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UNIJUÍ - UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL Departamento de Economia e Contabilidade Departamento de Estudos Agrários Departamento de Estudos da Administração Departamento de Estudos Jurídicos CURSO DE MESTRADO EM DESENVOLVIMENTO AIRTON RIBEIRO DA SILVA ECONOMIA DE MERCADO E DESENVOLVIMENTO HUMANO: POSSIBILIDADE OU UTOPIA? Ijuí (RS) 2008

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UNIJUÍ - UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTAD O DO RIO GRANDE DO SUL

Departamento de Economia e Contabilidade Departamento de Estudos Agrários

Departamento de Estudos da Administração Departamento de Estudos Jurídicos

CURSO DE MESTRADO EM DESENVOLVIMENTO

AIRTON RIBEIRO DA SILVA

ECONOMIA DE MERCADO E DESENVOLVIMENTO HUMANO:

POSSIBILIDADE OU UTOPIA?

Ijuí (RS)

2008

Livros Grátis

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1

AIRTON RIBEIRO DA SILVA

ECONOMIA DE MERCADO E DESENVOLVIMENTO HUMANO:

POSSIBILIDADE OU UTOPIA?

Dissertação de Mestrado apresentada ao Curso de Pós-Graduação Stritu Sensu - Mestrado em Desenvolvimento, área de concentração Gestão e Políticas de Desenvolvimento, Linha de Pesquisa Direito, Cidadania e Desenvolvimento, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ), como requisito parcial à obtenção do título de Mestre.

Orientador: Professor Doutor Argemiro Luís Brum

Ijuí (RS) 2008

2

UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul

Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento – Mestrado

A Banca Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação

EECCOONNOOMM II AA DDEE MM EERRCCAADDOO EE DDEESSEENNVVOOLL VVII MM EENNTTOO HHUUMM AANNOO::

PPOOSSSSII BBII LL II DDAADDEE OOUU UUTTOOPPII AA??

elaborada por

AIRTON RIBEIRO DA SILVA

como requisito parcial para a obtenção do grau de

Mestre em Desenvolvimento

Banca Examinadora:

Prof. Dr. Argemiro Luis Brum (UNIJUÍ): _________________________________________ Prof. Dr. Luiz Ernani Bonesso de Araújo (UFSM): __________________________________ Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin (UNIJUÍ): ________________________________________

Ijuí (RS), 25 de agosto de 2008.

A meu pai, João Antonio (falecido)

homem simples, mas de visão longa, que

resolveu mudar domicílio para o bem da

educação de seus filhos e sucessores.

A minha companheira, amiga e parceira,

Maria Helena, por ter acreditado em mim e ter

dado o ponta-pé inicial no mestrado, somado

as noites de estudos, de comunhão e da

coragem com que demonstrou no período,

quando enfrentou sérios problemas de saúde.

A meus filhos Airton Junior e João Paulo,

pelo comportamento e compreensão em face

das necessárias ausências, e Luiz Eduardo, um

presente concebido durante o mestrado, todos

verdadeiros motivos de nossa caminhada.

A minha mãe e meus irmãos, à nossa

história de mudança de paradigmas.

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Dr. Argemiro Luis Brum, pela sincera e dedicada

orientação, pelas sugestões e pela competência na transferência de conhecimentos,

sem os quais, não teríamos sucesso, e principalmente, pelo apoio e incentivo,

justamente quando ele próprio enfrentava momento cirúrgico delicado.

A Profª Dra. Raquel Fabiana Sparenberger, pelo acolhimento e incentivo,

quando do ingresso na primeira aula da academia.

Ao Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin, pela simplicidade e excelência no transmitir

dos conhecimentos, sem os quais, dificilmente teríamos concluído com sucesso

nossa caminhada cientifica.

A Profª Dra. Odete Maria de Oliveira, pela sua obra, qualificação intelectual e

dedicação à produção científica.

Ao Prof. Dr. Luiz Ernani Bonesso de Araújo, pela confiança, sabedoria e

amizade, qualidades que nos fizeram mais digno da transformação.

Aos demais professores do Mestrado, que com seus qualificados

conhecimentos, fizeram mais fácil o abrir de novos e desconhecidos horizontes.

Aos colegas de Mestrado, pela amizade e pelos momentos agradáveis os

quais brindamos juntos, em especial, a colega Alexandra, que fazia das viagens,

verdadeiro embate de conhecimentos, e principalmente, a amiga, companheira de

6

todas as horas, Maria Helena, pelo equilíbrio, dedicação e apoio em nossa

caminhada.

Aos meus amigos e colegas de escritório, pela compreensão e pelas

ausências na atividade diária, as quais, pelo comprometimento, não atrapalharam o

andamento e a qualidade dos trabalhos na advocacia.

A Profª Tânia Rubin Deutschmann, pelo desprendimento, qualificação e

competência demonstrada na correção das normas da ABNT, sem as quais o

trabalho não teria caráter cientifico.

A UNIJUÌ, pela importância do Mestrado em Desenvolvimento, e pela

oportunidade que concebe através do corpo docente altamente qualificado.

RESUMO

A presente pesquisa teve como escopo averiguar o desenvolvimento do

homem no mundo, seu transcurso através do tempo, incrementado pela globalização, e sua escolha pelo capital, face sua dignidade humana, e sua inserção no contexto econômico, filosófico, biológico e jurídico. Para elaboração dessa pesquisa, observou-se o método dedutivo e a técnica da pesquisa bibliográfica, visando a construção de um referencial teórico de modo a contribuir para uma melhor reflexão critica sobre o tema. Dentro deste contexto, fez-se uma análise da globalização humana desde seus primórdios, suas origens e estruturas, passando pelo período realista, idealista e contemporâneo, suas vantagens e desvantagens e seus efeitos na atualidade. A seguir, faz-se analise das teorias clássicas do mercado, trabalho e valor, e das bases teórica do neoliberalismo, e seus efeitos no mundo e nas economias nacionais, e sua implementação no contexto jurídico constitucional interno. Por fim, adentrou-se no estudo da dignidade humana, tendo como base a moral kantiana, através da reflexão filosófica, biológica e jurídica, perpassando sua efetividade ou não pelo direito judiciário, de modo à saber se é possível seu desenvolvimento na economia de mercado.

Palavras-chave: Desenvolvimento Humano. Globalização. Economia de

Mercado. Dignidade Humana.

RESÚMEN

La presente pesquisa tuvo como finalidad averiguar el desarrollo del hombre en el mundo, su transcurso en el tempo, incrementado por la globalización, suya opción por el capital contraste la dignidad del hombre y suya inserción en el contexto económico, filosófico, biológico, y jurídico. Para la elaboración de esa pesquisa utilizase el método deductivo y la técnica de pesquisa bibliografiíta, buscando la construcción de un referencial teórico para contribuir para una mejor reflexión crítica acerca el tema. En ese contexto, hizo-se una analice de la globalización del hombre desde sus primordios, sus orígenes y estructuras, pasando por el período realista, idealista y contemporáneo, sus ventajes y desventajas, y sus efectos en la actualidad. Siguiendo, hizo-se una analice de las teorías clásicas del mercado, trabajo y valor, y de las bases teóricas del neoliberalismo y sus efectos en el mundo y en las economías nacionales, y su implementación en el contexto jurídico constitucional interno. Finalizando, pesquisó-se el estudio de la dignidad humana, tiendo como base la moral kantiana, por la reflexión filosófica, biológica y jurídica, pasando su efectividad o no por el directo judiciario, para saber si es posible su desarrollo en la economía del mercado.

Palabras-clave: Desarrollo humano. Globalización. Economía de mercado.

Dignidad del hombre

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Indicadores da globalização comercial e financeira ................................26

Tabela 2: Produção de trigo .....................................................................................79

Tabela 3: Vantagens comparativas (horas de trabalho/unidades produzidas) ........81

Tabela 4: Vantagem comparativa .............................................................................81

Tabela 5: Desvantagem comparativa .......................................................................81

Tabela 6: O encerramento nos Estados Unidos e na União Européia em

1997 .......................................................................................................................119

Tabela 7: Diferencial de encarceramento entre negros e brancos (incluindo latinos)

em número de detentos para cada 100.000 adultos .............................................121

LISTA DE ABREVIATURAS

CE - Comunidade Européia

CPI - Comissão Parlamentar de Inquérito

FAO - Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação

GATT- Acordo de Tarifas e Comércio

IDH – Índice de Desenvolvimento Humano

IDS - Índice de Desenvolvimento Social

INAE - Instituto Nacional de Altos Estudos

IPRS - Índice Paulista de Responsabilidade Social

NEPP - Núcleo de Estudos de Políticas Públicas

OECD - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico

ONU - Organização das Nações Unidas

OMC - Organização Mundial do Comércio

PAEs - Planos de Ajuste Estrutural

PIB - Produto Interno Bruto

PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..........................................................................................................13 1 A GLOBALIZAÇÃO ATUAL....................................................................................21 1.1 A evolução da globalização até nossos dias: uma rápida análise.......................34 1.2 Sistema imperial globalizador – um viés interessante........................................36 1.3 Globalização pós-guerra ....................................................................................38 1.4 Globalização no período idealista ......................................................................40 1.5 A globalização imperialista e colonialismo ..........................................................47 1.6 A globalização no período realista ......................................................................51 1.7 Globalização – vantagens e desvantagens .......................................................61 2 A ECONOMIA DE MERCADO NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO ATUAL.....75 2.1 O mercado produtivo e a globalização ...............................................................75 2.1.1 A teoria de David Ricardo................................................................................77 2.1.1.1 Teoria do valor – trabalho ............................................................................77 2.1.1.2 Teoria da distribuição e da renda .................................................................78 2.1.1.3 Teoria do comércio internacional .................................................................80 2.1.1.4 Princípio da vantagem comparativa .............................................................80 2.2 Marx e sua teoria.................................................................................................83 2.2.1 Método da extração da mais-valia absoluta ....................................................88 2.2.2 Método da redução do tempo necessário – “mais valia relativa”.....................88 2.3 Fundamentos teóricos do mercado .....................................................................89 2.3.1 A base teórica do neoliberalismo .....................................................................91 2.3.1.1 A primeira dicotomia de Hayek .....................................................................92 2.3.1.2 Da segunda dicotomia de Hayek ..................................................................93 2.3.1.3 Da terceira dicotomia de Hayek ...................................................................94 2.3.1.4 A quarta dicotomia de Hayek .......................................................................95 2.3.1.5 A quinta dicotomia de Hayek ........................................................................97 2.4 A economia de mercado – neoliberalismo - na globalização atual.....................99 2.4.1 Nasce o Estado Mínimo .................................................................................103 2.4.1.1 O desemprego estrutural e o fantasma da inutilidade ................................103 2.4.1.2 Da favelização neoliberal – uma sinopse parcial ......................................109 2.4.1.3 Os pobres e o Estado Mínimo Policial Americano – um viés esclarece -dor .........................................................................................................................116 2.5 A globalização atual e seus efeitos no mundo .................................................122 2.6 O lado positivo da economia de mercado na atual globalização.......................127 2.6.1 O trabalho – fonte de valor ............................................................................128

12

2.6.2 Os rendimentos – os salários, os lucros, e a renda da terra .........................129 2.6.3 A divisão do trabalho, e o aumento da produção e produtividade.................131 2.6.4 A função do Estado .......................................................................................134 2.6.5 Mas a nível global, quais seriam os pontos positivos?..................................135 3 O DESENVOLVIMENTO HUMANO PODE PROSPERAR NO QUADRO DE UMA ECONOMIA DE MERCADO?..................................................................................147 3.1 Conceito de dignidade humana........................................................................150 3.1.1 A dignidade humana – uma reflexão filosófica ..............................................154 3.1.2 Dignidade humana – uma reflexão biológica.................................................158 3.1.3 Desenvolvimento humano no mercado .........................................................161 3.1.3.1 O que é desenvolvimento humano .............................................................168 3.2 Elementos jurídicos e a eficácia do principio da dignidade humana no merca- do ............................................................................................................................179 3.2.1 Direitos legais reais e direitos legais potenciais e sua garantia de fruição.....181 3.2.2 O direito e a moral a partir de Kant ................................................................183 3.2.3 O princípio da dignidade, o desenvolvimento humano e sua concretização na atualidade sob a ordem jurídica e o estado de direito .............................................187 3.2.3.1 É possível?..................................................................................................193 3.2.3.2 O princípio da reserva do possível – um viés à parte .................................197 3.2.3.3 E o papel do judiciário na efetividade do humano .......................................200 3.4 O desenvolvimento humano pode prosperar na economia de mercado? .........203 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................216 REFERÊNCIAS.......................................................................................................223

13

INTRODUÇÃO

Em pleno século vinte e um, enquanto assistimos à consolidação do

capitalismo no mundo e sua acelerada implementação global, o homem, como

artífice de sua liberdade, ainda especula sobre qual será o seu futuro.

Vivemos dias de insegurança e medo, enquanto temos a certeza de que

evoluímos de forma espetacular, na medida em que nos comparamos com aqueles

que habitavam o tempo medieval.

Nesse período, até hoje, fomos escravos, proprietários, patrícios, servos,

artesãos, clérigos, vassalos, soldados, nobres, comerciantes e, em especial, - como

os defensores do existencialismo1, - “o próprio arquiteto e construtor” de nosso

próprio destino.

Um “paradoxal” e contraditório “destino”, nas exatas significações

kierkegaardianas2.

Dentro desta ótica, pretendemos estudar o homem e sua dignidade, ele como

fim e não meio, e sua escolha pelo “capital”, que se de um lado já produziu as

maiores riquezas no mundo, de outro, não podemos negar, já produziu na mesma

intensidade enorme dimensão de deserdados e excluídos, isto sem falar nas guerras

que dizimaram povos às centenas de milhares.

1 Movimento que teve como precursores Sören Kierkegaard, Miguel de Unomano e Martin Heidegger e pensadores importantes como Jean-Paul Sartre, Karl Jaspers, Gabriel Marcel. 2 Sören Aabye Kierkegaard nasceu em Copenhague, em 5 de maio de 1813, e morreu em 11 de novembro de 1855.

14

Deste modo, o paradoxo atual reside no fato de que não há como negar o

capital, pois ele, como escolha da humanidade, já está consolidado, e não restam

dúvidas de seu império na existência, tendo produzido a queda de outros

paradigmas, como foi a derrubada do muro de Berlin e a derrocada da “cortina de

ferro”. Porém, é ele, o capital, por sua existência e mobilidade, introdução e higidez,

que consegue transformar o homem, influindo inclusive no seu conceito de

“dignidade”, confundindo seu criador, no momento de sua aplicação, minimizando na

prática sua eficácia e, porque não dizer, até eventualmente chegando a negá-la ao

longo do tempo.

Tomando como exemplo o jovem Kierkegaard, que se sentia atraído pelo

problema do homem no mundo (FARAGO, 2006), buscaremos entender o paradoxo

do desenvolvimento humano pelo capital (ou no capital), em face da globalização

econômica em relevo.

Hoje, na falta de paradigmas de igual potencialidade, o “capital” é singular,

enquanto movimento econômico, como era o homem na filosofia existencialista, do

filósofo dinamarquês. Ambos existem no plano universal, e apresentam-se na

realidade concreta. Enquanto isto, embora também exista, por ser inerente ao

homem, a “dignidade” se mostra abstrata, quando esbarra na realidade e na falta de

eficácia de seus princípios. Vale dizer: ela existe, mas não se aperfeiçoa ante o

existencialismo indomável do capital, ao menos em sua plenitude, e dele é

dependente muitas vezes.

Por outro viés, caracterizado pelo incremento a partir do fim da segunda

guerra mundial, e o início do século XXI, ressalta-se o incremento do liberalismo e o

aprofundamento da “globalização”. Embora hoje mais visível se apresenta a

globalização econômica e financeira, ocorre cada vez mais a aproximação política,

jurídica e cultural entre os povos.

Nesse contexto, não se pode deixar de anotar também que o paradigma do

realismo político incrementou-se sobremaneira, com o fim da Segunda Grande

Guerra, estendendo-se até os anos sessenta, justamente em época que vicejou a

guerra fria entre as maiores potências confrontando, de um lado o socialismo e de

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outro o capitalismo. Alicerçados pelos princípios maquiavélicos de que “os fins

justificam os meios”, na conquista e manutenção de um Estado forte e hobbesiano,

“no qual os homens vivem em constante guerra, na competição, desconfiança e

glória” (OLIVEIRA, 1998, p. 46), o período idealista foi suplantado. Movimento este

que caracterizou o período, Pós-Primeira Grande Guerra. O mesmo inspirava-se em

regras éticas, que transformadas em princípios jurídicos, padronizavam as relações

entre nações.

Posteriormente, na alvorada da Guerra Fria, exatamente em 1948, Hans J.

Morgenthau3, conhecido como o Novo Maquiavel, defendia que “o poder e a procura

do poder é o fundamento de toda relação política”. Como tal, isto não era bom, pois

conferia a todos os homens um ardente desejo de poder, ou “animus dominandi”,

fazendo-os agir como ave de rapina em nível de relações entre grupos sociais e

entre si (OLIVEIRA, 1998, p. 48).

Nesse contexto, por ter trabalhado com o governo dos EUA, a obra de Hans

Morgenthau influenciou profundamente a formulação da política exterior norte-

americana, instigando, outrossim, o brilhante pensador francês Raymond Aron4 que,

por sua vez, acabou fortalecendo a teoria da Razão de Estado, prevalecendo as

questões de poder e de segurança, desenvolvendo-se a tese ideológica da

segurança nacional, chamado de alta política e os problemas internos como a

economia, chamada de baixa política (OLIVEIRA, 1998).

3 Filho único de uma família judia, nasceu em 1904, em Coburgo, pequena cidade ao Norte da Bavária e faleceu em 1980, em Nova York. Em 1923, ingressou na Universidade de Frankfurt, transferindo-se, posteriormente, para a Universidade de Munich, onde estudou Direito e Filosofia Política, dirigindo-se, então à Suíça, lá realizou trabalhos de pós-graduação no Instituto de Estudos Internacionais de Genebra, lecionando Direito Público na mesma Universidade. Após uma estadia como docente em Madrid (1935-1936), emigrou definitivamente para os Estados Unidos, em 1937. Sem patrocinadores e amigos, nesse país, desenvolveu intensae influente carreira acadêmica, onde foi professor e investigador em Brorryn (1937-1939), na Universidade de Chicago (1943-1971), no City College de Nova York até 1980, quando faleceu (OLIVEIRA, 1998). 4 Nasceu em 1905, em Paris e faleceu em 1983. Doutorou-se na Alemanha. Por trinta anos secretariou o Centro de Estudos Sociais da Escola Normal Superior. Em Londres foi colega de Jean Paul Sartre durante a Segunda Guerra Mundial, participou da direção de Combat e La France Libre. Na carreira jornalística, foi colunista do Le Figaro e do L’Express. Nos idos de 1955 lecionou na Universidade de Paris, e a partir de 1970, no Colége de France. Considerado um dos filósofos políticos mais respeitados do século XX (OLIVEIRA, 1998).

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Na verdade, buscava-se a contenção do expansionismo soviético no plano

externo e o combate aos movimentos de esquerda com inspirações socialistas no

plano interno.

A importância de estudar esse fenômeno paradigmático na presente

pesquisa, está justamente no fato de que o poder e o uso da força constituem-se no

traço forte do Paradigma Realista que, por sua vez, evoluiu sob a influência da

hegemonia bipolar da economia capitalista, representado pelos EUA, e a economia

planificada, representada pela URSS.

Esses dois pólos, de inegável confronto ideológico, com a criação, de um

lado, da OTAN, que aglutinou os países da Europa Ocidental e os EUA, e de outro,

o PACTO DE VARSÓVIA, que reuniu a Europa Oriental e a URSS, dividiram o

mundo capitalista do mundo socialista.

Dessas duas correntes, que traduzem dois ideais diferentes de concepções

ideológicas, ainda fazem vicejar discussões acaloradas na academia, e fazem da

presente pesquisa, aliada à aplicação da dignidade humana no mercado, seu maior

desafio, mormente quando ainda há, na atualidade, alguns Estados Nacionais

arvorando-se contrários à ordem mundial capitalista, sem, contudo, divorciar-se

dela5.

O Paradigma Realista perdeu força entre os anos de 1960 e 1980, com o

surgimento do Paradigma da Dependência e da Interdependência, época em que

surgiram os chamados países de “centro” (países ricos) e os países “periféricos” (os

países pobres), o que sempre se salientou foi exatamente a discussão entre

capitalismo e socialismo, na medida em que, para alguns, o subdesenvolvimento

5 Falamos de Hugo Chávez e sua proposta de implantar o Socialismo Bolivariano, sem, contudo, deixar de ser um dos maiores exportadores de petróleo. Socialismo Bolivariano é uma expressão utilizada pelos impulsionadores do nascente Partido Socialista Unido da Venezuela. É uma expressão utilizada pelo presidente da Venezuela, para designar sua visão de socialismo que se diferencia, pela sua característica, ao se basear nos trabalhadores e não numa classe operária. Hugo Chávez declarou o que o marxismo-leninismo é um dogma e não assumiria suas bandeiras. O Socialismo Bolivariano se declara defensor das causas democráticas e socialistas bem como se declara progressista.

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dos países pobres e ou do chamado Terceiro Mundo se deu justamente porque a

política capitalista é imperialista, na visão do paradigma da dependência.

Vale dizer, à luz do conceito ideológico marxista, que o capitalismo explora a

periferia, e, com isto, tendo em vista que sua sobrevivência se dá pela exploração da

mão-de-obra barata, acaba por infligir séria baixa na eficácia da dignidade humana,

na razão de que, ao exportar seu capital e parte de sua produção com a finalidade

de obter maiores taxas de lucros, acaba por negligenciar o próprio conceito de

dignidade humana, valor intrínseco da humanidade.

Asseveram tais correntes que os países capitalistas, com o incremento da

globalização econômica, através das empresas multinacionais, transnacionais, ao se

manterem acima e por sobre os Estados, retiram dele a capacidade de atender as

necessidades do homem na sua integralidade, descumprindo, pois, algumas

essenciais soluções sociais, das quais o homem não pode prescindir para

consecução de sua “dignidade”, fazendo de seus princípios constitucionais,

verdadeira falácia jurídica, no âmbito nacional.

Merecedores de atenção, todavia, encontram-se os que defendem o ideal

capitalista, como única forma de realização humana e dignidade no plano da

eficácia. E não poderia ser diferente, afinal, nessa quadra da história. Dificilmente

em tempo curto, caberia uma reversão.

Nesse contexto, indaga-se: É possível o desenvolvimento humano, pelo

mercado, em tempos de globalização econômica?

Há quem diga que o seu desenvolvimento vem quando o homem der a

merecida importância ao “capital social”, conforme lembra Monastério (2006)

relembrando Robert Putnam.

Há também os que defendem que tais avanços podem ser efetivados através

de normas e princípios constitucionais aplicáveis, aparelhando o Estado de

instrumentos jurídicos eficazes. Há os que defendem que o Estado deve estar

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preparado, e ser competente6, agindo como organizador e uma espécie de gestor

das demandas, diante do mercado, e não tentar dominá-lo.

Existem ainda os que defendem que a mão de obra, o poder público, enfim,

todos os agentes devem estar capacitados e qualificados. Afinal, o capital é, além de

seletivo, competitivo, e por esta razão, cada um deve estar apto aos desafios. A par

da transição paradigmática, defendida por Santos, Bedin (2001) sugere a construção

de uma ordem mundial justa e solidária e Hawkwn, Lovins e Lovins (2007) defendem

a criação da próxima revolução industrial pelo capitalismo natural.

Democratização do capital, fortalecimento do Estado, União dos Estados em

blocos (BRUM, 2002), comprometimento social (SEN, 1999), ética nas relações,

comportamento humano e democracia, capitalismo natural, todas essas exigências,

uma vez implementadas, podem trazer possibilidades de desenvolvimento humano.

Da mesma forma, parafraseando Sen (2000), afirma-se que o

desenvolvimento só poderá ocorrer quando o processo considerar a expansão das

liberdades reais que as pessoas venham a desfrutar. Ou, quem sabe, tenha razão

Giddens (2005), que acredita que a social-democracia pode não só sobreviver, mas

também prosperar, tanto num nível ideológico quanto num nível prático. Embora

esse autor tome por base a política implementada na Grã-Bretanha, a “terceira via”

tem por escopo a renovação social-democrática e seu esforço de repensar a política.

Embora Veiga (2005) acredite numa nova utopia, Costa (2006), por sua vez,

entende que a dignidade e a plena cidadania podem ser asseguradas através da

educação, a qual, no Brasil, foi recentemente inserida como direito constitucional

fundamental.

Tudo isto deve ser considerado. Todavia, além destes fatos materiais, de

natureza positiva, devemos buscar entender os fundamentos do modelo que

orientou a lógica do mercado, com o fito de melhor o situarmos na cientificidade

6 Dentre outros, destaca-se: BRUM, Argemiro Luis. A economia internacional na entrada do século XXI – transformações irreversíveis. 2. ed. Ijui: UNIJUÍ, 2002.

19

teórica que o ampara, e sua influência nos direitos do homem, ao longo do tempo e,

agora, da globalização econômica e financeira (BEDIN, 2002).

Por sua vez, a inclusão do estudo da dignidade humana, por seu fundamento

jurídico, tem por sucedâneo, “abrir um espaço novo”, no conflituoso terreno da

política e da economia, da prática social e do jurídico, em face da crise generalizada

do direito no contexto de um novo paradigma (STEIN, 2007).

Como veremos no desenrolar do tema, o Estado, como obrigado pelas

promessas que tinha, já não consegue cumprir com o mínimo necessário, em que

pese sua responsabilidade positivada nos textos constitucionais internos.

Importa dizer, por fim, que o principio da dignidade humana não pode ser

apenas um conceito vago e inexpressivo, mas ao contrário, encerrar toda a sua

essência no próprio ser humano, e no “ser” do dever “ser”.

Anote-se que devemos buscar a alegria da descoberta no equilíbrio da

análise. Afinal, como defendia Smith (apud SEN, 2000, p. 333), “a diferença entre os

caracteres mais dessemelhantes, entre um filósofo e um carregador comum, por

exemplo, parece emergir, não tanto da natureza quanto do hábito costume e

educação”7.

Assim, o capítulo 1, tratará da globalização, com ênfase no momento atual. O

mesmo abordará aspectos políticos e econômicos do homem, suas experiências no

período idealista, realista e de dependência e interdependência, até a

contemporaneidade. Nesta análise serão inseridas as diversas opiniões, prós e

contras, à globalização, suas vantagens e desvantagens. No capítulo 2 será

analisada a economia de mercado no contexto da globalização atual, seus

fundamentos teóricos e seus reflexos na humanidade. No final deste capítulo, faz-se 7 Explica Adam Smith (apud SEN, 2000, p. 333) que: “A disparidade de talentos naturais em homens diferentes é, na realidade, bem menor do que nos damos conta; e o talento muito diverso que parece distinguir os homens de diferentes profissões, quando atingem a maturidade, com grande freqüência não é tanto a causa, mas o efeito da divisão do trabalho. A diferença entre os caracteres mais dessemelhantes, entre um filósofo e um carregador comum, por exemplo, parece emergir, não tanto da natureza quanto do hábito, costume e educação. Quando vêm ao mundo, e durante os primeiros seis ou oito anos de sua vida, eles terão sido, talvez, muito parecidos, e nem seus pais nem seus colegas de brincadeiras conseguiriam perceber alguma diferença notável.”

20

uma breve análise da “globalização liberal ou econômica”, e seu impacto na

economia, desde sua gênese, inclusive com viés informativo do maior representante

do capitalismo atual, e seus resultados penais, culminando na análise dos pontos

positivos defendido pela doutrina liberal, do livre mercado.

O capítulo 3, por sua vez, busca respostas para a seguinte questão: pode o

desenvolvimento humano prosperar no quadro de uma economia de mercado?, e,

em que hipóteses isto pode ocorrer. Dentro desse tema, verificar-se-á se existem

elementos jurídico-econômicos que permitem construir um desenvolvimento humano

em uma economia de mercado, e quais seriam esses elementos e a possibilidade de

sua implementação, sempre com a visão voltada ao futuro da humanidade e das

gerações seguintes.

Enfim, serão apresentadas as considerações finais, visando sintetizar as

lições obtidas com esse estudo.

21

1 A GLOBALIZAÇÃO ATUAL

A globalização parece ser o destino irremediável do mundo, sendo seu

processo, indiscutivelmente, irreversível, pois afeta a todos de uma maneira ou de

outra, embora com multiplicidade de efeitos. Segundo Bauman (1999), a

globalização tanto divide como une; divide enquanto une, e as causas da divisão são

idênticas às que promovem a uniformidade do globo.

Após a segunda grande guerra, o mundo percebe que ela caminha, em ritmo

acelerado e consistente. Porém, nem sempre foi assim. Visto sob o ângulo do

desenvolvimento evolutivo do homem, no sentido de transpor seus próprios limites,

ela se caracteriza como fenômeno de complexa longevidade, com fluxos e refluxos.

Percebe-se que desde os primórdios da idade antiga, passando pelo período

medievo, até a modernidade e, por último, na idade contemporânea, ela vem

ocorrendo sempre ligada a interesses de diferente natureza, como político, religioso,

comercial, econômico, entre outros.

Embora no presente estudo, interesse-nos mais a globalização na dimensão

econômica e financeira, posto que mercado e dignidade humana constituem-se no

núcleo da pesquisa, é de suma importância a análise sob o ponto de vista de sua

origem, mormente quando na atualidade ela é chamada de globalização econômica

neoliberal, que se caracteriza pela extraordinária inclusão econômica de um lado e

deploráveis exclusões políticas e sociais de outro. Ou seja, nos primórdios, as

ondas8 de globalizações, em face de seus avanços e retrocessos, fluxos de

continuidades e descontinuidades, podem caracterizar-se justamente em períodos

de paz, quando o homem experimentou desenvolvimento e prosperidades, e

respectivamente, em épocas de guerras, crises e conflitos, quando ocorriam as

denominadas por Oliveira (2005a) “desglobalizações”, caracterizadas pelos refluxos

e paralisações.

8 Termo utilizado por OLIVEIRA, Odete Maria de. Teorias globais. Elementos e estruturas. Ijuí: UNIJUÍ, 2005a.

22

Dal Ri Junior (2003) observa, porém, que a primeira onda dentro do fenômeno

histórico da globalização se deu, com mais precisão, no Império Romano, seja na

articulação política, seja nas práticas de construções de estradas, aquedutos,

proteção ao comércio, uso de moeda, entre outras coisas.

Já, a segunda onda teria ocorrido entre os séculos XIV, XV e XVI, com as

conquistas das grandes descobertas dos novos continentes e dos caminhos para a

Índia e China.

A terceira onda global veio com o liberalismo, movimento acontecido no

decorrer do século XIX, no qual incrementou-se a liberação do comércio, a

colonização européia na África e na Ásia, obtendo-se novas fontes de rendas e

riquezas.

A quarta e última onda, segundo Oliveira (2005a), configura o processo global

que se estabeleceu após a Segunda Guerra Mundial, motivada pelo surgimento das

organizações internacionais – Organização das Nações Unidas (ONU), Organização

Mundial do Comércio (OMC), Comunidade Européia (CE) e o grande incremento de

empresas transnacionais, ocasionando aumento de fluxos de investimentos e a

redução das barreiras comerciais. Esse critério de ondas ou de plataformas, noções

utilizadas por Lester Thurow na observação de Roland Robertson, é lembrado por

Oliveira (2005a), que comporta distintas fases:

a) Embrionária: situada na velha Europa, com início no século XV e

atingindo a metade do século XVIII, com a fase inicial da estrutura estatal e o

rompimento do sistema político-social e econômico do feudalismo,

provocando o novo conceito de individuo e sua relação com a humanidade;

b) Incipiente: também no século XVIII nos anos de 1870, consolidando os

conceitos de Estado e cidadania, com ênfase no agenciamento e regulações

das crescentes relações interestatais e nos problemas dela resultantes;

c) Decolagem: ocorrida entre 1870 a 1920, marcada pelas tendências

globais emersas na sociedade internacional, originado pelo Estado moderno e

pelo desenvolvimento de perspectivas nos avanços do campo de

comunicação e marcas da Primeira Guerra Mundial;

23

d) luta pela hegemonia: entre a década de 20 e a década de 60 do século

XX, sob a égide da Organização das Nações Unidas, o início da Guerra Fria,

a mudança da produção do processo econômico, a referência dos conceitos

de império nuclear e de potência nuclear, a divisão Norte-Sul, - países

desenvolvidos e subdesenvolvidos;

e) incerteza: da década de 60 até a atualidade, voltada às conseqüências

da mundialização, ao fim da Guerra Fria, ao mundo multicêntrico e

interdependente, à tecnologia avançada, à informatização, aos problemas

com o meio ambiente, à acirrada guerra comercial das empresas

transnacionais.

No entanto, é Ianni (apud OLIVEIRA, 2005a) que analisa a globalização

ligando-a ao capitalismo e divide em três fases históricas: a primeira fase, iniciada

com as grandes navegações - séculos XV e XVI - culminando com as descobertas

de várias regiões e continentes, expandindo o capitalismo pelo mundo, integrando-o

num só sistema de produção e consumo de mercadorias. A segunda fase, ocorrida

com o registro da Revolução Industrial do século XVIII, quando o capitalismo

europeu já tinha mercado consumidor em todo o mundo, ocupando-se então com o

desenvolvimento de tecnologias que permitissem aumentar a produção a fim de

atingir maior quantidade de mercadorias, porém com menor numero de

trabalhadores, preços mais baixos e maiores lucros. A terceira fase, localizada nos

anos 50 do século XX, depois da Segunda Guerra Mundial, com a reconstrução da

Europa destruída pelos dois grandes conflitos e configurada pelo impulso e domínio

das empresas transnacionais e de seu controle sobre os mercados mundiais.

O Estudo da Globalização como fenômeno global também ganhou impulso

com as chamadas Ordens Mundiais, merecendo destaques as viagens dos grandes

navegadores - às Américas e às Índias - cujos cinco séculos mudaram as direções

das forças operantes de formação do sistema planetário (OLIVEIRA, 2005a).

Segundo Oliveira (2005a), tais transformações permitiram identificar várias

etapas da globalização, compreendendo a seguinte progressão:

24

a) Primeira Ordem Mundial, abrangendo o período compreendido pelas

viagens de Cristóvão Colombo e Vasco da Gama até o ano de 1800, tendo ali

se registrado o início da expansão ultramar dos povos cristãos da Europa

liderados por potências atlânticas.

b) A segunda Ordem Mundial, tendo como marco dominante a Revolução

Industrial, etapa que se estende desde 1800 até 1914, findando no início da

Primeira Guerra Mundial. O período compreendido entre 1914 e 1945, tendo,

neste período, ocorrido uma desglobalização9.

c) Terceira Ordem Mundial, ocorrida no período atual, iniciando-se na

segunda metade do século XX, compreendendo os desafios e mutações do

contexto globalizante, dos presentes dias.

É bem verdade que durante esses períodos que caracterizam as ordens

mundiais, houvera enormes transformações como a Revolução Tecnológica,

Revolução Industrial, que provocaram, além de extraordinário aumento de produção,

crescentes oportunidade de desenvolvimento, levando as relações de comércio

global a atingir resultados, sem precedentes na história econômica10, ampliando as

redes de globalização da Terceira Ordem Mundial.

Nessa ordem de coisas, o Relatório de Pesquisa Política do Banco Mundial

de 200311 observa que o crescimento global, historicamente, pode ser expresso por

meio de três ondas significativas, anotando que os processos anteriores a 1870 não

apresentaram fluxos econômicos de destaque. Dessa forma, a primeira onda global

teria avançado de 1870 a 1914, período em que os fluxos de bens, capital e mão-de-

obra aumentaram surpreendentemente. As exportações, decorrentes de renda

mundial, praticamente dobraram, atingindo índice aproximado de 8%, e o capital

estrangeiro havia triplicado em relação à renda nos países em desenvolvimento da

América Latina, África e Ásia. Nessa época, 60 milhões de pessoas haviam

emigrado da Europa para a América do Norte e outras regiões do mundo, enquanto

9 Oliveira (2005a) explica que desglobalização é chamada neste período em face de que as forças integradoras do sistema global transitoriamente foram interrompidas - retrocesso - plataforma de refluxo. 10 Ver mais detalhes: In: OLIVEIRA, Odete Maria de. Relações comerciais globais e o império dos mercados globais. Ijuí: UNIJUI, 2003, p. 838-951. 11 Ver: GLOBALIZAÇÃO: CRESCIMENTO E POBREZA. Relatório de Pesquisa Política do Banco Mundial, 2003. p. 18.

25

que o deslocamento de mão-de-obra havia sido de 10% da população do mundo

(OLIVEIRA, 2005a).

Nesse particular, Ferguson (2007, p. 344) afirma que:

só no Reino Unido, a emigração líquida total entre 1881 e 1890 ultrapassou os 3,2 milhões, cerca de 7% da média populacional. A emigração alemã – 1,3 milhões neste período – atingiu em 1854 e 1881 picos anuais de 0,7% e 0,5% da população, ou quase 3% na década de 1880 como um todo. A Irlanda foi, é claro, a campeã: ao todo, 14% da população emigraram na década de 1880.

Caracterizando refluxo, ou como Oliveira (2005a) denomina de

desglobalização, o período compreendido entre 1929 e 1933, fez com que a aquela

renda per capita global em franca evolução, tivesse significativo retrocesso,

justamente após a Primeira Guerra Mundial, durante a denominada Grande

Depressão e após a Segunda Guerra Mundial. No entanto, segundo Ferguson

(2007, p. 343),

não há consenso entre os historiadores econômicos sobre se a globalização é ou não maior hoje do que na década que precedeu à Primeira Guerra Mundial. A resposta a esta pergunta depende dos indicadores usados – e também, quem sabe, do país a que se referem. À primeira vista, as razões, dívida externa/PNB de grandes devedores internacionais como a Índia e Rússia, apontam uma estranha semelhança do passado com o presente: as razões anteriores a 1913 oscilam entre 25% e 30%, como voltou a ocorrer em 1997.

Anota Ferguson (2007, p. 343) que essa falta de consenso entre os

historiadores econômicos sobre a globalização ser ou não maior hoje do que na

década que precedeu à Primeira Guerra Mundial, dá-se:

À primeira vista, as razões dívida externa/PNB de grandes devedores internacionais como Índia e Rússia apontam uma estranha semelhança do passado com o presente: as razões anteriores a 1913 oscilam entre 25% e 30%, como voltou a ocorrer em 1997. No entanto, são poucas as grandes economias de hoje com dependência tão acentuada de capitais externos como a Argentina antes de 1914, quando cerca de metade do estoque de capitais era proveniente do exterior e os déficits em conta corrente chegavam a 10% do PIB. Entre 1870 e 1890, o ingresso de capitais na Argentina aproximava-se dos 20% do PIB, contra apenas 2% na década de 1990.

A segunda onda global, afirma Oliveira (2005a), situou-se entre os anos de

1950 e 1980, quando a Europa, América do Norte e Japão, passaram a restaurar

26

relações comerciais entre si, por meio de diversificadas liberações comerciais

multilaterais, sob a égide do Acordo de Tarifas e Comércio (GATT). Nesse período, a

maioria dos países em desenvolvimento, continuou atrelada às exportações de

produtos primários, permanecendo isolados dos fluxos de capital, tudo em função de

suas políticas internas, enquanto os países da Organização para a Cooperação e

Desenvolvimento Econômico (OECD) obtinham taxas de crescimento inéditas.

Ferguson (2007) afirma que da exportação de capitais foi de fato a Primeira

Guerra Mundial, quando a conta corrente média chegou a cerca de 5% do PIB, em

comparação com o piso mínimo de 1,2% no período 1932-39. O percentual do

período 1989-96 foi de apenas 2,3%.

Veja a tabela abaixo, adotada pelo autor.

Tabela 1: Indicadores da globalização comercial e financeira

Exportações de mercadorias

em relação ao PIB mundial (%) Ativos externos em

relação ao PIB mundial (%) 1870 6,9

1890 6,0

1900 18,6

1913 9,0 17,5

1930 8,4

1945 4,9

1950 7,0

1960 8,0

1970 10,0

1980

1990 13,8

1995 56,8

Fonte: CRAFTS (apud FERGUSON, 2007, p. 344).

27

Conforme a tabela 1, fica evidente que a abertura dos mercados globalizados

de mercadorias e de capitais nunca foi tão grande como é hoje. A rigor, leciona

Ferguson (2007, p. 343):

em 1913 as exportações de mercadorias chegavam no máximo a 9% do PIB mundial; em 1990 este percentual era de 13% e esta hoje quase certamente mais alto. Isto é um reflexo do fato de que as barreiras tarifárias internacionais são hoje menores do que no início do século XX: o comércio antes de 1914 foi mais impulsionado pela redução nos custos do frete que pelo liberalismo econômico. Em 1913, os ativos externos equivaliam a cerca de 18% do PIB mundial. Em 1995, este percentual subira para assombrosos 57%.

A tabela também mostra que, na década de 1930 à de 1960, as exportações

de capitais caíram de modo mais drástico do que as exportações de capitais de

mercadorias. No seu menor piso registrado, em 1945, os ativos externos

representavam menos de 5% do PIB mundial.

Para Oliveira (2005a), a terceira onda global teria surgido no inicio da década

de 80, tendo continuado seu percurso até o momento presente, provocada pelos

avanços tecnológicos nos transportes e comunicação e pelo especial

desenvolvimento nos âmbitos do comércio e investimento, servindo-se estes da

abundante mão-de-obra barata dos países em desenvolvimento no que diz respeito

a produtos manufaturados e de serviço. Tais países tiveram bem elevadas suas

exportações de produtos manufaturados: em 1980, a um índice de 25%; e em mais

de 80% em 1998. Entre esses países em desenvolvimento globalizado estão Brasil,

Índia, México e Hungria.

A característica marcante da terceira onda, em relação as anteriores,

encontra-se no fato de que certos países em desenvolvimento entraram no mercado

mundial de produtos manufaturados e de serviços, posto que antes, apenas

comercializavam produtos primários em virtude de possuírem terras, matérias primas

e mão-de-obra, abundantes.

À luz do que foi exposto, verifica-se que a gênese da globalização encontra

registros em tempos longínquos, caracterizando-se em longo, complexo e desigual

percurso, com movimentos de fluxos e refluxos - avanços e retrocessos - como

afirma Oliveira (2005a).

28

Afora o fato de que a globalização envolve vários âmbitos de variadas

disciplinas acadêmicas, sob o ponto de vista da história da Sociologia, foi

identificado em cinco estágios por Martin Albrow (apud OLIVEIRA, 2005a):

universalismo, sociologia nacional, internacionalismo, indigenização e globalização:

a) No primeiro estágio – universalismo – o autor evidencia idéias do

Iluminismo, ressaltando propostas humanistas e a necessidade de buscar

uma ciência da humanidade para a humanidade, alicerçada em princípios

atemporais e em demonstrações empíricas.

b) No segundo estágio – sociologia nacional – volta-se o autor a avaliar a

produção intelectual nacional das academias da Alemanha, França, Estados

Unidos, Itália, Inglaterra, Espanha, e de países não ocidentais, como o Japão,

observando que tais produções apresentam marcas de suas culturas –

referências nacionais – mas com resíduos de universalismo, produzindo uma

busca de exclusiva hegemonia.

c) No terceiro estágio – internacionalismo – o autor centra sua atenção

nas conseqüências desastrosas das duas grandes guerras mundiais e nas

dificuldades que as mesmas legaram às sociologias nacionais. Com

referência ao internacionalismo e ao universalismo, o autor afirma que o

primeiro rompe com os limites do provincianismo e das tradições, enquanto o

segundo vincula-se ao crescimento das cidades, corporações mercantis,

universidades e ao surgimento das economias e da moeda.

d) No quarto estágio – indigenização – preocupa-se, o autor, com a

questão do Terceiro Mundo, pontuando duas características predominantes

do seu desenvolvimento nos anos setenta. Uma refere-se à oposição ao

exterior quanto à adoção das teorias e métodos ocidentais.12 Outra dá ênfase

à tradição nacional-cultural,com inclinação ao modelo marxistas. Não

12 A teoria da dependência até certo ponto representa justa tentativa de rompimento da importação de conceitos estruturais e paradigmas externos, como também a emancipação do conhecimento latino-americano no sentido mais estreito, objeto em si mesmo, de conteúdo analítico-interpretativo dos problemas de suas sociedades e os reflexos dos seus processos globais, como também de outros paises e regiões dependentes do mundo.A teoria da dependência pode ser entendida como a declaração de independência da sociologia latino-americana. Para mais detalhes, ver: OLIVEIRA, Odete Maria de. O paradigma da dependência. In: BEDIN, Gilmar Antonio et al. Paradigmas das relações internacionais: realismo - idealismo - dependência – interdependência. 2. ed. rev. Ijuí: UNIJUI, 2004. p. 159-243.

29

obstante, essa década registra autores latinos13 que rejeitaram temas, teorias

e métodos estrangeiros, ao fito de ser entendida a problemática da

dependência em nível cultural autóctone, estendendo também à literatura de

forma geral.

e) No quinto estágio – globalização – o autor refere-se à fase presente do

seu modelo, mas não necessariamente à última, entendendo que a

globalização é resultado diverso da interação entre o nacionalismo e o

internacionalismo e indiretamente representa os estágios anteriores.

Embora Martin Albrow tenha se voltado mais à preocupação dos

relacionamentos dos sociólogos em âmbito mundial, em vez do processo global em

si, não estabeleceu distinção entre a globalização das Ciências Sociais com a

Sociologia da Globalização. No entanto, pode-se precisar que na primeira metade do

século XIX, o movimento filosófico europeu foi caracterizado na Alemanha pelo

evoluir do idealismo transcendental e sua conseqüente elaboração critica: na

Inglaterra, pelo empirismo, e na Itália e França pela ascendência do espiritualismo

em confronto com o próprio idealismo e com o empirismo. Na segunda metade do

século XIX, esse quadro alterou surgindo o movimento denominado de positivismo.

Adote-se nesta fase positivista a interpretação unilateral do criticismo de Kant.

À positividade da experiência confunde-se ciência com Filosofia, o mundo humano

com o físico, o espírito com a matéria. Embora o positivismo tenha concepção

religiosa, entre as principais características observam-se as seguintes: a) Repor e

investigar a verdade dos fatos positivos propiciados pela experiência; b) considerar

as próprias experiências como fonte única do saber e critério último da verdade; c)

acordo e quase identidade entre cognição filosófica e cognição cientifica, de modo

que os problemas filosóficos e as eventuais conclusões tenham a objetividade dos

problemas científicos; d) atitude agnóstica ou negativa diante dos problemas da

metafísica, que levam, além da experiência, aos devaneios e a criticas dos

elementos apriorísticos do conhecimento; e) concepção mecanicista da natureza e

determinismo dos fatos naturais e humanos; f) monismo, mesmo que alguns

13 Entre outros: Darcy Ribeiro, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares (OLIVEIRA, 2004).

30

positivistas não neguem a distinção entre matéria e espírito; g) gênese, explicação e

justificação dos valores espirituais, consoante a evolução biológica e a leis da

psicologia empírica; h) importância de como crítica da experiência (dos fatos sociais,

morais, psíquicos, religiosos, etc.) (SCIACCA,1966).

Foi exatamente dentro do positivismo que se destacaram alguns pioneiros da

globalidade, como Saint-Simon14, precursor do socialismo. O autor concebe a

sociedade futura dominada pelos industriais e pelos cientistas. Foi um dos

expoentes do positivismo ao apresentar, de um lado, o programa pioneiro

denominado positivismo social, projetando futuro governo mundial para a

humanidade mediante estudos científicos e de outro, buscando a sociedade

globalizada. Segundo Oliveira (2005a) o pensamento simoniano prendia-se à

proposta de unificação da humanidade. Essa postura influenciou Karl Marx, cuja

visão do capitalismo como o modo determinante de produção enseja buscar alicerce

na universalização em escala global. Previa ele que a difusão internacional do

industrialismo levaria ao crescimento da globalização e à mudança da natureza das

Ciências Sociais, quando então a Sociologia se tornaria a ciência do novo

industrialismo. Criou o lema: a cada um segundo sua capacidade, a cada

capacidade segundo o seu trabalho, chave da doutrina saint-simonista. Ao dar

preponderância à Ciência e à indústria sobre as classes e grupos sociais e políticos,

tornou-se o profeta dos tecnocratas do século XX. O Pensamento econômico de

Saint-Simon defendia que a crise dos trabalhadores somente poderia ser resolvida

pelos homens de ciência e pelos grandes industriais. Segundo ele, o processo

histórico é dominado pela lei infalível das épocas orgânicas - fundadas sobre

concreto sistema de crenças - e das épocas críticas, abarcadas pela decadência.

14 Claude de Rouvroy, conde de Saint-Simon, nasceu em Paris (1760), onde também faleceu (1825). Lutou na Guerra da Independência dos Estados Unidos e na volta aderiu à Revolução, abandonando seu título de nobre, passando quase um ano na prisão. Aos quarenta anos retornou aos estudos, escrevendo vários livros sobre política, Filosofia e Economia, criando o grupo de adeptos chamados de saint-simonistas. O autor entende que cada sistema social constitui um passo adiante na História da humanidade e que o sistema escravista, como também, o sistema feudal, significavam um progresso pois um sistema decadente substitui outro em ascensão, salientando que as mudanças sociais são determinadas pelo avanço da Ciência, da moral e da religião. Entre suas obras destacam-se o estudo Introdução aos Trabalhos Científicos do Século XIX. Nesse estudo encontra-se o germe de outra doutrina político-filosófica surgida de suas idéias: o positivismo. Ainda escreveu Memórias sobre a Ciência Humana e o Sistema Industrial; Reorganização da Sociedade Européia; A Indústria; Sistema Industrial; O Novo Cristianismo. Em 1819 fundou a Revista Lorganisateur (O Organizador), onde publicou As Palavras de Saint Simon (OLIVEIRA, 2005a).

31

Nesse entendimento, observava que os cientistas deveriam substituir o clero e os

industriais a nobreza no que concerne ao efeito econômico.

Destaca-se Augusto Comte15, pois seu pensamento está diretamente ligado

ao movimento positivista cientifico, e ao compromisso com uma análise lógica,

racional e universal da sociedade. Ele também defendeu a tese do universalismo e

de uma nova religião da humanidade, com ritual, santos, calendário e os credos do

cristianismo, mas com o espírito do positivismo. O caminho da unificação da

humanidade como primeira medida de integração de uma Europa pacífica, foi

seguido em movimentos posteriores, tanto em estudos e propostas de Fustel de

Coulanges como Émile Durkheim, entre outros.

Da mesma forma, destaca-se ainda Georg Simmel16, autor voltado à questão

da humanidade, elaborou pensamentos baseados nas proposições de Kant e

Nietzsche, afirmando que entre as formas de analisar a humanidade, apreendendo

sua cultura e a sociedade e seus indivíduos, está a experiência humana. Esta por

sua vez, difere dos valores sociais, pois estes observam os efeitos das ações

individuais e aqueles a existência imediata do homem. Segundo Georg Simmel

(apud OLIVEIRA, 2005a), a humanidade não é considerada apenas a soma de todas

as sociedades, mas sim, a síntese, inteiramente diferentes dos mesmos elementos,

que em outras sínteses resultam em sociedade. Em suma, encontram-se na obra

simmeliana destacadas preocupações com as categorias do mundo e da

humanidade e das suas circunstâncias globais com a questão da globalização.

Nesta plêiade, destaca-se ainda Émile Durkheim17, autor da questão do fato

social e das regras do método social, focaliza o problema da Sociologia global sob

outro ponto de vista, apresentando o indivíduo como ser social inteiramente

15 Isidore Auguste Marie François Xavier Comte nasceu em Montpellier (1798) e morreu em Paris (1857). Casou-se com Caroline Masin, separando-se em 1844, quando conheceu Clotilde de Vaux. Em 1818 começou suas relações intelectuais com Saint-Simon, do qual se dizia aluno e colaborador, sofendo profunda influência desse mestre e amigo (OLIVEIRA, 2005a). 16 Georg Simmel nasceu em Berlim (1858) e morreu em Strasbourg (1918), tendo influenciado fortemente a obra de Karls Marx, Max Weber e outros autores (OLIVEIRA, 2005a). 17 Émile Durkheim nasceu em Épinal (1858) e morreu em Paris (1917). É tido como um dos fundadores da moderna teoria sociológica. Em suas idéias e obra teve influências intelectuais de Descartes, Rousseau, Saint-Simon, Auguste e Fustel de Coulanges, que foi seu professor (OLIVEIRA, 2005a).

32

desenvolvido. Na sua análise de sistema social, introduziu o conceito de

solidariedade orgânica, relacionando-a com o que denominou de consciência

coletiva, classificando-a como entidade variável, e Max Weber18, que em sua obra,

registra-se tendência voltada à história mundial, na qual o mundo é arena de luta

entre nações, dentro de uma economia mundial crescente e singular.

Segundo Oliveira (2005a), assim pensando, esse autor tinha uma imagem da

compreensão do mundo, a qual veio a ser identificada mais tarde como

globalização, principalmente ao afirmar que a luta entre as nações visava valores

societários. Certamente, dessa forma podia perceber que a cultura é valor

importante no campo global19. A peculiaridade alemã do século XVIII com suas

pequenas cidades e seus localismos tinham deitados raízes em desenvolvimento de

cultura global por parte dos representantes da burocracia - mestres e representantes

do clero - existindo, pois, cenário e atores para a cultura universalista, mormente,

quando não havia cultura nacional, tampouco público nacional, levando os alemães,

à reflexão sobre a humanidade como um todo. Anota a autora que somente após a

Revolução Francesa, a elite alemã passou a direcionar atenção ao modelo do

liberalismo inglês e continuou a desenvolver-se em torno do cultivo do

individualismo, dos valores estéticos, das práticas políticas e auto-educadoras.

Ainda, Immanuel Kant20, que confere significativa contribuição ao fenômeno

da globalização, visto como unidade do mundo e da humanidade, ao desenvolver

reflexões dentro da história universal, relativamente às implicações globais da

passagem das sociedades humanas do barbarismo à sociedade civil da paz

perpétua, assuntos também focalizados pelos filósofos do Iluminismo. Esse

conhecido filósofo da paz perpétua reforçou o movimento dos ideais da unidade do

18 Max Weber, sociólogo alemão, nasceu em Erfur (Turíngia) em 1864 e morreu em Munique em 1930. Era filho de grande industrial têxtil, pertencente ao partido liberal-conservador, cuja mãe descendia de professores liberais e humanistas (OLIVEIRA, 2005a). 19 Ver WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução de Régis Barbosa. Brasília, Unb. 2000. v. 2. 20 Immanuel Kant, filósofo alemão, nasceu em Konigsberg (1724) e morreu na mesma cidade (1804). De saúde muito delicada, foi preceptor e professor secundário, começou a carreira universitária na Prússia em 1755, ensinando ciências naturais, sendo nomeado professor catedrático em 1770, na sua cidade de origem, levando ali vida pacata, da qual nunca saiu, dedicando-se a estudos filosóficos.Deixou numerosa obra sobre Física, Matemática e Ciência. Entre seus livros destacam-se: Critica da Razão Pura; Critica da Razão Prática; Critica do Juiz; Fundamentos da Metafísica dos Costumes, Antropologia; Lições de Lógica (OLIVEIRA, 2005a).

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mundo através do destino solidário dos povos e das nações, mediante a criação de

federação universal de Estados e de governo global, eficientes e democráticos,

como mandamento primeiro da autonomia da razão e da lei moral sobre a violência

do homem sobre o homem (OLIVEIRA, 1999).

Não poderemos esquecer de Friedrich Hegel21, para o qual, segundo Oliveira

(2005a) a história do mundo nada mais é do que o desenvolvimento da idéia de

liberdade, por meio de uma série de disputas dialéticas pela auto-realização. Hegel

tornou-se o filósofo da razão absoluta, o grande “sistematizador” do “idealismo pós-

kantiano”, uma das mentes mais profundas da humanidade. Afirma o grande

pensador que, como somente o infinito é a substância de toda a coisa, a unidade se

realiza na Filosofia, uma vez que não é intuição, nem sentimento, mas pensamento

lógico, ou melhor, ciência do absoluto.

Ainda, Karl Marx22, brilhante e polêmico, tratou o marxismo na forma de uma

teoria política que explica a história universal como a história de lutas de classes -

materialismo histórico - aponta o fim do capitalismo pelas suas contradições

econômicas internas que culminariam na revolução do proletariado. Segundo

Oliveira (2005a, p. 197), o marxismo pode ser também considerado teoria

sociológica - embora muitos marxistas rejeitem a Sociologia - ao tratar da alienação

do homem pelo mecanismo da produção e pela divisão do trabalho. A preocupação

de Marx concentrava-se no homem economicamente interpretado. Segundo ele, o

capitalismo (tesis) tem dado origem ao proletariado (antítese), e a contraposição das

21 George Wilhelm Firedrich Hegel, filósofo alemão, nasceu em Stuttgart (1770) e morreu em Berlim (1831). Entre suas obras destacam-se: A Fenomenologia do Espírito; Ciência da Lógica; Lições de Filosofia da Religião; Lições sobre a História da Filosofia; Lições sobre a Filosofia da História; Lições sobre a Estética. O filósofo tributa a construção de seu pensamento hegeliano à Filosofia grega, ao racionalismo cartesiano e ao idealismo alemão. De Heráclito herdou a idéia dialética; de Aristóteles, as noções do universal, razão e a experiência; de Kant absorveu a distinção entre o entendimento e a razão, entre outros ensinamentos (DURAN 1960 apud OLIVEIRA, 2005a). 22 Karl Marx nasceu de família judia, em Trier (1818), e morreu em Londres (1883). Economista, filósofo e socialista alemão, estudou em Berlim, principalmente a filosofia hegeliana. Em 1844 conheceu em Paris Friedrich Engels, iniciando ali uma amizade profunda que duraria toda a vida. Expulso de Paris em 1845, fixou-se em Bruxelas. Em 1848, quando estourou a Revolução, publicou com Engels o polêmico Manifesto Comunista, primeiro esboço da teoria revolucionária mais tarde chamada marxismo. Em 1867, publica o primeiro volume de sua grande obra: O Capital, estudo principalmente econômico, tratando da teoria do valor, da mais-valia, da acumulação do capital, etc. Os volumes dois e três da obra foram editados por Engels em 1884 e 1885. Outros textos, como o volume quatro, foram publicados entre 1904 e 1910 por Karl Kantski (GONZALEZ apud OLIVEIRA, 2005a).

34

classes, originado a luta que desembocará na revolução proletária, da qual surgiria o

socialismo (síntesis). Por isso, entendia em avivar a luta de classes, uma vez que: a)

a existência de classes está ligada unicamente, a determinadas fases do

desenvolvimento histórico da produção; b) a luta de classes conduz,

necessariamente à ditadura do proletariado; c) tal ditadura constitui unicamente o

trânsito até a definitiva supressão de todas as classes. Voltará então a sociedade a

ser natural, em que o livre desenvolvimento de cada um será o desenvolvimento de

todos.

O marxismo, segundo Oliveira (2005a), pode ser entendido como o conjunto

de teorias filosóficas, econômicas, sociológicas e políticas elaboradas por Karl Marx,

com a colaboração de Friedrich Engels, e após desenvolvidas por seus adeptos, em

parte, ortodoxos e em parte, dissidentes, reunidas em três partes principais: a

Filosofia idealista alemã de Hegel, o materialismo filosófico francês do século XVIII e

a economia política inglesa do começo do século XIX.

Anota Oliveira (2005a) que, em suma, as preocupações teóricas iniciais, em

torno da globalização como objeto de conhecimento propriamente dito, encontram-

se centradas em idéias sobre a humanidade e sobre o mundo como totalidade - uma

globalidade - evidenciadas por vários autores e tendo como resultado singular

abertura às Ciências Sociais, Políticas e Filosóficas, somando-se o conjunto de

teorias de pensadores notáveis de diversas épocas, que, evoluindo mediante

destacadas discussões, vieram a enriquecer a construção do que hoje se denomina

fenômeno da globalização.

1.1 A evolução da globalização até nossos dias: uma rápida análise

Revelam-se aparentes as dificuldades em definir o fenômeno da globalização,

exatamente pelo fato de seu processo estar caracterizado por variáveis bem

diversificadas, cuja origem apresenta-se remota, mas que em seu ressurgimento

mais recente confere peso a dimensões e especificidades econômicas, como

assevera Oliveira (2005a).

35

Historicamente, nesse longo percurso, os processos políticos globais foram

conduzidos sob égides de impérios e de seus poderes militares na arte de fazer e

vencer guerras, que iam assim sinalando corredores e rotas, que foram

estratificando estruturas em redes, característica determinante do fenômeno de

todas as globalizações. Exemplo disso foi a globalização política do Império de

Roma, que só veio a atingir o status de Estado Mundial ao vivenciar a experiência do

período de Pax Romana.

Segundo Oliveira (2005a), também os processos religiosos globais motivados

pelas unidades universais - cristianismo, islamismo, budismo - foram expandindo-se

além dos limites das sociedades que as haviam criado - extrapolando,

transgredindo, transformando - pontilhavam estrutura em redes entre distantes

regiões do mundo.

Diferente não foram, em tempos bem antigos, os processos comerciais

globais e de permuta de bens, expandindo-se geograficamente em dimensões

intercontinentais. Essa circulação de comércio a grandes distâncias, ao motivar

fluxos de interações dinâmicas, em certos momentos alcançaram dimensão mundial,

deslocando-se em estruturas de possantes redes - Rota das Sedas - tanto por terra

como por mar, iam unindo Ocidente com o Oriente.

No período compreendido pelas Idades Clássica e Medieval, o fenômeno da

globalização caracterizou-se por elementos de fluxos inter-regionais e

intercontinentais e estruturas em sistema de redes de inúmeras ramificações e sub-

ramificações - corredores e rotas -, alcançando regiões longínquas, unindo partes da

Europa, Ásia, índia, Japão e África, conectando Impérios do Ocidente com Impérios

do Oriente, como o exemplo do Império Romano com o Império Han Chinês

(OLIVEIRA, 2005a).

A mobilidade dos fluxos globais desse tempo, considerado por Oliveira

(2005a), como período global iniciante, apresenta-se baixa, porque dependente da

estrutura dos corredores, rotas e redes, da domesticação dos animais - cavalos,

bois, elefantes, camelos - e do restrito número de barcos a vela. Assim, no período

histórico iniciante da globalização, era o poder dos impérios políticos, religiosos e

36

comerciais que determinava seu alcance, dependendo do transporte, rapidez de

animais domesticados, barcos a vela, definição de limites das fronteiras e segurança

das rotas e estradas exigidas pelos bens valiosos nela transportados – Rotas das

Sedas - fatores que tornavam mais lenta a intensidade dos fluxos globais.

Quanto ao período denominado por Oliveira (2005a) como Período Global

Intermediário, espaço que medeia o século XV até a Segunda Guerra Mundial,

enquanto consolidava a instituição do Estado-nacional, ia apresentando elementos

globais cada vez mais densos de fluxos comerciais e fluxos de economia colonial

mediante as companhias de comércio inglesas, holandesas e das Índias Orientais.

