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O rock como estilo vida: cenas joinvilenses dos anos 90 AUGUSTO LUCIANO GINJO Resumo Esse artigo é um fragmento de uma pesquisa em andamento que aborda cenas da Cultura Underground, em especial o rock, partindo de alguns subgêneros que compõe este estilo, na cidade de Joinville, localizada em Santa Catarina, durante a década de 1990, período em que uma grande quantidade de bandas surgem na cidade. Uma das principais características do movimento underground é a postura avessa aos costumes padronizados de alguma área, como no mundo da música. Esse movimento muitas vezes é reconhecido como “cena”, aqui entendido como um elemento que incluiu outros conceitos como “subcultura” ou “tribo” nas quais a música esteja presente, além de representar a relação da música com a geografia, espaço (STRAW, apud JANOTTI, 2012). Desta forma, a metodologia da História Oral surge como instrumento primordial nessa observação uma vez que o objeto central da pesquisa são as vozes de agentes participantes desse movimento como músicos e agitadores culturais. Pesquisa do Mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade da Universidade da Região de Joinville, intitulada “Quando os príncipes descem do “zarco” para bater-cabeça: memórias da cena de rock underground em Joinville durante os nos 1990”. Palavras-chave: Cenas joinvilenses; rock; estilo de vida, História Oral. Neste artigo serão retratadas algumas das questões basilares expostas na pesquisa em andamento vinculada ao programa de Mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade da Universidade da Região de Joinville UNIVILLE , na linha de pesquisa Memória e Sociedade, o qual investiga o movimento underground, em especial o rock, em Joinville, maior cidade do estado de Santa Catarina 1 , durante os anos de 1990. No esforço para melhor entender esses acontecimentos, temos como principais fontes de pesquisa os agentes os quais fizeram parte diretamente na construção dessas histórias musicais mantidas pelas suas memórias num “quase apagamento” dessa faceta histórica da Universidade da Região de Joinville UNIVILLE, mestrando em Patrimônio Cultural e Sociedade, apoio CAPES; 1 http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2015/12/joinville-e-cidade-mais-rica-de-santa-catarina-aponta- pesquisa-do-ibge.html;

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O rock como estilo vida: cenas joinvilenses dos anos 90

AUGUSTO LUCIANO GINJO

Resumo

Esse artigo é um fragmento de uma pesquisa em andamento que aborda cenas da Cultura

Underground, em especial o rock, partindo de alguns subgêneros que compõe este estilo, na

cidade de Joinville, localizada em Santa Catarina, durante a década de 1990, período em que

uma grande quantidade de bandas surgem na cidade. Uma das principais características do

movimento underground é a postura avessa aos costumes padronizados de alguma área, como

no mundo da música. Esse movimento muitas vezes é reconhecido como “cena”, aqui

entendido como um elemento que incluiu outros conceitos como “subcultura” ou “tribo” nas

quais a música esteja presente, além de representar a relação da música com a geografia,

espaço (STRAW, apud JANOTTI, 2012). Desta forma, a metodologia da História Oral surge

como instrumento primordial nessa observação uma vez que o objeto central da pesquisa são

as vozes de agentes participantes desse movimento como músicos e agitadores culturais.

Pesquisa do Mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade da Universidade da Região de

Joinville, intitulada “Quando os príncipes descem do “zarco” para bater-cabeça: memórias da

cena de rock underground em Joinville durante os nos 1990”.

Palavras-chave: Cenas joinvilenses; rock; estilo de vida, História Oral.

Neste artigo serão retratadas algumas das questões basilares expostas na pesquisa em

andamento vinculada ao programa de Mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade da

Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE –, na linha de pesquisa Memória e

Sociedade, o qual investiga o movimento underground, em especial o rock, em Joinville,

maior cidade do estado de Santa Catarina1, durante os anos de 1990.

