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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU” PROJETO A VEZ DO MESTRE RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA MATERIAL X SEGURANÇA JURÍDICA – Principais aspectos do conflito Por: ILIA FREITAS DA SILVA Orientador Prof. JEAN ALMEIDA Rio de Janeiro 2008

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Page 1: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO ...obtenção do grau de especialista em Direito Processual Civil. Por: ILIA FREITAS DA SILVA 3 AGRADECIMENTOS A todos os que me são próximos

UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

PROJETO A VEZ DO MESTRE

RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA MATERIAL

X

SEGURANÇA JURÍDICA –

Principais aspectos do conflito

Por: ILIA FREITAS DA SILVA

Orientador

Prof. JEAN ALMEIDA

Rio de Janeiro

2008

Page 2: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO ...obtenção do grau de especialista em Direito Processual Civil. Por: ILIA FREITAS DA SILVA 3 AGRADECIMENTOS A todos os que me são próximos

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

PROJETO A VEZ DO MESTRE

RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA MATERIAL

X

SEGURANÇA JURÍDICA

Principais aspectos do conflito

Apresentação de monografia à Universidade

Candido Mendes como requisito parcial para

obtenção do grau de especialista em Direito

Processual Civil.

Por: ILIA FREITAS DA SILVA

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AGRADECIMENTOS

A todos os que me são próximos e que,

pacientemente, carinhosamente e/ou

resignadamente, de forma decisiva,

contribuíram para a elaboração deste

estudo.

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DEDICATÓRIA

À memória daqueles que sempre velaram

e torceram por mim e que, de alguma

forma, continuam a fazê-lo, onde quer que

se encontrem.

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RESUMO

Podemos traduzir o presente estudo como a análise de uma das

questões processuais que mais celeumas vêm provocando nos últimos tempos,

suscitando discussões doutrinárias e gerando inúmeros conflitos

jurisprudenciais.

Trata-se da ampliação das hipóteses de relativização da coisa julgada

em contraposição ao princípio fundamental da segurança jurídica.

Tal questão veio à tona em razão da inconformidade de parte da

comunidade jurídica ante a ocorrência de enunciados, já revestidos pela

autoridade da coisa julgada, cujos efeitos, segundo tal corrente, não deveriam se

eternizar, eis que eivados de injustiça ou inconstitucionalidade.

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METODOLOGIA

Cuidamos examinar o presente tema à luz do direito positivo vigente no

Brasil, servindo-nos da jurisprudência e da doutrina nacional mais recente,

tendo em vista que a questão ora abordada comporta, ainda, discussões e,

portanto, está longe de ser pacificada.

Remetemos, ao final, tão somente à bibliografia efetivamente

mencionada no corpo do trabalho, que nos forneceu subsídios suficientes para

sua elaboração, haja vista a profundidade do pensamento jurídico e o

brilhantismo de seus autores. Entendemos não haver sentido prático citar as

demais obras consultadas, se delas nada se extraiu que fosse deveras relevante

para este estudo.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 08

CAPÍTULO I

SEGURANÇA JURÍDICA

1.1 Conceito 11

1.2 A segurança jurídica em confronto com a justiça das decisões 13

CAPÍTULO II

O INSTITUTO DA COISA JULGADA

2.1 Conceito 15

2.2 Coisa julgada formal 18

2.3 Coisa julgada material 20

2.4 A Rescindibilidade da Coisa Julgada Material 24

CAPÍTULO III

O CONFLITO

3.1 Relativização X Reafirmação 27

3.2 A Coisa Julgada Inconstitucional 31

CAPÍTULO IV

PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS NO DIREITO BRASILEIRO 39

CONCLUSÃO 44

BIBLIOGRAFIA 47

ÍNDICE 49

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INTRODUÇÃO

O universo social, fundado nas relações que ocorrem entre os

indivíduos, nas mais diversas esferas, demanda uma ordem ético-jurídica como

condição indispensável não apenas ao seu funcionamento, mas à sua própria

existência.

Cumpre ao Estado elaborar as regras que vão estabelecer parâmetros

para a conduta desses indivíduos em sociedade - atuando como estado-

legislador, bem como aplicá-las, ditando, em concreto, o sentido exato da

norma que vai regular e disciplinar a convivência. Esta responsabilidade, que

pode ser traduzida como função jurisdicional, é exercida pelo Estado, através

da figura do julgador.

Prevalece até os dias de hoje a idéia de que o Direito – aí embutida a

norma do caso concreto extraída das decisões produzidas pelo Poder Judiciário

– é valido porque assim o foi declarado pelo Estado-juiz e não, necessariamente,

porque é justo.

Esta soberania do Estado tem raízes na concepção de validade do

Direito, de THOMAS HOBBES, assim explicada por NORBERTO BOBBIO1: “o

estado da natureza constitui um estado de anarquia permanente, no qual todo o homem

luta contra os outros, no qual – segundo a fórmula hobbesiana – existe um ‘bellum

omnium contra omens’. Para sair desta condição, é preciso criar o Estado, é preciso,

portanto, atribuir toda a força a uma só instituição: o soberano”.

Nos tempos atuais, todavia, questiona-se o caráter absoluto e definitivo

das decisões emanadas do Estado-soberano, diante da possibilidade de se

1 O positivismo jurídico, São Paulo, Ícone, 1995, p.35

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chegar a um resultado final injusto, passível de causar dano irremediável ao

jurisdicionado.

A velocidade com que as transformações sociais e culturais,

hodiernamente, vêm se processando, impõe ao Direito necessidade de se

adequar, em igual ritmo, às exigências que delas exsurgem, levando a

rediscussões de institutos jurídicos consagrados e, até então intocáveis. Tais

questionamentos dão ensejo à reformas legislativas imediatistas e superficiais,

que, por sua vez, têm reflexo na jurisprudência dos tribunais, resultando em

decisões díspares e, por vezes, antagônicas.

Como bem ilustra HUMBERTO THEODORO JUNIOR.2:

“Desnorteado, o pensador e sobretudo o jurista do Século XXI, diante da “herança” legada pelo

século anterior, não encontra valores consagrados e definidos para ditar os rumos da ordem

jurídica contemporânea, nem critérios válidos e permanentes para imprimir-lhe eficácia e

coerência. Daí a figura de uma colcha de retalhos em que se vai transformando o direito

positivo, diante da incoerência e do verdadeiro caos em meio ao qual se realizam as reformas

legislativas”.

Fruto dessa tendência revisionista, dentre outras, ventilou-se a hipótese

de que a ocorrência da coisa julgada material, não mais sujeita à

modificabilidade pela via da ação rescisória, poderia se constituir em fonte

potencial de injustiças, ao afrontar princípios maiores dentro da hierarquia

constitucional, como o princípio da dignidade humana, por exemplo.

Surgiram variadas proposições no meio jurídico, voltadas para a

solução da questão, todas baseadas na mitigação ou na desconsideração do

2

A Onda Reformista do Direito Positivo e suas Implicações com o Princípio da Segurança Jurídica. Revista da EMERJ, vol. 09,

n.° 35- 2006, p.15.

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instituto da coisa julgada, de forma a tornar possível a reavaliação da decisão

tida, posteriormente, como injusta ou inconstitucional.

Logo, contudo, levantaram-se vozes contrárias a essa tese, reputando-a

danosa à segurança que deve permear a atividade jurisdicional, bem como à

garantia fundamental da legalidade, e prevendo desastrosas conseqüências

sobre a estabilidade da ordem jurídica.

E é essa a conjuntura que pretendemos analisar ao longo do trabalho

Cumpre, por fim, esclarecer que, ao elaborar o presente estudo, não

houve a pretensão de se esgotar o tema. Ao contrário, intentou-se, tão somente,

oferecer mais um instrumental reflexivo sobre a questão da relativização da

coisa julgada em face da segurança jurídica, enfocando-a de forma ampla e

abrangente.

Para tanto, diligenciamos no sentido de expor os aspectos positivos e

negativos, conjunturais e diferenciais destas duas vertentes e avaliar as

possíveis conseqüências advindas dessa crise, resultante da tendência

renovatória que vem despontando e ganhando espaço, tanto no âmbito

jurisprudencial, quanto no meio doutrinário.

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CAPÍTULO I

SEGURANÇA JURÍDICA

1.1 CONCEITO

A sociedade demanda certo grau de segurança nas relações que a

permeiam, para que possa manter-se estável e harmônica. Cumpre ao Estado

assegurar essa estabilidade, conformando seus atos legislativos, judiciais e

administrativos aos ditames da segurança jurídica, princípio que se constitui,

juntamente com a certeza jurídica, como um dos fundamentos do Estado

Democrático de Direito.

Como bem traduz CANOTILHO3

“Os indivíduos têm o direito de poder contar com o fato de que a seus atos ou às decisões

públicas concernentes a seus direitos, posições ou relações jurídicas fundadas sobre normas

jurídicas válidas e em vigor, se vinculem os efeitos previstos e assinados por estas mesmas

normas”.