Dos séculos XVI a XVIII o comércio de ouro e prata das Américas e do tráfico

triangular de escravos da África registrou seu ponto culminante de fluxos

transatlânticos.

Para Ferguson (2007), no entanto, a primeira era da globalização presenciou

duas ondas migratórias maciças: a primeira por coação, a segunda voluntária. Em

1820, cerca de 8 milhões de africanos haviam sido levados como escravos para as

Américas e o Caribe. No século seguinte, pelo menos 60 milhões de europeus

emigraram, três quintos para os Estados Unidos.

1.2 Sistema imperial globalizador – um viés interes sante

Neste contexto globalizador da humanidade, à luz da presente pesquisa, nos

parece bastante interessante a denominada “biota portátil”23, citada por Crosby,

(2000, p. 87), na qual afirma “que o cavalo, um dos aliados dos europeus, mais

valioso dessa família ampliada, foi crucial ao êxito de dominação impostas nas Ilhas

Canárias”. Segundo esse autor, “os organismos” que tinha “funcionado” em ilhas

mediterrâneas como Creta, Sicília e Maiorca, funcionaram da mesma forma nas

23 Termo utilizado por Crosby (2000, p. 238), que significa “Conjunto formado por homens, animais, plantas, vírus, germes e parasitas, quando os Europeus, com êxito absoluto da expansão implementada na América do Norte, no sul da América do Sul, na Austrália, Nova Zelândia, etc...”

37

Canárias. O exemplo mais óbvio foi o cavalo. Os guanchos24 tinham grande

familiaridade com animais menores de criação – cabras e porcos, por exemplo -

mas jamais haviam visto outros tão grandes como o cavalo, ou que carregassem homens às costas e obedecessem às suas ordens nas batalhas. Os soldados montados desempenharam um papel vital na conquista das duas últimas das Canárias a cair e, provavelmente nas outras também. O centauro europeu valia vinte ou mais, de seus irmãos pedestres. (CROSBY, 2000, p. 87).

Como efeito provável da globalização colonizadora, pegamos como exemplo

os europeus e sua “biota portátil”, que mudaram irreversivelmente o ambiente

australiano:

Os britânicos que chegaram a Nova Gales do Sul em 1788 para fundar uma colônia levaram consigo, intencionalmente, muitas espécies de plantas – mais de duzentas já em março de 1803. E, como era de esperar, transportaram outras sem querer. Algumas dessas plantas levadas de propósito seguiram imediatamente o caminho das ervas – a beldroega, por exemplo – e seu êxito demonstra a vulnerabilidade da flora australiana à invasão do Velho Mundo. O trevo-branco teve dificuldades na região original, e seca, de seu plantio – Sydney. Mas avançou rapidamente no clima úmido de Melbourne, “destruindo com freqüência, outras formas de vegetação.” A serralha parecia florescer em todos os lugares, dentro e fora de Melbourne, e crescia até mesmo nos telhados. Outras plantas espalharam-se rapidamente em Victoria, inclusive a sanguinária e a azeda vermelha, expulsando de algumas pastagens relvas menos agressivas. A Tasmânia, cujo clima é muito parecido com o do Noroeste da Europa, foi também hospitaleira para as novas plantas, e a sanguinária e a bistorta avançaram no mesmo passo dos humanos colonizadores. (CROSBY, 2000, p. 147).

Por conseqüência, a globalização à época, não se fazia apenas no

colonialismo e na sufocação das culturas dos povos dominados, mas também, na

implantação e avanço de novas culturas e plantas, hoje denominadas plantas

exóticas. 24 Os guanchos, com a possível exceção dos aruaques das Antilhas, eles foram o primeiro dos povos levados à extinção pelo imperialismo moderno. Seus ancestrais tinham chegado às Canárias, procedentes do continente africano, ao longo de um período de muitos séculos, iniciado a partir do segundo milênio antes da era cristã. Os últimos chegaram o mais tardar nos primeiros séculos depois de Cristo. Eram povos marítimos, contemporâneos dos grandes navegadores polinésios. Mas, ao contrário destes, esqueceram tudo o que sabiam do mar, depois de sua primeira expedição em água salgada. Como os tentilhões de Darwin, nas ilhas Galápagos, eles eram, muito provavelmente, os descedentes de uns poucos ancestrais e tinham evoluído independentemente, em ilhas separadas. OS tentilhões sobreviveram à chegada dos europeus e deram aos biólogos uma grande oportunidade de aprender sobre a evolução biológica divergente. Sabemos pouco a respeito dos guanchos. De acordo com os primeiros relatos, alguns eram grosseiros e outros graciosos, alguns eram escuros e outros claros. A maioria era evidentemente aparentada com os berberes das regiões adjacentes. Tecidos retirados de suas múmias ressecadas informam que poucos deles, ou talvez nenhum, apresentavam o sangue tipo B. Nisso eles eram como os ameríndios, os aborígenes, os polinésios e alguns outros povos historicamente isolados (CROSBY, 2000).

38

Além disso, elementos mais específicos dessa globalização são observados a

partir do século XIX. Com o surgimento das economias capitalistas industrializadas,

os fluxos globais se tornaram extensos e cada vez mais dinâmicos. Os vários

elementos que caracterizam a globalização moderna, como os fluxos de expansão

do Império europeu - poder político-militar, poder econômico-colonial, poder

comércio triangular - criaram uma especifica estrutura de comércio transatlântico das

Américas, uma rede de interconexões verdadeiramente global, rompida, entretanto

pelas rivalidades de Estados do Império Europeu, que levaram à conflitos e guerras

entre si, culminando no fechamento de fronteiras e em anexações,

consequentemente originando as denominadas, dês-globalizações (OLIVEIRA,

2005a).

1.3 Globalização pós-guerra

Segundo Oliveira (2005a), a conflagração da Primeira Guerra Mundial

culminou na interrupção do fenômeno da globalização moderna, e seus efeitos,

somado a grande depressão dos anos 30, formaram uma nova dês-globalização. O

colapso econômico dessa época veio conferir ao mundo uma evidente fratura,

mostrando como o sistema da economia havia se fragilizado, debilitando-se

completamente com as conseqüências da bem próxima Segunda Guerra Mundial,

fazendo surgir nova unidade hegemônica formal e informal, sob elementos de poder

unilateral de força militar e, nas novas tecnologias, o conhecido império de

ingerências americanas.

Quanto ao Período Global em Consolidação, assim denominado por Oliveira

(2005a), após a Segunda Guerra Mundial, superadas suas nefastas conseqüências,

o mundo ingressou em diferente momento histórico - fase de enorme e acelerada

transformação tecnológica - o denominado período contemporâneo.

Este período marca denso poder econômico neoliberal versus poder

estatocêntrico, fragilizado das unidades estatais. Paradoxalmente, enquanto o

Estado territorial fixava e delimitava fronteiras soberanas – transformando-se então

em organização política com governo político constituído – também fragmentava, em

decorrência dos fluxos globais fluidos e volatilizados em rede, os quais,

39

desconhecendo nacionalidades e limites de territórios e fronteiras estatais,

transnacionalizavam-se.

Segundo Brum (2005, p. 73), em seu “breve olhar retrospectivo”, com efeito, o

processo de globalização teve grande impulso após o segundo grande conflito, com

a bipolarização do poder mundial (EUA X URSS ou capitalismo x socialismo) e com

a expansão das grandes corporações econômicas transnacionais através da

instalação de subsidiárias em diferentes países e da intensificação do intercâmbio

comercial. Assevera o autor que:

o boicote do petróleo (OPEP), elevou substancialmente os preços do produto na década de 1970, fez uma grande quantidade de dinheiro mudar de mãos no mundo, elevou os depósitos nos grandes bancos privados dos países ricos e levou-os a realizar grandes empréstimos para países em desenvolvimento, dando um forte impulso rumo à globalização financeira. (BRUM, 2005, p. 73).

É a prova do capital volátil e sua rapidez de movimento, inserindo-se e

influindo em geografias e mapas distintos e distantes. Anota, ainda, Brum (2005) que

a elevação das taxas de juros nos EUA e uma onda especulativa desencadeada por

pesados investidores japoneses, no início dos anos de 1980, confirmaram essa

tendência. De qualquer sorte, com o fim da Guerra Fria, a dissolução da União

Soviética - uma das ultimas estruturas imperiais existentes no planeta - cedeu

espaço a uma potência hegemônica de poder único, uma potência global: o império

dos Estados Unidos.

As novas tecnologias - telefonia, computadores, satélites globais,

microeletrônica, internet, televisão, telefonia celular, rádio, invenções que se

diferenciam dos períodos iniciante e intermediário - transformaram o alcance dos

fluxos e estruturas do atual processo global e estão modelando todos os âmbitos de

vida dos indivíduos, que de uma forma, ou de outra, encontram-se conectados em

redes de telecomunicações globais.

40

1.4 A globalização no período idealista

Embora a globalização, como visto, tem suas raízes, nos primórdios da

humanidade, com acentuado incremento, a partir da segunda grande guerra, o

período idealista, como paradigma das relações internacionais dos Estados, embora

tenha se desenvolvido durante a trajetória do mundo moderno, configurou-se mais

acentuado na década de vinte do século XX, tendo sido concebido como modelo

teórico-interpretativo durante o período entre-guerras (BEDIN, 2001). Segundo Bedin

(2001), o paradigma idealista, também chamado de racionalista, tem seus

ensinamentos no sentido de contrapor-se às idéias realistas, questionando a

inevitabilidade dos conflitos e guerras, procurando descobrir pontos de

convergências entre os Estados, a partir dos quais, instituições e regras de

comportamentos estáveis podem ser fundadas no sistema internacional.

O problema filosófico central do idealismo político, segundo Bedin (2001, p.

220),

é propor maneiras de articular, na sociedade internacional, instituições que superem o estado de natureza hobbesiano, sem que, a soberania seja diminuída, estabelecendo-se formas de contenção, internas e externas, para comportamento dos Estados.

Entre os defensores desse paradigma, como alude Bedin (2001), apesar de

numericamente inferior àqueles que defendem o realismo, se destacam Marsílio de

Pádua, Thomas More, Abade de Saint Pierre, Hugo Grotius e Imannuel Kant.

Foi a partir das conseqüências trágicas da Primeira Grande Guerra Mundial

que os pesquisadores e práticos da área das relações internacionais passaram a

construir uma perspectiva de análise dos temas deste campo que estivesse

fundamentada numa concepção humanista, voltada para buscar condições e

possibilidade de construção de uma ordem mundial democrática e mediada pelo

respeito aos direitos do homem (BEDIN, 2006a). Dentro destas concepções, com a

liderança do Presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, articulou-se a

criação da Sociedade das Nações, cujo objetivo era reunir todas as nações

civilizadas do planeta, com a perspectiva de resolver os problemas internacionais e

41

criar um conjunto de instrumentos jurídicos para a solução pacifica dos conflitos

(BEDIN, 2001).

Segundo Bedin (2001), a Sociedade das Nações foi, portanto, além da

primeira organização de alcance mundial, o resultado do predomínio das idéias

idealistas no primeiro pós-guerra. Por esse motivo é que o Pacto da Sociedade das

Nações, constitutivo da primeira parte do Tratado de Paz de Versalhes, de 28 de

junho de 1919, estrutura-se a partir de vários pressupostos humanistas. Estes

pressupostos estabelecem que, para o desenvolvimento da cooperação entre as

nações e para a garantia da paz e da segurança internacionais, é necessário: a)

aceitar a obrigação de não recorrer à guerra; b) manter relações internacionais

fundadas sobre a justiça e a honra; c) observar rigorosamente as prescrições do

Direito Internacional, reconhecidos doravante como norma efetiva de procedimento

dos governos; d) fazer reinar a justiça e respeitar escrupulosamente todas as

obrigações dos tratados nas relações mútuas dos povos organizados (BEDIN,

2006a).

Anote-se que com esses pressupostos, tem-se o reconhecimento institucional

dos pressupostos do paradigma humanista e de sua crença fundamental de que é

possível delinear um sistema internacional articulado não a partir da noção de poder,

mas do predomínio do Direito. Com isto, assevera Bedin (2006a), é possível se

reconhecer, também, que o núcleo fundamental das relações internacionais pode

ser regulamentado por normas jurídicas e padrões éticos de conduta aceitos por

todos os povos (Estado de Direito).

Por sua vez, Santos Junior (2006) alude que o projeto de paz kantiano propõe

a constituição de normas e instituições públicas internacionais que garantam, pelo

Direito, a estabilidade política e a cidadania cosmopolita. Tais regras, acordadas

pelos federados, teriam a capacidade de instituir padrões de comportamento para os

indivíduos de cada Estado e a conduta das próprias coletividades estatais. Esse

autor afirma que a proposta de Kant não se reduz a um inventário idealista em que

se arrolam os elementos predominantes na constituição de uma possível federação

de Estados soberanos para administrar a paz, mas traça os fundamentos morais

balizadores da ação interessada daqueles que prezam pelo desenvolvimento

42

humano e pelo fim da anarquia internacional, daí que ajuíza as bases morais e

legais capazes de alterar os pilares em que, na sua época, as relações

internacionais estavam assentadas. Dentro dessa ótica, Saint-Pierre e Kant

apresentaram alternativas ao sistema de Estado consolidado com a assinatura do

Tratado de Paz de Vestfália, em 1648 (SANTOS JUNIOR, 2006) colocando fim a

Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), que envolvia seis grandes potências e resultou

em 2.071.000 mortos em combate, com 69.033 mortos por ano, e que diminui 0,44%

da população mundial (FERGUSON, 2007).

Ao mesmo tempo em que punha fim às guerras religiosas na Europa,

Vestfália instituiu uma estrutura política internacional descentralizada, em que os

Estados soberanos atuavam na arena internacional conforme interesses autóctones.

Como afirma Santos Junior (2006, p. 717),

nesse caso, os Estados pautavam as ações na busca de ganhos e vantagens nacionais, muitas vezes recorrendo à força, de modo que, ao invés de valores humanistas, as relações internacionais priorizavam elementos como: território, forças armadas, recursos naturais e população, ratificando, a principio, a morfologia do sistema estatal, defendida pelas premissas da teoria realista.

Como se percebe, humanistas como Saint-Pierre e Kant se confrontaram

drasticamente com a doutrina e as práticas realistas, já naquela distante época. A

paz, então, não resultaria de atos voluntários, capitaneados por governos nacionais,

como propunham Saint-Pierre e Kant, mas principalmente do equilíbrio de poder:

“Só a força poderia controlar a força”.

Sob o aspecto da “autodeterminação” dos povos, em dezembro de 1914,

Woodrow Wilson já havia exposto a inexequibilidade do modelo de Mazzini25,

quando afirmou que qualquer acordo de paz, “deveria beneficiar as nações

25Giuseppe Mazzini, em 1857, já havia desenhado o mapa ideal da Europa, baseado na língua e na etnicidade, quando o mapa da Europa era dominado por quatro impérios multinacionais – o britânico, o russo, o Habsburgo e o otomano; sete monarquias de porte médio – França, Prússia, Espanha, Portugual, Holanda, Bélgica, Dinamarca/Suécia; uma confederação republicana – Suíça; e uma pletora de Estados menores na Alemanha, Itálica e Bálcãs. Antes disso, no Tratado de Perpetual Peace [Paz Perpétua], em 1712, Charles de Saint-Pierre, já havia dealizado a “União Européia”, por vinte quatro Estados, que incluíam Savóia, Veneza, Gênova, Florença, e o Papado, além da Baviera, Lorena, Courland, Saxônia, Hanover, o Paladinado e os eleitorados eclesiásticos do Sacro Império Romano (FERGUSON, 2007).

43

européias consideradas Povos e não qualquer nação que submeta povos estranhos

ao seu arbítrio governamental” (FERGUSON, 2007, p. 442).

Wilson (apud FERGUSON, 2007, p. 442) foi ainda mais longe em seu

pronunciamento à League to Enforce Peace [Liga para Garantir a Paz] em maio de

1915, quando declarou inequivocamente que “todos os povos têm o direito de

escolher a soberania sob a qual irão viver". Em janeiro de 1917, essa tese foi

reiterada por Wilson (apud FERGUSON, 2007, p. 442): “Todos os povos deveriam

ter a liberdade de determinar a sua própria forma de governo”. Os pontos cinco a

treze, dos quatorze pontos de Wilson, discorrem sobre as implicações desse

princípio, o que permite Ferguson (2007, p. 442) concluir que a finalidade da Liga

das Nações não era simplesmente garantir a integridade territorial dos seus

Estados-membros, mas também acomodar futuros ajustes territoriais, “consoante o

princípio da autodeterminação”.

Exemplo recente de equilíbrio de poder, na ordem internacional foi a Guerra

Fria, entre os Estados Unidos e a União Soviética, após a Segunda Guerra Mundial.

Outro componente importante dessa época era a questão étnica. Quando Werner

Sombart26 escreveu em 1911, The Jews and Economic Life [Os Judeus e a Vida

Econômica], o que estava em jogo, segundo Ferguson (2007, p. 439), “era se certas

raças, para o bem ou para o mal, se ajustavam melhor que outras ao capitalismo.”

Recente levantamento da Freedom House27 sugere que países onde não há

etnia predominante são menos bem-sucedidos do que países etnicamente

26 Werner Sombart (nascido a 19 de janeiro de 1863 em Ermsleben e falecido a 18 de maio de 1941 em Berlim) foi sociológo e economista alemão, muito influente do século XIX e XX, que influenciou nas idéias de Weber (FERGUSON, 2007). 27 Freedom House é uma organização independente não-governamental que apóia a expansão da liberdade no mundo. A liberdade só é possível em sistemas políticos democráticos em que os governos são responsáveis perante os seus próprios cidadãos; o Estado de Direito prevalece; e das liberdades de expressão, de associação, e de crença, bem como o respeito pelos direitos das minorias e das mulheres, estão garantidos. Liberdade, em última análise, depende das ações do empenhada e corajosos homens e mulheres. Nós apoiamos iniciativas cívicas não violenta nas sociedades onde a liberdade é negada ou sob ameaça e que pé estamos na oposição ao idéias e forças que desafiam o direito de todas as pessoas a serem livres. Freedom House funciona como um catalisador para a liberdade, da democracia e do Estado de direito através da sua análise, advocacia e de ação (FERGUSON, 2007).

44

homogêneos (definidos como países em que dois terços da população pertencem a

um único grupo étnico) no estabelecimento de sociedade abertas e democráticas.

Dos 114 países do mundo onde há uma étnica dominante, 66 - mais da

metade - são livres. Ao contrário, dos 77 países com etnias múltiplas, apenas 22 -

menos de um terço - são livres (FERGUSON, 2007). Argumenta Ferguson (2007)

que este dado não pode ser lido como argumento a favor da criação de Estados

Homogêneos, mas principalmente porque, talvez, na maioria dos Estados com

múltiplas etnias, a unidade só pode ser mantida por regimes não liberais. Alude que

uma das teorias é de que há um jogo de compensações atuando entre as

economias de escala que propiciam a criação de grandes Estados nacionais e a

alienação a que os grupos geograficamente periféricos são submetidos quando

estão muito distantes do centro do governo.

Afirma esse autor que isto pode ter ocorrido na entreguerra, qual seja, o

período idealista, quando se verificou uma correlação relativamente próxima (mas

não exata) entre o fracasso da democracia e a presença de grandes minorias

étnicas em paises como a Polônia, Romênia e Iugoslávia. Na Polônia, quase 30% da

população não eram considerados poloneses, mas bielo-russos (5%), ucranianos

(14%), judeus (8%) e alemães (2%).

Na Romênia, quase um quinto da população não era de romenos, mas de

húngaros (8%), alemães (4%) e ucranianos (3%). Na Espanha e Albânia,

aproximadamente 20% das populações também eram representados por minoria.

Na Turquia, cerca de dois quintos da população correspondiam a minorias.

Argumenta-se que, sem pulso forte do autoritarismo, as forças de autodeterminação

sempre acabarão por levar esses Estados com múltiplas etnias a fragmentar-se em

“pequenos Estados” homogêneos.

Não obstante, quando deflagrou-se a Segunda Guerra Mundial, ao final do

período considerado de maior incremento idealista, se analisarmos sob o aspecto da

extensão da mobilização militar, “nunca em toda a história os exércitos foram tão

grandes em termos absoluto: a maior força militar da história foi provavelmente a

45

União Soviética em 1945, com cerca de 12,5 milhões – na Guerra dos Cem Anos, os

exércitos raramente ultrapassavam os 12 mil.” (FERGUSON, 2007, p. 52-53).

Segundo Ferguson (2007), no auge da mobilização, a população mantida em

serviço chegou a mais de 13% na França e na Alemanha, a mais de 9% na Grã-

Bretanha, a mais de 8% na Itália, a pouco mais de 7% na Áustria-Hungria, e a pouco

menos de 7% na Rússia.

No século XVIII, quando, além da guerra com as colônias norte-americanas, a

Grã-Bretanha também guerreava com a França, Espanha e Holanda, a população

em armas alcançou o pico máximo de 2,8% em 1780 - nos anos mais pacíficos, este

percentual não chegava a 1%. Também no século XVIII, o percentual de homens

que a França empregava nas forças armadas entrou em declínio - recuando de 1,8%

em 1710 para 0,8% em 1790. Ainda no XVIII, entre 1 e 2% da população da Áustria

foi permanentemente mantida em armas; na Prússia este percentual foi muito

superior, tendo chegado a 4,1% da população em 1760.

Em todos os países, a “revolução das guerras” de Napoleão aumentou o

percentual da população que precisou ser mobilizado. Em 1810, o percentual da

população mantido em armas chegava na Grã-Bretanha a mais de 5% na Prússia a

3, 9% na França a 3,7%, e na Áustria a 2,4%. Todavia, com exceção da Rússia na

Guerra da Criméia, dos Estados Unidos na Guerra Civil, e da França e Prússia na

guerra de 1870-1, nenhuma grande potência mobilizou militarmente mais de 2% da

sua população entre 1816 e 1913. Se é certo que, no período inicial de entre

guerras, caíram os índices de participação militar, caíram substancialmente em

todas as principais potências28, depois da redução forçada acordada em 1919 pelo

Tratado de Versalhes, nesta, incluindo a Alemanha, que só tornou a superar a marca

de 1% da população, após 1938 (FERGUSON, 2007).

Vale reconhecer, por óbvio, que tudo isto ocorreu em pleno período idealista.

Surpreendentemente, a França foi o país, cujas forças armadas mobilizaram o maior

28 “Em média, apenas a França manteve mais de 1% da população mobilizada, na Grã-Bretanha, em meados da década de 1930, o percentual caiu a meros 0,7% , e na União Soviética, em 1932, abaixo de 1%. Também nos Estados Unidos a desmobilização militar retornou aos níveis do século XIX” (FERGUSON, 2007, p. 53).

46

percentual entre 1939 e 1945 (pouco menos de 12% em 1940). A Alemanha atingiu

o pico de 8,3% em 1941, inferior ao da Grã-Bretanha em 1945 (10,4%). Note-se

ainda que o percentual soviético (7,4%) foi inferior ao dos Estados Unidos (8,6%).

Segundo Ferguson (2007), é quase certo que a Alemanha manteve número

excessivo de homens engajados no exército, o que prejudicou a mão-de-obra

industrial, fato que não ocorrera na Segunda Guerra Mundial. Eis que esta teria sido

mais equilibrada.

Para Ferguson (2007), as agudas flutuações acima de uma linha

relativamente estável nos índices de mobilização militar e por seu caráter de

descontinuidade, acíclico, que a guerra teve uma influência decisiva no

desenvolvimento das instituições financeiras e políticas.

A propósito, Ferguson (2007) afirma que enquanto a Guerra da Sucessão

Espanhola (1701-13) matou 1,2 milhão de pessoas, e cem anos mais tarde, as

Guerras Napoleônicas mataram 1,9 milhão. Novamente, cem anos mais tarde, a

Primeira Guerra Mundial custou a vida de mais de 9 milhões de militares. Mas até

isto parece insignificante frente a mortandade provocada pela Segunda Guerra

Mundial. Só de militares, excluídas as baixas civis, o total de mortos foi mais ou

menos o dobro da Primeira Guerra Mundial. Estima-se em 37,8 milhões o total de

baixas civis, o que eleva o total de baixas da Segunda Guerra Mundial para quase

57 milhões de pessoas.

Acrescenta Ferguson (2007, p. 58): “A Primeira Guerra Mundial causou, em

quatro anos e três meses, um número de baixas cinco vezes superior ao de todas as

Guerras Napoleônicas, que duraram doze anos”29.

Talvez por isto, Ferguson (2007, p. 30) comenta que a Primeira Guerra

Mundial não só aumentou o gasto com a defesa como também ampliou

29 “Também é possível expressar isto pelo cálculo aproximado da taxa anual de óbitos das várias guerras, que saltou de pouco mais de 69 mil na Guerra dos Trinta Anos para cerca de 104 mil nas Guerras Napoleônicas e 2,2 e 3,2 milhões, respectivamente, nas duas Guerras Mundiais (ou 9,5 milhões, caso se inclua aí as baixas civis da Segunda Guerra Mundial) . Em suma, o morticínio causado pelas guerras multiplicou-se, entre o século XVII e o XX, por um fator próximo a 800.De Napoleão a Hitler – nascidos com um intervalo de apenas 120 anos – o aumento foi superior a 300 vezes” (FERGUSON, 2007, p. 58-60).

47

significativamente o leque de atividades governamentais de caráter não-militar. Na

Grã-Bretanha, criaram-se novos ministérios: além de Munições e Aeronáutica, os da

Alimentação (1916), Trabalho (1916), e Saúde (1919), sem falar nos departamentos

do Serviço Nacional e da Reconstrução, de curta existência. Apesar de os

ambiciosos planos do pós-guerra visando a oferecer “moradias condizentes com os

heróis” ter fracassado devido à retração, foi impossível reverter o Estado à situação

do pré-guerra30. Na realidade, os governos viram-se em geral obrigados a gastar

mais dinheiro, por mais que se esforçassem em evitá-lo, devido ao desemprego sem

precedentes do “entre-guerras”.

Por fim, nesta diapasão, quem melhor esclarece o declínio experimentado

pela Europa, de um lado, e a ascensão do EUA e do Japão, por outra, é Brum e

Heck (2005), quando apresentam três efeitos provocados sobre a economia

européia, no período de 1914-1918, data do primeiro grande conflito: a) a produção

parou, obrigando os europeus a comprarem no estrangeiro os bens necessários (a

Europa se torna devedora de seus antigos devedores); b) destruição de seus bens,

obrigando-a a reconstruir e levando à perda dos meios para criar novas riquezas

para comercializar; c) a morte de milhares de homens, provocando o esgotamento

de uma fonte de energia e vitalidade, isto é, da mão-de-obra produtiva.

Para Brum e Heck (2005), por sua vez, analisando o fenômeno econômico da

época, em 1921 tem-se a segunda crise na medida em que o mundo se depara com

as dificuldades em retornar à fase anterior à guerra. O principal mecanismo dessa

crise, segundo Brum e Heck (2005, p. 337), “foram as necessidades nascidas da

guerra e o desejo de voltar à situação de antes da guerra”.

1.5 Globalização imperialista e colonialismo

Como já foi dito, a globalização ao longo do tempo, caracterizou-se por fluxos

e refluxos, avanços e retrocessos, impostos muitas vezes, em face da resistência às

30 “Os mecanismos de seguro compulsório do pré-guerra não resistiram a um desemprego tão elevado e sustentado (e, nos países atingidos pela hiperinflação, os seus fundos foram em grande parte rapados). Os governos foram forçados, ou a pagar um auxilio-desemprego aos desempregados, ou a usar fundos publicois para emprega-los, sendo esta segunda alternativa a mais dispendiosa”. Ver mais, FERGUSON, 2007, p. 130-131.

48

conquistas e guerras de conquistas. Embora Oliveira entenda que no período de

entre guerras se verificou uma “desglobalização”, se analisarmos sob o aspecto das

conquista, em especial, o já conhecido “colonialismo”, essa desglobalização, não

nos parece aparente, mormente como “refluxo”. Se as grandes descobertas foram

frutos do acaso - o que não é nossa convicção -, a colonização que dela resultou,

tornou-se rapidamente um empreendimento sistemático e gigantesco (MERLE,

2004). Neste aspecto, como empreendimento, se podem notar deslocamentos,

viagens e apropriações, como processo globalizante ou globalizador. Ou seria uma

das conseqüências da globalização? É o que nos parece, afinal, os efeitos são

tantos quantos os que contemporaneamente se tem como tais.

Analisemos, então, esse período, sob o ângulo das conquistas - aos nossos

olhos - como um dos efeitos da globalização. Essas “conquistas”, na verdade, vistas

pela forma capitulada pela história da humanidade, inequivocamente, além de seu

aspecto imperialista, deixaram seqüelas que jamais serão recuperadas. Dentre

tantas, destacamos algumas, como a eliminação e extermínio da nação aborígine da

Austrália.

O povo aborígine foi maciçamente assassinado, violado, mutilado e

desapossado de suas terras tribais e, hoje, constituí-se na fração mais pobre do

país: mais pobre na saúde, mais pobre na educação, com índice de desemprego

mais elevado, sendo que é seu o maior índice de detentos do mundo (DAVIDSON,

2004).

Nem pedido de desculpas31 lhe devolverá a dignidade roubada, afinal, aquele

povo renunciou à sua cultura, teve sua sociedade aborígine destruída, e ainda foi

privado de suas terras, ao longo dos dois séculos posteriores a 1788, com fome,

miséria e doenças como a varíola e as afecções venéreas e alcoolismo, provocados

pela colonização dos brancos britânicos (DAVIDSON, 2004). Aos autóctones

resistentes ao processo “civilizador”, significava a morte. Isto durou até, pelo menos,

1928, em pleno período idealista, tendo no inicio do Século XX, iniciado uma política

31 O Primeiro Ministro da Austrália, Kevin Rud, pediu desculpas aos aborígines, da chamada "geração roubada", onde 100 mil crianças e jovens aborígines seqüestrados de suas famílias pelo Estado para serem educados com valores ocidentais. Terça-feira, 19 fev. 2008.

49

de assimilação forçada, contribuindo para destruição das comunidades autóctones,

se intensificando nas décadas seguintes32. A primeira forma de “assimilação”

consistia em obrigar os aborígines a sedentarizar-se e a cultivar a terra como os

brancos. Praticou-se nesse tempo, a política da separação, tendo durado até 1970,

embora seu apogeu tenha sido em 1920 em pleno período idealista, no qual

incrementou-se uma espécie de “seleção biológica” destinada a eliminar o “sangue

de cor”, quando as crianças “mestiças” eram afastadas, ou melhor, “arrancadas” de

suas famílias para serem educadas em instituições ou em famílias brancas as quais

lhes ensinavam apenas o grosso das tarefas servis33.

Os efeitos psicológicos do colonialismo, diga-se, aqui adotado por nós de

“Globalização Imperial”, permanece vivo no fundo da alma, porquanto praticamente

destruiu a sociedade aborígine ao longo do tempo, inclusive, dentro do próprio

período considerado idealista, conforme pode ser visto no quadro de Russel

Thornton (apud DAVIDSON, 2004):

Quadro 1: Recenseamento dos aborígenes em 30 de junho de 1939: população

aborígene australiana e população aborígene de mestiços de 1921 a 1939

Aborígenes de “sangue puro”

Mestiços

30 de junho

Adul-tos

Crian-ças

Total % pop. Aboríg.

Adultos Crian-ças

Total %pop. Aboríg.

Pop. Abor. Total

1921 46.723 12.048 58.771 82,31 7.931 4.699 12.630 17,69 71.401 1928 48.044 12.619 60.663 78,29 9.763 7.055 16.818 21,71 77.481 1929 49.078 12.723 61.801 78,80 9.450 7.179 16.629 21,20 78,430 1930 49.167 12.567 61.734 77,62 10.213 7.584 17.797 22,38 79.351 1931 46.676 12.225 58.901 75,60 10.923 8.091 19.014 24,50 77,915 1932 47.345 12.374 59.719 75,68 10.891 8.305 19.196 24,32 78.915 1933 47.321 12.780 60.101 75,53 10.999 8.468 19.467 24,47 79.568 1934 42.955 11.893 54.848 71,93 12.040 9.359 21.399 28,07 76.247 1935 42.492 11.886 54.378 70,44 12,800 10.017 22.817 29,56 77.195 1936 41.950 11.748 53.698 69,59 13.137 10.324 23.461 30,41 77.159 1937 41.306 11.529 52.835 69,81 13.596 10.354 23.950 31,19 76.785 1938 40.487 10.892 51.379 67,52 13.988 10.730 24.718 32,48 76.097 1939 40.482 11.075 51.557 66,72 14.275 11.437 25.712 33,28 77.269 Fonte: DAVIDSON, 2004, p. 81.

32 Aconselha-se ver filme geração roubada. 33 Ver filme geração roubada.

50

No início dos anos 1930, o protetor geral dos aborígines do Território do

Norte, o doutor Cecil Cook (apud DAVIDSON, 2004, p. 96), declarou:

Todos os esforços são feitos para eliminar o sangue de cor, elevando os padrões de conduta dos mestiços do sexo feminino à altura daqueles dos brancos, a fim de fazer absorver tais mulheres pela população branca mediante o cruzamento com esta.

Diferente não foi o tratamento dispensado aos negros, quando, após centena

de anos em covarde atividade, mesmo que proibido o tráfico na Grã-Bretanha em

1807, e na França, em 1815, ele não deixou de ocorrer, tendo inclusive

incrementado sua atividade para o Brasil e Cuba. Embora se possa apontar 1848,

como ano do fim da escravidão nas possessões francesas do Oeste da África, tal

decreto atrapalhava a política de conquista colonial dos franceses e sua anexação.

Para que outras potências não os substituíssem, era preciso manter e permitir que

as populações que possuíam escravos não só com eles permanecesse, como

poderiam “situar-se” com eles e sob a dependência da França. Para tanto, dava-se a

eles a denominação de “súditos” e não de “cidadãos franceses”, deixando-os assim,

fora das disposições do decreto de 1848, conservando-se, no mais, com o direito de

ter escravos. Eram então chamados de “cativos”, “criados”, em vez de escravos.

Assim, se por acaso for concedida alforria ao cativo, surgia novo problema:

regulamentar o trabalho livre, do contrário, o escravo libertado “se tornaria um

vagabundo” (FERRO, 2003, p. 131). Adstrito ao trabalho forçado, a partir de 1914,

muito ex-escravos senegaleses se alistaram entre os tirailleurs34, tendo adentrado tal

violência no período considerado idealista, mantendo-se até quase a metade do

século XX.

Nos Estados Unidos, após a Guerra da Secessão, foram dois séculos de

escravidão, a qual ocupou posição central na sociedade e na sua economia.

Particularmente no Sul do País, em especial nas plantações de tabaco, cana-de-

açúcar, arroz e algodão, a mão-de-obra era escrava. Embora a partir do século

XVIII, as brutalidades mais atrozes se tivessem feito mais raras, foi somente a partir

do início do século XIX que passaram a existir leis que proibiam os maus tratos. Era 34 Literalmente, “atiradores”. Neste contexto, o termo se refere aos soldados de infantaria recrutados, da segunda metade do século XIX à primeira do Século XX, entre autóctones dos territórios franceses do ultramar (FERRO, 2003).

51

sinal de que já não eram aceitáveis, embora não fossem seguidas de efeitos

práticos. Nos anos de 1950, Stanley Elkins comparava os escravos aos deportados

nazistas, porquanto, infantilizados e dóceis, eles teriam sido privados de toda a

capacidade de defesa, e a comunidade negra teria sido arruinada e despedaçada de

dois séculos de escravidão. Foi preciso esperar o momento pós-Segunda Guerra

Mundial para que os afro-americanos, conduzidos por algumas figuras carismáticas

como a de Martin Luther King, se livrassem do jugo da segregação, nisso auxiliados

por uma Corte Suprema recém afeita à igualdade dos direitos (NDIAYE, 2003). Ledo

engano daqueles que acreditavam nisto, afinal, quando por ocasião da Conferência

Mundial de Durban, contra o Racismo, realizada em setembro de 2001, momento

em que se encaminhou um reconhecimento de que a escravidão foi um crime contra

a humanidade, exprimindo um “pesar” dos países que se beneficiaram dela, os

Estados Unidos se recusaram a subscrever a declaração final.

Anote-se que a escravidão, deu-se não só em função do colonialismo

imperial, mas principalmente, quando a globalização incrementou-se com as viagens

marítimas que abriram novas frentes de trabalho e de produção (THOMAS, 1997).

1.6 A globalização no período realista

A história tem demonstrado fartamente que de nada valem os tratados e

acordos firmados se não conseguirem ser defendidos e não tenham em sua

retaguarda um aparato militar equivalente às suas pretensões. É isto que Antônio

Gramsci, pensador marxista, atribui como caminho encontrado pelos países que se

converteram em grandes potências (MIYAMOTO; SCHERMA, 2006).

Fica claro, portanto, que política e poder sempre caminharam de mãos dadas

ao longo da história da humanidade. Pensadores como, Thomas Hobbes (1588-

1679) e outros mais recentes como Hans Morgenthau (1904-1980) e Raymond Aron

(1905-1983)35, entre outros, influenciaram fortemente o modo de interpretar o

relacionamento entre os diversos Estados-Nacionais (MIYAMOTO; SCHERMA,

35 Conferir: HOBBES, T. O leviatã. , 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983; ARON, R. Paix et guerre entre lês nations. Paris: Calmman-Levy, 1962; MORGENTHAU, H. Politics among nations: the struggle for power and peace. New York: Alfred Knopf, 1978.

52

2006). Segundo Miyamoto e Scherma (2006), Hans Morgenthau pode ser visto como

precursor da corrente realista nos Estados Unidos, mas os princípios dela encontram

raízes mais profundas, em Thomas Hobbes e também em Maquiavel e Max Weber.

Essa teoria pode ser descrita em três pontos:

Primeiro: o sistema internacional é anárquico. Cada Estado é soberano de si

mesmo, mas não há um soberano dos diversos Estados. Eles coexistem sem uma

entidade que os regule, numa situação de “estado de natureza” hobbesiano, e a

guerra é uma ameaça constante. Esse é um pressuposto imutável para os realistas.

Segundo: os estadistas sempre procuram maximizar seus ganhos,

demonstrando que o Estado pensa em si próprio, de forma exclusiva, sem pensar

que o seu agir poderá prejudicar outros. Como afirma Miyamoto e Scherma (2006, p.

669), “poderíamos dizer que se trata de uma ausência de valores morais”.

Terceiro: o amoralismo é condizente com o pressuposto que “percebe a

política como esfera autônoma de ação” (MIYAMOTO; SCHERMA, 2006, p. 669).

Os homens são, na visão Hobbesiana, racionais, egoístas e anti-sociais por

natureza, afirma Souza (2006). Enquanto Aristóteles, em sua obra Política retrata o

homem como um animal político e atribui ao homem uma aptidão natural para a vida

em sociedade e para o bem, Hobbes (1983), ao contrário, realça que os homens não

têm prazer na companhia dos outros, e só admitem a vida em sociedade como uma

resposta indispensável à ameaça de morte violenta e mútua. Segundo esse autor,

toda associação duradoura, na perspectiva hobbesiana, só pode ter como origem o

medo recíproco. Na ausência do medo, a natureza humana impeliria os homens à

tentativa de dominação, e não à associação ou colaboração mútua.

Na análise da natureza humana e sua condição, Hobbes propõe um outro

postulado que divergiria da posição de Aristóteles: a igualdade natural dos homens,

lembra Souza (2006).36 Essa igualdade é invocada por Hobbes para fundamentar o

36“A questão de decidir quem é o melhor homem não tem lugar na condição de simples natureza, na qual todos os homens são iguais.. Bem sei que Aristóteles, no livro primeiro de sua Política, como fundamento de sua doutrina, afirma que por sua natureza alguns homens têm mais capacidade para

53

medo recíproco entre os homens, em razão do potencial de causarem danos uns

aos outros.

Dentro deste contexto e das proposições básicas do pensamento hobbesiano,

foram endossadas e desenvolvidas pela perspectiva Realista posteriormente e, a

partir delas, sugeriu-se uma tendência estrutural no comportamento dos Estados no

plano internacional. O racionalismo realista é politicamente objetivo e se orienta pelo

interesses nacionais definidos em termos de poder (MORGENTHAU, 1978). O

Realismo prevê três padrões de comportamento para os Estados no sistema

internacional: o primeiro é a ação inspirada pelo medo; o segundo é a conduta

movido pelo objetivo de auto-ajuda ou auto-preservação, na medida em que os

Estados se conscientizem de que a sua sobrevivência está somente em suas mãos.

O terceiro, seria guiada para a maximização do poder (Realismo Ofensivo) ou para a

segurança própria do Estado (Realismo Defensivo) (SOUZA, 2006).

Na visão de Aron (2002), a ordem do sistema internacional é um reflexo da

relação potencial ou real de forças entre os Estados (ou distribuição de poder), dos

atributos geopolíticos dos Estados, e dos seus valores, princípios e estruturas

domésticas básicas. A identidade entre Aron e Hobbes residiria na adoção da tese

da anarquia em estado de natureza e em situar o conflito ou a guerra como o

elemento fundamental das relações internacionais, definindo, por exemplo, o

conceito de sistema internacional como o “conjunto constituído pelas unidades

políticas que mantêm relações regulares entre si e que são suscetíveis de entrar

numa guerra geral” (ARON, 2002, p. 154-155).

Kissinger (apud SOUZA, 2006), Aron (2002) e outros realistas compartilham

com Hobbes o entendimento de que as instituições internacionais ou regimes

normativos não exercem um papel fundamental na composição da ordem mundial.

Hobbes (1983, p. 77) chega a afirmar que:

Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é conseqüência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de

mandar... e outros têm mais capacidade para servir... como se senhor e servo não tivessem sido criados pelo consentimento dos homens, mas pela diferença de inteligência, o que não só é contrário à razão, mas é também contrário a experiência”. (HOBBES, 1983, p. 91).

54

justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça.

O realismo, segundo Miyamoto e Scherma (2006, p. 688), “continua sendo o

eixo condutor das políticas assumidas pela maioria dos Estados, que entendem

segurança vinculada apenas com seu componente militar”. Tal comportamento pode

ser observado pelas medidas unilaterais, tomadas principalmente pelo EUA, como a

Guerra do Golfo de 1991, as intervenções na guerra civil da antiga Iuguslávia e mais

recentemente com os ataques aos Afeganistão e novamente ao Iraque.

São inúmeros os fatos internacionais que dão conta, a partir da análise deste

paradigma, dando azo a concluir que as grandes potências utilizam-se de vários

instrumentos de conquista e de poder. Como exemplo, poderemos anotar o que fala

Perkins (2005), que publicou a maior e mais contundente “verdade inconveniente”37,

relacionada ao agir hobbesiano - podemos dizer assim - e até criminoso das

corporações americanas:

Assassinos econômicos (AEs) são profissionais altamente remunerados cujo trabalho é lesar países ao redor do mundo em golpes que se contam aos trilhões de dólares. Manipulando recursos financeiros do Banco Mundial, da Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID), além de outras organizações americanas de “ajuda” ao exterior, eles os canalizam para os cofres de enormes corporações e para os bolsos de algumas famílias abastadas que controlam os recursos naturais do planeta. Entre os seus instrumentos de trabalho incluem-se relatórios financeiros adulterados, pleitos eleitorais fraudulentos, extorsão, sexo e assassinato. Eles praticam o velho jogo do imperialismo, mas um tipo de jogo que assumiu novas e aterradoras dimensões durante este tempo de globalização. Eu sei do que estou falando: eu fui um AE38.

Segundo Perkins (2005), em 1971, a determinação dos Estados Unidos, de

afastar a Indonésia do comunismo cresceu porque o resultado da guerra do Vietnã

estava parecendo muito incerto. O presidente Nixon começara uma série de

37 Termo usado por Al Gore, na luta em face do Aquecimento Global. 38 Nesta obra de fôlego, Perkins (2005, p. 9) confessa: “Escrevi este texto em 1982 como as palavras iniciais para um livro ao qual atribui o titulo provisório de Conscience of na Economic Hit Man (Consciência de um Assassino Econômico. (N. do T.), O livro era dedicado aos presidentes de dois países, homens que haviam sido meus clientes, a quem eu respeitava e considerava com consciências semelhantes à minha – Jaime Roldós, presidente do Equador, e Omar Torrijos, presidente do Panamá. Ambos acabavam de morrer em desastres aéreos. A morte deles não foi acidental. Eles foram assassinados porque se opunham àquela fraternidade de chefes de corporações, de governos e de bancos cuja meta é o império mundial. Nós, os AEs, fracassamos no nosso trabalho de cooptar Roldós e Torrijos, e os outros tipo de matadores, os chacais a serviço da CIA que vinham imediatamente depois de nós, entraram em ação”.

55

retiradas de tropas no verão de 1969 e a estratégia americana assumia uma

perspectiva mais mundial. A estratégia concentrava-se em impedir um efeito dominó

de um país após o outro caindo sob o domínio comunista, e concentrava-se em dois

países; A Indonésia era a chave. O projeto de eletrificação da MAIN39 era parte de

um plano abrangente para assegurar o domínio americano no Sudeste Asiático. A

premissa da política externa americana era a de que Suharto serviria a Washington

de maneira semelhante ao xá do Irã. Os Estados Unidos também esperavam que a

nação servisse como um modelo para outros países da região. Washington baseou

parte de sua estratégia no pressuposto de que os ganhos obtidos na Indonésia

poderiam ter repercussões positivas por todo o mundo islâmico, especialmente no

explosivo Oriente Médio. E se isso não fosse incentivo suficiente, a Indonésia ainda

tinha petróleo. Ninguém conhecia ao certo a magnitude ou a qualidade das suas

reservas, mas os sismologistas das companhias petrolíferas eram superlativos

quanto às possibilidades (PERKINS, 2005).

Essa forma de expandir os domínios comerciais e extremamente imperialista

não deixa de ser importante aos estudos da globalização nas Américas, pelos norte

americanos, na construção de uma economia poderosa, senão vejamos Perkins

(2005, p. 149), no tocante ao interesse na Colômbia:

Embora a Arábia Saudita, o Irã e o Panamá propiciassem estudos fascinantes e perturbadores, também permaneciam como exceções à regra. Em razão das enormes jazidas de petróleo nos primeiros dois e o Canal no terceiro, eles não se encaixavam na norma. A situação da Colômbia era mais típica, e a MAIN era a empresa de engenharia que desenvolvia e conduzia o gigantesco projeto hidrelétrico no país. Um professor de faculdade colombiano que escrevia um livro sobre a história das relações pan-americanas uma vez me disse que Teddy Roosevelt compreendera a importância do país dele. Indicando em um mapa, o presidente americano, também fundador do Regimento Rough Rider40, segundo consta teria qualificado a Colômbia como a “pedra angular que fecha o arco da América do Sul”. Eu nunca fui conferir essa história; no entanto,, sem dúvida é verdade que num mapa da Colômbia, situada no ponto dominante do continente, parece ser a peça responsável pela união do resto do território. Ela interliga todos os países do sul ao istmo do Panamá e, portanto, as Américas Central e do Norte. Se Roosevelt qualificou a Colômbia nesses termos ou não, ele foi apenas mais um dentre muitos presidentes que compreenderam a sua posição estratégicamente central. Por quase dois séculos, os Estados Unidos consideraram a

39 MAIN - Chas. T. Main, Inc. “Empresa de consultoria internacional encarregada dos Estudos ao Banco Mundial nos empréstimos Internacionais.” (PERKINS, 2005, p. 32). 40 Regimento de voluntários da cavalaria organizado por Theodoro Roosevelt e Leonardo Wood para servir na Guerra Hispano-Americana de 1898 (N. do T.) (PERKINS, 2005).

56

Colômbia como uma pedra angular – ou talvez mais precisamente, como um portal para o hemisfério sul tanto para os empreendimentos comerciais como para a política.

Dentro desta concepção hobbesiana e neoliberal, de cunho imperialista, a

economia americana deu longos passos à sua buscada hegemonia, sob as lições

estratégicas de seus idealizadores, dentre eles, o já citado Hans J. Morgenthau, de

longeva data, caracterizando-se, nitidamente o período realista, superando o

idealistas, ao longo do tempo.

De longa data alguns autores já denunciavam como imperialista as intenções

dos Estados Unidos em buscar o domínio mundial a todo custo (MOREL, 1989), pois

assim manifestavam-se alguns lideres, como William Taft, Presidente dos Estados

Unidos, que em 1909, dizia “in litteris”:

Não está longe o dia em que três bandeiras de estrelas e listras (a norte americana) assinalem em três locais eqüidistantes a extensão do nosso território: uma no Pólo Norte, outra na Canal do Panamá e a terceira no Pólo Sul. Todo o hemisfério será nosso, já que em virtude de nossa superioridade racial é nosso moralmente. (MOREL, 1989, grifo nosso).

Por sua vez, já dizia Jefferson (apud MOREL, 1989, p. 27), um dos

fundadores dos Estados Unidos, “nossos Pactos com a América Latina são como os

do leão com o cordeiro: mantenhamo-los”. Ou como dizia Adams (apud MOREL,

1989, p. 27, grifo do autor), “o cidadão comum do nosso país está pronto a opinar

acerca dos latino-americanos, como sendo todos mestiços degenerados, vaidosos,

ineptos e incapazes de manter um governo próprio”.

Aqui no Brasil, tempos atrás, sentiu-se também os efeitos dessa Política

“expansionista”. Não obstante a resposta negativa das Forças Armadas Brasileiras e

de 150 milhões de brasileiro, com o surgimento de alguns movimentos ecologistas

que custaram a vida de centenas de trabalhadores rurais de alguns sacerdotes e de

sindicalistas como Chico Mendes, ainda assim, confirmava-se o equívoco anterior

havido em Estocolmo, pois aqui professava Juracy Magalhães (apud MOREL, 1989,

p. 12), enquanto Ministro da Justiça do Brasil, “O que é bom para os Estados Unidos

é bom para o Brasil”. Capitalismo imperialista, via globalização neoliberal, se fez

apenas veículo para a implantação do Império, segundo Mireille (2003, p. 10), que

afirma que “o exemplo recente mais conhecido é o que invoquei no Irã, das leis

57

americanas impedindo o comércio com Cuba (Lei Holmes-Burton, de 12 de março

de 1966) e Líbia (Lei Amato-Kenedy, de 5 de agosto de 1996)”. Malgrado a

aplicação da “extraterritorialidade”, posto que além do território nacional americano,

o que importa salientar na realidade è a mensagem subliminar que significou a ação,

eis que no caso do Irã, bem como naquele da Líbia, a lei americana proíbe

investimentos futuros superior a quarenta milhões de dólares por ano para o

desenvolvimento do setor de petróleo e de gás, e não importa qual a empresa do

mundo. Além disso, as “sanções vão, da negação de crédito por um banco

americano à interdição de toda exportação de tecnologia, passando pela interdição

de importação dos bens produzidos pela pessoa jurídica sancionada.” (MIREILLE,

2003, p. 11).

Cita ainda, Mireille (2003, p. 15), o chamado colonialismo pós-moderno, “que

remete a idéia da venda explicita (explicit selling) do direito americano pelo mundo

inteiro”, esta possível sem invasão territorial e sem investimentos fundos no

desenvolvimento econômico e social, conseguem “determinar a forma de cultura e

de economia de outras nações, levando a elas o sistema jurídico que comandará a

organização social”. Anota Mireille (2003), ainda, que é a penetração menos visível,

mas igualmente eficiente, pela qual, empresas multinacionais obtêm, de modo mais

pontual, uma adaptação jurisprudencial ou mesmo legislativa da regra do direito

nacional, como foi o caso da rede Mac Donald na França, “passando em quinze

anos de 12 para 323 restaurantes abertos sob sua franquia, após ter triunfado num

processo relativo ao controle dos estabelecimentos franqueados.” (MIREILE, 2003,

p. 15).

Desenha-se uma forma de hegemonia ainda mais brutal: a decomposição do

sistema jurídico pelo mercado, com a aparição de zonas de não-direito, submetidas

somente ao capital internacional. Assim, o “mercado substitui a nação, impõe-se ao

Estado, torna-se direito” (MIREILLE, 2003, p. 17). Lembramo-nos que Morel (1989,

p. 27), já denunciava a chamada Doutrina de Monroe, lançada em dezembro de

1823, afirmando ainda que Wilson foi mais longe, prosseguindo a política de assalto,

com o desembarque de fuzileiros navais em Cuba, Nicarágua, México, Haiti, São

Domingos, Honduras, etc, dizendo claramente: “Um país é possuído e dominado

58

pelo capital que nele se achar empregado. À proporção que o capital estrangeiro

assume e toma ascendência.” (grifo do autor).

Com efeito, agora fica mais claro, mormente porque, a obra de Perkins (2005,

p. 17), os denuncia:

Em 2003, parti de Quito numa caminhonete em direção a Shell em uma missão como nenhuma outra que já havia assumido. Esperava acabar com uma guerra que eu mesmo tinha começado. Como é o caso em muitas coisas pelas quais nós, os AEs*, 41devemos nos responsabilizar, aquela era uma guerra virtualmente desconhecida em qualquer lugar fora do país onde ela era travada. Eu estava a caminho para encontrar os shuars, os quíchuas e seus vizinhos, os achuars, zaparos e os shiwiars – tribos determinadas a impedir que nossas companhias petrolíferas destruíssem suas casa, famílias e terras, mesmo que isso significasse que devemos morrer. Para eles, aquela era uma guerra pela sobrevivência de seus filhos e culturas, enquanto para nós significava poder, dinheiro e recursos naturais. Era apenas uma parte da batalha pela dominação do mundo e do sonho de uns poucos homens gananciosos pelo império mundial. Isto é o que nós AEs fazemos melhor: construímos um império mundial. Somos um grupo de elite de homens e mulheres que utilizam organizações financeiras internacionais para tornar outras nações subservientes a corporatocracia42 e fazer funcionar as nossas maiores corporações, o nosso governo e os nossos bancos. Como os nossos equivalentes na Máfia, os AEs, fazem favores. Estes são em forma de empréstimos para desenvolver a infra-estrutura – usinas e geração de eletricidade, estradas, portos, aeroportos ou parques industriais. Uma condição desses empréstimos é que as companhias de engenharia e de construção do nosso próprio país construam todos esses projetos. Na essência, grande parte desse dinheiro nunca deixa os Estados Unidos: é simplesmente transferido das agências bancárias de Washington para escritórios de engenharia de Nova York, Houston e São Francisco.Apesar do fato de que esse dinheiro é devolvido quase imediatamente para as corporações que integram a corporatocracia (os credores), o país recebedor é requisitado a pagar todo o dinheiro de volta, o principal mais os juros. Se um AEs for completamente bem-sucedido, os juros são tão altos que o devedor é forçado a deixar de honrar os seus pagamentos depois de alguns anos. Quando isto acontece, então, como a Máfia, cobramos nosso pagamento com a violência. Isso inclui uma ou mais formas como: controle sobre os na Organização das Nações Unidas, a instalação de bases militares ou o acesso a preciosos recursos como o petróleo ou o Canal do Panamá. É claro que o devedor ainda continua nos devendo dinheiro – e assim outro país é agregado ao nosso império mundial.

No Brasil, conforme já foi dito acima, esse império vem de longe. Veja-se,

como exemplo, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a entrega de

terras brasileiras a americanos, entre outros, que teve como Relator o Deputado

Haroldo Velloso, que em 3 de junho de 1968, entregou seu relatório “e logo depois,

41 Assassinos Econômicos - Termo usado pelo autor para designar os executivos que alteram planilhas de custos para conseguir em contratos astronômicos, individarem os países em desenvolvimento. 42 Termo usado pelo autor para designar o grupo de credores que compõe a máfia capitalista.

59

foi vítima de um atentado a bala, no interior do Pará, tendo falecido após.” (MOREL,

1989, p. 155).

O caso da lavagem de dinheiro da Arábia Saudita e a Comissão Conjunta

também estabeleceram novos precedentes para a jurisprudência internacional, o

que ficou evidente no Caso de Idi Amimm. Embora ele tenha sido considerado “um

déspota assassino”, responsável pela morte de 100 mil pessoas, aposentou-se com

uma vida luxuosa, - com carros e criados domésticos, fornecidos pela Casa de

Saud, com o apadrinhamento dos Estados Unidos, - em virtude dos arranjos com os

sauditas. Além disso, os Estados Unidos não escondia o seu desejo de que a Casa

de Saud patrocinasse a guerra afegã de Osama Bin Laden, contra a União

Soviética, durante a década de 1980, e Riad e Washington juntas, contribuíram com

cerca de 3,5 bilhões para os mujahideen (PERKINS, 2005).

Segundo Perkins (2005, p. 125-126),

depois dos ataques de 2001 ao World Trade Center e ao Pentágono, mais evidências surgiram sobre as relações encobertas entre Washington e Riad. Em outubro de 2003, a revista Vanity Fair revelou informações que não tinham chegado ao público, num artigo em profundidade intitulado “Saving the Saudis”. A história que surgiu sobre o relacionamento entre a família Bush, a Casa de Saud e a família Bin Laden não me surpreendeu. Eu sabia que esses relacionamentos remontavam pelo menos à época do Caso da Lavagem de dinheiro da Arábia Saudita, que começou em 1974, e a indicação de George H. W. Bush como embaixador americano nas Nações Unidas (de 1971 a 1973) e depois com chefe da CIA (de 1976 a 1977). O que me surpreendeu foi o fato de que a verdade finalmente chegara à imprensa.

Vanity Fair (apud PERKINS, 2005) assim concluía:

A família Bush e a Casa de Saud, as duas mais poderosas dinastias do mundo, tiveram estreitos laços pessoais, empresariais e políticos por mais de 20 anos...No setor privado, os sauditas apoiaram a Harken Energy, uma tumultuada companhia petrolífera em que George W Bush foram um investidor. Mais recentemente, o ex-presidente George H. W. Bush e o seu aliado de longa data, o ex-secretário de Estado James ª Baker III, apareceram perante os sauditas em levantamentos de fundos para o Carlyle Group, discutivelmente a maior empresa patrimonial privada do mundo. Hoje, o ex-presidente Bush continua a atuar como conselheiro graduado para a empresa, cujos investidores supostamente incluem um saudita acusado de laços com grupos de apoio ao terrorismo.. Poucos dias depois do 11 de setembro, abastados sauditas, incluindo integrantes da família Bin Laden, foram retirados dos Estados Unidos em jatinhos particulares. Ninguém admite ter autorizado os vôos, e os passageiros não foram

60

interrogados. Será que o antigo relacionamento da família Bush com os sauditas permitiu que isso acontecesse?

De tudo o que aconteceu no mundo, envolvendo a “Globalização Econômica”,

em especial essa globalização de conquistas imperiais levada a efeito pelos Estados

Unidos no mundo, a exemplo daquela sobre o Canal do Panamá e as emblemáticas

mortes de dois líderes como Omar Torrijos e Roldôs - Panamá e Equador - líderes

estes que poderiam fazer frente à vontade do Império com a chamada “Política dos

Hidrocarbonetos”, não sobrou senão noticias verberando “Assassinos da Cia”. A

invasão do Panamá pelos Estados Unidos e a deposição de Noriega - amigo da CIA

– o mundo assiste estupefato em 20 de setembro de 1989, ao maior ataque

aerotransportado sobre uma cidade desde a Segunda Guerra Mundial, matando

civis e gente do povo, estimando o número de mortos entre 3 mil e 5 mil, com outros

25 mil desabrigados. Foi um massacre, a favor da ganância da Maior Potência do

Mundo, esta mesma que lidera a “globalização econômica” e que já atrai para si os

olhos desconfiados do mundo.

Embora, como afirma Bedin (2001, p. 208), “no mundo real, a guerra não é

um ato isolado, que ocorre bruscamente, sem conexões com a vida no interior do

Estado”, é preciso contrapor-se a tal assertiva como natural, escudados pelos

ditames do Humanismo, em face da dignidade da pessoa humana. O autor, citando

Aron, alude que “A guerra é um processo social”. “Ela não consiste numa decisão

única ou em várias decisões simultâneas e não implica uma decisão completa em si

mesmo” (BEDIN, 2001, p. 210-211). E conclui:

Por isso, a instituição da guerra é um instrumento político tão importante como a diplomacia e o sistema de alianças. Além disso, não possui uma natureza diferente: é um ato político de um Estado dirigido à vontade de outra comunidade política soberana, com o objetivo de submetê-la à sua vontade. Essa é a verdadeira natureza da guerra: é um ato político, de política internacional, de política de poder (BEDIN, 2001, p. 210-211).

Ocorre que, muito embora isso, pela visão das relações internacionais, possa

ser visto como normal, tal política está intimamente vinculada às conquistas e à

acumulação do capital econômico das grandes potências, e à dominação dos fortes

contra os mais fracos. Porém, já não há mais lugar a essa forma de agir no mundo,

em face da crescente humanização e absoluta necessidade global de mundializar a

61

solidariedade e harmonização do globo terrestre ao fito de permanecer-mos a viver

na terra.

1.7 Globalização - vantagens e desvantagens

O ser humano já há milhões de anos está sendo construído e ainda não terminou o seu processo. Há nele uma tendência de expansão para todos os recantos da terra. Em razão disso soube adaptar-se a todos os ecossistemas, desde as geleiras do Ártico até as regiões tórridas do Saara. É o triunfo biológico da espécie homo. A globalização está presente na dinâmica desta tendência ancestral. (BOFF, 2002, p. 25).

Segundo Boff (2002), esta vontade de “globalizar” se mostrou tecnicamente

possível a partir de 1521, quando Fernão de Magalhães fez o périplo ao redor da

Terra. De lá para cá, teria ocorrido a ocidentalização do mundo, com a cultura

ocidental impondo aos povos sua forma de acercar-se da natureza mediante a

tecnociência, sua maneira de organizar a sociedade, através da democracia

representativa, e sua visão da pessoa humana, com cidadãos com direitos

inalienáveis e a maneira de entender e cultuar Deus, posto que o cristianismo, como

religião, é hegemônico.

Se para Boff (2002) isto parece ser positivo, sob um aspecto; por outro, é

inegável seu lado ignóbil. Afinal, durante esse processo, ocorreram enormes

atrocidades, como o maior etnocídio da história por ocasião da invasão do México e

do Peru. Em 70 anos, onde havia 25 indígenas, restou apenas um. A África foi

colonizada e totalmente desestruturada. O Oriente sofreu enorme impacto de força

militar e econômica do Ocidente. Veneráveis tradições espirituais foram debilitadas

pela penetração religiosa e cultural da Europa. É a assim chamada a idade de ferro

da globalização. Mas ela criou bases para a mundialização, hoje extremamente

acelerada e diversificada.

A rigor, um dos principais aspectos da globalização, que tem merecido

veemente critica, é o fato de que ela alterou significativamente a matriz das relações

sociais intra e entre países, afirma Baquero (2006). É de tamanha dimensão esta

influência da globalização na administração política dos Estados, principalmente

daqueles considerados periféricos, que Baumam (1999) chega a decretar a

62

irrelevância e morte gradativa do Panóptico de Foucault. Bil Clinton tinha razão43.

