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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS CAMPUS DA FUNDAÇÃO EDUCACIONAL DE DIVINÓPOLIS ODISSÉIAS DO PERDÃO EM LA MÉMOIRE, L’ HISTOIRE, L’ OUBLI (2000) DE PAUL RICOEUR Nem fácil, nem impossível Regina Célia Vaz Ribeiro Gonçalves Divinópolis 2007

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Page 1: UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS ... Frei Leonardo e Frei Bernardino pela disponibilidade nos esclarecimentos necessários sobre a questão do perdão. Aos meus pais, parentes,

UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS

CAMPUS DA FUNDAÇÃO EDUCACIONAL DE DIVINÓPOLIS

ODISSÉIAS DO PERDÃO EM LA MÉMOIRE, L’ HISTOIRE, L’ OUBLI (2000) DE

PAUL RICOEUR

Nem fácil, nem impossível

Regina Célia Vaz Ribeiro Gonçalves

Divinópolis

2007

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Regina Célia Vaz Ribeiro Gonçalves

ODISSÉIAS DO PERDÃO EM LA MÉMOIRE, L’ HISTOIRE, L’ OUBLI (2000) ) DE

PAUL RICOEUR

Nem fácil, nem impossível

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da Universidade do Estado de Minas Gerais, Campus da Fundação Educacional de Divinópolis, como requisito parcial à obtenção do título Mestre em Educação, Cultura e Organizações Sociais.

Área de concentração: Estudos Contemporâneos Linha de Pesquisa: Cultura e Linguagem Orientador: Prof. Dr. Mateus Henrique de Faria Pereira

Divinópolis Fundação Educacional de Divinópolis

2007

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Gonçalves, Regina Célia Vaz Ribeiro G635o Odisséias do perdão em La Mémoire, l’ Histoire, l’ Oubli (2000) de Paul Ricoeur – nem fácil, nem impossível. [manuscrito] / Regina Célia

Vaz Ribeiro Gonçalves. – 2007. 111 f., enc.

Orientador : Mateus Henrique de Faria Pereira Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado de Minas Gerais,

Fundação Educacional de Divinópolis. Bibliografia : f. 85 - 87

1. Perdão. 2. Memória - História. 3. Esquecimento. 4. Cultura – Contemporaneidade. l. Pereira, Mateus Henrique de Faria. II. Universidade

do Estadual de Minas Gerais. Fundação Educacional de Divinópolis. III. Título.

CDD: 152.4 306

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Dissertação defendida e APROVADA pela Banca Examinadora constituída pelos

Professores:

Prof. Dr. Mateus Henrique de Faria Pereira (Orientador) – FUNEDI/UEMG

Prof. Dr. Alexandre Simões Ribeiro - FUNEDI/UEMG

Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori - FAJE

Mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais

Fundação Educacional de Divinópolis

Universidade do Estado de Minas Gerais

Divinópolis, 13 de Dezembro de 2007.

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AUTORIZAÇÃO PARA A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA DA DISSERTAÇÃO

Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou

parcial desta dissertação por processos de fotocopiadores e eletrônicos. Igualmente, autorizo

sua exposição integral nas bibliotecas e no banco virtual de dissertações da FUNEDI/UEMG.

Regina Célia Vaz Ribeiro Gonçalves

Divinópolis, 13 de dezembro de 2007.

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AGRADECIMENTOS

Ao Ivan, Nara, Ricardo e Juliana por sempre terem acreditado em mim.

Ao Mateus, meu orientador e mestre, pela seriedade, serenidade, competência, esforço e

dedicação, sem quem não teria sido possível realizar este trabalho.

Ao Frei Leonardo e Frei Bernardino pela disponibilidade nos esclarecimentos necessários

sobre a questão do perdão.

Aos meus pais, parentes, mestres, amigos, companheiros de luta e, sobretudo a Deus que

sempre têm me perdoado pelas minhas faltas.

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RESUMO

Este trabalho pretende compreender e explicar como Ricoeur apresenta o problema do perdão

em sua obra: La Mémoire, L’ Histoire, l’ Oubli (2000). Ele é composto de três partes. A

primeira será consagrada ao trabalho da memória e o trabalho de luto destacando os

fenômenos mnemônicos sob a perspectiva da fenomenologia no sentido de Husserl. A

segunda dedicada ao esquecimento numa hermenêutica da condição histórica dos humanos

que nós somos. A terceira culminará com a problemática do perdão. Toda a trajetória do

trabalho tentará responder a duas questões: 1ª) Por que Ricoeur escolhe o perdão como tema

do epílogo de sua obra: La Mémoire, l’ Histoire, l” Oubli que é destinada a tratar da

memória, da história e do esquecimento? 2ª) Pode o perdão ser um conceito fundamental para

a construção de uma nova ética para o mundo contemporâneo?

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RÉSUMÉ

Ce travail prétend comprendre et expliquer comment Ricoeur présente le problème du pardon

dans son oeuvre : La Mémoire, l’ Histoire, l Oubli ( 2000) . Il comporte trois parties. La

première, consacrée au travail de la mémoire et au travail de deuil et aux phénomènes

mnémoniques sous la perspective de la phenoménologie au sens de Husserl. La deuxième,

dédiée à l’ oubli dans une herméneutique de la condition historique des humanins que nous

sommes. La troisième, culminant dans une problemátique du pardon.Toute la trajectoire de ce

travail essayera de répondre à deux questions : La première : Pourquoi est-ce que Ricouer

choisit le pardon comme un thème d’ un épilogue de son oeuvre : La Mémoire, l’ Histoire, l

Oubli qui est destinée à parler de la mémoire, de l’ histoire, de l’oubli ? Deuxième : Le

pardon, est-ce qu’ il peut être un concept fondamental pour la construction d’ une nouvelle

étique pour le monde contemporain ?

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 09 Capítulo I: O trabalho de memória e o trabalho de luto 30

1.1 Memória e Imaginação 32 1.2 Memória como reminiscências 35 1.3 Memória e a temporalidade 40 1.4 Memória-hábito 42 1.5 Trabalho de luto 45 1.6 O olhar interior da memória 48

Capítulo II: A condição histórica e o esquecimento 56

2.1 O ser-no-mundo de Heidegger 62 2.2 O ser para a morte de Heidegger . 63 2.3 A existência autêntica construída com vista do ser para a morte 65 2.4 A temporalidade de Heidegger 66 2.5 Crítica de Ricoeur à visão heideggeriana 70 2.6 O esquecimento 75 2.7 O esquecimento e o apagamento dos vestígios 76 2.8 O esquecimento como reserva e a persistência dos traços 77 2.9 O esquecimento e a memória impedida 81 2.10 O esquecimento e a memória manipulada 83 2.11 O esquecimento comandado: a anistia 84

Capítulo III: O perdão como elaboração entre a culpabilidade e a reconciliação

88

3.1 Perdão e falta 90 3.2 O perdão na travessia das instituições sociais 95 3.3 A culpabilidade criminal 95 3.4 A culpabilidade política 98 3.5 A culpabilidade moral 99 3.6 O espírito do perdão 102 3.7 Dom e perdão 103 3.8 Perdão e promessa 105 Considerações Finais 109 Referências 117

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INTRODUÇÃO

Os fatos atuais mantêm o homem perplexo: bombas, ataques terroristas, suicídios, mortes,

assaltos, crime organizado, desemprego, acidentes automobilísticos, corte de árvores,

poluição das águas e do ar. Tudo isto indica desrespeito do homem à natureza em geral, da

qual é parte integrante. As cidades são hoje verdadeiros campos de batalha, onde poderes

globais se chocam com identidades locais, abandonadas pela desintegração da solidariedade.

A crescente velocidade com que se desenvolvem as sociedades modernas agrava esta

tendência por uma transformação cada vez mais intensa das estruturas das diversas

instituições sociais. O saber tradicional, como o transmitia a Igreja, a Escola, a Família ou o

Estado, envelhece com maior rapidez fazendo surgir novos modelos, novos métodos. Por isso,

a característica de nosso tempo é a convulsão das nossas antigas certezas e o questionamento

das nossas atuais identidades. Estas novas orientações são conflituosas, porque há o desafio

de atender, simultaneamente, aos interesses do indivíduo, mas apoiados na condição

comunitária da sociedade.

A natureza não significa somente águas, plantas, terras e ar. O homem também é natureza.

Quando silenciosamente destruímos a natureza é também o homem que está sendo destruído.

Por isso, Freud (1978) comenta na sua obra o Mal-estar na Civilização que talvez,

precisamente com relação a isso, a época atual mereça um interesse especial, porque os

homens adquiriram tal controle sobre as forças da natureza, que não têm dificuldades em se

exterminarem uns aos outros, até o último homem e, é daí que provém grande parte de sua

atual inquietação, de sua infelicidade e de sua ansiedade. Freud afirma ainda que a questão

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fatídica para a espécie humana é saber se seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a

perturbação de sua vida comunal causada pela agressão e autodestruição próprias do homem.

Sabe-se ainda que o desenvolvimento tecnológico, na contemporaneidade, trouxe consigo

uma enorme expansão de possibilidades. Enquanto no passado, algumas técnicas transmitidas

de uma geração a outras constituíam o fundamento da existência material, existe, hoje em dia,

uma pluralidade aparentemente interminável de sistemas tecnológicos em constante

aperfeiçoamento. Assim, tanto o indivíduo como a grande organização estão diante da

necessidade de escolher uma ou outra possibilidade dessa enorme multiplicidade. Esta

compulsão de escolha vai desde os bens triviais de consumo como pasta de dente, até as

opções sofisticadas de carros e aparelhos eletrônicos.

Duas instituições centrais da sociedade moderna promovem a passagem do destino para as possibilidades de escolha e para a compulsão de escolher: a economia de mercado e a democracia. Ambas se baseiam na escolha agregada de muitos indivíduos – e elas mesmas estimulam a um constante escolher e selecionar. O etos da democracia faz da escolha um dos direitos fundamentais do ser humano (BERGER, 2004, p. 59).

Percebemos que quando o homem escolhe, ele elimina, descarta, rejeita algo. É assim que

ocorre na contemporaneidade. O indivíduo se percebe com uma pluralidade de opções que o

fazem escolher e eliminar ao mesmo tempo. O mais grave é que esta estrutura social torna-se

a estrutura da consciência do indivíduo. O mundo subjetivo do indivíduo não precisa

concordar plenamente com a realidade “objetivamente” definida pela sociedade, porque há

pequenas fissuras ou rupturas no processo de socialização, pelas quais perpassam o eu do

indivíduo que deseja e escolhe. Portanto o homem hodierno seleciona o que mais atende às

suas necessidades e o resto é desprezado.

A ampliação das opções materiais a que se submete o indivíduo também se estende para o

campo social e intelectual. Antigamente o destino determinava quase todas as fases da vida. O

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indivíduo passava pelas fases segundo padrões predeterminados: infância, ritos de passagem,

profissão, casamento, criação de filhos, velhice, doença e morte. Também o seu mundo

interior já estava “predestinado”: seus sentimentos, sua interpretação do mundo, seus valores

e sua identidade pessoal. Hoje, paralelamente à multiplicidade de possibilidades de decisão no

campo material surge, nos processos multifacetários de modernização, uma pluralidade de

opções no campo social e intelectual: que profissão devo abraçar? Com quem casar? Como

educar meus filhos? Até mesmo os deuses estão à disposição numa multiplicidade de ofertas

de escolha. Posso mudar minha opção religiosa, minha cidadania, meu estilo de vida, minha

auto-imagem. O pluralismo não só permite que escolhamos, mas nos impõe escolhas

constantes, principalmente com relação ao consumo: Omo, Minerva ou Tixan; Renault ou

Volkswagen. Hoje, já não é possível não escolher, pois é impossível fechar os olhos diante de

tanta oferta sedutora

No início dos tempos modernos, pensadores como Descartes, Hobbes, Leibniz e Newton

conheciam “quase tudo” que era importante de ser conhecido em sua época, uma vez que

existia um número reduzido de publicações com a facilidade de comunicação pela

universalidade do latim. Hoje, há uma quantidade gigantesca de obras em diversas línguas,

lançadas numa incalculável rapidez pela ajuda dos meios de comunicação, tornando

impossível alguém dominar o conhecimento em extensão e em profundidade.

Especialmente durante o século XX: a escala do acervo das grandes bibliotecas do mundo saltou do milhar para milhões de volumes. Ou seja: em fins dos anos noventa, 23 milhões para a Biblioteca do Congresso, sediada em Washington...16 milhões para a Biblioteca Nacional da China, sediada em Pequim; 14,5 milhões para a Biblioteca Nacional do Canadá,...14,4 milhões para a Biblioteca Alemã, 13 milhões para a Biblioteca Britânica;...12 milhões para a Biblioteca Nacional da França (DOMINGUES, 2005, p. 28).

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De face desta realidade, conclui-se que o generalista, aquele que visa à extensão do

conhecimento, afogaria neste vasto oceano de conhecimento, enquanto que o especialista não

conseguiria apanhar o que se passa no interior profundo de sua disciplina e especialidade. Nas

ciências humanas, a situação seria enormemente agravada pela quantidade de livros, além das

publicações indexadas nas mais variadas revistas e outros meios de comunicação. A

transdisciplinaridade se apresenta como uma tentativa de superação e/ou problematização do

referido dilema no âmbito do conhecimento (DOMINGUES, 2005).

A realidade contemporânea nos deixa perplexos pela sua complexidade. Percebemos a

destruição do planeta pela violência humana e pretendemos debruçar sobre as reflexões

existentes para encontrar saídas. Contudo, desanimamos, em face dos estarrecedores índices

de destruição e da infinidade de publicações existentes. Estamos, pois, além de perdidos,

desanimados. Vivemos numa era dos homens “vazios” e “cheios”. Vazios porque eles se

voltam para si mesmos, sem preocupação com o outro. O individualismo moderno, longe de

ser virtude e autonomia, significa passividade, apatia, egocentrismo. Cheios porque as opções

são quase infinitas.

O homem do século XXI vive, em geral, em crise permanente pelo uso descarado da

vantagem social e o desordenado poder do dinheiro, que muitas vezes dirige o curso mesmo

dos acontecimentos. Por um lado encontraremos um grupo com padrões abaixo do nível de

pobreza, enquanto outros se sentem inseguros, amedrontados e escravos do poder e do

dinheiro por estarem muito acima da média de poder aquisitivo e renda. Hobsbawm (1999)

afirma que:

O breve Século XX acabou em problemas para os quais ninguém tinha, nem dizia ter soluções. Enquanto tateavam o caminho para o terceiro milênio em meio ao nevoeiro global que os cercava, os cidadãos do fin-de-siècle só sabiam ao certo que acabara uma era da história. E muito pouco mais (HOBSBAWM, 1999, p.537).

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E Hobsbawm (1999) encerra sua obra com uma grande preocupação para o nosso século:

Não sabemos para onde estamos indo. Só sabemos que a história nos trouxe até este ponto e-se os leitores partilham da tese deste livro – por quê? Contudo, uma coisa é clara. Se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudança da sociedade, é a escuridão (HOBSBAWM, 1999, p.562).

Além disso, os projetos ambiciosos criados nas últimas décadas terminam frustrando, porque

propõem-se metas tão elevadas que as conquistas permanecem sempre aquém. A luta em prol

da solidariedade também não alcança um destaque, porque cada indivíduo prefere fechar em

seu mundo de prazer e de lucro. Um projeto para atender aos indivíduos na dita pós-

modernidade não conseguiu ainda organizar prioridades e quando escolhe frustra-se ao

colocar em funcionamento, porque o capital é o que tem mais se beneficiado no jogo

ideológico, em detrimento da justiça social, solidariedade, emancipação e igualdade.

As crises nos assaltam de fora e de dentro. Inseridos numa sociedade e numa cultura, sentimo-

nos abalados quando percebemos mudanças na legislação, por exemplo, que geram perdas de

direitos adquiridos pelo trabalhador. A concepção de trabalho e de emprego vem mudando e

afetando a maneira de ser dos indivíduos pela insegurança financeira que isto pode gerar.

Muitas vezes, além do desemprego a nova maneira de inserção das pessoas no mundo do

trabalho cria dificuldades para o indivíduo conduzir até sua vida privada.

Na sociedade tradicional e industrial as pessoas, bem ou mal, escolhiam uma profissão ou

assumiam determinado trabalho que lhes garantia por toda a vida o sustento, salvo algum

percalço mais raro. Hoje a mobilidade no emprego cresceu enormemente em todos os níveis

sociais. O desenvolvimento tecnológico tem produzido um deslocamento massivo das

pessoas, ora substituindo-as por máquinas, ora exigindo delas um reaprendizado permanente e

a altos custos.

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A mobilidade profissional desgasta profundamente e gera insegurança nos trabalhadores que

hoje já se apresentam mais frágeis psicologicamente. A tendência do deslocamento dos

setores agrícola e industrial para os de serviços afeta fortemente os empregados, pois os

serviços pedem das pessoas mais habilidades e capacidades mentais além de serem criativas,

gerando uma concorrência mais acirrada, conduzindo a incertezas, dúvidas e angústias.

A mídia também dilacera as pessoas nesta contemporaneidade, principalmente os mais

pobres, aprofundando ainda mais o corte entre o desejo e a realidade, entre os sonhos e as

possibilidades reais. A mídia amplia os desejos, mas não dá o capital. Esse jogo engendra

vários efeitos nefastos, aumentando a tensão social, a insatisfação das pessoas, levando-as a

atos de violências, roubos, assaltos para satisfazê-las de um consumismo estimulado pela

propaganda e para o qual não dispõem de recursos econômicos. A mídia oferece o prazer. O

telespectador goza da intensidade das sensações de superfície que as imagens oferecem, sem

ativar consistentemente os mecanismos de identificação e projeção nos confrontos de

personagens.

Pensamos que hoje está ocorrendo uma banalização do mal como afirmava Arent (1991), pois

não sabemos mais distinguir entre o que é ou não horrendo, pois fomos educados num tempo

em que o horror perdeu seu aspecto extraordinário. Para uma sociedade excludente,

desrespeitosa, a realidade feia, pobre, negra, mal vestida é como se não existisse, por isso

pode ser eliminada.

Poderíamos multiplicar as barbaridades de nosso tempo que configuram a crise existencial.

Contudo, apesar das dificuldades apresentadas, temos que reagir, tomar uma atitude, atuar,

posicionando-nos de forma consciente. Estamos, por um lado, presos e emaranhados nesta

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teia que nós mesmos construímos. Entretanto é nesta mesma teia, nesta rede caótica da

informática, dos neurônios, das relações dos homens entre si e com o mundo que se faz

necessária uma organização em pontos estratégicos. Pontos estes que se agrupam, se

conectam, permitindo o agrupamento das ciências, das tecnologias e das artes num sistema

não fechado, mas aberto, ligado, sem idéia de hierarquia, mas com possibilidades de

cruzamento de conhecimentos tanto no plano social quanto no plano individual.

Assim, hoje é tempo não somente de constatar o negativo do caos que se instalou, mas

também é tempo de buscar, principalmente, algumas possibilidades de reflexão. Por isso

devemos nos questionar: é possível redescobrir uma macroética, válida para a humanidade?

Nossa hipótese é de que é preciso criar uma macroética, mas também uma ética da

responsabilidade, fundada na razão de maneira a dominar plenamente as formas culturais

contemporâneas.

Sabemos que cada sociedade possui seu ethos, ou se compõe de um conjunto de ethos, jeito

de ser que conferem um caráter àquela organização social. “O indivíduo trabalha e consome,

aprende e cria, reivindica e consente, participa e recebe: a universalidade do ethos se desdobra

e particulariza em ethos econômico, ethos político, ethos social propriamente dito” (LIMA

VAZ, 1988, p.22).

Os papéis sociais têm seu fundamento no ethos de uma sociedade. Ethos (grego) e mores

(latino) significam costume, jeito de ser, portanto nos remete à criação cultural. Não há

costume na natureza. O costume resulta no estabelecimento de um valor para a ação humana,

que é criado, conferido pelos próprios homens, na sua relação uns com os outros. “O ethos é a

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casa do homem (...) o espaço do ethos, enquanto espaço humano, não é dado ao homem, mas

por ele construído, incessantemente reconstruído” (LIMA VAZ, 1988, p.12).

O domínio do ethos é o da moralidade, do estabelecimento de deveres, a partir da reiteração

das ações e da significação a elas atribuída. “O ethos é a face da cultura que se volta para o

horizonte do dever-ser ou do bem” (LIMA VAZ, 1988, p.19).

Hoje, pensa-se somente em criar leis para educar. Sabemos que não basta que uma ação seja

legal para que seja moral. Para que uma ação seja moral é necessário que aconteça algo no

ânimo ou na vontade daquele que a executa. Um ato moral tem pleno mérito moral quando a

pessoa que o realiza determinou-se a realizá-lo unicamente porque esse é o ato moral devido.

Frente a este quadro, a filosofia de Ricoeur nos pareceu a filosofia da esperança, oferecendo

uma saída para além do nihilismo contemporâneo. Não devemos entender aqui uma filosofia

distante, idealizada, impraticável, mas uma filosofia da esperança como uma ética, um dever

ser, como uma vontade que impulsiona o ser humano para o bem nas relações consigo

mesmo, com os próximos e com aqueles que se encontram mais distantes de nós. Neste ponto,

lembramos que Kant explicava que uma ação denota uma vontade pura e moral quando é feita

por respeito ao dever, como imperativo categórico e não como imperativo hipotético. Este

respeito ao dever é um imperativo categórico para Kant, ou seja, a lei moral universal, que é a

seguinte: age de maneira que possas querer que o motivo que te levou a agir seja uma lei

universal.

Como vimos, as sociedades contemporâneas e o sistema mundial em geral estão a passar por

processos de transformação social muito rápidos e muito profundos que põem definitivamente

em causa as teorias e os conceitos, os modelos e as soluções anteriormente considerados

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eficazes para diagnosticar e resolver as crises pessoais e sociais. A pobreza extrema de uma

parte significativa e crescente da população mundial, o agravamento aparentemente

irreversível das desigualdades sociais, a degradação ambiental, as guerras, as violências e a

ausência de soluções possíveis para qualquer destes problemas, levam-nos a pensar que o

homem como um ser histórico, isto é, inserido num tempo e num espaço, repete ações, sem

uma leitura crítica da sua realidade e da realidade social, porque sua memória se mantém

“esquecida”.

Foi participando do programa de pós-graduação stricto sensu em Educação, Cultura e

Organizações Sociais e analisando criticamente vários pensadores que ficaram colocadas as

questões: o que fazer face a este panorama da contemporaneidade? Qual tema abordar? A

partir de uma percepção pessoal da problemática atual, começamos a pensar na questão do

perdão como possibilidade para a contemporaneidade, a fim de que os indivíduos não

somente repetissem os mesmos erros do passado, mas que pudessem “esquecê-los” por meio

de uma reconciliação com o passado. Foi assim, em busca de uma melhor compreensão do

que seja o perdão e do seu valor como uma virtude para ser objetivada pelo ser humano, como

saída e esperança, a partir de uma mudança de seu comportamento no presente, que fomos à

procura de pensadores sobre o assunto. Nesta pesquisa tomamos conhecimento recentemente

de uma obra do filósofo francês, Paul Ricoeur: La Mémoire, L’ Histoire, l'Oubli (Paris, Seuil,

2000), na qual ele escreve um epílogo com o título: perdão difícil. Então, passamos a estudar

esta obra de Ricoeur, a partir da problemática do perdão, tentando compreender como o

perdão se encontra imbricado nas idéias desta própria obra, como também imbricado em toda

obra de Ricoeur e nos contextos de outros intelectuais. Contudo, ao iniciar nosso estudo, duas

questões foram colocadas norteando este trabalho:

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1ª. Por que Ricoeur escolhe o perdão como tema do epílogo de uma obra destinada a tratar da

história, da memória e do esquecimento?

2ª. Pode o perdão ser um conceito fundamental para a construção de uma nova ética para o

mundo contemporâneo?

Esclarecemos que gostaríamos de ter tido mais condições de consultar, detalhadamente, obras

comentadas sobre Ricoeur. Contudo para melhor situar o leitor, informamos alguns dados

sobre sua biografia e sua obra1.

Paul Ricoeur (1913-2005), filósofo francês contemporâneo. De família protestante, estudou

no liceu de Rennes. Perdeu o pai no início da Primeira Grande Guerra e a mãe, pouco tempo

depois, ficando sob os cuidados dos avós. Em 1935 laureou-se em filosofia, e sucessivamente

ensinou durante alguns anos em liceus. Convocado em 1939, é capturado pelos alemães e

permanece prisioneiro até 1945. Na prisão estudou a filosofia de Jaspers e esboçou uma

tradução da Idéias de Edmund Husserl. Ao sair da prisão, ensinou filosofia no colégio

Cévenol, um centro de cultura cristão dirigido por protestantes e situado no alto Loire. Amigo

de Mounier e colaborador da revista “Esprit”, em 1952 Ricoeur sucede a Jean Hyppolite na

cátedra de história da filosofia na Universidade de Estrasburgo. Em 1956, tornou-se professor

de filosofia na Sorbonne. Transferindo-se a seguir para a nova faculdade de Nanterre nos anos

difíceis da contestação. Tornou-se ainda docente na Divinity School da Universidade de

Chicago, da qual foi declarado professor emérito2.