Sob o prisma da teoria geral do Direito, pode-se entender a segurança

jurídica stricto sensu, como uma exigência objetiva de regularidade estrutural e

funcional do sistema jurídico.

A segurança jurídica é vista na Constituição Federal de 1988 sob três

aspectos distintos: como princípio, como valor e, numa interpretação mais

abrangente do art. 5°, como direito fundamental.

3

Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª Ed., Coimbra, Almedina, 1999, p. 250

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O princípio da segurança jurídica exige que os atos do poder estejam

revestidos de confiabilidade, clareza e razoabilidade. As normas legais devem

ser elaboradas com clareza e precisão pelo legislador para que não ensejem

interpretações dúbias ou contraditórias por parte daqueles que aplicam o

direito.

Fundamental também que seja observada a separação de poderes entre

o Legislativo e o Judiciário. Cabe ao legislador, em nome da legalidade e da

segurança jurídica, indicar com clareza os padrões e os limites da atividade

complementar do juiz, sob pena de delegar seu poder normativo aos órgãos da

administração ou do judiciário, gerando uma inflação de regras. Ainda que lhe

seja permitido conceber cláusulas gerais para introduzir na lei valores éticos, há

que estabelecer também uma disciplina suficientemente concreta para sua

aplicação.

Assim, temos que a segurança jurídica se funda no respeito à coisa

julgada e na efetividade das decisões jurisdicionais e, por decorrência, deve ser

tida como um dos pilares do Direito.

Todavia, há que se assinalar que o princípio em comento igualmente se

submete à relatividade inerente à sistemática dos princípios de direito, quando

em colisão ou superposição com estes.

Sobre este aspecto, melhor ensina o Prof. HUMBERTO THEODORO

JUNIOR.4:

“(...) Os princípios, na sua essência não traduzem preceitos mas, sim, valores, os quais, por

natureza, são elásticos, sem contornos e limites precisos, e exercem muito mais sua função no

terreno da hermenêutica do que no campo das normas, estas, sim, encarregadas de traças regras

claras e precisas sobre o comportamento dos sujeitos de direito”.

4 Op. cit., p.36

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1.2 A SEGURANÇA JURÍDICA EM CONFRONTO COM A

JUSTIÇA DAS DECISÕES

Segurança jurídica e justiça, também vista como eqüidade, são os dois

elementos precípuos da concepção de Direito. Mas são princípios que podem

vir a se contrapor ante as exigências de casos concretos, na prática do direito.

O princípio da segurança jurídica, ainda que alçado à condição de

garantia constitucional, é passível de ser subjugado pelo princípio da justiça,

fato que ocorre, por exemplo, quando a sentença passada em julgado, ainda

pode ser desconstituída, por meio da ação rescisória, respeitado o prazo legal

para sua propositura.

Todavia, o valor e o alcance da garantia embutida na coisa julgada e,

conseqüentemente, no princípio da segurança jurídica tem sido alvo de

inúmeros questionamentos, sob a ótica de que nenhum dos dois pode ser tido

como valor absoluto, posto que devem conviver e compor com outros valores

igualmente relevantes, como a justiça.

Quando valores fundamentais colocam-se em posições antagônicas, há

que se equacionar o conflito aplicando-se para tanto o princípio da

proporcionalidade, cujo escopo é o de evitar resultados desproporcionais e

injustos, ponderando-se qual valor constitucional deverá ceder, de forma a

causar o menor dano à ordem jurídica vigente.

Assim se posiciona SÉRGIO GILBERTO PORTO5 frente ao conflito:

“Nas hipóteses elencadas e que dão origem a esta “terceira onda” de relativização, representada

pela possibilidade de mitigar a garantia da coisa julgada por nova decisão jurisdicional, há forte

5Coisa Julgada Civil, São Paulo, 3ª Ed. Revista dos Tribunais, 2006

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apelo de índole axiológica, vez que são identificadas situações – em tese – excepcionalíssimas e

de extrema injustiça concreta, com o fito de justificar a superação da decisão transitada em

julgado. Contudo, em ultima ratio, está, como se percebe, novamente, - agora, porém, com

outra roupagem e por outra via – posto em discussão o conflito que aflige desde sempre aos

operadores, ou seja, o choque de opções representado de um lado pela justiça concreta e de outro

pela segurança jurídica, ainda que a custa de uma eventual e aparente injustiça individual. O

outro lado da moeda, contudo, destaca que a ausência de segurança jurídica representa uma

extraordinária e indiscutível injustiça social”.

A chamada “terceira onda de relativização” prega a desconsideração da

coisa julgada a qualquer tempo, nas hipóteses em que a decisão se apresenta

inconstitucional, quais sejam: a) por ser injusta ou imoral, quando fere os

princípios da moralidade e legalidade, na ótica de JOSÉ DELGADO; por

pretender produzir efeitos juridicamente impossíveis, segundo CANDIDO

DINAMARCO; ou, por ser proferida em contrariedade com a Carta Magna, na

visão de HUMBERTO THEODORO JUNIOR e JULIANA CORDEIRO DE

FARIA.

O justo absoluto, como almejam os relativistas, é utópico, abstrato.

Como bem destaca MARINONI6: a tese da relativização peca pela ausência de

concepção adequada de justiça.

Percebe-se no universo jurídico atual uma certa resistência em relação a

essa onda reformista, que enxerga a segurança jurídica como valor menor na

hierarquia dos princípios. Esses doutrinadores, cautelosos, não repudiam a

possibilidade de quebra da coisa julgada, mas recomendam que esta se dê

somente através de instrumentos que a própria lei venha a estabelecer, sob pena

de se por em risco o próprio Estado Democrático de Direito.

6 O princípio da Segurança dos Atos Jurisdicionais (A questão da relativização da Coisa Julgada Material)

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CAPÍTULO II

O INSTITUTO DA COISA JULGADA

2.1 CONCEITO

A coisa julgada tem previsão expressa na Constituição Federal, mais

precisamente em seu art. 5°, inciso XXXVI, que preconiza: “a lei não prejudicará o

direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Este artigo trata dos

direitos e garantias fundamentais, o que autoriza afirmar que esse instituto

goza de proteção constitucional.

PONTES DE MIRANDA7 assim conceitua a coisa julgada:

“As palavras coisa julgada indicam uma decisão que não pende mais dos recursos ordinários,

ou porque a lei não os concede (segundo lei das alçadas), ou porque a parte não usou deles nos

termos fatais e peremptórios, ou porque já foram esgotados. Os efeitos de uma tal decisão é ser

tida por verdade; assim, todas as nulidades e injustiças relativas, que porventura se cometessem

contra o direito das partes, já não são susceptíveis de revogação”

Já TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER e JOSÉ MIGUEL GARCIA

MEDINA8 têm a seguinte definição para o instituto em comento:

“A expressão coisa julgada deriva da expressão latina res iudicata, que significa bem julgado.

O resultado final do processo de conhecimento normalmente atribui um bem jurídico a alguém.

Define-se, assim, uma situação jurídica, estabelecendo-se a sua titularidade, passando esta

definição, por causa da coisa julgada material, a ser imutável, razoavelmente estável ou

marcadamente duradoura. Este bem jurídico é abrangido pela categoria dos direitos subjetivos”

7 Comentários ao Código de Processo Civil, v. 5, p. 172 8 O Dogma da Coisa Julgada, p.20

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Seu fundamento, consoante a melhor doutrina, reside no princípio da

segurança jurídica, manifestação do Estado Democrático de Direito. Nesse

sentido leciona VICENTE GRECO FILHO9, verbis:

"(...) O fundamento da coisa julgada material é a necessidade de estabilidade nas relações

jurídicas. Após todos os recursos, em que se objetiva alcançar a sentença mais justa possível, há

necessidade teórica e prática de cessação definitiva do litígio e estabilidade nas relações

jurídicas, tornando-se a decisão imutável. Não mais se poderá discutir, mesmo em outro

processo, a justiça ou injustiça da decisão, porque é preferível uma decisão eventualmente

injusta do que a perpetuação dos litígios”.

Há dois aspectos que justificam a existência desse instituto: um, de

natureza filosófica, está relacionado ao desejo de segurança nas relações

jurídicas, como estrutura fundamental à estabilidade da própria sociedade

politicamente organizada. O outro, de natureza jurídica, centra-se na vontade

do Estado e nas qualidades que ele atribui ao fenômeno.

Nos dizeres de SERGIO GILBERTO PORTO10:

“O contrato existente entre o cidadão e o Estado está assim definido e, portanto,

induvidosamente, há uma garantia de ordem constitucional-processual que, por opção política,

determina que a partir de certo momento não se pode mais, no Estado civilizado, prosseguir em

determinado debate . Encerra-se, verdadeiramente, o conflito, declarando-se a estabilidade

definitiva da relação jurídica controvertida como ato de soberania do Estado. Havendo, naquele

caso, por ato legítimo de império, segurança jurídica constitucionalmente reconhecida”.