Mais razão tinha Thomas Mathiesen (apud FOUCAULT, 1984, p. 173) quando afirma

que a introdução do Panóptico representou uma transformação fundamental: “de

uma situação em que muitos vigiam poucos para uma situação em que poucos

vigiam muitos”.

Dizia Bauman (1999, p. 60), que “não há duvidas que Bill Clinton detém o

poder do panóptico, com vigilância e controle global, principalmente das nações

periféricas”, e dita:

Considere-se, porém, o seguinte. O Panóptico, mesmo quando sua aplicação era universal e quando as instituições que seguiam os seus princípios abrangiam o grosso da população, era por sua natureza um estabelecimento local: tanto a condição com os efeitos da instituição panóptica consistiam na imobilização dos seus súditos – a vigilância estava lá para barrar a fuga ou pelo menos para impedir movimentos autônomos, contingentes e erráticos. O Sinóptico é, por sua natureza, global; o ato de vigiar desprende os vigilantes de sua localidade, transporta-os pelo menos espiritualmente ao ciberespaço, no qual não mais importa a distância, ainda que fisicamente permaneçam no lugar. Não importa mais se os alvos do Sinóptico, que agora deixaram de ser os vigiados e passaram a ser os vigilantes, se movam ou fiquem parados. Onde quer que estejam e onde quer que vão, eles podem ligar-se – e se ligam – na rede extraterritorial que faz muitos vigiarem poucos. O Panóptico forçava as pessoas à posição em que podiam ser vigiadas. O Sinóptico não precisa de coerção – ele seduz as pessoas à vigilância. (BAUMAN, 1999, p. 60).

Como lembra Bauman (1999, p. 20), “quem manda não tem problemas, pois

não pertence ao local. Os proprietários, acionistas e demais influenciadores da

decisão, não estão preso ao local, no mesmo espaço local”. Livrar-se das

responsabilidades pelas conseqüências é o ganho mais cobiçado e ansiado que a

nova mobilidade propicia ao capital sem amarras locais, que flutua livremente.

Extrair o “produto excedente” era o único interesse que os proprietários ausentes

tinham na vida da terra que possuíam. Contrariamente, os capitalistas de agora da

era moderna, graças à mobilidade dos seus recursos agora líquidos, não enfrentam

limites reais o bastante, que o obriguem ao respeito, liberdade de movimento e

autoconstituição das sociedades. As distâncias já não importam, ao passo que a

idéia de uma fronteira geográfica é cada vez mais difícil de sustentar no mundo real.

43 “Parece ter sido essa também a razão pela qual Bill Clinton, o porta voz da mais poderosa elite do mundo atual, pode declarar recentemente que pela primeira vez não há diferença entre a política doméstica e a política externa”. (BAUMAN, 1999, p. 20).

63

Razão por que Bill Clinton teria declarado que não há mais diferenças entre

política doméstica e política externa. Com a interface dos computadores e monitores

de vídeos, as distinções entre aqui e lá não significam mais nada. Com a nova

velocidade, nova polarização, as distâncias não significando mais nada, as

localidades, separadas por distâncias, também perdem seu significado, e as

informações fluem independente dos seus portadores. As fortificações construídas

pela elite e a autodefesa através da agressão praticada por aqueles deixados de

fora das muralhas têm um efeito mutuamente reforçante previsto com clareza pela

teoria das “cadeias cismogenéticas” de Gregory Bateson (BAUMAN, 1999).

Por tudo isto, indaga Bauman (1999, p. 62), “depois da Nação-estado, o quê?”

“Numa geração anterior, a política social baseava-se na crença de que as nações e,

dentro delas, as cidades podiam controlar suas riquezas; agora, abre-se uma divisão

entre Estado e economia”, observa Richard Sennet (apud BAUMAN, 1999, p. 63). O

capital é mais rápido, mais veloz que o tempo do estado. O que se move com tal

velocidade é praticamente livre de restrições, seja do território que partiu, seja pelo

território que atravessa, seja naquele ao qual se dirige. A nação-estado está se

desgastando, definhando, enquanto as forças erosivas do capital transnacional

crescem e se incrementam. Tudo isso, alude Bauman (1999), cerca o processo em

curso, de “definhamento” das nações-estados de uma aura de catástrofe natural. A

nova desordem mundial causa sensação de pasmo e perplexidade. O significado

mais profundo transmitido pela idéia da globalização é o caráter indeterminado,

indisciplinado e de autopropulsão dos assuntos mundiais; a ausência de um centro

de painel de controle, de uma comissão diretora, de um gabinete administrativo.

A globalização é a “nova desordem mundial” de Jowitt com um outro nome.

Uma explicação plausível é a crescente experiência da fraqueza, mesmo da

impotência, dos agentes ordenadores habituais, tidos como seguros. Isso só poderia

ser realizado com a aquisição do veículo estatal ou com a captura da direção do

Estado Existente. Com sua base material destruída, sua soberania e independência

anuladas, sua classe política apagada, a nação-estado torna-se um mero serviço de

segurança para as “megas-empresas”.

64

A economia é progressivamente isenta do controle político. A única tarefa

econômica permitida ao Estado e que se espera que ele assuma é a de garantir um

“orçamento equilibrado”, policiando e controlando as pressões locais por

intervenções estatais mais vigorosas na direção dos negócios e em defesa da

população face às conseqüências mais sinistras da anarquia de mercado. Quase-

Estados, Estado fracos podem ser facilmente reduzidos ao (útil) papel de distritos

policiais locais que garantem o nível médio de ordem necessário para a realização

de negócios, mas não precisam ser temidos como freios efetivos à liberdade das

empresas globais.

Anota Bauman (1999, p. 62) que:

segregados e separados na terra, os habitantes locais encontram os globais através de transmissões regulares do céu, pela TV. Os ecos do encontro reverberam globalmente, abafando todos os sons locais mas refletidos pelos muros locais, cuja impenetrável solidez de presídio é assim revelada e reforçada.

Esse autor denuncia, em função da hierarquia da mobilidade, que a

globalização deu mais oportunidades aos extremamente ricos de ganhar dinheiro

mais rápido. Esses indivíduos utilizam a mais recente tecnologia para movimentar

largas somas de dinheiro mundo afora com extrema rapidez e espetacular com

eficiência cada vez maior. Infelizmente, a tecnologia não causa impacto nas vidas

dos pobres do mundo (BAUMANN, 1999).

De fato, a globalização é um paradoxo: é muito benéfica para muito poucos,

mas deixa de fora ou marginaliza dois terços da população mundial. A mentira da

promessa do livre comércio é bem encoberta; a conexão entre a crescente miséria e

desespero dos muitos “imobilizados” e as novas liberdades dos poucos com

mobilidade é difícil de perceber nos informes sobre as regiões lançadas na ponta

sofredora da “glocalização”. As riquezas são globais, a miséria é local.

Citando Ricardo Petrella, Bauman (1999, p. 87) diz que “a globalização

arrasta as economias para a produção do efêmero, do volátil, e do precário.”

Lembrando Jeremy Seabrook, a exemplo de Petrella, Bauman (1999, p. 87)

relembra suas lições de forma convincente:

65

a pobreza não pode ser curada, pois não é um sintoma da doença do capitalismo. Bem ao contrário,: é a evidência da sua saúde e robustez, do seu ímpeto para uma acumulação e esforços sempre maiores... Mesmo os mais ricos do mundo se queixam sobretudo de todas as coisas de que se devem privar ... Mesmo os mais privilegiados são compelidos a carregar dentro de si a urgência de lutar para adquirir ...

A cultura da sociedade de consumo, envolve, sobretudo, o esquecimento não

o aprendizado. O consumidor é uma pessoa em movimento e fadada a se mover

sempre. Os habitantes do Primeiro Mundo vivem no tempo; o espaço não importa

para eles, pois transpõem instantaneamente qualquer distância.

Para os habitantes do Segundo Mundo, os muros constituídos pelos controles

de imigração, as leis de residência, a política de “ruas limpas” dos locais de desejos

e da sonhada redenção ficaram mais profundos, ao passo que todas as pontes,

assim que se tenta atravessá-las, revelam-se pontes levadiças. O vagabundo é o

alter ego do turista. Ele é também o mais ardente admirador do turista. Os turistas

têm horror dos vagabundos pela mesmíssima razão que os vagabundos encaram os

turistas como gurus e ídolos.

Afinal, a maioria dos empregos é temporário, as ações podem tanto cair como

subir, as habilidades continuam a ser desvalorizadas e superadas por novas e mais

aperfeiçoadas habilidades, os bens de que hoje nos orgulhamos e gostamos tornam-

se logo obsoletos. Um mundo sem vagabundos é a utopia da sociedade dos turistas.

São imensas marginalidades e ninguém sabe lidar com elas. Leis globais, ordens

locais (BAUMAN, 1999).

Falk (1999) ainda, mais pessimista, a respeito da globalização, chega a

questionar como ficaria a cidadania, porque a influência da globalização tende a

minimizar as diferenças políticas, no seio do próprio Estado. A banalização dos

rituais eleitorais entre os diversos partidos políticos em disputa, e os cidadãos,

principalmente os 80% das classes pobres, estão a perder terreno nas opções

ofertadas, e o resultado é a passividade.

Anota esse autor, que diante da passividade, desespero e alienação, os 20

por cento privilegiados, sentem-se cada vez mais desligados dos infortúnios dos

66

seus concidadãos. Os laços de solidariedade - que já não são fortes - tendem a se

esfumaçar por revelarem-se tardiamente:

Os cidadãos carentes: de um lado, uma massa humana confusa e inerte, de outro, uma minoria revoltada e tribalista erroneamente orientada, que insufla uma nova vitalidade às políticas de extrema direita. E em terceiro lugar, “uma minoria visionária e ativista, que se organiza apenas no plano “local” e “transnacional” – mas não no plano nacional –, abrindo caminho a construção de uma sociedade civil global com ares de democracia cosmopolita. [...] A cidadania, nesse ambiente, enquanto componente do Estado, parece mais adaptações psicológicas à desterritorialização dele – Estado. (FALK, 1999, p. 265).

Considerando a força exercida pela disciplina do capital global para reorientar

e apropriar-se da perspectiva do Estado, estas tentativas marginalizam o papel e a

função do cidadão.

Alude Falk (1999, p. 271) como alternativa, a Globalização ascendente:

Relaciona-se com a interdependência notória da vida contemporânea e com a oportunidade para o estabelecimento de sistema de articulação e de redes disponíveis e sustentáveis, está a ascensão de forças sociais transnacionais como uma forma de política inovadora e diversificada. [...] É elucidativo contrastar estas forças sociais transnacionais como meios de criar uma globalização alternativa, a globalização ascendente, para combater a cooptação dos governos pelas forças orientadas par ao mercado associado à globalização descendente. [...] A conseqüência mais evidente, é que o futuro do ativismo transnacional em nome da agenda social dos bens públicos apresenta poucas probalidades de obter o aval ou os auspícios Estados-cêntricos e as instâncias das Nações Unidas. [...] A possibilidade de se criarem modalidades igualmente eficazes de ativismo transnacional irá depender do fato de as investidas contra os métodos e objetivos tradicionais dos cidadãos serem reformuladas com sucesso. “O rótulo de “cidadão transnacional” não é merecedoramente aplicável a não ser que existam os meios necessários para uma participação efetiva.”

No que tange às conjecturas sobre o futuro da cidadania e à democracia,

apesar da globalização econômica, a contribuição dos cidadãos, para salvaguardá-

la, e a implementação dos direitos humanos continua a constituir uma fonte de

esperança em relação ao futuro, frente ao declínio do Estado territorial soberano e a

do vigor demonstrado pelas forças globais de mercado.

67

A noção de cidadania como base dos direitos e deveres em relação ao

Estado, continua a fornecer fundamento legítimo para implementação de políticas de

reforma e oposição nos mais variados contextos nacionais. A globalização já está a

gerar esse interesse em implementar direitos econômicos e sociais a nível interno,

como parte do pacote dos direitos humanos. Como é evidente, numa competição

crescente ao nível de emprego, surge uma tendência para traçar linhas de

separação rígida entre cidadãos residentes e não cidadãos residentes, negando-se

a estes últimos, proteção social e acesso a saúde, educação, etc. É suscetível

apenas através de acordos negociados no plano regional, como é o caso da Europa,

na Carta Social. Com o tempo, esse quadro de ação mais amplo poderá revestir um

caráter global por meio de um contrato social global que garanta o respeito dos

direitos econômicos e sociais.

Afirma Falk (1999, p. 275), que “em virtude das enormes desigualdades e

desuniformidades, uma dessas tentativas é a proposta da OIT para realizar uma

nova convenção internacional que proíba as formas extremas do trabalho infantil”.

Leciona a necessidade de uma renovação normativa, afirmando que em face

da desigualdade das circunstâncias materiais, da orientação cultural e da

disponibilização de recursos torna particularmente difícil, e até mesmo suspeita, a

tentativa de universalizar aspirações e de apresentar uma imagem da governação

humanística susceptível de ser ratificada por todos os povos do mundo. As

perspectivas, como exemplo positivos, é a descolonização e os direitos humanos:

No caso da descolonização, os valores de autodeterminação e a ideologia de nacionalismo há muito já haviam questionado a legitimidade e a estabilidade da organização colonial. [...] A II Guerra Mundial não só enfraqueceu a moral como também diminuiu as capacidades das principais potências coloniais. Seguiu-se um novo fluxo histórico que se revelou impossível de prever, mesmo poucas décadas antes de ocorrer. [...] O segundo exemplo, envolve direitos humanos, internacionalmente protegidos. A legitimidade dos direitos humanos como um aspecto central da governação humanista deve as suas origens modernas fundamentais à Revolução Francesa, embora isso não signifique exatamente conceder à comunidade internacional a capacidade de julgar os processos internos de governação de um determinado Estado soberano. (FALK, 1999, p. 281).

68

O contrato social que constitui a base das Nações Unidas é explícito no seu

propósito de refrear as intervenções em assuntos “essencialmente pertencentes à

jurisdição interna” dos Estados (FALK, 1999, p. 281). Disso, podemos dizer que

embora os Estados não tenham levado a sério o compromisso formal para

cumprimento das obrigações referente aos direitos humanos, foram perturbados

pela ascensão de organizações transnacionais da sociedade civil para a defesa dos

direitos humanos, como as ONGS, bem como, quanto ao sucesso da campanha -

apartheid. Além disso, há dois outros fatores: a dependência interna das exigências

internacionais relativas aos direitos humanos particularmente na Europa na década

de 1980 e a conjunção da reivindicação de direitos civis e políticos com a defesa da

liberalização econômica na nova geopolítica de globalização (FALK, 1999).

No mais, Falk (1999) denuncia que o texto do artigo 51 - Carta da ONU -

deixa a impressão de que, mesmo numa situação de auto-defesa, a principal

responsabilidade recai no Conselho de Segurança e não na vítima do ataque.

Segundo o artigo 33, as disputas que coloquem em risco a paz e segurança nacional

devem procurarem uma resolução pacifica. Todavia, como podemos verificar, esta

promessa normativa nunca foi consistentemente cumprida. Algo fez com que a ONU

fosse incapaz de garantir os mecanismos coletivos de segurança que protegeriam

um determinado Estado contra as ameaças de agressão.

Um segundo obstáculo foi que os membros permanentes do Conselho de

Segurança não buscavam a base de suas respostas nas forças e considerações da

Carta mas nos alinhamentos ideológicos e questões geo-políticas.

Um outro fator é a recusa por parte dos principais Estados em transferirem o

controle político para a ONU em situações que envolvem o uso da força. A atitude

dos EEUU é decisiva e reveladora a este respeito.

As pretensões, no sentido da utilização de forças, têm estado associadas ao

longo dos anos à resposta aos ataques terroristas financiados ou patrocinados por

Estados (o ataque norte-americano à líbia em 1986, o apoio concedido pelos

Estados Unidos aos guerrilheiros contras - membros de uma organização militar que

lutou contra o governo da Nicarágua durante os anos 80) na guerra contra os

69

sandinistas na Nicarágua; os ataques israelitas periódicos contra o Líbano, às

ameaças de proliferação de armas nucleares (ataques israelita a Osirak, no Iraque,

em 1981), às violações dos direitos humanos e às práticas genocidas (Tanzânia

contra Uganda, Vietname contra Camboja em 1979, EUA contra o Panamá em

1989) (FALK, 1999).

No que tange aos direitos humanos, Falk (1999) alude que se analisados na

sua globalidade, os níveis de sucesso são impressionantes, apesar de a crueldade e

os abusos continuarem a ocorrer de forma generalizada, e de haver ainda um longo

caminho a percorrer para se alcançar um consenso ou acordo completo.

Potenciar-se-ia igualmente o contexto global para a promoção dos direitos humanos se os Estados principais, em particular os Estados Unidos, se abstivessem de utilizar fundamentações racionais relativas aos direitos humanos como pretextos para impor sanções a Estados em relação aos quais apresentam diferenças ideológicas acentuadas (por exemplo, CUBA). (FALK, 1999, p. 291).

Quanto ao desenvolvimento sustentado, Falk (1999, p. 293) afirma que:

apresentado inicialmente no Relatório da Comissão Mundial Brundtland para o Ambiente e o Desenvolvimento publicado sob o título Our Common Future, revelou-se fácil invocar a linguagem mas sem se implementarem as alterações necessárias ao nível das práticas. George Busch, então presidente dos Estados Unidos, anunciou ante do Rio 92, “que o padrão de vida norte-americano não era negociável”. Com efeito, se os países ricos não estivessem preparados para considerarem algumas limitações aos seus estilos e níveis de vida abastados, revelar-se-ia impossível induzir os países pobres a recusarem oportunidades de desenvolvimento, à curto prazo, ainda que ambientalmente prejudiciais, como é o caso das industrias madeireira e do arroteamento de florestas. [,,,] Um dos principais desafios que os defensores da governação humanista terão de enfrentar consiste em identificar os meios que servirão para fomentar o desenvolvimento sustentado em termos práticos e concretos à escala do Estado, da região e do planeta.

No que tange aos bens comuns globais, aos oceanos, às regiões polares, à

diminuição da camada de ozônio, ao clima, à biodiversidade, existe consciência de

que apenas regimes de cooperação global detentores de perspectivas a longo prazo

poderão evitar a ocorrência de desastres no plano dos bens comuns. Quanto à

responsabilidade, afirma que o regime legal é responsabilidade pessoal

70

[...] está consignado na carta das Nações Unidas, sendo desenvolvida em algumas resoluções cruciais da Assembléia Geral como é o caso da Declaração de Princípios de Direito Internacional e Relações de Amizade entre Estados. [...] Os padrões legais não são aplicados uniformemente pelas Nações Unidas, fato que propicia as acusações de critérios duplos. Os paises mais importantes reservam-se o direito de controlarem arbitrariamente o recurso a força. Às reparações de injustiças, nos últimos anos, assistimos a uma miríade de reivindicações associadas a acontecimentos do passado, por vezes, distante. (ler exemplos pág. 298) Isto significa que o passado encerra questões não resolvidas de equidade e ainda, feridas por sarar. Contudo, reflete uma procura de equidade intergeracional que complementa de várias formas a defesa crescente da responsabilidade em relações às gerações futuras. (FALK, 1999, p. 299).

No que tange à democracia global, a carta da ONU foi o início, afirma Falk

(1999, p. 299), “as propostas para criação de uma Assembléia Popular Global no

âmbito das Nações Unidas constituem um elemento da tentativa por parte das forças

democráticas transnacionais de maximizarem o seu papel na estrutura global de

autoridade”. A perspectiva de democracia global continua a ser o objetivo geral e

primordial de todos aqueles que se encontram empenhados em construir uma

governação humanista para todos os povos do planeta.

Uma perspectiva positiva e promissora para o futuro depende do fato de se apoiar e aprofundar a influência da sociedade civil global e de se colaborar sempre que possível com outros intervenientes políticos, incluindo os Estados e os agentes do setor privado. O futuro permanece aberto a um amplo espectro de possibilidades, incluindo às diretamente relacionadas com a governação humanista global. A história internacional recente, associada ao final pacífico da Guerra Fria e a luta bem sucedida contra o colonialismo, confirmou que os desfechos positivos ou desejáveis ocorrem mesmo quando maioria dos instrumentos de análise, nos fazem crer que esses resultados são praticamente impossíveis. (FALK, 1999, p. 301).

Gueheno (1999), por sua vez, chega a questionar ao tempo da queda do

comunismo, se efetivamente a democracia continuará existindo após o término do

segundo milênio? E afirma: o ano de 1989 não fecha uma época que começou em

1945, nem em 1917. Ele põe fim àquilo que foi institucionalizado graças a 1789. Ele

marca o final dos Estados-nação. É que, em épocas anteriores – na ótica do autor –,

na idade da penúria, a posse era único verdadeiro poder e não se distinguia entre

poder econômico e poder político: ser poderoso era acima de tudo, escapar da

miséria geral. Para compreender, impõe raciocinar que democracia, política e

liberdade, embora definiu por muito tempo definiu nosso horizonte mental, somos

71

herdeiros amnésicos, posto que as leis se tornaram receitas, o direito um método e

os Estados-nação, um espaço jurídico. Seria isto, hoje, suficiente para garantir a

idéia de democracia?

Pode haver democracia sem nação? A essas indagações, afirma

peremptoriamente: “O grande edifício da idade institucional perdeu as fundações e

está flutuando, livre de qualquer amarra, abandonado, como casas de madeira

levadas pela enchente” (GUEHENO, 1999, p. 9). Como Roma, “caminhamos a um

novo império”, em que pese às lamúrias de hoje, como foi a deles. O ano de 1989,

marca o crepúsculo de uma época histórica, na qual o Estado-nação surgiu dos

escombros do Império Romano. Por isso, entende o autor de chamar a idade que

se aproxima de “imperial”, posto que sucede ao Estado-nação como o Império

sucedeu à Republica Romana: a sociedade dos homens tornou-se grande demais

para formar um corpo político. Seus cidadãos são cada vez menos uma entidade

capaz de expressar uma soberania coletiva: são meros sujeitos jurídicos, titulares de

direito e submetidos a obrigações num espaço abstrato onde os limites territoriais

são cada vez menos precisos. É o surgimento do quarto império, e ele nasce dos

escombros da ideologia, e desse império soviético que uma vez quis ser a terceira

Roma.

Anota Gueheno (1999, p. 14) o fim das Nações, afirmando que se “a idéia da

equação liberdade e independência da a idéia de nação, aquelas que foram

descolonizadas - liberaram-se do jugo colonial - caíram para outra servidão impostas

as organizações internacionais como Banco Mundial, FMI, etc.” Ora, mas se

comprovados que essas instituições estão na realidade a proteger o capital das

nações poderosas, não estariam ainda sob o jugo colonial dos poderosos? A

similaridade com o século 19, das reivindicações dos paises, dito de terceiro mundo,

identifica a democracia. Ora, mas se a nação necessita de um estado - espaço

político nacional - para tornar-se democrática, onde está o Estado na África? A

legitimidade da luta pela independência desapareceu sem ser substituída por outra.

Afinal, o que vem a ser nação? Primeiro, ela se define por aquilo que ela não é: ela

não é um grupo social, não é um grupo religioso, ela não é um grupo racial... ela é,

na realidade, produto de um encontro único de circunstâncias históricas e não se

reduz a uma única dimensão social, religiosa ou racial. Ela junta os homens não pelo

72

que eles são, mas sim pela memória daquilo que eles já foram. É o lugar de uma

história em comum. É, antes de mais nada, um lugar, um território.

Cada vez mais raros são os países onde a genealogia histórica ou o contrato

social são tais que o território como evidência é suficiente para definir a nação.

Porém, o essencial hoje não é mais dominar um território, mas sim, pertencer a uma

rede. É que os movimentos de capitais, por serem móveis e escassos, o desejo de

atraí-los torna difícil o controle de capitais nacionais. Para não provocar a fuga dos

capitais e dos talentos, o Estado não pode se dar o luxo de aumentar seus impostos

acima do nível dos países similares. O espaço comum da política vem perdendo sua

legitimidade, arrastando junto na crise a noção de solidariedade nacional, sem

sabermos se essa perda de legitimidade deve-se aos fracassos do Estado-nação, ou

a uma dúvida mais profunda quanto à comunidade nacional que ele pretende

administrar. A “evidência territorial” foi ultrapassada, sem que uma visão utilitarista,

funcional, do Estado possa substituí-la (GUEHENO, 1999).

Além disso, esse autor afirma que:

[...] o desaparecimento da nação implica a morte da política. A política não existe como simples resultado de interesses privados, mas sim, pressupõe um contrato social, o qual precede e ultrapassa todos os contratos particulares. Se abandonar-mos esse postulado, reduzindo a política a uma função de mercado, onde se determina o valor dos interesses presentes, o espaço da política é imediatamente ameaçado de desaparecimento, pois não há mercado que possa estabelecer o “valor” do interesse nacional ou delimitar o espaço da solidariedade. [...] Nenhuma lei econômica consegue substituir a evidência territorial e histórica da nação. [...] O cidadão dos tempos modernos, sendo um ser duplo, porém conservando em cada uma das duas facetas de sua vida, uma certa unidade interior. Com o abandono do postulado da preeminência do político, essa fenda entre o público e o privado não desaparece, ela se banaliza, e esta banalização pulveriza a própria idéia de sujeito, o qual é a outra base da democracia liberal. O homem político sonhado pelos filósofos da idade da razão era para ser “a parteira” da verdade de uma sociedade. Tendo sido dotado tanto da palavra quanto do raciocínio, ele devia contribuir para revelar, na cerimônia parlamentar, a transcedência social. [...] A polidez então substitui a política. Ela não é mais o verniz colocado sobre a realidade social, ela é a própria realidade. (GUEHENO, 1999, p. 33).

73

Gueheno (1999, p. 72) questiona: “O que vem a ser a liberdade num mundo

sem regras? Como se limita o poder num mundo sem princípios?” Primeiro, a

liberdade representou o direito de uma coletividade de tomar em suas mãos o seu

destino e adotar um governo que expressaria sua vontade coletiva; segundo,

representa o direito de cada homem de se proteger contra os excessos de poder e,

portanto, a garantia de que as minorias não seriam esmagadas. Com o advento da

idade imperial, fica claro que a primeira concepção da liberdade está em vias de

morrer, e que a idade imperial nos promete, na melhor das hipóteses, a limitação do

poder. Na medida em que a idade imperial progride, o do advogado muda: o gestor

de conflitos torna-se o de relacionamentos, e essa transformação muda

completamente a idéia que possamos ter de liberdade.

Aqui estamos tão longe da idade institucional do poder, a qual institucionaliza o conflito, quanto da idade patrimonial, onde o triunfo dos fortes leva à absorção dos fracos. Na idade imperial, os fortes tem força suficiente, desde que os fracos saibam reconhecer seu lugar. Uma certa geografia social se impõe naturalmente. O sistema produz, só regras, nunca princípios. Nada de surpreendente então essa liberdade, que só se manifesta através do irrisório, contribui a desabonar a política; esta ultima, ao perder sua autonomia, também perdeu a capacidade de produzir decisões de verdade. [...] Na idade imperial não coloca em lugar muito elevado na sua lista de prioridades a necessidade de uma sociedade se constituir de homens livres. (GUEHENO, 1999, p. 75).

Por tudo isto, talvez, Baquero (2006) busca a atenção para as duas

dimensões que devam ser consideradas na discussão do processo de globalização

e a alteração na matriz das relações sociais. De fato, para esse autor, o impacto da

globalização nas estruturas internas de cada país tornou-as mais vulneráveis às leis

de mercado, e por isto, alteram inclusive seus comportamentos e posicionamento,

diante das políticas internacionais dos Estados, bem como, da mesma forma, no

respectivo declínio do capital social exatamente quando se exige a valorização da

sociedade e do cidadão. É realmente contraditório, na medida em que alguns países

como o Brasil, que se de um lado apresenta índices moderados de crescimento

econômico, e até aumento de produtividade industrial, de outro, no campo social, as

condições se agravam, as diferenças sociais se aprofundam, e o conflito social

cresce, e as pessoas se afastam da política.

74

Assim, nesse contexto, onde Gueheno (1999) assegura que o sistema produz

só regras e nunca princípios, onde a difusão do poder elimina conflitos como um

bloco de granito que se transforma em areia, embora a estabilidade social possa

ganhar com isto, perde-se a clareza do debate, perde-se a liberdade que só se

manifesta através do irrisório, e tudo isto, contribui a desabonar a política, pois ela

ao perder autonomia, perde sua capacidade de produzir decisões de verdade. Por

força disso, ciente de que, conforme afirma Gueheno (1999, p. 108), “os homens de

negócio, ao trazer sua colaboração a um poder público que já perdeu a auto-estima,

não tornam o Estado uma empresa, mas consagram a idéia de que o Estado só

merece respeito se ele se assemelha a uma corporação”.

Ingressamos no capítulo 2 fazendo uma análise do mercado na globalização

atual.

75

2 A ECONOMIA DE MERCADO NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO ATUAL

Para melhor compreensão deste capitulo, ao fito de um olhar crítico da

economia de mercado no contexto atual, enfatizado pela globalização econômica e

financeira, é preciso conhecer alguns dos fundamentos teóricos da economia

neoliberal e sua tensão com o Estado. Também é preciso verificar seu contraponto

na história da humanidade, no sentido de se diagnosticar o nível do debate

atualmente quanto à clássica dicotomia capital x socialismo e se, em contrário, qual

é a temática que o substitui nesta quadra da história. Sempre tendo como pano de

fundo a preocupação com os direitos do homem, sua dignidade humana ao longo de

sua evolução.

É certo que a luta pelo reconhecimento e pelo respeito aos direitos do homem

já trilhou exaustivo caminho na história da humanidade. Mas neste século, em face

dos problemas contemporâneos assume gigantesca expressão, mormente pelo

aumento das desigualdades econômicas e sociais, em especial, a superpopulação

do planeta, a favelização das grandes metrópoles, as dificuldades de efetivação das

necessidades básicas do homem, como saúde, emprego, saneamento básico,

educação. etc. Assim, buscar-se-á a reflexão desses problemas, sob o ângulo

humanístico, e a crise do Estado, na efetivação desses direitos.

2.1 O mercado produtivo e a globalização

Embora o contexto e as circunstâncias fossem outras, o termo globalização,

mercado e produção, nos remete a épocas longínquas do progresso da

humanidade. Para Brum e Heck (2005), globalização designa o intenso processo de

integração e abertura econômica na qual se encontra a economia mundial

atualmente, e tal abertura econômica vem ao encontro da Teoria das Vantagens

Comparativas, de Ricardo, segundo a qual, o incremento do comércio internacional

favorece a geração de emprego e renda, com as seguintes principais características:

a) as transações econômicas que se formalizam em tempo real;

b) os mercados bursáteis que se convertem em permanentes;

c) os mercados monetários passam a ser mundiais e em tempo real;

76

d) o mundo inteiro passa a falar o mesmo idioma econômico;

e) é um processo irreversível.

Esse fenômeno da globalização não é novo, como afirma Brum e Heck

(2005), porém ganha velocidade cada vez maior graças aos avanços científicos.

Todavia, é difícil falar em globalização e mercado sem deixar de re-visitar as teorias

econômicas de David Ricardo44, como se fará com os fundamentos do socialismo,

que ganhou notoriedade pela teoria de Marx, via Internacional Socialista,

repousando, após, nas lições de Hayek, afinal, aquelas duas, - ao fito desta

pesquisa -, embora concebidas em tempos distintos, estão imbricadas no contexto

do capitalismo e no chamado neoliberalismo, tendo-o subsumido e o consolidado

por este último.

44 David Ricardo nasceu em Londres a 18 de Abril de 1772. Terceiro de 17 filhos de uma família holandesa de classe média, descendentes de judeus expulsos de Portugal. Pouco tempo antes de David nascer, o seu pai migrou da Holanda para Inglaterra onde negociou na Bolsa de Valores e foi bem sucedido. David viveu durante alguns anos na Holanda com outros familiares, onde completou parte da sua instrução primária. Na bolsa inglesa, demonstrou grande aptidão, tornando-se mais tarde um corretor bem sucedido. Aos 21 anos converteu-se ao protestantismo unitarista e casou-se com uma jovem quacre originando desentendimentos familiares. Prosseguiu suas atividades na bolsa e em poucos anos ficou rico, dedicando-se a partir daí, aos estudos, especialmente a matemática, química e geologia e adquiriu uma propriedade rural. Em 1799, após ter lido a Riqueza das Nações, de Adam Smith passou a interessar-se por questões de economia. Entre 1809 e 1815 publicou alguns panfletos sobre a questão do preço do ouro, protecionismo na agricultura e os seus efeitos sobre os preços agrícolas, os lucros do capital e o crescimento econômico. A partir de então dedicou-se a escrever um tratado teórico geral sobre a economia, os Princípios, tendo sido publicado em 1817, constituindo-se assim um marco teórico decisivo para o desenvolvimento da economia política clássica. Em 1815, David Ricardo já era considerado o economista mais importante de toda a Grã-Bretanha, graças ao seu conhecimento prático sobre o funcionamento do sistema capitalista. Foi muito influente na polêmica discussão sobre a questão das corn laws, isto é, da importação de trigo estrangeiro pela Inglaterra. David Ricardo, como eterno defensor do livre comércio internacional, era a favor da importação. Foram várias as divergências com economistas mais conservadores, como Malthus, os quais temiam ver o sustento dos trabalhadores britânicos sob o poder de países estrangeiros, potenciais inimigos. Neste mesmo ano, publicou sua tese liberal em “ Ensaio sobre a Influência do Baixo Preço do Cereal sobre o Lucro do Capital”. Em 1817 publicou a sua grande obra “ Princípios de Economia Política e Tributação “. Este livro consagrou Ricardo como o grande nome da Economia Política Clássica, junto com Adam Smith, dominando a economia não apenas de Inglaterra, mas de todo o mundo ocidental por muitas décadas, até o aparecimento do marxismo e do marginalismo, (os quais foram muito influenciados pela obra de David Ricardo). Ricardo também se envolveu em questões políticas, tendo sido representante do distrito irlandês de Portalington na Câmara dos Comuns do Parlamento do Reino Unido. Ali defendeu um conjunto de posições liberais tanto em matérias políticas (o voto secreto, o sufrágio universal) como em temas econômicos (a liberdade de comércio). Morreu prematuramente a 11 de Setembro de 1823, tendo deixado incompleta uma obra em que trabalhava. As suas obras atingiram vastas áreas da economia, tais como: política monetária, teoria dos lucros, teoria da renda fundiária e da distribuição, teoria do valor e do comércio internacional, sendo que muitas destes temas permanecem actuais nos dias de hoje (CARDOSO; GONÇALVES; FERREIRA, 2007).

77

Como na época de Ricardo, o avanço técnico, a partir da Revolução

Industrial, com a introdução de máquinas no processo produtivo, provocou enormes

alterações no nível de relacionamento social, como na transformação do artesão em

proletário e a mudança radical entre o meio urbano e o meio rural inglês.

Mudanças também se fizeram presentes na economia, política e social?

Haveremos de averiguar.

2.1.1 A teoria de David Ricardo

Segundo se deduz das lições de Brum e Heck (2005), à luz da teoria de David

Ricardo, a aplicação conjunta de trabalho, maquinaria e capital, no processo

produtivo gera um produto. Este divide-se, pelas três classes da sociedade:

proprietários de terra (sob a forma de renda da terra); trabalhadores assalariados

(sob a forma de salários) e os arrendatários capitalistas (sob a forma de lucros de

capital). Para Ricardo (apud BRUM; HECK, 2005), o papel da ciência econômica

seria determinar as leis naturais que orientassem essa distribuição, e o equilíbrio

poderia ser alcançado com a aplicação das seguintes teorias:

2.1.1.1 Teoria do valor - trabalho

Enquanto para Adam Smith o valor da mercadoria era determinada pela

quantidade de trabalho que essas mercadorias poderiam comprar45, para Ricardo o

valor da troca das mercadorias eram determinadas pela quantidade de trabalho

necessário à sua produção. Não dependia da abundância, mas sim do maior ou

menor grau de dificuldade na sua produção, ficando assim, conhecida por teoria do

valor do trabalho incorporado. Os preços das mercadorias são, então, proporcionais

ao trabalho nelas incorporados. A teoria dos preços não é mais do que uma teoria

de preços relativos, ou simplesmente de razões de troca entre diferentes

mercadorias. David Ricardo considerava como fontes do valor de troca a escassez e

a quantidade de trabalho. A escassez explica o valor de troca não reprodutíveis,

45 Teoria do Valor do Trabalho Comandado.

78

enquanto que a quantidade de trabalho explica o valor de troca de mercadorias

reprodutíveis. Para Ricardo (apud CARDOSO; GONÇALVES; FERREIRA, 2007), a

economia deveria preocupar-se com as mercadorias reprodutíveis, por serem estas,

esmagadora maiorias das mercadorias que se troca em economia. Em virtude deste

pensamento, a escassez deixa de ser importante para a economia.

2.1.1.2 Teoria da distribuição e da renda

Estas teorias estão diretamente imbricadas e devem ser analisadas a partir

dos dois questionamentos, a seguir:

a) Como se determina a prestação a pagar ao proprietário fundiário pela

disponibilidade do uso da terra?

b) Qual é o papel da renda fundiária na economia?

Pois bem, enquanto a primeira questão é a principal relativamente a renda

“diferencial”, conquanto resulta das diferentes fertilidades das terras e das

concorrências dos empresários para a sua exploração, a segunda questão encontra-

se relacionada com ela, e sua resposta permite uma melhor compreensão dos

mecanismos econômicos da sociedade capitalista. Para responder a essas

questões, Davi Ricardo (apud CARDOSO; GONÇALVES; FERREIRA, 2007) elabo-

rou três leis de repartição de rendimentos:

- A lei dos rendimentos decrescentes: reflete que, para conseguir quantidades

adicionais iguais de um bem, a sociedade tem de utilizar quantidades crescentes de

fatores. Se existirem rendimentos decrescentes na produção de um bem, o custo de

oportunidade de produzir unidades sucessivas do mesmo bem é cada vez maior.

Suponhamos uma experiência que consiste em adicionar unidades

excessivas de trabalho a uma quantidade fixa de terra.

79

Tabela 2: Produção de trigo

Emprego na produção de trigo

Produção de trigo Variação na produção

0 0 1 4 4 2 7 3 3 9 2 4 10 1

Fonte: CARDOSO; GONÇALVES; FERREIRA, 2007, p. 6.

Daqui concluímos que, ao adicionar unidades de trabalho a uma quantidade

fixa do fator Terra, os aumentos que se obtêm na produção de trigo são cada vez

menores.

- A Lei malthusiana da população: A população cresce ou diminui de acordo

com a disponibilidade de alimentos. Dessa forma, os salários tendem a permanecer

no nível de subsistência. Sempre que eles se afastam desse nível, verifica-se a lei

do crescimento demográfico, aumentando ou diminuindo a oferta de trabalhadores.

Atualmente, tal problema vem sendo repensado. Afinal, a falta de alimentos

no mundo populacional crescente, é proporcionalmente contrária à ordem dos

fatores, e com isto, atinge sem dúvida a camada populacional mais pobre, pois o

alimento mais raro chegará a mesa deste mais caro, quando chegar.

- O móbil do crescimento do produto: O móbil do crescimento do produto e,

assim, dos investimentos no lucro por unidade de capital investido.

Para David Ricardo (apud CARDOSO; GONÇALVES; FERREIRA, 2007), a

seqüência e, correlação destas três hipóteses, ocasionaram o aparecimento do

estado estacionário, em que a produção na economia deixa de crescer. Ou seja, a

pressão demográfica leva à utilização de mais terras, sendo as mais férteis as,

inicialmente, mais cultivadas pelos empresários, o que leva a que estas se tornem

cada vez menos férteis, com conseqüências de tal fato, a taxa de lucro torna-se

cada vez menor e a renda cada vez mais elevada. Desta forma, cultivando novas

terras - menos férteis -, tem que se aumentar a quantidade de trabalho para se

80

produzir os mesmos bens, aumentando assim o seu valor e consequentemente o

salário natural também. Os proprietários das melhores terras, vendem os produtos a

um preço superior ao seu custo de produção, constituindo a diferença, a renda

diferencial. Frente a esta situação, David Ricardo combate todo este pessimismo

com a sua idéia de liberdade de comércio. A importação traria com que os

empresários não fosse obrigados a utilizar terras menos produtivas e, deste modo, a

um aumento de renda e redução da taxa de lucro. Desta forma, a taxa de lucro não

desceria e o estado estacionário poderia ser evitado. Note-se que esta liberdade de

comércio não conviria aos proprietários fundiários que veriam os seus rendimentos

reduzirem-se.

2.1.1.3 Teoria do comércio internacional

Esta teoria diz respeito as vantagens do comércio entre as nações e,

certamente, vem da experiência do autor que, na sua época, participara da polêmica

sobre se a Inglaterra praticaria ou não o livre-cambismo - liberdade de trocas

internacionais com eliminação de direitos alfandegários protetores - ou protecionis-

mo, com supressão de impostos sobre importações e com a exclusão de entraves

administrativos à liberdade de comércio entre as nações. Além de defensor dos

empresários, David Ricardo se notabilizou pela defesa do livre-cambismo.

2.1.1.4 Princípio da vantagem comparativa

David Ricardo foi o primeiro economista a argumentar que o comércio

internacional poderia beneficiar dois países, mesmo que um deles produzisse todos

os produtos de forma mais eficiente. Um país não precisa ter uma vantagem

absoluta na produção de um determinado produto, podendo dois paises beneficiar-

se do comércio mútuo se cada um tivesse uma vantagem comparativa na produção

de qualquer produto. Para isto, David Ricardo (apud BRUM; HECK, 2005) explica

sua teoria usando um exemplo entre Portugal e Inglaterra, com dois produtos, quais

sejam vinho e roupa, e seus respectivos custos relativos de produção em horas de

trabalho.

81

Tabela 3: Vantagens comparativas (horas de trabalho/unidades produzidas)

TÊXTEIS VINHO Inglaterra 63 70 Portugal 120 80

Fonte: CARDOSO; GONÇALVES; FERREIRA, 2007, p. 7.

Analisando a tabela 4, conclui-se que a Inglaterra é mais eficiente que

Portugal em ambas as produções. A Inglaterra tem uma vantagem absoluta quer na

produção de vinho, quer na de tecido. Mesmo assim, Davi Ricardo provou que o

comércio internacional continua a ser rentável. As unidades de trabalho necessárias

à produção de qualquer dos produtos em Portugal, em termos percentuais das

necessidades de trabalho correspondentes para a Inglaterra são:

Tabela 4: Vantagem comparativa

Vinho Tecido 80h= ,14 120h=,90

70h 63h Fonte: CARDOSO; GONÇALVES; FERREIRA, 2007, p. 7.

Apesar da desvantagem absoluta de Portugal em ambos os bens, o país tem

uma vantagem comparativa na produção de vinho e uma desvantagem comparativa

na produção de tecido. No caso da Inglaterra, há uma vantagem comparativa na

produção de tecidos e uma desvantagem comparativa na produção de vinho

(0,525<0,875).

Tabela 5: Desvantagem comparativa

Vinho Tecido 70h= ,075 63h=,025 63h=,025 120h

Fonte: CARDOSO; GONÇALVES; FERREIRA, 2007, p. 8.

A partir deste estudo, David Ricardo provou que cada país seria beneficiado,

caso se especializassem no produto no qual detém maior vantagem comparativa. O

82

produto total global de cada bem aumenta, melhorando a situação de todos os

países envolvidos nas trocas internacionais, pois menores seriam os custos de

produção, os salários de subsistência dos trabalhadores e em conseqüência os

lucros seriam os maiores possíveis (CARDOSO; GONÇALVES; FERREIRA, 2007).

Para Brum e Heck (2005), quando estas razões são diferentes, um país tem

uma vantagem comparativa na produção de um dos dois bens e o outro tem uma

vantagem comparativa na produção do outro bem. Os dois países ganham

comercializando, não importando o fato de que um deles possa ter desvantagem

absoluta em ambas as linhas de produção. Tal prática oferece a possibilidade da

especialização em um produto, a realocação de seus fatores de produção para a

linha de produção que oferece vantagem comparativa e a maior exportação do seu

produto e importação de outro, incrementando o comércio.

Embora Davi Ricardo enumere as principais hipóteses46, que defendem o

livre-comércio entre nações, é Karl Marx quem contesta tal otimismo, afirmando que

o comércio internacional não reduz as desigualdades entre as nações, mas as

perpetua, sobretudo pelo mecanismo da “troca desigual”, pois o comércio é

desigual47.

Para Marx (apud BRUM; HECK, 2005), finalmente, o livre-comércio se torna

instrumento de dependência em favor das nações mais desenvolvidas. O livre-

comércio entre países desiguais conduz à dependência do mais fraco (o menos

produtivo, o menos competitivo) em favor do mais forte. Tal fato provoca uma divisão

internacional do trabalho conforme os interesses dos paises ricos, arruinando, nos

países subdesenvolvidos, as atividades industriais ou artesanais concorrentes.

46 Para melhor compreensão das hipóteses de Davi Ricardo, ler BRUM, Argemiro Luis; HECK, Claudia Regina. Economia internacional - uma síntese da análise teórica. Ijuí: UNIJUÍ, 2005, p. 38 a 42. 47Em contrapartida do ganho imediato que cada nação retira do comércio, a troca pode se mostrar desigual se consideradas as quantidades de trabalho incorporadas pelas mercadorias negociadas, quantidades que dão a verdadeira medida do esforço produtivo, isto é, dos verdadeiros sacrifícios dispendidos por cada país. Em outras palavras, os termos de troca “fatoriais” (relação das quantidades de trabalho exigidas respectivamente pelas exportações e pelas importações) são então desfavoráveis ao país menos desenvolvido, que é assim “explorado” ao nível das prestações mutuas em trabalho (BRUM; HECK, 2005).

83

Além disso, o princípio das vantagens comparativas de Ricardo, só assume a

existência de diferenças, mas nunca se tenta compreender ou identificar as razões

que poderão explicar as diferenças existentes, frente aos preços mundiais ou termos

de troca neste modelo que são indeterminados.

Outro fato que deve ser analisado é que o modelo alude a um único fator

produtivo, qual seja o trabalho empregado, e não é possível analisar os efeitos

distributivos dos rendimentos. Todos os países ganham quando existe uma

liberdade de comércio, no entanto, pode haver alguns indivíduos, empresas e

fatores de produção que ficam prejudicados e teriam rendimentos maiores, se

existissem restrições ao comércio e, por este motivo, buscam defender-se do

“inimigo internacional”, surgindo então “o protecionismo”, que é uma política

comercial que tenta proteger as indústrias nacionais das importações a preços

reduzidos.

É lógico que o protecionismo se opõe ao livre comércio e com isto, à própria

globalização que, segundo Brum e Heck (2005), é irreversível.

De qualquer sorte, a teoria da vantagem comparativa é uma das verdades

mais profunda da economia e, por que não dizer, do comércio internacional, que tem

por veículo, hoje, a globalização incrementada pelo surgimento das corporações

multinacionais, transnacionais, etc.

2.2 Marx e sua teoria

Karl Marx, como aluno do Direito, nos idos de 1836 a 1837, teve dois Ilustres

Professores, de tendências contrárias, sendo Karl von Savigny48, conservador, e

Eduardo Gans49, cuja discordância entre eles, não era simplesmente de natureza

48 Ferdinand Karl von Savigny, Professor de Direito Romano de Marx, fundador e principal teórico da escola histórica de Direito. Refutava o direito natural como uma “abstração carente de sentido”. Considerava o direito uma coisa concreta que nascia do espírito e da história de uma nação. Esse conceito o levara a considerar sagradas e invioláveis as instituições herdadas do passado (CHIERICATI, 1975, p. 12). 49 Eduardo Gans, Professor de Direito Penal, de Marx, ao contrário de Savigny, opunha a este conceito do Direito a libertação do homem através da reconstrução da sociedade. No ensaio Paris em 1830, escrevia: “Antigamente se opunham o senhor e o escravo; depois, o nobre e o plebeu; hoje se contrapõem o trabalhador e o que não trabalha... Acaso não é escravidão explorar o homem como

84

especulativa, como observa Auguste Cornu, no livro Karl Marx, o Homem e a Obra,

sendo que as divergências eram de ordem política: o conflito entre os princípios

liberais nascidos da Revolução Francesa e as “tendências conservadoras e contra-

revolucionárias” (CHIERICATI, 1975, p. 11).

Nessas circunstâncias, num ambiente onde a filosofia de Hegel50,

considerada arma de dois gumes à época, Marx, partindo das oposições hegelianas

entre “capitalismo” e “proletariado”, entenderá que elas serão resolvidas (através da

luta de classes) na unidade superior da “sociedade sem classes” (CHIERICATI,

1975, p. 11).

Até chegar em sua grande obra, dedicou-se ao jornalismo, em setembro de

1841, tornando-se redator do Rheinische Zeitung (“Gazeta Renana”), - órgão dos

radicais burgueses da Renânia -, o jornal que era o porta-voz do liberalismo renano

(em oposição ao católico Kolmische Zeitung – “Gazeta de Colônia”), tendo revelado

excelentes qualidades de jornalista, dando ao jornal, notável impulso, atraindo, em

face de suas afirmações ideológicas, a censura oficial. Em 17 de novembro de 1842,

o presidente da Dieta Renana, von Schaper, enviava aos Ministros o relatório sobre

os artigos face aos furtos de lenhas51, (CHIERICATI, 1975) de modo a instituir um

processo contra o articulista pela sua descarada e desconsiderada critica às

instituições estatais, fato que segundo Engels, Marx se torna socialista, ocupando-se

das condições de vida dos camponeses do Mosela, ele passa da política pura ao

estudo da economia e, consequentemente, ao socialismo.

um animal, quando esta pessoa não tem outra escolha a não ser morrer de fome?” (CHIERICATI, 1975, p. 12). 50 Segundo Hegel, George Wilhelm Friedrich colocava na base de sua filosofia a Idéia, cujo desenvolvimento, através da superação dos opostos, constitui a realidade de todas as coisas. A célebre “dialética” de Hegel consiste na antinomia entre dois termos (tese e antítese), oposição que se resolve numa unidade superior, a síntese. Por exemplo, a idéia de “ser” implica a de “não-ser”, e esses dois opostos se conciliam no conceito de “vir-a-ser”. Segundo esse processo – concluía Hegel em 1820 – em política, o Estado é a mais perfeita encarnação da Idéia porque a síntese mais alta, a conciliação entre os múltiplos fins subjetivos dos homens (lucro, ambição etc.) e os valores éticos, objetivos, da comunidade humana (justiça, paz, etc). (CHIERICATI, 1975, p. 11). 51 “Uma desavença entre camponeses e proprietários de terra, no vale do Rio Mosela, ofereceu a Marx a oportunidade de pôr os pés na terra, ocupando-se dos problemas do povo. Os camponeses pobres reivindicam o antigo direito de cortar lenha, caçar e fazer os animais pastar em terras dos patrões. Os proprietários se opunham a isso. A lei sobre “furtos de lenha” emanada do Parlamento Provincial (Dieta Renana), defendia a propriedade privada. Em cinco artigos publicados em seu jornal, Marx pôs-se ao lado dos camponeses, exigindo que fossem mantidos em beneficio dos pobres, os direitos decorrentes do costume” (CHIERICATI, 1975, p. 18).

85

Sustentado por Engels, seu amigo capitalista52, em 16 de agosto de 1867,

Marx dá cabo a os três volumes de sua obra, que após, tornar-se-á a bíblia do

movimento operário internacional, batiza-o de “O Capital”. É o testamento espiritual

de Marx, que terá como herdeiro universal a classe operária. Não poderia ser

diferente, afinal, o proletariado europeu no século XIX, em face do estudo das

condições de vida dos operários das indústrias inglesas nos primeiros anos desse

século foi decisivo, porquanto, “[...] às duas, às três, às quatro da manhã, crianças

de nove a dez anos são tiradas de seus leitos imundos e obrigados a trabalhar até

às dez, onze, doze da noite por uma remuneração de pura subsistência”

(CHIERICATI, 1975, p. 103).

Por sua vez, não menos importante salientar que, na época, as manufaturas

eram frequentemente situadas em zona agrícolas, onde os baixos salários53 eram

integrados com os frutos do cultivo de pequenos lotes de terra. Todavia, descoberta

a força motriz da máquina a vapor, esta “separou” os pequenos estabelecimentos da

força motriz dos cursos d’ água, que atravessavam os campos e concentrou-os junto

da cidade, em novos centros industriais. “Os operários ficaram assim, desvinculados

de sua economia agrícola. A urbanização, constrangendo-os a pagar à vista, tornou

sempre mais absoluta sua dependência em relação ao salário em dinheiro”

(CHIERICATI, 1975, 61), isto tudo sem falar do desemprego que grassou entre os

ingleses na prolongada crise econômica por volta de 1850, durante a qual, nem os

mais hábeis conseguiam colocações.

52 “Engels era tão amigo, que inclusive sacrificou-se por ele, fingindo ser pai do filho de Marx, com Helene Demuth, sua governanta e amante, nascido em 23 de junho de 1851, chamado Freddy.” Esta notícia está inserida num documento do Arquivo Marx-Engels, do Instituto Internacional de História Social de Amsterdã, publicado em 1962 por Werner Blumenberg, membro do citado Instituto. Trata-se de uma carta de Louise de Freyberger, endereçada ao revolucionário August B, e datada de 2 de setembro de 1898 (CHIERICATI, 1975, p. 51). 53 Imagine-se uma família em que o pai, mãe e um menino de dez a doze anos recebam salários ordinários. Esta família (se não tiver sido molestada pela doença de algum de seus membros ou pelo desemprego) terá num ano: o pai, na base de 30 soldos por jornada de trabalho .....fr 450 – a mãe, na base de 20 soldos por jornada de trabalho.....fr 300 –o filho, na base de 11 soldos por jornada de trabalho...165: Total de fr. 915. Com despesa da casa, em geral, ocupando apenas um cômodo, uma espécie de sótão, um quarto pequeno, o aluguel cobrado por mês, ou semanalmente, custa ordinariamente na cidade entre 40 e 80 francos. Tomemos a média de 60 francos. O alimento, cerca de 14 soldos diários, para o marido= 255,12; a mulher, = 219,9; o filho=164, o que da um total de 638 francos. Mas dado que sempre há várias crianças, ponhamos 738, o que significa, somando aluguel e alimento, 798 francos. Consequentemente, para a manutenção da mobília, roupa branca, roupa de cima, lavagem, fogo, luz, utensílios profissionais, etc., não sobram mais que 117 francos. Item obra citada acima.

86

A teoria econômica de Marx parte da análise de algo de que todos têm

experiência diária: a mercadoria. Tudo que é trocado, vendido e comprado, é

mercadoria. Para Marx, tudo que se compra, é útil a uma necessidade do “espírito”

ou do “corpo”, e o que é útil, possui valor de uso, e somente o que tem valor de uso

pode ser trocado, comprado ou vendido. Aqui, a primeira objeção, pois nem tudo

que é produzido é trocado, exemplo disso é, nas sociedades primitivas, que a

produção é exclusivamente para o uso, inexistindo ainda a troca. A explicação é

simples, pois tudo o que é trocado, todas as mercadorias tem um valor de uso, mas

nem tudo o que tem valor de uso foi produzido em função da troca. Além disso,

produz-se unicamente para o uso nas sociedades em cujo seio não há divisão de

trabalho ou em que esta divisão é embrionária. Que sentido teria para um produtor

de trigo trocar o cereal com outro produtor de trigo? Mas quando se introduz a

divisão do trabalho, quando os diversos grupos sociais produzem valores de usos

diversos, então se verifica a troca. Isto tudo tem em comum, uma coisa: são

produtos do trabalho humano. Segundo Marx (apud CHIERICATI, 1975), “como

valor, as mercadorias são apenas medidas determinadas de tempo de trabalho

solidificado”. Mesmo quando há diferentes habilidades, o tempo de trabalho é o

tempo necessário em média para produzir determinada mercadoria. É justamente

desta análise de valor, que Marx constatou que a economia é, na realidade, o

mundo do homem da política.

O dinheiro, por sua vez, usando Marx a expressão shakespeariana, é o mais

alto produto do desenvolvimento da troca. Todavia, é ao mesmo tempo, o

reconhecimento de que tudo nasce do trabalho dos homens. Uma determinada

quantidade de dinheiro é usada para comprar uma mercadoria que, revendida, dá

mais dinheiro. Tal movimento, para Marx, é absurdo, se a segunda soma de dinheiro

não se revelar superior à primeira. Marx chama de mais-valia a esse acréscimo da

primeira soma de dinheiro posta em circulação. Para obter a mais-valia, o possuidor

do dinheiro tem de encontrar no mercado uma mercadoria cujo próprio valor de uso

tenha propriedade peculiar de ser fonte de valor: uma mercadoria tão estranha que,

sendo usada, cria novo valor. Essa mercadoria é a força-trabalho, isto é, a

capacidade produtiva, a energia física e mental do homem. Seu uso é o trabalho e o

trabalho cria o valor (CHIERICATI, 1975).

87

E conclui que a mais-valia não é produzida pela troca de mercadoria, mas

pela exploração do trabalho, sendo por isso, o produto do trabalho não pago pelo

capitalista ao operário. Ou seja, “como toda mercadoria, a força de trabalho é

trocada por um valor equivalente em dinheiro” (MARX apud CHIERICATI, 1975, p.

115). Este valor é determinado pelo tempo socialmente necessário para sua

produção, isto é, pelo custo da manutenção do operário e de sua família. O valor da

força-trabalho é dado, em ultima análise, por uma certa soma de meios de

subsistência. Essa soma de meios de subsistência necessária à continua produção

e reprodução da força-trabalho dos operários, expressa em dinheiro, se chama

salário. Ressalta, que o operário renano produz mais que o simples valor dos meios

de subsistência, pois em quatro horas, por exemplo, produz uma quantidade de

bens igual a seu salário diário, contudo, tem de trabalhar outras quatro horas: sua

força-trabalho cria mais valor que seu próprio custo e, por outro lado, o possuidor do

dinheiro que a comprou tem o direito de consumi-la por inteiro, por outras quatro

horas.

A mais-valia é, portanto, produto do mais-trabalho realizado pelo operário

além do tempo necessário para compensar seu salário. Assim, no pensamento de

Marx, o aumento do capital deriva essencialmente da mais-valia. A mais-valia é a

parte do esforço humano que faz aumentar os lucros do possuidor do capital.

Portanto, não se trata apenas de uma relação econômica entre coisas, mas sim, de

uma relação social, de uma relação que envolve homens. Ao capital só preocupa

acrescer o capital. “A fome da mais-valia não conhece saciedade” (MARX apud

CHIERICATI, 1975, p. 122). Sob o ponto de vista do processo produtivo, é preciso

distinguir duas partes: o capital investido em meios de produção (maquinário e

matérias-primas) e, o capital variável, investido na compra de força-trabalho,

operários e assalariados, em geral.

Para implementar sua crítica ao capitalismo e amparar de forma

fundamentada a sua teoria, Marx (apud CHIERICATI, 1975) induz de maneira

enfática, quanto à mais-valia, as seguintes teses, que chamou de métodos:

88

2.2.1 Método da extração da mais-valia absoluta

Consiste, substancialmente, no aumento da jornada de trabalho. Quanto mais

o operário trabalha, além das quatro horas de trabalho pagas, tanto mais aumenta o

trabalho não pago, a mais-valia. Para obter esse resultado, o possuidor do capital

não hesitaria em fazer os operários trabalharem 24h por dia, mormente quando

havia concorrência com outros capitalistas. Porém, a resistência humana tem limite,

e o operário tende a reduzir a duração da jornada de trabalho para defender sua

saúde.

2.2.2 Método da redução do tempo necessário – “mais valia relativa’”

Consiste em reduzir o tempo de trabalho necessário à retribuição da força-

trabalho, abreviando-o com vantagem para o mais-trabalho. Isto é conseguido

mediante a aceleração dos ritmos produtivos; produz-se em menos tempo o

correspondente ao que o operário necessita para viver. Sua força-trabalho vale

então, por exemplo, três horas, em vez de quatro, enquanto a mais-valia sobe de

quatro para cinco. A mais-valia relativa pressupõe uma contínua renovação e

melhoria das instalações. A mais-valia conseguida não é usada, completa e

principalmente, para satisfazer as necessidades e caprichos dos detentores de

capital. Grande parte da mais-valia é investida em nova produção (CHIERICATI,

1975)54. Nesse ponto, entendemos que Marx defende que, no conjunto da massa do

capital, a parte investida em maquinaria e matérias-primas, o capital constante,

aumenta mais rapidamente do que a parte de capital investida em salários, ou seja,

o capital variável. Segundo ele, o capital não se reproduz simplesmente, como

antes, mas cresce, alarga-se continuamente. Usa cada vez mais capital constante,

representado por máquinas e matérias-primas e utiliza, cada vez mais, capital

variável, valendo-se cada vez mais do trabalho humano. Exatamente por isso, o

capital, segundo Marx (apud CHIERICATI, 1975, p. 128), “é uma espécie de monstro

animado”: uma relação social que, de um lado, consigna aos capitalistas, seu capital

54 “Nesse ponto, Marx refuta toda a precedente economia política clássica (a começar de Adam Smith, o autor da Riqueza das Nações). Smith sustentava que toda a mais-valia era investida em contratar novos trabalhadores, isto é, em aumentar a massa dos salários”. (CHIERICATI, 1975, p. 126).

89

aumentado e, de outro, multiplica nas mãos dos operários, a miséria de sua continua

indigência, que os constrange a “vender-se” 55.

Quando os economistas clássicos davam uma interpretação diversa do

desenvolvimento capitalista, pois, segundo eles, o capital teria origem na renúncia

voluntária dos capitalistas em utilizarem seus lucros e não no trabalho não pago dos

operários, Marx objetava que às vezes no aumento do capital não entra somente o

trabalho “normal” não pago, mas também, a abstinência dos operários, os quais,

recebendo um salário inferior ao valor da força-trabalho, são pagos abaixo do nível

de subsistência56.

2.3 Fundamentos teóricos do mercado

Mesmo com os fundamentos de David Ricardo e Marx, os quais fundam suas

teses em mercadoria, trabalho, tempo e valor, não se pode estudar o mercado, sem

antes, voltar os olhos para o passado, novamente, ao fito de buscar a gênese desse

antagonismo, averiguar sobre suas origens e fundamentos, na visão de seus

principais teóricos.

Para tanto, o primeiro ponto, ressaltado por Bedin (2002, p. 19), é que a

“idéia de que os homens possuem direitos é uma invenção moderna, tendo surgido

e se institucionalizado no decorrer do século XVIII, constituindo-se numa verdadeira

ruptura com o passado”. Isso se deve ao fato de que a figura deôntica originária é o

dever e não o direito, esclarece. Com esta ruptura, o modelo de sociedade

denominada de organicista ou holista57, que permaneceu nas sociedades dos

séculos XVII e XVIII, possuía como tese central a crença de que o todo (Estado) era

anterior e superior às partes (os indivíduos).

