lucia sano

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS CLÁSSICAS  Das Nar rativas Ver dadeira s, de Luciano de Samósata: Tradução, Notas e Estudo LUCIA SANO Dissertação apresentada ao Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo  para obtenção do título de mestre. Orientadora: Prof. Dra. Adriane da Silva Duarte São Paulo, julho de 2008

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS CLSSICAS

    Das Narrativas Verdadeiras, de Luciano de Samsata:

    Traduo, Notas e Estudo

    LUCIA SANO

    Dissertao apresentada ao Departamento de Letras Clssicas

    e Vernculas, Programa de Ps-Graduao em Letras

    Clssicas, da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias

    Humanas da Universidade de So Paulo para obteno do

    ttulo de mestre.

    Orientadora: Prof. Dra. Adriane da Silva Duarte

    So Paulo, julho de 2008

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    Aos meus pais

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    RESUMO

    O objetivo deste estudo analisar o romance grego , Das

    Narrativas Verdadeiras, de Luciano de Samsata (125-180 d.C.), considerando os objetivos

    expostos pelo autor no promio do texto e sua composio por meio da aluso a outros gneros

    literrios. Apresenta-se tambm uma traduo do texto em portugus.

    Palavras-Chave: Luciano de Samsata; fico; romance antigo; pardia; narrativa de viagem.

    ABSTRACT

    The aim of this study is to analyze the greek novel , True

    Histories, by Lucian of Samosata (circa 125-180 AD), regarding the aims exposed by the author

    in the prologue of the text, as well as its composition made by alluding to other literary genres. A

    Portuguese translation of the novel is also provided.

    Key-Words: Lucian of Samosata; fiction; ancient novel; parody; travel narrative.

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    AGRADECIMENTOS

    Fapesp, pelo auxlio concedido;

    Professora Dra. Adriane da Silva Duarte, minha orientadora desde que esta dissertao

    comeou a despontar, ainda na graduao, quando eu mal conseguia reconhecer verbos e nomes

    em grego, pelas importantes sugestes e tambm pelo incentivo e compreenso, sobretudo;

    Professora Dra. Maria Celeste Consolin Dezotti, que esteve na banca de qualificao e fez

    observaes cuidadosas sobre o texto; ao Professor Dr. Christian Werner, pelo mesmo motivo e

    pela valiosa amizade;

    Professora Dra. Elaine Sartorelli, Professora Dra. Maria del Carmen Cabrero, ao Professor

    Dr. Jacyntho L. Brando, ao Professor Dr. Joo Angelo Oliva Neto, ao Professor Casper de

    Jonge, ao Professor John Marincola, a rica M. Angliker, a Alexandra Moraes e a Andr L.

    Lopes, por sua solicitude;

    Por fim, minha irm Nara e aos amigos Alexandre Agnolon, Alisson A. Arajo, Camila Zanon,

    Lana Lim, Milena Faria, Renata Ribeiro, Roberto Luis Souto, Valria Pereira e especialmente a

    Erika Werner, Flvia Vasconcellos Amaral e Izabella Lombardi. Por tudo - coisa demais para se

    dizer.

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    ndice

    - Traduo:

    Das Narrativas Verdadeiras: Primeiro Livro.............................................. p. 6

    Das Narrativas Verdadeiras: Segundo Livro.............................................. p. 22

    - Introduo.................................................................................................. p. 39

    - Estudo:Primeira Parte: O Promio........................................................................ p. 48

    1. Da oportuna utilidade deDas Narrativas Verdadeiras

    para o seu leitor............................................................................................. p. 53

    2. Das caractersticas deDas Narrativas Verdadeiras....................................... p. 63

    3. Ctsias de Cnido e Imbulo: modelos literrios condenveis......................... p. 66

    4. Transformando a Bwmoloxi/a................................................................... p. 73

    Segunda Parte: A Narrativa...................................................................... p. 85

    1. Viagem................................................................................................... p. 89

    1.1 Etnografia................................................................................................ p. 100

    1.2 Uma Viagem Lua................................................................................... p. 107

    2. Odisseu, modelo herico....................................................................... p. 113

    3. Guerra.................................................................................................... p. 121

    3.1. A formao dos exrcitos......................................................................... p. 127

    3.2. A descrio da batalha.............................................................................. p. 132

    3.3. O tratamento dos vencidos........................................................................ p. 139

    4. O Mundo dos Mortos.......................................................................... p. 141

    4.1 As ilhas................................................................................................... p. 143

    4.2 A bem-aventurana.................................................................................. p. 147

    4.3 Os habitantes........................................................................................... p. 154

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    - Concluso................................................................................................... p. 163

    - Referncia Bibliogrfica............................................................................ p. 165

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    Das Narrativas Verdadeiras

    PRIMEIRO LIVRO

    [1] Assim como para os atletas e para os que se ocupam do cuidado de seus corpos

    no h preocupao com a boa forma e com exerccios apenas, mas tambm com a justa medidado seu relaxamento supondo-o, de certo, parte principal de sua prtica , da mesma forma, para

    os que se dedicam s palavras, eu acredito que aps prolongada leitura dos mais srios, convm

    relaxar o intelecto e deix-lo mais arguto para o esforo futuro.

    [2] O repouso pode-lhes ser apropriado, caso tenham o hbito das leituras que

    oferecem no apenas o mero prazer de seu bom gosto e de sua graa, mas tambm apresentam

    uma viso refinada - algo que, suponho, tambm se pensar acerca destes escritos. Pois no

    apenas lhes ser atraente o inslito da proposta ou a graa do projeto, nem que declaro mentiras

    variadas de maneira convincente e verossmil, mas que tambm cada uma das coisas relatadas

    alude no sem comicidade a alguns dos antigos poetas, historiadores e filsofos que muitas coisas

    prodigiosas e fabulosas escreveram, cujos nomes eu mencionaria, se no estivessem para

    aparecer para ti mesmo durante a leitura.

    [3] Ctsias de Cnido, o filho de Ctesioco, escreveu acerca do pas dos indianos e do

    que existe l, coisas que ele prprio no viu nem ouviu de algum que dizia a verdade 1. Tambm

    Imbulo escreveu muitos relatos extraordinrios acerca do que h no grande mar, inventando a

    mentira conhecida de todos, ao desenvolver, contudo, uma proposta no desagradvel2. Tambmmuitos outros, escolhendo como tema coisas desse tipo, teriam descrito suas prprias andanas e

    viagens, relatando o tamanho de feras, as crueldades dos homens e tipos inditos de vida. O seu

    guia e mestre neste tipo de bufonaria o Odisseu de Homero, que falou aos da corte de Alcnoo

    1Historiador do final do sculo V a.C., autor de uma histria da Prsia, em vinte e trs livros, e de uma obra sobre andia, a qual Luciano se refere, em apenas um livro. Foi tambm mdico na corte de Artaxerxes, de cerca de 405 a397 a.C. Cf. Fcio, cod.72 e Diodoro Sculo, II, 1-28.2Essa obra resumida por Diodoro Sculo, II, 55-60, e provavelmente data do sculo II ou I a.C.

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    sobre a escravido dos ventos, seres de um olho s, comedores de carne crua, homens selvagens e

    ainda sobre animais de vrias cabeas e as transformaes sofridas por seus companheiros sob o

    efeito de poes; foi assim que ele contou muitos fatos prodigiosos para homens simples, os

    fecios.

    [4] Ao deparar-me ento com esses todos, no foi em demasia que os reprovei por

    mentir, j tendo visto que isso habitual at para aqueles que professam a filosofia. Mas admirei

    isso neles, se julgaram que passariam despercebidos ao escrever inverdades. por esse motivo

    que tambm eu prprio, dedicando-me, pelo desejo da vanglria, a deixar algo posteridade, a

    fim de que no fosse o nico excludo da liberdade de efabular, j que nada verdadeiro podia

    relatar - nada digno de meno havia experimentado me voltei para a mentira, em muito maishonesta que a dos demais, pois ao menos nisto direi a verdade: ao afirmar que minto. Assim, a

    mim me parece que tambm escaparia da acusao dos outros, eu prprio concordando que nada

    digo de verdadeiro. Escrevo, portanto, sobre coisas que nem vi, nem sofri, nem me informei por

    outros e ainda sobre seres que no existem em absoluto e nem por princpio podem existir. Por

    isso, aqueles que por acaso se depararem com estes escritos no devem de forma alguma

    acreditar neles.

    [5] Partindo um dia das Colunas de Hracles e levado ao oceano ocidental por uma

    corrente de vento favorvel, dei incio navegao. A causa e a proposta da viagem eram para

    mim a excessiva curiosidade do intelecto, o desejo de coisas novas e a vontade de conhecer qual

    o fim do oceano e os homens que habitam o outro lado. Em razo disso, com provises

    abundantes carreguei o navio, estoquei gua suficiente, reuni cinqenta companheiros que me

    eram iguais em disposio, ainda preparei uma quantidade numerosa de armas e, tendo

    convencido um capito excelente com um grande pagamento, tomei-o ao meu lado e a nau era

    um navio ligeiro fortaleci para uma travessia longa e violenta.

    [6] Depois de navegar um dia e uma noite com vento favorvel a terra ainda estavavisvel -, sem esforo demasiado conduzamos a nau, mas no dia seguinte, com o nascer do sol, a

    corrente de vento ficou mais forte, as ondas subiram, surgiu uma escurido e no foi mais

    possvel aprontar a vela. Ento, abandonados ao vento e entregues a ns mesmos, estvamos no

    meio da tempestade h setenta e nove dias; no octagsimo dia, quando de sbito o sol

    resplandeceu, vemos no longe dali uma ilha alta e cerrada, cercada de ondas calmas, pois a

    borrasca tambm j estava diminuindo. Depois de atracar e de desembarcar, como se nos

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    livrssemos de uma grande fadiga, por muito tempo ficamos deitados sobre a terra; ao

    levantarmos, todavia, determinamos que trinta de ns permaneceriam vigias da nau e vinte

    entrariam comigo para investigao do que havia na ilha.

    [7] Quando tnhamos avanado, a partir do mar, cerca de quinhentos metros por meio

    da floresta, vemos uma estela feita de cobre, grafada com letras gregas, pouco distintas e gastas,

    que dizia at aqui chegaram Hracles e Dioniso. Perto dali, havia tambm duas pegadas sobre

    uma pedra, uma de trinta metros de tamanho, outra menor ao que me parece, uma de Dioniso, a

    pequena, e a outra, de Hracles. Ento, depois de nos prosternar, prosseguimos. No havamos

    percorrido muito quando topamos com um rio em que fluia vinho muitssimo semelhante ao de

    Quios. O fluxo era abundante e forte, de tal forma que em certos pontos era at navegvel.Resultou-nos, ento, crer muito mais no que estava inscrito na estela, vendo as marcas da

    passagem de Dioniso.

    Decidi descobrir onde nascia o rio e subi seguindo seu fluxo; no descobri

    nenhuma fonte, mas muitas e enormes vinhas, cheias de cachos: junto a cada raiz escorria uma

    gota de vinho lmpido, a partir das quais nascia o rio. Era possvel ver nele muitos peixes, tanto

    na cor quanto no sabor bastante parecidos com vinho ao menos ns nos embriagamos depois de

    pescar alguns deles e de devor-los. Com efeito, dissecando-os, descobrimos que tambm eles

    estavam repletos de mosto. Mais tarde, entretanto, nos lembramos dos outros peixes, os da gua,

    e, misturando-os, atenuvamos a fora desse alimento vinhoso.