A autoridade da coisa julgada acoberta somente as sentenças de mérito

proferidas com fulcro no art. 269, do CPC; as que extinguem o feito sem

examinar o mérito da lide são atingidas somente pela preclusão (coisa julgada

formal).

9 Direito Processual Civil Brasileiro, Vol. II, Ed. Saraiva, 16ª ed. 2003, p. 249/250 10 Op. cit,. p.125.

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A decisão transitada em julgado projeta seus efeitos para fora do

processo, alcançando a vida das pessoas envolvidas na lide. Assim, não se trata

tão somente de preservá-la contra futuros questionamentos no processo em que

foi proferida mas, ainda, resguardar seus efeitos, de modo a blindar o

julgamento daquela pretensão, gerando uma situação de segurança em relação

aos direitos e deveres das partes litigantes.

Nessa condição, tal instituto se presta a proporcionar segurança nas

relações jurídicas, necessária ao bom funcionamento da sociedade como um

todo, protegendo os negócios, o crédito, as relações familiares, enfim,

constituindo-se, dessa forma, num dos pilares do estado democrático de direito.

Além desse aspecto, a coisa julgada deve ser também considerada como

elemento indispensável à efetividade do direito fundamental de acesso à justiça,

pois, como ensina MARINONI11:

“De nada adiantaria falar em direito de acesso à justiça sem dar ao cidadão o direito de ver o

seu conflito solucionado definitivamente. Por isso, se a definitividade inerente à coisa julgada

pode, em alguns casos, produzir situações indesejáveis ao próprio sistema, não é correto

imaginar que, em razão disso,, ela simplesmente possa ser desconsiderada”.

A coisa julgada é um instituto único, compreendendo, todavia, dois

aspectos: a coisa julgada formal e a coisa julgada material.

11

Relativizar a coisa julgada Material. Revista dos Tribunais, vol. 830. P.58

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2.2 COISA JULGADA FORMAL

A coisa julgada formal é a imutabilidade da sentença, enquanto ato

jurídico processual e se aplica a qualquer tipo de sentença. O que vale dizer

que, naquele processo, nenhum outro julgamento se fará, uma vez esgotados

todos os recursos cabíveis. Possui um cunho meramente técnico-processual.

É definida também como preclusão máxima, consagrando o “princípio

da inalterabilidade do julgamento”, na medida em que não permite a

rediscussão do tema ou modificação do decisum, dentro de uma mesma relação

processual.

Segundo CANDIDO RANGEL DINAMARCO12:

“A coisa julgada formal é ao mesmo tempo resultado da inadmissibilidade de qualquer recurso e

fator impeditivo da substituição da sentença por outra. Diz-se que esta passa em julgado, no

momento em que, por tornar-se irrecorrível, ingressa no mundo dos atos processuais intocáveis

e já não pode ser substituída por eventual acórdão. O fenômeno processual da irrecorribilidade,

ou seja, da exclusão de todo e qualqueer poder de provocar ou emitir nova decisão no processo, é

a preclusão. E, como essa preclusão tem sobre o processo como um todo o efeito mortal de

consumar sua extinção, tradicionalmente a doutrina diz preclusio máxima para designar a

coisa julgada formal”.

O momento da coisa julgada formal depende dos fatores responsáveis

pela preclusão. Dá-se a preclusão temporal quando a sentença transita em

julgado no último momento do dia útil em que transcorre in albis o prazo para a

interposição do recurso cabível.

12 Instituições de Direito processual Civil, 5ª Ed., Vol. III, São Paulo.. Malheiros Editores, 2005.p.296

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Há ainda a preclusão lógica, que extingue o direito ao recurso,

ocasionando o passamento em julgado da decisão e que pode acontecer em

duas hipóteses: quando a parte vencida renuncia ao direito de recorrer ou

quando ela manifesta concordância com a decisão, seja expressamente, seja por

realizar ato incompatível com a vontade de interpor recurso.

Por fim, há também a preclusão consumativa, que ocorre no momento

em que tiver sido julgado o recurso cabível contra a última decisão possível no

processo.

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2.3 COISA JULGADA MATERIAL

A coisa julgada material é a imutabilidade da sentença de mérito, isto é,

aquela em que o julgador procedeu à análise das pretensões divergentes.

Como bem pontifica BETTI13, a coisa julgada material seria “a força

obrigatória e vinculante do acertamento de uma relação jurídica”.

A coisa julgada material blinda o dispositivo, ou seja, o que restou

decidido não é mais passível de sofrer alterações. Ao ser proferida, a sentença,

por um determinado prazo, ainda está sujeita a questionamentos e

modificações, apenas atingindo a imunidade, após esgotadas todas as

possibilidades de recurso.

A finalidade do mencionado instituto é a de proporcionar segurança

nas relações jurídicas. Possui natureza constitucional, pois se trata de elemento

formador do estado democrático do direito.

A segurança jurídica da coisa julgada está assentada no princípio do

dedutível e do deduzido, insculpido no art. 474, do CPC, que pode ser

traduzido, grosso modo, da seguinte forma: tudo o que foi, assim como o que

poderia ter sido, mas não foi alegado no momento oportuno, torna-se imutável

com a coisa julgada, isto é, todo e qualquer fato será dado como alegado, ainda

que não o tenha sido se, na oportunidade de fazê-lo, a parte silenciou. Com o

trânsito em julgado, há a presunção de que foi enfrentado pelo juiz.

13 apud SANTOS, Comentários ao Código de Processo Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1982, p. 431

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A formação da auctoritas rei iudicatae (coisa julgada material) demanda

os seguintes requisitos:

- que o processo “exista”, ou seja, tenha sido regularmente constituído,

estando nele presentes os pressupostos elencados no art. 267, IV, do CPC;

- que a sentença nele proferida seja de mérito, nos moldes do art. 269,

do CPC;

- que dela não caiba mais impugnação, por meio de recurso ordinário

ou extraordinário, como previsto no art. 467, do CPC e que não esteja sujeita ao

duplo grau de jurisdição.

A autoridade de que se reveste a coisa julgada material, que, dada a sua

natureza, comportaria o eventual engessamento de uma decisão injusta, baseia-

se, principalmente, num fundamento político: as relações sociais não podem

prescindir da certeza quanto ao regramento que as ordena, sob pena de gerar

insegurança e esvaziar o sentido da busca pela tutela jurisdicional.

Como melhor expõe MOACYR AMARAL DOS SANTOS14:

“Há, pois, motivos de ordem prática, de exigência social, a impor que, a partir de dado

momento – que se verifica com a preclusão dos prazos para recursos – a sentença se torne

imutável, adquirindo autoridade de coisa julgada. E aí se tem o fundamento político da coisa

julgada”.

Ou, como bem pontifica PONTES DE MIRANDA15: “O que é preciso é

que se acabem as controvérsias, a insegurança, o pisar e repisar das questões; a isso

serve a coisa julgada material”.

14 Op. cit.,, p 431 15 Op. cit., p. 118

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Este instituto produz duas espécies básicas de efeitos: os efeitos

endoprocessuais, quais sejam, o de tornar ininpugnável e indiscutível a

sentença de mérito transitada em julgado e o de tornar obrigatório o comando

contido na parte dispositiva da sentença; e os efeitos extraprocessuais, que são o

de vincular as partes e o juízo de qualquer processo que lhe seguir (salvo no

tocante à independência das responsabilidades civil e penal, nas circunstâncias

previstas na lei) e o de impossibilita a propositura de ação judicial posterior

idêntica.

A coisa julgada material possui limites subjetivos e objetivos

O limite subjetivo da coisa julgada impede que sua autoridade

ultrapasse os sujeitos da relação processual. Dessa forma, a imutabilidade da

decisão apenas vincula as partes litigantes.

A finalidade, no caso, é permitir a solução de situações criadas por

determinados efeitos indiretos que uma decisão, eventualmente venha a

produzir sobre a esfera jurídica de terceiros.

Da leitura dos arts. 469 e 470 do Código de Processo Civil aferem-se os

limites objetivos da coisa julgada, ou seja, o que é atingido por esse instituto.

Tem-se que a fundamentação exposta pelo magistrado, ainda que aponte

motivos importantes para determinar o alcance da parte dispositiva do decisum

não transita em julgado. O que se torna imutável é o dispositivo da sentença ou

acórdão, isto é, a parte em que as questões colocadas à apreciação do Poder

Judiciário são, de fato, decididas.

Assim, apenas o preceito concreto situado na parte dispositiva das

decisões de mérito goza da autoridade da coisa julgada e não os fundamentos

em que tal preceito se funda. Essa limitação tem por finalidade evitar a

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ocorrência de conflitos práticos de julgados, coadunando-se com a índole

pacificadora da própria jurisdição.

Uma das premissas que dão sustento à tese da relativização é a de que o

inciso XXXVI, do artigo 5°, da Constituição Federal não tutela propriamente o

instituto da coisa julgada, restringindo sua proteção contra lei nova que

eventualmente venha a afetá-la. Alega-se que tal preceito trata tão somente de

estabelecer regra de direito intertemporal concernente à coisa julgada.

