou inúmeras
discussões entre os membros da nova esfera pública, o que levou D.Pedro a proibir, em
Janeiro de 1822 o anonimato de publicações, na busca por estabelecer, ao menos,
responsabilidade pelo conteúdo de tais publicações. Segundo Lúcia Bastos, essas novas 44 Não está entre os objetivos desse trabalho a verticalização desse tema mas sim a compreensão de que em perspectiva histórica o emprego da expressão “opinião pública” por si só já aponta para mudanças nas concepções do período em relação às noções de representação e sobrerania. Para uma discussão mais aprofundada sobre o conceito de opinião pública ver Habermas, C.R. L’espace public: archéologie de la publicité comme dimmension constitutive de la société bougeoise. Paris, 1978; e Koselleck, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênise do mundo burguês. Trad. Luciana Villas-Boas – Rio de Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 1999. Apud. MOREL, Marco. Op. Cit. p. 200-222. 45MOREL, Marco. As transformações no espaço público: imprensa, atores políticos e sociabilidades na Cidade Imperial, 1820-1840. São Paulo: Hucitec, 2005, 208.
práticas liberais implicaram no estabelecimento de uma outra lógica, que transformava o
conjunto dos cidadãos em autêntica esfera pública de poder, “exigindo uma série de
procedimentos que a elite dirigente porém, não estava disposta, ou não tinha condições, de
implementar.”46
Nesse momento, um conflito emerge envolvendo o embate entre duas vertentes do
liberalismo. Uma estava ligada àqueles que desejavam um governo baseado na soberania
popular, tendo D.Pedro como chefe escolhido do povo e subordinado a seus representantes.
Esse grupo era formado, em sua maioria, pelos que haviam nascido no Brasil e tinham na
palavra impressa o único contato com o mundo estrangeiro, estando agrupados em torno de
Joaquim Gonsalves Ledo, constituindo-se nos principais ideólogos do separatismo. Um
outro grupo, que se formava em torno de José Bonifácio de Andrada e Silva, defendia uma
constituição que limitasse os poderes da Assembléia Legislativa, aceitando a autoridade do
soberano como direito legalmente herdado através da dinastia. Desse grupo, participavam
principalmente indivíduos formados em Coimbra, adeptos de um liberalismo mais
moderado, ou conservador.
O desfecho da complexa trama de eventos que se seguiram a convocação da
Assembléia Constituinte é bem conhecida. Entretanto, o que nos importa ressaltar é que
para o grupo coimbrão, as instituições liberais deviam se transformar num meio de conter a
“revolução” e a “anarchia”, mas, sobretudo, de garantir a exclusão daqueles que não
comungavam de seus ideais políticos. A crise engendrada para afastar os principais
membros do grupo associado a um tipo de liberalismo mais radical se deu de forma que,
quando D.Pedro I foi coroado, em 1° de Dezembro de 1822, os atores mais democráticos
encontravam-se presos ou exilados.
Nesse sentido, o liberalismo que se pretendeu instaurar naquele momento era um
tanto quanto “raso” no que diz respeito às restrições impostas à esfera propriamente
pública. Dessa forma Lúcia Bastos define esse momento, ao chamar atenção para a forma
de Estado que aqui se instaura: “O império do Brasil nasceu sob o signo de um estado cujos
traços pareciam atribuir, na realidade, ao absolutismo ilustrado a paternidade”47.
O ideário liberal não possuía uma unidade teórica e, muito menos, uma unidade
metodológica no que diz respeito às formas de aplicação de suas doutrinas de 46Idem, Ibidem, p.95-96. 47 Idem, Ibidem, p.101.
transformação social. Assim, de acordo com as especificidades e particularidades sociais,
econômicas e mesmo políticas de cada região, de cada sociedade, permitia diferentes
leituras e apropriações. Se na Europa, a bandeira do liberalismo era empunhada nas revoltas
da burguesia contra o poder absoluto dos reis, na América Portuguesa os mesmos
princípios eram usados como instrumento de luta contra o sistema colonial e a Metrópole.
No Brasil, a elite que chegava ao poder, após os movimentos de independência,
representava os interesses ligados à grande propriedade e à economia agro-exportadora,
profundamente dependente do trabalho escravo. A escravidão remetia ao modo como a vida
e o trabalho foram organizados na sociedade colonial, estando profundamente vinculada às
condições históricas em que se efetivou o empreendimento colonial. É preciso destacar que
a escravidão era, ela mesma, um dos ramos fundamentais do comércio atlântico. Assim, o
tráfico de negros não era apenas um meio, como mão de obra para a produção agro-
exportadora, mas também um fim, na medida em que o próprio comércio de africanos
gerava uma boa parte da receita da Metrópole48.
Além dessa sociedade ter se construído e se assentado no trabalho escravo, no
momento em que se rompiam os laços coloniais ocorria uma nova demanda de mão de obra
associada ao desenvolvimento da cultura do café. Assim, considerando o esgotamento da
economia mineradora e a enfraquecida receptividade para o açúcar produzido no Nordeste,
a perspectiva aberta à produção cafeeira parece trazer uma revitalização do caráter
mercantil da economia e o “revigoramento da escravidão.”49 As possibilidades de se pensar
a abolição nesse momento eram, portanto, não só evitadas como veementemente
rechaçadas. O discurso liberal no Brasil constituiu-se, dessa forma, a partir dessa
especificidade. Ou seja, no caso brasileiro, a doutrina liberal foi transformadora em relação
emancipação política e à destruição de algumas instituições político-administrativas, mas
profundamente conservadora, em relação à ordem interna vigente.
Na segunda metade da década de 1820 alguns jornais editados por estrangeiros
entrarem em circulação no Brasil. A participação de numerosos elementos estrangeiros no
comércio era já constante desde os tempos coloniais, sobretudo de ingleses e franceses. 48 Ver: ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 49 Ver: PRADO, Maria Emília. Memorial das Desigualdades – Os impasses da cidadania no Brasil (1870-1902). Rio de Janeiro: Revan, 2005.
Inicialmente o envolvimento desses estrangeiros na imprensa carioca estava diretamente
relacionada a seus interesses comerciais. Nelson Werneck Sodré relata o que chama de
“ostensiva e por vezes afrontosa” participação de ingleses em publicações periódicas dessa
época. Os franceses mantinham o Courrier du Brésil que discutia timidamente algumas
questões nacionais, “em posição sempre reacionária”, como não poderia deixar de destacar
Nelson Werneck.50 Os ingleses mantinham o The Rio Herald, em que defendiam seus
interesses, no entanto, sem se envolverem nas questões políticas locais. Em 1834 apareceria
o The Rio Packet , periódico de cunho comercial que também evitava um maior
envolvimento com querelas políticas locais. A predominância de ingleses e franceses em
destacada posição em relação ao comércio é amplamente documentada e sua importância é
reconhecida no espaço público do Rio de Janeiro, como se percebe no “Almanaque dos
Comerciantes” de 1827, citado por Werneck, onde aparecem especificados segundo o ramo
a que se dedicavam. Nesse sentido aponta o autor para a predominância, por exemplo, dos
franceses no vestuário e “modas”.
A principal fonte desse trabalho, o Jornal do Commercio, aparentemente inscreve-
se nessa mesma tradição de impressos publicados por estrangeiros com fins basicamente
comerciais. Uso a expressão “aparentemente” por que veremos mais adiante que, embora
construa uma aparência de relativa neutralidade em relação às questões da política local,
esse periódico acaba por posicionar-se, de forma que nos idos de 1835 sua tendência
política tornar-se-á mais clara.
O Jornal do Commercio foi fundado em 1º de Outubro de 1827 por Pierre
Plancher, que havia chegado da França alguns anos antes, segundo Werneck por motivos
políticos. O francês trouxe consigo uma oficina tipográfica que logo poria em
funcionamento imprimindo folinhas, leis, papéis avulsos e vendendo na sua loja também
livros e calendários. Em pouco tempo Plancher editaria o Spectador, que ele mesmo redigia
sob o pseudônimo de Hum francês brasileiro. Foi na mesma oficina, a Imperial Tipografia
de Planchet, instalada na Rua da Alfândega 47, que seria editado a partir de 1827 o Jornal
do Commercio. Ainda segundo Werneck, o jornal pretendia explorar e ampliar o filão que
50 Nelson Werneck Sodré possui uma obra monumental e de referência até hoje sobre a imprensa no Brasil, mas é preciso cautela ao considerar alguns de seus argumentos, já que ao carregar seus escritos com um marxismo excessivamente doutrinário o autor pode, por vezes, soar mais panfletário do que se deve esperar de um trabalho com as noções atuais de rigor histórico. Ver: SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 2ªed. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1977.
vinha sendo monopolizado pelo Diário do Rio de Janeiro e que lhe permitira superar o
caráter efêmero das folhas da época. Trazia notícias comerciais como preços, movimento
de paquete, informações sobre importação e exportação, noticiário do país e do exterior e
anúncios, além de fornecer os elementos mais importantes do quadro político do momento.
Os primeiros redatores do Jornal do Commercio foram o próprio Planchet, Emil Seignot,
João Francisco Sigaud, Júlio César Muzzi, Francisco de Paula Brito e Luís Sebastião
Fabregas Sirigué. Segundo Werneck, em 1834 Planchet terá que retornar à França deixando
o jornal a cargo de Villeneuve e Reol de Mongenot. Pouco depois Villeneuve comprará a
parte de Mongenot impulsionando o jornal e fazendo de Francisco Antônio Picot seu braço
direito.
Werneck situa assim os proprietários do jornal: “Os Planchet, Seignot, Picot,
Mongenot, Villeneuve eram figuras comuns no comércio fluminense, como então se dizia,
inclusive no ramo ainda pouco promissor da tipografia”.51No entanto, o Jornal do
Commercio, que começaria como um simples empreendimento comercial vai ganhando aos
poucos também uma definição no que se refere às tendências políticas de sua linha
editorial.
Os estudos de Werneck Sodré e de Marco Morel, apontam para um grande
crescimento no número de periódicos no Rio de Janeiro entre 1831 e 1833. A crise política
que desaguou na abdicação de D. Pedro I, foi seguida por uma série de agitações civis e
militares. A regência provisória que se segue representou um esvaziamento do princípio
monárquico e do poder moderador enquanto instância garantidora de uma supremacia do
executivo sobre os outros poderes. Esse momento, visto pela historiografia tradicional
como caótico e desordenado, foi por outro lado um período de verdadeira reacomodação,
onde a elite política nascida em terras brasileiras assumirá os encargos do Estado e os
poderes Executivo e Legislativo, com a supremacia parlamentar sobre um Executivo
esvaziado de sua legitimidade pela ausência do monarca.
É nesse momento conturbado que se observa uma verdadeira explosão da palavra
pública numa enorme enxurrada de impressos que surgirão no período. Tratava-se então de
um tipo de dilatação da noção de espaço público e de reconhecimento da expressão na
palavra impressa como forma de ação política. Vale lembrar que, ainda sim, a década de
51 SODRÉ, Nelson Werneck. Op. Cit. P.127.
1830 continua a caracterizar-se pelo hibridismo, onde concepções arcaicas do sentido da
política conviverão com traços de concepções mais tipicamente modernas.
Nesse momento a própria idéia de Opinião pública ganhará um sentido mais
radical associado à idéia de soberania popular. Para tratar dessa noção já na década de
1830, assim se refere Marco Morel comentando as concepções políticas do periódico Nova
Luz Brazileira: Chegamos aqui à definição do número: a vontade da maioria é a vontade legítima. São ingredientes de um discurso igualitário ou mesmo jacobino, identificados à defesa da chamada soberania popular. [...] E partindo do campo simbólico, os porta-vozes desta mesma opinião abadonavam o campo abstrato: pretendiam utilizá-la como instrumento para intervenção direta na vida pública, nas instituições, funcionando de maneira normativa ou pedagógica junto às autoridades.52
O processo que começa na aurora da década de 1820 encontra seu zênite, seu
clímax, na década de 1830. Isso porque os indivíduos agrupados em torno de determinadas
tendências políticas utilizarão a imprensa para dar vazão a suas idéias e proposições,
gerando uma expansão da noção de política e de espaço público que, independente da
tendência defendida em cada caso, constitui uma ampliação da ação política absolutamente
impressionante. Essa expansão se dá não apenas em relação a noção de opinião pública,
como aponta Morel, mas sobretudo na disseminação do universo da palavra enquanto
campo possível de atuação política. Não apenas em agremiações e sociedades políticas, que
também encontram larga difusão nesse momento, mas na percepção de que, mais do que o
espaço físico da praça ou das cadeiras do parlamento, era primeiramente na virtualidade do
universo das palavras que ganhava expressão e materialidade os projetos políticos que
estavam em disputa nesse momento.
Na década de 1830 surge uma miríade de jornais, em sua imensa maioria ligados
explicitamente a determinados projetos políticos. As cisões e embates políticos entre os
grupos que disputam a superioridade de seus projetos de poder nesse contexto são
representados pelos periódicos que dão voz as suas idéias. O jornal tem ai o papel de
ferramenta com a qual a retórica política pode ter vazão. A chamada imprensa áulica,
conhecida como restauradora, será representada por periódicos como o Diário Fluminense,
O Analista e o Courrier du Brésil. Werneck Sodré aponta também o Jornal do Commercio
52MOREL, Marco. Op cit. p.210.
como integrante dessa imprensa áulica, entretanto isso talvez seja válido para o início de
1830, mas não para 1835.
Ao longo do Ano de 1835, o Jornal do Commercio publica inúmeros artigos do
Aurora, periódico dirigido por Evaristo da Veiga e de cunho doutrinário do Liberalismo
Moderado. Além disso, o jornal conta com textos de caráter abolicionista, ainda que
tímidos. Isso poderia ser explicado pelas inúmeras mudanças ocorridas na direção do Jornal
do Commercio, vistas anteriormente. Ao mudar de mãos, é possível que a linha editorial do
jornal tenha sofrido mudanças. Nesse sentido, certamente para o ano de 1835 podemos
contar a linha editorial do Jornal do Commercio como tendente a um Liberalismo de cunho
Moderado. Talvez a mudança em sua tendência política possa ser considerada a partir de
1834, quando Planchet terá que retornar à França deixando o jornal nas mãos de Villeneuve
e Reol de Mongenot. Além disso, também em 1834 morre D. Pedro I em Portugal, o que
torna distante a perspectivas de restauração.
É importante ressaltar que a tendência política da linha editorial do Jornal do
Commercio aparece muito discretamente. Essa discrição está relacionada a função que esse
jornal pretende ocupar no espaço público enquanto órgão de imprensa dedicado
soberanamente aos negócios e questões comerciais, como seu próprio nome indica.
Diferente da grande maioria dos periódicos em circulação no momento, o Jornal do
Commercio não se vincula explicitamente a nenhuma corrente política, ou seja, ele não a
proclama como faziam os demais periódicos. Isso permitirá ao Jornal do Commercio a
construção de uma aura de relativa neutralidade, neutralidade essa que como comentei
anteriormente é apenas aparente. A década de 1830 é um momento de crise e
reacomodação política, situação na qual uma posição neutra é praticamente impossível.
Essa tentativa de discrição quanto a sua tendência está vinculada, sobretudo, a
função acima de tudo pragmática a que se propõe esse jornal, focando suas atribuições em
questões comerciais. O Jornal do Commercio trazia uma grande quantidade de anúncios de
venda de escravos e notas de procura por escravos fugidos. A seção de correspondências
trazia artigos que versavam sobre os assuntos que a linha editorial selecionava e apontava
como relevantes, assim como cartas de assinantes que defendiam certas tendências
políticas, em detrimento de outras. É claro que o público leitor era relativamente pequeno
devido ao alto grau de analfabetismo existente entre a população. Dessa forma, é de se
esperar que o público alvo do Jornal do Commercio fosse composto por membros de uma
elite letrada e proprietária de escravos e, portanto, com grandes chances de serem
pertencentes a chamada “boa sociedade”, interessada em ler notícias não só sobre questões
políticas mas também sobre os negócios e o comércio em geral.
Como dito anteriormente, a grande maioria dos impressos do período proclamavam
explicitamente suas tendências políticas, posto que era justamente através da palavra
impressa que muitas vezes se travavam os embates mais ferozes. Assim, entre os jornais de
cunho Liberal Moderado contaríamos a Aurora Fluminense, O Americano e O
independente. Entre os Liberais Exaltados contaríamos, sobretudo, o Exaltado e o
Republico, jornal de Borges da Fonseca que tinha como epígrafe uma frase do Contrato
Social de Rousseau, o que não poderia ser mais explícito enquanto proclamador de suas
tendências políticas.
O Jornal do Commercio figura como uma fonte preciosa para a análise dos embates
entre projetos de poder que precisavam se firmar e legitimar nesse momento de
instabilidade política e administrativa. Definido como uma espécie de “diário oficial do
período”, ele se destaca como grande mídia da época “para uma sociedade que estava numa
espécie posição proto-estatística”, nos dizeres de Tânia Bessone53, e peça chave na
compreensão da vida pública e privada.
Assim, ele aparece como veículo difusor de toda uma escala de valores e de saberes
de uma época na medida em que tem como finalidade a veiculação e expressão de idéias e
acontecimentos, ou discursos sobre os acontecimentos, tornando-os públicos. Isso faz do
jornal uma mídia extremamente engajada nas mudanças ocorridas na sociedade e no
imaginário de uma época. Quando o tema sensibiliza a opinião pública os periódicos se
vêem compelidos a dar maior divulgação e, dessa forma, noticiam assuntos que refletem, de
uma forma ou de outra, os interesses dos leitores.
É através dessa mídia que frequentemente os embates políticos encontram
expressão, se apropriam de saberes e estratégias e que as formas retóricas disputam espaço
para modelar as impressões deixadas pelos acontecimentos. O jornal também busca a
construção de saberes, já que na medida em que noticia um evento, constrói sobre ele uma
53 FERREIRA, Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz. O Jornal do Commercio: o Público e Privado Refletidos na Vida Cultural do Rio de Janeiro. In: NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das; MOREL, Marcos (Orgs.). Anais do Colóquio História e Imprensa. Rio de Janeiro: EDUERJ/FAPERJ, 2002. v. 1, p. 11-26. p. 23.
interpretação e um ponto de vista. Será esse o saber-poder que se materializa no jornal: ao
noticiar o fato, ele acaba também por construí-lo, ou forjá-lo sobre as brasas da opção
política de sua linha editorial.
2.1 – Rio de Janeiro: A cidade que acolhe as notícias
A cidade e o medo estão em constante diálogo. A insegurança e o temor
acompanham sua construção e distribuição espacial, as relações de poder e as formas de
sociabilidade que nela se constroem. As ameaças, contudo, vão mudando de forma, de
contorno, e seus objetos de temor, ao se transformarem, suscitam novas preocupações e,
por consequência, novas formas e medidas de segurança, novos refluxos contra o medo,
novos projetos que visam restaurar a tranquilidade.
No marco fundador da cidade, a preocupação é com a defesa militar, com o perigo
francês, com os índios bravios e antropófagos, gerando contramedidas de defesa como
fortificações, muralhas e etc. Entretanto, à medida que o centro urbano vai se
desenvolvendo novos medos surgirão, como o temor de idéias subversivas e de
manifestações de cunho político, de desordens e “balburdias” populares e, sobretudo por
parte das elites, de ameaças aos seus privilégios e destacada posição social. Mas, para além
disso, existiu um elemento que passou incólume pelas transformações nos medos e
inseguranças das elites: o elemento negro. Ele sempre sondou, de forma quase
fantasmagórica, o imaginário do homem branco nos trópicos. Desde que o negro passa a ser
um elemento fundamental para a manutenção da ordem econômica, como mão de obra
escrava, ele traz consigo uma ameaça à ordem social. Ao longo do século XIX, o Estado
lançará várias estratégias de controle e disciplinalização do negro, buscando desarmar essa
contradição e mediar seus possíveis conflitos.
Na tentativa de institucionalizar o seu poder, o primeiro imperador promoveu a
adoção do Código Criminal, em 16 de dezembro de 1830. O Código é promulgado na
esteira do medo de insurreições, na expectativa de que a nação, independente em 1822,
sobrevivesse às contradições entre liberalismo e escravidão, mas também devido a
necessidade de unificação territorial e centralização dos poderes imperiais. A partir da
década de 30, e já com o Código Criminal, a modernização da polícia se dá na perspectiva
da ampliação do controle do Estado sobre a população escrava. O que se dá é a
configuração de um sistema de disciplinamento social encarregado de manter a população
em “ordem”, dando segurança e proteção à propriedade e, sobretudo, aos proprietários.
Após a Abdicação de D. Pedro I o Brasil mergulha num nebuloso período de
rearranjos, reacomodações políticas e reestruturação do Estado, marcado por grandes
tensões no seio da elite política54. No período regencial, de 1831 a 1840, tem lugar uma
“experiência republicana”55, já que nesse momento as elites nacionais assumirão cargos
políticos antes ocupados por lusitanos e o jovem Pedro II ainda não tinha idade para
assumir o trono que seu pai deixara vago. A necessidade de estruturação do aparato
burocrático para garantir a governabilidade do país e a modernização das instituições, foi
um processo que se deu, em grande medida, através de conturbadas disputas entre facções
da elite e acirradas tensões entre as tendências e projetos de poder.
O Código do Processo Criminal, aprovado pela Regência em 29 de novembro de
1832 é um dos estatutos legais mais importantes para representar o pensamento político do
período. Ao contrário das tendências da década de 1820, ele procurou fortalecer os poderes
locais, concentrando a autoridade nas mãos dos juízes de paz eleitos. No entanto, as
freqüentes revoltas e a instabilidade da década de 30, alimentadas pelas disputas entre as
elites, logo demonstraram os obstáculos à construção do Estado nacional com base na
“ordem”. 56
O Ato Adicional de Agosto de 1834 representou uma vitória dos adeptos da
descentralização política. Ele transformará a Regência Trina em Regência Una, criará
Assembléias Provinciais com incumbências que antes eram de âmbito nacional,
aumentando as liberdades provinciais. Apesar de representar uma vitória do projeto liberal,
54 Embora não seja o objetivo desse trabalho caminhar pelas veredas da teoria das elites, esclareço que o termo “elite” aqui empregado não se refere apenas ao grupo de indivíduos que exerce poder no âmbito oficial, enquanto burocratas ou políticos do Império. O termo assume aqui um sentido mais amplo, como a camada da população que tem propriedades e bens que a “capacitam” a ter direitos políticos, ou seja, aqueles que podem votar e serem votados, os chamados cidadãos ativos. 55Ver: CASTRO, Paulo Pereira de. A “experiência republicana, 1831-1840. In Brasil Monárquico: dispersão e unidade/ por Fernando Henrique Cardoso...[et al] – 6.ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. 56 Ver: BRETAS, Marcos Luiz, em “A Ordem na Cidade – O exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro: 1907-1930.” Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 42.
terá uma vida curta, já que em 1840 esse quadro será revertido com a Lei Interpretativa do
Ato Adicional, representando a concretização do projeto conservador de centralização.
As redefinições entre o papel do Estado e o papel dos senhores, no que diz
respeito ao controle e disciplina dos escravos, também geraram controvérsias e discussões
entre o que era cabível à esfera pública e o que era à esfera privada. Nesse período, o
Estado tenta assumir para si o monopólio da violência, num esforço pela modernização de
suas instituições e no movimento que tentava incluir o Brasil no modelo de civilização
ocidental e europeizada.
A intensa atividade pública na cidade do Rio de Janeiro no início do século XIX é
dividida por Marco Morel entre dois tipos principais. As associadas a uma mentalidade de
Antigo Regime seriam marcadas por espetáculos da visibilidade do poder monárquico,
festas religiosas, celebrações dinásticas, aclamações e desfiles. A década de 20 e 30 do
século XIX , sobretudo no período regencial, será marcada por outro tipo de atividade
pública. Pelo que as elites taxarão de “anarquias do populacho”, inundando as ruas e
espaços públicos de violência, exclamações, vozes e gritos de oposição. A criação de redes,
no âmbito administrativo e comercial, mas também da produção e circulação de jornais e
informativos, portadores de idéias, interesses, palavras de ordem, propostas de organização
e mobilização foram cruciais na formação dos espaços públicos. Nesse sentido, o que
começa a se marcar no Brasil dos anos 1830 é que algumas dessas manifestações na rua
passam a ter também conotação “ligada a cidadania, a mudança de soberania, à
interferência na vida pública fora da esfera de controle das autoridades vigentes”57, num
esboço de modernidade política em que as reuniões se fazem em nome da soberania
popular ou nacional.
A dimensão política da ocupação dos espaços urbanos parece estar em constante
diálogo com essas diferentes matrizes de atividade pública. Foi como locus privilegiado de
“tropa” e “povo” que, no Campo de Santana, houve a manifestação pública que resultou na
abdicação de D.Pedro I, em 1831. Situada perto do mar, também a Praça das execuções, nas
imediações do Caju, era um local de intensa atividade pública, pois as execuções da pena
de morte eram acompanhadas de cortejos, desfiles e de grande curiosidade da população.
57 MOREL, Marco. As transformações no espaço público: imprensa, atores políticos e sociabilidades na Cidade Imperial, 1820-1840. São Paulo: Hucitec, 2005.p.162.
Marcadas pelo intenso comércio e movimentadas ruas, as freguesias comerciais ou
urbanas eram os centros nervosos da cidade. Candelária, a freguesia mais antiga, e por isso
também chamada Cidade Velha, possuía importante comercio exportador e importador,
grande número de casas comerciais e outros serviços, além dos edifícios públicos como o
Paço Imperial, a Praça do Comércio e a Caixa de Amortização. Também nessa área
localizava-se a alfândega do Rio de Janeiro, onde haviam depósitos e mercados de
escravos, transferidos para o Valongo, na freguesia de Santa Rita, em 1824. Nessas
freguesias comerciais, via-se também o negro ao ganho, com todas as particularidades da
escravidão urbana. Como na cidade não existem feitores, o sistema policial passa a ser
aproveitado como mais uma tecnologia do sistema escravista, aplicada ao controle dos
escravos urbanos.
O problema da ordem pública cresceu junto com a cidade do Rio de Janeiro, uma
vez que o desenvolvimento do setor cafeeiro no interior da província promoverá a
ampliação dos serviços comerciais, financeiros, de transporte e administrativos do governo.
Thomaz Holloway, traça um quadro preciso desse momento:
Enquanto a escravidão nas fazendas era mantida pela presença imediata do feitor e por outros meios que o fazendeiro julgasse necessário, o senhor urbano contava com o poder de coerção do Estado. Na cidade, os senhores de escravos tinham a obrigação para consigo mesmo e para com a sociedade local de ser a vanguarda da disciplina dos escravos, mas não se podia esperar deles, que não dispunham de cárceres domésticos, que mantivessem o controle sobre seus escravos em todas as circunstâncias. Como disse um ministro da Justiça, o problema do controle de escravos na cidade era que “ esta propriedade não se guarda, anda pelas ruas.58
O crescimento do Rio de Janeiro, ligado ao surto cafeeiro e às funções que
desempenhava com mais intensidade na medida em que se estabelecia como centro de
irradiação político-administrativa, transformará os contornos da cidade, atuando também
nas formas de ocupação de seus espaços. Segundo nos informa Ilmar de Mattos, dos
124.978 habitantes em 1830, “89.293 viviam nas freguesias urbanas – isto é, na cidade, no
sentido estrito do termo – e o restante nas freguesias suburbanas”.59 Esses números irão
mudar para 134.078 habitantes em 1838, dos quais 57% eram homens livres e 42,7%,
escravos. Do total de escravos, 63,5% viviam na cidade e 36,5% estavam ocupados em
58 HOLLOWAY,Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro – Repressão e resistência numa cidade do século XIX.
Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997.p.115. 59 MATTOS,Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec/ INL, 1987p. 88.
atividades nos subúrbios. A população permanecia habitando uma “cidade feia, que pouco
diferia da sede colonial”60. O negro é figura presente em toda parte, e a contrapartida disso
é que a cidade se sentia ameaçada. O escravo urbano, “deixado a maior parte do tempo a si
mesmo, vendendo livremente nas ruas”, era considerado um perigo, um risco que a
“imprevidência de toda a população urbana, que vivia as suas custas, estava fomentando”61.
Como um exercício de localização nesse centro urbano e comercial, proponho um
pequeno vôo panorâmico num raio de seiscentos metros, tendo como epicentro o Paço
imperial. Assim, temos logo em frente o porto marítimo, com a Alfândega e os armazéns.
Continuando esse giro panorâmico, temos o Banco, as ruas do comércio francês e inglês,
seguidas pelos Hospitais Nossa Casa da Misericórdia e Nossa Senhora do Parto. Ao lado,
os dois mercados, de legumes e de peixes, com suas cores e odores, o Arsenal do Exército e
o cemitério de escravos, além da cadeia da cidade, da Escola de Belas Artes e do Quartel de
Infantaria.
A proximidade entre o que havia de mais nobre e o que havia de mais plebeu fazia
com que a Corte do Rio de Janeiro não se configurasse entrincheirada, com espaços e
lugares separados e bem demarcados. Evidente que a contigüidade não eliminava as
contradições socialmente estabelecidas. Como ainda acontece atualmente, a convivência
entre mundos socialmente distintos em espaços geográficos bastante próximos era capaz de
sublinhar ainda mais tais contradições, o que podia produzir tensão e influenciar as
estratégias de sobrevivência na ocupação e territorialização desse espaço urbano.
As áreas destinadas ao comércio costumavam ser mais sensíveis a presença de
manifestações públicas. Em meio as constantes aglomerações, havia a presença ruidosa de
grupos que ocupavam a rua não raro com proposições explicitamente políticas. Os
quarteirões do comércio também congregavam as elites letradas da época, em pontos de
sociabilidade mais ou menos informais como os locais de venda da imprensa, boticas e
cafés.
Os espetáculos da monarquia, nas formas de visibilidade do poder como desfiles e
pronunciamentos, passaram a conviver com as manifestações de uma já citada modernidade
60 Idem, Ibidem. 61 SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. O Rio de Janeiro Imperial e suas Áfricas visíveis, In AZEVEDO, André Nunes de (Org). Anais do Seminário: Capital e Capitalidade, realizado de 23 a 26 de Outubro de 2000. Rio de Janeiro: Departamento Cultural/NAPES/DEPEX/Sr-3/UERJ, 2002. p.87-102.
política, que se construía na década de 1830 através da imprensa e nas ruas. Mas é
interessante chamar a atenção para o escravo urbano que, mesmo alijado dessa
modernidade política, estava freqüentemente pelas ruas e, portanto, de alguma forma
também respirando essa ambiência de instabilidade e crítica.
A atividade dos escravos ao ganho era freqüente e intensa nessas regiões de
comércio e no porto. Esses escravos, muitas vezes, também disputavam espaços e
territórios entre si, já que na atividade do ganho uma maior arrecadação desse escravo em
suas atividades poderia significar uma maior capacidade de negociação com seu
proprietário. A qualquer momento, atendendo aos interesses do mercado, os senhores
podiam retirar os escravos do ganho, vendendo-os para o campo ou alugando-os para fins
domésticos ou industriais. Assim, os escravos procuravam de qualquer maneira garantir a
sua atividade através da lucratividade que poderiam oferecer a seus senhores62.
