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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU” PROJETO A VEZ DO MESTRE O CUSTO DO A FETO UM DESAFIO ÀS FA MÍLIAS NA PÓS-MODERNIDADE POR: DEISE LUCIA DA ROCH A MORAES Orientadora Profª Ms. Maria Poppe Rio de Janeiro 2006

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

PROJETO A VEZ DO MESTRE

O CUSTO DO AFETO

UM DESAFIO ÀS FAMÍLIAS NA PÓS-MODERNIDADE

POR: DEISE LUCIA DA ROCHA MORAES

Orientadora

Profª Ms. Maria Poppe

Rio de Janeiro

2006

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

PROJETO A VEZ DO MESTRE

O CUSTO DO AFETO

UM DESAFIO ÀS FAMÍLIAS NA PÓS-MODERNIDADE

Apresentação de monografia à Universidade Cândido

Mendes como requisito parcial para Obtenção do grau de

especialista em Terapia de Família, por: Deise Lucia da

Rocha Moraes.

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AGRADECIMENTOS

Sobretudo a Deus, por sua presença constante e

capacitadora. Aos autores do manual de produção de

monografia elaborado pelo Instituto “A vez do Mestre”. A

todos os autores citados, que abriram caminho nesta

estrada, que ora me proponho a trilhar. À Profª Maria Poppe,

pela orientação durante todo o processo de criação deste

trabalho acadêmico. A todos os amigos, que bondosamente

compreenderam e aceitaram minha ausência durante esse

período.

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DEDICATÓRIA

Dedico essa produção acadêmica a Ronaldo, meu marido,

que contribuiu para a realização desse trabalho com sua

opinião, atenção e compreensão em todos os momentos.

Também à minha mãe, Maria Rocha, pelos cuidados

expressos em gestos de ajuda nesses instantes.

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RESUMO

Muito se tem falado e ouvido a respeito das novas formas de arranjo

familiar na era pós-moderna. Entretanto, parece, empiricamente, que em grande

parte destas, as relações afetivas vêm sofrendo afrouxamento, esvaziando

pessoas e enchendo consultórios com famílias que pagam por “respostas” que

apontem caminhos para o reencontro amoroso de seus membros.

Pretende-se estudar esse assunto, à luz dos valores midiáticos

relacionados ao individualismo, frenetismo e consumismo (dentre outros), tirando

o foco puramente das questões intrafamiliares e propondo um olhar macropolítico

a respeito de tais questões.

Pretende-se, ainda, verificar o valor do afeto na construção dos atuais

arranjos familiares, e o modo como as famílias vêm sendo atravessadas pela rede

de conceitos e apelos consumistas, marcadamente nas sociedades pós-

modernas.

Acredita-se que a família vem atravessando um momento de crise, onde se

apresentam novas formas de arranjo do grupo familiar. Neste contexto, quaisquer

que sejam as multiformes faces de organização da família, o afeto – que parece

estar desacreditado e fora de uso – precisa ser resgatado como forma de

manutenção de saúde desta instituição.

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METODOLOGIA

O presente trabalho será desenvolvido através de pesquisa bibliográfica,

utilizando-se de livros, revistas, artigos, jornais, sites de organizações

reconhecidas em seu valor de confiabilidade, bem como publicações acadêmicas.

Estarão embasando teoricamente este estudo, sobretudo, os trabalhos de

João Carlos Petrini (“Mudanças sociais e familiares na atualidade: reflexões à luz

da História Social e da Sociologia”), Jair Ferreira dos Santos (“O que é pós-

moderno) e Teresinha Mello da Silveira (“Individualidade, Conjugalidade e

Instabilidade no casamento contemporâneo”), dentre outros.

Para tanto, o recorte proposto nessa produção é sobre a influência da mídia

e do consumo sobre as relações afetivas familiares, na pós-modernidade,

marcadamente sobre os arranjos vislumbrados a partir do início do século XX.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 08

CAPÍTULO I

O NASCIMENTO DO AFETO NAS RELAÇÕES FAMILIARES 13

CAPÍTULO 2

ESSE SUJEITO PÓS-MODERNO 19

CAPÍTULO 3

DO AMOR AO CONSUMISMO OU O CONSUMO DE AMOR 26

CAPÍTULO 4

E A FAMÍLIA, COMO VAI? 31

4.1 – MUDANÇAS FAMILIARES 31

4.2 – O CUSTO DO AFETO 33

CONCLUSÃO 38

BIBLIOGRAFIA 40

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INTRODUÇÃO

Vivemos no chamado “pós-modernismo”, época marcada, entre outras

coisas, pelo ecletismo, individualismo, frenetismo e, é claro, o consumismo. A Era

pós-moderna está associada ao declínio de antigos conceitos absolutistas (típicos

da sociedade ocidental Moderna) como Deus, Razão, Verdade, Ciência,

Consciência, Estado e Família, dentre outros.

A matéria-prima essencial na produção subjetiva do indivíduo pós-moderno

parece ser, com efeito, a mídia: “Para a maioria das pessoas, só existem dois

lugares no mundo: o lugar onde elas vivem e a televisão”. A frase é da

personagem de Ruído branco, romance de Don DeLillo (apud Luís Felipe Miguel,

2004, pág.2) e sintetiza a presença da mídia (da qual a televisão é a maior

representante) no mundo contemporâneo.

É da televisão que provem, direta ou indiretamente, quase todo o volume

imenso de informação que nos gabamos de ter para nos situarmos no mundo:

roteiros culturais, comentários políticos, fofocas, notícias de divulgação científica e

seus avanços, noticiários catastróficos, reportagens de guerras, programas de

entretenimento (já classificados para todas as faixas etárias!), dicas de moda com

as últimas tendências, etc.

“Estamos tão imersos no discurso midiático que, muitas

vezes, nem percebemos a extensão de sua presença. Mas

quando paramos para refletir, verificamos que o impacto da

mídia é perceptível em todas as esferas de nossa vida

cotidiana”. (2004, pág. 4).

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9Isto porque os meios de comunicação em massa também cumprem papel

decisivo na balização de nosso cotidiano e de nossa visão de mundo. Entrando

em nossas casas sob os formatos mais variados de transmissão de conceitos,

convivem com todas as gerações, por grande parte de nosso tempo diário. Assim,

introjetamos, tão profundamente, os apelos midiáticos, que impressos e

impregnados ficam em nós, confundindo-se com nosso próprio desejo! É claro que

este processo não se resume à mídia, mas tem nela uma ferramenta essencial.

O indivíduo pós-moderno consome, em larga escala, tudo o que “precisa” e

mais ainda tudo o que “não precisa” com uma sensação de urgência imperativa.

“As sociedades pós-industriais, (...) programam a vida social

nos seus menores detalhes, pois nelas tudo é mercadoria

paga (...) elas deixam ao indivíduo a opção de consumir

entre uma infinidade de artigos, mas não a opção de não

consumir”. (1995, pág. 9).