55 Sob esse ponto de vista, Marx defende que toda a polêmica dos burgueses é uma falsificação da realidade, pois o capitalista que defende sua propriedade dos meios de produção, defende, ao mesmo tempo, a absoluta falta de propriedade da esmagadora maioria da população. A propriedade, para o possuidor de capital, é na verdade, o direito de apropriar-se do trabalho de outrem, não pago, ou de seu produto. Para o operário, ao contrário, é a impossibilidade de apropriar-se do próprio produto (CHIERICATI, 1975). 56 Regra geral, “o capitalista paga os salários ao nível de subsistência, isto é, na medida estritamente necessária para viver” (CHIERICATI, 1975, p. 130). 57 Modelo também chamado de aristotélica devido à importância de seu primeiro expoente: Aristóteles. Neste sentido, ver BOBBIO, Norberto. Sociedade e Estado na filosofia política moderna . São Paulo: Brasiliense, 1987.

90

Segundo Bedin (2002), seus primeiros expoentes foram Aristóteles e Platão.

Posteriormente, com o surgimento do modelo denominado de jusnaturalista ou

hobbesiano58, surgido a partir dos séculos XVII e XVIII, também conhecida como

individualista ou atomista, que tem como tese central o fato de considerar as partes

(indivíduos) anteriores e superiores ao todo (Estado), teve como grandes teóricos

Hobbes, Locke e Rousseau.

É importante o entendimento desta “inversão”, entre o Estado e os indivíduos,

porquanto, a partir deste período, os homens passam a ser vistos como seres iguais,

pelo menos em dignidade e direitos.

O Estado passa a ser compreendido não mais como sendo o resultado do

desdobramento de comunidades menores, mas sim, de um acordo entre indivíduos

(ARISTÓTELES apud BEDIN, 2002). Há um deslocamento do poder, que antes

provinha de Deus e, agora, passa a ser oriundo da nação.

Para Bedin (2002), os direitos civis ou de primeira geração (século XVIII), os

direitos políticos ou de segunda geração no século XIX, os direitos econômicos e

sociais ou de terceira geração no início do século XX e os direitos de solidariedade

no final da primeira metade deste século. Os de primeira geração, abrangem os

chamados direitos negativos, ou seja, os direitos estabelecidos contra o Estado.

Esses direitos estabelecem um marco divisório entre o público e o privado, e, como

ressalta Bedin (2002, p. 43), “é essa uma das características fundamentais da

sociedade moderna, e é a partir dela que se estrutura o pensamento liberal e o

pensamento democrático.”

Os de segunda geração processaram-se na esteira dos direitos civis, mas se

distinguem pelo fato de serem direitos positivos, ou seja, direitos de participar do

Estado.

58 Assim conhecido devido a influência de seu primeiro grande expoente: Thomas Hobbes. Neste sentido, ver BOBBIO, Norberto. Sociedade e Estado na filosofia política moderna . São Paulo: Brasiliense, 1987.

91

Para fins de melhor entendermos esse ponto, adotaremos a classificação de

Bedin (2002, p. 57), que assim está posto:

“a) direito ao sufrágio universal;

b) direito de constituir partidos políticos;

c) direito de plebiscito, referendo e de iniciativa popular.”

Os de terceira geração compreendem os chamados direitos de créditos, pois,

segundo Bedin (2002, p. 62),

são os direitos que tornam o Estado devedor dos indivíduos, particularmente dos indivíduos trabalhadores e dos indivíduos marginalizados, no que se refere à obrigação de realizar ações concretas, visando garantir-lhes um mínimo de igualdade e de bem-estar social.

Diferentemente dos direitos “contra o Estado” e também dos direitos de

“participar no Estado”, estes se caracterizam pelos direitos garantidos “através ou

por meio do Estado”.

Feitas essas considerações, que reputamos importantes aos buscarmos o

entendimento contra que tipo de sociedade se posiciona o neoliberalismo,

poderemos concluir, como afirma esse autor pesquisado, ela seria contra

“sociedades comunistas, contra sociedades nazistas e fascistas e contra as

sociedades democráticas contemporâneas, ou seja, contra todos os tipos de

sociedades modernas em que esteja presente algum tipo de intervenção do Estado.”

(BEDIN, 2002, p. 84).

2.3.1 A base teórica do neoliberalismo

A base teórica do Neoliberalismo encontra ressonância nas obras de Mises,

Hayek e Friedman, sendo Friedrich August Von Hayek, à luz das lições de Bedin

(2002, p. 86)59 , o seu grande expoente e seu melhor representante, acrescentando,

59 “Mises, Hayek e Friedman, portanto, formam, quando vistos em conjunto, o que, em sentido amplo, poderíamos chamar de a base teórica dessa nova direita. Mas, no que se refere a esta pesquisa, escolhemos Friedrich August Von Hayek como o seu grande expoente e seu melhor representante e a partir da análise de suas obras tentaremos desvendar quais são os pressupostos teóricos que sustentam o neoliberalismo” (BEDIN, 2002, p. 85).

92

que a obra dele é perpassada por várias dicotomias fundamentais, as quais seriam

as seguintes:

a) racionalismo evolucionista/racionalismo construtivista; b) ordem resultante da evolução(kosmos)/ordem feita (táxis); c) normas de conduta justa (nomos)/normas de organização(thesis); d) ordem de mercado (catalaxia)/justiça social; e) sociedade abertas/sociedade planificadas.

2.3.1.1 A primeira dicotomia de Hayek60

Segundo Bedin (2002), o ponto de partida da análise de Hayek é, sem dúvida,

a idéia de que o mundo moderno e o mundo contemporâneo estão impregnados de

uma crença comum, porém errônea, sobre como surgiram e como funcionaram as

instituições sociais, qual seja a de que elas seriam criações deliberadas pelos

homens e, portanto, funcionariam segundo a sua vontade (racionalismo/constru-

tivista).

Para Hayek (apud BEDIN, 2002), nada mais falso do que isso, pois, segundo

ele, as instituições sociais são os resultados da ação humana, mas não dos

desígnios dos homens e, como tais, funcionariam de acordo com uma lógica própria,

estabelecida pela sua evolução, independentemente da vontade humana

(racionalismo evolucionista).

Assim seria para Hayek (apud BEDIN, 2002, p. 87), porque os homens, por

mais sábios que sejam, são sempre ignorantes “dos fatos particulares que

determinam as ações de todos os diversos membros da sociedade humana” e isto,

conclui ele, “é a razão pela qual, a maioria das instituições sociais, assumiram a

forma, que realmente têm”.

As instituições sociais foram colocadas, como regra, desde a Antiguidade, - e

ainda o são -, de forma preponderante, entre os fenômenos artificiais. Isso, no

entanto, para Hayek (apud BEDIN, 2002), é um profundo equívoco, pois se é

verdade que as instituições sociais não são um fenômeno natural, também é

verdade que elas não são um fenômeno inteiramente artificial. Elas pertencem, 60 Racionalismo evolucionista e racionalismo construtivista.

93

argumenta Hayek (apud BEDIN, 2002), apoiado em Bernard Mandeville e David

Hume, a uma terceira categoria de fenômenos, denominados por Adam Ferguson de

fenômenos resultantes da ação humana, mas não das intenções humanas. “Algo,

em síntese, colocado entre a natureza e a convenção e lapidado pela evolução”

(HAYEK apud BEDIN, 2002, p. 87).

Mas estas reflexões, segundo Hayek (apud BEDIN, 2002, p. 87), “foram

sufocadas nos séculos XVI e XVII pela ascensão do racionalismo construtivista, com

René Descartes e Thomas Hobbes”, significando, pois, para o autor, um retrocesso

ao modo de pensar das eras anteriores antropomórficas. Todavia, não foram estes

autores os únicos a compreenderem as instituições sociais como criações humanas.

Segundo a lógica de Hayek (apud BEDIN, 2002), todos os reformadores sociais –

comunistas, nazistas, fascistas, bem como os democratas modernos – podem ser

colocados entre eles, vale dizer, todos aqueles que acreditam que as instituições

sociais foram, são criadas e podem ser modificadas pela vontade humana.

Para Hayek (apud BEDIN, 2002), a prevalência do racionalismo construtivista

sobre o racionalismo evolucionista, pelo fato de ter dominado o mundo moderno e o

mundo contemporâneo é extremamente ruim, pois tem levado o homem à tirania e,

portanto, propugna ele que se reconheça que as instituições sociais não são

criações deliberadas dos homens, apesar de serem o resultado da sua ação.

2.3.1.2 Da segunda dicotomia de Hayek61

No que tange a segunda dicotomia62, deveria prevalecer a concepção do

racionalismo evolucionista juntamente com a ordem63 espontânea, ao fito de, através

do tempo, de forma infra-sistêmica, as instituições sociais serem construídas

61 Ordem resultante da evolução (Kosmos) e Ordem Feita (Taxis) 62 Ordem Resultante da Evolução (Kosmos) e Ordem Feita (Taxis), Sendo “Kosmos, ordem surgida dentro do sistema de forma quase natural, de forma não-intencional, a qual, segundo Hayek, nunca aparece ligada ao conceito de propósito, são ordens não-dirigidas” e “Taxis, refere a ordem intencional, artificial, e segundo Hayek, aparece sempre ligado ao conceito de propósito, sendo ordens dirigidas a determinados fins” (BEDIN, 2002, p. 89). 63 Ordem, para Hayek (apud BEDIN, 2002, p. 89), é “[…] uma condição em que múltiplos elementos de vários tipos se encontram de tal maneira relacionados entre si, que, a partir de nosso contato com uma parte especial ou temporal do todo, podemos aprender a formar expectativas corretas em relação ao restante ou, pelo menos, expectativas que tenham probalidades de se revelar corretas”.

94

espontaneamente, devendo ser respeitada pelos homens, sob pena de estes

destruírem suas instituições e palmilharem com isto o caminho da servidão (BEDIN,

2002).

O racionalismo construtivista adota a concepção de ordem feita, ou seja,

criada pelo homem, de forma intencional e artificial (táxis). Enquanto isto, no

racionalismo evolucionista adota-se a ordem surgida de dentro do sistema de forma

não-intencional e quase natural (Kosmos).

2.3.1.3 Da terceira dicotomia de Hayek64

A terceira dicotomia - normas de conduta justa (Nomos) e normas de

organização (Thesis) - dentro do racionalismo construtivista e racionalismo

evolucionista, está intimamente ligada com a primeira conseqüência, ou seja, com a

dicotomia entre ordem espontânea e ordem feita. Interessante alusão, faz o autor,

como ideal de partida na análise desta dicotomia, é a diferença nuclear entre direito

e legislação.

Enquanto “Direito” é visto como um conjunto de normas de conduta justa, por

ser antigo como a sociedade humana, a “legislação”, ao contrário, é vista como um

conjunto de normas de organização, sendo, pois, “um invento relativamente recente

na história da humanidade” (HAYEK apud BEDIN, 2002, p. 90). Além disso, o

“direito” é oriundo de um processo evolutivo da sociedade e, como tal, não é criado

intencionalmente pelo homem, e a “legislação”, ao contrário, é criada

intencionalmente pelo homem, e sendo uma construção artificial, como tal, possui

propósitos específicos, como regra promover a justiça social.

Segundo Bedin (2002, p. 90) “nas sociedades nas quais é dominante o

racionalismo evolucionista, com sua ordem resultante da evolução, deve prevalecer,

segundo Hayek, a idéia de direito como um conjunto de normas de conduta justas,

pois estas não são criações deliberadas dos homens”65. Por sua vez, “nas

64 Ordem de Conduta Justa (Nomos) Normas de Organização (Thesis). 65 Para Hayek (apud BEDIN, 2002, p. 90), a idéia do direito como conjunto de condutas Justas, pois são “descobertas, seja no sentido de simplesmente enunciarem práticas já observadas, seja no

95

sociedades nas quais domina o racionalismo construtivista”, com sua ordem feita,

deve prevalecer, ao contrário, segundo Hayek (apud BEDIN, 2002), a idéia do

direito, como legislação, pois esta é uma construção deliberada do homem e, como

tal, visa alcançar determinados objetivos específicos. Além disso, direito e legislação

estão ligados à distinção entre “direito público” e “direito privado”, sendo aquele,

identificado como norma de organização, e este, com normas de condutas justas.

Ao interpretar-se que o “direito público”, como regra, é aquele que serve ao

bem estar-social, e o direito privado, o que serve ao bem estar-individual, segundo

Hayek (apud BEDIN, 2002, p. 90-91),

é uma completa inversão da verdade, pois é um erro acreditar que só as ações que visam deliberadamente a propósitos comuns servem às necessidades comuns. Ao contrário, o que a ordem espontânea da sociedade nos proporciona é mais importante para todos e, portanto, para o bem-estar geral, do que a maioria dos serviços que a organização governamental pode prestar, excetuando-se apenas a segurança conferida pela aplicação das normas de conduta justa.

Propugnando a supremacia do direito privado ou das normas de conduta

justa, Bedin (2002, p. 91) alude da denuncia de Hayek, que o surgimento da

legislação social nos últimos cem anos, tem destruído o atributo característico das

normas universais de conduta, qual seja, o da igualdade de todos perante as

normas, pois a legislação social está transformando, aos poucos, o direito privado

em público e, com isto, quer garantir, não aquela igualdade formal - segundo o autor,

extremamente saudável -, mas sim a igualdade material.

2.3.1.4 A quarta dicotomia de Hayek66

Quanto à quarta dicotomia, Ordem de Mercado (Catalaxia) e Justiça Social,

está ligada ao “problema justiça” e ordem de mercado. Segundo Bedin (2002),

citando Eamonn Butler (1987), o termo justiça é usado de dois modos diversos, que

podemos denominar de justiça formal (comutativa) e justiça social (distributiva).

Justiça, para Hayek, é justiça formal, pois resulta não da vontade de alguém, ma

sim, da aplicação das normas abstratas de conduta justa, válida para todos e

sentido de se revelarem complementos necessários às normas já reconhecidas, indispensáveis ao funcionamento desembaraçado e eficaz da ordem que dela se fundamenta.” 66 Ordem de Mercado (catalaxia) e Justiça Social

96

estabelecidas pelo processo evolutivo da sociedade, característica das sociedades

liberais.

Por sua vez, para esse autor, justiça social, ao contrário da formal, não aplica

as regras jurídicas abstratas, mas sim, refere-se à distribuição eqüitativa da riqueza

ou da renda, ou de outros bens entre os vários membros da sociedade, típica das

sociedades planificadas, como as comunistas, nazistas, fascistas e sociedades

democráticas contemporâneas.

Dito isto, segundo Hayek (apud BEDIN, 2002, p. 93), ordem de

mercado/catalaxia, por sua natureza espontânea, qual seja, “um tipo especial de

ordem espontânea produzida pelo mercado, mediante a ação de [várias] pessoas

dentro das normas jurídicas da propriedade, da responsabilidade civil e do

contrato”67 é, para ele, o mercado como ordem global, superior a qualquer

organização deliberada68. Anota Bedin (2002), que para Hayek esta espontaneidade

da ordem de mercado ou catalaxia, é um jogo gerador de riqueza e não o que a

teoria dos jogos chama de um jogo de soma zero, pois produz aumento de fluxo de

bens e das perspectivas de todos os participantes de satisfazerem suas

necessidades, conservando, entretanto, o caráter de um jogo no sentido em que o

termo é definido pelo Oxford English Dictionary69.

Assim colocado, a relação entre justiça formal e ordem de mercado é

harmoniosa e de plena compatibilidade, pois consiste na observação das regras do

jogo, determinadas pela evolução da própria sociedade, às quais, ordem de

mercado - catalaxia já estão adaptadas, ou mais que isto, que ela - a ordem de

mercado ou catalaxia - as tem como sua condição de existência, pois não podemos

esquecer que a ordem de mercado exige não uma justiça de resultados, mas uma

67“Rede de muitas economias interligadas e não [...] governada por uma escala ou hierarquia única de fins, pois a ordem de mercado ou catalaxia serve a uma multiplicidade de fins distintos e incomensuráveis de todos os seus membros individuais.” (HAYEK apud BEDIN, 2002, p. 92-93). 68 “[...] Como ordem global, é tão superior a qualquer organização deliberada, que nela os homens – embora voltados para seus próprios interesses, seja eles totalmente egoístas ou altruistas – favorecerão as finalidades de muitos outros, que em sua maioria jamais conhecerão: na Grande Sociedade os diversos membros se beneficiam dos esforços mútuos não só apesar de seus vários fins serem diferentes, mas, com freqüência por isso mesmo.” (HAYEK apud BEDIN, 2002, p. 92). 69 “Uma competição disputada segundo normas decidida pela maior habilidade, força ou boa sorte.” (HAYEK apud BEDIN, 2002, p. 93).

97

justiça de meios, sendo aqueles somente determinados pela habilidade e pela sorte

de cada participante do jogo.

Enquanto isto, ao contrário, a relação que existe entre justiça social e ordem

de mercado é conflituosa ou de incompatibilidade, devido ao fato de que a justiça

social não é de aplicação de regras abstratas, mas de distribuição de bens entre as

pessoas e, como tal, segundo esse autor, é uma justiça de fins e não de meios,

como é a justiça formal. Assim, Hayek (apud BEDIN, 2002, p. 93) insiste em

descaracterizá-la como um conceito oco ou como uma miragem70, que conduz, à

medida que for reconhecida, “necessariamente as [sociedade] a uma crescente

aproximação com o sistema totalitário”71.

Dito isto, qualquer interferência nesta ordem é vista como um ato destrutivo e

desagregador, pois desorganiza o mercado e, em conseqüência, causa mais

sofrimento e pobreza do que se tivesse deixado o mercado funcionar livremente72.

Para Hayek (apud BEDIN, 2002), justiça é justiça formal (observação das

regras de conduta justa) e justiça social e ordem de mercado ou catalaxia são

incompatíveis, pois a justiça social exige a intervenção do Estado no mercado e,

com isso, argumenta o autor, há destruição do mesmo e, como conseqüência, a

construção do caminho da servidão.

2.3.1.5 A quinta dicotomia de Hayek73

Quanto à quinta dicotomia - Sociedades Abertas/Sociedades Planificadas -

para Hayek, as primeiras são aquelas sociedades liberais que surgiram no decorrer

dos séculos XVII e XVIII, por exemplo, na Inglaterra, na França e nos Estados

70 Primeira tese - “A justiça social é uma miragem, deve-se ao fato de que, a justiça propriamente dita é uma justiça de meios e não de fins, e como tal, fica claro que nenhum sistema de normas de conduta individual [...] poderia produzir resultados que correspondessem a qualquer principio de justiça distributiva “.(HAYEK apud BEDIN, 2002, p. 93). 71 Segunda tese - “A segunda tese, a de que o reconhecimento da justiça social conduz a sociedade ao totalitarismo, pode ser vista como uma conseqüência da primeira e tem como pressuposto a crença de Hayek na idéia de que o mercado é uma ordem espontânea e, como tal, é resultante, não dos desígnios dos homens, mas da evolução da sociedade” (HAYEK apud BEDIN, 2002, p. 94). 72 Tese do efeito perverso de Hirschman (apud BEDIN, 2002, p. 94). 73 Sociedades Abertas/Sociedade Planificadas.

98

Unidos, as quais possuem como valores fundamentais a idéia de liberdade, de

mercado e de Estado limitado ou Estado de direito. A segunda, ao contrário, são as

sociedades socializantes, como as comunista, nazista, fascista e as democráticas

contemporâneas, surgidas a partir das ultimas décadas do século passado e das

primeiras décadas do século XX, em países como a Alemanha, Rússia e Itália, as

quais possuem como valores centrais a idéia de igualdade, a idéia de Estado

intervencionista e, em alguns casos, a idéia de justiça social (BEDIN, 2002).

Dessas duas, prefere Hayek (apud BEDIN, 2002, p. 95), as sociedades

abertas, pois para ele, são as únicas que conseguem, com um mínimo de coerção,

proporcionar “a esperança remota de uma ordem universal de paz”74. No que diz

respeito às sociedades planificadas, além de fomentarem a discórdia, antes

mencionada, não implicam apenas um rompimento definitivo com o passado

recente, mas com toda a evolução da civilização ocidental e isso se torna claro

quando [as] consideremos não só em relação ao século XIX, mas numa perspectiva

histórica mais ampla. Estamos abandonando não só as idéias de Cobden e Bright,

de Adam Smith e Hume, ou mesmo de Locke e Milton, mas também uma das

características mais importantes da civilização ocidental que evoluiu, a partir dos

fundamentos lançados pelo cristianismo e pelos gregos e romanos.

Renunciamos progressivamente não só ao liberalismo dos séculos XVIII e

XIX, mas ao individualismo essencial que herdamos de Erasmo e Montaigne, de

Cícero e Tácito, de Péricles e Tucídides (HAYEK apud BEDIN, 2002). Com isto,

propugna Hayek a supremacia das sociedades abertas, com a preponderância do

individualismo, da liberdade, do mercado, da divisão de poderes e do Estado de

Direito.

74 “Nas sociedades abertas, todos [nós] contribuímos, de fato, não só para satisfação de necessidades que não temos conhecimento, mas por vezes para a consecução de fins que desaprovaríamos se os conhecessemos. Não podemos evitá-lo... porque ignoramos com que propósito os demais utilizarão os bens ou serviços que lhes oferecemos. O fato de auxiliarmos na consecução dos objetivos de outras pessoas sem compartilhá-los ou mesmo conhecê-los, e no intuito exclusivo de alcançar nossos próprios objetivos, é a fonte de coesão da grande sociedade e a condição para a paz, pois ao contrário, na medida em que a colaboração pressupõe propósitos comuns, pessoas com diferentes objetivos são necessariamente inimigas, capazes de lutar entre si pela posse dos mesmos meios, segundo Hayek” (BEDIN, 2002, p. 95).

99

Feitas essas considerações em volta das teorias que, inicialmente, com David

Ricardo, davam base ao mercado internacional e seu contraponto nas teorias de

Marx, que deu azo a discussão da mais valia e o ferimento do direito do homem

através do socialismo internacional e, por final, nesta teoria que basificou o

neoliberalismo, agora, nossa analise passará pela globalização – já estudada - e

seus efeitos contemporâneos.

2.4 A economia de mercado - neoliberalismo - na gl obalização atual

Como foi visto nas teorias de Davi Ricardo e dos fundamentos teóricos de

Hayek, apesar de o neoliberalismo se apresentar atualmente como um vocábulo

novo, encontra raízes em ideais liberais e hoje embora o termo reúna conotações

bem diversificadas, tal doutrina vem sendo usada desde o Consenso de

Washington75, cuja agenda foi adotada pelo FMI e pelo Banco Mundial, fazendo

ressurgir aquelas idéias liberais, impregnando e monopolizando o debate

acadêmico, influenciando currículos e grandes universidades marcadas por

problemas financeiros, mostrando vantagens que os setores empresariais

esperavam obter, principalmente nas áreas de reformas tributárias.

Esses doutrinadores liberais pregavam que a solução para as políticas

nacionalistas equivocadas estava nas diretrizes do Consenso de Washington, e que

aquelas, de caráter radicais, adotavam desenhos autoritários e fechados. Desta

forma, sugeriam aos investidores americanos e europeus, que assumissem a defesa

das indústrias, instaladas nos países da América Latina por meio de políticas

neoliberais, jamais de políticas nacionalistas radicais, as quais ainda

desmoralizavam o desenho “cepalino” de desenvolvimento implantado na América

Latina (OLIVEIRA, 2005b).

75 “Surgido no pós-guerra, o Consenso de Washington encontra-se ligado a uma reunião histórica ocorrida em novembro de 1989 na capital dos Estados Unidos, entre funcionários do governo norte-americano e dos organismo internacionais lá sediados – Banco Mundial, Banco Internacional do Desenvolvimento (BID) e Fundo Monetário Internacional (FMI) – convocada pelo Institute for Internacional Econimics, conhecida como Latin American Adjustment: How Much Hás Happened?, com a finalidade específica de elaborar um conjunto de reformas econômica para os países latino-americanos em desenvolvimento. As conclusões desse famoso encontro ficaram conhecidas informalmenete de Consenso de Washington” (OLIVEIRA, 2005b, p. 207-208).

100

Segundo Oliveira (2005b), como noção mais especifica, o Consenso de

Washington pode ser considerado um conjunto de princípios voltados ao sucesso do

mercado livre, elaborado pelo governo dos Estados Unidos e pelas instituições

financeiras por ele comandadas, posto em execução de diversas formas por essas

instituições.

Segundo Robert McChesney (apud OLIVEIRA, 2005b), o neoliberalismo pode

ser observado como o paradigma econômico que define nossa era mediante uma

série de processos e políticas que permitem a um número relativamente pequeno de

interesses particulares - minoria - controlar os interesses da maioria.

Por sua vez, Maria da Conceição Tavares (apud OLIVEIRA, 2005b) entende

que o Consenso de Washington é um conjunto de doutrina cada vez mais

padronizado aos diversos países e regiões do mundo, para obter o apoio político e

econômico dos governos centrais e dos organismos internacionais.

De acordo com Silva (1998), “o neoliberalismo econômico” recupera o

pensamento dos liberais clássicos do Século XIX - Adam Smith, David Ricardo e

John Stuart Mill -, em torno de metáforas como “mão invisível”, “mercados livres” e

“sociedade aberta” enquanto pressupostos para o desenvolvimento social que

levariam ao equilíbrio econômico.

O pensamento de Adam Smith caracterizou-se pela superação da contradição

da filosofia política de Thomas Hobbes (o homem é intrinsecamente mau, sendo o

lobo do próprio homem) e John Locke (o homem é naturalmente bom), em torno do

dualismo do ser humano, que contém o bem e o mal. Smith atribuía um papel

positivo ao egoísmo ao centrá-lo como um elemento de ordem e desenvolvimento,

desde que ninguém, na busca de seu interesse, impeça aos demais a obtenção de

seu próprio interesse, baseado numa ética de justiça e não no direito natural (SILVA,

1998).

De qualquer sorte, para obter tais objetivos, tão bem anotados pelos autores

citados, é preciso atentar-se para o documento produzido pelo Consenso de

Washington, de cujas regras básicas, destacam-se algumas: a) a liberação do

101

mercado e do sistema financeiro; b) a fixação de preços pelo mercado por meio do

sistema de ajuste; c) fim da inflação com o objetivo de garantir estabilidade

macroeconômica; d) privatização (OLIVEIRA, 2005b).

Todavia, Oliveira (2005b) que afirma que a proposta do Consenso de

Washington, na realidade, buscava a redução drástica do Estado - Estado mínimo76

- culminando na corrosão dos conceitos de nação e soberania, bem como a máxima

abertura à importação de bens e serviços, à entrada de capitais de risco, à adoção

do princípio de mercado auto-regulável nas relações econômicas internas e

externas.

Anota Oliveira (2005b) que o crescimento econômico e desenvolvimento, via

abertura de mercado e mercado regulável, receita do Consenso de Washington,

modelo neoliberal, dependendo fundamentalmente do comércio internacional e da

exportação, porque um fim em si mesmo, não tem demonstrado o sucesso

esperado, conquanto, no Brasil, o crescimento econômico interno é que leva ao

aumento posterior das exportações e, na Ásia, o sucesso econômico, mesmo com

suporte na iniciativa privada, ao contrário do Estado mínimo, as exportações de

Taiwan e Coréia do Sul contaram com forte estímulo das seus Estados.

No Brasil, tais postulados foram recepcionados pelo Governo de Fernando

Collor de Mello, principalmente nas questões sobre tecnologia e propriedade

industrial, tendo inclusive enviado ao Congresso Nacional, projeto de lei que não só

aceitava as reivindicações dos EUA, atendendo às recomendações do Banco

Mundial, como sugeria profunda liberalização no regime de importações e de

abertura de mercado. Daí para frente, a política macroeconômica brasileira, posto

que definida pelas condições dos credores neoliberais, viria a repetir-se no governo

de Fernando Henrique Cardoso, conforme coloca Oliveira (2005b).

76 Proposta neoliberal delimitadora das competências do Estado, com o objetivo aparente de torna-lo mais eficiente, na verdade pretendia reduzi-lo ao nível mínimo, porque entendia que mesmo uma micro-física de poder estatal poderia comprometer a segurança e ameaçar os interesses do desenvolvimento lucrativo das corporações transnacionais. Ver mais: OLIVEIRA, Odete Maria de. Teorias globais. Fragmentações do mundo. Ijuí: UNIJUÍ, 2005b. p. 212.

102

Porém, as políticas de ajustes surgidas na década de 80 do século XX, fazem

parte de um ajuste global bem mais amplo, iniciado com a crise do padrão monetário

internacional e a crise do petróleo da década de 70, com implicações na

reordenação das relações do centro hegemônico do capitalismo e dos demais

países capitalistas, culminando no avanço da política neoliberal nos países

periféricos, iniciados na América Latina, atingindo a África e o Leste Europeu, e

depois, com a desintegração da União Soviética, atingiu também países nascidos da

eclosão russa (OLIVEIRA, 2005b).

Foi assim, pois, que se implantou no contexto da globalização financeira, de

uma forma extraordinariamente dinâmica, a denominada política de ajuste

neoliberal. Segundo Oliveira (2005b), a proposta central desta doutrina decorreu de

uma elite transnacional, que iniciou a operar nos Estados Unidos e, a partir dele e da

Grã-Bretanha, camuflados pelo Consenso de Washington, as economias dos países

subdesenvolvidos se ajustariam naturalmente e sem regulação num universo de

taxas de câmbios flutuantes e de enormes massas de capital circulando

especulativamente pelo planeta, sem controle dos bancos centrais e de outros

controles e ou regulações.

Todavia, esses programas de estabilização para o desenvolvimento, impostos

pelo FMI e Banco Mundial, sob orientação do Consenso de Washington, não foram

bem sucedidas nos Estados da América Latina, em face dos diferentes estágios de

desenvolvimento de uns e de outros, como o do Chile e do México, que acabaram

impedindo a privatização de suas empresas estatais.

Além disso, as complexidades de ajustamentos dos Estados endividados

trouxeram surpresas aos inventores das regras do projeto de Washington. Daí,

passaram a adotar novo entendimento de que a divida externa exigira esquema

específico de refinanciamento de seu débito, na qual, ao final, verificar-se-ia em tais

escalonamento, o odioso anatocismo, ou dito de outra forma, de dívida produzindo

mais dívida (OLIVEIRA, 2005b).

103

2.4.1 Nasce o Estado Mínimo

Foi exatamente essa doutrina neoliberal, de um lado privatizadora, de outro

liberalizante, que criou o Estado Mínimo, quando o projeto de estabilização,

mediante reformas estruturais dos Estados em desenvolvimento, obrigava ao ajuste

fiscal, e ao mesmo tempo, dissolvia o sistema de proteção social, conduzindo a

população ao desemprego, pobreza e miséria: Segundo Oliveira (2005b, p. 225),

“um tipo de morte simbólica e prolongada que cai dizimando aos poucos”.

2.4.1.1 O desemprego estrutural e o fantasma da inutilidade

Esse grave e perverso problema da globalização econômica neoliberal, o

desemprego, derivado do avanço e riqueza das empresas transnacionais, motivado

pela política do maior lucro pelo menor custo, que para atingir esse objetivo,

emprega o menos possível de matéria-prima e de mão-de-obra (a mais barata do

mercado), diminui sensivelmente o número de empregos e causa o denominado

desemprego estrutural, oriundo, não de crise econômica passageira, mas do próprio

sistema capitalista globalizante, que utiliza avançadas tecnologias no modo de

produção com o fim de aumentar a quantidade e qualidade do produto e de vencer a

concorrência, eliminando também grande contingente de trabalho não-qualificado e

menor quantidade de trabalho qualificado, causando a marginalização de imenso

potencial de trabalhadores (OLIVEIRA, 2005b).

Segundo Oliveira (2005b), os dados são aterradores e revelam a gravidade

do problema desses desempregados. Embora por exemplo, o Japão envolveu-se em

projeto para eliminar totalmente o trabalho manual de suas indústrias, até o final

deste século passado, enquanto os EEUU apresentava grau de desemprego em

torno de trinta e cinco milhões, e o Canadá oscilava em um índice de 25%.

Em 1985, já havia uma estatística que apontava que, em Nova York, um em

cada três indivíduos aptos ao trabalho estava desempregado. Em Chicago, de dois,

um não tinha emprego. Em 1993, o desemprego na Alemanha chegava a 7%; na

França e Itália, a 10%;no Reino Unido, a 11%; na Bélgica e Dinamarca, a 12%; na

104

Irlanda a 18% e na Espanha a 22%. Chegava então a um bilhão o número de

pessoas que vivia, em absoluto estado de pobreza, no mundo (OLIVEIRA, 2005b).

Bauman (1999, p. 8) alude que:

todos nós estamos, a contragosto, por desígnio ou à revelia, em movimentos. Estamos em movimento mesmo que fisicamente estejamos imóveis: a imobilidade não é uma opção realista num mundo em permanente mudança. E, no entanto, efeitos dessa nova condição são radicalmente desiguais. Alguns de nós, tornam-se plena e verdadeiramente “globais”; alguns se fixam na sua localidade - transe que não é nem agradável nem suportável num mundo em que os “globais” dão o tom e fazem as regras do jogo da vida. Ser local num mundo globalizado é sinal de privação e degradação social. [...] Uma causa especifica de preocupação é a progressiva ruptura de comunicação entre as elites extraterritoriais cada vez mais globais e o restante da população, cada vez mais “localizada”.

Exemplo disso traz Oliveira (2005b, p. 228-229), citando John Cage, diretor

da empresa americana de computadores Sun Microsystems, quando revelou, em um

grupo de debate sobre a questão da tecnologia e trabalho na economia global, no

encontro77 realizado em 1995,

que sua firma recebia de todas as partes do mundo solicitações de emprego pela Internet e, dessa forma, sua empresa tanto empregava como demitia por computador. Afirmava ainda que empregava apenas quem exatamente ele precisasse e nos momentos certos, preferindo os bons cérebros da Índia. Por final, declarava, em boa e alta voz, que governos, suas normas e relações trabalhistas já teriam perdido qualquer significado.

Por isso, sua poderosa empresa Sun Microsystems havia elevado o

faturamento de zero para seis bilhões de dólares em treze anos. Para esse

resultado, necessitava apenas de seis a oito empregados, ficando claro, pois, que as

conseqüências do desemprego em massa eram oriundos da globalização neoliberal,

fatos, neste encontro, vistos com naturalidade (OLIVEIRA, 2005b).

Na questão do desemprego, o exemplo da Alemanha é significativo, visto que

em 1996, mais de seis milhões de indivíduos aptos às relações laborais não

encontravam trabalho. Esse foi o maior índice encontrado desde sua unificação em 77 Evento ocorrido em São Francisco-Califórnia, no Hotel The Fairmont, patrocinado por Mikhail Gorbachev, que teve a presença de Georg Bush, George Shultz e Margareth Thatcher, entre outros. Ver: OLIVEIRA, Odete Maria de. Teorias globais. Fragmentações do mundo. Ijuí: UNIJUÍ, 2005b. p. 228-229.

105

1990, e o rendimento médio dos alemães vinha caindo há cinco anos, projetando-se,

para o início do século XXI, um corte de um milhão e quinhentos mil emprego.

Enquanto as indústrias alemãs passaram a criar postos de trabalho em países

de mão-de-obra barata, com política de nivelamento por baixo, o programa

neoliberal de reduzir gastos públicos, diminuir salários, cortar despesas com a

educação, saúde, assistência social, encontrava-se igual ao da Suécia, Áustria,

Espanha, etc. As conseqüências são as piores possíveis aos Estados nacionais,

pois, enquanto nesse cenário o desemprego estrutural tornou-se questão endêmica,

o globalismo busca fazer crer que se trata de conseqüência natural, resultante de

um processo mais amplo da ordem econômica e impossível de ser definido, filosofia

básica que se expressa na afirmação de que o mercado é bom, mas a interferência

do Estado é negativa e desastrosa para o mundo, como defende um dos maiores

expoente da escola neoliberal, o economista americano, Milton Fridman (OLIVEIRA,

2005b).

Afora o desastre do desemprego, que não vem sozinho, embora essa questão

já se afigure um enorme golpe nas pessoas, estas tem que, muitas vezes, no âmbito

da comunidade e da família, conviver com o temor psicológico da perda do emprego

(OLIVEIRA, 2005b), e com o pior ainda: o fantasma da inutilidade, como afirma

Senett (2006). Conforme esse autor,

uma das imagens marcantes da Grande Depressão da década de 1930 eram as fotografias de homens amontoados em frente aos portões das fábricas fechadas, esperando trabalho, apesar da evidência que tinham diante dos olhos. Essas fotografias ainda perturbam porque o fantasma da inutilidade não teve fim; seu contexto mudou. É grande nas economias ricas da América do Norte, da Europa e do Japão a quantidade de pessoas que querem trabalho mas não o encontram. (2006, p. 81).

Segundo Senett (2006, p. 82), “o fantasma da inutilidade, assumiu sua

primeira forma moderna, no desenvolvimento das cidades, cujos migrantes, já não

tinham terras para trabalhar sob os pés”. Os indivíduos transferiam-se para as

cidades na qualidade de refugiados agrícolas desapossados, na esperança de que

as fábricas mecanizadas pudessem provê-los. E afirma:

106

Mas o fato é que em Londres, em 1840, para tomar um exemplo representativo, havia disponibilidade de seis trabalhadores do sexo masculino para cada emprego fabril não especializado. Davi Ricardo e Thomas Malthus foram os primeiros teóricos modernos da inutilidade, examinando o primeiro a maneira como os mercados e as máquinas industriais reduziam a necessidade de mão-de-obra, enquanto o segundo sopesava as conseqüências perversas do crescimento populacional. Nenhum dos dois, descortinava, que os cérebros pudessem ser um remédio para o excesso de oferta de mãos. [...] Como Adam Smith antes e John Ruskin depois, Malthus encarava o trabalho nas fábricas como um embotador cerebral. Desse modo, à medida que as cidades se iam agigantando, a inutilidade passava a ser encarada como uma conseqüência necessária, ainda que trágica, do crescimento. (SENETT, 2006, p. 82).

Assim, o desemprego vai contribuindo inexoravelmente sempre mais para o

alargamento da pobreza e da miséria. No mundo inteiro o desemprego passou a

constituir um tipo de mal-estar dos indivíduos, uma espécie de doença psicológica,

generalizada pelo “fantasma do desemprego”, o medo tanto de perder o emprego

como o temor daqueles que, por terem idade superior a cinqüenta anos, não

poderão mais encontrar outra ocupação78.

Aliás, Sennett (2006, p. 84) fala que são três as forças que configuram a

moderna ameaça do fantasma da inutilidade: a oferta global de mão-de-obra, a

automação e a gestão do envelhecimento. Conta esse autor, referindo-se à

“economia das capacitações”, que a máquina econômica pode ser capaz de

funcionar de maneira eficiente e lucrativa contando apenas com uma elite cada vez

menor, aludindo que o capitalismo, embora também procure mão-de-obra mais

barata, coloca à sua disposição uma espécie de “seleção cultural”, de tal maneira

que os empregos abandonam países de salários altos como os Estados Unidos e a

Alemanha, migrando para economias de salários baixos, dotados de trabalhadores

capacitados e, às vezes, mesmo super-preparados, a exemplo dos centros de

telemarketing da Índia:

Os empregos nesses centros, são preenchidos por pessoa no mínimo bilíngües, e elas aperfeiçoaram sua capacitação lingüística de tal maneira que o cliente não fica sabendo, se se formaram em Hartford ou Bombaim. Muitos trabalhadores de centros de telemarketing, fizeram dois ou mais anos de estudos universitários.

78 Ao lado dos desempregados, constituindo o chamado exército de reservas, encontram-se aqueles que vivem em situação de extrema pobreza, excluídos socialmente de qualquer tipo de ocupação que proporcione algum tipo de sustento. Ver: OLIVEIRA, Odete Maria de. Teorias globais. Fragmentações do mundo. Ijuí: UNIJUÍ, 2005b. p. 233.

107

[...]. Os salários por esse trabalho são simplesmente abomináveis, considerando-se que são pagos a pessoas altamente capacitadas. O mesmo fenômeno manifesta-se de certa maneira em determinados empregos industriais que migraram para o Sul do planeta. Um exemplo eloqüente, aqui, são as fábricas de sub-montagem de automóveis na fronteira norte do México. As pessoas ali executam formas, extremamente rotineiras de trabalho são muitas vezes mecânicos altamente capacitados que deixaram oficinas menores para trabalhar na linha de montagem. (SENETT, 2006, p. 85).

Embora com tudo isto, Senett assevera que essas pessoas não podem ser

consideradas vitimas, pois participam ativamente do sistema e nele estão inseridas,

e que este mundo não é aquele referido por Ricardo, pois, tratando-se das

maquiladoras79 mexicanas, depois de alguns anos de trabalho com salários fixos,

podem abrir uma linha de crédito que lhes permite obter empréstimos nos bancos

para abrir um pequeno negócio.

O fantasma da inutilidade, neste caso, repousa no medo dos estrangeiros, o

qual, por baixo da camada de puro e simples preconceito étnico ou racial, está

impregnado da angústia de que os estrangeiros estejam mais bem equipados para

as tarefas da sobrevivência e que a globalização designa, entre outras coisas, a

percepção de que as fontes da energia humana estão sendo transferidas e que, em

conseqüência, podem ficar de fora os que estão no mundo já desenvolvido.

O segundo fantasma da inutilidade está na área da automação. Esse medo já

é antigo, e o exemplo vem do surgimento dos primeiros teares movidos a vapor, o

que provocou a revolta dos tecelões franceses e britânicos. Hoje, a automação

efetivamente proporciona ganhos de produtividade e economia de mão-de-obra80.

Significa dizer que os operários modernos estão enfrentando o fantasma da

inutilidade automatizada. Como observa Jeremy Rifkin (apud SENNETT, 2006), o

reino da inutilidade se vai expandindo à medida que as máquinas passam a fazer

coisas de valor econômico de que os seres humanos não são capazes.

79 Ver mais SENNETT, 2006, p. 84-85. 80 Entre 1998 e 2002, a Sprint Corporation aumentou a produtividade em 15%, utilizando avançados programas de computação de reconhecimento de voz, e elevou sua renda em 4,3% ao mesmo tempo em que diminuía em 11.500 trabalhadores em sua folha de pagamento ao longo desses quatro anos. Na Industria pesada, entre 1982 e 2002, a produção de aço nos Estados Unidos aumentou de 75 milhões de toneladas para 102 milhões de toneladas, embora o numero de operários metalúrgicos caísse de 298.000 para 74.000. Esses empregos não forram exportados, mas substituídos por máquinas sofisticadas (SENNETT, 2006).

108

Por sua vez, o envelhecimento é a área mais abrangente do fantasma da

inutilidade. A organização de ponta, efetivamente tende a tratar os empregados mais

velhos como pessoas acomodadas, mais lentas, com pouca energia. Nas

publicidades e nas comunicações, o preconceito com a idade, converge com certos

pontos de vista em matéria de gênero: as mulheres de meia-idade costumam ser

particularmente estigmatizadas como carentes de vigor; este duplo preconceito

também se manifesta nos serviços financeiros.

No mundo inteiro a questão do desemprego passou a constituir um tipo de

mal-estar dos indivíduos, um tipo de doença psicológica, generalizada pelo

“fantasma do desemprego”, principalmente o temor daqueles que, por terem idade

superior a cinqüenta anos, não poderão mais encontrar ocupação. Posicionam-se ao

lado dos desempregados, constituindo o chamado exército de reservas, situação em

que se encontram aqueles que vivem em extrema pobreza, excluídos socialmente

de qualquer tipo de ocupação que proporcione algum tipo de sustento (OLIVEIRA,

2005b).

Segundo os levantamentos dos Relatórios do Banco Mundial e da OCDE,

pode-se chegar à conclusão de que nos próximos dez anos mais de quinze milhões

de indivíduos poderão perder seus empregos de tempo integral. Na Alemanha, por

exemplo, a taxa de 9,7% de desemprego relativa a 1996 tenderá a chegar a 21% e,

na Áustria, a subir de 7% para 18%. Nesse período, eventualmente muitos desses

empregos perdidos serão substituídos por atividades autônomas, serviços

temporários, serviços de meio período, ou pelo subemprego (OLIVEIRA, 2005b).

Entende Oliveira (2005b) temores desses como o fantasma do desemprego,

bem como da falta de projetos de vida, se alastram, rompendo com o tecido social,

os quais, seriam conseqüências do sistema de acumulação e da mais-valia, do

máximo lucro pelo menor custo, da ganância neoliberal os quais transitam com

tranqüilidade e com aparência inocente diante da certeza de que no império do

mercado mundial, nenhum emprego se apresentará seguro. Sintetizando, trata-se de

uma exclusão social global, que transcende todos os limites, eliminando empregos,

desestabilizando moedas nacionais, fortalecendo conflitos étnicos e guerras civis.

109

Trata-se de uma crise estrutural complexa, com implicações sociais e geopolíticas

de longo alcance.

Como a globalização afeta principalmente a gerência estatal, que perde poder

político e as rédeas econômicas. Isso se reflete nas políticas sociais, formando um

círculo vicioso e ineficiente em cujo jogo os indivíduos deixam de ter segurança de

um futuro melhor. O desemprego não só gera mais centenas de excluídos, como

influi diretamente nas condições de vida e de moradia, incrementando-se as

moradias sem nenhuma estrutura sanitária, na medida em que crescem os cinturões

de miséria nas grandes cidades, empobrecendo mais ainda os pobres e seus

desígnios humanos. Nascem as favelas e, com elas, crescem as indignidades e

indignações, sob os olhos de todos nós, turistas e vagabundos (BAUMAN, 1999). O

Estado, antes moderno, transmuda-se de providência à penitência, sob os olhos

expertos dos donos do mundo.

2.4.1.2 Da favelização neoliberal - uma sinopse parcial

Ao mesmo tempo em que o capitalismo entrava neste novo ciclo, a

globalização das economias nacionais era marcada pelo aprofundamento da

denominada terceira revolução tecnológica, em face da crise do petróleo e do

padrão internacional dos anos 70, já citados, e regionalização dos blocos

econômicos – a exemplo da União Européia, dos Tigres Asiáticos ou da Nafta – com

nítida reação à competição econômica contemporânea, pela produção da

fragmentação social no mundo dos trabalhadores, caracterizado pela passagem da

sociedade industrial para a sociedade informacional (SILVA, 1998).

Segundo Silva (1998), projetando-se esta nova ideologia forjada no interior do

mundo acadêmico norte-americano e austríaco - notadamente nas Escolas de

Chicago e Austríaca de Economia - chamada de neoliberalismo, e já vindo com força

total devastadora, derrotando, pois, o Estado Providência Europeu, o Comunismo

Soviético, traduzindo-se em Estado Mínimo e eficiente, no plano econômico, pelo

capitalismo oligopolista, e no plano cultural, pelos valores ocidentais.

110

Mas nem sempre foi assim, pois, como lembra Ferguson (2007, p. 131), o

Estado Previdenciário não teria sido inventado, nem por Wiliam Beveridge81, nem

pelo governo trabalhista de 1945, que implantou as recomendações do celebre

relatório, pois a maioria dos elementos-chaves da política econômica desse governo

- tributação progressiva, seguro nacional, ensino público, e indústrias cruciais de

propriedade do Estado - era anterior à década de 194082.

Obviamente que a concepção de previdência do nacional-socialismo era

singular, até por excluir as “etnias estrangeiras” e incentivar uma ética ambicionada

81 William Henry Beveridge, lo Barão Beveridge, nasceu em 5 de março de 1879 em Rangpur, Índia, atualmente Bangladesch, e morreu com 84 anos, em Oxford, na Inglaterra, 16 de março de 1963, economista britânico e reformador social, conhecido pelo relatório 1942 do Seguro Social e Serviços Afins, conhecido como o Relatório Beveridge, que serviu de base para o pós-Segunda Guerra Mundial, do Governo Trabalhista e fundação do Estado-Providência. O Relatório apresentado ao Parlamento Europeu relativa à Segurança Social e Serviços Aliada foi publicado em 1942. Ele propôs que todas as pessoas em idade de trabalho semanal deve pagar uma contribuição nacional de seguros. Em contrapartida, os benefícios seriam pagos às pessoas que estavam doentes, desempregados, aposentados ou viúvos. Beveridge alegou que este sistema irá prestar um padrão mínimo de vida "abaixo do qual ninguém deve ser deixado cair". Recomendou que o governo deve encontrar formas de combater os cinco "Giant males" do Deseja, doença, ignorância, a miséria e a ociosidade. Isso levou à criação do moderno Estado-Providência com um Serviço Nacional de Saúde (NHS). Obras bibliográficas: Desemprego: Um problema da indústria,1909; Preços e salários, na Inglaterra a partir da décima segunda para o século XIX, 1939; Aliado do Seguro Social e Serviços,1942. (Relatório Beveridge) - disponível a partir de excertos Modem History Sourcebook; O Pleno emprego numa sociedade livre, 1944; A Economia do pleno emprego, 1944; Porque eu sou um Liberal, 1945; Plano para a Grã-Bretanha: uma coleção de Ensaios preparados para a Fabian Society por GDH Cole, Aneurin Bevan, Jim Griffiths, LF Easterbrook, Sir William Beveridge, e Harold Laski J (Não ilustrado com 127 páginas texto) (WIKIPÉDIA, 2008). 82 “A Primeira Guerra Mundial não só aumentou o gasto com a defesa como também ampliou significativamente o leque das atividades governamentais de caráter não-militar. Na Grã-Bretanha, criaram-se novos ministérios: além das Munições e Aeronáutica, os Alimentação (1916), Trabalho (1916), e Saude (1919), sem falar nos departamentos do Serviço Nacional e da Reconstrução, de curta existência. Apesar do de os ambiciosos planos do pós-guerra visando a oferecer “moradias condizentes com os heróis” terem fracassado devido à retração, foi impossível reverter o Estado à situação do pré-guerra.Na área de construção e entrega de novas moradias, o setor público superou o privado em 1921 e 1922, recuou em seguida, mas depois tornou a recuperar a dianteira, crescendo ano a ano de 1941 a 1959. Na realidade, os governos viram-se obrigados a gastar mais dinheiro, por mais que se esforçassem em evita-lo, devido ao desemprego sem precedentes do entreguerra. Os mecanismos de seguro compulsório do pré-guerra não resistiram a um desemprego tão elevado e sustentado (e, nos países atingidos pela hiperinflação, os seus fundos foram em grande parte rapados). Os governos foram forçados, ou a pagar um auxilio-desemprego aos desempregados, ou a usar fundos públicos para emprega-los, sendo esta segunda alternativa a mais dispendiosa. A fé no poder da ortodoxia do Tesouro para resistir a pressão pela elevação dos gastos públicos durante a Depressão era grande. Mas antes de 1939 o Tesouro perdeu muito terreno na área dos gastos públicos com transferências e obras públicas variadas. [...] Mesmo antes de Hitler assumir o poder, os nazistas já se preocupavam com a previdência. Goebbels encampou a Associação Previdenciária do Povo Nazista, sediada em Berlim, que depois de maio de 1933 expandiu a sua área de cobertura a todo o Reich, absorvendo nesse processo instituições de caridade privadas. Em 1939, a Associação dava cobertura a mais de metade de todos os domicílios e, em numero de segurados, só perdia para a Frente Trabalhista Alemã” (FERGUSON, 2007, p. 130-131).

111

por Hitler. Mas, em outros aspectos, havia no Estado Previdenciário nazista

características “modernas”, como a dedução compulsória do Auxilio de Inverno no

contracheque, o abatimento por filho, que estimulava a procriação, os subsídios aos

cruzeiros de lazer e acampamentos de férias, a exemplo da “Força através da

Alegria”.

Se por um lado, como comenta Ferguson (2007, p. 345), para muitos

analistas, a globalização é uma força do bem que promete nada menos que “Um

Futuro Perfeito”, o Sociólogo Anthony Giddens apóia a maneira como a globalização

econômica subverte não só o Estado nacional, mas também as culturas

“tradicionais” e até mesmo a “família”, por outro lado, é também Ferguson (2007, p.

345) que afirma que é

Inquestionável que o livre-comércio e a movimentação de capitais sem que haja um volume proporcional de migrações internacionais estão levando o mundo inteiro a níveis de desigualdades sem precedentes. Em 1999, as Nações Unidas estimaram que os ativos dos três maiores bilionários do mundo superavam o PIB somado dos países mais pobres do mundo, totalizando 600 milhões de habitantes. Na década de 1960, a renda total dos 20% mais ricos da população mundial era trinta vezes maior que a dos 20% mais pobres; em 1998, esta razão saltara para 74:1. Segundo o Banco Mundial, cerca de 1,3 bilhões de pessoas vivem hoje em um nível de pobreza abjeta, ou seja, com uma renda inferior a um dólar por dia.

O que é pior, como afirma Davis (2006, p. 144), em face do crescimento

desordenado e o incremento da globalização neoliberal nas megas cidades,

crescem também os problemas estruturais e sociais, pois afirma:

que na India contemporânea, onde estimados 700 milhões de pessoas são obrigados a defecar ao ar livre, apenas 17 de 3.700 cidades médias e grandes têm algum tipo de tratamento primário de esgoto antes da disposição final. Um estudo de 22 favelas da Índia encontrou 9 delas sem nenhuma instalação sanitária; em outras 10, havia apenas 19 latrinas para 102 mil pessoas.

Em Gana, a tarifa pelo uso de banheiros públicos foi instituída pelo governo

militar em 1981; no final da década de 1990, os banheiros foram privatizados e, hoje,

são descritos como “mina de ouro” de lucratividade. Em Kumasi, por exemplo, onde

membros da Assembléia ganense venceram as lucrativas concorrências, o uso

privativo do banheiro por família custa, por dia, cerca de 10% do salário básico.

112

Do mesmo modo, em favelas quenianas como Mathare cada visita a um

banheiro privatizado custa seis centavos de dólar: caro demais para a maioria dos

pobres, que preferem defecar a céu aberto e gastar o seu dinheiro em água e

comida. Esse também é o caso em favelas de Kampala, como Soweto e Kamwokya,

onde os banheiros públicos custam, espantosos “cem xelins” por visita, enfatiza

Davis (2006, p. 146).

Conforme publicou Los Angeles Times, em 04/8/2004,

na favela gigante de Cidade Sadr, em Bagdá, as epidemias de hepatite e febre tifóide fogem ao controle. O bombardeio norte-americano destruiu a infra-estrutura – já sobrecarregada – de água e esgoto, e em conseqüência o esgoto in natura escorre para o suprimento de água domiciliar. Dois anos depois da invasão dos Estados Unidos, o sistema continua arruinado e podem-se perceber a olho nu filamentos de excrementos humanos na água das torneiras. No calor de 45 graus do verão não há fonte de água disponível pela qual os pobres possam pagar. (DAVIS, 2006, p. 148).

Ou seja, a reestruturação neoliberal das economias urbanas do Terceiro

Mundo, ocorrida a partir do final da década de 1970, teve impacto devastador sobre

a prestação publica de assistência médica, principalmente no caso de mulheres e

crianças (DAVIS, 2006).

Como destaca a Womes`s Global NetWork for Reproductive Rights, os Planos

de Ajuste Estrutural (PAEs) por cujos protocolos os países endividados cedem ao

FMI e ao Banco Mundial a sua independência econômica, “costumam exigir cortes

dos gastos públicos, inclusive os gastos com saúde (mas não os gastos militares)”

(DAVIS, 2006, p. 151).

O economista Michel Chossudovsky atribui o famoso surto de peste de 1994

em Surate à “piora da infra-estrutura urbana sanitária e de saúde pública que

acompanhou a compressão dos orçamentos nacional e municipal durante o Plano

de Ajuste Estrutural patrocinados em 1991 pelo FMI e Pelo Banco Mundial” (DAVIS,

2006, p. 151).

Afora os fundamentos teóricos do mercado, acelerado pela globalização

predadora e seletiva, caracterizador de um capitalismo irrestrito, com face, em geral,

113

inaceitável, o Estado corrupto, que em geral age em favor dos mais poderosos, é

ainda pior.

Hoje, um quinto da população mundial dispõe de menos de um dólar por dia

para se manter vivo, vivendo de miséria e morrendo no anonimato, provocando o

mais impactante índice de exclusão social já conhecido nos países em

desenvolvimento (GLOBALIZAÇÃO: CRESCIMENTO E POBREZA, 2003).

A comprovar o acima descrito, basta verificar o Relatório de Pesquisa Política

do Banco Mundial de 2003, no qual se destaca que uma das mais preocupantes

tendências globais das duas últimas décadas do século XX, manifestou-se em

países com aproximadamente dois bilhões de indivíduos83.

A complexidade da globalização e do neoliberalismo econômico está

justamente no fato de que as nações mais pobres, com uma população de mais ou

menos dois bilhões de pessoas, têm sido deixadas de fora desse processo,

enquanto as novas ações globalizadas, mesmo nas nações mais ricas, com cerca

de dois bilhões de pessoas, estão se tornando marginalizadas (GLOBALIZAÇÃO:

CRESCIMENTO E POBREZA, 2003). Para se ter uma idéia, na atual situação

83 O Jornal “On Line” da BBC (2008) publica: “O presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick, pediu nesta quarta-feira na reunião da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação), em Roma, o fim das barreiras comerciais às exportações, que estimulam os aumentos de preços dos alimentos e afetam as populações mais pobres do planeta. "Temos que fazer uma convocação mundial para que as restrições e as barreiras alfandegárias às exportações sejam eliminadas. Estes controles estimulam o aumento dos preços e afetam as populações mais pobres do planeta que lutam pelos alimentos", declarou Zoellick. [...] "A decisão aqui em Roma é clara. Ou milhões de pessoas têm o que comer ou não têm nada", disse Zoellick. Ontem, Zoellick disse que os governos e as agências da ONU reunidos no evento devem assumir o compromisso de ajudar os 20 países mais vulneráveis do planeta a lidar com a alta nos preços dos alimentos. "Nós já estimamos que essa crise pode empurrar 100 milhões para a pobreza, 30 milhões apenas na África", disse. [...] No mês passado, a FAO divulgou um relatório em que mostra que a atual crise dos alimentos coloca em situação particularmente perigosa 22 países. O documento classifica esses países como vulneráveis à crise devido aos problemas de fome crônica, que são ainda forçados a importar comida e combustíveis. A Eritréia, segundo a FAO, tem 75% de sua população sofrendo com subnutrição, seguido por Burundi (66%), ilhas Comores (60%), Tadjiquistão (56%) e Libéria (50%). O Haiti tem 46% de sua população nessa situação. Com exceção do Tadjiquistão e da Coréia do Norte, todos os outros países importam 100% do petróleo que utilizam (os dois países importam 99% e 98% respectivamente do petróleo que utilizam). O relatório diz ainda que o mundo precisa se preparar para mais aumentos expressivos e mais volatilidade no mercado mundial. "Esperamos que os líderes que vierem a Roma concordem com as medidas urgentes que são necessárias para impulsionar a produção agrícola", disse o diretor-geral da FAO.

114

global, basta atentar-se para o que disse Zoellick, atual presidente do Bird, no último

evento em Roma84:

Nós já estimamos que essa crise pode empurrar 100 milhões de pessoas para a pobreza, 30 milhões apenas na África. Isso não é uma catástrofe natural, é algo feito pelo homem e que nós podemos consertar. Não exige pesquisas complexas. Nós sabemos o que precisa ser feito. Nós só precisamos de ação e recursos em tempo real. O presidente do Bird defendeu que os presentes no evento que começou nesta terça-feira elejam como prioridades oferecer programas de apoio aos países mais vulneráveis, disponibilizar sementes e fertilizantes para pequenos agricultores e emitir uma declaração internacional apoiando o fim das restrições à exportação de alimentos. Pelo menos 28 países com problemas de abastecimento interno impuseram restrições à exportação de alimentos, que acabaram estimulando o aumento do preço dos alimentos e prejudicando os mais pobres. Se nós tomarmos apenas essas três medidas, aqueles reunidos aqui em Roma podem fazer a diferença entre milhões terem comida na sua mesa ou não tê-la. A escolha é clara. (GLOBALIZAÇÃO: CRESCIMENTO E POBREZA, 2003).

Segundo Zoellick, um trabalho conjunto do Banco Mundial e da FAO

identificou 20 países que precisam de ajuda imediata, afirmando que isso pode ser

feito por meio do Programa Mundial de Alimentos, Unicef, FAO e bancos de

desenvolvimento. Depois da assistência alimentar direta do Programa Mundial de

Alimentos, é para esses lugares que o financiamento deve ir (JORNAL BBC, 2008).

Completa Jacques Diouf, atual Diretor-Geral da FAO, na última terça-feira,

que “serão necessários US$ 3 bilhões anuais para garantir a alimentação de 862 de

milhões de pobres”. Também advertiu que, se "as decisões valentes que as

circunstâncias atuais exigem" não forem tomadas rapidamente, as medidas

restritivas à exportação adotadas por alguns países produtores, as repercussões da

mudança climática e a especulação no mercado futuro "colocarão o mundo em uma

situação perigosa". A crise alimentícia atual vai além da dimensão humanitária

tradicional e agora afeta também os países desenvolvidos, disse o diretor-geral da

FAO (JORNAL BBC, 2008).

Segundo Diouf (2008), trata-se de encontrar, em um contexto de crescimento

forte e acelerado do PIB (Produto Interno Bruto) dos países emergentes, soluções

globais e viáveis para cobrir o valor entre a oferta e a demanda mundial de produtos

84 Conferência da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação), realizada em Roma, na terça-feira, dia 03 junho de 2008.

115

alimentícios. Além disso, é "urgente" manter, apesar da alta dos preços, o volume

das atividades de ajuda alimentícia que beneficiam 88 milhões de pessoas. Essa

notícia lembra que há 862 milhões de pessoas em todo o mundo que não têm

acesso a alimentos suficientes, que precisam melhorar suas condições de vida com

dignidade, trabalhando com os recursos existentes na época em que vivem. Para

isso, são necessários investimentos em infra-estruturas rurais. criticou o fato de, no

auge da luta contra o aquecimento global, os países desenvolvidos terem

disponibilizado US$ 64 bilhões para tentar conter as emissões de carbono, mas, por

outro lado, não concederam financiamentos para evitar o desmatamento nos países

em desenvolvimento. Também "não entende" como algumas doações que vão de

US$ 11 a US$ 12 bilhões em 2006, assim como políticas tarifárias, tenham tirado

cerca de 100 milhões de toneladas de cereais da população a fim de garantir o

abastecimento de veículos (JORNAL BBC, 2008).

Hoje, o cenário mundial da pobreza permite descrever o seguinte:

- são 186 milhões de desempregados no mundo;

- dentre os desempregados, 78 milhões (42%) são mulheres;

- a renda média das mulheres é geralmente de 50% inferior a dos homens;

- são 550 milhões de trabalhadores pobres;

-- metade da população mundial vive com menos de US 2 por dia;

- três quartos dos que vivem na pobreza extrema estão no campo;

- trabalhadores informais crescem em todo o mundo;

- aumenta o número de trabalhadores sem qualquer proteção social;

- 20% da população mundial é analfabeta e a maioria vive em PMD;

- mais de 115 milhões de crianças em idade escolar não vão à escola (56%

feminino);

- Em 2000, uma entre cada 6 crianças entre 5 e 14 anos realizava alguma

atividade econômica;

- 111 milhões de crianças exerciam alguma atividade considerada perigosa

pela OIT.