De fato, a coisa julgada não pode ser vista como princípio absoluto, vez

que o ordenamento jurídico vigente disponibiliza ferramentas que permitem

sua mitigação.

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2.4 RESCINDIBILIDADE DA COISA JULGADA MATERIAL

Ainda que o processo esteja eivado de vícios decorrentes do não

atendimento aos pressupostos de validade, a sentença de mérito nele proferida

fará coisa julgada, ainda que sujeita a ser desconstituída.

Há previsão no ordenamento jurídico pátrio de algumas situações de

mitigação da coisa julgada, em casos excepcionalíssimos, expressos

taxativamente na lei, portanto, enunciados em numerus clausus, que seriam: a

ação rescisória, prevista no art. 485, do CPC; os embargos de devedor, na

execução por título judicial do art. 741, do CPC; a revisão criminal do art. 622,

do CPP e a coisa julgada segundo o resultado da lide (CDC, art. 103 c/c art. 16

da Lei 7.347/85).

A ação rescisória, de competência originária dos tribunais, é o meio

pelo qual se busca a anulação ou desconstituição de uma sentença ou acórdão

transitado materialmente em julgado e a eventual reapreciação do mérito. É

também o instrumento manejável, quando se busca a revisão da maioria das

hipóteses de sentenças tidas como inconstitucionais, uma vez interposta no

prazo de dois anos, contados do trânsito em julgado.

Já a previsão contida no inciso I, do art. 741, do CPC, que permite a

oposição de embargos à execução contra a Fazenda Pública com fundamento na

falta ou nulidade da citação, pode ser vista como mais uma modalidade de

quebra da coisa julgada. Nesta hipótese não é aplicável a tese da inexistência,

pois há processo, ainda que eivado de vício grave. Esse dispositivo possibilita

que tal vício seja apontado quando dos embargos do devedor, mitigando-se o

princípio da coisa julgada em nome do princípio da ampla defesa, também

tutelado pela Carta Magna.

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A esse respeito, vale transcrever o entendimento de ARAKEN DE

ASSIS16:

“A despeito da disciplina geral, a lei infraconstitucional, que outorga, ou não, a eficácia da

coisa julgada a determinados provimentos do juiz, às vezes erige determinado vício essencial,

porque ele parece suficientemente grave e relevante, de modo a receber tratamento privilegiado e

diferente, à condição de defeito imune a quaisquer preclusões, incluindo a mais expressiva e

maior delas:a coisa julgada. Na hipótese do inciso I, do art. 741, o vício da citação sobrevive ao

trânsito em julgado do título, equiparando-se à sua inexistência, motivo porque ao condenado é

dado impugná-lo através de embargos do devedor em vez da ação rescisória”.

O parágrafo único do art. 741, do CPC, inserido pela Medida Provisória

2189-35/01 abriu ao executado a possibilidade de embargar a execução sob o

argumento de que o título executivo judicial baseia-se em lei ou ato normativo

decretado inconstitucional pelo STF.

Em torno deste dispositivo, criou-se grande polêmica na doutrina. Há

corrente que clama por sua inconstitucionalidade, por representar afronta à

coisa julgada. Seus adeptos são acusados de superestimar tal princípio,

colocando-o acima mesmo do princípio da supremacia da Constituição.

Na outra ponta se situam os partidários da prevalência máxima do

supracitado princípio em relação a todos os demais, qualificando como

inexeqüível qualquer decisão tida por inconstitucional, ainda que o STF não

tenha se pronunciado a respeito, seja em controle difuso, ou em controle

concentrado.

Tal posição extremada também se sujeita a críticas, já que acarretaria a

eliminação pura e simples do princípio da coisa julgada em seara constitucional,

dando margem a que lides já analisadas e resolvidas, permanecessem,

indefinidamente, à mercê de questionamentos.

16 Eficácia da Coisa Julgada Inconstitucional, Revista Dialética de Direito Processual, n.° 4, Julho, 2003

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Ainda que a lei disponibilize instrumentos aptos a reparar os vícios que

eventualmente venham a ocorrer nas decisões passadas em julgado, estes

também estão vinculados a prazos prescricionais, sem os quais as controvérsias

levadas à apreciação do Judiciário, jamais se resolveriam.

Pelo que vale citar PONTES DE MIRANDA17, que adverte:

“Os prazos prescricionais servem à paz social e à segurança jurídica. Não destroem o direito,

que é; não cancelam, não apagam as pretensões; apenas, encobrindo a eficácia da pretensão,

atendem à conveniência de que não perdure por demasiado tempo a exigibilidade ou a

acionabilidade.”

E aí reside mais um dos pontos controversos da tese relativista: se a

questão foi exaustivamente apreciada, no tempo devido, pelas instâncias

competentes, como decidi-la novamente? O reexame da questão não esvaziaria

a autoridade de todos os julgadores que, até então, a examinaram?

TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER e JOSÉ MIGUEL GARCIA18

MEDINA propõem uma interpretação mais abrangente da ação rescisória como

meio de afastar a coisa julgada em decisões que contenham ofensa a princípios

jurídicos, como vemos a seguir:

“A existência da ação rescisória é uma forma de atenuar este descompasso indesejável, e mais o

será quanto mais abrangente for a interpretação que se der ao art. 485, inc. V, do CPC, que

prevê a hipótese de se rescindir sentença de mérito em que tenha havido infração a literal

disposição de lei.

Não á, portanto, necessidade de alteração legislativa e muito menos do texto da Constituição

Federal para que se dêem à coisa julgada as dimensões que este instituto deve ter num Estado

Democrático”

17 Pontes de Miranda, Tratado, t.VI, p. 101 apud José Carlos Barbosa Moreira, Temas de Direito Processual, Nona Série, Editora Saraiva, 2007, pág. 9”. 18 Op. cit, p 172

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CAPÍTULO III

O CONFLITO

RELATIVIZAÇÃO x REAFIRMAÇÃO

A tese da relativização da coisa julgada é fruto de um movimento

revisionista denominado “Ondas Renovatórias do Direito Processual” que

propala a necessidade de revisitação de diversos institutos processuais, com

vistas a torná-los mais próximos do direito material.

Todos os atos do Poder Público, aí incluídos os atos jurisdicionais, têm

que guardar conformidade com a Lei Fundamental. Sob esta assertiva,

desenrolou-se a Teoria da Relativização da Coisa Julgada, cuja bandeira – a

realização do processo justo – ganhou adeptos na doutrina, inspirados em

decisões emanadas do Superior Tribunal de Justiça (que transcreveremos

adiante, em capítulo próprio, à guisa de ilustração), com ênfase para os votos

proferidos pelo Ministro JOSÉ AUGUSTO DELGADO, que em suas obras

doutrinárias é categórico ao afirmar que: “a coisa julgada não deve ser via para o

cometimento de injustiças”.

A endossar tal entendimento, opina HUMBERTO THEODORO

JUNIOR19: “Admitir-se, destarte, que a coisa julgada seja rompida – relativizar a sua

intangibilidade – nada tem de absurdo, mas ao contrário é medida excepcional que se

justifica quando presente sério vício capaz de ameaçar a sua própria razão de ser”

Alguns doutrinadores renomados e magistrados ilustres apregoam em

seus pareceres e decisões a necessidade de se flexibilizar a autoridade da coisa

julgada, calcando esse entendimento em três argumentos básicos:

19 Reflexões sobre o princípio da intangibilidade da coisa julgada e sua relativização, Coisa Julgada Inconstitucional, p 169

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• O primeiro – bem subjetivo, saliente-se – defende que a sentença

deve ser justa, caso contrário, não deveria fazer coisa julgada material;

• O segundo, que a sentença deve ser dada secundum eventum

probationes, ou seja, conforme o resultado da prova. Neste caso, em

razão do surgimento de nova prova, seria possível a repropositura da

mesma ação, reabrindo-se a discussão, e desconstituindo-se a sentença

anteriormente proferida, não mais acobertada pelo trânsito em julgado;

• Por fim, a corrente mais moderna defende que, por ser

regulamentada por lei ordinária (art. 467, CPC) a coisa julgada estaria

sujeita a alterações ante a incidência de preceitos constitucionais ou, até

mesmo, de outras leis ordinárias conflitantes.

O primeiro argumento, a nosso ver, é o que se apresenta mais

desprovido de sustentação, ante o caráter subjetivo do conceito de justiça.

É certo que a sentença justa é, utopicamente, o ideal maior do processo.

Contudo, trata-se de conceito indeterminado e indeterminável. Assim, quando

alguns doutrinadores defendem que a revisão da coisa julgada se opere,

excepcionalmente, no caso de grave injustiça, tal hipótese estaria prejudicada

pela impossibilidade de se limitar o grau de injustiça e, ainda, porque a decisão

posteriormente proferida, também poderia ser reputada como injusta pela parte

sucumbente, eternizando a discussão.