    [8] Ento, depois de cruzar o rio onde era transponvel, descobrimos sobre as vinhas

    algo portentoso: a parte que saa da terra, o tronco mesmo, era frondosa e grossa e, na parte de

    cima, eram mulheres que tinham a partir dos flancos tudo perfeito tal qual, entre ns, pintam

    Dafne transformando-se em rvore logo aps Apolo captur-la. Das pontas dos seus dedos

    nasciam ramos e eles estavam repletos de cachos. Alm disso, tinham nas cabeas longas

    cabeleiras de gravinhos, folhas e cachos. Saudavam-nos e estendiam a mo direita para ns, quetnhamos nos aproximado, umas falando em ldio, outras em indiano, a maior parte em grego, e

    beijavam-nos na boca. Aquele que era beijado imediatamente ficava bbado e cambaleante. No

    permitiam, entretanto, que colhssemos o seu fruto, mas quando ele era arrancado, sofriam e

    gritavam. Umas tambm desejavam unir-se a ns. Dois dos nossos companheiros que

    mantiveram relaes com elas no se soltavam mais, presos pelas partes pudentas. Cresceram

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    juntos e juntos criaram razes. J dos seus dedos haviam nascido ramos e, enlaados por

    gravinhas, tambm eles em breve estariam prontos para dar frutos.

    [9] Abandonando-os, fugimos para a nau, e ns que tnhamos ido narramos aos que l

    foram deixados a unio dos dois companheiros com as vinhas e o restante. Depois, pegando

    algumas nforas, abastecemo-nos de gua e tambm do vinho do rio e, depois de acampar

    prximo dele, sua margem, zarpamos ao raiar do dia, quando um vento no muito forte soprava.

    Cerca de meio-dia, quando a ilha no estava mais visvel, subitamente um tufo surgiu, fazendo

    rodopiar a nau e, elevando-a aos ares cerca de trezentos cinqenta quilmetros, no mais a deps

    no mar, mas suspensa no ar, o vento levava-a, ao bater no pano e inflar a vela.

    [10] Depois de percorrer os ares por sete dias e mesmo nmero de noites, no oitavo diavemos no ar uma enorme terra como se fosse uma ilha, esplndida, esfrica, resplandecendo uma

    luz intensa. Aps nos dirigir at ela e ancorar, desembarcamos e, ao investigar o pas,

    descobrimos que era povoado e cultivado. Durante o dia, nada vamos dali, mas ao anoitecer,

    muitas outras ilhas prximas apareceram para ns, umas maiores, outras menores, de cor parecida

    com fogo, e abaixo havia ainda uma outra terra, com cidades, rios, oceanos, florestas e

    montanhas. Essa presumimos ser a que habitamos.

    [11] Como ns havamos decidido avanar um pouco mais, fomos todos presos, tendo

    ido de encontro aos que entre eles so chamados Cavalabutreiros. Esses Cavalabutreiros so

    homens que montam sobre enormes abutres e utilizam as aves como cavalos - pois os abutres so

    grandes e, em geral, tricfalos. Seria possvel compreender o seu tamanho a partir disto: maior e

    mais grossa do que o mastro de uma enorme nau mercante cada uma de suas penas. confiado

    a esses cavalabutreiros voar ao redor da terra e, se algum estrangeiro for encontrado, lev-lo at o

    rei. De fato, tambm nos levam presos at ele. Ele, ao que nos observou e pde presumir pela

    vestimenta, perguntou: estrangeiros, acaso sois gregos? Quando confirmamos, ele disse:

    Como ento chegastes, tal distncia atravessando nos ares? Ns narramos-lhe tudo. Tomando ainiciativa, ele contou-nos a seu respeito que tambm ele prprio era um homem, cujo nome era

    Endmion; que um dia foi raptado de nossa terra quando dormia e que, ali chegado, tornou-se rei

    do pas. Ele falou que aquela terra era a Lua, a que era visvel para ns l embaixo.

    Recomendava-nos, porm, que ficssemos confiantes e no recessemos nenhum perigo, pois

    tudo de que precisssemos estaria ao nosso dispor.

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    [12] Se eu triunfar, disse, na guerra que agora travo contra os habitantes do Sol, ao

    meu lado vivereis as vidas mais afortunadas de todas. Ns perguntamos quem eram os inimigos

    e a causa da discrdia. Faetonte, disse, o rei dos habitantes do Sol pois aquele povoado

    como a Lua por muito tempo j guerreia contra ns. Ele comeou por tal causa: certa vez,

    reunindo os mais pobres do meu reino, quis enviar uma colnia para a Estrela-da-Manh, sendo

    ela deserta e no habitada por ningum. Assim, Faetonte, com inveja, impediu a colnia no meio

    do trajeto, depois de ir de encontro a ela, frente aos Cavaloformigueiros. Vencidos ento pois

    no ramos adversrios em equipamento -, recuamos. Agora quero de novo declarar a guerra e

    reenviar a colnia. Se desejardes, tomai parte na minha expedio. Eu fornecerei abutres reais a

    cada um de vs e algum outro armamento. Faremos nossa sada amanh. Que assim seja, eudisse, se te parece bom.

    [13] Permanecemos ento ao seu lado, como hspedes. Ao nos levantar com o

    amanhecer, comeamos a nos posicionar, pois os sentinelas assinalavam que os inimigos estavam

    prximos. O contigente da tropa fez-se cem mil, fora os carregadores, os engenheiros, a infantaria

    e os aliados estrangeiros. Destes, oitenta mil eram Cavalabutreiros e vinte mil os que estavam

    sobre os Asas-de-Alface. Tambm essa ave enorme e, em vez de penas, toda coberta de

    verduras e tem plumas muitssimo parecidas com folhas de alface. Depois desses, posicionaram-

    se os Lana-Milhos e os Bate-Alhos. Os aliados vieram tambm da Ursa, trinta mil Pulgarqueiros

    e cinquenta mil Ps-de-Vento. Desses, os Pulgarqueiros cavalgam sobre enormes pulgas, da a

    sua denominao. O tamanho das pulgas era to grande quanto o de doze elefantes. Os Ps-de-

    Vento so infantes e, mesmo no tendo asas, so levados pelo ar. Tal o seu modo de

    locomoo: depois de arregaar suas tnicas, que descem at os ps, e de infl-las com vento

    como se fossem velas, so levados como embarcaes. Na maioria das vezes, eles atuam como

    peltastes nas batalhas. Diziam que chegariam tambm em nome das estrelas da Capadcia setenta

    mil Pardais-Glandes e cinco mil Cavalgagrous. Eu no os observei, pois no chegaram. Por isso,no ouso escrever sobre as suas naturezas. Coisas portentosas e incrveis eram ditas sobre eles.

    [14] Essas eram as foras de Endmion. O equipamento de todos era o mesmo: elmos

    de favas l as favas so enormes e resistentes - e couraas todas cobertas de tremoos, pois

    fazem couraas ao costurar juntas as cascas das favas dos tremoos - l a casca da fava era

    inquebrvel, como um chifre. Escudos e espadas eram tais quais as gregas.

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    [15] No momento decisivo, posicionaram-se deste modo: os Cavalabutreiros e o rei,

    com os melhores em torno de si tambm ns estvamos entre eles , ocupavam a ala direita; a

    esquerda, os Asas-de-Alface; o meio, os aliados, como cada um deles decidia. A infantaria

    contava com cerca de sessenta milhes, que foram ordenados assim: existem muitas e enormes

    aranhas entre eles, cada uma muito maior do que as ilhas Ccladas. A elas foi confiado urdir no

    espao areo entre a Lua e a Estrela-da-Manh. To logo terminaram de fazer o campo, a

    infantaria posicionou-se em fila sobre ele. Liderava-os Noturno, o terceiro chefe, filho do

    Comandante Sereno.

    [16] Quanto aos inimigos, os Cavaloformigueiros ocupavam a ala esquerda e, entre

    eles, estava Faetonte. Seus animais so enormes, alados, semelhantes s formigas da nossa terra,exceto pelo tamanho - pois a maior delas tinha at sessenta metros. Combatiam no somente

    montados, mas tambm elas prprias o faziam, sobretudo com os chifres. Diziam que eles eram

    aproximadamente cinqenta mil. sua direita, foram posicionados os Aeromosquitos, sendo

    tambm eles em torno de cinqenta mil, todos arqueiros montados sobre enormes mosquitos.

    Depois deles, estavam os Aerodanarinos, que eram infantes e soldados ligeiros, mas tambm

    eles bons combatentes, pois de longe lanavam com a funda rabanetes imensos e aquele que era

    atingido no conseguia resistir nem um pouco - logo morria e sua ferida dava origem a um cheiro

    ftido. Diziam que eles ungiam os projteis com veneno de malva. Ocupando a ala depois deles,

    estavam posicionados os Cogumetalos, que eram hoplitas e combatiam de perto, sendo milhares

    em quantidade. Foram chamados Cogumetalos porque utilizavam cogumelos como escudos e

    talos de aspargo como lanas. Perto deles, colocaram-se os Ces-Glandes, os que os habitantes de

    Srio haviam enviado, cinco mil homens com cara de ces, combatendo sobre glandes aladas.

    Diziam que dentre os seus aliados atrasaram-se os fundeiros, que ele havia mandado buscar da

    Galxia, e os Nuvocentauros. Estes chegaram com o combate j resolvido, como jamais deveriam

    ter feito! Os fundeiros no se apresentaram absolutamente, por isso, falam que mais tardeFaetonte, irritado com eles, devastou seu pas com fogo.

    [17] Faetonte atacava com tal preparao. Embatendo-se quando os sinais foram

    erguidos e os asnos de cada um dos lados zurraram pois utilizam-nos em vez trombetas -,

    comearam a lutar. A esquerda dos heliotas fugiu imediatamente, sequer se deixando cair nas

    mos dos Cavalabutreiros, e ns amos no seu encalo, matando-os. A direita deles dominava

    nossa esquerda e os Aeromosquitos, na perseguio, avanaram at nossos infantes. Eles ento

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    comearam a fugir dos infantes que vinham em socorro, dispersando-se, sobretudo quando

    perceberam vencidos os da sua esquerda. Depois que houve uma debandada decisiva, muitos

    eram apanhados vivos, outros saam carregados e muito sangue flua sobre as nuvens, de forma a

    tingirem-se e aparecerem vermelhas, tal qual aparecem junto a ns quando o sol se pe; muito

    tambm gotejava na terra, de forma que eu presumo que, outrora algo desse tipo tendo ocorrido

    nas alturas, Homero sups que Zeus fez chover sangue por causa da morte de Sarpdon.

    [18] Depois de retornar da perseguio, erguemos dois trofus: um, sobre as teias de

    aranha, pelo combate da infantaria, outro, pelo combate areo, sobre as nuvens. Assim que isso se

    passou, os sentinelas anunciaram que os Nuvocentauros avanavam em nossa direo aqueles

    que deveriam ter vindo at Faetonte antes do combate. Deram incio ao ataque, espetculo maisextraordinrio, formados por cavalos alados e por homens. O tamanho dos homens era to grande

    quanto o do Colosso de Rodes da metade para cima, o dos cavalos to grande quanto de uma

    enorme nau mercante. Sua quantidade, entretanto, no anotei, para que no parea incrvel a

    algum to grande era. Liderava-os o Arqueiro do Zodaco. Quando perceberam que seus

    amigos haviam sido vencidos, enviaram a Faetonte a mensagem de que atacavam novamente;

    posicionados, caem sobre os perturbados Selenitas, desorganizadamente dispersos na perseguio

    e no esplio. Fazem todos se voltar, perseguem o prprio rei at a cidade e matam a maioria de

    suas aves. Tombaram tambm os trofus, percorreram todo o campo tecido pelas aranhas e

    fizeram prisioneiros a mim e dois de meus companheiros. Faetonte tambm j estava presente e

    de novo outros trofus eram por eles erguidos. Naquele mesmo dia, fomos conduzidos at o Sol,

    com as mos amarradas para trs com um pedao de teia de aranha.

