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Universidade do Estado de São Paulo.
Escola de Comunicações e Artes.
Departamento de artes Plásticas.
Orientadora: Prof. Dr Dália Rosenthal. CPF___________________
Assinatura:____________________
Bolsista: Alice Arida Moraes. CPF____________________
Assinatura:__________________
Ateliê Nossa Casa: uma experiência
transdisciplinar.
Relatório Final da Pesquisa de Iniciação Científica desenvolvida no curso
de graduação de Licenciatura em Artes Plásticas.
São Paulo, sexta-feira, 31 de agosto de 2012
2
Alice Arida Moraes
Ateliê Nossa Casa: uma experiência
transdisciplinar.
"O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Brasil".
São Paulo, sexta-feira, 31 de agosto de 2012
3
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO À PESQUISA----------------------------------------------------p.4
2. OBJETIVOS---------------------------------------------------------------------------p.5
3. TRANSDISCIPLINARIDADE----------------------------------------------------p.6
3.1 História e surgimento do termo Transdisciplinar
3.2 Monodisciplinaridade, Multidisciplinaridade,
Pluridisciplinaridade, Interdisiciplinaridade e transdisciplinaridade.
4. TRANSDISCIPLINARIDADE E ARTE---------------------------------------p.9
5. TEORIA DA COMPLEXIDADE E DA TRANSDISCIPLIDADE------p.11
6. METODOLOGIA --------------------------------------------------------------p.12
6.1 Pesquisa Documental--------------------------------------------------------p.12
6.2 Ateliê Nossa Casa------------------------------------------------------------p.21
6.3 Pesquisa-Ação ---------------------------------------------------------------p.22
7. RESULTADOS------------------------------------------------------------------ p.24
A casa
A Torre
A Bandeira
O Livro de Artista
O Jardim
8. O CAMINHO PARA AS CONCLUSÕES FINAIS----------------------p.45
8.1 Transitando no tempo
9. CONCLUSÕES----------------------------------------------------------------- p.52
10. ANEXOS
11. BIBLIOGRAFIA
4
1. INTRODUÇÃO À PESQUISA
A iniciação científica de tema “Prática Transdisciplinar na formação do
professor de Arte” deu-se a partir da minha participação, na qualidade de estudante de
licenciatura em Artes Plásticas em um ateliê de arte para crianças de 7 a 12 anos.
Situado no departamento de Artes Plásticas da ECA-USP, o ateliê, chamado Ateliê
Nossa Casa, desenvolveu-se dentro da disciplina “Metodologias do Ensino das Artes
Visuais IV” ministrada pela professora doutora Dália Rosenthal.
Essa mesma disciplina, destinada aos alunos que seguem formação em
licenciatura em diferentes áreas, é também ensinada por outros professores do
departamento de Artes Plásticas, os quais coordenam outros ateliês, cada um com uma
metodologia própria. O Ateliê Nossa Casa, distingue-se pela metodologia
transdisciplinar.
A metodologia transdisciplinar não havia sido estudada em nenhuma outra
disciplina acadêmica durante a minha graduação em Licenciatura em Artes Plásticas.
Tanto nas matérias obrigatórias do departamento de Artes Plásticas quanto nas
matérias obrigatórias da Faculdade de Educação, discutiram-se os aspectos históricos
da educação escolar e seu cenário atual, a partir de diferentes visões de intelectuais,
sociólogos, pedagogos, historiadores e psicólogos. No entanto, em em nenhuma delas
foi apresentada a visão científica de um autor transdisciplinar.
A pesquisa aqui apresentada é fruto de uma vivência individual e coletiva em
um ambiente cujo pensamento fluiu simultaneamente entre as disciplinas, através das
disciplinas e além de qualquer disciplina- parafraseando Basarab Nicolescu1, autor
que diz: “A transdisciplinaridade, como o prefixo “trans” indica, diz respeito àquilo
que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e
além de qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente, para o
qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento”.2
1 Basarab Nicolescu (nascido em 25 março 1942 ) é um físico francês, romeno e filósofo da França . Físico
teórico do Centro Nacional de la Recherche Scientifique ( CNRS ), da Universidade de Paris VI. Atualmente
professor na Babes-Bolyai de Cluj-Napoca .
2 (NICOLESCU, 1999)
5
2. Objetivos
O objetivo específico da pesquisa “Prática Transdisciplinar na Formação do
Professor de Arte” é exercer a reflexão, a investigação e a prática da metologia
transdisciplinar a partir de um estudo de caso, do Ateliê Nossa Casa.
O objetvo geral é compreender e identificar na metodologia transdisciplinar o
que diferencia-a das outras metodologias de ensino da Arte - como a
monodisciplinaridade, a multidisciplinaridade, a pluridisciplinaridade e a
interdisciplinaridade- e em que essa metodologia agrega na experiência de ensino e
aprendizagem artística.
6
3. TRANSDISCIPLINARIDADE
3.1 HISTÓRIA E SURGIMENTO DO TERMO TRANSDISCIPLINAR
A abordagem transdisciplinar é relativamente nova na história do conhecimento
humano. O termo foi usado pela primeira vez pelo filósofo e psicólogo suíço Jean
Piaget (1896-1980) no I seminário Internacional sobre pluri- e interdisciplinaridade,
na Universidade de Nice,na França, em 1970, quando o autor disse que "...à etapa das
relações interdisciplinares, podemos esperar ver sucedê-la uma etapa superior que
seria „transdisciplinar‟, que não se contentaria em encontrar integrações ou
reciprocidades entre pesquisas especializadas, mas situaria essas ligações no interior
de um sistema total, sem fronteira estável entre essas disciplinas".
Esse pensador estimulou a reflexão acerca de uma interação otimizada entre as
diversas áreas do saber, chamadas disciplinas, sem que estas perdessem suas
especificidades.
A transdisciplinaridade tem sua origem no teorema de Gödel, autor que, em
1931, propôs distinguir vários níveis de realidade, e não apenas um nível, como
entende o dogma da lógica clássica. Com a comprovação na física quântica, tal
proposição provocou um escândalo quando demonstrou que o quantum é composto
simultaneamente de ondas e corpúsculos, e que, no nível do quantum a contradição
entre onda e corpúsculo desaparece, constituindo uma unidade. A partir dessa
descoberta, a lógica clássica entra em crise, abalada em seu fundamento centrado na
não contradição.
A transdisciplinaridade propõe-se a transcender a lógica clássica, a lógica do
“sim” ou “não”, do “é” ou “não é”, segundo a qual não cabem definições como “mais
ou menos” ou “aproximadamente”, expressões que ficam “entre linhas divisórias” e
“além das linhas divisórias”, considerando-se que há um terceiro termo no qual “é” se
une ao “não é”. E o que parecia contraditório em um nível da realidade, no outro, não
é. Implica uma colaboração para um saber comum, o mais completo possível, sem que
necessariamente se crie ou se refira a uma disciplina única. Quando falamos de
transdisciplinaridade estamos colocando em evidência uma nova atitude perante o
saber e um novo modo de ser.
7
A transdisciplinaridade é considerada inovadora por não ser pensada como uma
hiperdisciplina superior às outras, mas sim complementar à elas (como à pluri, à inter
e também à mono disciplina).
8
3.2 MONODISCIPLINARIDADE, MULTIDISCIPLINARIDADE E
INTERDISICIPLINARIDADE.
Para esclarecer bem o significado do conceito de transdisciplinaridade, é importante
diferenciá-la de outras metodologias com as quais é frequentemente confundida.
Apresento de forma sintética o que cada uma pretende.
MONODISCIPLINARIDADE:
A monodisciplinaridade limita-se ao ensino de um campo específico do
conhecimento, de acordo com seus próprios antecedentes de educação, treinamento,
procedimentos e conteúdos. No campo das Artes Visuais isso significaria ensinar
somente História da Arte, ou ainda, somente um período delimitado da História da
Arte, que implicaria em subdivisões da disciplina em outras mais específicas, como
por exemplo, História da Arte na Idade Média na Europa, História da Arte
Renascentista Italiana, História da Arte Moderna nos Estados Unidos da América etc.
MULTIDISCIPLINARIDADE:
Ocorre quando para a solução de um problema é necessário obter informação
de outra área envolvida, sem que as disciplinas relacionadas com o processo sejam
modificadas ou enriquecidas. Ocorre, segundo Piaget, quando “a solução de um
problema torna necessário obter informação de duas ou mais ci ncias ou setores do
conhecimento sem que as disciplinas envolvidas no processo sejam elas mesmas
modificadas ou enriquecidas”.
INTERDISCIPLINARIDADE:
Se entende quando disciplinas marcadamente diferentes, trocam interações
reais, devido a uma certa reciprocidade no intercâmbio, o que acaba produzindo um
enriquecimento mútuo. A interdisciplinaridade supõe um diálogo e uma troca de
conhecimentos, de análises, de métodos entre duas ou mais disciplinas. Ela implica
que haja interações e um enriquecimento mútuo entre vários especialistas. A
especificidade está marcada no prefixo inter-, que é uma preposição e um provérbio
latino que significa “no interior de dois; entre; no espaço de”. É o prefixo de palavras
como interlocução, interrelação, intermédio, intercâmbio.
9
Segundo Piaget, o termo interdisciplinaridade deve ser reservado para designar “o
nível em que a interação entre várias disciplinas ou setores heterogêneos de uma
mesma ciência conduz a interações reais, a uma certa reciprocidade no intercâmbio
levando a um enriquecimento m tuo”3.
4. TRANSDISCIPLINARIDADE E ARTE
Cada pessoa, idealmente da infância à velhice, busca ocupações para o dia-a-
dia que serão realizadas pelo seu corpo e pelo seu intelecto em alguma forma de
trabalho. A arte é um território fértil para que cada indivíduo, em sua singularidade e
liberdade, possa expressar sua visão de mundo.
A profissão de professor, especificamente de Arte, implica em uma necessidade
constante de readequação do conteúdo a ser ensinado, como do próprio caminho, ou
método, pelo qual se ensina. É nesse caminho que entra a transdisciplinaridade, como
um percurso de vias múltiplas, num solo irrigado e em constante transformação.
Se pensarmos na pluralidade da Arte Contemporânea e nos vários materiais,
espaços, suportes, linguagens e mídias utilizadas e inventadas pelos artistas para
realizarem suas criações, nada me parece mais coerente do que o próprio ensino da arte
ser, desde os primeiros anos na escola, ensinado de forma abrangente e
transformadora, exigindo dos professores e alunos uma postura de acordo com um
mundo em constante transformação.
“É evidente que toda mudança nos traz medo, mas é preciso ousadia para
construir o novo e são as práticas educativas que vão demonstrar essas possibilidades
de mudanças”4
Acredito que seja importante fazer uma observação sobre o pensamento e a
metodologia transdisciplinar, para que esta não seja interpretada como uma fórmula
pronta para ser aplicada na sala de aula, mas sim compreendida como uma
3 (in: COMPLEXIDADE E TRANSDISCIPLINARIDADE: UMA ABORDAGEM MULTIDIMENSIONAL DO
SETOR SAÚDE, Mário Chaves)
4(in: Educação Cidadão, Educação Integral, Ângela Antunes e Paulo Roberto Padilha)
10
multiplicidade infinita de novas formulações, com diferentes componentes que
descortinam o conhecimento .
O pensamento transdisciplinar não exclui a singularidade das disciplinas e
tampouco pretende contemplar todas elas: “ A transdisciplinaridade é complementar da
aproximação disciplinar, ela faz emergir da confrontação das disciplinas novos dados
que as articulam entre si e que nos dão uma nova visão da realidade. A
Transdisciplinaridade não procura a dominação de várias disciplinas mas a abertura de
todas as disciplinas ao que as atravessa e as ultrapassa5”.
5 (CARTA DA TRANSDISCIPLINARIDADE, Artigo 3)
11
5. A TEORIA DA COMPLEXIDADE E TRANSDISCIPLINARIDADE
A teoria da complexidade e transdisciplinaridade surge em decorrência do
avanço do conhecimento e do desafio que a globalidade coloca para o século XXI.
Seus conceitos contrapõem-se aos princípios cartesianos de fragmentação do
conhecimento e ao modo de pensamento dicotômico da realidade (sujeito-objeto,
parte-todo, razão-emoção etc) proveniente da visão difundida por René Descartes no
século XVII . Descartes propôs chegar à verdade através da dúvida sistemática e da
decomposição do problema em pequenas partes, características que definiram a base
da pesquisa científica. A idéia é de que compreendendo-se os sistemas mais simples,
gradualmente se incorporem mais e mais variáveis, em busca da descrição do todo.
Pensa-se nas partes de um sistema qualquer, não no todo.
Não apenas recentemente a metodologia científica tem sido alvo de inúmeros
debates de ordem filosófica, criticada por vários pensadores contrários ao pensamento
cartesiano. Dentre estas críticas, estão as elaboradas pelo filósofo francês Edgar Morin
que propõe, no lugar da divisão do objeto de pesquisa em partes, uma visão sistêmica,
do todo. “Na visão clássica do mundo, a articulação das disciplinas era considerada
piramidal, sendo a base da pirâmide representada pela física. A complexidade
pulveriza literalmente esta pirâmide provocando um verdadeiro big-bang disciplinar6”
Esse novo paradigma é chamado de Teoria da Complexidade. Embora tal
paradigma não implique a rigor na nulidade do método científico em sua forma geral,
ele propõe uma nova forma de aplicá-lo no que se refere tanto às particularidades de
cada área quanto ao objetivo de compreender a realidade na melhor forma possível. A
teoria da complexidade e a transdisciplinaridade propõem outra forma de pensar os
problemas contemporâneos, marcada pela articulação.
6 (Basarab Nicolescu in: O MANIFESTO DA TRANSDISCIPLINARIDADE, 1999)
12
6. METODOLOGIA
6.1 PESQUISA DOCUMENTAL
Figura 1: Fotografia tirada de documentos e referências bibliográficas da pesquisa.
Principais autores e textos que nortearam a pesquisa:
UBIRATAN D´AMBRÓSIO
Dentre os autores nacionais que nortearam esta pesquisa do começo ao fim,
destaco o Professor Doutor Ubiratan D´Ambrósio7. Reconhecendo as dimensões
sensorial, intuitiva, emocional e racional do conhecimento, o autor trata a
7 Ubiratan D´Ambrósio, figura atuante principalmente nos seguintes temas: História e Filosofia
da Matemática, História e Filosofia das Ciências, Etnomatemática, Etnociência, Educação Matemática e
Estudos Transdisciplinares.
13
transdisciplinaridade como um enfoque holístico do conhecimento, recuperando essas
dimensões na compreensão do mundo em sua integridade.
Inquieto frente ao papel da escola e da universidade na formação das novas
gerações, Ubiratan D´Ambrósio escreveu o livro Transdisciplinaridade, publicado pela
Editora Palas Athena em 1997. Deste livro, cito um trecho extraído da página nove, o
qual foi o começo da minha compreensão sobre a transdisciplinaridade:
“A transdisciplinaridade não constitui uma nova filosofia. Nem uma nova
metafísica. Nem uma ciência das ciências e muito menos, como alguns dizem, uma
nova postura religiosa.... Repousa sobre uma atitude aberta, de respeito mútuo e
humildade em relação a mitos, religiões, sistemas de explicações e conhecimento,
rejeitando qualquer tipo de arrogância ou prepotência. Na sua essência, a
transdisciplinaridade é transcultural. As reflexões transdisciplinares navegam por
idéias vindas de todas as regiões do planeta, de tradições culturais diferentes.
Repousam sobre as idéias de indivíduos de formação e experiências profissionais as
mais diversas. A essência de sua mensagem é o reconhecimento de que a atual
proliferação das disciplinas e especialidades, acadêmicas e não acadêmicas, conduz
a um crescimento incontestável do poder associado a detentores desses
conhecimentos fragmentados. Essa fragmentação agrava a crescente inequidade
entre indivíduos, comunidades, nações e países. Além disso, a transdisciplinaridade
entende que o conhecimento fragmentado dificilmente poderá dar a seus detentores
a capacidade de reconhecer e enfrentar as situações novas, que emergem de um
mundo a cuja complexidade natural acrescenta-se a complexidade resultante desse
próprio conhecimento- transformado em ação- incorpora novos fatos à realidade,
através da tecnologia”8
Seguindo o mesmo livro, que tem uma estrutura não linear, definida pelo seu autor-
“Este livro não é linear. As partes foram escritas em momentos diversos, sob
motivações diversas. É o mais próximo, escrito, a um estilo de pensamento não linear.
Assim, são inevitáveis algumas repetições”,-Ubiratan D´Ambrósio discorre sobre a
relação do homem com o conhecimento. Examina-a sobre o ponto de vista do poder e
do acúmulo que o conhecimento representa em nossa existência, podendo ser positivo
(e aqui acrescento, promissor),- ou negativo (e mais uma vez coloco-me: destruidor,
como uma bomba).
8 D´AMBRÓSIO, Ubiratan.In Transdisciplinaridade. Ed Palas Athena, 1991Pág. 9
14
Segundo este autor, não basta que se acumule saberes cada vez mais detalhados
e minuciosos, pois uma vez que perdemos a visão do todo, perdemos a possibilidade de
vivermos integrados na totalidade cósmica, da qual somos e sempre seremos parte.
Ubiratan sugere que comecemos a nos integrar “na totalidade cósmica por etapas, a
começar pela nossa integração pessoal, como indivíduos. Mente e corpo, consciente e
inconsciente, naterial e espititual…9”
Da mesma forma que buscamos nossa integração individual, buscamos
integração na sociedade e como etapa seguinte a integração da humanidade como um
todo- nosso planeta.
O respeito pelo diferente, a solidariedade para com o outro, a cooperação do
patrimônio comum, são valores da transdisciplinaridade que devem estar sempre
presentes na forma de pensar de um sujeito.
“Eliminar a arrogância, a inveja e a prepotência, adotando em seu lugar o
respeito, a solidariedade, a cooperação, é o objetivo maior da
transdiciplinaridade. Nossa missão é nada mais nada menos que propor um
pacto moral entre todas as pessoas interessadas numa nova perspectiva de
futuro para a humanidade. A base dessa perspectiva é a identificação do
muito que pode ser ainda transformado10 ”.
Com as ideias de Ubiratan D´Ambrósio em vista, desenvolvemos propostas no
ateliê que refletiam essa horizontalidade dos saberes de diferentes culturas e pessoas.
Propusemos exercícios que exigiram dos alunos um olhar do interior para o exterior e
do exterior para o interior, em concomitância. Exercícios que demandaram soluções
individuais e coletivas para seu desenvolvimento, de maneira orgânica. Todas as
atividades desenvolvidas no ateliê tiveram, em sua essência e processo, a integração do
indivíduo com seu entorno, ou seja, a reintegração das partes com o todo.
9 D´AMBRÓSIO, Ubiratan.In Transdisciplinaridade. Ed Palas Athena, 1991Pág. 11
10 D´AMBRÓSIO, Ubiratan.In Transdisciplinaridade. Ed Palas Athena, 1991Pág. 14
15
MOACIR GADOTTI
Figura 2: Aluna pintando uma árvore imaginária, durante uma aula no Ateliê Nossa Casa.
Outro autor de extrema importância para a pesquisa foi Moacir Gadotti11. No livro A
Carta da Terra na Educação, publicado pela Editora e Livraria Instituto Paulo Freire
em 2010, o autor aborda temas como:
1) a educação integral (aquela que forma o ser humano em sua integralidade e para a
sua emancipação, respeitando suas múltiplas dimensões e atendendo suas necessidades
educativas durante o processo formativo e em sua interação com a escola e
comunidade);
2) a ecopedagogia;
3) a educação e cidadania planetária para a paz;
11 Moacir Gadotti, Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Genebra, professor de Filosofia
da Educação da Universidade de São Paulo, diretor do Instituto Paulo Freire e autor de diversas publicações em que
desenvolve uma proposta educacional de formação crítica do educador em relação aos problemas do planeta.
16
4) o equilíbrio dinâmico do ser humano e natureza;
5) a necessidade de revisão de currículos escolares e
6) uma reorientação de nossa visão de mundo da educação.
Na busca por um espaço educativo para a libertação, a reflexão e a ação, A
Carta da Terra na Educação é um documento referencial para aqueles que buscam
uma vida de respeito ao próximo, a si e ao meio ambiente . Todas as aulas do ateliê
desenvolveram-se tendo a natureza e o indivíduo integrados, de modo a despertar em
cada um a sensação de pertencimento e uma consciência ambiental, como sugere o
autor.
BASARAB NICOLESCU
Dentre os os autores internacionais que mais contribuiram para esta pesquisa,
está Basarab Nicolescu12. Na última década, Basarab Nicolescu tem produzido
diversos textos que procuram desvendar as relações entre arte, ciência e tradição,
propondo novos modelos de pensamento que possam resgatar à cultura e à sociedade
um ser humano mais completo, capaz de enfrentar os desafios da complexidade - a
intrincada teia de relações entre conhecimentos, disciplinas e sistemas que carateriza o
mundo contemporâneo.
12 (25 de março de 1942), físico romeno, presidente do CIRET, Centro Internacional de Pesquisas
e Estudos Transdisciplinares, fundado na França em 1987.
17
O MANIFESTO DA TRANSDISCIPLINARIDADE
Figura 3: fotografia do texto "O Manifesto da Transdisciplinaridade"
“O Manifesto da Transdisciplinaridade”, escrito pelo autor em 2001, revela um
pensamento crítico em relação ao presente, assim como uma frustração em relação às
duas chamadas “revoluções” que atravessaram o século- a revolução quântica e a
revolução informática- mas que em nada apaziguaram nossas vidas ou mudaram de
fato nossas visões do mundo.
“Como se explica que quanto mais sabemos do que somos feitos, menos
compreendemos quem somos? Como se explica que quanto mais conheçamos o universo
exterior, mais o sentido de nossa vida e de nossa morte seja deixado de lado como
insignificante e até absurdo? A atrofia do ser interior seria o preço a ser pago pelo
conhecimento científico? A felicidade individual e social, que o cientificismo nos
prometia, afasta-se indefinidamente como uma miragem”
É notório que o ser humano se desenvolve e se transforma através do
conhecimento científico. Grande parte das diferenças entre as culturas reside na
maneira pela qual enfrentam as dificuldades impostas pela vida ou lutam pela
sobrevivência. A busca por soluções inteligentes para solucionar problemas de ordem
prática e concreta, que tornam a práxis do dia-a-dia menos penosa como- a criação de
um sistema de distribuição de água em uma cidade ao invés de uma busca diária
individual e incerta, a construção de uma moradia que proteja seus habitantes das
intempéries, a descoberta de um remédio que sane a dor ou cure uma doença-, são
exemplos muito básicos, se comparados aos avanços científicos e tecnológicos do
18
mundo contemporâneo, mas que ainda assim, são critérios relevantes para que se
considere uma sociedade mais ou menos desenvolvida que outra. No entanto, mesmo
na sociedade mais desenvolvida, as questões existenciais individuais e as angústias
coletivas continuam existindo e sendo quase sempre as mesmas.
“No plano espiritual, as consequ ncias do cientificismo também foram consideráveis. A
objetividade, instituída como critério supremo de verdade, teve uma consequência
inevitável: a transformação do sujeito em objeto. A morte do homem, que anuncia outras
tantas mortes, é o preço a pagar por um conhecimento objetivo... No fundo, além da
imensa esperança que suscitou, o cientificismo nos legou uma ideia persistente e tenaz:
a da existência de um único nível da Realidade, no qual a única verticalidade concebível
é a da pessoa ereta numa Terra regida pela lei da gravidade universal”13
O autor, que opõe-se à ideia “persistente e tenaz” do legado cientificista de
existência de uma única realidade, propõe uma nova visão de mundo, a qual tem na
física quântica seu despertar, com a descoberta de Plank14.
A CARTA DA TRANSDISCIPLINARIDADE
Em 1994, realizou-se o “I Congresso Mundial de Transdisciplinaridade”, no Convento
de Arrábida, em Portugal. Por ocasião deste evento foi redigida por Edgar Morin,
Lima de Freitas e Basarab Nicolescu a “Carta da Transdisciplinaridade”, assinada por
62 participantes, de 14 países. Essa carta traz uma série de considerações que
registram a urgência de se pensar em um sistema de ensino abrangente e livre de
preconceitos em relação a determinadas áreas do conhecimento. Na sequência dessas
considerações, são postulados 14 artigos (dentre os quais destaco aqueles que
considero mais conectados à esta pesquisa*) e um “Artigo Final” que determina:
13 NICOLESCU, O Manifesto da Transdisciplinaridade, p.4
14 Plank. Max Karl Ernst Ludwing Plank. (23 de abril de 1858 – 4 de outubro de 1947), físico
alemão, considerado o pai da física quântica foi responsável pela descoberta da descontinuidade da
energia, contrariando a ideia de continuidade na qual se fundamenta a física clássica.
19
A presente Carta Transdisciplinar foi adotada pelos participantes do Primeiro Congresso
Mundial de Transdisciplinaridade, que não reinvindicam nenhuma outra autoridade
exceto a do seu próprio trabalho e de sua própria atividade. Segundo os processos que
serão definidos de acordo com as mentes transdisciplinares de todos os países, esta
Carta está aberta à assinatura de qualquer ser humano interessado em promover
nacional, internacional e transnacional as medidas progressistas para a aplicação destes
artigos na vida cotidiana (2002: 192).
*Artigos destacados:
Artigo 1
Toda e qualquer tentativa de reduzir o ser humano a uma definição e de dissolvê-lo no
meio de estruturas formais, sejam quais forem, é incompatível com a visão
transdisciplinar.
Artigo 3
A transdisciplinaridade é complementar à abordagem disciplinar; ela faz emergir novos
dados a partir da confrontação das disciplinas que os articulam entre si; oferece-nos
uma nova visão da natureza da realidade. A transdisciplinaridade não procura a mestria
de várias disciplinas, mas a abertura de todas as disciplinas ao que as une e as
ultrapassa.
Artigo 4
A pedra angular da transdisciplinaridade reside na unificação semântica e operativa das
acepções através e além das disciplinas. Ela pressupõe uma racionalidade aberta a um
novo olhar sobre a relatividade das noções de "definição" e de "objetividade". O
formalismo excessivo, a rigidez das definições e a absolutização da objetividade,
incluindo-se a exclusão do sujeito, conduzem ao empobrecimento.
Artigo 8
A dignidade do ser humano também é de ordem cósmica e planetária. O aparecimento
do ser humano na Terra é uma das etapas da história do universo. O reconhecimento da
Terra como pátria é um dos imperativos da transdisciplinaridade. Todo ser humano tem
direito a uma nacionalidade; mas com o título de habitante da Terra, ele é ao mesmo
20
tempo um ser transnacional. O reconhecimento, pelo direito internacional, dessa dupla
condição - pertencer a uma nação e à Terra - constitui um dos objetivos da pesquisa
transdisplinar.
Artigo 11
Uma educação autêntica não pode privilegiar a abstração no conhecimento. Ela deve
ensinar a contextualizar, concretizar e globalizar. A educação transdisciplinar reavalia o
papel da intuição, do imaginário, da sensibilidade e do corpo na transmissão do
conhecimento.
Artigo 13
A ética transdisciplinar recusa toda e qualquer atitude que rejeite o diálogo e a
discussão, qualquer que seja a sua origem - de ordem ideológica, científica, religiosa,
econômica, política, filosófica. O saber compartilhado deve levar a uma compreensão
compartilhada, fundamentada no respeito absoluto às alteridades unidas pela vida
comum numa só e mesma Terra.
Artigo 14
Rigor, abertura e tolerância são as características fundamentais da visão
transdisciplinar. O rigor da argumentação que leva em conta todos os dados é o agente
protetor contra todos os possíveis desvios. A abertura pressupõe a aceitação do
desconhecido, do inesperado e do imprevisível. A tolerância é o reconhecimento do
direito a idéias e verdades diferentes das nossas.
21
6.2 ATELIÊ NOSSA CASA
O Ateliê Nossa Casa propõe-se a ensinar Arte não somente através do viés da
História da Arte e da aprendizagem de técnicas artísticas milenares. Através de
propostas que tem elementos simples e tangíveis como ponto de partida- uma casa,
uma árvore, uma torre, um jardim-, busca-se trabalhar a dimensão simbólica do sujeito
e do seu entorno. Exercita-se um pensamento complexo, que integra saberes e
discursos de diferentes disiciplinas (escolares e acadêmicas), de modo que a
complexidade do mundo não seja encarada como um problema, mas como parte da
vida.
Além disso, permite que alunos de graduação e pós graduação tenham a
possibilidade de por em prática um pensamento e olhar que não hierarquiza tempos e
tampouco culturas como sendo soberanas. Permite-se igualmente que, alunos de
diferentes escolas de São Paulo, de 7 a 12 anos de idade, possam experimentar um
espaço de conhecimento que é múltiplo, que visa a unidade do conhecimento e não
fica restrito ao currículo de uma disciplina de Arte.
Assim, os alunos que pretendem lecionar Arte após a graduação, podem tanto ampliar
o olhar em relação a uma nova metodologia de ensino da Arte, quanto exercitar e
colocar em prática suas propostas e valores nas aulas do ateliê.
A prática transdisciplinar permite que cada aluno,como indivíduo e sujeito que
pensa e atua no mundo, busque a sua melhor forma de expressão. O que propõe-se,
mas não impõe-se, é a integração entre o Ensino das Artes (através do qual procura-se
exercitar a manifestação da parte sensível do indivíduo no fazer artístico), a Educação
Ambiental (da qual surge a consciência da importância da comunhão entre o sujeito e a
natureza) e a Cultura de Paz (refletida na busca por um diálogo que aceite e acolha as
diferenças entre discursos, formas e ideias sem tolher o sujeito).
A transdisciplinaridade é uma abordagem científica que visa a unidade do
conhecimento. Desta forma, procuramos estimular uma nova compreensão da
realidade articulando nas propostas elementos que passavam entre, além e através das
disciplinas, numa busca de compreensão da complexidade inerente à realidade.
Tendo em vista o pensamento de Edgar Morin já mencionado na parte
documental, guiamos-nos pela ideia de um pensamento ordenador, que está por trás de
toda prática transdisciplinar., que articula entre os diferentes saberes novos
22
conhecimentos, capazes de nos dar uma nova visão da natureza e da realidade. Essa
busca esteve presente durante todas as aulas do ateliê.
23
6.3 PESQUISA-AÇÃO
Assim que comecei a pesquisa sobre a “A prática transdisciplinar na formação
do professor de Arte”, comecei também a participar das aulas do ateliê Nossa Casa, às
terças feiras à tarde, no departamento de Artes Plásticas da USP. Como era o começo
do semestre e as aulas já haviam começado no ateliê, não participei em um primeiro
momento da elaboração das propostas e do cronograma das aulas. Observava as
atividades realizadas pelos alunos, fazendo registros escritos, fotográficos e
videográficos durante a aula. Prestava atenção em cada detalhe, em como estava
organizado o espaço do ateliê, em como era a interação dos alunos com as professoras,
como era a interação entre eles, como desenvolviam os trabalhos, como recebiam as
informações que a eles chegavam. Enfim, agia naquele momento como uma
observadora discreta, sem intervir no processo de criação dos alunos.
A compreensão do mundo contemporâneo e do espaço que nele ocupamos, foi
um dos desafios imperantes durante todo o tempo da pesquisa. A abordagem da Arte
que fizemos ao longo de um ano dentro do Ateliê Nossa Casa foi diversificada em
temas, técnicas, propostas e no tempo de realização de cada tarefa. Valorizamos os
processos de aprendizagem e os desdobramentos de cada proposta igualmente, tanto no
âmbito individual quanto no coletivo.
Interessava-nos mais a maneira como os alunos envolviam-se e relacionavam-se com o
novo conhecimento do que o objeto final produzido, avaliado em termos técnicos e
estéticos. Valorizamos as diferenças entre os resultados e não trabalhamos com a ideia
de padrão ideal.
O diálogo aberto entre as professoras e os alunos, a maleabilidade e adequação
das propostas aos tempos individuais e a possibilidade de seguir por diferentes
caminhos, são parte de “uma visão que é deliberadamente aberta na medida em que
ultrapassa o domínio das ciências exatas pelo seu diálogo e a sua reconciliação não
somente com as ciências humanas mas também com a arte, a literatura, a poesia e a
experi ncia interior” (<Carta da Transdisciplinaridade>, artigo 5º).
24
7. RESULTADOS
“A CASA”
A primeira proposta do ateliê foi desenvolvida com base na ideia da casa, em
seu sentido amplo. Casa enquanto lugar ocupado pelo homem durante a vida, do útero
materno ao próprio planeta Terra. Abordamos também a casa na natureza, os animais e
suas casas: o joão de barro, as formigas, as abelhas, o canguru, o castor. O que
significa para um animal, ter uma casa? O que significa para uma pessoa, ter uma
casa? Essas perguntas todas foram propostas a todos os alunos e inclusive à mim,
como aluna de graduação.
A professora Dália solicitou-me que fizesse uma reflexão por escrito do que
era a casa para mim, a qual demorou um tempo para ser feita, por que a questão da
casa parecia-me e ainda parece demasiadamente grande. Faz-me pensar não na casa
como algo concreto e abstrato e é justamente nesse pensamento dualista que vem a
dificuldade, de dizer o que é a casa para mim. Aqui transcrevo minha reflexão sobre a
casa:
“M(eu) lugar, minha casa.”
Desde a infância, deixo minha imaginação fluir livremente sobre o significado e sentido da
minha casa: o que é, como é, porque é, como poderia ser, . Como toda crianca, sempre adorei as
brincadeiras de faz-de-conta e dentre estas, a mais recorrente era a que eu construia uma nova casa para
morar. Tudo que eu mais queria era um cantinho seguro, um lugar aconchegante onde eu pudesse
inventar e viver histórias fantásticas, só minhas, de mais ninguém.
Nas minhas casinhas- que já foram embaixo de uma mesa, dentro de uma caixa de papelão,
embaixo de um cobertor pendurado entre duas cadeiras, e até em uma garagem-, eu sentia-me totalmente
conectada ao mundo, de uma forma idescritível. Diferentemente de todos os outros espaços os quais eu
ocupava no meu dia-a-dia, ali sim, eu sentia que eu era eu. Ali e somente ali, eu sentia que existia de
verdade, que agia de acordo com as minha vontades e os meus quereres e que era, definitivamente, quem
eu queria ser.
Havia qualquer coisa de mágico nessas casas que eu habitava temporariamente na minha
infância, pois elas me faziam sentir ponderosa, capaz de transformar tudo ao meu redor. Eu vivia a casa
25
em sua totalidade, em sua maior complexidade. Da mesma forma como eu dava vida a um lugar
imaginário, sentia-me capaz de dar vida a qualquer coisa que eu quisesse. Dentro da casa, eu projetava
foguetes, que me levavam à lua. E, voltando para casa, eu projetava uma nova casa, agora com
influências do espaço.
Conforme o tempo passou, as brincadeiras de faz-de-conta deram lugar à outras brincadeiras e
somente uma delas resistiu às mudanças do tempo e da idade, sendo ela a brincadeira da casa. É claro
que não se tratava de uma brincadeira que tinha um mesmo formato sempre, pois isso deixaria-a
monótona e ultrapassada, mas por outro lado, a brincadeira tinha sempre o mesmo personagem-lugar.
Esse personagem-lugar era a casa. E antes da casa, era eu.
Como eu, a casa estava sempre em transformação. Fazia-se e desfazia-se com rapidez e não
havia saudade daquilo que um dia foi, porque eu sabia que o mais importante era aquilo que estava por
vir. E dessa maneira, vivia o presente em transformação de uma forma fantástica. A minha casa real,
onde moravam meus pais e meu irmão, não tinha a menor graça perto das mil possibilidades que eu
encontrava naquela construção que era minha. Por mais que eu tentasse incluir outras pessoas, não havia
espaço para mais ninguém, somente para meus companheiros fictícios.
Passados muitos anos desde a última vez em que brinquei de casinha, me vejo diante de uma
sala de aula de arte onde as crianças são estimuladas a pensar sobre o conceito da casa, partindo de
exemplos da natureza, começando pela bolsa do canguru que é a primeira casa de seu filhote, até a
proposta de construção coletiva de uma torre, que seja uma grande casa coletiva da turma. Antes de
empenharem-se na construção das partes que fariam o todo da torre, eles desenharam suas casas, depois
seus quartos, escreveram e falaram sobre eles, como se falassem de alguém muito próximo. Ao falarem
de seus quartos, ou ilustrarem o espaço da casa que ocupam, os alunos inevitavelmente estavam a falar
sobre eles mesmos e o lugar que ocupam não só na casa, mas também no mundo.
Não há como separar o sujeito do lugar onde ele vive, pois sujeito e lugar estão em um processo
de troca ininterrupto. Trata-se de uma relação de dependência, como tantas outras existentes na natureza.
E isso acontece desde o começo das nossas vidas, considerando vida também os 9 meses que passamos
no útero materno. Assim, a nossa casa é sempre uma parte nossa, que começa no interior e depois se
projeta no exterior, como um reflexo nosso. A partir de determinado momento já não se sabe mais se a
casa é um reflexo do dono ou se o dono é um reflexo da casa, pois esta relação casa-sujeito acaba sendo
tal forma simbiótica que já não há sequer uma hierarquia que possa ser imediatamente identificada.
Tenho certeza que um sujeito quando tem a possibilidade de construir sua própria casa (num
plano concreto ou abstrato) ele o fará de acordo com a sua visão de mundo, a sua compreensão de
espaço, de beleza, conforto e funcionalidade. Ao projetar uma casa, independente de sua viabilidade,
uma pessoa deixará claro quais são as coisas mais importantes para ele, sendo este mesmo fato
observável no comportamento das crianças.
Ao desenharem seus quartos, destacaram aquilo que consideram de mais importante em seus
pequenos mundos, por outro lado, ao erguerem a Torre, escreveram palavras e colocaram coisas que
consideram importantes para o mundo. De árvores à foguetes, de casas de passarinhos à cena de um
boneco castigado publicamente, de palavras bonitas como “amizade, paz e amor” à palavras em ingl s,
os alunos criaram uma torre cheia de vida, de tramas, de elementos fantásticos, mundanos, da terra e de
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cada vida de cada um. Ao escolherem o que quer que fosse para ser colocado na Torre, os alunos tinham
a preocupação com o restante do grupo, pois cada gesto individual era visto por todos os alunos e
dependia, de uma maneira implícita, da aprovação coletiva.
A passagem portanto de um lugar extremamente particular e individual (o quarto/ a casa) para
um lugar coletivo, fez com que os alunos tivessem pelo menos duas experiências principais, no que diz
respeito ao olhar e a ação : 1) em um primeiro momento foram convidados à introspecção, direcionando
o olhar para eles mesmos, para então apresentarem-se para o mundo, a partir de uma construção já
existente; 2) foram convidados à extroversão, a um olhar para o olhar do outro, à uma construção
coletiva de algo inexistente, pré-projetado individualmente por cada um.
Acredito que a casa seja uma metáfora concreta do sujeito, a qual pode ser vista e revista,
transformada, reformada e renovada diversas vezes ao longo da vida. A complexidade de estar no
mundo e de relacionar-se com a vida pode ser amparada pela solidez de uma casa, mas esta quando
habitada torna-se frágil e viva, exigindo de seus habitantes cuidados e manutenções como qualquer
outra matéria viva.
A reflexão dos alunos sobre a casa: um caminho intelectual através da prática
artística.
Figura 4: desenho de uma aluna sobre o seu quarto
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Os alunos começaram fazendo desenhos dos quartos deles como são, depois
desenharam como eles gostariam que fosse o quarto deles. Isso fez com que eles
pensassem em valores que consideravam relevantes para a vida deles e a própria forma
como se projetavam no espaço. Após as apresentação dos desehos que fizeram
individualmente, foi proposto que eles pensassem em uma casa coletiva, que
desdobrou-se na proposta da torre. Começamos então a trabalhar na coletea de objetos
que pudessem construir uma torre, a qual seria a torre da classe.
“ A TORRE”
A torre foi construida em partes, utilizando materiais recicláveis e também
materiais orgânicos, que eles saiam para procurar fora da sala de aula, pelo
departamento de Artes Plásticas. Essa parte de coleta era uma forma de ampliar o olhar
deles sobre o que são as coisas e como elas podem ser usadas. Um dos objetivos
centrais era que entendessem que tudo depende de como a vemos as coisas.
Figura 5: aluna criando uma parte da torre com janelas feitas com slides
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Figura 6: Aluna durante a aula e a estagiária Vivian Palma, no jardim do Departamento de Artes
Plásticas
Materiais inusitados se tornavam rígidos como concreto de construção. Essa
proposta prolongou-se por mais aulas do que havíamos planejado. Acabou por
desenvolver-se durante quase o semestre inteiro, considerando-se que o desenho do
quarto já era o começo dessa proposta.
Para os alunos, a construção coletiva de uma torre foi um momento de grandes
descobertas, tanto de materiais, quanto de valores individuais e coletivos. A
criatividade era o que movimentava e dava origem a matéria e foi através da
criatividade que foi feita a torre.
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Figura 7: Aluno durante o processo de construção da torre.
Figura 8: Aluno segurando uma parte da torre, construída a partir de bubinas de rolos de papel higiênico.
Quando eles começaram a organizar as partes para subir a torre surgiram
conflitos de poder, todos disputavam o melhor local da torre, revelando um retrato dos
valores da sociedade que já estão incrustados nas crianças. A torre se tornou um lugar
concreto na sala de aula de sonhos e de medos que não são abordados com frequência
mas na torre eles projetavam isso. Um exemplo marcante foi de um aluno (e essa foi
uma das discussões entre os alunos) que queria por um boneco enforcado no topo da
torre, enquanto outro queria por uma nave espacial.
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Figura 9: aluno fazendo o boneco que gostaria de colocar no topo da torre, enforcado.
Figura 10: aluno montando a nave espacial, que faria parte da torre.
Foi pela observação das formas que cada aluno criava que constatei que de
certa forma a construção da torre virou uma projeção de medo e sonho ao permitir que
os indivíduo externalizassem ideias e emoções de qualquer natureza. Acabou por ser
um desafio plástico com um desfecho surpreendente, pois da torre que tanto tentavam
erguer, acabou por horizontalizar-se, sendo esta horizontalização uma solução coletiva,
31
democrática. Antes dessa decisão, estavam tentando empilhar as partes que faziam na
torre de acordo com a altura deles, no alcance que eles tinham. Mas impunham metas
cada vez mais altas e a cada topo alcançado, um novo aluno queria erguer mais e
todos queriam ter o último andar, dando origem a disputa pelo topo.
Figura 11: A Torre em fase de verticalização
No final da proposta, foi natural a desconstrução da torre em partes, mostrando que as
pessoas são capazes de construir e desconstruir ideias com facilidade. Conceitos e
imagens muito eraizadas desmembram-se e prolongam-se em novas ideias criadas e
32
em novos conceitos. Curiosamente, nenhum aluno achou que a torre “deu errado” por
ter ficado horizontal.
Figura 12: A torre e suas partes ao redor, no dia da exposição para os pais
Durante a proposta da construção da Tore no Ateliê Nossa Casa,a mestranda Vivian
Palma fez uma reflexão sobre esta, tal e qual eu havia feito sobre “ a casa”. Considero
o texto desta aluna relevante para uma melhor compreensão do processo.
“Sobre a Torre de Babel.”
Vivian Palma Braga dos Santos
A história da Torre de Babel é narrada no texto bíblico do Antigo Testamento, no livro de
Gêneses, capítulo 11, versículos 01 ao 09. Segundo o texto, após o dilúvio que destruiu a todos e
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preservou apenas a família de Noé, a terra era “toda duma mesma língua”, o que nos fazer ententer que
todos andavam juntos. Assim, todos partiram do Oriente (v. 02) e encontraram um vale onde habitar.
Neste, iniciaram a construção de uma cidade e de uma torre que tocasse os céus, a fim de fazerem um
nome e não serem espalhados pela terra.
Porém o Senhor, ao descer dos céus para ver as edificações desses homens, indignou-se contra
o objetivo por eles traçado e confundiu suas línguas, para que não se compreendessem. Por causa disto,
eles foram espalhados pela face da terra, deixando de construir a cidade e a torre.
Embora o acontecimento tenha sido denominado de Torre de Babel, nenhum registro de tal tipo
é referenciado no texto bíblico. A torre tomou este nome pois foi edificada na cidade de Babel,
localizada (supostamente) entre os rios Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia.
A metáfora da torre de Babel passou então a ser empregada como sinônimo de discórdia, de
descompasso sobre uma opinião.
Por aperecer como evento isolado em meio as genealogias de Noé e de seus filhos, a interpretação do
signficado da destruição da torre que deveria chegar aos céus ganhou diversas explicações, bem como
diversas representações. Muitas destas, como no caso das de Bruegel perpassam por uma leitura da
arquitetura “original” peneirada por modelos clássicos vistos pelo pintor quando de sua viagem à Roma.
Apesar das diferenças imagéticas, o ponto crucial da torre era o fato de se tratar não apenas de
uma construção vertical, mas que possuia, em seu trajeto rumo ao céu, edificações de casas que a
compunham. Casas estruturadas sobre muros foram construções comuns na Mesopotâmia nos séculos
a.C. Da mesma maneira a Torre de Babel era formada por moradias sobrepostas, edificando uma torre.
É importante ressaltar ainda outras interpretações colocadas por Paul Zumthor, em Babel ou
L’inachèvement (1970), citado por Geraldo Souza Dias, em sua livre docência. O autor francês defende
que a separação das línguas diz respeito a abertura dos lábios, até o momento unidos. Outros, como
Foucault, em As Palavra e as Coisas, ressaltam que é nesse instante que dá-se a separação entre homem
e mundo. Argumento interessantíssimo quando nos voltamos aos trabalhos de Mircea Eliade quanto do
mito e o real, e a crença mesopotâmica de um mundo terrestre e um mundo celeste, que foram
separados, mas que certos pontos do plano perecível (terrestre) podem eventualmente restabelecer esse
contato perdido.
Tomando pra si esses ou outros argumentos, alguns artistas trarão a temática da Torre de Babel
em visualidade e significado. Escher, por exemplo, se debruçará no seu caráter quase irreal. Enquanto
Geraldo Dias opta pelo aspecto estrutural e também simbólico.
No tocante a essa temática direcionada ao trabalho que será realizado no Ateliê, tendo como
base a casa, proponho que todos esses amplos significados possam ser reservados, em favor de um
envolvimento diferenciado, levando em consideração, sobretudo, a faixa etária dos alunos. Sendo assim,
acredito que seria interessante incluir a história da construção da torre, partindo de outras várias sobre
como outras culturas habitam os lugares. Talvez por meios de questionamentos possamos refletir sobre
como é morar todos num mesmo lugar. Creio que essa proposta (da segunda aula) já nos fará pensar
sobre a possibilidade da construção de uma casa conjunta, posteriormente.
Pensando nisto, poderemos abordar também os cortiços, além das outras culturas,
possibilitando um pensamento de: como é morar numa casa onde não é apenas minha família próxima
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que mora? Como essa casa é organizada? Como ela é construída? A partir daí podemos propôr a
atividade da casa/torre dos alunos.
Figura 13: Fotografia de anotações e colagens que fiz no meu caderno durante a proposta da Casa e
da Torre. Na página da esquerda, uma torre de Babel feita de papel por um artista plástico.
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Figura 14: Na página da direita, uma reprodução de uma pintura deLucas van Valckenborch (1535-
1597). “A Torra de Babel”, 1595
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“A BANDEIRA”
Depois de feita torre, propusemos uma atividade para criar uma unidade na turma e
simultaneamente, trabalhar valores com eles. Mostramos em uma apresentação de
slides no power point, como muitos artistas já haviam trabalhado com o símbolo da
bandeira (Jasper Jonhs, Andy Warhol, Roerich, Beyus etc) e como esta era um simbolo
forte.
Figura 15 e 16: apresentação de bandeiras feitas por artistas
Figura 16
A bandeira que eles fizessem seria, portanto, da turma do ateliê e da torre. Foi feita em
grupo, porém antes cada aluno fez uma individualmente. Depois apreciamos todas.
Para definir a forma da bandeira utilizamos ideais como paz, natureza. Foi feita numa
tela de pintura e os pais acompanharam o processo, todos os alundos deram uma
contribuição na confecção da bandeira
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Figura 17: Perguntas-chave para a realização da bandeira
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Figura 18: Alunos pintando a bandeira e escrevendo nela seus valores
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Os resultados mais sobresalentes dessa atividade foram o fazer coletivo
construtivo e harmônico, a discussão de valores, o desenvolvimento da autonomia, e a
liberdade dos alunos para expressarem-se.
Figura 19: Bandeira sendo colocada na classe, após estar pronta.
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As propostas do segundo semestre:
“LIVRO DAS ÁRVORES” / “LIVRO DE ARTISTA”
Ao longo do meu segundo semestre no ateliê, pude participar do começo ao fim
da elaboração do cronograma de aulas e da execução das mesmas. Reuníamos (eu, a
professora Dália e a mestranda Fabrícia Jordão) para juntas criarmos propostas
criativas de aulas, que explorassem diversas técnicas, espaços, ideiais e temas.
Conseguimos em um semestre trabalhar técnicas como pintura da paisagem, desenho
cego, gravura em linólio, desenho de observação da natureza, desenho de memória,
desenho de imaginação e por fim, a parte simbólica de um jardim, dando continuidade
a reflexão feita na proposta da casa,agora de uma forma extendida.
Trouxemos livros de artistas que motivaram os alunos a criarem seus próprios
livros , encontrando soluções complexas para organizar o material que recolheram da
natureza e dos desenhos que fizeram ao longo das aulas. A partir da ideia de registro,
de pesquisa, observação da natureza, coleta de materiais e exercício de diferentes
técnicas artísticas, propusemos aos alunos que fizessem um livro das árvores.
Figura 20: alunos desenhando em diferentes superfícies, no jardim
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Figura 22: aluna fazendo desenho das árvores ao seu redor
Figura 21: aluno mostrando os 8 desenhos feitos das árvores que observara na natureza e que
constituiria seu livro das árvores/ livro de artista
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“O JARDIM”
Durante o segundo semestre trabalhamos a ideia do jardim, como espaço de
cultivo coletivo, como forma de integração do indivíduo com a natureza de uma forma
integral. Trabalhamos a ideia do cuidado necessário para se fazer um jardim, e do
tempo necessário para tal. Através da observação da natureza e do contato com a
mesma (desenhando ao ar livre, fazendo desenhos de observação) exercitamos o olhar
para o exterior e para o interior, criando paisagens imaginárias e reproduzindo
paisagens guardadas na memória.
No final da atividade, acabamos por criar um jardim coletivo, usando a técnica
de xilogravura, mas aplicada em linólio ao invés de madeira. Os instrumentos
utilizados, no entanto foram os mesmos. Para a realização do jardim coletivo, os
alunos usaram um longo papel, o qual tiveram que unir os trabalhos feitos
individualmente, mais uma vez criando um todo. O processo foi muito interativo e
exigiu dos alunos muita atenção e coordenação, para que o longo jardim coletivo fosse
possível.
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Figura 23: alunos fazendo as gravuras das partes do jardim, que depois seria um grande jardim para o
Ateliê Nossa Casa
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Figura 24: o jardim coletivo após ter sido feito, pendurado de um lado a outro da classe. As matrizes
com os desenhos em cima da mesa.
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7. O CAMINHO PARA AS CONCLUSÕES FINAIS
A fim de melhor transitar pelos capítulos e ideias organizadas ao longo desta
pesquisa, optei por fazer um intervalo neste relatório. Revelo nos próximos itens
algumas partes do meu percurso conclusivo, que fazem do próximo tópico um espaço
de transição importante entre esta e a próxima etapa do relatório.
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7.1 Transitando no tempo
( Uma reflexão sobre as disciplinas de Metodologias de Ensino das Artes Visuais com
Estágios Supervisionados I, II, III e IV.)
Os registros estiveram sempre muito presentes na minha forma de pensar e
compreender o mundo. Desde que aprendi a segurar um lápis, passei a deixar minha marca
em tudo que podia. De rabiscos nas paredes da casa, passando por desenhos feitos com giz
colorido em cadernos e chegando finalmente aos meus primeiros diários escritos, sempre
tive necessidade de registrar experiências para melhor compreendê-las. Fiz isso em quase
todas as aulas que tive ao longo da vida, da escola à faculdade. Anotações e mais
anotações, disiciplinas inteiras de professores transcritas em cadernos que depois
ajudavam-me a compreender melhor aquilo que havia sido ensinado. Ao final desta
pesquisa, foi importante reler meus relatos de aulas de outros ateliês, quando ainda não
havia começado a estudar a metodologia transdisciplinar. Uma série de medos e
inseguranças surgiam junto à tentativa de antever uma aula que seria dada. Os relatos por
escrito das minhas primeiras aulas em uma escola pública situada na Zona Oeste de São
Paulo, carregados de emoções, me fazem perceber uma mudança não na minha forma de
ser, mas na minha forma de ensinar. Apesar dos meus registros das aulas do ateliê serem
de difícil compreensão para qualquer pessoa , uma vez que seguem uma ordem visual
inventada por mim e portanto somente compreendida por mim, minha atuação no Ateliê
Nossa Casa foi muito mais desenvolta do que na escola pública. Antes eu ficava muito
presa aquilo que eu havia preparado para falar e não conseguia me desprender de um
roteiro pré elaborado que não saí como o previsto. Neste sentido, a experiência
transdisciplinar permitiu-me perceber nuances da relação ensino-aprendizagem que
tornaram tanto o preparo das aulas quanto a execução das mesmas mais simples e fluidas.
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“Minha primeira aula de Arte na E E Clorinda Danti. (7 de abril de 2011) ”
1º momento, o mais importante: o planejamento da aula.
Inseguranças. Ansiedade. Vontade de desistir, de bancar a criança e fingir que fiquei
doente, que não pude ir. Compromisso, responsabilidade, caráter- concluo que não sou
capaz de optar por uma mentira. Prefiro assumir minhas fraquezas, minhas dificuldades e
minhas inseguranças mais tolas, ao invés de escondê-las das pessoas à minha volta.
Exponho meus medos à professora, minha falta de organização, minha dificuldade em
fazer um bom plano de aula na véspera da aula, à meia noite, em e-mails desesperados.
Não consigo escrever um projeto da minha aula, não consigo acreditar que minha aula
possa dar certo. Escrevo o projeto às pressas, incompleto, sem fazer as tais divisões de
tempo, de importância fundamental para qualquer aula. Planejar uma aula de acordo com o
tempo que me é dado. Pensar no tempo para que a aula aconteça por completo e não fique
comprometida por uma má administração do tempo pela professora, no caso, eu. Mas essa
realização só ocorre-me agora, após dada a aula, porque até então eu acreditava que as
coisas aconteciam na liberdade do tempo, cada coisa a seu tempo, cada aula ao seu ritmo,
independente de marcações rígidas dos minutos e cronometragens das atividades. Ainda
falta-me humildade e sabedoria para saber ouvir um conselho de um professor, o que faz
com que eu aprenda as coisas da maneira mais complicada, mais cansativa, ao invés de
poupar-me de desgastes. Preciso confiar mais não só em mim, mas sobretudo nos
aconselhamentos que me são dados pelos meus mestres, por aqueles que tem muito mais
experiências de vida do que eu, e que por refletirem sempre sobre suas trajetórias, são
capazes de perceber aquilo que fariam de diferente, de modo a facilitar(-me) o caminho.
Vou dormir tomada pelo cansaço, com a cabeça cheia de preocupações e sem nenhuma
segurança em relação à aula que seria dada por mim algumas horas depois dessa crise.
2º momento: o que antecede a aula:
Chego na USP cedo pela manhã, para uma aula de fotografia. Não consigo pensar
em outra coisa senão a aula que me esperava pela tarde e então começo a perguntar para os
alunos de licenciatura que já tiveram essa experiência o que eles acham da minha proposta
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de aula. As duas primeiras respostas já me desanimaram um pouco, porque as pessoas para
as quais eu perguntei não tiveram experiências felizes na altura em que deram as aulas.
Saio no intervalo e procuro materiais pelo departamento de Artes Plásticas, que pudessem
enriquecer a proposta de composição e colagem que eu tinha planejado para os alunos. No
caminho encontro um dos funcionários do CAP, que pergunta-me o que eu estava
procurando e, após ouvir minha resposta de que estava em busca de materiais para dar uma
aula no Clorinda Danti, arregala os olhos e diz-me: “-Você vai dar aula no Clorinda
Danti????”, e ao ouvir-me dizer que sim, completa: “Boa sorte!”.
Eram tão díspares as reações e opiniões das pessoas quando eu mencionava essa
aula em relação àquilo que eu tinha observado e percebido no semestre passado na Escola,
que resolvi não falar no assunto com mais ninguém que me cruzasse o caminho.Eu e minha
mania de entrar em pânico e sair gritando socorro para deus e o mundo fazem-me ouvir
coisas à mais, coisas desnecessárias, palavras que não ajudam-me em nada.
Controlo-me até o Departamento de Artes Cênicas, onde eu estava determinada a
escrever umas últimas observações sobre a aula, sem ouvir mais ninguém. Após escrever os
primeiros itens no caderno, surgem mais alunos da licenciatura e vem me perguntar o que
estou fazendo. Quando digo que estou preparando a aula para o estágio no Clorinda Danti,
eles me perguntam sobre a minha proposta e me sabotam no primeiro material que cito,
como parte da aula.“-Madeira??? Imagina o que eles são capazes de fazer com esse
material...Transformam em paus, começam a bater uns nos outros! Ou se machucam com
as farpas.... melhor voc não usar madeira!”. Eu prossigo a lista citando outros materiais. “-
Corda? Barbante? Não... melhor você não usar essas coisas. Imagina se eles começam a
amarrar algum colega, ou se enroscam e se enforcam na corda enquanto você está ajudando
algum aluno. Pense que são mais de trinta alunos! Isso pode ser muito perigoso!!!!”. E por
aí em diante seguiram com seus comentários e previsões catastróficas em relação à minha
primeira aula de Arte na vida.
Ótimo. No quarto item citado, minha lista estava completamente vetada pelo julgo
dos alunos. Sugerem-me que eu proponha um auto-retrato simples, como forma de
conhecê-los melhor, nesse primeiro encontro. Tentam convencer-me de que a proposta é
simples e de que eles vão gostar, mas para mim não fazia o menor sentido chegar na
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primeira aula e já impor que eles fizessem um desenho deles sem saber qual é a relação que
eles tem com o desenho, se tem facilidade, se gostam, se detestam, se é uma atividade
prazerosa ou frustrante. Eu tinha pensado em algo mais amplo, uma aula em que eles
pudessem trabalhar livremente com os materiais que tivessem às mãos. Queria que eles
manuseassem diferentes materiais, que eles resolvessem com estes a questão compositiva
de uma forma tridimensional. Nada do que eu tinha ouvido até então convencia-me de que
eu devesse abrir mão da minha proposta, mas tampouco encorajavam-me a fazê-la.
Quando olho as horas, vejo que já falta muito pouco para encontrar-me com as
outras alunas para irmos juntas para a Escola. Conto um pouco das minhas últimas horas e
da minha angústia. Em poucos minutos ouço palavras extremamente motivadoras, que
conseguem aniquilar todos os meus medos criados e acumulados em vão. E o que mais
ecoou em mim naquele momento foi a frase que a Aline disse: “Confie naquilo que você
acha que vai ser bom para eles. Confie nas suas ideias, não em ideias alheias”. E de fato era
isso que eu precisava, confiar nas minhas ideias. Na noite anterior a professora Sumaya
tinha me dito algo muito parecido, mas que naquele momento não teve o impacto devido,
porque eu estava completamente bloqueada pelos meus medos. O que a professora disse na
véspera agora fazia muito sentido e movia-me em direção à escola, com confiança e
vontade: “ ...não deixe o medo e a insegurança atrapalharem seus planos. Se você não
fizer o que está com vontade, como poderá saber quais os pontos fortes e/ou menos fortes
da sua proposta e onde pode melhorá-la? Faça! Proponha o que tiver com vontade,
prepare-se para irealizá-la e encare os resultados com coragem. Tudo isso é natural e faz
parte do processo de aprendizagem.
Seguimos em direção à escola e no caminho já ocorriam-me algumas realizações,
alguns aprendizados, de extrema importância. Percebi naquele momento que eu deveria
concentrar-me naquilo que eu acreditava, independente do que os outros pensassem,
independente de experiências frustadas alheias eu deveria manter minha ideia original.
3º momento: a aula.
Como eu já previa e acreditava, a proposta foi muito bem acatada pela classe, que
mostrou-se interessada e extremamente capaz de criar coisas novas a partir de restos de
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coisas velhas e sem uso, como retalhos de madeira, sementes encontradas e recolhidas de
um jardim, brinquedinhos de plástico jogados no fundo de uma bolsinha antiga, estrelas
que brilham no escuro, fitas que antes prendiam medalhas dos meus tempos de escola, fitas
adesivas coloridas, linhas de costura coloridas, folhas secas, pétalas de flores secas
guardadas por anos em uma caixinha, gigantes cartas de um baralho onde faltavam cartas.