Esta é uma visão parcial da atualidade, cuja fotografia não é das mais

animadoras. Aliás, o incremento do desemprego, favelização - a qual também

116

conhecida nos países ricos como “guetização” - já não é mais produto apenas dos

países considerados periféricos.

2.4.1.3 Os pobres e o Estado Mínimo Policial Americano - um viés esclarecedor

Atualmente, quando se discute segurança pública, penalidade, “há um

inegável paradoxo: “remediar um “mais Estado” policial e penitenciário, o “menos

Estado” econômico e social, que é a própria causa da escalada generalizada da

insegurança objetiva e subjetiva em todos os países do Primeiro Mundo e do

Segundo Mundo (WACQUANT, 2001, p. 7).

O autor reafirma a onipotência do Leviatã no domínio restrito da manutenção

da ordem pública – simbolizada pela luta contra a delinquência de rua – no momento

em que o Estado afirma-se e verifica-se incapaz de conter a decomposição do

trabalho assalariado e de refrear a hipermobilidade do capital, as quais, capturando-

a como tenazes, desestabilizam a sociedade inteira.

Dentro dessa realidade, também incrementa-se a globalização da “tolerância

zero85”, instrumento de legitimação da gestão policial e judiciária da pobreza, que

incomoda - a que se vê, a que causa incidentes e desordens, no espaço público,

alimentando, por conseguinte, uma difusa sensação de insegurança, ou

simplesmente, de incômodo tenaz e de inconveniências - propagou-se através do

globo, a uma velocidade alucinante.

Todavia, enquanto esta política da tolerância zero era globalizada, em virtude

da morte de um imigrante da Guiné, de 22 anos, que foi abatido por 41 balas de

revólver por quatro policiais, membros da “Unidade de Luta contra os Crimes de

85 “Do domínio policial e penal, a noção de “tolerância zero” se espalhou segundo um processo de metástase para designar pouco a pouco e indistintamente a aplicação estrita da disciplina parental no seio das famílias: expulsão automática dos estudantes que tenham levado arma para a escola, suspensão dos esportistas profissionais culpados por violências fora dos estádios, controle minucioso do contrabando de drogas e prisões, mas também o rechaço sem tréguas dos estereótipos racistas, a sanção severa dos comportamentos incivilizados dos passageiros de avião e a intransigência em relação a crianças que não estão usando seu cinto de segurança no banco traseiro dos carros, do estacionamento em fila dupla ao longo das avenidas de comércio e da sujeira nos parques e jardins públicos. Estendeu-se até às relações internacionais: assim, Ehud Barak exigia recentemente de Yasser Arafat que mostrasse a eficácia da “tolerância zero” a qualquer desordem nas ruas de Prístina” (WACQUANT, 2001, p. 34).

117

Rua” e de um imigrante haitiano, vítima de tortura sexual em um posto policial de

Manhattan, no ano precedente, desencadeou a mais ampla campanha de

desobediência civil nos Estados Unidos.

Segundo Wacquant (2001, p. 35), ao longo de dois meses, manifestações

cotidianas foram realizadas em frente ao escritório da direção da policia municipal,

quando 1.200 manifestantes pacíficos - entre eles, uma centenas de políticos afro-

americanos locais e nacionais, entre os quais, o antigo prefeito de Nova York, David

Dinkins, presidente da National Associations for teh Advancement of. Colored

People (NAACP), e policiais negros aposentados - foram presos, algemados e

acusados de “distúrbios à ordem pública”.

Depois desses acontecimentos, as práticas agressivas dessa tropa de choque

de 380 homens (quase todos brancos), que constitui a ponta de lança da política de

“tolerância zero”, são objeto de diversos inquéritos administrativos e dois processos

por parte dos procuradores federais sob suspeita de proceder a prisões “pelo

aspecto” (racial profiling) e de zombar sistematicamente dos direitos constitucionais

de seus alvos. Segundo a National Urban League, em dois anos essa brigada, que

roda em carros comuns e opera à paisana, deteve e revistou na rua, 45.000

pessoas, sob mera suspeita baseada no vestuário, aparência, comportamento e –

acima de qualquer outro indício – a cor da pele. Mais de 37.000 dessas detenções

se revelaram gratuitas e as acusações sobre metade das 8.000 restantes foram

consideradas nulas e inválidas pelos tribunais, deixando um resíduo de apenas

4.000 detenções justificadas: uma em onze. Uma investigação levada a cabo pelo

jornal New York Daily News sugere que perto de 80% dos jovens homens negros e

latinos da cidade foram detidos e revistados pelo menos uma vez pelas forças da

ordem (WACQUANT, 2001).

É verdade que os Estados Unidos e, depois deles, o Reino Unido e a Nova

Zelândia reduziram fortemente seus gastos sociais, virtualmente erradicaram os

sindicatos e podaram vigorosamente as regras de contratação e, sobretudo, de

demissão, de modo a instituir o trabalho assalariado flexível como verdadeira norma

de emprego, até mesmo de cidadania, via a instauração conjunta de programas de

trabalho forçado (work fare) para os beneficiários de ajuda social. Embora os

118

partidários das políticas neoliberais de desmantelamento do Estado-providência

gostem de frisar que esta “flexibilização” estimulou a produção de riquezas e a

criação de empregos, estão os mesmos desinteressados em abordar as

conseqüências sociais devastadoras do dumping social que elas implicam: no caso,

a precariedade e a pobreza de massa, a generalização da insegurança social no

cerne da prosperidade encontrada e o crescimento vertiginoso das desigualdades, o

que alimenta a segregação, criminalidade e o desamparo das instituições públicas

(WACQUANT, 2001).

Embora essas políticas, a exemplo do Consenso de Washington, tenham se

originado dos Estados Unidos, e que estes passem a imagem de opulentos e ricos,

impõe-se dizer que eles contam oficialmente com mais de 35 milhões de pobres,

para uma taxa de pobreza duas ou três vezes maior que a dos paises da Europa

ocidental, e que atinge, sobretudo, as crianças - para cada cinco crianças

americanas de menos de seis anos, uma cresce na miséria e uma em duas entre a

comunidade negra. A população oficialmente considerada como “muito pobre”, ou

seja, sobrevivendo com menos de 50% da quantia do “limite de pobreza” federal

(limite regularmente reduzido ao longo dos anos), dobrou entre 1975 e 1995 para

atingir 14 milhões de pessoas, e o fosso econômico que as separa do restante do

país não cessa de alargar.

Segundo Wacquant (2001, p. 78):

Esses americanos “de baixo”, não podem contar com o sustento do Estado, uma vez que as verbas sociais destinadas às famílias pobres são as menores dos grandes países industrializados (depois da Austrália e da África do Sul) e alcançaram seu mínimo desde 1973. Assim, a principal ajuda social (AFDC, subsídio para as mães solteiras) caiu 47% em valor real entre 1975 a 1995, ao passo que sua taxa de cobertura se reduziu a menos da metade das famílias monoparentais, contra os dois terços que abrangia ao início do período. [...] Quarenta e cinco milhões de americanos (dos quais 12 milhões de crianças) estão desprovidos de cobertura médica, embora o país gaste mais do que todos os seus rivais em matéria de saúde. Trinta milhões sofrem de fome e desnutrição crônicas. Sete milhões vivem na rua ou sem abrigo adequado, depois que as verbas federais alocadas para o âmbito social foram reduzidas em 80%, desprezando a inflação da década de 80. Contrariamente à imagem cor-de-rosa projetada pelas mídias nacionais e suas sucursais no exterior, os americanos desafortunadas tampouco podem se apoiar no mercado de trabalho para melhorar suas condições de vida.

119

...Os índices de desemprego efetivos, segundo a própria declaração do Ministério do Trabalho, estão mais próximos de 8 do que de 4%, e ultrapassam comodamenet5e 30 a 50% nos bairros segregados das grandes cidades. Além disso, um terço dos assalariados americanos ganha muito pouco para transpor o “limite de pobreza” oficial, ou seja, 15.150 dólares por ano, para uma família de quatro pessoas. [...] De fato, os frutos do crescimento americano das duas últimas décadas foram abocanhados por uma minúscula casta de privilegiados: 95% do saldo de 1,1 trilhões de dólares gerado entre 1979 e 1996 caíram nas algibeiras dos 5% mais ricos dos americanos. Daí a desigualdade dos salários e dos rendimentos, como dos patrimônios, encontrar-se hoje em seu nível mais alto desde a Grande Crise. Em 1998, o diretor de uma grande firma norte-americana típica ganhava 10,9 milhões de dólares anuais, ou seja, seis vezes mais do que em 1990, ao passo que, mesmo com a prosperidade alcançada, o salário operário médio não aumentou no período senão 28%, isto é, apenas ao ritmo da inflação, para estacionar em 29.267 dólares. Como conseqüência, os diretores de empresas ganham hoje, 419 vezes mais do que os trabalhadores braçais, contra “apenas” 42 vezes uma década atrás (essa defasagem eleva-se atualmente a 20 contra um e 35 contra um no Japão e na Grã-Bretanha, respectivamente).

Nesse cenário de desigualdades, desemprego, subemprego, menos estado

social, mais estado penal, economia neoliberal e globalizante, os Estados Unidos

são mau exemplo da política carcerária, anotando-se 1,5 milhão de encarcerados

em 1995, para roçar os dois milhões em final de 1998. Caberia aos Estados Unidos,

estar bem mais à frente do que as outras nações avançadas, na medida em que

seus índices de encarceramento - perto de 650 detentos para cada 100.000

habitantes em 1997 - são seis vezes superiores aos dos seus países da União

Européia, ao passo que se situavam em um espectro de um a três, há 30 anos.

Apenas a Rússia, cujo índice dobrou desde a derrocada do império soviético para se

aproximar de 750 para cada 100.000, está hoje em condições de disputar com os

Estados Unidos o título de campeão mundial do encarceramento (WACQUANT,

2001).

Tabela 6: O encarceramento nos Estados Unidos e na União Européia em

1997

País Quantidade de prisioneiros

Índice para cada 100.000 habitantes

Estados Unidos 1.785.079 648 Portugal 14.634 145 Espanha 42.827 113 Inglaterra/Gales 68.124 120 França 54.442 90

120

País Quantidade de prisioneiros

Índice para cada 100.000 habitantes

Holanda 13.618 87 Itália 49.477 86 Áustria 6.946 86 Bélgica 8.342 82 Dinamarca 3.299 62 Suécia 5.221 59 Grécia 5.557 54

Fonte: WACQUANT, 2001, p. 82.

Segundo Wacquant (2001, p. 82) “na Califórnia86,o número de detentos

consignados apenas nas prisões do Estado passou de 17.300 em 1975 para 48.300

1985, para, 13 anos mais tarde, ultrapassar os 160.000”. Se lhes acrescentarmos os

efetivos das casas de detenção - só a do condado de Los Angeles, o maior

estabelecimento penal do mundo, contém cerca de 23.000 reclusos - atinge-se o

total assombroso de 200.000 almas, ou seja, quatro vezes a população penitenciária

da França para apenas 33 milhões de habitantes.

O assombroso crescimento do número de presos na Califórnia, como no resto

do país, explica-se pelo encarceramento de condenados pelo direito comum, por

negócios com drogas, furto, roubo, ou simples atentados à ordem pública em geral,

oriundos das parcelas precarizadas da classe trabalhadora e, sobretudo, das

famílias do sub-proletariado de cor das cidades atingidas diretamente pela

transformação conjunta do trabalho assalariado e da proteção social. Nas prisões

dos condados, seis penitenciários em cada 10, são negros ou latinos; menos da

metade tinha emprego em tempo integral no momento de ser posta atrás das grades

e dois terços provinham de famílias dispondo de uma renda inferior à metade do

“limite de pobreza” (WACQUANT, 2001, p. 83).

86 “Conhecida como líder nacional em matéria de educação e saúde pública”.

121

Tabela 7: Diferencial de encarceramento entre negros e brancos (incluindo

latinos) em número de detentos para cada 100.000 adultos

1985 1990 1995 Negros 3.544 5.365 6.926 Brancos 528 718 919 Diferenças 3.016 4.647 6.007 Proporção 6,7 7,4 7,5

Fonte: WACQUANT, 2001, p. 94

Segundo Wacquant (2001), os Estados Unidos optaram pela criminalização

da miséria como complemento da generalização da insegurança salarial e social. É

a transformação do pobre desempregado, em detento, numa tentativa de controle

social.

E não poderia ser diferente à luz das modificações econômicas, sociais e

políticas que o neoliberalismo impõe aos Estados. Nesse sentido, Oliveira (2005b)

alude que a grande força de trabalho dos países avançados vem se dedicando à

economia de serviços e a setores não-materiais. Desse modo, a força de trabalho de

produção de bens materiais declinou vertiginosamente.

Nas últimas décadas do século XX, o crescimento extraordinário da alta

tecnologia, da informatização e da engenharia de produção constitui a razão

fundamental do processo de transferência de indústrias para países cuja mão-de-

obra apresentava-se barata. Enquanto as políticas de ajuste e de reformas

estruturais foram proporcionando benefícios ao acelerado desenvolvimento

econômico global e ao livre mercado dos países centrais, ao mesmo tempo

ocasionaram crescente quadro de desigualdade e de aumento de pobreza

extremada no mundo. Hoje um quinto da população mundial dispõe de menos de um

dólar por dia para se manter, vivendo na miséria e morrendo no anonimato,

provocando o mais impactante índice de exclusão social já conhecido nos países em

desenvolvimento.

122

2.5 A globalização atual e seus efeitos no mundo

Após longa e exaustiva análise desta temática, outra não é a conclusão,

senão a de que o fenômeno da globalização econômica neoliberal implica o

surgimento de duas classes distintas: ganhadores e perdedores. Usando as palavras

de Oliveira (2005b, p. 250), “países ricos – ganhadores – apresentando uma

economia liberalizada e altamente competitiva, e países pobres – perdedores –

marginalizados e excluídos.”

Singer (2006, p. 7) também refere as figuras de competidores “ganhadores”,

lecionando que:

o capitalismo se tornou dominante há tanto tempo que tendemos a tomá-lo como normal ou natural. O que significa que a economia de mercado deve ser competitiva em todos os sentidos: cada produto deve ser vendido em numerosos locais, cada emprego deve ser disputado por numerosos pretendentes, cada vaga na universidade deve ser disputada por numerosos vestibulandos, e assim por diante.

Segundo o autor:

a competição é boa de dois pontos de vista: ela permite, a todos nós consumidores, escolher o que mais nos satisfaz pelo menor preço; e ela faz com que o melhor vença, uma vez que as empresas que mais vendem são as que mais lucram e mais crescem, ao passo que as que menos vendem dão prejuízos e se não conseguirem mais clientes, acabarão por fechar. Os que melhor atendem os consumidores são os ganhadores, os que não conseguem são os perdedores. (2006, p. 7).

Embora Singer (2006), ao explicar as diferenças do capitalismo e da

economia solidária, tenha referido em “ganhadores” e “perdedores”, guardadas as

proporções, tais afirmações podem ser adotadas no presente estudos, todavia, com

uma especial advertência: não se pode mais resumir tal discussão na clássica

questão do capitalismo x socialismo. Os tempos são outros. As empresas

transnacionais, de economia global, com a globalização financeira, por serem

capitais volatilizados, escapam até mesmo do controle Estatal dos países centrais,

minimizando suas atenções ao social.

123

Como visto, com os dados de encarceramento nos Estados Unidos, dando

razão a Oliveira (2005b, p. 250),

a globalização tem se revelado tanto força poderosa e potencial para aumentar riquezas para a classe neoliberal – ganhadores – como força geradora de sérias preocupações em torno do uso e da distribuição eqüitativa dessas riquezas à classe não-neoliberal – perdedores – que vive em opressiva situação de pobreza e da fome, falta de educação e saúde, com doenças devastadoras como a Aids, entre muitas outras. Enfim, vivendo a miséria crônica no mundo.

Segundo Bauman (1999, p. 78), comentando a descoberta feita pelo último

Informe da ONU sobre o Desenvolvimento de que a riqueza total dos 358 maiores

“bilionários globais” equivale à renda somada dos 2,3 bilhões mais pobres (45 por

cento da população mundial), Victor Keegan (apud BAUMAN, 1999, p. 78) chamou o

reembaralhamento atual dos recursos mundiais de “uma nova forma de roubo de

estradas”. Com efeito, só 22 por cento da riqueza global pertencem aos chamados

“países em desenvolvimento”, que respondem por cerca de 80 por cento da

população mundial.

E esse não é de forma alguma o limite a que deve chegar a atual polarização,

uma vez que a parcela da renda global que cabe atualmente aos pobres é ainda

menor: em 1991, 85 por cento da população mundial recebiam apenas 15 por cento

da renda global. Não admira que os esquálidos 2,3 por cento da riqueza mundial,

possuídos por 20 por cento dos países mais pobres trinta anos atrás, caíram ainda

mais no abismo: para 1,4 por cento. Também a rede global de comunicação,

aclamada como a porta de uma nova e inaudita liberdade, e, sobretudo, como

fundamento tecnológico da iminente igualdade, é claramente usada como muita

seletividade – trata-se, na verdade, de uma estreita fenda na parede, não de um

portal. Poucas (e cada vez menos) pessoas têm autorização para passar. “Tudo o

que os computadores fazem atualmente para o Terceiro Mundo é a crônica mais

eficiente de sua decadência”, diz Keegan (apud BAUMAN, 1999, p. 78).

E conclui Bauman (1999, p. 79): “Se os 358 decidissem ficar cada um com

US$ 5 milhões para se manter e distribuir o resto, praticamente dobrariam a renda

anual de quase metade da população da Terra. E os porcos voariam”.

124

Bauman (1999, p. 79) refere Jonh Kavanagh, do Instituto de Pesquisa Política

de Washington, que traduz bem a questão da globalização neoliberal:

A Globalização deu mais oportunidades aos extremamente ricos de ganhar dinheiro mais rápido. Esses indivíduos utilizam a mais recente tecnologia para movimentar largas somas de dinheiro mundo afora com extrema rapidez e espetacular com eficiência cada vez maior. Infelizmente, a tecnologia não causou impacto nas vidas dos pobres do mundo. De fato, a globalização é um paradoxo: é muito benéfica para muitos poucos, mas deixa de fora ou marginaliza dois terços da população mundial.

Com efeito, a pobreza extremada no mundo decorre também desse cenário

de precipitações e extrações de funções provocadas pelas grandes corporações no

final da década de 80, motivando o surgimento de nova geração de agências

financeiras e tornando seu sistema financeiro global altamente instável e volatilizado.

Nesse processo as funções dos bancos comerciais se conectaram com os bancos

de investimentos e com as corretoras de ações, globalizando-se (OLIVEIRA, 2005b).

Segundo Oliveira (2005b), nesse sistema, os administradores dos poderosos

mercados financeiros encontram-se cada vez mais afastados da economia real, do

próprio modo de vida e da exclusão que provocam. Suas atividades escapam ao

controle e à regulamentação do Estado e de qualquer outro tipo de instituição, tanto

incluindo transações como manipulações especulativas no mercado monetário, além

de se envolverem nos denominados depósitos de hot money nos mercados

emergentes da América Latina e do Sudoeste asiático. Trata-se de dinheiro de

caráter especulativo, que entra e sai com muita rapidez nos mercados87.

Paralelamente a esses depósitos transita a modalidade conhecida por lavagem de

dinheiro, uma criação de bancos privados e especializados em oferecer assessoria a

clientes ricos, que ocorre nos chamados paraísos bancários do exterior, ou paraísos

fiscais, desconhecendo, por isso, instâncias e jurisdições (OLIVEIRA, 2005b, p.

251)88.

87 “O movimento diário de transações com divisas estrangeiras é de US$ 1 trilhão por dia, do qual apenas 15% corresponde efetivamente ao comércio de comodities e fluxo de capital” (OLIVEIRA, 2005b, p. 251). 88 Ver sobre crime organizado nas atividades bancárias e financeiras em: LABROUSSE, A.; VALLON, A. (Eds.). La planete dês drogues. Paris: Seuil, 1993.

125

Como afirma Oliveira (2005b, p. 253),

a constituição de mercados globais pelas corporações transnacionais fragmenta e destrói os mercados da economia doméstica, o crédito torna-se desregulamentado, as barreiras para o comércio e para a movimentação de dinheiro e mercadorias são removidas, as terras e os bens dos Estados são assumidos pelo capital internacional.

E o pior, as empresas transnacionais, geradas pela economia capitalista

global, apresentam crescente tendência a concentrações monopolistas e

oligopolistas da produção e distribuição de bens e serviços em escala mundial89

(OLIVEIRA, 2005b).

Oliveira (2005b, p. 263), citando Adriano Benayon, registra que:

das duzentas maiores empresas do mundo, cujo faturamento conjunto equivalia a 31,2% do Produto Interno Bruto mundial, 96,5% eram corporações com sede no Japão, EUA, Alemanha, França, Grã-Bretanha, Suíça, Países Baixos, Coréia do Sul e Itália, concentrando 85% dos lucros e 94,7% do faturamento.

Segundo Menezes (2005, p. 86),

com o acúmulo de capital por parte dessas empresas, elas têm adquirido uma importância maior no contexto internacional, maior e mais influente que a maioria dos Estados do cenário internacional contemporâneo, a ponto de alguns autores colocarem-nas com sujeito de Direito Internacional.

Esse acúmulo de capital em meio à ordem econômica internacionalizada faz

com que as pessoas e as corporações passem a influenciar nas relações

internacionais e, utilizando seu poder de influência e mecanismos de pressão,

opõem regras aos Estados que atendam aos seus interesses econômicos e

mercadológicos (MENEZES, 2005).

89 “Um estudo realizado pela OCDE, denominado Interfuturos, mostra que a produção-extração de seis dos vinte e um minerais estratégicos necessários ao desenvolvimento normal da economia nacional encontram-se, bem mais de 15%, da produção mundial, por uma só empresa transnacional. Cinco das empresas extrativas desses minerais centravam 48,2% no caso da bauxita e 96,5% no caso da platina do total da produção mundial. O mesmo ocorrendo com o mercado mundial do trigo, diretamente controlado por cinco empresas transnacionais: Cargil, Bunge, Continental Grain, Louis Dreyfus e Cook Industries” (CERVERA, 1991, p. 329).

126

Conforme Menezes (2005, p. 87-88),

as empresas transnacionais podem sim, operar sem qualquer controle estatal e entre fronteiras sem que, principalmente os Estados mais carentes política e economicamente, consigam se opor a sua vontade. Na maioria das vezes sob o escudo do poder do seu Estado, que em sua grande maioria são potências industriais desenvolvidas financeiramente e com muita influência no cenário internacional.

Utilizado o termo “mercantilismo reprocessado”, Menezes (2005) assevera

que o capital é mais do que nunca, circulante, volátil, virtual, opondo-se no cenário

internacional como um ator tão poderoso e ativo quanto os próprios Estados que

muito pouco podem fazer, ou se opor a ele.

Assim, passa-se da teoria de David Ricardo, que serviu de base às defesas

do comércio internacional, com o contraponto de Marx, com sua teoria da mais valia,

que serviu de alicerce a internacionalização do socialismo e que buscava na luta de

classe as correções das injustiças, discussão esta hoje limitada, não apenas pelo

declínio do socialismo, com a derrota do modelo adotado pela União Soviética e a

reconversão chinesa a uma economia de mercado, a um incremento desta nova

economia transnacional, de caráter globalizante, chamada de “globalização

neoliberal”, que não respeita Estado, nem fronteiras, minimizando a atuação dos

Estados Nacionais, em detrimento de políticas sociais. Aumenta o desemprego

estrutural, marginalizando enorme massa humana, nos países em desenvolvimento

e até mesmo, em países considerados de centro, como os EEUU, incrementando

hordas de favelados e excluídos, os quais, por políticas imorais e preconceituosas,

como aquelas que adotam as lições da “tolerância zero”, ou da teoria “das vidraças

quebradas” - a exemplo do presunçoso prefeito de Nova Iorque Rudolph Giuliani90 -,

acabam por transformar, o Estado Providência, em Estado Penitência e Policial,

encarcerando exatamente as vitimas diretas desse novo modelo, que não respeita

nem seu “criador”.

90 Que escreve sua autobiografia, como mais famoso prefeito de Nova York, apresentando-se como “O Líder” (GIULIANI, 2003).

127

2.6 O lado positivo da economia de mercado na atual globalização

O que há no mercado - com suas variadas nuances e cores - que chegou a

seduzir até mesmo Marx, em certa ocasião? Precisamente, buscaremos saber.

Doravante, podemos entender que o capitalismo, pela sua natureza, seu signo, é

como o próprio homem e seus segredos. Ele existe onde existe a vida humana em

enérgica efervescência. Ele existe onde o homem produz e reproduz seus

interesses. Anote-se, pois, que seus pontos - talvez se possa dizer - positivos

residem exatamente no mesmo ideal que residem os interesses dos homens, pelo

poder e riqueza. Exemplo disso, veja-se que, em 4 de junho de 1864, Marx

escreveu a Friedrich Engels, seu colaborador da vida inteira, dizendo ter “feito uma

festa na Bolsa de Valores de Londres”. “Voltou a época em que, com tino e

pouquíssimo dinheiro, dá para ganhar dinheiro em Londres”. Segundo o seu mais

recente biógrafo, Marx talvez tenha se sentido tentado a especular por influência do

socialista alemão Ferdinand Lassalle, que se gabara das suas especulações no

mercado de ações quando os dois se conheceram em 1862. Três semanas mais

tarde, Marx discorreu de modo mais alentado sobre as suas atividades para um

outro correspondente:

Tenho me dedicado, o que não deixará de surpreendê-lo, à especulação – em parte com fundos americanos, mas sobretudo, com ações inglesas, que este ano parecem cogumelos, de tanto que se multiplicam (mais que qualquer sociedade por ações, verdadeira ou imaginária), subindo a patamares inteiramente despropositadas para em seguida, na sua maioria, entrar em colapso. Com isso, já ganhei mais de 400 libras e, agora que a complexidade da situação política está ampliando as oportunidades, vou começar tudo de novo. É um tipo de operação que demanda pouco tempo; vale a pena correr um certo risco para tomar o dinheiro do inimigo. (FERGUSON, 2007, p. 376).

Segundo Ferguson (2007), se em meados da era vitoriana, o mercado de

ações foi capaz de seduzir o mais influentes de todos os críticos do capitalismo, é

porque de fato tinha poderosos encantos.

Certamente, Adam Smith91, considerado o “pai da economia política”, poderá

nos responder, através da análise de sua obra - A riqueza das nações: investigação

91 Adam Smith nasceu em Kirkaldy, na Escócia, em 1723,. Estudou filosofia em Glasgow e teologia em Oxford. Em 1752, tornou-se professor de Filosofia na Universidade de Glasgow. Graças a seu renome, tornou-se o preceptor do jovem duque de Baccleugh, com a missão de percorrer a Europa

128

sobre sua natureza e suas causas - a qual constitui, sem sombra de dúvida, uma

ruptura na história do pensamento econômico.

Segundo Drouin (2008), Smith indaga acerca dos fundamentos da riqueza,

rejeitando as teses mercantilistas que consideram como fonte da riqueza a posse de

metais preciosos. Opõe-se também aos fisiocratas, que associam a riqueza apenas

ao trabalho da terra. Para Smith, a riqueza das nações se funda na divisão do

trabalho e na liberdade econômica. A partir do postulado do laisser-faire e da

existência de uma ordem natural que não deve ser contrariada, a busca das

ambições e dos interesses individuais pode se conjugar muito bem com o

enriquecimento da coletividade. Adam Smith formula a teoria da repartição, quando

investiga as origens dos bens e a formação do preço do trabalho.

2.6.1 O trabalho – fonte de valor

Primeiramente, fica bem claro em sua obra92, a distinção entre o valor de uso

e valor de troca. É bom que se diga que, antes de Smith, o valor dos bens eram

definidos, sobretudo, por sua utilidade, tendo esse autor, subvertido essa visão,

quando ressalta, principalmente com seu paradoxo, sobre a água e o diamante,

afirmou que não existe necessariamente uma relação entre o valor de uso e o seu

valor de troca.

Não existe nada mais útil do que a água, mas ela não permite comprar praticamente nada; não se consegue praticamente nada em troca. Um diamante, pelo contrário, não tem praticamente nenhum valor de uso, mas muitas vezes é possível trocá-lo por uma grande quantidade de outras mercadorias. (DROUIN, 2008, p. 11).

Como se vê, o valor do uso de um bem está ligado à sua utilidade; o valor de

troca de um bem se baseia na capacidade de seu detentor em obter outros bens no

mercado. Vale dizer, que a moeda, na forma de peças ou notas, não tem nenhum

valor de uso, mas, por outro lado, possui um forte valor de troca (DROUIN, 2008).

em companhia de seu jovem aluno, para lhe apresentar os grandes espíritos da época. Foi assim que Smith conheceu os enciclopedistas (DÀlembert, Helvétius) e os economistas da escola fisiocrata, como François Quesnay e Turgot. Foram estes que o conduziram à economia política. Então começou a escrever sua obra central, A riqueza das nações, publicada em 1776. No fim da vida, em 1778, foi nomeado comissário das alfândegas em Edimburgo. Faleceu em 1790 (DROUIN, 2008). 92 “A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas (1776)”.

129

Dissertando sobre a teoria de Smith, Drouin (2008) afirma que numa

sociedade pouco desenvolvida em termos econômicos, o valor de troca de um

produto é essencialmente definido pela quantidade de trabalho necessário para sua

realização. Por exemplo93, o caso de um povo de caçadores:

se o ato de matar um castor leva o dobro do tempo empregado para matar um cervo, o castor será trocado por dois cervos. Numa sociedade mais desenvolvida, isso se passa de maneira totalmente diversa. O preço ou o valor de troca de uma mercadoria já não deriva apenas do trabalho humano incorporado ao produto, pois outros fatores de produção intervêm na fabricação das várias mercadorias, como a terra, as matérias-primas e, sobretudo, o capital. O preço das mercadorias, então, é determinado pelo nível dos salários, pelo lucro do capitalista e pela renda do proprietário fundiário. (DROUIN, 2008, p. 12).

Trabalho e troca formam então um par inseparável, pois é a propensão inata

dos homens à troca e à barganha que dá origem à divisão do trabalho. Troca e

trabalho são apresentados, então, como os princípios básicos a partir dos quais a

imensa variedade de fenômenos econômicos pode ser explicada.

2.6.2 Os rendimentos – os salários, os lucros, e a renda da terra

O salário corresponde ao rendimento necessário ao trabalhador de custear as

condições de existência dele e de sua família, no mínimo, com alimentação, moradia

e vestuário. Ele é determinado pela natureza do trabalho e pela demanda de

trabalho dos empreendedores. Drouin (2008, p. 12) estabelece cinco características

que permitem determinar o nível do salário:

- o caráter agradável ou desagradável que se liga ao trabalho considerado (certos serviços são muito penosos, por isso, a remuneração deve ser maior); - o tempo de aprendizagem exigido pelo ofício em questão, bem como os custos de formação assumidos pelo assalariado; - a estabilidade do emprego e a intensidade do esforço despendido; - a responsabilidade e a confiança que o empresário deposita no trabalhador; - por fim, o risco, isto é, a maior ou menor probabilidade de sucesso na atividade profissional, o que supõe um prêmio de eficiência em função das tarefas a ser executadas em benefício do empreendimento.

93 Exemplo adotado pelo próprio Adam Smith.

130

Segundo Drouin (2008), o salário também é condicionado pela situação do

mercado de trabalho, que reúne a oferta de trabalho94 e a demanda de trabalho95.

Se a oferta de trabalho é superior à demanda, os salários devem baixar

“naturalmente” e, ao contrário, se a oferta é inferior à demanda, os salários

aumentam.

Smith (apud DROUIN, 2008, p. 14) considera que a “demanda de homens”

regula necessariamente a “produção de homens”, pois a flexibilidade dos salários se

torna, pois, um instrumento regulador, inclusive no plano demográfico. O aumento

da oferta de trabalho diante da demanda constante ou em baixa reduz os salários e

gera desemprego, pois esse fenômeno deve acarretar uma baixa da fecundidade.

Inversamente, uma demanda de trabalhadores superior à população ativa disponível

leva a uma lata dos salários, permitindo às famílias aumentar a descendência.

O lucro do capital representa a parcela do preço de venda do produto que se

destina a quem arriscou seu capital na indústria. O valor que os operários

acrescentam à matéria-prima se divide em duas partes: os salários e os lucros. Essa

análise continua atual, pois coloca a famosa questão da repartição do valor

acrescido no empreendimento entre os salários e os lucros, entre o trabalho e o

capital.

A renda da terra96 é a diferença entre o valor da colheita, de um lado, e os

salários e o produto ligado ao uso do capital de exploração97, de outro. Segundo

Drouin (2008), para Smith, o proprietário fundiário se beneficia de um verdadeiro

monopólio, na medida em que a quantidade de terra é obrigatoriamente limitada e

sempre existem fazendeiros que procuram arrendar a terra para obter um

rendimento.

94 “Trabalhadores em busca de emprego”. 95 “Os patrões que precisam de mão-de-obra”. 96 “rendimento da propriedade da terra”. 97 “ferramentas e máquinas agrícolas”.

131

2.6.3 A divisão do trabalho e o aumento da produção e produtividade

Adam Smith mostra que o princípio da divisão do trabalho é uma das fontes

da riqueza das nações, pois está na base do aumento da produção das empresas e

do tecido econômico nacional, valendo o mesmo para o campo internacional, no

comércio entre nações. A divisão do trabalho é a repartição das tarefas produtivas

necessárias à fabricação dos bens e serviços úteis à sociedade entre vários

indivíduos ou grupos de indivíduos, sendo pois, fenômeno universal.

Para explicar a divisão do trabalho e o aumento da produção e produtividade

na empresa, Adam Smith parte de um exemplo concreto, inspirado no artigo

“Alfinetes” da Enciclopédia de Diderot e D”Alembert, publicado em 1755. Nessa

empresa, a fabricação dos alfinetes está dividida em dezoito operações distintas,

confiadas a diferentes operários. O resultado do processo produtivo é incontestável:

se cada operário trabalhasse de maneira independente, nunca a produção seria tão

prolífica. A divisão do trabalho aumenta a eficiência do fator trabalho, isto é, sua

produtividade (DROUIN, 2008).

Para Adam Smith (apud DROUIN, 2008), os efeitos positivos da divisão do

trabalho, que gera aumento da produtividade, se dá da seguinte forma98:

1. A divisão do trabalho aumenta a habilidade de cada trabalhador, na

medida em que ele se especializa numa única tarefa.

2. A divisão do trabalho permite eliminar o tempo que normalmente se

perde com a passagem de uma atividade a outra, de uma ferramenta a outra.

3. A divisão do trabalho leva à criação de novos instrumentos de

produção, de novas máquinas que também economizam tempo, ao reduzir a

dificuldade do exercício profissional99.

98 “Em todos os ofícios e manufaturas, os efeitos da divisão do trabalho são os mesmos que acabamos de observar na fabricação de um alfinete, embora muitos deles o trabalho não possa ser tão subdividido nem reduzido a operações de tanta simplicidade. Todavia, em cada ofício, a divisão do trabalho, até onde pode ser levada, gera um aumento proporcional na capacidade produtiva do trabalho. É essa vantagem que parece ter dado origem à separação dos diversos empregos e ocupações”. (DROIN, 2008, p. 15). 99 “A especialização de cada operário o leva a conhecer melhor seu posto de trabalho e, por isso mesmo, a conceber melhores instrumentos para executar sua tarefa e o surgimento de uma categoria de ‘pesquisadores’ ou ‘teóricos’, cuja função consiste em observar o desenrolar da produção, com o

132

É claro que Adam Smith tinha consciência dos riscos da divisão do trabalho,

se levada ao extremo, quando afirma que:

a inteligência da maioria dos homens é necessariamente formada por suas ocupações habituais. Um homem que passa toda a sua vida executando um pequeno número de operações simples, cujos efeitos, talvez, são também sempre os mesmos ou muito parecidos, não tem ocasião de desenvolver sua inteligência, nem de exercer sua imaginação procurando expedientes para afastar dificuldades, que nunca surgem; portanto, ele perde naturalmente o hábito de utilizar ou exercer suas faculdades e se torna, em geral, tão obtuso e ignorante quanto pode chegar a ser uma criatura humana. (DROIN, 2008, p. 17).

Além disso, Adam Smith entende que a divisão do trabalho é salutar sob o

ponto de vista nacional, pois os indivíduos em função de suas capacidades, se

orientam para a profissão e, uma vez estabelecidos, venderão os produtos de sua

atividade. Os ganhos auferidos permitirão obter bens e serviços que não produzem e

que lhes sejam necessários. Os agentes produtivos, com vistas a satisfazer seu

consumo pessoal, não devem se lançar a outros serviços fora de sua atividade

principal (DROUIN, 2008)100. No entanto, alude esse autor, que a divisão do

trabalho, fonte da riqueza das nações, só pode existir numa sociedade que tenha

institucionalizado a troca entre agentes produtivos, isto é, uma sociedade que

disponha de um mercado. A especialização, a excelência numa atividade produtiva

só pode surgir a partir do momento em que cada indivíduo tem a possibilidade de

vender produto de seu trabalho, a fim de comprar o que lhe é necessário e que ele

não produz. Como mostra Smith, cada homem se torna uma espécie de

comerciante, e a própria sociedade é, caracteristicamente, uma sociedade mercantil.

Da mesma forma, entende Smith que a aplicação dos princípios da divisão do

trabalho, fundada na especialização, também pode ser aplicada nas relações

econômicas internacionais, na medida dos interesses da troca entre nações. É a

teoria da vantagem absoluta, na medida em que cada nação tem interesse em se

objetivo de aperfeiçoá-la, sobretudo com a invenção de novos equipamentos produtivos” (DROIN, 2008, p. 17). 100 “A máxima de todo chefe de família prudente é nunca tentar fazer por si a coisa que lhe custaria menos comprar do que fazer. O alfaiate não procura fazer seus sapatos, mas compra-os ao sapateiro; o sapateiro não se põe a fazer suas roupas, mas recorre ao alfaiate; o agricultor não tenta fazer nem um, nem outro, mas se dirige a esses dois artesãos para faze-los trabalhar. Não há um entre eles que não veja que é interesse seu utilizar toda a sua atividade no tipo de trabalho em que possui alguma vantagem sobre seus vizinhos e comprar todas as outras coisas que podem lhe ser necessárias com uma parte do produto daquela atividade, ou, o que vem a ser a mesma coisa, com o preço de uma parte desse produto” (DROIN, 2008, p. 17).

133

especializar na produção de bens em que ela possui vantagem absoluta em relação

às outras nações, isto é, que ela executa a custos menos elevados do que no

exterior. Os bens que seriam produzidos a custos mais altos do que no exterior são

simplesmente importados (DROUIN, 2008)101.

Vale dizer, “cada um troca o que produz por aquilo que lhe é necessário e que

não pode produzir por si, através do mercado, tem-se o local da troca” (DROUIN,

2008, p. 19). O mercado se torna, assim, o instrumento regulador da atividade

econômica.

Além disso, segundo Drouin (2008), o mercado smithiano vai muito além de

um simples espaço de troca, pois ao se tornar o epicentro de uma regulação que

transcende o econômico, é fator de consenso social, na medida em que permite a

harmonia dos interesses contraditórios dos indivíduos. Cada indivíduo, motivado

pela busca de suas aspirações pessoais, é incentivado a responder à demanda dos

outros, com o objetivo de extrair de sua atividade o maior beneficio possível. A esse

fenômeno, Adam Smith chama de “mão invisível” do mercado, que guia os

interesses e as paixões individuais na direção mais favorável aos interesses de toda

a sociedade.

O homem tem necessidade quase constante do auxílio de seus semelhantes, e é inútil esperar esse auxílio apenas da benevolência alheia. É muito mais provável consegui-los se invocar os interesses pessoais deles [...] Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, e sim do cuidado que eles dedicam a seus interesses. Não nos dirigimos à seu humanitarismo, e sim a seu egoísmo, e nunca lhes falamos de nossas necessidades, mas sempre de suas vantagens. (DROUIN, 2008, p. 22).

Segundo Drouin (2008), a livre concorrência, na medida em que se traduz na

presença de vários vendedores num mesmo mercado, contribui para o surgimento

do preço justo, de forma que os vendedores ávidos demais vão se arruinar ou terão

101 “O que é prudência na conduta de cada família particular não pode ser insensatez na de um grande império. Se um país estrangeiro pode nos fornecer uma mercadoria a preço mais baixo do que temos condições de estabelecer, mais vale compra-la com uma parcela do produto de nossa industria, empregada no gênero em que temos alguma vantagem. As vantagens naturais de um país sobre outro para a produção de certas mercadorias às vezes são tão grandes que, por um sentimento unânime, seria insensato querer lutar contra elas. Com estufas aquecidas, camas de terra e esterco, e vidraças, pode-se cultivar na Escócia uvas muito boas, com as quais pode-se fazer também um vinho muito bom, talvez com despesas trinta vezes maiores do que custaria um igualmente bom no estrangeiro” (DROUIN, 2008, p. 20).

134

que se alinhar, sendo pois, este, o milagre da “mão invisível”: é ela que permite

conciliar o egoísmo individual e o interesse geral.

2.6.4 A função do Estado

Alude Drouin (2008, p. 24) à luz das lições de Adam Smith,

que o Estado deve cumprir três funções em relação à sociedade civil: a) defesa do território com a manutenção das forças armadas; b) administração da justiça, consistente em proteger os membros da sociedade contra injustiças ou opressão de outros membros da sociedade; c) a criação e manutenção de certas atividades econômicas que não podem ser realizadas pelo setor privado, na medida em que sua produção não é geradora de lucro suficiente, ao passo que seu desenvolvimento é necessário par ao bem-estar da coletividade.

Assim, mesmo que a última função citada abra uma polêmica sobre os limites

do intervencionismo do Estado numa economia liberal, Adam Smith (apud DROUIN,

2008, p. 24-25) justifica o financiamento de certos serviços coletivos por meio dos

impostos, bem como, em relação ao ensino:

O Estado pode facilitar a aquisição desses conhecimentos, estabelecendo em cada paróquia ou distrito uma pequena escola em que as crianças sejam ensinadas a um pagamento tão módico que mesmo um simples operário possa desembolsá-lo, sendo o professor pago em parte, mas não totalmente, pelo Estado.

No mais, Adam Smith concebe uma tributação que não penalize a atividade

econômica, através da igualdade fiscal e da racionalização da arrecadação, sem

restringir as liberdades econômicas, bem como entende que o Estado deve defender

o mercado e a concorrência, opondo-se aos monopólios, sendo, pois, a regra

comum o da concorrência, que aparece como elemento essencial numa economia

de mercado, quando assim afirma:

Com um monopólio perpétuo, todos os outros cidadãos se vêem muito injustamente onerados por dois diferentes fardos: o primeiro resulta do alto preço das mercadorias que, no caso de um livre comércio, comprariam a preço muito mais baixo, e o segundo resulta da exclusão total de um ramo de negócios ao qual muitos deles poderiam se dedicar com lucro e prazer. (SMITH apud DROUIN, 2008, p. 25).

135

Por sua vez, Joseph Alois Schumpeter (apud DROUIN, 2008, p. 144)102,

teórico da inovação, salienta outro dos pontos positivo do capitalismo, qual seja, de

ser “um processo de destruição criadora”, posto que, sendo um sistema econômico

em movimento incessante, sua essência é a evolução permanente que revoluciona

constantemente a estrutura econômica em seu interior, destruindo continuamente

seus elementos velhos e criando continuamente elementos novos

2.6.5 Mas a nível global, quais seriam os pontos po sitivos?

Milton Friedman103, economista liberal, defende o laisser-faire das forças

espontâneas do mercado, para que se atinja um estado de equilíbrio. Estas teses

serviram de orientação aos Governos de Ronald Regan, nos Estados Unidos, a

primeira-ministra Margaret Thatcher, no Reino Unido (DROUIN, 2008).

Talvez, o ponto mais positivo da globalização e do mercado liberal tenha sido

afirmado muito tempo antes, pelo próprio Kant, em Paz Perpétua, quando afirma que

o “espírito do comércio” era “incompatível com a guerra” (FERGUSON, 2007, p.

460). Disso, compartilha François Quesnay (apud FERGUSON, 2007, p. 460),

quando afirma que “a guerra pode ter enriquecido alguns povos da Antiguidade, mas

aos povos da era moderna ela só traz mais pobreza e misérias”. Neste particular,

não destoava Adam Smith (apud FERGUSON, 2007, p. 460), quase ao final de A

Riqueza das nações, quando afirma que as guerras “afugentaram o grande comércio

de Antuérpia, Ghent, e Bruges [...] As revoluções comezinhas da guerra e do

governo facilmente fazem secar as fontes dessa riqueza que emana do comércio”

102 Joseph Alois Schumpeter, nasceu em Triesch, na Moravia, em 1883 – ano da morte de Marx e do nascimento de outro gigante do pensamento econômico: Keynes. Em Viena, estudou sociologia e depois economia, seguindo os cursos de Eugen von Bohm-Bawerk, um dos fundadores da ecola neoclássica austríaca. Tornou-se professor da Universidade de Czernowitz e, mais tarde, de Graz. Após a Primeira Guerra, teve uma rápida carreira política como ministro das Finanças, e a seguir passou para a iniciativa priada, assumindo a direção de um grande banco, que viria a falir em 1924. Retonrou ao ensino universitário, primeiro em Bonn e depois em Harvard, nos EUA, onde lecionou de 1932 até sua morte em 1950. A obra de Schumpeter é fortemente marcada pela sociologia alemã (Max Weber) e pela economia de Karl Marx (DROUIN, 2008). 103 Milton Friedman nasceu no Brooklyn, em 1912, numa família judaica de origem modesta. Graças a diversas bolsas, ele pode financiar seus estudos superiores, principalmente na Universidade de Chicago, onde estudou matemática, orientando-se a seguir para a economia. Em 1946, ano da morte de Keynes, Friedman obteve seu doutorado e iniciou carreira docente na mesma universidade. Em abril de 1947, ao lado de Friedrich von Hayek, Milton Friedman participou da fundação da Sociedade de Mont-Pélerin – reunindo economistas ligados à defesa dos valores próprios do liberalismo econômico – à qual viria presidir de 1970 a 1972 (DROUIN, 2008).

136

(grifo do autor). Ferguson (2007) comenta que foi com base nisso que Smith criticou

as políticas mercantilistas que subordinavam as forças do mercado a uma estratégia

superior. E não era uma posição isolada, pois essa posição atraiu muitos adeptos no

Século XIX:

Comte, mesmo admitindo que em séculos anteriores os “esforços [ ..] para descobrir e aprimorar o aparato militar ... não eram inteiramente destituídos de valor para o progresso da indústria”, via a subordinação da guerra ao desenvolvimento industrial como marca distintiva da sua própria época. Para Richard Cobden, paz e prosperidade reforçavam-se mutuamente: daí o titulo do seu panfleto de 1842, Free Trade as the Best Human Means for Securing Universal and Permanent Peace {Livre Comércio, Humanamente o Melhor Meio de Assegurar a Paz Universal e Permanente]. The Great Illusion (1910-1911) [A grande ilusão],De Norma Engell, é um monumento à persistência dessa crença. Para Angell, a guerra é economicamente irracional: armamentos excessivamente taxados, dificuldades de cobrar indenizações de potências derrotadas, colônias que não dão lucro. “O que de fato garante o bom comportamento entre os Estados?, indaga Angell. “É a complexa interdependência que, não só no sentido econômico mas em todos os sentidos, faz com que a agressão injustificável de um Estado a outro atinja os interesses do agressor.” (FERGUSON, 2007, p. 460).

Thomas Friedman (apud FERGUSON, 2007, p. 460) afirma que:

a globalização aumenta os incentivos para não entrar em Guerra e aumenta os custos de fazer a guerra em mais sentidos do que em qualquer época anterior da história moderna. A Teoria Arcos Dourados de Prevenção de Conflitos, que postula jamais ter havido guerra entre dois países que não tenham cada um pelo menos uma franquia do McDonald’s.

Embora o livro de Friedman tenha sido publicado em 17 de maio de 1999,

menos de dois meses depois de iniciada a guerra dos Estados Unidos com o

República da Iugoslávia, aparentemente alheio à conspícua presença do

McDonald`s em Belgrado, afirma Ferguson (2007, p. 461), “isto não significa que

Friedman e Norma Angell estejam errados”, afinal, ambos compartilham da crença

de que a racionalidade econômica deveria ser um desestímulo à guerra.

Isto permitira, por óbvio, encarar a globalização - apesar dos pesares - como

fato positivo no desenvolvimento da humanidade. Ela poderá, como condição

subjetiva fundamental das transformações estruturais, ir ao encontro de um mundo

mais solidário, pacífico e de cooperação entre povos, superando até mesmo os

antagonismos e conflitos decorrentes da competição decorrente, por sua vez, das

economias entre nações. A necessária formação de uma consciência social, via

poder político global, emerge do fato em que, nesta quadra da história, uma

137

regressão no atual avanço da globalização poderia levar a regressão a regimes

políticos burocráticos e autoritários, senão, ao isolacionismo fundamentalista, com

conseqüente perda de vantagens proporcionadas pela tecnologia. Neste aspecto,

Ferguson (2007, p. 461) é categórico, quando afirma que:

muitas vezes no século XX os Estados entraram em guerra ignorando o apelo liberal ao racionalismo econômico. Mesmo sabendo que a derrota acarretaria custos potencialmente gigantescos; e até mesmo que a vitória acarretaria custos potencialmente elevados. Isso pode ser explicado simplesmente pela miopia – uma espécie de “racionalidade confinada” que costuma subestimar os custos e superestimar as vantagens da guerra. Mas talvez seja mais convincente a explicação de que, para um regime não-democrático, a guerra pode significar custos agregados e de longo prazo irrelevantes. Se os benefícios imediatos da guerra afluírem para as elites governantes e os custos recaírem sobre as massas sem direito de voto, a guerra pode ser uma opção política perfeitamente racional.

Mesmo que se admita que os gastos de guerra tragam retorno palpável nas

pilhagens e indenizações pagas por Estados ou territórios derrotados, como já

ocorreu na história da humanidade104, na verdade, como alude Ferguson (2007, p.

463), “tais lucros - mesmo no caso de ‘reparações’, para usar um termo que foi

adotado no século XX para acrescentar à noção de ônus financeiro a da culpalidade

dos perdedores - em geral foram superados pelos custos das guerras que lhes

deram origem”. Mesmo os lucros das guerras da Revolução Francesa e das guerras

napoleônicas foram, em ultima instância, consumidos pelos altos custos da derrota

da França entre 1812 e 1815. Segundo estimativa recente, a indenização e demais

custos que os aliados vitoriosos impuseram à França depois de Waterloo - cerca de

1,8 milhões de francos - representaram cerca de um quinto do PIB anual da França.

Esta quantia, embora alta, representou apenas uma fração dos custos de guerra

incorridos nas duas décadas anteriores pelos inimigos da França. Convertida na

104 “A Revolução Francesa instituiu um novo regime em que a exploração dos territórios passou a ser uma das principais fontes de renda. No últimos anos, um quarto da receita do Diretório era proveniente dos tributos cobrados da Holanda ocupada; entre 1795 e 1804 os holandeses pagaram aos franceses um total de aproximadamente 229 milhões de guilders, o equivalente a mais de um ano da renda nacional holandesa. As campanhas napoleônicas de 1806-7 não se autofinanciaram como cbriram pelo menos um terço da despesa ordinária do governo francês. Entre 1805 e 1812 o erário francês embolsou integralmente metade dos impostos arrecadados na Itália. A Grã-Bretanha também soube ganhar dinheiro com a guerra no século XIX: em 1842 algo como 40% do orçamento total de defesa vieram da indenização de 5,8 milhões de libras imposta à China pelo Tratado de Nanquim; Palmerston chegou a gabar-se para a Câmara dos Comuns dos lucros da guerra. Os sucessivos acordos de paz de 1829, 1878 e 1882 permitiram à Rússia extorquir da Turquia quantias cada vez maiores, que representaram respectivamente 9%, 42% e 115% dos gastos de defesa russos. Este ultimo percentual parece irrisório se comparado com a indenização que o Japão arrancou da China em 1895 – mais que o triplo do total dos gastos militares do Japão no ano e mais ou menos o dobro do custo da guerra” (FERGUSON, 2007, p. 463-464).

138

moeda britânica ela equivale a 78 milhões de libas esterlinas, não muito mais do que

os 66 milhões de libras que a Grã-Bretanha teve que pagar em subsídios aos seus

aliados na Europa continental entre 1793 e 1815.

Quanto às reparações, segundo Ferguson (2007, p. 463-464), aquelas

exigidas depois das vitórias no século XX,

elas nem de longe se aproximam dos custos da guerra. A indenização que a Alemanha impôs à Rússia pelo Tratado de Brest-Litovsk em 1918 foi de cerca de 1,4 bilhões de dólares, quantia que mesmo elevada representa apenas uma fração dos cerca de 20 bilhões de dólares que a guerra custou ao todo para a Alemanha. Do total de 31 bilhões de dólares que, conforme o ultimato de Londres de 1921, a aliança vitoriosa decidiu afinal cobrar a Alemanha a título de reparações, os realistas, como Keynes, não contava receber mais que 12 bilhões de dólares – o que já equivalia a mais de 80% do PIB da Alemanha. De novo, essas quantias não passam de uma fração do total de 58 bilhões de dólares que a guerra custou aos países vitoriosos.

Embora nem sempre o vitorioso receba integralmente a indenização

imposta105, nem mesmo a experiência do entre-guerra conseguiu dissuadir

Alemanha, Japão e Itália de lançar-se em novas e predatórias incursões territoriais e

financeiras nas décadas de 1930 e 1940. A ocupação da Manchúria pelo Japão e

posteriormente a da maior parte da Europa continental pela Alemanha, foram das

mais ferozmente extorsivas de toda a história. A receita extorquida dos territórios

ocupados saltou de 3% do PNB alemão para o pico de 16% em 1943, o que de novo

é muito menos do que a guerra custou para a economia alemã. Conforme afirma

Ferguson (2007, p. 465)

para as democracias, a lição da história é claríssima: a guerra não compensa. Invariavelmente, o mais provável é que o seu custo econômico seja superior aos subseqüentes benefícios das reparações. O fiasco das reparações na década de 1920 serviu de lição para as potências ocidentais, que em 1945 limitaram-se a exigir das potências derrotadas do Eixo um total de apenas 7 bilhões de dólares – vale comparar isto com os 275 bilhões de dólares dos EUA e os 91 bilhões de dólares da Grã-Bretanha gastos na guerra.

Embora se reconheça que a inferência somente do liberalismo econômico,

por si só, talvez não seja suficiente, para por fim à guerra, conforme afirma Ferguson

(2007, p. 471), talvez seja necessária a democratização dos Estados, e a imposição

105 “O total pago pelos alemães entre 1919 e 1932, quando os pagamentos foram congelados, não chegou a mais de 4,5 bilhões” (FERGUSON, 2007, p. 464).

139

dessa situação aos Estados autocráticos. Esse argumento remonta ao Iluminismo,

pois segundo Kant (apud FERGUSON, 2007, p. 470),

caso..., a anuência dos cidadãos [de uma república] seja necessária para decidir se é o caso ou não de declarar guerra, significaria atrair para si todas as misérias da guerra, tais como envolvimento pessoal na luta, custeio de guerra com os próprios recursos, laboriosa reconstrução da devastação subseqüente, e... obrigação de assumir uma carga de dívidas que irá contaminar a própria paz e nunca poderá ser integralmente resgatada devido à constante ameaça de novas guerras.

Por sua vez, o liberalismo econômico, e, a democracia, parece que andam

juntas - o que não deixa de ser importante -, afinal, é muito difícil a guerra entre duas

nações democráticas. Como afirmou em 1918, o presidente dos Estados Unidos

Woodrow Wilson (apud FERGUSON, 2007, p. 422),

a democracia parece prestes a prevalecer universalmente... A difusão das instituições democráticas.... promete reduzir a política a uma forma única... reduzindo todas as formas de governo à Democracia. Embora tenha efetivamente mais que dobrado de 1916 a 1922, veio a cair.

Como afirma Ferguson (2007, p. 424),

a primeira vista, a afirmação de Francis Fukuyama de que existe uma correlação positiva entre democracia e crescimento econômico talvez pareça óbvia. Em termos econômicos, o triunfo da democracia é mais impressionante que qualquer medida já focalizada anteriormente. Hoje, as democracias concentram uma parcela gigantesca da riqueza mundial. Para as cinqüenta maiores economias do mundo, a nota média do quesito democracia (segundo o parâmetro do Polity III) é 8,8. Destas cinqüentas, as democracias nota dez representam quase exatamente 75% do PNB mundial sendo que, se todos os países com nota dez fossem incluídos, este percentual subiria acima dos 80%.

É interessante notar que Karatnycky (apud FERGUSON, 2007, p. 424) faz

eco à ênfase que Fukuyama atribui aos “vínculos entre liberdade econômica e

liberdade política”:

A liberdade econômica não só contribui para estabelecer a liberdade política promovendo o crescimento de uma próspera classe média e trabalhadora, como a liberdade política também parece necessária ao êxito de uma economia de mercado como barreira contra conchavos econômicos, busca de ganhos improdutivos e outras práticas ineficientes e anticompetitivas.

140

Sociedades e economias abertas e democraticamente imputáveis também se revelaram capazes de enfrentar reveses econômicos106.

Alude Ferguson (2007) que em 1959 o cientista político americano Seymour

Martin Lipset, apontou a correlação entre a democracia e a riqueza, industrialização,

urbanização e educação. No seu entender, a legitimidade das instituições

democráticas dependia tanto do contexto cultural, do desenvolvimento da sociedade

civil e da experiência passada (sobretudo colonial) do país quanto do desempenho

econômico. A análise do economista Robert Barro em cima de dados de cerca de

cem países entre 1960 e 1990 sugere que vários parâmetros de padrão de vida (PIB

per capita real, expectativa de vida, e a extensão da brecha entre o nível

educacional dos homens e das mulheres) estimulam sim o desenvolvimento de

instituições democráticas.

Em ambicioso estudo focalizando a taxa em vez do nível de crescimento,

Benjamin Friedman (apud FERGUSON, 2007 p. 429) também sustenta que “o

vínculo... entre a elevação do padrão de vida e uma sociedade democrática aberta”

se confirma. Em sua versão para a regra, “uma sociedade tem mais probalidade de

tornar-se mais aberta, tolerante e democrática quando o padrão de vida dos seus

cidadãos está melhorando, e vice-versa quando o padrão de vida está estagnado”,

comenta Ferguson (2007, p. 429). Em proposição inversa, a esta altura, a noção de

que os regimes socialistas não-democráticos pós-1917 não conseguiram no longo

prazo gerar o mesmo crescimento sustentável que o capitalistas democráticos, seus

inimigos declarados, não deveria mais suscitar controvérsias. Conforme alude

Ferguson (2007, p. 429),

Até mesmo a velha crença de marxista como Eric Hobsbawm de que as políticas de coletivização forçada e planejamento industrial de Stalin foram necessárias, para a economia russa, dificilmente se sustenta quando se contrapõem os custos humanos e aos aumentos da produção física na época. No frigir dos ovos, para cada dezenove toneladas de aço produzidas na era Stalin pelo menos um cidadão soviético morreu de fome, deportado, encarcerado no gulag, ou executado. Há poderosas evidências de que o sistema comunista desperdiçou tantos recursos e foi tão perverso em sua estrutura de incentivos que acabou por destruir a si mesmo. Segundo

106 Karatnycky, “Decline of lliberal Democracy”, p. 123. Um outro estudo realizado pelo Freedom House sobre países pós-comunistas mostra que, em “democracias consolidadas e economias de mercado, a média d, a média de crescimento foi de 1,4%; e[nas] autocracias consolidadas e economias estatizadas da região, o PIB caiu em média cerca de 3%” (KARATNYCKY apud FERGUSON, 2007, p. 424).

141

recente estimativa, levando em conta novos investimentos e capital humano, o crescimento soviético foi o “pior do mundo” entre 1960 e 1989.

Dez anos após “O fim da história”, Fukuyama continua a confiar em “uma

duradoura evolução progressiva das instituições políticas da humanidade rumo à

democracia liberal”, quando conclui o seu livro The Great Disruption (A grande

ruptura), afirmando que “na esfera política e econômica, a história parece ser

progressiva e direcional, tendo em fins do século XX culminado na democracia

liberal como única alternativa viável para sociedade de teconologia avançada”.

(FERGUSON, 2007, p. 408).

O prêmio Nobel Amartya Sen “também apóia a noção de que a democracia é

benéfica para a economia” (FERGUSON, 2007, p. 409). Sen (1999) alega que a

liberdade, desejável em si mesma, também se justifica como instrumento

econômico. É bem verdade, admite Sen (1999), que a falta de democracia não

impediu que China, Cingapura e (até recentemente) Coréia do Sul, apresentassem

nessas duas ultimas décadas um rápido crescimento econômico. Mas o

O exemplo desses “tigres autoritários não é suficiente para derrubar a tese econômica pró-democracia. É possível contrapor a ele o da Botsuana, na África, um oásis democrático que vem apresentando um rápido crescimento. De modo ainda mais flagrante, as democracias são superiores às autocracias no que tange a evitar desastres econômicos. (FERGUSON, 2007, p. 409).

“Jamais houve uma grande epidemia de fome”, argumenta Sen (apud

FERGUSON, 2007, 409) em Development as Fredom (Desenvolvimento como

Liberdade), “em um país democrático - por mais pobre que ele fosse..., porque, em

uma democracia pluripartidária com eleições e liberdade de imprensa, o governo

tem fortes incentivos políticos para tomar medidas preventivas contra a fome”.

Por outro lado, não se tem mais dúvida de que a globalização econômica, em

tese, vem acompanhada da globalização política. Basta averiguar que o crescimento

de blocos comerciais supranacionais, como União Européia e o NAFTA, e a

crescente influência da Organização Mundial do Comércio (o ex GATT) dão a

entender que o número de países pequenos economicamente viáveis é agora maior

do que na época das políticas nacionais de protecionismo comercial (FERGUSON,

2007).

142

Aliás, quem aborda esse assunto, é Brum e Heck (2005), quando analisam a

política macroeconômica em economias abertas, no décimo capítulo, salientando, no

capítulo onze, o movimento dos fatores de produção, as migrações de mão-de-obra,

o capital e o seu deslocamento mundial. Nessa obra, afirma de saída, que o

comércio passa a ser um mecanismo poderoso à saída do isolamento nacional e à

integração econômica entre os povos.

Citando Nême, Brum e Heck (2005) analisam a teoria da economia

internacional e a luta contra a raridade dos recursos nacionais, que se traduz, pela

dissociação da produção limitada em sistema de economia fechada, pela utilização

dos fatores de produção e do consumo mais variado graças ao comercio

internacional.

