universidade de lisboa faculdade de ciências secção...

164
Universidade de Lisboa Faculdade de Ciências Secção Autónoma de História e Filosofia das Ciências Materialismo e idealismo na física do final do século XIX e início do século XX a partir de Materialismo e Empiriocriticismo de Lénine. O caso exemplar da interpretação bohriana da Mecânica Quântica. Ana Henriques Pato Dissertação Mestrado em História e Filosofia das Ciências 2012

Upload: vunga

Post on 02-Feb-2019

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Universidade de Lisboa

Faculdade de Ciências

Secção Autónoma de História e Filosofia das Ciências

Materialismo e idealismo na física do final do século XIX e início do

século XX a partir de Materialismo e Empiriocriticismo de Lénine.

O caso exemplar da interpretação bohriana da Mecânica Quântica.

Ana Henriques Pato

Dissertação

Mestrado em História e Filosofia das Ciências

2012

Universidade de Lisboa

Faculdade de Ciências

Secção Autónoma de História e Filosofia das Ciências

Materialismo e idealismo na física do final do século XIX e início do

século XX a partir de Materialismo e Empiriocriticismo de Lénine.

O caso exemplar da interpretação bohriana da Mecânica Quântica.

Ana Henriques Pato

Dissertação orientada pela Professora Doutora Olga Maria Pombo Martins

Mestrado em História e Filosofia das Ciências

2012

2

Resumo

Palavras-chave: Materialismo. Idealismo. Dialéctica. Mecânica quântica.

Lénine expôs e desenvolveu um conjunto de aspectos da teoria do conhecimento na sua obra

Materialismo e Empiriocriticismo. Nela, o autor analisa o confronto entre as correntes materialistas e

idealistas na ciência do seu tempo. Em particular, analisa aquilo a que chama “idealismo físico”, isto é, a

tendência de alguns físicos para interpretarem de forma idealista os resultados de um ramo das ciências.

Lénine apontou como uma das razões para a crise da física a negação do valor objectivo das suas teorias:

“a matéria desaparece, restam apenas as equações”.

O confronto entre estas duas linhas filosóficas fundamentais, o materialismo e o idealismo,

permaneceu ao longo dos tempos. Para compreender as formas que esse confronto assume na ciência

actual, estudar Materialismo e Empiriocriticismo é da maior relevância. Por todas estas razões, procede-

se a uma recensão do conteúdo desta obra. Pretende-se, assim, expor as principais posições da teoria do

conhecimento materialista e dialéctica para, então, melhor compreender a relação entre aquelas linhas

filosóficas e a ciência de hoje.

Verifica-se que a interpretação ortodoxa da mecânica quântica – tomada a partir dos textos de

Bohr – está profundamente marcada por tendências agnósticas e idealistas. Em particular, conclui-se que

Bohr antepõe, como condição de possibilidade, uma correlação entre objecto e instrumento de medida

que é, no fundo – para além de um limite epistemológico inultrapassável –, a negação da independência

ontológica do ser face à prática (do ente quântico face à experiência): trata-se de um “idealismo da

práxis”. Conclui-se que Bohr não pôde resolver o problema central da mecânica quântica, o dualismo

onda-corpúsculo, porque não considerou dialecticamente a unidade e a contradição do ser, acabando por

“desmaterializar” a teoria, negando assim a teoria científica como reflexo aproximadamente verdadeiro da

realidade objectiva – o que é uma condição de cientificidade.

3

Abstract

Keywords: Materialism. Idealism. Dialectic. Quantum mechanics.

Lenin expounded and developed a number of aspects of the theory of knowledge in his work

Materialism and Empirio-Criticism. In it, the author analyzes the confrontation between materialism and

idealism in the science of his time. In particular, he examines what he calls "physical idealism", ie, the

tendency of some physicists to interpret in a idealistic fashion the results of a branch of science. Lenin

pointed out as one of the reasons for the crisis of physics the denial of the objective value of its theories:

"matter disappears, there remain only the equations.

The confrontation between these two fundamental philosophical lines, materialism and idealism,

remained throughout the ages. To understand the ways that this confrontation takes on science today, to

study Materialism and Empirio-Criticism is of utmost importance. For all these reasons, I proceed to a

recension of the content of this book. The aim is thus to disclose the main positions of the dialectical

materialist theory of knowledge and therefore to better understand the relationship between those

philosophical lines and science nowadays.

I verify that the orthodox interpretation of quantum mechanics – as it is given by Bohr's writings

– is deeply marked by idealistic and agnostic tendencies. In particular, I conclude that Bohr gives the

precedency, as a condition of possibility, to a correlation between object and measuring instrument that is,

essentially – and beyond being an insurmountable epistemological limit –, the denial of the ontological

independence of the being in relation to practice (of the quantum entity in relation to the experience): this

is an “idealism of praxis”. I conclude that Bohr could not solve the central problem of quantum

mechanics, the wave-corpuscle dualism, because he did not consider the dialectical unity and

contradiction of the being, ultimately "dematerializing" the theory, thus denying the scientific theory as a

true reflection of objective reality – which is a condition of scientificity.

4

Índice

Introdução _________________________________________________________________________ 6

I – Materialismo e Empiriocriticismo ____________________________________________________ 11

1. A obra no seu contexto histórico.________________________________________________ 11

2. O empiriocriticismo como o reavivar de concepções idealistas pretensamente novas. _______ 12

3. A constituição do saber: a realidade objectiva vs as sensações como origem do conhecimento

científico. __________________________________________________________________ 15

4. Tentativas (falhadas) de conciliação do empiriocriticismo com as ciências da natureza e de “tapar

buracos do solipsismo”. _______________________________________________________ 18

5. O mundo é cognoscível._______________________________________________________ 27

6. A verdade objectiva vs. a verdade como “forma organizadora da experiência humana”. A

realidade objectiva como a fonte das sensações. ____________________________________ 34

7. O conceito de matéria e a questão gnosiológica fundamental. _________________________ 37

8. A relação entre a verdade absoluta e relativa. Dialéctica vs. relativismo. Verdade e erro. ____ 39

9. A relação entre a teoria e a prática na teoria do conhecimento. ________________________ 42

10. Sobre a utilização idealista do conceito de “experiência”. ____________________________ 43

11. Causalidade e necessidade. ____________________________________________________ 44

12. O espaço e o tempo. __________________________________________________________ 51

13. Liberdade e necessidade. ______________________________________________________ 55

14. O empiriocriticismo, o seu desenvolvimento histórico e a sua correlação com outras correntes

filosóficas. _________________________________________________________________ 57

15. A moderna revolução nas ciências da natureza e o idealismo filosófico. _________________ 71

16. O empiriocriticismo e o materialismo histórico. ___________________________________ 89

17. Os partidos em filosofia e o não-partidarismo. _____________________________________ 94

II – O que há de idealismo na interpretação bohriana da mecânica quântica _____________________ 98

1. Algumas notas sobre as origens da mecânica quântica. ______________________________ 98

2. A complementaridade de Bohr. ________________________________________________ 104

3. Crítica à complementaridade. _________________________________________________ 121

4. A causalidade fica de fora. ____________________________________________________ 131

5. O valor da teoria. ___________________________________________________________ 134

III – Conclusões e notas finais ________________________________________________________ 146

Bibliografia ______________________________________________________________________ 162

5

Introdução

O âmbito principal deste trabalho, a que corresponde a primeira parte da dissertação que aqui

se apresenta, é analisar a obra de Lénine Materialismo e Empiriocriticismo1. Através dessa obra, será

estudado o confronto entre idealismo e materialismo em diversos aspectos da teoria do conhecimento e a

sua expressão na ciência do final do século XIX e início do XX, tratados nesta obra.

Mas, proceder a este estudo encerra um objectivo ulterior que é, ao mesmo tempo, a motivação

mais profunda desta dissertação: o de compreender as formas que esse confronto assume na ciência

presente, concretamente na mecânica quântica2. Esse constitui o trabalho da segunda parte desta

dissertação.

Porém, tal encargo é demasiado vasto para o trabalho presente. É, pois, necessário delimitar o

objecto sob análise. Assim, a interpretação da mecânica quântica da escola de Copenhaga será feita

exclusivamente a partir de um conjunto de escritos fundacionais de Niels Bohr, nomeadamente aqueles

em que as posições filosóficas de Bohr são apresentadas com maior relevo. Tal análise tem o objectivo de

procurar situar essa interpretação à luz dos seus termos fundamentais, isto é, procurando situá-las quanto

à questão fundamental da filosofia, nas suas diferentes consequências. A hipótese de que se parte é a de

que a interpretação bohriana da mecânica quântica está marcada por um cunho idealista e que os textos de

Bohr poderão constituir o lugar por excelência para observar o profundo confronto entre o idealismo e o

materialismo na ciência. A problematização da hipótese que orienta esta dissertação assumirá, então, a

forma da procura da resposta a uma questão fundamental: “o que há de idealismo na interpretação

bohriana da mecânica quântica?”.

Em termos metodológicos, para que o caminho proposto possa ser percorrido é necessário

trazer à luz, de forma mais ou menos sistematizada, um conjunto de aspectos da filosofia materialista

dialéctica para que então, munidos destes instrumentos, possamos melhor situar a monumental construção

teórica de um dos mais importantes físicos fundadores da mecânica quântica. Materialismo e

Empiriocriticismo constitui, evidentemente, o instrumento principal, mas não será o único.

***

A uma interpretação da mecânica quântica acusada de impor, por princípio, limites ao

conhecimento humano, de negar a existência de uma realidade objectiva independente do observador e de

ser indeterminista contrapõe-se-lhe, como é conhecido, uma outra interpretação inserida no programa de

investigação de Louis de Broglie. Embora a análise desse programa não faça parte dos objectivos desta

1 V.I. Lénine, Materialismo e Empiriocriticismo, Notas Críticas Sobre uma Filosofia Reaccionária, Lisboa, Moscovo, Edições Avante-Edições Progresso, 1982.

2 Utiliza-se, no presente trabalho, a expressão “mecânica quântica” como sinónimo de “física quântica”, sem procurar explorar as diferenças de domínio que entre ambas efectivamente existem as quais, no entanto, para as questões em apreço, podem não ser consideradas.

6

dissertação, importa recordar que o programa teórico de Broglie – e mais ainda todos os programas de

investigação que nele se inspiram, nomeadamente, o programa desenvolvido pelo par José Croca-Rui

Moreira – estão em confronto expresso com as implicações idealistas do programa de Bohr. Eles têm em

comum o reconhecimento da complexidade da natureza e a complexidade e historicidade do processo do

conhecimento, assumem o objectivo de defender e desenvolver uma ciência assente no reconhecimento

da existência de uma realidade objectiva, na causalidade e na rejeição de limites definitivos para o

conhecimento da natureza.

Perante este confronto, hoje em desenvolvimento, estudar Materialismo e Empiriocriticismo é da

maior utilidade. E por diversas razões: porque a abordagem filosófica das descobertas das ciências da

natureza do seu tempo, que Lénine, armado do poderoso método da dialéctica materialista, faz nesta obra

e a caracterização que apresenta da crise da física, identificando as suas causas e apontando a saída, têm

grande importância para a presente luta contra a mistificação idealista (e, consequentemente,

anticientífica) de alguma ciência actual; porque nesta obra são combatidas, na ciência da sua época, as

interpretações idealistas das descobertas científicas; porque a aplicação que Lénine faz da dialéctica ao

complexo processo do conhecimento humano e ao problema da verdade são um contributo muito

importante para pensar as questões do progresso e da inesgotabilidade do conhecimento. Enfim, porque,

como dizem os editores russos das Obras Completas de V. I. Lénine, “todo o conteúdo do livro

Materialismo e Empiriocriticismo é uma profunda fundamentação da possibilidade do conhecimento

objectivo das leis da natureza e da sociedade, e está imbuído de confiança no poder e na força da razão

humana”3.

***

Engels, no seu Ludwig Feuerbach4 observa que os filósofos se dividem em dois grandes campos

conforme a resposta dada à “grande questão fundamental da filosofia”5: a da relação entre o pensar e o

ser. Ou, de outra forma, a questão de saber “que é o originário, o espírito ou a Natureza?” 6.

Na presente dissertação, cujo objectivo é analisar um aspecto do confronto entre estes dois

campos, é difícil não começar pela dita questão fundamental da filosofia, muito embora ela esteja

amplamente abordada na literatura. Começar por essa questão impõe-se como premissa. Essa tarefa não é

de forma alguma desnecessária, tanto mais que nos dias de hoje – e já era assim no tempo de Engels,

conforme por ele reconhecido – existe um certa confusão, propositada ou não, entre o que se pretende

significar com as palavras materialismo e idealismo. O que essas palavras designam efectivamente são as

duas posições relativamente ao primado do ser ou do pensar, da Natureza ou do espírito, da matéria ou da

3 V.I. Lénine, Materialismo e Empiriocriticismo, Notas Críticas Sobre uma Filosofia Reaccionária, Lisboa, Moscovo, Edições Avante-Edições Progresso, 1982, p. 6 (Nota dos Editores).

4 Friedrich Engels, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, in Marx-Engels, Obras Escolhidas em três tomos, Lisboa-Moscovo, Edições «Avante!»-Edições Progresso, t. III, 1985.

5 idem, ibidem, p. 387.6 idem, ibidem, p. 388.

7

ideia. Como mostra Engels, “aqueles que afirmavam a originariedade do espírito face à Natureza, que

admitiam, portanto, em última instância, uma criação do mundo, de qualquer espécie que fosse – e esta

criação é frequentemente, entre os filósofos, por exemplo, em Hegel, ainda de longe mais complicada e

mais impossível do que no cristianismo –, formavam o campo do idealismo. Os outros, que viam a

Natureza como o originário, pertencem às diversas escolas do materialismo”7.

As correntes filosóficas apresentam-se sob muitas formas, escolas e matizes. Mas, em última

instância, elas partem de (ou chegam a) uma posição – de forma assumida ou não, mais ou menos

disfarçada, mais ou menos consistente, e mesmo quando pretendem situar-se acima desta divisão – quanto

ao primado do ser ou da consciência. Como diz Lénine, “por detrás do amontoado de novas subtilezas

terminológicas, por detrás do lixo de uma escolástica erudita, encontrámos sempre sem excepção duas

linhas fundamentais, duas correntes fundamentais na resolução das questões filosóficas”. Quer isto dizer

que a oposição entre idealismo e materialismo é incontornável. E o mais grave é querer escamotear essa

oposição. “A fonte de milhares e milhares de erros e de confusões neste domínio consiste precisamente

em que, por trás da aparência dos termos, das definições, dos subterfúgios escolásticos, dos artifícios

verbais, não se vê estas duas tendências fundamentais”8, afirma Lénine. Essas duas tendências atravessam

toda a história do pensamento. Como Lénine diz mais à frente: “A filosofia moderna é tão partidarista

coma a de há dois mil anos. Os partidos em luta são na realidade, uma realidade dissimulada com novos

rótulos doutorais e charlatanescos ou com um apartidarismo medíocre, o materialismo e o idealismo”9.

“A matéria não é um produto do espírito, mas o espírito é ele próprio apenas o produto supremo

da matéria10”. Isto, como diz Engels, é materialismo puro. Ou seja, para os materialistas o mundo

material, sensivelmente perceptível, a que nós pertencemos, é o único mundo real e a nossa consciência e

pensamento, por muito supra-sensíveis que pareçam, são um produto de um órgão material, corpóreo: o

cérebro. A existência de uma “ideia absoluta”, de “categorias lógicas” anteriores à existência do mundo

“não é mais do que um resto fantástico da crença num criador extra-mundano”11.

Mas, se o materialismo filosófico não pode ser confundido com a avareza, cobiça e vida

faustosa, nem o idealismo com perseguição de objectivos ideais, crença em ideais éticos, sociais, ou

filantropia universal – confusões estas características de uma postura vulgar ou não informada –, também

não pode o mesmo materialismo, que é uma visão geral do mundo que repousa sobre uma determinada

concepção da relação de matéria e espírito, ser tomado por uma das suas formas particulares,

características de um dado estádio do desenvolvimento histórico, nomeadamente do século XVIII12.

Também o materialismo se transforma em articulação com a história dos homens. Assim sendo, não é de

estranhar que o materialismo do século XVIII apresentasse limitações específicas como a aplicação

7 idem, ibidem.8 V.I. Lénine, op. cit., p. 254.9 idem, ibidem, p. 271.10 F. Engels, op. cit., p. 391.11 idem, ibidem.12 Cf. idem, ibidem.

8

exclusiva do padrão da mecânica a processos que são de natureza química e orgânica – e para os quais as

leis mecânicas certamente valem, mas são empurradas para um plano recuado por outras leis, superiores –

ou como a incapacidade de apreender o mundo como um processo, como uma matéria compreendida

numa continuada transformação histórica. Para Engels, esta forma de materialismo encontra a sua

justificação na história e no desenvolvimento histórico das ciências da natureza13.

“Tal como o idealismo passou por uma série de estádios de desenvolvimento, também o

materialismo [passou]. Com cada descoberta fazendo época mesmo no domínio da ciência da Natureza,

ele tem que mudar a sua forma”14. Por exemplo, Marx e Engels consideravam a dialéctica hegeliana a

maior realização da filosofia clássica alemã. E, nesse sentido, eles promoveram o seu desenvolvimento.

Em vez de tomarem a dialéctica de Hegel como acabada, eterna, Marx e Engels desenvolveram-na. Nas

suas mãos, a dialéctica de Hegel foi resgatada do seu enforme idealista – eliminou-se a inversão de

considerar as coisas reais como imagens deste ou daquele estádio do conceito absoluto, voltando a tomar,

materialistamente, os conceitos da nossa cabeça como imagens das coisas reais – e desenvolvida e

aplicada à concepção materialista da Natureza. Trata-se então de, superando aquele materialismo

metafísico característico de uma dada fase de desenvolvimento, passar a apreender o mundo não como

um “complexo de coisas prontas, mas como um complexo de processos, onde as coisas, aparentemente

estáveis, não passam menos do que as imagens de pensamento delas na nossa cabeça – os conceitos – por

uma ininterrupta mudança do devir e do perecer, na qual, em toda a aparente casualidade, e apesar de todo

o retrocesso momentâneo, se impõe finalmente um desenvolvimento progressivo”15.

Assim, o materialismo de Lénine, tal como ele o concebe, está já muito longe do materialismo do

século XVIII. O materialismo é agora um materialismo dialéctico. Mas nele, como alerta Barata-Moura, a

dialéctica não “se pode ver fundada e compreendida num horizonte de exterioridade relativamente ao seu

embasamento materialista” ou como algo que apenas “decorre do processo subjectivo em que

historicamente o saber consiste”16. A dialéctica é, em primeira instância, objectiva. A dialéctica “é algo

que na própria constatação e análise da dinâmica material das realidades se impõe”17; ela “pulsa no e do

interior da própria materialidade do ser, que integra na unidade determinada e concreta de um mesmo

movimento. Neste sentido, funda e profundamente dialéctico, o materialismo – ao arrepio de aquilo que

13 “Isto correspondia ao estado da ciência da Natureza na altura e à maneira metafísica, isto é, antidialéctica do filosofar, com aquele conexa. A Natureza, sabia-se, estava compreendida num movimento eterno. Mas esse movimento, segundo a representação da altura, girava eternamente em círculo e, portanto, nunca se mexia do sítio; produzia sempre de novo os mesmos resultados. [...] A concepção não-histórica da Natureza era, portanto, inevitável” idem, ibidem, p. 392. “A velha metafísica, que tomava as coisas como prontas, surgiu a partir de uma ciência da Natureza que investigava as coisas mortas e vivas como prontas. Porém, quando essa investigação se estendeu tanto que tornou possível um progresso decisivo, a transição para a investigação sistemática das mudanças nestas coisas que se processam na própria Natureza, então, também no domínio filosófico soou o dobre de finados pela velha metafísica. E, de facto, se a ciência da Natureza até ao fim do século passado foi predominantemente uma ciência colectora, foi uma ciência de coisas prontas, no nosso século, ela é essencialmente ciência ordenadora, ciência dos processos, da origem e do desenvolvimento dessas coisas e da conexão que liga esses processos naturais num grande todo”. idem, ibidem, p. 407-408.

14 idem, ibidem, p. 392.15 idem, ibidem, p. 407.16 José Barata-Moura, Sobre Lénine e a Filosofia, a Reivindicação de uma Ontologia Materialista Dialéctica com

Projecto, Lisboa, Editorial “Avante!”, 2010, p. 50.17 idem, ibidem, p. 159.

com frequência desenvolta lhe é de ordinário assacado – nada tem a ver com um «naturalismo» de raso

voo, nem com um «fatalismo» cego desprovido de respiração, nem com um «reducionismo» universal à

imediatez rasteira das corporalidades avulsas”18.

***

Em Materialismo e Empiriocriticismo, Lénine desenvolve as teses gnosiológicas fundamentais

do materialismo dialéctico. Como escreveram os editores das Obras Completas, o livro de Lénine “dá

uma definição de matéria que é a síntese de toda a história da luta do materialismo contra o idealismo e a

metafísica e das novas descobertas das ciências da natureza”19. De facto, esta obra de Lénine é um dos

mais relevantes programas da teoria materialista dialéctica do conhecimento. Contra o idealismo

subjectivo e o agnosticismo, Lénine desenvolve aí a teoria marxista da cognoscibilidade do mundo, o que

o obriga a analisar o complexo processo dialéctico do conhecimento e as suas implicações no problema

da verdade. E, com esse movimento, com essa atenção ao destino maior do conhecimento humano,

Lénine descobre o significado da prática no processo do conhecimento como critério da verdade. No

limite, a prática deve ser o ponto de vista primeiro e o fundamental na teoria do conhecimento. Ponto de

vista esse que conduz, necessariamente, ao materialismo.

18 ibidem, p. 54.19 Cf. V.I. Lénine, op. cit., p. 6 (Nota dos Editores).

I – Materialismo e Empiriocriticismo

1. A obra no seu contexto histórico

Lénine escreveu Materialismo e Empiriocriticismo, Notas Críticas sobre uma Filosofia

Reaccionária, em 1908, essencialmente entre os meses de Fevereiro e Outubro, a partir de Genebra e

Londres, durante o exílio. A sua escrita requereu pormenorizados estudos preparatórios, incluindo a

frequência prolongada de variadas bibliotecas. São mais de 200 as fontes de filosofia e ciências da

natureza citadas ou referidas por Lénine. A obra, que viria a ser publicada em Moscovo, em 1909, pela

editora Zveno, deliberadamente adquiriu a forma de livro autónomo cuja publicação envolvia, nas

palavras de Lénine, “não só obrigações literárias, mas também sérias obrigações políticas” 20.

Na Rússia, vivia-se um clima de terror policial imposto pela autocracia czarista, após a derrota

da revolução de 1905-1907. “A justificação ideológica da contra-revolução e o ressurgimento da mística

religiosa imprimiram a sua marca na ciência, na literatura e na arte. Na filosofia dominavam as formas

mais reaccionárias de idealismo, que negavam ser o desenvolvimento da natureza e da sociedade regido

por leis, bem como a possibilidade de conhecer aquelas”21, enquadram os editores. Perante o reforço do

idealismo filosófico e do misticismo como disfarce de um estado de espírito contra-revolucionário –

situação assim caracterizada pelo próprio Lénine – a defesa da filosofia marxista impunha-se como tarefa

importante e inadiável. A obra surge na sequência da publicação de livros pelos machistas22 russos,

especialmente da colectânea Ensaios sobre a Filosofia do Marxismo que continha artigos de Bazárov,

Bogdánov, Lunatchárski, entre outros. Em causa estavam a defesa e o desenvolvimento do materialismo

filosófico marxista e da teoria materialista dialéctica do conhecimento contra o idealismo filosófico.

Se, no plano externo, a situação era marcada pelas duras consequências da derrota das

movimentações revolucionárias, também no interior do Partido Operário Social-Democrata da Rússia a

situação era caracterizada por uma forte tensão e complexidade. Por um lado, Plekhánov, destacado e

conhecido filósofo da facção menchevique, defendia intransigentemente, no registo da teoria, os

princípios do materialismo dialéctico. Por outro lado, Bogdánov e Lunatchárski que, do ponto de vista da

arrumação partidária, pertenciam ao grupo dos bolcheviques, assumiam posições filosóficas cada vez

mais vincadamente idealistas, inspiradas nas atitudes onto-epistemológicas de Ernst Mach e Richard

Avenarius23. Como Barata-Moura explica, “o momento correspondia, por conseguinte, a uma intricada e

imbricada situação contraditória em desenvolvimento, no âmbito da qual «oportunismo de direita» e

«oportunismo de esquerda» nas arenas políticas estavam longe, no entanto, de revelar uma

20 V.I. Lénine, Materialismo e Empiriocriticismo, Notas Críticas Sobre uma Filosofia Reaccionária, Lisboa, Moscovo, Edições Avante-Edições Progresso, 1982, p. 275. (Notas)

21 ibidem, p. 5 (Nota dos Editores).22 Isto é, partidários da filosofia de Ernst Mach.23 Cf. José Barata-Moura, Sobre Lénine e a Filosofia, a Reivindicação de uma Ontologia Materialista Dialéctica

com Projecto, Lisboa, Editorial “Avante!”, 2010, p. 30-36.

correspondência perfeita e simplificada com a divisão das águas, no que à filosofia diz respeito, entre

materialismo e idealismo. [...] Na realidade polimórfica e lábil do processo que ao tempo estava a

decorrer, a dissensão filosófica e o diferendo na orientação política não coincidiam de todo termo a

termo”24. A clarificação dos diferendos em jogo era, também ela, necessária.

2. O empiriocriticismo como o reavivar de concepções idealistas pretensamente novas

Ao escrever Materialismo e Empiriocriticismo, Lénine tinha como objectivo combater tentativas

de descaracterização do materialismo dialéctico que estavam a ser feitas por um conjunto de autores que

se proclamavam marxistas. Apoiando-se em doutrinas pretensamente modernas, referindo-se à “teoria

contemporânea do conhecimento”, à “filosofia moderna”, ao “positivismo moderno” ou à “filosofia das

ciências do século XX”, homens como Bazárov, Bogdánov, Iuchkévitch, Valentínov, Tchernov e outros

machistas utilizavam diversos subterfúgios para encobrir o que, na verdade, era o seu afastamento face ao

materialismo dialéctico. Em alguns casos iam mesmo até ao fideísmo, isto é, à defesa de uma doutrina

que coloca a fé no lugar do conhecimento ou que, de uma forma geral, lhe atribui alguma importância.

A expressão, “machistas”, que designa os partidários da filosofia de Ernst Mach, é usada por

Lénine em pé de igualdade com a expressão “empiriocriticistas”, corrente filosófica da qual Ernst Mach

era o mais popular representante. A utilização desta expressão parece ter sido iniciada por Richard

Avenarius e não por Mach. Embora desenvolvidas de forma independente uma da outra, as concepções de

Mach e Avenarius apresentam, ao nível da sua fundamentação, substanciais afinidades, aliás

reciprocamente reconhecidas25. O aparecimento do empiriocriticismo de Mach e Avenarius decorre do

desenvolvimento do positivismo, corrente que surge no século XIX como reacção ao materialismo e

ateísmo francês do século XVIII. O fundador do positivismo, Augusto Comte, identificava o positivismo

com o pensamento científico, cuja tarefa fundamental era a descrição positiva dos fenómenos naturais a

partir dos dados da experiência. Declarava, assim, “metafísica” qualquer teoria que reconhecesse a

existência e a cognoscibilidade da realidade objectiva26.

Em Materialismo e Empiriocriticismo, tratava-se de, por um lado, clarificar o conteúdo daquilo

que era apresentado sob a aparência de marxismo e, por outro, desvelar as ligações que estas ideias,

apresentadas como novidade, tinham com as concepções idealistas há já muito apresentadas. Como diz

Lénine: “os machistas «modernos» não aduziram contra os materialistas nenhum, literalmente nem um

único argumento que não existisse no bispo Berkeley”27, filósofo inglês representante do idealismo

subjectivo.

Contra os materialistas, os machistas dizem que aqueles pretendem reconhecer algo que, a seu

24 idem, ibidem, p. 36-37.25 Cf. idem, ibidem, p. 79.26 Cf. V.I. Lénine, op. cit., p. 276-277 (Notas).27 idem, ibidem, p. 29.

ver, é impensável e incognoscível: as “coisas em si”, a matéria “fora da experiência”, para lá do meu

conhecimento dela. Para os machistas, é misticismo admitir que há algo mais que se situe fora dos limites

da “experiência” e do conhecimento; que, ao admitir-se a existência de “coisas em si”, isto é, coisas fora

da nossa consciência, dá-se origem a uma duplicação do mundo uma vez que, para além dos fenómenos,

para além dos dados imediatos dos sentidos, ainda se postula a existência da coisa em si.

Ora, já em 1710, como nota Lénine, o bispo Berkeley, na sua obra Tratado acerca dos Princípios

do Conhecimento Humano, defendera que os objectos do conhecimento humano representam ideias e que

as coisas são unicamente “conjuntos de ideias” ou “combinações de sensações”. Isto é, Berleley havia

formulado um idealismo que negava a existência “absoluta” dos objectos, isto é, a existência das coisas

fora do conhecimento. Segundo Berkeley, é incompreensível que se fale da existência absoluta das coisas.

As coisas só existem se, e enquanto, alguém as percebe. Daqui decorre, então, que a opinião de que as

casas, as montanhas, os rios, isto é, todos os objectos sensíveis, têm uma existência real ou natural

diferente do facto de serem percebidos pela razão é uma contradição manifesta. Ou seja, para Berkeley, é

uma oca abstracção separar a sensação do objecto. “Na verdade, o objecto e a sensação são a mesma coisa

e não podem por isso ser abstraídos um do outro”28, diz. Como idealista franco e consequente (tal como

Lénine o caracteriza), o próprio Berkeley traça as linhas das duas concepções filosóficas fundamentais

afirmando que a opinião por si refutada reconhece a existência absoluta das coisas sensíveis em si ou fora

da mente. Efectivamente, nas palavras de Lénine, “o materialismo é o reconhecimento dos «objectos em

si» ou fora da mente; as ideias e as sensações são cópias ou reflexos destes objectos. A doutrina oposta

(idealismo): os objectos não existem «fora da mente»; os objectos são «combinações de sensações»”29.

Porém, como Lénine chama a atenção, os machistas apresentam como novidade a opinião de que

os conceitos de “matéria” ou “substância” são conceitos “metafísicos”. Mach e Avenarius teriam

eliminado, por via do “positivismo moderno” e das “ciências da natureza modernas”, estes “absolutos”,

estas “essências imutáveis”, esquecendo ou ignorando que Berkeley, em 1710, tinha já chamado à matéria

nada.

Berkeley havia também sido muito claro quanto às consequências, a seu ver “prejudiciais”, da

adopção de uma “absurda” doutrina que põe na sua base a existência de um mundo exterior independente

da consciência. Ele havia compreendido bem as implicações políticas do seu idealismo. Havia sido capaz

de exprimir correctamente a essência da filosofia idealista e o seu significado social: “todas as

construções ímpias do ateísmo e da irreligião foram erigidas sobre a base da doutrina da matéria ou da

substância corpórea”30. Como mostra Lénine, recordando aquilo a que Mach chamaria o “princípio da

economia do pensamento”, em 1870, ou que Avenarius designaria por “filosofia como pensamento do

mundo segundo o princípio do menor esforço”, em 1876, Berkeley havia já muito claramente afirmado

que “a matéria, uma vez expulsa da natureza, leva consigo tantas noções cépticas e ímpias, uma

28 Berkeley cit. por V.I. Lénine, ibidem, p. 19.29 V. I. Lénine, ibidem, p. 20.30 Berkeley cit. por V.I. Lénine, ibidem, p. 21.

quantidade tão incrível de de discussões e questões embrulhadas [...]”31. Ou seja, Lénine mostra que a

diferença entre o idealismo de Berkeley e o machismo do seu tempo é mínima. A diferença é meramente

retórica. Como diz Lénine, ela reside em que, “no nosso tempo”, diz Lénine, “estas mesmas ideias sobre a

eliminação «económica» da «matéria» da filosofia são dissimuladas de uma forma muito mais artificiosa

e embrulhada pelo emprego de uma terminologia «nova», para que estas ideias sejam tomadas pelas

pessoas ingénuas como filosofia «moderna»!”32.

Porém, Berkeley acabou por sentir necessidade de encobrir a sua “nudez idealista” apresentando-

a livre de absurdos e aceitável para o “senso comum”, esforçando-se por parecer realista. Assim se

compreende que o filósofo inglês Fraser, idealista e partidário do berkelyanismo, chegue a chamar

“realismo natural” à doutrina de Berkeley. Serão estes subterfúgios, com o objectivo de fazerem passar tal

filosofia por “realismo”, ainda que com outra capa verbal, que serão também encontrados, ainda que com

outra capa verbal nos positivistas “modernos”, diz Lénine. Respondendo à acusação de que a sua filosofia

suprimia as substâncias corpóreas, Berkeley diz: “Se a substância é tomada no sentido vulgar da palavra,

isto é, como uma combinação de qualidades sensíveis, de extensão, de solidez, de peso, etc., não posso

ser acusado da sua eliminação. Mas se a palavra substância for tomada no sentido filosófico – como a

base de acidentes ou de qualidades (existentes) fora da consciência –, então reconheço realmente que a

elimino, se é que se pode falar de eliminação daquilo que nunca existiu, não existiu sequer na

imaginação”33. Empurrado pela necessidade de encontrar um critério que distinga o real do fictício ou da

imaginação, Berkeley constrói um critério de realidade com base na diferença entre a clareza das nossas

percepções individuais e entre estas e as colectivas. Assim, por um lado, as ideias que a mente humana

evoca à sua vontade seriam pálidas e enquanto que as ideias que percebemos por intermédio dos sentidos

– impressas em nós segundo certas leis da natureza – seriam mais estáveis e testemunhariam a presença

de uma mente mais poderosa e sábia do que a mente humana. Por outro lado, ao ligar o conceito de real à

percepção simultânea das mesmas sensações por muitas pessoas, Berkeley está, neste aspecto, a

aproximar-se do idealismo objectivo, como esclarece Lénine.

As mesmas subtilezas sucedem-se quando falamos da causa e efeito. Berkeley defende que “a

conexão das ideias não supõe a relação de causa e efeito, mas apenas a relação da marca ou signo com a

coisa significada de uma maneira ou doutra”. […] “Assim, é evidente que as coisas que, do ponto de vista

da categoria de causa que contribui ou concorre para a produção do efeito, são absolutamente

inexplicáveis e nos levam a grandes absurdos, podem ser explicadas muito naturalmente...se as

considerarmos como marcas ou signos para nossa informação”34.

É com base nestas ideias que Fraser pode afirmar que a teoria favorita de Berkeley era o

“simbolismo natural universal” ou “simbolismo da natureza” e é com base nelas que o positivista

moderno e realista crítico P. Iuchkévitch vem “descobrir”, no século XX, aquilo que chama empírio-

31 idem cit. por V.I. Lénine, ibidem.32 V. I. Lénine, ibidem., p. 22.33 Berkeley cit. por V. I. Lénine, ibidem , p. 22.34 idem cit. por V. I. Lénine, ibidem , p. 23.

simbolismo. De facto, como nota Lénine, também na questão da causalidade, temos diante de nós duas

correntes filosóficas distintas. “Uma «pretende explicar as coisas por causas corpóreas»; é claro que ela

está ligada à «absurda doutrina da matéria» refutada pelo bispo Berkeley. A outra reduz o «conceito de

causa» ao conceito de «marca ou signo», que serve «para nossa informação» (proporcionada por Deus).

Voltaremos a encontrar estas duas tendências, em trajes do século XX,” (e do século XXI, poder-se-ia

dizer) “quando analisarmos a atitude do machismo e do materialismo dialéctico face a esta questão” 35.

***

Entre uns e outros, isto é, entre os idealistas e os materialistas, estão os agnósticos. Também esta

corrente de pensamento será encontrada no decurso da análise das posições assumidas pelos machistas. E

também a este respeito, a opinião do materialista consequente e do idealista consequente sobre as

correntes filosóficas fundamentais coincidem. Como Lénine chama a atenção, o materialista Engels “vê a

diferença fundamental entre elas no facto de que para os materialistas a natureza é o primário e o espírito

é o secundário, e para os idealistas o inverso” e “coloca entre uns e outros os partidários de Hume e de

Kant, que negam a possibilidade de conhecer o mundo ou, pelo menos, de o conhecer completamente,

chamando-lhes agnósticos”36. Da mesma forma, o idealista Fraser considera que aqui reside o nó da

questão afirmando que “na opinião dos materialistas, os fenómenos sensíveis são devidos a uma

substância material, ou a alguma desconhecida «terceira natureza»; na opinião de Berkeley, à Vontade

Racional. Já na opinião de Hume e dos positivistas, a sua origem é absolutamente desconhecida, e não

podemos senão generalizá-los como factos, pela via indutiva, segundo o costume”37. Para os agnósticos, e

de acordo com Hume – que chama cepticismo à recusa de explicar as sensações pela acção das coisas ou

do espírito, à recusa de reduzir as percepções ao mundo exterior, por um lado, à divindade ou a um

espírito desconhecido, por outro38 – “a mente nunca tem diante de si senão percepções e de modo nenhum

pode fazer qualquer experiência relativamente à correlação entre as percepções e o objecto” e que “as

nossas percepções são os nossos únicos objectos”39.

3. A constituição do saber: a realidade objectiva vs. as sensações como origem do conhecimento

científico

De acordo com a teoria do conhecimento empiriocriticista, a tarefa da física é “descobrir as leis

da ligação entre as sensações”40 e não entre as coisas ou corpos de que são imagem as nossas sensações.

Para Mach, “as sensações não são «símbolos das coisas». A «coisa» é antes um símbolo mental para um

35 V. I. Lénine, ibidem, p. 24.36 idem, ibidem, p. 25.37 Fraser cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 25.38 Cf. V. I. Lénine, ibidem, p. 26.39 Hume cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 26.40 Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 30.

complexo de sensações que possui relativa estabilidade. Não são as coisas (os corpos), mas sim as cores,

os sons, as pressões, os espaços, os tempos (o que nós chamamos habitualmente sensações), que são os

verdadeiros elementos do mundo”41. Para Mach, as coisas ou corpos são, portanto, complexos de

sensações.

Mach contrapõe explicitamente esta sua posição àquela oposta segundo a qual as sensações são

“símbolos” das coisas, na linguagem de Mach, ou, o problema de outra forma, segundo a qual as

sensações são imagens ou reflexos das coisas: o materialismo filosófico. Para se perscrutar a concepção

materialista, o Anti-Dühring de Engels é elucidativo:

“Mas donde toma o pensamento estes princípios?”, diz Engels referindo-se aos princípios básicos

de todo o conhecimento. “De si mesmo? Não...O pensamento não pode nunca tirar e deduzir as

formas do ser de si mesmo, mas apenas do mundo exterior...Os princípios não são o ponto de

partida da investigação, mas o seu resultado final; estes princípios não se aplicam à natureza e à

história da humanidade, mas são abstraídos delas; não são a natureza e a humanidade que se

conformam com os princípios, mas, pelo contrário, os princípios só são verdadeiros na medida em

que correspondem à natureza e à história”42.

“Partir das coisas para a sensação e o pensamento” é ser-se materialista. O movimento inverso,

executado por Mach, é idealista. “Nenhuns subterfúgios, nenhuns sofismas (dos quais encontraremos

ainda uma multidão)”, continua Lénine, “eliminarão o facto claro e indiscutível de que a doutrina de E.

Mach sobre as coisas como complexos de sensações é idealismo subjectivo, é um simples ruminar do

berkeleyanismo. Se os corpos são «complexos de sensações», como diz Mach, ou «combinações de

sensações», como dizia Berkeley, daqui decorre necessariamente que todo o mundo é apenas

representação minha. Partindo desta premissa, não se pode chegar à existência de outros homens além de

si próprio: isto é o mais puro solipsismo”43.

Ao discutir a questão das sensações na matéria orgânica e inorgânica, Mach embrulha-se quando

se põe o problema de as sensações se verificarem apenas em determinadas formas da matéria mais

desenvolvida. “O materialismo, em pleno acordo com as ciências da natureza, toma a matéria como o

dado primário, considerando a consciência, o pensamento, a sensação, como o secundário, porque numa

forma claramente expressa, a sensação está ligada somente às formas superiores da matéria” 44, diz Lénine.

Contrariamente, Mach defende, nas suas próprias palavras, que “a matéria não é o dado primeiro. Esse

dado primário são antes os elementos (que, num certo sentido determinado, se chamam sensações)”45.

Este ponto de vista idealista conduz imediatamente ao absurdo, nota Lénine, “porque, em 1º lugar, a

sensação é tomada como primária, apesar de estar relacionada apenas com determinados processos de

uma matéria organizada de determinada maneira; e, em 2º lugar, a premissa fundamental de que os corpos

são complexos de sensações é violada pela suposição” - feita por Mach – “da existência de outros seres

41 Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 30.42 F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 31.43 V. I. Lénine, ibidem, p. 31-32.44 idem, ibidem, p. 34.45 Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 34.

vivos e, em geral, e outros «complexos» além do grande Eu dado”46.

Mach acusava os materialistas, sem os nomear – referindo-se àqueles que subscreviam uma dita

“noção física comum, amplamente difundida” partilhando a convicção de que a matéria representa uma

realidade imediata –, de não resolverem a questão de saber de onde surge a sensação, querendo ignorar

que nenhum outro ponto de vista filosófico resolvera ainda uma questão para cuja solução se não

reuniram dados suficientes. Para os materialistas consequentes – ao contrário dos materialistas “vulgares”

que “erravam ao acreditar que o cérebro segrega o pensamento do mesmo modo que o fígado segrega a

bílis” – , não se trata de deduzir as sensações do movimento da matéria ou em reduzi-la ao movimento da

matéria, mas considerar as sensações como uma das propriedades da matéria em movimento. A palavra

“elemento” introduzida por Mach com pretensões de novidade e descoberta, “apenas embrulha a questão

por meio de um termo que não diz nada e que cria a falsa aparência de uma solução ou de um passo em

frente. Esta aparência é falsa, porque de facto falta ainda investigar de que maneira a matéria que

pretensamente não tem quaisquer sensações se relaciona com a matéria composta dos mesmos átomos (ou

electrões) e que ao mesmo tempo possui a capacidade claramente expressa de sentir. O materialismo

coloca claramente a questão ainda não resolvida, e deste modo incita à sua resolução, incita a novas

investigações experimentais”47.

Avenarius, outro representante do empiriocriticismo, exprime consciente e claramente o seu

idealismo quando, indo por caminhos semelhantes aos de Mach, diz que “só a sensação pode ser

concebida como o existente”48 e quando afirma que a “substância é suprimida”. “Assim”, clarifica Lénine,

“a sensação existe sem a «substância», isto é, o pensamento existe sem o cérebro! Será que existem de

facto filósofos” – pergunta Lénine – “capazes de defender esta filosofia desmiolada? Existem”49. Do

argumento de Avenarius, contra uma posição materialista, resulta então que, uma vez que não

conhecemos ainda todas as condições da ligação por nós observada entre a sensação e a matéria

organizada de determinada maneira, devemos admitir apenas a sensação50.

Finalizando a caracterização das premissas idealistas fundamentais do empiriocriticismo, Lénine

identifica também em Karl Pearson, P. Duhem e Henri Poincaré ideias semelhantes. Para Poincaré as

coisas são “grupos de sensações” e Duhem exprime uma opinião semelhante. Mach e Pearson manifestam

a sua concordância mútua. Pearson, para quem “as coisas reais” são “impressões dos sentidos”, declara, à

semelhança de outros, metafísico todo o reconhecimento das coisas para além dos limites das impressões

dos sentidos. Porém, a este último é alheia a vontade de se disfarçar de materialista – ao contrário dos

machistas russos – e considera as suas concepções e as de Mach “idealistas”. A filosofia de Pearson,

considera Lénine, distingue-se da de Mach por uma muito maior integridade e consistência.

Concluindo: “para o naturalista não desnorteado pela filosofia professoral, bem como para todo o

materialista”, diz Lénine, “a sensação é realmente a ligação directa da consciência com o mundo exterior,

46 V. I. Lénine, ibidem, p. 34.47 idem, ibidem, p. 35.48 Avenarius cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 36.49 V. I. Lénine, ibidem, p. 37.50 Cf. idem, ibidem, p. 39.

é a transformação da energia da excitação exterior em facto da consciência. Cada um já observou esta

transformação milhões de vezes e observa-a realmente a cada passo. O sofisma da filosofia idealista

consiste em considerar a sensação não como uma ligação da consciência com o mundo exterior, mas

como uma divisória, uma parede que separa a consciência do mundo exterior, não como a imagem de um

fenómeno exterior correspondente à sensação, mas como a «única coisa existente»”.

4. Tentativas (falhadas) de conciliação do empiriocriticismo com as ciências da natureza e de “tapar

buracos do solipsismo”

Os elementos de Mach. Avenarius e as séries dependente e independente

Na Mecânica, Mach afirma: “Todas as ciências da natureza podem apenas representar os

complexos daqueles elementos a que chamamos habitualmente sensações”51. A introdução da palavra

“elemento” está incluída numa tentativa de Mach de, depois de reconhecido o carácter idealista das suas

concepções iniciais, procurar disfarçar ou corrigir esse mesmo carácter. Lénine procurará demonstrar que

a concepção de Mach assente na ideia de “elementos” apenas a torna mais confusa e embrulhada, mas não

modifica o seu posicionamento fundamental que é o da defesa do primado da consciência face ao ser.

Para Mach, a ligação entre, digamos, calor e chama pertence à física e a ligação entre o calor e os

nervos pertence à fisiologia. Nem uma nem outra destas ligações existe separadamente, ambas existem

em conjunto. Só temporariamente podemos abstrair-nos de uma ou de outra, diz. “Aparentemente, mesmo

os processos puramente mecânicos são, deste modo, sempre também fisiológicos”. Assim, para Mach, os

“complexos [de elementos] normalmente chamados corpos” numa dada dependência funcional são

chamados de sensações (quando em ligação com o complexo de elementos a que chamamos o nosso

corpo) e noutra dependência funcional são ao mesmo tempo objectos físicos. Com isto, Mach pretende

construir uma teoria isenta daquilo que chama “unilateralidade”: “Os elementos são habitualmente

chamados sensações. Como sob esta denominação se subentende já uma determinada teoria unilateral,

preferimos falar brevemente dos elementos”52.

Mas Lénine contesta:

“Aqui de facto não há unilateralidade, mas há a mais incoerente embrulhada de pontos de vista

filosóficos opostos. Se partis apenas das sensações, não corrigis com a palavrinha “elemento” a

“unilateralidade” do vosso idealismo, mas embrulhais apenas as coisas, escondei-vos

cobardemente da vossa própria teoria. Em palavras eliminais a contradição entre o físico e o

psíquico, entre o materialismo (que considera a natureza, a matéria, como primário) e o idealismo

(que considera o espírito, a consciência, a sensação, como primário), mas na realidade logo

restabeleceis esta contradição, restabelecei-la de maneira sub-reptícia, renunciando à vossa

51 Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 40.52 idem cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 41.

premissa fundamental! Porque, se os elementos são sensações, não tendes o direito de admitir por

um só instante sequer a existência de “elementos” independentemente dos meus nervos, da minha

consciência. Mas se admitis objectos físicos independentes dos meus nervos, das minhas

sensações, que só suscitam a sensação pela sua acção sobre a minha retina, abandonais

vergonhosamente o vosso idealismo “unilateral” e passais para o ponto de vista do materialismo

“unilateral”. Se a cor é uma sensação só dependente da retina (como as ciências da natureza vos

obrigam a admitir), quer dizer que os raios de luz, ao atingirem a retina, produzem a sensação de

cor. Quer dizer que fora de nós, independentemente de nós e da nossa consciência, existe

movimento da matéria, digamos, ondas de éter de determinado comprimento e determinada

velocidade, que, agindo sobre a retina, produzem no homem a sensação desta ou daquela cor. É

esta precisamente a maneira de ver das ciências da natureza. Elas explicam as diferentes

sensações desta ou daquela cor pelo diferente comprimento das ondas luminosas que existem fora

da retina humana, fora do homem e independentemente dele. E isto é materialismo: a matéria,

agindo sobre os nossos órgãos dos sentidos, produz a sensação. A sensação depende do cérebro,

dos nervos, da retina, etc., isto é, da matéria organizada de determinada maneira. A existência da

matéria não depende das sensações. […] Mach e Avenarius introduzem sub-repticiamente o

materialismo por meio da palavrinha “elemento”, que pretensamente liberta a sua teoria da

“unilateralidade” do idealismo subjectivo, pretensamente permite admitir a independência do

psíquico relativamente à retina, aos nervos, etc., admitir a independência do físico relativamente

ao organismo humano. De facto, evidentemente, o truque com a palavrinha “elemento” é o mais

lastimável dos sofismas, porque o materialista, ao ler Mach e Avenarius, perguntará

imediatamente: mas o que são os “elementos”? Seria efectivamente pueril pensar que com a

invenção de uma nova palavrinha é possível livrar-se das principais correntes da filosofia. Ou o

“elemento” é uma sensação, como dizem todos os empiriocriticistas, Mach, Avenarius, Petzoldt,

etc., e então a vossa filosofia, meus senhores, é um idealismo que se esforça em vão por encobrir

a nudez do seu solipsismo sob a capa de uma terminologia mais “objectiva”. Ou o “elemento” não

é uma sensação, e então a vossa palavrinha “nova” não contém absolutamente nenhum

pensamento, então pavoneai-vos simplesmente sem ter de quê”53.

Petzoldt, empiriocriticista alemão, depois de definir os elementos como sensações, encontrou um

problema semelhante ao pressentir que se-lhe evaporava o mundo pelo que precisou de fazer a ressalva de

que “na afirmação «as sensações são elementos do mundo» se não devia tomar a palavra «sensação»

como designando algo apenas subjectivo e por isso etéreo, que transformasse numa ilusão o quadro

habitual do mundo”54. Para Lénine, mais uma vez, encontramo-nos perante um sofisma: não se quer tomar

a sensação pela sensação. A dilatação do sentido desta palavra não muda tão-pouco o facto de que as

sensações estão ligadas no homem aos nervos, à retina, ao cérebro, etc.

Também Bogdánov – que afirma que não se reconhece machista em filosofia mas que não deixa

de retirar desta corrente o seu erro principal, isto é, “a noção da neutralidade dos elementos da experiência

relativamente ao «físico» e ao «psíquico», da dependência destas definições apenas na ligação da

53 V. I. Lénine, ibidem, p. 41-42.54 Petzoldt cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 42..

experiência”55 - defende, com Mach, que “como a filosofia positiva moderna esclareceu, os elementos da

experiência psíquica são idênticos aos elementos de toda a experiência em geral, como são idênticos aos

elementos da experiência física”56. Respondendo à negação por Bogdánov de que esta posição possa ser

considerada idealista, Lénine replica que “pode-se e deve-se falar de idealismo quando se reconhece a

identidade das sensações e dos “elementos da experiência física” (isto é, o físico, o mundo exterior, a

matéria), porque isto não é senão berkeleyanismo”. Não há aqui vestígio nem de filosofia moderna, nem

de filosofia positiva […]57.

Uma outra tentativa de introdução sub-reptícia do materialismo no empiriocriticismo traduz-se

na doutrina de Avenarius – e acolhida por Bogdánov – das séries dependente e independente da

experiência: “Na medida em que os dados da experiência surgem na dependência do estado de um dado

sistema nervoso, formam o mundo psíquico de uma dada personalidade; na medida em que os dados da

experiência são tomados fora desta dependência, temos perante nós o mundo físico. Por isso, Avenarius

designa estes dois domínios da experiência como a série dependente e a série independente da

experiência”58, diz Bogdánov. Trata-se de uma tentativa arbitrária, ecléctica e ilegítima do ponto de vista

de uma filosofia que diz que os corpos são complexos de sensações e que as sensações são idênticas aos

elementos do físico, considera Lénine. É uma tentativa que não liberta esta filosofia das suas premissas

idealistas fundamentais.

O eclectismo presente na doutrina do empiriocriticismo é também evidente na última obra de

Mach, Conhecimento e Erro, na qual declara simultaneamente que “não há nenhuma dificuldade em

construir qualquer elemento físico com sensações, isto é, com elementos psíquicos” e que as

dependências fora do limite espacial do nosso corpo são a física no sentido mais amplo e que para que se

obtenha estas dependências numa forma pura é necessário excluir tanto quanto possível a influência do

observador59. Isto é, primeiro constrói-se os elementos físicos com os psíquicos e depois verifica-se que

os elementos físicos se situam fora dos limites dos elementos psíquicos. Ainda na mesma obra, Mach

constata que não existe nenhum gás ideal ou um corpo perfeitamente elástico e que o físico sabe que as

“ficções só aproximadamente correspondem aos factos, simplificando-os arbitrariamente; ele conhece

esta divergência que não pode ser eliminada”60. Para Lénine, o que isto significa é que aqui Mach

“esquece a sua própria teoria e, começando a falar de diversas questões da física, raciocina com

simplicidade, sem floreios idealistas, isto é, de modo materialista. […] A teoria dos físicos revela-se um

reflexo dos corpos, dos líquidos, dos gases existentes fora de nós e independentemente de nós, e este

reflexo é naturalmente aproximativo, mas é incorrecto chamar «arbitrária» a esta aproximação ou

55 Bogdánov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 43.56 Bogdánov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 44.57 V. I. Lénine, ibidem.58 Bogdánov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 45.59 Cf. V. I. Lénine, ibidem, p. 48.60 idem, ibidem.

simplificação. Na realidade, a sensação é aqui considerada por Mach precisamente como a consideram

todas as ciências da natureza não «depuradas» pelos discípulos de Berkeley e de Hume, isto é, como uma

imagem do mundo exterior. A teoria própria de Mach é o idealismo subjectivo, mas quando é necessário

um elemento de objectividade, Mach introduz sem cerimónias nos seus raciocínios premissas da teoria do

conhecimento contrária, isto é, materialista”61. Nestes seus raciocínios fragmentários, Mach posiciona-se

do ponto de vista do “realismo ingénuo”, isto é, a teoria materialista do conhecimento inconsciente e

espontaneamente tomada dos naturalistas.

De facto, da mesma forma que o idealismo inicial de Mach e Avenarius é geralmente

reconhecido na literatura filosófica, também é geralmente reconhecido que o empiriocriticismo se

esforçou posteriormente por se virar para o materialismo. Tal é reconhecido pelo escritor francês

Cauwelaert “que vê nos Prolegómenos de Avenarius um «idealismo monista», na Crítica da Experiência

Pura (1888-1890) «realismo absoluto»” (realismo aqui está a significar em oposição a idealismo), “e na

Concepção Humana do Mundo (1891) uma tentativa de explicar esta mudança”62. Cauwelaert tem em

vista o facto de que, na primeira obra, Avenarius toma a sensação como a única coisa existente e elimina a

substância segundo o “princípio da economia do pensamento” e que, na segunda obra, o físico é tomado

como a série independente e o psíquico e, consequentemente, as sensações como a série dependente.

Também Rudolf Willy, discípulo de Avenarius, reconhece que este era integralmente idealista em 1876 e

que posteriormente reconciliou com esta doutrina aquilo que chama “realismo ingénuo”. Oskar Ewald,

por seu turno, considera que a doutrina de Avenarius combina em si aspectos contraditórios idealistas e

“realistas” (deveria dizer-se materialistas). W. Wundt, que à semelhança destes autores, se situa num

ponto de vista idealista, considera uns aspectos do empiriocriticismo como materialismo e outros como

idealismo e a ligação entre eles artificial. (Não foi sem manifestações de repúdio por parte dos defensores

mais ortodoxos de Avenarius que estas acusações de materialismo feitas por Wundt foram recebidas: a

acusação de materialismo a um professor alemão era infame). Portanto, a admissão de uma série

independente por Avenarius, e também por Mach noutras palavras é, segundo a opinião geral de vários

filósofos de diferentes tendências em filosofia, tomada do materialismo. Porém, diz Lénine, “se partis de

que tudo quanto existe é sensação ou de que os corpos são complexos de sensações, não podeis, sem

destruir todas as vossas premissas fundamentais, toda a «vossa» filosofia, chegar à conclusão de que o

físico existe independentemente da nossa consciência e de que a sensação é uma função da matéria

organizada de determinada maneira. Mach e Avenarius reúnem na sua filosofia as premissas idealistas

fundamentais e certas conclusões materialistas precisamente porque a sua teoria é um exemplo das

«eclécticas sopas dos pobres» de que falava Engels com merecido desprezo”63.

61 idem, ibidem, p. 48-49.62 idem, ibidem, p. 45.63 idem, ibidem, p. 47-48.

Avenarius e a coordenação de princípio

Uma outra tentativa, com contornos semelhantes aos das precedentes, para procurar conciliar o

empiriocriticismo com aquilo que chamam “realismo ingénuo” é consumada na doutrina da “coordenação

de princípio” de Avenarius, exposta em O Conceito Humano do Mundo e nas Notas. Com esta doutrina,

pretende Avenarius, com quem Mach se solidariza nesta pretensão, reconhecer e defender o valor “da

concepção comum, não filosófica, ingénua, de todas as pessoas que não se põem a pensar se elas próprias

existem e se o meio, o mundo exterior, existe”, nas palavras de Lénine.

Esta pretensa defesa do “realismo ingénuo” assenta na tese da “indissolúvel coordenação” do

“nosso Eu e do meio”, nas palavras de Avenarius. “Exprimindo-nos filosoficamente” – continua

Avenarius – “pode dizer-se: o Eu e o Não-eu”. “Encontramo-los sempre juntos”. “Nenhuma descrição

completa do que é dado (ou encontrado por nós) pode conter o meio sem um Eu do qual esse meio seja o

meio, pelo menos sem o Eu que descreve o encontrado. O Eu é chamado termo central da coordenação, e

o meio contratermo”64.

Acontece que, tal como é demonstrado por Lénine, esta coordenação de princípio, esta

coordenação indissolúvel entre o meio e o Eu, contém exactamente a mesma essência dos argumentos

apresentados pelos representantes do idealismo subjectivo. Tal fica evidente pela leitura de um diálogo

numa obra de Fichte de 1801, representante clássico desta corrente filosófica, que Lénine transcreve, no

qual o autor, pela boca do “Filósofo”, aconselha o “Leitor” a não sair de si mesmo, a não abarcar mais do

que pode abarcar, a saber: a consciência e a coisa, a coisa e a consciência, ou, mais exactamente, nem

uma coisa nem outra separadamente65. “Na doutrina de Mach e Avenarius”, nota Lénine, “não há nada

além de uma paráfrase do idealismo subjectivo. As suas pretensões a terem-se elevado acima do

materialismo e do idealismo, a terem eliminado a contradição entre o ponto de vista que vai da coisa para

a consciência e o ponto de vista contrário, são uma vã pretensão de um fichteísmo renovado. […] Por

outras palavras, repete-se o argumento de Berkeley: eu só sinto as minhas sensações, não tenho o direito

de supor a existência dos «objectos em si» fora da minha sensação”66. Assumindo diferentes formas, a

tese fundamental é a mesma.

E Lénine acrescenta que a referência ao “realismo ingénuo” pretensamente defendido por esta

doutrina não passa de um “sofisma do tipo mais barato”. “O «realismo ingénuo» de todo o homem são

que não esteve no manicómio nem foi aluno dos filósofos idealistas, consiste em admitir que as coisas, o

meio, o mundo, existem independentemente da nossa sensação, da nossa consciência, do nosso Eu e do

homem em geral. […] A convicção «ingénua» da humanidade é conscientemente colocada pelo

materialismo na base da sua teoria do conhecimento”67.

A opinião de que a coordenação de princípio de Avenarius se trata de idealismo subjectivo é

64 Avenarius cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 51.65 Cf. V. I. Lénine, ibidem.66 idem, ibidem, p. 52.67 idem, ibidem.

partilhada não só por Lénine, como o próprio faz notar, mas também por vários autores de campos bem

distintos do materialismo, quer se tratem de partidários daquela filosofia (cujos termos dos elogios

acabam por clarificar o verdadeiro conteúdo destas posições), quer se encontrem em oposição a ela.

Referindo apenas dois dos casos apontados por Lénine, veja-se Wundt para quem esta teoria de Avenarius

é uma “falsa confusão do conteúdo da experiência real com o raciocínio acerca dela”68. Para Norman

Smith, recordando que “Avenarius argumenta que o pensamento é uma forma da experiência tão

verdadeira como a percepção sensorial, voltando assim ao velho argumento já caduco do idealismo

subjectivo, a saber que o pensamento e a realidade são inseparáveis, porque a realidade só pode ser

percebida pelo pensamento e o pensamento supõe a existência daquele que pensa”, considera que “não é

um restabelecimento original e profundo do realismo, mas simplesmente o restabelecimento do idealismo

subjectivo na sua forma mais crua, o resultado final das especulações positivas de Avenarius” 69.

“A natureza existia antes do homem?”

A questão de saber se a natureza existia antes do homem é, como põe Lénine, “particularmente

venenosa para a filosofia de Mach e Avenarius”70. A contradição específica presente aqui consiste em que,

enquanto as ciências da natureza afirmam que a terra existia antes do homem, que houve um momento em

que não existia matéria dotada de sensibilidade, o empiriocriticismo supõe necessariamente (e na base da

sua filosofia) a existência de um ser sensível para o qual as coisas sejam complexos de sensações e sem o

qual as coisas não são (Mach) ou de um Eu em ligação indissolúvel com o meio (Avenarius). Como diz

Lénine: “As ciências da natureza afirmam positivamente que a terra existiu num estado em que nem o

homem nem nenhum ser vivo em geral nela existia ou podia existir. A matéria orgânica é um fenómeno

posterior, fruto de um prolongado desenvolvimento. Quer dizer que não havia matéria dotada de

sensibilidade, não havia nenhuns «complexos de sensações», nenhum Eu que estivesse

«indissoluvelmente» ligado ao meio, segundo a doutrina de Avenarius. A matéria é o primário, o

pensamento, a consciência, a sensação, são produto de um desenvolvimento muito elevado. Tal é a teoria

materialista do conhecimento, espontaneamente adoptada pelas ciências da natureza” 71.

