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Rev. Ateliê Salvador n. 7 p. 1-76 Agosto 2012 ISSN 2177-4242

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revista ateliê

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Page 1: Revista Ateliê

Rev. Ateliê Salvador n. 7 p. 1-76 Agosto 2012

ISSN 2177-4242

Page 2: Revista Ateliê

Expediente

Sócios-DiretoresFrancisco Mendonça

Jayme Barros

Diretora Geral Ana Cristina Calfa

Coordenação da RevistaSilvana Sarno

ColaboradoresCláudia Santana

Gabriela Rossi

Projeto GráficoCláudia Santana

Imagem da CapaParte de obra de Caffaro Rore – Cappella del Sociale

di via Arcivescovado

IlustraçõesAndré Barreto

RevisãoElizabeth Fernandes

EditoraçãoAutor Visual Design Gráfico

Endereço do Colégio MóduloAvenida Magalhães Neto, 1177 – PitubaCEP 44.820-020Salvador – BahiaTel.: (71) 2102.1300 / 2102.1301Fax.: (71) 2102.1314

[email protected]

Sitewww.portalmodulo.com.br

Impressão – Gráfica do Colégio MóduloJúlio PachecoCarlos Alberto Brito dos SantosRubes Santos da Silva

PeriodicidadeSemestral

Tiragem 500 exemplares

ATELIÊ é uma publicação impressa e organizada pela Equipe daEditoração e do Departamento Cultural do Colégio Módulo.

Departamento Cultural do Colégio. ATELIÊ, 2012.n. 7; 76 p.: il.

ISSN 2177-4242

1. Revista do Colégio Módulo. 2. Ateliê. I. Título.

AS MATÉRIAS, ARTIGOS E COLUNAS aqui publicados são de responsabildade de seus respectivos autores. Suas opiniões não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

Page 3: Revista Ateliê

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E chegamos ao número 7 de nossa Revista Ateliê! E queremos iniciar este editorial, citando Helena Parente Cunha, nossa homenageada, este ano de 2012, no Concurso Literário. Diz ela em Além de Estar.

somos o sumo de nossos sonhos semeamos senhas sinais somamos cismamos signossomosparcelada suma soma

Isso diz muito do que é Ateliê para nós que a sonhamos, a criamos e a produzimos. Mas diz muito, também, do que é, para nós, a prática cotidiana de trabalhar em educação, que será sempre um ato de militância, que não se restringe a trabalhar em escola, em sala de aula. Quando sonhamos e produzimos Ateliê, estamos desenvolvendo o nosso trabalho educativo levando reflexões, questionamentos, inquietações, esperanças a um público, que não é o aluno em sala de aula.

semeamos senhas sinais somamos cismamos signos

A diversidade de temas que a Revista do Colégio Módulo tem abordado revela bem a abertura de suas páginas sem censuras. E só temos a agradecer a nossos autores/colaboradores por nos terem brindado com seus textos. Seus artigos e poemas, fotos e pinturas evidenciam que, em sua “prática cotidiana”, eles não são simples reprodutores do que existe, mas questionam, se inquietam, pesquisam, criam. E mais que isso: atuam transmitindo-nos suas reflexões/criações, enriquecendo-nos, tornando-nos mais humanos, fazendo-nos rever as mais variadas dimensões de nossa vida.

Eles e nós somos parcela de suma soma.

Quando sonhamos e produzimos Ateliê, estamos desenvolvendo

o nosso trabalho educativo levando reflexões,

questionamentos, inquietações, esperanças a um público, que não

é o aluno em sala de aula...

Page 4: Revista Ateliê

E quem é “a suma soma” que fez este número 7 de Ateliê?

Kátia Stocco Smole, que, através da abordagem da jornalista Gabriela Rossi, nos fala sobre Inteligências Múltiplas, sobre aprendizagem significativa. O texto nos adverte: “o processo de ensino e aprendizagem deve ampliar as dimensões dos conteúdos específicos dos diversos componentes curriculares, incluindo ações que possibilitem o desenvolvimento e a valorização de todas as competências intelectuais, corporais, pictóricas, espaciais, musicais, inter e intrapessoais, além das linguísticas e lógico-matemáticas.”

Milena Brito discute o conceito de Literatura, colocando-se contra pre-conceitos e intolerâncias. E diz: “Jorge Galdino de Santana, cordelista de Pedrão, próximo a Alagoinhas, é tão literato para mim quanto Fernando Pessoa”. (... ) O século XXI é isso: literatura está nos muros, nos blogs, nos terreiros,nas ruas. Sem deixar de estar nas bibliotecas.”

Rosana Ribeiro Patrício faz uma lúcida análise de poemas de Helena Pa-rente Cunha. Para ela, “a obra lírica de Helena Parente Cunha se afirma a cada novo livro, compartilhando o espaço de leitura, de divulgação e de análise das diversas manifestações da lítica contemporânea.”

Flávio José Gomes Queiroz pesquisa as origens da música e coloca uma série de perguntas, para as quais ainda não se têm respostas. Afirma: “A mais antiga evidência concreta da música entre humanos foi descoberta em 2009: uma flauta quase completa, feita de osso de ave ( provavelmente algum tipo de abutre) e fragmentos de outras três flautas feitas de marfim foram encontrados em cavernas no sudoeste da Alemanha. (...). Datam do período aurignaciano inicial, entre 30.000 e 32.000 anos atrás.”

Telma Brito Rocha aborda o Bullying: conceito e os contextos da violência. Com clareza e objetividade diagnostica: “Uma sociedade que não respeita o direito e a integridade física, moral de um indivíduo, onde cada um segue suas vontades próprias, sem limites e respeito aos diferentes grupos sociais, contribui ainda mais para se estabelecer violência e opressão. Nesse sentido, as motivações do bullying podem também ser explicadas na concepção que os indivíduos possuem de sociedade, cultura, das noções de poder, privilégio e respeito.”

Os professores Otávio Bonfim, e Claudina Ramirez, o publicitário Carlos Sarno nos oferecem poemas que cantam o amor, a mulher, a vida, a liberdade. No sentir de Sarno: “Quando penso nesse “transe” de amor, não me refiro à paixão, nem a desejo: aí é outro departamento. Falo dessa coisa difusa, o amor indefinido, meio brega e gratuito por coisas e pessoas que mal ou nem mesmo conhecemos; esse sentimento que deixa a gente comovido até por comerciais de bancos e detergentes.”

Este que compõe o presente editorial aborda os dois movimentos que o atual trabalho educativo deve desenvolver: a desconstrução dos valores da sociedade individualiata, hedonista, preconceituosa, excludente e consumista em que vivemos e a construção de valores que poderão levar-nos a uma so-ciedade humanista, solidária, inclusiva.. “É preciso ter presente – sempre – que o trabalho educativo se faz com seres humanos, que são complexos, sujeitos histórico-sociais, que não vivem no abstrato, no vazio e na solidão.”.

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Page 5: Revista Ateliê

Lygia Viégas. O título bastante significativo de seu artigo já define o posicionamento da autora: Pelo direito a pensar, sentir e agir. Colocando-se contra a excessiva medicalização na educação de crianças e adolescentes, criti-ca: “Espera-se adesão irrefletida, conformismo, frieza e passividade. Qualquer expressão que contrarie a norma é lida na chave da patologia, produzindo uma legião de crianças e adolescentes diagnosticados e quimicamente controlados simplesmente por recusarem o determinado.”

Cinthya Pereira da Silva escreve sobre o “ato reflexivo na sala de aula”.Para ela: “Refletir criticamente sobre nossas ações e condutas no tempo e es-paço da escola é ampliarmos nossos olhares no intuito de, efetivamente, ver melhor. O dilema maior é este: buscarmos a construção de novas visões, que transcendam os limites da tradição e que ousem a construção de novas formas de ser e estar em educação.”

Mônica Neves da Silva Lopes narra a sua vivencia com os livros desde criança, fortemente marcada pela presença do Pai. Hoje, ela pode dizer: “É lendo que aprendemos a dizer não, a dizer sim. É lendo que aprendemos a ser o que somos, a dizer o que sentimos. É lendo que passamos a ser o fio que conduz a rios encachoeirados a fim de continuar a produzir energia e gerar luz onde a escuridão se alarga.”

Na Galeria, o artista plástico J. Cunha.

Carla Regina Nunes Costa constatando que “indiscutivelmente está havendo uma mudança na maneira de pensar do homem moderno, revê os “indicadores de sustentabilidades para solos agrícolas.”. Admite: “Não é difícil compreender que a sustentabilidade de agroecossistemas é indispensável à conservação da vida humana no planeta, tal como conhecemos hoje”.

Flávio Caetano admite que, diante dos fatos que vivemos na vida republi-cana brasileira, diante da decepção com a prática política daqueles em que se depositou muita esperança, diante de tudo isso, a descrença venceu a esperança. Mas essa atual descrença não o leva ao pessimismo. O professor acredita na força renovadora e transformadora da educação. “É neste sentido, que a edu-cação tem um papel fundamental. Devemos compreender a formação de valores morais como uma responsabilidade da escola, que não ocorre a partir de um processo espontaneísta, sendo necessária uma sistematização e uma discussão sob a ótica curricular.”

E quem mais “somou” para a construção deste número 7 de Ateliê?

Queremos aqui lembrar e agradecer a outras pessoas, cujos trabalhos foram importantes “parcelas” que se somaram para que este novo número de Ateliê, a Revista do Colégio Módulo, viesse a público: Silvana Sarno e seus funcionários do Departamento Cultural, os funcionários da Editoração e da Gráfica do Módulo, Cláudia Santana pelo trabalho de revisão/criação artística, Gabriela Rossi, pela atuante competência jornalística, Beth Fernandes pela paciente revisão geral e, finalmente, nossos parceiros de sempre da Autor Visual.

somosparcelade suma soma.

Jayme Costa Barros

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INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLASEntrevista com Kátia Stocco Smole

DE PALAVRAS E DE MUNDOS: LITERATURA E DIVERSIDADE NO SÉCULO XXIMilena Britto

HELENA PARENTE CUNHA: CANTOS DE VIAGEM E INVENÇÃO LÍRICARosana Ribeiro Patrício

QUÃO ANTIGA É A MÚSICA? Flávio José Gomes de Queiroz

BULLYING: CONCEITO E CONTEXTOS DA VIOLÊNCIA Telma Brito Rocha

POEMAS

SIGA A MULHER E O ESPELHOOtávio Bonfim

AMOR O AMORCarlos Sarno

DA ÍNDIA DOS ANDES PARA FERNANDO PESSOAENTRE LÁGRIMASDESCANSO EM PAZO CÃOINTERRUPTORGRITOClaudina Ramirez

Page 7: Revista Ateliê

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EDUCAÇÃO: DESCONSTRUÇÃO – CONSTRUÇÃO Jayme Costa Barros

PELO DIREITO A PENSAR, SENTIR E AGIR!Lygia Viégas

O ATO REFLEXIVO NA APRENDIZAGEM: O ALICERCE PARA A EDUCAÇÃO PERMANENTECinthya Pereira da Silva

LEITURA: O PRINCÍPIO, O VERbO, A VERDADE... A DESCObERTA Mônica Neves da Silva Lopes

GALERIAJ. Cunha

INDICADORES DE SUSTENTAbILIDADE PARA SOLOS AGRÍCOLAS: UMA REVISÃOCarla Regina Nunes Costa

A DESCRENÇA VENCEU A ESPERANÇAFlávio Caetano

Page 8: Revista Ateliê

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Gabriela Rossi ( )Jornalista e autora do livro “Paz na Escola

– ações e reflexões para a vida social em harmonia”, lançamento da Secretaria de Cultura de Salvador, 2001

E-mail: [email protected]

INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS

COM KÁTIA STOCCO SMOLE

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Page 9: Revista Ateliê

comparação entre indivíduos diferentes, para apontar suas desigualdades”, comenta.

Na opinião dela, o processo de avaliação no âmbito de uma aprendizagem significativa deve ocor-rer no contexto do cotidiano do trabalho com os alunos, levando em conta as discussões coletivas e a realização de tarefas em grupos ou individuais. Ela ressalta que esta é a ocasião apropriada para o professor constatar se os alunos estão ou não se aproximado dos conceitos e habilidades considera-dos importantes, além de identificar dificuldades e prestar o apoio necessário para a superação delas.

Para ela, a avaliação nunca deveria ser associada a um único instrumento, nem limitada a um só mo-mento ou a uma única forma. “Somente um amplo espectro de múltiplos recursos de avaliação pode possibilitar canais adequados para a manifestação de múltiplas competências e de redes de significados, fornecendo condições para que o professor analise, provoque, acione, raciocine, emocione-se e tome decisões e providências junto a cada aluno”, salienta.

E o que representa a aprendizagem significativa? Conforme descreve a educadora, “ensinar e aprender com significado implica interação, disputa, aceita-ção, rejeição, caminhos diversos, percepções das diferenças, busca constante de todos os envolvidos na ação de conhecer. A aprendizagem significativa segue um caminho que não é linear, mas uma trama de relações cognitivas e afetivas, estabelecidas pelos diferentes atores que dela participam”.

“Mais do que repetir procedimentos é preciso que nós, educadores, possamos refletir sobre todas as mudanças que se fazem necessárias para que passemos da intenção à ação de tornar a escola mais humana, mais justa e mais acolhedora para quem nela busca sua formação cidadã”, enfatiza a consultora.

Na década de 80, ao estudar o cérebro de pacientes com lesões cerebrais, Howard Gardner e seu grupo de trabalho na Universidade de Harvard (EUA) constataram a existência de diversas facetas da inteligência cognitiva. Avaliaram e elaboraram a tese de que o ser humano não possui uma única “inteligência”, mas tem habilidades inteligentes diversas, tais como a lógica, a percepção musical e a matemática. Os estudos da neurociência re-forçaram as correntes pedagógicas que levam em conta as potencialidades cognitivas individuais no processo educativo.

“Ao contrário de uma suposta inteligência inata, toda pessoa tem a capacidade de desenvolver diferentes saberes e tem inteligências múltiplas, em diferentes níveis de desenvolvimento”, afirma Kátia Stocco Smole, doutora em Educação na área de Ciências e Matemá-tica pela Universidade de São Paulo (USP). Convidada nacional para o último Seminário Pedagógico do Mó-dulo, em 2011, ela fez uma explanação sobre aspectos instigantes acerca do processo cognitivo, com foco na ação educacional.

Autora de diversos livros e coordenadora do grupo Mathema, com trabalhos de assessoria e consultoria nas redes pública e privada de ensino, Kátia Smole ressalta a importância de uma dinâmica mais interativa com os alunos. “O papel dos alunos na aula deve ser mais participativo para que eles possam expressar seus interesses e expectativas, em um processo educativo mais enriquecedor”, afirma a especialista.

A principal ênfase do trabalho desta militante da educação é o processo de aprendizagem significativa, pelo qual os alunos aprendem por múltiplos cami-nhos e formas de inteligência, através da utilização de variados meios e modos de expressão. “Não tem cabimento a concepção dominante de inteligência única, que possa ser quantificada e empregada na

“O papel dos alunos na aula deve ser mais participativo para que eles possam expressar seus interesses e expectativas, em um processo educativo mais

enriquecedor”.

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Page 10: Revista Ateliê

ATELIÊ - A Revista do Colégio MóduloANO V - Nº 07 - AGOSTO 2012

Visão pluralista da mente

“Em uma perspectiva de aprendizagem significati-va, a inteligência está, acima de tudo, associada à apti-dão de organizar comportamentos, descobrir valores, inventar projetos, mantê-los, ser capaz de libertar-se do determinismo da situação, solucionar problemas e analisá-los. Conceber a inteligência desse modo implica pensá-la não como uma combinação apenas de competências linguísticas e lógico-matemáticas, que têm sido a base da escola tradicional, mas de várias competências, chamadas de inteligências, que podem ser mais bem entendidas quando associamos a elas a imagem de espectro de competências.

Uma visão pluralista da mente reconhece muitas facetas diversas da cognição, reconhece também que as pessoas têm forças cognitivas diferenciadas e estilos de aprendizagem contrastantes. Uma vez assumido que as crianças e jovens de diferentes idades ou fases da escolaridade têm necessidades diferentes, percebem as informações culturais de modo diverso e assimilam noções e conceitos a partir de diferentes estruturas motivacionais e cognitivas, a função da escola passa a ser a de propiciar o desenvolvimento harmônico destas inteligências e usar os diferentes potenciais de inteligência dos alunos para fazer com que eles aprendam.

Nessa perspectiva, o processo de ensino e apren-dizagem deve ampliar as dimensões dos conteúdos específicos dos diversos componentes curriculares, incluindo ações que possibilitem o desenvolvimento e a valorização de todas as competências intelectuais: corporais, pictóricas, espaciais, musicais, inter e intra-pessoais, além das linguísticas e lógico-matemáticas”.

* Trecho do artigo intitulado “Aprendizagem significativa: o lugar do conhecimento e da inteligência”, de autoria de Kátia Stocco Smole.

“Mais do que repetir procedimentos é preciso que nós, educadores, possamos refletir sobre todas as

mudanças que se fazem necessárias para que passemos da intenção à ação de tornar a escola mais

humana, mais justa e mais acolhedora para quem nela busca

sua formação cidadã”.

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DE PALAVRAS E DE MUNDOS:

LITERATURA E DIVERSIDADE

NO SÉCULO XXI

Milena Britto ( ) Professora do Instituto de Letras da UFBA.

E-mail: [email protected]

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ATELIÊ - A Revista do Colégio MóduloANO V - Nº 07 - AGOSTO 2012

Dezenas de vezes fui surpreendida com um certo constrangimento quando, em aulas ou oficinas de leitura, algum aluno me perguntava de chofre se tal coisa era literatura.

Essa “tal coisa” variava: um pensamento es-crito num papel de carta colorido, um parágrafo elaborado com apuro “filosófico”, palavras que se organizavam como poemas, letras de música, casos contados em cordéis, fotografias com legendas, estórias em quadrinhos, letras de hip hop, romances inacabados em blogs... Acresce ntaria, sem exageros, receitas de bolos e bulas de remédios.

A literatura, como revela a pergunta de tantos e tantos estudantes, possui ao redor de si um encanto, um certo mistério por ser ela, em suas tantas manifestações, espécies de “fantasias”, se assim pudéssemos dizer, que traduzem sentimen-tos, paisagens, fatos, lendas, mitos, curiosidades, perguntas, mistérios, horrores, risos, choros, se-gredos. Tudo isso com palavras.

Assim essa pergunta chega ao século XXI. Por trás dela, porém, está a expansão do olhar que nosso tempo aporta e aquilo que poucos, pouquíssimos, admitem: o preconceito.

Como sabemos, a cultura escrita deixou a literatura como arte erudita, destinada a poucos, cultivada por raros, disputada por muitos.

Mas é também verdade que a maioria dos grandes escritores assumiu sua admiração por algo que estava vivo e solto no meio do povo, ainda que a maioria deles estivesse longe daquilo tudo. Camões, Dostoiévski, Fernando Pessoa, Drum-mond, Baudelaire, Borges, Jorge Amado, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Graciliano Ramos e muitos outros escritores admitiram a sua paixão por algo que o popular continha.

Hoje a discussão se amplia porque as univer-sidades não mais se resumem a moças e rapazes que estudam piano em casa, viajam à Europa, vão a Disney “em seus quinze anos”.

Estão lá, por cotas ou não, estudantes da pe-riferia, do interior, indígenas, quilombolas, filhos de terreiros de candomblé, netos de mestres de capoeira, sobrinhas de baianas de acarajé: poetas e escritores que escrevem em outra(s) língua(s). E aí também estão jovens criativos, que desenham em muros ou rabiscam em papéis, quadrinizam narrativas, escrevem seus slams.

Sim, “pensamentos” podem ser literatura, ou alguém hoje se atreveria a dizer que os densos pensamentos de Clarice Lispector não seriam da mais “pura” arte literária? Que os quadrinhos de Neil Gaiman não são literatura? E os tantos diários que são clássicos literários?

E assim seguimos na própria literatura encon-trando respaldo para as inquietações que hoje se tornam gritos de liberdade ou de reivindicação pelo direito à palavra.

Foi desde sempre reconhecida a literatura oral como o nosso berço: da Grécia o que nos chegou há centenas de séculos por escrito, como “A ilíada” ou a “Odisseia”, havia sido, há outras centenas de séculos, oralmente transmitidas. É então estranho quando torcem os olhos para a literatura com base na oralidade, seja ela urbana, rural, regional, continental. Claro, pois: Hip hop, cordel, “causos” contados nas rodas de conversa são literatura!