Abordando o processo de integração econômica, como ponto positivo da

globalização no estágio atual, Brum e Heck (2005, p. 261-262) citam a União

Européia como exemplo do único bloco que conseguiu chegar no último estágio107,

citando, pois, as vantagens gerais da integração econômica, que podem ser

adotadas aqui nesta pesquisa, à luz da indagação do capítulo. São elas:

a) - economias de escala; b) - intensificação de competitividade; c) - atenuação dos problemas de pagamentos internacionais; d) - possibilidade de desenvolver novas atividades difíceis de serem empreendidas isoladamente; e) - aumento de poder de negociação; f) - formulação mais coerente da política econômica nacional; g) - transformações estruturais (maior mobilidade dos fatores de produção); h) - aceleração do ritmo de desenvolvimento e possibilidade de um maior nível de emprego.

Este conjunto formado pela união entre países mais a sua integração

econômica, segundo Brum e Heck (2005, p. 262), “reflete o atual cenário global, em

que inúmeros acordos de liberalização de comércio surgem na ótica de aumento da

produção e da riqueza nacional, visando atingir um alto grau de desenvolvimento

socioeconômico”, o que não deixa, por certo, de ser ponto positivo à globalização

em relevo. Sim, pois quando afirma Brum e Heck (2005, p. 350), “que não se trata

107 Os estágios seriam: a) Zona de Tarifa Preferencial; b) Zona de Livre Comércio; c) União Aduaneira; d) Mercado Comum “e” e) União Econômica e Monetária.

143

somente de uma questão de divisão ou de igualdade entre países ricos e pobres, -

como se acreditava nos anos 60 -, mas sim, de reduzir e de eliminar as disparidades

de bem-estar no plano mundial e dentro de cada país”, esta ratificando que,

evidentemente, deve ser investido mais no desenvolvimento humano, na medida em

que, “tantos países ricos como os pobres, pecam a esse respeito”. Afinal, como

afirma esse autor,

nos Estados Unidos, por exemplo, em 1992 havia 38 milhões de pessoas que viviam abaixo do limite de pobreza. Em 1993 este número subiu para 39,4 milhões de pessoas, representando 15,1% da população estadunidense. Tal realidade não se modificou até o início do século XXI. Com isso, a transferência de fundos dos países ricos para os países pobres diminuiu consideravelmente nos últimos anos. É tempo de se repensar o desenvolvimento como tal, de forma que ele integre, tanto no âmbito individual de responsabilidade de cada país como no plano multilateral, todas as outras políticas econômicas. (BRUM; HECK, 2005, p. 350-351).

O ponto positivo deste capitalismo contemporâneo está justamente na

possibilidade de um novo rosto, “um rosto humano”, como afirmado por Brum e Heck

(2005, p. 352) já que, estaria em gestação no mundo, como defendem correntes

analistas ligadas a socioeconomia. Incrementa-se, com isto, a cooperação

internacional, a qual passa a ser incentivada pelas nações industrializadas. Além

disso, como positivo,

[...] uma maior abertura comercial tende a diminuir as pressões inflacionárias; redefine salários, com sua adequação ao ambiente geral; reduz ou elimina o chamado “efeito deslocamento” (crowdng out) do investimento privado previsto para ocorrer como resultado de crescimento indevido dos déficits no orçamento; torna a economia interna vulnerável às turbulências iniciadas no exterior, mas, ajuda a dissipar as turbulências originárias no interior do país; afeta a política fiscal na medida em que esta, assumindo um caráter expansionista, será transferida a outros países via maiores importações; e permite construir uma economia mais diversificada e adaptável às alterações da oferta e demanda, assimilando melhor o chamado ciclo de negócios prosperidade-recessão. (BRUM; HECK, 2005, p. 357).

Asseguram esses autores, que:

com isso, a vantagem de se enfrentar a concorrência internacional, por intermédio do comércio, é que a mesma coloca os setores produtivos nacionais diante dos melhores concorrentes, fato que tende a otimizar a performance das empresas locais, desde que preparadas para tal concorrência. (BRUM; HECK, 2005, p. 357).

144

Podemos afirmar, assim, que longo prazo, a globalização atual, mais humana,

tende a proporcionar condições favoráveis ao desenvolvimento sustentável e à

democratização política, permitindo também o equacionamento e a solução racional

de problemas que transbordam as fronteiras geográfica dos países, tais como a

questão da poluição dos mares, ar, rios, o controle e tratamento dos resíduos

nucleares, a expansão das redes de comunicação e a aproximação e cooperação

entre inúmeros movimentos sociais não governamentais, recuperando assim, o rumo

e o sentido da história, em prol do humanismo. Com isto, a exemplo da União

Européia, o abandono gradativo das barreiras tarifárias, que protegem a produção

dos países da concorrência estrangeira, abrindo-se ao fluxo internacional de bens,

serviços e capitais, beneficiando-se a todos os consumidores.

Contudo, Bedin (2001), mais cauteloso, sem entrar no mérito com maior

profundidade, no que concerne aos fatores positivos e negativos da atuação das

empresas transnacionais na globalização do capital, citando Esther Barbé, comenta

que “os fatores positivos e negativos são em número bastante significativo e, por

isso, nem sempre é fácil resumi-los em um quadro sintético”. Anota, pois, os

seguintes fatores positivos:

a) aumenta o volume do comércio mundial; b) acumula capital para o desenvolvimento; c) financia crédito; d) fomenta o .livre comércio e desmonta as barreiras comerciais; d) favorece o desenvolvimento tecnológico; e) transfere tecnologia aos países em desenvolvimento; f) reduz os custos aproveitando as vantagens comparativas; g) gera empregos; h) incentiva a qualificação de trabalhadores; i) amplia a possibilidade de compra de novos produtos através da internacionalização da produção; j) mundializa o marketing e os métodos publicitários; k) potencializa o crescimento nacional e facilita a modernização dos paises em desenvolvimento; l) gera bem-estar e riqueza; m) favorece as relações pacíficas entre os Estados que desejam preservar uma ordem que os ajude a produzir riquezas e comércio; n) rompe as barreiras nacionais e acelera a globalização da economia e regras. (BEDIN, 2001, p. 318).

Ratificando alguns desses fatores, Sachs (2004, p. 111) afirma que “o Brasil

entrou no século XXI com um aparelho industrial moderno e diversificado e um setor

de agronegócios que lhe confere a liderança mundial em vários campos”, dos quais

anotamos como positivos, os seguintes exemplos: “a) o Brasil vende 29% de todo o

açúcar; b) 28,5% do café em grãos; c) 43,6% do café solúvel consumido no mundo;

d) assumiu a liderança em vendas de carne bovina, em 2003, com 19% de

145

participação no mercado mundial; e) é o primeiro em vendas de carne de frango,

com exportações de 1,9 bilhão de dólares; f) detém 38,4% do mercado mundial de

soja em grão; g) vende 23,1º tabaco consumido no mundo; h) 81,9% do suco de

laranja”. Embora com inegável aspecto negativo, é bom lembrar que as exportações

a níveis elevados, em sistema de capital aberto, significam mais divisas ao país, e

com isto, mais condições de o Estado proporcionar bem-estar ao seu povo.

Há quem diga que o neoliberalismo, ao tempo de sua implantação, refreou a

inflação, como é o caso de Anderson (2008), que assim se manifesta:

Poder-se-ia perguntar qual a avaliação efetiva da hegemonia neoliberal no mundo capitalista avançado, pelo menos durante os anos 80. Cumpriu suas promessas ou não? Vejamos o panorama de conjunto. A prioridade mais imediata do neoliberalismo era deter a grande inflação dos anos 70. Nesse aspecto, seu êxito foi inegável. No conjunto dos países da OCDE, R taxa de inflação caiu de 8,8% para 5,2%, entre os anos 70 e 80, e a tendência de queda continua nos anos 90. A deflação, por sua vez, deveria ser a condição para a recuperação dos lucros. Também nesse sentido o neoliberalismo obteve êxitos reais. Se, nos anos 70, a taxa de lucro das indústrias nos países da OCDE caiu em cerca de 4,2%, nos anos 80 aumentou 4,7%. Essa recuperação foi ainda mais impressionante na Europa Ocidental como um todo, de 5,4 pontos negativos para 5,3 pontos positivos.

Embora tenha esse articulista anotado também alguns fatores negativos como

o crescimento das taxas de desemprego, importa salientar, que não deixa de ser um

fator positivo o fato da redução da inflação, devido a sua inequívoca e nefasta

influência negativa nas economias nacionais. Não destoa Anderson (2008) de

importantes autores na questão da inflação, a exemplo de Brum e Heck (2005), na

medida em que, paralelamente, há uma maior abertura comercial, tendem a diminuir

as pressões inflacionárias; redefine salários, com sua adequação ao ambiente geral;

reduz ou elimina o chamado “efeito deslocamento” (crowding out) do investimento

privado previsto para ocorrer como resultado do crescimento indevido dos déficits no

orçamento; torna a economia interna vulnerável às turbulências iniciadas no exterior,

mas, ajuda a dissipar as turbulências originárias no interior do país; afeta a política

fiscal na medida em que esta, assumindo um caráter expansionista, será transferida

a outros países via maiores importações; e permite construir uma economia mais

diversificada e adaptável às alterações da oferta e demanda, assimilando melhor o

chamado ciclo de negócios prosperidade-recessão. Nesta lógica, afirmam esses

autores (BRUM; HECK, 2005, p. 357), “aumentar preços internos se revela mais

146

difícil, pois o consumidor pode buscar produto similar no exterior, implicando que a

expansão econômica pode não acarretar riscos inflacionários”.

Como já foi dito, os tempos são outros, embora sejamos os mesmos a

perpassar as eras até aqui. Hoje, o ponto de divergência, em face do capital e

trabalho, diz respeito a velhas-novas preocupações. No Brasil, por exemplo, não é

difícil encontrar, de um lado, os neoliberais, donos do capital, que buscam de todas

as formas a total flexibilização do contrato de trabalho. De outro lado, os defensores

dos assalariados, que trazem à baila, junto ao Congresso Nacional, a ratificação da

Convenção nº 158, de 1982, a qual, basicamente, veda a demissão sem justa causa,

pois a mesma elenca apenas três motivos para a dispensa: a) se a empresa

demonstrar que passa por dificuldades financeiras; b) se houve mudança

tecnológica; c) se ficar comprovado que o empregado não tem mais condições de

exercer suas funções, embora qualquer delas não retire a possibilidade do

empregado discuti-la na justiça do trabalho. Os defensores da ratificação da

Convenção nº 158, argumentam que é importante frear a rotatividade do mercado de

trabalho considerada excessiva, e a estratégia de muitas empresas dispensar

empregados com custo maior para contratar outros com menores. Além disso, a

proteção à dispensa sem justa causa eleva a qualidade de vida dos trabalhadores e

da sociedade. Por sua vez, os empresários argumentam que a convenção nº 158, de

1982, é retrógrada, e não pode ser instrumento de atraso num mundo globalizado,

que requer inovações e renovações em face do constante ajuste tecnológico, e

porque, se for ratificada, inibirá a geração de novos empregos, sendo pois, tal

assertiva, muito danoso para os jovens e adultos que querem entrar no mercado de

trabalho, cada vez mais competitivo. Sem dúvida nenhuma, como até aqui a

Humanidade se caracterizou por contínua e incansável luta que grassou o tempo,

parece que mesmo tendo ruído o socialismo, tal guerra vem com nova roupagem

discutir o mesmo objeto.

147

3 O DESENVOLVIMENTO HUMANO PODE PROSPERAR NO QUADRO DE UMA

ECONOMIA DE MERCADO?

Enganam-se aqueles que defendem que o “debate clássico, em que o

racismo é um produto derivado da colonização e da escravidão” (NDIAYE, 2003, p.

138)108está fora de moda. Nesse sentido, Ndiaye (2003), ao concluir sua

participação na obra “O Livro Negro do Colonialismo”, adverte que o “debate não

estava encerrado”, posto que na Conferência Mundial de Durban contra o Racismo,

realizada em setembro de 2001, os Estados Unidos se recusaram a subscrever a

declaração final, na qual era reconhecido que a “Escravidão foi um crime contra a

humanidade.” Enganam-se também os que buscam outros fundamentos para os

ataques às torres gêmeas em 11 de setembro de 2001, ao World Trade Center e ao

Pentágono, que não é uma resposta a intromissão dos EEUU e sua forma imperial

de globalizar e ampliar os seus mercados109, típica globalização chamada por

Chomsky (2005, p. 15) de “direitos do investidor”. Exemplo triste desse modus

operandis foi nos anos 1980, com violentos ataques, conduzido pelo EUA à

Nicarágua110, e as atrocidades cometidas em nome do mercado. Ou quem sabe,

108 “[...] No início, a relação de dominação não era rígida, mas progressivamente a segregação racial se endureceu, para transpor uma etapa importante no fim do século XVII, quando um arsenal de leis definiu a condição dos negros e isolou-os da sociedade colonial branca. Por volta de 1750, a escravidão representava o principal sistema de trabalho das colônias do sul dos Estados Unidos. [...] São numerosos os relatos de escravos que evocam as terríveis lembranças da separação familiar, dos comboios terrestres, pés acorrentados, em direção aos mercados de escravos de Nova Órleans ou Montgomery no Alabama” (NDIAYE, 2004, p.138). 109 “O Governo dos Estados Unidos não controla o projeto de globalização corporativa, embora, é claro, tenha um papel preponderante nele. Esses programas tiveram contra si uma enorme oposição, principalmente no Sul, onde os protestos em massa poderiam, em grande parte dos casos, ser reprimidos ou ignorados. Nos últimos anos, os protestos também atingiram países ricos e, em conseqüência, tornaram-se o foco de grandes preocupações por parte dos poderosos, os quais agora se sentem na defensiva, e não sem motivo. Há razões bastante substanciais para a oposição disseminada em todo o mundo contra a forma, típica de globalização, de “direitos do investidor” que vem sendo imposta” (CHOMSKI, 2005, 15). 110 “Dezenas de milhares de pessoas morreram. O país sofreu uma substancial devastação e jamais pôde se recuperar . O ataque terrorista internacional foi acompanhado por uma arrasadora guerra econômica, que um pequeno país, isolado do mundo por uma vingativa e cruel superpotência dificilmente poderia enfrentar, como revelaram em detalhes os principais historiadores que estudam a Nicarágua, como Thomas Walker, por exemplo. Os efeitos sobre o país foram muito mais severos do que a tragédia ocorrida recentemente em Nova York. E eles não retaliaram bombardeando Washington. Eles recorreram à Corte Mundial, que deliberou em seu favor, ordenando aos EUA que voltassem atrás e pagassem uma reparação substancial. Os EUA desdenharam da Corte Mundial e de sua sentença, respondendo com uma nova onde de intensificação dos ataques à Nicarágua. O país, então, recorreu ao Conselho de Segurança, que em conseqüência passou a discutir uma resolução determinando aos Estados que observassem as leis internacionais. Os EUA, e tão-somente eles, vetaram a resolução. A Nicarágua foi então à Assembléia-Geral, que discutiu uma resolução similar, com a oposição, por dois anos seguidos, apenas dos EUA e de Israel (tendo certa

148

pouco mais atrás, em 1965, com a Indonésia, num massacre que a própria CIA

comparou aos crimes de Hitler, Stalin e Mao (CHOMSKI, 2005)111.

Reconhecidamente, exemplo de maior expressão, não ocorre no momento,

todavia, não se pode deixar de reconhecer que o mercado até hoje, no mundo

globalizado, está mais para a teoria de Hobbes que para o sonho da Paz Perpétua

de Kant. E como já foi colocado no capítulo anterior, poucos são os que deliberam

os canais econômicos neoliberais.

O que fazer com a grande massa de desempregados, deserdados e suas

insignes dignidades. Onde, e como faremos para preservá-la, defendê-la e até

incrementá-la, se os caminhos estão fechados para esse desiderato. Quais são

esses caminhos?

É da banalização do mal, a exemplo o que foi dito acima, que se buscará no

presente trabalho, um caminho oposto que se possa concluir que ainda podemos

buscar o que Chomsky (2005, p. 137) lembrou:

Se, ao contrário, o objetivo desses ativistas sociais for reduzir a possibilidade de futuras atrocidades e viabilizar as esperanças de liberdade, direitos humanos e democracia, então deveriam intensificar os seus esforços para investigar os fatores de fundo e o retrospecto que esta por trás deste e de outros crimes, e devotarem-se cada vez mais energia para as causas nobres com as quais firmaram compromissos. Deveriam dar atenção quando o bispo da parte sul da Cidade do México, San Cristobal de las Casas, que, tendo junto à si tantas misérias e opressão, insta os norte americanos a “refletir por que são tão odiados”, uma vez que os EUA

vez a adesão de El Salvador). É assim, que um Estado deve proceder. Se a Nicarágua fosse suficientemente poderosa, poderia ter convocado uma outra corte criminal. Essas seriam medidas que os EUA deveriam tomar, sendo que no caso ninguém teria como bloqueá-las. É isso que todo mundo esta pedindo que os EUA façam, incluindo aí seus aliados.” (CHOMSKY, 2005, p. 27-28). 111 “Um exército apoiado pelos EUA assumiu o controle da Indonésia em 1965, efetuando a matança de centenas de milhares de pessoas, a maioria camponeses, num massacre que a CIA comparou aos crimes de Hitler, Stalin e Mao. O massacre, detalhadamente noticiado, ensejou um incontrolável euforia no Ocidente, na mídia nacional e em outros centros. Os camponeses indonésios não nos causaram nenhum mal. Quando a Nicarágua finalmente Sucumbiu ao ataque dos EUA, a grande imprensa louvou o êxito dos métodos adotados para “arruinar a economia e proceder a uma prolongada e mortal guerra por procuração, até que os nativos, exauridos, derrubaram o governo por eles mesmos”, com um “custo mínimo para o EUA, deixando as vítimas “com pontes desabadas, estações de energia sabotadas e fazendas arruinadas”, e ainda fornecendo ao candidato pró-EUA um slogan vencedor”: “Vamos por fim ao empobrecimento do povo de Nicarágua” (Time) Ficamos “todos deliciados” com este resultado final, é o que proclamou o New York Times. É fácil prosseguir com esta argumentação. Muitas poucas pessoas pelo mundo celebraram os crimes em Nova York; uma maioria esmagadora deplorou-os com veemência, mesmo em lugares onde a população foi praticamente esmagada pelas botas de Washington, sofrendo por um longo período essa situação” (CHOMSKY, 2005, p. 76).

149

“geram tanta violência para proteger seus interesses econômicos” (Marion Lloyd, México City, Boston Globe, 30 de setembro).

O que sobra aos países conhecidos como periféricos?

Veja o que ocorre aqui no Brasil, mais especificamente na capital gaúcha, -

comprovadamente uma das melhores capitais no item de qualidade de vida -

deparamo-nos com semelhante, morando num terreno baldio, que matava cães para

alimentar-se?112 Indaga-se: Isto é exercício de dignidade? Ora, mesmo admitindo-

se que em países da Ásia, como Coréia do Sul, China, o consumo de carne de

cachorro é tolerado como iguaria, lá esses animais não exercem o papel afetivo que

desempenham aqui no Ocidente. O certo é que o melhor amigo do homem não era

devorado pelo humano seu amigo, mas sim, pelo absolutismo da fome que o

consumia. E das “crianças tartarugas ninjas” que habitavam os subterrâneos de

Porto Alegre, há pouco mais de dez anos, por falta de projeto social subjacente? E

das dezenas de mortes na candelária, Rio de Janeiro, promovida, ao que se sabe,

pelo próprio “stableshmt” da segurança pública? Alguém já esqueceu?

Cínico é quem não reconhece a atualidade de Bandeira (1947, p. 201-202),

quando se recita “O BICHO”:

Vi ontem um bicho. Na imundície do pátio. Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão. Não era um gato. O bicho, meu Deus, era um homem.

Diante desse pequeno e fragmentado panorama, não se pode falar em

eficácia de um desenvolvimento humano com respeito a dignidade, quando o

capitalismo, principalmente como motor da globalização econômica, produz ao longo

de sua existência, riquezas para poucos e misérias para muitos, de forma crescente,

atingindo, nessa virada do século XXI, 20% de pobreza, tendente em aumentar o

percentual.

112 “Fome foi a justificativa dada por um homem no sábado para se alimentar da carne de vira-latas na Capital. Lauro Pereira Ribeiro, 28 anos, admitiu ter abatido pelo menos quatro cachorros em pouco mais de 10 dias em um terreno baldio da Zona Sul. Moradores e comerciantes da Avenida Cavalhada chamaram a polícia chocados com a situação” (O HOMEM QUE MATAVA CÃES PARA SE ALIMENTAR, 2005, p. 30).

150

Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 1948,

já estabelecia em seu 1º e 2º artigos que “todas as pessoas nascem livres e iguais

em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em

relação umas às outras com espírito de fraternidade” e da “não discriminação”,

esses valores tendem a relativizar-se frente à “globalização” orientada pelas grandes

potências econômicas, que, concentrando as riquezas do mundo, buscam, não

apenas o lucro, mas sim, pelo capitalismo, o mercado mundial monopolizado, agindo

com atos imperialistas, subjugando outros povos - periféricos - “adonando-se” - não

raro as muitas vezes - de sua cultura, conhecimento tradicional, impingindo-lhes as

mais variadas formas de jugo, mas chegando ao extremo de dizimar centenas de

milhares de vidas.

Resta saber, e este é o propósito do presente trabalho, se é possível concluir

que nesse contexto de globalização econômica financeira, de globalização

neoliberal, valores como dignidade e desenvolvimento humano, podem ser

observados na sociedade contemporânea, ou se tais princípios não passam de

sonho, ilusão, ou quem sabe, de uma eterna “busca”, digna do ser humano como ser

contraditório, ou já estamos rumo ao hoje chamado “ultracapitalismo”? (BANDEIRA,

2005).

Da mesma forma, ao trabalhar com o princípio da dignidade humana e seu

desenvolvimento, buscaremos entender seu espaço, seus efeitos e sua observação

com o desenvolvimento econômico, posto que, imbricados, podem ou não ser

aplicados.

3.1 Conceito de dignidade humana

Mirandola (apud JOAQUIN, 1999)113, no início do Séc. XV, já havia afirmado

que a

idéia que o homem pode ascender na cadeia dos seres pelo exercício de suas capacidades intelectuais foi uma profunda garantia de dignidade da existência humana na vida terrestre. A raiz da dignidade reside na sua firmação que somente os seres humanos podem mudar a si mesmos pelo

113 Giovanni Pico della Mirandola, erudito, filósofo neoplatônico, humanista do Renascimento Italiano (Mirandola, 24 de fevereiro de 1463 - Florença, 17 de novembro de 1494) (JOAQUIN, 1999).

151

seu livre-arbítrio. Ele observou na história humana que filosofias e instituições estão sempre evoluindo, fazendo da capacidade de auto-transformação do homem a única constante.

Essas idéias teriam elevado o status de escritores, poetas, pintores e

escultores como Leonardo da Vinci e Michelangelo, de meros artesãos medievais a

um ideal renascentista de artistas considerados gênio que persiste até os dias atuais

(JOAQUIN, 1999).

Estas reflexões sobre o conceito de dignidade humana, desenvolvimento

humano e suas transformações de vida na atual fase do capitalismo de mercado e

globalização neoliberal, e suas implicações a nível de futuro da humanidade, seu

desenvolvimento em face da necessária solidariedade e equidade com os seres que

habitam a Terra, se faz importante, mormente quando estamos inseridos nesse

movimento, queiramos ou não, como afirma Bauman (1999). A questão da dignidade

e do desenvolvimento humano, encontra-se no cerne desta pesquisa, já que tal

reflexão passará, mesmo que de forma resumida, pelos princípios fundamentais,

porquanto, ao não podermos aplicar aqui aquele da “beneficência”, posto que o

“mercado” tem seus princípios de autonomia, ao menos devemos aplicar então a

“teoria da não-maleficência”, além de outros valores mais atuais da ética e do

princípio da justiça e do respeito à vida humana, fundamental para a construção de

uma cidadania social e econômica, tendo como valor central o homem e seus

direitos.

A noção de dignidade humana, que pode variar consoante os povos, cultura e

suas épocas, é atualmente uma idéia força que possuímos e respeitamos na

civilização ocidental, que é a base dos textos fundamentais sobre Direitos Humanos.

Basta ver que no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de

1948, que assim está vazada: “Os direitos humanos são a expressão direta da

dignidade da pessoa humana, a obrigação dos Estados de assegurarem o respeito

que decorre do próprio reconhecimento dessa dignidade” (JOAQUIN, 1999, p. 4).

Esta noção de dignidade como característica comum a todos os seres

humanos é relativamente recente, sendo por isso difícil fundamentá-la senão como

reconhecimento coletivo duma herança histórica de civilização, colocando-se a

152

questão de saber se a dignidade humana não será o modo ético como o ser humano

se vê a si próprio, afirma Joaquin (1999).

Como o Humanista Pico de La Mirandolla via a vida humana, seu conceito e a

imagem de si com os outros seres humanos, na relação com o mundo que habitam,

vê-se que a questão é mais de ética nas relações e do respeito aos seres humanos,

da mesma forma que defende Folladori (2001).

Ora, para entender o homem e sua trajetória global, face sua dignidade

extrínseca, é necessário também que entendamos aquilo que Hannah Arendt

chamou de “banalidade do mal”. Essa experiência foi após a trágica vivência nazi,

quando então, essa capacidade de simbolização não pode deixar de questionar o

que é dignidade. A banalidade do mal, também o foi quando e por ocasião das

bombas em Hiroshima e Nagasaki, onde os corpos humanos aniquilados foram

também o rosto da humanidade que se desfez, diante da aparente indiferença de

quase todos moradores do planeta terra.

A abordagem atual da dignidade humana e seu desenvolvimento deve ser

feita, sobretudo, pela negativa, pela negação da banalidade do mal, justamente

quando se está confrontando com situações de indignidade ou de ausência de

respeito à vida, ao humano.

Nesse mundo globalizado e tecnizado, é preciso buscar a ligação de um

mundo mais sensível, que novamente venha a se horrorizar com atos indignos

contra a vida, alargando, pois, o conceito de dignidade de modo a assegurar a

continuidade do humano na terra, numa ética de maior responsabilidade pelo futuro

da humanidade.

Como alude Boaventura Sousa Santos (apud JOAQUIN, 1999, p. 6):

que assenta no cuidado, que nos põe no centro de tudo o que nos acontece e que nos faz responsáveis pelo outro, o outro que pode ser um ser humano, ou um grupo social, um objecto, um patrimônio, a natureza, o outro que pode ser o nosso contemporâneo, mas que será cada vez mais um outro futuro cujas possibilidades de existência temos que garantir no presente.

153

Voltando à Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, adotaremos

alguns tópicos aplicados à Bioética, tendo em conta este alargamento do conceito

de dignidade que buscamos, referindo os princípios que lhe estão associados

(JOAQUIN, 1999, p. 5):

- o da não-discriminação (nomeadamente em função da raça) - o direito à vida - a proibição de tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. - o respeito pela vida privada e familiar - o direito à saúde.

Quando falarmos de dignidade humana e mercado, não estamos só diante de

outra noção do humano e da dignidade que lhe é devida, como de uma outra noção

de comunidade, que, quanto mais se aprofundou o que é a dignidade humana, mais

se “abriu”, deu lugar ao encontro do que era considerado “não-humano”, tornando-se

mais humana e libertando-se de um poder totalitário, que também o oprime e

destrói. Iremos ao encontro de uma ética que será

a salvaguarda em si e nos outros de uma certa idéia de humanidade, apesar de todos os desmentidos que lhe infligiu a experiência pública e privada. Humanidade não sem desumanidade, mas apesar da desumanidade. Humanidade, embora ferida, sempre renascendo. (JOAQUIN, 1999, p. 7).

Mas, como agir para preservar esta humanidade na desumanidade, que se

compromete de cada vez uma decisão que não releva nenhuma regra a priori e que

não está suspensa de nenhuma sanção.

Como o próprio Santos (2007, 23-24) afirma:

Não parece que faltem no mundo de hoje situações ou condições que nos suscitem desconforto ou indignação e nos produzam inconformismo. Basta rever até que ponto as grandes promessas da modernidade permanecem incumpridas ou o seu cumprimento redundou em efeitos perversos. No que respeita à promessa de igualdade os países capitalistas avançados com 21% da população mundial controlam 78% da produção mundial de bens e serviços e consomem 75% de toda a energia produzida. Os trabalhadores do Terceiro Mundo do sector têxtil ou da eletrônica ganham 20 vezes menos que os trabalhadores da Europa e da América do Norte na realização das mesmas tarefas e com a mesma produtividade. Desde que a crise da dívida rebentou no início da década de 80, os países devedores do Terceiro Mundo têm vindo a contribuir em termos líquidos para a riqueza dos países desenvolvidos pagando a estes em média por ano mais de 30 bilhões de dólares do que o que receberam em novos empréstimos. No mesmo período a alimentação disponível nos países do Terceiro Mundo foi reduzida em cerca de 30%. No entanto, só a área de produção de soja no Brasil daria

154

para alimentar 40 milhões de pessoas se nela fossem cultivados milho e feijão. Mais pessoas morrem de fome, no nosso século, que em qualquer dos séculos precedentes. A distância entre países ricos e, países pobres e, entre ricos e pobres, no mesmo país, não tem cessado de aumentar.

Todos esses breves apontamentos que certamente nos causam indignação e

desconforto são suficientes para nos obrigar a reflexão crítica sobre o mercado,

dignidade e desenvolvimento humano, na procura de um caminho ético, que respeite

a condição humana.

Para isto, analisaremos a dignidade humana com os fundamentos filosóficos

e biológicos, na busca das respostas às nossas indagações para, após, avaliarmos

se há condições de o Direito atender os anseios fundamentais e seus princípios,

para a finalidade e eficácia a que foi engendrado.

3.1.1 A dignidade humana - uma reflexão filosófica

A História, desde a Antiguidade Oriental até à Idade Contemporânea,

demonstra que nem sempre houve reconhecimento do primado do ser humano.

Desde a escravatura, reinante nas civilizações orientais, clássicas e européias, até

às perseguições da Inquisição, a discriminação social foi notória e pacificamente

aceite pelos filósofos coevos. Já Aristóteles (384-322 a. C.) e S. Agostinho (354-430)

se tinham debruçado sobre a distinção entre coisas, animais e seres humanos.

Deve-se a Immanuel Kant (1724-1804), através das suas críticas e análises

sobre as possibilidades do conhecimento, nomeadamente a partir das questões: o

que posso conhecer?, o que posso fazer? e o que posso esperar? na Crítica da

Razão Pura, na Crítica da Razão Prática e na Fundamentação da Metafísica dos

Costumes, uma das contribuições mais decisivas para o conceito de dignidade

humana.

No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade”. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se, em vez dela, qualquer outra coisa como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade. (KANT apud JOAQUIN, 1999, p. 8).

155

Como o próprio Kant reconheceu, as respostas às questões colocadas

dependiam do nosso conhecimento da natureza do próprio ser humano. O que

posso conhecer, fazer ou esperar, depende, em última análise, da minha própria

condição humana. “Age de tal modo que trates a humanidade, tanto na tua pessoa

como na do outro, sempre e ao mesmo tempo, como um fim e nunca simplesmente

como um meio” (JOAQUIN, 1999, p. 8). "Para [Kant], o ser humano é um valor

absoluto, fim em si mesmo, porque dotado de razão. A sua autonomia, porque ser

racional, é a raiz da dignidade, pois é ela que faz do homem um fim em si mesmo."

(JOAQUIN, 1999, p .8).

Devemos ainda pensar em dois conceitos: em Kant é, principalmente, o

conceito de respeito que é sublinhado e em Hegel o conceito de reconhecimento,

mais básico do que o de respeito. Para ser humano é preciso ser reconhecido

enquanto tal e não somente como organismo biológico. É na relação com o outro

que se é reconhecido como ser humano. A dignidade é, neste sentido, o efeito deste

reconhecimento é a sua fundamentação e, neste reconhecimento recíproco o ser

humano torna-se capaz de liberdade. Aprendemos com Hegel que todo o processo

da cultura é um processo no qual procuramos ascender a níveis cada vez mais

profundos de reconhecimento da igualdade. Neste sentido, enquanto o outro não for

totalmente livre, eu não sou livre. Em resumo, a dignidade do ser humano repousa

sobre o seu ser real, enquanto esta realidade é capacidade daquilo que ele pode

ser, e não apenas sobre o que ele faz efetivamente desta capacidade. Depois da

capacidade de autonomia, de autenticidade e de liberdade mediante o

reconhecimento do outro, há um outro momento da fundamentação da dignidade: o

ser humano é capaz de se elevar acima das circunstâncias imediatas do seu

ambiente para colocar questões sobre o sentido do real.

Nas raízes filosóficas do conceito de dignidade humana, somos obrigados a

referir John Stuart Mill (1806-1873), de cuja obra citamos pequena passagem de seu

livro sobre a Liberdade:

Não é procurando reduzir à uniformidade o que é individualidade, mas cultivando esta, dentro dos limites impostos pelos direitos e interesses de terceiros, que os seres humanos se tornam dignos da sua condição. Nos trabalhos que produzem, contribuem para o enriquecimento da própria sociedade de que fazem parte. Assim tornarão esta mais útil e profícua, e eles próprios mais orgulhosos de dela fazerem parte. Nesta medida, em

156

proporção com a respectiva contribuição, cada pessoa sentir-se-á mais válida para consigo mesma e, nessa medida, mais útil para os outros. (JOAQUIN, 1999, p. 9).

Segundo Sarlet (2005), o próprio Dworkin, ao tratar do conteúdo da dignidade

da pessoa humana, acaba reportando-se direta e expressamente à doutrina de Kant,

ao relembrar que o ser humano não poderá jamais ser tratado como objeto, isto é,

mero instrumento para realização dos fins alheios, destacando, todavia, que tal

postulado não exige que nunca se coloque alguém em situação de desvantagem em

prol de outrem, mas sim, que as pessoas nunca poderão ser tratadas de tal forma

que se venha a negar importância distintiva de suas próprias vidas.

Nesse contexto, vale registrar que mesmo Kant, nunca afirmou que o homem,

num certo sentido, não possa ser “instrumentalizado” de tal sorte que venha a servir,

espontaneamente e sem que com isto venha a ser degradada na sua condição

humana, à realização de fins de terceiros, como ocorre, de certo modo, com todo

aquele que presta um serviço a outro (SARLET, 2005).

Em resumo, o termo Dignidade Humana é o reconhecimento de um valor. É

um princípio moral baseado na finalidade do ser humano e não na sua utilização

como um meio. Isso quer dizer que a Dignidade Humana estaria baseada na própria

natureza da espécie humana a qual inclui, normalmente, manifestações de

racionalidade, de liberdade e de finalidade em si, que fazem do ser humano um ente

em permanente desenvolvimento na procura da realização de si próprio. Sarlet

(2005) assevera que o critério decisivo para a identificação de uma violação da

dignidade passa a ser do objetivo da conduta, isto é, da intenção de instrumentalizar

(coisificar) o outro. E conclui:

Assim sendo, tem-se por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínsica e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (SARLET, 2005, p. 36).

157

Vale lembrar novamente a lição de Santos (2007), ao sustentar que o

conceito corrente de direitos humanos e a própria noção de dignidade da pessoa

assentam num conjunto de pressupostos tipicamente ocidentais, quando em

verdade, todas as culturas possuem concepções de dignidade humana, muito

embora nem todas elas a concebam em termos de direitos humanos, razão pela

qual se impõe o estabelecimento de um diálogo intercultural, no sentido de uma

troca permanente entre diferentes culturas e saberes, que será viabilizado pela

aplicação de uma “hermenêutica diatópica”, que por sua vez, não pretende alcançar

uma completude em si mesma inatingível, mas sim, ampliar ao máximo a

consciência da incompletude mútua entre diversas culturas por meio do diálogo.

Em resumo, o conceito de dignidade é apresentado por Kant na

Fundamentação da Metafísica dos Costumes, onde ele afirma que a "dignidade é

reconhecida como o valor de uma maneira de pensar" (JOAQUIN, 1999, p. 8, grifo

do autor), isto é, segundo o filósofo, “coloca-se acima dos valores de mercado ou

sentimento por constituir-se um valor absoluto” (JOAQUIN, 1999, p. 8). Esse sentido

de valor absoluto é atribuído, por um lado, a tudo aquilo que não admite ser

substituído por qualquer coisa equivalente.

Segundo Kant (apud JOAQUIN, 1999, p. 8, grifo do autor), infinitamente

acima do sentido de valor de mercadoria, o sentido de valor absoluto representa "o

que está acima de todo preço e, por conseguinte, o que não admite equivalente,

(isto é) o que tem uma dignidade". Colocado acima do sentido de valor de

sentimento, o valor absoluto representa "o que constitui a só condição capaz de

fazer que alguma coisa seja um fim em si" (JOAQUIN, 1999, p. 9, grifo do autor).

Para Kant (apud JOAQUIN, 1999), se alguma coisa não é exclusivamente meio para

obtenção de outra coisa, então esta coisa é também um fim em si mesmo. Ora, diz

Kant (JOAQUIN, 1999, p. 9, grifo do autor), o que tem "um fim em si mesmo não tem

apenas valor relativo, isto é preço, mas sim um valor intrínseco, (ou seja) uma

dignidade". Nestas afirmações de Kant, averiguamos a supremacia do valor

absoluto, porquanto, distingue ele preço e dignidade. Preço, é um valor relativo,

enquanto o sentido do valor resulta da maneira de pensar na utilidade ou na

agradabilidade que determinadas coisas tem para todos nós. Dignidade é um valor

158

intrínsico, e seu sentido resulta da maneira de pensarmos em determinadas coisas

que possuem valor absoluto.

Cabe perguntar, portanto, em que condição a vontade de uma pessoa pode

dispor de uma outra pessoa? Ou seja, em que condições uma pessoa deverá ser

sempre respeitada como um fim em si?

Certamente, que para respondermos a esta questão - aliás, necessário ao fim

deste trabalho -, é preciso averiguarmos o conceito kantiano de “vontade boa” e ou,

de “vontade livre”, pois é na concepção de liberdade da vontade que encontramos o

respeito à dignidade dos seres racionais. Isso, faremos na conclusão.

3.1.2 Dignidade humana – uma reflexão biológica

Infere-se da obra de Capra (2002) que todas as formas de vida – desde as

células mais primitivas até as sociedades humanas, suas empresas, estados

nacionais e até mesmo a economia global – organizam-se segundo os mesmos

princípios básicos: o padrão de redes, com unidades e sistemas interconectados.

Para ele, o planeta, os seres humanos e ecossistemas estão ligados à teia da vida

e, nesse sistema, as redes são auto-geradoras, ou seja, vivas, criam e recriam-se,

substituindo seus componentes.

Capra (2002) afirma que nossa visão fragmentada do mundo, seja

urgentemente abandonada em favor de um novo paradigma baseado na ecologia

profunda e na parceria e que o dinheiro não seja o único sustentáculo das crenças e

valores que regem as organizações humanas. A mudança de atitude para uma

economia ecologicamente sustentável e socialmente justa é, na visão de Capra,

fundamental para a própria sobrevivência da humanidade. Embora com a teoria

Darwiniana se possa afirmar que a dignidade humana só é uma característica de

cada ser humano na medida em que é a característica fundamental de toda a

humanidade, a dignidade está na totalidade do humano e cada ser emerge com a

sua própria dignidade dessa totalidade do humano. Daí a importância fundamental

do processo de individualização de cada ser. A capacidade de exprimir uma

representação simbólica de tudo o que vê, conhece ou faz, foi-se estruturando ao

159

longo das várias etapas que trouxeram a humanidade até à etapa biogenética atual.

Há quem diga, com suporte nesta teoria, que poderá também ser na diferença de

dignidade e de respeito existente entre o ser humano e o animal que radica o

conceito de Dignidade Humana. Essa diferença não se fundamenta na afetividade,

uma vez que o ser humano também a partilha com grande parte dos animais e

possivelmente basear-se-á na qualidade específica que ele possui de simbolizar,

capaz de representar e projetar no exterior os conteúdos da sua consciência e usá-

los na criação da cultura humana. Todavia, lendo Capra, parece existir, sim, uma

diferença radical ao nível da manifestação do inconsciente no consciente do ser

humano. Onde é que o inconsciente se enraíza biologicamente? Ou é um construto

cultural e, portanto, exclusivo do ser humano? A capacidade para a simbolização

tem ou não um fundamento biológico? Tem ou não uma explicação neuro-biológica?

Pelo aspecto biológico ligado à teoria da evolução não se encontram suportes que

fundamentem um estatuto especial para o ser humano. Nesse sentido, torna-se

difícil definir o conceito de Dignidade Humana, sobretudo quando, objetivamente, se

refere a um determinado ser humano: quando tem início o ser humano? No

momento da fecundação do óvulo? Durante a gestação, quando se manifestam as

primeiras ondas elétricas no encéfalo do feto ou os primeiros batimentos cardíacos?

No momento do nascimento completo? Quando o indivíduo adquire consciência de

si mesmo? E quando termina a dignidade do ser humano: quando é verificado o

óbito? Quando entra em estado vegetativo persistente? Ou o ser humano deve ser

sempre respeitado na sua dignidade, independentemente da respectiva condição

biológica? Será possível aceitar sem dignidade humana a pessoa que padece de

grave perturbação mental ou deficiência física profunda? E os mais capazes, os

mais inteligentes e mais cultos, serão biologicamente mais dignos? Poderá existir

uma dignidade biológica? Pode-se ser biologicamente indigno ou, pelo contrário, não

há qualquer indignidade na forma como existimos? Pode-se ser mais ou menos

biologicamente digno? Existe um determinismo biológico para a dignidade ou

indignidade?

Vale dizer, como afirma Sarlet (2005), que a dignidade como qualidade

intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e inalienável, constituindo elemento

que qualifica o ser humano como tal de dele não pode ser destacado, de tal sorte

que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma

160

pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. Está, portanto, compreendida como

qualidade integrante e, em princípio, irrenunciável da própria condição humana,

pode (e deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo,

contudo (no sentido ora empregado) ser criada, concedida ou retirada (embora

possa ser violada), já que existe – ou é reconhecida como tal – e, cada ser humano

como algo que lhe é inerente. Portanto, todo e qualquer ser humano é portador à

nascença da sua própria dignidade só pelo fato de ser pessoa. A dignidade humana

é pois, um valor que se baseia nas capacidades originais da pessoa e supera a

estrutura biológica do ser humano.

E, por isso, talvez se possa dizer que a qualidade biológica de uma vida

humana não altera a sua dignidade. O demente, o doente terminal que está

inconsciente ou em estado vegetativo persistente têm a mesma dignidade que outro.

Como alude Sarlet (2005) mesmo o maior dos criminosos é igual em dignidade, no

sentido de ser reconhecido como pessoa – ainda que não se porte de forma

igualmente digna nas suas relações com seus semelhantes, inclusive consigo

mesmo. Neste sentido, todo o biológico humano é assumido pela pessoa e, nessa

medida, toda a violência contra o corpo biológico se pode assumir como violência

contra a pessoa, e toda a instrumentalização do corpo biológico significa

instrumentalização da pessoa. A dignidade humana é sentida e expressa através do

corpo humano como suporte biológico da existência. Nem a pessoa é o seu corpo,

tampouco é proprietária do seu corpo. A pessoa é um sistema psicossomático que

toda a vida humana nos torna cada vez mais presente. Como se disse, a diferença

fundamental entre o ser humano e os animais não radica na afetividade mas sim na

sua capacidade de pensar simbolicamente, de representar e projetar no exterior os

conteúdos da sua consciência e usá-los na criação da cultura humana. Ou seja, na

esfera do cognitivo. A consciência de si mesmo como pessoa e dos outros, também

como pessoas, conseqüente dessa capacidade simbolizadora do ser humano, será

condição sine qua non para a reflexão ética. Por consequência, a natureza biológica

do corpo humano não é mais do que o substrato, suporte ou mediação da pessoa,

que está subjacente em toda a reflexão sobre a dignidade humana. Existe pois uma

dimensão ética na existência humana, isto é, a pessoa existe enquanto pessoa

somente quando é reconhecida por outras pessoas. Há uma ética para a pessoa

que vive no seu corpo. O corpo não é portador de dimensão ética, mas é a pessoa

161

no seu corpo que é portadora desta dimensão. Para o corpo humano isolado, não há

ética.

Sarlet (2005), por sua vez, atribui dimensões ao principio da dignidade

humana, a respeito da dimensão ontológica, mas não, necessariamente biológica.

Explica o autor que:

o reconhecimento da dignidade como valor próprio de cada pessoa não resulta, pelo menos não necessariamente (ou mesmo exclusivamente), em uma biologização da dignidade, no sentido de que esta seria como uma qualidade biológica e inata da natureza humana, geneticamente pré-programada, como por exemplo, a cor dos olhos ou dos cabelos, entre tantos outros, bem como o sustentou Jurgen Habermas. (SARLET, 2005, p. 22).

Resta claro, portanto, a importância de tais entendimentos, principalmente

quando abordaremos o desenvolvimento humano, na medida em que não se pode

admitir a concepção apenas biológica, eis que, reducionista, destoa a nosso ver, da

natureza humana, posto que esta, eminentemente relacional.

3.1.3 Desenvolvimento humano no mercado

Segundo Capra (2002), é possível identificar, neste início de milênio, dois

fenômenos que terão grande impacto no futuro da humanidade: o crescimento do

capitalismo global e a criação de comunidades sustentáveis baseadas na

alfabetização ecológica e na prática do projeto ecológico, compostas de redes

ecológicas de fluxos de energia e matéria. Todavia, esses dois movimentos estariam

em plena rota de colisão, propondo Capra, uma revisão do modelo de globalização

de forma a tornar compatíveis a dignidade humana e o desenvolvimento econômico

sustentável, afirmando que, nas três últimas décadas, surgiu um modo de

organização do capitalismo diferente do que existia no período que vai do término da

Segunda Guerra Mundial até o final dos anos 60, centrado em atividades

econômicas globais, competitividade como inovação e numa economia baseada em

rede financeira, que popularmente conhecemos como globalização, e como o capital

corre em tempo real, temos um cassino operado eletronicamente pelo sistema

financeiro que não segue uma lógica.

162

Para Capra (2002), o capitalismo global em sua forma atual é insustentável e

precisa ser revisto o quanto antes, pois, baseado no princípio de que ganhar

dinheiro deve ter precedência sobre todos os outros valores, criam-se exércitos de

excluídos e gera-se um ambiente econômico social e cultural que não apóia a vida,

mas a degrada, tanto no sentido social quanto no ecológico. Segundo esse autor, o

modo de ver a sociedade já está sendo mudado, com o surgimento de ONGs e

atores políticos da sociedade civil global, a exemplo dos três grandes fóruns em

Porto Alegre, onde foram discutidas políticas sociais alternativas. Outras propostas

já estão sendo formuladas, como os projetos de designer industrial ou ecodesigner

que podem ser aplicadas em pais com base em economia orientada para fluxos: a

energia solar e a tecnologia de separação do hidrogênio a partir da água do mar, o

hipercarro, com chassi de fibra de carbono, etc.

Para isto, a transição ao futuro sustentável é um problema de valores e

liderança política, e a chave da sobrevivência vai depender dessa consciência de

que a vida não assumiu o planeta através do combate, mas de redes de

cooperação.

Mas afinal, o que é desenvolvimento? Qual é o conceito possível a ser

aplicado ao desenvolvimento? Ele é possível, nesta quadra da história da

humanidade? Como ele é concebido em nossa realidade jurídica? Estaria ele

assentado como direito fundamental? Tem ele eficácia, ou não passa de mais uma

regra inaplicável? É possível o Poder Judiciário assegurar o seu cumprimento pelo

Estado, num ambiente de competição capitalista e em franca globalização

financeira? É possível um desenvolvimento humano no mercado? Todas essas

duvidas deverão ser respondidas, a seguir, de modo a nos aproximar da conclusão

da nossa pesquisa, sempre com esse fio tênue a nos ligar às eras passadas, razão

por que nos colocou diante de tão complexa circunstância contemporânea.

- O que é desenvolvimento

Segundo Siedenberg (2004), a par de ser um conceito ambíguo, difuso, o que

se observa no contexto dos projetos de desenvolvimento implementados nas últimas

décadas, os fatores econômicos sobressaem sobre os fatores sociais, ambientais.

163

Anota o autor ainda que “no mundo acadêmico a proliferação de estudos que

apontam e esmiúçam as mais diferentes nuances do desenvolvimento praticamente

inviabilizam uma visão geral do problema” (2004, p. 10), a ponto de Sachs (apud

SIEDENBERG, 2004, p. 10) referir-se ao conceito da seguinte forma:

Entrementes desenvolvimento tornou-se uma palavra amorfa, semelhante a uma ameba. O termo não significa nada, porque seus contornos se esvaem... Quem utiliza este termo não identifica absolutamente nada, mas preserva para si todas as boas intenções deste mundo. Apesar de não ter conteúdo, o termo tem uma função: em nome de um objetivo superior [a utilização do conceito] consagra toda e qualquer proposta ao direito de ser consumada. Desenvolvimento é um termo tão vazio quanto um mero plus.

Conforme Siedemberg (2004, p. 11),

Assim, não é de admirar que Sérgio Boisier, por exemplo, ao se referir aos processos de desenvolvimento local, pergunte de forma lapidar: “de qué estamos hablando?” (BOISIER 2000). Outros optam por adjetivar o conceito (desenvolvimento sustentável, por exemplo), imaginando estar definindo o termo com maior precisão através deste recurso. Já Amartya Sen arrisca vincular o conceito ao processo de expansão das diferentes dimensões de liberdade que as pessoas desfrutam (SEN 2000), inovando na tentativa de definir desenvolvimento, ao propor uma configuração substantivo-substantivo (desenvolvimento como liberdade). Porém, o que se observa é que todas essas abordagens e conjunções não são suficientes para auxiliar na explicitação definitiva do conceito. Desenvolvimento continua sendo um conceito ambíguo, difuso, ou seja, um conceito cujos contornos não estão nitidamente definidos.

Alude Siedenberg (2004) que da Antigüidade até o limiar da Idade Moderna, o

conceito de desenvolvimento esteve circunscrito num forte cunho antropológico e

teológico114, e que, só em meados do Século XVII, a partir de Leibnitz, os conceitos

evolutio e développement passaram a receber um significado de direção e foram

associados a uma espécie de mudanças seqüenciais que ocorrem em estágios pré-

definidos e inevitáveis. Somente a partir dos Séculos XVIII e XIX, no contexto das

filosofias progressista é que o desenvolvimento passou a significar também

“movimento, processo, mudança e libertação”, embora, como assevera Siedemberg

(2004, p. 12).

as doutrinas que embasaram o imperialismo deram ao conceito de desenvolvimento mais um significado: o de transição, na qual as chamadas “sociedades tradicionais” foram sendo “ocidentalizadas” pela imposição

114 “Durante a maior parte deste período, o conceito referia um processo de revelação gradual, semelhante ao broto de uma flor que desabrocha aos poucos, o desenrolar de algo envolto, algo presente, mas ainda encoberto” (SIEDENBERG, 2004, p. 11).

164

inescrupulosa de valores e modelos culturais, econômicos e políticos, com o quais se buscava o progresso e a modernização115.

Não há como negar, realmente, que foi a partir das novas políticas

implementadas pelos Estados Unidos que se instauraram as bases de um novo

paradigma mundial116. Lembra Siedenberg (2004), colhendo as lições de Donovam,

que neste discurso Truman teria se referido à maior parte do mundo como

“subdesenvolvida”, ao anunciar um pacote de ajuda técnica, administrativa,

econômica e militar dos E.U.A., para os países menos desenvolvidos da África, Ásia

e América Latina.

Afora os planos imperialistas dos EUA, salientes após a Segunda Guerra

Mundial, cuja matéria não seja aqui, objeto de estudos, é preciso concordar com

Siedenberg (2004, p. 15) que foi

a partir de meados da década de 70, quando o substantivo desenvolvimento começou a ser associado com maior freqüência com adjetivos como humano, social, eco- e sustentável (BRASSEUL, 1989; SACHS, 1986; BRUNDLAND 1987; COY e KOHLHEPP 1998), reconfigurando mais uma vez o conceito, estabeleceram-se relações até então ignoradas, como por exemplo a relação entre desenvolvimento e meio ambiente, desenvolvimento e a governança global, ou ainda, desenvolvimento e os modelos de médio alcance. Em função disso, o termo voltou a ocupar um lugar de destaque nas políticas públicas, na academia, na mídia e em projetos de diferentes grupos e organizações.

115 “De uma maneira em geral, o “processo de ocidentalização do mundo” (LATOUCHE, 1994), nitidamente perceptível até por volta de 1950, colocou sociedades tradicionais e países menos desenvolvidos que as emergentes economias urbano-industriais diante de um enorme dilema: buscar o ajustamento aos conceitos, parâmetros e modelos ocidentais de desenvolvimento, ou manter-se atrelado às tradições, culturas e costumes milenares, ignorando as idéias ocidentais, a tecnologia e o progresso. Nos últimos 50-60 anos a maior parte dos países acabou se enquadrando com maior ou menor ênfase entre estes dois extremos, representados de um lado por Japão e Turquia, economias que abraçaram a ocidentalização, e de outro lado, por Albânia, Iêmen e Tibet, países que se fecharam completamente em si mesmos ou mesmo desapareceram (CAIDEN; CARAVANTES, 1985)” (SIDENBERG, 2004, p. 12-13). 116 “Para além dos diferentes significados e ênfases do conceito no decorrer da história, o desenvolvimento da humanidade pode ser constatado de forma incontestável nos inúmeros e enormes avanços sociais, econômicos, políticos e técnicos que diferenciam as sociedades primitivas das sociedades pós-modernas, e que continuam ocorrendo com velocidade e abrangência cada vez maior. Porém, é necessário reconhecer que o conceito de desenvolvimento, considerado aqui, sobretudo, em sua dimensão sócio-econômica ocidental capitalista, tem ‘data de nascimento’: há certo consenso entre pesquisadores e cientistas sociais de que o discurso de posse de Harry Spencer Truman, ao assumir seu segundo mandato como presidente dos Estados Unidos da América, proferido no dia 20 de janeiro de 1949, instaurou as bases de um novo paradigma mundial” (SIEDENBERG, 2004, p. 11-12).

165

Durante as cinco décadas (1950-2000), o “mundo moderno” ingressou

gradativamente na ‘pós-modernidade’ da globalização ou da incerteza,

reconfigurando, novamente um conjunto de crenças ou paradigmas consolidados em

diversas áreas, como sintetiza o quadro abaixo:

Estratégia básica Período Principais elementos Ênfa se Modernização Década de

50 Industrialização (substituição das importações e fomento das exportações), revolução verde, pólos setoriais e regionais

Setorial, econômica, orientada para o crescimento

Dissociação Década de 60

Desenvolvimento do mercado interno, self reliance

Política

Equacionamento das necessidades básicas

Década de70

Orientação para a miséria e grupos marginalizados específicos, inclusão e participação

Regional e social

Ajuste Estrutural Década de 80

Desregulamentação, flexibilização, desestatização, equacionamento da dívida, balanço de pagamentos e controle da inflação interna

Econômica

Desenvolvimento sustentável

Década de 90

Desenvolvimento socioeconômico participativo e preservação do meio ambiente e recursos naturais

Regional, ambiental e socioeconômica

Governança Global Fim dos anos 90

Novas formas da regulação global, Conferência Mundiais, Agenda 21

Global, política e ambiental

Modelos de médio alcance

Primórdios do Século XXI

Regiões emergentes, clusters, arranjos produtivos, pacto sócio-territorial, aprendizagem

Setorial, sócio-territo-rial

Quadro 2: Principais estratégias de desenvolvimento implementadas após 1950

Fonte: SIEDENBERG, 2004.

Outro fato que ainda precisa ser destacado é que essa transição ou mutação

constante de um paradigma a outro evidencia as enormes dificuldades dos países

em efetivamente viabilizar ou concretizar o almejado desenvolvimento. Por outro

viés, enquanto o alerta para a gravidade ambiental do planeta tinha chegado “a

quase ao ponto, de não retorno se fosse uma empresa estaria à beira da falência,

pois dilapida seu capital, que são os recursos naturais, como se eles fossem

eternos” (MILARÉ, 2004, p. 48). O poder de auto purificação do meio-ambiente está

chegando ao limite. O Brasil, em pleno regime militar autoritário, liderou um grupo de

países que pregavam tese oposta, - a do “crescimento a qualquer custo” (MILARÉ,

166

2004, p. 48). Fundava-se tal perspectiva equivocada, na idéia de que as nações

subdesenvolvidas e em desenvolvimento, por enfrentarem problemas socioeconô-

micos de grande gravidade, não deveriam desviar recursos para proteger o meio

ambiente. A poluição e a degradação do meio ambiente eram vistas como um mal

menor (MILARÉ, 2004).

Embora a teologia de mercado, que faz hoje a cabeça de muitos economistas,

tenha avançado ao longo do tempo com a mesma velocidade da globalização

econômica, devemos reconhecer, como já afirmara Siedenberg (2004) que foi em

1972, em Estocolmo, na “Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente

Humano” promovida pela ONU, a qual participaram 114 países, que se

internacionalizou a preocupação com a degradação ambiental causada pela

industrialização e seu modelo de crescimento econômico com progressiva escassez

de recursos naturais. Foi a partir do Relatório Brundtland, que se verifica a

interligação entre economia, tecnologia, sociedade e política e chama também

atenção para uma nova postura ética, caracterizada pela responsabilidade tanto

entre as gerações quanto entre membros contemporâneos da sociedade atual, no

qual, com o advento da RIO-92, o conceito de “desenvolvimento sustentável” teve

uma conotação extremamente positiva: “Desenvolvimento sustentável é

desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem arriscar que futuras

gerações não possam satisfazer as necessidades delas.” (VEIGA, 2005, p. 196).

No entanto, após dezenas de obras e autores sobre “desenvolvimento

sustentável”, é Veiga (2005) quem melhor analisa o que significa “o substantivo

desenvolvimento e o adjetivo sustentável”, desafiando-nos a uma “nova utopia,” em

seu livro “Desenvolvimento Sustentável – o desafio do século XXI”. Segundo Veiga

(2005, p. 17), existem três tipos básicos de resposta à indagação “o que é

desenvolvimento?” A mais freqüente é tratar o desenvolvimento como sinônimo de

crescimento econômico. Este amálgama das duas idéias também simplifica bastante

a necessidade de se encontrar uma maneira de medir o desenvolvimento, pois basta

considerar a evolução de indicadores bem tradicionais, como por exemplo, o

Produto Interno Bruto per capita. A segunda resposta fácil é de afirmar que o

desenvolvimento não passa de reles ilusão, crença, mito, ou manipulação

ideológica. Importa dizer, nas palavras de Veiga (2005, p.18), que:

167

é muito importante assinalar que essas duas correntes – a do crescimento e a da ilusão – preferem a expressão “desenvolvimento econômico” em vez de fórmula sintética, e mais correta, “desenvolvimento”, pois, no fundo, pensam que são simples sinônimos.

Afirma, no entanto, Veiga (2005, p. 18), que:

muito mais complexo é o desafio enfrentado por pensadores menos conformistas, que consiste em recusar essas duas saídas mais triviais e tentar explicar que o desenvolvimento nada tem de quimérico e nem pode ser amesquinhado como crescimento econômico.

Esse “caminho do meio” é o mais desafiador, pois é bem mais difícil de ser

trilhado (VEIGA, 2005). Um dos autores que mais se dedicaram ao assunto ao longo

das últimas décadas, desde o início da controvérsia internacional sobre a distinção

entre desenvolvimento e crescimento, um dos que melhor conseguiram evitar

simultaneamente as tentações enganosas do otimismo ingênuo e do pessimismo

estéril é Ignacy Sachs. Salienta Veiga (2005) que em trabalhos recentes, Sachs

critica essas duas correntes extremas, antes de expor sua própria visão.

A renúncia à idéia de desenvolvimento deve-se ao fato de ter funcionado como armadilha ideológica inventada para perpetuar as assimétricas relações entre as minorias dominantes e as maiorias dominadas, nos países e entre países. Essa corrente se propõe a passar a um estágio de pós-desenvolvimento, sem explicar o seu concreto conteúdo operacional.Eles estão certos, é claro, em desafiar a possibilidade de crescimento indefinido do produto material, tendo em vista a finitude do planeta. Esta verdade óbvia, porém não oferece sugestões sobre o que deveria ser feito nas próximas décadas para superar os dois principais problemas herdados do século XX, apesar de seus progressos científicos e técnicos sem precedentes: desemprego em massa e desigualdades crescentes (SACHS apud VEIGA, 2005, p. 79).

Já os fundamentalistas do mercado, nas palavras de Veiga (2005),

implicitamente consideram o desenvolvimento como algo redundante. O

desenvolvimento viria como decorrência natural do crescimento econômico graças

ao efeito cascata (tricke-dowm-effect). “Não há necessidade de uma teoria do

desenvolvimento. Basta aplicar economia moderna, disciplina ahistórica e

universalmente válida” (VEIGA, 2005, p. 80). Afirma Veiga (2005, p. 80-81),

que, ao contrário dos fundamentalistas e dos pós-modernistas, Ignacy Schs está cada vez mais convicto de que o desenvolvimento pode permitir que cada indivíduo revele suas capacidades, seus talentos e sua imaginação na busca da auto-realização e da felicidade, mediante esforços coletivos e

168

individuais, combinação de trabalho autônomo e de tempo gasto em atividades não econômicas.

No entanto, é de Celso Furtado (apud VEIGA, 2005, p. 81-82), a melhor

fórmula sintética para dizer o que é desenvolvimento:

o crescimento econômico, tal qual conhecemos, vem se fundando na preservação dos privilégios das elites que satisfazem seu afã de modernização; já o desenvolvimento se caracteriza pelo seu projeto social subjacente. Dispor de recurso para investir está longe de ser condição suficiente para preparar um melhor futuro para a massa da população. Mas, quando o projeto social prioriza a efetiva melhoria das condições de vida dessa população, o crescimento se metamorfoseia em desenvolvimento.

3.1.3.1 O que é desenvolvimento humano

Amartya Sen e Mahbud (apud VEIGA, 2005, p. 85), ambos imbuídos de

procurar uma medida simples como o PIB, porém não tão cega em relação aos

aspectos da vida humana, entendiam que:

só há desenvolvimento quando os benefícios do crescimento servem à ampliação das capacidades humanas, entendidas como o conjunto das coisas que as pessoas podem ser, ou fazer, na vida. E são quatro as mais elementares: ter uma vida longa e saudável, ser instruído, ter acesso aos recursos necessários a um nível de vida digno e ser capaz de participar da vida da comunidade.