Neste contexto, o consumismo é colocado como forma absoluta de valor de

vida em sociedade e pode propiciar relacionamentos em que a afetividade é

substituída por mera troca de objetos.

É sabido que o afeto não é algo naturalizado no seio da família, assim como

a própria noção de família não é algo naturalizado na sociedade humana.

Conforme já magistralmente explanado por Philipe Ariès (1987), a noção de

vínculo de intimidade, a estruturação dos laços sanguíneos e o sentimento de

pertença são construtos sociais, solidificados na sociedade moderna. Entretanto,

em virtude do grande valor hoje atribuído às emoções, julga-se ser pertinente a

indagação quanto ao benefício (ou não) de nos despojarmos desta forma de

ligação parental – a dos sentimentos.

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10Num mundo de pessoas e relacionamentos coisificados, intensifica-se a

busca da eterna falta no sujeito humano, com a tentativa de preeencher-se através

de mais e mais consumo e, não podendo faze-lo, continuam a consumir qualquer

objeto que sugira ou dê um mínimo prazer - “indispensável” à vida

contemporânea.

No mundo pós-moderno, o valor prioritário é ter posse de coisas, objetos e

pessoas. O sujeito é classificado pela marca de sua roupa, pelo cargo que ocupa,

o carro que possui, a quantidade de destinatários de seus e-mails. Ter é ser: este

é o valor supremo das sociedades de consumo. Dessa maneira, os objetos têm

um valor maior do que o humano.

Para obter prestígio entre seus “pares”, o homem precisa, cada vez mais,

ter; e, caso não se possa ter, há o risco até de se querer tirar de quem tem. O “ter”

é o grande direito reivindicado pelas classes sociais menos favorecidas, instigadas

pelos apelos constantes da mídia.

Isso se verifica facilmente através de uma atenta observação empírica. As

favelas que compõem os grandes centros urbanos constituem um dos mais

evidentes paradoxos de nossa época. Em habitações precárias, carentes de

condições dignas de higiene e saneamento básico, sem alimentação adequada

para todos os habitantes de seu espaço físico, serão provavelmente encontradas

entre os moradores, outras prioridades em seu desejo, tais como aparelhos de TV,

DVD, Som, walkman, vídeo games, bicicletas ergométricas, telefones celulares,

computadores, etc.

Tudo parece convergir para os aspectos concretos e materiais, do ter, do

possuir, enfim, das aparências. Atribui-se valor a um homem pela marca que

veste, pelo meio de transporte que utiliza, pelos lugares que freqüenta; não pelo

que é capaz de ser em contato com o outro, nem pelo que é capaz de exprimir em

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11seus gestos e pensamentos. As relações de afeto são substituídas, então, por

mera troca de objetos ou ganhos, e o relacionamento entre pessoas acaba

materializado e descartável.

Não é de se admirar, neste contexto, que as famílias estejam também

sendo vistas como descartáveis. Se a minha não parece perfeita, verifico nas

prateleiras e me indago se não haveria outra que me coubesse melhor – talvez

tamanho P, ou M – com uma coloração diferente, quem sabe um pouco mais

elástica ou menos aderente?

No hipermercado pós-moderno, não há tempo para o investimento pessoal

nas relações em família (ou quaisquer outras relações intersubjetivas): é a “mania”

operando sua face hedionda, repelindo toda a forma de vida desacelerada.

Engasgado em seu narcisismo, o homem pós-moderno não perde seu

tempo em cativar relacionamentos, investir na manutenção dos afetos, liberar

perdão às possíveis falhas alheias (e, por que não dizer? – até mesmo às suas

próprias), relevar ofensas, “discutir a relação”. Tudo isso fica de-modè, out,

totalmente fora do contexto da pressa pós-moderna que inclui experimentar tudo

no menor espaço de tempo possível, retendo nada para evitar transtornos e

aborrecimentos oriundos das manutenções “desnecessárias” de contato

continuado. “Viver é estar de mudança para a próxima novidade”.

Sob o manto sedutor da morte dos preconceitos e do advento da

multiplicidade, o “tudo pode” da era pós-moderna, exige a aceitação incondicional

das diferenças e sufoca o criticismo moderno, sob o slogan: “Não tem nada haver,

qual o problema?”. A mídia vende como liberdade o que o homem pós-moderno

experimenta como solidão, apatia, conformismo, melancolia – e este tenta, de

todos os meios, fazer com que pareça alegria a euforia que percebe como valor.

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12Seria conveniente resgatar subjetivamente a inclusão no sincretismo pós-

moderno, da possibilidade do homem de fazer-se novamente sujeito desejante –

não só comprador dos desejos de mercado oferecidos em larga escala pela

contemporaneidade. Sujeito desejante, compreendido em todo sentido que a

expressão abarca, capaz inclusive de desejar não se permitir ser conduzido pelas

avalanches midiáticas e de poder escolher e efetivar permanecer – onde, quando,

com quem e por quanto tempo sua capacidade de afetar e ser afetado lho

permitirem e lho fizerem sentir-se pessoa – de fato e de direito.

Na exposição do presente trabalho monográfico, passo a passo, o leitor

acompanhará o rumo escolhido para experimentação desta construção.

Primeiramente, falar-se-á a respeito do surgimento e do acolhimento dos afetos

como formadores de vínculos familiares. Em seguida, discorrer-se-á sobre os

artefatos de produção de subjetividade nos indivíduos pós-modernos, lançados

pela mídia. Na seqüência, traçar-se-á um paralelo entre os valores apregoados

pela pós-modernidade e o lugar dos afetos no seio da família. Por último,

problematizar-se-á as novas construções de arranjos familiares, à luz dos apelos

que chegam aos consultórios psicológicos, oriundos das famílias.

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CAPÍTULO I

O NASCIMENTO DO AFETO NAS RELAÇÕES

FAMILIARES

As grandes transformações sociais que vêm ocorrendo em todo o mundo,

certamente trazem mudanças visíveis para todas as esferas de vida do ser

humano, aí incluindo o casamento e as famílias. Pretende-se, a partir desta

premissa, rever motivações, paradoxos e possibilidades de compreender as

peculiaridades dos modos de estruturação das relações familiares, ao longo de

sua trajetória.

A história do surgimento da afetividade como vínculo formador das relações

familiares não é algo naturalizado no seio da instituição família. “A união que

associa amor, sexualidade e casamento é uma invenção da era burguesa”,

segundo registro da Drª Maria de Fátima Araújo (2002, pág. 70).

A trajetória percorrida pela família, completamente perpassada por

profundas e significativas mudanças, nos aponta para os atravessamentos

sentidos por esta, face aos apelos sociais, econômicos, religiosos, políticos e

científicos.

Neste trabalho pretendemos iniciar nosso percurso nesta estrada das

motivações para a construção da família, sob a lente dos registros iconográficos

produzidos por Philippe Ariès (1987).