É possível, com a literatura, ir a tantos lugares, de tantas formas, por tantos caminhos. Por ser de palavras, ela, a literatura, solta-se no mundo e deixa um sob encantamento. Mesmo que não possa dizer se elas, as palavras que encantam, são, ou melhor, “como” são, literatura.

Melhor apenas deixarmos que elas sejam. Foi assim num final de tarde, quando estava com uma comunidade indígena numa montanha nos Andes: ouvindo aqueles indígenas conversarem em uma língua que eu não entendia, tão distante do espa-nhol, tão abrupto e ao mesmo tempo doce, numa

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roda ao redor de uma fogueira, no meio de um nada branco: o que eu ouvia eram histórias, versos, música, lendas... mesmo que eu não pudesse entender uma só palavra.

É assim que volto ao constrangimento e à surpresa a que me referia ao iniciar esse texto: eu poderia mais facilmente dizer o que é literatura: a arte da palavra. Difícil era para mim outra coisa, diferente do preconceito ou da intolerância. O que a pergunta trazia para mim era o desafio de ser honesta e corajosa para dizer se aquilo era ou não literatura. E não por ser fora do “cânone”, mas porque estava em jogo outra coisa: qualidade.

Sim, eu sei que muitos não querem ouvir isso: para ser arte, a palavra tem de ser trabalhada, há que se ter esforço e cuidado, paixão, disposição para refazer, recontar, substituir, recombinar palavras. É isso, apenas.

E assim, Jorge Galdino de Santana, cordelista de Pedrão, próximo a Alagoinhas, é tão literato para mim quanto Fernando Pessoa; GOG traz em suas letras de Hip Hop a poesia que me enriquece como a de tantos outros poetas que respeito por sua erudição; os cadernos de pensamentos de Lurdes, Maria, Joaquina ou Cecília me dizem de sentimentos e da vida como me dizem os pensamentos de Clarice Lispector. E me emociono lendo a história em quadrinhos “Jimmy Corrigan”, de Chris Ware, tanto quanto me emocionaria lendo um clássico como “O idiota”, de Dostoiévski.

O Século XXI é isso: literatura está nos muros, nos blogs, nos terreiros, nas ruas. Sem deixar de estar nas bibliotecas.

É assim que volto ao constrangimento e à

surpresa a que me referia ao iniciar esse texto: eu poderia mais facilmente dizer o que é literatura: a arte da palavra. Difícil

era para mim outra coisa, diferente do preconceito

ou da intolerância. O que a pergunta trazia para mim era

o desafio de ser honesta e corajosa para dizer se aquilo era ou não literatura. E não por ser fora do “cânone”, mas porque estava em jogo

outra coisa: qualidade.

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Page 14: Revista Ateliê

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Rosana Ribeiro Patrício Professora (da Classe de Pleno) da

Universidade Estadual de Feira de Santana. Tem Doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo (1998). Atualmente atua na graduação e pós-graduação da UEFS. Desenvolve pesquisa

sobre a produção de autoras brasileiras, com ênfase em poesia e experiência urbana. Publicou os livros Imagens de mulher em

Gabriela Cravo e Canela, de Jorge Amado (1999) e As filhas de Pandora. Imagens de mulher na ficção de Sônia Coutinho (2006).

E-mail: [email protected]

HELENA PARENTE CUNHA:

CANTOS DE VIAGEM E INVENÇÃO LÍRICA

Page 15: Revista Ateliê

Helena Parente Cunha é uma autora versátil, movimentando-se com desenvoltura na ficção, na poesia, no ensaio e na pesquisa, de modo que o seu trabalho docente e a sua criação literária se amalgamam e se completam. Licenciada em Letras Neolatinas pela Universidade Federal da Bahia, em 1952, a autora recebe uma bolsa de estudos para se especializar em Língua, Literatura e Cultura Italiana em Perugia, na Itália, onde conquistou seu primeiro prêmio literário. Ao retornar ao Brasil, passa a lecionar francês no Colégio Nossa Senhora do Carmo e no Colégio Estadual da Bahia, e italiano na faculdade onde se graduou. Muda-se para o Rio de Janeiro em 1958, onde desenvolve uma intensa atividade docente na UFRJ, na graduação e na pós-graduação em Letras, e integra-se à vida literária carioca, com a publicação de ensaios em diversas revistas nacionais e estrangeiras e vários livros, numa intensa atividade intelectual.

Helena Parente Cunha, atualmente, é Professora Titular aposentada e Professora Emérita da Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro, tendo lecionado na Faculdade de Letras, onde exerceu o cargo de diretora, além de haver sido coordenadora dos cursos de pós-graduação. Nessa instituição obteve os títulos de Mestrado, Doutorado, Livre-Docência e Pós-doutorado. Tem mais de vinte livros publicados, entre poesia, ficção e ensaio, sendo o mais conhecido o premiado romance Mulher no espelho, já em nona edição, e traduzido para o inglês e o alemão. A escritora participou de mais de trinta livros em colaboração com outros autores. Obras suas já foram traduzidas para o inglês, alemão, italiano, francês e holandês. É membro correspondente da Academia de Letras da Bahia, sócia do PEN Clube do Brasil, da União Brasileira de Escritores e do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.

No campo do ensaio, a autora também se destaca, sendo reconhecida como uma instigante pesqui-sadora da condição da mulher na literatura, enquanto representação e como sujeito autoral. A ensaísta lidera um grupo de estudos que vem se debruçando sobre a produção de autoras emergentes, em poesia e em ficção, revelando-as ao público especializado, através de ensaios sobre aspectos relevantes de suas obras.1

Uma de suas obras mais recentes e relevantes é o volume de poemas intitulado Cantos e Cantares.2

O livro é dividido em quatro partes, sendo que em três aparece a palavra “viagem”. Em cantos de uma viagem de Frankfurt a Paris, passando pela primavera, a poeta integra essa época do ano como uma es-tação de viagem, uma passagem, um instante. Consideremos também que se usa o termo viagem quando o indivíduo faz uma incursão para dentro de si mesmo e de suas elucubrações, como uma forma de autoconhecimento, buscando respostas, num exercício de autocompreensão. Certamente Helena Parente Cunha fez também uma viagem interior ao compor esses poemas, como indica a segunda parte do livro, significativamente intitulada “Cantos de uma viagem entre mim e comigo”. Já os poemas dedicados representam, como afirma Constância Lima Duarte “uma doação”3 dessa viagem, um compartilhamento, como se estivesse a dividir com todos os seus entes queridos esses momentos de viagem/travessia.

1 Entre seus livros destacam-se, nessa vertente: Mulheres inventadas, Mulheres inventadas 2, Desafiando o cânone (Org. Coord.), Aspectos da literatura brasileira de autoria feminina dos anos 70/80, prosa e verso. Desafiando o cânone (2)(Org. Coord.), Ecos de vozes femininas na literatura brasileira do século XIX, Além do cânone (Org. Coord.), Vozes femininas cariocas estreantes na poesia dos anos 90, Olhares pós-modernos (Org. Coord.), Estudos de contistas brasileiras estreantes nos anos 90 e 2000.

2 CUNHA, Helena Parente. Cantos e cantares. Nas citações serão utilizadas as iniciais CtC, seguidas do número da página.3 DUARTE, Constância Lima. Prefácio. In: Cantos e cantares, p. 13-17.

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ATELIÊ - A Revista do Colégio MóduloANO V - Nº 07 - AGOSTO 2012

Walter Benjamin em seu antológico ensaio, O narrador4, afirma a necessidade que o narrador viajante tem de contar os seus feitos e acontecimentos de viagem, narrar o que viu e o que sentiu e o que viveu, pois “Quem viaja tem muito o que contar”. Então, a poeta Helena canta suas viagens e impressões e as compartilha com os leitores de forma generosa, ao sugerir aos merecedores da dedicatória: “Mesmo estando longe, lembrei de ti”.

Nos primeiros cantos de uma viagem a Frank-furt, o eu lírico faz a seguinte indagação:

— Onde estão os campos de tulipas?

Os campos de tulipas tradicionais nos países baixos e outras regiões da Europa encantam pela beleza, pela variedade de cores e pelo formato ao lembrarem um turbante invertido. A poeta intro-duz os primeiros cantos com a indagação como se estivesse a registrar essa ausência.

O primeiro poema, intitulado “Metamorfoses” (CtC, p. 21), sugere a ideia de transformação:

Na primavera do lago

as águas eram

mais profundas que fundas

Nestes versos, temos duas referências impor-tantes: à estação do ano, confluindo com a busca pelo campo de tulipas e à água, que é o começo de tudo para a vida, encontrando-se no lago, local onde as águas estão estagnadas, como se a poeta quisesse congelar aquele momento mágico de águas mais profundas do que fundas. O lago simboliza o olho da terra por onde os habitantes do mundo subterrâneo podem ver os homens, os animais, as plantas. Também são considerados como palácios subterrâneos de diamantes, de joias, de cristal, de onde surgem fadas, feiticeiras, ninfas e sereias, mas que também atraem os humanos para a morte. To-mam então a significação perigosa de paraíso ilusório.

4 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. Obras escolhidas, v. 1, p. 197-221.

Simbolizam as criações da imaginação exaltada. No francês coloquial existe a expressão: tomber dans le lac ou cair no lago, significando “cair numa cilada”. Isso se coaduna com o verso final de o lago possuir águas mais profundas que fundas, ou seja a ilusão do que aparenta.

Cerejeiras

vinham ao nosso encontro

recobertas de plenitude

e prenúncios para revelações

As cerejeiras dotadas de um animismo vinham ao encontro daqueles que caminhavam com pre-núncios de revelações.

Metamorfoses

se sucediam

ao soprar do vento e da luz

As transformações aconteciam ali, a par de dois elementos naturais: O vento e a luz. O primeiro senhor das brisas à tempestade e a luz, tão vital para o surgimento da vida, portanto:

O universo acontecia

E começava ali.

A busca da origem da vida oriunda da água, seu repositório no poema: o lago. A origem do universo acontecendo e começando ali, naquele momento a poeta se transporta para milhares de anos atrás, no começo de tudo, tendo a água como criadora, que espelha o mundo. A captação do real através de sensações, a água, unidade primordial da vida, pode ser representada também como meio de purificação e fonte de regenerescência. Sem dúvida uma viagem, e toda viagem sugere transformação/metamorfose, assim como o poder da água de transformar os elementos da natureza e também de regenerar as forças dos indivíduos.

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Page 17: Revista Ateliê

No poema Chá, do livro O outro lado do dia5, encon-tramos a água e uma de suas serventias na elaboração do ritual do chá oriental. Um ritual é o conjunto de gestos, palavras e formalidades, várias vezes atribuídas a um valor simbólico, cuja performance atende a normas da tradição, da religião. Praticado de forma individual ou em grupos, o ritual se afirma por sua recorrência ao longo de gerações, no sentido de preservar e afirmar os ritos e costumes de uma comunidade. Dessa forma, a ingesta do chá é um momento singular, de harmonia e compartilhamento de momentos máximos do humano. Observemos o poema intitulado CHÁ (OLD, p. 88):

CHÁ

A sinceridade da água

A perseverança das brasas

antes de ferver

O sossegado claro da chaleira

E o vagaroso rumor de um gesto.

Flor

Neste poema, o eu lírico destaca a sinceridade da água, como a atribuir a este elemento uma qualidade humana: a honestidade. Imbricadas, a sinceridade/ honestidade conferem ao ritual da preparação e tomada de chá, que é sagrado, o prenúncio da fervura, o chiado da chaleira, como a preparar o gesto final ritualístico: O vagaroso rumor de um gesto. Em estrofe singular, temos a palavra flor: princípio passivo, receptáculo das manifestações naturais como os ventos e as chuvas, o orvalho, portanto produto perfeito como fonte de inspiração de artistas, para harmonizar o universo, sem necessariamente decifrá--lo. Segundo Chevalier & Geerbrant:

São João da Cruz faz da flor a imagem das virtudes da alma, e do ramalhete que as reúne, a imagem da perfeição espiritual. Para Novalis (Heinrich von Ofterdingen), a flor é o símbolo do amor e da harmonia que caracterizam a natureza primordial; a flor identifica-se ao simbolismo da infância e, de certo modo, ao estado edênico.6

5 CUNHA, Helena Parente. O outro lado do dia: poemas de uma via-gem ao Japão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995. Nas citações serão utilizadas as iniciais OLD , seguidas do número da página.

6 CHEVALIER & GEERBRANT. Dicionário de símbolos. 2.ed. Rio de Janeiro; José Olympio, 1989, p. 437.

O ritual do chá é descrito com detalhes no poema seguinte:

O CAMINHO DE AGRADECER

Antes de penetrar

na palha e na madeira fresca da casa

lavo as mãos no jardim.

Sombras verdes

Impregnadas

de sopros de luz

Como limpar o coração de visgo?

Filtrar a mente do pó?

A calma do tatame

Sob os meus pés descalços.

O poema

No desenho das palavras

pendendo

da parede

A alada curva da chaleira

generosa

sobre o repouso das brasas.

O chá

espuma verde a me tremer

no gesto livre de entregar as mãos.

Agradeço intensa

e a paz conhece

os meus membros cedidos.

(OLD, p. 90)

De acordo com Chevalier & Gheerbrant, “na Ásia, a água é a forma substancial da manifestação, a origem da vida e o elemento da regeneração corporal e espiritual, o símbolo da fertilidade, da

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pureza, da sabedoria, da graça e da virtude”.7 Essa simbologia impregna os versos da autora, num gesto de valorização e assimilação de um dado da cultura oriental. Na sua poesia, a água assume os sentidos de que falam os teóricos citados: “Fluida, sua tendência é a dissolução; mas, homogênea também, ela é igualmente o símbolo da coesão, da coagulação.”8

O CAMINHO DA ESPERANÇA

Do fundo redondo

da taça de chá

emergem

ante meus olhos cerrados

as louras tranças

dos cedros

cingidos de sol.

Uma água feliz e lúcida

Lava meus joelhos

Passa

Tomo o chá

e meu coração recomeça

com o ar bom

que vem do calado

das montanhas

Calado alto

Remoto.

(OLD, p. 91)

O ritual do chá é uma das principais artes da cultura oriental. Pode-se dizer que representa a síntese da cultura e do espírito japonês. A popularidade do chá é universal e sua preparação é uma forma de arte. A sua ingestão favorece o estudo e a meditação e, consequentemente, é uma forma de atingir o estado de serenidade e autoconhecimento. A primeira estrofe é representativa de um momento de concentração.

7 CHEVALIER & GHEERBRANT. Op. cit., p. 15.8 Loc cit.

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A água comparece mais uma vez com atribuições de um sentimento humano. O verbo passa em estrofe única sugere que o eu lírico passa a um outro estágio desse ritual. Ao final, o eu lírico se transporta às montanhas, dentro do espírito meditativo proposto pelo ritual do chá.

O alto da montanha, o lugar remoto, o ermo e a busca de solução e autoconhecimento. Segundo o poeta Carlos Nejar:

A poesia de Helena Parente Cunha – mansa, suave, oriental na economia do verbo, lúcida no encantamento, serena diante do desconhecido, amorosa de infância, fiel de amor na fonte da luz, musical, parceira de metáforas fraternas, entendida na esperança, essa poesia merece a ditosa cumplicidade dos leitores e a admiração da vida – de quem ela cuida, severa, entre palavras, sendo capaz de, sabiamente calar, para dizer ainda mais inexoravelmente.9

A obra lírica de Helena Parente Cunha se afirma a cada novo livro, compartilhando o espaço de leitura, de divulgação e de análise das diversas manifestações da lírica contemporânea. Sua poesia se particulariza como uma espécie de ritual poético, fundado sobre os elementos e as memórias, representados pelas im-pressões de viagens ao Japão e à Europa, afirmando-se como um exercício ritual de rememoração, além do sentimento de solidão, de apreciação da palavra poética como forma de autoconhecimento e enfrentamento das questões existenciais. Trata-se de uma autora empenhada na busca e na afirmação de uma escrita que representa a marca e a vivência da mulher emancipada cujo discurso demonstra a liberdade de ver/sentir/codificar o mundo, segundo seu próprio olhar. Enfim, em sua obra a palavra surge e se cria através de uma inteligência sensível, que elabora a poesia a partir das vivências e da captação dos sentidos dos mínimos gestos e fatos do cotidiano.

9 NEJAR, Carlos. Texto da orelha. In: CUNHA, Helena Parente. Além de estar: antologia poética. Rio de Janeiro: Imago; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 2000.

REFERÊNCIAS: AZEVEDO FILHO, Leodegário (org.). Moderna poesia baiana. Antologia Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.

CUNHA, Helena Parente. Corpo no cerco. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 3ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. Obras escolhidas, v. 1, p. 197-221.

CHEVALIER & GEERBRANT. Dicionário de símbolos. 2ed. Rio de Janeiro; José Olympio, 1989, p. 437.

CUNHA, Helena Parente. Maramar. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Brasília, INL, 1980.

CUNHA, Helena Parente. O outro lado do dia: poemas de uma viagem ao Japão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.

CUNHA, Helena Parente. Cantos e Cantares. Poemas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005.

CUNHA, Helena Parente. Caminhos do quando e além: poesia diálogo com poemas de Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007.

CUNHA, Helena Parente. Além de estar: antologia poética. Rio de Janeiro: Imago; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 2000.

FLORES, Conceição. Apresentação. In: CUNHA, Helena Parente. Falas e Falares. Ilha de Santa Catarina: Ed. Mulheres, 2011, p. 15.

LYRA, Pedro. O real no poético. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL/ MEC, 1980, p. 197.

SOARES, Angélica Maria Santos. A celebração da poesia. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL/MEC, 1983, p. 97.

SOARES, Angélica. “Ilimitáveis da memória/exercícios de metamemória (Cecília Meireles, Marly de Oliveira, Helena Parente Cunha, Astrid Cabral)”. Scripta. Belo Horizonte: PUC Minas, v. 10, nº 19, 2. sem/2006, p. 95-107.

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Flávio José Gomes de Queiroz ( )E-mail: [email protected]

QUÃO ANTIGA É A MÚSICA?

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No tempo em que cursei o ginásio, no início da década de 1970, a professora de História Universal era a responsável por nos informar algo acerca da história das artes: arquitetura (com ênfase nas construções da Mesopotâmia e do Egito antigo e nas catedrais góticas) e pintura (especialmente a do Renascimento). Com relação à música, nada: nem Beethoven, nem Villa-Lobos, nem Chico Buarque, nem nada sobre o seu desenvolvimento ou como chegou até nós nas manifestações e formatos hoje conhecidos. Afinal, quão antiga é a música?

Independentemente dos estudos na escola, temos mais ou menos consciência da grande diversidade musical do nosso país. Além disso, temos alguma noção acerca da música de outros povos; presumo também que todos temos alguma ideia acerca da música de Beethoven (1770 – 1827) e de outros grandes nomes da chamada música erudita, como Chopin (1810 – 1849), Brahms (1833 – 1897) e outros. Todos esses foram herdeiros, de uma ou outra maneira, da arte de J. S. Bach (1685 – 1750), cuja obra influencia criadores ainda hoje. Seus biógrafos afirmam que Bach copiou à mão obras de diversos mestres, entre os quais Girolamo Frescobaldi (1583 – 1643), um dos maiores organistas de seu tempo; este foi aluno de Luzzasco Luzzaschi (1545 – 1607), que foi aluno de Cipriano de Rore (1515/16 – 1565).

Bem, poderíamos avançar rumo ao passado, revelando os mestres dos mestres, até chegarmos a um tempo onde não se costumava assinar as criações musicais. Aí, as fontes impressas são escassas e a pesquisa musicológica encontra sérias dificuldades, por razões óbvias.

A música mais antiga que podemos desfrutar ainda hoje no ocidente teve o seu apogeu lá pelo século VII, o período áureo do cantochão. Mas todo esse repertório foi compilado a partir de 850 e manuscritos anteriores são bastante raros.

A Igreja, por sua vez, foi herdeira das tradições musicais dos seus primeiros seguidores. Assim, tradições judaicas, siríacas, gregas, entre outras, estão nas raízes da música cristã. Veremos, a seguir, alguns nomes importantes na construção da música eclesiástica: no século IV, Atanásio de Alexandria relatava que em igrejas de Mileto ouvia-se na liturgia “cantos alegres com palmas ritmadas”. Era comum, então, o canto antifonal (um coro respondendo a outro), prática introduzida por São João Crisóstomo em Constantinopla e por Santo Ambrósio em Milão (por volta de 374). Estes dois, unidos a Agostinho de Hipona (354-430), lutaram pela permanência da música na igreja, contra a vontade dos padres do deserto, que não a toleravam.

