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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA-UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS I CURSO DE PEDAGOGIA – ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL CLÉO RICARDO BITENCOURT VEIGA O PRINCÍPIO EDUCATIVO EM UMA PERSPECTIVA MARXIANA. SALVADOR 2012

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA-UNEB

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS I

CURSO DE PEDAGOGIA – ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL

CLÉO RICARDO BITENCOURT VEIGA

O PRINCÍPIO EDUCATIVO EM UMA PERSPECTIVA MARXIANA.

SALVADOR

2012

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CLÉO RICARDO BITENCOURT VEIGA

O PRINCÍPIO EDUCATIVO EM UMA PERSPECTIVA MARXIANA

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Departamento de Educação da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus I, como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciado em Pedagogia – Anos iniciais do Ensino Fundamental.

Orientador: Profº Drº Luciano Bomfim

SALVADOR 2012

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CLÉO RICARDO BITENCOURT VEIGA

O PRINCÍPIO EDUCATIVO EM UMA PERSPECTIVA MARXIANA

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Departamento de Educação da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus I, como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciado em Pedagogia – anos iniciais do ensino fundamental.

Aprovado em:

BANCA EXAMINADORA

_________________________________/____/___ Orientador: Profº Drº Luciano Bomfim

Universidade do Estado da Bahia - UNEB

_________________________________/____/___ 1º Examinadora: Profª Ms Ieda Balogh

Universidade do Estado da Bahia - UNEB

_________________________________/____/___ 2ª Examinadora: Profº Drª Carla Liane

Universidade do Estado da Bahia – UNEB

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Os filósofos só interpretaram o mundo

de diferentes maneiras; do que se trata

é de transformá-lo.

Karl Marx, em XI tese contra Feuerbach.

Lutar ou morrer; a luta sangrenta ou o

nada. Eis o dilema inexorável.

Jorge Sand, citado por Marx em Miséria

da Filosofia, acerca do dilema da Ciência

Social.

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DEDICATÓRIA

Àqueles e àquelas que lutam cotidianamente para transformar

o mundo.

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AGRADECIMENTOS

A minha mãe e meu pai, Ana Regina e Gilmar, por serem cada um ao seu modo, importantes na minha formação. A minha companheira Fabiane Soares pelo tempo dedicado não só a esse trabalho, mas a mim durante toda a nossa vida conjunta. Wellington por ter me colocado em contato com a teoria marxista e por ter sido minha principal referência durante muito tempo. Hugo Viotto pelos longos debates acerca da teoria marxista da educação. A minha família. Ao professor Luciano Bomfim. As professoras Carla Liane e Ieda Balogh por serem extremamente solidárias as minhas piores expectativas. Aos colegas de UNEB, que por serem incontáveis, não serão discriminados, sob pena de cometer alguma injustiça. Meus companheiros de luta estudantil na UNEB, materializados na Coletiva: Marcus Brandão, Ana Paula, Glácia Maria, Polen Vinagre, Carla Miranda, Fabiana Anjos, dentre outros não menos importantes. Ao Coletivo Contra Corrente que me recebeu tão bem e que alimenta meu sonho de construir um mundo melhor através de uma compreensão científica da realidade e atuação prática na mesma. Aos meus colegas de trabalho, principalmente Ivan e Sóstenes, durante minha estada numa empresa de transporte público, que sempre “seguravam as pontas” para que eu pudesse fazer minhas atividades acadêmicas no trabalho. A todas as pessoas que contribuíram de alguma forma (seja pegando livros para mim, emprestando dinheiro para a comida ou Xerox, etc, etc) para a conclusão desse curso ou que torceram pra que o mesmo pudesse ser concluído. Meu sincero muito obrigado.

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RESUMO

O presente trabalho visa discutir o princípio educativo e a sua relação com a estrutura social mais geral. Tendo como base teórica a concepção materialista da história, resgatada em Marx e Engels (2002), e no método dialético, o que ficou conhecido pela denominação de materialismo histórico-dialético (expressão cunhada pelos estudiosos da obra marxiana), procura entender, como surge o norteador educacional de uma dada forma de sociabilidade das relações entre os homens reais, concretos entre si e com a natureza. Para isso, busca fazer um resgate de algumas formas de sociabilidade que a humanidade já experimentou e a sua conseqüente relação com a organização da educação. Assim, chega-se ao modo de produção atual da vida material (o capitalismo) e como essas relações de produção necessariamente interferem nas formas de organizar a educação. A partir desse movimento dialético, perceber como a educação condiciona de algum modo a estrutura material. Fez-se necessário também explanar minimamente sobre a vida de Karl Marx e a sua contribuição na construção do método materialista histórico e dialético. Uma outra discussão necessária foi o entendimento do conceito de trabalho na obra marxiana.

Palavras-chave: Princípio educativo; Trabalho; educação; marxiano.

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ABSTRACT

The present paper aims to discuss the educative principle and its relation with the more general social structure. Having as theoretical basis the historical and dialectical materialism, it seeks to understand in the relations between real men, concretes (tangibles), how the educational guiding emerges in a certain form of sociability. Thus, this study tries to make a historical review of some forms of sociability that humanity has ever experienced and its consequent relationship with the education’s organization. So, it comes to the current mode of production of material life (the capitalism) and how these relations of production necessarily interfere in the ways of organizing the education and, in a dialectical movement, how it puts conditions somehow to the material structure. Also, it was necessary to explain minimally about Karl Marx’s life and his contribution to the building of the historical and dialectical materialist method. A necessary discussion was the understanding of work’s concept in the Marxian studies.

Keywords: Educative principle; Work; Education; Marxian

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 11

2 UMA APROXIMAÇÃO DE MARX, SUA VIDA E SEU PENSAMENTO 15

2.1 Breve biografia 15

2.2 Friedrich Engels 20

2.3 Da Formação Filosófica de Marx 22

2.3.1 A Filosofia Alemã 22

2.3.1.1 A Dialética 23

2.3.1.2 O Materialismo 24

2.3.2 A Economia Política Inglesa 25

2.3.3 O Socialismo Francês 27

2.4 Marx e os marxistas 28

3 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO DE TRABALHO EM MARX 30

3.1 A divisão social do trabalho 33

3.2 O Trabalho Alienado 38

3.3 Trabalho Imaterial 39

4 O TRABALHO COMO PRINCIPIO EDUCATIVO EM UMA PERSPECTIVA

MARXIANA 41

4.1 O que é um princípio educativo? 42

4.2 O Princípio Educativo ao longo da História (ou dos pressupostos para

efetivação do princípio educativo) 46

4.2.1 A educação nos primórdios da humanidade 47

4.2.2 O Mundo Antigo e o princípio educativo 48

4.2.3 O Feudalismo 52

4.2.4 Como a educação situou-se na origem do mundo burguês 57

4.3 Pressupostos/exigências para a efetividade do trabalho como princípio

educativo em Marx (ou o trabalho como princípio educativo: um debate em

aberto) 60

4.3.1 O trabalho como princípio educativo nos marcos do Capital 61

4.3.2 O trabalho como princípio educativo e a nova sociabilidade 63

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 66

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 70

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1 INTRODUÇÃO Essa pesquisa tem como foco estudar o princípio educativo em uma perspectiva

marxiana, pois, se obra marxiana traz uma proposta de emancipação humana, a

educação norteada por um princípio educativo de inspiração marxiana deve ser uma

educação também emancipadora. Para isso, é preciso apropriar-se da teoria

marxiana, entender como ela se formou, suas perspectivas e alguns conceitos

centrais para o seu entendimento.

E quais são esses conceitos chaves? Dentre os conceitos utilizados por Marx (luta

de classes, modo de produção, mais-valia, trabalho, etc.) dar-se-á uma explanada

mais detalhada sobre o conceito de trabalho, por entender que o conceito de

trabalho é a base da formação do Ser social em Marx - pois ao se relacionar com a

natureza, através do trabalho, o homem se transforma em homem ao passo que

transforma a natureza - e de toda a produção da história, é dedicado um capítulo

exclusivo para discutir a concepção marxiana de trabalho.

O problema que dá origem a essa investigação é verificar em que medida o trabalho,

enquanto categoria fundante do ser social, pode se configurar como o princípio

educativo de uma educação emancipadora? Nesse sentido, o objetivo central desse

estudo é estudar o trabalho como princípio educativo, em uma perspectiva marxiana,

de uma educação emancipadora.

Esta pesquisa tem sua origem na preocupação do autor em entender a educação de

uma maneira totalizante, ou seja, inserida num determinado contexto sócio-histórico

e que por isso influencia e é influenciada, diferente da perspectiva pulverizadora da

chamada pós-modernidade, que desloca a educação das relações sócio-históricas e

analisa cada unidade educacional (escola ou mesmo sala de aula) como algo

independente e autônomo de sua totalidade. Inserido em um ambiente acadêmico

onde a filosofia pós-moderna é hegemônica, esse trabalho encontra-se então na

contracorrente desse pensamento.

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Esse trabalho monográfico está dividido em três capítulos. No primeiro capítulo

procura-se tecer um comentário sobre a vida de Karl Marx, de modo a introduzir a

realidade histórica vivida por Karl Marx. É ainda nesse capítulo que dissertou-se

sobre a formação filosófica de Marx, desde os tempos de hegeliano de esquerda, em

Berlim, até a fundação do materialismo histórico-dialético. Nesse sentido buscou-se

entender as influências da filosofia alemã (a dialética hegeliana, o materialismo

feuerbachiano), da economia política inglesa (o estudo sistemático dos economistas

burgueses – tal como Marx os denominava – Smith, Ricardo, Say, etc.), e o

pensamento político francês, ou socialismo utópico (Proudhon, Fourier, etc.). Essas

são as três fontes e três partes constitutivas - de acordo com Lênin (1982) - daquilo

que se denominou, o marxismo.

Ainda no primeiro capítulo buscou-se entender a importância de Friedrich Engels na

contribuição para o pensamento marxiano (algumas obras assinadas em conjunto e

outras terminadas ou compiladas por Engels após a morte de Marx) e para a vida

pessoal do próprio Marx.

Para finalizar o primeiro capítulo tratou-se da relação de Marx com os marxistas, não

tratando os autores marxistas nominalmente nem sua relação com a teoria

elaborada por Marx e Engels, mas atendo-se basicamente na explicação do porque

denominasse uns por marxistas e outros por marxianos.

Em seguida, o segundo capítulo, sobre o trabalho em Marx, exigiu uma maior

atenção por conta da complexidade do tema abordado e ainda pela polissemia do

conceito1. Não necessariamente o conceito quer dizer a mesma coisa ao longo de

toda obra, principalmente quando o mesmo vem acompanhado de outro conceito.

Nesse segundo capítulo procurou-se sistematizar as principais nuances do conceito

de trabalho para as discussões que serão feitas no capítulo posterior. Nesse sentido,

subdividiu-se o capítulo em: divisão social do trabalho; trabalho alienado e; trabalho

imaterial. Esse entendimento é importante na discussão sobre o caráter do trabalho

1 Tratada por Frigotto no artigo A polissemia da categoria trabalho e a batalha das idéias nas sociedades de classe, 2009.

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na área de educação.

Nos dois últimos capítulos é tratado o tema da monografia mais propriamente. Ao

abordar o princípio educativo na perspectiva marxiana, procura-se entender o que

vem a ser um princípio educativo e quais as relações dão origem a ele. Esse estudo

busca entender, a partir das relações sociais de produção, como o trabalho pode se

configurar enquanto princípio educativo, diferentemente da perspectiva pós-

moderna, onde cada professor teria um princípio educativo (DEMO, 1999). Esse

trabalho procura as relações imbricadas entre as relações sociais de produção e o

surgimento de um norteador para a educação de uma dada forma de sociabilidade.

Para atender essa expectativa, busca-se essa relação ao longo da história da

humanidade, sua forma de organizar/produzir a vida material, e como se daria a

relação dessas relações sociais com a formação de um princípio educativo.

Para tanto se pesquisou desde o mundo antigo até o capitalismo, e como cada

forma dessas de organizar a produção da vida material gerava um determinado

princípio norteador da educação de cada forma de sociabilidade. Tudo isso foi feito

baseando-se em autores que compartilham dessa visão do autor em enxergar a

totalidade social, tais como Ponce (2007), Manacorda (1997), Gramsci (1995),

Saviani (2007, 2009), dentre outros.

No terceiro capítulo entra-se de fato no núcleo do tema, que é justamente tratar do

trabalho enquanto princípio educativo na sociedade atual. Seria possível ser o

trabalho como princípio educativo nos marcos do capital? Essa é a pergunta que

norteia as discussões, cujo esforço dessa pesquisa bibliográfica será o de tentar

responder a questão acerca do debate sobre o trabalho enquanto princípio educativo

em uma perspectiva marxiana.

Na seqüência do trabalho, estão apresentadas as considerações finais que versam

sobre a totalidade dos capítulos, sobre a vida e obras de Marx, sobre a importância

de se entender o conceito de trabalho no momento atual das Ciências Humanas de

uma maneira geral e das discussões filosóficas em particular. Além disso, uma breve

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análise das principais tendências, no campo do marxismo, sobre a discussão de se

implementar o trabalho enquanto um princípio educativo, sem perder do horizonte o

conjunto do pensamento marxiano e a perspectiva emancipatória do conceito do

Trabalho. Por fim, apresenta-se as referências utilizadas na construção e na

fundamentação desse trabalho.

No que se refere a construção metodológica, essa pesquisa é de caráter

bibliográfico e foi desenvolvida tendo como principal referência as obras e o método

de Karl Marx, mas também buscou aprofundar o debate no campo da ciência

educacional, fazendo-se necessário recorrer a outras fontes tais como Dermeval

Saviani (2007, 2009), Antonio Gramsci (1995), Aníbal Ponce (2007), Gaudêncio

Frigotto (2009), Paulo Tumolo (2005), Acácia Kuenzer (1989), dentre outros não

menos importantes. Essas fontes secundárias foram selecionadas entre livros e

artigos de revistas conceituadas no meio acadêmico da Educação.

Ademais utilizou-se Giannotti e Lênin, além das obras do próprio Marx para escrever

sobre sua vida e obra. Para embasar o capítulo sobre trabalho se usou basicamente

as obras O Capital (Vol. 1 e 2, do livro I), Manuscritos histórico-filosóficos, A

Ideologia Alemã e Manifesto do Partido Comunista do próprio Marx e A Introdução

da Filosofia de Marx, dos professores Sérgio Lessa e Ivo Tonet.

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2 UMA APROXIMAÇÃO DE MARX, SUA VIDA E SEU PENSAMENTO

Esse capítulo destina-se a apresentar o contexto que Marx viveu e a formação do

seu pensamento filosófico. Aqui será feita uma breve nota biográfica, para entender

o contexto da produção de sua obra e como esse contexto também influenciou muito

o seu pensamento.

Além disso, procurou-se entender a importância de Friedrich Engels (amigo de Marx

e colaborador do pensamento marxiano) na vida de Marx. Para além das

colaborações de Engels em diversas obras em que ambos assinam, ele ainda

publicou os últimos livros d´ O Capital, volumes publicados pós morte de Marx, e

ainda, ao se utilizar das anotações de Marx para prosseguir os seus projetos tal

como em A Origem da propriedade privada, da família e do Estado.

Em seguida uma breve passada pela formação do pensamento marxiano, dando

ênfase a filosofia alemã, economia inglesa e política francesa. Para finalizar, uma

inquietação sobre qual termo utilizar: marxista ou marxiano? Sem valorar essa

discussão, apenas pontuam-se alguns elementos e justifica-se porque uma ou outra

denominação.