    [19] Eles resolveram no sitiar a cidade e, quando retornaram, fortificaram o espao

    areo intermedirio, de forma que os raios do Sol no passavam mais em direo Lua. A

    muralha era dupla, feita de nuvem, de tal forma que ocorreu um autntico eclipse da Lua e ela foi

    toda encoberta por uma longa noite. Pressionado por esses fatos, Endmion enviou umaembaixada para suplicar que demolissem a construo e que eles no os vissem vivendo na

    escurido com indiferena; comprometeu-se tambm a pagar impostos, a tornar-se um aliado e a

    no mais guerrear, e desejava entregar-lhes seus refns. Os da corte de Faetonte fizeram duas

    assemblias; na primeira, no deram fim ao seu ressentimento, um dia depois, reconsideraram a

    deciso e fez-se a paz conforme as seguintes disposies:

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    [20] De acordo com elas, os Heliotas e seus aliados reconciliaram-se com os Selenitas e

    seus aliados, sob a condio de que os Heliotas dessem fim ao muro e no mais se lanassem

    contra a lua; que devolvessem os cativos, cada um por um valor combinado; que os Selenitas

    desistissem dos outros astros autnomos; que no portassem armas contra os Heliotas; que

    combatessem uns ao lado dos outros, caso algum os atacasse; que o rei dos Selenitas pagasse

    todo ano ao rei dos Heliotas um imposto de dez mil nforas de orvalho, desse dez mil de seus

    refns e que fizessem em comum a colnia da Estrela-da-Manh e com quem dos outros

    desejasse participar. Escreveriam os acordos em uma estela de mbar e erigiriam-na no meio do

    ar, na fronteira. Dos Heliotas, Soalheiro, Estival e Braseiro fizeram o juramento e dos Selenitas,

    Noturno, Mensal e Flgido.[21] Assim se fez a paz. Logo o muro foi demolido e devolveram-nos como cativos.

    Quando chegamos Lua, nossos companheiros e o prprio Endmion foram ao nosso encontro e

    cumprimentaram-nos com lgrimas. Ele julgava-me digno de permanecer ao seu lado e de tomar

    parte na colnia, comprometendo-se a dar-me em casamento seu prprio filho, pois no h

    mulheres entre eles. Eu no me deixei convencer de modo algum, mas julguei conveniente ser

    enviado l para baixo, ao mar. Como ele entendeu ser impossvel me convencer, envia-nos depois

    de nos hospedar por sete dias.

    [22] Quero agora falar sobre as coisas, novas e extraordinrias, que notei na Lua, nesse

    nterim. Primeiro, o fato de que eles no nascem de mulheres, mas de vares, pois fazem

    casamentos entre homens e nem conhecem absolutamente o nome "mulher". At os vinte e cinco

    anos, cada um tomado como esposa; a partir dessa idade, ele prprio desposa algum. No

    concebem no ventre, mas na barriga da perna, pois toda vez que um feto gerado, a panturrilha

    engrossa e, algum tempo depois, fazendo nela um corte, tiram-no morto de l e tornam-no vivo

    ao exp-lo ao vento com a boca aberta. Parece-me que da tambm para os gregos vem o nome

    barriga da perna, porque, entre eles, ela engravida no lugar da barriga. Mas narrarei algo aindamais impressionante do que isso. Entre eles, os chamados Arvritas so uma raa de homens e

    eles nascem do seguinte modo: depois de cortar fora o testculo direito de um homem, plantam-

    no na terra e dele brota uma rvore enorme de carne, que igual a um falo; e ela tem galhos e

    folhas. Seus frutos so glandes, largas em tamanho. Ao amadurecer, depois de colh-las, eles

    fazem eclodir os homens. Eles tm, por sua vez, partes pudentas postias, alguns de marfim, mas

    os pobres tm as suas de madeira e, com elas, copulame tm relaes com seus esposos.

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    [23] Quando um homem envelhece, no morre, mas como vapor ao dissolver-se, torna-

    se ar. A alimentao a mesma para todos: sempre acendem o fogo e cozinham rs sobre os

    carves, pois h muitas entre eles voando no cu. Ao cozinhar, sentados tal como ao redor de

    uma mesa, sorvem o vapor exalante e ficam saciados. Alimentam-se com esse tipo de comida;

    por sua vez, a bebida deles o ar que, espremido em uma taa e mido, escorre como orvalho.

    No urinam ou defecam e no tm orifcios como os nossos, nem os meninos nos quadris

    permitem o intercurso, mas nos jarretes, acima da barriga da perna, pois l que tm orifcios.

    Entre eles, julga-se belo, eu acho, se algum calvo e no possui plo e tm horror

    a cabeludos. Nos cometas, ao contrrio, julgam belos os cabeludos* pois alguns l estiveram

    presentes e contaram coisas sobre eles. Alm disso, deixam crescer as barbas um pouco acima dojoelho. No tm unhas nos ps, mas todos so monodctilos. Acima das ndegas de todos eles,

    uma grande couve nasce tal como uma cauda, que est sempre verde e que no se parte quando

    eles se deitam sobre ela.

    [24] Seu catarro um mel azedo. Sempre que se esforam ou se exercitam, suam leite

    no corpo todo, de tal forma que dele coalham queijos, pingando um pouco de mel. Fazem leo

    muito brilhante de cebolas e cheiroso como perfume. Tm muitas vinhas carregadas de gua, pois

    os gros de uva dos cachos so como granizo e presumo que, quando bate um vento que balana

    essas vinhas, o granizo cai dos cachos que se despedaam sobre ns. Sua barriga, por sua vez,

    utilizam tal qual uma bolsa, pondo nela tudo de quanto precisem, pois a deles pode ser aberta e de

    novo fechada. Parece no haver nenhum intestino nela, mas apenas que seu interior todo

    felpudo e peludo, de forma que at os recm-nascidos so nele metidos quando tm frio.

    [25] A roupa dos ricos de vidro macio, mas a dos pobres tecida com cobre, pois as

    terras de l so abundantes em cobre e trabalham-no tal como l, molhando-o com gua. Acerca

    dos olhos que tm, por sua vez, hesito em falar, temendo que algum julgue que eu minto, por

    causa do que h de incrvel na histria. Contudo, tambm disso falarei: tm olhos removveis eaquele que o deseja, retirando-os de si, guarda-os at que tenha necessidade de ver. Assim,

    quando os encaixa, v. Muitos, depois de perder os seus, podem ver ao utilizar os de outros. H

    tambm os que tm muitos de reserva, os ricos. Suas orelhas so folhas de pltano, exceto as

    daqueles oriundos das glandes, pois eles tm somente orelhas de madeira.

    * Jogo de palavras difcil de manter na traduo. Em grego, komh/thj substantivo que designa aquele que temcabelos longos, komh/thj a)sth/r o nosso cometa, que ento no tinha cauda, mas cabelo.

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    [26] Alm disso, tambm observei outra coisa admirvel na residncia real. Um enorme

    espelho jaz acima de um poo no muito profundo. Sempre que algum desce at o poo, ouve

    todos os que esto a falar entre ns, na terra; se olha para o espelho, v todas as cidades, todos os

    povos tal como se estivesse diante deles. Ento, tambm eu observei meus familiares e toda a

    minha ptria e se tambm eles me viam, ainda no posso dizer com segurana. Aquele que no

    cr que esses fatos assim se passaram, caso tambm ele prprio l algum dia chegue, ver que

    digo a verdade.

    [27] Ento, tendo saudado o rei e a sua corte, aps embarcar, zarpamos. Endmion deu-

    me presentes: duas tnicas de vidro, cinco de cobre e uma armadura feita de tremoo - tudo isso

    abandonei na baleia. Enviou conosco tambm mil Cavalabutreiros para nos acompanhar por cemquilmetros.

    [28] No trajeto, passamos por muitos outros pases e atracamos na Estrela-da-Manh,

    justamente quando estava sendo fundada em conjunto e, depois de desembarcar, abastecemo-nos

    de gua. Embarcando em direo ao Zodaco, passamos esquerda do sol, costeando sua

    superfcie. No desembarcamos, embora a maioria de meus companheiros o desejasse, pois o

    vento no nos deixou. Observamos, entretanto, que o pas tinha uma bela vegetao, era frtil,

    rico em gua e repleto de muitas coisas boas. Quando os Nuvocentauros nos viram eles eram os

    mercenrios de Faetonte -, sobrevoaram a nau e, tendo sabido que fazamos parte do acordo,

    recuaram. Os Cavalabutreiros tambm j haviam partido.

    [29] Depois de navegar a noite e o dia seguintes, ao cair da noite, chegamos chamada

    Lampadaplis, quando j dirigamos o barco para baixo. Essa cidade fica no espao areo entre as

    Pliades e as Hiades, localizada, entretanto, muito mais abaixo do Zodaco. Aps desembarcar,

    no encontramos homem nenhum, mas muitas lmpadas correndo de um lado para outro e

    passando o tempo na gora e ao redor do porto; umas, as pequenas, eram tambm pobres, outras

    poucas eram das grandes e poderosas, muito esplndidas e bem visveis. Haviam feito casas edepsitos de lmpadas particulares para cada uma, tinham nomes prprios, como os homens, e

    ouvimos uma voz ser proferida; tambm no nos trataram mal, mas nos convidaram para os ritos

    de hospitalidade. Ns, entretanto, sentamos medo e nenhum de ns ousou jantar ou dormir. A

    residncia dos seus magistrados foi feita no meio da cidade, onde seu arconte se senta por uma

    noite inteira chamando cada um pelo nome; aquele que no responder condenado morte por

    abandonar seu posto - a morte consiste em ser apagado. Parados ali, vamos o que acontecia e ao

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    mesmo tempo ouvamos as lmpadas defenderem-se e explicarem as causas pelas quais haviam

    se demorado. A reconheci tambm nossa lmpada e, dirigindo-me a ela, informei-me sobre

    como estavam as coisas l de casa. Ela contou-me tudo.

    Permanecemos ali aquela noite; no dia seguinte, depois de levantar a ncora,

    passsamos a navegar j perto das nuvens. A, quando vimos tambm a cidade de

    Cuconuvolndia, ficamos admirados, sem entretanto a alcanarmos, pois o vento no permitiu.

    Dizem, entretanto, que Gralha, filho de Melro, o seu rei. Ento eu me lembrei do poeta

    Aristfanes, homem sbio e sincero que, sem ser acreditado, escreveu sobre eles em vo. No

    terceiro dia depois daquele, tambm o oceano j vamos claramente, mas terra em lugar nenhum,

    exceto aquelas dos que vivem no ar, e essas mostravam-se reluzentes e cintilantes. No quarto dia,por volta do meio-dia, o vento aumentou ligeiramente e, quando diminuiu, fomos depositados no

    mar.