No esforço para melhor entender esses acontecimentos, temos como principais fontes

de pesquisa os agentes os quais fizeram parte diretamente na construção dessas histórias

musicais mantidas pelas suas memórias num “quase apagamento” dessa faceta histórica da

Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE, mestrando em Patrimônio Cultural e Sociedade, apoio

CAPES; 1 http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2015/12/joinville-e-cidade-mais-rica-de-santa-catarina-aponta-

pesquisa-do-ibge.html;

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cidade catarinense. Sendo assim, a metodologia da História Oral é um instrumento primordial

na realização dessa pesquisa uma vez que, segundo Verena Alberti, este processo tem como

peculiaridade privilegiar a recuperação do vivido conforme concebida por quem viveu, tendo

em vista a íntima postura do método em relação à história e às configurações socioculturais

(ALBERTI, 2005: 23).

Reiterando ainda a importância do método para o desenvolvimento do trabalho

referido neste artigo, buscamos na historiadora Sônia Maria de Freitas um maior

esclarecimento acerca do procedimento ao afirmar que “História Oral é um método de

pesquisa que utiliza a técnica de entrevista e outros procedimentos articulados entre si, no

registro de narrativas da experiência humana.” (FREITAS, 2006: 18).

Tratando-se de uma discussão desenvolvida em um programa de mestrado em

Patrimônio Cultural e Sociedade, com uma vertente interdisciplinar, é importante elucidar

que, muito além da investigação acerca do movimento de rock underground na cidade de

Joinville durante os anos 1990, encontramos da música um grande fenômeno cultural,

presente desde os primeiros passos dos seres humanos em terra. A música, de acordo com

Robson Poreli Moura Bueno, possui um caráter subjetivo, abstrato e intangível, sendo a

linguagem artística mais adequada para expressar a irracionalidade e o eu do artista (BUENO,

2007: 143). É parte da essência do homem, uma manifestação da alma.

Nesse sentido, o professor Montanari (MONTANARI, 1993: 06) reforça:

Aceitando o conceito contemporâneo de música, podemos afirmar que ela sempre

existiu, eventual e aleatoriamente, na natureza (nos trovões, cachoeiras, cantos de

pássaros e todos os topos de vibrações audíveis emitidas por seres naturais, vivos

ou não).

Ou seja, pela sua presença nas sociedades e pela sua possibilidade tanto de se

configurar na imaterialidade (sonoridades, composições, ritmos, estilos, saber fazer, culturas)

e materialidade (instrumentos, partituras, arquivos musicais, recitais, gravações), a música é

patrimônio da humanidade.

Contudo, assim como o mundo passou por constantes transformações a música seguiu

o mesmo ritmo. O século XX apresentou constantes mutações, principalmente nas formas de

entretenimento que se ampliaram e a música ganha um novo status. Para exemplificar, ainda

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na década de 1920 já existia no mundo uma forma centralizadora de publicação musical

através da sonoridade dos gramofones onde as empresas Victor/EUA e

Gramaphone/Inglaterra representavam as principais marcas, e pelo advento do rádio que

modificou consideravelmente as relações entre atividades do dia-a-dia e a música

(CARDOSO; JANOTTI, 2006: 05).

Quando o gênero musical Rock and Roll abre espaços, a partir de 1950, já existia um

mercado fonográfico bem estabelecido e conforme Cardoso e Janotti já no século XIX “a

maioria da produção e publicação musical encontrava-se nas mãos de promotores, editores

comerciais, gerentes de teatro e casas de shows” (CARDOSO; JANOTTI, 2006: 05).

Evidenciar esse contexto é relevante para mais adiante compreendermos o surgimento

do movimento underground, especialmente na música.

Quando a música encontra sustentação para sua divulgação através dos meios

oferecidos pela indústria fonográfica, obtendo êxitos comerciais ao atingir cada vez mais um

maior número de ouvintes é quando podemos afirmar que a assume um status de popular. Sua

divulgação desenvolveu-se através do cinema, rádio, TV. Este cenário se intensifica durante o

pós-guerra com o surgimento do gênero, como vimos acima, que marcaria o século XX, ou

seja, o Rock and Roll (CARDOSO; JANOTTI, 2006: 06).