Luccock relata um episódio ilustrativo da atividade desses escravos naquela região: No momento em que retirava as minhas bagagens de bordo, entendi de carregar nas minhas próprias mãos um bacamarte de baioneta envolvido numa capao de lã. Não tinha ido longe, quando um senhor inteiramente desconhecido para mim fez-me parar, pedindo que entregasse o que eu estava carregando a um dos servos, acrescentando que não era direito privar os pretos do seu ganha pão e que isso fazendo eu incorria em grave risco. Mais tarde ele me explicou assegurando que até contra as ofensas imaginárias a gente das classes mais baixas as vezes exercia vinganças mais sérias63
È importante ter em consideração que o escravo, entendido como essencial à ordem
econômica, é também percebido como elemento desagregador da ordem social e, portanto,
um fator de risco à ordem urbana e ao projeto de civilização que se busca construir nesse
momento de embates e tensões.
Sensibilizando as relações de sociabilidade e erigindo monumentos, o medo
percebe-se nas esquinas, na arquitetura, nos becos, assim como nas táticas de ação e nas
estratégias de sobrevivência dos habitantes da urbis. Os medos sociais parecem estar,
sobretudo, ligados ao temor da materialização de contradições sociais latentes que não
poderiam deixar de se manifestar na cidade e na construção do espaço urbano. Devido às
particularidades da escravidão urbana, como uma maior circulação e formas de
sociabilidade relativamente ampliadas, os escravos ao ganho ou aluguel passavam a maior
62 SILVA, Marilene Rosa Nogueia da. O Negro na Rua: A nova face da escravidão. São Paulo:Editora Hucitec, 1988. 63 LUCCOCK,Johnn. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. São Paulo,Liv. Martins, 1951. p.75
parte do tempo longe das vistas do senhor - ocupando cortiços ou dividindo habitações com
outros escravos - chegando mesmo alguns a morar sozinhos.
O medo de levantes negros irá marcar profundamente esses espaços. As ruas e
becos escuros do centro, a região do porto, algumas ruas e praças específicas em certas
horas da noite, eram território da “canalha”, dos “vadios” e das maltas de capoeiras, que
também terão seus territórios e zonas de ocupação. A Corte, marcada por essa conturbada
atmosfera, acolherá as primeiras notícias sobre o levante Male, ocorrido na Bahia na
madrugada do dia 25 de Janeiro de 1835. Essas notícias chegam ao Rio de Janeiro em 7 de
Fevereiro através de uma embarcação que aporta na cidade:
Dizem o mestre e os passageiros da Sumaca Nossa Senhora do Carmo, entrada antes de hontem da Bahia, que no dia 25 do passado de madrugada houvera na Bahia hum levante de pretos, os quaes principiarão por atacar os quartéis, mas forão batidos completamente ficando mais de 60 mortos; parece que a revolta tinha ramificações extensas e era dirigida por pessoa hábil á vista das proclamações que espalharão. No dia 1° do corrente em que esta embarcação sahio da Bahia reinava tranqüillidade. 64
Com tempo suficiente para repercutir pelo porto, pelas ruas e pelas praças, a notícia
seria finalmente publicada no dia nove, portando, dois dias depois da embarcação vinda da
Bahia aportar no Rio de Janeiro. Para os habitantes dessa cidade, não devia ser estranho a
notificação de levantes, distúrbios públicos e ameaças contra a ordem. As próprias
movimentações que marcaram a abdicação e os primeiros anos da Regência teriam
ambientado bem os indivíduos que habitavam a urbis carioca com o clima de instabilidade
política e social. Em Janeiro do mesmo ano o mesmo jornal havia publicado as notícias
sobre a revolta ocorrida no Pará, veiculando a 26 do dito mês a proclamação dos cabanos
sublevados no rio Aracá. Entretanto, a Bahia era muito mais integrada e próxima da esfera
de poder que emanava da Corte do que o Pará, inclusive do ponto de vista das relações
comerciais e dos deslocamentos humanos. Nesse sentido, os acontecimentos ocorridos na
Bahia afetavam de forma muito mais direta o ambiente e a opinião pública carioca.
A própria divulgação da notícia, já subentendia que esse assunto mobilizara de
alguma forma a opinião pública, fertilizando a imaginação da população e atiçando o medo
e a desconfiança em relação ao negro. Nota-se, entretanto, que o tom não é alarmista. A
posição física do quadrículo que divulga a notícia, em relação à distribuição espacial do 64 Jornal do Commercio, n°30 (09.2.1835)
jornal, também não é privilegiada ou destacada, já que ela aparece como uma pequena nota,
em meio a outros quadrículos que divulgam informações das mais diversas naturezas. Não
é possível saber, a princípio, se toda essa discrição é devido ao contorno ainda vago que
tem a notícia do levante, fruto de sua imprecisão e de sua extra-oficialidade, ou se tal
discrição é devida a uma opção da linha editorial do jornal que prefere nesse primeiro
momento conter os ânimos e evitar sensacionalismos por demais perigosos para a ordem
pública.
Na passagem que noticia o ocorrido, podemos observar que as sentenças que
descrevem as ações dos insurgentes são suavizadas por outras que a elas se contrapõe,
amenizando seu conteúdo. Assim, temos que à frase “hum levante de pretos, os quaes
principiaram por atacar os quartéis”, é contraposta a “mas foram batidos completamente”.
Da mesma maneira, “tinha ramificações extensas e era dirigida por pessoa hábil” é
contraposta, ao fim da nota, pela expressão “reinava tranquillidade”.
Dessa forma, parece que a construção da nota visava, em alguma medida, atenuar a
notícia demonstrando alguma preocupação da parte de seu redator em não expor ao pânico
a população, provavelmente já abalada pela noticia da rebelião escrava. Além disso, vale
reparar que a nota publicada em 9 de Fevereiro inicia-se com a expressão: “Dizem o mestre
e os passageiros”, o que denota a extra oficialidade da informação, ou seja, que ela não foi
transmitida por um ofício ou proclame oficial, pairando ainda na ruidosa esfera da
oralidade. Nesse sentido, parece que o caráter da notícia e da construção de uma narração
sobre ela baseia-se tanto na preocupação do redator com a suavização das informações ali
descritas, quanto no caráter difuso e extra-oficial de sua propagação.
Em 10 de Fevereiro de 1835, portanto no dia seguinte as difusas notícias publicadas
pelo Jornal do Commercio, as informações sobre o levante dos Malês ganham uma versão
oficial. Isso é possível graças a publicação do relatório do chefe da polícia baiana e juiz de
direito Francisco Gomes Martins, entregue ao presidente da mesma província. Esse
relatório é transcrito, do Diário da Bahia, pelo Jornal do Commercio. Dessa vez, a notícia
sobre o levante localiza-se soberanamente a primeira página do jornal, e se estende pela
segunda, ocupando grande parte do espaço do periódico e tendo uma posição privilegiada.
Dando prosseguimento ao relatório, Francisco Gomes assim o finaliza:
[...] Depois de taes sucessos, he bem notável que hajão abusos, e estes tem existido a hum ponto tal, que hoje já dão motivos sufficientes e queixas bem fundadas, pois que os soldados prendem, espancão e ferem, e mesmo Matão os escravos, que por mandado de seus Srs. Vão á rua. Sobre este objecto tenho officiado a V.Ex. e tenho dado as providencias a meu alcance.65
Os soldados deveriam agir como força repressiva e como veículos da violência
institucionalizada pelo Estado. Mas é interessante notar que, no caso acima citado, os
soldados atuam abusivamente, não como agentes da autoridade policial, mais sim como
veículos de extravasamento do medo das populações urbanas. Nesse caso, eles
transformam-se em agentes do pânico. Acabam se deslocando de suas funções enquanto
agentes do Estado, e atuam como representantes do medo dos cidadãos baianos.
Nota-se pela preocupação do Chefe de Polícia que na Bahia havia um grande
acirramento dos ânimos entre a população e os elementos africanos. O medo e a
insegurança dão vazão a um crescente estado de violência generalizada contra os
escravos chegando a níveis de brutalidade alarmantes e, inclusive, contraproducentes, já
que o escravo é considerado uma propriedade e uma força produtiva. Embora os abusos
acima citados tenham se dado na Bahia, é bastante provável que essa comoção pelo
medo também pudesse gerar um aumento da brutalidade contra o negro na cidade do Rio
de Janeiro.
Reverberando no discurso jornalístico, o medo vai ganhando eco, se propagando,
ganhando um vulto negro e, aos poucos, transformar-se-á em paranóia. Delumeau chama
a atenção para o papel dos meios de difusão dos medos, seja através da imprensa, do
teatro religioso, das gravuras ou da pregação nas igrejas. Para ele, há uma relação direta
entre as ondas de difusão e as campanhas de repressão e perseguição. Delumeau estuda
também os rumores surgidos sobre inquietações acumuladas. As projeções paranóicas
fazem com que rumores tendam a magnificar os poderes do inimigo, situando-os numa
trama diabólica. Além disso, mostra como o impulso do medo pode gerar reações
agressivas e de descontrole. Depois de descrever reações ao nível fisiológico, causadas
pelo medo, ele completa:
Essas evocações da fisiologia individual sem dúvida não são inúteis para compreender os fenômenos coletivos. Como as agressões sofridas pelos grupos poderiam deixar de
65 Jornal do Commercio, n°31 (10.2.1835)
provocar, sobretudo se se somam ou se repetem com demasiada intensidade, mobilizações de energia? E estas devem logicamente traduzir-se ou por pânicos, ou por revoltas, ou, se não resultam em exteriorizações imediatas, pela instalação de um clima de ansiedade, ou até de neurose, ele próprio capaz de mais tarde levar a explosões violentas ou perseguições de bodes expiatórios. 66
No mesmo sentido aponta Chalhoub, para o qual “a cidade imprevisível dá medo,
produz temor da mobilização contínua e estratégias de suspeição generalizada.”67As ruas e
praças da cidade serão cenário de embates que se constroem no plano político, econômico e
social. Ocuparão a urbis e ajudarão a transformar os espaços urbanos os embates entre
projetos de poder distintos, como é o caso das manifestações publicas que
espetacularizavam o Estado, dando visibilidade ao princípio monárquico, em choque com
as manifestações ligadas a uma visão mais sintonizada com uma modernidade política.
Entretanto, paralelamente a tudo isso e, nesse sistema de tensões e embates, os escravos,
que também ocupam e transformam a urbis, irão circular. No espaço urbano, as
sociabilidades se articulam com as relações de poder. É na cidade que essas relações
ganham materialidade e nela o poder produzirá seus efeitos.
66 DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. 1300-1800. São Paulo: Companhia da Letras. 1989. P.78 67 CHALOUB, Sidney. Visões da liberdade. São Paulo: Companhia das Letras. 1996. p.55.
3 REPERCUSSÃO E MEDO: O PARADOXO DE CASSANDRA
(...)Desde o quartel da cavallaria, até o Forte de S. Pedro forão achados muitos Africanos mortos ou feridos, e poucos presos no acto do ataque. (...) Pela manhã forão achados alguns pelos matos vizinhos, baliados ou cutilados, dos quaes alguns procuravão escaparem-se com disfarces . (...)Tem sido dadas por mim as providencias necessárias, para serem corridas todas as casas de Africanos, sem distinção alguma, e o resultado será presente a V. Ex. em tempo competente; podendo desde já asseverar a V. Ex. que a insurreição estava tramada de muito tempo, com hum segredo inviolável, e debaixo de hum plano superior ao que devíamos esperar de sua brutalidade e ignorância. Em geral vão quase todos sabendo ler e escrever em caracteres desconhecidos, se assemelhão ao Árabe (...) Existem mestres que dão lições, e travão de organizar a insurreição, na qual entravão muitos forros Africanos, e até ricos. 68
(Relatório do chefe da polícia baiana Francisco Gomes Martins)
68 Jornal do Commercio, n°31 (10.2.1835)
As primeiras notícias sobre o levante Malê chegam ao Rio de Janeiro a sete de
Fevereiro, pela Sumara Nossa Senhora do Carmo. Depois de circular como boato durante
dois dias pelo porto e pelas ruas da cidade, a notícia foi finalmente publicada pelo Jornal do
Commercio no dia nove de Fevereiro. A primeira vez que o levante ocorrido na Bahia
aparece no jornal sua referência é vaga e incerta, ainda como boato. No entanto, no dia
seguinte surge a publicação do relatório do chefe da polícia baiana Francisco Gomes
Martins, transcrita do Diário da Bahia. Ocupando soberanamente a primeira página do
jornal e se estendendo pela segunda, a posição privilegiada dessa notícia mostra o grau de
importância a ela atribuída. Além disso, tratava-se de uma irônica migração do elemento
negro na geografia do jornal: o escravo, que ocupava no arranjo organizacional do Jornal
do Commercio um lugar cativo na seção de classificados, com anúncios de compra e venda
ou ainda de aluguel desses negros, ocupava agora um lugar de destaque na primeira página
do jornal.
Não deixa de ser interessante pensar que, num momento em que a imprensa
representa uma extensão do espaço público, onde as discussões de cunho político permitem
uma verdadeira dilatação desse espaço, a passagem do elemento negro da seção comercial
dos classificados para as primeiras páginas do jornal não deixa de possuir um simbolismo
sutil, mas relevante.
A curiosa admiração pelo grau de articulação e de estratégia usada pelos insurgentes
Malês, “superior ao que devíamos esperar de sua brutalidade e ignorância”, revela perigo.
Numa sociedade em que grande parte dos homens livres seguiam iletrados, escravos que
soubessem “ler e escrever” deviam aparecer aos olhos do público com um caráter de
arriscada e subversiva excentricidade. Mas talvez o mais interessante seja notar que, a partir
desse momento, o foco da busca e da dura repressão transcende a própria insurreição, e os
indivíduos nela envolvidos, se estendendo a todos os elementos negros, “sem distinção
alguma”69.
3.1- Os Malês e a resistência negra. 69 Jornal do Commercio, n°31 (10.2.1835)
Revoltas negras na Bahia não eram exatamente uma novidade em 1835, já que
existiu quase uma tradição de pequenas revoltas envolvendo escravos em
1807,1809,1814,1816,1822,1826,1827,1828 e 1830, além de uma miríade de outros
pequenos levantes em áreas rurais mais isoladas.70
No entanto, em 1830 pela primeira vez um levante negro explodiria no coração de
Salvador. Na manhã de 10 de Abril, cerca de vinte africanos assaltaram três lojas de
ferragens, no centro comercial roubando espadas e facões, seguindo para o mercado de
escravos próximo e libertando africanos novos que aguardavam para serem vendidos. Ao
grupo rebelde foram acrescentados mais de cem homens, sendo que cerca de dezoito
africanos novos foram assassinados no ato por se recusarem a seguir os revoltosos. Os
insurgentes atacaram um posto de polícia nas redondezas onde mataram um policial e, após
a chegada de reforços, foram dispersados. Sendo perseguidos, mais de cinqüenta negros
foram espancados até a morte sendo feridos outros tantos. Até então as revoltas tinham
atacado a cidade de Salvador de fora. Em 1830 a sublevação veio do centro da cidade.
A resposta a rebelião por parte das autoridade baianas incluiu um edital que
anunciava um rigoroso toque de recolher às nove horas da noite. Além disso, o ouvidor
geral do Crime foi orientado a manter na prisão todos os escravos acusados de insurreição,
mesmo os inocentes por falta de provas. Aqueles que fossem absolvidos só poderiam deixar
a prisão para serem imediatamente vendidos para fora da província. O levante de 1830
parece um ensaio da revolta Malê.
Na madrugada do dia 24 para o dia 25 de Janeiro de 1835, negros haussás e nagôs
rebelaram-se no centro da cidade de Salvador. Escravos e mesmo alguns libertos tomaram
parte no levante que partiu de uma reunião na casa do negro Manuel Calafate, na ladeira da
Praça, e encontrou-se com outros participantes pelas ruas da cidade. Atacaram instalações
do governo como os quartéis de São Bento, do largo da Lapa e a prisão municipal. No
entanto, apesar da ousadia e articulação empregada no levante, este foi desbaratado em
algumas horas pelas forças baianas. Estima-se em mais de duzentos o número dos
insurgentes. O mais interessante é que, embora tenha durado apenas algumas horas na
madrugada do dia 24 para 25 de Janeiro, a revolta dos Malês ecoou durante anos nas 70 REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês em 1835/ João José Reis. –Edição revista e ampliada –São Paulo: Companhia das Letras, 2003..
mentes e fertilizou o medo e a imaginação da população não apenas na Bahia, mas em todo
o Brasil
Apesar da revolta se situar num período especialmente conturbado da vida nacional
e geralmente ser classificada como mais uma “revolta do Período Regencial”, essa ligação
existe mas é secundária. O levante pertence, antes de tudo, a uma tradição de rebeliões
escravas na Bahia. Assim, de 1807 a 1830 várias revoltas ocorreram, sendo a Rebelião
Malê de 1835 a que, sem dúvida, assumiu as maiores proporções. Além disso, a
combinação de políticas públicas de vigilância e violência senhorial estabeleceu um
verdadeiro regime de terror contra os africanos na Bahia, o que efetivamente garantiu que o
levante Malê fosse o último dessa tradição de levantes baianos71. Entretanto, essa revolta
possui uma singularidade em relação às demais: a presença majoritária de muçulmanos.72
Um dos fatores mais significativos da revolta foi seu caráter urbano, fruta da forte
presença em Salvador da escravidão de ganho. Nessa modalidade de escravismo, os negros
passavam o dia vendendo produtos pela cidade. É inegável a maior “liberdade” que esse
tipo de escravidão oferecia para os contatos pessoais, os cultos religiosos e também para a
organização de revoltas. Por isso, em geral, a rebeldia escrava nas cidades assumia a forma
da revolta, ao passo que nas fazendas do interior ela se expressava como fuga para os
quilombos.
Após o levante, grande parte dos envolvidos foi condenada a penas de castigo e
prisão. Um número considerável, em geral os libertos, foi deportado para a África, sendo a
primeira vez que essa pena foi instituída no Brasil. Uma menor parcela dos insurgentes
terminou condenada à morte.
Praticamente todo o núcleo organizador da revolta e a maior parte dos participantes
eram muçulmanos. Quanto à sua etnia, a imensa maioria dos revoltosos tinha origem
iorubana: majoritariamente nagôs, mas também haussás, ewes e outras etnias iorubanas. A
maioria esmagadora dos envolvidos era de africanos. Quanto à condição social e de 71 Ver: REIS, João José. Ibidem. 72 A etimologia do termo Malê viria, segundo Nina Rodrigues, do termo Mali, um poderoso Estado mulçumano da Costa do Ouro, na África. Já Pierre Verger, Vicent Monteil e Vivaldo da Costa Lima associam o termo Malê a imàle, que parece derivar de Molawa, do haussá Mallaawaa, ou “Gente do Mali”. Assim, a ordem de derivações etmológica do termo seria Mali – imále – Malê. Segundo João José Reis Male, imàle e outras expressões do tipo eram usadas desde o século XVIII para descreverem mercadores mulçumanos que atuavam nos entrepostos do golfo de Benin, onde eram embarcados a maioria dos escravos que chegaram à Bahia nos anos que precederam o levante de 1835.
trabalho dos revoltosos, a maior parte era composta de escravos, mas havia um número
considerável de libertos. Por certo eles estavam entre os miseráveis da sociedade, sendo que
apenas um ou dois libertos revoltosos tinham uma condição econômica um pouco melhor.
As ocupações mais comuns entre eles eram os serviços urbanos em geral, trabalho
doméstico, artesanato e vendas. A maioria dos escravos participantes na revolta pertencia à
categoria de escravos de ganho, enquanto um número menor, mas considerável, fazia
serviços domésticos.73
Reis afirma que o levante pode ser explicado através do tripé: religião, etnia e
escravidão. Para ele, a ideologia da Revolta de 1835 foi o islã e seu núcleo dirigente era
Malê. Mas a importante presença muçulmana que o distingue dos demais movimentos de
africanos não pode ocultar outros fatores que mobilizaram os participantes do Levante. Ao
mesmo tempo em que muitos participaram motivados pela fé muçulmana, outros o fizeram
por serem nagôs fundamentalmente. Aqui é necessário abrir um parêntese: o limite entre a
identidade étnica e a identidade religiosa era muito maleável para os africanos da Bahia
nesse período. Sua identidade étnica era extremamente dinâmica, transformando-se em algo
diferente daquela que existia em solo africano. Por outro lado, o islã, apesar de ser uma
religião universalista, tinha aqui um particularismo étnico, pois estava mais difundida em
certas etnias, como no caso dos próprios nagôs e dos haussás. Assim diz J.J. Reis: “Embora
o islamismo não seja uma religião étnica (...), ele parece ter se tornado exatamente isso
nesta rebelião específica, por haver representado sobretudo a força espiritual e política de
negros nagôs”74. Além disso, o autor sustenta que o movimento de 1835 teria se
beneficiado da solidariedade coletiva associada ao trabalho urbano. Em suma, João José
Reis apresenta sua leitura do Levante dos Malês como uma combinação de luta religiosa,
étnica e de classe.
No entanto, o elemento “de classe” sublinhado por Reis na revolta merece alguns
comentários. Parece claro que a condição econômica inferior dos envolvidos tem sua
participação na arregimentação de participantes para a revolta, mas isso não implica
necessariamente uma interpretação do Levante como uma luta de classes entre escravos e
senhores. Há uma participação maior de escravos que de libertos, mas a diferença é
73 REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês em 1835/ João José Reis. –Edição revista e ampliada –São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.123 74 Idem, Ibidem. p.349
pequena, algo em torno de 20%. Reis não considera isso relevante, afirmando que os
próprios libertos estariam vinculados a uma relação que remetia à escravidão, estando
submetidos aos senhores escravocratas. No entanto, essa relativização da condição de
liberto encontra limitações. Com todas as dificuldades que pudessem enfrentar, os libertos
estavam numa posição muito diferente da dos escravos, observando-se vários casos de
libertos que possuíam seus próprios escravos.
O mergulho nas declarações dos envolvidos nos processos, a fonte principal de
Reis, mostra que os planos para depois da vitória eram de massacre dos brancos, mulatos e
crioulos, como eram chamados os negros nascidos no Brasil, eventualmente com a
escravização de mulatos e o possível massacre dos africanos que porventura se colocassem
contra a revolta. Esses planos, e outras declarações, revelam que o Levante era entendido
como uma luta da “terra de negro” contra a “terra de branco”, nos dizeres dos próprios
participantes. Isso significa que a revolta era uma luta dos africanos, escravos ou não,
contra os nascidos no Brasil, senhores ou não, brancos ou negros, e eventualmente, contra
os africanos que se colocassem ao lado dos “brasileiros”. Nesse confronto, os rebeldes
consideravam os crioulos e mulatos aliados dos brancos, identificação que provinha do fato
de haverem nascido na “terra de branco”.
Essa interessante divisão entre a “terra de branco” e a “terra de negro’” merece um
estudo mais aprofundado. Entretanto, os revoltosos não se viam como escravos em luta
contra seus senhores. E nem mesmo os que enfrentaram a revolta assim agiram nessa
polarização escravo/senhor, como o próprio Reis observa:
Os laços de cultura e nacionalidade uniram contra os africanos os mais poderosos e os mais miseráveis dos brasileiros, mesmo os que não possuíam escravo algum, ou que eram eles próprios escravos75.
De qualquer modo, parece inegável a dimensão política da revolta, mesmo porque
ela quase não contou com ataques de civis, tendo sido concentrada em locais públicos
estratégicos, como os quartéis de São Bento, do largo da Lapa e a prisão municipal.
Após o Levante, uma grande atmosfera de medo passa a pairar sobre a cidade. Isso
devido percepção de que o numero de escravos era grande demais para que pudesse ser
contido caso uma revolta nos moldes da ocorrida fosse mais bem sucedida do ponto de
75 REIS, João Jose. Op. Cit. p.546.
vista da organização e mobilização. Claro está que no caso Malê não se pode apenas falar
de uma revolta escrava, já que elementos religiosos e étnicos estiveram presentes no
levante, sendo determinantes inclusive do ponto de vista da mobilização da escravaria
devido a nuances que distinguiam os escravos nascidos no Brasil daqueles africanos
haussas e nagôs que possuíram o papel de liderança na condução da revolta.
De qualquer forma, a simples imaginação de que outros levantes pudessem ser
tramados e executados em seguida, e que talvez pudessem ter sucesso como décadas antes
o tiveram os escravos de São Domingos76, era suficiente para aterrorizar a população e
gerar uma série de contramedidas no sentido de garantir a segurança e os privilégios que o
homem branco gozava a tantos séculos aqui nos trópicos.
A contramedida imediata contra o medo causado pelo levante e, sobretudo, contra a
possibilidade de que novos levantes ocorressem, será o aumento do terror senhorial. Esse
terror senhorial pode ser percebido claramente do aumento desmedido da violência contra o
negro, especialmente o nascido na África, violência essa que será absolutamente
desproporcional e muitas vezes gratuita, chegando mesmo ao ponto de ser
contraproducente. Outro fator que concorreu para o aumento da violência e do terror
senhorial contra esses indivíduos será a série de boatos que correrão em decorrência do
levante, estimulando a imaginação e fertilizando o medo das autoridades e da população.
Segundo José Reis, mesmo na manhã do dia 25 de Janeiro, algumas horas após o
levante ter sido desbaratado, correu o boato de que os rebeldes haviam se reagrupado para
um novo ataque contra a cidade de Salvador. Na freguesia de Santana o boato era o de que
um novo grupo de insurgentes já estava em ação, avançando pelas ruas da cidade. Sem
dúvida alarme falso, fruto do pânico que havia se instaurado. A resposta a tamanha
excitação causada pelo medo foi violência contra o negro, e violência em sua forma mais
brutal e gratuita.
Para Reis o que ocorreu na cidade de Salvador em decorrência desses boatos foi
uma espécie de desforra, sobretudo das forças policiais:
76 Referência a revolta do Haiti, ocorrida em fins do século XVIII. Ver: JAMES, C.L.R. Os jacobinos negos: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo, Boitempo, 2000.
O clima de medo incentivou a fúria dos vencedores. Humilhação, espancamento e freqüentes assassinatos atingiram de forma indiscriminada africanos pacíficos e inocentes, que fugiam aterrorizados cada vez que uma patrulha despontava na esquina.77
Mas, e no Rio de Janeiro? O representante britânico na Corte, H. S. Fox, escreveu a
Londres sobre a “crueldade dos habitantes brancos, e da soldadesca, em relação à parcela
inofensiva dos pretos”78. É importante ressaltar que o relato de H.S.Fox data de
1/2/1835 e, portanto, de antes das notícias sobre o levante Malê terem chegado ao Rio de
Janeiro. Isso ilustra a possibilidade de que a violência contra negros na Corte tenha
ganhado ainda mais força com as tintas do medo.
Na Corte imperial, alguns casos pontuais apresentam a ocorrência de pequenos
levantes de escravos anteriores. Em 1833, por exemplo, na tarde de 4 de Abril, Rodrigo
Pinto da Costa, feitor de uma caldeiraria na Rua da Alfândega, número 70, foi surpreendido
quando alguns escravos sob sua supervisão resistiram aos castigos físicos de rotina. No dia
seguinte, o feitor procurou o juiz de paz do 1º Distrito da Freguesia da Candelária dizendo-
se receoso de um levante de escravos na dita fábrica. Consta que o senhor Gustavo Adolfo
de Azevedo, o referido juiz de paz, sugeriu ao feitor que esse apelasse à Polícia Militar para
controlar os insubordinados, já que como Juiz de paz só poderia prender pessoas acusadas
efetivamente de algum crime.
Nesse mesmo dia, por volta das 17 horas, a situação tornou-se crítica, quando o
feitor foi expulso da fábrica e os escravos assumiram o controle. A ajuda da Guarda
Nacional foi solicitada e, não sendo encontrado o Juiz de Paz anteriormente citado, apelou-
se para o juiz do distrito vizinho. De forma que, às 19 horas a caldeiraria estava tomada por
14 escravos sublevados, defendidos por barricadas num depósito aos fundos da fábrica. A
seqüência dos acontecimentos é narrada da seguinte forma pelo juiz presente ao levante: Esgotados assim os meios de brandura passei para os intimidar e adverti-los de que já grande força se achava ali para os reprimir e conter, contra a qual seu número e força seria impotente, ao que tornaram em resposta que “morreriam quando não pudessem matar”. Disse-lhes, contudo, que, apesar de sua pertinácia, se ia fazer a sua apreensão, usando da moderação devida, e que eles se poderiam entregar logo que se lhes franqueassem a saída. Em conseqüência, passei a dispor a força armada em ordem conveniente para evitar confusão e manter o sussego, fazendo ver que só apurado extremo justificaria o emprego de meios fortes e que uma nova intimação, depois de patenteada a saída, os reduziria ao dever.
77 Idem, Ibdem. p.423 78 H.S.Fox para Palmerston, Rio de Janeiro, 1.2.1835, PRO/FO, 13,117, fl. 59. Apud. REIS, João José. Op. Cit. p.54.
Aconteceu que, porém, que quando se fez aos amotinados esta última admoestação e se lhes patenteou a saída um a um, começou da parte deles um acometimento em força, agredindo em multidão com as arma de que estavam munidos, a saber, machados, facas, martelos, pedras e varais de ferro, e outras armas que servem ao uso daquela oficina; a ponto de que excitaram que os guardas nacionais já em própria defesa rompessem em fogo, que eu logo e logo mandei cessar, e por isso não passou de seis a sete tiros. Daqui resultou que o cabeça dos rebelados, que veio na frente dos outros sofresse uma bala donde logo se lhe originou a morte, e alguns dos outros apenas feridos em razão da resistência com que ainda mesmo depois de estarem debaixo da força se arrojaram a fazer violência ativa para se subtraírem a ela.79
3.2. Violência e escravismo: o fantasma do Haiti.
O grande medo de levantes negros, que poderiam ser tramados e executados na
Corte imperial como um prolongamento do levante ocorrido na Bahia em 1835,
decisivamente acentuado pelas notícias do ocorrido anos antes no Haiti, foi um grande fator
de ruptura do equilíbrio tenso característico da relação senhor/escravo e o que provocou
alguns abalos no equilíbrio dinâmico que sustentava o sistema escravista, gerando intensos
debates sobre a sua validade ou não. Esse abalo gerou, sobretudo, um forte refluxo de
violência e repressão que determinou medidas legais e projetos políticos que visavam
aumentar o controle não só sobre os escravos, mas sobre todos os “homens de cor”, num
processo de racialização do discurso da ordem. Notar-se-á, a partir de então, um
arrefecimento do regime de terror senhorial baseado na violência contra o negro.