    [30] Quando tocamos a gua, muitssimo nos deleitamos e nos alegramos e sentimos

    uma felicidade completa por aquilo que nos estava acontecendo; e, tendo nos atirado ao mar,

    nadamos, pois por acaso ele estava tranqilo e havia uma calmaria. Mas o incio de males

    maiores muitas vezes aparenta ser uma mudana para a melhor. Depois de navegar somente dois

    dias com tempo bonanoso, quando o terceiro dia comeou a raiar, com o nascer do sol ns de

    repente vemos animais e baleias, muitas e de vrios tipos, sendo que uma, a maior de todas, tinha

    de tamanho cerca de duzentos e setenta quilmetros. Ela avanava com a boca aberta, agitando o

    mar por uma grande distncia, banhando tudo ao seu redor com escuma e exibindo os dentes,

    muito maiores do que os nossos falos, todos pontudos como estacas e brancos como marfim.

    Ento, depois de falar uns com os outros pela ltima vez e de nos abraar, esperamos. Ela, que j

    estava prxima e mastigava com barulho, devorou-nos com a prpria nau, sem, entretanto,

    destrui-la com os dentes, pois a nau esquivou-se para o seu interior pelos espaos entre eles.

    [31] Quando j estvamos l dentro, havia primeiro uma escurido e no vamos nada;mais tarde, tendo ela aberto a boca, vimos um grande cavidade, larga e alta em todas as partes,

    suficiente para abrigar uma cidade de dez mil homens. No meio dela, jaziam peixes pequenos,

    muitos outros animais despedaados, velas e ncoras de navios, ossos humanos e mercadorias; e

    no meio havia at terra e colinas, ao que me parece, provenientes da lama que ela engoliu ao

    afundar. De fato, nela existia uma floresta, rvores haviam nascido em toda parte e tambm

    verduras haviam brotado e todas pareciam-se com as cultivadas. O permetro de terra era de

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    quarenta quilmetros; era possvel ver at aves martimas, gaivotas e alcones, que faziam ninhos

    sobre as rvores.

    [32] Ento choramos durante muito tempo e, mais tarde, quando meus companheiros se

    levantaram, escoramos a nau, depois esfregamos dois gravetos um contra o outro, acendemos o

    fogo e fizemos um jantar com o que havia disponvel. Carne abundante e de todos os tipos de

    peixes estava nossa disposio e ainda tnhamos gua da Estrela-da-Manh. No dia seguinte,

    aps nos levantar, se por acaso a baleia abrisse a boca, vamos ora montanhas, ora somente o cu

    e, muitas vezes, tambm ilhas - percebamos que ela se deslocava rapidamente por todas as

    partes do mar. Quando j estvamos acostumados a passar assim o tempo, tomando sete de meus

    companheiros, caminhei at a floresta, com vontade de investigar tudo que havia ao redor.Quando ainda no tinha atravessado novecentos metros, descobri um santurio de Poseidon,

    como evidenciava a inscrio e, no muito depois, tambm muitas sepulturas sobre as quais havia

    estelas, perto de uma fonte de gua lmpida, e ainda ouvimos um latido de cachorro e uma

    fumaa aparecia distante, onde presumimos haver um acampamento.

    [33] Caminhando com pressa, topamos com um ancio e com um jovem que

    trabalhavam com muita disposio em uma horta, que irrigavam com gua da fonte. Alegres, mas

    ao mesmo tempo sentindo medo, ficamos imveis. Eles, como era natural, sentindo o mesmo que

    ns, ficaram parados, mudos. Depois de algum tempo, o ancio disse: Quem sois vs,

    estrangeiros? divindades marinhas ou homens infortunados, semelhantes a ns? Pois ns, que

    somos homens criados em terra, agora nos tornamos marinhos e nadamos com este animal que

    nos aprisiona, sem saber exatamente o que se passa conosco. Presumimos estar mortos, mas

    temos f que estamos vivos. Diante disso, eu falei: de certo tambm ns somos homens, recm-

    chegados, meu senhor, devorados anteontem com nossa embarcao, e agora avanamos,

    desejando saber o que se passa na floresta, pois parece ser vasta e cerrada. Algum deus, ao que

    parece, conduziu-nos na tua direo para que te vssemos e soubssemos que no estamosconfinados sozinhos neste animal. Mas conta-nos tua sorte, quem s e como entraste aqui. Ele

    disse que no conversaria nem se informaria a nosso respeito antes de compartilhar os ritos de

    hospitalidade e, tomando-nos, conduziu-nos at sua casa havia feito-a adaptada, construindo

    para si camas de folhas e provendo-se de outras coisas e, tendo nos oferecido verduras, frutas,

    nozes, peixes e ainda servido vinho, depois de saciar-nos o suficiente, quis informar-se sobre o

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    que havamos sofrido. Eu em seguida narrei-lhe tudo, a tempestade, o ocorrido na ilha, a

    navegao no ar, a guerra e o restante at a descida na baleia.

    [34] Ele prprio, extremamente admirado, por sua vez contou-nos a seu respeito,

    dizendo: estrangeiros, eu sou cipriota de origem e, impelido, por motivo de comrcio, para longe

    da ptria com meu filho, que vs vedes, e com outros parentes, navegava em direo Itlia,

    transportando mercadoria variada em uma enorme nau, que talvez tenhais visto destroada na

    boca da baleia. Com sucesso navegamos at a Siclia. L, arrastados por um vento violento

    durante trs dias, fomos levados at o oceano e ento defrontados e devorados com homens e

    tudo pela baleia; apenas ns dois nos salvamos, pois os outros morreram. Depois de enterrar

    nossos companheiros e de edificar esse templo a Poseidon, vivemos nossa vida, cultivandoverduras, alimentando-nos de peixes e nozes. Vasta , como vedes, a floresta, alm disso, tem

    muitas vinhas, das quais se produz o vinho mais doce. Talvez tenhais visto a fonte de gua, a

    mais bela e gelada. Fazemos leito de folhas, queimamos fogo em abundncia, caamos as aves

    que voam para dentro e pescamos os peixes que entram vivos nas brnquias do animal, onde

    tambm nos lavamos sempre que desejamos. Alm disso, no longe daqui h um lago de trs

    quilmetros e meio de permetro, com peixes de todo o tipo, no qual nadamos e navegamos em

    uma pequena embarcao, que eu construi. Faz vinte e sete anos que fomos engolidos.

    [35] Talvez pudssemos suportar o resto, mas nossos vizinhos e os que moram por

    perto so excessivamente difceis e grosseiros, pois so selvagens e no se misturam. H,

    ento, alguns outros na baleia?, eu perguntei; h muitos, ele disse, inospitaleiros e estranhos

    na aparncia. Na banda ocidental e nos extremos da floresta, vivem os Salmouros, raa dos que

    tm olhos de enguia e cara de lagosta, belicosa, audaz e comedora de carne crua. No outro lado,

    perto do muro direito, vivem os Tritobodes, parecidos com homens na parte de cima, mas

    embaixo com peixes-espada; eles so, porm, menos injustos do que os outros. Na parte

    esquerda, vivem os Mos-de-Caranguejo e os Cabeas-de-Atum, que mantm aliana e amizadeentre si. Moram no interior os Sirinos e os Ps-de-Linguado, raa belicosa e excelente corredora;

    e a banda oriental, a que fica em frente boca, na maior parte deserta, banhada pelo mar. Eu,

    contudo, ocupo esta parte pagando um imposto de quinhentas ostras aos Ps-de-Linguado todo

    ano.

    [36] Assim o pas. necessrio que vejais como poderemos combater essas raas e

    como viveremos. Quantos, eu perguntei, so esses todos?. Mais de mil, ele disse. Quais

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    so suas armas?; nenhuma, exceto espinhas de peixes, ele respondeu. Ento, eu disse, o

    melhor seria ir luta contra eles, porque esto desarmados e ns estamos armados, pois se os

    dominarmos, viveremos o resto da vida sem medo. Assim foi decidido e, partindo para a nau,

    preparamo-nos. O no-pagamento do imposto, cuja data j estava estabelecida, estava para se

    tornar a causa da guerra. Logo eles enviaram uma embaixada, requisitando o tributo. Depois de

    responder com desdm, ele expulsou os mensageiros. Primeiro, os Ps-de-Linguado e os Sirinos,

    irritados com Cntaro assim ele se chamava -, atacaram com muito alvoroo.

    [37] Como ns suspeitvamos de um ataque, espervamos armados, tendo posicionado

    vinte e cinco homens frente, em uma emboscada. Preveniu os que estavam na tocaia para se

    erguer e atacar quando vissem que os inimigos haviam passado. E assim fizeram: ergueram-se egolpearam-nos por trs, enquanto ns, em nmero de vinte e cinco pois Cntaro e seu filho

    lutavam conosco -, marchvamos ao seu encontro e, no embate, com vigor e com coragem

    expunhamo-nos ao perigo. Por fim, os perseguimos at as cavernas, depois de p-los em fuga.

    Morreram cento e setenta dos inimigos e, dos nossos, um s, nosso capito, trespassado nas

    costas por um salmonete.

    [38] Passamos, ento, aquele dia e tambm a noite no combate e erguemos um trofu,

    espetando a espinha seca de um golfinho. No dia seguinte, ao que tambm os outros perceberam

    o ocorrido, apresentaram-se: os Salmouros ocupando a ala direita Serrajo liderava-os -, os

    Cabea-de-Atum, a esquerda, e no meio, os Mos-de-Caranguejo. Os Tritobodes viviam

    tranqilos, tendo preferido no se aliar nem a uns nem a outros. Ns fomos ao seu encontro e

    embatemo-nos perto do templo de Poseidon com grande grita, e a baleia ecoava como as

    cavernas. Depois de faz-los se voltar, pois eram soldados ligeiros, e de persegui-los at a

    floresta, conquistamos o restante da terra.

    [39] Pouco tempo depois, tendo reenviado os arautos, passaram a recolher os mortos e

    a dialogar acerca de amizade. No nos parecia bom fazer um acordo e, no dia seguinte,avanando contra eles, acabamos com todos completamente, exceto com os Tritobodes. Eles,

    como viram o que aconteceu, lanaram-se ao mar, escapando pelas brnquias. Ns atravessamos

    o pas quando j estava vazio de inimigos e destemidamente ali habitamos o resto do tempo, na

    maior parte dele praticando exerccios fsicos e caa, cultivando vinhas e apanhando o fruto das

    rvores; em tudo nos assemelhvamos queles que, vivendo em uma grande e inexpugnvel

    priso, so boas-vidas e abastados. Passamos um ano e mais oito meses desse modo.

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    [40] No quinto dia do nono ms, por volta da segunda abertura da boca pois a baleia

    fazia isso uma nica vez a cada hora, de forma que marcvamos as horas pelas aberturas ento,

    por volta da segunda abertura, como eu dizia, de repente se ouviu grande grita e tumulto, como

    de exortaes e remadas. Agitados, subimos rastejando at a boca do animal e, tendo nos

    posicionado um pouco antes dos dentes, passamos a observar tudo.