2.1 Breve biografia Marx nasceu em 1818, em Trier, na Alemanha. Filho de judeus – que mais tarde se

converteriam em cristãos devido a exigências econômicas e sociais –, seu pai era

advogado e conselheiro de justiça do governo alemão. Consta em algumas

biografias de Marx que ele não se dava bem com sua mãe, pois a mesma tinha

dificuldades de aceitar as escolhas do filho (Cf. GIANOTTI, 2000).

Concluído os estudos básicos em Trier, Marx parte para Bonn, para cursar Direito, tal

qual seu pai. Apenas em caráter de curiosidade, pesquisou-se que lá Marx começa a

freqüentar a boemia seja no clube dos poetas ou no clube da taverna. Segundo seus

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biógrafos brasileiros, o jovem Marx esbanjava e gastava além da conta em Bonn. Ao

comentar sobre a nova fase em Berlim, Gianotti escreve que:

Ao contrario da dispersão anterior, instalado em Bonn (seu pai reclama que gastara mais dinheiro que previa), agora se dedica intensamente ao trabalho. (GIANOTTI, 2001, p. 16)

Chamado de volta a Trier, Marx fica noivo de Jenny Westphalen, filha de um

aristocrata alemão. A família da noiva não apreciava essa união devido as

perspectivas do jovem Marx não serem muito animadoras. Bêbado ou poeta? Talvez

os Westphalen vislumbrassem ambas as alternativas no jovem Marx.

Mudado de universidade, Marx parte para Berlim. O ritmo berlinense invade Marx. As

discussões sobre história e filosofia o interessa muito mais que o direito. Dessa

maneira Marx toma contato com os principais debates filosóficos de sua época: o

hegelianismo. Marx vai se assumir enquanto hegeliano de esquerda. Em 1841

doutora-se em filosofia, historia e direito, com uma tese sobre a filosofia da natureza

em Demócrito e em Epicuro.

Nos anos 1842/43, Marx faz parte do corpo editorial da Gazeta Renana, um jornal

liberal de oposição. De empregado a chefe de redação, Marx vai imprimir um tom

cada vez mais crítico ao governo da Renânia. Essa oposição incomodava tanto que

o jornal trilha o caminho da censura, dupla censura e extinção. Foi por esse período

que Marx toma contato com as questões econômicas pela primeira vez. O próprio

escreverá isso no seu prefácio do livro “Para a crítica da economia política”, de 1859.

Escreve Marx:

As deliberações do parlamento renano sobre o roubo de madeira e o parcelamento da propriedade fundiária, a polemica oficial que o Sr. Von Schaper, então governador da província renana, abriu com a Gazeta Renana sobre a situação dos camponeses do vale do Mosela, e finalmente os debates sobre o livre-comércio e proteção aduaneira, deram-me os primeiros motivos para ocupar-me de questões econômicas. (MARX, 1982, p. 24)

Em 1843, Marx chega a Paris para editar a revista Anais Franco-Alemães, com Ruge

– também hegeliano de esquerda. Ainda com o projeto na mão, Marx casa-se com

Jenny, confiando ter algum dinheiro com o lançamento da revista. Acontece que

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apenas o primeiro número da revista é lançado. Marx e Ruge têm muitas

divergências sobre a linha da revista. Ademais a revista não conseguiu entrar na

Alemanha, causando muito prejuízo. Mesmo tendo saído apenas um número, a

revista contém textos importantes para o pensamento marxiano, como, por exemplo,

A Questão Judaica e A crítica do Direito de Hegel, além de artigos de Engels sobre

economia política.

Ainda em Paris, Marx vai tomar contato com o movimento operário revolucionário.

Esse contato não será apenas contemplativo, pelo contrário, Marx tomará parte ativa

no movimento, principalmente entre os imigrantes alemães. Sua atividade continua

incomodando o governo alemão, que exige sua expulsão da França. Sobre a sua

passagem na França, Gianotti escreve:

Voltemos, porém, à história do próprio Marx. De outubro de 1843 até a sua expulsão do território francês, em fevereiro de 1845, desenvolve enorme atividade intelectual e política, a despeito da precariedade de sua situação econômica. (GIANOTTI, 2001, p. 37)

É desse período, inclusive, a produção dos Manuscritos econômico-filosoficos, que

só foi publicado postumamente. Expulso então da França e exilado na Bélgica, em

Bruxelas, Marx (já tendo Engels∗ como colaborador e amigo) vai “acertar contas”

com a sua antiga consciência filosófica. Esse “acerto de contas” é o texto escrito por

ele e Engels, e editado postumamente em 1932 sob o titulo de A Ideologia Alemã.

Nesse texto, Marx e Engels vão estabelecer os fundamentos da filosofia materialista.

É do resgate da dialética hegeliana aplicando-a ao materialismo que vai surgir o

materialismo dialético. E de acordo com Marx, o materialismo só pode assumir esse

nome se levar a práxis humana em consideração, coisa que o materialismo

feuerbachiano não fazia. Portanto o materialismo só pode ser histórico, já que são os

homens que fazem a sua história.

Ainda na Bélgica, Marx e Engels entram propriamente no movimento operário,

∗ Friedrich Engels, amigo e colaborador de Marx. O pensamento marxiano não se separa em nada do de Engels. É impossível falar do pensamento marxiano e não fazer um sub-capitulo destinado a Engels, que se encontra nas próximas páginas.

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ingressando na Liga dos Justos2, em 1847. Por conta do congresso dessa Liga, Marx

e Engels são designados a escrever o manifesto dessa organização, que tem seu

nome mudado para a Liga dos Comunistas. Do processo de criação desse manifesto

surge os “Princípios para o Comunismo” de Friedrich Engels, sobre o qual Marx

elaborará o “Manifesto do Partido Comunista”, publicado no início de 1848.

Um livro importante que lançará as bases da sua teoria sobre como o sistema

capitalista se mantém e se desenvolve é lançado em 1847. Esse livro é “A Miséria da

Filosofia”, uma obra que é ao mesmo tempo uma resposta ao livro de Proudhon, “A

Filosofia da Miséria”, e o embrião da teoria econômica de Marx. Segundo Gianotti:

Convém sublinhar esse ponto: somente o rigor da definição ricardiana do valor do trabalho, cujo alcance Marx reconhece a partir da Miséria da Filosofia, permite-lhe dar o salto teórico que o leva ao conceito de mais-valia. (2001, p. 44)

As bases da teoria marxiana estão dadas já nessa obra, como acredita Gianotti. Um

novo conhecimento só pode ser desenvolvido a partir do conhecimento acumulado

anteriormente. E é justamente o caminho percorrido por Marx ao aceitar a teoria

ricardiana do valor-trabalho podendo então saltar para a teoria da mais-valia.

Toda essa atividade política e intelectual se dá numa Europa instável politicamente.

Até que no fim do ano de 1847 estoura a Revolução. Operários de diversos países

revoltam-se contra as desigualdades sociais. Na Bélgica, Marx participa ativamente

da onda de protestos, principalmente entre os alemães. O governo belga acusa Marx

de financiar armas para os operários (!), sendo expulso logo em seguida. De

passagem por Paris, encontra ainda o cheiro da Revolução, as barricadas ainda de

pé, mas segue direto pra Alemanha, aproveitando-se da crise. Relatando esse

período, Gianotti escreve que Marx:

2 Criada em 1836 a partir de uma dissidência da "Liga dos Párias" que havia sido criada em 1834 pelos alemães exilados em Paris e Londres. Inicialmente era uma organização operária de caráter conspirativo-revolucionário, da qual participavam ferreiros, carpinteiros, sapateiros, alfaiates. No início de 1847 Marx filiou-se à Liga. A Liga possuia seções na França e na Alemanha. Na França mantinha relações com uma sociedade dirigida por Blanqui, ao qual se uniram na revolta de 12 de maio de 1839. Um dos elementos mais ativos da ala esquerda da Liga dos Justos era Wilhelm Weitling, alfaiate alemão. Em junho de 1847, após seu primeiro congresso, por influência da Marx e Engels, a Liga mudou de nome passando a chamar-se Liga dos Comunistas e adotou o lema "Proletários de todos os países, uni-vos!" abandonando o antigo "Todos os homens são irmãos". Disponível em Dicionário Político: http://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/l/liga_justos.htm

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(...) se junta a um grupo da Liga dos Comunistas que deixa Paris com o intuito de fazer propaganda revolucionaria por toda a Alemanha. Volta finalmente à Colônia, entra em contato com o movimento local, condena os mais radicais, que se recusam a participar das eleições dos representantes do povo numa assembléia nacional, a ser instalada em Frankfurt, juntando todas as nações alemãs, inclusive a Áustria – somente a Prússia fará a sua em Berlim (...) (GIANOTTI, 2001, p. 53)

Por este relato percebe-se que Marx não foi apenas um apreciador da realidade,

mas um homem que, guiado por uma concepção filosófica da realidade, tentava

transformá-la, tal como ele próprio concebia o trabalho do intelectual (filósofo) ainda

em 1845/46, em sua XI tese sobre Feuerbach, onde se lê: “os filósofos só

interpretaram o mundo de diferentes maneiras; do que se trata é de transformá-lo.”

(MARX, 2002, p. 103).

Acontece que as Revoluções de 1848 foram esmagadas pela reação, e Marx acaba

sendo detido. De acordo com Gianotti, Marx se defende com as seguintes palavras

no tribunal:

Assistimos à luta entre a velha burocracia feudal e a sociedade burguesa moderna, entre a sociedade da livre concorrência e a sociedade corporativa, a luta entre a sociedade baseada na propriedade fundiária e a sociedade industrial, entre a sociedade da fé e a sociedade da Ciência. (MARX apud GIANOTTI, 2001, p. 54)

Desse modo, Marx e o movimento revolucionário acabam sendo derrotados pela

reação. O veículo utilizado por Marx, a Nova Gazeta Renana, é fechada, seu pedido

para reaver sua nacionalidade alemã foi indeferido e ele é exilado na Inglaterra.

Refugiado em Londres, aonde chega a meados de 1849, passará pelas piores

dificuldades econômicas de sua vida. Decorrente dessa precariedade econômica

morrem três filhos seu. No inicio da década de 1850 escreverá dois livros sobre o

movimento político na França, sendo eles “Lutas de Classes na França” e “O 18 de

brumário de Luis Bonaparte”. Ambos não lhe renderão quase nenhum dinheiro.

Nos anos de 1860 doenças como o antrax e furúnculos lhe infernizarão a vida,

associando-se às dificuldades financeiras. Em 1864 faz parte da fundação da

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Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), mais conhecida como a I

Internacional. Em 1867, Marx lança o primeiro livro de O Capital.

No ano de 1870 estoura a guerra Franco-Prussiana que tem duas conseqüências

imediatas, sendo a primeira a unificação da Alemanha sob controle/liderança da

Prússia de Bismarck e a segunda o acirramento da luta de classes na França,

culminando na Comuna de Paris, em 1871, onde os trabalhadores tomam o poder

por dois meses e em seguida são destruídos pela reação. Em 1873 a I Internacional,

desgastada pelas raivosas crises internas entre o marxismo (tomado aqui como

doutrina política baseada no cientificismo de Marx e Engels) e o anarquismo. Dez

anos depois falece Karl Heinrich Marx, em março de 1883.

2.2 Friedrich Engels Friedrich Engels (1820-1895) tem importância fundamental na formação do

pensamento marxiano. Engels, filho de um industrial, não freqüentou a universidade,

mas não ficou de fora dos principais debates acadêmicos de seu tempo. Uma mente

distinta, com certeza. Não foi a toa que Marx e Engels construíram uma amizade que

foi fundamental para o desenvolvimento do materialismo histórico-dialetico.

Antes mesmo de conhecer Marx, Engels já estudava a classe trabalhadora, também

presente na teoria marxiana, e produziu uma obra que teve muita repercussão no

espírito de Marx, a saber, “A situação da classe operária em Manchester” de 1845.

Essa obra vai além de contar os horrores e sofrimentos da classe trabalhadora,

como muitos já haviam feito, pois tem como principal argumento que essa situação

caótica (pra dizer o mínimo) do povo trabalhador empurra-os, irresistivelmente, para

sua auto-organização e conscientização, obrigando-os a lutar por melhores

condições de vida. Nesse sentido, Engels já apontava o caminho do socialismo, da

luta pelo socialismo, para a emancipação da classe operária.

O pensamento de Engels se coaduna de maneira inseparável do pensamento de

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Marx. As obras que ambos assinam são as mais importantes para o desenvolvimento

da filosofia histórico-materialista, tais como “A sagrada família” e a “Ideologia Alemã”.

Decorre do estudo de ambos sobre filosofia que a realidade material determina, ou

melhor, condiciona o ser social. Em “A Ideologia alemã”, lê-se:

Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência. Na primeira forma de considerar as coisas, partimos da consciência como sendo o individuo vivo; na segunda, que corresponde a vida real, partimos dos próprios indivíduos reais e vivos, consideramos a consciência unicamente como a sua consciência (MARX, ENGELS, 2002, p.20)

Nesse sentido, tanto Engels como Marx, estão conscientes que toda a Ciência

Humana, assim como toda a Filosofia, para ser fidedigna a realidade humana não

pode excluir o homem e sua prática social das suas análises. E os estudos do

homem, da gênese humana e das relações sociais levaram a ambos a teoria da luta

de classes, da mais-valia e do socialismo cientifico.

A colaboração contínua e ininterrupta dos dois pensadores do socialismo científico

foi para além da atividade intelectual. As idéias de Marx custaram um preço muito

caro. Devido as suas idéias, Marx era persona non grata em muitos paises da

Europa, tais como Alemanha, França e Bélgica. Essa sua reputação inviabilizava a

sua entrada em qualquer emprego. Nem mesmo seus livros tinham grande difusão,

de modo que ele pudesse tirar seu sustento dessa atividade. Resultou de todo esse

cenário uma vida financeira totalmente instável para Marx e sua família. Sobre essa

passagem de sua via, Gianotti escreve: “no exílio, comerá o pão que o diabo

amassou, apenas sobrevivendo graças ao amparo constante de Engels” (GIANOTTI,

2001, p. 56). A título de curiosidade é preciso notar que nesse período a vida

econômica da família Marx era a pior possível, inclusive nesse período Marx perdeu

três de seus seis filhos. Engels foi quem sempre socorria Marx nas suas

inimagináveis dificuldades. O carinho, respeito e admiração que nutriam um pelo

outro pode ser facilmente detectado nas suas correspondências, além é claro, da

intensa colaboração intelectual.

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2.3 Da Formação Filosófica de Marx O revolucionário russo Vladimir Ulianov, mais conhecido por Lênin, escreveu uma

sistematização da formação do pensamento marxiano chamado “As três fontes e as

três partes constitutivas do marxismo”. Nesse texto Lênin aponta que Marx consegue

sintetizar as três principais contribuições da humanidade no século XIX, a saber: a

filosofia clássica alemã, a economia política inglesa e o socialismo francês. Essas

são as bases do pensamento marxiano. Evidentemente, o pensamento marxiano

não se decompõe nessas três unidades, mas a partir delas, ou melhor, da

apropriação crítica dessas unidades surge o materialismo histórico-dialético. Esse

estudo tentará explorar os detalhes de cada um desses elementos e mostrar como o

pensamento marxiano foi formando-se.