Inicialmente, vemos destacar-se nos escritos deste autor uma configuração

de família bastante diferente daquela que reconhecemos em nossos dias. O

trabalho, principal retratação em imagem encontrado nos calendários da Idade

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14Média, lança olhar privilegiado sobre os espaços coletivos, fazendo da rua o

principal cenário de convivência afetiva. Aqui, não se configurava, ainda, a família

como uma ligação consangüínea entre pessoas. A comunidade social próxima era

que constituía o grupo de ligação de uma pessoa.

É somente a partir do século XVI, com o surgimento da idéia de “criança”,

que veremos produzir-se a necessidade de intimidade em família, bem como a

forte demarcação do espaço privado (marcado na iconografia pelas cenas de

interior da casa). Nas palavras do autor: “O sentimento da família, que emerge

assim nos séculos XVI-XVII, é inseparável do sentimento da infância”. (1987,

pág.210).

A partir do surgimento da família, porém, muitas foram as motivações para

a escolha do cônjuge e para a manutenção (ou não) da mesma, a partir do

contexto histórico em que se situasse. Assim é que Maria de Fátima Araújo cita:

“... o amor vai percorrer uma longa trajetória até chegar à

condição de força irresistível, sempre pronta a desembocar

no casamento...”. (2002, pág.70).

Segundo Maria de Fátima Araújo, a exigência dos afetos como vínculos de

estruturação e manutenção da família é algo bastante recente em nossa história;

datado do século XVIII, a partir da noção de sexualidade como algo de elevada

importância dentro do casamento (iniciando com a eleição do casamento como

lugar privilegiado – via sacralização pela igreja – para a prática sexual).

Até então, os motivos que sustentaram a iniciativa de constituição de uma

nova família, apoiavam-se quase que exclusivamente nas necessidades e anseios

financeiros: era um contrato de negócios, que visava, sobretudo, a aquisição, a

manutenção e/ou o aumento dos bens e propriedades.

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15Aqui, no entanto, já se observa uma exceção nesta concepção, no tocante

às famílias que se originavam entre as camadas mais pobres da população,

sobretudo os camponeses. Desprovidos de fortuna que os tornassem “bons

partidos” em sua época, alguns estudiosos, como Trevelyan, destacam que essas

pessoas, já na Idade Média, experimentaram outras formas de motivação para a

família, que passavam pela divisão das tarefas e também pela escolha afetiva.

Entre as famílias burguesas, empenhadas na ascensão social de seus

membros, o afeto não se faz bem vindo, posto que poderia botar a perder o olhar

prático-financeiro da escolha do cônjuge. Assim, desprivilegiado que era o amor

no processo de eleição do parceiro, fica evidente que, também depois de

formadas as famílias, não se parecia sentir a falta de ligações afetivas entre os

seus membros, a fim de justificar a manutenção da mesma.

Algo, entretanto, parece escapar a este caráter prático. Embora interditado

no casamento burguês, Maria de Fátima Araújo nos relata que “o amor proliferou

nas relações ilícitas”, sugerindo que os afetos já se destacavam como algo

inerente do humano, não obstante todas as forças sociais em contrário. E esse

amor começa então a ser enaltecido pelos poetas, trovado em versos pelos

cantores e assim, vivido e desejado intensamente.

É lento o processo de passagem de clandestinidade para o de esteio dos

afetos para a constituição da família. Como em toda grande mudança, não é

possível precisar o momento exato em que o amor se consolida como necessário

na instituição família. Ainda assim, estudos datam da era Moderna (século XVIII) o

momento em que o amor teria sido eleito como a regra maior de escolha conjugal.

E é, paradoxalmente, neste instante que a família se vê ameaçada em seu

caráter duradouro, já que, conforme cantou o poeta “(que)... eu possa dizer do

amor que tive: que não seja imortal, posto que é chama; mas que seja infinito,

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16enquanto dure”, pareceu-se evidenciar o viés efêmero das relações constituídas

sob bases tão frágeis.

Ainda no século XVIII, denota-se a preocupação social com a fragilidade

dos novos casamentos e, novamente, sopram os ventos da mudança. Malthus,

clérigo inglês, propõe uma releitura do casamento por amor, sugerindo novos

alicerces que viabilizassem a perpetuação das escolhas conjugais feitas sobre os

alicerces da afetividade.

O “novo casamento por amor” deveria também incluir em suas motivações

fundamentais o lugar privilegiado da relação conjugal. Sua concepção é a de unir

a escolha por amor com a chamada escolha racional, onde os cônjuges deveriam

pesar muito bem os prós e os contras daquela determinada união familiar e

verificar se valeriam realmente à pena os eventuais sacrifícios de perda

econômica envolvidos.

Consoante com os novos padrões político-financeiros (ascensão do

capitalismo), Malthus desaprova novas construções familiares sem que houvesse

independência financeira do novo casal, defende uma relação mais igualitária

entre os cônjuges, desprivilegia a geração de filhos para consolidação do vínculo

familiar e, por fim, valora a amizade e o companheirismo como fundamentos de

perpetuação de laços familiares.

Massificados os ideais capitalistas, surgem, pouco a pouco: o avanço da

industrialização, a produção em massa, o crescente aumento da alfabetização, a

maior participação política dos membros da sociedade, a televisão como meio de

comunicação, a ênfase na autonomia, na independência, a valorização da

individualidade. E tudo isso vai refletir diretamente nos modos de relacionamento

familiar.

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17É nesse contexto que a Drª Teresinha Melo da Silveira (2005) pontua:

“As relações de casamento, ainda norteadas pela busca de

satisfação afetivo-sexual, atingidas pela modernização, trazem

sinais de destruição e recriação, pontuados por relacionamentos

convencionais que insistem em se manter iguais na tentativa de

fechar um ciclo que se esgotou e, ao mesmo tempo, ressurge com

estilos novos como manda o padrão mundial de consumo”. (2000,

pág. 3).

Chega-se à Contemporaneidade. Aqui tudo muda muito rápido. A

individualidade se exacerba atendendo aos apelos de consumo, e a tolerância –

pressuposto da afetividade conjugal – se faz escassa e fora de uso. O indivíduo

construído dentro desse novo padrão econômico neoliberal é voltado para si

mesmo, acelerado, imediatista, impulsivo, insatisfeito por essência, solitário na

multidão, e sempre, invariavelmente, de passagem pela vida, em busca da

próxima mudança.

Ainda mais, a mídia parece gostar da tarefa de divulgar as alegrias

passageiras e os dissabores derradeiros do casamento pós-moderno. E de

apregoar que, da união “até que a morte os separe”, agora predominam os

divórcios e todo o tipo de dissoluções para todos os tipos de uniões reconhecidas,

conforme as exigências da contemporaneidade. O curioso é que, a despeito da

breve durabilidade e do cunho dè-modè dos casamentos, estes continuam se

realizando e em larga escala – agora atendendo às exigências deste tempo

presente.