O Rock popularizou-se com a força midiática proporcionada pela indústria

fonográfica. Embora tenha surgido em um contexto onde servia de trilha sonora para jovens

descontentes com os preceitos estabelecidos pela sociedade em que viviam o Rock passa a

representar um grande produto de consumo, sucumbindo ao status quo vigente.

É nessa conjuntura em que surgem as práticas denominadas underground. Uma

melhor explicação é dada por Máira Nunes e Otacílio Vaz (NUNES; VAZ, 2015: 02):

Neste sentido, o underground caracteriza-se por uma proposta subversiva de

oposição à ordem social. Carrega em si elementos críticos da cultura e sociedade,

uma vez que se opõe ao status quo e questiona a cultura massiva e mercantil e,

neste sentido, aproxima-se das análises da teoria crítica dos meios de comunicação,

estabelecendo uma contradição para a chamada indústria cultural. Nesta

perspectiva, a produção cultural está enquadrada em padrões estabelecidos pelos

interesses do mercado sendo o termo underground, portanto, cunhado a partir

demarcação de um campo cultural mainstream que força e delimita um outro campo

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oposto, de resistência e intermediação de estruturas de mercado como as oferecidas

pelos meios de comunicação de massa.

Em outras palavras, o mainstream citado acima representaria toda rede de

possibilidades oferecidas pelos meios de comunicação para elevar a popularização e,

consequentemente, o consumo de uma banda, grupo ou música. Esses recursos de divulgação

como propagandas, rádio e TV eram facilmente acessados pelas grandes gravadoras. O

underground, por sua vez, age contrário ao cenário estipulado pela indústria fonográfica,

questionando essa conduta mercantilista da música. Nesse sentido, para Pablo Ornelas Rosa o

pop rock existe justamente por possuir enormes espaços na mídia, redes televisivas, rádios,

grandes gravadoras e merchandising, enquanto o underground quase não é divulgado pela

mídia corporativa, existindo muitas vezes de forma independente e sem grandes recursos

(ROSA, 2007: 43).

Portanto, o rock underground não está representado apenas por um estilo musical,

visto que, uma vertente do Rock que mais contribuiu para a sua perpetuação como

manifestação underground, poderíamos afirmar, é o Punk Rock.

O Punk se manifesta como uma expressão musical, nos anos 1970, novamente como

uma ruptura ante o marasmo e o excesso de técnica apresentado pelas bandas daquele período

e teve nos grupos Ramones (EUA) e Sex Pistols (Inglaterra) seus maiores expoentes

(GRANDE, 2006: 122). Assim, essa nova visão de mundo, elencada com atitude e estilo,

evidenciados nas roupas e comportamentos, tiveram raízes nos dois lados do Atlântico

(FRIEDLANDER, 2006: 352).

O historiador Paul Friedlander esclarece o que foi o Punk (FRIEDLANDER, 2006:

352):

O Punk foi um estilo heterogêneo, compreendendo uma miscelânea complexa de

ingredientes e orientações, que se espalhou sobre uma infinidade de artistas. A

música era conduzida por um ritmo frenético levado por todo o grupo. Palavras

eram vomitadas por vocalistas sem noções prévias de tom e melodia. A maioria das

letras refletia sentimentos em relação à sociedade corrupta e em desintegração e à

situação difícil dos companheiros da subcultura. A música e as letras revelam uma

atitude de confrontação que refletia graus variados de ódio justificado, performance

técnica, exploração artística do choque de valores e intenção de renegar as

instituições oficiais de produção de música.

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Estilo, atitude, desempenho e provocação faziam parte da cartilha do Punk Rock e fez

com que este estilo entrasse de vez nos grandes gêneros do Rock. Contudo, o que precisamos

ressaltar aqui, e que é de extrema valia para as discussões realizadas na pesquisa a qual este

artigo se relaciona é que, juntamente com o Punk, surge nesse contexto à expressão “do it

yourself”, ou melhor, “faça você mesmo”.