Depois de 398, São João Crisóstomo e São Ba-sílio, o Grande, encomendaram a criação de hinos

para a liturgia. O século V viu surgirem diversas coletâneas de cânticos religiosos, entre os quais os de Tímocles, Próclo e Anatólio. No século VI, Romano (de Beirute), o Melódio, compôs os seus kontakia, coleção de cânticos de 18 a 24 estrofes que vieram a ter importante papel na igreja grega. São conhecidos devido a transcrições dos séculos XII, XIII e XIV em notação “mediobizantinas”.

Com relação à igreja do Oriente, sabe-se que o imperador Flávio Pedro Sebáceo Justiniano, o Justi-niano I, que governou entre 527 a 565, organizou a liturgia para a famosa catedral de Santa Sofia (na atual Istambul).

É provável que o documento mais antigo que contenha cantos cristãos seja um dos papiros de Oxirrinco (Egito), que data do século III. Mostra um hino em notação musical vocal grega (CANDÉ, p. 77 e 188).

A civilização romana foi herdeira da grega em muitos aspectos, inclusive na música. Havia a distinção entre música popular e música “erudita”, associadas a conceitos éticos: “música boa” e “música ruim”.

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ATELIÊ - A Revista do Colégio MóduloANO V - Nº 07 - AGOSTO 2012

A música era pensada também em termos educacio-nais – basta ver os escritos de Platão e Aristóteles, por exemplo, a esse respeito. Tinham uma teoria musical bastante complexa e conheciam inúmeros instrumentos musicais. Alguns exemplos musicais dessa época sobrevivem, destacando-se um papiro de Zenão (c. 250 a.C.) e uma melodia no famoso epitáfio de Seikilos, na Ásia Menor, datando do sé-culo II a.C. (vale a pena dar uma olhada no capítulo “A herança antiga e o canto cristão” em CANDÉ, citado nas referências).

Avançando rumo ao passado, chegamos à rica civilização do Egito, que certamente conheceu uma gran-de diversidade musical, como atestam pinturas em tumbas e templos as quais mostram músicos e dançarinos. Inúmeros instrumentos musicais, ou seus fragmentos, re-manescentes de algumas dinastias, também chega-ram até nós: claquetes (possíveis precursores das castanholas espa-nholas), tambores, sinos; instrumentos de cordas,

como harpas e liras; instrumentos de sopro, como flautas diversas, clarinetes antigos (lembrando o atual zummara), trombetas de vários tamanhos, entre outros, podem ser contemplados nas referidas pin-turas. Sabe-se mesmo que um tipo de lira gigante era bastante usada em torno de 2.500 a.C., como as reveladas em gravuras em Susa e Uruk. É sabido que o rei Ahmose (c. 1535 a.C.) possuía uma harpa de ébano, ouro e prata e o rei Tutmosis III (o sexto

faraó da VXIII dinastia) encomendou uma harpa com incrustações de prata, ouro, lápis-lazúli, malaquita e outras pedras preciosas (ver o artigo de DUNN, indicado abaixo).

Antes dos egípcios, os sumérios e acadianos já tinham liturgias organizadas com orações cantadas (“hinos ou salmos”) e instrumentos musicais (ver os primeiros capítulos de ROBERTSON e STEVENS). Há indícios de que essa civilização tenha efetuado trocas culturais e comerciais com os povos de Ha-rappa e Mohendjo-Daro, na Índia (veja BROWN nas referências).

Enfim, as altas culturas do Oriente (Japão, Co-reia, China) também têm a origem de suas músicas encoberta na noite dos tempos... Apenas para se ter uma ideia, em 1986 foram descobertas em Jiahu, na província de Henan, na China, diversas flautas de osso de uma ave local. As flautas têm de cinco a oito furos, algumas delas são, ainda, “tocáveis”. Nelas podem ser tocadas escalas de cinco e sete notas de xia zhi e de seis notas de qing shang, dos antigos sistemas musicais chineses (ver Prehistoric music nas referências abaixo).

A mais antiga evidência concreta da música entre humanos foi descoberta em 2009: uma flauta quase completa, feita de osso de ave (provavelmente algum tipo de abutre) e fragmentos de outras três flautas feitas de marfim foram encontrados em cavernas no sudoeste da Alemanha. Foram estudados pela equipe do professor Nicholas Conard1 (Universidade de Tübingen). Datam do período aurignaciano inicial, entre 30.000 e 32.000 anos atrás.2

1 O artigo pode ser lido na íntegra no site da Revista Nature (New flutes document the earliest musical tradition in southwestern Germany, em www.nature.com).

2 Muitos sustentam que o famoso fragmento de flauta de osso de urso (três furos) encontrado na Eslovênia, na região de Divje Babe, que data de mais ou menos 40.000 atrás seria o “instru-mento” mais antigo. Há discórdia na questão: outros pesquisado-res creem que os orifícios não são obra humana, mas causados por mordidas de outros animais. Veja a discussão em KLEIN e EDGAR, p. 160 a 163.

Independentemente

dos estudos na escola,

temos mais ou menos

consciência da grande

diversidade musical do

nosso país. Além disso,

temos alguma noção

acerca da música de

outros povos...

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Há, entre certos povos, músicas que só podem ser cantadas por homens ou por mulheres. Outras, apenas em determinadas épocas do ano. Outros cânticos favorecem a caça, a colheita, o nascimento de crianças. Certas melodias “perdem força” se cantadas inadequadamente...

A etnomusicologia aproximou-se de muitas dessas questões ao estudar a música de povos não industria-lizados; embora em desuso, o termo “música primitiva” era empregado pelos pesquisadores até meados do séc. XX nessa matéria. Tais estudos tomam emprestadas ferramentas da sociologia, psicologia, antropologia, religião, linguística etc.

Para Candé (p.46), o “homo musicus emerge do homo sapiens” a partir da experiência individual de emoções e intenções expressivas trazidas à consciência (70.000 anos atrás?). Posteriormente, a fabricação de objetos sonoros (caráter mágico?) vai se associando à fala e ao canto, fazendo surgir a consciência musical (há cerca de 40.000 anos?). Por fim, os fenômenos sonoros se organizam de maneira sistemática, provavelmente por pressão social; o gesto se associa ao canto, e surgem as primeiras civilizações musicais (c. 9.000 anos atrás).

Mas, como essas culturas desenvolveram suas músicas? Como descobriram propriedades sonoras em cordas, madeiras etc.? Como conceberam a criação de instrumentos musicais ou elaboraram sistemas musicais?

Teria a música origem na imitação das vozes de animais? Iniciou-se com a necessidade de se emitir sinais sonoros, quando do deslocamento de grupos humanos? Nasceu da comunicação entre mãe e bebê? Originou-se de ruídos causados pelos batimentos de pedras e paus? Trabalho? Brincadeiras? Intercalavam os “protomúsi-cos” esses ruídos com palmas, pisadas fortes, com “batuques” sobre outras partes de seus próprios corpos? A origem da música estaria relacionada à origem da linguagem? Da formação de conceitos?3 E depois, como se deu a transmissão desse conhecimento, ao longo dos séculos?

Provavelmente, para sermos honestos, nunca vamos ter respostas definitivas a essas perguntas. Mas, sem dúvida, a busca por nossas origens permanece um dos mais instigantes campos da pesquisa científica.

3 Ver o capítulo Inteligência, linguagem e a mente humana in LEAKEY e LEWIN.

REFERÊNCIAS:BROWN, Dale (ed.). Índia Antiga. Coleção Civilizações Perdidas. Rio de Janeiro: Abril, 1999.

CANDÉ, Roland de. História Universal da Música, 2 vols. Tradução de Eduardo Brandão, da edição de 1978. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

DUNN, Jimmy. An introduction to ancient egyptian music. Disponível em: http://www.touregypt.net/featurestories/music.htm (último acesso em: 27 de setembro de 2011).

KLEIN, Richard G. e EDGAR, Blake. O despertar da cultura – a polêmica teoria sobre a origem da criatividade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

LEAKEY, Richard E. e LEWIN, Roger. Origens. São Paulo: Melhoramentos/ed. Universidade de Brasília, 1980.

Música paleolítica. Acessível em: http://agencia.fapesp.br/10685, 25/06/2009.Prehistoric music: Map. Acessível em: http://maps.thefullwiki.org/Prehistoric_music (último acesso em 07/12/2011).

ROBERTSON, A. e STEVENS, D. (orgs.) Historia general de la musica. Madri: Istmo/ Alpuerto, 1985.

WELLESZ, Egon, ed. Ancient and oriental music (New Oxford History of Music, v. I. Oxford: Oxford University Press, 1999.

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BULLYING: CONCEITO

E CONTEXTOS DA VIOLÊNCIA

Telma Brito Rocha ( )Pedagoga, Mestre e Doutoranda em Educação (UFBA)Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e

Tecnologia da Bahia. Autora do livro Cyberbullying: ódio, violência

virtual e profissão docente. Brasilia: LiberLivro, 2012; Co-autora do Livro A Vida no Orkut: narrativas e aprendizagens nas redes sociais, EDUFBA, 2010.

E-mail: [email protected]

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BullyingExpressão inglesa derivada do adjetivo bully, que significa valentão, brigão. Foi cunhado pela primeira

vez pelo norueguês Dan Olweus, em 1970. Em sua definição, bullying refere-se à exposição de um indivíduo ou grupo de indivíduos a ações negativas, que envolvem comportamento agressivo e incomoda o outro por meio de palavras, ações, contatos físicos, gestos obscenos, exclusão etc.

Os estudos sobre o bullying iniciaram no final dos anos 60 e início dos anos 70. Na época, as inves-tigações ocorreram na Escandinávia. Somente entre os anos 80 e 90, é que apareceram no Japão, Irlanda, Reino Unido, Austrália e Canadá, entre outros países. Nessa época eram identificados como “fenômeno” ou “síndrome social”, por se tratar de um conceito que se constituía a soma de diversas características, consequências, variáveis individuais e grupais.

A prática de bullying pode ser observada nas escolas e em outros ambientes de trabalho, na casa da família, nas forças armadas, prisões, condomínios residenciais, clubes e asilos, como apontam Smith e outros pesquisadores (2002) e Fante (2005).

Recentes pesquisas demonstram um aumento na incidência do bullying e revelam que tais comportamen-tos agressivos são usualmente dirigidos a minorias, com características físicas, socioeconômicas, de etnia e orientação sexual diferentes do “padrão” de normalidade estabelecido socialmente. Por exemplo, crianças e adolescentes que possuem alguma deficiência são mais alvo de bullying do que aquelas que são conside-rados “normais”. Ser diferente é um pretexto para que o autor do bullying satisfaça a sua necessidade de agredir, ofender e humilhar alguém. Os agressores buscam em suas vítimas algumas diferenças em relação ao grupo no qual estão inseridos. Ou seja, a prática de bullying constitui-se uma prática de preconceito, de rejeição perversa, que priva o indivíduo, considerado diferente e inferior, de sua dignidade e de seu direito de participar e existir socialmente.

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Assim, o bullying apresenta uma implicação aos princípios democráticos universais. Uma sociedade que não respeita o direito e a integridade física, moral de um indivíduo, onde cada um segue suas vontades próprias, sem limites e respeito aos diferentes grupos sociais, contribui ainda mais para se estabelecer vio-lência e opressão. Nesse sentido, as motivações do bullying podem também ser explicadas na concepção que os indivíduos possuem de sociedade, cultura, das noções de poder, privilégio e respeito.

Mesmo com o aumento do bullying na escola e em nossa sociedade, alguns familiares de vítimas e agressores desconhecem a incidência desse fenômeno, suas características, ou as graves consequências dos atos cruéis e intimidadores. Por conta desse desco-nhecimento, ele é confundido com a indisciplina ou brincadeiras entre alunos ou grupos de alunos, por vezes de caráter físico, que envolvem contato pessoal, discussões ou brigas corriqueiras, ocasionais, em pares de igual força e poder.

Peter K. Smith (2002), pesquisador da University of London, define bullying como um subconjunto de comportamentos agressivos de natureza repeti-tiva, que se baseia numa relação de poder. Segundo o autor, sua natureza repetitiva se dá pelo fato de que uma mesma pessoa é alvo da agressão várias vezes, pelos mais diferentes motivos, e não pode se defender eficazmente das agressões.

Assim, os agressores se valem dessa incapacidade para infligir dano, seja porque alcançaram algum tipo de gratificação emocional com tal postura, seja porque pretendem obter alguma vantagem específica, como se apossar de dinheiro ou de objetos da vítima, ou ainda solidificar posições na hierarquia do grupo onde estão inseridos, ou aumentar sua popularidade entre os demais colegas.

É consenso na literatura autores concordarem que o bullying se manifesta através de comporta-mentos agressivos, baseados numa relação de poder. Costantini (2004, p. 69) afirma que

[...] o bullying não são brigas normais que ocor-rem entre estudantes, mas verdadeiros atos de intimidação preconcebidos, ameaças que sistemati-camente, com violência, física e psicológica, são re-petidamente impostas a indivíduos particularmente mais vulneráveis e incapazes de se defenderem, o que leva a uma condição de sujeição, sofrimento psicológico, isolamento e marginalização.

O autor em sua definição ainda aponta que o bullying, sendo uma prática de comportamento ligada à agressividade física e psicológica, pode ser confundido com comportamentos casuais. Desse modo, ele diferencia os comportamentos normais, como agressões esporádicas entre estudantes, das práticas de bullying, que são intencionais e repetitivas contra a mesma vítima.

O bullying pode se manifestar de maneira variada, através de violência física e agressões, linguagem vulgar, apelidos, humilhações, ameaças, intimidações, extorsão, furtos e roubos, ou, ainda, exclusão de um determinado grupo.

Martins (2005) classifica o bullying da seguinte forma: direto e físico, que inclui agressões físicas, roubar ou estragar objetos dos colegas, extorsão de dinheiro, forçar comportamentos sexuais, obrigar a realização de atividades servis, ou a ameaça desses itens; direto e verbal, que inclui insultar, apelidar, “tirar sarro”, fazer comentários racistas ou que digam respeito a qualquer diferença no outro; e indireto que inclui a exclusão sistemática de uma pessoa, realização de fofocas e boatos, ameaçar de exclusão do grupo com o objetivo de obter algum favorecimento, ou, de forma geral, manipular a vida social do colega.

Assim, o bullying é um conceito bem definido, peculiar, com características próprias, que muitas vezes antecede e indica as prováveis manifestações mais amplas de violência, que podem não ser percebidas. Exemplo

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disso é a violência nas escolas, nos EUA e recentemente no Brasil em Escola de Realengo no Rio de Janeiro, que assemelha aos rituais de massacre e violência em escolas norte-americanas. A tragédia de Columbine, em 1999, na qual dois estudantes, vítimas de bullying, mataram 13 pessoas em uma escola do Colorado. Em Estados como Littleton, Springfield, Oregon, West Paducah, Kentucky, Jonesboro, comunidades escolares também vivenciaram tiroteios, mortes de inocentes, situações semelhantes à de Columbine. O mesmo ocorreu em Virgínia (leste dos EUA), em abril de 2007, e chocou o país. O estudante sul-coreano Cho Seung-Hui matou 32 pessoas antes de se matar no campus da Virginia Tech, ao disparar mais de 170 tiros em nove minutos. O serviço secreto dos EUA, juntamente com o Departamento de Educação, ao analisar os casos de violência nas escolas, apontou uma forte relação com o fato de que autores desses incidentes, em algum momento, estiveram envolvidos em casos de bullying. (U.S. SECRET SERVICE, 2002)

É forte a correlação entre autores de bullying e o tipo de educação negligente. Estudos têm encon-trado nas famílias desses autores, comportamentos tais como distância emocional entre os parentes, deficiência afetiva e disciplina inconsistente na relação com as crianças. Para DeHaan (1997), as crianças que experimentam relações familiares marcadas pela frieza e com escasso monitoramento tendem a ser mais agressivas. Carvalhosa e outros autores (2002) apon-tam correlações entre autores de bullying e convívio com pais pouco afetivos e incapazes de elogiar seus filhos. Blaya e Hayden (2002) agregam ainda fatores econômico-sociais às famílias de crianças agressoras. Para a autora, pais que vivem sob forte tensão, que estão desempregados, que têm trabalho inseguro e de baixa remuneração, sofrem fortes fatores que geram predisposição à agressão.

É importante não negar a influência dos fatores familiares sobre o comportamento de crianças e adolescentes agressivos. No entanto devemos sa-lientar que as explicações não devem ser absolutas na justificativa dessas ocorrências. Essas análises não devem ser deterministas, devem estar aliadas a outros fatores para que se reconheçam as variáveis estruturais e contextuais desse fenômeno.

Sendo assim, o enfoque dado para tratar das influências dos agressores deve também ser explicado

a partir dos fatores internos ligados à organização escolar, aos conflitos gerados pelos adultos nesses ambientes e às questões da personalidade dos autores. Características da escola, suas normas e disciplinas, a forma como os professores lidam com os conflitos acabam por não contribuir com a minimização do problema. As escolas, muitas vezes, para combater o bullying criticam e controlam de maneira punitiva seus autores, o que gera mais violência e revolta. Os educadores precisam entender que as influências de comportamentos agressivos são múltiplas e complexas.

Sobre a popularidade dos autores de bullying, existem conclusões distintas. Fante (2005, p. 73, grifos nossos) afirma que o agressor “[...] costuma ser um indivíduo que manifesta pouca empatia”.

[…] normalmente se apresenta mais forte que seus companheiros de classe e que suas vítimas, em particular; podem ter a mesma idade ou ser um pouco mais velho que suas vítimas; pode ser fisi-camente superior nas brincadeiras, nos esportes e nas brigas, sobretudo nos casos dos meninos. […] é mau-caráter; impulsivo, irrita-se facilmente e tem baixa resistência a frustrações. Custa a adaptar-se às normas. Adota condutas antissociais, incluindo o roubo, o vandalismo e o uso de álcool, além de sentir-se atraído por más companhias.

Também não existe consenso na literatura a res-peito da autoestima dos autores de bullying. As visões

Uma sociedade que não respeita o direito e a

integridade física, moral de um indivíduo, onde cada um segue suas vontades próprias,

sem limites e respeito aos diferentes grupos sociais, contribui ainda mais para se estabelecer violência e

opressão.

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mais tradicionais vinculam baixa autoestima entre características dos agressores. Um estudo finlandês identificou nos autores e naqueles que o apoiam, al-gum tipo negativo de autoestima, ou seja, autoestima defensiva, um tipo de personalidade que é incapaz de qualquer autocrítica. (SALMIVALLI et.al., 1999)

No entanto, existem trabalhos que evidenciam o contrário e vinculam comportamento agressivo a uma presença elevada de autoestima. Olweuls (1993) assinala que os autores do bullying não possuem autoestima baixa, e seus níveis de ansiedade são menores em relação às vítimas.

Por outro lado, a imagem de garoto(a) mau(má), como atributo importante para intimidar outros colegas, cometer ameaças, não pode ser entendida como regra máxima. Essas características atribuídas individualmente não funcionam sempre na prática do bullying. Um aluno fisicamente fraco pode se revestir de muito poder e usá-lo contra os demais. Neste caso, ele pode se aliar a um grupo de alunos e atuar em conjunto. Aqui, o bullying é denominado de coletivo.

Considerando que, na escola, os alunos têm como características a formação de grupos baseados em interesses em comum, e que existem ainda as divergências e conflitos de interesses entre grupos, isto já é suficiente para existir um sentimento de rivalidade e justificar a prática de bullying coletivo.

O bullying ainda apresenta duas características subjetivas importantes na compreensão desse fenô-meno. A satisfação obtida pelo agressor na medida em que impõe sofrimento e a sensação da vítima de estar sendo oprimida. Segundo Pereira (2009, p. 32), os atos de bullying são divertidos porque

[...] humilham a pessoa vitimada. Quando esta aceita de forma pacífica torna-se alvo de chacota também para outros alunos. O agressor se sente bem, pois para a sua turma ele é “o poderoso”, ele se satisfaz ao ver o riso dos colegas ou muitas vezes se sente vingado pelas agressões ou humilhações que sofre em outros ambientes, entre eles, o familiar ou simplesmente porque a educação que recebe dos pais serve de incentivo

à violência e ao sadismo, neste caso dando-lhe prazer ao ver o sofrimento da sua vítima.