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18Ora, parece estabelecer-se aí um paradoxo: existe no sujeito pós-moderno

um imperativo categórico1 de constantes mudanças e liberdade irrestrita, ao

mesmo tempo em que parece ecoar quase que clandestinamente, sobretudo nos

mais jovens, um pedido de pertencimento e de patriação. Deste modo, a Drª

Teresinha Melo da Silveira, arremata:

“Assim é que, mesmo enfrentando dificuldades, os membros

do casal contemporâneo buscam no parceiro um

companheiro com quem divida não só as atividades

práticas, mas também as angústias, as questões familiares

e as vivências íntimas”. (2000, pág. 5).

Afinal, quem é esse sujeito pós-moderno? E como poderia ele valer-se da

família, em sua busca por afeto? Essas e outras questões fazem parte das

discussões presentes nos próximos capítulos...

1A expressão “imperativo categórico” é de autoria do filósofo alemão Emanuel Kant e se refere a uma força que compele o sujeito à obediência de uma determinada ordem recebida. Para o autor, essa obediência faz parte de um conjunto teórico pertencente ao víeis das teorias éticas deontológicas. Elas defendem que a obediência a princípios morais é um dever não dependente da produção de resultados benéficos, não nascendo da situação. A deontologia é a ética do dever, desenvolvida sobretudo por Kant, para quem a moralidade do agir baseia-se na motivação humana, isto é, na "boa vontade" do agente moral, e não nas conseqüências de seus atos.Para Kant, os homens (enquanto seres racionais imperfeitos) necessitam do conceito de dever como um guia prático para a ação, visto que é necessário subordinar desejos humanos conflituosos à vontade racional, autônoma e cumpridora das leis. Utilizado aqui, neste contexto, estamos nos apropriando da idéia de determinação do homem pós-moderno para a obediência aos valores massificados pela contemporaneidade, no que se refere à urgência de novidades e de trocas continuadas, para atender às demandas de consumo impostas pelo social.

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CAPÍTULO II

ESSE SUJEITO PÓS-MODERNO

“Meu momento é agora, meu caminho é feliz; se há uma

crise lá fora, não fui eu que fiz. Então viver é um lance legal,

tem que ter um certo sabor; muita calma durante loucuras

no final”.2

Pós-modernidade é a denominação dada às profundas mudanças ocorridas

no modo de vida social e particular, a partir de aproximadamente 1950, no que se

refere às ciências, às artes, à economia, e, sobretudo, aos valores.

Tendo sido destituído Deus, e com ele a concepção religiosa da

governabilidade e sustentabilidade do mundo, o homem da modernidade apostou

todas as suas fichas no racionalismo e na ciência. As sociedades industriais

marcaram as divisões de classes e, passo a passo, apoiadas pelo método

democrático, viabilizaram a liberdade de expressão e participação popular nas

decisões sociais. Nascia o homem moderno, repleto de esperanças e de ideais

igualitários. Confiante no progresso que prometia a solução de todos os males, o

homem da modernidade apresentou-se engajado politicamente, questionador,

revolucionário e patriota.

Tudo parecia seguir a contento, até o momento em que a razão

demonstrou também não mais dar conta de responder às demandas de seu

tempo. Já não era mais possível conjugar anseios como liberdade, justiça,

verdade e felicidade com as altas expectativas de lucro e poder. Entra em crise a

modernidade e, com ela, seu conjunto de valores.

2 Trecho da música “Lance legal” de Guilherme Arantes.

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20Assim, a pós-modernidade entra em cena num cenário de desconstrução

das utopias e desuso dos ideais modernos. O sujeito pós-moderno torna-se um

incrédulo de seu futuro. Sem a crença no seu vir-a-ser, o homem da pós-

modernidade abre mão da construção de seus próprios projetos e aceita fácil a

proposta de imediatismo. Jair Ferreira dos Santos (1987) afirma que o pós-

modernismo contém em si mesmo uma permanente idéia de esvaziamento:

“O pós-modernismo desenche, desfaz princípios, regras,

valores, práticas, realidades. A des-referencialização do real

e a des-substancialização do sujeito, motivadas pela

saturação do cotidiano pelos signos, foram os primeiros

exemplos. Muitos outros virão". (1987, pág.4).

Quanto aos signos, Jair Ferreira dos Santos propõe que a realidade já não

mais é dada em si mesma; antes, ela é construída em simulacros que a façam

parecer mais desejável e, portanto, mais consumível. E exemplifica: o danone

(iogurte) da fotografia de revista (simulacro) parece ser sempre mais desejável do

que o danone real que compramos no supermercado. Essa mesma concepção de

simulacro nos atinge, em cheio, em nossas expectativas de amor, sexo,

relacionamentos. A pós-modernidade vende, em larga escala, fantasias que se

fazem desejáveis, sem que estejam disponíveis no formato apresentado, para

consumo.

Ainda segundo o autor, ocorre a massificação e a supervalorização da

informação. Crianças, jovens e adultos, sempre ávidos por mais novidades,

marcham desenfreados em busca de novos conhecimentos, num tempo em que

se defende a idéia de que “informação é tudo”. Entretanto, as informações

midiáticas são sempre fragmentadas e descontextualizadas, nunca formando um

todo coerente. Também aparecem sempre já comentadas e devidamente

pensadas, para a deglutição do sujeito pós-moderno, a fim de que este economize

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21seu tempo sem precisar raciocinar. Como resultado, vislumbramos cidadãos

passivos, desmobilizados, despolitizados e inseguros, mas com um imenso

volume de informações, que parecem não lhe servir para nada.

No emaranhado de informações fornecidas onde figuram as constantes

trocas de tendências e a simultânea coexistência de valores, passa-se ao sujeito a

noção de mundo sem limites e de liberdade total.

A vida tornou-se muito acelerada, sempre de passagem para novas

mudanças. Mídia e consumo andam de mãos dadas, favorecendo o narcisismo

exacerbado do sujeito pós-moderno – homem isolado – instigando-o ao consumo

personalizado e desenfreado de beleza, status, erotismo, relacionamentos, afetos.

O sujeito pós-moderno (já não mais indivíduo), é fragmentado,

consumista, hedonista e imediatista. Indiferente à política, está cada vez mais

ausente do mundo social e até de si mesmo. A este fenômeno, o autor chama de

“dessubstancialização do sujeito”, uma forma de designar não somente sua falta

de identidade como também o seu total desconhecimento a esse respeito. Sendo

tudo o que é consumível na pós-modernidade algo descartável, as identidades

plurais também o são.

Seguindo nesta mesma concepção Dr. João Carlos Petrini (2005) aponta

que se vive um tempo onde o homem é separado das suas origens e

desvinculado de seu futuro. Segundo ele:

“... homens e mulheres sem raízes e sem metas, a não ser a

fruição dos bens que a modernidade oferece, numa nova

edição do carpe diem”.(2005, pág. 24).

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22Cheio de descrença e sem ter onde se firmar, o sujeito da pós-modernidade

passa a concentrar suas possibilidades de vida sempre no presente: não há

certeza de qualquer amanhã. Juntamente com as incertezas, prolifera também a

banalização de todas as coisas. Citando Malraux, Petrini destaca que:

“Não há ideal ao qual possamos sacrificar-nos, porque de

todos nós conhecemos as mentiras, nós que não sabemos o

que é a verdade”.(2005, págs. 28-29).