    De todos os que vi este foi o mais extraordinrio dos espetculos: homens

    enormes, de cerca de noventa metros de estatura, navegando sobre ilhas enormes, tal como sobre

    trirremes. Sei que o que vou relatar parece inacreditvel e, entretanto, falo: as ilhas eram

    extensas, mas no muito altas, e cada uma tinha cerca de dezoito quilmetros de permetro. Sobre

    elas, cerca de vinte daqueles homens navegavam. Desses, os que se sentavam ao longo de cadailha remavam com enormes ramos de ciprestes e com folhas, como se fossem remos e, em

    seguida, na popa, ao que me parece, o capito tinha se colocado sobre uma alta colina, tendo um

    leme de cobre de novecentos metros de largura. Sobre a proa, cerca de quarenta deles combatiam

    armados, todos parecidos com homens, exceto pelo cabelo. Ele era de fogo e queimava, de modo

    que no precisavam de capacetes. No lugar de velas, o vento ao bater em uma floresta - pois

    havia uma vasta em cada ilha -, inflava-a e levava a ilha para onde o capito desejasse. Um patro

    tinha se colocado diante deles e com uma remada rapidamente moviam-se, tal como os navios

    grandes.

    [41] Primeiro, vamos duas ou trs, depois surgiram cerca de seiscentas e,

    distanciando-se, lutavam naquela batalha naval. Muitas batiam-se umas contra as outras proa-a-

    proa e muitas, depois de emborcar, submergiam; outras, emparelhadas, pelejavam com firmeza e

    no se soltavam facilmente, pois os que estavam posicionados na proa demonstravam todo ardor

    em atacar e destruir. Ningum fez prisioneiros. No lugar de arpus, atiravam enormes polvos

    encadeados uns aos outros que, amarrados floresta, retinham a ilha. Atiravam e feriam, por sua

    vez, com ostras do tamanho de um carro e com esponjas de trinta metros.[42] Agilcentauro liderava uns e Beberro-Marinho, os outros. A luta entre eles

    ocorreu, ao que parece, por causa de um butim. Pois diziam que Beberro-Marinho havia roubado

    muitos rebanhos de golfinhos de Agilcentauro, pelo que se ouviu eles se acusarem e invocarem

    seus reis. Por fim, os de Agilcentauro vencem e submergem cerca de cento e cinqenta ilhas dos

    inimigos. Tomam outras trs, com os homens. O restante comeou a fugir, dando a r. Depois de

    persegui-los por algum tempo, quando j era noite, ao voltarem-se aos naufrgios, dominaram a

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    maioria das ilhas e recolheram as suas pois no menos que oitenta das deles tambm haviam

    submergido. Ergueram um trofu pela batalha das ilhas sobre a cabea da baleia, empalando uma

    nica ilha dos inimigos. Aquela noite acamparam ao redor do animal, prendendo nele o cabo e

    lanando as ncoras ali perto - pois tambm utilizavam ncoras, enormes, de vidro resistente. No

    dia seguinte, depois de oferecer um sacrifcio sobre a baleia e de nela enterrar seus homens,

    partiram pelo mar, alegres e como se cantassem pes. Isso aconteceu durante a batalha das ilhas.

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    SEGUNDO LIVRO

    [1] A partir daquele momento, no suportando mais a vida na baleia, enfadado com

    aquela estada, eu procurei algum artifcio pelo qual se tornasse possvel sair de l. Primeiro,

    decidimos fugir cavando ao longo do lado direito de seu corpo e, tomando a iniciativa, ns a

    cortvamos. Mas paramos a escavao, j que nada conseguimos depois de avanar cerca de

    novecentos metros e resolvemos queimar a floresta, pois assim a baleia morreria. Se isso

    acontecesse, estaria-nos prestes a surgir uma fcil sada. Ento a queimamos, comeando pela

    cauda, e durante sete dias e mesmo nmero de noites ela no sentiu a queimadura, mas no oitavoe nono dias, notamos que ela comeava a adoecer. De fato, tinha mais preguia de abrir a boca e,

    se alguma vez a abria, fechava-a rapidamente. No dcimo e dcimo-primeiro dias, finalmente ela

    comeou a morrer e a exalar um mau cheiro. No dcimo-segundo dia, percebemos com pesar que

    se no sustentssemos seus molares quando ela estivesse de boca aberta, de tal forma que no

    mais a fechasse, correramos o perigo de morrer aprisionados em seu cadver. Assim, depois de

    apoiar a boca em grandes vigas, preparamos a nau, carregando-a de tanta gua quanto possvel e

    as demais coisas necessrias. Cntaro estava prestes a se tornar nosso capito.[2] No dia seguinte, ela j estava morta e, depois de arrastar o barco, atravessando os

    espaos entre os seus dentes, deles nos deixamos cair, descendo suavemente at o mar. Tendo

    subido nas costas da baleia e l realizado um sacrifcio a Poseidon, aps acampar trs dias ali

    mesmo, junto ao trofu pois havia uma calmaria-, de l navegamos no quarto dia. Encontramos

    ento muitos daqueles cadveres da batalha naval, os levamos terra e ficamos admirados ao

    medir seus corpos.

    Alguns dias navegamos com vento moderado, quando ficou muito frio porque o

    Breas soprou com fora e, por isso, todo o alto-mar congelou-se, no somente sua superfcie,

    mas cerca de quinhentos metros em profundidade, de tal forma que, ao desembarcar, corremos

    sobre gelo. Persistindo o vento, sem que pudssemos suport-lo, pensamos em algo como cavar

    uma grande gruta na gua quem nos deu a idia foi Cntaro -, na qual permanecemos trinta dias,

    queimando fogo e alimentando-nos de peixes, os quais encontramos ao desenterr-los. Quando j

    nos faltavam as coisas necessrias, avanando depois de puxar a nau congelada e de desdobrar a

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    vela, fomos arrastados como se navegssemos branda e suavemente, a escorregar sobre o gelo.

    No quinto dia fez calor, o gelo dissolveu-se e tornou-se todo gua novamente .

    [3] Quando tnhamos navegado cerca de cinqenta quilmetros, rumamos em direo

    a uma ilha pequena e deserta, de onde apanhamos gua, pois ela j nos faltava, e de l navegamos

    depois de acertar com flechas dois touros selvagens. Esses touros tinham chifres no sobre a

    cabea, mas embaixo dos olhos, tal como Momo julgava ser conveniente.

    No muito tempo depois, adentramos um mar, no de gua, mas de leite. Nele

    surgiu uma ilha branca, cheia de vinhas. Na verdade, a ilha era um enorme queijo coalhado, como

    mais tarde soubemos ao com-la, de quatro quilmetros e meio de permetro. As vinhas estavam

    cheias de cachos de uva, porm, no vinho, mas leite bebamos delas, ao esprem-las. O santurioconstrudo no meio da ilha era da Nereida Galatia*, como evidenciava a inscrio.

    Permanecemos l algum tempo, pois a terra provia-nos de po e comida e a nossa bebida era o

    leite das vinhas. Dizia-se que Tir, filha de Salmoneu3, reinava naquelas terras, tendo recebido o

    posto de Poseidon, depois de sua partida.

    [4] Aps permanecer cinco dias na ilha, partimos no sexto; uma brisa acompanhava-

    nos e o mar estava calmo. No oitavo dia, no mais navegando pelo leite, mas j em gua salgada

    e escura, observamos muitos homens correndo sobre o alto-mar, em tudo semelhantes a ns,

    tanto no corpo quanto no tamanho, exceto apenas pelos ps - pois os seus eram de cortia e, por

    causa deles, creio eu, tambm se chamavam Ps-de-Cortia. Admiramo-nos vendo que no

    afundavam, mas se mantinham sobre as ondas e viajavam destemidamente. Eles dirigiram-se at

    ns e saudaram-nos em grego; disseram que se apressuravam em direo Cortia, sua ptria.

    At um determinado ponto, viajaram conosco, correndo ao nosso lado; mas depois, mudando de

    direo, comearam a caminhar, desejando-nos uma boa navegao. Pouco tempo depois, muitas

    ilhas comearam a surgir por ali, esquerda de Cortia, para onde eles se apressavam, cidade

    situada sobre uma enorme e redonda cortia. Longe dali, mais direita, havia cinco ilhas grandese altssimas, sobre as quais fogo abundante queimava. Na direo da proa havia uma nica

    plancie, baixa, distando no menos que noventa quilmetros.

    *Tanto Galatia quanto Tir so escolhidas por Luciano por causa de seus nomes; a primeira lembra ga/la, leite, e asegunda, turo/j, queijo.3Poseidon uniu-se a Tir na forma do rio Enipeu, por quem ela estava apaixonada.

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    [5] Quando j estvamos prximos da ilha, uma brisa admirvel soprou a nossa volta,

    doce e perfumada, tal qual disse o historiador Herdoto exalar da Arbia feliz4. Pois de rosas, de

    narcisos, de jacintos, de lrios, de violetas e ainda do mirto, do loureiro e da flor da vinha, tal era

    a doura que se lanava sobre ns. Deleitados com o aroma e com esperana de deixar grandes

    penas por coisas prestimosas, pouco tempo depois j estvamos perto da ilha. De l, tambm

    observamos por toda parte muitos portos, grandes e no-inundados; rios lmpidos que

    desagavam suavemente no mar e ainda plancies, florestas e aves canoras, algumas sobre a costa

    e muitas sobre os ramos das rvores. Um ar leve e puro espalhava-se pelo pas. Uma brisa doce,

    soprando suavamente, agitava a floresta, de tal forma que do movimento dos ramos silvavam-se

    cantos agradveis e constantes, parecidos com o flauteio solo de flautas transversais. Alm disso,tambm se ouvia uma vozearia confusa e emaranhada, no de tumulto, mas do tipo que ocorreria

    em um banquete, quando alguns tocam flauta, uns fazem elogios e outros marcam a batida da

    flauta ou da ctara.

    [6] Ns para l fomos conduzidos, encantados com tudo aquilo e, tendo ancorado a

    nau, desembarcamos, deixando nela Cntaro e dois de nossos companheiros. Quando

    avanvamos por meio de uma plancie florida, topamos com vigias e guardas-fronteira, que aps

    nos amarrar com coroas de rosas pois isso era, entre eles, uma grande corrente -, levaram-nos

    at o seu arconte; deles tambm ouvimos durante o caminho que a ilha era chamada dos Bem-

    Aventurados e governava-a o cretense Radamanto. Levados at ele, ficamos em quarto lugar na

    fila dos julgados.

    [7] O primeiro julgamento era o de jax Telamnio para decidir se acaso se deveria

    deix-lo ou no se reunir aos heris. Era acusado de ter enlouquecido e de ter matado a si mesmo.

    No final, depois de muitos falarem, Radamanto deliberou que naquele momento ele beberia

    helboro, dado por Hipcrates, o mdico de Cs e, mais tarde, quando tivesse voltado a si,

    tomaria parte no banquete.[8] O segundo julgamento era uma contenda amorosa entre Teseu e Menelau, que

    disputavam Helena, para decidir com qual dos dois ela deveria viver. Radamanto julgou que ela

    deveria viver com Menelau, uma vez que ele tanto penou e exps-se ao perigo por seu

    casamento. Ademais, Teseu tinha outras mulheres, a Amazona e as filhas de Minos.

    4III.113.

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    [9] O terceiro caso julgado, acerca da preeminncia, era entre Alexandre, filho de

    Filipe, e Anbal, o Cartagins; decidiu-se que ela pertencia a Alexandre e seu trono foi posto ao

    lado de Ciro da Prsia, o Primeiro.

    [10] Fomos apresentados em quarto lugar. Ele interrogou o que havamos passado,

    desembarcando ainda vivos naquela terra sagrada e ns, em seguida, narramos-lhe tudo. Assim,

    aps deixar-nos de lado por muito tempo, examinou e comunicou seus colegas da nossa situao.