1 RICOEUR, Paul. A hermenêutica bíblica São Paulo: Loyola, 2006; SUMARES, Manuel. O Sujeito e a Cultura na Filosofia de Paul Ricoeur. Lisboa: Echer,1989; BLATTCHEN, Edmond. Paul Ricooeur o único e o singular. São Paulo: UNESP, 2002; DOSSE, François. Paul Ricoeur: Le sens d’ une vie. Paris: La Decouverte, 2001 ; RICOEUR,Paul. La critique e la conviction. Paris: Calmann – Lévy, 1996; GREISCH, Jean. Paul Ricoeur l’ itinérance du sens. Grenoble : Jérôme Millon, 2001. 2 Suas obras: De 1947é Karl Jaspers et la philosophie de l’ existence ( escrito com M. Dufrenne). No ano seguinte Ricoeur publica o ensaio Gabriel Marcel et Karl Jaspers.Philosophie du mystère et philosophie du paradoxe. De 1955 é Histoire et vérité. A primeira parte de sua grande obra Philosophie de la volonté sai em 1950 com o título Le volontaire et l’ involontaire; a segunda parte em 1960, com o título Finitude et culpabilité,

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No início dos anos sessenta foi preso por causa das suas posições a favor da independência da

Argélia.. Ricoeur construiu uma obra de quase trinta livros através do diálogo cerrado com a

hermenêutica, a fenomenologia, a psicanálise, a teologia, a filosofia analítica e a história. Esta

multiplicidade de perspectivas acabou contribuindo por isolá-lo do debate intelectual na

França estritamente estruturalista dos anos sessenta e setenta. Soma-se a isto o fato do

filósofo ter ocupado o emprego mais ingrato daquela época: o cargo mais elevado da

Universidade de Nanterre, isto exatamente em 1968. O caminho acabou sendo as

universidades norte-americanas, país que o acolheu durante vinte e cinco anos e onde sua

influência se faz sentir nos meios acadêmicos de filosofia, história e literatura. Paul Ricoeur

morreu no dia 20 de maio de 2005, aos 92 anos.

Cinco anos antes de sua morte, Ricoeur escreve uma obra denominada: La Mémoire, l’

Histoire, l’ Oubli. Em formato de bolso, 689 páginas, a obra está dividida em três partes,

conforme apresentamos cópia, em anexo, do sumário.

Primeira parte: Da memória e da Reminiscência

1-Memória e imaginação

2-A memória exercida: uso e abuso

3-Memória pessoal, memória coletiva

Segunda parte: História epistemologia

Prelúdio: A história: remédio ou veneno?

1-Fase documentaria: a memória arquivada

em dois volumes: L’ homme faillible e symbolique du mal. De l’ interprétation. Essai sur Freud aparece em 1965; Le conflit des interprétations. E de 1969 ; La métaphore vive é publicado em 1975. No período 1983-1985 temos os três volumes de Temps et récit. De 1986 é Du texte à l’ action. Essais d’ herméutique II.

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2-Explicação/ compreensão

3-A representação histórica

Terceira parte: A condição histórica.

Prelúdio: O fardo da história e o não- histórico

1-A filosofia crítica da história

2-História e tempo

3-O esquecimento

Epílogo: O perdão difícil.

Partindo de uma análise fenomenológica da memória que encontra suas raízes em Edmund

Husserl, o filósofo aborda os problemas do estatuto epistemológico da história e da partilha

sempre problemática entre memória e esquecimento. Em La Mémoire, l’Histoire, l’ Oubli,,

Ricoeur busca, de maneira crítica, o sentido da memória, história e esquecimento e procura

mostrar como este sentido pode ser trazido para o sujeito como algo a ser sempre elaborado

em sua vivência, objetivando uma utopia pessoal e social. É no horizonte destes três espaços

que Ricoeur nos apresenta a utopia do perdão, visto como possibilidade concreta de um

esquecimento feliz.

Ricoeur nos adverte, no início de sua obra, que é necessário propor uma política da memória

equilibrada, pois o que se vê hoje, é um espetáculo inquietante que nos apresenta de um lado o

excesso de memória, como repetição pessoal ou como um exagero de comemorações , como

se fosse uma patologia pessoal e social. Por outro lado há um excesso de esquecimento, como

no caso de trauma, ou no caso de países totalitários em que predomina-se uma ideologia como

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apagamento do passado. Ricoeur questiona o porquê de serem destacados certos

acontecimentos históricos como o holocausto como se fosse um sobre-recordar e por outro

lado há outros acontecimentos que são sub-recordados.

Continuo preocupado com o inquietante espetáculo proporcionado pela memória demais aqui, pelo esquecimento demais acolá, para não falar na influência das comemorações e dos abusos de memória – e de esquecimento. A idéia de uma política da justa memória é, sob esse aspeto, um de meus temas cívicos confessos (RICOEUR, 2000, p. I)

Esta afirmativa demonstra a preocupação do autor, como um cidadão que vivenciou, com

consciência, os desastres de um trágico século XX.

Sua obra, La Mémoire, l’ Histoire, l’Oubli, comporta, como já foi exposto, três partes

nitidamente delimitadas pelo seu tema.

Na primeira parte Ricoeur inicia baseando-se na filosofia de Platão e, posteriormente, na

filosofia de Aristóteles. Para Platão o mundo sensível é uma cópia do mundo inteligível. Com

esta teoria da dualidade Ricoeur vai comentar sobre a representação presente de uma coisa

ausente. Por exemplo, quando fomos afetados por alguma situação seja agradável ou

desagradável, passado algum tempo, ao lembrar-nos dessa situação teremos o afeto como algo

presente, mas a situação passada permanecerá ausente. Esta questão da memória -

reminiscência retorna ao problema dos gregos que era um problema da imagem. A questão da

presença da ausência estaria ligada à questão do erro, pois podemos nos equivocar ao lembrar.

Contudo não se tem nada melhor do que a memória para se assegurar de que alguma coisa

ocorreu no passado. Vejamos como não estamos diante do problema do conhecimento de si,

mas antes diante do problema da representação de um acontecimento anterior. Esta parte que

é consagrada à memória e aos fenômenos mnemônicos, baseia-se na fenomenologia de

Husserl. Na discussão sobre memória e imaginação vamos encontrar o distanciamento entre o

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verdadeiro e o falso. Platão já tinha tentado fazer a diferença entre um ícone falacioso e um

ícone que seria o portador da verdade da coisa.

Em várias passagens desse capítulo, Ricoeur faz referências à psicanálise em relação à

fenomenologia. Sabemos que a fenomenologia coloca seu foco principal na questão da

consciência. Logo, o inconsciente aparecia como um desafio epistemológico. Afirma Ricoeur:

Ora eu levei muito a sério a noção de inconsciente enquanto algo irredutível ao que Sartre havia compreendido como má-fé. Minha questão era: há lugar para o inconsciente na fenomenologia? A resposta era ‘não’. Neste sentido, era necessário deixar o ‘ desafio’ aberto pois, com o inconsciente, a fenomenologia encontrava seus limites. E lembremos que reconhecer seus limites é ainda fazer ciência. Para Kant, a tarefa crítica consiste em reconhecer o que se coloca como limite e, no mesmo movimento, determinar quais são as circunscrições de jurisdição da racionalidade. Veja que esta exploração sistemática dos limites é um ponto que será muito recorrente na minha filosofia (SAFATLE, s/d).

Nessa primeira parte da obra, o autor discute a contribuição da psicanálise para tratar da

memória impedida em que o analisado repete as situações porque não consegue lembrar o seu

passado, ou não consegue reconciliar–se com este passado com vistas a um futuro. Afirma

Ricoeur que, na Psicanálise, é necessário trabalhar as lembranças, pois há sempre resistências

ao enfrentá-las. A questão psicanalítica de vencer as resistências pode ser transformada na

questão de saber como dizer, ou melhor, como o outro pode fazer alguém dizer o que parecia

ser impossível expressar. Portanto a linguagem é fundamental na psicanálise porque é onde se

vê a importância do engajamento do sujeito naquilo que ele diz. Ricoeur comenta que Freud

havia encontrado na cura psicanalítica o problema das resistências e da compulsão de

repetição. De fato, ele procurava entender como a memória poderia se liberar da compulsão

de repetição.

Ricoeur também se refere à memória pública que enfrenta problemas de repetição através das

comemorações. Então surge a questão: como fazer para que as comemorações sejam

autênticas, ao invés de se transformarem em meras concessões à repetição obsessiva?

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A segunda parte é dedicada à epistemologia das ciências históricas. Ricoeur vai discutir a

questão de uma memória que atravessou os desafios da história, transformando-se em

memória coletiva e que passou pelo crivo destes processos que compõem a história e que são:

a escritura, os arquivos, a prova documental, a explicação, a compreensão e a expressão. A

partir daí podemos colocar o problema da memória justa, ou interrogar, como as instituições

poderão administrar as práticas públicas da memória? Ricoeur apresenta ainda o problema de

disposições institucionais como a prescrição e a anistia. Anistia comunga em sua etimologia

com a palavra amnésia. Acontece que no caso da anistia não há esquecimento, pois não há um

apagamento da memória da sociedade.

Ao analisar a história, Ricoeur procura entender como podemos saber se um acontecimento

ocorreu, como tentamos explicá-lo e como tentamos narrá-lo. A Shoah, por exemplo, é um

obstáculo ao testemunho, à explicação, ao julgamento e ao perdão, fazendo vacilar o

empreendimento historiográfico. Se o testemunho só é compreendido se ele reencontra a

capacidade ordinária de compreensão, como iríamos compreender, explicar, aceitar

acontecimentos horrendos sofridos pela humanidade? Assim, são estes acontecimentos

difíceis a explicar que colocam à prova a nossa capacidade de escuta e de compreensão. Aqui,

pois, está em jogo a memória que impede explicações e representações pelos traumas

causados pelos acontecimentos.

A terceira parte discute o problema do esquecimento numa hermenêutica da condição

histórica do homem. Apesar da divisão da obra, Ricoeur nos apresenta uma problemática

comum que atravessa a fenomenologia da memória, a epistemologia da história e a

hemenêutidca da condição histórica, que seria a representação do passado, ou seja, esta

presentificação do que já foi – a presença da ausência. Aqui o esquecimento é visto sob duas

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perspectivas: uma do esquecimento como apagamento e outra do esquecimento como reserva.

O esquecimento como apagamento pode ter fundamentos patológicos, como doenças mentais,

envelhecimento, mortes. Já o esquecimento de reserva trata-se de um esquecimento em que

persistem traços das primeiras impressões, daquilo que mais afetou, deixando marcas

profundas no ser humano. Todo esquecimento não é um ato, ele é um estado, ele sofre uma

ação. Por isso é impossível exigir um esquecimento total de crimes que marcaram uma

sociedade. Por exemplo, nunca esqueceremos os crimes da Shoah, pois não nos basta receber

um comando, dizendo: “Esqueça,” para que tudo desapareça ou apague de nossa memória.

Por outro lado, há um esquecimento já incorporado à memória através da impossibilidade em

narrar totalmente a história.

Como epílogo da obra, o autor comenta sobre a questão do perdão. Se o perdão puder ser uma

memória reconciliada então haverá reconciliação com o esquecimento. Nessa parte Ricoeur

discute o perdão como marca ou trabalho difícil, colocando a questão da representação

presente da coisa ausente marcada pelo sinal da uma anterioridade. Sobre este aspecto da

representação explicaremos mais detalhadamente na conclusão.

Ricoeur afirma que para se pensar em perdão tem que se considerar o erro que originou um

distanciamento entre as pessoas, paralisando a força de agir do ser humano como uma

potencialidade. Nesta parte Ricoeur aborda a questão do perdão também de maneira

secularizada. Assim, o problema aqui apresentado será o de como conhecer a obra de Ricoeur,

La Mémoire, l’ Histoire, l’Oubli, sua filosofia e as idéias de outros pensadores pela janela do

perdão, como um esquecimento feliz através de um voto de vontade em busca de uma

reconciliação com o passado. Nossa hipótese é de que o perdão seria uma possibilidade de

superação das dificuldades apresentadas nesta dita pós-modernidade.

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Quanto à metodologia pretendemos estudar a obra referida por meio de uma abordagem

micro-histórica. Segundo o conceito apresentado por Jacques Revel, esta abordagem “afirma

em princípio, que a escolha de uma escala particular de observação produz efeitos de

conhecimento e pode ser posta a serviço de estratégias de conhecimentos” (REVEL, 1981, p.

20). Por isso seria por esta janela que iríamos visualizar o horizonte do perdão imbricado na

memória, na história e no esquecimento. Por esta janela pensamos caminhar, viajar, voar,

navegar em busca de um lugar que não está em nenhum lugar, ou quem sabe num entrelugar,

onde estaria o perdão como possibilidade de um apaziguamento humano.

Partindo de Geertz (1979, p.15), quando afirma: “assumo a cultura como sendo essas teias e a

sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma

ciência interpretativa, à procura de significado”, podemos dizer que a descrição a que nos

propomos fazer será densa, porque será através do fio do perdão que iremos circular por toda

a teia tentando interpretar o homem à procura de um significado. Nossa circulação se dará em

direções diversas, de idas e vindas, pela obra estudada, pela filosofia de Ricoeur, pela visão

de outros pensadores e pela possibilidade de encontrar uma saída neste emaranhado da teia da

contemporaneidade. Assim, nesta rede composta por ligações, conexões, formando um tipo de

raiz não axial, mas ramificada, espalhando-se por todos os lados que tentaremos construir este

trabalho.

Pensamos, pois, em discutir a obra citada a partir da questão do perdão ali colocada, uma vez

que não temos conhecimento para relacionar a obra em estudo com todo o trabalho

desenvolvido por Ricoeur. Sabemos que um estudo desta natureza implica em riscos, pois foi

uma obra escrita mais no final da vida de Ricoeur, em que ele sintetiza várias idéias já

discutidas podendo dizer que por um lado é uma obra de acabamento, porém, por outro lado é

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um inachèvement, como afirma o autor – um inacabamento, porque trata-se da vida. Por isso

embarcamos nesta viagem com todas as limitações possíveis de estudo, de tempo, de

compreensão, porém com uma enorme vontade de ser não alguém que somente conhece a

teoria de um filósofo, mas, alguém que a vivencia. Portanto esta viagem será nem fácil, nem

impossível.

Antes de apresentarmos os capítulos, gostaríamos de esclarecer que o leitor irá estranhar a

estrutura do trabalho, uma vez que a questão do perdão será tratada especificamente no

terceiro capítulo. Os capítulos antecedentes, ou seja, um e dois abordarão elementos utilizados

por Ricoeur para fundamentar a problemática do perdão, razão pela qual nestes dois capítulos

a questão do perdão fica como que secundária, não no sentido da importância, mas no sentido

de vir em segunda posição. A nossa escolha desse tipo de exposição se deve à própria

estrutura mesma utilizada por Ricoeur na obra La Mémoire, l’Histoire, l'Oubli, em que o tema

do perdão é tratado como epílogo.

Além disto, este trabalho representa um primeiro esforço de estudo sobre a obra citada e que

não atende propriamente ao objetivo proposto, qual seja de estabelecer as múltiplas e

possíveis relações entre memória, história e esquecimento com o perdão, uma vez que na

referida obra, nem o próprio Ricoeur o fez com clareza. Dentro da nossa compreensão

somente em um trabalho posterior e, depois de um conhecimento mais abrangente e

aprofundado das várias obras do autor é que esta possibilidade tornar-se-ia, mais concreta.

Confessamos, por último, com humildade, que esta obra é complexa, em língua francesa sem

tradução3 para o português e que exprime elevadíssimo grau de erudição do autor, o que

dificultou por demais uma compreensão adequada do seu alcance.

3 Todas as citações foram traduzidas pela autora deste trabalho, assumindo toda a responsabilidade pelas traduções e pedindo, antecipadamente, perdão pelos erros aqui cometidos.

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Após estes comentários, esclarecemos que nosso trabalho será composto de três capítulos. No

primeiro capítulo, trataremos da temática: O trabalho de memória e o trabalho de luto,

destacando a questão do papel da memória e a imaginação, a memória-reminiscência,

memória-hábito como representação do passado, mostrando ainda o problema da

temporalidade em Santo Agostinho, a memória pessoal e as dificuldades e as possibilidades

que a memória apresenta para se conseguir o perdão. Comentaremos sobre o quê da

lembrança distinto do quem lembra.

Ainda nesse primeiro capítulo chamaremos atenção para os comentários de Ricoeur sobre a

psicanálise. Ricoeur apresenta uma discussão sobre o problema da memória como patológico-

terapêutico em que é discutida a memória impedida, machucada ou mesmo doente.O trabalho

desta memória é de repetição impedindo a lembrança do objeto perdido.

Ricoeur discute, ainda, a questão da memória manipulada existente no nível prático, pois ela

funciona com base em uma ideologia. Sabemos que em geral não existe comunidade histórica

que não tenha nascido de uma relação originária à guerra. Por isso o que se celebra sob o

titulo de eventos fundadores são essencialmente atos violentos legitimados após golpe de um

Estado de direito precário, gerando lembranças ora com significado de glória para uns e para

outros uma humilhação.

Sobre o nível ético-político, Ricoeur afirma que é interessante interrogar sobre a idéia de

justiça com relação ao dever de memória, que significa um dever para considerar a falta e

tentar superá-la. Esta memória exige um trabalho de superação.

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No segundo capítulo será apresentado: A condição histórica e o esquecimento. Não

discutiremos a questão da História como epistemologia.4 Daremos preferência ao aspecto da

condição histórica, principalmente abordando o sentido de Heidegger, por estar mais

relacionada com o perdão. Aqui será discutido o esquecimento não como um evento, algo que

acontece ou que se faz acontecer, mas como um estado em que o indivíduo permaneceria

sofrendo a ação. Este estado é uma força - uma faculdade de inibição ativa que pode ocorrer

por um problema patológico, como uma amnésia, ou até esquecimentos involuntários como

apresenta Freud. Assim, enquanto a memória se volta, dando possibilidades à retribuição, ao

restabelecimento, à absolvição, pelo perdão, o esquecimento desenvolve situações mais

duradouras em sentido histórico e que são constitutivas do trágico da ação. Veremos também,

neste capítulo a problemática da condição histórica do homem que dificulta atingir o perdão,

pois a ação é impedida pelo esquecimento de continuar seja pelo emaranhamento dos papéis

impossíveis de separar, seja pelos conflitos insuperáveis em que o desacordo é insolúvel,

intransponível, seja ainda pelos erros irreparáveis. Se o perdão tem algo a fazer nestas

situações, ele pode atuar de maneira a tentar fazer o indivíduo a saber esperar.

Finalmente, no terceiro capítulo, mostraremos o que Ricoeur entende por perdão e como ele

deve ser elaborado para superação das dificuldades, dos traumas, objetivando a felicidade do

ser histórico que é o homem.

Este programa de pós-graduação stricto sensu tem como prisma as temáticas

transdisciplinares e questões advindas da contemporaneidade. Por isso devemos esclarecer

que a temática do perdão se justifica como contemporânea, uma vez que o nosso século XXI

amanheceu mergulhado numa banalização do mal e que é necessário procurar uma saída para

4 Sobre a epistemologia da história, ver La Mémoire, l’ Histoire, l’ Oubli, 2000, p. 167-359.

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reduzir a violência pessoal e social. Além disso, esta temática é transdisciplinar, pois falar de

memória é falar de esquecimento, falar de memória e esquecimento é falar de história e não

há memória, história e esquecimento que não sejam perpassados pelo estilete5 do perdão que,

ao mesmo tempo escreve, registra, mas corta a história, a memória e o esquecimento.

Enfim, queria ressaltar que La Mémoire, l’ Histoire, l’Oubli, apesar de serem três mastros

distintos, sustentam velas emaranhadas entre si, que pertencem à mesma embarcação,

destinada a uma única viagem, esta das odisséias do perdão, em que tem como viajante um

homem capaz e esperançoso de uma vida apaziguada e feliz.

5 Estilete do francês arcaico stylet de onde veio stylo (caneta) aquilo que serve para escrever, registrar como os gregos escreviam em pedras com estiletes. Por outro lado, estilete é instrumento que serve para cortar.

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CAPITULO I: O TRABALHO DE MEMÓRIA E O TRABALHO DE LUTO

Neste capítulo trataremos especificamente da fenomenologia da memória que mostra as

múltiplas formas que se pode declinar o ser-do-passado. Para Ricoeur ao analisar a memória é

importante perguntar de que se lembra, como se lembra, e quem se lembra. Neste capítulo

apresentaremos os pares criados por Ricoeur como: memória – imaginação, memória –

reminiscência, memória – temporalidade, memória – hábito, alem da questão da memória

como um trabalho de luto e a interioridade de um homem que possui memória com poder,

com possibilidade e capacidade de lembrar e esquecer.

Além disso, será apresentada a questão das lembranças espontâneas, mas principalmente o

esforço de memória que exige um trabalho, o que Ricoeur vai chamar de perlaboration que

chega a superar as resistências e a compulsão de repetição.

Durante a Segunda Grande Guerra, Ricoeur permaneceu como prisioneiro. Na prisão, esboçou

uma tradução das Idéias de Edmund Husserl6 e declarou em sua autobiografia que recebeu

influência do existencialismo e da fenomenologia.

Por isso, ao iniciar este capítulo, esclareceremos algumas idéias sobre o que seja a

fenomenologia de Husserl e ao discorrer sobre os fenômenos mnemônicos faremos referência

a esta fenomenologia para melhor interpretarmos o pensamento de Ricoeur e podermos

compreender o ser da memória com vistas ao perdão nem fácil, nem impossível.

6Sobre Edmund Husserl (1859-1938) ver ABBAGNANO. História da Filosofia,1965, p.80-81.

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A fenômeno-logia, ou seja, a ciência dos fenômenos pretende ser ciência de essências e não

de dados de fato, mas seu objetivo é o de descrever os modos típicos com os quais os

fenômenos se apresentam à consciência. Portanto a fenomenologia é ciência dos modos

típicos do aparecer e do manifestar-se dos fenômenos à consciência, cuja característica

fundamental é a da intencionalidade.

Segundo Abbagnano, (1965, p.75) “a fenomenologia, no sentido específico em que esta

palavra é empregada - para designar uma corrente da filosofia contemporânea – concebe e

exerce a filosofia como análise da consciência na sua intencionalidade”.

Deve-se esclarecer que para a fenomenologia a consciência é sempre consciência de alguma

coisa. Quando eu percebo, imagino, penso ou recordo, eu percebo, imagino, penso ou recordo

alguma coisa. Por isso se pode ver, segundo Husserl, que a distinção entre sujeito e objeto dá-

se imediatamente: o sujeito é um eu capaz de atos de consciência como perceber, julgar,

imaginar e recordar. O objeto, ao contrário, é o que se manifesta nesses atos, ou seja, corpos

percebidos, imagens, pensamentos recordações. Assim devemos distinguir ainda o aparecer de

um objeto do objeto que aparece. E se é verdade que conhecemos o que aparece, para Husserl

também é verdade que vivemos o aparecer do que aparece. Husserl chama de noese o ter

consciência, e noema aquilo de que se tem consciência.

Para tratar do fenômeno da memória já precisamos distinguir “o que” da memória do “quem”

da memória. Relativamente à questão do perdão teremos também necessidade de distinguir o

ato do agente, a fim de não ser tão difícil de elaborar um perdão. Sendo assim Ricoeur afirma:

“A fenomenologia da memória aqui proposta se estrutura em torno de duas questões: de que

se lembra e de quem é a memória?” (RICOEUR, 2000, p.3).

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Partindo do princípio de que toda consciência é consciência de alguma coisa, Ricoeur afirma

que esta visão objetiva coloca um problema no plano da memória. Lembrar seria ou não seria

um ato reflexivo? Lembrar de alguma coisa não é lembrar-se de si? Por isso, há que se colocar

a questão “O quê” antes da questão “quem”. Colocar primeiramente a problemática do eu

tenho consciência (noese), para, posteriormente vir a coisa de que se tem consciência

(noema). Além disso, em uma análise fenomenológica da memória, Ricoeur vai se preocupar

com o que a memória retém ou esquece e como vivenciamos esse movimento de mostrar e

esconder da memória no nosso dia-a-dia.

A palavra de ordem da fenomenologia da memória é que esta possui um dever que é o de

voltar à realidade das próprias coisas, devendo ser fiel ao real com a marca da temporalidade.

Husserl estava persuadido de que o conhecimento começa com a experiência de coisas

concretas existentes, de fatos. A experiência nos oferece continuamente dados de fato com os

quais nos vemos às voltas na vida cotidiana e dos quais a ciência também se ocupa. Contudo a

consciência no seu processo de intencionalidade busca dados de fato e imagens.

1.1 Memória e imaginação

O termo imaginação é derivado do adjetivo latino imaginarius que de um modo geral se

aplicava a tudo aquilo que fosse imagem ou realidade secundária e subjetiva, ou mesmo termo

que se aplicava a dois conteúdos à primeira vista contraditórios: o de não ter um modelo

original na realidade e o de emprestar a uma fantasia tida por irreal a aparência de uma

realidade. A vivência do imaginário foi reconhecida por Freud na experiência da estranheza

do sujeito e “o imaginário se define, no sentido lacaniano, como o lugar do eu por excelência”

(ROUDINESCO, 1944, p.371). Contudo deve-se ressaltar a significação dada ao imaginário

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por Sartre, como intencionalidade da consciência em relação ao que é percebido: “apoiando-

se numa descrição fenomenológica, procura mostrar que a imaginação não é qualquer coisa de

intermédio entre o objeto e a consciência, mas está estreitamente relacionada com o ‘mundo

do pensamento’ e com a possibilidade mesma das ações humanas.” (LOGOS, 1989, p.1343).