O trecho musical citado logo no início deste capítulo destaca o total

descomprometimento do sujeito pós-moderno com a já superada consciência de

coletividade, e exprime o modo de viver das gerações contemporâneas: alheias

aos problemas e às circunstâncias do mundo exterior. Também o cantor e

compositor Cazuza, considerado um dos grandes poetas brasileiros, já gritara ao

mundo que seus heróis morreram de overdose...

Apoiadas nas tendências mercadológicas, as chamadas ciências humanas

e sociais parecem ter também confluído para essa noção de micrologias, da

defesa das minorias (emancipação da mulher, direito das crianças e dos idosos,

reconhecimento das relações homossexuais, etc), que culminam na micrologia

individual. A noção de “cada um por si” alcança em cheio concepções filosóficas e

psicológicas em nosso tempo, incentivando cada pessoa a se tornar cada vez

mais senhor de sua própria vida, vivendo exclusivamente em favor de seus

interesses, de modo a satisfazer a si próprio.

Desconexo de seus semelhantes e alheio ao coletivo, o sujeito pós-

moderno é uma ilha cercada de nada por todos os lados.

O mundo atual é o lugar de todos os estilos imagináveis. A moda, a música,

as comidas, a religiosidade, e até o sexo se tornaram ecléticos. Em nome da

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23pluralidade e da suposta ausência de preconceitos, minorias vêm sendo

enaltecidas numa tentativa de arrebanhá-las ao consumo. E, como nas ensinadas

estratégias de vendas, tudo precisa ser comunicado sempre em alta velocidade, a

fim de não dar tempo “para o cliente pensar”.

Desde modo, vemos ser usurpado do sujeito pós-moderno seu potencial

crítico, questionador, de ao se defrontar com o novo, sofrer seu impacto e

examinar, experimentar e criar sua maneira de ser, frente a este novo. Porque

para isso, ele precisaria de tempo e isto é, sem dúvida, algo que não cabe nos

novos parâmetros sociais.

Mas, afinal, se “o homem se faz no mundo e ao mesmo tempo faz o

mundo”, quem é o humano hoje? Temos ouvido a todo o tempo as queixas de

nossas inseguranças! As depressões e os transtornos de pânico – proliferações

pós-modernas – não nos deixam esquecer de nossos desamparos e incertezas.

Temos presenciado (e, muitas vezes, vivido) as falas que acusam o vazio

no qual estamos submersos. Apatia, ausência de vontade até de reclamar,

afastamento e desconhecimento de si mesmo: não há sequer validação das

próprias queixas. Nas palavras de João Carlos Petrini:

“... perdemos o fio de nossas vidas, de nossa identidade e

nos misturamos, nos amalgamamos ao geral, ao nada, ao

sem sentido, ao sem significado (...). Ao abrirmos mão de

nossa identidade, do ser diferente, do ser único, do escolher

meu vir-a-ser, perco contato com a minha motivação

intrínseca”. (2005, pág. 26).

O homem da pós-modernidade parece ser alguém que exagerou na dose

de seu antídoto contra a boa fé moderna e pereceu por intoxicação. Do alto de

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24nosso narcisismo, agonizamos por afeição, reconhecimento, pertencimento e

amor – coisas esquecidas com o ruir da modernidade – e vivemos sem tempo e

sem espaço para a construção e manifestação dos nossos afetos pessoais, dos

nossos sentimentos e das nossas próprias significações.

Esse buraco, essa fresta que se instaura no sujeito da pós-modernidade e

que o inquieta, e que vem se constituindo em círculo vicioso, levando-o a mais e

mais consumo, parece ser o ponto de interrogação que pulsa dentro dele. É como

se, durante o dia todo, o sujeito fosse engodado pela sedução da mídia, dos

relacionamentos descartáveis, da ostentação de si mesmo e do total

descomprometimento; mas, chegando a noite, e vendo-se sozinho em seu lugar,

restasse aquela sensação de solidão, de abandono, de ausência do olhar de um

outro que o referencie e de uma profunda falta de laços.

Cumpre observar que o sujeito pós-moderno, com efeito, não vive: ele atua.

A maior parte do tempo, ele se veste, se pinta, fala, “interage” e representa de

acordo com as designações introjetadas. Funde-se à personagem que finge ser e

adere-se a ela na tentativa de ter um qualquer referencial onde se dizer.

Como sugere a Ms. Irma de Assis torna-se fundamental que possamos nos

libertar do consumo da prescrição de papéis, imposta pela contemporaneidade

que descrevem nossos lugares de ser como mulher, homem, criança, idoso,

heterossexual, homossexual, adolescente, trabalhador, etc, para nos dedicarmos

à construção de nossas “sendas autônomas, que se atraem, se encontram, mas

que não se percam em generalidades”.

Citando textualmente a Ms. Irma de Assis (2005):

“Todas as manifestações do humano têm uma significação

metafísica quando transcende ao comum, ao geral e se

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25focalizam no questionar, no procurar do ser pelo próprio ser,

com o propósito de se realizar, enquanto uma consciência,

enquanto ser que se identifica”. (2006, pág. 1-1).

Enquanto, porém, não se assume como sujeito desejante, o homem

contemporâneo segue seu caminho em busca de afeto tentando obtê-lo nos

moldes das relações de consumo: ele pensa ser possível compra-lo também, e

procura por amor nas prateleiras dos shoppings centers.

Um grande mercado cresce tentando aproveitar esse novo “nicho”: são

revistas especializadas, centrais telefônicas, chats via internet onde se torna

possível não apenas comprar o tipo de amor desejado como também criar o tipo

de amante que se deseja ser.

Assim, sem saber bem quem ele próprio é e nem mesmo quais são seus

anseios, o sujeito pós-moderno vai às compras de um encontro amoroso, logrando

alcançar êxito (embora não saiba ao certo o que isso significa). Instaura-se a

tentativa do consumo de amor, a qualquer preço.

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CAPÍTULO III

DO AMOR AO CONSUMISMO OU O CONSUMO DE AMOR

“Uma história de amor não acaba assim; se não foi bom pra

você, foi tão bom pra mim...”.3

Desde os seus primórdios, o homem vem buscando um significado

para sua vida, para a existência do universo e a compreensão de suas relações

consigo mesmo e com o próximo. Na Antiguidade, a compreensão do mundo era

como de algo harmonioso e divino – de tal modo que o homem procurava valer-se

da natureza, respeitando e aceitando seus limites.

A partir da filosofia do racionalismo, o homem torna-se mais ativo sobre a

natureza, forçando a expansão de seus limites e assumindo o lugar de

transformador do mundo físico. Culminando com a Revolução Industrial e

sentindo-se poderoso para controlar a natureza, o homem foi, pouco a pouco,

alimentando a ilusão de ser o “senhor do universo” e incorporando também a idéia

de estar fora deste universo que comanda.