Como se pode notar, os autores tratam o bullying como um comportamento agressivo e perigoso, quando alguém oferece, conscientemente, algum tipo de dano ou desconforto à outra pessoa ou grupo de pessoas.

É pertinente considerar que os atos de bullying se diferenciam de brincadeiras entre alunos ou grupos de alunos, por vezes de caráter físico, que envolve contato pessoal, discussões ou brigas ocasionais em pares de igual força e poder.

Embora não haja estudos precisos sobre mé-todos educativos familiares que incitem o desen-volvimento de alvo de bullying, algumas atitudes de pais para com a educação de seus filhos podem ser identificados como facilitadores. Lopes Neto (2005, p. S167) apontou [...] proteção excessiva, gerando dificuldades para enfrentar os desafios e para se defender; tratamento infantilizado, causando desenvolvimento psíquico e emocional aquém do aceito pelo grupo [...]” podem contribuir para que alguém se torne vítima.

Lopes Neto (2005) ainda aponta que é pouco comum que a vítima revele espontaneamente o bullying sofrido, seja por vergonha, seja por temer retaliações, seja por descrer nas atitudes favoráveis da escola seja por recear possíveis críticas. Na pes-quisa da ABRAPIA, em 2004, 41,6% dos alunos alvos admitiram não terem falado a ninguém sobre seu sofrimento. Para eles, o silêncio só é rompido quando sentem que serão ouvidos, respeitados e valorizados. Conscientizar as crianças e os adoles-centes que o bullying é inaceitável, e que não será tolerado, permite o enfrentamento do problema com mais firmeza, transparência e liberdade.

Já a vítima agressiva é aquela que, diante dos maus-tratos que sofre, reage igualmente com agressividade. Fante (2005, p. 72) diz que “[…] é aquele aluno que, tendo passado por situações de sofrimento na escola, tende a buscar indivíduos

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mais frágeis que ele para transformá-los em bodes expiatórios, na tentativa de transferir os maus--tratos sofridos”.

Exemplo desse tipo de vítima foi o caso do menino australiano Casey Heines, de 15 anos, que, depois de sofrer bullying, revidou com um golpe o ataque que sofria de um colega de escola. Foi uma cena violenta. Em 2011 esta imagem correu o mundo. Para ver o vídeo acesse: http://www.youtube.com/watch?v=S7EmG6RdaU0.

Segundo Lopes Neto (2005), a combinação da baixa autoestima e atitudes agressivas e provocativas é indicativa de uma criança ou adolescente que tem como razões para a prática de bullying prováveis

alterações psicológicas, devendo merecer atenção especial. Podem, segundo ele, ser depressivos, inseguros e inoportunos, procurando humilhar os colegas para encobrir suas limitações. Sintomas depressivos, pensamentos suicidas e distúrbios psiquiátricos são mais frequentes nesse grupo.

A vítima provocativa, segundo Fante (2005), é aquela que provoca e atrai reações agressivas contra as quais não consegue lidar com eficiência. É geniosa, tenta brigar ou responder quando é atacada ou insultada, geralmente de maneira ine-ficaz. Pode ser uma criança hiperativa, inquieta, dispersiva e ofensora.

Ainda temos o grupo de testemunhas que são

aqueles que presenciam as agressões e não se envolvem diretamente com o bullying. Geralmente convivem com o problema, mas se calam com medo de serem futuros alvos. Para Fante (2005) e Lopes Neto (2005), as testemunhas, por não saberem como agir e por descrerem nas atitudes da escola, optam pelo clima de silêncio, o que contribui para que os autores afirmem ainda mais seu poder, ajudando a acobertar a pre-valência desses atos. A forma como essas testemunhas reagem ao bullying permitiu a Lopes Neto (2005, p. S168) classificá-los como: “[...] auxiliares (participam ativamente da agressão), incentivadores (incitam e estimulam o autor), observadores (só observam ou se afastam) ou defensores (protegem o alvo ou chamam um adulto para interromper a agressão)”.

O autor aponta que muitas testemunhas acabam por acreditar que o uso de comportamentos agressivos contra os colegas é o melhor caminho para alcançarem a popularidade e o poder e, por isso, tornam-se autores de bullying. Outros podem apresentar prejuízo no aprendizado; receiam ser relacionados à figura do alvo, perdendo seu status e tornando-se alvos também; ou aderem ao bullying por pressão dos colegas. Quando as testemunhas interferem e tentam cessar o bullying, essas ações se tornam efetivas na maioria dos casos.

Como se pode notar, o simples testemunho de atos de bullying já é suficiente para causar desconten-tamento com a escola e comprometimento do desenvolvimento acadêmico e social.

As características pessoais, familiares e as várias correlações encontradas na experiência de vitimização não significam, necessariamente, uma causação absoluta. Evidentemente, as crianças e adolescentes não são acometidas de maneira uniforme, mas existe uma relação direta com a frequência, duração e severidade dos atos de bullying.

ConclusãoAs escolas devem saber das medidas judiciais que professores e familiares podem tomar e ações pedagógicas que

devem ser implementadas para tratar o bullying. Sem isso, os alunos continuarão a repetir essas atitudes porque terão certeza da impunidade. Vão continuar sentindo-se à vontade para denegrir a imagem de colegas e até de professores ou de qualquer outra pessoa. E isso não deve ser permitido, pois pode comprometer a formação do próprio aluno.

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ATELIÊ - A Revista do Colégio MóduloANO V - Nº 07 - AGOSTO 2012

É preciso saber que as vítimas de bullying têm o direito de prestar queixa e pedir sanções penais. Caso o autor das ofensas tenha menos de 16 anos, os pais serão processados por injúria, calúnia e difamação; se tiver entre 16 e 18 anos, o aluno responderá junto com os pais; e, se for maior, assumirá a responsabilidade pelos crimes. Outras dicas pedagógicas são fundamentais e podem ajudar na conscientização dos alunos: dialogue com eles sobre o bullying para que eles não vejam essa atitude como brincadeira. Mostre a repercussão e responsabilidade jurídica que esses atos podem levar. Converse também com os pais, realize palestras com toda comunidade escolar. Verifique se o regimento interno da escola prevê sanções a quem pratica atos agressivos. Em caso negativo, discuta com colegas gestores a possibilidade de incluir o tema. Realize projetos na escola, forme os próprios alunos para que sejam os protagonistas de ações de solidariedade e apoio às vítimas de bullying. Para os familiares: participem mais da vida escolar de seu filho, combatam as agressões com diálogo; é preciso participar da comunidade escolar como espaço de aprendizagens, cooperação e formação. Aos docentes: conheçam as representações que os alunos possuem sobre a escola, o que pensam sobre este espaço, sua prática pedagógica e reflitam sobre elas. Assim, poderemos começar a trilhar um caminho mais eficaz em relação ao combate do bullying na escola e em outros espaços sociais.

REFERÊNCIAS:BLAYA, C; HAYDEN, C.l. (Org.). Comportamentos violentos e agressivos nas escolas inglesas. Brasília, DF: Unesco, 2002. p. 131-152.

CARVALHOSA, S. F. de; LIMA, L.; MATOS, M. G. de. Bullying: a provocação/vitimação entre pares no contexto escolar português. Análise Psicológica, v. 20, n. 4, p. 571-585, nov. 2002. Disponível em: <http://www.scielo.oces.mctes.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0870--82312002000400003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 2 nov. 2007.

CONSTANTINI, A. Bullying: como combatê-lo?: prevenir e enfrentar a violência entre jovens. São Paulo: Itália Nova, 2004.

DEHAAN, L. Bullies. 1997. Disponivel em: <http://www.ndsuext.nodak.edu>. Acesso em: 23 ago. 2009.

FANTE, C. Fenômeno bullying: como prevenir a violência nas escolas e educar para a paz. 2. ed. Campinas, SP: Versus, 2005.

LOPES NETO, A. A. Bullying: comportamento agressivo entre estudantes. Jornal de Pediatria, Porto Alegre, v. 81, n. 5, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/cgi-bin/wxis.exe/iah>. Acesso em: 10 maio 2009.

MARTINS, M. J. D. O problema da violência escolar: uma clarificação e diferenciação de vários conceitos relacionados. Revista Portuguesa de Educação, v. 18, n. 1, p. 93-105, 2005.

NOGUEIRA, R. M. C. P. de A. A prática de violência entre pares: o bullying nas escolas. Revista Iberoamericana de Educación, n. 37, p. 93-102, 2005. Disponível em: <http://www.rieoei.org/rie37a04.htm>. Acesso em: 25 out. 2009.

______. Violências nas escolas e juventude: um estudo sobre o bullying escolar. 2007. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?elect_action=&co_obra=80848. Acesso em: 28 ago. 2010.

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PEREIRA, S. M. de S. Bullying e suas implicações no ambiente escolar. São Paulo: Paulos, 2009.

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SMITH, P. K. Intimidação por colegas e maneiras de evitá-la. In: DEBARBIEUX, E.; BLAYA, C. Violência nas escolas e políticas públicas. Brasília, DF: Unesco, 2002. p. 187-205.

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Page 31: Revista Ateliê

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poemasPOEMAS

SIGA

A MULHER E O ESPELHO

Otávio Bonfim ( )E-mail: [email protected]

AMAR O AMOR

Carlos Sarno ( )Jornalista, Publicitário e DramaturgoE-mail: [email protected]

DA ÍNDIA DOS ANDES PARA FERNANDO PESSOA

ENTRE LÁGRIMAS

DESCANSO EM PAZ

O CÃO

INTERRUPTOR

GRITO

Claudina Ramirez ( )Professora de Espanhol; TerapeutaE-mail: [email protected]

Page 32: Revista Ateliê

ATELIÊ - A Revista do Colégio MóduloANO V - Nº 07 - AGOSTO 2012

SIGA

Não corra

Que a vida não vai a nenhum lugar

O tempo não vai parar de passar

E sorte, se é que existe,

pode mudar.

Pense

Que a vida não é o que parece ser

E de qualquer forma você vai morrer

Acreditando piamente

que valeu a pena viver

Veja

Esse mal-estar da nossa civilização

A angústia e a dor muitas vezes sem razão

a vida que, em geral,

não tem nenhuma explicação

Acredite

A riqueza é provável não chegar

O que está ruim ainda pode piorar

E o futuro é um sonho

que se perde ao acordar

Ria

Porque o poeta às vezes fala sem querer

Dizendo coisas quase sempre por dizer

pra dar sentido à existência

ao seu viver.

SIGA

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Page 33: Revista Ateliê

A MULHER E O ESPELHO

Era ela sempre

Bonita, sensual, elegante

Ela sempre

Frágil, medrosa, pudica

Fazendo as suas orações

Sempre

Obediente, submissa

Como convém a uma mulher

Era a outra

Barco solto no temporal

Ardente, sem leme

do outro lado do espelho

Sorriso no canto da boca

Dava arrepios de desejo

Sua ousadia e coragem

Cabelos soltos na flor vermelha

Que o riso solto enfeita

À flor da pele o desejo

No seu despudor

Tirando a roupa

Pura volúpia e indecência.

Nas noites quentes

A lua enfeita a rua

Por onde ela passa

Banhando-se no seu leite de luar

Se insinuando graciosa

Para o homem que escolhe

E que lhe leva para a cama

Sem disfarce ou enfeite

Enquanto a outra

Que olha através do espelho

E se assusta

De inveja, de despeito

Ruborizada, úmida e trêmula

Só lamento, só suspiro

Só censura

Ela do espelho

Lhe sorri desafiante

Insuportável, segura, provocante

Não é possível ser mais a santa

É impossível ser a outra

E o espelho se estilhaça

Mil pedaços, cacos

Rubores, desejos, faces

Mulheres.

Otávio Bonfim

A MULHER E O ESPELHO

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Page 34: Revista Ateliê

ATELIÊ - A Revista do Colégio MóduloANO V - Nº 07 - AGOSTO 2012

AMAR O AMOR

O sentimento de amor me parece, às vezes, uma forma extrema de egoísmo; é gostoso e

prazeroso amar, independente de quem amamos, uma coisa parecida com a fé, para os religiosos.

Confesso que tenho inveja dos que possuem este sentimento, inalcançável para mim, como um

sabor que eu não consigo sentir, por mais que procure e tente.

A fé como um estado de encantamento físico, de autocontentamento, uma embriaguez lúcida e serena, sem nada de fanático, de intolerância,

como se dissesse assim: que pena que você não é capaz disso.

Percebi esse amor egoísta no brilho dos olhos do Cardeal D. Evaristo Arns quando ele visitou

os presos políticos na Penitenciária Tiradentes em São Paulo, em plena ditadura.

Percebia isso no sorriso mineiro de Dom Amoroso Anastácio, para sempre abade do

mosteiro de São Bento, quando ele acolhia jovens ateus comunistas.

Citei dois religiosos, mas encontro com frequência este sentimento “mágico” em pessoas

que não têm nada de místico ou evangélico.

São pessoas que a gente encontra onde menos se espera, que amam sem esperar recompensa

alguma.

Quando penso nesse “transe” de amor, não me refiro à paixão, nem a desejo: aí é outro

departamento. Falo dessa coisa difusa, o amor indefinido, meio brega e gratuito por coisas e

pessoas que mal ou nem mesmo conhecemos; esse sentimento que deixa a gente comovido até por

comerciais de bancos e detergentes.

Reconheço que é difícil aceitar esse derramamento banal, essa rendição a clichês,

que nos sugere fraqueza e superficialidade. No entanto, invejo e sinto uma grandeza nesses

amantes pelo amor.

Pois é, privilegiados e egoístas os que podem amar sem propósito nenhum a não ser amar o

amor.

AMAR O AMOR

Carlos Sarno

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Page 35: Revista Ateliê

DA ÍNDIA DOS ANDES PARA FERNANDO PESSOA

Venho de uma terra de lutadores.

Faltava pão, plantamos.

Faltava chão, terraplanamos.

Faltavam mãos, convocamos.

Nos juntamos, discutimos e mudamos.

Quem luta

o faz pela força da necessidade.

Aquela que não se comporta,

então não se importa em mudar.

A força não é nosso alvo.

é nossa seta,

única forma

do lutador

caminhar.

Não esperamos que nos esperem.

Que nos entendam.

Não esperamos o carinho morno do imutável

somos montanha ao vento

árvore à chuva

rio, rio, rio, rio...

E muito choro.

Muito.

O muito é nosso norte.

Não o muito do concreto.

O muito dos sorrisos,

e dos afetos...

Somos lutadores,

Quixotes centrados,

Nerudas ressucitados.

E por isso

nos olham com olhos confusos...

Fusos horários quase certos,

estrada certa quase errada.

Não nos entendem

porque não nos sentem.

E não estamos aqui para sermos entendidos.

E sobre sentir...

Ah, sentir é o grande aprendizado!

DA ÍNDIA DOS ANDES PARA FERNANDO PESSOA

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Page 36: Revista Ateliê

ATELIÊ - A Revista do Colégio MóduloANO V - Nº 07 - AGOSTO 2012

DESCANSO EM PAZ

ENTRE LÁGRIMASHoje é dia de ficar triste.

Nada mais é possível

somente nuvens,

ventos e cristais rotos no chão.

Amanhã haverá sol

e banquetes

mas hoje,

hoje não.

E nem preciso de colo.

Desculpem, amigos,

nenhum tipo de consolo

há para os que escolhem

atirar-se no caminho

que a seta do sentido

indica.

Ir pelo caminho

onde pulsa

a possibilidade

futura,

incerta,

como a cor exata da fruta

significa

acreditar na força redentora

do mar das lágrimas.

Longa vida ao Deus em nós

E a suas escolhas.

ENTRE LÁGRIMAS

DESCANSO EM PAZ

Eu morro

Porque me mato

E mato e morro

Pela minha liberdade

De morrer

Pro que da vida me afasta.

Pra mim basta

Deste colar de lágrimas

Chega

Destes óculos escuros

Eu quero sol

Quero luz

Chega de mágoa.

Pra me banhar

Agora

Só luz e água

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Page 37: Revista Ateliê

O CÃOO CÃO

Já lutei outras vezes contra esse cão.

Aliás, fui muito competente

nas fugas dos seus latidos.

Não parei diante do ente

para reparar seu corpo

menos sua missão.

Não fiz como a criança

frente à jaula do leão,

que agarrada nas pernas do adulto

pôde estudar o mito

que atacou sua família

no seu pior sonho.

No meu sonho

só havia realidade.

nenhum adulto

nenhuma jaula

somente o bicho

fitando com olhos famintos

o meu ser

que atravessou a infância

e hoje se encontra firme

sobre as próprias pernas

fitando os olhos velhos

e aflitos

do cão.

Cão velho

irracional

com fome de morte

que alimenta a vida

com fome de afeto

da espécie parecida.

Talvez nos seus sonhos

Eu seja a ameaça

Com meus caninos afiados

De ideias – navalhas...

Aceito o cão que me atacou na infância.

Passou-me sua força

deixou-me sua lembrança.

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Page 38: Revista Ateliê

ATELIÊ - A Revista do Colégio MóduloANO V - Nº 07 - AGOSTO 2012

GRITOGRITO

QUE NÃO GRITA

VIRA CRIPTONITA

E CONGELA TUDO

O QUE POR DENTRO FLUI.

GRITO QUE NÃO GRITA

DEPOIS DINAMITA

TUDO O QUE EU QUIS SER

E NÃO FUI.

GRITO

INTERRUPTORINTERRUPTORESCURIDÃO,

BREU,

MEDO.

UM SIMPLES DEDO

E VEM A LUZ

E A VIDA VOLTA

A VIBRAR LEVE.

SE HÁ ENTREGA

COM ENLEVO

LIVRE VOA

A VERDADE.

QUANDO SE VÃO

EXPECTATIVA E MEDO

VEM A VERDADEIRA

LIBERDADE.

Claudina Ramirez

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Page 39: Revista Ateliê

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Jayme Costa Barros ( )Professor

E-mail: [email protected]

EDUCAÇÃO:DESCONSTRUÇÃO – CONSTRUÇÃO

Page 40: Revista Ateliê

ATELIÊ - A Revista do Colégio MóduloANO V - Nº 07 - AGOSTO 2012

1. LIMITES DESTE ARTIGOEste não é um trabalho de pesquisa. É um depoimento. São reflexões a partir de minha vivência, mais de cin-

quenta anos, no trabalho educativo, inicialmente apenas como professor, posteriormente como professor e gestor.

2. CONSTATAÇÕESNas salas de professores, nas reuniões, nos Conselhos de Classe, é queixa recorrente – cada vez mais

incisiva – de que o estudante, hoje, está cada vez mais descompromissado com o trabalho escolar, com as aulas, com o estudo.

Deixando de lado o que há de questionável nessas “queixas”, elas evidenciam a incapacidade de um ensino voltado para conteúdos apenas intelectivos mobilizar o jovem estudante atual. Os espaços de aprendizagem cognitiva foram ampliados. A escola já não é mais considerada o único espaço para transmissão, aquisição e socialização de conhecimentos. O professor não é mais o único “informador”. A informação vem de várias formas: do rádio, televisão, computador, revistas etc. O jovem tem, hoje, fontes mais prazerosas e abrangentes de informação que a escola. Com a grande vantagem: ele busca a informação que quer ou de que precisa, quando quer e quando precisa. Ele “busca”: a própria “busca” se torna a satisfação de um desejo, um desafio, uma escolha, sem aprovações ou reprovações de outrem. Não é a informação imposta pela instituição escolar e que ele aprende compulsoriamente, ou será “reprovado”.

Longe de mim querer que se adote um hedonismo espontaneísta e defender que o trabalho do estudante deve limitar-se ao que lhe dá prazer, aqui e agora. Há um conhecimento acumulado pelos “adultos” que compõem a instituição escolar; há um conheci-mento acumulado pela humanidade e que precisa ser transmitido ao jovem. Mas é preciso provocar o seu desejo, despertar a sua curiosidade. O jovem estudante precisa sentir necessidade desse conhecimento. Esse conhecimento precisa ter um sentido para ele, para sua vida cotidiana fora da escola.

(Para reflexão: quem ensinou o “internetês” ao jovem?)