Refletindo sobre as condições da escravidão no Brasil, parece impossível que o
sistema escravista pudesse ser mantido apenas pela repressão, já que não haveria feitores
suficientes para controlar um número tão grande de escravos. É possível falar de um
equilíbrio político na relação senhor/escravo. É claro que aqui não se trata de “a política”
enquanto teia de acontecimentos engendrados no âmbito do governo, mas sim de “o
político”, no sentido de exercício e ação do poder que permeia e transpassa todos os
meandros da sociedade. Nesse sentido, parece pertinente apontar para a existência de uma
espécie de equilíbrio que caracterizaria as relações entre senhores e escravos, dinamizando
o medo da violência e das revoltas escravas com um movimento de refluxo de castigo e
repressão senhorial. Ou seja, em compensação à ação subversiva do elemento negro,
79 AN, GIFI 5B 517, 16.5.1833. Apud. HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade de século XIX. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997.
geradora de medo na elite branca, haveria, como contrapeso, o medo do castigo e da
repressão, como um tipo de “terror senhorial”, presente nas ações disciplinares movidas
pelos senhores contra seus escravos.
A constatação desse equilíbrio tenso nada tem haver com as teorias freirianas que
deram origem ao mito da “democracia racial”, amenizando as tensões e violências da
relação senhor/escravo com o argumento do “paternalismo senhorial” e do caráter
“masoquista” 80 do negro. A noção de equilíbrio problematizada aqui é, sobretudo, a de um
equilíbrio baseado na violência e na administração de ódios recíprocos. É claro que a
internalização e naturalização do sistema por parte do próprio negro poderia gerar inúmeras
situações em que as relações do senhor com sua escravaria podiam ser até amistosas, com
relativo voluntarismo e até laços de confiança. Entretanto, parece que tais casos não podem
ser considerados uma regra. A relação tensa entre os medos, referentes ao negro, mas
também ao senhor, parece ter sido um mecanismo inerente ao sistema escravista, o que teria
de fato permitido a sua longeva duração.
O que parece caracterizar a década de 1830, sobretudo a partir de 1835, é
exatamente uma ruptura desse equilíbrio. O levante Malê de 1835 teve um papel primordial
para o desequilíbrio entre o que chamo de periculosidade negra e terror senhorial. Como já
foi dito, revoltas negras na Bahia não eram uma novidade, havendo uma tradição referente
a tais levantes. No entanto, o que chocou a população branca foi a capacidade de
articulação conseguida em 1835, e também o fato do levante ter sido planejado com relativa
antecedência e grande argúcia pelos escravos islamizados das etnias nagô e haussá. O fato
desses negros possuírem, além de uma religião considerada bastante exótica no período,
domínio sobre a leitura e a escrita, e o fato de terem planejado cuidadosamente o levante,
assustou bastante os dirigentes baianos e teve forte repercussão na Corte imperial. Além
disso, sobretudo pela violência e articulação, o levante Malê fez lembrar muito a revolta
negra ocorrida no Haiti em fins do XVIII, o que concorreu para excitar ainda mais a
imaginação e os temores dos senhores.
O medo e a insegurança, que se transformaram em uma espécie de paranóia
generalizada, são assim ilustrados por Ilmar de Mattos:
80 FREIRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. Rio de Janeiro. Livraria José Olympio Editora, 1977.
Insurreições reais confundiam-se com levantes imaginários. José Vieira Fazenda relata que em certa ocasião do período regencial “um boato horrível circulou”: Teria sido fundada uma Sociedade Gregoriana para o assassinato de pessoas brancas, à semelhança do que se passara anos antes em São Domingos.81
O fato é que, reais ou imaginários, os movimentos de rebelião escrava contavam
entre os grandes temores sociais da época, e revelam, além disso, que as repercussões da
Revolução do Haiti, em fins do século XVIII, ainda ecoavam nas mentes dos homens
brancos e nas ruas da cidade, potencializando, dessa forma, o conseqüente medo de
“haitianismos” que elas fomentavam. Os inúmeros escritos em árabe achados com os
revoltosos baianos, como trechos do Alcorão, rezas e amuletos contendo versos corânicos e
figuras cabalísticas, ajudavam na construção dessa ambiência geral de medo e paranóia.
A revolta de escravos em São Domingos ocorreu em Agosto de 1791, passados dois
anos do início das movimentações revolucionárias na França. Em uma luta que se arrastou
por doze anos, os negros derrotaram os senhores brancos locais e os soldados da monarquia
francesa. Os revoltosos foram capazes de debelar, além disso, uma invasão espanhola, uma
expedição britânica com algo em torno de sessenta mil homens e uma expedição francesa
com aproximadamente a mesma dimensão. A derrota da expedição de Bonaparte em 1803
possibilitou enfim o estabelecimento do Estado negro do Haiti. Segundo C.L.R. James, a
revolução do Haiti teria sido a única revolta de escravos bem sucedida da História, no
sentido de que teria sido a única onde a luta pela libertação teria sido levada as últimas
conseqüências. Para o autor:
A transformação dos escravos, que, mesmo às centenas, tremiam diante de um único homem branco, em um povo capaz de se organizar e derrotar as mais poderosas nações européias daqueles tempos é um dos grandes épicos da luta revolucionária e uma verdadeira façanha. 82
Organizados através de sua identidade em torno do Vodu, sincretismo religioso
análogo ao candomblé brasileiro, o plano de levante traçado pelos escravos tinha como
principal estratégia o extermínio em massa dos brancos. Os relatos sobre a Revolução do
Haiti geraram pânico entre os senhores escravistas de toda as colônias da América
espanhola e portuguesa e tiveram, como veremos, uma repercussão duradoura, inspirando
81MATOS, Ilmar Rohloff. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec/ INL, 1987. p. 86. 82JAMES, C.L.R. Os jacobinos negos:Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo, Boitempo, 2000.
profundo medo devido à extrema violência com que a revolução foi levada a cabo. O medo
não deixa de ser justificável tendo em vista o caráter dos relatos:
[...] violaram todas as mulheres que lhes caíam nas mãos, frequentemente sobre os corpos ensangüentados dos seus maridos, pais e irmãos. “Vingança!Vingança!” era o seu grito de guerra, e um deles carregava uma criança branca espetada em uma lança como estandarte. [...] Não Obstante, em todos os registros daquela época não havia um único exemplo de torturas tão demoníacas como enterrar homens brancos até o pescoço e melar as cavidades de sua face para atrair insetos, ou explodi-los com pólvora, ou qualquer das mil e uma bestialidades às quais eles foram submetidos.83
Esses exemplos um tanto perturbadores demarcam o sentido do termo “haitianismo”
para os homens brancos. Talvez nada pudesse ser mais medonho para um senhor de terras
nos trópicos do que a perspectiva, por menor que ela fosse, de qualquer tipo de levante
caracterizado nesses termos. Para João José Reis, há evidências de que os negros do Brasil
sabiam do Haiti após a revolução e o consideravam como uma espécie de símbolo de
resistência negra: “Luiz Mott publicou um documento em 1805 que revela que soldados
negros do Rio de Janeiro usavam medalhões com a efígie de Dessalines, apenas um ano
após ter este declarado a independência de Saint-Domingue, logo rebatizada Haiti”84.
3.3 - O Paradoxo de Cassandra: Repercussão e Medo
Na edição de 10 de Fevereiro do Jornal do Commercio é publicada uma carta
particular, escrita em 31 de Janeiro e enviada da Bahia, revelando que o levante negro não
atinge apenas o imaginário e as relações de sociabilidade entre livres e escravos. Tal
levante tem implicações materiais bem definidas, atingindo diretamente a estrutura
econômica urbana: “O commercio está aniquilado por hum levantamento de negros, que de
repente perturbou a tranqüilidade pública Domingo passado.”85
83 Apud. JAMES, C.L.R. Ibidem. P. 37. 84 Apud. REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês em 1835/ João José Reis. –Edição revista e ampliada –São Paulo: Companhia das Letras. p.85. 85Jornal do Commercio, n°31 (10.2.1835).
Com propagações nas relações de poder, nas formas de sociabilidade e na ordem
econômica, a repercussão do levante na Corte gera apropriações que atribuem uma
conotação claramente política ao medo que torna-se fruto das notícias. Assim, a 14 de
Fevereiro se expressa um artigo assinado por um indivíduo de pseudônimo “Justiceiro”:
O comércio além de iníquo, tornou-se ilegal. (...)A humanidade ditou sem duvida o tratado que fez o ex Imperador com a Inglaterra para a abolição do trafico da escravatura. [...] Centenas de escravos enchem todos os dias as fazendas dos nossos lavradores, e crescendo o mal como cresce, inevitável he que a Lei caia, e que as autoridades cedão. Entretanto, se esses miseráveis Africanos já em outro tempo soffrião todas as privações e crueldades, a que a sordida avareza desses infames vendedores de gente os obrigava, quer nos barcos como em terra, hoje estão expostos a todo gênero de deshumanidade, de que a mesma avareza unida ao temor tem necessidade de lançar mão [...]Em nossa opinião, o primeiro passo que convem, he estabelecer em todas as províncias escolas normaes de agricultura. (...) O segundo passo he ser o Governo Geral habilitado para engajar colonos.[...]Feito isso , então convém que o Legislador proclame em voz bem alta aos Brazileiros, que he tempo de acabar com a escravidão, que tanto deshonra a nossa civilização; que he uma vergonhosa contradição com os princípios liberais que professamos, conservar homens escravos, e perpetuamente
Parece que aqui o debate sobre a Lei Anti-tráfico de 1831 ganha novo fôlego. O
aumento da violência, fruto da repercussão do levante baiano na Corte também é constatada
pelo autor do artigo, já que a “deshumanidade” com que são tratados os escravos, nesse
momento, aparece explicada como fruto da “avareza unida ao temor”. O articulista
identifica-se com aqueles que julgavam a escravidão incompatível com o progresso
econômico, com a civilização e a doutrina liberal. Existe nesse discurso uma clara
apropriação da ambiência de medo e insegurança, propagada pelo eco das notícias sobre o
levante baiano, para veicular idéias de contestação da ordem escravista. Nota-se também
que as expressões “civilização” e “princípios liberais” são postas em contraste com
adjetivações negativas como “deshonra” e “vergonhosa”, que caracterizam suas antíteses.
O que se apreende desse discurso é a seguinte equação: “escravidão”=“deshumanidade” ≠
“princípios liberais” = “civilização”. Sua oposição cabal à escravidão, as propostas de
aprimoramento técnico da agricultura e da vinda de colonos parecem indicar uma visão
que se aproxima de concepções espelhadas em um ideário iluminista, empenhado em
buscar a modernização e a atualização do Brasil no panorama da cultura ocidental.
A partir dessa perspectiva, agricultura, nação e civilização articulam-se numa
representação do que deveria ser o país desejado. Nesse sentido, a representação do que
deveria ser o processo civilizador brasileiro funda-se numa expectativa de
desenvolvimento. A crença numa agricultura ilustrada, com técnicas modernizadas e
contrária a rudimentar lavoura baseada na mão de obra escrava era o meio imaginado para
o Brasil atingir o estágio civilizado. Dessa forma, exprimiam uma espécie de separação
entre suas convicções e a sociedade na qual viviam, considerada incapaz ou inadequada
para a aplicação dos tais “princípios liberais” que defendiam. Entretanto, embora o debate
sobre o processo civilizatório brasileiro tenha sido intenso no século XIX, as tentativas de
implementação de uma agricultura ilustrada foram perdendo o entusiasmo frente a lógica
econômica da agricultura escravista.
O mesmo tom é encontrado no artigo extraído do periódico Aurora Fluminense,
publicado pelo Jornal do Commercio em 17 de Fevereiro. Da mesma forma, junto com as
idéias de civilidade e humanidade há um forte apelo à sensação de insegurança e ao medo,
enfocando no discurso a maciça presença negra nas propriedades rurais.
Impossível é que o bom cidadão, amigo da civilização e da humanidade, deixe de sentir o coração oprimido quando os vê [os escravos] amontoados aos centos por todas essas fazendas e engenhos, tendo para guardá-los tão pouca gente livre e de diversa cor 86.
Essas apropriações do medo e da paranóia, que afloram pelas notícias e são
amplificadas pela rápida repercussão do levante dos Malês, são “administradas” para
defender princípios liberais. Dessa forma, os dois artigos acima apresentados parecem
aproveitar o terreno fértil do medo para exprimirem suas convicções políticas. O que
eles tentam expressar é que o perigo não está exatamente no negro, mas sim na
escravidão.
No mês de março o Jornal do Commércio será palco de uma virada conservadora
em relação as interpretações das notícias. Nessas manifestações discursivas, a idéia de
perigo se desloca do escravismo para o próprio escravo. O artigo que encerra Fevereiro
dá uma amostra de como as notícias que chegaram no dia 9 do dito mês, se propagaram
com velocidade e intensidade crescente, e isso fica claro na nota alarmante e algo
sensacionalista que o Jornal do Commercio publica a 27 de Fevereiro. Seu conteúdo é
86 Jornal do Commercio, 17/02/1835.
bem diferente do tom amenizador da primeira notícia sobre o levante. Sinal de que o
medo corria como vento.
Consideramos conveniente publicarmos na íntegra por tradução o texto de hum papel que nos veio á mão da Bahia, e que os pretos insurgidos fizerão circular. Nosso fim não he excitar o zelo e a vigilância do Governo sobre matéria tão milindrosa. Temos a convicção de que o mesmo governo, zeloso dos interesses do Império, e promotor do progresso e da civilização, não omittira medida alguma para prevenir e frustrar qualquer plano atroz que a escravatura possa conceber contra os homens livres do Brazil. Tivemos somente em vista significar a importância de medidas repressivas, publicando a sobredita circular, genuína expressão dos sentimentos de seus autores. Confiamos este papel importante a hum jovem Francez, que se dedicou há longo tempo, ao estudo das Línguas Orientaes. Depois de muito trabalho, conseguio traduzir o texto em Arábico, e depois em Portuguez. Eis os resultados de suas pesquizas: “A escrita he huma mistura de Arábico e Indiano, mas particularmente a de que se usa em Couffa no mar Vermelho. No principio da folha acha-se este verso do Corão:“Em nome de Deos, o clemente, o misericordioso! Possa Deos derramar sua misericórdia sobre nosso senhor Mahomet; louvado seja o nome de que dá a salvação! Vem depois a phrase seguinte, escripta da direita para a esquerda, e repetida 210 vezes em 4 linhas que contem cinco vezes cada huma: “Deve ser derramado o sangue, e nós todos devemos desejar nelle banhar as nossas mãos.”E no fim de tudo, acha-se outro verso do Corão, escripto parte com tinta preta, parte com encarnada:“Oh Deos! Oh Mahomet, criado do todo poderoso! Esperamos feliz successo, se prouver a Deos o muito alto; a elle a Gloria! Amem!87
Dadas as enormes proporções que as notícias vão assumindo, acentuadas por notas
cada vez mais sensacionalistas, como a de 27 de Fevereiro, os discursos sobre o medo vão
sendo reapropriados e formatados para atender as demandas daqueles que clamam pela
“ordem”. É importante ressaltar que o termo “sensacionalismo”, aqui utilizado refere-se,
sobretudo, a esse movimento. Leia-se por sensacionalismo, a excitação das sensações e
sentimentos dos leitores, no caso específico, o medo e a insegurança, que se transformaram
em uma espécie de paranóia generalizada.
Capoeiras, caixeiros, vadios e muitos outros homens “sem qualidade”, além de uma
quantidade insuspeitada de mendigos e escravos ao ganho, misturavam-se pelas ruas da
cidade, “obrigando os juízes de paz a empunharem suas bandeiras verdes para dispersar os
ajuntamentos ilícitos, fazendo com que as matracas soassem convocando os guardas
nacionais, forçando a intervenção dos guardas urbanos ou municipais”88. Tais ocorrências
eram uma constante na cidade do Rio de Janeiro, como nos indica também os projetos89
oferecidos pelo Sr. Santos Lobo para que os juízes de paz procedessem com mais rigor
87 Jornal do Commercio, n°47 (27.2.1835) 88 Jornal do Commercio, n°31 (10.2.1835). 89 Apud. Jornal do Commercio, n°37 (17.2.1835)
acerca dos vadios. O Jornal do Commercio publica a apresentação feita na Assembléia
Provincial de um projeto que defendia a construção de casas de prisão e correção,
encaminhado pelo Sr. Souza França ainda em Fevereiro90.
A 16 de Março um artigo de ofício é enviado pelo Presidente da Província do Rio de
Janeiro ao Presidente da Bahia. Parece que o primeiro fora encarregado de mediar as
relações com a Regência:
Illm e Exm. Sr.- Levei ao conhecimento da Regência, em nome do Imperador o Senhor D. Pedro II, o conteúdo do Offício de V. Ex., datado de 14 de Fevereiro passado, no qual expondo o terror que se tem apoderado da população dessa cidade, em conseqüência da revolta de Africanos na noite de 24 para 25 de Janeiro último, exige do Governo Imperial algumas medidas extraordinárias que, sem offensa das Leis, dos tratados, e princípios geraes do Direito das Gentes, se podem, e devem quanto antes tomar para dar a maior segurança á Província, e sossegar os espíritos receiosos da impunidade dos mesmos Africanos [...].
Ao fim do ofício, o Presidente do Rio de Janeiro envia algumas instruções para o
Presidente da Província da Bahia:
1°. Que seja por V.Ex. autorizado fazer deportar ou desterrar para fora do Império, quantos Africanos libertos forem suspeitos naquela revolta(...) 3°. Que V.Ex dê as mais enérgicas providencias para que não sahião dessa província para aqui, ou para outra, Africanos involtos em tal revolta (...) ordenando que nenhum escravo embarque sem guia de licença do Chefe da Policia91.
As medidas colocadas buscavam, claramente, conter a entrada de elementos
“involtos em tal revolta”, e evitar dessa forma o contágio de idéias subversivas entre os
negros.
No dia 18 de Março é publicada a seguinte notícia:
Espalharão se homtem notícias aterradoras referindo que hum novo levantamento de negros, mais temível e melhor succedido que o primeiro, havia rompido nos arrabaldes da cidade da Bahia, e que os amotinados depois de haverem commetido atrocidades em várias fazendas, dirigirão-se victoriosos para a cidade. Esta noticia porem he inteiramente falsa. Recebemos gazetas da Bahia até 6 do corrente, vimos cartas do dia 7,e nem huma palavra contêem a tal respeito. Tambem fallamos com o Capitão do Patacho Minerva, que he a ultima embarcação que sahio da Bahia; elle nos disse que até a tarde do dia 7 em que se fez de vela, a tranquillidade não havia sido perturbada. (...) O Jury da cidade estava occupado com o processo dos negros sublevados. Seis já forão condenados á morte, alguns a 1.000 açoutes, e outros á prisão. Se accrescentarmos a estas rigorosas medidas reclamadas pela circunstancia, a autorisação sollicitada pelo Presidente da Província, e que lhe foi enviada pelo Governo central, he de esperar que se não repitão as scenas de horror que há pouco ensangüentarão a Capital da Bahia.
90 Jornal do Commercio n°56 (12/03/1835) 91 Jornal do Commercio n°60 (16/03/1835)
Esperamos também que seja rigorosamente cumprido o artigo terceiro das Instruções enviadas ao Presidente da Bahia, e que transcrevemos no número 60 deste jornal; pois corre o boato que existem a bordo do Minerva 31 escravos dos complicados nos anteriores acontecimentos.
Reparem que os boatos sobre as “atrocidades” cometidas pelos “amotinados” fazem
lembrar os relatos sobre o Haiti, onde as revoltas também começaram nas propriedades
rurais só depois se dirigindo às cidades. Além disso, nesse momento, a imaginação da
população do Rio de Janeiro já está inflamada e suscetível. A palavra “boato” contida ao
fim do discurso, assim como apalavra “Espalharão”, que o inicia, merecem considerações.
O boato é um tipo de sistema de propagação de informações através da reprodução baseada
na oralidade. Essa propagação oral das notícias gera distorções e ruídos que, ao longo da
cadeia de receptores/reprodutores da informação pode alterar o seu sentido e, devido a
supressão e/ou acréscimo de conectivos e palavras, pode transformar total ou parcialmente
o conteúdo ou sentido íntimo da notícia. Uma primária demonstração disso é a brincadeira
infantil de “telefone sem fio”, através da qual as crianças, numa cadeia de
recepção/reprodução, vão propagando de forma direta, de ouvido a ouvido, uma sentença
pronunciada, divertindo-se ao final justamente pelas distorções, supressões e acréscimos, e
pela transformação do conteúdo e do sentido da primeira sentença.
Dessa forma, no caso de uma notícia veiculada pela imprensa, esse sistema de
recepção/reprodução da notícia, via oralidade, subentende a necessidade de que a
informação se propague por uma cadeia formada por vários elos, ou seja, necessita-se que a
notícia tenha ampla circulação e cause grande excitação da opinião pública. Ela precisa
estar “na boca do povo”.
Se a divulgação de boatos aterradores aponta para o fato de que o medo já havia
contagiado amplamente a sociedade, a partir de então o clima de tensão que se instala
tornar-se-á propício para ações violentas e interpretações facciosas dos fatos. Aqui, o clima
geral de tensão e apreensão torna o medo alvo fácil para manobras políticas. A grande
penetração que as notícias têm nesse contexto serve para amplificar ainda mais essa
possibilidade.
Na Bahia, a notícia do levante Malê se propagou rapidamente e de forma sincrônica
entre as autoridades, a elite, e a população. Ou seja, ela correu ao mesmo tempo entre as
camadas da elite política e da população em geral. Isso fica claro pelo embate direto dos
revoltosos com a autoridade policial, que logo comunicará às autoridades políticas, como
visto no relatório do Chefe de Polícia baiano92. Lá a população pôde observar a correria,
ouvir os gritos e disparos, enfim, ver os corpos negros mortos na rua.
Diferente da propagação sincrônica entre a sociedade política e a sociedade civil, o
caso do Rio de Janeiro é marcado por uma propagação diacrônica, ou em tempos diferentes.
Assim, através dos boatos que se propagam pela já referida cadeia de recepção/reprodução,
corre a notícia do levante Malê pela cidade do Rio de Janeiro, atingindo uma grande parte
da população através do “boca a boca”, se propagando pelos setores da sociedade civil.
Através da divulgação dos rumores no Jornal do Commercio, depois confirmados pelo
relatório do Chefe de Polícia baiano93, a notícia chega às esferas da sociedade política,
produzindo discussões na Assembléia Provincial. Tendo a notícia do levante percorrido
esse percurso - do boato ao relatório oficial - finalmente repercutirá na sociedade política,
chegando às altas esferas administrativas. A partir daí serão geradas novas leis e
normatizações visando conter o medo e o perigo de “contágio” que poderia levar a
manifestações negras também no Rio de Janeiro.
A 20 de Março, o Jornal do Commercio publica notícias sobre a sessão da Câmara
dos Deputados, no Rio de Janeiro, ocorrida no dia 18 do mesmo mês. Nela, aparece o
projeto da Comissão de Fazenda, encaminhada pelo Sr. Vianna, que determina a fixação de
uma força policial permanente, aceita no mesmo dia nessa Assembléia. Além disso, é
publicado um decreto elaborado em sessão secreta. Transcrevo abaixo os artigos do
referido decreto:
Art.1- Ficão suspensas em toda a Província do Rio de Janeiro as formalidades do art. 179§,7,8 e 9 da Constituição do Império, a fim de poder proceder-se sem as garantias do referidos paragraphos, contra todos indivíduos sobre quem recahirem indícios vehementes de que tentão perpetrar o crime de insurreição, e por este crime somente. » Os que escreverem, e os que publicarem proclamações e quaisquer outros papeis, assim impressos como manuscritos, ou proferirem discursos directamente tendentes a promover inssurreição, serão punidos como cúmplices deste crime. Art.2- Se as cadêas dos lugares onde se fizerem prisões não forem seguras, as autoridades respectivas os remetterão os presos á disposição do Presidente da Província, empregando na sua conducção todos os meios de segurança que parecerem necessários, a fim de que não se evadão.
92 Que consta no capítulo 2 desse trabalho. 93 Publicado a 10 de Fevereiro pelo Jornal do Commercio.
Art.3- O Presidente da Província fica autorizado para fazer deportar para fora da mesma todos os estrangeiros de cor de hum ou outro sexo, comprehendendo-se nesta classe os Africanos libertos; e com especialidade aquelles que divagão pela mesma Província, entretidos no trafico de mascates e pombeiros. »Para este fim os Juízes de Paz, e mais autoridades que exercem com elles jurisdição policial cumulativa, farão prender os ditos estrangeiros de cor onde quer que forem encontrados e os remetterão com segurança á disposição do Presidente da Província. Art.4- Todos os Offíciais, os Officiais Inferiores e Soldados da Guarda Nacional, e ou de outro qualquer corpo de força armada, que se negarem á prestação auxílio que lhes for requerido por alguma autoridade nos casos de tentativa de insurreição, serão presos mesmo antes de culpa formada, e punidos com as penas impostas no Art.128 do Código Criminal. Art.5- Fica prohibido ás sociedades secretas , permitidas pelo Art282 do Código Criminal, celebrar de noite as suas reuniões, pena de serem consideradas criminosas, e de proceder contra ellas nos termos do Art. Citado, e do 284, ainda que tenhão feito communicação em forma legal ao Juiz de Paz respectivo. Art.6- Todas as associações secretas, onde for encontrado algum estrangeiro de cor, entrando nesta classe os Africanos libertos, e os que forem escravos, ficão declaradas criminosas: e todos os indivíduos que nella forem apprehendidos, serão reputados como achados em acto de tentativa de insurreição, ainda que a reunião se verifique de dia, e não exista outra alguma prova, que o simples facto da reunião em forma de associação, provada pelo auto legal de corpo de delicto da apprehensão. Art.7- O Presidente da Província fica autorizado para fazer as despezas necessárias para execução dessa Lei, e para manter huma vigilante Polícia da inspecção em todos os lugares da Província onde julgar conveniente: devendo dar conta de tudo quanto houver chegado ao seu conhecimento. [...] 94[Grifos meus]
As maçonarias e ordens secretas, segundo Marcos Morel, além de espaços de
sociabilidade, representados como lugares de relativa autônomia em relação ao poder
constituído, são também o embrião do “reino da crítica”95. Em outras palavras, são espaços
onde se travavam discussões políticas fora do controle do poder constituído. Do ponto de
vista de uma atitude liberal mais contestatória, as associações secretas, mesmo as não
maçônicas, assumiam um caráter de embrião de soberania que poderia influenciar e até
substituir a soberania da monarquia. Ainda segundo Morel, tais associações, em geral,
ligavam-se à idéia de “soberania popular”96.
Nesse sentido o decreto acima busca não só a repressão sobre o elemento negro,
mas também visa calar as dissidências políticas como, por exemplo, a do tipo de
liberalismo mais radical, chamado exaltado, justamente aquele que associa intimamente a
idéia de representatividade política com a noção de soberania popular. Isso fica bem claro
no anexo do 1° artigo, onde se diz:
94 Apud. Jornal do Commercio, 20/03/1835.
95 MOREL, Marcos. As transformações dos espaços públicos – Imprensa, Atores Políticos e Sociabilidades na Cidade Imperial. (1820-1840). São Paulo: Hucitec/ INL, 1987.p.245. 96 Idem, Ibidem. p.246.
Os que escreverem, e os que publicarem proclamações e quaisquer outros papeis, assim impressos como manuscritos, ou proferirem descursos directamente tendentes a promover inssurreição, serão punidos como cúmplices deste crime.”97
É claro que a expressão “tendentes a promover inssurreição”, é um termo
demasiado vago, e pode ser facilmente estendido para os que criticam o regime político
vigente de forma, digamos, mais enfática. Por exemplo, depois do referido decreto,
manifestações públicas impressas mais radicais, geralmente baseadas na idéia de soberania
popular e taxadas muitas vezes de “anarchicas”, correm sério risco de serem consideradas
“tendentes a promover inssurreição” e, portanto, de assumir caráter de ilegalidade. Vale
lembrar que a expressão “Liberais Exaltados” referia-se geralmente a indivíduos
identificados com idéias de matriz roussoniana, sendo alguns monarquistas e outros
republicanos, muitos dos quais eram a favor da abolição imediata da escravidão.
Segundo o historiador Thomas Flory, a grande vítima da revolta escrava baiana teria
sido a discussão, até então aberta, sobre o preconceito racial e o uso inflamado de epítetos
raciais como um meio de ataque político. Ele aponta para o fato de que, após as notícias
sobre o Levante dos Malês, “os brancos e, sem dúvida, os mulatos, cerraram fileiras em
oposição a formas mesmo mais suaves de afirmação racial, que agora pareciam ter o
potencial de destruir a sociedade como um todo”98. João José Reis, na mesma direção,
afirma que a repercussão do Levante gera uma maior intolerância às dissidências políticas e
a um maior controle das classes subalternas. Parece ter havido, por parte do governo
regencial, também uma priorização no que se refere ao controle dos escravos, como nos
indica a lei, promulgada já em junho de 1835, que estabelecerá a pena de morte para os
escravos que assassinarem ou ferirem gravemente senhores, feitores, administradores ou
membros de suas famílias, lei essa que não preverá nenhuma possibilidade de recurso.
Além disso, no rastro da repressão dos escravos , o governo imperial acabará endurecendo a
vigilância sobre os homens livres, mas politicamente perigosos.
As elites guardavam na memória, com horror, os acontecimentos do Haiti,
suscitados pela sangrenta revolução em São Domingos, onde os negros não só haviam se
rebelado contra a escravidão na última década do século XVIII e proclamado sua
independência em 1804, como também – sob a direção de Toussaint Louverture – 97 Jornal do Commercio, 20/03/1835. 98 FLORY, Thomas. “Race and Social Control in Independent Brazil”, Journal of Latin American Studies,9, 2(1977): p.216.
colocaram em prática os grandes princípios da Revolução Francesa, o que acarretou
transtornos fatais para os senhores de escravos, suas famílias e propriedades.
Parece que a revolta dos Malês, foi um dos motivos do acirramento do discurso de
moderação e ordem, lançando mão dessa atmosfera de receios. Mas a questão que irá se
colocar para a elite é a de como manter as cruéis relações escravistas com o controle das
possíveis insurreições. A partir da identificação dessas perigosas ameaças e da nomeação
de medos correlatos, justificaria a maior interferência do Estado na salvaguarda dos
interesses não apenas da “boa sociedade”, mas de toda a sociedade construída sobre a égide
do sistema escravista.
A 21 de Março, temos a publicação da “Mensagem” que a Assembléia Provincial do
Rio de Janeiro, por intermédio do Presidente da Província, dirigia ao Governo central. É
interessante notar que a referida mensagem pede a atuação enérgica do Governo Central,
como que reconhecendo a incapacidade de uma atuação autônoma dos poderes provinciais.