A prática do “faça você mesmo” consiste resumidamente em encontrar meios para

divulgar um trabalho, no caso, musical. É parecido, muitas vezes, com a própria postura do

movimento underground que vimos acima. Todavia, parece ser mais uma intensificação das

práticas adotadas pelo under.

As estratégias do “faça você mesmo” já estavam presentes e foram incorporadas pelo

movimento Punk, como produzir música de forma independente, gravar seus próprios discos,

organizar shows e criar possibilidades de divulgar e difundir todos esses materiais, de forma

autentica e autônoma (NUNES; VAZ, 2015: 07).

É nesse encontro de ideias que muitas vezes o movimento underground confunde-se

com música alternativa ou independente em função das práticas adotadas. Fato é que para

uma geração de bandas que viriam a nascer após a explosão do Punk e, consequentemente,

dos recursos do “do it yourself”, os meios alternativos e independentes tornaram-se requisitos

básicos para suas existências.

Cenas Joinvilenses dos anos 90.

Joinville carrega o status de maior cidade do estado de Santa Catarina, tanto do ponto

de vista econômico como populacional. Localizada no nordeste do estado, a história da cidade

está relacionada com uma forte leva de imigrante germânicos que chegaram à região na

metade do século XIX. Uma vez instalados e tendo contribuído para o desenvolvimento da

região, a figura dos imigrantes sempre foram invocadas e relacionadas com a prosperidade

econômica industrial da cidade ao longo de sua trajetória.

A historiadora Ilanil Coelho, a qual possui um estudo sobre a cidade em questão, nos

explica (COLEHO, 2011: 37):

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A propaganda tradição alemã sempre se ancorou no passado da imigração

germânica da cidade. Por seu intermédio, explicaram-se o progressos, a

industrialização, a ordem, a disciplina, a limpeza e a riqueza cultural, elementos

recorrentes em algumas narrativas históricas. Conforme escreveu, em 1986, o

historiador joinvilense Apolinário Ternes, o imigrante do século XIX é considerado

“um vencedor”, pois “mesmo enfrentando situações insólitas” a sua força física e

moral venceu “a natureza inóspita, as doenças, a falta absoluta de quase tudo”.

Isso graças ao seu “perfil psico-social”: “os alemães que para cá vieram, [...],

pertenceram à Alemanha mansa e pacífica, dotados de espírito superiormente

refinado e, por isto mesmo, culturalmente evoluídos”. Disso resultou a criação das

primeiras sociedades culturais, os bons costumes, a organização e a disciplina tão

característica desses imigrantes. Joinville seria, portanto, tributária aos seus

antepassados, pois graças a eles poderia se orgulhar de seus adjetivos laudatórios.

Aproximando cronologicamente para o recorte de pesquisa, ou seja, a década de 1990,

percebemos que Joinville já havia passado por mudanças. Todavia, ainda nesse período, tendo

em vista o impulso dos fluxos contemporâneos, como os migratórios, e na polifonia da

cidade, havia uma intensão de reforçar a ideia de Joinville como uma cidade alemã

(COELHO, 2011: 19).

É nesse contexto, considerando os meios alternativos de se fazer música juntamente

com as características da cidade que buscamos compreender como se realizaram as cenas

musicais de Joinville nos anos de 1990, especialmente o rock.

Inúmeras bandas surgiram no final dos anos 80 e início dos anos 90 na região. Para

citar alguns exemplos temos bandas como Atrito, H2O, The Power of the Bira, Tormento dos

vizinhos, Vacine, Butt Spencer Schnaps, Os legais, A-77, Camisa de força, Contagem

regressiva entre outras2. Um dos nossos entrevistados, hoje advogado e professor universitário

Nielson Modro3, nos conta que no final dos anos 80, em função da abertura política e do Rock

in Rio, houve o surgimento de muitas bandas no Brasil, inclusive em Joinville. Ele diz “[...]

eclodiu o rock no Brasil inteiro. Joinville não foi diferente. Final dos anos 80 Joinville tinha

pelo menos umas 150 bandas nas garagens ai das casas”.