A partir desta significação dada por Sartre observamos o quanto a imaginação é plena de

sentido uma vez que está intimamente ligada à possibilidade das ações, dos atos, das atitudes

humanas.

Ricoeur afirma que quando se refere ao passado, refere-se à representação de um evento ou

uma imagem que se tem quase visual ou auditiva deste passado, causando um tipo de curto-

circuito entre memória e imaginação. Quando evocamos um acontecimento passado, criamos

imagens que podem representar este acontecimento, isto é tornar presente o passado, e que

podem colaborar para acontecer a lembrança. Este encadeamento de idéias pode afastar da

lógica, do entendimento ou da realidade propriamente dita. É necessário ainda ressaltar que

imaginar não é lembrar-se, mas à medida que se lembra pode imaginar ou viver em uma

imagem.

A ameaça permanente de confusão entre a rememoração e a imaginação, resultante deste tornar-imagem da lembrança, afeta a ambição de fidelidade na qual se resume a função verdadeira da memória. Mas não se tem nada melhor que a memória para assegurar algo que passou antes de se formular a lembrança. A historiografia, não conseguirá deslocar a convicção sem cessar ridicularizada e afirmada de que o referente último da memória permanece o passado, seja como possa significar a passadidade do passado (RICOEUR, 2000. p.7)

A ameaça permanente de confusão entre recordação e imaginação, resultante deste tornar

imagem da lembrança afeta a ambição de fidelidade na qual resume, para Ricoeur, a função

verídica da memória. Além disso, há um enigma comum à imaginação e à memória que se

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trata da presença da ausência. Este jogo de presença-ausência trará possibilidades em suas

fronteiras para busca de uma imaginação.

A idéia diretriz é a diferença que se pode dizer eidética7 entre duas visões, duas intencionalidades: uma é a da imaginação, voltada para o fantástico, a ficção, o irreal, o possível, o utópico; o outro é esta da memória voltada para a realidade anterior, a anterioridade constituindo a marca temporal por excelência da ‘coisa lembrada’, da própria ‘lembrança’ (RICOEUR, 2000, p. 6).

Considerando esta separação entre presença-ausência deve-se debruçar sobre a teoria

platônica do eikon, no qual Platão faz referência ao tempo passado que se encontra implícito,

pois a memória é do passado, como também refere-se à possibilidade de imaginar, pois a

coisa está ausente.

A herança grega nos apresenta a posição platônica de que a memória trata da representação,

ou seja, um tornar presente algo que está ausente.

Etimologicamente, fantasma significa imagem ilusória, visão terrífica, medonha, apavorante,

coisa espantosa que existe apenas aparentemente ou que esconde propósitos fraudulentos. O

fantasma, a imagem, a ilusão, a visão fantasiosa se apresenta ligada à memória. Assim, a

lembrança conduz a uma realidade e a uma não realidade, pois a coisa pode chegar à memória

por ela mesma ou através de sua fantasia.

Por isso, a inscrição, a representação, a cópia, o eikon platônico é um phantasma que pode

apresentar algo de verdadeiro, mas pode apresentar a possibilidade ontológica do erro.

7 Eidética = de essência “O conhecimento das essências é uma intuição. É uma intuição diferente daquela que nos permite captar os fatos particulares. É a ela que Husserl chama intuição eidética ou intuição da essência. Trata-se de conhecimento distinto do conhecimento do fato (REALE; ANTISERI. História da Filosofia, 2005, p.181).

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Sócrates já se perguntava como se podia falar de falso, de não-ser implicado pela não-

verdade? Por isso a memória e a fantasia deixam resquícios gravados uma na outra, uma vez

que estão imbricadas entre si. Além disso, a memória e a imaginação participam ou fazem

parte do mesmo destino.

Ricoeur cita a questão colocada por Sócrates sobre a memória: “Suponhamos que alguém

venha a saber algo que se conserva na lembrança: é então possível que neste momento que se

lembra de algo não se saiba isto mesmo que se lembra?” Continua o comentário de Ricoeur:

“(...) uma vez que se aprendeu algo não se sabe quando lembrar-se-á deste algo” (2000, p. 9).

Por isso, Sócrates utilizava como procedimento pedagógico a heurística, conduzindo seu

discípulo a descobrir, ou a encontrar por si mesmo a verdade. Ocorre que neste jogo de

lembrar surge o esquecer, pois ora se lembra para esquecer, ora se esquece para lembrar.

1.2 Memória como reminiscências

Neste jogo mnemônico, Ricoeur nos alerta fazendo referência ao caminho que devemos trilhar

passando: (...) “do ‘quê?’ ao ‘quem?’ passando pelo ‘ como?’ – da lembrança à memória

passando pela reminiscência.” (RICOEUR, 2000, p.4).

Ricoeur quando faz referência às reminiscências da memória, ele se baseia no pensamento

platônico.

Platão divide a realidade em dois mundos: mundo sensível e mundo inteligível, o viver no

mundo sensível seria sempre uma lembrança do mundo inteligível.

Segundo Platão, o conhecimento humano integral fica nitidamente dividido em dois graus: o conhecimento sensível, particular, mutável e relativo, e o conhecimento

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intelectual, universal, imutável, absoluto, que ilumina o primeiro conhecimento, mas que dele não se pode derivar (PADOVANI, 1990, p.116).

Para Platão o conhecimento é anamnésia, ou seja, uma forma de recordação, um emergir

daquilo que já existe desde sempre no interior da alma que teve experiência do mundo

inteligível. Na obra de Platão é importante ressaltar o valor da memória, porque há no homem

“marcas, traços” anteriores onde se prende a lembrança. Há ainda o traço como impressão

advinda da afecção deixada na alma e o traço como marca no corpo.

Reminiscência ou anamnese designa a teoria platônica segundo a qual o conhecimento humano se reduz a uma simples recordação atual das idéias que a alma intuiu ou contemplou diretamente numa existência anterior. Com este mito da preexistência da alma Platão pretendeu responder aos sofistas, que afirmavam, por um lado, a inutilidade da investigação do que já se sabe e,por outro, a impossibilidade de se conhecer aquilo de que ainda nada se sabe, e, por outro , a impossibilidade de se conhecer aquilo de que ainda nada se sabe (LOGOS, 1989, p.694).

Platão observa que as noções inteligíveis que o homem possui, dizem mais do que os dados

da experiência, porque os sentidos nos proporcionam apenas conhecimentos imperfeitos.

Nossa mente ou nosso intelecto, ao se deparar com os dados dos sentidos, voltando-se para a

própria profundeza, quase dobrando-se sobre si mesma, encontra neles a ocasião para

descobrir em si os conhecimentos perfeitos correspondentes. E visto que não os produz, não

resta senão concluir que ela os encontra em si e os extrai de si como algo originariamente

possuído, ou seja, deles se recorda.

De fato, é impossível investigar e conhecer aquilo que ainda não se conhece, porquanto, mesmo que se viesse a descobri-lo, seria impossível identificá-lo, pois faltaria o meio para a realização da identificação. Nem mesmo o que já se conhece pode ser investigado, precisamente porque já é conhecido. Exatamente para superar essa aporia é que Platão descobre um caminho totalmente novo: o conhecimento é ‘ anamnese’, ou seja, uma forma de ‘recordação’, um emergir daquilo que já existe desde sempre no interior de nossa alma (REALE; ANTISERI, 2004, p.146).

A anamnésia explica a raiz ou a possibilidade do conhecimento, quando mostra que o

conhecer é possível porque temos na alma uma intuição originária do verdadeiro. Pensamos

que esta intuição dará a possibilidade ao perdão.

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Para Aristóteles a memória não busca suas lembranças no mundo das idéias de Platão, pois a

memória é do passado e envolve o tempo. É no contraste com o futuro da conjetura e da

espera, com o presente da sensação ou percepção que se impõe a ligação do passado com a

memória.

Como vimos, para Platão conhecer é relembrar para alcançar o mundo inteligível onde está a

idéia de verdade (aletheia)8. Os objetos do mundo sensível seriam uma ocasião para recordar

o que a alma conheceu como Verdade, Justiça, Bem, propiciando o retorno deste mundo

inteligível.

Diferentemente de Platão, Aristóteles defende a tese de que idéia não está lá, mas aqui na

Realidade. A Verdade ou o Ser está no mundo sensível, sendo possível encontrá-la

alcançando o universal que está no particular. Assim, o homem conhece e atinge a essência

aqui e não lá, em outro mundo. Por isso Ricoeur afirma:

Platão tinha mitificado (a anamnesis), ligando-a a um saber pré-natal do qual estaríamos separados por um esquecimento ligado ao surgimento da alma num corpo qualificado de túmulo, (soma-sema) (...). Aristóteles (...) de alguma forma naturalizou a anamnesis, a aproximando assim disso que chamamos na experiência cotidiana de rappel (RICOEUR, 2000, p.33) .

Ricoeur acrescenta que, relativamente à memória, a ruptura da teoria aristotélica com a teoria

platônica não foi totalmente completa, pois na medida em que o ana da anamnesis 9significa

volta, retorno, recobrimento daquilo que foi, anteriormente, visto, provado ou aprendido,

significa, pois, de alguma forma uma repetição.

8 Aletheia: do grego, verdade. “A teoria aristotélica da verdade e da falsidade assenta na convicção de que a verdade não está nas coisas (Meta.1027b-1028ª), nem no nosso conhecimento das substâncias simples(onde só é possível o conhecimento ou a ignorância), mas sim no juízo, isto é, no conjugar de conceitos que não correspondem à realidade(Meta.1051b, De na III,430 a; ver doxa). (PETERS. Termos Filosóficos Gregos. Um léxico histórico, 1974, p.29) 9 Anamnesis do grego que significa memória, recordação. Segundo Platão “temos conhecimento dos eider que não podemos ter adquirido através dos sentido, por conseguinte devem ter sido adquiridos num estado pré-natal durante o qual estivemos em contacto com as formas” (PETERS. Termos Filosóficos Gregos. Um léxico histórico, 1974, p. 30).

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O esquecimento é assim designado obliquamente como isto contra o que o esforço da lembrança (rappel) é dirigido. É a contra-corrente do rio Lethe10 que a anamnese faz seu curso. Procura-se isto que se tem medo de ter esquecido provisoriamente ou para sempre (RICOEUR, 2000, p.33).

Em seguida, Ricoeur coloca a questão sobre o esquecimento: Trata-se de um apagamento

definitivo dos traços aprendidos anteriormente ou de um impedimento provisório? Esta

incerteza sobre a natureza profunda do esquecimento dá à lembrança (recherche) sua

coloração inquieta, pois quem procura não encontra necessariamente e o esforço de lembrança

como (rappel) pode ser bem sucedido ou fracassado. Esta lembrança bem sucedida é uma das

figuras que Ricoeur denomina de “memória feliz”.

O cotidiano, as situações simples podem servir como pretextos para o homem se lembrar. Por

exemplo, eu posso me lembrar de ter aproveitado e sofrido neste período de minha vida , eu

me lembro de ter morado muito tempo nesta casa, nesta cidade, de ter viajado para este lugar,

posso até prestar depoimentos na política de algo passado que é relatado no presente. Por

isso, Ricoeur afirma que o homem se recorda em situações do cotidiano, escutando as “coisas

mesmas”. Como esta frase Ricoeur está retomando a fenomenologia de Husserl em que

devemos ir à coisa mesma, a sua essência apresentada no fenômeno.

Para Husserl o lema da fenomenologia seria ir às coisas, a fim de encontrar pontos sólidos e

dados indubitáveis, coisas tão manifestas a ponto de não poderem ser postas em dúvida e

10 “Do grego: esquecimento. Merece um exame especial nesse contexto a língua grega (antiga). Nela recebemos para a história do conceito do esquecimento uma interessante revelação sobre uma palavra que no começo parece estranha aqui. Refiro-me à palavra aletheia verdade que naturalmente assume uma posição central no pensar dos filósofos gregos. O primeiro elemento dessa palavra o a - é sem dúvida um prefixo de negação (alpha privativum). O elemento seguinte, - leth-, negado pelo a - designa algo encoberto, oculto, latente (essa palavra latina é aparentada com ela), de modo que a verdade do significado da palavra aparece – com Heidegger- como o não-encoberto, não-oculto, não latente. Mas como esse elemento significativo - leth- negado pelo a- aparece também no nome de Lethe dado ao mítico rio do esquecimento, podemos conceber também da formação da palavra aletheia a verdade como o inesquecido ou inesquecível. Com efeito, por muitos séculos o pensamento filosófico da Europa, seguindo os gregos, procurou a verdade do lado do não-esquecer, portanto da memória e da lembrança e só nos tempos modernos tentou mais ou menos timidamente atribuir também ao esquecimento uma certa verdade.”( WEINRICH, Harald, 2001, p. 20).

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sobre as quais poder fundar uma concepção consistente. Por isso Husserl propõe a epoché11.

Segundo Abbagnano (1965, p.84), a epóché suspende ou põe entre parênteses a tese da

existência do mundo em geral. Os céticos gregos já utilizavam o termo epoché para indicar a

suspensão do juízo sobre tudo o que nos dizem as ciências, as doutrinas filosóficas e sobre

tudo que cada um de nós afirma e pressupõe na vida cotidiana. Contudo o que não se pode pôr

entre parênteses, é a consciência, pois ela é o fundamento de toda realidade. A consciência é a

realidade que nulla re indiget ad existendum (não precisa de nada para existir) – a consciência

constitui o mundo.

Assim as coisas lembradas estão de certa maneira intrínsecas ou associadas aos lugares12,

contudo estes lugares servem de índice para nos indicar algo essencial. Os lugares de

memória, como monumentos, edifícios, museus, funcionam como índice, colaborando com a

memória contra o esquecimento.

Por isso os lugares, as datas têm importância primordial para a memória numa re-atualização

do fato passado: Afirma Ricoeur: “o esforço de memória deve-se a uma grande parte do

esforço de datação: quando? Desde quanto tempo? Quanto tempo isto durou?” (RICOEUR,

2000, p.50). Portanto as comemorações, os lugares, as datas são índice e dizem mais do que

aparentam.

11 Ver REALE; ANTISERI. História da Filosofia, 2005, p.183. 12 Em francês acontecer pode ser usado como “avoir lieu”. Por isso Ricoeur afirma: « et ce n’ est pas par mégarde que nous disons de ce qui est advenu qu’ il a eu lieu”. (RICOEUR. La mémoire, l’ histoire, l’ oubli, 2000, p.49).

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1.3 Memória e a temporalidade

Toda lembrança é acompanhada pela noção de tempo. Ser no tempo é ser medido pelo tempo

em si mesmo e na sua existência. Aristóteles aceita o pertencimento da memória à alma

sensível ao modo platônico, porque os olhos vêem e a alma sente e lembra de algo que não

está presente. Então, a dificuldade está na aporia do modo de presença da ausência, ou seja o

afeto está presente, mas a coisa está ausente e lembra-se do que não está presente. Esta

lembrança ocorre porque, segundo Aristóteles, o afeto é produzido graças à sensação ocorrida

na alma. Deve-se esclarecer que lembrar o que está presente é uma mera constatação, mas

lembrar o que não está presente exige uma aisthesis, uma sensibilização. Mas daí a pergunta:

De que realmente a gente se lembra? Daquilo que nos afeta ou da coisa? Da sensação do

objeto ou do próprio objeto? Como pode ocorrer que percebendo uma imagem se possa

lembrar de algo distinto da imagem? Aí surge a questão da alteridade, ou seja, a falta como

um outro da presença.

Não se pode discutir sobre a memória sem compreender profundamente o significado de

tempo. Agostinho foi um dos filósofos que melhor conseguiu esclarecer sobre o tempo. Para

ele o tempo é um ser de razão com fundamento na realidade, ou seja, como o homem

apreende o tempo em sua vida e mostra como é difícil definir o tempo: “o que é, por

conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer

a pergunta, já não sei” (AGOSTINHO, 1969, p.17).

Ao tentar explicar o que é presente, passado e futuro diz:

Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de contestação, que, se nada sobreviesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existiria o tempo presente. De que modo, existem aqueles dois tempos – o passado e o futuro –, se o passado já não existe e o futuro ainda não veio? Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e não passasse para o pretérito, já não seria tempo, mas eternidade. Mas se o presente,

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para ser tempo, tem necessariamente de passar para o pretérito, como podemos afirmar que ele existe, se a causa da sua existência é a mesma pela qual deixará de existir? Para que digamos que o tempo verdadeiramente existe, porque tende a não ser? (AGOSTINHO, 1969, p.17).

O tempo em Agostinho é passagem que está intimamente ligada à memória, à alma, à anima,

apresentando três versões do presente: presente do passado ou memória, presente do futuro ou

busca e presente do presente ou atenção. Segundo Agostinho, o trânsito do tempo consiste em

ir do futuro pelo presente dentro do passado, esquecendo a espacialidade do lugar de trânsito

concentrando sobre a diáspora, sobre a dispersão desta passagem, pois o tempo não é apenas

uma sucessão de instantes separados, mas um contínuo, um indivisível, uma distensão da

alma.

Diz Agostinho que denominamos longo e breve tanto o tempo passado quanto o futuro

conforme nosso estado interior. Mas Agostinho indaga: como pode ser longo ou breve o que

não existe, pois o passado já passou e o futuro ainda não passou? O presente nunca é longo,

porque este voa tão rapidamente do futuro ao passado, que não tem nenhuma duração.

Contudo o presente serve como atualização do passado e do futuro:

Ainda que se narrem os acontecimentos verídicos já passados, a memória relata, não os próprios acontecimentos que já decorreram, mas sim as palavras concebidas pelas imagens daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no espírito uma espécie de vestígios. Por conseguinte, a minha infância, que já não existe presentemente, existe no passado que já não é. Porém a sua imagem, quando a evoco e se torna objeto de alguma descrição, vejo-a no tempo presente, porque ainda está na minha memória (AGOSTINHO, 1969, p.23).

Da mesma forma, o futuro não existe, mas pode-se ter uma visão e fazer um prognóstico a

partir das coisas presentes que já existem e se deixam observar:

Vejo a aurora e prognostico que o sol vai nascer. O que vejo é presente, o que anuncio é futuro. Não é o sol que é futuro, porque esse já existe, mas sim o seu nascimento, que ainda se não realizou. Contudo não o poderia prognosticar sem conceber também, na minha imaginação, o mesmo nascimento, como agora o faço quando isso declaro (AGOSTINHO, 1969, p.18).

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Assim, nesta temporalidade agostiniana percebe-se também a questão da dimensão individual

e profunda do homem interior:

É grande esta força da memória, imensamente grande, ó meu Deus. É um santuário infinitamente amplo. Quem o pode sondar até ao profundo? Ora esta potência é própria do meu espírito e pertence à minha natureza. Não chego, porém, a apreender todo o meu ser (AGOSTINHO, 1969, p.15).

A memória é um recurso de referência ao passado, porque, como já foi dito, o ato de lembrar

se produz quando o tempo já transcorreu. Assim é no intervalo de tempo entre a impressão

primeira e seu retorno que a busca ativa percorre. Por isso, a lembrança re-toma, re-coloca

como se não tivesse passado. A coisa não vem, mas vem a sua imagem.

A memória é tratada no singular como capacidade, enquanto as lembranças estão no plural

como experiências do que se tem feito, provado, aprendido em uma determinada situação ou

em um determinado tempo particular.

Sabendo que toda lembrança é acompanhada da noção de tempo citaremos novamente

Ricoeur:

é verdade que lembra-se ‘ sem os objetos’ , de tal forma que é necessário sublinhar que há memória ‘ quando o tempo transcorre’ ou mais brevemente ‘ com o tempo’. Assim, os humanos dividem com certos animais a simples memória, mas todos não dispõem da ‘sensação (percepção) (aisthesis) do tempo’. Esta sensação (percepção) consiste na marca da anterioridade que implica na distinção entre o antes e o depois. (RICOEUR, 2000, p.19).

1.4 Memória-hábito

Sabemos que o hábito torna-se uma segunda natureza para o homem. Ele aprende algo, repete

inúmeras vezes, e com esta repetição memoriza e age como se fosse sua própria natureza.

O hábito é uma propriedade fundamental da práxis humana, e o fato de significar uma aquisição do agente posta à sua disposição em virtude da intencionalidade consciente que está na sua origem distingue-o do comportamento instintivo e

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puramente repetitivo que o animal recebe da Natureza. Já a formação do hábito procede de uma repetição qualitativa de atos que acaba configurando no indivíduo sua ‘ segunda natureza’ (LIMA VAZ, 2002, p.41).

Sabe-se que o hábito e a memória formam um par. Relativamente a este par Ricoeur se

baseia em Bergson afirmando:

A memória-hábito é aquela em que apresentamos quando recitamos um texto sem evocar uma a uma de cada leitura sucessiva que foi feito no período de aprendizagem. Assim a leitura apreendida ‘faz parte do presente, como meu hábito de andar ou de escrever; ela é vivida, é uma representação’. Em compensação, a lembrança de tal lição particular, de tal fase de memorização não apresenta ‘nenhum dos caracteres do hábito’ (RICOEUR, 2000, p.31)

A repetição leva à memória mais duradoura e conduz a um saber-fazer, a uma relação entre

ação e representação, como explica Ricoeur, baseando-se em Bergson:

Bergson ressalta o parentesco entre a lição aprendida de cor e ‘ meu hábito de andar ou de escreve’. O que está em ação é o conjunto no qual a recitação pertencente, aos saber-fazer que têm por traço comum estar disponíveis, sem exigir o esforço de aprender de novo, de reaprender, eles estão aptos à serem mobilizados em múltiplas ocasiões, disponíveis a uma certa variedade (RICOEUR, 2000, p.31).

Ricoeur comenta que esta memória - hábito conduz o homem ao “eu posso”, ao “homem

capaz”: “poder falar, poder intervir no curso das coisas, poder narrar, poder se deixar imputar

numa ação constituindo-se como verdadeiro autor” (RICOEUR, 2000, p.32). Se o homem

inserido em uma sociedade, aprende e memoriza os comportamentos, os modos de vida, os

costumes, os hábitos da vida em comum como os rituais sociais, as co-memorações. Nesta

sua atuação social, neste seu trabalho de agir, ele estará sento autor, construtor do seu eu

individual e social. É neste aspecto que é importante ressaltar a possibilidade do homem em

refazer-se, refazendo o mundo É nesta luta, neste trabalho de re-construção, de re –

memorização que o perdão se insere.

Percebemos que o par memória – hábito apresenta a potencialidade do homem que pode ser

atualizada, isto é, tornar-se ato a qualquer instante. Aristóteles apresenta a teoria da potência e

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ato, como possibilidade de movimento, de ação, de atualização, ou seja, de realização do

homem, da natureza, da Realidade.13

O ato é oposto à potência, que é o ser na sua capacidade de desenvolver-se ( por exemplo, a planta é o ato da semente, enquanto a semente é a planta em potência). Os dois conceitos, tomados juntos no seu nexo estrutural, explicam o movimento em todas as suas formas. Para Aristóteles potência e ato não são eqüipolentes do ponto de vista ontológico, ou seja, no grau de ser, mas o ato goza de prioridade em relação à potência, da qual constitui a condição, o fim e a regra. O ato corresponde à forma, a potência à matéria (REALE; ANTISSERI, 2004, p.201).

Este uso da memória tem um caráter pragmático, relativo a um trabalho, a uma ação, a um e

ato prático que leva o homem capaz a uma construção primeiro de si mesmo através de sua

experiência laborosa e de luta, superando até mesmo a sua natureza, criando uma nova, uma

segunda natureza. Esta possibilidade de atuar colaborará para o perdão, conforme

mostraremos no capítulo três.

A memória hábito guarda em si a possibilidade de um excesso de repetições, um abuso de

memória. Será que este abuso de memória cria dificuldades para a memória imaginativa que

evoca o passado sob a forma de imagem abstraindo-se da ação presente? Será que o excesso

de registros, de museus, de dados sobre o passado, utilizados pela história, não destroem a

memória viva, animada, plena de anima, de alma? Ora, se todo excesso, todo abuso indica

um desequilíbrio e torna-se prejudicial, e como afirma Ricoeur: “é pelo viés do abuso que o

olhar verdadeiro da memória é massivamente ameaçado” (RICOEUR, 2000, p.68)

13 Para Aristóteles o homem é um animal racional. A racionalidade é, pois a diferença específica do homem, não podendo ser considerado simplesmente um ser natural. Aristóteles estuda a atividade racional que, no homem eleva-se sobre a atividade dos sentidos externos e internos, como atividade própria do intelecto (nous). (PADOVANI; CASTAGNOLA. História da Filosofia, 1990). Na teoria aristotélica o homem é potência e ato. Ele possui possibilidades e potencialidades que devem ser atualizadas. Nos seus livros reunidos sob o título de Órganon (instrumento) ele recolhe e organiza toda a tradição lógica do pensamento grego. Enfim, o homem aristotélico é um ser destinado à vida em comum na polis e somente aí realiza-se como ser racional e político, porque a vida ética e a vida política são artes de viver segundo a razão. Ética e Política são para Aristóteles, como tinham sido para Sócrates e Platão, entretanto mostra que o campo onde se manifesta a finalidade do homem é coroada pelo exercício da razão ou definida pela primazia do logos.