    Deliberavam muitos outros, at mesmo o ateniense Aristides, o Justo6. Quando ele tomou sua

    deciso, anunciaram que ns prestaramos contas de nossa intromisso e de nossa viagem quando

    morrssemos e que daquele vez partiramos dali depois de permanecer na ilha e de conviver com

    os heris durante um determinado perodo de tempo. Ordenaram que o prazo de nossa estada nopassasse de sete meses.

    [11] Nesse momento, automaticamente as coroas ao nosso redor escorregaram e fomos

    soltos, levados at a cidade e ao banquete dos Bem-Aventurados. A cidade mesma toda de ouro

    e o muro que a cerca de cor verde-esmeralda. Os portes so sete, inteirios de pau-canela. O

    pavimento da cidade e a regio no interior dos muros, por sua vez, so de marfim. Os templos de

    todos os deuses so construdos com berilo e seus altares so grandes monlitos de ametistas,

    sobre os quais fazem sacrifcios. Ao redor da cidade, corre um rio do melhor perfume, de

    cinqenta quilmetros de largura e cinco de profundidade, de forma que nele se pode nadar com

    facilidade. Suas casas de banho so grandes casas de vidro, aquecidas com canela. No lugar de

    gua, porm, h orvalho quente nas tinas.

    [12] Utilizam como vestimentas delicadas teias-de-aranha, de cor prpura. Eles no tm

    corpos, so impalpveis e descarnados; mostram apenas sua forma e aparncia e, embora sejam

    incorpreos, so bem constitudos, movem-se, pensam, falam e de todo a alma nua parece

    revolver-se envolvida pela semelhana do corpo. De fato, se ningum os tocasse, no se poderia

    provar que no tinham corpo visvel. Pois so como sombras eretas, no negras. Ningumenvelhece, mas permanece com a idade com que foi para l.

    Nem h noite, entre eles, ou dia muito claro - como o crepsculo pouco antes da

    aurora, no tendo ainda nascido o sol: tal a luz que espalha-se pela terra. Conhecem, entretanto,

    6Estadista e general ateniense (c. 520-467), responsvel pela criao da Liga de Delos.

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    apenas uma estao do ano, pois entre eles sempre primavera, e o Zfiro o nico vento que

    sopra nessa terra.

    [13] O pas coberto de todas as flores e tambm de todas as plantas, as cultivadas e as

    umbrosas. As vinhas produzem doze vezes por ano e do frutos a cada ms. Diziam que as

    romzeiras, as macieiras e qualquer rvore frutfera produzia treze vezes por ano, pois entre eles,

    um nico ms, o de Minos, d frutos duas vezes. Em vez de trigo, l as espigas do po pronto

    nas suas pontas como se fossem cogumelos. H trezentas e sessenta e cinco fontes de gua ao

    redor da cidade, outras tantas de mel, quinhentas de perfume - essas, por sua vez, so menores -,

    sete rios de leite e oito de vinho.

    [14] Faziam seu banquete fora da cidade, no chamado Campo Elseo. Essa umaplancie belssima e ao seu redor h uma floresta em toda a parte cerrada, que cobre de sombra

    aqueles que se sentam mesa. Tm um leito de flores estirado sob si e so as correntes de vento

    que levam tudo mesa e servem-lhes. Apenas no vertem o vinho, pois no precisam de ningum

    para isso, mas h enormes rvores vidrinas ao redor do banquete, de vidro o mais lmpido, e o

    fruto dessas rvores so taas de diversos tipos de tamanho e de constituio. Toda vez que

    algum se junta ao banquete, depois de colher um ou dois copos, servido e imediatamente o

    copo fica repleto de vinho. Bebem assim e, no lugar de coroas, rouxinis e outras aves canoras

    colhem com suas bocas flores das plancies prximas e, voando e cantando, fazem-nas chover

    sobre eles. Alm disso, perfumam-se deste modo: nuvens cerradas que se formam do perfume das

    fontes e do rio, encimando-se sobre o banquete, chovem suavemente perfume delicado como

    orvalho, quando as comprimem as correntes de vento.

    [15] Durante o jantar, entregam-se msica e aos cantos. So por eles cantados

    sobretudo os versos de Homero. Ele prprio l est presente e banqueteia-se entre eles, sentado

    acima de Odisseu. H coros de meninos e de meninas. Entoam e cantam juntos Eunmo, o

    Lcrio7, rion, o Lsbio8, Anacreonte e Estescoro. De fato, tambm este observei entre eles, jreconcilicado com Helena. Quando param de cantar, comea um segundo coro, de cisnes,

    andorinhas e rouxinis. Sempre que eles cantam, toda a floresta flauteia, ao sinal dos ventos.

    7Eunmo conhecido por testemunho de Clemente de Alexandria (Protrept., 1, 2).8 Poeta lrico talvez do VII a.C., de Metimna, em Lesbos. Apontado por Herdoto (I, 24) como o inventor doditirambo, e no Suda, citado como inventor da tragdia (tragikou= tro/pou eu)reth/j).

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    [16] Mas o que tm de maior para sua felicidade isto: h duas fontes ao lado do

    banquete, uma de riso, outra de prazer. De cada uma delas, todos bebem no comeo da festa e

    passam o resto do tempo deleitando-se e rindo.

    [17] Quero falar tambm dos clebres que observamos entre eles: todos os heris e os

    que lutaram em lio, exceto jax Lcrio, que declararam ser o nico punido no pas dos mpios;

    dos brbaros, ambos os Ciros, o cita Anacarsis9, Zamolxis da Trcia10, Numa da Itlia11e, alm

    deles, o Lacedemnio Licurgo12, os atenienses Fcio13 e Telo14 e tambm os sbios, menos

    Periandro15. Vi tambm Scrates, o filho de Sofronisco, tagarelando com Nestor e Palamedes. Ao

    seu redor, estavam Jacinto, o Lacedemnio, Narciso, o Tespiano, Hila16e outros belos. A mim

    me pareceu que ele estava apaixonado por Jacinto. De fato, na maior parte das vezes o refutava.Diziam que Radamanto estava descontente com ele e ameaava freqentemente expuls-lo da

    ilha, se ele continuasse com a tagarelice e no quisesse regalar-se, deixando sua ironia. Plato era

    o nico que no estava presente, mas diziam que morava na cidade por ele modelada, valendo-se

    da Repblica e das Leis que havia escrito.

    [18] Aristipo e Epicuro, que eram agradveis, corteses e os melhores convivas,

    tornaram-se, por sua vez, os preferidos entre eles. Esopo, o Frgio, tambm est l. Dele fazem

    algo como um bufo. Digenes de Sinope17a tal ponto mudou seus modos que se casou com a

    cortes Las18 e com freqncia, ao levantar-se, danava e dizia incovenincias por causa da

    embriaguez. Dos esticos, nenhum estava presente, pois diziam que eles ainda subiam o ngreme

    cume da virtude. Tambm ouvimos acerca de Crisipo19que no lhe seria permitido entrar na ilha

    antes que tomasse helboro quatro vezes. Diziam que os da Academia desejavam ir para l, mas

    ainda detinham-se e examinavam a questo, pois dizia-se que nem ainda isto tinham concludo:

    9Filsofo cita do sc. VI a.C. D nome a um dos dilogos de Luciano, em que o filsofo conversa com Slon, e noqual apresenta a viso brbara acerca de um importante costume grego, o atletismo.10Herdoto (IV, 94-6) afirma que Zamolxis, escravo que serviu a Pitgoras em Samos por algum tempo, tornou-seposteriormente um deus dos Getas, da Trcia, ao realizar uma artimanha que os fez crer na sua imortalidade, durantea qual usufruiria para sempre de todas as coisas boas.11Lendrio segundo rei de Roma.12Espartano a quem atribuem a constituio da cidade. Cf. Herdoto, I.65-6.13Estadista e general ateniense do sculo IV a.C.14Cidado ateniense, que Slon menciona (Herdoto, I.30-1) a Creso como o homem mais feliz que conheceu.15Um dos sete sbios, excludo por Luciano provavelmente por ter sido tirano em Corinto.16Personagem mtico, filho de Tedamas, o rei dos Dropes morto por Hracles. De grande beleza, tornou-se amantedo heri.17Filsofo cnico (c. 412-323).18 Mencionada por Ateneu (Deipn.588c-f). Segundo o autor, foi amante de Aristipo, de Demstenes e do cnicoDigenes.19Filsofo estico (c. 290-207 a.C.).

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    se uma ilha como aquela existe. Por outro lado, creio, temiam o julgamento de Radamanto, j que

    eles haviam abolido os critrios de julgamento. Disseram que muitos, tendo se posto em

    movimento, seguindo os que l chegavam, por causa de sua morosidade eram deixados para trs,

    sem nada entender, e voltavam no meio do caminho.

    [19] Eram esses os mais dignos de meno entre os presentes; honram sobretudo

    Aquiles e, depois dele, Teseu.

    Acerca dos relacionamentos e dos prazeres amorosos pensam o seguinte: as

    relaes so em pblico, tanto com mulheres quanto com homens, s vistas de todos, e de modo

    algum isso parece-lhes torpe. Somente Scrates fez um juramento de que se aproximaria dos

    jovens de modo puro. Todos, porm, percebiam que ele havia cometido perjrio. De fato, muitasvezes Jacinto ou Narciso o confirmaram e ele negou. As mulheres so comuns a todos os homens

    e ningum inveja o prximo, mas so a respeito disso platonicssimos. Os meninos permitem o

    intercurso a quem quer que os desejem, sem se opor a nada.

    [20] Ainda no haviam decorrido dois ou trs dias quando me dirigi ao poeta Homero,

    quando ambos estvamos ociosos, e informei-me entre outras coisas de onde ele era, dizendo-lhe

    que isso entre ns ainda agora o mais investigado. Ele declarou que nem ele ignorava que

    alguns julgavam que ele fosse de Quios, outros de Esmirna e muitos de Clofon. Disse,

    entretanto, ser Babilnio e que, junto aos seus concidados, no de Homero, mas de Tigranes era

    chamado, mas que mais tarde tendo se tornado um refm entre gregos, trocou seu nome*. Ainda

    perguntei-lhe acerca dos versos esprios, se por ele haviam sido escritos. Declarou que todos

    eram seus. Percebi ento a grande tolice dos gramticos seguidores de Zendoto e Aristarco. J

    que ele havia respondido de modo satisfatrio a tais questes, perguntei-lhe por que havia feito

    da Ira o princpio e ele disse que da havia partido ele prprio sem nenhum propsito. Alm

    disso, eu desejava saber isto: se primeiro havia escrito a Odissia, antes daIlada, como muitos

    dizem. Ele negou. Que nem cego era, algo que tambm dizem a seu respeito, soubeimediatamente, pois eu o tinha visto, de tal forma que no tive necessidade de questionar. Com

    freqncia fiz isso outras vezes, se acaso eu o visse em folga. Pois aproximando-me, interrogava-

    o e ele de bom grando respondia tudo, sobretudo depois do processo, j que ele o venceu - pois

    houve uma acusao de hbris contra ele, feita por Tersites por t-lo ridicularizado em seu

    poema, que Homero venceu tendo Odisseu como advogado.

    *jogo de palavras. Em grego, o(//mhroj pode significar refm.

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    [21] Nesse tempo chegou tambm Pitgoras, o Smio, depois de ter se transformado

    sete vezes, vivido entre tantos animais e finalizado os ciclos de sua alma. Sua metade direita era

    toda de ouro. Julgado, tornou-se um concidado, mas ficou-se em dvida se deveriam cham-lo

    de Pitgoras ou de Euforbo. Empdocles, por sua vez, chegou tambm ele prprio, todo cozido e

    com o corpo tostado; no foi admitido, embora muito suplicasse.