A justiça, como valor abstrato não é aplicável, ao contrário da justiça

possível da coisa julgada, que se materializa por meio de princípios e regras e

assegura a estabilidade das relações jurídicas e sociais.

Em suma, não há que se falar em incompatibilidade do instituto da

coisa julgada com a realização da justiça, ao menos quando se trata de justiça

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formal ou instrumental, realizável através do conjunto de normas que

compõem o ordenamento jurídico.

Em relação à segunda argumentação, parece-nos mais consistente,

conquanto fuja um pouco ao tema, uma vez que não representaria, em si, uma

ameaça letal ao princípio da segurança jurídica, por se restringir a situações

pretéritas e bem específicas.

A relativização ou desconsideração - como preferem alguns - da coisa

julgada tornou-se mais discutida, principalmente, após o advento do teste de

DNA, fruto dos recentes progressos da ciência.

Nos casos anteriores à esta inovação científica, decididos pelos

magistrados com base em indícios e presunções, em favor do investigado, em

razão da insuficiência de prova capaz de lhe atribuir a paternidade, qual seria o

procedimento ante um resultado positivo, posteriormente obtido, se a

renovação desses processos esbarraria na coisa julgada?

Nessa hipótese, dois princípios fundamentais constitucionais estariam

em conflito: o da coisa julgada e o da dignidade humana, já que o conhecimento

de sua verdadeira origem e a certeza da paternidade, são direitos do autor que,

dada a sua natureza, estariam acobertados por este último.

O laudo do DNA, decerto, pode e deve ser visto como documento novo

e, como tal, estaria inserido na hipótese do inciso VII, do art. 485, do CPC, que

reza:

“Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:

....

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“VII – depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que

não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável;”

Por força dessa hipótese, a solução possível seria a relativização do

prazo para interposição da ação rescisória, previsto no art. 495, do CPC, que

seria de dois anos a contar do transito em julgado da decisão, passando-se a

contá-lo da data em que a parte inteirou-se do fato.

Dessa forma, para não gerar insegurança jurídica, seria razoável dizer

que o prazo, e não a coisa julgada se tornaria passível de sofrer a relativização.

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3.1 A COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL

O terceiro argumento pró-relativização, gerador das maiores

controvérsias no âmbito jurídico, está voltado para a inconstitucionalidade da

sentença revestida da autoridade da coisa julgada ou – como alguns

impropriamente denominam – a coisa julgada inconstitucional.

Sendo o STF o órgão competente para verificar a constitucionalidade

das leis e atos normativos, exercendo o controle repressivo, de forma difusa ou

concentrada, e havendo sentença passada em julgado, proferida com

fundamento em regra que, posteriormente, foi submetida a controle de

constitucionalidade pelo STF, que entendeu de forma contrária àquela decisão,

caberia a desconstituição da coisa julgada? E por que meios?

Primeiramente, a discussão se voltou para a possibilidade de interpor a

Ação Rescisória, com base no inciso V, do art. 485, uma vez que este trata tão

somente de violação à lei, silenciando no que tange à violação de normas

constitucionais. Tal discussão, contudo, logo foi superada pela jurisprudência

do STF, que interpretou extensivamente o referido dispositivo, entendendo que,

se este se aplica à lei infraconstitucional,, com muito mais propriedade há de ser

aplicado na hipótese de violação à Lei Maior.

Vencida esta etapa, a discussão doutrinária se tornou mais acirrada, ao

tratar de situações em que decaiu o prazo para a interposição de Ação

Rescisória. Como desconstituir sentença baseada em lei que afronta a

Constituição Federal, uma vez decorrido o prazo de dois anos após seu trânsito

em julgado?

Partindo da premissa que a declaração de inconstitucionalidade tem

eficácia erga omnes e ex tunc, muitos autores afirmam que a norma

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inconstitucional seria inválida, inexistente até, para alguns. Pelo que,

consideram que a sentença baseada nesta norma pode ser rescindida a qualquer

tempo, seja através da rescisória, de ação autônoma de impugnação ou

embargos de devedor.

Por outro lado, a corrente mais clássica rebate que a decisão judicial que

transita em julgado se torna a norma concreta que regula o caso específico e não

mais se subordinando à eficácia ex tunc da decisão que declarou a

inconstitucionalidade da coisa abstrata.

Segue neste sentido o entendimento de LEONARDO GRECO20:

“a segurança jurídica, como direito fundamental, é limite que não permite a anulação do

julgado com fundamento na decisão do STF. O único instrumento processual cabível para essa

anulação, quanto aos efeitos já produzidos pela sentença transitada em julgado, é a ação

rescisória, se ainda subsistir o prazo para a sua propositura”

Argumenta, ainda, essa corrente que o objeto das Ações Diretas de

Constitucionalidade ou Inconstitucionalidade é a lei em tese, pelo que a eficácia

da declaração decorrente do controle concentrado está limitada ao seu objeto,

não tendo o condão de interferir na seara da coisa julgada.

Vê-se que não há unanimidade em torno do tema.

Há, mesmo os que desconsideram a possibilidade de configurar-se a

coisa julgada material em decisões que afrontem a ordem constitucional,

pugnando por sua invalidade e reputando inexistentes os atos jurídicos

praticados. Recomendam que a resolução da questão da incompatibilidade do

ato com a Lei Maior se dê através do mecanismo da nulidade. Hipótese em que

sequer se aventaria o uso da ação rescisória, uma vez que, sendo nulo o ato, não

20 Op. cit., p. 156

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produziria efeito e, portanto, não haveria o que rescindir, sendo bastante para

sua resolução, o manejo de uma ferramenta processual que se preste ao

reconhecimento da nulidade “pleno iure”.

Neste sentido merece atenção o texto de WAMBIER e MEDINA21 a

seguir transcrito:

“Na esteira do que entende a doutrina mais qualificada e felizmente boa parte da

jurisprudência, estas sentenças não tem aptidão para transitar em julgado e, portanto, não

devem ser objeto de ação rescisória já que não está presente o primeiro dos pressupostos de

cabimento daquela ação: sentença de mérito transitada em julgado., Em nosso entender, pode-se

pretender, em juízo, a declaração no sentido de que aquele ato se consubstancia em sentença

juridicamente inexistente,por meio de ação de rito ordinário, cuja propositura não se sujeita à

limitação temporal”.

Outros, em nome do “direito justo” – entendido como aquele submisso

às normas e princípios da Constituição Federal – admitem a mitigação da

autoridade da coisa julgada, em caráter excepcional.

HUMBERTO THEODORO JUNIOR22, em trabalhos anteriores,

mostrava-se reticente e cauteloso quanto aos possíveis efeitos danosos que a

relativização poderia causar à segurança e à certeza jurídicas, como podemos

deduzir do texto abaixo transcrito:

“É essa tempestade de ventos e torrentes em entrechoque nas reformas constantes e profundas

por que passa o direito positivo de nossos dias que nos convida a meditar e ponderar sobre um

princípio, um valor, um fundamento, do qual não se pode prescindir quando se intenta

compreender a função primária da normatização jurídica. Trata-se da segurança jurídica, que

nosso legislador constituinte originário, colocou como uma das metas a ser atingida pelo Estado

Democrático de Direito, ao lado de outros valores igualmente relevantes como a liberdade, o

bem-estar, a igualdade e a justiça, todos eles guindados à categoria de ‘valores supremos de

21 Op. cit. , p. 237/238 22

Op. cit.,pg. 20

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uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social” (Preâmbulo

da Constituição de 1988)”.

Posteriormente, em artigo recente de sua lavra,23 deixa transparecer

mais flexibilidade ao opinar:

“Se, em nome da segurança jurídica, a coisa julgada se transformasse em muralha

inexpugnável, ainda que agasalhando atentado à Constituição, ter-se-ia criado um feudo ou

uma excrescência dentro do Estado constitucional. Ou seja, ter-se-ia limitado uma área em que

a supremacia teria se deslocado da Constituição para a sentença judicial. Isto, obviamente, não

pode ser aceito pelo moderno direito constitucional, sob pena de negar a si próprio”.

Declara, por fim, sua adesão à proposta de relativização, ao afirmar que

“a sentença contrária à ordem constitucional não tem aptidão para produzir efeitos

jurídicos e o reconhecimento de tal ineficácia não se convalida com o tempo, nem

depende de ação específica para seu reconhecimento”.

Nesse caso afigura-se um dos pontos de inconsistência e fragilidade da

tese da relativização da coisa julgada: a questão da competência.

Em termos puramente técnicos, no Direito brasileiro, o controle da

constitucionalidade somente é possível enquanto não se operou a coisa julgada,

por meio do último recurso cabível, que é o Extraordinário, previsto no art. 102,

III, da Constituição Federal.

Verificada, posteriormente ao trânsito em julgado, a

inconstitucionalidade da decisão, esta somente poderia ser atacada por meio de

Ação Rescisória, a ser interposta no prazo de dois anos. Ultrapassado tal prazo,

como lidar com a questão da inconstitucionalidade?