Outra queixa universalmente repetida: a indisci-plina, os comportamentos desrespeitosos, às vezes agressivos, o “desligamento”, a falta de participação política na sociedade. Tudo isso é causa ou conse-quência? Ou é consequência que se torna causa de

tantas outras manifestações e omissões? Ou está evidenciando que normas disciplinares voltadas para comportamentos exteriores e punições não são ca-pazes de motivar o jovem à participação e ao “bom comportamento”?

Há, hoje, outros apelos e oportunidades de vivência do prazer.

Não estou defendendo a falta de normas. Toda vivência grupal exige normas de convivência. Mas tais normas devem resultar de princípios debatidos, compactuados, internalizados.

O jovem terá de ter, além da “dimensão do pra-zer”, a “dimensão do dever”, cuja vivência também deve ser exigida dele. Mas ter consciência dessas duas dimensões da vida vai além do cognitivo, do conteúdo pelo conteúdo, das normas que exigem comportamentos externos.

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Page 41: Revista Ateliê

(Para reflexão: é muito comum jovens que não produzem em sala de aula, que não têm boa disciplina, revelarem uma boa disciplina pessoal e grupal quando são desafiados em trabalhos em que eles têm de criar algo, produzir algo que foge à rotina cotidiana da sala de aula. Por quê? Por que o jovem que não “aguenta” 50 minutos de aula, é capaz de passar várias horas frente ao computador?)

3. QUAL O LUGAR DA ESCOLA HOJE?A professora Alda Pêpe, em palestra aos professores e técnicos do Colégio Módulo, afirmou: “Somos

sujeitos mais de relação que de racionalidade.”

Esta verdade nos faz refletir sobre a escola na contemporaneidade. E entendemos, então, que a escola não se completa em uma postura racionalista. Os conteúdos cognitivos, o processo transmissão-aquisição de conhecimentos não podem ser definidos como os únicos objetivos da escola. Diria mais: não podem ser tomados como os seus objetivos maiores. À escola cabe não só definir o que conhecer, mas também o porquê conhecer, o para quê conhecer, o como conhecer. Isso implica ter uma visão clara desse “por-quê”, desse “para quê”, desse “como”. Isso implica ter uma filosofia que dê forma e razão às ações educativas desenvolvidas pela escola. Isso implica ter um conceito claro do que é e do para que serve o conhecimento. Isso implica entender com Morin que: “o conhecimento não pode ser dissociado da vida humana e da relação social”. Esse conhecimento não “dissociado da vida humana e da relação social” é o que é capaz de mobilizar o jovem. “A vida humana e a relação social” é o que dá sentido ao conhecer. Conhecer para (re)construir e (re)inventar o mundo, a vida humana, as relações sociais

Este é o lugar da escola: trabalhar o conhecimento não como simples “apropriação intelectiva de concei-tos”, mas como algo psíquico, histórico, social, como algo situado em um determinado tempo e lugar, como um instrumento que é capaz de levar o homem a ser mais, a viver melhor, a agir transformando.

Se “somos sujeitos mais de relação que de racionalidade”, é evidente que o homem como “ser de rela-ção” é a razão maior de ser da escola. Então o mais importante objetivo real da escola é criar condições e oportunidades para que o homem cresça em sua totalidade _ razão, afeto, sensibilidade, emoção, realidade, sonho, exigências do presente, aspirações, projetos e anseios na dimensão do futuro. Por isso é preciso ver em cada jovem uma identidade singular, que tem luz própria, que tem potencial e riqueza inesgotáveis, ser permanentemente em construção, inacabado, ser sempre A CAMINHO DE, EM BUSCA DE. Paulo Freire afirma que “o que torna a educação possível e necessária é o inacabamento, ou a inconclusão do homem”. Por isso há sempre espaço para a educação. Por isso os conhecimentos que são significativos são aqueles que ajudam o estudante a formar-se na sua totalidade de pessoa, na sua inteireza de cidadão.

Para reflexão: é muito comum jovens que não produzem em sala de aula, que não têm boa disciplina, revelarem uma boa disciplina pessoal e grupal quando são desafiados em trabalhos em que eles têm de criar algo, produzir algo que foge à rotina cotidiana da sala de aula. Por quê? Por que o jovem que não “aguenta”

50 minutos de aula, é capaz de passar várias horas frente ao computador?

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ATELIÊ - A Revista do Colégio MóduloANO V - Nº 07 - AGOSTO 2012

Mas como “ser de relação”, o homem, por essência e em sua existência, CON-VIVE com o outro, com a realidade do mundo físico, social, histórico. Isso o leva ao sentido da singularidade do outro e ao necessário respeito e acolhimento às diferenças. Isso o leva a ver e sentir a beleza da intercomplementaridade. Na solidão, o homem jamais chegaria à totalidade do ser.

Reconhecer o outro como pessoa singular e como cidadão exige, na convivência, uma prática demo-crática, a consciência da necessidade de participar, a responsabilidade do decidir. A prática democrática faz compreender que a luta pelo respeito aos direitos individuais tem uma dimensão que vai além do EU. O homem cresce à medida que se sente também responsável pelas decisões e pela prática. Ele passa a entender que é também responsável pela felicidade ou infelicidade do outro. E educação é isto: fazer o homem sentir-se agente responsável pela construção do EU e pela co-construção do OUTRO, pela construção do SOCIAL.

Por tudo isso, é importante não dissociar os conteúdos informativos das múltiplas atividades integradoras que trabalham a convivência na qual se forma o homem e se exerce plenamente a cidadania. E o exercício da cidadania nos impõe a busca de uma realidade melhor, de relações melhores.

Por tudo isso, o conteúdo informativo dos programas não vale em si mesmo porque novas pesquisas e novos conhecimentos podem torná-lo superado. Mas vale – e vale muito – enquanto incentiva o aluno à pesquisa, à abertura ao novo, ao debate, à capacidade de relacionar-se com o novo. E esse conteúdo deve ser trabalhado pela escola como algo que forma uma atitude científica e gosto pela leitura, questionamento e honestidade intelectual, que gera uma participação ativa e crítica, que vivencia com o aluno a certeza de que a aquisição de conhecimentos nos capacita a agir melhor na realidade concreta em que vivemos.

E educação é isto: fazer o homem sentir-se agente responsável pela

construção do EU e pela co-construção do OUTRO, pela construção do

SOCIAL.

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4. ESCOLA: DESCONSTRUÇÃO – CONSTRUÇÃO

É fato que as crianças e os jovens estão sujeitos – hoje mais do que nunca – a influências que extra-polam o ambiente familiar e colegial. E tais influências expressam os valores predominantes na sociedade contemporânea. E a escola não pode admitir-se como reprodução desses valores. Daí que a educação, hoje, deve desenvolver-se em dois movimentos: um de desconstrução, outro de construção.

4.1. DESCONSTRUÇÃO

É indispensável desconstruir os valores de uma sociedade em que predomina o relativismo moral. A cada momento, tornam-se válidos apenas os valores que trazem benefícios ou lucros. É o primado de um individualismo exclusivista e excludente que nega qual-quer outro valor que não sejam aqueles que, dentro de uma determinada situação concreta, interessam ao EU. Desse individualismo provém a desintegração do EU, a desintegração do convívio social porque, como disse o poeta Mário Pederneiras, passamos a ter “uma prática Visão dos outros e da vida” e “suprimimos logo, por banais e inúteis, / O Sonho / O Coração e os Nervos.” E fechamo-nos em nossos espaços e privilégios, em um hedonismo imediatista (a busca do prazer aqui e agora), arrogando-nos o direito de excluir desses espaços todos aqueles que não nos servem, não nos trazem benefícios e lucros. Nessa

visão aética, vemos classe dominante e políticos usan-do os recursos públicos e os avanços tecnológicos e científicos em proveito próprio, exercendo o poder político e econômico como forma de dominação e da manutenção dos próprios privilégios. E, para isso, valem as concessões e as pseudoliberalidades como formas de levar as classes dominadas a acomodarem-se e não integrarem-se em movimentos de mudanças. “Pão e circo”, já diziam os antigos romanos.

A essas atitudes se soma a postura precon-ceituosa e discriminatória contra aqueles que não pertencem à nossa classe, à nossa etnia, a nosso credo, que não partilham de nossos conceitos, de nossa visão de mundo.

Cabe à escola desconstruir os valores dessa so-ciedade excludente, que busca acomodar os jovens, seduzindo-os com apelos e oportunidades de prazer imediato, que os envolvem e os afastam de participar de lutas por transformações, convencendo-os de que “em time que ganha não se mexe”.

A escola não pode continuar sendo a reprodu-ção dos valores da sociedade, da classe dominante, não pode continuar limitando-se a reproduzir o que existe. Cabe à escola desconstruir esses valores, tirar o estudante do lugar onde está e criar espaços novos onde ele possa vir a situar-se, exercendo papel de transformação e libertação.

A escola não pode continuar cometendo os equívocos que vem praticando, tais como a exigência de assimilação de listas extensas de conteúdos cog-nitivos, sob pena de “nota baixa” e “reprovação”, a excessiva rigidez das exigências disciplinares, com

... é importante não dissociar os conteúdos informativos das múltiplas atividades integradoras que trabalham a convivência na qual se forma o homem

e se exerce plenamente a cidadania. E o exercício da cidadania nos impõe a busca de uma realidade melhor, de relações melhores.

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ATELIÊ - A Revista do Colégio MóduloANO V - Nº 07 - AGOSTO 2012

normas e normas que exigem comportamentos exteriores, não produtos de con-vicções interiores. Outro equívoco é a escola, em seu Ensino Médio, limitar-se a uma função meramente preparatória. Se a escola se vê apenas como “preparatória para” (ENEM, vestibular etc), ela está negando um valor em si mesma; o valor está fora dela. Age “em função de”, os conteúdos que ensina são “em função de”, a maneira como trabalha são “em função de”. Sempre algo fora de si. A escola nega que tenha uma finalidade em si mesma. “Prepara” para o que outras instituições e exames exigem. E pretende-se que o estudante valorize esta escola, que não valoriza a si mesma.

4.2 CONSTRUÇÃO

Não se trata, porém, de desconstruir por desconstruir. Desconstruir porque se torna necessário para construir a escola exigida pelos tempos atuais.

A escola, que se pretende transformadora, criativa, construtora de uma realidade nova, que deseja desenvolver uma “educação libertadora”, tem de ser um espaço aberto ao debate, um espaço em que, em sua práxis cotidiana, busque aprofundar e qualificar as relações interpessoais, propiciar momentos de vivência e desenvolvimento da sensibilidade, dos afetos, oportunizar ao aluno a vivência de sua capacidade de criar e o senso crítico e criativo em sua relação com o mundo em que vive.

Essa escola transformadora e libertadora entende que o conhecimento não é a aceitação passiva do estabelecido, mas “um tornar-se algo em construção”. As informações que transmitimos e assimilamos só interessam quando se tomam veículo de crescimento do humano que existe em nós.

É importante ter um profundo embasamento científico. Porém é preciso muito mais. A ciência nos instrumentaliza a agir melhor, mas não é a ciência que nos move à ação. Agir, atuar é produto de uma tomada de decisão, e decidir é um ato de vontade, que se move a partir de VALORES. Daí a importância da Ética, daí tomar-se indispensável a reflexão sobre quais valores nos estão levando a tomar decisões. E VALORES é questão de foro íntimo. VALORES é produto de adesão da vontade e do afeto, são opções que resultam, é claro, de nossa visão de mundo, mas resultam, sobretudo, da visão que temos do nosso estar no mundo.

Por tudo isso, os valores que a escola deve construir jamais serão produto de uma postura apenas racionalista, cognitiva. Eles se constroem na convivência com o outro, no autoconhecimento e no acolhimento às diferenças, no respeito a si mesmo e ao outro, no respeito à dignidade da pessoa humana, independente de sexo, cor, classe social e opções religiosas, políticas, sexuais. Eles serão fruto

É importante ter

um profundo

embasamento

científico.

Porém é preciso

muito mais.

A ciência nos

instrumentaliza a

agir melhor, mas

não é a ciência

que nos move

à ação. Agir,

atuar é produto

de uma tomada

de decisão, e

decidir é um ato

de vontade, que

se move a partir

de VALORES.

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de um humanismo solidário e inclusivo que afirma e, lutando, defende que todos têm direito à plenitude de sua individualidade. Para tanto, busca a transformação da realidade presente no sentido da equidade. Tais valores, se construídos, serão capazes de mobilizar o jovem, de comprometê-lo pessoal e coletivamente com atitudes e buscas de mudanças para que se criem espaços sociais novos, democráticos, nos quais convivam as diferenças, se usem os privilégios sociais, políticos e econômicos como forma de atuar na sociedade de tal maneira que os recursos públicos e os avanços tecnológicos, científicos, econômicos e sociais incluam a todos nos benefícios das ciências e das tecnologias, da economia e da sociedade. Teremos, então, uma sociedade mais democrática, mais inclusiva e mais livre.

4.3 UMA SÍNTESE

Valores

Descontrução construção

Conceito de escola pragmática, preparatória, reprodutora dos valores da classe dominante.

Conceito de escola como centro de educação transformadora, criativa, construtora de uma sociedade nova.

Conceito egocêntrico da riqueza. Conceito de responsabilidade social da riqueza.

Criação de espaços sociais fechados. Criação de espaços sociais novos, democráticos, nos quais convivam as diferenças.

Gozo individualista, explorador e excludente dos privilégios econômicos e sociais.

Uso dos privilégios sociais e econômicos como forma de atuar na sociedade, liderando mudanças e transformações.

Acesso privilegiado aos benefícios das ciências e das tecnologias.

Busca de incluir todos nos benefícios das ciências e das tecnologias.

Visão e posturas preconceituosas e discriminatórias. Respeito à dignidade da pessoa humana, independente de sexo, cor, classe social e opções religiosas, políticas, sexuais.

Hedonismo imediatista. Humanismo solidário.

“Visão prática da vida e dos outros”. Visão de que todos têm direito à plenitude de sua individualidade.

Uso dos recursos públicos e dos avanços econômicos e sociais para benefício próprio.

Uso dos recursos públicos e dos avanços econômicos e sociais para benefício de todos.

Aceitação acomodada da realidade presente de desigualdades.

Busca de transformação da realidade presente no sentido da equidade.

Resistência e descompromisso com qualquer atitude e busca de mudança.

Compromisso pessoal e coletivo com atitudes e buscas de mudanças.

“Em time que ganha não se mexe”. Mas... quem está ganhando?

Em time que alguns ganham se mexe para que todos ganhem.

Exercício do poder econômico, social e político como forma de dominação e de manutenção de privilégios.

Exercício do poder econômico, social e político na busca de uma sociedade mais democrática e livre.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enfim, acreditamos que a escola tem uma função insubs-tituível no mundo contemporâneo. A internet, os “googles” da vida, as redes sociais jamais dispensarão a escola. O que se deseja, porém, é que a escola reveja a sua postura exa-geradamente racionalista, a ênfase excessiva que tem dado aos objetivos cognitivos, a centralização absurda no pro-cesso transmissão-aquisição de conhecimentos, vistos estes apenas como “posse intelectual de conceitos”. É preciso ter presente – sempre – que o trabalho educativo se faz com seres humanos, que são seres complexos, sujeitos histórico--sociais, que não vivem no abstrato, no vazio e na solidão.

5. ESTRATÉGIASPara conseguir executar os movimentos de desconstrução e construção, julgamos necessário que a escola

caminhe pata ter:

a) uma filosofia que defina, com clareza e publicamente, seus objetivos educacionais (Será esta filosofia que estará expressa no Projeto Político-Pedagógico da escola e moverá todas as ações educativas, imprimindo--lhe um caráter de não improvisação, de ações intencionadas, não espontaneístas);

b) gestores e corpo técnico que estejam convictos de que devem liderar a concretização do Projeto Político-Pedagógico da escola;

c) uma formação contínua e constante do corpo docente de tal modo que seu fazer pedagógico seja expressão cotidiana da filosofia da escola;

d) currículo adequado e, dentro dele, atividades direcionadas para consecução de suas intenções edu-cativas (A escola precisa repensar os conhecimentos e saberes que tem transmitido, como tem transmitido e para que os tem transmitido. Não estará a escola querendo que o aluno “despossua” os saberes que tem e os conhecimentos de que precisa hoje para vir a possuir os saberes e conhecimentos que a escola lhe quer impor e cuja necessidade e magia o jovem não sente ainda?);

e) uma qualidade crescente nas relações interpessoais de forma que os vários segmentos que compõem a comunidade escolar, mesmo existindo os inevitáveis conflitos e discordâncias, convirjam todos para a consecução dos objetivos educacionais propostos no Projeto Político-Pedagógico (Isso leva ao crescimento da pessoa em sua totalidade do ser e da escola, enquanto instituição.); e

f) inserção no momento histórico-social, consciente de que a educação não se processa no vazio, não se desenvolve em um ambiente isolado e isento de influências do mundo que a cerca.

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Lygia ViégasPsicóloga CRP 03/03740. Professora Adjunta da Faculdade de Educação da UFBA. Membro da Diretoria da Associação

Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional e do Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade – Núcleo Bahia.

E-mail: [email protected]

PELO DIREITO A PENSAR, SENTIR

E AGIR!

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Em 1900, o escritor Frank Baum publicou um livro que se tornou grande clássico, sobretudo a partir de sua adaptação ao cinema, lançada em 1939. Trata-se de O Mágico de Oz, um dos primeiros filmes a usar Technicolor1, con-sagrado, ainda, pelo Oscar de melhor trilha sonora e melhor canção (“Over the rainbow”)2. Sua atualidade me levou a articulá-lo com um tema bastante debatido não apenas pela Psicologia, mas por diversas áreas que envolvem a análise da infância e adolescência: a medicalização da vida.

Boa definição de medicalização comparece em artigo da pediatra Maria Aparecida Affonso Moysés e da pedagoga Cecilia Collares, que afirmam: medicalizar é deslocar “os problemas inerentes à vida para o campo médico, com a transformação de questões coletivas, de ordem social e política, em questões individuais, biológicas” (2010, p. 72). No campo educativo, a me-dicalização das dificuldades enfrentadas no processo de escolarização tomou a forma de dois supostos transtornos neurológicos que impediriam o aluno de aprender e se comportar como a instituição escolar espera: a dislexia e a hiperatividade. Ora, se os problemas são individuais, mormente biológicos, não há o que fazer do ponto de vista político, social e histórico para superá-los. Sob a égide desse novo mandamento, é melhor não pensar, não desejar, não mudar. Resta-nos conformar-nos com a realidade, vista como inevitável e nos adaptar inexoravelmente ao existente. Mesmo que ele seja sufocante. E calar todo e qualquer mal-estar com o uso de psicotrópicos que nos fazem suportar o que é insuportável e seguir em frente quando deveríamos mudar radicalmente de rumo.

Volto ao Mágico de Oz, retomando brevemente a história: Dorothy é uma menina que mora com seus tios em uma fazenda no Kansas e tem como principal companhia seu cachorrinho Totó. Perseguida pela vizinha intolerante, Dorothy sente-se desamparada e resolve fugir de casa, mas desiste da ideia ao conhecer um falso adivinho. No entanto, ao voltar para casa, ela bate a cabeça e “é engolida” por um ciclone que a leva para o mundo de Oz, onde segue sendo perseguida, agora pela Bruxa Má do Leste. Assim, Dorothy precisa encontrar o Mágico de Oz, cujos poderes a ajudarão a voltar para casa. Para tanto, ela deve seguir a estrada das pedras amarelas e manter nos pés o sapatinho mágico que a protegerá dos ataques da bruxa.

No caminho, Dorothy encontra boa companhia: o espantalho, o homem de lata e o leão. Cada um, no entanto, também se sente frágil diante da vida, padecendo de problemas que aparentemente só poderão ser superados com a ajuda do maravilhoso mágico: o espantalho pensa que não tem cérebro, o homem de lata ressente-se por não ter coração, e o leão anuncia sua covardia. Um a um, Dorothy os convida para acompanhá-la nessa aventura, e todos juntos vão descobrindo, no caminho, sua inteligência, sensibilidade e coragem. No entanto é apenas quando estão diante do mágico charlatão que percebem buscar fora de si o que já têm de sobra: um cérebro para pensar, um coração para sentir, coragem para agir.

1 É notável que no filme clássico, a parte inicial é em preto e branco, só passando a ser colorido quando adentramos no mundo de Oz.2 Outra curiosidade é a maravilhosa adaptação The Wiz (1978), ambientada no universo da black music, com Diana Ross no papel de Dorothy

e o jovem Michael Jackson como espantalho.