Como produto deste fenômeno, pode-se perceber que o homem tem

adquirido uma imagem distorcida de si mesmo, em sua subjetividade, bem como

também distorcida do outro com o qual se relaciona, neste caso a natureza.

Ora, tomando-se esta concepção de outro coisificado, não é de se

estranhar que tenhamos chegado a ponto de nos relacionarmos com outros

homens como se também fossem algo a ser manipulado e controlado por nossos

desejos.

3 Trecho da música “História de amor”, de Débora Blando.

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27Na sociedade pós-moderna, profundamente marcada pelo capitalismo

desenfreado, o consumismo de coisas cada vez mais descartáveis vem sendo

colocado como forma absoluta de valor de vida, propiciando relacionamentos em

que a afetividade tem sido substituída por mera manipulação ou, quando muito,

por troca de objetos.

A cultura do consumismo, que pretende transformar a pessoa em simples

instrumento controlado pela mídia em sua maneira de pensar, sentir e agir

provoca nos sujeitos a sensação de vazio interior, sintoma de uma forma social de

viver sem sentido. Entretanto, ao dar-se conta desse vazio, o sujeito – incapaz de

trabalhar seus problemas e crises íntimas - procura solução no mundo das

exterioridades, buscando mais consumo. Reconhece que precisa e até que

necessita de afeto, mas afinal, onde é possível compra-lo?

Inúmeros programas de TV, rádio e sites de internet vêm arrebanhando

muitos em busca de sua “alma gêmea”, sua “metade da laranja”. Todos eles

empenhados em apresentar, em sua prateleira, vários estilos de amor disponíveis

para consumo imediato. Pode-se escolher o sexo e a aparência entre loiros,

morenos, ruivos ou negros, com a idade e o estado civil desejado; também é

possível delimitar as medidas de altura e peso, gostos e preferências além, é

claro, das expectativas de freqüência e intensidade do relacionamento (ficar,

namorar, “amizade sincera com possibilidade de compromisso”, etc).

O curioso é que a mídia oferece freneticamente um volume absurdo de

estórias de amor “verdadeiras”, descomunais, dessas que fazem as pessoas

suspirarem de inveja e ansiarem por viver algo igual. Nas telas da TV e do cinema,

assistimos incansáveis aos romances tórridos de produção pós-moderna: desses

que começam hoje e parecem que existiram desde sempre, infundindo-nos a

sensação de momentânea completude.

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28Quem nunca quis viver o romance exibido em “Uma linda mulher” ou

“Como perder um homem em dez dias” ou mesmo não saiu com uma estranha

sensação de “por que a minha história de amor não parece tão forte?” ao assistir

“Titanic”? – São os simulacros de amor que fazem com que as histórias das vidas

reais pareçam ser sempre menos sedutoras e, por conseguinte, menos desejáveis

do que aquelas das telinhas. Essa insatisfação acaba se revelando nos finais de

relacionamentos afetivos, nas altas taxas de divórcio.

Porque o homem da pós-modernidade anda sempre apressado, e assim

não há tempo para se plantar o jardim dos afetos, visto que este é um trabalho

artesanal: não combina com os atuais padrões de produção em larga escala.

Deste modo, cada vez mais os relacionamentos se arrumam sob as bases muito

frágeis da pressa, dos interesses próprios, da cultura do descartável, da

intolerância.

As crianças aprendem desde cedo a tolerar muito pouco e exigir cada vez

mais. Mede-se o amor dos jovens pais, a partir do quanto de conforto (traduzido

em bens materiais) eles são capazes de proporcionar a seus filhos. Também a

ideologia da transitoriedade de todas as coisas, inclusive dos afetos, são

amplamente absorvidas pelas mesmas crianças, através dos desenhos e

programas infantis. Quem nunca cantou que “... o anel que tu me deste era vidro e

se quebrou; o amor que tu me tinhas era pouco e se acabou”?

A exigência de satisfação pessoal no presente coloca em questão o ideal

do sacrifício individual para o bem estar do casal e/ou da família. Os limites

individuais de disponibilidade para construir uma relação prazerosa para si e para

o outro ficam cada vez mais baixos, atingindo-se rapidamente o ponto de

saturação nos relacionamentos interpessoais (no que a família vem sendo

diariamente atravessada).

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29A Drª Rachel Naomi Remem (1998), em sua crônica “Além da perfeição”

nos adverte que a perfeição é apenas uma idéia e que a sua busca pode ser até

mesmo perigosa para a saúde. Segundo a autora, essa compulsão pela perfeição

pode começar desde muito cedo em crianças que aprendem que são amadas pelo

que fazem e não simplesmente por quem são. Nas palavras de Rachel:

“Poucos perfeccionistas são capazes de dizer a diferença

entre amor e aprovação. O perfeccionismo é tão

disseminado em nossa cultura que tivemos, de fato, de

inventar uma outra palavra para amor: “Amor incondicional”,

dizemos. No entanto, todo amor é incondicional. O resto não

passa de aprovação”.(1998, pág. 59).

Ora, ao introduzirmos a idéia de “amor incondicional”, estamos admitindo

que existam então os “amores condicionados”. E condicionados a quê? – Talvez o

leitor se faça essa pergunta. Provavelmente condicionados aos interesses de

quem pretensamente oferece seu amor. É precisamente assim que podemos falar

em consumo de amor: quando se estabelece padrões e critérios para serem

atingidos por um outro (coisificado) que necessita alcançar tais ou quais

exigências para só então (e enquanto suportar cumprir tais exigências) ser

merecedor do suposto amor. Já não entram em cena a cumplicidade, a intimidade

construída, a aceitação das diferenças, o compartilhar; o que figura aí é um “amor

egoísta”, autocentrado, que procura os seus próprios interesses.

Um exemplo que se ajusta a essa concepção pode ser encontrado no

trecho da canção de Débora Blando, citado no início deste capítulo. A sinalização

de que uma história de amor pode não valer à pena para um dos envolvidos e,

paradoxalmente, ser tão boa para o outro nos dá a dimensão exata dos percalços

do amor na contemporaneidade.

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30Não obstante, porém, a todos os “desencontros afetivos” vivenciados pelo

sujeito da pós-modernidade, ele segue em seu desejo de amor e, assim,

contrariando todas as expectativas pessimistas com relação à família, continua

investindo na eleição de um parceiro.

Um casal pode constituir-se por diversos caminhos. Na atualidade, as

escolhas em geral se baseiam na investidura de um parceiro a quem se une para

construir algo novo e “compartilhar amor e sexo, dividir economias e

conhecimentos, aliviar dores e sofrimentos, confirmar valores, realizar juntos os

sonhos e expectativas comuns a todos os casais”, de acordo com a Drª Teresinha

Mello da Silveira (2000, pág. 11).

Entretanto, quem se escolhe, como se escolhe e em que momento se

escolhe são critérios decisivos para o “sucesso” ou não das constituições

familiares (sucesso aqui entendido como expressão de bem-estar dos membros

da família) e a delineação dos modos de ser dos diversos arranjos familiares

possíveis.