Assim, conseguem chegar com certo consenso no IDH. O Programa das

Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) admite que o Índice de

Desenvolvimento Humano (IDH) é o ponto de partida, pois pode ser completado por

meio da análise de dados e de outros indicadores que lhes são subjacentes (VEIGA,

2005). De qualquer forma, importante assinalar que o IDH permite ilustrar com

clareza a diferença entre rendimento e bem-estar, posto que “a exemplo da Bolívia,

com um PIB per capita muito inferior o da Guatemala, atingiu um IDH mais alto,

porque fez mais para traduzir esse rendimento em desenvolvimento” (VEIGA, 2005,

p. 88, grifo do autor).

Assevera ainda Veiga (2005, p. 88) que a “A Tanzânia, um dos países mais

pobres do mundo, tem um IDH comparável ao da Guiné, um país quase quatro

vezes mais rico”. Entre outros exemplos, coloca em xeque a medida única do PIB

169

renda per capita, para medir o desenvolvimento, na medida em que embora se

tenha a ídéia de que o Estado de maior riqueza é São Paulo, não é ele o mais

“desenvolvido”, senão vejamos:

Apesar de ser o estado mais rico do Brasil, São Paulo não é o mais desenvolvido. A divulgação do índice de Desenvolvimento Municipal de 2000 (IDH-M) revelou que é tão forte a superioridade dos catarinenses e dos gaúchos nas duas outras dimensões relevantes – longevidade e escolaridade – que eles superam os paulistas no torneio de desenvolvimento promovido pelo PNUD. Por isso, dar atenção às diferenças de desempenho entre esses três estados pode ser muito elucidativo, particularmente para quem ainda acredita que crescimento e desenvolvimento sejam sempre sincrônicos. (VEIGA, 2005, p. 88-89).

Mesmo com o PIB renda per capita, IDH, IDH-M, e as complexidades de

medir na plenitude o verdadeiro desenvolvimento, criaram-se novos “indicadores”

chamados de “terceira geração”, como o Índice Paulista de Responsabilidade Social

(IPRS), que classifica entre outras coisas, os municípios em grupo qualitativamente

distintos, em vez da precariedade de “ranqueá-los” pela média aritmética, como se o

processo de desenvolvimento fosse um turfe e o Gaúcho IDESE. Outrossim, criado

pelo Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPP), da Unicamp, veio a lume

como de quarta geração, o “DNA Brasil”, que embora seja chamado de índice, na

verdade, usa 24 indicadores referentes a sete dimensões: bem-estar econômico,

competitividade econômica, condições socioambientais, educação, saúde, proteção

social básica e coesão (VEIGA, 2005).

Por fim, coincidentemente, quando o DNA-Brasil era lançado em Campos do

Jordão, foi lançado um outro índice de quarta geração, na cidade do Rio de Janeiro,

por Roberto Cavalcanti de Albuquerque, diretor técnico do Instituto Nacional de Altos

Estudos (INAE), o chamado Índice de Desenvolvimento Social - IDS - que tem cinco

componentes e pesos iguais: a) saúde, com indicadores de expectativa de vida ao

nascer e taxa de sobrevivência infantil (o complemento para 1 da taxa de

mortalidade infantil); b) educação, com taxa de alfabetização e indicadores da

escolaridade média, medida por anos de estudo; c) trabalho, com taxas de atividade

e de ocupação; d) rendimentos, com PÍB per capita e coeficiente de Gini); e)

habitação, com disponibilidade domiciliar de água, energia elétrica, geladeira e

televisão (VEIGA, 2005).

170

Quanto ao adjetivo “sustentabilidade”, Sachs (1993) considera que a

abordagem fundamentada na harmonização de objetivos sociais, ambientais e

econômicos, primeiro chamada de ecodesenvolvimento, e depois de

desenvolvimento sustentável, não se alterou substancialmente nos vinte anos que

separaram as conferências de Estocolmo e do Rio. E acredita que permanece válida

na recomendação de objetivos específicos para oito das suas dimensões: social,

cultural, ecológica, ambiental, territorial, econômica, política nacional e política

internacional.

Quanto ao que se refere às dimensões ecológicas e ambientais, anota Veiga

(2005, p. 171), referindo Sachs,

que os objetivos de sustentabilidade foram um verdadeiro tripé: 1) preservação do potencial da natureza para a produção de recursos renováveis; 2) limitação do uso de recursos não renováveis; 3) respeito e realce para a capacidade de autodepuração dos ecossistemas naturais.

A sustentabilidade ambiental é baseada no duplo imperativo ético de

solidariedade sincrônica com a geração atual e de solidariedade diacrônica com as

gerações futuras. A dificuldade pois, a exemplo do desenvolvimento, é conseguir um

índice para medir a sustentabilidade, que se torne tão útil quanto tem sido o IDH,

apesar de todas as suas limitações. É certo que sem um bom termômetro de

“sustentabilidade”, o mais provável é que todo mundo continue a usar apenas

índices de desenvolvimento (quando não de crescimento), deixando de lado a

dimensão ambiental (VEIGA, 2005). Lembremo-nos do dilema de Mahbud ul Haq e

Amartya Sen quando discutiam a criação de um índice de desenvolvimento que não

fosse “cifra cega” como era o PIB per capita até chegar no IDH.

Como assevera Veiga (2005, p. 174):

Se o próprio desenvolvimento “tout court” já não pode ser representado por um único número, o que dizer, então, sobre o desenvolvimento sustentável? Como já foi dito, tanto quanto um piloto precisa estar permanentemente monitorando os diversos indicadores que compõem seu painel, qualquer observador do desenvolvimento sustentável será necessariamente obrigado a consultar dezenas de estatísticas, sem que seja possível amalgamá-las em um único índice. Muitos desses argumentos nessa direção podem ser encontrados em Sachs (1991) e Ryten (2000).

171

Contudo, foi apresentado em 2002, no Fórum Econômico Mundial, por um

grupo de trabalho formado por pesquisadores das duas Universidades americanas,

Yale e Columbia, o ESI-2002, que, a par de ser possível calcular para 142 países,

considera 68 variáveis referentes a 20 indicadores essenciais. Esse índice considera

cinco dimensões: sistemas ambientais, estresses, vulnerabilidade humana,

capacidade social e institucional e responsabilidade global.

Anota Veiga (2005), que diante do ESI 2002, a dimensão sócio-ambiental do

Índice DNA-Brasil, chega a parecer irrisória. Apenas três indicadores fazem parte

dessa dimensão:

a) instalações adequadas de esgotamento sanitário;

b) destino adequado do lixo urbano;

c) tratamento do esgoto sanitário.

Por fim, Veiga (2005) expõe evidências, procurando mostrar a necessidade

de se colocar o qualificativo “sustentável”, em face do crescente esgotamento de um

dos principais valores dos tempos modernos, e não uma mera insuficiência da noção

de desenvolvimento. Apesar de todo este desgaste conceitual, à luz do que propõe

Capra, o que melhor propõe mudanças no comportamento coletivo, à luz do

desenvolvimento humanizado e atual, ficaremos com a estudada por Siedenberg

(2004), a qual, numa abordagem epistêmico-sistemática, parece lhe dar um sentido

mais claro, como se pode observar na figura a seguir:

172

Figura 1: Desenvolvimento epistêmico-sistematico

Fonte: SIEDENBERG, 2004, p. 19.

Regras Coisas Espécies

Apropriação &

Incorporação

Assimilação &

Adaptação

Escolha &

Mudança

mais do mesmo

melhor que antes

PROCESSOS DE MUDANÇA

TAMANHO (quantidade)

CARACTERÍSTICAS (qualidade)

O conceito de desenvolvimento num contexto epistêmico-sistemático

Variação Alteração

Indivíduo População Indivíduo População

CRESCIMENTO DESENVOLVIMENTO EVOLUÇÃO

Reprodução Transformação Substituição

ACUMULAÇÃO EXPANSÃO TRANSIÇÃO CONTINUAÇÃO

Repetição Desdobramento Inovação

AMPLIAÇÃO CAPACITAÇÃO MODERNIZAÇÃO PROGRESSO MUTAÇÃO

AUMENTO MELHORAMENTO

173

Conforme se vê, Segundo Siedenberg (2004, p. 17), numa visão mais natural,

os termos desenvolvimento, crescimento e evolução são integrantes de uma família

de conceitos onde cada um deles explicita processos de mudança perfeitamente

distintos entre si, onde tais diferenciações dizem respeito:

a) às características da mudança, que pode ser de ordem quantitativa (número, tamanho, abrangência) ou de ordem qualitativa (tipo, composição, estado); b) aos seres ou objetos submetidos a estas mudanças, que dizem respeito tanto a indivíduos quanto a populações ou coletividades; c) às formas de como estas mudanças se processam, que ocorrem exclusivamente mediante determinadas combinações objetos/aspectos.

Conforme se vê, excluindo os processos de deterioração, diminuição,

redução, decadência ou regressão, pode-se distinguir nitidamente os processos de

crescimento, desenvolvimento e evolução.

Ao analisarmos a ramificação quantitativa dos processos de mudança, vamos

constatar que tanto indivíduos quanto populações estão sujeitas ao crescimento,

embora os mecanismos pelos quais se dá esse processo sejam de natureza

diferenciada: indivíduos crescem pela apropriação de matéria de seu meio formando

células, tecidos e órgãos, enquanto que populações crescem pela incorporação de

indivíduos, compondo grupos ou coletividades maiores. Portanto, para que haja

crescimento (dimensão quantitativa), é absolutamente necessário que os

mecanismos individuais de apropriação e coletivos de incorporação sejam acionados

(SIEDEMBERG, 2004).

O que importa da proposição desse autor, é que desenvolvimento é a

mudança natural da capacidade individual no decorrer de sua biografia, como

conseqüência da aplicação de mecanismos de assimilação e adaptação de

habilidades pré-existentes, uma espécie de upgrade de habilidades, que aparecem

frente a situações adversas em cada fase, vividas por cada indivíduo ao longo do

seu tempo. Neste sentido, o desenvolvimento significa o desdobramento de

habilidades já existentes, que capacitam o indivíduo a atuar com uma variedade de

requisitos de forma sustentável num contexto que para ele é obscuro, difuso,

inconstante ou adverso.

174

Cabe destacar também uma diferença entre o desenvolvimento somático

(relativo ao corpo) e o desenvolvimento cognitivo (relativo ao conhecimento).

Enquanto o ramo somático do desenvolvimento individual conduz a um conjunto

normativo típico da espécie em relação à estrutura corporal, antes que se instale um

processo de envelhecimento, o ramo cognitivo do desenvolvimento individual é

muito mais influenciável por demandas e ingerências contextuais, que não

envelhece, mas que pode se tornar obsoleto (SIEDENBERG, 2004).

Já a evolução, segundo Siedenberg (2004), entendida no contexto de

mudanças qualitativas que envolvem populações ou coletividades, se baseia

fundamentalmente em mecanismos de “escolha e mudança”, ou seja, na

substituição de elementos precursores por elementos sucessores no decorrer de

gerações. Trata-se de um processo contínuo, onde inovações não ocorrem

exclusivamente no decorrer de biografias individuais, mas marcam as mudanças nas

características próprias de populações, onde a faculdade ou capacidade de uma

nova geração diverge das faculdades e capacidades observadas em gerações

anteriores. Nas populações bióticas este processo leva, no decorrer do tempo, à

mutação das espécies, sobretudo quando tais mudanças, melhorias ou qualificações

são incorporadas pelas novas gerações.

Lembrando do Humanista Pico de La Mirandola (apud JOAQUIN, 1999, p. 3,

grifo do autor) em seu texto - “não te dei nem rosto nem um lugar que te seja

próprio, [...] não te fiz nem celeste nem terrestre” -, com o desígnio de a tarefa mais

humana ser a de fazer-se eticamente o rosto, isto no final do Século XIV. Chegamos

na virada do Século XX para XXI, com Capra (2002), a partir de uma visão sistêmica

e unificada, poderemos acreditar que se pode mudar a forma de ver e vivenciar o

mundo, pois, como a atual forma de globalização econômica foi projetada

conscientemente pelo humano, pode, por essa mesma razão, ser reprojetada.

Por estas razões, adotamos as proposições de Siedenberg (2004, p. 21),

posto que ao

considerar as inovações ou mudanças qualitativas de coletividades que ocorrem nas dimensões extra-somáticas, observa-se o surgimento de novas regras (processos, instâncias) ou de novas coisas (ferramentas,

175

equipamentos). Assim, no surgimento de novas regras e coisas transparece o princípio de que inovações são introduzidas como decorrência do envelhecimento e desgaste de modelos existentes, em cujos substitutos se manifestam as mudanças na forma de modernização organizacional ou progresso técnico, respectivamente. Além disso, devemos considerar que o desenvolvimento e a evolução se diferenciam também nos seguintes aspectos: a) enquanto a mutação das espécies, o progresso técnico e a modernização organizacional podem ser considerados como ‘respostas’ do meio às ‘perguntas’ (ou demandas) de uma população, a capacitação individual deve ser considerada como uma ‘resposta’ do indivíduo às ‘perguntas’ (ou desafios) do meio; b) enquanto a mutação, o progresso e a modernização (enquanto processos coletivos) muitas vezes sacrificam temporariamente sua própria robustez para fazer frente a um amplo espectro de adversidades, a capacitação (enquanto processo individual) normalmente torna o indivíduo mais forte quando tem sucesso na adversidade e c) enquanto o desenvolvimento individual segue um esquema típico da espécie e tem resultados perfeitamente previsíveis, na maior parte dos processos evolutivos não é possível identificar com grande precisão esquemas e processos de mudança pré-concebidos.

Folladori (2001), embora dentro dessa concepção biológica, sente-se mais

próximo da corrente “fenogenética”, que sustenta que o fenótipo adapta (dentro de

suas limitações genéticas) o meio a suas necessidades e, com isso, afeta o destino

da sua evolução. Afirma o autor, que os seres humanos, como organismos

biológicos e sociedades equipadas com determinadas bagagens culturais, possuem

um comportamento e um instrumental para transformar o meio-ambiente de forma

qualitativamente diferente daquela usada pelo restante dos seres vivos. Nesse

sentido, as peculiaridades humanas provocaram transformações qualitativas nas

relações sociais, que passaram a governar não somente, como seria natural, as

relações entre homens, mas também as relações com outras espécies e com todo o

mundo abiótico.

A capacidade da fala é um resultado biológico da evolução, enquanto ler e

escrever seriam produto da cultura. Mesmo assim, essas coisas não podem ser

separadas. As crianças não nascem nem caminhando nem falando, mas

desenvolvem essas capacidades se crescerem em um meio adequado. Mas ao

fazê-lo, desenvolvem modificações, adaptam seu organismo a tais efeitos. Não há

prática cultural alguma que não tenha repercussões físicas no próprio organismo.

Para caminhar basta o contexto, para falar também, mas para andar de bicicleta, ou

para ler ou escrever, fazem falta bicicleta, livros, folhas de papel, lápis,

computadores. Com a fabricação de instrumentos começaram a existir os meios de

produção, que podem ser passados de geração para geração, incrementando as

176

relações sociais entre os congêneres. A luta pela sobrevivência deixou de ter como

resultado a sobrevivência do mais apto, como acontece com os outros seres vivos.

Os sobreviventes passaram a ser os que conseguiram a posse dos melhores meios

de produção (FOLLADORI, 2001).

No entanto, com Foladori (2001), conclui-se que a principal revolução que

ocorreu como resultado do surgimento do gênero Homo foi não tanto o fato técnico

de haver possibilitado uma transformação formal da natureza mais profunda e

ampla, mas o fato social de o ser humano haver transformado a si mesmo, gerando

relações entre congêneres que condicionam todo o comportamento posterior com o

meio ambiente. As relações do ser humano com seu entorno podem ser

desagregadas em três níveis: com o mundo abiótico, com os outros seres vivos e

com seus congêneres. As relações com o mundo abiótico e com os outros seres

vivos são relações técnicas. As relações entre congêneres são relações sociais.

Folladori (2001) compartilha da opinião de que um dos pólos, o das relações

sociais, é o atrativo que governa, ainda que de maneira intrincada e nem sempre

visível, as relações técnicas, ainda que consideremos que as próprias relações

técnicas têm um grau de independência (e, portanto, de responsabilidade) que

requer maior atenção. A revolução mais importante operada com o surgimento do

gênero Homo não foi a fabricação de instrumentos, mas a conseqüência que isso

trouxe para as relações entre congêneres. A regulação das relações entre

congêneres se realizou cada vez mais com base na distribuição de coisas materiais

e cada vez menos a partir de leis biológicas. Não existe relação técnica alguma que

não esteja marcada pelo tipo particular de relações sociais de produção. As

diferenças dependem do tipo de propriedade dos meios de produção e não

aparecem de maneira visível. O grau de desenvolvimento técnico é um indicador de

um nível de divisão social do trabalho que tende a se reproduzir. O trabalho se

cristaliza em coisas externas ao próprio ser. Essa objetivação ou exteriorização

coloca a possibilidade de que as coisas produzidas se coloquem ante o ser humano

como um poder independente. À medida que isso ocorre, o ser humano aparece

alienado em face das forças que ele mesmo liberou. Nesse entendimento, a “divisão

social do trabalho”, a “propriedade privada”, o “intercâmbio de mercadorias” são as

categorias-chave da alienação. A medida que se incrementou a produtividade do

177

trabalho humano, criaram-se as bases para uma divisão social do trabalho mais

profunda e, com ela, a possibilidade de que certos grupos ou classes sociais se

apropriassem, de forma eventual a princípio, mas regular definitivamente, do

trabalho de outras classes.

Para Folladori (2001), o avanço tecnológico no capitalismo tem sido uma

moeda de duas faces: uma, mostra um aumento de produtividade do trabalho, da

eficiência no uso dos materiais e energia. A outra face mostra o aumento de

desemprego e da população alijada do acesso aos recursos naturais e aos bens

produzidos. Dessa maneira, a sociedade humana estabelece regras de

comportamento com o entorno derivadas de e subordinadas às regras que

estabelece em seu interior, entre classes e grupos sociais. Portanto, para responder

à crise ambiental, há que se entender, primeiro, quais são as contradições das

relações sociais de produção que a provocaram. Ao insistir nos limites físicos,

desvia-se a atenção do problema central, já que a crise ambiental, ainda que possa

ser visível ou explicite um desajuste entre o ser humano e a natureza, é

“essencialmente uma crise das relações sociais entre os seres humanos.” O

Capitalismo tem no mercado o instrumento pelo qual se estabelece tal organização

econômica. A hipótese sustentada por Foladori (2001) é que as leis econômicas que

regulam a produção capitalista não são alheias à relação do ser humano com seu

ambiente, mas a condicionam. Sustenta que não é possível entender os problemas

de depredação e poluição sem prestar atenção às tendências econômicas.

Voltando à questão do desenvolvimento na visão de Siedenberg (2004), este,

por sua vez, alude que, em diversos sentidos, se observa uma correlação entre os

processos de crescimento, desenvolvimento e evolução, mas a diferenciação

estabelecida no mundo biótico comprova que atribuir a ocorrência destas mudanças

a um mecanismo único, simplificado, é uma conclusão precipitada. A observação

destas diferenciações é de crucial importância não apenas quando se objetiva

descrever processos de mudança, mas, sobretudo, quando se pretende influenciar

processos de mudança, seja no mundo biótico, seja no contexto social. Com base

no exposto acima, podemos concluir que, no contexto social, a discussão e a

formulação de estratégias ou políticas de crescimento, desenvolvimento ou evolução

tem como pressuposto básico a definição precisa daquilo que se entende em cada

178

caso. Enquanto não ocorrer esta explicitação conceitual, toda e qualquer ação pode

ser apresentada como uma contribuição ao desenvolvimento sócio-econômico sem

correr o risco de ser refutada e independente de sua real contribuição para a

melhoria das condições de vida de indivíduos ou populações. Não é difícil imaginar,

que neste cenário de indefinições e imprecisões, ocorram absurdos, utopias e ações

totalmente inócuas, mesmo que, muitas vezes, se pareçam com processos de

desenvolvimento, crescimento ou evolução.

Siedenberg (2004) conclui que o desenvolvimento sócio-econômico, um termo

que muitas vezes também é utilizado como sinônimo de crescimento e de evolução,

ou também como um processo de mudanças subentendido automaticamente em

suas mais diversas concepções e conotações, só ocorre quando os mecanismos de

apropriação e incorporação, de assimilação e adaptação, de escolha e mudança

estão presentes e são acionados. Mas, como é possível constatar se realmente

ocorreu um processo de desenvolvimento sócio-econômico, entendido aqui como

melhoria quantitativa e qualitativa das condições de vida de indivíduos e

sociedades? Ora, é evidente que qualquer política ou estratégia de desenvolvimento

social e econômica precisa definir de antemão três aspectos fundamentais: as

características, a dimensão e o prazo em que estas mudanças pretendidas deverão

se realizar. A avaliação de políticas de desenvolvimento e a avaliação do

desempenho dos responsáveis por sua implementação, passa, indubitavelmente,

pela observação destes parâmetros. Além disso, podemos extrair do exposto até

aqui que os processos de desenvolvimento social e econômico que se referem

exclusivamente às mudanças quantitativas estão fadados ao esgotamento, em

função da dimensão finita de recursos naturais existentes em nosso planeta. Apesar

de todos os avanços genéticos e técnicos que a humanidade tem experimentado, a

característica deste ramo do processo de mudanças é a insustentabilidade.

Já aos processos de mudança social e econômica que preconizam aspectos

qualitativos estão garantidos enormes campos de ação; é absolutamente necessário

buscar avanços neste sentido. Por fim, é necessário considerar que, se por um lado

o desenvolvimento social e econômico de determinadas sociedades ou regiões pode

ser creditado a uma série de estratégias, políticas e mecanismos implementados

com sucesso; por outro lado, o desenvolvimento sócio-econômico também é, em

179

boa parte, decorrência de uma série de coincidências favoráveis que ocorrem de

forma aleatória, desordenada e abundante num determinado espaço físico e

intervalo temporal, como comprovam inúmeros exemplos da dimensão biótica e

abiótica. Por analogia poderíamos pressupor que tanto o crescimento de uns, quanto

o de outros, isto é, de indivíduos e coletividades, só é concebível quando os

respectivos mecanismos são acionados, isto é, não há crescimento sem que

estejam presentes e atuantes as condições de apropriação ou incorporação. Da

mesma forma, a assimilação e a adaptação são fatores essenciais ao

desenvolvimento de indivíduos ou organizações, assim como a escolha e a

mudança são de importância capital para que haja evolução de populações ou

coletividades.

3.2 Elementos jurídicos e a eficácia do princípio d a dignidade humana no

mercado

Delmas-Marty (2003) afirma que o direito à vida, por mais precioso que seja,

não é suficiente, pois é o direito à igual dignidade de cada ser que consagra a

humanidade do homem, sacralizando a humanidade em cada um de nós e contribui

para o movimento de hominação. Alude que o inumano não é civil nem político nem

econômico nem social nem cultural, mas pode revelar alternada ou

simultaneamente, cada um das cinco determinantes.

Afirma ainda essa autora que a timidez dos estados nesses campos não é

suficiente para justificar o injustificável, como o escândalo permanente da fome no

mundo, pudicamente denominada de “má nutrição” (DELMAS-MARTY, 2003).

Já, a luz dos escólios colhidos no Desenvolvimento como liberdade, de Sen

(1999) conduz à reflexão que o desenvolvimento requer que se removam as

principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de

oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços

públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos. Assevera

Sen (1999, p. 18) que:

180

a despeito de aumentos sem precedentes na opulência global, o mundo atual nega liberdades elementares a um grande numero de pessoas – talvez até mesmo a maioria. Às vezes a ausência de liberdades substantivas relaciona-se diretamente com a pobreza econômica, que rouba das pessoas a liberdade de saciar a fome, de obter uma nutrição satisfatória ou remédios para doenças tratáveis, a oportunidade de vestir-se ou morar de modo apropriado, de ter acesso a água tratada ou saneamento básico. Em outros casos, a privação de liberdade vincula-se estreitamente à carência de serviços públicos e assistência social, como por exemplo a ausência de programas epidemiológicos, de um sistema bem planejado de assistência médica e educação ou de instituições eficazes para a manutenção da paz e da ordem locais. Em outros casos, a violação da liberdade resulta diretamente de uma negação de liberdades políticas e civis por regimes autoritários e de restrições impostas à liberdade de participar da vida social, política e econômica da comunidade.

Para Sen (1999, p. 20), a liberdade é central para o processo de

desenvolvimento humano e sua eficácia, mormente em função de que, para esse

autor, “a capacidade do mecanismo de mercado de contribuir para o elevado

crescimento econômico e o progresso econômico global tem sido ampla e

acertadamente reconhecida na literatura contemporânea sobre desenvolvimento”.

Seria um erro ver o mecanismo de mercado apenas como um derivativo, afinal,

“como observou Adam Smith, a liberdade de troca e transação é ela própria uma

parte essencial das liberdades básicas que as pessoas têm razão para valorizar”.

(SEN, 1999, p. 21).

Todavia, é o próprio Sen (1999, p. 262) quem nos traz as três preocupações

que os críticos tendem a apresentar com respeito ao edifício intelectual dos direitos

humanos.

Primeiro, o receio de que os direitos humanos confundam conseqüências de sistemas legais, que conferem às pessoas, direitos bem definidos, com princípios pré-legais que não podem realmente dar a uma pessoa um direito juridicamente exigível. Essa é a questão da legitimidade das reivindicações de direitos humanos: como os direitos humanos podem ter qualquer status real exceto por meio de pretensões117 que sejam sancionadas pelo Estado, como suprema autoridade legal? Nessa concepção, os seres humanos nascem na natureza sem direitos humanos tanto quanto nascem sem roupa; os direitos teriam de ser adquiridos por meio da legislação, como as roupas são adquiridas de alguém que as faz. As roupas não existem antes de serem feitas, do mesmo modo como não existem direitos pré-legislação.

117 O termo “pretensões” está sendo usado neste contexto como tradução para entitlements, significando “direitos supostos e reivindicados”; ver nota da p. 53, capitulo 2, onde entitlement, empregado por Sem em outra acepção, foi traduzido por “intitulamento” (N. T). (SEN, 1999, p. 262).

181

De fato, o ceticismo de Sen tem razão de ser, porquanto, se direitos são

pretensões que requerem deveres correlatos118. Não sendo reconhecido esse dever,

afirma Sem, os direitos alegados, segundo esse ponto de vista, só podem ser

vazios. Assevera Sen (1999, p. 262):

Julga-se que isso representa um problema formidável para que os direitos humanos cheguem a ser considerados direitos. Pode ser muito bonito, diz esse argumento, afirmar que todo ser humano tem direito a alimento ou a serviços médicos, mas, se não houver sido caracterizado nenhum dever especifico de um agente, esses direitos não podem realmente “significar” grande coisa. [...] Dessa perspectiva, essas pretensões seriam mais adequadamente vistas não tanto como direitos, e sim como nós na garganta.

Com efeito, segundo as leituras de Sen, a linha do ceticismo não assume

exatamente uma forma legal e institucional, embora veja os direitos humanos como

pertencentes ao domínio da ética social e dependem de cada cultura anotando que,

para justificar sua denominação, os direitos humanos requerem universalidade.

Todavia, a partir da cultura asiática, não existem esses valores universais, segundo

seus críticos.

3.2.1 Direitos legais reais e direitos legais poten ciais e sua garantia de fruição

A luz das lições de Sen (1999, p. 263), denominado de “Crítica da

Legitimidade”, sobre questões éticas baseadas no direito, ela tem uma longa

história, existindo semelhanças e diferenças interessantes: por um lado, a afirmação

categórica de Karl Max, de que os direitos não podem realmente preceder a

instituição do Estado (em vez de o suceder). Por outro lado, afirma Sen (1999, p.

263) temos as razões que Jeremy Bentham apresentou para designar os “direitos

naturais” por “absurdo” e o conceito de “direitos naturais e imprescritíveis” por

“absurdo em pernas de paus”. Em função dessas duas linhas críticas, anota esse

autor que, em comum, encontra-se a insistência em que os direitos sejam vistos em

termos pós-institucionais como instrumentos em vez de como uma pretensão ética

prévia. E isso colide fundamentalmente com a idéia básica dos direitos humanos

universais.

118 Diz Sen (1999, p. 262) que: “Se a pessoa A tem direito a certo X, deve existir algum agente, digamos, B, que tenha o dever de fornecer x a A”.

182

Por força disso, embora avisando que “não se pode afirmar que as

pretensões morais pré-legais, se vistas como aspirantes a entidades legais, que

conferem direitos juridicamente exigíveis em tribunais ou outras instituições de

imposição de leis” (SEN, 1999, p. 263), não se pode rejeitar os direitos humanos

com esse argumento, sob pena de não ter compreendido a questão, pois a

reivindicação de legalidade é apenas isso, uma reivindicação, justificada pela

importância ética de reconhecer que certos direitos constituem pretensões próprias

de todos os seres humanos.

Nesse sentido, os direitos humanos podem representar pretensões, poderes e

imunidade (e outras formas de garantias associadas ao conceito de direitos)

sustentados por juízos éticos que atribuem importância intrínseca a essas garantias.

De fato, os direitos humanos também podem ultrapassar a esfera dos direitos legais

potenciais, em oposição aos direitos legais reais (SEN, 1999, p. 264)119.

Segundo Sen (1999, p. 264),

é melhor conceber os direitos humanos como um conjunto de pretensões éticas, as quais não devem ser identificadas com direitos legais legislados. Mas essa interpretação normativa não precisa anular a utilidade da idéia de direitos humanos no tipo de contexto no qual eles são comumente invocados. As liberdades que são associadas a direitos específicos pode ser o ponto de enfoque apropriado para debate. Temos de julgar a plausibilidade dos direitos humanos como um sistema de raciocínio ético e como a base de reivindicações políticas.

Contudo, fica a indagação, no concernente à questão da efetividade desses

direitos, e sua eficácia constitucional de aplicabilidade. Sen (1999, p. 264),

abordando essa indagação, - é possível ser coerente ao falar em direitos sem

especificar de quem é o dever de garantir a fruição dos direitos? Ou: como podemos

ter certeza de que os direitos são realizáveis se eles não forem relacionados a

deveres correspondentes? – alude que “existe uma abordagem muito influente

119 “Pode-se invocar efetivamente um direito humano em contexto nos quais até mesmo sua imposição legal pareceria muito imprópria. O direito moral de uma esposa participar plenamente, como igual, das decisões familiares importantes – independentemente do quanto seu marido seja machista – pode ser reconhecido por muitos que, não obstante, não desejam que essa exigência seja legalizada e imposta pela polícia. O “direito ao respeito” é outro exemplo no qual a legalização e a tentativa de imposição seriam problemáticas, e até mesmo desconcertantes” (SEN, 1999, p. 264).

183

segundo a qual os direitos só podem ser formulados sensatamente em combinação

com deveres correlatos”.

Assim, para evitar que esses direitos e suas respectivas reivindicações não

passem de simples “conversa mole”, Sen (1999, p. 265) alude que, na verdade, “há

quem não veja sentido nenhum em um direito se este não for associado ao que

Immnauel Kant denominou uma ‘obrigação perfeita’, um dever específico de um

agente especifico de realizar esse direito”. No entanto, mesmo anotando o

argumento principal de Sen (1999) em favor das chamadas liberdades básicas e das

formulações associadas ao direito, as quais baseiam-se em: sua importância

intrínseca; seu papel consequencial de fornecer incentivos políticos para a

segurança econômica; e, seu papel construtivo na gênese de valores e

prioridades120, no contexto contemporâneo, é preciso ressaltar que tais direitos

humanos, nele certamente incluído o princípio da dignidade humana, deve ser

possível a sua aplicação e até mesmo, sua exigência como direito constitucional.

Nessas circunstâncias, haveremos de buscar o entendimento, a partir da idéia de

princípio, e não apenas de liberdade e o direito como derivativo dela, nas lições de

Sem (1999).

3.2.2 O direito e a moral a partir de Kant

Segundo Diniz (1995), no universo kantiano, há separação de caráter

meramente formal entre moral e direito, já que essencialmente idênticos os seus

fundamentos, pois se resumem na autonomia racional. Eis, a respeito, a lição de

Diniz (1995, p. 39-40):

Na teoria kantiana, processa-se a separação entre direito e moral, sob o prisma formal e não material, isto é, a distinção depende do motivo pelo qual se cumpre a norma jurídica ou moral. No ato moral, o ato só pode ser a própria idéia do dever, mesmo que seja diretamente dever jurídico e só indiretamente dever moral. Porém, no mesmo ato jurídico, o motivo de agir pode ser, além do motivo moral de cumprir o dever, o da aversão à sanção, seja ela pena corporal ou pecuniária. Kant identifica o direito com o poder de constranger. Para o jusnaturalismo de Kant, sendo racional e livre, o homem é capaz de impor a si mesmo normas de conduta, designadas por normas éticas, válidas para todos os seres racionais que, por sua

120 O argumento vale tanto para a Ásia como para qualquer outro lugar, e descartar essa asserção alegando uma natureza especial dos valores asiáticos não sobrevive a um exame crítico atento (SEN, 1999).

184

racionalidade, são fins em si e não meios a serviço de outros. Logo, a norma básica de conduta moral que o homem se pode prescrever é que em tudo o que faz deve sempre tratar a si mesmo e a seus semelhantes como fim e nunca como meio. Aplicada à conveniência jurídico-social, essa norma moral básica transmuda-se em norma de direito natural. A obediência do homem à sua própria vontade livre e autônoma constitui, para Kant, a essência da moral e do direito natural. As normas jurídicas, para tal concepção, serão de direito natural, se sua obrigatoriedade for cognoscível pela razão pura, independente de lei externa ou de direito positivo, se dependerem, para obrigarem, de lei externa. Mas, nesta hipótese, deve-se pressupor uma lei natural, de ordem ética, que justifique a autoridade do legislador, ou seja, o seu direito de obrigar outrem por simples decisão de sua vontade. Tal lei natural, que é o princípio de todo direito, deriva da liberdade humana, reconhecida por intermédio do imperativo moral categórico.

Embora a partir da premissa de que na "Fundamentação da metafísica dos

costumes" Kant visou à formulação de raciocínios no campo da filosofia moral, para

compreender como os seres humanos formulam seu arcabouço axiológico - ainda

que não dotado de coerção -, na "doutrina do direito", ele procurou demonstrar como

e por que devem ser formulados preceitos jurídicos, estes sim dotados de coerção

para viabilizar a convivência social. A distinção, ainda que tênue – como se verá

adiante –, entre as dimensões moral e jurídica na obra de Kant, vem bem delineada

nas palavras de Berger (2001, p. 48):

[...] Kant, negando o fundamento metafísico de todas as morais transcendentes, tira a regra moral da vontade autônoma dos homens. Assim, segundo ele, a moral procede apenas da ‘voz interior’ de cada qual e não de um mandamento exterior, enquanto o direito é uma regra de vida traçada e aplicada sob a coerção social. Do mesmo modo, para Kant, o direito se interessaria apenas pelas ações, pelo ‘foro exterior’, e não pelos móbeis que as inspiram, ao passo que a moral só se concentraria nas intenções e nos motivos do homem, em seu ‘foro interior’ e não em suas ações.

Embora idênticos os pilares do universo moral e do universo jurídico para

Kant, em matéria de dignidade da pessoa humana, nem sempre se mostram

afinadas a "Fundamentação da metafísica dos costumes" e a "Doutrina do direito".

Serve sua análise à revisão das bases teóricas do princípio da dignidade da pessoa

humana, tendo por premissa o sempre oportuno reconhecimento da primazia do ser

humano para o universo jurídico, como leciona Reale (1989, p. 168):

Partimos dessa idéia, a nosso ver básica, de que a pessoa humana é o valor-fonte de todos os valores. O homem, como ser natural biopsíquico, é apenas um indivíduo entre outros indivíduos, um animal entre os demais da mesma espécie. O homem, considerando na sua objetividade espiritual, enquanto ser que só se realiza no sentido de seu dever ser, é o que chamamos de pessoa. Só o homem possui a dignidade originária de ser

185

enquanto deve ser, pondo-se como razão determinante do processo histórico. A idéia de valor, para nós, encontra na pessoa humana, na subjetividade entendida em sua essencial intersubjetividade, a sua origem primeira, como valor-fonte de todo o mundo das estimativas, ou mundo histórico-cultural. Quando Kant dizia – "Sê uma pessoa e respeita os demais como pessoas" – dando ao mandamento a força de um imperativo categórico, de máxima fundamental de sua Ética, estava reconhecendo na pessoa o valor por excelência.

Embora Kant, em matéria de direito, tenha quase sempre se referido ao ser

humano na condição de titular de direitos patrimoniais (direitos reais e pessoais) e

em suas relações familiares e com seus empregados, relativamente ao que hoje se

poderia chamar de uma teoria geral dos direitos da personalidade, Kant se limitou a

tratar do direito à liberdade. Para efeito de transposição da idéia de liberdade,

impregnada de sua filosofia moral, Kant (1993, p. 46) acabou enunciando como

princípio universal do direito, que “é justa toda a ação que por si, ou por sua

máxima, não constitui um obstáculo à conformidade da liberdade do arbítrio de todos

com a liberdade de cada um segundo leis universais”. Kant (1993, p. 47) buscou,

portanto, conciliar, no plano jurídico, a liberdade de cada um com a liberdade de

todos, ao afirmar que:

o direito estrito, pode também ser representado como a possibilidade de uma obrigação mútua, universal, conforme com a liberdade de todos segundo leis gerais. Esta proposição equivale a dizer que o direito não deve ser considerado como constituído de duas partes, a saber: a obrigação segundo uma lei e a faculdade que possui o que, por um arbítrio, obriga a outro obrigar-se ao cumprimento dessa obrigação; exceto que se pode imediatamente fazer consistir a noção do direito na possibilidade de conformar a obrigação geral recíproca com a liberdade de todos.

No que tange a existência de um direito natural ou inato, Kant (1993, p. 67)

reconheceu apenas o consistente na liberdade121, enquanto ao que ele chamava de

“Direito Privado” - indelével - da entender que revelava posicionamento incompatível

com a idéia de dignidade humana que se verifica atualmente, na medida em que

admitia que seres humanos podiam ser objeto de dominação, quando assim se

manifesta:

121 “A liberdade (independência do arbítrio de outrem), na medida em que possa subsistir com a liberdade de todos, segundo uma lei universal, é esse direito único, primitivo, próprio de cada homem, pelo simples fato de ser homem. A igualdade natural, isto é, a impossibilidade moral de ser obrigado pelos demais a mais coisas do que aquelas a que estão obrigados com respeito a nós; [...]” (KANT, 1993, p. 55).

186

Assim, posso chamar de meus uma mulher, uma criança, um criado, e em geral qualquer outra pessoa, sobre quem exerço mando, não porque formam parte de minha casa, ou porque se encontrem sob minhas ordens, sob meu poder e em minha posse, mas também mesmo quando tivessem iludido meu poder, minha força, e por conseguinte já não os possuísse (fisicamente), posso dizer, contudo, que os possuo por minha simples vontade, enquanto e onde quer que existam. Neste caso estou de posse simplesmente jurídica; forma parte de meu haver somente enquanto e à medida que posso afirmar deles essa circunstância.

Interessante manifestação de Kant (1993, 106-107) é quanto ao direito

doméstico, em particular do casamento, que chega a admitir expressamente que

homem e mulher podem ser tidos como coisas, em certa situação, senão vejamos:

Porque o uso natural que um sexo faz dos órgãos sexuais do outros é um gozo (fruitio) para o qual uma das partes se põe à disposição da outra. Neste ato, o próprio homem se converte em coisa, o que repugna ao direito de humanidade em sua própria pessoa. Isto somente é possível sob a condição de que quando uma das duas pessoas é adquirida pela outra, como pudesse sê-lo uma coisa, a aquisição seja recíproca; porque encontra nisto sua vantagem própria e restabelece assim sua personalidade. Mas a aquisição de um certo membro no homem equivale à aquisição de toda a pessoa – porque a pessoa forma uma unidade absoluta. De onde se conclui que a cessão e a aceitação de um sexo para uso de outro, são não somente permitidas, sob condição de matrimônio, como também não são possíveis senão sob essa única condição. Este direito pessoal é também real; porque se um dos esposos se afasta, ou se põe à disposição de uma pessoa estranha, o outro tem sempre o direito incontestável de fazê-lo retornar ao seu poder, como uma coisa.

Quanto aos direitos do amo (patrão) sobre os seus criados, Kant (1993, p.

113) refere que uma das partes - o criado - abre mão, por meio de contrato, de sua

liberdade e, por conseqüência, até mesmo de sua pessoa -, para submeter-se à

dominação da outra (patrão), quando afirma que “[...] o servidor somente está

submetido ao seu poder por um contrato e um contrato no qual uma das partes

renunciara a sua liberdade inteira em proveito alheio, cessando, por conseguinte, de

ser uma pessoa [...]”. Importante salientar, ainda, que o filósofo alemão acentuou em

seus estudos o caráter real (ainda que em parte) dos contratos que regem tais

relações, mesmo que tendo por objeto a prestação de serviços por parte de um ser

humano, como se esta pudesse ser tratada como coisa e, portanto, suscetível, por

exemplo, de reivindicação: “há um direito pessoal-real (o do amo sobre os criados),

visto que estes podem ser reduzidos ao poder daquele e reivindicados como sua

coisa exterior contra todo possuidor.””( KANT, 1993, p. 114).

187

Se assim fosse, poderíamos dizer que há uma nítida distância, senão uma

incompatibilidade entre a enunciação teórica da dignidade da pessoa humana em

Kant e a sua aplicação no campo do direito, ao menos no que diz dos direitos

domésticos, porquanto, ao cuidar da matéria jurídica desses direitos, Kant, embora

tenha assinalado a premissa da liberdade, afirmou também que o ser humano pode

ser tratado como coisa, tal como ocorre com aqueles que estão sob a dominação do

poder do dono da casa ou do chefe de família, quais sejam as esposas, filhos e os

criados, e o fez reconhecendo nessa relação a de direito real.

3.2.3 O princípio da dignidade, o desenvolvimento h umano e sua concretização

na atualidade sob a ordem jurídica e o estado de di reito

Para ultrapassarmos a noção de mera liberdade racional, primeiro, gize-se

que deveremos aceitar e entender, que o princípio da dignidade humana encontra

raízes profundas no pensamento de Kant. Todavia, deveremos compreender que,

nos dias atuais, esse princípio deve ter como premissa que o ser humano, como fim

de tudo, é um ente real, cujas necessidades mínimas concretas não podem estar

sujeitas aos modelos abstratos tradicionais. Nesse aspecto, importante trazer a

lume, as lições de Miranda (1993, p. 169), a princípio, vez que,

em primeiro lugar, a dignidade da pessoa é da pessoa concreta, na sua vida real e quotidiana; não é de um ser ideal e abstracto. É o homem ou a mulher, tal como existe, que a ordem jurídica considera irredutível e insubstituível e cujos direitos fundamentais a Constituição enuncia e protege. Em todo o homem e em toda a mulher estão presentes todas as faculdades da humanidade.

Por outro lado, e não menos importante, sem prejuízo das lições de Amartya

Sen, no tocante à questão legal, é abordar e caracterizar o fenômeno Estado de

Direito em seu sentido jurídico-institucional, tão bem elucidado por Bedin (2006b, p.

226), “já que a afirmação do Estado de Direito pressupõe uma clara distinção entre

direito e poder e uma subordinação do poder ao direito”.

Segundo Bedin (2006b, p. 227), a primeira dimensão essencial do Estado de

Direito é que ele é um Estado subordinado ao “Império do Direito”, o que significa,

concretamente, três coisas: a) o Estado está sujeito ao Direito, em especial a uma

188

Constituição122; b) o Estado atua por intermédio do Direito; c) o Estado está sujeito a

uma idéia de justiça. Por força disso, leciona que o Estado está sujeito ao Direito,

significando que o poder político não é um poder livre, desvinculado, transcendente

a toda e qualquer legislação, mas ao contrário: quer dizer que o Direito conforma o

poder, o organiza e o sujeita a um conjunto de regras e princípios. “Em outras

palavras, quer dizer que o Direito curva o poder, colocando-o sob o Império do

Direito123” (BEDINb, 2006, p. 227).

Para tanto, esse autor, ao defender que o Estado está sujeito a uma idéia de

justiça - significa que o Estado de Direito está subordinado a pressupostos

axiológicos reconhecidos por uma Constituição - e traz à lume dez dimensões

essenciais, senão vejamos:

a) - o aspecto da legalidade das normas jurídicas (aspecto formal) deve

estar sempre referido ao aspecto legitimidade (aspecto material, de justiça) no

processo de produção legislativa124;

b) - que o Estado de Direito é um Estado de direitos fundamentais125;

c) - que o Estado de Direito é um Estado que observa o princípio da

razoabilidade, ou seja, é um Estado de justa medida porque se estrutura em torno

do princípio chamado normalmente de princípio da proibição do excesso126;

d) - que o Estado de Direito é um Estado que estabelece o principio da

legalidade da administração pública em todas as suas esferas, isto é, um Estado

que estabelece a idéia de subordinação à lei dos titulares dos órgãos, funcionários e

agentes do Estado; 122 “Por isso é possível definir a Constituição como sendo o estatuto jurídico do político e o Direito Constitucional como um direito do político, para o político e sobre o político” (BEDIN, 2006b, p. 227). 123 Ver Bedin (2006b, p. 227): “Assegurar que o Estado atua ou age por intermédio do Direito significa afirmar que o exercício do poder só se pode efetivar por meio de instrumento jurídicos institucionalizados pela ordem jurídica em vigor”. 124 “Sem essa dimensão de legitimidade, as normas não se constituem Direito em sentido técnico específico, configurando muito mais o uso da força (simbólica ou material) dos grupos detentores do poder do que propriamente a materialização da consciência jurídica de uma sociedade num determinado momento histórico, em sua manifestação mais plena de normatividade jurídica” (BEDIN, 2006b, p. 228). 125 “Isto é, um Estado que reconhece e, como regra, constitucionaliza um conjunto de direitos, que se constituem um dos princípios estruturantes, de sua conformação institucional” (BEDIN, 2006b, p. 228). 126 “Este princípio tem o objetivo de acentuar a importância das garantias individuais e de proteger os direitos adquiridos contra medidas excessivamente agressivas, restritivas e coativas dos poderes públicos nas esfera-jurídico-pessoal e jurídico-patrimonial dos indivíduos” (BEDIN, 2006b, p. 228-229).

189

e) - que o Estado de Direito é um Estado que responde por seus atos, ou

seja, é um Estado civilmente responsável pelos danos que provoca e que atingem a

esfera jurídica dos particulares;

f) - que o Estado de Direito é um Estado que garante a via Judiciária, ou

seja, o acesso ao poder judiciário no caso de ameaça ou de lesão de direitos do

cidadão127;

g) - que o Estado de Direito é um Estado de segurança e de confiança

das pessoas, isto é, um Estado de certeza da aplicação da lei, de clareza e

racionalidade do trabalho legislativo e de transparência no exercício do poder;

h) - que o Estado de Direito é um Estado estruturado a partir da divisão de

poderes, isto é, do fracionamento do poder do Estado e da independência de seus

três poderes - Legislativo, Executivo e Judiciário;

i) - que o Estado de Direito é um Estado de liberdade e de igualdade, ou

seja, é um Estado que, por um lado, respeita e incentiva os processos de autonomia

dos cidadãos, seja em sua esfera privada ou na esfera pública, e, por outro lado, é

um Estado que pressupõe um status legal e material razoavelmente isonômico, de

igualdade dos pontos de partida128;

j) - que o Estado de Direito é um Estado democrático e republicano, ou

seja, alicerçado na soberania popular e na defesa e no cuidado com o bem público,

com a coisa pública.

Em suma, Bedin (2006b, p. 230, grifo do autor) conceitua Estado de Direito

como sendo,

um Estado subordinado ao Direito, que defende os direitos fundamentais e a segurança de seus cidadãos e que tem por base o princípio da razoabilidade, da responsabilidade por seus atos e do respeito da via judicial. Além disso, estrutura-se a partir da divisão dos poderes, e da descentralização de suas atividades, sendo a sua administração orientada pelo princípio da legalidade e voltada à supremacia dos princípios da liberdade e da igualdade, sem nunca afastar o fundamento popular do poder e a defesa do bem público.

127 “Esse princípio é complementado, entre outros pressupostos, pela garantia de um juízo regular e independente, pela observância do princípio do contraditório e da ampla defesa, pela institucionalização do direito de escolher um defensor e pelo reconhecimento do direito do cidadão ter a assistência obrigatória de um advogado quando processado pelo próprio Estado” (BEDIN, 2006b, p. 229). 128 “Em conseqüência, é também um Estado social” (BEDIN, 2006b, p. 230).

190

Já havíamos referido, em trabalho de autoria nossa e de Fabrício Weiblen, no

qual foram citados autores contemporâneos, “que no decorrer da história, há uma

alteração contínua no conteúdo dos direitos humanos, onde novos anseios são

transformados em direitos para acolher necessidades que se tornaram mais

intensas” (AMARAL apud SILVA; WEIBLEN, 2007, p. 43). Esse movimento,

chamado de “gerações” de direitos, consiste em verdadeiras dimensões dos direitos,

como preleciona Bonavides (1997), uma vez que a mudança não se dá apenas com

o nascimento de outras formas de amparo, mas também com a releitura dos direitos

e garantias já antes adotados. Tais direitos não se superam, mas sim coexistem.

A primeira “geração” consiste nos direitos de liberdade, surgidos como uma

proteção ao poder do Monarca, até então absoluto. Posteriormente, observou-se

que a proteção voltada contra o Estado não mais era suficiente, tendo em vista que

havia abuso e exploração também no âmbito privado. Dessa forma, foram

reconhecidos os chamados direitos de segunda “geração”, ou direitos sociais,

aqueles voltados contra a opressão do homem em face do próprio homem. Assim,

enquanto os direitos de liberdade exigem, para sua efetividade, uma abstenção do

Estado, os direitos sociais, por outro lado, carecem da ação estatal. Bobbio (1992, p.

72) traz lição esclarecedora sobre tais distinções:

É supérfluo acrescentar que o reconhecimento dos direitos sociais suscita, além do problema da proliferação dos direitos do homem, problemas bem mais difíceis de resolver no que concerne àquela prática de que falei no início: é que a proteção destes últimos requer uma intervenção ativa do estado, que não é requerida pela proteção dos direitos de liberdade, produzindo aquela organização dos serviços públicos de onde nasceu até mesmo uma nova forma de Estado, o Estado Social. Enquanto os direitos de liberdade nascem contra o superpoder do Estado - e, portanto, com o objetivo de limitar o poder -, os direitos sociais exigem, para sua realização prática, ou seja, para a passagem da declaração puramente verbal à sua proteção efetiva, precisamente o contrário, isto é, a ampliação dos poderes do Estado.

Nesse quadro, os direitos de liberdade são freqüentemente tratados como

direitos negativos, uma vez que, teoricamente, não necessitam da atuação estatal,

enquanto os direitos sociais são chamados também de direitos positivos, visto que

exigem uma prestação por parte do Estado. Na lição de Bonavides (1997), tem-se a

separação entre direitos de liberdade, que sendo negativos, têm sede constitucional

191

e direitos sociais, que seriam positivos e dependeriam de meios materiais e, assim,

de mediação legislativa e orçamentária.

Afirmamos na ocasião que:

embora reconhecidos os direitos sociais, a real problemática reside no atinente à eficácia de tais direitos positivos. Nesse diapasão, podem-se considerar três correntes doutrinárias divergentes: aqueles que têm os direitos sociais como equivalentes aos direitos individuais, aqueles que negam eficácia aos direitos sociais, uma vez que a carga positiva depende de mediação do legislador e de meios materiais, e uma terceira, que vê os direitos sociais sujeitos à reserva do possível, visto que a concretização exige emprego de meios financeiros. Os direitos sociais são previstos na Constituição pelas chamadas normas programáticas. Tais normas consistem em disposições que indicam os fins sociais a serem alcançados pelo Estado, tendo em vista a concretização e o cumprimento dos objetivos basilares previstos na Constituição. Em verdade, são normas vagas, com baixa efetividade social e jurídica, não gerando, em sentido estrito, direitos subjetivos públicos para a população. (SILVA; WEIBLEIN, 2007, p. 45).

Krell (2002, p. 20), abordando o tema, afirma que:

que as normas programáticas sobre direitos sociais que hoje encontramos na grande maioria dos textos constitucionais dos países europeus e latino-americanos definem metas e finalidades, as quais o legislador ordinário deve elevar a um nível adequado de concretização. Essas “normas-programa” prescrevem a realização, por parte do Estado, de determinados fins e tarefas. Elas não representam meras recomendações ou preceitos morais com eficácia ético-política meramente diretiva, mas constituem Direito diretamente aplicável.

Com efeito, cabe indagar se um direito ainda pode ser chamado de “direito”

quando o seu reconhecimento e sua real proteção são adiados por tempo

indeterminado, além de confiados à vontade de sujeitos cujo comprometimento em

executar um “programa” é apenas uma obrigação moral ou, no máximo, política

(BOBBIO, 1992, p. 78). A previsão de instrumentos de efetivação foi deixada em

segundo plano, na medida em que o legislador apenas tratou de positivar os fins

sociais de forma vaga, como se a presença no texto legal por si só bastasse. De

fato, conforme afirma Keith Rosenn (1998 apud KRELL, 2002), considera-se como

resolvido tudo que é promulgado como lei, sem devidas reflexões a respeito de sua

exeqüibilidade ou eficácia. Pouca atenção é dirigida à apreciação de como as

normas se comportam na prática.

192

Todavia, conforme o artigo 5º, §1º da Constituição de 1988, que determina

que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação

imediata”, não foi feita diferenciação no tratamento dos direitos fundamentais, sejam

eles negativos ou positivos. Portanto, os direitos sociais, a princípio, teriam eficácia

equivalente à das demais garantias fundamentais, e caberia ao operador do direito o

dever de tornar esses direitos efetivos, através de um esforço hermenêutico

inovador. Contudo, consoante Canotilho (apud SILVA; WEIBLEIN, 2007), o

postulado da aplicabilidade imediata dos direitos sociais prestacionais, não pode

resolver-se de acordo com a dimensão de tudo ou nada, razão pela qual o seu

alcance dependerá do exame da hipótese em concreto, isto é, da norma de direito

fundamental em pauta. A aplicabilidade imediata dos direitos positivos pode ser

analisada apenas como uma presunção, de maneira que eventual recusa de sua

aplicação deverá ser necessariamente justificada.

Segundo Sarlet (2000, p.157),

a inviabilidade de uma eficácia ‘absoluta’ e a necessidade de se adotarem soluções diferenciadas decorre, em verdade também (e principalmente) da estrutura normativa e da natureza eminentemente principiológica das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais.

Porém, segundo o referido autor, a problemática reside menos no grau de

completude da norma do que no aspecto da alegada ausência de legitimação dos

tribunais para a determinação do objeto e do quantum da prestação, na medida em

que a decisão sobre a aplicação de recursos públicos incumbiria precipuamente ao

legislador, questões que serão abordadas mais adiante (SARLET, 2001).

Além disso, em virtude de que hoje o Estado nacional encontra-se abalado

em suas bases, e o direito positivo do Estado não é mais o sistema jurídico central,

em comparação com o domínio jurídico das companhias transnacionais e a

globalização da sociedade capitalista, que, ao promover a mercantilização das

relações sociais e dos campos jurídicos nacionais, vem abalando a ordem jurídico-

política e as diferentes instituições estatais e civis que a regulam, afetando a própria

face do Estado. Indaga-se: é possível a efetivação desses direitos fundamentais e o

desenvolvimento humano, hodiernamente?

193

3.2.3.1 É possível?

Segundo Klaes (1998, p. 191), “a reestruturação econômica, financeira e

política, que ocorreu com o processo da globalização ensejou a criação de uma

nova realidade jurídica”. Não é somente a prática legal que se redimensiona. O

direito em si mesmo ganha novas proporções no momento em que a desintegração

social, a multiplicação de crimes violentos e a dificuldade que inúmeras pessoas

encontram, especialmente nos países do Terceiro Mundo, em exercer os direitos

que lhes são inerentes, crescem paulatinamente, ao mesmo tempo em que a

flexibilização do processo produtivo enseja a supressão dos direitos sociais e a

democracia e a cidadania resumem-se ao seu aspecto puramente formal, estando

completamente desprovidas de vida e conteúdo no seio da globalização, tornando-

se preciso, então, reconceber estas questões dentro da realidade do mercado, que

hoje prepondera, sobre todas as outras realidades.

Segundo a autora,

A transformação do modo de produção do direito europeu pela internacionalização do modo de produção do direito americano, não é, em última instância, mais do que um reflexo do processo global de internacionalização de mercados, que criou novas realidades administrativas, financeiras e trabalhistas, ensejando a criação de novas estruturas jurídicas, levando ao surgimento de novos atores no campo do direito, a mundialização de um novo modo de produção do direito, a criação de novas figuras jurídicas e modalidades de contratos, e, indiretamente, a partir do momento em que se considera a formação de blocos políticos-econômicos como uma reação ao processo da globalização econômica, ao surgimento de um direito supranacional, um direito intergovernamental e ao redimensionamento do direito comercial. (KLAES, 1998, p. 197-198).

Com flagrante pessimismo, Klaes (1998) afirma que atualmente o direito pode

ser considerado mais como um mecanismo criador de estruturas econômicas e

comerciais do que propriamente um instrumento da Justiça Social. A prática legal é

cada vez mais definida em função do mercado e em razão da instrumentalização de

formas que possibilitam o uso tático das estruturas jurídicas pelas elites econômicas,

que depauperam os regimes democráticos nacionais, convertendo a sociedade em

uma massa por elas controlada legalmente, tornando visível e presente a existência

de um superpoder econômico transnacional por trás das organizações políticas

nacionais.

194

Por sua vez, com mais contundência, Streck (2007), citando J. E Faria, afirma

que o Direito e a dogmática jurídica (que o instrumentaliza), preparado/engendrado

para o enfrentamento dos conflitos interindividuais, não conseguem atender as

especificidades das demandas originadas de uma sociedade complexa e conflituosa.

Alude esse autor, que o paradigma (modelo/modo de produção de Direito) liberal-

individualista-normativista esta esgotado. Revive esse autor Interessante questão,

com apoio em Eros Roberto Grau, entre texto jurídico e norma jurídica e passa a

explicar a teoria da significação, na medida em que se faz necessária a elaboração

de uma critica à hermenêutica jurídica tradicional – ainda (fortemente) assentada no

paradigma objetificante da filosofia da consciência – através dos aportes

aproximativos da semiótica e da hermenêutica filosófica, com ênfase na segunda, o

horizonte do sentido é dado pela compreensão (Heidegger) e ser que pode ser

compreendido é linguagem (Gadamer), onde a linguagem não é simplesmente

objeto, e sim, horizonte aberto e estruturado e a interpretação faz surgir o sentido.

Para Streck (2007, p. 18),

Com Eros Roberto Grau, faço a distinção entre texto (jurídico) e norma (jurídica). Isto porque o texto, preceito ou enunciado normativo alográfico. Não se completa com o sentido que lhe imprime o legislador. Somente estará completo quando o sentido que ele expressa é produzido pelo intérprete, como nova forma de expressão. Assim, o sentido expressado pelo texto já é algo novo, diferente do texto. É a norma. A interpretação do Direito faz conexão entre o aspecto geral do texto normativo e a sua aplicação particular: ou seja, opera sua inserção no mundo da vida. As normas resultam sempre da interpretação. E a ordem jurídica, em seu valor histórico concreto, é um conjunto de interpretações, ou seja, um conjunto de normas. O conjunto das disposições (textos, enunciados) é uma ordem jurídica apenas potencialmente, é um conjunto de possibilidades, um conjunto de normas potenciais. O significado (ou seja, a norma) é o resultado da tarefa interpretativa. Ver, para tanto, La doble desestruturacion y la interpretación del derecho. Barcelona, Editorial M J. Bosch, SL, 1998, p. 67 e sgs. (grifos do autor).

A crítica de Streck (2007) vem justamente em suas palavras de que a

globalização neoliberal-pós-moderna coloca-se justamente como contraponto das

políticas do walfare state129, aparecendo com nova face/roupagem do capitalismo

129 “A lógica geral da competição globalizante é inequivocamente concentradora. Daí não apenas fusões, mas, sobretudo, a exclusão de grandes massas de trabalhadores da possibilidade de inserção apta no mundo econômico, o desemprego e a precarização do trabalho, a desigualdade social crescente mesmo nos países em que o desemprego é comparativamente reduzido, e os indicadores exibem saúde e pujança econômica – em suma, aquilo que alguns têm chamado de “brasilianização” do capitalismo avançado. No caso brasileiro, acresce o fato de que nos inserimos

195

internacional. Nesse contexto, afirma Streck que Arruda Jr. chama a atenção o fato

de que estamos diante de um frenesi teórico e prático representado pelos discursos

apocalípticos antimodernos, em que a globalização neoliberal é vista como sinônimo

de modernização, mas na verdade, o que nos é vendido como prova da

modernidade dá os claros sinais de uma barbárie, a barbárie neoliberal que, a título

de guardar identidade com a filosofia pós-moderna, traz como resultado sinais de

retorno à pré-modernidade, perigo para o qual também alerta André-Noel (apud

STRECK, 2007), ao denunciar que a globalização nos empurra rumo a um modelo

de regulação social neofeudal, através da constatação do debilitamento das

especificidades que diferenciam o Estado moderno do feudalismo: a) a distinção

entre esfera privada e esfera pública; b) a dissociação entre o poderio político e o

econômico; e c) a separação entre as funções administrativas, políticas e a

sociedade civil.

A minimização do Estado em países que passaram pela etapa do Estado

Providência ou welfare state tem conseqüências absolutamente diversas da

minimização do Estado em países como o Brasil, onde não houve o Estado Social

(STRECK, 2007).

Bonavides (apud STRECK, 2007, p. 24), baseado em Kagi, In Die

Verfassungsals Rechtliche Grundoránung de Staats, esclarece que:

sendo o Estado social a expressão política por excelência da sociedade industrial e do mesmo passo a configuração da sobrevivência democrática na crise entre o Estado e a antecedente forma de sociedade (a do liberalismo), observa-se que nas sociedades em desenvolvimento, porfiando ainda por implanta-lo, sua moldura jurídica fica exposta a toda ordem de contestações, pela dificuldade em hamonizá-la com as correntes copiosas de interesses sociais antagônicos, arvorados por grupos e classes, em busca de afirmação e eficácia. Interesses ordinariamente rebeldes, transbordam eles do leito da Constituição, até fazer inevitável o conflito e a tensão entre o estado social e o Estado de Direito, entre a Constituição dos textos e a Constituição da realidade, entre a forma jurídica e o seu conteúdo material. Disso nasce não raro a desintegração da Constituição, com sacrifício das normas a uma dinâmica de relações políticas instáveis e cambiantes.

mais precariamente no jogo, não só porque já somos o Brasil da pesada herança escravagista e do fosso social, mas também, porque nossas fragilidades nos tornam vítimas preferenciais, sempre prontas a surgir como “bola da vez” nas perversidades da dinâmica transnacional” (REIS; IANNI, apud STRECK, 2007, p. 23).