2 Um dos maiores acervos online sobre bandas da região norte de Santa Catarina é o blog

www.joinroll.blogspot.com.br. O blog foi idealizado pelo músico e produtor cultural Edson Luís de Souza, um

dos fundadores da banda The Power of the Bira e que também foi entrevistado para esta pesquisa; 3 Nielson Modro foi colunista do Jornal A Notícia do final dos anos 1980 até início dos anos de 1990. Através da

Coluna “Acordes” Nielson ajudava a divulgar o trabalho das bandas locais. (entrevista realizada em 31 de março

de 2016);

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Abordamos aqui o conceito de cena do qual nos apropriamos para buscar compreender

os temas em questão. Para Ricardo Neumann, historiador que também estuda o rock

alternativo na região norte de Santa Catarina, as cenas podem ser definidas, resumidamente,

como práticas culturais (NEUMANN, 2015: 01). De acordo com Cunha (2014 apud

NEUMANN, 2015) uma cena pode ser caracterizada tendo como base uma modalidade

cultural que lhe confere significado, como por exemplo, uma cena musical, teatral ou literária.

Essas cenas musicais alternativas podem ser consideradas um fenômeno cultural que surgiu

em diferentes partes do mundo no decorrer dos anos de 1980, a partir do momento em que

bandas se organizaram para buscarem outra forma de organização (NEUMANN, 2015: 01).

Os conceitos de cena adotados por Neumann, fundamentados nas ideias do historiador

canadense Will Straw, compreende a cena para além da ideia de cidadão consumidor-objeto,

considerando a participação direta das pessoas na produção e circulação de conteúdo

(NEUMANN, 2015: 02).

Em outro momento, Straw também considera que o conceito de cena tenha se

desenvolvido em duas frentes nos últimos anos. Em um lado representa um conjunto de

termos nos quais “subcultura”, “tribo” e outras unidades sociais/culturais nas quais se acredita

que a música esteja presente. Por outro lado, recorra-se a cena na tentativa de aproximar

teoricamente a música com a geografia, o espaço (JANOTTI, 2012: 03).

É preciso ressaltar que em sua grande maioria as bandas joinvilenses adotaram as

práticas realizadas pelos movimentos alternativos ou independentes conhecidos pelo

underground.

A cidade não viu uma cena organizada de uma forma intencional, ou seja, idealizada

previamente. Contudo, o que se viu foi diversos grupos de pessoas que, por partilharem dos

mesmos gostos, involuntariamente constituíram um movimento em Joinville. Para Rafael

Zimath4, atualmente advogado e músico, é possível dizer que a cidade teve uma cena de

música alternativa nos anos 1990. Nesta época, Rafael fez parte de umas das bandas mais

referenciadas do período o qual a pesquisa em questão se debruça, o Butt Spencer.

Ele afirma que em seu entender o que acontecia durante os anos 1990 foi uma

construção formada por vários componentes que, juntos, estabelecia uma estrutura. Eram as

bandas que trocavam ideias com outras bandas, faziam eventos juntos, muitas vezes de

gêneros diferentes, construindo um convívio.

4 Rafal Bello Zimath (entrevista realizada em 03 de março de 2016);

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A grande parte das bandas constituídas nesse período em Joinville era formada por

jovens no início da adolescência que descobriram as bandas de outros lugares do mundo.

Rafael Zimath afirma que a grande maioria dos grupos era formada por pessoas da classe

média.