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1.5 Trabalho de luto

Etimologicamente, luto vem do latim luctu – sentimento de pesar ou dor pela morte de

alguém. Há ainda um outro sentido para a palavra luto que vem do latim lutu que significa

uma massa de diversas composições que endurecendo com o calor, veda inteiramente as

frinchas dos aparelhos de destilação e impossibilita a saída das substâncias voláteis contidas

em frascos. Luto também está associado ao termo latino lucto que significa lutar. Portanto o

luto tem este triplo significado: perda, impossibilidade de ultrapassagem e luta como um

trabalho, uma ação, uma elaboração. Ricoeur cita Freud: “O luto, ele disse no início, é

sempre a reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração erigida em substituto

desta pessoa, tal como: pátria, liberdade ideal, etc” (RICOEUR, 2000, p.87).

O luto seria aquela luta sofrida em busca de um objeto ausente que se presentifica com sua

ausência e não com sua presença e com a sua ausência traz uma marca, um sinal de

anterioridade.

O luto exige sempre um trabalho de memória para conseguir uma superação.

Quando Ricoeur vai tratar do como se lembrar, ou seja, do trabalho de memória, ele nos

chama atenção para três denominações: memória impedida, memória manipulada, memória

obrigatória.

Quanto à memória impedida, Ricoeur cita Freud e analisa as manifestações patológicas da

memória machucada ou doente que surgem no trabalho clínico. Muitas vezes este trabalho

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exige um esforço, uma elaboração porque a memória se encontrava impedida pelo fato do

indivíduo ter sido afetado com algum evento traumático.

Quanto à memória manipulada, Ricoeur afirma ser uma memória fruto de uma cegueira

ideológica, ou seja, uma ideologia se instaura na sociedade criando uma identidade coletiva

rígida de tal forma que não permite ao cidadão uma visibilidade adequada da realidade.

Quanto à memória obrigatória, o autor afirma ser uma memória ético-política, que trabalha

para que a lembrança possa permitir uma reflexão sobre as situações históricas. Este trabalho

de memória estaria mais apropriado para ser analisado na hermenêutica da condição histórica

que discutiremos no segundo capítulo.

Por ora nossa discussão será sobre a memória impedida, pois ela nos leva a um luto ou a uma

melancolia.

Referindo-se a Freud, o autor comenta que a primeira questão que se põe ao analista é a de

saber por qual razão, para certos doentes, surge no lugar do luto a melancolia. Ricoeur explica

a posição de Freud:

A primeira oposição que nota Freud é a diminuição do ‘sentimento de si’ na melancolia, enquanto que ‘ no luto não há a diminuição do sentimento de si’. Daí a questão: qual é o trabalho fornecido no luto? Resposta: ‘A prova da realidade mostrou que o objeto amado cessou de existir e toda a libido é intimidada para renunciar ao laço que a prende a este objeto. Por que este custo elevado? Porque ‘ a existência do objeto perdido persegue psiquicamente’. Assim no superinvestimento das lembranças e das esperas que a libido permanece presa ao objeto perdido, pesando no preço a pagar por esta liquidação: ‘a realização em detalhe de cada uma dá ordens decretadas pela realidade é o trabalho do luto’(RICOEUR, 2000, p.87).

Na clínica, Freud apresenta como a lembrança exige um tempo de luto. Pode-se falar também

de traumatismos coletivos de feridas da memória coletiva que geram um luto, como por

exemplo, a noção de objeto perdido nas perdas que afetam também o poder, o território, as

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populações que constituem o Estado. As condutas de luto são ilustradas pelas grandes

celebrações funerárias em que reúnem inúmeras pessoas, cruzando a esfera privada e a

pública. Ricoeur considera o viver o luto como fundamental, porque após o trabalho de luto o

eu se liberta: “Mas então por que o luto não é a melancolia? E o que faz o luto inclinar em

direção à melancolia? O que faz do luto um fenômeno normal, apesar de doloroso, é que ‘uma

vez acabado o trabalho de luto, o eu se encontra livre novamente e desinibido” (RICOEUR,

2000, p.87).

Ricoeur ressalta a questão do tempo dizendo que “a lembrança não comporta somente no

tempo, ela solicita também de tempo – um tempo de luto” (RICOEUR, 2000, p.89). Assim no

que concerne ao luto pode-se ver que um certo tempo deveria transcorrer para que o eu

pudesse retirar do objeto perdido sua libido tornando-a livre.

Freud (2006, p.103) afirma: “o luto é, em geral, a reação à perda de uma pessoa amada, ou a

perda de abstrações colocadas em seu lugar”. Continua Freud (2006, p.105) “no caso do luto,

pudemos explicar perfeitamente a inibição e a falta de interesse a partir do que sabemos sobre

o assim denominado trabalho do luto que absorve o Eu do sujeito”. É neste trabalho de luto,

de falta de ausência de algo que a memória vai trabalhar, objetivando no presente, lembranças

passadas com vistas a uma mudança de comportamento do presente para o futuro.

Quando não consegue uma superação e a memória permanece impedida, há um processo de

repetição. Ricoeur afirma que o excesso de memória-repetição resiste à crítica enquanto que a

memória-lembrança é fundamentalmente uma memória crítica. Por isso a noção de trabalho

de rememoração e trabalho de luto ocupam uma posição estratégica na reflexão do filósofo e

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em nossa trajetória compreender e explicar os sentidos do conceito de perdão em La

Mémoire, l’Histoire l’Oubli.

Ricoeur destaca a palavra reconciliação como fundamental na questão do perdão. Mas para

que haja esta reconciliação que em última instância se volta para o perdão, o autor destaca o

trabalho, o labor , uma perlaboration (inglês), um retoque ou conserto, uma recomposição,

um remaniement (francês). O importante é trabalhar, laborar, elaborar, atuar de maneira

dinâmica com a co-laboração do analisando. Assim o trabalho de rememoração se coloca

contra a compulsão de repetição.

Para além do olhar clínico, Freud faz duas proposições terapêuticas que serão de grande importância, no momento de transpor a análise clínica no plano da memória coletiva (...). A primeira concerne ao analista e a segunda ao analisando. Ao primeiro, aconselha-se uma grande paciência relativamente às repetições sobrevivendo sob a cobertura da transferência(...). Mas é solicitado algo ao paciente: cessando de gemer ou de esconder de si mesmo seu estado verdadeiro, é necessário ‘ encontrar coragem de fixar sua atenção sobre suas manifestações mórbidas, não considerando sua doença como algo desprezável, mas olhá-la como um adversário, digno de estima, como uma parte dele mesmo, cuja presença é bem motivada em que convirá extrair preciosos dados para sua vida ulterior’ Senão, nada de ‘ reconciliação’ (RICOEUR, 2000, p.85).

1.6 O olhar interior da memória

Ao iniciar a discussão sobre a interioridade da memória, Ricoeur afirma: “Lembrando-se de

algo, lembra-se de si mesmo” (RICOEUR, 2000, p.115).

A memória é algo privado e singular uma vez que: minhas lembranças não são as do outro e

não podem ser transferidas automaticamente. Além disso, na memória parece residir um laço

original da consciência com o passado. Assim Ricoeur concorda com Aristóteles e Agostinho

afirmando:

a memória é do passado e este passado é o das minhas impressões, neste sentido, este passado é meu passado. É por este traço que a memória assegura a continuidade temporal da pessoa. (...) Esta continuidade me permite retornar sem ruptura do

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presente vivido até aos acontecimentos os mais longínquos de minha infância (RICOEUR, 2000, p.116).

Segundo Ricoeur, as lembranças se distribuem e se organizam em níveis de sentido como em

arquipélagos, eventualmente separados por abismos, enquanto que a memória permanece

como capacidade de percorrer e retornar o tempo. Assim é na narrativa, principalmente, que

se articulam as lembranças no plural e a memória no singular. É na memória que está atado o

sentido da orientação na passagem do tempo: orientação do passado para o futuro e vice-

versa, sempre através do presente vivo.

Memória é singular porque trata-se da faculdade mental de reter idéias, impressões,

conhecimentos e está intimamente relacionada com a história uma vez que esta necessita da

memória para narrar, registrar os fatos ocorridos em um espaço e em um tempo. Este tempo

atua na história, arrancando dela alguns dados.

Ricoeur apresenta a idéia de Agostinho de que a memória é algo que vai além do singular ,

pois a memória é o espírito:

No mais a memória das coisas e memória de mim mesmo coincidem: aqui, eu me encontro também comigo mesmo, eu me lembro de mim, do que eu fiz, quando e onde eu o fiz e qual impressão eu senti quando eu o fazia. Sim grande é o poder da memória a ponto de que ‘ eu me lembro de me ser lembrado’. Em resumo ‘ o espírito é também a própria memória’ (RICOEUR, 2000, p.119).

Para Agostinho o reconhecimento de algo lembrado é sentido como uma vitória sobre o

esquecimento: “se eu tivesse esquecido a realidade, evidentemente eu não seria capaz de

reconhecer isto que este som é capaz de significar” (RICOEUR, 2000, p.119). Encontrar,

lembrar algo, para Agostinho, é reencontrar, é re-conhecer, é conhecer de novo o já conhecido

e acrescenta que o homem é capaz de buscar um objeto na memória e ao reconhecê-lo,

apresentar uma estranheza e dizer: não é este o objeto procurado, porque a memória sensitiva

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conserva a imagem do objeto perdido, e a memória intelectual guarda a sua idéia. Por

exemplo: quando um objeto qualquer desaparece dos nossos olhos, a sua imagem permanece

em nossa memória. Então passamos a procurá-lo, até o momento em que vemos o objeto e re-

conhecemos que era exatamente o da imagem que tinha ficado gravado em nossa memória. Aí

exclamamos: Achei! É este! Por isso não podemos procurar um objeto perdido, se dele nos

esquecemos totalmente. Ricoeur cita Agostinho para ilustrar este comentário:

‘Este objeto estava perdido, é verdade, para os olhos; a memória o retinha’. Estamos seguros disso? Só a verdade para dizer, o reconhecimento testemunha, na linguagem que ‘ não temos ainda completamente esquecido isto que nos lembramos ao menos de ter esquecido’ (RICOEUR, 2000, p.120).

Afinal, por que enfrentamos o paradoxo de lembrar o esquecido? Porque memória das coisas

e memória de si mesmo coincidem. Segundo Agostinho: “A memória lembra-se de se

lembrar” (1969, p.20) e Ricoeur comenta: “eu me encontro também comigo mesmo, eu me

lembro de mim, daquilo que fiz, quando e onde eu o fiz e qual impressão eu senti quando

fazia. Sim, grande é a força da memória, ao ponto de: ‘ eu me lembro mesmo de me ser

lembrado’” (RICOEUR, 2000, p.119) . Daí a importância da linguagem para nomear o

esquecimento para poder falar de re-conhecimento, de conhecer de novo a realidade já

conhecida anteriormente. Aqui voltamos a citar Agostinho, relacionando a

memória/esquecimento à imagem, questiona:

Com que fundamento posso alvitrar que é a imagem do esquecimento, e não o próprio esquecimento, que está gravado na memória, quando dele me lembro? Como poderei afirmar tal hipótese, se, quando a imagem de qualquer objeto se nos imprime na memória, é preciso que primeiro o próprio objeto nos esteja presente, para que nos possa ser gravada a imagem? (AGOSTINHO, 1969, p,25).

Ele responde:

É assim que relembro Cartago, todos os lugares em que estive, os rostos das pessoas que vi, todos os objetos anunciados pelos outros sentidos e, do mesmo modo, a saúde e as dores do próprio corpo. Quando a memória tinha estas coisas presente, tomou-lhes as imagens, para eu, depois, as poder contemplar e repassar no espírito, ao recordá-las quando ausentes. Se, pois, é pela imagem, e não por si mesmo, que o esquecimento se enraíza na memória, foi preciso que se achasse presente para que a memória pudesse captar a imagem. Como pôde o esquecimento,quando estava presente, gravar a sua imagem na memória, se ele com a sua presença, apaga tudo o

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que lá encontra impresso? Enfim, seja como for, apesar de ser inexplicável e incompreensível o modo como se realiza este fato, estou certo de que me lembro do esquecimento, que nos varre da memória tudo aquilo de que nos lembramos (AGOSTINHO, 1969, p.25).

Outro exemplo seria o de encontrar uma pessoa conhecida e não se lembrar de seu nome. Ao

ocorrer outro nome, não o aceitamos, significando que aquilo de que lembramos ter esquecido

ainda não o esquecemos inteiramente. Pois é a memória, no momento do reconhecimento do

objeto, que testemunha a existência do esquecimento. Assim como poderia falar da presença

do próprio esquecimento quando tudo foi esquecido? O que dizer quando se tem a certeza de

lembrar do esquecido? Agostinho apresenta então uma grande admiração pela memória, uma

admiração plena de inquietude quanto à ameaça do esquecimento recolocada com o tempo.

Aqui ele apresenta um esquecimento mais fundamental, que é o esquecimento de Deus, do

qual a memória feliz tem possibilidades de lembrar. Tarefa nem fácil, nem impossível.

Ricoeur afirma que para John Locke (1632-1704) o olhar da interioridade não é mais o eco do

platonismo de Agostinho. Locke apresenta a questão da consciência como um self e não

como um ego cartesiano. Neste aspecto Ricoeur explica o distanciamento entre o self e o ego,

dizendo que o cogito não é uma pessoa definida por sua memória com capacidade de tomar

consciência de si, pois pensar, como prescrevia o cogito, não implica de lembrar-se de ter

pensado. Além disso, Ricoeur afirma que: “a filosofia das Meditações é uma filosofia da

certeza, ou seja, a certeza é uma vitória sobre a dúvida” (RICOEUR, 2000, p.124). Descartes

como um racionalista defende a idéia de que o eu enquanto pensa sabe que pensa, mas não se

preocupa com uma interferência da memória como reflexão.

Locke ao colocar a tríade: identidade, consciência e self ele quer mostrar a ligação que existe

entre estas três noções para que o homem se constitua. Para o empirista Locke, o

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conhecimento parte da experiência, pois o homem nasce como uma tabula rasa14. Acontece

que é nesta consciência de si mesmo, nesta reflexividade que ele descobre que ele é ele

mesmo e não um outro, numa teoria da alteridade. Todo este conhecimento para Locke se dá a

partir de impressões e de reflexões. Por isso Locke muito contribuiu para a visão de

interioridade da memória.

Husserl será, segundo Ricoeur, o terceiro testemunho da tradição do olhar interior,

apresentando uma filosofia transcendental da consciência. Transcendental aqui deve ser

distinguido do “transcendente”, que indica aquilo que ultrapassa qualquer possibilidade de

experiência, mas sim a possibilidade que o sujeito tem de conhecer.

Edmund Husserl mostrou-se persuadido de que o conhecimento começa com a experiência de

coisas concretas existentes, de fatos contingentes que nos apresentam aqui e agora e quando

este fato se apresenta à consciência é possível captar a sua essência. As essências são os

modos típicos do aparecer dos fenômenos à consciência. E essências que não se obtêm por

abstração – como sustentavam os empiristas -; elas são muito mais resultados da intuição

eidética ou da essência.

As essências eidéticas são, portanto, universais, conceitos que a consciência intui quando os fenômenos a ela se apresentam; e são exatamente estes universais ou objetos ideais que permitem o reconhecimento, a classificação e a distinção dos fatos particulares. E nisso consiste a redução eidética, na intuição das essências, quando na descrição dos fenômenos que aparecem à consciência conseguimos colher seu aspecto invariável entre as diversas variações das propriedade.(REALE; ANTISSERI, 2005, p.179)

14 “Suponhamos portanto que o espírito seja, por assim dizer,uma folha em branco, privada de qualquer escrita e sem nenhuma idéia. De que modo virá a ser preenchida? De onde provém aquele vasto depósito que a industriosa e ilimitada fantasia do homem traçou-lhe com variedade quase infinita? De onde procede todo o material da razão e do conhecimento? Respondo com uma só palavra: da EXPERIENCIA. É nela que nosso conhecimento se baseia e é dela que, em última análise, deriva” (REALE; ANTISERI. História da Filosofia, 2005, p. 96).

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Percebemos que a fenomenologia da memória teve como diretriz a questão da memória feliz

que se caracteriza pela fidelidade, não como um dado do passado, mas com um desejo que

poderia ser bem sucedido ou fracassado. Este desejo visaria a uma reivindicação, uma queixa

ou uma busca de algo ausente marcado por um sinal de anterioridade, de distância temporal.

Aqui nesta questão da memória, o dilema da presença e da ausência nos é apresentado, ou

seja, o reconhecimento da lembrança, conjugando com o trabalho de memória e de luto.

Vimos ainda a memória impedida, manipulada, comandada, várias figuras de lembranças

difíceis, mas não impossíveis de serem atravessadas.

Além disso, a fenomenologia da memória é compreensiva e não explicativa. A compreensão é

um tipo de conhecimento de ordem intuitiva e sintética. A explicação é de tipo analítico e

discursivo, ou seja, divide o todo em seus elementos para analisá-los, procurando ao término

reconstruí-los numa ordem de reflexão causal.

Todavia é no reconhecimento de si mesmo, na consciência de algo que culmina a

reflexividade da memória. É no esboço da teoria da atribuição que há a memória de si, dos

próximos e dos outros mais distantes que merece ser retomada pelo ato de ligar e desligar,

proposta pela problemática do perdão voltada para a maneira de ser e de agir. Neste âmbito da

memória percebemos que o autor mostra a necessidade de um trabalho para que o homem

saia da questão da culpabilidade advinda de situações marcadas pela acusação pública, em

busca de uma felicidade própria da reconciliação.

A fenomenologia da memória nos apresentou a potencialidade do homem como ser capaz

com consciência para agir, sendo sujeito para construir a si mesmo e o seu mundo. O perdão

estará intimamente ligado à memória porque para que haja o perdão é necessário que o ato

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seja consciente, que possa separar o ato do agente, dando possibilidades ao culpado de

conhecer a falta cometida no passado e no presente reelaborar este erro com vistas ao futuro.

Assim a consciência, a temporalidade e nova ação são fundamentais para o perdão.

Devemos ressaltar ainda que a fenomenologia deva se confrontar a uma outra tradição que é a

do olhar exterior focalizada sobre a memória coletiva, que Maurice Halbwachs defende a tese.

“para se lembrar a gente tem necessidade dos outros. Neste aspecto Ricoeur discorda de

Halbwachs pois acredita que não haja somente um tempo individual e outro coletivo, mas que

há um terceiro tempo, um tempo histórico que a que exige um entrecruzamento da memória

individual e da coletiva.

Devemos ressaltar que neste capítulo analisamos as questões: de quê se lembra?, como se

lembra? e quem se lembra?. Quando tratamos do que se lembra, discutimos a questão das

lembranças, no como se lembra discutimos o trabalho para se alcançar a lembrança e no quem

se lembra destacamos o agente na sua ipseidade e alteridade separadamente da sua ação.

Contudo o título deste capítulo foi o perdão entre o trabalho de memória e o trabalho de luto.

Afinal onde está o perdão? Ele estará num entrelugar, exigindo uma elaboração por parte do

algoz e da vítima, feita no presente, com base numa falta passada, com vistas a uma mudança

de comportamento objetivando o futuro. É neste jogo de passado-presente-futuro, não linear,

mas de idas e voltas, de comunicação constante em várias direções numa horizontalidade que

o homem visualiza o horizonte do perdão e tenta buscá-lo para ser feliz.

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Enfim desta capacidade de poder lembrar discutida neste capítulo passaremos à arte do

esquecer do homem situado num tempo e num espaço, ou seja, em sua condição histórica,

para concluir este trabalho com o saber perdoar.

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CAPITULO II : A CONDIÇÃO HISTÓRICA E O ESQUECIMENTO

Não podemos crer que a reflexão sobre o fenômeno da memória conclui-se totalmente no

primeiro capítulo. Esta posição seria o mesmo que compartimentalizar, fechar, encerrar a

memória em um espaço determinado, esquecendo que ela é um dos três mastros de uma

embarcação, imbricada em uma história e em um esquecimento. Por isso este capítulo tratará

principalmente da condição histórica e do esquecimento, sempre fazendo referência à

memória. Além disso, ao iniciarmos este capítulo, faremos alguns comentários sobre a

historiografia.15 Novamente esclarecemos que o fio do perdão surgirá no terceiro capítulo

para construir uma tessitura com a memória, histórica e esquecimento.

Ricoeur afirma que seu livro pode ser lido entendendo a memória como matriz da história,

entretanto trata-se, ao contrário, de nos perguntar em qual sentido o poder de fazer memória e

o trabalho de rememoração são constitutivos da compreensão histórica.

De minha parte, estou atento ao perigo de fazer de meu livro um defensor da memória como matriz da história, na medida em que esta permaneça como guardiã da problemática da relação representativa do presente no passado. A tentação é então grande de transformar esta defesa como reivindicação da memória contra a história (RICOEUR, 2000, p.106).

Ricoeur afirma que ele resistirá à pretensão de reduzir a memória a um simples objeto de

história. A ilusão seria de crer que o conhecimento histórico devesse confinar numa memória

coletiva. Além disso, Ricoeur não tem como ambição propor aqui uma filosofia da história,

mas compreender como se organiza o discurso da história e qual pode ser o estatuto de

verdade, a dimensão epistemológica da história.

15 Por uma questão de recorte deixamos de lado a questão da epistemologia da história. Ver RICOEUR. La mémoire, l’ histoire, l’ oubli, 2000, p.167-369.

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Afirma Dosse:

Ricoeur demonstra que o discurso histórico pertence à classe das narrativas: por conta disso, ele se situa numa relação de proximidade particular com a ficção, e é-lhe impossível, ao contrário do que acreditaram por muito tempo os Annales, romper com a narrativa para construir um discurso puramente formal, nomológico” (DOSSE, 2003, p. 189)

Ricoeur esclarece que o registro histórico partilha com a ficção, pois há uma seleção e

combinação de dados, contudo ela pretende ser um discurso de verdade de representação de

um real, de um passado referente.

Ricoeur também distingue com clareza que a ambição da memória seria a fidelidade,

enquanto que a ambição da história seria a verdade: “a interminável competição entre o desejo

de fidelidade da memória e a busca da verdade em história” (2000.p.650). Mas logo ele

pergunta o que seria uma verdade sem fidelidade, ou ainda uma fidelidade sem verdade.

Assim há uma imbricação entre história e memória.

Para o autor de La Mémoire, l’ Histoire, l’ Oubli a crítica sobre a parte epistemológica de sua

obra desemboca no enigma da presença de uma coisa ausente marcada com o sinal da

anterioridade, que a memória comunica à história. É uma passagem da fenomenologia da

memória a uma epistemologia da história de tal maneira que tanto a memória quanto a

história imbricada uma na outra, elas contribuem para a representação do passado.

Não basta dizer que a memória permanece somente como matriz como guardiã da

problemática da relação representativa do presente e do passado. É necessário também

mostrar como a memória que conhece é também traumatizada pela história. Há fatos da

história pessoal que são traumatizantes e, por isso, criam problemas para a memória, levando,

muitas vezes, a um esquecimento involuntário, uma vez que a pessoa não suporta lembrar.

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Assim, no caso pessoal, Freud mostrou que a memória está sujeita à patologias, com

impedimentos e resistências, e também está vulnerável a manipulações e a mandamentos ou

comandos. Em certas circunstâncias, a memória pode experimentar momentos, como afirma

Ricoeur “felizes”, que são os de reconhecimento.

Esse pequenino milagre do reconhecimento que a memória permite é inacessível ao

historiador, que não pode ter a pretensão de atingir essa “ felicidade”, pois seu conhecimento

é mediado pelo textual, pela tessitura da realidade, uma tessitura sempre aberta e indefinida,

que tem como objeto – o ausente. Percebemos que neste percurso, a discussão parte de uma

fenomenologia da memória, passa pela epistemologia da história em busca de uma ontologia e

até mesmo de uma hermenêutica do esquecimento.

O logos grego oferece a base inicial para responder ao problema da representação do passado

na memória. Platão já havia colocado a pergunta do “quê” da lembrança com o eikon (a

imagem-lembrança). Ora o paradoxo do eikon é essa presença no espírito de uma coisa

ausente. Aristóteles acrescenta uma outra característica da memória: ela traz em si a marca do

tempo. Portanto a memória nos apresenta de um lado a imaginação, a fantasia e, de outro

lado a anterioridade, um “tendo sido”.

Entretanto é no nível da escrita que se situa a história, como historiografia: François Dosse

afirma a respeito da operação historiográfica em La Mémoire, l’ Histoire, l’Oubli::

É no nível da escrita que se situa a história nas três fases constitutivas do que Michel de Certeau qualifica de operação historiográfica: o arquivamento no qual se revela sua ambição de verdade, de discriminação do testemunho autêntico e do falso; o plano da explicação/compreensão, que coloca a questão causal do ‘ por que’, e por fim o nível da própria representação histórica, durante a qual se efetua o próprio ato da escrita da história que repousa, mais uma vez, na questão da verdade. (DOSSE, 2004, p.152).

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O objetivo é para Ricoeur uma memória feliz, tranqüilizada, da qual devemos nos aproximar

mediante um verdadeiro trabalho de memória que passa por uma rearticulação com a verdade.

Hoje percebemos que há uma feroz concorrência entre memória e história. Contudo Ricoeur

comenta que esta competição não pode ser decidida somente no plano epistemológico e, ele

deixa claro sua posição quando apresenta a problemática do perdão que vem revisitar a

memória, a história e o esquecimento como horizonte escatológico de uma memória feliz.

Assim percebemos que ao aproximarmos do campo ontológico, memória, história e

esquecimento não serão concorrentes. “A competição entre a memória e a história, entre a

fidelidade de uma e a verdade da outra, não pode ser decidida no plano epistemológico”

(RICOEUR, 2000, p.648).

Ricoeur distingue diversas formas de memória como vimos: desde a memória pessoal até a

memória coletiva citando Maurice Halbwacks do campo da sociologia, como também Pierre

Nora em Os lugares da memória. A memória pública muitas vezes se torna excessivamente

repetitiva afastando ou impedindo o contato com os acontecimentos da história. Este processo

da memória se assemelha ao processo individual de repetição quando houve uma afecção de

que a psicanálise se ocupa.

O distanciamento entre história e memória se aprofunda na fase explicativa, em que é

explorada a questão Por quê? O conhecimento histórico tenta fazer a articulação entre os

eventos, estruturas e conjunturas, distribuição dos objetos pertinentes da história sobre

múltiplos planos econômico, social, político, cultural, religioso. Afirma Ricoeur que “a

história não é somente mais vasta que a memória, mas também seu tempo é folheado”

(RICOEUR, 2000, p.647).

Afirma Ricoeur a questão da fidelidade e verdade da memória e da história:

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A lembrança procurada e encontrada se situa assim no cruzamento de uma semântica e de uma pragmática. Se lembrar é ter uma lembrança ou se colocar em busca de uma lembrança, neste sentido, a questão é: como? Colocada pela anamnese tende a se separar da questão o quê? Mais estritamente colocada pela mneme. Este desdobramento da abordagem cognitiva e da abordagem pragmática tem uma incidência maior sobre a pretensão da memória relativamente à fidelidade ao passado: esta pretensão define o status verídico da memória, que será necessário mais tarde confrontar com este da história. “Esperando, a interferência da pragmática da memória, em virtude da qual lembrar-se é fazer algo, (esta memória) exerce uma interferência sobre toda a problemática verídica” (RICOEUR, 2000, p. 4).

A representação mnemônica, vinculada ao passado, torna-se objeto da história. A dúvida de

Ricoeur é a de saber se a memória, de matriz de história, não se tornou simples objeto de

história. Chegando neste ponto extremo de redução historiográfica da memória, percebe-se

que a história pode expandir, completar, corrigir, até mesmo refutar o testemunho da

memória sobre o passado.

A história se baseia em fatos, dados, depoimentos, interpretados por outro. Esta interpretação

estará, pois, sujeita a distorções em vista de que cada historiador seleciona e combina dados

formando uma narrativa histórica. Assim os fatos anotados não são mais eventos totalmente

reais, porque foram interpretados por outras pessoas. Além disso, a palavra viva da

testemunha transmutada em escritura se funda no conjunto dos documentos de arquivos, mas

nem todos os arquivos são compostos por depoimentos. Há, pois, uma distância entre a

história e a memória. A representação mnemônica, veículo da ação com o passado, torna-se

objeto de história, por isso, por exemplo, os acontecimentos tais como o da Shoah e os

grandes crimes do século XX deixaram marcas traumáticas, imperdoáveis sobre os corações e

corpos. Assim, percebemos que as construções históricas juntamente com o lembrar/esquecer

próprios da memória irão trazer ao mesmo tempo uma dificuldade e uma possibilidade para o

perdão.

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Contudo, sob os registros da memória e da historiografia estão a condição histórica e o

esquecimento que devem ser analisados com vistas ao perdão.

Ricoeur afirma sobre lesões corticais que ocorrem nos indivíduos, como também incêndios

em bibliotecas que provocaram perdas de memória irreversíveis. Além dessa idéia Ricoeur

chama atenção para um esquecimento de reserva, que procura preservar algo para se oferecer

à relembrança: “O esquecimento reveste uma significação positiva na medida em que o ter

sido prevalece sobre o não ser mais, na significação ligada à idéia do passado” (RICOEUR,

2000, p.154).

Além disso, Ricoeur discute a questão da temporalidade como nossa condição histórica, como

seres de memória e de história. Ele retoma Heidegger com relação à visão de homem como

um ser para a morte para, posteriormente, fazer uma crítica a esta posição heideggeriana

relacionando com a problemática do perdão nem fácil, nem impossível. Passaremos, então, a

mostrar algumas idéias sobre a filosofia heideggeriana, referidas na obra La Mémoire, l’

Histoire, l’Oubl.

Heidegger, em sua obra Ser e Tempo (1993) constrói a idéia de historicidade entre o

nascimento e a morte do ser humano. É o assumir com consciência o dia-a-dia que o homem

construirá o seu ser, a sua história. Além disso, será necessário distinguir o nosso modo de ser

da nossa maneira de ser no mundo e a caracterização global deste modo de ser pela

preocupação tomada em suas determinações teóricas, práticas e afetivas. Ao analisar a

questão do Dasein (o ser aí situado) ou o agir social, deve-se ter em mente a questão da

existência, da consciência, o si mesmo e o ser com o outro e o ser no mundo. Esta discussão

que se segue foi intensamente abordada na obra La Mémoire, l’ Histoire, l’ Oubli, pois

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Ricoeur valoriza a filosofia heideggeriana e acredita que é com este homem capaz situado no

tempo, construindo o seu ser aqui e agora que ele deverá buscar o perdão. Por isso, iremos

nos alongar apresentando algumas idéias da filosofia de Heidegger.

2.1 O ser - no - mundo de Heidegger

O homem para Heidegger é aquele que se interroga sobre o sentido do ser. Ele não pode

reduzir-se a simples objeto ou a um simples estar presente. O modo de ser do homem é a

existência que é poder-ser, ou projetar. Por isso a existência é uma ultrapassagem. Para

Heidegger a existência é poder ser projeto em relação ao mundo, ou seja, fazer do mundo o

projeto das ações e dos comportamentos possíveis do homem e não somente um contemplar

ou um utilizar as coisas do mundo. Estar no mundo significa um cuidar das coisas necessárias

a seus projetos. O homem, portanto, não é um espectador do grande teatro do mundo, mas

deve estar envolvido nele e, transformando o mundo, ele forma e se transforma a si mesmo,

pois o homem compreende uma coisa quando sabe o que fazer dela. Do mesmo modo como

compreende a si mesmo quando sabe o que pode fazer consigo mesmo.

Sabe-se que não há um sujeito sem mundo e não existe um eu isolado sem os outros. Os

outros participam do mesmo mundo no qual eu vivo. Como o ser no mundo se expressa pelo

cuidar das coisas o ser com os outros se expressa pelo cuidar dos outros. Uma forma autêntica

de existir seria então ajudar os outros a conquistar a liberdade de assumir seus próprios

cuidados.

O Dasein, o ser-aí, situado em um contexto social não exclui o exercício de uma função de

condicionalidade do agir humano, social. O “aí” indica o fato de que o homem está sempre

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em uma situação, lançado nela e em relação ativa com ela. O Ser aí, isto é, o homem, não é

somente aquele ente que propõe a pergunta sobre o sentido do ser, mas é também aquele ente

que não se deixa reduzir à noção de ser aceita pela filosofia ocidental, que identifica o ser com

a objetividade, ou com uma simples presença. O ser aí jamais é uma simples presença, uma

vez que ele é precisamente aquele ente para o qual as coisas estão presentes. O principal da

existência é a possibilidade, o poder ser, o poder fazer, o poder agir. O ser do homem é

sempre uma possibilidade a atuar e, consequentemente, o homem pode escolher-se, isto é,

pode conquistar-se ou perder-se.

Torna-se necessário evidenciar, portanto, as maneiras de penetração no ser, de compreensão e

de posse conceitual de seu sentido, bem como a solução da possibilidade de escolha correta

do ente exemplar e a indicação do caminho autêntico de acesso a esse ente. Penetração,

compreensão, solução, escolha, acesso – são momentos constitutivos da busca e, ao mesmo

tempo, modos de ser de determinado ente, mais precisamente daquele ente que, nós que o

buscamos, já somos. Há aqui o problema da angústia, não no sentido emocional mas de seu

poder de abertura ao ser. A possibilidade da fuga diante de si mesmo é aqui contemporânea

da capacidade de abertura inerente à angústia. É necessário entender o Dasein não como um

sistema fechado, mas no sentido de abertura. Há uma tensão entre a abertura e o fechamento.

Há um silêncio na obra de Heidegger (1993) relativamente ao nascimento, uma vez que o ser

humano com o nascimento é lançado na angústia existencial.

2.2 O ser para a morte de Heidegger

Viver para a morte já indica uma temporalidade, uma história. Para Heidegger uma vida para

a morte constitui o sentido autêntico da existência: a possibilidade do nada. O ser para a morte

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é essencialmente angústia que é a experiência do nada, pois coloca o homem diante do nada,

ao nada de sentido, ou seja, ao não sentido de todos os projetos humanos e da própria

existência. Viver autenticamente implica a coragem de olhar para a possibilidade do próprio

não ser. Não permitindo que o homem seja arrastado nas possibilidades mundanas. O viver

para a morte nos afasta do estar submerso nos fatos e nas circunstâncias. A antecipação da

morte que não significa suicídio dá sentido ao ser dos entes, mediante a experiência do seu

nada possível. Existir autenticamente é enfrentar a possibilidade do não ser. A existência

inautêntica e anônima, ao contrário, tem medo da angústia diante da morte. De modo que para

escapar da angústia ocupa-se muito com as coisas e afunda no reino do “Dasman”16.

A existência anônima e banal não tem a coragem da angústia diante da morte. E isso pode ser

visto no fato de que a existência anônima banaliza a angústia no medo. O medo é portando

uma angústia que decaiu ao nível do mundo.

O ser para a morte é um ser com vistas ao futuro, mas não excluindo uma relação que há do

presente com o passado. Portanto dentro da expressão do “eu posso”, há a possibilidade, ou

seja, um homem capaz: capaz de palavra, de ação, de narrativa, de imputação. Esta certeza no

presente enquanto comprovação no futuro e o testemunho no passado. A força da teoria de

Heidegger é a de permitir que há na atestação do futuro da ultrapassagem uma direção ao

passado da retrospecção.

16 Dasman vem do alemão que significa: a gente, se em português ou on em francês.

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2.3 A existência autêntica construída com vista do ser para a morte

Entretanto existe a voz da consciência que chama à existência autêntica, ou seja, a voz que

traz de novo o homem envolvido pelos cuidados para diante de si mesmo, remetendo-o à

questão do que ele é no mais profundo do seu ser e que não pode ocultar. É no poder ser que

se baseia o projetar ou transcender do homem. Mas todo projetar leva o homem ao nível das

coisas e do mundo. Tudo isso quer dizer que os projetos e as escolhas do homem são

inúmeros. Entretanto entre as várias possibilidades, há uma em que o homem não pode

escapar, é a morte.

Posso decidir dedicar minha vida a um objetivo, posso escolher uma profissão, mas nunca

deixar de morrer. Então quando a morte torna-se realidade não há mais existência. Isso nos

faz entender que enquanto há o existente, a morte é possibilidade permanente, e essa é a

possibilidade de que todas as outras possibilidades se tornem impossíveis. A morte é a

possibilidade da impossibilidade de todo projeto e com isso de toda existência. Com a morte

não há outras possibilidades a escolher nem novos projetos a realizar. A voz da consciência

nos remete ao sentido da morte e revela a nulidade de todo projeto: na perspectiva da morte,

todas as situações singulares aparecem como possibilidades que podem se tornar impossíveis.

Desse modo, a morte impede que alguém se fixe em uma situação, mostra a nulidade de todo

projeto e funda a historicidade da existência. A existência autêntica, portanto, é um ser para a

morte. Somente compreendendo a possibilidade da morte como possibilidade da existência e

somente assumindo essa possibilidade com decisão antecipada, o homem encontra seu ser

autêntico.

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A morte anônima de todos os homens que passam sobre a cena da história coloca

silenciosamente a questão do sentido deste próprio anonimato. A morte assinala de alguma

forma a ausência na história – uma ausência no discurso historiográfico. À primeira vista, a

representação do passado como reino dos mortos parece condenar a história a oferecer

somente um teatro de sombras agitadas pelos sobreviventes em suspensão condicional da

pena colocada pela morte.

Já vimos que o homem se encontra sempre em uma situação e enfrenta essa situação graças a

seu projetar. Mas o homem quando se coloca no plano ôntico, ou seja, quando não se

questiona sobre o seu ser ele vive de forma inautêntica,pois manipula as coisas, utiliza e

estabelece as relações sociais com os outros visando aos seus interesses próprios. Neste

aspecto sua vida permanece no nível dos fatos e sua linguagem se transforma em um

palavrório sem sentido. As coisas são assim porque assim se diz. Não há um assumir de modo

crítico a realidade humana. Na partícula “se” há uma inautenticidade, porque o indivíduo não

assume com seu “eu”, mas se dilui na indeterminação do todo, dizendo “a gente”. A

existência inautêntica é a existência anônima do “se diz” e do “se faz”. Neste modo de viver o

homem não assume a sua morte nem tão pouco a sua vida. Segundo Heidegger, o que se

encontra na base desse poder-ser é a queda do homem no plano das coisas do mundo ou como

denomina Heidegger – a dejeção.

2.4 A temporalidade de Heidegger

Heidegger (1993) propõe uma análise da temporalidade que articule três instâncias temporais:

futuro, passado e presente. A memória é do passado e não tem necessidade de evocar o futuro

para dar sentido à sua afirmação. O futuro é colocado entre parênteses, em suspenso. Do

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ponto de vista retrospectivo da história os homens no tempo são de fato homens de

antigamente.

É no nível da intratemporalidade do ser no tempo que a ontologia do Dasein encontra a

história.

Afirma Heidegger (1993, p.213): “Para se comprovar que e como a temporalidade constitui o

ser da presença, mostrou-se o seguinte: enquanto constituição ontológica da existência, a

historicidade é ‘no fundo’, temporalidade”.

O objetivo declarado de Ser e tempo é o de uma ontologia capaz de determinar

adequadamente o sentido do ser. Mas para alcançar esse objetivo é preciso analisar quem é

que se propõe a pergunta sobre o sentido do ser. Para Heidegger a história do ser rege e

determina toda a condição e situação humana.

Entre as determinações do tempo (passado, presente e futuro) a fundamental é o futuro. O

projetar-se baseia-se no futuro. Contudo o cuidado que antecipa as possibilidades surge no

passado. Entre o passado e o futuro está o ocupar-se com as coisas que é o presente.

Essas três determinações do tempo encontram seu significado no fora de si: o futuro é um

estender-se, o presente é estar preso às coisas e o passado é retornar à situação de fato para

aceitá-la. O tempo na vivência autêntica do assumir com consciência e responsabilidade o

futuro é um viver para a morte que não permite ao homem ser envolvido pelas possibilidades

mundanas. O passado é o não aceitar passivamente a tradição, mas confiar nas possibilidades

que a tradição nos oferece e reviver a possibilidade do homem que já foi. O presente é o

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instante em que o homem decide seu destino, com todo afastamento próprio de quem , com a

experiência antecipatória da morte, teve a revelação do nada dos projetos humanos e da

existência humana.

Como fazer história sem calendário e relógio? Há, pois uma análise ontológica autêntica da

extensão do ser aí entre seu nascimento e sua morte. É neste tempo que Heidegger constrói

sua própria interpretação da historicidade, mas, sobre a falta, em uma conexão entre a morte, a

dívida e a consciência. O que falta é o fim, o começo, o nascimento e entre os dois o intervalo

denominado extensão. Contudo ao viver a extensão o homem tem que preocupar-se com o

seu futuro. Se a existência é possibilidade e projeção ela está orientada para o futuro, mas o

futuro implica necessariamente o passado e o presente está envolvido na relação entre futuro e

passado. Cada uma destas determinações do tempo não tem significado senão em relação à

outra.

O futuro adquire a forma de um prolongamento pleno de cuidado com aquilo que se faz. O

futuro significa o sucesso ou insucesso daquilo que absorve ou preocupa o homem. Se ele se

sente angustiado e consciente com relação a sua morte futura terá uma vida autêntica. Quanto

ao passado, este estaria vinculado à situação emotiva, pois esta põe o homem em presença

com aquilo que ele foi de fato, ao seu ser quando foi lançado no mundo e mantém preso a ele,

fazendo-lhe esquecer a sua possibilidade autêntica. O presente é na existência inautêntica, a

própria apresentação das coisas do mundo: é a unidade esquecimento e de expectativa, na qual

se baseia a existência cotidiana como uma rotina insignificante de um dia após outro. Para

Heidegger o instante presente é o repúdio da rotina e a volta da existência ao seu poder ser a

repetição do seu passado mais original.

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Neste jogo de tempo o ser está presente porque ele é o tempo. Heidegger sugere que o tempo

seja o sentido do ser. A história não pode ter lugar na existência inautêntica, mas na existência

autêntica, na angústia de caminhar para a morte. Heidegger tenta basear na angústia a

historicidade da existência humana. O fundamento desta tentativa é que a existência autêntica

mesmo projetando-se como nulidade radical do mundo e de si mesma, não elimina o mundo.

E não impede o existir desta impossibilidade, mas nos torna livres de aceitar a existência tal

como ela é. A angústia não proporciona ao homem um fim diferente, mas faz o homem ver a

insignificância e a nulidade destes fins, oferecendo-lhe a possibilidade de permanecer fiel aos

necessários à situação em que se encontra. Assim a liberdade do homem em que se baseia a

sua historicidade, consiste em escolher e aceitar como própria a situação em que está lançado

e permanecer fiel a ela.

Por isso Abbagnano cita Heidegger “só um ente que no seu ser é essencialmente futuro, isto

é, que se deixa lançar sobre a presença que realiza de fato, poderá transmitir a si mesmo a

possibilidade que quer assumir a sua própria dejeção e, no instante, ser para o seu tempo”

(ABBAGNANO, 1984, p.151) .

É aqui que se apresenta a história dos historiadores. É de fato no tempo que os eventos

ocorrem. O ser no tempo é a forma temporal de estar no mundo, em que o cuidado esta

estrutura fundamental do ser que nós somos se dá como preocupação. Estar no tempo

significa estar junto, junto das coisas do mundo, não simplesmente adotar o conceito vulgar

de tempo como um transcurso de instantes pertencente a um cálculo numérico. Por isso é

importante atentar para esta relação no tempo que advém da ontologia do ser histórico.

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Ricoeur é um estudioso de Heidegger e observa cuidadosamente suas idéias ao construir uma

hermenêutica.

Para Heidegger a tarefa da hermenêutica é retirar as implicações tácitas das expressões

relativas ao tempo como: ter tempo, tomar seu tempo, dar seu tempo e perceber que elas se

deixam reagrupar em volta da preocupação que nos coloca na dependência das coisas que

estão junto a nós num presente vivo, da mesma forma que o ser para a morte impõe uma

referência de futuro e a historicidade uma referência com o passado. O discurso da

preocupação é um discurso centrado no presente vivo onde reside o termo “agora” a partir do

qual todos os eventos se deixam datar. Antes da quantificação do tempo há medidas ritmadas

do dia e da noite, do repouso e do sono, do trabalho e da festa. De um tempo pode ser dito

oportuno ou inoportuno, um tempo para fazer ou para não fazer algo. A “significatividade”

seria a expressão apropriada desta cadeia de determinações do se no tempo para significação.

Enfim o tempo do mundo é mais objetivo que todo objeto possível e mais subjetivo que todo

sujeito possível. O que importa a Heidegger (1993) é a vulnerabilidade do modo temporal

exercido sobre o homem.

2.5 Crítica de Ricoeur à visão heideggeriana

A principal crítica que Ricoeur faz a Heidegger é sobre a questão da visão do ser para morte,

em que, como vimos, o homem se projeta e se constrói no tempo , consciente de sua finitude

como ser para a morte.

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Greisch ao estudar a obra de Ricoeur e de Heidegger, indaga: “por que a ontologia

heideggeriana da temporalidade, diretamente ancorada no existencial da preocupação,

permanece totalmente muda sobre os fenômenos memoriais e quase totalmente sobre o

fenômeno do esquecimento?” (GREISCH, 2001, p.298)

O que Ricoeur nos propõe é uma nova lição de esperança, uma retomada da relação entre

passado, presente e devir, constitutivo da disciplina histórica, transformando a memória

infeliz em memória feliz, pacificada. Esta posição de Ricoeur muito contribuiu para uma nova

crítica da história. Ricoeur, para exemplificar esta idéia, cita, Jankelevitch , na epígrafe de

sua obra, La Mémoire, l’ Histoire, l’ Oubli: “Aquele que foi não pode mais não ter sido: a

partir de agora esse fato misterioso e profundamente obscuro de ter sido é sua bagagem17 para

a eternidade”.

Relativamente às possibilidades do ser, Ricoeur comenta que a ontologia do poder-ser, do

poder-morrer não deixa a “passadidade” numa relação de exterioridade ou de polaridade

contrária, pois o passado não pode ser abordado como um “tendo sido”, algo pertencente

somente ao passado. O laço entre a futuridade e a “passadidade” é assegurado por um

conceito-ponte; este do ser em dívida, uma dependência do passado em termos de herança.

Ricoeur nos convida ainda a compreender a noção de trabalho de memória, em referência a

Freud e sua noção de trabalho de luto. Ricoeur evoca o uso do trabalho da memória a partir

daquilo que Freud chamou de trabalho do luto. Afirma Ricoeur. “O excesso de memória

lembra particularmente a compulsão de repetição, que Freud nos diz levar a substituir pela

17 O texto original traz em francês a palavra viatique (que vem do latim viaticus que significa viagem. O homem é este ser viator, viajante, passageiro.

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passagem ao ato à verdadeira lembrança graças a qual o presente seria reconciliado com o

passado” (RICOEUR, 2000, p.96).

Ricoeur vê nesse fenômeno uma possível analogia no plano da memória coletiva. Tanto a

memória individual quanto a coletiva devem manter uma coerência duradoura em torno de

uma identidade que se sustenta e se inscreve no tempo e na ação. Afirma Dosse (2004, p. 156)

“nesse sentido, é a essa identidade do ipse, diferente da Mesmidade, que se refere essa

travessia na experiência da memória em torno do tema da promessa”.

Já constatamos em nossas vidas situações em que surgem para nós um passado que não quer

passar e, em outros, atitudes de fuga de ocultação consciente ou inconsciente de negação dos

momentos mais traumáticos do passado levando-nos a repetições. As patologias coletivas da

memória também coincidem com as patologias individuais quando há a doença de

comemoração ou “comemorite” ou a tendência de patrimonialização do passado. É assim que

a memória é inseparável do trabalho do esquecimento.

Ricoeur afirma que a dívida, à qual Heidegger não fez referência, guia o dever de memória e

situa no cruzamento da tríade passado-presente-futuro. O dever de memória segundo Ricoeur

é “o dever de fazer justiça pela lembrança ao outro” (RICOEUR, 2000, p.159). Seu objetivo é

refletir sobre o logos grego – a verdade, em conjunto com a tradição judaico-cristã, que é uma

vertente da fidelidade do “Lembra-te” da memória a fim de delinear os caminhos de uma

sabedoria prática.

Com relação à consciência histórica, Ricoeur discute as possibilidades que existem para

significar um acontecimento. Comenta Dosse: “A hermenêutica da consciência histórica situa

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o acontecimento em uma tensão interna entre duas categorias meta-históricas identificadas por

Koselleck: a do espaço de experiência e a do horizonte de expectativa. Essas duas categorias

permitem uma tematização do tempo histórico que é dado a ler na experiência concreta, com

deslocamentos significativos como o da progressiva desassociação entre experiência e

expectativa no mundo moderno ocidental” (DOSSE, 2004, p.164). Portanto não basta, hoje,

uma simples descrição dos acontecimentos. È necessário interpretar as condições de

possibilidade desses acontecimentos. Esse novo momento convida a acompanhar as

metamorfoses do sentido nas mutações e desvios sucessivos da escrita histórica entre o

acontecimento em si e a posição presente, pois o historiador reflete sobre a percepção do

acontecimento a partir de sua trama textual.

Esse movimento de revisitação do passado pela escrita histórica acompanha o desenterrar, ou

retirar do esquecimento a memória nacional. Pela renovação historiográfica e memorial, os

historiadores assumem o trabalho de luto de um passado em si e dão sua contribuição ao

esforço reflexivo e interpretativo atual nas ciências humanas, como já esclarecia Pierre Nora

em Les lieux de mémoire, e abre caminho para uma história, enriquecida com a reflexividade

necessária dos sinais do passado no presente.

A história do tempo presente é uma história diferente, que participa das novas orientações de

um paradigma que se busca na ruptura com o tempo único e linear, pluralizando os modos de

racionalidade.

A história do tempo presente é a descontinuidade, pois o historiador esforça para apreender a

presença como ausência. Seria um sentido que não é mais um telos uma continuidade pré-

construída, mas uma história com falta de gravidade temporal. Dosse comenta sobre a história

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do tempo presente: “Por sua vontade conciliadora, no coração do vivido, do descontínuo e das

continuidades, a história do tempo presente, como interpenetração constante entre passado e

presente, permite ‘ um vibrato’ do inacabado que colore bruscamente todo um passado, um

presente pouco a pouco libertado de seu autismo’” (DOSSE, 2004, p.167).

Afinal, depois desta longa exposição sobre a condição histórica, perguntamos onde se coloca

o perdão como nem fácil, nem impossível.

Em vista da ausência de um projeto de nossa atual sociedade, Ricoeur lembra a função da

dívida ética da história em relação ao passado, ele defende a noção de horizonte, colocando o

perdão como uma utopia que tem uma função libertadora para o homem. Ricoeur defende o

dever, a dívida das gerações presentes com o passado, fonte da ética da responsabilidade.

Assim a função da história permanece viva e o luto das visões teleológicas pode se tornar uma

oportunidade para revisitar, a partir do passado, os múltiplos possíveis do presente, a fim de

pensar o mundo de amanhã.

Assim, neste capítulo, além da discussão sobre memória e a condição histórica do homem,

que trabalha para construir a sua cultura e a si mesmo, apresentaremos a questão do

esquecimento que pode ser visto por dois prismas: o esquecimento de apagamento e o

esquecimento de reserva, mantendo como diz Ricoeur “ a marca mais preciosa e a mais

secreta do perdão (RICOEUR, 2000, p.654).

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2.6 O esquecimento

Na ótica fenomenológica de nossa leitura, é necessário dar atenção de forma equilibrada tanto

aos fenômenos do esquecimento e do perdão, quanto aos da memória. A metáfora de

horizonte usada neste trabalho não foi escolhida por acaso, ela significa algo a ser buscado

com dificuldade e que conduz a um inacabamento. O esquecimento como uma doença de

Alzheimer, por exemplo, serve para nos provar a que ponto certas formas de esquecimento

são sinônimas de destruição de si.

Como acabamos de ver a história e a memória trazem dificuldades para se obter o perdão e,

ao falar em memória e história estamos sempre falando de esquecimento, de apagamento, de

desligamento, demonstrando que há um trânsito entre memória, história e esquecimento,

criando uma rede neuronal onde o perdão se embaraça.

Santo Agostinho já dizia que o esquecimento enterra nossas lembranças.

Que é esquecimento senão a privação da memória? E como é, então, que o esquecimento pode ser objeto da memória se, quando está presente, não me posso recordar? Se nós retemos na memória aquilo de que nos lembramos, e se nos é impossível, ao ouvir a palavra “esquecimento”, compreender o que ela significa, a não ser que dele nos lembremos, conclui-se que a memória retém o esquecimento. A presença do esquecimento faz com que o não esqueçamos; mas quando está presente, esquecemo-nos. Não se deverá concluir que o esquecimento, quando o recordamos, está presente na memória, não por si mesmo, mas por uma imagem sua? De fato, se ele estivesse presente por si mesmo, faria com que o não lembrássemos, mas o esquecêssemos. Quem poderá penetrar, quem poderá compreender o modo como isto se realiza?”(AGOSTINHO, 1969, p.24).

Afirma Ricoeur que “o esquecimento e o perdão designam separadamente e conjuntamente o

horizonte de toda nossa pesquisa. De um lado está o esquecimento, a questão da memória e da

fidelidade ao passado, de outro lado está o perdão, a questão da culpabilidade e da

reconciliação com o passado” (RICOEUR, 2000, p.536).

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Ao falar de horizonte, Ricoeur afirma sobre a possibilidade de um horizonte de uma memória

tranqüila, feliz, mas acrescenta que “ horizonte não quer dizer somente fusão dos horizontes

(...) mas também fuga de horizonte, inacabamento” (2000, p.537).

Ricoeur ao comentar sobre o esquecimento faz referência à memória dizendo: “A memória se

define, pelo menos em primeira instância, como luta contra o esquecimento (...) e nosso

famoso dever de memória se enuncia como exortação a não esquecer” (RICOEUR, 2000,

p.537).

Caso a memória não esquecesse nada tornar-se-ia horrenda. Será então que ambos, memória e

esquecimento deveriam negociar entre si para encontrar um justo equilíbrio?

De fato o esquecimento propõe uma nova significação dada à idéia de profundeza, no sentido

vertical que a fenomenologia da memória tende a identificar à distância.

Ricoeur apresentará dois tipos de esquecimento: um esquecimento por apagamento dos

vestígios e um esquecimento como reserva.

2.7 O esquecimento e o apagamento dos vestígios

Ricoeur nos apresenta um esquecimento definitivo advindo de um problema cortical, físico,

ou até, mesmo de um apagamento de registros históricos.

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Aqui Ricoeur coloca a discussão sobre a problemática da “imagem-lembrança”. “O papel do

filósofo é então de colocar em relação a ciência dos trações mnésicos com a problemática

central em fenomenologia da representação do passado” (RICOEUR, 2000, p.543).

Neste item Ricoeur discute a questão do esquecimento advindo do problema da amnésia e

questiona-se o esquecimento é uma disfunção, uma distorção da memória. Ricoeur responde

que para determinados pontos de vista, sim, e acrescenta que o esquecimento de apagamento é

uma ameaça. Assim, é discutindo a questão do apagamento dos traços, as disfunções físicas

de memória, como a amnésia que Ricoeur afirma: “o primeiro silêncio é este dos órgãos”

(RICOEUR, 2000, p.553). Mas Ricoeur não encerra sua discussão neste ponto do

esquecimento definitivo, afirmando: “e este esquecimento tinha uma palavra a dizer no plano

do saber, seria para remeter em questão a fronteira entre o normal e o patológico”

(RICOEUR, 2000, p.553). E autor continua questionando sobre a questão do envelhecimento

e da mortalidade afirmando:

Não são somente os órgãos que permanecem silenciosos, mas o discurso científico e o discurso filosófico na medida em que permanece preso às redes da epistemologia. A filosofia crítica da história e da memória também não se mostra à altura da hermenêutica da condição histórica (RICOEUR, 2000, p.553).

2.8 O esquecimento como reserva e a persistência dos traços.

Aqui não se trata da noção de traço que se reduz ao traço documental nem ao traço cortical,

físico, pois estas marcas constituem marcas ‘exteriores’. Trata-se de esquecimento que

conserva algo, deixa algo de reserva. Ricoeur afirma que relativamente ao esquecimento de

reserva, há persistência de traços das primeiras impressões como, por exemplo: “um evento

nos feriu, nos tocou, nos afetou então a marca afetiva permanece em nosso espírito”

(RICOEUR, 2000, p.554)

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Estes traços que marcam o espírito seriam os depositários da significação, aquilo de mais

originário da permanência, da duração. Com o esquecimento de reserva podemos admitir a

seguinte pressuposição: “eu admito que algo pertence a título original às afetações de

sobreviver, de persistir, de permanecer, de durar guardando a marca da falta” (RICOEUR

2000, p.554) e sendo depositário da significação mais originária do verbo permanecer18,

conduzindo para um aspecto existencial a ser analisado.

Sobre estes dois esquecimentos de apagamento e de reserva, Ricoeur comenta que há dois

saberes heterógenos: um saber exterior e o outro íntimo. Cada um possui suas razões de

confiança e seus motivos de suspeita.

Relativamente ao esquecimento por apagamento :

De um lado eu confio na máquina corporal no exercício da memória feliz, mas desconfio dos recursos mal administrados, de incômodo, de inquietude e de sofrimento. De outro lado confio na capacidade original de duração e permanências das afetações, mas desconfio dos entraves colocados ao trabalho de memória tornados ocasião de uso e abuso para o esquecimento” (RICOEUR, 2000, p.555).

Quando uma imagem chega a mim eu exclamo com todo meu coração. É ele e eu o

reconheço. Este reconhecimento pode tomar diferentes formas. Ele se produz no curso da

percepção. Aparecer, desaparecer, reaparecer. Pensa-se aqui na fenomenologia de Husserl,

como afirma Ricoeur. De múltiplas formas, conhecer é reconhecer. O reconhecimento pode se

apoiar em suporte material, como uma foto, por exemplo. Se uma lembrança retorna que

tínhamos perdido, mas se apesar de tudo a reencontramos e podemos reconhecê-la é porque

sua imagem tinha sobrevivido. O que nós vimos uma vez, escutado, provado, aprendido não

está definitivamente perdido, mas sobrevive, uma vez que nós podemos lembrar e reconhecer.

18 Ricoeur utilizou o verbo demeurer do francês que significa tanto permanecer como habitar, morar. Logo perguntamos: O homem mora, habita, permanece onde? Ricoeur já nos sugere um campo existencial.

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Isto sobrevive, mas onde? Reencontrar é reconhecer isto que a gente uma vez anteriormente

apreendeu.

Aqui Ricoeur cita com grande felicidade a brilhante exclamação de Santo Agostinho “Tarde,

eu te reconheci, ó verdade!” (RICOEUR, 2000, p.557). E Ricoeur continua afirmando que “se

uma lembrança retorna é que eu a tinha perdido; mas se apesar de tudo eu a encontro e eu a

reconheço é que sua imagem tinha sobrevivido” (RICOEUR, 2000, p.557).

Ricoeur faz referência a Deleuze afirmando que “‘não somente o passado coexiste com o

presente que já foi, mas é o passado integral, todo nosso passado que coexiste com cada

presente’” (RICOEUR, 2000, p.562).

Continuando, Ricoeur afirma que “o esquecimento designa o caráter despercebido da

perseverança da lembrança, sua subtração à vigilância da consciência” (RICOEUR, 2000,

p.570). Contudo há dois lados que devem ser analisados: De um lado está nossa experiência

cotidiana da erosão da memória pelo envelhecimento e aproximação da morte. Esta erosão

contribui para uma tristeza que pode ser denominada “tristeza do fim”. Ela tem por horizonte

a perda definitiva da memória, a morte das lembranças. Por outro lado, nós conhecemos as

pequenas felicidades do retorno ocasional e não esperado de lembranças que nós

acreditávamos ter perdido para sempre. Por isso, é necessário reafirmar que, realmente, nós

esquecemos menos do que acreditamos esquecer.

Ricoeur cita Leibniz: “Há saberes na memória que podem ser lembrados ao executar uma

tarefa como regras de cálculo, regras de jogos, regras gramaticais, como também, há junto

destes saberes as estruturas a priori do saber, diremos o transcendental – tudo o que no

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entendimento foi primeiramente sensível salvo o entendimento humano” (RICOEUR, 2000,

p.571). Continua Ricoeur comentando que virá então o chamado imemorial: o que nunca

tornou-se um evento para mim e que eu jamais adquiri. No fundo nós teríamos esquecido as

fundações, os dons originais, força de vida, força criativa de história, origem. Saímos de toda

as linearidades narrativas, narrativas estas que teriam rompido com toda cronologia, se é que

podemos chamar de narrativas. Com esta figura do esquecimento profundo, primordial,

atingimos um fundo mítico do filosofar que dá à memória a condição de combater o

esquecimento. A reminiscência platônica tem a ver com estas figuras do esquecimento. Ela

procede do esquecimento que o nascimento não pode apagar e cuja relembrança, a

reminiscência se nutre. Assim é possível aprender o que de certa forma jamais cessou de

saber.

Ricoeur faz novamente uma crítica a Heidegger: “‘Da mesma maneira que a espera só é

possível sobre a base de um esperar, da mesma forma a lembrança só é possível sobre a base

de um esquecer e não o inverso, pois é sobre o modo do esquecimento que o ser sido ‘abre’

primariamente o horizonte, onde se situa o Dasein (o ser aí) perdido dentro da ‘exterioridade’

de onde ele pode relembrar’”. Ricoeur afirma que “é no passado como tendo sido que se ata

este esquecimento que Heidegger nos diz que ele condiciona o lembrar” (RICOEUR, 2000,

p.573).

Quando Heidegger (1993) usa o termo ser-sido ele coloca uma ambigüidade, uma duplicidade

gramatical: diríamos do passado que não é mais mas que foi. É um ser que nós marcamos sua

desaparição, sua ausência. Mas ausência de quê?

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É possível compreender o paradoxo aparente que se estabelece se se entende pelo

esquecimento o imemoriável recurso e não a inflexível destruição. É com a marca temporal

comum ao ser lançado à dívida, ao abandono, ao desamparo, à angústia do existir que se

organiza a cadeia de expressões: tendo sido, esquecimento, repetição, retomada. Em resumo,

o esquecimento assume uma significação positiva na medida em que o tendo sido prevalece

sobre o não ser mais, na significação presa à idéia de passado. O tendo sido faz do

esquecimento a fonte imemoriável oferecida ao trabalho da lembrança.

2.9 O esquecimento e a memória impedida

Ricoeur comenta que é sobre o caminho da lembrança que se reencontram os obstáculos do

retorno da imagem. O autor cita os grandes ensinamentos de Freud, que são comentados por

Dosse (2004): Primeira lição: o analisando fala por meio do surgimento do inconsciente em

seu discurso na forma de fragmentos, de narrativas incoerentes, de sonhos, de atos falhos. Ele

repete no lugar de lembrar-se e sua compulsão em repetir o impede da tomada de consciência

do evento traumático. Quando o trauma permanece, quando ele é inacessível, indisponível,

em seu lugar surgem fenômenos de substituição, sintomas que mascaram o retorno do que foi

recalcado, reprimido. Quanto à fala do paciente em si, suas narrativas entrelaçadas de

narrativas que a precedem estão ancoradas em uma memória coletiva. Esta memória é ao

mesmo tempo privada e pública, é uma memória compartilhada e incrustada em histórias. O

objetivo é chegar, no final, a um enredo19 aceitável e constitutivo da identidade pessoal do

paciente.

19 François Dosse usa a expressão francesa mise en intrigue que indica enredo, ligação amorosa secreta, indicando uma transferência como pretendia Freud para o processo analítico.

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A segunda lição de Freud citada por Ricoeur é que, em circunstâncias particulares, faces

esquecidas perdidas do passado podem retornar. Quando Freud demonstra que o passado

experimentado é indestrutível , esta contribuição é de grande valia. Afirma Ricoeur: “Esta tese

freudiana é inseparável da tese do inconsciente declarado zeitlos, escapado do tempo,

entendido no tempo da consciência com seu antes e seu após, suas sucessões e suas

coincidências” (RICOEUR, 2000, p.576).

Os lapsos, as impressões infantis, o esquecimento de impressões e de eventos vivido (quer

dizer de coisas que a gente sabe ou que a gente sabia), o esquecimento de projetos,

equivalendo à omissão ou à negligência seletiva revelam um lado de armadilha do

inconsciente colocado em postura defensiva. O esquecimento de projetos revela por outro

lado os recursos estratégicos do desejo nas relações com o outro. A consciência moral extrai

daí suas desculpas como uma estratégia. Dosse (2004) afirma que neste segundo ensinamento

de Freud o que podemos tirar da prática analítica é o caráter ferido da memória, cujos

mecanismos complexos visam conviver com e portanto reprimir, os traumas sofridos e as

lembrança dolorosas demais.

Afirma Ricoeur:

A linguagem contribui também para seus lapsos, a prática gestual para os enganos, as inabilidades e outras faltas (a chave do escritório é usada na porta errada). Esta mesma habilidade envolvida no emaranhado das intenções inconscientes que se deixa reconhecer sobre um outro versando sobre a vida cotidiana que é a dos povos: esquecimentos – lembrança, atos falhos, assumindo uma escala da memória coletiva em proporções gigantescas que somente a história , mais precisamente a história da memória é capaz de esclarecer (RICOEUR, 2000, p.579).

Ricoeur destaca dois ensaios de Freud: o primeiro é o tratamento analítico que contribui par

um trabalho da lembrança que muito ajudará no perdão. O segundo uso do trabalho da

memória evocado por Freud é o trabalho do luto. O luto não é apenas pesar, é uma verdadeira

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negociação com a perda do ser amado em um lento e doloroso trabalho de assimilação e

distanciamento. Esse movimento de rememoração pelo trabalho da lembrança e de

distanciamento pelo trabalho do luto demonstra o que a perda e o esquecimento operam no

próprio centro da memória para evitar perturbações nela.

A memória é sempre uma interação entre o apagamento (o esquecimento) e a conservação.

Ora há um exagero de memória, uma repetição, como se fosse uma patologia e ora há uma

escassez de memória, um esquecimento, como no caso de países totalitários, onde predomina

a memória manipulada.

2.10 O esquecimento e a memória manipulada

Antes do abuso, há o ouso, ou seja, o caráter seletivo da narrativa. Se não se pode lembrar de

tudo, não se pode também tudo contar. As estratégias do esquecimento se colocam ao narrar,

porque pode contar suprimindo , colocando acentos de importância em determinados fatos,

refigurando diferentemente os protagonista da ação ao mesmo tempo que mudando os

contornos da ação. Contudo diz Ricoeur “o perigo maior está no manipular da história oficial

que é autorizada, imposta, celebrada, comemorada” (RICOEUR, 2000, p.580), uma vez que

as forças superiores tomam a direção e impõem uma narrativa canônica pela via da

intimidação, da sedução,do medo ou da maneira de vangloriar. Esta atitude destitui os atores

sociais de seu poder originário de contar eles mesmos sua própria história.

Mas esta destituição vai com uma cumplicidade secreta que faz do esquecimento um

comportamento semi-passivo, semi-ativo, como a gente vê no esquecimento de fuga,

expressão da má fé, sua estratégia de evitar motivada por uma obscura vontade de não se

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informar e de não investigar sobre o mal cometido pelo meio ambiente do cidadão, em

resumo, por um querer não saber. O pouco de memória pode ser classificado como

esquecimento passivo, na medida em que aparece como um déficit de memória. Por outro

lado, o esquecimento ocasiona um tipo de responsabilidade que imputa aos atos de

negligência, omissão, imprudência, imprevidência em todas as situações do não agir, uma

consciência esclarecida e honesta que devia e podia saber ou procurar saber no que devia e

podia intervir. Afirma Ricoeur: “Mas a responsabilidade da cegueira recai sobre cada

cidadão” (RICOEUR, 2000, p.580). Ouse fazer a narrativa por você mesmo! Mesmo

abordando a dimensão social a memória se revela como uma organização do esquecimento.

Contar um drama é esquecer um outro drama.

2.11 O esquecimento comandado: a anistia

A anistia opera como um tipo de prescrição seletiva e pontual que deixa fora de seu campo

certas categorias de delinqüentes. Mas a anistia tanto quanto um esquecimento institucional

atinge as raízes mesmas do político.

Há uma proximidade mais que fonética, até mesmo semântica entre anistia e amnésia que

assinala a existência de um pacto secreto com a recusa da memória e o afastamento do

perdão.

A anistia tem por finalidade a reconciliação entre cidadãos inimigos, ou seja, propõe a paz

civil. Por exemplo, a guerra terminou: os combates presentes tornaram o passado para não

mais se recordar. Um imaginário na cidade é colocado no local onde a amizade e mesmo o

laço entre irmãos feitos em lugar dos assassinatos de família. A democracia quer esquecer o

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passado. Prefere-se o termo politeia significando ordem constitucional. Será refundada a

política sobre o esquecimento do motim. Mais tarde será visto o preço que se teve a pagar de

não esquecer de esquecer.

A anistia coloca fim a todos os processos em curso e suspendendo todos os processos

judiciais. Trata-se de um esquecimento jurídico limitado, mas de vasto porte, na medida em

que o encerramento dos processos equivale a apagar a memória na sua expressão como

testemunha e, finalmente, dizer que nada se passou. A anistia além de tentar apagar da

memória oficial os crimes cometidos, ela coloca a relação do passado fora do campo em que a

problemática do perdão encontraria o dissensus.

Além disso, a instituição da anistia pode somente responder a um desejo de terapia social de

urgência sob o signo da utilidade, não da verdade. No terceiro capítulo explicaremos a

fronteira entre anistia e amnésia a favor do trabalho de memória completado pelo do luto e

guiado pelo espírito do perdão Se uma forma de esquecimento poderá então ser evocada isto

não será um dever de calar o mal, mas de dizê-lo de um modo apaziguado, sem cólera. Isto

não será nem um comando, nem uma ordem, mas um voto de vontade.

Contudo não se pode tornar cego relativamente a determinadas situações sociais como, por

exemplo, a exterminação dos judeus, durante a Segunda Grande Guerra e outras tragédias que

tanto traumatizaram os cidadãos.

Por isso afirma Ricoeur

Nisto, a estrutura patológica, a conjuntura ideológica e a apresentação da mídia têm regularmente acrescentado efeitos perversos, enquanto que a passividade como desculpa compõe com a artimanha ativa das omissões, das cegueiras, das negligências a famosa banalização do mal como um sintoma (RICOEUR, 2000, p.584).

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Ricoeur escreve O Mal – um desafio à filosofia e à Teologia e trata esta questão no plano da

ação, como sinônimo de violência. Ricoeur afirma que o mal pode ser diminuído, no plano da

ação, pela não-violência, e superado, no plano do sentimento, pela resignação ao inelutável da

condição humana. Percebemos claramente que o esquecimento para Ricoeur já seria uma

elaboração, um trabalho de superação contra a banalização do mal.

Ricoeur afirma:

Eu direi no Epílogo como pode ser preservado em sua integridade a fronteira entre anistia e amnésia a favor do trabalho de memória completado pelo do luto e guiado pelo espírito de perdão. Se uma forma de esquecimento poderá então ser legitimamente evocada, e isto não será um dever de calar o mal, mas de dizê-lo de um modo tranqüilo, sem cólera. Esta dicção não será de um comando, de uma ordem, mas de um voto como uma opção (RICOEUR, 2000, p.589).

Sabemos que a nossa contemporaneidade presencia males de caráter cósmico (terremotos,

maremotos, furacões, avalanches) que significam desrespeito à natureza, males de caráter

físico ou psíquico que revelam a precariedade e as limitações da condição humana, males de

caráter moral que nos revelam a refinada capacidade dos seres humanos não só de praticarem

a maldade, mas de serem tomados pelo mal, de tal forma que perdem a verdadeira

consciência.

Sabemos, ainda que são inúmeros os pecados, os erros, as faltas e, muitas vezes,

insuportáveis, que nos levam a vinganças, a pagamentos, a promessas, a silêncios históricos e

a “esquecimentos” múltiplos.

Contudo Ricoeur nos propõe algo não de acordo com esta visão negativa da condição

humana, mas ele nos propõe uma tarefa que envolve confiança, positividade, alegria,

liberdade, paz. Esta tarefa seria a arte de esquecer, que por mais difícil que seja para ser

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elaborada, e por mais utópica que pareça por ser muito bela para ser verdade, algumas vezes,

será necessária para a realização de uma vida feliz e apaziguada.

Assim, a perspectiva de uma memória apaziguada exige o cruzamento dos percursos do

esquecimento e do perdão, para desvencilhar das mágoas aprisionadoras do passado. A

história, ao olhar para traz, tem capacidade de nos apontar, por um lado, as dívidas a serem

sanadas com o passado, por outro, é capaz de reconhecer entre as dívidas aquelas que são

insolúveis. É neste jogo que o perdão se coloca como possibilidade de saída contra o quadro

caótico atual.

Portanto, após analisarmos as idéias de Ricoeur relativamente à memória/ condição histórica/

esquecimento, chegamos ao ápice de nosso trabalho, necessitando compreender a elaboração

que é exigida da memória e ainda mais do homem como um ser histórico para saber

perdoar.

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CAPITULO III: O PERDÃO COMO ELABORAÇÃO ENTRE A CULPABILIDADE E

A RECONCILIAÇÃO

Apesar de, na introdução, termos alertado nosso leitor que a problemática do perdão seria

tratada especificamente neste terceiro capítulo, acreditamos que haja uma certa impaciência

para aguardar esta temática desenvolvida, ou até mesmo, algumas questões colocadas como:

Por que falar tanto de memória, história e esquecimento antes de tratar do perdão?

Tentaremos responder a esta pergunta com outros questionamentos: É possível compreender o

perdão sem entender a imaginação, as reminiscências os hábitos, as repetições, as faltas, as

carências, a saudade, o luto? É possível entender o perdão sem compreender no que consiste a

temporalidade para o homem, observando a possibilidade de olhar para o passado, perceber o

erro e tentar mudar o comportamento com vistas a um futuro promissor pela reconciliação?É

possível entender o perdão sem voltar os olhos para o interior do homem, percebendo seu eu

pessoal e social? É possível entender o perdão sem viver a culpa pessoal, criminal, política,

moral, distanciada dos erros, faltas cometidas pelo homem? É possível compreender o perdão

sem compreender a sociedade, o homem, finito, situado no mundo, caminhando para a morte?

É possível entender o perdão sem compreender a anistia, a amnésia, os esquecimentos

voluntários e involuntários? É possível entender o perdão sem uma memória, uma história e

um esquecimento?

Estas simples questões já ilustram e tentam justificar as razões por que tivemos que nos

alongar nos dois primeiros capítulos sem os quais não nos seria possível tratar da questão do

perdão. Estas questões também já apontam para tentar justificar o título dado ao epílogo da

obra La Mémoire, l’ Histoire,l’Oubli: Perdão difícil.

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O perdão se torna difícil porque envolve vários aspectos: político, social, religioso, pessoal,

moral, ético, criminal, filosófico, ou seja, envolve o homem em toda sua complexidade.