196

Embora reconhecidamente o Estado Democrático de Direito represente a

vontade constitucional de realização do Estado Social, conforme já visto nas

palavras de Bedin e tendo, na mesma Constituição, o modo instrumental de

consegui-los, concordamos com Streck (2007, p. 37), em afirmar que, em sendo

assim, “é porque o contrato social - do qual a Constituição é a explicitação - há uma

confissão de que as promessas da realização da função social do Estado não foram

(ainda) cumpridas”. Portanto, de fato, estamos com um sério problema:

de um lado temos uma sociedade carente de realização de direitos e, de outro, uma Constituição Federal que garante estes direitos da forma mais ampla possível. Este é o contraponto. Daí a necessária indagação: qual é o papel do Direito e da dogmática jurídico neste contexto? Segundo Morais, o Estado Democrático de Direito, teria (tem?) a característica de ultrapassar não só a formulação do Estado Liberal de Direito, como também a do Estado Social de Direito – vinculado ao Welfare State neocapitalista – impondo à ordem jurídica e à atividade estatal um conteúdo utópico de transformação da realidade. O Estado Democrático de Direito, ao lado do núcleo liberal agregado à questão social, tem como questão fundamental a incorporação efetiva da questão da igualdade como um conteúdo próprio a ser buscado garantir através do asseguramento mínimo de condições mínimas de vida ao cidadão e à comunidade. Ou seja, no Estado Democrático de Direito a lei passa a ser, privilegiadamente, um instrumento de ação concreta do Estado, tendo como método assecuratório de sua efetividade a promoção de determinadas ações pretendidas pela ordem jurídica. (STRECK, 2007, p. 37, grifo do autor).

Bedin (2006b, p. 232) assevera que:

o Brasil é um dos campeões mundiais das desigualdades (os 10% mais ricos da população ganham 47 vezes mais do que os 10% mais pobres, conforme Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), daí que é possível perceber que a riqueza produzida no país não tem sido transformada em bem-estar para a maioria dos brasileiros pobres.

Denuncia esse autor que a falta de eficácia da esfera jurídica permite, de um

lado, o surgimento de poderes paralelos, de outro, a falta de efetividade das regras

em vigor, e o pior, esses fatos impedem que o Direito cumpra o seu papel de

mediador de conflitos sociais, ficando, pois, forte sentimento de que o Direito vale

mais para uns do que para outros, chamando isto de desvirtuamento da cidadania.

O dilema brasileiro, diz Streck (2007), é porque não sufragamos a tese

substancialista, porque o judiciário, preparado para lidar com conflitos

interindividuais, próprios de um modelo liberal-individualista, não está preparado

para o enfrentamento dos problemas decorrentes da trans-individualidade, próprio

197

do (novo) modelo advindo do Estado Democrático de Direito previsto na Constituição

promulgada em 1988130. Sustenta esse autor que é possível afirmar que no Estado

Democrático de Direito, há - ou deveria haver - um sensível deslocamento do centro

de decisões do Legislativo e do Executivo para o plano da justiça constitucional.

Para tanto, anota o seguinte:

Pode-se dizer, nesse sentido, que no Estado Liberal, o centro de decisão apontava para o Legislativo (o que não é proibido é permitido, direitos negativos); no Estado Social, a primazia ficava com o Executivo, em face da necessidade de realizar políticas públicas e sustentar a intervenção do Estado na economia; já no Estado Democrático de Direito, o foco de tensão se volta para o Judiciário. Dito de outro modo, se com o advento do Estado Social e o papel fortemente intervencionista do Estado o foco de poder/tensão passou para o Poder Executivo, no Estado Democrático de Direito há uma modificação desse perfil. Inércias do Executivo e falta de atuação do Legislativo passam a poder ser suprida pelo Judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos jurídicos previstos na Constituição que estabeleceu o Estado Democrático de Direito. (STRECK, 2007, p. 54, grifo do autor)

Por força disso, já defendemos que após longo período de ditadura militar, no

qual direitos eram lesados e a sociedade vivia sob a sombra da censura e da tortura,

a Constituição de 1988 surgiu como o marco de uma nova era de democracia,

voltada aos direitos do cidadão, dando atenção especial à consolidação dos direitos

fundamentais, de forma a assegurar garantias básicas à pessoa, proporcionando

uma vida digna à população (SILVA; WEIBLEN, 2007). Incrementou-se, desde

então, a procura pelo judiciário, e os meios econômicos, ditos escassos, passaram a

fazer parte da defesa do Estado, sob o argumento contemporâneo do principio da

reserva do possível, como argumento limitador das prestações estatais, em

detrimento dos direitos sociais consolidados constitucionalmente.

3.2.3.2 O princípio da reserva do possível – um viés à parte

Como já referimos com as leituras de Amartya Sen, mesmo que haja um

mandamento legal inserido no próprio Texto Constitucional, ele somente poderá

obter sua real efetividade na presença das condições fáticas e jurídicas capazes de

130 “Por outro lado, em face da democracia delegativa que vivemos, de cunho hobbesiano (O´Donnell), no interior do qual o legislativo é atropelado pelo decretismo do Poder Executivo, também não temos garantidos o acesso à produção democrática das leis e dos procedimentos que apontam para o exercício dos direitos previstos na Constituição” (STRECK, 2007, p. 54).

198

lhe conferir esta eficácia. Chamados por Sen (1999) de “deveres correlatos”, Kant

(apud SEN, 1999) aludia de “uma obrigação perfeita”.

Em caso contrário, na ausência deste contexto, por mais nobre que fosse o

objetivo da norma, ninguém poderá ser obrigado a cumprir suas diretrizes. Dessa

forma, a escassez de meios econômicos pode limitar a plena satisfação dos direitos

sociais. Assim, a implementação destes direitos se torna dependente da existência

de condições materiais que permitam sua atendibilidade (SILVA; WEIBLEN, 2007).

A teoria do princípio da reserva do possível, originário de decisões proferidas

pela Corte Constitucional Federal da Alemanha, surgiu justamente deste

posicionamento - encontrado na apreciação de um famoso caso (BverfGE apud

KRELL, 2002). No citado caso, verifica-se uma ação judicial proposta, visando obter

uma decisão que permitisse um certo estudante cursar o ensino superior público,

com base na Lei Federal alemã de livre escolha de trabalho, ofício ou profissão,

tendo em vista que não havia disponibilidade de vagas em número suficiente para

todos em freqüentarem as universidades públicas (SARLET, 2001). Neste caso,

ficou estabelecido que só se pode exigir do Estado o atendimento de um interesse, ou a execução de uma prestação em benefício do interessado, desde que observados os limites da razoabilidade, destacando ainda a Suprema Corte Germânica que os intitulados direitos sociais “estão sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade. (KRELL, 2002, p. 52).

Tal entendimento inviabilizaria que fossem requeridas providências do Estado

acima de um patamar logicamente razoável de exigências sociais, razão pela qual

restou afastada a lógica de que o Poder Público estaria obrigado a disponibilizar um

número ilimitado de vagas, para acolher todos os interessados em ingressar nas

universidades públicas. Em outras palavras, o Poder Judiciário, por mais que tenha

como objetivo conferir a devida aplicabilidade às normas inseridas na Carta Magna,

não pode almejar suprir todas as carências sociais mediante a expedição de ordens

judiciais, pois estas não obterão a efetividade pretendida, haja vista que faltam

condições materiais suficientes para a sua concretização. Além disso, a satisfação

de uns implica negar o direito a outros, em face da escassez de recursos.

199

Sobre o tema, Amaral (2001, p. 146-147) adverte que:

Diante de um quadro como esse, a tendência natural é fugir do problema, negá-lo. Esse processo é bastante fácil nos meios judiciais. Basta observar apenas o caso concreto posto nos autos. Tomada individualmente, não há situação para a qual não haja recursos. Não há tratamento que suplante o orçamento da saúde ou, mais ainda, aos orçamentos da União, de cada um dos Estados, do Distrito Federal ou da grande maioria dos municípios. Assim, enfocando apenas o caso individual, vislumbrando apenas o custo de cinco mil reais por mês para um coquetel de remédios, ou de cento e setenta mil reais para um tratamento no exterior, não se vê a escassez de recurso, mormente se adotado o discurso de que o Estado tem recursos nem sempre bem empregados.

Porém, mesmo que os custos de tratamento na saúde tenham se tornado

enormes, para o Estado - quando tomados como um todo - a questão vai além da

simples discussão financeira, há recursos não financeiros, como órgãos, pessoal

especializado e equipamentos, que são escassos em comparação com as

necessidades. Nesse quadro, defendemos que:

os direitos sociais não devem ter tratamento diferenciado de outros direitos fundamentais, mas os recursos para o atendimento das demandas são finitos, surgem os conflitos, nos quais se torna imperioso decidir sobre o emprego de recursos escassos através de escolhas disjuntivas (o atendimento de uns e o não-atendimento de outros). Tal conflito não é, em geral, tratado pela doutrina e mesmo o critério de ponderação se revela insuficiente quando se trata de prestações positivas. (SILVA; WEIBLEIN, 2007, p. 47).

Krell (2002) afirma que o princípio da reserva do possível consiste em uma

falácia, decorrente de um Direito Constitucional comparado equivocado, na medida

em que a situação social brasileira não pode ser comparada àquela dos países

membros da União Européia. Segundo o autor, no que diz respeito ao campo da

saúde, a solução seria satisfazer todos os casos,

se os recursos não são suficientes, deve-se retirá-los de outras áreas (transportes, fomento econômico, serviço da dívida) onde sua aplicação não está tão intimamente ligada aos direitos mais essenciais do homem: sua vida, integridade e saúde. Um relativismo nessa área poderia levar a ponderações perigosas e anti-humanistas do tipo ‘por que gastar dinheiro com doentes incuráveis ou terminais? (KRELL, 2002, p. 53).

Segundo Silva e Weiblen (2007), se não se pode compelir o “Estado Social” a

garantir um padrão “ótimo” de bem-estar social, não significa que a otimização do

bem-estar social não possa ser uma meta a ser alcançada, mesmo quando se

200

esbarra na escassez de recursos, para às exigências mínimas em saúde, educação,

assistência social, segurança, etc. Em outras palavras, o seu cumprimento pode ser

negado por parte do Estado somente temporariamente em virtude de uma

impossibilidade material evidente e comprovável (BARROSO, 1996), todavia, como

defende Espindola e Saldanha (2006) e Streck (2007) é preciso fazer com que a

Constituição se constitua, fazendo funcionar a justiça constitucional. Além disso, e

mais ainda, é preciso analisar sob o enfoque da necessidade, ou essencialidade, da

prestação, a excepcionalidade da situação concreta, uma vez que, por exemplo, um

cataclismo, natural ou social, pode momentaneamente tornar inexigível algo que

pouco antes o era. O grau de essencialidade está ligado ao mínimo existencial, à

dignidade da pessoa humana e, em conseqüência, quanto mais essencial for a

prestação, mais excepcional deverá ser o motivo para que ela não seja acolhida.

Dessa forma, haverá uma ponderação dessas duas variáveis. Se o grau de

essencialidade superar o de excepcionalidade, a prestação deve ser entregue, caso

contrário, como afirma Amaral, “a recusa estatal será legítima” (AMARAL, 2001, p.

214 ).

3.2.3.3 E o papel do judiciário na efetividade do humano

Segundo Streck (2007, p. 296-297, grifo do autor), “no topo do ordenamento,

está a Constituição, Lei Maior que deve ser entendida como algo que constitui a

sociedade, é dizer, a constituição do país e a sua Constituição”. Nesse sentido,

assumindo uma postura substancialista, para o qual o Judiciário (e, portanto, o

Direito) assume especial relevo, esse autor propõe:

[...] o que Garcia Herrera magnificamente conceitua como “resistência constitucional”, entendida como o processo de identificação e detecção do conflito entre princípios constitucionais e a inspiração neoliberal que promove a implantação de novos valores que entram em contradição com aqueles: solidariedade frente ao individualismo, programação frente a competitividade, igualdade substancial frente ao mercado, direção pública gente a procedimento pluralistas131. Esse novo modelo constitucional supera o esquema da igualdade formal rumo à igualdade material, o que significa assumir uma posição de defesa e suporte da Constituição como fundamento do ordenamento jurídico e expressão de uma ordem de convivência assentada em conteúdos materiais de vida e em um projeto de superação da realidade alcançável

131 Consultar HERRERA, Garcia; ANGEL, Miguel. “Poder Judicial Y Estado Social: Legalidad Y Resistência Constitucional”. In: Corrupción Y Estado de Derecho – el papel de la jurisduccion. Perfecto Andrés Ibanes (Editor). Madrid,: Trotta, 1996, p. 83.

201

com a integração das novas necessidades e a resolução dos conflitos alinhados com os princípios e critérios de compensação constitucionais (STRECK, 2007, p. 297, grifo do autor).

Por força disso, e mesmo que a aplicação e destinação de recursos públicos,

inclusive no que tange às prioridades na esfera das políticas públicas, com reflexos

diretos na questão orçamentária, seja reconhecida como tarefa que cabe

precipuamente ao legislador ordinário, razão pela qual há alegações de que se trata

de problema de natureza competencial (SARLET, 2001), é preciso buscar a

efetividade constitucional desses princípios ainda não efetivados.

Mesmo que essa postura – existe uma crítica recorrente à utilização da via

judicial para a efetivação dos direitos prestacionais de que tal meio consistiria em

uma violação ao princípio da Separação de Poderes - visto que a matéria

dependeria de mediação orçamentária e, portanto, estaria dentro dos limites de

competência dos Poderes Executivo e, principalmente, Legislativo, o judiciário,

conforme leciona Streck (2007), tem legitimidade e jurisdição de suprimir tais

lacunas. Tais alegações, segundo Silva e Weiblein (2007) ilustram o freqüente uso

do princípio idealizado por Montesquieu como fundamento que dificulta cada vez

mais as reivindicações sociais. Assim, o referido princípio deve também evoluir e,

através de uma nova leitura necessária, poder continuar servindo ao seu objetivo

inicial de assegurar os Direitos Fundamentais contra o arbítrio estatal.

Citando Canotilho e Krel, lembram Silva e Weiblein (2007, p. 49) que este

“sempre viu a realização dos direitos sociais muito mais na dependência da

participação política da população do que numa atuação significativa dos tribunais”.

Porém, para Krell (2002), esta posição dominante no constitucionalismo alemão não

é transponível para o Brasil sem as devidas alterações. Assim, “na medida em que é

menor o nível de organização e atuação da sociedade civil para participar e

influenciar na formação da vontade política” o que é notório na situação brasileira,

“aumenta a responsabilidade dos integrantes do Poder Judiciário na concretização e

no cumprimento das normas constitucionais, especialmente as que possuem uma

alta carga valorativa e ideológica” (KRELL, 2002, p. 70).

202

Em verdade, o que se encontra no Brasil é uma oposição ao controle judicial

do mérito dos atos do Poder Público, aos quais se reserva um vasto espaço de

atuação autônoma, discricionária, em que as deliberações do órgão ou do agente

público são definitivos quanto à sua conveniência e oportunidade. Nesse quadro,

parece incorreto ignorar a realidade e se negar a possibilidade de soluções mais

práticas para o bem geral em decorrência de um apego excessivo e radical ao

princípio como sugerido em uma realidade passada. Assim, a invocação da teoria da

Separação dos Poderes em tais situações é resultado de uma atitude conservadora

da doutrina constitucional tradicional, a qual necessita da devida atualização de

velhos dogmas, fato que se tornou imperativo em face das condições diferenciadas

do moderno Estado Social (KRELL, 2002).

Para Barroso (1996, p. 155), o “padrão mínimo” no cumprimento das tarefas

estatais poderia, sem maiores problemas, ser ordenado por parte do Judiciário, o

que deixa de acontecer devido apenas a motivos ideológicos e não jurídico-

racionais. No mesmo sentido se manifesta Sarlet (2001), ao demonstrar que, no

caso da negação de prestações de serviços básicos por parte do estado, não

conseguem convencer os argumentos comuns da falta de verbas e da ausência da

competência do Judiciário para decidir sobre a aplicação dos recursos públicos,

mormente na área da saúde, o bem maior da vida humana. Para o autor, “negar ao

indivíduo, os recursos materiais mínimos, para manutenção de sua existência pode

significar, em última análise, condená-lo à morte por inanição, por falta de

atendimento médico, etc.” (SARLET, 2001, p. 323).

Nesse diapasão, cabe ao Judiciário assumir um papel mais politizado, de

forma que não apenas julgue o certo e o errado conforme a lei, mas sobretudo

examine se o poder discricionário de legislar está cumprindo a sua função de

implementar os resultados objetivados pelo Estado Social. Ou seja, não se atribui ao

Judiciário o poder de criar políticas públicas, mas sim a responsabilidade de

compelir a execução daquelas já estabelecidas nas leis constitucionais ou

ordinárias. Dessa forma, exige-se um Judiciário “intervencionista” que realmente

ousa controlar a falta de qualidade das prestações dos serviços básicos e exigir a

concretização de políticas sociais eficientes, não podendo as decisões da

Administração Pública se distanciarem dos fins almejados pela Constituição.

203

Seguindo esse entendimento, Krell (2002, p. 98) afirma:

Num Estado Social, modelo adotado pela Carta Brasileira de 1988, o Poder Judiciário é exigido a estabelecer o sentido ou a completar o significado da legislação constitucional e ordinária que já nasce com motivações distintas às da certeza jurídica, o que o dá o papel de “legislador implícito”. Dessa maneira, a agenda da igualdade redefine a relação entre os três Poderes, adjudicando ao Poder Judiciário funções de controle dos poderes políticos.

Dessa forma, na chamada “eficácia vertical” dos direitos fundamentais, na

qual os vinculados à solução de litígios, que abordem os direitos e garantias

fundamentais, incumbem, também ao Judiciário, a tarefa de conferir eficácia aos

direitos sociais (SARLET, 2000). A decisão sobre a aplicação dos recursos públicos,

por sua direta implicação orçamentária incumbe precipuamente ao legislador, porém

deve o Juiz, na medida em que entender que o critério adotado pela administração

não é o ideal para o caso concreto e justificar tal entendimento, prestar a tutela

imediata, de tal sorte que as posições jurídicas fundamentais na esfera social

possam ser asseguradas.

3.4 O desenvolvimento humano pode prosperar na econ omia de mercado?

Em resposta a essa questão, encontra-se em Giddens (2005, p. 109-110) a

idéia de que uma nova economia mista, através da política da terceira via, possa ser

um encaminhamento positivo. Pela mesma “[...] buscar-se-ia uma nova sinergia

entre setores público e privado, utilizando o dinamismo dos mercados mas tendo em

mente o interesse público”. Para Giddens (2005, p. 109-110), existiram duas versões

da velha economia mista:

[...] Uma envolvia a separação entre Estado e os setores privados, mas com boa parte da indústria em mãos públicas. A outra era e é o mercado social. Em cada uma delas, os mercados são mantidos amplamente subordinados ao governo. A nova economia mista busca, em vez disso, uma nova sinergia entre setores públicos e privados, utilizando o dinamismo dos mercados mas tendo em mente o interesse público. Ela envolve um equilíbrio entre regulação e desregulamentação, num nível transnacional, bem como em níveis nacional e local; e um equilíbrio entre o econômico e o não econômico na vida da sociedade. O segundo é pelo menos tão importante quanto o primeiro, mas alcançado em parte por meio dele.

Anota o autor que “a questão da igualdade precisa ser pensada

cuidadosamente, de ponta a ponta” (GIDDENS, 2005, p. 110). Igualdade e liberdade

204

individual podem entrar em conflito e de nada adianta fingir que igualdade,

pluralismo e dinamismo econômico são sempre compatíveis. Movida como é por

mudanças estruturais, a desigualdade em expansão não é de fácil combate.

Defende Giddens (2005) que o modelo de igualdade neoliberal - igualdade de

oportunidade, ou meritocracia - não é sustentável. Primeiro, porque, fosse ela

alcançável, numa sociedade radicalmente meritocrática, geraria profundas

desigualdades de resultados, que iriam ameaçar a coesão social132. “Quando

margens mal perceptíveis fazem a diferença entre o sucesso ou o fracasso de um

produto, os riscos para um negócio são enormes”.

E assevera:

[...] uma meritocracia plena criaria um exemplo extremo de uma tal classe, uma classe de parias. Pois não só grupos de pessoas estariam na parte mais baixa, como eles saberiam que sua falta de capacidade torna sua situação correta e apropriada: é difícil imaginar algo mais deprimente. De todo modo, uma sociedade plenamente meritocrática não é apenas irrealizável; é uma idéia contraditória em si mesma [...] uma sociedade meritocrática tende a ser extremamente desigual no nível do resultado. Numa ordem social, os privilegiados serão fatalmente capazes de conferir vantagens a seus filhos – destruindo assim a meritocracia. (GIDDENS, 2005, p. 112).

Não obstante, Giddens (2005, p. 112) alerta que isto “não implica que

princípios meritocráticos sejam irrelevantes para a igualdade, mas significam de fato

que esses princípios não a exaurem, nem podem ser usados para defini-la.”

É o caso que muitos devem descer para outros subir. Para Giddens (2005, p.

111),

igualdade, pela nova política, é inclusão e a desigualdade é a exclusão, sendo a primeira, em seu sentido amplo, a cidadania, direitos e obrigações civis e políticos, que todos os membros de uma sociedade devem ter, não apenas formalmente, mas como uma realidade de suas vidas, e seu envolvimento no espaço público.

132 “Considere por exemplo, o fenômeno ‘o vencedor-leva-tudo’, um efeito demonstrável nos mercados de trabalho. Uma pessoa que é marginalmente mais talentosa que outra pode fazer jus a um salário maior. Um jogador de tênis ou um cantor de ópera de primeiro naipe ganham muitíssimo melhor do que aquele que não é tão bom, e isso acontece por causa do fato de um princípio meritocrático estar em operação, e não apesar dele” (GIDDENS, 2005, p. 111).

205

Numa sociedade em que o trabalho permanece essencial para a auto-estima

e o padrão de vida, o acesso ao trabalho é um contexto principal de oportunidade,

assim como a educação. Nesta esteira, quanto à exclusão, segundo Giddens (2005),

na sociedade contemporânea, duas formas vêm se destacando: a dos que estão em

baixo, excluídos do fluxo principal de oportunidades, do que a sociedade tem a

oferecer.

No topo, há a exclusão voluntária, chamada de “revolta das elites”: um afastamento das instituições públicas por parte dos grupos mais afluentes, que optam por viver em separado do resto da sociedade, em comunidades fortificadas e a se retirar da educação pública e dos sistemas de saúde públicos. (GIDDENS, 2005, p. 113).

Além disso, o preconceito étnico pode reforçar ainda mais os processos de

exclusão, a exemplo das cidades americanas, que criaram novos pobres em

Londres, Paris, Berlim, Roma e outras áreas urbanas (GIDDENS, 2005).

[...] A exclusão econômica é assim freqüentemente também física e cultural. Em áreas em declínio, as habitações se deterioram, e a falta de oportunidades de emprego produz desestímulos à educação, conduzindo à instabilidade e à desorganização sociais. Mais de 60% dos inquilinos de uma série de habitações subdivididas pelo governo em torno da cidade de Londres, o mais rico metro quadrado da Grã-Bretanha, são desempregados. No entanto, o City Airport, muito próximo dali, não consegue encontrar trabalhadores habilitados em número suficiente para suas necessidades. (GIDDENS, 2005, p. 114).

Alude Giddens (2005) que a exclusão no topo é tão ameaçadora para o

espaço público quanto a exclusão na base, e limitar essa exclusão das elites é

central para a criação de uma sociedade mais inclusiva na base. As desigualdades

de rendimento parecem estar crescendo, por exemplo, nos EUA. Sessenta por cento

dos ganhos de rendimento ao longo do período de 1980 a 1990 foram para a fração

de 1% mais bem situada da população, ao passo que o rendimento real dos 25%

mais pobres permaneceu estático, por mais ou menos trinta anos.

Citando Mickey Kaus, um jornalista político do EUA, Giddens (2005, p. 116)

alude que aquele sugere uma distinção entre “liberalismo econômico” e “liberalismo

cívico”, asseverando que o esvaziamento do espaço público pode ser revertido e

enfrentar a exclusão no topo não é só uma questão econômica.

206

O “liberalismo cívico”, ou seja, a retomada do espaço público deve ser uma

parte básica de uma sociedade inclusiva, através do cultivo bem-sucedido da nação

cosmopolita: melhorar a qualidade da educação pública, manter um serviço de

saúde adequadamente financiado, promover benfeitorias públicas seguras, controlar

níveis de criminalidade, não devendo, pois, a reforma do Welfare State, reduzir-se a

uma rede de segurança. Somente um sistema de welfare state, que beneficie a

maior parte da população gerará uma moralidade comum de cidadania (GIDDENS,

2005). Nos EUA, onde o “Welfare” assumiu conotação negativa - é dirigido em

grande parte aos pobres – os resultados são divisórios, e por isto, nessa sociedade,

a pátria do individualismo competitivo, o nível de desigualdade econômica é bem

maior (GIDDENS, 2005). O novo mantra para os políticos social-democratas, a

exemplo de Tony Blair, é “educação, educação, educação”. O investimento em

educação é um imperativo de governo hoje, como uma base essencial da

“redistribuição de possibilidades”.

Sentencia Giddens (2005, p. 127, grifo do autor) que:

a diretriz é o investimento em capital humano sempre que possível, em vez de fornecimento direto de sustento econômico, ou seja, no lugar do welfare state, deveríamos considerar o Estado do investimento social, operando no contexto de uma sociedade de welfare positivo.

Quanto à educação, Costa (2006, p. 1724) faz coro a Giddens, na medida em

que afirma que “a educação é um dos instrumentos mais importantes para a

consolidação da cidadania”, anotando a importância de redefinir-se o papel da

educação, como direito social fundamental, imprescindível à pessoa humana, no

sentido de realizar-se e tornar-se capaz de construir vínculos fortes e estáveis entre

os membros de sua comunidade, tendo por fundamento a unidade social, a

aceitação, a solidariedade e o senso de destino comum.

Prossegue a autora dizendo que:

Kant define a importância da educação para a definição do ser humano, afirmando que o homem não pode se tornar um verdadeiro homem, senão pela educação”. “Ele é aquilo que a educação dele faz”. [...] O papel da educação no mundo globalizado é indiscutível e às evidências científicas sobre suas contribuições para o desenvolvimento econômico e social do mundo moderno têm sido freqüentemente apontadas.

207

A educação não deve objetivar apenas uma suposta qualificação do trabalhador. Seu principal papel é constituir-se numa ferramenta que contribua para a formação de uma consciência crítica, capaz de dotar o cidadão de um saber que lhe permita ultrapassar as ideologias, conhecer seus direitos, lutar por eles e superar seus problemas. (COSTA, 2006, p 1724).

Veiga (2005, p. 187), por sua vez, defende que:

a sustentabilidade ambiental do crescimento e da melhoria da qualidade de vida é um imperativo global que chegou para ficar, em virtude da percepção de que a biosfera, em níveis global, regional, nacional e local, está sendo submetida a pressões insuportáveis e prejudiciais para o próprio desenvolvimento e às condições de vida.

Nesse caso, a noção de desenvolvimento sustentável, de tanta importância

nos últimos anos, procura vincular estreitamente a temática do crescimento

econômico com a do meio ambiente. Apesar do nevoeiro - ambiguidades, derrota

devido ao fim da guerra fria etc. - o generalizado emprego da expressão

“desenvolvimento sustentável” constitui sinal bastante auspicioso. Indica, entre

outras coisas, a extensão da tomada de consciência de boa parte das elites sobre a

problemática dos limites naturais. Começa a penetrar a idéia de que não se deve

perseguir o desenvolvimento tout court, mas que ele deve ser qualificado: precisa

ser ecologicamente sustentável. Por isso, a pergunta que não pode ser evitada é a

seguinte: quais são as razões que nos levam a julgar necessária essa qualificação

do desenvolvimento? Trata-se simplesmente de um aperfeiçoamento da noção de

desenvolvimento ou, ao contrário, estaríamos reconhecendo a necessidade de sua

negação/superação?

Veiga (2005) expôs evidências em favor desta última perspectiva. Procura

mostrar que a necessidade de se colocar o qualificativo “sustentável” reflete, em

última instância, o crescente esgotamento de um dos principais valores dos tempos

modernos, e não mera insuficiência da noção de desenvolvimento. E essa questão

pode ser sintetizada em resposta a três perguntas: Por que o desenvolvimento é

uma utopia? Por que a utopia do desenvolvimento é insustentável? Será que a

noção “desenvolvimento sustentável” aponta para o surgimento de uma nova

utopia? Em seu entendimento mais comum, “utopia” é algo de fantasioso ou

quixotesco. Os dicionários a apresentam como antônimo de “realidade” e sinônimo

de “ilusão” ou “sonho”. Não é, evidentemente, neste sentido que se pode considerar

208

o desenvolvimento como utopia. “Emprega-se aqui, o termo utopia em seu sentido

filosófico contemporâneo: a visão de futuro sobre a qual uma civilização cria seus

projetos, fundamentando seus objetivos, idéias e suas esperanças”. (VEIGA, 2005,

p. 193, grifo do autor).

De Marx a Hayek, passando por todas as nuances socialistas e liberais, dificilmente se encontrará uma esperança mais consensual do que o desenvolvimento. Lembra esse autor, que em 1867, no primeiro prefácio de O capital, Marx advertia que o país mais desenvolvido mostra aos que o seguem a imagem de seu próprio futuro. Quase um século depois, o balanço feito por Hayek foi o seguinte: mesmo que se possa deplorar alguns traços do desenvolvimento, como certos valores estéticos e morais, sob o prisma do padrão de vida das amplas maiorias desprivilegiadas não resta dúvida de que a tendência foi para muito melhor. (VEIGA, 2005, p. 193, grifo do autor).

Alude Veiga (2005) que o liberalismo e o socialismo foram as duas faces

ideológicas da mesma moeda.

É esta a utopia que entrou em crise depois de ter prestado grandes serviços, por dois séculos, aos mais diversos tipos de formações sociais. No chamado Norte, a crise da utopia industrializada já é profunda, mesmo que nos países do Sul, ela certamente ainda possa ter muito futuro. E é crucial conhecer as razões de seu desabamento nos países do chamado núcleo orgânico. A indústria não poderia ter se firmado sem a crescente racionalização do trabalho. Não faz mais do que uns duzentos anos que o trabalho é considerado simultaneamente um dever moral, uma obrigação social e caminho natural da realização pessoal. Essa chamada “ética do trabalho”, que impregnou todas as sociedades modernas, tem três grandes alicerces: (a) quanto mais um indivíduo trabalha, mais ajuda a melhorar a vida da coletividade; (b) quem trabalha pouco ou não trabalha, prejudica a comunidade e não merece respeito; (c) quem trabalha direito acaba tendo sucesso e quem não o alcança é por sua própria culpa. Afirma Veiga, que “esta ética está caducando”. Deixou de ser verdade que, para produzir mais é necessário trabalhar mais. (VEIGA, 2005, p. 194).

No chamado Primeiro Mundo, já foi rompida essa ligação entre mais e

melhor. As necessidades básicas dessas populações estão fartamente atendidas, e

muitas das necessidades ainda insatisfeitas não exigem que se produza mais, mas

sim, que se produza menos. Isso se deve, evidentemente, à tremenda mutação

técnica que tem sido chamada de “revolução microeletrônica”. Ela está engendrando

uma enorme redução das necessidades de trabalho e aumentando brutalmente o

tempo disponível. Paradoxalmente, é no momento em que se começa a vislumbrar

essa superação do tão falado “reino da necessidade” que se pode também enxergar,

com muita nitidez, que o planeta Terra está ameaçado e que é preciso “salvá-lo”. Ao

mesmo tempo, essa operação de salvação entra em choque com a utopia

209

desenvolvimentista. “O lixo pode ser reciclado, a água despoluída e recuperada,

bem como certos solos, mas é dificil evitar agressões à Terra a menos que

abandonemos o progresso como meta desejada por todos” (GOLDENBERG, 1989

apud VEIGA, 2005, p. 194-195).

Adverte Veiga (2005), no entanto, que vários estudiosos mostraram que os

recursos naturais do planeta não durariam muito se o mundo inteiro alcançasse o

padrão de vida dos norte-americanos. É esta a contradição que está na base da

noção de desenvolvimento sustentável. Procura-se uma solução de compromisso

entre o industrialismo ainda exigido pela periferia e o pós-industrialismo já

inaugurado no centro. Sejam quais forem os termos desse compromisso, uma coisa

é certa: a velha utopia industrializada não é mais sustentável. Todavia, a publicação

do Relatório Brundtland, se não dirimiu, pelo menos minimizou a confusão que

reinava até ali.

Enfatizou que a humanidade será capaz de tornar o desenvolvimento

sustentável, garantindo as necessidades do presente sem comprometer a

possibilidade de gerações futuras também o fazerem. Os otimistas partidários do

relatório acreditam que uma vez restabelecida a igualdade entre os custos privados

da firma e os custos que sua atividade inflige à sociedade, voltaria a haver

coincidência entre o ótimo individual e o ótimo coletivo. Assim, a procura do lucro

continuaria a ser a melhor alavanca do bem-estar social e a lógica do mercado

permaneceria sã e salva. Há quem duvide das virtudes reguladoras dos preços para

a preservação ambiental.

Alude Veiga (2005) que é preciso reconhecer que as teorias econômicas

tenderam a iludi-la ao longo dos 150 anos que separam Malthus das sombrias

previsões do Clube de Roma. Anotam-se, pois, duas tendências: os que acreditam

que o arsenal econômico pode ser aperfeiçoado para responder ao “novo” desafio e

os que consideram que a problemática ambiental coloca em xeque os próprios

fundamentos da ciência econômica. A valoração econômica dos elementos do meio

ambiente tem sido tentada como se fosse o único caminho possível para que se

alcance um planejamento de ações governamentais compatíveis com a aspiração a

um desenvolvimento sustentável.

210

E pergunta Veiga (2005, p. 205), cheio de reticências: “será que o avanço do

conhecimento cientifico provocará em tempo útil, uma nova ‘onda’ que supere o

industrialismo?” E responde: “Só é possível responder a esta pergunta com muitas

outras perguntas. No caso da economia, a chamada mudança de paradigma

científico está, no máximo, engatinhando. É isso que permite, finalmente, tentar

responder à terceira pergunta formulada no início da conclusão de Veiga em sua

obra: até que ponto a “noção de desenvolvimento sustentável” aponta para o

surgimento de uma nova utopia?”

No capitalismo passado, afirma Veiga (2005, p. 205) “uma taxa de

crescimento econômico como a “era do ouro” (1948-1973) certamente teria

consequências irreversíveis e catastróficas para o ambiente natural do planeta,

incluindo a humanidade que é parte dele. Não destruiria a terra, nem a tornaria

inabitável, mas certamente mudaria o padrão de vida da biosfera, e poderia muito

bem torná-la inabitável para espécie humana”.

Contudo, no final do século XX, os defensores das políticas ecológicas tinham razão, fossem eles ricos ou não. A taxa de desenvolvimento devia ser reduzida ao “sustentável” em médio prazo. Ninguém sabe e poucos ousam especular como se deve fazer isso. Em que níveis de população, tecnologia e consumo tal equilíbrio se tornaria possível? Uma coisa porém, Hobsbawm (1995, apud Veiga, 2005, p. 207) considera inegável. Tal equilíbrio seria incompatível com uma economia mundial baseada na busca ilimitada do lucro por empresas econômicas dedicadas, por definição, a esse objetivo, e competindo uma com as outras num mercado livre global. Ou seja, segundo ele, do ponto de vista ambiental, o futuro da humanidade com certeza não será capitalista. Mas isto não significa, como muitos ainda pensam, que esse futuro não-capitalista deva ser identificado com a utopia socialista. (VEIGA, 2005, p. 207).

Segundo Veiga (2005), é bem possível que o debate que contrapôs

capitalismo e socialismo como pólos opostos, mutuamente excludentes, seja visto

por gerações futuras como uma relíquia das guerras frias de religiões ideológicas do

século XX. Ao mesmo tempo, as diversas versões sobre o “desenvolvimento

sustentável” parecem estar, muito longe de delinear, de fato, o surgimento dessa

nova utopia de entrada do terceiro milênio. Este é o enigma que continua à espera

de um Édipo que o desvende. Como afirma Veiga (2005, p. 208), “nos últimos três

ou quatro decênios, houve uma intensa ressurreição do pensamento utópico”.

211

Seria, pois, utópico, o que defende Hawken, Lovins e Lovins (2007), de que a

solução está no reconhecimento da humanidade que o sistema capitalista

implementado até aqui não deve prosseguir, consumindo o pouco que ainda possui

a Terra, de recursos naturais, sugerindo que a próxima revolução industrial seja a do

“capitalismo natural”? Afirmam esses autores, que “o reconhecimento desse lado

sombrio do sucesso da produção industrial desencadeou a segunda das duas

guinadas intelectuais do final do século XX” (p. 4). O fim da Guerra Fria e o colapso

do comunismo foi a primeira mudança. A segunda, que atualmente emerge

discretamente, é o fim da guerra contra a vida na Terra e a conseqüente ascensão

do que denominamos capitalismo natural. Afirmam que:

o capitalismo, tal qual vem sendo praticado, é uma aberração lucrativa e insustentável do desenvolvimento humano. O que se pode designar como “capitalismo industrial” não se ajusta cabalmente aos seus próprios princípios de contabilidade. Ele liquida seu capital e chama de renda. Descuida de atribuir qualquer valor ao mais importante capital que emprega: os recursos naturais e os sistemas vivos, assim como os sistema sociais e culturais que são a base do capital humano. (HAWKEN; LOVINS; LOVINS, 2007, p. 4-5).

Segundo Hawken, Lovins e Lovins (2007, p. 8-9), “o capitalismo natural e a

possibilidade de um novo sistema industrial alicerçam-se em uma mentalidade e em

uma escala de valores muito diferentes das do capitalismo convencional”, anotando

oito fatores básicos entre seus pressupostos133, além de apresentar quatro

estratégias centrais do capitalismo natural, as quais são meios de habilitar os

países, as empresas e as comunidades a operar comportando-se como se todas as

formas de capital fossem valorizadas, garantindo uma anuidade perpétua de

133 “a) - O meio ambiente não é um fator de produção sem importância mas ‘um invólucro que contém, abastece e sustenta o conjunto da economia’; b) - Os fatores limitadores do desenvolvimento econômico futuro são a disponibilidade e a funcionalidade do capital natural, em particular dos serviços de sustentação da vida que não têm substitutos e, atualmente, carecem de valor de mercado; c) - Os sistemas de negócio e de crescimento populacional mal concebidos ou mal projetados, assim como os padrões dissipadores de consumo, são as causas primárias da perda do capital natural, sendo que as três coisas devem tentar alcançar a economia sustentável; d) – O progresso econômico futuro tem melhores condições de ocorrer nos sistemas de produção e distribuição democráticos baseados no mercado, nos quais todas as formas de capital sejam plenamente valorizadas, inclusive o humano, o industrial, o financeiro e o natural; e) – Uma das chaves do emprego mais eficaz das pessoas, do dinheiro e do meio ambiente é o crescimento radical da produtividade dos recursos. f) – O bem-estar humano é mais favorecido pela melhora da qualidade e do fluxo da prestação de serviços desejáveis que pelo mero aumento do fluxo total de dólares; g) – A sustentabilidade econômica e ambiental depende da superação das desigualdades globais de renda e bem-estar material; h) – A longo prazo, o melhor ambiente para o comércio é oferecido pelo sistemas de governo verdadeiramente democrático, que se apóiam nas necessidades das pessoas, não nas das empresas” (HAWKEN; LOVINS; LOVINS, 2007, p. 8-9).

212

valiosos processos sociais e naturais a fim de servir uma população em crescimento

de forma sensata. Desta forma, para “evitar a escassez, perpetuar a abundância e

estabelecer uma base sólida para o desenvolvimento social da administração

responsável e da prosperidade no próximo século e além” (2007, p. 9). Todavia,

interpretando a contemporaneidade, Santos (2007, p. 15) afirma que:

a partir de meados do século XIX, com a consolidação da convergência entre o paradigma da modernidade e o capitalismo, a tensão em regulação e emancipação entrou num longo processo histórico de degradação caracterizado pela gradual e crescente transformação das energias emancipatórias em energias regulatórias.

Com o colapso da emancipação na regulação, o paradigma da modernidade

deixa de poder renovar-se e entra em crise final. E, entre as ruínas que se

escondem atrás das fachadas, pode-se pressentir os sinais, por enquanto vagos, da

emergência de um novo paradigma, pois, segundo Santos (2007, p. 16),

vivemos um tempo de transição paradigmática”: A transição paradigmática tem várias dimensões que evoluem em ritmos desiguais. Distingo duas dimensões principais: a epistemológica e a societal. A transição epistemológica ocorre entre o paradigma dominante da ciência moderna e o paradigma emergente que designo por paradigma de um conhecimento prudente para a vida decente. A transição societal menos visível ocorre do paradigma dominante – sociedade patriarcal; produção capitalista; consumismo individualista e mercadorizado; identidades-fortaleza; democracia autoritária; desenvolvimento global desigual excludente – para paradigma ou conjunto de paradigmas de que por enquanto não conhecemos senão as “vibrations ascendantes” de que falava Fourier. [...] No que respeita à transição epistemológica concentro-me nos seus aspectos teóricos e metodológicos dando menos atenção às condições sociológicas que têm sido identificadas pelos estudos sociais e culturais das ciências das últimas três décadas. No que respeita à transição societal sigo o conselho de Durkheim e tomo o direito e suas articulações com o poder social como um indicador privilegiado dos dilemas e das contradições que alimentam a transição paradigmática.

O autor propõe uma “dupla ruptura epistemológica como forma de superar

este beco-sem-saída” (SANTOS, 2007, p. 107, grifo do autor). A expressão dupla

ruptura epistemológica significa que, depois de consumada a primeira ruptura

epistemológica (permitindo, assim, à ciência moderna diferenciar-se do senso

comum), há um outro ato epistemológico importante a realizar: romper com a

primeira ruptura epistemológica, a fim de transformar o conhecimento científico num

novo senso comum. Por outras palavras, o conhecimento-emancipação tem de

romper com o senso comum conservador, mistificado e mistificador, não para criar

213

uma forma autônoma e isolada de conhecimento superior, mas para se transformar

a si mesmo num senso comum novo e emancipatório. Como afirma Santos (2007, p.

107), “o conhecimento-emancipação tem de converter-se num senso comum

emancipatório:impondo-se ao preconceito conservador e ao conhecimento

prodigioso e impenetrável, tem de ser um conhecimento prudente para a vida

decente”. Além disso, afirma Santos (2007) que na era tecnológica, o conhecimento-

emancipação pressupõe uma nova ética, uma ética que, ao contrário da ética liberal,

não seja colonizada pela ciência nem pela tecnologia, mas parte de um princípio

novo. A meu ver, este princípio novo é o princípio da responsabilidade proposto por

Hans Jonas (1985). Explica Santos (2007, p. 111), “que o princípio da

responsabilidade a instituir não pode assentar-se em seqüências lineares, pois

vivemos numa época em que é cada vez mais difícil determinar quem são os

agentes, quais são as ações e quais as conseqüências”.

Diz ainda Santos (2007, p. 111-112):

Esta é uma das razões por que a neo-comunidade deve ser definida numa relação espácio-temporal, local-global e imediata-diferida. O risco do colonialismo surge, assim, numa nova escala e o mesmo sucede com as oportunidades para a solidariedade. O novo princípio da responsabilidade reside na Sorge, na preocupação ou cuidado que nos coloca no centro de tudo o que acontece e nos torna responsáveis pelo outro, seja ele um ser humano, um grupo social, a natureza, etc.; esse outro inscreve-se simultaneamente na nossa contemporaneidade e no futuro cuja possibilidade de existência temos de garantir no presente. A nova ética não é antropocêntrica, nem individualista, nem busca apenas a responsabilidade pelas conseqüências imediatas. É uma responsabilidade pelo futuro.

Como foi dito, a nova ética deve mirar o futuro, e ser responsável por seus

atos no presente. Decerto por isso já propunha Bedin (2001, p. 364-365), “a

construção de uma ordem mundial justa e solidária”, afirmando que essa hipótese

[...] depende de uma inovadora opção da humanidade pela solidariedade, pela democracia e pela paz, como sendo, por um lado, a hipótese ético-política mais legitima para a solução dos conflitos humanos e, por outro, o mais eficiente instrumento de contenção das atuais forças destrutivas da humanidade, da relativização dos fluxos econômicos que atualmente destacam as relações de consumo como sinônimo de felicidade e de flexibilização do mercado como único e exclusivo critério válido da alocação e distribuição dos recursos econômicos produzidos pela sociedade.

214

Além disso, pressupõe também uma opção por um projeto de paz positiva134

e, em conseqüência, pelo afastamento da violência, como recurso legítimo, nas

relações entre os diversos atores internacionais (BEDIN, 2001). No mais, afirma

esse autor,

deve-se indicar também o surgimento de uma nova variável, que tornou essa possibilidade ainda mais provável: a formação de um consenso ético-global mínimo, com a realização da Convenção sobre Direitos Humanos, que deu origem à Declaração e ao Programa de Ação de Viena. Com efeito, estes instrumentos legais transformaram os direitos humanos num tema global. (BEDIN, 2001, p. 365).

Assim, defende Bedin (2001), que a superação de três problemas básicos135,

somados às transformações da sociedade internacional das últimas décadas, tem-se

as condições objetivas de delinear esse novo projeto de ordem mundial, restando

apenas a necessidade de uma opção positiva da humanidade pela paz, pela cultura

da não-violência e pela solidariedade entre os povos, para trilhar esse novo e

aguardado caminho.

E por isto, acredita o autor que:

a utopia do passado pode transformar-se, para o conjunto da humanidade, numa realidade concreta em um futuro bem próximo e configurar-se num

134 Sobre a distinção entre paz positiva e negativa ver BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Tradução de Daniela Beccacia Versini. Rio de Janeiro: Campus, 2000. Ainda, ler mais, BEDIN, 2001. 135 “a) a afirmação do relativismo cultural. A afirmação do relativismo cultural sustentou tradicionalmente que “uma vez que há tantas culturas diferentes no mundo, cada qual com uma concepção potencialmente original sobre o que é a moralidade, jamais será possível chegar a um acordo acerca de uma única concepção de justiça”. Com o reconhecimento dos direitos humanos como tema global, essa afirmação torna-se insustentável, pois com esse fato criou-se um consenso ético global mínimo; b) o argumento de que o compatriota tem prioridade. Argumento que refletiu tradicionalmente “a crença amplamente difundida de que somente em relação aos membros da própria sociedade existem deveres de prestar auxílio”. Com a ampliação da noção de que a Terra é um espaço de todos e um lugar da convivência humana coletiva, esse argumento não mais se sustenta e, em conseqüência, ter-se-á, cada vez mais, a integração entre diversos povos do Planeta; c) a ausência de um poder superior aos Estados individuais ou de vinculações abrangentes mais consistentes. A ausência desses dois fatores tornou tradicionalmente “a adesão de cada um dos Estados a qualquer acordo internacional algo puramente instrumental à realização dos objetivos nacionais.” Com a crescente interdependência e como formação dos blocos regionais e de regimes internacionais específicos, essa instrumentalização dos acordos tornou-se cada vez mais difícil e, em conseqüência, um dos pressupostos fundantes do Direito Internacional Público – pacta sunt servan-da - , bem como transformou-se em um princípio ainda mais efetivo, assumindo feições de um pressuposto reitor ou dirigente das relações e das interconexões entre os diversos atores da sociedade internacional contemporânea” (BEDIN, 2001, p. 367-368, grifo do autor).

215

momento especial da humanidade em sua realização mais plena e mais humana em sua longa trajetória. (BEDIN, 2001, p. 369).

Como observa Bedin (2001, p. 369),

não se pode perder a esperança e deixar de apostar na possibilidade de construção de uma ordem mundial justa e solidária, pois aqueles que acreditam na hipótese de construção de um mundo melhor têm o dever ético, como diz Celso Lafer, lembrando Toqueville, de velar e combater.

Portanto, a resposta a este sub-capítulo é complexa, complicada, e de

inegável dificuldade, quando se analisam todos os pontos e referências do difícil

emaranhado a que se lançou o ser humano em sua longa caminhada na história.

Sim, pois o capital é móvel, é tenaz e insensível, mas não é “vida”. É criação

humana.

Ele existe porque, engendrado pelo homem, para o homem, e seu desfrute de

interesses e poder. Serve de base para o sucesso econômico e do próprio poder do

homem sobre a espécie, e ao mesmo tempo, para o fracasso do homem, como

gênero, na medida em que, a exemplo da entropia no desenvolvimento do motor

propulsor, produziu energia perdida, deixou de ser analisado sob o aspecto do

desenvolvimento humano. Assim, é certo que se haverá de buscar um capitalismo

mais humano, mais sensível, porém, para isso deveremos, certamente, nos

desenvolver e reinventarmos. Do contrário, as afirmações de Maquiavel e Hobbes

serão sempre de atualidade, nunca saindo de cena.

216

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quem é esse homem que perpassa sua própria existência, desenvolve-se e

transmuda seu ambiente, transporta-se globalmente por centenas de anos,

moderniza-se e avança de forma fantástica na guerra, no comércio e no

conhecimento, e ainda vive inseguro, com medo, com ódio, com amor, com

sentimentos contraditórios, e ainda não sabe absolutamente nada do seu futuro?

O estudo da globalização que realizamos nos indicou que o homem dotado de

inteligência e livre arbítrio, pelo próprio princípio da sua dignidade, não pode ser

visto apenas e a partir de sua animalidade, mas sim de sua humanidade, em

especial porque é ele artífice de seu próprio destino. É a única criatura que pode

mudar o curso da história, que ele mesmo produziu e está construindo no presente e

para o futuro. Decidiu-se pelo capital e a liberdade de mercado, quando poderia, por

outra razão, ter seguido outro caminho. Implementou seu destino e pode, a qualquer

tempo, modificá-lo. Por força disso e porque o mundo hoje é uma aldeia global,

mercado, dignidade humana e Estado são todos, invenção humana, estão

indissociáveis.

Uma viagem material, cultural e econômica, de inegável sucesso, essa do

homem, que perpassou centenas de eras, atravessando o globo e a partir dele,

provando que ele - o homem - não nasceu apenas para domesticar (no sentido de

doméstico) e ser domesticado, mas sim, para dominar os obstáculos, avançar

circunstancialmente, em seu caminho, para o qual, não respeita divisas nem sua

imaginação, pois, ao transcender a própria época, o fez pela cultura, conhecimento,

desenvolvimento e evolução, calcados em seu livre arbítrio, qualidade natural

217

intrínseca, que o qualifica superior aos outros animais, e que sempre o acompanhou

transcendentalmente.

O mercado, por ser um ente despersonalizado em face de ser uma criação

humana, fomenta o comércio entre nações, o qual, por si só, em nada prejudica as

relações harmoniosas entre Estados independentes.

É claro que a globalização, pelo seu viés colonizador, e demandas

imperialistas, de conquistas e domínios, demonstram o lado mais repulsivo do

homem, não do mercado, pois a busca de maior poder e ampliação desse poder, é

do homem, e não de sua criação. Nessa conclusão, basta lembrarmos das

colocações de Smith, que elogiava o comportamento dos “autênticos homens de

negócio”, em detrimento dos comerciantes que ele chamou de “empresários de

segunda classe”. Os primeiros, entendia Smith, embora buscassem a própria

vantagem e o lucro nos negócios, eram guiados por uma “mão invisível” na direção

do bem comum. Por óbvio, voltaremos a esse assunto, mais adiante, quando

tratarmos do assunto do capital, objeto do segundo capítulo. Todavia, neste

particular, como âncora, pego para concluir, salvo as circunstâncias e os conceitos,

que tais diferenças se podem conceber dos capitalistas globais, como os

“empresários de segunda classe”, de Smith, que não respeitando o mínimo da

dignidade humana, em nome do lucro sem ética, acabam dominando nações, como

foi o povo aborígine, da Austrália, os escravos, e outros exemplos ainda vivos,

atingindo no âmago, exatamente as relações interespécie, deteriorando-as. É, pois,

o incremento da globalização chamada por nós de imperialista, fundada no poder e

na riqueza, na busca na ampliação e aumento do capital, pela força, aniquilando e

subjugando raças e culturas, num autêntico crime contra a humanidade, mas

essencialmente, uma das mais torpes decisões humanas. Portanto, queremos dizer

que não é o mercado que decide os rumos da humanidade, mas os homens que a

ele comandam.

E assim chegamos à sociedade em redes, às empresas transnacionais e

globais e ao fenômeno da comunicação eletrônica via internet, a partir da década de

80, numa transcedental evolução tecnológica, que facilitou de forma absoluta a

velocidade e o tempo das coisas e das pessoas, veiculando um capital volátil

218

indomável, minimizando o absolutismo do Estado Moderno que, domesticado, já não

consegue dirigir seus comandos, nem as mínimas necessidades sociais internas,

descumprindo suas promessas de previdência e providência, e liberando os globais

ao mando e comando mundial.

O século XXI foi de inegável sucesso econômico global, tecnológico e cultural,

onde as nações, de uma maneira ou de outra, unem-se em blocos, alianças e

parcerias, na tentativa de manter-se no mercado, ao bem do povo, na procura de

divisas, na competição internacional, e verifica-se um aumento fantástico de

produção, comércio e conhecimento. A crítica, que se faz disso é que o lucro,

absorvido por essa fantástica criação, se faz em face da distribuição dele: de um

lado, para poucos, cada vez menor, e de outro lado, para muitos, um enorme

crescimento de desempregados, favelados e deserdados das comodidades que a

vida moderna lhes pode e deveria oferecer.

Chegamos ao século XXI globalizados mental e espiritualmente, época em

que a cultura do mercado e do consumo é o padrão midiatizado em massa,

deixando para trás, inclusive, os primeiros movimentos globais incrementados pelas

religiões como foi o cristianismo, budismo e protestantismo. Essa globalização, na

verdade, é humana, não apenas por transportar o homem no tempo e no seu próprio

desenvolvimento, mas principalmente, porque demonstrou, através dos

pensamentos dos filósofos, sociólogos e estudiosos passados, que ela é um produto

da própria atividade humana criadora, que, em busca da superação de seus limites

intrínsecos e extrínsecos, o fez assim.

Através do mercado, o homem desenvolveu-se, evoluiu, ampliou seus

conhecimentos e globalizou-se. Se o abstrairmos, fica em nossa mente uma

profunda indagação: como seria hoje o mundo, sem o mercado? Dificilmente,

poderíamos concluir que teríamos o pão quentinho diário e o café com leite na

mesa, apenas por solidariedade, bondade e ou por troca, se não fosse a divisão do

trabalho, e os interesses do produtor na venda de suas mercadorias, tão bem

anotada por Smith. O veículo, que usamos, a par do conforto tecnológico, é

diretamente proporcional à velocidade do tempo e de transporte desse tempo

moderno, e isto, devemos ao mercado. Defendemos que jamais teríamos

219

motivações de progredir e desenvolver a medicina, se não pudéssemos remunerar

dignamente os humanos protagonistas de tais benefícios que, com seus esforços,

buscam cada vez mais minimizar as dores dos doentes e vitimas das seqüelas

humanas.

A simples troca, embora plausível de gerar uma comunidade possível, gera

uma situação estacionária. Pensamos que é difícil de conceber motivação para o

novo, para a evolução e próprio crescimento humano. O que faz a geração de novos

inventos e novos conhecimentos, ao nosso ver, é, justamente, seus resultados, que

não nascem apenas, e tão somente, no reconhecimento, mas principalmente,

porque o homem, por sua natureza, busca a recompensa de seus esforços.

Mas por que a humanidade, ou, como visto, boa parte dela, critica o

mercado? Concluímos, em face de nossos estudos, que crítica, para ser procedente,

depende da análise e do ponto de partida ou de referência. Para os que analisam

essa questão, a partir do mercado, como se ele fosse elemento vivo, natural, e não

uma criação do homem, pensamos que a análise pode chegar a uma conclusão

equivocada. Afinal, o mais importante, neste aspecto, é que tal analise deve partir do

homem e pelo homem, porque o mercado, como criação humana e, por

conseqüência, fruto de suas decisões, pode ser recriado, e essa recriação poderá

melhorar seus resultados e, por conseguinte, os resultados mirados pelo homem. O

lucro, não é filho natural do mercado. É também um engenho humano, maior

responsável pelo desenvolvimento econômico e humano, pois o homem, por sua

natureza e como foi concebido, busca incansavelmente a satisfação pessoal, e essa,

não rara vezes, vêm pelos resultados que se traduzem em espécie, em lucro. A

critica, então, (pensamos) devemos fazer contra o sentimento humano do lucro, e

tão somente a dele e seus efeitos maléficos que o originam. Lembremos, em

conclusão, a lição de Adam Smith, quando fala da distinção entre valor de uso e

valor de troca.

Paralelamente fica claro que, se de um lado temos uma tradição liberal, de

outro lado temos o utilitarismo. Essas concepções estão marcadas pela dicotomia:

de um lado, o indivíduo, procurando sempre maximizar os resultados e sua

satisfação e de seus desejos, ou seja, o gozo da melhor e mais importante

220

liberdade, de outro, aqueles que buscam, muitas vezes pelo próprio Estado/governo,

sob o argumento do bem comum, interferir na livre ação do indivíduo. Portanto, não

devemos - ao nosso ver - fixar-nos apenas e especificamente no lucro e fazer sobre

ele um juízo ético. É preciso, pois, discutir os valores básicos da sociedade, e neles

inserir o homem, com todas suas virtudes e negatividades da própria natureza

humana. Não é a análise do bem e do mal, distintamente, como se fosse possível

distingui-la e extraí-la, como uma cirurgia simples, do ser humano. É a análise do

humano com essas qualidades intrínsecas que se fazem necessárias, como ponto

de partida, à nossa conclusão ao fito desse estudo.

Não queremos e nem podemos retornar ao tempo do feudo. Nem podemos

admitir que a riqueza, como “dom natural”, esteja destinada, como assim era, aos

senhores e ao clero, nem permitir, por óbvio, como no tempo longevo, o que durou

séculos, que a figura do comerciante era considerada desprezível. Aqui, é

importante salientar, colecionamos não apenas dois entendimentos, que nos

parecem o cerne das questões colocadas pelas lições de Adam Smith e

posteriormente, pela teoria de Marx. É justamente o conceito do valor de uso e o

valor de troca. Também o é a ética humana e o lucro. Para Marx, o valor de uso é

essencial ao produto e tem caráter basicamente subjetivo e qualitativo. Busca-se

com esse conceito, demonstrar a essencialidade do produto seja do ponto de vista

material, e de outro, sob o ponto de vista espiritual, meramente subjetivo. O valor de

troca, por sua vez, é meramente quantitativo e se insere na objetividade pura das

relações sociais.

Nesse contexto, portanto, o capital não é de todo negativo, e sua

implementação facilitou as relações internacionais e os negócios entre nações, em

contraposição às idéias planificadas, apoiadas na prática das economias fechadas,

ou quase.

Assim, chegamos ao século XXI! Nesse quadro, é possível o desenvolvimento

humano no (ou pelo) mercado, em sociedade de economias abertas?

Embora se tenha esboçado a resposta ao problema, objeto do presente

trabalho, a primeira certeza que temos é que de fato a resposta a tal pergunta tem

221

muitas facetas. Para nós, a resposta mais conveniente, embora não definitiva,

encontra-se em Kierkegaard (apud SANTOS, 2007, p. 17): “A maioria das pessoas

são subjetivas a respeito de sí próprias e objetivas – algumas vezes terrivelmente

objetivas – a respeito dos outros. O importante é ser-se objetivo em relação a si

próprio e subjetivo em relação aos outros”.

As desigualdades humanas são naturais, sendo os europeus, brancos,

superiores aos outros, estabelecendo uma hierarquia que teria no piso os negros.

Todavia, Delgado (2006) cita que Kant passa a reconsiderar essas diferenças

culturais, isto é, que os homens têm a mesma capacidade racional, intelectual e

moral, contudo, alguns não fazem uso da sua razão por preguiça ou desinteresse. .

Colocadas, pois, essas considerações, percebe-se que a humanidade, em

sua essência, peca pela sua dicotomia, estando, pois, ao longo de seu

desenvolvimento, impregnada de pré-conceitos e definições, que aos olhos dos

menos atentos, podem gerar contradições.

Foi assim durante o estudo da globalização, das teorias que envolvem o valor

do trabalho, preço da mercadoria, tempo e produção, causando sempre discussões

alongadas no espaço que medeia o conhecimento humano. Portanto, a primeira

crise a ser superada, é a da ética, nas relações de mercado, sempre tendo a pessoa

humana como ponto de referência, para que se possa dar a resposta positiva à

indagação principal.

A segunda questão que se pode apresentar, ante a complexa sociedade

humana, é a de que o lucro, não pode ser o fim único do capital, de modo que a

desconsideração venha de algum modo, “coisificar” o homem, produzindo enorme

lesão aos seus valores intrínsecos, à luz do principio da dignidade humana a partir

dos valores consagrados por Kant.

A terceira questão, é que o Estado, como ordenador e detentor do monopólio

dos direitos, deve ser forte, para que possa efetivar na sociedade humana os

princípios constitucionais que norteiam a dignidade humana, tornando eficazes seus

222

instrumentos de distribuição da justiça eqüitativa, suprindo as desigualdades,

através de cláusulas sociais compensatórias.

A quarta e principal questão à guarda do princípio da dignidade humana, é

fazer com que hajam freios inibitórios globais, de modo que uma nação de maior

potencial financeiro e hegemônico, respeite a outra, pelos princípios internacionais

da não agressão, evitando o choque armado e as guerras que tanto agridem a

humanidade, em nome do mercado e do lucro. Portanto, para a conclusão deste

trabalho o princípio da dignidade humana e seu desenvolvimento, que adotaremos,

é o mesmo que nos informa os princípios constitucionais de igualdade, assentada

em nossa carta magna, com as fundamentações filosóficas e biológicas já

exaustivamente estudados, contando que tais princípios, frente ao mercado e os

princípios neoliberais que os conduzem, possam ser efetivados através destes, e ou

através de elementos jurídicos existente.

Todavia, sabemos que nem tudo é perfeito. Até os mais ilustres filósofos e

mestres da história, demonstram a dubiedade de suas interpretações. De forma que

as teorias estudadas, o mercado, o capital e o direito estarão sempre em crise,

dependendo do olhar do intérprete, na medida em que a interpretação é ato

humano, e consolida-se através da cultura e do olhar do julgador.

Precisamos sim, diante da minimização dos Estados Nacionais, da

convivência solidária, da força do constitucionalismo, achar sentido e consolidarmos

o direito, pela cidadania, pelo desenvolvimento e pela dignidade, através de um novo

e sólido contrato social, que minimize a solidão contemporânea e nos devolva a

liberdade de bem viver, princípios básicos da felicidade, ordem e desenvolvimento

sustentável, com segurança, reestruturando a lógica do mercado como um fim, para

colocá-la como um meio para que o homem alcance uma real cidadania nesse

mundo globalizado.

223

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