2.3.1 A Filosofia Alemã

Começando pela filosofia clássica alemã, pode-se dizer que Marx foi seduzido pelos

grandes e acalorados debates sobre a filosofia hegeliana. A magnitude e

complexidade da filosofia de Hegel eram tamanhas que intelectuais reacionários e

progressistas reivindicavam para si. Dentro do grupo dos jovens hegelianos de

esquerda havia divergências sobre a apropriação da obra de Hegel. Os jovens

hegelianos de esquerda queriam isolar um aspecto do sistema de idéias de Hegel,

de modo que pudessem a partir desse aspecto confrontá-lo com outros aspectos

separados por outros filósofos e contra o conjunto da filosofia hegeliana. Marx e

Engels explicam a situação da seguinte forma:

Essa dependência de Hegel é a razão pela qual não encontraremos um só critico moderno que tenha sequer tentado fazer uma crítica de conjunto ao sistema hegeliano, embora cada um jure ter ultrapassado Hegel. A polêmica que travam contra Hegel e entre si mesmos limita-se ao seguinte: cada um isola um aspecto do sistema hegeliano e o faz voltar-se ao mesmo tempo contra todo o sistema e contra os aspectos isolados pelos outros. (MARX; ENGELS, 2002, p. 7)

Essa dependência de Hegel não permitiu os filósofos alemães entender a obra de

Feuerbach, onde o mesmo trazia o materialismo para a ‘arena’ da luta filosófica.

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Ainda que com muitos limites, a filosofia feuerbachiana teve muita repercussão tanto

em Marx como em Engels.

2.3.1.1 A Dialética Diferentemente dos seus contemporâneos, Marx buscou a essência da contribuição

de Hegel. E essa essência, para Marx era o método que Hegel se utilizava, a saber,

a dialética. Hegel, que não foi em hipótese alguma inventor desse método lógico, o

colocava dentro de suas concepções idealistas, dando assim um caráter metafísico

à dialética. Fazendo a critica a filosofia idealista, Marx e Engels escreveram:

Ao contrario da filosofia alemã, que desce do céu para a terra, aqui é da terra que se sobe ao céu. Em outras palavras, não partimos do que os homens dizem, imaginam e representam, tampouco do que eles são nas palavras, no pensamento, na imaginação e na representação dos outros para depois chegar aos homens de carne e osso; mas partimos dos homens em sua atividade real, é a partir de seu processo de vida real que representamos também o desenvolvimento dos reflexos e das repercussões ideológicas desse processo vital. (idem, p. 19)

É a partir dessa premissa que Marx lançará mão do método dialético, é com base na

realidade material dos homens que será aplicada a lógica da negação da negação,

do movimento dos contrários. Em uma explicação do seria propriamente a dialética,

Engels coloca que:

Não há nada de definitivo, de absoluto, de sagrado para a filosofia dialética. Ela mostra a caducidade de todas as coisas, e pra ela nada existe senão o processo ininterrupto do surgir e do perecer, do transitório, da ascensão sem fim do inferior para o superior, da qual ela própria não é senão o reflexo do cérebro pensante. (ENGELS apud LÊNIN, 1982, p. 11)

Portanto a dialética, desentranhada de todo o idealismo hegeliano, é parte

fundamental no pensamento marxiano, inclusive de sua teoria econômica. É

associada ao materialismo que a dialética assumirá perspectivas revolucionárias.

Nesse sentido, Engels elaborou, com a aprovação de Marx, algumas leis gerais do

que ele chamou de “dialética da natureza” (KONDER, 1993). Essas leis, de acordo

com Konder, poderiam ser sintetizadas da seguinte maneira:

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1- lei da passagem da quantidade à qualidade (e vice-versa); 2- lei da interpenetração dos contrários; 3- lei da negação da negação. (KONDER, 1993, p.58)

O seguinte passo agora é mostrar como cada lei dessas se desenvolve. A primeira

lei diz respeito ao desenvolvimento das coisas. Esse desenvolvimento pode ser lento

e gradual, sendo medido quantitativamente ou rápido e radical de modo que só se

pode avaliar qualitativamente. Evidente que isso não impede a mudança lenta

somando-se a outras mudanças lentas em uma determinada coisa, de modo que o

fato passe a ter uma mudança qualitativa.

A segunda lei, da interpenetração dos contrários é a constatação que nada pode ser

analisado isoladamente. Que as coisas se inter-relacionam e intra-relacionam entre

si entre outras coisas. Essa relação, necessariamente é uma relação de

contraditoriedade. De modo que também se pode referir a essa lei como lei da

unidade e luta dos contrários (KONDER, 1993).

A terceira lei é a negação da negação, ou o movimento próprio da dialética, onde

uma antítese vem negar uma tese, e dessa negação surge uma síntese que nega a

antítese e a tese. Mas, ao negar, também essa síntese mantém elementos tanto da

tese quanto da antítese. Esse é o movimento dialético e a explicação da terceira lei

da dialética.

2.3.1.2 O Materialismo

Também da filosofia alemã, Marx vai se servir do materialismo de Feuerbach. Da

mesma forma que fez com Hegel, Marx não absorveu acriticamente o materialismo

Feuerbachiano. O entusiasmo não cegava Marx, que ao analisar o materialismo

proposto por Feuerbach percebeu suas limitações. Nas “Teses sobre Feuerbach”

encontram-se as limitações apontadas por Marx. Dentre elas pode-se destacar da

tese I que:

Até agora, o principal defeito de todo o materialismo (inclusive o de Feuerbach) é que o objeto, a realidade, o mundo sensível só são

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apreendidos sob a forma de objeto ou de intuição, mas não como atividade humana sensível, enquanto práxis, de maneira não subjetiva (MARX, 2002, p. 99)3

Essa era a principal crítica de Marx sobre o materialismo, incluindo o elaborado por

Feuerbach. Nessa primeira tese, Marx deixa evidente que o problema era não levar

em consideração a atividade humana enquanto práxis, mas apenas o pensamento

humano. Mais adiante, na V tese, Marx reforça essa primeira tese, sendo mais

específico com relação ao materialismo Feuerbachiano:

Feuerbach, que não se satisfaz com o pensamento abstrato recorre à intuição sensível; mas não considera a sensibilidade como atividade prática humana e sensível (idem, 2002, p. 101)

Marx então radicaliza o materialismo. Radicaliza no sentido de aprofundar até as

raízes mais imersas o sentido do materialismo até então em voga. Para Marx, a

filosofia materialista não pode se satisfizer com o pensamento sensível (humano)

enquanto objeto, mas deve considerar a prática humana (enquanto práxis) para ser

coerente com a sua proposta. Essas foram as contribuições da filosofia alemã.

2.3.2 A Economia Política Inglesa Como surge o interesse de Marx por economia política; já foi escrito aqui nessa

monografia que nos anos de 1842/43, quando ele estava à frente da Gazeta

Renana, ele se viu impelido a entender como funcionavam as relações comerciais. O

aprofundamento da filosofia materialista levou Marx à sua concepção de homem e

suas relações com a natureza e com outros homens. Essas relações seriam as

formas como os homens produzem e reproduzem a sua própria existência. Essas

relações seriam, em ultima instancia, relações econômicas.

Para Marx, a vida material determina a consciência e, de forma análoga, as relações

de produção determinam a superestrutura da sociedade. Essa superestrutura da

sociedade seriam as formas políticas, sociais e culturais da sociedade se organizar.

3 Grifos do autor.

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Evidentemente, isso não se daria de maneira mecânica, mas dialeticamente, ou

seja, as relações materiais de produção criam as superestruturas sociais e essas

interferem no desenvolvimento daquelas mesmas relações. O próprio Marx explica

assim:

A totalidade dessas relações sociais de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. (MARX, 1982, p.25)

Dessa maneira fica explicado então como surge a superestrutura da sociedade. De

modo que para se estudar esse surgimento não se pode em nenhum momento

perder do horizonte a concepção materialista da história e o método de analise

dialético, o que se costumou chamar de materialismo histórico-dialético.

Para estudar as relações sociais de sua época, Marx aprofundou seus estudos nos

teóricos da economia do país mais desenvolvido daquele período: a Inglaterra. A

teoria econômica marxiana não é, portanto, uma “invencionice” de uma mente

inquieta, mas fruto de um rigoroso estudo dos principais teóricos da economia

inglesa, tal como Smith e Ricardo.

Dentre as principais descobertas de Marx pode-se destacar que onde os

economistas burgueses (assim denominados por Marx) enxergavam relações entre

mercadoria, Marx percebia relações entre pessoas. E não apenas isso, pessoas que

eram transformadas em mercadorias. Ou seja, uma relação de exploração. Essa

relação de exploração não é uma exclusividade da sociedade capitalista, mas de

toda as sociedades divididas em classes sociais.

Para Marx, há duas características básicas do sistema de produção capitalista. A

primeira é a predominância de produção de mercadorias, e a segunda a produção

de mais-valia (cf. MARX, 1996, p. 77). Para Marx, a produção de mercadorias não

caracteriza o sistema capitalista por si só, mas é a predominância da produção de

mercadorias que leva a determinância dessa enquanto base do modo de produção e

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reprodução do Capital. Sobre a mais-valia, pedra angular na teoria econômica de

Marx, Sandroni (1982) define assim:

O comprador de sua capacidade de trabalho pode obrigá-lo a continuar trabalhando mesmo depois de ele [o trabalhador] ter criado um valor correspondente ao de sua força de trabalho, quando então produzirá um valor excedente ou uma mais-valia. Em síntese, o trabalhador vende sua força de trabalho pelo seu valor, mas – e aqui está o pulo do gato – o valor que a mesma produz é maior do que o valor que contém: a diferença é um valor a mais apropriado pelo capitalista gratuitamente, chamado por Marx de mais-valia. (SANDRONI, 1982, p.65)

Essas descobertas (mais-valia, “coisificação” do ser através do trabalho alienado)

submetidas ao método do materialismo histórico, permitiram a Marx dar um salto

qualitativo na elaboração de uma teoria cientifica capaz de emancipar a humanidade

de toda a opressão: o socialismo científico.

2.3.3 O Socialismo Francês

Da mesma forma que a filosofia clássica alemã e a economia política inglesa, a

literatura e o movimento socialista francês são partes integrantes e também

constituem fonte de formação do pensamento marxiano. Da mesma maneira que

aconteceu com a filosofia alemã e a economia inglesa, Marx submete a uma

rigorosa crítica a literatura socialista francesa.

A França, palco das lutas mais sangrentas contra o feudalismo, assistia agora a

dominação impiedosa da nova classe ascendente. A burguesia imprimia seu poder a

ferro e a fogo. As insígnias de liberdade, igualdade e fraternidade serviam apenas

para a classe dominante. E é essa experiência concreta que colocava a classe

operária da França na vanguarda mundial na luta contra a opressão e a exploração.

O sistema capitalista demonstrou rapidamente que, embora tenham mudado o modo

de produzir e as relações sociais, não deixaria de existir a dominação dos

exploradores sobre os explorados.

Entretanto, a literatura socialista não continha elementos científicos para rechaçar o

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domínio do Capital. Os teóricos franceses tinham o capitalismo como ruim ou mau,

mas não iam além disso. Não entendiam a mecânica do Capital, seu funcionamento

e seus segredos. Dessa maneira não poderiam fazer uma oposição conseqüente à

classe dominante. Teorizando assim uma espécie de socialismo utópico.

Marx tomou contato com o socialismo francês entre 1842/43, trabalhando na Gazeta

Renana. Em uma polemica com um periódico conservador, Marx afirma que seus

estudos não o permitiam ter uma posição definida sobre o tema. Essa é uma postura

demonstra claramente o caráter de Marx, sério e rigoroso nos seus estudos.

Somente na sua primeira e mais demorada estadia na França, em 1844, onde foi

editar os Anais Franco-Alemães com Ruge, é que Marx entra em contato com

lideranças do Socialismo francês, como por exemplo, Proudhon.

O conceito central dessa fonte para o pensamento marxiano é sem duvida a luta de

classes. Essa luta de classes tinha sua base material na propriedade privada dos

meios de produção. Marx, ao historicizar o conceito de luta de classes, fiel ao

método do materialismo histórico, reconhece na luta de classes o motor da história.

A ruptura com o socialismo utópico se dá em 1847, com o lançamento do livro “A

miséria da filosofia” em reposta ao livro de Proudhon: “Filosofia da miséria”. A

principal divergência nessa polêmica se dá no campo da economia. Marx critica

Proudhon de se apegar demasiado na questão da distribuição da riqueza, quando

na verdade, a distribuição está condicionada pela forma como se organiza a

produção. Ou seja, para Marx, Proudhon se apega na aparência, elaborando assim

uma teoria que não vai mudar o rumo do sistema do Capital, tendo em vista que a

essência vai permanecer a mesma e inatingida

2.4 Marx e os marxistas

A filosofia marxiana, ao se ocupar de entender o mundo, enxerga que o mundo só

existe na sua relação com a Humanidade. Essa relação mundo-humanidade pode

ser traduzida em suas partículas componentes: natureza-homem. Ao longo de todo

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período histórico, de acordo com a perspectiva marxiana, o homem tem que dominar

a natureza para sobreviver. Essa dominação do homem sobre a natureza só se dá

através do trabalho. Dessa relação de dominação da natureza pelo homem através

do trabalho, o homem transforma a natureza e, dialeticamente, transforma-se

também, pois ele vai conhecendo a natureza e acumulando conhecimento.

O aprofundamento da relação homem-natureza vai permitindo o desenvolvimento

econômico. Por exemplo, o homem primitivo começa a plantar e criar animais para o

abate, permitindo assim a sedentarismo, ou em outras palavras, a fixação um só

lugar. A divisão do trabalho acabou gerando as classes sociais, pois enquanto uns

plantavam, outros cuidavam dos animais e terceiros apenas diziam que eram donos

tanto da terra em que se plantava quanto dos animais que comeriam. Dessa relação

entre os proprietários dos meios de produção da vida material e os proprietários

somente de sua força de trabalho surge a exploração do homem sobre o homem.

Dessa constatação, Marx concluirá que a história da humanidade é a historia da luta

de classes.

Estudando a historia da humanidade, Marx vai identificar as duas principais classes

em luta no capitalismo: a burguesia (proprietária dos meios de produção da vida

material) e o proletariado (proprietário apenas de sua força de trabalho). Todo o

aprofundamento dos estudos de Marx vai servir de instrumentação teórica para a

emancipação da classe operária, logo de toda a humanidade. A elaboração do

socialismo cientifico vai ser a sustentação teórica para a tomada do poder pela

classe operaria. Essa elaboração cientifica do socialismo vai sintetizar o

conhecimento até então acumulado pela humanidade. Nas palavras de Lênin (1982):

A doutrina de Marx é onipotente porque é exata. É completa e harmoniosa, dando aos homens uma concepção integral do mundo, inconciliável com toda a superstição, com a reação, com toda a defesa da opressão burguesa. O marxismo é o sucessor legitimo do que de melhor criou a humanidade no século XIX: a filosofia clássica alemã, a economia política inglesa e o socialismo francês.

Desse modo, Marx coloca a ciência a serviço da classe trabalhadora, municiando-a

para a luta de classes. Acontece que Marx morreu em 1883, mas sua morte não

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interrompeu a história nem a luta de classes. Nesse sentido, admite-se aqui a

necessidade de continuar sua obra, seja ela teórica ou prática. Os meios de

produção da vida material continuaram e continuam sendo propriedade privada, o

que permite até hoje a exploração do homem sobre o homem.

Se por um lado Marx renegava o termo marxismo, e o mesmo tenha sofrido muitas

deturpações ao longo do século XX por conta do stalinismo, hoje se pode voltar a

denominar assim (de marxistas) os que acreditam na emancipação humana,

baseado nas premissas que o estudo de Karl Marx e Friedrich Engels legaram para

a humanidade, mais especificamente para a classe operária.

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3 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO DE TRABALHO EM MARX

Esse capítulo tem por finalidade colocar o entendimento sobre o conceito de

trabalho elaborado por Marx ao longo de sua obra. Esse entendimento vai permear

toda a extensão desse trabalho, sendo chave para a compreensão das demais

categorias. O trabalho é um conceito chave para o entendimento do materialismo

histórico. Ao romper com o materialismo mecânico (ou vulgar), Marx pontua a

necessidade de se entender o homem através de sua práxis e não idealizar um

homem perfeito (Cf. Teses sobre Feuerbach, 2002). O materialismo histórico busca

entender o Homem4 através da historia, das relações dos homens uns com os outros

e na sua relação com a Natureza, relação essa que se denomina Trabalho.