23 Sentença Inconstitucional: Nulidade, Inexistência, Rescindibilidade. Revista Dialética de Direito Processual, n.° 63. Junho de 2008, pg. 39.

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A coisa julgada não poderia suplantar a Lei Maior, na hipótese de

inconstitucionalidade da decisão, sob pena de tornar-se um instituto maior do

que a própria Constituição Federal, lei fundamental da ordem jurídica. Este tem

sido o principal mote dos juristas que apóiam a idéia de relativização

Novamente, servimo-nos dos ensinamentos de HUMBERTO

THEODORO JUNIOR24, que melhor situa a questão:

“Daí que a noção de intangibilidade da coisa julgada, no sistema jurídico brasileiro, não tem

sede constitucional mas resulta, antes, de norma contida no CPC (art. 457), pelo que, de modo

algum não pode estar imune ao princípio da constitucionalidade, hierarquicamente superior”

Os adeptos da relativização da coisa julgada enxergam a segurança

jurídica como valor secundário, o que se infere da leitura do artigo do Ministro

JOSÉ AUGUSTO DELGADO25:

“...os valores absolutos de legalidade, moralidade e justiça estão acima do valor segurança

jurídica. Aqueles são pilares, entre outros, que sustentam o regime democrático, de natureza

constitucional, enquanto esse é valor infraconstitucional oriundo de regramento processual”.

Sustentam esses juristas que a idéia de inalterabilidade inerente à coisa

julgada, a despeito de sua força garantidora da segurança e certeza jurídicas,

deva ser vista sob uma ótica mais flexível, não podendo ser tomada como

princípio absoluto.

Por este ângulo, temos que a coisa julgada não deve ser vista como

absoluta, já que seu regramento está abaixo da Constituição Federal e seus

efeitos restariam, pois, enfraquecidos diante de princípios vistos como maiores,

24

Op. cit., pg. 39. 25 Efeitos da Coisa Julgada e os Princípios Constitucionais, p.47

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como o da moralidade, da razoabilidade, da proporcionalidade, da legalidade e

do justo.

Argumentam, ainda, que o princípio da constitucionalidade é

informativo da validade de todos os atos emanados do Poder Público, seja do

legislativo, do judiciário ou mesmo os administrativos, razão pela qual todos os

atos incompatíveis com a Carta Magna carregam em si um valor negativo

decorrente de sua inconstitucionalidade, qual seja, a nulidade.

Dessa forma, vem ganhando força a tese de que o fenômeno da

inconstitucionalidade se reduz a uma relação de validade: se o ato de poder –

qualquer que seja ele (uma decisão judicial, por exemplo) – está em

conformidade com a Constituição Federal, vale. Se não, é inválido.

Por sua vez, contra-argumentam os doutrinadores manifestamente

contrários à idéia de relativização, que a lei prevê três formas de controle da

constitucionalidade dos atos jurisdicionais:

- por recurso ordinário, no qual se pedirá a anulação ou reforma da

decisão apontada como inconstitucional;

- por recurso extraordinário, endereçado ao STF, na hipótese de decisão

de última ou única instância dita ofensiva à Constituição Federal;

ou

- por meio de ação rescisória ou revisão criminal, quando a decisão que

se quer impugnar já houver transitado em julgado, a ser interposto em

dois anos, contados do trânsito em julgado da decisão, que é o prazo

previsto em lei para se exercer o direito de rescisão.

Sustentam que, se esse controle não foi exercido nos momentos

oportunos, não se afigura razoável desconstituir a coisa julgada,

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menosprezando a segurança jurídica por ela representada e colocando em risco

a paz social que ela assegura.

Como bem coloca NELSON NERY JUNIOR26:

“No século XXI não mais se justifica prestigiar e dar aplicação a institutos como os da querela

mullitatis insanabilis e da prescriptio immemoriabilis. Não se permite a reabertura, a

qualquer tempo, da discussão de lide acobertada por sentença transitada em julgado, ainda que

sob o pretexto de que a sentença seria inconstitucional. O controle da constitucionalidade dos

atos jurisdicionais do Poder judiciário existe, mas deve ser feito de acordo com o devido processo

legal”

No dizer de MICHELLE CHERMONT27, seguindo a mesma orientação:

“A diferença é que o controle de constitucionalidade das decisões judiciais sujeita-se a prazos

que devem ser entendidos como uma forma de compatibilizar os valores constitucionais da

segurança jurídica e da justiça das decisões, aplicando-se a proporcionalidade. Em outras

palavras, o controle no caso de decisões judiciais não pode ser ilimitado quanto ao conteúdo e ao

tempo, visto que estas atingem diretamente a vida dos jurisdicionados, que necessitam da

certeza do seu direito”.

Ponderam, ainda, que a sentença passada em julgado é norma de

caráter privado, editada de forma subjetiva e no interesse particular, pelo que

não merece o mesmo tratamento dado à lei ou ato normativo inconstitucional,

de caráter e interesse geral, estes sim, sujeitos ao controle de

inconstitucionalidade, a qualquer tempo.

E, de forma veemente, conclui NELSON NERY JUNIOR28:

“Permitir que o magistrado, no caso futuro, profira decisão sobre o que fez e o que não fez coisa

julgada, a pretexto de que estaria aplicando o princípio da proporcionalidade, não é profligar

26. Teoria Geral dos Recursos. 6ª Ed. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2004, p 508 27 Relativização da Coisa Julgada: Análise Crítica. Revista Dialética de Direito Processual, n.° 44, novembro de 2006. 28 Op. cit, p 313

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tese de vanguarda, como à primeira ista poderia parecer, mas, ao contrário, é admitir a

incidência do totalitarismo nazista no processo civil brasileiro”.

Atente-se, ainda, para a lição do Prof. BARBOSA MOREIRA29 que, no

mesmo sentido, se posiciona:

“A segurança das relações sociais exige que a autoridade da coisa julgada, uma vez estabelecida,

não fique demoradamente sujeita à possibilidade de remoção. Ainda quanto às sentenças eivadas

de vícios muito graves, a subsistência indefinida da impugnabilidade, incompatível com a

necessidade da certeza jurídica, não constituiria solução aceitável no plano da política

legislativa, por mais que em seu favor se pretendesse argumentar com o mal que decerto

representa a eventualidade de um prevalecimento definitivo do erro. O legislador dos tempos

modernos, aqui e alhures, tem visto nesse mal o menor. Daí a fixação de prazo para a

impugnação; decorrido certo lapso de tempo, a sentença torna-se imune a qualquer ataque. É o

que acontece na generalidade dos ordenamentos contemporâneos”.

Por fim, em primoroso artigo, ARAKEN DE ASSIS30 arremata:

“Se a tendência contemporânea de ignorar a indiscutibilidade dos provimentos jurisdicionais,

que resume singular atributo da coisa julgada provocará benefícios ou, ao invés, dissolverá a

esperança de resolução rápida e efetiva dos litígios, constitui questão aberta a variadas

divagações. No entanto, parece pouco provável que as vantagens da justiça do caso concreto, se

sobreponham às desvantagens da insegurança geral”.

29 Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 5, Rio de Janeiro, Forense, 1999, p. 214 30 Revista Dialética de Direito Processual n.° 4, julho de 2003, g. 09/28

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CAPÍTULO IV

PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS NO DIREITO

BRASILEIRO

Do voto lavrado pelo eminente Ministro Luiz Fux, que transcrevemos

abaixo, é possível extrair que não há comunhão de opiniões em relação à tese

pró-relativização dentro de nossas Cortes.

PROCESSO: REsp 671182 / RJ. RELATOR: MINISTRO LUIZ FUX ÓRGÃO JULGADOR:– T1 – PRIMEIRA TURMA –DATA DO JULGAMENTO: 05/04/2005 DATA DA PUBLICAÇÃO/FONTE: DJ 02/05/2005 EMENTA PROCESSUAL CIVIL. VIOLAÇÃO AO ARTIGO 535, DO CPC. INOCORRÊNCIA. AÇÃO DECLARATÓRIA DA INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO JURÍDICA DECORRENTE DE DECISÃO JUDICIAL TRANSITADA EM JULGADO CONTRÁRIA A POSTERIOR DECISÃO DO STF QUE CONSIDEROU INCONSTITUCIONAL A LEGISLAÇÃO QUE A EMBASAVA. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO. ARTIGO 267, DO CPC. APLICAÇÃO. ........ 3. A rediscussão reiterada de matéria decidida e declarada por sentença transitada em julgado implica a pretensão de consagração da cognominada tese da "relativização da coisa julgada", postulado que se choca com a cláusula pétrea da segurança jurídica, garantia fundamental do jurisdicionado, consagrada em todas as Constituições. ......... 8. Impõe-se, por fim, esclarecer que a propositura de outra ação com o escopo de infirmar o resultado a que se chega em processo anterior também ofende a coisa julgada, haja vista que desrespeita a eficácia preclusiva ínsita no artigo 474, do CPC, expressa na máxima tantum iudicatum quantum disputatum vel disputari debeat (em vernáculo: tanto foi julgado quanto foi disputado ou deveria ser disputado), máxime porque à parte é lícito argüir, como causa petendi, a inconstitucionalidade das leis, as quais não gozam de presunção absoluta de constitucionalidade. ....... 10. Em sendo possível discutir no controle difuso a legalidade do tributo, a declaração de inconstitucionalidade posterior e em controle concentrado não tem o condão de reabrir prazos superados. A seguir esse raciocínio, vinte anos depois de incorporado o tributo ao erário, e satisfeitas necessidades coletivas com esses fundos, o Estado ver-se-ia instado a devolver as quantias sem que a contraprestação também ocorresse, gerando situação de enriquecimento por parte do cidadão em detrimento do Estado. Ademais, vale lembrar que a segurança jurídica opera-se pro et contra o cidadão e a Administração Pública. 11. Recurso especial a que se nega provimento.