    [22] Depois de algum tempo, comearam os seus jogos, a Tanatousa. Aquiles presidiu

    o quinto e Teseu, o sexto. Do resto, poder-se-ia falar demoradamente; narrarei os fatos principais:

    Capro, o sucessor de Hracles20, venceu Odisseu na luta, disputando a coroa. No pugilato houve

    empate entre rio, o Egpcio21, o que foi sepultado em Corinto, e Epeio22, que competiram. No

    h, entre eles, prmios para o pancrcio. No me lembro mais, porm, quem venceu a corrida.Entre os poetas, na verdade Homero foi em muito superior, entretanto, foi Hesodo quem venceu.

    Os prmios de todos eram coroas feitas de penas de pavo entrelaadas.

    [23] Assim que se encerraram os jogos, anunciou-se que os que eram punidos no pas

    dos mpios haviam rompido as correntes e, tendo dominado a guarda, avanavam sobre a ilha.

    Lideravam-nos Falris, o Agrigentino23, Busris, o Egpcio24, Diomedes, o Trcio25 e aqueles

    seguidores de Cron e Pitiocampte26. Quando Radamanto ouviu isso, posicionou os heris na

    costa. Lideravam-nos Teseu, Aquiles e jax Telamnio, que j havia voltado a si. Embatendo-se,

    lutaram, e os heris venceram, com Aquiles triunfando a maior parte do combate. Scrates,

    posicionado direita, tambm foi um dos melhores, muito mais do que, quando vivo, lutou em

    Dlion, pois quando quatro inimigos atacaram, no fugiu e sua expresso manteve-se inalterada.

    Por isso, depois tambm para ele foi construdo um excelente, belo e grande jardim nos arredores

    da cidade, onde convidando amigos, dialogava, referindo-se ao local como Necracademia.

    20

    Aqui adoto a soluo aceita por Bompaire em sua edio do texto (Oeuvres, tome II, Paris, Les Belles Lettres,2003), que entende como correo mais interessante a sugerida por Paulmier, que altera Ka/roj, personagemtotalmente desconhecido, para Ka/proj, nome do primeiro atleta, depois de Hracles, a vencer na luta e nopancrcio no mesmo dia, em 212 a.C. Macleod (Opera, tomus I, Oxford, Clarendon Press, 1987) adota a correosugerida por Gronovius,Ka/ranoj, nome de um Herclida.21rio provavelmente nome de um atleta que realmente existiu.22Homero o apresenta como grande pugilista (Il.23.653-699).23Tirano de craga, sc VI a.C. Notrio por sua crueldade, tema de dois textos de Luciano, Falris IeII.24Personagem da mitologia, rei do Egito, que costumava sacrificar os estrangeiros. Foi morto por Hracles.25Rei da Trcia, dono das quatro guas que se alimentavam de carne humana e que Hracles deveria levar a Euristeucomo cumprimento de seu oitavo trabalho. Foi morto pelo heri.26Dois famosos bandoleiros mortos por Teseu em seu caminho para Atenas.

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    [24] Ento, depois de prender os vencidos e de amarr-los, enviaram-nos para ser ainda

    mais castigados. Homero escreveu tambm essa guerra e, quando parti, deu-me os livros para

    traz-los para os homens de nosso pas. Mas mais tarde tambm eles, com outras coisas, perdi. O

    princpio do poema era este: Agora canta-me, Musa, a guerra dos heris mortos. Em seguida,

    cozendo favas, como costume entre eles sempre que triunfam na guerra, celebraram a vitria e

    fizeram uma enorme festa. Somente Pitgoras no participou dela, mas sem comida, sentou-se

    longe, horrorizado com a comilana de favas.

    [25] Quando j se tinham passado seis meses e estvamos na metade do stimo, novos

    fatos sucederam-se. O filho de Cntaro, o forte e belo Ciniras, h muito tempo j estava

    apaixonado por Helena e no era segredo que ela amava o jovem loucamente. De fato, comfreqncia faziam sinais com a cabea durante o banquete, bebiam saude um do outro e,

    levantando-se, sozinhos vagueavam pela floresta. Um dia, por amor e por sua impossibilidade,

    Ciniras, depois de raptar tambm a ela isso pareceu boa idia -, resolveu partir dali em direo a

    alguma das ilhas prximas, de certo para Cortia ou para a Queijosa. H pouco haviam tomado

    seu lado como cmplices os trs mais audaciosos entre meus companheiros. Ao seu pai,

    entretanto, isso no revelou, pois sabia que seria por ele impedido. Quando lhes pareceu ser um

    bom momento, executaram seu plano. Assim que caiu a noite eu mesmo no estava presente,

    pois por acaso repousava no banquete -, desapercebidos pelos outros, depois de tomar Helena,

    levaram-na apressadamente.

    [26] Cerca de meia-noite, tendo despertado, quando percebeu a ausncia de sua mulher

    no leito, Menelau deu um grito e, tomando ao seu lado o irmo, dirigiu-se at o rei Radamanto.

    Quando raiou o dia, os vigias disseram ter observado a nau muito afastada. Ento Radamanto fez

    subir cinqenta heris em uma nau feita inteiramente de asfdelo e ordenou que os perseguissem.

    Cerca de meio-dia, aqueles que os perseguiam com ardor prenderam-nos no momento em que

    entravam em um local leitoso do oceano, perto de Queijosa. Chegaram at ali em fuga, masdepois de amarrar a nau com uma corrente de rosas, navegaram de volta. Ento Helena chorou,

    envergonhou-se e escondeu-se e Radamanto, tendo interrogado primeiramente os seguidores de

    Ciniras se outros eram seus cmplices, como disseram que no havia ningum, depois de mandar

    amarr-los pelas suas partes pudentas, enviou-os para a Ilha dos mpios - mas antes foram

    aoitados com malva.

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    [27] Votaram que tambm ns, que ainda estvamos dentro do nosso prazo, fssemos

    expulsos da ilha, podendo permanecer apenas at o dia seguinte. Ali mesmo eu invoquei os

    deuses e chorei por todas as coisas boas que eu estava prestes a deixar para trs, a vaguear

    novamente. Eles reconfortaram-me, entretanto, dizendo que no se passariam muitos anos at que

    eu chegasse de novo at eles, que meu j era o assento seguinte, e apontaram um leito perto dos

    melhores. Depois dirigi-me a Radamanto e muito supliquei para que ele falasse o que estava por

    vir e para que me indicasse o curso da navegao. Ele declarou que eu voltaria minha ptria,

    mas que antes muito vaguearia e correria perigos. No quis determinar o dia de meu retorno, mas

    mostrando as ilhas prximas apareceram em nmero de cinco, mas havia uma sexta, distante -,

    declarou que essas, as prximas, eram as dos mpios. Nelas, ele disse, j consegues verquanto fogo arde e aquela sexta a cidade dos Sonhos. Depois dela, est a ilha de Calipso, mas

    ainda no visvel para ti. Quando tiveres costeado tais ilhas, chegars ao enorme continente

    oposto ao que habitado por vs. A, quando tiveres sofrido muitas coisas e encontrado raas

    variadas, residindo em um pas de homens que no se misturam, depois de algum tempo voltars

    para o outro continente".

    [28] Disse tais coisas e, ao retirar da terra uma raiz de malva, estendeu-a a mim,

    ordenando que com ela orasse quando dos maiores perigos. Deu-me o conselho, se acaso um dia

    chegasse minha terra, de no atiar o fogo com um cutelo, de no ingerir alimentos quentes nem

    de manter relaes com meninos de mais de dezoito anos, pois esperava que ao lembrar dessas

    coisas, eu assegurasse minha chegada ilha. Ento fiz os preparativos da navegao e, como

    houve ocasio, com eles festejei. No dia seguinte, dirigindo-me ao poeta Homero, pedi que ele

    compusesse para mim um dstico epigramtico. Quando o comps, inscreveu-o sobre uma estela

    de pedra-berilo, erigindo-a prxima ao porto. Este era o epigrama:

    Luciano, querido dos deuses bem-aventurados,

    tudo isso viu e novamente se foi para a terra ptria querida.[29] Depois de l permanecer tambm aquele dia, no seguinte conduzi a nau,

    acompanhado pelos heris. Ento at mesmo Odisseu dirigiu-se a mim, escondido de Penlope, e

    deu-me uma carta para levar at Oggia, a ilha de Calipso. Radamanto enviou comigo o barqueiro

    Nuplio27, para que, se desembarcssemos nas ilhas, ningum nos prendesse por estarmos

    navegando por motivo de comrcio.

    27Piloto na expedio dos Argonautas, pai de Palamedes.

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    Quando, ao avanar, passamos pelo ar perfumado, de imediato recebeu-nos um

    odor terrvel, como de betume, enxofre e pez queimando ao mesmo tempo; alm de uma fumaa

    ruim e insuportvel, como se homens estivessem sendo queimados, e um ar sombrio e nublado,

    do qual gotejava orvalho pezenho. Tambm ouvamos o barulho de chicotes e o gemido de

    muitos homens.

    [30] Das outras ilhas no nos aproximamos, mas aquela em que desembarcamos tinha o

    seguinte aspecto: ao redor, era toda ngreme e escarpada, ressecada por pedras e asperidades, e

    no havia nela nenhuma rvore nem gua. Rastejando pelos precipcios, avanamos por meio de

    um caminho espinhoso e cheio de estacas, sendo um pas de muita feira. Quando fomos priso

    e ao punitrio, ficamos primeiro admirados com sua natureza. No prprio cho, floresciamnavalhas e espinhos por toda parte e os rios corriam em crculo - um de lodo, outro de sangue.

    Um, de fogo, era muito alto e intransponvel, corria como gua, ondulava como o mar e tinha

    muitos peixes semelhantes a ties e, os menores, a carves queimados. Chamavam-nos

    lampadazinhas.

    [31] No meio de tudo isso havia uma nica entrada estreita e Tmon, o Ateniense28,

    estava ali parado como seu guardio. Passamos por ela, entretanto, tendo Nuplio nos apontado a

    direo, e vimos muito reis e tambm muitos homens comuns sendo castigados, dos quais

    reconhecemos alguns. Vimos tambm Ciniras, coberto de fumaa, suspenso pelas partes

    pudentas. Os guias expunham as vidas de cada um deles e os erros pelos quais eram punidos. As

    maiores punies entre todas suportavam-nas os que de algum modo mentiram ao longo da vida e

    os que no escreveram a verdade, entre os quais estavam Ctsias de Cnido, Herdoto e muitos

    outros. Ento, ao v-los, eu tive boas expectativas para o porvir. Pois tinha conscincia de que eu

    mesmo nenhuma mentira havia contado.

    [32] Rapidamente retornando para a nau pois no era capaz sequer de suportar aquela

    viso -, aps saudar Nuplio, de l naveguei. Em pouco tempo, surgiu prxima a Ilha dos Sonhos,indistinta e pouco clara de se ver. Tambm ela era algo afetada pelos sonhos: ao nos

    aproximarmos, ela retirava-se, esquivava-se e para mais longe recolhia-se. Enfim a alcanamos e

    navegamos em direo ao chamado Porto do Sono, perto das portas de marfim, onde estava o

    Templo do Galo, e desembarcamos no fim da tarde. Passando pela cidade, vimos muitos e

    28Clebre misntropo, que teria vivido na poca da guerra do Peloponeso (Plutarco, Anton.70). personagem de umdilogo de Luciano que leva o seu nome.