Em uma época onde a internet praticamente não existia a saída era trocar pessoalmente

cada nova descoberta. O músico e agente cultural Edson Luís de Souza5 nos conta que no

início, um grupo de amigos, quando conseguia uma gravação de uma banda que eles ainda

não tinham logo arrumavam uma forma de fazer uma cópia de distribuir entre todos. Edson

dos relata:

Por questão de gosto foi... daí na turma um conseguiu uma gravação, outro

conseguiu outra, tinha um vizinho lá desse meu amigo da Max Colin que era um

cara mais velho, fazia Medicina na época, não lembro o nome dele, mas ele devia

ter época... a gente tinha uns 14 anos ele tinha sei lá uns 25, ele tinha alguns discos

do Dead Kennedys, Sex Pistols, Ramones, algumas coisas mais alternativas assim

no punk, Ratos de Porão, que na época isso não chegava em Joinville assim né? Daí

ele emprestava pra nós, só que ele era meio assim: “Ó, eu empresto pra vocês, mas

vocês tem que me devolver amanhã” pegava aquele disco e fazia umas 10 fitas

direto assim sempre devolvia no prazo que o cara pediu.

Era comum também, conforme cita Edson na mesma entrevista que, em determinado

momento, ao chegar mais próximo da maioridade, os grupos de amigos começaram a se

reunir em praças ou em festas para ouvir música e trocar informações.

As bandas que se formaram em Joinville não possuíam unicamente um estilo. Embora

todas eram do Rock, cada uma envergava-se por uma vertente como o Punk, o Hard Rock, o

Heavy Metal, Pós-Punk, Trash Metal entre outros. Ainda na mesma entrevista citada

anteriormente, Edson Luís de Souza lembra que a primeira vez que organizou um show

contou, em um mesmo evento, com bandas de vários estilos, entre elas Punk Rock, Metal,

Rock Progressivo e Pop Rock.

Os eventos realizados pela cena musical joinvilense foram práticas de um movimento

alternativo e independente externados pelo “faça você mesmo”. Segundo Marcos Maia6, que

durante os anos 1990 foi integrante das bandas The Power of the bira e Sanchez, os eventos

5 Edson Luís de Souza (entrevista realizada em 18 de fevereiro de 2016); 6 Marcos Maia (entrevista realizada em 16 de fevereiro de 2016);

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eram organizados da forma mais colaborativa possível. Depois de encontrar um local para

fazer um show, os músicos colavam cartazes pela cidade, divulgavam flyers e falavam para os

mais próximos. No dia do show, cada banda dava um jeito de contribuir com um

equipamento. A intenção era tocar e se divertir, tudo pela música.

Exemplificando ainda mais como acontecia a organização dos eventos, Rafael Zimath7

descreve:

(...)Era exatamente isso, como não tinha nenhum espaço disponível pra realizar

esses eventos, a gente tinha que ocupar os espaços que tinham na cidade... E esses

espaços eram espaços alternativos assim, não eram espaços próprios para shows

assim, então era associações de bocha, de bairro, enfim, que a gente tinha que

pegar equipamentos ir pra lá montar, a gente mesmo montava, a gente mesmo

carregava, não tinha técnico de som, as bandas mesmo entre si cuidavam do som

uma da outra, o cara estava tocando lá “ ah, aumenta o vocal” e o outro ia lá

aumentar, e como tem muito desses espaços ainda hoje em Joinville, naquela época

a gente notava que tinha muito espaço ocioso assim, então chegava lá falava com o

tiozinho “Oh, o seguinte: a gente quer alugar ai pra fazer um show”, “Mas que

show que é?” “É rock! ” “É pesado? ” Daí gente dizia ” não, não é pesado” o cara

“ tão ta bom” “quantos vocês vão cobrar? “ “ vocês querem me dar a parte da

porta ou querem alugar?” , “Não a gente quer alugar!”, dai a gente alugava e

ficava com todo o resultado ou com o prejuízo da bilheteira, então era assim que

funcionava(...).

Os espaços para realizar os shows eram os mais variados possíveis. Segundo José

Carlos de Sousa8, frequentador da cena alternativa de Joinville e também sócio-proprietário da

Casa do Rock9, os shows poderiam acontecer desde em associações de bairro até em salão de

igreja. Ele nos conta de um show de Metal que aconteceu em um salão paroquial de uma

igreja de Joinville.