É claro, comenta Lénine, que os empiriocriticistas notaram esta dificuldade e procuraram

ultrapassá-la: “notaram e colocaram abertamente a questão de saber por meio de que raciocínios se deve

eliminar esta contradição”72. Avenarius tenta eliminar esta contradição com as ciências da natureza, diz

Lénine, através da introdução da teoria do termo central “potencial” da coordenação, que consiste,

recordemos, na ligação indissolúvel entre o Eu e o meio. Assim, para, digamos, responder à questão,

relativa ao desenvolvimento do homem, de saber se existe um contratermo (meio) se o termo central é um

68 Wundt cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 53.69 Norman Smith cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 54.70 V. I. Lénine, ibidem, p. 56.71 idem, ibidem, p. 56-57.72 idem, ibidem, p. 57.

embrião, Avenarius diz que o sistema embrionário C é o termo central potencial em relação ao meio

individual futuro e que este nunca é igual a zero, mesmo quando ainda não existem pais, mas apenas

partes constituintes do meio, capazes de se tornarem pais73. “Assim, a coordenação é indissolúvel!”,

afirma Lénine com ironia, perguntando com Wundt, se isto não se tratará de um obscurecimento místico,

se não se tratará da antecâmara imediata do fideísmo. E acrescenta: “se é possível pensar num termo

central potencial em relação ao meio futuro, porque não pensar nele em relação ao meio passado, isto é,

após a morte do homem?”74. Esta introdução na teoria de Avenarius, que resulta apenas da necessidade de

se procurar conciliar com os conhecimentos adquiridos pelas ciências “a fim de salvar os fundamentos da

sua filosofia”, não faz mais do que introduzir elementos obscurantistas, místicos e abrir a porta ao

fideísmo. Não será por acaso que, como Lénine chama a atenção, será a ela que Schubert-Soldern se

referirá para tirar conclusões teológicas.

A solução para este problema – o de, nas palavras de Avenarius, parecer que do ponto de vista do

empiriocriticismo as ciências da natureza não têm o direito de pôr a questão dos períodos do nosso meio

actual que precederam no tempo a existência do homem – passa por esclarecer o naturalista que o que ele

faz, na verdade, é simplesmente pensar-se na qualidade de espectador: “quem pergunta”, diz Avenarius,

“não pode evitar acrescentar-se mentalmente a si mesmo”75. O mesmo, exactamente o mesmo, diz Fichte:

“acrescentarmo-nos sempre mentalmente a nós mesmos, como a razão que procura conhecer a coisa” 76.

Mais uma vez, a posição do “positivista moderno” Richard Avenarius e do idealista subjectivo J. G.

Fichte coincidem, ficando assim mais clara a verdadeira natureza da filosofia empiriocriticista. A sofística

desta teoria, diz Lénine, é evidente:

“Se nos «acrescentarmos mentalmente», a nossa presença será imaginária, mas a existência da

Terra antes do homem é real. De facto, o homem não pôde, por exemplo, ser espectador do estado

incandescente da Terra, e «pensar» a sua presença nessa altura é obscurantismo, perfeitamente

como que se eu me pusesse a defender a existência do inferno com o seguinte argumento: se eu

me «acrescentasse mentalmente» como observador, poderia observar o inferno. A «conciliação»

do empiriocriticismo com as ciências da natureza consiste em que Avenarius acede gentilmente a

«acrescentar mentalmente» aquilo cuja admissibilidade as ciências da natureza excluem.”77

Os discípulos de Avenarius, J. Petzoldt e R. Willy, encaram esta questão de forma diferente.

Petzoldt, procura fugir às conclusões absurdas do idealismo subjectivo de Avenarius. Para ele, seria fácil

evitar os “falsos caminhos” trilhados por Avenarius se não se der tão grande importância teórica ao Eu.

“A única coisa que a teoria do conhecimento deve exigir, tendo em conta as diferentes concepções do que

está afastado de nós no espaço e no tempo, é que seja concebível e possa ser univocamente determinado

[...]”78. Petzoldt rebaptizou a lei da causalidade por lei da determinação unívoca e introduziu a

73 Cf. idem, ibidem.74 idem, ibidem.75 Avenarius cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 58.76 Fichte cit. por V. I. Lénine, ibidem.77 V. I. Lénine, ibidem.78 idem, ibidem, p. 60.

aprioridade desta lei, diz Lénine. “Isto significa” – continua – “que Petzoldt se salva do idealismo

subjectivo e do solipsismo de Avenarius” e se aproxima do idealismo kantiano79.

Willy, que também reconheceu a mesma dificuldade na doutrina de Avenarius, concorda

inicialmente com ele (“nós transportamo-nos mentalmente para o passado”), mas acaba por afirmar, numa

dada fase, que não é obrigatório que se entenda a experiência por experiência humana: podemos

“simplesmente encarar o mundo animal – seja o verme mais insignificante – como homens primitivos” 80.

Assim, explicita Lénine, “antes do homem a Terra era a «experiência» do verme, que exercia a função de

«termo central» para salvar a «coordenação» de Avenarius e a filosofia de Avenarius!” 81. Acabaria por

abandonar a ideia do verme uma vez que ela também não resolvia o problema da Terra existir ainda antes

de quaisquer seres vivos, mas deixaria escapar a confissão: ou materialismo, ou o solipsismo ou “agarra o

momento”.

Lénine aborda também a forma como os machistas russos expuseram esta questão. Analisando as

posições de Bazárov e Valentínov, não encontra nelas mais do que “um amontoado incoerente de

palavras”82.

Ludwig Feuerbach, filósofo materialista que influenciou Marx e Engels na sua passagem do

idealismo de Hegel à sua filosofia materialista83, expõe a posição materialista de forma simples e

particularmente elucidativa:

“A natureza, que não é objecto do homem ou da consciência, evidentemente é para a filosofia

especulativa, ou pelo menos para o idealismo, uma coisa em si kantiana, uma abstracção sem

realidade, mas é justamente a natureza que leva ao fracasso do idealismo. As ciências da natureza

conduzem-nos necessariamente, pelo menos no seu estado actual, a um ponto em que ainda não

havia condições para a existência humana, em que a natureza, isto é, a Terra, ainda não era

objecto do olho humano e da consciência do homem, em que a natureza era, consequentemente,

um ser absolutamente não humano. O idealismo pode replicar a isto: mas esta natureza é uma

natureza pensada por ti. Certamente, mas daí não se segue que esta natureza não existia realmente

num determinado período de tempo, precisamente do mesmo modo que da circunstância de

Sócrates e Platão não existirem para mim se eu não pensar neles não decorre que Sócrates e

Platão no seu tempo não existiram na realidade sem mim.”84

“O homem pensa com o cérebro?”

Com outro problema se defronta o empiriocriticismo quando se põe a questão de saber qual a

origem do pensamento. A resposta dada por esta filosofia à pergunta “o homem pensa com o cérebro?” é

79 idem, ibidem.80 R. Willy cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 61.81 V. I. Lénine, ibidem.82 idem, ibidem, p. 65.83 Cf. idem, ibidem, p. 63.84 L. Feuerbach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 63-64.

claramente oposta à resposta dada pelas ciências da natureza e pela filosofia materialista. Para Avenarius,

“o nosso cérebro não é a morada, o assento, o criador, não é o instrumento ou o órgão, o portador, o

substracto, etc., do pensamento”, “o pensamento não é […] nem um produto nem mesmo uma função

fisiológica ou mesmo um estado geral do cérebro”, “as representações” “não são funções do cérebro” 85.

Para os materialistas, como Lénine chama a atenção através do Anti-Dühring de Engels, “o pensamento e

a consciência são produtos do cérebro humano”. Avenarius rejeita este ponto de vista que reconhece ser o

das ciências da natureza chamando “fetichismo das ciências da natureza” ao pensamento do cérebro e

declara-se abertamente em divergência absoluta com a psicologia dominante86.

Para procurar justificar a tese de que o homem não pensa com o cérebro, Avenarius adoptará uma

linha de argumentação semelhante à adoptada a propósito do “realismo ingénuo”, denuncia Lénine: “a

sofística é aqui exactamente a mesma que observamos no exemplo da famosa coordenação” 87. Avenarius

afirma que aquilo a que chama introjecção, isto é, a introdução do pensamento no cérebro ou das

sensações em nós, que a psicologia dominante defende (em vez de dizer perante nós) afasta-se do

“conceito natural do mundo” “fazendo da parte integrante do meio (real) parte integrante do pensamento

(ideal), o que é algo “misteriosamente oculto”88. Isto é, clarifica Lénine, Avenarius, “desviando a atenção

do leitor por meio de ataques contra o idealismo”, a propósito de uma pretensa defesa de um “realismo

ingénuo”, batendo-se contra a suposta transformação do mundo exterior em representação, acaba a

defender de facto, “com palavras um pouco diferentes, esse mesmo idealismo: o pensamento não é função

do cérebro, o cérebro não é o órgão do pensamento, as sensações não são função do sistema nervoso, não,

as sensações são «elementos», apenas psíquicos numa ligação, enquanto noutra ligação (se bem que

«idênticos») são físicos”89.

Mais uma vez, perante tal filosofia professoral, nas palavras de Lénine, os machistas russos

morderam o isco. Bogdánov acreditou que Avenarius se dirigia contra o idealismo “sem notar a farpa

dirigida contra o materialismo”. Não repara que, na teoria de Avenarius, o “dualismo” é refutado, mas de

maneira idealista porque, diz Lénine, a sensação e o pensamento não aparecem como o secundário, como

um produto da matéria, mas como o primário. O dualismo é aqui refutado por Avenarius apenas na

medida em que «refuta» a existência do objecto sem sujeito, da matéria sem pensamento, do mundo

exterior independentemente das nossas sensações”90. Uma eliminação materialista do “dualismo do

espírito e do corpo” (isto é, do monismo materialista), contrasta Lénine, “consiste em que o espírito não

existe independentemente do corpo, em que o espírito é o secundário, uma função do cérebro, o reflexo

do mundo exterior. A eliminação idealista do «dualismo do espírito e do corpo» (isto é, monismo

idealista) consiste em que o espírito não é função do corpo, em que o espírito é, por conseguinte, o

primário, em que o «meio» e o «Eu» só existem numa ligação indissolúvel dos mesmos «complexos de

85 R. Avenarius cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 65.86 Cf. V. I. Lénine, ibidem, p. 66.87 idem, ibidem, p. 67.88 Cf. idem, ibidem, p. 66.89 idem, ibidem, p. 67.90 idem, ibidem.

elementos»”91.

Mas os filósofos de ofício não são tão ingénuos e crédulos como os machistas russos, repara

Lénine. Referindo apenas alguns, veja-se o idealista Wundt que, segundo Lénine, arrancou

descortesmente a máscara a Avenarius ao elogiá-lo pela sua tendência antimaterialista. Já para O. Ewald,

esta teoria “não é mais do que uma ficção do empiriocriticismo, que lhe é necessária para encobrir os seus

erros” e que Avenarius se lançara em guerra contra o idealismo e depusera as armas perante o idealismo

antes da luta aberta com ele92.

5. O mundo é cognoscível

Da “coisa em si” incognoscível à “coisa para nós” cognoscível

Lénine, em defesa da teoria materialista do conhecimento, confrontou-se não só com machistas

que confessadamente se colocavam no campo oposto do marxismo, como o caso de Tchernov (que

desenvolve contra Engels, uma campanha por causa da “coisa em si”), mas também com quem, se

dizendo marxista, deturpava (ou “ajeitava”) as posições fundamentais desta corrente filosófica, em nome

do machismo, como é o caso de Bazárov.

Ao desarticular a argumentação de Tchernov e Bazárov, Lénine expõe e clarifica de forma

particularmente profícua o posicionamento de várias correntes filosóficas em relação à origem e

possibilidade do conhecimento do mundo que nos rodeia e afirma e defende a posição materialista tal

como é exposta por Marx e Engels: a origem do nosso conhecimento é o mundo exterior que provoca

impressões nos nossos órgãos dos sentidos e o nosso pensamento é capaz de reflectir verdadeiramente

esse mundo fora de nós.

No início deste trabalho fez-se referência à “grande questão fundamental de toda a filosofia” que

é “a questão da relação do pensamento com o ser, do espírito com a natureza” e que divide os filósofos

em “dois grandes campos” (Engels) e para que aqui Lénine chama a atenção. Mas Engels, no seu Ludwig

Feuerbach, linhas abaixo, afirma também que “há ainda um outro aspecto” da questão fundamental da

filosofia: “que relação existe entre os nossos pensamentos acerca do mundo que nos rodeia e este próprio

mundo? O nosso pensamento é capaz de conhecer o mundo real? Podemos nós, nas nossas representações

e conceitos sobre o mundo real, formar um reflexo correcto da realidade? A imensa maioria dos filósofos

responde afirmativamente a esta questão”93, incluindo aqui, reafirma Lénine, não só todos os

materialistas, mas também os idealistas mais consequentes, como Hegel. “Mas ao lado destes”, continua

Engels, “existe uma série de outros filósofos que contestam a possibilidade de conhecer o mundo ou, pelo

91 idem, ibidem, p. 68.92 Cf. idem, ibidem.93 F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 75.

menos, de o conhecer completamente. Contam-se ente eles, dos modernos, Hume e Kant, e eles

desempenharam um papel muito importante no desenvolvimento filosófico [...]”94.

Lénine transcreve uma passagem de Engels na qual ele põe de forma clara e resumida a posição

característica do agnosticismo, corrente cujos partidários defendem que são as sensações a fonte do nosso

conhecimento e que não podemos ir para além das sensações: nada podemos saber sobre a

correspondência entre elas e o que as origina, defendem. Engels diz:

“O nosso agnóstico admite que todo o conhecimento se baseia nas informações que nos são

transmitidas pelos sentidos […] Mas, acrescenta (o agnóstico), como sabemos que os nossos

sentidos nos transmitem representações correctas dos objectos que percebemos através deles? E

informa-nos então de que, sempre que fala de objectos ou das suas qualidades, na realidade não se

refere a estes objectos e qualidades, dos quais nada pode saber seguramente, mas apenas às

impressões que eles lhes produziram nos sentidos”95.

Lénine chama a atenção, em primeiro lugar, para as semelhanças, que esta citação evidencia,

entre o agnosticismo e a teoria de Mach. O agnóstico (humista) parte, tal como os machistas, das

sensações e não reconhece nenhuma outra fonte de conhecimentos. O agnóstico é, pois, como Lénine põe,

um “«positivista» puro, diga-se para informação dos partidários do «positivismo moderno»!”96. A

introdução de novas palavras, nota Lénine, não é suficiente para disfarçar o facto de as sensações, ao

serem chamadas de elementos, não deixarem de ser sensações. Acaso não notaram, pergunta Lénine, que

o agnóstico também põe “impressões” em lugar das próprias coisas? E Lénine conclui que “portanto, no

fundo, o agnóstico também distingue as «impressões» físicas e psíquicas”, tal como o fazia Mach. E

acrescenta a seguinte importante observação: “quando Mach diz: os corpos são complexos de sensações,

então Mach é berkeleyano. Quando Mach «se corrige» dizendo: os «elementos» (as sensações) podem ser

físicos numa ligação, e psíquicos noutra, então Mach é agnóstico, humista. Na sua filosofia Mach nunca

sai destas duas linhas […]”97.

Em segundo lugar, Lénine evidencia que, na citação referida, Engels contrapõe duas linhas

filosóficas: uma linha que defende que os sentidos dão origem a representações das coisas, que nós

conhecemos estas próprias coisas, que o mundo exterior actua sobre os nossos órgãos dos sentidos; e

outra linha cuja essência é não ir além das sensações, que se detém “deste lado dos fenómenos”, que se

recusa a ver algo de seguro para além do limite das sensações e que nada podemos saber de seguro sobre

estas próprias coisas. A primeira linha é o materialismo, a segunda o agnosticismo. O materialista afirma

a existência e cognoscibilidade das coisas em si, o agnóstico ou declara incognoscível a coisa em si ou

não admite sequer a sua existência.

Engels colocava tanto Hume como Kant no grupo de filósofos que contestavam a possibilidade

de conhecer o mundo, pelo menos de forma exaustiva: considerava-os agnósticos. No entanto, Lénine

94 idem cit. por V. I. Lénine, ibidem.95 idem cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 81.96 V. I. Lénine, ibidem.97 idem, ibidem, p. 81-82.

porá em destaque – numa resposta a Tchernov quando este protesta com Engels pela forma como,

alegadamente, Engels teria refutado a “coisa em si”– o conteúdo específico daquilo que une estes dois

filósofos, mas também das diferenças que os separam. Lénine esclarece que o que Engels refuta é a coisa

em si inapreensível de Kant (já veremos de que forma). Ora, Engels contesta ao mesmo tempo Hume e

Kant, continua Lénine. Como em Hume não se encontram nenhumas «coisas em si incognoscíveis», o

que há de comum entre estes dois filósofos é o facto de eles separarem por princípio o “«aparecer»

daquilo que aparece, a sensação daquilo que é sentido, a coisa para nós da «coisa em si»”. Assim, como

Lénine esclarece, para Hume, a «coisa em si» é inadmissível em filosofia, «metafísica». Para Kant, pelo

contrário, «coisa em si» existe, mas é «incognoscível», fundamentalmente diferente do fenómeno,

pertencente a um domínio fundamentalmente diferente, inacessível ao saber, mas revelado pela fé98.

Numa outra ocasião, em que responde, desta vez, a Bazárov, Lénine esclarece também que “o idealismo

só começa quando o filósofo diz que as coisas são sensações nossas; o kantismo começa quando o

filósofo diz: a coisa existe, mas é incognoscível. ”99.

A refutação determinante do ponto de vista agnóstico reside na prática. No seu Ludwig

Feuerbach, Engels afirma que “a refutação mais decisiva destas e de todas as outras fantasias (ou

invenções) filosóficas é a prática, designadamente a experiência e a indústria”. E continua:

“Se podemos provar a justeza da nossa concepção de um dado fenómeno da natureza produzindo-

o nós mesmos, criando-o a partir das suas condições, e além disso o fazemos servir os nossos fins,

acaba-se a «coisa em si» inapreensível (ou inconcebível) de Kant. As substâncias químicas

produzidas nos corpos dos animais e das plantas permaneceram «coisas em si» enquanto a

química orgânica não começou a produzi-las uma após outra; desse modo, a «coisa em si» tornou-

se uma «coisa para nós», como, por exemplo, a alizarina, a substância corante da garança, que

obtemos agora não das raízes da garança cultivada no campo, mas muito mais barato e mais

simplesmente de alcatrão da hulha.”100

Mas a Tchernov parece-lhe “estranho e ingénuo” este simples exemplo de Engels, nota Lénine.

“Ele [Tchernov] só considera filosofia as fantasias doutorais, não sabendo distinguir o eclectismo

professoral da teoria materialista consequente do conhecimento”101, diz.

Engels, no prefácio à edição inglesa Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, referindo-

se à linha de raciocínio do agnosticismo, põe a questão da seguinte forma:

“Ora esta linha de raciocínio é, sem dúvida, difícil de rebater pela mera argumentação. Mas antes

de existir a argumentação houve a acção. […] E a acção humana resolvera a dificuldade muito

antes de o engenho humano a inventar. The proof of the pudding is in the eating” (a prova do

pudim está em comê-lo). “A partir do momento em que damos a estes objectos o nosso próprio

uso, de acordo com as qualidades que neles percebemos, submetemos a um teste infalível a

98 Cf. idem, ibidem, p. 77.99 idem, ibidem, p. 83.100F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.76.101V. I. Lénine, ibidem, p. 78.

exactidão ou não das nossas percepções sensoriais. Se estas percepções estiverem erradas, então a

nossa estimativa do uso a dar a um objecto tem também de estar errada, e a nossa tentativa tem de

falhar. Mas se somos bem sucedidos, se descobrimos que o objecto está de acordo com a ideia que

temos dele, e que serve para o fim a que o destinámos, então teremos uma prova positiva de que

as nossas percepções do objecto e das suas qualidades, nesta medida, estão de acordo com a

realidade que existe fora de nós próprios...” […] “E sempre que nos encontramos perante um

fracasso, não levamos, de um modo geral, muito tempo a reconhecer a causa do nosso fracasso;

descobrimos que a percepção sobre a qual agimos ou era incompleta e superficial ou aparecia

combinada com os resultados de outras percepções de uma forma que estas não justificavam...”102.

Afirma Lénine que a teoria materialista, a teoria do reflexo dos objectos pelo pensamento, está

aqui exposta com toda a clareza: “fora de nós existem coisas. As nossas percepções e representações são

imagens delas. A comprovação destas imagens, e distinção entre as verdadeiras e as falsas, é dada pela

prática”103. “Qual a essência da objecção de Engels?” ao ponto de vista agnóstico, pergunta Lénine.

“Ontem não sabíamos que no alcatrão da hulha existia alizarina. Hoje sabemo-lo. Pergunta-se:

ontem existia alizarina no alcatrão da hulha? Claro que sim. Qualquer dúvida a este respeito seria

escarnecer das ciências da natureza contemporâneas. E se assim é, decorrem daqui três

importantes conclusões gnosiológicas:

1) As coisas existem independentemente da nossa consciência, independentemente da nossa

sensação, fora de nós, porque é indubitável que a alizarina existia ontem no alcatrão da hulha, e é

igualmente indubitável que ontem nós não sabíamos nada desta existência, que não recebíamos

nenhumas sensações desta alizarina.

2) Não há nem pode haver absolutamente nenhuma diferença de princípio entre o fenómeno e a

coisa em si. A diferença existe simplesmente entre o que é conhecido e aquilo que não é ainda

conhecido, e as invenções filosóficas acerca da existência de limites especiais entre uma coisa e

outra, acerca de que a coisa em si se encontra «além» dos fenómenos (Kant), ou de que podemos

e devemos separar-nos com uma barreira filosófica da questão do mundo ainda não conhecido

numa ou noutra parte, mas existente fora de nós (Hume) – tudo isto é absurdo, Schrulle, fantasias,

invenções.

3) Na teoria do conhecimento, como em todos os outros domínios da ciência, deve-se raciocinar

dialecticamente, isto é, não supor o nosso conhecimento acabado e imutável, mas analisar de que

modo da ignorância nasce o conhecimento, de que modo o conhecimento incompleto, impreciso,

se torna mais completo e mais preciso.”104

Esta citação, apesar de longa, é da maior pertinência para o presente trabalho: nela se afirma o

conhecimento como processo dialéctico, a inexistência de diferenças de princípio entre o fenómeno e a

coisa em si e se indica a prática como o critério para refutar as teses da incognoscibilidade do mundo. E

Lénine continua:

102F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 82-83.103V. I. Lénine, ibidem.104idem, ibidem, p. 77-78.

“Uma vez adoptado o ponto de vista de que o conhecimento humano se desenvolve a partir da

ignorância, vereis que milhões de exemplos, tão simples como a descoberta da alizarina no

alcatrão da hulha, milhões de observações extraídas não só da história da ciência e da técnica, mas

da vida quotidiana de todos e de cada um, mostram ao homem a transformação das «coisas em si»

em «coisas para nós», o aparecimento dos «fenómenos» quando os nossos órgãos dos sentidos

experimentam um impulso do exterior proveniente de tal ou tal objecto e o desaparecimento dos

«fenómenos» quando tal ou tal obstáculo elimina a possibilidade de acção sobre os nossos órgãos

dos sentidos de um objecto que manifestamente existe. A única e inevitável conclusão daí – que

tiram todos os homens na prática humana viva e que o materialismo põe conscientemente na base

da sua gnosiologia – consiste em que fora de nós e independentemente de nós existem objectos,

coisas, corpos, em que as nossas sensações são imagens do mundo exterior.”105

É precisamente na transformação da “coisa em si” em “coisa para nós” que consiste o processo

do conhecimento.

Lénine toma ainda o exemplo de outros filósofos que, para além de Marx e Engels, contestaram

resolutamente, a partir um ponto de vista materialista, a existência de qualquer linha de demarcação de

princípio entre o fenómeno e a coisa em si: Ludwig Feuerbach e Joseph Dietzgen106.

Feuerbach – para quem o “em si” é directamente contrário ao “em si” kantiano – acusa Kant de,

para ele, a “coisa em si” ser uma “abstracção sem realidade”, enquanto que, para si, Feuerbach, a “coisa

em si” é uma “abstracção com realidade”, nota Lénine. Para Dietzgen, “o «mundo em si» e o mundo tal

como nos aparece, os fenómenos do mundo, não se distinguem um do outro mais do que o todo se

distingue da parte”.

De um ponto de vista materialista, não se pode, portanto, separar por princípio o aparecer

daquilo que aparece, não se pode estabelecer nenhuma linha de demarcação de princípio entre o

fenómeno e a coisa em si. Tal linha é desenhada pelos agnósticos. Bazárov, que afirma colocar-se no

campo marxista, referindo-se a uma “saída para além dos limites do mundo dado pelos sentidos” 107,

afirma que Engels “não manifesta em parte nenhuma o desejo de realizar este «transcensus»”. Ao analisar

esta afirmação, Lénine – constatando em primeiro lugar que ela carece de sentido pois “se tivesse posto a

questão de modo inteligível, veria claramente que o mundo exterior está «para além dos limites das

sensações», das percepções e das representações do homem”108 - esclarece a questão e chama a atenção

para a forma como a palavra transcensus trai Bazárov pois esse transcensus pressupõe tal linha de

demarcação. A sua introdução é própria dos agnósticos (incluindo humistas e kantistas) e dos idealistas,

105idem, ibidem, p. 78.106Joseph Dietzgen foi um operário alemão e filósofo que chegou por si mesmo ao materialismo dialéctico e cujas

ideias, apesar de erros e imprecisões, Marx considerava dignas de admiração. Lénine afirma em Materialismo e Empiricoriticismo, que “a sua maneira de se exprimir é frequentemente imprecisa, que cai frequentemente em confusões, às quais se agarraram pessoas de pouca inteligência [...] e, naturalmente, os nossos machistas. Mas analisar a linha predominante da sua filosofia, separar claramente o materialismo dos elementos alheios, isso eles não se deram ao trabalho ou não souberam fazê-lo.” idem, ibidem, p. 90.

107idem, ibidem, p. 87.108idem, ibidem.

nota Lénine, mas não dos materialistas.

“Passar do fenómeno ou, se se quiser, da nossa sensação, percepção, etc., à coisa existente fora da

percepção é um transcensus, diz Kant, e admitimos esse transcensus não para o conhecimento,

mas para a fé. Não admitimos de modo nenhum o transcensus – replica Hume. E os kantianos, tal

como os humistas, chamam aos materialistas realistas transcendentais, «metafísicos», que

realizam uma passagem (em latim, transcensus) ilícita de um domínio para outro domínio

fundamentalmente diferente”109.

Algumas deturpações (e reposições) da posição materialista

Tchernov, recorrendo a uma má tradução de Plekhánov da segunda tese de Marx sobre

Feuerbach110 e a propósito de uma alegada contradição entre Marx e Engels, sublinha que tal contradição

é eliminada uma vez que ambos teriam afirmado a cognoscibilidade das coisas em si e o carácter além-

terreno do pensamento. Em resposta a Tchernov, Lénine replica que é analfabetismo afirmar que da

versão de Plekhánov resulta que Marx defende o carácter além-terreno do pensamento, “porque só os

humistas e os kantianos detêm o pensamento humano «deste lado dos fenómenos». Para todos os

materialistas, incluindo os materialistas do século XVII […], os «fenómenos» são «coisas para nós» ou

cópias dos «objectos em si»”111. Além disso, “é ignorância […] ou desleixo sem limites, saltar logo por

cima da primeira frase da tese, sem pensar que a «verdade objectiva» do pensamento não significa outra

coisa senão a existência dos objectos (= «coisas em si») reflectidos verdadeiramente pelo pensamento”112.

Quando Bazárov recorre à expressão “imediatamente dado”, tão cara dos machistas, incorre

numa mistificação, nota Lénine, quando atribui a Plekhánov, “como a todos os idealistas” (diz Bazárov) a

opinião de que “tudo o que é dado pelos sentidos, isto é, conhecido, é «subjectivo», que partir apenas do

que é dado de facto significa ser solipsista, que o ser real só pode ser encontrado para além de tudo o que

é imediatamente dado”113. Ora, nesta citação, Bazárov mistura a distinção entre o idealismo, agnosticismo

e materialismo. É que, como explica Lénine, para o materialista, o “dado de facto” é o mundo exterior de

que as nossas sensações são imagem; para o idealista, o “dado de facto” é a sensação e o mundo exterior é

um complexo de sensações; para o agnóstico o “imediatamente dado” é também a sensação, mas não vai

mais além, “nem em direcção ao reconhecimento materialista da realidade do mundo exterior, nem em

direcção ao reconhecimento idealista do mundo como nossa sensação”114.Da mesma forma, não faz

109idem, ibidem.110“A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objectiva – não é uma questão da teoria, mas

uma questão prática. É na prática que o homem tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o carácter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não-realidade do pensamento – que está isolado da prática – é uma questão puramente escolástica”. Marx cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 78.

111 V. I. Lénine, ibidem, p. 79.112 idem, ibidem.113 idem, ibidem, p. 84.114 idem, ibidem.

sentido perguntar “como é que sabemos que os nossos sentidos subjectivos nos fornecem uma

representação correcta das coisas?”, tal como Bazárov imputa aos agnósticos, porque, como diz Lénine,

Engels não atribui aos agnósticos um absurdo como os sentidos subjectivos já que o homem não raciocina

de outro ponto de vista que não o do homem.

Outro momento em que Bazárov confunde as coisas, nota Lénine, é quando diz que: “correcto é

aquilo que é confirmado pela nossa prática; consequentemente, porquanto as nossas percepções sensoriais

são confirmadas pela experiência, não são «subjectivas», isto é, não são arbitrárias ou ilusórias, mas

correctas, reais, como tais...”115. Confunde as coisas porque encobre a questão da existência das coisas

fora das nossas representações com a questão da correcção das nossas representações destas coisas. E,

complementa Lénine, não se pode ser materialista sem reconhecer a existências das coisas fora da nossa

consciência, mas pode-se sê-lo tendo opiniões diferentes acerca do critério da correcção das imagens que

os sentidos nos fornecem116. Além disso, confunde também quando atribui a Engels na discussão com o

agnóstico a fórmula segundo a qual as nossas percepções são confirmadas pela experiência porque

Engels, como nota Lénine, não podia aqui ter empregue a palavra experiência uma vez que sabia que

“tanto o idealista Berkeley como o agnóstico Hume e o materialista Diderot recorrem à experiência”.

Veja-se um outro exemplo assinalado por Lénine em que Bazárov “ajeita” Engels e, com isso, cai

em afirmações de natureza idealista ou agnóstica: “Nos limites em que na prática temos relações com as

coisas, as representações do objecto e das suas qualidades coincidem com a realidade que existe fora de

nós. […] Coincidem significa: nos limites dados, a representação sensorial é (itálico de Bazárov)

precisamente a realidade que existe fora de nós...”117. Isto é, diz Lénine, “exactamente o absurdo

fundamental, a confusão e a falsidade fundamentais do machismo, de que resultou a restante algaraviada

desta filosofia”118. E continua: “dizer «a representação sensorial é precisamente a realidade que existe fora

de nós» - significa voltar ao humismo ou mesmo ao berkeleyanismo escondido no nevoeiro da

«coordenação»”119. Uma posição materialista não se coaduna, portanto, com tal afirmação: para se manter

num ponto de vista materialista deveria ter dito que a representação sensorial é a imagem da realidade que

existe fora de nós. Uma e outra não são idênticas.

Lénine faz ainda referência a outra deturpação feita por Bazárov das posições materialistas

fundamentais. Da reposição por Lénine do verdadeiro sentido das afirmações de Engels que Bazárov

refaz em seu proveito, resulta a colocação da posição materialista a respeito da unidade do mundo. Ora,

Bazárov atribui a Engels a afirmação de que “o «ser» fora do mundo sensível é uma «offene Frage», isto

é, uma questão para cuja solução e até mesmo colocação não temos nenhuns dados” 120. Mas o que Engels

diz no seu Anti-Dühring, e que Bazárov não cita, é que “a unidade do mundo não consiste no seu ser,

115Bazárov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 85.116Cf. V. I. Lénine, ibidem.117Bazárov cit. por V. I. Lénine ibidem.118V. I. Lénine, ibidem.119 idem, ibidem, p. 86.120Bazárov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 87.

embora o seu ser seja uma premissa da sua unidade, pois o mundo tem primeiro que existir antes de poder

ser uno. O ser é, em geral, uma questão em aberto (offene Frage), a partir do ponto em que termina o

nosso campo de visão (Gesichtskreis). A unidade real do mundo consiste na sua materialidade, e esta não

se prova com um par de frases de prestidigitação, mas com um longo e difícil desenvolvimento da

filosofia e das ciências da natureza”121. Não é o ser fora do mundo sensível que é uma questão em aberto,

pois para os materialistas não há dúvidas quanto à existência do ser fora da sua percepção. Engels fala

claramente do ser para além do ponto em que acaba o nosso ponto de visão. “Com efeito”, nota Lénine,

“o fideísmo afirma positivamente que existe algo «fora do mundo sensível». Os materialistas, solidários

com as ciências da natureza, negam-no resolutamente. No meio estão os professores, os kantianos, os

humistas (incluindo os machistas) e outros que «encontraram a verdade fora do materialismo e do

idealismo» e que «conciliam»: é uma questão em aberto, dizem”122.

6. A verdade objectiva vs. a verdade como “forma organizadora da experiência humana”. A realidade

objectiva como a fonte das sensações

Para Lénine, o problema da verdade objectiva é uma das questões filosóficas fundamentais123. Ao

tratar esta questão, Lénine comenta a posição de Bogdánov que não se reconhece machista mas que,

como vimos, subscreve as posições fundamentais desta doutrina. Bogdánov nega a verdade objectiva.

Mas tal negação, como sublinha Lénine, não lhe pertence pessoalmente. Decorre, sim, dos fundamentos

da doutrina de Mach e Avenarius124: “a objectividade é definida de tal maneira que esta definição inclui a

doutrina da religião»125”.

A propósito de uma uma afirmação de Bogdánov – na qual declara que, para ele, o marxismo

contém uma negação da objectividade incondicional de qualquer verdade, a negação de todas as verdades

eternas, devendo esta ser entendida como a verdade objectiva no sentido absoluto da palavra – Lénine

evidencia que nela estão duas questões confundidas e coloca a questão nos seus termos correctos:

“1) existe uma verdade objectiva, isto é, pode haver nas representações humanas um conteúdo

que não depende do sujeito?

2) se sim, podem as representações humanas que exprimem a verdade objectiva exprimi-la de

uma vez, integralmente, incondicionalmente, absolutamente, ou apenas de maneira aproximada,

relativa? Esta segunda questão é a questão da relação entre a verdade absoluta e a verdade

relativa”126.

Bogdánov defende a verdade como “uma forma ideológica, uma forma organizadora da

121F. Engels cit por V. I. Lénine, ibidem, p. 87-88.122V. I. Lénine, ibidem, p. 88.123Cf. idem, ibidem, p. 92.124Cf. idem, ibidem, p. 94.125idem, ibidem, p. 93.126idem, ibidem, p. 92.

experiência humana”127. Nesta afirmação está presente a negação da verdade objectiva pois “se a verdade

é somente uma forma ideológica, quer dizer que não pode haver verdade independente do sujeito, da

humanidade [...], se a verdade é uma forma da experiência humana, não pode haver verdade independente

da humanidade, não pode haver verdade objectiva”128, replica Lénine. Aceitar que a verdade é apenas uma

forma organizadora da experiência é aceitar, por exemplo, que a doutrina do catolicismo é uma verdade,

denuncia Lénine, “porque está de fora de qualquer dúvida que o catolicismo é uma «forma organizadora

da experiência humana»”129.

Bogdánov, procurando evitar cair em tais conclusões, remete o fundamento da objectividade para

a esfera da experiência colectiva: “A objectividade dos corpos físicos que encontramos na nossa

experiência é estabelecida, em última análise, na base da verificação mútua e da concordância das

opiniões de diferentes pessoas. Dum modo geral, o mundo físico é a experiência socialmente concertada,

socialmente harmonizada, numa palavra, a experiência socialmente organizada”130. Esta é uma definição

idealista, considera Lénine de forma peremptória. A afirmação das ciências da natureza de que a Terra

existia antes da humanidade é uma verdade objectiva, afirma Lénine131. Ora, “se a verdade é uma forma

organizadora da experiência humana, não pode ser verdadeira a afirmação da existência da Terra fora de

toda a experiência humana”132.

Por mais correcções que Bogdánov faça – como, por exemplo, tentar estabelecer uma diferença

entre a experiência social (na qual inclui crenças mitológicas) e a experiência socialmente organizada

alegando que aquela não se harmoniza com as formas organizadoras da experiência colectiva como a

cadeia da causalidade – não corrige o erro fundamental da sua posição, afirma Lénine.

“A definição feita por Bogdánov da objectividade e do mundo físico cai absolutamente por terra,

porque a doutrina da religião tem «significado universal» num grau mais elevado do que a

doutrina da ciência: a maior parte da humanidade atém-se ainda hoje à primeira doutrina. O

catolicismo está «socialmente organizado, harmonizado, concertado» pelo seu desenvolvimento

secular; «encaixa-se» do modo mais indiscutível «na cadeia da causalidade», porque as religiões

não surgiram sem causas, não é de modo nenhum por acaso que nas condições actuais se mantêm

na massa do povo, e é perfeitamente «lógico» que os professores de filosofia se adaptem a elas.

Se esta experiência social-religiosa, sem dúvida de significado universal e sem dúvida altamente

organizada, «não se harmoniza» com a «experiência» da ciência, quer dizer que existe entre uma

e outra uma diferença essencial, fundamental, que Bogdánov apagou quando rejeitou a verdade

objectiva. E por mais que Bogdánov se «corrija», dizendo que o fideísmo ou o clericalismo não se

harmonizam com a ciência, continua a ser um facto indubitável que a negação da verdade

objectiva por Bogdánov «se harmoniza» completamente com o fideísmo. O fideísmo

contemporâneo não rejeita de forma nenhuma a ciência; rejeita apenas as «pretensões excessivas»

da ciência, a saber, a pretensão à verdade objectiva. Se existe uma verdade objectiva (como

127Bogdánov cit por V. I. Lénine, ibidem, p. 92.128V. I. Lénine, ibidem, p. 92-93.129idem, ibidem, p. 93.130Bogdánov cit por V. I. Lénine, ibidem.131V. I. Lénine, ibidem.132idem, ibidem.

pensam os materialistas), se as ciências da natureza, reflectindo o mundo exterior na

«experiência» humana, são as únicas capazes de nos dar a verdade objectiva, qualquer fideísmo é

absolutamente refutado. Mas, se não há verdade objectiva, se a verdade (incluindo a verdade

científica) é apenas uma forma organizadora da experiência humana, reconhece-se deste modo a

premissa fundamental do clericalismo, abre-se-lhe a porta, arranja-se lugar para as «formas

organizadoras» da experiência religiosa”133.

Lénine mostra assim que a definição de verdade como forma organizadora da experiência

humana – independentemente de se tratar de uma experiência individual ou colectiva – é uma definição

idealista que conduz directamente ao fideísmo e que decorre da negação da verdade objectiva.

Vimos que considerar que no mundo há apenas sensações ou que os corpos são complexos de

sensações, como o fazem, respectivamente, Avenarius e Mach é subjectivismo puro. Ora, esse

subjectivismo conduz inevitavelmente à negação da verdade objectiva, nota Lénine. Quando Mach e

Avenarius reconhecem que as sensações são a fonte do nosso conhecimento, colocam-se

consequentemente do ponto de vista do empirismo (todo o conhecimento deriva da experiência) ou do

sensualismo (todo o conhecimento deriva das sensações), nota Lénine. Mas tanto o idealista subjectivo

como o materialista pode tomar as sensações como a fonte do conhecimento; esta é, aliás, a primeira

premissa da teoria do conhecimento, diz Lénine. A partir daqui, pode seguir-se uma das duas deduções

possíveis das premissas do empirismo e do sensualismo: “partindo das sensações, pode seguir-se a linha

do subjectivismo, que conduz ao solipsismo («os corpos são complexos ou combinações de sensações») e

pode seguir-se a linha do objectivismo, que conduz ao materialismo (as sensações são imagens dos

corpos, do mundo exterior)”134, clarifica Lénine. Para o agnosticismo ou, indo mais longe, diz Lénine,

para o idealismo subjectivo, não pode haver verdade objectiva. Para o materialismo, o reconhecimento da

verdade objectiva é essencial. Mach, reconhecendo a primeira premissa – a de que as sensações são a

fonte do conhecimento –, embrulha a segunda importante premissa – a da realidade objectiva, dada ao

homem nas suas sensações – por meio de malabarismos verbais com a palavra “elemento” diz Lénine.

Assim, a negação da verdade objectiva por Bogdánov é o resultado inevitável do machismo, e não um

desvio dele, conclui Lénine.

Considerar a realidade objectiva como fonte das sensações é tomar uma posição materialista. “Se

não, sois inconsequente e chegareis infalivelmente ao subjectivismo, ao agnosticismo, tanto fazendo que

negueis a cognoscibilidade da coisa em si, a objectividade do tempo, do espaço e da causalidade (como

Kant), ou que não admitais sequer a ideia da coisa em si (como Hume). A inconsequência do vosso

empirismo”, continua Lénine, “da vossa filosofia da experiência, consiste nesse caso em que negais o

conteúdo objectivo da experiência, a verdade objectiva no conhecimento experimental”135. Os

materialistas reconhecem a realidade objectiva que nos é dada pela experiência, reconhecem uma fonte

objectiva, independente do homem, das nossas sensações. Os agnósticos negam a realidade objectiva

133idem, ibidem, p. 94.134idem, ibidem, p. 95.135idem, ibidem, p. 96.

como fonte das nossas sensações. Daqui a negação da verdade objectiva feita pelos agnósticos, nota

Lénine, e a tolerância para com doutrinas religiosas e místicas. Se os machistas, que são subjectivistas e

agnósticos, não vêem nas sensações uma reprodução fiel da realidade objectiva, os materialistas vêem “o

mundo mais rico, mais vivo e mais variado do que parece, porque cada passo do desenvolvimento da

ciência, descobre nele novos aspectos. Para o materialista, as nossas sensações são imagens da única e

última realidade objectiva – última não no sentido de que ela já é conhecida até ao fim, mas no sentido de

que não existe nem pode existir outra senão ela”136, diz Lénine.

7. O conceito de matéria e a questão gnosiológica fundamental

A matéria é definida por Lénine como a categoria filosófica que designa a realidade objectiva

que é dada ao homem nas suas sensações, que é reflectida pelas sensações, e que existe

independentemente delas. Lénine refere que os “machistas encolhem desdenhosamente os ombros a

propósito das ideias «antiquadas» dos «dogmáticos», os materialistas, que se atêm ao conceito de

matéria, pretensamente refutado pela «ciência moderna» e pelo «positivismo moderno»”137. Sucede que é

inadmissível, considera, que os machistas confundam a doutrina sobre determinadas estruturas da matéria

com aquela que é uma categoria gnosiológica: a questão das novas formas e propriedades da matéria

(como, por exemplo, a descoberta dos electrões no átomo) não pode ser confundida “com a velha questão

da teoria do conhecimento, a questão das fontes do nosso conhecimento, da existência da verdade

objectiva, etc.”138. Se a realidade objectiva é dada ao homem, através das sensações, como defendem os

materialistas, então é necessário um conceito filosófico “e este conceito está elaborado desde há muito,

muito tempo, este conceito é o de matéria”139.

Vejamos como essa negação é feita por vários representantes do empiriocriticismo: Avenarius

afirma que o contratermo é inseparável do termo central, que o meio é inseparável do Eu; Mach diz que a

matéria não é mais do que uma certa ligação regular dos elementos; Pearson considera a matéria como

grupos constantes de percepções sensoriais, aproximando-se da definição de Mill da matéria como

possibilidade permanente de sensações, e demarca-se imediatamente daquela consideração da matéria

como uma coisa que se move140. Nestes argumentos, nota Lénine – que giram dentro dos limites da antiga

questão gnosiológica das relações entre o pensamento e o ser, o físico e o psíquico – é substituída a linha

filosófica fundamental do materialismo que vai do ser o pensamento, da matéria à sensação, pela linha

oposta do idealismo141. Lénine, respondendo àqueles que dizem que a definição materialista de matéria

não passa de uma repetição, contesta: “não se pode, no fundo não se pode, dar uma «definição» dos dois

136idem, ibidem, p. 97.137idem, ibidem.138idem, ibidem.139idem, ibidem.140Cf. idem, ibidem, p. 110.141Cf. idem, ibidem.

últimos conceitos gnosiológicos [matéria e espírito] senão indicando qual deles se considera como

primário. O que significa dar uma «definição»? Significa, em primeiro lugar, incluir um dado conceito

noutro, mais amplo. […] Pergunta-se agora: existem conceitos mais amplos com os quais se possa operar

a teoria do conhecimento do que os conceitos de ser e de pensamento, de matéria e de sensação, de físico

e de psíquico? Não. São conceitos inultrapassavelmente amplos, os mais amplos, para além dos quais, de

facto (se não se tiver em vista as sempre possíveis modificações de nomenclatura), a gnosiologia até

agora não foi”142. Em todas aquelas “definições” de matéria, aqueles filósofos vão do psíquico ou do Eu

ao físico ou ao meio, do termo central ao contratermo, da sensação à matéria. Lénine pergunta: Mach e

Pearson podiam, no fundo, dar qualquer outra «definição» dos conceitos fundamentais que não fosse a

indicação da sua orientação filosófica?”143. “O génio de Marx e de Engels”, prossegue, “revelou-se, entre

outras coisas, no facto de terem desprezado o jogo pedante das palavrinhas novas, dos termos eruditos,

dos «ismos» subtis, e de terem dito simples e directamente: há uma linha materialista e uma linha

idealista na filosofia, e entre elas diversos matizes de agnosticismo”144.

A rejeição do conceito de matéria não é uma novidade trazida pelos “positivistas modernos”. Ela

é “a solução, há muito conhecida, das questões da teoria do conhecimento no sentido da negação da fonte

exterior, objectiva, das nossas sensações, da realidade objectiva correspondente às nossas sensações”145.

Por isso, dizer que este conceito pode envelhecer é um balbúcio infantil, diz Lénine. Revelando a

antiguidade desta questão, pergunta: “pôde envelhecer em dois mil anos de desenvolvimento da filosofia

a luta do idealismo e do materialismo? A luta das tendências da linha de Platão e Demócrito em filosofia?

A luta da religião e da ciência? A luta entre a negação e o reconhecimento da verdade objectiva? A luta

dos partidários do conhecimento supra-sensorial contra os seus adversários?”146. Esta questão em torno do

conceito de matéria é, considera Lénine, a da confiança dos homens nos seus órgãos dos sentidos, a

questão das fontes do conhecimento. Esta é uma questão que foi posta desde o próprio início da filosofia,

que pode ser disfarçada de mil maneiras, diz, mas que não pode envelhecer tal como não pode “a questão

de saber se a vista e o tacto, o ouvido e o olfacto, são a fonte do conhecimento humano. Considerar as

nossas sensações como imagens do mundo exterior – admitir a verdade objectiva – manter-se no ponto de

vista da teoria materialista do conhecimento – isto é uma e a mesma coisa”147.

Mas, mais uma vez, a oposição entre matéria e consciência não pode ser correctamente reflectida

se não for posta de forma dialéctica. “Naturalmente”, esclarece Lénine, “também a oposição entre a

matéria e a consciência só tem um significado absoluto dentro dos limites de um domínio muito restrito:

neste caso, exclusivamente dentro dos limites da questão gnosiológica fundamental do que considerar

como primário e do que considerar como secundário. Para além destes limites, a relatividade desta

questão é indubitável”148.

142idem, ibidem, p. 110-111.143idem, ibidem, p. 111.144idem, ibidem.145idem, ibidem, p. 110.146idem, ibidem, p. 97.147idem, ibidem, p. 98.148idem, ibidem, p. 112.

8. A relação entre a verdade absoluta e relativa. Dialéctica vs. relativismo. Verdade e erro.

Ao pôr o problema da verdade, Lénine chamava a atenção para dois aspectos desta questão: em

primeiro lugar, o de saber se existe a verdade objectiva (isto é, saber se existe um conteúdo nas

representações humanas que não depende do sujeito) e, em segundo lugar, o de saber se essa verdade

objectiva é dada ao homem de uma só vez ou apenas de forma aproximada. Esta é a importante questão

da relação entre a verdade absoluta e relativa – que apenas é resolúvel dialecticamente.

Bogdánov acusa Engels de eclectismo por este admitir verdades eternas. Não interessa aqui

apresentar os argumentos de Bogdánov, nem a forma como Lénine mostra que eles não passam de

“declamações” e de um mero “amontoado de palavras”. Interessa, sim, retomar a discussão, a que

Bogdánov se referia, entre Engels e Dühring, materialista dogmático. Este último lançava a torto e a

direito, diz Lénine, as palavras verdade última, eterna, definitiva. Engels refutou e ridicularizou Dühring

que não sabia aplicar a dialéctica à questão da relação entre a verdade relativa e absoluta, diz. Apesar de

tudo, responde Engels, existem certamente verdades eternas, verdades definitivas e sem apelo: Napoleão

morreu a 5 de Maio de 1821, Paris é em França ou um homem privado de alimento morre de fome, por

exemplo. Mas estas, em geral, não são mais do que banalidades, do que lugares-comuns da pior

espécie149. “Ser materialista”, esclarece Lénine, “significa reconhecer a verdade objectiva que nos é

revelada pelos órgãos dos sentidos. Reconhecer a verdade objectiva, isto é, não dependente do homem e

da humanidade, significa reconhecer duma maneira ou doutra, a verdade absoluta. É este «duma maneira

ou doutra» que separa o materialista metafísico Dühring do materialista dialéctico Engels”150, conclui.

Engels põe a questão de saber se os produtos do conhecimento humano, e quais, podem ter uma

validade soberana e um direito incondicional à verdade. Eis, então, a forma como Engels resolve

dialecticamente esta questão da relação entre a verdade absoluta e relativa:

“A soberania do pensamento realiza-se numa série de homens que pensam de modo extremamente

pouco soberano; o conhecimento que tem um direito incondicional à verdade, numa série de erros

relativos; nem um nem outro podem ser realizados completamente senão através de uma duração

infinita da vida da humanidade.

Temos aqui de novo a contradição que já tínhamos encontrado atrás, a contradição entre o carácter

do pensamento humano concebido necessariamente como absoluto, e a sua concretização nos

indivíduos isolados, que pensam apenas de modo limitado. Esta contradição só pode ser resolvida

numa série de gerações humanas sucessivas que, pelo menos para nós, é praticamente infindável.

Neste sentido, o pensamento humano é tão soberano como não soberano, e a sua capacidade de

conhecimento é tão ilimitada como limitada. Soberano e ilimitado pela sua natureza, vocação,

possibilidade e objectivo histórico final; não soberano e limitado pela sua realização individual e

pela realidade dada num ou noutro momento.

O mesmo acontece com as verdade eternas [...]”151

149F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 100.150V. I. Lénine, ibidem.151F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 100-101.

Este raciocínio é extremamente importante, considera Lénine, para a questão do relativismo.

Todos os machistas se afirmam relativistas, nota Lénine, significando com isto a exclusão da mínima

admissão da verdade absoluta. Para Engels, por seu turno, a verdade absoluta compõe-se de verdades

relativas. Esta é a diferença entre o relativismo e a dialéctica. Lénine, mais à frente, desenvolve esta ideia,

considerando que colocar o relativismo na base da teoria do conhecimento significa condenar-se

inevitavelmente ao cepticismo absoluto, ao agnosticismo e à sofística, ou ao subjectivismo. “O

relativismo, como base da teoria do conhecimento”, continua, “é não somente o reconhecimento da

relatividade dos nossos conhecimentos, mas é também a negação de qualquer medida ou modelo

objectivo, existente independentemente da humanidade, da qual se aproxima o nosso conhecimento

relativo”152. A dialéctica, como explicava Hegel, e Lénine aqui sublinha, contém um elemento de

relativismo, de negação, mas não se reduz ao relativismo. Portanto, a dialéctica de Marx e Engels,

“reconhece a relatividade de todos os nossos conhecimentos, não no sentido da negação da verdade

objectiva, mas no sentido da condicionalidade histórica dos limites da aproximação dos nossos

conhecimentos em relação a esta verdade”153, diz Lénine.

Outro raciocínio importante de Engels, considera Lénine, é o que diz respeito à relação entre

verdade e erro, também ela apenas compreensível num quadro dialéctico:

“A verdade e o erro, como todas as categorias lógicas que se movem em oposições polares, só têm

valor absoluto nos limites de um domínio extraordinariamente limitado, como acabámos de ver e

como o sr. Dühring o saberia também se conhecesse minimamente os primeiros elementos da

dialéctica, as suas primeiras premissas, que tratam precisamente da insuficiência de todas as

oposições polares. Desde que aplicamos a oposição entre a verdade e o erro fora dos limites do

domínio estreito que indicámos atrás, esta oposição torna-se relativa e portanto, imprópria para a

expressão científica exacta. E se tentamos aplicá-la como oposição absoluta, fora dos limites do

domínio indicado, fracassamos completamente: ambos os pólos da oposição se transformam no

seu contrário, isto é, a verdade torna-se erro e o erro verdade.”154

E aqui Lénine faz referência ao exemplo de Engels sobre a lei de Boyle. Engels diz:

“Tomemos como um exemplo a bem conhecida lei de Boyle. De acordo com ela, se a temperatura

permanece constante, o volume do gás varia inversamente com a pressão a que está sujeito.

Regnault descobriu que esta lei não é exacta em certos casos. Tivesse sido ele um filósofo da

realidade [como Dühring], teria de ter dito: a lei de Boyle é mutável, logo não é uma verdade

genuína, logo não é de todo uma verdade, logo é um erro. Mas se tivesse feito isso, teria cometido

um erro muito maior do que o que estava contido na lei de Boyle; o seu grão de verdade teria

desaparecido num monte de erros; ele teria distorcido a sua conclusão originalmente correcta

transformando-a num erro comparado com o qual a lei de Boyle, junto com a pequena partícula

de erro que comporta, teria parecido verdade. Mas Regnault, sendo um homem de ciência, não se

152V. I. Lénine, ibidem, p. 103.153idem, ibidem.154F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 101.

entregou a tais infantilidades, mas continuou as suas investigações e descobriu que, em geral, a lei

de Boyle é apenas aproximadamente verdadeira e que, em particular, perde a sua validade no caso

dos gases que podem ser liquefeitos pela pressão, nomeadamente no momento em que a pressão

se aproxima do ponto em que a liquefacção começa. A lei de Boyle foi provada verdadeira, mas

apenas dentro de determinados limites. Mas, dentro desses limites, ela será verdadeira de um

modo absoluto e definitivo? Nenhum físico o pretenderá. Diria que é válida dentro de certos

limites de pressão e temperatura e para certos gases; e mesmo nestes limites mais restritos, não

excluiria a possibilidade uma limitação ainda mais estreita ou de uma formulação alterada como

resultado de futuras investigações.”155

Assim, conclui Lénine, o “grão de verdade” contido nesta lei só representa uma verdade absoluta

dentro de certos limites, a lei é uma verdade apenas aproximadamente. “Cada degrau no desenvolvimento

da ciência acrescenta novos grãos a esta soma de verdade absoluta, mas os limites de cada tese científica

são relativos, sendo ora alargados, ora restringidos à medida que cresce o conhecimento” 156.

J. Dietzgen põe a questão nos seguintes termos: “É evidente que o quadro não esgota o objecto,

que o pintor fica atrás do seu modelo...Como é que o quadro pode «coincidir» com o modelo?

Aproximadamente, sim”. “Só de maneira relativa podemos conhecer a natureza e as suas partes; porque

cada parte, embora seja somente uma parte relativa da natureza, tem contudo a natureza do absoluto, a

natureza de toda a natureza em si, que o conhecimento não pode esgotar”157.

Lénine evidencia assim que, para o materialismo dialéctico, não existe nenhuma fronteira

intransponível entre a verdade absoluta e relativa.

“Do ponto de vista do materialismo contemporâneo, isto é, do marxismo, são historicamente

condicionais os limites da aproximação dos nossos conhecimentos em relação à verdade

objectiva, absoluta, mas é incondicional que nós nos aproximamos dela. […] Numa palavra, é

historicamente condicional qualquer ideologia, mas é incondicional que a qualquer ideologia

científica (diferentemente, por exemplo, da ideologia religiosa) corresponde uma verdade

objectiva, uma natureza absoluta. Direis: esta distinção entre a verdade absoluta e a verdade

relativa é indefinida. Responder-vos-ei: é suficientemente «indefinida» para impedir a

transformação da ciência num dogma, no mau sentido desta palavra, numa coisa morta,

cristalizada, ossificada, mas é ao mesmo tempo suficientemente «definida» para nos demarcar, da

maneira mais resoluta e irrevogável do fideísmo e do agnosticismo, do idealismo filosófico e da

sofística dos seguidores de Hume e de Kant”158.

155F. Engels, Anti-Dühring, in Karl Marx-Frederick Engels Collected Works, New York, International Publishers, v.25, 1987, p. 111. p. 84-85.

156V. I. Lénine, ibidem, p. 101.157J. Dietzgen cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 102.158V. I. Lénine, ibidem.

9. A relação entre a teoria e a prática na teoria do conhecimento

Vimos que Marx e Engels colocam o critério da prática na base da teoria do conhecimento do

materialismo. Lénine, relembrando a segunda tese de Marx sobre Feuerbach, afirma peremptoriamente

que “colocar fora da prática a questão de saber «se ao pensamento humano pertence a verdade objectiva»

é escolástica”.

Mach, por seu turno, separa a prática e a teoria do conhecimento. Nas suas palavras,

“fisiologicamente permanecemos egoístas e materialistas com a mesma constância com que

constantemente vemos o nascer do Sol. Mas teoricamente não devemos de modo nenhum ater-nos a esta

concepção”159. Como nota Lénine, a prática e a teoria podem ser, de acordo com Mach, colocadas lado a

lado sem que a primeira condicione a segunda. Feuerbach, pelo contrário, colocara a questão nestes

termos: “O erro fundamental do idealismo consiste precisamente em que ele coloca e resolve a questão da

objectividade e da subjectividade, da realidade ou da irrealidade do mundo, somente do ponto de vista

teórico”160.

Mach pode, assim, fazer equivaler as ilusões e a verdade objectiva. Segundo Mach, “mesmo o

sonho mais incoerente é um facto como qualquer outro”161. Mas isto é a mesma coisa que dizer, compara

Lénine, que do ponto de vista científico não tem interesse saber qual de duas teorias diferentes exprime a

verdade objectiva. É precisamente o critério da prática que distingue a ilusão da realidade – assim é de um

ponto de vista materialista.

Mach afirma, noutra obra, que só o êxito pode distinguir o conhecimento do erro162. Esta

afirmação foi utilizada pelos machistas russos como prova da aproximação de Mach ao marxismo. Mas

estas frases, nota Lénine, aparecem lado a lado com a sua teoria idealista do conhecimento. “O

conhecimento”, replica Lénine, “só pode ser biologicamente útil, útil na prática do homem, na

conservação da vida, na conservação da espécie, se reflectir a verdade objectiva, independente do homem.

Para o materialista o «êxito» da prática humana demonstra a correspondência das nossas representações

com a natureza objectiva das coisas que percebemos”163. Lénine estabelece, de seguida, uma distinção

importante sobre a forma de entender a prática na teoria do conhecimento de duas correntes filosóficas

opostas: “Para o solipsista o «êxito» é tudo aquilo de que eu necessito na prática, a qual pode ser

considerada separadamente na teoria do conhecimento. Se incluirmos o critério da prática na base da

159E. Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 105.160L. Feuerbach cit. por V. I. Lénine, ibidem.161“No pensamento habitual e na linguagem usual, costuma opor-se o aparente, o ilusório, à realidade. Segurando

um lápis diante de nós no ar, vemo-lo rectilíneo; mergulhando-o obliquamente dentro de água, vemo-lo curvado. Diz-se neste último caso: «o lápis parece curvado, mas na realidade é rectilíneo». Mas por que razão chamamos a um facto a realidade e rebaixamos outro ao nível de uma ilusão?...Quando cometemos o erro natural de em casos extraordinários esperar mesmo assim fenómenos ordinários, as nossas expectativas são, naturalmente, frustradas. Mas os factos não têm culpa disso. Falar em semelhantes casos de ilusão tem sentido do ponto de vista prático, mas de forma nenhum do ponto de vista científico. Do mesmo modo, não tem qualquer sentido, do ponto de vista científico, a questão frequentemente discutida de se o mundo existirá realmente ou é apenas uma ilusão nossa, nada mais do que um sonho. Mas mesmo o sonho mais incoerente é um facto como qualquer outro.” E. Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 104.

162idem cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 105.163V. I. Lénine, ibidem.

teoria do conhecimento, chegamos inevitavelmente ao materialismo – diz o marxista. Que a prática seja

materialista, mas a teoria é outra coisa – diz Mach”164.

Estes “esforços” de eliminar a prática como algo susceptível de exame gnosiológico com o

objectivo de preparar o lugar para o agnosticismo e o idealismo não são novos, nota Lénine que

documenta a sua afirmação com o exemplo de Schulze (céptico) e Fichte (idealista subjectivo), os quais,

tal como Mach, admitem a realidade objectiva das coisas fora de nós na prática, mas negam-na na teoria.

Feuerbach, notando esta separação idealista da teoria e da prática, afirma: [para os idealistas]

este ponto de vista [o do reconhecimento na prática do Eu e do Tu] só é válido para a vida e não para a

especulação. Mas a especulação que está em contradição com a vida e faz do ponto de vista da morte, da

alma separada do corpo, o ponto de vista da verdade, essa especulação é morta, é uma falsa especulação”165.

Para Lénine, o critério da prática deve “deve ser o ponto de vista primeiro e fundamental da

teoria do conhecimento”, deve situar-se na sua base, o que “conduz inevitavelmente materialismo,

afastando desde o princípio as invencionices intermináveis da escolástica professoral”166. No entanto, não

deixa de fazer um esclarecimento importante: o critério da prática, diz Lénine,

“nunca pode, no fundo, confirmar ou refutar completamente uma representação humana, qualquer

que seja. Este critério é também suficientemente «indeterminado» para não permitir que os

conhecimentos do homem se transformem num «absoluto», e, ao mesmo tempo, suficientemente

determinado para conduzir uma luta implacável contra todas as variedade de idealismo e

agnosticismo. Se aquilo que a nossa prática confirma é a única e a última verdade objectiva, daí

decorre que o reconhecimento de que o único caminho para esta verdade é o caminho da ciência

assente no ponto de vista materialista”167.

Lénine dá, então, um exemplo de uma compreensão errada da relação entre teoria e prática,

desmontando uma outra “confusão” de Bogdánov. Este último “consente” que a teoria da circulação

monetária de Marx seja uma verdade objectiva, mas apenas para a “nossa época” e chama “dogmatismo”

à atribuição a esta teoria de uma veracidade “objectiva supra-histórica”. A “confusão” consiste em que,

como sublinha Lénine, “nenhumas circunstâncias futuras podem alterar a correspondência desta teoria

com a prática, pela mesma simples razão que torna eterna a verdade de que Napoleão morreu a 5 de Maio

de 1821”168.

10. Sobre a utilização idealista do conceito de “experiência”

Lénine afirma que o termo “experiência” tem servido desde há muito para encobrir sistemas

164idem, ibidem.165L. Feuerbach cit. por V. I. Lénine , ibidem, p. 107.166V. I. Lénine, ibidem.167V. I. Lénine, ibidem, p. 107.168idem, ibidem.

idealistas169. Sob esse conceito podem encontrar-se tanto a linha materialista, como a linha idealista ou

agnóstica em filosofia170. “As diferentes «definições» deste conceito exprimem apenas as duas linhas

fundamentais em filosofia que Engels tão claramente revelou”171.

Veja-se o idealista subjectivo Fichte que declara solenemente que a alma da sua filosofia consiste

em que o homem nada possui além da experiência e que chega a tudo o que chega através dela172. Veja-se

o professor W. Jerusalem para quem “a aceitação de um ser original divino não contradiz nenhuma

experiência”173.

O que fazem os empiriocriticistas, que constroem os seus sistemas sobre a palavra “experiência”,

é, diz Lénine, passar de forma ecléctica do materialismo ao idealismo e vice-versa 174. A confusão criada

pelos empiriocriticistas nesta matéria é notada não só por Lénine, mas também por um conjunto de

escritores seus contemporâneos, como o próprio mostra. Tome-se o tomo II da Crítica da Experiência

Pura no qual Avenarius, diz Lénine, “encara a «experiência» como «um caso especial» do psíquico”.

Avenarius “divide a experiência em sachhafte Werte (coisas-valores) e em gedankenhafte Werte

(pensamentos-valores)” considerando que a “«experiência em sentido amplo» inclui estes últimos” e que

“a «experiência completa» identifica-se com a coordenação de princípio. Numa palavra: «o que queres é

o que pedes». A «experiência» abarca tanto a linha materialista como a linha idealista em filosofia,

consagrando a sua confusão”175. Também Mach incorre na mesma confusão. Ele, que parte do ponto de

vista idealista ao considerar os corpos complexos de sensações, afirma, na sua Mecânica, que “não

devemos filosofar de dentro de nós mesmos, mas tomar da experiência”; afirma que “aquilo que

observamos na natureza imprime-se nas nossas representações […] e estas representações […] imitam os

processos da natureza”; afirma que “a experiência gera o pensamento”176. Mach, aqui, está a assumir

espontaneamente um ponto de vista materialista, ao interpretar a experiência como algo objectivo, dado

de fora ao homem, e ao considerar a natureza como o primário. “Se Mach sustentasse de modo

consequente este ponto de vista nas questões fundamentais da gnosiologia”, conclui Lénine, “evitaria à

humanidade muitos e tolos «complexos» idealistas”177.

11. Causalidade e necessidade

A questão da causalidade, considera Lénine, tem uma importância muito particular para a

definição de uma linha filosófica. Lénine expõe a teoria materialista do conhecimento acerca desta

questão e confronta-a com a teoria idealista oposta, perfilhada pela corrente positivista, ilustrando com

169Cf. idem, ibidem, p. 114.170Cf. idem, ibidem, p. 116.171idem, ibidem.172Cf. idem, ibidem, p. 113.173W. Jerusalem cit. por V. I. Lénine, ibidem.174Cf. V. I. Lénine, ibidem, p. 114.175idem, ibidem, p. 112.176E. Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 114.177V. I. Lénine, ibidem.

diversas posições a forma que essa mesma posição fundamental idealista assume sobre a causalidade.

Os materialistas reconhecem as leis objectivas da natureza, reconhecem a causalidade objectiva

(que indissoluvelmente se liga ao reconhecimento da realidade objectiva do mundo exterior). Isto é, para

esta linha filosófica, a causalidade e a necessidade existem e pertencem à própria natureza e as

representações humanas reflectem-nas com exactidão (apenas) aproximada. Para o mostrar, Lénine

analisará excertos de Feuerbach, Engels e Dietzgen. Contrariamente, para os idealistas, é o pensamento (a

consciência, a razão, a lógica...) que confere ordem à natureza. Observando diferentes autores (Mach,

Avenarius, Kant, Hume, Pearson, Poincaré, entre outros), Lénine faz sobressair diferentes formas dessa

mesma posição: tudo o que experimentamos é que um fenómeno segue o outro, a necessidade como

probabilidade, como associação de factos, a necessidade como pertencente ao mundo dos conceitos, as

leis da natureza como símbolos ou convenções criadas pelo homem por razões de comodidade, etc. Todas

elas têm em comum um aspecto fundamental: a negação da causalidade objectiva.

Para uma exposição da posição materialista sobre a causalidade, Lénine cita Feuerbach. Na sua

Essência da Religião Feuerbach diz que:

“a natureza só pode ser compreendida através da própria natureza, que a sua necessidade não é

humana nem lógica, nem metafísica nem matemática, que só a natureza é o ser ao qual não se

pode aplicar qualquer medida humana, ainda que comparemos os seus fenómenos com fenómenos

humanos análogos e lhe apliquemos, para a tornar compreensível para nós, expressões e conceitos

humanos tais como ordem, objectivo, lei, e sejamos obrigados a aplicar-lhe tais expressões devido

à essência da nossa linguagem”178.

R. Haym, historiador alemão, a propósito desta passagem de Feuerbach, afirma que esta posição

estabelece um profundo abismo entre a natureza e a razão humana. Mas Feuerbach replica e esclarece:

“Que significa isto? Quero com isto dizer que não há na natureza nenhuma espécie de ordem, de

modo que, por exemplo, ao Outono pode suceder o Verão, à Primavera o Inverno, ao Inverno o

Outono? Que não há objectivo, de modo que, por exemplo, não existe qualquer coordenação entre

os pulmões e o ar, entre a luz e o olho, entre o som e o ouvido? Que não há ordem, de modo que,

por exemplo, a Terra se move ora em elipse ora em círculo, girando em volta do Sol ora num ano

ora num quarto de hora? Que absurdo! Mas que queria eu dizer nesta passagem? Nada mais do

que estabelecer uma diferença entre o que pertence à natureza e o que pertence ao homem; não se

diz nesta passagem que às palavras e às representações acerca da ordem, do objectivo, da lei, não

corresponde nada de real na natureza, nela apenas se nega a identidade do pensamento e do ser,

nega-se que a ordem, etc., existam na natureza exactamente do mesmo modo que na cabeça ou

nos sentidos do homem. A ordem, o objectivo, a lei, não são mais do que palavras com as quais o

homem traduz as coisas da natureza para a sua língua, para as compreender; estas palavras não

são privadas de sentido, não são privadas de conteúdo objectivo; mas no entanto é preciso

distinguir o original da tradução. […]

Do carácter fortuito da ordem, da finalidade e da lei da natureza o teísmo infere directamente a

sua origem arbitrária, a existência de um ser diferente da natureza e que traz a ordem, a finalidade

178L. Feuerbach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 116-117.

e a lei à natureza, caótica em si mesma, alheia a qualquer determinação. A razão dos teístas...é

uma razão que está em contradição com a natureza, que está absolutamente privada de

compreensão da essência da natureza. A razão dos teístas divide a natureza em dois seres, um

material, outro formal ou espiritual”179.

Nestas afirmações de Feuerbach está o reconhecimento, considera Lénine, das leis objectivas da

natureza, da causalidade objectiva reflectida com exactidão apenas aproximada nas representações

humanas. Qualquer outra linha filosófica na questão da causalidade – a negação das leis, da causalidade,

da necessidade objectivas na natureza – são com razão incluídas por Feuerbach na tendência do fideísmo,

“porque é claro”, continua Lénine, “com efeito, que a linha subjectivista na questão da causalidade, a

dedução da ordem e da necessidade da natureza não do mundo objectivo exterior, mas da consciência, da

razão, da lógica, etc., não só separa a razão humana da natureza, não só opõe a primeira à segunda, como

faz da natureza uma parte da razão, em vez de considerar a razão como uma partícula da natureza. A linha

subjectivista na questão da causalidade é idealismo filosófico (de que as teorias da causalidade tanto de

Hume como de Kant são variedades), isto é, fideísmo mais ou menos atenuado, diluído”180.

Lénine, analisando a posição de Engels sobre a questão da causalidade, repara que este não teve

ocasião de explicitamente opor o seu ponto de vista materialista a outras tendências quanto a esta questão

particular. No entanto, não devem subsistir quaisquer dúvidas sobre a existência da causalidade e

necessidade objectivas da natureza. Para o comprovar, Lénine recorre a algumas passagens do Anti-

Dühring e de Ludwig Feuerbach de Engels. Engels, no Anti-Dühring, ao afirmar que, para se conhecer os

pormenores dos fenómenos da natureza, é preciso desligá-los da sua conexão natural e estudar cada um

deles separadamente, segundo as suas propriedades, as suas causas e efeitos particulares181, está a

reconhecer, em primeiro lugar, a existência objectiva dessa conexão. Engels não deixa de expor também a

concepção dialéctica de causa e efeito: “Causa e efeito são representações que só têm significado, como

tais, aplicadas a um caso particular; mas logo que consideramos este caso particular na sua conexão geral

com todo o mundo, estas representações encontram-se e entrelaçam-se na representação da interacção

universal, na qual causas e efeitos mudam constantemente de lugar; aquilo que aqui ou agora é causa

torna-se efeito ali ou depois, e vice-versa”182.

Engels relaciona a causalidade da natureza com as relações do pensamento, nota Lénine: “Se

verificarmos que as leis do pensamento correspondem às leis da natureza, isto torna-se plenamente

compreensível – diz Engels – se se tomar em atenção que o pensamento e a consciência são «produtos do

cérebro humano e que o próprio homem é um produto da natureza». Compreende-se que «os produtos do

cérebro humano, que em última análise são eles próprios produtos da natureza, não contradizem o resto

da conexão da natureza, mas estão em correspondência com ela»”183. Também no Ludwig Feuerbach,

179L. idem cit. por V. I. Lénine, ibidem.180V. I. Lénine, ibidem, p. 117-118.181F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 118.182idem cit. por V. I. Lénine, ibidem.183idem cit. por V. I. Lénine, ibidem.

Engels se refere a esta relação: “as leis gerais do movimento do mundo exterior e do pensamento humano

são no fundo idênticas, mas diferentes na sua expressão, na medida em que a mente humana pode aplicá-

las conscientemente, enquanto na natureza – e até agora também, em grande parte, na história humana –

abrem caminho inconscientemente, sob a forma de uma necessidade exterior entre uma série infinita de

casualidades aparentes”184.

J. Dietzgen – filósofo materialista que cai, por vezes, em algumas inexactidões e erros que

serviram de pretexto para algumas deturpações do materialismo feitas pelos machistas – também não tem

dúvidas em, materialistamente, situar as causas na própria natureza. Na sua A Essência do Trabalho

Cerebral afirma que “As ciências da natureza buscam as causas não fora dos fenómenos, não para além

deles, mas neles ou através deles”. E, mais à frente que “As causas são produtos da faculdade de pensar.

Mas não são produtos puros, são geradas por ela em união com material fornecido pelos sentidos. O

material fornecido pelos sentidos dá à causa assim gerada uma existência objectiva. Do mesmo modo que

exigimos da verdade que ela seja verdade de um fenómeno objectivo, também exigimos da causa que ela

seja real, que ela seja a causa de um efeito objectivamente dado”185.

Avenarius, por seu turno, em relação à questão da causalidade, considera que “não

experimentando (não conhecendo pela experiência: erfahren) a força como a causa do movimento, não

experimentamos também a necessidade de qualquer movimento...Tudo o que experimentamos (erfahren)

é que um segue o outro”186. Mais à frente: “A necessidade permanece como grau de probabilidade com

que se esperam os efeitos”187. Para Lénine, estas afirmações são humismo na sua forma mais pura na

medida em que “a sensação, a experiência, nada nos dizem acerca de qualquer necessidade” 188; elas

contêm um subjectivismo perfeitamente definido na questão da causalidade. Mas um filósofo que parta do

ponto de vista que afirma que só existe a sensação, que não reconheça a realidade objectiva como fonte

das nossas sensações, não pode chegar a outra conclusão, diz.

Para Mach, que não esconde a sua afinidade com Hume, “além da necessidade lógica, não existe

nenhuma outra necessidade, por exemplo, física”189. E, na Mecânica, Mach afirma que “na natureza não

há nem causa nem efeito”. E continua: “Expus muitas vezes que todas as formas da lei da causalidade

decorrem de impulsos subjectivos; a natureza não tem necessidade de corresponder-lhes”190. Não é que

Mach seja inteiramente consequente, nota Lénine, uma vez que, em certas passagens das suas obras,

como vimos já acima, assume um ponto de vista materialista espontâneo, como quando afirma que “a

natureza ensina-nos a encontrar a uniformidade nos seus fenómenos”191. Porém, não quer isto dizer que

essa uniformidade seja encontrada fora do nosso espírito, no entender de Mach. Acerca desta mesma

184F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem.185J. Dietzgen cit. por V. I. Lénine, p.118.186R. Avenarius cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.120.187idem cit. por V. I. Lénine, ibidem.188V. I. Lénine, ibidem.189E. Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem.190idem cit. por V. I. Lénine, ibidem.191idem cit. por V. I. Lénine, ibidem.

questão, Mach faz considerações como “a força que nos incita a completar no pensamento factos apenas

parcialmente observados é a força da associação. Ela fortalece-se com a repetição. Parece-nos então uma

força independente da nossa vontade e dos factos isolados, que dirige os pensamentos e os factos, que os

mantém em conformidade uns com os outros como uma lei de uns e de outros. Que nos consideremos

capazes de fazer predições com a ajuda de tal lei prova apenas a suficiente uniformidade do nosso meio,

mas não prova de modo nenhum a necessidade do êxito das nossas predições”192. Na sua última obra,

Conhecimento e Erro, Mach, como repara Lénine, chega mesmo a definir a lei da natureza como uma

“limitação da expectativa”193. Assim, diz Lénine interpretando as palavras de Mach, “deduz-se que se

pode e deve procurar a necessidade fora da uniformidade do meio, isto é, da natureza! Onde procurar, isso

é um segredo da filosofia idealista, que teme reconhecer a faculdade cognitiva do homem como um

simples reflexo da natureza”194.

Lénine, debruçando-se mais uma vez sobre as posições adoptadas pelos machistas russos, repara

que estes “substituem com uma ingenuidade surpreendente a questão da orientação materialista ou

idealista de todas as considerações sobre a lei da causalidade pela questão de uma ou outra formulação

desta lei. Acreditaram nos professores empiriocriticistas alemães no sentido de que dizer «correlação

funcional» era fazer uma descoberta do «positivismo moderno» e desembaraçar-se do «fetichismo» de

expressões como «necessidade», «lei», etc.”195. Não se trata, pois, de atentar em meras mudanças de

palavras.

“A questão verdadeiramente importante da teoria do conhecimento que divide as correntes

filosóficas não consiste em saber qual o grau de precisão que alcançaram as nossas descrições das

conexões causais e em saber se essas descrições podem ser expressas numa fórmula matemática

precisa196 – mas em saber se a fonte do nosso conhecimento destas conexões são as leis objectivas

da natureza ou as propriedades da nossa mente, a faculdade que lhe é inerente em conhecer

determinadas verdades apriorísticas, etc. Eis o que separa irrevogavelmente os materialistas

Feuerbach, Marx e Engels dos agnósticos (humistas) Avenarius e Mach”197, diz Lénine.

Karl Pearson pertence a esta mesma corrente filosófica. Lénine recolhe um conjunto de citações

deste autor que, pela sua clareza, falam por si e que são características desta mesma corrente no que diz

respeito à causalidade: “as leis da ciência são mais produtos da mente humana do que factos do mundo

exterior”; “tanto os poetas como os materialistas, que vêem na natureza a soberana do homem, esquecem

com muita frequência que a ordem e a complexidade dos fenómenos que admiram são pelo menos tanto

produto da faculdade cognitiva do homem como as suas recordações e pensamentos”; “o homem é criador

192idem cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 121.193idem cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 120.194V. I. Lénine, ibidem, p. 121.195idem, ibidem, p. 120.196 Lénine referia-se à expressão “correlação funcional” tendo notado que o próprio Mach fizera a ressalva de que o

conceito de função só pode exprimir mais precisamente a “dependência dos elementos” quando se tiver alcançado a possibilidade de exprimir os resultados em grandezas mensuráveis o que mesmo ciências como a química, nota Lénine, só parcialmente atingiram.

197V. I. Lénine, ibidem, p.121.

da lei da natureza”; “tem mais sentido a afirmação de que o homem dá leis à natureza do que a afirmação

contrária de que a natureza dá leis ao homem”; “a necessidade pertence ao mundo dos conceitos e não ao

mundo das percepções” (isto é, para Pearson, a realidade fora de nós); “na uniformidade com que se

reptem determinadas séries de percepções (a rotina das percepções) não há nenhuma necessidade

inerente, mas é uma condição indispensável da existência de seres pensantes que haja uma rotina das

percepções. A necessidade reside, portanto, na natureza do ser pensante, e não nas próprias percepções;

ela é o produto da faculdade cognitiva”198. Acerca destas afirmações de Pearson, Lénine comenta que a

posição que considera que o homem dita leis à natureza e não a natureza ao homem é puro idealismo

kantiano. Não se trata de repetir o apriorismo de Kant, pois esta é uma formulação particular dessa

posição, mas sim em colocar-se do ponto de vista que coloca a consciência, a razão, como o primário e a

natureza como o secundário. Assim, não é a razão que é uma parte da natureza, mas a natureza uma parte

da razão. Esta é dilatada “convertendo-se de razão humana ordinária, simples, familiar a todos, em razão

«desmedida», como dizia J. Dietzgen, misteriosa, divina”199. Assim, afirma Lénine, “a fórmula kantiano-

machista «o homem dita leis à natureza» é uma fórmula do fideísmo”200.

J. Petzoldt, idealista subjectivo e discípulo de Mach e Avenarius, elaborou a lei da univocidade, a

fim de superar a causalidade que, nas suas palavras, juntamente com a “substancialidade”, paralisa a

coragem do pensamento201. Segundo Petzoldt, não podemos admitir que um corpo se mova de diferentes

maneiras sob impulsos diferentes. “Não podemos admitir tanta indeterminação e arbitrariedade na

natureza; devemos exigir-lhe determinação, leis”202. Assim, é exigido à natureza que o corpo, sob

impulsos idênticos, se mova na mesma direcção, por razões de univocidade. Quaisquer outras direcções

exigiriam soluções multívocas, o que não é possível. Esta lei da univocidade de Petzoldt, mesmo antes de

se tornar lei, diz, “ela é já para nós um princípio com que abordamos a realidade, isto é, um postulado.

Tem validade, por assim dizer, a priori, independente de qualquer experiência isolada. À primeira vista,

não é próprio da filosofia da experiência preconizar verdades apriorísticas, voltando assim à metafísica

mais estéril. Mas o nosso apriorismo é apenas lógico, e não psicológico ou metafísico.” 203. “Pois claro” -

ironiza Lénine com pertinência - “se chamarmos lógico ao apriorismo desaparece todo o reaccionarismo

desta ideia e ela eleva-se ao nível do «positivismo moderno»!”204. Porém, para Petzoldt, nos fenómenos

psíquicos não pode haver determinação unívoca. “Vendo as coisas com atenção, verifica-se a ausência da

univocidade. Não há nenhum acontecimento histórico, nenhum drama no qual não possamos imaginar os

participantes agindo diferentemente nas condições psíquicas dadas”, diz Petzoldt. E continua: “A

univocidade não só não está ausente no domínio psíquico, como temos o direito de exigir que esteja

ausente da realidade. A nossa doutrina eleva-se, assim...à categoria de postulado...isto é, de condição

198K. Pearson cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.122. 199V. I. Lénine, ibidem.200idem, ibidem.201J. Petzoldt cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.123.202idem cit. por V. I. Lénine, ibidem.203idem cit. por V. I. Lénine, ibidem.204V. I. Lénine, ibidem.

necessária de toda a experiência anterior, de a priori lógico”205. Para Lénine, estamos na presença “do

mais puro metafísico, que não tem a menor ideia da relatividade da diferença entre o casual e o

necessário”206; estamos na presença de um “destacado empiriocriticista que caiu imperceptivelmente no

kantismo e prega as doutrinas mais reaccionárias com um molho ligeiramente modificado” o que “não é

um acaso, pois a doutrina da causalidade de Mach e Avenarius é, na sua própria base, uma mentira

idealista, quaisquer que sejam as frases altissonantes sobre o «positivismo» com que se encubra”. Lénine

continua: “A diferença entre as teorias da causalidade de Hume e de Kant é uma diferença de segunda

ordem entre os agnósticos, que estão de acordo no essencial: na negação das leis objectivas da natureza,

condenando-se assim inevitavelmente a umas ou outras conclusões idealistas”207.

Para R. Willy, que Lénine caracteriza como um empiriocriticista um pouco mais «escrupuloso»

do que Petzoldt que se envergonha da sua afinidade com os imanentistas, a necessidade é uma

característica “puramente lógica”, não “transcendental”, uma “característica puramente verbal”. Willy

revela a posição comum dos agnósticos de chamar “transcendental” à concepção materialista da

necessidade segundo a qual, como diz Lénine, “todo o reconhecimento da realidade objectiva é um

«transcensus» ilegítimo”208.

Também Henri Poincaré se desvia constantemente para o caminho do agnosticismo, nota Lénine.

“Para Poincaré […] as leis da natureza são símbolos, convenções que o homem cria por «comodidade»”.

Para Poincaré, a objectividade é definida por aquilo que tem um valor geral, é aquilo que é admitido pela

maioria ou por todos os homens. Isto é, explicita Lénine, Poincaré “elimina de maneira puramente

subjectivista a verdade objectiva, como todos os machistas”209. Assim, quando Poincaré afirma que “a

única verdadeira realidade objectiva é a harmonia interna do mundo” só pode responder “sem dúvida que

não” à questão de saber se essa “harmonia” existe fora de nós210. Mas, se os machistas russos tomam

diferentes variantes de “teorias do simbolismo” por novidades, filósofos competentes, como nota Lénine,

situam esta questão correctamente. Para o kantiano Phillipp Frank, referindo-se ao facto de Poincaré

tomar os princípios mais gerais das ciências da natureza como convenções, repara que, dessa forma, “a

moderna filosofia da natureza renova inesperadamente a ideia fundamental do idealismo crítico, a saber,

que a experiência não faz mais do que preencher um quadro que o homem traz consigo ao mundo”211.

Também o kantiano E. Lucka, que subscreve a opinião de que Mach adere inteiramente a Hume na

questão da causalidade212, caracteriza correctamente o machismo em contraposição às outras linhas

filosóficas, considera Lénine. Lucka observa que P. Volkmann (físico que, segundo Lénine, se inclina,

como a maioria dos naturalistas, para o materialismo, embora de forma inconsequente e tímida) “deduz a

necessidade do pensamento da necessidade dos processos da natureza – ponto de vista que, em

205J. Petzoldt cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.124.206V. I. Lénine, ibidem.207idem, ibidem.208idem, ibidem, p.125.209idem, ibidem.210Cf.idem, ibidem.211 idem, ibidem.212Cf. idem, ibidem.

contradição com Mach e de acordo com Kant, reconhece o facto da necessidade – mas ele vê a fonte da

necessidade, em contradição com Kant, não no pensamento mas nos processos da natureza” 213.

A essência de todos estes pontos de vista, reitera Lénine, está no reconhecimento do que é

comum a Hume e a Kant (e não na repetição de uma ou outra formulação particular), isto é, “negar as leis

objectivas da natureza e a deduzir tais ou tais «condições da experiência», tais ou tais princípios,

postulados, premissas, do sujeito, da consciência humana, e não da natureza”. Engels, continua Lénine,

“tinha razão quando disse que o essencial não consiste em saber a qual das numerosas escolas do

materialismo ou do idealismo adere tal ou tal filósofo, mas em saber se ele toma como primário a

natureza, o mundo exterior, a matéria em movimento, ou o espírito, a razão, a consciência, etc.” 214.

Lénine reserva uma última palavra acerca destas questões da causalidade para os machistas

russos, tomando o exemplo de P. Iuchkévitch e de A. Bogdánov. Para P. Iuchkévitch, a energia é “tão

pouco uma coisa, uma substância, como o tempo, o espaço, a massa e outros conceitos fundamentais das

ciências da natureza: a energia é uma constância, um empírio-símbolo, como outros empírio-símbolos que

satisfazem durante um certo tempo a necessidade essencial do homem de introduzir a razão, o Logos, na

torrente irracional do dado”215. Para Bogdánov, “as leis não pertencem de modo nenhum à esfera da

ciência , … não são dadas nela, mas criadas pelo pensamento como meio de organizar a experiência, de

coordená-la harmoniosamente numa unidade coerente”216. Estes machistas, diz Lénine, “confiando

cegamente nos professores reaccionários «modernos», repetem os erros do agnosticismo kantiano e

humista na questão da causalidade, sem se aperceberem nem de que estas teorias estão em contradição

absoluta com o marxismo, isto é, com o materialismo, nem de que elas resvalam por um plano inclinado

para o idealismo”217.

12. O espaço e o tempo

Também na questão do espaço e do tempo as duas linhas filosóficas fundamentais divergem de

forma radical.

Para os materialistas, o tempo e o espaço têm uma existência objectiva, o que não podia deixar

de ser quando se parte do reconhecimento da existência da realidade objectiva, isto é, da matéria em

movimento independentemente da nossa consciência, como Lénine faz notar218. “Assim como as coisas

ou corpos não são simples fenómenos, não são complexos de sensações mas realidades objectivas que

actuam sobre os nossos sentidos, também o espaço e o tempo não são simples formas dos fenómenos,

mas formas objectivamente reais do ser. No mundo não há senão matéria em movimento, e a matéria em

213E. Lucka cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.126.214V. I. Lénine, ibidem.215P. Iuchkévitch cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.127.216A. Bogdánov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.128.217V. I. Lénine, ibidem.218Cf. idem, ibidem, p.132.

movimento não pode mover-se senão no espaço e no tempo”219. Assim sintetiza Lénine a posição

materialista acerca do espaço e do tempo. Nas palavras de Engels, “um ser fora do tempo é tão absurdo

tão grande como um ser fora do espaço”220.

Quando se fala do reconhecimento da existência objectiva do espaço e do tempo – como Lénine

e Engels sublinham a propósito dessa confusão recorrente da parte de alguns filósofos – não se trata dos

nossos conceitos de espaço e de tempo cuja modificação constante é utilizada como tentativa de refutação

da sua existência objectiva. A isto Lénine responde: “As noções humanas do espaço e do tempo são

relativas, mas destas noções relativas forma-se a verdade absoluta, estas noções relativas tendem, no seu

desenvolvimento, para a verdade absoluta e aproximam-se dela. A mutabilidade das noções humanas do

espaço e do tempo não refuta mais a realidade objectiva de um e de outro do que a mutabilidade dos

conhecimentos científicos sobre a estrutura e as formas de movimento da matéria refuta a realidade

objectiva do mundo exterior”221. Ou, como põe um pouco mais à frente, “uma coisa é saber como

precisamente, através dos diferentes órgãos dos sentidos, o homem percebe o espaço e como, no decorrer

de um longo desenvolvimento histórico, se formam, a partir destas percepções, os conceitos abstractos de

espaço; e outra coisa completamente diferente é saber se a estas percepções e a estes conceitos da

humanidade corresponde uma realidade objectiva, independente da humanidade”222. Lénine afirma que a

única posição filosófica compatível com a negação de todo o idealismo e fideísmo é a admissão resoluta e

definida de que os nossos conceitos em desenvolvimento de tempo e de espaço reflectem o tempo e o

espaço objectivamente reais e que se aproximam da verdade objectiva223, pois “se o tempo e o espaço são

apenas conceitos, a humanidade, que os criou, tem o direito de sair dos seus limites [...]”224.

Portanto, o problema gnosiológico fundamental que divide as correntes filosóficas

verdadeiramente fundamentais, como coloca Lénine, consiste em saber se o espaço e o tempo são reais ou

ideais, consiste em saber se as nossas noções relativas do espaço e do tempo são aproximações das formas

objectivamente reais do ser ou se serão apenas produtos do pensamento humano225.

Contrariamente ao materialismo, para o positivismo moderno de Mach, “o espaço e o tempo são

sistemas ordenados (ou harmonizados, wholgeordnete) de séries de sensações”226. Isto é, nas palavras de

Lénine, um claro absurdo idealista que decorre inevitavelmente da doutrina segundo a qual os corpos são

complexos de sensações pois, para Mach, não é o homem que existe no espaço e no tempo, mas estes que

existem no homem, dependem do homem e são por ele gerados. É certo que Mach faz um conjunto de

ressalvas, nota Lénine, alegando que tempo e espaço têm origem na experiência (procurando opor-se a

Kant). Porém, se para Mach a experiência não reflecte a realidade objectiva existente fora de nós (como

vimos atrás), então ele não pode nunca ultrapassar o ponto de vista idealista em que assenta a sua

219idem, ibidem, p.133.220F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.134.221V. I. Lénine, ibidem, p.133.222idem, ibidem, p.141.223Cf. idem, ibidem, p.134.224idem, ibidem.225Cf. idem, ibidem, p.133.226E. Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.135.

doutrina. As objecções feitas por Mach a Kant, diz Lénine, não destroem o agnosticismo nem de Kant,

nem de Mach. De acordo com Lénine, Mach “constrói a teoria gnosiológica do tempo e do espaço sobre o

princípio do relativismo” […] e “esta construção, no fundo, não pode conduzir senão ao idealismo

subjectivo”227.

Mach, misturando uma e outra solução da questão gnosiológica fundamental a este respeito, e

analisando os conceitos de espaço e tempo em vários planos, afirma que, no aspecto fisiológico, estes

conceitos são sensações de orientação que determinam o desencadeamento das reacções de adaptação

biologicamente úteis228. Mas se assim é, repara Lénine, é exclusivamente na condição de estas sensações

de espaço e de tempo reflectirem a realidade objectiva fora do homem.

A concepção de Mach sobre o espaço e o tempo é idealista e abre as portas ao fideísmo, afirma

Lénine. E dá um exemplo: Mach escreveu que “não é obrigatório conceber os elementos químicos num

espaço de três dimensões”. Fazê-lo é “impor-se uma restrição desnecessária. Não há qualquer necessidade

de pensar as coisas puramente mentais espacialmente […]”229. Este argumento é perfeitamente

indiscutível do ponto de vista do machismo franco, analisa Lénine: “se […] os elementos químicos não

podem ser percebidos pelos sentidos quer dizer que são «coisas puramente mentais». E se assim é e se o

espaço e o tempo não têm um significado objectivamente real, é claro que não é de modo nenhum

obrigatório conceber os átomos espacialmente! Que a física e a química «se limitem» a um espaço de três

dimensões em que se move a matéria; no entanto, para explicar a electricidade pode procurar-se os seus

elementos num espaço que não tenha três dimensões!”230. Lénine mostra, através do posicionamento dos

próprios autores, como esta concepção de tempo e espaço “é uma passagem do campo das ciências da

natureza para o campo do fideísmo”231. Veja-se Anton Von Leclair, defensor inequívoco do fideísmo, que

proclamou Mach, por afirmações como aquela supracitada, como um grande filósofo, “um revolucionário

no melhor sentido da palavra”232, denuncia Lénine. Contrariamente a esta posição, as ciências da natureza

procuram e encontram – “pelo menos procuram tacteando” –, diz Lénine, o átomo da electricidade, o

electrão, num espaço de três dimensões. “As ciências da natureza não duvidam de que a substância que

estudam não existe senão num espaço de três dimensões e que, consequentemente, também as partículas

desta substância, ainda que sejam tão pequenas que não as possamos ver, existem «necessariamente» no

mesmo espaço de três dimensões”233.

Mach, repara Lénine, faz uma “defesa perfeitamente justa” dos matemáticos que estudam os

espaços imagináveis de n dimensões das acusações de estes retirarem conclusões monstruosas das suas

investigações. Mach reconhece, diz Lénine, que a matemática moderna colocou a questão

importantíssima e utilíssima do espaço de n dimensões como um espaço imaginável, mas só o espaço de

227V. I. Lénine, ibidem.228Cf. E. Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem.229idem cit. por V. I. Lénine, ibidem, p 136.230V. I. Lénine, ibidem.231idem, ibidem, p.137.232A. Leclair cit. por V. I. Lénine, ibidem.233V. I. Lénine, ibidem.

três dimensões permanece como “caso real”234. Portanto, teria sido em vão que muitos teólogos, que

quiseram tirar proveito da quarta dimensão, “experimentaram dificuldades no sentido de saber onde

colocar o inferno”235, diz Mach. Porém, a posição gnosiológica que Mach adopta nesta defesa dos

matemáticos e a pretensa demarcação dos teólogos e espiritualistas que faz ao afirmar que só o espaço de

três dimensões é real não se coaduna com o seu não reconhecimento do espaço e do tempo como uma

realidade objectiva.

Lénine conclui que Mach emprega “o método de tacitamente tomar ideias de empréstimo ao

materialismo quando é preciso afastar-se dos espiritistas. Porque os materialistas, reconhecendo o mundo

real, a matéria que percebemos, como a realidade objectiva, têm o direito de concluir daí que quaisquer

fantasias humanas, quaisquer que sejam os seus fins, que saem dos limites do tempo e do espaço são

irreais. Mas vós, senhores machistas”, continua Lénine, “negais a existência objectiva à «realidade» ao

lutar contra o materialismo, e tornais a introduzi-la em segredo quando é preciso combater o idealismo

consequente, resoluto até ao fim e aberto! Se no conceito relativo de tempo e de espaço não há nada além

de relatividade, se não existe nenhuma realidade objectiva ( = não dependente do homem nem da

humanidade) reflectida por estes conceitos relativos, por que é que a maior parte da humanidade não terá

o direito de conceber seres fora do tempo e do espaço? Se Mach tem o direito de procurar os átomos da

electricidade ou os átomos em geral fora do espaço de três dimensões, por que não terá a maior parte da

humanidade o direito de procurar os átomos ou os fundamentos da moral fora do espaço de três

dimensões?”236, pergunta Lénine.

Lénine analisa não só as posições de Mach nesta questão do espaço e do tempo, mas também dos

representantes franceses e ingleses do empiriocriticismo que são, considera, menos pretensiosos do que os

representantes alemães.

Poincaré, concordantemente com as suas posições que analisámos atrás, considera que os

conceitos de espaço e de tempo são relativos e que, por conseguinte, “não é a natureza que no-los dá (ou

impõe, impose)”, “somos nós que os damos à natureza, porque os achamos cómodos”237. Lénine

questiona: “acaso isto não justifica o entusiasmo dos kantianos alemães?”

Karl Pearson, por seu turno, põe a sua opinião de forma plenamente definida. Segundo ele, “não

podemos afirmar que o espaço e o tempo têm existência real; eles não se encontram nas coisas, mas na

nossa maneira de perceber as coisas”238. Para Pearson, o tempo, tal como o espaço, é um dos modos pelos

quais a faculdade cognitiva humana põe em ordem o seu material239. Isto, considera Lénine, é idealismo

franco e declarado. Pearson, com quem Mach frequentemente exprime o seu acordo, relembra Lénine,

nomeia sem quaisquer rodeios os clássicos dos quais retira a sua linha filosófica: Hume e Kant.

234Cf. E. Mach cit. por V. I. Lenine, ibidem.235Cf. idem cit. por V. I. Lenine, ibidem.236V. I. Lénine, ibidem, p.138.237H. Poincaré cit. por V. I. Lénine, ibidem.238K. Pearson cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.139.239Cf. K. Pearson cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.138.

Bogdánov escreveu que o tempo, tal como o espaço, “é uma forma de coordenação social da

experiência de diferentes pessoas” e que a sua “objectividade” reside no seu “significado universal”240.

Absolutamente falso, diz Lénine. “Também a religião, que exprime uma coordenação social da

experiência da maior parte da humanidade, tem um significado universal. Mas à doutrina da religião, por

exemplo, sobre o passado da Terra e sobre a criação do mundo, não corresponde nenhuma realidade

objectiva. À doutrina da ciência segundo a qual a Terra existiu antes de qualquer sociedade, antes da

humanidade, antes da matéria orgânica, existiu durante um determinado tempo, num espaço determinado

em relação aos outros planetas – a esta doutrina (embora ela seja tão relativa em cada fase do

desenvolvimento da ciência como é relativo cada estádio do desenvolvimento da religião) corresponde

uma realidade objectiva”241.

Só os machistas russos, que se pretendem marxistas – ao contrário dos próprios machistas, dos

seus adversários no campo dos naturalistas e ao contrário dos filósofos profissionais –, não notaram, sem

sombra de dúvida, o carácter idealista da doutrina de Mach do tempo e do espaço, conclui Lénine.

13. Liberdade e necessidade

Lénine expõe a forma como o materialismo dialéctico resolve a questão da liberdade e da

necessidade. Mostra como essa posição é inseparável dos fundamentos desta linha filosófica, isto é, como

ela é inseparável do reconhecimento da realidade objectiva e das leis objectivas da natureza. Evidencia,

assim, mais uma incoerência dos empiriocriticistas que pensam poder acolher e separar este aspecto da

linha filosófica materialista das bases sobre que assenta sustentando simultaneamente posições idealistas

e agnósticas. Lénine mostra as posições inconsequentes a que se chega caso se pretenda resolver esta

questão sem conhecer ou compreender a dialéctica.

Engels diz que

“Hegel foi o primeiro a apresentar correctamente a relação entre a liberdade e a necessidade. Para

ele, a liberdade é o conhecimento da necessidade. «A necessidade é cega só na medida em que

não é compreendida». A liberdade não consiste numa independência imaginária em relação às leis

da natureza, mas no conhecimento destas leis e na possibilidade, baseada neste conhecimento, de

as fazer actuar metodicamente para fins determinados. Isto diz respeito tanto às leis da natureza

exterior como às que regem a existência corporal e espiritual do próprio homem – duas classes de

leis que podemos separar uma da outra, quando muito, na nossa representação, mas não na

realidade. A liberdade da vontade não significa, portanto, senão a capacidade de decidir, com

conhecimento de causa. Deste modo, quanto mais livre for um juízo de um homem em relação a

uma determinada questão, maior será a necessidade com que é determinado o conteúdo desse

juízo...A liberdade consiste no domínio sobre nós mesmos e sobre a natureza exterior, fundado no

240A. Bogdánov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.141.241V. I. Lénine, ibidem, p.142.

conhecimento das necessidades naturais.”242.

Lénine, examina, então, as premissas gnosiológicas em que assenta este raciocínio de Engels.

Em primeiro lugar, o reconhecimento das leis da natureza, a necessidade da natureza (aquilo a que os

empiriocriticistas chamam “metafísica”).

Em segundo lugar, considerando o conhecimento e a vontade do homem por um lado e a

necessidade da natureza por outro, Engels toma a necessidade da natureza como o primário e a vontade e

a consciência como o secundário. Engels, diz Lénine, não se preocupa em inventar “definições” da

liberdade e da necessidade.

Em terceiro lugar, diz Lénine, Engels não duvida da existência da necessidade não conhecida

pelo homem. Este é um ponto de vista que os empiriocriticistas não podem aceitar: “Conhecer a

existência de uma necessidade não conhecida? Não será isto «mística», não será «metafísica», não será

reconhecimento de «fetiches» e de «ídolos», não será a «kantiana coisa em si incognoscível»?” 243,

pergunta Lénine, assim caracterizando o posicionamento daquela linha filosófica em relação ao

materialismo. Lénine, respondendo aos machistas, faz notar a “identidade completa dos raciocínios de

Engels sobre a cognoscibilidade da natureza objectiva das coisas e sobre a transformação da «coisa em

si» em «coisa para nós», por um lado, e dos seus raciocínios sobre a necessidade cega, não conhecida, por

outro”244. São inseparáveis. Gnosiologicamente, diz, não há nenhuma diferença entre a transformação da

“coisa em si” em “coisa para nós” e a transformação da necessidade cega, não conhecida, “necessidade

em si” em “necessidade para nós”, conhecida, porque partem do mesmo ponto de vista fundamental, isto

é, o reconhecimento materialista da realidade objectiva do mundo exterior e das suas leis objectivas,

“sendo tanto este mundo como estas leis plenamente cognoscíveis para o homem, mas sem poderem

nunca ser conhecidos até ao fim”245. Lénine dá um exemplo: não conhecemos a necessidade dos

fenómenos meteorológicos e nessa medida somos escravos do tempo; mas sem conhecer esta necessidade

sabemos que ela existe. E esse conhecimento vem-nos precisamente de onde nos vem o conhecimento de

que as coisas existem fora da nossa consciência e independentemente dela: “do desenvolvimento dos

nossos conhecimentos, que mostra milhões de vezes a cada homem que a ignorância dá lugar ao saber

quando um objecto actua sobre os nossos órgãos dos sentidos, e o contrário: o saber transforma-se em

ignorância quando a possibilidade de tal acção é eliminada”246.

Em quarto lugar, Engels, no seu raciocínio, destaca Lénine, “aplica claramente o método do

«salto vital» em filosofia, isto é, dá um salto da teoria para a prática”247. Isto é contrário ao que fazem os

machistas que separam a teoria da prática: “para eles uma coisa é a teoria do conhecimento, em que é

preciso cozinhar com a maior subtileza verbal as «definições», e outra coisa completamente diferente é a

242F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.143.243V. I. Lénine, ibidem.244idem, ibidem.245idem, ibidem, p.144.246idem, ibidem.247idem, ibidem.

prática”. Lénine continua:

“Em Engels, toda a prática humana viva irrompe na própria teoria do conhecimento, fornecendo

um critério objectivo da verdade: enquanto não conhecemos uma lei da natureza, ela, existindo e

actuando à margem, fora do nosso conhecimento, faz de nós escravos da «necessidade cega».

Depois de tomarmos conhecimento desta lei, que actua (como Marx repetiu milhares de vezes)

independentemente da nossa vontade e da nossa consciência, tornamo-nos senhores da natureza.

O domínio sobre a natureza, que se manifesta na prática da humanidade, é o resultado de um

reflexo objectivamente fiel no espírito do homem dos fenómenos e dos processos da natureza, é a

prova de que este reflexo (nos limites daquilo que a prática nos mostra) é uma verdade objectiva,

absoluta, eterna.”248

Assim, como mostra Lénine, “cada passo do raciocínio de Engels, quase literalmente cada frase,

cada proposição, estão inteira e exclusivamente construídas sobre a gnosiologia do materialismo

dialéctico, sobre premissas que são a refutação contundente de todos os disparates machistas acerca dos

corpos como complexos de sensações […]”249. Os machistas não podem, por isso, sem cair (novamente)

em profunda incoerência, sem deixarem de ser inconsequentes, reter uma das aplicações do materialismo

dialéctico (da liberdade e da necessidade) e defenderem posições agnósticas e idealistas. E podem ainda

menos, no caso dos machistas russos, apresentar esta filosofia retirada “das eclécticas sopas dos pobres”,

indo “buscar a Mach um bocadinho de agnosticismo e um nadinha de idealismo, misturando isto com um

bocadinho de materialismo dialéctico de Marx” e dizer tratar-se do desenvolvimento do marxismo.

14. O empiriocriticismo, o seu desenvolvimento histórico e a sua correlação com outras correntes

filosóficas.

Lénine, até agora, analisou o empiriocriticismo tomado em separado. No entanto, há também que

considerá-lo, diz, “no seu desenvolvimento histórico, na sua ligação e correlação com outras correntes

filosóficas”250. Ao fazê-lo, Lénine porá em relevo a forma como os “os idealistas filosóficos” são

“companheiros de armas e sucessores do empiriocriticismo”.

Nesta análise é importante ter em conta algumas considerações que, embora soltas, atravessam o

raciocínio de Lénine. Registando-se diferenças entre Hume e Kant, os partidários das duas linhas são

igualmente agnósticos. Aquilo que o marxismo rejeita, reitera Lénine, não é o que distingue um agnóstico

de outro, não é o que distingue um positivista251 de outro, mas sim o que entre eles há de comum. Estas

questões devem ser analisadas indo ao seu fundo, isto é, indo à “divergência fundamental entre o

248idem, ibidem.249idem, ibidem.250idem, ibidem, p.147.251J. Petzoldt, discípulo de Mach e Avenarius, inclui directamente o empiriocriticismo no positivismo.

materialismo e toda a ampla corrente do positivismo, dentro da qual se encontram tanto Augusto Comte

como Herbert Spencer, tanto Mikahilóvski como uma série de neokantianos, tanto Mach como Avenarius”252. É possível encontrar diferentes filósofos, como evidencia Lénine, em que a mistura, ecléctica, de Kant

e Hume ou de Hume e Berkeley é feita, em diferentes proporções, sublinhando mais um ou outro aspecto

da mistura. “Vimos atrás”, diz, “por exemplo, que apenas um machista, H. Kleinpeter, se reconhece

abertamente a si e a Mach como solipsistas (isto é, berkeleyanos consequentes). Pelo contrário, o

humismo, nas concepções de Mach e Avenarius é sublinhado por muitos discípulos e partidários seus:

Petzoldt, Willy. Pearson, o empiriocriticista russo Lessévitch, o francês Henri Delacroix e outros”253.

Lénine cita outros exemplos, nomeadamente Huxley, cuja filosofia é tanto uma mistura de humismo e de

berkeleyanismo tal como a filosofia de Mach, mas em quem os “ataques berkeleyanos” são casuais e o

seu agnosticismo acaba por ser a parra do seu materialismo envergonhado254, diz Lénine255.

Duas perspectivas opostas na crítica ao kantismo

Mach reconhece que, embora tenha começado por Kant, seguiu a linha de Berkeley e Hume,

pensadores muito mais consequentes do que Kant, diz Mach. Também Avenarius se demarca de Kant

afirmando uma posição antagónica em relação a ele. O antagonismo expresso de Avenarius em relação a

Kant consiste em que, na opinião de Avenarius, Kant não teria depurado suficientemente a experiência. O

que Avenarius pretende é, em primeiro lugar, eliminar do “conteúdo da experiência” os “conceitos

apriorísticos da razão” e criar uma “experiência pura”256. Com esta eliminação, pretende eliminar o

reconhecimento da necessidade e da causalidade. Pretende, em segundo lugar, depurar o kantismo da

admissão da substância, isto é, da coisa em si, que, segundo Avenarius, é introduzida pelo pensamento no

material da experiência real257.

Na verdade, ao contrário do que Avenarius assume, a depuração do kantismo do apriorismo e da

admissão da coisa em si não é uma novidade da sua linha filosófica, mas sim a continuação da linha de

Hume e de Berkeley. “Na realidade”, diz Lénine, “o desenvolvimento da filosofia clássica alemã suscitou

imediatamente depois de Kant uma crítica do kantismo exactamente na mesma direcção seguida por

Avenarius”258, cujos representantes são Schulze-Aenesidemus, partidário do agnosticismo humista, e J. G.

Fichte, partidário do idealismo subjectivo. O agnóstico humista Schulze, chama Lénine a atenção, “rejeita

a doutrina kantiana da coisa em si como uma concessão inconsequente ao materialismo, isto é, à

252V. I. Lénine, ibidem, p.155-156.253idem, ibidem, p.157.254Diz Huxley: “Quem quer que conheça a história da ciência concordará que o seu progresso significou em todos os

tempos e significa hoje, mais do que nunca, a extensão do domínio daquilo a que chamamos matéria e causalidade, e o correspondente desaparecimento gradual de todos os domínios do pensamento humano de tudo aquilo a que chamamos espírito e espontaneidade”. Huxley cit. por V. I. Lénine, ibidem.

255Cf. V. I. Lénine, ibidem, p.157-158.256Cf. R. Avenarius cit. por V. I. Lénine ibidem, p.148.257Cf. R. Avenarius cit. por V. I. Lénine ibidem.258V. I. Lénine, ibidem.

afirmação «dogmática» de que a realidade objectiva nos é dada na sensação”, rejeita-a como uma

contradição com o agnosticismo. O idealista subjectivo Fichte diz que a admissão da coisa em si,

independente do nosso Eu, é realismo, que a admissão da coisa em si como “base da realidade objectiva”

é uma inconsequência de Kant que cai em contradição com o idealismo crítico259.

Assim, aquilo por que Avenarius pugna é por um “agnosticismo mais puro”, “pela eliminação da

admissão por Kant, contrária ao agnosticismo, de que existe a coisa em si, ainda que incognoscível,

inteligível, pertencente ao além, de que existe a causalidade e a necessidade, ainda que a priori, dadas no

pensamento e não na realidade objectiva. Lutou contra Kant não da esquerda, como lutaram contra Kant

os materialistas, mas da direita, como lutaram contra Kant os cépticos e os idealistas”260.

A acompanhar estas críticas dos empiriocriticistas, de um ponto de vista humista e berkeleyano,

estão, como nota Lénine, também os imanentistas como Leclair e Rehmke que censuram Kant por

“realismo”.

Vejamos como caracteriza Lénine a filosofia de Kant:

“O traço fundamental da filosofia de Kant é a conciliação do materialismo com o idealismo, o

compromisso entre um e outro, a combinação num só sistema de correntes filosóficas

heterogéneas e opostas. Quando Kant admite que às nossas representações corresponde algo fora

de nós, uma certa coisa em si – então Kant é materialista. Quando declara esta coisa em si

incognoscível, transcendente, pertencente ao além, Kant fala como idealista. Reconhecendo a

experiência, as sensações como fonte única dos nossos conhecimentos, Kant orienta a sua

filosofia pela linha do sensualismo, e, através do sensualismo, em certas condições, também do

materialismo. Reconhecendo o apriorismo do espaço, do tempo, da causalidade, etc., Kant orienta

a sua filosofia para o lado do idealismo. Esta indecisão valeu a Kant ser implacavelmente

combatido tanto pelos materialistas consequentes como pelos idealistas consequentes (e também

pelos agnósticos «puros», os humistas).”261

Criticando Kant pela esquerda, os materialistas censuram Kant pelo seu idealismo. Os

materialistas, como afirma Lénine, refutaram os traços idealistas e agnósticos do seu sistema,

demonstraram a cognoscibilidade, a terrenalidade da coisa em si, a sua existência objectiva, a ausência de

uma diferença fundamental entre ela e o fenómeno, que a coisa em si se transforma em fenómeno a cada

passo do desenvolvimento da consciência individual e colectiva, demonstraram a necessidade de deduzir

a causalidade, etc., não das leis apriorísticas do pensamento, mas da realidade objectiva262. Feuerbach, por

exemplo, criticando Kant pelo seu idealismo (Lénine cita aqui uma passagem na qual Kant trata a coisas

em si como coisa mental), identifica as mesmas contradições na filosofia de Kant a que Lénine se referia:

a filosofia de Kant “conduz, com uma necessidade inevitável, ao idealismo fichteano ou ao sensualismo”263, diz Feuerbach (Feuerbach defende o sensualismo objectivo, isto é, o materialismo). Também o

259Cf. Fichte cit. por Lénine, ibidem, p.149.260V. I. Lénine, ibidem, p.149.261idem, ibidem, p.149-150.262Cf. idem, ibidem, p.150.263L. Feuerbach cit. por V. I. Lénine, ibidem.

discípulo de Feuerbach, Albrecht Rau, (juntando-se a outros materialistas que Lénine cita sobre esta

questão particular), sublinha as mesmas contradições e faz notar que Kant não conseguiu livrar-se do

preconceito idealista de que a alma é algo totalmente diferente das coisas sensíveis. “Para o materialista”,

diz Rau, “a distinção entre os conhecimentos a priori e a «coisa em si» é absolutamente supérflua: ele não

interrompe em parte alguma a continuidade da natureza, não considera a matéria e o espírito coisas

fundamentalmente diferentes, mas somente aspectos de uma mesma coisa, e por isso não necessita de

nenhuns artifícios particulares para aproximar o espírito das coisas”264.

Toda a escola de Feuerbach, de Marx e de Engels criticou Kant do ponto de vista materialista

negando qualquer idealismo e agnosticismo. Mach e Avenarius seguiram a linha filosófica que criticou

Kant do ponto de vista humista e berkeleyano, a que se juntaram os machistas russos. Lénine denúncia

mais uma vez a apresentação destas ideias como um desenvolvimento do marxismo. A estes últimos, aos

machistas russo, Lénine responde dizendo que qualquer um “tem o sagrado direito de seguir o

reaccionário ideológico que quiser”, mas que, tendo rompido radicalmente com os próprios fundamentos

do marxismo em filosofia, não se podem reclamar de marxistas que apenas “completaram” Marx um

bocadinho265.

Os imanentistas e os empiriocriticistas

Lénine faz também um exame da atitude mútua entre empiriocriticistas e imanentistas,

mostrando que caminham de braços dados nas suas concepções fundamentais. Tornando explícitas as

premissas gnosiológicas de que partem os imanentistas, Lénine concede a palavra aos principais

representantes desta corrente filosófica: Leclair, Schuppe, Schubert-Soldern, Rehmke. Leclair, antes de

inventar o termo “imanentista” chamava-se a si próprio, aberta e francamente, idealista crítico. Este autor,

que luta contra a inclinação para o materialismo da maior parte dos naturalistas, apela: “voltemos atrás, ao

ponto de vista do idealismo crítico, não atribuamos à natureza no seu conjunto e aos processos da

natureza uma existência transcendente” (isto é, fora da consciência humana, clarifica Lénine); “então,

para o sujeito tanto o conjunto dos corpos como o seu próprio corpo, na medida em que ele o vê e o

percebe, juntamente com todas as suas modificações, será um fenómeno directamente dado de

coexistências espacialmente ligadas e de sucessões no tempo, e toda a explicação da natureza se reduz à

constatação destas coexistências e sucessões”266. Para Leclair, a natureza é um “fenómeno da

consciência”, não de um homem, mas do “género humano”267. Veja-se também Schuppe para quem “a

proposição «o ser é a consciência» significa que a consciência é inconcebível sem o mundo exterior, que,

consequentemente, este último pertence à primeira, isto é, a ligação absoluta entre uma e outro […],

264A. Rau cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.150.265V. I. Lénine, ibidem, p.155.266Leclair cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.162.267Cf. V. I. Lénine, ibidem.

ligação em que constituem o todo primordial único do ser”268. Isto é idealismo subjectivo, resume Lénine.

Schubert-Soldern considera que “em nenhum caso se pode opor ao espiritismo o materialismo das

ciências da natureza, porque este materialismo, como vimos, é apenas um aspecto do processo mundial

dentro da ligação espiritual universal”269. O reconhecimento da realidade objectiva, do mundo exterior é o

principal inimigo deste filósofo, afirma Lénine.

Lénine conclui: “O facto é que os imanentistas são rematados reaccionários, pregadores abertos

do fideísmo, de um obscurantismo consumado. Não há um só deles que não tenha consagrado

abertamente os seus trabalhos mais teóricos sobre gnosiologia à defesa da religião e à justificação deste

ou daquele medievalismo”. Veja-se Leclair, que defende a sua filosofia como satisfazendo “todas as

exigências de um espírito religioso”270, ou Schuppe, que afirma que se os imanentistas negam o

transcendente, Deus e a vida futura não se incluem de modo nenhum neste conceito271, diz Lénine, ou

Schubert-Soldern que deduz a pré-existência do nosso Eu antes do nosso corpo e a pós-existência do Eu

(imortalidade da alma)272.

É a estes filósofos imanentistas cujas posições foram delineadas em traços gerais pelas citações

precedentes que os empiriocriticistas manifestam o seu apreço. Esta convergência de posições é

demonstrada por Lénine através de citações como a de Mach na qual este afirma que: “Vejo actualmente

como toda uma série de filósofos – positivistas, empiriocriticistas, partidários da filosofia imanentista – e

também muitos poucos naturalistas, sem nada saberem uns dos outros, começaram a abrir novos

caminhos que, apesar de todas as diferenças individuais, convergem quase para um mesmo ponto” 273.

Lénine analisa: em primeiro lugar, nota a “confissão excepcionalmente verídica” de que muitos poucos

naturalistas são partidários da filosofia humista-berkeleyana, “pretensamente «nova», mas realmente

muito velha”; em segundo lugar, considera extraordinariamente importante a opinião segundo a qual esta

filosofia é uma ampla corrente, na qual os imanentistas estão em pé de igualdade com os

empiriocriticistas e os positivistas, diz Lénine. Confirmando a afinidade de fundo que existe entre estas

linhas filosóficas, também Avenarius afirma que a diferença entre ele e Schuppe “existe, talvez, só

temporariamente”274. Petzoldt coloca sob uma mesma corrente Schuppe, Mach e Avenrius. Apenas Willy

foi, talvez, o único machista destacado que se procurou demarcar de tais conclusões imanentistas, diz

Lénine.

Mas existe também reconhecimento no sentido inverso. O apreço dos imanentistas pelos

empiriocriticistas pode ser verificado na afirmação de Schuppe na qual ele diz que “a minha concepção

do pensamento concorda perfeitamente com a sua [de Avenarius] «experiência pura»”275, ou na

268W. Schuppe cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.163.269Schulbert-Soldern cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.164.270Leclair cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.162.271Schuppe cit. por V. I. Lénine, ibidem.272Cf. Schubert-Soldern cit. por V. I. Lénine, ibidem. Contra os sociais-democratas, Schubert-Soldern diz também,

na Questão Social, que estes “ignoram o facto de que, sem o dom divino da infelicidade, não haveria felicidade”. Fica bem patente o seu obscurantismo de que falava Lénine.

273E. Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.158.274R. Avenarius cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.158-159.275Schuppe cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.159.

Introdução programática publicada no primeiro número do órgão filosófico especial dos imanentistas

onde se lê: “Mesmo no campo dos próprios naturalistas se elevam já vozes de pensadores isolados para

pregar contra a presunção crescente dos seus colegas e contra o espírito não filosófico que se apossou das

ciências a natureza. Assim, por exemplo, o físico Mach...Forças frescas põem-se em movimento em todo

o lado e trabalham para destruir a fé cega na infabilidade das ciências da natureza e começam a procurar

outros caminhos para as profundezas do misterioso, a procurar uma melhor entrada na morada da

verdade”276. Também do lado dos neocriticistas surge a mesma simpatia. No seu órgão, L'année

philosophique, diziam como “é inútil falar da medida em que, com esta crítica da substância, da coisa, da

coisa em si, a ciência positiva do Sr. Mach concorda com o idealismo neocriticista”277. Contudo, os

machistas russos, não deixaram de procurar escamotear estas relações, envergonhados desta afinidade

com os imanentistas.

Em que direcção cresce o empiriocriticismo?

Lénine analisa a direcção que toma o crescimento do empiriocriticismo que, como qualquer

outra corrente ideológica, se desenvolve. “O seu crescimento numa ou noutra direcção”, diz Lénine,

“ajudará, melhor do que longos raciocínios, a resolver a questão fundamental da verdadeira natureza desta

filosofia”278. Os filósofos devem ser julgados não pelos rótulos que eles próprios se atribuem, mas pela

forma como resolvem as questões fundamentais, pelas pessoas com quem andam de mãos dadas e pelo

que ensinaram aos seus discípulos, considera Lénine. Assim, para obter uma imagem do

empiriocriticismo como corrente filosófica (e não como “colectânea de raridades literárias”, tendo até em

conta o facto de que o eclectismo desta corrente gera inevitavelmente diversas interpretações), Lénine

recorre ao estudo das posições de um conjunto de seguidores (reconhecidos) da corrente de Mach e

Avenarius. Vejamos brevemente algumas citações, a título indicativo, que ficam necessariamente aquém

do quadro mais completo dado por Lénine.

Mach recomenda Hans Cornelius. Este é um seu discípulo que chega à imortalidade e a Deus,

repara Lénine. Para Cornelius, o materialismo transforma o homem num autómato uma vez que mina “a

fé na liberdade das nossas decisões” e, para além disso, “não deixa lugar para a ideia de continuação da

nossa vida após a morte”279, lamenta Cornelius. Lénine confronta esta com a afirmação de Bogdánov que

diz que não há absolutamente lugar para as ideias de Deus, do livre arbítrio e da imortalidade da alma na

filosofia de Mach. Assim se vê quão erradas são as considerações dos machistas russos quanto ao fundo

desta filosofia. Bogdánov ignora que esta corrente vai até ao fideísmo280.

276Revista de Filosofia Imanentista, t.I, Berlim, 1896, p. 6-9 cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.160.277L'année philosophique, t. 15, 1904, p. 179. cit. por V. I. Lénine, ibidem.278V. I. Lénine, ibidem, p.165.279H. Cornelius cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 166.

280Lénine mostra ainda como Petzoldt, indignado com as “falsidades” de Cornelius, procura refutá-las. A forma como o faz é uma “verdadeira pérola”, diz Lénine: “Petzoldt apercebeu-se da falsidade de

Hans Kleinpeter é igualmente reconhecido por Mach. Mach diz subscrever no essencial a

exposição sistemática que Kleinpeter faz das suas (Mach) concepções. Veja-se alguns excertos dessa

exposição: “toda a minha experiência […] são me dados [….] como uma parte da minha consciência”;

“aquilo que chamamos físico é uma construção de elementos psíquicos”; “a convicção subjectiva, e não a

certeza objectiva, é o único fim acessível de toda a ciência”; “a suposição da existência de outras

consciências além da nossa é uma suposição que não pode nunca ser confirmada pela experiência”; “que

se podem apresentar muitas teorias sobre um só e mesmo domínio de factos... isto é um facto tão bem

conhecido do físico como incompatível com as premissas de qualquer teoria absoluta do conhecimento. E

este facto está ligado ao carácter volitivo do nosso pensamento; e nele se exprime a independência da

nossa vontade em relação às circunstâncias exteriores”281. E Lénine repete o argumento: “ajuizai agora da

ousadia das declarações de Bogdánov de que na filosofia de Mach «não há absolutamente lugar para o

livre-arbítrio», quando o próprio Mach recomenda um indivíduo como Kleinpeter”282.

Outro filósofo que Mach reconhece seguir vias muito próximas das suas é Theodor Ziehen. Para

Ziehen, só a “turba” é capaz de pensar que “as nossas sensações são suscitadas pelas coisas reais”. Para

ele, “à entrada da teoria do conhecimento não pode haver nenhuma inscrição senão as palavras de

Berkeley: «os objectos exteriores existem não por si, mas nas nossas mentes»”283. Petzoldt também

renegou Ziehen como idealista, constata Lénine. Mas, segundo Petzoldt, trata-se de um “mal-entendido”

na interpretação das “concepções de Mach e Avenarius”284. Não, não se trata de um mal-entendido, mostra

Lénine. A presença do idealismo na corrente empiriocriticista é reconhecida não só pelos seus oponentes

como pelos seus seguidores. Lénine ironiza: “pobres Mach e Avenarius! Não só os inimigos os

caluniaram, acusando-os de idealismo e «até» (como se exprime Bogdánov) de solipsimo – não, também

os amigos, os discípulos, os seguidores, os professores de ofício, compreenderam mal os seus mestres,

num sentido idealista. Se o empiriocriticismo evolui transformando-se em idealismo, isto não prova de

modo nenhum a falsidade das suas confusas premissas fundamentais berkeleyanas. Deus nos livre! Isto é

Cornelius sem ser advertido, mas a sua maneira de combater esta falsidade é uma verdadeira pérola. Escutem: «Afirmar que o mundo é uma representação» (como afirmam os idealistas, não se riam!) «só tem sentido se com isto se quer dizer que o mundo é uma representação daquele que fala ou pelo menos de todos os que falam, isto é, que a sua existência depende exclusivamente do pensamento dessa pessoa ou dessas pessoas: o mundo só existe na medida em que esta pessoa o pensa, e quando ela não o pensa, o mundo não existe. Nós, ao contrário, fazemos depender o mundo não do pensamento de determinada pessoa ou de determinadas pessoas, ou ainda melhor e mais claramente: não do acto do pensamento, não de qualquer pensamento actual (real), mas do pensamento em geral e exclusivamente no sentido lógico. O idealista confunde uma coisa e outra e o resultado é um semi-solipsismo agnóstico, tal como o vemos em Cornelius». Este aniquilamento do idealismo mais se assemelha a um conselho sobre como melhor esconder o idealismo, diz Lénine e ironiza: “Dizer que o mundo depende do pensamento dos homens é uma falsidade idealista. Dizer que o mundo depende do pensamento em geral é positivismo moderno, realismo crítico, numa palavra, perfeito charlatanismo burguês! Se Cornelius é um semi-solipsita agnóstico, Petzoldt é um semi-agnóstico solipsita. Estais a esmagar uma pulga, senhores!”. ibidem, p.167.

281H. Kleinpeter cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.167-168.282V. I. Lénine, ibidem, p.168.283T. Ziehen cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.169.284J. Petzoldt cit. por V. I. Lénine, ibidem.

apenas um pequeno «mal-entendido» […] Se Petzoldt conhecesse os partidários ingleses de Mach, teria

de alargar muito a lista dos machistas que caíram (por «mal-entendido») no idealismo”285. (Lénine refere-

se a Karl Pearson e a William Clifford, idealistas reconhecidos e apreciados por Mach).

Um último apontamento sobre P. Carus. Este norte-americano dirige uma revista dedicada à

propaganda da religião. A sua redacção afirma que “a ciência é uma revelação divina” e defende “a

opinião de que a ciência pode realizar uma reforma da Igreja que conserve tudo o que a religião tem de

verdadeiro, de são e de bom”. Este filósofo, que perfilha estas opiniões, é um admirador de Mach que

considera que ambos pensam da mesma maneira. A ele Mach também faz referência. A divisa de Carus é,

nota Lénine, “não agnosticismo, mas ciência positiva [...]”. Este exemplo mostra bem quão próxima está a

filosofia empiriocriticista do fideísmo.

O empiriomonismo de A. Bogdánov

Bogdánov afirma peremptoriamente que as suas concepções satisfazem o primado da natureza

sobre o espírito. Lénine, analisando as concepções de Bogdánov, mostra como tal afirmação é falsa. Ao

fazê-lo, está a evidenciar como, sob diferentes formulações, é possível encontrar as mesmas concepções

idealistas, mais ou menos explícitas, mais ou menos assumidas, está a evidenciar que é preciso procurar a

verdadeira natureza de uma corrente filosófica sob a roupagem verbal que utiliza.

Procurando demonstrar o seu pretenso materialismo, Bogdánov afirma que considera “tudo o que

existe como uma cadeia ininterrupta do desenvolvimento, cujos elos inferiores se perdem no caos dos

elementos, enquanto os elos superiores, por nós conhecidos, representam a experiência dos homens, a

experiência psíquica e, mais alto ainda, a experiência física; e esta experiência e o conhecimento que dela

surge corresponde àquilo a que habitualmente se chama espírito”286. Chamar experiência dos homens ao

mundo físico e declarar que a experiência física está mais alto na cadeia do desenvolvimento do que a

experiência psíquica é absurdo, diz Lénine, é o mesmo absurdo idealista287. Este suposto primado da

natureza que Bogdánov diz defender não é, na verdade, nenhum primado, pois a natureza não é tomada

como o imediatamente dado, como ponto de partida da gnosiologia, diz Lénine. E Lénine continua:

“De facto até à natureza há ainda uma longa transição através de abstracções do «psíquico».

Pouco importa como são chamadas estas abstracções: ideia absoluta, Eu universal, vontade do

mundo, etc., etc. Distinguem-se assim as variedades do idealismo, e existe um número infinito

dessas variedades. A essência do idealismo consiste em tomar o psíquico como ponto de partida; a

partir dele deduz-se a natureza e só depois da natureza se deduz a consciência humana comum.

Este «psíquico» primordial revela-se sempre, portanto, uma abstracção morta que esconde uma

teologia diluída. Por exemplo, todos sabem o que é uma ideia humana, mas a ideia sem o homem

e anterior ao homem, a ideia em abstracto, a ideia absoluta, é uma invenção teológica do idealista

285V. I. Lénine, ibidem.286A. Bogdánov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.171.287Cf. V. I. Lénine, ibidem, p.172.

Hegel. Todos sabem o que é uma sensação humana, mas a sensação sem o homem, anterior ao

homem, é um absurdo, uma abstracção morta, um artifício idealista.”288

Vejamos um outro exemplo em que o mesmo artifício de Bogdánov se manifesta: “O domínio da

substituição coincide com o domínio dos fenómenos físicos; os fenómenos psíquicos não têm de ser

substituídos por nada, pois são complexos imediatos”289. Isto é precisamente idealismo, denuncia Lénine,

porque o psíquico é tomado como o imediato, enquanto que o físico é deduzido dele, substituído por ele.

E Lénine evidencia a mesma posição fundamental entre diferentes doutrinas idealistas: “O mundo é o

não-Eu criado pelo nosso Eu – dizia Fichte. O mundo é a ideia absoluta – dizia Hegel. O mundo é

vontade – dizia Schoppenhauer. O mundo é conceito e representação – diz o imantista Rehmke. O ser é a

consciência – diz o imanentista Schuppe. O físico é a substituição do psíquico – diz Bogdánov”290.

Bogdánov afirma textualmente que “a própria natureza física é um derivado dos complexos de

carácter imediato (a cujo número pertencem também as coordenações psíquicas), que ela é um reflexo

destes complexos noutros, análogos a eles, mas do tipo mais complexo (na experiência socialmente

organizada dos seres vivos)”291. Ora, conclui Lénine, “uma filosofia que ensina que a própria natureza

física é um derivado é uma pura filosofia do clericalismo. E este seu carácter não é de modo nenhum

alterado pelo facto de Bogdánov renegar energicamente qualquer religião”292. E continua um pouco mais

à frente afirmando que se existe alguma coisa fora da natureza e que, além disso, produz a natureza, a isso

chama-se Deus. “Os filósofos idealistas sempre se esforçaram por modificar esta última designação, por

torná-la mais abstracta, mais nebulosa […]. Ideia absoluta, espírito universal, vontade do mundo,

«substituição geral» do físico pelo psíquico, são a mesma ideia, só que em formulações diferentes”293.

À organização social da experiência que Bogdánov refere, julgando tratar-se de “socialismo

cognitivo”, Lénine responde: disparate – também o catolicismo é uma experiência socialmente organizada

só que ele não reflecte a verdade objectiva. “O materialismo diz que a «experiência socialmente

organizada dos seres vivos» é um derivado da natureza física, o resultado de um longo desenvolvimento

dela, desenvolvimento a partir de um estado da natureza física em que ainda não havia e não podia haver

nem sociedade, nem organização, nem experiência, nem seres vivos. O idealismo diz que a natureza física

é um derivado desta experiência dos seres vivos e, dizendo isto, equipara (se é que não subordina) a

natureza a Deus. Porque Deus é, indubitavelmente, um derivado da experiência socialmente organizada

dos seres vivos”294. Da mesma forma, o idealismo não desaparece, sublinha Lénine, caso se substitua a

consciência de um indivíduo pela consciência da humanidade, ou a experiência de um só homem pela

experiência socialmente organizada.

Assim, conclui Lénine, Bogdánov é apenas “uma das manifestações aquela «experiência

288idem, ibidem.289A. Bogdánov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.173.290V. I. Lénine, ibidem.291A. Bogdánov cit. por V. I. Lénine, ibidem.292V. I. Lénine, ibidem.293V. I. Lénine, ibidem, p.174.294idem, ibidem.

socialmente organizada» que testemunha o crescimento do machismo, transformando-se em idealismo.

A teoria dos símbolos

Lénine considera importante, no quadro de uma avaliação da relação do empiriocriticismo com

outras correntes filosóficas, observar o carácter da crítica machista a certas teses filosóficas. Aquilo que

está em apreço é a “teoria dos símbolos” (ou hieróglifos) e a crítica a Helmholtz.

Lénine refere-se à “teoria dos símbolos” como aquela “segundo a qual as sensações e as

representações do homem não são uma cópia das coisas e processos reais da natureza, não são imagens

deles, mas sinais convencionais, símbolos, hieróglifos, etc.”295.

Plekhánov, nos comentários que fez à primeira edição russa do livro de Engels, Ludwig

Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, ao expor a teoria materialista do conhecimento, disse

que “as nossas sensações são uma espécie de hieróglifos que nos informam do que se passa na realidade.

Os hieróglifos não se assemelham aos factos que nos transmitem. Mas podem transmitir-nos com perfeita

fidelidade tanto os próprios acontecimentos como – e isto é o principal – as relações que existem entre

eles”. Isto é um erro, considera Lénine. Mais tarde, nas notas para a segunda edição, Plekhánov confessa

que se “exprimiu com certa imprecisão”296. Porém, o machista Bazárov, diz Lénine, em vez de mostrar o

desvio de Plekhánov da formulação do materialismo feita por Engels, utiliza o erro de Plekhánov para

introduzir a sua própria renúncia ao materialismo sob a capa de crítica ao “hieroglifismo”.

Lénine pretende mostrar como Helmholtz, destacado representante da “teoria dos símbolos” (a

substituição da palavra símbolo por hieróglifo não muda a questão, repara Lénine), foi criticado pelos

materialistas e pelos idealistas juntamente com os machistas. Analisando as posições de Helmholtz,

conclui que esta “figura de primeira grandeza nas ciências da natureza”, foi inconsequente em filosofia

tendo misturado, em diferentes medidas, aspectos idealistas e materialistas. Helmholtz diz, por exemplo,

acerca da correspondência dos conceitos com os objectos, que “designei as sensações como símbolos dos

fenómenos exteriores e recusei-lhes qualquer analogia com as coisas que representam”297. Isto é

agnosticismo, diz Lénine. Mas, pouco mais à frente, diz: “Os nossos conceitos e representações são

efeitos que os objectos que vemos ou que imaginamos produzem sobre o nosso sistema nervoso e a nossa

consciência”. Isto, por seu turno, diz Lénine, é materialismo. Helmholtz também não tem uma ideia clara

da relação entre a verdade relativa e a verdade absoluta. Quando Helmholtz diz que “a ideia e o objecto

por ela representado são duas coisas que pertencem, evidentemente, a dois mundos completamente

diferentes...” está a fazer uma afirmação tipicamente kantiana, pois “só os kantianos separam assim a

ideia e a realidade, a natureza e a consciência”298, diz Lénine. Porém, quando diz “no que respeita, antes

295idem, ibidem, p.176.296Cf. Notas dos editores. Nota 75. ibidem.297Helmholtz cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.177.298V. I. Lénine, ibidem.

de mais, às qualidades dos objectos exteriores, basta um pouco de reflexão para ver que todas as

qualidades que lhes podemos atribuir designam exclusivamente a acção dos objectos exteriores, quer

sobre os nossos sentidos quer sobre outros objectos da natureza”299, regressa ao ponto de vista

materialista, expõe Lénine. Assim, conclui Lénine, Helmholtz foi um kantiano inconsequente que ora

reconhecia as leis apriorísticas do pensamento, ora se inclinava para a “realidade transcendente” (isto é,

para a concepção materialista deles); ora deduzia as sensações a partir dos objectos exteriores que actuam

nos nossos órgãos dos sentidos, ora declarava as sensações apenas símbolos, isto é, sinais arbitrários

separados de um mundo “absolutamente diferente” das coisas significadas300. Momentos há em em que o

agnosticismo de Helmholtz se assemelha a um “materialismo envergonhado” com invectivas kantianas301,

diz Lénine.

Por estas posições vacilantes, Helmholtz foi criticado de um ponto de vista materialista e

idealista. Veja-se o conteúdo da crítica da parte dos materialistas, dando a palavra a Albrecht Rau,

seguidor de Feuerbach: “Se Helmholtz se mantivesse fiel à sua concepção realista” – que, segundo Rau, é

a sua concepção básica e segundo a qual conhecemos, através dos nossos sentidos, as propriedades

objectivas das coisas – se sustentasse consequentemente o princípio de que as propriedades dos corpos

exprimem tanto as relações dos corpos entre si como as suas relações connosco, evidentemente não teria

sido necessária toda esta teoria dos símbolos; poderia então, exprimindo-se com concisão e clareza, ter

dito: «as sensações que são provocadas em nós pelas coisas são imagens da essência destas coisas»” 302.

Lénine complementa: “É indiscutível que a imagem jamais pode ser inteiramente igual ao modelo, mas

uma coisa é uma imagem e outra coisa é um símbolo, um sinal convencional. A imagem supõe necessária

e inevitavelmente a realidade objectiva daquilo que «se reflecte». O «sinal convencional», o símbolo, o

hieróglifo, são conceitos que introduzem um elemento completamente desnecessário de agnosticismo”303.

Da parte dos idealistas, veja-se a crítica do imanentista Leclair para quem a teoria dos símbolos é

demasiado materialista. “Helmholtz”, diz Leclair, “supõe que as percepções da nossa consciência

oferecem suficientes pontos de apoio para conhecer a sequência no tempo e a identidade ou não

identidade das causas transcendentes. Isto é suficiente, segundo Helmholtz, para supor uma ordem regida

por leis no domínio do transcendente”304 (isto é, do objectivamente real). Ora, para Leclair, isto é

“preconceito dogmático”.

Veja-se, então, por fim, através de Kleinpeter, qual o conteúdo da crítica dos empiriocriticistas a

Helmholtz. Kleinpeter, fazendo uma identificação das premissas do pensamento de Helmholtz, indigna-se

299Helmholtz cit. por V. I. Lénine, ibidem.300Cf. Victor Heyfelder cit. por V. I. Lénine, ibidem.301Diz Helmholtz, contra sistemas como os do idealismo subjectivo que consideram a vida como um sonho: “Sem

dúvida que a hipótese realista é a mais simples que podemos formular, experimentada e confirmada em domínios de aplicação extremamente vastos, determinada com precisão nas suas diversas partes e por isso útil e fecunda no mais alto grau como base da acção”. Para Helmholtz, a hipótese realista é aquela que “confia no juízo da auto-observação comum”, que “considera tudo o que é confirmado pelas percepções quotidianas, o mundo material fora de nós, como existindo independentemente das nossas observações”. Helmohlt cit. por V. I. Lénine, ibidem.

302A. Rau cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.179.303V. I. Lénine, ibidem.304A. Leclair cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.179.

contra elas – falamos de premissas como a existência de objectos do mundo exterior, a impossibilidade de

modificação de um objecto sem ser por via de uma causa considerada como real, a possibilidade da

dedução unívoca dos fenómenos a partir das suas causas, a possibilidade de obtenção da verdade

objectiva, etc305. Para Kleinpeter, “todo o raciocínio de Helmholtz peca pela compreensão errada das

palavras massa, força, etc. Com efeito, isto são apenas conceitos, produtos da nossa fantasia, e de modo

nenhum realidades existentes fora do pensamento. Não estamos absolutamente em condições de conhecer

quaisquer realidades. Da observação dos nossos sentidos não estamos em geral em condições, devido à

sua imperfeição, de tirar uma conclusão unívoca”, diz Kleinpeter. Para ele, “conhecer algo real existente

fora de nós – isso é-nos inteiramente impossível”; “não há ligação lógica entre os factos, mas apenas uma

simples sucessão”; “é impossível alcançar a verdade objectiva”... A teoria dos símbolos, diz Lénine, nem

sequer é destacada especialmente por Kleinpeter, considerada um desvio, talvez acidental, do

materialismo. Estamos, pois, perante uma rejeição da filosofia de Helmholtz do ponto de vista idealista

vinda da parte dos machistas, conclui Lénine.

Sobre a dupla crítica de Dühring

A crítica a Dühring foi feita de duas perspectivas opostas: de um ponto de vista materialista e de

um ponto de vista idealista. Analisar o conteúdo dessas críticas permite conhecer melhor o carácter das

correntes filosóficas de onde elas partem. E permite compreender a deturpação presente num outro traço

característico da crítica machista ao marxismo. Por um lado, diz Lénine, o machista Valentínov quer bater

os marxistas comparando-os com Büchner (que diz ter uma quantidade de semelhanças com Plekhánov).

Mas Engels demarcara-se nitidamente de Büchner. Por outro lado, Bogdánov “parece defender o

«materialismo dos naturalistas», do qual, diz ele, «se costuma falar com um certo desprezo»” 306. Marx e

Engels, diz Lénine, “sempre condenaram o mau materialismo (e, principalmente, o antidialéctico), mas

condenaram-no do ponto de vista de um materialismo mais elevado, mais desenvolvido, do materialismo

dialéctico, e não do ponto de vista do humismo ou do berkeleyanismo”307.

Vejamos, pois, quais os fundamentos e objectivos dessa dupla crítica, conforme evidenciado por

Lénine a propósito da crítica a Dühring. O imanentista Leclair critica Dühring por ser a “extrema-

esquerda” do materialismo que declara sem evasivas a consciência como a flor suprema do organismo

animal; por reconhecer as leis objectivas da natureza reflectidas pela consciência, posição que adjectiva

de “metafísica extremamente grosseira”; por reconhecer a existência do mundo independentemente da

consciência ao que chama “dogma metafísico”. Engels ridicularizava a grandiloquência de Dühring, mas

estava plenamente de acordo quanto a estes aspectos, diz Lénine. O que Engels criticava em Dühring era

as inconsequências do seu materialismo, as suas fantasias idealistas, o seu materialismo insuficientemente

305Cf. H. Kleinpeter cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.180.306V. I. Lénine, ibidem, p.181.307idem, ibidem.

firme, diz Lénine308. “Se Engels tivesse visto de que lado Leclair, de braço dado com Mach, vinha criticar

Dühring, teria aplicado a estes reaccionários filosóficos termos cem vezes mais desdenhosos do que a

Dühring”309, conclui.

O objectivo da crítica de Marx, Engels e Dietzgen aos “maus materialistas” era, porque os

tomavam em consideração, a correcção dos seus erros. Porém, dos humistas e berkeleyanos, de Mach e

Avenarius, nem teriam falado, diz Lénine, mas sim de toda a sua linha filosófica.

Engels, criticando Feuerbach por abandonar por vezes o materialismo devido aos erros de tal ou

tal escola materialista, diz que ele (Feuerbach) “não tinha o direito de confundir a doutrina dos pregadores

ambulantes (Büchner e Cª.) com o materialismo em geral”310. Ora, Engels critica Büchner e Cª., referindo-

se aos materialistas metafísicos, não pelo seu materialismo, mas por “não terem sequer pensado em

desenvolver a teoria” do materialismo. Engels enumera estas limitações do materialismo do século XVIII

(a que já fizemos breve referência na introdução). Relembra Lénine:

“Primeira limitação: a concepção dos antigos materialistas era «mecanicista» no sentido de que

eles «aplicavam exclusivamente os padrões da mecânica aos processos de natureza química e

orgânica. Veremos […] como a incompreensão destas palavras de Engels levou a que certas

pessoas, através da nova física. Fossem parar ao idealismo. Engels não rejeita o materialismo

mecanicista com base naquilo de que o acusam os físicos da corrente idealista (aliás, machista)

«moderna». Segunda limitação: o carácter metafísico das concepções dos antigos materialistas, no

sentido do «carácter anti-dialéctico da sua filosofia» . Esta limitação é inteiramente partilhada

com Büchner e Cª. pelos nossos machistas, que, como vimos, não compreenderam absolutamente

nada da aplicação por Engels da dialéctica à gnosiologia (por exemplo, a verdade absoluta e

relativa). Terceira limitação: a manutenção do idealismo «em cima», no domínio da ciência social,

a incompreensão do materialismo histórico”.311

É preciso ter em conta as condições históricas das obras filosóficas de Engels e Dietzgen. Assim,

compreender-se-á a razão por que “eles se demarcaram mais da vulgarização das verdades elementares

do materialismo do que defenderam estas mesmas verdades”312, diz Lénine. Assim, tendo eles entrado na

carreira filosófica numa fase em que o materialismo era dominante, é perfeitamente natural que “tenham

dedicado a sua atenção não à repetição das velhas ideias, mas ao desenvolvimento teórico sério do

materialismo, à sua aplicação à história, isto é, à construção do edifício da filosofia materialista até ao

cimo. É perfeitamente natural que se tenham limitado, no domínio da gnosiologia, a corrigir os erros de

Feuerbach, a ridicularizar as banalidades do materialista Dühring, a criticar os erros de Büchner (ver J.

Dietzgen), a sublinhar aquilo que particularmente faltava aos escritores mais difundidos e mais populares

no meio operário, a saber: a dialéctica”313. Dedicaram-se, diz Lénine, a que o materialismo não fosse

308Cf. idem, ibidem, p.183.309idem, ibidem, p.184.310F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.182.311V. I. Lénine, ibidem. Cf. F. Engels312V. I. Lénine, ibidem, p.184.313idem, ibidem.

vulgarizado, simplificado em excesso, que não levasse a uma estagnação do pensamento e que não

levasse “ao esquecimento do fruto precioso dos sistemas idealistas, a dialéctica hegeliana”314.

Sobre Joseph Dietzgen e o aproveitamento dos seus erros pelos machistas

Joseph Dietzgen foi um operário e filósofo alemão que chegou por si mesmo ao materialismo

dialéctico. Porém, exprime as suas ideias por vezes de forma confusa e contendo imprecisões e erros. No

entanto, diz Lénine “pondo de lado os defeitos da exposição e os erros de pormenor, não é sem êxito que

defende a «teoria materialista do conhecimento», o «materialismo dialéctico»”315. Marx dizia numa carta

a Kugelmann: “Há já muito tempo, Dietzgen enviou-me um fragmento de um manuscrito sobre a

Faculdade de Pensar que, apesar de uma certa confusão nos conceitos e de repetições demasiado

frequentes, contém muitas ideias excelentes e, como produto do pensamento independente de um

operário, dignas de admiração”316.

Sucede que os machistas, em particular os machistas russos, não quiseram compreender onde

residia a “confusão” a que Marx se referia, diz Lénine: se era naquilo que aproximava ou separava

Dietzgen de Mach. O que os machistas não quiseram ver era que aquilo a que Marx chamava confusão

residia não no materialismo de Dietzgen, mas nos seus afastamentos dele, denuncia Lénine.

Lénine analisa alguns dos erros de Dietzgen. Este filósofo, após afirmações plenamente

materialistas em que considera o pensamento como um produto do cérebro, diz que “também a

representação não sensível é sensível, material, isto é, real...O espírito não se distingue mais da mesa, da

luz, dos som, do que estas coisas se distinguem umas das outras”317. Lénine replica que o erro é aqui

evidente: “que tanto o pensamento como a matéria são «reais», isto é, existem é verdade. Mas qualificar o

pensamento de material é dar um passo errado em direcção à confusão do materialismo e do idealismo.

No fundo, isto é antes uma expressão inexacta de Dietzgen”318, considera. Dietzgen repete nas Excursões

que o conceito de matéria deve ser alargado por forma a incluir também o pensamento. Ao responder a

Dietzgen, Lénine acaba esclarecendo os limites da oposição entre matéria e espírito afirmando que a

posição de Dietzgen

“é uma confusão porque com tal inclusão perde o sentido a oposição gnosiológica da matéria e do

espírito, do materialismo e do idealismo, oposição em que o próprio Dietzgen insiste. Que esta

oposição não deve ser «excessiva», exagerada, metafísica, é indiscutível (e o grande mérito do

materialista dialéctico Dietzgen consiste em ter sublinhado isto). Os limites da necessidade

absoluta e da verdade absoluta desta oposição relativa são precisamente os limites que

determinam a orientação das investigações gnosiológicas. Operar para além destes limites com a

antítese da matéria e do espírito, do físico e do psíquico como uma antítese absoluta, seria um erro

314idem, ibidem.315J. Dietzgen cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.187.316K. Marx cit. por V. I. Lénine, ibidem.317J. Dietzgen cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.185.318V. I. Lénine, ibidem.

enorme”319.

Dietzgen chega também a reconhecer “o lado positivo do idealismo contemporâneo” e a

“insuficiência do princípio materialista”, o que deve alegrar os machistas, diz Lénine. Porém, no entender

de Lénine, “a ideia incorrectamente expressa de Dietzgen consiste em que também a diferença entre a

matéria e o espírito é relativa, não excessiva320. Isto é justo, mas daqui não decorre a insuficiência do

materialismo, mas a insuficiência do materialismo metafísico, antidialéctico”321.

É sem sombra de dúvida que Dietzgen partilha o reconhecimento da verdade objectiva e a

definição de materialismo feita por Engels. Porém, afirma que “podíamos, com o mesmo direito, chamar-

nos idealistas, porque o nosso sistema assenta no resultado total da filosofia, na investigação científica da

ideia, na compreensão clara da natureza do espírito”322. Lénine clarifica a questão: “Não é difícil agarrar-

se a esta frase, evidentemente errada, para rejeitar o materialismo. Na realidade a formulação de Dietzgen

é mais errada do que a ideia fundamental, que se limita a indicar que o velho materialismo era incapaz de

investigar cientificamente as ideias […]”323.

Concluindo, foi a estes erros de Dietzgen – que é em 9/10 um materialista, que nunca aspirou

nem à originalidade, nem a uma filosofia particular diferente do materialismo324 – que os machistas russos

se agarraram, diz Lénine, para se afastarem do marxismo. Partiram daquilo que nele há de fraco, em vez

daquilo que nele há de grande – “neste operário-filósofo, que descobriu à sua maneira o materialismo

dialéctico, há muito de grande!”325, diz Lénine.

15. A moderna revolução nas ciências da natureza e o idealismo filosófico

A crise da física: “a matéria desapareceu”

No início do século XX enfrentava-se uma “crise na física”. Lénine analisa o carácter desta crise.

Analisa o seu significado à luz do materialismo dialéctico e relaciona determinadas escolas da física com

determinadas correntes filosóficas. Em particular, mostra como uma determinada escola da “nova física”

se relaciona, sem “qualquer dúvida”, com o machismo e outras variedades da filosofia idealista

contemporânea, mostra a forma como essa escola de físicos está ligada ao renascimento do idealismo

filosófico326. Lénine está, evidentemente, longe de pensar em tratar de teorias especiais da física, diz.

Aquilo em que está interessado é exclusivamente nas conclusões gnosiológicas de algumas proposições

319idem, ibidem, p.186.320Cf. J. Dietzgen cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.185.321V. I. Lénine, ibidem.322J. Dietzgen cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.186.323V. I. Lénine, ibidem.324idem, ibidem, p.187.325idem, ibidem, p.188.326idem, ibidem, p.191.

determinadas e de descobertas geralmente conhecidas. “A nossa tarefa”, diz Lénine, “limita-se, portanto,

a mostrar claramente em que consiste a essência das divergências destas correntes e a sua relação com as

linhas fundamentais da filosofia”327.

Henri Poincaré fala daquilo que considera serem “indícios de uma crise séria”328: para além da

descoberta do rádio minar o princípio da conservação da energia, “todos os outros princípios estão

igualmente em perigo”. Estamos perante a “derrocada geral dos princípios”, diz. Por exemplo, o princípio

da conservação da massa vê-se minado pela teoria electrónica da matéria329. Daqui, Poincaré retira

conclusões gnosiológicas idealistas (como vimos atrás): a destruição dos princípios mais fundamentais

demonstraria que eles não são imagens de algo exterior em relação à consciência, mas produtos da

consciência, nota Lénine.

Lénine recorre a Abel Rey para uma abordagem filosófica sobre esta questão. Este escritor

francês, adverte Lénine, é ele próprio positivista. “Não se pode confiar em Rey quando se trata de

definição filosófica precisa de conceitos e do materialismo em particular”330, diz Lénine. Mas o resumo

minucioso e, em geral, consciencioso que faz da literatura sobre esta questão, justifica o recurso frequente

ao seu trabalho, considera.

Segundo Rey, há quem, ao discutir os limites e os valores dos conhecimentos científicos, critique

no fundo a legitimidade da ciência positiva, a possibilidade de conhecimento do objecto, se apresse a

retirar conclusões cépticas da crise da física contemporânea. A essência desta crise reside no facto de,

enquanto nos primeiros dois terços do século XIX, os físicos estavam essencialmente de acordo sobre o

essencial, sobre a possibilidade de uma explicação puramente mecânica da natureza (divergindo apenas

nos processos de redução dos fenómenos físicos à mecânica), agora, um extremo desacordo, não só nos

pormenores, mas nas ideias fundamentais, substituiu a anterior unanimidade. “Se seria exagerado dizer

que cada cientista tem as suas tendências particulares, deve no entanto constatar-se que, tal como a arte, a

ciência, particularmente a física, tem numerosas escolas, cujas conclusões frequentemente divergem e por

vezes são directamente hostis...”331, diz Rey. O autor mostra que os físicos contemporâneos estão

divididos em três escolas de acordo com as suas tendências gnosiológicas: a energética ou conceptualista

(da palavra conceito, noção pura), a mecanicista ou neomecanicista (à qual contiuam a pertencer a

maioria dos físicos) e a criticista (intermédia entre as anteriores). À primeira pertencem Mach e Duhem, à

segunda Kirchhoff, Helmholtz, Thomson (Lord Kelvin), Maxwell, Larmor, Lorentz, à terceira Henri

Poincaré. Lénine sublinha que aqui estão presente duas linhas fundamentais, uma vez que a terceira

escola não é independente, mas intermédia.

327idem, ibidem.328H. Poincaré cit. por V. I. Lénine, ibidem.329De acordo com a explicação de Lénine baseada no conhecimento da época o problema reside no seguinte: os

electrões estão mergulhados no éter; a sua elevada velocidade obriga a que se tome em consideração a sua dupla massa, correspondendo, em primeiro lugar, à necessidade de vencer a inércia do electrão (designada por massa real ou mecânica) e, em segundo lugar, de vencer a inércia do éter (designada por massa electrodinâmica); no entanto, a primeira massa revela-se igual a zero. A massa desaparece. Cf. V. I. Lénine, ibidem, p.192.

330idem, ibidem.331A. Rey cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.193.

Vejamos como o autor caracteriza a física anterior à crise: “A física tradicional, até meados do

século XIX, postulava que bastava um simples prolongamento da física para se chegar a uma metafísica

da matéria. Esta física dava às suas teorias um valor ontológico. E estas teorias eram todas mecanicistas.

O mecanicismo tradicional representava assim, acima dos resultados da experiência, para além dos

resultados da experiência, o conhecimento real do universo material”. E Rey conclui: “Isto não era uma

expressão hipotética da experiência; era um dogma”332. Lénine aqui interrompe Rey com a maior

pertinência tendo em vista clarificar os termos, os seus significados e objectivos, notando em primeiro

lugar que “o respeitável «positivista»” descreve a filosofia materialista da física tradicional “sem querer

chamar o diabo (isto é, o materialismo) pelo nome”. Como vimos atrás, a um humista, diz Lénine, “o

materialismo tem de parecer metafísica, dogma, saída dos limites da experiência, etc.”333. Lénine chama

também a atenção para a ignorância de Rey sobre a diferença entre materialismo dialéctico e metafísico

que aqui transparece, bem como da relação entre verdade relativa e absoluta.

A nova situação, de acordo com Rey, caracteriza-se pela negação da “realidade ontológica do

mecanicismo” da qual derivou uma nova concepção filosófica da física segundo a qual a ciência não é

mais do que uma “forma simbólica” que a transforma em técnica utilitária, o que equivale à própria

“negação da possibilidade da ciência”334. O próprio Rey reconhece as forças que se aproveitam desta nova

concepção. Admite que, “se as ciências físico-químicas [...] soçobrarem numa crise que lhes deixe apenas

o valor de receitas tecnicamente úteis, mas lhes retire todo o significado do ponto de vista do

conhecimento da natureza […] é preciso ir por outra via, é preciso devolver à intuição subjectiva, ao

sentido místico da realidade, numa palavra, ao mistério, aquilo que se acreditava ter-lhe sido arrancado

pela ciência”. E, ainda mais explícito: “o movimento fideísta e anti-intelectualista dos últimos anos do

século XIX” pretende “apoiar-se no espírito geral da física contemporânea” 335.

Lénine põe a questão noutros termos, clarificando o conteúdo e significado desta crise: “A nova

corrente da física vê na teoria apenas símbolos, sinais, marcas para a prática, isto é, nega a existência da

realidade objectiva, independente da nossa consciência e reflectida por ela. Se Rey usasse uma

terminologia filosófica correcta, deveria dizer: a teoria materialista do conhecimento, adoptada

332idem cit. por V. I. Lénine, ibidem.333V. I. Lénine, ibidem.

334Tomemos mais longamente o raciocínio de Rey: “As críticas ao mecanicismo tradicional que foram formuladas durante a segunda metade do século XIX invalidaram esta premissa da realidade ontológica do mecanicismo. Na base destas críticas estabeleceu-se uma concepção filosófica da física, que se tornou quase tradicional na filosofia do fim do século XIX. A ciência, segundo esta concepção, não é mais do que uma forma simbólica, um meio de notação (de sinalização, repérage, criação de sinais, de marcas, de símbolos), e como estes meios de notação variavam segundo as escolas, depressa se concluiu que só se notava aquilo que foi previamente criado (façonné) pelo homem para ser sinalizado (para ser simbolizado)”. A ciência tornou-se uma obra de artes para diletantes, uma obra de arte para utilitaristas: atitudes que com legitimidade se poderia traduzir universalmente pela negação da possibilidade da ciência. Uma ciência como puro artifício para agir sobre a natureza, como simples técnica utilitária, não tem o direito de se chamar ciência, a menos que se desfigure o sentido das palavras. Dizer que a ciência não pode ser senão esse artifício é negar a ciência no sentido próprio da palavra”. A. Rey cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.194.

335A. Rey cit. por V. I. Lénine, ibidem.

espontaneamente pela física anterior, foi substituída por uma teoria do conhecimento idealista e agnóstica,

do que o fideísmo se aproveitou, contra o desejo dos idealistas e dos agnósticos”336. Para Lénine “a

essência da crise da física contemporânea consiste da destruição das velhas leis e princípios

fundamentais, na rejeição da realidade objectiva fora da consciência, isto é, na substituição do

materialismo pelo idealismo e pelo agnosticismo. «A matéria desapareceu» - pode exprimir-se assim a

dificuldade fundamental e típica em relação a muitas questões particulares que suscitou esta crise” 337,

conclui Lénine.

Esta expressão, “a matéria desapareceu”, é retirada por Lénine da descrição de um dos físicos

seus contemporâneos, L. Houllevigue, das descobertas científicas mais recentes. Mas Lénine – perante a

confusão dos machistas que utilizam a ideia do desaparecimento da matéria contra os materialistas e que

não compreendem “em que consiste a relação real entre o idealismo filosófico e o «desaparecimento da

matéria»”338 – esclarece que aquilo a que os físicos se referem nada tem a ver com a distinção

gnosiológica entre materialismo e idealismo. E reafirma esta questão com um exemplo. Karl Pearson

toma os corpos por percepções sensoriais. E, já depois, toma a sua composição em átomos, moléculas,

partícula, etc. Ora, isto diz respeito às transformações do modelo do mundo físico, diz Lénine, e de modo

nenhum à questão de saber se os corpos são símbolos de sensações. “O materialismo e o idealismo

diferenciam-se por uma ou outra solução da questão da fonte do nosso conhecimento, das relações entre o

conhecimento (e o «psíquico» em geral) e o mundo físico, enquanto a questão da estrutura da matéria, dos

átomos e dos electrões, é uma questão que diz respeito apenas a este «mundo físico» 339”. O que os físicos

querem dizer quando afirmam “a matéria desapareceu”, diz Lénine, é que, tendo até agora as ciências da

natureza reduzido as suas investigações aos conceitos de matéria, electricidade e éter, restam apenas os

dois últimos uma vez que se poderia reduzir a matéria à electricidade. O que se quer dizer com “a matéria

desaparece” é que, diz Lénine, “desaparece o limite até ao qual conhecemos até agora a matéria e que o

nosso conhecimento vai mais fundo; desaparecem as propriedades da matéria que anteriormente pareciam

absolutas, imutáveis, primárias […] e que agora se revelam relativas, inerentes apenas a certos estados da

matéria. Porque a única «propriedade» da matéria a cujo reconhecimento o materialismo filosófico está

ligado é a propriedade de ser uma realidade objectiva, de existir fora da nossa consciência”340.

A confusão, feita pelos machistas, entre o reconhecimento da matéria como realidade objectiva e

a modificação do nosso conhecimento sobre a estrutura da matéria é também extensível à confusão entre

materialismo metafísico e materialismo dialéctico. A admissão de elementos imutáveis não é

materialismo, mas sim materialismo metafísico, isto é, anti-dialéctico, diz Lénine. Para o materialismo

dialéctico, nas palavras de J. Dietzgen, “o objecto da ciência é infinito”, o mais pequeno átomo não pode

ser conhecido até ao fim, é inesgotável, porque “a natureza, em todas as suas partes, não tem princípio

336V. I. Lénine, ibidem, p.195.337idem, ibidem, p.195-196.338idem, ibidem,, p.196.339idem, ibidem, p.197.340idem, ibidem, p.198.

nem fim”341. O materialismo dialéctico, diz Lénine, “insiste no carácter aproximativo, relativo, de

qualquer proposição científica sobre a estrutura da matéria e as suas propriedades, na ausência de

fronteiras absolutas na natureza, na transformação da matéria em movimento de um estado para outro

que, do nosso ponto de vista, parece incompatível com o anterior, etc.”342.

“A nova física”, diz Lénine, “desviou-se para o idealismo sobretudo precisamente porque os

físicos não conheciam a dialéctica”343. Ao combaterem o materialismo metafísico, abandonaram o

materialismo: ao negar a imutabilidade das propriedades da matéria conhecidas até então, negaram a

matéria; ao negar o carácter absoluto das leis mais importantes, negaram a existência de qualquer lei

objectiva na natureza e tomaram as leis como “necessidades lógicas”; ao insistirem no carácter relativo e

aproximativo do nosso conhecimento, caíram na negação do objecto independente do conhecimento

reflectido de forma relativamente verdadeira pelo nosso conhecimento344.

Lénine dá dois exemplos interessantes em que se verifica a vacilação, inconsciente e espontânea,

da nova física entre o materialismo dialéctico e o “fenomenalismo” (com as suas inevitáveis conclusões

subjectivistas e, mais tarde, directamente fideístas). Vejamos o físico Augusto Righi de forma um pouco

mais extensa. Diz ele:

“O que realmente são os electrões ou átomos eléctricos continua ainda hoje a ser um mistério;

mas, apesar disso, a nova teoria está talvez destinada a adquirir, com o tempo, não pouca

importância filosófica, porquanto está a chegar a premissas completamente novas relativamente à

estrutura da matéria ponderável e se esforça por reduzir todos os fenómenos do mundo exterior a

uma origem comum. Do ponto de vista das tendências positivistas e utilitaristas do nosso tempo,

semelhante vantagem pode não ter importância e uma teoria pode ser considerada antes de mais

como um meio para ordenar e confrontar comodamente os factos, para servir de guia nas

investigações de fenómenos ulteriores. Mas se no passado se tinha uma confiança talvez

demasiado grande nas faculdades do espírito humano e se acreditava que se podia apreender

demasiado facilmente as causas últimas de todas as coisas, hoje existe a tendência para cair no

erro oposto.”345

Perante esta opinião, Lénine considera estarmos perante o exemplo de um físico que, não tendo

aparentemente nenhum ponto de vista filosófico determinado, se atém espontaneamente à realidade do

mundo exterior e à ideia de que a nova teoria não é uma “comodidade”, mas sim um passo no

conhecimento da realidade objectiva. “Se este físico estivesse familiarizado com o materialismo

dialéctico, o seu juízo sobre o erro oposto ao antigo materialismo metafísico talvez tivesse sido o ponto

de partida de uma filosofia correcta. Mas todo o ambiente em que vivem estes homens os afasta de Marx

341J. Dietzgen cit. por V. I. Lénine, ibidem.342E Lénine exemplifica esta situação de acordo com o conhecimento da época dizendo que, por muito estranho que

pareça, a transformação do éter imponderável em matéria ponderável e o inverso, a ausência no electrão de outra massa para além da electromagnética ou a limitação das leis mecânicas a um dado domínio de fenómenos e a sua subordinação às leis mais profundas dos fenómenos electromagnéticos tudo isto é apenas mais uma confirmação do materialismo dialéctico. V. I. Lénine, ibidem.

343idem, ibidem. 344Cf. idem, ibidem, p.199. 345A. Righi cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 199-200.

e de Engels, os lança nos braços da trivial filosofia professoral”346.

Rey, analisando a mesma questão, deixa transparecer nas suas palavras que a mecânica era um

“decalque” dos movimentos reais lentos e que a nova física é um “decalque” dos movimentos reais

extremamente rápidos. Este reconhecimento da teoria como cópia aproximada da realidade objectiva é

materialismo, conclui Lénine. Também nas palavras de Rey, que, da mesma forma que Righi, desconhece

a dialéctica, se encontra o reconhecimento de uma luta que se trava e que é, no fundo, o confronto entre as

tendências materialistas e idealistas. Quando Rey diz que entre os físicos modernos existe “uma reacção

contra a escola conceptualista (machista) e a escola energética” e vê os físicos da teoria electrónica

(“mecanicistas”, entenda-se materialistas)347 como representantes desta reacção, é isso que

testemunhamos, considera Lénine.

O movimento sem a matéria. A física energética

Lénine resume a utilização da nova física pelo idealismo filosófico (ou as conclusões idealistas

dela retiradas) a uma tentativa de conceber o movimento sem a matéria. Para os materialistas, não existe o

movimento sem a matéria. Engels afirma peremptoriamente: “o movimento é inconcebível sem a

matéria”348. Lénine irá mostrar que aquela conclusão é idealista pois “a tentativa de conceber o

movimento sem a matéria introduz furtivamente o pensamento separado da matéria, e isto é precisamente

idealismo filosófico”349.

Em A Essência do Trabalho Cerebral, de Dietzgen, podemos ler: “Os idealistas querem o geral

sem o particular, o espírito sem a matéria, a força sem a substância, a ciência sem a experiência ou sem

dados, o absoluto sem o relativo”350. Isto é, em Dietzgen, a concepção da existência da força sem

substância – do movimento sem a matéria – aparece ao mesmo nível da concepção radicalmente idealista

da existência do espírito sem a matéria, do pensamento do cérebro, evidencia Lénine. Os espiritualistas e

idealistas, diz Dietzgen, acreditam numa essência espiritual, isto é, fantástica, inexplicável, da força. Mas

a força sem a substância e a substância sem a força são absurdos, conclui.

Para um idealista consequente, para quem o mundo seja sensação ou representação (minha ou de

ninguém351), a questão de saber o que se move é rejeitada por absurda, muito embora possa, sem dúvidas,

afirmar que o mundo é movimento – movimento do pensamento, da representação, da sensação 352. A

diferença fundamental entre esta posição idealista e a posição materialista consiste em que, de acordo

346V. I. Lénine, ibidem, p. 200.347Cf. idem, ibidem, p. 201.348F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 202.349V. I. Lénine, ibidem, p. 203.350J. Dietzgen cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 201.351A escolha por uma das opções mudaria apenas a variedade de idealismo filosófico.352A posição de Karl Pearson – o machista mais claro, consequente e hostil aos subterfúgios verbais, caracteriza

Lénine – é esclarecedora. Para Pearson “todas as coisas se movem – mas apenas no conceito” e, “em relação ao domínio das percepções, é ocioso perguntar («it is idle to ask») o que é que se move e por que é que se move”. K. Pearson cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 203-204.

com a última, ao movimento das representações corresponde o movimento da realidade objectiva, o

movimento da matéria. “Por isso, separar o movimento da matéria equivale a separar o pensamento da

realidade objectiva, a separar as minhas sensações do mundo exterior, isto é, a passar para o idealismo”,

diz Lénine. E continua: “O truque que é executado habitualmente ao negar a matéria, ao admitir o

movimento sem a matéria, consiste em calar a relação entre a matéria e o pensamento” 353. Por isso,

quando se diz que a matéria desaparece se deve perguntar se o pensamento também desapareceu. Pois, se

se supõe que o pensamento pode subsistir apesar do desaparecimento da matéria então quer dizer que se

passou sub-repticiamente para o idealismo, diz Lénine.

Lénine sintetiza as diferentes posições da seguinte forma: “o idealista pode considerar o mundo

como o movimento das nossas sensações (ainda que «socialmente organizadas» e «harmonizadas» no

mais alto grau); o materialista metafísico, isto é, antidialéctico, pode aceitar a existência (ainda que

temporária, antes do «primeiro impulso», etc.) da matéria sem movimento. O materialista dialéctico não

só considera o movimento como uma propriedade inseparável da matéria, como rejeita também a

concepção simplificada do movimento.”354.

Lénine procede à análise da ligação entre a teoria “energética” de Ostwald e o idealismo

filosófico. A física energética, diz Lénine, “é fonte de novas tentativas idealistas de conceber o

movimento sem a matéria, devido à decomposição de partículas de matéria que até então se consideravam

indecomponíveis e à descoberta de formas até então desconhecidas do movimento material”355. Ostwald

questionava a necessidade de a energia ter um “veículo” e procurou unir e subordinar sob o conceito de

energia os conceitos de matéria e de espírito356. Mas isto, denuncia Lénine, não se trata da eliminação da

oposição gnosiológica entre matéria e pensamento, mas sim da sua supressão verbal 357. Ostwald atribui

também, de forma puramente idealista, “a circunstância de todos os fenómenos exteriores poderem ser

representados como processos entre energias” ao facto de “os processos da nossa consciência serem eles

próprios energéticos e comunicarem esta sua propriedade a todas as experiências exteriores”. Isto é,

clarifica Lénine, para Ostwald “não é o nosso pensamento que reflecte a transformação da energia no

mundo exterior, mas o mundo exterior que reflecte a «propriedade» da nossa consciência!”358. Mas

Ostwald não mantém uma posição consequente e, em muitos casos (talvez a maior parte as vezes) o

próprio Ostwald, diz Lénine, entende por energia o movimento material, da mesma forma que as ciências

da natureza entendem a transformação da energia: como um processo objectivo, independente da

353V. I. Lénine, ibidem, p. 203.354idem, ibidem, p. 204-205.355idem, ibidem, p. 207.

356Lénine diz que Ostwald não se dá conta de que está a colocar uma questão gnosiológica e não uma questão química. Cf. idem, ibidem, p. 206.

357“Naturalmente, se subordinarmos a este conceito tanto a matéria como o espírito, então a supressão verbal da contradição é indubitável, mas o absurdo da doutrina dos duendes e elfos não desaparece pelo facto de lhe chamarmos «energética»”, diz Lénine. idem, ibidem.

358idem, ibidem, p. 206.

consciência do homem e da experiência da humanidade, ou seja, de maneira materialista 359.

Porém, Bogdánov não criticou Ostwald por não manter uma posição materialista, mas por

admitir a concepção materialista da energia. Diz Bogdánov: “em breve notei, porém, uma importante

contradição da sua filosofia da natureza: embora sublinhando muitas vezes o significado puramente

metodológico do conceito de energia, ele próprio, em grande número de casos, não se atém a ele. De puro

símbolo das correlações entre os factos da experiência, para ele a energia transforma-se frequentemente

em substância da experiência, em matéria do mundo...”360.

As duas correntes da física contemporânea na literatura inglesa, alemã, francesa e russa

Desencadeou-se na literatura contemporânea uma luta filosófica a propósito de uma ou de outras

conclusões extraídas da nova física, repara Lénine. Lénine irá analisar as duas correntes da física

contemporânea e, em particular, o espirirtualismo inglês, o idealismo alemão, o fideísmo francês e o caso

de um idealista russo, dando a palavra aos intervenientes neste debate.

No congresso dos naturalistas ingleses, repara Lénine, o presidente da secção de física, Arthur.

W. Rücker, escolheu como tema a questão do valor da teoria física e das dúvidas sobre a existência dos

átomos e do éter. “A questão em discussão - disse Rücker - consiste em saber se as hipóteses que estão na

base das teorias científicas mais difundidas devem ser consideradas como descrições exactas da estrutura

do mundo que nos rodeia ou apenas como ficções cómodas” e põe a questão de saber se “podemos nós

concluir dos fenómenos revelados pela matéria a estrutura da própria matéria”. Rücker reconhece a

possibilidade de grandes avanços científicos através da táctica da teoria como ficção cómoda, mas “ousa

afirmar que semelhante sistema da táctica não pode ser considerado como a última palavra da ciência na

luta pela verdade”361. Rücker, ao analisar a questão da estrutura da matéria, contesta que as moléculas e os

átomos não possam "ser considerados como realidades", mas apenas como "simples conceitos", pelo facto

de não poderem ser vistos. Diz Rücker que “os que rebaixam o valor das ideias que guiaram até agora o

progresso da teoria científica admitem com demasiada frequência que não há outra alternativa entre duas

asserções opostas: ou o átomo e o éter são simples ficções da imaginação científica, ou a teoria

mecanicista dos átomos e do éter – agora, ela não está acabada, mas se pudesse ser acabada – dar-nos-ia

uma ideia completa e idealmente precisa das realidades.” Para Rücker, “há uma via média” 362. E utiliza

para ilustrar a sua opinião a imagem de uma sala escura na qual, embora de forma difusa, os objectos são

discerníveis. O autor, colocando-se do ponto de vista do materialismo espontâneo, considera que, embora

não tenhamos formado um quadro completo da natureza dos átomos e do éter e apesar do carácter

359Cf. idem, ibidem.360A. Bogdánov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 206-207.361A. Rücker cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 208.362idem, ibidem, p. 209.

aproximado das teorias e das dificuldades de pormenor, a teoria dos átomos é verdadeira nas suas grandes

linhas, “que os átomos não são apenas conceitos auxiliares (helps) para os matemáticos (puzzled-

mathematicians), mas realidades físicas. Para Lénine “as imprecisões da filosofia de Rücker decorrem da

defesa, de modo nenhum obrigatória, da teoria «mecanicista» (porque não electromagnética?) dos

movimentos do éter e da incompreensão entre a verdade relativa e a verdade absoluta. Considera que falta

apenas a este físico o conhecimento do materialismo dialéctico, “se não tomarmos em consideração,

naturalmente, as importantíssimas considerações sociais que obrigam os professores ingleses a dizerem-se

«agnósticos»”363.

James Ward, por seu turno, é um espiritualista franco e consequente, diz Lénine. Para Ward, o

naturalismo e a teoria mecanicista da natureza que está na base daquele não são uma ciência. “Mas

embora o naturalismo e as ciências da natureza, a teoria mecanicista do mundo e a mecânica como ciência

sejam logicamente coisas diferentes, à primeira vista são muito semelhantes e historicamente estão

ligadas. Não há perigo de confusão entre as ciências da natureza e a filosofia de tendência idealista ou

espiritualista, porque esta filosofia implica necessariamente a crítica das premissas gnosiológicas que a

ciência admite inconscientemente”364. “É verdade!”, exclama Lénine: “As ciências da natureza aceitam

inconscientemente que a sua doutrina reflecte a realidade objectiva, e só esta filosofia é compatível com

as ciências da natureza!”365. Para Ward, o naturalismo, tal como a ciência, é “inocente” de teoria do

conhecimento. E, tal como o materialismo, não é mais do que física tratada como metafísica, diz Ward

repetindo com os humistas e kantianos o argumento já conhecido de chamar metafísica à realidade

objectiva fora do homem.

Ward contesta a filosofia exposta por Rücker. E fá-lo, considera Lénine, de modo notavelmente

verdadeiro e claro. Ward considera que, “quando surge a questão, no fundo filosófica, de como

sistematizar melhor a experiência no seu conjunto, o naturalista afirma que devemos começar pelo

aspecto físico. Só estes factos são precisos […]. Que afirmações de tal importância filosófica e tal

amplitude sejam deduções legítimas da ciência física (isto é, das ciências da natureza), é coisa que os

físicos contemporâneos não se decidem a afirmar directamente. Mas muitos deles consideram que minam

o significado da ciência aqueles que se esforçam por tornar patente a metafísica dissimulada e denunciar o

realismo físico em que assenta a teoria mecanicista do mundo […] Na realidade, a minha crítica [desta

metafísica] baseia-se inteiramente nas conclusões de uma escola de físicos, se assim se lhe pode chamar,

que cresce em número e alarga a sua influência, escola que recusa este realismo quase medieval [...]”.

Ward nomeia Kirchhoff e Poincaré e, noutros locais, Poynting, Duhem, Pearson e Mach. “Para os

distinguir da velha escola, que temos o direito de chamar realistas físicos, podemos chamar à nova escola

simbolistas físicos. […] Ambas as escolas partem, evidentemente, da mesma experiência sensorial

(perceptual); ambas usam sistemas abstractos de conceitos, que diferem nos pormenores mas são, no

363V. I. Lénine, ibidem, p. 210.364J. Ward cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 210-211.365V. I. Lénine, ibidem, p. 210.

fundo, idênticos; ambas recorrem aos mesmos processos de verificação de teorias. Mas uma delas crê que

se aproxima cada vez mais da realidade última e deixa atrás de si cada vez mais aparências. A outra crê

que substitui (is substituting) a complexidade dos factos concretos por esquemas descritivos

generalizados, próprios para operações intelectuais...Nem uma nem outra afecta o valor da física como

conhecimento sistemático acerca das coisas; a possibilidade de desenvolvimento futuro da física e das

suas aplicações práticas é a mesma nos dois casos. Mas a diferença filosófica (speculative) entre ambas as

escolas é enorme e neste aspecto adquire importância a questão de saber qual tem razão [...]” 366. Com

estas considerações, Ward, ao contrário das pessoas com tendências filosóficas “intermédias”

(positivistas, humistas, machistas), soube colocar de forma clara a discussão em apreço arrancando todos

os véus, diz Lénine.

Ward, diz Lénine, não deixa de identificar os pontos fracos do materialismo espontâneo das

ciências da natureza – sobretudo a incapacidade deste para explicar a correlação entre a verdade relativa e

absoluta – com o objectivo de atacar as teses do materialismo e de reduzir a pretensão da ciência ao

conhecimento da realidade objectiva. Como a verdade relativa, aproximada, apenas “tacteia” o fundo das

coisas, então, ela não pode reflectir a realidade: assim é o argumento de Ward. O fideísmo

contemporâneo, culto, constata Lénine, “nem sequer pensa em exigir mais do que a declaração de que os

conceitos das ciências da natureza são «hipóteses de trabalho». Nós cedemo-vos a ciência, senhores

naturalistas, cedei-nos a gnosiologia, a filosofia: tal é a condição de coabitação dos teólogos e dos

professores nos países capitalistas «adiantados»”367, conclui.

Também a luta contra a matéria e pelo estabelecimento da concepção do movimento separado da

matéria está presente na gnosiologia de Ward que ele liga à “nova” física. “Troçando da profusão e do

carácter contraditório das hipóteses”, diz Lénine, Ward pergunta: “Que é a matéria? Que é a energia?”

para concluir que “não encontramos nada de definido além do movimento”368.

“O movimento dos corpos transforma-se na natureza em movimento daquilo que não é um corpo

de massa constante, em movimento daquilo que é uma carga desconhecida de uma electricidade

desconhecida, num éter desconhecido”369. Estas transformações das formas de movimento da matéria, esta

“dialéctica das transformações materiais”, servem aos filósofos idealistas não como confirmação da

dialéctica materialista, mas como argumento contra o materialismo, diz Lénine. Para os materialistas o

mundo é matéria em movimento “e as leis do movimento desta matéria são reflectidas pela mecânica

quando se trata de movimentos lentos, e pela teoria electromagnética quando se trata de movimentos

rápidos...”370. Lénine reafirma a concepção materialista dialéctica da progressão do conhecimento quando

Ward pretende atacar o materialismo com a decomposição do átomo 371. Diz Lénine que “a destrutibilidade

366J. Ward cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 210-211.367V. I. Lénine, ibidem, p. 212.368J. Ward cit. por V. I. Lénine, ibidem p. 212-213.369V. I. Lénine, ibidem, p. 213370idem, ibidem.371“O átomo extenso, sólido, indestrutível, foi sempre o apoio da concepção materialista do mundo. Mas,

infelizmente para esta s concepções, o átomo extenso não satisfez (was not equal to the demands) que lhe

do átomo, a sua inesgotabilidade, a mutabilidade de todas as formas as formas da matéria e dos seu

movimento foram sempre o apoio do materialismo dialéctico. Todos os limites na natureza são

convencionais, relativos, móveis, exprimem a aproximação da nossa mente do conhecimento da matéria,

mas isto não demonstra de modo nenhum que a natureza, a própria matéria, seja um símbolo, um sinal

convencional, isto é, um produto da nossa mente”372.

Ward, espiritualista, não esconde, ao contrário dos machistas russos, aquilo que procura alcançar

com defesa destas teses: “Como já tentei demonstrar”, diz Ward, “o progresso da física” (entenda-se da

linha “simbolista” que a “nova” física está a percorrer) “é justamente o meio mais poderoso de luta contra

a fé ignorante na matéria e no movimento, contra o seu reconhecimento como a substância última

(inmost), e não o símbolo mais abstracto da soma da existência...Nunca chegaremos a Deus através de um

mero mecanicismo”373.

Também na Alemanha era possível observar o posicionamento de cientistas e de filósofos em

torno de duas posições fundamentalmente diferentes a propósito das novas descobertas na física. Lénine

contrasta as posições do filósofo e matemático Hermann Cohen e do filósofo Eduard von Hartmann,

idealistas, com as posições dos físicos Hertz e Boltzmann, que se mantêm essencialmente de um ponto de

vista materialista.

O kantiano Hermann Cohen tinha confiança que o idealismo teórico, que começara já a abalar o

materialismo dos naturalistas, diz, o viesse a vencer definitivamente. Afirmava claramente que “o

idealismo impregna a física nova”374. Também Cohen, tal como Ward, assinala Lénine, estabelece com

precisão e clareza “as linha filosóficas fundamentais, sem se perder (como se perdem os nossos

machistas) em diferenças miúdas de um qualquer idealismo energético, simbólico, empiriocriticista,

empiriomonista, etc.”375. Cohen caracteriza, assim, de idealista a tendência filosófica da escola da física

associada aos nomes de Poincaré, Mach e outros, nota Lénine. A linha de argumentação é a mesma e

assenta na negação da matéria (e do movimento separado da matéria) perante a constatação da

modificação do nosso conhecimento sobre ela. A electricidade é declarada por Cohen, diz Lénine,

colaboradora do idealismo porque destruiu a velha teoria da estrutura da matéria de tal forma que “é

possível introduzir fraudulentamente uma interpretação da natureza como movimento imaterial

(espiritual, mental, psíquico, etc.)”376.

Ao contrário do que afirmam Cohen ou Kleinpeter – que se aproveitaram do menor erro de Hertz

ou imprecisão na linguagem377 – Hertz, considera Lénine, defende “o ponto de vista habitual de um

apresentava o conhecimento crescente”. J. Ward cit. por V. I. Lénine, ibidem.

372V, I. Lénine, ibidem.373 J. Ward cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 214.374H. Cohen cit. por V. I. Lénine, ibidem.375V. I. Lénine, ibidem.376idem, ibidem.377“Esta curiosa discussão”, diz Lénine, “ acerca da questão de saber a quem pertence Hertz dá-nos um belo

exemplo da maneira como os filósofos idealistas agarraram o menor erro, a menor falta de clareza de expressão de naturalistas famosos para justificarem a sua renovada defesa do fideísmo”. idem, ibidem, p. 215.

naturalista intimidado pela gritaria dos professores contra a «metafísica» do materialismo mas que não

consegue de maneira nenhuma ultrapassar o seu convencimento espontâneo da realidade do mundo

exterior”378. O próprio Kleinpeter o confessa noutros momentos. Hertz, na Mecânica, ao analisar a

energética, afirma que “a física contemporânea gosta de usar na sua argumentação um modo de expressão

energético […] porque esta é a maneira de mais comodamente evitar falar em coisas de que sabemos

muito pouco...Naturalmente, todos nós estamos convencidos de que a matéria ponderável é composta por

átomos” dos quais conhecemos algumas coisas, mas muitas são ainda desconhecidas”379. Vê-se

claramente, conclui Lénine, que nem passa pela cabeça de Hertz uma concepção não materialista da

energia.

Também o idealista alemão Eduard von Hartmann constata os mesmos fenómenos que Rey,

Ward e Cohen constataram, diz Lénine. Hartmann considera, assim, que “ física contemporânea cresceu

num terreno realista e foi só a tendência neokantiana e agnóstica da nossa época que conduziu a que os

últimos resultados da física fossem interpretados num sentido idealista”380. Mas para Hartmann não é

suficiente que os físicos adoptem a posição idealista de tomar os átomos, os electrões, etc. como simples

símbolo ou “hipóteses de trabalho”. Como idealista consequente, Hartmann explica acertadamente aos

físicos as consequências de seguir uma ou outra linha filosófica, diz Lénine. Assim, seria preciso, diz

Hartmann, que eles abandonassem as premissas realistas a que ainda se agarram, apesar do seu idealismo,

e modificassem radicalmente também a doutrina da realidade objectiva do tempo, do espaço, da

causalidade, das leis da natureza381.

O físico alemão Ludwig Boltzmann combateu sistematicamente a corrente machista, destaca

Lénine. “Boltzmann, naturalmente”, diz Lénine, “teme chamar-se a si próprio materialista e declara

mesmo explicitamente que não é de modo nenhum contra a existência de Deus. Mas a sua teoria do

conhecimento é no fundo materialista e exprime – como reconhece A. Günther, historiador das ciências

da natureza do século XIX – a opinião da maioria dos naturalistas” 382. Para Boltzmann, “conhecemos a

existência de todas as coisas pelas impressões que elas produzem nos nossos sentidos” e a teoria é uma

“imagem” da natureza, do mundo exterior383. Contra um “quadro subjectivo do mundo” que diz estar a ser

desenhado, Boltzmann defende um “quadro objectivo, mais simples, do mundo”. Combatendo a física

“fenomenológica” de Mach e Cª., diz Lénine, Boltzmann afirma que “os que pensam eliminar a

atomística por meio de equações diferenciais não vêem a floresta por trás das árvores”384 ou que “é

378idem, ibidem.379Cf. H. Hertz cit. por V. I. Lénine, ibidem.380E. Hartmann cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 216.381Diz Hartmann: “Dos físicos que seguem esta moda, é muito insignificante a parte daqueles que se dão

inteiramente conta de todo o significado e de todas as consequências de tal interpretação. Eles não notaram que a física, com as suas leis particulares, só conservou o seu significado autónomo na medida em que os físicos se ativeram, apesar do seu idealismo, a premissas fundamentais realistas, a saber: a existência das coisas em si, a sua mutabilidade real no tempo, a causalidade real...Só com estas premissas realistas (valor transcendental da causalidade, do tempo e do espaço de três dimensões), isto é, só com a condição de que a natureza, acerca de cujas leis os físicos falam, coincida com o reino das coisas em si...se pode falar de leis da natureza diferentes das leis psicológicas”. E. Hartmann cit. por V. I. Lénine, ibidem.

382V. I. Lénine, ibidem, p. 217-218.383L. Boltzmann cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 218.384idem, cit. por V. I. Lénine, ibidem.

perfeitamente evidente que a física fenomenológica não faz mais do que dissimular-se sob o manto das

equações diferenciais”. Para Boltzmann, “se não tivermos ilusões sobre o significado das equações

diferenciais, não pode haver dúvidas de que o quadro do mundo (formado por meio das equações

diferenciais) continuará necessariamente a ser atomístico, um quadro de como mudarão no tempo,

segundo certas regras, uma quantidade enorme de coisas situadas no espaço de três dimensões. Estas

coisas podem ser, naturalmente, idênticas ou diferentes, imutáveis ou mutáveis”385.

“Em França, a filosofia idealista agarrou-se não menos resolutamente às vacilações da física

machista”386, constata Lénine. É significativo o facto de a “filosofia idealista mais reaccionária” com

conclusões fideístas se ter agarrado imediatamente à teoria de Poincaré. Lénine traduz assim a

argumentação de Le Roy, representante desta corrente: “as verdades da ciência são sinais convencionais,

símbolos; abandonastes as absurdas pretensões «metafísicas» de conhecer a realidade objectiva; sede,

pois, lógico e concordai connosco que a ciência possui apenas um valor prático para um domínio da

actividade humana e que a religião tem um valor não menos real do que a ciência para outro domínio da

actividade; a ciência «simbolista», machista, não tem o direito de negar a teologia”387.

Poincaré não gostou que tais conclusões fossem retiradas da sua filosofia e atacou-as

especialmente no seu livro O Valor da Ciência, diz Lénine. No entanto, é preciso analisar a forma como o

faz. Poincaré procura recorrer ao critério da prática para se demarcar afirmando que se as leis científicas,

que são convenções, têm valor como regra de acção é porque sabemos que elas têm êxito388. Mas este

critério, nota Lénine, pode ser interpretado tanto num sentido objectivo como subjectivo: “Le Roy

também reconhece este critério para a ciência e a indústria; nega somente que este critério prove a

verdade objectiva, pois basta-lhe esta negação para reconhecer a verdade subjectiva da religião ao lado da

verdade subjectiva (inexistente fora da humanidade) da ciência”389. Poincaré não pôde, assim, resolver a

questão. Recorre, então, à questão da objectividade da ciência: afirma que o critério da objectividade é o

mesmo da “nossa crença nos objectos exteriores. Estes objectos são reais porquanto as sensações que

provocam em nós nos aparecem unidas entre si por não sei que cimento indestrutível e não pelo acaso de

um dia”390. Isto é materialismo, diz Lénine. Assim, conclui Lénine “declara-se que o materialismo foi

aniquilado por uma «teoria» que, ao primeiro ataque do fideísmo, se refugia debaixo da asa do

materialismo!”391. Mas Poincaré afirma, poucas páginas depois, que “tudo o que não é pensamento é puro

nada; visto que não podemos pensar senão o pensamento”392. Por estas razões pode haver quem – e é o

caso do filósofo Georges Sorel – considere que Poincaré e Le Roy podem ser reconciliados sob a mesma

opinião de que é uma ilusão o estabelecimento de uma identidade entre a ciência e o mundo; “basta a

385idem, cit. por V. I. Lénine, ibidem.386V. I. Lénine, ibidem, p. 220.387V. I. Lénine, ibidem, p. 221.388Cf. H. Poincaré cit. por V. I. Lénine, ibidem.389V. I. Lénine, ibidem.390H. Poincaré cit. por V. I. Lénine, ibidem.391V. I. Lénine, ibidem.392H. Poincaré cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 221

correspondência da ciência com os mecanismos por nós criados”393.

O caso de Rey é diferente. Rey está confrontado com um problema diametralmente oposto ao do

espiritualista Ward e dos idealistas Cohen e Hartmann, diz Lénine: Rey não pretende secundar a

inclinação da nova física para o idealismo nem os seus erros filosóficos, mas sim corrigir esses erros e

demonstrar a ilegitimidade das conclusões idealistas dela retiradas.

Rey pretende salvar o conceito de experiência de uma interpretação subjectivista. Rey reconhece

que o empirismo - agora “cada vez mais rico em matizes”, outrora “grande arma na luta do cepticismo

contra as afirmações da metafísica” - “conduz ao fideísmo” e atribui este facto à deturpação do conceito

de experiência394. Acusa os fideístas dessa deturpação, mas não o próprio Mach, nota Lénine. Para Rey, a

experiência deve ser entendida como “um conhecimento do objecto”, como “aquilo que o nosso espírito

não comanda”, como “o objecto em frente ao sujeito”. Ora, isto reduz-se ao materialismo. “Que

perspicácia genial Engels revelou”, exclama Lénine, “ao definir o tipo mais moderno de partidários do

agnosticismo filosófico e do fenomenalismo com a alcunha de «materialistas envergonhados». Positivista

e fenomenalista ardente, Rey é um excelente exemplar deste tipo. […] O fenomenalismo de Rey, o seu

zelo em acentuar que nada existe além das sensações, que o objectivo é aquilo que tem uma significação

geral, etc., tudo isto não é mais do que uma folha de parra, uma oca cobertura verbal do materialismo,

visto que se nos diz: «é objectivo o que nos é dado do exterior, imposto pela experiência, aquilo que não

fazemos mas é feito independentemente de nós e em certa medida nos faz»”395. Evidenciando as

contradições de Rey, Lénine afirma: “Rey defende o «conceptualismo» aniquilando o conceptualismo”.

Vejamos agora alguns aspectos da atitude de Rey para com a doutrina de Mach sobre a

causalidade e a necessidade da natureza. Rey afirma que só à primeira vista Mach se “aproxima do

cepticismo” e do “subjectivismo” e que esse “equívoco” se desfaz se se tomar a doutrina de Mach no seu

conjunto. E cita uma série de passagens. No entanto, não cita a passagem decisiva na qual Mach afirma

que não há necessidade física, mas apenas necessidade lógica, exclama Lénine. O que Rey faz, diz

Lénine, não é interpretar Mach, mas embelezar Mach, é apagar as diferenças entre o “neomecanicismo” e

o machismo. Rey afirma que Mach toma as conclusões de todos os fenomenalistas segundo os quais a

causalidade é apenas um hábito do pensamento (simples consequência da tese fundamental de que não

existem senão sensações), mas que as interpreta de modo objectivo.

A renegação do materialismo por Rey é forçada, nota Lénine. A ilustrá-lo está o entendimento de

Rey do significado teórico das equações diferenciais de Maxwell e Hertz – para os machistas, o facto de

os físicos limitarem a sua teoria a um sistema de equações é uma refutação do materialismo (equações e

nenhuma matéria); Boltzmann refuta esta mesma opinião compreendendo refutar a física fenomenológica;

Rey refuta-a querendo defender o fenomenalismo – bem como a apreciação de Rey sobre o critério da

prática na teoria do conhecimento – “contrariamente às proposições do cepticismo, parece legítimo dizer

que o valor prático da ciência deriva do seu valor teórico” (proposições aquelas aceites por Mach); “dizer

393G. Sorel cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 222.394A. Rey cit. por V. I. Lénine, p. 222.395V. I. Lénine, ibidem, p. 223.

que uma dada lei da natureza tem um valor prático...é, no fundo, o mesmo que dizer que esta lei da

natureza tem objectividade”396.

Em suma, Lénine considera que “Rey defende o machismo contra o «neomecanicismo»

capitulando em toda a linha perante este, mantendo a palavra fenomenalismo mas não a essência desta

corrente”397; “tenta atenuar o idealismo da escola conceptualista, cortando as afirmações mais decididas

dos seus partidários e interpretando as restantes no sentido do materialismo envergonhado”398. Rey

embrulhou-se, conclui Lénine, porque tentou uma tarefa insolúvel, isto é, conciliar a oposição das escolas

materialista e idealista da nova física, sem deixar de compreender que estas duas tendências são “a base

da divisão das duas principais escolas da física contemporânea”399.

Também na Rússia os mesmos fenómenos se manifestam. Lénine considera até “instrutivo”

“observar como tendências filosóficas similares se manifestam em condições completamente diferentes

quanto à cultura e aos costumes”400. Lénine exemplifica a situação com a exposição das opiniões do

“nosso conhecido filósofo ultra-reaccionário Sr. Lopátine” e do físico N. Chíchkine. Lopátine escreve um

artigo elogioso sobre Chíchkine a quem apelida de “físico idealista”. Dele diz que “foi um autêntico

positivista na sua aspiração incansável à crítica mais ampla dos métodos de investigação, das suposições e

factos da ciência, segundo a sua utilidade como meios e materiais para a construção de uma concepção do

mundo integral e acabada. Neste aspecto, Chíchkine era um perfeito antípoda de grande número dos seus

contemporâneos”401. Lopátine acha louvável que Chíchkine não tenha nenhum “dogmatismo

preconcebido”. Isto é, embora Chíchkine fosse partidário da explicação mecanicista dos fenómenos da

natureza, ele não a entendia como se ela revelasse a essência dos fenómenos, mas apenas como “o método

mais cómodo e mais fecundo de os unificar”402. Assim, raciocinando sobre a luz, Chíchkine considera que

as diferentes formas de considerar a luz representam diferentes métodos de “organização da experiência”,

igualmente legítimos de um ou de outro ponto de vista, nota Lénine403.

O idealismo “físico”

Lénine considera estar perante uma corrente ideológica internacional, “que não depende de de

um sistema filosófico dado, mas que decorre de certas causas gerais situadas fora da filosofia” 404. Além

disso, diz, os dados passados em revista mostram que o machismo está ligado à nova física.

396A. Rey cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 226.397V. I. Lénine, ibidem, p. 224.398idem, ibidem, p. 225.399idem, ibidem, p. 226.400idem, ibidem, p. 227.401Lopátine cit. por V. I. Lénine, ibidem.402idem cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 228403Cf. V. I. Lénine, ibidem.404idem, ibidem, p. 229.

A ideia de que a filosofia de Mach é a “filosofia das ciências da natureza do século XX”, “a

moderna filosofia das ciências da natureza”, “o moderno positivismo das ciência da natureza” é falsa

porque, em primeiro lugar, diz Lénine, o machismo está ligado a uma só escola de um só ramo das

ciências e, em segundo lugar – e esta é a razão principal – porque “aquilo que no machismo está ligado a

esta escola não é aquilo que o distingue de todas as outras orientações e sistemazinhos da filosofia

idealista, mas aquilo que ele tem de comum com todo o idealismo filosófico em geral”405. Para mostrar a

justeza desta tese, Lénine dá o exemplo do alemão Mach, do francês Poincaré, do belga Duhem e do

inglês Pearson, físicos desta escola: entre eles não há em comum o empiriocriticismo em geral, nem a

doutrina de Mach em particular (os três últimos físicos nem sequer conhecem estas doutrinas, nota

Lénine); mas têm em comum a mesma base, a mesma orientação, como cada um deles reconhece com

plena razão. “Têm de comum entre si «apenas» uma coisa: o idealismo filosófico, para o qual todos eles,

sem excepção, se inclinam mais ou menos conscientemente, mais ou menos decididamente”406. E Lénine

faz notar que entre os filósofos que se apoiam nesta escola da nova física, esforçando-se por a

fundamentar gnosiologicamente e desenvolver, estão os imanentistas, os neocriticistas, os discípulos de

Mach, os espiritualistas, etc.

“A ideia fundamental da escola da nova física que analisamos”, resume Lénine, “é a negação da

realidade objectiva, que nos é dada na sensação e é reflectida pelas nossas teorias, ou a dúvida

relativamente à existência desta realidade. Esta escola afasta-se aqui do materialismo (inexactamente

chamado realismo, neomecanicismo, hilocinética, e que os próprios físicos não desenvolveram de modo

minimamente consciente) imperante, como é geralmente reconhecido entre os físicos, afasta-se dele como

escola do idealismo «físico»”407.

Lénine explica a utilização deste termo – idealismo físico – recorrendo a um episódio em que

Feuerbach denunciava o idealismo presente na interpretação de descobertas no ramo da fisiologia,

classificando Johannes Müller entre os “idealistas fisiológicos”408. Que uma série de grandes fisiologistas

tendia naquela altura para o idealismo e o kantismo é tão indiscutível como o facto de que uma série de

grandes físicos tende actualmente para o idealismo filosófico, afirma Lénine. Este idealismo físico, isto é,

o idealismo de uma certa escola de físicos dos fins do século XIX e início do século XX, “que se

manifestou num e noutro caso de uma escola de naturalistas num ramo das ciências da natureza, é”,

considera Lénine, “um ziguezague temporário, um passageiro período doloroso da história da ciência,

405idem, ibidem.406idem, ibidem.407idem, ibidem, p. 230.408“Em 1886 L. Feuerbach atacava Johannes Müller, o célebre fundador da fisiologia moderna, e classificou-o entre

os «idealistas fisiológicos». O idealismo deste fisiologista consistia em que, ao analisar o significado do mecanismo dos nossos órgãos dos sentidos na sua relação com as sensações, assinalando, por exemplo, que a sensação de luz se obtém com diferentes tipos de impressões nos olhos, se inclinava a concluir daqui a negação de que as nossas sensações sejam imagem da realidade objectiva. Esta tendência de uma escola de naturalistas para o «idealismo fisiológico», isto é, para a interpretação idealista de certos resultados da fisiologia, foi captada por L. Feuerbach de modo extraordinariamente acertado. A «ligação» entre a fisiologia e o idealismo filosófico, principalmente do género kantiano, foi depois explorada durante muito tempo pela filosofia reaccionária. F. A. Lange especulou com a fisiologia em defesa do idealismo kantiano e, em refutação do materialismo; e, entre os imanentistas […], J. Rehmke insurgiu-se especialmente em 1882 contra a pretensa confirmação do kantismo pela fisiologia”.idem, ibidem.

uma doença de crescimento, devida sobretudo ao brusco desmoronamento dos velhos conceitos

estabelecidos”409.

A. Rey punha a questão nos seguintes termos:

estas as divergências de opiniões “nada provam contra a objectividade da física”. “Na história da

física, como em toda a história, podem distinguir-se grandes períodos que se diferenciam pela

forma e pelo aspecto geral das teorias... Mas logo que é feita uma dessas descobertas que se

repercutem sobre todas as partes da física, porque estabelecem um facto capital até aí

desconhecido ou incompletamente percebido, todo o aspecto da física se modifica; um novo

período começa […] O historiador que observe posteriormente os acontecimentos com o recuo

necessário verá sem dificuldade uma evolução contínua onde os contemporâneos só vêem

conflitos, contradições, cisões em escolas diferentes. Parece que a crise que a física atravessou

nestes últimos anos (apesar das conclusões tiradas desta crise pela crítica filosófica) não é outra

coisa. É uma típica crise de crescimento (crise de croissance) provocada pelas grandes novas

descobertas. É indiscutível que a crise conduzirá à transformação da física – sem isto não haveria

evolução e progresso – mas não modificará o espírito científico.”410

Rey tenta, com boas intenções, unir as escolas da física contemporânea contra o fideísmo, diz

Lénine. Mas conclui: “é uma falsidade bem-intencionada mas mesmo assim uma falsidade, pois o desvio

da escola de Mach-Poincaré-Pearson para o idealismo (isto é, para o fideísmo refinado) é incontestável. E

a objectividade da física que está ligada às bases do «espírito científico», diferentemente do espírito

fideísta, e que Rey defende com tanto ardor, não é senão uma formulação «envergonhada» do

materialismo”411. Mas Lénine acrescenta: “O espírito materialista fundamental da física, como de todas as

ciências da natureza contemporâneas, vencerá todas as crises, mas apenas com a condição de que o

materialismo metafísico seja obrigatoriamente substituído pelo materialismo dialéctico.”412. Conforme

Lénine reafirma, a crise da física contemporânea consiste em que ela deixou de reconhecer decididamente

o valor objectivo das suas teorias: e isto Rey procura frequentemente dissimular. Mas é o próprio que

chega a falar em “hesitação do pensamento” relativamente à objectividade da física.

A. Rey identifica o esquecimento da matéria pelos matemáticos como estando na origem da crise

da física. Afirma: “A crise da física consiste na conquista da física pelo espírito matemático” 413. O que

pretende Rey dizer com isto? “As ficções abstractas da matemática parecem ter interposto uma cortina

entre a realidade física e a maneira como os matemáticos compreendem a ciência desta realidade. […] Os

matemáticos fizeram tudo para salvar a objectividade da física, pois sem objectividade eles compreendem

muito bem que não se pode falar de física... Mas as complicações ou os rodeios das suas teorias deixam

um sentimento de mal-estar […] um experimentador não encontra aqui a confiança espontânea que lhe

proporciona o contacto contínuo com a realidade física...” A fusão entre a física e a matemática, tornou a

409idem, ibidem, p. 231.410A. Rey cit. por V. I. Lénine, ibidem.411V. I. Lénine, ibidem, p. 231.412idem, ibidem.413A. Rey cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 232.

física matemática, não um ramo da física, mas um ramo da matemática. Os matemáticos, habituados aos

elementos puramente lógicos, não puderam deixar de tender para conceber os elementos da física de

forma abstracta, de maneira totalmente imaterial. Assim, “os elementos, enquanto dados reais, objectivos,

isto é, enquanto elementos físicos, desapareceram completamente. Mantiveram-se apenas relações

formais representadas pelas equações diferenciais”. Mas Rey reconhece: “Se o matemático não é

enganado por este trabalho construtivo do seu espírito...saberá encontrar a ligação entre a física teórica e a

experiência, mas à primeira vista, e para uma pessoa não prevenida, parece estar-se em face de uma

construção arbitrária da teoria”414.

Lénine conclui: “tal é a causa primeira do idealismo «físico». As veleidades reaccionárias são

geradas pelo próprio progresso da ciência. Os grandes progressos das ciências da natureza, a aproximação

de elementos da matéria tão homogéneos e simples que as leis do seu movimento permitem um

tratamento matemático geram o esquecimento da matéria pelos matemáticos. «A matéria desaparece»,

restam apenas as equações”415. E acrescenta: “Num novo estádio de desenvolvimento, e pretensamente de

modo novo, temos a velha ideia kantiana: a razão dita leis à natureza”416.

Uma segunda causa do idealismo “físico” apontada por Lénine é o princípio do “relativismo”,

isto é, da relatividade do nosso conhecimento. Este é um princípio “que se impõe aos físicos com

particular força num período de brusco desmoronamento das velhas teorias” e que, sublinha Lénine,

“quando não se conhece a dialéctica”, leva inevitavelmente ao idealismo417. Lénine destaca, com toda a

pertinência, a importância questão da correlação do relativismo e da dialéctica e dá o exemplo de Rey

que, desconhecendo efectivamente a dialéctica de Marx, e sentindo que a nova física se desencaminhara

na questão do relativismo, debate-se tentando distinguir o relativismo moderado do imoderado. A

dialéctica materialista é a única que pode resolver correctamente esta correlação, “a única que oferece

uma formulação teoricamente correcta da questão do relativismo”. A incompreensão da dialéctica conduz

ao seguinte raciocínio: porque “todas as velhas verdades da física, incluindo aquelas que eram

consideradas indiscutíveis e inabaláveis, se revelam, afinal, “verdades relativas” então não pode haver

nenhuma verdade objectiva, independente da humanidade. Assim é o raciocínio de todo o machismo e de

todo o idealismo “físico” em geral, diz Lénine. Os materialistas dialécticos, por seu turno, reconhecem

que “da soma das verdades relativas no seu desenvolvimento forma-se a verdade absoluta”; que “as

verdades relativas representam reflexos relativamente fiéis de um objecto independente da humanidade”,

reflexos que se tornam “cada vez mais exactos”; que “em cada verdade científica, apesar da sua

relatividade”, existe “um elemento de verdade absoluta”418. Se, por um lado, o erro do velho materialismo

– a incompreensão da relatividade de todas as teorias científicas, a ignorância da dialéctica, o exagero do

ponto de vista mecanicista – é indubitável, por outro, é preciso não cair no relativismo, que conduz ao

subjectivismo. Engels, diz Lénine, “renunciou ao velho materialismo, metafísico, em favor do

414A. Rey cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 232-233.415V. I. Lénine, ibidem, p. 233.416idem, ibidem.417Cf. idem, ibidem.418idem, ibidem, p. 234.

materialismo dialéctico, e não em favor do relativismo, que cai no subjectivismo”419. Lénine dá o

exemplo de Duhem, de Mach e de Poincaré: de como, não sabendo eles dar uma formulação correcta do

relativismo, deslizaram deste para o idealismo. “Com enormes esforços”, diz Lénine de Duhem, “com

uma série de interessantes e preciosos exemplos de história da física, tais como se podem encontrar

frequentemente em Mach, ele prova que «qualquer lei da física é provisória e relativa, porque é

aproximada»”. Perante isto, Lénine exclama, com razão: “O homem está a arrombar uma porta

aberta!”420. A infelicidade deles, continua Lénine, “é precisamente que eles não vêem a porta aberta pelo

materialismo dialéctico”421. E Duhem “vacila simplesmente, como Mach, sem saber em que apoiar o eu

relativismo”, desde o kantismo até a algumas aproximações ao materialismo dialéctico.

Lénine resume: “numa palavra, o idealismo «físico» de hoje, exactamente como o idealismo

«fisiológico» de ontem, significa apenas que uma escola de naturalistas de um ramo das ciências da

natureza caiu numa filosofia reaccionária, por não ter sabido elevar-se directa e imediatamente do

materialismo metafísico ao materialismo dialéctico”422.

16. O empiriocriticismo e o materialismo histórico

Lénine também se detém sobre as posições dos machistas no que concerne à história, ou, de

outra maneira, no que concerne à aplicação do materialismo dialéctico aos processos históricos: o

materialismo histórico. Assinalaremos apenas alguns aspectos abordados por Lénine acerca desta questão.

Após analisar “as excursões dos empiriocriticistas alemães ao domínio das ciências sociais”,

Lénine conclui que nelas não se encontra nada mais do que as mesma velhas ideias sob uma terminologia

nova e sistematização empiriocriticista: “trajo pretensioso de subterfúgios verbais, alambicados artifícios

silogísticos, escolástica refinada – numa palavra, tanto em sociologia como em gnosiologia, o mesmo

conteúdo reaccionário sob o mesmo rótulo berrante”423.

Os machistas russos, relembra Lénine, dividem-se em dois grandes grupos: os que “são

completos e consequentes adversários do materialismo dialéctico, tanto em filosofia como em história”, e

os que pretendem ser marxistas e se esforçam por asseverar que o machismo é compatível com o

materialismo histórico de Marx e de Engels424.

Bogdánov, que se insere neste último grupo, afirma que “a socialidade é inseparável da

consciência. O ser social e a consciência social são, no sentido exacto destas palavras, idênticos”.

Lénine responde: esta proposição é falsa. Trata-se de uma deturpação do materialismo no espírito do

idealismo. “O ser social e a consciência social”, esclarece Lénine, “não são idênticos, exactamente como

419idem, ibidem, p. 235.420idem, ibidem.421idem, ibidem.422idem, ibidem, p. 236.423idem, ibidem, p. 244.424idem, ibidem, p. 238.

não são idênticos o ser em geral e a consciência em geral”425. Se pretendesse ser materialista, Bogdánov

deveria dizer que a consciência reflecte o ser – esta é uma tese geral de todo o materialismo, sublinha

Lénine. “O reflexo pode ser a cópia aproximadamente fiel do reflectido, mas é absurdo falar aqui de

identidade”426 e “é impossível não ver a sua ligação imediata e indissolúvel com a tese do materialismo

histórico: a consciência social reflecte o ser social”427. A afirmação da identidade do ser e da consciência é

idealismo expresso.

Lénine sublinha a importância da descoberta das leis das modificações que se dão no ser social

pela produção e pela trocas de produtos, da descoberta, “nas suas grandes linhas”, da “lógica objectiva

destas modificações e do seus desenvolvimento histórico – objectiva não no sentido de que uma

sociedade de seres conscientes, de pessoas, pudesse existir e desenvolver-se independentemente da

existência dos seres conscientes […], mas no sentido de que o ser social é independente da consciência

social das pessoas”428. E continua:

“O facto de que viveis e exerceis uma actividade económica, de que procriais e fabricais produtos,

de que os trocais, dá origem a uma cadeia objectivamente necessária de acontecimentos, uma

cadeia de desenvolvimento, independente da vossa consciência social, nunca apreendida por esta

na totalidade, A tarefa mais elevada da humanidade é apreender esta lógica objectiva da evolução

económica (da evolução do ser social) nos seus traços gerais e essenciais, a fim de adaptar a ela,

tão nítida, clara e criticamente quanto possível, a sua consciência social e a consciência de todas

as classes avançadas de todos os países capitalistas.”429

Lénine dá ainda um outro exemplo acerca de Bogdánov no qual ele, a pretexto de uma

investigação marxista, reveste os resultados anteriormente obtidos com uma terminologia biológica e

energética, sem acrescentar nada de novo. No livro III do Empiriomonismo, Bogdánov afirma: “Podemos

formular da seguinte maneira a ligação fundamental da energética e da selecção social: Todo o acto de

selecção social representa um aumento ou uma diminuição da energia do corpo social a que se refere. No

primeiro caso, temos uma 'selecção positiva', no segundo uma 'selecção negativa'”430. Isto, para Lénine,

são disparates que se fazem passar por marxismo, são algo “estéril, morto, escolástico”, uma “enfiada de

termos biológicos e energéticos que não dão nem podem dar absolutamente nada no campo das ciências

sociais”. “Nem uma sombra de investigação económica concreta, nem uma alusão ao método de Marx, ao

método dialéctica e à concepção materialista do mundo, mera invenção de definições, tentativas de as

ajustar às conclusões acabadas do marxismo”431. Bogdánov continua: “O rápido desenvolvimento das

forças produtivas da sociedade capitalista é indubitavelmente um aumento da energia do todo social...”,

“mas o carácter desarmónico deste processo leva a que ele culmine numa 'crise', num gasto enorme de

425idem, ibidem, p. 244-245.426idem, ibidem, p. 245.427idem, ibidem.428idem, ibidem, p. 246.429idem, ibidem.430idem, ibidem, p. 247-248.431idem, ibidem, p. 248.

forças produtivas, numa brusca diminuição da energia: a selecção positiva é substituída pela selecção

negativa”.

Lénine comenta que isto não é mais do que pregar uma “etiqueta biológico-energética em

conclusões já prontas acerca das crises, sem acrescentar nenhum material concreto, sem esclarecer a

natureza das crises. Tudo isto com a melhor das intenções, porque o autor quer confirmar e aprofundar as

conclusões de Marx, mas de facto dilui-as com uma escolástica morta e insuportavelmente aborrecida. De

«marxista» só há aqui a repetição de uma conclusão já conhecida, e toda a sua «nova» fundamentação ,

toda esta «energética social» e «selecção social» não são mais do que um amontoado de palavras” ou,

usando outra expressão de Lénine, de “termos falhos de conteúdo”432. Lénine continua constatando a

inutilidade desta tentativa de Bogdánov porque a aplicação dos conceitos de “selecção”, de “energia”,

“balanço energético”, “assimilação” e “desassimilação”, etc., às ciências sociais “não passa de uma frase

vazia”. “Na realidade”, diz Lénine, “não é possível fazer nenhuma investigação dos fenómenos sociais,

nenhum esclarecimento do método das ciências sociais por meio destes conceitos. Nada mais fácil do que

colar uma etiqueta «energética» ou «biológico-sociológica» a fenómenos como crises, revoluções, luta de

classes, etc., mas também nada mais estéril, escolástico, morto, do que esta ocupação”433.

Marx também critica Lange, não sem uma ponta de sarcasmo, por empreender um movimento

semelhante ao que observamos em Bogdánov. Escreve Marx a Kugelmann: “O Sr. Lange faz-me grandes

elogios...com o fim de se apresentar a si como um grande homem. É que o Sr. Lange fez uma grande

descoberta. Toda a história pode ser subordinada a uma única grande lei natural. Esta lei natural resume-

se na frase 'Struggle for life', luta pela vida (a expressão de Darwin assim empregada torna-se uma frase

oca), e o conteúdo desta frase é a lei malthusiana da população, ou melhor, da superpopulação. Portanto,

em vez de analisar esta 'Struggle for life' tal como se manifesta historicamente nas diferentes formas

sociais, basta transformar cada luta concreta na frase 'Struggle for life' , e esta frase na fantasia

malthusiana acerca da população. Convenhamos que é um método muito convincente – para a ignorância

empolada, pretensamente científica e bombástica e para a preguiça mental”434. Lénine clarifica que a base

desta crítica não é a introdução específica do malhusianismo na sociologia, “mas em que a transferência

dos conceitos biológicos em geral para as ciências sociais é uma frase”435, independentemente de ser feita

com “boas” intenções ou com o objectivo de apoiar conclusões sociológicas falsas.

Ao contrário de Feuerbach, que foi “materialista em baixo e idealista em cima”, Bogdánov foi

idealista em baixo e materialista em cima, diz Lénine. Marx e Engels, que cresceram a partir de

Feuerbach, esforçaram-se por levar a construção da filosofia materialista até cima, isto é, diz Lénine, não

à gnosiologia materialista, mas à concepção materialista da história. “Por isso, nas suas obras Marx e

Engels acentuaram mais o materialismo dialéctico do que o materialismo dialéctico, insistiram mais no

materialismo histórico do que no materialismo histórico”436. Acontece que os machistas russos que

432idem, ibidem.433idem, ibidem.434K. Marx cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 248.435V. I. Lénine, ibidem, p. 249.436idem, ibidem.

pretendem ser marxistas, tal como Bogdánov, abordaram a questão num período histórico diferente: a

filosofia burguesa especializava-se particularmente na gnosiologia, prestava uma maior atenção à

reconstituição do idealismo em baixo e não do idealismo em cima, conclui Lénine, pelo que, pelo menos

o positivismo em geral e o machismo em particular dedicaram pouca atenção à filosofia da história. “Os

nossos machistas”, diz Lénine referindo-se assim aos machistas russos, “não compreenderam o marxismo,

porque lhes aconteceu abordá-lo, por assim dizer, do outro lado, e eles assimilaram – e por vezes não

tanto assimilaram como aprenderam de cor – a teoria económica e histórica de Marx, sem terem

compreendido os seus fundamentos, isto é, o materialismo filosófico”437. Assim, “gostariam de ser

materialistas em cima, mas não sabem desembaraçar-se de um idealismo confuso em baixo!”438.

Também em Suvórov – que escreve, com outros autores os Ensaios sobre a Filosofia do

Marxismo, mas que são, na verdade, contra, como mostra Lénine – se encontram raciocínios semelhantes

aos de Bogdánov. “O artigo de Suvórov”, a que Lénine se refere, “é tanto mais interessante nestas

condições”, diz, “quanto o autor não é empiriomonista” (como Bogdánov), “nem empiriocriticista, mas

simplesmente «realista»”439. Assim, releva o que há, não de diferente, mas de comum entre eles contra o

materialismo dialéctico. “A comparação dos argumentos sociológicos deste «realista» com os argumentos

de um empiriomonista”, diz Lénine, “ajudar-nos-á a descrever a sua tendência comum”440.

Vejamos as afirmações de Suvórov:

“Na gradação das leis que regulam o processo mundial, as leis particulares e complexas reduzem-

se às leis gerais e simples e todas elas se subordinam à lei universal do desenvolvimento, a lei da

economia das forças. A essência desta lei consiste em que qualquer sistema de forças é tanto

mais capaz de conservação e desenvolvimento quanto menor for o gasto, quanto maior for a

acumulação e quanto melhor o gasto servir a acumulação. As forças do equilíbrio móvel, que há

muito tempo fizeram nascer a ideia de uma racionalidade objectiva (sistema solar, ciclo dos

fenómenos terrestres, processo da vida), formam-se e desenvolvem-se precisamente devido à

conservação e acumulação da energia que lhes é inerente, devido à sua economia interna. A lei da

economia das forças é o princípio unificador e regulador de todo o desenvolvimento – inorgânico,

biológico e social”441.

Lénine comenta a enorme facilidade com que os “positivistas” e “realistas” russos fabricam leis

“universais”: “Só é pena que estas leis não sejam nada melhores do que as que Eugen Dühring fabricava

com a mesma rapidez e facilidade. A «lei universal» de Suvórov é uma frase tão empolada e vazia de

sentido como as leis universais de Dühring”. Lénine explica: “Tentai aplicar esta lei ao primeiro dos três

domínios indicados pelo autor: o desenvolvimento inorgânico. Vereis que não conseguireis aplicar aqui

nenhuma «economia de forças» além da lei da conservação e da transformação da energia, quanto mais

aplicar «universalmente». E Lénine pergunta o que é que ficou, além desta lei, no domínio do

437idem, ibidem, p. 250.438idem, ibidem.439idem, ibidem, p. 251.440idem, ibidem.441Suvórov cit. por V. I. Lénine, ibidem.

desenvolvimento inorgânico; pergunta onde estão os complementos ou as novas descobertas que

permitiram a Suvórov “aperfeiçoar” a lei da conservação e transformação da energia em lei da “economia

das forças”. E conclui que tais novos factos ou descobertas não existem. Ele simplesmente, para fazer

efeito, diz Lénine, “pegou na pena e lançou no papel uma nova «lei universal» da «filosofia real-monista”442.

O mesmo em relação ao segundo domínio do desenvolvimento mencionado por Suvórov, o

biológico. Pergunta Lénine: “Aqui, em que o desenvolvimento dos organismos tem lugar através da luta

pela existência e da selecção, é a lei da economia das forças ou a «lei» da dilapidação das forças que é

universal? Que importa! A «filosofia real-monista» pode entender de uma maneira o «sentido» da lei

universal num domínio e doutra maneira noutro, por exemplo, como desenvolvimento dos organismos

superiores a partir dos inferiores. Pouco importa que devido a isto a lei universal se torne uma frase vazia;

em contrapartida, o princípio do monismo é respeitado”443.

O mesmo em relação ao terceiro domínio – o social. Aqui já se pode entender a “lei universal”

num terceiro sentido, “como desenvolvimento das forças produtivas”, continua Lénine. “É por isso que é

uma «lei universal», para que se possa aplicar a tudo o que se queira”444, ironiza.

Citemos ainda um último exemplo. Segundo Suvórov, “o desenvolvimento das forças produtivas

corresponde ao crescimento da produtividade do trabalho, à diminuição relativa dos gastos e à elevação

da acumulação da energia”... “isto é um princípio económico. Deste modo, Marx pôs na base da teoria

social o princípio da economia das forças...”445. Lénine não pôde deixar de ironizar e, ao fazê-lo, mostrar

o conteúdo vazio de tais afirmações, mostrar que estamos perante artifícios verbais: “vejam como é

fecunda a «filosofia real-monista»: dá uma fundamentação energética do marxismo […] Como Marx tem

uma economia política, ruminemos a este propósito a palavra «economia» e chamemos ao produto da

ruminação «filosofia real-monista»!446”

Note-se a diferença para o método de Marx que se baseia no estudo dos processos concretos. Diz

Lénine: “Não, Marx não pôs na base da sua teoria nenhum princípio da economia das forças […] Marx

deu uma definição perfeitamente exacta do crescimento das forças produtivas e estudo o processo

concreto deste crescimento. Mas Suvórov inventou uma palavra nova para designar o conceito analisado

por Marx e inventou uma muito infeliz, apenas confundindo as coisas. Porque Suvórov não explicou o

que significa a «economia das forças», como medi-la, como aplicar este conceito, que factos precisos e

determinados abrange, e não se pode explicar porque é uma embrulhada”447.

442V. I. Lénine, ibidem, p. 252.443idem, ibidem.444idem, ibidem.445Suvórov cit. por V. I. Lénine, ibidem.446V. I. Lénine, ibidem.447idem, ibidem, p. 252-253.

17. Os partidos em filosofia e o não-partidarismo

Como sublinha o próprio Lénine, em cada questão gnosiológica, em cada questão posta pela

nova física, observámos a luta entre o materialismo e o idealismo448. “Por detrás do amontoado de novas

subtilezas terminológicas, por detrás do lixo de uma escolástica erudita, encontrámos sempre sem

excepção duas linhas fundamentais”449, diz. Tomar a matéria como primário e o espírito com secundário,

ou o inverso, continua a ser a questão fundamental que “de facto” continua a dividir os filósofos em dois

grandes campos. Lénine, analisa, assim, a questão de saber se existem partidos em filosofia e a

importância do não-partidarismo.

“A fonte de milhares e milhares de erros e de confusões neste domínio”, afirma Lénine, “consiste

precisamente em que, por trás da aparência dos termos, da definições, dos subterfúgios escolásticos, dos

artifícios verbais, não se vê estas duas tendências fundamentais”450. E foi exactamente isto – o

obscurecimento da questão por meio de artifícios verbais, o jogo escolástico de novos “ismos” - que Marx

e Engels combateram, nota Lénine. “A recusa de ter em conta os projectos híbridos de conciliação do

materialismo e do idealismo” constitui o seu grande mérito. Caminharam “para a frente por um caminho

filosófico nitidamente definido”; “desenvolveram o materialismo, fizeram avançar uma corrente

fundamental da filosofia, não se contentaram em repetir questões gnosiológicas já resolvidas, mas

aplicaram consequentemente, e mostraram como se deve aplicar este mesmo materialismo no domínio das

ciências sociais[...]”; “sem nunca tomar a sério […] as infindáveis tentativas de «ultrapassar» a

«unilateralidade» do materialismo e do idealismo, de proclamar uma nova linha, quer seja o

«positivismo», o «realismo» ou o charlatanismo professoral”451. Tal “positivismo”, tal “realismo”, “que

seduziram e seduzem um número infindável de confusionistas”, eram, diria Engels, “no melhor dos casos

um processo filisteu de introduzir sub-repticiamente o materialismo, criticando-o e refutando-o

publicamente”452.

“Marx e Engels foram, em filosofia, partidaristas do princípio ao fim, souberam descobrir os

desvios do materialismo e as condescendências para com o idealismo e o fideísmo em todas e quaisquer

correntes «modernas»”453, resume Lénine. Também J. Dietzgen. Dietzgen exigia decisão e clareza.

Considerava que “o clericalismo científico esforça-se muito seriamente por ajudar o clericalismo

religioso”454, nota Lénine. E que a teoria do conhecimento materialista constituía uma “arma universal

contra a fé religiosa”, não só contra a “religião conhecida de todos, formal e comum”, mas também contra

a “refinada e elevada religião professoral dos idealistas inebriados”455.

Lénine, tomando em consideração a escola de Mach e de Avenarius do ponto de vista dos

448Cf. idem, ibidem, p. 254.449idem, ibidem.450idem, ibidem.451idem, ibidem, p. 254-255.452Cf. idem, ibidem, p. 256.453idem, ibidem.454J. Dietzgen cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 257.455Cf. idem cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 257-258.

partidos em filosofia, observa que “estes senhores gabam-se do seu não-partidarismo”456, que pretendem

colocar-se acima do materialismo e do idealismo, “ultrapassar esta oposição «antiquada»”. “Mas de

facto”, continua Lénine, “toda esta confraria cai a cada o instante no idealismo, travando contra o

materialismo uma luta incessante e tenaz”. “De facto”, sublinha Lénine “nas condições gerais da luta das

ideias e das tendências da sociedade contemporânea, o papel objectivo destes artifícios gnosiológicos é

um e só um: abrir caminho ao idealismo e ao fideísmo, servi-los fielmente. De facto, não é por acaso que

à pequena escola dos empiriocriticistas se agarram tanto os espiritualistas ingleses do género de Ward

como os neo-criticistas franceses que elogiam Mach pela sua luta contra o materialismo, e os imanentistas

alemães”457.

Lénine tem em grande conta o trabalho destes “professores” que considera capazes dos mais

valiosos contributos nos domínios especiais da química, da história, da física, afirmado aqui e mostrado

ao longo da presente obra. Mas não se pode crer nas suas considerações no domínio da filosofia458, diz. A

razão é a mesma pela qual “não se pode acreditar numa só palavra de nenhum professor de economia

política, capaz de realizar os trabalhos mais valiosos no domínio das investigações factuais e

especializadas, quando se trata da teoria geral da economia política. Porque esta última é na sociedade

contemporânea uma ciência tão partidarista como a gnosiologia”459.

O exame da ligação do empiriocriticismo com a religião é importante e insere-se na questão mais

vasta do partidarismo em filosofia. Assim, conclui Lénine, “a atitude para com a religião e a atitude para

com as ciências da natureza ilustra excelentemente esta real utilização de classe do empiriocriticismo pela

reacção burguesa”460. Tomando Petzoldt, discípulo de Mach e Avenarius, ouvimo-lo dizer que o

empiriocriticismo “não está em contradição nem com o teísmo nem com o ateísmo”461. Para Mach, “as

opiniões religiosas são um assunto privado”462. Cornelius (que elogia Mach e que Mach elogia) é fideísta

aberto e ultra-reaccionário, diz Lénine.

“A neutralidade de um filósofo nesta questão é já servilismo em relação ao fideísmo, e Mach e

Avenarius não se elevam nem se podem elevar acima da neutralidade, devido aos pontos de partida da sua

gnosiologia”, diz Lénine, e explica: “uma vez que negais a realidade objectiva, que nos é dada na

sensação, já perdestes todas as armas contra o fideísmo, porque já caístes no agnosticismo ou no

subjectivismo, e o fideísmo não precisa de mais”. Por outro lado, “se o mundo sensível é uma realidade

objectiva, a porta está fechada a qualquer outra «realidade» ou pseudo-realidade (recordai-vos que

Bazárov acreditou no «realismo» dos imanentistas, os quais declaram que Deus é um «conceito real»)” 463.

Assim como a atitude do empiriocriticismo para com a religião, Lénine examina também a

atitude do machismo como corrente filosófica para com as ciências da natureza. Como vimos, “o

456V. I. Lénine, ibidem, p. 258.457idem, ibidem.458Cf. idem, ibidem, p. 259.459idem, ibidem.460idem, ibidem, p. 260.461J. Petzoldt cit. por V. I. Lénine, ibidem.462E. Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem.463V. I. Lénine, ibidem.

machismo combate do princípio ao fim a «metafísica» das ciências da natureza, designando com este

nome o materialismo das ciências da natureza, isto é, a convicção espontânea, involuntária, informe,

filosoficamente inconsciente, que a imensa maioria dos naturalistas tem da realidade objectiva do mundo

exterior reflectida pela nossa consciência. E os nossos machistas calam hipocritamente este facto,

obscurecendo ou confundindo a ligação indissolúvel do materialismo espontâneo dos naturalistas com o

materialismo filosófico como corrente há muito conhecida e confirmada centenas de vezes por Marx e

Engels”464.

Avenarius, como chama Lénine a atenção, combate a metafísica das ciências da natureza do

ponto de vista do idealismo gnosiológico; Mach, ao combater igualmente a metafísica das ciências da

natureza, confessa que o seguem “uma série de filósofos”, “mas muito poucos naturalistas” e que “a

maioria dos naturalistas se atém ao materialismo”; Petzoldt afirma que “as ciências da natureza estão

inteiramente impregnadas de metafísica” e que “a sua experiência tem ainda de ser depurada” (com isto

querendo significar, como vimos, a eliminação do reconhecimento da realidade objectiva); Willy

considera que “as ciências da natureza, no fim de contas, representam em muitos aspectos uma autoridade

da qual nos devemos livrar”465. Isto, como bem diz Lénine, é “completo obscurantismo” e os imanentistas,

“muito legitimamente, tiravam desta ideia machista sobre o «carácter metafísico» do materialismo

histórico-natural conclusões directa e abertamente fideístas”. Se as ciências não nos dão nas suas teorias a

realidade objectiva, então é indiscutível que a humanidade tem o direito de criar noutro campo

“conceitos” não menos “reais” como o de Deus, afirma Lénine.

Lénine faz referência a uma obra de Ernst Haeckel, Enigmas do Universo, que, segundo ele,

provocara uma tempestade que evidenciou com singular relevo o partidarismo da filosofia da sociedade

contemporânea, bem como o verdadeiro significado social da luta do materialismo contra o idealismo e o

agnosticismo. Haeckel é um naturalista que “exprime indubitavelmente”, diz Lénine, “as opiniões,

sentimentos e tendências mais firmemente implantados, embora mal definidos, da esmagadora maioria

dos naturalistas de fins do século XIX e começos do século XX”466. Aquilo que Heackel expõe, sem

querer “romper com os filisteus”, é absolutamente inconciliável com quaisquer matizes do idealismo

filosófico dominante, considera Lénine. Assim, foi desencadeada contra Heackel uma verdadeira guerra

da parte dos teólogos, dos “professores oficiais de filosofia”, dos imanentistas, kantistas. “dos sacerdotes

da ciência pura e da teoria aparentemente mais abstracta” que “soltam verdadeiros gritos de raiva”. Ouve-

se nitidamente um motivo fundamental, diz Lénine: “contra a «metafísica» das ciências da natureza,

contra o «dogmatismo», contra o «exagero do valor e da importância das ciências da natureza», contra o

«materialismo histórico-natural»”467.

É especialmente característico desta “tragicomédia”, diz Lénine, o facto de Haeckel não se

declarar francamente materialista, renunciar ao materialismo e rejeitar esta designação; nele estão

464idem, ibidem, p. 262.465idem, ibidem.466idem, ibidem, p. 265.467idem, ibidem, p. 264.

ausentes objectivos partidaristas definidos e deseja mesmo respeitar o preconceito dominante contra o

materialismo. Mas o que este naturalista – que não entra na análise das questões filosóficas, que não sabe

contrapor as teorias materialista e idealista do conhecimento – faz é troçar de todos os “artifícios

idealistas, ou, mais ainda, de todos os artifícios especialmente filosóficos, do ponto de vista das ciências

da natureza, não admitido sequer a ideia de que seja possível outra teoria do conhecimento que não seja o

materialismo histórico-natural. Troça dos filósofos do ponto de vista do materialista, sem ver que se situa

no ponto de vista de um materialista!”468. Lénine, concluindo, afirma que “a «guerra» contra Haeckel

provou que este nosso ponto de vista corresponde à realidade objectiva, isto é, à natureza de classe da

sociedade contemporânea e às suas tendências ideológicas de classe”469.

Lénine dá ainda outro exemplo em que se manifesta o partidarismo em filosofia. Karl Snyder,

americano, escreveu um livro sobre uma série de descobertas em vários ramos da ciência. O machista

Kleinpeter, que traduz a obra de inglês para alemão, acrescenta-lhe um prefácio em que declara

insatisfatória a gnosiologia Snyder porque, diz Lénine, o autor nem por um momento admite dúvidas que

o quadro do mundo é um quadro de como a matéria se move. No seu livro seguinte, Snyder dedica o seu

livro a Demócrito, dizendo que, embora a sua escola filosófica esteja um pouco fora de moda, “é digno de

nota que praticamente todo o progresso moderno das nossas ideias acerca do mundo se baseou nos

princípios do materialismo. A bem dizer, os princípios do materialismo são simplesmente inelutáveis nas

investigações científicas”470. Snyder troça do idealismo:

“Evidentemente, se quiser, pode sonhar juntamente com o bom bispo Berkeley que é tudo um

sonho. Mas por mais agradáveis que sejam as prestidigitações de um idealismo idealizado, não

haverá muitas pessoas que, pensem o que pensarem acerca do problema do mundo exterior,

duvidem que elas próprias existem. Não é preciso correr muito atrás dos fogos-fátuos dos Eus e

Não-Eus para se convencer de que, admitindo a nossa própria existência, abrimos as seis portas

dos nossos sentidos a uma série de aparências. A hipótese das nebulosas, a teoria da luz como

movimento do éter, a teoria dos átomos e de todas as doutrinas semelhantes, podem ser tomadas

simplesmente como cómodas 'hipóteses de trabalho', mas é preciso lembrar que, enquanto estas

doutrinas não forem refutadas, elas assentam mais ou menos na mesma base que a hipótese de que

um ser a que tu, indulgente leitor, chamas 'tu', percorre neste momento estas linhas”471.

Assim, pergunta Lénine, “será de admirar que Rudolf Willy, em 1905, combata Demócrito como

se fosse um inimigo vivo, ilustrando deste modo admiravelmente o partidarismo da filosofia e revelando

uma e outra vez a sua verdadeira posição nesta luta de partidos?”472. Willy dizia de Demócrito não ser este

“suficientemente livre” para para compreender que os átomos eram conceitos fictícios, auxiliares; da

mesma forma, “os nossos naturalistas contemporâneos, com poucas excepções também não o são”. Mas

os naturalistas troçam deste berkeleyanismo e seguem Haeckel, nota Lénine.

468idem, ibidem, p. 266.469idem, ibidem, p. 267.470K. Snyder cit. por V. I. Lénine, ibidem.471K. Snyder cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 267-268.472V. I. Lénine, ibidem, p. 268.

II – O que há de idealismo na interpretação bohriana da mecânica quântica

Neste capítulo analisam-se os textos de Bohr. O quadro de análise terá como contornos e

suportes principais (mas não exclusivos) as ideias e o debate filosóficos expostos por Lénine na sua obra

Materialismo e Empiriocriticismo. Os textos de Bohr a estudar serão textos nos quais ele trata os

problemas colocados pela nova física de um ponto de vista filosófico e epistemológico. A partir deles

pretende-se caracterizar a atitude e as posições filosóficas de Bohr. São elas que estarão sob análise e não

os resultados científicos. Tomo estas posições como características da escola de Copenhaga e da chamada

interpretação ortodoxa da mecânica quântica, muito embora possam efectivamente ser encontradas

diferenças entre as posições filosóficas dos seus diferentes elementos, mas que não cabe aqui distinguir.

1. Algumas notas sobre as origens da mecânica quântica

É conveniente começar por uma breve abordagem histórica da situação que, na ciência, conduziu

à actual teoria quântica, com o objectivo enquadrar e tornar mais compreensíveis as interpretações e

soluções adoptadas.

Sobre o percurso científico

De acordo com J. D. Bernal, o autor de Science in History, a descoberta inicial do electrão

levantara dificuldades na teoria da radiação luminosa. “Se a luz era produzida por electrões que giravam

ou vibravam, devia estar a mudar continuamente de cor conforme os electrões fossem perdendo energia

por radiação; mas o testemunho directo do comprimento de onda constante do espectro óptico provava

que assim não era”473. Uma outra contradição manifestava-se na teoria electromagnética clássica segundo

a qual a energia de um corpo quente devia pertencer à região azul do espectro, mas verificava-se que,

afinal, emitia no vermelho.

David Cassidy, co-editor dos trabalhos de Einstein474, refere estas mesmas contradições

experimentais relativas à chamada radiação do corpo negro (idealização de um corpo quente como uma

peça de carvão incandescente ou da radiação emitida através de um pequeno orifício numa caixa preta

contendo radiação electromagnética a elevadas temperaturas)475. Para além disso, chama a atenção para a

relação que este problema tinha com as necessidades económicas da época. Sucede que os cientistas do

gabinete de padrões (bureau of standards) alemão em Berlim estavam interessados em estabelecer os

473J. D. Bernal, Ciência na História, Lisboa, Livros Horizonte, 1976, p. 740-741.474Collected Papers of Albert Einstein, Princeton University Press475David Cassidy, Einstein on the Photoelectric effect (adaptado do livro David Cassidy, Einstein and Our World,

Humanities Press, 1995, reissued Amherst, NY: Humanity Books, 1998), American Institute of Physics Center for History of Physics, 13-07-2012, 11:55. Disponível em http://www.aip.org/history/einstein/essay-photoelectric.htm

padrões para a emergente indústria eléctrica de iluminação. Mediram a distribuição total da energia

electromagnética emitida por uma caixa preta, o que se pode aplicar a uma lâmpada incandescente.

Partindo da teoria da radiação de Maxwell-Lorenz, Planck esperava derivar a fórmula da radiação do

corpo negro da segunda lei da termodinâmica. Mas, foi só com a introdução, feita relutantemente, de uma

nova assunção radical que Max Planck pôde chegar à fórmula correcta.

Max Planck, em 1900, vem, então, propor, como hipótese, que a energia dos átomos não era

emitida de forma contínua, mas, sim, por fracções; a energia da radiação electromagnética não seria

emitida continuamente, como seria de esperar para as ondas, mas, sim, de forma quantizada. A constante

h, introduzida por Planck, seria o quantum constante de acção que controlava a quantidade de todas as

trocas de energia dos sistemas atómicos. Segundo Bernal, Planck, ao eliminar uma dificuldade

experimental, estaria a criar uma dificuldade teórica. Planck, em essência, diz Cassidy, descobrira a

estrutura quântica da radiação electromagnética; contudo, ele próprio não o via dessa maneira, mas sim

como um truque matemático para obter a resposta correcta. Foi Einstein quem, num dos seus artigos de

1905, partindo da hipótese dos quanta de luz, não só derivou a fórmula de Planck, como explicou

fenómenos até então inexplicáveis como o efeito fotoeléctrico. Neste artigo de Einstein, à semelhança de

outros artigos seus, a hipótese dos quanta surge, como nota Cassidy, de um “puzzle experimental”, de

uma assimetria ou dualidade nas teorias físicas: neste caso, entre, diz Einstein, “as concepções teóricas

que os físicos formaram acerca dos gases e outros corpos ponderáveis e a teoria de Maxwell dos

processos electromagnéticos no chamado espaço vazio”476. Em 1907, nota Cassidy, Einstein descobre

também que o movimento dos átomos exibe uma estrutura quântica, resolvendo outro problema

experimental – do arrefecimento dos corpos sólidos – que não podia ser explicado sem ser com base nas

energias específicas de vibração dos átomos na rede sólida.

Temos, assim, a radiação electromagnética – as ondas contínuas das equações de Maxwell,

confirmadas experimentalmente – a exibir um comportamento “atómico”, quantizado. Só esta assunção

permitia explicar um conjunto de fenómenos até então inexplicados.

“A teoria dos quanta, originalmente aplicada ao átomo por Bohr, devia ter explicado, em

princípio, a estrutura de todos os átomos e moléculas”, diz Bernal. A estrutura do átomo avançada por

Bohr permitia interpretar os espectros complexos e encontrar os níveis de energia – o que é já um

conceito quântico – dos electrões nos diferentes átomos; implicava que cada estrutura atómica ou

molecular podia existir num grande número de estados com diferentes características de vibração e que as

diferenças de energia entre esses estados se podiam achar medindo as frequências da luz emitida ou

absorvida477. No entanto, verificaram-se dificuldades estranhas, como adjectiva Bernal, que se prendiam

com os níveis quânticos das moléculas diatómicas. As tentativas para resolver várias anomalias surgidas

estavam a transformar a teoria quântica numa “álgebra formal”, “onde era sempre possível encontrar um

476Albert Einstein, “On a Heuristic Point of View about the Creation and Conversion of Light” (1905), traduzido por D. Ter Haar, in D. Ter Haar, The Old Quantum Theory, Pergamon Press, 1967, p. 91-107. Disponível em: http://www.physik.fu-berlin.de/~kleinert/files/eins_lq.pdf

477Cf. J. D. Bernal, op. cit., p. 744.

conjunto de números para explicar a maioria das coisas, mas não era possível encontrar qualquer

justificação, para além da conveniência, para escolher esses números”478.

O esforço para ultrapassar tais dificuldades levou a uma revisão geral e profunda da teoria

quântica que Bernal situa em torno de 1925, destacando como principais intervenientes de Broglie em

França, Schrödinger e Heisenberg na Alemanha e Dirac em Inglaterra.

Louis de Broglie, perante aquilo que parecia ser uma correspondência geral entre ondas e

partículas, põe a hipótese de os electrões serem ondas, assim como as ondas luminosas serem

partículas479. De acordo com esta hipótese, “podia considerar-se que cada partícula seria acompanhada de

uma onda e que cada onda consistisse de partículas alinhadas numa frente ondulatória”480, explica Bernal.

E, de facto, veio, passado pouco tempo, a comprovar-se experimentalmente o comportamento ondulatório

da matéria pela observação da difracção dos electrões (observação de padrões interferenciais, típicos das

ondas, quando os electrões passam num alvo com duas fendas). Temos agora não só as ondas

electromagnéticas a apresentar comportamento de partículas, como temos as partículas a exibirem

comportamento ondulatório.

Com base nestas ideias, Schrödinger explica os diferentes modos característicos de vibração dos

electrões no átomo, que se moviam, não em ondas progressivas, mas em ondas estacionárias (o que é

formalmente semelhante aos modos de vibração das cordas de um instrumento musical). Assim, a

mecânica ondulatória tinha a vantagem de explicar as anomalias da velha teoria quântica de uma maneira

que podia ser fisicamente apreendida assim como matematicamente expressa, diz Bernal.

Heisenberg e Dirac seguiram outro caminho, desprezando mesmo esse grau de representação

física. Heisenberg, por meio de matrizes, e Dirac, através de uma álgebra de operadores não comutativos,

ofereceram soluções formais igualmente boas para os problemas da física quântica.

Bernal é da opinião que as novas teorias quânticas continuavam a representar um “híbrido

incómodo entre a física corpuscular de Newton, adequadamente ajustada ou fragmentada por postulados

quânticos, e uma matemática de tipo inteiramente novo”. Estas teorias, embora capazes de explicar os

fenómenos que lhes tinham dado origem, passaram a adoptar artifícios e variações ad-hoc, sem grande

êxito, para novos fenómenos cada vez mais difíceis de explicar. Considera também que “as dificuldades

filosóficas que levantavam eram ainda mais sérias”481. Mas a este aspecto voltaremos mais tarde.

Sobre o percurso das ideias

A mecânica quântica, usando as palavras de Rui Moreira, pretendeu conciliar a mecânica clássica

de Newton e o electromagnetismo de Maxwell482. Mas o autor chama a atenção para o contraste entre

478idem, ibidem, p. 753.479Esta hipótese é posta por de Broglie na sua tese de doutoramento, Recherches sur la Théorie des Quanta.480idem, ibidem, p. 754.481idem, ibidem, p. 755.482Cf. R. N. Moreira, «Instrumentalismo Versus Realismo, a Crise na Física do Século XX», in Olga Pombo, Ángel

estas duas teorias: por um lado, “a mecânica de Newton descrevia o movimento de corpúsculos num

espaço iminentemente vazio” e, por outro lado, “o electromagnetismo de Maxwell descrevia ondas que se

propagavam num espaço inevitavelmente cheio para para suportar essas mesmas ondas”.

Moreira retoma o percurso percorrido até à interpretação bohriana da mecânica quântica e a

formulação do princípio da complementaridade e põe em destaque os dois caminhos distintos seguidos

para a tentativa de resolução daqueles problemas físicos. Na universidade de Göttingen, na Alemanha,

Max Born, Heisenberg, Jordan e outros pretenderam criar uma mecânica formalmente decalcada da

mecânica de Newton, diz. Para tal, substituíram as grandezas clássica por matrizes. Para esta mecânica

das matrizes existiriam apenas corpúsculos dos quais, diferentemente já da mecânica clássica, não seria

possível determinar simultaneamente uma posição e uma velocidade bem definidas. “Foi neste contexto

que Heisenberg chegou às suas célebres relações de indeterminação” 483, destaca Rui Moreira.

Em Fevereiro de 1927, Heisenberg vai a Copenhaga mostrar a Niels Bohr os seus resultados.

Segundo o autor “este respondeu-lhe que o que ele tinha feito não passava de um truque matemático e que

tudo aquilo tinha de ser interpretado em termos físicos! Heisenberg saiu de lá um pouco combalido. Niels

Bohr já era prémio Nobel (por causa do seu modelo atómico de 1913) e isto constituiu um rude golpe no

jovem Heisenberg”484. Moreira afirma que tal acontecera devido ao facto de Bohr já ter tomado contacto

com um outro percurso que Schrödinger, a trabalhar na Suíça, estava a seguir. Schrödinger, tendo em

mente a similitude entre a equação de Hamilton-Jacobi (formalismo alternativo para a mecânica de

Newton, que descreve trajectórias de corpúsculos) e a equação a óptica geométrica (a chamada equação

do eikonal, que é uma simplificação da equação de onda da radiação electromagnética quando o

comprimento de onda tende para zero), postula a sua célebre equação, a chamada equação de

Schrödinger:

−ℏ2m ∂2

∂ x 2 ∂2∂ y 2

∂2∂ z2 V x , y , z=i ℏ

∂x , y , z ∂ t

Schrödinger estava à procura, destaca Moreira, de uma mecânica quântica ondulatória onde só

existiriam ondas. Schrödinger, em 1926, mostra então, numa série de artigos, que o seu formalismo é

equivalente ao desenvolvido em Göttingen. Ora, Bohr, quando Heisenberg o visita, já tinha tomado

conhecimento do formalismo de Schrödinger e da demonstração da equivalência entre este e a mecânica

das matrizes.

Teria sido, então, diz Moreira, a necessidade de integrar estas duas concepções seguidas por duas

vias distintas e aparentemente independentes num só quadro conceptual que teria levado Bohr a, entre

Fevereiro de 1927 (visita de Heisenberg) e o Verão desse mesmo ano, chegar à sua interpretação, dita

ortodoxa, de Copenhaga ou bohriana, do formalismo quântico. Bohr apresenta pela primeira vez a sua

Nepomuceno (eds.), Lógica e Filosofia da Ciência, Lisboa, Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, 2009, p.127.

483idem, ibidem, p.128.484idem, ibidem.

interpretação do formalismo quântico nesse ano de 1927 no Congresso Volta, no Lago Como, em Itália.

Seria mais tarde publicada em Abril de 1928, na revista Nature, sob o título «The Quantum Postulate and

the Recent Development in Atomic Theory».

Sobre o percurso filosófico

No pensamento filosófico de Bohr, Harald Høffding teve uma importância preponderante. Assim

o considera Rui Moreira, a partir do seu estudo sobre as influências filosóficas de Bohr e a importância

que estas tiveram para a elaboração do princípio da complementaridade. O princípio da

complementaridade em mecânica quântica seria a transposição para a física do mesmo princípio de

complementaridade (embora não fosse ainda assim designado) que Høffding, professor de filosofia de

Bohr, teria já introduzido em psicologia e filosofia. De facto, acrescento eu, como podemos ler em

inúmeros artigos seus, é o próprio Bohr quem faz questão de relacionar estas áreas no que diz respeito à

presença de relações de complementaridade procurando, assim, evidenciar que não seria um princípio

circunscrito à física, mas comum a outras áreas do conhecimento, procurando atribuir-lhe um grau de

generalidade elevado, procurando elevá-lo a um princípio epistemológico.

Segundo Høffding, existiria uma relação de complementaridade entre as funções psicológicas de

ver e compreender. Estas seriam duas “necessidades inconciliáveis” do espírito humano as quais nunca

seria capaz de ultrapassar. É interessante notar que Høffding está aqui a citar Poincaré. “Daí a estabelecer

uma relação de complementaridade entre as formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e as formas

a priori do entendimento de Kant (categorias – das quais é inevitável destacar a causalidade) foi um

pequenino passo”, diz Moreira, estabelecendo, assim, uma ligação entre as ideias de Høffding e o

kantismo. Høffding teria, desta forma, transposto as relações de complementaridade da psicologia para a

filosofia e Bohr, por seu turno, para a física, atribuindo-lhe o nome de princípio de complementaridade. É

por essa razão, diz Moreira, que Bohr, na primeira exposição que faz da sua interpretação do formalismo

quântico, afirma que não é possível atingir simultaneamente uma descrição espácio-temporal e uma

descrição causal dos fenómenos quânticos485. De facto, procurando as palavras de Bohr, este diz-nos, na

sua comunicação de 1927 no Congresso Volta, que “a própria natureza da teoria quântica força-nos, então,

a olhar a coordenação espácio-temporal e a pretensão à causalidade […] como características

complementares mas exclusivas da descrição, simbolizando a idealização da observação e definição

respectivamente”486.

Rui Moreira sintetiza, da seguinte forma, a questão essencial relativa à origem filosófica do

princípio da complementaridade: o “resíduo irracional” irredutível de Høffding está agora expresso, pelas

485Cf. idem, ibidem, p.131-132.486N. Bohr, «The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory», in Nature (Supplement), Vol.

121 (Apr., 1928), Issue 3050, p. 580.

mãos de Bohr, de uma “forma matematicamente lúcida” [Bohr]487.

Algumas notas a respeito do progresso da ciência

Ao analisarmos a história da edificação da teoria quântica, identificamos algumas características

respeitantes às causas e ao processo de desenvolvimento da ciência e das suas teorias. Por essa razão,

procurarei enunciar as linhas gerais do problema para, então, poder observar, ainda que de passagem, o

caso específico em apreço, a mecânica quântica. Tal análise traz para o primeiro plano, como o motor de

desenvolvimento, o papel das contradições dialécticas.

A causa decisiva para o desenvolvimento da ciência é a sua relação com a produção material,

cujo carácter é determinado pelo sistema social, e com a qual se encontra em contradição dialéctica 488. As

necessidades sociais de produção acabam por determinar o avanço científico. Era para este aspecto que

Engels chamava a atenção quando relacionava a revolução industrial do século XVIII e XIX e o grande

desenvolvimento científico que lhe estava associado; quando relacionava o desenvolvimento da

astronomia (e, consequentemente, da matemática) com a necessidade da determinação das estações do

ano para os povos pastores e agricultores; quando relacionava o desenvolvimento da mecânica com a

necessidade de construção de edifícios na fase de nascimento das grandes cidades, com a necessidade de

elevação de águas, de navegação e da guerra – o que obrigava outra vez ao desenvolvimento da

matemática. “Por conseguinte, a origem e desenvolvimento das ciências estão desde o início determinadas

pela produção”489, conclui Engels.

Quando David Cassidy faz referência à necessidade de desenvolvimento da indústria eléctrica de

iluminação relacionando-o com a investigação em torno da radiação do corpo negro que conduziria à

introdução do quantum na teoria física, acaba por ser para este mesmo aspecto que está a chamar a

atenção.

Por outro lado, as contradições internas à própria ciência, ao próprio corpo de conhecimentos,

também determinam o seu desenvolvimento. Como os autores de Philosophical Problems in Physical

Science490 fazem notar, “uma causa importante para o desenvolvimento da física é a contradição entre as

diferentes teorias físicas ou entre a teoria e as experiências”. Não são contradições no seio da própria

realidade objectiva, isto é, dos objectos físicos, mas sim contradições do domínio do próprio

conhecimento e que são expressão do seu carácter histórico. Estas contradições, constatam os autores, são

frequentemente formuladas como problemas ou paradoxos que não podem ser resolvidos no quadro das

teorias existentes. Não devem ser entendidas como erros ou defeitos491. Elas estão, sim, necessariamente

487Cf. R. N. Moreira, op. cit., p.130.488Esta sistematização é feita por Herbert Hörz, et al., Philosophical Problems in Physical Science, Minneapolis,

Marxist Educational Press, 1980, p. 67 et. seq.489F. Engels, Dialectics of Nature, in Karl Marx-Frederick Engels Collected Works, New York, International

Publishers, v.25, 1987, p. 465.490Herbert Hörz, Hans-Dieter Pöltz, Heinrich Parthey, Ulrich Röseberg, Karl-Friederich Wessel, Philosophical

Problems in Physical Science, Minneapolis, Marxist Educational Press, 1980.491A este respeito, é de particular interesse relembrar o exemplo que Engels dá da lei de Boyle já aqui trazido a

propósito da relação entre a verdade absoluta e a verdade relativa. Engels, combatendo pretensões às verdades últimas e definitivas, defendendo a inesgotabilidade do conhecimento, aborda dialecticamente o problema da verdade e do erro. “Verdade e erro, como todos as categorias lógicas que se movem em oposições polares, têm validade absoluta apenas num domínio extremamente limitado”, diz. E mostra como, fora desse domínio, os pólos se podem transformar nos seus opostos. Mostrou, portanto, porque as contradições não devem ser

ligadas ao desenvolvimento do conhecimento que faz o seu caminho através do reconhecimento e

resolução destas contradições492. O novo conhecimento, notam os autores, não se desenvolve em

separação absoluta do velho, mas com base nele. O novo conhecimento supera o velho dialecticamente,

constituindo um exemplo de negação da negação e revelando a unidade dialéctica entre continuidade e

descontinuidade no processo de construção do conhecimento. E é um processo, é um movimento

inesgotável. Como diz Lénine, apresentando o processo de conhecimento como um processo dialéctico:

“O conhecimento é a eterna, infindável aproximação do pensar ao objecto. O reflexo da Natureza

no pensar do homem deve ser compreendido não «de modo morto», não «abstractamente», não

sem movimento, não sem contradições, mas de num processo eterno de movimento, de

surgimento de contradições e de solução delas”493.

Ora, foi deste tipo de contradições que a teoria quântica emergiu e se desenvolveu. Como vimos

acima, emergiu com ligação a necessidades colocadas pela indústria. Emergiu da contradição entre o

previsto pela teoria clássica e os valores obtidos para o espectro da radiação emitida pelo corpo negro;

emergiu da contradição entre o previsto pela teoria – a perda de energia e o consequente colapso do

electrão no núcleo – e a experiência – a relativa estabilidade do átomo. Descobriu-se, no final, que as

ondas apresentavam comportamento corpuscular (demonstrado no efeito fotoeléctrico) e que os

corpúsculos apresentavam comportamento ondulatório (demonstrado nos padrões interferenciais).

Procurou-se, então, conciliar duas teorias clássicas: a mecânica de Newton (corpúsculos) com o

electromagnetismo de Maxwell (ondas). Ora, penso que é, precisamente, na forma de lidar com esta

contradição – objectiva e subjectiva – que reside o nosso problema e que abordaremos mais à frente.

2. A complementaridade de Bohr

Como forma de resolver os problemas colocados pelas novas descobertas da física, Bohr defende

a ideia da complementaridade, que apresenta como um resultado necessário que emana directamente dos

dados da experiência. Apresenta-a fundamentada numa determinada consideração sobre a relação objecto

e instrumento de medida. Como Bohr recorda, no Internacional Physical Congress, em homenagem a

Volta, em Como, Itália, em Setembro de 1927, onde apresentou pela primeira vez o ponto de vista da

complementaridade: “eu defendi o ponto de vista convenientemente designado «complementaridade»,

adequado para incluir os traços característicos da individualidade dos fenómenos quânticos e, ao mesmo

tempo, para clarificar os aspectos peculiares do problema observacional neste campo da experiência” 494. A

entendidas como erro. A lei de Boyle diz que, a temperatura constante, o volume de um gás é inversamente proporcional à pressão. Regnault descobriu que esta lei não é válida em certos casos. Se Regnault tivesse adoptado a posição anti-dialéctica de Dühring, diz Engels, teria afirmado que a lei de Boyle é mutável, logo não é uma verdade genuína, logo não é verdade, logo é erro. Mas se o tivesse feito, teria cometido um erro bem maior do que aquele que está contido na lei de Boyle, que é aproximadamente verdadeira, isto é, que é verdadeira dentro de certos limites, que Regnault descobriu com as suas experiências. Cf. F. Engels, Anti-Dühring, in Karl Marx-Frederick Engels Collected Works, New York, International Publishers, v.25, 1987, p. 84-85.

492Cf. H. Hörtz, et al., op. cit., p. 71.493V.I. Lénine, Obras Escolhidas em 6 tomos, t.6 (Cadernos Filosóficos), Lisboa, Moscovo, Edições Avante-

Edições Progresso, 1989, p. 178.494N. Bohr, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in Atomic Physics

isto liga-se intimamente a convicção de Bohr de que os fenómenos, incluindo os fenómenos quânticos, só

podem ser descritos em termos clássicos. A complementaridade traduz a ideia de que os resultados

obtidos sob condições experimentais diferentes não podem ser compreendidos, reunidos, numa única

imagem. Os fenómenos seriam complementares no sentido de que “apenas a totalidade dos fenómenos

esgota a informação possível acerca dos objectos”495. Assim, as implicações epistemológicas da devida

consideração da nossa posição em relação à observação – para que o desenvolvimento da física teria

chamado a atenção – obrigariam, diz Bohr, à renúncia das formas habituais de explicação. Em troca, a

complementaridade ofereceria “meios lógicos” para a compreensão de novos campos da experiência 496.

As novas descobertas na física conduziram à impossibilidade da sua explicação em termos das

ideias clássicas da mecânica e do electromagnetismo, reconhece Bohr. A existência do quantum de acção

é bastante estranha às leis clássicas da mecânica e do electromagnetismo e limita a sua validade

essencialmente àqueles fenómenos que envolvem acções grandes quando comparadas com o valor de um

único quantum, dado pela constante de Planck, diz. É o quantum de acção que impede a fusão dos

electrões e núcleo do átomo numa massa neutra de extensão praticamente infinitesimal, o que deveria

suceder de acordo com uma explicação clássica. A existência do quantum expressaria, então, de facto,

uma nova característica de individualidade dos processos físicos497, diz Bohr. Foi o reconhecimento

daquela situação que sugeriu a descrição da ligação de cada electrão no campo à volta do núcleo como

uma sucessão de processos individuais através dos quais o átomo é transferido de um estado estacionário

para outro, emitindo radiação na forma de um único quantum, explica.

A descoberta do quantum de acção obrigaria a uma revisão do problema da observação. Se

problemas da mesma natureza tinham já sido levantados noutras áreas do conhecimento, diz Bohr, esta

situação não tinha precedentes na história da física a qual se teria baseado até então na assunção, bem

adaptada para o domínio em questão, de que é possível discriminar entre o comportamento dos objectos e

a sua observação498. Porém, “o ponto crítico é aqui o reconhecimento de que qualquer tentativa de

analisar, na forma habitual da física clássica, a «individualidade» dos processos atómicos, condicionada

pelo quantum de acção, será frustrada pela inevitável interacção entre os objectos atómicos em causa e os

instrumentos de medição indispensáveis para esse fim”499. Tal interacção coloca um “limite absoluto à

possibilidade de falar de um comportamento dos objectos atómicos que seja independente dos meios de

observação”500. Em mecânica quântica, diz Bohr, “não estamos a lidar com uma renúncia arbitrária de

uma análise mais detalhada dos fenómenos atómicos, mas com o reconhecimento que tal análise é em

princípio [sublinhado de Bohr] excluída”501.

and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 39.

495idem, ibidem, p. 40.496idem, «Unity of Knowledge» (1967), in ibidem., p. 78.497Cf. idem, «Biology and Atomic Physics» (1937), in ibidem, p. 17. 498Cf. idem, ibidem, p. 19. 499idem, ibidem.500Cf. idem, «Natural Philosophy and Human Cultures» (1939), in ibidem, p. 25.501idem, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in ibidem, p. 62.

Em casos em que a acção envolvida é grande comparada com o quantum de acção, é possível

uma subdivisão do fenómeno. Porém, de acordo com Bohr, se esta condição não se verifica, a acção dos

instrumentos de medida no objecto sob investigação não pode ser ignorada e conduz à exclusão mútua

dos vários tipos de informação necessários a uma “completa descrição mecânica”. Esta “aparente

incompletude” da análise mecânica dos fenómenos atómicos é originada, em última análise, pela

ignorância da reacção entre objecto e instrumento de medida, inerente a qualquer medição. Assim, na

região em que o quantum de acção não pode ser desprezado, não é mais possível distinguir claramente

entre o comportamento autónomo do objecto físico e a sua interacção inevitável com os outros corpos que

servem de instrumentos de medida502. “Na física quântica, esta interacção forma, então, uma parte

inseparável do fenómeno”503. Esta situação é distinta daquela que se verifica na física clássica, em que a

escala de observação permite uma distinção entre o comportamento do objecto e do instrumento de

medida, ou melhor, permite ignorar, a determinado nível, ou compensar, essa interacção entre objecto e

instrumento de medida. A noção de complementaridade, diz Bohr, “serve para simbolizar a limitação

fundamental, que encontramos na física atómica, da existência objectiva do fenómeno independente dos

meios da sua observação”504.

O que a nova física nos obriga a fazer é, pois, notar as assunções inicialmente despercebidas.

Mas esta situação não é restrita ao domínio da física. Para Bohr, o que a nova situação na mecânica

quântica nos indica é de ordem mais geral, é a clarificação filosófica das pressuposições subjacentes a

todo o conhecimento humano. Estamos perante a necessária adopção de toda uma nova atitude

epistemológica, considera Bohr. As conclusões que Bohr retira do domínio experimental eleva-as, pois, a

princípio epistemológico. O reconhecimento de tais assunções, a sua consideração explícita, seria,

segundo Bohr, um passo na direcção da clareza, da eliminação das “arbitrariedades” e “ambiguidades” no

uso dos conceitos505.

Assim, por não ser possível, no domínio quântico, estabelecer tal distinção entre objecto e

instrumento de medida, continua Bohr, “os aparentemente incompatíveis tipos de informação acerca do

comportamento do objecto sob exame que obtemos através de diferentes arranjos experimentais não

podem claramente ser postos em conexão uns com os outros da maneira usual, mas podem, de forma

igualmente essencial para uma consideração exaustiva de toda a experiência, serem vistos como

«complementares» uns com os outros”506. Desta forma, dar conta de forma “não ambígua” dos fenómenos

quânticos obriga a incluir uma descrição de todas as características relevantes do arranjo experimental507.

502Cf. idem, «Causality and Complementarity», in Philosophy of Science, Vol. 4, no. 3 (Jul., 1937), p. 290.503idem, «Quantum Physics and Philosophy» (1958), in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7, Foundations of quantum

physics II (1933-1958), Kalckar, J. ed., North-Holland, Amsterdam, 1996, p. 311.504idem, «Light and Life» (1933), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc,

2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 7.

505idem, «Causality and Complementarity», in Philosophy of Science, Vol. 4, no. 3 (Jul., 1937), p. 290.506idem, ibidem, p. 291.507Cf. idem, «Quantum Physics and Philosophy» (1958), in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7, Foundations of

quantum physics II (1933-1958), Kalckar, J. ed., North-Holland, Amsterdam, 1996, p. 311.

Cada resultado deve ser interpretado, não como uma informação acerca de propriedades independentes do

objecto, mas como estando inerentemente ligado a uma dada situação experimental508. Assim, na

mecânica quântica é excluída a possibilidade de uma divisibilidade ilimitada dos fenómenos pela

exigência de especificar as condições experimentais. Existe, pois, uma característica de totalidade, diz

Bohr, típica dos fenómenos quânticos que encontra “a sua expressão lógica na circunstância de que

qualquer tentativa de uma subdivisão bem definida obrigaria a uma mudança no arranjo experimental

incompatível com a definição do fenómeno sob investigação”509. Será, pois, a exclusão mútua de

quaisquer dois procedimentos experimentais que permitirá a definição não ambígua das quantidades

físicas complementares510. Pondo ao contrário, só é possível evitar ambiguidades, contradições, se se

excluir mutuamente quaisquer dois procedimentos experimentais.

Em mecânica quântica, estamos perante uma renúncia, em cada arranjo experimental, de um ou

do outro dos dois aspectos da descrição dos fenómenos físicos (a posição ou o momento, o tempo ou a

energia...), a combinação dos quais caracteriza o método da física clássica e que, consequentemente, neste

sentido, podem ser considerados como complementares entre si. Isto deve-se essencialmente, continua

Bohr, à impossibilidade de, no domínio quântico, se controlar com precisão a reacção do objecto nos

instrumentos de medida, isto é, a transferência de momento no caso das medições de posição e o

deslocamento, no caso de medições do momento511. Não está em causa, de acordo com Bohr, a ignorância

do valor de certas quantidades físicas, mas sim a impossibilidade definir estas quantidades de forma não

ambígua. A mecânica quântica é completa, argumenta Bohr, porque é uma “utilização racional de todas as

possibilidades de uma interpretação não ambígua das medidas compatível com a interacção finita e

incontrolável entre os objectos e os instrumentos de medição no domínio da teoria quântica. De facto, é

apenas a exclusão mútua de quaisquer dois procedimentos experimentais, permitindo a definição não

ambígua de quantidades físicas complementares, que fornece espaço para novas leis físicas, a

coexistência das quais pode parecer, à primeira vista, irreconciliável com os princípios básicos da ciência.

É precisamente esta situação inteiramente nova respeitante à descrição dos fenómenos físicos que a noção

de complementaridade pretende caracterizar”512.

Esta situação é contrária àquela que se nos apresenta na física clássica em que todas as

propriedades características de um objecto podem ser, em princípio, determinadas por um único arranjo

experimental, embora diferentes experiências sejam convenientes para o estudo de diferentes aspectos do

fenómeno. Dados assim obtidos podem ser combinados numa imagem consistente do comportamento do

objecto. Na mecânica quântica isto não é possível. “As evidências sobre os objectos atómicos obtidas por

diferentes arranjos experimentais exibem um novo tipo de relação complementar. De facto, deve ser

508Cf. idem, «Natural Philosophy and Human Cultures» (1939), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 26.

509idem, «Quantum Physics and Philosophy» (1958), in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7, Foundations of quantum physics II (1933-1958), Kalckar, J. ed., North-Holland, Amsterdam, 1996, p. 311.

510Cf. idem, «Can Quantum-Mechanical Description of Physical Reality be Considered Complete?», in Physical Review, Vol. 48 (Oct. 1935), p. 700.

511Cf. idem, ibidem, p. 699.512idem, ibidem, p. 700.

reconhecido que tais evidências, que aparecem contraditórias quando a combinação numa única imagem é

tentada, esgotam todo o conhecimento possível acerca do objecto”513. Isto é, as contradições só surgem

quando se tenta combinar numa única imagem acerca do objecto os resultados obtidos em diferentes

arranjos experimentais. Tais resultados representam “aspectos igualmente essenciais de qualquer

conhecimento acerca do objecto em questão[...]”514, mas “não podem ser combinados numa única

imagem[...]”515. Das palavras de Bohr retiramos que, na mecânica quântica, não é possível uma imagem

consistente do objecto.

Pelo facto de, na mecânica quântica, a interacção entre objecto e instrumento de medida não

poder ser desprezável, Bohr traça aqui uma distinção fundamental entre a descrição clássica e quântica

dos fenómenos. Esta circunstância conduz a que, na mecânica quântica, sejamos obrigados a discriminar

o que deve ser tratado como objecto ou como instrumento de medida: “Esta necessidade de discriminar,

em cada arranjo experimental, entre aquelas partes do sistema físico considerado que devem ser tratadas

como instrumentos de medida e aquelas que constituem os objectos sob investigação pode dizer-se

constituir uma distinção principal entre a descrição clássica e quântica dos fenómenos físicos”516.

As informações acerca do objecto assim obtidas, isto é, através de diferentes arranjos

experimentais, podem ser caracterizadas de “complementares”. É a introdução do ponto de vista da

complementaridade que permite compatibilizar, “logicamente”, resultados aparentemente contraditórios

obtidos por diferentes arranjos experimentais517. A complementaridade aparece como uma forma, ou a

forma, de resolver contradições; segundo Bohr, como forma de evitar “contradições aparentes” com que o

conhecimento humano se depara. O ponto de vista da complementaridade seria aquele através do qual a

mecânica quântica poderia aparecer como uma descrição completamente racional dos fenómenos físicos

com que nos deparamos nos processos atómicos518. No entanto, segundo Bohr, a complementaridade não

restringe os nossos esforços de pôr perguntas à natureza na forma de experiências; apenas caracteriza as

respostas que podemos receber de tal inquirição.

Espaço e tempo vs momento e energia

De acordo com Bohr, a “coordenação” espácio-temporal de um acontecimento e os teoremas

gerais de conservação da dinâmica são complementares. Ou, de forma mais concreta, a coordenada e o

513idem,«Quantum Physics and Philosophy» (1958), in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7, Foundations of quantum physics II (1933-1958), Kalckar, J. ed., North-Holland, Amsterdam, 1996, p. 311.

514idem, «Natural Philosophy and Human Cultures» (1939), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 26.

515idem, ibidem, p. 26.516idem, «Can Quantum-Mechanical Description of Physical Reality be Considered Complete?», in Physical

Review, Vol. 48 (Oct.1935), p. 701.517Cf. idem, «Causality and Complementarity», in Philosophy of Science, Vol. 4, no. 3 (Jul., 1937), p. 291.518Cf. idem, «Can Quantum-Mechanical Description of Physical Reality be Considered Complete?», in Physical

Review, Vol. 48 (Oct.1935), p. 696.

momento de uma partícula encontram-se numa relação complementar, assim como o tempo e a energia.

“Qualquer procedimento imaginável com vista à coordenação no espaço e no tempo dos electrões no

átomo irá envolver inevitavelmente uma essencialmente incontrolável troca de momento e energia entre o

átomo e as agências de medição […]. Inversamente, qualquer investigação de tais regularidades, a

descrição das quais implica as leis de conservação de energia e momento, irá, em princípio, impor uma

renúncia no que diz respeito à coordenação espácio-temporal dos electrões individuais no átomo”519. Tal

combinação é possível e característica da mecânica clássica onde é possível determinar, por exemplo, a

posição e a energia de uma partícula. Mas deixa de o ser ao nível quântico.

Consideremos as medições destinadas a obter uma descrição do curso espácio-temporal de um

acontecimento físico. Tal consiste “em última análise, no estabelecimento de uma série de conexões não

ambíguas entre o comportamento do objecto e as hastes e os relógios que definem o sistema de

referência”, diz Bohr. Só se pode falar de um comportamento espácio-temporal do objecto autónomo das

condições de observação, considera, se se puder ignorar completamente as interacções entre o objecto e

os instrumentos de medida, as quais inevitavelmente acompanham o estabelecimento daquelas conexões.

Como no domínio quântico essa interacção desempenha um papel fundamental no aparecimento dos

próprios fenómenos, ela não pode, ao contrário do que acontece na mecânica clássica, ser ignorada, pelo

que deixamos de poder combinar grandezas que, a este nível de investigação vêm, afinal, revelar-se

complementares. Assim – Bohr concretiza – o uso de hastes e relógios para fixar o sistema de referência

torna impossível, “por definição”, ter em conta a energia e momento transferidos para eles.

Inversamente, as leis quânticas cuja formulação assenta essencialmente na aplicação dos

conceitos de momento e energia apenas podem aparecer sob condições de investigação nas quais uma

descrição detalhada do comportamento espácio-temporal do objecto é excluída520.

Tomemos uma situação experimental concebida para prever a posição de uma partícula. O

arranjo consiste num diafragma com uma fenda e num alvo (como, por exemplo, uma placa fotográfica),

ambos fixos num suporte que define o sistema de referência521. (Medir a posição da partícula significa

estabelecer uma correlação entre o seu comportamento e o instrumento rigidamente fixo no suporte que

define o sistema de referência. Aqui, a largura da fenda corresponde à incerteza na posição da partícula).

Quando a partícula passa pela fenda, a partícula transfere momento para o diafragma – objecto e

instrumento de medição interagem. Sucede que a transferência de momento entre partícula e diafragma é,

diz Bohr, por princípio, incontrolável. Bohr explica: o momento trocado entre a partícula e o diafragma

(bem como com outras partes do arranjo) passa também para o suporte comum – desta forma, eliminamos

voluntariamente qualquer possibilidade de ter em conta estas reacções separadamente para previsões que

519Cf. idem, «Biology and Atomic Physics» (1937), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), pp19.

520Cf. idem, «Causality and Complementarity», in Philosophy of Science, Vol. 4, no. 3 (Jul., 1937), p. 291.521Ver idem, «Can Quantum-Mechanical Description of Physical Reality be Considered Complete?», in Physical

Review, Vol. 48 (Oct.1935), p. 697.

digam respeito ao resultado final da experiência522. Assim, mesmo que o momento da partícula seja

totalmente conhecido antes da passagem, a difracção da partícula pela fenda (ou melhor, de acordo com

Bohr, a difracção pela fenda da onda plana que simbolicamente representa o estado da partícula) implica

uma incerteza no momento da partícula após a sua passagem pelo diafragma. E essa incerteza no

momento é tanto maior quanto menor for a fenda (o que equivale a dizer: quanto menor for a incerteza na

sua posição). Os mesmos problemas são descritos por Bohr para a situação experimental inversa

concebida para medição do momento, na qual o diafragma não está rigidamente fixado no suporte.

Os argumentos decisivos quanto às medições do tempo em mecânica quântica são, diz Bohr,

completamente análogos aos que dizem respeito à medição das posições. Da mesma forma que a

transferência de momento do objecto a partes distintas do arranjo experimental é completamente

incontrolável, também é a transferência de energia: “é excluído, por princípio, controlar a energia que é

transferida para os relógios sem interferir essencialmente com o seu uso como indicadores do tempo”523.

Tempo e energia encontram-se, tal como a posição e o momento, numa relação de complementaridade.

“Tal como na questão acima discutida do carácter mutuamente exclusivo de qualquer uso não ambíguo na

teoria quântica dos conceitos de posição e momento, é, em último caso, esta a circunstância que implica a

relação de complementaridade entre qualquer descrição temporal detalhada dos fenómenos atómicos por

um lado e as características não clássicas da estabilidade intrínseca dos átomos, desvendadas pelo estudo

das transferências de energia nas reacções atómicas, por outro lado” 524.

O uso do microscópio envolveria os mesmos problemas observacionais. Esta é outra situação

experimental em que se manifestaria esta mesma relação complementar entre as grandezas espácio-

temporais (coordenadas e tempo) e dinâmicas (momento e energia). A medição da posição de um electrão

através do uso de radiação electromagnética de elevada frequência, de acordo com as relações E=hν e

p=hk , irá estar ligado a uma troca de momento entre o electrão e as componentes do microscópio,

tanto maior quanto maior a precisão pretendida para a medição da posição525. Assim, quanto maior a

precisão pretendida para a medição da posição, maior a energia da radiação incidente necessária, logo

maior a troca de momento com a partícula, o que obrigaria a uma maior a incerteza na previsão da

posição da partícula.

José Croca e Rui Moreira, no seu artigo Indeterminism vs Causalism526 chamam a atenção

522Bohr acrescenta que “A impossibilidade de uma análise mais próxima das reacções entre a partícula e o instrumento de medida não é, de facto, uma peculiaridade do procedimento experimental descrito, mas é, antes, uma propriedade essencial de qualquer arranjo adaptado para o estudo dos fenómenos do tipo em causa onde nos deparamos com uma característica de individualidade completamente estranha à física clássica”. idem, ibidem.

523idem, ibidem, p. 701.524idem, ibidem.525Cf. idem, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in Atomic Physics

and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 39.

526José Croca, Rui N. Moreira, «Indeterminsm vs Causalism», pre-print disponível em: http://cfcul.fc.ul.pt/equipa/3_cfcul_elegiveis/croca/indet-causalism.doc. (versão final em Grazer Philosophische

precisamente para que a questão da resolução óptica dos microscópios está relacionada o princípio da

complementaridade de Bohr. Os microscópios apresentam limites que estão relacionados, por um lado,

com a natural deterioração da imagem por sucessivas amplificações e, por outro lado, um motivo mais

fundamental, com a própria natureza ondulatória da luz. Este último limite, chamado resolução, é uma

característica básica de qualquer sistema imagético que impõe um limite teórico ao poder de

amplificação. De acordo com a descoberta de Abbe no final do século XIX, existe uma distância entre

dois pontos abaixo da qual não é possível distingui-los e que corresponde a metade do comprimento de

onda da radiação incidente. Isto sucede porque se verifica uma sobreposição das ondas incidentes, isto é,

porque os máximos de intensidade correspondentes a cada um dos pontos aparecem indiscerníveis um do

outro. Esta situação é matematicamente descrita pelo formalismo não-local de Fourier, que está base da

teoria quântica. Assim, concluem os autores, “podemos agora perceber porque aqueles resultados

teóricos, com profundas consequências tecnológicas, são um resultado directo do formalismo não-local de

Fourier e, consequentemente, profundamente ligados ao princípio da complementaridade de Bohr”,

podemos perceber como “o limite teórico máximo de resolução de meio comprimento de onda para um

sistema óptico está relacionado com os próprios fundamentos da mecânica quântica”.

A questão está em saber se este facto – a existência objectiva de um limite de resolução para

aqueles sistema ópticos, cuja determinação assenta num determinado quadro teórico – deve ser entendido

como um limite definitivo, absoluto, eterno, que decorresse de uma qualquer característica objectiva da

natureza que impediria o homem de a conhecer, de a reflectir nas suas teorias, para além de um dado

limite. A prática demonstra o contrário.

Onda vs corpúsculo

Da mesma forma, o dilema entre o carácter ondulatório e corpuscular da luz e da matéria é

resolvido – e só desta forma é evitável – por via do ponto de vista da complementaridade, considera Bohr527. Esta questão, o chamado dualismo onda-corpúsculo, é, segundo Rui Moreira, o “maior problema

herdado da física do século XX”528 e está, segundo Croca, na base do surgimento do princípio da

complementaridade de Bohr529.

O estudo da luz revela que a radiação electromagnética apresenta padrões interferenciais. As

interferências são uma prova do carácter ondulatório da propagação da luz – não são apenas uma

hipótese, mas sim uma descrição (account) adequada do fenómeno530, de acordo com Bohr. Por outro

Studien, Vol. 56 (1999), p. 151-182.)527Cf. N. Bohr, «Causality and Complementarity», in Philosophy of Science, Vol. 4, no. 3 (Jul., 1937), p. 294.528R. N. Moreira, «Instrumentalismo Versus Realismo, a Crise na Física do Século XX», in Olga Pombo, Ángel

Nepomuceno (eds.), Lógica e Filosofia da Ciência, Lisboa, Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, 2009, p.137.

529Cf. J. Croca, Towards a Nonlinear Quantum Physics, New Jersey/London/Singapore/HongKong, World Scientific, 2003, p. 18.

530N. Bohr, «Light and Life» (1933), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961),

lado, verificou-se que a luz apresentava também características de atomicidade não inteligíveis do ponto

de vista da teoria electromagnética. Segundo Bohr, este “óbvio contraste” apresenta-nos um dilema de um

“carácter até então desconhecido em física”531. De facto, diz Bohr, “a continuidade espacial da nossa

imagem da propagação da luz e a atomicidade dos efeitos luminosos são aspectos complementares no

sentido em que eles dão conta de características igualmente importantes do fenómeno da luz que não

podem nunca ser postos em contradição directa um com o outro, uma vez que a sua análise em termos

mecânicos exige arranjos experimentais mutuamente exclusivos”532.

Assim, diz Bohr, o uso não ambíguo do conceito de estados estacionários está numa relação de

complementaridade com uma análise mecânica dos movimentos intra-atómicos, assim como os quanta de

luz são complementares em relação à teoria electromagnética da radiação533. Ou, pondo de outra forma, a

teoria quântica e a teoria clássica são complementares, assim como os corpúsculos (os quanta) e as ondas

(radiação).

O dilema com que os físicos se tiveram de defrontar é bem ilustrado pela experiência da dupla

fenda, que, apesar de bem conhecida, é indispensável referir pela importância que tem para os

fundamentos conceptuais da mecânica quântica, bem como analisar a sua explicação no quadro da

interpretação ortodoxa. A solução bohriana para o problema e a forma como lida com a contradição que

surgira é bem evidenciada pela explicação de José Croca, que seguiremos534:

Considere-se o arranjo experimental em que uma fonte S emite uma partícula quântica de cada

vez. Suponhamos que, neste caso particular, emite um electrão de cada vez. O raciocínio é o mesmo para

qualquer outra partícula quântica. De facto, diz Croca, a experiência da dupla fenda foi já feita com

átomos, neutrões, protões, electrões e fotões apresentando sempre os mesmos resultados. O electrão

encontra, então, um ecrã com duas fendas.

Se for colocado um detector imediatamente atrás de cada uma das fendas, que poderemos nós

esperar?

O que acontece é que, umas vezes, é accionado um detector e, outras vezes, o segundo. Em

p. 4.531idem, ibidem, p. 5.532idem, ibidem.533Cf. idem, ibidem, p. 6.534Cf. J. Croca, op. cit., p. 18-23.

qualquer caso, e isto é importante, os dois detectores nunca são activados ao mesmo tempo.

Naturalmente, esta situação não pode ocorrer uma vez que estamos a lidar com um único electrão de cada

vez. Em todo o arranjo experimental, para cada evento, só existe uma única partícula quântica. Se este

requisito conceptual e prático básico não se verifica, então a experiência não tem significado. Por outro

lado, uma detecção simultânea nos dois detectores significaria que a partícula quântica ter-se-ia dividido

em duas e que, consequentemente, cada metade do electrão teria passado por cada fenda. Esta seria uma

situação impossível pois não se conhecem meios electrões, meios fotões, etc. Portanto, somos levados a

concluir que o electrão passa por uma ou outra fenda.

Que resultado podemos esperar se agora os detectores forem removidos da frente das fendas e

for colocado um ecrã detector suficientemente longe? Se supomos que o electrão passa por uma das duas

fendas, seria de esperar uma contínua distribuição gaussiana dos impactos no detector. Esta distribuição

seria o resultado da contribuição dos electrões que passam por uma fenda mais a contribuição dos que

passam pela outra fenda.

Porém, o resultado mostra, em vez de uma distribuição gaussiana contínua, um padrão

interferencial.

Para explicar o padrão interferencial observado, temos de assumir que a partícula quântica, neste

caso o electrão, de alguma forma passou por ambas as fendas. Um padrão interferencial é sempre o

resultado da sobreposição de mais do que uma onda. Isto significa que a entidade quântica a que

chamamos electrão passou simultaneamente por ambas as fendas. Sob estas condições, somos levados a

concluir que o electrão é uma onda.

Estamos, assim, perante um problema: a primeira experiência com os detectores colocados

imediatamente à frente de cada uma das fendas indica-nos que o electrão é uma partícula e que passou por

uma ou outra fenda; a segunda experiência com o ecrã de detectores leva-nos a concluir que o electrão é

uma onda porque passou por ambas as fendas dando origem a um padrão de interferências.

Sumariamente, na experiência da dupla fenda, a partícula quântica deve passar por

uma ou outra fenda

e

por uma e pela outra fenda.

Foi precisamente para enfrentar esta dificuldade, diz Croca, que Bohr desenvolveu o seu

princípio de complementaridade que estabelece que a partícula tem uma natureza dual, umas vezes

exibindo o seu carácter corpuscular e outras vezes o seu carácter ondulatório, mas nunca

simultaneamente.

Abordemos o problema da medição nesta experiência. De acordo com a interpretação ortodoxa

da mecânica quântica, continua Croca, a partícula quântica é descrita por uma onda de probabilidade Ψ

que contém toda a informação sobre o sistema quântico. Esta onda vai em direcção ao ecrã com as duas

fendas. Aí, a onda inicial Ψ separa-se em duas ondas de probabilidades Ψ 1 e Ψ2 tal que Ψ = Ψ1 + Ψ2.

Estas duas ondas, vindas das fendas, propagam-se em direcção à região de detecção onde se sobrepõem.

O ecrã de detecção exibe, então, um padrão interferencial que demonstra a existência simultânea de

ambas as ondas.

Consideremos o problema de forma mais geral. Para se fazer uma medição quântica real é

necessário conhecer o estado do sistema, isto é, a função de onda Ψ e decompô-la como uma soma de

funções próprias do operador correspondente à propriedade física que pretendemos medir:

=c11c22...cnn...

Esta função Ψ que, de acordo com a interpretação ortodoxa, contém toda a informação sobre o

sistema, ao incidir num analizador como, por exemplo, um cristal ou um campo electromagnético (papel

desempenhado pelo ecrã com duas fendas), separa esta onda de probabilidade em muitas ondas de

probabilidade φn que são precisamente as funções próprias do operador. O número de ondas de

probabilidade φn depende do número de possíveis resultados da medição. A acção do analizador no

sistema quântico é descrita, no formalismo quântico, pelo operador aplicado à função de estado

decompondo-a em funções próprias.

Suponhamos que o nosso sistema quântico é um electrão e que a grandeza que pretendemos

medir é o seu momento. Neste caso, o operador a aplicar à função de estado do electrão é o operador

momento. Quando um dos muitos detectores do ecrã colocado em frente ao analizador é accionado,

obtemos um valor para o momento, digamos p3. Isto significa, de acordo com a interpretação ortodoxa,

que a onda de probabilidade φ3 se materializou naquela posição. Sob tais condições, todas as ondas de

probabilidade (φ1, φ2, φ3, …, φn, …) colapsaram instantaneamente em φ3. Por outras palavras, explica

Croca, antes da interacção com o detector, todas as funções φ n existem de facto e, no preciso momento em

que a medição é realizada, todas as ondas de probabilidade colapsam instantaneamente numa só. É o

chamado colapso ou redução instantânea do trem de ondas. Podia pensar-se que se trata de uma mera

forma de expressão: que o que efectivamente acontece é que o analizador teria transformado a função de

estado em φ3 cuja existência foi posta em evidência pelo clique no detector do ecrã. Nestas circunstâncias,

o colapso da função de onda não passaria de uma forma de expressão sem significado físico. Porém, se

este fosse o caso, seria impossível explicar os fenómenos interferenciais na experiência da dupla fenda

com apenas uma partícula, pelo que a existência simultânea de todas as ondas de probabilidade é

requerida pela interpretação ortodoxa. Assim, conclui Croca, qualquer medição quântica, na concepção

bohriana, implica a redução instantânea do pacote de ondas.

As relações de incerteza de Heisenberg como expressão matemática da complementaridade e o

formalismo quântico

Uma ferramenta adequada para uma forma de descrição complementar é oferecida, diz Bohr,

pelo formalismo quântico. Este formalismo, de acordo com Bohr, não permite uma interpretação

imagética, devido ao carácter das suas abstracções matemáticas, mas aponta directamente ao

estabelecimento de relações entre observações. Além disso, o formalismo “representa um esquema

puramente simbólico permitindo apenas previsões, na linha do princípio da correspondência, quanto a

resultados passíveis de serem obtidos sob condições especificadas por meio dos conceitos clássicos”535.

É de notar que, de acordo com a interpretação ortodoxa, uma vez que no domínio quântico não é

possível uma distinção exacta entre o comportamento do objecto e instrumento de medição, o sistema a

que o formalismo quântico deverá ser aplicado é a todo o conjunto constituído pelos instrumentos de

medição e partículas. É fundamental que todo o arranjo experimental seja tido em conta. Qualquer outra

peça introduzida na montagem experimental influenciaria de forma essencial o fenómeno em causa. O

que isto significa, de acordo com esta perspectiva, é a impossibilidade de subdivisão de um mesmo

fenómeno536.

No formalismo introduzido na mecânica quântica, as variáveis cinemáticas e dinâmicas da

mecânica clássica são substituídas por símbolos sujeitos a uma álgebra não comutativa que envolve a

constante de Planck em que

qp− pq=−1 h2

(p representa o momento e q uma coordenada de posição).

535N. Bohr, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 40.

536Cf. idem, ibidem, p. 50.

Através da representação dos símbolos por matrizes com elementos referentes às transições entre

estados estacionários, foi possível pela primeira vez uma formulação quantitativa do princípio da

correspondência537. Heisenberg, ao comparar as considerações relativas aos problemas observacionais

com as exigências do formalismo quântico, chamou a atenção para que aquela regra de comutação

impunha um limite recíproco para a fixação de duas variáveis conjugáveis, p e q , expresso pela relação

q p≈h

(em que ∆q e ∆q representam incertezas nas determinações destas quantidades).

Estas relações de incerteza propostas por Heisenberg pretendem, assim, constituir a expressão

matemática da complementaridade. “Estas circunstâncias”, dizia Bohr referindo-se à impossibilidade de

simultaneamente aplicar as leis de conservação do momento e energia aos processos atómicos e obter

uma detalhada coordenação espácio-temporal das partículas, “encontram expressão quantitativa nas

relações de indeterminação de Heisenberg as quais especificam a latitude recíproca para a fixação, em

mecânica quântica, das variáveis cinemáticas e dinâmicas requeridas para a definição do estado de um

sistema em mecânica clássica. De facto, a comutabilidade limitada dos símbolos através dos quais tais

variáveis são representadas no formalismo quântico corresponde à exclusão mútua dos arranjos

experimentais requeridos para a sua definição não ambígua”538. De acordo com Heisenberg, nota Bohr539,

o conhecimento passível de ser obtido acerca do estado de um sistema atómico irá envolver sempre uma

“indeterminação” peculiar.

Croca faz um esclarecimento importante acerca do significado das relações de incerteza cuja

incompreensão pode conduzir a mal-entendidos. Há, de facto, violações das relações de incerteza de

Heisenberg, mas que são, porém, irrelevantes do ponto de vista da teoria e desprovidas de significado

físico. As relações de incerteza, afirma Croca, “apenas proíbem a previsão de incertezas tais que o seu

produto é inferior a h após a medição”540. As relações de incerteza estão essencialmente ligadas ao

problema da medição. A possibilidade de fazer medições que, no passado, violaram as relações de

incerteza não afecta o seu significado. O que é exigido é que após a medição, após a interacção entre o

objecto quântico e o instrumento de medida, o produto das incertezas do espaço e do momento (ou

qualquer outro par de observáveis conjugados) verifiquem as relações, isto é, x ph .

Para que se perceba melhor, considere-se a seguinte experiência baseada num trabalho de

Andrade e Silva e que Croca apresenta541:

537Cf. idem, ibidem, p. 38.538idem, «Quantum Physics and Philosophy» (1958), in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7, Foundations of quantum

physics II (1933-1958), Kalckar, J. ed., North-Holland, Amsterdam, 1996, p . 312. 539Cf. idem, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in Atomic Physics

and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 39.

540J. Croca, op. cit. p. 37.541idem, ibidem, p. 36.

Uma fonte de electrões emite um electrão de cada vez em direcção a um monocromador. À saída

do monocromador a incerteza no momento é Δp. De acordo com as relações de incerteza de Heisenberg, a

incerteza na posição é Δx tal que x ph . O electrão está dirigido a um ecrã com um orifício e,

atrás dele, está um detector de transferência de electrões, isto é, um detector que detecta a passagem do

electrão através de uma pequena transferência aleatória de momento entre o electrão e o detector, mas que

não o aniquila. O detector e o orifício estão montados de tal forma que a incerteza na posição do electrão

será Δx'. Esta incerteza Δx' na posição é, como se pode ver, independente da incerteza no momento Δp

pois esta depende apenas do cromador (quanto melhor, menor a incerteza) e aquela depende do

dispositivo de detecção (orifício e detector). Desta forma, todo o arranjo experimental pode ser montado

de tal forma que, antes da interacção do electrão com o dispositivo de detecção, x ' p≪h , isto é,

que o produto entre as duas incertezas na posição e momento seja muito inferior ao limite imposto pelas

relações de Heisenberg. Porém, durante a interacção entre o electrão e o dispositivo detector em que

consiste a medição, a incerteza do momento do electrão dispersa de tal forma que quanto menor a

incerteza na posição, Δx', maior a incerteza Δp' no momento. Assim, no final, após a medição, o produto

das incertezas obedece à relação x ' p 'h .

Princípio da correspondência

O formalismo quântico, como vimos acima, apenas permite previsões de resultados passíveis de

serem obtidos sob condições especificadas por meios de conceitos clássicos. Os fenómenos, incluindo os

fenómenos quânticos, diz Bohr, só podem ser descritos em termos clássicos. Esta é a essência do

chamado princípio da correspondência.

A sua formulação, de acordo com Bohr, emergiu do objectivo de tomar a mecânica quântica

como uma generalização racional das teorias clássicas542. Assim, os resultados obtidos de acordo com a

teoria quântica no limite em que o quantum de acção é desprezável devem corresponder aos resultados

obtidos de acordo com a teoria clássica. Consideremos a transição entre estados estacionários no átomo.

Tudo o que a teoria nos pode informar é a probabilidade relativa da transição do electrão para cada um

dos estados estacionários e o único guia que permite estimá-las é o princípio da correspondência, “o qual

teve origem na procura da mais próxima conexão possível entre a descrição estatística dos processos

atómicos e as consequências esperadas a partir teoria clássica, as quais devem ser válidas no limite em

que as acções envolvidas em todos os estádios da análise do fenómeno são grandes comparadas com o

quantum universal”543.

Segundo Bohr, “é decisivo reconhecer que, por mais que o fenómeno transcenda o âmbito da

explicação física clássica, a descrição de todas as evidências deve ser expressa em termos clássicos” 544. O

motivo está relacionado com a questão central do problema da observação. “O argumento”, diz Bohr, “é

simplesmente que pela palavra «experiência» [experimento, “experiment”] referimo-nos a uma situação

em que podemos dizer aos outros o que fizemos e o que aprendemos e em que, portanto, a descrição do

arranjo experimental e dos resultados das observações deve ser expressa numa linguagem não ambígua

com uma aplicação adequada da terminologia da física clássica”545. Com este argumento, Bohr põe em

evidência a sua convicção de que uma comunicação não ambígua só é possível utilizando conceitos

clássicos.

Como vimos, as características corpusculares e ondulatórias da luz são complementares no

sentido de que ambas dão conta de atributos da radiação, mas que não podem ser postos em contradição

directa, diz Bohr, requerendo arranjos experimentais mutuamente exclusivos. Ao mesmo tempo, continua

Bohr, esta situação obriga-nos à renúncia de uma descrição causal e a ficar satisfeitos com leis

probabilísticas baseadas no facto de que a descrição electromagnética da transferência de energia se

mantém válida de um ponto de vista estatístico546. “Esta constitui uma aplicação típica do chamado

argumento da correspondência que expressa o empenho de utilizar com o maior alcance possível os

conceitos das teorias clássicas da mecânica e da electrodinâmica, apesar do contraste entre estas teorias e

o quantum de acção”547.

542Cf. N. Bohr, «The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory», in Nature (Supplement), Vol. 121 (Apr., 1928), Issue 3050, p. 584.

543idem, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 37.

544idem, ibidem, p. 39.545idem, ibidem.546Cf. idem, «Light and Life» (1933), in ibidem, p. 5. 547idem, ibidem, p. 5.

A complementaridade fora da física

Abordámos o ponto de vista da complementaridade aplicado ao domínio da física, que surge ao

nível quântico. Neste domínio, discutimos as experiências concebidas para a previsão do momento e da

posição de uma partícula em que estas duas grandezas se revelariam complementares (ou, mais

geralmente, em que uma descrição no espaço e no tempo se revelaria complementar a uma descrição em

termos dinâmicos) e discutimos a experiência da dupla fenda onde se evidencia a dualidade onda-

corpúsculo (isto é, a relação que se revela complementar, entre as propriedades ondulatórias e

corpusculares dos entes físicos).

Mas como o próprio Bohr afirma, o ponto de vista da complementaridade é bem mais geral, é

uma faceta comum a todo o conhecimento humano e que o estudo dos fenómenos atómicos teria posto em

evidência. Por esta razão, Bohr, pretendendo comprovar o nível de generalidade que atribui à

complementaridade, identifica outros domínios, para além da física, em que ela se revelaria – tanto em

domínios naturais como no domínio do pensamento.

Na biologia, um exemplo pode ser encontrado no estudo da vida. O estudo, a partir de um

determinado limite, de um organismo vivo implicaria acabar com a vida desse mesmo organismo:

“qualquer arranjo experimental com o qual pudéssemos estudar o comportamento dos átomos

constituintes de um organismo ao ponto de isto poder ser feito para átomos singulares […] excluirá a

possibilidade de manter o organismo vivo”548. Assim, o estudo da vida revelaria, segundo Bohr,

características de complementaridade: por um lado, a preservação da vida e, por outro, a subdivisão

necessária a qualquer análise física.

Apesar da profunda compreensão alcançada dos aspectos químicos e físicos de muitas reacções

biológicas, diz Bohr, a maravilhosa estrutura dos organismos está tão para além qualquer experiência

acerca da natureza inanimada que “nos sentimos mais longe do que nunca de uma explicação da vida

propriamente dita de acordo com aquelas linhas”549. As leis da biologia e as leis dos corpos inanimados

são complementares550. Isto colocar-nos-ia num dilema, considera Bohr. Daqui, e sob o ponto de vista da

complementaridade, Bohr conclui que a existência da vida em biologia deve ser considerada um “facto

elementar”, “não susceptível a análise ulterior”, da mesma forma que o quantum de acção em física, que

não pode ser derivado da mecânica. “A não possibilidade de análise da estabilidade atómica em termos

mecânicos apresenta uma próxima analogia com a impossibilidade de uma explicação química ou física

das funções peculiares características da vida”551. Assim, esta complementaridade revelada no estudo da

vida, leva Bohr a concluir que os organismos vivos manteriam escondido de nós o seu “último segredo”,

condu-lo à “renúncia da explicação da vida”552.

Na psicologia, também se verificam aspectos que Bohr caracteriza como complementares e que

548idem, «Biology and Atomic Physics» (1937), in ibidem, p. 20. 549idem, ibidem, pp15. 550Cf. idem, ibidem, p. 20. 551idem, «Light and Life» (1933), in ibidem, p. 9.552Cf. idem, ibidem, p. 9-11.

se relacionam igualmente com o problema da observação. Na introspecção, “é claramente impossível

distinguir exactamente entre os fenómenos propriamente ditos e a sua percepção consciente [...]”553.

Estamos a lidar com situações que, sob uma análise cuidada, se revelariam mutuamente exclusivas,

considera. Assim, a relação complementar que existe entre os resultados obtidos por diferentes arranjos

experimentais em física atómica é análoga, de um ponto de vista epistemológico, àquela que existe entre

“pensamento” e “sentimento”, diz Bohr.

Bohr, ao debruçar-se sobre as culturas humanas, também encontra pares complementares. Ao

comparar diferentes culturas humanas é possível encontrar a “relação tipicamente complementar” entre

instinto e razão, considera. “No que diz respeito à razão comparada com o instinto é preciso, acima de

tudo, perceber que nenhum pensamento humano adequado é imaginável sem o uso de conceitos […]. Este

uso de conceitos, de facto, não só está, em grande medida, a suprimir a vida instintiva, mas está, ainda

mais, numa relação exclusiva de complementaridade com a exibição de instintos herdados”554. Bohr

encontra, assim, no facto de não ser detectado nos animais inferiores pensamento consciente (no nosso

sentido da palavra) uma razão para aquilo que considera ser a sua surpreendente superioridade em relação

ao homem no que diz respeito à preservação e propagação da vida. Também a grande capacidade de

orientação na floresta ou deserto (e aparente desorientação nas sociedades mais civilizadas) dos povos

primitivos se deveria ao não recurso por parte destes povos ao pensamento conceptual.

O estudo das culturas humanas, tal como na física ou na psicologia, também se depara com o

problema da observação onde a interacção entre objecto e instrumento de medida ou “a inseparabilidade

do conteúdo objectivo e o sujeito de observação”555 não deve ser ignorada. Não se tratando, é certo, de um

tipo de complementaridade como o verificado na física em que as relações são absolutamente exclusivas

– pois as diferentes culturas não são autónomas, relacionam-se entre si – as diferentes culturas humanas

são, considera Bohr, complementares entre si.

Ao nível do pensamento, mais concretamente do processo de construção do conhecimento,

outras relações complementares surgiriam entre a análise e a síntese, entre a observação e a definição.

Bohr refere, por exemplo, aquilo que diz ser a “relação mutuamente exclusiva que existirá sempre entre o

uso prático de qualquer palavra e a tentativa de uma sua definição estrita”556.

3.Crítica à complementaridade

O princípio da complementaridade introduzido por Bohr emerge de uma dificuldade encontrada

pelos cientistas em resolver um “dilema” com que se depararam. A complementaridade foi a solução

encontrada por Bohr para lidar com uma contradição surgida, posta a descoberto pelo avanço da ciência.

553idem, «Natural Philosophy and Human Cultures» (1939), in ibidem, p. 27.554idem, ibidem, p. 28.555idem, ibidem p. 30.556idem, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in ibidem, p. 52.

A história do conhecimento científico fornece-nos inúmeros exemplos de contradições desta natureza. Um

breve tratamento do papel das contradições no progresso científico foi o que procurei fazer no primeiro

ponto deste capítulo: a resolução das contradições entre a ciência e o desenvolvimento das forças

produtivas e das contradições internas ao próprio corpo de conhecimentos (seja na teoria, seja entre a

teoria e a experiência) são o motor para a progressão do conhecimento.

A contradição entre o carácter ondulatório e corpuscular da matéria parece-me ser o foco, a raíz,

do problema em questão. Se a ciência demonstrava que a radiação electromagnética eram ondas e as

partículas atómicas eram corpúsculos, tínhamos agora a radiação a manifestar um comportamento

corpuscular e as partículas a demonstrar um comportamento ondulatório. A matéria era, ao mesmo tempo,

onda e corpúsculo. Mas, para dificultar, as experiências não evidenciam nunca esse carácter

simultaneamente: um dado arranjo ora evidencia o carácter ondulatório, ora o carácter corpuscular. Esta

contradição objectivamente existente, manifestava-se agora na teoria (isto é, aquela que é uma

contradição material, reflectia-se agora idealmente).

A forma como Bohr lidou com essa contradição não está, nem podia estar, desligada das suas

ideias mais gerais, do ambiente cultural em que se inseria, das suas influências filosóficas. Procurei trazer

para este trabalho, sobretudo através das investigações de Rui Moreira, o carácter dessas influências. A

este propósito, Engels diz que “os cientistas da natureza podem adoptar a atitude que quiserem, que estão

ainda sob o domínio da filosofia”557. Não há conhecimento desprovido de filosofia, consciente ou

inconscientemente. Ou, de forma mais geral, não há conhecimento sem subjectividade, na medida em

que, como põe Barata-Moura, ao reflectir o mundo, a consciência estabelece-se necessariamente numa

esfera que, por intermédio das mais variadas formas ideológicas, se expressa e determina idealmente.

Assim, diz o autor, “toda a actividade cognoscitiva humana não pode deixar de ser encarada no horizonte

desta sua imersão e emersão do plano ideológico em geral”; não está dissociada de um qualquer sistema

de representações da consciência. É, porém, importante neste momento dissipar eventuais dúvidas: o

reconhecimento de que toda a produção da consciência é necessariamente subjectiva, não anula a

realidade objectiva como seu fundamento primordial, não afecta o conteúdo material do conhecimento, o

carácter objectivo da verdade nem o seu fundamento material558.

A questão está, no entanto, em saber, como dizia Engels, se os cientistas “querem ser dominados

por uma má filosofia da moda ou por uma forma de pensamento teórico que assenta no conhecimento da

história do pensamento e das suas realizações”559. Os cientistas não podem, continua Engels, progredir

sem pensamento e para isso precisam de categorias lógicas [“thought determinations”, determinações do

pensamento], mas tomam estas categorias irreflectidamente da consciência comum. São, por isso, muitas

vezes escravos de filosofias obsoletas, de leituras fragmentárias, acríticas e não sistemáticas de todo o

557F. Engels, Dialectics of Nature, in Karl Marx-Frederick Engels Collected Works, New York, International Publishers, v.25, 1987, p. 491.

558Cf. J. Barata-Moura, Ideologia e Prática, Lisboa, Editorial Caminho, 1978, p. 74-76.559F. Engels, op. cit., p. 491.

tipo. Mesmo os que injuriam a filosofia, não deixam de estar sob o seu jugo; mas, infelizmente, na

maioria dos casos, sob o jugo das piores relíquias vulgarizadas das piores filosofias560. A obra de Lénine

Materialismo e Empiriocriticismo, que trato vastamente neste trabalho, é toda ela uma exposição das

razões por que deve a ciência avançar pondo conscientemente na sua base o reconhecimento da

existência, e do primado, da realidade objectiva e da possibilidade de esta ser adequadamente reflectida

pela consciência dos homens; uma demonstração das limitações de uma visão mecanicista, da

importância do conhecimento da dialéctica e dos prejuízos para a ciência que traz a sua incompreensão.

Ora, sou precisamente levada a concluir que a ideia da complementaridade assenta fundamentalmente

numa não consideração (ou numa consideração incorrecta) da dialéctica.

Bohr diz que a complementaridade é a única forma de tornar logicamente compatíveis resultados

aparentemente contraditórios. As evidências ter-nos-iam levado a concluir da existência de fenómenos

impossíveis de compatibilizar numa única “imagem”. Só a complementaridade tornaria possível uma

descrição racional desses fenómenos. Assim, as características ondulatórias e corpusculares da matéria

seriam complementares, bem como as grandezas cinemáticas e dinâmicas. Essa complementaridade,

exibida na física e em outros domínios do conhecimento, a existência dessas características que se

revelavam mutuamente exclusivas, obrigariam a assumir como elementares, como não sujeitos a

ulteriores análises, factos como a existência do quantum ou a existência da vida. O que Bohr faz aqui é

traçar limites para o conhecimento. No entanto, Bohr ressalva que podemos sempre construir novas

experiências que revelariam novos fenómenos, razão pela qual isto não imporia restrições ao

conhecimento. Mas isto tem que ver precisamente com o valor que Bohr atribui à teoria científica, àquilo

que ele entende ser a tarefa da ciência, àquilo ele põe como requisitos de cientificidade e ao seu

entendimento sobre a possibilidade de um adequado reflexo da realidade objectiva. Parte considerável da

resposta a esta questão situa-se na relação entre fenómeno e essência. Esta questão do valor da teoria será

tratada mais à frente. Para já, trataremos um outro aspecto.

Tomemos o chamado dualismo onda-corpúsculo. Bohr – muito importante – reconhece e

identifica a contradição como tal. No entanto, não a resolve. Fixa-a. Bohr absolutiza a contradição

existente entre onda e corpúsculo, lidando com ela de forma metafísica, impedindo, assim, a sua negação

dialéctica, a sua superação561.

560Cf. idem, ibidem.561 Engels destaca a importância da lei da negação da negação e, face a incompreensões e objecções de pendor

metafísico, esclarece o seu significado e conteúdo. Segundo Engels, esta lei é extremamente geral e, por essa razão, com um grande alcance. É uma lei do desenvolvimento da natureza, da história e do pensamento. O cálculo integral e a germinação de um fruto a partir de uma semente são exemplos de negação da negação. Mas não digo nada acerca de cada processo particular, não acrescento nada, se apenas afirmar isso, diz Engels, ridicularizando tal perspectiva. “Isso, no entanto, é o que os metafísicos estão constantemente a imputar à dialéctica. Quando eu digo que todos esses processos são uma negação da negação, eu reuno-os sob esta lei do movimento e, por esta mesma razão, deixo de fora as peculiaridades específicas de cada processo individual”. A dialéctica, contudo, “não é nada mais do que a ciência das leis gerais do movimento e desenvolvimento da natureza, da sociedade humana e do pensamento”.Engels presta um outro esclarecimento importante que nos interessa particularmente para a compreensão do caso específico que estamos a tratar: negação, na dialéctica, não significa apenas dizer não. Os metafísicos objectam contra a dialéctica que aquelas não são verdadeiras negações pois também nego um grão de cevada ou um insecto

A descoberta de que as ondas apresentavam comportamento corpuscular e de que os corpúsculos

apresentavam comportamento ondulatório é o desmoronar de uma daquelas linhas rígidas e fixas na

natureza de que falava Engels. A este respeito dizia Engels: “O reconhecimento de que estes

antagonismos e distinções, contudo encontrados na natureza, têm apenas uma validade relativa e que, por

outro lado, a sua rigidez imaginada e validade absoluta foram introduzidos na natureza apenas pelas

nossas mentes reflexivas [reflexive minds] – este reconhecimento é o cerne da concepção dialéctica da

natureza”562. Perante o desmoronar dessa linha rígida na natureza, Bohr manteve-a fixa na teoria. Ou

melhor, perante o avanço da ciência que demonstrava que a validade da distinção entre onda e corpúsculo

era apenas relativa, Bohr, que não se muniu das leis da dialéctica, estabeleceu uma linha rígida entre onda

e corpúsculo: ou onda ou corpúsculo. Isto é característico do pensamento metafísico. Como diz Engels,

“são, contudo, precisamente os antagonismos polares apresentados como irreconciliáveis e insolúveis, as

linhas de demarcação e distinções de classe forçosamente fixadas, que têm dado à moderna ciência da

natureza teórica o seu carácter restrito e metafísico”563. Engels introduz aqui um significativo comentário

quanto ao papel da presença de uma filosofia materialista dialéctica: é possível chegar ao reconhecimento

da validade relativa daquelas distinções “porque a acumulação de factos das ciências naturais a isso nos

compele; mas chegamos mais facilmente se abordarmos o carácter dialéctico destes factos equipados com

a compreensão das leis do pensamento dialéctico”564.

Portanto, o dualismo onda-corpúsculo da forma como Bohr o apresenta, bem como a todos os

outros pares complementares que mutuamente se excluem, é característico do pensamento metafísico.

Tratam-se de “antíteses absolutamente irreconciliáveis”. Porque o pensamento de Bohr não foi guiado por

uma abordagem dialéctica, caiu numa análise restrita, limitada, caiu em contradições insolúveis e, além

do mais, fixadas para todo o sempre, na medida em que as apresenta como uma questão de “princípio”.

Engels dá o exemplo das distintas concepções acerca da fronteira entra a vida e a morte, da

diferença entre a abordagem dialéctica e metafísica. É de particular interesse referirmo-lo, não só pela

lição que o exemplo comporta, mas porque, além disso, esta questão e também directamente tratada por

Bohr. Mas peguemos na citação um pouco mais atrás porque o que aqui Engels diz é extraordinariamente

instrutivo para o caso em apreço:

“Para o metafísico, as coisas e os seus reflexos mentais, ideias, são isoladas, são consideradas

uma após a outra e separadamente uma da outra, são objectos de investigação fixos, rígidos,

dados de uma vez por todas. Ele pensa em antíteses absolutamente irreconciliáveis. […]. Para ele,

uma coisa existe ou não existe; uma coisa não pode ser ao mesmo tempo ela própria e outra

quando o piso ou quando nego a frase “uma rosa é uma rosa” dizendo que “uma rosa não é uma rosa”. Mas, esclarece Engels, não devo apenas negar, mas também superar a negação. Devo constituir a primeira negação de forma a tornar possível a segunda. Se triturei um grão de cevada, levei a cabo a primeira parte da acção, mas tornei impossível a segunda. “Cada tipo de coisas tem, portanto, uma forma particular de ser negado de tal forma que dê origem a um desenvolvimento e sucede o mesmo com cada concepção ou ideia”. Cf. F. Engels, Anti-Dühring, in Karl Marx-Frederick Engels Collected Works, New York, International Publishers, v.25, 1987, p. 131-132.

562idem, ibidem, p. 14. 563idem, ibidem. 564idem, ibidem.

diferente. Positivo e negativo excluem-se absolutamente um ao outro; causa e efeito estão em

rígida antítese um para com o outro.

À primeira vista, este modo de pensamento parece-nos muito luminoso porque é o do chamado

senso-comum. […]. E o modo de pensamento metafísico, justificável e até necessário como é

num número de domínios cuja extensão varia de acordo com a natureza do objecto particular sob

investigação, mais cedo ou mais tarde atinge um limite, para além do qual se torna unilateral,

restrito, abstracto, perdido em contradições insolúveis. Na contemplação das coisas individuais,

esquece a ligação entre elas; na contemplação da sua existência, esquece o início e o fim da sua

existência; do seu repouso, esquece o seu movimento. Vê as árvores, mas não vê a floresta.

Para os objectivos do dia a dia, nós sabemos e podemos dizer, por exemplo, se um animal está

vivo ou não. Mas, após investigação mais próxima, descobrimos que isto é, em muitos casos, uma

questão muito complexa, tal como os juristas sabem muito bem [Engels desenvolve aqui acerca

do problema do aborto]. É simplesmente impossível determinar absolutamente o momento da

morte, já que a fisiologia prova que a morte não é um fenómeno momentaneamente instantâneo,

mas um processo muito prolongado.

Da mesma forma, todo o ser orgânico é em todos os momentos o mesmo e não o mesmo; em todo

o momento assimila matéria fornecida de fora e vê-se livre de outra matéria; em todo o momento,

algumas células do seu corpo morrem e outras se reconstroem de novo […].

Para além disso, descobrimos após investigação mais profunda que os dois pólos de uma antítese,

positivo e negativo, por exemplo, são tão inseparáveis como são opostos e que, apesar da sua

oposição, se interpenetram mutuamente […].

Nenhum destes processos e modos de pensamento entra no quadro do raciocínio metafísico [...]”565.

A complementaridade de Bohr é o resultado da negação da possibilidade de compreensão da

contradição. Esta posição (a da negação da possibilidade de compreensão da contradição), como diz

Barata-Moura, caracteriza grande parte das posições teóricas não dialécticas. A contradição não é, no

quadro do pensamento metafísico, compreensível e/ou deve ser removida como exigência de

racionalidade. Como Bohr não consegue resolver a contradição com que se deparou, ela própria reflexo

da relação objectiva entre onda e corpúsculo, introduz, com o objectivo de lidar com ela no quadro das

suas exigências de “racionalidade”, a figura da complementaridade com o objectivo de alcançar uma

descrição onde os pólos contraditórios não sejam colocados em conflito, onde não se interpenetrem.

Barata-Moura caracteriza aquelas posições não dialécticas a que alude: “Poderiam alguns pensar,

porventura, que a contradição se nos apresenta como inimiga declarada da compreensão e da

inteligibilidade. Se há contradição – procurariam eventualmente argumentar – é porque ainda se não

encontra verdadeiramente estabelecida a inequívoca luminosidade do pensamento, a única que é capaz em

termos de coerência e de encadeamento, traçar as linhas mestras da explicação”566. Com esta forma de

raciocínio, diz, que povoa grande parte do lugar que à dialéctica é concedido por alguns pensadores

565idem, ibidem, p. 22-23.566J. Barata-Moura, Totalidade e Contradição, Acerca da Dialéctica, Lisboa, Livros Horizonte, 1977, p. 167.

idealistas, procura-se atentar contra o carácter objectivo das contradições. Um dos artifícios, diz, é a

redução das contradições reais (objectivas) à não contrariedade (lógica) do pensamento. Sucede, porém,

que contradição dialéctica e contradição lógica não são a mesma coisa. Como explica Barata-Moura a

primeira existe, antes de mais na realidade objectiva e, mesmo quando se manifesta ao nível da

consciência, guarda esse fundamento material objectivo. A segunda constitui-se ao nível do pensamento

sem que lhe corresponda uma contradição material e, entre estas, estão as contradições lógicas formais

que se estabelecem ao nível do raciocínio falso567.

Portanto, se a realidade objectiva é ela própria contraditória, essas contradições transportam-se

para a teoria que pretenda ser um reflexo adequado da realidade objectiva. Mais uma vez, a questão volta

inevitavelmente a incidir num aspecto que, como dissemos, será tratado mais adiante que é a posição de

Bohr quanto ao conteúdo objectivo das teorias científicas: Bohr não perguntou pelo fundamento real

objectivo a que correspondia a contradição onda-corpúsculo.

Deter-nos-emos agora num outro argumento que Bohr retira directamente da ideia da

complementaridade que importa explorar um pouco melhor. De acordo com Bohr, o quantum de acção

não pode ser explicado em termos mecânicos, da mesma forma que, por exemplo, a vida não pode ser

explicada em termos químicos ou físicos. Isto dever-se-ia ao facto de as leis que regem cada um daqueles

domínios serem complementares entre si: assim, o quantum de acção e a vida teriam de ser considerados

como factos elementares não sujeitos a ulterior análise, escondendo de nós o seu último segredo.

Ora, de uma observação correcta, Bohr retira uma conclusão errada. E, mais uma vez, é levado a

essa conclusão por não considerar devidamente a dialéctica, por, em última instância, absolutizar os

pólos.

Vejamos, de passagem e a título de curiosidade, uma passagem do Anti-Dühring que acaba por

não ser totalmente desligada do problema que tratamos. Bohr diz, como vimos, que não é possível

compreender a vida ou o quantum porque eles não podem ser explicados em termos mecânicos ou

químicos. Dühring diz que não há ponte na mecânica racional entre o estático e o dinâmico. De facto,

responde Engels, “a mente que pensa metafisicamente é absolutamente incapaz de passar da ideia de

repouso para a ideia de movimento porque a contradição apontada em cima [Engels explicara porque é

que o movimento é uma contradição] bloqueia o seu caminho. Para ela, o movimento é simplesmente

incompreensível porque é uma contradição”568.

Retomando: quando Bohr afirma que o quantum não pode ser explicado em termos mecânicos e

a vida em termos físicos ou químicos está a ter em devida conta o carácter específico de cada uma das

formas de movimento (entendido como a mudança em geral e não apenas como a mudança de lugar)

presentes na natureza. Está, justamente, a não reduzir umas formas de movimento às outras, está a não

reduzir diferenças qualitativas (que existem) a diferenças quantitativas. Foi o que precisamente se passou

567Cf. idem, ibidem, p. 169-170.568F. Engels, Anti-Dühring, in Karl Marx-Frederick Engels Collected Works, New York, International Publishers,

v.25, 1987, p. 111.

com o mecanicismo do século XVIII que procurou explicar todas as formas de movimento – biológico,

social, etc. – através do movimento mecânico, através da simples mudança de lugar. Procurou reduzir as

formas superiores às formas inferiores de movimento. Não sendo possível reduzir formas de movimento

qualitativamente diferentes umas às outras, é certo que elas estão interligadas. E Bohr, em vários

momentos, também reconhece isto, em certa medida. Estão interligadas e emergem umas das outras. Na

existência de formas de movimento qualitativamente diferentes reside, aliás, a razão para a existência das

diferentes ciências, cada uma estudando uma forma de movimento (ou formas interligadas)569. Engels, ao

pôr aquela questão, acrescenta:

“isto não é dizer que cada uma das formas superiores de movimento não está sempre necessariamente

ligada a qualquer movimento mecânico (externo ou molecular) real, tal como as formas superiores de

movimento simultaneamente produzem outras formas e tal como a acção química não é possível sem a

mudança de temperatura e mudanças eléctricas, a vida orgânica sem mudanças mecânicas, moleculares,

químicas, térmicas, eléctricas, etc. Mas a presença destas formas subsidiárias não esgota a essência da

forma principal em cada caso. Um dia poderemos certamente “reduzir” experimentalmente o pensamento

ao movimento molecular e químico no cérebro; mas isso esgota a essência do pensamento?”570

Contudo, uma coisa é o reconhecimento de que cada domínio da natureza, de que cada forma de

movimento, tem as suas próprias leis, que a qualidade não pode ser reduzida à quantidade; uma coisa é o

reconhecimento de que todas essas formas de movimento estão interligadas e que isso não esgota a

essência (e especificidade) de cada uma delas, de que a presença de formas acessórias não esgota a

essência da forma principal. Outra coisa é extrapolar a partir daí para a conclusão de que existe um limite

definitivo para a compreensão dessas formas de movimento. O que Bohr faz é, reconhecendo essa

especificidade e essa interligação, por causa da primeira, impor limites ao conhecimento da essência da

forma principal em causa. Isto é, porque a vida não é redutível às leis da física ou da química – mesmo

que as leis da física nos ajudem a estudar o fenómeno da vida – há um limite a partir do qual não

conhecemos a vida.

Ao fazê-lo, Bohr não está a colocar e resolver dialecticamente a questão da relação entre essas

formas de movimento e a do conhecimento que temos delas. Engels dizia que “uma vez que a conexão

evolucionária geral da natureza foi já demonstrada, um arranjo externo de elementos postos lado a lado é

tão inadequado como as transições dialécticas artificialmente construídas de Hegel. As transições devem

fazer-se por si mesmas, devem ser naturais. Tal como uma forma de movimento se desenvolve de outra,

assim os seus reflexos, as várias ciências, devem emergir necessariamente umas das outras” 571. Bohr traça

um limite artificial. Além disso, mais do que interligadas, as diferentes formas de movimento

desenvolvem-se umas a partir das outras.

Bohr, não está também a colocar e resolver dialecticamente a questão da correlação entre a

verdade absoluta e relativa, questão para a qual vimos acima Lénine chamar a atenção. Isto é, não está a

569Cf. idem, Dialectics of Nature, in ibidem, p. 528. 570idem, ibidem, p. 527. 571idem, ibidem, p. 529.

ter em conta que, sendo “historicamente condicionais os limites da aproximação dos nossos

conhecimentos em relação à verdade objectiva, absoluta”, “é incondicional a existência desta verdade, é

incondicional que nós nos aproximamos dela”572. Nem a matéria se esgota, nem há últimos segredos como

aqueles que Bohr diz existir.

Um terceiro aspecto a analisar, que Bohr põe em ligação directa com a complementaridade,

colocando-o, aliás, na sua base é a questão da observação que é uma questão que estabelece pontes com a

questão da relação sujeito-objecto. Segundo Bohr, o facto de, em mecânica quântica, a interacção entre o

objecto e instrumento de medida ser, por princípio, incontrolável, impõe que não se possa falar de um

comportamento independente do objecto em relação ao instrumento de medição. Cria-se, assim, uma

união inseparável, uma unidade indivisível e indiferenciada, para além da qual não é possível ir. Trata-se

de um “limite absoluto” (palavras de Bohr). Para lidar com esta nova situação na física, seriam

necessários novos meios lógicos, o que seria oferecido pela complementaridade. Como vimos, a

complementaridade traduziria, assim, o facto de que “apenas a totalidade dos fenómenos esgota a

informação possível acerca dos objectos” [palavras de Bohr]. A palavra fenómeno, diz Bohr, passaria

então a designar “exclusivamente […] as observações obtidas sob circunstâncias específicas, incluindo

uma descrição de todo o arranjo experimental”573.

Daqui não se pode concluir que Bohr esteja a preconizar a criação dos fenómenos pela

consciência do observador: quando se fala da interacção entre objecto e instrumento de medida, está-se a

falar de interacções materiais entre sistemas materiais, que existem objectivamente. Bohr, em rigor,

também não está a negar explícita e imediatamente a realidade objectiva, isto é, a existência de entes

quânticos independente da interacção com o instrumento de medida. O que Bohr afirma é que não se pode

falar dela, isto é, estabelece o limite para além do qual não é possível conhecê-la: não se pode conhecer

nada sobre os entes quânticos para além do que é dado positivamente na sua interacção com os

instrumentos. O que podemos conhecer é o fenómeno e nada para além dele. (Mais à frente trataremos

das implicações epistemológicas deste entendimento).

No entanto, e para além disso, o fenómeno, de acordo com Bohr, só o é quando é interacção com

o instrumento de medida, isto é, carece, para que o seja, de intervenção humana. Os fenómenos só são

quando são fenómenos para os sujeitos. Temos assim, a realização da experiência, a prática, como

instituidora do fenómeno. Na medida em que o fenómeno é sempre relativo a um dado arranjo

experimental, ele é fenómeno sempre e só num quadro correlacional que passa a constituir a instância

primária e instituinte. Portanto, num plano ontológico, isto significa que Bohr toma as determinações do

objecto como fundamentalmente dependentes da posição destas pela prática do sujeito. As determinações

do ente quântico – o objecto – supõem a realização da experiência – a prática – como condição de

572V.I. Lénine, Materialismo e Empiriocriticismo, Notas Críticas Sobre uma Filosofia Reaccionária, Lisboa, Moscovo, Edições Avante-Edições Progresso, 1982, p. 102.

573N. Bohr, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 64.

possibilidade. Isto torna-se particularmente evidente na questão do colapso instantâneo do trem de ondas.

Conforme vimos acima a partir da exposição de José Croca da experiência da dupla fenda, segundo a

interpretação ortodoxa da mecânica quântica, antes da realização da experiência existem muitas ondas de

probabilidade que interferem entre si (tantas quanto os resultados possíveis da medição); quando a

partícula é detectada, todas as ondas de probabilidade colapsam, materializam-se, numa só que

corresponde ao resultado da medição. Por aqui vemos que, no quadro da interpretação ortodoxa, é a

realização da experiência que determina o ente quântico que existe fundamentalmente indeterminado.

Em Ontologias da «Práxis» e Idealismo, Barata-Moura trata aquilo que identifica como uma

“matriz de solução”, que designa por “ontologias da prática”, com a qual procurei confrontar os textos de

Bohr. Penso ter identificado muitos elementos dessa matriz na interpretação bohriana da mecânica

quântica como se poderá constatar tendo em conta o que acima foi dito. As “ontologias da prática”

partilham um suposto fundamental que é o de “atribuírem uma função constitutiva (em termos finalmente

ontológicos, se bem que nem sempre desde logo claramente expressos e admitidos) à actividade humana”574. Estas ontologias da prática, como o autor mostra, encontram-se bem mais enredadas em supostos

idealistas do que as suas formulações deixam transparecer. Assim, chama a atenção, é preciso procurar os

supostos idealistas não só nas concepções que tradicionalmente repousam na base do primado da

consciência, da teoria ou da representação, mas também, eventualmente, nas que assentam na prática575.

Há um idealismo da prática. Há idealismo quando se procura antepor ao real uma condição subjectiva

(mesmo que em correlação) de possibilidade576. Ora, “essa subjectivação do real pode revestir a forma da

aberta proclamação da anterioridade (ontológica) do sujeito, mas pode também procurar acobertar-se –

como contemporaneamente é mais frequente – por detrás das mais diversas modalidades e variantes de

correlacionalidade, sem que o seu estatuto de condição possibilitadora da materialidade em geral se veja

posto em causa”577. E essa “nova síntese” pode até nem ser apresentada como uma operação do

pensamento, mas sim – e é o que nos interessa para o caso de Bohr em apreço – material. No entanto, a

materialidade, do ponto de vista ontológico, diz Barata-Moura, não é como tal dependente de uma prática

que se lhe anteponha como condição de possibilidade578.

A interpretação de Bohr, em geral, e a forma como Bohr trata o problema da observação, em

particular, insere-se nessa tendência de “atenuar a radicalidade ontológica da materialidade – existência

objectiva – do real na sua concreção, colocando-o na dependência ou órbita de uma instância mais

originária, de natureza mais acentuadamente teórica ou prática […] que se assume declaradamente ou não

como sua condição ontológica de possibilidade”579. No caso de Bohr, é a experiência que, de interacção

material entre objecto e instrumento de medida, se vê convertida em condição de possibilidade. Recorde-

se, por exemplo, a definição de fenómeno dada por Bohr: a existência de fenómenos quânticos pressupõe

574J. Barata-Moura, Ontologias da «Práxis» e Idealismo, Lisboa, Editorial Caminho, 1986, p. 112.575Cf. idem, ibidem, p. 16.576Cf. idem, ibidem, p. 148.577idem, ibidem, p.169.578Cf. idem, ibidem, p. 176. 579idem, ibidem, p. 163.

necessariamente a interacção com o instrumento de medida.

É preciso clarificar: não há dúvida de que a medição exige uma interacção de algum tipo entre o

objecto e o instrumento de medida. Mas, como põe Barata-Moura, uma coisa é o reconhecimento

(correcto) da existência da intervenção de actividade humana no conhecimento (quer em termos

estritamente gnosiológicos quer em termos ideológicos). Outra coisa é, a partir daí, pretender

(incorrectamente) sugerir que, então, também a própria objectividade, também a própria materialidade,

como tais, são objectivo-dependentes, são subjectivamente instituídas580.

Vimos também que Lénine, em Materialismo e Empiriocriticismo, aborda a chamada

“coordenação de princípio” de Avenarius581, segundo a qual haveria uma coordenação indissolúvel entre o

Eu e o não-Eu. Está aqui um exemplo de um tipo de tal correlação que se pretende originária visando

constituir uma tentativa de dissolução da materialidade. Para isto chamou Barata-Moura também a

atenção582. Recordemos Avenarius: “Nenhuma descrição completa do que é dado (ou encontrado por nós)

pode conter o meio sem um Eu do qual esse meio seja o meio, pelo menos sem o Eu que descreve o

encontrado. O Eu é chamado termo central da coordenação, e o meio contratermo”583. Destas teses disse

Lénine, como também vimos, conterem exactamente a mesma essência dos argumentos do idealismo

subjectivo e chamou precisamente a atenção para que o conceito de experiência pode ser utilizado de

forma idealista. Será, interessante comparar com os argumentos de Bohr: o fenómeno deve ser entendido

como o conjunto constituído pelo objecto e instrumento de medida, o fenómeno é indivisível e fechado,

não se pode penetrar a realidade para além desta união. É certo que os intentos de Avenarius acabam por

ser mais claros, mas a essência é a mesma. E também é certo que o Eu de Avenarius pode ser entendido

como a consciência do sujeito, enquanto que no caso de Bohr aquela união se dá entre sistemas materiais.

Mas, como vimos também, antepor uma correlacionalidade mesmo que ela seja estabelecida com uma

prática, material, isso não deixa de conter uma exigência de uma intervenção subjectiva como condição.

Como diz Barata-Moura, aquelas “figuras de uma pseudo-superação do idealismo” conservam “o real na

dependência ontológica de uma estrutura subjectiva instituinte, pouco importando para o essencial se ela é

declarada prática e intersubjectiva, se teórica e privada”584.

O idealismo destas concepções, como bem nota Barata-Moura, “começa por consistir na

colocação dessa instância correlacional como o terreno inultrapassável, não apenas do conhecimento, em

geral, mas fundamentalmente do ser, o qual se vê, desta maneira oblíqua, liminarmente «des-

materializado» e, nos termos da ontologia para o efeito aceite e praticada, identificado como o domínio

aparecente da mera «objectualidade» experimentada”585. Colocar, como Bohr faz, aquela “instância

correlacional” de partícula e instrumento de medida como “terreno inultrapassável”, como limite absoluto

580Cf. idem, ibidem, p. 167. 581V.I. Lénine, op. cit., p.50-56.582Cf. J. Barata-Moura, Sobre Lénine e a Filosofia, a Reivindicação de uma Ontologia Materialista Dialéctica com

Projecto, Lisboa, Editorial “Avante!”, 2010, p. 90.583R. Avenarius cit. por V.I. Lénine, op. cit. , p. 51.584J. Barata-Moura, Ontologias da «Práxis» e Idealismo, Lisboa, Editorial Caminho, 1986, p. 176, p. 109.585idem, Sobre Lénine e a Filosofia, a Reivindicação de uma Ontologia Materialista Dialéctica com Projecto,

Lisboa, Editorial “Avante!”, 2010, p. 91.

a partir do qual não se pode inquirir mais, tem implicações não só epistemológicas, mas também

ontológicas.

Um quarto aspecto sobre o qual a crítica à interpretação bohriana da mecânica quântica não pode

fugir (e que Bohr coloca na base da ideia de complementaridade) incide no mesmo problema

observacional e experimental, mas sob um outro ângulo. É difícil não reconhecer na posição de Bohr

tendências operacionalistas quando diz que “qualquer fenómeno atómico é fechado no sentido em que a

sua observação é baseada em registos obtidos por meio de aparelhos de amplificação adequados com um

funcionamento irreversível tal como, por exemplo, marcas permanentes numa placa fotográfica causadas

pela penetração dos electrões na emulsão. A este respeito, é importante compreender que o formalismo

quântico permite aplicações bem definidas referentes apenas a tais fenómenos fechados” 586. Ou quando

insiste, repetindo que “a informação respeitante a objectos atómicos consiste apenas nas marcas que eles

fazem nos instrumentos de medida, como por exemplo, um ponto produzido pelo impacto de um electrão

numa placa fotográfica colocada no arranjo experimental. A circunstância de tais marcas serem devidas a

efeitos de amplificação irreversíveis confere aos fenómenos um carácter peculiarmente fechado[...]”587.

Ou quando refere que “a descrição não ambígua dos próprios fenómenos quânticos deve, em princípio,

incluir uma descrição da todas as características relevantes do arranjo experimental”588. Ou “todo o uso

não ambíguo de conceitos espácio-temporais na descrição dos fenómenos atómicos está confinado ao

registo das observações que se referem a marcas numa placa fotográfica ou a similares efeitos de

amplificação praticamente irreversíveis [...]”589. E ainda: “a descrição [account] consiste, em ultima

análise, no estabelecimento de séries não ambíguas de conexões entre o comportamento do objecto e as

hastes e relógios de medição que definem o sistema de referência envolvido na descrição espácio-

temporal”590.

O operacionalismo chega inelutavelmente a conclusões idealistas subjectivas: se nos conceitos

não conhecemos outra coisa que não sejam as operações de medida, o reconhecimento da existência dos

próprios objectos, independentemente dos procedimentos da medição, perde o seu sentido591. Para Bohr,

isto pode não ter uma validade em todos os casos, na medida em que não faz esta exigência no domínio

de estudos da mecânica clássica, mas tem certamente na mecânica quântica (“a informação respeitante a

objectos atómicos consiste apenas nas marcas que eles fazem nos instrumentos de medida”). E, não

esqueçamos, para Bohr, a mecânica quântica apenas teria deixado a descoberto características presentes,

586N. Bohr, «Unity of Knowledge» (1967), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 73.

587idem, «Physical Science and the Problem of Life» (1949), in ibidem, p. 98.588idem, «Quantum Physics and Philosophy» (1958), in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7, Foundations of quantum

physics II (1933-1958), Kalckar, J. ed., North-Holland, Amsterdam, 1996, p. 311.589idem, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in Atomic Physics and

Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 51.

590idem, «Causality and Complementarity», in Philosophy of Science, Vol. 4, no. 3 (Jul., 1937), p. 291.591Cf. Dictionnaire Philosophique, dir. I. Frolov, Edition du Progrès, Moscovo, 1985.

apesar de desprezáveis, noutros domínios do conhecimento.

Aquela indivisibilidade, aquele enclausuramento do fenómeno, tem uma consequência: “Aqui

[na mecânica quântica] a aproximação lógica não pode ir para além da dedução de probabilidades

relativas para o aparecimento de fenómenos individuais sob dadas condições experimentais”592. Não

podemos saber o que se passa até algo se transformar em fenómeno, isto é, interagir com o instrumento de

medida. Há todo um domínio que não é possível conhecer por causa de tal indivisibilidade. Trata-se do

estabelecimento, por via da proclamação dessa indivisibilidade, de limites ao conhecimento.

4.A causalidade fica de fora

Como Lénine chamou a atenção no seu Materialismo e Empiriocriticismo, a questão da

causalidade tem uma importância muito particular para a definição de uma linha filosófica. Esta mesma

questão assume grande centralidade no confronto entre as interpretações das linhas ortodoxa e brogliana

da mecânica quântica.

De acordo com Bohr, aquela situação observacional revelada na mecânica quântica imporia a

renúncia da causalidade. Em rigor, Bohr coloca a questão imediatamente num plano epistemológico (sem

deixar, no entanto, de estabelecer pontes para um plano ontológico). Portanto, o que Bohr diz é que somos

obrigados a prescindir de uma descrição causal. Ou, de outra forma, não negando nem afirmando

directamente a existência objectiva da causalidade, podemos concluir que Bohr considera que a teoria, o

conhecimento humano, não a pode reflectir.

A complementaridade, aliás, aparece como a figura “lógica” que viria preencher o vazio deixado

pelo despedimento da causalidade da teoria. “Em troca pela renúncia das formas habituais de explicação,

ela [a complementaridade] oferece meios lógicos de compreender campos da experiência mais vastos”593

e constitui “uma generalização consistente do ideal de causalidade”594.

A descrição causal só seria possível no domínio da mecânica clássica porque a acção do

instrumento de medida sobre o objecto pode ser desprezada, controlada, permitindo, por isso, a

divisibilidade do fenómeno. Pelo contrário, em mecânica quântica, “a assunção básica da individualidade

dos processos atómicos envolveu ao mesmo tempo uma renúncia essencial da detalhada ligação causal

entre acontecimentos físicos”595.

Portanto, da indivisibilidade do fenómeno decorre o carácter inerentemente estatístico das leis:

como não podemos “dividir”, não podemos conhecer o curso do fenómeno e assim, como vimos, a

“aproximação lógica não pode ir para além da dedução de probabilidades” (por princípio). Nas palavras

592N. Bohr, «Unity of Knowledge» (1967), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 73.

593idem, idem, p. 78.594idem, «Natural Philosophy and Human Cultures» (1939), in ibidem, p. 27.595idem, «Biology and Atomic Physics» (1937), in ibidem, p. 18.

de Bohr: “A indivisibilidade dos fenómenos quânticos encontra a sua expressão consequente na

circunstância de que toda a subdivisão definível iria requerer uma mudança do arranjo experimental com

o aparecimento de novos fenómenos individuais. Assim, a própria base de uma descrição determinística

desapareceu e o carácter estatístico das previsões é evidenciado pelo facto de que em um e no mesmo

arranjo experimental irão, em geral, aparecer observações correspondentes a diferentes processos

individuais”596.

Num outro local Bohr afirma: “Apesar, claro, de a descrição clássica do arranjo experimental e a

irreversibilidade dos registos relativos aos objectos atómicos assegure uma sequência de causa e efeito

conforme com as exigências elementares da causalidade, o abandono irrevogável do ideal de

determinismo encontra expressão notável na relação complementar que governa o uso não ambíguo dos

conceitos fundamentais em cuja combinação irrestrita a física clássica assenta” 597.

Bohr reconhece o desconforto dos físicos quanto ao abandono do habitual modo de descrição

levando-os julgar, nomeadamente, que o modo estatístico de descrição era apenas um expediente

temporário a ser substituído por uma descrição determinística598. Mas a nossa posição observacional

obrigar-nos-ia a aceitar o contrário, a aceitar que “o princípio da causalidade […] provou ser um quadro

demasiado estreito para abarcar as peculiaridades que governam os processos atómicos individuais” 599.

Podemos questionar se Bohr, ao concluir justamente pela estreiteza da forma da causalidade

característica do domínio clássico – a partir do conhecimento da posição e do momento inicial de uma

partícula, poder prever a posição e o momento finais – na sua aplicação ao domínio quântico, mantém a

defesa da existência da causalidade numa outra forma (apesar de as suas palavras dizerem o contrário).

Acho que não.

Vemos Bohr, a respeito desta questão da causalidade, a fazer aquele movimento a que Lénine

tanto aludiu em Materialismo e Empiriocriticismo: porque o materialismo mecanicista se revela

insuficiente, limitado, nega-se o materialismo. Neste caso, porque a causalidade mecanicista se revela

limitada na sua aplicação à mecânica quântica, nega-se a causalidade. Bohr identifica a causalidade em

geral com a causalidade mecanicista600. No entanto, de um ponto de vista dialéctico, não há porque

estranhar que as leis que reflectem relações de uma dada forma de movimento da natureza

(nomeadamente as relações causais) sejam diferentes das válidas para outras formas de movimento

qualitativamente diferentes. O que se mantém é, no entanto, a existência objectiva dessas relações causais

(isto é, existem na própria natureza, não são conferidas pelo homem ordenador de uma natureza

ontologicamente caótica) e a possibilidade de o homem reflectir (aproximadamente) nas suas

representações, nas suas teorias científicas, essas relações causais objectivamente existentes.

596idem, «Atoms and Human Knowledge» (1955), in ibidem, p. 90.597idem, «Quantum Physics and Philosophy» (1958), in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7, Foundations of quantum

physics II (1933-1958), Kalckar, J. ed., North-Holland, Amsterdam, 1996, p. 312.598Cf. idem, «Atoms and Human Knowledge» (1955), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover

Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 88.

599idem, «Natural Philosophy and Human Cultures» (1939), in ibidem, p. 25. 600Ver, por exemplo, N. Bohr, «Unity of Knowledge» (1967), in ibidem p. 69.

Como vimos, Lénine, observando diferentes autores, faz sobressair diferentes formas de uma

mesma posição essencialmente idealista: tudo o que experimentamos é que um fenómeno segue o outro, a

necessidade como probabilidade, como associação de factos, a necessidade como pertencente ao mundo

dos conceitos, as leis da natureza como símbolos ou convenções criadas pelo homem por razões de

comodidade, etc. Todas elas têm em comum um aspecto fundamental: a negação da causalidade objectiva.

Quando Bohr fala de leis inerentemente probabilísticas, está a pensar em leis que não reflectem

processos que possamos conhecer como necessários. No domínio da mecânica quântica, os fenómenos

revelar-se-iam apenas na sua contingência. Desses fenómenos não poderíamos conhecer o que neles há de

necessário. São apresentados isoladamente, separados da conexão em que verdadeiramente se encontram,

mas da qual a teoria, a julgar pela posição de Bohr, não poderia dar conta. Assim, as leis inerentemente

probabilísticas de Bohr são leis que ordenam fenómenos que aparecem contingentes; logo essas leis

excluem a necessidade. Dizia Avenarius, cuja posição Lénine classificou de idealista subjectiva, que “a

necessidade permanece como grau de probabilidade com que se esperam os efeitos”. Bohr só teria agora

de acrescentar que essa probabilidade é encontrada de acordo com o princípio da correspondência.

Vejamos a seguinte citação de Bohr:

“Estas ideias […] sobre a excitação do espectro pelo impacto dos electrões nos átomos, envolveu

uma nova renúncia do modo causal de descrição, uma vez que, evidentemente, a interpretação das

leis espectrais implica que um átomo num estado excitado terá, em geral, a possibilidade de

transição com a emissão de um fotão para um ou outro estado de mais baixa energia. De facto, a

própria ideia de estados estacionários é incompatível com qualquer directiva para a escolha entre

tais transições e deixa apenas espaço para a noção de probabilidade relativa dos processos

individuais de transição. O único guia para estimar essas probabilidades era o chamado princípio

da correspondência [...]”601.

Bohr está a confundir a ausência de causa com o desconhecimento dessas causas. Esquece que,

como diz Engels, “onde, à superfície, o acaso conduz o seu jogo, ele está sempre dominado por leis

internas ocultas, e trata-se apenas de descobrir essas leis”602. Bohr está a colocar a probabilidade em

oposição a causalidade achando que esta não tem lugar para a contingência e, portanto, a colocar a

contingência em oposição absoluta com a necessidade não considerando a sua relação dialéctica. Está

reduzir a forma da causalidade à forma que ela adquire na dinâmica e na mecânica clássica em geral. Por

tudo isto, cai no erro de finalmente preservar um certo grau de indeterminismo para os acontecimentos

quânticos, negando à causalidade a sua universalidade.

5.O valor da teoria

601idem, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in ibidem, p. 35.602F. Engels, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, in Marx-Engels, Obras Escolhidas em três

tomos, Lisboa-Moscovo, Edições «Avante!»-Edições Progresso, t. III, 1985, p. 410.

Bohr coloca como a tarefa da ciência a coordenação de regularidades, a descoberta de

uniformidades. Ele, em geral, não aborda o problema directamente, mas em vários momentos das suas

exposições deixa transparecer esse seu posicionamento subjacente, esse suposto. A preocupação de Bohr é

o estabelecimento de “regularidades”, é “recuperar a ordem lógica”603. O objectivo do formalismo

quântico, “que não permite uma interpretação pictorial” é “estabelecer relações entre as observações”604.

Para Bohr, a mecânica quântica, “tem como objectivo a formulação de regularidades estatísticas

pertencentes a resultados [evidences] obtidos sob condições experimentais bem definidas”605, é “como um

meio de ordenar uma imensa quantidade de evidências”606. Bohr entende a sua tarefa como a tarefa de

“trazer ordem a um campo da experiência inteiramente novo”607. Para ele, o seu interesse principal é

“restaurar a ordem lógica neste campo da experiência”608, evitar as “inconsistências lógicas” para o que o

formalismo matemático da mecânica quântica satisfaz todos os requisitos609. De facto, o próprio põe aqui

claramente a questão: “quando falamos de quadro conceptual, referimo-nos meramente à representação

lógica não ambígua de relações entre experiências”610. Mas exigir que a teoria não contenha

possibilidades de interpretações ambíguas dos resultados das medições não é mais do que uma exigência

de coerência interna. A complementaridade seria, assim, o expediente que permitiria uma “descrição

completamente racional dos fenómenos físicos”611. Põe-se, no entanto, a questão do que significa para

Bohr esta “racionalidade”.

Bohr manifesta várias vezes a preocupação de garantir “objectividade”, de garantir “não

ambiguidade na comunicação”. Ora, Bohr, identifica objectividade com comunicação não ambígua:

“Qualquer cientista, contudo, está constantemente confrontado com o problema da descrição objectiva da

experiência com a qual queremos significar comunicação não ambígua”612. Não há dúvida que a

objectividade, para Bohr, se funda, ao nível da linguagem. Dado que Bohr entende a ciência como uma

forma de coordenar regularidades é de facto natural que isso tenha implicações necessárias ao nível do

que Bohr entende como objectividade. O próprio estabelece essa relação consequente: “Uma vez que o

objectivo da ciência é aumentar e ordenar a nossa experiência, toda a análise das condições do

conhecimento humano deve assentar em considerações do carácter e âmbito dos nossos meios de

603N. Bohr, «Unity of Knowledge» (1967), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 74.

604idem, ibidem.605idem, «Physical Science and the Problem of Life» (1949), in ibidem, p. 99.606idem, «Quantum Physics and Philosophy» (1958), in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7, Foundations of quantum

physics II (1933-1958), Kalckar, J. ed., North-Holland, Amsterdam, 1996, p. 390.607idem, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in Atomic Physics and

Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 56.

608idem, ibidem, p. 61.609Cf. idem, ibidem, p. 56.610idem, «Unity of Knowledge» (1967), in ibidem, p. 68.611 idem, «Can Quantum-Mechanical Description of Physical Reality be Considered Complete?», in Physical

Review, Vol. 48 (Oct.1935), p. 696.612idem, «Unity of Knowledge» (1967), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications

Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 67.

comunicação”613. O próprio motor para o progresso da ciência funda-se ao nível do discurso, da

linguagem: “a lição que recebemos de todo o crescimento das ciências físicas é que o germe de um

desenvolvimento frutuoso frequentemente repousa na adequada escolha de definições […], “vemos o

avanço que pode assentar em tais refinamentos formais”614. Mais do que, muito justamente, reconhecer a

importância da aferição rigorosa e do desenvolvimento dos conceitos, Bohr parece querer fundar aí a

razão para o desenvolvimento da ciência. Para ele, a ciência funda-se e é interna à linguagem. Em suma,

para Bohr, a objectividade é, na verdade, intersubjectividade, é o subjectivo colectivamente aceite.

Portanto, quando Bohr responde à conclusão de Einstein, Podolski, Rosen de que a descrição da

mecânica quântica é essencialmente incompleta dizendo “Pelo contrário, esta descrição […] pode ser

caracterizada por uma utilização racional de todas as possibilidades de uma interpretação não ambígua

das medições, compatível com a interacção finita e incontrolável entre os objectos e os instrumentos de

medida no domínio da teoria quântica”615 está a dizer que aquela descrição é a que permite uma

coordenação dos fenómenos livre de contradições lógicas, na medida em que “tudo o que podemos exigir

num novo campo da experiência é a remoção de qualquer aparente contradição” 616; está a dizer que aquela

é a que permite, como diziam os antigos, salvar os fenómenos. Para o fazer, como vimos, precisa de

recorrer à complementaridade, garantindo assim a exclusão mútua de quaisquer dois procedimentos

experimentais. Para o fazer, o preço que tem a pagar é elevado: é despedir da teoria a própria realidade

objectiva, isto é, é negar a possibilidade de as teorias reflectirem a realidade objectiva (nomeadamente

como uma realidade una), é, em última instância, negar a própria ciência como tal pois, usando as

palavras de Barata-Moura, “a inteligibilidade não pode, de modo algum, fundar-se exclusivamente na

coerência interna de esquemas formais […] É a realidade objectiva que tem de ser correctamente

reflectida pela consciência para que nós possamos falar verdadeiramente da existência de um

conhecimento, tanto empírico como racional”617. Vejamos porquê.

Tendo em conta que, como diz Barata-Moura, “o saber tem um objecto que é o ser, que é a

realidade objectiva”, “é esse objecto que ele, precisamente, procura reflectir em termos de adequação. Daí

que, mesmo quando tem de processar-se ao nível das mais abstractas mediações – que por certo têm o seu

lugar e a sua indispensável função epistemológica [e de que, direi eu, tendo em conta o caso em apreço, o

formalismo quântico é um exemplo] – ele não possa nunca ser separado dessa experiência concreta do

real em cujo horizonte se determina e elabora”618.

Sucede que o ser não pode ser reduzido à sua manifestação fenoménica. Ele não é a simples

soma das suas determinações postas lado a lado. Mas é desta forma que Bohr o nos apresenta. A

613idem, «Atoms and Human Knowledge» (1955), in ibidem , p. 88.614idem, «Natural Philosophy and Human Cultures» (1939), in ibidem, p. 29.615idem, «Can Quantum-Mechanical Description of Physical Reality be Considered Complete?», in Physical

Review, Vol. 48 (Oct.1935), p. 700.616idem, «Atoms and Human Knowledge» (1955), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover

Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 90.

617J. Barata-Moura, Totalidade e Contradição, Acerca da Dialéctica, Lisboa, Livros Horizonte, 1977, p. 168.618idem, Ideologia e Prática, Lisboa, Editorial Caminho, 1978, p. 177.

formulação do princípio da complementaridade é disso expressão directa. Quando Bohr afirma, por

exemplo, que os fenómenos são complementares no sentido em que “apenas a totalidade dos fenómenos

esgota a informação possível acerca dos objectos”619, está precisamente a apresentar o ser como uma mera

soma de determinações, como uma soma de elementos isolados retirados da totalidade em que se inserem,

do sistema de relações e de condicionamentos mútuos. Este isolamento (abstracto porque absolutizado,

parcelar, unilateral), é reforçado pela exigência expressa de mútua exclusividade dos fenómenos e,

consequentemente, das leis/teorias que procuram dar conta deles. Daí a complementaridade da descrição

espácio-temporal e descrição dinâmica, entre as leis da mecânica e as do electromagnetismo, entre

corpúsculo e onda. Mas a realidade objectiva é só uma, é una, na sua diversidade. O ser é, sim, uma

unidade totalizada de determinações – determinações que não perdem a sua individualidade,

especificidade, diferença, mas que se integram numa organização dinâmica, com leis de estrutura, às

quais pertencem o poder determinante fundamental620, que lhe são próprias – passível de ser apreendido

pela teoria. E por isso, se é da realidade objectiva que o conhecimento científico quer dar conta, é como

tal que a tem de considerar.

Não o fazer tem consequências e é interessante observar, através do exemplo de Bohr, como elas

são necessárias. “Reduzir o saber a uma identificação das «formas fenoménicas» de manifestação da

positividade, mesmo que alargada ao registo «irresolvido» das suas incongruências, tem como corolário

aceitar como intransponível essa instância da imediatez e, simultaneamente privar-se de qualquer

possibilidade de penetração inteligível na dinâmica una que a funda e para além dela conduz” 621, afirma

Barata-Moura. Ora, é precisamente este o caminho que Bohr segue até ao fim: por tomar o ser por aquilo

que é imediatamente dado ou por achar que não pode tomar do ser mais do que a sua manifestação

fenoménica (a identificação tipicamente positivista e a cisão idealista de fenómeno e essência estão aqui

postas lado a lado, o que para o caso acaba por ser indiferente pois ambas desaguam na mesma

consequência) estabelece limites definitivos para o conhecimento no domínio quântico. Mesmo que,

reafirmamos, a manifestação dessa positividade, mesmo que os “factos” sejam “considerados ou

apresentados na sua relação conflitual”622. É o que Bohr faz ao reconhecer a dualidade onda-corpúsculo

como contradição. Bohr não deixa de apresentar os dados da experiência nessa relação conflitual, como

opostos. Mas fá-lo fora da sua unidade. E por isso não a pôde resolver: fixou-a, tornou-a intransponível

(desenvolverei esta questão mais adiante).

Quando Bohr faz aquela afirmação de que “apenas a totalidade dos fenómenos esgota a

informação possível acerca dos objectos” está também, ao mesmo tempo, a pretender negar que essa

perspectiva ponha limites à ciência. Não, diria Bohr, há sempre um novo arranjo experimental que ponha

em evidência uma nova determinação ainda não descoberta a qual podemos somar ao conjunto de todas

619N. Bohr, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 40.

620Cf.J. Barata-Moura, Totalidade e Contradição, Acerca da Dialéctica, Lisboa, Livros Horizonte, 1977, p. 127.621idem, Materialismo e Subjectividade, Estudos em Torno de Marx, Lisboa, Edições Avante!, 1997, p. 91. 622idem, ibidem, p. 116.

as outras determinações. Mas isso tem precisamente que ver com aquele que, na decorrência das suas

posições, acaba por ser o seu entendimento sobre o que é o conhecimento científico, sobre qual é o valor

da teoria – o estabelecimento de regularidades entre os fenómenos que se dão na experiência – com

consequências ontológicas – ficamos com um ente quântico que é tomado pela soma das suas

determinações cuja eventual unidade não é possível apreender. “Por maiores que sejam os contrastes

exibidos por fenómenos atómicos sob diferentes condições experimentais”, diz Bohr, “tais fenómenos

devem ser designados complementares no sentido de que cada um é bem definido e que juntos esgotam

todo o conhecimento definível acerca dos objectos em questão”623. Bohr exclui, assim, a possibilidade de

a consciência ser capaz de reflectir a realidade objectiva tal como ela é: una.

Mas a ciência, diz Marx, “seria supérflua se a forma de aparecimento e a essência das coisas

imediatamente coincidissem”624. (O fenómeno sendo aquilo que se nos manifesta na representação ou

experiência imediata e a essência aquilo que fundamentalmente caracteriza um processo determinado

como sua entidade ou «razão», esclarece Barata-Moura). A mera inspecção do “fenómeno” não é

suficiente, diz Barata-Moura, “porque a sua forma de manifestação, porque a sua condição fenoménica de

existente positivo ou fáctico, apenas corresponde, em geral, a uma etapa ou estação de um processo, que

se determina e vale como globalidade, como concreção, como totalidade [...]625”.

Por isso, a ciência deve procurar, como uma condição de cientificidade, a “conexão interna”626

dos fenómenos, o seu “vínculo interior”627. Como mostra Barata-Moura, é para este aspecto que Marx

chama a atenção em oposição a uma representação da forma imediata de aparecimento. Nas palavras de

Barata-Moura, analisando Marx, a cientificidade manifesta-se “como requerendo, a título de condição

epistemológica basilar, uma adequada penetração na conexão interna dos fenómenos, e não apenas uma

sua descrição ou recensão ao nível da mera imediatez empírica da sua revelação/manifestação” 628. É a

essa condição epistemológica basilar que Bohr não atende. Isto não exclui, clarifica o autor, a existência

ou o conteúdo de momentos imediatamente referenciáveis. Pelo contrário, tem-nos em conta e assume-os

como expressões materiais particulares igualmente reais. Mas exclui a transformação dos fenómenos

como uma instância abstracta e absolutamente isolada de um sistema de relações629.

Para além disso, a ciência, dando conta dessa “conexão interna” e “para poder dar razão da

totalidade que os processos em apreço constituem”, tem “de incluir no seu seio a própria contradição, isto

é, algo que desafiadoramente confronta e perturba os paradigmas lógicos dominantes assentes,

623N. Bohr, «Atoms and Human Knowledge» (1955), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 90.

624“toda a ciência seria supérflua [überflüssig] se a forma de aparecimento [Erscheinungsform, forma fenoménica ou fenomenal] e a essência [Wesen] das coisas imediatamente coincidissem”. K. Marx cit. por J. Barata-Moura, Materialismo e Subjectividade, Estudos em Torno de Marx, Lisboa, Edições Avante!, 1997. p. 74 (a partir de K. Marx, Das Capital, III, 7, 48; MEW, vol. 25, p. 825.)

625J. Barata-Moura, ibidem, p. 83.626Cf. idem, ibidem, p. 91 (a partir de Marx, Das Kapital, III, 7, 48, II; MEW, vol.25, p. 825).627Cf. idem, ibidem, p. 83-85(a partir de Marx, Das Kapital, MEW, vol. 23, p. 27).628J. Barata-Moura, ibidem, p. 98.629Cf. idem, ibidem, p. 92.

precisamente, na sua liminar exclusão como figura inaceitável e índice de procedimento erróneo”630. É

precisamente com um Bohr perturbado pela contradição que nos deparamos.

É preciso reforçar um outro aspecto: essa conexão a que a ciência deve proceder não é imposta

do exterior a uma multidão de elementos a que o pensamento confere sentido; “a determinação da

«conexão interna» não é apenas a da sequência das representações na consciência, mas a dos próprios

processos objectivos, materiais”631. Trata-se, pois, de exigir que a ciência reflicta, nos termos que lhe são

próprios, “o movimento real e a conexão real das coisas e dos processos”. É a própria realidade objectiva

que é dialéctica, concreta e se dá em termos de totalidade. E por isto é que a “conexão interna dos

fenómenos” só pode ser verdadeiramente alcançada numa base materialista.

Como vimos acima, para Bohr, o que está principalmente em causa, ao nível do estabelecimento

do conhecimento, e aquela que é a sua preocupação, é que a teoria seja uma descrição objectiva da

experiência entendida esta como comunicação não ambígua. Mas isto nada garante quanto à objectividade

da teoria, entendida como o reflexo da realidade objectiva (realidade essa que é mais do que o fenómeno e

muito mais ainda do que um fenómeno que só o é quando é interacção com instrumentos de medida). Para

Bohr, objectividade é essencialmente um problema de comunicação. Racionalidade é não contradição

lógica, é não ambiguidade. À teoria nada mais é exigido. Temos, assim, uma “objectividade” que, para

Bohr, é interna à própria teoria e uma racionalidade esvaziada do seu conteúdo objectivo. Essa

objectividade da descrição, em vez de se fundar numa correcta correspondência entre essas ideias e as

relações objectivas que a descrição (a teoria científica) procura reflectir, funda-se no interior do próprio

plano ideal pois diz respeito a uma avaliação da “boa definição” de ideias. Em rigor, é a realidade

objectiva, aquela que existe independentemente da consciência, que não encontra aqui lugar. Não se trata,

de um ponto de vista materialista, de negar o papel e a importância do correcto e rigoroso apuramento e

desenvolvimento dos conceitos e da linguagem para o próprio desenvolvimento da ciência. Trata-se, sim,

de negar que a ciência se estabelece e é interior à linguagem.

Quando se entende a objectividade desta forma, quando se considera que a teoria científica não

pode fazer mais do que descrever os fenómenos na sua imediatez, quando se entende a ciência como

forma de ordenar a experiência humana, como Bohr o faz, entra-se, quer-se queira quer não, no caminho

sem saída do fideísmo. A demonstrá-lo dedicou Lénine várias páginas da sua crítica e que aqui foi trazida.

Se objectividade é definida daquela forma, então, entre religião e ciência não haveria diferença

fundamental. Ambas seriam formas de organização da experiência humana. É interessante ver como Bohr

se enreda, como consequência dos seus supostos, ao falar da religião e de ciência. Nas exactas palavras de

Bohr, a ciência tem o objectivo de “desenvolver métodos para ordenar a experiência humana comum632”.

A religião desenvolve “esforços para maior harmonia de perspectivas e comportamentos dentro das

630Cf. idem, ibidem, p. 83-85.631Idem, ibidem, p. 106.632N. Bohr, «Unity of Knowledge» (1967), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover

Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 80.

comunidades” – o que é “essencialmente diferente”, diz! Uma ordena, a outra harmoniza. Uma ocupa-se

da experiência humana, a outra ocupa-se dos comportamentos humanos. Esta é a consequência de se

negar (directa ou indirectamente) a possibilidade de a teoria científica reflectir adequadamente a realidade

objectiva. Este é o problema da verdade objectiva.

Recorde-se Bogdánov: para ele, a verdade é “uma forma ideológica, uma forma organizadora da

experiência humana”633. Compare-se com Bohr, para quem a ciência deve “ordenar a experiência

humana”. É essencialmente a mesma posição. E com as mesmas consequências. Lénine, criticando a

filosofia machista, dizia que nela “a objectividade é definida de tal maneira que esta definição inclui a

doutrina da religião»634”. De facto, “se a verdade é apenas uma forma organizadora da experiência, quer

dizer que também é uma verdade a doutrina, digamos, do catolicismo. Porque está fora de qualquer

dúvida que o catolicismo é uma «forma organizadora da experiência humana»”635, diz Lénine. A negação

da verdade objectiva por Bogdánov, diz, é agnosticismo e subjectivismo. E da mesma forma que vemos

Bogdánov, para evitar cair em conclusões directamente fideístas, que não pretendia, retirar o problema da

esfera da experiência individual remetendo-o para a colectiva, vemos Bohr a pretender segurar a

objectividade na esfera de uma comunicação totalmente livre de ambiguidades (comunicativas) para o

que a utilização de símbolos matemáticos ofereceria, de acordo com Bohr, essa garantia, tornando

possível a remoção das referências ao sujeito consciente636 que infiltra a descrição com a linguagem

diária637. Mas a dificuldade manter-se-á sempre que não se considere, em primeiro lugar, a realidade

objectiva, sempre que não se considere a teoria científica um reflexo da matéria, sempre inesgotável, mas

da qual o homem se aproxima cada vez mais.

Vimos atrás que Bohr antepõe, como a instância inaugural em que o conhecimento ao nível da

633A. Bodánov cit. por V.I. Lénine, op. cit. p. 92.634V. I. Lénine, ibidem, p. 93.635idem, ibidem.636Chegados a este ponto, vale a pena um esclarecimento. A crítica à apresentação de uma pretensa objectividade

como intersubjectividade não pode ser confundida com o desprezo pela presença, necessária, do sujeito e da subjectividade do conhecer. Pelo contrário. O conhecimento não pode deixar de pressupor o sujeito cognoscente (incluindo até, como vimos, a sua necessária imersão num dado contexto ideológico). Não cabe aqui desenvolver esta questão. Reafirmamos apenas que, de um ponto de vista materialista, a exigência de objectividade no conhecer, a convicção de que ao conhecimento científico cabe a verdade objectiva – um conteúdo do conhecimento que não depende do homem nem da humanidade – não pode ser confundida com a negação ou tentativa de remoção da subjectividade no conhecer. É aliás o próprio Bohr que, ao procurar a objectividade, mas, ao tomá-la como não mais do que coerência lógica interna, acaba por cair no erro oposto de procurar remover a presença do sujeito e de entendê-lo como contaminador. A descrição seria tanto mais objectiva quanto mais conseguida fosse a remoção da subjectividade: “a introdução de […] abstracções matemáticas bem definidas [Bohr refere-se ao formalismo quântico] de forma nenhuma implica ambiguidade, oferecendo, ao invés, uma elucidação instrutiva de como o alargamento do quadro conceptual possibilita os meios apropriados para eliminar os elementos subjectivos e alargar o âmbito da descrição objectiva”. (N. Bohr, «Unity of Knowledge» (1967), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 70). Assim, o problema que se põe, para Bohr, na busca da “objectividade” é saber como passar do subjectivismo individual para o subjectivismo universal, colectivamente aceite. É, portanto, neste quadro que devem ser entendidas as várias referências de Bohr quanto à importância de se prestar a devida atenção à separação entre objecto e sujeito (“distinção entre sujeito e objecto necessária para uma descrição não ambígua” (p. 101), “separação entre observador e conteúdo das comunicações” (p. 91), p. 80, etc.).

637Cf. N. Bohr, «Unity of Knowledge» (1967), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 68.

mecânica quântica se funda, uma correlação entre objecto e instrumento de medida, para além da qual não

se pode ir. Recordando as suas palavras: “a interacção inevitável entre os objectos e os instrumentos de

medida coloca um limite absoluto à possibilidade de falar de um comportamento dos objectos atómicos

que seja independente dos meios de observação”638. Bohr situa justamente a questão no problema de saber

“que tipo de conhecimento pode ser obtido respeitante aos objectos”639.

Portanto, isto levantaria, diz, um problema epistemológico novo em filosofia natural. Mas, na

sua essência, este problema não é tão novo assim em filosofia. É ainda o mesmo problema da verdade

objectiva que vimos Lénine debater. Para Bohr, não é possível conhecer o objecto quântico fora da

relação deste com o homem (na medida em que é este quem o experimenta com os instrumentos). Assim,

no domínio quântico, deixaria de ser possível a verdade objectiva, isto é, nas palavras de Lénine, “deixa

de poder haver nas representações humanas um conteúdo que não depende do sujeito, que não depende

nem do homem nem da humanidade”640. É certo que Bohr ainda parece consentir esse conteúdo objectivo

a outros domínios do conhecimento, como a mecânica clássica. Mas tal seria apenas possível apenas por

uma questão de escala – essa impossibilidade fundamental estaria simplesmente velada. A afirmação das

ciências da natureza de que a Terra existia antes da humanidade é uma verdade objectiva, diz Lénine. Ora,

esta afirmação é incompatível com a definição da verdade como forma de organização da experiência

humana. Se a verdade é assim entendida, diz Lénine, então não pode ser verdadeira a afirmação da

existência da Terra fora de toda a experiência humana. Lénine criticava aqui a posição de uma

dependência do mundo exterior em relação à consciência. Esta é a linha agnóstica e subjectivista da

filosofia machista. Se a ciência só é possível estabelecer no quadro dessa dependência, então as ciências

não poderiam declarar nem falsa nem verdadeira a existência da Terra antes do homem. Em Bohr, não se

trata directamente de fazer depender o objecto da consciência, como no caso dos machistas (que, quando

falam de experiência, é da experiência sensível que tratam). A diferença está em que, em vez de se

estabelecer uma dependência de uma instância ideal (a consciência), se faz depender de uma instância

material, a prática humana (a experiência científica, o experimento). Em todo o caso, como vimos acima a

propósito das “ontologias da práxis”, a questão fundamental é a mesma: Bohr não deixa de negar a

independência da realidade objectiva e da possibilidade das representações humanas a reflectirem na sua

independência. Em suma, a linha, em Bohr, é a da negação da verdade objectiva, de um conteúdo nas

representações humanas que não depende do homem.

O princípio da correspondência, com o significado que Bohr lhe atribui, acaba, assim, por ser

uma expressão das limitações que Bohr coloca quanto à possibilidade de as teorias poderem dar conta dos

fenómenos quânticos, de as teorias poderem reflectir a realidade objectiva com um grau cada vez maior

de aproximação, das limitações que Bohr coloca à progressão do conhecimento. Quando Bohr afirma que

uma comunicação não ambígua só é possível utilizando conceitos clássicos, está a dizer que o

638idem, «Natural Philosophy and Human Cultures» (1939), in ibidem, p.25.639idem, ibidem.640V.I. Lénine, op. cit., p. 92.

conhecimento humano não poderá adaptar ou criar conceitos que constituam um reflexo adequado dos

fenómenos quânticos.

Bohr reconhece correctamente que os nossos conceitos, com o avançar do conhecimento, se irão

revelar limitados. Neste caso, os conceitos clássicos revelam-se limitados, inadequados, para a explicação

dos fenómenos quânticos – o que sempre sucede quando o conhecimento progride. É com esse problema

que Bohr se confrontou. Na base do princípio da correspondência está também o justo reconhecimento de

que, se uma dada teoria contém um conteúdo objectivo, isto é, se é verdadeira (aproximadamente), é

natural que uma nova teoria que a supere conterá a primeira como um caso particular641. Assim, a teoria

quântica conteria a mecânica clássica como caso particular válido para determinado domínio, para

determinadas aproximações. Aqui estão postos o problema da verdade relativa e absoluta e a relatividade

do erro e da verdade que foram abordados em Materialismo e Empiriocriticismo. Como dizia Lénine,

“cada degrau no desenvolvimento da ciência acrescenta novos grãos a esta soma de verdade absoluta, mas

os limites de verdade de cada tese científica são relativos, ora alargados, ora restringidos à medida que

cresce o conhecimento”642.

Mas a consequência daquilo que Bohr defende é a assumpção de que o conhecimento humano

não pode criar os conceitos, as representações adequadas para um reflexo adequado dos fenómenos

quânticos. A descrição daqueles acontecimentos só pode ser feita em termos clássicos (através dos

operadores quânticos). Por um lado, de acordo com Bohr, estaríamos defrontados com a “ambiguidade de

atribuir características físicas habituais [clássicas] aos objectos atómicos”643; por outro lado, só podemos

exprimir aos outros os resultados de uma experiência (marcas numa placa fotográfica, por exemplo), em

termos clássicos. Por um lado, a insuficiência da mecânica clássica, por outro, a impossibilidade de um

reflexo adequado do domínio quântico nas representações humanas dessa realidade. No balanço entre

uma e outra, sobra um “resíduo irracional irredutível”. O princípio da correspondência seria, assim, uma

consequência da não inteligibilidade da essência da realidade objectiva ao nível quântico, obrigando a

teoria a ficar pelos fenómenos (pela sua ordenação, coordenação – “coordenação da experiência”)

descritos classicamente.

Bohr diz que, em particular, “deve compreender-se que – para além da descrição da colocação e

medição do tempo dos instrumentos que formam o arranjo experimental – todo o uso não ambíguo de

conceitos espácio-temporais na descrição dos fenómenos atómicos está confinado ao registo das

observações que se referem a marcas numa placa fotográfica ou a similares efeitos de amplificação

praticamente irreversíveis [...]”644. Significa isto que, no domínio quântico, embora até se possa pôr a

hipótese de as partículas existirem no tempo e no espaço, as nossas teorias não podem dar conta disso.

Bohr refere várias vezes a dificuldade ou impossibilidade do uso de “imagens”. A isto contrapõe a

641Fica também aqui patente a dialecticidade do processo do conhecimento.642Idem, ibidem, p. 101.643N. Bohr, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in Atomic Physics

and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 51.

644idem, ibidem.

necessidade do uso de abstracções cada vez mais complexas. A complementaridade teria, assim, resolvido

os paradoxos respeitantes à representação pictorial do comportamento das partículas materiais645. Teria

sido necessário renunciar à representação pictorial dos estados dos objectos atómicos, diz, mas, no

entanto, “a fundação da descrição das condições experimentais, bem como a nossa liberdade de as

escolher, é totalmente mantida”646.

A ciência precisa recorrer, de facto, a abstracções cada vez mais complexas. O que isto não

implica é que essas abstracções não tenham correspondência com a realidade objectiva. Portanto, o

problema que Bohr coloca em relação às imagens não é a questão, justa, de serem necessárias abstracções

cada vez mais complexas para um adequado reflexo da realidade objectiva. Para Bohr, a impossibilidade

de uma representação pictorial decorre, sim, da impossibilidade de uma descrição que tenha em conta a

unidade do real. No entanto, as coisas e os processos não deixam de decorrer num espaço a três

dimensões e num dado tempo, apesar de Bohr determinar impossível tal representação.

O que o problema por trás do princípio da correspondência põe em evidência é que os conceitos

clássicos, sendo verdadeiros dentro de determinados limites, já não são adequados para descrever a

realidade no domínio quântico. Para que a ciência possa progredir é necessário, ao invés de fixar os

mesmos conceitos que se revelam limitados, como Bohr faz, desenvolver as representações no sentido de

elas poderem dar conta – como condição da própria cientificidade – dessa realidade objectiva, na sua

materialidade, o que inclui dar conta da sua unidade e das suas contradições.

***

Ao estudarmos a mecânica quântica observamos um conjunto de contradições de que emergiu e

que levaram ao seu desenvolvimento. Como vimos acima, é no reconhecimento e resolução destes

problemas que o conhecimento faz o seu caminho de progresso, de elaboração de um reflexo cada vez

mais adequado da realidade objectiva. Os físicos foram levados a lidar com formas de movimento da

matéria qualitativamente diferentes que a teoria clássica já não podia explicar. Foram levados a lidar com

o problema da matéria manifestar tanto um comportamento corpuscular como ondulatório, quer se

tratasse de partículas, quer se tratasse de radiação electromagnética.

Esta contradição entre o carácter simultaneamente ondulatório e corpuscular da matéria, o

chamado dualismo onda-corpúsculo, desempenha um papel central na mecânica quântica. Na forma de

lidar com esta contradição, que existe objectivamente na natureza e que, a partir de determinado nível de

desenvolvimento da ciência, se passou a manifestar no conhecer, reside a principal dificuldade da

interpretação bohriana da mecânica quântica.

Bohr depara-se com essas contradições surgidas na ciência, reconhece-as como tal, e é nesse

mesmo plano – ideal, teórico, epistemológico – que as aborda. Uma vez que se revelou difícil, naquela

645idem «Atoms and Human Knowledge» (1955), in ibidem, p. 90. 646idem, ibidem.

fase de desenvolvimento, encontrar, pela ciência, pelo estudo da própria matéria, a resolução dessas

contradições, uma vez que Bohr não concebe a sua solução, vai, então, procurar lidar com essas

contradições não as resolvendo, mas, precisamente, arrumando-as como tal, fixando-as. E, para isso,

precisa introduzir uma nova figura, a complementaridade, que permite lidar com a contradição – que, para

Bohr, é equivalente a erro, é inconcebível, e deve ser removida – garantido que os termos em luta, em

confronto, não se encontram (ao nível do conhecer, no plano ideal). Se não se encontraram, evitámos,

assim, a contradição. É por esta razão que Bohr diz que não podemos combinar numa única “imagem” as

propriedades dos objectos obtidas em diferentes arranjos experimentais. Bohr acabou, assim,

absolutizando a diferença entre onda e corpúsculo, fixando-os como pares opostos, não os encarando

como pertencentes a uma mesma totalidade e, consequentemente, não podendo pôr a questão das suas

inter-relações.

Mas, se Bohr faz isto, é porque não está a ter em conta algo que se verifica em relação ao ser, é

porque está a remover da epistemologia o seu devido fundamento ontológico. No entanto, como diz

Barata-Moura referindo-se à perspectiva marxista sobre o conhecer, “ele [o ser] nunca é um mero

apêndice «metafísico» […]: representa sempre uma dimensão constitutiva do carácter concreto e

objectivo do saber científico, em geral”647. Bohr, em particular, não está a ter em conta a unidade do

mundo. Não a negando directamente, nega a possibilidade de ela ser verdadeiramente apreendida pela

teoria. Colocando-se numa posição não materialista, nega, assim, em geral, a possibilidade de as teorias

científicas reflectirem a realidade objectiva como ela é, na sua unidade, na qual não deixam de se

encontrar, objectivamente, a diferença e a contradição. Engels chamava, como vimos, agnósticos aos

filósofos que adoptavam esta posição de negação da possibilidade de conhecer o mundo, ou, pelo menos,

conhecê-lo completamente. Entre as suas diferenças, dizia Lénine, têm em comum o facto de separarem

por princípio o aparecer daquilo que aparece.

As representações humanas são um reflexo desse mundo na consciência, podem apreendê-lo e

reflecti-lo tal como ele é. Assim, as teorias poderão ser capazes de dar conta dessa realidade objectiva na

sua unidade (unidade essa que, como diz Engels, consiste na sua materialidade)648, pelo que não haveria

necessidade da negação dessa unidade imposta por Bohr ao nível teórico. Mas Bohr nega efectivamente

essa unidade do real na teoria, através do princípio da complementaridade.

Bohr, tal como fizeram outros no passado, separa o fenómeno da essência, da “coisa em si”.

Como consequência, ficamos com uma teoria que se fica pelos fenómenos imediatamente dados – apenas

podemos conhecer os fenómenos – e que, por isso, não lhe resta outro papel que não seja o de ordenar

dados, coordenar experiências. É a condição elementar de cientificidade enquanto procura da conexão

interna dos fenómenos que não é atendida. Como consequência, temos um ser que é tratado teoricamente

como não mais do que a soma das suas determinações, impedidas de se verem apreendidas na totalidade

647J. Barata-Moura, Materialismo e Subjectividade, Estudos em Torno de Marx, Lisboa, Edições Avante!, 1997, p. 103.

648“A unidade real do mundo consiste na sua materialidade, e esta não se prova com um par de frases de prestidigitador, mas com um longo e moroso desenvolvimento da filosofia e das ciências da natureza”. F. Engels, Anti-Dühring, cit. por V. I. Lénine, op. cit., p. 131.

em que se inserem. Podemos levar a busca e o estudo até à exaustão de cada uma das determinações – e é

neste sentido que Bohr diz que a introdução da complementaridade não cerceia o avanço do

conhecimento. Mas não passaria do acrescento de mais uma. Porém, aquilo que Bohr não faz é procurar a

tal conexão interna dos fenómenos. Nega a função da ciência como tal.

Mas é precisamente porque Bohr acaba separando a teoria do seu fundamento ontológico (sem o

atendimento do qual a cientificidade não se vê garantida) que pode separar, como faz, onda e corpúsculo

– propriedades de uma mesma matéria que existe simultaneamente no tempo e no espaço. É por isso que

pode desunir em cima (na teoria) aquilo que em baixo (na realidade objectiva) é uno. Fá-lo com o

objectivo de evitar contradições, que são entendidas como um erro, que surgem quando esses dois

aspectos da realidade são postos em contacto (na teoria). É por isso que pode desistir da procura do

fundamento real objectivo a que corresponde a contradição onda-corpúsculo.

Por essa mesma razão, por se separar da teoria do seu fundamento ontológico, por se estabelecer

uma objectividade que é interna à linguagem, que se pode constituir um formalismo que não pretende ser

mais do que um “esquema puramente simbólico” que estabelece relações entre as observações no qual as

quantidades físicas (cinéticas e dinâmicas) são substituídas por símbolos que pouco ou nada pretendem

ter a ver com a realidade física. Ou dito de outra maneira, a teoria deixa de pretender ser reflexo da

realidade material, para ser exclusivamente forma de manipulação puramente simbólica, forma de

coordenação das regularidades, coordenação da experiência e em que esta é entendida como

estabelecimento de conexões “não ambíguas” entre dados das medições. Mais uma vez, não se trata aqui

de negar a necessidade de abstracções no processo do conhecimento – pelo contrário, este é um momento

necessário desse processo – mas trata-se de rejeitar, a partir de um ponto de vista materialista, uma

posição que nega a realidade objectiva como o ponto de partida e referente último do conhecimento

científico.

Lénine, em Materialismo e Empiriocriticismo, nota que muitas das posições dos machistas têm a

pretensão de se elevar acima das duas correntes fundamentais em filosofia, o materialismo e o idealismo.

É interessante notar como também Bohr se insere nesta mesma linha, pensando ser possível colocar-se

acima de um posicionamento face à atribuição do primado ao ser ou à consciência. Bohr julga conseguir

ultrapassar essa oposição fundamental. Quando Bohr afirma que “concepções como realismo e idealismo

não encontram lugar na descrição objectiva tal como a definimos”649 é isso que pretende exprimir.

Pretende consegui-lo através de uma via assente numa espécie de operacionalismo que removeria

ambiguidades na comunicação rumo a uma objectividade que se revela, afinal, uma intersubjectividade.

No entanto, como vimos, as suas posições filosóficas contrariam directa ou indirectamente a atribuição do

primado ao ser face à consciência no que diz respeito às questões gnosiológicas. Como Engels afirma, a

questão da relação entre os nossos pensamentos acerca do mundo que nos rodeia e este próprio mundo, a

questão de saber se o nosso pensamento é capaz de conhecer o mundo, é um outro aspecto dessa mesma

649N. Bohr, «Unity of Knowledge» (1967), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 79.

questão fundamental. Bohr, como procurei demonstrar, quando aborda os problemas filosóficos do

conhecer, acaba inserindo-se nesta linha de pessoas que negam total ou parcialmente essa possibilidade.

E porque o agnosticismo não é uma linha independente, Bohr, por assumir uma posição não

materialista ao negar a possibilidade da existência de um conteúdo de verdade independente do sujeito, da

humanidade, acaba caindo num idealismo subjectivista. Isso fica visível quando, por exemplo, estabelece

que os fenómenos só são fenómenos para um sujeito, isto é, quando antepõe o sujeito como condição de

possibilidade do fenómeno. Isto é tomar partido quanto à questão fundamental da filosofia. É tomar a

realidade objectiva como dependente do sujeito, é tomá-la como o secundário e o sujeito como primário.

É idealismo.

A este respeito é também particularmente elucidativa a questão da redução instantânea do trem

de ondas para que Croca chamava a atenção650. O posicionamento filosófico de Bohr condu-lo, perante as

efectivas dificuldades teóricas num domínio de investigação em desenvolvimento, a adoptar

interpretações (bizarras) segundo as quais ondas de probabilidade interagiriam fisicamente e que o ente

quântico possuiria simultaneamente todas as propriedades antes do acto da medição (que reuniria em si

todo o conjunto das determinações possíveis) e que seria a medição a conferir atributos determinados ao

objecto.

Marx dizia que “A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objectiva não

é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de comprovar a

verdade, isto é, a realidade e o poder, o carácter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou

não- -realidade de um pensamento que se isola da práxis é uma questão puramente escolástica”651. É,

portanto, através da prática que os limites definitivos que Bohr diz existirem no conhecimento têm de ser

mostrados (eles sim) limitados, passageiros e passíveis de serem ultrapassados. A este respeito, é

fundamental uma referência aos microscópios por efeito de túnel. Em Towards a Nonlinear Quantum

Physics, José Croca dá um exemplo de uma medida concreta que vai para além das relações de incerteza

de Heisenberg652. Experiências com os microscópios de super-resolução, que funcionam com base no

efeito de túnel, obtiveram resoluções da ordem de Δx=λ/50 ou melhor. Mantendo a mesma incerteza no

momento, Δp, verificada para os microscópios comuns, os produtos das incertezas ficam

x p= 125

h

o que está em clara discrepância, nota Croca, com as relações de incerteza do formalismo ortodoxo por

650Bohr não aborda esta questão directamente nos seus escritos de pendor filosófico, pelo que não tive oportunidade de estudar o tratamento que Bohr, nas suas próprias palavras, dá a este problema do significado da função de onda.

651K. Marx, Teses sobre Feuerbach (1845), in Marx-Engels, Obras Escolhidas em três tomos, Lisboa-Moscovo, Edições «Avante!»-Edições Progresso, t. I, 1982, p. 1.

652J. Croca, Towards a Nonlinear Quantum Physics, New Jersey/London/Singapore/HongKong, World Scientific, 2003, p. 120-128.

um significativo factor de 1/25. O que este resultado evidencia é que as relações de incerteza de

Heisenberg apresentam limites de aplicabilidade e que não são limites definitivos.

III - Conclusões e notas finais

Chegados a este ponto, espero estar respondida uma questão que com elevada probabilidade (e

denunciando estranheza) terá assolado a mente de alguns que, por uma razão ou por outra tomaram

contacto com o tema da presente dissertação: Lénine e mecânica quântica, o que tem Lénine a ver com a

mecânica quântica?

Espero que se tenha tornado evidente que as questões que Lénine levanta e desenvolve em

Materialismo e Empiriocriticismo têm uma relação profunda e actual com os problemas filosóficos da

mecânica quântica e da ciência dos nossos dias. Não só pelas linhas gerais que traça de uma teoria do

conhecimento materialista dialéctica, que se expõe e desenvolve em oposição ao idealismo, mas também

pelo próprio debate de ideias específico que nessa obra decorre: é um debate historicamente localizado, é

certo, mas o que lá se diz acaba por revelar correspondências muito interessantes (e reveladoras) com as

questões presentes no debate filosófico actual em torno da mecânica quântica. É de particular interesse,

tendo em conta a hipótese de que parte a presente dissertação, a análise a que Lénine procede sobre o

“idealismo físico”, isto é, a interpretação e utilização idealistas dos resultados das ciências da natureza do

século passado.

Lénine é defrontado com uma linha filosófica, o empiriocriticismo, uma corrente positivista,

cujos partidários apresentavam contra o materialismo um conjunto de argumentos dados como novos e

modernos. Lénine mostra, então, como aquelas mesmas concepções surgem precisamente em filósofos

consequentemente idealistas, os quais, juntamente com os materialistas, concorrem na definição das

correntes fundamentais em filosofia. Argumentos contra a existência de uma realidade objectiva

independentemente da consciência – como se encontram nos empiriocriticistas, nos “positivistas

modernos” – estão presentes, como mostra Lénine, naqueles mesmos que pretendem defender a

religiosidade e a fé. A corrente agnosticista, cujos argumentos serão também utilizados pelos machistas,

procura situar-se acima da resposta à questão (dando o problema por irresolúvel) da origem das nossas

sensações: se é a consciência (idealismo) ou se é o mundo exterior independente da consciência

(materialismo).

No que diz respeito ao problema da constituição do saber, para o materialismo filosófico, é a

matéria o que se encontra na origem das nossas sensações. A mesma posição adoptam, de uma forma

geral e espontânea, os cientistas, ao considerarem que as suas sensações são originadas pelo meio

exterior.

O empiriocriticismo, por seu turno, assume, nos seus fundamentos, a posição idealista de

considerar que a única coisa que podemos tomar por real são as sensações: estas são o dado primário.

Para Mach e Avenarius, o mundo é a sensação. Ir para além das sensações, é metafísica. Esta posição

conduz ao solipsismo, isto é, à conclusão de que todo o mundo é apenas representação minha. Entre os

filósofos que partilham esta posição, há os que se assumem idealistas e os que se pretendem fazer passar

por materialistas.

Fundando-se em premissas idealistas, o empiriocriticismo não deixará mais tarde de tentar

conciliar-se com as ciências da natureza para o que necessitará de incluir algumas conclusões de cunho

materialista. Essas tentativas traduzem-se, nomeadamente, na introdução da expressão “elementos”

(Mach), nas chamadas séries dependente e independente da experiência ou na coordenação de princípio

(Avenarius). Tanto o idealismo inicial desta doutrina, como o esforço posterior de introduzir elementos

materialistas é reconhecido, como mostra Lénine, por vários autores seus contemporâneos. No entanto,

como evidencia Lénine, trata-se de tentar conciliar o inconciliável (porque ou se assume o ponto de vista

que vai da matéria para a consciência ou que vai da consciência para a matéria).

A sua introdução consiste numa tentativa de resolver alguns dos problemas que decorrem do

facto daquela filosofia apresentar conclusões solipsistas decorrentes das premissas idealistas sobre que

assenta (os corpos são complexos de sensações) e que entram em contradição com as ciências da natureza

que se erigem sobre um materialismo espontâneo, isto é, sobre a assumpção espontânea de que o mundo

existe primária e independentemente de quem o pensa, de que o objecto existe sem o sujeito, de que a

sensação é o resultado da acção da matéria sobre os nossos órgãos dos sentidos (e que a filosofia

materialista coloca conscientemente na sua base).

Um dos momentos em que estas contradições se verificam é quando esta filosofia se defronta

com o facto da existência da natureza antes do homem. Para resolver este problema, Avenarius criará a

solução do “termo central potencial ” para salvar a coordenação indissolúvel entre o Eu e o meio. Esta

solução, segundo Lénine, é de tal forma mística e obscura que deixa as portas abertas ao fideísmo.

Da mesma forma, quando se põe a questão de saber qual a origem do pensamento, a filosofia

empiriocriticista dá uma resposta oposta à das ciências da natureza e da filosofia materialista. O

empiriocriticismo, por via dos seus principais representantes, nega que o cérebro seja o órgão do

pensamento, que o pensamento seja uma função do cérebro. O dualismo entre espírito e corpo é

eliminado (defende-se a ligação indissolúvel entre o Eu e o meio), não de maneira materialista, mas da

maneira idealista, isto é, concedendo a precedência ao pensamento (o objecto não existe sem o sujeito).

Na defesa desta posição, feita também por Avenarius, para além de uma linguagem confusa, professoral e

escolástica, que resulta numa forma de ocultar erros e inconsistências, reencontramos a mesma estratégia

de argumentação: combatendo supostamente o idealismo em defesa de um “realismo ingénuo”, cai-se

novamente no idealismo, facto reconhecido, como Lénine indica, por um conjunto vasto de filósofos de

diferentes tendências.

Mas, como Lénine mostra, estas tentativas, pretendendo colocar-se acima do materialismo e do

idealismo, têm apenas como resultado uma filosofia ecléctica e incoerente que não se liberta do idealismo

subjectivo de que parte e o solipsismo, isto é, o reconhecimento apenas do indivíduo que pensa, é a

consequência inevitável.

A propósito da réplica a Tchernov e a Bazárov, Lénine expõe um conjunto de aspectos

fundamentais da teoria do conhecimento materialista dialéctica, nomeadamente no que concerne a relação

existente entre as nossas representações do mundo e esse mesmo mundo.

Lénine, em acordo com Marx e Engels, afirma a cognoscibilidade do mundo e a prática como o

critério que comprova essa mesma possibilidade. Nega, portanto, quaisquer diferenças de princípio entre

o fenómeno e a “coisa em si” e chama “invenções filosóficas” à imposição de barreiras ou limites

especiais entre um e outro. Afirma o conhecimento como um processo dialéctico, como um processo no

qual da ignorância nasce o conhecimento.

Além disso, esclarece que a verdade objectiva significa a existência dos objectos (isto é,

existência independente da nossa consciência) reflectidos verdadeiramente pelo pensamento. Sublinha

que tomar por idênticos o objecto e as nossas representações desse objecto, isto é, afirmar que “a

representação sensorial é precisamente a realidade que existe fora de nós” é uma posição característica do

idealismo e do agnosticismo. Para os materialistas, as nossas representações são imagens da realidade

existente fora de nós.

Lénine define a verdade objectiva como o conteúdo das representações humanas que não

depende do sujeito. A questão de saber se existe a verdade objectiva não deve ser confundida, por um

lado, com a questão do critério da verdade objectiva – a prática –, nem com a questão de saber se a

verdade objectiva pode ser expressa integralmente ou apenas de forma aproximada – esta é a importante

questão da relação entre a verdade absoluta (expressão da verdade objectiva que é absoluta, integral,

incondicional) e da verdade relativa (expressão da verdade objectiva que é apenas relativa, aproximada).

Lénine mostra que a definição da verdade como forma organizadora da experiência humana

corresponde à negação de um conteúdo de verdade independente do sujeito e, consequentemente, à

negação da verdade objectiva. A negação da verdade objectiva conduz, por sua vez, ao fideísmo, isto é,

abre as portas a todas as formas místicas e religiosas como “verdadeiras” pois também elas são

experiências sociais organizadas.

As sensações são a fonte do nosso conhecimento. Para os materialistas, é a realidade objectiva a

fonte das nossas sensações. As nossas representações são o reflexo da realidade objectiva impressa nos

nossos órgãos dos sentidos. Os agnósticos declaram impossível saber se existe uma realidade objectiva

como fonte das nossas sensações ou declaram-na incognoscível: negam, assim, a verdade objectiva.

Os fundamentos do empiriocriticismo, que é uma mistura ecléctica de subjectivismo e de

agnosticismo, conduzem àquele tipo de conclusões de espírito clericalista: a definição dos corpos como

complexos de sensações (subjectivismo puro) exclui a realidade objectiva (a realidade existente

independentemente do sujeito sensível) e, consequentemente, a verdade objectiva.

Lénine define o conceito de matéria como uma categoria filosófica que designa a realidade

objectiva que existe independentemente do sujeito e que é dada ao homem através das suas sensações.

Esta categoria filosófica não deve ser confundida, como fazem os machistas, com a modificação do nosso

conhecimento acerca de uma ou outra propriedade da matéria. A discussão em torno da aceitação ou

rejeição do conceito de matéria remonta ao início da filosofia e não pode envelhecer, diz Lénine, pois esta

é a questão das fontes do nosso conhecimento. A aceitação do conceito de matéria significa a aceitação da

realidade objectiva. Considerar as nossas sensações como imagens dessa realidade objectiva significa a

aceitação da verdade objectiva. E isto é situar-se no ponto de vista da teoria materialista do conhecimento.

Os representantes do empiriocriticismo, do positivismo moderno, negam o conceito de matéria

como a realidade objectiva independente do sujeito e por ele reflectida nas suas sensações. Partem

precisamente da linha oposta ao materialismo definindo a matéria em função das sensações, do Eu, do

“termo central”. Ou seja, não a tomam como o dado primário, mas sim secundário, revelando assim a sua

tendência idealista.

O problema da verdade é uma das questões filosóficas mais importantes. Vimos que Lénine

sublinha que o materialismo reconhece a verdade objectiva, isto é, um conteúdo nas representações

humanas que não depende do sujeito. A questão subsequente de saber se o pensamento humano é capaz

de exprimir essa verdade objectiva de forma absoluta ou relativa só é resolúvel dialecticamente, tal como

o é, consequentemente, a relação entre a verdade e o erro.

De um ponto de vista materialista dialéctico, o pensamento humano é ilimitado pela sua natureza

e limitado pela sua realização individual e pela realidade num dado momento. Esta contradição é apenas

resolúvel numa série de gerações humanas praticamente infindável (Engels). O conhecimento humano

nunca esgota o objecto, da mesma forma que apenas de forma aproximada o quadro “coincide” com o

modelo. (Dietzgen). Mas, para os materialistas dialécticos, a verdade absoluta existe e compõe-se da

soma de verdades relativas e é indiscutível que nos aproximamos dela. Aqui se traça a diferença entre a

dialéctica e o relativismo o qual defende que todos os nossos conhecimentos são relativos e nega a

existência de um modelo objectivo do qual os nossos conhecimentos relativos são reflexo. Reconhecer a

verdade objectiva implica reconhecer a verdade absoluta. Esta é uma posição materialista. Não o fazer,

adoptando uma posição relativista, implica cair no agnosticismo ou no subjectivismo.

O materialismo coloca a prática na base da teoria do conhecimento. Para isto chama Lénine a

atenção. É o critério da prática que permite distinguir as ilusões da verdade objectiva. Lénine recorda as

palavras de Marx segundo as quais “colocar fora da prática a questão de saber «se ao pensamento humano

pertence a verdade objectiva» é escolástica”. Mas a prática, acrescenta Lénine, não pode confirmar nem

refutar completamente uma representação: este critério é suficientemente indeterminado para impedir a

transformação do conhecimento num dogma e suficientemente determinado para refutar as posições

idealistas e agnósticas.

O idealismo e o agnosticismo – que são obrigados a admitir que, na sua prática, os homens

assumem uma posição materialista – procuram, então, separar e remover a prática da teoria do

conhecimento. (Mas tal filosofia assim construída, separada da prática, é uma “especulação morta”,

“falsa”). Com esta separação, abre-se, consequentemente, caminho à identificação (tal como Mach faz) da

verdade objectiva com as ilusões.

Da mesma forma, a questão da “utilidade” ou do “êxito” dos nossos conhecimentos não pode ser

separada da verdade objectiva – como o fazem as correntes não materialistas – pois o conhecimento só é

efectivamente útil na medida em que reflecte essa mesma verdade objectiva.

A questão da causalidade e da necessidade é reconhecida por Lénine como uma questão

fundamental, importante para a definição de uma linha filosófica.

Para os materialistas, a causalidade é objectiva, isto é, existe e pertence ao domínio dos próprios

processos da natureza e que a consciência humana – como parte (ínfima) da natureza que é – é capaz de

apreender e reflectir com exactidão aproximada. O reconhecimento da causalidade objectiva está, para os

materialistas, intimamente ligado ao reconhecimento da realidade objectiva.

Em sentido oposto, para os idealistas não existe causalidade objectiva, isto é, não é na própria

natureza que podem ser encontradas as conexões causais, mas é o pensamento humano, a consciência,

que confere ordem à torrente dos fenómenos, caóticos em si mesmos. Esta posição decorre da atribuição

idealista do primado, na relação entre ser e consciência, a esta última. Tal linha filosófica subjectivista

que deduz a ordem da natureza da razão acaba por conduzir ao fideísmo, mais ou menos atenuado.

Os empiriocriticistas Mach e Avenarius (entre outros filósofos) adoptam esta linha filosófica na

questão da causalidade considerando a necessidade como grau de probabilidade com que se esperam os

efeitos (Avenarius) ou considerando que a única necessidade existente é lógica (Mach), para dar alguns

exemplos. Entre os filósofos que perseguem esta mesma linha na questão da causalidade encontram-se

Pearson (para quem a necessidade se encontra no mundo dos conceitos), Petzoldt (com a exigência

apriorítica de univocidade), Willy (que defende a necessidade como característica puramente lógica,

verbal), Poincaré (para quem as leis da natureza são convenções criadas pelo homem por comodidade),

etc. Em todas estas posições é possível encontrar afinidades com a linha de Hume e de Kant, umas vezes

expressamente admitidas pelos próprios autores, outras pelos partidários daquelas mesmas linhas. Mas

independentemente das diferentes variantes e afinidades de cada uma destas posições, o que é importante,

considera Lénine, é o estabelecimento daquilo que elas têm em comum entre si e que é a negação da

causalidade objectiva.

De um ponto de vista materialista não metafísico, isto é, dialéctico, é importante considerar a

relação, dialéctica, entre causa e efeito que Engels aborda no Anti-Dühring: causa e efeito são

representações que só têm significado como tais se aplicados a um caso particular; quando considerada a

conexão geral estas representações mudam constantemente de posição.

Lénine também se debruça sobre a problemática associada ao tempo e ao espaço. Para os

materialistas, o tempo e o espaço existem objectivamente, isto é, a sua existência não depende da

humanidade, não depende da consciência. Não são apenas conceitos. É claro que a humanidade formula

os seus conceitos de espaço e de tempo e que estes, tal como o conhecimento em geral, estão em

permanente modificação e progressão e reflectem uma realidade objectiva. Ora, o facto dos conceitos de

espaço e de tempo se modificarem com o avanço do conhecimento não refuta de forma alguma a sua

existência objectiva. Essa modificação nos conceitos não autoriza, do ponto de vista do materialismo,

nenhuma perspectiva relativista sobre o tempo e o espaço.

Opinião contrária têm correntes idealistas e agnósticas que se caracterizam por posições como

tomarem o tempo e o espaço como sistemas ordenados de séries de sensações (Mach); por considerarem

que o tempo e o espaço são dados pelo homem à natureza por razões de comodidade (Poincaré); que estes

não têm existência real, que não se encontram nas coisas, mas na maneira de os homens as perceberem

(Pearson); que são formas de coordenação social da experiência de várias pessoas (Bogdánov).

Assim, como resume Lénine, o problema gnosiológico fundamental consiste em saber se o

espaço e o tempo são reais ou ideais.

Mach procura bater-se contra o idealismo franco e aberto quando este retira conclusões

explicitamente fideístas (veja-se se o exemplo da tentativa de exploração fideísta do espaço de quatro

dimensões). Mas quando o espaço e o tempo não são entendidos materialistamente, isto é, como

objectivamente existentes, deixa-se, inevitavelmente, a porta aberta a tais conclusões.

Lénine, perante empiriocriticistas que procuraram acolher a solução materialista dialéctica da

liberdade e da necessidade, mostra como esta solução desta questão é inseparável das premissas

materialistas dialécticas sobre que assenta, pelo que, acolhê-la e fazê-la conviver com teses agnósticas e

idealistas é mais um sinal do eclectismo e incoerência dos machistas.

Ao fazê-lo, traz à luz a relação dialéctica entre a liberdade e a necessidade, a concepção da

liberdade como conhecimento da necessidade (em que a necessidade é colocada como o primário e a

vontade como o secundário), a existência da “necessidade cega” que se transforma em necessidade

conhecida tal como a “coisa em si” se transforma em “coisa para nós”, e a concepção de uma teoria do

conhecimento na qual a prática humana irrompe e é critério objectivo de verdade.

Lénine analisa também o empiriocriticismo em relação com as outras correntes filosóficas.

Mais do que explorar as diferenças entre diferentes agnósticos, entre diferentes positivistas, interessa

perceber o que entre eles há de comum, perceber a divergência fundamental com o materialismo.

Na crítica ao kantismo, observar de que lado os empiriocriticistas se posicionaram é revelador.

Enquanto os materialistas criticam Kant pelo seu idealismo, pelo estabelecimento de uma diferença

fundamental ente o fenómeno e a coisa em si, pela dedução da causalidade das leis apriorísticas do

pensamento, os empiriocriticistas criticam Kant pelas suas concessões ao materialismo, isto é, por não ter

depurado a experiência suficientemente (Avenarius), no fundo, por ter ainda admitido a substância. Mach

e Avenarius seguiram a linha filosófica que criticou Kant do ponto de vista humista e berkeleyano.

Lénine revela também o apreço mútuo demonstrado entre empiriocriticistas e imanentistas e a

convergência de posições. Mostra como Mach e Avenarius apreciam e são apreciados por filósofos que

defendem a imortalidade da alma e que combatem a “fé cega na infabilidade das ciências da natureza”

pugnando por uma “melhor entrada para a morada da verdade”.

A observação do sentido do desenvolvimento da corrente empiriocriticista, mais do que longos

raciocínios, ajudará a resolver a questão fundamental da natureza desta filosofia, dizia Lénine. Lénine

mostra, então, como os discípulos desta corrente, tomando as suas premissas fundamentais, desembarcam

em posições reconhecidamente idealistas, facto que os machistas russos como Bogdánov têm dificuldade

em reconhecer. Bogdánov é o exemplo de como é possível ocultar posições idealistas sob roupagens e

pretensões materialistas. Lénine mostra como a “experiência socialmente organizada” de Bogdánov é

uma porta aberta ao clericalismo.

Lénine critica, de um ponto de vista materialista, a teoria dos símbolos de Helmholtz. E mostra,

mais uma vez, como os empiriocriticista fizeram a crítica a Helmholtz – que vacilava entre uma postura

materialista e idealista – pelo lado oposto e de mãos dadas com os imanentistas. Mostra como a teoria dos

símbolos introduz um elemento desnecessário de agnosticismo: enquanto que a imagem, não sendo igual

ao modelo, pressupõe a realidade objectiva daquilo que se reflecte, o símbolo é tão-só um sinal

convencional. O empiriocriticista Kleinpeter, por seu turno, protestava com Helmholtz por este pressupor

a existência de objectos do mundo exterior, por ter, diz, uma “compreensão errada das palavras massa,

força, etc.” pois “isto são apenas conceitos, produtos da nossa fantasia, e de modo nenhum realidades

existentes fora do pensamento”.

A crítica a Dühring e a Dietzgen revela, não só os mesmos dois lados opostos dessa mesma

crítica, mas também a deturpação do marxismo feita por alguns machistas. A este respeito, Lénine

sublinha que Marx e Engels “sempre condenaram o mau materialismo (e, principalmente, o

antidialéctico), mas condenaram-no do ponto de vista de um materialismo mais elevado, mais

desenvolvido, do materialismo dialéctico, e não do ponto de vista do humismo ou do berkeleyanismo”653.

Lénine analisa a essência da “crise na física” que se enfrentava no início do século XX. Tal crise decorria

de novas descobertas científicas que abalavam os princípios fundamentais da física. As leis da mecânica já não se

podiam aplicar a todos os fenómenos da física agora conhecidos. Dessas novas descobertas e do abalo das leis

fundamentais foram retiradas conclusões gnosiológicas. As tendências idealistas em filosofia aproveitaram esta

situação para rejeitar a ciência como a via para o conhecimento da realidade objectiva defendendo o seu carácter

653V.I. Lénine, Materialismo e Empiriocriticismo, Notas Críticas Sobre uma Filosofia Reaccionária, Lisboa, Moscovo, Edições Avante-Edições Progresso, 1982, p.181.

meramente instrumental, meramente simbólico. Lénine estabelece a ligação entre uma determinada escola da nova

física e o renascimento do idealismo filosófico. Os físicos organizaram-se em diferentes escolas de acordo com as

suas tendências gnosiológicas (traduzindo duas linhas filosóficas fundamentais opostas). Lénine mostra como, de um

lado, se encontravam cientistas que se procuravam ater ao reconhecimento da existência da realidade objectiva e à

possibilidade de as suas teorias científicas constituírem uma aproximação a um conhecimento cada vez mais

profundo dessa realidade (isto é, que se mantinham num ponto de vista materialista espontâneo) e, de outro lado, se

encontravam cientistas que, perante a impossibilidade de as teorias reflectirem, de forma definitiva, o nosso

conhecimento sobre a realidade objectiva, negavam a possibilidade de alcançar qualquer conhecimento sobre essa

realidade objectiva. Sobre tais conclusões idealistas retiradas da nova física apoiou-se o fideísmo.

Sob a ideia do “desaparecimento da matéria” - que significa apenas que desapareceu o limite até

ao qual a estrutura da matéria era conhecida – as tendências idealistas atacaram o materialismo fazendo

uso da confusão entre a existência da matéria – a realidade objectiva independente da consciência – e o

nosso conhecimento sobre ela.

Muitos cientistas retiraram conclusões idealistas porque não conheciam a dialéctica e, em particular, a

relação entre a verdade absoluta e a verdade relativa; abandonaram uma postura materialista (ainda que pudesse ser

espontânea) porque identificavam o materialismo com o materialismo metafísico, não dialéctico, cujas limitações se

lhes tornaram evidentes. Ao combaterem o materialismo metafísico, abandonaram o materialismo; ao negar a

imutabilidade das propriedades da matéria conhecidas até então, negaram a matéria; ao negar o carácter absoluto das

leis mais importantes, negaram a existência de qualquer lei objectiva na natureza e na afirmação das leis como

“necessidades lógicas”; ao insistirem no carácter relativo e aproximativo do nosso conhecimento, caíram na negação

do objecto independente do conhecimento reflectido de forma relativamente verdadeira pelo nosso conhecimento.

Lénine resume da seguinte forma: “A essência da crise da física contemporânea consiste na destruição das velhas leis

e princípios fundamentais, na rejeição da realidade objectiva fora da consciência, isto é, na substituição do

materialismo pelo idealismo e pelo agnosticismo”654.

Essa crise da física traduz-se, no concreto, explicita Lénine, numa tentativa de conceber o

movimento sem a matéria: nega-se a matéria sem se negar o movimento. Separar o movimento da matéria

equivale a separar o pensamento da matéria: se se admite o movimento sem a matéria, admite-se o

movimento das representações, das sensações, etc. sem a matéria, logo admite-se o pensamento sem

matéria, o que é uma conclusão idealista. Para os materialistas, o mundo é matéria em movimento e o

movimento das nossas representações corresponde ao movimento da realidade objectiva, da matéria.

Lénine dá a teoria energética de Ostwald como um exemplo de uma concepção com a qual se

procura fazer esta separação do movimento da matéria: procura-se conceber a energia – entendida como

movimento – sem um “veículo”. Ostwald manteve muitas vezes um ponto de vista materialista

entendendo a energia como movimento material. Mas foi-o de forma inconsequente, procurando até unir

os conceitos de matéria e espírito sob o conceito de energia sem se dar conta que tal supressão verbal não

eliminaria a verdadeira contradição gnosiológica entre matéria e espírito, nem as correntes e questões

filosóficas fundamentais. O machista Bogdánov critica Ostwald por não manter sempre a concepção de

654idem, ibidem, p. 196.

energia com carácter “puramente metodológico” desviando-se para concepção da energia como “matéria

do mundo”, ou noutras palavras, por se desviar do idealismo para o materialismo. Bogdánov é, assim, o

próprio exemplo de como a inconsequência de Ostwald pôde ser aproveitada pelas tendências idealistas

que consideram a energia (e a ciência) “puro símbolo”.

Lénine estuda, então, a expressão que as duas correntes da física contemporânea têm na literatura de

diversos países, dando a palavra a cientistas e filósofos ingleses, franceses, alemães e russos. Dessa análise é possível

concluir que o debate filosófico se faz, independentemente de nuances próprias, sobre os mesmos problemas

fundamentais e que, efectivamente, se dá em torno de duas posições gnosiológicas fundamentais, facto que os

interventores no debate – para além de questões terminológicas – reconhecem.

De um lado, estão aqueles que, perante as novas descobertas e as novas teorias, entendem a

teoria como um conhecimento sobre o objecto, como uma aproximação à realidade objectiva. Estes

assumem, em geral e não sem algumas imprecisões, uma posição materialista, mais ou menos espontânea,

mais ou menos “envergonhada”. O inglês Rücker, por exemplo, considera que a teoria como ficção

cómoda não pode ser a última palavra da ciência na luta pela verdade e que dos fenómenos podemos tirar

conclusões sobre a estrutura da própria matéria. O alemão Hertz considera o modo de expressão

energético uma forma de falar sobre uma matéria que é ponderável e que conhecemos mas ainda de forma

insuficiente e o alemão Boltzmann considera a teoria uma imagem da natureza e combate as tentativas de

desenhar um quadro subjectivo do mundo. Em França, deparamo-nos com o positivista Rey a procurar, de

forma forçada, defender conclusões que são materialistas (experiência como conhecimento do objecto,

por exemplo) a partir da doutrina machista: mas o resultado de conciliar o inconciliável é uma

“embrulhada”, diz Lénine.

De outro lado, estão os que, perante a modificação do conhecimento sobre a estrutura da matéria, negam a

matéria, introduzem o movimento separado da matéria; perante a impossibilidade da existência de teorias científicas

definitivas e acabadas, negam a possibilidade de as teorias científicas serem um reflexo da realidade objectiva e

procuram edificar uma ciência que não é conhecimento da natureza, mas apenas um sistema cómodo, simbólico de

ordenar os fenómenos sem necessária correspondência com a realidade objectiva. Como Lénine mostra, tais posições

gnosiológicas que procuram fazer caminho através da nova física, são o espaço fértil para conclusões fideístas: a

ciência, já que não pode corresponder a um conhecimento da realidade objectiva, tem, então, o mesmo valor que

outros conhecimentos, como, digamos, o religioso. Como exemplo, Lénine cita o espiritualista inglês Ward que

arranca todos os véus à questão em debate, que claramente afirma que não se chega a Deus através de um mero

mecanicismo e que valoriza a “nova física” como o meio mais poderoso contra a fé ignorante na matéria. Na

Alemanha, Cohen reconhece que o idealismo já impregna a nova física esperando que venha a derrotar

definitivamente o materialismo dos naturalistas e Hartmann explica acertadamente aos físicos que – tendo eles

tomado os electrões como hipótese de trabalho – é então necessário que, consequentemente, abandonem também o

entendimento da existência do tempo, do espaço, da causalidade e das leis da natureza como realidades existentes

objectivamente. Em França, observamos Poincaré, para quem as verdades da ciência são convenções, símbolos, a

recorrer a posições materialistas para se defender das conclusões fideístas que Le Roy pôde retirar daquelas

premissas. Lénine evidencia, assim, que só o materialismo franco e consequente pode dar combate a tais conclusões.

Também na Rússia podemos encontrar o filósofo idealista Lopátine a elogiar o físico Chíchkine por se demarcar dos

seus contemporâneos ao tomar as diferentes formas de considerar a luz simplesmente como diferentes métodos de

organização da experiência.

Lénine usou a expressão idealismo “físico” para designar o idealismo presente nas interpretações de certos

resultados da ciência feitas por uma determinada escola de físicos.

Como causas para o surgimento de tal idealismo, Lénine aponta: 1) O “desaparecimento da

matéria”, isto é, uma tentativa de conceber o movimento sem a matéria, de retirar a matéria, os

“elementos físicos” (nas palavras de Rey), das equações subsistindo estas apenas enquanto relações

formais. Esta é uma ideia que conduz à velha ideia kantiana segundo a qual a razão dita leis à natureza. 2)

O relativismo, isto é, o princípio da relatividade do nosso conhecimento, que conduz inevitavelmente ao

idealismo quando não se conhece a dialéctica. A incompreensão da dialéctica e, no concreto, da relação

entre a verdade relativa e absoluta, leva a que, do reconhecimento da relatividade dos nossos

conhecimentos, se conclua a inexistência de verdade objectiva.

A crise da física contemporânea consiste, portanto, em que ela deixou de reconhecer

decididamente o valor objectivo das suas teorias.

Lénine mostra que se está presente uma corrente ideológica internacional. É falsa a pretensão de

alguns em considerar o machismo como a moderna filosofia das ciências da natureza porque ela está

ligada a apenas a um ramo das ciências e, sobretudo, porque aquilo que no machismo está ligado a esta

escola da física não é o que ele tem de específico, mas o que tem de comum com todo o idealismo

filosófico. Assim, a ideia fundamental desta escola da física é a negação ou dúvida da existência da

realidade objectiva que nos é dada nas sensações e reflectida pela teoria. É significativo notar que são os

imanentistas, os neocriticistas, os espiritualistas, etc., que se esforçam por a fundamentar

gnosiologicamente e desenvolver.

O idealismo físico (tal, como no passado, o idealismo fisiológico), diz Lénine, é o resultado de

uma escola de naturalistas de um ramo das ciências não ter sabido elevar-se directamente do materialismo

metafísico ao materialismo dialéctico.

***

Ao analisar os textos de Bohr em que este grande físico – uma das principais, se não a principal

figura da mecânica quântica – expõe as suas posições epistemológicas, procurei situá-las quanto à questão

fundamental da filosofia. Isto é, procurei compreender qual a posição de Bohr quanto à relação entre o ser

e o pensar. A obra de Lénine Materialismo e Empiriocriticismo é uma demonstração de como não é

possível ser-se neutro em relação a esta questão: ou se considera o primado da natureza e a consciência

como o secundário, como uma propriedade da matéria altamente organizada, ou se considera o primado

da consciência e se deduz dela a natureza. Lénine mostra nesta obra como é possível assumir posições

idealistas expressas e consequentes, mas também como é possível dissimular o idealismo fundamental

sob novas terminologias e até sob intentos declarados de materialismo. Vimos igualmente como a questão

de saber qual a relação entre os nossos pensamentos sobre o mundo que nos rodeia e este mesmo mundo –

enfim, a questão da cognoscibilidade do mundo, da verdade objectiva – é um outro aspecto daquela

mesma questão fundamental da relação entre o ser e o pensar. A obra de Lénine é por isso muito

importante para analisar as posições de Bohr quanto a esta questão.

Assim, no que diz respeito ao problema da constituição do saber, a posição de Bohr leva a que

não considere a matéria como o dado primário. Institui, em vez disso, uma correlação entre objecto

quântico e instrumento de medida para além da qual não se pode ir. Diferentemente dos empiriocriticistas,

não se trata directamente de estabelecer essa correlação ao nível da sensação, da experiência subjectiva,

na medida em que a interacção entre o ente quântico e o instrumento de medida é uma interacção

material. No entanto, não deixa inegavelmente de estabelecer como instância originária do conhecer uma

correlação que, em última análise, depende do sujeito. Na verdade, na mecânica quântica, de acordo com

a interpretação bohriana, não se poderia falar da (não se pode conhecer a) existência de entes quânticos

para além da sua interacção com os instrumentos de medida. Esta é uma posição agnóstica. Posto de

forma mais sofisticada, é o mesmo problema a que Lénine aludia do conhecimento sobre a natureza antes

da existência do homem.

Lénine mostra como as posições de Mach e Avenarius conduzem ao solipsismo. No caso de

Bohr, o mesmo subjectivismo não deixa de estar presente pelo facto de se transformar num inter-

subjectivismo. Consequentemente, Bohr, que assume não estabelecer irrevogavelmente a matéria, a

realidade objectiva que não depende do sujeito, como o dado primário do conhecer, é, então, conduzido a

definir a “objectividade” no seio da própria linguagem, reduzindo-a a um problema de comunicação. A

objectividade é garantida pela não ambiguidade na comunicação. Aqui entra o problema da verdade. Bohr

nega, assim, a verdade objectiva. Se a objectividade é interior à linguagem, então nela não tem lugar a

realidade objectiva que não se vê reflectida nas representações humanas.

Ora, Bohr, tendo aceite aquelas premissas, desemboca exactamente nas conclusões partilhadas

pelos empiriocriticistas. Assim, Bohr acaba definindo a ciência como o desenvolvimento de “métodos

para ordenar a experiência comum” (tal como Bogdánov). E, como mostrou Lénine, se a verdade

objectiva não tem lugar nas teorias científicas, quer dizer que também são uma verdade as doutrinas

religiosas pois não há dúvida de que estas também são formas de organização da experiência humana

comum. As premissas de Bohr resultam, quer ele queira quer não, no mais profundo idealismo.

Em Bohr, tal como nas tendências agnósticas que Lénine combatia, verifica-se uma separação de

princípio entre o fenómeno e a essência. Bohr introduz essa separação quando, por exemplo, diz que só

podemos conhecer as marcas deixadas numa placa fotográfica. Estabelece, assim, limites ao

conhecimento, razão pela qual afirma a indivisibilidade dos fenómenos quânticos. Defende que só

podemos conhecer em termos clássicos e que o quantum de acção e a vida teriam de ser considerados

como factos elementares. Contra estas pretensões ao estabelecimento de limites últimos para o

conhecimento, os materialistas apresentam o critério da prática como refutação. A prática demonstra

também no domínio da física quântica que tais limites definitivos não existem.

Também na questão da causalidade Bohr se coloca de um ponto de vista oposto ao materialista.

Rejeitando a aplicação da causalidade válida no domínio da mecânica clássica ao domínio quântico,

rejeita a possibilidade de o conhecimento dar conta de qualquer tipo de causalidade. De acordo com Bohr,

há apenas espaço para a noção de probabilidade. Ora, este tese de Bohr equivale a estabelecer limites

definitivos ao conhecimento, a dizer que as teorias não podem, a partir de determinado limite, dar conta

das relações causais objectivas sobre cuja existência ou inexistência Bohr não se pronuncia directamente.

Ela equivale a dizer que, a partir de determinado limite, não podemos conhecer a necessidade: será

sempre uma “necessidade cega”.

O entendimento de Bohr sobre o formalismo quântico, como “esquema puramente simbólico”

encontra linhas de correspondência com a “teoria dos símbolos” criticada por Lénine: padece do mesmo

convencionalismo. E enquanto o empiriocriticista Kleinpeter acha que as palavras massa, força, etc. são

apenas conceitos, produtos da nossa fantasia, e de modo nenhum realidades existentes fora do

pensamento, Bohr, de forma semelhante, considera que a interacção incontrolável entre objecto quântico

e instrumento de medida conduz a uma “revisão radical da nossa atitude em relação ao problema da

realidade física”655 e que “uma frase como «não podemos conhecer o momento e a posição de um objecto

atómico» levanta questões quanto à realidade física de tais dois atributos do objecto as quais podem

apenas ser respondidas por referência às condições para um uso não ambíguo dos conceitos espácio-

temporais, por um lado, e às leis de conservação dinâmicas, por outro”656. O agnosticismo de Bohr leva-o

a duvidar da existência da realidade objectiva.

Vimos, assim, que as posições epistemológicas de Bohr não se separam de posições ontológicas.

Marcadas num primeiro momento por um agnosticismo, elas derivam para posições idealistas.

Lénine reconhecia de que modo o desconhecimento da dialéctica podia conduzir à negação da

verdade objectiva. E, de facto, em Bohr, a não devida consideração da dialéctica têm o seu enfoque no

tratamento incorrecto (não materialista dialéctico) que dá à contradição. Esta é, considero, uma questão

central no problema da interpretação idealista da mecânica quântica. Questão que, como vimos, levou

Bohr a absolutizar e a fixar (sem a resolver) a contradição entre onda e corpúsculo. Tendo despedido a

realidade objectiva da teoria, não considerou o mundo na sua unidade nem o carácter objectivo da

contradição que se lhe deparava. Não considerou o objecto quântico como parte de uma totalidade e, por

isso, a posição da questão das relações entre onda e corpúsculo ficou-lhe muito mais distante ou mesmo

ausente. Essas relações apareceram-lhe como insondáveis.

Lénine referiu como uma causa para o idealismo físico o “desaparecimento da matéria”, uma

tentativa de conceber o movimento sem a matéria, de retirar a matéria das equações subsistindo estas

655Niels Bohr, «Can Quantum-Mechanical Description of Physical Reality be Considered Complete?», in Physical Review, Vol. 48 (Oct.1935), p. 697.

656idem, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 40.

apenas enquanto relações formais. Salvaguardando as devidas distâncias e sem querer estabelecer

comparações forçadas, mas, ao mesmo tempo, reconhecendo uma reedição das mesmas soluções,

reconhecendo a mesma linha, o mesmo traço fundamental comum, julgo poder dizer que a interpretação

bohriana da mecânica quântica também procede a essa desmaterialização. As ondas de probabilidade são

uma forma de conceber o movimento sem a matéria. O formalismo quântico, entendido como esquema

puramente simbólico, faz com que restem apenas as relações formais (Lénine dizia que esta é uma ideia

que conduz à velha ideia kantiana segundo a qual a razão dita leis à natureza). A teoria científica passa a

ser uma forma de ordenar a experiência humana, de ordenar fenómenos que têm o sujeito como condição

de possibilidade. A realidade objectiva deixa de se ver reflectida pelas teorias. A conexão interna dos

fenómenos deixa de ser procurada. A verdade objectiva é negada quando a “objectividade” é interna à

linguagem. São, finalmente, as próprias condições de cientificidade que não são atendidas.

***

Lénine mostrou como, também na ciência e, em particular, na física do seu tempo, as duas linhas

fundamentais em filosofia se opõem. Na mecânica quântica assistimos hoje a interpretações em

confronto. Por um lado, a interpretação bohriana (ou da escola de Copenhaga) com os traços agnósticos e

idealistas que foram agora analisados. Esta interpretação é a actualmente aceite (e ensinada nas escolas),

pelo menos de um ponto de vista operacional, muito embora os seus supostos não sejam sempre

assumidos, partilhados ou revelados. Por outro lado, há outros programas de investigação, nomeadamente

o programa de investigação de De Broglie, na linha do qual se encontram os desenvolvimentos propostos

por José Croca, Rui Moreira e outros investigadores. Não cabe aqui estudar o programa de De Broglie

nem os seus desenvolvimentos actuais. Porém, na medida em que parti da hipótese de que na mecânica

quântica se assiste ao confronto fundamental a que Lénine se referia, à luta mais fundamental entre o

materialismo e o idealismo na ciência, uns últimos breves apontamentos são devidos sobre esta linha de

investigação (a cuja crítica materialista também tem vantagem proceder) com o objectivo de indicar os

seus principais intentos e fundamentos.

Esta linha de investigação assume-se directa e explicitamente em oposição à interpretação de

Copenhaga. Pretende desenvolver-se na base do reconhecimento (mais do que espontâneo:

conscientemente assumido) da realidade objectiva e da possibilidade de as teorias científicas a reflectirem

combatendo directamente o estabelecimento de limites definitivos para o conhecimento, combatendo o

entendimento da ciência num sentido instrumentalista e defendendo uma teoria que seja causal.

Este ponto de partida, conduziu a uma proposta que parte da hipótese de que o ente quântico é

constituído por uma parte ondulatória extensa e por uma parte corpuscular (uma singularidade designada

ácron)657. Põe a hipótese de o ente quântico exibir uma estrutura complexa.

657Ver, por exemplo, J. Croca, Towards a Nonlinear Quantum Physics, New Jersey/London/Singapore/HongKong, World Scientific, 2003.

Muito brevemente, abordemos os principais argumentos desta proposta. Na base da estrutura

conceptual e formal da mecânica quântica ortodoxa está a análise de Fourier. A análise de Fourier assenta

em ondas que se estendem infinitamente por todo o tempo e espaço e é dela que decorrem as relações de

incerteza de Heisenberg. Como J. Araújo e J. Cordovil chamam a atenção, “uma crítica severa que

pretenda clarificar alguns dos paradoxos da Teoria Quântica Ortodoxa, e até propor uma superação dos

limites por ela impostos, deve ter como alvo essas edificações, deve ter como foco principal o paradigma

Bohr-Fourier”658. A interpretação bohriana das relações de incerteza como expressão matemática da

complementaridade, como a prova da existência de limites definitivos para o conhecimento, é o caso a

que Lénine aludia de termos a razão a ditar leis à natureza. As propostas actuais inseridas no programa de

investigação de De Broglie assentam na análise de onduletas que não têm uma existência infinita, são

localizadas. A partir daqui, foi possível deduzir relações de incerteza mais gerais, que incluem as relações

de Heisenberg como um caso particular.

Com aquele modelo mais complexo de partícula quântica é possível explicar de outra forma a

experiência da dupla fenda659: quando a partícula quântica atinge o ecrã com as duas fendas

1) a onda extensa (que é maior do que a distância entre as duas fendas) atravessa ambas as

fendas ao mesmo tempo dando origem a duas ondas coerentes e

2) a singularidade passa por uma ou por outra fenda.

Em tais condições, só um dos dois detectores colocados em frente de cada fenda será accionado

de cada vez. Nunca ambos ao mesmo tempo. Esta é uma consequência da natureza da partícula quântica:

apenas a singularidade tem energia suficiente para dar origem ao processo quadrático comum de detecção

e as duas pequenas ondas que entram nos detectores ao mesmo tempo não têm energia suficiente para os

accionar. Se os detectores são removidos da frente das fendas, as duas ondas progridem interferindo e

dando origem a uma onda composta na região de detecção onde um array de detectores está colocado. A

658João Araújo, João Luís Cordovil, «Uma crítica à Teoria Quântica Ortodoxa a partir da Análise de Onduletas», in Razão Activa, Boletim da Fundação Internacional Racionalista, Out. 2009, p. 59-67.

659Cf. José Croca, Towards a Nonlinear Quantum Physics, New Jersey/London/Singapore/HongKong, World Scientific, 2003, p. 133-135.

singularidade segue uma ou outra onda (seguindo preferencialmente os pontos de maior energia). Após

um número suficiente de chegadas de partículas individuais um padrão de interferência começa a aparecer

no array de detectores.

De acordo com a interpretação ortodoxa, e nas palavras de Croca, “a partícula quântica potencial,

não tendo existência real, atravessa potencialmente ambas as fendas” e “as duas ondas potenciais no seu

caminho potencial misturam-se e interferem também potencialmente na região de sobreposição”. No caso

de dois detectores serem colocados em frente a cada uma das fendas, então uma das potenciais

possibilidades ou probabilidades materializa-se num dos detectores, sendo as outras probabilidades

reduzidas a zero.

Por outro lado, com este modelo de partícula complexa,

a singularidade, sendo indivisível, passa por uma fenda ou por outra

e

a onda, sendo extensa, passa ao mesmo tempo por uma e pela outra fenda

Croca mostra assim como é possível uma outra explicação que não precisa “de ajuda

sobrenatural” ou de “negar a realidade objectiva”.

Esta proposta não obriga, assim, a impor pela teoria a “desunião” de uma realidade que é una.

Ela tem em conta, simultaneamente, a unidade da realidade e a complexidade da matéria. A matéria é

inesgotável.

Tem em conta a totalidade que constitui o ente quântico. Segundo Croca e Moreira, para dar

conta dos fenómenos quânticos, será necessário desenvolver uma teoria não-linear. Esta não-linearidade

expressa o facto de o todo ser diferente da soma das partes. A linearidade dos métodos matemáticos da

física revelou-se adequada a uma determinada fase de investigação de certos domínios da natureza. No

entanto, começa a revelar-se insuficiente. Ora, de um ponto de vista materialista dialéctico, é bem

reconhecida a necessidade de delimitar o objecto de estudo, de traçar limites relativos, de abstrair, de

retirá-lo, provisoriamente, da totalidade mais vasta em que se insere para poder estudá-lo e conhecê-lo. O

método cartesiano tem validade dentro de certos limites (limites no que diz respeito às formas de

movimento que pode descrever e limites históricos), da mesma forma que o mecanicismo e da mesma

forma que a acumulação de dados nas ciências biológicas, por exemplo. Correspondem a momentos

necessários da abstracção. Mas o avanço da ciência revelará os limites desses métodos.

Ao propor o desenvolvimento e a aplicação dos métodos não-lineares ao domínio quântico, o que

a linha de investigação não ortodoxa faz é reconhecer que o ente quântico precisa de ser entendido como

uma totalidade e, portanto, possui uma estrutura própria e leis de estrutura próprias que têm de ser

apreendidas como tal. Como diz Barata-Moura, quando se absolutiza o parcelar, rompe-se com o processo

real objectivo e assim é também uma determinada lei de totalização ou de estruturação que se perde de

vista. “Não basta reunir”, continua, “em série ou em monte, elementos diversificados e até contraditórios;

é indispensável mostrá-los na sua organização dinâmica, na sua dialéctica real, na totalidade objectiva em

que primordialmente e finalmente consistem. O imediato e o parcelar têm, por conseguinte, de ser

necessariamente integrados na totalidade a que pertencem”660. Bohr absolutizou a diferença entre onda e

corpúsculo. Estes investigadores da linha de investigação de De Broglie pretendem mostrar a onda e o

corpúsculo “na sua organização dinâmica, na sua dialéctica real”.

Uma palavra final – ainda que muito breve - sobre o problema da relação entre ciência e

filosofia. Ciência e filosofia estão ligadas de forma indissolúvel. Por outras palavras, está fora de questão

a ideia de que os cientistas não estão imersos num dado sistema de representações. Como dizia Engels, a

questão está em saber se os cientistas “querem ser dominados por uma má filosofia da moda ou por uma

forma de pensamento teórico que assenta no conhecimento da história do pensamento e das suas

realizações”661.

A ciência é tributária de uma filosofia materialista dialéctica. Como diz Engels: “uma exacta

representação do universo, da sua evolução, do desenvolvimento da humanidade e do reflexo desta

evolução nas mentes dos homens pode, portanto, apenas ser obtido pelos métodos da dialéctica […]662”. E

acrescentaria eu, no espírito das ideias de Engels: numa base materialista. Vimos, a respeito das duas

interpretações da mecânica quântica, que não é indiferente a adopção de uma ou outra linha filosófica.

Filosofia e ciência interpenetram-se. Mas nem a filosofia substitui a ciência, nem a ciência

substitui a filosofia. As “oposições na ciência resolvem-se, porém, através da própria ciência” 663, diz Marx

em Para a Questão Judaica. E serão os desenvolvimentos da ciência (para os quais contribui de forma

decisiva um pensamento guiado por uma base materialista e dialéctica), será a prática a via para a

refutação da existência de limites definitivos no conhecimento, tanto no domínio quântico, quanto no

conhecimento científico em geral.

660Cf. José Barata-Moura, Totalidade e Contradição, Acerca da Dialéctica, Lisboa, Livros Horizonte, 1977, pp. 128-130.

661F. Engels, Dialectics of Nature, in Karl Marx-Frederick Engels Collected Works, New York, International Publishers, v.25, 1987, p. 491.

662idem, Anti-Dühring, in ibidem, p. 24.663J. Barata-Moura, Materialismo e Subjectividade, Estudos em Torno de Marx, Lisboa, Edições Avante!, 1997, pp.

95, citando Marx, Zur Judenfrage (Para a Questão Judaica), I, MEGA (Marx-Engels Gesamtausgabe, ed. IML, Berlin, Dietz, 1981), vol. I/2, p. 143.

Bibliografia

Albert Einstein, «On a Heuristic Point of View about the Creation and Conversion of Light» (1905)

traduzido por D. Ter Haar, in D. Ter Haar, The old Quantum Theory, Pergamon Press, 1967, p. 91-107.

Disponível em: http://www.physik.fu-berlin.de/~kleinert/files/eins_lq.pdf.

David Cassidy, Einstein on the Photoelectric effect (adaptado do livro David Cassidy, Einstein and Our

World, Humanities Press, 1995, reissued Amherst, NY: Humanity Books, 1998), AIP (American Institute

of Physics) Center for History of Physics, 13-07-2012, 11:55. Disponível em

http://www.aip.org/history/einstein/essay-photoelectric.htm

Dictionnaire Philosophique, dir. I. Frolov, Edition du Progrès, Moscovo, 1985.

Friederich Engels, Dialectics of Nature (1873-1886), in Karl Marx-Frederick Engels Collected Works,

New York, International Publishers, v.25, 1987.

Friederich Engels, Anti-Dühring (1878), in Karl Marx-Frederick Engels Collected Works, New York,

International Publishers, v.25, 1987.

Friederich Engels, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã (1886), in Marx-Engels,

Obras Escolhidas em três tomos, Lisboa-Moscovo, Edições «Avante!»-Edições Progresso, t. III, 1985.

Herbert Hörz, Hans-Dieter Pöltz, Heinrich Parthey, Ulrich Röseberg, Karl-Friederich Wessel,

Philosophical Problems in Physical Science, Minneapolis, Marxist Educational Press, 1980.

J. D. Bernal, Ciência na História, Lisboa, Livros Horizonte, 1976 (Título original: Science in History,

1965)

João Araújo, João Luís Cordovil, «Uma crítica à Teoria Quântica Ortodoxa a partir da Análise de

Onduletas», in Razão, Boletim da Fundação Internacional Racionalista, Out., 2009, p. 59-67.

José Barata-Moura, Totalidade e Contradição, Acerca da Dialéctica, Lisboa, Livros Horizonte, 1977.

José Barata-Moura, Ideologia e Prática, Lisboa, Editorial Caminho, 1978.

José Barata-Moura, Ontologias da «Práxis» e Idealismo, Lisboa, Editorial Caminho, 1986.

José Barata-Moura, Materialismo e Subjectividade, Estudos em Torno de Marx, Lisboa, Edições Avante!,

1997.

José Barata-Moura, Sobre Lénine e a Filosofia, a Reivindicação de uma Ontologia Materialista

Dialéctica com Projecto, Lisboa, Editorial “Avante!”, 2010.

José Croca, Rui N. Moreira, «Indeterminsm vs Causalism», pre-print, disponível em:

http://cfcul.fc.ul.pt/equipa/3_cfcul_elegiveis/croca/indet-causalism.doc. (versão final em Grazer

Philosophische Studien, Vol. 56 (1999), p. 151-182.

José Croca, Towards a Nonlinear Quantum Physics, New Jersey/London/Singapore/HongKong, World

Scientific, 2003.

Niels Bohr, «The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory», in Nature

(Supplement), Vol. 121, Issue 3050 (Apr., 1928), p. 580-590.

Niels Bohr, «Light and Life» (1933), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover

Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York,

Science Editions Inc., 1961).

Niels Bohr, «Can Quantum-Mechanical Description of Physical Reality be Considered Complete?», in

Physical Review, Vol. 48 (Oct.1935), p. 696-702.

Niels Bohr, «Causality and Complementarity», in Philosophy of Science, Vol. 4, no. 3, (Jul., 1937), p.

289-298, The University of Chicago Press. (Adress delivered before the Second International Congress

for the Unity of Science, Copenhagen, June, 1936).

Niels Bohr, «Biology and Atomic Physics» (1937), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York,

Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New

York, Science Editions Inc., 1961).

Niels Bohr, «Natural Philosophy and Human Cultures» (1939), in Atomic Physics and Human

Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and

Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961).

Niels Bohr, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in

Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral

de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961).

Niels Bohr, «Physical Science and the Problem of Life» (1949), in Atomic Physics and Human

Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and

Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961).

Niels Bohr, «Atoms and Human Knowledge» (1955), in Atomic Physics and Human Knowledge, New

York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge,

New York, Science Editions Inc., 1961).

Niels Bohr, «Quantum Physics and Philosophy» (1958), in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7,

Foundations of quantum physics II (1933-1958), Kalckar, J. ed., North-Holland, Amsterdam, 1996.

Niels Bohr, «Unity of Knowledge» (1967), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover

Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York,

Science Editions Inc., 1961).

Rui Nobre Moreira, «Instrumentalismo Versus Realismo, a Crise na Física do Século XX», in Olga

Pombo, Ángel Nepomuceno (eds.), Lógica e Filosofia da Ciência, Lisboa, Centro de Filosofia das

Ciências da Universidade de Lisboa, 2009, p .121-169.

V.I. Lénine, Materialismo e Empiriocriticismo - Notas Críticas Sobre uma Filosofia Reaccionária (1909),

Lisboa, Moscovo: Edições Avante-Edições Progresso, 1982.

V.I. Lénine, Obras Escolhidas em 6 tomos, t.6 (Cadernos Filosóficos), Lisboa, Moscovo, Edições Avante-

Edições Progresso, 1989.