Ao aprofundar seu entendimento sobre o homem e suas relações, Marx vai constatar

que a essência humana não é algo dado, ou seja, natural, mas é construída

historicamente. Ou seja, o homem não nasce homem, mas se constrói nas relações

com outros homens e com a natureza. Essa constatação faz parte da perspectiva

filosófica de Marx, onde, ao contrário de toda a produção filosófica alemã de seu

tempo, “subia da terra ao céu” (Cf. A Ideologia Alemã, 2002), rompendo

definitivamente com o idealismo de Hegel e de toda filosofia clássica alemã.

O estudo marxiano vai procurar no início da vida humana as características que

dêem base de sustentação aos seus argumentos. Desde os tempos primitivos o

homem vem lutando para dominar a natureza para poder sobreviver. Essa é a

principal diferença entre os homens e os animais: enquanto os homens lutam para

dominar a natureza5, os animais se adaptam a ela. Nas palavras de Marx e Engels:

Podemos distinguir o homem do animal pela consciência, pela religião ou por qualquer coisa que se queira. Porém, o homem se diferencia propriamente dos animais a partir do momento em que começa a produzir seus meios de vida, passo este que se encontra condicionado por sua organização corporal. Ao produzir seus meios

4 Homem entendido aqui como sinônimo de Humanidade. 5 Não se refere a este domínio que se vê hoje. Domínio este que busca essencialmente explorar ao máximo a natureza e extrair dela a maior taxa de lucro possível.

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de vida, o homem produz indiretamente sua própria vida material. (MARX & ENGELS, 2002, p. 10) (Grifo do autor)

A produção dos meios de vida, outra coisa não é, senão a luta para dominar a

natureza. Essa produção dos meios de vida se dá através da mediação homem-

natureza, e essa mediação é denominada trabalho. E como Marx entendia o

trabalho?

Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio com a natureza. (MARX, 2010, p. 211)

Então, é justamente esse sentido de um processo mediador entre o homem e a

natureza. É a ação do homem sobre a natureza. Há uma pequena polêmica aqui.

Foi dito que a essência humana estaria na relação do homem com os outros homens

e com a natureza. Ora, também os animais não mantêm relações com a natureza?

O próprio Marx responde a questão da seguinte forma:

Pressupomos o trabalho sob a forma exclusivamente humana. Uma aranha executa operações semelhantes às de um tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo de trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apena o material sobre qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem que subordinar à sua vontade. (MARX, 2010, p. 212)

Há duas considerações a serem feitas do trecho extraído. A primeira é que o

homem, ao longo de seu processo histórico, ao transformar a natureza se transforma

também. Em outras palavras, ao trabalhar, o homem transforma a natureza e

acumula conhecimentos sobre essa determinada natureza, o que lhe permitirá

continuar a transformar a natureza a partir desses conhecimentos acumulados. Esse

acúmulo de conhecimento permite o homem ampliar suas necessidades e suas

possibilidades, dessa forma ele acaba se transformando. A segunda constatação é

que essa mediação do homem com a natureza e sua conseguinte transformação

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permitiu, e ainda hoje permitem o desenvolvimento de novos meios de vida ou das

forças produtivas, bem como de outros complexos sociais. Isso é a diferença cabal

entre o homem e o animal, tal como formiga ou abelha. Os homens desenvolvem a

si e a sociedade nessa relação com a natureza, as formigas e as abelhas

continuarão a produzir formigueiros e colméias da mesma forma, sempre se

adaptando à natureza.

O desenvolvimento humano vai ter por base a sua relação com a natureza, ou seja,

o trabalho. Para deixar de ser nômade, o homem precisou dominar a agricultura,

domesticar animais e a dominar a técnica da caça. Concomitantemente à dominação

dessas práticas há um aprofundamento da divisão social do trabalho. E esse é tema

para o próximo sub-capítulo.

Antes de passar a divisão social do trabalho, é preciso colocar que esse capítulo

destinado a discutir o conceito de trabalho em Marx contém uma série de limitações,

que não cabe aqui relacionar, mas que pretende, fundamentalmente dar conta de

pelo menos três análises de Marx sobre o trabalho: divisão social do trabalho,

trabalho alienado e trabalho imaterial. Esses vão ser os pontos tocados daqui por

diante.

3.1 A divisão social do trabalho

Nos tempos primitivos, onde o domínio do homem sobre a natureza era ínfimo, os

homens viviam basicamente da colheita de alimentos. Praticamente não havia

divisão do trabalho social, onde todos colhiam e todos comiam. O desenvolvimento

das formas de prover a vida, ou seja, o domínio da natureza, através do trabalho,

permitiu ao homem plantar, criar animais e caçar. De posse desses novos meios de

prover a vida, a humanidade tinha o que era preciso para fixar residência.

A fixação de residência foi uma conseqüência do desenvolvimento das formas de

prover a vida, assim como o surgimento da propriedade privada. Com a propriedade

privada a separação entre os que produziam e os que se alimentavam do trabalho

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dos outros começou a se acentuar. Marx coloca que a

(...) divisão do trabalho e propriedade privada soa expressões idênticas, na primeira se enuncia, em relação à atividade, aquilo que na segunda é enunciado em relação ao produto dessa atividade (MARX & ENGELS, 2002, p. 28)

O desenvolvimento da propriedade privada vai impulsionar a humanidade para o

modo de produção escravista6. Se antes a produção comum (colheita) era

propriedade comum, agora com a propriedade privada além do produto não ser

comum, também o produtor tem um dono. Este era submetido pela força. Mas antes

de analisar o modo de produção escravista é preciso não perder do horizonte que:

Enquanto a divisão social do trabalho, quer se processe ou não através da troca de mercadorias, é inerente às mais diversas formações econômicas da sociedade, a divisão do trabalho na manufatura é uma criação específica do modo de produção capitalista. (MARX, 2010, p. 414)

Logo, toda forma social de se relacionar com a natureza contém uma divisão social

do trabalho própria, inerente ao seu desenvolvimento. É com o advento da

propriedade privada que a exploração do homem sobre o homem surge e vai se

acentuando cada vez mais e se desenvolvendo na historia até chegar ao

capitalismo.

A lógica do modo de produção escravista era a seguinte: senhores associados

criavam um Estado para manter a escravidão e conquistar mais terra e mais

escravos. Esse Estado possuía dois principais funcionários: guerreiros e cobradores

de impostos. O desenvolvimento desse modo de produção criou impérios muito

grandes e o número de escravos era enorme (cf. LESSA & TONET, 2004, p. 34).

Acontece que há aqui um grande entrave. Os escravos não tinham o menor

interesse em ampliar a produção, pois nada recebiam em troca disso. Então, as

relações de produção entram em conflito com a superestrutura do modo de

produção escravista. Dessa maneira, não havia guerreiros suficientes para manter o

enorme quantitativo de escravos arregimentados através das guerras. As rebeliões e

6 Modo de produção é como a humanidade organiza a produção da sua vida material, grosso modo.

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as invasões “bárbaras” foram fatores que contribuíram para o declínio do modo de

produção escravista, pois o Estado não dava conta de atuar em diversas frentes de

batalha.

Marx coloca no Manifesto do Partido Comunista, que a transformação da sociedade

se dá através de uma Revolução Social ou da dissolução das classes envolvidas no

conflito. Nas suas palavras:

(...) Opressores e oprimidos sempre estiveram em constante oposição; empenhados numa luta sem trégua, ora velada, ora aberta, luta que a cada etapa conduziu a uma transformação revolucionária de toda a sociedade ou ao aniquilamento das duas classes em confronto. (MARX & ENGELS, 2006, p. 24)

E foi essa segunda opção que se concretizou com o fim do modo de produção

escravista. Com a inexistência de uma classe revolucionária, as classes

dissolveram-se e a sociedade escravista sucumbiu de modo lento e caótico. Os

meios de circulação dos produtos ficaram a mercê da bandidagem, dos saques e

das pilhagens. O comércio travou, as grandes cidades desapareceram.

A corrida por segurança fez com que os senhores se estabelecessem no campo, em

fortificações auto-sustentáveis. Fortificações que ficaram conhecidas por feudo.

Nessa nova sociedade as relações serão de interdependência, pois o senhor feudal

acolherá o servo no seu feudo, oferecendo-lhe segurança, em troca de uma parte da

produção do servo. Evidentemente, essa situação não era da escolha nem do servo,

nem do senhor feudal, mas uma conseqüência do processo histórico anterior. E

como se dividia o trabalho nessa nova forma de organização social?

Como a propriedade da tribo e da comuna, esta (propriedade feudal)7 repousa por sua vez, sobre uma comunidade em face da qual não são mais os escravos, como no antigo sistema, mas sim pequenos camponeses submetidos à servidão que constituem a classe diretamente produtiva. Simultaneamente à completa formação do feudalismo salienta-se ainda a oposição às cidades. (...) Essa estrutura feudal, exatamente do mesmo modo que a antiga propriedade comunal era uma associação contra a classe produtora

7 Complemento do autor da monografia.

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dominada, só que a forma de associação e as relações com os produtores são diferentes pelo fato de o serem as condições de produção. (MARX & ENGELS, 2002, p. 16)

Conclui-se a partir da citação que a vida feudal tem suas determinações nas bases

econômicas. Embora haja qualquer coisa de semelhante entre a propriedade feudal

e a tribal (comunal), as relações sociais são totalmente distintas, pois o modo de

produzir é distinto e consequentemente a divisão social do trabalho é distinta.

A posse dos meios de produção, a taxação da produção são algumas das

especificidades do modo feudal de produzir. Embora dependente do senhor feudal, o

servo não era sua posse, mesmo constituindo-se em classe explorada no

feudalismo. Toda a nobreza era sustentada pelo trabalho dos servos.

Embora haja no feudalismo predominância do campo sobre a cidade, essa ultima

nunca deixou de se desenvolver. Mesmo com a crise vivida pelos impérios,

principalmente o romano, algumas cidades sobreviveram ao assédio dos “bárbaros”

e a incursão dos senhores para o campo. Ainda assim a cidade também se

organizava de acordo com o feudo, segundo Marx e Engels:

À essa estrutura feudal da propriedade fundiária correspondia, nas cidades, a propriedade corporativa, organização feudal do oficio artesanal. Na cidade, a propriedade consistia principalmente no trabalho de cada individuo: a necessidade de associação contra os nobres pilhadores conluiados, a necessidade de construções comunais para as atividades mercantis numa época que o industrial era também o comerciante, a concorrência crescente dos servos que fugiam em massa para as cidades prósperas, a estrutura feudal de todo o pais – isso tudo fez surgir as corporações. (MARX & ENGELS, 2002, p. 16/17)

Dessa maneira pode-se perceber que o sistema feudal, embora fechado em si

mesmo no campo, dava possibilidades de crescimentos das cidades. Mesmo que

esse movimento fosse embrionário no início do feudalismo, foi uma das causas da

derrocada do mesmo sistema feudal.

O sistema feudal teve duas principais causas que contribuíram para seu declínio: o

crescimento populacional e a produção de excedentes (LESSA & TONET, 2004). O

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crescimento populacional contribuía para o declínio do sistema feudal na medida em

que os feudos não conseguiam absorver toda a mão-de-obra. Dessa forma a mão-

de-obra excedente, ao passo que produzia mais – e também esse excedente de

produtos não era absorvido pelo feudo – era obrigada a sair/fugir ou serem expulsos

dos feudos. Essa população crescente povoava ainda mais as cidades e o

excedente da produção feudal contribuía para o florescimento do comércio. Assim a

economia de subsistência feudal estava minada pela contradição das relações de

produção e o modo de produzir sua própria existência. Forjou-se nesse processo a

classe revolucionária que poria fim no feudalismo: a burguesia.

O capitalismo, novo modo de produção instaurado pela via revolucionaria, trouxe

novas relações sociais (que existiam apenas em embrião no fim do feudalismo). A

burguesia possuía agora os meios de produção e é também detentora da força de

trabalho, através do sistema de salários. A burguesia passa de classe revolucionaria

no feudalismo para classe dominante no capitalismo. E junto com essa nova classe

dominante surge aquela que tem o papel histórico de acabar com as contradições de

classe: o proletariado.

As relações sociais e sua conseqüente divisão do trabalho se darão nos seguintes

termos: a burguesia detém todos os meios de produção na nova sociedade, criando

assim uma imensa massa de despossuídos de tudo, exceto a sua força de trabalho,

que será comprada por um burguês. Marx e Engels colocam as coisas do seguinte

modo:

Enfim, a divisão do trabalho nos oferece imediatamente o primeiro exemplo do seguinte fato: enquanto os homens permanecerem na sociedade natural, portanto, enquanto há cisão entre o interesse particular e o interesse comum, enquanto, portanto também a atividade não é dividida voluntariamente, mas sim naturalmente, a própria ação do homem se transforma para ele em força estranha , que a ele se opõe e o subjuga, em vez de ser por ele dominada. (MARX & ENGELS, 2002, p. 28)

A qual sociedade natural que Marx e Engels se referem? Não é outra, senão a

atividade natural dentro de qualquer modo de produção estudado. Em outras

palavras, um servo nasce servo e deve naturalmente trabalhar como servo. O

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mesmo vale pro trabalhador no modo capitalista de produção, reservado as suas

peculiaridades, como por exemplo, o aprofundamento da divisão do trabalho leva a

especialização a uma esfera exclusiva da produção. Essa extrema divisão do

trabalho leva a especialização cada vez maior e é diretamente proporcional a

alienação do trabalho diante do produto final do seu trabalho.

3.2 O Trabalho Alienado

Já foi dito que o homem transforma-se ao passo que transforma a natureza pelo

trabalho. Acontece que com a divisão do trabalho e a conseqüente exploração do

homem sobre o homem, o trabalho ganha novos contornos. O homem passa a não

se reconhecer no produto final do seu trabalho, nem mesmo no processo de

produção dos produtos, tendo em vista que desde o início da divisão natural do

trabalho e não mais voluntária (já foi dito sobre isso no sub-capítulo anterior), o

homem não mais trabalha para seu auto-desenvolvimento, mas para sustentar toda

uma classe dirigente da sociedade que vive da exploração do trabalho alheio. De

acordo com Marx:

Afirmar que a vida física e espiritual do homem e a natureza são interdependentes significa apenas que a natureza se inter-relaciona consigo mesmo, já que o homem é uma parte da natureza. Já que o trabalho alienado aliena a natureza do homem, aliena o homem de si mesmo, o seu papel ativo, a sua atividade fundamental, aliena do mesmo modo o homem a respeito de sua espécie. (MARX, 2002, p. 116)

Para exemplificar a citação acima, a analise do modo de produção escravista vai

bem no limite da alienação, já que o homem que trabalhava no sistema escravista é,

ele mesmo, alienado de sua condição humana.

A alienação é um fenômeno pelo qual o homem não se reconhece no produto final

de seu trabalho e nem mesmo no processo. Marx coloca a questão da seguinte

forma:

Mas em que consiste a alienação do trabalho? Em primeiro lugar, o trabalho é exterior ao trabalhador, ou seja, não pertence à sua característica; portanto, ele não se afirma no trabalho,

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mas nega-se a si mesmo, não se sente bem, mas infeliz, não desenvolve livremente as energias físicas e mentais, mas esgota-se fisicamente e arruína o espírito. (MARX, 2002, p. 114)

Dessa maneira, o trabalho aparece como um trabalho forçado, imposto para o

trabalhador como forma do mesmo prover sua vida, ou antes, a sua subsistência. E

sobre a exterioridade do trabalho, Marx afirma que:

A exterioridade do trabalho para o trabalhador transparece no fato de que ele não é o seu trabalho, mas de outro, no fato que não lhe pertence, de que no trabalho ele não pertence a si mesmo, mas a outro. (MARX, 2002, p. 114)

A alienação em Marx é a perda da humanidade do trabalhador. É o trabalhador

transformado em mercadoria e tendo um valor-de-troca. E, ao passo que trabalhador

cria riqueza é diretamente proporcional a criação de sua miséria. Portanto, o

capitalista não rouba apenas economicamente, mas o rouba em sua humanidade.

O processo de alienação não é uma característica da essência humana, não está

dado, mas é fruto das relações sociais de produção e do seu desenvolvimento

histórico. O capitalismo é fruto da história dos homens, da história da luta de classes.

A apropriação dos meios de produção pela burguesia foi condição para o

desenvolvimento do capitalismo, e até certo ponto da própria sociedade. A força de

trabalho também é adquirida pelo burguês gerando assim o fenômeno da alienação

do trabalho, por meio da estranheza do produto final e do próprio processo de

produção no trabalhador.

3.3 Trabalho Imaterial

Antes de iniciar a discussão sobre o trabalho material e imaterial, é preciso não

perder do horizonte que as idéias de uma época são as idéias da classe dominante.

Dito isso, analisar-se-á a produção de idéias, ou o também chamado trabalho

imaterial.

Marx dedica no livro “A Ideologia Alemã” um capítulo sobre a produção da

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consciência. Essa produção da consciência está condicionada pela forma como a

sociedade organiza a sua produção material, e só pode ser entendida

contextualizada historicamente, Nas palavras de Marx:

Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes; em outras palavras, a classe que é o poder material da sociedade é também o poder espiritual dominante. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe também dos meios de produção intelectual (...) (MARX & ENGELS, 2002, p.48)

Então não apenas os meios materiais estão sob o controle de uma classe

dominante, mas também os meios “espirituais”. Ou seja, para manter, legitimar sua

dominação, os dominados precisam pensar como os dominadores. Dessa forma,

toda a produção artística, toda a produção intelectual precisa estar de acordo com os

princípios da classe dominante.

Nesse processo inclui-se a educação. A educação vai tornar-se o principal, ou um

dos principais mecanismos para legitimar a dominação através da adequação dos

sujeitos à vida social. Contextualizando a educação no sistema capitalista, como as

condições materiais vão determinar a produção imaterial? Dependendo do interesse

da burguesia e do desenvolvimento das forças produtivas, ampliarão as escolas

técnicas para a formação de mão-de-obra competente para o trabalho industrial ou

darão uma formação geral básica para aqueles trabalhadores que não precisarão de

uma qualificação especifica para o trabalho industrial – esses dois tipos de educação

são exemplos, podendo a classe dominante ampliar essas opções para a classe

trabalhadora. Trocando em miúdos, a educação obedecerá ao desenvolvimento das

forças produtivas e os interesses da burguesia na qualificação da mão-de-obra.

Evidentemente que se analisou a escola para o filho do trabalhador, mas também a

burguesia precisa de uma escola para seus filhos, precisa formar os novos dirigentes

da sociedade, do Estado burguês, das fábricas e os idealizadores da cultura ou da

indústria cultural.

Da mesma maneira a ciência vai ser dominada pela perspectiva burguesa. Apenas

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os estudos que possam trazer algum tipo de lucro imediato vão ser financiados. Não

porque a classe dominante seja ruim ou perversa, mas a sua essência é querer

acumular cada vez mais Capital e não pensar no bem-estar da humanidade. As

pesquisas que desenvolvem tecnologia para ampliar a exploração da classe

trabalhadora, extraindo uma maior taxa de mais-valia, terão prioridade sobre aquelas

que visem explicar a sociedade capitalista moderna.

Os valores e as idéias dominantes, determinados pelo modo de produção da vida

material, no capitalismo são a competitividade, o individualismo, o egoísmo e estão

por toda a parte. Os meios de produção espiritual estão nas mãos da burguesia: o

cinema, a televisão, os jornais, os teatros, a escola, etc. Esses veiculam o espírito

mesquinho do burguês. Ademais, pode o trabalhador pensar sobre tudo isso depois

de sua estafante jornada de trabalho? Ou apenas a classe que vive da exploração

do trabalho assalariado pode se dar ao luxo de produzir a vida espiritual da

sociedade? Diante do exposto, parece obvia as respostas dessas questões.

4 O TRABALHO COMO PRINCIPIO EDUCATIVO EM UMA PERSPECTIVA MARXIANA

Depois de entendida a perspectiva de trabalho adotada nesse trabalho (Cf. capítulo

anterior), buscar-se-á entender de que forma o conceito de trabalho aparece na

perspectiva marxiana enquanto princípio educativo. Para isso esse sub-capítulo será

dividido em três: a) o que é o princípio educativo?; b) o princípio educativo ao longo

da história (ou, dos pressupostos para efetividade do princípio educativo); c)

exigências para a efetividade do trabalho enquanto princípio educativo na

perspectiva marxiana. Essa subdivisão permitirá otimizar os argumentos

apresentados e segue as seguintes justificativas: i) definir o que é um princípio

educativo. Essa definição permitirá uma maior clareza ao procurar pelo tema na

vasta obra marxiana eem autores marxianos; ii) como o princípio educativo se

desenvolve na prática. Uma analise desse desenvolvimento ao longo da história; iii)

Mozilla Firefox (2).lnk como se dará o trabalho, entendido aqui tal como Marx o

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conceituou ao longo de sua obra e já discutido no capítulo anterior. Na verdade esse

sub-capitulo tentará ser uma síntese dos dois sub-capítulos anteriores e o II capítulo,

sobre trabalho.

4.1 O que é um princípio educativo?

Não há, na bibliografia (destinada à educação) pesquisada pelo autor desse

trabalho, uma definição sobre o que é um princípio educativo. Paradoxalmente,

existem muitos trabalhos sobre qual deveria ser o princípio educativo de uma

educação emancipatória ou mesmo sobre o princípio educativo para uma educação

mais eficaz nos marcos do capital. Em acordo com a proposta desse trabalho que,

ao tratar do pensamento marxiano trata inexoravelmente de uma perspectiva

transformadora da sociedade, o mesmo dará prioridade no tratamento os autores

que escrevem sobre princípio educativo nessa perspectiva (de uma educação

emancipatória), o que não exclui as outras abordagens, evidentemente.

Antes de qualquer coisa, tem-se que entender que o princípio educativo é utilizado

na literatura pedagógica como sinônimo de norteador das ações educacionais. Mas

não foi encontrada na pesquisa nenhuma definição para a expressão. Há autores

que defendem que o principio pode ser individual (implantado na sala de aula pelo

professor) e outros que defendem que o princípio educativo seja algo que emana do

conjunto das relações sociais de produção, ou seja, é uma criação social, logo

coletiva. Partindo dessas duas perspectivas sobre o princípio educativo (individual e

coletiva), será necessário uma analise mais detalhada de ambos para identificar

aquela perspectiva que mais se aproxima do método marxiano de entender a

realidade.

Analisando a “perspectiva individual”, pode-se referenciar em Pedro Demo, que

defende que a pesquisa pode ser implantada como princípio educativo. De acordo

com Demo, em seu livro “Pesquisa: princípio cientifico e educativo”, coloca que:

A idéia é fundamentar proposta de teoria e prática da pesquisa que ultrapasse os muros da academia e da sofisticação instrumental. É

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possível desenhar o alcance alternativo da pesquisa, que a tome como base não somente das lides cientificas, mas também do processo de formação educativa, o que permitiria introduzir a pesquisa já na escola básica, a partir do pré-escolar e considerar atividade humana processual pela vida afora. (DEMO, 1999, p. 9)

A citação de Demo é um exemplo do princípio educativo pensado individualmente,

para ser implantado na escola como uma técnica a ser utilizada pelos professores.

Antes de estudar as possibilidades, limites e as conseqüências dessa perspectiva, é

interessante citar também a outra perspectiva, denominada aqui de coletiva, de

modo que facilite o dialogo entre esses dois pontos de vista sobre o princípio

educativo. Nesse sentido, o teórico e revolucionário italiano Gramsci, em sua obra

“Os Intelectuais e a Organização da Cultura”, coloca que:

Na velha escola, o estudo gramatical das línguas latinas e grega, unido ao estudo das literaturas e historia políticas respectivas, era um princípio educativo na medida em que o ideal humanista, que se personificava em Atenas e Roma, era difundido em toda, a sociedade, era um elemento essencial da vida e da cultura nacionais. (GRAMSCI, 1995, p.133)

A partir dessas duas citações, que representam duas perspectivas sobre o princípio

educativo, é que se investigará as suas matizes e suas distinções, apresentando o

suporte teórico de ambas, no entendimento do autor desse trabalho.

É preciso, ainda, identificar, de modo que fique evidente, que ambas as citações

encerram em si diferenças de concepção de mundo. A “perspectiva individual” de

Demo parte da relação professor-aluno tomada isoladamente, ou seja, fora da

história, como um princípio universal que deve ser executado por todos os

professores em quaisquer realidades. Para tanto o que deve mudar na educação é o

próprio professor. De acordo com Demo:

Desafio concreto será que o professor passe a “elaborar” suas aulas, com mão própria, acrescentando, sempre que possível e couber, pelo menos sínteses pessoais. Fazer apostilas pode ser algo barato e mesmo simplificação irresponsável, mas pode também ser o início da construção de caminho próprio. Em vez de ser apenas intérprete externo do livro didático, o professor deveria ser o próprio livro didático. Trata-se de conseguir convivência produtiva com ele, entendendo-se aí pesquisa sobretudo como dialogo com a realidade, recriado sempre pelo professor, com apoio do livro didático, que

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possa ser referencia relevante, nem mais nem menos. (DEMO, 1999, pp. 85-86)

Nesse caso, de acordo com Demo, a pesquisa como princípio educativo deve ter

seu ponto de partida e de chegada o próprio professor e sua prática, servindo de

exemplo para os estudantes.

Com isso muda o ambiente de aula, porque, alem de entrar nela o compromisso da pesquisa, os alunos passam a conviver com o bom exemplo do professor em termos de qualidade formal e política. (DEMO, 1999, p. 86)

Eis aqui o principio educativo baseado unicamente na mudança de atitude do

professor. Eis aqui uma proposta que isola a escola e suas relações do seu contexto,

ignorando a processualidade histórica e propõe uma solução quase mágica (pois

depende unicamente do “bom senso” dos professores adotarem, ou seja,

subjetivista) para a efetivação da aprendizagem. Nessa “perspectiva individual”, a

educação pode ser transformada se o conjunto dos professores mudarem sua

prática.

Contrapondo-se a essa forma de entender a realidade da escola e propor

mudanças, Kuenzer (1989) defende que:

Enquanto não ultrapassar esta perspectiva, passando-se a desenvolver as analises da perspectiva externa à escola, ou seja, a partir das relações sociais de produção, dificilmente serão encontradas as soluções para o impasse que hoje caracteriza o ensino de 2º grau. (KUENZER, 1989, p. 22) (grifo nosso)

A perspectiva que deve ser ultrapassada, segundo Kuenzer, é a que se encerra na

escola, aquela que tem seu inicio e fim na própria escola, ou seja, a “perspectiva

individual” defendida pelo professor Demo. A “perspectiva individual” encontra-se no

campo da filosofia idealista, pois ignora a realidade concreta (histórica) e busca um

princípio educativo ideal para que se encaixe em qualquer realidade. As próprias

contradições da filosofia idealista impõem limites muito evidentes para a sua

concretização na realidade. Kuenzer entende a escola, ou melhor, seu princípio

educativo, como que emanado das relações sociais de produção. Dessa maneira,

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com o desenvolvimento das forças produtivas e as conseqüentes transformações

nas relações sociais (esse movimento não é mecânico, nem determinista, pois a

mudança de um desses fatores implica a mudança do outro. Ambos estão mudando

todo o tempo, e suas transformações influenciam o outro fator. Em uma palavra,

força produtiva e relação social são determinantes reflexivas, no dizer de Lessa

(2001) vão moldando o princípio educativo de uma determinada época histórica:

(...) uma vez que, a cada estágio de desenvolvimento da sociedade corresponde a um determinado princípio educativo, a partir do qual a sociedade formará seus intelectuais, segundo suas necessidades, através da escola. (KUENZER, 1989, p.23) (grifo nosso)

A partir desse entendimento, de que o princípio educativo vai ser orientado a partir

do grau de desenvolvimento das forças produtivas (ou da própria sociedade),

Kuenzer aproxima sua análise das teorias gramscianas, onde o próprio afirma que:

Na realidade, toda geração educa a nova geração, isto é, forma-a; a educação é uma luta contra instintos ligados às funções biológicas elementares, uma luta contra a natureza, a fim de dominá-la e de criar o homem “atual” a sua época. (GRAMSCI, 1995, p. 142)

A sintonia da formulação de ambos é perfeita. A formação dos intelectuais segundo

as necessidades da sociedade é justamente a “criação” do homem “atual”. Nessa

“perspectiva coletiva”, em que o princípio educativo surge das relações sociais não

há espaços para “invencionices” da cabeça dos teóricos; não se inventa um principio

educativo, mas desvenda-se, procuram-se suas conexões com a realidade dada (ou

o grau de desenvolvimento das forças produtivas).

De uma maneira geral, acredita-se que estão apontadas as linhas gerais para

responder a questão colocada como tópico desse texto, a saber, o que é um

princípio educativo? Não há uma discussão muito ampla acerca da questão, pois a

maioria dos autores toma princípio educativo como algo dado, norteadores de uma

educação; como ações que orientam a prática pedagógica (uma espécie de senso

comum pedagógico). Parece, no entanto, mais coerente entender princípio educativo

como um conceito gestado na estrutura social e que orienta a educação numa dada

sociedade, em um dado estágio do desenvolvimento social dessa sociedade. O

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princípio educativo é gerado nas relações sociais de produção, independente da

vontade dos homens, mas ao mesmo tempo produto dessas vontades. Dito de outra

forma, os princípios que orientarão a educação (formal e informal) surgem nas

relações sociais de produção; para dar um exemplo, pode-se dizer que as

necessidades da classe dominante (necessidades materiais) para um determinado

período histórico podem balizar um princípio da educação formal8. Da mesma

maneira que as idéias dominantes imprimem sua marca nas crianças assim que as

mesmas começam a interagir, o fazem exteriorizando os valores burgueses, no caso

de crianças nascidas sob a égide do modo capitalista de produção. As crianças

internalizam com facilidade o racismo, homofobia, machismo, competitividade,

mesquinhez, etc.

4.2 O Princípio Educativo ao longo da História (ou dos pressupostos para efetivação do princípio educativo)

Partindo do entendimento que o princípio educativo de uma determinada educação

situada em uma determinada forma de sociabilidade emana das relações sociais de

produção, estas seriam então as condições (ou pressupostos) para a efetividade de

um princípio educativo.

Diante do exposto, cada forma de sociabilidade humana conheceu um determinado

princípio educativo. Evidente, que também aqui se entende que pode-se explicar o

mais elementar pelo mais complexo; ou seja se existiu (ou existe) formas de

educação que não atendem o princípio educativo dominante na sociedade, essas

serão formas secundárias e que, em última instância, não impedirão o princípio

educativo dominante de se expressar na maior parte da educação organizada pelo

Estado, ou direcionada pelo mesmo.

É em acordo com esse entendimento que a análise que se segue busca entender as

formas que se imbricam as relações sociais de produção e o princípio educativo que

8 A necessidade de obter mão-de-obra especializada para desenvolver a indústria pode nortear a priorização da escola técnica, como se pode observar no Brasil hoje com a implantação dos Institutos Federais (IF´s) e o incentivo à iniciativa privada nesse setor, via PRONATEC (http://pronatecportal.mec.gov.br/tecnico.html)

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emerge das relações de produção. Essa análise só pode ser uma análise histórica,

baseada na filosofia materialista e tendo o método dialético como suporte.

4.2.1 A educação nos primórdios da humanidade

Partindo do entendimento que o princípio educativo tem a sua origem nas relações

sociais de produção, pode-se perceber que ao longo da história da humanidade

existiram diversos princípios educativos. E essa relação será submetida à análise

nesse sub-capitulo.

Para entender a relação entre a educação (e seu princípio educativo) e o homem,

tem que se buscar suas imbricações mais remotas. Nesse sentido, Saviani aponta

que:

Se a existência humana não é garantida pela natureza, não é uma dádiva natural, mas tem de ser produzida pelos próprios homens, sendo pois, um produto do trabalho, isso significa que o homem não nasce homem. Ele não nasce sabendo produzir-se como homem. Ele necessita aprender a ser homem, precisa aprender a produzir sua própria existência. Portanto, a produção do homem é ao mesmo tempo, a formação do homem, isto é, um processo educativo. A origem da educação coincide, então, com a origem do homem mesmo. (SAVIANI, 2007, p. 154)

De acordo com Saviani então, pode-se afirmar que a origem do homem coincide

com a origem da educação. O homem se produz homem na sua relação com outros

homens e com a natureza, através do trabalho. Dessa forma, pode-se afirmar

também que o trabalho funda o ser social (LESSA, 2001). Logo, ser social e o

trabalho fazem parte da mesma esfera ontológica. E o professor Saviani acrescenta,

com argumentos sólidos e consistentes, a educação a essa mesma esfera

ontológica.

Mas qual o princípio educativo orientava a educação nos primórdios da

humanidade? Esse é o primeiro passo para se entender a complexificação da

educação ao longo da história. Se o princípio educativo é em grande medida

determinado pelas relações sociais de produção, essas relações só podem ser

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compreendidas na análise do grau de desenvolvimento das forças produtivas. Nas

comunidades primitivas o desenvolvimento das forças produtivas era mínimo, logo o

princípio educativo imbricava-se com a própria educação e a vida dos seres: “nas

comunidades primitivas o ensino era para a vida e por meio da vida” (PONCE, 2007,

p.19) (grifo do autor). Até mesmo o grau de organização educacional se encontrava

no mesmo patamar do nível de desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, no

seu grau mínimo, como coloca Ponce: “A sua educação não estava confiada a

ninguém em especial, e sim a vigilância difusa do ambiente” (PONCE, 2007, p. 18)

(grifo do autor). Esse era o quadro da educação nos primórdios da humanidade. Dito

de outra forma, Saviani coloca que:

Lidando com a terra, lidando com a natureza, se relacionando uns com os outros, os homens se educavam e educavam as novas gerações. À medida em que ele se fixa na terra, que então era considerada meio de produção, surge a propriedade privada. A apropriação privada da terra divide os homens em classes (SAVIANI, 2009, 152).

Com a citação acima, Saviani concorda com Ponce acerca da educação nos

primórdios da humanidade no sentido de colocar a educação numa condição

“natural”, ou seja, ocorre ao mesmo tempo em que a produção social acontece, ao

passo que a mudança do princípio educativo vai se dar concomitantemente à

passagem dos comunismo primitivo para a sociedade escravista.

Portanto, nos primórdios da humanidade, os homens ao tornarem-se homens

através de suas relações com outros homens e com a natureza, produziam a si

mesmos através do trabalho e da educação e a história como o conjunto dessas

produções individuais. O princípio educativo nesse período se confunde com a

própria educação, pois o que orientava o processo educativo era a luta pela

sobrevivência e a educação em si era justamente isso: aprender as técnicas

adquiridas pelas gerações anteriores para fazer a manutenção da vida.

4.2.2 O Mundo Antigo e o princípio educativo

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De acordo com o professor Saviani (2009), a fixação do homem na terra, ou seja,

sua sedentarização, determina a apropriação privada da terra, dando condições para

a criação das classes sociais. É fundamental entender essa mudança, de modo que

sem compreender essa mudança no modo de produção, primitivo para o escravista,

ficará prejudicado o entendimento da mudança do princípio educativo. Para ilustrar

essa questão, Ponce escreve:

Este conceito de educação, como uma função espontânea da sociedade, mediante a qual as novas gerações se assemelhavam às mais velhas, era adequado para a comunidade primitiva, mas deixou de sê-lo à medida que esta foi lentamente se transformando numa sociedade divida em classes. O aparecimento das classes sociais teve, provavelmente, uma dupla origem: o escasso rudimento do trabalho humano e a substituição da propriedade comum pela propriedade privada (PONCE, 2007, 22)

Dessa maneira, Ponce e Saviani concordam que a principal razão da passagem do

modo primitivo para o modo escravista de produção é a criação da propriedade

privada e sua conseqüente divisão da comunidade em classes sociais. Essa

passagem não se deu de modo abrupto, mas lento e gradual, de modo que não

causou nenhum tipo de resistência naqueles que estavam sendo subtraídos:

Com as rudimentares técnicas da época, o trabalho material era de tal modo cansativo que o individuo que se dedicava ao cultivo da terra, por exemplo, não podia desempenhar, ao mesmo tempo, nenhuma das outras funções que a vida tribal exigia. Portanto, o aparecimento de um grupo de indivíduos libertos do trabalho material era uma conseqüência inevitável da ínfima produtividade da força humana de trabalho. (PONCE, 2007, 22-23)

Embora essa divisão social do trabalho tenha a sua importância na constituição das

classes sociais tal como se conhece hoje, outro fator não menos importante contribui

para a cisão do gênero humano em classes sociais antagônicas: o incremento de

novas tecnologias ao processo produtivo (tal como a domesticação de animais),

permitindo assim a criação de um excedente do trabalho (Cf. PONCE, 2007, 24).

Estabelecidos então os fatores que levaram a mudança no modo de produção da

vida material dos homens, a questão agora é entender de que forma isso se alterou

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o princípio educativo anterior, ou dito de outra maneira: quais os pressupostos e qual

o novo princípio educativo gerado por esses pressupostos no mundo da produção

escravista? De uma maneira geral, Saviani responde da seguinte forma à questão:

Se antes, no comunismo primitivo, a educação coincidia inteiramente com o processo de trabalho, a partir do advento da sociedade de classes, com o aparecimento de uma classe que não precisa trabalhar para viver, surge uma educação diferenciada. E é aí que está localizada a origem da escola. A palavra escola em grego significa o lugar do ócio. Portanto, a escola era o lugar a que tinham lugar as classes ociosas. A classe dominante, a classe dos proprietários, tinham uma educação diferenciada que era a educação escolar. Por contraposição, a educação geral, a educação da maioria era o próprio trabalho: o povo se educava no próprio processo de trabalho. (SAVIANI, 2009, PP. 152-153)

Aí está o quadro geral da educação no mundo antigo. A classe dominante precisava

de uma educação diferenciada da educação dos novos despossuídos para poder

manter sua dominação. Essa complexificação da educação é imanente a

complexificação do modo de produzir a vida material. A cisão entre o trabalho

manual e intelectual cria um novo princípio educativo: uma cisão na forma de educar

as novas gerações, os que se educam na escola e os que continuam se educando

pelo trabalho. A classe dirigente precisa aprender a gerir a nova sociedade e a

classe dos escravos precisa aprender a reproduzir materialmente a sociedade.

Grosso modo, pode-se dizer que os pressupostos para a efetivação do novo

princípio educativo, a saber, a educação formal (com sua especificidade) para a

classe dominante e não-formal para os escravos, foi a própria mudança na base

material da vida social, ou, em outras palavras, na infra-estrutura social.

Embora não seja o objetivo desse trabalho ver em suas nuances particulares, ao

longo da história, como essa efetivação do princípio educativo se objetivou na

sociedade antiga, é preciso verificar duas “escolas” clássicas, de modo breve, para

ilustrar a argumentação até apresentada. As “escolas” verificadas serão as escolas

espartana e Ateniense, da Grécia antiga.

É sabido que a educação espartana exclusivamente militar. Mas essa característica

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(ou princípio educativo que a orientava sua organização dessa forma) tem uma base

material concreta. Os espartanos, cerca de 9000 habitantes, conseguiram submeter

pela força um contingente de escravos muito maior que sua população. Estima-se os

escravos em cerca de 320.000, entre Ilotas e Periecos (Cf. PONCE, 2007, 40). Esse

contingente enorme de escravos sustentava a população espartana. Para evitar que

os escravos se rebelassem, os espartanos dedicavam-se a arte militar e exercícios

físicos. Desse modo, toda a educação espartana era baseada nesse saber. Isso

justifica, inclusive, uma ignorância predominante entre os nobres espartanos, em

matéria de letras e números (Cf. Ponce, 2007, 40). Essa era a educação espartana,

e as condições concretas (a realidade) pressupõem a arte militar como princípio

educativo na sociedade espartana.

Sobre a educação ateniense, é preciso desmitificar algumas coisas. Por estarem

inseridos no mesmo modo de produção dos espartanos, os atenienses também

guardavam um desprezo pelo trabalho e pelo comércio. Da mesma forma que os

espartanos, se educavam para ser classe dirigente, logo aprendiam o oficio das

armas (embora de modo menos rigoroso que em Esparta) e era inculcado os valores

da classe dominante nos jovens através das conversas nos banquetes, do teatro e

discussões na Ágora (PONCE, 2007, 44). Mas, de preponderante a formação do

nobre ateniense era uma formação guerreira, tão bruto e ignorante quanto o

guerreiro espartano. Somente com o desenvolvimento das forças produtivas que o

cidadão ateniense começa a passar de guerreiro para se aproximar da virtude.

Ponce descreve da seguinte forma:

Nos primeiros tempos da vida ateniense, quando entre Aquiles e os Agamenons um entre cem (atenienses) sabia ler e escrever, a virtude do homem das classes dirigentes não estava muito distante do ideal guerreiro e brutal dos espartanos. Entretanto, posteriormente, quando a sociedade vai complicando sua estrutura e o trabalho dos escravos asseguraram às classes dirigentes um bem estar cada vez mais acentuado, outros elementos foram-se incorporando ao ideal de “virtude”. Desvinculada totalmente do trabalho produtivo, essas classes passaram, pouco a pouco, a considerar as atividades alheias à vida prática e às necessidades básicas, como as verdadeiramente características das classes superiores. (PONCE, 2007, p.48)

Desse modo que o desenvolvimento do escravismo em Atenas abriu novas

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possibilidades para as classes dominantes. Diferentemente de Esparta, a

complexificação da sociedade ateniense se dá com o desenvolvimento das relações

sociais. Quando a classe dirigente de Atenas livrou-se de todo o trabalho, dedicou-

se ao diagogo*. (PONCE, 2007, 48), ao invés de continuar guerreando e

conquistando mais escravos.

A educação ateniense podia buscar uma formação plena para os seus cidadãos,

mas também tem limites. Por exemplo, os atenienses menos abastados deviam

saber ler, contar e depois deveriam aprender um oficio, ao passo que os filhos dos

nobres prosseguiam estudando até a época da efebia, aos dezoito anos. Somente

os nobres podiam bancar a educação de seus filhos até a efebia. E qual princípio

educativo orientava a educação ateniense? O Estado ateniense apenas se ocupava

da educação de seus cidadãos a partir dos dezoito anos, na efebia,e só podia tornar-

se efebo quem tivesse concluído o ensino básico ou “ginásio”. Na efebia, os

estudantes aprendiam a guerrear e a governa (ou seja, seu princípio educativo era

muito parecido com o espartano). Sobre o ginásio:

A “liberdade” de ensino não implicava, portanto, a liberdade de doutrina. O professor não moldava os seus discípulos de acordo com as próprias concepções; devia formar neles os futuros governantes e inculcar neles, pela mesma razão, o amor à pátria, às instituições e aos deuses. (PONCE, 2007,50)

Ou seja, havia pouca coisa de democrático na educação ateniense, que estava

complemente a serviço da classe dominante de Atenas. Negar isso é negar a história

e também negar que, ao tornar-se a educação uma forma superestrutural, sendo

dirigida pela classe dominante, seria no mínimo ingenuidade pensar que a educação

fosse algo neutro ou feito para todas as classes.

4.2.3 O Feudalismo

O mundo escravista antigo desapareceu mais ou menos num movimento autofágico.

Já se explica: a superestrutura social não podia mais dar conta de sua estrutura

econômica. Ou seja, a própria contradição do escravismo pôs fim ao sistema da

escravidão. A classe dominante estava refém do exercito de escravos que

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arregimentou. Com o fim do mundo antigo, o feudalismo surge de suas ruínas. Para

efeito desse estudo, analisar-se-á brevemente como se conformou o mundo feudal e

qual o princípio educativo foi produzido pelas novas relações sociais de produção.

Antes de tudo então, cabe um breve apanhado histórico. Marx e Engels escreveram

no Manifesto do Partido Comunista (2006, p.24) que: “cada etapa (do

desenvolvimento histórico) conduziu a uma transformação revolucionaria de toda a

sociedade ou o aniquilamento das duas classes em conflito”. Esse último foi o

destino dos senhores e dos escravos. Ainda no seio da sociedade escravista,

gestava-se a nova sociedade feudal. Ponce coloca que:

Nos estertores do mundo antigo, portanto, as grandes extensões de terras estavam subdivididas em parcelas pequenas, confiadas a colonos livres que pagavam ao amo uma renda fixa anual. Esses colonos, apesar de não serem propriamente escravos, também não eram homens totalmente livres. (PONCE, 2007, p.84)

Pode-se inferir que as relações feudais já existiam do mundo antigo (ou pelo menos

do seu período de decadência), não sendo a forma dominante de relação

econômica. Dessa forma a fuga dos senhores da cidade para o campo é a

conseqüência da ineficiência dos mesmos em manterem-se no poder. As velhas

cidades foram destruídas pelas “invasões bárbaras” e pelas rebeliões dos escravos.

A economia feudal era essencialmente agrícola, baseada no contrato do senhor

feudal e o servo. Esse contrato era basicamente nos seguintes termos: o servo

pagaria uma porcentagem de sua produção para o senhor em troca de sua proteção

e de sua família. Evidente que há mais coisas, mas no momento apenas isso basta.

Uma outra relação que envolve a ordem feudal, mas foge das relações próprias do

feudo é o papel da igreja católica. Entender a situação da igreja aqui é fundamental

para entender o mundo feudal, pois a igreja era grande possuidora de terras, o

principal meio de produção no feudalismo.

O quadro geral do feudalismo é esse, um poder descentralizado (cada feudo

possuía sua lei e sua ordem), uma economia de subsistência e auto-suficiente (cada

feudo produzia o necessário para manter-se). E onde a educação nesse contexto? A

única instituição que era centralizada nesse período é a igreja. E essa centralização

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permitirá a igreja organizar a cultura e a escola (Cf. Manacorda, 1997, p. 114). Nesse

sentido, Saviani, ao tratar de modo breve do feudalismo, coloca que:

Temos, na idade média, as escolas paroquiais, as escolas catedrálicias e as escolas monacais, que eram escolas que destinavam a educação da classe dominante. As atividades que constituíam a educação dessas classes se traduziam em formas de ocupação do ócio, como na antiguidade. (SAVIANI, 2009,0p. 153)

Por não se ocupar do tema em si (educação no feudalismo), o máximo que o

professor Saviani vai fazer é passar uma idéia geral de como estava a escola no

período, sem, no entanto, se aprofundar. Pode-se perceber a justeza do esboço do

professor Saviani quando comparado com Manacorda:

A crise do império carolíngio levara a uma nova situação: a fonte, agora imperial, do direito escolar passara de fato para à Igreja, como também passa para ela o controle político, anteriormente do império, sobre as escolas eclesiásticas. (MANACORDA, 1997, p. 143)

Em suma, a organização escolar, no período feudal, encontra-se sobre o domínio da

igreja católica. Para além dessa observação, há muitas nuances na educação feudal

que o presente trabalho não tem condições de abarcar. Afinal, é impossível sintetizar

dez séculos da existência humana em poucos parágrafos. O máximo que está sendo

feito aqui é a busca por linhas gerais da educação nesse período, em outras

palavras, a busca pelo princípio educativo do modo de produção feudal.

Já se sabe que a igreja apressou-se em tomar para si a organização da educação. E

quais eram as escolas da igreja? Ponce responde da seguinte maneira:

Desaparecidas as escolas “pagãs”, a igreja se apressou em tomar para si a instrução pública. Mas como a influencia do monastério tem sido, propositalmente, muito exagerada, tornemos claro que as escolas monásticas eram de duas categorias: umas destinadas a instrução dos futuros monges, chamadas “escola para oblatas” (...) e outras destinadas a educação da plebe, que eram as verdadeiras “escolas monásticas”. Apressemo-nos a esclarecer que nessas escolas – as únicas que podiam ser freqüentadas pela massa – não se ensinava a ler, nem a escrever. A finalidade dessas escolas não era instruir a plebe, mas familiarizar as massas campesinas com as doutrinas cristãs e, ao mesmo tempo, mantê-las dóceis e conformadas. (PONCE, 2007, p.91)

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Seguindo um principio básico das sociedades de classes, há uma separação entre o

ensino da classe dominante e das classes exploradas. Exemplo da formação dos

nobres pode-se encontrar na História da Pedagogia, do italiano Franco Cambi, ao

expor sobre a formação do filho mais moço do senhor feudal:

Já aos sete anos, o filho caçula do senhor era enviado para formar-se em outro castelo, onde era colocado como pajem9 e se exercitava na montaria, no torneio e no combate; iniciava-se também uma educação cortês (de boas maneiras, de código de honra e de amor, esse últimos ligados à idealização da mulher) (CAMBI, 1999, p. 160)

Essa educação dos nobres, evidentemente, já havia sido incorporada pela igreja,

resultando dessa combinação, inclusive, a organização dos exércitos que lutariam

nas cruzadas. Cambi traz ainda a parte “ideológica” dessa educação:

Assim ‘a igreja penetrou em todo ordenamento da cavalaria, inspirando sua conduta e seus ideais’, indicando ‘ todo um conjunto de deveres e costumes particulares’, como a ‘obrigação de crer plenamente na igreja, de observar seus mandamentos, de protegera igreja, de ser defensor dos fracos, de jamais ser fraco diante do perigo; de mover guerra sem fim aos infiéis, de cumprir escrupulosamente os deveres feudais... De ser sempre fiel a palavra dada... De ser generoso e liberal para com todos, de lutar contra o mal e a injustiça’ (CAMBI, 1999, p. 161).

Duas considerações sobre o trecho citado de Cambi, a primeira é o fato da aliança

das classes dominantes: clero e nobreza. A segunda é a forma como essas classes

acharam uma maneira ‘útil’ de empregar suas forças ociosas na construção de uma

máquina de guerra: a cavalaria católica. Ademais é importante ressaltar que, da

mesma maneira que no mundo antigo, também no feudalismo é a classe dominante

que é educada para a guerra.

Muito foi dito sobre a educação formal dos nobres, da sua preparação para a guerra

e a internalização dos valores católicos. Essa era a educação formal dos nobres. As

relações sociais explicam esse principio educativo: o mundo feudal encerrava-se em

9 “o jovem vivia sob tutela materna até os sete anos, ocasião em que entrava como pajem ao serviço de um cavaleiro amigo. Aos quatorzes anos, era promovido a escudeiro, e nessa qualidade acompanhava o seu cavaleiro às guerras, torneios e caçadas. Por volta dos vinte e um anos, era armado cavaleiro (PONCE, 2007, p.94)

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si mesmo, não sendo necessário nenhuma formação mais ‘clássica’ para os nobres.

Apenas na igreja é que se encontrarão os homens das letras, e ainda assim, havia

muitos analfabetos no clero. Isso foi motivo de campanhas internas dentro da igreja,

a partir de documentos emitidos pela direção central da instituição.

Para o resto da população feudal não-nobre, embora houvesse escola monástica

destinada aos camponeses, não para educar, mas para conformar (como bem já

colocou Ponce), a educação da massa campesina se dava, segundo Saviani, da

seguinte forma:

(...) a grande maioria continuava se educando pelo trabalho, no próprio processo de produzir a própria existência e de seus senhores. Nesse contexto, a forma escolar da educação é ainda uma forma secundaria que se contrapõe como não-trabalho à forma de educação dominante determinada pelo trabalho. (SAVIANI, 2009, p.154)

Seguindo o mesmo raciocínio de Saviani (com relação à educação feudal), Franco

Cambi escreve:

Como já ocorria no mundo antigo e como tinha sido teorizado por Platão em A República, a educação do povo se cumpria, essencialmente, pelo trabalho. Era o aprendizado, na oficina ou nos campos, que, desde a idade infantil, dava uma formação técnica-profissional e ético-civil ao filho do povo. (CAMBI, 199, p.166)

A educação do povo ainda estava imbricada com a produção da existência. O

principio educativo aqui é o trabalho, mas não o trabalho capaz de emancipar, mas o

trabalho compulsório, a exploração do homem sobre o homem. O servo produz tanto

pra ele mesmo quanto para o seu senhor.

O quadro da educação feudal permaneceu assim até que a lenta e gradual evolução

das forças produtivas contribuísse para o aumento da população, a produção do

excedente, florescesse o comércio, etc. Estava o mundo feudal, com o

desenvolvimento que lhe é próprio, minando as suas relações de produção. As

contradições do mundo feudal começavam a se aguçar. Um novo personagem é

produto desse desenvolvimento: o comerciante burguês. Com ele, um novo capítulo

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da luta de classes tem origem. E da luta tenaz entre a burguesia revolucionária e a

nobreza/clero surge o capitalismo.

4.2.4 Como a educação situou-se na origem do mundo burguês

A Revolução Francesa enterrou o cadáver do feudalismo. Evidente que muitos

fatores contribuíram para tal derrubada, e a Revolução Francesa não é senão um

marco histórico. Importante, evidente, mas não único fator nessa passagem do

feudalismo para o capitalismo. Além da luta política (concretizada com a revolução

francesa), das transformações estruturais (levada à cabo pelo o que se

convencionou chamar de Revolução Industrial), houveram ainda muitas batalhas

ideológicas. Ideológicas não no sentido marxiano, de falsa consciência da realidade,

mas de uma luta de idéias e concepções de mundo. A reforma protestante, por

exemplo, foi um movimento religioso, mas que tinha um cunho político-ideológico por

trás de si, um questionamento à ordem feudal e ao poder supremo da igreja católica

e seu monopólio da religião. Ademais, com a vitória da reforma luterana e o fim do

monopólio da fé pela igreja católica, as conseqüências político-econômicas são

incomensuráveis. Assim, os Estados que quisessem se ver livres da tutela da grande

concentradora de terras, a igreja católica, bastava aderir ao protestantismo, de modo

que manteria seus cidadãos em “contato com deus” e sem ter que prestar contas ao

papa.

Se no campo religioso a Reforma Protestante deu fim aos desmandos da igreja

católica, no campo das artes o Renascimento tem papel fundamental em tornar o

homem “centro e medida de todas as coisas”, resgatando a cultura clássica das

trevas a que foi imposta durante a Idade Média pela igreja católica. Certamente esse

foi mais um duro golpe na estrutura católica. A reforma protestante e o

Renascimento abrem portas para o Absolutismo. O Renascimento faz parte de um

movimento maior conhecido como Humanismo. Segundo Letts:

Humanismo é o nome dado pelos historiadores ao fenômeno cultural do século XV. O Renascimento foi o movimento artístico e intelectual que resultou do Humanismo, ressuscitando uma cultura e valores

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que tinham estado enterrados por séculos. (LETTS, 1984, p.8) (grifo nosso)

Essa cultura e esses valores eram provenientes da Grécia, mais precisamente do

período Helênico. Era o retorno daquilo que a igreja católica já havia dado por

vencido. No livro de Letts pode-se ler uma passagem sobre a posição clerical diante

do Renascimento:

O cardeal Dominici, professor da universidade de Pádua e escritor de renome, referindo-se aos Humanistas florentinos, escreveu: “eles são o instrumento usado para corromper a política, a religião, a família e a educação” (LETTS, 1984, p.9)

Essa era a perspectiva da igreja sobre o Humanismo, suas idéias e seus

representantes. Esse resgate da cultura helênica tem papel fundamental na

constituição do movimento filosófico que serviria de base para que a Revolução

Francesa pudesse acontecer: o Iluminismo. E, grosso modo, em que consistia o

Iluminismo? Segundo Falcon:

(...) para os iluministas, a despeito das múltiplas significações e até mesmo das ambigüidades então existentes com relação às noções que então tentavam dar conta da idéia das “Luzes”, havia um denominador comum: a consciência de que não se tratava de um acontecimento, nem apenas de um movimento intelectual, espécie de modismo de uma certa época, mas, sim, de um processo de esclarecimento do homem. (FALCON, 1991, p. 19)

Aqui estão apresentadas, em linhas gerais, as principais movimentações que

serviram à burguesia revolucionária em sua luta contra o clero e a nobreza. Dito

isso, é chegada a hora de entender a escola e seu princípio educativo na origem do

mundo burguês. De acordo com a “perspectiva coletiva” (onde o princípio educativo

emana das relações sociais de produção), Saviani, ao tratar da educação na

mudança do feudalismo para o capitalismo coloca que:

Essa nova forma de produção da existência humana determinou a reorganização das relações sociais. A dominância da industria no âmbito da produção corresponde a dominância da cidade na estrutura social. Se a máquina viabilizou a materialização das funções intelectuais no processo produtivo, a via para objetivar-se a generalização das funções intelectuais na sociedade foi a escola. Com o impacto da Revolução Industrial, os principais paises

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assumiram a tarefa de organizar sistemas nacionais de ensino, buscando generalizar a escola básica. Portanto, à Revolução Industrial correspondeu uma Revolução Educacional: aquela colocou a máquina no centro do processo produtivo; esta erigiu a escola em forma principal e dominante de educação. (SAVIANI, 2007, p. 159)

Pode-se mesmo obter preciosas informações da citação acima. A primeira é que não

é só o princípio educativo que é condicionado pelas relações sociais de produção,

mas a dominância do campo ou da cidade na estrutura social e a própria produção

social são condicionadas por essas relações sociais, ainda que sejam determinantes

reflexivas, ou seja, determinam-se e são determinadas entre si, movimento próprio

do pensamento dialético que alavanca o devir da história. Mas o principal é que a

burguesia entendia que todas as classes deveriam ter acesso à escola básica.

Entretanto, mais ontem do que hoje, apenas seus filhos têm condições de seguir

estudando.

Evidentemente, as elites dominantes não estabeleceram a escola básica para todos

porque se tratava de uma classe boazinha. Absolutamente. Havia problemas

concretos na não-instrução das massas proletárias. O pedagogo marxista, Mario

Manacorda, diz que os trabalhadores, logo no inicio da transição do feudalismo para

o capitalismo, não ganharam nenhum tipo de instrução e ainda perderam a sua

antiga. Na sequência escreve:

(...) a evolução da “moderníssima ciência da tecnologia” leva a uma substituição cada vez mais rápida dos instrumentos e dos processos produtivos e, portanto, impõe-se o problema de que as massas operárias não se fossilizem nas operações repetitivas das máquinas obsoletas. (...) em vista disso, filantropos, utopistas, e até os próprios industriais são obrigados, pela realidade, a colocarem o problema da instrução das massas operarias para atender às novas necessidades da moderna produção de fábrica. (MANACORDA, 1997, p. 271-2)

Então a escola para as classes trabalhadoras não era um ato de bondade, mas uma

exigência das relações sociais de produção. Da mesma forma que, no mundo

escravista as relações de produção exigiam guerreiros bem treinados; que no

feudalismo exigiam-se clérigos e cavaleiros católicos e corteses, o capitalismo

necessita de operários capazes de se readaptarem com facilidade à troca de uma

tecnologia por outra. Essa era, grosso modo, o princípio educativo da educação

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burguesa em sua gênese.

4.3 Pressupostos/exigências para a efetividade do trabalho como princípio educativo em Marx (ou o trabalho como princípio educativo: um debate em aberto)

De uma maneira geral, nem Marx nem Engels se ocuparam com o problema

educacional de modo consistente. O que se recolhe nos escritos de ambos são

informações bastante úteis, mas não uma teoria educacional. Essas informações

encontram-se, basicamente, como parte de um programa para um possível governo

dos trabalhadores (MARX e ENGELS, 2001, p.61) ou nas “instruções aos delegados

ao I congresso internacional dos trabalhadores” (MANACORDA, 1997, p. 296).

Entretanto, a questão educacional permeia boa parte dos escritos marxianos, como

por exemplo, As teses contra Feuerbach ou A guerra civil na França. Segundo

Gadotti:

Marx e Engels nunca realizaram uma analise sistemática da escola e da educação. Suas idéias a esse respeito encontram-se disseminadas ao longo de vários trabalhos. A problemática educativa foi colocada de modo ocasional, fragmentário, mas sempre no contexto da critica das relações sociais e das linhas mestras de sua codificação (GADOTTI apud CARON, 2006, p. 129)

Entretanto, de acordo com Suchodolski:

(...) é irrelevante o facto de esses problemas pedagógicos terem sido directamente abordados ou serem conseqüências de determinada tese. As etapas de desenvolvimento dessa atividade (revolucionária), idêntica ao desenvolvimento do pensamento filosófico e das investigações cientificas no campo da economia e da historia, coincidem com as etapas de desenvolvimento dos problemas pedagógicos. (SUCHODOLSKI, 1976, 19)

Muito feliz a constatação de Suchodolski, pois, se o princípio educativo de uma

sociedade dada pode ser verificado nas relações sociais de produção, o fato de

Marx não ter dado exclusividade ao tema educação não diminui em nada suas

contribuições para o pensamento pedagógico ao investigar minuciosamente as

relações sociais de produção sob o capitalismo. Muito ao contrario, essa

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contribuição do pensamento marxiano diminui drasticamente o trabalho do (a)

pedagogo (a) pesquisador (a) em sua tarefa de apontar, a partir dessas relações

sociais e suas contradições, o princípio educativo da nova de sociabilidade humana

vindoura.

4.3.1 O trabalho como princípio educativo nos marcos do Capital

A relação entre trabalho e educação não é nova. Saviani (2007) já apontava que o

ser, para tornar-se ser o faz mediante o trabalho (interseção homem-natureza) e

somente garante a perpetuação do próprio gênero mediante a transmissão do

conhecimento adquirido pelas velhas gerações para as novas (educação).

Tentou-se demonstrar nesse trabalho, como a propriedade privada, as classes

sociais, a divisão social do trabalho, deu origem a divisão da apropriação do

conhecimento socialmente acumulado pelas diferentes classes. Sob o domínio do

Capital e as relações sociais que se originam dele e que também dão origem a ele, a

educação assume característica, em geral, utilitária para as classes trabalhadoras. E

sobre essa relação utilitária da educação e suas relações com o trabalho, pode-se

destacar o pensador da escola pragmática dos EUA, John Dewey. Esse pensador

pode ser considerado, segundo Manacorda, “um dos mais geniais observadores das

relações entre educação e produção, entre educação e sociedade” (MANACORDA,

1997, pp. 319-20). Ainda segundo Manacorda:

Dewey, como Marx, baseia-se no desenvolvimento econômico e produtivo, mas falta-lhe aquela análise dialética do real e suas contradições, cujas explosões, segundo Marx, provocariam as mudanças, e aquela perspectiva, talvez utópica, mas fortemente estimulante, de uma totalidade de indivíduos totalmente desenvolvidos; no lugar dessa análise, há nele a conclamada finalidade de educar o individuo para participar da mudança, concebida como a progressiva evolução de um estado de coisas em si positivo. (MANACORDA, 1997, p.320)

Dessa forma, o pensamento de Dewey, tal como Manacorda apresenta, demonstra

que, ainda que os grandes pensadores das classes dominantes percebam as

relações o modo de produção e a educação, os mesmos não podem ultrapassar os

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limites da atual forma de sociabilidade, no caso de Dewey, tão bem demarcada na

sua defesa intransigente da democracia (burguesa). Pode-se, inclusive, delimitar um

corte epistemológico na filosofia a partir dessa forma de entender a realidade por

parte de Dewey: a filosofia para manter/justificar o status quo (pragmatismo burguês)

e a filosofia revolucionaria (no sentido de transformar as coisas), que Marx tanto

chamou a atenção na sua XI tese sobre Feuerbach. Para elucidar a perspectiva de

deweyana, Cambi, que considera Dewey “o pedagogo mais conceituado e sugestivo

de todo o século”, escreve:

A democracia, segundo Dewey, deve atuar em todos os níveis, não só no político, mas em particular no nível da vida cotidiana, e é tarefa da escola adestrar os jovens para esse tipo de comportamento pela organização genuinamente democrática que ela deve realizar no seu próprio interior. (CAMBI, 1999, p. 553) (grifo nosso)

É sob esse paradoxo entre democracia e prática educativa (adestramento) que se

pode fazer uma analogia com a invasão do governo estado-unidense ao Iraque

(2003), que sob o argumento de fazer a paz e exportar a democracia fez a guerra e

ocupou militarmente o país.

Há ainda um problema teórico a ser resolvido, e evidentemente não será esgotado

aqui, que diz respeito ao trabalho como princípio educativo sob a égide do capital.

Dois problemas aqui: o primeiro é a escolha de uma categoria (“perspectiva

individual”) para servir de norteador das relações educativas e o segundo é que o

trabalho, nas relações capitalistas de produção, se dá de maneira alienada, ou seja,

o trabalhador alienado (estranho) do processo de trabalho e do produto do trabalho.

Como, então, adotar o trabalho como princípio educativo sob o capitalismo?

Com relação à primeira questão, não se trata de tomar o trabalho enquanto

categoria norteadora das práticas educativas, tal como o faz o professor Pedro

Demo (1999) com a pesquisa. Trata-se, isso sim, de ter no trabalho a centralidade

das relações sociais e não no capital ou na mercadoria. Kuenzer sintetiza assim:

A diretriz mais geral, a partir da qual se organizará toda a nova proposta, será o trabalho tomado como princípio educativo, enquanto

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expressão das relações sociais contemporâneas, que reunificam cultura e produção ( KUENZER, 1989, p.25)

Para a autora, somente relações sociais que unifiquem cultura e produção podem

tomar o trabalho enquanto princípio educativo. Dito de outra forma, sob a égide do

capital, cultura e produção andam dissociados; somente uma nova forma de

sociabilidade pode associar a cultura e produção, decorrendo que o trabalho só

pode ser princípio educativo onde o mesmo prevaleça frente o capital.

Entendida a primeira questão, não faz muito sentido discutir a segunda, já que foi

colocado que somente uma nova forma de sociabilidade poderia sustentar o trabalho

enquanto princípio educativo. Logo, esse trabalho não será o trabalho alienado das

relações capitalistas de produção. Ambas as questões são muito amplas, de modo

que podem vir a ser objetos de novos estudos. Dessa forma, as respostas indicadas

são inacabadas e carecem de desenvolvimento e aprofundamento para tornarem-se

satisfatórias. Ademais, nunca foi intenção esgotar o debate aqui, mas, ao contrário,

inicia-lo. Mas então, quais os pressupostos para efetividade do trabalho enquanto

princípio educativo em uma perspectiva marxiana?

4.3.2 O trabalho como princípio educativo e a nova sociabilidade

Partindo da “perspectiva coletiva”, onde o princípio educativo é determinado pelas

relações sociais de produção e, tendo em vista a impossibilidade de se instituir o

trabalho enquanto princípio educativo nos marcos do capital, qual a nova forma de

sociabilidade que permitirá uma educação verdadeiramente emancipatória?

Aqui não pode haver titubeações: a nova forma de sociabilidade defendida por Marx

e Engels ao longo de toda a sua obra é o comunismo. Entendendo aqui que o

comunismo reivindica a existência do socialismo, enquanto “etapa” posterior do

capitalismo. O comunismo só pode se efetivar com o fim das relações capitalistas

em todo o mundo. Não se trata aqui de valorar o pensamento marxiano (se está

certo ou não), apenas de expô-lo mediante a convergência das idéias de ambos os

autores com a proposta desse trabalho. De outra forma, pode-se dizer que, grosso

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modo, o trabalho enquanto princípio educativo somente se dará na nova forma de

sociabilidade, essa definida por Marx como socialismo. Ponce coloca a questão da

seguinte maneira:

A milenar separação entre as forças mentais e as forças, que surgiu na historia no mesmo instante em que a comunidade primitiva se converteu em sociedade de classes, desaparece, assim, sob o impulso do proletariado. (PONCE, 2007, p.175)

Esse “impulso do proletariado”, assim colocado por Ponce, nada mais é do que a

Revolução Socialista dirigida pelo sujeito revolucionário: o proletariado. Cabe ainda

dizer que “as forças mentais e as forças físicas” corresponde ao trabalho intelectual

e físico respectivamente, ou seja, a abolição da mais elementar divisão do trabalho.

É nesse sentido que se criará uma nova escola, tendo o trabalho enquanto princípio

educativo. Uma escola que segundo Lênin:

Há quem nos acuse pelo fato de transformarmos nossa escola em uma escola de classe. Mas a escola sempre foi uma escola de classe. O nosso ensino defenderá por isso, exclusivamente, os interesses da classe laboriosa da sociedade. (LÊNIN PONCE, 2007, p.175)

Ou seja, uma nova escola baseada em um novo princípio educativo, dentro de uma

nova forma de sociabilidade. Uma escola omnilateral, baseada no trabalho enquanto

princípio educativo, no âmbito do socialismo. E no que consiste essa formação

omnilateral? Marx coloca que:

Por instrução nós entendemos três coisas: Primeira: instrução intelectual, Segunda: educação física, assim como é ministrada nas escolas de ginástica e pelos exercícios militares, Terceira: treinamento tecnológico, que transmita os fundamentos científicos gerais de todos os processos de produção (...) A união entre trabalho produtivo remunerado, instrução intelectual, exercício físico e treinamento politécnico elevará a classe operária acima das classes superiores e médias. (MARX apud MANACORDA, 2007, p.297)

Essa é a característica da formação omnilateral: formação intelectual, física e

produtiva. É a formação do homem em sua plenitude e não parcial, fragmentário das

escolas da burguesia. Somente com o fim da propriedade privada e das relações

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sociais capitalistas, impulsionado pelo proletariado no poder (no socialismo) é que

poderá se efetivar tal formação10. Formação esta que opera no sentido de suprimir a

dicotomia entre trabalho manual e trabalho intelectual. Gramsci coloca a questão da

seguinte forma:

O advento da escola unitária significa o inicio de novas relações entre trabalho intelectual e trabalho industrial não somente na escola, mas em toda a vida social. O princípio unitário se refletirá, portanto, em todos os organismos de cultura, transformando-os e dando-lhes um novo conteúdo. (GRAMSCI apud MANACORDA, 2007, p.333) (grifo nosso)

Está evidente na citação do Gramsci que a nova escola, guiado pelo trabalho

enquanto princípio educativo se dará com NOVAS RELAÇÕES SOCIAIS. Tumolo

(2005), em texto muito criticado por Frigotto (2009), ao defender que o trabalho não

se concretizará enquanto princípio educativo no capitalismo levanta duas questões:

O trabalho poderia ser considerado princípio educativo de uma estratégia político-educativa que tenha como horizonte a transformação revolucionária da ordem do capital? Ou, diferentemente, o trabalho só poderia ser princípio balizador de uma proposta de educação que tenha uma perspectiva de emancipação humana numa sociedade baseada na propriedade social, vale dizer, na não-propriedade dos meios de produção, que, dessa forma, teria superado a divisão e a luta de classes e, por conseguinte, qualquer forma de exploração social, bem como o trabalho produtivo de capital e o trabalho abstrato, porque teriam sido eliminados o capital e o mercado? (TUMOLO, 2005, p.256)

O questionamento do professor Tumolo é exatamente no sentido da argumentação

desse trabalho e de acordo com Gramsci também: o trabalho será o novo princípio

de uma nova escola em uma nova sociedade. Frigotto, ao criticar o texto de Tumolo,

escreve:

Mesmo que o autor assuma tratar-se de um texto introdutório, não pode cometer a impropriedade de pinçar uma citação de uma entrevista numa revista, sendo que na bibliografia cita mais três obras de Saviani, nem partir da suposição de que os demais doze autores e suas 19 obras referidas estejam contemplados em tal citação. O mais estranho e paradoxal é que a citação não trata diretamente do trabalho como princípio educativo, mas da relação da

10 Há divergências sobre esse ponto no campo do marxismo. Mais adiante será retomado esse ponto.

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estruturação do sistema educacional e o trabalho como produção da existência humana. Do mesmo modo, a maior parte das obras referidas não trata do trabalho como principio educativo. (FRIGOTTO, 2009, p. 188)

Em verdade uma crítica justa pelo modo como professor Tumolo conduziu seu texto.

No entanto, a critica à conclusão do professor parece menos consistente. Assim

Frigotto expressa sua crítica:

Da leitura que faço do trabalho como princípio educativo em Marx, ele não está ligado diretamente a método pedagógico nem à escola, mas a um processo de socialização e de internalização de caráter e personalidade solidários, fundamental no processo de superação do sistema do capital e da ideologia das sociedades de classe que cindem o gênero humano. (FRIGOTTO, 2009, p. 189)

Certamente o princípio educativo não está ligado nem a escola nem a nenhum

método pedagógico, mas reivindicar “processo de socialização e internalização de

caráter e personalidade solidários” como algo “fundamental no processo de superação

do sistema do capital e da ideologia das sociedades de classe” é trabalhar exclusivamente

no plano das idéias, da formação sentimental e ignorar o movimento concreto da luta pela

emancipação da escola e por um novo princípio educativo: o socialismo e o trabalho,

respectivamente.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Algumas palavras finais se fazem formalmente necessárias, muito embora haja

consciência por parte do autor que o debate sobre o princípio educativo, em uma

perspectiva marxiana, está longe de se chegar a um denominador comum por parte

dos especialistas no assunto. E com certeza, esse trabalho monográfico está longe

de finalizar esse debate, mas, ao contrário, tem como meta principal reavivá-lo, pelo

menos entre as paredes do DEDC1 (ou Departamento de Educação, campus I,

UNEB).

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Pela pouca tradição de estudo sobre o pensamento marxiano no ambiente

acadêmico em que essa monografia se insere, pareceu necessário escrever um

capítulo bem introdutório sobre Marx e a formação de sua perspectiva teórica, de

modo que o primeiro capítulo cumpre esse papel de trazer as discussões básicas do

marxismo.

O caminho percorrido nesse trabalho de ir aproximando o leitor da figura de Marx e

sua vida foi uma estratégia de chegar à formação do seu pensamento. Essa

estratégia foi adotada por se entender que flui com maior “tranqüilidade” para

àqueles que não possuem um contato inicial com o pensamento marxiano.

Dessa forma, depois desse primeiro contato e a introdução de conceitos

elementares, a discussão do conceito filosófico do trabalho vem para embasar a

discussão sobre o princípio educativo. Estudar o conceito de trabalho mostrou-se de

muita importância, pois balizou de maneira decisiva o capítulo sobre o trabalho como

princípio educativo em uma perspectiva marxiana. Evidentemente que se encontram

lacunas nesse estudo, de modo que seria tarefa de muitos projetos monográficos

esgotarem a temática.

O trabalho é um dos conceitos marxianos centrais, pois define a perspectiva de

homem e de história do pensamento de Marx. No dizer do professor Saviani (2007),

o homem não nasce homem, mas se produz homem. E essa produção se dá através

do trabalho, da mediação realizada pelo trabalho na interação do homem com a

natureza. E essa produção do Ser social é transmitida às novas gerações através da

educação, através da transmissão do conhecimento socialmente e historicamente

acumulado pela humanidade.

Sobre a discussão do trabalho como princípio educativo em uma perspectiva

marxiana, eis que encontra a verdadeira polêmica de todo a monografia. Esse é um

ponto ainda não consensuado entre os pesquisadores da área, de maneira que a

contribuição desse trabalho é trazer ao conhecimento dos estudantes o próprio

debate.

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A polêmica consiste basicamente na pergunta: pode o trabalho ser o princípio

educativo de uma educação emancipadora nos marcos do Capital? Toda a

argumentação dessa monografia aponta no sentido da negativa a essa pergunta. E

por quê? Por entender que o princípio educativo de uma dada forma de

sociabilidade (entendida aqui como forma da sociedade organizar sua vida material

em dado período histórico) estar de acordo com as necessidades da classe

dominante. Nesse sentido, o trabalho enquanto princípio educativo nos marcos do

Capital só pode ser um princípio alienante e desumanizador, na medida em que essa

é justamente a função do trabalho alienado no Capital. Essa foi a argumentação

sustentada nessa monografia. Ou melhor, a pesquisa sobre o princípio educativo na

perspectiva marxiana levou a essa ‘conclusão’.

Porém, se por um lado acredita-se que o trabalho não pode assumir o papel de

nortear uma educação emancipadora nos marcos do capital, também é verdade que

os professores não podem cruzar os braços e deixarem que a realidade se

transforme por si só e dessa transformação surjam as condições necessárias para a

educação omnilateral, tão cara à Marx e Engels, baseada no trabalho enquanto

principio educativo.

Por mais que se entenda que, dialeticamente, o trabalho traz em si a sua dimensão

negativa (trabalho alienado) e sua dimensão positiva (trabalho como emancipação

humana), parece que o conjunto das idéias dominantes acabava vencendo a

perspectiva contra-hegemônica em qualquer instância. No entanto, somente se pode

resolver essa questão, e qualquer outra questão social, com base na realidade

concreta e histórica. Descolado dessa base, é uma questão puramente escolástica e

não interessa aos educadores do campo do pensamento marxiano.

Toda a discussão apresentada aqui, ao invés de trazer verdades e conclusões, traz

ainda mais reflexões. Será que o trabalho é realmente o princípio educativo

norteador de uma educação emancipadora? Sendo o trabalho esse princípio

educativo, essa mudança se dará ainda dentro do capitalismo ou na sociedade de

transição, o socialismo? Quais serão as bases da educação omnilateral? As mesmas

preconizadas por Marx e posteriormente ratificadas por Gramsci ou as mudanças

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tecnológicas colocam novas perspectivas para o debate?

Portanto, a discussão apresentada aqui não se encerra de maneira nenhuma nesse

trabalho. Embora o autor tenha suas convicções intelectuais e políticas sobre qual

posição tomar nesse debate, ainda é preciso amadurecer muito as bases teóricas

antes de ‘alçar novos vôos’. Essa monografia é apenas um início de um trabalho que

deve continuar e descobrir novas relações e soluções para o problema do trabalho

enquanto princípio educativo de uma educação emancipatória.

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