A relação do espaço e da geografia com a cena, conforme uma das direções apontadas

por Will Straw para chegar a um conceito sobre o tema nos últimos anos também é uma das

hipóteses da pesquisa a qual este artigo se refere. Como vimos, Joinville é referência do setor

7 Rafal Bello Zimath (entrevista realizada em 03 de março de 2016); 8 José Carlos de Sousa (entrevista realizada em 02 de abril 2016); 9 A Casa do Rock foi um bar que existiu em Joinville durante os anos 1990 o qual serviu de espaço para shows

para muitas bandas alternativas da cidade e região. O bar estava localizado no Bairro Glória, um tradicional

bairro de Joinville;

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industrial no sul do Brasil e, embora atualmente possamos perceber uma pluralidade maior na

cidade, durante os anos 1990, a presença de um discurso desafinado revivendo os traços

germânicos era evidente.

Ao serem questionados sobre a relação da cidade de Joinville, carregada pelos

símbolos da cidade industrializada e construída por germânicos, e o desenvolvimento da cena

de música alternativa os músicos apresentam diferentes pontos de vista. Rafael Zimath10 nos

conta que achava, na época, a cidade muito conservadora, pequena e pouco aberta para novas

ideias. Era monótona e baseada em um pensamento “padrão”. Para o músico isso foi uma

influencia no sentido de buscar outras formas de expressão e de dizer que outras coisas

estavam acontecendo. Afirma que na banda em que tocou (Butt Spencer) muitas dessas ânsias

por novidades eram retratadas nas letras das músicas.

Por outro lado, Rafael esclarece que o fato da cidade ser considerada também como

em espaço de gente trabalhadora influenciou positivamente a cena. A seu ver, isso contribuiu

para as coisas acontecerem de forma mais organizada. Em suas palavras:

Eu acho que influenciou, e eu acho que paradoxalmente ou ironicamente

influenciou inclusive o pioneirismo talvez, ou ainda a maneira bem sucedida como

essa cena se estruturou nos anos 90, justamente por esse senso de organização

entendeu? Essa coisa de empreender, de se organizar de fazer acontecer e tal, eu

acho que são traços desse povo.

Para José Carlos de Sousa11, partindo do olhar de quem foi proprietário de um espaço

para shows de rock na cidade, Joinville pareceu ser um campo meio hostil. Em sua entrevista,

José nos conta que em função da Casa do Rock existir em um bairro tradicional ele sofreu

muito com retaliações dos vizinhos e demais moradores da região. Ele nos conta que para

muitos moradores ele era considerado um traficante local, além de afirmar que para os

vizinhos o bar que ele possuiu pouco contribuiu. Todavia, não se arrepende de forma alguma

e acredita ter contribuído muito para o acontecimento da cena.

10 Rafael Bello Zimath (entrevista realizada em 03 de março de 2016); 11 José Carlos de Sousa (entrevista realizada em 02 de abril 2016);

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Marcos Maia12 nos dá outra visão. Em seu entendimento as características da cidade

pouco influenciaram as bandas e o desenvolvimento da cena. O que estava mais em evidência

era a vontade de fazer música, de trocar informações sobre bandas, de se divertir.

Portanto, as falas dos atores que compuseram a cena musical de rock alternativo e

independente de Joinville, conforme recortes de entrevistas propiciam a possibilidade de

compreender como o underground local foi acontecendo e evidenciando um lado da cidade

apagado pela história oficial marcada pela trajetória da pujança econômica amalgamada ao

trabalho industrial e à tradição cultural germânica. A importância das fontes orais para

encontrar respostas é significativa, pois os entrevistados representam as vozes mais próximas

dos eventos estudados, ensejando novas discussões acerca da cultura, da música, da cidade.

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<http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2006/resumos/R1409-1.pdf>. Acesso em: 13

de março de 2016.

12 Marcos Maia (entrevista realizada em 16 de fevereiro de 2016);

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COELHO, I. Pelas tramas de uma cidade migrante. Joinville, SC: Editora da Univille, 2011. 280

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