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CAPÍTULO IV

E A FAMÍLIA, COMO VAI?

“Eu ando pelo mundo, e meus amigos, cadê? Minha alegria,

meu cansaço? Meu amor, cadê você? Eu acordei, não tem

ninguém ao lado...”4

Muitas são as expectativas e as indagações acerca dos novos rumos

trilhados pelas famílias contemporâneas. Todas as aceleradas alterações

ocorridas no plano sócio-político, exigidas pelas leis do mercado financeiro e que

influenciam na delineação da subjetividade humana, estão fortemente atuantes na

família, quer sejam elas percebidas ou não.

Refletir sobre o impacto de tais mudanças e pensar sobre a canalização

que vem sendo dada aos afetos formadores de vínculos mais duradouros é, sem

dúvida, um grande desafio a todos os profissionais interessados pela saúde e pelo

bem-estar humano.

4.1 – Mudanças Familiares:

As profundas mudanças histórico-sociais pelas quais o homem vem sendo

atravessado e que constituem as raízes da chamada pós-modernidade não se

encerram na individualidade, por certo; elas alcançam também a família, principal

veículo de transmissão da cultura.

Composta diversamente por sujeitos pós-modernos, a família vem se

caracterizando por uma pluralidade de formas que apontam para a perda de

credibilidade dos valores e modelos da tradição, bem como para a incerteza a 4 Trecho da música “Esquadros”, de Adriana Calcanhoto.

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32respeito das novas propostas que ora se apresentam como alternativas. São

tempos que desafiam-na a “conviver com certa fluidez e abrem um leque de

possibilidades que valorizam a criatividade numa dinâmica do tipo tentativa de

acerto e erro”. (2005, pág.30).

Na visão do Dr. Petrini (2005), a subjetividade que fundamentou a

importância da família sob as bases do afeto são co-responsáveis pela redução da

importância da instituição familiar. Ele afirma textualmente:

“Os aspectos ‘objetivos’ da convivência familiar cedem o

passo a aspectos ‘subjetivos’, por definição mais instáveis e

flutuantes, decorrentes do dinamismo que as relações

familiares assumem no mundo moderno. Verifica-se uma

desinstitucionalização da família, no sentido de considera-la

como uma realidade privada, relevante apenas para o

percurso existencial dos próprios membros. Prevalece a

legitimação da família como grupo social expressivo de

afetos, emoções e sentimentos, diminuindo o seu significado

público. Reduz-se, assim, a importância da família como

instituição, assentada na dimensão jurídica dos vínculos

familiares”.(2005, pág.31).

Ainda segundo este autor (Petrini), seriam conseqüências dos tais

“aspectos subjetivos” o aumento das separações e dos divórcios, o casamento

“tardio” dos jovens (em comparação a duas décadas atrás), a diminuição

significativa dos números de casamentos, o aumento do número de famílias

reconstituídas, das uniões de fato e das famílias monoparentais.

Acredita-se, entretanto, que são muitas as exigências contemporâneas que

entram em jogo para redefinir as mudanças nas relações familiares, na atualidade.

Page 33: UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO … LUCIA DA ROCHA MORAES.pdf · Sobretudo a Deus, por sua presença constante e capacitadora. Aos autores do manual de produção de

33A família pós-moderna vê-se constantemente desafiada a incorporar novos

conceitos e variações, numa velocidade vertiginosa, onde é intimada ao

alargamento dos limites propostos, da sua capacidade de flexibilidade e das

aspirações de consumo.

Ora, habitando um cenário onde impera o caráter provisório e transitivo de

todas as coisas, também a família se vislumbra na necessidade de reconquistar, a

cada dia, motivos para conviver, a despeito das diferenças entre seus membros e,

sobretudo, dos obstáculos à superação de tais diferenças.

Sobre esse aspecto das mudanças, e destacando capacidade de um par

em se (re)construir a cada instante do modo como puder escolher, a Drª Teresinha

(2000) afirma:

“O casamento não é um ato em si. Ele inclui um vínculo

afetivo-emocional que sofre mudanças no tempo e no

espaço, as quais por sua vez levam a outras mudanças, que

vão dando contorno à fronteira conjugal. Esse processo, que

envolve os membros do par enquanto estiverem juntos,

pode tomar um curso saudável e construtivo ou patológico e

destrutivo”. (2000, pág.19).

4.2 – O custo do afeto:

Segundo Donati (1998), a família se caracteriza por seu modo específico de

viver a diferença de gêneros que, em seu âmbito, implica a sexualidade, bem

como as relações entre as gerações e o parentesco. Sobre a família, o autor

afirma:

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34“... duas diversidades bio-psíquicas se encontram,

interagem, se compensam e entram em conflitos, se ajudam

e disputam entre si, trocam muitas coisas, se redefinem uma

em relação à outra, repartindo tarefas, negociando espaços

de liberdade e de recíproca prestação de contas”. (1998,

pág.123).

É interessante notar que o autor não minimiza os problemas e as

intercorrências da caminhada familiar; bem ao contrário, demonstra reconhecê-los

como legítimos a uma tão ousada proposta que é a de conviver. Assim, ele

aponta conflitos, mas ressalta as compensações; visualiza disputas, sem deixar de

ver a ajuda; e destaca o espaço de negociação necessário ao crescimento e à

manutenção da família.

E se na sociedade contemporânea tudo deve ser negociado, a vida em

família também é submetida a uma crescente negociação. Na proporção em que

prevalecem critérios próprios do mercado (como o cálculo das conveniências

pessoais), reduzem-se as experiências do acolhimento incondicional e da afeição

gratuita, no dia-a-dia.

Neste contexto, Petrini (2005) indica que impera nas relações amorosas, na

sociedade contemporânea, as leis de mercado, que usam a linguagem da

economia, do investimento financeiro, para referir-se aos “jogos de intimidade”.

Segundo ele, uma relação parece abandonar rapidamente seu caráter romântico,

passando a medir em termos de vantagens aquilo que cada um possa extrair do

relacionamento. Assim ele diz que a estabilidade da família será justificada até

quando cada parte considerar suficientes os benefícios dela obtidos. Ele ainda

afirma:

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35“Na pós-modernidade convivem as posições mais

extremadas, na busca daquela satisfação imediata, que

aposta tudo no ‘aqui e agora’, livres de referências ao

passado, rigorosamente rejeitado e sem projeto claro de

futuro. Os indivíduos parecem dispor de uma liberdade total,

sem limites. Prosperam nestas circunstâncias as modas,

com seu poder de sedução, que procuram orientar para um

significado econômico mais definido os impulsos da

liberdade individual, segundo os interesses de mercado”.

(2005, pág. 34).