Tanto do ponto de vista conceitual se colocam estas dificuldades, indicando com isto a

abrangência e o emaranhado dos aspectos envolvidos no perdão, quanto dificuldade maior se

apresenta no próprio ato de perdoar em função da grandeza e profundidade que ele encerra,

por isso a dificuldade do perdão não está simplesmente na sua conceituação, mas, sobretudo,

na sua vivência. Dos atos humanos talvez seja o perdão o mais significativo em termos de

compreensão da própria condição humana que, ao mesmo tempo, reflete sua natureza de

miséria, fragilidade, carência, falta, falha e de sua transcendência. A grandeza do ato de

perdoar guarda proporcionalidade com a condição de cometimento da falta do erro, da ofensa.

Etimologicamente, perdão é um vocábulo deverbal, isto é, derivado do verbo perdoar. Este

verbo contém o per do latim que significa através de, por intermédio de, por, por entre, por

cima de, diante de, ao longo de, para, durante, com o auxílio de, por causa de, por amor de.

Doar que vem do latim donare que significa presentear, dar, conceder, agraciar, sacrificar.

Assim o perdoar seria um sacrificar algo através ou diante de alguma situação. Perdoar seria

des-culpar, retirar a culpa de alguém por algum motivo, ou absolver alguém por amor a uma

causa maior. Este retirar a culpa para perdoar exige um trabalho, uma elaboração, uma

“perlaboration”, segundo Ricoeur. Mas o que realmente seria este trabalho para alcançar o

perdão?

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3.1 Perdão e falta

Ao analisar a questão do perdão, Ricoeur coloca de um lado o enigma da falta, como

transgressão que interromperia a força de agir do homem com todo seu potencial e, por outro

lado, a suspensão desta incapacidade existencial que designa o termo perdão. Este duplo

enigma atravessa a representação do passado, cruzando a memória, a história e colocando

sobre o esquecimento uma marca particular, afirmando que: “O perdão, se ele tem um sentido

e se ele existe, constitui o horizonte comum da memória, da história e do esquecimento”

(RICOEUR, 2000, p.593).

Por isso, pode-se dizer que há na trajetória do perdoar, uma desproporção entre a altura do

perdão e a profundeza da falta. A linguagem da falta situa-se próxima à solidão, ao fracasso,

ao combate, colocando a questão da acusação moral. Ricoeur afirma que para Jaspers a

culpabilidade seria um outro nome para a falta entre as situações limites como a morte, o

sofrimento, o combate. Assim, a temática da culpabilidade também traz as suas dificuldades

para o perdão, pois ela se encontra imbricada na memória, na história e no esquecimento.

Afirma Greisch (2001, p.314) que é esta desproporcionalidade que separa a profundeza da

falta e a grandeza do perdão que explica porque Ricoeur pôde falar de uma delicada

articulação entre o discurso da memória e do esquecimento, o da culpabilidade e do perdão.

O perdão pressupõe uma falta. Deve-se esclarecer que pressuposição aqui não significa uma

causalidade, mas uma pré- suposição, ou seja, uma posição anterior. Assim falta e perdão se

colocam um em posição de anterioridade ao outro, sempre exigindo uma memória que lembre

ou que até mesmo esqueça na trajetória da história individual ou coletiva do indivíduo.

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Ricoeur afirma que “a experiência da falta é colocada em relação a outras experiências

negativas, que pode ser dita como participações no não-ser” (RICOEUR, 2000, p.600). Mas

apesar do fracasso da falta ser contrário ao sucesso do perdão, numa dimensão da eficiência, o

indivíduo traz consigo uma dimensão de potência e ato, de projeto e realização: “o fracasso

mantém assim a experiência da falta na linha da metafísica do ser e da potência que convém a

uma antropologia do homem capaz” (RICOEUR, 2000, p.600).

Neste aspecto percebe-se claramente que apesar das dificuldades para se obter o perdão pela

profundeza ou gravidade da falta, há sempre possibilidades, pois Ricoeur coloca a dimensão

aristotélica da potência como uma capacidade, uma possibilidade de tornar-se a qualquer

momento ato, ação no tempo presente.

Além disso, Ricoeur comenta que a experiência da solidão na falta significa uma interrupção

da comunicação recíproca. Se o homem é um ser de linguagem, de comunicação e se a falta o

conduz à solidão, ao rompimento desta comunicabilidade, percebemos que há também uma

relação estreita entre a falta e o mal.

As narrativas dos sobreviventes da Shoah, ou seja, o mal que o homem foi capaz de causar ao

seu semelhante, mostram o irreparável do lado dos efeitos, o imprescritível do lado da justiça

penal, o imperdoável do lado do julgamento moral, levando a uma ruptura do laço humano

pela maldade do criminoso. Afirma Ricoeur que “nenhum tema para além do amor e da morte

suscitou tantas construções simbólicas quanto o do mal” (RICOEUR, 2000, p.602). Como

exemplo Ricoeur cita o Gênesis no Torá, distinguindo a distância existente entre o agente e a

ação.

Com a narrativa, como se vê no mito adâmico do livro judeu, o Torá, vem a idéia de um acontecimento primordial, o da perda da inocência – e, com a idéia de acontecimento, o da contingência de alguma forma trans-histórica. A perda da

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inocência é algo que aconteceu num tempo primordial incompatível com o da história, em que algo teria podido não acontecer. A idéia sugere um mal sempre presente aqui na experiência (...). Ela é filosoficamente interessante na medida em que uma distância se encontra assim cavada entre o agente e a ação (RICOEUR, 2000, p. 602).

Como se constata, a ação da Shoah foi má, deplorável, extremamente insuportável, deixou

marcas, afastamentos, foi como um rasgar do interior humano. É exatamente neste contexto

que Ricoeur mostra a maior dificuldade para se colocar o perdão. Contudo ele ainda esforçará

para apresentar uma possibilidade para o perdão como veremos mais adiante.

Outra dificuldade para o perdão é a articulação que passa entre o que e o quem. Trata-se de

um nexo existente entre o que das lembranças e o quem da memória. O trajeto entre o ato e o

agente, em que o sujeito assume a acusação e reflete sobre ela, coloca, também, dificuldades

para o perdão, uma vez que exige do agente uma nova posição com vistas ao futuro. Esta nova

posição ocorrerá a partir de uma elaboração da memória lembrança e a memória reflexiva do

sujeito, em que este pensa, reflete sobre seus atos passados e muda seu comportamento.

Como já foi comentado, pelo lado objetal, a falta consiste numa transgressão de uma regra, de

um dever, envolvendo conseqüências que comprometem o outro. É um agir maléfico. O que

está em jogo é o enfoque dado, uma vez que por detrás da qualidade da ação está a qualidade

da causa que provocou tal ação.

Todavia Ricoeur comenta sobre “uma voz silenciosa, mas não muda”(2000. p.604) que vem

do alto. “Silenciosa, pois não é um clamor como este dos furiosos, não muda, pois não

privada de palavra” (RICOEUR, 2000, p. 604). Esta voz silenciosa que é uma palavra, um

verbo, uma evocação, um chamamento, uma comunicação, uma possibilidade, uma

reconciliação é o perdão.

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Ricoeur afirma que “há o perdão como há a alegria, a sabedoria, a loucura, o amor. O amor

precisamente. O perdão é da mesma família” (RICOEUR, 2000, p.605). E continua

questionando: “como não evocar o hino ao amor proclamado por São Paulo na Primeira

Epístola aos Coríntios? Mas atenção: o que o hino denomina, não se refere a alguém, mas a

um ‘dom espiritual’ – a um ‘carisma’- concedido pelo Espírito Santo: ‘E sobre os dons

espirituais, irmãos, eu não quero vos ver na ignorância’ (Coríntios 12,1)”. E continua Ricoeur

citando São Paulo: “‘Aspirai, aos dons espirituais. E eu mostrar-vos-ei um caminho ainda

mais excelente’ (Coríntios, 12,31)” (RICOEUR, 2000, p. 605).

Ao citar São Paulo, Ricoeur deseja apresentar o perdão como algo gratuito, de graça, de dom,

mas denunciando a falta no jogo do ter e do ser, pois diz se não tiver caridade nada serei.

Além disso, Ricoeur chama atenção para o indicativo presente do discurso de São Paulo ao

falar da excelência da caridade. Este presente enuncia a permanência, a duração, a distensão

bergsoniana do tempo, significando que a caridade durará eternamente.

Ricoeur afirma que se a caridade20 não leva em conta o mal, se ela desce ao lugar da acusação

e se ela se apresenta como a maior entre as três: fé, esperança e caridade, é porque ela é a

própria Altivez.

20 “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, sou como um bronze que soa, ou como um címbalo que tine. E, ainda que eu tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e tivesse toda a fé, até ao ponto de transportar montes, se não tiver caridade, não sou nada. E ainda que distribuísse todos os meus bens no sustento dos pobres e entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, nada me aproveita. A caridade é paciente, é benigna, a caridade não é invejosa, não é temerária; não ensoberbece, não é ambiciosa, não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não suspeita mal, não folga com a injustiça, mas folga com a verdade, tudo desculpa tudo crê, tudo espera, tudo sofre. A caridade nunca há de acabar, mas as profecias passarão e as línguas cessarão e a ciência será abolida. Porque imperfeitamente conhecemos e imperfeitamente profetizamos. Mas quando vier o que é perfeito será abolido o que é imperfeito. Quando eu era menino, falava como menino, apreciava como menino,discorria como menino. Mas quando me tornei homem feito, dei de mão às coisas que eram de menino. Nós agora vemos a Deus como por um espelho, em enigma, mas então o veremos face a face. Agora conheço-o em parte, mas então hei de conhece-lo como eu mesmo sou dele conhecido. Agora, pois permanecem como necessárias para todos estas três coisas: a fé a esperança, a caridade, porém a maior delas é a caridade” (CORÍNTIOS, 13.1-13)

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Ricoeur ainda afirma: “Ora, se a caridade desculpa tudo, este tudo compreende o imperdoável.

Senão ela mesma seria aniquilada” (RICOEUR, 2000, p.605). Ricoeur concordando com

Derrida 21 afirma: “o perdão se dirige ao imperdoável ou ele não é. Ele é incondicional, sem

exceção e sem restrição. Não pressupõe um pedido de perdão” (RICOEUR, 2000, p.605).

Esta desproporção entre a profundeza da falta e a altivez em que se encontra o perdão será uma

grande dificuldade para o trabalho de perdão, mas não uma impossibilidade.

Ao dialogar com Derrida, Ricoeur afirma que: “se se diz, com Derrida, que há ‘uma urgência

universal da memória’ e que ‘é necessário se voltar para o passado’, a questão que se coloca,

inelutavelmente, é de uma necessidade moral na história” (RICOEUR, 2000,p.607). Ricoeur

propõe uma visão mais crítica e afirma: “Da minha parte, (...) se há o perdão, ao menos no nível

do hino há du22 perdão para nós?” (RICOEUR, 2000, p.607). Ricoeur responde a esta indagação

concordando com Derrida e mostrando como o perdão é uma questão ética e moral:

Cada vez que o perdão está a serviço de uma finalidade, seja ela nobre e espiritual (...), cada vez que ele tende a restabelecer uma normalidade (social, nacional, política, psicológica) por um trabalho de luto, por alguma terapia ou ecologia da memória, então o perdão não é puro, nem seu próprio conceito. O perdão não é e não deveria ser nem normal, nem normativo, nem normalizante. Ele deveria permanecer excepcional e extraordinário à prova do impossível, como se interrompesse a corrente ordinária da temporalidade histórica. É esta prova do impossível que é necessário agora afrontar (RICOEUR, 2000, p.607-608)

Assim Ricoeur nos apresenta uma grande dificuldade para se obter a equação do perdão, porque

a sua trajetória parte da desproporção existente entre dois pólos: o da falta e do perdão

perpassando pela questão da solidão, do fracasso, do distanciamento entre agente e ação para

cantar o hino do amor e da alegria como possibilidade do perdão. Agora passaremos a discutir

21 Ver Derrida em Le Monde des Débats, 1999.. 22Du em francês é um partitivo que significa, no caso, uma parte do perdão e não o perdão como algo universal, total.

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as dificuldades colocadas pelas instituições sociais que determinam as regras, as normas para

se obter o perdão.

3.2 O perdão na travessia das instituições sociais

Neste item, trataremos da questão do perdão, enfocando como alguém culpa o outro segundo

regras pré-estabelecidas pelas instituições sociais e estas atuam sobre o culpado, mostrando a

conexão existente entre o perdão e a punição. Afirma Ricoeur que “na dimensão social só se

pode perdoar onde se pode punir; e deve-se punir onde há infração às regras comuns. (...) e

onde há a regra social, há a possibilidade de infração” (RICOEUR, 2000, p.608). E continua:

“Sob o signo da culpa, o perdão não pode encontrar frontalmente a falta, mas somente

marginalmente o culpado” (RICOEUR, 2000, p.608)

Partindo do princípio de que “o imperdoável de direito permanece” (RICOEUR, 2000, p.608),

Ricoeur cita Jaspers que distingue quatro tipos de culpabilidade tendo como objeto os atos que

submetem as pessoas a um julgamento penal. Estes atos respondem aos seguintes critérios: Qual

a categoria da falta? Diante de qual instância? Com quais efeitos? Dando direito a qual tipo de

justificação, de desculpação, de sanção?

3.3 A culpabilidade criminal

Ricoeur comenta que o século XX destacou a culpabilidade criminal referente a crimes

considerados injustificáveis. Alguns foram julgados em Nuremberg, Tókio, Buenos Aires,

Paris, Lyon e Bordeaux. Outros foram ou serão julgados em Haya, frente ao tribunal penal

internacional. Seus julgamentos suscitaram uma legislação criminal especial de direito

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internacional e interno definindo os crimes contra a humanidade distintos dos crimes de guerra,

entre eles o crime de genocídio.

Há no direito penal a questão da imprescritibilidade: “A prescrição tem um papel de

preservação da ordem social que se inscreve num tempo longo. Mesmo se o perdão possui um

papel social importante, (...) ele tem uma natureza e uma origem inscrita na função social,

marcada pela preocupação com a paz comum” (RICOEUR, 2000, p.611), pois, o fato de existir

uma prescrição, uma anistia ou um perdão a memória individual e memória coletiva ainda

lembrarão os fatos que originaram a pena.

Sabemos que a prescrição é uma disposição do direito penal. Ela consiste em uma extinção da

ação na justiça. A prescrição seria a perda da ação atribuída a um direito, que fica assim

juridicamente desprotegido, em conseqüência do não uso dela durante determinado tempo. A

prescrição também pode significar a maneira pela qual se extingue a punibilidade do autor de

um crime ou contravenção, por não haver o Estado exercido contra ele, no tempo legal, o seu

direito de ação, ou por não ter efetivado a condenação que lhe impôs.

Ricoeur afirma: “a questão do imprescritível se coloca porque a prescrição existe de direito para

todos os delitos e crimes sem exceção e, o prazo da prescrição varia segundo a natureza dos

delitos e dos crimes” (RICOEUR, 2000, p.609). A prescrição coloca uma enorme dificuldade

para o perdão porque a legislação do direito civil apresenta uma dupla face: uma aquisitiva e

outra liberatória. Afirma Ricoeur: “sob a primeira forma ela prescreve que passado um certo

prazo, uma pretensão à propriedade de coisas não pode ser oposta a isto que a detém de fato; ela

se torna assim um meio de adquirir de forma definitiva a propriedade de uma coisa; sob a

segunda forma, ela libera de uma obrigação, de uma crença extinguindo-a” (RICOEUR, 2000,

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p.610). Assim sobre esta questão, Ricoeur afirma que: “é pela questão da imprescritibilidade

que esta disposição legal atinge o nosso problema do perdão” (RICOEUR, 2000, p.609).

Diferentemente da anistia que tende a apagar as marcas psíquicas e sociais, dando uma

suspensão ao caso, a prescrição consiste em uma interdição para considerar as conseqüências

penais da ação cometida. Deve-se ressaltar que tanto na prescrição quanto no caso de anistia

não ocorre um esquecimento, mesmo sabendo que a palavra anistia vem do vocábulo grego

amnestia que significa um “esquecimento”. Anistia é um ato pelo qual o poder público declara

impuníveis, por motivo de utilidade social, todos quanto, até certo dia, perpetraram

determinados delitos, em geral políticos, seja fazendo cessar as diligências persecutórias, seja

tornando nulas e de nenhum efeito as condenações. Além disso, não se deve confundir duas

noções: o imprescritível com o imperdoável.

Os crimes contra a humanidade e o crime de genocídio podem ser considerados imperdoáveis e

não há nem castigo apropriado a um crime desproporcional. Perdoar estes crimes bárbaros

contra a humanidade seria ratificar a impunidade, ou seja, seria cometer uma grande injustiça.

Contudo Ricoeur continua tentando procurar uma possibilidade para o perdão e apresenta uma

saída como a distinção entre os atos de seus autores, pois estes têm o direito à consideração,

porque são homens e são considerados inocentes até a sua condenação e são autorizados a se

fazer escutar e a se defender. Sabemos que mesmo submetendo à pena, muitas vezes até

reduzida a uma multa e à privação de liberdade, permanece, por parte do autor, um sofrimento,

significando que não há um apagamento, um esquecimento da falta cometida.

Encerrando a questão da culpabilidade criminal, Ricoeur chama atenção para o seguinte fato:

“mas a consideração não está confinada no quadro do processo nem tampouco na execução da

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pena” (RICOEUR, 2000, p.614), pois a culpabilidade ultrapassa este espaço. E continua

explicando que: “É um fato que todos não têm o mesmo acesso às armas da discussão. Há os

excluídos da palavra que são conduzidos frente aos tribunais, em particular em caso de

julgamento de flagrante delito” (RICOEUR, 2000, p.614). Ricoeur afirma que:

Este julgamento conduzido pela moral sobre a justiça se prolonga em julgamento conduzido de dentro do espaço judiciário, sob a forma de injunções dirigidas à justiça, exigindo que ela seja sempre mais justa, quer dizer mais universal e mais singular, mais preocupada com as condições concretas de igualdade diante da lei e mais atenta à identidade narrativa dos acusados. É isto que implica na consideração das pessoas (RICOEUR, 2000, p.614).

Então a prescrição, a anistia, a injustiça da justiça criam uma nova dificuldade para o perdão,

assim como a culpabilidade política.

3.4 A culpabilidade política.

Ricoeur concorda com Karl Jaspers ao afirmar que a culpabilidade política “resulta do

pertencimento de fato dos cidadãos ao corpo político em nome dos quais os crimes foram

cometidos”, pois, “quem se beneficiou dos benefícios da ordem pública deve de uma certa

maneira responder pelos malefícios criados pelo Estado do qual faz parte” (RICOEUR, 2000,

p.615). Então, logo surge a questão: perante quem se deve exercer este tipo de responsabilidade

Ricoeur responde “frente às autoridades representativas dos interesses e dos direitos das vítimas

e diante das novas autoridades de um Estado democrático. Mas trata-se sempre de uma relação

de poder, de dominação” (RICOEUR, 2000, p.615). Dominação que, neste caso, a palavra da

justiça tem força e estabelece publicamente as responsabilidades de cada um dos protagonistas

e designa os lugares respectivos do agressor e da vítima.

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Comenta Ricoeur que se deve trabalhar para desculpar o indivíduo, a fim de que não haja

obstáculo no caminhar do espírito de perdão. Contudo denuncia o cidadão que lava as suas

mãos não assumindo responsabilidade pela polis. Ricoeur ilustra sua idéia com a citação de

Jaspers: “‘A ética política, lembra Karl Jaspers, se funda sobre o princípio de uma vida do

Estado no qual todos participam por sua consciência, seu saber, suas opiniões e suas vontades’”

(RICOEUR, 2000, p.49).

Encerrando Ricoeur afirma que:

em contrapartida, a consideração devida ao acusado toma no plano político a forma da moderação no exercício do poder, da auto-limitação no uso da violência, até mesmo na clemência em consideração aos vencidos: parcere victis!23 A clemência, a magnanimidade, esta sombra do perdão” (RICOEUR, 2000, p. 616).

Constatamos novamente que o perdão no campo da culpabilidade política ficará à margem das

instituições, tornando difícil alcançá-lo verdadeiramente, no transcurso da história política dos

países.

3.5 A culpabilidade moral

Com a culpabilidade moral, distanciamos da estrutura, do processo e aproximamo-nos da

questão da vontade maléfica. Afirma Ricoeur que “trata-se da massa dos atos individuais,

pequenos ou grandes, que contribuíram para sua aceitação tácita ou expressa, à culpabilidade

criminal dos políticos, à culpabilidade política dos membros do corpo político” (RICOEUR,

2000, p. 616). É exatamente aqui que surge a responsabilidade pessoal, a consciência

individual, no que diz respeito à comunicação com um amigo, um próximo. Ricoeur cita

Jaspers: “a instância competente é a consciência individual, a comunicação com o amigo e o

próximo, com o irmão humano capaz de amar e de se interessar pela sua alma” (RICOEUR,

23 Poupar os vencidos

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2000, p.46-47). Contudo é nesta troca de pedido e perdão que surgem as estratégias de

desculpa, pois aí apresentam as argúcias de quem quer sempre ter razão. Encontra-se aqui a

vontade de não saber, o refúgio na cegueira de quem não quer ver e as táticas de esquecimento.

Há ainda os excessos de auto-acusação ostensiva, o orgulho pessoal podendo transformar em

agressividade contra os compatriotas.

Ricoeur comenta que Max Weber, após a Primeira Guerra Mundial, denunciava os vencidos

que se flagelavam, entregando-se à caça de culpados afirmando:

Eles fariam melhor em adotar uma atitude viril e digna dizendo ao inimigo: perdemos a guerra e vocês a ganharam. Esqueçamos o passado e discutamos agora as conseqüências, aquilo que é necessário retirar da nova situação (...) considerando a responsabilidade frente ao futuro que pesa em primeiro lugar sobre o vencedor (RICOEUR, 2000, p.617).

A situação do imediato pós-guerra não deveria focalizar a atenção unicamente sobre a

responsabilidade moral engajada nas relações dos indivíduos com a força pública do Estado

nacional e os problemas internos postos pelos totalitarismos, mas deveria preocupar-se em

assumir as conseqüências dos erros cometidos, de tal forma que esta experiência trágica pudesse

servir como meio para conscientizar o homem e fazê-lo mudar o seu agir, evitando repetir os

erros passados com vistas a um futuro mais promissor e apaziguado.

As guerras de liberação coloniais e pós-coloniais assim como os conflitos e guerras advindas

por reivindicações de memórias étnicas, culturais, religiosas fizeram com que Klauns Kodalle,

em suas reflexões sobre a dimensão pública do perdão, fizesse a seguinte questão: “os povos

são capazes de perdoar?” (RICOEUR, 2000, p.617). Ricoeur comenta que esta questão pesa

sobre cada indivíduo, porque trata-se de responsabilidade moral, envolvendo o comportamento,

lembrando que a motivação dos atos individuais está sendo mantida pela memória coletiva.

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Ricoeur continua comentando que há por todo o planeta, grandes processos criminais do século

XX com um emaranhamento entre o privado e o público. A questão elaborada por Kodale,

citada anteriormente, dirige-se ao campo não do privado, mas do público e, infelizmente, a

resposta é negativa, pois os povos não são capazes de perdoar e a reconciliação torna-se difícil.

Afirma Ricoeur que “a coletividade não tem consciência moral e os povos, confrontados com

uma culpabilidade ‘de fora”, recaem num repisar em velhos ódios e antigas humilhações”

(RICOEUR, 2000, p. 617).

Ricoeur afirma que Carl Schmitt construiu sua filosofia política, nas relações de inimizade entre

indivíduos, mostrando que há uma continuidade e relação mútua entre a memória individual e

coletiva, fazendo erigir uma memória histórica no sentido de Halbwachs, podendo afirmar que

amor e ódio funcionam não somente no campo privado, mas também no público utilizando a

memória coletiva.

Contudo seria necessário repensar as relações políticas de distanciamento e inimizade, seria

necessário, também, uma melhor compreensão da história que criou afastamentos, ódios,

rupturas, buscando o perdão como uma mudança de comportamento, uma moderação, uma

mansidão, uma clemência, um amor, uma superação do passado, aproximando as pessoas e

possibilitando um novo diálogo, uma nova linguagem, uma nova comunicação. Ricoeur afirma:

(Kodalle) atribui esta idéia a de uma cultura da consideração na escala cívica e cosmopolita. Reencontramos esta noção no plano da culpabilidade criminal. Ela pode ser estendida ao plano da responsabilidade política sob a forma da moderação, da mansidão e da clemência. Ela pode enfim, no plano da responsabilidade moral ser confrontada aos ‘ódios hereditários’ sob a forma de uma vontade tenaz de compreender estes outros cuja história fez inimigos. (...). Ora, acontece que estes gestos são também pedido de perdão (RICOEUR, 2000, p.618).

Aqui Ricoeur encerra a análise sobre a culpabilidade moral comentando que há dois

pensamentos com relação a esta questão das relações políticas de distanciamento. De um lado

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está a inculpação que pertence ao imperdoável, por outro lado está a troca entre um pedido e

uma oferta, em que o imperdoável começa a reduzir-se. É nesta direção de procurar uma

possibilidade para o perdão, mesmo que este seja difícil de se obter que Ricoeur passa a discutir

o espírito do perdão.