No campo educativo, a medicalização das

dificuldades enfrentadas no processo de

escolarização tomou a forma de dois supostos transtornos neurológicos

que impediriam o aluno de aprender e se comportar como a instituição escolar

espera: a dislexia e a hiperatividade.

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Pensamento. Sentimento. Coragem. Os três valo-res afirmados e desejados no livro de 112 anos e nos filmes da década de 1930 e 1970 parecem não estar muito em voga atualmente. Esse triste fenômeno foi belamente descrito pela jornalista Eliane Brum, no artigo “Os robôs não nos invejam mais” (2011), em que ela analisa “O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea”, organizado por Alfredo Jerusalinsky e Silvia Fendrik. Nos diz a jornalista:

Os primeiros robôs da ficção tinham um conflito: eles eram criados e programados para dar respostas automáticas e objetivas, mas queriam algo vital e complexo. Em algum momento, às vezes por uma falha no sistema, eles passavam a desejar. E desejar algo que lhes era negado: subjetividade. Condenados às respostas previsíveis, revoltavam-se contra a sua natureza de autômato. Humanizar-se, sua aspiração maior, significava sentir angústia, tristeza, amor, raiva, alegria, dúvida e confusão. Os robôs da modernidade queriam, portanto, a vida – com suas misérias e contradições. Ao entrar em conflito e ao desejar, os robôs já não eram mais robôs, mas um algo em busca de ser. Um ser humano, portanto.(...)

Hoje, a pós-modernidade nos encontra em uma situação curiosa: os humanos querem se tornar robôs. Cada vez um número maior de pessoas se oferece em sacrifício, imolando sua vida humana, ao deixar-se encaixar em alguma patologia vaga do manual das doenças mentais e medicalizar o seu cotidiano para se enquadrar em uma pretensa normalidade.

De fato, parece que cada vez mais o que se espera das pessoas é que elas não pensem criticamente, não se afetem com os acontecimentos e nada façam para mudar o mundo. Espera-se adesão irrefletida, con-formismo, frieza e passividade. Qualquer expressão que contrarie a norma é lida na chave da patologia, produzindo uma legião de crianças e adolescentes diagnosticados e quimicamente controlados simples-mente por recusarem o determinado.

Triste é reconhecer o papel tradicional da Psicologia nesse processo, analisado de forma contundente por Maria Helena Patto como “silenciamento da expressão” (1984, 2005). De maneira brilhante, Patto desvela a participação ativa da Psicologia no “processo de cassação

da palavra do oprimido”, cujas práticas “acabam agindo no sentido de amordaçá-lo, de impingir-lhe uma forma de falar, de pensar e de agir que dificulta a voz afinada com a vivência da degradação e da opressão e o torna porta-voz de um discurso que não é o seu” (PATTO, 1984, p. 136). Seguindo essa lógica,

A cada um resta aceitar a fatalidade das diferenças individuais ou étnicas de capacidade, responsabili-zar-se pelo próprio fracasso, sentir-se, no máximo, inferior e humilhado, jamais revoltado, muito menos questionador, reivindicador ou desejoso de mudanças radicais. Afinal de contas, a evolução não comporta rupturas, o progresso exige ordem, de onde a necessidade de que o bom cidadão – o indivíduo “normal” – seja conformado e produ-tivo, aceite a forma, sujeite-se ao discurso dos únicos tidos como competentes para dizer como são as coisas: os cientistas (PATTO, 2005, p. 97).

Assim, o livre pensamento submete-se à adesão irrefletida; a compaixão é capturada pelo hedonis-mo a qualquer custo; e as atitudes dissidentes são tratadas como Transtorno Opositor Desafiador3. Em um contexto no qual os manuais de Psiquiatria se elevam à condição de sagrados, sobra pouca margem de pensamento/sentimento/movimento individuais. E seguimos silenciando expressões.

O trabalho de Patto também nos mostra um caminho de superação dessa forma de atuação psi: a consciência do oprimido não é totalmente lúcida, nem totalmente alienada, ela é ambígua, contraditória. Nas suas palavras, “Não se pode decretar, catego-ricamente, a morte do sujeito. Impedido, o desejo pulsa, manifesta-se pelas frestas, fala como pode”. Esta contradição passa a ser a “matéria-prima” da psicologia, cujo papel, reinventado, passa a ser “con-tribuir com o esclarecimento objetivo e subjetivo, rumo à emergência do que está silenciado” (p. 100).

Só assim, deixaremos de contribuir com a leitura medicalizante da educação, e talvez venhamos a valorizar, como na história do Mágico de Oz, a livre expressão do pensamento, do sentimento e da ação transformadora.

3 A esse respeito, sugiro a leitura de Levine, B. O controle psiqui-átrico da dissidência. Disponível em: http://www.advivo.com.br/node/801306. Acessado em: 28 de fevereiro de 2012.

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REFERÊNCIAS:BRUM, E. Os robôs não nos invejam mais. Revista Época, 24/10/2011. Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/noticia/2011/10/os-robos-nao-nos-invejam-mais.html?utm_source=epoca&utm_medium=email&utm_campaign=sharethis. Acessado em: 28 de fevereiro de 2012.

MOYSES, M.A.A. ; COLLARES, C.A.L. Dislexia e TDAH: uma análise a partir da ciência médica. In: CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DE SÃO PAULO; GRUPO INTERINSTITUCIONAL QUEIXA ESCOLAR (Org.). Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010, p. 71-110.

PATTO, M.H.S. Psicologia e Ideologia: uma crítica à psicologia escolar. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984.

PATTO, M.H.S. Mordaças sonoras: a psicologia e o silenciamento da expressão. In: Exercícios de indignação: escritos de educação e psicologia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.

Qualquer expressão que contrarie a norma é lida na chave da patologia, produzindo uma legião

de crianças e adolescentes diagnosticados e

quimicamente controlados simplesmente por

recusarem o determinado.

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RESUMO

O processo ensino-aprendizagem no contexto social contempo-râneo enseja a necessidade de refletir acerca da prática em sala de aula a fim de reafirmar algumas ações e revisar outras, tendo como objetivo a construção de um conhecimento que ultrapasse a mera aquisição intelectual.

Palavras-chave: educação; reflexão; prática pedagógica.

Cinthya Pereira da Silva ( )Graduanda em Pedagogia pela Faculdade de Tecnologia e Ciências.

E-mail: [email protected]

O ATO REFLEXIVO NA

APRENDIZAGEM: O ALICERCE PARA A

EDUCAÇÃO PERMANENTE

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1. O ATO REFLEXIVO NA SALA DE AULAEnsinar é ao mesmo tempo uma ciência e uma arte. Como ciência (teoria) fundamenta-se em princípios

e métodos que deverão nortear os processos ensino-aprendizagem. E como arte (prática) exige-se a inter-pretação e aplicação significativa desses métodos.

Enquanto ciência apresenta as diretrizes aptas a instrumentar o docente quanto ao aspecto do conteúdo programático. Enquanto arte, visa a promover o desenvolvimento de competências e habilidades através da apropriação crítica do conhecimento: o que ensinar (conteúdos contextualizados com a necessidade do aluno enquanto ser atuante na sociadade e, portanto, permeado de valores), para que ensinar (para auxiliar na formação de cidadãos questionadores, intelectualizados e socializados), por que ensinar (a fim de desem-penhar um papel transformador na sociedade a partir da sala de aula). Para o ato de educar, vale mais o conhecimento e manejo dessa instrumentação do que acúmulo sistemático de informações.

A questão que precisa ser discutida é: por que, em pleno século XXI, com o aumento da tecnologia e a facilidade de acesso à informação, ainda é possível perceber a presença do tradicionalismo implícito nas práticas educativas da comunidade docente? A metodologia decorrente de tal concepção tem como princípio a transmissão dos conhecimentos através da aula, frequentemente expositiva, numa sequência predeterminada, enfatizando a repetição de exercícios com exigências de memorização. Como define Paulo Freire (1987, p. 66):

O educador faz “depósitos” de conteúdos que devem ser arquivados pelos educandos. Dessa maneira a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante. O educador será tanto melhor educador quanto mais conseguir depositar nos educandos. Os educandos, por sua vez, serão tanto melhores educandos, quanto mais conseguirem arquivar depósitos feitos.

Para Piaget, filósofo suíço que criou a teoria do conhecimento com base no estudo da gênese psicológica do pensamento humano, esse método forma cidadãos pouco críticos em modelo de controle e opressão. O professor Arima (2008, p. 14) define o tradicionalismo:

Trata-se daquele método onde o professor detém todo o conhecimento e o aluno ouve e aprende. É uma linha que valoriza a disciplina e a capacidade de reter informações. Até o espaço físico é organizado nesse sentido: carteiras de alunos alinhadas e o professor lá na frente. É, portanto, um tipo de pensamento que valoriza muito a disciplina e teve como mérito universalizar o conhecimento.

Este docente com práticas tradicionais defende opiniões construtivistas e inovadoras, porém valoriza o conteúdo livresco e a quantidade de conteúdo memorizado, proporcionando ao educando poucos espaços de participação ativa dentro do processo de construção do seu próprio conhecimento. A função deste profissional continua sendo a transmissão de conhecimentos disciplinares para a formação geral do aluno, sem, na maioria das vezes, promover uma releitura crítica do conteúdo programático. O que não quer dizer que não haja educadores que buscam a otimização das situações de aprendizagem a partir do contexto sociocultural e histórico nos quais o aluno está inserido.

A questão proposta aqui não é transmitir aos alunos os questionamentos críticos do professor, mas orientar estes alunos de forma a conduzí-los na formação de seus próprios questionamentos. O objetivo é formar cidadãos capazes de se posicionar de forma reflexiva e consciente na sociedade. Para isso, cabe ao professor criar condições favoráveis a este aprendizado, realizando atividades interessantes dentro de uma proposta que conduza o aluno a utilizar sua liberdade criativa na geração do seu próprio saber. Sob esta ótica,

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“a contribuição dos professores é crucial para preparar os jovens, não só para encarar o futuro com confian-ça, mas para construí-lo eles mesmos de maneira determinada e responsável”. (DELORS et al, 2001, p. 152).

Não quer dizer que seja fácil, pois exige-se do professor uma atividade de pesquisa e planejamento. O processo didático deve estar centrado no tripé ensino-pesquisa-aprendizagem, numa práxis criativa e não repetitiva. Também não quer dizer que seja uma conquista rápida, pois se trata de um processo sistemático e gradual construído no dia a dia da sala de aula. Pode-se tomar como exemplo uma criança pré-silábica. Para que se torne alfabetizada, é preciso que seja percorrido um longo caminho no processo de silabação. E o principal é que só se aprende a fazer praticando. É como uma criança aprendendo a andar. O processo de caminhar não é uma aquisição imediata regida apenas pela vontade do indivíduo e daqueles que o cercam. Este, como qualquer outro aprendizado, é contínuo, progressivo, e cada passo é seguido de possíveis “que-das”. Não há livros que dissertem o ensino e aprendizagem desta técnica. Só se aprende a andar, bem como ensinar, aprender e refletir, aplicando na prática, mesmo que o início seja obtido por meio de insucessos. É preciso romper as barreiras das antigas práticas e ousar inovar.

2. A RELAÇÃO PROFESSOR – LIVRO DIDÁTICO

Quanto ao uso do livro didático, ainda é possível verificar como os conteúdos de ensino são limitados aos mesmos. O grande problema é que a comunidade docente utiliza um único livro para cada disciplina, ousando pouco ampliar os recursos bibliográficos na prática diária e fre-quente. O livro como toda produção intelectual é dotado de intencionalidade, obedecendo a in-teresses pessoais (a opção teórico metodológica dos autores), editoriais, econômicos e políticos. Enquanto manifestações humanas possuem um conjunto de influências relacionadas que pretendem se constituir um objeto de investigação. Princi-palmente os documentos das ciências humanas.

Não seria o caso de ser contra a utilização do livro didático. Apenas alertar para que seus conteúdos não sejam tomados isoladamente como verdades inquestionáveis que não devam ser analisa-das. O livro deve ser uma fonte de pesquisa, veículo otimizador do trabalho pedagógico e por-tanto um subsídio auxiliar. Desta forma, essas obras necessitam de uma análise crítica e investigativa acerca dos conteúdos veiculados nos mesmos. A função do livro didático não é fornecer respostas

prontas de “alívio imediato”, que na prática não resolve nada. Sua funcionalidade deve ser mais questionar respostas do que responder perguntas.

Outro detalhe importante é o fato de o livro didático tornar as aulas muito previsíveis. Existe uma realidade inversamente proporcional nesta questão e que se aplica essencialmente aos edu-candos: quanto maior o nível de previsibilidade na sala de aula, menor o nível de interesse que esta pode vir a despertar. É lógico que existem as exceções e necessidades de previsibilidade em algumas ocasiões. Uma solução, para aperfeiçoar a utilização do livro, seria ampliar as fontes de pesquisa, questionar, comparar, perceber diferen-ças e similaridades e, principalmente, orientar o aprendiz a fazê-lo. O conhecimento não muda. O que muda é a compreensão do mesmo.

Uma das principais metas do ensino é formar leitores questionadores, que dominem a técnica da pesquisa e tenham autonomia para aprofundar seus conhecimentos. Desse modo estará reconstruindo criticamente o conhecimento. Cabe ao professor oportunizar este tipo de aprendizado, abrindo-se para o adensamento de novos recursos e possibi-lidades. Nesse sentido: “Ver, ouvir, sentir, pensar, estar no mundo a partir de uma postura que nos leve a outros resultados.” (MIGLIORI, 1998, p. 17).

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3. A RELAÇÃO PROFESSOR – AVALIAÇÃOAvaliar não é o mesmo que submeter a exames. Aplicar exames é mensurar quantitativamente o conte-

údo aprendido e, por consequência, excluir do processo de aprendizagem (mesmo que inconscientemente) aqueles com aproveitamento considerado insatisfatório. Ao contrário dos exames, o ato de avaliar é um recurso pedagógico necessário para o educador perceber como se deu a construção do conhecimento no educando, verificando os limites, avanços e recuos, constatando dificuldades e deficiências, a fim de orientar o trabalho para as correções necessárias. Como explica Luckesi (2000, p. 6):

A avaliação da aprendizagem, por ser avaliação, é amorosa, inclusiva, dinâmica e construtiva, diversa dos exames, que não são amorosos, são excludentes, não são construtivos, mas classificatórios. Avaliação inclui, traz para dentro; os exames selecionam, excluem, marginalizam.

Em outras palavras, avaliar implica tomar conhecimento das metas educativas alcançadas no aprendizado discente, identificando as lacunas existentes, para, a partir daí, criar intervenções que venham a saná-las, sempre tendo em vista que este é um procedimento de inclusão do aprendiz no processo educativo. Libâneo (2000, p. 196) define avaliação escolar como:

[...] um componente do processo de ensino que visa, através da verificação e qualificação dos resultados obtidos, determinar a correspondência destes com os objetivos propostos e, daí, orientar a tomada de decisões em relação às atividades didáticas seguintes.

Dar uma prova pode se tornar uma tarefa básica de medir o volume do conhecimento armazenado na mente do aluno e representá-lo através de uma nota, se não for levado em conta as habilidades adquiridas durante o processo, proporcionando espaços que permitam o desenvolvimento do indivíduo como um todo. Deste modo, perguntar, questionar, descobrir, interpretar, investigar, experimentar, fazer e refazer são habilidades a serem objetivadas para que o ato de avaliar obtenha sentido completo no contexto educa-cional. Também é importante destacar que tanto os conteúdos quanto os objetivos devem ser igualmente relevantes, bem como suas formas de aplicabilidade na prática.

Avaliar é dirigir significativamente os atos de aprendizagem, refletindo sobre eles durante todo o percurso, tendo em mente que cada aluno é único, que cada aprendizado é pessoal e altamente individualizado e que cada indivíduo deve ter seu tempo pedagógico respeitado. Ademais, o aluno é o “termômetro avaliador” do trabalho docente. É através dele que se torna possível detectar os problemas de planejamento e as falhas de execução dos mesmos. A avaliação não é um ato de conclusão; nunca é um fim em si mesma, mas um meio para se alcançar vários fins.

Em outras palavras, avaliar implica tomar conhecimento das metas educativas alcançadas no aprendizado discente, identificando as

lacunas existentes, para, a partir daí, criar intervenções que venham a saná-las, sempre tendo em vista que este é um procedimento de

inclusão do aprendiz no processo educativo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não se propõe aqui dizer ao professor o que ele deve ou não fazer, levando em conta que cada sala de aula é singular. Mas propõe-se agregar uma postura de constante pesquisa e reflexão frente ao conhecimento, pois somente refletindo sobre o que já existe torna-se possível melhorar.

“Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Fala-se hoje, com insistência, no professor pesquisa-dor. No meu entender, o que há de pesquisador no professor não é uma qualidade ou uma forma de ser ou de atuar que se acrescente à de ensinar. Faz parte da natureza da prática docente a indagação, a busca, a pesquisa. O de que se precisa é que, em sua formação permanente, o professor se perceba e se assuma, porque professor, como pesquisador”. (FREIRE, 2001, p. 32)

O essencial para a práxis educativa é revisar e repensar as teorias de ensino, redimensionando--as a objetivos que atendam às novas demandas, sem ficar escravo das limitações da própria teoria. Desprender-se da ideologia de que processos educativos foram criados para serem repetidos e não revistos a cada execução. Isso quer dizer que, com relação a valores e práticas habituais, alguns deve-rão ser mantidos (conservados pelo suporte didático básico que ainda possuem), outros deverão ser reestruturados (apurados para uma maior eficácia do método para com o conteúdo) e outros ainda completamente transformados (visando a uma melhoria geral do processo de educar); mas nenhuma teoria deve ser rejeitada, servindo de base para suscitar mudanças. Essa é uma das principais razões que tornam a pedagogia uma realidade que transcende o plano meramente formal, podendo estar em constante progresso, como explica o Professor João Beauclair (2006) em seu artigo “Escola de ontem, escola de hoje: dilemas e desafios da educação contemporânea”:

Refletir criticamente sobre nossas ações e condutas cotidianas no tempo e espaço da escola é ampliarmos nossos olhares no intuito de, efetivamente, ver melhor. O dilema maior é este: buscarmos a construção de novas visões, que transcendam os limites da tradição e que ousem a construção de novas formas de ser e estar em educação.

A didática, como tudo o que existe, pode e deve ser repensada. É fundamental esta postura antes de qualquer outra. O conhecimento nasce através da reflexão. E sem reflexão não há conhecimento permanente. Refletir é portanto reconstruir criticamente o conhecimento. A realidade das escolas hoje deixa ao século XXI o desafio de colocar o esforço pedagógico (o ensino) a serviço das metas educacionais visando a construir o ser humano na sua forma mais ampla possível.

Para que seja eficaz, é preciso dar mais ênfase aos princípios do que aos modelos, recriando novos modelos a partir dos princípios existentes. O que não esgota o campo teórico por este ser apenas um instrumento para sua realização. Cabe ao professor, então, revisar suas teorias, refletir sua prática, selecionar procedimentos para sua melhoria e verificar sua adequação. Como nas palavras de Paulo Freire (1982, p. 66): Existir é assim, um modo de vida que é próprio ao ser capaz de transformar, de produzir, de decidir, de criar, de recriar, de comunicar-se.

Outro aspecto relevante é o de que a experiência por si só não significa aprimoramento. O constante exercitamento não produz aperfeiçoamento. Ele só forma o hábito. O que aprimora é a experiência submetida a autoavaliações. Não existe fórmula mágica, apenas dedicação. A educação, antes de ser aplicada, precisa ser dialogada, possibilitando uma reflexão de caráter amplo, objetivando desempenhar, com excelência e sem restrições, a sua missão derradeira de educar.

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ATELIÊ - A Revista do Colégio MóduloANO V - Nº 07 - AGOSTO 2012

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http://www.profjoaobeauclair.net/visualizar.php?idt=244209. Acesso em: 03 abr. 2012.

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Ré-aprender a ler... Ler mastigando cada palavra, saboreando-a, sentindo seu cheiro, seu tempero, seu calor... Senti-la alma adentro,

percebê-la penetrar por nossa mente, num transitar inquietante e instigante em todas as possibilidades discursivas, demolindo paredes

fortemente construídas, obstáculos é, sem dúvida, a busca pelo saber com sabor, a procura pelo caminho da descoberta, o caminho que

acessa o saber que encanta, que de fato significa... e permanece.

Mônica Neves

Mônica Neves da Silva Lopes ( )Especialista em Leitura e Literatura Infanto-juvenil

E-mail: [email protected]

LEITURA: O PRINCÍPIO, O VERbO,

A VERDADE... A DESCObERTA

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Os livros e suas vozesSe há uma pessoa que possa, a qualquer momento, arrancar da sua infância uma recordação mara-

vilhosa, essa pessoa sou eu. (...)

Tudo quanto, naquele tempo, vi, ouvi, toquei, senti, perdura em mim com uma intensidade inex-tinguível. Não saberia dizer quais foram as minhas impressões maiores. Seria a que recebi dos adultos tão variados em suas ocupações e em seus aspectos? Das outras crianças? Dos objetos? Do ambiente? Da natureza? (...)

Recordo céus estrelados, chuva nas flores, frutas maduras, casas fechadas, estátuas, negros, aleijados, bichos, suínos, realejos, cores de tapete, bacia de anel, nervuras de tábuas, vidros de remédio, o limo dos tanques, a noite em cima das árvores, o mundo visto através de um prisma de lustre, o encontro com eco, essa música matinal dos sabiás, lagartixas pelos muros, enterros, borboletas, o carnaval, retratos de álbum, o uivo dos cães, o cheiro doce de goiaba, todos os tipos populares, a pajem que me contava com a maior convicção histórias do Saci e da Mula-sem-cabeça (que ela conhecia pessoalmente); minha avó que cantava rimances e me ensinava parlendas...(...)

Mais tarde (...) os livros se abriram e deixaram sair suas realidades e seus sonhos, em combinação tão harmoniosa que até hoje não compreendo como se possa estabelecer uma separação entre esses dois tempos de vida, unidos como os fios de um pano. Foi ainda nessa área que apareceram um dia os meus próprios livros, que não são mais do que o desenrolar natural de uma vida encantada com todas as coisas. (...)

Sempre gostei muito de livros e, além dos livros escolares, li os de histórias infantis, e os de adul-tos: mas estes não me pareciam tão interessantes, a não ser, talvez, Os três mosqueteiros, numa edição monumental, muito ilustrada, que fora de meu avô. Aquilo era uma historia que não acabava nunca; e acho que esse era o seu principal encanto para mim. Descobri o dicionário, uma das invenções mais simples e mais formidáveis e também achei que era um livro maravilhoso por muitas razões.

(...) Quando eu ainda não sabia ler, brincava com livros e imaginava-os cheios de vozes, contando o mundo.

MEIRELES, Cecília. Obra poética. In____CEREJA, William Roberto e MAGALHÃES, Tereza Anália Cochar. Português: Lingua-gens. São Paulo: Atual, 1998.

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O cardápio de livros na minha casa era muito variado. Meu pai lia muito e fazia questão que nós lêssemos também, por isso comprava livros diferentes, bem ao nosso gosto. Eu sempre gostei de livros de aventuras e ele me presenteou com Robson Crusoé. Nunca esqueci as suas palavras: “Você vai conhecer Sexta-Feira”. E, de fato, conheci, pois li esse livro várias vezes, devorando cada letra, cada frase, cada texto...

Havia coleções de livros de contos de fadas, de lendas do folclore brasileiro, gibis (os preferidos de meu irmão caçula, já que adorava Tio Patinhas), enciclopédias, romances... Havia, também, livros de faroeste, cuja temática era a colonização do oeste americano, que meu pai adorava.

À medida que íamos crescendo, o nosso acervo também aumentava. Monteiro Lobato entrou em nossas vidas, trazendo Emília, a dadeira de ideias, para a nossa casa. Narizinho, Visconde, tia Nastácia e tantos outros se delineavam em nossa imaginação. Eram saraus de leitura, nos quais partilhávamos, juntos com nosso pai, as nossas leituras, cada um querendo mostrar o que havia lido, o que havia descoberto...

Laura, a minha irmã mais velha, apaixonou-se pelo livro “As Reinações de Narizinho” e não queria deixar que ninguém mais lesse...

Como Anne Frank, apaixonei-me por mitologia... Tudo que se referisse a mitos eu queria devorar. Conheci Afrodite e com ela deixei-me levar pelos ventos para a ilha de Citera e depois para Creta; lá, vi as Horas a enfeitarem e a vestirem para depois transportá-la para o Olimpo. Conheci, também, Destino, o filho da Noite... Era tão forte que nem Zeus poderia contrariá-lo, e, se fizesse o contrário, estaria sujeito à pena do Universo. Éolo, deus dos ventos, Cronos, Boato, o famoso arauto, todos iam e vinham num balé de imaginação, de magia ímpar. Os ciclopes, gigantes de um olho só, tiraram-me muitas noites de sono, porquanto tinha medo de sonhar com eles. Até hoje, continuo a ler mitologia... Virou mania, uma gostosa mania, tanto que recentemente, reli Os doze trabalhos de Hércules – autoria de Monteiro Lobato – e sentia-me como se estivesse assistindo a uma reprise; uma reprise, diga-se de passagem, bem mais amadurecida.

A leitura é uma ação dialógica, polifônica, interativa. Quem gosta de ler tem muitos olhos; olhos sensíveis, investigadores, transcendentes, plurais, enfim, olhos que vão muito além do espaço destinado às páginas, ou melhor, quem tem amor pelos livros possui olhos alados que voam tão alto quanto o condor. Um voo solo, um voo, de início, solitário, porém preenchido por uma paisagem que somente com suas asas pode-se avistar.

Os livros, para mim, desde cedo se configuraram como grandes companheiros de todas as horas. Foi empatia desde o início. Não sei se eles me atraiam ou se era o inverso; o que tenho de certo é o fato de sempre me lembrar da infância tendo um livro ao meu lado. Livros estes que abriram fendas nas quais pude entrar sem nenhum temor, sem receios de erros ou acertos... Livros que abriram portas e convidaram-me a participar de forma transfinita dos seus saraus, de seus concertos, com os quais aprendi a bailar, cantar, compor e a viajar sem tempo determinado... Apenas viajar, apenas navegar...

Nessas viagens, meu pai era o comandante, capitão, marinheiro, timoneiro... Era ele o senhor das leituras. Trazia os livros para casa e os entregava a mim e a meus irmãos como se tivesse oferecendo um tesouro muito valioso. O interessante nesse fato é que meu pai não tinha a instrução da escola, uma vez que a abandonou muito cedo para trabalhar e ajudar meu Vô, que era muito pobre.

Livros que abriram portas e convidaram-me a participar de forma transfinita dos seus saraus, de seus concertos, com os quais aprendi a bailar, cantar, compor e a

viajar sem tempo determinado... Apenas viajar, apenas navegar...

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Depois chegaram os famigerados clássicos... Vieram sem os reclames tão frequentes. Isso porque já existia a vontade, o gosto, o prazer pelo ato de ler, de sorte que, quando não entendia uma passagem, lia e relia quantas vezes achasse necessário. Li Dostoievski e conheci o drama do estudante Raskolnikov. Na época, talvez não tenha percebido que a obra é uma indagação sobre o homem diante de seu destino, mas o importante é que li e me interessei pelo desenrolar da intriga policial feita pelo autor. Nesse tempo, também li muito Agatha Christie, a velha dama britânica. Era a minha fase dos policiais.

Outros vieram... O Cortiço, O Mulato, Dom Casmurro, Capitães da areia, Gabriela, Lucíola, Diva, Se-nhora, Romeu e Julieta, Sonho de uma noite de verão, Hamlet, Rei Lear, A Divina Comédia, Helena, A mão e a luva, Esaú e Jacó, O Alienista, A Cartomante, Missa do Galo, A Dama das Camélias, Madame Bovary e tantos outros. Vieram, conquistaram-me e permaneceram...

Quando leio para minhas filhas, quando indico um livro ou quando partilho leituras com elas, lembro--me de meu pai; pai este que pouco frequentou a escola, que não tinha nenhum referencial teórico para embasá-lo, que ensinou tendo como ponto de partida a escola da vida. É quando reflito que o conhecimento é tão idiossincrático, tão contíguo, que não devemos, como pais e educadores, colocá-lo num pedestal, cultuando-o como algo acessível a poucos. Meu pai é prova concreta dessa tese. A escola é mais um dos instrumentos para se descortinar a leitura, para conhecer, mas não é o único.

Dessa forma, parto do princípio de que a leitura é matéria-prima de todas as áreas do conhecimento – embora muitos acreditem, ainda, que a ela compete somente o campo de língua materna – visto que, com e por ela existe o compartilhar, o trocar experiências, o comungar do saber. Portanto é fundamental um (re) ver as inúmeras pontes que podem e devem ser construídas, mediadas pela leitura. Isso porque a leitura é um ato pessoal, logo não deve ser pré-moldada; ao contrário, deve-se primar pela leitura que liberta, que nos faz andarilhos, que nos faz navegantes.

Por conta de minha história de leitura, costumo dizer que os livros me sequelaram. Sequelas estas que me transformaram, mudaram rumos, desviaram rotas. Hoje, numa vida atribulada, cheia de compromis-sos, consigo disciplinar-me, e os livros estão sempre presentes na agenda do dia. Eles fazem parte de minha alimentação diária; é proteína, carboidrato, albumina, oxigênio... Não consigo viver sem a presença gloriosa desses grandes companheiros que sempre têm algo a me dizer, a me sussurrar, a me clarear...

Na condição de mãe, educadora, estudante, amiga, pessoa, ser humano que ama, sente, odeia, lembra, transforma e multiplica, coloco-me sempre como leitora voraz e, dando uma de médica, prescrevo remédios para a alma, para a vida, para o homem: livros, livros e mais livros... É lendo que se separa o joio do trigo, que se acha a agulha num palheiro. É lendo que aprendemos a dizer não, a dizer sim. É lendo que aprendemos a ser o que somos, a dizer o que sentimos... É lendo que passamos a ser o fio que conduz a rios encachoeirados a fim de continuar a produzir energia e gerar luz onde a escuridão se alarga...

É lendo que aprendemos a

dizer não, a dizer sim. É lendo que aprendemos a

ser o que somos, a dizer o que sentimos...

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José Antônio Cunha ( ) Nasceu em Salvador, é artista, cenógrafo, figurinista. Já participou dos mais importantes salões nacionais

e internacionais, levando seu trabalho para a França, Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha.

E-mail: [email protected]

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RESUMO

Indiscutivelmente está havendo uma mudança na maneira de pensar do homem moderno. O crescimento das nações está inti-mamente relacionado com seu meio ambiente através dos conceitos de desenvolvimento sustentável. Os indicadores de sustentabilidade surgem na década de 90 como formas de monitoramento de fatores que venham a inferir sobre a sustentabilidade dos sistemas naturais submetidos à ação do homem. Os indicadores de sustentabilidade podem estar relacionados a vários aspectos, sendo esta revisão focada nos indicadores de sustentabilidade para solos agrícolas.

Palavras-chave: Desenvolvimento sustentável, indicadores de sustentabilidade, solos agrícolas.

AbSTRACT

Certainly the is a change in progress on the manner that modern men think. Today, the development of the nations is intimately related to its environment through sustainable development concepts. The sustainability indicators came up in the 90’s as a way to monitor the facts that would interfere on the natural systems sustainability, submitted to men’s activity. The sustainability indicators could be related to several aspects, been this study focused on the sustainability indicators for the agricultural soils.

Key-words: Sustainable development, sustainability indicators, agricultural soils.

Carla Regina Nunes Costa ( )Bióloga. Mestre em Meio Ambiente. Consultora

Ambiental. Membro da Equipe do Núcleo de Pesquisa do Colégio Módulo Salvador.

E-mail: [email protected]

INDICADORES DE SUSTENTAbILIDADE

PARA SOLOS AGRÍCOLAS: UMA REVISÃO

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NOSSO FUTURO COMUM (1991) afirma ainda que o desenvolvimento sustentável é o conjunto de ações que geram processos de transformação na exploração de recursos naturais, na direção dos investimentos e na orientação do desenvolvimento tecnológico com vistas a garantir a expectativa e o potencial da vida presente e das futuras.

A sustentabilidade de processos produtivos tem sido definida como uma prática que envolve o ma-nejo adequado de recursos, visando à satisfação das necessidades do homem, mantendo ou realçando a qualidade do ambiente e conservando os recursos naturais (FAO, 1989).

Segundo Veiga (1994), o desenvolvimento susten-tável de sistemas de produção é aquele que garante:

• a manutenção a longo prazo dos recursos naturais e da produtividade agrícola;

• o mínimo de impactos adversos aos produtores;

• o retorno adequado aos produtores;

• a otimização da produção com mínimo de insumos externos;

• a satisfação das necessidades sociais das famílias das comunidades rurais; e

• a satisfação das necessidades humanas de ali-mento e renda.

A ideia de desenvolver indicadores de sustentabi-lidade surgiu na Conferência Mundial Sobre o Meio Ambiente (Rio-92), conforme registra seu documento final, a Agenda 21. A proposta era definir padrões sustentáveis de desenvolvimento que considerassem aspectos ambientais, econômicos, sociais, éticos e culturais. Para isso, tornou-se necessário definir indi-cadores que os mensurassem, os monitorassem e os avaliassem (DEPONTI et al., 2001).

Os indicadores de sustentabilidade são valores que indicam a qualidade ambiental de determinada área, disponibilizando informações que mensuram as alterações sofridas pelo ambiente ao longo do tempo (DANIEL, 2000). Especificamente relacionado com a agricultura, que é o principal suporte da susten-tabilidade, pode-se classificar o ambiente em estudo nos seguintes níveis: global, nacional, regional, de propriedade, de ecossistema e de produção, sendo

A Conferência RIO-92, sem dúvida, reconheceu internacionalmente a importância da adoção de uma polí-tica socioeconômica fundamentada em conceitos de desenvolvimento sustentável. Como avaliar efetivamente se os rumos que estamos adotando são sustentáveis ou não? O que seria afinal essa sustentabilidade? Mensurar sistemas produtivos é o caminho que se mostra o mais legível e compreensível que os humanos conseguem ter atualmente, considerando a capacidade de leitura da estrutura e funcionalidade do planeta, nas suas mais diversas relações.

Para saber se estamos caminhando sustentavelmente, devemos saber avaliar e medir o grau de sustentabilidade dos sistemas produtivos. São necessários instrumentos que meçam e monitorem os graus de sustentabilidade dos diferentes modelos de produção agropecuária. Estes instrumentos nos permitem verificar como as tecnologias empregadas nas propriedades, em diferentes sistemas de produção, estão afetando negativa ou positivamente a manutenção dos agroecossistemas (MESQUITA, 2000).

Apesar dos desmatamentos, assoreamentos, poluição de todo tipo, as últimas três décadas têm sido caracteri-zadas pela sensibilização humana frente a problemas ambientais. Essa tomada de consciência, motivada pela intensa e progressiva degradação de recursos naturais, trouxe à discussão conceitos como sustentabilidade e desenvolvimento sustentável. O conceito de sustentabilidade surge formalmente, no relatório Bruntland, realizado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas (CMMAD), em 1988, afirmando que “a sustentabilidade é o desenvolvimento que satisfaz às necessidades da geração presente, sem comprometer as pos-sibilidades das gerações futuras em satisfazer a suas próprias necessidades.” (NOSSO FUTURO COMUM, 1988). Conway (1986), citado por Faeth (1994), define com clareza e concisão o termo: “sustentabilidade é a habilidade de um sistema em manter sua produtividade quando esta se encontra sujeita a intenso esforço ou alterações”.

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este último denominado também agroecossistema (DANIEL, 2000 citando ALTIERI, 1987).

Os indicadores, segundo Ferraz (1991), devem apresentar, entre outros fatores, simplicidade de mensuração e repetibilidade ao longo do tempo, sensibilidade para detectar mudanças no sistema e permitir o cruzamento com outros indicadores. Ape-sar de parâmetros sensíveis indicarem impactos nos agroecossistemas, ainda é premente a necessidade de estabelecer níveis que indiquem os limites, além dos quais as alterações possam ser consideradas degrada-tivas ou apenas modificações no equilíbrio dinâmico do ambiente (ALVARENGA, 1996).

Com relação à conservação dos recursos na-turais, os indicadores encontram-se intimamente relacionados com aspectos referentes com a qua-lidade do solo. Doran (1996) afirma que a melhor maneira de se avaliar a sustentabilidade de um sistema de produção é medir seu impacto na qualidade do solo. A qualidade do solo pode ser avaliada de diferentes maneiras, dependendo do uso desejado. Em um contexto mais amplo, as propriedades químicas, físi-cas e biológicas do solo determinam a qualidade do solo e podem ser usadas como indicadores de sustentabilidade (SCHAEFER et al, 2000). Por outro lado, a maioria das práticas agrícolas utilizadas não leva em consideração a ciclagem de nutrientes do solo e a sua estrutura, não sendo rara a degradação de solos (LIMA et al., 2002).

A busca de modelos sustentáveis requer uma visão holística da realidade, capaz de integrar os requerimentos da sustentabilidade (equi-líbrios físico, químico e biológico) à compreensão do funcionamento histórico da sociedade humana. Talvez o exemplo mais claro de insustentabilidade seja encontrado na agricultura moderna, enquanto nos processos naturais e na própria agricultura tradicio-

nal nós assistimos a processos cíclicos. A agricultura moderna só se sustenta pelo uso contínuo de insumos químicos e fertilizantes (STAHEL, 1998).

Os fertilizantes químicos solúveis são compostos essencialmente de nitrogênio (N), fósforo (P) e potássio (K). A difusão em larga escala do emprego desses fertili-zantes trouxe problemas ambientais sérios. Por exemplo, o uso intenso de fertilizantes nitrogenados na agricultura pode aumentar o pool de nitrato no ciclo do N.

Todos os ecossistemas naturais permanentes são sustentáveis (autossuficientes), visto que, do ponto de vista ecológico, mantêm a produtividade de acordo com a capacidade de suporte do meio, a diversidade genética, as características físicas e químicas do solo, a dinâmica dos nutrientes, o ciclo da água, dentre outros. Neste sentido, deve-se reconhecer que, a longo prazo, qualquer produção econômica baseada

no uso indiscriminado dos recursos naturais tornar-se-ia insustentável (POGGIANI, 1998).

A sustentabilidade do solo pode ser medida através de cálculos periódicos de indicadores que relacionam quali-dade e processos pedológicos. Estes indicadores se baseiam em propriedades e processos capazes de determinar a produção da terra e de serem mensu-rados através de análises laboratoriais (LAL, 1994).

O aumento da exigência de con-sumidores por produtos com menor nível de resíduos químicos e novos pa-drões de qualidade, implica a utilização

de tecnologias capazes de manter a produtividade e de garantir a qualidade exigida (Mesquita, 2000). Contudo a agricultura moderna continua a se utilizar largamente de insumos químicos, como fertilizantes e agrotóxicos, para incrementar o estoque de nutrientes do solo e para prevenir pragas e doenças nos vegetais, respectivamente. O emprego de agrotóxicos resulta no acúmulo de compostos tóxicos potencialmente

Devemos nós, enquanto

consumidores cidadãos, cientes

da importância do meio ambiente para nossa sobrevivência na Terra, privilegiar

produtos e gêneros que sejam ecologicamente

corretos.

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danosos para humanos e para o ambiente e também no desenvolvimento de resistência por parte de certos patógenos (Longa, 2002).

Para se praticar uma agricultura sustentável, requer-se uma visão de sistema, em seu sentido mais amplo. O enfoque sistêmico permite ver mais claramente as consequências que a prática agrícola tem sobre o meio ambiente e as comuni-dades humanas (SANTANA, 2002). Utilizando-se os indicadores de qualidade do solo é possível identificar se o manejo atual está contribuindo para melhorar ou piorar em termos de manejo sustentável (DORAN, 1996). Através das análises

das respostas dos indicadores devem-se localizar aspectos ou características que possam estar con-tribuindo, de alguma forma, para o desequilíbrio do sistema e a degradação da área.

Não é difícil compreender que a sustentabilidade de agroecossistemas é indispensável à conservação da vida humana no planeta, tal como conhecemos hoje, e que a influência de práticas agrícolas na con-servação do recurso natural solo é de inestimável importância. Devemos nós, enquanto consumidores cidadãos, cientes da importância do meio ambiente para nossa sobrevivência na Terra, privilegiar pro-dutos e gêneros que sejam ecologicamente corretos.

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Flávio Caetano ( )Professor

E-mail: [email protected]

A DESCRENÇA VENCEU

A ESPERANÇA

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O brasileiro é um povo que gosta de rir da pró-pria miséria, e isso não é de hoje. Quando a corte portuguesa aqui aportou, nos idos de 1808, e era necessário acomodar os lusitanos no Novo Mundo, várias propriedades de brasileiros foram requisitadas com a abreviatura P.R., ou seja, Príncipe-Regente, à qual o povo logo apelidou: “Ponha-se na rua” ou “Prédio Roubado”.

Esta ironia do brasileiro em lidar com as maze-las do dia a dia, talvez seja porque, entre nós, uma máxima se faz sempre presente em nossa história: “mudar para não mudar nada”. Assim foi com a nossa Independência, realizada através de um português, filho do próprio rei de Portugal, criada nos moldes do absolutismo e respaldada por uma elite escravo-crata. Assim foi o advento da República, patrocinado por um golpe militar e apoiado pela elite cafeeira paulista. Da mesma forma a “Revolução de 1930”, que iria instalar um “Estado Novo”, foi realizada a partir da ruptura de um acordo político entre a elite agrária, o que levou ao poder um oligarca gaúcho que estabeleceria uma ditadura no país, personifi-cada na figura de Getúlio Vargas – o nosso “pai dos pobres e mãe dos ricos”, que cedeu às pressões populares com a criação das leis trabalhistas, mas estabeleceu mecanismos de controle sobre a clas-se trabalhadora. Quando o modelo autoritário se esgotou, a manipulação da massa ocorreu a partir de líderes populistas como o presidente Juscelino Kubistchek (o presidente Bossa Nova) ou Jânio Quadros, e o quadro social se manteve inalterado. A modernização do país se fazia com a elevação da dívida externa e a exploração dos candangos que, curiosamente, é uma palavra de origem africana que se referia aos colonizadores e que significa pessoa ruim. Na década de 1960, ganha força um movimento operário e camponês organizado, que reivindicava a redistribuição de renda. Diante disso, a classe média foi às ruas na “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, acenando para os militares derrubarem o governo de Jango, democraticamente eleito. A elite e a classe média vibram com a possibilidade de comprar seu segundo carro e sua casa de praia no litoral norte e os torturados e desaparecidos são apenas um detalhe do “fantástico show da vida”. Com

o passar dos anos, o modelo autoritário, instalado para conter as reivindicações da classe trabalhadora, se esgota. O processo de abertura política é liderado por José Sarney, Antônio Carlos Magalhães, entre outros, beneficiários do regime militar e responsáveis pela não aprovação da emenda das eleições “Diretas Já” para presidente. Este fato levaria o moderado e conservador Tancredo Neves ao poder pela via indireta, cuja morte provocaria a ascensão de Sarney ao governo. A partir daí vemos a sucessão de um presidente deposto, de um sociólogo que instala um modelo neoliberal, que agrava a distorção social e um operário reformista, que se compõe com os setores mais retrógrados da política, em nome de uma governabilidade que abdica de toda proposta de transformação social nas estruturas do país e cuja miserabilidade da população mantém um grupo no poder, comprometido com o capital financeiro e empresarial, a partir de políticas paternalistas.

Res Publica, ou seja, República significa coisa pú-blica. Isto quer dizer que aqueles que elegemos são pagos por nós para nos servirem. Eles são, sem nenhum sentido pejorativo, nossos empregados, são funcionários públicos, eleitos para servir ao público, à coisa pública. Perceber esse conceito é inverter a lógica da equação política. É passar a exigir as prestações de contas de todo vereador, deputado, prefeito ou governador, como na Inglaterra, onde o primeiro-ministro se apresenta semanalmente no parlamento para ser sabatinado e esclarecer sobre suas ações. Neste sentido, cabe ao político e membro do judiciário se curvar, em sinal de deferência, a todo cidadão. E qualquer ato de desvio desta conduta tem que ser desnaturalizado, pois é sinal de corrupção e de desrespeito à Constituição, conjunto de leis que zelam pela aplicação dos princípios republicanos.

A nossa história republicana, contudo, passados quase 123 anos, continua oligárquica e construtora de mitos e heróis. No passado e no presente. Dian-te de um quadro no qual a população sempre foi alijada do processo político, ou melhor, apagada da sua memória, nada melhor para a República recém-nascida, a partir de um golpe, do que criar um alter ego, um herói, um mito. E esta figura será construída a partir daquele que ficou esquecido nos

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anais da história durante 100 anos – o Tiradentes. Militar, comerciante falido, endividado, minerador fracassado, dentista prático, a República vai inspirar-se nele, o único participante da Inconfidência Mineira a ser enforcado, talvez por não negar a pregação pela Independência. Talvez por ser pobre, talvez por falar demais. Ou por seus companheiros, todos da elite, defensores da manutenção da escravidão após a Independência, negarem a participação no movimento e terem suas penas revertidas para o degredo.

Para a criação do mito, a fabricação do herói, Tiradentes passou a ser retratado como a figura de Jesus Cristo, de cabelos longos e barbas, o que era inverossímil. Tiradentes era militar, como tal não poderia usar nem barba nem cabelo grande. Segundo, não era moda cabelos grande na época e, na prisão, estes eram cortados para não criar piolho. Vale a pena ressaltar que, no regime militar de 1964, por lei, Tiradentes se tornou patrono da nação brasileira e, por decreto, se obrigou a que sua imagem trou-xesse a barba que lembra Jesus Cristo. O mito estava criado. Nosso herói era um legítimo representante de um movimento elitista.

E a nossa liberdade? Vivemos de mitos e símbo-los. Somos seres semióticos e construímos e recons-

truímos nossa história cotidianamente. Casualidade ou não, Tancredo Neves morreu, também no dia 21 de abril, boa coincidência para aquele que, bastante moderado e aceito pelos militares, poderia proceder a uma transição democrática sem rupturas, investigação ou julgamento dos participantes do regime militar, como os processos instalados em todos os países latino-americanos, sem exceção, que vivenciaram re-gimes ditatoriais. Mas quis o destino que essa tarefa fosse dado a outros. Aqui, por sermos “pacíficos e ordeiros”, convivemos com a impunidade em nome de uma transição lenta, gradual e segura que manteve os benefícios de uma minoria privilegiada, imoral e sarcástica e de uma moral que faz das delegacias câmeras de tortura e coloca as autoridades e todos aqueles que deveriam zelar pela Constituição, acima da lei, em um desrespeito total ao Estado de Direito. E a sociedade aplaude a máxima de que “bandido bom é bandido morto”, não percebendo que a impunidade daqueles que agem acima e fora da lei, principalmente os representantes do Estado, atingem todo cidadão e coloca em risco a vida de todos, seja dos “bons” ou “maus” indivíduos. Ademais, o cidadão deixa de ter elementos para se proteger contra as arbitrariedades do poder público.

E a nossa liberdade? Talvez esteja no nome dos escravos e seus descendentes, pretos e pardos, solda-dos, pequenos comerciantes, artesãos e especialmente dos quatro pretos e pobres que foram enforcados na Revolta dos Búzios (Conjuração Baiana). Estes pagaram com suas vidas e o esquecimento, por lutarem pela independência política, pela abolição da escravidão e libertação do jugo de uma elite econômica e sem escrúpulos (“eu vejo o futuro repetir o passado”) e de uma camarilha de políticos corruptos, que se utili-zavam (utilizavam?...) de todas as artimanhas para se manter no poder. Para isso ou por isso, não sabemos nem seus nomes, nem quando foram mortos! E continuamos a rir das nossas próprias mazelas.

Mas a história clama! Se os mineiros proclamavam “Liberdade ainda que tardia”, está na hora de lem-brarmos e aprendermos com os baianos “Aviso ao povo bahianense. Há de chegar o tempo feliz da nossa liberdade, o tempo em que seremos todos iguais, todos irmãos”.

Passado e presente se confundem. Uma das questões que mais causam indignação à sociedade brasileira é a falta de ética na política e a corrupção, que permeiam o meio político, independente de a instância ser municipal, estadual ou federal, atingindo os poderes executivo, legislativo e judiciário (este, mais do que todos, sob a áurea da intocabilidade). Esta indignação cresce ao percebermos que, após anos de regime

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ditatorial militar, o Partido dos Trabalhadores, que surgiu como uma agremiação política nova, que buscava não só criar uma sociedade mais justa, mas também mudar a prática política brasileira, ao chegar ao poder, usa os mesmos mecanismos escusos, antiéticos e imorais para controlar o Estado, como assim fazem todos os outros partidos políticos (PSDB, PMDB, PDT, DEM, etc...) que historicamente foram criticados pelo PT. A decepção e a reflexão sobre essas práticas políticas ocorrem em toda uma geração que lutou pela rede-mocratização e acreditou ser possível mudar o Brasil.

A decepção com as práticas políticas atuais requer não só uma constatação pessimista sobre a política brasileira, mas uma reflexão mais aprofundada, visto que a naturalização da falta de ética reflete um com-portamento que, de certa forma, está arraigado no cotidiano da sociedade brasileira e que a escola, como instituição formadora de valores e de cidadania, tem como função principal discutir.

Um dos grandes problemas do sistema político atual é a naturalização da corrupção. Afinal, a prática exercida pelos três poderes da República depõe sempre contra a moralidade e a ética. Atualmente, percebe-mos que os interesses privados se confundiram com o público, e o sentido de Res Publica (a coisa pública) se mantém apenas na retórica. Compreender esses processos exige uma reflexão sobre a própria ética e moralidade da sociedade brasileira.

E a nossa liberdade? Talvez esteja no nome dos escravos e seus descendentes, pretos e pardos, soldados, pequenos comerciantes, artesãos e especialmente

dos quatro pretos e pobres que foram enforcados na Revolta dos Búzios (Conjuração Baiana).

O ser humano, de acordo com Piaget, se desen-volve da anomia (quando a moral não se coloca), para a heteronomia e então para a autonomia. Contudo, se essas etapas do desenvolvimento dependem das estruturas mentais e biológicas do indivíduo, esse processo não ocorre de uma forma mecânica, de-terminista ou teleológica. Ou seja, se uma criança de 07 anos não tem estruturas orgânicas e mentais que a possibilitem desenvolver uma moral autôno-ma, isso não quer dizer que um jovem de 24 anos automaticamente tenha desenvolvido esses valores.

Um indivíduo, assim como uma sociedade he-teronômica, implica a obediência às normas estabe-lecidas como válidas pela sociedade, não apenas em situações em que o indivíduo teme ser punido. Ou seja, enquanto existe o elemento coercitivo presente, o cidadão cumpre as normas. Quando esse elemento desaparece, as normas deixam de ser cumpridas. Podemos perceber muito bem isso nas pistas com velocidade controlada. Enquanto o automóvel está

ao alcance do radar, o condutor obedece às nor-mas estabelecidas. Após o raio de ação do radar, o condutor burla a velocidade máxima permitida, ignorando que esta norma é criada objetivando a segurança do motorista e das outras pessoas.

Uma sociedade baseada na autonomia percebe as normas de outra maneira. Ela introjeta as regras morais e as jurídicas e obedece, não só devido aos instrumentos de coação, mas também por que acredita nelas. O indivíduo tem a possibilidade de optar em obedecer às normas ou não. Contudo ele opta por obedecer, por perceber que este é o melhor mecanismo para ele e para a comunidade. Uma sociedade que vive pautada nos princípios da moral autônoma, desenvolve o sentido de liberdade, independência e cria condições mais harmoniosas de vida em sociedade, principalmente em cidades de milhões de habitantes, nas quais a primazia do indivíduo sobre o coletivo tem tornado insustentável e insuportável a vida em comunidade.

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Diante desta constatação vem a grande problemática. Como tornar uma sociedade heteronômica, como a brasileira, em uma sociedade baseada na autonomia, visto que este processo não é natural ou espontâneo? É neste sentido que a educação tem um papel fundamental. Devemos compreender como responsabilidade da escola a formação de valores morais, que não ocorre a partir de um processo espontaneísta, sendo ne-cessária uma sistematização e uma discussão sob a ótica curricular.

A exigência do vestibular e mais recentemente do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), tem relegado a segundo plano a questão da formação moral e ética do educando. Se por um lado o MEC, nos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), defende a ética como um tema transversal, ao divulgar a nota das escolas classificadas no ENEM e a supervalorizar esse exame (e não uma avaliação, que requer refle-xão e mudança de postura), valoriza um ensino conteudista e, salvo raras exceções, algumas habilidades e competências. Em um ambiente em que impera a lógica do mercado, a maioria das instituições privadas do ensino tem pautado sua propaganda e seu modelo curricular nas notas do ENEM. As instituições de ensino se têm utilizado do desconhecimento dos pais e das expectativas deles quanto ao ingresso dos filhos nas universidades, e quanto ao critério classificatório do ENEM, como a única preocupação a ser observada na escola, abrindo mão de conhecer a proposta pedagógica das instituições (se é que existem mais), o ambiente propício à formação da cidadania e de valores éticos e morais.

O MEC, que defende o desenvolvimento de valores éticos e morais nas escolas, é o mesmo que, contraditoriamente, incentiva a competitivida-de e o individualismo, ao tornar um mero exame classificatório em um instrumento que hierarquiza as instituições de ensino. Toma esse exame como o único parâmetro de avaliação da qualidade da instituição escolar, resumindo toda uma proposta pedagógica a apenas uma prova, que exige muito mais uma resistência mental, do que conhecimento e habilidade (90 questões por dia). Essa proposta tem feito que as escolas se tornem instituições que focam exclusivamente o ENEM, tornando seus alunos em treineiros deste exame, sem nenhuma preocupação com a formação ética, moral ou de cidadania dos educandos.

Este quadro se torna mais grave quando pensa-mos nas instituições públicas. Todas as dificuldades do processo que envolve o ensino público como, por exemplo, uma visão estereotipada dos educan-dos, o descaso e irresponsabilidade dos governantes com a educação e o desestímulo dos professores, causam uma descrença absoluta na educação, no sistema educacional e nos próprios estudantes. Dessa

maneira, apesar das propagandas oficiais dos gover-nos, “o professor continua fingindo que ensina e os alunos fingindo que aprendem”, perpetuando a lógica perversa de uma sociedade excludente nos aspectos sociais, étnico-raciais, sexuais, etc. e com uma moralidade do “se dar bem” que permeia desde os altos escalões do governo até aos atos cotidianos do cidadão comum.

É essa lógica que torna o Brasil fadado a estar “eternamente deitado em berço esplêndido”, cujo crescimento econômico não se reproduz em bem-estar social. Continuamos vivendo em uma Belíndia, na qual uma minoria vive com os padrões da Bélgica e a maioria da Índia (apesar do investimento educacional na Índia ser maior do que o do Brasil).

É uma contradição, então, continuarmos a cri-ticar as mazelas da política brasileira e dos poderes da República se a escola, como uma instituição fundamental na formação de valores, persiste com uma visão meramente conteudista ou focada no ENEM e nos exames vestibulares. Hoje, a instituição escolar tem prestado um desserviço à formação da cidadania e à constituição de uma sociedade baseada

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em uma moral autônoma. Esse processo ocorre pela inexistência de uma diretriz que possa desenvolver esses valores, que não surgem como se fossem através de geração espontânea. Não se pode pensar em uma sociedade pautada em valores éticos, se a escola não toma para si essa responsabilidade ou o faz de uma forma não sistemática e aleatória.

A instituição escolar tem que permear no seu currículo a formação ética e moral do cidadão. E esse processo não pode vir com a criação de mais uma disciplina fragmentadora do conhecimento, nem exclusiva desta ou daquela disciplina. A discussão ou formação de valores éticos e morais tem que permear todas as disciplinas do currículo escolar. Assim, o professor de Ciências ou Biologia deve problematizar a questão do aborto, por exemplo, no processo da discussão da origem da vida, contextualizando com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre os anencéfalos. O professor de Química ou Ciências deve discutir a ética da produção industrial, da sociedade de consumo, em relação à poluição dos rios e mares. Isso só para dar exemplos na área das Ciências da Natureza, considerada mais árida para a discussão destes temas. Os conteúdos curriculares têm de ser contextualizados, têm de ter significados para essas crianças e jovens do século XXI e, para isso, a construção de valores éticos e morais será fundamental.

Uma questão importante é que falar de va-lores exige mais do que a elaboração teórica dos conceitos. Requer, também, uma prática destes conceitos. Discutir em sala de aula sobre respon-sabilidade social, o respeito ao que é público ou a alteridade se tornarão palavras vazias se esse mesmo professor estereotipar o aluno em função da sua posição social, chegar sempre atrasado, faltar aula frequentemente no colégio público (por que ganha pouco), ou humilhar e menosprezar os estudantes. Os jovens franceses, em maio de 68, já percebiam essa questão quando afirmavam: “quem fala em revolução sem realizá-la no dia a dia, fala com um cadáver entre os dentes”. A coerência entre o dis-curso e a prática é fundamental para a construção desses valores éticos e morais.

É óbvio que os professores são frutos também desta sociedade heteronômica e estão sujeitos a algumas práticas que reproduzem esses valores dominantes na sociedade. Mas faz parte de seu aprendizado, e do de seus alunos, reconhecer esta situação e buscar mecanismos de superá-la. Um professor só ensina honestidade se ele é honesto consigo mesmo e com os educandos, reconhecendo, por exemplo, qualquer falha ou injustiça cometida. Esta ação, ao invés de ser sintoma de fraqueza, é sinal de formação de caráter e uma atitude impor-tantíssima pela qual o educando terá um referencial para se espelhar.

Em uma sociedade em que os meios de comuni-cação e a mídia em geral nos massacram de valores consumistas, individualistas, egoístas e antiéticos, cabe à escola tornar-se um contraponto a esta situação, recuperando uma função exercida pelas escolas tradicionais que era, não só de construir o conhe-cimento, mas também de contribuir na formação de valores morais e éticos.

Cabe-nos, então, desmistificar nossos heróis, nossos nordestinos, pobres e analfabetos que vence-ram na vida e se metamorfosearam de “salvadores da pátria”. Nos desnudarmos do senso comum midiático. Nossa pátria, nosso Estado, nossa cidade foram ven-didas aos grandes fazendeiros (veja o Novo Código Florestal que legalizou o desmatamento), aos grandes empresários (privatizaram nossas estradas, enquanto o exército brasileiro duplica todas as estradas fede-rais do nordeste, sem cobrar nenhum pedágio), aos empreiteiros (veja o que restou da Mata Atlântica com o crescimento desordenado e irresponsável de Salvador) e ao capital financeiro (observe quem mais lucrou nos últimos decênios). Não cabe mais em nossa história pessoas mitificadas. Líderes que, no fundo, defendem a lógica do capital antidemocrático, antipacifista, antiambiental, anti-humano. Por isso mesmo, o presidente da nação que mais contribui para as guerras, a fome e a miséria planetária – Barack Obama, muito propriamente, diante desta lógica, chamou o nosso ex-presidente de “o cara”.

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Bem empregado por sinal. Mas também não cabe mais o retorno de grupos que sempre contribuíram para chegarmos a esta situação, que agravaram o processo de concentração de renda e desigualdade social e que posam de oposição sem o ser, pois na verdade eles não se diferenciam em nada, nas suas práticas políticas e no seu ideário de comprometimento com os beneficiários desta situação de injustiça social.

Se um dia a esperança venceu o medo, a descrença venceu a esperança. Contudo, resta-nos fazer valer nossos direitos e exigir um espírito republicano daqueles nossos funcionários públicos. Cabe-nos votar naqueles que se comprometam e mostrem meios de reduzir os gastos absurdos dos seus mandatos (sabia que no México os vereadores não recebem remuneração; que em Estocolmo os vereadores recebem em torno de R$ 350,00, como ajuda de custo; e que em Paris recebem menos do que um assalariado médio?). Resta-nos, também, não realizar “aquela roubadinha” que todo mundo faz no trânsito, não oferecer aquela “gorjeta” para não ser multado, não fingir que está dormindo para não dar lugar ao idoso no ônibus, ..., ou seja, começar a ser ético e correto. Só assim, efetivamente, não teremos medo de ser felizes.

Afinal, se um dia a esperança venceu o medo, e hoje a descrença venceu a esperança, lembre Raul, toque Raul, cante como Raul... TENTE OUTRA VEZ!

Afinal, se um dia a esperança venceu o medo, e hoje a descrença venceu a esperança, lembre Raul, toque Raul, cante como Raul...

TENTE OUTRA VEZ!

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