Nestes termos se dirige a tal mensagem:
Não pode a Província do Rio de Janeiro deixar de ser a primeira em sentir o effeito de tão funestra causa, já pelo número desproporcional de escravos que emprega em sua extensa e opulenta lavoura, e já pela impolítica mistura de Africanos livres que entre nós se conserva. Estes receios Senhor, não são infundados. A todos consta que as doutrinas Haitianas são aqui pregadas com impunidade; que os escravos são aliciados com engodo da liberdade. (...)Que ha na Corte sociedades secretas que trabalhão systematicamente nesses sentido; que têem cofres para os quaes contribue grande número de sócios de cor, livres e captivos; que desses cofres sahem os subsídios com que se entretêem e mantêem emissários, encarregados de propagar doutrinas subversivas pelos escravos das fazendas de lavoura, onde se introduzem a titulo de mascates ou pombeiros! (...) e todavia parece que a administração policial da Corte ou tudo ignora, ou estranhamente descuidada dorme sobre a cratera do volcão! E entretanto o incêndio lavra perto da porta![Grifos meus]
Aqui é possível afirmar que uma real mobilização pelo pânico atinge a sociedade do
Rio de Janeiro com extensas ramificações, dos livres pobres até a cúpula da elite política
carioca. O medo, que até aqui se propagou através de boatos ganha uma materialidade
irrefutável nos discursos publicados no jornal. É interessante analisar o caráter dialógico
desse texto, ou seja, a comunicação que se estabelece entre o discurso e o interlocutor
oculto. Por exemplo, a frase: “Estes receios Senhor, não são infundados”, explicita o
caráter de diálogo e, sobretudo a retórica do convencimento, já que ao explicitar que esses
medos não são infundados o discurso responde a uma possível atitude incrédula de seu
interlocutor. Ou seja, antes mesmo que sua validade seja posta em questão a fundamentação
desses receios é ressaltada. Trata-se do medo resoluto.
O pânico já instalado transforma-se em paranóia. O medo agora tenderá a
magnificar a capacidade de articulação dos escravos, situando-os numa espécie de trama
diabólica. Os escravos que até então eram caracterizados por “sua brutalidade e
ignorância”99, agora aparecem satanizados com uma capacidade surpreendente de
conspirar “systematicamente” contra seus senhores. Outra característica interessante é
utilização freqüente da imagem de desastres naturais terríveis como metáfora de possíveis
insurreições. Talvez por seu caráter catastrófico, a idéia de revolta negra como um vulcão
prestes a explodir será recorrente. O pânico que se instala acaba por transformar possíveis
levantes negros na Corte em algo fadado a ocorrer. O medo parece ter um enorme poder: o
de transformar a contingência em fatalismo.
Assim prossegue a “Mensagem” publicada a 21 de Março:
Hum Officio do Juiz de paz de hum dos districtos da Villa de S. Salvador dos Campos, a mais opulenta da Província, acaba de comunicar ao Presidente della ter-se já por ali pronunciado o espírito de insurreicções em alguns escravos, que se fizerão notar pelo uso de um tope no chapéu; que hum destes por fortuna do domínio do mesmo juiz, sendo preso e interrogado sobre o facto depuzera que havião da Bahia recebido ordens para roper n’huma insurreição Quarta feira de Cinza, devendo o primeiro golpe ferir seus próprios Senhores: o tope era o sinal dos conspirados, e devia ser usado por todos no dia fatal. Estas deposições forão confirmadas pela unanimidade das confissões sem coação de todos os outros, que elle fizera prender, e que usavão da predita senha. [Grifos meus]
Mais um prova da hiperbolização da capacidade de articulação dos escravos como
fruto do medo. É improvável que houvesse algum tipo de articulação efetiva entre escravos
da Bahia e do Rio de Janeiro. Não apenas devido a distância geográfica mas também ao
fato dos insurgentes da Bahia não se identificarem por um sentimento de classe, do tipo
escravos versus senhores, mas sim por uma série de referências étnicas e religiosas que
seriam difíceis de se estabelecer entre indivíduos residentes na Bahia e na Corte. Nesse
caso a escravaria tinha procedências muito díspares, ou seja, de regiões diferentes do
território africano, muitas vezes de etnias não só distantes como até rivais. Apenas
indivíduos absolutamente ignorantes sobre a cultura e o universo simbólico africano, como
parece ser exatamente o caso da elite senhorial, seriam capazes de atribuir uniformidade aos
99 Expressão retirada do relatório do chefe da polícia baiana Francisco Gomes Martins que ilustra o início desse capítulo. Publicado no Jornal do Commercio, n°31 (10.2.1835)
indivíduos vindos de regiões e etnias tão distintas100. Parece que a elite senhorial realmente
acreditava que o simples fato de serem negros ou escravos seria suficiente para que
houvesse uma união classista entre os negros.
Flávio Gomes relata o deslocamento de tropas, em 1835, para a Vila de Campos,
como foi pedido na Mensagem. Entretanto, parece que o levante acima citado tratava-se
mesmo de mais um boato, já que nada foi comprovado e insurreições futuras não chegaram
a ocorrer.
O último trecho da Mensagem faz as seguintes reivindicações:
[...] A Assembléia Legislativa da Província tomou o accordo de dirigir-se a V.M.I. pelo intermédio do Presidente della, excitando a vigilância, o zelo, e a honra do Governo Central e lembrando como medidas opportunas e indispensáveis; 1° Que sem demora seja enviada para Campos a força policial pedida pelos Juízes de Paz daquela Villa. 2°Que se prohiba desde já o impolítico desembarque de escravos ladinos vindos da Bahia, e mais portos do norte para serem aqui vendidos. 3°Que seja vedada a entrada de Africanos libertos. Senhor, o crime não dorme; e este he de tal natureza que cumpre mais que nunca que o governo o esmague; e não se deixe prender por acanhadas considerações de despeza, ou de política. O Brasil ameaçado reclama justiça e energia. [Grifos meus]
Aqui, fica claro o papel heurístico que o medo terá nesse momento, como o
princípio que possibilitará que as medidas consideradas “opportunas e indispensáveis”
sejam sugeridas. Vale lembrar que o medo aqui apresenta-se sob dois aspectos principais:
ele é um princípio de conhecimento e um princípio de prática, sobretudo, um princípio de
prática política. A Assembléia Legislativa Provincial julga o perigo como algo iminente,
através do princípio heurístico de reconhecimento e nomeação de ameaças, e lança mão das
atribuições políticas desse mesmo medo, no sentido de fomentar políticas públicas que, na
prática, julga serem capazes de evitar a ameaça nomeada.
A Assembléia Provincial produz um discurso alarmista e catastrófico a fim de tentar
evitar que o mal imaginado ganhe materialidade. O “cassandrismo” passa a estar na ordem
do dia. Assim, “excitando a vigilância” do Governo central, a Assembléia faz como
Cassandra, personagem mítico da sacerdotisa que profetiza a infelicidade, a queda de Tróia,
mas cujo conhecimento do perigo é inaudível a seus concidadãos, que a repelem como
“inútil Cassandra”, ou denunciam como os “gritos de Cassandra” os gritos de “vão
infelicidade” que teriam por único efeito espalhar o medo na cidade. Como dito 100 Ver: REIS, João José. Op. Cit.
anteriormente esse tipo de alarmismo, ou cassandrismo, traz intrinsecamente uma
interessante contradição. Como Cassandra, a Assembléia Provincial se encontra numa
situação paradoxal de predizer algo que julga estar por vir e que espera que não se realize.
Nesse sentido, o que se observa é o paradoxo do profeta cuja profecia é necessariamente
falsa. Sua heurística do medo a leva a profetizar o pior com o objetivo de evitá-lo. A partir
daí, de duas uma: ou a profecia como ato performático causa seu efeito e a catástrofe é
evitada, invalidando a profecia, ou a profecia fracassa enquanto aviso, não produzindo
nenhum efeito e se tornando verdade. Parece, entretanto, que os “gritos de Cassandra” da
Assembléia são ouvidos, pelo menos pelo chefe de polícia, como relata o Jornal do
Commercio de 24 de Março de 1835:
Sabemos de boa parte que o Sr. Chefe de polícia tem dado já as necessárias providências a fim de evitar que os Africanos que na Bahia tiverão parte na insurreição de 24 de Janeiro possão intruduzir-se na nossa Capital e Província. Entre outras medidas apontaremos as seguintes: - A nenhum escravo será permittido desembarcar, ainda que venha de portos do Império e em companhia de seu Senhor, se não trouxer passaporte legal das autoridades. - Nenhum liberto poderá desembarcar, ainda que venha de portos do Império, se não provar que he cidadão Brasileiro. - Finalmente não se deixarão desembarcar os escravos que vierem da Bahia, ainda quando tragão passaporte, se não apresentarem folha corrida. Em todos os casos em que o desembarque não há permittido, serão os mestres dos barcos obrigados a assignar termo de reexportá-los em hum prazo razoável para fora da Província. Consta-nos, alem disso, que escravo algum poderá transitar pela cidade depois das 8 horas da noite sem ser munido de hum bilhete de seu senhor, em que declare o serviço a que vai; e que os encontrados em contravenção, só depois de castigados, serão entregues a que competir [Grifos meus]
É difícil saber se as medidas anunciadas pelo jornal foram capazes de conter a
excitação dos ânimos, mas é importante que façamos algumas considerações. Em primeiro
lugar, parece que as autoridades locais construíram uma relação direta entre os Africanos e
o perigo de revoltas. Segundo J.J. Reis, essa relação faz mesmo sentido, pelo menos no que
diz respeito à Bahia. Por exemplo, entre 1821 e 1825, a Bahia importou 23.700 escravos, o
menor volume durante um qüinqüênio desde 1801, sendo que durante esses anos apenas
dois levantes podem ser contados. Já de 1826 a 1830 a Bahia importou praticamente o
dobro, 47.900 escravos, e não passou um ano sem que fosse registrado pelo menos um
levante101.
101 REIS, João José. Op. Citada. p. 120.
Note-se que todo indivíduo negro, a partir de então, passa a carregar o pesado fardo
da suspeita total. Ou seja, não é preciso que se prove culpa sobre ele. Ao contrário disso,
cabe a ele, a cada passo, provar a sua inocência. Ele passa a ser um culpado a priori. Além
disso, como veremos mais adiante, o Estado passa a interferir cada vez mais na relação
disciplinar senhor/escravos, já que a partir de agora não bastará nem mesmo que o escravos
esteja “em companhia de seu Senhor”, posto que a capacidade de controle da escravaria
por parte de seus senhores, a partir de agora, parecerá insuficiente. Dessa forma, o Estado
assume cada vez mais o controle da vigilância sobre o escravo que, “se não trouxer
passaporte legal das autoridades” não terá a circulação permitida na Corte do Império.
Em 26 de Março o chefe de polícia, por portaria de 24 de fevereiro, ordena aos
donos das lojas que vendem armas “de qualquer natureza”, que não conservem nas lojas as
mesmas armas, “podendo somente ter huma para amostra”, fazendo guardar as outras em
lugar de segurança e em segredo. O medo de que uma revolta de escravos na Corte fosse
eminente provocava medidas desesperadas. O temor agora tornava-se paranóia
generalizada.
4 ZONA DE TENSÃO PERMANENTE: O MEDO DEIXA MARCAS PROFUNDAS.
Quem tem medo não faz outra coisa a não ser sentir rumores
Sófocles
(...)a insurreição estava tramada de muito tempo, com hum segredo inviolável, e debaixo de hum plano superior ao que devíamos esperar de sua brutalidade e ignorância.102
Chefe de polícia Francisco Gomes Martins
A devassa da rebelião Malê expôs seu alto grau de articulação e planejamento. Os
insurgentes queriam tomar a cidade e controlar pontos estratégicos da “terra dos brancos”,
102 Relatório do chefe da polícia baiana Francisco Gomes Martins. Apud. Jornal do Commercio, n°31 (10.2.1835).
instituindo uma espécie de estado islâmico em terras brasileiras. O que se buscava no
levante Malê não era uma simples zona de autonomia, mas sim a constituição de um Estado
Negro103.
Os batuques, as cantorias e folguedos, a prática da capoeira e as pequenas
resistências cotidianas parecem muito mais próximas da noção de zona autônoma
temporária do que o levante Malê. Uma zona autônoma temporária “é como um festival”104,
onde as regras e leis institucionalizadas são abolidas ou subvertidas, onde as hierarquias
sociais são corrompidas, onde uma zona de relativa autonomia é instituída, com novas
regras e valores diferentes dos definidos pelo status quo. Essa “zona de autonomia”, como
definida por Hakim Bay, não é necessariamente uma zona física, territorializada. Ela pode
ser um espaço de resistência no âmbito cultural ou no universo simbólico.
Hakim Bay é o pseudônimo do historiador e anarquista norte americano Peter
Laborn Wilson que, analisando fontes e buscando dados para uma monografia sobre piratas
e corsários do século XVIII, acabou por cristalizar suas pesquisas e especulações em torno
da noção de Zona Autônoma Temporária. Ele a apresenta como uma busca do homem por
liberar-se do “fardo da civilização”, das obrigações de obediência às leis, e do subjugo do
poder institucionalizado. Assim, TAZ (Temporary Autonomous Zone) “é uma festa, é um
ato de independência, ela não quer se perpetuar, muito pelo contrário, a efemeridade é sua
grande arma.” O fenômeno apontado por Bay funcionaria como uma espécie de lapso de
poder institucionalizado, possibilitando o surgimento de espaços (de terra, de tempo, de
imaginação) com relativa autonomia em relação ao poder instituído. Trata-se de uma região
livre da influência de leis institucionalizadas, um vácuo momentâneo onde a lógica do
poder disciplinar é revogada.
Nesse sentido, praticar a capoeira às escondidas da policia, cultuar entidades
africanas através de imagens de santos católicos, promover batuques e folguedos, isso tudo
estaria muito mais próximo da noção de zona autônoma temporária. Basta pensarmos que
nas cerimônias e festas negras, feitas às escondidas e muitas vezes na calada da noite, as
leis e regras de sociabilidade que vigoravam na sociedade branca eram abolidas para darem
103 Os negros envolvidos na revolta eram provenientes de regiões da África que estavam envolvidas em disputas territoriais entre impérios africanos. Ver: REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: A História do Levante dos Malês em 1835” São Paulo: Companhia das Letras, 2003 104BAY, Hakim. TAZ: zona autônoma temporária. São Paulo: Conrad, 2001. p.23
lugar a noções diferentes e próprias do universo cultural e simbólico do negro. Um
individuo negro, que era durante o dia um simples escravo tratado como propriedade de
outrem, poderia se tornar, num folguedo, um príncipe ou um rei. Isso fica notório nas
próprias relações de sociabilidade entre os escravos Malês, como aponta José Reis. Ou seja,
um Malê, tratado pelo seu senhor como um simples escravo, tinha entre os outros negros o
status de liderança e sabedoria, já que eram eles alufas, ou aqueles que ensinavam a ler e a
escrever em idioma árabe e também aqueles que dirigiam as ladainhas e rezas durante as
cerimônias. No entanto, na medida em que os Malês entram em embate direto com o poder
instituído, visando a tomada da “terra dos brancos”, eles afastam-se do atentado simbólico e
caminham em direção a uma revolta que busca a construção de outro status quo que, por
sua vez, edificará um novo poder disciplinar.
A noção de zona autônoma temporária tem como característica o fato de não ser
exatamente um embate direto, um enfrentamento violento ao sistema de poder do Estado e
da sociedade. Ela é, antes de tudo, uma subversão temporária das leis, valores e hierarquias
sociais. Nesse caso, as manifestações de resistência desse tipo geralmente passam
desapercebidas pelo sistema de poder institucionalizado, justamente pelo seu caráter
temporário e sorrateiro. Todo um universo oculto ao entendimento dos homens brancos, um
universo regido por normas e valores diferentes dos que vigoram na sociedade branca, se
abre como possibilidade de discurso subversivo, quando usamos a noção de zona autônoma
como ferramenta analítica.
No entanto, o caso Malê é justamente o oposto de um atentado simbólico, ou de
uma zona autônoma, já que foi um enfrentamento direto que chocou a sociedade senhorial,
gerando uma série de medidas disciplinares. A revolta dos Malês, acabou por gerar um
zona de controle máximo, caracterizada pelo arrefecimento da repressão senhorial contra o
negro. Essa insurreição gerou conseqüências opostas as que pequenas resistências
cotidianas, furtivas e temporárias, costumavam ter. Para me referir a essa situação de medo
e paranóia generalizada que foi usada para justificar ações repressivas, achei por bem
sugerir um conceito oposto e simétrico ao de zona autônoma temporária. Seria a idéia de
zona de tensão permanente. Essa zona de tensão, gerada, sobretudo, a partir do levante
Malê será muito bem administrada por parte da elite política brasileira que aproveitará
competentemente a atmosfera geral de medo e apreensão para legitimar ações políticas
extremamente conservadoras em relação a escravidão.
Segundo Thomas Flory, a grande vítima da revolta escrava baiana teria sido o
debate, até então aberto, sobre o preconceito racial e o uso inflamado de epítetos raciais
como um meio de ataque político. Ele aponta para o fato de que, após as notícias sobre o
Levante dos Malês, “os brancos e, sem dúvida, os mulatos, cerraram fileiras em oposição a
formas mesmo mais suaves de afirmação racial, que agora pareciam ter o potencial de
destruir a sociedade como um todo”105. João José Reis, na mesma direção, afirma que a
repercussão do levante gera uma maior intolerância às dissidências políticas e um maior
controle das classes subalternas.
O medo das revoltas e da desordem irá de fato disparar, entre a facção mais
conservadora da elite política, a retórica da restrição de direitos e o clamor por maior
atuação repressiva da força policial. O que caracteriza um discurso que clama por menos
liberdade, para as dissidências políticas, e mais repressão, contra o elemento negro. Assim,
a insurreição baiana é um acontecimento que desperta medo e, acima de tudo, discursos
sobre o medo que ocultam projetos políticos e detonam o gatilho da reação senhorial.
“O medo corria como vento em todas as direções”, escreveu Flávio Gomes, que
analisou rumores sucessivos de conspiração escrava também no interior fluminense,
acompanhada, de “mobilização preventiva das tropas, reuniões extraordinárias em câmaras
municipais, medidas urgentes de controle da escravaria, detenção de negros suspeitos,
correrias e às vezes pânico”106.
A idéia de zona de tensão permanente refere-se exatamente a atmosfera de medo e
tensão que se segue a embates diretos com o poder instituído, atmosfera essa que
geralmente é administrada de forma a justificar fortes refluxos de violência repressiva.
Associada ao discurso da “ordem” que se busca manter, esse tipo de fenômeno histórico-
social tende a gerar uma exaltação dos ânimos capaz de justificar perseguições políticas,
leis repressivas e discriminatórias e violências inimagináveis em tempos de relativa
estabilidade política e social.
105FLORY, Thomas “Race and Social Control in Independent Brazil”, Journal of Latin American Studies,9. 1977. p.216.
106REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: A História do Levante dos Malês em 1835” São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 514.
A análise dos discursos produzidos sobre o efeito do medo mostra a zona de tensão
permanente como um somatório de ameaças cumulativas que aparecem no âmbito político
e social a partir de 1831, mas que afloram como risco iminente de ruptura com a “ordem”
social, econômica e civilizacional baseada no escravismo, apenas em 1835. Essa zona de
tensão se instala quando o medo generalizado de levantes negros na Corte chega a sua
espécie de clímax. Assim, a zona de tensão refere-se ao grande medo de 1835, não mais
relacionado apenas a ameaças políticas, mas sim ao perigo de um colapso do sistema
econômico e social que a séculos está equilibrado sobre o escravismo. Essa situação limite
de medo e apreensão aflora a partir da repercussão do levante dos Malês.
O estado de sentimentos aflorados e de constante ameaça que caracteriza 1835 é
fruto, sobretudo, da fissura de uma interdição construída historicamente a respeito do
negro: a idéia de que o negro era despossuído de inteligência e capacidade racional. As
ações de resistência negra, até então, parecem ter sido sempre explicadas pelo seu caráter
bárbaro e selvagem, pela sua indolência e imoralidade natural, fruto de seus hábitos
primitivos e de sua inferioridade. Movidos por impulsos lascivos e desconhecendo as regras
da civilização e da boa sociedade, o negro era visto como inteiramente destituído da
possibilidade de elaborar idéias claras e lógicas.
Através dos séculos de escravidão, construiu-se uma interdição discursiva sobre a
capacidade lógica e a racionalidade do negro, uma interdição lógica. Tal interdição
legitimava a escravidão e o uso indiscriminado de sua força de trabalho nas lavouras, fruto
da “bestialidade” dos negros. A interdição lógica imposta ao negro era, sobretudo, uma
estratégia de coisificação, que retirava do escravo a humanidade que é associada à
capacidade de raciocínio claro e lógico, desumanizando esse indivíduo e tornando possível
o argumento de sua inferioridade.
A possibilidade de negros serem portadores de capacidade intelectual regular era
entendida como extremamente perigosa no Brasil escravocrata desse período. Defender tal
possibilidade era correr sérios riscos, como ilustra o caso do médico Joaquim Cândido
Meireles (1797-1868)107. Nascido em Minas Gerais, mas fazendo carreira na Corte,
Meireles trabalhara como médico da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. Redator
do jornal Sentinela da Liberdade no Rio de Janeiro, liberal radical ou Exaltado e admirador
107 Apud. MOREL, Marco. Op. Cit. p.108.
confesso de Cipriano Barata, o médico parece ter se envolvido em polêmicas raciais no ano
de 1831, tendo sido qualificado como mulato. De forma que parece ter sido acusado de
“haitianismo” por outro médico da Santa Casa, Joaquim José da Silva e, portanto, de
complô revolucionário para massacrar os brancos. A incriminação contra Meireles parte de
um fato interessante. Tendo sido formado pela Universidade de Paris em 1828, o médico
mineiro parece ter estabelecido contato com o legendário abade Gregoire (1750-1831),
conhecido como defensor dos direitos dos judeus, mestiços e negros das Colônias. A
questão é que Meireles, talvez com uma “dose de ingenuidade” divulgara em pleno Brasil
imperial o orgulho dessa amizade. O próprio Bernardo Pereira de Vasconcelos se
indignaria, tempos depois, com as convicções “gregorianas” de Meireles.108 Esse médico
mulato foi um dos fundadores da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, mas foi preso e
deportado devido ao seu envolvimento, anos mais tarde, na revolta liberal de Minas Gerais,
em 1842.
Mas o que exatamente defendia o abade Gregoire, para que sua simples menção
pudesse gerar acusações de “haitianismo”? E o que o termo “gregoriano” representava
exatamente? Sabe-se que Gregoire publicara em 1808 o livro De la Littérature dês Noir ou
Recherches sur leurs Facultés Intellectuelles, onde sustentava a idéia de que as
“insuficiências dos negros”, ou da incapacidade intelectual dos mesmos, era resultado da
condição em que viviam e não de atavismo racial, leia-se: que a aparente bestialidade dos
negros era um resultado das condições desumanas a que eram submetidos e não devido a
qualquer tipo de incapacidade racial. Inúmeros são os relatos de época que caracterizam os
negros como posicionados numa situação intermediária entre as bestas e os homens109. A
construção desse tipo de discurso de interdição à racionalidade negra durante séculos de
escravismo no Brasil merece ainda estudos mais aprofundados, mas a utilização desse
argumento como estratégia de coisificação, ou desumanização da figura do escravo, parece
ter sido uma tática constante, mais uma das inúmeras tecnologias do sistema escravista para
transformar homens em coisas. É claro, e a historiografia sobre a escravidão tem
problematizado isso, que tal coisificação era mais forte no âmbito jurídico, já que no dia a
dia o escravo empregava inúmeras táticas de resistência, criando, a sua maneira, suas zonas
autônomas temporária, como busquei ressaltar. No entanto, a capacidade intelectual do 108 Apud. MOREL, Marco. Ibidem. P.108. 109 Ver CHALOUB, Sidney. Op. Cit. P.36-42.
negro permanecia um tabu nesse momento, isso porque a constatação crassa de sua
inteligência trazia implicações terríveis para “seus proprietários”, inundando de profundo
terror a sociedade escravista do período.
O espanto do chefe de polícia Francisco Gomes Martins110 frente à articulação que
envolveu o levante Malê exprime justamente o embate entre o discurso de interdição à
racionalidade negra e a constatação crassa de que o levante baiano foi fruto de uma
organização hábil que exigia uma racionalidade superior, ou de “hum plano superior ao que
devíamos esperar de sua brutalidade e ignorância”. Aqui, aflora o choque entre o interdito
e o constatado, ou seja, a interdição discursiva precisa render-se ao inelutável peso da
constatação empírica. Assim, o discurso do chefe de polícia baiano trás em si um indício de
fissura, da quebra de uma interdição.
Essa interdição discursiva parecia tão impregnada no senso comum do período que
não faltaram manifestações questionando inclusive a autoria do levante, como se vê nesse
trecho de carta publicada pelo Jornal Pão de Açúcar, que circulou na Corte entre 1834 e
1836:
[...] conforme pode se descobrir o plano d’aquella revolta, elle pareceo não ser traçado por mãos de pretos africanos; e mesmo porque, segundo o methodo de attacar quartéis, corpos de guarda, incêndio em hum ponto, papeis escriptos com caracteres de invensão particular, e trages de hum só uniforme e divisas, fora necessário ter precedido huma combinação engenhoza, e uma combinação tal que não cabe na fraqueza do raciocínio africano, à falta de cultura de idéias 111[Grifos meus].
A possibilidade de inteligência e raciocínio dos negros sofria uma interdição tão
pesada e prolongada que chegava mesmo a parecer inverossímil ao senso comum a
sofisticação com a qual o levante foi tramado. Ao choque causado pela evidente
inteligência e alto grau de articulação do levante baiano, é possível adicionar fatores como
o pavor relacionado à lembrança do ocorrido no Haiti e a onda de boatos publicados na
imprensa decorrentes da intensa veiculação de tais notícias pelo jornal. Assim aflora a
imensa atmosfera de insegurança que caracterizará essa chamada zona de tensão
permanente. O adjetivo “permanente” refere-se ainda a longa duração desse estado de
coisas, não só durante praticamente todo o ano de 1835, como também nos anos seguintes,
como tentarei mostrar adiante. 110 O espanto do chefe de polícia Francisco Gomes Martins se torna notório através do relatório publicado a 10 de Fevereiro no Jornal do Commercio, cujo trecho transcrevo como epígrafe desse capítulo. 111 O Pão d’Assucar, nº11. 10/02/1835. Carta particular, p.3.
Se a princípio as noticias sobre o levante baiano foram divulgadas com cautela,
rapidamente transformaram-se em sensacionalismo e histeria. Se de início houve a tentativa
de relacionar o medo com a escravidão, de forma crítica, essa interpretação logo será
cooptada pela retórica conservadora, e o cerne da questão deixará de ser o debate a respeito
da legitimidade da escravidão e transformar-se-á em ataque direto ao escravo, e com ele a
todos os negros. Essa leitura defendia uma maior atuação do Estado e da repressão policial,
apertando ainda mais as correntes que atavam os escravos ao cativeiro.
Ao analisar essas versões dos fatos veiculadas pelo jornal, duas diferentes leituras
da realidade afloram e, portanto, torna-se claro o embate travado no universo retórico da
palavra impressa. Cada uma dessas leituras, tanto a que culpa a escravidão quanto a que
culpa o escravo, defendem uma interpretação sobre a sociedade e a realidade dos fatos,
cada uma delas vinculada a uma tendência política. Cada manifestação dessas é um saber-
poder que se constrói na interpretação das causas do medo que, devido a sua potencialidade
heurística, é capaz de apontar para a “solução” da insegurança. Esse embate retórico, essa
intensa disputa, se dá em meio a uma atmosfera de crise, a já referida zona de tensão
permanente, que será a grande catalisadora dessas discussões.
Identifico a seguir as vinculações políticas de cada uma das “versões”, ou das
interpretações sobre o medo. Uma correspondência anônima é publicada a 30 de Março de
1835:
Todos os dias as nuvens do nosso horizonte político se vão condensando mais, todos os dias novos motivos vem tornar mais urgente a necessidade de hum homem firme e enérgico no timão dos negócios do Brasil. D’hum lado, os negros planos do haitinismo ameação entre nós a reproducção das ensangüentadas scenas de S.Domingos; d’outro, o monstro da anarchia, supplantado em 1831 pelo braço forte do honrado Feijó, altivo ergue o hediondo collo, e tenta submergir a terra de Santa Cruz no abismo em que se precipitam nossos vizinhos. Sr. Redator, o que acaba de acontecer no Pará, nessa bella porção do Império Brazileiro, vem confirmar os sustos e os receios dos patriotas [...] [...] Claro fica, que me decido a favor do Ilustre Senador Feijó112 [Grifos meus]
Levando em consideração que a eleição para regente único estava muito próxima,
seria realizada no dia 7 de Abril, é compreensível a divulgação de textos defendendo
determinados candidatos em detrimento de seus rivais políticos. Entretanto, a tese
defendida pelo autor do texto se torna pitoresca porque a sensação de medo e insegurança é
apontada como a grande motivação para o apoio ao “honrado Feijó”, apresentado como o 112 Jornal do Commercio, 30/03/1835.
“homem firme e enérgico” que em 1831 foi capaz de suplantar o “monstro da anarchia”. A
politização do medo aqui é clara. Não seria nenhuma surpresa se o anônimo autor desse
texto fosse ninguém menos que Evaristo da Veiga. Evaristo, que era considerado uma
grande liderança do Liberalismo de tendência moderada era um entusiasta da vitória de
Feijó como regente e, segundo Paulo Pereira de Castro, havia publicado meses antes (a 19
de Setembro de 1834) em seu jornal Aurora Fluminense um texto falando do “medo que
causava aos anarchistas a perspectiva de que Feijó viesse a ocupar a Regência”.113
O texto expõe a manobra política da administração do medo como forma de
legitimação de um discurso com a finalidade retórica do convencimento político. Ele
apresenta também uma percepção especialmente interessante para o estudo sobre a
ambiência de medo que permeia esse momento. O autor faz um inventário das ameaças que
julga iminentes. Tanto os “negros planos” do “haitianismo” quanto o “monstro da
anarchia”, parecem fazer parte de um todo, ou de uma unidade, a saber: a ameaça capaz de
atingir “a terra de Santa Cruz” lançando-a no “abismo em que se precipitam nossos
vizinhos”. Qual seria o componente principal desse “abismo” pintado com tintas
apocalípticas por nosso autor? Ora, sem dúvida essa é uma referência a idéia que varreu a
América Espanhola nas primeiras décadas do século XIX: o republicanismo.
A revolta e as constantes convulsões sociais que assolam o Pará tinham sido alvo de
algumas matérias desde Janeiro, quando saíram as primeiras notícias sobre o ocorrido,
veiculando no dia 26 do dito mês a proclamação dos cabanos sublevados no rio Aracá. No
entanto, curiosa é a associação entre o perigo da “anarchia”, suplantado em 1831 com as
movimentações que acontecem no Pará. A estratégia retórica de desqualificar o princípio
republicano associando-o ao termo “anarchia” não é nenhuma novidade nesse momento,
tendo sido usada incessantemente nos primeiros anos do período regencial. Os
embates travados entre os adeptos da idéia de um reformismo moderado, tendência
conhecida como Liberal Moderada, em choque com idéias comprometidas com mudanças
sociais mais profundas, por vezes vinculadas a idéias republicanas, foram constantes na
Corte no momento pós-abdicação. O que se passa é que, no ano de 1835, o discurso
Exaltado na Corte parece ganhar algum fôlego devido a “experiência republicana”114 que
113 Apud. CASTRO, Paulo Pereira de. A “experiência republicana, 1831-1840. In Brasil Monárquico: dispersão e unidade/ por Fernando Henrique Cardoso...[et al] – 6.ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. 114 Expressão tomada de CASTRO, Paulo Pereira de. Ibidem.
representou o Ato Adicional de 1834. Vale lembrar que o Ato Adicional de Agosto de 1834
foi uma vitória dos adeptos da descentralização política. Ele transforma a Regência Trina
em Regência Una, com caráter provisório e eletivo. A possibilidade, mesmo restrita a
poucos, de elegibilidade do Poder Executivo pode ter de fato criado em alguns expectativas
republicanas. Obviamente não entre os Liberais Moderados, como Evaristo e seus
correligionários, que sempre deixaram bem clara a sua opção pelo princípio monárquico.