3.6 O espírito do perdão

Inicialmente, Ricoeur comenta que se há o perdão, ele deve poder ser acordado sem condição

de pedido. Esta já é uma característica que o autor nos apresenta dando margem à possibilidade

para o perdão. Deve-se dizer que há um dilema na questão do perdão: de um lado se encontra o

culpado que anuncia a falta cometida, de outro, está a vítima capaz de pronunciar a frase

libertadora: “Eu te perdôo”.

Ricoeur, sendo um filósofo da hermenêutica, valoriza a interpretação da palavra. A frase “Eu te

perdôo” ela traz em si o pharmakon de Platão, ou seja, o remédio, a cura, a possibilidade de

recuperação na reconciliação. O contrário: “ Eu não te perdôo” traz em si o pharmakon como

veneno, como mal, morte, ruptura, separação, impossibilidade.

O perdão não é algo isolado, ele pressupõe relações. Assim neste jogo comunicativo, surgem

algumas questões: pode-se perdoar a quem confessa seu erro? É necessário que aquele que

anuncia o perdão tenha sido o ofendido? Pode-se perdoar a si mesmo? Somente o primeiro

ofensor estará autorizado a pedir perdão?

As cenas públicas de penitência e contrição evocadas suscitam além da suspeita de banalização

ou de teatralização, uma questão de legitimidade: de qual delegação um homem político em

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função ou um chefe atual de uma comunidade religiosa podem se prevalecer para pedir perdão

às vítimas se eles não são o agressor imediato.?

O paradoxo criado é que instituições não têm consciência moral, e seus representantes, falando

em nome dessas instituições, conferem-lhes um nome próprio e com este nome, uma

culpabilidade histórica.

Relativamente à questão de poder perdoar a si mesmo, Ricoeur comenta:

A hipótese de um perdão exercido de si para si mesmo cria um duplo problema: de um lado a dualidade dos papéis de agressor e de vítima resiste a uma completa interiorização: só um outro pode perdoar a vítima; por outro lado, (...) a diferença de altura entre o perdão e a confissão da falta não é mais reconhecida na relação cuja estrutura vertical está projetada sobre uma correlação horizontal (RICOEUR, 2000, p.621)

Assim, é nesta projeção horizontal, que o homem se aproxima de si, dos seus próximos e

daqueles próximos que estão mais distantes. É nesta horizontalidade da comunicação e da

linguagem com o outro numa dimensão do decidir, do agir e do consentir que o homem se

projeta neste jogo de graça que é o perdão.

3.7 Dom e perdão

Primeiramente, pode-se entender o dom como troca: um presente dado, por exemplo, pode

significar a espera de um presente de retorno. Assim a contrapartida do dom não foi

simplesmente receber, mas, sobretudo retribuir. A questão colocada aqui é: que força é esta

presente na coisa dada que faz com que o donatário retribua? Há três obrigações: a de dar, a

de receber e a de retribuir.

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Ricoeur ao discutir o problema da retribuição parte para a gratuidade. “ Com quem somos

nós confrontados?” E responde: “Com o pedido radical de amar os inimigos sem nada exigir.

Este pedido impossível, parece estar só na altura do espírito de perdão, pois o inimigo não

pediu perdão e é necessário amá-lo tal como ele é” (RICOEUR, 2000, p.624). Esta é uma

nova dificuldade com a qual nos deparamos para se obter o perdão.

Há uma regra de outro que diz que não devemos fazer ao outro o que não queremos que nos

façam. O discurso aqui nos conduz a uma compreensão do outro, na medida em que nós nos

colocamos no lugar deste outro. Assim é na comunicação, na reciprocidade, no voltar-se para

o outro que está ao nosso lado, que iremos mudar a nossa conduta moral. Os evangelistas

narraram o que Jesus disse: “Se vós amais estes que vos amam que recompensa tereis? Pois os

pecadores também amam aquele que os amam, mas amais vossos inimigos, fazei-lhe o bem e

daí sem nada esperar de volta” (LUCAS 6, 32 -35).

O dom sem retorno é de grande força, pois é um entregar-se a alguém numa intenção liberal

ou sem nada receber de volta. Então o destaque aqui é colocado sobre a ausência de

reciprocidade. Per done ( através + dar) o dom que se dá através de uma atitude. Assim, a

dissimetria existente entre aquele que dá e aquele que recebe parece enorme, pois dar o que se

deve é restituição, mas dar mais do que se deve constitui de fato dar sem nada receber de

volta, ou seja, uma dádiva gratuita. Aqui está a medida absoluta do dom que é o amor aos

inimigos.

Sabemos que por parte das vítimas da Segunda Grande Guerra, o benefício foi indenizável em

termos financeiros, terapêuticos, morais, e políticos. Durante longas sessões jurídicas, as

vítimas puderam se queixar dos seus sofrimentos e nomear criminosos, realizando uma

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catarse compartilhada. As audiências permitiram um exercício público do trabalho de

memória e de luto. Houve indivíduos vindos da imprensa, sociedade civil, das Igrejas, todos

convidados a sondar as suas memórias. Podemos também citar as violências do Apartheid que

deixaram fendas que anos de audiências públicas não poderão apagar. Contudo sabemos que a

frase: “Compreender e não vingar” foi o propósito dos grandes processos criminais de

Nuremberg e de Tokyo. Esta foi a grande utopia - abrir os braços, acolher, compreender,

perdoar e não vingar. Então, Ricoeur comenta que para Kant “a utopia confere a todo homem

o direito de ser recebido em país estrangeiro como um hóspede e não como um inimigo”

(RICOEUR, 2000, p.625). Daí surge outra questão elaborada por Ricoeur: “que força torna

capaz de pedir, de dar, de receber a palavra perdão?” (RICOEUR, 2000, p.630). Sua tentativa

de resposta virá na exposição de suas idéias sobre a culpabilidade dita “metafísica”.

3.8 Perdão e promessa

O perdão e a promessa estão intimamente relacionados ao ligar e ao desligar, que demonstram

uma continuidade da ação no plano dos afazeres humanos, dentro de uma temporalidade.

Diz Ricoeur que “a ação (...) é a terceira categoria de um ternário: labor, obra e ação. (...) é pela

temporalidade própria que a ação se distingue dos dois outros termos” (RICOEUR, 2000,

p.631). Continua Ricoeur: “O labor se consome , a obra quer durar mais que seus autores

mortais, a ação quer simplesmente continuar” (RICOEUR, 2000, p.631).

A ação necessita do homem e de um espaço público para se desenvolver numa tela de

relações24. A ação se expõe nas relações públicas e pelas suas interações, ela se mostra, ela se

24 Lembramos aqui Geertz: “acreditando como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu” (GEERTZ,1998, p.15).

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realiza. Falar e agir passam no espaço público de exposição do humano de forma direta. Assim

é num espaço e num tempo que se dá o agir humano. É na intratemporalidade de Heidegger do

ser situado, o dasein, o ser-com-os-outros, que o homem deverá perdoar com vista ao passado e

prometer objetivando o futuro, mas sua ação de voltar-se para o passado e para o futuro se dá no

presente, nesta atenção, lembrando e esquecendo para mudar seu comportamento moral.

Ricoeur cita François Ost para melhor esclarecer a questão da temporalidade. “ligar o passado

(memória), desligar o passado (perdão) ligar o futuro (promessa) desligar o futuro (entrega,

adiamento)” (RICOEUR, 2000, p.632). Portanto é neste jogo temporal da história que vai

acontecer o lembrar e o esquecer para concretizar o perdão.

Podemos dizer que tanto o perdão quanto a promessa se fundem inteiramente com a presença

do alter. Observemos as citações bíblicas: “Porque se vós perdoardes aos homens as suas

ofensas, também vosso Pai celeste vos perdoará os vossos pecados” (MATEUS 6,14,15).Com

esta citação percebemos que o Evangelho não diz que o homem deve perdoar porque Deus

perdoa, mas que, se cada um de nós perdoar, Deus fará o mesmo. “Assim também vos fará meu

Pai celestial, se não perdoardes do íntimo dos vossos corações cada um a seu irmão”

(MATEUS, 18,35). “E se pecar sete vezes no dia contra ti e sete vezes no dia for ter contigo,

dizendo: Estou arrependido, perdoa-lhe” (LUCAS, 17, 4).

Hannah Arent afirma que “perdoar - serve para desfazer os atos do passado” enquanto prometer

“serve para criar, no futuro, que é por definição um oceano de incertezas, certas ilhas de

segurança, sem as quais não haveria continuidade, e menos ainda durabilidade de qualquer

espécie, nas relações entre os homens” (ARENT, 1991, p. 249).

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Se não fôssemos perdoados, segundo Hannah Arent (1991), eximidos das conseqüências

daquilo que fizemos, nossa capacidade de agir ficaria, por assim dizer, limitada a um único ato

do qual jamais nos recuperaríamos. Se não nos obrigássemos a cumprir nossas promessas,

jamais seríamos capazes de conservar nossa identidade e seríamos condenados a errar. Tanto o

perdoar quanto o prometer dependem da pluralidade, pois na solidão o perdão e a promessa não

chegam a ter realidade.

Contudo, o que temos que destacar aqui é a questão do perdão como um trabalho,uma

reelaboração, um agir, por isso deve ser separado o agente de seu ato. Continua Ricoeur:

“deveria ser feito o seguinte: desligar o agente de seu ato” (RICOEUR, 2000, p.637), pois “ esta

dissociação exprime um ato de fé, um crédito dirigido às potencialidades de regeneração de si”.

(RICOEUR, 2000, p.638), a fim de que o culpado pudesse ser capaz de recomeçar a agir, de

atuar com todo o seu potencial.

Ricoeur comenta sobre a imagem do homem capaz: “Assim, esta antropologia filosófica, se

apóia em uma ontologia fundamental que na grande polissemia do verbo ser segundo a

metafísica de Aristóteles dá preferência ao ser como ato e como potência” (RICOEUR, 2000, p.

639).

Ao comentar sobre o perdão e o arrependimento Ricoeur coloca o perdão como algo que

permanece, enquanto que o arrependimento ocorre na temporalidade.

Enfim, Ricoeur (RICOEUR, 2000, p.642) comenta que o homem em sua temporalidade estaria

agindo, atuando com toda a sua potencialidade na cena pública. Contudo sob o signo do perdão,

o culpado seria tomado como capaz de algo que iria para além dos seus delitos e de suas faltas,

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devolvendo-lhe sua potencialidade de continuar a agir, a atuar. Seria esta capacidade restaurada

do homem culpado que se apoderaria da promessa que projeta a ação em direção ao futuro. A

fórmula desta palavra libertadora, abandonada na nudez de sua enunciação seria: tu vales mais

que teus atos25.

25 Afirma Ricoeur : « Il me semble que Hannah Arendt est restée sur le seuil de l’ énigme en situant le geste à la jointure del’ acte et des ses conséquences, et non de l’ agent et de l’ acte. Certes, le pardon a cet effet qui serait de dissocier la dette de sa charge de culpabilité et en quelque sorte de mettre à nu lephénomèmne de dette, en tant que dépendance d’ un héritagereçu. Mail il fait plus. Du moins, il devrait faire davantage : délier l’ agent de son acte. » (RICOEUR, 2000, p. 637)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tenho dó das estrelas luzindo há tanto tempo, há tanto tempo tenho dó delas. Não haverá um cansaço das coisas, de todas as coisas, como das pernas ou de um braço? Um cansaço de existir, de ser, só de ser, o ser triste brilhar ou sorrir. Não haverá, enfim, para as coisas que são, não a morte, mas sim uma outra espécie de fim, ou uma grande razão - qualquer coisa assim como um perdão? (PESSOA, 1986, p. 111).

Ricoeur afirmou em uma entrevista a Blattchen (2002, p. 19) que “a hermenêutica não é só a

confrontação de um sábio e do texto, é também a confrontação com as interpretações coletivas;

e são essas ‘leituras’ que animam o texto”. E continuou afirmando que “um pensador medieval

disse que o texto crescia com seus leitores” (2002, p.19). Em outra passagem dessa mesma

obra, Ricoeur, ao analisar uma escultura do célebre artista inglês, Henry Moore, em Chicago-

USA, afirma: “ignoro as intenções de Moore. E direi que, de maneira geral, isso faz parte de

minha concepção da hermenêutica: não é a intenção do autor que conta, mas o que os leitores

lêem”. (BLATTCHEN, 20002, p.30). Portanto, foi a partir do conhecimento dessa declaração

de Ricoeur que nos sentimos com coragem para dar ânimo, dar alma e vida ao seu texto. Na

introdução deste trabalho, houve duas questões que nortearam nosso estudo. Retomemos, pois,

sem ter a pretensão de dar uma resposta definitiva, a primeira questão apresentada na

introdução deste trabalho: por que Ricoeur escolhe o perdão como tema do epílogo de uma obra

destinada a tratar da história, memória e esquecimento?

Nosso esforço foi o de buscar uma compreensão de como o perdão permeia a fenomenologia

da memória, a epistemologia da história e a hermenêutica da condição histórica: pela

representação26 do passado, buscando um outro horizonte, o do ultrapassamento.

26 Ricoeur distingue representação de representância. “A representância de acordo com Ricoeur, condensa as expectativas e as aporias da intencionalidade histórica. Ela é o próprio objetivo do conhecimento histórico, localizado sob a égide de um pacto segundo o qual o historiador toma por objeto personagens, situações que existiram antes de sua narrativa ser feita. Essa noção de representância se diferencia, portanto da de representação, na medida em que implica uma relação com o texto, um referente que Ricoeur já havia

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Hannah Arendt afirmou que a única solução possível para o problema da irreversibilidade,

entendida como sendo a impossibilidade de se “desfazer o que se fez, embora não se soubesse

nem se pudesse saber o que se fazia – é a faculdade de perdoar. A solução para o problema da

imprevisibilidade, da caótica incerteza do futuro, está contida na faculdade de prometer e

cumprir promessas” (ARENDT, 1991, p.248). Ricoeur, por sua vez, concorda em parte com

Hannah Arendt, mas ele avança no sentido de acreditar que a concessão do perdão está

fundamentada no desligamento do ato de seu agente. O perdão é sempre dirigido ao outro e não

à ação mesma. Mas é neste trabalho de memória que acontece o jogo da temporalidade:

passado-presente-futuro.

O processo de perdoar exige um ligar o passado pela memória e um desligar este passado pelo

perdão. Também é necessário ligar o futuro como uma promessa feita no presente, apostando,

crendo na pessoa que poderá aperfeiçoar-se e, ao mesmo tempo, desligando este futuro como

uma entrega à tranqüilidade, ao apaziguamento, à libertação. Neste jogo temporal está colocada

a memória/ esquecimento.

Para Ricoeur, na dimensão política, o importante é romper com a dívida, mas não com o

esquecimento. Pois é aqui que o perdão se revela ser, em virtude de sua generosidade, como o

cimento entre trabalho de memória e o trabalho de luto, sem jamais se resignar à perda nem se

desesperar no horizonte da espera, pois a esperança é a memória retrabalhada. Aqui está então

sintetizada a importância dada por Ricoeur relativamente à questão da temporalidade, da

memória/ esquecimento e da condição histórica. Tendo em vista essas questões, a segunda

problemática por nós levantada, na introdução desse trabalho, pode ser discutida.

qualificado de lugar-tenência do texto histórico em Tempo e narrativa”. DOSSE, François. História e Ciências Sociais .São Paulo: Edusc, 2004, p. 56.

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Perguntávamos se o perdão poderia ser um conceito fundamental para a construção de uma

nova ética para o mundo contemporâneo.

Se o mundo contemporâneo vive uma catástrofe, uma violência generalizada, com guerras,

ataques terroristas, roubos, assaltos, homicídios, suicídios, desrespeitos múltiplos, advindos de

um individualismo exacerbado e outros problemas individuais e sociais, resta-nos o perdão

como possibilidade de uma ética e de uma moral a serem elaboradas com vista a uma

superação, o que Ricoeur denomina como um trabalho de memória. Ele afirma em entrevista

concedida a Blattchen (2002): “que a modernidade é precisamente caracterizada por essa

multiplicação dos poderes e, portanto, pelo aumento da fragilidade. (...). Então, onde há poder,

há fragilidade e onde há fragilidade, há responsabilidade” (BLATTCHEN, 2002, p.45-46).

Percebemos que nosso mundo contemporâneo é um mundo frágil, porque o homem se sente

extremamente poderoso, quase um deus para criar, razão pela qual necessitamos de uma nova

ética e de nova moral que conscientizem o ser humano para vivenciar a afirmativa de Hans

Jonas (BLATTCHEN, 2002, p.47): “age de tal modo que ainda exista uma humanidade depois

de ti, e por tanto tempo quanto possível”.

Ricoeur foi um filósofo voltado para a reflexão ética, pois abordou os temas do mal, da culpa,

do homem falível, a problemática da vontade e os próprios títulos de suas obras mais recentes

nos sugerem a questão ética, como em: Du texte à l’ action, Soi-même comme um autre, La

promesse et la règle.

Mesmo sem um estudo aprofundado, ainda, das principais obras do filósofo podemos perceber

que para Ricoeur, ética e moral perfazem o campo próprio do exercício da sabedoria prática, do

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saber a que nós nos devemos nos prender, da escolha perfeita entre as ações possíveis num dado

momento, visando à plenitude do humano numa vida boa.

Por vida boa, Ricoeur entende o desejo do bem-viver, o cuidado consigo, com o outro e com as

instituições numa construção de uma relação transparente que escapa aos constrangimentos e às

violências. Este cuidado que já havia sido tratado por Heidegger (1989) é estima de si, respeito

a si mesmo e ao outro, supondo uma capacidade de agir, de ação, de superação, de perdão que

implica numa reflexão sobre as ações passadas e numa mudança de atitude com vistas a um

futuro. Esta vida boa discutida por Ricoeur não deve ser entendida no plano individual, mas no

plano coletivo como uma boa política no sentido de uma ética coletiva, do bem-comum, da

solidariedade, da fraternidade.

Assim, o bem-viver para Ricoeur supõe uma solicitude, uma atenção, um cuidado, uma

consideração para com o outro nas relações, na amizade e na justiça entendendo, o outro como

um igual. O bem-viver supõe uma vida realizada, concretizada, caracterizada pelo exercício

constante da excelência no agir, de modo a tender ao bem comum, à felicidade suprema do

nosso existir, perdoando as faltas, os erros, compreendendo as deficiências, as carências,

perpassando, primeiramente, por si mesmo e, depois, pelo outro. Para isso, o bem-viver vai

exigir, também, a existência de instituições justas, conscientes de seus direitos, deveres,

responsabilidades e poderes.

Assim, tanto no plano privado quanto no plano público, Ricoeur busca um agir universal, ou

seja, um agir sempre de modo a tratar a humanidade na sua própria pessoa e na pessoa do outro,

perdoando a si mesmo e aos outros, esquecendo e lembrando no aqui agora, as histórias

passadas, visando a um trabalho de superação de todas as faltas cometidas pelo homem para se

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obter um fim apaziguado. Aqui está colocada a idéia de humanidade em que todos nós somos

iguais, levando à ressonâncias no trato com a idéia de justiça, que exige procedimentos

eqüitativos, de modo a assegurar a todos o respeito como pessoas, considerando-as como um

fim em si mesmas e não como um meio.

Então, no momento em que pensamos apresentar alguma saída para o ser humano neste mundo

de incertezas, lembramos de Morin (2002), nos apresentando alguns saberes necessários à

educação do futuro como: respeito a si mesmo e à natureza, compreensão da história, do

homem, da política e alertando-nos com relação ao passado de erros, ilusões, faltas, ignorâncias,

desrespeitos, conduzindo-nos a uma esperança e acreditando sempre na capacidade do homem

como ser de possibilidades de mudanças.

Dentro de uma perspectiva transdicisplinar, tivemos que estabelecer diálogos com outras áreas

do conhecimento para melhor compreender o tema do perdão, na tentativa de que pudesse, de

alguma forma, por uma nova visão, repercutir numa mudança de atitude do homem

contemporâneo. Já deixamos claro que o perdão aqui discutido está deslocado do seu lugar de

origem – a teologia e circula entre vários saberes: psicanálise, história, filosofia, dentre

outros,visando à formação da pessoa humana que reconhece seu erro passado e muda seu

comportamento no presente com vista ao futuro. A filosofia aqui trabalhada não se mostra como

um saber privilegiado, superior, mas pode ser nessa perspectiva transdisciplinar, um

instrumento de esperança e criatividade27.

Assim, esperamos que este estudo sobre o perdão tenha servido de algum modo para o

cruzamento de vários saberes, na busca de elementos para se pensar na construção de uma ética

27 Sobre esse “lugar” da filosofia em pesquisas com perspectivas transdiciplinares, ver DOSSE, François. O imperio do sentido: a humanização das Ciencias Humanas. São Paulo: Edusc, 2003.

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do perdão que pode se desdobrar em ética da fraternidade, da solidariedade da vida de

reconciliação com o outro.

Para se discutir o perdão nos foi necessário entender em que consiste o intolerável e o tolerável

nas relações humanas. Vejamos algumas questões: Ser tolerante é tolerar tudo? Deveríamos

considerar virtuoso quem tolerasse o estupro, a tortura, o assassinato? Quem veria, nessa

tolerância do pior, uma disposição positiva e louvável?

Sabemos que há atos que são intoleráveis e que devem ser combatidos. Todavia, há atos

toleráveis que, contudo, se colocam como um obstáculo ao perdão, mesmo sendo toleráveis.

Entretanto, o perdão deve ultrapassar a simples consideração dos atos em si mesmos (toleráveis

ou intoleráveis) e alcançar a pessoa do agente.

A tolerância, segundo Comte-Sponville (1995)28, é uma solução para reduzir as arestas

encontradas nas relações. Ela está sempre em busca de algo melhor, isto é, à espera de que os

homens possam se amar ou simplesmente se conhecer e se compreender, ou seja, comecem a se

suportar e a suportar as diferenças. A tolerância é algo provisório, mas se esse provisório viesse

a cessar, poderia instalar a barbárie. Afirma Comte-Sponville (1995) que a tolerância é uma

pequena virtude que ocorre na vida coletiva, como a polidez na vida interpessoal. Ambas

parecem não significar muito, contudo são um começo, uma porta aberta para as relações, a

comunicabilidade, a possibilidade de aproximação. Cumpre-nos, pois, saber discernir os atos

intoleráveis para serem corrigidos para o futuro e os atos toleráveis para que seja feito um

trabalho de superação em vista de uma memória apaziguada.

28 Sobre tolerância ver: COMTE- SPONVILLE. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p.173.

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A tolerância, mesmo no plano institucional, é virtude que se caracteriza pelo respeito, pela não

imposição. Ela é um caminho que conduz da violência da convicção à não-violência do

testemunho, é a tentativa de superação dos conflitos das interpretações, é busca de articulações,

de possibilidades de aproximação entre rivais. A tolerância e o perdão representam a dimensão

ética do amor. Assim podemos afirmar que o perdão pode ser entendido como uma

conseqüência do ato de amar: amamos, por isso perdoamos. Perdão é, pois, ultrapassagem dos

limites, das barreiras, é saída de si em busca do outro na tentativa de estabelecer um diálogo.

Vimos, anteriormente, que o horizonte último de toda esta pesquisa se reforça com a tese de que

o perdão se ele tem um sentido constitui o horizonte comum da memória, da história e do

esquecimento. Este horizonte é um horizonte escatológico, que não se transformará jamais em

presente disponível. Não há aqui um saber do perdão no sentido escolar do termo, um saber que

se aprenderia nas escolas de teologia ou de ciências políticas. O perdão está também para além

do conhecimento puramente intelectual, ultrapassando o aspecto meramente explicativo. O

perdão supõe e exige sabedoria, crença, fé, esperança. É com o perdão que se atualiza ou torna

real a esperança, uma crença na salvação, na libertação dos males, da escravidão, dos

preconceitos, das diferenças, dos traumas, de tudo que isola o homem e rompe com a sua

ligação temporal de passado-presente-futuro, caminhando para o inacabamento.

Assim, Ricoeur não somente nos apresenta o perdão laico, mas nos mostra o horizonte utópico

do perdão teológico, por isso devemos perceber que a profundidade do ato de perdoar é tal que

no mais das vezes ultrapassa às possibilidades da razão de compreender, ensejando a

perspectiva de situá-lo no plano do mistério.

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Ao concluir este modesto trabalho constatamos que Ricoeur não enfoca apenas a fenomenologia

da memória, a epistemologia da história, a hermenêutica do esquecimento, mas explora a cadeia

de operações constitutivas deste vasto material do tempo ( memória, história e esquecimento),

com um olhar escatológico, com vistas à felicidade do homem pelo perdão e, valorizando,

especialmente, a permanência da vida pelo seu inacabamento. O último pronunciamento de

Ricoeur, em La Mémoire, l’Histoire l’Oubli, assim como este trabalho, não é um fechamento,

mas uma abertura, um inacabamento:

Sob a história, a memória e o esquecimento. Sob a memória e o esquecimento, a vida. Mas escrever a vida é uma outra história. Inacabamento” (p. 657)29.

29 Sous l’histoire, la memoire et l’ oubli. Sous la mémoire et l’ oubli, la vie. Mais écrire la vie est une autre histoire. Inachèvement» Paul Ricoeur.

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