Todas essas coisas, aparentemente sem uso, paradas, abandonadas, transformaram-se em
objetos lindos, pelos quais os alunos deixaram-se levar completamente, como se
estivessem em outro mundo. Alguns meninos juntaram-se e construiram um aeroporto com
os maiores pedaços de madeira, com direito à uma pista inclinada de decolagem e sinais de
trânsito marcados na pista, meninas fizeram doces com pedaços de madeira (mini bolos e
tortas),surgiram naves espaciais comandadas por seres humanos e robôs, pequenos altares,
palcos, pipas, casas, camas, quadros. Não faltaram ideias para as crianças transformarem
aqueles materiais todos. Vê-los trabalhar com tanto empenho foi das coisas mais
gratificantes que poderiam ter acontecido. A única pena foi eu não ter conseguido controlar
o tempo como deveria e a aula terminou sem que eu tivesse tempo de fazer uma conclusão,
uma observação final, a qual terei que incluir no começo da próxima aula, para que assim
se torne possível o fechamento do ciclo e da experiência de transformação, de colagem e
composição. Fiquei feliz porque consegui durante a aula passar alguns valores que tenho e
fazê-los pensar na aula de Arte como uma possibilidade muito ampla de relacionar-se com
o mundo e com as pessoas ao nosso redor. Falei um pouco sobre a necessidade de
reduzirmos a quantidade de lixo por nós produzido e a extrema necessidade de
reaproveitarmos aquilo que temos e que não usamos, falei um pouco sobre as diferentes
formas como enxergamos o mundo, sobre o quanto somos diferentes uns dos outros e o
quanto isso é enriquecedor. Tentei incentivá-los a serem únicos, a deixarem-se levar por
aquilo de mais íntimo que impulsionasse-os, ao invés de copiarem uns aos outros. Falei da
importância da Arte e da beleza que é a imaginação na idade deles. Falei que se pudesse,
pegaria emprestada a imaginação deles por uns dias, depois devolveria em forma de Arte.
O fim da aula não poderia ter sido mais emocionante, graças à uma aluna muito
especial, que durante a aula inteira mostrou-se interessada na atividade e em cada palavra
que eu dizia. Enquanto eu ajudáva-a a colar seu objeto com cola quente, ela olhou uma
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porção de sementes que estavam juntas em cima da mesa da professora e disse: “Olha
professora, que lindo!”. Eu olhei para as sementes de pau- brasil vermelhas, amontoadas
em cima da mesa formando um círculo cheio, como se pegasse fogo e olhei para aquela
doçura de menina, chamada Larissa e direcionei-lhe um sorriso. Ela então continuou: “Às
vezes a gente não precisa nem tocar, né professora? Com os olhos a gente cria coisas
lindas!!!”. Eu parei o que estava fazendo e pedi que ela repetisse, porque mal podia
acreditar no que acabara de ouvir. A pequena Larissa, com seus dez anos de idade disse: “-
O que eu estou dizendo professora, é que as coisas às vezes sozinhas são muito lindas,
basta a gente olhar para elas, ou fechar os olhos e imaginar coisas bem lindas, que elas se
formam nos nossos olhos.”. Aquelas palavras tiveram em mim um efeito inenarrável. Foi
como se tivessem saído da boca de um mestre, de alguém de extrema sabedoria e
sensibilidade. E de fato foi isso que aconteceu. Larissa é uma criança muito sábia, sensível,
observadora e consegue articular muito bem suas ideias e sua visão de mundo. Talvez eu
comece a próxima aula dando de exemplo a frase que ela disse, mas sem dizer que foi ela,
para não causar ciúmes nos outros alunos. Ela saberá que a frase é dela e os outros ficarão
nela a pensar. Terminei a aula me sentindo cheia, alimentada por toda aquela sequência de
acontecimentos. Sentia-me realizada e agora sinto-me ainda mais animada para seguir
projetando aulas, cada vez com mais cuidado, cada vez com mais ideias.
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8. CONCLUSÕES:
Após reler minhas anotações dos estágios supervisionados nas disciplinas de
metodologias do Ensino das Artes Visuais I,II,II e IV, assim como os registros do ano
decorrido no ateliê Nossa Casa, chego à conclusão de que a prática transdisciplinar
permite e proporciona um olhar plural diante da realidade. O pensamento trans revisita
o conhecimento e questiona-o, de forma que cada indivíduo possa, à sua maneira,
encontrar a melhor forma de se relacionar com diferentes áreas do conhecimento que
atravessam a vida.
Na formação do professor de Arte a transdisiciplinaridade permite que se estimule
muito a criatividade e uma grande interação com o mundo, de forma complexa.
Trabalha-se com o fazer artístico mas sem distanciá-lo do presente e de tudo que
acontece no nosso entorno.
A transdisciplinaridade exige do professor de Arte um controle maior e uma
maturidade que se obtém através da experiência da própria metodologia aplicada em
aula. As aulas mostraram que a metodologia transdisciplinar estimula o pensamento
complexo e a busca por resolução de problemas de todas as ordens, podendo
transformar os sujeitos e suas formas tanto de ver quanto de agir sobre a realidade. O
olhar que amplia-se e consegue ver o outro como igual, assim como a compreensão de
pertencimento à Terra numa condição inseparável, aumentam a integração entre as
partes, entre os sujeitos e seu entorno e entre o corpo e as superfícies pelas quais
transita.
No ensino de qualquer disciplina, seja qual for a metodologia adotada, o respeito pelas
diferenças de qualquer natureza, a compreensão das dificuldades do outro e a ajuda
prestada para a ultrapassagem das mesmas é fundamental para a formação dos sujeitos.
A generosidade, a humildade e a construção coletiva de algo que permita ao sujeito
sentir-se parte, são pontos que devem estar muito claros e aplicados no cotidiano. Não
há cultura ou espécie que seja superior à qualquer outra . A alegria e a dor individuais
não são mais alegres ou mais dolorosas do que as coletivas. A necessidade individual e
autocentrada não é mais urgente do que a necessidade coletiva.
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A busca por uma convivência pacífica e uma vida harmônica para todos deve deixar de
ser vista como um sonho utópico. As mudanças interiores e exteriores devem ser
incessantes e imediatas pois,como disse Bassarab Nicolescu, amanhã será tarde demais.
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9. ANEXOS:
Figura 25: Banner criado para ser usado em eventuais publicações do Ateliê Nossa Casa.
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Figura 26: página do meu caderno de registros de aulas e ideias
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Figura 27: desenho de observação feito durante o começo da minha participação no ateliê, ainda como
observadora.
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Figura 28: aluna pintando a torre.
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Figura 29: ideia para um acordo de regras feito entre os alunos, tendo como referência o corpo e suas
capacidades como guia para estruturar esse “painel” de acordo. No desenho destaco a fala ( a palavra), a
(a visão), os sentimentos e emoções (na região do peito) e as ações (nas mãos).
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Figura 30: anotação após aula
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Figura 31: " A natureza humana é completamente desintegrada pela Educação através das disciplinas"
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Figura 32: As árvores abordadas em outros cursos, não somente no ateliê
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10. BIBLIOGRAFIA:
Antunes, Ângela / Padilha, Paulo Roberto. Educação cidadã, Educação Integral:
fundamentos e práticas. Editora Instituto Paulo Freire. São Paulo, 2010.
Centro de educação transdisciplinar (CETRANS) - Escola do Futuro – Universidade de
São Paulo (disponível em http://www.ctrans.futuro.up.br/)
CARTA DA TRANSDISCIPLINARIDADE. In:Educação e transdisciplinaridade.
Brasília:UNESCO/USP, 2000. In:O manifesto da transdisciplinaridade.São Paulo: Triom,
2001.
D’AMBROSIO, U., Transdisciplinaridade, Palas Athena.1991
Gadotti, Moacir, A Carta da Terra na Educação. Editora Instituto Paulo Freire, São Paulo,
2010.
GADOTTI, Moacir. A Carta da Terra na educação. São Paulo: Editora e Livraria Instituto
Paulo Freire, 2010. -- (Cidadania planetária ; 3)
GADOTTI, Moacir. Pedagogia da Terra. São Paulo: Petrópolis, 2000.
MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Tradução do francês: Eliane Lisboa
- Porto Alegre: Ed. Sulina, 2005. 120 p.
MORIN, Edgar. Por uma reforma do pensamento. In: O pensar complexo: Edgar Morin e a
crise da modernidade. Nascimento, Elimar Pinheiro do; Pena-Vega, Alfredo (orgs.). 3ª ed.
Rio de Janeiro:Garamond, 2001a
NICOLESCU, B. O manifesto da Trasdisciplinaridade. São Paulo: Triom, 1999.
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Sites:
http://atelienossacasa.blogspot.com.br
ww.edgarmorin.org
www.earthcharter.org
http://www.cetrans.com.br/
http://www.sociologia.org.br/tex/ap40.htm