Entre os considerados Exaltados muitos eram monarquistas, mas certamente não viam na
república o “monstro da anarchia” que tanto assustava a facção liberal mais conservadora.
Além disso, o Ato Adicional criará Assembléias Provinciais com incumbências que antes
eram de âmbito nacional, aumentando as liberdades provinciais.
Parece que a nomeação de medos referentes a “anarchia” e a “haitianismos” será
eficientemente usada pela retórica Moderada a partir de 1835 para calar o discurso
Exaltado, ou frear o “carro da revolução”.115, expressão comum na boca de homens como
Evaristo da Veiga e demais adeptos da moderação política. A zona de tensão permanente
que se constrói possibilita um manejo político do medo que é formidável para os hábeis
talentos retóricos que inundam a imprensa nesse momento.
A referência a um pequeno incidente ocorrido na Câmara dos Deputados é única
menção a idéias “exaltadas” que aparece no jornal durante todo o ano de 1835. Em sessão
da Câmara do dia 16 de Maio116 é lido um projeto do Sr. Ferreira França em que declara:
“Da presente data em diante todos os que nascerem no Brazil serão livres”. Diante da
surpresa dos deputados presentes, como comenta o taquigrafista, continua, “O Governo do
Brazil cessará de ser patrimônio de huma família”. Além disso, prossegue, “A Nação será
governada por hum chefe eleito de dous em dous annos, no dia 7 de Setembro, à maioria
dos votos dos cidadãos eleitores do Brazil.”
O Sr. França, nome que não deixa de ser irônico já que faz lembrar o país da temida
Revolução, parece representar o último suspiro Exaltado com convicções republicanas
nesse período. Ressalta-se, nessa pauta, as duas principais reivindicações do jacobinismo
Exaltado: a abolição imediata da escravidão e a República. Esse ideário exaltado, de
115 Apud. GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Liberalismo Moderado : Postulados ideológicos e práticas políticas no período regencial. In PRADO, Maria Emília (Org). O liberalismo o Brasil imperial: origens, conceitos e prática. Rio de Janeiro: Renavan:UERJ,2001. p. 103-126. 116 Publicado junto das discussões ocorridas na Câmara dos Deputados pelo Jornal do Commercio, (18/05/1835).
influência roussoniana, tem sido sistematicamente desqualificado desde 1831 e não resistirá
à atmosfera de medo que se instala nesse momento. A proposta do Sr. França não chega a
ser levada à sério pela Câmara dos Deputados que, em meio ao desconforto geral e
desaprovação da maioria da Câmara, como comenta o taquigrafista, não chega nem mesmo
a ser considerada digna de ir à votação. Em meio ao discurso republicano contra a família
imperial, desferido pelo Sr. França, o projeto é considerado “indecoroso e impedido pelo
presidente da Câmara de ir a votação”, no que foi aprovado pela imensa maioria dos
deputados.
Dessa forma, o discurso Exaltado nesse momento parece não representar mais um
perigo de fato para os Moderados defensores da “ordem” e do princípio monárquico. Mas
continua sendo útil como componente da retórica eleitoreira como “monstro da anarchia”.
Além disso, os ataques críticos à escravidão como causa da insegurança e do medo, como
até então, partem sim do discurso Liberal Moderado, mas jamais sugerem como saída a
abolição imediata, defendendo um tipo bem mais tímido de abolicionismo, gradual, cujo
primeiro passo será a entrada de colonos e a criação de escolas normais de agricultura,
como a fala do “Justiceiro” em artigo já citado.
Manifestações de princípios republicanos na Corte do Império já foram
absolutamente desqualificadas na primeira metade da década de 1830, sendo que em 1835
raras serão as manifestações publicas em defesa de tais princípios. Pelo menos no Rio de
Janeiro, sendo que manifestações “exaltadas” como a acima referida agora estão isoladas e
restritas a províncias distantes do poder central, como as situadas no extremo norte, o caso
do Pará, ou no extremo sul, como será o caso do Rio Grande no final do ano. É preciso
mencionar que, no caso da Revolta Farroupilha, que inundará os jornais em Outubro, trata-
se mais uma vez de questões de ordem local, que ameaçam a unidade territorial do Império,
sem dúvida, mais não chegam a por em cheque a supremacia da elite política escravocrata
que está concentrada, sobretudo, em Minas, São Paulo e Rio de Janeiro.
Essas revoltas provinciais possuem caráter local e não defendem projetos de poder
que objetivam uma hegemonia política no âmbito do Império, ou seja, elas não querem o
controle do poder central, não buscam apoderar-se do Estado Imperial, visam apenas
resolver tensões em nível regional. Muitas vezes, como no caso do Pará, são vistas como
“guerra nativa”, ou localizada, como ressalta Paulo Pereira de Castro117.
Muito diferente do “haitianismo” em questão. A escravidão era bem mais do que
um mero meio de produção, ela era um costume profundamente arraigado, durante séculos,
e permeava inúmeras esferas da sociedade, desde a produção agro-exportadora até tarefas
domésticas consideradas mais banais, passando por serviços essenciais à sobrevivência tais
como o abastecimento de água e o escoamento do esgoto das residências. É preciso lembrar
que toda água potável que abastecia as casas da Corte Imperial, provavelmente inclusive no
próprio parlamento e sem dúvida do palácio de ainda jovem monarca, provinha dos
escravos que, nas primeiras horas da madrugada, eram obrigados a encher as vasilhas e
baldes de uso doméstico nas fontes de água pública da cidade. Da mesma forma, todos os
dejetos humanos produzidos pelos senhores, por mais “civilizados” que se considerassem,
precisavam ser escoados pela escravaria118. Assim, também a “sujeira” da Corte precisava
ser carregada pelos negros em baldes e vasilhas para serem despejadas nas fossas da cidade.
Dessa maneira, ressalto que a idéia de uma revolta total dos escravos, ou um levante da
massa dos escravos, tinha para os habitantes da Corte uma implicação sem dúvida mais
direta do que as manifestações provinciais no longínquo Pará.
A associação direta do que vem ocorrendo no Pará com o ideário “exaltado”, como
tenta fazer a nota publicada no dia 30 de Março, pode ser entendido como uma estratégia
retórica eleitoreira. O importante, entretanto, é observar que a leitura da situação que esse
artigo apresenta enumera e nomeia os medos e apreensões que comporão a já apresentada
noção de zona de tensão permanente, acrescentando agora ao medo de levantes negros, o
medo da “anarchia”, ressuscitada de 1831 pelo autor do texto.119
Além disso resta sublinhar que, se o medo será usado no fim do período regencial
como ferramenta política pelo discurso regressista-conservador, como afirma Márcia
Gonçalves, aqui ele o será pela retórica Liberal Moderada. Gonçalves120 apontou para o
117 CASTRO, Paulo Pereira de. Op. Cit. p.51. 118 Os chamados “pretos tigres”, devido provavelmente a doenças de pele que desenvolviam em contato com a sujeira e excrementos. Ver: SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. O Rio de Janeiro Imperial e suas Áfricas visíveis, In AZEVEDO, André Nunes de (Org). Anais do Seminário: Capital e Capitalidade, realizado de 23 a 26 de Outubro de 2000. Rio de Janeiro: Departamento Cultural/NAPES/DEPEX/Sr-3/UERJ, 2002. p.87-102. 119 Jornal do Commercio, 30/03/1835. 120 GONÇALVES, Márcia de Almeida. Ânimos Temoratos: Uma leitura dos medos sociais na Corte no tempo das Regências. Dissertação de Mestrado em História. UFF, 1995
fato dos regressistas, emblematizados por Bernardo Pereira de Vasconcelos, lançarem mão
da associação entre medo e virtude como forma de legitimação retórica. Aqui os Liberais
Moderados, organizados em torno de Feijó e Evaristo da Veiga, usam estratégia
semelhante.
A correspondência publicada pelo Jornal do Commercio no dia 1° de Abril de 1835
é assinada pelo “Justiceiro”, já conhecido por uma carta publicada a 14 de Fevereiro. Trata-
se agora de uma resposta a um artigo publicado no jornal Correio Official:
Tanto somos incitados, que não temos outro remédio que explicarmo-nos das imputações que tão gratuitamente se nos tem attribuido por occasião do artigo sobre o tráfico dos pretos Africanos. Quem ler aquelle artigo sem prevenção encontrará nelle enunciada de maneira mais explicita a nossa aversão a escravidão, quer dos Africanos, como dos crioulos. Nunca pessoa alguma declamou com mais força contra semelhante injustiça: entretanto diz o redator do Correio Official n° 55, que não escapamos à influência do habito, e he por ella que chegamos a legitimar a escravidão de entes da nossa mesma espécie, este acto iníquo por todos os princípios! Ignoramos a quem combatemos, mas ainda que soubéssemos, pode certificar-se que não sahiriamos do fundo da questão para fazer odiosa sua pessoa com allusões que só tendem a isso, posto que disfarçadas com os trages da proibidade e da decência. Principiamos aquelle artigo mostrando a força do habito, para justificar aos Brasileiros de hum facto reprovado pela razão e pela religião. Fizemos ver que pela convicção em que estão os Brasileiros, de que só com escravos pode prosperar a agricultura, e que ainda assim não poucas vezes he infrutífera, tornava-se-lhes indispensável a escravatura, cujas injustiças elles tanto mais desconhecem, quanto vem que a lei, e os modernos philantropos só se occupam dos Africanos, sem dizer huma palavra a respeito dos crioulos, que sem dúvida têm hum direito cem vezes maior do que aquelles bárbaros, que (segundo costuma-se dizer) de brutos pagãos tornam-se Christãos, e de escravos de senhores ferozes e desumanos a escravos de homens caritativos , e religiosos, etc, etc. Repetimos o que todos sabem: que os Africanos são comprados; que as autoridades são conniventes, ou achão-se coactas; e que não sendo possível obstar-se mal, he melhor, he mesmo necessário, derrogando a lei, para acabar o escandalloso desprezo della, e para que daqui a pouco tempo esses africanos, ora introduzidos não apparecção armados da lei, requerendo a liberdade, a punição dos que os escravisarão, o valor dos serviços prestados, etc, etc; e então quaes serão as conseqüências? Esta nossa proposição foi hum escândalo terrível para o autor do artigo, entretanto que elle mesmo descreve com cores bem vivas e verdadeiras, o futuro que nos espera, e reconhece a insufficiencia da lei que pede seja derrogada e substituída por outra que melhor preencha seu fim. Ora se tanta he a philantropia do autor , porque não tem a bondade de indicar ao Legislador os defeitos da lei actual para ser emendada, e produzir o effeito desejado? Outro tanto não fizemos nós. Aconselhamos o que nos pareceu prático, razoável e justo, isto he, a lei cahia, os Inglezes que tem mais meios, e que apressarão o período de extinção do tráfico dos Africanos, (ilegível). Facilite-se a vinda de colonos agricultores, estabeleção-se Escolas Normaes de Agricultura em todo o Imperio, afim de que os Brazileiros melhor instruídos de seus verdadeiros interesses, sem repugnância , obedeção a lei que extinguir a escravidão no Brazil. [Grifos meus]
A transcrição é longa, mas imprescindível. O interesse que esse artigo desperta se
deve, sobretudo, ao caráter de síntese no que se refere ao pensamento Liberal Moderado
sobre o problema da escravidão. Embora o autor declare verdadeira “aversão a escravidão”
não só dos Africanos mas também dos crioulos ou escravos nascidos no Brasil, em
momento nenhum falará em abolição imediata. Ao contrário disso, defende que o fim do
tráfico deve ser entregue a incumbência dos Ingleses “que tem mais meios e que
apressarão o período de extinção do tráfico dos Africanos”. Ou seja, o “Justiceiro” parece
não ter tanta pressa para a extinção do tráfico nem da escravidão, apesar de atacá-la com
uma bela retórica de filantropia e liberalismo doutrinário.
Além disso, o artigo revela o interessante argumento difundido pelo senso comum
da época que apontava a escravidão como uma “oportunidade” de conversão dos africanos
ao cristianismo, amplamente difundida por representantes da Igreja como argumento oficial
e legitimador da prática da escravidão desde os tempos da colônia121. Assim, comenta,
“(segundo costuma-se dizer) de brutos pagãos tornam-se Christãos, e de escravos de
senhores ferozes e desumanos a escravos de homens caritativos , e religiosos, etc, etc.”. No
período colonial as autoridades administrativas criam que a religião era o “melhor freio
para domesticar os povos”, e a catequização dos cativos a melhor fórmula para torná-los
dóceis e obedientes. Desta forma, uma série de letrados coloniais, como os padres Antônio
Vieira, João Antônio Andreoni, Jorge Benci e Manuel Ribeiro Rocha, escreveram, cada
qual a sua forma, discursos doutrinários para justificar o tráfico e o controle da escravaria
no mundo colonial.
O “Justiceiro” usa o argumento da legalidade contra a própria Lei anti-tráfico de
1831. A manobra retórica empreendida chega a ser surpreendente. Ele consegue, ao mesmo
tempo, atacar veementemente a escravidão como imoral e incompatível com o doutrina
liberal que defende e adiar por tempo indeterminado o fim do escravismo e do tráfico. O
autor golpeia com o argumento legalista a própria lei de 1831, defendendo ser necessário
abolir a lei anti-trafico para evitar “o escandalloso desprezo della” e, sobretudo, “para que
daqui a pouco tempo esses africanos ora introduzidos não apparecção armados da lei,
requerendo a liberdade”. Dessa forma, defende o fim da lei devido a sua falta de ação
efetiva capaz de evitar o tráfico e, mais ainda, alerta para a possibilidade de que
futuramente a lei de 1831 seja usada pelos próprios escravos contra seus senhores. Percebe-
se ai os antagonismos entre o abolicionismo teórico, ligado ao ideário Liberal, e a falta de
determinação de pô-lo em prática, característica marcante das relações promíscuas entre 121 Ver: VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e escravidão - os letrados e a sociedade escravista no Brasil colonial. Petrópolis, Vozes, 1986.
liberalismo doutrinário e prática pautada nas concessões feitas à tradição, típicas do
discurso Moderado.
Além disso, o motivo, que considero praticamente irrefutável para relacionar o
discurso do “Justiceiro” com a abordagem Moderada do problema da escravidão foi
deixado, estrategicamente, para o final. O autor trata-se de ninguém menos do que o futuro
regente Diogo Antônio Feijó. Em pleno período pré-eleitoral, Feijó fez imprimir um
semanário intitulado “O Justiceiro” que, embora não tenha sido declarado com esse fim,
parece ter sido destinado a promoção de sua própria candidatura122. Portanto, é muito
provável que as cartas publicadas na seção de “Correspondências” do Jornal do Commercio
sob o pseudônimo de “Justiceiro”, sejam efetivamente de autoria do próprio Feijó.
Veremos que, em 1835, os liberais Moderados ainda não constituem exatamente um
partido, posto que não eram uma força homogênea. A abordagem sobre o medo de levantes
negros na Corte que denominei “cassandrista” e que identificava o perigo diretamente com
os escravos, poderia contar também com elementos próximos da tendência chamada
Moderada, mas que não vissem a importância da crítica da escravidão como forma de
ressaltar sua coerência doutrinária estrita ao liberalismo, ou que não possuíssem o vigor
intelectual que os auto inflingisse a necessidade de tal coerência. Os cassandristas eram
homens conservadores e, também, indivíduos diretamente comprometidos com o
escravismo, evitando a qualquer custo dirigir críticas ao que deviam considerar não apenas
um costume mas também uma necessidade essencial ao Brasil. Assim, diante do medo e da
insegurança fruto da ameaça, ainda que imaginária, de levantes negros na Corte, esses
indivíduos preferiam culpar diretamente os escravos e lançar sobre eles todo o refluxo de
violência e repressão que a excitação e a ansiedade produzidas pelo medo haviam gerado.
Diferente dos cassandristas, os Liberais Moderados que se agrupavam em torno de
Feijó e que com certeza viam em Evaristo da Veiga uma espécie de liderança doutrinária,
apontavam não para o escravo, mas sim para o escravismo como a grande origem da
ameaça. No entanto, eram, na prática, também dependentes da escravidão e defensores dos
privilégios de uma elite que se construiu historicamente com bases sólidas no sistema
escravista. Contentavam-se assim em atacar a escravidão no plano teórico, mas de tentar
prolonga-la ao máximo no plano prático, de forma que a abolição ocorresse paulatinamente, 122 O fato de Feijó publicar um semanário chamado “O Justiceiro” para defender a própria candidatura é comentado não sem alguma ironia por CASTRO, Paulo Pereira de . Op cit. p.40.
sem traumas e sem revolução, ou seja, da forma moderada que era, ao fim e ao cabo, uma
característica de sua prática política.123
Em 3 de Abril de 1835 são publicadas pelo Jornal do Commercio as seguintes
determinações: Luis Bandeira de Gouvêa, Fiscal do Sacramento e 2° Districto da Candelária. Faço saber aos meus comparochianos que a Câmara Municipal desta cidade tem determinado toda a vigilância na execução das posturas 2ª,3ª,6ª e 7ª, do Edital do 1° de Junho de 1831, ordenando-me igualmente que as faça publicar pelos Diários para maior conhecimento do público, cujas posturas são as seguintes: 2ª – Fica prohibido aos ferreiros, espingardeiros, barbeiros, ou cutileiros, e quaesquer outros amoladores, fazer ou preparar qualquer arma a gente suspeita, ou a escravos. Os infratores incorrerão na muleta de 20$ reis, e 8 dias de cadeia, e na reincidência o dobro. 3°- Os escravos que forem encontrados fazendo desordens serão conduzidos ao calabouço, dando-se immediatamente parte aos senhores, para estes mandarem dar nos motores cem açoites, conforme a lei, e se recusarem a faze-lo soffrerão de muleta de 30$ reis, e 8 dias de cadeia; os que não forem considerados motores, soffrerão metade desta pena, bem como os senhores que deixarem de os castigar. 6°- Os donos das tabernas , ou outra qualquer casa publica em que se achem ajuntamentos de escravo, incorrerão na muleta de 30$ reis, e 8 dias de cadeia e os escrvos soffrerão 50 açoutes com as formalidades marcadas no artigo terceiro. 7° -Todo o escravo que for encontrado das sete horas da tarde em diante sem escripto do seu senhor, datado do mesmo dia, em que declare o fim a que vai, soffrera 8 dias de prisão, dando-se parte ao Senhor. E para que chegue ao conhecimento de todos e se não possa allegar ignorância fiz publicar o presente edital. Rio de Janeiro, 2 de Abril de 1835. Luis Bandeira de Gouvêa
Aqui a zona de tensão permanente já está inteiramente instalada. O fiscal ressalta
que os editais devem ser conhecidos por todos, para que “se não possa allegar ignorância”.
Ora, numa sociedade onde o escravismo perpassava todos os seguimentos sociais, sendo
que até livres pobres eram possuidores de escravos, as precauções acima citadas já
subentendem que o alarmismo fosse generalizado quanto a possibilidade de que levantes
nos moldes do que se passara na Bahia pudesse acometer a Corte.
A partir do levante Malê, o Estado passa a interferir mais diretamente na relação
senhor/escravo como um poder moderador e disciplinar tanto da figura do escravo quanto
do senhor. Isso será bastante importante para a configuração que o sistema escravista terá a
partir de então. Isso torna-se perceptível nas posturas publicadas no Jornal do Commercio
de 3 de Abril que, embora se refiram a um Edital de 1831, tomam efetividade a partir de
1835. Afinal de contas, se são publicados para que “se não possa allegar ignorância”, é por 123 Ver: GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Liberalismo Moderado : Postulados ideológicos e práticas políticas no período regencial. In PRADO, Maria Emília (Org). O liberalismo o Brasil imperial: origens, conceitos e prática. Rio de Janeiro: Renavan:UERJ,2001. p. 103-126.
que eram possivelmente ignorados até a presente data. Essas medidas exercem controle
disciplinar não apenas sobre o escravo mas também sobre o senhor, já que alertam para que
em caso de “se recusarem” a exercer a punição disciplinar sobre seu escravo, os senhores
arriscam-se a sofrer a “ muleta de 30$ reis, e 8 dias de cadeia”124.
Thomas H. Holloway aponta para o fato de que o Estado, ao longo do período
regencial, passará a mediar cada vez mais as relações senhor/escravo, assumindo para si um
campo de ação que antes ficava restrito ao controle dos senhores. Segundo ele,
Em uma cidade em que milhares de cativos se comunicavam com facilidade , a ameaça de resistência escrava, ou coisa pior, era por demais importante para ser deixada a cargo dos senhores individualmente. Montara-se um sistema de vigilância, controle e disciplina tão amplo que o poder de coerção da classe proprietária tornou-se difuso.125
A zona de tensão que se constitui em 1835 ganha permanência nos anos seguintes,
não apenas através de uma maior preocupação do Estado com a mediação da relação
senhor/escravo mas, sobretudo, com a continuidade da atmosfera de medo e apreensão
catalisada pelo grande medo de 1835. Segundo Flávio Gomes, o início do ano de 1836 será
também marcado pela crença de que a Corte seria vítima de uma “nuvem negra”. Ao
estudar a insurreição em Vassouras em 1838, assim se manifesta esse autor:
Esse medo, por certo, ainda tinha como causa os boatos que invadiram a Corte em e o Império , principalmente nos anos de 1835 e 1836. Se ele ficou adormecido no Rio de Janeiro no ano de 1837, renasceu com toda a força em 1838.126
O medo da revolta Malê, que se difundiu pela Corte do Império, parece ter também
características de um fenômeno de mídia. Esse medo atingiu proporções muito maiores do
que as reais possibilidades de levantes. Revoltas do tipo Malê jamais chegaram a ocorrer na
Corte. O pânico que se instala no período foi, em parte, efeito de sua repercussão, fruto da
ampla divulgação na mídia ainda insipiente da década de 1830. É claro que a propagação
do medo só foi possível porque o Rio de Janeiro era cheio de contradições e desigualdades,
como ainda continua sendo. O discurso sobre o medo foi semeado em um campo fértil. A
124 Jornal do Commercio, (03/04/1835).
125 HOLLOWAY,Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro – Repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997. p.115. 126 GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de Quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. Ed rev. e ampl.. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.218.
maciça presença negra, os debates e tensões internas ao mundo do governo, as convulsões
políticas e sociais. Tudo isso era presente na cidade, na Corte do Império.
4.1 – O Medo e seus efeitos. A zona de tensão permanente que se constrói em 1835 terá como frutos os já citados
princípios heurísticos e políticos do medo. Constituída como efeito da fissura de uma
interdição lógica construída contra o negro ao longo de séculos de escravidão, do fantasma
do Haiti e da conturbada ambiência de instabilidade política da década de 1830, essa zona
de tensão baseada no temor de levantes na Corte será nutrida pelas constantes boatos e
discursos que avaliam a ameaça como iminente, nomeando e representando o medo e
buscando soluções e medidas contra o perigo. O efeito heurístico realimenta essa zona de
tensão, possibilitando seu caráter de longo prazo através dos anos seguintes a 1835. Ele
prepara também um terreno bastante fértil para a racionalização política dessa ambiência de
apreensão. As medidas policiais, jurídicas e políticas que se efetivarão a partir de então são
efeitos diretos da zona de tensão, mas são possibilitados pelos princípios heurístico e
político do medo, e, portanto, pela vinculação íntima entre medo e poder.
No dia 4 de Abril de 1835, sai publicado no Jornal do Commercio um parecer da
“Commissão Especial” sobre o aviso do ministro da Justiça a respeito da “mensagem”
enviada pela Assembléia Provincial do Rio de Janeiro ao Governo Central, através do
Presidente da Província. Os “gritos Cassandra” emitidos pela Assembléia parecem ter
aborrecido o ministro da Justiça, que criticará duramente o conteúdo da dita mensagem. A
“Commissão Especial”, encarregada de dar seu parecer sobre a resposta do Ministro,
afirma:
A desagradavel necessidade de concluir dos exames a que procedeu, que o referido aviso contém huma formal reprehensão a esta Assembléia, á qual nega a qualidade de independente; e occupa-se no seu todo, de argui-la de imprudente, terrorista e facciosa ; de ter tido fins sinistros na sua conducta, e exigido do Governo Central medidas anti-legais.127 [Grifos meus]
A comissão passa a analisar os diferentes tópicos do sobredito aviso do ministro. A
tal mensagem a qual o aviso se refere sai publicada no jornal a 21 de Março e é, como 127 Apud. Jornal do Commercio, 04/04/1835.
vimos, o ponto alto do cassandrismo da Assembléia, já que aconselha deslocamento de
tropas, medidas repressivas urgentes e a atuação mais “enérgica” do governo, leia-se
violência contra os escravos. Assim, após reclamar da brandura das medidas que têm sido
tomadas, julga que as autoridades policiais dormem “ sobre a cratera do volcão”, e
termina a dita mensagem com a seguinte frase: “O Brasil ameaçado reclama justiça e
energia.” O medo descontrolado da Assembléia e o alarmismo de suas considerações
acaba por irritar o ministro da Justiça, causando uma espécie de atrito entre a esfera de
poder provincial e o governo central.
A análise da mensagem de 21 de Março pelo Ministro da Justiça parece precisa. O
“grito de Cassandra” da Assembléia é tratado friamente como “imprudente” e “terrorista”,
sendo a mensagem taxada de facciosa e acusada de ter “fins sinistros”. O termo terrorismo
tem aqui o sentido de administração política do medo e do sentimento de insegurança da
população128. Esses seriam os “fins sinistros” de que são acusados os membros da
Assembléia Provincial, a tentativa de administração política do medo para atuação
repressiva e violenta do poder central não apenas contra os escravos, sem dúvida os alvos
mais frágeis de tal política, mas provavelmente também a repressão sobre as dissidências
políticas. Para sublinharmos bem isso, retomo a parte final da tal mensagem, publicada pelo
Jornal do Commercio a 21 de Março:
Senhor, o crime não dorme; e este he de tal natureza que cumpre mais que nunca que o governo o esmague; e não se deixe prender por acanhadas considerações de despeza, ou de política. O Brasil ameaçado reclama justiça e energia.
A comissão passa a analisar os diferentes tópicos do “Aviso” do ministro.
Interessante, porque o jornal não publica o aviso na íntegra mas tomamos contato com o
128 Muito interessante, já que, se fossemos aplicar o sentido difundido pelo senso-comum atual do termo “terrorismo” ao contexto de 1835 tenderíamos a considerar os Malês como terroristas e não a Assembléia, o que seria sem dúvida anacrônico, mas que aqui se presta apenas a uma verificação da mudança semântica do século XIX aos dias atuais. Da mesma forma, como simples exercício, se aplicássemos o sentido que o ministro da Justiça dá a “terrorismo” ao contexto geopolítico atual teríamos, por exemplo, que, não seriam os militantes da ALQaeda os verdadeiros terroristas e sim o governo Norte Americano, já que esse último lançou mão habilmente do ataque “terrorista” de 11 de setembro de 2001 para aprovar no Congresso americano inúmeras medidas anti-democráticas. Talvez seja útil para os dias de hoje resgatar o sentido dado ao termo em 1835.
texto praticamente integral através dessa resposta elaborada pela Assembléia, essa sim
publicada na íntegra pelo Jornal do Commercio.
Ella (a Regência), diz o Ministro, muito estranhou que a Assembleia da Província, em lugar do título de Representação, que he o da lei, da prática e da Constituição, desse a sua correspondência com o Governo o de Mensagem, que o uso tem consagrado ás communicações entre autoridades de igual categoria, e independentes; condições que de certo se não verificam entre a Assembléia Provincial e o Governo Central do Império.
Essa repreensão do Ministro é recebida com imenso furor entre os membros da
Assembléia, como indica o taquigrafista. Continuando, diz o Ministro:
[...] e não menos (muito estranhou) que huma peça de tanta importância, que mereceu discussões secretas, fosse primeiro publicada em folhas particulares, do que chegasse a presença do Governo a quem era dirigida.
O questionamento do Ministro deve-se ao fato deste ter tomado conhecimento da tal
Mensagem primeiro através do Jornal do Commercio, e só depois a ter recebido em âmbito
oficial. A resposta do ministro é muito lúcida ao levantar uma questão que é de primeira
importância: por que a Mensagem, um documento oficial que tratava de uma questão tida
como tão grave, teria sido publicada na íntegra num dos jornais de maior importância e
circulação da época? Se o objetivo era apenas alertar o Governo Central para o perigo,
realmente isso não faria nenhum sentido. Mas se o alarmismo da Mensagem tivesse como
objetivo “jogar” políticamente com o medo de levantes, alarmando a população e
conseguindo com isso a execução de manobras políticas, ai sim a publicação da Mensagem
faria todo sentido. O Ministro da Justiça parece ter a perspicácia de reconhecer prontamente
no cassandrismo da Assembléia uma engenhosa maquinação política.
Contra as acusações do Ministro, os membros da Assembléia tentaram se defender
argumentando que não haviam publicado a “Mensagem”, mas o problema estaria no fato de
que “o redator de huma Folha tem aqui hum tachigrafo destinado a colher todos os papeis
da Assembleia desde principio da sessão” e que “sendo a discussão publica, não puderam
impedir a publicação”. Argumento esse que não é convincente: já que a elaboração da
Mensagem se deu em sessão secreta, como ressaltou o Ministro, também o envio da
Mensagem poderia ter sido, se não secreto, pelo menos mais discreto. Mas não foi. Dessa
forma, continua o Ministro sua dura repreensão:“Dando-se assim a entender que se teve
mais em vista derramar inutilmente o terror das Autoridades da Corte, do que previnir ou
remover os males que a Assembleia mostra recear.” A Comissão Especial encarregada de
analisar a fala do Ministro aponta que o seu raciocínio conduziu à seguinte conclusão:
“Logo, [de acordo com o Ministro] a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro he
terrorista e anarchica, pois que pratica actos que têem por fim incutir no povo terror
inútil, e desacreditar as Autoridades da Corte.”129
Passando depois a expor as considerações que a “Mensagem” mereceu por parte da
Regência, diz o Ministro da Justiça que o que é asseverado na mesma:
não têem outro caracter senão o de conjecturas e probabilidades , que apesar de não deverem ser desprezados pelo Governo, como não foram, não podião contudo, sem muito grande imprudência, ser logo levadas à categoria de factos tão incontestáveis, que delles se pudesse dizer o que affirma a Assembleia Provincial130
Esse trecho do aviso ministerial faz clara referência a passagem da Mensagem onde
a paranóia da Assembléia atribui aos escravos uma conspiração nos moldes do ocorrida no
Haiti: “(...) as doutrinas Haitianas são aqui pregadas com impunidade;(...) os escravos são
aliciados com engodo da liberdade. (...) ha na Corte sociedades secretas que trabalhão
systematicamente nesses sentido.”131
Aqui a Assembléia Provincial passa a rebater com igual dureza os comentários do Ministro:
A Commissão nesta parte do aviso do Ministro da Justiça, só encontra motivos para lamentar que o primeiro empregado da Administração Policial de todo o Império, não preveja na coincidência de tantos factos que são conhecidos a todos, symptomas necessários de males que se maquinão. Este não he o lugar de os enumerar. À Assembleia basta para tranquillisar sua consciência a certeza moral que tem de que factos existem. Não despreze o Ministro da Justiça o aviso[...]