Sob a ótica da economia dos afetos, parece realmente um alto custo o

investimento feito na criação e na manutenção dos vínculos de pertença, nos

laços de companheirismo e cumplicidade, na construção da intimidade

compartilhada e no nascimento e maturidade de uma identidade coletiva familiar –

suficientemente forte para poder ser maleável, sem anular as diferenças

individuais, e sem tampouco superestimá-las. Porque todas estas coisas implicam

numa responsabilidade compartilhada, que se desdobra no tempo – o qual parece

cada vez mais escasso e, por conseqüência, mais caro.

A conseqüência mais direta e mais imediata disto costuma ser as

dissoluções das famílias. Afinal, desistir é sempre menos custoso do que tentar

mais uma vez sob novas bases, buscando a solução dos conflitos e o crescimento

na crise. Segundo a Drª Teresinha Mello, quando o casal opta por se separar,

dentro desta economia de afetos, “... além de sofrer com a ruptura, cada um

carrega para outras relações mais uma situação inacabada, que tende a se

repetir” (2000, pág. 24).

No trecho destacado da canção de Adriana Calcanhoto, “Esquadros”, a

cantora se questiona onde andariam seus afetos, nestes tempos de apatia

Page 36: UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO … LUCIA DA ROCHA MORAES.pdf · Sobretudo a Deus, por sua presença constante e capacitadora. Aos autores do manual de produção de

36generalizada, começando a indagar-se sobre os amigos, a alegria, o cansaço e,

finalmente, o seu amor; depara-se com a cena de acordar e não o ter mais ao lado

e desconhecer o seu paradeiro. São amores que vão e vêm, passageiros, sem

deixar rastro nem história.

Uma relação familiar satisfatória, desafio às famílias na pós-modernidade,

exige dos membros abertura, comunicação clara, flexibilidade, dedicação,

aceitação de riscos, elaboração dos lutos, capacidade de perdoar, de afetar e de

ser afetado, maturidade, enfim. Até porque os afetos, pertinentes ao universo das

relações familiares maduras, não incluem apenas o amor, o perdão, a bondade, a

tolerância, e outros que poderíamos apreciar. Neles se incluem também a raiva, o

medo, a inveja, a competição, os ciúmes, e tantos outros difíceis de serem

compartilhados.

A família que se depara com estes afetos, que ora denominaremos

“desagradáveis” e, por economia de mercado, os rechaça ou ainda os ignora,

provavelmente estará fadada a um final prematuro e destrutivo – não apenas da

relação familiar, como também das individualidades de seus integrantes. Se, ao

invés disto, porém, consegue enxergar através destes afetos, permitindo as

queixas endereçadas, que viabilizam o não acúmulo de mágoas, e busca

“equilibrá-los” através do fortalecimento dos laços criados através da admiração,

da cooperação e do companheirismo, provavelmente encontrará um bom nível de

tensão capaz de possibilitar o crescimento de cada um e o fortalecimento da

relação do casal e dos demais membros.

Verifica-se, então, que o custo do afeto é o custo de doar-se; de entregar-se

sem cobrar a contrapartida. O custo do afeto é também o de importar-se

sinceramente e de comprometer-se com o outro: com seus sucessos e fracassos,

com seus acertos e erros, com seus medos e coragem, com toda a ambivalência

que cada um de nós possui. O custo do afeto é, sobretudo, o de fazer-se diferente;

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37de assumir para si valores em dissonância com aqueles apregoados neste tempo

presente, e assim nadar contra a correnteza e, a despeito de todas as forças em

contrário, escolher permanecer, fazendo valer à pena.

O que se propõe não é a permanência a despeito do bem-estar individual.

Antes, acredita-se que a família pode ser um veículo propiciador de realização de

seus membros. A convivência em família põe em foco as questões deflagradas

pelo conflito comum entre os apelos do individualismo emocional e a vivência do

“entre” – de um espaço relacional. O que se pretende é que os relacionamentos

em família possam ser enriquecedores de cada membro individualmente.

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38

CONCLUSÃO

Não existe no momento um único modelo familiar que pareça dar conta das

imbricadas questões de necessidade de afeto, características deste momento

histórico. Tampouco existe um modelo que se apresente como infalível ou

plenamente satisfatório para a realização dos membros da família. Existe sim a

convivência, lado a lado, de relações alternativas ao casamento chamado

tradicional; as normas de funcionamento familiar têm uma dependência em

relação à cultura em que está inserida uma determinada família.

Cumpre observar que as mudanças em andamento não são

necessariamente positivas ou benéficas sob o ponto de vista da realização afetiva

dos membros de uma família. O cotidiano oferece um cenário favorável para o

término das relações familiares. O conjunto de mudanças intermitentes nas

esferas sociais, econômicas e políticas produz um modelo de família que vem

apresentando os sinais da fragmentação típica da pós-modernidade.

Os constantes apelos ao consumo desenfreado tem produzido uma

exigência de novos e variados formatos de amor e de família prontos para o

consumo dos mais diferentes gostos. O individualismo exacerbado dissemina, em

larga escala a idéia de que apenas o que importa é a satisfação pessoal, a

despeito do que pensam e sentem os outros com os quais se relaciona.

É preciso pensar em ajustamentos criativos. Hoje, sabe-se que qualquer

relacionamento pode ser facilitar de saúde ou de doença. É o modo como se lida

com as diferenças, com as alianças construídas, com as experiências passadas e

com as propostas de objetivos vindouros, na relação, que constituirá o tipo de

“prognóstico” da relação.

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39A terapia de família pode ajudar as famílias a construírem modos mais

satisfatórios de aprender com os conflitos e as crises, resgatando e

desenvolvendo a criatividade para resolver e superar as dores e as diferenças, e

assim crescerem e se desenvolverem como pessoas e como grupo familiar. Na

terapia abre-se espaço para o enfrentamento das falas até então silenciadas, para

a revelação de dores e angústias desconhecidas (ou mal conhecidas) pelo outro e

até por si mesmo, para clarificação das demandas familiares e sobretudo, para o

encontro entre os membros da família.

É importante que o terapeuta funcione como suporte para a família que se

apresenta em sofrimento, ajudando a identificar os pontos de conflito que são

geradores do momento de crise. É igualmente importante que o profissional

encontre e compartilhe os pontos de competência da família, ajudando-os a

construírem seus próprios suportes, com base no próprio grupo.

Merece atenção proeminente o fator tempo de convivência familiar. Mostra-

se fundamental à realização da família, o conhecimento entre seus membros e a

convivência que permite a criação de vínculos de intimidade. Sentir-se vinculado,

reconhecido, acolhido, amado e respeitado deixa marcas de valoração e prazer,

que resultam no fortalecimento dos laços e na construção de caminhos possíveis

de ser trilhados em conjunto.

Por fim, torna-se necessário considerar e resgatar uma ética nos

relacionamentos afetivo-familiares. Ética essa, capaz de problematizar e discutir

as motivações existentes nas atuais práticas e construções dos chamados novos

arranjos familiares. Afinal, considerando o binômio individualidade x parentalidade,

podemos apropriar-nos da consideração da Drª Teresinha (2000) e afirmar que

esta “... é uma problemática de fronteira entre os limites do eu e do nós”.

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