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Verifica-se mesmo que a maior parte dos magistrados reconhece o

instituto da coisa julgada como corolário da segurança jurídica. A título de

ilustração, reproduzimos abaixo:

PROCESSO: AgRg no Ag 486405 / MG RELATOR: Ministro FRANCIULLI NETTO ÓRGÃO JULGADOR: T2 - SEGUNDA TURMA–DATA DO JULGAMENTO: 16/03/2004 DATA DA PUBLICAÇÃO/FONTE: DJ 28.06.2004 p. 244 EMENTA AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO RESCISÓRIA. ARTIGO 485, INCISO V, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. EXPURGOS INFLACIONÁRIOS. APLICAÇÃO DA SÚMULA N. 343/STF. CARÊNCIA DE AÇÃO. INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL. O Estado tem interesse em proteger a coisa julgada, em nome da segurança jurídica dos cidadãos, mesmo em prejuízo à busca pela justiça. Por esse motivo, as hipóteses de cabimento da ação rescisória são taxativas e devem ser comprovadas estreme de dúvidas. O processo é instrumento e “todo instrumento, como tal, é meio; e todo meio só é tal e se legitima, em função dos fins a que se destina” (cf. Cândido Rangel Dinamarco, in “A Instrumentalidade do Processo”, 2ª edição revista e atualizada, Ed. RT, p. 206). ........ No caso “de não aplicação da lei ordinária, por alegado motivo de ordem constitucional que mais tarde vem a ser afastado por mudança de orientação jurisprudencial, a ofensa que poderia ser divisada não é à Constituição, mas sim à lei ordinária a que a sentença não reconheceu eficácia. Não se pode 'data venia', dizer que, na não aplicação da norma infraconstitucional, se tenha configurado uma negativa de vigência de norma constitucional, para declarar-se a própria sentença como inconstitucional e, 'ipso facto', nula” (cf. Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria, “A coisa julgada inconstitucional e os instrumentos processuais para seu controle”, Revista Íbero-Americana de Direito Público - RIADP, Vol. III, ano 3, 1º trimestre de 2001, p. 93). Se a matéria, antes do pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, estava pacificada em sentido contrário à tese da Caixa Econômica Federal, hoje não se pode dizer que a jurisprudência se pacificou no sentido por ela almejado. Agravo regimental a que se nega provimento.

Um dos precursores da tese da relativização, o Ministro José Delgado

defende que o valor Justiça deve prevalecer, mesmo que em detrimento do

valor segurança, como se infere da ementa a seguir:

PROCESSO: REsp 602636 / MA RELATOR: Ministro JOSÉ DELGADO ÓRGÃO JULGADOR: T1 - PRIMEIRA TURMA DATA DO JULGAMENTO: 06/05/2004 DATA DA PUBLICAÇÃO/FONTE: DJ 14.06.2004 p. 178 EMENTA ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO. FASE EXECUTÓRIA. DETERMINAÇÃO DE NOVA AVALIAÇÃO. FIXAÇÃO DA TERRA NUA INCLUINDO A COBERTURA

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FLORÍSTICA. ART. 12 DA LEI 8.629/93. 1. Recurso especial intentado contra acórdão, exarado em agravo de instrumento, que reformou decisão monocrática designadora de nova perícia na área objeto da ação expropriatória, em fase de execução, por entender que o juiz de primeiro grau elevou premissa fática equivocada quanto aos cálculos, para chegar à conclusão adotada. ....... 3. Posicionamento do Relator: filiação à corrente que entende ser impossível a res judicata, só pelo fundamento de impor segurança jurídica, sobrepor-se aos princípios da moralidade pública e da razoabilidade nas obrigações indenizatórias assumidas pelo Estado. Esse pensamento não nega a proteção do direito subjetivo de qualquer uma das partes, pelo contrário, a sua preservação apresenta-se devidamente fortalecida quando a decisão operante da coisa julgada vivifica sem qualquer ataque a princípios maiores constitucionais e que se refletem na proteção da cidadania. ....... 5. Inobstante em decisão anterior já transitada em julgado se haja definido o valor da indenização, é diante das peculiaridades do caso concreto que se pode estudar a necessidade da realização de nova avaliação. 6. Reforma do acórdão que afastou a designação de nova perícia. 7. Recurso especial provido.

Há julgadores, contudo, que demonstram prudência quanto à

desconsideração do instituto, embora admitam sua ocorrência, em situações

ditas excepcionais, e busquem, para tanto, os remédios processuais utilizáveis,

como se vê abaixo:

PROCESSO: REsp 883338/AL - RELATOR: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA ÓRGÃO JULGADOR: T6 - SEXTA TURMA - DATA DO JULGAMENTO: 16/08/2007 DATA DA PUBLICAÇÃO/FONTE: DJ 01.10.2007 p. 380 EMENTA RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. ART. 741, PARÁGRAFO ÚNICO DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL. LIMITES AO CONHECIMENTO. APLICABILIDADE DA REFERIDA NORMA. ÂMBITO DE APLICAÇÃO. BALIZA TEMPORAL. SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO ANTES DA EDIÇÃO DA NORMA CITADA. IMPOSSIBILIDADE DE ALEGAÇÃO DA TESE DE COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL. 1.É cediço que parte da doutrina tem incansavelmente admitido a alegação da coisa julgada inconstitucional, albergando o art. 741, parágrafo único, do CPC, defendendo, inclusive, a possibilidade de alegá-la a qualquer momento. 2. Outra parcela entende que a norma em comento é inconstitucional, porquanto o princípio da coisa julgada seria maior que os outros princípios utilizados como parâmetro da tese da coisa julgada inconstitucional, razão pela qual não poderia, em nenhuma hipótese, o referido instituto ser desconstituído, ainda que em virtude de declaração de inconstitucionalidade da norma utilizada como fundamento para a prolação da sentença exeqüenda. 3. A solução, contudo, a ser adotada deve ser um meio-termo, pois a tese da coisa julgada inconstitucional não pode ser utilizada como uma regra, mas sim como exceção, verificada caso a caso, sob pena de se enfraquecer a figura da coisa julgada (erigida à direito fundamental), bem como retirar de toda a sociedade a segurança jurídica, princípio que deve permear toda a

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atividade jurisdicional, sobretudo para que as decisões do Poder Judiciário tenham a força que um estado democrático reclama. 4. Parte-se da premissa de que as sentenças transitadas em julgado posteriores ou anteriores à declaração de inconstitucionalidade da norma podem ser desconstituídas (Resp 720953/SC, Rel. Min. Teori Albino Zavaski). 5. Contudo, antes da edição Medida Provisória nº 2.180/01, que incluiu o parágrafo único no art. 741 do CPC, a forma como deveria ser impugnada uma sentença transitada em julgada, proferida em desacordo com norma declarada inconstitucional pelo STF era por meio da ação rescisória. 6. O princípio regente de todo o ordenamento jurídico brasileiro, qual seja, o de que as normas processuais têm efeitos imediatos, mas respeitados o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada impõe que a MP 2.180/01, incluindo nova hipótese de matéria a ser alegada em embargos à execução por ser de ordem de processual é aplicável de forma imediata respeitada, obviamente a coisa julgada. 7. Dessa forma, a nova hipótese de matéria a ser tratada em embargos à execução, qual seja, a alegação de declaração de inconstitucionalidade de norma, somente pode valer a partir da edição da MP 2.180/01, em respeito aos princípios constitucionais da coisa julgada (explícito) e segurança jurídica (implícito). Precedentes.

8. Recurso especial improvido.

Já nas ações de paternidade, a jurisprudência apresenta-se mais

maleável quanto à possibilidade de relativização, como se pode ver adiante:

PROCESSO: REsp 226436/PR – RELATOR: Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA ÓRGÃO JULGADOR: T4 - QUARTA TURMA DATA DO JULGAMENTO: 28/06/2001 DATA DA PUBLICAÇÃO/FONTE: DJ 04.02.2002, P. 370.