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    variados sonhos; mas quero primeiro falar sobre a cidade, j que nada foi escrito a seu respeito

    por ningum mais; mencionou-a apenas Homero, que no a descreveu de modo muito preciso.

    [33] Em todo o seu entorno, h uma floresta cujas rvores so dormideiras altas e

    mandrgoras, sobre as quais havia uma grande quantidade de morcegos, pois na ilha h somente

    essa ave. Prximo dali corre um rio, o que era chamado por eles de Passagem Noturna, e h duas

    fontes ao lado das portas. Os nomes delas so, de uma, Desacordada e, de outra, Pernoite. O muro

    da cidade alto e colorido, semelhante ao arco-ris na cor. As portas, porm, ali no so duas,

    como disse Homero, mas quatro: duas voltadas para a Plancie da Indolncia, uma feita de ferro,

    outra de argila, das quais dizem partir os sonhos amedrontadores, sanguinrios e indecentes e

    duas voltadas para o porto e para o mar, uma de chifre e outra, pela qual ns passamos, feita demarfim. Ao entrar na cidade, direita est o Templo da Noite - pois l veneram dentre os deuses

    sobretudo a ela e ao Galo. Para ele, foi feito um santurio perto do porto. esquerda fica o

    Palcio do Sono. Ele governa o pas, tendo institudo dois strapas tambm governantes, Agitado,

    filho de Frivolognio e Rico, filho de Apario. No meio da gora, h uma fonte que chamam

    Soporal e perto dali h dois templos, um do Engano e um da Verdade. L, tambm est o dito e

    o orculo, que Antfon, o intrprete dos sonhos29, preside sendo profeta, depois de obter o posto

    do rei Sono.

    [34] Com relao aos Sonhos, por sua vez, nem a sua natureza nem a sua aparncia

    eram as mesmas, mas havia, de um lado, os grandes, belos e agradveis, de outro, os pequenos e

    amorfos, e ainda os que me pareceram ser de ouro e os humildes e comuns. Entre eles, havia

    tambm alguns com asas e monstruosos e outros arrumados como para uma procisso: uns

    enfeitados como reis, uns como deuses e outros de maneiras diversas. Reconhecemos muitos

    deles, pois os tnhamos visto outrora entre ns; eles aproximaram-se e cumprimentaram-nos

    como se fossem nossos conhecidos e, tendo nos acolhido e nos feito dormir, hospedaram-nos

    muito esplndida e gentilmente, preparando-nos uma recepo magnfica e prometendo nostornar reis e strapas. Alguns at nos conduziram para a ptria, mostraram-nos nossos familiares

    e no mesmo dia trouxeram-nos de volta.

    29H controvrsia acerca da identidade de Antfon. Parece ter havido dois contemporneos de mesmo nome, Antfonorador (c.480-411 a.C.), autor das Tetralogias, que pode ou no ser tambm o sofista Antfon, autor de DaIntepretao dos Sonhos.

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    [35] Trinta dias e mesmo nmero de noites permanecemos entre eles, recebendo muitas

    regalias ao dormir. Ento, quando de repente estrondou um grande trovo, acordamos assustados

    e zarpamos, depois de nos ter aprovisionado. Aps trs dias, tendo atracado na Ilha de Oggia,

    desembarcamos. Antes, abri a carta e li o que nela estava escrito. Era isto: Odisseu sada

    Calipso. Que tu saibas que tendo eu primeiramente partido de perto de ti navegando equipado de

    uma jangada, depois de sofrer um naufrgio, com dificuldade fui posto a salvo por Leucotia no

    pas dos Fecios, pelos quais fui enviado para casa, onde me deparei com muitos pretendentes de

    minha mulher vivendo como boas-vidas em nosso palcio. Depois de mat-los todos, pereci pela

    mo de Telgono, o filho que tive com Circe e eu estou agora na Ilha dos Bem-Aventurados,

    lamentando muito ter deixado a vida ao teu lado e a imortalidade que me propuseste. Ento, seme surgir a oportunidade, fugindo, irei ter contigo. Isso revelava a carta e, sobre ns, que

    fssemos recebidos como hspedes.

    [36] Eu, tendo pouco avanado a partir do mar, descobri a gruta tal como Homero a

    descreveu e Calipso fiando a l. Quando tomou a carta e leu-a, primeiro durante muito tempo

    chorou, depois convidou-nos para os ritos de hospitalidade e para uma festa esplndida e quis

    informar-se acerca de Odisseu e Penlope, qual era a aparncia dela e se era sensata como

    Odisseu outrora enfatizara a seu respeito. Ns respondemos aquilo que presumimos agrad-la.

    Certa hora, partimos e repousamos na costa, perto do navio.

    [37] Ao amanhecer, zarpamos, com mais fora soprando o vento. Depois de dois dias

    de tempestade, no terceiro, defrontamo-nos com os Aboboropiratas. Eles so homens selvagens

    das ilhas prximas que roubam os que esto a coste-las. Tm enormes barcos de abbora, de

    trinta metros de extenso; depois de secar uma abbora, de cav-la e de esvaziar o seu interior,

    navegam nela utilizando mastros de junco e, no lugar da vela, folha de abbora. Ento,

    avanando sobre ns em duas equipagens, comearam a atacar e a ferir muitos dos nossos,

    atirando semente de abboras. Por muito tempo travamos a batalha naval quase em igualdade e,por volta de meio-dia, vimos navegando na direo dos Aboboropiratas os Noznautas. Eles so

    inimigos uns dos outros, como ficou claro. Uma vez que aqueles perceberam-nos avanar, pouco

    se importaram conoso e, voltando-se contra eles, travaram uma batalha naval.

    [38] Enquanto isso, depois de ajustar a vela, ns fugimos, deixando-os a lutar; era

    evidente que os Noznautas os dominariam, tambm porque eram em maior nmero pois tinham

    cinco equipagens e lutavam com naus mais fortes. Seus barcos eram metades vazias de cascas

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    de nozes e o tamanho de cada metade era de cinco metros em extenso. J que tnhamos nos

    escondido deles, cuidamos das feridas e, posteriormente, ficamos armados quase todo o tempo,

    sempre aguardando alguma cilada. No foi em vo.

    [39] De fato, o sol ainda no havia se posto quando de uma ilha deserta avanaram em

    nossa direo cerca de vinte homens montados sobre enormes golfinhos e tambm eles eram

    piratas. Os golfinhos levavam-nos com firmeza e, saltando, relinchavam como cavalos. Quando

    se aproximaram, uns postos de um lado, uns do outro, atiraram em ns peixes secos e olhos de

    caranguejo. Ns usvamos arcos e lanas e, sem poder mais suportar a situao, feridos em sua

    maioria, fugiram para uma ilha.

    [40] Cerca de meia-noite, quando havia uma calmaria, dirigindo-nos terra, semperceber atracamos em um enorme ninho de alcone. Ele tinha ao menos uns dez quilmetros de

    permetro. Ento o alcone avanou pelo mar, pois estava chocando os ovos, e no era muito

    menor do que o ninho. Ao voar, por pouco no fez submergir nossa nau com o vento que criou

    com as asas. Depois partiu, fugindo, a emitir um som lastimoso. Aps desembarcar, quando o dia

    j comeava a raiar, observamos o ninho, que era semelhante a uma enorme jangada, construda

    com rvores enormes. Sobre ele, havia quinhentos ovos, cada um deles mais largo do que um

    tonel de vinho de Quios. Os filhotes l dentro, por sua vez, j comeavam a surgir e a grasnar.

    Batendo com machados nos ovos, fizemos eclodir um filhote ainda sem penas, mais forte do que

    vinte abutres.

    [41] Quando, ao navegar, tnhamos nos afastado do ninho cerca trinta e cinco

    quilmetros, manifestaram-se para ns grandes e admirveis portentos. O ganso de madeira que

    ornamentava o extremo da popa bateu asas acima de ns e grasnou; comeou a crescer cabelo no

    nosso capito Cntaro, que j era calvo, e a coisa mais extraordinria de todas: o mastro da nau

    germinou, cresceram-lhe ramos, sobre a sua ponta nasceram frutos e os seus frutos eram figo e

    uva preta, ainda no maduros. Vendo isso, como era natural, ficamos agitados e oramos aosdeuses por causa de to estranha apario.

    [42] Quando ainda no tnhamos percorrido noventa quilmetros, vimos uma floresta

    grande, coberta de pinheiros e ciprestes. Ns supusemos ser terra firme, mas era o alto-mar,

    profundo, que havia sido plantado com rvores sem raiz. As rvores, porm, ficavam imveis,

    eretas como se navegassem. Aps nos aproximar e examinar tudo, ficamos sem saber o que

    poderamos fazer, pois nem era possvel navegar pelo meio das rvores pois eram grossas e

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    nasciam contguas nem parecia fcil retornar. Ao subir na maior rvore, observei como era a

    regio adiante, vendo que a floresta ocupava nove quilmetros ou pouco mais e que, em seguida,

    havia novamente outro oceano. Decidimos, tendo colocado a nau sobre a copa das rvores pois

    era espessa , caso consegussemos, passar por cima at o outro mar. Assim fizemos. Atando-a

    com uma grande corda e subindo sobre as rvores, com dificuldade a puxamos e, postos sobre os

    ramos, depois de desdobrar a vela, como no mar navegamos, impulsionados pela corrente de

    vento. L ocorreu-me o verso do poeta Antmaco pois ele diz em algum lugar: "Aos que vm

    pela navegao florestal"30.

    [43] Ao abrir caminho pela floresta, entretanto, alcanamos a gua e, novamente

    descendo a nau do mesmo modo, navegamos pela gua pura e lmpida at que topamos com umaenorme fenda que surgiu quando a gua se dividiu, como freqentemente vemos surgirem

    rachaduras na terra por causa de tremores. Ento, depois de abaixar a vela, no foi com facilidade

    que a nau se estabilizou e por pouco no despencou. Curvando-nos, vimos uma profundeza de

    cerca de cento e oitenta quilmetros, muito amedrontadora e extraordinria: a gua l ficava

    como que dividida. Olhando ao redor, vimos no lado direito, no muito distante, uma ponte

    atravessando a gua, a qual visivelmente unia os mares, ao fluir de um para o outro. Avanando

    ento com os remos, passamos correndo por ali e, com muita agonia, atravessamos, embora no

    tivssemos nenhuma expectativa de consegui-lo.

    [44] L, fomos recebidos por um alto-mar tranquilo e uma ilha no muito grande,

    acessvel e povoada. Habitavam-na homens selvagens, os Bucfalos, que tinham chifres, como

    entre ns do forma ao Minotauro. Desembarcando, avanamos para nos abastecer de gua e

    recolher alimento, se em algum lugar o consegussemos, pois no mais os tnhamos. Encontramos

    gua ali perto, mas nada mais apareceu, exceto um grande mugido, que foi ouvido de algum lugar

    no longe dali. Ento, acreditando haver l um rebanho de bois, pouco depois, quando

    prosseguamos, topamos com homens. Eles, ao nos verem, perseguiram-nos e apanharam trs demeus companheiros, enquanto o resto conseguiu fugir at o mar. Em seguida, entretanto, todos se

    armaram pois decidimos no deixar nossos amigos sem vingana -, e atacamos os Bucfalos,

    que dividiam entre si os corpos dos que tinham sido apanhados. Amendrontando-os, perseguimos

    todos, matamos cerca de cinqenta e capturamos dois deles