A rusga entre o Ministro e a Assembléia termina deixando a impressão de que a
comunicação entre as esferas de poder nesse momento é ainda sujeita a inadequações
protocolares e acusações mútuas.
No dia 4 de Abril o “Justiceiro” entra novamente em cena num longo debate com o
anônimo “Assignante” sobre sua própria candidatura. É claro que como Feijó se julgava
anônimo não poupou esforços para depreciar seu rival eleitoral, Holanda Cavalcanti,
129 Jornal do Commercio, 04/04/1835. 130 Ibidem. 131 Trecho da mensagem enviada ao Governo Central pela Assembléia Provincial do Rio de Janeiro e publicada pelo Jornal do Commercio a 21 de Março de 1835.
defendido pelo tal “Assignante”. O embate entre a facção de Feijó e Evaristo e a chamada
facção holandesa, defensora da candidatura de Holanda Cavalcanti, parece dividir as
opiniões dos adeptos da Moderação nesse momento.
O Jornal do Commercio noticia a oito de Abril que o “ plano de huma insurreição de
Africanos, na villa da Cachoeira e Arraial de S.Felix, acaba de ser descoberto”. A reação é
imediata, tanto que no dia seguinte é extraído do Correio Oficial o seguinte decreto:
A Regência em Nome do Imperador, o Senhor Dom Pedro Segundo, tendo em vista as urgentes circunstâncias da Província da Bahia, e a necessidade de exemplo, para que se extinguão os elementos da insurreição de Africanos, que acaba de ter lugar na mesma Província: Há por bem, usando da faculdade que lhe concede o artigo segundo da Lei de onze de Setembro de mil oitocentos e vinte e seis, que as sentenças de morte proferidas pelo Jury contra os reos que tiverão parte naquela insurreição, sejam imediatamente executados [...]132
A punição exemplar aparece como um forte elemento capaz de inspirar medo nos
escravos e inibir futuros levantes. A teatralização da morte através das execuções públicas
tem elementos das chamadas sociedades de suplício133, onde o poder é exercido no corpo,
ou seja, a “necessidade de exemplo” leva a práticas tais como a pena de morte e ao
aumento das torturas disciplinares empreendidas sobre os escravos, como os açoites e etc.
O enforcamento de cinco negros que faziam parte de uma das “levas” de condenados da
insurreição Malê ocorrerá no dia 10 de Junho e será noticiado como uma forma de conter os
ânimos.
É importante notar que a década de 1830 é um momento de intensa hibridização no
âmbito político quando, como lembra Marco Morel134, arcaísmo e modernidade disputam
espaços e por vezes se combinam de forma bastante imprevista. Assim também ocorre no
âmbito dos espaços públicos e das manifestações que o ocupam. O Estado Regencial, cada
vez mais interfere nas relações disciplinares entre senhores e escravos, punindo inclusive os
senhores displicentes com multa e prisão.135 Nesse momento, o Estado busca garantir o
monopólio da violência, através do Código Criminal, do Código do Processo, e de medidas
cautelares como a pena de morte para escravos. No entanto, ainda divide com os cidadãos
proprietários de escravos o direito à violência, na medida em que grande parte da punição e
132 Apud. Jornal do Commercio, 08/04/1835. 133 Ver FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1977. 134 MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na Cidade Imperial, 1820-1840. São Paulo, Hucitec, 2005. 135 Jornal do Commercio, (03/04/1835).
do controle exercido no corpo dos negros através de açoites e da tortura legitimada é direto
reconhecido.
A condenação dos Malês à pena de morte se deu através da alegação de crime de
insurreição. No entanto, pelo menos nove dos revoltosos entraram com recurso e apelaram
por um novo júri, tendo suas sentenças reformadas para açoites ou galés perpétuas .136 A 10
de Junho é aprovada uma lei de exceção para instituir maior rigor contra escravos
insurgentes 137:
Art.1º - Serão punidos com a pena de morte os escravos, ou escravas que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem qualquer outra grave offensa physica a seu senhor, sua mulher a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem , ou ao administrador, feitor e as mulheres que com elles viverem. Se os ferimentos, ou offensa physica, forem leves, a pena será de açoutes, a proporção das circunstancias mais ou menos agravantes. Art. 2º - Acontecendo algum dos delictos mencionados no art.1, o de insurreição, e qualquer outro cometido por pessoas escravas, em que caiba a pena de morte, haverá reunião extraordinária do jury do termo 9caso não esteja em exercício) convocada pelo Juiz de Direito, a que tais acontecimentos serão imediatamente comunicados. Art.3º - Os juizes de paz terão jurisdição cumulativa em todo o município para processarem tais delictos ate a pronuncia, com as diligencias legais posteriores, e prisão dos delinqüentes, e concluído que seja o processo, o enviarão ao Juiz de Direito, para este apresenta-lo ao jury, logo que esteja reunido, e a seguir-se os mais termos. Art.4º - Em tais delictos, a imposição da pena de morte será vencida por dois terços do numero dos votos; e para as outras, pela maioria; e a sentença, se for condenatória, se executara sem recurso algum. Art.5º - Ficam revogadas todas as leis, decretos e mais disposições em contrario138. [Grifos meus]
A novidade dessa lei está na ausência da possibilidade de recurso. A pena de morte,
em si, era prevista pelo Código Criminal de 1830 e podia ser aplicada em caso de
insurreição tanto para homens livres como para escravos. No Código do Processo de 1832 ,
que instituía o júri como base das novas formas processuais, os homens livres julgavam
seus pares, seus iguais. A Lei de 10 de Junho é fruto da necessidade de diferenciação legal
das formas condenatórias entre escravos e homens livres. Sem direito apelação, as
execuções poderiam ser mais rápidas para crimes cometidos por escravos, sem perigo de
serem travadas por recursos ou quaisquer outras medidas jurídicas. Essa Lei aflora como
clímax do processo de produção de efeitos do medo no âmbito jurídico: condenar escravos
136 RIBEIRO, João Luiz. No meio das galinhas as baratas não têm razão: a Lei de 10 de Junho de 1835: os escravos e a pena de morte no Império do Brasil: 1822-1889. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p.64. 137 A Lei é publicada no Jornal do Commercio no dia 20 de Junho. 138 Apud. RIBEIRO, João Luiz. No meio das galinhas as baratas não têm razão: a Lei de 10 de Junho de 1835: os escravos e a pena de morte no Império do Brasil: 1822-1889. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.P.66.
a morte ficara rápido e simples. Executa-los também, já que agora não tinham mais os
direito que os livres tinham de protestar e apelar.
O medo intensificou a refluxo de violência e punição contra o escravo de tal forma
que “dois carrascos não eram suficientes face à demanda provocada pelo número de
execuções que se seguiu a lei de 1835”139. Além de materialidade, o medo produziu
permanências através dessa lei. O relatório do presidente da província do Rio de Janeiro
para o ano de 1838140 informa que os 28 escravos condenados à morte, de agosto de 1835
até fins de 1838, foram todos executados. O sistema penal refina-se com a heurística do
medo.
Os ingleses parecem ter aproveitado também a ambiência da zona de tensão
permanente para pressionar no sentido do fim do tráfico. A 21 de Abril é publicada a
sentença da “Commição Mixta Brasileira e Inglesa”, que condenou como “boa preza” o
Bengantin Rio da Prata capturado pelo Brigue de Guerra Inglês Raleigh com africanos a
bordo. A embarcação e sua carga são apreendidas por violarem “o primeiro artigo da
convenção de 23 de Novembro de 1826, que declara que não será lícito aos súbditos do
Império do Brazil fazer o commercio de escravos na Costa d’Africa”141. O acusado dono do
navio tenta se defender argumentando que não se tratavam de escravos e sim de “colonos”,
subterfúgio que parece não ter convencido os acusadores. No navio foram apreendidos de
500 a 600 escravos. O comissário brasileiro se posicionou contra a condenação de José
Theodoro Villaça e a apreensão e libertação dos negros encontrados em sua embarcação.
No entanto parece que as pressões inglesas não deixaram escolha.
As ações inglesas para o fim do tráfico de escravos não eram nenhuma novidade em
1835. A Inglaterra havia proibido o tráfico de escravos em suas colônias ainda em 1807,
abolindo definitivamente a escravidão em seus territórios em 1833. A partir de 1810 passa a
haver fortes pressões inglesas para o fim do tráfico na América portuguesa, quando D. João
é obrigado a concordar com um tratado para cooperar com o fim do comércio de escravos,
considerando o tráfico ilegal acima da Linha do Equador. Com a Independência do Brasil,
em 1822, a Inglaterra condicionou o reconhecimento da independência à extinção do
tráfico negreiro, o que obrigou o Brasil a firmar um tratado de abolição do tráfico em três
139 Idem, Ibidem. P.72 140 Apud. RIBEIRO, João Luiz. Ibidem. P.97. 141Apud. Jornal do Commercio, 21/04/1835.
anos, assinado em 1826 e que não foi efetivamente cumprido. A Lei anti-tráfico de 1831 foi
uma maneira de tentar contornar juridicamente as pressões externas que o governo
brasileiro estava sofrendo por parte da Inglaterra por conta do acordo firmado em 1826,
citado na notícia publicada pelo Jornal do Commercio. Como é sabido, o fim do tráfico só
se deu de fato a partir de 1850, quando as autoridades passaram a exercer fiscalização
efetiva, como conseqüência das ações de intervenção Inglesas em águas brasileiras,
legitimadas pelo Slave Trade Suppression Act de 1845, conhecido vulgarmente como Bill
Aberdeen, lei britânica que proibia o comércio de escravos entre a África e a América e
legitimava a intervenção militar para o apresamento de navios que transportassem
escravos142.
Numa correspondência de 23 de Abril, um anônimo transcreve trechos dos “Annaes
do Rio de Janeiro”, contendo críticas à pratica da escravidão. A crítica se dá, sobretudo, a
idéia dominante no âmbito do senso comum de que a escravidão era imprescindível ao
sistema produtivo brasileiro.
[...] O Brazil muito perdeu de industria, riqueza, e moralidade, com a introdução tão perniciosa de taes braços forçados para o trabalho das suas lavouras, e mais industrias relativas. [...] Aquella população de gente de cor excede muito superiormente à população branca e a superioridade do numero tem sempre causando grande susto em diversas épocas, que já produziu a lamentável catástrofe da rica e fértil província de S.Domingos: tal gente tem occasionado a desmoralização das famílias, a diminuição dos casamentos, pela facilidade que tem os senhores de lhes fazer perder a pudicia, entregando-se aos excessos do prazer que na mocidade lhes imprime as rugas da velhice, e que tem confundido e degenerado as famílias nobres, (...) Graças á philantropia britannica, e em honra do seu illuminado governo que fez desaparecer esse trafico injusto e deshumano, que a população se ressentirá dos seus saudáveis effeitos!143[Grifos meus]
Aqui, é ressaltada, sobretudo, a idéia de que o negro é moralmente pernicioso e
prejudicial à lavoura “e mais industrias relativas.” Essa idéia parece associada a noção de
agricultura ilustrada, onde o trabalho escravo é apontado como rudimentar e causador de
prejuízos em oposição a engenhosidade e inovação das técnicas agrícolas usadas pelos
trabalhadores brancos e livres. Ainda em 14 de Fevereiro, existe um argumento bastante
similar na carta de Feijó, como “Justiceiro”, onde defende a vinda de colonos e a criação de
escolas agrícolas em todas as províncias como uma medida de caráter civilizacional. 142 Ver: AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra medo branco: o negro no imaginário das elites século IXI. 3ª Edição. São Paulo, Annablume, 2004. 143 Apud. Jornal do Commercio, 23/04/1835.
O medo aparece como um sentimento constante e é explicado com o argumento de
que a “gente de cor excede muito superiormente à população branca”, produzindo
“grande susto em diversas épocas”. A própria revolta de São Domingos, que depois do
levante passou a se chamar Haiti, é explicada pela mesma razão: a superioridade do número
de negros em relação aos brancos. É importante ressaltar que a enorme quantidade de
escravos em terras brasileiras é capaz de explicar apenas o medo difuso que sempre
acompanhou o homem branco desde os primórdios da atividade colonial mas, de forma
alguma, tem consistência para justificar o grande afloramento do medo em 1835. Se fosse
apenas devido a grande quantidade de negros, como se explicaria que em 1835 aparecem
medidas jurídicas, políticas e policias tão específicas para a garantia da segurança contra
levantes negros na Corte? Porque essas respostas ao medo não teriam aparecido em 1833
ou 1834, ou ainda em 1831? Nesse sentido, a hipótese de uma zona de tensão permanente
como ambiência constituída pelo medo intenso e possibilitadora de uma série de medidas
legais não exclui a afirmação de que o medo, embora difuso, esteve sempre presente, de
forma quase fantasmagórica, a rondar o homem branco nos trópicos.
No trecho dos “Annaes do Rio de Janeiro” acima citado o negro é visto como
responsável pela “desmoralização das famílias” e “diminuição dos casamentos” já que
subverte seus senhores engendrando-os nos “excessos do prazer”. Ou seja, os escravos são
encarados como verdadeiros inimigos do desenvolvimento do Brasil. A arma desse inimigo
é, sobretudo, a imoralidade perniciosa, capaz de “degenerar” as famílias brancas. Suas
condições de combate são favoráveis devido a sua quantidade, que “excede muito
superiormente” a da população branca. A pressão inglesa contra o tráfico aparece como
“philantropia britannica”, relacionada mais à civilização brasileira do que aos negros. Ou
seja, a ação filantrópica dos ingleses não reside em livrar os escravos de seu cativeiro e sim
em livrar o Brasil da ação perniciosa de seu grande inimigo histórico: o negro. O
“illuminado governo”144 da Inglaterra era o modelo monarquista e parlamentar, que
combinava liberalismo econômico e conservadorismo político, garantindo a participação da
elite política através do parlamento e ao mesmo tempo perpetuando as tradições régias
inglesas. Tal modelo parecia agradar muito uma parcela bastante importante dos liberais
brasileiros, sobretudo, os associados ao grupo Moderado de Evaristo e Feijó.
144Ibidem.
O próprio Feijó, em carta de 1º de Abril aconselha que o controle sobre o tráfico de
escravos fique a cargo dos “Inglezes, que tem mais meios” e defende que” a lei cahia”. Ou
seja, que a Lei de 1831, que define o fim do tráfico seja extinta e que o controle fique nas
mão dos ingleses.O próprio Evaristo da Veiga era grande admirador da política inglesa e
um ardoroso defensor das idéias de Edmund Burke, citado inúmeras vezes pelo seu
periódico Aurora Fluminense e também no periódico da Sociedade Defensora da Liberdade
e Independência Nacional, a cargo de Evaristo.145Segundo Antônio Carlos Peixoto, no
argumento conservador de Burke “a história não é necessariamente movimento ou
transformação”146. Talvez por isso, a idéia de transformação pela revolução seja algo tão
tenebroso aos olhos conservadores. Nesse sentido, os ideais transformadores são encarados
como uma tentativa de impor padrões, normas e valores que se chocam com aquilo que a
sociedade de fato é, ou seja, com a configuração específica que o tempo deu a ela. Para
Burke, as revoluções feitas em nome da liberdade acabariam por produzir a tirania, no
sentido de impor ao todo social as idéias de uma minoria. A matriz burkeana de
pensamento parecia sintetizar perfeitamente o tipo de política defendida pela ala moderada,
que apesar de doutrina liberal não admitia transformações profundas na sociedade, atuando
politicamente de forma conservadora. Ou seja, seria o instrumental capaz de conciliar a
modernidade que caracterizava o ideário liberal com as práticas consagradas pela tradição.
No dia 7 de Maio, o jornal publica uma discussão ocorrida na sessão do dia 6 na
Câmara dos Deputados. Trata-se da votação de um projeto de lei, vindo do Senado, sobre o
fim do tráfico de escravos. O projeto parece um aditivo a lei de 1831. O Sr. Cornélio
França, opondo-se ao projeto, defendeu que se mandasse a mesa uma ementa para que
depois de vinte anos contados da data da presente lei, não houvesse mais escravidão no
Brasil, posto que não queria que isto se fizesse de repente, considerando “cousa mais
145 Edmund Burke, em seu livro Considerações sobre a Revolução em França, inflamou o debate sobre as idéias liberais e sobre os princípios que dirigiram a Revolução Francesa. Seus argumentos penetraram no campo do liberalismo e levaram a uma reformulação dos princípios liberais durante o século XIX. Para esse autor, a condição do indivíduo em sociedade é essencialmente conflitiva e tensa. Nesse sentido, a ação política poderia reduzir tais tensões, mas nunca elimina-las. A política é vista como um jogo de equilíbrio de tensões cuja abrangência é limitada. Não há, portanto, uma solução global para a resolução final de tais tensões. Para ele, a sociedade não é um objeto de construção que possa decorrer simplesmente de elementos racionais e intelectuais. Assim, as sociedades se formam e se transformam através de fatores próprios e específicos, não podendo ser reduzidas a leis gerais. Ver: PEIXOTO, Antônio Carlos. Liberais ou Conservadores. In : GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal; PRADO, Maria Emília (Orgs). O liberalismo no Brasil imperial: origens, conceitos e práticas. Rio de Janeiro: Renavan: UERJ, 2001. P.11-30. 146 Apud. PEIXOTO, Antônio Carlos. Ibidem. P.27.
impolitica possível”. Defendia que “se marcasse hum prazo para ella se acabar; que se
esse de vinte annos se julgasse pequeno, se marcasse outro maior; e que so assim acabaria
o contrabando da escravaria”. O Deputado criticou profundamente a lei proposta pelo
Senado, pois considerava “que o maior mal que elle Deputado julgava existir, era o estar-
se todos os annos a fazer leis, e leis de que não resultava cousa alguma útil (...)”147. O
discurso do Deputado faz todo o sentido, e faz lembrar as propostas do “Justiceiro” Feijó,
de abolição de longo prazo e da inutilidade de leis anti-tráfico que eram, graças a
conivência das autoridades, letra morta. A ementa do Deputado, referente ao fim da
escravidão em prazo de 20 anos, não foi aprovada pela Câmara.
Em 11 de Maio o mesmo deputado leu um projeto de Decreto para que fossem
anistiadas todas as pessoas envolvidas em crimes políticos cometidos nas Províncias do Rio
de Janeiro e Minas Gerais até o fim de 1834, ficando em “perpétuo silencio todos os
processos a este respeito, qualquer que seja o estado em que se achem”. Já no dia 1º de
Junho é aprovada no Senado o projeto de anistia que passou pela Câmara. Interessante é
observar que o senador Feijó votará contra a resolução. O que parece marcar esse período é
a falta de articulação entre os políticos que compõe o parlamento brasileiro. Não é raro
constatar que rivais manifestam idéias absolutamente idênticas no que se refere a
determinados temas enquanto muitas vezes aliados políticos fazem votos inteiramente
contrários em outras questões. Não existe aqui uma unidade partidária ou uma organização
maior em relação as tendências políticas. É preciso ressaltar que até 1837, segundo José
Murilo, não se poderia falar em partidos políticos no Brasil, mas sim em tendências
políticas. 148
A anistia política proposta pela Câmara e aprovada no Senado, a despeito do voto de
Feijó, parece fruto de uma aliança que será conduzida para abonar os “crimes políticos”
tanto de Restauradores, e portanto absolutistas, quanto de Exaltados. Facções da elite
parecem estar se reorganizando e dando uma novo arranjo à política regencial. O ano de
1835 foi também peça chave dessa reestruturação. Os antigos restauradores, após a morte
de D.Pedro I em 1834, tenderam a ver em D. Januária, a princesa imperial, a saída para o
147 Jornal do Commercio, 07/05/1835.
148 José Murilo de Carvalho, “A Construção da Ordem: A elite política imperial.” Brasília: UNB, 1981.
princípio monárquico centralizador149. Os antigos Exaltados possivelmente já vislumbram
que o controle da regência cairia fatalmente nas mãos de Feijó, que pelo andar da
carruagem tinha cada vez mais certeza de sua vitória. Isso ocorria devido ao fato de serem
publicados os resultados parciais das províncias no que diz respeito as eleições para
Regente realizadas nesse mesmo ano. De fato a vitória foi de Feijó. No entanto, esses novos
arranjos políticos que se realizam em 1835 acabarão por isolá-lo. Feijó enfrentará nos anos
seguintes forte oposição do Parlamento, protagonizada por elementos das tendências
Exaltadas e Restauradoras, e até mesmo por dissidências dos Moderados como o próprio
Bernardo Pereira de Vasconcelos. A derrota de Feijó em 1837, com sua renúncia, já está se
construindo antes mesmo que este assuma efetivamente o poder, o que ocorrerá no fim de
1835.
Enquanto isso, o medo continua a rondar e a deixar suas marcas. A 22 do mês Junho
chega a Câmara do Deputados uma “Representação da Assembléia Provincial da Bahia”,
nos seguintes termos:
O desastroso acontecimento que no dia 25 de Janeiro do corrente anno ensanguentou as ruas da Capital desta Provincia, obriga a Assembleia Legislativa da Bahia, (...) a representar a Assembléia Geral sobre a urgente necessidade de, 1º do Estabelecimento de huma Colônia em qualquer ponto da Costa da África, para onde possamos repatriar todo aquelle Africano que se libertar, ou mesmo o liberto Africano que se fizer suspeito á nossa segurança.150
O medo de que os Africanos livres pudessem “contagiar” os escravos com o
“engodo da liberdade” parecia assombrar os pensamentos da elite baiana. Esse medo
chegou inclusive a estimular medidas diplomáticas e de política externa. As outras medidas
defendidas na “Representação da Assembleia Provincial da Bahia” incluíam um acordo
com o Uruguai e a Argentina (Província do Rio da Prata) para que fosse “absolutamente
vedada a importação de Africanos naquelas paragens a título de colonos”. Por fim, pedia a
“absoluta cesação de todo e qualquer commercio entre os nossos portos e os d’Africa
occidental e oriental”. A partir daí o texto da “Representação” passa a explicar as medidas
pedidas:
A primeira medida ou estabelecimento da Colônia tem sido já reconhecida como indispensável e política(...) A segunda medida “se encaminha a privar os contrabandista
149 Ver: CASTRO, Paulo Pereira de. Op.cit. p.44. 150 Apud. Jornal do Commercio, 23/06/1835.
d’escravos de pretexto, ou motivo único que lhes resta para cruzarem o Oceano Austral comnavios carregados de Africanos, por quanto he sem duvida mais fatal a nossa moral, segurança e prosperidade, a illicita importação de milhares de bárbaros, que com o mais vergonhoso escândalo se verifica ainda em nossos portos (...) E posto que o governo do Uruguay tenha declarado não haver autorizado a introducção d’Africanos a titulo de Colonos, todavia a prudência requer que não somente seja aquella introducção prohibida por um acto solemne, como que se estabeleça a mais severa pena contra aquelles que ousarem viola-lo.151
A terceira medida, por fim, dirige-se a “tirar aos immoraes contrabandistas a faculdade
legal de mandarem navios as Costas d’Africa”, argumentando que “alem de escravos
nenhum outro artigo de permutação havia”, ou seja, nenhuma mercadoria, além dos
africanos, poderia interessar ao Brasil. Nesse momento o tráfico será apontado como o
principal vilão, ou o grande fator de risco, ao alimentar cada vez mais o número dos
“inimigos” internos.
Em assunto tão delicado, o parlamento sofre também pressão pública para
solucionar o problema, como demonstra uma correspondência publicada pelo Jornal do
Commercio a 14 de Julho, reclamando que na “presente sessão da Assembleia Geral não se
tomara medida alguma a respeito do trafico de Africanos”. Na percepção dos sujeitos
históricos daquele momento, a explicação de que a revolta negra tinha como causa única a
intensa quantidade de negros em terras brasileiras parece ter efetivamente convencido parte
da opinião pública que clamará pelo fim do tráfico:
[...] muito tem affligido os amigos do paiz, e ao mesmo tempo acoroçoado os traficantes de carne humana, que contão poder ainda por longo tempo ludibriar as nossas leis e tornar cada vez mais precária a nossa sorte futura, continuando a despejar mais barris de polvora na mina que nos ameaça terrível explosão. Pode-se assegurar, que nunca o trafico fez-se com tanta actividade como hoje em dia [...] 152
O discurso que culpa o tráfico parece uma simples decorrência lógica do retórica
cassandrista, que culpa em última instância o negro como causa da ameaça. Aliás, o tráfico
só aparece como problema na medida em que traz mais negros e, portanto, mais inimigos
internos, o que tem o poder de por em risco toda a sociedade brasileira. O autor desta carta
faz menção ao fim do tráfico, mas nenhum comentário sobre o fim da escravidão, nem a
longo nem a curto prazo. Lança mão de imagens catastróficas mas dirige a razão do
problema ao contrabando e não ao escravismo que o torna possível.
151 Ibidem. 152 Os grifos são do redator. Jornal do Commercio, 14/07/1835.
Parece que a estratégia de apontar fatores alienígenas como forma de não
comprometer a legitimidade do sistema escravista é amplamente adotada. Até agora o único
indivíduo a enfrentar o problema da escravidão de frente, como a grande causadora de
ameaças sociais, parece ter sido Feijó. No entanto, a tendência a conciliar as modernas
idéias liberais com a pratica política conservadora, pautada em instituições tradicionais
como o escravismo, parece tornar a percepção de Feijó pouco utilitária, do ponto de vista
das reais possibilidades de uma abolição da escravidão naquele momento e, por outro lado,
bastante útil a grande parte da elite que naquele contexto não enxerga a abolição como algo
viável ou sequer desejável do ponto de vista prático. Assim, as medidas apresentadas o
longo dos discursos e debates publicados pelo Jornal do Commercio com o intuito de sanar
o clima de medo, parece sempre comprometido com a conservação da escravidão. Nesse
sentido, as medidas propostas, sejam elas de mais repressão contra o negro, fim do tráfico
ou vinda de colonos brancos, parecem efetivamente mais comprometidas com formas de
perpetuar a escravidão do que de aboli-la.
A discussão adiada das emendas da “commissão” da Câmara ao projeto do Senado
de fim do trafico de Africanos continua a 24 de Julho. Após inúmeras tentativas de votar os
artigos do referido projeto, sendo todas as vezes rejeitado, a discussão sobre o assunto é
mais uma vez adiada. Parece que as forças políticas evitam a qualquer custo o
enfrentamento do problema. O Senado, ala mais conservadora politicamente, parece
esforçar-se cada vez mais por identificar o perigo de insurreições com o tráfico de
Africanos, recusando-se entretanto a tratar da questão da escravidão.
Enquanto isso, o medo continua ecoando pelas ruas da cidade, gerando boatos e
sustos, como publicado no dia 12 de Agosto pelo Jornal do Commercio:
Recebemos gazetas da Bahia até 1º de Agosto, e por ellas sabemos que houve no dia 22 do passado, denuncia de huma nova insurreição de negros naquella Cidade. Dobrarão-se a patrulhas; derão-se buscas em diferentes partes; e tudo acabou em grande inquietação, que não pode deixar de occasionar desconfiança , e por conseguinte estagnação do commercio. Se acreditar-mos o Correio Mercantil, parece que as autoridades merecerão ser taxadas de apathicas e imprevidentes, e que se não derão cumprimento as ordens policiaes constantes dos editaes do Sr. Gonçalves Martins, na occasião do horroroso levantamento de Janeiro. Passado o perigo, adormecemos incautos (...). Oxalá não acordemos ao terrivel ruído de huma nova tempestade que venha descarregar sobre nos toda a sua fúria quando já for muito tarde para nos oppormos aos seus fataes progressos!
O medo produz um discurso apocalíptico, onde o futuro como contingência torna-se
não apenas nebuloso, mas catastrófico. As autoridades tendem a parecer sempre “apathicas
e imprevidentes”, já que o “inimigo” pode estar em toda parte. A imagem do escravo
insurgente cada vez mais se confunde com a de forças telúricas cuja “fúria” parece quase
sobre-humana.
A cidade de Salvador está em pânico, ou sob “grande inquietação”. Mas e o Rio de
Janeiro? O historiador Flávio Gomes descreve a grande onda de medo e paranóia que corre
pela Corte nesse momento, sobretudo, espalhando-se pelo interior fluminense. Denúncias
em cartas particulares vindas de Maricá e Itaboraí diziam que
alguns pretos asseveram que haver acordos entre eles, e os da Cidade, e que um tal Andrade , pardo forro que tem casa de quitanda na rua do Rosário, é um dos agentes do plano que há de por em execução.153
Assim inúmeros boatos continuavam a circular pelas ruas da Corte, embora a partir de certo
momento cessem de aparecer no Jornal do Commercio.
Parece que há uma espécie de silêncio estratégico sobre o medo, sobretudo, a partir
do “Aviso” do Ministro da Justiça publicado pelo Jornal do Commercio a 21 de Março, que
causou sensação na Assembléia Provincial do Rio de Janeiro, criticando o cassandrismo de
alguns deputados que haviam enviado uma “Mensagem” extremamente alarmista,
considerada “imprudente” e “terrorista” pelo Ministro e acusada de ter “fins sinistros”. A
estratégia parece ser a de isolar o perigo ao âmbito baiano. O Jornal do Commercio não fala
mais na atmosfera de medo que continua pairando pelo Rio nem publica mais os constantes
boatos que circulam pelas ruas da cidade e são tão abundantemente veiculados nos meses
seqüentes a repercussão do levante Male na Corte. É talvez pela percepção de que o medo
arruína o comercio que o jornal que possuía uma vinculação histórica com essa atividade
evita publicar boatos cassandristas que pudessem comprometer a economia da cidade. O
medo é perceptivelmente causador de “desconfiança” e, por conseguinte, “estagnação do
commercio”. Nesse sentido, as notícias sobre o perigo de levantes passam a ser publicadas
apenas relacionadas a cidade de Salvador, na tentativa de isolar a Corte.
Sobre essa possibilidade, vejamos a notícia publicada a 13 de Agosto, na seção
Interior:
153 Apud. GOMES, Flávio dos Santos. Op. Cit. p.217.
A semana passada foi para os habitantes da Bahia huma época de inquietações, e até diremos de agitação, por motivo das precauções que se tomarão para frustrar huma intitulada nova insurreição de escravos . Tendo as autoridades recebido huma denuncia a este respeito, dobrão-se as patrulhas, derão-se buscas em diferentes partes pelos respectivos Juizes de Paz, e por fim algumas prisões forão a consequenca; em quanto isto durou era do nosso dever guardar o silencio; quando as autoridades juducial e policial obrão, o dever de todo o escritor publico, que respeita as leis do paiz em que se acha, he de callar, para que não arrisque por algumas palavras indiscretas, embaraçar a acção destas duas sentinella da tranqüilidade publica [...] Hoje porem, que o perigo parece adiado, somos obrigados, pelo interesse de todos, de flagellar vigorosamente a apathia e a incrível imprevidência [...] 154[Grifos meus]
Além de prisões arbitrárias sob o efeito do medo, esse trecho da notícia transcrita
pelo Jornal do Commercio do Correio Mercantil, traz uma interessante declaração do
redator desse periódico baiano, demonstrando sua clara compreensão do efeito que a
publicação de boatos e “gritos de Cassandra” podem ter sob a população e as autoridades.
Ao evitar alarmismos e pânico, o redator assume publicamente seu compromisso “ético” de
“guardar o silencio” para que não “arrisque por algumas palavras indiscretas” a
segurança pública e a ação das autoridades. A publicação dessa declaração pelo Jornal do
Commercio permite inferir sobre o significado do silêncio que esse periódico tem guardado
em relação aos boatos que tem corrido pelo Rio de Janeiro.
Nesse sentido, não apenas o que se fala sobre o medo, mas também o que não se
fala ganha importância notória quando se trata de lançar mão desse sentimento para
entender a trama de eventos que se desenrolam nesse momento conturbado. O silêncio
sobre o medo no Rio de Janeiro que caracteriza o Jornal do Commercio após a repreensão
formal do Ministro da Justiça a Assembléia Provincial, parece falar mais sobre a atmosfera
de insegurança e paranóia que compõe a zona de tensão permanente do que muitas notas
publicadas nos meses anteriores, que parecem ainda não acreditar na possibilidade real de
um levante na Corte. O silêncio desse periódico visa, ao menos, garantir o mínimo de
distúrbios públicos possíveis causados pelo medo, e o menor efeito possível sobre o
comercio e as relações econômicas na capital do Império do Brasil.
A pena do redator do periódico baiano, reproduzido pelo Jornal do Commercio,
torna-se extremamente pesada ao clamar por ações mais enérgicas do governo:
154 Apud. Jornal do Commercio, 13/08/1835.
em hum paiz aonde a população preta esta em huma proporção de 1 para 10, o primeiro corpo político da Província se tenha limitado a indicar como remédio a hum mal imminente, o impedir o commercio do Brazil com a Costa de África, a fim de diminuir a importação de escravos! Não se he quase tentado a exclamar: Pobre, desgraçados, não são os negros que podem chegar que vos ameação, são os que existem entre vós... Ocupai-vos por ora destes que são assaz numerosos para vos anniquilar, o que não deizarão de fazer logo que se lhes offereça occasião. Pedi desde já a grandes brados huma lei repressiva e especial, cujo rigor seja calculado sobre a immensidade do perigo, e não perdei tempo em propor medidas que talvez para o futuro poderão ser boas; porem que são ridículas nas actuaes circunstancias [...]” (Correio Mercantil)155
Aqui, após ter declarado o “silêncio ético”, a atitude anti-alarmista por excelência dá
lugar ao clamor quase emocionado em nome da segurança pública. Como no
extravasamento de energia que se segue ao grande susto, o redator do Correio Mercantil
também lançará seu “Grito de Cassandra”.
De qualquer forma, essa nova onda de boatos que se espalharam pela Bahia
provocaria prontos resultados e notórios efeitos sobre a cidade de Salvador, como ressalta a
nota que sai logo a 27 de Agosto, e que trará estampada os efeitos colaterais do medo no
espaço público: “Definha o commercio em conseqüência dos muitos receios que há, de
vermos renovarem-se as horrorosas scenas de 25 de Janeiro passado.” Os reflexos dessa
zona de tensão que cada vez mais reafirma sua permanência são claros na Corte. Assim, na
Câmara dos Deputados, situada no Rio de Janeiro, o dia seguinte à noticia sobre o comercio
na cidade de Salvador, foi marcado por muitas discussões sobre a incapacidade do governo
para recrutar e manter forças policiais, e por isso se pedia por forças de primeira linha
(aquarteladas), já que a policia parecia incapaz de “manter a ordem” .
5 MEDO E COLONIZAÇÃO: A RETÓRICA DA CONSERVAÇÃO
O mundo vai no maior progresso possível: os meios que os antigos usavam para fazerem huma grande explosão era lançar huma grande quantidade de pólvora, e fazer-lhe chegar ao fogo, e se querião que esta fosse pequena diminuião este combustível; no século dos progressos tudo mudou, e usa-se vice-versa, e para o provar temos o exemplo. Apparecem insurreições de escravos por todo o Brazil, Bahia e o Maranhão estão á borda do precipício, e o resto do Império ameaça ruína, ainda que mais remota; e quaes os meios de
155 Apud. Jornal do Commercio, 13/08/1835.
se tem lançado mão para prevenir que algumas Províncias do Brazil, se não o todo, venhão a ter a sorte de S.Domingos? – o consenti-se com a mais criminosa indifferença, que para mais de 124 embarcações Portuguesas estejão na Costa d’Africa a receberem Africanos livres, para por meio da força serem entre nós escravisados. De todos os pontos do Império se reclamão providencias: e o que tem feito os poderes constituídos do Estado? O serem surdos aos gemidos da pátria.156
Correspondência Anônima
Com essa mistura de indignação e sarcasmo a seção de correspondência do Jornal
do Commercio é aberta a 29 de Agosto, assinada por um anônimo que se auto-intitula “hum
Brazileiro”. A zona de tensão que se constitui com a intensa atmosfera de medo de levantes
tende a amplificar os acontecimentos, satanizando sobremaneira os negros. Assim, os
boatos que tem circulado na Bahia e demais regiões parecem lançá-las “à borda do
precipício”. Nessa ambiência de histeria o próprio Império “ameaça ruína” e parece se
encaminhar para a “sorte de S.Domingos”. A pressão sobre as autoridades para a execução
de medidas capazes de recuperar a sensação de segurança perdida parece cada vez maior.
Em meio a esse clima de instabilidade o Senado aprova em sessão do dia 5 de
Setembro o projeto que reconhece D. Januária, filha legítima de D.Pedro I, como Princesa
Imperial. A ala mais conservadora da elite157 parece acreditar que a saída para a crise geral
que caracteriza o ano de 1835 - crise política, institucional e, diria até, civilizacional – seria
o abandono dos excessos parlamentares que caracterizaram o cenário político desde 1831 e
o retorno imediato do princípio Monárquico, através de D. Januária.
No entanto as alas menos conservadoras, incluindo os Moderados, que defendiam
um reformismo lento e gradual158, buscarão saídas diferentes. Se o grupo mais conservador
– os antigos Restauradores - passou a apoiar a retomada monárquica através de D.Januáia,
156 Jornal do Commercio, 29/07/1835. 157 Ver: CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Brasília: UNB, 1981. 158 Ver: GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Liberalismo Moderado : Postulados ideológicos e práticas políticas no período regencial. In PRADO, Maria Emília (Org). O liberalismo o Brasil imperial: origens, conceitos e prática. Rio de Janeiro: Renavan:UERJ,2001. p. 103-126.
após a morte de D.Pedro I em Portugal, os Moderados parecem apostar politicamente na
vitória de Feijó. Entretanto, no que se refere à escravidão, que é o que efetivamente nos
interessa, ambos os grupos defenderão medidas que possam sanar os medos da população
sem, no entanto, comprometer radicalmente seus interesses. Tais elementos tinham na
prática escravocrata tanto a tradição de seus costumes como o apoio político dos
proprietários agro-exportadores - grupo social com ampla representação parlamentar159 e
que considerava fundamental a permanência do escravismo.
Assim, se inicialmente as interpretações se polarizaram entre cassandristas e
emancipacionistas, ou entre os que culpavam o negro e os que culpavam a escravidão, essa
polarização tenderá a dar lugar a um discurso mais uniforme. A elite parece se unir quando
seus interesses materiais mais primários estão ameaçados. A princípio a retórica mais
conservadora tendia a culpar os escravos como fonte de perigo, enquanto a ala Moderada
de Evaristo da Veiga e Feijó criticava a escravidão e defendia seu fim lento e gradual, tão
lento que as medidas propostas para sua extinção pareciam simples abstrações. Os radicais
Exaltados defendiam uma extinção imediata da escravidão mas, pelo menos na Corte, não
possuíam no momento a força política capaz de sustentar suas propostas. Na medida em
que as notícias e boatos avançam e a zona de tensão se amplifica, essa polarização vai
cedendo lugar a discursos que encontram outra via para extravasar a indignação frente ao
clima geral de insegurança: a crítica ao tráfico.
Um antídoto contra o tráfico será unanimemente aceito ao fim do ano como saída
retórica para o medo de revoltas escravas. O discurso de Feijó, assinando como
“Justiceiro”, já em 14 de Fevereiro receitou esse antídoto: a colonização. Essa solução será
respaldada ao longo do ano de 1835 até ganhar materialidade em medidas institucionais e
políticas de incentivo, que afloram ao fim do ano.
A seção de correspondências do dia 14 de Setembro é aberta com uma carta de teor
bem mais otimista que a última. Sr. Redator, Muito agradável me foi a noticia de que deu o seu interessante jornal, de terem chegado na Barca Portuguesa Maria Adelaide , vinda de Ilha Terceira, 220 e tantos colonos, entre os quaes se contão artistas, e o que mais importante he, casaes de jovens lavradores. Se os Brasileiros devem declarar guerra de extermínio aos importadores de pretos Africanos, justo he também que se mostrem agradecidos aos que empregão so seus fundos em conduzir para os nossos portos gente livre e laboriosa, que não tem chegado ao maior auge de prosperidade, porque até hoje tem sido confiada, quase exclusivamente , ao
159 Ver: CARVALHO, José Murilo de. Op.cit. P.93-119.
braço do indolente Africano. Se eu fora legislador, propuzera na respectiva Câmara huma lei concedendo certos prêmios e franquezas ás companhias promotoras de emigração eruopeia [...] [...] Eu creio que se o Governo, de mãos dadas com o Corpo Legislativo, cuidasse seriamente neste importante objecto ate por este meio se iria acabar indirectamente com o contrabando de Aricanos , o qual continuara a despeito das leis, enquanto a população livre e o meio das machinas não estiverem derramados nos nossos campos. He lastima, Sr. Redator, que se tenhão instituído tantas sociedades políticas, maçônicas e bailantes, que se tenhão publicado tantas gazetas para nos injuriarmos huns aos outros, e que ate hoje não se veja entre nos huma Companhia de emiração sendo alias de vital interesse para o Brazil o augmento da população livre e industriosa, que trará após si a civilização, o engrandecimento, e a prosperidade do nosso paiz [...]160[Grifos meus]
É importante ressaltar que essa carta tem força emblemática, já que a partir de agora
as medidas por ela sugeridas estão totalmente em sintonia com o desenrolar dos
acontecimentos. As cartas ultimamente publicadas pelo jornal têm seguido um
desenvolvimento lógico que tende a imputar a causa primeira de levantes a grande
quantidade de negros presentes em terras brasileiras. Nessa etapa do debate, o meio
vislumbrado como forma de deter a perigosa presença desse “inimigo interno”, o negro,
tem sido o fim do tráfico.
No entanto, muitos interesses estão envolvidos nesse debate, inclusive interesses
econômicos que tradicionalmente estiveram diretamente associados a elite brasileira. Tanto
a escravidão era considerada importante para a produção agro-exportadora quanto o tráfico
possuía o peso de uma grande fonte de renda para os homens de negócio da Corte, a parte
da elite comprometida com o comércio de importação e exportação. No que diz respeito ao
tráfico, ou importação do escravo, a determinação do fim desse comércio após 1831
tornava-o cada vez mais lucrativo já que agora por ser ilegal ele não podia ser taxado pelo
Estado, o que garantia uma margem de lucro ainda maior para o comerciante envolvido
nesse empreendimento161. Assim, a partir de certo momento, a solução para impedir futuros
levantes e, por conseqüência, garantir a segurança e sanar os medos parece mudar, ou tentar
conduzir mudança, do ataque frontal ao tráfico para a afirmação da necessidade da
colonização européia. Assim, uma atitude prática deveria ser estimulada, a vinda de
colonos, sem que isso representasse um abalo imediato do escravismo e nem o fim imediato
de tão lucrativo comércio. A tese da carta parece ganhar uma síntese na idéia de que o
160 Jornal do Commercio, 14/09/1835. 161 BETHELL, Leslie The Abolition of the Brazilian Slave Trade. Britain, Brazil and the Slave Trade Question, 1807-1869. Combridge: Cambridge University Press, 1970. Apud. CARVALHO, José Murilo de. Op. cit. P.294.
tráfico “continuara a despeito das leis, enquanto a população livre e o meio das machinas
não estiverem derramados nos nossos campos.” É preciso lembrar que essa é exatamente a
tese de Feijó, que defende que a Lei de 1831 deve ser abolida e a colonização fomentada162.
O próprio redator do Jornal do Commercio manifesta seu apoio à questão. Numa
mesma edição do jornal são transcritas uma mensagem da Câmara dos Comuns da
Inglaterra ao Rei inglês (para “insta-lo” a tomar as medidas mais “efficazes” a fim de
acabar com o “commercio da escravatura”) e a resposta que “S.M. deu a essa mensagem”.
Em uma nota, o redator do Jornal do Commercio assim se manifesta:
Ignoramos de que natureza sejão essas negociações de que trata o Rei da Inglaterra, mas inclinamo-nos a crer que todas ellas serão inefficazes em quanto se não curar dos meios de encher o vácuo que a falta repentina de braços há de necessariamente causar. Se nos não enganamos, pouco ou nenhum resultado s tem ate agora alcançado das leis e tratados existentes. Julgamos mesmo que só tem servido para fazer perecer maior numero de vitimas no decurso das viagens, para augmentar-lhes o valor, para desfalcar sensivelmente as rendas do estado, e para tornar mais geral a desmoralisação.163[Grifos meus]
É preciso lembrar que a receita gerada pelo tráfico de escravos sempre foi muito
lucrativa para o Estado. A escravidão, além de força de trabalho, era comercio rentoso e
envolvia muitos dos grandes comerciantes, conhecidos como “capitalistas”. No argumento
do redator do Jornal do Commercio, a lei anti-tráfico de 1831 não tinha inibido o comércio
e, além disso, contribuía apenas para “desfalcar sensivelmente as rendas do estado”. A
negociação referida pelo redator, trata-se da representação do Parlamento inglês recebida
pela Câmara dos Deputados, na sessão do dia 17 de Setembro, e encaminhada pelo ministro
da Justiça Manuel Alves Branco, assim como a resposta da Regência à mesma
representação. O ofício inglês declara estar ciente de que, mesmo após os inúmeros
tratados assinados entre Brasil e Inglaterra, o trafico de escravos prossegue
descaradamente. Aponta para uma necessidade de acordo entre o Brasil e demais países
americanos para o fim do tráfico e sugere então as seguintes medidas para que o fim desse
comércio seja efetivado:
1. Extensão do direito de busca por toda a costa occidental e oriental da África e da Ilha de Madagascar, e em tal distancia das costas que assegure a captura dos escravos; e hum acordo para que este direito de busca seja recíproco para todas as altas partes contractantes.
162 Carta assinada pelo “Justiceiro”. Jornal do Commercio, 01/04/1835. Op.cit. 163 Jornal do Commercio, 18/09/1835.
2. Que o direito de apprehensão se extenda ás embarcações equipadas para o fim do commercio do escravos, ainda que não tenham escravos a seu bordo. 3.Hum convenio para que todos os navios que assim forem condemnados pelos Juizes da Commissão mixta, sejão immediatamente desmanchados ou logo destruídos. 4.Huma estipulação para que o commercio dos escravos se declare pirataria.164
A Inglaterra parece determinada a lançar mão da reabertura do debate sobre o fim
do tráfico para avançar em relação às medidas cabíveis, cobrando do Governo brasileiro
concessões capazes de endurecer bastante as ações inglesas. É preciso ressaltar que a
reabertura desse debate teve como estopim o grande medo que aflora em 1835 a partir da
repercussão do levante Malê na Corte. O debate sobre o fim do tráfico ganha um aspecto
eminentemente político na medida em que inclui projetos de poder na discussão, com
distintas posições sobre a questão que estão atreladas a forças políticas no âmbito
parlamentar, mas que também possui aspecto diplomático e de política externa a partir do
momento em que a Inglaterra volta a tocar no tema da escravidão.
O pronunciamento da Regência - agora na voz do jovem monarca – é bastante vago: Resposta de Sua Magestade. (...)Podeis acreditar que eu participo da vossa magoa, em considerar que este nefando trafico ainda continua com extensão debaixo das bandeiras das Potencias Estrangeiras. Tratados addicionaes sobre objecto da extinção do trafico da escravatura, tem recentemente tido lugar entre mim e alguns Estados Estrangeiros acerca dos princípios recommendados na vossa supplica; e podeis confiar nos meus contínuos esforços para concluir com todos os meus alliados os arranjos necessários a por hum termo a esta bárbara política.165
Não faltaram desconfianças em relação a Inglaterra, desde a muito imbuída no fim
do tráfico. Talvez não seja exagero se falar em estado de paranóia, como denota uma
correspondência enviada no mesmo mês de setembro por um agente diplomático brasileiro
em Londres, segundo o qual membros de sociedades abolicionistas inglesas andavam
pregando a “liberdade dos escravos” em outros países. Tal funcionário temia que tais
agitadores ingleses, que pregavam o “haitianismo”, fossem mandados ao Brasil e terminava
por sugerir que o governo imperial infiltrasse espiões nessas sociedades abolicionistas166.
Não deixa de ser pitoresco imaginarmos um espião brasileiro na terra de Sir Conan Doyle e
164 Publicado no Jornal do Commercio, 17/09/1835. 165 Ibidem. 166 Fonte citada por João José Reis. Op. Cit. Ver: Antonio Paulino de Abreu para o chefe de polícia da Corte, 1.11.1835 e em anexo o “Estracto de hum ofício reservado sob número 5 e data de 2 de Setembro de 1835 do Agente diplomático do Brasil na Corte de Londres”,1.12.1835, ibid.,fl14v, que anexa carta denúncia, Arquivo Nacional, Correspondência reservada etc., cód334,fl. 10v.
de seu célebre personagem Sherlock Homes. Mas, para além do anedótico, não se sabe
quais foram os resultados de tal investigação ou mesmo se ela chegou a existir.
Entre a desconfiança e o apoio à ação inglesa de intervenção, a questão da vinda de
colonos como medida que visava resolver a situação de instabilidade e medo de levantes
futuros é cada vez mais presente. A 19 de Setembro é reproduzido no Jornal do Commercio
um artigo publicado no Aurora, jornal de Evaristo da Veiga, que defende a vinda de
colonos açorianos para trabalhar no Brasil.
No mesmo dia, o Senado recebe oficio do Ministro do Império enviando proposta
de Joaquim dos Ramos, Capitão do navio nacional Cezar, remetida à Comissão de
Comércio, Indústria e Artes. Na proposta, o capitão oferece seus serviços ao Estado
brasileiro para efetuar a vinda dos colonos chineses para substituírem a mão de obra
escrava para “acudir gradualmente ao progressivo desfalque” na população do Império,
“resultado forçoso da decretada abolição do commercio da escravatura”. Um dos efeitos
mais notórios da zona de tensão permanente nesse momento foi a retomada das discussões
sobre a lei anti-tráfico de 1831, e os debates sobre a necessidade de pô-la em prática ou
aboli-la. O próprio redator do Jornal do Commercio, que nesse ponto parecia concordar
com Feijó, defendia que a colonização deveria ser uma etapa anterior ao fim definitivo do
tráfico. Com a colonização proposta, não apenas o escravismo era prorrogado, mas também
o comércio de negros ganhava tempo, para continuar sustentando os interesses dos grandes
comerciantes de escravos.
Nesse ponto é possível perceber como as discussões que tem princípio no inicio de
fevereiro se desenvolveram através de algumas etapas. As notícias sobre o levante Malê,
que chegam como boatos, rapidamente tornam-se alarmistas. O medo de que um levante
do tipo baiano atinja o Rio de Janeiro faz aflorar “Gritos de Cassandra” na Assembléia
Provincial, que propõe severas medidas repressivas e culpa o negro como agente do perigo
iminente. Nesse momento surgem também interpretações com tonalidades
emancipacionistas, ainda que tímidas, culpabilizando a escravidão pelo estado geral de
insegurança. Essas duas diferentes leituras são possíveis devido a criação de uma atmosfera
geral de pânico, uma zona de tensão permanente.
Com efeitos heurísticos e políticos, o medo deixa marcas através de medidas
jurídicas e policiais, concebidas para sanar o medo e desarmar as ameaças. Leis como a
pena de morte, medidas como toque de recolher, castigos e perseguição serão os efeitos
mais diretos dessa zona de tensão. Mas, para além disso, o medo foi capaz de trazer
novamente a baila a discussão sobre o fim do tráfico, inclusive com novas pressões da
Inglaterra e novos pronunciamentos sobre a questão.
A saída retórica para tentar restaurar a segurança foi o incentivo à colonização.
Entretanto, essa saída parece servir apenas como paliativo para prolongar o máximo
possível uma situação que, apesar de causar medo e paranóia em grande parte da
população, atendia plenamente a maior parte dos interesses da elite envolvida no jogo
político Regencial: a conservação tanto da escravidão como de seu comércio.
No mesmo dia 19 de Setembro deliberou-se, na Câmara dos Deputados, o seguinte
projeto da “Commissão de commercio, Industria e Artes”: Art.1 O Governo fica autorizado para contactar com o Reverendo Antonio Fernando da Silveira, Deputado pela Província de Sergipe sobre o estabelecimento da companhia de Colonização, Agricultura e Mineração, por este proposta na sobredita Província.” Ainda segundo o projeto, serão consedidas à companhia 10 léguas de terras de cultura ou mineração, tendo de ser habitadas dentro de 5 anos por 60 casaes livres e que nem a companhia nem os colonos poderão usar trabalho escravo167. [Grifos meus]
. A colonização aqui proposta não está voltada para a grande lavoura mais sim para o
povoamento. Até a década de 1840 a colonização será voltada apenas para a agricultura de
subsistência não sendo aplicada à agro-exportação, que continuará sob o encargo exclusivo
da mão de obra escrava168. Lembremos que a primeira proposição a favor da colonização
como forma de erradicar paulatinamente a escravidão fora de Feijó, em artigo de 14 de
Fevereiro assinado como “Justiceiro”. É provável que essa proposta de Feijó tivesse sido
influenciada por uma literatura anterior que tratasse do assunto. Na revista da Sociedade
Auxiliadora da Industria Nacional saíra um artigo em 1834 de Carlos Augusto Taunay
sobre colonização169. A idéia não era exatamente nova.
A defesa da vinda de colonos europeus e da possibilidade de utilizar essa mão de
obra livre para substituir o trabalho escravo paulatinamente não é inédita no Brasil da 167 Apud. Jornal do Commercio,19/09/1835. 168 A experiência inaugural foi em São Paulo no final da década de 1840, na fazenda do Senador Nicolau Vergueiro. Ver: WITTER, José Sebastião. Ibicaba. Uma Experiência Pioneira.São Paulo: Arquivo do Estado, 1982. Até então a experiência com a imigração reduzira-se a fundação de colônias onde, em geral colonos suíços e alemães congregavam-se como pequenos produtores de gêneros para o abastecimento de cidades e vilas próximas. Ver: ARAÚJO, João Raymundo. Teia Serrana: formação histórica de Nova Friburgo. Rio de Janeiro: Editora Ao Livro Técnico, 2003. 169 Apud. SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 2ªed. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1977. p.146.
década de 1830. Existiu uma pequena tradição de propostas emancipacionistas no início do
século XIX, influenciada diretamente por idéias de “agricultura ilustrada”. De acordo com
essas idéias, a agricultura, principal fonte de riqueza do Brasil, era sistematicamente
prejudicada com o emprego da mão de obra escrava, posto que a técnica de plantio com
trabalho escravo era mais pobre e rudimentar, enquanto a mão de obra livre de
trabalhadores europeus tenderia a ser mais produtiva e engenhosa, usando técnicas
agrícolas mais modernas e gerando mais riquezas para o país. Há uma série de escritos
condenatórios do escravismo no Brasil publicados na década de 1810 e 1820, geralmente
ligados ao pensamento emancipacionista da ilustração européia170. Esses escritos seriam as
primeiras formulações no Brasil de uma crítica sistemática à escravidão, alguns deles
apontando diretamente para o Haiti como a grande catástrofe a ser evitada. As teses contra
o escravismo contidas nesses escritos parecem ter voltado à baila quando o levante de 1835
repercute na Corte gerando debates na imprensa e efeitos em várias esferas da sociedade.
Muitos dos membros da elite que se manifestam sob o efeito do medo em 1835 parecem ter
tido conhecimento desses escritos ou ter travado algum tipo de contato com eles, inclusive
o próprio Feijó, já que muito da argumentação crítica sobre a escravidão em 1835 contém
elementos de teses anteriores contra a escravidão.
Um exemplo válido é o do livro “Memórias sobre a necessidade de Abolir a
Introdução dos Escravos Africanos no Brasil” publicado em 1821 por João Severiano
Maciel da Costa, marquês de Queluz171. Este mineiro que governou a Guiana Francesa de
1809 a 1819 criticou não apenas o tráfico mas o próprio sistema escravista, responsável
segundo ele pela multiplicação de uma população heterogênea e “inimiga da classe livre”.
Além disso, o autor chamou atenção para o ocorrido no Haiti e já aconselhava a vinda de
colonos europeus. Outro documento que se insere nessa tradição emancipacionista é sem
dúvida a “Representação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do
170 Ver: AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra medo branco: o negro no imaginário das elites século XIX. 3ª Edição. São Paulo, Annablume, 2004. p.30-39 ; e ROCHA, Antonio Penalves. Idéias antiescravistas da Ilustração na sociedade escravista brasileira. Revista Brasileira de História.vol.20 n.39 São Paulo, 2000. ISSN 0102-0188 . 171 João Severiano Maciel da Costa, Memória sobre a Necessidade de Abolir a Introdução dos Escravos Africanos no Brasil; sobre o Modo e Condiçõis com que esta Abolição se Deve Fazer; e sobre os Meios de Remediar a Falta de Braços que ela Pode Ocasionar. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1821. P.12 Apud. AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Op.cit. 33.
Brasil sobre a Escravatura”172, encaminhada em 1823 por José Bonifácio, defendendo a
extinção lenta e gradual da escravidão. Bonifácio também defendia empecilhos ao comércio
de africanos e a integração do negro, transformando-o em trabalhador livre. Em 1826 outro
autor proporia também o fim gradual da escravidão. Em “Memória sobre a “Escravatura e
Projecto de Colonização dos Europeus e Pretos da África no Império do Brasil”173, José
Eloy Pessoa da Silva defende a tese de que a escravidão seria a grande causadora dos
maiores males do Brasil. Para o autor, nenhum bem poderia resultar da escravidão. Ele
também clamava pela urgente necessidade de cessar o tráfico. O escravo era visto como um
inimigo doméstico, capaz de disseminar a imoralidade e os vícios entre os branco,
degenerando as possibilidades civilizacionais do Brasil. O autor propunha a abolição
gradual do tráfico mediante a imigração de trabalhadores europeus e africanos. Esses
últimos, vindos da Costa Ocidental onde a Inglaterra estava a “civiliza-los”.
Nesses autores é recorrente a citação dos argumentos de pensadores como
Montesquieu e Adam Smith174. Montesquieu parece figura central da crítica iluminista a
escravidão e seus comentários aparecem de forma recorrente já que ele condenou a
escravidão sob o argumento de que era uma instituição incompatível com a moral e,
portanto, uma violação do direito natural, incoerente com o direito civil, inconciliável com
o cristianismo e possuindo um rendimento inferior ao do trabalho livre. Todos esses
elementos de crítica serão observáveis nesse primeiros autores brasileiros a criticar a
escravidão, como o exemplo de Severiano Maciel da Costa. A crítica de Montesquieu
também aparecerá no debate sobre a escravidão trazido à tona pelo medo que dominou
1835. Feijó, no artigo de 14 de Fevereiro, usará justamente a idéia de incompatibilidade da
escravidão com o cristianismo e com os princípios liberais para tecer suas críticas.
Outra matriz discursiva recorrente é Adam Smith, segundo o qual a administração
do escravo seria mais cara do que a do homem livre, pois com a escravidão não há 172 ANDRADA e SILVA, José Bonifácio de. Reprsentação a Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura. Rio de Janeiro: Cabral, 1840. Apud. AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Op.cit. 34. 173 SILVA, José Eloy Pessoa da. Memória sobre a Escravatura e Projeto de Colonização dos Europeus e Pretos da África no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Plancher, 1826. Apud. AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Op.cit. 36. 174 Num estudo bastante interessante sobre as fontes desses primeiros escritos de crítica à escravidão, Antonio Penalves Rocha mostra como os autores da Ilustração européia aparecem nesses textos. Ver:ROCHA, Antonio Penalves. Idéias antiescravistas da Ilustração na sociedade escravista brasileira. Revista Brasileira de História.vol.20 n.39 São Paulo, 2000. ISSN 0102-0188
frugalidade ou parcimônia. Para ele, os escravos raramente inventam máquinas e, além
disso, consomem o máximo e trabalham o mínimo possível.
A condenação da escravidão aparece como resultado de um processo de negação da
sua legitimidade, que em 1835 é profundamente influenciado pelo medo. Tal processo,
contudo, não nasceu em 1835, mas derivou de uma série de críticas sistemáticas ao sistema
escravista ocorridas no Brasil em anos anteriores e que tem suas raízes no pensamento
ilustrado. Na tradição desse pensamento antiescravista, para provar a ilegitimidade da
escravidão era necessário demonstrar que ela se opunha aos princípios do cristianismo,
representava uma ameaça ao Estado, era economicamente nociva e violava o direito
natural. Ou seja, era necessário desmontar a rede de idéias que colocavam a escravidão no
mesmo plano das demais instituições, naturalizando e legitimando sua prática. Para tanto
era preciso demonstrar que a escravidão era prejudicial e, portanto, deveria ser substituída
pelo trabalho livre.
Como aponta Antonio Penalves Rocha, a autoridade de Montesquieu como teórico
social é um dos grandes fatores que explica o sucesso de sua crítica, segundo a qual a
escravidão era uma ofensa ao Direito das Gentes, ao Direito Civil e ao Direito Natural175. O
mesmo vale para a crítica de Adam Smith, que a considerou como lesiva à economia ou a
de alguns filósofos franceses da Ilustração, que retrataram a escravidão como uma ameaça
ao Estado.
Já adaptadas ao tema do escravismo brasileiro pelos precursores desse
emancipacionismo retórico essas idéias reaparecem com toda a força em 1835 e ganham
enorme espaço na imprensa devido à zona de tensão que se forma nesse momento. A
reprodução das idéias da ilustração francesa pelos brasileiros ocorreu não somente em
relação às medidas para por fim a escravidão, mas está igualmente presente nas críticas à
escravidão enquanto instituição. Todo o arrazoado humanitário que se apresenta em 1835,
como a idéia de filantropia, parece ter sido originalmente formulado a partir das idéias de
Montesquieu.176
A questão da ameaça que a escravidão representa à segurança e à prosperidade do
Estado teria uma longa trajetória na história do antiescravismo francês. A referência à
revolta de S. Domingos nos textos desse emancipacionismo dos autores brasileiros da 175 Apud. ROCHA, Antonio Penalves. Op.cit. P.8. 176 Ver ROCHA, Antônio Penalves. Op. Cit. p.20.
década de 1810 e 1820 também é recorrente. Mais do que uma elite que temia a
"haitinização" do Brasil, essa referência aos "perigos" da escravidão, era apresentada como
uma conseqüência da situação do escravo. A idéia da ameaça de revoltas foi usada
constantemente para fins retóricos, com o objetivo de persuadir sobre a necessidade de
abolir, ou ao menos reformar a escravidão. Ao recorrer a esse assunto, os escritores
pareciam lançar mão do já falado efeito heurístico do medo, ou seja, mostrar através da
ameaça de futuras revoltas, a necessidade de reformas..
Para esse antiescravismo, o escravo era visto como um trabalhador ineficiente e
perigoso à ordem constituída. Ao contrário, o homem livre era idealizado como um
trabalhador diligente e cordato. Sendo assim, a idéia é que com o fim do tráfico e as
reformas da escravidão, será desencadeado um processo que garantiria o máximo de
benefícios para a elite. Para Antônio Rocha, a adoção dos princípios antiescravistas de
Montesquieu e Adam Smith pela maioria dos autores brasileiros que criticaram a
escravidão reside no fato de que esses princípios pareciam não exigir nenhuma mudança
mais profunda ou estrutural na sociedade, apenas reformas pontuais.
No entanto, a maior parte da elite brasileira parece não estar disposta a abrir mão do
trabalho escravo. Mesmo assim, o medo possibilitou alguns avanços, como as resoluções
mandadas ao Senado a 23 de Setembro pelo Conde de Lages:
Art.1- Findo o prazo de hum anno, não serão admitidos nem conservados escravos no serviço dos estabelecimentos nacionaes, salvo os de agricultura ou criação. Art.2 – O Governo fará substituir todos os annos a quinta parte, pelo menos, dos escravos ora empregados nos estabelecimentos nacionaes de aricultura e criação, por tantas pessoa livres quantas se julgarem necessárias a igual producto de trabalho, ficando no fim de cinco annos, ou antes se for possível, inteiramente excluído os escravos.177
O mesmo conde de Lages faz o seguinte requerimento:
Que o Senado convide o Governo a que preste a sua efficas cooperação de acordo com o Tutor de S.M. o Imperador , a darem as necessárias providencias , a fim de excluir com a brevidade possível os escravos do serviço do Paço Imperial e suas dependências, assim como dos estabelecimentos ruraes de propriedade da família Imperial, para serem substituídos por pessoas livres.178
177 Apud. Jornal do Commercio, 23/09/1835. 178 Apud. Jornal do Commercio, 23/09/1835.
Conquistas do medo? O desenrolar dos debates mostra que sim. Nesse mesmo dia o
Senado confere a insígnia de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro a Lourenço
Justiniano Jardim, comandante da Barca Maria Adelaide, “expedindo-se grátis o
competente diploma, e declarando-se ser hum testemunho de agradecimento nacional, por
ser o primeiro engajador, que em maior escala importou braços livres no Brazil”179. O
Estado parece tomar a dianteira do processo de incentivo a substituição da mão de obra
escrava pela livre. A substituição dos escravos a serviço do Paço por mão de obra livre ou o
incentivo a colonização movida por ações particulares isoladas eram medidas paliativas que
não buscavam resolver a causa da insegurança, mas sim mostrar que algo estava sendo
feito. Essas ações buscam restaurar a sensação de segurança a muito perdida na Corte
através de ações de Estado, mesmo que vagas e sem valor objetivo.
No dia 20 de Setembro é anunciada a morte do Regente Sr. João Bráulio Muniz. A
partir de então tem se discutido no parlamento o estado da Regência. Alguns políticos se
colocam a favor de uma substituição, outros se colocam a favor de que a Regência siga
como está, desfalcada de um membro enquanto os votos da eleição do Regente único não
forem apurados. A essa altura, a vitória de Feijó já é presumida, embora oficialmente ainda
não se tenha a apuração concluída. A vários meses resultados parciais tem sido divulgados,
geralmente com alguma vantagem para Feijó.
Nesse clima de instabilidade será aprovado em 1ª e 2ª discussão na Câmara dos
Deputados o projeto que declara D.Januaria como Princeza Imperial e, portanto, como
sucessora do Trono do Brasil. No mesmo dia, 1º de Outubro, foi lido um parecer da
“Commissão de Commercio, Industria e Artes” relativa a proposta do Capitão do Navio
Cezar, Joaquim dos Ramos, resolvendo autorizar a “contractar colonos chinas, artistas ou
jornaleiros; para o serviço dos Arsenaes, fabricas e estabelecimentos públicos, segundo a
necessidade dos mesmos estabelecimentos”. A 3 de Outubro é aprovada uma emenda
aditiva ao orçamento das ”Contas da Casa Imperial” que complementa o projeto aprovado
no senado, proposto pelo Conde de Lages, onde se manda libertar os escravos que serviam
a familia real:
O tutor de S.M.I. e Altezas fica autorizado a conceder alforria graciosa aos quatro escravos que a S.M.I carregarão em cadeirinha em sua convalescença; e bem assim a forriar todo aquelle que der em dinheiro o seu valor.
179 Ibidem.
Mais uma conquista do medo? Parece que sim, mas de qualquer forma apresentada como
medida “graciosa”. Talvez a alforria dos “quatro escravos que a S.M.I carregarão em
cadeirinha” fosse uma medida exemplar de incentivo, no entanto, no contexto do medo que
assolou 1835, ela parecia mais fruto do temor do que da graça.
Em 13 de Outubro é publicado um ofício do Ministro do Império acompanhando um
plano para atrair e estabelecer Colônias Estrangeiras no Brasil. Se de início duas
interpretações principais puderam ser distinguidas, agora as vozes parecem se afinar com a
melodia monótona que aponta para o tráfico como a grande ameaça. Entretanto, não é o fim
do tráfico o que as últimas medidas buscam e sim a vinda de colonos livres como etapa
anterior ao fim do tráfico. A solução final do problema foi projetada para um futuro
longínquo cuja única possibilidade de acesso é apresentada através da colonização. De fato
essa estratégia condiz com os interesses da elite política brasileira, concentrados na agro-
exportação que usa maciça mão de obra escrava e no lucrativo comércio de importação de
negros. Ou seja, o argumento da colonização é uma estratégia que usa a retórica da
mudança para nada mudar, alterando o mínimo possível as relações de produção na
sociedade brasileira do período.
Talvez o documento mais contundente a esse respeito seja o projeto de lei do
orçamento publicado no Jornal do Commercio. Esse projeto traz uma passagem sobre a
taxação de escravos, que foi objeto de intenso debate: Nas cidades da Bahia, Pernambuco, Maranhão e Rio de Janeiro – dous mil réis, e nas outras cidades e villas – mil réis.180
A proposta era que nos lugares onde a circulação de escravos era considerada mais
ameaçadora à ordem pública, ou onde os distúrbios e o medo de levantes eram mais
pungentes - como na Bahia e no Rio de Janeiro - o valor da taxação sobre os escravos fosse
mais elevado. Nas outras localizações, inclusive nas regiões interioranas, a taxação seria de
“mil réis”. Qual seria o sentido dessa diferenciação fiscal entre os escravos de diferentes
localizações? Sendo mais caros nas cidades sob a constante tensão do medo, era de se
esperar que seu custo elevado inibisse a aquisição de novos escravos, ou quem sabe até
180 Apud. Jornal do Commercio, 13/10/1835.
incentivassem o investimento em mão de obra livre. Depois de intensa discussão o projeto
foi modificado. A versão final foi a seguinte:
A taxa annual dos escravos fica reduzida a mil réis por cada escravo de qualquer sexo ou idade, possuídos nas cidades e villas.181 [Grifos meus]
A mudança na versão final do projeto traz a nítida constatação de que a disposição
da elite política de conduzir efetivamente o fim da escravidão era irrisória. Essa versão
representa uma redução à equânime taxação dos escravos, parecendo mais um incentivo a
sua compra do que qualquer outra coisa. Assim, o projeto final parece em contradição com
a crítica que vem sendo feita ao tráfico, já que ao diminuir a taxação de determinadas áreas
o governo torna o uso da mão de obra escrava ainda mais lucrativa nessas regiões. Ou seja,
embora a colonização seja idéia corrente e a crítica ao tráfico seja geral, nas medidas
práticas a elite política tende a conservar a escravidão. Embora no âmbito retórico se
critique o tráfico, serão aprovadas na lei do orçamento medidas fiscais que o incentivam.
Nesse momento, a Câmara dos Deputados e o Senado estão unidos para proceder a
contagem dos votos. A apuração é concluída a 10 de Outubro e Feijó é declarado o novo
Regente. A 16 de Outubro é aprovado o seguinte artigo para o orçamento:
Art.18 – As embarcações que conduzirem para os diversos portos do Brazil mais de cem colonos brancos, ficão isentos de pagar imposto de ancoragem, durante os dis de demora no porto.182[Grifos meus]
Assim acaba o ano legislativo de 1835, quando no dia 25 de Outubro são encerradas
as sessões da Assembléia Geral.
Logo em seguida, a 28 de Outubro é publicada pelo Jornal do Commercio a
declaração assinada por Feijó e seus ministros, prometendo respeitar as liberddes
provinciais, fruto da descentralização empreendida pelo Ato Adicional de 1834, e resolver
o questão da escravidão: [...] A prudente introdução de Colonos tornará desnecessária a escravatura, e com a extinção desta, muito lucrará a moral e a fortuna do Cidadão [...] 183 [Grifos meus]
181 Ibidem. 182 Apud. Jornal do Commercio, 17/10/1835. 183 Apud. Jornal do Commercio, 28/10/1835.
Entretanto, mais notícias sobre o medo que assola a Bahia chegam a 31 de Outubro,
quando o Vice presidente da Província ordena ao Juiz de paz do 1º Distrito do Curado da
Sé que “empregue todo o seu zelo para que sejão observadas as ordens acerca da Polícia
dos Africanos, não permitindo jamais que hajão ajuntamentos para dançar, ou batuques que
possão perturbar a paz publica(...)”. A atmosfera de medo paranóico parece ter um efeito
brutal, já que agora o refluxo de vigilância e disciplina sobre o escravo arrefeceu ainda mais
os laços que o atavam ao cativeiro, impedindo mesmo manifestações toleradas até então.
No entanto, o relato mais dramático sobre o medo seria a carta publicada no mesmo dia
pelo Jornal do Commercio:
Ainda estava reservado a noite de Sabbado 3 do corrente, e de certo não terá sido a ultima, se as nossas autoridades não mudarem do proposito para ser passada pelos habitantes da Capital desta Província em sobressaltos, sustos e terrores! Serião nove da noite , quando a cidade principiou a temer, lembrando-se dos acontecimentos da noite de 24 para 25 de Janeiro(...) Corria de boca em boca, que denuncia tinha aparecido de próxima insurreição de Africanos (...) Ora estas notícias que se espalhavão por entre a populção, quando huma parte já se approximava a procurar o descanço marcado pela natureza, quando já outra repousava no seio de suas famílias, e derramada, ora por terroristas de má fé, ora por pessoas verdadeiramente possuídas de susto, e assim a todos roubou o somno, a todos consternou, a todos pôz em sobressaltos, foi tudo huma consternação geral pelo receio de que taes scenas se reproduzissem; por isso que daqui dizião huns, - a denuncia he certificando que o rompimento deve ser feito esta noite; - d’ali dizia outro – hum dos negros dennunciantes, que he o escravo João dos C... afirma que elles tem em projecto irem-se reunir todos na Mata escura, para desse lugar darem princípio aos seus damnados planos; porém o que mais horror causou ás pessoas que pensão, era a lembrança do plano por elles traçado para a noite de 24 de Janeiro, que não tendo até então se arrojado, em nenhuma das antigas insurreições, deviam ter tomado outras precauções, e cheios de brutal vingança terião de fazer os mais horrorosos estragos [...] 184
O medo intenso de que um levante negro possa tomar novamente a cidade age sobre
a imaginação superestimando o poder de ação dos escravos e satanizando os africanos, que
tornam-se algo como forças da natureza, que espreitam a cidade e seus moradores, da
“Mata escura”, quase como se tratasse da força da barbárie que ameaça avançar sobre os
homens, como uma ameaça à civilização. Os africanos aparecem como seres diabólicos a
traçar seus “damnados planos”, cuja “brutal vingança” mais parece o temor de uma
possível desforra pelos séculos de cativeiro e maus tratos. O grande medo de 1835 é tão
poderoso que a zona de tensão que se constrói assume o caráter de afloramento de tensões
seculares características da relação senhor/escravo. Nesse sentido, é emblemático que os
brancos, “que pensão”, temam tão profundamente as “precauções” dos escravos.
184 Diário da Bahia, 06/10/1835. Apud. Jornal do Commercio, 31/10/1835.
Neste estado e nestas considerações passou a Capital da Bahia a assustadora noite de 3 de Outubro de 1835, até que sem que o somno pudesse se assenhorar daquellas pessoa a quem a noticia de taes circunstancias de perigo houve de chegar; tudo esteve vigilante, até que amanheceu o dia 4, sem que apparecesse a esperada e temida insurreição africana.185”
Velando a noite inteira a espera do levante como se fosse uma espécie de juízo final,
o pior nesse caso é a constante angustia pelo fim anunciado, pelo levante que deixa toda a
cidade vigilante mas não se efetiva. O autor da carta ainda emitirá seus lamúrios finais: Ó vergonha! Triste condição he a de hum paiz , onde as leis e as autoridades são zero, onde o crime triumpha sempre da virtude, da honra , do patriotismo, das leis, e de tudo quanto he caro á moral e á religião! Tal he em verdade o quadro que se nos apresenta [...]186
Essa é a imagem de profundo desespero que parece caracterizar a cidade de
Salvador. O Rio de Janeiro parece isolado pelo silêncio do Jornal do Commercio, já que a
repercussão dos boatos sobre a possibilidade de levantes na Corte não saem mais no jornal.
Entretanto, é preciso ressaltar que ,se o clima entre a população é tenso, também o deve ser
entre os africanos, já que o medo de insurreições acabou por lançá-los num regime de
controle total e violência indiscriminada.
No dia seguinte é publicada no Jornal do Commercio uma nota explicativa:
[...] Do que tem havido sobre denuncias , e que havemos obtido, he o seguinte pouco mais ou menos: - Que hum preto denunciou que outros o retiverão em huma casa á ladeira do Alvo, por espaço de quatro dias, e que tinhão por fim huma insurreição ma madrugada de Sabbado para Domingo 4 do corrente, e que havia duvida de ser nesse dia, porque alguns erão de opinião que fosse na quara feira desta semana; que na casa apontada achou-se cinco pretos reunidos, mas sem armamento; que hum preto que entrava na insurreição, dizendo porém que ella não era para agora, mas sim para a festa do Natal [...] 187
A 7 de Novembro é divulgado que Conselho da Sociedade Auxiliadora da Industria
Nacional resolveu, em sessão extraordinária, que fosse convocada a Assembléia Geral dos
Sócios para se discutir o projeto do Conde de Gestas de que a dita sociedade “se occupe de
prestar efficaz protecção aos colonos, que dos portos estrangeiros se dirigiram ao Brazil”.
Para tanto é proposta a criação de uma associação com o título de “Auxiliadora da
Emigração de Colonos Livres”, formada pelos membros da Sociedade Auxiliadora da
Indústria e “todos aquelles cidadãos que concordarem para tão importante empreza”. A
intercalação entre notas que dão visibilidade ao pânico que toma conta da Bahia e notícias 185 Ibidem. Apud. Jornal do Commercio, 31/10/1835. 186 Ibidem. Ibidem. 187 Diário da Bahia, 07/10/1835. Apud. Jornal do Commercio, 01/11/1835.
sobre medidas como a criação de uma sociedade auxiliadora da colonização, expõe a
desproporção entre o medo e as ações para contê-lo.
A 9 de Novembro é publicado um texto do Conselheiro Miguel Calmomn du Pin e
Almeida sobre o estabelecimento de uma Companhia de Colonização na Bahia.
Dous interesses igualmente poderosos, devem hoje excitar em todos os Bahianos o desejo de concorrer para o immediato estabelecimento da Companhia de que vou tratar: primeiro o de promover, mediante a introducção de braços livres e prestativos, o augmento da agricultura e industria, e o melhoramento da servidão domestica; segundo o de previnir com efficacia e evidente utilidade a funestra necessidade de Africanos , ou os effeitos ainda mais funestros da existência de tantos bárbaros neste abençoado paiz.(...) (...) julgo meu dever fallar nesta materia e escrever, insistir, teimar e bradar, até que a razão desperte os espíritos adormecidos pelo longo habito, e cale nos coroções daquelles que, á imitação da crianças, folgão e repousão tranquillos a borda de medonho precipício(...) (...)a última insurreição de Africanos , rompendo o véo da credulidade e indiferença, patenteou aos olhos de todos hum abismo insondável !..(...)” (...) permotta-se me que, por meio de cálculos mui triviaes, indique as vantagens immediatas do trabalho livre nos 3 ramos principaes do nosso actual serviço: domestico, fabril e agrícola. Suponha-se que hum homem servido por 2 escravos , pode sê-lo ainda melhor por hum criado O preço daquelles (vendidos para o trabalho forçado da Lavoura) posto na Caixa Econômica, dará certamente a renda precisa para a despeza da soldada; ficando o senhor na segura posse de hum capital que tinha grande risco(...) (...)Figure-se huma padaria servida por 8 escravos, podendo aliás ser bem trabalhada por 4 livres. O valor dos primeiros, empregado como no calculo antecedente, fornecerá talvez os jornaes dos segundos. (...) Dê-se, por fim, que hum lavrador possue a 2 ou mais fazendas, para as quaes já lhe faltem braços, como a muitos succede. Não fará elle bom negócio em reunir a escravatura em huma, por por sua conta, e entregar as outras a famílias ou companhias de Colonos, recebendo destas a metade, ou hum terço, ou hum quarto dos frutos? [...] 188
É importante ressaltar que a crítica de Adam Smith à escravidão, de que o trabalho
livre é mais produtivo e econômico, já é bastante difundida a ponto de ser considerada
senso-comum. Além disso, o conselheiro ressalta muito bem o efeito heurístico do medo, já
que teria sido “a última insurreição de Africanos” o fator capaz de romper o “véo da
credulidade e indiferença”.
O conselheiro apresenta também um prospecto, ou modelo de Companhia de
Colonização para a Bahia. No entanto, vale a pena ressaltar que se os escravos urbanos
fossem vendidos para dar lugar a colonos, certamente o seriam para a lavoura, como
sugeriu o conselheiro. Portanto, o ônus do fim da escravidão cairia de qualquer forma sobre
os grandes proprietários. No caso dos senhores rurais, com a abolição, seus lucros seriam
radicalmente reduzidos, já que além de perderem seu investimento inicial (os escravos!)
188 Apud. Jornal do Commercio, 07/11/1835.
também veriam seu lucro reduzido, pois teriam que repartir o produto final com os colonos,
com taxas que variavam da metade até um quarto, como indicou o conselheiro.
Enfim, o medo, apesar de avassalador, não foi capaz de gerar condições suficientes
para viabilizar a abolição da escravidão naquele momento. O medo não foi politicamente
mais potente do que as razões econômicas e históricas que fizeram da escravidão um das
grandes questões do século XIX.
A 17 de Dezembro é publicada a Ata da 1ª sessão, realizada na Corte, da Sociedade
Auxiliadora da Colonização, ramo da Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional voltada
para a colonização. Serão criadas comissões, estatutos, diretoria e todas as medidas
burocráticas cabíveis, mas que terão muito pouca influência sobre as discussões futuras
sobre a abolição da escravidão. A retórica dessa elite era composta de elementos que
apontavam para a necessidade da escravidão para legitimá-la. No entanto, a difusão da
crítica formal da escravidão pelo pensamento ilustrado fazia do escravismo algo
insustentável moralmente. Por isso no final de 1835 o incentivo à imigração mascara a
incapacidade da elite política de lidar com essa demanda da retórica liberal. A defesa da
vinda de imigrantes europeus a partir de 1835 foi apoiada pela elite conservadora e pelos
liberais moderados não como uma forma de acabar com a escravidão, mas sim como um
argumento pseudo-moral para perpetuá-la.
O ano de 1835 viu o medo espalhar-se como epidemia. No final do ano surgiram na
Corte informações enviadas de Minas Gerais contando que havia desconfiança de que os
“escravos queiram tentar um movimento insurrecional que se diz concertado para romper
nos dias santos do Natal”189. Haviam alguns rumores de que os escravos da Corte
programavam levantes articulados com escravos das áreas rurais. No entanto o Jornal do
Commercio não publica mais relatos sobre esses boatos e sobre o medo que circula pelas
ruas e becos da cidade do Rio de Janeiro. Como dito anteriormente, após um aviso emitido
pelo Ministro da Justiça que repreendia fortemente a Assembléia Provincial do Rio por suas
manifestações alarmistas, as notícias sobre o medo de levantes negros ficam isoladas ao
âmbito baiano. A percepção de que os “gritos de Cassandra” que se espalhavam pela Corte
eram profundamente prejudiciais ao comércio e desenvolvimento econômico da Corte
189Ofício do Ministro da Justiça enviado ao Chefe de Polícia da Corte, 11 de dezembro.1835, fl .13. AN, Códice 334. Apud. GOMES, Flávio dos Santos. Op. Cit. P.221.
também parece ter sido fator decisivo para o silêncio que a linha editorial do Jornal do
Commercio passou a infligir sobre as notícias da Corte.
No entanto, é sabido que o fim de 1835 foi marcado por intenso medo de
insurreições no Rio de Janeiro190. Em 25 de Janeiro de 1836, e portanto a exato um ano do
levante Malê, uma denuncia anônima será enviada ao governo regencial. A denuncia era de
que havia sido achado junto a um escravo um “papel que servia de plano para ensinar como
os pretos saberão juntar no dia 24 e 25 para começa a matança dos brancos e pardos”191.
Além disso a denúncia clamava providências das autoridades imperiais, acreditando que a
Corte seria vítima de uma “nuvem negra”. Outras denúncias revelavam haver um “cafre”
haitiano, “chamado Moiro”, a convidar os escravos de regiões como “Bananal, Areias,
Barra Mansa e São João Marcos para se insurgir”192. Essa nova onda de boatos que
circulou no início de 1836 reativa a zona de Tensão permanente que se cria em 1835 e terá
repercussões durante toda a segunda metade da década de trinta.
A própria onda de medo que recai sobre Vassouras em 1838, quando ocorre uma
sublevação de escravos com saques às propriedade, roubos de mantimentos e ferramentas,
parece diretamente ligada à zona de tensão permanente erigida em 1835. F.Gomes, que
estudou detalhadamente a insurreição de 1838, afirma: “Quanto aos acontecimentos de
1838, estavam ainda permeados pelos temores que tomaram conta da Corte e do interior
da província durante os anos de 1835 e 1836.”193
Com a Lei de 10 de Junho, onde a condenação e execução da pena de morte em
escravos tornou-se mais rápida e fácil, carrascos transitam de uma para outra cidade da
Província do Rio de Janeiro. As execuções eram tantas que as autoridades tiveram
dificuldades para encontrar quem se prestasse a servir de carrasco. Relatos mostram que a
ordem de “execute-se” por vezes os alcançava em meio caminho de volta para a Corte194.
As quantificações produzidas por Ribeiro sobre a execução de escravos apontam para a
temporalidade 1835-1841 como o momento de maior quantidade de condenações à pena
190 Ver GOMES, Flávio dos Santos. Ibidem. P.213-247 191 Apud. GOMES, Flávio dos Santos.Ibidem. 192Idem, Ibidem, p.218. 193 Idem, Ibidem, p.220. 194 Ver: RIBEIRO, João Luiz. No meio das galinhas as baratas não tem razão: a Lei de 10 de Junho de 1835: os escravos e a pena de morte no Império do Brasil: 1822-1889. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
capital. Foi durante a Regência e a Maioridade que o medo branco ajudou a produzir o
“grande tempo de execuções” do Império brasileiro195.
Além de efeitos jurídicos e policiais, o medo também produziu um efeito retórico
que aflorou ao fim do ano: a colonização posta como antídoto para revoltas futuras. Essa
solução é apresentada como capaz de resolver automaticamente o problema da insegurança,
como sugere Feijó em seu discurso de posse: “A prudente introdução de Colonos tornará
desnecessária a escravatura”196
Tais foram os efeitos do grande medo que varreu 1835 e teve implicações diretas
nos anos seguintes. O medo, por sua vez, é efeito do tipo de poder que permeia não apenas
a relação senhor/escravo, mas todos os âmbitos da sociedade onde hierarquias são
constantemente reafirmadas ou refundadas sob a violência e os interesses de uma minoria.
6 CONCLUSÃO
O medo é objetivado na medida em que é reunido em sua dispersão, tomado em seu
sentido coercitivo, mantenedor de hábitos e hierarquias. Como efeito de poder esse
sentimento ganha materialidade nos debates da imprensa, nos editais e medidas policiais
195Para quantificações e dados estatísticos ver: RIBEIRO, João Luiz. Ibidem. P.72- 92. 196 Apud. Jornal do Commercio, 28/10/1835.
disciplinares, no refinamento do aparato jurídico e nas políticas públicas de segurança. O
medo justifica ações reativas e dá embasamento ao discurso da “ordem”. Ele ordena porque
legitima a violência disciplinar e permite a organização de defesas para a manutenção das
coisas nos seus “devidos lugares”. Ele dirige-se, sobretudo, ao caos, à desordem, à barbárie,
à mudanças bruscas e violentas. Se o medo gera discursos – o discurso da retomada da
ordem, da conservação do patrimônio e dos privilégios, dos lugares de hierarquia e etc – é
porque ele próprio é fruto de uma lógica que também é materializada no discurso e que,
portanto, pode ser analisada através dessa materialidade. Assim, o medo aparece como uma
pista possível para o estudo das relações de força que se constroem no escravismo, e no
interior da própria elite política.
Ele produz efeitos e deixa marcas através de seu princípio heurístico e de sua
racionalização política. Esse efeito heurístico revela o medo em toda a sua positividade.
Assim como a noção de poder defendida por Foucault, o medo também produz saberes e
regimes de verdade. Em 1835 ele produzirá, sobretudo, interpretações e leituras dos
acontecimentos. Seja através do alarmismo trágico que nomeei cassandrismo ou do tímido
emancipacionismo dos liberais, a zona de tensão que se criou nesse ano conturbado
produziu debates que politizaram o medo, na busca por administrar seus efeitos.
A atmosfera de pânico que se constitui a partir da repercussão do levante Malê
ganhou alcance e aflorou no universo da palavra impressa. O período regencial representa
um grande crescimento no número de periódicos no Rio de Janeiro. É nesse momento
conturbado que se observa uma verdadeira explosão da palavra pública através de uma
enxurrada de impressos. Tratava-se então de uma dilatação da noção de espaço público e de
reconhecimento da expressão da palavra impressa como forma de ação política. A
associação entre imprensa e poder tornava-se explícita. Em 1835 o debate sobre a
escravidão inundará os jornais e os debates públicos, formando a tríade que compõe o pano
de fundo desse trabalho: imprensa, poder e escravidão.
A zona de tensão permanente que se constitui na Corte com a repercussão da revolta
baiana é formada pela conjunção de três elementos fundamentais: a ambiência de
instabilidade política e social pós-abdicação, o “fantasma” da revolta haitiana que
preocupava as elites desde o fim do século XVIII e a fissura na interdição sobre a
capacidade intelectual do negro. Esses três fatores combinados possibilitaram o
afloramento do pânico que caracteriza 1835 e a emergência do medo de levantes como
problema que irá mobilizar debates e práticas na Corte. Para analisar a escravidão a partir
da segunda metade da década de 1830, o ano de 1835 é peça-chave.
A chegada no Rio de Janeiro das notícias sobre o levante Male produz efeitos
imediatos. As primeiras marcas deixadas foram as medidas policiais de disciplinalização,
como o toque de recolher e o maior controle sobre a circulação de escravos pela cidade. Os
senhores, por sua vez, também passam a ser disciplinados pelo Estado através da
reatualização de editais que previam a punição para proprietários que não vigiassem ou
punissem seus escravos. A proibição de sociedades secretas com a presença de negros
reduziu ainda mais seus espaços de sociabilidade e o aumento de medidas cautelares contra
insurreições acabou sendo administrada politicamente para conter também dissidências
políticas.
Nesse sentido, a Lei de 10 de Junho de 1835 foi uma das formas de afloramento dos
medos latentes de revolta negra, uma vez que instituía a pena de morte específica para
escravos. A novidade dessa lei era que, diferente da pena descrita pelo Código do Processo
Criminal de 1832, ela não previa a possibilidade de recursos ou apelação. Assim, ficava
muito mais fácil a condenação e muito mais rápida a execução da pena capital para
escravos.
Ao fim do ano, a saída que apontava para colonização emerge como solução final
para o problema da escravidão, produzindo uma unidade discursiva, na medida em que
tornou-se unânime. Nenhuma voz será levantada contra a colonização. Como maneira de
reformar lentamente a escravidão, essa proposta imigrantista acaba por prolongar a prática
escravista e possibilitar a prorrogação de seu comércio. Apesar da crítica de vários
pensadores da ilustração, que eram estandartes do liberalismo, a elite brasileira combinou a
retórica da modernização e do reformismo com práticas assentadas em costumes
tradicionais, como no caso das relações que caracterizavam o escravismo.
A Regência foi um momento de reacomodações. O primeiro reinado é rompido no
sete de abril e tem como conseqüência direta a abdicação de D.Pedro I. Nesse momento de
embates, a “experiência republicana” do Ato adicional de 1834 dá, por fim, lugar ao
“regresso” rumo ao princípio monárquico que começa a se desenhar em 1837, com a saída
de Feijó.
A elite política, que assume o Estado brasileiro no Período Regencial, terá no medo de
revoltas e da anarquia, fortes motivações para a escolha do princípio monárquico em
detrimento da experiência republicana. Em 1840 o jovem monarca, receptáculo do Poder
Moderador, será conduzido pela elite a retomar a soberania do Executivo sobre o
Legislativo. É claro que não será uma monarquia absoluta o que se implantará com a
maioridade de D. Pedro II e sim uma Monarquia Constitucional. Essa elite aprendera com a
Abdicação de 1831 que embora o autoritarismo do primeiro monarca tivesse sido
prejudicial a seus interesses, a vacância do poder e a soberania do Parlamento não tinham
sido também salutares. Assim, o poder moderador nas mãos do novo monarca virá como
um dispositivo absolutista, uma ferramenta “leviatânica”, por assim dizer, mas sobretudo,
como uma espécie de garantia legal de proteção, um antídoto para possíveis problemas
futuros, um instrumento - que só um monarca poderia sustentar - contra o medo da anarquia
e da desordem.
REFERÊNCIAS
FONTES
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Jornal do Commercio. 1835 – 1836.
Jornal Pão d’Assucar. 1835.
Aurora Fluminense. 1835.
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