EMENTA PROCESSO CIVIL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. REPETIÇÃO DE AÇÃO ANTERIORMENTE AJUIZADA, QUE TEVE SEU PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE POR FALTA DE PROVAS. COISA JULGADA. MITIGAÇÃO. DOUTRINA. PRECEDENTES. DIREITO DE FAMÍLIA. EVOLUÇÃO. RECURSO ACOLHIDO. I – Não excluída expressamente a paternidade do investigado na primitiva ação de investigação de paternidade, diante da precariedade da prova e da ausência de indícios suficientes a caracterizar tanto a paternidade como a sua negativa, e considerando que, quando do ajuizamento da primeira ação, o exame pelo DNA ainda não era disponível e nem havia notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento de ação investigatória, ainda que tenha sido aforada uma anterior com sentença julgando improcedente o pedido.

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II – Nos termos da orientação da Turma, "sempre recomendável a realização de perícia para investigação genética (HLA e DNA), porque permite ao julgador um juízo de fortíssima probabilidade, senão de certeza" na composição do conflito. Ademais, o progresso da ciência jurídica, em matéria de prova, está na substituição da verdade ficta pela verdade real. III – A coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no caso de investigação de paternidade, deve ser interpretada modus in rebus. Nas palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos hoje se aprofundam no reestudo do instituto, na busca sobretudo da realização do processo justo, "a coisa julgada existe como criação necessária à segurança prática das relações jurídicas e as dificuldades que se opõem à sua ruptura se explicam pela mesmíssima razão. Não se pode olvidar, todavia, que numa sociedade de homens livres, a Justiça tem de estar acima da segurança, porque sem Justiça não há liberdade". IV – Este Tribunal tem bus cado, em sua jurisprudência, firmar posições que atendam aos fins sociais do processo e às exigências do bem comum.

Mesmo na jurisprudência da mais alta Corte do país se entrevê uma

certa desconformidade quando se trata de atingir a coisa julgada, optando

algum de seus ministros pela reafirmação de sua força:

PROCESSO: RE-AgR 473715 / CE – CEARÁ - RELATOR: Min. CARLOS BRITTO AG.REG.NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO ÓRGÃO JULGADOR: PRIMEIRA TURMA – DATA DO JULGAMENTO: 26/04/2007 DATA DA PUBLICAÇÃO/FONTE: DJ 25-05-2007 – P. 263-267 EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. EMBARGOS À EXECUÇÃO. DESAPROPRIAÇÃO. BENFEITORIAS. PAGAMENTO EM ESPÉCIE. DISPOSITIVOS LEGAIS DECLARADOS INCONSTITUCIONAIS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. COISA JULGADA. DESCONSTITUIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE

É certo que esta Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade de dispositivos que autorizam o pagamento, em espécie, de benfeitorias fora da regra do precatório. Isso não obstante, no caso dos autos, esse pagamento foi determinado por título executivo que está protegido pelo manto da coisa julgada, cuja desconstituição não é possível em sede de recurso extraordinário interposto contra acórdão proferido em processo de embargos à execução. Precedente: RE 443.356-AgR, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence. Agravo regimental desprovido.

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CONCLUSÃO

O presente estudo teve como escopo analisar a crise paradigmática

decorrente da existência de duas posições antagônicas: a relativização da coisa

julgada, em nome de um processo verdadeiramente justo, contrapondo-se à

questão da segurança jurídica, instrumento imprescindível à consolidação e à

própria integridade do Estado Democrático de Direito.

É inconteste que o ordenamento jurídico deva caminhar em parelha

com o desenvolvimento social, cultural e econômico da nação,

compatibilizando-se com os anseios e expectativas de uma sociedade em

evolução.

Porém, a renovação legislativa tem que se operar dentro dos padrões da

proporcionabilidade que deve ser observada na conjugação de princípios e

valores fundamentais, sob pena de se atropelar aquele que rege a coordenação

de todos os demais, qual seja, o princípio da segurança jurídica.

Quando o legislador, na ânsia de renovar, concebe normas imprecisas,

postas como cláusulas gerais e não estabelece parâmetros determinados e

verificáveis nos casos concretos, dá margem a interpretações diversas pelos

aplicadores do direito, resultando em decisões discrepantes que colocam em

risco a segurança jurídica.

É de se concluir, assim, que a tese da relativização da coisa julgada

esbarra, por um lado, na natureza de garantia constitucional atribuída a esse

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instituto pela própria Carta Magna e, por outro lado, na inviabilidade de

tolerar-se, em nome de sua acolhida, no contexto do ordenamento jurídico

vigente, o exercício ilimitado de uma querela nullitatis – como defendem alguns

doutrinadores, sem que exista previsão legal para tal.

Restou indeterminado também a quem caberia, em definitivo, ponderar

os valores fundamentais hábeis a permitir a relativização da coisa julgada – se

ao legislador ou ao órgão jurisdicional e, sendo este último, a qual instância

competiria.

E, a final, através de qual instrumento processual se daria o

abrandamento da autoridade que a coisa julgada enverga.

Em meio a tantas incertezas, alinhamo-nos dentre aqueles que, não

obstante percebam a necessidade de reformulação, posicionam-se com cautela

frente à idéia de relativização, principalmente, em razão da falta de

sistematização adequada das hipóteses aventadas.

O Prof. PAULO ROBERTO DE GOUVÊA MEDINA31, em análise

recente, igualmente demonstra sua apreensão quanto às possíveis

conseqüências de uma revisão inconseqüente e superficial, como se vê adiante:

“Na esteira destas considerações, vem a propósito indagar: como seria possível conferir à coisa

julgada proteção menor do que aquela que se atribui ao direito adquirido e ao ato jurídico

perfeito? A pretendida ’relativização’ da coisa julgada implicaria, porventura, igual

flexibilização do direito adquirido e do ato jurídico perfeito?Ou o pressuposto de que se parte é o

de que a garantia da coisa julgada é mais frágil ou menos extensa do que as demais garantias?

Na verdade, o movimento que se esboça no sentido de afirmar que a imutabilidade da sentença

transita em julgado é, apenas, relativa, acabará por enfraquecer também os institutos do direito

adquirido e do ato jurídico perfeito, comprometendo, definitivamente,o conjunto de garantias de

que a Constituição cerca a segurança jurídica”.

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Como visto, o tema é delicado e demanda, sim, enfrentamento, tendo

em vista que o Direito é uma ciência dinâmica e não estática, evoluindo e

modificando-se a todo o momento.

Contudo, este não pode se dar sob outra ótica que não a da

Constituição Federal. A proporcionalidade, a nosso ver, se apresenta como o

melhor, senão o único meio possível para o exame adequado e legítimo do

tema.

Em razão do caráter estruturante do instituto da res iudicata – vista

como o encerramento da lógica do contraditório, mediante a substituição da

vontade díspar das partes envolvidas, pela decisão emanada do estado-juiz, não

mais passível de ser argüida – a mitigação da autoridade de que ela se reveste

deve ser examinada com prudência, e de forma exaustiva, com vista a não

comprometer a própria função social do Poder Judiciário, resguardando-se,

assim, sua autoridade.

Os institutos jurídicos foram erigidos através de um longo processo de

amadurecimento e somente se pode admitir sua modificação mediante igual

processo.

Opinamos, em síntese, pela prevalência da garantia da coisa julgada,

admitindo, excepcionalmente o seu abrandamento, nas situações já previstas

em lei ou naquelas que vierem a ser legisladas

Até porque, na ausência de uma teoria melhor, é conveniente que se

mantenha a existente.

31 Coisa Julgada: Garantia Constitucional. Revista de Processo, ano 32, n.° 146 abr/2007.

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BIBLIOGRAFIA

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NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 8ª

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ÍNDICE

FOLHA DE ROSTO 2

AGRADECIMENTO 3

DEDICATÓRIA 4

RESUMO 5

METODOLOGIA 6

SUMÁRIO 7

INTRODUÇÃO 8

CAPÍTULO I

SEGURANÇA JURÍDICA

1.1 - Conceito 11

1.2 – A segurança jurídica em confronto com a justiça das decisões 13

CAPÍTULO II

O INSTITUTO DA COISA JULGADA

2.1 Conceito 15

2.2 Coisa Julgada Formal 18

2.3 Coisa Julgada Material 20

2.4 Rescindibilidade da Coisa Julgada 24

CAPÍTULO III

O CONFLITO RELATIVIZAÇÃO X REAFIRMAÇÃO 27

3.1 Coisa Julgada Inconstitucional 31

CAPÍTULO IV

PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS NO DIREITO BRASILEIRO 39

CONCLUSÃO 44

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BIBLIOGRAFIA 47

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FOLHA DE AVALIAÇÃO

Nome da Instituição: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

PROJETO A VEZ DO MESTRE

Título da Monografia: RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA

MATERIAL x SEGURANÇA JURÍDICA -

Principais aspectos do conflito

Autor: ILIA FREITAS DA SILVA

Data da entrega: 26/09/2008

Avaliado por: Conceito: